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ARBITRAGEM NO DIREITO ROMANO:

Uma análise comparativa

Rodrigo Araujo Gabardo*

Resumo

A utilização da arbitragem como mecanismo de solução de controvérsias não é um fenômeno social


recente. Desde os assírios, em 2000 AC, até os dias atuais, a construção dos fundamentos da arbitragem
acompanhou a evolução da sociedade humana. Assim, o estudo da arbitragem moderna não é completo
sem uma análise da evolução histórica do instituto. Para tanto, o presente artigo apresenta uma
comparação entre as características da arbitragem utilizada no direito romano e os fundamentos
modernos da arbitragem. São analisadas questões como a origem e limitação dos poderes do árbitro e
os efeitos da convenção de arbitragem, às quais permitem concluir pela as bases da arbitragem
moderna, de certa, já podiam ser observadas na arbitragem privada romana.

Abstract

The use of arbitration as a dispute resolution mechanism is not a recent social phenomen. Since the
Assyrians, in 2000 BC, to the modern days, the basis of arbitration are being constructed side by side to
the evolution of human society. As a consequence, the study of modern arbitration cannot be
completed without the investigation of its historical evolution. Therefore, this article presents a brief
comparison between the arbitration used in Roman Law and the modern arbitration. The source of
arbitrators powers, its limitations, as well as the effects of the choice of arbitration were subject to an
investigation, which allows to conclude that the basis of modern arbitration can be found, in a such
manner, in the private roman arbitration.

A arbitragem1 pode ser definida atualmente como o mecanismo de solução de


controvérsias no qual as partes convém submeter certos litígios ao julgamento de
particulares, escolhidos, direta ou indiretamente, por estas2.

                                                                                                               
*
Advogado, sócio de Lee, Taube e Gabardo – Sociedade de Advogados.
1
Para Jarrosson, arbitragem pode ser conceituada como “l’institution par laquelle un tiers, règle le
différend que oppose deux ou plusieurs parties, en exerçant la mission juridictionnelle qui lui a été
confiée par celles-ci”. JARROSSON, Charles. La notion d´arbitrage. LGDJ: Paris, 1987.
2
Fouchard, Gaillard e Goldman apresentam como conceito clássico de arbitragem em direito francês:
“Arbitration is a device whereby the settlement of a question, which is of interest for two or more
persons, is entrusted to one or more other persons–the arbitrator or arbitrators–who derive their powers
from a private agreement, not from the authorities of a State, and who are to proceed and decide the
case on the basis of such an agreement”. GAILLARD, Emmanuel e SAVAGE, John. Fouchard
Gaillard Goldman on International Commercial Arbitration. Kluwer Law International: Paris,
1999. p. 9.

  1  
Sendo utilizada como mecanismo de solução de controvérsias de direito
público ou privado, é considerada uma ferramenta fundamental para a aplicação do
Direito no mundo moderno. No entanto, a arbitragem não é um instituto recente,
confundindo-se com a própria história da humanidade3.

A partir do momento em que as civilizações avançaram nas soluções pacíficas


de solução de controvérsias, em especial a negociação, houve uma tendência natural
para a utilização da arbitragem4. Testemunhos mais antigos da utilização rudimentar
da arbitragem datam de aproximadamente 2.000 A.C, quando as leis assírias
permitiam que “magistrados domésticos” aplicassem penas em litígios privados5.
Posteriormente, na Arábia pré-islâmica, ter-se-ia a utilização de procedimento arbitral
elaborado, bem como se verificam citações à arbitragem no Alcorão e no Antigo
Testamento6.

Fato é que a antiguidade da arbitragem impossibilita, para o momento, a


precisa identificação de sua origem7, trazendo discussões inclusive quanto à sua
anterioridade frente à jurisdição estatal8 e 9.

