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32º Encontro Anual da Compós, Universidade de São Paulo (USP). São Paulo - SP. 03 a 07 de julho de 2023
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Resumo: Este artigo propõe uma releitura do processo de apropriação cultural, tendo por
base o funcionamento da memória cultural não hereditária da cultura, tal como foi
formulada pelo semioticista Iuri Lotman. Segundo tal perspectiva, a extorsão
sígnica pode estar relacionada a uma tipologia cultural específica, caracterizada
pela lógica binária (LOTMAN, 1999, 2022), em que uma cultura visa impor o
esquecimento como forma de destruição de outra. Trata-se, assim, de uma ação que
age, fundamentalmente, sobre a memória. Como forma de discutir empiricamente
esse processo, será realizado o reexame da tentativa de expropriação cultural de
três textos culturais relacionados à cultura afro-brasileira por parte de diferentes
segmentos do cristianismo evangélico. Com isso, objetiva-se elucidar de que
maneira a apropriação implica uma disputa sobre a memória presentificada em
distintos sistemas de linguagens.
Abstract:
This paper proposes a reinterpretation of the process of cultural appropriation,
based on the functioning of the non-hereditary cultural memory of culture, as
formulated by the semiotician Iuri Lotman. According to this perspective, the
extortion may be related to a specific cultural typology, characterized by binary
logic (LOTMAN, 1999, 2013), in which one culture aims to impose oblivion as a
way to destroy forgetfulness as a form of destruction of another. It is, therefore, an
action that acts, fundamentally, on memory. As a way of empirically discussing
process, we will reexamine the attempt of cultural expropriation different segments
of evangelical Christianity, of three cultural texts related to the Afro-Brazilian
culture. With this, the objective is to elucidate how appropriation implies,
fundamentally, a dispute over the memory present in different language systems.
1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Estudos de Memória e Comunicação do 32º Encontro Anual da
Compós. Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, 03 a 07 de julho de 2023.
2
Profa. do PPG em Comunicação da UFRB e do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e
Sociedade da UFBA, Dra. em Comunicação e Semiótica, regianemo@ufrb.edu.br.
3
Prof. do PósCom da UFBA, Dr. em Comunicação e Semiótica, fabiosadao@gmail.com.
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1. Introdução
Cada vez mais, o debate sobre apropriação cultural ganha espaço em diferentes
esferas das artes e da comunicação. Como aponta William (2020), trata-se de uma das formas
em que o racismo estrutural e sistêmico ganha concretude, pela qual se criam condições para
que a produção cultural e simbólica de grupos “racialmente identificados” (ALMEIDA, 2022,
p. 51) sejam sistematicamente invisibilizadas e, por consequência, os sujeitos vinculados a
elas.
Ainda segundo o autor (WILLIAM, 2020), qualquer fenômeno relacionado à
apropriação implica, necessariamente, uma relação desigual entre diferentes culturas, em que
o hegemônico incorpora ou se apropria de traços relacionados à coletividade subalterna, das
quais decorre o esvaziamento de sentidos já existentes e a imposição de outros. Trata-se não
apenas do “desvirtuamento de significados”, mas, sim, de “concorrer para o genocídio
simbólico de um povo” (WIILIAM, 2020, p. 49) que, no Brasil, teve e tem como alvo central
as culturas negra e indígena. Com isso, há a tentativa de apagamento da “origem dos
componentes culturais”, pelos quais se torna possível a “reconstrução de identidades”
(WILLIAM, 2020, p. 120) e a constituição do sentido de pertencimento a uma coletividade, o
que torna a apropriação um importante instrumento de poder.
Por meio dessa síntese, nota-se a presença de dois aspectos que não podem ser
apartados de qualquer abordagem sobre a apropriação: a ação unilateral de uma cultura em
relação a outra e a ressignificação. Aliado a eles e, para além da questão da origem,
gostaríamos de pontuar outro mecanismo que, a nosso ver, não pode ser desconsiderado: a
memória da cultura, uma vez que a apropriação implica, necessariamente, a ação de uma
coletividade sobre outra, na tentativa de impor o apagamento de sua memória e, por
consequência, dos agenciamentos e sentidos que ela é capaz de suscitar.
