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OS LIMITES À APLICAÇÃO DA LEI ESTRANGEIRA: ASPECTOS

DA ORDEM PÚBLICA NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Sumário: 1. Introdução. 2. Breves considerações


sobre o direito internacional privado. 3. O papel da
ordem pública como limitador à aplicação de
determinadas leis estrangeiras. 4. Conclusão. 5.
Referências.

1. Introdução

A Lei de Introdução às normas do Direito brasileiro


(Decreto-Lei n.4.657, de 4-9-1942), estabelece, em seu art. 17, que:
“As leis, atos e sentença de outro país, bem como quaisquer
declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando
ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons
costumes. (Grifo nosso)

Portanto, o dispositivo indica que, não obstante a


possibilidade de aplicação de norma estrangeira no território nacional,
caso ela se revele incompatível com os princípios fundamentais de
ordem jurídica interna, a reserva da ordem pública será imperativo
como cláusula de exceção.

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Soberania nacional e bons costumes são princípios que


integram a ideia de ordem pública. Esta, trata-se de um conceito
relativo tendo em vista que aquilo que lesa a ordem jurídica de um
determinado Estado pode ser aceitável em outro.

Isso se dá porque há distinção da ordem pública com a


ordem pública no contexto internacional. A ordem pública interna só
interesse ao direito internacional privado quando algum ato pela
disciplina regulado demonstrar-se incompatível com ela.

Podem haver reservas gerais ou reservas especiais de


ordem pública. As reserva gerais manifestam-se quando, a qualquer
relação jurídica internacional, sejam aplicadas as regras do DIPr. No
tocante a reserva especial, esta intervirá quando a problemática se
relacionar apenas a matéria específica de direito.

De igual modo, as reservas podem ser negativas ou


positivas. Conforme preceitua Beat Walter, “A reserva negativa
impede a aplicação do direito estrangeiro, aplicado conforme as
normas de direito internacional privado da lex fori, quando os seus
pressupostos estão cumpridos no caso concreto. O termo “ordem
pública positiva” não é mais usado com tanta frequência.
Modernamente, a doutrina refere-se às leis de aplicação imediata
quando trata da matéria.

2. Breves considerações sobre o Direito Internacional


Privado

Os cerca de cento e noventa Estados espalhados pelos


continentes tem como característica basilar o princípio da soberania.
Desse modo, cada um tem autonomia para elaborar a sua própria
ordem jurídica. As relações que são reguladas pelo direito hão de ser
apreciadas pelos tribunais que os compõem.

No entanto, a globalização, que a cada dia se torna mais


evidente, impõe o estabelecimento de normas que regulem as
relações que transcendem as fronteiras nacionais.

Nessa esteira, quando houver o conflito de leis entre dois


ou mais países, o objeto preponderante do Direito Internacional
Privado se manifestará a fim de que seja dada uma solução ao caso
concreto.

O DIPr é uma disciplina jurídica autônoma. Não obstante


ser imperfeita a sua denominação (é ramo do direito público interno,
por isso não é internacional nem privado), o termo está consagrado.
As regras da matéria estabelecerão as situações em que o direito
alienígena poderá ser aplicado em território pátrio.

É importante observar que o DIPr não se preocupa em


somente indicar a norma aplicável a um conflito de leis que possua
conexão internacional. Ele também abarca questões relativas à
nacionalidade, à condição jurídica do estrangeiro etc.
O surgimento de conflitos de leis no espaço impõe que o
direito internacional privado indique em que local tal conflito deverá ser
acionado, qual a lei será aplicada e, em determinadas situações, como
serão executados atos e decisões estrangeiras.

Por fim, cumpre destacar as fontes do direito internacional


privado: a) A Lei (fonte primária de consulta frente a uma relação
jurídica de conexão internacional); b) O Tratado Internacional
(instrumento das relações firmadas entre Estados); c) Jurisprudência
(fonte tradicional do DIPr, principalmente para o preenchimento de
lacunas); d) Doutrina (fonte de consulta quanto à interpretação das leis
pelos juristas) e, por fim, e) Direito Costumeiro (aplicado em caso de
falta ou de omissão da lei, tendo como características a continuidade,
a uniformidade, a diuturnidade, a moralidade e a obrigatoriedade).