No Período Clássico, verificam-se sinais de arbitragem no direito grego do


século VIII A.C. Solon, à época, definiu arbitragem da seguinte forma: “se os
cidadãos desejarem escolher um árbitro para resolver as diferenças que serão
elencadas entre eles por seus interesses particulares, que eles peguem aquele que eles
desejem de comum acordo; que após o terem escolhido, que eles se detenham ao que

                                                                                                               
3
ZAPPALA, Francesco. Historic universalism of arbitration. Revista Vniversitas, n.121, jul./dez.
2010.p.193.
4
Afinal, diante de eventual incapacidade das partes em negociarem por si, é natural que as partes
busquem a presença de terceiro ou terceiros para a resolução do conflito. Estar-se-ia frente a
mediação/conciliação, quando o terceiro apenas auxilia as partes no processo de negociação; mas
também da arbitragem, quando o terceiro decide a lide a partir do seu convencimento.
5
CLAY, Thomas. L’Arbitre. Dalloz: Paris, 2001. p. 4.
6
CLAY, 2001. p. 2.
7
Thomas Clay afirma que ao fim do século XX, reconhece-se que a origem da arbitragem permanece
desconhecida. Idem, 2001. p. 2.
8
Nesse sentido, pode-se citar importante tese de François de Menthon intitulada “Le rôle de l’arbitrage
dans l’évolution judiciaire”. Paris, 1926.
9
Ver MAGDELAIN A. Aspects arbitraux de la justice civile archaïque à Rome, RIDA, n° 27, 1980. e
MONIER, R., Manuel élémentaire de droit romain. 6a. ed., Paris, 1954.

  2  
foi decidido; que eles não designem outro tribunal; que a decisão do árbitro seja
irrevogável”10.

Na Grécia, apesar de Aristóteles ter afirmado que é melhor “preferir uma


arbitragem que uma lide no tribunal; de fato o árbitro guarda a equidade, o juiz a
lei; e a arbitragem foi inventada exatamente por isso, para dar força à equidade”11,
fato é que não se pode estabelecer com clareza eventual distinção na intervenção do
árbitro e do juiz pela aplicação da equidade ou da lei12. Cumpre lembrar que
equidade, para Aristóteles13, não se assemelha ao seu entendimento moderno. A
epieikeia14 grega não era oposta à aplicação da lei, na verdade tinha por função
permitir ao julgador um certo desprendimento na aplicação restritiva das regras e
princípios jurídicos em favor da implementação da justiça distributiva no caso
concreto. No entanto, teria sido em Roma que a arbitragem atingiu sua completude15,
ao ponto do ilustre arbitralista francês Thomas Clay afirmar que “após o Digesto de
Justiniano, todo o direito da arbitragem não foi mais que reditos”.

Desta forma, objetiva-se com este artigo, revisitar os diversos períodos do


processo civil romano até a entrada em vigor Corpus Iuris Civilis, para identificar a
aplicação da arbitragem, realizando rápida comparação com a visão atual do instituto.

A análise da utilização da arbitragem no Direito Romano deve ser realizada de


forma a considerar os três grandes períodos do processo civil romano: o da legis
actiones, o do processo formulário (per formulas) e o do processo extraordinário
(extraordinaria cognitio)16.

                                                                                                               
10
Tradução Livre de “si les citoyens veulent choisir un arbitre pour terminer les différends qui seront
élevés entre eux pour leurs intérêts particuliers, qu’ils prennent celui qu’ils voudront d’un commun
accord; qu’après l’avoir pris, ils s’en tiennent à ce qu’il aura décidé; qu’ils n’aillent point à un autre
tribunal; que la sentence de l’arbitre soit un arrêt irrévocable.” CLAY, op. cit., 2001. p. 5.
11
ARISTÓTELES. Retórica.
12
CLAY, op. cit., 2001. p. 7.
13
Ver BEEVER, A. Aristotle on equity, law and justice. Legal Theory. 2004, 10 (1). p. 33-50.
14
“L’epieikeia aristotelica è bensì giustizia, ma non secondo la legge, bensì è correzione e supplemento
della giustizia legale, giacché “questa è appunto la natureza dell’equo, di integrare la legge, là dove
essa é insufficiente a causa del suo esprimersi in termini generali”. (BROGGINI, 1975, p. 18-19).
15
Thomas Clay posiciona-se no sentido de que “(...) après le Digeste de Justinien tout le droit de
l’arbitrage ne sera plus que redites”. CLAY, 2001. p. 7.
16
CRUZ e TUCCI e AZEVEDO destacam que apesar de ser possível a identificação precisa destes três
diferentes períodos, fato que não se pode precisar exatamente quando e em que medida ocorreram as
transições entre os períodos. Ver CRUZ e TUCCI, José Rogério e AZEVEDO, Luiz Carlos. Lições de
História do Processo Civil Romano. 1a. Ed. RT:São Paulo, 2001, p. 39 e 40.

