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FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

Direito Internacional
Privado
Prof. Doutor Nuno Ascensã o Silva
Eduardo Figueiredo
2016/2017
Eduardo Figueiredo 2016/2017

INTRODUÇÃO

1. Noção e objecto do DIP

1.1. Situações jurídicas internas e situações jurídicas internacionais, espacialmente


heterogéneas ou plurilocalizadas – o comércio jurídico trans-fronteiriço.

O Direito Internacional Privado1 (DIP) é o ramo da ciência jurídica onde se definem os


princípios, se formulam os critérios, se estabelecem as normas a que deve obedecer a pesquisa de
soluçõ es adequadas para os problemas emergentes das relaçõ es privadas de cará cter internacional.
Sã o essas relaçõ es aquelas que entram em contacto, através dos seus elementos, com diferentes
sistemas de direito. Nã o pertencem a um só domínio, mas a vá rios: sã o relações plurilocalizadas ou
absolutamente internacionais.
No entanto, a natureza da maioria de relaçõ es que sã o levadas à apreciaçã o e julgamento
dos tribunais nã o é essa, porque essas sã o, na sua maioria, relaçõ es que pertencem à esfera jurídica
interna de um só Estado – questõ es puramente internas.
Nã o obstante, como sabemos, nem todos os factores e processos do comércio jurídico
ocorrem e se desenvolvem inteiramente no â mbito da mesma comunidade estadual. As sociedades
civis organizadas em Estados sã o solidá rias e interdependentes, estabelecendo entre si vá rios
intercâ mbios. E é daqui que nascem os problemas do DIP.
Todos os dias se desenvolvem no territó rio de um Estado relaçõ es de direito privado de
cariz internacional, seja:
1) Pela nacionalidade ou domicílio dos sujeitos.
2) Lugar onde devem ser executadas as respectivas obrigaçõ es.
3) Situaçã o das coisas a que respeitam.
Todas essas relaçõ es encerram na sua estrutura elementos estrangeiros em contacto com vá rias
ordens jurídicas. Como nã o seria benéfico sujeitar essas situaçõ es sempre e sem mais exame à
autoridade local, convém que se escolha dessas ordens jurídicas, a que lhe seja mais pró xima, isto é,
a que tenha com elas o contacto mais forte ou mais estreito.
Nã o existiria DIP se o direito civil fosse igual em todas as partes. No entanto, como sabemos as
instituiçõ es civis e comerciais dos vá rios Estados possuem diferenças bem vincadas, o que
determina que este problema adquira um interesse premente.
Exemplos de situaçõ es plurilocalizadas: Caso Kaufman v. American Youth Hostels, Inc; Caso
Maldonado, Caso Babcock v. Jackson. (Cfr. FERRER CORREIA, pá g. 12-15)

Conceito de DIP (FERRER CORREIA)


Direito internacional privado procura formular os princípios e regras conducentes à
determinação da lei ou leis aplicáveis às questõ es emergentes das relaçõ es privadas internacionais,
e bem assim assegurar o reconhecimento do Estado do foro das situaçõ es jurídicas puramente
internas, mas situadas na ó rbita de um sistema de direito estrangeiro (situaçõ es internacionais de
conexã o ú nica, situaçõ es relativamente internacionais).

1Há autores holandeses, alemã es e até ingleses que se referem ao DIP com a designaçã o de «conflitos de leis»,
sendo que a designaçã o “DIP” tenha surgido essencialmente com a obra de FOELIX, embora já SCHAEFNER
se tenha referido a ela assim.

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1.2. Situações jurídicas absolutamente internacionais e situações jurídicas relativamente


internacionais. A problemática da regulamentação das relações jurídicas
plurilocalizadas: do princípio da territorialidade das leis à aceitação da exigência da
limitação espacial das normas jurídicas.

O comércio internacional e as deslocaçõ es de pessoas levam a um verdadeiro comércio


jurídico internacional, do qual resultam relaçõ es jurídicas internacionais.
Assim, uma relaçã o jurídica pode, através de qualquer dos seus elementos, achar-se em
contacto apenas com o sistema jurídico português, ou apenas com um determinado sistema
jurídico estrangeiro, ou com vá rios sistemas jurídicos. Podemos, por isso, distinguir:
 Casos puramente internos – ao ó rgã o português de aplicaçã o do direito, nã o se põ e
qualquer problema de determinaçã o da lei estadual aplicá vel, que será necessariamente a
portuguesa, porque a relaçã o jurídica tem contacto, através de qualquer dos seus elementos,
unicamente como o sistema jurídico português.
 Casos relativamente internacionais (ou puramente internos relativamente a um Estado
estrangeiro) – Aqui já se põ em problemas de DIP ao ó rgã o português, porque se trata de
uma situaçã o em que os elementos da relação jurídica estão em contacto apenas com uma
ordem jurídica estrangeira. Por força do princípio universal do direito, a doutrina defende
que importa aqui respeitar os direitos adquiridos e garantir a continuidade da vida jurídica
dos indivíduos, tutelando as suas naturais expectativas, concluindo-se, por isso, que o juiz
do foro deve em tais casos aplicar o direito estrangeiro – o ú nico com o qual a situaçã o tem
contacto.
 Casos absolutamente internacionais – A relaçã o jurídica tem contacto com vá rias ordens
jurídicas. Nestes casos põ e-se um problema de determinaçã o da lei aplicá vel, visto serem
duas ou mais as leis em contacto com a situaçã o. Precisamos, pois, de uma regra de conflitos
que venha resolver este concurso de leis, determinando qual das leis «interessadas» é a
efectivamente aplicá vel, através do recurso a vá rios elementos de conexã o de maior
relevâ ncia.

Quando tratamos destas relaçõ es plurilocalizadas, coloca-se sempre a problema do direito


aplicá vel, que poderá ser o que tiver com o caso concreto a conexã o mais forte ou estreita (como
defendido pelo Método Tradicional ou Savigniano). E como determinar essa conexã o?
Dissemos já que nã o seria uma boa soluçã o sujeitar todos os factos e situaçõ es da vida jurídica
internacional à autoridade do direito local. Ora, a questã o que se coloca é: porque nã o aceitar que
os tribunais de um país apliquem sempre as disposiçõ es das leis desse país (lex fori – Lei do país
onde se coloca o problema), presumivelmente boas e justas e por isso susceptíveis de ser
aplicá veis a todos? Para além disso, não aumentará a probabilidade de erro judiciá rio exigir a um
juiz que deixe de utilizar o direito nacional que tã o bem conhece e aplique direito estrangeiro?
Ora, o princípio da territorialidade determinava exactamente que o juiz devia sempre aplicar a
lei do foro, isto é, a lei do lugar onde se colocou o conflito, mesmo a factos que lhe sejam estranhos.
No entanto, é fá cil de ver que os inconvenientes desse sistema ultrapassam em larga medida as
vantagens (boa administraçã o da justiça):
1) A aplicação da lex fori materialis a factos que lhe sejam estranhos e que com ela nã o têm
qualquer conexã o espacial, violaria o princípio universal do direito que nos diz que a norma

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jurídica – como norma reguladora de comportamentos humanos – nã o é aplicá vel a


condutas que se situem fora da sua esfera de eficá cia, fora do alcance do seu preceito, seja
em razã o do tempo (principio da irretroactividade las leis), quer em razã o do lugar em que
se verificaram (principio da nã o transactividade). A violaçã o deste princípio conduziria ao
perigo de ofensa de direitos adquiridos e das expectativas legítimas dos interessados.
2) A aplicaçã o sistemá tica do direito local pode levar a situaçõ es insatisfató rias de desarmonia
jurídica internacional – quando o DIP visa precisamente o contrá rio.
Estas razõ es demonstram que o problema da lei aplicá vel para todas e quaisquer situaçõ es com
elementos internacionais – situaçõ es do comércio jurídico internacional – é algo de complexo e
forçoso. E nem as divergências existentes entre os Estados quanto à regulamentaçã o das vá rias
instituiçõ es podem tornar insuportá vel o acatamento e aplicaçã o num país de leis estranhas –
porque cada lei é justa à sua medida. Passa-se, assim, de um princípio de “territorialidade” para
uma aceite “extraterritorialidade” das leis.
Tudo isto nos permite afirmar que existe um princípio do reconhecimento e aplicação das leis
estrangeiras, que hoje surge como princípio de direito internacional positivo ou de direito comum
 Os Estado consentem em excluir, no â mbito de aplicaçã o das suas normas de direito privado,
determinadas categorias de relaçõ es e de factos, para os sujeitar aos critérios valorativos de outros
sistemas jurídicos. Esses factos sã o todos quantos se situarem for dos limites da vida jurídica local –
ou, pelo menos, se ligarem, mais estreitamente, na opiniã o do respectivo legislador, à vida de um
agregado social estranho. A aplicaçã o e reconhecimento das leis civis além-fronteiras deve ser
realizada, nã o tendo em vista o interesse dos Estados, mas sim o interesse dos indivíduos.

1.3. O princípio da não-transactividade das leis: noção e fundamento.

As normas jurídicas materiais, enquanto normas de conduta, têm o seu â mbito limitado pelo
tempo e espaço, uma vez que nã o podem chamar a si condutas de indivíduos que passaram para
além da sua possível esfera de influência. Assim, enquanto que no direito intertemporal vigora o
principio na nã o retroactividade das leis, o DIP assenta sobre o principio da não transactividade –
para que uma norma seja aplicada, tem que estar em vigor no lugar onde a conduta é praticada
e/ou visa produzir efeitos. Para além disso, o DIP assenta ainda no princípio do reconhecimento
das situaçõ es jurídicas constituídas no âmbito de eficá cia de uma lei estrangeira.
A nã o retroactividade e nã o transactividade sã o duas faces da mesma moeda, a “nã o
transconexã o”: a quaisquer factos aplicam-se, e só se aplicam, as leis que se encontrem em
contacto com esses factos, seja de uma perspectiva temporal, seja espacial.
Este princípio, enquanto princípio geral de direito, resolve, por si só , os problemas puramente
internos e relativamente internacionais.

1.4. Conflitos de leis e regras de conflitos de leis. Referência ao modus operandi da regra
de conflitos e ao seu carácter instrumental no seio do Direito de Conflitos.

O DIP tem por objecto das situaçõ es da vida privada internacionais, ou seja, as situaçõ es
absolutamente internacionais e relativamente internas.
As questõ es objecto do DIP sã o resolvidas em cada Estado de acordo com normas do direito
desse Estado. Cada Estado tem o seu DIP para uso interno – a sua pró pria interpretaçã o do DIP.