3. O papel da ordem pública como limitador à aplicação


de determinadas leis estrangeiras

Todos os tratados internacionais costumam trazer


cláusulas que asseguram a possibilidade de o juiz utilizar da reserva
de ordem pública quando alguma relação jurídica de direito privado,
com conexão internacional, se demonstrar incompatível com o
ordenamento interno.

Conforme a doutrinadora Nádia de Araújo, a ordem


pública guarda também estrita ligação com os direitos fundamentais.

A ordem pública e as normas de caráter imperativo


estão subordinadas aos critérios de proteção
garantidos pelos direitos fundamentais. Sua
valoração não prescinde de uma hermenêutica
ligada à eficácia dos princípios, cuja positivação
pode ser encontrada nas Constituições dos Estados
e nos tratados internacionais de direitos humanos.
Com isso se quer prevenir resultados
inconstitucionais na aplicação da lei estrangeira, tal
como ocorre com a aplicação das leis em geral no
plano interno. As normas de DIPr também são
baluartes de defesa desses princípios, agora alçados
à categoria de normas-chave de todo o sistema
jurídico. (ARAÚJO, Nádia de. Direito internacional
privado: teoria e prática brasileira. Rio de Janeiro:
Renovar, 2011.)

Conforme Jacob Dolinger, “a ordem pública se afere pela


mentalidade e sensibilidade médias de determinada sociedade em
determinada época. Aquilo que for considerado chocante a esta média
será rejeitado pela doutrina e repelido pelos tribunais. Em nenhum
aspecto do direito o fenômeno social é tão determinante como na
avaliação do que fere e do que não fere a ordem pública. Compatível
ou incompatível com o sistema jurídico de um povo- eis a grande
questão medida pela ordem pública- para cuja aferição a Justiça
deverá considerar o que vai na mente e no sentimento da sociedade.”

A ordem pública possui como características a


relatividade/instabilidade (pois varia no tempo e no espaço), a
contemporaneidade (o estado da situação à época de um julgamento)
e o fator exógeno (mesmo a lei sendo imperativa, o fundamento da
ordem pública é exógeno, de modo que esta não é fator imanente à
norma jurídica.

O juiz ou Tribunal exercerá importante papel na decisão


daquilo que seja contrário à ordem pública.

Há determinados princípios que, mesmo quando, em tese,


sua inobservância violaria até mesmo a ordem pública, são
desaconselhados como fator de conexão. É o caso da religião. O
instituto de Direito Internacional, em sessão realizada em 2005, editou
Resolução que assim enuncia: “Os Estados devem evitar de utilizar a
religião como critério de conexão para determinar o direito aplicável ao
estatuto pessoal dos estrangeiros. Devem permitir para estes a
faculdade de optar entre a lei nacional e a lei do domicílio na hipótese
que o Estado da nacionalidade é diferente do Estado onde se situa o
domicílio da pessoa.”

Uma situação que se entendeu como lesiva à ordem


pública e que pode ilustrar essa problemática da religião diz respeito
ao repúdio que as mulheres mulçumanas sofrem perante os tribunais
ocidentais. Isso porque, o direito mulçumano, que está estritamente
ligado a preceitos religiosos, dispõe que a mulher não tem sequer
direito de se defender, quando repudiada pelo marido. Alguns tribunais
estrangeiros, por força de tratado, reconheciam a eficácia dessa
disposição. Hodiernamente há um abandono a esse posicionamento,
com consequente rejeição às sentenças de repúdio. Ressalta-se que,
no Brasil, o Supremo Tribunal Federal sempre negou homologação de
tais sentenças.