  3  
Como característico das civilizações antigas, os romanos primitivos
depositavam no misticismo religioso a solução para suas controvérsias sociais, sendo
esta uma atividade exclusiva do rex, chefe supremo e vitalício, que detinha os poderes
religiosos, militares e civis para julgar.

O incremento do número de litígios e de suas diferentes complexidades, fez


com que houvesse uma laicização da justiça pelas sucessivas monarquias romanas. A
justiça privada foi então delegada pelos soberanos aos novos órgãos do poder romano,
os magistrados.

O primeiro grande período do processo civil romano, das ações da lei (legis
actiones), teve origem anterior à Lei das XII Tábuas. Seriam instrumentos processuais
exclusivos dos cidadãos romanos, visando a tutela de seus direitos subjetivos. Para os
romanos, a concepção moderna de separação entre direito material e processual
inexistia, a actio seria um direito de persecução daquilo que lhe é devido (ius) através
de um processo (iudictio) bipartido entre in iure e apud iudicem.

A fase in iure iniciava com a citação do réu (in ius vocatio), sendo mandatária
sua presença perante o magistrado (pretor) em lugar público para o prosseguimento
do feito. Ao magistrado, após escutar os argumentos das partes, cabia organizar e
estabelecer os termos da lide (litis contestatio), bem como nomear um iudex ou um
arbiter para decidir a lide.

O iudex ou o arbiter eram cidadãos romanos sem qualquer vinculação


hierárquica com o magistrado e que agiam no processo como forma de exercício
cívico. Sua atuação ocorria na fase apud iudicem, aonde escutavam a peroratio
apresentadas pelas partes e seus meios de prova, para então proferir a sententia.

Cruz e Tucci e Azevedo, ao descrever a legis actio per iudicis arbitrive


postulationem, apresentam uma inicial diferenciação entre o arbiter e o iudex. Ao
iudex cabia exclusivamente a aplicação das normas jurídicas, já ao arbiter cabia a

  4  
medição e avaliação de patrimônio nos assuntos relativos a bens hereditários (actio
familiae erciscundae)17.

Analisando-se a grosso modo, em especial o fato de uma terceira pessoa,


dissociada do poder “estatal”, ser revestida de poderes para julgar litígios privados,
poder-se-ia identificar uma semelhança entre o processo das ações da lei e o conceito
de arbitragem moderno. Esta semelhança seria mais acentuada em dois tipos de ações
da lei: legis actiones sacramentum e legis actiones iudicis arbitrive postulatio.

Cruz e Tucci e Azevedo comentam que parte da doutrina romanista18 entende


que a bipartição procedimental identificada na legis actiones teria se fundado numa
ideia arcaica de arbitragem usada em épocas primitivas da civilização romana. Em
especial, os referidos autores citam passagem de André Giffard (1932) que aduz
“l’institution du juré n’est qu’une survivance ou la réapparition d’anciennes
coutumes d’arbitrage”19.

Nesse sentido, é comum encontrar na Doutrina uma referência ao arbiter e ao


iudex, como árbitros do período romano.

Émilie Benveniste entende que o conceito moderno de “árbitro” aproxima-se


daquele de “iudex”. Segundo este autor, os textos romanos demonstram que não é
dentro do conceito clássico de testemunha que se deve conceituar “árbitro”, mas sim
daquele que vai julgar “librement et souverainement du fait, hors de tout précédent et
en fonction des circonstances”20.

