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Ecologia doméstica, ambientes e processos técnicos entre os Potiguara da aldeia

Jaraguá ( Paraíba, Brasil)

Resumo
O presente artigo focaliza as atividades técnicas desenvolvidas por membros de
grupos domésticos potiguara no interior de ambientes diversificados, sendo estes partes
constitutivas do território habitado por estes indígenas. Tais atividades são o resultado
de escolhas e estratégias organizadas para atender às necessidades desses grupos
domésticos (grupos familiares de pelo menos três gerações), conformando propriamente
uma ecologia doméstica. Os processos técnicos que resultam dessa ecologia estão
centrados nas experiências individuais e coletivas em manguezais, várzeas e resquícios
de Mata Atlântica, bem como em contextos urbanos, permitindo o desenvolvimento de
habilidades e a aquisição de saberes sobre técnicas e materiais bastante diversificados.
Desta forma, hoje os Potiguara desenvolvem atividades pesqueiras, agrícolas, de
pastoreio e extrativistas, a partir do aprimoramento de um conhecimento tradicional
local que lhes permite associar de modo eficaz materiais de origens diversas, isto é, os
encontráveis localmente e aqueles de procedência industrial.

Palavras-chave: Potiguara; ecologia doméstica; ambientes; processos técnicos.

Abstract
This paper focuses on the technical activities developed by members of potiguara
households within diverse environments, these being constituent parts of the territory
inhabited by these indigenous people. Such activities are the result of choices and
strategies organized to meet the needs of these households (family groups of at least
three generations), properly conforming a household ecology. The technical processes
that result from this ecology are centered on individual and collective experiences in
mangroves, floodplains and remnants of the Atlantic Forest, as well as in urban
contexts, allowing the development of skills and the acquisition of knowledge about
techniques and materials quite diversified. In this way, today the Potiguara develop
fishing, agricultural, grazing and extractive activities, from the improvement of a local
traditional knowledge that allows them to effectively associate materials of diverse
origins, that is, those found locally and those of industrial origin.

Keywords: Potiguara; environments; household ecology; technical process.

1
Introdução

Neste artigo serão abordadas as atividades técnicas desenvolvidas pelos


membros de alguns grupos domésticos1 potiguara, residentes na Terra Indígena Monte
Mor, no município de Rio Tinto, mais especificamente na aldeia Jaraguá situada no
Litoral Norte do Estado da Paraíba, pertencente ao Nordeste do Brasil). Esta é margeada
por extensos manguezais, várzeas e com resquícios de Mata Atlântica, sendo situada a
cinco quilômetros do centro da cidade do município de mesmo nome. O intuito é
compreender tais atividades como constituindo uma ecologia doméstica2, definida como
o estudo da relação de apropriação e gestão de recursos conforme entendido por Wilk
(1997). Por sua vez, sendo a gestão destes recursos desenvolvida em espaços
geográficos específicos, sobre os quais os sujeitos pretendem manter um certo controle,
a ecologia doméstica estará voltada a construir áreas dominiais, através do que Barbosa
da Silva e Mura (2018) denominaram como sendo processos de dominialização. É por
meio destes processos que cada sujeito humano ou não humano tende a formar espaços
dominiais, definindo mobilidades e tentando impor, por meio de ações diretas ou
indiretas, sua vontade e poder sobre outros sujeitos ou coletividades - que por sua vez,
impõem limites de acesso a um determinado bem, técnica ou conhecimento.
As modalidades de acesso, interação e uso dos recursos presentes nesses espaços,
por parte dos Potiguara permitem o desenvolvimento de atividades agrícolas e a criação
de animais de pequeno e grande porte. Dedicam-se também à pesca no mangue, bem
como à caça e coleta de frutas e plantas medicinais. Nesses termos, ter controle sobre
um espaço geográfico e buscar ordenar o acesso a ele é fundamental para a organização
doméstica. Assim, as trajetórias experienciais dos sujeitos potiguara, bem como a
ecologia doméstica que eles desenvolvem têm que ser vistas como constitutivas da
formação, conservação ou transformação dos ambientes configurados nesses espaços.
O acesso ou não aos recursos do território afeta de modo diferente o cotidiano
dos grupos domésticos. Os indivíduos, de fato, são integrantes dos ambientes em que
vivem e onde desenvolvem uma ecologia doméstica que lhes permite lidar com suas
necessidades diárias - seja como garantia para necessidades não previstas, seja como um
excedente que pode ser levado ao mercado para troca por recursos complementares.
Tais atividades são concatenadas no tempo e no espaço, através de estratégias
individuais e coletivas. Estas são direcionadas para configurar itinerários que
conformam mobilidades e temporalidades peculiares.
Com o objetivo de mostrar estas dinâmicas, a argumentação será desenvolvida
em três itens. O primeiro busca fazer algumas considerações teóricas para auxiliar na
compreensão da ecologia doméstica desenvolvida na aldeia Jaraguá. O segundo
descreve atividades realizadas por membros de grupos domésticos a partir de
conhecimentos que eles transacionam, como fruto de experiências de uso dos recursos
disponíveis no território e da socialização de saberes, materiais e técnicas diversificadas,
de procedências local e industrial. Finalmente, no terceiro item serão abordados os
ritmos temporais, bem como os conhecimentos e conceituações locais que resultam

1
Estes estão formados geralmente por indivíduos pertencentes a três ou quatro gerações, formando um
grupo local que conecta, através de modalidades específicas de cooperação, diversas unidades
habitacionais, constituindo grupos domésticos agregados (Wilk 1984). Em termos organizativos, o que
podemos identificar como a unidade social básica dos Potiguara são os grupos domésticos ou ainda “casas
focais” (Vieira 2012).
2
A organização social do trabalho definiria a lógica de cooperação e a eventual diferenciação de tarefas
executadas por seus integrantes, o que dá vida a uma ecologia doméstica (Wilk 1997).

2
destes, mostrando-se movimentos que definem ciclos e alternâncias, desenhando
mobilidades que são compósitas.

Ambientes, processos técnicos e ecologia doméstica

No decorrer da convivência com os grupos domésticos pesquisados foi possível


perceber que existem relações e entendimentos específicos no que se refere aos recursos
presentes no território, que incluem fatores sociais, econômicos e políticos. Entende-se,
portanto, que essa experiência ultrapassa uma dimensão simbólica, assumindo uma
corporificação da experiência que as pessoas possuem. Esta relação entre os elementos
ambientais é construída a partir de uma gama de recursos experienciais, advindos nas
atividades cotidianas desenvolvidas pelos integrantes dos grupos domésticos.
A noção de ambiente aqui não leva em consideração apenas as características
ecológicas que definiriam e distinguiriam um ambiente de outro. Esta categoria, muito
relevante em minha argumentação, será entendida de uma forma mais abrangente;
adotarei, portanto, o sentido defendido por Barbosa da Silva, isto é:

[um] sentido socioecológico, compreendendo uma infraestrutura material


(as instalações físicas: construções, caminhos, cercas, árvores, pastagens,
ruas, praças etc.) específica, pondo à disposição dos sujeitos determinados
recursos e permitindo o desenvolvimento de determinadas atividades, as
quais, embora características, podem não ser exclusivas. Assim, o ambiente
é um espaço físico de relações, unidade constituinte de um território”
(Barbosa da Silva 2009: 88).

Para a autora, ambiente não é apenas um espaço físico, incluindo uma


componente territorial, ou seja, uma dimensão política de controle sobre o espaço onde
os grupos sociais vivem e se relacionam.
Compreende-se aqui que as relações que se desenvolvem no cotidiano não se
pautam por uma separação entre o que seria “natural” por um lado e “artificial” por
outro. Os membros dos grupos domésticos constroem suas relações a nível territorial,
através do uso dos ambientes, onde estabelecem itinerários, a partir de escolhas e de
limitações que lhes são postas, o que permite classificações de materiais, técnicas e
informações que não poderiam ser compreendidas através de uma abordagem
dicotômica. Com o fim de aprofundar a superação de dicotomias, Ingold e Kurttila
(2000), em seus estudos sobre os Sami finlandeses, observaram que para este povo a
aquisição de conhecimento não ocorre em separado das experiências e práticas no
ambiente em que vivem. Nesse sentido, o tempo opera como um agente fundamental em
um “traditional knowledge as generated in the practices of locality”- LTK
(conhecimento tradicional gerado nas práticas da localidade), ou seja, um entendimento
local, que é dinâmico, sendo formado e transformado através das experiências das
pessoas em interação neste ambiente.
Sendo as experiências e aprendizados dos sujeitos sempre relacionados ao
ambiente, nas situações cotidianas torna-se oportuna a reflexão sobre a estrutura da ação
social proposta por F. Barth, por meio de uma diferenciação das noções de evento e ato:

O primeiro refere-se ao aspecto externo do comportamento, aos dados


objetivos e mensuráveis do positivismo. O segundo, ao significado
intencional e interpretado do comportamento, o seu significado para
pessoas conscientes, com conjuntos específicos de crenças e de experiências.
Um evento é um ato em virtude de ser intencional e interpretável. (...) O

3
precipitado (no sentido químico da palavra) da interpretação dos atos na
pessoa é a sua experiência e, sinteticamente, em um plano mais distanciado,
seus conhecimentos e valores, que por sua vez podem retroagir sobre planos
e objetivos futuros, bem como sobre futuras interpretações de atos (Barth
2000: 173- 174).