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Verdadeiramente, à comunidade de Estados, agindo concertadamente, é que pertenceria resolver os


referidos problemas – mas para tal era necessá ria uma soluçã o uniforme entre todos. Como esse
consenso nã o existe, é prá tica cada Estado formular, para resoluçã o dos conflitos de leis, normas
que tenha por mais convenientes e mais justas. Essas normas sã o as chamadas regras de conflitos
do DIP e fazem parte do “Direito de Conflitos” (BAPTISTA MACHADO). Estas sã o regras que se
propõ em resolver um problema de concurso entre preceitos jurídico-materiais procedentes de
diversos sistemas de direito.
Como é que DIP escolhe para cada caso o preceito jurídico aplicá vel – isto é, qual a
metodologia do DIP? A técnica usada consiste em a regra de conflitos deferir determinada questã o
ou á rea de questõ es de direito, ou determinada funçã o ou tarefa normativa ao ordenamento jurídico
que for designado por certo elemento da situaçã o de facto, a que chamamos elemento ou factor de
conexã o. Através da concretizaçã o do factor de conexã o, tornam-se conhecidas a lei e a norma
material chamadas a resolver a questã o de direito proposta – daqui se vê, desde logo, que à mesma
situaçã o da vida podem ser chamadas duas ou mais leis. Os elementos de conexã o determinantes
da competência da lei podem referir-se:
1) À pessoa dos sujeitos da relação jurídica (sua nacionalidade, domicilio, residência)
2) Ao acto ou facto jurídico encarado em si mesmo (lugar da celebração ou da execuçã o do
contrato, lugar da prá tica do facto gerador de responsabilidade civil)
3) À coisa objecto do negó cio jurídico (sua situaçã o).
Assim, diferentemente das normas de direito material, a norma de DIP nã o se propõ e fixar
ela mesma o regime das relaçõ es da vida social, sendo uma regra de cará cter meramente
instrumental2: limita-se a indicar a lei que fornecerá o regime da situaçã o, a lei onde hão-de
procurar-se as normas que venham orientar a decisão do litígio. Ou seja, contribui para a resoluçã o
da questã o jurídico-privada, mas nã o diz por si pró pria qual ela seja.
Entre nó s, os arts. 25º a 65º CC prevêem um conjunto de regras de DIP, apesar de muitas
delas estarem substituídas por convençõ es e, sobretudo, por regulamentos europeus.

Nota: Não falta quem proponha outras soluções, propondo que o DIP constitui um direito que
disciplina os factos e relações que o legislador entende estranhos ao seu ordenamento – assim, as normas
materiais estrangeiras chamadas através das Regras de Conflitos seriam recebidas na OJ do Estado do foro,
ficando a constituir aí, ao lado das normas materiais deste Estado, o direito especial das relações jurídico-
privadas externas. (ROBERTO AGO) Outros consideram que os problemas do DIP poderiam ser resolvidos
pelo sistema de regras materiais especiais, sem haver necessidade de recorrer ao método ou sistema conflitual.
No entanto, este ponto de vista corresponde a uma visão errónea do DIP, porque tal só era possível se
existisse um direito material uniforme – o que é utópico, como vimos.

Uma vez analisada a natureza destas regras (nã o regulam directa ou materialmente a
relação, senã o que fazem parte de um processo indirecto consistente em determinar a lei ou leis
que a hão-de reger), importa analisar a sua estrutura pró pria.
Ora, a regra de conflitos vai privilegiar um dos contactos ou conexõ es, determinando como
aplicá vel a lei para a qual essa conexã o aponta, o que dependerá do domínio ou matéria jurídica
em causa. Entram, assim, na sua estrutura, três elementos essenciais:

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Para BAPTISTA MACHADO, sã o meras regras de «remissã o» ou de «reconhecimento».

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1) Conceito-quadro ou objecto-conexão: é o elemento da regra que circunscreve uma


matéria ou uma questã o jurídica especifica. Para esta questã o, a regra de conflitos vai
apontar uma conexã o decisiva – sendo através dessa conexã o que ficaremos a saber qual
a lei aplicá vel. Em suma, define-se o campo de aplicaçã o da regra de conflitos.
2) Elemento ou factor de conexão: é o elemento da situaçã o de facto que é escolhido pelo
legislador, na regra de conflitos, para adjudicar uma certa ordem jurídica a regulaçã o de
uma questã o jurídica, que foi circunscrita pelo conceito-quadro. Este elemento pode ser
extraído de vá rias características da relação jurídica.
3) Consequência jurídica: é a declaraçã o de aplicabilidade dos preceitos jurídico-materiais
da lei designada pelo elemento de conexã o. Ou seja, é a aplicaçã o da lei indicada pelo
elemento de conexã o à matéria indicada pelo conceito-quadro.

Tal pode conduzir a uma situaçã o especial: A, português, celebra com B, francês, um contrato de
compra e venda sobre um imóvel situado na Alemanha, em que as partes escolhem a lei inglesa. Devido a
esta divisã o, aplicar-se-ia a lei inglesa relativamente à perfeiçã o do contrato; a lei alemã quanto ao
regime da propriedade; e a lei portuguesa e francesa quanto à capacidade de A e B.
Também é de notar que há regras de conflito que têm, por variadas razõ es, dois ou mais
elementos de conexã o. Faz-se aqui uma classificaçã o:
a) Regras de conflito de conexão una ou simples: têm apenas um elemento de conexã o.
b) Regras de conflito de conexão múltipla ou complexa: as razõ es na sua base podem ser
variadas e é essa diferença que faz com que os elementos de conexã o se articulem entre si
de modos diversos.
a. Alternativa (Ex: art. 36º CC)
b. Subsidiária (Ex: art. 52º CC)
c. Cumulativa
d. Distributiva (art. 49º CC)

Importa também notar que o processo seguido perante os tribunais portugueses é sempre
regulado pela lei portuguesa, ainda que ao fundo da causa se aplique uma lei estrangeira. Assim, as
leis relativas ao formalismo ou rito processual nã o levantam um problema de conflito de leis (nem
no tempo, nem no espaço) porque nã o afectam os direito substanciais das partes. São, portanto, de
aplicaçã o imediata e de aplicaçã o territorial.
Há , no entanto, algumas leis sobre a prova que simultaneamente afectam o fundo,
repercutindo-se sobre a decisã o e que devem, por isso, considerar-se como pertinentes ao direito
substantivo, e nã o ao direito processual ou adjectivo. Devemos identificar duas espécies de leis
relativas à s provas:
a) As leis de direito probató rio formal – que se referem à actividade do juiz, dos peritos ou
das partes no decurso do processo
b) Leis de direito probató rio material – leis que decidem sobre a admissibilidade deste ou
daquele meio de prova, sobre o ó nus da prova e presunçõ es legais. A estas questõ es já
nã o se aplica a lex fori, mas a lei ou leis competentes para regular o fundo da causa.
À parte disto, importa apenas salientar que a competência da lei do foro enquanto pura lei
de processo nã o depende de qualquer conexã o particular que ligue a situaçã o jurídica em litigio ao

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Estado do foro – basta que se verifique o pressuposto da competência internacional da jurisdiçã o


desse Estado.

2. O âmbito do DIP

2.1. As questões jurídicas emergentes das relações jurídico-privadas internacionais:


competência internacional (directa), reconhecimento de sentenças estrangeiras, conflitos de
leis, condição jurídica dos estrangeiros e nacionalidade.
Breve caracterização de cada um destes domínios.

Até agora tratá mos o DIP como conflito de leis. Mas será apenas esse o â mbito desta
disciplina? Aqui há vá rias orientaçõ es que relevam:
1) Teorias Minimalistas (Doutrina alemã e italiana)  Restringe o â mbito do DIP ao
problema do conflito de leis, embora alguns manuais alemã es também se refiram ao
problema do reconhecimento e execuçã o de sentenças estrangeiras.
2) Teoria Maximalista (Doutrina francesa)  O objecto do DIP compreende cinco matérias:
a nacionalidade, a condiçã o dos estrangeiros, os conflitos de leis, os conflitos de
jurisdiçõ es e o problema do reconhecimento e execuçã o de sentenças estrangeiras.
Autores como PILLET e MACHADO VILELLA apontam outro problema autó nomo, que
é o do reconhecimento dos direito adquiridos em país estrangeiro.
3) Teoria Anglo-Saxónica/ Intermédia/ Mitigada (FERRER CORREIA)  Inclui no DIP
o estudo de três importantes questõ es, que sã o a jurisdiçã o competente, a lei competente
e a do reconhecimento das sentenças estrangeiras.

Ora, diante do problema da delimitaçã o do DIP, dois caminhos se nos oferecem.

1) O primeiro é fazer consistir o seu objecto numa matéria fortemente homogénea,


núcleo de questões da mesma natureza, a resolver por métodos idênticos. (Defendida
pela teoria anglo-saxónica)

Seguindo este caminho, o objecto do DIP deve reduzir-se ao conflito de leis, de jurisdiçõ es e
reconhecimento e execuçã o de sentenças estrangeiras. Porque neste campo, tratamos de princípios
jurídicos com uma natureza especial, já que, em regra, nada dizem sobre o sentido da composiçã o
dos conflitos de interesses, nem sobre os direitos e deveres dos indivíduos, uns em face aos outros.
Aos problemas de comércio privado internacional obvia-se aqui, pura e simplesmente, remetendo a
decisã o deles para o â mbito de uma legislaçã o determinada. As normas de conflitos nã o sã o normas
substanciais, mas puramente instrumentais – dizem a lei que se aplica e nã o o regime aplicá vel.
Conflito de leis  Conjunto de regras de conflito que servem para determinar que lei
competente e a aplicar ao caso concreto. Portanto, respondem à questã o: que lei devem os
tribunais aplicar em determinado caso? Essa lei tanto pode ser a lei do foro como a de algum país
estrangeiro. Outra nota relevante é que estas têm no direito privado a sua sede natural, decidindo
da aplicação aos diferentes cassos dos sistemas de direito privado em vigor nos diversos Estados.
Conflito de jurisdições  Conjunto de regras de conflito que serve para determinar qual a
jurisdiçã o competente para conhecer de um determinado litigio – ou seja, a competência

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internacional dos tribunais portugueses, p.e.. Por outras palavras, indicam as hipó teses em que os
tribunais do Estado a que pertencem têm competência internacional. Outra nota relevante é que
estas normas pertencem ao direito processual civil internacional.
Normas de reconhecimento e execução de sentenças  Conjunto de regras de conflito que
determinam que valor têm as sentenças proferidas no estrangeiro. Também estas normas pertencem
ao direito processual civil internacional. Há vá rios tipos de reconhecimento, a saber:
a) Sistema de controlo prévio.
b) Sistema de reconhecimento automá tico ou de pleno direito.
Todas estas normas sã o regras de conflitos e têm em comum o objectivo de salvaguarda de
continuidade e estabilidade das relaçõ es privadas internacionais.