                                                                                                               
17
CRUZ e TUCCI e AZEVEDO, 2001, p. 67.
18
Cruz e Tucci e Azevedo elencam diversos doutrinadores aderentes a este entendimento corrente,
como: H.J. Wolff em “The origin of judicial litigation among greeks” (Traditio, 4/32 (1946), E. Costa
em “Profilo”, G. Buigues em “La solución amistosa de los conflictos en derecho romano: el “arbiter ex
compromisso” (Madrid, s/ed., 1990), H. F. Jolowicz em “Procedure in iure and apud iudicem, a
suggestion” (Atti del Congresso Internazionale di Diritto Romano, v.2, Pavia, Fusi, 1935, 57:81), M.
Horvat em “Deux phases du procès romain” (Droit de l’antiquité et sociologie juridique – Melanges H.
Lévy-Bruhl, Paris, Sirey, 1959). Idem, 2001, p. 65 e 67.
19
André Giffard (Études de droit romain, Paris, Cujas, 1932). In: CRUZ e TUCCI e AZEVEDO,
2001, p. 66.
20
BENEVISTE, Émilie. Le vocabulaire des institutions indo-européennes. Les éditions de Minuit,
1969.

  5  
Mark Godfrey, ao referir-se à utilização da arbitragem na Roma Antiga, afirma
que nos períodos da legis actio e do processo formulário havia uma pequena distinção
entre o iudex e o arbiter21, mas que ambos agiam privativamente mediante
autorização do magistrado. Buckland concorda ao sustentar que “não existe diferença
fundamental entre arbiter e iudex”22. Da mesma forma, ao relacionarem arbiter com
árbitro, Cruz e Tucci e Azevedo alegam que com o passar do tempo arbiter também
era designado pelo termo iudex23.

Com relação à diferença entre iudex e arbiter, Derek Roebuck apresenta


importante esclarecimento: “Os romanos por vezes distinguiam o iudex de arbiter
tanto quanto usavam as palavras de forma intercambiável. Fertus, o lexicográfico,
escrevendo em 200 D.C., definiu: ‘Um iudex que tenha arbitrariedade e controle
sobre todo o procedimento é chamado de arbiter’”24.

No entanto, se observado os fundamentos da arbitragem moderna, não se pode


afirmar que a legis actio seria uma arbitragem. Isto porque, primariamente, o poder do
“árbitro”, iudex ou arbiter, não advinha de uma convenção de vontade das partes
litigantes, mas sim de uma delegação feita pelo magistrado, este representante do
poder institucional da época25.

Que não se confunda a possibilidade de escolha da pessoa do iudex/arbiter,


como notadamente ocorria em Roma26, com a outorga voluntária do poder de
jurisdição advinda da atual convenção de arbitragem: “O iudex não era um

                                                                                                               
21
GODFREY, Mark. Arbitration in the Ius Commune and Scots Law. Roman Legal Tradition, Vol.
2, 2004. p. 122-135, 2004.
22
Buckland, Text-Book of Roman Law, 636. In: GODFREY, 2004, p. 122.
23
CRUZ e TUCCI e AZEVEDO, op. cit., 2001, p. 67.
24
“The Romans sometimes distinguished a judex from an arbiter but just as often used the words
interchangeably. Festus, the lexicographer, writing in the 2nd century AD, gave this definition: ‘A
judex who has the arbitration and control of the whole matter is called an arbiter’”. ROEBUCK, Derek.
Bricks Without Straw: Arbitration in Roman Britain. Revista Arbitration International, Volume 23,
n° 1, Kluwer Law International: Paris, 2007. p. 149.
25
Carmona, referindo ao trabalho de Alfredo Buzaid, afirma que não se vê praticamente nenhum
elemento característico no arbiter que possa ser utilizado para caracterizar o árbitro moderno.
(CARMONA, Carlos Alberto. A arbitragem no processo civil brasileiro. São Paulo: Malheiros,
1993, p. 41).
26
Ver LOYNES DE FUMICHON, Bruno de e HUMBERT, Michel. L'Arbitrage à Rome. Revue de
l'Arbitrage, Volume 2003, n° 2, Comité Français de l'Arbitrage: Paris, 2003; e ROEBUCK, Derek,
2007.

  6  
mandatário das partes, mas um particular designado pelo pretor, um juiz nomeado ad
hoc para realizar uma missão cívica”27.

Tal circunstância ofende o princípio de que a arbitragem é um mecanismo


puramente convencional de solução de controvérsias.