Concordando com a orientação do autor, podemos entender que as pessoas


seguem determinadas lógicas culturalmente moldadas, que são continuamente
atualizadas a partir das experiências cotidianas efetivas que se apresentam aos sujeitos
que se encontram em posições sociais diferentes – e que por essa razão possuem
determinadas explicações para os eventos, de acordo com suas experiências.
Nessa perspectiva, Ingold (2015) propõe que as noções de pessoa, técnica e
ambiente não são categorias estanques e distintas, mas atuam de forma concatenada nas
experiências desenvolvidas. Para isto parte da noção de habilidade, indicando que a
cultura não se constitui a partir de símbolos, mas sim pelas ações e interações no
ambiente, através do engajamento em processos práticos. Nesse sentido, o autor entende
que não é possível conceber as pessoas independente de suas habilidades adquiridas e
dos processos técnicos por elas promovidos.
Ainda no tocante às produções antropológicas centradas na discussão entre o
humano e o técnico se destaca o antropólogo francês Leroi-Gourhan, que elabora três
importantes noções analíticas sobre os fenômenos técnicos: tendência técnica – conceito
voltado à compreensão dos efeitos da ação humana sobre a matéria; ambiente técnico –
ambiente que propicia o empreendimento de mudanças no próprio nível técnico a partir
da experiência em um dado lugar, unido à criatividade e aos empréstimos de
conhecimentos técnicos em várias regiões, e fato técnico – a elaboração de um traço
técnico especifico, dando vida àquilo que efetivamente é apreensível pelo pesquisador
(Leroi-Gourhan 1984).
Compreende-se aqui que as atividades técnico-econômicas realizadas pelos
integrantes dos grupos domésticos potiguara são possibilitadas pelas características
ambientais que apresenta uma área de várzea e uma vasta extensão de manguezal, com
pequenos resquícios de mata atlântica, sendo elas desenvolvidas a partir de saberes,
utensílios e práticas – que, articulados entre si, formam conjuntos técnicos específicos
(Leroi-Gourhan op.cit.). Estes permitem a produção de diversos objetos e atividades, em
um espaço circunscrito. Assim, ao desenvolverem suas atividades, os integrantes dos
grupos interagem intensamente nos ambientes, que incluem ainda núcleos urbanos,
apresentando uma mobilidade que garante acesso a diferentes conhecimentos técnicos e
materiais, incorporados então à organização social do trabalho a partir da divisão de
competências. Portanto, a dimensão local e a experiencial aparecem como tendo
significativa relevância para definir dinâmicas territoriais e processos técnicos, aos
quais acrescentamos aqui a proeminência das estratégias domésticas e transformações
técnicas. No próximo item exploraremos justamente estas conexões e suas implicações
empíricas e analíticas.

Estratégias domésticas e transformações técnicas

Os indígenas potiguara têm ao longo do tempo ocupado espaços territoriais no


litoral norte do estado da Paraíba, inseridos entre a foz do rio Camaratuba e a do rio
Mamanguape, tendo como limite norte o município de Mataraca e ao sul o de Rio Tinto.

4
Distribuem-se em 32 aldeias, pertencentes a três terras indígenas contíguas 3, localizadas
nos municípios de Baía da Traição, Marcação e Rio Tinto.
Não cabe recuperar longamente o histórico de presença destes indígenas desde os
séculos XVIII e XIX, mas sim remarcar que fontes históricas registram que os Potiguara
foram reunidos na Paraíba em dois aldeamentos, assistidos pelos missionários do Carmo
da Reforma de São Miguel da Baía da Traição, no litoral, e o da Preguiça, situado a
cerca de 24 km da costa (v. Palitot 2005).
Na segunda metade do século XVIII tais aldeamentos (de São Miguel e Baía da
Traição) vão ser modificados pelas leis pombalinas, que determinaram a expulsão das
ordens missionárias e a elevação das aldeias à categoria de vilas de índios. Após a
promulgação da Lei de Terras, de 1850, os descasos das autoridades associados à
precária condição dos índios fizeram com que houvesse constantes usurpações e
compras das terras destes últimos (Palitot op.cit.: 29). Nas primeiras décadas do século
XX, duas grandes agências se apresentam nesta região: o Serviço de Proteção aos Índios
(SPI) – na Baía da Traição, que estabeleceu um regime tutelar de controle do território
indígena -, e a Companhia de Tecidos Rio Tinto, propriedade da família latifundiária
Lundgren. Por um lado, a agência indigenista oficial se pautava pela ideologia da
incorporação desses grupos à sociedade; por outro, a intensificação das frentes de
ocupação dos territórios tradicionais dos Potiguara se dava de forma intensa pelos
Lundgren. Tais agentes e agências promoveram, assim, aquilo que Oliveira (2004)
definiu como processo de territorialização. 4
Na década de 1980 na trilha do “Programa Nacional do Álcool” (Proálcool)
grande parte das terras da Cia. foram vendidas para usinas de açúcar e sobretudo de
álcool. As usinas então investiram nas áreas antes exploradas pela Cia., comprando e/ou
arrendando-as, o que tornou as condições de reprodução social dos moradores ainda
mais difíceis, com contingenciamentos cada vez maiores no acesso aos recursos.
Os desmatamentos empreendidos para o plantio de cana transformaram o cenário
físico das relações sociais e técnicas. A espoliação das terras e o avanço deste cultivo
foram geradores de amplo descontentamento, levando os indígenas, já na década de
1980, a se organizarem pela demarcação de suas terras. 5 Grande parte das vezes as
“retomadas” (assim referidas) foram feitas com a substituição dos canaviais pelo plantio
de “roça” (macaxeira). Os reivindicantes plantavam as roças que eram posteriormente
destruídas a mando dos usineiros. Todas as estratégias de resistência à dominação,
incluindo iniciativas para recuperação e defesa do território, garantiram a realização de
atividades produtivas e a mudança das relações de poder subjacentes às relações
espaciais. Paulatinamente, graças às “retomadas” das terras os Potiguara foram
ocupando as áreas com atividades agrícolas e pecuárias antes vetadas pela Cia. e pelos
usineiros. No entanto, essas ações não mudam a situação anterior imposta pelo Estado.

3
A TI Potiguara (população de 8.109 pessoas e 21 238 hectares), a TI Jacaré de São Domingos
(população de 449 pessoas e 5 032 hectares) e a TI Potiguara de Monte Mór (população de 4.447 pessoas
e 7 487 hectares) (v. Cardoso et al. 2012: 15).
4
Oliveira entende a territorialização como sendo um processo de reorganização social que implica: i) a
criação de uma nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica
diferenciadora; ii) a constituição de mecanismos políticos especializados; iii) a redefinição do controle
social sobre os recursos ambientais; iv) a reelaboração da cultura e da relação com o passado (Oliveira
2004: 22). Sua definição para a territorialização é “uma intervenção da esfera política que associa (de
forma prescritiva e insofismável) um território bem determinado a um conjunto de indivíduos e grupos
sociais” (idem: 23).
5
O modo como os grupos domésticos se articularam em comunidades políticas (Weber 1999) para
efetivar as “retomadas” careceria de aprofundamentos que não serão feitos aqui.