Em consonância com o semioticista da cultura Iuri Lotman (1996, 1998, 2000),
situamos a memória não apenas pela sua capacidade de “armazenar” e “transmitir”
informações, mas, sobretudo, pelo modo como amplifica e expande sentidos e gera novos
textos na cultura. Em conformidade com essa linha de raciocínio, no processo de apropriação,
à tentativa de apagamento da memória de uma cultura por outra há, paralelamente, a
resistência imposta pela mesma memória que, segundo Lotman (1996, 1998, 2000), subsiste
nos próprios sistemas de linguagem. Não se trata, como indica Kilomba, de “romantizar a
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opressão”, mas, sim, apreender em que medida aquilo que é colocado à “margem” por
estruturas de poder é tanto “um espaço de perda e privação” quanto um “espaço de resistência
e possibilidade” (2019, p. 68).
Assim, neste artigo, interessa-nos discutir a contribuição que o pensamento semiótico
de Lotman e da Escola de Tártu-Moscou pode oferecer para a apreensão do funcionamento
semiótico dos processos de apropriação, considerando a ação exercida pela memória cultural
não hereditária. Ao longo de toda a sua obra, Lotman situa a cultura como linguagem, texto e
memória, aspectos que não podem ser dissociados de qualquer tentativa de compreensão do
“como”, pela extorsão cultural, ocorre a imposição de significados pela “exploração de
elementos de uma cultura” (WILLIAM, 2020, p. 53), que podem ganhar materialidade por
meio de diferentes formas de configuração de linguagem. Tal discussão envolve,
necessariamente, a dimensão semiótica das culturas, bem como o vínculo indissociável entre
cultura e comunicação, uma vez que implica relações entre diferentes arranjos sígnicos e a
complexidade que caracteriza a produção de sentidos entre distintas esferas culturais.
Para proceder a discussão, tomaremos por base a tipologia da cultura proposta por
Lotman, como forma de elucidar de que maneira a sujeição imposta por uma cultura a outra
pode ser apreendida segundo a lógica de funcionamento das culturas/estruturas binárias, às
quais visam impor, justamente, o esquecimento sobre a memória. Em especial, discutiremos
um modo muito específico de funcionamento da apropriação, o qual simula a transformação
de um texto de uma dada cultura numa espécie de receptáculo de um sentido imposto por
outra, na tentativa de transformá-lo em um não-texto para, com isso, articular o processo da
“fala roubada”, tal como foi proposto por Barthes (1978). Segundo nossa perspectiva, tal
mecanismo explicita, justamente, a maneira como uma cultura visa substituir significados
vinculados a textos culturais já existentes, de modo a promover seu esvaziamento e, por
consequência, o apagamento da memória relacionada a determinados arranjos sígnicos.
Como forma de discutir empiricamente o fenômeno da apropriação, tomamos por
objeto alguns textos culturais que já se tornaram emblemáticos desse fenômeno, que tanto
foram citados por William (2020) quanto foram noticiados por veículos de imprensa: o
“bolinho de Jesus”, o “bloco de Deus/ Jesus” e a “Capoeira gospel”/ “Capoeira evangélica”.
Mais especificamente, nos reportamos a um post da rede de coletivos Jornalistas Livres,
veiculado no dia 22 de fevereiro de 2023, em que todas essas manifestações foram nomeadas
como “apropriação” e “racismo cultural e estrutural”. Inclusive, tal post faz alusão direta a
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uma matéria veiculada na Folha de S. Paulo, no dia 19 de fevereiro de 2023, sobre o desfile
de “blocos evangélicos” durante o carnaval.
Em comum, todas elas são vinculadas à cultura afro-brasileira, ao passo que o agente
da apropriação são as igrejas neopetencostais ou o chamado cristianismo evangélico, tal
como foi denominado por Spyer (2020). A despeito da diversidade desses grupos (SPYER,
2020), o que os impede de serem tomados como uma totalidade homogênea e cujas
especificidades não serão foco de discussão deste trabalho, interessa-nos indicar de que
maneira determinadas ações desses segmentos se dão em consonância com a lógica binária e
como atuam no processo de apropriação cultural e, por consequência, na imposição do
esquecimento sobre a memória das populações afrodescendentes.
Por fim, cumpre ressaltar que a discussão aqui proposta também é fruto do diálogo
que nós, docentes de universidades públicas cuja maioria dos(as) estudantes são
autodeclarados(as) negros(as) e pardos(as), temos enfrentado no cotidiano da sala de aula.
