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Quando os portugueses conquistaram Ceuta em 1415 e começaram a explorar o continente

africano, impulsionados pelo mercantilismo, a formação dos Estados nacionais europeus e o


surgimento de um sistema capitalista global, os Estados africanos estavam passando por seu
próprio desenvolvimento. Ao observar a diversidade de estruturas políticas e econômicas que
compunham o continente, fica claro que havia uma complexidade de relações e um processo
de desenvolvimento em andamento.

O continente africano tinha uma história em movimento e não estava preso no tempo. Não
era um paraíso intocado pela História que, posteriormente, foi subjugado pelas ações
europeias. Essa visão desumanizante do africano negligencia as contradições existentes em
qualquer sociedade. Na verdade, o continente africano estava passando por suas próprias
transformações, incluindo a cobrança de tributos, trabalho compulsório e lutas pelo poder e
controle de riquezas ou rotas comerciais, assim como os europeus durante a formação de seus
Estados nacionais.

E é justamente essa dinâmica intrínseca que se transforma quando há o encontro com os


europeus, resultando em desestruturações e reestruturações.

O desenvolvimento desigual...

De acordo com Samir Amin em 1976, o Modo de Produção é um conceito abstrato que
não implica em uma sucessão rígida entre eles, nem existe de forma "pura" em
qualquer sociedade, como afirmado pela historiografia tradicional. Amin distingue
cinco modos de produção: 1) modo de produção "comunitário primitivo" que antecede
todos os outros; 2) modo de produção tributário; 3) modo de produção escravista; 4)
modo de produção "mercantil simples"; e 5) modo de produção capitalista. No
entanto, nenhum desses modos de produção existe em sua forma ideal, pois as
sociedades históricas são formações que combinam diversos modos de produção.

Amin argumenta que as formações sociais são estruturas concretas e organizadas,


caracterizadas por um modo de produção dominante, ao qual está articulado um
conjunto complexo de modos de produção subordinados a ele. Dessa forma, é possível
observar a articulação de diferentes formas de produção em uma sociedade concreta,
sendo importante identificar qual é o modo dominante e qual está ascendendo.

Em resumo, segundo Amin, o Modo de Produção é um conceito abstrato que não se


manifesta de forma pura na realidade, mas sim em combinação com outros modos de
produção. As formações sociais são estruturas concretas que possuem um modo de
produção dominante, mas também estão sujeitas a uma complexa interação com
outros modos de produção.

De acordo com Samir Amin, todas as sociedades anteriores ao capitalismo são formações
sociais que combinam os mesmos elementos. Esses elementos incluem: 1) a dominância do
modo de produção comunitário ou tributário; 2) a existência de relações mercantis simples em
um escopo limitado; 3) a presença de relações comerciais de longa distância, que conectam
várias formações autônomas e permitem a transferência de excedentes de uma sociedade
para outra.

Uma formação social que depende principalmente do comércio de longa distância indica uma
baixa produção de excedente interno. O crescimento ou declínio dessa formação social está
diretamente relacionado às trocas comerciais, independentemente de ocorrer uma mudança
significativa na produção de seu excedente.

Quando os europeus chegaram à África, o continente apresentava uma diversidade de


formações sociais, com os modos de produção comunitário e tributário predominando. De
acordo com amir:

“a África negra apresenta uma gama variada destes modos de produção, uns relativamente
pouco hierarquizados – nomeadamente no território banto –, outros fortemente desiguais
como entre os tucolores no Vale do Senegal, os achânti do Gana, os hauçás do norte da
Nigéria, etc. Mas sempre o camponês tem acesso à terra; por pertencer a um clã, tem direito a
uma parcela do território deste. Daí, que seja impossível o processo de proletarização, isto é,
de separação do produtor de seus meios de produção. (Amin, 1976, p. 10”

Nas sociedades pré-capitalistas, é comum encontrar formações sociais que têm como modo de
produção dominante o tributário. As formações tributárias podem ser divididas em três
categorias principais: 1) formações tributárias ricas, que possuem um excedente interno
substancial, como o Egito e a China; 2) formações tributárias pobres, caracterizadas por um
pequeno excedente, como as sociedades medievais e o feudalismo; e 3) formações tributárias
comerciais, que dependem das rotas de comércio, como a Grécia Antiga, o auge do mundo
árabe e vários estados da savana africana.

O sistema escravista desempenhava um papel marginal nas formações tributárias comerciais,


como na África, ou ocupava uma posição central, como na Grécia Antiga.

Tanto as formações sociais africanas com base comunitária quanto aquelas com uma
centralidade tributário-mercantil foram profundamente afetadas pelo contato e comércio com
os europeus. No entanto, enquanto esse contato impulsionou o surgimento do capitalismo na
Europa, devido à sua relativa pobreza, na África ocorreu um bloqueio desse processo,
principalmente por falta de um dos elementos-chave para o surgimento do capitalismo: a
desestruturação das relações feudais.