5
O ato de territorializar, que se apresenta nos termos aqui pensados como uma
modalidade de dominialização, isto é, como produção de domínios (Barbosa da Silva;
Mura 2018), não é de mão única; ao contrário, os indígenas produzem respostas,
participando dos efeitos dessa dominialização através da ecologia doméstica que
desenvolvem.
Segundo Wilk e Netting (1984), entre os povos e grupos humanos, o grupo
doméstico (household) grande parte das vezes constitui uma unidade de descrição e
análise privilegiada para compreender as relações de produção e consumo. Em nosso
entender, no entanto, a produção e o consumo não estão relacionados somente a bens
materiais, mas incluem ainda a produção e transmissão de conhecimento, a educação
das crianças da household, entre outros aspectos. No presente estudo procuraremos
expor algumas atividades desenvolvidas por alguns indivíduos pertencentes a grupos
domésticos da aldeia Jaraguá, em ambientes específicos - dentre eles, o terreiro, o
mangue, o roçado e a cidade. Portanto, se faz necessário compreender como esses
grupos se organizam e consequentemente se relacionam com os demais elementos e
seres presentes nesses ambientes, além de tentar entender como, a partir dessa relação
são geradas estratégias domésticas e transformações técnicas.
Importa nunca perder de vista que a ocupação e uso do espaço é sempre um
processo dinâmico, que envolve diversos agentes. Antes que se estabelecessem
dinâmicas próprias do desenvolvimento capitalista, com exploração de mão de obra e de
recursos dos territórios, os Potiguara podiam desenvolver suas atividades num ambiente
(Barbosa da Silva 2009) que satisfazia suas necessidades. Com o tempo reduziu-se
drasticamente a biodiversidade nos espaços territoriais dos grupos domésticos,
resultando em uma configuração ecológica específica. Para isto, a “Companhia” e as
usinas tiveram um papel determinante, por meio da extração da madeira da Mata
Atlântica local, e da produção agrícola canavieira (Barbosa da Silva et al. 2017).
O desmatamento massivo dos espaços em questão não acarretou simplesmente
numa drástica diminuição das populações animais e vegetais (tanto em número de
indivíduos quanto em variedade de espécies); este fenômeno provocou também
significativas modificações na rede hidrográfica. Com a chegada das usinas, a cana de
açúcar avançou pelos espaços produtivos dos habitantes, devastando as áreas de
vegetação existentes e restringindo as atividades de agricultura e de pesca. Os terrenos
melhores (as “chãs” 6) foram utilizados para a plantação da cana, restando as encostas
acidentadas para o cultivo de alimentos. Neste contexto que veio se configurar, os
membros dos grupos domésticos potiguara, não obstante tais transformações, continuam
realizando suas atividades a partir de conhecimentos transacionados, frutos de
experiências de uso dos recursos disponíveis no território, desenvolvendo estratégias
adaptativas em contextos sócio-ecológico-territoriais que foram se definindo
historicamente (Mura 2011). Dentre tais estratégias, pela falta de espaços produtivos
para o plantio, algumas household passaram a adaptar espaços reduzidos como os
quintais7, além de áreas de mangue alagáveis desmatadas, aterrando-as. Igualmente,
materiais industrializados, articulados com outros de origem vegetal, por exemplo,
passaram a ter papel importante na construção e na aquisição de artefatos (Araújo 2015
e 2017).

6
Tipo de solo arenoso para plantio.
7
O quintal se situa externamente às habitações. É caracterizado por ser um espaço social e simbólico que
apresenta diversos usos, e que manifestam e possibilitam a organização específica dos grupos, visto que
esse espaço é construído conforme as necessidades dos integrantes. Esse ambiente da espacialidade
doméstica é bastante utilizado, podendo servir como depósito de ferramentas, lugar de manter os animais,
e local também dedicado a atividades culinárias e plantio de alimentos.

6
Assim sendo, o que importa para os sujeitos no momento que realizam suas
escolhas técnicas é poder contar com possibilidades, independente dos materiais serem
“naturais” ou “artificiais”. Nesse sentido, o aspecto territorial é relevante, pois
possibilita compreender os níveis de mobilidade espacial dos sujeitos e o alcance dos
objetos desejados. Em face disso são definidas áreas dominiais “que permitem melhor
organizar o acesso a esses fluxos e o controle deles, bem como a sedimentar os
conhecimentos e as habilidades adquiridas através das trajetórias experienciais a que os
sujeitos deram vida, internamente, a partir de e para além destes espaços” (Barbosa da
Silva; Mura 2018:4).
Por meio da descrição de determinados tipos de práticas é possível distinguir e
entender o conhecimento técnico que os membros dos grupos domésticos manifestam,
por meio de habilidades que se voltam a ações e interações no ambiente, através do
engajamento em processos experienciais (Ingold 2015). Com efeito, o leque de tarefas
que os grupos domésticos potiguara podem realizar servindo-se de instrumentos
constituídos de materiais tanto “naturais” quanto “artificiais” é bastante amplo. Por
exemplo, a madeira do mangue denominada “sapateiro” (Rhizophora mangle) além de
ser usada para cobrir habitações e construir cercas, possui a qualidade de prolongar a
durabilidade das redes de pesca fabricadas em material sintético denominado de “seda”.
Primeiramente é preciso coletar a madeira no mangue; em seguida ela passa por um
processo químico onde é preciso cortá-la em lascas que ficaram de molho por uma
semana, depois as redes são postas no tanque para que a tinta seja absorvida
contribuindo para enrijecer as fibras de “seda”. Essa prática requer um conhecimento
local que associa as propriedades químicas da madeira àquelas das fibras da rede.

Foto: Silvinha com suas redes tecidas para aprisionar peixes, crustáceos etc., de fios de
“seda”, adquiridas no comércio local. Foto da autora, 2014.

7
Tanque contendo tinta de “mangue sapateiro”, usada para prolongar a
durabilidade das redes de pesca tecidas em fio “seda”. Foto da autora, 2014.

A imagens acima são referentes a algumas atividades desenvolvidas por


Silvinha, que destina boa parte de seu tempo à pesca com redes. É casado com Sônia e
dois de seus dois filhos (Cristiano e Rafael) algumas vezes cooperam com o pai na
realização desta atividade. Leonardo, o filho do meio, está trabalhando em Piracicaba –
SP e parte do seu salário é enviado para as despesas da família. Silvinha vai até o
mangue praticamente todos os dias, e a grande maioria dos peixes são destinados à
venda - realizada por sua esposa, na própria aldeia e, quando a produção é maior, na
feira de Rio Tinto, aos sábados.
Outro caso de conhecimento local em que são associados de modo eficaz
materiais diversos para a confecção de utensílios e objetos é o exemplo de uma
vassoura, feita do caule das folhas de coqueiro, que são agrupadas em forma de leque.
Para o arremate, utiliza-se o reaproveitamento de produtos industrializados, como
barbante, ou borracha. Na fixação do cabo da vassoura se utilizam frascos de
desodorante usados, feitos de plástico, adquiridos em comércio local. Esses materiais
são de fácil acessibilidade e não são onerosos.

Vassoura. Foto da autora, 2014.

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Além dos implementos já ilustrados, é ainda possível confeccionar armadilhas e
instrumentos para pesca, modificando objetos de lata, plástico, PET, PVC, borracha,
entre outros, que são elementos indispensáveis para compreender as modalidades de
composição da bagagem material dos grupos domésticos e os saberes técnicos a eles
relacionados.
A “ratoeira” é uma armadilha utilizada para a captura do caranguejo goiamum
(Cardisoma guanhumi), geralmente produzida com materiais em desuso, como garrafas
PET, canos PVC, arame, borrachas e restos de madeira. Em média, uma pessoa distribui
entre dez e vinte “ratoeiras” por dia próximo às tocas dos caranguejos e no seu interior
se coloca uma isca, que pode ser pedaços de abacaxi ou cebola, algo que tenha cheiro
forte. Quando o goiamum entra na ratoeira atraído pela isca, o gatilho é disparado e o
prende. Esse processo pode levar horas, então, o mais usual é que se arme as “ratoeiras”
em um dia, para no outro ir coletá-las. Os moradores utilizam pneus velhos de trator
cimentados ao chão para o criatório e engorda desses caranguejos.

“Ratoeira”. Criatório do caranguejo goiamum com pneu de trator.

Interior do criatório de caranguejo goiamum. Fotos da autora, 2017.

Os “covos” são armadilhas de pesca, transportáveis, que contam com uma ou


mais aberturas para a entrada do pescado, sendo muito eficaz na captura do camarão e
do peixe “amoré”. Os covos podem ser cilíndricos, semicilíndricos, ou retangulares. A
boca de entrada é de forma afunilada. Eles podem ser feitos de “taboca” e amarrados
com “cipó fogo” (v. foto abaixo), ultimamente têm sido usados fibras de plástico,
arame, tela de rede, entre outros materiais. Na face superior ou lateral existe uma
abertura, para se retirar o pescado capturado.