Para Fouchard, Gaillard e Goldmann, não se discute o fato de que a base da


arbitragem seja contratual, sendo que “o poder do árbitro em resolver uma disputa é
fundado no comum acordo das partes litigantes”28. Tal fundamento inclusive consta
na própria conceituação de arbitragem de renomados doutrinadores29.

Arbitragem é o mecanismo pelo qual a resolução de uma lide, de interesse


de duas ou mais pessoas, é confiada a uma ou mais pessoas – o árbitro ou
os árbitros, que têm seus poderes advindos de um acordo privado, não de
autoridades de Estado, e que devem proceder e decidir o caso com base em
30
tal acordo .

Esta incompatibilidade pode ser ainda observada sob o prisma dos poderes do
árbitro e iudex/arbitre. Na legis actiones iudicis arbitrive postulatio e actio aquae
pluviae arcendae, o pretor, diante de uma demanda de facere em que havia a
necessidade de uma operação de avaliação e conversão, indicava um arbiter para
realizá-la. Seu papel comportava apenas um conjunto de operações econômico-
técnicas; não havia a função de condemnatio, mas simplesmente a definição de limites
do direito de fundo.

                                                                                                               
27
LOYNES DE FUMICHON e HUMBERT, 2003, p. 295.
28
“The fact that the basis of arbitration is contractual is not disputed: an arbitrator's power to resolve a
dispute is founded upon the common intention of the parties to that dispute”. Ver GAILLARD, e
SAVAGE, 1999, p. 28.
29
Geneviève Burdeau, ao analisar Convenções Internacionais que permitem o início unilateral de
arbitragem, afirma: “However, the resolution of a dispute by private judges without the parties' consent
is not arbitration”. BURDEAU, Geneviève. Nouvelles perspectives pour l'arbitrage dans le contentieux
économique intéressant les Etats. Revue de l’arbitrage, n° 3, Kluwer: Paris, 1995.
30
LEW, Julian M. et al. Arbitration as a Dispute Settlement Mechanism in Comparative
International Commercial Arbitration. Kluwer Law International: Paris, 2003, p. 1 apud David,
Arbitration in International Trade, 5.

  7  
Por sua vez, na arbitragem moderna, o poder dos árbitros, advindo do binômio
“parte x lei aplicável” 31, é de decidir a controvérsia; sendo este poder jurisdicional
característico de sua atribuição32.

Tais incompatibilidades são também verificadas na segunda fase do processo


civil romano, caracterizada pela vigência do processo formulário.

No processo formulário, consolidado pela lex aebutia e pela lex Julia, a


oralidade e o rigorismo formal das ações da lei foram substituídos por um
procedimento escrito e padronizado, o qual era caracterizado principalmente pela
elaboração da fórmula33. Manteve-se a bipartição processual e a indicação do iudex ou
eventualmente do colégio de recuperadores para promover o julgamento do litígio,
agora limitados pela litis contestatio contida na fórmula34.

Mesmo no período do processo formulário, o pretor – detentor do imperium –


detinha um papel fundamental no processo, pois nenhuma etapa do procedimento, de
sua abertura à execução, escapavam de sua intervenção. Entretanto, a despeito da
manutenção de tal incompatibilidade, não significa dizer que inexistia arbitragem na
Roma Antiga. Pelo contrário, segundo Bruno de Loynes de Fumichon e Michel
Humbert, os romanos teriam conhecido diferentes formas de arbitragem, com
características marcantes de antiguidade, diversidade e técnica35.

A arbitragem privada no período romano caracteriza-se pela aparição, em 200


A.C., do arbitrium ex compromisso. Contemporânea do processo formulário, difere-se
deste pela simplicidade e amplitude de atuação.

                                                                                                               
31
Cf. BLACKABY, Nigel, PARTASIDES, Constantine et al., Redfern and Hunter on International
Arbitration, Oxford University Press: Oxford, 2009. p. 314.
32
“Arbitrators are empowered by the parties to decide the parties' dispute. That judicial power is the
principal characteristic of their role and enables arbitration to be distinguished from superficially
similar concepts such as expert proceedings, conciliation and mediation”. GAILLARD e SAVAGE,
John, 1999. p. 559.
33
CRUZ e TUCCI e AZEVEDO, 2001, p. 67.
34
“O escopo primordial da litis contestatio seria, portanto, o de fixar o ponto ou pontos litigiosos da
questão, definindo os lindes da sentença a ser proferida pelo iudex e obrigando os litigantes a respeitá-
la”. Ver CRUZ e TUCCI e AZEVEDO, 2001, p. 100.
35
LOYNES DE FUMICHON e HUMBERT, 2003. p. 286.