Cada vez mais, o tema nos é colocado por jovens pesquisadores(as) que tanto sofrem com os
efeitos nefastos do racismo e da apropriação quanto almejam compreender e investigar a
contribuição que a semiótica da cultura, por meio do diálogo com autores e autoras negras
que se voltaram para o estudo da apropriação, pode oferecer para o debate. São indagações e
problemas que emergem com a mudança do perfil do(a) estudante de nível superior que,
felizmente, tem levado para dentro da universidade questões que, historicamente, sempre
estiveram alijadas dela.
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No original: “(...) [los] universales comunes de la cultura de la humanidad”.
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No original: “la estructura espacial del cuadro del mundo” e “los modelos espaciales como metalenguaje de
descripción de los tipos de cultura”.
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No original: “(...) entre las estructuras metalingüisticas y la estructura del objeto surge una relación de
homeomorfismo”.
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No original: “(...) divide el espacio de cultura em dos partes diferentes”.
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como se fosse a única forma possível de organização cultural, promovendo, com isso, o
mecanismo de apropriação cultural como um modo de apagamento e esquecimento da
memória de outros tipos de cultura.
Em suas últimas produções científicas9, elaboradas nos anos iniciais da década de 90,
Lotman menciona um tipo de cultura baseado na lógica binária ou no modelo binário
(LOTMAN, 2022, p. 108), denominado como cultura de estrutura binária (LOTMAN, 1999,
p. 222) ou sistema cultural binário (LOTMAN, 1999, p. 231). Trata-se de um tipo que parece
ser o grau mais radical da cultura com orientação reta ou direta, a qual se torna, sobretudo,
excludente.
Caso fosse possível uma dada cultura orientar-se de dentro para fora sem a
possibilidade de inversão do eixo, haveria o comprometimento de uma das duas funções da
fronteira semiótica, justamente aquela que fomenta o espaço de tradução e de troca de
informações entre interior e exterior, mantendo em operação apenas seu funcionamento como
espaço de disjunção. Com isso, no caso da cultura binária, edifica-se a lógica da não-
contradição aristotélica ou a lei do terceiro excluído (ARISTÓTELES, 2002; MORA, 2001),
em que a existência da relação de interface entre contrários não é possível, pois infringe a
operação e a manutenção da relação de identidade construídas somente entre os elementos
que pertencem a um dado conjunto.
A cultura binária, tipo mais extremo de orientação reta ou direta, já tinha sido
vislumbrada por Lotman no artigo citado anteriormente, relativo ao processo de meta-
descrição da cultura, quando o autor atenta para o funcionamento do que chamou de “cultura
própria”. Trata-se de um tipo que se apresenta como único e universal modo de ordenação
para a elaboração de uma meta-descrição e compreensão de todo e qualquer desenvolvimento
cultural (LOTMAN, 1998, p. 93). Com base em tal perspectiva, outros tipos de organização
cultural são fatalmente percebidos como destituídos de qualquer princípio de estruturação e,
portanto, não pertencentes ao universo da cultura, de modo a serem reconhecidos como não-
cultura, não-organizado e, sobretudo, como não-cultura própria.
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As obras são os livros “Cultura y explosión: lo previsible y lo imprevisible en los procesos de cambio
social” (1999) e “Mecanismos imprevisíveis da cultura” (2022).
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Tal tipo de cultura forja uma totalidade quase autossuficiente, com o objetivo de
jamais funcionar como parte de um todo. É por isso que a “cultura própria” concebe
falsamente como desorganizado o que não está sob o domínio de sua lógica de organização,
da mesma forma que ressignifica a relação binária opositiva “interior/exterior” por meio da
produção da lógica “ordenado/ não-ordenado”, de modo que o lado considerado
“descontrolado” não é capaz de fornecer nenhum tipo de informação (tal proposição será
também uma farsa, como será demonstrada mais adiante na explanação sobre o
funcionamento do processo de apropriação cultural). Além disso, uma vez caracterizado
como sendo da índole do caos, o externo precisa ser combatido para que o mundo idealmente
organizado possa alargar os limites de sua atuação, evitando assim o risco de sofrer
desarranjos ou perturbações.