9
Para armazenagem principalmente de peixes e crustáceos, utiliza-se o
“samburá”, um tipo de cesto-recipiente de borda esférica e base plana. É um trançado
arqueado de “cipó canela”, “cipó pau” ou “cipó sangue”, com arremate de ourela
simples; também dispõe de tampa redonda. Atualmente os elementos vegetais flexíveis
ou semirrígidos são frequentemente substituídos ou complementados por outros
materiais que são de fácil acesso e que prolongam a durabilidade dos objetos. Hoje, tem
se trocado o cipó por tiras de cano PVC, presos com linha de nylon, com alça de
madeira “sapateiro” retirada do mangue (v. fotos abaixo).

Covo feito com “taboca” e “cipó fogo”. Foto da autora, 2014.

Samburá feito com cano PVC, linha de nylon e da madeira do mangue “sapateiro”. Fotos da autora, 2016.

Deve ser observado que a variedade de conhecimentos, técnicas e atividades


desenvolvidas pelos Potiguara da aldeia Jaraguá é bastante ampla, de modo que os
objetos e instrumentos que foram descritos não oferecerem um panorama completo, em
termos quantitativos. O objetivo é o de apresentar alguns exemplos para que o leitor
possa ter uma ideia da preponderância destes bens na vida doméstica indígena.
Estes objetos estão caracterizados pela associação de materiais de origens
diversas. O cilindro de alumínio que outrora era destinado a confeccionar um frasco de
desodorante, por exemplo, passa a ser utilizado como um material considerado eficaz
para fixar a fibra da palha do coqueiro ao cabo formando uma vassoura (ver foto). O
ângulo entre 90º e 100º formados por galhos de mangue “sapateiro”, unidos as suas

10
propriedades físicas, tornam estes materiais privilegiados para a construção das
cavernas (ver fotos) das canoas. Deste modo, as escolhas técnicas entre os Potiguara de
Jaraguá levam em consideração não apenas os materiais por suas propriedades físicas
e/ou químicas, mas também as formas que estes adquiriram em processos anteriores,
independentemente de suas origens serem industriais ou proceder de ambientes locais.

Cavernas feitas de mangue “sapateiro”. Fotos de Darllan Neves da Rocha, 2018.

De acordo com Lemonnier (1993), a escolha técnica é a análise do processo de


seleção de um recurso técnico, elaborado localmente ou adquirido de fora, mediante sua
ação sobre a matéria. No decorrer desses processos de seleção, novos objetos técnicos
são inseridos como processos sociais no sentido amplo. Em nossa abordagem
evidenciamos os exemplos expostos enquanto escolhas técnicas que repercutem
mudanças nos modos como os Potiguara lidam com os materiais e desenvolvem
competências técnicas, transformando-os para alcançar uma finalidade. Nestes termos,
as escolhas técnicas são expressão das experiências dos indivíduos nos ambientes em
que vivem. Tais experiências dependem de uma situação territorial ampla, que nos leva
a considerar a disponibilidade de materiais que o território oferece e sua acessibilidade
(Mura 2000). De acordo com este autor,

Temos que considerar as condições que se dão para a formação de


conjunturas que permitam uma dialética entre
disponibilidade/acessibilidade e as decisões tomadas pelos interessados no
processo tecnológico. A tomada destas decisões depende muito dos valores
atribuídos pelos atores sociais à moradia, ao mundo material e ao tempo.
(...) A disponibilidade de materiais e sua acessibilidade no território
influenciam tanto as condições do mesmo território quanto as possibilidades
de tomadas de decisão do ator social que pode, em diferentes níveis,
participar deste processo. Neste sentido, a interação do cenário –enquanto
fins, planos e expectativas–, com o binômio disponibilidade/acessibilidade,
determinará o que definiremos como um repertório de possibilidades.
(Mura, op.cit.: 66)

A aquisição dos conhecimentos técnicos, nesse sentido, depende da presença de


um ambiente técnico favorável, onde os elementos são determinados por ações humanas
e não humanas, devendo existir uma combinação apropriada de disponibilidade e de
acessibilidade. Assim, se faz necessário uma jurisdição para acessar o território, o que
se volta a uma abrangência de nível geográfico e político. Esse aspecto é em grande
medida um obstáculo para algumas atividades em que existem regras e normas externas

11
previstas por instituições e órgãos governamentais. Um exemplo da influência externa
na gestão territorial dos Potiguara diz respeito ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente
e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). A aldeia Jaraguá está inserida em uma
Área de Proteção Ambiental (APA); por essa razão os funcionários deste órgão impõem
algumas regras, como, por exemplo, sobre o controle da coleta de madeira do mangue.
Esta prática foi proibida durante um tempo e, no entanto, é uma atividade de grande
importância para a economia doméstica destes indígenas. A coleta serve para a
construção de cercas, para cobrir habitações, para construção de instrumentos de
trabalho e para o fogo, por exemplo. Quanto à gestão do órgão fiscalizador, Silvinha,
acima referido, relatou o seguinte:

Querem empatar nós de tirar um pau ali, mas aquela madeira do chão não
serve mais, ali em cima que é mais importante, se desmatar aqui, ali vai
secar essa água, pronto, e vai atingir a maré da gente. Eles têm que olhar
pra isso aí. Olha pra ali; tá tudo queimado. Eles não veem o principal é as
fontes de águas, só olham o mangue. Porque às vezes os paus tão virado a
gente faz um carvão. Eu não concordo que arranquem os pezinhos não, eu
vivo de dentro eu vou ter que preservar aquilo ali. O mangue sozinho, ele é
de um jeito, mas tendo gente não quer dizer que ele vai morrer, né? Não,
não morre. (Silvinha. Entrevista concedida em dezembro de 2016).

Os pescadores limpam periodicamente as áreas de pesca, retirando os tocos de


pau de mangue e raízes “poropotó”, para que fiquem abertas e permitam a passagem de
embarcações até o canal principal dos rios ou deste para fora do mangue, evitando assim
o aterro, como descreve Silvinha:

A obra é de Deus mas se não tiver a mão do homem para ajudar, ela
também se destrói. Tem um lugar que nos ajeitamos no mangue; os paus
estavam virados. Nós cortamos; ficou aquela coisa bonita! Hoje os paus tão
grande, tem que ir de novo, porque os paus já tão dentro do mangue; vai
descendo e vai empatando o rio, o lixo (folhas, galhos) de descer; ali vai
aterrando (Silvinha. Entrevista concedida em dezembro de 2016).

Por meio das narrativas é possível perceber que existem conflitos,


principalmente com relação à extração de madeira do mangue. No entanto, o órgão
fiscalizador institui algumas restrições que são impostas aos moradores, que questionam
e muitas vezes desrespeitam tais regras, visto que o espaço é de uma ocupação indígena
anterior à instituição da própria APA, sendo que os usos e costumes indígenas são
reproduzidos ao longo de séculos de ocupação do espaço. Nesse caso, existe uma
dimensão política de acessibilidade limitada ao território e seus recursos, que
condiciona o desenvolvimento da ecologia doméstica. Tal configuração é resultado de
práticas de controle e dominação territorial e ecológica. Em face das limitações de
atividades, os Potiguara reagem estabelecendo estratégias e produzindo movimentos
políticos para recuperar o manejo e uso dos territórios por eles tradicionalmente
ocupados, como indicado na fala da liderança da aldeia, o cacique Aníbal8:

8
Aníbal é casado com Cássia. As relações no seio de seu grupo doméstico se configuram a partir do casal
e três filhos, sendo que os avós, sogros, genros, e cunhados que moram nas proximidades cooperam entre
si, na realização de algumas tarefas – como pesca, caça, coleta de madeira e o plantio nos roçados.

12
Quando eles diz “é isso”, nós, “não, é desse jeito”. Quando eles proíbem,
nós fazemos uma reunião e dizemos “nosso costume é esse aqui, agora não
pode proibir da gente usufruir da nossa natureza’. Logo que eles chegaram,
quiseram barrar para os indígenas não tirar lenha seca do mangue. Essa
lenha seca já tá morta, não serve não, tem que tirar. Eles diziam que não
podia, e a gente “pode”. Agora, derrubar o mangue pra plantar, não. Aí
quando inventaram de tirar estaca pra fazer os cercados, aí nós já
proibimos; vamos chamar o IBAMA pra prender. Porque estaca, os troncos
são maior. Aí vai tirar, vamos supor, vai tirar mil estaca, aí é muito. Então
quem quiser estaca que compre, porque do mangue não pode tirar. Agora,
pra casa, a gente já libera, porque tá vendo que tem precisão; aí tem que
fazer (Aníbal. Entrevista concedida em janeiro de 2016).

