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https://www.conjur.com.br/2023-dez-04/direito-civil-atual-ainda-precisamos-falar-sobre-o-abuso-
de-direito-parte-1/
Editorias: AcademiaCivil
A discussão contemporânea sobre o assunto “abuso de direito” é uma daquelas que causa, a
princípio, sonolência na maioria dos juristas: o que mais poderia ter sobrado para se falar, sobre
um tema que já vem sendo discutido na literatura, sem rupturas significativas, ao menos desde
1901? 1 Anota-se que, do início do século passado até 1913, ao menos 20 teses de doutorado
haviam sido publicadas na França e na Bélgica, e praticamente todos os grandes civilistas à época
haviam marcado posição sobre o assunto. 2
Ainda assim, quando comecei a pesquisar sobre o abuso de direitos fundamentais — o tema
específico de meu original interesse —, ainda parecia faltar algo consolidado, definitivo (na
medida em que algo pode ser considerado cientificamente ’definitivo’): o que, afinal, é o abuso de
direito civilista, noção da qual a teoria dos direitos fundamentais explicitamente procurou se
apropriar, por meio de uma “transposição”? 3
ConJur
Esse foi o primeiro desafio da minha tese de doutorado defendida na Universidade de Fortaleza,
sob a orientação do professor doutor Eduardo Rocha Dias. A tese foi vencedora do Prêmio Fibe
2023, e recebeu menção honrosa no Prêmio Capes 2023; com grandes adaptações, foi publicada
em inglês, em dois volumes: Abuse of Rights: From abus de droit to allgemeine Verbot
unzulässiger Rechtsausübung e Abuse of Fundamental Rights: From the private law doctrines to a
constitutional theory.
A convite do professor doutor Otavio Luiz Rodrigues Junior, coordenador da Rede de Pesquisa de
Direito Civil Contemporâneo, apresento (com muita gratidão pela oportunidade), em coluna
dividida em duas partes, um curtíssimo sumário das minhas principais ideias sobre as doutrinas
civilistas do abuso de direito.
O que os Tatbestände têm a ver com o caso julgado pela Corte de Apelação francesa de Colmar
em 2 de maio de 1855 (affaire Doerr), considerado pela quase totalidade da literatura
especializada como o marco inicial das doutrinas de abuso de direito, e no qual se considerou ser
ilícita a construção de uma falsa chaminé com o único objeto de diminuir a incidência de luz de sol
no vizinho? 5 Ou com o caso Clement-Bayard (Corte de Cassação francesa, 3 agosto 1915), o
primeiro registro do uso jurisprudencial da expressão abus de droit, em que se concluiu que a
instalação de lanças de ferro no limite de uma propriedade vizinha a uma fábrica de dirigíveis não
era lícita? 6 Pascal estava certo, no caso das doutrinas de abuso: “Um meridiano decide a verdade.
[…] Justiça agradável que um rio delimita!”? 7 A compreensão do abuso de direito realmente
muda quando se atravessa o rio Reno, da França para a Alemanha?
Há uma percepção geral de que o que hoje se entende por ‘abuso de direito’, em um tronco que
vai desde o artigo 281 do Código Civil grego até o artigo 187 do nosso Código Civil, passando pelo
artigo 334 do Código Civil português (todos essencialmente iguais), é um “cruzamento de
influências” 8 de duas tradições: a franco-belga e a germânica. Em todos esses dispositivos,
considera-se haver abusos quando, no exercício de algum direito, violam-se os deveres impostos
pela boa-fé objetiva ou pelos bons costumes, ou quando se desvia da finalidade econômica ou
social 9. Essa última abordagem, de desvio da finalidade, é típica da tradição franco-belga de abus
de droit, que tem em Louis Josserand seu maior expoente. 10 Mas Josserand, até onde se sabe,
nunca tratou explicitamente de Tatbestände — assim como não trataram os seus seguidores, na
busca pelo “espírito” dos direitos. 11
Sendo assim, questiona-se a existência de uma tradição única de abuso de direito, ou de duas (ou
mais) tradições distintas, apenas convenientemente agrupadas sob um título único: é o que eu
chamo de as histórias do abuso de direito.
A resposta é complexa: se, por um lado, é inegável que, nas duas raízes, a noção de abuso de
direito exerce uma mesma função, por outro, não se pode ignorar que a maneira de
operacionalização é completamente distinta. Além disso, não é possível estabelecer uma
estanqueidade entre as duas raízes, dada a recepção da teoria de Josserand ocorrida na Alemanha
durante o período do nazismo (o que suscita ainda a necessidade de remexer-se o “passado
marrom” 12 das doutrinas de abus de droit, chave para a compreensão da tradição germânica,
que se apresenta justamente como seu maior “contraprojeto” 13).
