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TEXTOS PARA ESTUDO

TÉCNICAS PSICOTERÁPICAS
FENOMENOLÓGICA/EXISTENCIAL
Profº. Etiane Oliveira
Adriano Furtado Holanda

FENOMENOLOGIA
E PORAOO
Reflexões Necessárias
HOLANDA O: flar noEeogeo. e í
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PARTE I
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COMPREENDER A
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À FENOMENOLOGIA
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NO1

Escrever é procurar entender,


é procurar reproduzir o irreproduzível,
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é sentir até o último fim o sentimento


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que permaneceria apenas vago e sufocador.


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Clarice Lispector
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INTRODUÇÃO
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O “desafio da simplicidade”. Este poderia ser um bom retrato


para representar a dificuldade que é falar de Fenomenologia. Aliás, me-
Thor seria não “falar sobre”, mas fazer fenomenologia. Dentro do espectro
do campo filosófico talvez isto não seja uma “questão”; afinal, a comple-
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xidade do pensamento filosófico está diretamente associada a outras


questões como rigor, lógica, coerência e com a inevitabilidade do uso de
uma linguagem muitas vezes hermética. Entretanto, quando se faz a
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transposição dessa complexidade para outros campos do saber, as dificul-


Té AT

dades se multiplicam e, na maioria das vezes, temos como uma das con-
sequências dessa inacessibilidade, a simplificação — e o distanciamento
de boa parte de seus conceitos — o que pode incorrer em falsas interpreta-
ções!. Esta é uma das realidades mais frequentes para boa parte do campo
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TD) Pá Ê

das ciências humanas e da saúde.

! O próprio Husserl sofreu com seguidas interpretações errôneas de seu trabalho, che-
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gando a protestar e discutir várias vezes contra estas (vide Farber, 1940/2012).
nO
22 Adriano Furtado Holanda
Fenomenologia e Humanismo 23

Fenomenologia não é uma filosofia “fácil” de ser apreendida, acessar aspectos “práticos” da fenomenologia buscando sempre cuidar
Seus textos são complexos, extensos, detalhados e sistemáticos; pressu- para não cair na armadilha da simplificação.
põem um raciocínio “métrico” e, principalmente, um poder de concentra- Tarefa difícil, sem dúvida, mas necessária para buscar aproxima-
ção significativo. Não são textos “cativantes”, no sentido que alcançam ções com a filosofia. Espera-se, com isto, recuperar o solo original que
um grande grupo de espíritos, não são “românticos”, na direção que “to- fertilizou todas as disciplinas que se seguiram. Para efetivar tal tarefa, fa-
cam” as pessoas de um modo imediato — como muitos textos existencia- remos um passeio histórico pelas raízes do pensamento fenomenológico —
listas, por exemplo — nem são textos de rápida divulgação (até mesmo por com especial atenção para a figura de seu principal idealizador, Edmund
— sua extensão). Husser! — e de suas marcas na atualidade; depois, trabalharemos alguns
Curiosamente, a Fenomenologia é uma filosofia * “simples”, pois conceitos fundamentais da Fenomenologia para, finalmente, buscar uma
fala de algo que podemos considerar como o cotidiano, o imediato, como aproximação com o conjunto das ciências humanas, sociais e da saúde,
aquilo que de certa forma está “à mão” e que é sempre atual. Por isso com ênfase para a Psicologia, por esta ser uma metáfora da expressão da
considero a fenomenologia um pensamento simples, mesmo que não seja subjetividade, e por conta dos vínculos íntimos estabelecidos entre seu
“fácil”. Daí vem o paradoxo: como falar de algo que é, ao mesmo tempo, idealizador e a então nascente ciência psicológica,
simples e complexo? Tentaremos realizar uma exposição “dialogada”, esperando que
Há basicamente duas boas formas de se aprender fenormenolo- o leitor possa nos acompanhar nesse desafio e, nesse acompanhamento,
gia": uma “fácil” e uma “difícil”. Comecemos pela “difícil”: basta to- quiçá tenha novas reflexões que possam ser acrescentadas a essa emprei-
marnrmos os escritos de Flusserl (nem sempre acessíveis em nosso idioma, tada. Desta maneira, cremos, poderemos estar construindo um caminho
o que nos obriga a um exercício linguístico e muitas vezes hermenêutico) de parceria. Principiemos pela história, pois esta aponta para nossas raí-
e estudá-los. De preferência, numa perspectiva histórica, das primeiras zes e para boa parte de nossos contextos. Afinal, como apontado pela
obras em diante, de modo a se ter um vislumbre da evolução de seu pen- célebre epígrafe de Lavoisier, o universo é o palco da transformação,
samento. E, obviamente, lançar mão dos bons comentadores (e há uma
grande diversidade, em várias línguas). E qual seria a forma “fácil”?
Viajar. E porque viajar? Porque ao viajar nós nos deparamos
UMA INTRODUÇÃO HISTÓRICA (SEMPRE NECESSÁRIA...)
com a multiplicidade do mundo. Viajar, aqui, é a metáfora da descoberta A filosofia não é um certo saber,
e do contato com a diversidade do mundo, e é com esta diversidade e ela é a vigilância que não nos deixa
multiplicidade que se dá o encontro com o que costumeiramente denomi- esquecer à fonte de tado saber.
namos de subjetividade. Mas isto somente será possível se o viajante se
permitir o deslocamento: quem viaja, e carrega consigo todas suas repre- Merleau-Ponty
sentações, tende a des-conhecer essa diversidade e não reconhece o outro.
Sexto Empírico — filósofo grego cético do século II d. C. — nos
Em outras palavras: viajar seria uma boa metáfora, apenas quando esta
viagem despertar a curiosidade do viajante. seus Esboços Pirronicos”, traz uma excelente discussão sobre o sentido .
do filosofar. Ao discorrer sobre a diferença entre os grandes sistemas
Nossa intenção, aqui, é tentar apresentar uma compreensão mi- filosóficos, formula a seguinte questão. Há três modos de pensamento; o
nimamente organizada e objetiva, para que possa beneficiar profissionais que declara ter encontrado a verdade, o que aponta para sua impossibili--
que estão diretamente envolvidos com sua prática — em questões sociais,
dade e o que ainda petmanece buscando,
de saúde ou mesmo educacionais — e que tem dificuldades em se apro-
priar da complexidade desse pensamento, A ideia aqui é tentar sair de um Trata-se de se pensar como se pode dar o processo de investiga-
modelo meramente conceitual (não que isto não seja importante, pois de ção — que podemos associar ao digno trabalho da pesquisa, por exemplo;
fato o é, especialmente quando se trata de ter clareza e coerência), para
' 3
Mais conhecida como Hiporiposis Pirronicas (Sexto Empírico, 1993). Sexto Empírico
? Nó que peço desculpas a Husserl e a todos seus continuadores, por mais esta “simplifi- (Sec. TED) foi filósofo, médico é astrônomo, nascido em Mitilene, tendo vivido em
“> cação”, : Alexandria e Atenas. Foi seguidor de Pirro de Éltida (e, 365-275 a.C.), fundador do ce-
ticismo (daí o título de seu texto).
24 Adriano Furtado Holanda
F enomenologia FE Humanismo 25

ou, de modo mais simples, ao processo de buscar conhecer — como bem ções paradigmáticas”* no âmbito da construção e constituição do conhe-
nos resume Marcondes (1999); cimento e na história da filosofia, como foram as “revoluções” propor-
Diz ele que em toda investigação temos três resultados possíveis: cionadas por Sócrates, Descartes e Kant,
do acreditamos ter encontrado a resposta, acreditamos ser impossível en- í Uma prova desta relevância pode ser facilmente observada a par-
:
4 contrar à resposta, ou continuamos buscando. No primeiro caso, nos é tir das múltiplas influências que a Fenomenologia exerceu e ainda exerce
es ' tornamos dogmáticos e à investigação cessa; no segundo caso, somos HW
ú em numerosos campos do conhecimento, como o das “Ciências do Ho-
:; também dogmáticos, ainda que em um sentido negativo, e a investiga- mem" — dentre elas as Ciências Sociais”, a Antropologid* e a História”
E ção igualmente cessa; só no terceiro caso, segundo Sexto, temos à au- | passando pela Psicologia e Psiquiatria" e alcançando campos os mais di-
E têntica filosofia, aquela que continua a investigar, para a qual a busca
i é mais importante que a resposta. (p. 9) versos, como o da Saúde” — incluindo a Medicina, a Nutrição e a Enferma-
gem", Outro exemplo da dimensão do “olhar” fenomenológico pode se
Pode parecer estranho principiar uma discussão sobre a Feno- perceber — sem esquecermos obviamente o campo da Educação!! — na
inenologia com a referência a um dos principais representantes do Ceti- apropriação de suas reflexões para campos tão diversos como os da Arqui-
cismo, mas ela se dá por vários motivos, Primeiro, por apontar para um tetura ou da análise da Estética e da Arie"?, da Geografia”, das Ciências da
bom exemplo do que poderemos, mais adiante, definir como sendo a Tnformação" e do Direito”, Isso sem contar as repercussões que o pensa-
“atitude fenomenológica” — uma atitude de busca, de questionamento, de mento fenomenológico teve ou tem em pensadores “livres” como Michel
investigação constante — e segundo, pelo fato de haver certa “continuida-
de” entre o pensamento cético e a Fenomenologia, tanto em termos con- * “Paradigma” é uma palavra que — de tão polissêmica — acabou caindo em uso indis-
eriminado. Referimo-nos aos conceitos desenvolvidos por Thomas Kuhn, em sua obra
ceituais, quanto históricos, Afinal, “ceticismo” vem de skeptikós, “pensa- clássica À Estrutura das Revoluções Científicas, onde define paradigma como o con-
tivo” e designa os que continuam a investigar, ou “os que se dedicam a Junto de ideias que uma determinada comunidade científica partilha, sendo aceito uni
observar” ou ainda “os que estão abertos a qualquer forma de pensamen- formemente mesmo que por tempo limitado (Kuhn, 2007[1962]). Um “novo paradig-
to, sem se aferrar a nenhum” (Cao & Diego, 1993), e se baseava em três ma” não impõe apenas novas ideias, mas novos problemas, determinando quais desses
etapas, a epochê (ou suspensão do juízo), a zéfesis (ou a busca incessante . São ou não legítimos para uma ciência.
da certeza) e a ataraxia (a imperturbabilidade), o que colocava a espe- Merleau-Ponty, 1967/1973; Schutz, 1979; Capalbo, 1996, dentre outros.

mam
Giorgi, 1977; Merleau-Ponty, 1960/1989a,
culação filosófica voltada diretamente à vida prática e ao senso comum
Dilthey, 1883, 1894/2002; Amaral, 1987; Di Napoli, 2002; Lima, 2011; Lima e Ho-
(Japiassu & Marcondes, 1990). Tanda, 2010, 2011.
Portanto — e já retomando a “sempre necessária” história — o ce- * Aquiasreferências e as relações são abundantes, Sobre as relações, estaremos discor-
ticismo pirrônico pode ser visto como uma das raízes do pensamento rendo com mais profundidade mais adiante. A título de ilustração, seguem algumas re-
fenomenológico, e não apenas por ter sobrevivido em Descartes — este ferências: Jaspers, 1913/1987; Spiegelberg, 1972; Nobre de Melo, 1979; Naudin, 1997;
sim, um dos mais importantes alicerces da Fenomenologia propriamente Moreira, 2004; Karwowslki, 2005; Holanda, 2011b,
Freitas, 2002; Ortega, 2005; Nunes, 2007; Mahfoud, 2008; Nunes e Vasconcelos,

e
dita — na sua radical “dúvida metódica” (a que retornaremos muito em 2010; Peixoto e Holanda, 2011; Holanda, 2011a.
breve), mas fundamental pelo que definiríamos como a atitude “necessá- Este é um campo que merece destaque, pela quantidade de trabalhos produzidos e
ria” ao pesquisador, e presente na orientação cética. Como assinala Sexto pelas inúmeras aproximações possíveis (vide Capalbo, 1990; Boemer, 1994, 2011,
Empírico, esta orientação era também chamada de Zetética e Eféctica 2011b; Schneider & Valle, 1996; Correa, 1997; Jesus, Peixoto & Cunha, 1998: Lopes
(por sua atitude mental) e de Aporética: Zetética, de zeté£o, “buscar”, “in- Neto e Pagliuca, 2002; Bressan& Scatena, 2002; Campoy, Merighi & Stefanefli, 2005;
*. vestigar”; Eféctica oriunda da raiz épécho, a mesma de hê epoché, “man- Rivera & Herrera, 2006; Azevedo & Lopes, 2010; Ribeiro, 2010),
1! Bicudo e Cappelletti, 1999; Bicudo, 2000, 2010; Martins e Bicudo, 1983, 2005; Coe-
ter em suspenso”; e Aporética por investigar e duvidar de tudo (Cao & lho, 2009. |
Diego, 1993). 12 Dufrenne, 1953, 1967/1998; Merleau-Ponty, 1960/1989b; Fróis, 2001; Escoubas,
' Mas voltemos ao nosso caminho preliminar. À Fenomenologia 2005; Furtado, 2005; Carsalade, 2007.
é um dos marcos da história da Filosofia e uma das mais importantes 1 Santos e Souza, 2007; Pereira, Correia e Oliveira, 2010; Goto, 2013.
contribuições ao pensamento contemporâneo. À envergadura de suas 1 Guiilén, 2004; Costa, 2009.
“Teflexões e de seu legado pode mesmo ser comparada às demais “tevolu- ** Reale, 1956; Capalho, 1993; Maman, 2003; Guimarães, 2005, 2010a, 20106, 2011;
Alves, 2010. Doo '
o Vo 27
26 Adriano Furtado Holanda Fenomenologia e Humanismo

Foucault", por exemplo; ou com os desenvolvimentos no campo da Her- uma ideologia, nem como uma simples “escola” de pensamento; igual-
menêutica (bastando para tal ter em conta trabalhos de autores como H. G. mente hão é nem uma “corrente”, nem uma “abordagem”, À fenomeno-
Gadamer ou Heidegger)”. Mais recentemente, observamos uma estreita logia é um modo de acesso ao mundo. Desta maneira, ela pode ser melhor
aproximação da Fenomenologia com as Neurociências", O campo das apropriada — pela psicologia, p. ex. — em seus aspectos metodológicos,
Matemáticas — referência inicial do trabalho de Husser! — conhece igual- sem ser confundida com um modelo “ideológico” (e, portanto, como tm
mente influências e desenvolvimentos os mais diversos”, “explicativo” da realidade psíquica”),
Toda essa diversidade de campos de ação aponta para a expan- Heidegger — ao se referir ào lugar da fenomenologia em seu
— são que o pensamento fenomenológico conhecen após os trabalhos de tempo, assinala:
Husserl. Como afirmam Gomes, Holanda e Gauer (20049), após a psi-
quiatria — primeira grande área de influência da Fenomenologia, fora da [...] a fenomenologia não é, naquilo que ela tem de mais próprio, uma
Filosofia — outros campos foram sendo alcançados, como à educação, a corrente, Ela é a possibilidade do pensar que, de tempos em tempos,
música, a teologia e o simbolismo (na década de 1920); a arquitetura, a se transforma e que, só por isso, permanece — a saber, a possibilidade
literatura e o teatro (na década de 1930); a antropologia, o cinema e à do corresponder ao apelo daquilo que se há de pensar. Se à fenomeno-
logia for experimentada e considerada assim, então ela pode desapare-
política (na década de 1940), até praticamente dominar o cenário filosófi- cer, enquanto título, em favor da coisa do pensar, cuja revelação per-
co françês nas décadas de 1950-1960 — o que pode ser facilmente atesta- manece um mistério*!,
do, inclusive, nas produções posteriores francesas em campos como his-
tória, linguística, dentre outros. À rigor, nenhuma grande corrente de À importância da Fenomenologia pode ser destacada pela sua
pensamento ou sistema do século XX passou incólume à influência da proposição de uma crítica à ciência de tal modo que permite a construção
Fenomenologia, de outros modos de apreensão da realidade onde se dá o resgate da subje-
Por todo esse leque de influências e repercussões, é importante tividade e a sua recolocação num contexto histórico e mundano. Algumas
assinalar que a Fenomenologia não é — e não pode ser pensada — como palavras sobre essa delicada expressão: “resgate da subjetividade”, Trata-
-se — antes de mais nada — de uma re-colocação do sujeito na sua relação
'é O caso de Foucault é emblemático no que tange às profundas raízes que a fenomeno- com o mundo; em sua acepção mais ampla. Sujeito advém do vocábulo
fogia criou no contexto do conhecimento moderno. Como afirma Abreu e Silva Neto latino subjectum, que por sua vez, vem do grego hypokeímenon (de subs-
(2004a, 2004), Foucault é “um filósofo profundamente marcado pelo movimento fe- trato, subjacente, suposto, que serve de base). “Literalmente, o sujeito é o
nomenológico-existencial” (p. 78). Nalli (2009) aponta para a heterodoxia da fenome- que subsiste numa posição de certa passividade e subordinação relativa-
nologia, o que à coloca numa posição distinta da de uma escola sectária, bastando para
tal reconhecer que em nenhum momento Husserl foi um mestre que exoluísse as dis-
cordâncias. Talvez tenha sido este gosto pelo singular e pelo diferente que tenha atraí-
2º Assim, a Fenomenologia não se confunde com as “teorias” psicológicas, não podendo,
do o jovem Foucault para a Fenomenologia. Esse interesse de “juventude” pode ser pois, ser encarada como substitutiva destas. Em outras palavras, o que é da alçada das
teorias psicológicas não se contrapõe com a fenomenologia em si. Em que pese o fato
exemplificado por dois textos de Foucault, que são: o prefácio à tradução francesa do
livro de Binswanger, Sonho e Existência, editado em 1954, que é uma discussão da que, tradicionalmente, a Fenomenologia tenha sido apropriada como “alternativa” a
Daseinsanalyse em contraposição às teorias simbólicas de Freud e Husser! (Natfli, determinados modelos psicológicos. Elaboraremos melhor esse tema mais adiante,
2009); e o quarto capítulo — intitulado “A doença e a existência” — de seu texto Doença
quando falarmos das “abordagens fenomenológicas” em psicologia. igualmente não se
pode confundir o projeta de uma psicologia fenomenológica (como proposto por Hus-
Mental e Psicologia (Foucault, 1954, 1984). À “proto-arqueologia” de Foucankt é,
pois, marcada pela influência da Fenomenologia e, mesmo que as rupturas — tanto a
serl, nos cursos de 1925-1928), a efapa psicologista do pensamento busserliano, e as
partir de sua tese de doutorado, quanto a partir de O Nascimento da Clínica — tenham
diversas perspectivas ditas “fenomenológicas” de psicologia. HÁ que se destacar, con-
sido significativas (ou mesmo, necessárias), os resquícios fenomenológicos no pensa- tudo, que é recorrente esse erro no campo da Psicologia, em especial na sua formação,
mento foucaultiano são presenças destacadas (Nalli, 2009),
pois — devido à positivação dos cursos de formação, se criou certa “necessidade” de
formatação dos currículos em torno de eixos temáticos (sejam estes tácitos, como “cli-
Um trabalho imprescindível neste campo é o clássico Verdade e Método, de Gadamer
nica”, “educação” ou “social”; sejam teóricos), o que gerou vinculações excludentes
(1986/1998). :
(representadas pelas “correntes” teóricas), o que findou por associar o pensamento fe
Este, sem dúvida, um dos campos mais ricos da atualidade e certamente um campo nomenológico a algumas perspectivas em detrimento de outras. Veremos que isto não
=

aberto para o futuro (Overgaard, 2004; Depraz, Varela & Vermersch, 2005; DeCastro é um fato.em si, : Í
— & Gomes, 2008; Castro & Gomes, 2011). 2 M. Heidegger, Zur Sache des Denkens, Tubingen: Max Niemeyer, 1988, p. 90. Citado
1º Kliber e Burak, 2008; Bicudo, 2010; Bicudo e Borba, 2012, por Fernandes (2011b), p. 19. -
28 Adriano Furtado Holanda Fenomenologia e Humanismo 29

mente a todas as possíveis determinações ulteriores” (Freitas, 1990c, p. Mesmo assim, Husserl reconhecia que Descartes não havia
1.337). Mas, concretamente, “ser sujeito” significa “estar numa determi- aprofundado suficientemente sua investigação epistemológica. Seu com-
nada relação com um objeto” (Freitas, 1990c, p. 1.337); ou, em outras promisso o conduzia a um projeto de realizar uma “viragem” na mesma
palavras, estar em situação. direção da do pensador francês e, para realizar este projeto, parte do pró-
Quando, na história da filosofia, o pensamento passa a ocupar o prio Descartes para questioná-lo quando do estabelecimento de um subje-
lugar central — basicamente a partir da tradição inaugurada por Platão e tivismo intrínseco — introjetado, fechado em si mestno, isolado do mundo
posteriormente desenvolvida por Descartes e sen cogito — deu-se uma — caracterizado por uma consciência definidora, mas que esquece dos
. inversão semântica (de atributo para atividade), e sujeifo deriva em subje- objetos e das relações que esta consciência estabelece com o mundo.
tivo e em subjetividade. Assim, temos no vocábulo “sujeito”, uma acep- Husserl (1929/1992) aponta, nas suas Conferências de Paris, que o ego
ção receptiva e outra ativa, Por um lado, sujeito é o que “sofre” a ação (o cartesiano realiza “um filosofar seriamente solipsista”*,
que se sujeita a); e, por outro, é o que “se coloca”, que “exerce” uma ação O projeto de Husserl é de tornar a filosofia o fundamento básico
(o que atua, que age). Então, ao falarmos de “resgate da subjetividade”
de todo conhecimento, ou mais especificamente, fazer da filosofia uma
queremos significar esta dupla acepção, esta dialética sob a qual se esta-
“ciência de rigor” — título de uma de suas principais obras —, tomando por
belece boa parte da tradição filosófica ocidental, e que vai desembocar
base as matemáticas. “[A] Fenomenologia se preocupa essencialmente
em uma série de novas reflexões posteriores, com significativas repetcus-
com o rigor epistemológico, promovendo a radicalização do projeto de
sões para outros campos do saber. |
análise crítica dos fundamentos e das condições de possibilidade do co-
Prefeririamos mesmo, aqui, o termo “subjetivação” a “subjeti- nhecimento” (Figueiredo, 1991, p. 172).
vidade”, com o claro intuito de nos referítimos a um processo, a um mo-
Além disso, a influência da Fenomenologia, principalmente por
vimento; e para evitarmos o risco de confundirmos subjetividade com seu método, possibilitou o desenvolvimento de importantes movimentos
interioridade (ou individualidade, como na tradição psicológica das pri-
de pensamento, cujo legado ainda está para ser avaliado. Dentre estes
meiras escolas). Ademais, “subjetivação” dirige nossa atenção para a
movimentos, podemos destacar as diversas Filosofias da Existência do
questão da ação, do “ato”, que encontra respaldo diretamente na proposta século XX — como podemos observar em pensadores como Merleau-
fenomenológica, desde Brentano. Mesmo assim, não nos furtaremos a “Ponty ou Scheler — ou o Existencialismo, primordialmente centrado na
utilizar o clássico termo “subjetividade”, na expectativa de um resgate de E figura de Jean-Paul Sartre e igualmente a Analítica Existencial de Mar-
seu sentido. : tin Heidegger e outras filosofias independentes, que foram influenciadas
Voltemos à questão da fenomenologia e sua posição histórica. diretamente pela fenomenologia, como as de Emmanuel Lévinas, Edith
Não se pode pensar'a fenoruenologia sem buscar seus vínculos com o Stein, Mikel Dufrenne, Michel Henry, Alphonse de Waelhens, Paul Ri-
carteslanismo. OQ compromisso de Husserl com o pensamento de Descar- couer, Jan Patócka, Jean-Luc Marion, Marc Richir e tantos outros,
tes torna a Fenomenologia uma corrente de pensamento imprescindível Este quadro pode ser reforçado pelo fato que à Fenomenologia
para a própria compreensão da cultura e da evolução do nosso século, transcendeu o prógrio Husserl — como afirma Embree (1997) — visto que
Husserl, profundo admirador de Descartes, admitiu em diversas ocasiões seu desenvolvimento se deu em vertentes (ou ramos) diversos: 1. Uma
esses laços: fenomenociogia realista, cuja ênfase estaria na busca de essências univer-
Com efeito, nenhum filósofo do passado teve uma influência tão deci-
sais de' objetos igualmente diversos, que encontra apoio no primeiró gru-
po de Husserl, mas teria na figura de Max Scheler seu mais destacado
siva sobre o sentido da fenomenologia como o maior pensador da
França, René Descartes. É a ele que ela deve venerar coma'seu verda- exemplo (com seus estudos sobre ética, p. ex.); 2. Uma fenomenologia
deiro patriarca. Foi de um modo muito directo, diga-se expressamente, constitutiva com ênfase no método, como temos em Aron Gurwitsch e
que o estudo das meditações cartesianas interveio na nova configura-
ção da fenomenologia nascente e lhe deu a forma de sentido que agora
tem e que quase lhe permite chamar-se um novo: cartesianismo, um 22 “Sofipsismo” advém de sofus-ipse, e designa uma consciência que se fecha sobre si
cartesianismo do século XX. (Husserl, 1929/1992, p. 9) mesma, Designa o “isolamento da consciência individual em si mesma, tanto em rela-
ção ao mundo externo quanto em relação a outras consciências; considerado como
consequência do idealismo radical" (Japiassu & Marcondes, 1990, p, 228).
30 Adriano Furtado Holanda
Fenomenologia e Humanismo 31

seus estudos sobre percepção; 3, Uma fenomenologia existencial, com 3 Fenomenologia pode ainda ser entendida como uma filosofia, se”
diferentes — e às vezes — dissonantes concepções, como temos em Merleau- zesta for énténdi como um “pensar” a realidade: mas, como aponta Darti- À
-Ponty, Sartre, Heidegger e outros; e, 4. Uma fenomenologia hermenêuti- gues (1992), Husserl gostava de considerar a fenomenologia como uma
ca, como nos trabalhos de H. G. Gadamer e Paui Ricoeur. filosofia que acompanha e subentende as ciências; não como um conjunto
Nosso objetivo, aqui neste espaço, será apresentar a Fenomeno- organizado de construtos que estruturam uma “escola” filosófica, mas mui-
logia, em algumas de suas bases históricas e conceituais, na tentativa de to mais próxima de uma concepção clássica de reflexão sobre a realidade.
compreender sua importância para o pensamento psicológico contempo- Todavia, antes de se caracterizar como um modo específico de pensamen-
râneo, tentando apreendê-la como uma nova perspectiva de fundamenta- to, antes de se constituir numa forma sistemática de se acessar a realidade,
ção para a psicologia, e sua especial! influência num recorte desta ciência, a Fenomenologia é um método, uma metodologia de pesquisa desta mesma
determinando caminhos para um conjunto significativo de modelos e realidade. É importante destacarmos essas diversas possibilidades de en-
correntes psicológicas. Além disso, pretende-se delimitar aqueles concei- tendimento do que é a Fenomenologia para que possamos compreendê-la
tos ou noções que seriam centrais para a compreensão da fenomenologia, em toda sua complexidade, sem cair nas. armadilhas da simplificação. Mas
em sua aplicação à psicologia. a Fenomenologia é, igualmente, uma ciência, como um “conhecimento
atento e aprofundado de alguma coisa”, ou como “noção precisa”, conhe-
1t GÊNESE E EVOLUÇÃO HISTÓRICA cimento sistematizado a respeito de algo. Esta é uma das características do
DA FENOMENOLOGIA pensamento husserliano evitadas inadvertidamente por boa parte das inter-
pretações psicológicas, sejam estas modernas ou não.
Nunca eu tivera querido, dizer palavra tão louca: Originalmente, diríamos que a Fenomenologia é um retorno, um
bateu-me o vento na boca, e depois no teu ouvido. “recomeço radical”, uma retomada do sentido exato do vocábulo grego
Levou somente a palavra, deixou ficar o sentido, Dhainómenon, como “aquilo que vem à luz”, que “se mostra”, que se
Cecília Meireles
manifesta. Historicamente phainómenon.era para os astrônomos gregos à
referência aos eventos celestes. Phainómenon aparece no grego como
O que se pode entender por Fenomenologia se refere a um mo- particípio (correspondendo ao nosso gerúndio) do verbo phainestai, e
delo de pensamento cujas raízes estão calcadas muma preocupação: preo- deve — portanto — ser lido como vindo à luz, mostrando-se, evidenciando-
cupação com os rumos da ciência e com a fundamentação destas. Neste -se (Fernandes, 2011b). Assim, fenômeno é ação, é movimento; está
sentido, a Fenomenologia nasce fundamentalinente como uma crítica, “vindo-a-ser”, “sendo”, sucessivamente, num fluxo ou corrente heracli-
como um procedimérnio critico (no sentido originário de “pôr em crise”), teana (Morujão, 1984).
relativo ao estatuto da própria ciência. Como crítica, a Fenomenologia se Considerando algumas definições de fenomenologia, o termo
pode remeter “à descrição do que aparece ou à ciência que tem como
tarefa ou projeto esta descrição” (Abbagnano, 1992, p. 531), ou à “ciência
Enquanto. esta ou teoria dos fenômenos, e com esta significação podemãôs dizer que a
D (como preocupação Fenomenologia é uma disciplina praticamente ilimitada” (Morujão, 1990,
sobre a própria possibilidade do conhecimento e do conhecêr), quanto p. 487), Não podemos, todavia, confundir seu objeto com o meramente
como “critica” do conhecimento estabelecido (em suas bases, estruturas e aparente, Mas o termo — fenomenologia — é antigo, tendo sido usado por
conceitos). Juntando os dois elementos, a fenomenologia é: ' Lambert no seu Nexwes Organon, em 1764, para designar o que considera-
(..) a realização de uma crítica geral de tudo quanto parece se impor à va como o estudo das fontes do erro ou a “teoria da aparência ilusória e
nós de maneira demasiado evidente, a saber, dos preconceitos; [e é] a suas variedades” (Morujão, 1990, p. 487). Como fundamento de todo o
ideia de uma reforma de todos os saberes pela descoberta de seu fun- saber empírico, o termo é recolhido por Kant, para designar “(...) a parte
damento único no sujeito seguro de si mesmo. (Depraz, 2007, Pp. 11 da teoria do movimento que considera o movimento ou o repouso da
matéria em relação com as modalidades em que aparecem ao sentido
externo” (Abbagnano, 1992, pp. 531-532), ou seja, relativamente à forma
Adriano Furtado Holanda Fenomenologia e Humanismo - .33
32

de representação (Mornjão, 1990). Hegel também utiliza o termo como de governo do III Reich; suas obras somente foram publicadas integral-
título de uma de suas obras capitais, A Fenomenologia do Espírito, publi-. mente em 1950 na cidade de Haia, na Holanda, Durante este período de
cada em 1807. A palavra Phaênomenologie é usada por Hegel para de-' perseguição, os inéditos de Husserl foram salvos graças aos esforços de
signar a totalidade dos fenômenos da mente na consciência, na história e alunos e colegas próximos que conseguiram, clandestinamente, evitar a
no pensamento, ou a “ciência da experiência que faz a consciência” (Mo- queima de seus manuscritos enviando-os para fora da Alemanha. Neste
rmjão, 1990, p. 489). Outros autores fizeram uso do termo, como por aspecto, especial destaque para o padre Hermann Leo Ven Breda (1911-
exemplo, William Hamilton (1788-1856) que a entendeu como psicologia -1974), que — após a morte de Husser! — transferiu o espólio intelectual do
descritiva (ou a pura descrição das aparências psíquicas); ou Eduard von mestre para a cidade de Louvain, na Bélgica, onde em 1939, sob sua dire-
Hartmann (1842-1906) que à associou à “Fenomenologia da Consciência ção, foram fundados os Arquivos HusserF*. À partir daí, e com o auxílio.
Moral” (Morujão, 1990; Abbagnano, 1992). Todavia, a noção que per- de Eugen Fink e Ludwig Landgrebe, inicia-se a transcrição, ordenação e
maneçe mais viva é justamente a utilizada por Husserl a partir de suas publicação de seus textos”. -
Investigações Lógicas. A gênese da Fenomenologia pode ser associada a dois grandes
Num contexto mais pragmático — e mais próximo da uma reali- é pensadores: de um lado, Wilhelm Dilihey e, de outro, Franz Brentano.
dade clínica, por exemplo — a fenomenologia será definida pelo filósofo e H
Wilhelm Dilthey (1833-1911) foi o grande nome do Historicismo alemão,
psiquiatra Karl Jaspers (1883-1969) coma uma “psicologia descritiva dos além de ter se engajado na chamada “teoria da concepção de mundo" ou
- fenômenos da consciência” (Jaspers, 1913/1967, p. 71). E sob esta base Weltanschauung. Suas ideias influenciaram as “filosofias da vida” ou
Jaspers edifica toda uma reforma da Psiquiatria, constituindo um campo “flosofias do espírito”, ressoando em Heidegger, Max Weber e outros.
novo de investigação — o da Psicopatologia — ao qual se refere como Influencia ainda Scheler, Jaspers e a corrente fenomenológica. Dilthey

ciais,
sendo a ciência em si, cuja aplicação prática seria a psiquiatria. Para Jas- faz uma distinção entre “ciências naturais” e “ciências do espírito”,
pers, a fenomenologia é um procedimento empírico e descritivo, -extre-

na sesiise
dizendo que há uma diferença gnoseológica nas questões metodológicas:
tmamente útil para se ter acesso àqueles fenômenos — como o fenômeno de um lado, a observação externa dá os dados das ciências naturais; e de

feridas penosa
psíquico de outrem — que não podem ser percebidos diretamente, ao con- outro, a observação interna revela a experiência vivida ou a Erlebnis.
trário dos fenômenos físicos, por exemplo, palavra Erlebnis (do verbo leben, “viver”), foi traduzida por Ortega y
No âmbito desta nossa consideração, a figura de Husserl é cen- Gasset (1913/2011), inicialmente para o espanhol, por “vivência” ou “ex-
tral que, como apontamos anteriormente, é um marco no pensamento periência vivida”, para designar aquilo que Dilthey — e posteriormente,
contemporâneo. O objetivo de Husserl era realizar uma “viragem” da Husserl — designam com o fato característico do humano, como aquilo
Filosofia, com o intuito de fundamentá-la em solo radical, dotando-a de
um método apropriado. Este projeto, Husserl procurou estabelecer a partir 23 A história dessa empreitada pode ser conhecida através do texto de Van Breda
da publicação do livro 4 Filosofia como Ciência de Rigor, de 1910-1911 — (1959/2007), '
que é uma obra que se situa à meio caminho entre as Investigações Lógi- 24 Tarefa ainda inconclusa nos dias atuais. Cabe destacar que Husserl deixou mais de
cas, de 1900/1901 —, e a crítica husserliana empreendida ao psicologismo 400.000 páginas estenografadas. As Husserliana abrangem quatro grandes coleções: a)
e a instituição da Fenomenologia em si das Ideias para uma Fenomeno- Husserliana: Edmund Husserl Gesammelte YWerke, que são as obras completas de Hus-
serl, encontram-se no volume XL, tendo sido publicado o derradeiro em 2009, com o
logia Pura e uma Filosofia Transcendental, de 1913. Com a intenção de título Untersuchungen sur Urteilstheorie. Texte aus dem Nackloss (1893-1918); b)
tornar a Filosofia uma “ciência de rigor”, Husserl (1910/1965) pretendia Husserliana Dotumente é uma série composta basicamente de volumes históricos e bio-
separar aquela filosofia rigorosa da filosofia “do ponto de vista”, ou seja, gráficos (incluindo a correspondência de Husserl); o) Husserliana Materialien é uma
pensá-la como uma “filosofia absoluta”, como a expressão de verdades série composta basicamente de palestras de Husserl que não se encaixam na edição
principal, e; d) Husserliána Collected Works é uma série com as traduções oficiais em
absolutas, e “não como expressão de anseios e de satisfação humanas”
inglês de série Husserliana (atualmente está no volume XII). Para mais detalhes:
- (Carvalho, 1965, p. XXVID. http://hiw.kuleuven be/hiw/eng/husserl/,
A história de Husserl é marcada por situações de considerável 23 Aqui, o que se compreende por “ciências do espírito” corresponde ao conjunto de
relevância, De origem judaica, foi proibido de publicar durante o período saberes que constituíram, no século seguinte ao de Dilthey, as chamadas ciências “hu-
manas” e “sociais” (aí incluso a Psicologia, a Sociologia, a Antropologia e outras).
34 Adriano Furtado Holanda
Fenomeno logia e Humanismo 35

que é dado imediatamente ao espírito. No caso das ciências humanas, é Contudo, é a partir do trabalho de Franz Brentano (1838-1917),
necessário compreender a vida pela própria vida, sem auxílio da metafísi- . que a Fenomenologia se estrutura, Nascido em Marienberg, e tendo sido
ca? ou de valores absolutos ou superiores. professor em Wurzburg, Berlim e Viena, em 1874 publica sua obra capi-
Pois a vida, diz Dilthey, só pode ser compreendida em sua co- tal: Psicologia do Ponto de Vista Empírico, fato este importante devido à
nexão “viva”, e esta conexão é dada de modo constante e originário, na posterior influência que terá sobre Husser! — particularmente nos seus
"vivência (Dilthey, 1894/2002). Com isto, Dilthey faz uma distinção entre primeiros escritos, mas igualmente nas subsequentes investigações sobre
Erkláren (explicar) e Verstehen (compreender) ou Aufkláren (entender). lógica e teoria do conhecimento —, influência esta “(...) reconhecida ex-
Distingue um “sistema de leis ou ciências”, de um lado, de um “sistema plicitamente e de bom grado por Husserl” (Farber, 1940/2012, p. 238).
de existências significativas e permeadas de valores” (visões de mundo), Brentano “foi representante de uma psicologia descritiva a qual
do outro. Assim, haveria duas modalidades de ciência: as Naturwissens- chamou de “psicologia dos atos”, que considera o essencial das manifes-
chafien (ciências naturais) e as Geisteswissenschaften (ciências do espíri- tações anímicas (atos) em sua relação com o objetivo ao qual estão enca-
to). Em outras palavras, Dilthey antecipa e dá as bases para a crítica hus-
minhadas (intencionalidade)” (Bonin, 1991, p. 68). A história de Brenta-
serliana à aplicação das metodologias naturalistas às ciências humanas.
no — e mesmo da construção de seu pensamento — passa pelo fato de ter
Dilthey também antecipa toda uma reflexão humanista, com respeito aos
sido um sacerdote católico (ordenado em 1864, mesmo ano de seu douto-
procedimentos que virão a ser conhecidos, posteriormente, como ciências
ramento em Filosofia), que entrou em conflito com a Igreja por não acei-
humanas, sociais e antropológicas. Diríamos mesmo que Dilthey dá os
fundamentos necessários para se considerar a Psicologia como uma “ciên- tar o dogma da infalibilidade papal, tendo por isto se retirado de sua cáte-

go tdfesas sounsio smnaseiiosave


cia humana”, dra em 1873 e se convertido ao protestantismo. em 1879. Dentre seus
discípulos, destacam-se Christian Von Ehrenfeis”", Edmund Husserl e
Com Dilthey formaliza-se um pensamento que recoloca o sujei- Oswald Kulpe**, sendo que Freud tomou algumas lições com ele (mais
to humano num contexto essencialmente social e histórico: somos seres
especificamente durante os anos 1874-1876).
históricos e constituídos na e pela história. Assith, contrariamente a uma
psicologia elementarista (que estuda o homem como unidade psicofísica), Cabe aqui abrimos um “parêntese” sobre a relação entre Freud

sintra
propõe “uma psicologia compreensiva, descritiva e analítica, reconhecen- e Brentano que parece ter sido bem mais próxima do que se imagina ou
do a unidade estrutural: da individualidade e seu modo de ser no mundo” mesmo que a história tenha registrado. Por exemplo, a “leitura” freudiana
(Japiassu & Marcondes, 1990, p. 73). dos significados embutidos na sintomatologia apresentada pelo clássico
Quem introduz esta abordagem compreensiva aos fenômenos “Anna O" — que deriva em seus estudos sobre a histeria — nos remete a
psíquicos é Karl Jaspers (que foi aluno de Dilthey), em oposição às abor- um modelo de descrição fenomenológica, mas vamos aos fatos, Há uma
dagens impessoais, e buscando fScapar aos causaltismos neurológicos, série de semelhanças curiosas entre Husser! e Freud: ambos nasceram na
apontando para uma conexão “que nasce de dentro” (Dilthey, 1874/ Morávia — Freud em 1856 e Husserl! em 1859 —; estudaram em Viena, na
2002), que virá ser apropriada como o “sentido” ou significado” da expe- mesma época, embora não existam informações de que tenham se encon-
riência. O que Dilthey traz de mais fundamental é o reconhecimento que trado. Freud se doutorou em 1881 e Husserl em 1882. Ambos publicaram
as ciências do espírito demandam um outro tipo de método para sua cons- suas obras capitais no ano de 1900 (Freud com À Interpretação dos So-
tituição, que não o método naturalista, pois este levou a ciência a um nhos e Husserl com suas Investigações Lógicas). Ainda sobre a correla-
dilema, que foi a “(...) separação crescente da vida em relação ao saber” ção entre Freud e Husserl, assinala Bucher (1983):
(p. 24). Em outras palavras, separa natureza e vida, acarretando outra
(...) curiosamente, ambos os pensadores iniciam as suas pesquisas com
separação gnoseológica, entre “pensar” e “sentir”,
uma inovação metodológica pela qual se destacam de todas as escolas
?* Expressão derivada do grego tá metaphysikà. Contam que Andrônico de Rodes, no séc.
a. C., ão classificar os textos de Aristóteles, deu nome a um conjunto de escritos pela ex- *? Von Ehrenfels (1859-1932) foi iimportante personalidade da Psicologia. Foi precursor
da chamada Gestalt-Theorie ou a Psicologia da Gestalt, influenciando diretamente as
pressão tà metà tà physiká, designando assim os tratados “além da física”, “depois da fi-
sica”. Com o tempo, a expressão ganhou a forma atual, metàã physikà, para designar o figuras de Kôhler, Koffka e Wertheimer,
campo de estudo que abrange o estudo do que transcende o físico ou o natural. 2º Filósofo e psicólogo alemão, Oswald Kulpe (1862-1915) estudou com Wundt, Lecio-
nou em Wurzburg e Munich. Foi um dos mestres da introspecção experimental,
aÔ

Adriano Furtado Holanda Fenomenologia e Humanismo 37


36

e autores precedentes, e que merece ser chamada de corte epistemoló- temente do sujeito desta experiência). Com isto, se anunciam dois cami-
gico, com todas as implicações que tem essa noção, de revolução, se- nhos para a efetivação de uma ciência empírica: a ciência natural e a psi-
não de “subversão” das ideias vigentes até aí (...) (p. 34) cologia (Araújo, 2005). Para Wundt, pois, a psicologia seria uma ciência
Mas as relações entre Brentano e Freud vão além do pitoresco.
que estaria entre as Naturwissenschafien e as Geisteswissenschafien;
ássim, “como a psicologia não estuda um objeto diferente do objeto das
Merlan (1945) descreve como que Freud realizou a tradução de um dos ciências naturais, mas apenas a mesma experiência de um outro ponto de
volumes dos trabalhos de John Stuart Mill, para o alemão, editado por vista, seus métodos de investigação também não podem diferir” (Araújo,
Theodor Gomperz. Alguns anos mais tarde, Heinrich Gomperz — prepa- 2005, p. 96). A psicologia vai, portanto, se utilizar dos dois principais
rando a biografia de seu pai, e se deparando com este fato — buscou saber, métodos naturalistas, o experimento e'a observação”, o
diretamente de Freud, como se deu esta parceria. Em carta endereçada a O que estava em jogo aqui era o “lugar” ocupado pela categoria
Heinrich Gomperz, e datada de 09 de junho de 1932, Freud diz ter sido
de “ciência” para a psicologia nascente: de um lado, um projeto naturalis-
indicado diretamente por Brentano a Gomperz, e efetivamente ficou res- ta, que afirmava a possibilidade de um “objeto” formal; e, de outro, um
ponsável pelo 12º volume, das John Stuart Mill's Gesammelie Werke,
projeto diferenciado que afirmava a limitação desse primeiro método.
publicado em Leipzig, em 1880. Este fato foi igualmente reportado (em- Neste debate entre ciência natural e “ciência do espírito” (que atualmente
bora com menos detalhes), por Peter Gay (1989). poderíamos delimitar como sendo “ciência humana”), Brentano introduz
Freud se torna estudante na Universidade de Viena, em 1873. uma noção capital para a formulação posterior da fenomenologia.
No ano seguinte, Brentano se torna professor na mesma universidade, ali
permanecendo até 1880. Pesquisando os arquivos da universidade, Merlan Na “Psicologia do ponto de Vista empírica”, Brentano formula a no-
(1949) descobriu que Freud seguiu, pelo menos, quatro semestres de cur- ção de intencionalidade no contexto da distinção entre os fenômenos
à consciência. À característica .
sos de Brentano em Viena — em seu terceiro, quarto, quinto e sexto se- ou atos físicos e mentais, presentes
mestres. Entre o inverno de 1874-1875, o verão de 1875 e o inverno de fundamental e intrínseca dos atos psíquicos é a intencionalidade, pois
à inexistência (o termo aqui é o escolástico “inesse”, ou seja; “existên-
1875-1876, Freud segue os cursos de Brentano sobre “Leituras de Escri- cia-dentro-de”) é ao mesmo tempo a característica mais importante e
tos Filosóficos”. Ainda no verão de 1875 (seu quarto semestre na univer- mais própria dos fenômenos mentais, (Maciel, 2003, p. 36)
sidade), acompanha o curso de “Lógica”; e no verão de 1876 (correspon-
dendo ao seu sexto semestre), acompanha o curso sobre a “Filosofia de Com isto, Brentano designa que a consciência humana se estru-
Aristóteles” (especialidade de Brentano, tendo sido objeto de sua tese de tura dinamicamente — em atos —- que remetem ao mundo, e não como um
doutoramento). “Foram os únicos cursos não-médicos seguidos por Freud “objeto”. É, pois, característica do fenômeno humano se reportar conti-
durante todo seu curso de estudos (oito semestres)” (Merlan, 1949, p. nuamente ao mundo.
451). Fecha parêntese. Nilton Campos — na primeira grande referência brasileira à fe-
Retomemos Brentano. O fundamental da psicologia brentaniana nomenologia na Psicologia (Holanda, 20110) — coloca que Ribot já anun-
é que a experiência se baseia na percepção inferior, contrariamente ao cia o nome de Brentano como aquele que funda uma orientação que ex-
que propunham os sistemas psicológicos primevos ao apontar para à im clui a metafísica e a fisiologia do campo científico da psicologia é, por-
trospecção (observação interior). Com isto, Brentano reage tanto à análi- tanto, inaugura uma perspectiva autônoma para esta (Campos, 1945).
se dos conteúdos da consciência — como desenvolvida pela psicologia Apropriando-nos das mesmas palavras do filósofo, em seu prefácio, 'diz-
experimentalde Wilhelm Wundt —, quanto à orientação naturalista toma- -nos Brentano (1874/2008): “Eu me coloco, em psicologia, do ponto de
da de empréstimo à física e à fisiologia. *
vista empírico, Meu único mestre é a experiência” (p. 11). Foi Brentano
Para Wundt, a psicologia é a ciência empírica cujo objeto seria
a “experiência imediata”, e acreditava que toda experiência poderia ser 29 Wundt ainda desenvolve muito mais esse modelo, aplicando uma distinção entre auto-
analisada em seus conteúdos objetivos (que seria a experiência mediata) e: observação e percepção interna, além de estudar, posteriormente, “objetos psíquicos”
' subjetivos (experiência imediata). No segundo caso, a investigação recai que são produtos da história e dos costumes, que veio a ser conhecida como a sua Yol-
o lei-
sobre o próprio sujeito da experiência, ou seja, seu “mundo interno” (en- kerpsychologie (para um aporte mais detalhado do projeto wundtiano, remetemos
(Araújo,
tor à leitura de O projeto de uma psicologia cientifica em Wilhelm Wundt)
quanto no primeiro caso, investigam-se os objetos pensados independen- - : '
2010).
38 Adriano Furtado Holanda
Fenomenologia e Humanismo ] 39
quem deu parte das bases filosóficas para Husserl. Vejamos a seguinte
citação de Brentano, que aponta de onde que Husserl parte: Mas a Fenomenologia é um modelo do século XX, e o marco
do nascimento desse modelo foi a publicação — entre os anos 1900-1901
Todo fenômeno mental inclui algo como objeto dentro de si mesmo, — das suas Investigações Lógicas, onde propõe uma “psicologia descritiva
ainda que os objetos não estejam todos de mesmo modo. [Assim] Na das vivências”, buscando duas recusas: a do “logicismo” e a do “psicolo-
apresentação algo é apresentado; no julgamento, algo é afirmado ou gismo", O primeiro declarava que as categorias lógicas seriam a priori
negado; no amor, amado; no ódio, odiado; no desejo, desejado, e as- em si; e para o segundo, essas categorias seriam produtos exclusivos de
sim por diante. (Brentano citado por Maciel, 2003, p. 36)
um dado indivíduo singular (Depraz, 2007). Nesta obra — mais particu-
Com isto, Brentano estabelece uma categorização dos atos men- larmente a partir da quinta investigação — Husserl define o estatuto da
tais, distinguindo-os em “representação” (onde o objeto está sempre pre- vivência como o solo sobre o qual se alicerçará a fenomenologia.
sente, como algo mentalmente percebido); “juízo” (no qual é afinado ou Husserl lecionou em três universidades, em períodos distintos:
negado) e “sentimento” (algo é amado ou odiado). Em resumo, os atos em Haile, de 1887 a 1901; de 1901 a 1916, em Gôttingen e, de 1916 a
mentais se caracterizam por serem intencionais, ou seja, remetem aos 1928, em Freiburg. Estes períodos coincidem com um desenvolvimento
objetos. À intencionalidade não varia, apenas a forma como é assumida, de sua obra em “fases” distintas, onde determinados temas são trabalha-
ou seja, a referência ao objeto é que varia, e é sobre estas bases que Hus- dos com rigor e organização. :
serl estrutura seu projeto de Fenomenologia (Maciel, 2003; Ramón, 2006; Vale a pena ressaltar essa informação para que se tenha claro
Depraz, 2007). que à Fenomenologia é uma construção de toda uma vida e, ainda assim,
Mas o grande responsável pela estruturação da Fenomenologia inacabada (o que reflete perfeitamente seu próprio “espírito”). Vamos tão
foi Edmund Husserl, nascido na cidade de Prosstnitz, na Morávia, em somente assinalar algumas referências de sua obra, de modo que se possa
1859. Entre os anos de 1876 a 1878 (quando tinha entre 17 e 18 anos) fre- ter um vislumbre da complexidade do pensamento fenomenológico, do
quenta a Universidade de Leipzig, durante três semestres, Áli, estuda astro- rigor do trabalho husserliano e da necessidade de uma leitura igualmente
nomia, matemáticas e física, além de seguir as aulas de filosofia de criteriosa tanto de seus conceitos quanto de suas ideias. Queremos igual-
W.Wundt. Em 1878, inscreve-se na Universidade de Berlim, onde perma- mente marcar aqui um caráter de fluidez e de movimento pelo qual pas-
nece por seis semestres, onde conhece Carl Weierstrass, que será sua inspi- :
ração para uma “fundação radical das matemáticas, e ademais despertará | sou a construção da fenomenologia, o que inclusive será significativo
para os desenvolvimentos posteriores. " o
* neleo ethos do cientista (...), rigor e retidão” (Depraz, 2007, p. 18).
À Fenomenologia se construiu em múltiplas publicações, com
Em 1881, vai a Viena e ali, em 1882, obtém seu doutorâmento particular destaque para o Jahirbuch fur Philosophie und phânomenologis-
com a tese Sobre o Cálculo das Variações. No ano seguinte, em Berlim,
che Forschung, ou o “Anuário de Filosofia e Pesquisa Fetiomenológica”,
torna-se assistente de seu ex-professor, Welerstrass. Em 1884, Husserl
fundado em 1912 pelos fenomenóiogos da escola de Munique (Farber,
retorna a Viena e se filia ao pensamento de Brentano, sendo este o res-
1940/2012) — dentre eles Adolph Reinach, Alexander Pfinder, Moritz Gei-
ponsável por sua “conversão” à filosofia (Depraz, 2007). Dois anos de-
ger e Max Scheler — e que teve como editor inicial o próprio Husserl. Eram
pois renuncia à sua ascendência judaica, converte-se ao Luteranismo,
publicações anuais (entre 1913 e 1930), nas quais autores diversos publica-
casando-se no ano seguinte com Malvine Steinschneider. Posteriormente
vam seus trabalhos. Dentre estes, constam alguns dos principais textos de
torna-se livre-docente pela Universidade de Halle, Começa aí sua vida
intelectual realmente produtiva, Husserl, como também de Max Scheler (textos de Etica) e de Heidegger (a
: primeira publicação de Sein und Zeit está no volume de 19297),
Neste ínterim, seu interesse se volta para a reflexão filosófica
“das matemáticas, o que 9 leva a realizar sua habilitação sob a tutela de A obra de Husser! se deu em numerosos livros, textos e, princi-
Carl Stumpf, em Halle, Surgem daí, duas de suas primeiras obras: Uber palmente, cursos é conferências*!, onde desenvolve suas ideias. Sua críti-
den Begriff der Zahi (1887) e Philosophie der Arithmetik (1891), esta ca aos reducionismos ganha corpo na publicação de 1910-11, 4 E ilosofia
última dedicada a seu mestre, Brentano. como Ciência de Rigor mas, antes, no ano de 1907, durante seu curso
:
sobre À Ideia da Fenomenologia, surge-lhe a primeira ideia explícita
n Sobre o Conceito de Número (1887) e Filosofia da Aritmética (1891),
*! Para um espectro mais amplo de sua produção, vide Apêndices.
40 Adriano Furtado Holanda Fenomenologia e Humanisno 41

A
sobre a redução. Uma obra considerada “fundante” é o livro intitulado 2 COMO COMEÇAR A ENTENDER FENOMENOLOGIA?
Ideias para uma Fenomenologia Pura e para uma Filosofia Fenomeno-
lógica (de 1913) -- mais comumente conhecida como as Ideen — onde Lá atrás, sugerimos ao leitor que viajar seria uma boa metáfora
propõe uma investigação da consciêfácia e de seus objetos. No ano de para se compreend er a Fenomenologia. Reiteramos a sugestão. Mas va-
1914, irrompe a Primeira Grande Guerra — onde Husserl perde um filho mos fazer outros convites agora. Convido o leitor a pensar em algumas
no front, em 1916, e seu mais dileto discípulo e colaborador, Adolf Rei- questões: Como se percebe o mundo? Como se sabe que o mundo é mun-
nach?ê?, em 1917 — e em seguida, seu antigo colaborador, Heidegger”, do? Como nós nos percebemos? Como se pensa mente e corpo? Questões
como estas (absolutamente cotidianas) são exemplos de “portas de entra-
ocupa a cadeira de livre-docente na Universidade de Freiburg. No ano de
da” para se pensar a fenomenologia.
1929 publica Lógica Formal e Transcendental; em 1931, reunidas suas
conferências sobre a filosofia cartesiana, é publicada na França, as Medi- Você já pensou em como um animal, por exemplo, percebe o
tações Cartesianas; e em 1936 é a vez de À Crise das Ciências Europeias mundo? Provavelmente acharia essa hipótese meio absurda, e tanto mais
absurda se se perguntar “como é ser um morcego?”, Pois esta é uma curio-
e a Fenomenologia Transcendental. Após muitas dificuldades, Husserl
vem a falecer em 1938%*, sa pergunta proposta por Thomas Nigel (1974/2013), num texto já clássi-
co, que nos remete ao problema anterior -- como se percebe o mundo —
Há que se destacar ainda outros escritos importantes, tais como ou, mais destacadamente, ao problema da consciência. Eis um dos pro-
os cursos de 1904-1905 sobre a Fenomenologia da Consciência Intima plemas centrais da Fenomenologia. Tão ou mais absurdo seria se pensar,
do Tempo (Zur Phaenomenologie des inneren Zeitbewusstseins), compi- por exemplo, como um “marciano” ou qualquer extraterrestre perceberia
lado originalmente por sua assistente à época, Edith Stein, e que teve o mundo e o universo ou nos perceberia, se aqui chegasse, O leitor pode-
ainda outras organizações, como a de 1928 — por Heidegger — vindo a ser - ria facilmente substituir “extraterrestre” por Hobbits, Ogros, Elfos ou
publicada somente em 1966, numa edição de Rudolf Boshm. Muitos Dragões (como preferir), pois questões como essas são triviais -- no senti-
textos husserlianos permaneceram e ainda permanecem inéditos. E em do que nos acompanham constantemente, mesmo que não as pensemos
muitos deles temas importantes são trabalhados — ou esclarecidos — como objetivamente — por estarem no ceme de nossas crenças, convicções,
a questão da intersubjetividade, a temporalidade, dentre outros. valores, e por nos permitir fantasiar, imaginar e devanear, ou desejar, por
Como não nos propomos a uma exposição histórica exaustiva — exemplo.
em particular de sua vida e obra — remetemos a leitor aosAnexos, onde Mas vamos começar por algo mais “simples”. Espero que o lei-
poderá ter uma clara ideia da dimensão dos escritos husserlianos. Vamos ' tor aprecie arte, particularmente a pintura e, mais particularmente ainda,
agora tentar organizar, minimamente, algumas noções centrais da Feno- convido-o a contemplar algumas das obras.de Claude Monet*. Sugiro
menologia. começar pelos exercícios de variação que Monet produziu em séries, a
partir de 1890, como as “Cathédrales de Rouen”, por exemplo”:
32 Adolf Reinach (1883-1917) foi estudante de Theodor Lipps em Munique, e do círculo
de fenomenótogos que se juntou a Husserl em Gôttingen, tendo sido um de seus mais Ao que
5 Peço licença aos leitores por colocar essa magníficas telas em preto e branco,
próximos colaboradores e assistentes. Foi graças à Reinach que vários importantes

wu&
perdem em cores (que podem — e devem — ser acessadas facilmente na internet), man-
nomes da fenomenologia posterior assimilaram os escritos de Husserl (como Dietrich
têm a diversidade das formas que preciso para os exemplos a seguir.
Von Hildebrand, Edith Stein, Hedwig Conrad-Martius, dentre outros). Reza a lenda
As ilustrações estão aqui reunidas numa montagem de várias telas, pintadas em mo-
que as aulas de Husserl, por demais complexas, eram posteriormente esclarecidas por

E
mentos diversos. Essas pinturas estão reunidas em coleções diversas, e em vários mu-
Reinach em particular. Sua morte, na guerra, foi uma grande perda para o próprio edi-
seus, dentre eles, Pushkin Museum (Moscow); Musée du Louvre (Paris), Musée D'Orsa
fício da fenomenologia (Mora, 2001; Drummond, 2007)...
(Paris), National Museum of Wales (Cardiff), National Gallery of Art (Washington),
3 Heidegger acompanha os trabalhos de Husserl desde que este chega a Freiburg, em Metropolitan Museum of Art (New York), Musée Marmottan (Paris), Narodni Muzej -
E

1916, substituindo-o posteriormente na cátedra, em 1929, o que irá gerar bastante po- (Belgrado), Musée des Beaux-Arts de la Céramique (Rouen), Museum Folkwang (Es- —
« lêmica, devido ao vínculo político de Heidegger com o Nacional-Socialismo alemão, sen) ou Museum of Fine Arts (Boston), bem como em coleções privadas. Um site mui-
: 1 O leitor poderá acessar mais dados biográficos e históricos sobre a Fenomenologia e a to interessante é o do Media Center of Art History (da Columbia University, New
figura de Husserl em um conjunto de textos disponíveis em lngua portuguesa. Indicamos York), que tem wma área interativa com mais de 25 telas de Monet sobre a Catedral de
algumas boas introduções, como Depraz (2097) ou Goto (2008); ou em obras mais com- Rouen e pode ser facilmente acessado pelo endereço; http://www.learm,.columbia.edu/
pletas — como o-fhe Cambridge Companion to Husserl — de Smith e Smith (1996), monet/swf/ -
42 : Adriano Furtado Holanda Fenomenológia e Humanisino 43

(Claude Monet — Cathédrales de Roven)

Nesses exercícios, Monet inaugura uma nova modalidade de


pintar, visto que buscava reproduzir os efeitos da luz, ao longo do dia,
sobre o prédio da Catedral de Rouen. Com isto, produziu uma série de
pinturas fantásticas, onde cada quadro apresentava um aspecto diferente
do mesmo prédio, de acordo com a difração da luz sobre a fachada. Em
outras palavras, Monet produziu quadros que mostravam o efeito da luz
sobre o “mesmo” fenômeno, produzindo “fenômenos” diferentes. Agora, recordemos que Monet, ao final de sua vida, foi acome-
tido de catarata (provavelmente por tanta exposição ao sol, já que tinha
Agora observem uma de suas mais famosas (e conhecidas) pintu-
preferência por pintar ao ar livre), mas que mesmo assim não cessou de
Tas: Le Pont Japonais, que tinha em seu jardim, em sua casa de Giverny, pintar; ao contrário, passou a usar cores mais fortes e vivas, continuando
pintada igualmente de múltiplas maneiras entre 1893-1894 e 1899,
a pintar o que lhe chegava, suas “impressões”. Observem, pois, a “mes-
Pintura a seguir:”? ma” Pont Japonais**, em uma pintura de (provavelmente) 1918-1924.