Natureza bem distinta têm as regras sobre a nacionalidade e a condiçã o jurídica dos
estrangeiros.
 Regras sobre a nacionalidade: Enumeram os factores de aquisiçã o e perda da
cidadania, definindo, portanto, as condiçõ es de atribuiçã o, no âmbito do direito local, de
um entre dois estatutos: o de nacional ou de estrangeiro. A sua natureza nã o é nem
parecida sequer à dos tipos de normas de conflitos. Sã o regras que pertencem ao direito
material- substancial, sendo definida por cada Estado a sua pró pria nacionalidade.
 Regras de condição jurídica dos estrangeiros: Visam apurar quais os direitos atribuídos
no Estado local aos cidadã os estrangeiros, em confronto com os nacionais. As normas
referentes a esta matéria sã o normas de capacidade que nada têm em comum com as
regras de conflitos.
De acordo com esta visã o, o DIP seria um direito de conflitos – um conjunto de normas
relativas à aplicação dos diversos sistemas jurídico-privados estaduais e aos conflitos de
jurisdiçõ es.

2) O segundo caminho possível baseia-se na ideia de todas estas questões têm uma
origem comum: nascem das relações de comércio jurídico internacional. (defendida
pelas teorias maximalistas)

Muitas destas questõ es obrigam, antes de mais, a resolver um problema de nacionalidade, já


porque o estatuto de nacional e o de estrangeiro nã o têm o mesmo conteú do, já porque a
nacionalidade dos interessados comanda a determinaçã o da lei aplicá vel, frequentemente (surgindo
como um elemento de conexã o).
Por outro lado, é fundamental conhecer também a condiçã o jurídica concedida em
determinado Estado aos cidadã os estrangeiros. Também esta é uma questã o prévia relativamente
à do conflito de leis, porque o problema da lei aplicá vel a certo negó cio jurídico só se põ e depois de
averiguado que as partes tinham o gozo do direito que através desse negó cio trataram de exercer.
Dada esta interdependência, é compreensível que muitos queiram estudar estes problemas
em comum, atraindo-os para a ó rbita do DIP- sendo este entendido como complexo de princípios e
normas por que se resolvem os problemas específicos das relaçõ es privadas internacionais.

FERRER CORREIA defende que o DIP é um direito de conflitos. Sendo assim, a


matéria da competência jurisdicional e do reconhecimento e execuçã o de sentenças é
indubitavelmente pertencente ao â mbito do DIP. Isto nã o quer dizer que sejam dele excluídas as

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matérias da condiçã o jurídica dos estrangeiros e da nacionalidade, ambas tã o chegadas com este
ramo, muitas vezes seus pressupostos – mas que sã o meramente instrumentais ou acessó rias para
a aplicaçã o das regras do DIP, nã o comungando de nenhum daqueles métodos normalmente
utilizados pelo DIP para conflitos de leis e jurisdiçõ es (regras de conflitos); e a finalidade desses
domínios nã o é a busca de estabilidade. Nã o existindo uma comunhã o, nem metodoló gica, nem
teleoló gica, estã o excluídos do â mbito do DIP.

Para além deste problema, existe um outro – o do reconhecimento dos direito adquiridos,
que MACHADO VILELLA, na esteira de PILLET, autonomia no â mbito do DIP. Estã o aqui em
causa os casos em que o direito ou situação jurídica se constitui num momento em que os seus
factos constitutivos e achavam em contacto com um só Estado, sendo este direito apreciado num
outro Estado. No entanto, a maioria da doutrina moderna rejeita a autonomizaçã o deste problema,
afirmando que nestes casos temos ainda um problema de conflitos de leis3. Já BAPTISTA
MACHADO rejeita a autonomização deste problema afirmando que a soluçã o se pode encontrar
igualmente no princípio da não transactividade: está em causa aplicar a lei em contacto com o facto
no momento da sua constituiçã o.

2.2. Direito dos Estrangeiros

Direito dos estrangeiros é o conjunto de regras materiais que reservam para os estrangeiros
um tratamento diferente daquele que o direito local confere aos seus nacionais. (BAPTISTA
MACHADO) Sã o “normas de capacidade”: ao fixarem um tratamento diferenciado, caracterizam-se
por reduzir a capacidade de gozo dos estrangeiros, o conjunto de direitos e deveres que uma pessoa
jurídica, singular ou colectiva, nã o nacional, pode ser titular.
É princípio de direito comum aos Estados Modernos o reconhecimento da capacidade
jurídica aos estrangeiros. Mas se os Estados reconhecem a personalidade jurídica dos estrangeiros,
em contrapartida, eles gozam de liberdade muito apreciá vel na execuçã o deste princípio. Nenhum
preceito internacional obriga o estado a conceder aos estrangeiros os mesmos direitos que
concede aos respectivos nacionais, nã o existindo ainda uma equiparaçã o entre estrangeiros e
nacionais, embora exista uma clara tendência para a igualdade de direitos entre ambos.
Ora, tais restriçõ es constituem justamente o conteú do das normas do direito dos
estrangeiros. Como partem de uma ideia de equiparaçã o, nã o têm estas normas que enumerar, de
maneira taxativa e concreta, os mú ltiplos direitos e faculdades que sã o reconhecidos aos
estrangeiros: o que fazem é especificar aqueles que lhe sã o denegados – trata-se, pois, de regras que

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FERRER CORREIA: “E isto porque o reconhecimento de um suposto direito adquirido não prescinde de averiguar se o
direito alegado efectivamente existe segundo os preceitos de uma lei que, no âmbito do DIP do foro, possamos considerar competente. A
determinação da lei competente constitui, assim, um prius relativamente ao reconhecimento do respectivo direito adquirido.
Por outro lado, o problema da lei competente resolve-se pelo DIP da lex fori: as regras do direito de conflitos português tanto
se aplicam às relações constituídas ou a constituir em Portugal, como às situações já criadas em país estrangeiro.
Ora, se o reconhecimento de um direito como legitimamente adquirido decorre sem mais do reconhecimento da competência
da lei que presidiu à sua constituição e se não é pelo facto de se tratar do reconhecimento de um direito adquirido no estrangeiro que a
questão da determinação da lei aplicável deixa de se pôr em face das regras de conflitos da lex fori – temos que concluir que aquele
problema não é um problema autónomo relativamente ao do conflito de leis.”

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criam para os estrangeiros incapacidades de gozo relativamente a certos e determinados direitos.


Estamos ante autênticas preceitos jurídico-materiais (com natureza nacionalista ou territorialista) e
nã o normas de conflitos (que têm um espírito universalista). Neste campo, há alguns princípios
fundamentais a ter em conta:

a. Princípio da equiparação dos estrangeiros aos nacionais


É o princípio que está em vigor no direito português (art. 15º/1 CRP, 14º/1 CC, art. 7º
CComercial) e este determina que, os estrangeiros, pelo facto de o serem, nã o vêem a sua
capacidade de gozo de direitos restringida em Portugal, embora tal nã o signifique que têm
exactamente os mesmos direitos – tudo dependerá da lei aplicá vel competente para atribuir o
direito. A interpretação do art. 14º CC é duvidosa e FERRER CORREIA propõ e-nos a seguinte
interpretaçã o:
Este artigo limita-se a estabelecer o princípio de que aos estrangeiros é reconhecida a
capacidade de gozo de direito privados, tal como aos nacionais e independentemente de
reciprocidade. Sob este aspecto, nã o há diferença entre nacionais e estrangeiros. Mas é só este o
alcance da regra da equiparaçã o. Ela nã o pode deixar de ser entendida de acordo com as normas
de conflitos do nosso sistema. A lei competente para decidir se ao sujeito é reconhecido o direito
que ele pretende exercer nã o pode ser outra senã o a lei definida como reguladora da respectiva
relação jurídica.
Se interpretá ssemos o art. 14º/1 no sentido de que aos estrangeiros sã o reconhecidos todos
os direitos civis dos cidadã os portugueses e mais nenhuns, tal poderia gerar discrepâ ncias que
convém evitar. Por isso se propõ e o entendimento acima apresentado.
E nem por isso o art. 14º/1 deixa de consagrar a regra da equiparaçã o. Efectivamente, se a
lei designada pelo nosso direito para regular o caso for estrangeira, o estrangeiro poderá
prevalecer-se entre nó s de todos os direitos por essa lei reconhecidos, precisamente como se fosse
um cidadã o português, salvo alguns limites. Se, pelo contrá rio, for a lei portuguesa a competente,
entã o o estrangeiro poderá exercer todos os direito dela decorrentes, como se fosse português – o
estrangeiro é sempre equiparado ao nacional, num caso ou noutro.
Este art. 14º/1 – princípio da equiparaçã o - tem restriçõ es:
1) O art. 14º/2  Princípio da reciprocidade (ver abaixo)
2) Art. 15º/2/3 CRP  Restriçõ es constitucionais ao princípio da equiparaçã o. Justificam-se
pelo facto de esse estrangeiro poder exercer funçõ es pú blicas nã o no interesse do
Estado local, mas em benefício do seu Estado nacional.
3) Essa regra nã o pode funcionar em prejuízo da ordem pú blica internacional do Estado
português.
4) Quando o reconhecimento da instituiçã o jurídica estrangeira exigir a uma autoridade
pú blica local uma forma de actividade que exorbite no quadro das suas atribuiçõ es.
(esta é duvidosa.)
Para direito pú blicos não políticos vale também o princípio da equiparaçã o, embora com
inú meras restriçõ es. (Ver art. 15º/2 CRP, DL nº59/93, de 3 de Março; DL nº 60/93, de 3 de Março,
DL 97/77, de 17 de Março, etc…)

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b. Princípio da reciprocidade (diplomática ou convencional e legislativa ou de facto)


O princípio da reciprocidade (art. 14º/2 CC) só funciona quando o estrangeiro pretende
exercer em Portugal um direito que o respectivo Estado nacional reconhece aos seus sú bditos, ou a
estes e aos sú bditos de outros Estados com os quais mantenha relaçõ es particulares, mas recusa
aos portugueses em igualdade de circunstâ ncias, só porque estes sã o estrangeiros, ou porque sã o
portugueses. Tem que haver um tratamento discriminató rio dos portugueses.
Assim, este é uma importante restriçã o, porque nã o reconheceremos um direito a um
estrangeiro em Portugal se, no seu estado, os portugueses nã o gozarem desse direito, evitando-se
uma desigualdade de tratamento.
No entanto, podem ser reconhecidos aos estrangeiros em Portugal direitos que o respectivo
estado nã o reconheça, desde que este nã o reconhecimento nã o tenha cará cter discriminató rio.
Alguns autores, como MÁ RIO DOS SANTOS, que defendem a inconstitucionalidade deste
art. 14º/2 por nã o respeitar os limites impostos pelo art. 15º CRP ao princípio da equiparaçã o.