Dessa forma, o combate a tudo que é avesso à “cultura própria” ou binária promove
tanto o extermínio daquilo que é considerado fonte de ruídos quanto promessa de ordenação
do que se pensa ser desordenado. Sob a ótica da “cultura própria”, a percepção de algo como
não ordenado é um prejulgamento voltado para desqualificar e justificar o ataque ao outro e,
com isso, a cultura binária busca afrontar ou rearranjar a produção sígnica de outra esfera
cultural. Confrontar os arranjos textuais daquilo que se considera adversário é um modo de
destruir ou refazer suas informações, construídas e armazenadas por meio de signos, códigos,
e linguagens e que, portanto, constituem sua memória não hereditária.
De acordo com Lotman (1996), a memória cultural se articula tanto pela perspectiva
diacrônica quanto pela sincrônica. A primeira, denominada como memória informativa,
manifesta-se pela passagem do tempo entre textos configurados em épocas e contextos
distintos. Nela, verifica-se a reiteração, manutenção e perpetuação de determinados traços
compositivos e modos de codificação e de configuração de uma dada cultura, que nos
permitem reconhecer suas regularidades, apesar das constantes atualizações. A memória pela
lógica do tempo refere-se à longevidade de toda e qualquer cultura, ao tornar durável e
constante algumas informações que foram codificadas na longa duração. Articulada, portanto,
por traços com pouca variabilidade ao longo do tempo, a memória informativa volta-se
sobretudo à ideia de passado, de herança e tradição cultural, uma vez que a percepção do
comum por meio e entre textos culturais é constituída pelos elementos que se perpetuam.
Nas culturas rigidamente binárias como, por exemplo, as organizações estatais
nazistas do século XX, Lotman detectou a ação do esquecimento como um mecanismo
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mesma”10 (2000, p. 175). Mais especificamente, no que concerne ao segundo caso, “uma das
formas mais agudas da luta social na esfera da cultura é a exigência do esquecimento
obrigatório de determinados aspectos da experiência histórica”11 (LOTMAN, 2000, p. 175),
tal como acontece no âmbito da tipologia das culturas binárias, em que a desmemória
funciona como uma arma da “cultura própria” contra as consideradas não-culturas para,
sobretudo, combater sua memória. Ao ser utilizado para exterminar ou alterar os textos
alheios, tal mecanismo não apenas intenta suprimir a constituição da contiguidade de um
determinado legado cultural, como também comprometer o futuro das esferas culturais
consideradas adversárias.
Sob tal perspectiva, a memória que esquece é aquela que coloca em prática um
programa de conversão de determinados textos em não-textos com o objetivo de torná-los
semioticamente inoperantes e, com isso, assegurar que os textos sob seu domínio sejam
preservados. É por isso que Lotman (2022, p. 108) afirma que, num “modelo rigidamente
binário”, impera a “clássica forma ‘se você não está conosco, está contra nós’”.
Porém, não se pode perder de vista que o esquecimento igualmente constitui um
mecanismo de ação da memória criativa. Por meio das trocas com o entorno, um sistema tem
a faculdade de “expulsar” ou “excluir” determinados textos ou fragmentos deles, uma vez
que o processo de criação de novos arranjos sígnicos pode resultar na “incompatibilidade
semântica” (LOTMAN, 2000, p. 175)12 com aqueles já existentes. Nesses casos, opera-se a
ressignificação de uma esfera cultural mediante a ação da fronteira semiótica e, com isso,
determinados textos podem se tornar inconciliáveis com a nova ordenação sistêmica. Dessa
forma, o processo de autoconsciência de uma cultura implica a orientação a um tipo
específico de memória, de modo que cabe a ela própria definir o que deve ser “lembrado” e o
que deve ser “esquecido”, da mesma forma que “cada texto contribui não só à recordação,
mas também ao esquecimento”13 (LOTMAN, 2000, p. 174).
Cumpre ressaltar que, em ambos os casos, o esquecimento – seja como destruição da
memória, seja como um mecanismo inteligente dela –, deve ser considerado sempre pela
perspectiva de uma dada esfera cultural ou, ainda, segundo uma determinada tipologia. Como
10
No original: “el olvido como elemento de la memoria y el olvido como medio de destrucción de la misma”
11
No original: “una de las formas más agudas de la lucha social en la esfera de la cultura es la exigencia del
olvido obligatorio de determinados aspectos de la experiencia histórica”.