3 Óleo sobre tela, 1899 (The Museum of Art, Philadelphia), 7º Óleo sobre tela, c.1926 (Musée Marmottan, Paris),
Fenomenologia e Humanismo 45
44 Adriano Furtado Holanda

letras ficam
caso o leitor use óculos (ou mesmo cerre os olhos ao ler), as
torradas ou menos nítidas. '

- É claro que não penso de modo algum que à falta de nitidez caracteri-
meus
za as coisas que vejo, por si mesmas, ainda que-a remoção de
e assim
óculos tenhá o poder mágico de mitigar a tinta real, o papel
' .
por diante, (Cerbone, 2012, p. 13)
k

: O que o autor pretende significar com isto, é que ao nos cen-


passo
trarmos na nossá experiência do mundo, estamos dando o primeiro
para praticar fenomenologia. 2
a
Ao nos centrarmos na nossa própria experiência, começamos
é
notar algumas coisas: uma delas é que a experiência visual que temos
experiên cia de “alguma coisa”: a página, as letras, etc. '
uma
“Esses objetos são uma parte integrante de sua experiência no sentido
de que a experiência não seria o que é caso não incluísse esses óbjetos.
(...) isso indica que esses são os objetos da experiência: que a experi-
'
ência é de ou sobre eles. (Cerbone, 2012,p. 15)
no-
Este é um claro exemplo da dimensão “empírica” da Fenome
o
logia, e do que Brentano destaca ao definir sua psicologia, 8 indica ainda
experiê ncia ser “intenci onal”. Ao mesmo tempo, esta experiên cia
fato da
“total”, ou
presente — do livro, das palavras, das letras — não se dá de modo
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(Claude Monet — Le Pont Japonais) de do livro ou da página em moment o algum, pois o


seja, não é a totalida
-
O que pretendemos com esses exemplos de arte, pintura e Mo- objeto da experiência é dado em uma perspectiva, mesmo que a experiên :
)? Pre- cia momentânea inclua mais do que é visto moment aneame nte,
net (além, é claro, de revelar uma de nossas preferências estéticas
fenomen ologia como esse modo — múltiplo — de per- que há
tende-se mostrar a
e o O que quero dizer aqui é que sua experiência presente indica
ceber, sentir, viver e representar o mundo. O que a pintura de Monet que
mais para ser visto: que o livro pode ser visto de outros ângulos; ia
nos traz de recurso para à compree nsão da ele tem outros lados para serem vistos. Isso confere à sua experiênc
movimento impressionista
faz a ex-
Fenomenologia é o fato que a própria experiência estética — de aprecia- atual mais quanto a “profundidade” e “densidade” do que o
ção, valoração, admiração ou contemplação de um quadro, por exemplo
— periência de uma imagem plana. Toda essa fala sobre perspectiva, su-
ia visual,
não se dá apenas no objeto nem apenas no sujeito, mas no entrelaç amento gestão, profundidade e densidade indica que nossa experiênc
tem mesmo no caso mais simples de olhar para este livro, tem uma estrutu-
entre sujeito e objeto; ou, numa frase do próprio Monet: “O tema izada-
ra rica e complexa, que pode ser delineada e descrita pormenor
para mim uma importância secundária: quero representar o que vive entre mente (...), podemos começar a pensar que essa estrutura indica
algo
o objeto e eu próprio”, essencial com respeito a ter qualquer experiênc ia visual de objetos tais
Façamos outro “exercício” agora, acompanhando uma sugestão como livros. (Cerbone, 2012, p. 16)
ou
de David Cerbone (2012). Enquanto lê essas páginas, cerre os olhos
mude o ângulo de leitura; ou, se usar óculos (melhor ainda), tire-os
e São questões como estas — ricas e complexas, mas ao mesino
-
volte a ler, O leitor míope costuma viver “entre dois mundos” , nas os tempo corriqueiras e mesmo “triviais” — que configuram o que entende
mesmo que não consiga mos defini-l a clarame n-
reconheçe como senda o “mesmo”, correto? Voltando a esse exercício
, mos par Fenomenologia,
te (ou, de modo “fácil”). Mesmo assim, vamos tentar.
3 Citado por Heinrich (2000).
46 Adriano Furtado Holanda Fenomenológia e Humanismo 47

Como vimos até agora, o “problema” da fenomenologia é múl- loca as essências na existência e não concebe que se possa compreen-
tiplo, mas vincula-se ao quadripé citado anteriormente: epistemologia, der o homem e o mundo de outra forma que não seja a partir de sua
filosofia, método e ciência. Nesta complexidade, o problema da Fenome- “fagticidade”. É uma filosofia transcendental que coloca em suspenso,
nologia pode ser entendido como um problema de fimdamentação — e de para as compreender, as afirmações da atitude natural, mas é também
fundações — da ciência. Husserl estabeleceu para si a tarefa de repensar uma filosofia para a qual o mundo está sempre aí, anterior à reflexão,
como uma presença inalienável, e cujo esforço é de retomar esse con-
* esses fundamentos. Eugen Fink, um eminente conhecedor do pensamento
tato ingênuo com o mundo para dar- lhe, enfim, um estatuto filosófico,
husserliano, aponta a fenomenologia como um “recomeço radical”, uma
É a ambição de uma filosofia que seja uma “ciência exata”, mas é
retomada da busca das raízes. Constitui-se numa tentativa de solucionar o também uma apreciação do espaço, do tempo, do mundo “ vividos”. É
problema da dicotomia sujeito/objeto, através da apreensão das relações a tentativa de uma descrição direta de nossa experiência tal qual ela é
do homem com o mundo*º, Neste sentido, “a fenomenologia é, a um (..). (Merleau-Ponty, 1945, p. 1)
tempo, método e atitude: a atitude especificamente filosófica e o método
rigorosamente filosófico” (Morujão, 1984, p. 67). 2 À fenomenologia se faz reconhecer como estilo, como modo;
â Fenomenologia surge como uma crítica, no sentido original existe como movimento, anterior à consciência filosóficá. Ou, como assi-
do termo!, enquanto uma tentativa de pôr em crise o conhecimento vi- nala Merleau-Ponty (1945): “É em nós-mesmos que encontramos a uni-
gente. Assim, surge como crítica à psicologia objetivista e experimental dade da fenomenologia e seu verdadeiro sentido” (p. D). Em resumo, e
que — como as demais ciências —, buscava o conhecimento absoluto igno- partindo da própria definição de Merleau-Ponty, podemos dizer que à
rando a subjetividade. Ao propor isto, a ciência constrói uma imagem de- Fenomenologia pode ser encarada como: um estudo das essências, mas
homem que não condiz com a sua realidade. O homem não é uma coisa como uma filosafia que recoloca essas essências na existência, posício-
entre as coisas, e como tal não pode assim ser considerado. O mundo é nando homem e mundo numa relação de facticidade, sendo uma AFlosofic qa
um objeto intencional com referência à um sujeito pensante. transcendental — que põe em suspenso a tese da atitude natural — e pré-
À Fenomenologia se opõe também ao naturalismo, que ússinala ' reflexiva (o que aponta para o fato que o mundo está sempre lá); é uma
o comportamento como uma mera relação causa e feito; e ao idealismo de tentativa de retomar um contato “direto” ou “ingênuo” com o mundo,
Kant e Hegel, que propunha o homem como um conjunto conceptual com a ambição de uma ciência exata, partindo da descrição da experiên-
organizado. No prefácio de seu livro F. enomenologia da Percepção, o cia tal qual ela é.
filósofo francês Maurice Merleau-Ponty — um dos principais personagens A Fenomenologia é um esforço, uma tentativa de clarificação
da Fenomenologia pós-husserliana — propõe à questão: da realidade. É uma aberturaà experiência, à vivência do mundo. É a
O que é a fenomenologia? Pade parecer estranho que ainda se coloque busca do fenómeno, daquilo que surge par si só, daquilo que aparece, que
esta questão, meio-século após os primeiros trabalhos de Husserl. Ela se revela. Fenomenologia é ir às coisas-mesmas, descobri-las tais quais
está, entretanto, longe de ser resolvida. À fenomenologia é o estudo se apresentam aos meus sentidos, tais quais euas percebo, numa contínua
das essências, e todos os problemas, segundo ela, consistem em defi- relação. Mas é um “ir em busca” aliado à minha própria experiência sub-
nir as essências: a essência da percepção, a essência da consciência, jetiva concreta. É um olhar e ver, não apenas uma colocação diante de
por exemplo. Mas a fenomenologia é também uma filosofia que reco- algo. É participação, envolvimento. Deste modo, a Fenomenologia torna-
“se um modo de existir, de se colocar no mundo, de fazer parte deste
1º Relações do hamem com o Umvwelt (mundo ambiente), Mitwelt (mundo humano) eo mundo. Neste contexto, temos o ser humano também como um fenôme-
Figenwelt (mundo próprio). no. O mais complexo (talvez), mas o mais completo também.
À Fenomenologia resta, pois, um método, de evidenciação, uma
4
Sobre à questão da “crítica” uma citação serve de esclarecimento: “O termo “crítica*
(...) foi aqui encarado no sentido originário de uma interrogação sobre as condições de
possibilidade e às limites de algo (...). Nesse sentido, a crítica se caracteriza, não pela forma de renovação dos problemas filosóficos, mas o que temos como o
mera objeção pessoal ou pela apreciação que destaça as qualidades e os defeitos de primordial na Fenomenologia é o seu caráter de contínua reflexão crítica,
uma obra ou de uma posição, mas por uma busca de fundamentos, isto é, por certo
modo de reflexão que, ultrapassando a experiência imediata, ruma para o ser, encon-
- trando aí a origem da primeira” (Frayze-Pereira, 1984, p. 1, grifos nossos).
48 Adriano Furtado Holanda Fenomenologia e Humanismo 49

de re-pensar o mundo e a realidade, pois afinal, o ser somente se comple- e incognoscível, ou seja, que não se pode conhecer — nem um “em si”
ta no seu devir, no-seu crescer”? ; (inacessível). A Fenomenologia lida com experiências, com vivências, e
Para compreendermos a Fenomenologia nesta múltipla perspec- fenômeno aqui é sempre um correlato dessa experiência. O fenômeno,
tiva — como método, como filosofia, epistemologia é como ciência — é aquilo que se revela, que aparece, não pode e não deve ser considerado
preciso esclarecer certos conceitos e noções que são centrais, reconhe- independentemente das experiências concretas de cada indivíduo. Escla-
cendo o hermetismo de alguns deles e, ainda, o fato que — para a psicolo- reça-se, com isto, que a fenomenologia não institui um mero subjetivismo
gia e paraos psicólogos — nem todos os conceitos serão utilizados de ou vm princípio idealista pelo qual à “sujeito” — ou a “consciência” — se
modo “necessário”, ou seja, alguns desses conceitos são da ordem da torna a única referência com respeito ao mundo, mas, ao contrário, com
lógica e da filosofia, e não podem ser transpostos ipsis lifferis para outro isto estabelece uma re-ligação do sujeito — aqui compreendido enquanto
campo em outras palavras, servem mais como fundamentação de uma subjetivação — com seu contexto, ou seja, re-coloca o ser no mundo.
atitude posterior, do que propriamente como técnica ou instrumento. Para Mas se o mundo não me é dado como um “absoluto” — ou seja,
tal, elaboraremos uma breve apresentação de seu arcabouço teórico, bus- em si mesmo — é também não pode ser confundido com uma construção
cando uma leitura que aproxime a Fenomenologia da Psicologia. subjetiva, como se dá a percepção do mundo dos fenômenos? Por “per-
fis” ou por “perspectivas” (Abschattungen), diz Husserl, nas een, Re-
tomemos essa questão, a partir de um exemplo de Merleau-Ponty
3 ELEMENTOS PARA UMA FENOMENOLOGIA
(1942/2006). Em À Estrutura do Comportamento, Merleau-Ponty usa a
Sem evidência, percepção de um cubo de madeira para esclarecer isto.
não há ciência. Tomemos um cubo. O cubo que vemos ou que percebemos, não.
é o cubo “inteiro”, pois o vemos necessariamente por um determinado
Edmund Husser]
ângulo, Dois sujeitos que olham para esse cubo, vêem o “mesmo” eubo,
Um dos aspectos centrais da Fenomenologia é a própria abor- só que por “perspectivas” diferentes. O cubo percebido — não é, assim —
dagem do que seja o fenômeno. Em outras palavras, o que vem a ser fe- um “cubo em si”, mas um fenômeno como uma verdade intersubjetiva. E,
nômeno? Já definimos fenômeno, anteriormente, em seu caráter de transi- curiosamente, cada sujeito da percepção vê o cubo como se este fosse um
toriedade, como “aquilo que aparece” (para uma consciência); portanto, o “todo”, ou seja, com profundidade, dimensão, angulação, etc. — vamos
fenômeno não está “em mim”, mas está “diante de mim” e relacionado à chamar a isto de “cubidade” do cubo — como se fosse “o mesmo cubo”,
minha consciência (neste sentido, também não pode ser simplesmente que se apresenta diferentemente para cada observador. O cubo (assim
identificado com um “objeto”). Desta forma, o fenômeno é a apresenta- como o mundo), não me é dado na sua totalidade, mas a totalidade do
ção de algo para uma consciência. cubo (assim como o mundo) me é dada em seus distintos perfis.
Mas o fenômeno não me é dado “em si”: esta realidade “em si”, Cada perfil do cubo me dá o cubo todo, “por inteiro”, em sua
ou “coisa em si”, é o númeno, diz Kant, que independe da relação com essência de cubo, que o faz um “cubo” e não outra coisa. Semelhante
um sujeito do conhecimento e, portanto, pode ser apenas pensada e não exercício poderíamos fazer com as figuras geométricas, por exemplo,
conhecida. O fenômeno que nos interessa é objeto sensível, é objeto da como aquilo que as caracterizam como tais. O fenómeno me é dado, pois,
experiência. Fenômeno, para a fenomenologia, não é um dado absoluto — sempre por “perspectivas”, por “perfis” — Abschattungen, no original —
em relação a uma subjetividade. Aliás, dentre as diversas interpretações
12 Esta concepção fica mais: clara com Heidegger, quando este assinala que, fundamen- errôneas relacionadas à Fenomenologia, duas — em especial — são impor-
talmente, o sujeito e o mundo não são entidades separadas ou estáticas, sendo que o st- tantes de serem esclarecidas. Uma delas é exatamente a perspectiva que
jeito somente se deixa apreender por sua inserção no mundo, o que leva à concepção recoloca a subjetividade em ação: o mundo é mundo de significados que,
quê “(...) o indivíduo (...) sempre se encontra em transição, em evolução; é um ser exatamente por isto, encontra-se relacionado ao sujeito que lhe dá signi- .
emergente nunca fixado, nuncã estabelecido, mas modelador do mundo através de inte-
rações constantes; sempre em devir, o seu desenvolvimento é marcado pela trama his-
Jicação. É comum se entender com isto que o sujeito, então, se torna à
'. tórica da sua temporalidade, através da qual ele tem que elaborar o sentido pessoal da referência (única) que dita este significado, ou seja, o mundo passa a ser
sua existência” (Bucher, 1989, p. 30). ' “tal qual é percebido ou vivido por um sujeito”, Há dois erros nesta inter-
50 Adriano Furtado Holanda
Fenomenologia e Humanismo si

pretação: primeiro, ao se colocar desta forma a questão, distinguem-se Imaginemos o seguinte. Ao longo da nossa vida acumulamos
dois pólos (sujeito e mundo), dando-se ênfase ao pólo subjetivo. À pro- uma série de ideias, valores, conceitos, atitudes, que são produtos da nos-
posta husserliana da Fenomenologia é exatamente o oposto. Flusserl sa experiência pessoal, da nossa experiência com os outros, que são-nos
(1913/1985) é claro ao afirmar que não se nega o mundo, nem se separa o dadas pela cultura (ou pela sociedade, ou pela religião, ou por nossa famí-
homem do mundo: masse re-coloca — como afirma à definição de Merleau- tiá), e que “atravessam” nossas relações presentes ou futuras, Áqui, o
-“Ponty -- o homem em intrínseca relação com esse mundo. O mundo de sentido desse “atravessar” não pode ser identificado com “determinar”, -
significados a que nos referimos passa pela história cultural do sujeito, Se fosse compreendido apenas como'determinístico, seria o equivalente a
passa pela sua vida privada, passa pelo seu contexto imediato (ou seu dizer que nada mais poderíamos fazer ou realizar, uma vez que já tería-
“fluxo de vivências”), passa ainda pelo seu horizonte de futuro (seus de- mos algo previamente dado. Ser “atravessado” por estas relações signifi-
Ssejos, seus anseios, suas expectativas); enfim, ao invés de se tornar uma ca dizer que estas são determinantes para o sujeito, mas não que estas
outra teoria determinista, a fenomenologia descortina a imensidão do sejam determinísticas: “determinante”, aqui, tem o sentido de direciona-
mundo ao redor desse sujeito da vivência. Portanto, a fenomenologia não do, de sentido; significa que acompanham e« que necessariamente preci-
pode ser interpretada apenas pela ótica subjetivista, mas deve ser com- sam ser considerados, por estabelecerem interações.
preendida como essencialmente intersubjetiva e mundana.
Isto quer dizer que ao nos relacionarmos com o mundo, já atri-
O segundo esclarecimento a que gostaríamos de nos referir diz buímos, já colocamos no mundo, estas ideias, valores, conceitos e atitu-
respeito a uma expressão corrente entre aqueles que buscam interpretar a des que não estão lá, necessariamente, mas contidas em nossa experiência
fenomenologia como uma via alternativa às perspectivas vigentes — sejam como relação com esse mundo. O “olhar ingênuo” é semelhante àquela
estas filosóficas, científicas ou ideológicas. É comum ouvirmos dizer (ou atitude de nos colocarmos diante de um bom filme - já visto — “de novo”,
lermos) que a fenomenologia “supera a dicotomia sujeito-objeto”. Se ou seja, significa “tormá-lo novo”, e ser possível se tornar uma “nova”
observarmos atentamente esta expressão, encontraremos um erro lógico experiência. Voltar às coisas-mesmas é permitir um encontro com essa
atrelado a ela, Se se supera algo, então este algo não mais faz parte desta novidade, com esse “ainda não sabido ou conhecido” (mesmo que já dado
realidade. E não é isto que se observa de fato. Como apontado anterior- de alguma forma) é ver ou perceber o mundo tal qual ele nos aparece.
mente, a perspectiva fenomenológica de fato propõe um outro olhar para
os mesmos fenômenos (aí inclusos o homem e seu mundo). Mas sua Fenomenologia pode ser então definida como esta busca por
“conhecer”. Está-se falando de “experiência”. E este é um dos temas cen-
perspectiva não é excludente, ou seja, não retira o homem do mundo, nem
separa o mundo do homem, mas recoloca-os em relação. Assim sendo, é trais da fenomenologia husserliana. Husserl questiona à apropriação e à
preciso que se mantenham os pólos destacados (sujeito e objeto) para que limitação da ciência empírica dos fenômenos subjetivos. É através do seu
contato com Brentano que Husserl desperta para as insuficiências dessas
seja possível reuni-los. A Fenomenologia não “supera” dicotomias — no
ciências. Tomando o exemplo da Psicologia, Husserl questiona a apro-
sentido de eliminá-las —, mas as integra. Trata-se, na verdade, de uma
priação que esta faz da metodologia das ciências da natureza, sem o dis-
outra visão. E esta, de certa forma, é que permite todo um conjunto de
hermenêuticas — ou “interpretações” — do homem e do mundo. cernimento de que seus objetos são distintos. Esta constatação e esta crí-
tica já estavam presentes na filosofia de Dilthey quando, em 1894 — em
Na realidade, o esforço da Fenomenologia reside na tarefa de jr suas Ideias concernentes a uma psicologia descritiva e analítica — afirma
às coisas mesmas, ou seja, de apreender o mundo tal qual este se apresen-
” que a vida psíquica é um dado imediato, e como tal, prescinde da explica-
ta para nós enquanto fenômeno. Isto significa dizer que podemos apreen- ção, necessitando de compreensão e descrição,
der o mundo e as coisas através de um “olhar ingênuo”, na expressão do
próprio Husserl. O que significa isto? Significa que ão olharmos para o Com isto, Husserl redefine o campo de investigação da expe-
mundo, percebemo-lo naquilo que se apresenta enquanto tal, e não en- riência. Seu raciocínio parte da ideia de como estudar os dados da expe-
- quanto uma determinada representação que já existe em nós, anterior à riência em sua totalidade. Coerente com a perspectiva cartesiana, Husserl!
nossa experiência, e que é ditada por nossa reflexão, por nossos concei- considerava que todo fenômeno estaria penetrado de logos — de “sentido”
tos, pelas apreensões da sociedade ou da cultura, por exemplo. Significa — mas que este logos somente se expõe no fenômeno. Este fenômeno não
olhar e ver. E não simplesmente olhar e achar algo “a respeito-de”. é construído, mas está acessível a todos, assim como o pensamento racio-
nal e o logos também. Com isto, Husserl reconhece a necessidade de se
x)
52 Ádriano Furtado Holanda * Fenomenologia e Hurnanismo EX)

retornar às fontes originárias do pensamento para tornar a filosofia rigo- empírica e genético-causal, ou seja, preocupada com a generatividade das
:
rosa. Contudo, não se trata de retomar as opiniões de filósofos do passado . 3 atividades conscientes.
como ponto de partida para esta fundamentação, mas se trata de partir da
[A] Psicologia fenomenológica distingue-se da psicologia empírica na
própria realidade. Dito em outros termos: o logos, o sentido, não está nas medida em que a última é uma ciência teórica preocupada com a expli-
teses previamente formadas a respeito de determinado fenômeno, mas cação dos eventos psíquicos como ocorrências reais do mundo, À Psi-
está no próprio fenômeno; o que justifica o reforno às colsas-mesmas cologia fenomenológica, por outro lado, é uma ciência descritiva que
proposto por Husserl. tem como objeto a direção inteticional da consciência para o mundo. À
A partir daí, Husserl elabora seu projeto de construir uma “filo- psicologia fenomenoiógica se distingue da fenomenologia transcenden-
sofia como ciência rigorosa”, Podemos tentar entender isto através da sua tal na medida em que não efetua completamente a redução fenomenoló-
gica. Enquanto se coloca entre parênteses a existência dos objetos da
proposta de uma psicologia científica, que seja empírica e eidética: “em- experiência, continua-se a aceitar os acontecimentos psíquicos como re-
Pírica” por se voltar para a experiência, é que pode torná-la “experimen- flexos reais ou atuais no mundo. À fenomenologia transcendental, por
tal” e “experiencial”; e “eidética”, por se ater às essências, e que pode seu turno, coloca todas as questões da existência fora de jogo e conside-
torná-la “ontológica”, ra a experiência como a experiência possível, a fim de revelar o que é
Husserl, ao longo de toda a sua obra, faz inúmeras referências à essencial não apenas para a experiência real e psicológica, mas' a toda a
psicologia (Husserl, 1910/1965, 1913/1985), seja através de sua crítica à experiência possível, (Drummond, 2007, p. 159)
apropriação metodológica, seja a partir do exame das fronteiras entre Como se percebe, a “psicologia fenomenológica” husserliana
fenomenologia e psicologia. Em primeiro lugar, ele elabora críticas relá-
não é o mesmo que uma técnica ou que uma “corrente” psicológica, e —
tivas à psicologia empírica da época e em segundo lugar, elabora um portanto — como afirmamos anteriormente, não pode ser confundida com
projeto de “psicologia fenomenológica” enquanto uma psicologia eidéti-
uma “alternativa” pragmática (ou prática, instrumental) para a psicologia
ca, À psicologia fenomenológica pode ser entendida como à possibilidade
clássica, mas é o projeto de uma psicologia eidética; enquanto que as
de se fundamentar fenomenclogicamente os conceitos da psicologia ou * aplicações que os psicólogos fazem da fenomenologia à prática (seja ela
como a análise concreta dos significados psicológicos das experiências
qual for) e à pesquisa constituem uma psicologia empírica. Esta coloca-
subjetivas. “Neste segundo sentido, trata-se de uma ciência empírica de
ção é importante na medida em que regula um campo, determinando que
investigação da vida psíquica que se utiliza da fenomenologia como mé-
certos conceitos e noções fundamentais não se contrapõem em campos
todo” (Struchiner, 2003, p. 145). Trata-se de uma nova disciplina que
distintos, como é o caso de uma aplicação prática (como no ato de pes-
“pretende ser um fundamento metodológico sobre o qual! se pode erguer
quisar ou num consultório, p.ex.) e o caso de uma construção epistemoló-
uma psicologia cientificamente rigorosa” (Goto, 2008, p. 13),
gica (quando se reflete sobre o processo de construção simbólica na cons-
Isto nos abre uma perspeotiva fundamental de considerar a Fe- ciência, p. ex.).
nomenologia como solo de fundamentação e constituição de uma Psico-
Em 1910-1911, Husserl publica um texto intitulado Filosofia
logia, ou o uso da fenomenologia como método para compreender o fe-
como Ciência de Rigor, onde traça um panorama da psicologia dominante
nômeno psíquico. À rigor, poderíamos dizer que uma Psicologia só é
na época. Trata-se de um texto seminal, pois Husserl parte de um ques-
possívei se for fenomenológica.
tionamento com relação ao que considera como o maior equivoco da
O projeto de uma psicologia fenomenológica — para Husserl — é, ciência experimental da época: o objetivismo e o naturalismo, marcada-
a partir de uma crítica do logicismo (Depraz, 2007), a de constituir uma mente influenciados ou delimitados pelo positivismo,
“psicologia descritiva das vivências”. Com isto, Husserl aponta em duas
Cabe aqui abrir um parêntese para entendermos o significado e
direções: primeiro, não há uma lógica sem um sujeito que à concebe, mas
a proposta do positivismo, de modo a compreendermos a crítica husser-
ão mesmo tempo — segundo ponto — esta lógica não é um produto exclu-
liana. Para tal, faz-se necessário retomármos suas bases no empirismo
“sivo deste sujeito (o que equivaleria a reduzir tudo ao sujeito). E para
resolver esta questão que Eusserl institui sua “psicologia fenomenológi- britânico. O Empirismo define que todo conhecimento deriva — direta ou
indiretamente — da experiência sensível (externa ou interna), ou seja, não
ca”, Husserl ainda diferencia a psicologia fenomenológica da fenomeno-
há fonte de conhecimento que não seja a experiência e a sensação. Sendo
logia propriamente dita e da psicologia clássica — aqui considerada como
TS
Sa Adriano Furtado Holanda
Fenomenologia e Humanismo 55
assim, as ideias derivam, portanto, de alguma experiência sensória ante- passando pelos estudos sociais de Adam Smith, David Ricardo e Thomas
rior à sua constituição; ou seja, não há ideias inatas, apenas ideias deriva- .
Malthus (nomes importantes na construção das modernas teorias econô-
das dos dados da sensibilidade.
micas), até alcançar a psicologia, com o positivismo evolucionista (tam-
À fundação do empirismo se dá a partir da figura de John Locke bém conhecido por darwinismo social) de Herbert Spencer, que terá

fas fais
(1632-1704), que tinha por objetivos, examinar as capacidades, funções e grande importância para o pensamento americano, '
"limites do intelecto humano, estabelecendo a gênese, natureza e valor do É neste cenário científico e, filosófico que se encontra a crítica
conhecimento. Para Locke, a fonte de todo conhecimento é a experiência, de Husserl: “O verdadeiro método segue a natureza das coisas a investi-
sendo a mente uma fabula rasa. Os demais expoentes desta corrente de gar, mas não segue os nossos preconceitos e modelos” (Husserl,
pensamento reforçam a tese central do empirismo. George Berkeley 1910/1965, p. 29). Com isto, Husserl anuncia que a apropriação que as
(1685-1753) defende que todas as ideias são sensações, não existindo, demais ciências — em especial aquelas que virão, mais tarde, a serem
portanto, ideias abstratas (que seriam ilusões). Em outras palavras, a exis-
conhecidas. como. “ciência do homem” — fazem do método naturalista, ou
tência de uma “coisa” consiste no fato desta coisa ser percebida (existe
seja, das ciências físicas, não leva em conta a especificidade do seu obje-
apenas aquilo que é percebido e enquanto é percebido) ou, nas próprias to e do seu objetivo, ou seja, não se pode considerar que o psíquico (p,
palavras de Berkeley: “Ser é perceber e ser percebido”. Já David Hume
ex.) seja tomado da mesma maneira que o físico.
(1711-1776) aponta que todos os conteúdos da mente são percepções,
No mesmo esteio da crítica de Dilthey, Husserl! (1910/1965, p.
sejam estas originárias (que seriam as impressões), sejam estas derivadas
(que seriam a memória das impressões, as “ideias”),
33) aponta:
Sobre estes alicerces foi construído o Positivismo, como um Os objetos são o que são, permanentes na sua identidade: a Natureza é
movimento que dominou boa parte do cenário europeu nos mais diversos eterna (...). O que o Ser psíquico “é, a experiência não o pode ensinar
terrenos (filosófico, político, pedagógico e literário), enfatizando os de- no mesmo sentido que se aplica ao físico. Pois o psíquico não é apa-
senvolvimentos técnicos e científicos. Representado pela figura de Au- rência empírica; é vivência (...). :
guste Comte (1798-1857), o positivismo faz a exaltação da ciência como
o único caminho para a solução dos problemas humanos e sociais: O psíquico não pode ser tomado como “objeto” da mesma ma-
' neira que tomamos uma pedra, por exemplo. O que Husserl procura rejei-
O positivismo reivindica o primado da ciência: o único conhecimento tar é o fato de que uma apreensão naturalista de fenômenos como o psí-
válido é o científico; o único método para adquirir conhecimento é o quico, “(...) confundem a descoberta das causas exteriores de um fenô-
das ciências naturais; este método consiste no encontro de leis causais meno com a natureza própria deste fenômeno” (Dartigues, 1992, p. 12).
e em seu controle sobre os fatos; tal método deve ser aplicado também Ou, do ponto de vista de Merleau-Ponty, confunde o objeto percebido
ao estudo da sociedade, isto é, à sociologia. (Reale & Antiseri, 2005, com o sujeito dessa percepção, colocando este objeto-percebido “dentro”
p. 287) do sujeito.
A posição comteana é, pois, de estabelecer uma doutrina da À Psicologia desta época está, portanto, influenciada pelo posi-
ciência universal aplicável a todos os fenômenos humanos. Segundo tivismo e se pauta por pesquisas experimentais, sob condições controla-
Comte (1826/1988), a filosofia positiva teria por tarefa construir uma das, com o intuito de medir as relações entre estimulos objetivos (am-
“física social” ou uma sociologia científica, capaz de vencer a crise da bientais) e respostas subjetivas. É sob esta premissa que à Psicologia
civilização, a partir de uma reorganização social. Em resumo: ciência científica do século XIX foi construída enquanto uma psicologia fisioló-
passa a ser definida como a “pesquisa de leis”, pesquisa pelas causas dos gica. Neste caminho, a única psicologia científica seria a psicologia expe-
fatos (portanto, partindo de hipóteses, postos à prova, em busca de com- rimental.,
provação) cujos. objetivos devem ser previsão e controle. Este modelo À primeira grande objeção de Husserl reside no fato que ne-
influencia sobremaneira o cenário intelectual da época, sendo base para a nhuma ciência experimental poderia ser o fundamento de disciplinas co-
medicina experimental de Claude. Bernard; fundamento para o utilitaris- mo à Lógica, p. ex., que lida com princípios puros. O que faltaria à psico-
mo inglês — desde Jeremiah Bentham, James Mill e John Stuart Mill, logia experimental, diz Husserl, seria uma disciplina anterior, originária,
não mais baseada em “fatos”, mas em “vivências”. O fenômeno psíquico
56 Adriano Furtado Holanda Fenomenologia e Humanismo s7

não é um fato a ser observado diretamente, mas se caracteriza pot ser ceber, de caminhos a percorrer, de trabalhos a cumprir, de obras a rea-
uma “experiência vivida” ou uma “vivência de uma consciência”. O pro-. lizar. A luz fala, sobretudo, de um mundo em que ele nasce e cresce,
ama e odeia, vive e morre, a todo instante. Sem esse mundo originário,
jeto de uma psicologia empírica deve ser, pois, de uma “ciência natural
o físico não poderia empreender suas pesquisas, pois não the seria
da consciência” e, para tal, deve ser antecedida por uma análise direta da possível nem mesmo existir. E, ao atiúgir-lhe os olhos, a luz não, so-
consciência pura — tarefa esta da Fenomenologia e com a qual não se mente fala, a luz é tudo isto. (Leão, 1988, p. 19)
confunde: uma psicologia empírica deve ser precedida por uma psicolo-
gia eidética. Dito de outra forma, e recuperando a redefinição de “expe- Retomemos o percurso husserliano, Seu projeto de uma feno-
riência”, temos que, como assinala Dartigues (1992), o experimentalista menologia como ciência rigorosa torha como ponto de partida, não mais
(o psicólogo experimental, p. ex.) realiza “experimentação” da realidade, as opiniões dos filósofos, mas a própria realidade (Dartigues, 1992). Tra-
ou seja, ele tem uma “experiência sobre o fenômeno”, enquanto que o ta-se de uma “terceira via”, alternativa: 1) ao discurso especulativo da
fenomenólogo tem uma “experiência do fenômeno”, ao que poderíamos metafísica (já formalizado e sedimentado) e, 2) ao raciocínio das ciências
denominar “experienciação”. Assim, para a primeira ter um sentido, deve positivas (que apontava para um dogmatismo cientificista). Essa “terceira
se fundar sobre a segunda, portanto, para Husserl, as ciências empíricas via” seria, diz Husserl, a “das coisas-mesmas”,
devem se fundamentar nas ciências eidéticas. Como se percebe, Husserl se coloca a meio-caminho de duas
Portanto, é possível realizar uma psicologia empírica exata (ou “ancoragens” (Depraz, 2007): a ancoragem empirista e a ancoragem ra-
positiva), como o próprio Husserl assinala: “Se por “positivismo enten- cionalista. Dito de" outra forma é como se pensássemos sobre como co-
demos o esforço, absolutamente livre de pré-julgamentos, para fundar nhecemos as coisas, e chegásseimos à seguinte conclusão: há coisas que
todas as ciências sobre o que é “positivo”, ou seja, suscetível de ser toma- conhecemos graças a nossa experiência direta — prática, empírica — e,
“um

do de maneira originária, somos nós os verdadeiros positivistas” (Husserl, assim, concordamos com o empirismo (de Locke, Berkeley e Hume); mas .
1913/1985, p. 69). há também coisas de que conhecemos pelo simples fato 'de pensarmos
Tudo isto pode se apresentar como aparentemente confuso, mas sobre elas — imaginamos, supomos — e, assim, concordamos igualmente
isto se dá somente na aparência. Está-se falando de realidades absoluta- com o racionalismo (de Descartes).
mente cotidianas e, portanto, de experiências que cada um de nós tem no Isto fica mais claro se pensarmos no “mímero”, Como nos apro-
dia a dia, mas que nem sempre se reconhece nelas. Um bom exemplo é a priamos do número? Comecemos pelo número um, como o apreendemos?
experiência de “sentir fome": esta se dá experiencialmente antes mesmo Ao pensarmos na unidade podemos claramente reconhecer que ela está
que tenhamos a “noção” ou conceito constituído de “fome”, ou seja, pri- presente na realidade empírica, ou seja, “percebemos” a unidade no mun-
meiro sentimos algo — temos a experiência de algo — e depois damos a do: vemos “uma” árvore, sentimos “uma” maçã, pegamos “uma” pedra,
esta sensação o “nome” de fome. É claro que em muitas ocasiões confun- Temos, portanto, assim a experiência empírica do número. Mas, e quando
dimos experiências, como o fato de “desejar” algo para comer (situação nos deparamos com à ausência, com o “zero”, por exemplo? Será que po-

sebieha
típica na propaganda, p. ex.) com a própria sensação física de fome. O demos dizer que temos a “experiência” do zero do mesmo modo que temos
que se tem em comum a todas essas experiências é que estas “se dão”, de a experiência do um, do dois ou do trinta? Nossa tendência imediata é dizer
certa forma, imediatamente antes de serem “refletidas” ou “pensadas” que sim, que temos a mesma experiência; mas, onde e como percebemas o
como tal. Ou seja, primeiro temos a experiência, depois nominamo-la. Éa “zero” ou o conjunto vazio? Na imaginação (ou na fantasia, ou no pensa-
isto que se quer significar com a expressão “experiência antepredicativa” mento), pois não há vazio no mundo empírico. Observem que, ao pensar-
ou “pré-reflexiva”. Outro exemplo: mos no “vazio”, precisamos “criar” algo que “ocupa” o lugar do vazio. É
isto se dá na imaginação, na reflexão, no pensamento. Mais um exemplo
ii

Quando de manhã cedo um físico sai de casa para ir pesquisar no la-


boratório o efeito de Compton e sente brilhar nos olhos os raios de sol, para verificarmos a realidade dessa experiência racional: onde localizamos
a luz não the fala, em primeiro lugar, como fenômeno, de uma mecâ- (ou percebemos) a fração na natureza? Ou os números irracionais? Esses
nica quântica ondulatória. Fala como um fenômeno de um mundo car- são exemplos de que não temos a experiência empírica de uma boa parte da
regado de sentido para o homem, como integrante de um cosmos, na realidade; mas que esta não deixa de ser realidade por isto ao contrário, se
acepção grega da palavra, isto é, de um universo cheio de coisas a per- revela como uma realidade pensada, imaginada, ou fantasiada. Eis a auco-
58 Adriano Furtado Holanda
Fenomenologia e Humanismo 59

ragem racionalista. Vejamos como Husserl] parte da mesma premissa de (Mora, 2001), quando este introduz o termo ousía, comumente traduzida
Descartes para chegar a esse outro ponto.
por “substância” ou por “essência”, “Enquanto substantivação do princí-
Descartes também havia colocado para si a tarefa de repensar a pio presente de sini (eívous= ser), oócia designa algo como “o que está
filosofia em outras bases. Para tal principiou por organizar um “método” sendo”. Pode-se, pois, concluir que aqui se trata da noção de essência”
de pensamento. O que Descartes buscava era a certeza sobre a qual não se (Mora, 2001, p. 896). Em outras palavras, etimologicamente,
” pudesse duvidar. Partiu, portanto, da dúvida enquanto uma “dúvida me-
tódica”, com vistas a alcançar o fundamento inabalável do conhecimento, essência significa, como à oúgia, “ser”, o que é, o que verdadeiramente
Todos nós sabemos como termina essa história. Partindo da dúvida sobre é, acentuando o verbo. Pouco à pouco, no uso da linguagem, passou à
significar o que é, tendo-se o acento deslocado para o sujeito a que se
o caráter de verdade das ciências, das ideologias, das ideias, Descartes
atribui o ser, (Pires, 1990, p. 256)
chega ao ponto em que não pode mais duvidar, sob pena de se destruir a
si mesmo. Que ponto é este? Aquele que nos remete ao próprio ato de Assim, “essência” passa a ser considerada aquilo que forma o
pensar. Chegamos ao famoso cogito, ergo sum, “Penso, logo sow”, ou ser, em oposição às suas modificações” temporais ou superficiais, ou
seja, se estou duvidando, é porque estou pensando, logo é o próprio ato seja, passa a ser aquilo que constitui o ser. Outra consideração se dá por
de pensar que me constitui. Husserl chama a isto de * “intuição originária”, oposição ao conceito de “existência”: enquanto “essência” é aquilo que
pois a partir dela se origina uma série de caminhos. constitui a natureza de um ser, se opõe ao fato desse ser se “tornar” um
Husserl reconhece a genialidade de Descartes, mas reconhece ser, o que se tornará central para o movimento existencialista (Lalande,
igualmente o seguinte: ao realizar sua tarefa metódica, Descartes “limpa” 1956). Esta consideração metafísica de “essência” — como aquilo que se
do terreno da consciência, todos os conceitos e noções falsas, para chegar refere ao “ser mesmo das coisas” —, bem como a distinção com “existên-
num ponto central. À este ponto chamamos de “resíduo” (aquilo que resta cia”, se torna fundamento central da filosofia Escolástica*!, na inedida em
ao final e sobre o qual não mais se pode reduzir). O resíduo do ato carte- que “para cada ser distinguimos uma essência e uma existência que ela
siano é exatamente o cogito ou a subjetividade. Em outras palavras, Des-* pode ou não comportar” (Japiassu & Marcondes, 1990, p, 87). Como se
cartes institui o ego-cogito (o “eu que pensa”). Todavia, para Husserl, há pode perceber, não se trata de um conceito “fácil” de se apreender, C
uma limitação nesta perspectiva. O ego-cogito cartesiano institui o pri-
mado da consciência, mas retira esta consciência do mundo. Na filosofia contemporânea, a essência não define nem revela a natu-
À questão de Husserl nesse momento é a seguinte: os fenôme- reza do homem. Porque o homem, ào vit a ser, não possui essência,
nos são dotados de um sentido — que ele chama de “essência” —, e onde se
apenas uma condição, uma situação: “a essência do ser-aí (Dasein)
consiste: apenas em sua existência' (Heidegger); é o homem mesmo
situam essas essências? Na própria consciência, já que são como vivên- quem produz aquilo que ele é, por sua liberdade, ele é projeto, isto é,
cias de consciência que essas essências se dão. E como não reduzi-las a aquilo que ele é capaz de fazer de si mesmo; nele, a “existência prece-
simples fenômenos psíquicos (como a percepção ou a sensação, p . ex.)? de a essência” (Sartre). (Japiassu & Marcondes, 1990, p. 87)
Responde Husserl: as essências são acessíveis à consciência, mas não se
confundem com os fenômenos que competem à psicologia. Para resolver
esse problema, a fenomenologia precisa ir além da perspectiva cartesiana, * Aqui em oposição a “acidente”, que na filosofia aristotélica é tudo aquilo que não
sob pena de confundir fenômenos da consciência com a consciência pertence à natureza de algo, ou seja, não existe em si mesmo, mas apenas em alguma
mesma, ou seja, confundir a percepção de determinado fenômeno com o coisa. Como a cor ou a forma, que somente existem como pertencentes a alguma coisa
próprio fenômeno. Sabemos o quanto isto é falho e problemático. que, esta sim, subsiste em si mesma e é a “substância” (Japiassu & Marcondes, 1990),
Aliás, quando falamos de “essência” invariavelmente caímos na ** Escolástica é o nome genérico dado à “filosofia das escolas”, que designa os ensina-
mentos de filosofia e teologia dados nas escolas eclesiásticas da Idade Média, entre os
armadilha das dicotomias, opondo-a à “existência”. Vamos precisar fazer séculos IX e XVII. Na tradição da história da filosofia, refere-se ao Segundo grande
- outro “parêntese” aqui. À palavra “essência” vem do latim, essentia — movimento do pensamento medieval — sendo o primeiro a Patrística, ou a filosofia dos
derivado de esse -—, e remete a várias interpretações. Em Platão, as For- “Padres da Igreja”, representados fundamentalmente por Santo Agostinho — e centráva-
mas — ou “realidades verdadeiras” — seriam “essências”, embora uma -se na tentativa de conciliação dos dogmas do Cristianismo e a filosofia clássica grega.
análise da ideia de essência seja melhor desenvolvida em Aristóteles O maior representante desse momento do pensamento medieval foi Santo Tomás de
Aquino,
60 Adriano Furtado Holanda
Fenomenologia e Humanismo 61

Como se vê, temos uma clara dificuldade ao falarmos de “es-


antropólogo, quando busca compreender uma determinada manifestação
sência”, dada a polissemia do termo. Mas no que nos interessa — o que é. cultural: buscam “essências”.
essência para a fenomenologia? Ao falar de “essência”, Husserl se remete
E para a fenomenologia essas essências estão nas significações.
ao termo latino eidos, que vai derivar em “eidético”. E é sobre isto que se
alicerça seu “retorno às colsas-mesmas” — zu den Sachen selbst — ou a Ou seja, a “essência” de tal fenômeno se dá em seu sentido, e estes —
Wesensschau (ou “intuição das essências”). Husserl fala de wesen, “es- sentido e significação — não estão nem no sujeito da consciência (o que
equivaleria a um subjetivismo radical), nem no objeto formal (que equi-
sência” e esta é imanente aos fenômenos e podem ser percebidas por
transparência — daí seu “retorno” às coisas-mesmas. Para Eusserl valeria à um realismo radical), mas nesse entrelaçamento, nesta correla-
(1913/1985, p. 19), “ .) primeiramente, a palavra “essência' designou ção entre sujeito (consciência) e mundo (objetos). Por isso que essas es-
sências devem ser universais, pois dito de uma forma muito simplificada,
aquilo que, no ser mais íntimo de um indivíduo, se apresenta como o seu
Quid (sein Was)". “Essência”, pois, para a Fenomenologia, é um puro essência seria aquilo que designa algo como tal, de tal modo que não
possível, ou seja, podem haver tantas essências quanto possamos ter sig- poderia ser de outra forma, sob pena de deixar de “ser”-o que é para se
nificações (Dartigues, 1992), pois para a fenomenologia não há distinção tornar “outra coisa”. E imaginemos que não pudéssemos alcançar essas
entre aquilo que é e seu significado — afinal, como assinala Merleau-
essências: viveríamos num “mundo” de significantes, onde cada qual
-Ponty (1945), a fenomenologia “recoloca as essências na existência”, teria significados distintos para cada um; assim, não seria possível uma
vida em comunidade, p.ex., pois para ta! é preciso comunicarmo-nos,
: À “essência” para a fenomenologia está diretamente relacionada tornar comum algo. Se não houvesse uma essência que desse um caráter
aos seus modos de significação. Mas estes modos de significação não
de ser para as coisas, não seria possível um entendimento simples como
podem ser confundidos com modos “particulares”, tornando-se relativos e
chamar uma coisa de “pedra”.
provisórios — isto equivaleria à consideração de que “cada um tem sua
verdade” — o que impossibilitaria uma ciência. À esta possibilidade, Hus- E, ao mêsmo tempo, esta essência deve ser imutável. E como is-
serl opõe a concepção “eidética” da vivência: “uma vivência não é pró- to se dá? Husserl usa o exemplo da TX Sinfonia de Beethoven:
pria a um indivíduo apenas, inas deve poder se tornar universal e necessá- Segundo Husserl, a IX Sinfonia de Beethoven não é nem a concepção
tia. Husserl não busca, portanto, descrever vivências factuais, mas essên- que tinha dela a consciência de Beethoven, nem sua execução por uma
cias de vivências, que permanecem singulares e concretas sem, entretan- orquestra sinfônica, nem a percepção produzida na consciência dos
to, serem particulares” (Depraz, 2007, p. 37). Ora, é sobre este solo que auditores, que podem ser sempre distintas, Mas é o que permanece
podemos erigir uma “psicologia fenomenológica” na prática, ou seja, na como o mesmo em todos os casos, o que não muda nunca, o que dura
busca daquilo que não é “particular”, mas “comum” mesmo a tantas sin- para sempre, Neste sentido, a essência, composta pela matéria e pela
qualidade do ato, é o conteúdo do ato porque é o que está contido nele,
guiaridades. Afinal, um psicólogo, por exemplo — podemos mesmo es- quaisquer que sejam as modificações que sofra este ato. (Malet, 2007,
tender isto para um enfermeiro ou mesmo um médico — deve buscar aqui- p. 129)
lo que seria a “essência” de uma experiência psicológica: a “essência” da
esquizofrenia, por exemplo, em cada experiência singular de tantos es- Seria interessante nos perguntarmos como e porque reconhece-
quizofrênicos; a “essência” do conflito em tantas experiências singulares mos uma meiodia, mesmo quando esta “muda” sua forma — seja o tom, a
de conflito, e assim por diante, É isto que fazemos quando fazemos pes- velocidade ou mesmo o ritmo. No caso da IX Sinfonia, mesmo que toca-
quisa de vivências. De certa forma, é algo similar que um sociólogo faz da por orquestras diferentes, em tons diferentes, mesmo que se “mude”
quando busca compreender uma determinada realidade social ou que um seu estilo, esta permanecerá a mesma e a reconheceremos naquilo que ela
“é: como a IX Sinfonia. Como aponta Dartigues (1992), “a essência da
x Sinfonia persistiria mesmo se as partituras, orquestras e ouvintes vies-
—** Termo oriundo do latim (guiddifas), como forma abstrata do interrogativo quid., Oriun- sem a desaparecer para sempre. Ela persistiria, não como uma realidade,
do da Escolástica, significa “aquilo que uma coisa é”. À quididade responde à questão: como um fato, mas como uma pura possibilidade” (p. 15). Dito de outra
o que é? e inclui o conjunto de predicados que significam a coisa, ou seja, tudo o que forma, a IX Sinfonia, tocada por uma Sinfônica, por um violino, num
se predica a uma coisa, pertence à sua quididade. Com isto, a quididade equivale a “es- acordeão ou em ritmo de forró, permanece sendo a IX Sinfonia no violi-
'sência” ou “substância” (Japiassu & Marcondes, 1990; Pires, 1990; Abbagnano, 1992).
no, ou a IX Sinfonia no acordeão ou a LX Sinfonia como forró.
7
63
Fenomenologia e Humanismo
62 Adriano Furtado Holanda
a Teologica, coloca que a
À primeira tarefa da Fenomenologia é, pois, a elucid
ação do más de Aquino, no primeiro tomo da Summ
os: natureza, espí- - mente do arquit eto, quanto na matéria, mesmo
“puro reino das essências”, segundo os diversos domíni casa tem seu ser tanto na que a casa que
a” do
rito, consciência, É através da experiência sensível
que se alcança a intui- que a casa material seja considerada mais “verdadeir e a segunda uma
encontrada em Pla- (sendo a primei ra, uma casa em to,
ção da essência, uma ideia que não é nova, já sendo existe na mente ;
à intuíçã o condic ionada à visão do sensível (Dar- casa em potência).
tão, que chamava eidos forma em fins do
tigues, 1992). E onde residem estas “essências”? A noção de “intencionalidade”, todavia, toma cog-
deixou de ver no ato
as de cons- - século XII e início do século XIV, quando se
Muito simplesmente na consciência, já que é como vivênci dificuldade: de, uma cópia ou imag em da coisa, substituindo
uma nova noscitivo uma similarida
ciência que elas se dão a nós. Mas então surge intermediária do conhecimento
simples fenôme- assim o conceito de “espécie” como
se elas estão na consciência, nós vamos reduzi-las a Pourçain afirma que o próprio
nos psíquicos, tributários por sua vez da psicologia e recaire
mos nesse (Abbagnano, 1986). Durando de Saint assinala que se à es-
Auriol
psicologismo que Husserl tão vigoros amente refutou. Cumpre , pois, objeto está presente ao entendimento. Pedro cimento consistiria na
elas não se então o conhe
que elas sejam acessíveis somente na consciência, mas que pécie fora o objeto do conhecimento,
de Ockham o ato cog-
imagem e não à realidade. Ainda, para Guilherme
em à
confundam jamais com os fenômenos de consciência que competde in-
que Husserl vai recorrer à noção fundame ntal io, no sentid o que se refere diretamente à coisa
psicologia. É aqui
ele próprio noscítivo é uma intent referência ao
tencionalidade da qual já se servia Brentano, que a tomara significada (Abbagnano, 1996). “A inten
cionalidade como
à filosofia medieval. (Dartigues, 1992, pp. 17-18) escol ástic a medieval, à referência do
objeto, ficou reduzida assim, pela
, deixou de ser utilizada
À solução desse problema, Husser! encontra, pois, em
Brentano, signo ao seu designado e, durante muito tempo 694). Foi no século KIX
p.
mais especificamente no conceito de intencionalida
de. À consci ência como noção autônoma” (Abbagnano, 1986,
usá-la como característica dos
cartesiana — o ego-cogito de Descar tes — é solipsi sta, ou seja, fecha-s e que Brentano retomou essa noção para
sobre si mesma. À noção de intencionalidade muda este
panorama: a fenômenos psíquicos. Diz Brentano:
para alguma coisa. Cons-* que os Escolásticos.da
consciência só é consciência quando se dirige O que caracteriza todo fenômeno psíquico é o (ou mental) e o que
é sempre “consci ência-d e-algum a-coisa ”,
ciência é sempre movimento, Tdade Média chamaram de presen ça intenc ional
que não excluem um
Voltemos rapidamente a Brentano que, como filósofo
aristotéli- poderíamos denominar — utilizando expressões para um objeto (sem
noção de inten- — relaçã o a um conteú do, direçã o
Escolás tica Medieva l, se depara com à equivoco verbal
co e estudioso da vidade imanente. To-
ano (1986) define a inten- que se entenda por isso uma realidade) ou objeti a título de objeto,
tio — ou de “direção da consciência”, Abbagn do fenôm eno psíqui ca conté m em si qualqu er coisa
humano a um objeto diferent e de si.
cionalidade como a referência do ato Na representação, é qualquer
re, origi- mas cada um o contém de sua maneira.
Sanama e Kampinnen (1987) assinalam que intentio, de intende coisa que é representada ; no julgam ento, qualquer coisa que é admiti-
arço referindo-se, que é amada; no ódio, qual-
nalmente remetia a um verbo relacionado à arte do da ou rejeitada; no amor, qualquer coisa
ná-lo ao alvo, coisa que é desejada, e
dentre outras coisas, à ativida de de dobrar o arco e direcio quer coisa que é odiada; no desejo, qualquer ce exclusivamente
namento como etimolo gia. Seu uso por diante, Esta presen ça intenc ional perten
tendo — portant o — o sentido de direcio assim
existe na psíquicos. Nenhum fenômeno físico apresenta algo
filosófico remonta a Aristóteles, como a forma sem matéria que aos fenômenos
psíquicos dizendo
e: na percepç ão, a mente recebe a forma do objeto semelhante. Podemos, pois, definir os fenômenos um objeto neles.
mente do ser pensant vejo que são fenômenos que conté m intenc ionalm ente
percebido sem a sua matéria ou seja, segundo Aristóte les, quando p. 58)
não sua substân- (Brentano, citado por Lantéri-Laura, 1963,
uma árvore no jardim, recebo a “forma” da árvore, mas
jardim
cia de madeira. Há assim, similaridade de forma entre a árvore do Percebamos que Brentano usa o termo
“intencionalidade”, que
di-
e sua imagem mental, mas não há similaridades em suas
matérias. Decor- sentido de tendência na
não deve ser confundida com “intenção” (no
Te daí que a árvore existe de duas maneira s, na mente: intenci onalmente, Brent ano, a intenc ionalidade, como caracte-
reção de um objetivo). Para
ação de forma e conhecimento como “um
rística fundamental dos atos psíquicos designa o
* como simples forma na mente; e realmen te, como combin
: a coisa exteri or” ou, como um “re-
de matéria, no mundo exterior. concreto e total estar referido a algum
l, p. 31), E nesta dire-
Esta distinção de existências persiste na Escolástica medieva ao mundo ” (Macie l, 2003,
: portar-se incessantemente e é a intenciona-
cia real e intenci onal como de diferent es valores. To- ção que a Fenomenologia define a consciência
como ato
que veem a existên
: a)
64 Adriano Furtado Holanda
Fenomenologia e Humanismo 65 al

lidade que dá a estrutura fundamental da consciência, fazendo com que Graças à intencionalidade, o mundo deixa de ser simples mundo
esta cesse de ser uma interioridade fechada em si-mesma, para ser aberta . de “coisas” e passa a ser a morada dos “fenômenos”, como “essências”
ao mundo visado. “A palavra intencionalidade não significa nada mais do que não têm existência fora do ato da consciência. A essência é sempre o
que esta particularidade fundamenta! e geral que tem a consciência de ser termo de uma visada de significação, ou seja, “essência” para a fenome-
consciência de alguma coisa, de portar, em sua qualidade de cogito, seu nologia é o sentido do fenômeno.
- cogitatum nela mesma”, diz Husserl (1931/1980, p. 28).
Para nós, importa um pequeno detalhe, que nos parece impor- Isso significa que as essências não têm existência alguma fora do ato
tante pontuar e que talvez sirva para clarificar o conceito, que é o seguin- de consciência que as visa e do modo sob o qual ela os apreende na in-
tuição, Eis por que a fenomenologia, em vez de ser contemplação de
te: a expressão “consciência de alguma coisa” (sem o hífen) é completa-
um universo estático de essências eternas, vai se tornar a análise do
mente diferente da mesma expressão “consciência-de-alguma-coisa” dinamismo do espírito que dá aos objetos do mundo seu sentido. (Dar-
(com o hífen). O hífen liga e impossibilita a compreensão da expressão tigues, 1992, p. 18) :
sem esta ligação. E isto que faz a intencionalidade: liga a consciência ao
mundo, e o mundo à consciência. Remete a consciência a alguma coisa Para a fenomenologia, pois, não importa o objeto em si ou à
fora dela, e não permite que a consciência se feche sobre si mesma. Ao consciência em si. Nem o objeto, nem a consciência “existem” por si,/A
mesmo tempo, coloca o mundo — enquanto fenômeno - diante desta análise intencional nos “obriga” a conceber uma relação entre consciência
consciência. Assim, consciência e mundo se constituem mutuamente, e objeto/ Isto significa dizer que “consciência” e “objeto” não são entida-
para a fenomenologia. À consciência fenomenológica é, portanto, ato. des separadas, mas se definem respectivamente, no que Husserl chamou
Para a fenomenologia — a partir da intencionalidade da consciên- de “correlação” (percebam que estamos falando de correlação, corres-
cia — e ego-cogito cartesiano se torma um ego-cogito-cogitatum. Toda pondência, e não de identificação). Fora dessa correlação não há, para a
consciência é arremessada em direção a algo, necessariamente, Não há fenomenologia, nem consciência, nem objeto. Uma questão que se põe
mais como pensar a consciência destacada das coisas. Em outras palavras, aqui pode ser: “quer dizer que a consciência não existe?”, Não se trata
a consciência é sempre “consciência-de”: não há mais como considerar a disto. O que é a consciência enquanto função orgânica, p. ex., é da seara
consciência do vazio, por exemplo. Vejamos as consequências disto: qual- da ciência natural e não da fenomenologia. Dito de outra forma, a cons-
quer ato — como o “pensar”, p.ex. — remete igualmente a algum correlato, ciência como função orgânica é “problema” da biologia ou das neuro-
Ou seja, não mais simplesmente tenho o “eu penso”; mas o “eu-penso- ciências. Não nos interessa a consciência “em si”, mas a consciência en-
algo-pensado”. E isto vale para qualquer outro ato da consciência, Temos o quanto correlação com o mundo.
querer e o objeto-querido, o ver e o objeto-visto, o sentir e o sentido, e as- À intencionalidade não finaliza no objeto, ela é dinâmica, não
sim por diante, E isto igualmente é fácil de ser assimilado. pára o ohieto (Christofl 1966). Ela, pois, ao mesmo tempo, apresenta o
Vejamos este exemplo: uma criança chega para sua mãe e diz: mundo e presentíõea-o suichto diante deste mundo. 1 nesta dupla relação
“Mãe, eu vi...”. Imediatamente surge para esta mãe, uma pergunta corre- que se dá o solo da análise intencional. O campo de análise da Fenome-
lativa à afirmação da criança: “Viu o que?”. É praticamente natural que nologia será então o da elucidação da essência dessa correlação entre
façamos tal pergunta, pois a afirmação carece de complemento, Assim, consciência e objeto, já que é no campo da consciência que o mundo se
não mais há o objeto destacado da consciência. O objeto é sempre “obje- estende. À análise intencional husserliana irá, portanto, recobrir toda a
to-para”, dado que o ato remete a um correlato, ou seja, não há mais sim- esfera dinâmica do “espírito” (o nous), e compor-se-á da análise da nóese
Plesmente um ato em si, mas um ato dirigido a um objeto. Em outras (a atividade da consciência) e do nóema (o objeto constituído por essa
palavras: se a consciência é consciência-de-alguma-coisa, então um obje- atividade). .
to só tem sentido de objeto quando relativo a uma consciência, portanto, é Outro ponto importante a ser relembrado: a correlação. sujeito-
um objeto-para-uma-consciência (para um sujeito da consciência). Seria objeto só se dá naquilo que Husserl chama de “vivência" ou Erlebnis,
: aqui que poderíamos falar da tal “superação” da dicotomia sujeito-objeto Para se estudar esta correlação, é preciso realizar uma operação de cons-
à qual nos referimos anteriormente e que, curiosamente, precisa dos dois ciência, chamada de “conversão”. Trata-se de “suspender” a crença na
pólos para se tornar uma equação viável. realidade do mundo externo para se colocar. como consciência transcen-
66 Adriano Furtado Holanda
Fenomenologia e Humanismo 67
dental, ou seja, que transcende a mera realidade empírica e que se coloca
ideias, valores, conceitos e julgamentos (que estão em mim, antes mesmo
noutra posição. Esta é, segundo Husserl, a condição de “aparição” do de me encontrar com esse mundo). À isto Husserl dá o nome de redução
mundo como fenômeno. E a esse desdobramento que se chama atitude fenomenológica, e é o que permite colocar em evidência o ser-no-mundo,
Jenomenológica, que torna a consciência doadora de sentido e não mais a produto desta intencionalidade,
coloca como parte do mundo.
Trata-se de uma atitude de abstração das ideias pré-estabe-
Podemos nos referir a isto da seguinte maneira: a atitude feno- lecidas em prol de um contato direto com o observado e com o vivido.
menológica é uma disposição — melhor entendida como uma dis-posição Desta maneira, sem elementos perturbadores, a apreensão do mundo sur-
— do sujeito da consciência, como uma mudança de posição. Trata-se de ge mais clara e límpida, Segundo Husserl, é preciso realizar a epochê
um deslocamento de uma posição para outra, de um desalofamento, ou fenomenológica, ou seja, pôr o mundo entre parênteses, suspender todo e
seja, da posição natural para a fenomenológica, que possibilita a “descober- qualquer juízo da realidade, Não afirmar ou mesmo negar algo“, mas
ta” do mundo. “Descobrir” é um verbo interessante neste momento, pois antes se deixar abandonar à compreensão desta realidade; que assim esta--
aqui não se trata de outra coisa que não seja realizar o des-encobrimento do riamos voltando às coisas mesmas.
mundo, que estava “coberto” pelas vias das ideias, da cultura, das ideolo-
gias, do “já-sabido”, na direção de uma outra experiência. Quando procedo assim, (...), eu não nego este “mundo”, como se fosse
À consciência deixa de ser “parte” do mundo para se tornar o um sofista; eu não coloco sua existência em dúvida, como se fosse
lugar do desdobramento do mundo no campo da intencionalidade. E o um céptico; mas eu opero a epoche “fenomenológica”. que me impede
de todo julgamento sobre a existência espácio-temporal. Em con-
mundo deixa de ser considerado como “coisa”, destacado da consciência, sequência, todas as ciências que se reportam a este mundo natural —
O mundo como “coisa”, como rês, é uma das consequências do pensa- (...) — eu as ponho fora de circuito, não faço absolutamente nenhum
mento cartesiano, O “eu penso” de Descartes faz do “eu” do cogifo, tam- uso de sua validade; não faço minhas nenhuma das suas proposições;
bém uma substância (a “alma”) e, por conseguinte, uma rês. À intencio- fossem mesmo de uma evidência perfeita; não acolho nenhuma,
ne-
nalidade — diferentemente da dúvida cartesiana — reconecta o “eu penso” nhuma me dá fundamentos... (Husserl, 1985/1985, pp. 102-103, grifos
e seu objeto. TOSSOS) -
À consciência, aqui, deixa de ser receptiva para ser ativa. E o À redução fenomenológica evidencia a colocação do ser-no-
objeto (como o mundo), deixa de ser uma coisa separada, para se tornar mundo, o posicionamento do ser em situação, em função da qual este
sentido-para-mim. À fenomeneclogia, pois, não interessa nem o “objeto” sujeito não é puro sujeito, nem o mundo puro objeto, Ambos se correla-
(coisa, rês), nem a “consciência” (como atividade psicológica), mas inte- cionam, permanecendo um em função do outro. Nas palavras de Enzo
ressa essa conexão entre uma consciência ativa e um mundo de significa- Paci, a tarefa da epoché é
dos. Isto é por demais importante para a psicologia, pois esta lida exata-
mente com a problemática da dualidade psicofísica, ou seja, corpo e (...) o desocultamento. O mundo está sempre lá. À sua existência não
“mente”. Outra consequência de tal atitude é a impossibilidade de consi- constitui problema. O problema que a epocçhé quer resolver é outro:
derar a consciência como uma “coisa” dentro de um “sujeito”, como se qual o significado, qual é o fim do mundo, artes de tudo e originaria-
“localizada”. Metaforicamente, a consciência não habita o homem, mas o mente para mim e depois para todos os sujeitos? (citado por Reale &
Antiseri, 1991, p, 564)
homem habita a consciência (ou, melhor dizendo, ele é consciência). Da
mesma forma, uma sensação não “está” no corpo, ela é o corpo e o corpo
é a sensação, |
À análise fenomenológica nos coloca, pois, diante do mundo
16 Tiusserl parte do ego solipsísta (um eu-pensante, fechado em sua racionalidade, em sua
que precede a reflexão, nos coloca diante de uma realidade que não é consciência individual definidora, um ego-cogifo) de Descartes para determinar uma
* aquela dada a priori por minhas ideias, conceitos, valores, etc. À atitude nova relação do ego enquanto um ego-cogito-cogitatum, que designa que, através da
fenomenológica requer uma outra operação: para se ter o mundo como consciência intencional, se estabelece uma ligação intrínseca entre o sujeito e 9 objeto.
fenômeno, devo me abster desses q priori que me acompanham, devo me « Desta feita, a relação sujeito-objeto se define em si própria, e não mais em seus ele-
colocar diante do mundo numa atitude ingênua, devo “suspender” minhas mentos. Isto permite, para a Psicologia, uma retomada do ser humano numa perspecti-
va de um devir heraclítico.
68 Adriano Furtado Holanda Fenomenologia e Humanismo. 69

Redução é uma busca do significado, uma procura pelo subjacen- (técnico) e, assim, ser operacionalizados por esta ou aquela teoria. Em
te, em detrimento do simples aparente. À consequência da epochê é a intui- . * outras palavras, por serem ferramentas lógico-filosóficas, não podem ser
ção das essências (Wesensschau). Afinal, Fenomenologia não é apenas associadas a atos instrumentais, como uma atitude clínica, por exemplo.
descrição do fenômeno, do aparente. Isto seria realizar um simples feno- Como assinala Morujão (1984):
menismo. Mas antes, fazer fenomenologia é realmente se embrenhar por
* dentro da realidade, para desvendar o que está por detrás desta realidade. Os termos epoché e redução aparecem, contudo, quase sempre indife-
Esta noção igualmente merece uma ressalva. Husseri principia rentemente para designar o mesmo conceito (...). Em rigor, porém, são
dois conceitos distintos, embora relacionados. Graças à prática da
suas elaborações sobre a “redução” em 1907, no texto 4 Ideia da Feno-
epoché é que se consegue a redução. Fragata (...) dá um esclarecimen-
menologia; mas em 1913, nas Ideias 1 já elabora diversas reduções. À

isa meenis parei!


to muito feliz ao afirmar: “Epoché refere-se, portanto, mais diretamen-
redução é uma ferramenta lógico-filosófica e a transposição da filosofia te ao termo a quo; “redução”, ao termo ad quem. Como, porém, exer-
para outras ciências é relativamente complexa (Castro & Gomes, 2011). cer a “epoché' é simultaneamente '*reduzir', os dois termos são empre-
É importante, então, fazermos algumas distinções. É muito comum en- gados indiferentemente pelo próprio Husserl”. (p. 76)
contrarmos a ideia de redução como sinônima de epoché, só que isto não
é inteiramente verdadeiro, Para Merleau-Ponty, a Psicologia fenomenológica é a pesquisa
das essências ou do sentido, e que quando levada aos seus limites, a psi-
Já em 1913, o conceito da redução fenomenológica foi introduzido cologia eidética se torna analítico-existencial. Uma psicologia eidética
como elemento central do método fenomenológico. A redução é, em deve situar o sujeito enquanto presença no mundo. À redução é a maneira
termos gerais, definida no texto como a exclusão do transcendente à de se acessar o fenômeno tal qual ele é,
consciência em geral, Ou seja, a exclusão de uma existência a admitir
por uma vigência a quai não se tem como percebedor o acesso eviden- A redução não é uma abstração relativamente ao mundo e ao sujeito,
te. De acordo com Fouche (1984) o conceito carrega aí dois passos ló- mas uma mudança de atitude (...) que nos permite visualizá-los como
gicos: um negativo, a époche, que é a suspensão de pressuposições fenômeno, ou como constituintes de uma totalidade, no seio da qual o
sobre um fenômeno intencionado; e um passo positivo, o exame des- mundo e o sujeito revelam-se, reciprocamente, como significações.
critivo do fenômeno em busca das essências constitutivas de sua apa- (Forghieri, 1993, p. 15)
rência. Deve-se ressaltar, entretanto, que a compreensão dessa defini-
ção ampara-se no projeto metodológico de Husserl, onde se destacam, Em resumo: está-se falando de uma operação lógica; portanto,
(...), os níveis processuais para a efetivação da redução. Afora o cará- não se refere ao trabalho do psicólogo diretamente, Dito de outra forma,
ter processual, o conceito é ainda definido de forma heterogênea ao
tongo da obra do filósofo. É, portanto, difícil argumentar em defesa de
não se deve sair por aí dizendo que se faz “epoché” aqui ou alí, pois isto
uma forma estrita de redução. (Castro & Gomes, 2011, p. 235) não se aplica, Epoché é a suspensão na crença da existência da realidade,
colocando esta crença — e esta realidade — entre parêntese ou “fora de cir-
No texto de 1913, Husserl descreve uma sucessão de reduções cuito” (como aponta Husserl, 1913/1985). Epoché é a suspensão da tese do
progressivas, o que nos leva então a falar de diversas “reduções”, A redu- mundo. Porque pratico a epoché posso “reduzir” o mundo ao fenômeno
ção “primordial” equivale a uma mudança de atitude: da natural para a transcendental”? e revelá-lo como correlato imediato da consciência.
fenomenológica, que “(.:.) se desdobrará em reduções secundárias (...), a
saber: redução fenomenológica psicológica, redução eidética, e redução 17 Aqui mais um conceito complicado e que demanda cuidado: transcendente e-trauscen-
fenomenológica transcendental” (Castro & Gomes, 2011, p. 235). Temos dental possuem significações específicas para a fenomenologia. Transcendente corres-
uma “redução fenomenológica psicológica” onde se pretende suspender o ponde às coisas como existentes fora da consciência; e transcendental refere-se às coisas
como reduzidas (correlativas) à consciência (Morujão, 1984). Mas, não é raro encontrar-
valor já dado pela consciência ao mundo, mas não se nega o sujeito empí-
mos autores e comentadores que se referem ao “transcendental” como aquilo que está fo-
rico. Temos a “redução eidética” que é a redução às essências, constituin- Ta da consciência — ou no mundo — em clara associação ao que se define acima como
“tes de sua evidência, e a “redução transcendental” onde se suspende o sendo 0 “transcendente”, ou seja, em oposição a “imanente” (relativo à consciência do
” próprio sujeito empírico (Castro & Gomes, 2011). Assim, é importante sujeito), de modo que é imprescindível que se faça a leitura do termo contextualizada. E
destacar que as reduções são atos permanentes, e não temporários; por- preciso que os termos “transcendente” e “transcendental” sejam lidos em relação ao con-
texto no qual estão colocados, pois suas compreensões podem diferir. É comum, por
: tanto, não são e não podem ser reduzidos ao meramente instrumental
exemplo, estabelecer-sé uma oposição eitre o “transcendental” e o “empírico”, sendo o
70 Adriano Furtado Holanda Fenomenologia e Humanismo 71

Como se percebe, nada disto é “prático” para uma ação direta mundo — e, ao mesmo tempo, racionalista, Ou como um “neocartesianis-
de um profissional, mas é, antes, uma condição para a compreensão desta mo” ou um “cartesianismo do século XX” (Husserl, 1929/1992), É mesmo
ação, pois esta ação se dá numa correlação com o mundo. Trata-se, por- um cartesianismo em ética, pois diretamente relacionado ao mundo. E nes-
tanto, muito mais de uma operação lógica, no terreno do conhecimento e ta direção que a Fenomenologia alia Realismo e Idealismo, sem que as
da análise, e não de uma prática operacional. contraposições sejam excludentes, graças à posição da consciência. |
À consciência é consciência ativa cabe a ela dar sentido às coi- Consciência, para a fenomenologia, é um fluir permanente, um
sas, ou seja, é a consciência que atribui significados no mundo. Perceba- contínuo indefinido de durações. À consciência é vivida numa temporali-
se aqui que não estamos discutindo o caráter da existência das coisas dade imanente, e a vivência é unificada num fluxo temporal, se dando
(como colocado anteriormente por Husserl), mas tão somente o sentido num presente que vem de um passado em direção a um futuro. O tempo -—
que estas coisas assumem para o eu subjetivo.pensante, Esta talvez seja a no caso da fenomenologia, a temporalidade — desempenha uma função
característica prática mais fundamental da fenomenologia husserliana, Ao crucial para a compreensão da consciência, por ser o elemento unificador
mesmo tempo em que a consciência é ativa, ela não ocorre no vazio por- das estruturas vivenciais, e será tema a ser examinado mais adiante.
tanto, é consciência intencional. Além disso, só é consciência quanto
voltada-para-um-objeto; e este somente tem sentido de objeto, quando é
4 CORFOREIDADE, TEMPORALIDADE,
objeto-para-uma-consciência.
HISTÓRIA E VIDA
O projeto de Husserl para a filosofia consiste, pois, em:
Notli foras ire, in te redi,
(...) findar — e findamentar —, pela análise intencional, as significa- in interiore homine habitat veritas*S,
ções vividas das pessoas, bem como os conceitos constituídos. Para
realizar este projeto, a razão especulativa deveria seguir dois cami- Santo Agostinho
nhos, complementares: por uma análise regressiva, voltar-se para E
mesma para refazer a gênese de suas intencionalidades, a partir de sua Evidente que a complexidade da Fenomenologia não se esgota
arqueologia pré-teórica e pré-objetiva; por uma redução constitutiva,

Sri iatitaal:
apenas nas ideias referenciadas acima. Há muito mais a ser analisado. Po-
ascender ao mundo da consciência pura e das suas unidades transcen-
dentais. Porém, os dois caminhos o objetivo é o mesmo: apreender, rém, como nossa intenção é tão somente indicar caminhos preliminares,
possuir e explicar intelectualmente os sentidos que o mundo nos ofe- teremos que fazer escolhas e eventualmente não destacar adequadamente
rece. (Bucher, 1983, p. 34) ' este ou aquele conceito. Dado que nossa direção é o solo desenvolvido pela
Psicologia, tentaremos desenvolver mais algumas ideias da Fenomenologia
Ainda com relação à redução fenomenológica, podemos obser- dirigidas a esta ciência, cientes da limitação dessa proposta.
var que, aléra da dificuldade natural de mantermo-nos numa postura dis- Por exemplo: uma noção central e fundamental para se compreen-
tanciada de nossos valores, há ainda a possibilidade de um outro erro, a der a Fenomenologia é a de temporalidade, ainda mais por ser referenciada
total abstenção de participação, ou seja, o distanciamento indiscriminado de forma contundente por diversos psiquiatras que se orientam pela feno-
da relação com o mundo e a realidade. Ou seja, redução não significa menologia, como Minkowski e Binswanger. Todavia, a complexidade do
abstenção de relação ou anulação de valores ou ideias, mas tão somente tema requereria um estudo aprofundado específico sobre a questão.
suspensão temporária destes valores ou ideias no intuito de aproximar o Só para se ter uma ideia da complexidade desse tema, o próprio
sujeito pensante da efetiva realidade do objeto, e não da concepção su-
Husserl marca o caráter temporal da experiência. Diz Husserl — em suas
posta deste. Esta é a real tarefa da fenomenologia. À redução se revela,
Lições para uma Fenomenologia da Consciência Interna do Tempo, cur-
pois, como a abertura da consciência para a emergência do fenômeno.
so proferido entre 1906 e 1907 — que a temporalidade é “o mais difícil
Assim, podemos perceber que à Fenomenologia husserliana se
dos problemas fenomenológicos” (Husserl, 1928/1994), sendo a forma
" caracteriza por ser empirista — naquilo que nos remete à experiência do mais “fundamental” de consciência, Em outras palavras, a análise da