O outro elemento necessário, a acumulação de capital, pode ser encontrado em algumas


sociedades do norte da África, que testemunharam o auge de grandes impérios africanos. No
entanto, esses impérios tinham um excedente limitado, e seus lucros derivavam
principalmente do comércio de longa distância, em vez de uma articulação com a produção
local. Em outras palavras, essas formações sociais não se baseavam no excedente obtido por
meio da tributação dos camponeses locais, mas sim nos lucros provenientes do comércio em
larga escala. Segundo Amir Samin,

“é assim que todos os grandes Estados magrebinos foram estabelecidos sobre


o comércio do ouro proveniente da África do Oeste. Durante séculos, até a

descoberta da América, a África do Oeste será o principal fornecedor do metal amarelo para
toda a parte ocidental do mundo antigo (Amin, 1976, p. 35).”

Os períodos de destaque da civilização árabe no norte da África não são caracterizados por
grandes avanços agrícolas, mas sim pela prosperidade do comércio e das cidades. No entanto,
a decadência ocorrerá quando houver uma mudança nas rotas comerciais.

É nesse ponto que surgem frequentemente preconceitos ideológicos desfavoráveis em relação


à África. As formações sociais africanas pré-mercantilistas são autônomas, e seu
desenvolvimento ocorre de maneira paralela e articulada com as formações da Ásia, do
Mediterrâneo (sul da Europa) e do Oriente Médio. A África desempenhava um papel de
conexão entre essas três regiões e estava integrada à História mundial quando os portugueses
chegaram no século XV.

As estruturas sociais africanas estavam em um estágio de desenvolvimento comparável às suas


contrapartes em várias outras regiões, e os relatos de viajantes admirados com as
"maravilhas" dos Estados africanos confirmam essa visão.

No entanto, o comércio mercantilista nos séculos XVI-XVIII foi além do simples "comércio
igualitário" da fase anterior, pois deu origem ao sistema capitalista e desestruturou as relações
feudais na Europa, assim como as relações tributárias e comunitárias, principalmente na
África. Isso resultou na formação do sistema capitalista a partir do mercantilismo, com uma
especialização e divisão internacional do trabalho, onde os reinos africanos foram
principalmente destinados a fornecer mão de obra escrava e alguns produtos extrativos.

Consequentemente, os estados africanos no início do século XVI eram como embriões de


nações, mas foram destruídos devido ao fim do comércio saariano e à rearticulação no
contexto atlântico. O Império Songai é um exemplo claro dessa situação. Como o último
grande estado mercantil-tributário do Sudão Ocidental, estava passando por um período de
transformação interna, possivelmente em direção a uma especialização e organização social
baseada em classes. No entanto, a invasão da região pelos mercenários do sultão de Marrocos
e a derrota do Estado Songai em 1591 resultaram no colapso do império, interrompendo esse
processo.

Com a chegada dos europeus e o estabelecimento do comércio nas regiões costeiras, as rotas
comerciais que passavam pelos territórios do Império Songai foram enfraquecendo
progressivamente, levando ao colapso final do império.

A mudança do foco do comércio africano, da região da savana para a costa, reflete, em certa
medida, a mudança do centro de desenvolvimento europeu, do Mediterrâneo para o
Atlântico. Isso significa que as relações entre a África e a Europa passaram a estar inseridas em
um quadro mais abrangente de formação do capitalismo mercantilista, que desenvolveu de
forma desigual as diferentes formações sociais que emergiam. Conforme Amir Samin
“é evidentemente impossível saber o que se tornariam as formações africanas se tivessem
continuado a evoluir por si mesmo depois do século XVII.

Integradas num estádio precoce no sistema capitalista nascente, o estádio

mercantilista, foram, na realidade, destruídas nesta época e não tardarão a

regredir. Pode-se calcular-se, contudo, que o grande comércio africano prémercantilista,


brilhante em certas regiões, mas articulando-se em formações

comunitárias ou tributárias relativamente pobres, não teria podido gerar por

si só o modo de produção capitalista (Amin, 1976, p. 41).”

A chegada dos europeus e rearticula..

A chegada dos europeus à África no século XV, através do empreendimento português


conhecido como périplo, teve um impacto significativo no continente, cujas consequências
podem ser sentidas até os dias atuais. Essa chegada resultou no bloqueio do desenvolvimento
autônomo da África e sua reestruturação em direção ao desenvolvimento do capitalismo, com
o foco agora no Atlântico.

Inicialmente, os europeus, especialmente os portugueses, não tinham um interesse direto na


África. Eles viam o continente como uma escala em sua rota em direção à Ásia. Seu objetivo
principal não era colonizar a África, mas estabelecer bases comerciais e pontos de apoio. Por
isso, eles buscaram apoderar-se de ilhas e áreas costeiras. Mesmo com o comércio de escravos
e a instalação de feitorias, os europeus não se aventuraram muito além da costa africana. No
entanto, os franceses foram uma exceção, adentrando o Rio Senegal no século XVII(Berteaux,
1974, p. 140).