2.3. Direito da nacionalidade

Vamos estudar dois artigos fundamentais da Lei da Nacionalidade, instrumentais para a


aplicaçã o de regras de conflitos: art. 27.º e 28.º. Estes preceitos regulam o problema da
plurinacionalidade – conflitos positivos de nacionalidade – ajudando-nos a determinar qual é a
nacionalidade relevante para efeitos de resoluçã o do caso.
Imaginemos que queremos saber se um certo sujeito tem capacidade para praticar um
negó cio – art. 31.º do CC. Se conjugarmos as vá rias regras, a capacidade é regida pela lei da
nacionalidade do indivíduo cuja capacidade estamos a analisar. Se um indivíduo tiver vá rias
nacionalidades, qual das nacionalidades é relevante? Há duas respostas possíveis, que dependem
de estar envolvida uma nacionalidade portuguesa ou nã o.
• Art. 27.º: conflito de nacionalidades portuguesa e estrangeira. Ao aplicar a regra de
conflitos, vamos atender apenas à nacionalidade portuguesa (a capacidade é regida pela lei
portuguesa). Resulta de um costume internacional, de cada Estado dar prevalência à sua pró pria
nacionalidade.
• Art. 28.º: conflito de nacionalidades estrangeiras (nenhuma é portuguesa). Releva o
Estado em que o plurinacional tenha a sua residência habitual ou, na falta desta (não reside em
nenhum dos países da nacionalidade), com o qual tenha uma vinculaçã o mais estreita (princípio da
proximidade – neste caso passamos a responsabilidade de escolher a lei aplicá vel para o julgador,
que deverá produzir prova para demonstrar qual a conexão mais estreita).
Isto pode nã o ser tão linear quando introduzimos um elemento novo - o direito da Uniã o
Europeia e o seu princípio da nã o discriminaçã o em razã o da nacionalidade.

Referência ao Caso Micheletti: O Sr. Micheletti, italiano e argentino, com residência em


Buenos Aires, quis estabelecer-se em Espanha para abrir um consultó rio médico. As autoridades
espanholas questionaram a possibilidade de este poder abrir esse consultó rio ao abrigo da liberdade
de estabelecimento reconhecida aos cidadã os europeus. O CCEsp. tem as mesmas soluçõ es que o
português para resolver problemas de conflitos positivos de nacionalidade, o que determina que a
nacionalidade relevante para o caso seria a argentina, nã o sendo reconhecido a este o direito de
estabelecimento e nã o podendo este abrir o consultó rio.

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Antes esta decisã o, o Sr. Micheletti recorre da decisã o nos tribunais espanhó is e procedeu
ao reenvio prejudicial ao TJUE para saber se esta maneira de resoluçã o de conflitos era vá lida. O
TJUE afirmou:
1) Cada Estado é que sabe como resolver os seus conflitos de nacionalidade;
2) Mas a resoluçã o desses conflitos nunca pode ter como consequência a privaçã o de um
cidadã o europeu de um direito que ele tem pelo facto de o ser.
Assim, entendeu-se que interpretaçã o do direito interno nã o pode pô r em causa os direitos
ou as liberdades decorrentes do direito da UE. Assim, quando estamos perante casos dentro da UE,
a aplicaçã o destes artigos não pode servir como um entrave ao exercício de direitos ou liberdades
fundamentais europeus. Isto aplica-se quer a casos de pessoas singulares, quer a casos de pessoas
colectivas.
Podemos ainda referir os conflitos negativos de nacionalidade – o caso dos apá tridas.
Nestes casos, aplicamos o art. 32º CC, que manda aplicar a lei da residência habitual. Em caso de
que esta nã o exista ou nã o se possa determinar, o art. remete para o art. 82º/2 CC que manda
aplicar o critério da residência ocasional e, em falta desta, do lugar onde se encontra.

E qual é o critério base da averiguaçã o da nacionalidade das pessoas colectivas? É a sede


efectiva, ou seja, o lugar onde os ó rgã os de direcçã o superior de uma pessoa colectiva existem e
funcionam (o ó rgã o decisivo para este efeito é a administraçã o central). Para a determinação desta
soluçã o, podemos encontrar apoio no art. 4º CSC, que implica que a sede efectiva é o critério para a
nacionalidade.

3. Fundamento e natureza jurídica do DIP.

3.1. Confronto com disciplinas afins: o direito internacional público, o direito privado uniforme,
o direito transitório ou intertemporal, o direito interlocal e interpessoal, o direito da União
Europeia e o direito constitucional.

Já referimos que o DIP é o ramo do direito a que os tribunais dos vá rios estados recorrem a
fim de dar soluçã o aos problemas emergentes das relaçõ es jurídicas internacionais – incluindo,
conflitos de leis – sendo, porém, todo ele de fonte estadual. Internacional pelo objecto ou a funçã o,
o DIP é estadual pela fonte.

1) O DIP é um direito estadual ou interestadual? Assenta em princípios do direito


internacional público ou de um direito de natureza estadual?
Quanto à sua função, o DIP é internacional porque visa arranjar soluçõ es para os conflitos
derivados das relaçõ es privadas internacionais. Isto pode levantar a dú vida sobre se o DIP nã o
seria afinal um direito internacional, assente em princípios de direito internacional pú blico.
Autores como KAHN assim o entendem, ao defender que o DIP pertence ao direito internacional
pú blico por haver certas normas de conflitos postuladas pelo DIPú blico geral, que os Estados estã o
obrigados a receber; já ZITELMANN defende que há um DIP geral de caracter internacional,
assente em princípios de DIPú blico (soberania pessoal e territorial dos Estados).
Há , ainda, uma teoria da delegaçã o ou do desdobramento funcional, segundo a qual o DIP,
como direito regulador das relaçõ es internacionais de cará cter privado, integrar-se-ia no direito

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pró prio da comunidade internacional, que delegaria nos diferentes ordenamentos estaduais a
competência para regular tal matéria.
A doutrina dominante recusa estas teses: a primeira porque do simples facto de
determinados princípios serem de aplicaçã o geral nã o pode concluir-se que eles correspondam a
autênticos preceitos de direito internacional pú blico. (referimo-nos, p.e. à regra que declara
aplicá vel aos imó veis a lex rei sitae).
Quanto à segunda, na verdade nã o existe um DIP geral de cará cter verdadeiramente
internacional. Demonstra-o o pró prio facto do procedimento geral dos Estados, que agem na
convicçã o de gozarem de uma liberdade quase ilimitada quando fixam os pressupostos de
aplicabilidade das leis estrangeiras in foro domestico.
BAPTISTA MACHADO critica estas teorias internacionalistas por partirem do pressuposto
erró neo de que a competência legislativa dos Estados nã o é mais do que um modo de manifestaçã o
da sua soberania, que se deve manter dentro dos limites assinalados pelo direito internacional –
porque o problema dos limites da soberania e o problema da lei aplicá vel nã o se confundem.
Assim, concluímos que as normas de DIP sã o normas estaduais que se integram apenas no
domínio de vigência de um Estado, e a liberdade de escolha do legislador nacional dos elementos
de conexão nã o sofre restriçõ es importantes por força de quaisquer princípios do DIPú blico (ainda
que dele resultem princípios relevantes para o DIP, como a nã o transactividade das leis e a
necessidade de reconhecimento de direito estrangeiros).
Mas e se houver convençõ es internacionais que contenham regras de conflito ou outras
regras de DIP? As regras que resultam de um instrumento de DIPú blico podem ser materialmente
semelhantes à s existentes na OJ portuguesa, mas sã o formalmente distintas porque têm de ser
recebidas no nosso ordenamento nos termos do art. 8º/2 CRP.
Conclui-se portanto que as normas de DIP criadas por convençõ es internacionais, enquanto
nã o convertidas ou transformadas em direito nacional, só obrigam os pró prios Estados para os
quais o texto da convençã o se tornou lei internacional. Através do instrumento da ratificaçã o, o
Estado fica internacionalmente obrigado a emanar na ordem interna os preceitos jurídicos
formulados pela convençã o ratificada ou os preceitos paralelos desses: sã o esses preceitos que
depois os tribunais vã o aplicar. Daqui resulta que tais preceitos, entendidos como normas aptas
para desempenhar a funçã o que lhes compete de orientar as decisõ es dos tribunais e a conduta dos
indivíduos, nã o têm propriamente por fonte a convençã o ou o tratado de que procedem – estes sã o
apenas fontes mediatas do DIP. É , portanto, a lei interna a ú nica fonte das normas de conflitos.

2) As normas de DIP são de direito público ou de direito privado?


O DIP inclui-se no sistema de direito privado. Porquê?
1) Como vimos, o DIP consiste na averiguaçã o da lei aplicá vel à s relaçõ es privadas
internacionais, com vista à determinação da disciplina jurídico-material reguladora de
tais relaçõ es.
2) O DIP está ao serviço dos interesses relativos dos indivíduos e visa permitir a aplicaçã o
de preceitos jurídico-privatísticos, uma vez aplicadas as regras de conflitos.
3) A problemática do DIP apresenta muitos mais pontos de contacto com o direito civil e
comercial que com qualquer outro ramo do direito pú blico.

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3.1.1.O DIP e o direito internacional público.


Nã o se pode distinguir DIPú blico de DIP no plano das fontes, porque as fontes do primeiro
podem também ser fontes do segundo (LIMA PINHEIRO). No que toca à s matérias reguladas
parece ó bvio que há diferença entre os dois ramos – esta diferença nã o se reconduz à dicotomia
direito pú blico/ direito privado, desde logo porque sabemos que o DIPú blico também regula
situaçõ es privadas e nã o está excluída a regulaçã o pelo DIP de certas situaçõ es conformadas
primariamente pelo direito pú blico.
A diferença surge antes no plano de regulaçã o das situaçõ es em causa: situaçõ es que sã o
reguladas imediatamente pelo DIPú blico ao nível da ordem jurídica internacional e situaçõ es que
nã o relevam na ordem jurídica internacional. Por um lado, estã o fora do DIP as relaçã o na ordem
jurídica internacional que se estabelecem entre Estados e entre organizaçõ es internacionais, ou entre
estas e aquelas. Por outro lado, o DIPú blico não regula imediatamente a maior parte das situaçõ es
transnacionais, porque, em regra, os sujeitos nã o têm personalidade jurídica internacional. Estas
situaçõ es sã o, pois, reguladas na ordem jurídica dos Estados e no plano do DIP.
Numa visã o global, podemos dizer que as relaçõ es entre o DIPú blico e o DIP sã o
multifacetadas e inscrevem-se em diferentes planos. Embora se tenha afirmado que o DIP pode
encontrar o seu fundamento ú ltimo no DIPú blico, nã o é possível reconduzir o conjunto das
situaçõ es conflituais a princípios de DIPú blico. Continua, portanto, a justificar-se a autonomizaçã o
de ambos.