- primeiro referente ao externo (às coisas do mundo) e o segundo à experiência em si, do


sujeito. Como se vê, temos que ter cuidado no executar as Teituras. - *% “Não saias, volta para dentro de ti: a verdade mora no interior do homem”.
T2 Adriano Furtado Holanda
Fenomenologia e Humanismo 73
consciência do tempo deve preceder a análise de todas as formas de cons- Por ora, importa-nos apenas conhecer o “problema” — pois sua
ciência. Seguramente foi graças a esta advertência que psiquiatras como análise demanda mais “tempo” e “espaço” (sem trocadilhos) — e que os
Minkowski deram tanto relevo à questão em seu trabalho clífiico. Dentre atos da consciência tem lugar no tempo interno da consciência, num fixo
os diversos sentidos que a palavra “consciência” adquire para Husserl, o
como unidade de ato. O que significa isto? Que nossas percepções, refle-
primeiro deles — exposto nas suas Investigações Lógicas, já em 1900/ “xões, experiências, se dão neste fluxo, no qual passado, presente e futuro
* 1901-é0quea define como “o tecido dos vividos psíquicos na unidade estão -- de certo modo —- “presentificadas” ou, nas palavras do próprio Hlus-
da fluxo dos vividos”. Corão reitera Sokolowski (2007): “(...) é no domf- serl, unificadas no “presente vivo” sem, contudo, ficar aprisionadas de um
nio da temporalidade que a fenomenologia aborda o que seria chamado momento como um “agora”, “Não estamos aprisionados na presença nem
de primeiros princípios das coisas que ela examina” (p.141). condenados a vaguear na ausência, Graças à consciência do tempo, nossas
Por ser de tamanha complexidade não analisaremos esse tema vidas são complexas tapeçarias de presença e ausência, unidade e diversi-
aqui, em profundidade. De qualquer modo, é importante que remetamos o dade, identidade e diferença” (Brough & Blattner, 2012, p.-128).
leitor a dois textos cruciais para quem quiser entender melhor a questão À estrutura do “presente vivo” husserliano aponta para um pre-
da temporalidade — e que compõem o campo de estudo necessário para o sente como extensão dinâmica, como um presente alargado a suas dimen-
tema: o primeiro deles são as Confissões de Santo Agostinho, e o segundo sões intrínsecas — que Husserl dá o nome de profensão (ou a antecipação:
é a já citada Lições para uma Fenomenologia da Consciência Interna do imediata do porvir) e retenção (ou a recente lembrança do imediatamente
Tempo, do próprio Husserl. Uma boa introdução ao tema pode set ainda passado) — que | ite incluir o que acaba de acontecer e o que está a
encontrada em Sokolowski (2007). Vale, todavia, algumas notas pouco panto de Zcontecer. O presente vivo, gols. não & mm Bar aço,
pretensiosas, mas necessárias, sobre o tema. queinclui (ao lado da impressão originária), as fases dinâmicas da rema-
O tema da temporalidade ocupa espaço significativo na obra nescência do passado e do pressentimento do futuro.
husserliana, A rigor, não se pode mesmo compreender a subjetividade O exemplo que Husserl usa é o da melodia e seu encadeamento
sem a apreensão da questão do tempo. Uma das questões mais complexas de sons (Husserl, 1905/1994). Ao ouvirmos uma melodia, escuto uma
diz respeito ao fato que, de tão importante, a temática ficou boa parte do nota e esta se dissipa, mas retenho o som que acaba de se dissipar, e nesse
tempo desconhecida do grande público, pois foi desenvolvida em aulas e momento da retenção do som que me é dado, percebo um novo som, que
esboços — desde os anos 1906-07 até sua publicação em 1928, sob direção afunda e se retém. É esse encadeamento que cria o fluxo da melodia e que
de Heidegger — sendo o mais importante dos problemas fenomenológicos. cria sua continuidade e seu conjunto, Isso constitui o próprio presente
À análise do tempo, para Husserl, se dá na forma como ela é vi- como fluxo e como unidade, o que permite identidade à experiência (So-
vída pelo sujeito da consciência, É, pois, a análise da consciência do tem- kolowski, 2007). A melodia é parcialmente presente, parcialmente passa-
po que permite a compreensão do sujeito no mundo. Nas palavras do da e parcialmente futura.
próprio Husserl: “A análise da consciência do tempo é uma antiquíssima É a partir dessa experiência temporal que se estrutura a “subje-
cruz da psicologia descritiva e da teoria do conhecimento” (Husserl, tividade”*, e que anteriormente delimitamos pelo conceito de subjetiva-
1905/1994, p. 37).
Porque tal importância? Pelo fato de ser a consciência do tempo *? Uma questão que se destaca daqui, e que sempre é de problemática compreensão é a
uma forma excepcional e complexa de intencionalidade. E, ainda, pelo do “sujeito transcendental". Do que se trata quando se fala do “sujeito transcendental”?
fato de que não poderíamos pensar em um “sujeito” fora do tempo. Afi- Trata-se, na linguagem fenomenológica, do “eu puro” — e “puro” aqui, quer significar
aquilo que não pode ser tratado em termos de dados empíricos. Assim, é o eu originá-
nal, nós nos percebemos como seres que experienciam objetos temporais, rio doador de sentidos (Tourinho, 2009). Como assinala Depraz (2007), em princípios
constantemente mutáveis, de passado, presente e futuro (Brough & do séc.XX, Husserl reconhece a dispersão de saberes e “(...) empreende, no rastro de
. Blattner, 2012), Essas três categorias —passado, presente e futuro — são Descartes, a sua empreitada ainda mais radical de refundar as ciências. Ele inventa
modos de aparecer; dinâmicos e contínuos não-fosse assim, não uma cientificidade que repousa — paradoxo absoluto para Aristóteles, para quem só há
feriamos & experiência do Tempo: ou seje se os abjeme de Ina nao ciência do geral — sobre à subjetividade de um sujeito singular e detentor de uma ver-
dade absoluta situada em sua intuição interna” (p.13). Esta empreitada husserliana fun-
âàparecessem
À apenas como “presentes”, não seria objetos
] termporais). da a fenomenologia sob a égide do ego transcendental e redimensiona as relações su-
Jeito/objeto, dado que o que temos é o fato que a redução Fenomenológica não aniquila
Fenomenologia e Humanismo 75
74 Adriano Furtado Holanda

ção. Adiantamos desde já que, para a Fenomenologia, toda subjetividade “sentido” específico; é aquele corpo “destacado” (como aquele corpo que
é intersubjetiva. Mas o que significa isto e como se estabelece?
Nas Me- 2 medicina objetifica quando o toma por “fratura” ou “doença”, por
ditações Cartesianas” — mais especificamente na quinta meditação — exemplo); enquanto o corpo subjetivado — Leib — é o corpo que sofre a
de
Husserl propõe uma exposição sobre o “problema da experiência do
ou- dar da fratura (não em termos objetivos, mas em termos de sentidos
1931/198 0). aquele corpo que se “subjetiv iza” e que
tro”, objetando ao solipismo (EFlusserl, dor, por exemplo), ou mesmo
-— A noção de intersubjetividade trata da relação de um sujeito com rétoma uma “vida íntima”, como aquele corpô que se “re-descobre” na
outro sujeito, e de como se dá a própria constituição do eu |Na Fenomeno- dança, por exemplo, Dito de outra maneira, a corporeidade — que havia
— passa a ser reabilitada
logia, ela parte da noção que o mundo não é experienciado por um sujeito sido desclassificada pela tradição racionalista
como um mundo privado, mas como um mundo partilhado por outros su- pela fenomenologia”.
jeitos de experiência (Drummond, 2007). Husserl parte do “subjetivismo Voltemos à questão da intersubjetividade. Como se dá esta
transcendental” cartesiano para uma “intersubjetividade transcendental”. O apreensão do outro? O outro me é dado também nesta dupla percepção,
percurso para desembocar ali começa com a apreensão do eu próprio indi- como o objeto e como analogon a meu corpa. O outro me é dado a partir
vidual e do seu corpo-próprio (daí a importância desse tema). de meu corpo-próprio, como presentificação desse outro como um.
“ou-
Observe-se que a questão da subjetividade vem acompanhada tro-eu" — como um alter-ego.
do tema da “corporei: ” j claro entre re
dade e rum tÕana O que me leva a ler, sobre este corpo presente no mêu campo de per-
- temas diversos como “temporalicade”, “coroniado numa dupla acepção: cepção, a presença de um outro sujeito, é a sua semelhança com o meu
O corpo, diz Ausser! (1931/1980), vem consider
próprio corpo, ele mesmo objeto do mundo, e isto por uma aliança ana-
de um lado — do lado de sua “exterioridade” — ele é objeto, é “coisa”, e lógica anterior a todo o juízo. (Kelkel & Schérer, 1954/1982, p. 51)
como tal é um ponto de referência para o sujeito, o que chama de seu
“ponto zero”. De outro lado — do lado de sua “interioridade” — o corpo é . Esta apreensão do outro como um alter-ego se dá na intermedia-
um órgão livre, móvel, que se põe em contato com o mundo exterior e, ção do corpo, pois “[o] outro será constituído em mim através do corpo
:
portanto, permite a apreensão das vivencias. do outro, graças à semelhança apreendida em relação ao meu corpo pró-
Pode-se dizer, então, que o corpo — na fenomeno logia —- é “du- prio” (Fragata, 1959, p. 162). O primeiro contato com a éxistência de um
plo”, ou tem pelo menos duas acepções, que o próprio Husserl define a outro se faz, pois, a partir de uma analogia ao meu corpo próprio, sendo
partir de duas palavras distintas: Kórper e Leib. O corpo — considerado este outro um analogon do eu puro. À semelhança da corporeidade alheia
apenas de um ponto de vista naturalístico ou físico — como realidade ma- com a ininha própria é o que estabelece o ponto de pattida para à consti-
terial é Kdrper; enquanto que o corpo personalizado — considerado como tuição deste outro.
corpo experienciado ou corpo-vivido — é Leib. Husserl designa Leib ao Outra questão importante posicionada por Husserl é que a inte-
organismo “animado”, ao corpo envolvido em nossa consciência como rioridade do outro não se apreende de pronto. Mas somente após o que
sujeito experiencial (Drummond, 2007). Dito de outra forma, o corpo chama de intropatia, ou seja, seria a partir de um sentir o outro
em mim,
físico objetivado — Kôrper — é aquele corpo material, desvinculado de um a partir da mútua semelhança corporal, o que realizaria então o trânsito
in-
entre o meu eu e o objeto que se me depara. E qual o resultado dessa
tersubjetividade transcendental? E partindo desta dualidade , desta alteri-
dade até então referida, que se abre a possibilidade da pluralidade de su-
inten-
a relação entre ambos mas, ao contrário, força-nos a pensá-la como uma relação
consciên-
cional e, portanto, em intrínseca relação: coloca, de um lado, uma que estabelece a ligação entre o meu eu é os
cia intencional e, de outro, um objeto intencionado que, na sua versão reduzida, en-
jeitos. É a minha consciência
por esta demais sujeitos — os outros eus. ;
quanto cogitafum, requer uma atribuição de sentido, de um sentido constituído
- mesma consciência, através da intencionalidade. Isto mostra, dentre outras coisas, que | Desta intersubjetividade se funda, pois, 6 domínio da objetivi-
encontra-se, em Flusserl, estreitamente associado 20 pro-
o tema da intencionalidade
Jo dade, visto que o mundo, no qual o meu eu está inserido, é o mesmo
blema da constituição dos objetos (Tourinho, 2069),
e
3º Trata-se de uma série de conferências pronunciadas por Husserl, em 1929, entre 23 da com os
24 de fevereiro, a convite do Institut d'Études Germaniques e da Société Française, 31 A questão da corporeidade e da intercorporeidade vai ser melhor desenvolvi
1nas somente publicadas em 1931, : trabalhos de Merleua-Ponty.
dafo - porie LO GAbã£o)
76 Adriano Furtado Holanda Fenomenologia e Humanismo, TI

Hana lisas
aire
mundo para todos; mundo este que apreendo a partir de meu “ponto ze- nologia que a torna um instrumento imprescindível para a apropriação do
ro”, meu ponto de referência, ou seja, meu corpo-próprio e, graças a esta . sentido da natureza humana, e o instrumento — per se — de constituição de
intersubjetividade, o eu primordial se Torna existente no mundo. um modelo de apreensão do vivido.
A partir do duplo sentido atribuído à intersubjetividade por Na direção da constituição do mundo como um mundo de sujei-
Husserl, estabelece-se o que conhecemos por humanidade. Como aponta tos, deparamo-nos com o mundo histórico é com o imundo-vida ou Le-
* Toulemont (1962), num sentido restrito, trata-se de uma pluralidade de benswelt. Como apontam Kelkel e Schérer (1982), o derradeiro desenvol-
sujeitos ligados pela pura intencionalidade e, num sentido largo, é a de- - vimento da fenomenologia transcendental é uma nova interpretação da

doi
signação geral de toda multiplicidade de sujeitos em ligação, qualquer história como geradora de sentido. Husserl, já em sua obra 4 Origem da
que seja esta ligação, Efetivando-se esta ligação, ela não cessa de ser Geometria”, destaca que a compreensão da geometria ou de um fato
intencional e constitui assim a objetividade, a vida cotidiana, a ciência, cultural significa:
etc., e a partir da modificação desta intencionalidade, 2 “comunidade da
consciência” se torna uma “comunidade social”, (...) já estar consciente da sua historicidade, ainda que de maneira
“implícita” (...). Cada explicitação e cada passagem da elucidação ao
É isto que torna a Fenomenologia uma disciplina essencialmen-
pôr em evidência não são nada mais que um desvendamento histórico;
te ética ou, dito de outro modo, que releva a dimensão essencialmente é, em si mesmo e essencialmente, um acto histórico e, enquanto tal,
ética da fenomenologia transcendental, que faz com que o pensamento de por uma necessidade de essência, traz em si o horizonte da sua histó-
Husserl! alcance uma dimensão de superação do seu idealismo, e a dimen- ria. (...) [A] história não é, de princípio, nada mais senão o movimento
são do Lebenswelt, do “mundo da vida”. À Fenomenologia apresenta-se vivo da solidariedade e da implicação mútua da formação do sentido e
como necessariamente ética na medida em que a intersubjetividade se da sedimentação do sentido originários. (Husserl, citado por Kelkel &
revela como à confirmação do outro como um sujeito, Schérer, 1982, pp. 111-112)
Abordar questões de ética significa abordar questões de sentido A elucidação das relações entre fenomenologia e história so-
e de valor. No sentido de uma fenomenologia transcendental, o Outro tem mente se dá nas obras tardias de Husserl, mas ganha relevo na Crise das
valor de Outro exatamente quando me é reconhecido como tal, quando Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental, obra de 1936.
destaca-se do mundo objetivo através da peculiaridade de ser um analo- Nesta última obra, Husserl retoma a história da filosofia moderna para
gon, um “análogo” de mim, tornando-se, assim, um verdadeiro Outro apresentar a “crise” de suas ciências, e sugerir o retorno ao “mundo da
para mim. E isto se dá no momento em que a minha subjetividade acessa vida”, como saída desta crise. AÍ apresenta sua nova interpretação da
o mundo para estabelecer com este mundo uma relação de sentido. Em história, a partir do desvendar da redução:
outras palavras, a apreensão do Outro torna-se fundamento ético, dado
que descobrimos o mundo em comum no qual vivemos com um Outro. O que a redução desvenda, com efeito, não é a solidão de uma cons-
A história do desenvolvimento das ideias fenomenológicas está ciência reduzida somente à evidência do seu “eu penso' e do seu “eu
sou, mas, mais primitivamente, mesmo que “pronominalização', a
calcada nestas premissas. A evolução do pensamento husserliano, de um plenitude concreta da subjetividade constituinte; é a subjetividade com
modelo inicialmente voltado para um “idealismo transcendental”, cujo as intencionatidades múltiplas que a ligam ao mundo da vida (Le-
acento está colocado no sujeito consciente, fazendo com que a análise in- benswelt) e a via pela qual as estruturas a priori deste poderão ser pos-
tencional se desenvolva na direção de uma “exegese de si próprio” ou nu- tas em relevo. (Kelkel & Schérer, 1982, p. 54)
ma “egologia”; desembocando numa filosofia “existencialista”, onde se
acentua não mais a relação sujeito-objeto, tas consciência-mundo, faz com O fato de haver uma dependência da intencionalidade do ato re-
que a fenomenologia se traduza numa consideração do ser-no-mundo, flexionante não significa o fechamento do mundo em mim mesmo. À.
Portanto, conclui-se pela ética como substrato fenomenológico.
consciência pura, como Husserl a entende, é originalmente temporal. Este
A partir da apreensão do Outro descortina-se a essência ética da realidade é o substrato fundamental da questão histórica, Assim, o mundo é vivido
intersubjetiva: a relação eu-ontrem como fundamento da realidade social como mundo histórico: “(...) a história constitui o nosso “horizonte de
e vivencial, a partir da descoberta do mundo em comum e da fundamen-
2 Frage nach dem Ursprung der Geometrie als intentional-historisches Problem, publi-
tação ética do homem. E é esta natureza essencialmente ética da Fenome- cada em 1936. '
nc
78 Adriano Furtado Holanda
Fenomenologia e Humanismo 79

inteligibilidade e de cultura. Não está fora de nós, pertencemos-lhe pela para melhor nos permitir agir sobre ele e nele. “Ser homem é ser num sen-
própria historicidade da nossa vida" (Kelkel & Schérer, 1982, pp. 55-56). . tido teleológico, é dever ser” (Kelkel & Schérer, 1982, p. 59).
Na fenomenologia, a constatação é que o “mundo da vida” é es- O apelo da Fenomenologia está calcado neste aspecto prospec-
sencialmente histórico, e que a historicidade define o nosso ser no mun- tivo, teleológico, dado que o colocar-se do homem é um colocar-se dian-
do. A história é tradição e transmissão. O que é histórico é um “sentido te de. O ideal de “ciência rigorosa” de Husserl se realiza apenas pelo
* sedimentado”, Para Husserl, é pela trans-historicidade que se compreen- “despertar de cada sujeito” para à responsabilidade partilhada com seus
de o histórico. O sentido nasce historicamente, e pode ser reproduzido
co-sujeitos, tornando a filosofia uma tomada de consciência da humani-
pela reflexão. A história deixa de ser então um conjunto de “facticidades”
dade por si mesma. Reconhece-se então, como substrato da redução, à
para se tornar um devir histórico autêntico no qual se elabora o sentido
própria humanidade, ou:
humano. Como assinala Eugen Fink, “a vida constituinte da subjetividade
transcendental é ela mesma histórica” (citado por Kelkel & Schérer, (..-) como muito bem notou Tran Duc Thao, o conteúdo real da subje-
1982, p. 57). Abre-se, pois a perspectiva de adentrarmos o mundo da tividade transcendental é a humanidade real, único sujeito histórico, À
intersubjetividade através da redução. fenomenologia transcendental pretende apenas (...) fazer a humanida-
de tomar consciência de que é sujeito e de que sempre o foi através
À redução e não, como em Hegel, a totalização dos “momentos? dos seus projetos falhados e de suas confusões. (Kelkel & Schérer,
é que permite à consciência captar à sua plenitude concreta e à história 1982, p. 61)
racionalizar-se. Compreender-se historicamente torna-se a última etapa
de uma compreensão de si. Se 2 origem da reflexão permanece, realmen- À retomada da questão da história na Fenomenologia é de ex-
te, na consciência que tenho de mim mesma, abre-ma, porém, a uma sub- trema importância por marcar aproximações significativas com a Psico-
jetividade originária (Ur-Ich) que é também intersubjetividade... (Kelkel logia moderna, notadamente com a perspectiva histórico-cultural de Vi-
& Schérer, 1982, p. 58). . gotski, p. ex., quando este afirma que o sujeito do conhecimento é um
Para Husserl, história é eminentemente uma história do saber. sujeito constituído em suas múltiplas relações (González Rey, 1999),
Porém, assinala que se pode compreender a si próprio sem se descobrir o Além disso, é a via de acesso que Husserl se utiliza para resgatar a ques-
sentido da história. Assim, a história surge com um caráter duplo, de per- tão do “mundo da vida” ou “mundo vital”, o Lebenswelt.
inanência e evolução, “A redução, enquanto acabamento de um movimento Na Crise, Husserl reflete sobre a história e sobre a intersubjeti-
histórico latente, permite pôr em evidência o que, desde a origem, estava vidade, para concluir que a “crise” das ciências europeias (e, portanto, da
presente sob a forma do ideal de compreensão universal do homem: a hu- humanidade) é uma crise do significado dessas ciências para a própria
manidade era sujeito mas não o sabia” (Kelkel & Schérer, 1982, p. 59). vida da humanidade, ou seja, uma crise derivada da perda do sentido das
Este é o “ideal” humanista presente na fenomenologia husserliana; a ideia ciências, produto do distanciamento destas da humanidade a que se pro-
de que o fenômeno histórico mais importante é justamente esta humanida- põe atender, Com a objetivação das ciências, subverte-se a noção de ver-
de que busca continuamente a sua própria compreensão. “Humanidade” dade para um sentido que é atribuído extemamente, Ao contrário, para a
aqui entendida como vida única de indivíduos, como “comunidade” de " fenomenologia, a verdade se define pela experiência vivida desta verda-
sujeitos que se reconhecem (Husserl, 1935/1996). de, que é a evidência: “A evidência é o modo originário da intencionali-
dade, isto é, o momento da consciência em que a própria coisa de que se
Este aspecto “teleológico”, contudo, não se fecha num “saber faia se dá em came e osso, eim pessoa, à consciência, em que a intuição é
absoluto”. O fim da história reside na unidade do ato no qual o homem preenchida” (Lyotard, 1986, p. 40). Não há, pois, uma verdade absoluta,
afirma -a sua responsabilidade: tal qual se postula no dogmatismo, mas esta se define como devir, como
O homem que atinge a última compreensão de si descobre-se uma ultrapassagem dialética de si mesma (Lyotard, 1986).
como um ser que consiste em ser chamado a uma vida colocada sob o sig- O “mundo da vida” é um mundo extremamente rico, dos “fe-
* no da apoditicidade (...). Prolongamento da filosofia da história em ética: a nômenos anonimamente subjetivos”, Segundo Mora (1994), nem a ciên-
razão teorética é também prática e a redução não nos retira do mundo senão cia objetiva, nem a psicologia, nem a filosofia tomaram conta deste
* Grifos nossos.
E Adriano Furtado Holanda F 'enomenologia e Humanismo 81

“mundo do subjetivo”, nem mesmo a filosofia kantiana o fez**. Dada que Mora (1994) pergunta-se sobre as relações entre a descrição do
a Fenomenologia é a “ciência dos fundamentos últimos”, não pode deixar . Lebenswelt e as demais descrições de mundos, como a dos antropólogos,
de lado este mundo. Também a ciência objetiva inclui uma ciência do historiadores do espírito, psicólogos ou novelistas, bem como a análise
Lebenswelt, que para Husserl, se refere às “experiências subjetivo- heideggeriana do Dasein: “Em todo caso, a análise heideggeriana do “es-
relativas” que devem ser averiguadas como podem ser utilizadas para as tar-no-mundo” pode considerar-se como uma sistematização da Le-
- ciências objetivas, benswelt”" (Mora, 1994, np. 2.087),
O mundo do Lebenswelt é um universo que possui uma “intuiti- Este último comentário levánta a questão da mútua relação en-
vidade em princípio”, semelhante ao que se tet chamado de “conheci- tre Husserl e Heidegger. O próprio Mora (1994) afirma uma possível
mento do homem”, ligado à certas investigações da antropologia filosófi- influência de Heidegger sobre Husserl, ao final de sua vida. Mohanty
ca e podendo ser relacionado à “crítica da vida cotidiana” de Henri (1996) concorda em alguma medida com esta tese, quando assinala que,
Lefébvre""* (Mora, 1994). Husserl define o “mundo da vida” como o no que corresponderia a uma “quarta fase” do pensamento husserliano —
“fundamento de sentido esquecido na ciência da natureza”. Husserl asso- logo após haver se retirado da cátedra, em 1928 — Husserl teria sido (pa-
cia este “conhecimento do homem” à ontologia do Lebenswelt, que des- radoxalmente, segundo o autor) influenciado por Heidegger na elabora-
creve e examina as “formas práticas” (praktische Gebilde), ou seja, tudo ção do seu conceito do Lebenswelt. Contudo, o próprio autor, bem como
que sejam fatos do mundo da vida (die Welt des Lebens), o que inclui Smith e Smith (1996) e outros, reconhecer que o conceito de “mundo da
tanto as ciências objetivas quanto os fatos culturais. vida” já possuía suas raízes nas obras iniciais da Fenomenologia, como as
Que as ciências tenham esquecido que tenha surgido ou emergido de um Tdeias, por exemplo, Baseado nisto, podemos afirmar — com certa segu-
Lebenswelt, mostra um dos aspectos, senão o, aspecto fundamental da rança, embora seja necessária uma avaliação tuais aprofundada da ques-
“crise da ciência europeia”, O Lebenswelt é, com efeito, como a soma tão — que, tanto as elaborações fundamentais de Heidegger (desenvolvi-
das “franjas” ou dos “horizontes” nos quais emergem e se constituem os das em seu Ser e Tempo), quanto as de Merleau-Ponty e Sartre já estavam
dados “mundanos”, Mas justamente porque o Lebenswelt não é propria- “em potência” na fenomenologia husserliana, daí a necessidade de resga-
mente um fato, senão um “horizonte de fatos”, não é comparável ao tarmos a complexidade de seu pensamento como forma de entendimento
“mundo natural” (o qual é um dos elementos do Lebenswelt). O Le- da crise da mentalidade ocidental.
Bensywelt não é dado de uma vez para sempre, mas se desenvolve —acaso
historicamente — e tem “formas” e “estilos” (Mora, 1994, p. 2.087). Paul Ricouer (2010) nos recorda que Pierre Thévenaz — num ar-
tigo publicado em 1952 — afirma que “os verdadeiros herdeiros de Hus-
O Lebenswelt não é o que aparece primeiro na experiência natu- serl são os existencialistas franceses” (p. 154). Com isto, afirma-se uma
Tal, deve ser “«reconquistado” a partir desta experiência, Por isso que, para consequência (quase) natural da fenomenologia. Esta, radicaliza der
Husserl, o estudo do Lebenswelt é uma “fenomenologia mundana” semboca numa “filosofia da existência”, dado que a intencionalidade —
(weltliche), através de uma redução que precede todas as outras reduções Some já apontamos —desvela-o mundo de objetos é de suleitos, bem co
fenomenológicas, “mo a realidade do outro.

* “Segundo Husserl, há em Kant um “suposto” não expressado, o de um “mundo cireun- - FENOMENOLOGIA, PSICOLOGIA E PSIQUIATRIA
dante vital” (Lebensumwelt) (...) Este suposto determina os modos como se estabele-
cêm os problemas da crítica da razão. O mundo circundante vital é o mundo vivido e O único sentido oculto
não — e todavia, não — “tematizado" (Mora, 1994, p. 2.086). - das coisas é elas não terem
s Filósofo francês, nascido em 1901, trabalhou no Centre National de Recherches Scien- - ne cu sentido oculto algum.
tifiques de Paris (CNRS); mergulhou no marxismo como resposta à sua crise filosófica
pessoal, tendo inclusive se associado ao partido comunista françês, Sua “crítica da vida Fernando Pessoa
cotidiana” é um esforço pela descoberta do “homem total”, Por “vida cotidiana” com-
preende a “apropriação pelo homem, não tanto da natureza exterior como de sua pró- Da mesma maneira que a Fenomenologia surge como filosofia,
pria natureza — como zona de demarcação e de união entre o setor não dominado da como método, como ciência e como uma epistemologia, suas aplicações à
vida e o setor dominado -, como região donde os bens se confrontam com as necessi-
dades mais ou menos transformadas em desejos” (Mora, 1994, p. 2.089).
Psicologia e à Psiquiatria podem ser compreendidas nas mesmas dire-
82 Adriano Furtado Holanda
F enomenologia e Humanismo . | 83 .
ções. As relações da Fenomenologia com a Psicologia são antigas, dádo
que Husserl -- como matemático, estava interessado na Lógica e em estu-
! Como “fonte de hipóteses”, a Fenomenologia surge como uma
dos sobre o número — sendo posteriormente “herdeiro” da psicologia metodologia alternativa à ciência natural, principalmente no que tange a
descritiva de Brentano. Mas as relações entre Fenomenologia e Psicolo- questões tais como intuições, sensações ou outros processos que não são
comumente incluídos na lista de questionamentos científicos, mas
gia são complexas e merecem esclarecimentos, Paul Ricouer (2010) que
aponta a impossibilidade de se compreender a psicologia sem uma anco- são “fenomenológicos num sentido informal e àssistemático” (Keen,
Tagem na fenomenologia, mas o que significa isto? Que compreender a 1979). Fundamentalmente, constrói-se como um campo de investigações
subjetividade — a consciência psicológica —- requer uma ancoragem no ego ; constante (eis-nos reciiperando Sextó Empírico, citado no início). De
puro (Freitas & Holanda, 2010) [Mas há que se distinguir fenomenologia modo mais específico, a Fenomenologia — cuja preocupação básica é a


de psicologia fenomenológica. Embora ambas partam da consciência e experiência — surge como uma metodologia importante dado que: º
das relações do sujeito com o mundo, não se trata do mesmo objeto, thas As reduções fenomenológicas, variações imaginárias e interpretações
também não se constituem duas subjetividades, mas duas maneiras de têm sido sempre o capital de giro de cientistas, mas estes não as expli-
apreensão do sujeito, de modo que não se pode reduzir uma à outra. citaram de forma detalhada como procedimentos metodológicos. No
De uma forma genérica, a Fenomenologia foi apropriada pelas nível mais simples de contribuição, a fenomenologia pode fornecer
Ciências Humanas em diversos contextos: uma descrição clara e algum rigor metodológico a este estágio crucial, —
e tão negligenciado, do processo científico, (Keen, 1979, p. 98)
Segundo Spiegelberg (1982), a fenomenologia foi apropriada pelas ciên-
cias humanas, genericamente, em torno de sete passos metodológicos Desta feita, fenomeno
a logia ratifica seu caminho na direção de
característicos. São eles: 1) investigação de fenômeno particular, 2) uma metodologia descritiva e compreensiva, desembocando naturalmente -
investigação de essências gerais, 3) apreensão de relações essenciais en- num modelo hermenêutico privilegiado de análise da realidade,
por não
tre constituintes do fenômeno, 4) observação de modos e aparecimento abandonar o solo empírico desta realidade, como reitera Husserl, Assim é
do fenômeno, 5) observação da constituição do fenômeno na consciên- “que
tm dos campos em que se observa cada vêz mais a aplicação da fe-
cia, 6) suspensão de crenças na existência do fenômeno, e 7) interpreta- nomenologia é o terreno da pesquisa empírica em Psicologia. Husserl
ção do significado do fenômeno. De acordo com o autor, os três primei- -
procurou criar um inétodo que permitisse a investigação tanto da interio- j
tos passos foram amplamente aceitos e aplicados por praticamente todos
que se alinhavam, na primeira metade do século XX, com o movimento Tidade quanto da exterioridade e, assim, “como ciência do sentido íntimo,
fenomenoiógico. (Castro & Gomes, 201 1,p. 237) a psicologia deve voltar-se para as experiências concretas do homem
percebidas numa dimensão espacial e temporal, onde a construção do
Talvez um bom exemplo de como podemos entender à impor- sentido só é possível pela afirmação de uma consciência encarnada” (Ma-
tância da Fenomenologia para a Psicologia (ou suas possíveis aplicações) riguela, 1995, p. 98).
esteja em Keen (1979), O autor dá excelentes indicativos de reflexão Em termos gerais, no terreno das pesquisas qualitativas, a me-
sobre o “lugar” que uma psicologia fenomenológica pode ocupar. À ri- todologia fenomenológica vem sendo cada vez mais reconhecida. Este
gor, aponta exatamente para uma direção reflexiva, ou seja, indica modos crescimento é louvável por apresentar-se na “perspectiva de um refina-
de se pensar a fenomenologia aplicada. Isto é de suma importância para mento metodológico e na consequente oportunidade de considerar mani-
que — como ressaltamos anteriormente com relação à redução — não se festações ou expressões s85) fa e sociais antes inacessíveis para estudo
reduza seu campo de atuação, nem mesmo sua perspectiva. Para o autor, sistemático” (Gomes, 1989)/O objetiv: al de uma pesquisa nesta
uma Psicologia Fenomenológica pode ser encarada sob quatro aspectos: direção é de dar conta de s dos vividos “não-mensuráveis” :
metodologia quantitativa tradicional. Estamos falando da Investigação de -
1) Como uma fonte de hipóteses; aspectos da subjetividade que a ciência empírica tradicional muitas vezes
2) Como um veículo para o humanismo; não dá conta ou mesmo negligencia /Como assinala Amatuzzi (1994), as
formas de investigação do humano são, essencialmente, modos de “ser” !
3) Como um novo paradigma e, humanos, como a cultura, a poesia, o teatro, etc. Para se realizar uma
pesquisa neste sentido, faz-se mister a utilização de um método de descri-
.— 4) Como uma resposta à crise. ção e análise de processos que seja compatível com a tradição de uma
84 Adriano Furtado Holanda
Fenomenologia e Humanismo 85

psicologia como ciência humana (Giorgi, 1977), no sentido de valorizar À expressão mais contundente da aplicação do método fenome-
aspectos da intersubjetividade humana, — + nológico à pesquisa empírica encontra-se no chamado “Giupo de Du-
Na perspectiva de investigação desse humano, o método deve quesne”, À partir do primeiro trabalho publicado nesta direção-— o artigo
dar conta da sua originalidade, pois o que é próprio do humano não se de Adrian Van Kaam (1920/2007), intitulado “Phenomenal Analysis:
deixa captar pelos métodos da ciência tradicional (Amatuzzi, 1994), Co- Exemplified by a Study of the Experience of “Really Feeling Unders-
- mo “explicar” a inspiração poética, o sonho como atividade simbólica, a tood*”, publicado em 1959 (Van Kaam, 1959) — uma série de outros pes-
contemplação artística ou mesmo o surto psicótico? As investigações das quisadores depuraram o método na Universidade de Duúquesne, com des-
ciências humanas são do tipo sujeito-sujeito, ou subjetividade- — taque para a publicação do livro Phenomenology and Psychological Re-
subjetividade, ou podem ser entendidas como relacionais de acordo com search, editado por Amedeo Giorgi (1985). O principal destaque desse
Buber (1923/1979), Fazer pesquisa em ciências humanas é caminhar em
Grupo refere-se a uso do preceito da redução, aplicado empiricamente
busca de significados. Contrariamente à tradição clássica da ciência natu-
como a busca por “constituintes invariáveis ou elementos essenciais na
ralista — cujo objeto são os “fatos” — as ciências humanas lidam também
estrutura experiencial de um sujeito” (Castro & Gomes, 2011, p. 237).
com fenômenos. Enquanto os são abstraídos da realidade, os fenômenos
são vividos. Como um “veículo para o humanisino”, a Fenomenologia colo-
E neste sentido que se faz presente um projeto de “psicologia ca em seu centro de atenção, à consciência e os processos conscientes, Ão
fenomenológica”, cujos alicerces se encontram na redescoberta e valori- - focalizar a experiência do indivíduo, a Psicologia atua fenomenológica ee
zação da subjetividade consciente, suas manifestações e inter-relações, humanisticamente. E relevante, contudo, o fato que o humanismo — como
abarcando toda a complexidade do fenômeno humano: indivíduo, cultura, historicamente corBstifuido enquanto movimento nos Estados Unidos -
sociedade, etc. Assim é que a “psicologia fenomenológica” se apresenta “areça de uma metodologia suficientemente de esenvolvida”, de umateo-
como uma abordagem que se propõe a ver esta realidade de forma mais fia coerente e de uma estrita fundamentação de dados”, . Além disso, à
complexa e o mais amplamente possível. Ao se propor a isto, a fenome=., finalidade do humanismo (compreensão) difere dosfins científicos (pre-
nologia questiona o reducionismo presente nas metodologias naturalistas visão e controle). Fenomenologia
À pode ser um excelente veículo de
(tal qual apontado por Husserl), em especial quando aplicadas ao fenô- comunicação entre o Humanismo e a Ciência tradicional, ao possibilitar
meno psicológico, pelo seu caráter atomístico e restritivo. À psicalogia révelar de forma organizada, metódica, o mundo privado do indivíduo. -
fenomenológica, enquanto preocupação com a experiência consclente "— Pode ser ainda considerada um caminho pará a “humanização”,
difere do método introspectivo pelo fato deste último estar interessado na medida em que recupera diversos sentidos de subjetividade e recoloca
nos elementos mentais, ou seja, tratar-se de um método reducionista, não oo-homem Como um ser em movimento, como subjetivação. Resgata ainda
se atendo, pois, à relação entre o objeto do estimulo e o significado da T singularidade da relação desse homem com à cultura, a sociedade, a
experiência (Gomes, 1985). econornia, a literatura, recuperando assim todo um sentido de totalidade,
Como instrumental de pesquisa, a metodologia fenomenológica Cm onosIção & Fagmentação do clentificismo- Numa época em quese
se constitui num conjunto de procedimentos para a exploração da consciên- questiona o lugar e o papel do homem em relação à natureza, ao desen-
cia imediata e da experiência (Gomes, 1997). Com base nestas premissas, volvimento e às relações diversas; em que se reflete sobre a fugacidade
vem-se observando que a metodologia de pesquisa fenomenológica tem das relações humanas ou sobre os valores da nova sociedade — e estamos
se constituído num caminho importante para o estudo da experiência nos referindo a tantos autores modernos, como Zygmunt Bauman, Gilles
consciente ou da “vivência”*, e um modelo ideal para se estudar questões
relativas à dimensão subjetiva do existir humano, tais como a religiosida- 3 Amatuzzi, 1992, 1994, 1995, 1996, 1999, 2001a, 2001b; Chaves, Macedo e Mendonça,
1996; Forghieri, 1993; Bruns e Holanda, 2003; Bruns e Trindade, 2003; Alves, 2003;
de ou a experiência religiosa”, a clínica psicológica e o vivido”. Kristensen, Flores e Gomes, 2003,
. 5º Esta discussão está melhor desenvolvida no primeiro capítulo deste livro,
2 * Giorgi, 1985; Morujão, 1994; Gomes, 1998; Moreira, 2002; Bruns e Holanda, 2003; 6º Em que pese o fato de Carl Rogers ter construído todo seu arcabouço teórico-técnico
Amatuzzi, 2003; Holanda, 2003a, 2003b; Martins e Bicudo, 2005. com base em pesquisas empíricas, talvez tenha sido o representante mais “empiricista”
do movimento humanista americano. O que é curioso de se assinalar é que, atualmente,
— 5? Moraes, 1998, 2002; Freitas, 2002, 2004; Alves, 2004; Holanda, 2004a, 2004b; Maciel,
2004, Moraes e Ribeiro, 2004. às pesquisas da chamada “psicologia positiva” resgatam os pressupostos e conceitos do
movimento humanista, só que com uma roupagem de pesquisa empírica.
seem
86 Adriano Furtado Holanda
Fenomenologia é Humanismo 87
Lipovetsky ou Jean Baudrillard, por exemplo —, a Fenomenologia se
À Fenomenatogia propõe um olhar diferenciado para o mundo e
apresenta como excelente campo que fundamenta tanto esta discussão +
(Villanueva, 2010), quanto propostas de revisão desses aspectos, seja do
os fenômenos da realidade, um olhar onde a tradicional dicotomia sujei-
ponto de vista filosófico ou sociológico — tomemos autores como os to/objeto ganha novos contornos e se torna uma correlação. Como uma
grandes nomes da fenomenologia francesa do século passado, como Sar- nova forma de mudança radical de perspectiva, torna-se — além de um
tre, Merleau-Ponty, Derrida ou Lévinas; ou pensadores mais contemporã- método compreensivo — um paradigma revolucionário, que permite o
tieos como Habermas e Gadamer. À advento de um grande número de novas perspectivas sociais, psicológi-
Se trata mesmo de discutir o felos da humanidade, ou a crise da
cas, filosóficas, antropológicas e ciettíficas. Podemos ilustrar isto através
humanidade europeia (Husserl, 1935/1996) e suas relações com a filoso- da análise das suas ramificações nó seio do pensamento psicológico e
fia; ou discutir a própria psiquiátrico.
crise das ciências europeias (Husserl,
1936/1989) e suas relações com a fenomenologia transcendental. Nesta Spiegelberg (1972, 1982) traça um panorama bastante elabora-
direção, a proposta husserliana e a Fenomenologia procuram ainda res- do das influências que a Fenomenologia exerceu sobre as diversas escolas
ponder à crise de valores erigida no pensamento moderno — herdeiro e de Psicologia, destacando ainda algumas especificidades em alguns mo-
devedor da metafísica dicotômica. Crise esta decorrente de tantos “peri- vimentos ou personagens, À filosofia fenomenológica sempre esteve
gos” como aponta Husserl! (1936/1989): : presente junto à psicologia nascente, desde os psicólogos de Gôtringen —
primeiro núcleo de influência de Husserl, contando com a participação de
Desde estas análises husserlianas e de seus sucedâneos Heidegger, Ador- nomes como Erich Jaensch, David Katz, Edgar Rúbin e Géza Révész —;
no, Marcuse Habermas, ete., sabemos do grande perigo que trazem a
tecnicização e a razão instrumental: surgimento de ideologias ou cosmo-
passando pela Escola de Wiurzburg, onde se destacam August Messer,
visões de caráter irracional e totalitárias, ruptura de vínculos entre ciên- Karl Buhler e Narziss Ach; e alcançando grande notoriedade com a cha-
cias e filosofia, abandono de um ideal de ciência unificada e universal, mada Escola de Berlim (mais conhecida como a Psicologia da Gestal), -
renúncia — por outra parte — da filosofia de seu caráter de cientificidade, . com Max Wertheimer, Kurt Koffka, Wolfgang Kôhler, Aron Gurwitsch,
ameaça crescente do ceticismo, irracionalismo e misticismo. Neste senti- Kari Duncker, Kurt Lewin, Fritz Heider e Martin Scheerer,
do “a crise da filosofia significa, pois, (...) a crise de todas as ciências
Para se vislumbrar a dimensão desta influência em meio a tantas
modernas enquanto membros da universalidade filosófica, uma crise
primeiro latente, mas cada vez mais manifesta, da humanidade europeia personalidades não tão conhecidas do grande público, basta citarmos
inclusive em relação ao sentido global de sua vida cultural, de sua “exis- algumas das contribuições destes: Karl Buhler (ao ladode sua esposa,
tência' toda” (Husserl, 1936/1989, 55]. (Villanueva, 2010, pp. 76-77) Charlotte Buhler) foi um dos mentores da chamada “Psicologia Humanis-
ta”; Kurt Lewin, é o criador da “Teoria do Campo” e um dos precursores
Uma psicologia fenomenológica procura revelar o ser humano da Dinâmica de Grupo; ao lado de Fritz Heider, colaborou sensivelmente
para si próprio, fazendo-o observar-se e aos demais, refletir sobre si pró- para o desenvolvimento de uma teoria social; Edgar Rubin foi o respon-
prio e sobre suas observações. De modo mais explícito, uma psicologia sável pela noção de “figura e fundo”, desenvolvida pela Psicologia da
fenomenológica procura “revelar à nossa compreensão explícita aquilo Gestalt, cujos membros dispensam apresentações.
que já compreendiíamos implicitamente, (...) nossa compreensão diária, No terreno da psicopatologia a Fenomenologia é decisiva. Karl
vivida, de nós mesmos, não é abordada por nossas teorias psicológicas” Jaspers, que era psiquiatra e filósofo, “funda” esta ciência sobre os fun-
(Keen, 1979, p. 104). damentos descritivos do pensamento husserliano/ Para Jaspers
Por fim, a Fenomenologia pode ser encarada com um “novo pa- (1913/1987), a psiquiatria seria a profissão prática, enquanto que a psico-
radigma”: patologia seria a ciência propriamente dita, sendo que, por lidar com os
fenômenos subjetivos da vida psíquica, deveria se basear n
[A Psicotogia Fenomenológica] em seus momentos mais ambiciosos,
aspira a estabeleçer um novo paradigma para a psicologia, Este novo pa-
descritivo, constituindo-se numa ciência compreensiva. No esteio de uma
tadigma envolverá uma modificação quanto à quais fatos e teorias são “psicopatologia fenomenológica”*!, outros grandes nomes se destacam,
importantes: que perguntas formular, quais respostas considerar como
tais e, em geral, quais os objetivos da ciência. (Keen, 1979, p. 101)
6! Para uma análise mais detalhada e pormenorizada das relações da fenomenologia com
a Psiquiatria e a Psicopatologia, remetemos o leitor a outro texto sobre esse tema espe-
88 Adriano Furtado Holanda
Fenomenologia e Humanismo 89

como Ludwig Binswanger, V. E. Von Gebsattel e Erwin Straus, todos cia e suas mutações em estados psicopatológicos, foram publicados
representantes de uma “antropologia psicológica”. Na Holanda, toda uma. em vários países (Minkowski e Bachelard na França; Binswanger,
escola se desenvolveu em torno da fenomenologia, liderados por H. C, Strauss, von Gebsattel e outros na Alemanha; Buytendilk e Van den
Rumbke, Janse de Jonge, L.Van der Horst, F. J. ]. Buytendidk e 1. H. Van Berg na Holanda). (Bucher, 1989, p. 29)
den Berg, este último mais conhecido dos leitores brasileiros, através de
seu livro O Paciente Psiquiátrico (Van den Berg, 1966). Igualmente na b: todos esses nomes, talvez o de maior expressão e penetração
Inglaterra a psiquiatria conhece uma significativa influência da Fenome- no campb clínico seja o de Ludwig Binswanger (1861-1966) que, através
do prisma heideggeriano e de uma releitura da fenomenologia husserlia-
nologia, destacando-se o grupo que constituiu à Antipsiquiatria, com R.
D. Laing e David Cooper, numa perspectiva mais sartreana. na, propõe uma análise existencial que denominou Daseinanalyse, Árata-
-se de uma nova maneira de encarar a clínica, a patologia e a realidade
Não poderíamos deixar de mencionar a estreita relação que
existiu e ainda existe entre Fenomenologia e Psicanálise, Para tanto, bas- existencial do indivíduo, onde a doença importa menos do que o indivi- -
taria lembrarmos — como assinalamos no início desse texto — que Freud duo em questão, Neste sentido, constituiu-se num movimento existencial
assistiu aos cursos de Brentano em Viena, e sua prática clínica inicial e de esboço do mundo; uma tentativa de compreender a maneira de ser do
caminha na mesma direção de um procedimento descritivo. De qualquer cliente. Este movimento existencial em psiquiatria e psicopatologia é
modo, a fenomenologia encontra-se mais presente nos seguidores tardios
fruto de todo um processo de insatisfação iniciado com os trabalhos de
de Freud, como Daniel Lagache e Antoine Vergote (que desenvolve,
Reich, Rank, Fromm e Homey, que desemboca em significativas mudan-
dentre outras coisas, uma perspectiva de leitura do fenômeno religioso à ças na psicoterapia (May, 1967). Segundo Bucher (1983),
luz da fenomenologia na Universidade de Louvain). Há ainda uma corre- (...) apesar de sua abertura para com a psicanálise, Binswanger perma-
lação . entre fenomenologia e o pensamento de Jacques Lacan. Baas neceu fiel à fenomenologia transcendental de Husserl. (...) Graças à
(1988) aponta para a influência de Heidegger sobre Lacan, no sentido de concepção do “Dasein” de Heidegger, o conceito de consciência
uma compreensão heideggeriana de fenomenologia como verifas trans-* transcendental ligada a uma subjetividade pura, postufada à luz da es-
cendentalis, e que é devedora da perspectiva husserliana, mas o próprio trutura da intencionalidade e de “Weltentwurf”, do “projeto de mun-
Baas assinala que a referência que faz Lacan a Husserl! nos Ecrits é “in. do” desta consciência — se tornava mais concreto, fornecendo assim a
Binswanger a base para uma fundamentação filosófica da psiquiatria e
significante”, permitindo a sua aplicação à análise dos modos de espacialidade, de
No cenário norte-americano, a fenomenologia encontra espaço a temporalidade e da “Selbstigung”, da “auto-realização” da consciên-
partir de leituras específicas, mas já em William James e Gordon Allport, cia, no seu “projeto de mundo” genuinamente próprio. (p. 37)
encontramos um terreno propício a esta penetração,
Talvez a principal ramificação, oriunda diretamente da filosofia, | Bin: imita uma “fenomenologia antropológica”
que
Se preocupa co: idae do ser humano,na sua normalidade e anor-
seja a disciplina desenvolvida por seu discípulo e sucessor na Alemanha,
Martin Heidegger. Heidegger procurou estabelecer uma ontologia com
malidade] enquanto um ser que se experiencia em relação com o mundo
base no método husserliano, e termina por criar à Daseinanalytik, ou
(Spiegelberg, 1972, 1982; Gomes, 1986). Binswanger tinha uma dupla
Analítica Existencial, cuja obra de referência capital é o Ser e Tempo, formação — era filósofo e médico — e era amigo pessoal lanto.de-Frend.
quanto
de Heidegger. Chegou a ser indicado pelo próprio Freud para a
publicada em 1927.
presidência da Sociedade Suíça de Psicanáfise no ano de 1910. Paulati-
As ideias de Heidegger conheceram rapidamente aplicações em estu- namente, porém, vai se afastando da “ortodoxia freudiana” (Spiegelberg,
dos psicopatológicos e na psiquiatria, onde se tentou revelar metamor- 1972) e caminhando na direção da perspectiva filosófica de Husserl e de
foses particulares desta estrutura ontológica e dos seus determinantes, Heidegger, passando por diversas “etapas” que vão de uma perspectiva
Trabalhos sobre espacialidade, historicidade, disposição afetiva, per- pré-fenomenológica para uma aproximação com Husserl, depois um afas-
cepção do desenrolar temporal, sonhos e outras dimensões da existên- tamento deste e uma aproximação de Heidegger para, finalmente, retornar
à Husserl. Binswanger teria se distanciado da psicanáfise freudiana por ;
cificamente, intitulado “Gênese e Flistórico da Psicopatologia Fenomenológica” (Ho- considerar que lhe faltava tanto uma metodologia que justificasse cienti-
Janda, 2011b), : - ficamente a interpretação psicanalítica quanto uma perspectiva antropo-
90 Adriano Furtado Holanda
Fenomenologia e Humanismo 91

lógica mais compreensiva. Em resposta a estas deficiências, Binswanger


cliente, o posicionamento do terapeuta de um modo mais ativo na relação,
recorre à fenomenologia husserliana e à analítica heideggeriana; e estas - ou seja, o terapeuta como um existente que se coloca em relação com o
tevariam-no à desenvolver sua “antropologia fenomenológica” (Spiegel-
seu cliente, em contraposição a uma postura mais distanciada, mais analí-
berg, 1972).
tica e menos vivencial, menos intersubjetiva, além de outros elementos.
Sua proposição era desenvolver uma nova compreensão do ho- Tradicionalmente, a Abordagem Centrada na Pessoa, de Carl Rogers e a
“mem, não mais com base em alguma teoria (mecanicista, biológica ou psi- Gestalt-Terapia são consideradas como abordagens de cunho “fenomeno-
cológica), mas pautada em termos de uma elucidação puramente fenome- lógico”, mesmo que implicitamente — como aponta Spiegelberg (1972)
nológica da estrutura total ou a articulação total da existência como ser-no- em relação ao pensamento de Rogers — é de fórma não claramente estru-
mundo -- o In-der-Welt-sein. Isto nos remete a Merleau-Ponty, quando este turada nesta-direção. Estamos nos referindo ao fato que nenhuma dessas
assinala que “(...) todo Sein und Zeit saiu de uma indicação de Elusser! e duas correntes de psicoterapia possui vínculos diretos com o movimento
nada mais é do que uma explicitação do “Naturlichen Weltbegriff ou do fenomenológico clássico, e que as apropriações da fenomenologia por
“Lebenswelt' que Husserl, no fim de sua vida, dava como tema principal da ambas, se dá muito mais de um modo informal — muito mais como
fenomenologia (...)” (Merleau-Ponty, 1945, p.D. E o mesmo Merleau- “aproximações”, do que como influências -- do que de um modo “rigoro-
-Ponty continua: “Longe de ser, como se acreditou, a fórmula, de uma filo- so”, precedido de contatos e estudos formais,
sofia idealista, a redução fenomenológica é a fórmula de uma filosofia Vale a pena ressaltar que Rogers, ao longo de sua obra, faz
existencialista: o In-der-Welt-Sein de Heidegger somente aparece sobre o
pouquíssimas referências à fenomenologia, sendo explícito ao afirmar
fundo da redução fenomenológica” (Merleau-Ponty, 1945, p. DO.
não ter tido contato direto nem com a obra nem com os conceitos de auto- ,
a A preocupação de Binswanger era de fundamentar filosoficamen- res como Husserl, Heidegger, além de Kierkegaard e Buber, dentre ou-
te a ciência psiquiátrica, numa compreensão existencial-analítica das for- tros. No caso da Gestalt-Terapia, a questão é um pouco mais delicada,
tmas de existência esquizofrênica, retirando as patologias do quadro estrito dado que a gênese dessa perspectiva se dá em solo europeu, mas sua
do juizo de valor biológi transportando- adro lo constituição identitária em solo americano €, portanto, devedor de certa
da estrutura existencial, do ser-no-mundo humano.
TIC : influência deste. Mesmo assim, não há referências diretas ao pensamento
ei Uia

Para Binswanger, a Daseinsanálise é uma empresa científica, um “mé- fenomenológico na literatura clássica da Gestalt-Terapia. Fritz Perls —
todo de pesquisa”, Ela não tem por perspectiva uma partida psicoterá- que muitos indicam como o principal mentor da Gestalt-Terapia — teve
pica, Ela visa fundamentar o edifício da psiquiatria como ciência. Em contatos “acessórios” ou “indiretos” com o movimento fenomenológico
nenhum caso ela pode ser considerada como uma técnica específica. (seu conhecimento — limitado da Fenomenologia — se dá muito a partir de
(Naudin, 1997, p. 23) comentadores)?, Já Laura Perls — que particularmente consideramos co-
mo à grande “pensadora” da Gestalt-Terapia — teve contatos um pouco
Já a perspectiva existencial em psicologia — que bebe igualmen-
mais diretos com a fenomenologia pura, embora ainda assim limitados ao
te de fontes fenomenoiógicas — foi desenvolvida em várias nuances, tanto
na Europa quanto no continente americano. Nos Estados Unidos, pode-
campo psicológico (particularmente devido a sua experiência com a Es-
mos citar os nomes de Rollo May e Irving Yalom, como os mais destaca-
cola de Berlim)º. Mesmo assim não podemos definir as duas perspecti-
vas como estritamente “fenomenolágicas”, ainda mais se as compararmos
dos representantes desta leitura, Já na Europa, a proximidade do pensa-
mento filosófico gerou uma multiplicidade de leituras é de correntes.
Podemos começar citando os trabalhos de Medard Boss, Roland Khun e 4? Dentre essas leituras indiretas, vale destacar os trabalhos de Goldstein e dos psicólogos
Erwin Straus. Posteriormente vem a ser modificada e ramificada noutra da Gestalt. Ademais, do círculo inicial que constituiu a Gestalt Terapia e solo america-
éscola psicoterápica, através o psiquiatra vienense Viktor Erankl, que no — o chamado “Grupo dos Sete” — o verdadeiro estudante de fenomenologia era Isa-
aponta para uma evolução da análise existencial até alcançar a chamada dore From (Wysong & Rosenfeld, 1988).
Logoterapia,. . : 9 A Gestalt-Terapia possui raízes filosóficas as mais variadas e, por vezes, conílitantes.
Isto nos permite afirmar que não existe apenas uma, mas diversas “Gestalt-Terapias”,
Õ À Fenomenologia atinge finalmente a corrente dita “humanista” cada uma compreendida a partir de um enfoque específico e de uma construção epis-
de psicoterapia, que preconiza a consideração da totalidade do ser do temológica (Holanda, 2005). Uma interessante crítica aos fundamentos humanistas da
Gestalt Terapia está em Prado Jr. (2000).
mas!

2 Adriano Furtado Holanda Fenomenologia e Humanismo 93

com a Daseinsanalyse de Binswanger, muito mais formalmente atrelada fenômeno psíquico de outrem, assim como se percebe um fenômeno fi-
ao movimento filosófico clássico, sico, só se poderá tratar de representação, empatia e compreensão, a que
De qualquer modo, a caracterização destas duas abordagens no poderemos chegar, segundo o caso, pelo meio de levantamento de uma
contexto de psicologias ditas “fenomenológicas” ou “fenomenológico- série de caracteres e símbolos sensivelmente perceptíveis, por uma es-
pécie de exposição sugestiva. (Jaspers, 1913/1987, p. 7 D :
existenciais” se deve ao fato de que ambas consideram, de certo modo, que
* a fontede todo conhecimento autêntico está na experiência imediata de si e
Esta colocação de Jaspers serve-nos de introdução à questão da |
de outrem. Ademais, apontam para uma atitude terapêntica de i aplicação da Fenomenologia à situação de prática clínica. Uma análise
delas apriorísticas e fundamentam suas relações eira Afine fenomenológica nos posiciona, enquanto clínicos, diante de um fenômeno
agora, no presente, na presença do terapeuta enquanto existente aberto à
Específico que é uma pessoa, que vem até nós em busca de auxílio, de
relação, ou seja, o terapeuta, neste sentido é muito mais “pessoa” (como esclarecimento, '
assinala Rogers) do que propriamente um papel a ser desempenhado.
—"" Falar da aplicação da Fenomenologia à prática dlínica não signi-
— Embora a expressão “aqui-s-agora” já tenha conotações popula-
fica transpor simplesmente certos conceitos específicos — que são filosó-
res diversas, consideramos aqui alguns aspectos centrais a serem obser-
ficos e lógicos, circunscritos a este campo — para o terreno da clínica.
vados. Uma relação calcada no “aqui-e-agora” envolve, antes de tudo
Cabe este alerta para que não se faça uma análise simplista das contribuí-
abertura, totalidade e presença. Abertura para a possibilidade do encontro
ções que o arcabouço fenomenológico pode nos proporcionar, Assim, não
e

e presença efetiva do ser na relação enquanto totalidade. À partir disto.


faz sentido falarmos de uma epoché na clinica ou de dizer que a tarefa de
estabelece-se uma relação imediata, ou seja, uma relação onde não se
determinada técnica é de atingir a intersubjetividade, É preciso cuidado
Interpõem meios entre o terapeuta e o cliente. Estas qualidades já são
ao se fazer uma transposição de conceitos para campos diversos.
apontadas por Mattin Buber (1923/1979), quando este fala do diálogo
Quando falamos de “prática elínica”, não estamos nos limitando
enquanto realidade existencial,
à posição clássica da psicoterapia, mas estamos nos referindo a um con-
[6] que assinalamos até aqui, foi tão somente uma pequena parte
Junto de práticas que envolvem a tomada do fenômeno humano nos seus
do desenvolvimento das ideias fenomenológicas e de suas aplicações ao
processos de subjetivação, o que nos obriga a um oihar mais acurado para
campo da psicologia, nomenologia surgi dos principais — À as relações grupais, p. ex., mas igualmente para outros modelos de rela-
movimentos da filosofi como uma autêntica “revolução : ção psicológica, como é o caso do Aconselhamento Psicotógico — como
cartesiana”, como o retorno ao “pré-reflexivo”, como o resgate das essên-
uma escuta ativa clínica —, certos tipos de Acompanhamento Terapêutico,
Cias da realidade que se havia esquecido a teriormente pelas filosofias
de terapias comunitárias, o CVV (Centro de Valorização da Vida), o
PEAgóTicas & objetivistas, cuja preocupação residia apenas no progresso
Plantão Psicológico e até mesmo a situação de Psicodiagnóstico”.
as ideias voltadas Para o objeto, para o “ter” materialista e não para a
essência e para à existência, para o “ser”. Binswanger, por exemplo, é muito claro ao afirmar que sua lei-
tura fenomenológica e+ sua proposição de uma análise existencial aplicada
à clínica psicológica se refere a um novo Im todo de investigação”, de
6 ATITUDE FENOMENOLÓGICA E PRÁTICA CLÍNICA uma nova compreensão do homem. Ora, sem esta compreensão, qualquer
aplicação técnica seria vazia. Quando propõe a análise do dasein no con-
Então escrever é o modo de quem texto clínico, Biiswanger (1965, 1967, 1971) se propõe a uma “elucida-
tem a palavra como isca: ção fenomenológica da estrutura total ou da articulação total da existência
à palavra pescando o que não é palavra
como ser-no-mundo (fn-der-Welt-Sein), numa perspectiva claramente
Clariçe Lispector husserliana. Neste sentido, não “cria” uma psicoterapia nova. Do ponto
de vista de Binswanger, a psicoterapia deve investigar a história do pa-
À fenomenologia compete apresentar de maneira viva, analisar em suas
relações de parentesco, delimitar, distinguir da fortria mais precisa pos-
sível e designar com termos fixos os estados psíquicos que os pacientes * Augras, 1970; Rosenberg, 1987; Amatuzzi, Echeverria, Brisola e Giovelli, 1996; Spa-
| realmente vivenciam, Visto que não se pode perceber diretamente um noudis, 1997; Bartz, 1997; Cautela Junior, 1999; Cury, 1999; Mahfoud, 1999; Almei-
da, 1999; Morato, 1999; Carvalho, 2002. a
Ee Adriano Furtado Holanda
Fenomenologia e Humanismo 95
ciente, mas na direção da compreensão de sua história de vida e não no
sentido de explicá-la. A psicoterapia atua no sentido de mostrar ao pa- - Segundo Bucher (1983), a Fenomenologia auxilia na compreen-
ciente onde, quando e em que medida a realização da plenitude de sua são dos processos de interação psicoterapêutica a partir da análise da
intersubjetividade e da colocação do ser-no-mundo. À Fenomenologia,
humanidade foi se tornando impossível, fazendo-o experimentar tudo isto
aplicada à Psicologia, pode ser entendida como uma Postura, uma atitude
da forma mais radical possível. Para Binswanger, fer.
o asseme- Qque nos abre todo um leque de possibilidades, desde um modo de apréen-
-lha a um “guia de montanha”, sendo o analista uma pessoa que se coloca
são do humano até formas de plenificação da existência. Mas podemos
no mesmo plano de seus pacientes: plano da existência comum, de com-
partir do lado do psicoterapeuta nesta análise; como Buber já assinalara, é
Danheiro
E Tm existéncial
ão
Sila s , onde à ligáção entre ambos — terapeuta e paciente — da responsabilidade do terapeuta se deslocar em direção de seu paciente
hão ésimples
um contato psíquico, mas um encontro. para compreendê-lo. Isto traz à baila uma reflexão sobre as possibilidades
| Buber (1965, 1957/1988) igualmente nos alerta para certos pe- e dificuldades que temos em nos posicionarmos de uma maneira “isenta”,
rigos de uma análise simplificada do fenômeno psicológico, à Tuz das livre, despojada, diante das coisas e do mundo. E neste ponto, tocamos o
diversas filosofias. Num famoso colóquio com Carl Rogers, Buber aponta que a Fenomenologia propõe como metodologia, como o “retorno às
para certas divergências que uma interpretação psicológica de sua filoso- coisas-mesmas”. Uma possível leitura que podemos ter do legado de
fia poderia ter. Estas divergências são ainda mais esclarecedoras do que a Husserl para nossa situação específica de psicoterapeutas está exatamente
própria aproximação entre seus pensamentos (Rogers & Buber, 1957/ no esforço em nos posicionarmos “sem misturas”, sem amálgamas, diante
2008), Para Buber, a função do terapeuta — que se aproxima da do educa- das coisas, numa posição de observador que participa, mas não interfere.
dor — seria de realizar as potencialidades do outro, o que passa por uma Situação complexa — senão impossível de ser realizada. Todavia, recor-
consideração deste outro tal qual ele é, numa consideração de si como um demos um ensinamento de Carl Rogers, quando-se referia à “compreen-
todo, simultaneamente como “potencialidade” e como “atualidade”. Buber, são empática” e à “autenticidade”, ambas atitudes do terapeuta. Dizia que
todavia, aponta para os limites que o princípio dialógico pode ter numa o “esforço” na direção de realizá-las — e uma consequente percepção disto
situação específica de psicoterapia, onde os papeis já estão previamente *: da parte do cliente/paciente — já seria “terapêutico”. :
definidos é bem destacados: : A situação de psicoterapia é uma situação de campo, onde nosso
campo fenomenológico -- nosso campo vivencial, ou nosso “espaço vitaF",
Um homem vem a você para ser ajudado. À diferença essencial entre na expressão de Kurt Lewin — se relaciona e interage com outros campos
seu papel eo dele é visível. Ele vem para ser ajudado por você (...). E
não & somente isto, Você o vê, realmente. Não quero dizer que você
fenomenológicos, partilhando experiências e sentimentos mútuos, mesmo
não possa se enganar, mas você o vê, exatamente como ele é. reconhecendo a impossibilidade de uma troca de posição. Se não podemos
(Bub
1957/1988, p. 161) Buber, trocar de posição com o outro, então não podemos afirmar nada à este ou-
tro, dado que isto seria apenas a minha projeção sobre este outro. Assim,
O que Buber assinala é que não é fimnção do cliente confirmar o podemos apenas acompanhar o processo do outro, Neste sentido, uma pos-
terapeuta, enquanto que, do lado do terapeuta, compete a este confirmar tura fenomenológica é uma postura compreensiva, onde a noção de “inter-
seu cliente, e acrescenta: venção" ganha outros contornos: uma postura compreensiva — ao contrário
de uma postura explicativa, como já assinalara Dilthey — acompanha o
Cf.) a relação específica de “cura” terminaria no momento em que o processo do outro, e não interfere sobre este processo.
paciente lembrasse e conseguisse praticar, de sua parte, o envolvimen-
to, experienciando assim o evento do lado médico. O curar como o Esta postura, esta posição tomada pelo terapeuta, se caracteriza
educar não é possível, senão àquele que vive no face-a-face, sem con- por uma escuta ativa, por uma observação atenta, numa espera pela emer-
tudo deixar-se absorver. (Buber, 1923/ 1979, p. 152) gência do fenômeno do outro, Ao contrário da perspectiva tradicional,
naturalista ou explicativa, caracterizada por uma atitude apriorística, que
— Este alerta apenas introduz uma leitura que a Fenomenologia e atribui sentidos de fora para dentro. Para realizar esta tarefa e permitir a
as Filosofias da Existência podem legar às práticas psicoterapênticas. emergência do outro enquanto fenômeno é preciso que o terapeuta se
' Então, como podemos entender a fenomenologia aplicáda à psicoterapia; encontre com o cliente nele, com ele e através dele (Ribeiro, 1985). Para
| ão como poderíamos definir uma postura fenomenológica num contexto tal, faz-se necessário realizar uma operação de consciência, que encontra
clínico? o similar lógico da “redução” na fenomenologia, e cujo significado es-
96 Adriano Furtado Holanda Fenomenologia e Humanismo 97

sencial para o contexto clinico podemos designar pelo termo abertura, ou ser a valorização do encontro, do presente, do momento onde este ocorre,
seja, significa que o terapeuta está aberto para perceber seu paciente na- do aqui-e-agora. :
quilo que este se apresenta como mais essencial, naquilo que ele é, des- Nesta perspectiva, a subjetividade do oliente/paciente não se dá
cobrindo-lhe a totalidade. E abertura nos remete a responsabilidade, que em partes, mas em seu todo ou, dito de outra forma, o sintoma — como
significa dizer que se está disponível, pronto a responder à demanda do
inanifestação — presentifica o sujeito, presenta-o em toda sua expressão
outro (respons-habilidade).
existencial e em todas suas relações existenciais.
Uma atitude que chamaríamos de “fenomenológica” difere de Um dos sentidos primordiais de uma “atitude fenomenológica”
uma atitude “fenomenista”, Uma atitude “fenomenista” confunde o que
na clínica consiste, pois, na consideração do outro como um sujeito —
se percebe com o próprio ato de perceber e, assim, o mundo se torna uma
representação. Já a proposição husserliana da Fenomenologia — na mesma ativo e concreto — contrariamente à concepção naturalista que transforma
esteira da dúvida cartesiana — é de um questionamento contínuo e ininter- este sujeito num “objeto”, como um “doente” a ser “tratado” ; e não como
rupto. Fazer fenomenismo é ficar no campo das simples descrições das uma pessoa, como assinala Buber, que está no mesmo nível existencial
aparências. No camipo da psicoterapia, encarar a emoção do cliente como do terapeuta, como aponta Binswanger, Fazer fenomenologia na clínica é
uma mera expressão sintomática (seja positiva, seja negativamente) é valorizar e privilegiar o encontro, o “estar-junto” no presente, o que de-
colocar-se no plano do simples fenomenismo; igualmente fenomenista termina à diferença crucial entre a relação médica (que é unidirecional e
seria a postura de inserir tal emoção ou vivido do cliente, dentro do arca- caracterizada pelo uso de agentes intermediários — físicos ou bioquími-
bouço teórico de determinada abordagem, o que implicaria em considerá- cos, que são “aplicados” a um “paciente” que se submete ao tratamento) e
la como a manifestação viva da tese a priori de tal ou qual abordagem a relação psicoterápica (que se caracteriza pela relação direta, cujo meio é
ou, em outras palavras, seria simplesmente um “enquadre”, oude se afir- o próprio “ambiente humano”, na condição do diálogo, dia-logos, huma-
ma não à compreensão de um sentido, mas a comprovação de uma tese no) (Bucher, 1989).
sobre o sujeito e seu mundo. Assim, qualquer apropriação meta-teórica A psicoterapia deve ser entendida como um processo, onde a
retira o sujeito de sua condição fenomenológica. Ao contrário, uma atitude base é a relação de significados que o cliente traz, Neste processo, o aten-
fenomenológica seria a inserção de determinada manifestação do clien- dimento psicoterápico é uma possibilidade de “ajuda” ao paciente na
te na totalidade de sua existência, Tomemos um exemplo: compreensão de seu processo de significar. E os significados precisam ser
buscados na palavra. Numa perspectiva fenomenológica, a palavra nunça
Estou pensando, especificamente, em certos trabalhos de corpo ou é mero signo, mas é sentido, é significado, é ato, é a própria manifestação
com o corpo, onde o gestaltista pade reduzir-se a um simples feiome- do ser-próprio do outro. Psicoterapia se torna então um processo de pes-
nista, isto é, lidar com o que acontece, com as aparências de uma car a palavra”, como na poesia de Clarice Lispector: “Então escrever é o
emoção, por exemplo, sem colocar este fenômeno dentro de um ser modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é
maior, sem perceber o sentido existencial daquela emoção com o res-
tante da totalidade do cliente. Trata-se de uma ação sobre a aparência
palavra”. O terapeuta é como o escritor, que tem a palavra como isca. Às
da aparência. Assim como a fenomenologia, a ação psicoterapêntica palavras podem ser vazias, e estes vazios podem dominar O Ser. Psicote-
não pode ser uma simples descrição do que se vê, mas uma interroga- Tapia é um processo de re-descobrir sentidos, de re-significar coisas ou
ção do todo que aparece (...). (Ribeiro, 1985, p. 45) situações; é um processo de transformação, onde se transita de discursos
vazios para o discurso transformador. :
Em suma, se prestarmos atenção ao cliente, este se nos revela, Na perspectiva fenomenológica privilegia-se a “qualidade” do
não apenas em partes, mas na sua totalidade. Às partes são objeto das contato e, no caso da psicoterapia, a qualidade da escuta é dirigida para o
ciências. O terapeuta que assume uma postura fenomenológica se toma significado e não para o significante. Na expectativa de proporcionar a
um verdadeiro facilitador da emergência do ser de seu cliente, um facili- visualização de tal atitude — se isto é possível, através da rigidez dos es-
tador do fenômeno-cliente, pois sabe que ninguém melhor do que ele-
quemas — teríamos algo semelhante ao que segue, enquanto possibilidade
mesmo para interpretar a sua própria realidade. Esta é uma posição de- de se pensar a dialética da clínica:
fendida explicitamente por Carl Rogers, por exemplo, e por boa parte da
9 vertente existencial e humanista da Psicologia. A Fenomenologia passa a
98 Adriano Furtado Holanda
Fenomenologia e Humanismo 99

palavra falar (Amatuzzi, 2001b). Neste processo, o paciente vive e re-


vive o incompreensível. Como expressa Clarice Lispector: “Escrever é
procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até 6
último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador”.
SIGNO FENÔMENO Fazer a palavra falar: esta é a tarefa da psicoterapia. Sair de um
discurso vazio ou de um sentimento que sufoca; que não se expressa, para
um discurso que seja um dito, que seja um ato realizador. “Enquanto não
| Drro + EXPRESSO | | DITO=EXFRESSO | for dito ou atualizado na plenitude de um dizer ou de uma presentifica-
ção, um sentimento permanece vago e sufocador. À partir do momento
Y em que ele é dito, algo se transforma (...)” (Amatuzzi, 2001b, p. 63),
[ INTERPRETAR | | COMPREENDER | Uma psicoterapia fenomenológica caminha na direção de reunir
palavra e sentido, dito e vivido (Merleau-Ponty), mas não através de uma
imposição de sentido (de fora para dentro, como atribuição), mas de den-
NÃO HÁ COINCIDÊNCIA HÁ COINCIDÊNCIA tro para fora, como uma transformação que se dá no fenômeno próprio do
ENTRE DITO E EXPRESSO ENTRE DITO E EXPRESSO ser do outro, através dele mesmo, permeado pela escuta do terapeuta. É
esta escuta o principal instrumento do terapeuta que atua fenomenologi-
camente. Escuta de sentido, e não da forma. Como diz Cecília Meireles:
. Tentamos explicitar o seguinte, a partir dessa esquematização, “Nunca eu tivera querido, dizer palavra tão louca: bateu-me o vento na
O “objeto” mesmo da psicoterapia — dado que a imensa maioria dos pro- boca, e depois nó teu ouvido. Levou somente a palavra, deixou ficar o
cedimentos técnicos nesse campo é de cunho verbal — é a “fala”, aquilo + “ sentido”.
que é “dito” pelo cliente, é aquilo que ele traz privilegiadamente ao terre- Rogers, em Um Jeito de Ser, coloca o seguinte: “O primeiro
no da clínica”, Esta “fala” pode ser considerada em duas perspectivas. sentimento básico que gostaria de partilhar com vocês é a minha alegria
Num primeiro aporte, podemos considerá-la como “signo”, quando consigo realmente ouvir alguém” (Rogers, 1983, p. 4). Ouvir
Nesta perspectiva o que se fala — o que é “dito” — não corresponde ao que realmente, escutar verdadeiramente. Esta é a tarefa do psicoterapeuta.
é expresso, ou seja, aquilo que se mostra “esconde” algo, não representa Ouvir -— não a palavra dita — mas o que diz a palavra. Quvir a palavra e
um sentido em si mesmo, Se assim for, este signo precisa ser “decifrado”, escutar o sentido. À palavra falada nem sempre se encontra com o sentido
e esta decifração se: dá pela interpretação, que irá “revelar” o sentido vivido. Nas psicoterapias de orientação fenomenológica e existencial, a
“oculto” e não-acessível diretamente. Mas podemos ter uma segunda palavra é percebida em si e através de si.
consideração, onde esta fala é tomada como um “fenômeno” em si e, “O que faz o psicoterapeuta? Ele nos ajuda a perceber como or-
como tal, o “dito” encontra correspondência com seus modos de expres- ganizamos nosso mundo, e como nossos problemas se prendem à forma
são. Em outras palavras, o sentido não mais está oculto, mas igualmente
como fazeinos isso” (Amatuzzi, 2001b, p. 69). Paul Ricoeur fala de um
presente na diversidade de modos de expressão, bastando para tal que
distanciamento que a linguagem opera em relação ão real, ao que chama
seja acessado pela “compreensão”. Esta compreensão pode ser feita por
qualquer modo de acesso ao sujeito do cliente, dado que — enquanto fe- de “distanciamento da significação”. Ouvir é entrar em contato com o que
a pessoa diz:
nômeno — este sujeito se manifesta e se apresenta, se presentifica, em
todos seus modos de expressão, pois cada um deles é a totalidade presen- (...) a fenomenologia do ouvir se expande em fenomenologia do diá-
te do próprio sujeito. togo. O que acontece então quando o ouvir chegou a esse nível de pro-
: Uma psicoterapia “fenomenológica” é aquela que busca o en- fundidade? O passo seguinte pode ser expresso assim: permitindo a in-
tendimento, a compreensão da palavra, ou seja, é o processo que faz a terpelação do outro, sinto a necessidade da resposta, Seu discurso já
não está nele. Está agora em mim. (Amatuzzi, 2001b, p. 71)
“ % Poderíamos substituir o exemplo, aqui, pelo corpo, nas terapias corporais, por exemplo.
100 Adriano Furtado Holanda Fenomenologia e Humanismo 191