12
No original: “incompatibilidad semántica”.
13
No original: “cada texto contribuye no sólo a la recordación, sino también para al olvido.
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Lotman indica, “a cultura, por sua essência, está dirigida contra o esquecimento. Ela o vence,
convertendo-o em um dos mecanismos da memória”14 (LOTMAN, 2000, p. 175), pois aquilo
que é “expulso” por uma dada esfera não desaparece do espaço semiótico e/ou semiosfera,
mas permanece em estado de latência e, pela ação da fronteira semiótica, pode novamente
irromper na cultura (LOTMAN, 1999). Como, pela perspectiva lotmaniana, a memória
subsiste nos próprios sistemas de linguagem, logo, sua perpetuação decorre da presença de
determinados códigos, em virtude do “caráter constante de seus elementos estruturais
fundamentais”15 (LOTMAN, 2000, p. 174). Assim, a despeito dos intercâmbios
operacionalizados pela fronteira entre distintas esferas culturais pelas quais há, inclusive, a
expansão da memória, mantém-se na autoconsciência dos sistemas “a lembrança dos estados
precedentes”16 (LOTMAN, 2000, p. 174).
14
No original: “La cultura, por su esencia, está dirigida contra el olvido. Ella lo vence, convirtiéndolo en uno de
los mecanismos de la memoria”.
15
No original: “el carácter constante de sus elementos estructurales fundamentales”.
16
No original: “el recuerdo de los estados precedentes”.
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Toda vez que sou colocada como “outra” – seja a “outra” indesejada, a “outra”
intrusa, a “outra” perigosa, a “outra” violenta, a “outra” passional, seja a “outra”
suja, a “outra” desejável ou a “outra” exótica – estou inevitavelmente
experienciando o racismo, pois estou sendo forçada a me tornar a personificação
daquilo com o que o sujeito branco não quer ser reconhecido. Eu me torno a/o
“Outra/o” da branquitude, não o eu – e, portanto, a mim é negado o direito de existir
como igual. (KILOMBA, 2019, p. 78).
a larga duração dos textos forma dentro da cultura uma hierarquia, habitualmente
identificada com a hierarquia dos valores [...] A isso pode corresponder uma
hierarquia dos materiais em que se registram os textos, e uma hierarquia dos lugares
e modos de sua conservação.17 (LOTMAN, 2000, p. 174) .
17
No original: “La larga duración de los textos forma dentro de la cultura una jerarquía, habitualmente
identificada con la jerarquía de los valores […] A esto puede corresponder una jerarquía de los materiales en
que se registran los textos, y una jerarquía de los lugares y modos de su conservación”.
18
No original: “poseen la capacidad de concentrar em sí, conservar y reconstruir el recuerdo de sus contextos
precedentes”.
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No original: “mecanismo de regeneración”.
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como forma de aniquilá-lo” (2020, p. 35). A cultura binária permite apreender de que
maneira se dá a ação do poder quando vista pela perspectiva semiótica, em que a fronteira se
coloca não como mecanismo de diálogo e intercâmbio, mas unicamente de delimitação e
separação.
A apropriação, decorrente desse processo, implica um tipo de dominação cultural
específico, marcado pelo apagamento da memória de uma cultura vista como subalterna sob
uma dada perspectiva, mediante agenciamentos que se articulam por meio de distintas formas
de imposição e inculcação de novos arranjos sígnicos. Quanto a isso, Lotman reconhece que
há períodos voltados à expansão da memória, potencializados por intercâmbios entre
diferentes esferas, enquanto outros se caracterizam, justamente, pela sua retração, pautados
pela dominância de culturas que agem segundo a lógica binária. Assim,
20
No original: “Las épocas de regresión histórica (el mas claro ejemplo son las culturas estatales nazistas en el
siglo XX), al imponerle a la colectividad esquemas extremadamente mitologizados de la historia, exigen
perentoriamente de la sociedad el olvido de los textos que no se dejan organizar de tal manera. Si las
organizaciones sociales en el período de auge crean modelos flexibles y dinámicos, que dan amplias
posibilidades para la memoria colectiva y están acomodados a la ampliación de la misma, el ocaso social, por
regla general, se acompaña de un anquilosamiento del mecanismo de la memoria colectiva y una tendencia
creciente a la reducción del volumen de la misma”.