O órgão fiscalizador diante de algumas situações age de forma a responsabilizar


os moradores pelo que imputam como prejuízos ao ambiente, restringindo ainda mais
suas possibilidades de sustento. Tem-se, então, um conflito baseado em disputas entre
modalidades distintas de gestão, acesso e uso dos recursos, pela exposição socialmente
desigual aos danos e riscos ambientais ocasionadas ao longo do processo histórico por
empreendimentos industriais. Justamente a partir de, e em resposta às condições
impostas pelas políticas dominantes, os indígenas buscam impor um poder para terem
acesso e controle aos recursos presentes em seu território - por meio da ecologia
doméstica, onde constroem espaços dominiais e definem mobilidades, como veremos
no próximo item.

Temporalidades e movimentos

Pelo visto até aqui é possível afirmar que as atividades realizadas nos ambientes
permitem o refinamento de diferentes conhecimentos técnicos resultantes das
experiências práticas dos integrantes dos grupos domésticos, direcionadas a configurar
espaços inclusivos e exclusivos nos quais se busca afirmar domínios sobre um
determinado espaço geográfico. (Mura e Barbosa da Silva 2018).
No caso aqui em tela, a unidade habitacional é o espaço de uso exclusivo dos
integrantes dos grupos domésticos. Tal exclusividade permite o controle das áreas
agregadas à casa. Já o mangue, as várzeas, os resquícios de mata, entre outros,
constituem-se em espaços inclusivos, os recursos aí presentes sendo acessados e
utilizados de forma compartilhada pelos integrantes de diferentes grupos domésticos.
As temporalidades e movimentos com vistas à construção desses espaços
dominiais, assim como os critérios que pautam a acessibilidade a eles, configura uma
ecologia dos grupos domésticos potiguara, que criam condições para o estabelecimento
de itinerários, contemplando mobilidades, que permitem a interação nos ambientes, com
os recursos neles presentes. O sucesso das atividades está diretamente relacionado a
temporalidades específicas. Uma vez que existe o tempo de pescar e o tempo de plantar,
esses entendimentos são formulados na experiência, informando o processo de
acumulação de conhecimentos sobre o clima, fauna, flora, regime de marés, que fazem
parte da dinâmica destes grupos no território. As estações do ano, por exemplo, são
caracterizadas da seguinte maneira: as primeiras chuvas ocorrem ainda no verão, nos
meses de janeiro e fevereiro; o período de chuvas intensas é entre março e agosto, que é
o período do inverno. Entre setembro e outubro se inicia o verão; novembro e dezembro
são tidos como os meses mais quentes do ano, o verão propriamente dito. O tempo
propício ao trabalho na lavoura corresponde ao que Evans-Pritchard (2005) trata como
tempo ecológico, que seria o tempo definido pelos ciclos do ambiente e ao qual o grupo

13
social se adapta e molda um calendário de atividades. Para os Potiguara, a dimensão do
tempo se volta ao trabalho nos roçados, que possui dois períodos: o período da espera e
o período da colheita. Nas primeiras chuvas de janeiro inicia-se o tempo de plantar,
tempo em que os integrantes dos grupos domésticos se reúnem com o objetivo de
cultivar os roçados, que são “limpos” para que as sementes sejam plantadas e
germinem.
As pessoas cultivam no “arisco” 9 durante o período das chuvas, e na estação
seca fazem os roçados no “paú” 10. Nesse sentido, o solo é tido como elemento
indispensável para a agricultura. Esse é um recurso mineral renovável essencial para os
vegetais, uma vez que é nele que a planta se desenvolve, retirando nutrientes e água
para a germinação, crescimento e posterior produção.
O inhame, a mandioca e o feijão são cultivados no mês de janeiro. O tempo da
plantação permanece no mês de maio, mês em que se planta o feijão. Geralmente, a
mandioca é plantada sozinha ou consorciada com feijão e milho, sendo que o plantio é
realizado no início da estação chuvosa. A “roça” (macaxeira) pode ser plantada durante
o ano todo. Como frequentemente falam: “Tudo que se planta vai depender da
aguação”, ou seja, da quantidade e disponibilidade de água. Assim, a espera do cultivo
de cada alimento se dá por diferentes temporalidades. Os produtos cultivados no mês de
janeiro são colhidos no mês de agosto, os plantados no mês de março são colhidos em
junho e os plantados no mês de maio, colhidos em agosto. Essa dinâmica de plantar,
cultivar e colher faz parte de um ciclo que é constante para os integrantes dos grupos
domésticos.
Além do regime do clima, os Potiguara que pescam – grande parte deles –
também se orientam pelos ciclos da maré. Para qualquer tipo de pesca é preciso saber o
movimento das marés; nesse sentido, a percepção que os pescadores possuem das
regularidades cíclicas das marés se torna crucial para o sucesso das pescarias.
Os ciclos da maré são os fatores ecológicos mais importantes, por influenciarem
o modo de vida dos animais e o modo em que se definir as técnicas de pesca. Sofrem
influência direta dos ciclos lunares; quando a lua está na fase crescente, a maré vem
“lançando”, ou seja, começa a crescer, até ficar “maré cheia”. Quando a lua entra na
fase minguante, ela começa a voltar à “maré de quebramento”, até chegar à “maré
morta”. O Senhor Zé Boto11, antigo pescador da região, afirmou que a maré “trabalha”
pela lua, relatando que existe a “maré de quarto minguante” e a “maré de lua cheia”:

Pronto, a quarto minguante vai ser a maré pequena, ela não bota tanta
água, porque é quarto minguante, né? Agora, quando for na outra, lua
cheia, ele esbranja12 mesmo do dia para noite, hoje ela tá seca aqui, quando
for amanhã ele vai embora... porque a maré é grande (Seu Zé Boto.
Entrevista concedida em julho de 2013).

9
Solo arenoso.
10
Solo alagável.
11
Seu Zé Boto, antigo pescador, nasceu em Jaraguá e casou-se com Fátima, tiveram oito filhos, sendo que
três deles vivem na aldeia e os outros cinco estão na região Sudeste. Dona Fátima e seu Zé Boto são o
eixo de apoio da household, entre outras coisas pelo fato de poderem assumir os cuidados de seis netos
enquanto os pais trabalham na região Sudeste. A cooperação entre os membros se volta também ao
preparo dos alimentos, cuidado com os animais e cuidado com os roçados. Os netos mais velhos auxiliam
os avós no corte de capim para as cabras, coleta de madeira para fazer o carvão, além de levar e trazer os
animais das pastagens para os currais.
12
Em grande quantidade.