Uma psicoterapia “fenomenológica” é isto, uma relação inter- ao ser descoberto). Este é o mesmo caminho que Buber (1923/1979)
subjetiva, E uma boa metáfora para entendermos a fenomenologia na aponta para a relação dialógica: o homem se realiza na linguagem, quan-
clínica é a questão do silêncio e da palavra: palavra e expressão, silêncio do se torna palavra. Palavra, para Buber, é ato. |
e expressão. Quantas e quantas .vezes nossos clientes ficam em silêncio À Fenomenologia propõe que o significado, o sentido, aquito
absoluto e nos dizem, ao mesmo tempo, uma infinidade de coisas. Saímos que habita a palavra, não é o pensamento, é anterior a este. À isto Elusserl.
* do tetreno do “significado” (daquilo que é significado por alguém ou já denomina de “experiência pré-reflexiva”; a isto Merleau-Ponty chama de
dado) para o terreno do sentido, do vivido, que nos é comum e que cala, “intenção primordial”. É sobre este solo filosófica que a maioria das prá-
na própria fala. ticas psicoterápicas — ditas humanistas, fenomenológica-existenciais ou
À plena expressividade ou não da fala, ou seja, sua autenticidade, po- simplesmente existenciais — se apóia quando constituem suas práxis num
de ser descrita a partir de sua relação com o pré-verbal que a mobiliza, desvelar de sentidos, numa busca de significados anteriores às falas, num
Esse-algo que a precede e a mobiliza, posto que não-verbal, pode ser conjunto de métodos e técnicas com vistas à permitir ao “cliente retornar à
denominado, numa aproximação primeira de silêncio. À fala é a ruptu- sua experiência vivida, É nisto que se constitui a possibilidade de com-
ra de um determinado sitêncio. (Amatuzzi, 2001a, p. 24) preendermos o “retorno às coisas-mesmas” da Fenomenologia, ,
O psicoterapenta deve estar atento ao significado que a fala tem, Quando Carl Rogers define sua proposta psicoterapêntica como
naquilo que a conecta diretamente ao ser próprio do sujeito. A Fenome- .sendo um processo, cujo centro é a troca de experiências vivenciais entre
nologia diz de um sentido e um significado que antecedem ao signo da terapeuta e cliente, caminha na direção de uma Fenomenologia. Impres-
própria fala, ou seja, diz de algo que remete o sujeito a um pré-reflexivo, cindível uma postura específica da parte do terapeuta, como sendo a “(...)
a um pré-cognitivo. E a fala que contribui para modificar o sentido co- dedicação do terapeuta em ig na direção do cliente, no ritmo do cliente e
mum das palavras, mas os sentidos comuns que constituem a fala, afirma com a maneira única de ser do cliente” (Bozarth, 1979, p.1). À “Aborda-”
Merleau-Ponty (1945). “Quando a fala é original ela faz evoluir a própria * gem Centrada na Pessoa” de Rogers supõe um compromisso da totalidade
língua” (Amatuzzi, 2001a, p. 25). do terapeuta com a totalidade do cliente. Max Pagês (1986) aponta que
“(...) Rogers é implicitamente fenomenólogo a nosso ver na medida em
Para Merleau-Ponty, é o silêncio primordial — que se encontra
que para ele a fonte de todo conhecimento autêntico reside numa expe-
por detrás do “barulho das palavras” — que é a “alma da palavra pronun-
riência que partindo da experiência cotidiana, destaca-se daquela que
ciada”, ou seja, é o que se concretiza e o que se constitui como sentido no
mundo do discurso. Em outras palavras, é na fala que se realiza um senti-
contém pré-concepções e quadros intelectuais deformantes” (pp, 5-6).
do anterior. Mas, “a ruptura do silêncio que dá origem à fala não é pro- Mas Spiegelberg (1972) assinala a influência, sobre Rogers, de dois de
priamente a eliminação do silêncio, mas uma realização dele” (Amatuzzi, seus colaboradores, Donald Snygg (que mantinha contatos com Kôhler e
Koffka) e Arthur Combs, afirmando — contudo — que o caso de Rogers
2001a, p. 25). Esta é uma regra importante no contexto da psicoterapia: o
seria de “(...) um espontâneo paralelo posterior confirmado pelo desco-
silêncio primordial carrega o sentido das falas, mas é pela fala que este
sentido se realiza. Buscar o sentido anterior à fala não implica em negá-
brimento de acordos corroborativos” (p. 150).
la, mas em acolhê-la. Como a regra dialética nos ensina, a resposta está Quando a Gestalt-Terapia fala de awareness, por exemplo, e a
contida na própria pergunta. E pela fala que acessamos o silêncio primor- define como a experiência de estar em contato com a própria existência
dial ão terapeuta cabe caminhar junto com seu cliente, na fala dele, atra- ou, como assinala Ribeiro (1993), como a experiência de estar consciente
vês dele. ' da própria consciência, está-se assinalando este “retorno” a uma expe-
riência que a Fenomenologia descreve como sendo pré-predicativa. To-
Merleau-Ponty (1945) ainda dá exemplos de falas originárias: a
do apaixonado (que descobre sua paixão), a do escritor (ou filósofo, que davia, esta awareness não pode ser um “objetivo” a ser perseguido pela
despertam a experiência primordial), a do poeta. Nestes, é o silêncio pré- terapia, pois se tornaria um “objeto”. Mas o caminho proposto pela Ges-
talt-terapia — que alguns de seus interlocutores principais definem como
-verbal que tmobiliza e conduz a fala; esta, já estava contida neste silên-
sendo o “contato” (Perls, Hefferline & Goodman, 1951/1997; Polster &
cio: o apaixonado identifica seu sentimento, que se revela (que se des-
vela), e que pré-existia (e que toma um formato ntovo, um novo estatuto,
6 Halling e Nill (1995) confirmam esta direção.
102 Adriano Furtado Holanda Fenomenologia e Humanismo 103

Polster, 1973/2001) — pode ser o caminho que permite a apresentação humano, seja pela introdução de novas técnicas ou instrumentais. No caso
dessa linguagem a que nos referimos, da Daseinsanálise, a leitura heideggeriana introduz um novo modus ope-
À finalidade da psicoterapia é levar o cliente à sua consumação, isto é,
randi em relação à análise dos sonhos, por exemplo. Para a Daseinanáli-
& desdobrar-se até a plenitude no agir, no pensar, no expressar-se pela se, o sonho é um modo que o sonhador tem de estar-no-mundo, compa-
linguagem. Isto significa que o homem todo inteiro é o sujeito do pro- rando-se o mundo onírico ao mundo da vigília. Assim sendo, o sonhar
cesso psicoterapêutico (...). O discurso unitário é a pessoa do cliente e contém a história de vida do sonhador — passada, presente e futura — e

Ses
a do profissional, o vínculo é a relação. Neste sentido, a relação é uma seus elementos aludem a esta história, e faz com que a análise do sonho
- Gestalt. (Ribeiro, 1985, p. 30) estabeleça relações entre o sonhador e seu mundo vivido (Santos, 2004).
Quando a Daseinsanálise fala de abertura, está falando da di- Segundo Boss e Condrau (1997),
inensão existencial do ser humano. “Se há algo que é essencialmente de (...) a abordagem daseinanalítica da constituição fundamental do ser-
natureza humana é a abertura. É para isso que Martin Heidegger nos humano (...) é igualmente importante na prática terapêutica. Permite
chama a atenção em sua ontologia fundamental. O homem é essencial- notavelmente a aplicação da terapêutica de uma nova compreensão
mente ser-aberto diante do que vem a seu encontro no seu mundo” dos sonhos assim como uma concepção completamente diferente da-
(Cytrynowicz, 1997, p. 64). E compara a figura do terapeuta com a do quilo que se chamou até agora nas escolas freudianas e junguianas de
jardineiro, que cultiva uma planta: “transferência' entre o paciente e o terapeuta, Menos palpáveis mas
não menos essenciais na prática terapêutica são as modificações que
(...) é tarefa primordial do terapeuta zelar pelo desabrochar da riqueza se interpuseram no clima da análise. (p., 33)
humana, isto é, estar constantemente atento para o desvelamento do
. poder-ser próprio de cada paciente, Não é o terapeuta quem deve indi- Com a Logoterapia de Viktor Frank], a influência da Fenome-
car o que é próprio de cada pacierite — isto é até um contra-senso em nologia e da Analítica Existencial toma contornos de fundamentos bási-
relação ao sentido mesmo do próprio. O terapeuta deve atuar como um cos, mesmo que as referências de Frank! à fenomenologia sejam limita-
Jardineiro que cultiva uma planta. O jardineiro não produz a planta das. Frank] — em conferência de 1961 — nomeia a fenomenologia como
como se produz um automóvel, não cria a terra, nem a semente, nem um dos “fundamentos filosóficos” da Logoterapia, referindo-se a uma
Planeja os passos que devem ser seguidos pela planta para atingir a análise dos “dados imediatos da experiência” a partir de um suporte fe-
maturidade, florir e frutíficar, Ele somente cria melhores condições nomenológico, descrito em seu texto intitulado Psychortherapy and Exis-
(...). O terapeuta deve auxiliar o paciente a desvelar às próprias possi-
bilidades. (Cytrynowicz, 1997, pp. 69-70)- ' tencialism (Frankl, 1967; Spiegelberg, 1972). Definida como a “psicote-
rapia do sentido da vida”, a Logoterapia — que durante muito tempo foi
Igualmente, a Fenotnenologia e a Analítica Existencial de Hei- chamada de “análise existencial” —, procura compreender o homem como *
degger re-constituem o olhar que a psicoterapia e a psiquiatria podem ter um ser que busca sentido para sua vida, e que o sofrimento e a falta de
sobre o fenômeno da patologia, ou sobre o “ser-doente”. Como assinalam sentido configuram o que Frankl (1991) define como o “vazio existen-
Boss e Condrau (1997, p. 29), cial”. Uma referência pode nos ajudar a compreender como que a pers-
pectiva existencial introduz um novo sentido de apreensão do fenômeno
GC.) qualquer modo do ser-doente só pode ser compreendido a partir psicológico, segundo Frankl:
do modo do ser-sadio e da constituição fundamental do homem nor-
mal, não perturbado, pois todo modo de ser-doente representa um as- Nem todo conflito é necessariamente neurótico; certa dose de conflito
pecto privativo de determinado modo de ser-são. ' é normal e sadia, De forma similar, o sofrimento não é sempre um fe-
nômeno patológico; em vez de sintoma de neurose, o sofrimento pode
Estas perspectivas filosóficas introduzem temas que norteiam a ser perfeitamente uma realização humana, especialmente se o sofri-
análise existencial,tais como a corporcidade, a espacialidade, a abertura e mento emana de frustração existencial (...). À frustração existencial
a liberdade, São temas que se articulam no sentido de ajudar à compreen- em si mesma não é patológica nem patogênica. À preocupação ou
são do ser-do-homem. Igualmente permitem novas perspectivas no cam- mesmo o desespero da pessoa sobre se a sua vida vale a pena ser vívi-
po da psicoterapia, seja pela ótica da própria compreensão do fenômeno da é uma angústia existencial, mas de forma alguma uma doença mer:-
tal, (Frank, 1991, p. 94)
104 Adriano Furtado Holanda

Todos esses exemplos não fazem destas abordagens formas


“puras” de fenomenologia, nem constituem uma “escola” fenomenológi-
ca de psicoterapia, mas deixam claras as possibilidades que o método tem
de se constituir numa prática, À rigor, nos dá como norte, a ideia de que
uma prática sem fimdamentação, é uma prática vazia; mas uma clínica
embasada se totna um momento de transformação.
Uma prática clínica objetiva deve vir precedida de uma reflexão
crítica sobre si mesmo. Num dos poucos legados escritos de Laura Perls,
encontramos uma passagem que reflete tanto sua clareza de ideias quanto
sua lucidez epistemológica — contrariamente a Fritz, que nem sempre
apresentava uma posição epistemológica lúcida — quando relembra uma
passagem do Fausto de Goethe, e se remete a Mefistófeles dizendo que
“o Diabo é o mestre dos atalhos, e (...) suas ferramentas são a simplifica-
ção, a manipulação e a deformação” (Perls, 1994, p, 140). Com isto cha-
mava a atenção para o risco de se confundir a prática clínica com um
conjunto de técnicas. Nesta direção, a fenomenologia pode ser um exce-
lente instrumento de fundamentação para a clínica, mas não pode ser
confundida com “instrumentais” clínicos.
Seria mais fácil se delimitar um campo de “pesquisa fenomeno-
lógica”, Esta facilitação se dá pela dificuldade que o terapeuta — no cam-
po clínico — tem de se desvincular do conjunto de a priori presentes em sua
prática, em especial no que se refere às diversas “meta-teorias” — aqueles
pressupostos conceituais que constituem o continente teórico de determi-
nada abordagem, que servem-de solo para suas proposições técnicas e que
findam por se tornar o único “crivo” interpretativo da realidade à qual,
invariavelmente, os terapeutas recorrem para justificar suas práticas. —
Por “pesquisa” queremos significar a atitude de buscar conhe-
cer. E afinal, como já apontara Sócrates, a atitude fundamental para se
procurar conhecer é reconhecer que nada se sabe ou, como numa clássica
epigrafe de Vincent Van Gogh: “E preciso aprender a ler, como é preciso
aprender a ver e aprender a viver”,
Texto 2
Adriano Furtado Holanda — —

tia pio
és Rancid
PARTEII

HUMANISMO E HUMANISMOS:
PENSAR O HUMANO NA CLÍNICA
Homo sum;
humani nihbil a me
alienum puto.

Terêncio

INTRODUÇÃO
Ser “humanista”, geralmente, aparece ora como um qualificati-
vo, ora como definidor, e ora como crítica de uma série de modelos de
pensamento; e a psicologia não escapa dessa tradição. A questão que
subjaz a esta afirmação é a de estabelecer um entendimento do que se
pretende classificar como “humanismo”. Ademais, o qualificativo — para-
doxalmente — exclui, pois coloca abordagens em contraposição a outras:
costuma-se opor às abordagens * umanistas” (tradicionalmente compre-
endidas como aque em solo americano), as abordagens exis> :
tenciais” onsideradas como as europeias); ou ainda a;
abordanos “materialistas”, ou outras * 18 , etc. Mas. oque temos
em comum a todas elas é exatamente 60"que-ce 1Étitui a premissa para à *
construção de uma ciência “humana”,
"Mas afinal, o que é o humanismo? De qual humanismo se fala,
ao se tomar o substantivo genérico? Do verbete de dicionário, que ora
remete a um movimento cultural da renascença, ora define-o com uma
generalização de contexto? Ou estaremos falando de um “espírito de épo-
106
Adriano Furtado Holanda
Fenomenologia e Humanismo
ca”, comum a certos momentos 107
históric
do-lhe um sentido de “escola” de pens os? Ou ainda, estaremos atribuin- dade de se colocar a Psicologia no contexto das
seguimos localizá-la no tempo? Ou amento, quando nem mesmo con- Tnanas” e, assim, questionar-lhe seu status.
chamadas “Ciências Hu-
mesmo será ainda “necessário” se
falar de humanismo na atualidade
ou este qualificativo remete a um de- Sem dúvida que esta Proposição mais se aprese
terminado contexto de crítica, supostamente nta como um .
superado pela evolução natu- projeto do que como uma realidade concreta neste espaço.
ral das ideias? Uma apropria-
ção mais coerente e ampla da questão do f
: As afirmações de um caráter upãô ú
do áprob de é ntos dive: is como à cultura é à
gens psicológicas — em te: renascentistas; as artes (notadamente a pintura, a Sociedade
escultura e d arquitetura):
8 a literátura da época (bem como seus antecedentes no fina! da
Idade
Média); à progressão de ideias relativas ds umano: gregaie adendo ao
percepção crítica da apropriação elaboração primordial, até sua recuperação no século XVI —, a apropria-
nositivi ta
ompreensão filosófica — por pro- ção de uma ideia de “subjetividade”, na transição d, a Idade Média à e
Modeina: (em especial, no período compreendido: entre 08 séculos XI-
XV); dentre outras tarefas,
|

sum; humani nikil ima de Terêncio:


Homo
a me oliênum Buto — “Homem
me sou, e nada de humano
é alheio” —, a generalização nos
coloca diante da indefinição. Indo finaliza por alguns destaques, Consideramos ser
nesta direção, como estabelecer fron
teiras? No campo da Psicologia, do, apresent: idei ão
exemplo, como negar o direito de por há pr
dores tão díspares como Freud,
ser considerado “humanista” a pens
a- nista ou: um. ani
Watson, Skinner, Lacan, Jung, Masl pensam seja.na
en Filosof
to ia ou:
James e outros? - ow,
socidis. Seria
Oo campo da definição se suste
nta, pois, pela necessidade de
vonstrução de um contexto espec
ífico de ideias -- não necessariame
dissonantes, más relevantes, no cená nte
rio da multiplicidade do pensamen jeito humano de súa-
to.
À proposta deste texto é de situar
alguns elementos preliminares própria perspectiva — : cíficos em detrimento
para construirmos um quadro comp uma visão de “global
reensivo do humanismo em suas ”"! — melhor seria dizermos em detrimento de
tiplas facetas, múl- 9/uma visão de interação o ;ã e. e nor outro lado, como-um
chamadas “psicologias humanistas” V projeto de valori
re-zação val
(ou de orizaçdoão)
humano,
e Fe FEM
ENE Caminhando nesta direção, principiaremos com
. dessa discussão, s falibilidade ou inutifid. N genérica sobre a “ideia” de um Humanismo, uma discussão
y | que seguramente nasce na
ática, seja enquanto consta ções Grécia Clássica, e conhece seu ápice nas diversa
de sua filiação ou s manifestações artístico-
, destacamos a importância de culturais e filosóficas do Renascimento EUropeu.
da questão humanista por detrás uma “leitura” “Nosso plano, pois, é
dos sentidos românticos (ou roma
dos) dos manuais, para além das defi ntiza- -
de modo que nos seja permitida
nições formais dos livros de história, * Apontamos aqui este e outros conceitos -- como
“totalidade”,ou “holístico” — sempre
uma aproximação mais fiel dess entre aspas, de modo a considerá-los em sua complexidade,
tão, sob um prisma mais amplo, a ques- apontando para uma visão
e que sirva — também — para à supe crítica que os coloca diante da fatalidade da sua
de preconceitos e areaicismos interpre ração impossibilidade, ou seja, tomamo-los
tativos, motivados mais por ques- como-conceitos metafóricos que não podem ser
apropriados como fatos ou dados em
tões ideológicas do que por comp si, mas tão somente como representações de estados ideais.
romissos com o próprio conhecim À nosso ver, isto serve para
De certa forma, inclusive, esta ento. retirar-lhes à tentação da romantizá-los, colocando-os no
discussão serve para embasar a possi lugar do “absoluto”. Tal ro-
bili- mantização foi responsável por consideráveis atrasos no
desenvolvimento de grande
parte das teorias e modelos psicológicos do século passado.
108 Adriano Furtado Holanda Fenomenologia e Humanismo, 109

apreciar a delimitação da ideia de humanismo; destacar uma primeira Em termos gerais, pois, significa reconhecer que “ser humano”
aproximação com o campo da Sofística — elaborando alguns conceitos a não é uma condição adquirida ou herdada, mas uma conquista. Nesta
partir da figura singular de Protágoras de Abdera, um dos primeiros a direção, uma série de pensamentos e pensadores refletiu sobre o sentido
afirmar o primado da subjetividade na história do pensamento — e, fínal- do “existir” e da “existência”, Neste contexto geral, podemos pensar todo
mente, aportar em algumas considerações a respeito do movimento re- o movimento “humanista”* — em Psicologia, por exemplo — como um
nascentista, que sirvam de apoio a uma visão diferenciada do fenômeno movimento-de. protesto contra. a inapropriação do sujeito vivente ao seu
humano, ) resenta uma quebra, uma
Pretendemos, assim, estar iniciando um debate já tão difundido ruptura com os modelos vigentes de época”. Esta quebra ou ruptura está
em outras áreas, tais como a história e a antropologia? e, quiçá, apontar intimamente ligada a mudanças concretas-que-ocorriam. na, cultura, na
para a polissemia do conceito de “humanismo”. ciência e no contexto social
de sua época.
Mas isto, por si só, não responde à totalidade das questões pro-
1 HÁ UMA “QUESTÃO” HUMANISTA? postas. Há um fio condutor que liga todos os elementos supracitados. O
que a “Psicologia Hurvanista, o Humanismo e o Renascimento têm em .
O sentido que faz sentido, ,comum é o fato de serem — todos — movimentos de vanguarda, que se.
é o sentido que é sentido, desenvolvem
do SA, quien
em momentos
E —
distintossa e Aoque guardam -entre si conexõe
silenciosas, poderosas,
mas onde destacam o Homem de uma perspecti
| vamos partir novamente da questão fundamental: o que é o
limitadora para uma concepção de homem como totalidade, como expres-
Humanismo? O que pode caracterizar um “humanista”? Qual o significa-
do de se estudar o Humanismo? Como relacionar o Humanismo com a são da superação, como desafio à continuidade,
Psicologia — enquanto disciplina e ciência — e com a chamada Psicologia
kb
Por esta razão é importante revermos um pouco da história da
Flumanista — ou Existencial; ou Fenomenológicá — em particular? E por constituição do sujeito da ocidentalidade, através de momentos significa-
que sempre buscamos num período histórico tão antigo quanto a Renas- tivos de sua exploração e do seu desenvolvimento no mundo, para po-
- cença, elementos para esta discussão? Enfim, qual o sentido de se estabe- dermos compreender o impacto e as possibilidades que um modelo “hu-
tecer esse nível de correlações — se é que estas existem? | manista” propõe. Nomes como Heráclito de Éfeso, Protágoras de Abdera
Respostas a estas questões podem ser relativamente simples, ou Sócrates, na filosofia, passam a ser acompanhados por Erasmo de
as camuflam uma complexidade que subjaz à sua análise superficial, Rotterdam, Thomas Morus, Leonardo da Vinci e tantos outros, para com-
Pensar o Humanismo não é apenas apreciar um “movimento de época”, pormos um quadro cada vez mais amplo, até chegarmos à atualidade”.
ensar
o Humanismo .é refletir sobre questões cruciais para o desenvol; Por isto é que a nossa proposta é refazermos um caminho: o caminho da
vimento da humanidade: .

4 a) Em primeiro lugar, é pensar a luta do homem que reflete so- ? Não estaremos fazendo — neste primeiro momento — uma distinção entre os diversos
movimentos surgidos na Psicologia de meados do século XX. Assim, incluiremos no
bre si mesmo; é refletir sobre o embate do ser humano que que ora denominamos de “movimento humanista” em Psicologia, tanto as Psicologias
pensa a natureza e a realidade incluindo-se em relação a estas; Fenomenológicas e Existenciais europeias, quanto a comumente conhecida “Psicologia
' bb) Num segundo contexto, é pensar a própria construção ou Humanista” americana. Esta perspectiva se justifica pelo fato de estarmos lidando,
| constituição da subjetividade, a própria constituição deste aqui, com uma “ideia” de humanismo e não com definições específicas deste.
* Destaco neste momento o fato de que não hã período histórico imune a reflexões “hu-
i — sujeitonomundo que habita, e;
manistas”, como não há período histórico distanciado desta mesma questão. Críticas
ec): Em terceiro lugar, é pensar o lugar do sujeito que pensa, e o aos modos de se agir ou de se movimentar no mundo, enquanto baseados em pressupo-
=” Jugar que este pensamento — com todas suas derivações (cul- sições “limitadoras” são corriqueiras ao longo da história do pensamento. Neste senti-
tura, ciência, sociedade) -- ocupa em relação a si próprio. do, procuramos não destacar este ou aquele momento específico como único, para não
perdermos o senso de totalidade.
5 Inclusive na Psicologia, com figuras tão significativas como Eritz Perls, Carl Rogers,
? Refiro-me, aqui, a estudos já consagrados, de autoces tais como Georges Duby, Philip-
Abraham Maslow, Viktor Frank, 1. L. Moreno, C. G. Jung, Ludwig Binswanger, E.
pe Ariês, Tzvetan Todorov e Jacques Le Goff.
Minkowski, dentre tantos outros.
110 Adriano Furtado Holanda
Fenomenologia e Humanismo 111

História. Afinal, como já bem assinalara Wilhelm Dilthey (1833- 191D, mem?” e, a partir dela, traçar um panorama histórico do percurso desta
:somos seres históricos e sobre ela estamos continuamente nos movimen- questão, desde a época clássica até os nossos dias. |
tando: é a história que dá sentido ao humano.
A problemática contida na questão central da Antropologia Fi-
A discussão sobre o humanismo ou sobre o homem é tarefa atua! losófica é que o questionamento contido na pergunta “o que é o homem?”
— da Antropologia Filosófica. Lima Vaz (1991) assinala que a pergunta torna o sujeito em objeto, ou seja, objetifica, “naturaliza” este sujeito. E
fundamental “o que é o homem?”, é comum desde os primórdios do pen- como assinala Jean Brun (1982): “A inversão do Quem sou eu? pata O
samento ocidental, permanecendo como o centro de várias expressões da * que sou eu? começou a partir do momento em que se cessou de refletir
cultura, seja no mito, na literatura, na ciência ou na filosofia. Essa supre- sobre a queda do homem para observar a queda dos corpos” (p. 41), numa
ma singularidade do ser humano de se interrogar nasce com a própria alusão aos primórdios do estabelecimento da dominância do pensamento
cultura grega, inicialmente incipiente, para tomar corpo-e se tornar domi- científico na modernidade. Neste sentido, a pergunta mais apropriada
nante com a Sofística, no século V a.C. e encontrar a sua “expressão clás- seria “quem é o homem?”, por relevar em si o próprio sujeito: “A interro-
sica” com as quatro questões apontadas por Kant (Lima Vaz, 1991, p, 9): gação Quem é o homem? implica no reconhecimento de um sujeito (...),
— o que posso saber? (teoria do conhecimento); que parte de si para alcançar um ponto de interrogação debruçando-se
sobre uma verdade ao interior da qual! ele tem o sentimento de se encon-
— o que devo fazer? (teoria do agir ético); trar, sem poder coincidir plenamente com ela” (Brun, 1982, p. 41).
— 0 que me é permitido esperar? (Glosofia da religião);
Ao procedermos a esta inversão, não se conclui apenas sobre o
— o que é o homem? (antropologia filosófica)”. ato do questionamento, mas se atualiza um sentido. À interrogação não
mais se constitui no vazio do objeto, mas se plenifica num sujeito (o que
No século XVIII, encontramos um terreno propício ao desen-
inclui sua relação com o mundo). Esta inversão é necessária se pensarmos
volvimento das “Ciências do Homem” ou das Geisteswissenschafien — as
“Ciências do Espírito” — como aponta Dilthey. Apesar disto, a própria
na progressão técnica e científica que alijou de seu /ocus de ação o senti-
do da totalidade da existência humana.
Antropologia Filosófica vê-se diante de um conflito, de uma crise, advin-
da dos “novos saberes”, desenvolvendo duas vertentes: uma histórica, É sobre este caminho que se constrói, por exemplo, à crítica fe-
num esforço de entrelaçamento das diversas imagens de homem (entre o nomenológica' ao naturalismo, e à apropriação que as ciências — em es-
homem clássico, o cristão e o moderno); e outra metodológica, demons- pecial, as ciências ditas “humanas” — fazem deste método, E, pois, nesta
trada pela fragmentação da Antropologia Filosófica em múltiplas ciên- inversão e no pensar esta inversão — ou, nas palavras de Husserl, é pensar
cias. Para superar esta crise, surgiram algumas tendências, como o natu- a “crise” da humanidade e da ciência” — que se constitui o Humanismo e
ralismo, contemporaneamente representado por Claude Lévi-Strauss e que buscamos sua definição.
Jacques Monod; e o culturalismo, de Wilhelm Ditthey, que inspirou a dis-
tinção entre as “ciências do espírito” (Geisteswissenschafien) e as “ciências
da natureza” (Naturwissenschafien).
Às tarefas fundamentais da Antropologia Filosófica, à partir
7? Esta crítica abrange todo o projeto husserliano, desde suas primeiras obras — como À
desta crise são: a elaboração de uma ideia de homem, a justificação críti-
Filosofia como Ciência de Rigor, de 1910/1911 — como na sua produção tardia (em es-
ca desta ideia e a sua sistematização filosófica. Cabe-nos refletir acerca - pecial na Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental, , quando
desta questão, procurando estabelecer o lugar do anthropos, do humano, formula seu conceito de Lebenswelt, de 1936),
nesta reflexão. Para isto, faz-se necessário delimitarmos o campo global %* O tema da Crise é fundamental na fenomenologia husserfiana, embora somente tenha
da questão humanista, a partir da pergunta fundamental: “o que é o ho- destaque nos seus últimos escritos, particularmente nos textos de 1935 e 1936: À Crise
da Humanidade Europeia e a Filosofia (Husserl, 1935/1996) e À Crise das Ciências
Europeias e a Fenomenologia Transcendental (Flusserl, 1936/1989; 1936/2012). To-
davia, Husserl já vinha trabalhando nesse tema desde os anos de 1922-23, o que pode
é Para Martin Buber, à primeira questão responde a metafísica; à segunda, a moral; à
ser observado por suas publicações para a revista Kaizo do Japão, entre 1923-24, sobre
"terceira, a religião; e à quarta, à antropologia (Buber, 1982),
o tema da “Renovação” (Husserl, 2005, 2006), ooo
112 Adriano Furtado Holanda
Fenomenologia e Humanismo 113

2 O QUE É O HUMANISMO?
Abbagnano (1992) atribui dois sentidos ao Humanismo: 1) como.o inn
O fenômeno histórico mais vimento literário e filosófico, com origem na Itália renascêntista,na-se..
importante é a humanidade que gunda metade:do século XIV e, 2) como: qualquer movimento -filasófico
Pugna por sua compréensão. que Considera como Andamento a natureza humana, seus limíles ou.ssus :
f
Edmund Husserl

Para André Lalando (1956), o hunianismo pode ser entendido Nesta “direção, o movitnento literário-filosófico renascentista
sob quatro prismas: possui um significado histórico fundamental, que é o reconhecimento do
valor do homem em sua plenitude (Abbagnano, 1992). Dentre os princi-
1, Como um movimento de espírito, representado pelos huma- pais representantes deste movimento temos, na Hália, Francesco Petrarca
nistas do Renascimento, tais como Erasmo de Rotterdam, (1304-1374), Coluccio Salutati (1331-1406), Leonardo Bruni (1374-
Francesco Petrarca, Lorenzo Valla e Ulrich de Hutten. Neste 1444), Lorenzo Valla (1407-1457), Gianmozzo Manetti (1396-1459),
sentido, foi um movime se caracterizou. pelo esforço León Bautista Alberti (1404-1472) e Mario Nizolio (1498-1576); na
le rel d ; pírito humano; através de um re- França, Charles Boville (1470-1553), Michel de Montaigne (1533-1592),
torno à antiguidade clássica (às “humanidades” ou Humani- Pierre Charron (1541-1693), Francisco Sánchez (1562-1632) e Justus
tas — poésia, retórica, história, ética e política s e ao ideal de
Lipsius (1547-1606); na Espanha, Juan Luís Vives (1492-1540); e na
beleza grego), além de ser reativo ao dogmatismo escolásti- Alemanha, Rudolf Agricola (1442-1485),
co e à filosofia medieval;
Ainda numa interpretação literário-cultural para o humanismo,
2. Doutrina de F. C. S. Schiller, de Oxford, exposta em obras este seria um movimento de retorno. efetivo às fontes da cultura clássica
como Humanism, philosophical essays, de 1903, ou Studies (grega e latina),prosseguindo
in Humanism, de 1907: “O hiúmaánismo É simplesmente o faz
o ideal da Paideia!! grega.mu
da Humanitas.
latina, assimilado à cultura medievaál:,
to de se tersconta que o próblema” têspeito. aós.
seres humanos no esforço. de compreender um mundo: ão Nesse sentido, as suas motivações iniciais são de natureza estética e
eriências Curso: it umano” prática — coincidindo com um mais normal acesso dos “seculares” à
(citado por Lalande, 1956, p. 422); cultura, propiciado pela difusão da imprensa — e têm como referência
Doutrina através da qual o homerh, do ponto de vista moral, fundamental, sob o ponto de vista especulativo; os modelos das filoso-
“deve se ater fias platônica e neoplatônica — tidos' como os mais consentâneos com
ao-que é m do humato;
assim, designa uma concepção geral da vida (seja esta políti- o ideal da dignidade do Homem (microcosmos) e da Renascitas cristã.
(Pacheco, 1990, p., 1.214)
ca, ética ou econômica), que se funda na crença na saúde do
homem por suas próprias forças. Neste sentido, opõe-se nu i Num contexto geral, o humanismo apresenta como assuntos
Cristianismo que crê somente na força de Deus; e, Tundámentai
mentais:
4, Doutrina que acentua a oposição, no homem, entre os limites
do que é humano e do que é animal, * a) O reconhecimento da totalidade do homem (corpo e alma,
destinado à viver no mundo e a dominá-lo);
Lalande ainda coloca -que Brunschvicg considera como inicia-
dor do humanismo, a figura de Sócrates. Além disto, assinala para a inuti- 1º Todavia Abbagnano (1992) não cita personalidades reconhecidas historicamente como
lidade de se insistir sobre a questão da ambigitidade do termo. Já Nicola * — representantes do humanismo renascentista, como Erasmo de Rotterdam, Budé, Ulrich
de Hutten, Thomas Morus e Pico della Mirandola.
9º Ferdinand Cunning Scott Schiller (1864-1937), foi professor em Oxford e na Universi- 1 “A educação por meio de disciplinas liberais, relativas a atividades exclusivas ao
dade de Los Angeles. Desenvolveu um “pragmatismo humanista”, acentuando o fato homem e que à distinguiam dos animais” (Pessanha, 1988, p. VOID. À Paideia grega
de que todo conhecimento tem um aspecto emocional e que a ciência deve obedecer a corresponde a Humenitas latina, e se refere à . educação do homem, à formação do ho-*
um critério de utilidade (Reale & -Antiseri, 1991). mem :enquanto “pessoa humana singular. Torna-Se, “assim, sinônimo de “cultura”
(Abbagnano, 1992),
114 Adriano Furtado Holanda Fenomenologia e Humanismo 115

' b) À negação da superioridade da vida contermplativa sobre.a ' mológica, mas virtualmente devido à “admiração” decorrente das coisas
vida ativá; da natureza — temos uma visão geocêntrica de mundo. Na Idade Média,
tc) .À exaltação da dignidade e da liberdade do homem; com a dominação do poder eclesiástico e com à perspectiva de uma ideia
ido Teconhêcimento: do sentido deRistôricidade do homem; de Deus supranatural, a visão de mundo pode ser considerada como feo-
1 €) O ápoio ão valor humano das letras clássicas, nas Humanitas cêntrica; enquanto que a Idade Moderna inaugurou uma visão antropo-
como: a base para-a educação do homem e na formação da cêntrica de mundo", Evidente que. há controvérsias nesta tentativa de
Conseiência do homem;e, sistematização, dado que — como toda perspectiva sistematizadora — esta
igualmente cristaliza o desenvolvimento do pensamento, não contem-
1 DN) O reconhecimento que o hoinem é um ser tiatural (Abbagna- plando, assim, a fluidez de sua construção, bastando para isto ver quanta
no, 1992). produção intelectual e científica inovadoras ocorreram na Idade Média
resta perspectiva, Pessanha (1988) afirma que o humanismo se (Duby, 1990; Le Goff, 2003, 2008). Portanto, esta ideia vale apenas à
constituiu fundamental para o surgimento e a construção da cultura mo- título de ilustração de movimentos de época distintos, já que, como vere-
mos logo a seguir, a perspectiva antropológica na construção do pensa-
detna. Em outras palavras, constituiu-se naquele solo fundamentador do
mento foi inaugurada pelos sofistas, contemporâneos de Sócrates.
que entendermos por “modernidade” | Estas perspectivas são corroboradas
por J. Ferrater Mora (2001): os primeiros usos do termo “humanismo” Na Idade Média, o homem “confessa o seu nada” e ao conten-
remetem ao estudo das linguas € dos autores clássicos. “Humanista” era tar-se, encontra na fé cristã, o engrandecimento. No Renascimento, em
aquele que se dedicava às artes liberais, com mais ênfase para aquelas seu culto à humanidade, elimina-se a referência única a Deus. No lugar
que levariam em conta o “geral humano”: história, poesia, retórica, gra- de Deus, coloca-se o homem. O Humanismo, então, “caracteriza-se pelo
múática e filosofia moral. máximo interesse dedicado ao problema do homem, da sua natureza,
origem, destino, e posição no mundo. (...) Humanismo quer dizer pleno
Etoheverry (1957/1975) fala de um “surto do humanismo”, ba- desenvolvimento do homem” (Etcheverry, 1957/1975, p. 8).
seado em questões tais como: O que é o homem?; qual o segredo de sua
Embora possamos delimitar a reafidade atual baseada numa vi-
intimidade?; em que consiste a estrutura da matéria formadora do univer-
são fecnocêntrica de mundo, ainda assim podemos discutir a relevância
s0?; o que pensar do mundo espiritual? Foram estas as questões que prin-
desta tecnologia como dirigida para o “bem-estar” do homem. À atuali-
cipiaram a reflexão entre os pensadores antigos, e que deram origem à
dade descreve uma retomada deste “surto humanista”, seja a partir das
Filosofia. Essas e outras questões servem para delimitar as noções de teorias da física moderna, representados por Heisenberg e Einstein que
homem e, conseqlientemente, as noções de mundo adjacentes a elas. Uma estabelecem definitivamente que não há um observador estranho ao uni-
“noção de homem” é um conteúdo definidor básico que constitui a ima- verso; seja através da literatura contemporânea que também toma partido
gem de ser humano que uma determinada sociedade ou cultura mantém do homem, ou que toma o problema do homem como o objeto comum de
em seu cotidiano. Correlativo a uma “noção de mundo” — a Weltans- suas pesquisas, conforme observamos em Kafka, Gide, Mauriac, Malraux
chauung!" — esta “noção de homem” revela os modos de ver o mundo e ou em Dostoievski, Tolstói, Shakespeare e Machado de Assis (apénas
os modos de se considerar o homem. para citar alguns). O mundo é a nossa imagem e a nossa obra, Nos dizeres
Podemos elaborar essas diversas Weltanschauvung ao longo da de Jouguelet: “Nesta dupla ampliação reconhecemo-nos a nós e aos nos-
história, Observando a evolúção do pensamento ocidental, percebemos sos irmãos. Não se trata já de suportá-la com indiferença. Se a aceitamos,
que, na Antiguidade Clássica — particularmente devido à exploração cos- sentimos o orgulho de Prometeu; se a recusamos, a angústia do aprendiz
de feiticeiro”"*,
2 Weltanschauwwng corresponde a uma “visão de mundo” (weif, em alemão, refere-se a
“mundo”). Em Teoria das Concepções de Mundo, publicado em 1911, Dilthey 13%... poder-se-ia dizer que a Antiguidade adotou uma visão geocêntrica das coisas, a
(1911/1992) procura elaborar uma teoria sobre as imagens de mundo, tomando como Idade Média concebeu um ideal teocêntrico & a Época Moderna optou por uma con-
fundo — para o pensar e o agir do homem — a “vida”. As concepções de mundo (on cepção antropocêntrica. Os primeiros filósofos eram físicos, prescrutavam curiosamen-
mundividência, ou imagens de mundo) emergem como produto da história. Com essas te a natureza. Para o cristão do século XIH o mundo é um reflexo de Deus; o visível si-
: ideias, Dilthey funda-se numa Lebensphitosophie (Filosofia da Vida) e num Histori- nal do invisível” (Etcheverry, 1957/1975, p. 7).
cimo. o , 14 Citado por Etcheverry, 1975/1957], p. 10.
116 | Adriano Furtado Holanda Fenomenologia e Humanismo 117

A evolução da técnica e da ciência, o progresso das comunica- evoluem, na qual participamos e da qual vivemos, símbolo da comu-
ções e a crescente tecnologização despertam nova consciência na comi- nidade do universo e do espírito; impulso universal onde comungam
nidade humana. Consciência que inicialmente se apresenta como um todas as realidades nos seus princípios e nos seus fins. Haveríamos de
sentimento de se estar perdido diante do mundo. Esta perda do seu pró- evocar também o super-homem nietzscheano que se eleva com des- '
se

prio sentido de “humanidade”, já era assinalada por Blaise Pascal (1623- dém acima da “horda dos escravos” para além do bem e do mal: ami-
1662): “O homem (...) não sabe o lugar que lho compete. Está visivel- Bo da aventura e da guerra, duro para consigo próprio e terrível para
os outros; superior aos valores de verdade e de justiça; nascido para
mente perdido e caido da sua verdadeira posição sem que alcance encon- “modelar o bloco do acaso” e dominar a história. (Etcheverry,
trá-la. Procura-a por toda a parte com inquietude e insucesso no meio das 1957/1975, p. 17)
trevas impenetráveis” (Pascal, 1972/1669, p.188).
Por fim, o humanismo é uma “tendência dinâmica” que, nos di- O humanismo é toda possibilidade de definição do homem, é
zeres de Jacques Maritain (1882-1973), tende a tornar o homem “mais toda forma de visão do homem a partir da qual este se coloca no mundo.
verdadeiramente humano e a manifestar a sua grandeza original fazendo- E verdadeiro, porém, que qualquer tentativa de definição do homem se
o participar em tudo o que pode entriquecê-lo na natureza e na história”""S, torna, em si própria, uma contradição. É exatamente esta contradição,à
Na delimitação da natureza humana, Etcheverry aponta para qual Lalande (1945) se refere como inútil de ser levantada. Levantar esta,
grandes divergências, ao que chama de “conflito atual dos humanismos” questão, todavia, é relevar ou desvelar o etemo paradoxo do ser humano:
na sua definição do homem: o homem em busca de si mesmo. Uma busca incessante e infinita, dado
que o espírito humano é livre.
O homem é Pensamento, responde o racionalismo. Um Espírito que se
basta a si próprio, uma Consciência livre em perpétuo progresso. Encerrar o homem nos limites do humano, diz Aristóteles, é traí-lo e
“ Brunschvicg, por exemplo, herdeiro de Kant, que faz reverter o ho- torná-lo infeliz, pois a principal parte de si, o espírito, aspira mais do
mem à sua atividade interior, subtrai-o a toda e qualquer influência es- que a uma vida puramente humana. Temos uma alma superior aos li-
tranha, a qualquer relação transcendente, Nenhum obstáculo se pode- mites do espaço e do tempo que dá à existência um conteúdo de eter-
nidade, segundo as palavras de Dante, (Etoheverry, 1957/1975, p. 18)
ria opor ao impulso da inteligência, nenhuma realidade existente im-
por-se-lhe do exterior ou do interior. Tudo é imanente no homem; a
verdade, a justiça, o dever, o próprio Deus. O homem, segundo a anti-
Num sentido muito mais ampio, o Humanismo corresponderia à
ga máxima, é a medida de todas as coisas. Guarda no Íntimo a regra própria filosofia, associada à construção do pensamento ocidental, produ-
soberana do seu pensamento. (Etcheverry, 1957/1975, p. 14) to das transformações de um saber míitico-religioso na instituição teológi-
ca. Neste sentido, Pacheco (1990) ressalta o “projeto ecumênico” de
No existencialismo ateu, o homem é a sua liberdade. No huma- Raymond Luli e Nicolau de Cusa, que consistia no diálogo cultural em
nismo marxista, é o produto natural da evolução social, sendo que os prol de uma gnose filosófico-cristã,
fatores econômicos dominam a história da humanidade, bem como o seu
destino. Sob um prisma positivista, o homem está mergulhado na evolu- Em sentido não rigoroso, seria possível enunciar um sem-número de
“humanismos” — tantos quantas as posições que subordinam o homem
ção cósmica. Numa perspectiva sociológica, baseada nos discípulos de a antropologias descritivas ou subalternizam a sua realização pessoa! e
Durkheim, o homem somente existe em função da sociedade, que não livre à outros fins, como o Estado, a sociedade ou o progresso tanto
somente o enriquece, como também o modela.Já na psicanálise, o ho- científico como técnico, entendido como exclusivo domínio da Natu-
mem é um ser que se ignora, enquanto que num pensamento panteísta, o reza. (Pacheco, 1990,p. 1.215)
- — homem está “assimilado a Deus”:
Para P. O. Kristeller, humanistas eram os estudiosos das discipli-
Poder-se-ia descrever o homem do panteísmo totalmente assimilado a nas retórico-literárias (gramática, retórica, história, poesia e filosofia moral).
Deus e assim definido: Jacto criador do pensamento, tomando pouco à Não os considerava como verdadeiros reformadores, dado que não foram,
pouco consciência da sua unidade, continuídade e fecundidade infini- de fato, filósofos. Considerava o humanismo como “um programa cultural e
' tas; força propulsora pela qual todas as coisas duram, se movem e pedagógico, que valorizava e desenvolvia um setor importante, mas limita-
do dos estudos” (Reale & Antiseri, 1991, p.18), e acrescenta ainda o fato
75 Citado por Etcheverry, 1975[1957], p. 13. dos humanistas renascentistas não pretenderem substituir a enciclopédia do
ooo

118 Adriano Furtado Holanda

saber medieval. Já Eugênio Garin, fala de uma “valência filosófica” do hu-


manismo, cuja característica básica seria o sentido de história:
É precisamente a atitude adotada diante da cultura do passado e diante
do próprio passado que define claramente a essência do humanismo. E
a peculiaridade dessa atitude não se deve fixar em um singular movi-
mento de admiração e afeto, nem em um conhecimento mais amplo,
mas em uma consciência histórica bem definida. (citado por Reale &
Antiseri, 1991, p. 21)

O humanismo foi inicialmente uma exaltação da !iberdade polí


tica vivida no momento (lembremos que o humanismo sofístico, repre-
sentado por Protágoras, também se refere à vida política). Com base nes-
tas perspectivas antagônicas, pode-se dizer que o humanismo tepresentou
um novo sentido de homem e de seus problemas: “E verdade que, origi-
nalmente, o fermo “humanista” indica o ofício do literato, mas essa pro-
fissão vai bem além do simples ensino universitário, entrando na vida
cotidiana, fazendo-se verdadeiramente uma “nova filosofia” (Reale &
Antiseri, 1991, p. 23).
O Humanismo constitui-se — fundamentalmente — numa ética,
numa formulação inclusiva, que pode ser resumida pela fórmula de Lévi-
nas (sob a égide do pensamento fenomenológico e buberiano) que diz que
eu existo enquanto sujeito, em virtude de um Outro, ao qual eu me repor-
to, e em relação ao qual sou responsável: “Assim, cada um é, enquanto
responsável pelo Outro”,
Num sentido estrito, porém, podemos trabalhar então com a
ideia de um humanismo oriundo da herança clássica grega, em especial a
partir da Sofística, tendo como representante fundamental 2 figura de
Protágoras; e ainda, com a ideia de um humanismo renascentista, produto
de uma série de transformações sócio-politico-econômicas e artístico-.
culturais, e delimitador de uma mudança paradigmática na forma de se
ver o mundo, forma esta que ainda hoje permanece, Analisaremos um
pouco mais detalhadamente cada uma delas a seguir.

bb 3 PROTÁGORAS DE ABDERA E À
MAXIMA HUMANISTA

O homem é a medida
de todas às coisas.

Protágoras

Protágoras de Abdera (séc. V a.C), apelidado de “o Raciocí-


FR
(De Crescenzo, 1988), foi — ao lado de Górgias e Hípias — um dos
e POMBA,SA SAPIENGA, BT. Na pusvistsai
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i % S | UMA CARACTERIZAÇÃO DA PSICOTERAPIA

! $ | : O tema desta palestra é a psicoterapia. Ocorreu-me


DD.
abordar primeiro o que a terapia não é, antes de pensar
) [1 : S no que ela é. Parti de dois mal-entendidos que conside-
o $
É

[ rO sérios.
Ss ; O primeiro deles, extremamente frequente, consis-
Ef

Ve

D.- te em considerar a terapia como o lugar para onde de-


vem se dirigir as pessoas culpadas de alguma coisa ou
FYLaaA

MU:

que estão erradas de alguma forma. Vejamos um exem-


A

plo: alguém anda há tempo com dificuldade para dormir,


AVOSD

Vim das É Uia

tenso, brigando com a mulher, porque com a substitui-


ATE

ção de seu chefe surgiram dificuldades de relacionamento


S à no trabalho. Quando lhe perguntam se ele não gostaria
de

de fazer uma terapia, ele responde indignado: “Eu, fazer



sta.

terapia? Quem tem que fazer terapia é meu chete, que é


um louco, que não entende nada, que chegou
comnphltusGos

onde está
| Ss por motivos políticos...”.
| 4 pufazso
Liga

Esse é um ponto de vista não só de leigos, mas também


de muitos psicólogos. É comum ouvirmos de terapeutas de
RO

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i

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LIMA CARACTERIZAÇÃO DA PSICOTERAPIA 155
154 NA PRESENÇA DO SENTIDO

como aquele que possui o saber, que tem as informações


crianças; frustrados com as dificuldades que a família
para a resolução de problemas.
cria no tratamento, o seguinte: “Imagina, a criança está
Esse é um engano ainda mais lamentável do que o
ótima, quem precisa de terapia são os pais!” Nesse co-
primeiro, pois talvez o elemento mais fundamental do
mentário, podemos ouvir: “Os pais devem fazer terapia
trabalho de um terapeuta consista justamente no contrá-
porque eles é que estão errados”. Do mesmo modo, no
rio: no fato de que “ele não sabe”. Em geral, quando afir-
trabalho com populações carentes, aparecem os comen- presente,
mo que o terapeuta precisa ter isso sempre
tários: “Essas pessoas estão ótimas, quem precisa de te-
pessoas que estudam muito me olham perplexas e di-
rapia é a nossa sociedade”. Aí também podemos ouvir:
é a sociedade, é ela que precisa de zem: “Bom, se é para não saber, por que fazer tantos tra-
“Quem está errada
balhos, ler tantos textos...?”. Não é que não exista um
terapia”.
conhecimento psicológico; ele existe e sua aquisição é
A terapia, entretanto, não é um recurso de repressão
importante, não tanto para que se trabalhe com ele, mas
social destinado a corrigir as pessoas que estão erradas,
porque o próprio processo de aquisição desse conhecimen-
que se julgam erradas ou que são julgadas erradas por
to pode ser a ocasião de alguém se esforçar para aprender
qualquer tipo de grupo.
a aprender, e isso é uma chave fundamental para o tra-
O que temos a dizer diante desse mal-entendido é
balho terapêutico.
que a terapia é um recurso para quem está, com grande
arcando com o peso de uma situação; al- Ora, afirmar que “não saber” é uma condição fun-
dificuldade,
damental do terapeuta é deixar algo estranho no ar. Dian-
guém que, de alguma maneira, está “pagando o pato”,
te disso, então, perguntamos: terapia é... o quê?
não importa se a situação foi motivada por ele mesmo ou
por outros.
O segundo equívoco é a consideração da terapia Lembro-me do primeiro encontro que tive com
Medard Boss, o psiquiatra suíço que desenvolveu a clí-
como o lugar no qual são aprendidos os valores, as nor-
nica fundamentada na Daseinsanalyse. Naquela oportu-
mas e mesmo as dicas que uma pessoa deveria seguir na
nidade, ele fez uma observação que me deixou intrigado:
eventual solução de uma situação difícil. Acredito que esse diferente...”.
“No consultório, Freud era completamente
mal-entendido também é mantido, até certo ponto, por
nós, psicólogos, porque uma tal idéia coloca o terapeuta
Descobri então que estava conversando não com um
À idaseitpatareree:
156 NA PrReseENÇA DO SENTIDO UMA CARACTERIZAÇÃO DA PSICOTERAPIA 157

estudioso de Freud — embora Boss também o fosse —, na terapia. Qual é a via clessa linguagem? Seria uma via
mas com um paciente de Freud. Curioso, perguntei: “E intelectual?
o que ele fazia no consuitório?”. Boss respondeu, brin- Sabemos que o paciente, em geral, não precisa de
cando: “Fazia Daseinsanalyse, não fazia Psicanálise”. explicações racionais. Ele mesmo é crítico de seus sinto-
Comecei a refletir que, afinal de contas, Freud iniciou Tras. Uma pessoa que se apavora quando vai falar em pú-
seu trabalho de terapeuta antes da formulação da Psica- blico sabe que não há motivo para se sentir tão ameaçada.
nálise, que passou a existir a partir do acúmulo de sua Mas saber isso não diminui seu medo, parece que só faz
experiência. Retornei à questão sobre o que Freud fazia aumentá-lo. À verdade racional é impotente diante das
no consultório antes de ter elaborado a teoria psicanalí- dificuldades psicológicas, que se divertem em ridicula-
tica. Para me dizer o que Freud fazia então, Boss me fa- rizar a razão.
lou: “Psicoterapia: é procura”. Não é pela via da razão que caminha a linguagem
A palavra procura me chamou a atenção, e percebi da terapia.
que se abria um significado mais original quando a líia- A linguagem própria do diálogo entre terapeuta e
mos assim: pró-cura. paciente tem uma outra via, para cuja compreensão é
“Terapia é pró-cura”, isto é, “terapia é para cuidar”; importante introduzirmos aqui uma palavra grega, poiesis.
em latim, cura tem o significado de cuidar:: Esta significa não só poesia no sentido específico, como
Fundamentalmente, então, terapia é procura. Mas também criação ou produção em sentido mais amplo.
procura de quê? No diálogo de Platão, O Banquete, encontramos:
No: caso da terapia; aquilo que.se procura não é algo
quê vai acontecer lá nó final do processo, mas algo que — Como sabes, “poesia” é um conceito múltiplo. Em ge-
se dá, passo a passo, átrávés do modo como ela se realiza. ral se denomina criação ou poesia à tudo aquilo que pas-
Esse “modo” constítuio: próprio acesso ao “o quê” se sa da não-existência à existência. Poesia são as criações
que se fazem em todas as artes. Dá-se o nome de poeta
procura.
ao artífice que realiza essas criações.!'

Pensemos no medo como se dá a terapia. O modo


us

diz respeito, basicamente, à linguagem que é fundamental 1. Pratão. (1999). Diálogos. Rio de Janeiro, Ediouro.
o aa
Pal
gssenímentmo o
Piso,
UMA CARACTERIZAÇÃO DA PSICOTERAPIA 159
158 Na PRESENÇA DO SENTIDO

Nesse ponto encontramos uma discussão que é cara


Poiesis é um levar à luz, é trazer algo para a deso-
para os psicólogos: a diferença entre explicação e com-
cultação.
A linguagem da razão, chamada em geral de lingua- preensão. Considero que essa diferença está exatamente
no âmbito dessas duas linguagens: a explicação se arti-
gem do conhecimento, também desoculta o que estava
cula na linguagem do conhecimento e a compreensão
oculto, mas de um modo diferente, de um modo que dá
acontece dentro de um diálogo na linguagem da potesis.
explicações. Ela é própria das ciências, das teorias e mes-
do cotidiano; ela, de certa No âmbito da linguagem da poiesis existe um risco:
mo de certas argumentações
eu nunca sei se o outro vai me compreender ou não. Se
forma, garante ou “obriga” que alguém entenda o que
| ele me compreender, é como se ele me autenticasse; en-
dizemos.
Com a linguagem poética é diferente. Esta pode apa- tão, eu me sinto não só muito próximo dele mas também
recer na poesia propriamente dita, num texto em prosa,
da minha própria experiência que desejo expressar. Caso
num diálogo ou mesmo numa piada engraçada. À pia- contrário, em algumas circunstâncias, chego até mesmo
da não é para ser explicada, a perder de vista a minha experiência, como se ela se di-
Propomos que também a terapia acontece basicamen- luísse na incompreensão do outro. Em tal momento, pos-
te na via da poiesis. À linguagem da terapia é poética. so passar bruscamente de uma situação vivida como algo
Essa linguagem busca o interlocutor em seu espaço precioso para uma outra, na qual me sinto terrivelmente
de liberdade. Quando me expresso poeticamente, o outro
exposto, fragilizado. Às vezes, para descrever essa situa-
não é obrigado a concordar comigo. Na verdade, não há ção, usamos a expressão: “Eu fiquei ridículo”, Descobri-
nenhuma razão para que ele o faça, e, no entanto, tenho mos o quanto sómos vulneráveis em nossa comunicação
uma grande expectativa de que ele possa me compreen- e o quanto somos dependentes da disponibilidade do
der, dentro da não-necessidade de compreender. outro. Quando o outro nos compreende, . vivemos uma
Nessa forma de linguagem, quando há compreen- experiência “extremamente significativa. Quanto mais
são, esta vem gratuitamente, emocionalmente e sem ne- delicada é a situação e mais pessoal o enunciado, maior
cessidade de argumentação mediada pela razão. Aqui é a nossa necessidade de compreensão e mais difícil se
teríamos uma comunicação que ou se dá, ou não se dá. torna qualquer tentativa de explicação.

AR
NC
É ato
160 NA PRESENÇA DO SENTIDO UMA CARACTERIZAÇÃO DA PSICOTERAPIA 161

Talvez isso nos permita compreender por que, às Se lermos re-cordar, isso soa como se disséssemos algo
vezes, a terapia pode ser tão difícil. A linguagem poética, assim: colocar o coração de novo; aletheia, verdade — não
no dizer de Heidegger, faz com que nos sintamos “indi- meramente o não-esquecido, mas aquilo em que se pode
gentes”, nus, pela própria natureza da linguagem. pôr de novo o coração.
Tínhamos dito antes que terapia é procura. Passa- Na terapia, o que fazemos é reencontrar a expressão
do nosso modo de sentir, o re-cordado, principalmente
mos em seguida a perguntar pelo modo como ela se dá:
aquelas coisas que já nos foram caras, que já foram coi-
qual a via de sua linguagem? Podemos acrescentar agora:
sas do coração, mas que perderam esse vínculo em virtude
terapia é procura através da linguagem da poiesis...
de dificuldades de comunicação, tornaram-se desgastadas.
Foram esquecidas, mas num esforço de procura, através
Mas procura de quê? É uma procura da verdade.
da linguagem poética, podemos reencontrá-las. Quando
Essa palavra precisa ser pensada. Em português, ela
isso acontece, encontramos uma verdade,
deriva do latim veritas, e tem a ver com o verificável,
Uma verdade assim encontrada nunca é relativa.
aquilo que pode ser comprovado. Tal conceituação asso- Quando ela se manifesta, nós somos parte dela e não há
cia a perspectiva da verdade à linguagem do conhe" como relativizar isso. À verdade enquanto veritas, geral-
mento. É certo que há uma dimensão da verdade que é mente, é diluída no tempo, no contexto, nas estruturas
definida por sua comprovação, por sua verificabilidade. sociais ou culturais que suportam o enunciado da verdade.
Mas ela não é apenas o verificável. Como fazer para Mas a verdade recordada, por ser uma verdade vivida,
aproximar, via poiesis, a questão da verdade? À palavra já está sempre definida num lugar, naquele contexto úni-
grega aletheia pode ajudar, pois ela traz um outro senti- co em que estamos.
do para a palavra verdade. Longe de ser uma verdade relativa, encontramos
Aletheia é formada por um prefixo de negação (a) e aqui o sentido, talvez o mais arcaico, no qual a questão
por um radical (lethe), que significa esquecimento. Aletheia da verdade se tornou uma real obsessão para o homem.
pode ser o “não esquecido”, Reencontramos o momento em que a verdade é dada
Podemos nos aproximar da aletheia por uma via praticamente como algo que nos envolve e do qual par-
poética. Não-esquecido pode ser o recordado. Recordar ticipamos, de modo que tenhamos dela uma vivência
vem de um radical latino cor-cordis, que significa coração. plena e absoluta.
UMA CARACTERIZAÇÃO DA PSICOTERAPIA 163
162 Na PRESENÇA DO SENTIDO

E comum a impressão de que a liberdade é sempre


Mas por que uma pessoa quer a verdade? uma coisa boa, agradável. Mas em grande parte das ve-
Retomemos a questão da verdade desde que a hu- zes ela não é sentida assim. Talvez um dos grandes mé-
está
manidade procura por ela. Nessa procura, a verdade ritos de Sartre tenha sido revelár o aspecto incômodo da
a, nos mitos
sempre relacionada com libertação. Na Bíbli liberdade.
a
em geral e mesmo no mundo da ciência, encontramos: E por que a liberdade pode incomodar?
pela di-
verdade liberta. Nos mitos, a verdade revelada À questão da liberdade pode ser pensada de duas
de
vindade tinha o caráter de libertar o homem do jugo formas.
sua identidade com o restante da criação. À maneira mais comum de pensar é ligar a idéia de
tra-se
Na história de Édipo, a cidade de Tebas encon liberdade com o tornar-se livre de alguma coisa. À preo-
momento
escravizada pela Esfinge, que só a libertará no cupação das pessoas, quando lutam por livrar-se de
Quando
em que alguém puder desvendar seu enigma. algo, é completamente absorvida pelo de que elas que-
ro, reconhecer
ele consegue, por trás do enunciado obscu rem se libertar. Na hora em que finalmente encontram a
€ li-
a verdade e responder ao enigma, a Esfinge se mata liberdade descobrem que, na luta por ela, apaixonaram-
berta Tebas. se de uma maneira perversa por aquilo que impedia a
Quando a psicoterapia começa a nascer, reencontra- própria liberdade, À palavra perversa é usada aqui no
da ver-
mos a idéia da verdade libertadora: a descoberta sentido de “pelo avesso”, ou seja, as pessoas se apai-
dade liberta o paciente do jugo do sintoma. xonam pelo avesso, pelas suas dificuldades. Assim, no
de
Podemos acompanhar uma quantidade enorme momento em que se vêem livres delas, em vez de se sen-
s al-
relatos nos quais terapeuta e paciente buscam junto tirem realizadas e felizes, percebem que a liberdade é
paciente
guma forma de verdade que possa colocar o fundamentalmente abandono, pois, livres de todo impe-
da pela
outra vez em liberdade; liberdade que foi perdi dimento, estão mais do que nunca sozinhas, desligadas
, e que,
doença, pela neurose, pela angústia ou pela culpa de todas as coisas e lançadas numa situação na qual se
|
ao ser reinstaurada, liberta. sentem livres para coisa alguma.
Neste ponto, já podemos dizer: terapia é procura,
Outro modo de pensar a liberdade é perguntar:
via poiesis, da verdade que libertá. liberdade para quê? Para buscar o quê? Quando, ao
"
|--

fi
À
164 NA PRESENÇA DO SENTIDO UMA CARACTERIZAÇÃO DA PSICOTERAPIA 165

romper com aquilo que impedia a liberdade, reencontra- Algumas vezes na vida, passamos por situações
mos um sentido, um para quê, começamos a compreender nas quais o sentido se perde. Há uma situação específi-
onde está o lado positivo da liberdade. Não existe nada ca em que isso ocorre de forma drástica e intensa: o mo-
mais agradável do que nos sentirmos plenamente liber- mento em que vivenciamos a morte de um sonho. Essa
tos para caminhar na direção de alguma coisa. À mesma é uma experiência humana única, pois só os homens so-
dimensão do abandono que nos deixa, de repente, joga- nham. Referimo-nos ao sonho como expectativa, espe-
dos no meio das coisas, deixa-nos livres para a dedica- rança, perspectiva do desejo. Não só o homem é o único
ção a algo. A liberdade é condição fundamental para que animal que sonha como também, uma vez tendo con-
possamos nos dedicar àquilo que pretendernos. quistado o direito de sonhar, transformou o sonho em
Mas mesmo esse lado positivo da liberdade, ou seja, seu valor mais alto.
A imagem do herói, em todas as épocas e culturas,
poder dedicar-se a um sentido, também pode ser incô-
é sempre a imagem daquele que colocou o sonho acima
modo, porque o sentido às vezes não está claro ou pare-
de tudo, até da conservação da vida e da preservação da
ce inatingível. À dificuldade, outras vezes, provém do
espécie.
quanto de compromisso e trabalho a pessoa sente que
Numa belíssima cena do filme 2001, uma odisséia no
precisará ter para se dedicar ao sentido.
espaço, um computador ultrapassa suas funções e come-
ça a enlouquecer. Impulsionado por uma grande aspiração,
Vamos esclarecer o nosso emprego da palavra sen-
pergunta ao cosmonauta: “Será que eu posso sonhar?”.
tido, visto que ela é sempre discutível, principalmente Porque em sua perfeição técnica faltava o sonho.
quando queremos explicá-la através da linguagem do
conhecimento. Usamos essa palavra aqui em sua acepção Mas o sonho também morre, e quando isso aconte-
mais simples. Trata-se daquele sentido que, na hora em ce ficamos provisoriamente privados de sentido. Quan-
que falta, todos nós sabemos de que se trata. É o sentido do tudo aquilo que esperamos, a que nos dedicamos, em
primário, fundamental, a que nos referimos quando per- nome do que nos organizamos, morre, nossa vida morre
guntamos: “Qual o sentido de nossas vidas? Qual o sen- também. Nesse momento, vivemos duas experiências in-
tido dê estarmos aqui?””. terligadas. Ao mesmo tempo em que percebemos grande
NA PRESENÇA DO SENTIDO UMA CARACTERIZAÇÃO DA PSICOTERAPIA 167
166

lucidez e clareza, esta é absolutamente incompatível com a importância, e, nessas horas em que um sentido muito im-
ação, porque não há motivo para fazer coisa alguma. portante da vida se desarticula, o perigo é que isso arraste
A morte do sonho traz uma experiência muito forte tudo o mais, num movimento que tende a esvaziar todas
de solidão. Ao conversarmos com pessoas que vivem as coisas de qualquer significado que ainda possam ter.
o drama de uma solidão muito intensa, em geral, depa- Na ausência de sentido, fica difícil viver. Mas se
ramos com um sonho que morreu. Para tais pessoas, O a pessoa compreender que, embora sonhos se acabem, a
afeto, a preocupação, a proximidade dos outros apro- possibilidade de sonhar permanece, ela poderá restabe-
fundam ainda mais sua solidão. É como se o amor e a lecer um sentido.
preocupação dos outros ao redor fossem absurdos e va-
Zios, porque, sem o sonho, nada se articula, o sentido É, Depois de abandonar um sonho morto, é hora de
negado e não se tem como acolher e muito menos retri- começar a sonhar de novo; é hora de começar a habitar
buir carinho. um novo sonho.
Muitas vezes a pessoa carrega em si um sonho que Que é habitar um sonho?
morreu, e ela não consegue abandonar e enterrar esse Sabemos que somos frágeis; por isso, precisamos de
sonho, pois isso é assustador. É assustador porque a de- um lugar para morar. Isso vai além da concretude do lu-
silusão com um amor ou um ideal dá a impressão de gar, queremos habitar “em-casa”,
que jamais ela poderá amar ou ter ideais de novo. Então, Mas a necessidade de habitar ainda vai mais longe.
ela se agarra ao sonho morto, e este a escraviza na con- Dotados de linguagem, percebendo significados, e capa-
dição de ausência de sentido. Ela fica presa na falta de zes de sonhar, o precisar “estar-em-casa” tem uma am-
sentido. É muito difícil nos aproximarmos da pessoa que plitude maior. Precisamos habitar no sentido das coisas,
vive esse momento. habitar nossos sonhos, que são os grandes articuladores
O fim de um sonho é uma das formas de perda do de sentido.
sentido. Essa perda traz não apenas dor. À pessoa po- Quem já passou pela experiência de perder o senti-
de sentir que perdeu também exatamente o que fazia sua do sabe o que isso quer dizer: chegar em casa e não ter
existência ser digna de ser vivida. É como se ela se sen- Tmais casa, só um espaço vazio.
tisse ferida em sua dignidade. Desaparece o que tinha Habitar no sentido é a possibilidade que procuramos.

