Você está na página 1de 4

Projeto de Pesquisa

Edital:
Edital PIIC 2017/2018
Título do Projeto: “Vida nua” e resistência: corporalidades dissonantes na narrativa
contemporânea
Rafaela Scardino Lima Pizzol (Coordenadora)
Participantes:
Evandro Ramos de Sant’Anna Júnior
Fernanda Alves dos Santos
Grupo de Pesquisa CNPq:
Ficcionalidades
Linha de Pesquisa:
Literatura e expressões da alteridade
Centro/Departamento
Centro de Ciências Humanas e Naturais (CCHN)
Acadêmico:
Departamento de Línguas e Letras (DLL)

Resumo: Em seus estudos sobre a sexualidade e as formas de governo, Michel Foucault define
biopolítica como o poder de fazer viver e deixar morrer, ou seja, como uma gestão dos corpos. Continuando,
em certa medida, a pesquisa do pensador francês, Giorgio Agamben leva ao limite a ideia de uma vida
despojada de qualquer qualificativo político, uma “vida nua” que, se retira o vivente do campo dos direitos
humanos, abre-se para a emergência de novas formas de vida.
O presente projeto propõe a análise de romances contemporâneos em que tais corporalidades são
encenadas textualmente, apontando para a irrupção de forças propositivas de resistência e criação.

Palavras-chave: Narrativa contemporânea, biopolítica, corpo.

1 Introdução

No primeiro volume de sua História da sexualidade, Michel Foucault descreve o soberano, e o poder
que dele emana, como aquele a quem é facultado o direito de morte sobre seus súditos. Na passagem dessa
forma poder ao governo das populações, ou seja, na passagem da época clássica à moderna, o autor
identifica uma mudança fundamental para compreender os discursos que circulam nas sociedades
ocidentais e que incidem sobre a vida, os corpos e suas relações com a política: “pode-se dizer”, escreve o
filósofo, que o velho direito de causar a morte e deixar viver foi substituído por um poder de causar a vida
ou devolver à morte” (FOUCAULT, 1988, p. 130). A gestão da vida e das populações passa a ser o fim do
poder, pois tais corpos passam a ser objeto de investimento para a produção do capital. O corpo dos cidadãos
passa ser objeto de estudos demográficos, políticas reprodutivas, controles migratórios, gestão da vida
coletiva e programas de higiene social, culminando na prática eugênica e na eliminação dos corpos cuja
vida já não é encarada como produto que compense o investimento em sua manutenção e reprodução.
A pesquisa foucaultiana sobre a biopolítica vem sendo continuada por diversos
pesquisadores, dentre os quais podemos destacar Judith Butler (2002, 2006, 2010), Antonio Negri
(2005), Roberto Esposito (2008) e Giorgio Agamben (1993, 2002, 2004, 2008, 2009). Este último
pensador, na sua extensa série de investigação sobre o governo dos corpos e populações, intitulada
Homo sacer, propõe que a modernidade organiza as vidas separando-as em bios e zoé, a vida
política, própria do humano, e a “vida nua”, indistinta de todos os seres vivos. A figura central
desse percurso de investigação é justamente o vivente cuja vida pode ser descartada, o homo sacer.
Figura retirada do antigo direito romano, o homo sacer agambeniano acaba por designar
muito bem esses indivíduos contemporâneos de quem é retirada toda dimensão política e aos quais
só cabe, como representante do Estado, a força repressora (ou mesmo su pressora). Reduzido à
“vida nua”, vida despolitizada, o homo sacer é a figura máxima do refugo humano indispensável
à lógica econômica do capital globalizado (Cf. BAUMAN, 1998, 2001, 2005). O que define o
homo sacer, para Agamben, é “a dupla exclusão em que se encontra preso e a violência à qual se
encontra exposto” (AGAMBEN, 2010, p. 84). É aquele que está excluído da política, ao qual não
se aplica a lei enquanto norma dos direitos do cidadão, mas sobre quem apenas recai a lógica do
“inimigo interno” ou do corpo supérfluo. Assim, é um corpo cuja ausência não deve ser notada,
um corpo descartável: o refugo, enfim, que não queremos ver depois que já não nos serve. A “vida
nua”, despojada de cidadania e de direitos políticos e jurídicos, é também despojada da quilo que
costumamos associar à humanidade mesma.
O estado biopolítico é responsável pela produção de tais corpos, vidas elimináveis sem
maiores consequências, para a manutenção de um ordenamento jurídico e também produtivo. No
entanto, são estes corpos – medicalizados, governados, docilizados – corpos reduzidos à condição
de vivente, de “vida nua”, que resistem, que não se enquadram, que não se adéquam às
corporalidades produzidas pelo ordenamento biopolítico. São corpos que transbordam e deslocam
as definições e metrificações de uma gestão das populações, que levam a condição de vivente a
seu limite.
O presente projeto procura investigar políticas do corpo e da vida presentes em narrativas
latino-americanas contemporâneas em sua relação com os ordenamentos biopolíticos e com as
formas de resistência e propositividade encenadas numa performance de corpo ralidades
desconformes. Segundo Fermín Rodríguez e Gabriel Giorgi, “a vida como potência e como
singularidade passa pela linguagem ali onde a linguagem transborda a significação e se enfrenta
com seu próprio limite. E esse limite é o lugar da literatura [. ..]” (2007, p. 26). Assim como a
“vida nua” agambeniana leva a própria ideia de vida ao seu limite – perturbando aquilo que nos
constitui enquanto humanos e nos separa da corporalidade animal, ou seja, a linguagem –, a
literatura, arte de palavras, toca os limites do dizível e do representável, desorganizando os usos
normalizados da língua e criando espaço para a emergência de novos corpos e novas formas de
vida.
Os textos cuja análise se propõe neste projeto dialogam com a potência e a criação – subjetiva,
afetiva – propiciadas por uma vida levada a seu limite, enfrentada à borda que separa o humano
do vivente. Em um primeiro momento, propõe-se analisar os romances La ciudad ausente, de
Ricardo Piglia (2013), Harmada, de João Gilberto Noll (2003), e Impuesto a la carne, de Diamela
Eltit (2010), com abertura para a inclusão de outras obras contemporâneas produzidas no
continente, destes ou de outros autores. Nos romances elencados, pode -se traçar certa
continuidade entre os diversos corpos incontidos, transbordantes. Corpos que oferecem resistência
ao enquadramento do poder, chegando a ser perseguição por parte das forças repressoras estatais.
Em síntese, propõe-se um percurso teórico que acompanhe como o surgimento de uma ordem
discursiva e de “disciplinas” de controle e normalização dos corpos, privilegiando os estudos das
obras de Michel Foucault (1984, 1985, 1988, 2006, 2009, 2012) e Giorgio Agamben (1993, 2002,
2004, 2008, 2009), acaba por dar a ver corpos que desafiam tais formas de controle e encontram
saídas para a criação de novas formas de vida.