3.1.2.DIP e o Direito intertemporal (transitório).


O DIP é um direito de conflitos. Ao seu lado, existem outros sistemas conflituais, como o
direito transitó rio – conjunto de disposiçõ es transitó rias que resolvem conflitos de leis no tempo.
Sã o manifestas as analogias entre o DIP e o direito transitó rio (intertemporal).
1) Ambos sã o “direito de segundo grau ou secundário”, isto é, “normas de aplicaçã o de
normas”. Todavia o DIP tem por objecto os conflitos de leis no espaço (valendo o principio
da nã o transactividade), enquanto o segundo dirime os conflitos de normas jurídicas no
tempo (valendo o principio da nã o retroactividade).
2) O problema do DIP decorre da existência simultâ nea, em territó rios diversos, de leis
distintas – problema de dinâmica das relações jurídicas; o problema direito transitó rio
deve-se ao fenó meno da sucessã o no tempo, no seio da mesma ordem jurídica, de duas
normas ou complexos normativos diferentes – isto é, sã o normas que ao tomar o lugar de
outras normas vêm interferir com situaçõ es jurídicas preexistentes – problema de dinâmica
de leis. Estes dois fenó menos levam-nos a tomar consciência de um problema que lhes é
comum: o dos limites de aplicabilidade das normas jurídicas (DIP – no espaço; direito
transitó rio – no tempo). No fundo, trata-se sempre de apurar a qual de duas normas ou dois
sistemas normativos pertence a espécie jurídica considerada.
3) Concluindo, ambos têm o mesmo objectivo – garantir a estabilidade e continuidade das
situaçõ es jurídicas interestaduais e tutelar a confiança e as expectativas dos interessados.

3.1.2.DIP e o direito interterritorial e interpessoal.


À s vezes os conflitos de leis no espaço surgem da coexistência de vários sistemas de direito
no interior do mesmo Estado – sã o ordenamentos plurilegislativos. (ex: EUA, Canadá, Reino Unido,
Espanha, etc…)

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Estes casos apresentam uma analogia flagrante com os conflitos internacionais. Em todos se
dá a circunstâ ncia de cada um desses sistemas jurídicos que entram em conflito ter o seu territó rio
pró prio, que nã o coincide com o territó rio do Estado, mas que é uma divisã o desse territó rio, uma
regiã o ou província do país. A estes conflitos interprovinciais, interlocais ou federais presidem
critérios idênticos aos do DIP propriamente dito. Mas entre as duas matérias existem diferenças:
1) Nã o poderá confiar-se à lei nacional das partes a regulamentaçã o do estatuto pessoal, visto
a nacionalidade ser uma só : o elemento de conexã o decisivo será o domicílio/residência.
2) Nã o poderá invocar-se a ordem pú blica para nã o aplicar a lei doutra província;
3) As normas de conflitos serão, em regra, ú nicas para todo o territó rio do Estado;
4) As sentenças proferidas numa província serão exequíveis de pleno direito nas restantes.

Existe outra variedade de conflitos internos – os conflitos interpessoais. Sã o leis que regem
distintas categorias de pessoas no mesmo territó rio. Existia essencialmente nos países coloniais,
em que subsistia um direito consuetudiná rio local e uma lei metropolitana. Como Portugal é um
Estado de legislaçã o unitá ria, estes problemas nã o se colocam. Também se pode verificar por
razõ es religiosas. Pode suceder, neste contexto, que uma relaçã o privada envolva pessoas destas
duas diferentes categorias, e seja necessá rio aplicar uma regra de conflitos.

3.1.3.DIP e direito privado uniforme.


O Direito privado uniforme caracteriza-se por normas materiais de direito privado com
vigência internacional, distinguindo-se do DIP por este ser de natureza, nã o material, mas sim
formal.
As finalidades de um e de outro sã o claramente distintas: o DIP procura resolver os conflitos de
leis, enquanto o direito uniforme trata de os suprimir por intermédio de leis idênticas (p.e.
convençõ es). O DIP deixaria de ser necessário se o direito privado fosse o mesmo universalmente –
tal é utó pico, como sabemos.
Porém, nada tem de utó pico a possibilidade de unificaçã o do direito privado quando limitada a
determinadas matérias, sobretudo as de direito mercantil, ou quando pensamos em grupos de
países estreitamente ligados entre si por interesses econó micos (UE). Raramente, porém, a
unificaçã o será completa, o que basta para que o DIP mantenha a sua razã o de ser, já que estas leis
uniformes nã o se aplicam a todos os países e muitas das vezes deixam de fora determinadas
matérias, continuando a ser precisas as regras de conflitos nestes casos.

3.1.4.DIP e o direito comparado.


O DIP, sendo interno pela fonte, desempenha uma funçã o internacional – promover o
reconhecimento e a aplicaçã o no â mbito do Estado em que vigora de conteú dos e preceitos jurídicos
estrangeiros. Isto faz, desde logo, ressaltar a importâ ncia do papel que compete à investigaçã o
comparatística nos domínios do DIP.
Vá rias sã o as funçõ es atribuídas ao direito comparado:
1) Entre as duas GGM: realização de um direito mundial do séc. XX. Esta tese de unificaçã o
jurídica à escala mundial defendida por LEVY-ULMANN entra, porém, em declínio.
2) Para outros, a funçã o capital do direito comprado consiste em procurar no conjunto dos
sistemas legislativos os princípios básicos de todo o ordenamento jurídico e de todo o
direito
– uma espécie de direito modelo, e que todo o legislador devia inspirar-se. Tinha o direito

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comparado a importante funçã o de captar os princípios jurídicos fundamentais e demarcar


a á rea inviolá vel de direito essenciais da pessoa humana, etc…
3) Para outros, o direito comprado tem como escopo o estudo sistemá tico das diferentes
instituiçõ es jurídicas, tal como se perfilam e desenham nas leis dos vá rios estados, em
ordem a determinar o que haja de comum e de diferente entre elas. O DIP é o primeiro
beneficiá rio destes estudos comparativos – porque o direito comparado procura apurar
quais os diferentes meios técnicos a que os vá rios legisladores recorrem para levar a cabo
funçõ es socialmente equivalentes.
Ora, para o DIP, com a sua função de coordenar a aplicação de todas as leis existentes, o direito
comparado tem uma funçã o primordial. O conhecimento crítico das divergências existentes entre
os sistemas conflituais dos Estados é essencial à tarefa de unificação das regras de conflitos e, bem
assim, à elaboração dessas normas pelo legislador interno.

3.1.5.DIP e Direito Constitucional


Há três questõ es a responder:
1) Sã o as regras de conflitos susceptíveis de entrar em colisã o com os preceitos
constitucionais, e especialmente os relativos à matéria dos direitos fundamentais?

Este problema colocou-se na Alemanha (Caso Espanhol), formando-se duas correntes de


opinião legítimas com vá rios adeptos.
Ora, uma delas considerava que o DIP se move num espaço exterior à Constituiçã o, num espaço
livre relativamente aos princípios e normas constitucionais. Nã o compete, portanto, ao direito de
conflitos de estender a validade de um princípio reconhecido no direito interno além do seu
pró prio domínio de aplicaçã o, atribuindo-lhe um papel decisivo na escolha da lei competente. Deve
escolher-se sempre a regra de conflitos que se recomende segundo a natureza das coisas. (DÖ LLE)
Em suma, as regras de conflitos sã o regras técnicas neutrais, que não têm o sentido de servir a
justiça material.
Esta visã o do DIP é profundamente erró nea. Certamente, nã o sã o os valores da justiça material
que no DIP predominam. Este propõ e-se finalidades e norteia-se por princípios que nã o coincidem
em regra com os que se afirmam no plano do direito material. Contudo, os seus preceitos não sã o
meros preceitos de ordem, porque a ordem para que tende não é cega em valores e arbitrá ria, mas
associada a certos fins: justiça conflitual.
Assim, as regras de conflitos nã o sã o, portanto, regras técnicas axiologicamente neutrais, só
que a justiça conflitual que servem é de cunho predominantemente formal, nele avultando a
certeza e a estabilidade jurídica. Estas normas exprimem uma valoraçã o, que nã o está imune a
juízos de inconstitucionalidade, mostrando-se o DIP aberto a certos juízos de valor jurídico-
materiais.
Em suma, as normas de DIP sã o susceptíveis de colidir com os princípios constitucionais, e de
serem assim objecto de um juízo de inconstitucionalidade.

2) Podem os nossos tribunais recusar a aplicaçã o a um preceito ou complexo normativo


estrangeiro, indiscutivelmente aplicável segundo as normas de DIP da lex fori, mas que pelo
seu conteú do colida com algum dos direitos fundamentais consagrados na CRP?

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A nossa doutrina considera que a Constituiçã o constitui um limite autó nomo à aplicaçã o do
direito estrangeiro, quando este resultaria numa violaçã o dos preceitos constitucionais. Esta é uma
questã o de direito constitucional e nã o de DIP.
Isto nã o quer dizer, porém, que em qualquer situaçã o internacional a mínima desconformidade
com uma norma constitucional implica a intervençã o deste limite. Devemos contrabalançar, neste
â mbito, a afirmaçã o dos valores bá sicos da nossa ordem com os valores fundamentais de certeza e
segurança jurídica do comércio internacional. Ou seja, faz-se um juízo na intervençã o da
constituiçã o como um limite autó nomo.
Mas nã o é apenas quando um certo preceito é contrá rio à CRP que podemos obstar à aplicaçã o
de direito estrangeiro. O DIP prevê o mecanismo de reserva de ordem pú blica internacional. Este
mecanismo está regulado no art. 22º CC. O limite da CRP nã o se confunde com a reserva de ordem
pú blica internacional, uma vez que as noçõ es de norma constitucional e princípios de ordem
pú blica internacional nã o sã o coincidentes. FERRER CORREIA defende que o limite da CRP só
pode funcionar quando os pressupostos da ordem pú blica internacional estejam preenchidos. Sã o
eles:
1) Que se trate de valores de má xima importâ ncia do foro.
2) Existência de uma conexã o significativa da espécie a julgar com aquele
ordenamento A verificaçã o destes pressupostos permite dar resposta afirmativa à questã o
posta.