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Conforme pontuamos no início deste trabalho, nossa contribuição para o debate será
feita a partir de casos já denominados como apropriação, como forma de demonstrar, por
meio da concretude sígnica desses textos, o modo como ocorre a extorsão pelo apagamento
da memória. São eles: o caso do “bolinho de Jesus”, o “bloco de Jesus” ou “bloco de Deus” e
a “Capoeira gospel”/“Capoeira evangélica”. Além de serem textos culturais relacionados às
tradições afro-brasileiras, todos eles sofreram o processo de extorsão pelo chamado
cristianismo evangélico ou igrejas neopetencostais.
Segundo Spyer (2020), falar sobre esse segmento implica não apenas considerar sua
diversidade constitutiva, que abarca diferentes vertentes, como também suas contradições,
que aliam tanto a solidariedade a pessoas em condição de extrema vulnerabilidade social e
econômica quanto seu poder de atuação institucional, “equivalente à das grandes empresas
multinacionais” (2020, p. 192). De acordo com o censo de 2010, um pouco mais de 20% dos
entrevistados se declararam cristãos evangélicos, ou seja, ¼ da população brasileira, o que
torna esse grupo extremamente expressivo.
Não é nosso foco apresentar uma contextualização mais ampla desse fenômeno,
tampouco indicar suas causas e possíveis origens – o que, efetivamente, foge do escopo deste
trabalho –, mas, sim, colocar em discussão as situações em que o cristianismo evangélico age
segundo a lógica binária, ou seja, quando atua como um “negócio” ou como “crença” que,
mais especificamente,
[...] tem a ver com o tamanho desse estrato social, sua capacidade de articulação e
coordenação, a infraestrutura de mídia que evangélicos de diversas denominações
vêm constituindo, e com o poder que líderes evangélicos têm hoje de influenciar
opiniões via meios de comunicação, via atuações no meio artístico e cultural, e de
interferir na gestão do Estado via financiamento e promoção de campanhas de
pastores (ou de candidatos alinhados com essas igrejas) a cargos públicos. (SPYER,
2020, p. 191).
Trata-se também de uma forma de atuação do poder de uma determinada religião, que
impõe seu modo de ver e de crer sobre textos culturais vinculados a outras crenças,
pertencentes a diferentes manifestações da cultura, como a alimentação (no caso do acarajé),
a música e o entretenimento (os blocos ou grupos de percussão), o esporte e a dança (a
capoeira).
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21 Cumpre ressaltar que Pai Rodney e Rodney William são nomeações utilizadas pelo mesmo autor, em
diferentes publicações. Como a primeira reporta-se à função exercida por ele no candomblé, mantivemos
ambas as referências.
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a apropriação cultural vem associada ao apagamento da história que, no caso, ocorre contra a
memória da cultura afro-brasileira.
Em primeiro lugar, é necessário ressaltar que não estamos diante de um alimento que
tem como função, apenas, nutrir o corpo biológico. Trata-se, sobretudo, de um arranjo
informacional codificado por distintos sistemas de signos, tais como as culturas afro,
brasileira, negra, assim como as esferas da religião, da política e da economia. Por isso, o
acarajé, cujo nome foi codificado pela língua iorubá (acará/ bolo de fogo e jé/ comer),
provocou amplo debate no âmbito da apropriação cultural, pois o confronto entre religiões
ocorre justamente por meio da dimensão simbólica, a qual envolve sua constituição como
signo e texto da cultura.
Tal como argumentamos ao longo deste artigo, do ponto de vista da lógica de
operação da cultura binária, o que não lhe pertence, a princípio, deve ser combatido e
destruído pois, de alguma forma, ameaça seu modo de ordenação. No entanto, toda e
qualquer esfera cultural não se mantém apenas com as informações já codificadas por ela
própria, pois precisa continuamente ressignificar e produzir novas informações. Para que isso
seja possível, é imprescindível e necessário a relação com outros sistemas, pela qual há a
produção de signos, textos, arranjos e códigos, que ocorre tanto pelo processo de
modelização quanto de tradução. O primeiro reporta-se à capacidade de auto-organização de
uma cultura pelo modo de configuração de outras, ao passo que a segunda diz respeito ao
processo de transformação das informações externas em informações internas, quando há
condições semióticas para isso.
