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1 INTRODUÇÃO

Nas sociedades antigas, o estrangeiro, como regra, não gozava de direitos e, como
consequência, não havia conflitos entre ordens jurídicas diversas, razão de ser do direito
internacional privado. A eventual necessidade de julgar os estrangeiros levou à criação de
tribunais excepcionais, como o do Pretor Peregrino, em Roma, e o do Polemarca, em Atenas.
Por outro lado, o Pentateuco continha normas sobre o tratamento equânime do estrangeiro
entre o povo judeu.

Com as invasões bárbaras do século V e o fim do Império Romano, surgiu o sistema da


personalidade da lei, segundo o qual cada indivíduo, em território estrangeiro, gozava do
direito de reger sua vida pelas leis da sua origem. Como cada grupo conservava os seus
próprios costumes, conviviam, portanto, no mesmo território, o direito romano (para reger os
antigos cidadãos romanos) e o de diferentes povos bárbaros. De modo a procurar resolver os
conflitos de leis naturalmente provocados por este estado de coisas, criaram-se certas regras
de conflito de leis, como as que aplicavam a lei do vendedor à compra e venda, a da origem
nacional do falecido à sucessão, e a da origem nacional do marido à mulher.
As normas de direito internacional privado integram a ordem jurídica interna de cada país e
devem ser aplicadas pelo juiz de ofício. Na sua essência, designam o direito aplicável a
relações jurídicas de direito privado com conexão internacional. Este sempre será ou do
direito interno ou um determinado direito estrangeiro. Quanto à aplicação do direito interno,
não há dúvida de que o juiz o aplique de ofício. No entanto, é assunto controvertido na
doutrina como o juiz deve aplicar o direito estrangeiro no processo.

Nos dias atuais, existem, basicamente, três tendências gerais nos diferentes sistemas jurídicos
nacionais. Conforme a primeira, cumpre ao juiz aplicar o direito estrangeiro de ofício. A
adoção desses princípios, entretanto, não significa que o juiz não possa exigir das partes a
colaboração na pesquisa do direito estrangeiro, sendo-lhe facultado determinar diligências
para apuração do teor, da vigência e da interpretação de tal direito.
A primeira vertente é o Direito Internacional Público, que em resumo é um conjunto de regras
delineadas em tratados internacionais e aplicáveis aos países que a eles aderirem, podendo
cobrir os mais diversos temas, tais como Direito Internacional do Trabalho (tratados da OIT),
Direito Internacional Comunitário (tratados que criam blocos regionais como Mercosul e
União Europeia) e Direito Internacional Tributário (tratados de não-bitributação).

Já o Direito Internacional Privado não tem qualquer relação com tratados internacionais ou
aplicação a diversos países, mas é na verdade direito interno de cada país, que determina as
regras de solução de conflitos entre leis de diferentes jurisdições que podem ser aplicadas a
um mesmo caso.

É importante destacar que para haver necessidade de aplicação do Direito Internacional


Privado é obrigatória a presença do chamado “elemento de estraneidade”, que nada mais é do
que a existência de qualquer fato que atraia a possível aplicação de uma legislação
estrangeira, como é o caso de um dos contratantes ser uma empresa estrangeira sem
representação no Brasil.
2 DESENVOLVIMENTO

O juiz brasileiro deve, de lege lata, em princípio, aplicar o direito estrangeiro de ofício. Com
efeito, se não for adotada tal regra no processo, as normas de direito internacional privado,
designativas do direito aplicável, qualificar-se-iam como imperfeitas, o que na realidade não é
o caso. O próprio direito internacional privado não faz restrições à aplicação do direito
estrangeiro e não o discrimina em relação ao direito interno. Se o juiz não for obrigado a
aplicar o direito estrangeiro de ofício, torna-se incerto se o direito, designado pelas normas do
direito internacional privado, será de fato aplicado no processo. Não existe nenhuma garantia,
neste caso, de que a norma do direito internacional privado será aplicada como ela própria
ordena, razão pela qual incumbe ao próprio juiz tomar iniciativa de aplicar o direito
estrangeiro ao processo.