  8  
A arbitragem ex compromisso regulava diretamente o litígio, sem a bipartição
do processo formulário, aplicando-lhe valores maiores que o direito, como a
equidade, humanidade e misericórdia36. O árbitro, se habilitado por um
compromissum plenum, possuía poderes para julgar qualquer litígio entre duas
pessoas e decidir por equidade. Guido Carducci afirma que o árbitro ex compromisso
é funcionalmente equivalente ao árbitro moderno e era já conhecido pelo direito
romano37.

Este compromissum plenum ocorria na forma de estipulações de penalidades


mútuas, caso a parte deixasse de cumprir o compromisso de valer-se da arbitragem
para dirimir a controvérsia. Interessante destacar que, como ocorre na atualidade, as
partes poderiam acordar no compromissum plenum o objeto da disputa, garantias
quanto a manobras processuais fraudulentas, local da arbitragem, caução e
possibilidade de sequestro. Todavia, por outro lado, o compromissum plenum não
significava a renúncia ao processo institucional formulário, inexistindo portanto o
princípio modernamente chamado de efeito negativo da convenção arbitral38.

Martin Hunter, Alan Redfern, Nigel Blackaby e Constantine Partasides,


possuem posicionamento mais radical, ao afirmarem que a convenção de arbitragem
na Roma Antiga não possuía qualquer validade legal. Para contornar este problema,
as partes apresentavam as estipulações de penalidades mútuas se a arbitragem ou a
sentença arbitral não fossem honradas; sendo que as Cortes Romanas não forçariam o
cumprimento da convenção de arbitragem ou sentença, mas sim a penalidade imposta
à parte39.
                                                                                                               
36
Idem, 2003. p. 325.
37
“Historically, while the arbiter (ex compromisso) is functionally the equivalent of the modern
arbitrator and was known already in Roman law (...)”. CARDUCCI, Guido. The Arbitration Reform in
France: Domestic and International Arbitration Law. Arbitration International, Volume 28, n° 1,
Kluwer Law International: Paris, 2012. p. 141.
38
Segundo CARMONA, o efeito negativo da convenção de arbitragem retira do juiz estatal a
competência para conhecer de um determinado litígio, dando margem à instauração da arbitragem.
CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo. 3a. ed. Atlas: São Paulo, 2009. p. 78.
39
“In theory, such a localised system of ‘private justice’ might have continued without any supervision
or intervention by the courts of law—in much the same way as, in general, the law does not concern
itself with supervising or enforcing the private rules of a members' club. Roman law did in fact adopt
such an attitude of indifference to private arbitration. An arbitration agreement was not unknown and it
was not illegal; but neither the arbitration agreement nor any award made under it had any legal effect.
To overcome this problem, parties would make a double promise (a ‘compromissum sub poena’): a
promise to arbitrate and a promise to pay a penalty if the arbitration agreement or the arbitral award
was not honoured. The Roman court would not enforce the arbitration agreement or the award, but it

  9  
Francesco Zappala apresenta um entendimento diverso. Para o referido autor,
o compromissum teria tamanha aceitação e importância da classe comerciante, que o
pretor teria elaborado um edictium de receptis para a imposição de uma coercitio a
qui arbitrium pecunia compromissa receperit, eum sententiam dicre cogam40.

Diferentemente da relação de status social e de poder econômico que


demandava das partes a utilização do processo formulário, a arbitragem ex
compromisso podia ser utilizada por mulheres e estrangeiros; em especial, sendo
largamente aceita como um mecanismo alternativo de solução de controvérsias pelos
comerciantes e classe senatorial da época.