NUNO ASCENSÃO SILVA determina, pois, que há três “degraus” a percorrer neste
â mbito:
a) Há um leque de casos que podemos chamar de “normas de aplicaçã o universal”, como as
relativas aos DLG’s que têm sempre que ser respeitados.
b) Há outros casos em que estamos ante normas que devem aplicar-se mesmo que a OJ
portuguesa nã o seja a competente por força da regra de conflito – sã o as chamadas normas
de aplicaçã o necessá ria e imediata (p.e. art. 53º CRP)
c) Fora destes casos caímos na vala comum da ordem jurídica internacional, só podendo
afastar a lei estrangeira quando verificados os requisitos anteriormente verificados.

3) Podem os tribunais portugueses recusar-se a aplicar o direito estrangeiro competente, com


fundamento na sua inconstitucionalidade perante a Constituiçã o do país de origem?

A resposta a esta questã o deve situar-se no plano pró prio, isto é, no plano dos critérios gerais
que hã o-de orientar o juiz na aplicaçã o do direito estrangeiro. O art. 23º do CC estabelece que, na
aplicaçã o de lei estrangeira, o julgador deve mover-se no quadro dessa lei e orientar-se pelos
princípios nela fixados.
Assim, se em dado sistema estrangeiro determinado preceito nã o é aplicado pelos tribunais
ordinários por colidir com normas da respectiva constituiçã o, cabe ao juiz português dar a essa
circunstâ ncia o devido valor, e abster-se identicamente de observar.
A resposta será , pois, a seguinte: nã o cabe ao julgador sindicar a compatibilidade constitucional
dos preceitos da lei estrangeira, devendo aplicá -la, tal como realizaria o juiz do respectivo sistema
jurídico de origem da norma.
MOURA RAMOS defende que, se o juiz local, perante a sua pró pria constituiçã o nã o tem
poderes para levantar o problema da constitucionalidade, a directiva que o juiz português deve
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recolher é o de decalcar os seus poderes dos do juiz estrangeiro e nã o deve fazer mais. Se o juiz
estrangeiro tem poderes de apreciar a constitucionalidade, podemos seguir a mesma orientaçã o.

3.1.6.DIP e o Direito Europeu

Há cada vez mais uma relação íntima entre o DIP e o direito europeu – fenó meno da
comunitarizaçã o ou europeizaçã o do DIP.
As diferenças entre o DIP e o DUE sã o manifestas (MOURA RAMOS):
• O DIP tem um cará cter estadual ou interno, sendo constituído pela “normaçã o que em
cada sistema jurídico regula as relaçõ es plurilocalizadas”, enquanto que o DUE é direito
internacional.
• O DIP tem por objecto situaçõ es privadas, enquanto que o objecto do DUE comporta o
estatuto, organizaçã o e funcionamento da UE, bem com as relaçõ es cuja disciplina é da sua
competência.
• Finalmente, enquanto que o DIP, pressupondo uma série de ordenamentos aplicá veis à s
relaçõ es que regula, visa coordenar estes ú ltimos, o DUE constitui uma ordem jurídica pró pria, isto
é, um conjunto de princípios e normas com fonte pró pria e que sã o aplicadas pelo TJUE.

Apesar disto, o DIP e o DUE possuem certas afinidades: para além de se ocuparem
fundamentalmente de situaçõ es que ultrapassam as fronteiras de uma só ordem jurídica, a
existência do DUE faz surgir novas relaçõ es plurilocalizadas, entre o ordenamento europeu como
um todo e uma ordem que lhe seja exterior.

Quando pensamos nas relaçõ es entre o DUE e o DIP, podemos conceber cinco níveis de
relacionamento:

1)Incidência do DUE sobre o conteúdo das regras de conflito internas.


Dizemos que o DIP tem fontes de direito europeu, ou que há regras de conflito europeias
que vigoram entre nó s sem qualquer acto de recepçã o.

 Primeira fase: Cooperação Intergovernamental


A adopçã o de regras uniformes de DIP comum aos Estados-membros começou com o
Tratado de Roma, que previa a possibilidade de os EM celebrarem entre si acordos, convençõ es
internacionais, assegurando o reconhecimento mú tuo de sociedades e o reconhecimento de
sentenças (art. 220.º). A CEE nã o interferia nesta regulaçã o. Esta é uma fase de cooperação
intergovernamental: a interferência da CEE começou por ser uma cooperaçã o intergovernamental,
porque se achou que era necessá rio assegurar uma liberdade, que era a liberdade de circulaçã o de
sentenças.

Quais foram os principais instrumentos adoptados nesta fase?


1. Convenção de Bruxelas: Ao abrigo deste art. 220.º (mais tarde 293.º), nasceu desde logo a
Convençã o de Bruxelas de 1968, sobre competência judiciá ria e execuçã o de decisõ es em matéria
civil e comercial (hoje Regulamento n.º 44/2001), que abrangia regras de reconhecimento e execuçã o
de sentenças estrangeiras e regras relativas à competência internacional. Há ainda outros textos que

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foram elaborados ao abrigo deste artigo mas que nunca chegaram a entrar em vigor por motivos
vá rios – reconhecimento mú tuo de sociedades (1968), processo de falência (1975), citaçã o e
notificaçã o de actos judiciais (1997), e convençã o de Bruxelas II, com vista a uniformizar as regras
em matéria de divó rcio.
A Convençã o visou facilitar a livre circulação de sentenças, estabelecendo um regime mais
liberal do que o do nosso Có digo Civil. Esta liberalidade está , desde logo, no princípio do
reconhecimento automá tico (a sentença produz automaticamente efeitos), que veio substituir o
sistema de controlo prévio. Porém, é necessá rio ter cautelas: designadamente, garantir que a
sentença proferida no estrangeiro tinha uma competência legítima, sendo por isso necessá rio
garantir a uniformização da competência internacional – daí que a Convençã o tivesse igualmente
normas nesta matéria.
Este regime foi alargado através de uma convençã o gémea, revista em 97, que se aplica nas
relaçõ es entre os Estados-Membros e Estados terceiros integrados no espaço econó mico europeu.

2. Convenção de Roma: o grau de unificaçã o obtido pela Convenção de Bruxelas


possibilitava o forum shopping: quando o legislador estabelece as competências internacionais,
muitas vezes os foros têm competência concorrente. O facto de existirem foros concorrentes
permite uma maior facilidade no acesso à justiça; porém, decorre daqui que, se a mesma acção
pode ser interposta em sítios diferentes e se as regras de conflitos forem diferentes, a pessoa
interpõ e a acção onde sabe que vai ser aplicado o direito que lhe é mais favorá vel. Assim, os
Estados-Membros decidiram prosseguir a uniformizaçã o jurídica das regras de conflito através da
adopçã o da Convenção de Roma, sobre a lei aplicá vel à s obrigaçõ es contratuais (1980). Esta
Convenção deu mais tarde lugar ao Regulamento Roma I.

Note-se que, nesta fase, as normas ainda nã o são criadas pela UE, mas sim pelos EM’s
através de convençõ es internacionais. Estas convençõ es tinham um protocolo internacional que
atribuía ao TJUE competência para poder decidir, a título prejudicial, questõ es relativas à
convençã o.
MOURA RAMOS fala ainda de uma fase intermédia, antes da fase da europeizaçã o, da
incidência, sobre o DIP, do processo de aproximaçã o das legislaçõ es nacionais. Destaca-se nesta
fase a introduçã o do art. 100.º-A pelo Acto Ú nico Europeu no Tratado CEE (hoje art. 95.º do TUE) e
a adopçã o de medidas tendo por objecto o estabelecimento e o funcionamento do mercado interno,
que levaram à adopçã o de vá rias directivas que continham regras de DIP. Esta fase é marcada por
um cará cter fragmentário, uma vez que as regras de conflitos se limitavam a garantir a
imperatividade internacional de certos patamares de unificaçã o do direito material.

 Segunda fase: Europeização


Entretanto, o Tratado de Roma foi revisto e o Tratado de Amsterdã o trouxe vá rias
novidades nesta matéria, tendo marcado o início da fase da europeizaçã o. Este Tratado veio prever
uma competência comunitá ria específica em matéria de DIP, ou seja, veio permitir que aquilo que
se fazia por convençõ es se passasse a fazer através de actos comunitários (art. 3.º/c), art. 61.º/c) e
art. 5.º). Houve uma unilateralizaçã o dos textos de DIP. O TFUE continua a prever competências
idênticas – art. 4.º/2, art. 67.º e ss. (particularmente art. 67.º/4) e 81.º (antigo art. 65.º).

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

Assim, com a entrada do Tratado de Amsterdã o em vigor, ocorreu a conversã o das


convençõ es internacionais existentes em regulamentos. Para além disto, o TA veio dar origem a um
desenvolvimento crescente das regras de conflitos – permitiu, desde logo, que a Convençã o de
Roma fosse transformado no Regulamento Roma I; e voltou a pensar-se na uniformizaçã o das
regras de conflitos em matéria de responsabilidade extracontratual (Regulamento Roma II).
Depois disto, há neste momento já regras de conflito em matéria de divó rcio (Regulamento Roma
III), sucessõ es e obrigaçõ es alimentares. Neste momento está em estudo a uniformizaçã o em
matéria de regime patrimonial do casamento.
Este processo teve duas consequências:
• Para alguns EM, devido à necessidade de unanimidade, foi necessá rio permitir que só em
alguns casos ficassem vinculados.
• A partir do momento em que a UE adopta actos comunitários nestas matérias, para além
de derrogar as regras internas, traz uma limitaçã o da competência externa dos Estados, que já nã o
podem celebrar livremente convençõ es internacionais. Tanto é assim que, hoje em dia, nas
instâ ncias que faziam a unificaçã o do DIP (Conferência da Haia e Conselho da Europa) há um
representante da UE, que conduz as negociaçõ es e a UE tem de aderir aos textos. Só depois desta
adesã o é que a convençã o passa a valer nos EM’s.

Há assim regras da UE que entram em vigor em Portugal automaticamente – os


regulamentos. Mas há outros actos comunitários, como as directivas, que necessitam de
transposiçã o e que visam a aproximaçã o do direito material, tendo em vista certos princípios (ex:
protecçã o do consumidor nas cláusulas abusivas). O legislador europeu tem sempre a preocupaçã o
de evitar que esta uniformizaçã o possa fracassar por causa das regras de DIP, porque no â mbito
das regras de direito privado vale o princípio da autonomia e facilmente podem determinar a
aplicaçã o de uma outra lei. Como tal, nas directivas há normalmente uma norma que restringe a
possibilidade da escolha da lei, que dispõ e sobre o â mbito de aplicaçã o especial (ex: cláusulas
contratuais gerais).