Abuso de direito como ilicitude atípica
Começo com as concordâncias funcionais: um traço comum que une as tradições germânica e
franco-belgaxiv é, de fato, a adoção de uma concepção abstrata dos Tatbestände (ainda que não
necessariamente sob esse título). É chegado o momento, então, de enfrentar esse ponto: o termo
alemão Tatbestand, de muito difícil tradução, 15 denota, literalmente “a existência (do verbo
bestehen) do facto (Tat), o facto existente”. 16 Na definição clássica de Karl Engisch, Tatbestand é
aquilo a que a norma jurídica liga consequências jurídicas. 17 Pode-se adotar aqui, então, como
uma tradução menos inexata, a de Marcelo Neves: Tatbestand é o “pressuposto abstrato da
incidência da norma”. 18
É justamente essa abstração do Tatbestand, explicitamente admitida ou não, que está presente
nas mais diversas concepções de abuso de direito: como desvio de finalidade (Louis Josserand,
Wolfgang Siebert, Alvino Lima), como intencionalidade danosa (Rui Stoco), como desproporção
entre vantagens e prejuízos (Jean Zuylen, Giorgio Pino, Thierry Léonard), como transgressão moral
(Jean Dabin, Paulo Dourado de Gusmão), como injustiça (Luis Alberto Warat, Christoph Knödler,
Lino Rodriguez-Arias), como violação à boa-fé objetiva (Hans-Ulrich Gallwas, Fabrizio Piraino, Tanja
Rudnik), como violação ao Direito (Carlos Fernández Sessarego, Tobias Leidner, Bruno Miragem),
como violação ao valor subjacente (Virgílio Giorgianni, António Menezes Cordeiro, António
Castanheira Neves, Fernando Augusto Cunha de Sá, Rosalice Pinheiro, Vladimir Cardoso, Eduardo
Souza, Anderson Schreiber), como violação a princípios (Manuel Atienza e Juan Ruiz Manero,
Aurelio Gentili, Laurent Eck, Pedro Baptista Martins, Heloísa Carpena, José Luiz Levy, Luiz Souza,
Eduardo Jordão).
Quando constato que a primeira tese de Gallwas está correta, o que pretendo afirmar é que a
noção de abuso de direito, tanto na tradição franco-belga como na tradição germânica, está
indissociavelmente conectada a ideia de, em um plano abstrato (i.e., ante casum), ter-se um
direito.
Há, no dizer de Claus-Wilhelm Canaris, uma compreensão jurídica inercial de favor libertatis, i.e., a
presunção de que as relações interpessoais estão, a princípio, protegidas contra intervenções
estatais. 23 Como decorrência, a formulação dos Tatbestände permissivos (os pressupostos
abstratos para consequências jurídicas também permissivas), no processo de
aplicação/desenvolvimento posterior/criação do Direito, adota um modelo tendencialmente
ampliativo: tudo aquilo que pode ser considerado um elemento desencadeador de uma permissão
jurídica é abstratamente incluído no Tatbestand, autorizando a compreensão de que se tem, como
consequência jurídica, o direito de se fazer o que quer que seja permitido pela norma jurídica. 19
Se o texto normativo estabelece que “A propriedade é o direito de fruir e dispor das coisas da
maneira mais absoluta” (artigo 544 do Código Civil francês), 25 há a compreensão de que o fato de
se ter a propriedade de um imóvel (o Tatbestand) dá ao titular o direito de instalar chaminés ou
lanças de ferro (se essas concretamente lhe trazem algum proveito não é questão relevante): têm-
se aí, abstratamente, exercícios de um abstrato direito de propriedade, do qual se pode abusar.
Discurso de abuso de direito como “atalho” para a justificação da valoração de ilicitude concreta
Quando se fala que houve abuso de direito de propriedade na instalação de chaminés ou lanças de
ferro, o que se está afirmando é que, mesmo estando esses comportamentos no espectro de
exercícios abstratamente permitidos, há uma ilicitude concreta. Cada uma das abordagens do
abuso de direito (eu prefiro, em uma simplificação didática, trabalhar com quatro grandes
abordagens: intencionalidade danosa, desvio de finalidade, violação à boa-fé objetiva, desrespeito
aos bons costumes) consolida linhas de justificação para a concreta valoração de ilicitude (ilicitude
atípica), mesmo ante a abstrata permissão do comportamento (licitude típica).
Até aqui, vai o traço comum entre as tradições franco-belga e germânica do abuso de direito. Na
próxima parte, explorarei o ponto mais importante de uma teoria do abuso de direito: as
diferenças entre elas.
* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil
Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona,
UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).
1 Quando Ernest Porcherot adotou pela primeira vez a expressão “abus de droit” em sua tese de
doutorado homônima: Ernest Porcherot, De l’abus du droit(tese de doutorado, Université Dijon,
1901).
3 Federico Losurdo, “The Prohibition of the Abuse of Rights in the Judicial Dialogue in Europe”
(paper, Summer School in European Public Law (Transnational Judicial Dialogue in Europe), set.
2009), 6.