O árbitro, sendo uma pessoa privada sem qualquer relação com o poder
institucional, somente poderia atuar na lide se previamente vinculado às partes através
da receptium. Caso o árbitro não cumprisse com sua missão, poderia ser levado a
fazê-lo ou a ser penalizado de forma administrativa pelo pretor.

Bruno de Loynes de Fumichon e Michel Humbert41 muito bem identificaram


que a solução romana para a coerção da arbitragem e a responsabilização do árbitro é
diametralmente oposta daquela utilizada na modernidade. Atualmente, é cediço que a
convenção arbitral impõe-se às partes através do efeito negativo e positivo, dada a
negativa estatal de competência quando a parte unilateralmente busca a tutela estatal;
por outro lado, a penalização do árbitro que ofende a relação jurídica com a partes é
caracterizada no âmbito civil pela reparação civil.

Quanto à matéria discutida, a arbitragem ex compromisso era utilizada para


litígios comerciais, internos e internacionais, operações bancárias e/ou relativas a
propriedade, somente questões de estado e penais eram restringidas.

No que se refere ao árbitro, havia uma relação entre capacidade postulatória e


capacidade para ser revestido na função de árbitro. Somente as pessoas corrompidas
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           
would enforce the promise to pay the penalty” (BLACKABY, Nigel, PARTASIDES, et al. Constantine
et al., Redfern and Hunter on International Arbitration, Oxford University Press: Oxford, 2009. p.
4).
40
ZAPPALA, Francesco. Historic universalism of arbitration. Revista Vniversitas, n.121, jul./dez.
2010. P. 111.
41
LOYNES DE FUMICHON e HUMBERT, 2003. p. 338.

  10  
estavam excluídas do exercício da função de árbitro, mas também uma incapacidade
absoluta era atribuída às mulheres, menores de 25 anos, dementes, surdos-mudos e
escravos. Havia também uma incapacidade relativa de julgar causas em que o
potencial árbitro teria interesse ou fosse parte. Francesco Zappala atesta que os
árbitros não eram remunerados42.

Ao se comparar os aspectos pessoais dos árbitros na arbitragem ex


compromisso e, por exemplo, a lei de arbitragem brasileira43, as semelhanças são
enormes. O art. 13 determina que pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a
confiança das partes. Por certo que modernamente existe uma equiparação social e
legal entre homens e mulheres; no entanto, o que se destaca é a necessidade do
árbitro, em Roma ou na era atual, ter reputação ilibada e ser de confiança das partes.

Em Roma como atualmente, ao árbitro imputava-se o dever de agir com


imparcialidade e diligência na tratativa do processo44.

Com relação aos poderes do árbitro na arbitragem ex compromisso, havia uma


limitação à sua capacidade de decidir sobre questões de ordem processual. Bruno de
Loynes de Fumichon e Michel Humbert destacam que tal liberalidade era limitada aos
poderes outorgados pelas partes45; inclusive havendo a prerrogativa das partes em
estabelecer o prazo para o proferimento de sentença arbitral, como ocorre na lei de
arbitragem brasileira46.

Por outro lado, no tocante ao mérito do litígio, os árbitros possuíam amplos


poderes para decidir a controvérsia apresentada pelas partes. Novamente, Bruno de
Loynes de Fumichon e Michel Humbert trazem um citação de Paulo marcante sobre o
tema. Para Paulo:

                                                                                                               
42
ZAPPALA, Francesco, 2010, p. 113.
43
Lei n° 9.307/96.
44
Por exemplo, Lei n° 9.307/96, art. 13, §6°: “No desempenho de sua função, o árbitro deverá proceder
com imparcialidade, independência, competência, diligência e discrição”.
45
LOYNES DE FUMICHON e HUMBERT, 2003. p. 340.
46
Lei n° 9.307/96., art. 23: “A sentença arbitral será proferida no prazo estipulado pelas partes. Nada
tendo sido convencionado, o prazo para a apresentação da sentença é de seis meses, contado da
instituição da arbitragem ou da substituição do árbitro”.

  11  
o árbitro não possuía mas poderes do que o compromisso lhe confere.
Assim, ele não poderá julgar a sua vontade, nem proceder sobre matérias
alheias, se não se refere a questão pela qual o compromisso foi celebrado
e na medida de sua celebração47.