14
Assim, durante o dia são observadas, principalmente pelos pescadores, as fases
da maré, denominadas: “cheia”, quando em seu ponto máximo de altura; “vazante”, em
processo de diminuição; “vazia”, quando no ponto máximo de seca; e “enchente”, em
processo de crescimento. O movimento das marés corresponde a dois processos. O
primeiro deles e mais longo, se refere às alternâncias cíclicas semanais, enquanto o
segundo se refere ás alternâncias num período de um dia e noite. No período de “maré
grande”, o volume de água é aumentado e diminuído em toda a sua capacidade. Em
períodos de “maré morta”, não há muita variação, a maré não enche e nem vaza toda,
não alagando completamente o mangue.
Os indivíduos percebem a variação das marés ao longo de um ciclo mensal e
diário, compreendendo que esta variação se dá em relação à força da lua. As luas são
denominadas de nova, crescente, cheia e minguante. Estas fases da lua estão associadas
aos fenômenos cíclicos mensais da maré, denominados de “maré grande” quando a lua é
nova ou cheia; e “maré morta” quando a lua está na fase crescente ou minguante.
O mangue é um ambiente de grande potencial econômico para os indígenas.
Viver do mangue/maré significa estabelecer comportamentos e rotinas diárias
entrelaçadas neste ambiente. O mangue é um “meio de vida”, é o ambiente no qual se
realiza a principal atividade produtiva local: a coleta de peixes, crustáceos e moluscos,
sendo o espaço do qual uma boa parcela dos moradores da aldeia depende para gerar
recursos. Os pescadores e pescadoras possuem um conhecimento muito apurado sobre o
mangue, por essa razão são capazes de localizar os animais aquáticos e desenvolver
técnicas eficientes para capturá-los. Realizam as atividades individualmente ou em
parceria, geralmente com um parente próximo, como pai e filho, ou irmãos. A produção
é dividida em partes iguais. Parte dos pescados é consumida e/ ou doada entre os
parentes e vizinhos com quem se tem relações, e a outra é vendida na própria aldeia, ou
na feira local quando a produção é maior.
Mesmo aqueles indivíduos (homens) que trabalham para as usinas canavieiras no
corte da cana de açúcar cessam o trabalho quando termina o período de moagem,
recorrendo então ao mangue. O trabalho nas usinas é sazonal, pois ocorre em algumas
épocas do ano; geralmente começa em julho e se estende até final de março, com isso as
pessoas ficam os meses de abril, Maio e Junho sem trabalhar nas usinas. Neste período,
se dedicam à pesca e à coleta de crustáceos, ou a empregos informais para obterem
recursos. No caso das mulheres, muitas são catadoras de ostras também no mangue.
No entanto, é preciso ressaltar que as atividades realizadas nesse ambiente não
são movidas por fins unicamente comerciais. Como indicado, os animais provenientes
da pesca e da coleta não são apenas vendidos, eles também podem ser doados a
vizinhos, amigos e a parentes, estabelecendo ou consolidando redes de reciprocidade.
Nesse sentido, a pesca se configura, acima de tudo, como um modo de existência
caracterizado por ricas e complexas relações entre as pessoas e o meio aquático. Nesse
emaranhado ocorrem os processos de produção e transação de conhecimentos e a
organização espacial das atividades técnicas.
As principais espécies vegetais encontradas no mangue são o mangue “manso”
(Laguncularia racemosa), que serve principalmente para fazer o fogo. Esse mangue
possui os troncos mais escuros e as raízes são menores. O “mangue sapateiro”
(Rhizophora mangle) é aquele que possui as raízes mais altas; é usado principalmente
para cobrir as habitações, por ser resistente. Ainda com o mangue “sapateiro” se fazem
caibros, ripas e varas. As madeiras coletadas também servem para a confecção de
habitações para galinhas, bovinos e caprinos. O mangue “canoé” (Avicennia germinans)
são árvores de grande porte; suas raízes são profundas e por essa razão dificilmente eles

15
cedem; o “canoé” se localiza principalmente em áreas do mangue onde a lama se
mistura com areia (Araújo, 2015: 35).

Mangue “manso” Mangue “sapateiro”

Mangue “canoé”. Fotos da autora, 2013.

O mangue é constituído por “lugares” ou “setores”, designados de acordo com


suas características físicas. Há o “mangue mandioca mole”, o “mangue pé cortado”, o
“mangue monte caído”, entre outros, que os pescadores nomeiam para facilitar o
trabalho e localização. Nesses lugares, os pescadores criam espaços exclusivos em áreas
de uso comum, nomeando-as e muitas vezes delimitando-as através de marcadores
espaciais, constituídos por fitas recortadas de sacolas plásticas amarradas em varas e
fincadas na lama do mangue. Tais marcações indicam para outros pescadores que essa
área está temporariamente ocupada, sendo necessário procurar outro local. Portanto,
existe uma alternância de uso dessas áreas denominadas pelos pescadores de “setores.
De acordo com Silvinha, não é indicado pescar duas vezes no mesmo “setor”:

Vamos supor que a gente tirou uma rede nesse setor, só daqui a um mês que
a gente coloca naquele mesmo setor, por causa do pisunhando (pisado na
lama), né? Que levanta o mal cheiro, aí se com quinze dias você for lá de
novo aí fica o pisunhando, aí o peixe cisma, né? Aí só daqui a um mês por
causa do pisunhado que o peixe conhece, cada punho de rede eu dou quatro
voltas nele, pisa muito na lama, sobe aquele cheiro de azedo (Silvinha.
Entrevista concedida em Dezembro de 2016).

No relato de Silvinha, os peixes se comunicam; eles “cismam” com o


“pisunhado” de outros seres e se afastam. Portanto, os peixes agem, em interação com
os pescadores. Essa percepção se constitui a partir do fato do indivíduo estar inserido
16
em um ambiente em que se relaciona com os demais seres. Parafraseando Ingold
(2012), as relações estabelecidas são fundadas na adaptação das habilidades cognitivas
ao ambiente, ou seja, o mundo só é experimentado com e ao redor dele, o que se liga às
capacidades de agir, pensar e estabelecer relações entre si e com o mundo do qual faz
parte. Tal dinâmica conforma os conhecimentos baseados nas experiências de Silvinha,
por exemplo, e o reconhecimento de que semelhantemente aos homens, os seres
marinhos são sujeitos dotados de ação.
Outro fato que se liga ao mesmo tipo de conhecimento que correspondem às
experiências de Silvinha no mangue é sua habilidade de enxergar no escuro:

Quando comecei a pescar não podia olhar pro lado que era tudo pardo
(escuro), a gente andando no pardo muito tempo os olhos da gente fica mais
adaptado. Hoje consigo enxergar as coisas que antes não conseguia
(Silvinha. Entrevista concedida em dezembro de 2016).

Essa habilidade foi adquirida com o tempo, na interação no ambiente e pode


melhor ser explicada por aquilo proposto por Ingold que é reconhecer que há uma
sinergia dinâmica entre o organismo e o ambiente. De acordo com Ingold (2002), os
seres humanos – em sua interação com o mundo – não estão presos em seus corpos, mas
emaranhados em um sistema organismo-ambiente. Já Cordell (1974), referindo-se
especificamente a atividades pesqueiras, afirma que estas funcionam como um sistema
homem-ambiente. Nessa conexão, o processo adaptativo durante a pesca proporciona
um conhecimento intrincado de como localizar peixes.

As far as locating fish is concerned, there is a tendency on the part of


economists to discount im- portant intuitive aspects of environmental
decision-making; the assumption is that fish must be sought blindly (Christy
and Scott I965: 88). In general, there is little appreciation of how, and to
what extent, fishermen make use of environmental clues to predict the
behavior and movement of different species. It would be quite misleading to
assume that canoe fishermen face a kind of "separate" reality when they are
dealing with their fishing environment. On the contrary, fishermen do
consistently know where the fish are, and it is this widely shared knowledge,
not simply the fact that they are using a common property resource (Cordell
1974: p.379).

Ainda no tocante aos lugares do mangue, tem-se as “camboas” que são os


caminhos que permitem a passagem de canoas e também servem como área de pesca.
Os pescadores costumam dizer que trabalham uma “camboa”. Também é possível
pescar nas chamadas “croas”, áreas do mangue onde há uma concentração de areia e
que servem como áreas de pesca.
Existe uma mudança temporal na visão sobre o mangue. Os moradores mais
antigos contam que o mangue era muito diferente do que é hoje em dia, havia muita
fartura. Atribuem a diminuição dos pescados ao desmatamento e assoreamento dos rios
provenientes da monocultura da cana. Antigamente se tinha mais pescados; entretanto,
dizem, hoje em dia o lucro da venda é maior. O mangue antes era próximo, o que
facilitava o trabalho dos pescadores. Hoje o mangue é distante:

17
O mangue tá se acabando por conta do desmatamento (...) A areia desceu
aterrou o rio, aquele buraco do padre 13que falam, aquela areia todinha
desce pro mangue nas chuvas (...) Essa parte aqui de cima, era tudo mata, a
usina desmatou pra plantar cana, aí amoleceu a areia, como que lá é alto e
aqui é baixo, claro que vai vim tudo pra cá! Aí desmatou, aí cá onde a gente
pegava o camarão preto, aí pronto, aterrou tudo, não tem mais (Silvinha.
Entrevista concedida em dezembro de 2016).

Entre as principais técnicas de pesca destaca-se a “rede de tomada” (também


conhecida como “rede de espera”). Está ligada diretamente ao ritmo das marés, uma vez
que é armada quando a maré está “vazante”. Quando a maré está “de enchente”,
levanta-se a rede, fazendo uma barreira na saída da “camboa”. E se “despesca” (colhe)
na maré “vazante”. Inicialmente espraiam-se as varas no solo por todo o perímetro onde
serão presas as redes com a “gaita” 14. Silvinha, por exemplo, arma 300 metros de redes
em sequência presas uma na outra, cercando toda a “camboa”. Os peixes entram na
camboa na medida em que a maré vai secando; quando a maré enche se levanta a rede, e
em seguida se colhe os peixes:

No quebramento domingo de meio dia lá pra doze horas nós estamos


chegando com peixe, aí no sábado as 3 horas bota ela, aí volta pra casa aí
quando for 10 horas eu desço pra levantar ela, despesca no domingo de
manhã. Lançamento a gente não gosta bem de trabalhar não, porque a
gente ocupa dois dias e quebramento não com três dias você faz duas maré,
porque você trabalha hoje ai colhe a noite ai no outro dia você já trabalha
pra colher no outro dia. (Silvinha. Entrevista realizada em Março de 2017).