VOOS
168 NA PRESENÇA DO SENTIDO UMa CARACTERIZAÇÃO DA PSICOTERAPIA 169
í
EE
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Na condição de seres que sonham e vêem seus so- mesma forma como a encontramos na estação rodoviária
nhos morrerem, há uma situação muito angustiante que ou no aeroporto: “Atenção passageiros com destino a...
se manifesta na tentativa desesperada de, ao sentir que um O que define o passageiro é o seu destino. Dessa mesma
Errar,

sonho está acabando, querer preservá-lo de qualquer jeito, forma, também somos destinados a nos desenvolver na
acima de toda experiência. É a tentativa de radicalizar direção do horizonte para o qual caminhamos.
o sonho por não admitirmos que nada o ameace. Assim, o
sonho já não é algo cheio de vigor, capaz de se confron- Somos destinados, mas podemos nos perder: pode-
tar e de se relacionar com as coisas; tornou-se um sonho mos perder nossa morada no sentido, não saber o que
moribundo, que não queremos deixar morrer. Para não fazer com a liberdade, sentir dificuldade para prosseguir
o deixarmos morrer, começamos a ser cada vez mais em nossa direção. Nesses momentos é preciso cuidado...
agressivos com relação a tudo que o ameace. Já não ha- Talvez isso justifique termos dito, no início, que terapia
bitamos mais o sonho, passamos a defendê-lo e nos tor- é procura, é pró-cura, é para cuidar.
namos escravos daquilo que esperamos a qualquer custo. Estamos chegando a poder dizer que terapia é a
Nisso, perdemos a liberdade. procura, via poiesis, pela verdade que liberta para a de-
À pessoa nessa situação não se dá conta de que, as- dicação ao sentido.
sim como é preciso habitar no sentido, como sonhadores, Somos todos lançados nesse processo que é a exis-
por outro lado, estamos destinados ao desenvolvimento, tência, pois recebemos a vida à revelia de qualquer de-
não podemos ficar parados lá atrás. cisão própria. Podemos decidir sobre possibilidades de
Nós temos de nos desenvolver. O desenvolvimento rumos diferentes que queiramos seguir, mas há uma coi-
não é uma opção nossa, assim como não o são o sentido sa que vale para todos nós: enquanto existimos, estamos
e o habitar. Precisamos nos des-envolver, des-cobrir nós destinados ao próprio desenvolvimento, habitando o sen-
mesmos e o mundo. Isso faz parte do nosso destino, en- tido ao qual nos dedicamos na efetivação da nossa liberda-
tendido não como algo previamente definido e demar- de, radicada na verdade que liberta e que nós procura-
cado, como uma obrigatoriedade ou regido por uma mos. Às vezes, perdemos esse sentido e então temos, na
causalidade férrea. Empregamos a palavra destino da terapia, pela via da poiesis, uma forma de reencontrá-lo.
170 Na PRESENÇA DO SENTIDO

Não chegamos a uma definição precisa de psico-


terapia. À via que escolhemos percorrer vai em outra di-
reção. É como podemos falar de psicoterapia na perspec-
tiva da Daseinsanalyse que, em nosso caso, é o que está
em nosso horizonte e destino profissional.

Como este tema é


ACP MÓPGÁCE E sce cortes em sua abordage
Altuflh ma O

sa feita por um americano em 1954. Foi uma pesquisa com


duração de cinco anos, que acompanhou a evolução de
quatro grupos de pessoas. O grupo-controle não fez ne-
nhuma terapia. Os outros três grupos foram submetidos

e
Texto 4
57
A Abordagem Centrada na Pessoa
e seus princípios

Marcos Alberto da Silva Pinto


e
res
a
soldioutid snas e
“Se eu deixar de interferir nas pessoas, Tive contato com a Abordagem Centrada na Pessoa em 1985,
elas se encarregam de si mesmas, no meu primeiro ano de universidade, nas aulas do profes-
Se eu deixar de comandar as pessoas, sor Rodolfo Arqueles. Conheci através da experiência, senti a
elas se comportam por si mesmas. Abordagem Centrada na Pessoa em roinha própria pele. Depois
Se eu deixar de pregar às pessoas, descobri a teoria, Durante as minhas aulas de psicologia geral,
elas se aperfeiçoam por si mesmas. vivenciei a ACP em roda a sua intensidade; o meu professor
DUDOLR E à Cisposiç
elas se tornam elas mesmas”, aprendermos dentro dos nossos interesses. sto no início me pa-
receu um favor: dar a liberdade! Mais tarde, descobri através
LAO-TSÉ (Citação de Cari Rogers, resumindo o princípio da clessa própria abordagem que liberdade não se dá, apenas não se
Abordagem Centrada na Pessoa — 1977) tira, Somos livres! Encontrei a Abordagem Centrada na Pessoa
através do meu desespero em perceber como era difícil ser dono
de mim mesmo em uma sala de aula. Senti medo, angústia,
raiva, vontade de ter um professor autoritário, vontade de mu-
dar de universidade, de chorar... Sentl tantas vontades, até o
mormento que percebi que eu poderia aproveitar o fato de poder
aprender tendo o professor como um Facilitador do ensino e
pude, a partir daí, olhar as minhas vontades em sala de aula,
Minha vida nunca mais seria a mesma...
Gosto de falar por mim e não pela Abordagem Centrada na
Pessoa. Quero falar da minha visão dessa abordagem. Temos di-
versas “Abordagens Centradas nas Pessoas”, remos várias visões
ão

dessa abordagem pelo mundo todo e em minha opinião não há experienciar essa abordagem durante os meus 20 anos coro

BOSSOS EU BPENUSO WieBEBPICOY VW


e Seus princípios
A Abordagem Centrada na Pessoa

SsoIdioud snas e
como ser de outra forma. psicoterapeuta e facilitador de grupos de encontro.
Quem é o dono da ÁCP afinal?
SEARA

Carl Rogers passou a vida abrindo mão desse título. Sabia


ser o precursor dessa abordagem e tinha pavor que ela ficasse Os Princípios
restrita ao que ele pensou, falou e escreveu, Rogers era antir-
rogeriano, Não gostava do termo regeríanoe, pois achava que A Abordagem Centrada na Pessoa vai além das psicoterapias,
resumia a ACP a ele e de alguma forma tirava das pessoas a podendo ser utilizada em todas as relações de ajuda, assim como
responsabilidade de serem elas mesmas a partir dos princípios nas relações humanas.
centrados na pessoa, É uma abordagem que se diferencia das demais, sobretudo
Ele nos disse: por não haver técnica. Acreditamos que a melhor maneira de
Tenho medo que minhas hipóteses a respeito de faciliação de cresci- se ajudar alguém é acreditar na condição natural da pessoa de
mento humano se transformem pelo fervor dos rogerianos em verdades pensar, sentir, buscar e se direcionar no caminho de suas pró-
estabelecidas, estáticas, em dogmas consagrados pela veneração à pessoa prias necessidades. É nessa visão que essa abordagem se apoia
e percam o seu frescor original e o caráter hipotético que as mantém para tentar facilitar condições ideais à pessoa, para que ela possa
no âmbiro do científico. Tenho medo que os rogerianos façam o mes- entrar em contato consigo mesina, para buscar o seu jeito de ser
mo que os freudianos e os ; adlerianos e congelem o meu pensamento € suas próprias respostas. Pela visão centrada na pessoa, o outro
rs
2 novas tocmuiações (ROGERS, Pi recisa docas de = UgÕES EESPE
| COS P h :
apud LAFARGADA, 20 02. corterapeuta (educador etc.) é o de facilitar através de deter mina-
da postura e alguns pressupostos básicos para que à pessoa possa
Rogers, ao longo da vida, relutou em aceitar ter o seu nome
buscar em si própria o seu caminho e as suas respostas.
em diversos locais e eventos, pois não queria ser um mito. Que-
A minha intenção neste capítulo é a dê falar a respeito dessa
tia ser e era. apenas uma pessoa. postura e pressupostos, lembrando que não basta, no entanto, o
A Abordagem Centrada na Pessoa não tem dono e ao mesmo psicoterapeuta assumir determinadas posturas e acreditar nesses
tempo é de todos nós que a pensamos e a vivemos e cabe a cada
pressupostos se, em sua aplicação, isto virar uma técnica, Um
um de nós a responsabilidade de recriar essa abordagem através
psicorerapeuta centrado na pessoa deve, acima de tudo, viver
de reflexões e atitudes e é esta a minha intenção na participação
esses princípios, que falaremos adiante; caso contrário, estará
hesse livro,
apenas sendo um técnico e ferindo o imprescindível numa rela-
tosto de uma Abordagem Centrada na Pessoa simples e sem
ção de ajuda centrada na pessoa, que é a autenticidade,
tórulos. Gosto de poder exercer a minha liberdade em ser e em
E ordem Centrada na Pessoa parte do seguinte pressupos-
pensar e é nessa Abordagem Centrada na Pessoa que acredito
to: “Todo organismo é movido por uma tendência inerente para
E quero escrever aqui, através de todo tempo que dediquei de
desenvolver todas as suas potencialidades e para desernvolvê-las
minha vida a ler, estudar, discutir, repensar e principalmente
de maneira a favorecer o seu enriquecimento” (ROGERS, 1959).
É a partir deste pressunosto, que tem o nome de tendência tenciais. O faro de essa tentativa causar maus resultados situa-se mais

soIdiouund snas e
€ seus princípios
A Abordagem Centrada na Pessoa
de atualização, que existem alguns princípios que acreditamos

. BOSSSA BLLEPRIUSS WISBPRIOAY


no meio ambiente do que na tendência básica do indivíduo. À pedra
Tra reláção
serem facilitado res de ajuda, fundamental da psicologia humanista, pelo menos como eu vejo, É,
Desejo, no decorrer deste capítulo, falar dessa rteadência de portanto, essa crença de que a ser humario tem um organismo positivo
atualização, assim como dos demais princípios facilitadores. e construtivo (ROGERS, 1977).

Quando são proporcionadas condições facilitadoras para


Tendência de Atualização que a pessoa se autodirija, ela tende a buscar uma harmonia
interna e, em consequência, buscar uma maior harmonia com
Toda pessoa possui uma capacidade natural de se autodirigir no O seu meio.
sentido de buscar suprir as suas necessidades. Existe em todo Dessa forma, em um ambiente de ajuda, penso que a melhor
organismo uma tendência natura! de evolução, uma tendência maneira de se estar com o outro seja criar condições ideais para
natural de atualização a todo o momento. a facilivação desse processo em busca dessa autodireção.
Por diversos motivos, mas principalmente em função de va- Pela minha visão, não bá como se ter um meio termo em se
lores externos, de alguma maneira, todas as pessoas são influen- tratando dessa abordagem. Ou eu creio no potencial da pessoa e
ciadas por uma série de formas de ser impostas que fazem com busco facilitar condições para que ela se desenvolva por ela mes-
que, muitas vezes, se distanciem daquilo que são ou sentem mma ou eu não creio e, se não acreditar, provavelmente irei tentar
2h Foo + . no . ;
como o melhor e .. ente!

Mesmo assim, a tendência atualizante continua o seu ciclo, no externo e dessa forma, a meu ver, ainda que bem intencionado,
intuito de nos levar adiante, mas em função de a pessoa estar dis- estarei manipulando-a para um caminho predeterminado pela so-
tante do seu jeito, acaba, muitas vezes, por caminhar de uma ma- ciedade ou por alguém ou pelas minhas próprias crenças pessoais,
neira distorcida daquilo que realmente seria o melhor para si. Esta já é uma grande diferença desta para outras abordagens.
Em uma entrevista concedida a revista Veja em 1977, Carl Na Abordagem Centrada na Pessoa, eu não visto uma capa ou
Rogers nos diz: uma máscara. Não “atuo”. Faço parte de uma relação verdadei-
ta, crendo de fato no potencial do outro.
Costumo exemplificar esse processo lembrando batatas que guardáva-
Se eu tiver medo do oucro, do que o outro Irá se tornar atra-
mos no porão da nossa casa na fazenda. Elas criavam brotos porque
havia uma janelinha no quarto. Eta uma tentativa inútil, mas parte vés da relação de ajuda, a meu ver fica impossível que eu bus-
da tentativa do organismo de se satisfazer. Você consegue um produto que ajudá-lo por meio dos princípios centrados na pessoa, pois,
muito diferente quando planta uma batata na terra, € comparo esse como eu disse anteriormente, nesse caso, provavelmente eu aca-
processo ao que pode ser encontrado em delinquentes e em pessoas be esperando do outro algum caminho que eu deseje que ele
que são tidas como doentes mentais: o modo como suas vidas se de- tome e, em minha visão, para que exista de fato uma relação de
senvolveram pode ser muito bizarro, anormal; no entanto, tudo o que ajuda, a minha expectativa deverá set apenas a de facilitar condi-
elas estão fazendo é uma tentativa para crescer, para atualizar seus po- ções para que o outro se torne ele mesmo, seja do jeito que for.
“Se eu deixar de interferir nas Pessoas,

e seus princípios
A Abordagem Centrada na Pessoa
minhas experiências, iss simplesmente não acontece, Se ofereço a uma

BOSSA) BU EPENUES WaBBNIOAY V


soldiound snos e
elas se encarregam de si mesmas.
pessoa a possibilidade de se expressar, de buscar suas próprias dire-
Se eu deixar de comandar as pessoas, ções, ela não escolhe ser num melhor ladrão ou coisa semelhante, mas
elas se comportam por si mesmas. procura seguir a direção de malor harmonia com seus companheiros
Se eu deixar de pregar às DESSOAS,
(ROGERS, 1977).
elas se aperfeiçoarn por si mesmas, À partir desse exemplo, penso que seja interessante citarmos
um dos grandes mitos da Abordagem Centrada na Pessoa que é
Se eu deixar de me impor Às pessoas,
elas se tornam elas mesmas”,
a “bondade do homen”.
À crença na tendência atualizante nada tem que ver com
LAO-TSE (Citação de Carl Fogers, resumindo o Princí
pio da Abordagem bondade ou maldade, que já são por si julgamentos. À rendên-
Centrada na Pessoa — 1977)
cia atualizante também não é algo que existe apenas em de-
[eo
ns

Fica impossível, em minha opinião, facilizar condições terminados momentos eu dependendo do caminho escolhido
para
que o outro seja ele mesmo caso tenha alguina dúvida pela pessoa, ;
ou medo
de coro o outro será dessa forma. Já ouvi até mesmo de algumas pessoas envolvidas com essa
Sinto por parte dos profissionais iniciantes que estudam abordagem que a tendência atualizante é algo que só existe
a quando a pessoa busca “caminhos positivos”. Como se essa ten-
ACP uma grande preocupação nesse sentido e acho perti
nente dência ficasse “adormecida” em determinado perfodo de nossas
exemplificar essa questão com um ste e!
7 Ss

Da MEestoa entrevista à revista Veia em 1977, citada vidas & que a Caif des
anterior
mente, dessa vez a respeito da possibilidade ou que o objetivo da relação de ajuda seria a de ativar essa tendên-
não de, ao enal-
tecer a bondade nas pessoas, ele deixar de lado 5 maquiaveli cia na pessoa.
smo Esta é uma visão totalmente clistorcida, pois, em sua nature-
€ o espírito de competição que naturalmente
existe em nossa
sociedade: 72, a tendência à ammalização não é boa nero ruim; o conceito de
maldade ou bondade já é um julgamento em função dos aspec-
Fui muitas vezes acusado de não compreender a malda tos sociais que vivemos e que variara de acordo com o meio e a
de nas pessoas
— e levo a sério esse tipo de crítica, isso pode aré ser
verdade, Nas che- cultura de que fazemos parte.
guel a uma posição, não através de PENSAmentos passiv
os, mas através Tendência atualizante é apenas o movimento natural em pro-
de meus contatos diretos com pessoas, tanto em terapia gredirmos e esse movimento tem que ver com um conjunto de
quanto em
Brupos, ou mesmo em salas de aula, nos quais percebi que, se con- fatores como a nossa visão de mundo e as nossas perspectivas.
fio plenamente em sua capacidade de se compreende É positiva apenas no sentido de que todo mundo busca o
rem melhor e ser
mais autodirigidas, estas escolhem direções que são
sociais e não an- melhor para si. Estou convencido de que isto acontece o tempo
tissaciais, ou más. Dizem que, com esse tipo
de terapia, o indivíduo todo em todas as pessoas e, se formos além, isto acontece em
pode muito bem ser um melhor ladrão ou um melhor assassi
no, e para todos os seres vivos.
mim esta é uma possibilidade bastante lógica. Mas,
z
de acordo com Tenho uma planta sm meu consultório e ela está sempre vol-
2
tada para a direção da janela da sala de espera. Tenho o hábito Vocês sabem que não é esta a visão que tenho da loucura. Bem ao con-

+
Ssoidiauud snos e
À Abordagem Centrada na Pessoa
e seus princípios

erose 'emraprnusa uiunBeniony“eo


de virá-la contra a janela de tempos em tempos, e naturalmente trário, ela é uma forma de viver; quando a visão realística de si mesmo
ela, em seu ritmo, volta-se novamente na direção da janela. Não — | e da realidade tornar-se insuportável, resta a loucura, isto é, a visão irre-
sou agrônomo, botânico, biólogo, nem sei explicar como esse alística. É a estratégia possível de sobrevivência. Numa frase: a loucura
fenômeno ocorre, embora saiba que, de alguma forma, aquela é a saída para as situações sem saída (DI LORETO, 1997).

ac
planta busca voltar-se para a direção que a mantém de forma
Podemos afirmar que um ladrão, quando tenta roubar, não
mais viva.

Sus
tem tendência atualizante?
Durante a minha vida acadêmica, aprendi, infelizmente, na
Em minha forma de enxergar, a tendência atualizante é o

“seat”
grande maioria das vezes, a não confiar na capacidade da pessoa
que o movimenta ao roubo dentro da sua visão do que é melhor
de se autodirígir e percebo que isto acontece nas universidades
para si naquele momento.
de forma intensa até hoje. Quando sou convidado a falar da
À tendência atualizante acontece o tempo todo em mim e
Abordagem Centrada na Pessoa, menciono a busca da pessoa
em você. Todas as nossas escolhas e saídas são tentativas de nos
em fazer aquilo que lhe parece melhor e normalmente muitos
atualizarmos, de vivermos melhor.
alunos e professores discordam da minha fala. Eu costumo per-
E

Segundo Rogers:
guntar se eles buscam o melhor para si e sempre ouço que sim.
a ERA
SR

Tenho o hábito de dizer que aprendemos na universidade a nos Pouco importa que o estímulo venha de dentro ou de fora, pouco im-
acharmos superiores aos seres humanos que estão lá fora, pois porta que o ambiente seja favorável ou desfavorável. Em qualquer des-
acreditamos que apenas nós semos essa busca por viver melhor, sas condições, os comportamentos de um organismo estarão voltados
Sempre desafio esses alunos e professores a perguntarem para para a sua manutenção, seu crescimento € sua reprodução. Esta é a
qualquer pessoa, mesmo para aquelas que eles acreditam que própria natureza do processo que chamamos de vida. Essa tendência
não querem o melhor para si, e tenho certeza de que eles ouvirão está em ação em todas as ocasiões. Na verdade, somente a presença ou
a mesma resposta: que essa pessoa também quer o melhor para si ausência desse processo direcional total permite-nos dizer se um dado
está vivo ou morto (ROGERS, 1983).
e que tem agido sempre no sentido de encontrar a melhor saída
dentre aquelas que a pessoa consegue enxergar nesse momento. Uma vez, entre as discordâncias de sempre, perguntei em
Muitos estudiosos do comportamento humano, na tentativa uma palestra se alguém ali não buscava o melhor para si e pela
de provar que as pessoas naturalmente não buscam o melhor primeira e única vez até hoje um estudante levantou a mão e
para si, tendem a usar exemplos de pessoas estigmarizadas, como contou à sala que em um período de sua vida acreditava não ter
aquelas que possuem algum diagnóstico psiquiátrico, por exem- buscado o melhor para si por ter escolhido usar drogas. Eu per-
plo, partindo do pressuposto de que essas pessoas não estariam guntei se ele podia nos contar o motivo e ele me respondeu que
buscando o melhor para si por estarem naquelas condições. naquele período estava vivendo um momento de vida tão ruim
Se falarmos de loucura, por exemplo, Oswaldo di Loreto que se ocupava das drogas para fugir da sua realidade, pois não
busca facilirar a compreensão dessa tendência de movimento encontrava outra saída para viver naquele momento. Às pró-
nos dizendo: prias pessoas da sala o interromperam dizendo que, então, ele
estava, dentro do seu desespero, através das drogas, buscando é de fundamental importância que o psicoterapeuta tenha a ca-

BOSSA BU EPENUEO LSBEPIOAY V


soidiauud snes e
e seus princípios
À Abordagem Centrada na Pessoa
aquilo que julgava ser uma saída para aquele mornento, ou seja, pacidade verdadeira de se colocar na pele do outro.
buscava o melhor pra si dentro das possibilidades que conseguia Através da minha própria experiência, aprendi que esse mo-
encontrar naquele período de vida, vimento facilita no psicoterapeuta a possibilidade de despir-se
Talvez eu esteja sendo repetitivo, pols sinto necessidade de naquele instante dos seus próprios valores e julgamentos, para
dirimir essa confusão a respeito de tendência atualizante e bon- poder estar de corpo e alma com o outro em sua visão de mun-
dade. Essa tendência de movimento pode ser considerada algo do, seus sentimentos e verdades.
bom apenas se enxergarmos como sendo algo positivo o simples Citando Rogers:
fato de estarmos em movimento, Não há bondade ou malda-
de nisto. Há apenas o movimento, no intuito de encontrarmos “Estar com o outro desta maneira significa deixar de lado, neste mo-
meênto, nossos próprios pontos de vista e valores, para entrar no mundo
saídas melhores dentro das situações que vivemos a todo mo-
do outro sem preconceitos. Num certo sentido, significa por de lado
mento. :
nosso próprio eu, o que pode ser feito apenas por uma pessoa que esteja
Já que buscamos melhores saídas a todo momento, acredi-
suficientemente segura que não se perderá no mundo possivelmente
tamos, dentro da visão centrada na pessoa, que sob ambiente estranho ou bizarro do outro e que poderá voltar sem dificuldades ao
facilitador, teremos maiores condições de prestar mais atenção seu próprio mundo quando assim desejar” (ROGERS, 1977).
em nossa vida e desta forma provavelmente teremos a oportu-
nidade de repensarmos uma série de coisas em nós, nos outros e Na tentativa de conseguir me expressar melhor, penso ser
na vida, o que pode nos possibilitar o encontro de novas saídas útil um exemplo: vamos supor que à peEss à que L,DUsca
A
aji LECL

que sejam mais saudáveis, do ponto de vista do que é mais sau- tenha determinada religião, que enxergue a importância de não
dável para a própria pessoa. se envolver sexualmente com outra pessoa antes do casamento e
A partir daí, a ACP propõe princípios e posturas que podem que ela esteja se sentindo culpada por ter mantido uma relação
funcionar em um ambiente de ajuda como facilitadores desse sexual de forma diferente dos padrões de sua crença. Supondo
processo de crescimento. Falatei agora destes princípios. que o psicoterapeuta tenha valores diferentes dessa pessoa, caso
ele não consiga verdadeiramente ser empátrico com ela, terá di-
ficuldades de compreender a culpa dessa pessoa, pois estará le-
Compreensão Empática vando em conta a sua visão a respeito do tema e não o contexto
da própria pessoa.
Basicamente, compreensão empática é a capacidade do psico- Naturalmente, ainda que bem intencionado, o psicotera-
terapeuta em se colocar no lugar do outro sempre, olhando a peuta, sem conseguir ser empático, terá grande tendência de
pessoa através do seu olhar, buscando se aproximar ao máximo manipular o outro a partir da sua visão de mundo, na tentativa
da forma como a pessoa enxerga ou se sente a partir do seu con- de ajudar a pessoa a se livrar da sua culpa. Na minha opinião, é
texto, sem, no entanto, sentir-se o outro. É um “como se” sem pouco provável que exista alguma ajuda em uma relação onde
ser, ou seja, dentro da visão da Abordagem Centrada na Pessoa, o psicoterapeuta, ainda que de forma ingênua e bem intencio-

senvolvido na relação. Um cliente, no final de sua terapia provavelmen-

!
nada, busque compreênder o outro empaticamente levando em

soldjouvid snas a
e seus princípios
te estará com sua atitude empática mais desenvolvida. Ele terá mais
A Abordagem Centrada na Pessoa

POR
conta os seus próprios valores.
capacidade de se colocar-no-lugar do outro, sem se perder. Portanto,
Já ouvi alguns profissionais dizerem que na tentativa de ajudar
podemos afirmar que a empatia pode ser desenvolvida e pode ser con-

“ee
ve ame JE
o cliente, sem conseguir ter uma compreensão empática verda- siderada como um padrão de crescimento (J ORDÃÁO, 1987).
deira, buscam apenas demonstrar essa compreensão, sem, no en-
tanto senti-la de forma real, pois acreditam que, assim, essa “si- Ao mesmo tempo em que é imprescindível a capacidade des-
mulação” causará no cliente a satisfação de ser compreendido. ta compreensão empática por parte do psicoterapeuta, entendo
Em minha opinião, essa postura nada tem que ver com o que por ser uma relação, quando estamos sintonizados de fato
princípio de empatia dentro da visão centrada na pessoa, pois com a pessoa do cliente, essa compreensão torna-se algo natural
caso eu simule essa compreensão, estarei me utilizando desse e de mão dupla, ou seja, não há mais apenas uma compreen-
princípio como uma “técnica de me colocar no lugar do outro”. são empática por parte do psicoterapeuta, há algo muito maior,
Para mim, quando falamos de Abordagem Centrada na Pessoa, uma facilitação na compreensão do fenômeno da empatia. À
estamos falando de uma relação verdadeira entre duas pessoas, e capacidade de haver de fato um encontro, uma ligação de senti-
se eu apenas “simulo” essa compreensão, essa relação verdadeira mentos entre psicoterapeuta e cliente.
se perde, tornando-se algo meramente técnico. Um bom exemplo desse fenômeno é relatado por um cliente
Quando consigo ter de fato a compreensão empática, natu- de Rogers: “Éramos nós dois, trabalhando juntos na minha situ-
ralmente coloco os meus valores de lado para estar focado no ação como se fosse só e (ROGERS, apud WOOD,1994).
mundo intecior do outro, livre dos meus conceitos, preconcei- Falando a respeito desse tema, fohu Wood nos diz:
tos, valores e crenças pessoais.
À compreensão empártica, em outras palavras, é um estado de consci-
É nessa pessoa, única, diferente de mim e de todas as outras,
ência no qual uma pessoa experiencia e participa de um fluxo de pen-
que eu consigo me sintonizar, compreendendo-a a partir dela,
samentos e sentimentos e seus significados com outra pessoa, enquanto
para e com ela. ao mesmo tempo também está consciente do conceito maior dentro do
Sinto que sendo verdadeiramente empático, de alguma for- qual os dois existem (WOOD, 1994).
ma facilito condições para que a pessoa também possa se con-
sultar em seus sentimentos e em sua genuinidade. Sentindo-se Mais do que estar aberto à experiência do outro, a compre-
compreendida, provavelmente ela sinta-se livre para “colocar-se ensão empíática significa estar aberto a essa experiência junto
em sua própria-pele” e isto talvez facilite nela a percepção de com o outro, fazendo parte do mundo do outro, caminhando
uma tendência em si para buscar essa mesma capacidade para a os passos do outro, estando conectado a esse mundo de forma
compreensão no outro em suas relações. natural, verdadeira e intensa.
À este respeito, Marina Pacheco Jordão afirma: Citando novamente John Wood:

Sendo a empatia uma tendência e, portanto, comum ao ser humano, Na psicoterapia, não basta simplesmente tentar compreender o mundo
do outro, nem mesmo sentir alguma coisa que o cliente esteja sen-
ela também é um arriburo do cliente a ser levado em conta e a ser de-
rindo (e certamente não é suficiente enxugar as lágrimas em atitude mesma, de alguma forma estaria se negando e negando a visão

e seus princípios

BOSSA] EU EPENUSO WeBeploqy y


sordiouud snes e
de “apoio”). O cliente deve também experienciar ser compreendido
de tendência atualizante, imprescindível para o embasamento
(WOOD, 1994) ==
Cao

da ACP.
Cau

Ácreditque
o a compreensão empárica, quando existente na Em uma das diversas entrevistas em que Rogers (1983) se
ese

relação de ajuda, seja algo curador, revolucionário. Sentir-se deixou filmar, ele conta que certa vez atendeu uma pessoa que
compreendido é, de alguma forma, perceber-se vivo no mais falava em voz monótona e que embora sentisse interesse e se
amplo sentido da palavra. É sentir que há ressonância naquilo esforçasse para ouvi-la, sentia dificuldade em estar com ela de
que se exprime e que há alguém que naquele momento está forma inteira em função do seu tom de voz. À partir do seu
junto. É a possibilidade de sentir-se acompanhado em seus incômodo, após relutar bastante, Rogers resolver expressar à
sentimentos e verdades muitas vezes escondidas em função de pessoa que não sentia nenhum orgulho no que iria falar a ela,
medos, angústias e padrões condenados por si mesmo ou pelo mas que ele estava com dificuldades em ouvi-la, pois embora o
mundo exterior, conteúdo de sua fala parecesse interessante, a forma como ela
É a possibilidade de perceber que alguém realmente tem in- se expressava o deixava cansado. Ele cira que no início a pessoa
teresse genuíno por suas histórias, seus sentimentos, suas difi- ficou chocada com o que foi dito e que discutiram um pouco a
culdades ou seu silêncio. É alguém que simplesmente confia e respeito do assunto. Em determinado momento, o cliente disse:
acompanha os passos, com interesse genuíno, sem interesse em “Acho que descobri o motivo da minha fala monótona. Acho
apressar ou retardar o processo. que ao longo da minha vida eu nunca tive a expectativa real de
Como diz Rogers, “passamos a ser um companheiro confian- ser verdadeiramente ouvido.”
te dessa pessoa em seu mundo interior” (ROGERS, 1977). Assim nasceu a congruência como princípio facilitador.
Sendo ouvida e verdadeiramente compreendida, talvez a pes- Rogers nos diz:
soa também se ouça e se compreenda e, nesse instante, muitas
Descobriu-se que a transformação pessoal é facilirada quando o psi-
coisas estarão acontecendo com ela em seu processo de cresci-
coterapeuta É aquilo que é, quando as suas relações com o cliente
mento e é isto o que importa. são autênticas e sem máscaras nem fachada, exprimindo abertamente
os sentimentos e as atitudes que nesse momento ocorrem. Utilizamos
o termo congruência para tentar descrever essa condição. Com esse
Congruência termo, procura-se significar que os sentimentos que o terapeuta estiver
experienciando são válidos para ele, válidos para à sua consciência e
ele pode viver esses sentimentos, assumidos e pode comunicá-los se
À Abordagem Centrada na Pessoa não nasceu pronta,
for o caso, Ninguém realiza plenamente essa condição e, portan-
ela foi se construindo aos poucos a partir das percepções e
to, quanto mais o terapeuta souber ouvir e aceitar o que se passa em
discordâncias de Carl Rogers pelos modelos de atendi-
si mesmo, quanto mais ele for capaz de assumir a complexidade dos
mentos que existiam. Nossa abordagem não está pronta, está.
Seus sentimentos, sem receio, maior será o seu grau de congruência
em contínuo processo de atualização. Se estivesse parada em si
(ROGERS, 1961).
fe)
2
o
Ele percebeu que não era apenas importante compreender o relação à pessoa no ambiente psicoterápico para poder nova-

soldiouud snas e
O
EH
= outro, mas sim ter a capacidade de expressar-se de forma ver-

ENSSP | EU EpenuAaNn LSBPN JON


[ed
[4H
[a [e
o mente estar com ela de forma inteira. Caso eu fique guardando
=
fo o dadeira nessa relação. Congruência significa a capacidade do
= sentimentos enquanto eu a atendo, naturalmente irei me preen-
f [2d- psicoterapeuta ser autêntico em relação aos seus sentimentos no
"o
o
D cher de pensamentos a respeito do que ela me disse e me ocu-
Ss [o][3] que diz respeito à pessoa que está buscando ajuda.
s&
o)
parei disto me distanciando dela que está ali comigo. Costumo
[6 É importante que tudo que o psicoterapeuta sinta em rela- dizer que se eu ficar remoendo os meus sentimentos enquanto
&
O
[6]
ção à pessoa seja dito, de maneira cuidadosa, porém genuína. É atendo uma pessoa, mesmo que esses sentimentos tenham a ver
[SS
=)
fe
direito da pessoa que está buscando ajuda saber o que o psicote- com ela ou com à psicoterapia, essa pessoa, sem saber, não pas-
O
Ke) rapeuta sente a respeito do que ela está expressando.
< sará de uma boca em movimento na minha frente, pois eu não
<q Em uma relação de ajuda, onde a base é a confiança e a ver- estarei mais com ela. Estarei perdido em meus pensamentos.
dade, em minha opinião, não ajuda esconder do cliente senti-
Quando eu sinto a coragem e a confiança em me mostrar
mentos que estejam emergindo no psicoterapeuta a respeito da
congruente nessa relação, ganho condições de me esvaziar da-
pessoa do cliente. É importante que o psicoterapeuta diga o que
quilo de que eu estava me ocupando e voltar a estar genuina-
sente, deixando claro, no entanto, que esta é apenas a sua per-
mente com ela.
cepção e não a verdade absoluta ou uma verdade inconsciente Outra grande questão da congruência, a meu ver, é que se es-
do outro. ! tou verdadeiramente buscando uma sintonia e ouvindo a pessoa
Pelo fato de o psicoterapeuta estar vivo e ativo escutando o
de forma inteira e intensa, por estar tentando me colocar na sua
outro, é natural que ele sinta diversas coisas com relação a essa
peie, sem ser ela, provaveimente algumas de minhas percepções
pessoa. Para a Abordagem Centrada na Pessoa, o outro merece
poderão ajudá-la em seus sentimentos, reflexões e percepções de
saber o que se passa dentro do psicoterapeuta com relação a
si mestna.
ela enquanto a ouve. Rogers (1983) definia a sua forma de ser
À congruência nos leva certamente a um novo nível na rela-
congruente, dizendo que costumava expressar ao outro os seus
ção de ajuda e, muitas vezes, na tentativa de não perdermos o
sentimentos quando estes lhe eram sentimentos persistentes.
“controle” do atendimento nos escondemos atrás de explicações
Ele dizia que quando sentia algo apenas por um instante, não
teóricas de outras abordagens para justificar a nossa omissão em
se preocupava em tentar guardar ou lembrar, mas que se-esse
não dizer algo para o outro.
sentimento fosse persistente ele não hesitava em compartilhar
Por diversas vezes, supervisionando outros profissionais, ouvi
com o seu cliente.
coisas do tipo: “Acho que ele ainda não está preparado para ou-
Em minha opinião, se eu busco estar com a pessoa do cliente vir o que eu senti ou sinto por ele com relação à determinada
de forma inteira, e se estou sentindo algo a respeito dessa pessoa,
história” O que sempre me ocorre nessas situações é: como é
fica óbvia à importância de compartilhar com ela o que está se
possível saber se a pessoa está ou não preparada para ouvir o que
passando em mim com relação a ela. Pela minha forma de en-
eu tenho para dizer se eu não disse?
Xergar a congruência dentro da Abordagem Centrada na Pessoa,
Se confiamos verdadeiramente no potencial da pessoa, como
é necessário que eu me esvazie dos sentimentos que tenho com
eu posso decidir por ela o que ela aguenta ou não ouvir?
Não estarei, nesse momento, ainda que de forma disfarçada, Na situação que acabei de mencionar, pergunto-me, se eu

BOSSSA BU BEPENUBO WiSBeplioaqy y


soldiouznid snes à
e seus princípios
A Abordagem Centrada na Pessoa
acreditando que sei mais do outro do que ele mesmo e que eu fosse cliente dessa pessoa, se eu preferiria ser abraçado caloro-
sei qual é o momento exato em que algo deve ser dito? samente de mentira ou se preferiria que ela me falasse o quão
Tma das grandes questões da congruência, a meu ver, é que cansada está em me atender? Óbvio que eu iria preferir a se-
o psicoterapeuta, ao ser congruente, perde o controle do am- gunda opção. Gostaria de saber o que de fato ela sente a meu
biente psicoterápico, ou seja, se o profissional quiser manter o respeito. Não me interessaria ser abraçado, ainda que de for-
controle desse ambiente, não há possibilidade de ser congruen- ma calorosa, sem que esse abraço fosse genuíno. Mesmo que
te, pois à partir do momento em que eu me expresso em meus a psicoterapeuta fosse rude comigo e falasse o seu sentimento
sentimentos de forma genuína com relação ao outro, esse senti- real com relação a mim sem nenhum cuidado, ainda assim eu
mento já não mais me pertence. Já é do outro também e ele fará preferiria saber o seu sentimento verdadeiro. ”
o que quiser com isto.
No exemplo já citado, contado por Rogers na descoberta da Voltando ao fato de gostar de me colocar na pele do outro:
importância da congruência na psicoterapia, a pessoa poderia, Será que só eu gostaria que isto acontecesse? Será que o cliente
ao invés de ter tido uma percepção de si mesma, ter ficado brava, iria preferir ser abraçado de mentirinha pela sua psicoterapeuta
ter ido embora ou ter julgado Rogers um péssimo profissional. com um abraço “técnico”?
Numa relação de ajuda em que o psicoterapeuta assume os Há alguns anos, ministro cursos de curta duração de Tntro-
seus sentimentos como seus, além de não roubar do outro o dução à Abordagem Centrada na Pessoa em meu consultório
direito de pensar a respeiro, a rendência é que o uutro assuma os e sempre faço questão de contar essa história e até hoje todas
seus sentimentos também, livre de ameaças, apoiado na aceita- as pessoas me falaram que prefeririam saber o sentimento real
ção, na autenticidade e no acolhimento. da psicoterapeuta, ainda que fosse dito de forma totalmente
u— inadequada.
Uma vez, uma colega de profissão me contou que viu ou- Penso que quando eu acredito que eu aguento a verdade e
tra profissional dar um abraço caloroso de despedida na sua o meu cliente não, estou novamente colocando-o um degrau
cliente e que assim que essa cliente virou de costas, a profissio- abaixo de mim. Estou subjugando a pessoa.
nal mostrou a língua e fez uma expressão de que não aguentava Já disse anteriormente, mas quero me aprofundar um pouco
mais olhar para a cara dela. À minha colega profissional assis- mais nessa questão: congruência significa a capacidade do psi-
tiu a essa cena sem querer, sem que a profissional que teve essa coterapeuta ser genuino com a pessoa do cliente, levando em
atitude percebesse que havia sido assistida por uma terceira conta os seus sentimentos e suas percepções para que ele possa
pessoa. tentar contribuir com uma possível reflexão do cliente a respeito
Sinto apreço em me colocar no lugar das pessoas e, embo- de si mesmo para quem sabe colaborar com o crescimento da
ra, infelizmente, eu nem sempre consiga fazer isto em minha pessoa. Serve também para que o profissional possa se esvaziar
? -

vida como um todo, tenho certa facilidade em fazer isto em desses sentimentos à fim de conseguir voltar a estar atento de
meus atendimentos. forma inteira nessa relação.
/
s

fo o É muito importante lembrarmos que existem muitas formas Paradoxalmente, para que eu possa estar com o outro é im-

Pai
sotdiouud snas e
o
[Us]
2
&
portante que eu esteja também comigo. Dentro da visão centra-

pagga | EM Bpequea tieeoety


[75]
[<>] =
nn &
de se dizer algo a alguém e que em minha opinião ser con-
-[e -õ, gruente significa falar à pessoa de forma cuidadosa e respeitosa, da na pessoa, é importante que eu leve em conta os meus senti-

Sie
o
mentos e eu creio poder facilitar essa relação, prestando atenção
o i-
re) D deixando claro que essa fala não é uma verdade absoluta, mas

Sao
[se] E
E
fe [o] apenas a minha expressão a respeito da minha percepção e que em mim através dos meus sentimentos e percepções naquilo

Sao
O]
O a pessoa é livre para fazer o que quiser com isto. que tem a ver com o momento da relação de ajuda, de alguma

meme
=[3
Te É muito comum confundirmos congruência com “fa- forma me ajudará a construir a relação com o outro.
G
ii.P lar qualquer coisa” ou falar de forma mal educada ou desres- Para terminar, pelo menos por agora, minha visão a respeito
[=)
- ; ; ; à res-
peitosa. Quando falamos dos princípios centrados na pessoa, de congruência, eu gostaria de citar Maria Bowen falando a r
Ee)
<
<q
não estamos falando de princípios que se contradizem, mas peito do assunto:
sim de princípios que se complementam. A congruência sozi-
nha talvez me iluda a acreditar que é importante que eu diga Quando nós somos congruentes conosco mesmos, nossas necessida-
des, nossos desejos e nosso curso de ação são uma coisa só. Seguimos
ao outro de qualquer forma aquilo que se passa dentro de mim.
o caminho do coração sem sermos assaltados por conflitos e dúvidas.
Já vi muitas vezes, em grupos ou fóruns da ACP, profissionais
A energia do momento flui suavemente, levando-nos na direção a que
experientes se valerem da congruência para justificarem atitudes 1987).
nossa trilha naturalmente nos conduz (BOWEN,
desrespeitosas ou intempestivas. À forma como eu compreendo
os princípios da Abordagem Centrada na Pessoa como comple-
mentares me faz acreditar que se, de fato, tiver uma compre- Consideração incondicional Positiva
ensão empática do outro, será pouco provável que eu, ao ser
congruente, seja ofensivo ou desrespeitoso, pois estarei com ele Refúgio
Quando todos parecem conspirar contra você,
dentro de sua visão de mundo e isto me facilitaria a ter cuidado
quando o mundo parece desabar ao seu redor,
ao me expressar, seja lá o que eu tenha a necessidade de dizer a
haverá ainda um lugar aonde ir.
ele.
Lá você pode sentir e chorar
John Wood comenta: e falar da dor
e esvaziar o peito cheio de mágoa.
Ser genuíno tem a ver com honestidade e pureza. Junte-os. Um sen- . Lá é trégua de guerra,
timento puro é percebido em meio à complexidade de sensações que é refúgio tranquilo,
constituem uma consciência e é expresso de modo direto e honesto, É porto seguro.
sem autocensura, mas ainda assim de maneira apropriada: congru- Vem e ancora aqui seu coração.
ência. Pode parecer simples, mas não é sempre tão óbvio quanto se
(Clara Feldman de Miranda)
manifesta, Facilitações de encontros em pequenos grupos são parti-
cularmente susceptíveis a confusão entre congruência e impulsividade
Em um mundo repleto de padrões, julgamentos, de “certos
H x“ ”P

(WOOD, 1994).
e “errados”, sinto o quanto é difícil termos a capacidade genuína
de considerarmos o outro independente do que a pessoa pense, De nada me adianta ser apenas empático se eu não tiver a

POSSAS BU BPEIUSO UISBEBDIOAY V


e seus princípios

soidlouud snes e
A Abordagem Centrada na Pessoa
seja ou faça. Consideração incondicional positiva nada mais é do capacidade de considerar essa pessoa e suas experiências de for-
que a tentativa de resgatarmos em nós, psicoterapeurtas, essa ca- ma incondicional. De nada me adianta ser congruente, se da
pacidade. A capacidade de considerar o outro, de aceitá-lo den- mesma forma não considerar essa pessoa em toda sua comple-
tro dos seus sentimentos, pensamentos e atitudes, independente xidade. Congruência, sem a capacidade de ter uma considera-
de quais sejam. É evidente que aceitar o outro não significa con- ção incondicional positiva, certamente me faria expressar o que
cordar. É muito fácil aceitarmos o outro quando concordarnos. sinto, ou as minhas percepções, de forma descuidada ou a partir
O grande desafio, a meu ver, na relação de ajuda, é aceitarmos de determinado ponto de vista que não seja o da própria pessoa,
a pessoa quando não concordamos com ela, quando os seus me faria cair no golpe das verdades absolutas. Aceitar à pessoa
pensamentos e atitudes são opostos aos que temos. Aceitar o a partir de suas próprias experiências é a capacidade de “estar”,
outro incondicionalmente, para mim, é termos a capacidade de sem julgamentos. É estar de forma inteira e ativa. Aceitar de
ENxergarmos essa pessoa como única, é ter a certeza de que as maneira positiva, entendendo que a pessoa, da sua forma e a
verdades são relativas e que as minhas verdades servem apenas a partir de suas experiências, está procurando encontrar as suas
mim. É ter a convicção que não me serve, na relação de ajuda, próprias saídas dentro das condições que consegue enxergar na-
acreditar nos padrões sociais ou morais como verdades univer- quele momento.
sais. É ter a capacidade de crer no outro ainda que ninguém Rogers nos diz a este respeito:
creia. É ter a confiança nessa pessoa que busca ajuda, ainda que
ninguém confie. É ter a chance de me despir dos meus conceitos Quando o terapeuta está experienciando uma atitude caloroso, positiva
e de aceitação para com aquilo que está no seu cliente, isto facilita a
€ preconceitos para estar com ela.
mudança. lsto implica que o terapeuta esteja realmente pronto a acei-
Confiar nessa pessoa à partir de suas próprias experiências.
tar o cliente, seja o que for que esteja sentindo no momento — medo,
Aceitá-la, desprendendo-me das “verdades aprendidas”. Crer na
confusão, desgosto, orgulho, cólera, ódio, amor, coragem, admiração.
pessoa a partir de suas próprias experiências. Nada substitui a
Isto quer dizer que o terapeuta se preocupa com o seu cliente de uma
própria experiência. Segundo Rogers: forma não possessiva, que o aprecia mais na sua totalidade do que de
uma forma condicional, que não se contenta com aceitar simplesmente
À experiência é, para mim, a Suprema autoridade. À minha própria o seu cliente quando este segue determinados caminhos e desaprová-lo
experiência é a pedra de toque de toda validade, Nenhuma ideia de quando segue outros (ROGERS, 1961),
qualquer pessoa, nem nenhuma de minhas próprias ideias, tem a au-
toridade que reveste a minha experiência. É sempre 2 experiência que Se o psicoterapeuta acredita de fato na tendência atualizante,
€u regresso, para me aproximar cada vez da verdade, no processo de fica mais fácil aceitar o outro, mesmo não entendendo ou não
descobri-la em mim. Nem a Bíblia, nem os profetas — nem Freud, nem concordando. :
a investigação — nem as revelações de Deus ou dos homens — podem É importante que o psicoterapeuta tenha claro em si o que é
ganhar precedência relativamente a minha própria experiência direta
semeo que é do outro, pois mesmo que pense oti sinta de for-
(ROGERS, 1961).
rna diferente, terá maiores condições de respeitar o sentimento
o ou a atitude da pessoa. Ou o psicoterapeuta tem a capacidade de seu contato com o mundo externo, no sentido da re-atualização de

soidiouud shas e
possa | Briepenuas jebPo ioay +
8

A Abordagem Centrada na Pessoa


-. sua experiência interna. Através da consideração positiva do terapeura,
=
s
de considerar e aceitar a pessoa verdadeiramente e é possível
—- o cliente começa a ter consideração para consigo mesmo, voltando a
o manter a relação de ajuda ou, na minha forma de enxergar, não
nn ter fé no seu processo, movido pela energia de sua própria vivência
=
e haverá relação de ajuda.
E)
experiencial (JORDÃO, 1987).
fe) À partir da aceitação e do acolhimento, a tendência é que a
pessoa sinta maior confiança para ser ela mesma em seus senti- Quero finalizar este assunto cirando Sérgio Gobbi, falando
mentos, confusões e dificuldades, para se perceber e a se autodi- a respeito dessa confiança na pessoa e na capacidade de consi-
rigir para o seu caminho. derá-la de forma incondicional e positiva:
À sensação que tenho é que se a pessoa percebe que o psi-
coterapeuta “aguenta” aquilo que ela rem de “pior”, segundo a É uma atitude desprovida de categorização ética ou moral, não impli-
sua própria visão, talvez ela consiga se aproximar de uma forma cando aprovação ou desaprovação de comportamento, mas a conside-
mais inteira nos seus próprios sentimentos e a partir disto tam- ração de sua potencialidade e de suas perspecrivas. É a prova de Rogers
na crença da natureza humana (GOBBI, 2002).
bém encontrar alternativas para aceitar-se.
Muitas vezes, ouço de psicoterapeutas que têm como refe-
rencial outras abordagens ou de psicoterapeutas iniciantes a res-
peito do medo de facilitar condições para que a pessoa se torne Algumas considerações importantes
ela mesma, como se dentro dessa pessoa houvesse uma “fera a
ser dormada e que não impor à pessoa decerminados padrões a Pretendo fazer algumas considerações para tentar dirimir possí-
deixaria solta e isto poderia se tornar perigoso para ela mesma e veis dúvidas a respeito dos princípios citados acima, assim como
para o meio em que vive. sua utilização na prática psicoterápica. |
Para mim, se tenho confiança de fato no outro, tenho a con- Costumo dizer, nos cursos que ministro, quando falamos
vicção de que essa pessoa, em um ambiente facilitador, podendo desses princípios, que, na Abordagem Centrada na Pessoa, sem-
ser ela mesma de forma inteira, sentindo-se aceita e aceitando-se pre há uma saída.
em sua complexidade, terá maiores condições de reavaliar-se em Existe um mito que, acredito, tenha surgido a partir da falta
seus sentimentos, percepções e atitudes para buscar em si novas de informação dos professores universitários que não simpati-
formas, se for o caso, de estar consigo mesma e com o outro. zam ou desconhecem essa abordagem, que ela não tem condi-
À este respeito, Marina Pacheco Jordão afirma: ções de lidar com determinado tipo de pessoas ou problemas, e
que ela ficaria restrita a ajuda de pessoas com “problemas leves”
A atitude de consideração positiva incondicional do terapeura para com ou “superficiais”,
o cliente poderá resgatar sua autoestima e, posteriormente, reavivar o Em primeiro lugar, gostaria de questionar o que significa “pro-
exercício de sua liberdade experiencial tão massacrada ou postulada blemas leves ou superficiais”? Quem determina qual a gravi-
por diversos valores externos a si mesmo. (O exercício dessa liberdade dade de um sentimento ou sofrimento? Como se mensura isto?
na relação terapeura-cliente tende, também, a restabelecer a adequação Parece-me que a Abordagem Centrada na Pessoa sofre ainda
fo on grande resistência por parte de vários profissionais, principal- dicionalmente à capacidade de ser empático, a aceitação tende

BOSSA) BU EPBNUSO WoBeplIoqy v


sold jouud snos e
o 2
[7
[2 =.
fo) o mente por desmistificar o papel do psicoterapeuta, abrindo mão a existir de forma real, pois eu, me colocando na pele da pessoa,
Fo &
= -Ss
[em
do poder e do saber e devolvendo ao cliente o poder e a liberda- me livrando dos meus julgamentos, terei maior possibilidade
E [2- de a respeito da direção de sua própria vida. Cabe ao psicotera- de aceitar a pessoa, pois estarei levando em conta o seu contex-
Fx ro)to
o Es)
fe
peuta ser um facilitador do processo e não o detentor do poder to. Em minha experiência de consultório, muitas vezes atendi
o
O desse processo da pessoa que busca ajuda. pessoas cujas histórias eram exatamente iguais àquelas que eu
E trecriminei vendo em noticiários ou em outras situações, Para
o
>
À Abordagem Centrada na Pessoa não se dispõe a ser a ver-
E)
=)& dade absoluta. Rogers, precursor dessa abordagem, sempre teve mim, fica evidente a diferença entre ouvir falar e estar de frente
aS o cuidado de exprimir as suas ideias como hipóteses de trabalho à uma pessoa com uima história semelhante, mas carregada de
<
<< (ROGERS, 1961), tendo grande receio de que os seus pres- vida, de sentimentos e de sofrimento. Na minha vivência, fica
supostos se tornassem dogmas. Ássumia os seus pensamentos muito difícil não existir uma consideração incondicional positi-
como seus e renovou-se ao longo de sua vida, Tinha grande pa- va quando ao mesmo tempo somos empáticos.
vor de que a Abordagem Centrada na Pessoa fosse engessada em Vou repetir: os princípios facilitadores propostos pela Abor-
seus pensamentos, pois a enxergava como um meio e não um dagem Centrada na Pessoa se complementam!
fim. Tinha a esperança que essa abordagem fosse repensada o Alguns psicoterapeutas levantam a seguinte questão: e se eu
tempo todo, não for capaz de aceitar o outro incondicionalmente?
Todos nós somos responsáveis pela Abordagem Centrada na À minha visão é que, nesse caso, a congruência me auxilia,
Pessoa. Quando discutimos, escrevemos, PeNSAraos, ENSLNaAmos pois não tenho dúvidas de que a capacidade de poder me ex-
ou aprendemos essa abordagem, na verdade a estamos recons- pressar de forma genuína é facilitador em mim e no cliente,
truindo e em minha opinião não bá outra forma de essa aborda- embora muitas vezes isto possa gerar algum desconforto em
gem existir que não seja estando em movimento contínuo. ambos. Eu realmente gostaria de poder aceitar sempre as pes-
Quando digo que, a meu ver, sempre temos uma saída a soas de forma incondicional, mas me sinto confortável em saber
partir dos princípios de nossa abordagem, refiro que, em minha que posso falar o que realmente sinto se não conseguir aceirá-
opinião, esses princípios se complementam. la. Conforta-me saber que, apesar do meu esforço e da minha
Muitas vezes, me perguntam se é possível ter uma conside- intenção em ajudar a pessoa, eu, na condição de ser humano,
ração incondicional positiva sempre. Penso que, enxergando de posso não dar conta de aceitar alguém como gostaria. Ser ape-
forma única e separada dos demais princípios, ficaria muito di- nas congruente talvez me fizesse expressar isto de forma des-
fícil eu considerar incondicionalmente de forma positiva muitas cuidada, Ser congruente, de forma empártica, me dá a possibili-
atitudes e pensamentos. Quando vejo no jornal algumas histó- dade de, ainda que eu não consiga aceitar a pessoa de um jeito
tias, elas me arrepiam e me fazem tecer muitos julgamentos a incondicional, eu tenha condições de expressar isto de forma
respeito das pessoas. Temos o hábito de enxergar as situações cuidadosa, pois se realmente for empático, o fato de me colocar
ou os fatos apenas por eles mesmos, não levando em conta o na pele dessa pessoa me dará condições de expressar o meu
contexto, Se eu associar a capacidade de aceitar o outro incon- sentimento de forma clara, porém cuidadosa.
Outra questão que por vezes me perguntam, é se tenho a próximo da pessoa do que nas outras relações da minha vida em

sojdiouvd snes a
Bossag Bu BEpequeo Wwabeploay y
e seus princípios
A Abordagem Centrada na Pessoa
obrigação de ser congruente sempre. que estou vivendo situações diferentes e preocupado com a mi-
É claro que eu gostaria de ter essa capacidade o tempo todo, nha própria existência. Não visto uma roupa de psicoterapeura.
pois, como disse anteriormente, tenho convicção que ser genuí- Não urilizo os princípios da Abordagem Centrada na Pessoa
no er uma relação é altamente facilitador. No entanto, algumas como técnica. Sinto estes princípios em mim, Este é o meu jeito
vezes, já me senti incapaz, com medo ou com vergonha de falar de ser. Na minha visão, ou eu vivo esses princípios ou estarei
algo que se passava em mim com relação à pessoa e, nesse caso, utilizando-os como técnica. Ouço muitos colegas da ACP fala-
quero ter o mesmo respeito que gosto de ter com as pessoas, rem que, quando descobriram essa abordagem, sentiram alívio
comigo mesmo, ou seja, durante os meus 20 anos como psicote- por saber que esse jeito de fazer psicoterapia existia, pois de al-
rapeurta, aprendi a respeitar as minhas limitações. Não quero me guma forma essa maneira de enxergar a ajuda já existia dentro
acomodar ou me justificar nessas limitações na relação de ajuda da pessoa.
e tento me aprimorar como pessoa e como profissional cada vez Várias pessoas me disseram que encontraram a ACP, mas que
mais para ter a capacidade de viver os princípios em que tanto já tinham essa forma de ser e de enxergar ajuda mesmo antes de
acredito de forma mais plena, mas há este paradoxo na ACP: descobrirem essa abordagem. Foi assim que aconteceu também
Para estar centrado no outro, é importante que eu esteja cen- comigo. Em minha opinião, ou esse jeito de enxergar o ser hu-
trado em mim também, Penso que seja impossível eu ter res- mano e a relação de ajuda faz todo sentido para o psicoterapeuta
peito verdadeiro com o outro se não tiver esse mesino respeito que tem a ACP como referencial teórico, ou o profissional vai
comigo. Coro é possível aceitar as dificuidades do outro se não acabar utilizando esses princípios como técnica e ser for assim,
consigo me aceitar em minhas dificuldades e limitações? Como em minha opinião, essa atitude nada tem que ver com o que
é possível me colocar na pele do outro se não sou capaz de me entendo dessa abordagem.
ver em minha própria pele?! Como posso ser genuíno com o
outro se não sou honesto comigo mesmo? Como posso acolher Lembro-me que, há muitos anos, em um grupo de es-
a pessoa se me violento? tudos que mantenho, um participante queria utilizar técnicas
Mais uma vez, me sinto acolhido pelos princípios dessa comportamentais o tempo todo, pois dizia que o seu cliente
abordagem, o que me faz ter a visão nítida de que os princípios não tinha capacidade para sair da situação que se encontrava
expostos acima se complementar. por ele mesmo, O grupo discutiu bastante a esse respeito e o
Na minha opinião, ser psicoterapeuta centrado na pessoa participante, que se dizia centrado na pessoa, manteve a sua
significa estar aberto aos próprios sentimentos e ter a capacida- posição a respeito da descrença no seu cliente. Em determi-
de de viver esses princípios de forma visceral. Não “atuo” como nado momento, outro membro do grupo disse a esse partici-
psicoterapeuta. “Sow"! O que me diferencia quando estou aten- pante: “Posso estar enganada, mas você me passa a impressão
dendo uma pessoa em meu consultório das outras situações de de que adora a nossa teoria, mas, no fundo, acredita mesmo
minha vida é que no consultório eu busco estar inteiramente na abordagem comportamental.º O grupo ficou em silêncio
concentrado no outro e isto de alguma forma me faz estar mais até que o participante disse: “Você me pegou de jeito! É uma
Ef pena. Acho esses princípios lindos e tenho feito muito esforço de cura, que advém da medicina, Essa abordagem busca facilitar
to

BOSSS] EU EDEUSO WsBEPICAW VW


o[

soidiouid snas e
2
=
D para acreditar neles, mas no fundo você tem razão, embora na pessoa um maior grau de autoconhecimento, pois cremos
DD
o
à. ==
<o a eu seja um simpatizante dessa abordagem, acredito mesmo que a partir daí haverá possibilidade de essa pessoa encontrar
fo Fe)
--) na psicologia comportamental.” Esse momento foi tenso,
re
fo Fo novas saídas, que, de acordo com a sua própria perspectiva, se-
ãs [O
mas foi também libertador para a pessoa, que, embora triste,
Cc
o
o jam mais saudáveis.
O pôde perceber que utilizava os princípios centrados na pessoa Cremos que quanto mais uma pessoa tíver acesso ao seu re-
E
o
jo) de forma técnica, parcial e condicional. Isto fez com que pertório interno, mais próxima essa pessoa estará de um funcio-
S
D= ela buscasse apoio na abordagem que realmente fazia sentido namento ótimo, em um processo de busca de uma vida plena,
õ
2 para ela. )
<q e que esse funcionamento facilitará condições à pessoa de estar
<<
mais inteira consigo mesma e consequentemente nas relações
Para estar na relação de ajuda, a meu ver, o psicoterapeuta interpessoais e no meio em que vive.
centrado na pessoa não utiliza os princípios de forma sepa- Segundo Rogers:
rada ou pensada. Simplesmente, ele interioriza esses princípios
À pessoa que estiver completamente aberta a sua experiência terá
e está na relação de forma inteira com a pessoa, sem a pre-
acesso a todos os dados possíveis da situação sobre que fundamentará
ocupação da teoria. Penso que se de fato tenho esses princí-
o seu comportamento; as exigências sociais, as suas próprias necessi-
pios de forma interiorizada como jeito de viver, naturalmente
dades complexas e possivelmente em conflito, a sua recordação em
terei condições de utilizá-los de forma natural, priorizando a
situações semelhantes, a sua percepção da caráter único dessa situação
relação. determinada, etc. Os dados seriam de faro muito complexos. Mas o
À esse respeito, Rogers no diz: indivíduo poderia permitir 4o seu organismo toral, com a participa-
ção da sua consciência, considerar cada estimulo, cada necessidade,
Eu arriscaria a hipótese de que, no imomento imediato do relaciona-
cada exigência, à sua intensidade e importância relativas e, a partir
mento, a teoria específica do terapeuta é pouco importante e se está na
desse cálculo e dessa apreciação complexa, descobrir 2 atitude que
consciência do terapeuta naquele momento, é provavelmente neciva
mais integralmente sarisfizesse as suas necessidades perante a situação
à terapia. O que estou dizendo é que o encontro existencial é o que é
(ROGERS, 1961).
importante, e que no momento imediato do relacionamento terapên-
tico a consciência da teoria não tem um lugar útil. Outra maneira de
Para que, em um ambiente psicoterápico, possa existir a fa-
afirmar isto é que na medida em que estamos pensando teoricamente
na relação, tornamo-nos espectadores e não participantes — e é como
cilitação da ajuda para que a pessoa se aproxime da melhor for-
participantes que somos eficientes (ROGERS, ma possível de si e da sua possibilidade de se aproximar cada
1967).
vez mais desse processo de vida plena, é necessário que exista,
À não ser que eu tenha interesse em me preservar na relação, por parte do psicoterapeuta, uma postura que combine com
não há motivos para que eu não seja um participante ativo desse os princípios facilitadores já mencionados neste capítulo. Uma
. momento com o cliente. grande confusão que há, em minha opinião, para que o psicote-
A Abordagem Centrada na Pessoa está distante do modelo rapeura possa tentar ajudar a pessoa por meio dessas posturas, é
o mito da não diretividade, que acaba por engessar aqueles que Que significa ser rogeriano, afinal? Significa fazer do jeito

soldiouud snas a
e seus princípios
que Rogers fazia? Como posso saber como Rogers faria em uma

PNSSAY EU EDEBNJUSO NUSBPPIOQy


acreditam neste conceito.
Percebo que, em função deste mito, muitos profissionais situação em que ele não está presente?
sentem-se com dificuldade de se expressar em função de acredi- Segundo Juan Lafargada:
tar que qualquer intervenção na relação terá sido diretiva e isto
Rogers reagia com perceptível irritação quando alguém se referia a
causará má influência no processo do cliente. quem se identificasse com o enfoque centrado na pessoa como “roge-
Quando Rogers usou a expressão não diretivo, no início da riano”. Certo dia, falou: “O único rogeriano sou eu mesmo”, deixan-
construção da Abordagem Centrada na Pessoa, tal expressão re- do claro que era o único a ter o direito a esse nome (LAFARGADA,
feria-se ao fato de a direção psicoterápica a ser seguida na rela- 2002).
ção de ajuda, estár na mão do cliente, e não do psicoterapeuta,
em função da crença da pessoa na capacidade de se autodirigir Será que ao nos intitularmos rogerianos e utilizarmos a não
através do princípio da tendência atualizante. Ele utilizava a diretividade, não estamos nos escondendo de uma relação intei-

[te]
expressão para se contrapor às outras formas de atendimento ra e intensa com o cliente?
psicoterápico que existiam até então e que acreditavam na re- Maria Bowen contribui com esse assunto:
lação de ajuda como uma relação de poder, onde o profissional
Eu vejo o modelo “rogeriano” não diretivo, de psicoterapia, muitas
exercia o seu “saber” e autoridade para ajudar a pessoa, tendo-se
vezes como uma maneira de encobrir a passividade e o medo de come-
a visão de que era o especialista que tinha condições de dirigir o ter erros; tirando o corpo fora. É fácil sentar-se em frente ao cliente,
cliente para o caminho da “cura”. balançando a cabeça frente ao cliente, balançando a cabeça e dizendo
Rogers mesmo desculpou-se algumas vezes por ter usado “Hummm... hummmm”, e não arriscando a engajar-se num nível real
essa expressão, embora não tenha a certeza de ter sido ele o seu de pessoa para pessoa (BOWEN, 1987).
criador, tendo abandonado a expressão não diretivo já no início
da década de 60, em função da confusão e de seu mau uso por Para mim, há uma grande diferença entre ser “rogeriano” e
parte dos profissionais que tinham essa abordagem como refe- ser centrado na pessoa. |Ser centrado na pessoa para mim signi-
rencial teórico. fica ter os princípios dessa abordagem como referencial teórico
Em uma entrevista concedida a Willard B. Frick, ele disse: e de vida e dentro dele desfrutar da própria liberdade em estar
“Nunca consegui saber quem inventou a expressão não diretiva. com o cliente de forma inteira e intensa, sempre respeitando o
Se fui eu, peço desculpas, embora fosse descritiva, sem dúvida, seu próprio jeito de ser.
de certa fase inicial” (ROGERS, 1975). Em minha forma de enxergar, quanto mais “rogeriano” o
A meu ver, infelizmente, muitas pessoas não só utilizar essa profissional for, menos centrado na pessoa ele será, pois estará
expressão, como também a defendem com veemência na rela- ferindo os princípios dessa abordagem, que tem em sua base
ção de ajuda. a liberdade e a experiência, passando dessa forma a utilizá-la
Outro termo que ainda hoje é amplamente utilizado e que o como técnica, preso a uma postura que priva o profissional de
próprio Rogers discordava do uso é rogeriano. estar de forma envolvida, inteira e intensa com o cliente.
S a Se confio no potencial humano, não há sentido nenhum em po responsável pela reconstrução, pelas minhas atitudes e sen-

BOSSA BU EPENQUABO WSBEBDIOAY V


soidjouvd snos e
Õ 2
7
Us) 2
D o ter medo de me posicionar na relação psicorterápica. timentos.
f. <<
fo] =
fa oÕ
Novamente, Maria Bowen se posiciona: "A minha intenção é, a partir do exposto, convidar você, lei-
8E) 3D7) tor, a uma reflexão a respeito dos assuntos discutidos para que
Penso que um dos grandes paradoxos da abordagem centrada na pessoa
Hs o
E você possa, se for do seu interesse, chegar às suas próprias con-
o está neste segundo aspecto: por um lado, nós profetizamos confiar na
O
capacidade da pessoa para guiar seu próprio processo de crescimento e
clusões e que, a partir delas, você encontre o seu jeito de en-
=
&
te para escolher sua própria direção. Por outro lado, nós temos a tendên- xergar a relação de ajuda, pois em minha opinião esta é à única
fx]
re)Fx
cia de tratar a pessoa com precaução, por medo de sermos influentes forma de mantermos a Abordagem Centrada na Pessoa viva e
fe
Fe)
< demais, como se ela fosse uma pequena criança maleável facilmente em contínuo movimento, dirimindo a possibilidade de ela se .
transformar em um dogma, desenvolvendo-se cada vez mais €
<
impressionável por comentários parentais. (Eu penso que, mesmo as
crianças, não são tão maicáveis assim.) (BOWEN, 1987) dessa forma tendo condições de contribuir de forma crescente
para o desenvolvimento dessa teoria e na ajuda à pessoa.
Se o foco da psicoterapia for o cuidado em ser “não diretivo”,
paradoxalmente, talvez sem perceber, estaremos nos apegando
a uma técnica e a uma maneira sutil de manipular a relação de
ajuda, pois estaremos priorizando as regras € não a pessoa. Esta-
remos oferecendo regras travestidas de falta de regras. Estaremos
nos escravizando e a forma como enxergo a nossa abordagem é
oposta a se escravizar. Ser um psicoterapeuta centrado na pes-
soa, em minha opinião, significa ser livre, respeitando o jeito de
ser do cliente, mas respeitando também o seu próprio jeito de
ser. Significa confiar no potencial do cliente, mas também con-
fiar no seu próprio potencial e na própria capacidade em estar
presente de forma inteira e intensa nessa relação. E, a meu ver,
quando temos uma postura “rogeriana” de não diretividade, nos
afastamos desse propósito.
Esta é a Abordagem Centrada na Pessoa em que acredito
e com que me sinto a cada dia mais envolvido. Uma abor-
dagem que se propõe a estar sempre em movimento. Uma
abordagem que busca se manter sempre como hipótese e
não como verdade. Uma abordagem onde eu possa me sentir
envolvido no seu contínuo processo de criação, sendo criador
e não criatura, Onde eu possa me sentir livre e ao mesmo tem-
e à.