O Supremo Tribunal federal já decidiu que o direito estrangeiro se equipara à legislação


federal, quando for designado como aplicável de acordo com as normas de direito
internacional privado vigente.
A doutrina e a jurisprudência são pacíficas no entendimento de que o juiz deve aplicar o
direito de acordo com as regras que o próprio juiz estrangeiro observaria, em conformidade
com o ordenamento jurídico vigente em seu país, e isso no interesse da concordância da
decisão com sistema jurídico estrangeiro.

Numa definição estrita, o direito internacional privado compreende apenas as normas de


solução dos conflitos de leis no espaço. Muitos estudiosos, porém, entendem que as regras de
direito referentes a nacionalidade, conflito de jurisdições e condição jurídica do estrangeiro
também integram o objeto do direito internacional privado.

Entende-se como conflito de leis no espaço qualquer relação humana ligada a duas ou mais
ordens jurídicas cujas normas não são coincidentes. O juiz ou o intérprete da lei, diante de um
caso de conflito de leis no espaço, assiste portanto à concorrência de duas ou mais leis -
produzidas por países (ou províncias) diferentes - sobre a mesma questão jurídica.

A dúvida sobre qual direito (o nacional ou o estrangeiro; ou um dentre dois ou mais direitos
estrangeiros) aplicar a um caso concreto envolvendo estrangeiros nasce da circulação de
pessoas e coisas no espaço, de um lado, e, de outro, da proliferação de ordens jurídicas
nacionais - e, em alguns casos, provinciais ou estaduais - autônomas que procuram regular,
cada uma a seu modo, as mesmas situações jurídicas. Sendo impossíveis as soluções mais
simplistas para o problema (a supressão do intercâmbio humano além-fronteiras ou a
uniformização legislativa mundial), cabe ao juiz ou ao intérprete resolver o eventual conflito
que se lhe apresente por meio da escolha dentre uma das leis concorrentes.

Tal escolha é efetuada com base em regras pré-estabelecidas, cujo conjunto constitui o direito
internacional privado.

Na imensa maioria dos casos, apenas uma ordem jurídica rege os fatos e atos jurídicos em um
determinado local. Por exemplo, um contrato celebrado em São Paulo, Brasil, provavelmente
terá sido assinado por brasileiros residentes no Brasil, e seus efeitos serão produzidos em
território brasileiro, razão pela qual ele é regido pela lei brasileira. Mas ocorre às vezes que
um fato ou ato jurídico (no exemplo, o contrato) tem relação com mais de uma ordem
jurídica. Ainda no mesmo exemplo, seria o caso de um contrato assinado entre um brasileiro e
um escocês, ou destinado a produzir efeitos no estado da Califórnia, Estados Unidos.

Dentre estes casos, há algumas situações especiais, em que o intérprete da lei (advogado, juiz
ou outro) depara com um fato ou ato jurídico ligado a duas ou mais ordens jurídicas
autônomas cujas normas, aplicáveis ao caso (no exemplo, o contrato), são divergentes - um
conflito de leis no espaço. Retomando o exemplo, um contrato assinado entre um escocês de
17 anos de idade, domiciliado na Escócia, e um brasileiro de 18 anos é motivo de litígio em
juízo no Brasil. O brasileiro, que deseja anular o contrato, argumenta que o escocês é menor
de idade, pois a capacidade jurídica plena no Brasil começa aos 18 anos; o escocês, em sua
defesa, alega que a maioridade na Escócia começa aos 16 anos e que é esta lei (a escocesa)
que o juiz deve aplicar para determinar a sua capacidade jurídica. Nestes termos, o juiz
brasileiro acolherá a alegação do escocês. Por quê?

Confrontado com um caso ligado a duas ordens jurídicas diferentes, o juiz consultará o direito
internacional privado brasileiro. Este, contido em grande parte na Lei de Introdução às
Normas do Direito Brasileiro (LINDB), dispõe que a lei do país em que for domiciliada a
pessoa determina as regras sobre a capacidade. Assim sendo, e considerando que o escocês do
exemplo é domiciliado na Escócia, quem define, para o juiz brasileiro, a capacidade jurídica
daquele cidadão escocês é a lei escocesa. Está solucionado, mediante as regras do direito
internacional privado brasileiro, um caso de conflito de leis no espaço (entre a brasileira e a
escocesa) com que deparava um juiz brasileiro.