Parafraseando Cordell (op.cit), pode-se dizer que os pescadores se importam com


detalhes minuciosos, decorrentes de como as marés condicionam a escolha de uso de
determinadas técnicas, mas também do entendimento de como uma ida ao mangue deve
ser planejada. Os termos da posição da lua, juntamente com as observações das fases,
indicam se a pesca é viável ou não. Além disso, os pescadores devem saber que
sequência específica de mudanças de maré ocorrerá durante a parte do dia que reservam
para uma pescaria. É este aspecto do conhecimento da maré que mais parece ajudar os
pescadores a realizar grandes capturas.
Os peixes mais comuns encontrados no mangue são: “Tainha” (Mugil
brasiliensis), “Carapeba” (Eucinostomus gula), “Camurim” (Centropomus undecimalis),
“Bagre” (Siluriformes), “Vermelho” (Carassius auratus) e “Curimã” (Mugil cephalus),
classificados da seguinte forma:

Peixe boieiro Peixe de fundo


Tainha Amoré
Curimã Mero
Vermelho Bagre
Camurim
Carapeba
Classificação dos peixes conforme localização na água. Quadro elaborado pela autora.

13
Um fosso alongado e fundo, produzido por erosão, em Jaraguá.
14
Planta encontrada no mangue de nome “salambaia”. Seus talos são utilizados para prender as redes.
Depois de retirados são chamados de “gaitas”.

18
Há também a pesca feita com rede de “tarrafa”, em que o pescador a arremessa
no perímetro onde sabe que tem peixes, de tal maneira que a malha abra-se o máximo
possível antes de cair na água. Em seguida se puxa a mesma para capturar os peixes que
ali tenham se enroscado.
A cata da ostra (Crassostrea rhizophorae) também é muito importante na
alimentação e na geração de renda entre os Potiguara. Esse molusco fica preso nas
raízes do mangue e o pescador mergulha para retirar as cachadas com um facão. Além
do mergulho é possível coletar as ostras quando a maré está seca, não sendo necessário
mergulhar. Há também quem cultive a ostra (ostreicultura). A técnica de cultivo envolve
o uso de “gaiolas” (cestos de rede) presas em troncos que são fixados no solo do
mangue.
O caranguejo “uçá” (Ucides cordatus) (ou “sal”, como comumente é chamado)
assim como o “goiamum” (Cardisoma guanhumi) são capturados no mangue durante o
ano todo. No entanto, na época de “andada” (janeiro, fevereiro e março) período
reprodutivo em que os caranguejos machos e fêmeas saem de suas tocas para o
acasalamento e andam pelo manguezal, a frequência deles é maior, em razão justamente
da saída para a reprodução (principalmente do caranguejo uçá).
Os “caranguejeiros” 15enfiam a mão nas tocas, procurando as raízes. Eles sabem
que o caranguejo geralmente se posiciona aí, de lado, e assim vão o apalpando até
encontrar suas costas, puxando-os pelas patas traseiras. O caranguejo quando está na
toca tem seus movimentos comprometidos, o que torna mais difícil a sua defesa.
Também existe a técnica do “tampado” que consiste em tampar com lama a toca
do caranguejo. Depois de algum tempo, os crustáceos começam a subir e a pessoa pode
colocar o braço e puxá-lo:

Desce aquela lama lá pra baixo, aí tampa, pisa no buraco, aí ele fica sem
fôlego, aí vem furando a lama quando chega em cima é a hora que você vai
arrancando o caranguejo, o braço vai buscar ele. Mas na maré grande bota
a redinha, na maré morta que enxuga o mangue que se usa o tampado
(Silvinha. Entrevista concedida em dezembro de 2016).

Entre as armadilhas utilizadas tem-se a “redinha”, que é proibida pelo IBAMA,


pois causa impacto à população de caranguejos. A técnica funciona da seguinte forma:
coloca-se uma pequena rede descartável na toca do caranguejo que, ao sair, prende-se a
ela. Depois da captura, os fragmentos da rede utilizada geralmente são abandonados no
local, proporcionando além de poluição, riscos para outros caranguejos que acabam nele
se enredando. Silvinha ao falar sobre essa técnica se mostrou avesso ao seu uso,
justamente em razão da poluição do mangue. Ele afirma que cada vez que encontra
resíduos de redinhas as incinera, se utilizando da braça do fogão a lenha (denominado
de “boca de fogo”), presente em sua canoa. Já para capturar o caranguejo goiamum,
que é o mais apreciado, e que tem maior valor comercial, se usa a “ratoeira”, armadilha
já descrita no item anterior.
Sempre tomando Silvinha como um interlocutor privilegiado, notei uma
derradeira temporalidade (com ciclicidade semanal) soma-se às já descritas. Trata-se do
ciclo semanal de atividades de Silvinha. Minha intenção é mostrar como ele se organiza
e lida com o tempo e com suas atividades que estão ligadas a diversos aspectos de

15
Os que se autodenominam catadores, com conhecimento de pegar caranguejos (v. @@@ 2017)

19
mobilidade e competências específicas. Apresentarei logo abaixo um quadro16, com os
dias da semana e as respectivas tarefas realizadas. A utilização dessa ferramenta passa
pela análise de dados empíricos, não empregados de maneira rígida; os processos
descritos são dinâmicos. Os movimentos e fluxos refletem bem os aspectos da vida
cotidiana e da organização das tarefas.
A forma peculiar como Silvinha organiza seu tempo e suas atividades,
esquematicamente expostas, é fundamental para compreender não apenas os itinerários,
mas também a organização do trabalho, que é influenciada pela ecologia, já que a
maioria das atividades são realizadas em diversos ambientes. Nesse entender, as
atividades descritas no quadro são definidas por um conjunto de tempos, que incluem
limites, contingências e escalas, que se ligam a habilidades técnicas específicas. Esse
processo de diversificação das atividades desenvolvidas é o que permite o acesso a
conhecimentos também diversificados que justamente contribuem para a organização
dos grupos domésticos.
A realização das atividades descritas envolvem fundamentos de ordem material e
imaterial, onde figuram também elementos ecológicos, como o funcionamento das
marés e a estação do ano. A dimensão técnica que conduz a estas relações é aprimorada
por conhecimentos físicos e químicos, que se voltam às habilidades provenientes de
fluxos diversos, construídos a partir de uma gama de recursos experienciais.
As atividades descritas não são desenvolvidas de maneira estanque, pois estão
relacionadas a outras ações, em nível político, comercial e de trocas, que dependem de
alianças e constrangimentos físicos, políticos e administrativos, cuja articulação
desenhará um mapa de condições de acesso aos recursos, contribuindo para determinar
o repertório de possibilidades (Mura 2000) do grupo doméstico, assim como os
itinerários de atividades a serem percorridos por seus integrantes.
Há que se considerar que estas atividades se articulam entre si e definindo
ciclos. Por exemplo, quando a maré não é propícia para a pesca, Silvinha cuida do
gado17 de seu grupo doméstico. Esses animais ficam presos em lugares cercados no
quintal das casas. No entanto, todos os dias os bovinos são soltos e levados para os
pastos (v. fotos). Além disso, o esterco bovino é utilizado como adubo para o plantio
das hortaliças do grupo doméstico de Silvinha. Essas atividades dependem dos raios de
atuação, das idas e vindas de Silvinha ao mangue e aos pastos, dos pescados obtidos e
escoados no consumo e na venda. Esses fluxos produzem processos de dominialização
que contemplam diferentes estratégias de relacionamento e interação entre as pessoas e
os elementos dos ambientes. Para ir ao mangue eu preciso atravessar espaços que não
são do meu uso exclusivo, atravessar os quintais de meus vizinhos e conhecidos. Para
isso ocorrer, é preciso ter boas relações com os donos desses espaços, caso contrário
deverei construir outros itinerários. Nas matas e no mangue é também necessário
agradar os seres donos 18desses lugares. Estas estratégias de construção de boas

16
Se faz necessário destacar que as atividades descritas nos quadros não devem ser vistas de maneira
estanque pois correspondem a organização social do trabalho que envolvem diversos membros dos grupos
domésticos pesquisados.
17
O gado funciona como uma espécie de poupança. Quando o grupo doméstico enfrenta alguma crise
financeira, seus integrantes costumam vender alguma cabeça de gado.
18
A “Comadre Florzinha” é a dona da mata e o “Pai do Mangue”, dono do mangue. Existe uma relação
de respeito, gratidão e medo com esses seres. A dimensão moral que conduz essa relação é aprimorada
pelos castigos e punições físicas aplicadas pelo “Pai do Mangue” e pela “Comadre Flozinha”, a que estão
sujeitos aqueles que não cumprem com exigências demandadas por eles, que vão desde o respeito à caça,
a pesca e a coleta, até o feitio de oferendas, a exemplo de cachaça, fumo e mel. Desta maneira, é
importante manter uma relação de proximidade e troca com esses seres, o que demanda afinidade e
respeito para garantir boas pescarias, caças e a proteção para não se perder no mangue e na mata.