ESTALT-TERAPIA -

Texto 5
EDS cm CAPÍTULO 2
É FÃ GESTALT- TERAPIA
RUM TI É, É FO é FE

2,1. CONSIDERAÇÕES SOBRE A PSICOTERAPIA


| Percursos, recursos e cursos são os caminhos quelevam
a alguma direção e a algum objetivo. O presente capítulo
tem como finalidade a reflexão constante em busca da ela-
boração e compreensão de alguns dos conceitos gestálticos.
£ Yontef (1998, p.15) menciona que “explicações e inter-
pretações são consideradas menos confiáveis do que aquilo
que é diretamente percebido ou sentido. Pacientes e terapeu-
tas, em Gestalt-terapia, dialogam, isto é unicam suas
perspectivas fenomenológicas”. Historicamente, a Gestalt-
terapia emergiu como uma nova possibilidade de se pensar
no homem, ou seja, considerá-lo em um contexto diferente
: daquele no qual os seres humanos eram compreendidos por
| duas visões nos anos 1950.
trDias (1991, p.31) coloca que:
Embora várias abordagens e enfoques sejam possíveis,
|| o fenômeno do suicídio é multideterminado
só poderá ser amplamente compreendido numa
e

abordagem multidisciplinar. Bem nos lembra Freud,


que qualquer folha que toquemos de uma árvore nos
levará até a raiz.

u Não gosto da ideia de criticar posturas e visões do homem,


EENETATT ARENS
pois acredito que a psicologia não “pertença” especificamente
a nenhuma abordagem. A não ser estudantes de Psicologia,
que sentem a necessidade de identificar a abordagem teórica,
percebo que meus clientes não me procuram no consultório
pela linha, mas, sim, pela postura de querer estar em relação.
da rito a us essa o am: ph
39
Respaldando minha afirmação, Perls ef al (1997, p.63) assina- De Para à
lam que, “finalmente, não importa qual seja a teoria do self,
assim como no início o paciente chegou por conta própria, do
. Juma visão histórica uma visão existencial e humanista.

mesmo modo no fim ele terá de ir embora por conta própria”. Uma concepção em que a pes- uma concepção de que a pessoa
soa é um paciente, o que nos É um cliente, pois adotamos um
Sendo assim, considero que tudo depende da visão de homem remete ao modelo médico modelo relacional, no qual o
e da crença que o terapeuta tem, por isso, em vez de criticar, terapeuta está no mesmo nível
respeito todas as possibilidades de compreensão do ser. existencial do cliente.
uma proposta de análise, focali- uma proposta de visão holística,
Num processo de formação e numa inter-relação entre zando as partes ocalizando a totalidade, as partes
campo, organismo e meio ambiente, os princípios básicos, e o todo.
conceitos-chave e os recursos conquistados pela Gestalt- foco no passado foco no presente, no aqui-agora e

terapia puderam ser construídos propiciando-nos uma sólida


no lá-então.
interpretação do terapeuta
possibilidade de compreensão do ser humano e de seus proces-
interpretaçãod: = com-
preensão daquilo que faz sentido
sos psicológicos. Concebo que a Gestalt percorre seu caminho para o próprio cliente. O cliente é
singular e por si só tornou-se uma teoria facilitadora para tra- agente e responsável pelo seu des-
velamento de ser-no-mundo,
balhos de diversos profissionais e áreas afins,
uma adequação ao princípio da Urna adequação,
pão mas, sim,
A palavra Gestalt apareceu em 1523, em uma tradução realiclade social uma preccupação com o cresci-,
da Bíblia. Ela é formada à partir de um particípio passado: mento por meio da ampliaçãoda

tcdcasça
vor Augen Gestalt - “colocada diante dos olhos, exposta au Ss.
aos olhares”. A raiz indo-europeia sta (“estar em pé”) deu
busca da explicação ” Pbusca da compreensão.
margem a um enorme campo semântico; por exemplo,
uma ênfase puramente verbal
grego: statos (“rígido”), inglês: stay, stand (“em pé”), exister uma ênfase verbal e não verbal.
T'existir”) etc. (PENTEADO, 1998, p.38) conceitos de transferência e conceitos de contato e relação
contratransferência como tal,
Perls, em uma trajetória tumultuada e surpreendente e modalidades estruturais como compreensão de self. como um
com uma gama de vivências admiráveis, propôs uma teoria id, ego e superego sistema do qua! id, ego e personali-
enriquecida pelas ideias de outros pensadores. Considero, por- dade são funções.

tanto, a Gestalt-terapia como uma teoria de interrupções, reto- awareness perceptiva awareness reflexiva.

madas, encontros e desencontros. À Gestalt-terapia tem ocu- 1 fronteira como limite franteira como proteção edelimita-
pado seu espaço como uma abordagem séria, comprometida ão daquilo que identifico e alieno.

com a realidade, perceptiva nas questões óbvias e integradora. visão da doença como patologia visão da doença como ajustamento
criativo, ou seja, como a melhor
Pode ser compreendida como uma teoria que percorre É aneira que o cliente pode estar
no momento.
um caminho de-para:
Sintetizando, na tratativa dos conceitos gestálticos, con- SINTOMA Elege uma parte para Entende o sintoma
sidero os seguintes aspectos: se comunicar.
DE
ESTTUnIce como manifestação
> RELAÇÃO ENTRE CAMPO, ORGANISMO E MEIO AMBIENTE: da integração corpo
referindo-se ao lembrete de que somos relacionais e res- |mente.
e Respeita
o sintoma e sua
ponsáveis pelas nossas escolhas. EÉ
=
funcionalidade.
> EscorHa: referindo-se ao fato de que somos seres capazes FIGURA E FUNDO A vida do cliente éo Cliente é figura e
dê escolher. E fundo é sua queixa é
a figura. Traz a figura
terapeuta
é fundo.
>» HomMEOSTASE: referindo-se à ideia de que temos a capaci- O terapeuta está a
que é diferenciada serviço do cliente.
ade de nos organizar e nos autorregular.
na atividade do Observa'no cliente o
Apresento, a seguir, um estudo das influências de algu- organismo, O fundo que é figura. Avalia
oferece contorno. ao propor *experi-
mas teorias e suas relações com a Gestalt-terapia, correlacio-
Questão: qual é a mentos” ao cliente,
nando essas influências com conceitos ainda hoje utilizados, melhor forma de pois corre o risco de
fechar minha figura? oferecer figuras que
2.2. INFLUÊNCIAS não pertençam ao
cliente.
A partir de uma necessidade de maior organização Questão: qual é a
e compreensão, apresento uma síntese das três influências:
figura dominante do
Psicologia da Gestalt de Max Wertheimer, Wolfgang Kóhler e cliente?
Kurt Kofka, Teoria de Campo de Lewin e Teoria Organísmica, ÁQUI E AGORA - | Tudo o que percebe Compromete-se com
=
de Kurt Goldstein. Para tanto, precisei lançar mão dos meus lemoções, pensa- realidade como um
papéis de cliente e psicoterapeuta. O enfoque para esta compa- mentos, compor-
tamento) pode
todo
aqui-a
no gora.
ração está embasado nos seguintes aspectos: conceitos, percep- ento POGÊSer
Ser
compreendido no
ção do cliente e focalização da percepção do psicoterapeuta. presente,
PIESENtE.
HOMEOSTASE Busca saúde e se Busca saúde, pela
Concertos CuENTE PsiCoTERAPEÉUTA autorregula identificação da
TODO E PARTES É um todo. Deve ter É um todo, Deve real necessidade do
paciência para bus- ter paciência para cliente e da satisfação
car seu próprio equi- que o cliente revele dessa necessidade,
líbrio. É um todo, no a maneira como À COMPORTAMENTO MOLAR Os dois compor- Atenta para as dicas
qual seu organismo sua totalidade está E COMPORTAMENTO tamentos estão que o comportamento
é um sistema organi- organizada. Atenta MOLECULAR presentes. molecular fornece e
zado e diferenciado para à parte que o estabelece correlações
em suas partes. cliente elege de seu como comporta-
organismo. mento molar.
MEIO GEOGRÁFICO Revela tanto o meio Lida com o meio 2.2.1. Psicologia da Gestalt e a relação com a Gestalt-
E MElo coMPORTAMENTAL | geográfico quanto o geográfico do cliente terapia
comportamental. o mais diretamente
possível. Perls et al (1997, p.53) apontam para as correlações da
É um campo. Psicologia da Gestalt com a Gestalt-terapia quando meri-
CAMPO É um campo.
ciona que “(...) como psicoterapeutas que se alimentam da
ESPAÇO VITAL É Revela seu espaço Conhece o espaço
vital. vital do cliente, Psicologia da Gestalt, investigamos a teoria é o método da
PERMEASILIDADE
observando sua awareness criativa, a formação figura/fundo como sendo o
permeabilidade.
centro coerente dos discernimentos eficazes, mas dispersos,
PROCESSO DE EQUALIZAÇÃO Mesmo que não — Acompanha o cliente a respeito do “inconsciente' e da noção inadequada de “cons-
tenha descoberto na descoberta de sua ciente”. Os principais representantes da Psicologia da Gestalt
sua direção, energia força, para que ele
e ponto de aplicação, possa direcioná-la e são Max Wertheimer, Wolfgang Kôhler e Kurt Kofka os quais
busca seu equilíbrio. manter uma energia estudam a percepção.
suficiente para atingir
seus objetivos.
OS CONCEITOS: HOMEOSTASE, FIGURA E FUNDO, TODO E
PARTES, AQUI E AGORA (PONCIANO, 1985, P.70-81)
AUTORAEALIZAÇÃO Ao pedir ajuda, Acompanha
o cliente
quer viver de uma |descoberta
na de sua. Homeostase é um processo em que o organismo se
maneira diferente. força, |
Portanto, busca sua assa direcioná- autorregula através da: interação com o meio. Cada pessoa
autorrealização. mant energia
uma er tem seu processo homeostático, no qual o organismo man-
Estabelece relação suficiente para atingir
tém seu equilíbrio e sua saúde, Sendo assim, o cliente bus-
com o meio que lhe seus objetivos
dá referências para cará sempre a melhor forma de fechar sua figura. Mesmo
suas necessidades, não sendo a mais criativa ao olhar do outro, o cliente revela
a melhor maneira que ele encontra para lidar com a situ-
ação, Ele busca saúde pela autorregulação e satisfação das
Embora com enfoques diferentes de objeto de estudo, necessidades emergentes. Talvez não tenha identificado sua
como demonstra a tabela anterior, percebo que as três influ- real necessidade, mas quando reconhece sua figura, busca
ências - Psicologia da Gestalt, Teoria de Campo e Teoria a satisfação dessa necessidade e “dá espaço” para uma nova
Organísmica — contribuíram para o corpo teórico e prático atividade física ou mental.
da Gestalt-terapia, pois falam da necessidade de ver o cliente Não existe figura sem fundo e vice-versa. Figura e fundo
como um todo, da existência humana, de uma busca do pró- estão em íntima relação, sendo que o fundo revela a figura.
prio equilíbrio e, implicitamente, tratam da singularidade do “Quanto às suas características, a figura depende do fundo
ser humano e da descoberta desse ser pela relação. sobre o qual aparece. O fundo serve como uma estrutura ou

44 45
moldura em que a figura está enquadrada ou suspensa e, por no aqui-agora significa experienciar a realidade como ela se
conseguinte, determina a figura" (KOFKA, 1975, p.194). apresenta. Em psicoterapia, o Gestalt-terapeuta pode compro-
Aquilo que percebo e que chama minha atenção é con- meter-se com a realidade no aqui-agora. Quando o cliente se
siderado como figura, e a mesma, parte de um todo, ou seja, emociona no momento, no agora, é passível entender que essa
aquilo que o cliente traz como figura é parte de seu todo. O é uma pista para que o terapeuta compreenda sua maneira de
objetivo do Gestalt-terapeuta é, portanto, o de ajudar o cliente interagir e de se expressar. Assim, o terapeuta pode perguntar
a descobrir ou a organizar criativamente qual é a figura domi- o que o cliente sente no momento, e mesmo que a experiência
nante para o cliente. O questionamento de qual é a melhor remeta à uma experiência passada é no presente que o cliente
maneira para que o cliente feche a figura emergente é um dos vivencia seus sentimentos e pensamentos e, desse modo, pro-
passos mais importantes para a psicoterapia. cessa novas significações.

Estamos imersos em todos nos quais o homem não COMPORTAMENTO MOLAR, COMPORTAMENTO MOLECULAR,
percebe as partes isoladamente. É o interesse que incentiva as MEIO GEOGRÁFICO E MEIO COMPORTAMENTAL (PONCIANO,
escolhas, ou seja, enquanto há interesse, a cena total parecerá 1985, p.82-94) :
organizada e significativa. “Apenas quando há completa falta Consideramos como comportamento molar aquilo que
de interesse, a percepção é atomizada e o lugar é visto como observamos como resultado de processos fisiológicos e aquilo
uma confusão de objetos sem relação entre si” (PERLS, 1988, que é perceptível. Kofka (1975, p.37-8) define que o “(...) com-
p.18). As partes estão em relação direta com o todo. — portamento molar é um fenômeno secundário; é o resultado
Perls et al (1997, p.52) mencionam a tese principal da final e exteriormente observável de grande número de proces-
Psicologia da Gestalt, “(..) que se tem de respeitar a totalidade sos fisiológicos (...)” e oferece alguns exemplos tais como “a fre-
de fenômenos que surgem como todos unitários, e que estes quência às aulas do estudante, a lição do professor, a navegação
só podem ser analiticamente divididos em pedaços ao preço do piloto, a excitação dos espectadores (...), em resumo, todas
da aniquilação daquilo que se pretendia estudar”. O Gestalt- as inúmeras ocorrências do nosso mundo cotidiano a que o
terapeuta deve se trabalhar no sentido de ter paciência para leigo chama comportamento”.
que o cliente possa revelar como o seu todo está sendo organi- Já o comportamento molecular significa todos os pro-
zado, ou seja, de sessão em sessão, o cliente elege uma de suas cessos internos que ocorrem no organismo e que são inicia-
partes para revelar seu todo. | dos pelos estimulos sensoriais. “O comportamento mole-
cular, portanto, é frequentemente um excelente informante
É o presente que oferece tudo o que é necessário para
da qualidade (valor e significado) que um comportamento
a compreensão da realidade, Estar no aqui e agora é enten- molar apresenta” (PONCIANO, 1985, p.84). Relacionando
der que minha percepção pode ser explicada somente pelo esses conceitos com a aplicação em uma sessão gestáltica,
agora. À Gestalt acata este conceito e traz a visão de que viver verificamos que tanto o comportamento molar quanto o

46.
47
molecular estão presentes. Por esse motivo, é preciso atentar & ocorre no campo. À seguir, apresento uma breve explanação dos
para a congruência desses comportamentos, por exemplo, ES
conceitos de campo, espaço vital e permeabilidade:
olhos
quando um cliente fala de um problema, treme, seus Kofka (1975, p.54) afirma que “(...) o campo e o com-
ficam marejados e altera a entonação e o ritmo de sua voz, portamento de um corpo são correlativos. Como o campo
podemos inferir que tanto o comportamento molar quanto o determina o comportamento dos corpos, esse comportamento
molecular revelam parte da totalidade do cliente.
L& pode ser usado como indicador das propriedades de campo”,
É
ou seja, é em constante relação com o meio que a pessoa
Meio geográfico representa aquele em que se revela a
influencia e é influenciada. O conceito de campo enfatiza a
realidade. O meio comportamental é aquele que se pensa que
relação que existe entre à pessoa e o meio, Sendo assim, no
se está, simbolizado pela palavra aparência. O meio compor-
setting terapêutico, o cliente é um campo e o terapeuta, outro
tamental é o elo entre meio geográfico e o comportamento. campo. Compreender o cliente como campo é percebê-lo
“Duas pessoas podem estar em um único meio geográfico como um todo, considerando a existência de um espaço vital
e sentirem coisas e se comportarem diferentemente dianie mais abrangente do que o próprio cliente demonstra pelos seus
dos mesmos estímulos a partir de sua experiência interna” comportamentos (PONCIANO, 1985, p.94-107), Seus proces-
(PONCIANO, 1985, p.86). sos internos e externos geram tensão e demandam a satisfação
Em psicoterapia, ainda que o terapeuta e o cliente este- , de suas necessidades. Sendo assim, o cliente revela-se como
jam num mesmo lugar - o setting terapêutico -, é possível corpo de energia, força, movimento e direção e é necessário
perceber pensamentos e sentimentos diferentes. Então, é focalizar a atenção nos seguintes aspectos do cliente:
necessário que na relação exista a compreensão lidando com * noespaço vital;
as correlações entre o meio geográfico e comportamental o * nasnuances que ocorrem no comportamento;
mais diretamente possível. — * narigidez e fluidez da permeabilidade da fronteira
2.2.2. Teoria de Campo e a relação com a Gestait- de contato;
terapia . : ;
na maneira que lida com suas emoções e
A Gestalt-terapia foi influenciada pelas ideias de Kurt Lewin, pensamentos,

que propôs o conceito de campo. À partir da Teoria de Campo, Nesse sentido, o abjetivo da psicoterapia deve ser o
o cliente é considerado como um campo que abrange diversas equilíbrio e a reestruturação do espaço vital. “(...) o espaço
necessidades e valências. Enquanto psicoterapeutas, somos outro vital é o equivalente do meio geográfico somado ao meio
campo que inclui outras necessidades e valências. A relação tera- comportamental” (PONCIANO, 1985, p.97), ou seja, é a inte-
pêutica é um acontecimento, em que dois campos interagem con- ração da pessoa (realidade interpessoal, percepção é motrici-
comitantemente, Precisamos saber que toda e qualquer mudança dade) e o meio. Para que a pessoa possa se comunicar com o

48 49
mundo físico, é necessário lançar mão da permeabilidade, ou
influências de Kurt Goldstein é norteado para a compreensão
seja, existe uma permissão por parte de cada pessoa para que da experiência vivida pelo cliente, ou seja, exista ou não pato-
os fatos entrem no meio psicológico e se equilibrem. À partir logia, o trabalho visa compreender e enfatizar não os proble-
dessa permissão, a compreensão é possível. A fluidez é neces- mas, inas também a pessoa. Dessa forma, direciono minha
sária, pois é através dela que existe a possibilidade de influen- percepção para os modos dos clientes vivenciarem o mundo,
ciar e ser influenciado. Buscamos tal reestruturação quando ou seja, detenho-me nas vinculações que eles estabelecem e
entendemos que ao buscar ajuda, o cliente abre uma Gestalt. no processo dinâmico de tais vinculações. É a partir das vin-
A partir da tensão gerada pela abertura da Gestalt, podemos culações que estabelecemos com o meio que vivenciamos um
ajudá-lo a identificar sua real necessidade e o valor dessa processo de equalização, que significa a busca do equilíbrio,
necessidade nesse momento de sua vida. O segundo passo é ou seja, a demanda por um retorno mais equilibrado da ten-
ajudar o cliente a descobrir suas forças para direcioná-las e são alcançado pelo centro.
mantê-las em uma energia suficiente para que possa atingir À teoria organísmica salienta a autorrealização, ou seja,
seu objetivo. o impulso básico para se viver. Entendo que exista a busca de
um projeto de vida, desde que exista também a satisfação das
2.2.3. Teoria Organísmica e a relação com a Gestalt-
terapia | necessidades e das potencialidades. Admirador de Wertheimer,
(..) as queixas que o cliente traz representam aquilo Maslow e os psicólogos humanistas acreditavam que um ele-
que ele pode se dar conta no aqui-e-agora. Ésta queixa * mento essencial no pensamento criativo e na resolução efetiva

E SCAAEU
é a figura; é como a ponta de um iceberg. É preciso de problemas é a habilidade para perceber e pensar em termos

DEN DARE
que eu a observe atentamente a fim de compreender do todo, em vez de pensar em termos de partes isoladas. Dessa
à relação entre esta figura/queixa e o fundo. É preciso
que eu compreenda o sentido da queixa na totalidade
maneira, a solução de problemas requer uma mudança no
“da existência do cliente. (FRAZÃO, 1992, p.43) * campo perceptivo.

Já vimos que figura é o que emerge do fundo, é o centro O organismo estabelece uma relação com 0 meio, que
da atenção, é o que forma a diferença nas atividades do orga- se torna referência para as necessidades da pessoa. É pela
nismo. Já o fundo dá contorno para a figura. O organismo relação com o meio, que o organismo descobre suas limita-
não pode ser visto pelas partes isoladas, Sendo assim, pense- ções e possibilidades. O Gestalt-terapeuta procura auxiliar o
mos num sintoma trazido pelo cliente — sintoma que deve ser cliente na nitidez de suas figuras. Poderá entender seu cliente
visualizado não como uma parte, e, sim, como uma manifes- . como um todo, inteiro, como um campo no qual descobrirá
tação do todo do indivíduo. Há um modo de ser da pessoa: a melhor forma de fechar suas Gestalten (plural de Gestalt).
um mundo que envolve modos particulares de sentir, pensar, É preciso alertar para não se propor atividades ao cliente
perceber, agir e atribuir significados. À teoria organísmica sem uma certa coerência com as próprias figuras trazidas
entende o organismo como um todo e o vê vinculado com pelo cliente, pois dessa forma o terapeuta estaria “experi-
o meio. O foco de trabalho de psicoterapia, valendo-se das mentando”" e vendo seu cliente como um objeto de estudo. À
bia
" 50
51
visão é justamente a contrária: o terapeuta é o cliente estão teórico-vivencial, Seja lá qual for a escolha do terapeuta,
na relação. Somos facilitadores para que o cliente descubra penso que se houver o encontro cliente-terapeuta, essa será a
qual é a melhor maneira de equilibrar sua tensão e redistri- melhor linha a ser seguida por ambos.
buir suas energias na sua relação com o meio, ajudando-o No meu caso, quero que a Gestalt seja construída em
a descobrir suas potencialidades e seus limites. Entender o minha vida profissional e, passo a passo, desfruto do suporte
sintoma como uma manifestação da integração entre corpo e que me proporciona. Por acreditar na visão de um homem
mente. Considerar que o sintoma é uma maneira de o cliente que tem possibilidades e potencialidades, escolhe e faz ajus-
se equilibrar. Respeitar a escolha do cliente, é compreender tamentos criativos singulares, não enquadro esse suporte
que tirar seu sintoma precocemente, sem que encontre algo em uma teoria já estudada, preparada e previamente aceita,
para colocar no lugar desse sintoma, torná-lo-ja “manco”, Isso quer dizer que em vez de partir de um conhecimento
pois o sintoma também o significa. pré-estabelecido, meu foco se direciona para a pessoa enão
para o problema. Sendo assim, a doença não é a única porta
2.2.4. A Psicanálise e a relação com a Gestalt-terapia
de entrada para a compreensão do cliente, pois não viso à
Perls, como anuncia Ponciano (1985, p.114-5), “(...)
extinção dos sintomas, mas, sim, à compreensão do modo
partiu da psicanálise, um dos berços da Gestalt, mas com como a pessoa vivencia sua doença, seus problemas e sua
inúmeras modificações, de modo que do berço original se

da Oo sat NE TENTO
maneira de ser em relação com o mundo. Percebo e respeito
podem perceber traços, mas não mais reconhecê-los como *

ESSE
as possibilidades e limitações do cliente que busca o forta-
antigamente”. As maiores divergências são a postura do
lecimento de seu selfe procuro a compreensão da totalidade
psicoterapeuta e a visão de homem. Sendo assim, à Gestalt- do ser singular,
terapia não representa, portanto, uma contestação ou uma
oposição à psicanálise, pois as duas abordagens são funda- À Psicanálise é profunda, assim como a Gestalt,
mentadas e embasam-se em diferentes visões de homem pois são duas abordagens que visam ao bem-estar do ser
humano. Ao olhar o cliente e percebê-lo enquanto campo,
e método. Percebo que a Gestalt “nasceu” da psicanálise, e
como filha, precisou se separar e encontrou seu próprio cami- o terapeuta pode construir sua percepção sobre o cliente,
nho. Acredito que o ser humano precisa ser entendido como Perls et al (1997, p.51) assinalam que:
um todo, ultrapassando as questões das lutas territoriais das (...) considerar o desenvolvimento da experiência
teorias psicológicas e lides acadêmicas. Não são as teorias concreta como fornecedor de critérios autônomos; isto
é, considerar a estrutura dinâmica da experiência não
em si, mas a maneira que a relação entre cliente-terapeuta E
como uma pista para um “inconsciente” desconhecido
é configurada, assim como a visão do psicólogo clínico que ou um sintoma, mas como sendo ela mesma aquilo que
fundamenta a construção do profissional de psicoterapia. E
E
é importante. Isto é psicologizar sem prejulgamento
E de normal ou anormal, e desse ponto de vista a
Perceba que para alguns, a psicanálise fornece =
= psicoterapia é um método não de correção, mas de
um suporte, Pará outros, à Gestalt garante um suporte crescimento. '

52
É no presente e no aqui-agora que o cliente amplia a necessidades e dos significados com a frustração das suas
consciência de seus comportamentos, escolhas e percepções. manipulações do cliente, quando este se isenta das responsa-
As experiências passadas foram e são modelos do viver, mas bilidades de satisfazer as próprias necessidades.
não necessariamente são as únicas soluções para se vincular O retraimento do cliente é visto como um ajustamento
com o mundo. Certamente, o cliente traz seu sofrimento criativo e não como uma regressão. Essa visão fortalece a
por experiências vividas num passado cronológico, mas se pessoa que procura a ajuda terapêutica. Nessa linha de pen-
traz seu sofrimento, ele se faz presente, ou seja, sabendo que samento, o sintoma é visto como uma manifestação e uma
o passado não retorna, é possível ressignificar a maneira de forma que o cliente escolheu para se comunicar. Somente
se compreender a vivência traumática. Ressignificamos no ele sinalizará o momento exato em que abandonará seu
presente, pois estabelecemos outras relações, formas, fron- sintoma. O sintoma, portanto, é compreendido como um
teiras e visões de mundo. Sendo assim, é no presente que ajustamento criativo e se estiver gerando sofrimento será
escolho as possibilidades da vida. denominado por ajustamento criativo disfuncional,
No que diz respeito à interpretação em Gestalt, acredito No que se refere à postura do terapeuta, saliento que o
ser possível utilizá-la desde que exista uma checagem da per- este tem um papel ativo, dinâmico e participante na relação. À
cepção por parte do terapeuta, ou seja, a interpretação é dada Gestalt, neste sentido, não nega a transferência, mas a vê como
pelo próprio cliente, pois é ele (cliente) o responsável pelos um fenômeno provocado pela qualidade empobrecida de con-

ETA:
significados dos fenômenos vivenciados. Com a ênfase na tato na relação, ou seja, o terapeuta é ele mesmo, pois se apro-
pergunta “como?”, construímos uma teoria singular, conside- pria do seu modo de ser, sentir e incluir sua afetividade, a fim
rando os significados daquilo que o cliente traz como emer- de construir uma relação com o cliente, A “dosagem” da afeti-
gente, ou seja, a Gestalt, a meu ver, fornece uma possibilidade vidade é reconhecida na própria relação construída com cada
de construir com o cliente aquilo que ele deseja construir. cliente, Segundo uma ótica holística e paradoxal, a teoria da
Usando uma analogia: se meu cliente escolher construir uma Gestalt-terapia proporciona uma visão na qual as polaridades
casa ou um prédio e se colocar minhas interpretações e dedu- São aceitas, porque simplesmente fazem parte do ser humano.
ções acerca daquilo que o cliente relata em sessões, entregaria Em vez de rejeitar os sentimentos considerados pela sociedade
o prédio pronto para o mesmo, como se fosse um aparta- como ruins e não nobres, a teoria nos dá a oportunidade da
- inclusão dos paradoxos existenciais.
mento ou uma casa, já montados, sem lhe dar o direito de
primeiramente escolher se gostaria de morar lá ou se gostaria Ao refletir sobre a contratransferência, o terapeuta

isto estate:
de um outro lugar direcionado para o sol etc. Dessa forma, utiliza seus sentimentos como mais um material para
o cliente acaba por não sentir o sabor e as dificuldades de seu trabalho e, mais uma vez, existe a inclusão e o autor-
construir seu próprio projeto, priorizando seus gastos e esco-
5
respeito .daquilo que é sentido pelo terapeuta, ou seja, os
Thendo tijolo por tijolo de sua própria construção. Portanto, "sentimentos e pensamentos do terapeuta são transformados em
das
* entendo a Gestalt como algo que articula o acolhimento das intervenções.

55
“esé
com à
22.5. À Psicologia do Corpo e a relação em sua inserção no grupo e é o protagonista, À postura atu-
Gestalt-terapia ante e participativa do terapeuta e a visão de homem pare-
logia do Corpo cem ser compartilhadas com a Gestalt. À visão gestáltica
As grandes convergências entre a Psico
cia que Perls
e a Gestalt-terapia podem ser atribuídas à vivên de homem é aquela em que o homem também influencia
À compreen-
teve com seu quarto analista, Wilhelm Reich. é influenciado e é conhecido pelas relações interpessoais,
ssão do todo ea Da mesma forma que o psicodrama, o homem é visto como
são de Reich, de que o corpo é uma expre
ser as maiores um ser em relação, por isso se constrói pela ação e relação;
visão do homem como totalidade parecem
convergências com à Gestalt-terapia. ele conquista sua individualidade e transforma-se para um
manifesta, movimento de criação.
Em cada tensão muscular que o corpo
o cliente'não pre- O foco da Gestalt é a energia, o contato, a busca da
existe uma energia presa. Por esse motivo,
mentos
cisa necessariamente falar, pois todos os seus movi consciência não somente intelectual. Através da focalização
|
tornam-se também focos do terapeuta. da energia possibilitamos o fechamento das Gestalten inaca-
terapia é. badas. O homem tem um potencial para auto-organização,
Por ser o corpo um campo, o objetivo em psico
meio ambiente. De acordo com a sabedoria organísmica, existe uma tendên-
ode buscar a fluidez e trocar energias com o cia para que o indivíduo desvele suas potencialidades. Assim
é mais impor-
À preocupação de como algo foi reprimido como no psicodrama, é à partir do enfoque no aqui-agora
reensão ocorre
tante do que o que foi reprimido. À comp
ntificação dos e nas experiências e vivências que o cliente se desenvoive.
no presente, no aqui-agora, ou seja, na prese
movimentos. Perls nos iniciou o caminho e cabe a cada um
e, de nós fundamentar, cada vez, mais o corpo teórico-
A busca da autenticidade é outro ponto convergent
frust rada, À vivencial. Realizo esse convite, pois acredito que nós, os
no qual toda a tentativa de manipulação é
tribuição das Gestalt-terapeutás, não recebemos algo sistematizado,
autenticidade é encontrada pela fluidez e redis
principalmente porque, historicamente, a Gestalt-terapia
energias que se tornam o Ser livre das inibições.
foi considerada no contexto brasileiro como um acúmulo
rapia
2.2.6. O Psicodrama e a relação com a Gestalt-te de técnicas, rótulo parcialmente recebido pelo fato de
era algumas vivências citadas no livro Gestalt- Therapy terem
Influenciado por suas vivências com sua mãe, que
iva de ser sido publicadas antes da parte teórica.
apaixonada por teatros da época, de sua tentat
ticas, em 1906, de
um ator enquanto estudava artes dramá 22.7. O Pensamento Oriental e laçã
estudava as
sua relação com Laura Perls, sua esposa, quê Gestalt-terapia ? repgçõo coma
Moreno, Perls
técnicas de expressão, e dos contatos com Fama Ou pessoa o que atrai mais? Pessoa ou riqueza - o
que é a ciência
propõe uma integração com o Psicodrama, que importa mais? Ganho ou perda — o que aflige mais?
reendido
que explora a verdade pela ação. O homem é comp Ter fortes apegos exige grandes sacrifícios. Acumular

56
bens desencadeia grandes perdas. Saber estar satisfeito Viver a humildade do conhecimento, considerando um
poupa de infortúnios. Saber quando parar evita a provérbio que vem me acompanhando desde minha infância
confusão e o perigo. Só assim se pode perdurar. (LÃO
TSÉ,1995, p. 44) — “Numa sala cheia de móveis não cabe mais nada”.
Percebo que existe à possibilidade de olhar para'
Viver contemplando e celebrar cada momento da vida
nosso psiquismo por diversas. formas. Refletindo, às vezes,
são alguns dos ensinamentos que a Gestalt compartilha com
preocupo-me tanto com o final do caminho que esqueço
o pensamento oriental, Viver no aqui- agora é estar livre das que para chegar ao final, tenho de percorrê-lo, passo a passo.
regras e convenções impostas pelo intelecto, ou seja, viver no
Viver é entregar-me a cada gesto e a cada ato da minha vida,
presente é poder usufruir da vida com naturalidade, simplici- buscando aquilo que já está presente dentro de mim,
dade e espontaneidade.
Outra influência a ser salientada é o fato de que, tanto
O encontro e a aceitação das polaridades yin e yang no pensamento oriental quanto em Gestalt-terapia, lidamos
promovem um ponto de partida. É a partir das oposições e com o óbvio. A estrutura e o suporte são conquistados pelas
da aceitação da coexistência de paradoxos existenciais que as funções de contato - ver com meus próprios olhos, escu-
mudanças ocorrem. tar é ouvir com meus ouvidos, sentir todos os sentimentos
— trazem a concepção aprendida em minha infância de que
À harmonia se relaciona com a confiança na inteligên-
algumas casas do Japão não caem quando o furacão passa,
cia intuitiva do indivíduo pela qual toda a teorização incen- porque a estrutura delas é muito forte e segura. Sua base foi
tiva o desvio do foco da realidade. Tudo tem seu tempo e tudo feita passo a passo, com cuidado e atenção, Podemos viver de
tem jeito são frases que aprendi desde pequena com minha maneiras diferentes, sem precisarmos ir tão longe...
sábia avó.
O contorno que a vida de cada ser humano assume
É pelo caminho que cada um escolhe - da prática, do é realizado pela escolha desse próprio ser. Não é preciso
aperfeiçoamento e da arte como um todo - que fornece- ser japonês, chinês, brasileiro ou hindu para se perceber o
mos as capacidades para nos desenvolvermos. É aceitando óbvio de que a vida é para ser vivida da forma mais natural e
e agradecendo a espontaneidade que brota do coração singular. Se temos sentimentos ruins e bons, eles devem ser
a cada momento da vida, que o indivíduo poderá viver sentidos. É a possibilidade de integração, de relacionamento
sua plenitude. com o momento particular da vida e de inclusão daquilo que
Atingir a maturidade oriental significa viver no vazio e temos de mais individual.
alcançar a disciplina de si próprio, Entendo que para viver no
ZEN-BUDISMO
aqui-agora seja essencial viver a vida, libertar-se da coisifica-
ção, focalizar a atenção para viver cada momento, entregar-se Pela minha influência oriental, acredito valer a pena
completamente, envolvendo-se e absorvendo tudo o que é deter-me em algumas considerações sobre o zen-budismo.
para ser vivido. O zen não pode ser categorizado como religião, nem como

59
filosofia e muito menos como linha psicológica. Entendo o Dessa maneira, a experiência singular é uma experiência que
zen como uma postura, como um movimento e uma atitude está distante do intelecto. É preciso esvaziar a mente e ser
perante o mundo, que não é racionalmente compreensível. É humilde. “Mente de principiante é a atitude que inclui tanto
pelo sentido que cada momento oferece, que é possível a com- a dúvida quanto as possibilidades” (SUZUKI, 1969, p.35). Ào
preensão interna. “Se me perguntassem o que ensina o zen, esvaziar a mente, podemos conceber o vazio que é fértil. Fértil
responderia que ele nada ensina. Qualquer ensinamento que por vivenciar as lições que a rtatureza oferece. Viver o zen não
exista no zen vem mediante nossa própria mente, Ensinamo- implica somente meditar e ficar no vazio fértil; é, antes de
nos a nós mesmos” (SUZUKI, 1969, p.43).
- tudo, viver as possibilidades de um mundo cíclico e mutante;
Cada um tem seu próprio ritmo no aqui-agora, focali- não é somente ficar no silêncio, nem só na verborreia; “nem
zando a mente no presente. É no presente que vivenciamos oito, nem 80". O zen é o encontro das possibilidades de ser.
experiências. Preocupações do mundo e a agitação do coti--
diano detêm a mente do ser humano. Em contraste, o zen Tudo o que se vivencia implica a contradição. Existe a fé
assume um movimento de plena consciência de tudo o que € à CTênça na pureza interna e na questão da autorregulação
se faz, o que demanda uma constante observação e vivência e disciplina, pois para ser livre é preciso estar preso. Para
da realidade. estar preso é necessário estar livre, O simples é complexo.
Não existem explicações para o simples viver, apenas Esse pensamento paradoxal é aceito pelo zen, pois inclui as
a possibilidade de ficar com o óbvio, sem as pretensões de contradições que à vida oferece. É um caminho singular e
se discutir no plano intelectual o que se vivencia. O zen nos que me ensina a fluir sem regras absolutas. Deixamos nossas
convida à ver apenas o que pode ser visto e a ver as coisas próprias necessidades como se fossem responsabilidades do
como elas as são. outro, preocupamo-nos com o final do caminho e acabamos
Não existe o certo ou o errado. O que é verdadeiro é nos esquecendo do principal - da maneira como percorremos
a vivência única e singular. Nada existe na sua concretude, nossos caminhos. Por esse motivo, é necessário olhar cada
À vida é cíclica pelo fato de obedecer a um ritmo universal. gesto, pois cada ato tem sua devida importância.
Viver a cada momento da vida, ficando com o que é mais sim- Como tentativa de integrar o que expus até o momento,
ples. A consciência favorece o estar presente e o despertar-se apresento um gráfico das ideias mencionadas, Embora cite
para a beleza do simples. Mais do que compreensões racio- apenas alguns dos conceitos gestálticos, meu objetivo é o de
nais e entendimentos, é preciso esperar e superar os momen-

SA ATENA UT
tecer relações entre a Gestalt e suas influências, À fronteira de
tos diversos que à vida oferece e aproveitá-los intensamente, contato representa o entre (o meio), e não é estática, por isso
respeitando o que cada necessidade solicita. senti a necessidade de desenhar uma espécie de “fronteiras
Ser homem original e profundo são movimentos pro- TS de contatos”, possibilitando a visão das convergências e das
curados na mais íntima de todas as experiências singulares. divergências das teorias estudadas,

? 60 61
Os círculos foram desenhados com o objetivo de passar
psicoterapia, O diálogo existencial
uma ideia de que percebo as teorias correlacionadas entre si: é uma parte essencial da
metodologia da Gestalt-terapia, e é uma
manifestação da
perspectiva existencial de relacionamen
-
e ——-- - Ex to” Ao refletir sobre
PL - a relação dialógica, compreendo que
e.

% escreverei sobre uma
/ GESTALT-TERAPIA (x postura de vida e uma atitude perante
ES
aooPE Ls o mundo, em que
rea de 5 SUPORTE à humanidade é a maior característica
7, DENTICADEZ x no homem. Buber
RR
procura um sentido humano, propõe o resga
"ABES: DO DUPLO,
CONTATO
te da dignidade na
DO ESPELHO, OA É
FIGURA E FUNDO À bN responsabilidade do escolher, do respeitar
INVERSÃO
t * e do ter esperança
no ser que é humano. Dessa maneira, a Prop
osta me atrai, pois
compreendo o prisma humano por meio
AJUSTAMENTOS GRIATIVOS FI! do relacional que está
SS FL CA corpo entre ação e pensamento, entre experiência
e N AWARENESS CP FP Fr” canATER vivida e reflexiva.
&
Como postura, entendo que o princ
=

HOMEOSTASE * | EO ipal objetivo da


PARADOXOS
&
terapia torna-se o engajamento para
NÊ é que cliente e terapeuta
WETe
(estando ambos disponíveis e acreditando
- na experiência
EE vivida) possam ter um encontro eu-tu.
Não há EU em si, mas apenas o EU da
palavra-princípio
2.2.8. Relação Dialógica e a relação com a Gestait- EU-TU e o EU da palavra princípio
EU-ISSO, Quando o
terapia homem diz EU, ele quer dizer um dos
dois. O EU ao
qual ele se refere está presente quan
LC.) o trabalho com grupos requer muito mais do que do ele diz EU, Do
meésmo modo quando ele profere TU
referenciais abstratos. Ele exige flexibilidade diante ou ISSO, o EU de
uma ou outra palavra-princípio está
do inesperado, fluidez da sensibilidade e da intuição, presente. (BUBER,
1974, p4)
coragem e senso de humor, É como em viagens: ter
mapas serve para sua preparação, uma consulta numa O eu-tu é único, favorece a profundidade
e é construído,
parada e para rever caminhos percorridos depois de Não se cria o eu-tu, mas é necessária uma
chegar em casa. Durante a viagem trata-se de abrir os abertura de ambas
às partes. Posso, enquanto terapeuta, “preparar
olhos e andar, andar passo à passo, “no caminho que o terreno” para
tem coração” (TELLEGEN, 1984, p.122.) que esse encontro ocorra, mas não
posso fazê-lo acontecer.
Às características dessa dimensão eu-t
u são a reciprocidade,
Nesses anos de prática, a relação dialógica proposta

|
o imediatismo, a presença e a responsa
bilidade (habilidade de
por Martin Buber tem sido uma proposta valiosa para a saber responder).
compreensão da vida de meus clientes e dos meus atendimentos
Na reciprocidade, podemos nos comprome
em psicoterapia. Yontef (1998, p.18) coloca que a “relação ter no sentido
de Prometermos juntos, À presença é
entre o terapeuta e o cliente é o aspecto mais importante da o momento da recipro-
cidade. No imediatismo, não tem meio,
há Uma relação direta
62
63
efinidos, pois se tivesse o outro (não necessariamente pessoas, e sim coisas do mundo)
sem representações, sem papéis pred
experiência diz respeito como objeto. Utilizo o outro para meus objetivos, minhas metas;
meio, seria o eu-isso, “O mundo como
princípio EU-TU fun- submeto-me à uma ordem temporal, possuo espaço e tempo
à palavra-princípio EU-ISSO. A palavra-
ER, 1974, p.6). coordenado e fico com a decomposição de partes. Portanto, o
damenta o mundo da relação” (BUB
outro não é valorizado naquilo que tem de único, pois todas as
por mim — psico-
Acredito que na profissão escolhida vezes que represento e imagino algo, estou no eu-isso.
te acolher, avaliar e estar
terapeuta -, preciso constantemen E importante frisar que não há nada de errado no eu-isso.
está em constante relação
envolvida com meu eu, pois este eu No entanto, se ficarmos somente na relação eu-tu, corremos o
forma de ser, uma forma
com o mundo. Cada pessoa tem uma risco de não percebemos as partes, que são também importan-
contato comigo, mais eu
singular, e quanto mais eu entro em tes. Talvez, o maior problema surja quando a pessoa, ao ver o
posso ver o outro. outro, o trate sempre a partir do mesmo ponto de vista. Nem
não ser possível somente eu-isso nem somente eu-tu. O eu-isso, e o eu-tu se
Concebo, pelos escritos de Buber,
o isso sem o eu.
compreender o tu sem o eu. Assim como O
complementam, e o importante é transitar pelos dois, de uma
o isso. Para se viver maneira fluida e em busca de mais momentos eu-tu. Qualquer
Falar e viver o eu é proferir o tu ou
, estar aberto e saber relação eu-tu é eu-isso só tem sentido na relação e ambas são
eu em relação, é preciso experimentar
explicá-la, mas, sim, necessárias para a vida.
que não estou na relação somente para
é essencial pode ser
para vivê-la no presente. Tudo o que Interessante é perceber que o dialógico não fala de pala-
o momento presente, vras. Não se refere somente ao diálogo lato sensu. Absorvo que
vivido no presente, pois ao enfatizár
que eu esteja viven-
entendendo que em qualquer encontro a relação dialógica pode ocorrer sem as palavras, pelas quais
ciando, existirá algo que é diferente da
soma total da minha É podem interferir no encontro real. Acredito que o dialógico
experiência e da experiência da outra pess
oa. inclui o saber ouvir, o ouvir não somente as palavras pronun-
doxalmente. ciadas, mas também ouvir aquilo que não é dito.
Para ser quem somos, precisamos viver para pela
À meu ver, o que se tem (..) a comunicação não se destaca somente
Viver em paradoxos faz parte da vida. palavra (...) o falar representa muito mais do que falar
ntos da vida: os
a fazer é percorrer e absorver todos os mome por palavras. Representa estar com, estar efetivamente
bons, os ruins, os feios, os bonitos etc. e por inteiro com o outro. Dessa forma, entendo à
comunicação como uma maneira de cuidarmos do
especial e “um
Como já disse, para mim, o eu-tu é único, outro, A ideia é que, ao nos comunicarmos, possamos
, deduzo que, na
momento mágico e inesquecível" Sendo assim cuidar do outro, assim como de nós mesmos,
o eu-isso, pois todas
maior parte de nossas vidas, convivernos com
(FUKUMITSU, 2004, p.63)

eu-tu, torna-se o eu-isso. Entender que se pode falar pela postura, pelo brilho ou
as vezes que tentarmos nos apégar ao
nsão prática, que pela escuridão de nossos olhares. Assim como ver aquilo que
Compreendo o eu-isso como uma dime
eu-isso, percebo não é visível, tocar não somente o físico, mas, sim, tocar no
faz parte da dimensão do todo. Nessa dimensão
64
estar presente e transcender, Ou então, não apenas voltar-se 23. O CONTEXTO BRASILEIRO DA (GESTALT-TERAPIA
com o corpo ou com o rosto, mas voltar-se com a alma e com
a presença. E com essa postura dialógica, sou convidada a
Foi a partir da garra e curiosidade de Thérêse Tellegen
ampliar a relação especial entre terapeuta e cliente. que a Gestalt teve seu início no Brasil, em 1972. A história da
“Gestalt “brasileira” pode ser pesquisada com mais profundidade
Estabelecido o vínculo, o psicoterapeuta já pode arriscar
em Juliano (1992), Frutos da iniciativa pioneira de Thérêse, “a
mais no processo da autodescoberta de seu cliente, Éo
mamento de manter a angústia, para que o outro possa árvore-mãe” e por se tratar de uma proposta teórica atualizada,
r possibilidades. É o momento de desfazer
vislumbrasuas coerente e vivencial, a Gestalt faz parte da vida de muitos estu-
a ilusão de que se é aquilo que na ação não se faz. E este diosos que a experienciam da melhor maneira possível.
processo vai se dar no discurso psicoterapeuta-cliente,
(FELJOO, 2000, p.1 17) Coerente com a visão de homem, a Gestalt tem como
pressupostos que o homem é um todo, indivisível e está em cons-
Penso no dialógico como campo iniciador de uma terapia,
tante relação como o mundo. À existência se define na relação
pois não há encontro se não há pessoas. À partir do momento campo/organismo/meio.
em que lido com pessoas, a atitude a ser tomada é estar com
Em toda e qualquer investigação biológica, psicológica
a pessoa e encontrá-la onde estiver, para que à mesma, por ou sociológica, temos de partir da interação entre
si só, tenha sua própria experiência, Somos campos de ser e organismo e seu ambiente. (..) Não há uma única
não entidades separadas. Esses momentos eu-tu favorecem a função, de animal algum, que se complete sem objetos
é ambiente, quer se pense em funções vegetativas,
apreciação do mistério do outro, a percepção da singularidade,
como alimentação e sexualidade, quer em funções
favorecendo a apreciação da dinâmica do cliente e o olhar para perceptivas, motoras, sentimento ou raciocínio. (..)
o além do problemático. qualquer coisa que seja a maneira pela qua! teorizamos
sobre impulsos, instintos etc., estamos nos referindo
Para mim, a relação dialógica não é apenas uma técnica sempre a esse campo interacional e não a um animal
a ser empregada, é uma forma de ser, pois trata da experiência isolado. (PERLS et af, 1997, p.42)
do terapeuta, da experiência do cliente e da experiência dos Como não existe evento ou ser isolado do seu con-
dois juntos. Dessa maneira, o que será enfatizado dependerá texto, a visão de campo inclui aspectos tais como psicoló-
desse relacionamento que poderá comportar à inexistência de gicos, físicos, geográficos, econômicos, sociais, culturais,
regras fixas, a tolerância do desconhecido e a coragem para vivências ou experiências, fisiológicos, vinculares e contex-
explorar o novo que surge. tos prospectivos.
O relacionamento, a partir dessa postura de vida, torna- A. Gestalt não representa somente um conjunto de
-se como um “parceiro” da terapia, pois requer que o terapeuta “ técnicas, de estudos da relação dialógica, dos ensinamentos
aprenda a fluir, a conhecer o ritmo da pessoa, a conhecer seu do zen-budismo, taoísimo, teoria de campo, psicologia do
próprio ritmo e o ritmo entre a relação de ambos. É a beleza do corpo, psicanálise e psicodrama. A Gestalt é um todo, é pro-
encontro, do respeito e da esperança no ser humano! ; cesso, é uma rede de informações e formações.
Atualmente, sinto que existe uma preocupação pro- quando, na relação, cada um se apropria de suas próprias
filática nas questões sociais. Concordo quando Frazão, possibilidades de ser. Aquilo que é sempre igual não se torna
em palestra, num encontro promovido pela Universidade objeto de contato. O bom contato é entender que uma (1)
Presbiteriana Mackenzie (2004), levanta a seguinte questão: pessoa mais (+) uma (1) pessoa é igual (=) duas (2) pessoas,
“O que está acontecendo com nossa humanidade e com nossa e o que pode representar a unicidade
é a relação entre ambas.
ética?” À reflexão se faz pertinente, pois somos responsáveis A relação pode ser única, mas as pessoas são diferenciadas e
pelo nosso viver com contato. singulares.

e
PUSEIOO:
Viver a vida, que é para ser efetivamente vivida, exige Seo contato pode ser visto como momento, como processo
criatividade e awareness, pois o hamem é livre para fazer suas e como fluxo, questiono-me constantemente sobre verdades e
escolhas. O ser-no-mundo se refaz constantemente e sua vida mentiras da minha vida e da vida dos outros. Percebo que as
se torna uma eterna construção. mentiras que são mais tóxicas para nossas vidas não são tanto
aquelas que contamos e, sim, aquelas que vivemos. Assim, é
2.4. CONCEITOS-CHAVE
necessário estar aware, para viver verdadeiramente nossas vidas
24.1. O contato ampliando e aprimorando o contato, que traz como significados
“a consciência de em direção 2 “a interação entre organismo/
“O contato é o sangue vital do crescimento, o meio para
meio e conjunção articulada e em constante relação entre a
mudar a si mesmo e a experiência que se tem do mundo”: sensação, emoção, afeto, ação, cognição e percepção”. É a par-
(POLSTER; POLSTER, 1973, p.113). É pelo contato que a pes- tir do enriquecimento do contato, que ampliam
a awareness,
os -
soa pode separar-se e unir-se a todas as experiências. É tam-
na medida em que percebemos que, ao distorcer a realidade de:
bém pelo contato que o indivíduo pode lidar com o que é e não nossas experiências, não nos apropriamos de nossas reais neces-
e tóxico na
que é saudáveldo
com o que deveria ser, delio nean sidades, ou seja, não sentimos nem percebemos a verdade de
experiência singular. Em Gestalt-terapia, o contato pode
sua
nosso ser...
ser compreendido por pelo menos três significados diferentes.
(.) todo contato é criativo e dinâmico, Ele não
São eles: pode ser rotineiro, estereotipado ou simplesmente
conservador, porque tem de enfrentar o novo, uma
O como momento e experiência propriamente dita;
vez que só este é nutritivo, (..) o contato não pode
como processo de eventos psicológicos na formação aceitar à novidade de forma: passiva ou meramente se
de Gestalten, implicando a visão de todo o ciclo; ajustar a ela, porque à novidade tem de ser assimifada.
é como fluxo de atenção; o momento entre a ação e Todo contato é ajustamento criativo do organismo e
o contato, ambiente, [..] Crescimento
é a função da fronteira-de-
contato ho campo organismo/ambiente; é por meio de
Tellegen (1982, p.85) afirma que “o contato é o pro-
ajustamento criativo, mudança e crescimento que as
cesso contínuo de reciprocidadeem que.o homeme rmundo unidades orgânicas complicadas persistem na unidade
se transformam”, ou seja, o contato enriquece sua qualidade maior do campo. (PERLS et al, 1997, p. 45)

68 69
2.42, O fluxo de awareness fronteira entre o organismo e seu ambiente (..). À experiência
Entendo awareness como a capacidade de integração é função dessa fronteira (...)”.
daquilo que faço (o que) e a maneira de interagir (como). Cada um tem uma fronteira idade do
Tal integração envolve três zonas - as zonas de awareness. contato ocorre, que os limites são estabelecidos e as diferen-
São elas: :
ças e semelhanças são experienciadas,
1. Awareness do mundo exterior: todos os contatos estabele- A fronteira de contato é dialeticamente ao mesmo
cidos por meio das funções de contato. tempo o ponto de divisa e o ponto de união, uma

2. Awareness do mundo interior: respiração, sensações, sen-


fronteira que Tsin nada de físico, que não é fixa mas
ue, à medida que delimita, possibilita o encontro com
timentos, emoções, percepções da tensão, relaxamento, o novo, o diferente. É na fronteira que pode ocorrer
postura. mudariça, transformação. (TELLEGEN, 1982, p.85)

3. Awareness da atividade da fantasia: todas as atividades A fronteira é aquilo que delimita, diferencia e protege, é
mentais — pensamento, imaginação, projetos etc, permeável, permitindo a troca entre o eu e o não eu.
Dessa forma, a ampliação da awareness se dá quando Cada experiência pode sugerir inúmeras interpretações,
os níveis cognitivos, sensoriais, motores, emocionais e ener- mas, ao interpretar, corro o risco de não perceber a situação
géticos estão em constante relação, permitindo ao indivíduo como totalidade e dividir a vivência imediata em objeto e
a percepção de tudo o que experiencia. “(...) Note, contudo, | observador, o que significa perpetuar a cisão e a dicotomia'
que a awareness não é uma reflexão sobre o problema, mas é entre o homem e seu meio.
ela própria uma integração criativa deste" (PERLS et al, 1997,
Contamos com as inúmeras possibilidades de um olhar.
p.46). Para uma ampliação da awareness, o contato enriquecido
é pré-requisito, porque é pela relação organismo/meio que as Dessa maneira, vivemos num encadeamento paradoxal que
estas que impli- nos convida a olhar para si e para o ambiente que circunda a
transformações ocorrem. “Transformações
cam mudanças. É nesse momento que consideramos a Teoria vivência, isto & “a fronteira do eu de uma pessoa é a fronteira
Paradoxal da Mudança (BEISSER, 1970), que nos ensina que daquilo em que, para ela, o contato é permissível” (POLSTER;
POLSTER, 1973, p.120).
mudar é tornar-se exatamente o que se é, ou seja, estabelecer
uma constante parceria consigo e com o mundo, Existem vários tipos de fronteiras do eu. São eles:
2.43. A fronteira de contato 1. CORPO — quanto maior à apropriação do corpo, maior é à
apropriação do eu.
A parceria entre o eu e o não eu torna o processo cíclico,
2, VALOR — voltado para as questões culturais, sociais, religiosas etc,
pois a integração ocorre na compreensão do self. É no ir e no
vir, ná aproximação e na retração, que fronteira
a de contato Quanto maior é o comprometimento, maior é a rigidez em
recebe a possibilidade para delinear sen contorno próprio. relação aos valores. E quanto maior a rigidez, maiores serão
Pers et al (1997, p.41) afirmam que “(...) a experiência se dá na as possibilidades de exclusão,

70
n
3. FAMILIARIDADE — refere-se a tudo o que reconhecemos como tento compreender o agora, já não é mais o agora de antes,
familiar. mas O agora é tudo o que temos, É no agora que as situações

4, EXPRESSÃO — fronteira mais relacionada ao todo. Quanto ocorrem.


==
maior a alienação, menor é a referência, Para o indivíduo identificar suas reais necessidades, é
5, EXPOSIÇÃO - relaciona-se com a maneira como me exponho essencial o olhar para dentro, o entrar em contato com o que se
narelação. quer, em cada momento de sua vida. Valendo-se da hierarquia
Um significado mais adequado de “segurança” seria das necessidades, conforme seu interesse, um elemento é esco-
a confiança de um apoio firme, proveniente do fato Thido, enquanto outros ficam no fundo.
de experiências anteriores terem sido assimiladas e o
crescimento realizado, sem situações inacabadas; mas As figuras dominantes (a figura de interesse no
em semelhante caso, toda atenção tende a fluir do momento) que se tornam desejáveis são aquelas que dão
fundo do que somos para a figura na qual estamos nos suporte
para o viver e, quando satisfeitas, o equilíbrio retorna,
tornando. (PERLS et al, 1997, p.47)
Como uma sensação “gostosa”, é experimentada, a tendência
A fronteira construída a partir das experiências pessoais = do organismo é a preservação, apropriação do objeto domi-
- é refletida nas experiências com o mundo, na possibilidade
de correr riscos, nas percepções das próprias limitações, no
| nante até sua completa satisfação, Mas nem sempre a necessi-
dade é satisfeita. Sendo assim, a Gestalt-terapia trabalha com
aventurar-se, quando se aceita as imprevisibilidades das desco- a compreensão dos. impedimentos desse ciclo completo de
bertas de se estar em contato. ' satisfação de necessidades.
O processo de formação de figura/fundo é um
Segundo Perls (1977), pode-se ganhar ou perder. É pre- processo dinâmico no qual as urgências e recursos
ciso ver ambos os lados da figura. Dessa forma, correr riscos do campo progressivamente emprestam suas forças
é, antes de tudo, acreditar na experiência que se passa e [brin- ao interesse, brilho e potência dominante. (...) a figura
cando com a palavra vivência] acreditar na vivência vivida. é especificamente psicológica: tem propriedades
específicas observáveis da brilho, Timidez, unid
unida-
Considerando que, ao correr riscos, contato o novo, ação, raça, vigor, desprendimento

penso que esse novo apresenta desafios, pois está fora da fron- & dependendo de se estivermos levando em
consideração essencialmente um contexto perceptivo,
teira do eu. E na medida em que entro em contato com esse sensitivo ou motor. (..) Quando à figura, é opaca,
novo, percorró a fluidez do processo de criação, recriação e confusa, deselegante, sem energia (“uma Gestalt
- apropriação do que é significativo. débil"), podemos estar certos de que há falta de
contato, algo no ambiente está obliterado, alguma
2.4.4. Impedimentos no processo do ser humano necessidade orgânica vital não está sendo expressa;
a pessoa não está “toda aí”, isto é, seu campo total
É no aqui-agora, no contato ço e o indi- não pode emprestar sua urgência e recursos para o
' —víduo se apropria de suas nece ssid ades
Na medida em .que completamento da figura. (PERLS et al, 1997, pp A5-46)
o
- AJITTATATIAF AAA

72
Trabalhar com os impedimentos implica falar que o personalidade. Para Perls (1988, p35) “(...) nem todo contato é
contato num ciclo. Do fundo, uma figura emerge. Uma "saudável, nem toda fuga é doentia”.
sensação aparece. ercepção é necessária, assim como à
se faz importante para a ação e Acredito que o mais interessante nessa reflexão sobre
mobilização de energia também
a partir da satisfação de tal necessidade. O organismo
ocontato = "contatar e fugir não é somente definir que se trata de fuga ou
entra em retração até uma nova figura dominante emergir do “contato. Percebo que a questão se torna mais ampla e envol-
fundo, Adotamos várias denominações propostas por autores. vente quando penso: “contato a serviço de quê? E fuga a serviço
São elas: curva de Zinker ou ciclo de contato, curva do contato, de quê?” É importante enfatizar que tais questionamentos têm
ciclo de autorregulação, ciclo de necessidades, ciclo de experi- grande relevância no estudo da Gestalt-terapia, pois a ênfase é
ência, ciclo de contato-retração. dada no o que e no como. Too
| Quando a necessidade não é satisfeita, o organismo Ao contrário do pensamento causal e linear que se preo-
encontra-se em um desequilíbrio temporário. Digo tempo- cupa com o porquê, a Gestalt fala sobre a possibilidade da troca
Tário, pois, a meu ver, o organismo é “sábio”, graças a uma entre 0 eu e o não eu e em sua constante relação,
propriedade que lhe é pertinente — a homeostase —, que sig- O pensamento adotado é o diferencial. Esse pensamento
nifica o processo de autorregulação organísmica pelo qual o leva o nome de diferencial devido à inclusão do pensamento
psíquico e o fisiológico se inter-relacionam para a diminui- por paradoxos, já citado anteriormente. As situações acontecem
ção da tensão e para a busca do equilíbrio, pela satisfação das baseadas no fenômeno da indiferença criativa ou do ponto zero,
necessidades. que é a capacidade de ir para todos os polos, estando aberto, dis-
Autorregulação —organísmica significa que um ponível, favorecendo uma qualidade satisfatória para o contato
organismo está orientado, de forma inata, a responder e, por consequência, uma ampliação da awareness,
a desequilíbrios em seu sistema psicobiológico, ao
procurar dentro do campo organismo-meio por - Sobre o pensamento diferencial, cabe ressaltar a dife-
soluções que irão restaurar o equilíbrio, O equilíbrio é rença entre polaridades, para Friedlander e a noção de pola-
dinâmico; isto é, crescimento e desenvolvimento são ridades e paradoxos adotados no senso comum, significando
vistos como essenciais à sobrevivência. (JACOBS, 1978)
contrários. Aquilo que Friedlander coloca como polaridade é
Na busca do equilíbrio, acontece um incessante jogo de a compreensão daquilo que está alienado, enquanto existe um
formação e destruição de Gestaltex (processo através do qual outro lado polarizado ou cristalizado; por exemplo, a polari-
satisfazemos nossas necessidades mediante a relação entre dade da tristeza não é necessariamente a alegria,
figura
e fundo), ou seja, a buscaequilíbrio
do inclui um pro
Existem conctações de polaridades diversas para todas
cesso de
cesso de figuras
Higuras abertas,
abertas, fechadas,
techacas, fuga,
uga, contato
Contato etc.
etc. as pessoas. Sendo assim, percebo que o pensamento diferencial
Fuga e contato fazem parte do mesmo processo, são é coerente com a visão de homem e com a proposta de respeito
opostos dialéticos e são as funções mais importantes da "à singularidade do ser. .

74
totalidade contínuo para todos os polos
alguns aspectos de sua é capaz de transitar num fluxo
No ser não saudável, nador e é necessário.
dos e, NU M jog o incessante entre domi : e, para tanto, o autossuporie
estão aliena ro. Por con-
do , a pes soa pol ari za um lado e aliena out A primeira imagem que me vem, quan
do trato dos con-
domi na a empo- no processo, é a de
à qua lid ade de con tato no aqui-agora fic ceitos de saúde e doença e as interrupções
sequência, sua fronteira para tentar compreen-'
À pes soa tem Sua awareness reduzida; úma moeda. Aceito usar essã metáfora
bre cid a. perme- -
ex ce ss iv am en te ríg ida ou excessivamente der melhor esses conceitos.
apresenta-se a rejeição daquilo
idas, favorecendo de 50 centavos.
ável; as figuras não são nít é tóxico. Por esses
Peguemos como exemplo uma moeda
imilação daquilo que m estampas diferen-
que é nutritivo e à ass iderado como Tanto a cara quanto à coroa denuncia
ivo s, o aj us ta me nt o naquele momento é cons tes, assim como denunciam também
que os dois lados têm
mot
fazem parte da mesma
disfuncional. o mesmo valor - 50 centavos — e que
o ape- ito que os dois
Se relaciona com o mund moeda. Pensando em saúde e doença, acred
Sendo assim, a pessoa ndo (Gestalt “estampas” diferentes,
energia está presa no fu lados são importantes e, embora com
nas em partes, pois sua aquela que mento singular que
À Ges tal t ocu lta (fechada ou aberta) é têm o mesmo valor: revelar o funciona
oculta ). eira). Uma .
reness (parcial ou int cada ser humano escolhe apresentar
está no campo da awa da cla-
tar para O fundo, mas ain
não «A descrição da saúde e doença psicológicas
é simples.
t in ac ab ad a po de vol
Gestal quando faio sobre É uma questão das identificações e aliena ções do self. Se
ento. Concebo que, ão, não
mará por seu fecham um homem se identifica com seu self em formaç
ientar à predo”
ada, é importante sal o e sua busca da
Gestalt aberta ou inacab inibe seu própri o excit ament o criativ
de contato não
zendo com que o ciclo solução vindoura; e, inversamente, se ele
aliena o que não
minância de energia fa | é organicamente seu e, portanto, não pode ser
vitalmente
.
se complete plenamente nto interessante, pois dilacera a figura/fundo
, nesse caso
tra duz um funcioname e está exercendo
Í ncionamento saudável ele é psicologic ament e sadio, porqu
O fu vo como
o no o melhor que puder nas
ilidade de estar com sua capac idade superi or e fará
criativo, incluindo a possib com o diferente circunstâncias difíceis do mundo. Contudo,
ao contrário, se

novo, assimilando o que é nutritivo, lidando alese aliena e, devido a identificações falsas, tenta
subjugar
ico. ainsípida, confusa
suaprópriaespontaneidade, torna suavid
e rejeitando o que é tóx de identificações e
e dolorosa. Chamaremos o sistema
respostas configur am-se como
Em um processo cujas que às partes estão
alienações de “ego”. Desse ponto de vista, nosso método
às diferentes
uação emergente, em terapêutico é o seguinte: treinar o ego,
adequadas àquela sit -organis-
, € à organização auto es e aliena ções, por meio de exper imentos com
int err upç ões identificaçõ
integr ada s se m variadas funções, até
mento torna-se uma awareness deliberada das nossas
cionamento, o ajusta
mica está em pleno fun que se reviva espontaneamente a sensaç ão de que“Sou eu
e fazendo isto”.
funcional. que estou pensando, percebendo, sentindo
€ do que conta própria, O
ela que vivencia mais O Nessa altura, o paciente pode assumir, por
A pessoa saudável é aqu seja, é aquela que controle. (PERLS etal, 1997, p49)
o, OU
o ou. É aquela que vivencia o ponto zer
TT
76
Como a questão é processual, penso que para sermos Parece tão fácil na teoria, mas o que fazemos com os obs-
saudáveis precisamos lidar também com um funcionamento — táculos e dificuldades que nos aparecem?
denominado funcionamento anormal, ou ausência de funcio- O objetivo de um funcionamento livre não é o de se
namento livre. —— afastar dos obstáculos ou paralisar-se com as dificuldades
inas, sim, o de elaborar a maneira como olhamos, percebemos
Somente quando nos damos a possibilidade de nos
e lidamos com tal problema, procurando uma maneira mais
separarmos, de nos diferenciarmos, é que podemos nos unir.
confortável e satisfatória para conviver com as dificuldades e as
Existem mudanças na qualidade de funcionamento, na qua- facilidades. Os problemas precisam ser assumidos como parte
lidade do contato. São essas mudanças que podem me dire- da nossa existência, como parte de nossa totalidade e de nossa
cionar para compreender à maneira como o ser se apresenta singularidade. Assim, a vida é visualizada como processo con-
no mundo, sua maneira de ser-no-mundo, O que torna mais tínuo no qual me oriento e vivo no agora, mesmo que esteja
envolvente e curioso é entender como e o que mantém o fun- orientada no passado ou no futuro.
cionamento vivido, seja ele livre, seja ele não livre (prefiro este
Contudo, relembrando o que mencionei há pouco, sobre
termo, a utilizar anormal).
os dois lados da moeda, será que sempre conseguimos funcio-
O que nos dá indícios para diferenciar em cada cliente a nar de uma forma tão “redonda”, tão fluida assim em todos os
quem atendemos um funcionamento livre de um funcionamento momentos de nossas vidas?
não livre? Reflito que é a capacidade que nosso cliente revela de Acredito que não. Se o todo se encontra em dificuldades,
transitar, de fluir no presente, de entrar em contato no aqui- o ser é impedido em seu crescimento, revelando dificuldades
“agora. Influencia também, nessa diferenciação, a capacidade de na reorganização pessoal e do campo. De saudáveis a neuró-
o cliente ser criativo e espontâneo e de se dar a possibilidade de ticos e de neuróticos a saudáveis, percorremos os caminhos
responder da melhor maneira possível àquilo que o momento desses mecanismos.
solicita. Dessa maneira, começo falando sobre o funcionamento No funcionamento não livre, o processo de formação e
saudável ou livre. Funcionamento saudável é aquele que tra- destruição de Gestalfen não se completa de uma maneira tal que
duz movimento, utilização das funções de contato, integração, satisfaça o indivíduo. Isso nos indica que algo não está integrado,
awareness, fluidez, espontaneidade e criatividade. Para que esse que o sistema de contatos não está coeso, que não existe uma
processo ocorra de maneira clara, são necessárias formações e integração com o meio que possa ser gerador de energia para
destruições de Gestalten funcionais. À figura precisa estar deli- dar nitidez e clareza para a relação de figura-fundo. A energia
neada e nítida para que a necessidade emergente seja suprida da se dissipa e, num encadeamento, as escolhas ficam difíceis de
melhor maneira possível, realizando, assim, ajustamentos criati- serem -realizadas, Sentimentos de inadequação, insegurança,
vos. À fim de se tornar saudável, é preciso usar toda a potenciali- desapropriação surgem, As funções de segurança, que são fun-
dade para lidar com as situações. É preciso aliar espontaneidade ções importantes para o funcionamento livre, ficam cristaliza-
às habilidades.
: das. Aquilo que existia para nos auxiliar começa a nos prejudicar.