A aplicação do direito internacional privado a um caso concreto ocorre por meio de três
conceitos: o de "categoria de relações jurídicas" (ou "qualificação"), o de "elemento de
conexão" e o de "lei competente". Por exemplo, o direito internacional privado brasileiro
dispõe que "para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que
constituírem". Um juiz brasileiro que tenha em mãos um caso de conflito de leis sobre um
contrato celebrado na França se perguntará, em primeiro lugar, qual a categoria de relações
jurídicas (no caso, trata-se de obrigações – um contrato); em segundo lugar, qual o elemento
de conexão que o direito internacional privado brasileiro manda usar para reger as obrigações
(é a lei do lugar onde se constituíram – a França); concluirá então que a lei competente para
reger o contrato do exemplo é a francesa.
Embora a imensa maioria dos casos de direito internacional privado diga respeito a questões
de direito privado (família, sucessões, obrigações, personalidade e capacidade etc.), alguns
juristas entendem que o direito internacional privado pode aplicar-se também a questões de
direito público.

Os elementos de conexão constituem-se na chave para solucionar os conflitos de leis no


espaço. As diversas legislações nacionais de direito internacional privado organizam-se, via
de regra, em torno daqueles que apontam a lei competente para solucionar os conflitos.
Valladão define-os como certas circunstâncias diretamente ligadas ao caso, usadas pela norma
de direito internacional privado para indicar a lei competente.

Valladão classifica os elementos de conexão em:

reais: a situação da coisa, o lugar do ato ou fato, o lugar do contrato ou de sua execução, o
lugar da origem ou nascimento, o lugar do domicílio;

pessoais: a nacionalidade, a religião, a tribo, a raça, a vontade; e

institucionais: o pavilhão ou a matrícula de navio ou aeronave, o foro (i.e., a autoridade que


conhece do caso).
O estudo da nacionalidade é de grande importância para o direito internacional privado, já que
o tema é um dos elementos de conexão (lex patriae) utilizados por diversos países para
resolver conflitos de leis no espaço referentes ao estatuto pessoal (personalidade, capacidade
etc.). A verificação da nacionalidade de uma pessoa permite distinguir entre nacionais e
estrangeiros, que gozam de direitos diferentes.

Nacionalidade é o vínculo jurídico de direito público interno entre uma pessoa e um Estado. A
nacionalidade pressupõe que a pessoa goze de determinados direitos frente ao Estado de que é
nacional, como o direito de residir e trabalhar no território do Estado, o direito de votar e ser
votado (este, conhecido como cidadania), o direito de não ser expulso ou extraditado e o
direito à proteção do Estado (inclusive a proteção diplomática e a assistência consular, quando
o nacional se encontra no exterior), dentre outros.

Tradicionalmente, o direito internacional privado também estuda a entrada, permanência e


saída dos estrangeiros em determinado Estado, bem como sua capacidade local de gozo de
direitos em face dos indivíduos que são nacionais ou residentes daquele país. O conjunto de
textos legais de um Estado sobre tais assuntos é constitutivo da condição dos indivíduos
estranhos ao sistema jurídico local (os chamados estrangeiros ou estranhos) enquanto ali se
encontrarem. Temas como vistos, residência permanente, passaportes, imigração, deportação,
expulsão e extradição são, portanto, tratados pelo direito internacional privado. Outras
questões também podem ser objeto da disciplina, no que se refere à capacidade jurídica dos
estrangeiros, como os direitos políticos, a propriedade e a possibilidade ou impossibilidade de
ocuparem cargo público.

Ao longo da história, a condição jurídica do estrangeiro oscilou desde o extremo da


discriminação absoluta, que negava ao estranho o gozo de quaisquer direitos, até a concepção
moderna da igualdade de todos perante a lei, embora mesmo esta comporte exceções no que
se refere ao estrangeiro.