Concluindo, neste primeiro nível de relacionamento, temos:


1. Regras de conflito europeias que vigoram automaticamente nos ordenamentos internos.
2. Regras de conflito avulsas, que resultam da transposiçã o de directivas.

2) As regras de conflito internas enquanto obstáculo ao funcionamento dos princípios


europeus
Para além de ter provocado o aparecimento de novas fontes de DIP, o direito europeu veio
limitar ou condicionar a actuaçã o das regras de DIP dos Estados, podendo levar à desaplicaçã o das
normas internas que o contradizem. No que toca aos conflitos de lei, encontramos os seguintes
pontos de tensã o:
• Aplicaçã o da lei nacional: a conexão da nacionalidade pode levar à violaçã o do princípio
da nã o discriminaçã o em detrimento da nacionalidade.
• Condiçã o jurídica do direito estrangeiro: nã o devemos privilegiar a aplicaçã o da nossa lei,
mas há sistemas jurídicos onde se viola o princípio da igualdade porque se acha que o direito
estrangeiro é matéria de facto e não é conhecimento oficioso.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

• Reconhecimento das situaçõ es constitutivas dos estrangeiros: em nome do princípio da


liberdade de circulaçã o de pessoas, por força do funcionamento das regras de conflito nã o
devemos negar a aplicaçã o do direito estrangeiro e negar os estados dos estrangeiros.
• Fraude à lei e ordem pú blica internacional: no que toca à fraude à lei, este instituto pode
constituir um obstá culo à liberdade de estabelecimento. A mesma coisa com a ordem pú blica: é um
mecanismo clá ssico do DIP que tenta evitar a violaçã o dos valores fundamentais de uma ordem
jurídica, por força da aplicaçã o de regras de conflito. Isto pode colidir com o DUE, podendo impedir
a aplicaçã o de outra lei de um EM e violar o princípio da igualdade.

Em relação ao direito internacional:


• Condiçã o dos estrangeiros: por causa do princípio da igualdade e nã o discriminaçã o em
favor da nacionalidade, as pessoas individuais ou colectivas de origem estrangeira devem ter o
mesmo estatuto. Por ex., no CSC (art. 4.º), há regras que restringem o estabelecimento de regras
estrangeiras em Portugal.
• Regras internas relativas ao concurso da nacionalidade: estas podem pô r em causa os
valores europeus. É o que sucede com os nossos arts. 27.º e 28.º da lei da nacionalidade, relativos
ao concurso de nacionalidades. Ver casos Michelleti, Garcia Avello e Hadami.

3)O direito europeu enquanto limite à aplicação da lei estrangeira


O direito europeu pode funcionar como limite à aplicação da lei estrangeira designada pela
regra de conflitos. Certos autores dizem que devemos pô r dentro da excepçã o da ordem pú blica
internacional o direito europeu, enquanto que outros, mais ousados, defendem a constituição do
direito europeu como exceçã o autó noma.

4)Direito privado uniforme de origem europeia


Nalguns casos, temos direito material privado uniforme de origem europeia. Essas normas
sã o criadas directamente pela UE – por ex., o AEIE.

5)TJUE
Temos de pensar em dois fenó menos:
• Há situaçõ es em que o TJUE decide litígios da vida privada internacional aplicando regras
de conflito contidas nos tratados. Quando é que isto sucede? Por ex., o art. 268.º do TFUE diz-nos
que o TJUE é competente para conhecer litígios relativos à reparaçã o de certos danos
(responsabilidade extracontratual). Como é que resolve estes litígios? O art. 340.º responde a esta
questã o. Em matéria de responsabilidade, ver o art. 272.º e 340.º.
• O TJUE, ao aplicar direito europeu, designadamente normas relativas à funçã o pú blica,
resolve questõ es prejudiciais de direito privado e que manifestamente estã o fora da competência
da UE. Por ex., é necessá rio concretizar o conceito de filho, ou de casado.

Resumindo, há quatro pontos essenciais a ter em consideraçã o:


1) Os princípios do DUE vinculam o legislador nacional graças ao princípio do primado da
UE, o que determina que as regras de conflitos nã o podem ser contrá rias à s regras da UE, porque
senã o serã o desaplicadas. Destaca-se o princípio da nã o discriminaçã o em razã o da nacionalidade
que é um verdadeiro limite à s regras de conflitos internas.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

2) Os institutos e a pró pria aplicaçã o do DIP e dos seus institutos estão limitados pelo DUE
(p.e. pelas liberdades fundamentais) e só podem ser utilizados quando não se puserem em causa
esses valores fundamentais. Ver acó rdã o Micheletti.
3) A UE hoje é legislador conflitual, adoptando regras de conflitos ao nível europeu, para
permitir a harmonia jurídica internacional, unificando-as.
4) Há expedientes do DUE que funcionam como uma autêntica regra de conflitos. (P.e.
Acó rdã o Cassis de Dijon, que contém o princípio do reconhecimento mú tuo das legislaçõ es
(liberdade de circulaçã o de serviços ocasionais e mercadorias - à produçã o de uma mercadoria, é
aplicá vel a lei do país de origem).

4. Fontes do DIP
4.1. Fontes internas
Tradicionalmente o DIP era um direito de fonte estadual, de criaçã o meramente interna. As
fontes internas a considerar sã o a lei, o costume, a jurisprudência e a ciência jurídica (doutrina).

 Lei
o Temos, em primeiro lugar, a CRP, que é fonte de DIP por foça dos vários planos
de incidência sobre o Direito de Conflitos e domínios conexos. (ex: art. 8º, 13º,
14º, 15º, 87º, 99º/d). Destacam-se as alteraçõ es realizadas à s normas do CC, de
modo a adequar o DIP aos novos princípios constitucionais - igualdade entre
homens e mulheres e nã o discriminação dos filhos nascidos fora do casamento.
o Lei ordinária: Có digo Civil (arts. 14º, 15º a 65º, 348º, 711º, 1651º, 2223º), Có digo
Comercial (ex: arts. 4º/2, 6º, 7º, 12º, 110º, etc…) É de notar que a especialidade de
algumas normas de conflitos contidas no Có digo Comercial é meramente formal,
por nã o ser justificada pelas circunstâ ncias particulares do sector a que se aplica.
o Leis avulsas.
 Costume: O costume é ainda fonte importante do DIP em países em que este nã os e
encontra codificado, como na França. Perante um sistema codificado, como o nosso, o
costume pode ainda ter relevâ ncia, ainda que limitada, no desenvolvimento e
aperfeiçoamento do sistema. Trata-se, essencialmente de um costume jurisprudencial,
que se forma com base numa jurisprudência uniforme e constante.
 Jurisprudência: Tem importância para o desenvolvimento e aperfeiçoamento do DIP,
embora seja mais relevante nos casos em que o sistema nã o é codificado ou quanto
vigora a regra do precedente. LIMA PINHEIRO considera que o papel desempenhado
pela jurisprudência portuguesa no aperfeiçoamento do DIP tem sido modesto, sendo de
registar que não raramente as decisõ es aplicam o direito material português a situaçõ es
transnacionais, o que sacrifica valores e princípios que enformam a justiça deste ramo
do Direito.
 Ciência Jurídica: Tem uma importâ ncia enorme, já que é o labor doutrinal que tem
permitido aproximar os sistemas baseados em fontes nã o escritas dos sistemas
codificados e preparar a codificaçã o. O cará cter internacional e universalista do DIP
permite ainda que a ciência jurídica aproxime os sistemas nacionais de DIP e estimule
um intercâ mbio fecundo que contribui para a evolução deste ramo do Direito.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

Nã o obstante, as fontes internas foram sofrendo um certo esvaziamento, devido à


multiplicação das fontes internacionais – convençõ es, regulamentos, limites europeus ao
funcionamento do nosso sistema conflitual. O CC nã o nos dá uma imagem fiel do DIP que vigora
em Portugal. O art. 45.º tem uma aplicaçã o residual (Roma II), assim como o art. 46. 47.º (Roma II),
o art. 55.º (Roma III), em matéria de sucessõ es, etc.
Existe uma dispersã o de fontes, com várias normas avulsas internacionais e internas –
existem regimes especiais em certas matérias que prevêem as suas pró prias normas de conflito
(muitas vezes em resultado da transposiçã o de directivas).

4.2. Fontes internacionais e europeias

4.2.1.Fontes internacionais
O DIP nã o tem necessariamente um cará cter nacional, seja quanto à s suas fontes, seja quanto
aos ó rgã os de aplicaçã o. Nada obsta, por isso, à vigência de normas de conflitos de fonte
internacional quer na ordem jurídica internacional, quer na ordem jurídica interna, caso tal decorra
do sistema de recepçã o do DIPú blico por ela adoptado.
Pode falar-se hoje de um Direito Internacional de Conflitos que se aplica a conflitos entre
jurisdiçõ es internacionais ou quase internacionais. As suas normas são necessariamente normas
internacionais e estã o contidas em tratados internacionais ou em direito derivado de organizaçõ es
internacionais com vista à determinaçã o do direito aplicá vel pelas jurisdiçõ es. Este direito de
conflitos de fonte internacional opera ao nível da OJ internacional.
Também o DIP privado vigente na OJ de um Estado pode ter fontes supraestaduais, que é o
que se verifica perante um sistema de relevâ ncia do Direito Internacional na esfera interna como o
consagrado no art. 8º CRP, que é um sistema de recepçã o automá tica. De entre estas fontes
internacionais de direito de conflitos vigente na OJ interna destacam-se as Convençõ es
Internacionais cujas normas vigoram uma vez ratificadas, aprovadas e apó s publicaçã o e enquanto
a Convençã o vincular internacionalmente o Estado português. Vigoram como normas
internacionais na ordem interna.
Também vigoram na esfera interna como normas internacionais as normas de Direito
derivado das organizaçõ es internacionais de que Portugal seja parte. (art. 8º/3 CRP) e as normas
de conflitos contidas em Regulamentos Europeus, que vigoram na esfera interna como normas de
DUE. (art. 8º/4 CRP) Todas estas normas destinam-se a unificar as normas de conflitos que
vigoram na rodem jurídica dos Estados contratantes/membros. Sendo, assim, só é interno o Direito
de conflitos que é originariamente de fonte interna.