Qualquer sentença que tiver de ser homologado no Brasil,


deverá trazer sua respectiva fundamentação. Nosso Tribunais
superiores tem decidido que a falta de motivação desrespeita o
princípio de ordem pública. A motivação de decisões é um fundamento
constitucional no Brasil, porém cumpre dispor que não se pode exigir
das decisões estrangeiras formalidades que aqui são prescindíveis.

Questão também interessante, mas agora vista de maneira


diferente quanto à afronta da ordem pública, diz respeito à dívida de
jogo contraída no exterior. É sabido que o ordenamento jurídico pátrio,
por meio do Código Civil, isenta o pagamento de dívidas de jogo.

No entanto, os Tribunais tem decido que não se pode


invocar o princípio de ordem pública para se eximir do pagamento de
dívida de jogo, quando aceito por ordenamento jurídico de outro
Estado. Em trecho de ementa sobre a questão, extraída do Tribunal
de Justiça do DF, o egrégio órgão assim dispôs: “Considerando a
antinomia na interpenetração dos dois sistemas jurídicos, ao passo
que se caracterizou uma pretensão de cobrança de dívida inexigível
em nosso ordenamento, tem-se que houve enriquecimento sem causa
por parte do embargante, que abusou da boa-fé da embargada,
situação essa repudiada pelo nosso ordenamento, vez que atentatória
à nossa ordem, no sentido que lhe dá o DIP. Destarte, referendar o
enriquecimento ilícito perpetrado pelo embargante representaria
afronta muito mais significativa à ordem pública do ordenamento pátrio
do que admitir a cobrança de dívida de jogo.”

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Os exemplos e considerações acima são apenas alguns dos


aspectos que demonstram a utilização da ordem pública como
paradigma limitador em certas decisões. Nesse sentido, enfatiza
Nádia de Araújo:

A jurisprudência brasileira possui inúmeros exemplos


de aplicação do princípio da ordem pública como
limitador do método conflitual de DIPr. Seu caráter
mutável aparece nos casos de concessão
de exequatur pelo STF às cartas rogatórias e na
homologação de sentenças estrangeiras agora de
competência do STJ. Vários pedidos de
homologação de divórcio realizados no exterior- que
eram indeferidos no passado, por serem contrários à
ordem pública brasileira de então- passaram a ser
deferidos após a Lei do Divórcio. (ARAÚJO, Nádia
de. Direito internacional privado: teoria e prática
brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.)

4. Conclusão

O direito internacional privado, assim como qualquer outro


ramo da ciência jurídica, é pautado por princípios que irão coordenar,
limitar, disciplinar e controlar a utilização das regras próprias. No DIPr,
as regras de conexão que determinarão a lei a ser aplicável em
questões jurídicas multinacionais, regem-se pelos princípios do
reenvio, qualificação, ordem pública, questão prévia, fraude à lei etc.

Mas, de todos esses fundamentos normativos do DIPr, a ordem


pública se destaca pela sua abrangência e força de restrição à
aplicação desponderada de diversas normas de caráter supranacional.

Isso porque, como já dito, não obstante a possibilidade de


aplicação de norma estrangeira no território nacional, caso ela se
revele incompatível com os princípios fundamentais de ordem jurídica
interna, a reserva da ordem pública será imperativa como cláusula de
exceção.

A importância da ordem pública como limite à aplicação da lei


estrangeira é evidente em razão da sua estreita relação com os
direitos fundamentais, sendo que a sua observância é também salutar
para, até mesmo prevenir resultados eivados de inconstitucionalidade.
Por esse motivo, além da sua importância para o DIPr, o princípio da
ordem pública está alçado à categoria de norma imprescindível ao
sistema jurídica, como um todo.

5. Referências

ARAÚJO, Nádia de. Direito internacional privado: teoria e prática


brasileira. 5.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.

DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: parte geral. Rio


de Janeiro: Forense, 2011.

OBRA COLETIVA. Vade Mecum. 16.ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

RECHSTEINER, Beat Walter. Direito internacional privado: teoria e


prática. 14.ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

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