2 Objetivos

O objetivo geral é estudar, a partir do conceito de biopolítica proposto por Michel Foucault e
desenvolvido por Giorgio Agamben, algumas narrativas latino-americanas contemporânea, e analisar as
figurações do corpo, dos mecanismos de controle que se batem sobre ele e as formas como tais narrativas
encenam possíveis formas de escape ao biopoder.
Como objetivos específicos, espera-se:
a) publicação de artigos em periódicos e apresentação de trabalhos em congressos, como forma de
apresentar os resultados parciais da pesquisa;
b) orientação de alunos dos cursos de graduação e pós-graduação da área de Letras da UFES;
c) oferta de cursos ligados ao tema do presente projeto no Programa de Pós-Graduação em Letras
da UFES.

3 Metodologia

I. Levantamento de dados referentes aos textos literários estudados e ao processo literário


específico em que se inserem.
II. Análise das obras literárias enfeixadas no projeto e leitura textos críticos relevantes.
III. Balizamento das informações crítico-literárias no contexto dos estudos literários atuais.
IV. Processamento das informações a partir dos conceitos de modernidade, contemporaneidade,
biopolítica, poder soberano, vida nua, vida em comum, dentre outros.
4 Financiamento

Sem financiamento.

5 Referências

Obras literárias a serem examinadas inicialmente:

ELTIT, Diamela. Impuesto a la carne. Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2010.


NOLL, João Gilberto. Harmada. São Paulo: Francis, 2003.
PIGLIA, Ricardo. La ciudad ausente. Barcelona: Random House Mondadori, 2013.

Obras teóricas em geral:

AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Trad. António Guerreiro. Lisboa: Editorial
Presença, 1993.
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004.
AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Trad. Herique Burigo Belo
Horizonte: UFMG, 2002.
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro
Honesko. Chapecó, SC: Argos, 2009.
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). Trad.
Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.
ARAÚJO, Inês Lacerda. Foucault e a crítica do sujeito. Curitiba: Editora UFPR, 2001.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama e Claudia Martinelli
Gama. Rev. técnica Luis Carlos Friedman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Jane iro: Jorge
Zahar Editor, 2005.
BUTLER, Judith. Cuerpos que importan: sobre los límites materiales y discursivos del sexo. Trad.
Alcira Bixio. Buenos Aires: Paidós, 2002.
BUTLER, Judith. Marcos de guerra: las vidas lloradas. Trad. Bernardo Moreno Carrillo. México:
Paidós, 2010.
BUTLER, Judith. Vida precaria: el poder del duelo y la violencia. Trad. Fermín Rodríguez.
Buenos Aires: Paidós, 2006.
ESPOSITO, Roberto. Bios: biopolitics and philosophy. Trad. Timothy Campbell. Minneapolis:
university of Minnesota Press, 2008.
FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos. Trad. Nilton Avelino. São Paulo: Centro de cultura
social, 2009.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: vontade de saber. Trad. Maria Thereza da Costa
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. Trad. Maria Thereza da
Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade III: o cuidado de si. Trad. Maria Thereza da Costa
Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.
FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2012
GARRAMUÑO, Florencia. Frutos estranhos. Trad. Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.
GINZBURG, Jaime. Crítica em tempos de violência. São Paulo: Edusp, Fapesp, 2012.
GIORGI, Gabriel. Formas comunes: animalidad, cultura, biopolítica. Buenos Aires: Eterna
Cadencia, 2014.
GIORGI, Gabriel. Sueños de extermínio. Rosario: Beatriz Viterbo, 2004.
MACHADO, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2000.
NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Multidão: guerra e democracia na era do Império. Trad.
Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record, 2005.
PAIVA, Raquel (org). O retorno da comunidade: os novos caminhos do social. Rio de Janeiro:
Mauad X, 2007.
PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 28 -41.
RODRÍGUEZ, Fermín; GIORGI, Gabriel. Excesos de vida: ensayos sobre biopolítica. Buenos
Aires: Paidós, 2007.

Você também pode gostar