Os lançados, também conhecidos como tangomaus, desempenharam um papel estratégico no


estabelecimento das redes comerciais entre europeus e africanos. Esses homens, em sua
maioria degredados ou aventureiros, eram deixados nas costas da África, Ásia e América.
Aqueles que conseguiram sobreviver às doenças e ataques adquiriram certa imunidade e
conhecimento das áreas em que se encontravam.

Esses indivíduos aprenderam as línguas dos africanos, seus métodos de comércio e se


tornaram responsáveis pelas atividades comerciais. Vale destacar que Cabo Verde, colonizado
a partir de 1462 por portugueses e escravos africanos, teve um papel significativo no comércio
com o continente. Os mulatos miscigenados desempenharam um papel importante nessa
atividade, o que gerou preocupação por parte da Coroa portuguesa. Para garantir sua lealdade
à Coroa no que diz respeito ao comércio, houve um esforço para enviar mulheres brancas
degredadas para Cabo Verde, visto que havia dúvidas sobre a fidelidade dos mulatos com suas
conexões africanas (Silva, 2002, p. 232-234).
No início do século XVII, outras nações europeias, como os holandeses e ingleses, começaram
a chegar à África. Os holandeses buscavam enfraquecer as conquistas portuguesas no
continente, como El Mina, na Costa do Ouro, em 1637, e Luanda, que ocuparam entre 1641 e
1648. Em 1652, os holandeses fundaram a Cidade do Cabo. Por sua vez, os ingleses iniciaram
expedições regulares ao continente a partir de 1533 e entraram em conflito com os
portugueses em várias ocasiões. Em 1626, foi estabelecida a Companhia Francesa da África
Ocidental, e os franceses se estabeleceram no Senegal. Durante esse período, o principal
interesse dos europeus na África era o comércio de escravos.

Dessa forma, nos séculos XVI e XVII, novas estruturas políticas africanas foram formadas, que,
juntamente com as mais antigas, prosperaram devido ao comércio de escravos (como os
achântis e iorubás, do Daomé) e à obtenção de armas de fogo. A fragilidade desses estados
ficou evidente com o fim do tráfico de escravos, em meados do século XIX, uma vez que
temporariamente nenhum outro produto parecia substituir o comércio de escravos (Berteaux,
1974, p. 140).

O comércio transaariano, que ocorria no interior do continente africano, entrou em um


período de estagnação devido ao crescimento do comércio ao longo da costa atlântica,
impulsionado pelo tráfico de escravos. Essa mudança resultou em transformações políticas,
especialmente com a instalação de trinta fortes europeus na Costa do Ouro.

Segundo Alberto da Costa e Silva, esses fortes europeus geraram mudanças nas relações de
poder. Os comandantes e feitores europeus precisavam pagar tributos aos régulos das terras
onde estavam localizados. No entanto, em outras regiões, a situação se inverteu, e os
europeus passaram a exercer um domínio predominante, cobrando impostos dos líderes
africanos locais. Além disso, as fortalezas europeias também causaram outros impactos, de
acordo com Costa e Silva.

“Muitos africanos, por exemplo, passaram nelas a trabalhar como assalariados e nelas não só
adquiriam novos ofícios ou adaptaram os que já tinham ao gosto do branco, como também
aprenderam as manhas deste. Outros aprenderam em casa, pois nasceram de uniões entre
europeus e mulheres da terra. E alguns aproveitavam esse conhecimento para se tornarem
intermediários ágeis e sagazes entre os brancos, de um lado, e os reis, chefes e batanis aças.
Não faltou quem fosse além e construísse sua própria estrutura de poder (Silva, 2002, p. 814).”

No início do comércio de escravos, uma variedade de produtos era utilizada como moeda de
troca, sendo que muitos desses produtos eram considerados "presentes" para os africanos. No
entanto, à medida que o tráfico de escravos se sistematizava, os comerciantes africanos
passaram a exigir um conjunto mais limitado de mercadorias. Além das contas, como os cauris,
que eram utilizadas como moeda, os produtos incluíam tecidos, armas de fogo, facas, pólvora,
bebidas alcoólicas, fumo, açúcar e bacias de cobre. Esses produtos eram principalmente itens
de consumo e não contribuíam significativamente para o desenvolvimento econômico
africano, que já sofria os efeitos negativos do esgotamento da mão de obra, embora houvesse
uma menor drenagem de mulheres.
Os novos estados do litoral...

O contato com os europeus teve um impacto direto na interferência e rearticulação de várias


organizações políticas africanas em diferentes estágios de formação ou união. A centralização
de impérios e o desenvolvimento de novas estruturas econômicas tiveram que levar em
consideração as relações com os europeus, que poderiam se tornar aliados ou inimigos em um
jogo complexo envolvendo alianças, federações e disputas de poder. É importante destacar
que os europeus não conseguiram dominar imediatamente o continente africano, nem
derrotar ou subjugar vários impérios poderosos que possuíam armamentos suficientes para
repelir as investidas europeias ou estabelecer alianças com eles. Assim, várias organizações
políticas africanas foram reestruturadas com base no contato com os europeus e viram seu
poder aumentar através do controle do comércio costeiro, principalmente o comércio de
escravos

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