O diálogo necessário com outras esferas para a sobrevivência e a continuidade de uma
determinada cultura e o traço característico de combate e aniquilamento da diversidade
cultural pela lógica de funcionamento da “cultura própria” nos leva a um paradoxo, ou seja:
como efetivamente a cultura binária não se contamina pelo alheio? É claro que, neste artigo,
não pretendemos apontar todas as respostas para tal questão, mas sustentamos que a
apropriação cultural, como ocorre com o signo e o texto cultural do acarajé, ao ser
transformado em “bolinho de Jesus”, é uma das possíveis respostas para desvendar a
contradição mencionada.
Como havíamos dito, a “cultura própria” percebe as demais culturas como não-
culturas, cuja percepção é uma maneira de depreciá-las em suas próprias capacidades de
auto-organização e, portanto, de modelização. Dessa maneira, qualquer arranjo proposto
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pelas culturas alheias será compreendido como desarranjo, informação defeituosa ou ruidosa,
justificando assim seu descarte ou seu ajuste pela cultura que se coloca como a mais
capacitada para ordenar o mundo. Não estamos diante de um processo de tradução semiótica
entre esferas, que tem por base o diálogo entre diferentes, mas na presença de um tipo de
apropriação por meio do roubo, sequestro e deformação dos signos e seus sentidos, que
permite a uma dada cultura se “alimentar” das informações de outra como forma de
aproveitar sua memória, ao mesmo tempo em que procura apagá-la.
Tal procedimento remete ao mecanismo de funcionamento do mito moderno ou da
“fala roubada” proposto pelo semiologista Roland Barthes (1978), que estudou um tipo de
deformação dos significados primevos de qualquer tipo de signo pela sobreposição ideológica
de outros significados com a intenção de, justamente, utilizar os sentidos anteriores como
matéria-prima para favorecer o desempenho do “signo que rouba”. Trata-se de um segundo
sistema semiológico que depende, portanto, da existência de um anterior, que se constitui por
um signo, uma imagem, um discurso, um texto ou uma composição. No mito ou “fala
roubada”, o arranjo anterior, constituído tanto por sua materialidade no nível da expressão
quanto por seus sentidos no nível do conteúdo, é reduzido à condição de pura forma do
“signo sequestrador”, para que possa ser preenchido por outro sentido. Essa é a intenção da
“fala que rouba”: transformar um determinando texto em “forma vazia” (BARTHES, 1978, p.
199), pois sua atividade é predatória e, ao tornar-se forma, “esvazia-se, empobrece, a história
evapora-se” (BARTHES, 1978, p. 199).
No caso da “comida de santo”, pelo ponto de vista do cristianismo evangélico, o
acarajé pode ser fornecido e consumido pelos seus adeptos desde que se consiga suspender o
processo de significação produzido pela memória religiosa do candomblé. Com isso, forja-se
outro sentido para atuar como antessentidos por meio do “mesmo” signo, com o objetivo de
apagar, de alguma forma, a grande temporalidade que há no acarajé como texto da cultura.
Como atua sobre um signo já existente, o mecanismo predatório da “fala roubada”
consegue alvejar qualquer tipo de texto da cultura. Por causa dessa característica, é possível
perceber sua ingerência não apenas no acarajé, mas também num outro texto da cultura, que
possui uma configuração de linguagem completamente distinta: os grupos de percussão.
Similares à banda Olodum – ONG/ grupo cultural de referência em tambores afro-brasileiros,
nascido como bloco carnavalesco em 1979 –, inclusive em sua visualidade, os
autodenominados “bloco de Deus” ou “bloco de Jesus” são grupos percussivos que atuam em
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Aqui, destaca-se sobretudo a atuação da igreja neopetencostal Bola de Neve, que visa estabelecer maior
proximidade com o público jovem mediante atividades culturais e artísticas vinculadas a esse grupo, como surf,
vôlei e blocos de carnaval.
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Considerações finais
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Inclusive, cumpre ressaltar a presença constante de um desses grupos na praça Ramos de Queiróz, logo na
entrada do Pelourinho – espaço por excelência da memória cultural dos afrodescendentes na capital baiana –,
impossível de não ser visualizado por aqueles que chegam ao local.
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