Tais normas, em regra, são qualificadas como de ordem pública. Assim sendo, a
discriminação do estrangeiro frente ao nacional pode fundar-se somente em motivos de
interesse público.
Em princípio, a lei brasileira deve ser aplicada a todos os brasileiros e estrangeiros que se
encontrem em território brasileiro (regra da territorialidade). Entretanto a Lei de
Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) contém os elementos de conexão que
indicarão a lei aplicável a casos conectados com legislações de mais de um país.

Processos que envolvam estrangeiros são de competência de autoridade judiciária brasileira


sempre que o réu for domiciliado no Brasil ou aqui tiver de ser cumprida a obrigação ou pena.
Da mesma maneira, só à autoridade judiciária brasileira compete conhecer sobre as ações
relativas a imóveis situados no Brasil. Poderá, contudo, cumprir solicitações de autoridade
estrangeira competente pelas chamadas cartas rogatórias (por exemplo: num processo judicial
na Alemanha, o juiz solicita a um juiz brasileiro que ouça determinada testemunha
domiciliada aqui).

Já a homologação de sentença estrangeira, desde a Emenda Constitucional n.º 45, é um


procedimento levado ao Superior Tribunal de Justiça cujo objetivo é possibilitar o
cumprimento de sentenças estrangeiras no território brasileiro. Só pode ser apresentada
mediante alguns requisitos (definidos no art.15 da LINDB), como haver sido proferida por
juiz competente, e estar traduzida por intérprete autorizado.

Observa-se, porém, que as leis, os atos e as sentenças de outro país não terão eficácia no
Brasil quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes (art.17 da
LINDB).

Os limites a aplicação do Direito Estrangeiro estão na ordem pública, nas normas imperativas
(lois de police) e no princípio de neutralização dos efeitos da fraude à lei.

A ordem pública representa os valores da sociedade local. As normas imperativas representam


as leis nacionais que têm um valor especial no ordenamento jurídico local, como normas
trabalhistas, direitos da criança, legislação trabalhista.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Direito Internacional Privado tem por objetivo maior estabelecer, em razão do elemento de
conexão, as regras e os princípios para a extraterritorialidade da lei, razão pela qual ele irá
definir, em diversas situações, se a legislação a ser aplicada em determinada relação jurídica é
a legislação nacional ou a estrangeira.

Nas situações em que as regras e princípios de Direito Internacional Privado determinarem a


aplicação do direito estrangeiro, caberá ao juiz apurar a sua existência, seu conteúdo e sua
vigência. Contudo ele poderá determinar que essa tarefa seja realizada pela parte que alegar a
necessidade de aplicação dessa norma.

A norma do direito internacional privado será a aplicada como ela própria ordena, razão pela
qual incumbe ao próprio juiz tomar a iniciativa de aplicar o direito estrangeiro ao processo.

A aplicação do direito estrangeiro deve obedecer a regras processuais próprias, distintas


daquelas que se referem à aplicação do direito interno, não há necessidade de configurá-lo
como fato, socorrendo-se do meio artificial da ficção jurídica.

REFERÊNCIAS

DINIZ, Maria Helena, Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, Ed. Saraiva,
2ª edição, 1996.

DOLINGER, Jacob, Direito Internacional Privado (Parte Geral), Ed. Renovar, 2ª ed., 1993.

FRIEDRICH, Tatyana Scheila, Normas Imperativas de Direito Internacional Privado - lois de


police, Ed. Forum, 2007.

MACHADO, João Baptista, Lições de Direito Internacional Privado, 3.ª Edição, Coimbra,
2002.

OLIVEIRA, Luiz Andrade. Aplicação do Direito estrangeiro no processo. In:______.


Princípios gerais de Direito Processual Civil internacional. Disponível em: . Acesso em: 03
fev. 2018.

RAMOS, Rui Moura, The private international law rules of the new Special Administrative
Region of Macau of the People's Republic of China, Louisiana Law Review, 2000, 1281 ss.
TENÓRIO, Oscar, Direito Internacional Privado, 11a ed., Freitas Bastos, 1976.

VALLADÃO, Haroldo, Direito Internacional Privado, v. 1, Ed. Freitas Bastos, 4ª ed., 1974.

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