7
Paradoxos como opostos, antônimos, funções de segurança * “defesas, no que se refere aos recursos pessoais para
cristalizadas, diminuição do contato, começam a construir uma proteção e delimitação da fronteira.
bola de neve e, assim, os mecanismos neuróticos surgem... Entendo que as partes citadas anteriormente embasam a
Utilizei a metáfora da moeda — cara e coroa — para tra- totalidade a ser considerada na visão de homem. Desenvolvendo
duzir uma compreensão da saúde e da doença como partes de seu autossuporte, a pessoa conhece seus limites, prioriza suas

seo
um processo sem começo, meio e fim definidos. Muitas Vezes, necessidades, discrimina o que é tóxico e saudável, explora da
o que significa o fim para muitos, pode sugerir o início para melhor maneira possível suas funções de contato: olhar, escu-
outros. Existem recomeços e, ao recomeçar, estamos sempre tar, tocar, falar, movimentar, cheirar e degustar.
tentando novamente. Tentamos a vida, tentamos o equilíbrio, Quanto maior o autossuporte maior é a ampliação do
tentamos a harmonia. Tentando já estamos vivendo. contato. E como a definição de contato já foi mencionada no
2.4.5. Heterossuporte e autossuporte início dessa reflexão, um bom contato propicia energia, aber-
tura para se comportar, predisposição para um movimento
Antes de falar de autossuporte, gostaria de destacar o que beneficia o tornar-se presente e envolvido, o estar aware
significado de suporte. ,
no agora, consciente do agir, pensar e sé sentir interagindo
Suporte é a inter-relação de todo o contato e de tudo o criativamente com o meio.
que acontece em relação nas seguintes áreas: .
À fim de reduzir sua área de pontos cegos e explorar ao
* história e experiências de vida; máximo suas polaridades, o indivíduo expande seu fluxó de
* percepções;
energia é amplia sua awareness no presente, no aqui-agora.
* postura; Precisamos estar com o cliente para que o mesmo se
sinta encorajado a conquistar seu autossuporte, o que gera
* coordenação;
uma redução na busca do suporte externo (heterossuporte)
º equilíbrio; e enriquece as possibilidades de ampliar sua consciência do
* sensibilidadeno que refere às emoções, aos sentimentos; agir, sentir e pensar, favorecendo o autossuporte.
* memória; É importante frisar que pontos cegos sempre existirão,
perspectiva e projeto de vida;

EST SENDO:
º porém, em suas possibilidades, o cliente também expande
* imaginação; sua qualidade de fechamento de situações inacabadas ou
* capacidade de abstração; : Gestalter ocultas.
* hábitos, crenças, costumes, revelando os aspectos O que vai facilitar a resolução e emergência de
novas figuras no campo perceptual são os processos
culturais; de awareness que vão ajudar a que estas figuras se
aprendizagem; definam com nitidez e clareza de forma energizada

81
em relação ao fundo - a configuração presente da
existência do indivíduo, (CIORNAL, 1995, p.73)
Os dois autores concordam nos seguintes aspectos:

À partir do processo de awareness delineamos e con- * relacionam ainteração do paciente com o


tornamos a figura dominante tornando-a nítida, a fim de background (fundo/contexto), considerando o
mobilizar energia para satisfação das necessidades. Esse fluxo histórico experiencial que deu origem ao presente
contínuo compactua com a ampliação da awareness. (p.l); |
Resumindo, suporte, a meu ver, significa ter consciência * atribuem importância para à autonomia e
da consciência; apropriar-se do conhecimento direto da reali- independência do paciente em relação ao terapeuta
dade; responsabilizar-se pelo que se quer em cada momento. (p.16); ' Í
Viver plenamente as emoções; assumir-se; vislumbrar as conse-
* discutemas falhas no tratamento deles;
quências dos atos e escolhas; identificar as defesas. Na verdade,
creio que o mais importante não seja detectar se a pessoa está * convidam e alertam para os benefícios de estudar
na defensiva ou se traz situações inacabadas; o mais importante Kohut e teóricos das relações objetais (p.9);
é, sim, entender o quantum de energia presa que a resistência e º acreditam que na experiência com pacientes
a Gestalt inacabada retira da situação. A fixação rouba energia
narcisistas, a compreensão do passado se faz
dificultando a pessoa em tentar o novo, O indivíduo, com sua
importante, bem como a ressignificação das
awareness ampliada, transita por suas polaridades e usufrui sua
capacidade de partir de um ponto zero. Consequenternente, res- experiências;
ponde da melhor maneira possível ao que o momento solicita, * estudamo conceito de self;
* salientamo desejo de que a GT se torne mais intensiva
24.6. Self na Gestalt-terapia
(p.13);
Escrever sobre self em Gestalt-terapia é ter a consciência
* acreditam que o terapeuta deva estar aware de seus
da fluidez e do processo implicados. A díade — fluidez e pro-
próprios sentimentos e necessidades,
cesso — favorece uma leitura não limitada de uma instância ou
de algo fixo, mas, sim, de um sistema que ocorre no campo/ Os autores discordam nos seguintes pontos:
organismo/meio.
Yontef (1983) apresenta a teoria sobre o self salientando GT lida com a intenção consciente | GT se utiliza da awareness
as comparações de seu pensamento com as reflexões de Tobin, e awareness de self. Não lida com | fenomenotógica para exploraro
inconsciente eresistência.
em seu artigo “O self na Gestalt-terapia: resposta a Tobi. processo total, incluíndo incons-
ciente (unawareness), resistência
Primeiro, apresentarei as convergências dos dois autores e,
e transferência numa perspectiva
posteriormente, as divergências. fenomenológica.

82
Defende uma abordagem mais Transição da relação baseada
Separa núcleo e fronteira. GT não negligencia o processo
empática, Evita técnicas abrasi- na transferência para a relação
Entende o self como fenômeno nuclear e os aspectos estru-
vas e confrontantes e prefere a diatógica (p.5). Inclui “escuta
de fronteira (não lida com o turais de self. Selfé sistema de atitude eu-tu. empática, criação de compreen- |
núcleo ou conflitos nucleares). contatos da pessoa. Não existe
núcleo separado do campo O-M são mútua, utilização de material
Para ele, a Gestal-terapia lida
genérico, uso da confrontação”
com os distúrbios entre o self. (p,7). Qualquer fenômeno de
(p.11).
fronteira de campo O-M inclui
os processos nucleares, “Self não Modelo linear de causalidade, no Passado é um background do
é um núcleo que é tratado sem qual o passado causa o presente, presente. Presente como figura,
passar por uma fronteira de seif, indica que o homem é vítima de passado como fundo, Presente
a pessoa que é tratada através da seu passado e que o paciente do paciente está relacionado a
fronteira do self (...Y (p.14). não tinha, nem tem escolhas. sua experiência passada (p,14-5),
Passado leva ao presente e é Terapeuta pode trabalhar na
Trabalha: Trabalha tanto com a fronteira causa, causalidade sem revelar-se pre-
= núcleodoselfpela quanto com o núcleo. “[...) para maturamente. Acredita que o
rememoração da infância; chegar a um “núcleo”, é preciso cliente tem esperança e escolha.
“ fronteira ou criação de que se atravesse uma fronteira,
Em GT, não existem alterações Trabalhar com narcisista ou bor-
- suporte pelo rapport para o tratamento de diversos derline é trabalho de fronteira de
e compreensão, grupos, como o borderline e o contato (p.11).
Cada pessoa tem seifiqual- As pessoas não têm selves narcisista. Trabalho com borderline: não
mente efetivo e em bom igualmente sãos, pois existem Introduzir material de infância no
funcionamento. fenômenos como psicopato- início, pois experienciará afetos
logia e diferenças individuais muito intensos e primitivos. Não
significativas no funcionamento tem as funções de self suficiente-
(pá). mente desenvolvidas para conter,
Independentemente do tipo de assimilar e trabalhar,
Self coeso como pré-requisito
para contato com o campo e self, quanto maior a complexi- Trabalho com narcisista: o
dade e o interesse organísmico paciente está pronto para dialogar
vice-versa (p.10).
na interação, mais o self será depois que se sente compreen-
ativado, O self está menos dido. Não adianta confrontar. “A
coeso, mas ainda é sistema de dor pode ser reconhecida e o pro-
contato, cesso presente explorado” (p.12).
"(.) O self se torna presente
através do contato” (p.14), É através do self que me aproximo, retraio-me e envolvo-
Aumento das sessões serve para Aumenta das sessões serve para “me nas situações presentes, Sendo assim, self traduz a maneira
o aumento de transferência desenvolver o relacionamento de cada um posicionar-se perante o mundo, Perls et al (1997,
(p.20). total (p.20).
Pp.178) afirmam que “o selfé o sistema de contatos presentes e o
agente de crescimento”, ou seja, concebo que self significa uma

85
força integradora que prepara e propicia o contato que ocorre organísmicas. “O id então surge como sendo passivo, disperso
processualmente na fronteira. Portanto, o self está diretamente e irracional, seus conteúdos são alucinatórios e o corpo se agi-
ligado à questão da figura e do fundo. Quanto mais a figura ganta enormemente” (PERLS et al, 1997, p.186).
estiver clara e nítida e quanto maior for a interação, maior será
Ginger e Ginger (1985, p.127) defendem que a função id
a vação do self.
“(...) é concernente às pulsões internas, às necessidades vitais e,
— Uma outra definição que facilita a minha compreensão especialmente, sua tradução corporal: assim, o “id' me indica se
de self é a apresentada por Yontef (1983): “O self, na teoria da tenho fome, se sufoco ou se estou relaxado”.
éo
Gestalt-terapia sis tem a da pessoa. Não existe
de contatos
Já o aspecto ego do self apresenta-se ativo. É. aquele que
núcleo' ou “self” separado de um campo organismo/meio e
sem os processos usualmente
que usi seleciona, escolhe no nível das situações mais concretas. Como
nenhum meio humano
o ego é ativo, essa função demonstra-se mais deliberada e
caracterizamos como “internos”. Essa afirmação revelaa ideia
é o pensar no meio separado dos'sseres s huma- voluntária. A função eu “(...) é uma função ativa, de escolha
1
de que não
ou rejeição deliberada: é minha própria responsabilidade limi-
tar ou aumentar o contato, manipular meu meio a partir de
uma tomada de consciência de minhas necessidades e de meus
semi Pers: etal (1997, p.181), o ” tem as seguintes desejos” (GINGER; GINGER, 1985, p.127).
propriedades, modalidades, aspectos e/ou funções: “é espon-
A modalidade personalidade é um aspecto histórico,
tâneo - nem ativo nem passivo (como fundamento da ação e
mais estrutural e revela como o ser se comporta na seletividade
dala paixão) ee engajado na sua situação (como eu, tu e isso)”. À
que o ego propicia. É o aspecto que dá a noção daquilo que
função do selfé a de favorecer o ajustamento criativo no qual é
as funções de contato. permanece (lembrando que o self significa um processo contí-
to
raçãoddeletodas
possível a integração
nuo de reconhecimento). “A personalidade é o sistema de ati-
Para a Gestalt-terapia, id, ego e personalidade são aspec- tudes adotadas nas relações interpessoais, é a admissão do que
tos que não são considerados como estruturas fixas e estáveis, somos, que serve de fundamento” (PERLS et al, 1997, p.187).
mas, sim, como etapas para o ajustamento criativo, que signi-
Entendo self como um sistema e uma rede fluida que é
fica justamente as funções de self.
processo, relação, produtor de energia, relação figura e fundo,
Embora cada um apresente características peculiares, os contato, potencialidade e ser-no-mundo como desvelamento
três aspectos são importantes. Portanto, para um self ser consi- da totalidade.
derado coeso, são necessárias a inclusão e a harmonia de todos
Acredito que a formação do psicoterapeuta não seja
os aspectos.
apenas acadêmica, pois envolve também uma formação pes-
A modalidade id apresenta uma tendência à passivi- soal. Para Tellegen (1982, p.81), a Gestalt “(...) foi e é um fio
dade. É um aspecto orientado e é sinalizador das questões condutor e uma permissão”, Meu amor pela Gestalt-terapia

86 87
me remete à seguinte questão: o que significa ser Gestalt-
terapeuta? -- essa indagação motiva meu percurso de forma-
ção como psicoterapeuta.
Em seu artigo, Ciornai (1995, p.75) coloca que:
A Gestalt terapia caracteriza-se, por excelência por
ser uma terapia que permite ao terapeuta inventar e/
ou utilizar-se com liberdade e criatividade de técnicas
e experimentos provindos de diversas origens, desde
que não se perca de vista os princípios epistêmicos
fenomenológicos que caracterizam a abordagem
gestáltica, os objetivos terapêuticos acima delineados
€ a visão gestáltica de processo humano, o que inclui
a compreensão de como se dão processos e distúrbios
de contato, percepção e awareness,

Resumindo, viver a Gestalt-terapia é acreditar no pro-


cesso vivido, é apropriar-se da visão de homem que o existen-
cialismo e a psicologia humanista convidam; e mais: é respei-
tar-se na sua própria singularidade, lançando mão do método
fenomenológico suspendendo julgamentos e preconceitos.
Chama minha atenção a colocação que ouço frequentemente
em encontros, congressos e seminários: “a Gestalt-terapia
está na vida, está no coração, no jeito de ser, no jeito de viver”.
Corraborando com tal afirmação, penso que, conhecendo os
pressupostos filosóficos, os princípios de homem e os con-
ceitos-chave, compreendo no aqui-agora, o motivo pelo meu
entusiasmo em estudar os conceitos gestálticos.
Texto 6
JEK OE f Ne
4 | LOGOTERAPIA NO CONTEXTO DA PSICOLOGIA

INTRODUÇÃO livros. Nas palavras desse mesmo autor, “El bilo


LOGOTERAPIA DA PSICOLOGIA:
NO CONTEXTO conductor que pasa a través de todos mis
mbora historicamente a psicologia seja
REFLEXÕES ACERCA DA ANÁLISE EXISTENCIAL DE considerada como ciência a partir do
trabajos es la lucha contra Jas tendencias
despersonalizantes y — deshumanizantes — que
VIKTOR FRANKL COMO UMA MODALIDADE DE laboratório de Wilhelm Wundr, em parten del psicologismo en la Psicoterapia”
1879, indubitavelmente, foi no século
PSICOTERAPIA XX que às grandes teorias apresentaram as bases
(EFrankl, 2006, p. 56).

para a sua constituição como profissão como a Um equívoco recorrente é considerar


LOGOTHERAPY IN PSYCHOLOGY CONTEXT: conhecemos nos dias atuais (Schultz & Schultz, que esse mesmo autor teria descoberto a
Logoterapia nos campos de concentração,
REFLECTIONS ABOUT VIKTOR FRANKI 2000). Dentre às diversas práticas psicoterápicas,
à perspectiva existencial vem ganhando um durante a Segunda Guerra Mundial, quando foi
EXISTENTIAL ANALYSIS AS À MODALITY OF espaço considerável, sobretudo a Logoterapia de um prisioneiro comum. Historicamente, já em
Vikror Frank], por abordar temáticas inerentes à 1926, Frankl profere pela primeira vez o termo
PSYCHOTHERAPY existência e pertinentes ao ser humano moderno. Logoterapia em um ambiente académico,
enquanto a denominação análise existencial foi
Thiago A. Avellar de Aquino, Universidade Federal da Pavaíba Tendo em coma a perspectiva da destacada somente a partir de 1933 (Frankl,
Alan da Silva Véras, Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas do Parand / ALVEF
psicologia como ciência e profissão, considera-se 2006).
Daniel Ouriques Lira Braga, Universidade Federal da Paraíba
a Logoterapia como uma corrente psicoterápica
Sarah Xavier Peixoto de Vasconcelos, fnstítuto de Medicina Integral Professor Fernando Figueiredo capaz de respaldar o trabalho do psicólogo para Como esclarece Fizzotti (2000), à
Lorena Bandeira da Silva, Universidade Estadual da Paratbal/Universidade Federal da Paraíba
as demandas existenciais e psíquicas. Para Logoterapia se constitui por meio de três fases
fundamentar esse arguinento, o presente artigo distintas: (1) o trabalho de aconselhamento de
Resumo, O presente artigo almeja descrever n Logoterapia no contexto da psicologia moderna,
contextualiza essa corrente de pensamento como Frankl nos centros de prevenção ao suicídio na
considerando por um lado seus aspectos teórico-conceituais, e por outro o seu campo de pesquisa e
uma (teoria da personalidade bem como década de 1920. (2) O desenvolvimento de um
atuação prática. Inicialmente considerou a Logoterapia no seu contexto histórico, dentro das teorias da
apresenta suas implicações — psicoterápicas. sistema de pensamento calcado em filósofos
personalidade, Também apontou para as suas considerações práticas no âmbito da psicoterapia e da
Inicialmente, será apresentada uma breve como Max Scheler, Karls Jaspers, Martin
prevenção, bem como elencou as principais críticas a essa corrente de pensamento na psicologia e suas
explanação — acerca — do — surgimento — e Heidegger, Ludwig Binswanger e Martin Buber,
consequentes refurações. Por fim, o presente manuscrito expõe algumas considerações acerca da
desenvolvimento dessa matriz. e, posteriormente, validada por sua própria
Logoterapia como uma forma de psicoterapia.
vivência nos campos de concentração no período
O SURGIMENTO DA LOGOTERAFPIA E da Segunda Guerra Mundial, como prisioneiro
Palavras-chave: Logoterapia, psicoterapia, psicologia clínica,
SEU CONTEXTO ATUAL comum. (3) Uma extensa casuística que se
Abstract, This article aims at describing Logotherapy in the context of modetn psychology, considering configura em uma incrodologia terapêutica
Viktor Frankl (1905-1997) foi um
by the one hand its theoretical and conceptual aspects, and by the other its field research and practical descrita cm livros no período pós-guerra.
psiquiatra, — neurologista e professor da
application. It first considered Logotherapy in its historical context, within the theories of personality. Tt
Universidade de Viena. Este sistematizou a
also pointed out to theie practical considerations in the scope of psychotherapy and prevention, as well as Historicamente, a Logoterapia foi
Logorerapia e Análise Existencial como uma
listed the main criticisms towards this psychology school of thought and its rebutrals. At last, this considerada por Wolfgang Soucek (19468) como
abordagem — psicotcetápica. Durante a sua
manuscript sets forth some considerations on Logotherapy as psychotherapy. à terceira escola de Psicoterapia de Viena, sendo
juventude, foi discípulo de duas escolas
precedida pela Psicanálise e à Psicologia
tradicionais, a psicanálise c a Psicologia Individual. Essa corrente também é reconhecida
Keywords: Logotherapy, psychotherapy, clinical psychology.
individual, até chegar ao seu próprio sistema de como uma abordagem de psicoterapia pela mais
pensamento chegando a produzir trinta e nove
antiga associação de Psicologia, a American
x
REVISTA DA ASSOCIAGÃO BRASILEIRA DE LOGOTERABIA E ANÁUSE EXISTENCIA
à EXISTÊNCIA
> 47 AB | LOGOTERAPIA NO CONTEXTO DA PSICOLOGIA

Psychological Association (APÀA), como pode ser A Logoterapia como prática da que o maior número de grupos se encontra na Alemanha (17), seguido da Argentina (10), Brasil (7),

constatado no verbete Logotherapy no Concise psicorerapia se complementa com a sua outra Áustria (6), Canadá (6), México (6) e Estados Unidos (4).
Dictionary of psychology: faceta, qual seja, a análise existencial, que
representa uma perspectiva antropológica de Algumas hipóteses são lcvantadas para explicar o grande número de grupos na Alemanha. Uma
An approach to psychatherapy that focuses pesquisa, Nesse aspecto, Frank! (2012) considera delas é o fato de que a primeira discípula de Viktot Frankl, Elisabeth Lukas, tenha fundado um instituto
en the “human predicament”, helping the de formação de logoterapeutas nesse país e publicon rrinta e oito Bvros sobre a teoria e prática em
que a vida se explica apenas no seu transcurso €
client to overeome crises in meaning. The Logorerapia em língua alemã. Além disso, grande parte dos trinta ce nove livros de Frank] foi escrito na
desdobramento. Assim, compreende que “ral
therapentic process typically consist of língua germânica, o que, possivelmente, facilirou sua maior inserção no referido país.
como um tapete descnrolado revela à seu padrão
examining three &pes of values: (a) erearive
inconfundível, deduzimas do curso da vida, do
(e.g, work, achievement); (b) experiential Já na Argentina, Frankl esteve cinco vezes, sendo a primeira em 1954, enquanto que no Brasil,
(eg, art; science, philosophy, devir, a essência da pessoa (p, 57).
esse mesmo pensado? esteve três vezes, inicialmente em 1984 na PUC do Rio Grande do Sul (Porto
understanding, loving); and (c) artitudinal Alegre). Nesse, o primeiro estudo publicado sobre Logoterapia foi em 1983, por eat Xausa na Revista
(e.g, facing pain and suffering). Each client Batthyany (2009) constata que, na
atualidade, novas ideias €« métodos são Psico (PUC-RS), intitulado “Viktos Frankl: um psicólogo no campo de concentração” (Xausa, 1983).
is encouraged co acrive at his or her own
solution, which should incorporate social desenvolvidos e ajudam no desenvolvimento e
Tabela 1 Relação de Periódicos especializados em Legoterapia é Análise Existencial
responsibilizy and construceive relationships. no crescimento da psicoterapia centrada no
Also called meaning-centered therapy. See sentido da vida. Dessa forma, constata-se que a Periódico Nacionalidade
also existential psyebotberapy; existentialivn Logoterapia está sendo desenvolvida por vários Revista Logos c Existência Brasil
(APÁA, 2009, p, 278), autores, tendo por base os pressupostos de Existenz und Logos Alemanha
Viktor Frankl. De forma geral, pode ser Ricerca di Senso Ftália
A Terapia Centrada no Sentido
considerada como um “movimento” em prol de Revista Mexicana de Logoterapia México
encontra-se em consonância com o movimento
um direito humano, qual seja, o de promover "Fhe International Forum for Logotherapy Estados Unidos
existencial iniciado após a Segunda Guerra
uma vida plena de sentido para todos (Frank, LogoRed Atgentina
Mundial, por meio da psiquiatria,
2011). Revista Logo: Teoria, Terapia, Actitud Argentina
especificamente por Ludwig Binswanger e
Medard Boss. No Caderno do Conselho Federal Parece muito clucidatizo a seguinte Na atualidade, a Legoterapia conta com sete periódicos especializados nessa temática (Tabela 1),
de Psicologia (2009) intitulado Axo da reflexão de Frank] (2011) acerca do crescimento dos quais apenas dois se encontram classificadas no qualis CAPES: a Revista Logos e Existência e a revista
Peicotevapia: Textos geradores — encontra-se à de sua abordagem reórica: Ricerca di Senso. Nessa perspectiva, torna-se necessário mapear os avanços científicos da Logorerapia no
seguinte referência: Brasil nos periódicos brasileiros, tema que será abordado no tópico 2 seguir.
Eu concluí o meu primeiro livro declarando
O século XX é marcado por uma sétic de que à Logoterapia era uma “terra de O ESTADO DA ARTE NA LOGOTERAPIA BRASILEIRA
contribuições oriundas de médicos, aré ninguém. E, ainda asim — que rerea
mesme porque à Psicologia ainda se promissora!” Isso foi há muitos anos, Nesse Em uma busca tealizada em duas bases de dados vittuais, Véras c Rocha (2014) fizeram um
mantinha restrita sos espaços acadêmicos cm Ínterima, a “teera de ninguém” se tornou mapeamento dos artigos em Logoterapia publicados em periódicos científicos brasileiros considerando o
sur cruzada pelo seconhecimento científico. habitada. E o trabalho de seus babirantes período de 1983 a 2012, encontrando 49 trabalhos de autoria de brasileiros. Os autores descreveram o
Desde o criados da Psicanálise nomes prova que a "promessa" está a caminho de
panorama nacional de pesquisadores, instituições e temas relacionados à Logorerapia, Para atualizar os
ilustres como Jung, Perls, Moteno, Erickson, ser cumprida. (p.208).
dudos, foi realizada uma nova pesquisa incluindo rambém os anos de 2012 à 2014, assim, por meio da
Frank, as contribuições parecem marcar cssa
tendência (...) (Rodrigues, & Brito, 2009, p. — No contexto mundial, a Logoterapia
ferramenta Google Académico e utilizando-se dos descritores Logoterapia, Sentido da Vida c Viktor Frank,
94). encontrou-se mais 66 artigos, toralizando 115. A Figura 1 apeescnta a distribuição dos actigos de 1983 à
conta com 105 grupos, entre institutos e

associações, caralogados pelo Viktor Frankl 2014.

TIustitur (cf. www.vikrofranklorg). Constara-se


REVISTA DA ASSOCIAÇÃO BRASREIRA DE LOGO TERAPIA E ANÁI
LOUCOS & EX
IBTENCIAL
ÊNCIA
, 2078 [ao 50 | LOGOTERAPIA NO CONTEXTO DA PSICOLOGIA

Os trabalhos estavam disteibuídos em 52 periódicos, senda o maior destaque para a Revista Logos
& Existência, com 45 publicações. O periódico em questão passou à concentrar as publicações de artigos
em Logoterapia, sendo este um aspecto posítivo, uma vez que até o seu surgimento, em 2012, os
; crabalhos estavam dispersos em várias revistas, dificultando o acesso por parte dos pesquisadores.

Também foi averiguado que os artigos apresentam múltiplas metodologias e abordam diversos
remas acetca da Logorerapia, Sobte isso se deve pontuar que 85% dos estudos utilizaram métodos
qualitativos exploratórios, rais como pesquisas bibliográficas e estudos de caso, e 15% métodos
descritivos, rails como estados de correlação e validação de testes psicométricos. Dentre os temas
encontrados destacam-se os que tratam de aspectos psicoterapêuticos, organizacionais, educacionais,
sentida da vida (logoteoria), espirirualidade, religiosidade, saúde, estresse, resiliência e pessoas com
BEER
O dPSGINATOOrN HS osNAT
ETEZSESSSSSSEZANR deficiência. Essa versatilidade de temas é métodos reflete a plausibilidade dessa teoria para apreender as
ases dd aALoôogçgosousscooseso
TAos=CANSAÂAAOSAAdadadar temáticas atuais no campo da psicologia.

Figura | Distribuíção da frequência de artigos brasileiros publicados em


Tendo em conta as diversas temáticas em que a Logoterapia se aplica, torna-se necessário
pettódicos nacionais de 1983 a 2014
compreender o seu lugar dentre os saberes psicológicos. Nessa direção, cabe argumentar em que medida à
Logoterapia pode ser compreendida como uma Teozia da Personalidade, como o leitor poderá constatar
Constatou-se que há um avanço significativo do número de publicações a partir do ano de 2008.
à seguir.
Isso pode estar indicando n crescente interesse em lançar mão da Logorterapia para realizar pesquisas
acadêmicas. Logarerapia como teoria da personalidade

Provavelmente, esse crescente intetesse seja ftuto de linhas de pesquisa em mestrado acadêmico, Segundo Pervin e John (2004) uma teoria da personalidade deve contemplar os seguintes
como no curso de Ciências da Religião da UFPB (PB) e de Psicologia Clínica da UNICAP (PE), bem aspectos:
como os cnrsos de pós-graduação Let Sensu da PUC (PR), ALVEF (PR) e SOBRAL (SP). Também
devemos pontuar o trabalho que vem sendo cealizado pela Associação Brasileira de Logoterapia e Análise (1) Estructura — as unidades básicas ou blocos constitutivos da personalidade. (2) Processo — os
Existencial (ABLAE), o Núcleo Viktor Frank! na UEPB (PB), pelo Instituto Geist no Maranhão e do aspectos dinâmicos da personalidade, incluindo os morivos. (3) Crescimento e desenvolvimento —
IECVE em Ribeirão Preto — ST, como nos desenvolvemos, formando a pessoa única que cada um de nós é. (4) Psicopatologia — à
natureza e as causas do funcionamento desordenado da personalidade. (5) Mudança — como às
Pôde-se constatar a existência de 162 autores com, pelo menas, um artigo publicado em s
pessoas mudam e por que elas, às vezes, resistem à mudança ou não são capazes de mudar, (p,
Logoterapia, Os de instituições nordestina, especialmente da Paraíba, são aqueles que aparecem com 24).
maior frequência. Quanto à titulação, 44 eram doutores, 24 mestres ou doutorandos, 85 graduados ou
mestrandos e dois graduandos (sete não tinham informações disponíveis nos artigos hem na Plataforma Como à Logorerapia se posiciona perante esses cinco características das teorias da personalidade?
Lattes). Mais de 60% eram psicólogos ou estudantes de Psicologia. À Tabela 2 apresenta a Logoterapia no contexto gera! da Psicologia da Personalidade.

Verificou-se que 51% dos artigos encontrados tinham mais de um autor. Isso aponta para Tabela 2 À logoterapia ho contexto geral da Psicologia da Personalidade
prováveis formações de grupos de pesquisa que vem crescendo no país. Também foi possível verificar à Crescimento e
existência de parcerias entre pesquisadores de instituições de diferentes. Esso mostra tanto uma abertura e Estrutura Processo : Patologia Mudança
desenvolvimento
expansão da abordagem quanto o fortalecimento de laços estabelecidos entre discentes e docentes de s Apelo aos
Frustração da P
difetentes instituições. Ser-na-mundo, Vontade de Ser versus bh d valores €
; ; usca de Me
set-assim sentido dever-ser ; maiéutica
sentido
soctática
NEVISTA DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LOGOTERAFIA E ANÁLISE EXISTENÇIAL é HA
52 | LOGOTERÁPIA NO CONTEXTO DA PSICOLOGIA

A primeira, a estrutura, representa os aspectos estáveis e duradouros da personalidade ou à De forma geral. a abordagem em rela possuam — uma contribuição importante,
consistência de respostas individuais, Segundo Frank! (19924), essa dimensão representa o “ser-assim”, responde — perfeitamente as rrês questões semelhante a uma orquestra, na qual todos os
constituído por meio dos hábitos e escolhas pessoais e tendências da personalidade, Embora Frank! não fundamentais de uma teoria da personalidade: instrumentos possuein sua relevância no

pateça dar atenção aos constructos estruturais, preferindo dar ênfase ao antagonismo nocpsíquico, existe “O quê, como e por quê” (Pervin & John, desempenho —de umz peça musica, À
uma grande preocupação em como a pessoa se posiciona perante à sua estrutura de personatidade, tendo 2004). Por um lado, apreende e que o indivíduo necessidade de uma nova abordagem
em conta 6 conceito de liberdade. “É” e coma ele se tornou “o que &* por meio de psicorerápica decorre, inequivocamente, do fato
uma análise existencial; e, por nutro, está em de que as demandas do sentido da vida e do
Em linhas gerais, a Logoterapia, como grande parte das teorias existenciais, não defende à condições de argumentar, de forma plausível, o vazio cxistencial não cram consideradas por
classificação do ser humano em termos de traços ou tipo de personalidade, já que compreende o ser “por que” ele se comporta quando à motivação outras escolas. Esse fato é justificável por meio
humano como um contínuo vis-a-ser (c.f. Hall & Lindrey, 1984), Nessa perspectiva, Ortiz (2011) por um sentido na vida se encontra frustrada ou da seguinte indagação:
compreende que à Logoterapia propõe a visão do ser humano come um ser dinâmico. À pessoa É realizada. Tendo em conta que à Logoterapia
constiruída por caráter e temperamento, podendo, ainda assim, opor-se a eles (antagonismo surge no âmbito do saber psicoterápico, cabe Como poderia uma psicoterapia que extrai
nvopsíquico), ampliando a visão acerca da estrutura do sujeito como um ente meramente estático. sua comprecnsio do homem de
agora apontar para algumas de suas implicações
experimentos com ratos set capaz de
clínicas.
Sobre essa capacidade de se posicionar perante si mesmo, comentam Hal! e Lindzey (1984): entender o faro antropológico fundamental
de que o homem, Às vezes, em uma
Logotevapia como psicologia clínica
O homem pode afinal transcender os ferimentos da infância c as ofensas posteriores à sua sociedade de abundáncia, comete suicídio, c,
existência, Veja, por exemplo, o The doctor and the soul de Viktor Frank] para conhecer como outras vezes, está disposto a sofrer, contanto
Todo saber teórico e prático, no campo
alguns prisionciros das campos de concentração transcenderam os horrores de sua existência (p. que seu sofrimento tenha sentido? (Frank,
da psicologia, precisa ter consciência de suas
1991, pp. 30-31),
93). limitações. Dessa forma a Logoterapia não se
apresenta como panaceia (Frankk, 1991), uma Frank (19922) compreende que o
No que se refere ao processo, que se enconira relacionado ao conceito de motivação, pode-se vez que reconhece ranto os seus limites, como o principal fator de proteção ào ser humano é a
considerar que a vontade de sentido seria um fenômeno primário para o ser humano agir no mundo,
seu campo de aplicação. Ademais, Frank percepção de um sentido na vida. Tendo em
constituindo-se como à principal mola propulsora da existência. Assim, para essa perspectiva, o ser
comprçendia a Logoterapia como numa terapia conta que ter uma tazão para viver se constitui
humano é atraído para o que tem sentido e valor (Frankl, 19924). Já no que se refere ao processo de complementar, não obstante, à prática em uma condição necessária para a resiliência
crescimento e desenvolvimento, Frank] não recorre nem aos fatores genéricos nem ambientais, cenbosa os
psicoterapêutica decorrente dessa abordagem hnmana. Esse mesmo autor, por meio de suas
considere como condicionantes da existência humana. Para tanto, recorre-se à dinâmica da existência
não se enquadra entre as psicologias integrativas experiências clínicas, constata que a demanda
humana (noodinâmica) que compreende uma tensão entre o ser e o vit a set, o que à pessoa fealizou € o
e complementares, teido em vista que se mais frequente dos seus pacientes era uma
que ainda deve realizar em sua existência (Frankl, 2004).
fundamenta tanto em uma base teórica como sensação de vazio existencial, ocasionada pela
metodológica. Além do mais, os seus frustração da motivação: primária do ser
No que tange à psicopatologia, Frank! (2011) considera que a frustração da vontade de sentido
fundamentos teóricos sio corroborados por humano: à vontade de sentido; um mal-estar
Jesempenha um papel relevante na criologia de alguns transtornos, tais como a drogadição, a agressão € o
ineio de produções acadêmicas e científicas que se expressa por meio do tédio e a sensação
suicidio/depressão. Adernais, quando o ser humano não se encontra morivado pelo sentido, emergem
(Batthyany & Gurtinano, 2005), de que a vida não tem sentido (Frankl, 2911).
sempre as vantades de poder « prazer de forma acentuada, o que frustra cada vez mais a realização de
sentido. Desse modo, Frankl identificou que as perdas
Mas, por qual motivo Frankt considerou
das tradições e dos instintos ocasionaram, no
x n Logoterapia como uma terapia complementar?
Por fim, no que se refere à mudança, a Logoterapia desenvolve um sistema de imétodos hometn moderno, uma frustração existencial;
No contexto histórico desse movimento, o
psicoterápicos < concebe uma grande relevância na relação “eum” utilizando-se de uma postura posto que, de forma geral, cle não sabe mais o
termo “complementar” significa que à
dialógica, Essa tem por intuito acessar os recursos saudáveis do paciente, explorando «e ampliando o que quer e o que deve fazer de sua existência.
Logorerapia não pressupõe a superação de outras
campo de possibilidades do ser-no-mundo, o que facilita o processo de escolha e mudança do paciente Dessa forma, comprecnde-se que esse mal-estar
escolas para à sua consolidação, posto que todas
(Erankl, 19934).
LGOE à DasTÉÊNCIA
REVISTA DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LOGOTERáPIA E ANÁLISE EXISTENS: 1), 45-65, 0665 53 54 LOGOTERAPIA NO CONTEXTO DA PSICOLOGIA

seria mais sociogênico do que psicogênico Essa modalidade de psicoterapia também Uma terceira — possibilidade de As técnicas psicoterápicas na Logoterapia
(Frankl, 1990, 1991). se constitui como uma terapia não específica, na aplicabilidade é nas neuroses sexuais, Nesses
medida em que apresenta possibilidades de casos, 0 padrão é a luta por algo: a mera do A Logoterapia apresenta diveisas
À Logoterapia atua, sobretudo, como atuações para alguns cranstorios psicogênicos, prazet sexual, nº forma de potência « orgasmo, possibilidades de aplicações. No entanto, Frank!
uma abordagem adequada para o tratamento de Segundo Frankl (2012) o problema do ser Entretanto, ao buscar o prazer como fim, (1991) adverte que “(...) nem todo método pode
questões — existenciais relacionados com à
neurótico se encontra em sua restrição da paradoxalmente ele se esvais Nesse sentido, ser usado em todos os casos com as mestnas
fruscração da vontade de sentido de vida. À percepção do seu espectro de liberdade, Franid (2011) considera que o prazer não pode expectativas de sucesso, nem pode todo
frustração existencial pode resultar em “neuroses consequentemente, interpreta à existência como ser uma intenção, mas deve emergir terapeuta utilizar qualquer método com a
noogênicas”, que se caracteriza como tema um “ser assim” e não de antro modo de estar no espontancamente como efeito colateral, como mesma eficiência" (p. 17), Essa conclusão
neurose decorrente de problemas existenciais, mundo. Ássim sendo, as técnicas possuem o um resultado da autorcranscendência. deriva-se da unicidade e singularidade da
onde a frustração da vontade de sentido objetivo de ampliar à forma de ser no mundo personalidade, tanto do paciente como do
desempenha papel central na consolidação desse por meia de uma ampliação da área de liberdade Nesse tipo de neurose o prazer se torna terape Uta,
mal estar. Sobre isso, esse autor tece o seguinte do paciente, uma mera dHinal, desencadeindo uma
comentário: hiperintenção e uma hiper-reflexão, À hiper Fizzotti (2014) comentando acerca da
Uma prescrição apropriada para a reflexão ocorre por um caráter de exigência obra de Frankl observa que:
(..) apesar de não constituir cfeito de uma
Logoterapia é nas neuroses de angustia, quando surgindo do próprio ego, em situações em que se
neurose, o vácuo existencial pode rinizo bem CG.) en la relación entre terapeuta y paciente
o paciente reage aum sintoma com o receio de exige o desempenho sexual, Esse caráter de
Tornar-se sua causa, Nesse caso, teremos de consideraba que debfa cvitanse cualquier
que ele possa ocorrer novamente, através de uma exigência deriva-se de um alto valor que à
falas, pottanto, de uma neurose noogênica, esquematizaciób, estandarizaciás o visión
distinta, portanto, das psicogênicas & ansiedade antecipatória, o que faz com que o sociedade de produtividade atribui à eficiência
determinista dei hombre y del problema
somarogênicas, Teremos logos que definir a sintoma se manifeste. Nesses casos, o paciente sexual, ou a pressão da própria sociedade de
psíquico, en cambio se debfa evidenciar la
heurose noogênica como aquela causada por apresenta um medo de ter medo e, consumo sexual (Frankl, 2011). singulatidad de fas siruaciones específicas y
um conflito em nível espiritual — um consequeniemente, se esquiva de situações que lá consiguiente — individualización — de
conflito ético ou maral, como, por exemplo, evocam o medo, perdendo entio a sua A Logoterapia tunbém se aplica & casos actitudes de respeto, de comprensión y de
ES choque entre o mero SUperego E a autocontiança básica, Tal padrão patogênico de pacientes com transtornos psicóticos, como profunda participación en los problemas del
Autêntica consciência (está, se necessário for, torna-se um reforçador da própria angústia. apontados por Frank (1973): A atuação paciente. (p.22)
pode contradizer e opor-se Aguele), Por psicorertapéutica deve se deter,
último, mas não menos importante, à Outra aplicabilidade se dá nas neuroses fundamentalmente, à pessoa e não meramente Para evitar um processo de mecanização
ctiologia noogênica é formada pelo váeuo obsessiva. Nesses casos o paciente sofre pressão e tecnização da psicoterapia, Frank (2011)
ao sintoma, Há, portanto, a percepção de que o
existencial, pela frustração existencial ou pela
de ideias obsessivas que o invidem sujeito psicótico rumbém tem a capacidade de recomenda duas qualidades dos logoterapeutas: a
frustração da vontade de sentido (Erankl,
involuntariamente, por conseguinte, TCAge-se fia abertura do ser, todavia, cvidencia-se que pelo de individualizar e a de improvisar. Ademais, os
NU, p 112)
tentativa de icprimir tais pensamentos, sintoma da pasivização, o sujeito se percebe logoterapeuras não snperestimam as técnicas,
excreendo uma contrapressão. Contudo, o que pteso aos condicionantes do seu psicofísico, À tendo em vista que:
No entanto, o vazio existencial por si só
não se constitui em uma patologia, mas em uma ocuire é que essa contrapressão aumenta ainda intervenção se constimmi na busca de
mais à pressão original, ocasionando uma lota Há muito já se perceben que o que rem mais
potcncial patogenia, posto que se constitui tão manifestações c ampliações dos recursos
significado na teripia não são às técnicas,
somente de uma frustração da vontade de do paciente conira às próprias ideias obscssivas, saudáveis, promovendo à abertura do ser para o
mas, sim, o tipo de relação humana que se
sentido (Frankl, 1985). Destarte, a Logoterapia
com o receio de que suas ideias possam tornar-se mundo por meio de possíveis áreas de liberdade
estabelece entre o terapeura e o paciente, isto
é uma psicoterapia específica, recomendada para
realidade, sobretudo as de conteúdo criminoso ainda intactas dos pacientes. Em síncese, realizar
é, a questão do encontro pessoal e existencial
as demandas existenciais dos pacientes. (Frankl, 2011). um processo de humanização. (Frank, 2011, p. 14,
56 | LOFACOTERAPIA NO CONTEXTO DA PSICOLOGIA

Constata-se que a Logoterapia não compreende o ser humano como wma máquina a ser amplificar as consequências” (Pacciolla, 2007, p. paciente se sproximará cada vez mais da mera
consertada, mas leva em conta uma relação terapêntica que estabeleça um verdadeiro encontro pessoal 186). Com isso, essa técnica leva o paciente a iz pulsional, possibilitando que o prazer se torne
(Baschemeyer, 1990), Sobre à possível dicotomia entre a téchica € o meto encontra, Udeizo (1994) de seu próprio temor, fazendo n5o do recurso apenas uma consequência adicional da realização
assevera: antropológico do autodistanciamento, do sentido do encontro amoroso (Franid, 2011),
recuperando gradativamente à sua autoconfiança
De todas as maneiras, a psicoterapia é setopre algo mais de que uma técnica; sempre inclui um elemento básica. Técnica do denominador comum É
de arte. Nela, à dicotomia entre técnica e encontro desaparecem, Estratégias terapêuticas de um lado e do utilizada, sobretudo, cm conflitos valorativos
outro, a relação personalizante, são os polos entre os quais se desenvolve a situação terapêutica (pp. 55-56), Dervefiexão, À técnica da derreflexão na quando a pessoa se confronta com duas
logoterapia objetiva romper a postura, neutórica possibilidades incompatíveis, Objeriva ampliar
Entretanto, considera-se que às técnicas foram consolidadas na Logorerapia com o intuito de
da — hipecsefiesão, — proporcionando — a todas as possibilidades & elencar as principais
mobilizar dois recersos antropológicos: o aurodistanciamente (intenção paradoxal) e à
autottanscendência do paciente O princípio pessoas envolvidas na decisão do cliente Em
aurotranscendência (derreflexão). À primeira diz respeito à capacidade humana de sc opor ao psicofísico,
seguido pela derrefiexão é o de que o homem seguida, reficrese acercáãa de todas às
se posicionando de forma antagônica (Frankl, 2012), como, por exemplo, posicionar-se de forma irônica
não deve observor à si mesmo (postura possibilidades de escolhas e suas respectivas
perante os sintemas de angustia. Já a segunda característica, refere-se à aptidão da pessoa humana em sair
neurótica), mas intencionar um “"mW' que consequências para si mesmo e para os demais
de sua própria esfera e «c direcionar para o mundo, para algo ou alguém (Frankl, 19903. À seguir serão
transcenda à si mesmo (postura saudável). O envolvidos, sempre se utilizando do diálogo
descritas brevemente as principais técnicas psicoterápicas dessa abosdagem as quais são apresentadas
paciente é nosientado a fetiror à sua socrático. Por fim, o logoterapenta deve
sinteticamente na Tabela 3,
intencionalidade para o prazer, direcianando-se confrontar com a responsabilidade da pessoa

Tabela 3 Síntese das téchicas psicoretápieas, padrões patogênicos e caractecisticas antropológicas cm função do tipo de neurose para um motivo mais pleno de sentido que se peranre a sua decisão QLukas, 1992). Dessa
constitui o cocontro amoroso (Boschemeyer, forma, o paciente é levado a realizar um balanço
oo Característica 1990). de sua vida e, em certas ocasiões, instigado a
Técnica co
Tipo de Neusose Padrão patogênico . o antropológica
psicoterápica uma suposta situação limite, elencar escolhas
mobilizada
À hiper-reflexão pode ser mirígada por (Uderzo, 1994). Essa abordagem se sustenta na
Níedo do medo
Angústia
ago)
- Intenção paradoxal — Aurtodistanciamento meio da têcuica da derreflexão. Assim, conforme
aventa Franki (2011), essa metodologia pode ser
concepção de homem da Logoterapia que
. Luta contra o5 compreende o set humano saudável como um
Obsessiva Intenção paradoxal — Autodistanciamento prescrita nos casos de neuroses sexuais, tais como
pensamentos ser consciente e responsável (Frankl, 19924),
Hincrintenção e ; rigidez e impotência. Essa técnica se mostra
Sexual P ã Derretlexão Aurorranscendência
hiper-retlexão eficaz quando o desempenho e satisfações Diálogo socrático. À Logoterapia também
sexuais rornam-se objetos de atenção ou é um tipo de análise existencial direcionada ao
Intenção Paradoxal, A técnica da intenção paradoxal foi elaborada por Frank! c publicada pela intenção excessiva, ou ainda quando o paciente sentido da vida. Para tal análise se utiliza de uma
primeira vez em 1939, sendo mais adequada aos casos de neuroses de angústia e de neuroses obsessivo- considera a relação sexual como uma cobrança postura dialógica. Apropria-se dessa fécnica
compulsiva (Boschemeyer, 1996). O primeiro padrão parogênico da neurose de angustia é o medo de cer interna Ou extérba (societal). como um meios de esplorar os valores na
medo, que resulta em uma ansiedade antecipatória. Enquanto que na neurose obsessiva, e padrão existência do paciente, resguatidando o terapeuta
patogênico é a fuga dos pensamentos obsessivos. Nesses casos, o logorerapeuta orienta o seu paciente à O paciente é orientado a não realizar o de qualquer perspectiva diretiva durante as
desejar que aconteça o que ele tanto teme de forma exagerada, utilizando-se do humor. Tal prescrição se ato sexual de forma programada, mas lhe é sessões (Aquino, 2813). Dessa forma, o diálogo
baseia no fato de que ninguém pode desejar e temer o mesmo abjeto de forma concomitante (Lukas, permitido as preliminares sexuais. Aconselha-se não se constinji apenas como uma forma de
1989). também que o paciente esclareça pata sua conversação, mas uma Maneira de estar com o
parceira ou parceiro à proibição de coito. Com outra, estabelecendo um encontro rerapêutico
“À intenção paradoxal ajuda a restabelecer a distância ótima entre si € o próprio sintoma, isso, mais cedo ou mais tarde, o paciente não autêntico (Ortúx, 2012). Segundo Hirsch
mudando à atitude: nem lurar, nem fugir do sintoma, mas, paradoxalmente, desejar aumentá-lo para mais irá seguir a recomendação. Livre das (2009), “o dialogo socrático não faz o indivíduo
pressões sexuais da parceira ou parceiro, o sentir & que ele tem fracassado, mas o permite
LOTTO, & à EXISTÊNCIA
REVISTA DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LOGOTERAMA E ANAUSE EXISTENÇIAL À 14), 45. 5, 2018 |57 58 | LOGOTERAPIA NO CONTEXTO DA PSICOLOGIA

pedagogia que leva em conta a responsabilidade tais como: satisfação com a vida. afetos positivos Segundo Frankl (1991), a busca de
olhar para uma situação anafiticamente para
da sujeito, e saúde mental (King e ad, 2006, Mascaro, sentida decorre da motivação primária do ser
descobrir opções e alternativas para a formulação
2006, Mascaro & Rosen, 2008); ainda não se humano, 2 vontade de sentido, que se constitui
de uma vatiedade de estratégias” (fp, 41),
Atualmente, novas perspectivas encontra amplamente conhecida no âmbito como uma teoria da motivação, Ainda de acordo
Conclui e mesina autora que essa metodologia
dialógica tem por função primordial evocar convergem com o petsamento de Viktor Ertankl, académico —brasileico. Este fato decorre, com esse autor: “nós chamamos de vantade de
Pacciolla (20148) argumenta a favor de nm possivelmente, das publicações tardias no sentido simplesmente aquilo que é frustrado no
idejas.
cogaitivismo existencial, pressupondo cenário: dos periódicos nacionais, tendo em homem sempre que ele é tomado pelo
O método socrático, segundo Aquino convergências entre à Eogoterapia e à conta que o grande boom das publicações sentimento de falta de sentido e vazio” (p. 25),
(2013), é formado por dois momentos: a psicoterapia — cognitivo-comportamental. - Essa ocorreu —no ano de 2012. Algumas
refutação c a malêurica. O primeito, o da visão perpassa eminentemente a compreensão de incompreensões teóricas, como, por exemplo, Tendo a Logotertapia uma preocupação
central com o sentido da vida, poderia essa ser
refutação, dá-se pela presença da contradição, pessoa, tendo em conta que É ela quem está atmribuic à Logoterapia um caráter mais de
incoerência no discurso do sujeito, que são mediando o ambiente e à resposta aurtoajuda do que científico, possivelmente uma psicoterapia de caráter religioso? Como um
devidamente pontuadas pelo psicoterapeuta; já o Fundamentalmente, o terapeura cognitivista tenham retardado o seu desenvolvimento sistema de psicoterápia, em hipótese alguma
existencial está preocupado em identificar em acadêmico no contexto nacional. Dessa forma, poderia se estabelecer por meio de uma visão
segundo, a maiéutica, ocorre a partie do
momento em que os vaíores e os sentidos se que medida o estilo de vida e de personalidade abordaremos à seguir algumas críticas relativas a unilateral, assim, essa abordagem é aplicável ao

se relaciouam com a percepção do sentido na cssa abordagem bem como suas respectivas homem moderno independentemente que cle
tornam conscientes no espectro perceptivo do
paciente, Segundo Lukas (1992), “fortalecer em vida do paciente (Pacciolla, 2014h), Wong contestações. seja religioso ou não.
seus pacientes à capacidade de perceber valores, (2014) é Gomes (2009) sugerem uma integração
As criticas a Logoterapia e suas possíveis refittações Outto equívoco é o de atríbuir à
ao mostrarlhes c trazer à sua presença valores entre o inodelo da Logoterapia e o da psicologia
Lagoterapia como uma cortente da Psicologia
objetivos durante os encontros terapêuticos, positiva, tendo em conta que ambas se
À Logoterapia, como qualquer ouero Transpessoal, Vikior FrankÍ, em seus livros, em
constitui, portanto, um princípio terapêutico preocupam com a questão do sentido da vida,
assim como estudam o que faz a vida ser digna
movimento na Fsicologia, é passível de nenhuma ocasião utilizou às terminologias
bastanie clementar na logoterapia” (p.49).
questionamentos no âmbito acadêmico. Em COMUNs à essa perspectiva, nein ao incenhos o seu
de ser vivida (e.f. Peterson, 2006),
Além de uma metodologia terapêntica, à geral, as criticas surgem a partir de uma leitura objeto de estudo se consrinuin como o estado
Logoterapia também é adequada para as práticas Constara-se que à Logorerapia pode ser superficial da obra de Viktor Frank, como por alterado de consciência. Tampouco esse autor
compreendida como um sistema de pensamento exemplo, considerar, equivocadamente, à identificou à sua teoria como “Transpessoal,
preventivas, sobretudo no que se refere à
prevenção do vazio existencial (Ortiz, 2006). aberto. Essa característica aponta para duas Logorerapia como uma expressão relipiosa e não embora outros tenham tentando fazer essa
Nessa perspectivo, Aquino et «é (2011) direções: (1) aberto à sua própria evolução, com como um saber científico. Tsso decorre, pseudo associação (eg. Boainain 199%,
desenvolveram um programa de promoção do 1 colaboração de vários autores, e (2) aberto para possivelmente, do fato de que essa teoria adota Ademais, quando Frankl (1992b) aborda à

sentido da vida junto à adolescentes avaliando à colaboração de outros sistemas de psicoterapia como objeto de estudo o sentido na vida, tema temática da religião e da religiosidade, apenas o
(Frank, 20185, Ftanki (2011) (teria este que é compartilhado com os sistemas faz considerando esse aspecto como mais um
sua clicácia por meio de um estudo quase
experimental. Os autores constataram um desenvolvido sistematicamente os seus principais filosóftcos e religiosos. Entretanto Frankl adota fenôrmeno humano e de um ponto de vista de
aumento na pontuação média das subescala postulados c fundamentos, mas, conforme uma postura fenomenológica é científica, um objeto de estudo, nunca como uma adesão à

Realização Existencial ec decréscimos nas pensa: "(...) um fundamento não simboliza mais constatando que na sociedade atual há uma algum pensamento específico ou como um
pontuações médias das subescalas Vazio + do que um convite para que outros deem frustração da busca de sentido, discorrendo posicionamento, Essa é, em geral, a postura de

Desespero Existencial, Bruzeone (2007) considera seguimento à construção de prédio sobre esse acerca da dinâmica existencial do homem muitas abordagens do campo da psicologia que
a tendência preventiva de cunho logoterápico, fundamento" (p, 197). moderno na procura de um significado para à se debruçam sobre à Psicologia da Religião,

sobretudo em sen aspecto pedagógico, sua existência (Franki, 2012), permanecendo em uma postura cientifica

apontando que à Logorerapia é também uma Embora o construto sentido da vida quando estuda os fenômenos religiosos à luz de
esteja relacionado com indicadores de bem-estar uma teoria específica Ávila, 2007).
1
REVISTA DA ASSOC, AO BRASILEIRA DE LOGOTES PIA E ANÁUSE EXISTENCIAL, 59 60 | LCGOTERAPIA NO CONTEXTO DA PSIGOLOGIA

Ademais, constata-se que Viktor Frank! senão por uma consequência de sua expressão fornece-lhe nm. Tso poderia parecer à mundo é sempre é aquele ente que está em
não propõe e nem oferece qualquer ripo de (Frank, 1992b), como sugere também à revisão tetirada da responsabilidade do paciente e — relação com algo ou alguém, em última instância
espiritualidade para seus pacientes € por da literamra realizada por Bonelli e Koenig se aceitarmos à suposição de Rogeis - a se relaciona no aqui e agora com um sentido que
conseguinte, não pretende substítuir o papel da (2013). Se, por um lado, a religião pode ter um diminuição do paciente como pessoa (May,
deve ser realização.
religião. Destarte, esse teótico leva em conta que cfeito positivo para o bem-estar psicológico, por 1976, p. 50).
n psicoterapeuta deve respeitar o sistema outro, cla também pode ser fonte de aparentes Os fundamentos dessa: cscola são
religioso do paciente, c não pode impor Essa afirmação é provavelmente derivada
conflitos —valorativos quando o sentido antropológicos, arraigados em uma filosofia da
qualquer cosmovisão religiosa. De acordo com de uma incompreensão dos pressupostos reóricos
situacional e os valores universais se tornam existência, servindo de ancoragem para às
Boainain/ (1999) 0º interesse da Psicologia
e práticos da Lugorerapia, o que Erankl esclarece
incompatíveis (Frankl, 19926), Esst demanda intervenções e práticas psicoterápicas. Maslow
Transpessoal seria o de desenvolver o potencial por meio da seguinte consideração:
pode ser frequentemente
encontrada nos (1976), por sua vcs observa que os
humano da espiritualidade, da consultórios dos psicólogos e psiquiatras, o que Pslcaterapesitas existenciais europeus enfatizam a
(...) não sec trata de darmos ao paciente
autotranscendência e ampliar a consciência, não pode ser negligenciado por tais profissionais, antropologia filosófica com o intuito de definir
um sentido à existência e sim: de
compreendendo as tradições espirituais como o ser humano
tornarmos o paciente capaz de encontrar e diferenciá-lo de outros entes,
psicologia. À logoterapia objetiva desenvolver o Embora considere a religiosidade, de
o sentido da existência, ampliando, por Nesse sentido, a Logoterapia se preocupa
potencial humano, mas tão somente na forma geral, como uma expressão saudável do fundamentalmente com à seguinte pergunta:
assim dizer o seu campo de visão, de
perspectiva das possibilidades de ser-no-mundo, ser humano, a Logoterapia, especificamente à
modo que ele perceba o espectro
"Quem é o ser humano?”. E para respondê-la,
apelando para à consciência e pata àa abra de Frankl, não tece comentários acerca da
completo de possibilidades pessoais necessita diferenciar o homem dos outros entes,
responsabilidade = do —ser humano Na ideia de uma fusão entre Ocidente e Oriente, o que aponta para outra pergunta: “O que é
concretas de sentido e valores (Erankl,
compreensão da Logoterapia às tradições ciência e espiritualidade, psicologia e práticas
ancestrais, como defendem os terapeutas
1991, p. 74). especificamente humano!”. Portanto, Frank
espirituais podem ser comprecadidas como uma (19924) se propõe à distinguir os homens dos
via para que o homem religioso encontre um transpessoais (cf. Parizi, 2005), tendo em conta Paceiolla animais. Segundo pensa, “a verdadeira natureza
(2007) assegura que o
sentido para à vida, mas o logoterapênta não está que essas temáticas não fazem parte do seu psicoterapeuta deve ajudar o paciente na do homem é à sua cultura; enquanto cada
habilitado para prescrever alguma orientação escopo. Conclui-se, a partir disso que, descoberta animal possui seu meio
dos seus valores, exercendo ambiente adequado, o
religiosa ou práticas espirituais, como o leitor incquivocamente, a Logoterapia não se enquadra
eminentemente um papel de faciliador por homem tem acesso à um mundo do sentido, Em
poderá constata a seguir. em uma perspectiva da Psicologia Transpessoal
meio da metodologia da maiêutica, Dessa resumo, o homem penetra na dimensão
e por conscguinte, não pode ser considerada
maneira, o imuniza da imposição do seu sistema espiritual” (Frankl, 1991, p, 127).
Pode sec mais fácil ao homem religioso com tal.
ético valorativo, Eukas (1979) considera que
encontras um sentido na vida, mas o médica
“Os Logotcrapentas devem ter seus próprios Fronk! uriliza à seguinte palavra da
não deve nem pode obrigá-lo on forçálo 2 Outra crítica encontra-se no livro
sistemas de valor e ainda aceitar plenamente o língua germânica para designar espiritualidade:
tet nina cteliça; obrigat-se a isto não pode
Psicologia Existencial, organizado por Rollo May. Geistig&ert. Esse termo não se refere à vida
sequer o próprio paciente, pois não se pode sistema de valores de seus pacientes” (p, 4). Por
Esse mesmo autor, embora considere à
“querer” acreditar (Frank], 1990, p. 49). conseguinte, pode-se conceber espiritual-seligiosa, mas antes aos valores e
que o
Logoterapia como uma forma de psicoterapia
logoterapeuta náo está habilitado em dar um sentidos que o ser humano está imbuído, Dessa
existencial, assevera que os logoterapeuras
O auror em tela critica a “teologia sentido, nem muito menos assumir uma postura forma, ainda faz a distinção entre o subjelriv
poderiam estar próximos do aucoritarismo,
psicologizada”, ou seja, aquela que apresenta autoritária, mas sim ajudar o paciente por meio Geitige e o objektiv Geistigo. À primeita
Nessa direção, tece à seguinte comentário:
Lima compreensão ingênua de que à ausência de do diálogo socrático, à encontrar significados expressão se sefere à perspectiva do sujeito
crenças está relacionada com a manifestação de plausíveis para à sua existência, Essa perspectiva petante os valares e os sentidos, já a segunda, diz
Parece haver soluções claras para todos os
doenças (Frank, 1991). Não obstime, à decotre da concepção de Heidegger (1990), que respeito ao sentido em si IMesino, como se
problemas, nv que contradiz 2 compicridade
teligiosidade provavelmente teria um efeito da vida atual. Parece que, se o paciente não conceitua o homem como um ser-na-mundo, encontra no mundo (Frankl, 19924).
terapêutico, mas nunca é por intenção final, consegue descobrir seus objetivos, Erankl Dessa forina, o ser humano está enraizado 000
LOGOS & DaSTÊNCIA
PEVISTA DA ASSOSIAÇÁO BRASILEIRA DE LOGOTERAPIA E ANÁLISE EXISTENCGIAL à (1), 4 5, 20 | 61 62 | LOGOTERAPIA NO CONTEXTO DA PSICOLOGIA

À dimensão espiritual não se reduz à Sobre a questão da objetividade, de atuação prática. Considera-se, portanto, que na obra de Viktor Franki constituída por trinta e
religiosidade, mas abarca todos os fenômenos encontram-se na atualidade alguns instrumentos foi plenamente atingido, considerando os nove livros, o que significa que os seus
especificimente humanos, tais como: o senso psicomérricos que corroboram o pensamento argumentos apresentados no longo desse fundamentos já se encontram consolidados por
valorativo (estético e ético), liberdade e Frankliano — e que estio — disponíveis manuscrito, Ademais, constatou-se também que esse mestno autor.

responsabilidade, consciência valorativa, exclusivamente para fins de pesquisas empíricas à Logoterapia, como uma forma de psicoterapia,
está ancorada em uma compreensão psicológica Inegaivocamente — conclui-se que a
intencionalidade, preocupação com o sentido da (cf Barthyany & Guemann, 2005). No
e antropológica, que se adéqua perfeitamente à Logorearapia deve ser lavada em conta no
vida, dente outros (Lukas, 1989). contexto brasileiro, alguns instrumentos já
uma modalidade da psicologia cxistencial, como conjunto das teorias c técnicas psicoterápicas
Indubitavelmente, toda — psicoterapia — está foram adaptados e validados, fais come o Teste
atestada pela American Psychological Association tendo em vista as suas aplicações em demandas
fundamentada em princípios antropológicos Propósito de Vida (Aquino er al, 2009, o
(ATA, 2009). específicas, como o vazio existencial e conflitos
(Frankl, 2012), assim, os psicoterapeutas Questionário de Sensido na Vida (Damásio,
valorativos. Além dessas, constituicse como uma
necessitam ter consciência desses fundamentos 2013) e 5 instrumento Sourees of Meaning and
Como um autêntico sistema de abordagem adequada para algumas neuroses
pelos quais, em última instância, as suas Meaning in Life Questionnaire (Damásio &
pensamento psicológico, cla é concebida como psicogênicas (ansiedade, fóbica e sexual) e
intervenções é suas técnicas psicoterápicas se Koller, 2013). Ademais, Batthyany (2009)
uma escola antidogmárica, nma vez que está neurose noogênicas, decorrente de conflitos
encontram ancorados, aventa que essa abordagem não se constitui
aberta às colaborações € evoluções tanto em suas éticos e valorativos, bem como apropriada para
apenas em uma prática psicoterápica, posto que
Em decorrência da sua visão aplicações quanto em seus fundamentos (Erankl, embasar programas preventivos que promovam
também seria igualmente um campo de pesquisa
antropológica, uma possível crítica à Logoterapia 2011; Lukas, 1992). Nessa perspectiva, a a sensação de sentido e valor da vida.
empírica.
seria à de que à sua visão de homem e de muado genuína Logoterapia se encontra exclusivamente

estariam mais para uma compreensão utópica do De fato, FrankI (2011) reconhece que
que realista, reduzindo-a 2 uma “bela filosofia”, inicialmente u Logoterapia foi se constituindo de
Não obstante, Fizzoni (2007) considera que forma — intuítiva, fnas que, «c apehas REFERÊNCIAS
“para uma boa psicologia ocorre uma boa pasteriotmente, foi validada cientificamente pot
APÁ concise dictionary of psyvebology (2009). Washington, DOC: American Psychological Association,
filosofia” (p. 18). meio de restes psicométricos, estudos
Aquino, T. À. à. DE (2013) Logoterapia é Andlise Existencial: uma introilução no pensamento de Viktor
corcelacionais e experimentais. De forma geral, à
trankl. São Paulo — SE, Paulus. Coleção Logoterapia.
Frankl (2003) também foi confrontado pesquisa no campo da Logoterapia pode ser
com argumentos — semelhantes — quando Aquino, T, À. A, Correia, À. 7. M,, Marques, A. L. C., Souza, C. G,., Fritas, H, C. A, Araújo, LE E.,
dividida em três fases: a primeira focou nos
Dias, P, 5., & Araújo, W,. E, (2009), Atitude religiosa e sentido da vida: um estudo correlacional,
apontaram que à sta teoria seria idealista, não estudos sobre o efeito da intenção paradoxal, a
Psicologia: Ciência e Profissão, 29, 228-243,
possuía um Fundamento objetivo, além de sobre- segunda na constesção e validação de
estimar o ser humano. Frankl (2003) responde a Aquino, T, A. A, Silva, J. E. Figueitedo, A. T. B.. Dourado, É. T. S, & Farias, E. C. 8, (201,
instrumentos para afetir o construco sentido da
Avaliação de uma proposta de prevenção do vazio existencial com adolescentes. Psicologia ciência e
essa crítica utilizando as palavras de Goethe vida e vazio existencial e, por fim, a tesceita está
profissão, 31, 146-159,
(1749-1832): “Se exigimos do homem o que ele relacionada ao estudo da Logoterapia e à saúde
deve ser faremos dele o que ele pode ser. Se, pelo Ávila, A. (2007), Para conhecer a Psicologia da Religião. São Paulo: Edições Loyola.
mental em seus diversos campos de aplicações
contrário, aceitamo-lo como o é, então (Gurtrmanna, 1996). Batthyany, A. (2009). Introduction. Em: À. Batibyany & J. Levinson (Bds) Existential psycbothevapy of
acabaremos por tosná-lo pior do que é". Nessa meaning: À bandbovk of logotherapy and existeutial analysis, pp. 20-36, Phoenix, AZ: Zeig, Tucker &
direção, pondera que “(..) esse idealismo — sc é Carsiderações finais Theisen, INC.

que se trata de idealismo — é, no fim das contas, Batthyany, À, 8 Gutrmann, D. (2095). Empirical research ou Logotherapy and Meaning-=Oriented
O objetivo deste artigo foi descrever à Piyebotherapy: An Annotated Bibliography. Phoenix, Á£: Zeig, Tucker & Theisen.
o único realismo verdadeiro” (Frankl, 2003, p.
Logoterapia no contexto da psicologia moderna
15). Boainain, E. (1999), Tornar-se Transpessoal: Transcendência e espiritualidade na obra de Carl Rogers, São
considerando tanto os seus aspectos teórico- Paulo: Summus Editorial,
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SOBRE OS AUTORES

Thiago À, Ávellar de Aquino. Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal da Paraíba
(1995), mestrado em Psicologia (Psicologia Social), pela Universidade Federal da Paraíba (1998), e
doutorado em Psicologia (Psicologia Social), pela Universidade Federal da Paraíba (2009), Atualmente é
professor Adjunto da Universidade Federal da Paraíba do Departamento de Ciências das religiões;
professor credenciado do Programa de Pós-graduação em Ciências das Religiões; é também lider do
grupo Novus: Espiritualidade & Sentido (CNPq),

Alan da Silva Véras, Tem formação em Psicologia pela Faculdade Ruy Batbosa (Salvador - BA) e em
Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Nordeste (Salvador - BA). Atualmente é aluno da pós-
graduação em Logoterapia pela Faculdade de Ciências Sociais e Aplicadas do Paraná (FÁCET),

Daniel Ouriíques Lira Braga, Graduado em Psicologia pela Universidade Federal da Paraíba. Membro
do grupo de Pesquisa NOUS - Espiritualidade c Sentido. Atualmente Mestrando em Ciências das
Religiões pela Universidade Fecleral da Paraíba.