20
relações, centradas em obrigações morais e em experiências práticas, permitem
justamente ampliar o controle sobre os espaços que se pretendem utilizar. Ocorre,
contudo, que estas relações devem ser sempre renovadas ou confirmadas,
principalmente quando em decorrência de acidentes ou desentendimentos, os
constrangimentos e conflitos consequentes podem ameaçar o acesso aos espaços e
recursos desejado. Um exemplo disso pode ser o ocorrido com Silvinha, o qual teve
uma vez seu gado invadindo o roçado no sítio do seu cunhado, lhe causando uma serie
de danos, o que gerou um conflito interno a esse grupo doméstico. As consequências
desse descuido foi o impedimento de Silvinha acessar os espaços do domínio de seu
cunhado, alterando os itinerários, sua mobilidade e os ritmos de suas atividades,
principalmente no manejo do gado.
A dimensão rítmica resulta também no desenvolvimento e no uso de técnicas.
Esta integração traduz-se de diferentes formas, mas particularmente a nível de uma
percepção do indivíduo no espaço, nos seus movimentos produzidos por suas práticas, a
exemplo das idas aos roçados, ao mangue, aos pastos, entre outros ambientes. De
acordo com Leroi-Gourhan...

“...a percepção do mundo circundante faz-se através de duas vias, uma dinâmica,
que consiste em percorrer o espaço tomando assim consciência dele, e a outra estática,
que permite, na imobilidade, reconstituir a nossa volta sucessivos círculos que se
esbatem progressivamente até os limites do desconhecido” (1965, p. 134).

Portanto, podemos dizer que os deslocamentos produzidos pelos indivíduos


permitem que as atividades sejam desenvolvidas, através de estratégias individuais e
coletivas, direcionadas a configurar calendários, itinerários e ritmos a fim de criar um
meio tecnicamente eficaz.

Nessa mesma perspectiva, Mura e Barbosa da Silva (2018, p.12), analisam os


deslocamentos produzidos pelas práticas do jeheka (“ir à procura de”) entre os Guarani
Kaiowa,

The very mode of movement and use of space derived from the jeheka
experience, through oguata (wandering) – which, as we have seen,
encounters its cosmological sublimation in the time-space of origins, in the
formation of tracks by the gods – occurs by strongly valuing centres of
irradiation, with the Earth itself having developed from a disk, which later
became the Earth’s own navel. In this context, therefore, we speak of a
modality of construction of territories from centres of wandering irradiation.
In other words, the Kaiowa people construct spaces of use and occupation
through an “irradiated itineration”. In fact, jeheka activities and those
arising and/or correlated with them have an axis, that is, the point of
departure and arrival, in the residential spaces of the various Kaiowa
households.

Isso explica os ritmos em seus diversos centros de irradiação e itinerância,


conferindo a abrangência de atuação espacial dos Kaiowa. Essa dinâmica dos ritmos
também é conformada nas práticas experienciais dos Potiguara, a nível de uma
percepção do seu território, através de movimentos o acessam e o transformam no ritmo
das atividades, na dinâmica das marés e das estações do ano.
Também se destaca o fato de os integrantes de uma unidade doméstica se
dedicarem a desenvolver vários tipos de atividades, sendo a concatenação temporal das

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práticas diversificada e complexa. Nestes termos, tanto o calendário derivante dos
tempos burocráticos do Estado brasileiro, quanto aquele das atividades agrícolas e
pesqueiras, bem como o das usinas de açúcar e os determinados por regimes de marés,
fatores climáticos e sazonais, funcionam para os Potiguara da aldeia Jaraguá como pano
de fundo a partir do qual constroem temporalidades, que estabelecem uma alternância
das atividades e da mobilidade que delas derivam, o que marca espacialidades
contextuais. Estes ciclos orientam a vida e rotinas das pessoas e são o resultado das
experiências práticas e tomadas de decisão que permitem a articulação de diferentes
atividades, garantindo a reprodução dos grupos domésticos ao longo do tempo e no
espaço.

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SILVINHA DOMINGO SEGUNDA TERÇA QUARTA QUINTA SEXTA SÁBADO
1hora, 4 horas, retorno (Maré morta). Às (Maré morta) (Maré morta) (Maré morta) (Maré de
“despesca”, se para casa. Pausa 6horas leva o gado Às 9horas, reparo Às 8 horas, corta Saída às 8horas, quebramento)
banha e espera a para descanso. Às para pastar. das redes (remendo). capim para o coleta do mangue Saída às 13horas
maré subir para o 8horas, limpa e Tarde: ida ao gado. “manso” para chegada às 14
retorno. Chega às descama os peixes Às 14 horas traz o mangue para a coleta Às 16horas, fazer a carvoeira horas, arma a rede
4horas em casa, juntamente com a gado do cercado das “gaitas”, que limpeza da horta e de uns caibros e volta para casa.
descansa e às 9 esposa, filho e para o quintal. servem para prender (retirada do para confeccionar Saída às 18 horas
horas vai até o sogra. a rede na lama do mato). um galinheiro. para levantar a
mangue armar a Tarde: ida à casa mangue. rede. Às 22 hrs
rede. do irmão Zé Boto. “despesca” e arma
a rede novamente.

Calendário semanal de atividades realizadas por Silvinha. Elaborado pela autora, 2017.

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Nível de abrangência espacial de algumas atividades realizadas por Silvinha na aldeia Jaraguá.
Elaboração da autora, a partir do programa Google Earth, 2017.

Gado preso no quintal. Gado solto no pasto. Fotos da autora, 2017.

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Considerações finais

Ao longo do presente trabalho foram colocadas em evidência concatenações e


transformações técnicas ocorridas em contextos sócio-ecológico-territoriais específicos.
Tais contextos são construídos através de relações e interações entre saberes, materiais e
fatores sociais e culturais, em ambientes específicos, o que permite aos grupos
domésticos potiguara realizar atividades diversas, através de estratégias individuais e
coletivas. Neste proceder, os indivíduos elaboram uma complexa associação de
materiais de origens diversas, como plástico, metal, borracha, fibras vegetais e animais,
entre outros, que são articulados conforme as necessidades geradas no interior dos
grupos domésticos a nível local, definindo temporalidades e movimentos de pessoas e
coisas. Dessa forma, tentou-se compreender como sistemas técnicos são gerados e
transformados a partir de múltiplas causas, buscando-se apreender a complexidade e a
importância que essas referidas transformações técnicas manifestam.
Deste quadro são resultantes experiências que são acumuladas a partir de
aprimoramentos de habilidades e orientações que se voltam ao que consideramos como
ecologia doméstica. Esta é entendida enquanto produto das atividades que os membros
dos grupos domésticos desenvolvem, explorando ambientes e definindo o controle sobre
espaços através de processos específicos de dominialização. Tais processos criam as
condições para o estabelecimento de itinerários, contemplando mobilidades e ritmos que
são motivados em termos de conhecimentos locais e de relações políticas, tecnicamente
necessárias para regular a acessibilidade e disponibilidade de materiais no território
Assim, a ecologia doméstica está em contínua transformação, produzindo complexidade
e heterogeneidade de ações técnicas através da longa experiência de realização da vida
constituída nos ambientes. Tais experiências mostram também como a formação de
competências e habilidades é dinâmica, permitindo apreender os conhecimentos
tradicionais locais não como o resultado de uma simples herança de saberes do passado,
mas como uma modalidade específica, no presente, de acessar, organizar e concatenar
materiais diversificados, levando em consideração suas propriedades físicas, químicas e
técnicas e não a natureza de sua procedência.

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