4 Hans-Ullrich Gallwas, Der Mißbrauch von Grundrechten (Berlin: Duncker & Humblot, 1967), 173.
5 Cour de Colmar, May 2, 1855, Arrêt du 2 mai 1855. Jurisprudence générale du royaume en
matière civile, commerciale et criminelle 1er cahier, 2e partie (1856): 9–10 (Fr.).
6 Cass., Aug. 3, 1915, Arrêt du 3 août 1915, Dalloz. Jurisprudence générale: Recueil Périodique et
critique de jurisprudence, de législation et de doctrine en matière civile, commerciale, criminelle,
administrative et de droit publique 1re partie (1917): 79 (Fr.).
7 Blaise Pascal, Les pensées de Pascal: reproduites d’après le texte autographe, disposées selon le
plan primitif et suivies des Opuscules (Paris: P. Lethielleux, 1896), 70.
8 Judith Martins-Costa, “Os Avatares do Abuso do Direito e o Rumo Indicado pela Boa-Fé,” in
Direito Civil Contemporâneo: Novos Problemas à Luz da Legalidade Constitucional – Anais do
Congresso Internacional de Direito Civil-Constitucional da Cidade do Rio de Janeiro, ed. Gustavo
Tepedino (São Paulo: Atlas, 2008), 76.
11 Como bem observado por Philippe Durand, a prática mostra que, quando se fala de
transgressão do “espírito” dos direitos, apenas alguns “espiritualistas” parecem poder identificá-
lo. Porém, isso gera a desconfiança de que eles não identificam espírito nenhum, mas apenas
criam-no arbitrariamente (Philippe Durand, “L’abus de droit: bête du Gévaudan ou Frankenstein?,”
La Revue administrative 56, no. 334 (jul. 2003): 379).
13 Philipp Eichenhofer, Rechtsmissbrauch: zu Geschichte und Theorie einer Figur des Europäischen
Privatrechts (Tübingen: Mohr Siebeck, 2019), 3.
14 Com a provável única exceção de Lucien Campion, que, de maneira completamente desviante
da mediatriz, vê o abuso de direito como o rompimento do equilíbrio dos interesses em presença
(Lucien Campion, Théorie de l’abus des droits: de l’exercice antisocial des droits subjectifs
(Bruxelles: Établissements Émile Bruylant; Paris: Librairie Générale de Droit, 1925), 180).
15 Para se ter noção da complexidade da específica tarefa de tradução, José Lamego verte
Tatbestand para o português, em uma mesma obra, de ao menos cinco maneiras diferentes
(“estatuição”, “situação de fato”, “previsão normativa”, “previsão”, “situação factual típica”), e
chega mesmo a simplesmente omiti-la em um trecho: “Kaufmann dagegen meint mit dem
‘analogischen Denken der Rechtswissenschaft’ nicht einen Vergleich zweier Sachverhalte, sondern
den Vergleich eines Sachverhalts mit dem Tatbestand einer Norm” (Karl Larenz, Methodenlehre
der Rechtswissenschaft, 6. neubearb. Aufl. (Berlin, Heidelberg, New York: Springer, 1991), 136) é
traduzido apenas como “Kaufmann, pelo contrário, significa com o ‘pensamento analógico na
ciência jurídica’ não uma comparação entre duas situações de facto, mas o cotejo de uma situação
de facto com [aqui a omissão] uma norma” (Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, trad.
José Lamego, 3. ed. (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997), 188).
16 Fernando José Bronze, Metodologia do Direito (Coimbra: Coimbra Jurídica, 2020), 319 [nota de
rodapé. 1194].
17 Karl Engisch, Einführung in das juristische Denken, 12. aktualisierte Aufl., herausgegeben und
bearbeitet von Prof. Dr. Thomas Würtenberger und Dr. Dirk Otto (Stuttgart: Kohlhammer), 2018.
18 Marcelo Neves, Entre Hidra e Hércules: Princípios e Regras Constitucionais, 3. ed. (São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2019), 4–5.
19 Lenio Luiz Streck, Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da
construção do Direito, 11. ed. rev., atual. e ampl. (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014), 313.
20 Sobre a recepção apenas parcial da Hermenêutica Filosófica no Direito — com exceção das
realizadas por Arthur Kaufmann e por Ronald Dworkin (acrescento: também por Lênio Streck) —,
cf.: José Lamego, Hermenêutica e Jurisprudência: Análise de uma “Recepção” (Lisboa: Fragmentos,
1990), 90 ff.
21 Tobias Leidner, Rechtsmissbrauch im Zivilprozess (Berlin: Duncker & Humblot, 2019), 137 ff.
22 Nada obstante, já demonstrei que Friedrich Müller admite, sim, a interpretação ‘em abstrato’
dos textos normativos — portanto não há incompatibilidade teórica entre a Doutrina Estruturante
do Direito e as doutrinas de abuso de direito —: Fábio Carvalho de Alvarenga Peixoto, Abuse of
Fundamental Rights: From the Private Law Doctrines to a Constitutional Theory (Fortaleza:
Independently Published, 2023), 144–72.
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