Sarah Xavier Peixoto de Vasconcelos. Graduada em Vsicologia - Formação de Psicólogo, pela


Universidade Federal da Paralba-UFPB. Integrante do núcleo NOUS: Espicitualidade e Saúde. Psicóloga
residente em Cuidados Paliativos no Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira - IMIP,
em Recife-PE,

Lorena Bandeira da Silva. Possui graduação pela Universidade Estadual da Paraíba (2011). Ênfase em
Psicologia Clínica. Mestranda em Ciências das Religiões pela Universidade Federal da Paraíba, Vice
Coordenadora do Núcleo Viktor Frank! de Logoterapia da UEPB. Participa dos grupos de pesquisa em
saúde mental DEjá Vu: Artes, Sonhos e Imagens, da UEPB e Nous: Espititualidade e Sentido, da UFPB.
luciana Aguiar

à GESTALT-TERAPIA
COM CRIANÇAS
: ao [A i
' ! tema
- -— IEXÍO Fa

esistemartizada de trabalho com o grupo familiar com


terupenticamente, Apesar de reconhecer que muitas
GESTALT-TERA PIA COM CRIANÇAS: ASPECTOS crionças apresentavim patologias semelhantes à de o objetivo de enriquecer ou ampliar o trabalho
RELEVANTES NO TRABALHO COM A FAMÍLIA seus , à compreensão vigente era à de que à Tealizado diretamente com a criança.
criunça estava doente é o analista só poderia fazer Muis recentemente, «a importância da família na
ulgo por ea, e até o ponto em que o5 pais permitissem. problemática apresentada pela criança é reconhecida
na Gestalt-terapia (Lampert, 2004) como um "des:
Winnicott (1978), em função de sua formação
dlinlógico”, onde encontra-se em foco não só a re
Luciana de VM. Aguiar! iniciat em pediatria e consequentemente seu contato
que o psicoterapeuta estabelece com à criança mas
próximo durante anos com as crianças e seus pais, já
tambérmn à que ele estabelece com seus país, de forma
vislumbrava « possibilidude de compreensão de
à criar um lerreno propício para intervenções
SUMÁTUO atuuirm relação entre as questões apresentadas pelas
facilitadoras da recontiguração total do campo familiar,
crianças & as dificuldades e questões apresentadas por
À prática elínica com crianças nos remete à uma questão básica que diz respeito à onipresença concreta de seus país. Muitas vezes incluía muis entrevistas com benéficas para o desenvolvimente da criança,
no
uma Família que é porta-voz da dermanda iniciul de psicoterapia, conforme aponta as principais abordagens os responsáveis (Winnicott, 1984) e em alguns
'
cenário da Psicoterapia Infantil (Axline, 1984; Nanenal, | 981; Oak lander, 1980; Winnicott, 1978).
momentos chegava a incluí-los nas sessões com à 2. A vingulação entre criança e família
Assim, temos como objetivo apresentar uma proposta de compreensão é atuação gestáltica à partir do criança. (Winnicott, 1579).
pressuposto de que « demanda inicial de psicoterapia não é da eriunça, destacando a importância de se entrevistar Muannoni (1983) nos traz a perspectiva de que à Sustentados por uma concepção holística &
os país sem a presença da criança, os limites e possibilidades de se trabalhar com uma criança sem u participação “dosnçã” da criança, não é só da criança, mas um contextual de ser humano (Aguiar, 2004), irabalhamos
da família e às consequências em termos de prognóstico, e papel das sessões conjuntas e familiares e a importância sinal da doença de seus pais. Estabelece-se assim, a com a premissa acereuda existênciade uma vinculação
crucial do trabalho com os pais no processo de término da terapia, idéia de que a criança é a porta voz de algo mais amplo entre diversos aspectos do desenvolvimento ermocional
que ela e que através dela as dores e dificuldades dos infantil e às mais variadas formas sob as quais as
SUMMARY seus país podem emergir e enunciar um pedido de crianças e suas famílias se apresentam na situação
ajuda. Tal concepção dlo sintorna apresentado pela
The clinical practice with children brings a basie question reluted to a real omnipresence of a family which clínica, o que inclui seus sintornas, suas reações às
criança possui grandes implicações na condução do intervenções terapêuticas e suas possibilidades e
works as the initinl spokesman for the psychotherapy dernand, a fact pointed out by the main approaches in the
processo terapêutico, pois estejá não envolve apenas recursos para alcançar um estado de saúde e bem
Child Psychotherapy scenarios (Axline, 1984; Manonni, 1981; Oaklander, 980; Winnicott, 1978),
a criança, as a criança e seus país, e algumas vezes estar,
Thus, our objective here is to presenta proposal fora gestalt comprehension and action assuming that the initial somente seus pais.(vlannont, 1981),
demand of'the psychotherapy is notfrom the child, highlighting the importanceof interviewing the parents without Fintendemos o contexto familiar como om dos
Axline (1984), no apresentar uma proposta de
the presence of the child, the limitations and possibilities of working with the child without the participation of the Psicoterapia Lnfantil dentro de uma perspectiva de
particolarmente significativos para o desenvolvimento
tamily and the consequences of this situation regarding the prognosis, the role of family und combined s: e! slons and e funcionamento saudável da criança, uma vez que
homem e de mundo diferente da perspectiva não só é o primeiro contexto do qual faz parte como
the erucial importançe of working with the parents atthe moment of closing the psychotherapy process, psicanalítica vigente até então, utiliza a crença aquele que parece ser o mais relevante em seus
humanista na potencialidade ser humano para justificar primeiros anos pelo forte vínculo de dependência
PALAVRAS-CHAVE a condução da psicoterapia com crianças com uma existente entre ela e à família e pela presença
Gestalt-terapia com crianças família discreta participação dos pais, uma vêz que acreditava siguificativa e intensa do processo de introjeção no
no potencial de mudança inerente a cada criança. Essa início da vida (Oaklander, 1992), que é parte integrante
perspectiva, embora não apontasse a criança como da construção do selfda criança pequena.
KEY WORDS “a doente”, depositava particularmente nela à
À noção de auto-regulação familiar (Aguiar, 2005;
q Gestalt Therapy with children — family responsabilidade de mudança e transformação, não
L estabelecendo como pré-requisito ou fator primordial Zinker, 2001), ou seja, de que os membros de uma
para nu psicoterapia da criança uma intervenção mais farnília se influenciam mutuamente, reagem e

1. Introdução Klein (1981), em seu trabalho de psicanálise com


específica coma família. respondem as expectativas e necessidades do outro
crianças, atendia os pais somente no mornento inicial
=

na busca de um equilíbrio, é fundamental para


da análise e seu foco era naquilo que os eles poderiam Oaklander (1980), com sua perspectiva sistêmica
Ao longo da história da Psicoterapia Infantil, compreendermos a forma como a criança se
narrar e informar acerca da criança em questão, Ào do grupo familiar, entende que a participação dos país
observamos um deslocamento progressivo do foco apresenta, porque o que vamos perceber é que ela
longo do processo terapêtitico, os país eram mantidos na psicoterapia da criança é necessária, principalmente
de intervenção psicoterapêntica exclusivamente na geralmente está servindo como um ponto de equilíbrio
afastndos o quanto possível, e suas interferências para facilitar a comunicação entre eles e a criança.
para toda a didâmica familiar.
criança para um envolvimento cada vez maior com à não trabalhadas Porém, não observamos nenhuma proposta específica
constatadas, embora
criançae sua família.

33 34 Gestalt E ZO05
Gestal 82005
Sob esse ponto de vista, somente à partir da apenas as crianças, mas o binômio criança/família, onde em bases transparentes; pelo contrário, o que já que ela se apresenta como o principal campo em
relação que o sintoma apresentado pela criança todos os elementos precisam ser levados em conta observamos rauitas vezes ao longo do processo que u criança faz parte. Entender sua dinâmica nos
estabelece com as demais partes da totalidade mais para uma cfetiva compreensão diagnóstica e, terapêutico são momentos em «que a criança deseja permite compreender o funcionamento da criança em
ampla em que ela encontra-se inserida é que se pode principalmente para uma evolução satisfatória do que o psicoterapeuta esteja com os pais sem à sua questão e estabelecer prioridades de Intervenção com
compreender sua origein, seu sentido, sua razão de encaminhamento terapêutico. presença ou não se interessaem participar das sessões os responsáveis ao longo do processo terapêutico.
sere suas influências e implicações. com os puis, que acontecem sempre com o seu Ao trabalharmos com à criança, passamos a fazer
Assim, quando nos referimos à família como um 3. Ademandainicial de terapia conhecimento. parte do seu cumpo, promovendo mudanças em sens
dos principais campos à fornecerem sentido as Muitas vezes, encontramos com os país várias padrões relacionais e ocasionando desequilíbrios
manifestações da criança, enfatizamos seu papel vezes antes dle ver à criança; algumas outras acabamos mornentârnieos na dinâmica Farmniliar que, se puderem
Entendemos que a tarefa inicial de todo
crucial na vida e no desenvolvimento infantil e, nem encontrando à criança, uma vez que às ser vivenciados e superados, promovern o crescimento
portanto, na eclosão, manutenção e remissão dos
psicoterapeata infantil é a de verificar cuidadosamente ereconfiguração de toda família para formas mais
intervenções realizadas com os pais foram suficientes
a demanda inicial de psicoterapia. Quando adultos
sintomas que se apresentam na clínica, para reconfigurar às relações e promover formas satisfatórias de refação. No entanto, o psicoterapeuta
procuram psicoterapia para uma criança, entendemos
Enfatizamos e binômio criança/família, na medida diferentes da criánga responder ao mundo. precisa ficar atento para que o impacto na dinâmica
que inicinlmente existem adultos solicitando algo; o
em que não podermos pensar no desenvolvimento Na rnedida em que 0 processo terapêutico avança, farniliar não seja maior do que aquele que determinada
que existe é um incômodo que é deles na relação com
infantil sem & presença marcante do meio famíliar, a possibilidade de pais e filhos estarem juntos em uma. família pode suportar, realizando seu acomparnha-
a criança e não necessariamente da criança,
particularmente da mãe ou quem por ventura estiver sessão vai sendo construída; costumamos esclarecer mento &o longo do processo terapêutico de forma à
exercendo seu papel. O bebê humano nasce A partir dessa perspectiva, e contrariando à forma ajudá-la a lidar com as modificações e encontrar
para pais e crianças que existe essa possibilidade e
de alguns terapeutas exercerem a Gestalt-terapia com caminhos possíveis de anto-regulação mais satis-
completamente dependente e com pouquíssimos nossa experiência comprova que, no imomento em que
recursos para tidar com as demandas do mundo. Por crianças (Caklander, 1980) não consideramos fatórios,
eles efetivamente percebem que precisam e querem
issó, inicialmente, estabelece uma relação de muita oportuno entrevistar os país junto com a criança nas
esse encontro, isso é naturalmente solicitado. Assim, ao longo do processo psicoterapêutico,
proximidade com à mãe, constituindo o que primeiras entrevistas. Acreditamos que se os pais
Geralmente é à própria criança que solicita, mostrando estabelecemos o que denominamos de
procuram um profissional para pedir psicoterapia para
denominamos uma unidade relacional, marcada pela que só nesse momento ela possual auto-suporte “acompanhamento de pais”. Optamos por não usar
indiferenciação entre o bebê e « mãe. É nessa relação, os filhos, eles estão pedindo inicialmente psicoterapia
suficiente para vivenciar esse encontro e ludo que pode os termos “orientação” ou “aconselhamento”, pois
onde o bebê será cuidado, protegido e alimentado,
para os filhos e não para eles individualmente, para o
resultar disso. embora eles apontem para alguns níveis do trabatho
casal ou para à família. Não acreditamos que
que ele encontrará a possibilidade de construção e Assim, a necessidade de que a demanda da terapia realizado com os país, deixar de lado o que nos
desenvolvimento do seif. transformar uma demanda inicial que é dirigida à
seja elucidada, leva-nos em primeiro lugar aos pais parece mais importante, que é o trabalho de promoção
criança em uma demanda familiar, onde o
Esse desenvolvimento caminha sempre na direção ou responsáveis por essa criança, os quais na verdade de aivareness a respeito das implicações dos
psicoterapeuta elege a família como foco de
de uma maior independência e autonomia, na medida possuem o poder e a responsabilidade acerca do responsáveis nas questões apresentadas pela criança
intervenção, muitas vezes condicionando o trabalho a
em que à criança vai crescendo'e ampliando seus ingresso e também da interrupção do processo em sua interação no mundo.
esse tipo de intervenção, seja a melhor forma de
tecursos físicos, cognitivos, emocionais e sociais e, terapêutico, O acampatihamento farniliar dá-se por intermédio
acolhermos esses adultos que nos procuram. Na
assim, obtendo uma maior inserção no mundo. À Cabe ressaltar que tão ou mais tmportante quanto de sessões cora os responsáveis e o psicoterapeuta
verdade, entendemos que, se for o caso, tal demanda
função da família é a de propiciar oportunidades de o vínculo estabelecido com a criança, é o viliculo que dacriança, e de acordo com a demanda deles ou do
se transformará ao longo do processo terapêutico, nos
crescimento, de facilítar a aquisição de recursos
possibilitando posteriormente uma intervenção famiitar.* o psicoterapeuta estabelece com os pais ou psicoterapeuta, tendo como foco à relação que eles
próprios da criança e de permitir que a mesma tenha responsáveis. Precisamos de um forte vínculo com es estabelecem com a criança. O objetivo é ouvi-los à
(Aguiar, 2005).
antonomia e responsabilidade compatíveis com sua pais para que eles autorizem-nos a trabalhar com à respeito de como eles vêm percebendo o processo
faixa etária e seu potencial, Porém, isso não significa iniciar fazendo uma aliança,
criança e cor eles mesmos. Um-vínculto frágil com os terapêntico s a criança fora do âmbito da psicoterapia,
com os pais ou traindo a confiança da criança
Uma vez que o desenvolvimento é processual e pais acaba aparecendo em ações ambivalentes dos tirav dúvidas e realizar esclarecimentos à respeito de
dificultando ou impedindo a construção do vínculo com
gradátivo, constatamos que quanto mais aova à mesmos com relação ao processo terapêutico € temas relativos ao desenvol vimento infantil, conversar
a mesma, acgumentos que fregiienternente costumamos
criança, maior à probabilidade de encontrarinos um culminando na maioria das vezes em sua interrupção. sobre questões específicas que eles tenham
encontrar na ainda escassa literatura sobre o tema
vínculo mais extenso de dependência e, portanto um necessidade, c oferecer questionamentos e devoluções
(Oaklander, 1980); em nossa experiência verificamos
: binômio criença/família mais acerttuado. tado o tempo que isso não faz diferença para a criança
que o psicoterapeuta julgue pertinentes ao undamento
4. AÀA<compreensão e atuação gestálticas
Aiiraplicação diréta dessa característica básica do do processo. Essa frequência de atendimentos, não é
se desde o inicio na relação com a mesma, nos
desenvolvimento humano, ou seja, essa unidade previamente estabelecida, por entendermos que'a
colocamos de forma bastante autentica, claras honesta
. relacional mãe-criança, é a de que sempre que Compreender aforma de funcionamento da farnília psicoicrapia é da criança e não dos responsáveis e E
ese oprocesso terapêutico como um todo acontece
lidarmos com crianças, nossos clientes não serão é de crucial importância
para o gestalt-terapeuta infantil que, portanto o enquadie que pressupõe sessões fixas
Tr

E
; Gestalt 82005 Gestal 1 2005

ES
não seria o mais adeguado para os propósitos do compreensão de seus motivos e suas escolhas, ceceiarm que ela ainda não tenha condições de enfrentar Referências Bibliográficas:
trabalho que denontinamos de acompanhamento de Uma outra forma de isteluir os responsáveis no o mundo sem o suporte da psicoterapia. Não é raro,
responsáveis. processo terapêutico da criança, é o que vamos apés realizarmos a sessão final com & criança, AGUIAR, 1. (2001). Gestalt-terápia com crianças:
Ao longo dessas sessões, com o faco na relação denominar de sessões conjuntas. Do mhesmo medo encontrannos ainda com os responsáveis duas ou três À concepção de homem e suas irmplicações na prática
criança/responsáveis, há quatro níveis diferenciados que o acompanhamento renlizado através de sessões veres até finalizarmos o processo terapêutico, De clínica. Revista de Gestalt, Número LO,
e complementares de intervenção: informação, com o psicoterapeuta & os responsáveis, clas modo geral, sempre realizamos uma sessão de AGUIAR, £. (2005). Gestalt-terapia com crianças:
orientação, sensibilização e facititação da comunicação acontecerão de acordo com a demanda dentro do fechamento corr eles após a sessão final com a criança, teoria e prática. Campinas: Editora Livro Pleno. (no
entre seus membros. Eles formam uma totalidade processo terapêutico. Vamos dar o nome de sessões No entanto, nem sempre uma sessão é suficiente para preto).
articulada e só possuem sentido cormo parte dessa conjuntas às sessões realizadas em algum momento ivnbalhar todas as ansiedades, fantasias e expectativas AXLINE, V. (1984), Ludoterapia. Belo Horizonte:
totalidade, À caracterização do acompanhamento do processo terapêutico com a presença da criança e que se encontram em jogo. Interlivros.
familiar estaria prejudicada se deixássemos de lado Um ou Mais de seus cesponsáveis bem como de demais Quanto à possibilidade de trabalharmos com uma LAMPERT, Ruth (2601). Working with parents: the
qualquerum dos níveis de intervenção. membros da família que possam ser significativos para criança sem o acompanhamento da família ou com dialogie challenge. The Gestatt Journal, Volume
Gostaríamos de destacar particularmente o terceiro acriança naquele momento, Essa participação dá-se uma participação infima de um ou mais de seus KKIV, Number 1, Spring.
nível de trabalho que denominamos de sensibilização apartir de um “convite” reatizado pela criança como mesnbros, acreditamos que em alguns casos é possível, MANNONL M, (1981), à primeira entrevista em
e promoção de dwareness. De nada adianta apenas auxilio do psicoterapeuta, que pode ou não ser aceito, embora muitas vezes seja frustrante para o psicanálise. Rio de Janeiro: Campus.
informá-los e orientá-los a respeito de uma e que consiste em acompanha-la em uma de suas pstcoterapeuta e insuficiente para a eriança. MANNONI, M, (1983). À criança, sua doença e
determinada característica ou situação se eles não sessões de psicoterapia. Os níveis de intervenção os “outros”. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
Algumas configurações familiares encontram-setão
podern fazer aquilo que seria facilitador para a criança, Eriorizados nas entrevistas conjuntas são a facilitação OAKLANDER, V. (1992). Gestalt work with
latizadas e o lugar ocupado pela criança tão
E certamente de nada adianta o psicoterapeuta da comunicação entre os membros, à promoção de children: working with anger and introjects. In Edwin
sedimentado que a criança, sozinha, não é capaz de
prescrever tarefas como se sua autoridade profissional Awrareness e a expansão de fronteiras tanto da criança C. Nevis (urg.), Gestalt Therapy: Perspectives
confrontar tal organização. Nesse ponto é que o
fosse o único fator relevante no campo. Pelo con- quanto dos responsáveis, and Applications. Cleveland: GICPress.
trabalho com os responsáveis tera a sua justificativa,
trário, nesse mosnento, inúmeros elementos emergen, Em outras situações, quando entendemos que o pois é o que, vai possibilitai que à criança tenha o seu OAKLANDER, V.(1980). Descobrindo crianças:
particularmente os que impedem e/ou dificultar a processo terapêutico pode ser beneficiado com à tugar “liberado” nessa configuração e assim possa a abordagem gestáltica com crianças e
consecução de determinada orientação e é fundamental participação direta dos membros da fumília, reatizamos realizar outros ajustamentos criativos em sua interação adolescentes. São Paulo: Summus.
que o psicoterapenta identifique-os e focalize-os para sessões com a presença de todos. Estas sessões, ao no mundo, WINNICOTT, D. (1978), Textos selecionados: Da
ampliar a avweareness dos responsáveis a respeito do longo do processo terapêutico, costumam ser muito pediatria a psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco
De qualquer formia, entendemos que a psicoterapia,
que os está impedindo de agir de uma determinada esclartecedoras a respeito de como a psicoterapia da Alves.
ainda que sem a “colaboração” da família ou
forma. criança está afetando à dinâmica avto-reguladora da WINNICOTT, D. (1984). Consultas terapênticas
interrompida precocernente, representa um registro
Se apenas informamos os pais acerca de família, que elementos novos emergiram no grupo em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Ímago,
importante na vida da criança, pois é um espaço único
determinado tema ou situação, muitas vezes cles familiar para fazer frente às mudanças da criança,e o WINNICOTT.D.(1979). The Piggle: relato do
e, muitas vezes, um tipo de relação nunca
permanecerão com a informação, sem saber quanto eles estão sendo facilitadores ou não. tratamento psicanalítico de uma menina, Rio de
experimentada por ela, nem antes e nem depois. Ter
exatamente a melhor forma de utitiza-la em prol da No momento do término da psicoterapia, é Taneiro; Imago.
à referência de que existe a possibilidade de se
criança em questão, Da mesma forma, se além da fundamental que o trabalho se dê concornitantemente estabelecer uma relação onde se é respeitada, aceita, ZINKER, 5. (2001). À busca da elegância em
informação, o psicoterapeuta intervem,no sentido de com à criança e seus responsáveis, ou seja, na medida confirmada, ouvida, acolhida é levada em psicoterapia: uma abordagem gestáltica com
ajuda-los a implementar algo baseado na informação, em que o término pode começar à ser enunciado, casais, famílias e sistemas íntimos, São Paulo:
consideração, pode ser decisivo na vida posterior de
uninda assim seu trabalho não está completo uma vez precisamos introduzir essa questão no Summus,
muitas delas. Ainda que seus contextos se mostrem
que os pais nem sempre possuem condições de operar acompanhamento dos responsáveis. Em alguns adversos, ainda que seus pais jamais tornem-se
modificações em sua forma de se relacionar core à momentos, eles trazem Llul questão para o facilitadores e acolhedores, ainda que ela encontre em NOTA
criança em função de suas próprias obstruções de acompanhamento quase que ao mesmo tempo em que seu caminho muitas pessoas que a decepecionem, * Mestreem Psicologia/ Gestalt-terapenta de crianças,
contato. Dessa forma, é fundamental que possamos a criança o faz em suas sessões, Outras vezes, 20 acreditamos firmemente que saber, a partir da adolescentes e adultos/ Coordenadora dos Cursos de
ajuda-los a se dar conta de seus próprios falarmos de término, logo percebemos que vamos ter experiência na relação terapêutica, que existem outras Capacitação e Treinamento em Gestalt-Terapia e
impedimentos e dificuldades que de alguma forma mais trabalho com eles do que propriamente com.a. formas de relacionar-se e que podem existir pessoas Gestali-Terapia com crianças / Membro do grupo
encontram-se articulados com a problemática eriança. Muitos ficam inseguros a respeito de seus em quer confiar, pode fazer uma pessoa encarar suas AconteSer — Gestalt/ Coordenadora do projeto
apresentada pela criança, para que assim, de posse próprios recursos para lidar com eventual Conversando sobre crianças / Responsável Técnica
dificuldades de forma diferente, do Dialógico — Núcleo de Gestatt-Terapia. E-mail;
dessa nova “consciência”, tenham mais opções de dificuldades da criança em um momento posterior ou
Inaguiar Odialogico.com.br

38 Gestatt 8 2005
REVISTA DA
ABORDAGEM GESTALTICA
ISSN 1984-3542 versão on-line ISSN 1809-6867

Texto &
EBMTO É Meiina S. S. Rebouças; Elia Dutra

A psicologia clínica passa agora a ser vatada não como dabramentos da psicologia clínica, bem como do sofri-
PLANTÃO PSICOLÓGICO: uma área de luação, mas como atitude, como ethos, de 1nento homano na tentativa de apresanlar Mm panorama
acordo com 6 pensamento de alguns autores, entre os da alvalidade e de suas princípais demandas, trazendo
UMA PRÁTICA CLÍNICA DA CONTEMPORANEIDADE! quais (Dutra, 2004; Figueiredo, 1996; Safra, 2004 e Sá, Uma reflexão ética e política sobre essa ação c a defesa
2997). Nesse sentido, o psicólogo clínica contemporâneo de práticas muis condizentes com essa realidade da cli-
deverá estar comprometido com a escuta e v acolhimente nica psicológica na atualidade,
Psychological Duty; a Conternporary Clinical Practiçe
do ontra onde quer este esteja, O que significa compre-
ender esse outro a partit da experiência e dos significa-
Turno Psicológico; una Práctica Clínica de la Contemporaneídad dos que ele atribui ao mundo, levaudo em consideração 1, Desdobramentos da Psicologia Clínica
a contexto no qual eslá inscrído, considerando-o como
MELINA Sérota SovzA REROUÇAS um ser-no-inundo e, portanto, constiluíde por este, ào À psicologia cínica foi instítuída Iradicionalmente
Etza Dutra mesmo lempo em que à constítui. como um método, e para se instaurar como ciência ela
Dentro dessa perspectiva contemporânea, tem-se fa- precisuva se adequar suo modelo metafísico da épuca, ca-
fado numa xova modalidade clínica que veio não subs- Tacterizado pela crença em vma verdade única e imutável.
Resumo: D vbjativo desse artigo é zeflatir sobre plantão psicológico enquanto nmo prática clínica da contemporaneidade, enteo- tituir à psicelerapia, mas se constituir numa alternativa Modelo este dominado pela herança médica do diagnós-
dendo este tipo de intervenção vermo sendo mais adequada a una nova pestura da psicologia clínica, em que o psicólogo deverá à esta; na verdade, trata-se de uma prálica que se adequa lico e da cura com fins de previsão e controle das inas-
estur comprometido com « escuta e v acolhimento do outro onde quer que este esteja. Visando apresentar nam panvrama da atu- às demandas at e nomeada por Mosqueira, Morato sas, servindo, então, aos interesses da classe dominante,
alidade e de suas principais demandas foi realizada uma revisão bibliográfica acerca dos desdobramentos da psicologia clín: e Noguchi (2006) como uma prática de atenção psicoló- Segundo Feres-Carneiro e Lo Bianco (2003), a psicologia
bem como do softimanto homano, trazendo tina reflexão ética e política e a defesa de prálicas mais condizentes com a renlida- gica, Neste trabalho, discutiremos à respeita do Plantão clínica ficou tradicionalmente conhecidla pela práticado
de atual, Desse modo, podemos dizer que e plantão psicológico constithixse como uma prática clinica da conteroporaneidade, na Psicológico. entendendo este como ums modalidade de psicodiagnóslico e da psicolerapia de cunho psicanalícis
medida em que ela promove uma abortuza para e novo, 6 difarente e eforece um espaço de escuta a alguóm que apresenta uma co. Estas eram realizadas em consultórios particulares e
atendimento clínico-psicológico de lipo emergeneial,
demanda psíquica, um sofrimento, oferece um momento no qual esse sujeito que sofre se sinta verdadeiramente vuvido na sua
aberto à comunidade (Cury, 1998), cuja função é propor destinadas à população de classe média e alta, coja ên-
dar, favurecendo para que este possa ressignificar o seu estar no mundo,
Falavras-chave: Plantão Psicológico: Clínica Fenomenológica; Contemporaneiúade; Escuta Clínica; Ética. clonar uma escuta e um acolhimento à possoa no memen- lasa se dava nos aspectos psicológicos € psicopatológi-
to de crise. Lenibrando que tal proposta não tem como cos do indivíduo, Tais práticas dominaram o cenário da
Abstract: This paper aims te reflect on psychological dufy às à conteropotety clinical practice, onderstanding that this type of finalidade à resolução ou o aprofundamento da “proble- psicologia clínica durante um longo tempo, nas novas
intorrention would lie more appropriate in à Dev conduct of clinical psychology, in which tho psychofogist should be commit- TMeático” da pessoa, Mas um momento de compreensão demandas foram surgindo é fazendo com que os profis-
ted to listening and skellering the other person wherteves (hey ate, With the altempl of presenting a panorama of today's situa- do seu sofrimento. sionais repensassem essas práticas, além de servir como
tivo and its main demands, see elaborated a lileratore review about clinical psychology and buman suffering, ceflecting politi- um berço fórtil para que surgissem novas perspectivas
O plantão psicológico, segundo Oliveira (2005), acon-
cul and ethical perspectíves and also defending practíicos Uhal are moro consístent with the currsni reality, Thoreby, we con say
tece como um espaço que Ínvorece « experiência, tanto sobre o homem que não fossem baseadas somente em ce-
that psychological duty js u contemporary clínical practice, given hat it promotes changes and na poessibilitias fer the ones
with psychic demand os any Eind of sullezing, as il olfers them an open space for being listened and understood in their pain, do cliente como do plantonista, no qual o psicólogo se lações determinísticas.
encouraging them to construc! a new meaning to Lheir existence in the world, apresenta como alguém disposto. presente e disponível O que acontece é que o paradigma científico moder-
EKuywurds: Psychological
Duty; Fhenoinenolegical Clinic; Contemporaneity; Clinic Listening; Ethics, e não apenas como detentor do conhecimento técnico. E ng passa à ser questionado frente à impossibilidade da
isto seria um estar junto, um inclinar-se na direção so- neutralidade e objetividade do pesquisador e pesquisado
Kesumen;: El objetivo de este aciículo es reflexionar a cerca del turno psicológico, una práctica clínica psicológica centempo- Irimento. deixando-se afetar. e a partis daí compreen- e da busca de uma verdade que seja absoluta e inques-
Tánea. Esla prática es percibida como el lipo de interçeución más apropiado para uma nueva posluta de Ja pricolegia clínica, tionável, o que acaba por trazer grandes transforinações
der o outro.
en la cual el psicólogo úUebe de comprtometetse à esenechar y acopers Jus personas sea doede sea. Con el propásito de ofrecer um
O presente trabatho justifica-se pela pouca bibliogra- no meio científico e, consequentemente, na prógria psi-
panorama genecal de la actualidad y de sus pritcipales demandas, ataboramos una revisión de literatura a cerca del desarro-
To de la psicolagfa clínica 3 del sultimiente humano, buscando uma teflexióu ótica y política, además de defender las prócticas fia sobre o assunto, o gue revela uma incipiente produ- cologia. Segundo Rovhe (2095),
más coberentes con la realidad actual. Asf pues. se puede decir que e] torno psicológico es una práctica clínica contemporânea, não científica. Fala-se muilo em práticas emergentes, mas
vá que promuenve un apertura nl nugvo y al diforonte, ofrecíendo a los que tienen una demanda peicológica e presentan algúón não há um posicionamento crítico em relação à estas e À atitude científica clássica ignora à comploxidado
lipa de sufrimisnto, un espacio de escueba y acogimiento de su dolor, ayodándoles 5 construir un nuevo senlído a su existen- o que ocofre, na maioria das vezes, é uma Iransposição ontológica do homem. Não seconhece o papel do ser
cia en e) mundo, do modelo clínico tradicional para outros setores. Outro humano na constituição da realidade e, portanto, não
Palabras-clave: Turno psicológico; Clinica Fenorsenológico; Contomporansidad; Escucha Clínica; É fator é à grande procura pelos serviços psicológicos que considera adequadamente à presença do cientists
tem gerado longas lislas de esperta no setor público, fru- numa investigação. Em resumo: não reconhece v ser
lo dessa não-adequação da psicologia tradicional às no- do homem. pois o trala como uma coisa dianle do
vas demandas, Nem todo mundo que procura um serviço entra coisa, Por isso, erra. (...) Cria-se nmia situação
mondado novas formas de joserção do psicólogo; na psicológico quer ou precisa de peicoleragia; tatvez o que absurda: o pesquisador atua para conhecer, negando
Introdução
verdade, uma nova postnra, um novo olhar sebro ele. eles precisem seja um contalo verdadeiro e acolhedor na- sua própria presença cognoscente (p, 157),
A psicologia, nos moldes tradicionais, nerteada por Portanto, necessitando de um profissional mais compro- quele momento, no qual as pessoas se sintam realmente
metide com o confexto social. A definição de clínica, ouvidas « à vontade para colocar e que quer que lhes es- Frente a essas problemalizações, a subjetividade pas-
Uma noção de sujeilo descontexlualizado social e bis-
toricamente e cujas prálicus se restringiam ao atendi- em função disso, não pode mais se restringir ao local e tojam afligindo, o assim, poderem ampliar o seu aível de sa agora à ser colocada como condição de conhecimento
mento em consnitórios privados, não mais se adequa à à clientela que atende; trata-se, sobretudo, de uma pos- consciência e de clareza sobre e que estão vivenciando, e compreensão dos fenómenos humanos, abrindo espa-
sociedade de hoje, O homem contemporáneo tem de- Iura diante do ser batmano é sua realidade social, exi- Nesse sentido, o plantão psicológico já pode ser conside- ço para gue se estrito UM novo paradigma que leve
gindo, portanto, do psicólogo, uma capacidade reflexiva tado, per si só. terapêutico. em consideração a especificidade de cada conhecimen-
* Ysselrabalho é resultado da moncgralia do Curse de Especlalização continuamente exetcitada em relação à própria prática, Tendo em vista « proposta de discorrer e refletir sobre ta (Morato, 1999).
plantão psicológico como ums prática clínica da conten- Compartilhando também desso pensamento,
Artigo
Artigo

tu Psicologia Clívica 1a Abordagem Fenomennlógico-lxislencial da qual se origine um pesicionamente ético e político


da tintversidade Federal do Rio Grande do Nove (EFRN), orientada
Muira, 2084), porangidade, faz-se necessário discatírmos sobre os des- Tigueiredo (2004) nos fala que à gestação do espaço psi-
Preta seguoda autera,

19 Revista da Abordagem Gestáflica — XV](1): 19.28, jan-jul, 2610 Revista da Abordagem Gestáltica — XVICD: 19-28, jandul, 2010 20
Meiina S. S. Rebouças; Elza Dutra
Plantão Psicológico: uma Prática Clínica da Contemporaneídade

ma crítica. Somante a partir dessas problematizações é L.) a atividade profissional do psicólogo requer uma acreditor, definitivamente, num novo modelo elínico de
cológico se dá em meio uo projeto epislemaológico ds mo-
que as mtidanças podem ocorrer, incorporação dos saberes psicológicos às suos habi- Psicologia, que nlteapossava o consultório paro chegor
ermidade, Projeto esse que, como vimos, bmsca à produ-
Segundo Figueiredo (2004), a definição de psicologia lidades práticas de tal forma que mesmo o conheci- comunidode." (np, 3),
vão e validação do conhecimento através da cisão menlv
clínica não pode se restringir ao local, à clientela, a uma monto explícito e expresso come teoria só funciona O plantão psicológico baseia-se no modelo de acon-
e corpo, na tentativa de construir um sujeito epistêmico
prática, a um campo de intervenção ou a uma área de co- enquanio conhecimento tácito; o conhecimento tácito selhamento psicolégice proposto por Car] Rogers, e qual,
pleno, senhor de si e fiador de todas as certezas. Segundo
Thkecimento, Ele alirma que apesar de existir as especi- da psicólogo é o ser saber de offcio, no qua] as teoxias inicialmente, esteve atrelado ao exsome da personalida-
ele, é Justamente à partir dessa cisão que a psicologia
ficidades de cada vm desses lugares, a clínica não pode estão impregnadas pela experiência pessoal e as estão de por meio dos tesivs psicológicos”. No entanto, Rogers.
se constitui na medida em que ela passa à "cuidar" de
ser reduzida a estes; ela é muito mais ampla. impregnando muma mescla indissociável. L...). O resul- a partir de sua prática, começa a questionar esse mode-
tudo que é exclnfdo por esse método. Jim outcas pala
O que podemos observar é que a dificuldade de defi- lado é que a adesão explícila e assumida a uma escola la de aconselhamento e propõe uma mudança de pers-
vras, à psicologia se abre como o espaço do interdilado,
nição é instenie so campo psicológico devido a sua dis- diz muito pouco di efetiva atuação profisslonal; na pectiva, passando a dar importância ao cliente e não ao
da subjetividade.
persão teórica e prática, por isso, ao tentar delimitá-la em verdade creio que quanto mais conta a experiência, problema, à celação e não so instrumental de avaliação,
Nesse momento, como nos fala Carvalho (19982, citado
por Morata 1999), “certezas começam a ser feridas, geran- slassificações reducionistas fracassa. “A clínica, portan- quanto mais tempo no exercício da profissão, mais ao processo ao invés do resullado, Morato (1989) diz que
to, é 8 espaço privilegiado destes cruzamentos. Espaço nº às vatiáveis pessoais vão pesaudo na definição dos Rogers náo se deteve somente na técnica e vollou-se para
do crises de sentido e de ética no seio hegemônico, antes
tão fortemente estabelecido” (p. 65). O mundo contempo- qual torna-se impossível recortar as práticas psl, eu lhos práticas e das crenças dos psicólogos (p. 91), as possibilidades da relação de ajuda e,
râneo demanda novas formas de conhecimento, busca possibititor localizações definitivos” (Silva, 200%, Assim,
o que vai definir a psicologia clínica é à sua álica, enten- As expertências do psicólogo, portanto, é que 6 con- L.) caminhou ne sentido de não se resiringir uni-
um paradigma não mais baseado numa verdade univer-
dendo esta como um assento, uma morada, isto é, como duzírão aos mais diversos caminhos, como diz Morato camente à prática clínica Iradicional, ou seja, da
sul, mas em múltiplas verdades, constituídas a partir da
singularidade do ser humano, do seu contexto e de sua um compromissa de escnta e acolhimento do ser buma- [1899), “É no contexto, portanto, dos experiências da cl psicoterapia, e seguin o caminho do aconselhamento
história. Nesse sentido Lambóm fala Leitão e Nicotuci-dla- no vede quer que este esteja. nica pstcológica, enquanto uma prático, que 4 teoria co- psicológico. Não se fechou em uma prática clínica,
Saira (2004) compreende o Ethos como “os condições meça o engendrar-se" [p, 69). Ouvindo as demandas sociais e reformulando este
Costa (20063) - baseando-se nas fdóias de Lyotard—de que
fundamentais que possibilita o ser humano morar, estar À clínica comprometida com à emergência de novos vampo em função das demandas, foi possível ditigir-
nv mundo pós-tuoderno é compreendido como fragmenta-
do. complexo e imprevisível e, dessa forma, descrevê-lo econstituír-se como um habitante no imundo buntoano" (p. sentidos e com a singularidade tem a obrigação de ousar, se para outros contextos que, também demandavam
de uma maneita enificada torna-se impossível, já que este 115). Nessa acepção, à psicologia clínica é uma atitade, arriscar, inventar, enfim, de estar sempra em movimen- ajuda: escolas/educação, grupos, contiitos sociais,
um modo de se relacionar com o outro, um cuidado aque lo é em permanente construção, Assim, não pode estar empresas. Amaigamando essas experiências, passou
passa à ser constituído de múltiplas narrativas.
possibilitatá ao homem sentir-se acolhido numa mora- circunscrita em um único saber qu ser compreendida a à repensar como à origem de tensóes, conflitos e ex
Tais transformações no mundo e nó meio cieutífico
da, ressaltando que esse homem deve ser compreendido partir de uma única lógica. À contemporaneidade tem ves dos homens e pessoas encontram-se nas diversas
vãu exigir da psicologia clínica um novo pensamento
à partit de sua siagularidado, isto é, 6 partir da experi- demandado da elínica uma postura multi e transdisci- situações do xelacionamento humano. Ou seja, da
conceitual em que não cuba mais « importação de mode-
ência e dos significados que asto alribui se mando. Não plinar diferentomonte do que ocorria na modernidade. condição humana no mundo com os outros” (p, 42).
los teóricos, O modeio individualista que ditava 0 modus
operandi da psicologia clínica e o corpo teórico dido e caba mais aprísioná-lo em teorias. mas entendô-lo através Foderíamos dizer que es n é a “verdadeira” clínica, não
da revelação dos seus modos de ser. 6 pstcólogo clínico, mais ptilizada para adjetivar à psicologia, mas sinôni- Bessa forma, 0 aconselhamento psicológico se conft-
priori não mais satisfaz. Sen compromisso agora passa à
entáo, é tm profissional do encontro na medida em que mao desta, gura pela abertura do conselheiro para acolher qualquer
ser com e social, e essa atticulação faz com que a ética —
esteja disponível parta abrir-se à alteridade, entendendo-a demanda que se apresente. À idéia é receber o cliente e fa-
e não o referencial teórico — seja o principal norteador de
como algo desconhecido e inusitado (Figueiredo, 1994), cilitar para que este se posicione diante de settsofrimento
sna prática. Nesse sentido, seguir uma nova perspecliva
A psicologia clínica contemporânea nos coloca diante 11 Histórico do Plantão Psicológico a decida se o atendimento será nm aconselhamento, vuina
de clínica implica expressar um posicionamento ético é
do siluações imprevisíveis que põem em questão nossas orientação ou uma psicoterapia, O conselheiro ao acolher
político (Dulra, 2004),
teorias e práticas, Como 6 509580 compromisso agota é com O plantão psicológica surge como uma moda- a cliente pode, junto com este, explorar não só a queixa,
No entanto. faz-se de extrema importância ressaltar
que, de acordo com Ferreira Neto (2004), esse novo "fa- a ética, devemos nos dispor à sermos eternos aprendizes lidade de atendimento proposta pelo Serviço de nas outras possibilidades diante desta. O aconselbumen-
zer clínico” ou as dilas “práticas emergentes" não são na medida em que 6 desconhecido bate à porta de nossos Aconselhamento Psicológico (SAP) do Instituto de to psicológico, então, constitui-se pela disponibilidade e
garantias de que nelas estojam implicadas uma dimen- consultórios e nos ensina os caminhos que irão nos lo- Psicologia da Universidade de São Panlo (IPUSP) om Flexibilidade am propor allernativas de ajuda.
var à revelação da condição humana, Nesse sentido, não 19869, lendo como coordenadora à professora Rachel Lea O 5AP foi idealizado pelo Dr, Oswaido de Barros
são élico-pelítica,
Esta questão lambém é discutida por Yamamoto, é mais possível mover à clínica em torno de uma técnica, Rusenkerg, cujo objetivo inicial era oferecer um atendi- Santos, em Função da necessidade de oferecer aos alu-
pois esta, ao se cateclerizar pelo entdado, passa a ser es- mento diferenciado à clientela que procurava o serviço, nos da disciplina de Aconselhamento Psicológico uma
Trindade c Oliveira (2002) ao afirmarem que essas no-
sencialmente élica e essa ética é clínica (Safra, 2604). constituindo-se como uma alternativa às longas filas de oportunidade de estágio e atendimento psicológico à
vas formas de inserção caracterizam-se por tina form
O cuidado irá propoteionar um sentír-se em cisa, à espera. clientela, Desdo o final da década de 86 tem passado por
ção acadêmica precária, condições de prática adversas
o que não se diferenciam do fazer clínico lradicional, partir do qual se criam condições para o encontro com à À implantação do SAP aconteceu num momento em muitos desofios «e relormulações, mantendo-se, segun-
O que nos leva à pensar que à grande questão não diz alteridade. Sendo assim, o psicólogo clínico, ao se deparar que se lutava pelo reconhecimento da profissão do psicó- do Morato (1999), “eisnta paro u formeção do psicólogo,
com múltiplas alteridades, como diz Figueiredo (1993), logo no Brasil e também com o aparecimento da Psicologia buscendao esclorecer condições de ajuda mois pertinetites
Tespoito à novidade das práticas que saíram dos consul-
tórios para hospitais e postos de saúde, mus à sua ade- gera a multiplicidade oficial da psicologia, Multiplicidade Humanista no país, proposta pelo psicólogo americano à denrando da comunidade que procura o Serviço, pot
quação, Dessa forma, Panfon (2004) afirma que, “trota-se esta sem à qual não exislizíamos e que acaba sendo mini- Carl Rogers, também chamada de “terceira força”, por se tindo da compreensão do complexidode do experiência
muito mois de guestionatmmos ns novas formas com que mizada quando o psicóloga se fecha em uma única práti- opor às correntes psicológicas até então vigentes, coino hinnana.” fp. 31)
v sofrimento psíquico se apresenta, vs sintomas sociais ca ou leoria. O ideal no mundo contemporâneo seria pro- a psicanálise é o behaviorismo, Tal fato serviu de im- Segundo Eisenlohr (2989), nos anos 89 o SAP passou
contemporâneos se impõem e os modos pelos quais os fa- porcionaro trânsito entre esses saberes, lembrando, como pulso aos estudiosos e profissionais que buscavam: al- por um período de crise devido à algumas contradições
seres “psi estão estruturados pera atendê-los” (p. 264). dito anteriormente, que o que deline a clínica é a sua rela- lernativas às teorias e práticas tradicionais, come afir- existentes entre o que era pensado sobre o serviço e o que
Daí à necessidade de nós psicólogos pensurmos sobre o ção com e oulro através do ethos do enidado e, portanto. Tha Rosenherg (1987), “(.) deirnnos o senso de identidade acontecia na prálica, tornando-se nrgente à necessidade de
sócio-profissional, incentivou nosses estudos, ejudou a
Artigo
Artigo

contexto social o suas forças subjacentos, de medo a po- luis subares deveriam se adequar « esta definição e não * Baconselhamento peicológico teve sua ocigem baseada no modelo
der adequar a prática às condições vigentes de nina for- ao contrário. Figueiredo (1993) corrobora isso: superar diferenças individucís entre nós e levou-nos à Metafísico abordado no primeiro capitnlo.

Revista da Abordagem Gestáltica — XVI): 19-28, jan-jul, 2010 22


21 Revista da Abordagem Gestáltica — XVIC) 19-28, jan-jul, 2010
Plantão Psicológico: una Prática Clínica da Contemporaneídade Melina 5, 5, Rebouças; Elea Dutra

sereflatiz e aprofundar sobre essas questôos, O que acon- cassez dos recursos públicos para à saúde que acaba por inorente à condição humana, pois à dor poda ser evitada, enfim, não caia nos exageros, como diz Brant e Minayo-
teceu nesso época Inj a impeossibilidade de acompanhar a priorizar os casos “mais graves”, tendo como conseqfiên- Mas 0 sofrimento não (Sasdelli & Miranda, 2001), Guornez (2004): “[..) o sofrimento está retacionado com uim
demanda que surgin, gerando vma longa fila de espera, cia uma especializaçõo das demandas, Diante disso, po- Seguado Dantas e Tobler (2003), o sofrimento esteve saber acerca da existência que não se sabe todo (.)” (p.
o que acabou por inviabilizar à real proposta do plantão demos fazer um questionamento; Será possível nos dias sempre presente va história da humanidade sob diferen- 215), Assim, comprecnder esse ocultamento e desocul-
de um atendimento imediato, Concomilanterente a essa de hoje saber o que é “grave” e o que é “banal”? Acredito tes formas e terminologias. Tal fato nos leva a reconhecer tamento do homem evitarie a agonia do impensável e «
situação lambém surzgiu um grave problema de infra-es- que não. peiís cair nisso é um desrespeito a singularidade à sua relatividade e singularidade. pois carla indivíduo, agonia do tolalmente pensável, pois são sofrimentos en-
trutura devido à interdição do local onde aconteciam os do ser humana e, independente da demanda que chegus, cultura e período histórico vão ter sua própria manifes- loniuecedores (Safra, 2004),
atendimentos e à equipe viwse obrigada a suspender as ao que imporla é a necessidade de ser ouvido. lação do sofrimento. Então, devido a sua dimensão subje- Nessa mesma perspecliva, Almeida (4999), baseando-
atividades do plantão por dois semestres, Assim, a questão que se coloca é o de oferecer um es- liva, 9 sofrimento não pode ser somente defivido a partir se ua ontologia de Heidegger, afirma que o homem é um
Passada à crise, já na década de 96, e apesar da cres- paço de atendimento à essas pessoas que estão à margem dos acontecimentos que o desencadeiam. De acordo com ser lançado no mundo — o sersí (Dasein)— e isso signi-
vente expansão dos serviços oferecidos pelo SAP este da sociedade, qualquer yue seja a sua demanda, nº me- Brani e Minayo-Gomez (2004), fica dizer que ao homem está entregue à respansabilida-
mantém suas características iniciais de alondímonto psi- dida em que o foco é definido pelo próprio cliente e não de de sor num mundo em que não escolheu, quo já está
cológico gratuito à população, tendo como posta de entra- pela especialização do prefissienal. À proposta do plan- O sofrimento depende da significação que assume ne dado é do qual nada se sabe, estando, portanto, vuloe-
da o plantão psicológico + seus possíveis encoelninhamen- tão é aceilaz manter-se junto com » cliente no momento lemmpo e no espaço, bem como no corpo que ele toca f..). Tável às contingências deste. Assim, cstá sob sua tutela
tos pata à psicoterapia ou outros serviços de saúdo, como presente, na problemática que emerge, promovendo uma O homem sofre porque passa a perceber 4 sus finitade; escolher suas possibilidades de ser, que pode acontecer
também um espaço pata a formação profissional do psicó- melhor avaliação dos recursos disponíveis, ampliando, o que faz do sofrimento uma dimensão não apenas no modo da impropricdade ou da propriedade, ou seja,
logo 2 pura à discussão de projetos e pesquisas no sentido assim, seu leque de possibilidades. (Mahfoud, 1987), É psicológica, mas, sobretudo existencial (p. 215). de uma formu inoutêntica ou autêntica, Na primeira o
de aprofundar e promover melhorias nos serviços, à partir dessa idéia mais sistemática do plantão psicoló- homem encontra-se absorvido no mundo e afasta-se de
O SAT tem sido relevência até hoje à outros profissio- Bico que se torna possível! à sua inserção em diferentes Nesse sentido 6 solrimente faz parte da constituição si mesmo e seu poder-ser próprio está vedaro; a segunda
nais que inserivam o plantão psicológico em outras insti- contextos efou instiluições. do ser humano; na verdade, é a sua condição. Segundo acontece quando o homem se dá conta de sua impropric-
tuições tais camo escolas, hospílais, empresas, varas de Safra (2004), o homem desde o nascimento cruza com o dade e passa à viver nina angústia, sendo esta a Útica
famílias, delegacias e consultórios particulares, fruto da mistério da existência que só é possível através da presen- pussibilidade de abrir-se para si mesmo 6 ir em busca de
constante necessidade de repensar as práticas Iradicio- 2. O Sofrimento Humano numa Perspectiva Ontaló- çà do outro. À parliz disso ele conhece as condições ne- sen poder-ser inais próprio.
nais e oferecer alternativas mais adequadas às demandas fica cessávias para a instalação de si no mundo com os outros, Dessa forma, poderíamos dizer que o sofrimento “sau-
do mundo contemporâneo, 1 ue porlemos chamar do próprio acontecer humano. No dável” seria uquele advindo da angústia de ser lançado
A primeira sistematização pública a respeito do plan- Depois de falarmos dos desdobramentos du psicologia entanto, a excesso de clazídade ou de escuridão — quan- num mundo inóspilo que não consegue nos abrigar e nos
tão psicológico ecorteu em 1987 pelo professor Dr. Miguel clínica faz-se necessário refleticmos, brevomanto, sebre do o homem sabo demais à respeito de si e do mundo ou acolher. No entanto, essa experiência de desamparo e de-
Mahfoud, sendo o primeiro u falar sobre o plantão como o sofrimento é o sofrente;: Quem é este homem! Quatis os quando nada sabe — impede esse acontecer humano 6 0 sabtigo que guoremmos superar é, na verdade, a condição
uma modalidade clínica e sobre a sua inserção em dile- sens sentidos? O que 0 leva a sofrer? Quais às suas deman- homem sofre, E essa sofrimento advém da própria condi- da liberdade do próprio homem, pois a angústia gerada
rentes contexlos. Segundo Malfoud (1887) “À oxpressóo das para à psicologia clínica? Com esse intiito, proponho, ção humana, da sua ontologia, e não apenas de uma dor por essa experiência abre o hontem para si mesmo, pará
plantão está osseciada e certo tipo de serviço, exercido neste tópico, trazer algumas considerações do sofrimento moral, [física ou psíquica, 9 sita singularidade (Crilelti, 1986). À angústia promove
por profissionais que se mantêra à disposição de munisquer humano à paztiz de uma perspecliva ontológica. À partir de lieidegger podemos compreender a onto- tm conhecimento a respeito de si que advém do próprio
pessoas que deles necessitem, em períodos de tempo pre- De acordo com Koogan e Houaiss (1999), sofrimento logia como « estudo do "ser enquanto ser”, isto é, a pro- fato do hamem ser lançado em meio à exislência na bus
vinmente determinados e ininterraptes. (p. 26). quer dizer uma dor física ou moral, padecimento, amas- cura das origons genuínas que permitem a tudo mani- cá das condições que permitam sou alojamento no mua-
Tal definição nos remete à origem da palavra Flantão, gura, desgraça, desastre. No senso-comum 6 sofrimento festar-se e presentac-se, Dessa forma, ontológico refere-se do com os outros (Safra, 2604). Como 105 fala Almeida
que vem do francês plantou, cujo significado é um sol- está relacionado à rlor, agonia, affiçõo e emargura, muitas àquila que possibilita ug várias formas de algo tornar-se 11998), a angústia tiva o homem de sna absorção no mun-
dado à serviço que permanece fixe ou em pé em um lu- Yezes associado a um acontecimento marcante (injusti- presente. Feidegger parte da vida cotidiana, dos lenôóme- do na medida om que esta faz com que o homem se afaste
gar, sempre om estado de alerta. Daí a palavre lambém 15a5, doenças ou perdas). nos âônticos para estudar o ser « seus aspectos ontológi- de mundo e não ecocontre mais à flusória lamiliaridade
designar os serviços noturnos em hospitais, fábricas, Segunrio Barus-Michel (2091), etimologicamente o so- eos. E ônlico é tudo aquilo que é conhecido e entendido 8 proteção do apteriarmente e estando sozinho no mua-
jornais, etc. Um vítro sentido que vem do verho plantar frimento significa carregar, suportar ou tolerar uma dor. de imediato, refere-se às expariêncins do cotidiano, aos do passa a igir de acordo com suas próprias convicções.
nriginado do latim plantore significa introduzir um vo- Podemos observar nessas definições que o sofrimento acentecimentios do dia a dia. O ontológico, então, é o fun- Essa capacidade mobilizadora da angústia pode ser vista
gelu! na terra para erlar raízes, isto é, ficar parado, es- está sempta atreledo e uma dor, como nos fata Sasdel!i damento, é o que possibilita os acontecimentos ônticos Tiwsse techo de Clarice Lispector:
tacionado, Truzenda pata e idéia do plantão psicológi- n Miranda (2007), “É contuim fazermos referência à dor e [Spanoudis, 1981).
co podemos entender como um estar disponível diante ao sofrimento como um só fenómeno. De fofo, os limites Partindo dessa conceituação poderíamos entonder o Uma das coisas que aprendi é que se deve viver apo-
de um organisaão vivo que cresce e preciso ser culdado que separam os deis são tênues” (p, 103). sofrimento como sendo óntico pelo fato deste fzer par- tar de, Apesar de, se deve comer. Ápesar de, se deve
(Fussinaári, 1099), Nu entanto, é importante tessaltar que v sofrimento é te das experiências do cotidiano, já que o homem sofre úmar, Apesar de, se deve morrer, Inclusive muitas
Nesse sentido o trabalho da plaelonisla é o de ajo- anterior à dor por fazer parte da complexidade da cxperi- de diversas formas cm seu dia à dia, No entanto, neste vezes é o próprio 'apesor de' que nos enmptrra para
dar 9 cliente à ter numa visão mais ampliada de sie do ência humana em seus diversos aspectos, pois mesmo que rapítulo, daremos ênfase à dimensão ontológica doe so- à frente, Foi 9 'apesar de' que me deu uma angústia
mundo estando disponível para compreender e acolher não oxista dor, existirá um sofrimento, mas acontece que frimenta, enterulendo este como constitutivo, fundante, que insalisfeita, foi a criadora de minha própria vida
a experiência deste, no momento de sua expressão, isto esse sofrimanto na maioria das vezes emerge como dor e isto é, inerente à condição humana e que, de acordo com 11998, p. 26).
é, rente àquela problemática que gerou o pedido de afu- insisle cm permanecer como sintoma orgânico, Devido Saíta (2004), apesar de alcançar, no colidiano, o registro
da. (Malfoud, 1987). à isso, é dada mais importância à dor, esquecendo que psíquico, físico e moral, não tem sua origem nestes, mas Diante disso, para que possamos permitir o acontecer
O plantão psicatógico, de acordo com Mabtoud f1957), esta “surge como uma foirnia emergente dos conflitos da acontecem no registro ontológico. humano, isto é, para que 9 homem possa ser ei mesmo
surge da necessidade de oferecer atendimento psicológico pessoa e não, como se costunto pensar, quê elo é a cou- Thiante disso, faz-se necessário que o ser humano per- (ser no modo da propriedade) é preciso compreendermos
à uma parcela da população que, na maioria dus vezes, sa primeira dos conflitos” (Susdell & Mirando, 2001, p.
Artigo

Artigo

Maneça sempre no entre, isto é, entro 6 dito 6 o não-di- a condigão ontológica de sofrimento humano e as formas
no momanto de sua urgência não é atendida devido à es- 102). Nesse sentido, o sofrimento é aqui entendido como to, entre o encontro « a solidão, entre o claro e o escuro, Com que este se apresenta na contemporaneidade. O so-

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Plantão Psicológico: uma Prática Clínica da Contemporaneidade Melina S. 5. Febouças; Elia Dutra

Frimonio é aqui entendido como uma ruplura do ethos” axemplo da distorção que à busca pela eficiência pro- de, o qua tentamos defender é o plantão como uma prá: Diante disso, podermos observar como a proposta do
humano. replira essa que provoca um sentimento de vuCA, na medida em que à sociedade estabeleve padrões fica da clínica contemporánea e que é possível ampliá-la plantão psicológico se adegua a essa nova postura da cli-
não pertencimente ag mundo humano devido à falta de a serem seguidos. para diversos campos da prática profissional, Exemplo uica em todos os seus aspectos, tendo a ética como prín-
espaço para a alteridade e singularidade. De una forma geral, compreender a condição ontoló- disso são 08 atuais serviços em que e psicólogo está in- cipal norteador, entendendo esta como nma atitude, como
No mundo conlemporáneo poderíamos entender gica do ser humano é reconhecê-lo em sua singularidade serido como o PSF (Programa do Saúde da Família), 6 um cenidado e como uma abertura para o outro. estando
essa ruptura como à alienação que a sociedade, paula- e sabrr que este não pode ser loialmente explicado ou 7e- £CAFS (Centro de Atenção Psicossocial) e o CRAS (Gentro u profissional disposto u lazor uma psicologia sem uome,
da na ética do consumo, provoca por meic da globaliza- velado, Como afirma CriteHli (1996), tdo saber a respeito de Referência da Assistência Social) que têm por objeti- mas que deixe emergir a mundo do outro, como afizma
ção, no qual este "conspira" para o mesmo, não bavendo do homem sempre será relativo e provisório, já que é m- vo acolhes o dar à assistência necessária à poptlação no Ancona-Lopez (1996):
lugar para o diferente, o siugular (Safra, 2604). Dantas possível para esle alcançar qualquer fixidez pelo falo de momento de sita procura,
e Tobler (2003) comentam que a sociedade de consumo estar en contínuo vit-aser. O mundo contemporâneo vai Vimos que à contemporaneidade tem demandado [.) quando o cliente vem à procura de em psicólego,
oferece um mudelo de felicidade bascada em função dos demandar da clínica o restabelecimento do ethos e este da clinica uma postura de ousadia, de transformação, ele quer ser atendido em suas necessidades, pouco im-
objetos que um indivídio possui. O que acaba por gerar só será possível alzavés da compreensão dessa dimensão de inquietação e de permanente construção. O plantão portando sob que nome este atendimento se efetue. Na
problemas na esfera da individualidade, já que ao invés onlolágica do homem. psicológico, assim, vai exigir do profissional uma dis- prática, no entanto, o que iconjece com freqiência é
de obler algo que quero ou preciso, obtenho aquilo que O mundo contemporâneo, como vimos, provosa mup- ponibilidade para se cleparar com o incsperado e, diuo- Que, por nomear sus prática, o psicólogo deixa de fazer
todos têm e acreditam ser o objeto de lelicidade, Fai fote lurss no sor humano que 6 leva a um lipo de sofrimento te disso, buscar alternativas, O plantão psicológico, de sua parte, postergando sua intervenção e empobrecen-
provoca um profundo vazio existencial que o faz querer sem enterno”, a uma vida sem sentído e à nm compleio acordo com Morato (1999) caracteriza-se como um es- do um encontro rice de possibilidades (p.115).
ainda mais consumir tais objetos, criundo a falsa lusão alheamanto de si, e víver dessa forraa muílas vezes é pjor paço de acolhimento e escuta n5 momento em que à
de que à “cura” dessa vazio pode ser comprada, que a própria moria. “Na atualidade inúmeros pessoas so pessoa procura ajuda, tentando propiciar a elaberação Nesse sentido, a psicólogo, no plantão psicológico, in-
Outra teptura provocada pela contemporaneidade é à nham com o inorte como maneiro de escapar do Nada e + ressignifiçação do seu sofrimento, utilizando seus dependente de pende esteja om do nome que recebe, estará
tentativa de explicar e revelar o ser humano em sua fola- conta gesto desesperado de anseio por acontecer” (Salra, próprios recursos e, na medida do possível, os recursos ali para atender a pessoa, focalizando a sua alenção nes-
lidade por meio de teorias, Um exereplo disso atualmente 2004, p. 59). Nesse caso o homem vive suspenso em fm que à instilvíção dispõe ou indo buscá-los fora desta. ta e não no problema, Dessa forma, a eficácia do plantão
é u psiquiatrização do sofrimento, em que qualquer tríste- estado de agonia, no qual este clama por transformar essa Compartilhando dessa idéia, Tassinari (1969) define o psicológico não está relacionada à resolução da proble-
za ou Irustração é diagnosticada como depressão (Dantas experiência em algo que lhe dê sentido ou que possa vir plantão psicológica como: mmática em questão, já que à prioridade é à queixa,
& Tubles, 2003). Safra (26804) também corrobora vom essa à ser tim soltimento (Safra, 2004), mas o mundo de significados daquela pessoa, e o papel
idéiu ao afirmar que na atualidade temos um sofrimento O que tem acantecido é que à contemporaneidade não [...) um tipo de atendimento psicológico, que se com- do psicólogo é ajudá-la a refletir e bascar novas maánei-
que é descrito como sofrimento do totalmente pensado, tem permitido ao homem sofrer, tentando de todas as ior- plela em si mesmo, realizado em uma ou mais consul- tas para lidar com às suas dificuldades. É importante
isto é, algumas concepções da psicologia e da pedagogia mas eliminar ou abafar 6 sofrimento, nas esse “contro- tas sem duração pró-determinada, ebjetivando receber lembrar que o plantão não é solução para tudo, existem
lovam à um funda dizer sobre o ser humano. no qua) este lo” é ilusório pelo fato deste fazer purte da constituição qualquer pessoas no momento exato do sua necessidade muitos limites, « maioria dovido à grande desianaldade
já se encontra classificado em categorias ou quadros psi- ontológica do ser bumano e ser à condição de aberlura para ajudá-la à compreender melhor sua emergência 2, social e à delasagem dos serviços públicos (Cury, 1999).
copatológicos. Parece haver uma necessidade de nomear, Dara O nosso acontecer, isto é, nosso poder ser próprios, se necessário, encaminhá-la a otros serviços, Tanto Na entanto, à proposta do plaunlão mostra-se como um
explicar e curar lodo e qualquer sofrimento, como se às Na verdade, “Sofrer implica em devir, em destinavo vivi o lempo da consulta. quanto os retornos dependem alcance dos serviços psicológicos a uma população que
pessoas tivessem que ser felizes, do" (Safra, 2004, p. 70). de decisões conjuntas (plantonistafcliente) no de- talvez nunca tivesse acesso, servindo como espaço de
Ferreira Nelo (20043, baseando-se nas idéias de correr do atendimento. É exercido por psicólogos acolhimento 8 de informações, auxiliando as possoas à
FoncauH, sugere que 6 parâmetro ético do mundo con- que ficam à disposição das pessoas que procuram ter twna maior autonomia emocional, bom como um es-
temporâneo é a eliciência, Segundo ele, em tempos de 3. Plantão Psicológico: uma Prática Clínica da Con- espontancamente o Serviço em Jocal, dias e borários clarecimento acerca de sua realidade social e de seus di-
globalização e que impera é a otimização do desemm- temporaneidade pré-estabelecidos, podendo ser criado em diversos reitos enquanto cidadão,
penho através da iógica de gerenciamento. Por exem- locais e instituições. Em cada ambiente, precisará,
plo, os pais hoje não educam mais sens filhos, mas os Depois desse breve percurso na história da psicelo- criar estratégias específicas, desde sua divulgação
gorenciam, pois desda cedo os aprontam para a vida gia clínica e das reflexões acerca do mundo contemporá- (processo de sensibilização à comunidade) até sua Considerações Finaís
profissional colocando-os em aulas de informática e neo, podemos, agora, colocar essas discussões em prática, relação com a própria instituição local (p. 44),
inglês, na tentativa de torná-los mais preparados para Proponho. gutão, neste tópico. discorrer sobre o Plantão A contemporannidade, como vimos, tem demandando
o mercado de trabalho &, portanto, mais elicientes. No Psicológico entendendo este como vma prática condizen- Dessa forma, o prolissiouasl será um facilitador ao da Peicologia Clínica uma nova postura e um novo clhar
entanto, essa certida pela eficiência tem provocado às te com à atual reatidade. ajudar 5 cliente à fer nma visão mais clara de si mesmo diante do homem. E para isso, à psiculogia rompe cem o
aluais formas de adoecimento que chegam à clínica, A elínica contemporânea, como falamos anteriormen- e da problemálica que o trouxe, ntilizando sempre o po- modela metafísico baseado no instrumental técnico e em
como 9 transíorno obsessívo-compulsivo (TOC), a de- te, está baseada mimo ética e não mais numa técnica, e der pessoal do cliente, ajudando, assim, na premoção de verdades absolutas 8 inquestionáveis, indo de encontro a
prossão e à anorexia, Fazendo um paralelo, poderíamos nesse sentido o psicólogo não está preso a um local ou saúde e estimulando a prevenção. uma clínica pautada na ótica.
dizer que o TOC, através das manias características po- campo de atuação, ele pode estar em diversos lugares, Falamos tacubém do compromisso da clínica contem- E paular-se na élica é lovar em consideração a singu-
deria ser pensedo como uma tentativa de acompanhar Assim. o plantão psicológico surge como uma allerna- porânea coma dimensão polílica e social, em função qual turidade humana, ubrindo-se ao enconito do outro e ole-
o ritmo desenfreado da sociedade de consumo, como tiva de prestação de serviços condizente com essa nova o profissional precisa repensar sua prática de acordo com recendo-lhe uma morada, jsto é, um espaço para que este
se estas tornassom o homem mais próximo dessa efi- postura da clínica em que o psicólogo passa à estar com- a realidade atual e com o main em que está inserido. O so sinta verdadeiramente acolhido. O Plantão Psicológico
ciência almejada. No case da depressão ocorre o con- prometido com à escuta e sensível às demandas que che- plantão psicológico, então, como nos lala Morato (1999), seria, portanto, um desses espaços, eslando o profissional
trário. « homem não consegue acompanhar esse ritmo gam, mesmo que esse encontro seja único. Porém, vale “redimensiona o aprendizagem e a compreensão do popel disponível para se deparar com o não-planejado, deixan-
e cal aum profundo vazio exislencia! e fica paralisado Tessaliar que essa proposta não se Lrata de uma psicolv- do psicólogo e seu campo de atuação £.)" (p. 35), além de do-se, como coloca Ferteira (2886), afetar pela singulari-
diunle da vida. fá a anorexia poderia representar um Tapia alternativa e nem visa snbstituir a esta, Na verda- proporcionar ao psicólogo entrar em contato com as ne- dade de cada existência e de cada encontro.
cossidades de uma comunidade exercendo um papel de Ás características do mundo contemporáneo levam o
Artigo

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agente transformados 6 multiplicador social, homem a perder sua morada, seu espaço so mundo, sen-
? Qsontido de ethos é 4 mesmo telerido no primeiro capítulo. * Sofrimento enlouguecedor,

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Plantão Psicológico: uma Prática Clínica da Conterporaneidade Melina 5, 5, Rebouças; Elea Dutra

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só encontrar seus caminhos, mas esta trilha muitas ve- ve, Dissertação de Mestrado, Universidade Católica de
zes é tortuosa e em alguns momentos o homem procisa- Farnambuco. Sasdelli, E. N. & Miranda, E MEF oo Ser: 9 sentido da dor
rá desse espoço para se forlalecer e posteriormente com À Em V. À. Angerami-Camon
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