O procedimento arbitral, apesar de poder ser estabelecido pelo árbitro, partilha


de princípios aplicáveis ao processo formulário, como o respeito a ampla defesa,
contraditório, oralidade e publicidade dos debates e representação judicial48. Contudo,
um ponto de diferenciação que se pode identificar com a arbitragem moderna é a
publicidade do procedimento.

Em Roma, a arbitragem era essencialmente pública, tendo as testemunhas um


papel fundamental de comprovação dos atos praticados. Não que a arbitragem atual
seja obrigatoriamente confidencial, mas identifica-se o sigilo como um de seus pontos
fundamentais.

A sentença arbitral possuía um caráter definitivo, ou seja, desde a época


romana, a sentença arbitral era irrecorrível. Sendo apenas a nulidade da sentença, por
vício procedimental, admissível. Ora, mais um elemento que encontra-se presente até
a modernidade49.

Instaurado o Principado em Roma no ano 27 a. C., teria Otaviano Augusto


iniciado a última fase do direito processual romano, o processo extraordinário
(extraordinaria cognitio). Nesse período, os poderes jurisdicionais concentraram-se
na figura do príncipe ou de seus delegados, através de um procedimento monofásico.
O iudex é substituído pela figura de “magistrados-funcionários”, cujos poderes
advinham da delegação da autoridade estatal una. Segundo Cruz e Tucci e Azevedo
ter-se-ia uma verdadeira “organização judiciária do império”50, composta por
inúmeros órgãos capazes de julgar em primeiro e segundo grau de jurisdição.

                                                                                                               
47
LOYNES DE FUMICHON e HUMBERT, op. cit. 2003. p. 340 e 341.
48
Por exemplo, Lei n° 9.307/96, art. 21, §2°: “Serão, sempre, respeitados no procedimento arbitral os
princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre
convencimento”.
49
Por exemplo, Lei n° 9.307/96, art. 32.
50
José Rogério CRUZ e TUCCI e Luiz Carlos AZEVEDO conceituam fórmula como um “autêntico
modelo abstrato pelo qual se propicia litigar por escrito, em conformidade com os esquemas
jurisdicionais previstos, pelo direito honorário, no edito do pretor”. Ver detalhes em CRUZ e TUCCI e
AZEVEDO, Luiz Carlos, 2001, p. 141.

  12  
Ocorre que, a despeito desta institucionalização dos poderes jurisdicionais em
Roma, a arbitragem manteve-se em prática de forma fortalecida. Francesco Zappala
relembra que a Constituição Imperial n° 395, de Arcádio e Onório, elencava as
decisões arbitrais como atos que conservavam validade51.

O auge do reconhecimento da arbitragem na Roma antiga ocorre através do


Corpus Iures Civilis de Justiniano. Nota-se, por exemplo, o reconhecimento de força
executória da sentença arbitral quando acompanhada de convenção arbitral celebrada
solenemente, a possibilidade de utilização de prova emprestada, a interrupção da
prescrição.

Finalmente, pode-se concluir uma interessante coincidência do processo de


desenvolvimento e consolidação da arbitragem na Roma com aquele ocorrido em
grande parte dos Estados Modernos. Questões como a delimitação da matéria inerente
à arbitragem, identificação dos poderes do árbitro, modalidade e efeitos da convenção
arbitral e reconhecimento estatal da executoriedade da sentença arbitral são presentes
no estudo da arbitragem moderna. Somados, pode se verificar que a tradição romana
influencia profundamente as nomenclaturas e institutos encontrados na arbitragem,
“arbiter” para árbitro, “arbitrium” para arbitragem, “compromissum” para
compromisso arbitral.

Por outro lado, corroborando com entendimento do professor Thomas Clay


citado acima, são nítidas as raízes da arbitragem moderna no processo civil romano;
não somente naquilo que se refere à arbitragem ex compromisso, mas em especial
pelo rico processo de desenvolvimento social e jurídico que culminaram na utilização
da arbitragem privada em Roma.

REFERÊNCIAS

                                                                                                               
51
ZAPPALA, Francesco, 2010, p. 113.

  13  
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50.

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  14  
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