Ora a fonte mais importante do Direito Internacional de Conflitos sã o os tratados


internacionais que instituem ou enquadram jurisdiçõ es internacionais ou quasi-internacionais –
ex: Convenção de Washington (CIRDI). Analisaremos agora as fontes internacionais do Direito dos
conflitos vigente na OJ interna:
1) Costume internacional (?) - Hoje discute-se a existência de certas directrizes de
DIPú blico geral sobre a conformação global dos sistemas estaduais de DIP e a
possibilidade de, por via consuetudiná ria, se terem formado algumas poucas regras de
conflitos internacionais. FERRER CORREIA entende que é possível extrair dos princípios
gerais de DIPú blico directrizes para a conformação dos Direitos de Conflitos nacionais,

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em especial em matéria de direito dos estrangeiros e igualdade dos Estados. Entende-se


em ú ltima instâ ncia que o DIP tem o seu fundamento no Direito das Gentes e no
reconhecimento de coexistência de uma pluralidade de ordens jurídicas nacionais.
a. Quanto à possibilidade de existirem normas de conflitos que têm por fonte o
costuma internacional, a doutrina já se divide. LIMA PINHEIRO defende que
algumas regras ou princípios de conexã o, geralmente consagrados pelos
sistemas de DIP nacionais sejam já acompanhados de uma convicçã o de
vinculatividade. Ex: critério da lex rei sitae.
2) Tratados internacionais – sã o a principal fonte internacional de direito dos conflitos
vigente na OJ interna. Podem ser multilaterais ou bilaterais. Ex: Convençã o de Genebra,
Convençõ es emanadas das Conferências de Haia desde 1902, outras convençõ es de
direito material unificado que contêm ou de onde se inferem soluçõ es conflituais e
convençõ es em matéria de direito dos estrangeiros; CEDH e outros instrumentos que
intervêm transversalmente e podem funcionar em limitaçã o de regimes conflituais, sejam
eles internos, sejam eles de origem convencional.
3) Jurisprudência internacional – é fonte de direito de conflitos internacional, mas só
indirectamente, mediante a formaçã o de costume jurisprudencial, a jurisprudência
internacional pode ser fonte de Direito dos Conflitos que opere na ordem interna.
4) Princípios comuns aos sistemas nacionais – Tendem a desempenhar algum papel como
fonte do DIP de arbitragem transnacional, designadamente quanto à conformaçã o de
uma ordem pú blica transnacional. Já nã o sã o fontes de direito dos conflitos aplicá vel a
situaçõ es que só relevam na OJ estadual.

4.2.2.Fontes Europeias
Encontramos normas de DIP nos tratados instituintes e, principalmente, no direito
derivado emanado dos ó rgã os da UE. Além do mais, com a entrada em vigor do Tratado de
Amesterdã o, a UE passou a ter competência em matéria de DIP. O que era feito no â mbito das
convençõ es internacionais passou a ser feito através de regulamentos europeus. Efectivamente
estes sã o hoje a fonte principal de internacionalizaçã o do DIP. Destacam-se os regulamentos
europeus que derrogam as regras internas dos Estados e acabaram, de certa forma, por esvaziar as
regras do nosso CC. Mas ainda há outra dimensã o - transposição das directivas europeias que leva
à criaçã o ao nível interno de regras de conflitos especiais em diplomas avulsos. Para alé m disso,
as normas de DUE que consagram as liberdades fundamentais també m tê m incidê ncia
sobre o Direito dos Estrangeiros, podendo assumir significado para o DIP.
O Direito de conflitos de fonte europeia pode operar ao nível da ordem jurídica da UE ou
das ordens jurídicas dos EM’s. Opera ao nível da OJ da UE nos casos em que se trata de direito dos
conflitos aplicá vel pelas jurisdiçõ es europeias – é o que se verifica com o direito de conflitos
contido no TFUE (ver arts. 268º TFUE, relacionado com o art. 340º/2; e ver art. 272º TFUE,
relacionado com o art. 340º/1 TFUE). O DUE também é fonte de direito de conflitos vigente na
ordem jurídica interna. O TFUE nã o contém normas de conflitos que se dirijam aos ó rgã os de
aplicaçã o do direito dos EM’s. O significado do direito derivado como fonte de direito de conflitos
vigente na OJ interna foi limitado antes do Tratado de Amesterdã o, já que a maior parte destas
disposiçõ es conflituais estavam previstas em directivas. Apó s esse tratado, inicia-se uma vasta
comunitarizaçã o do DIP

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com fundamento nos arts. 61º/c e 65º do TCE (redacçã o pó stuma ao Tratado de Amesterdã o),
graças à adopçã o de numerosos regulamentos no domínio do DIP (ex: ROMA I, ROMA II).
Com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, o art. 3º/2 TUE veio referir-se ao
estabelecimento do mercado interno. A competência dos ó rgã os da UE em matéria de DIP passou a
estar incluída no Título V, da Parte III do TFUE. Veja-se o art. 67º e ainda o art. 81º relativo ao
princípio do reconhecimento mutuo de decisõ es no â mbito da cooperaçã o judiciá ria em matéria
civil.
Os actos em matéria de DIP sã o, em princípio, decididos por maioria qualificada no quadro
do processo legislativo ordiná rio (art. 81º/2 TFUE). Com excepçã o das medidas relativas ao direito
da Família que tenham incidência transfronteiriça que estã o estabelecidas pelo Conselho, que
delibera por unanimidade, apó s consulta ao Parlamento europeu (art. 81º/3 TFUE)
A necessidade de uma codificaçã o europeia do DIP tem também sido objecto de discussão –
principalmente com respeito à Parte Geral do Direito de Conflitos. Tal visa a unificaçã o do DIP à
escala europeia, o que pode ser frustrado pelas diferentes soluçõ es adoptadas pelos sistemas
conflituais dos EM’s relativamente à interpretaçã o e aplicaçã o dos instrumentos europeus em
questõ es como a resolução de concursos de nacionalidades, qualificaçã o, fraude à lei, aplicação do
direito estrangeiro, etc…
LIMA PINHEIRO entende que a opçã o por uma europeizaçã o do DIP nã o será consequente
se nã o for acompanhada por uma unificaçã o do regime aplicá vel a estas questõ es. A competência
dos ó rgã os da UE em matérias de DIP nã o é exclusiva, mas partilhada com os EM’s. Nas matérias
em que a Uniã o ainda nã o tiver exercido a sua competência reguladora, os EM’s sã o livres de
legislar. No entanto, uma vez exercida, esta competência exclui, ou pelo menos, limita a
competência dos EM’s (art. 2º/2 TFUE) Para mais, a UE tem competência externa relativamente à s
matérias em que exerceu as suas competências internas – ver art. 216º e art. 3º/2 TFUE (que
reconhece competência exclusiva à EU em matéria de DIP, no sentido de que só esta pode celebrar
convençõ es internacionais com Estados terceiros, quando estas afectem as normas europeias.).

4.2.3.Fontes transnacionais
LIMA PINHEIRO defende a existência de fontes transnacionais, referindo-se a processos
específicos de criaçã o de proposiçõ es jurídicas no seio da comunidade dos operadores do comércio
internacional que sã o independentes da acçã o dos ó rgã os estaduais e supraestaduais. Destaca-se o
costume jurisprudencial arbitral e os regulamentos de centros de arbitragem.

4.2.4.Problemas da internacionalização do DIP.


Os tempos modernos sã o muito marcados pelas fontes internacionais de DIP. Quais sã o os
problemas que esta internacionalizaçã o trouxe? Falamos de problemas de meta-unificaçã o.
• Conflitos de normas internacionais: Temos de compatibilizar as normas contidas nos
vá rios instrumentos internacionais. Temos vá rias convençõ es, provenientes de organismos
diferentes, que podem colidir entre si ou com regulamentos. Encontramos disposiçõ es de
compatibilidade dos regulamentos e convençõ es para resolver este problema.
• Outro problema tem a ver com o relacionamento entre as fontes internacionais e
internas. No que toca ao DUE, a questã o nã o se coloca tanto porque os regulamentos têm vigência
automá tica; já no que à s convençõ es diz respeito, pode discutir-se de que modo as devemos
introduzir no nosso sistema e qual a técnica legislativa a usar. Apesar do princípio do primado,

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pode ser ú til haver uma referência ao DIP internacional no texto interno. Isto pode ser feito através
de vá rios métodos:
 Referência genérica: o legislador limita-se a lembrar a existência de fontes externas.
 Referência específica: a propó sito de cada uma das matérias, diz qual é o instrumento
internacional que aí vigora.
 Incorporação: o legislador reproduz internamente as soluçõ es já contidas nas situaçõ es
internacionais. Isto torna o sistema mais transparente para o juiz, mas tem um risco – as
normas contidas no tratado devem ser interpretadas de acordo com o espírito do
pró prio tratado, e com a incorporação podemos ser levados a esquecer esta regra.

5. Génese e desenvolvimento histórico do DIP (Matéria Facultativa)

Foi em finais do século XII que nasce o DIP na maneira como hoje o conhecemos: era
necessá rio determinar a lei aplicável, uma vez que, para além do direito comum romano, cada uma
das comunidades (cidades italianas) ia criando as suas pró prias leis – os estatutos. A partir daí,
colocava-se a questã o de saber qual a lei aplicá vel.
Até ao século XVII/XVIII, foi-se desenvolvendo o DIP, através de vá rias doutrinas
estatutá rias. Estas doutrinas olhavam para cada um dos estatutos e, analisando essa norma,
procuravam determinar o seu â mbito de aplicaçã o. A grande divisão inicial era se o estatuto seria
territorial, aplicando-se na comunidade que criou essa norma a quem quer que fosse; ou extra-
territorial / pessoal, no sentido em que acompanhariam a pessoa originá ria de certa comunidade
onde quer que se movimentasse.

6. O Método do DIP

Hoje em dia reina um certo pluralismo metodoló gico - natureza pluridimensional do DIP,
existindo vá rios métodos de regulamentaçã o das situaçõ es da vida privada internacional que
podem ser utilizados pelo legislador e pelo julgador.

Como abordaremos este problema?


1) Concepção tradicional do DIP (Savigny)
2) Revoluçã o Americana (crítica norte-americana à concepçã o clá ssica)
3) Perspectivar em que medida esta revolução americana e a crítica ao método conflitual
acabou por ter eco na Europa - aproximaçã o desta orientaçã o à s orientaçõ es propugnadas nos
Estados de Liberdade.

1) Concepção Clássica do DIP


Antes desta concepçã o, vigorava uma teoria (mal) apelidada de “estatutária”, sendo que
perante uma norma, procurava-se determinar o seu â mbito de aplicaçã o, para saber se era de
aplicabilidade territorial ou extraterritorial.
Segundo a orientaçã o tradicional, considera-se que o problema que se levanta é o de
designar a lei em cuja moldura deverão procurar-se os preceitos materiais aplicá veis ao caso. No
fundo, como se tratam de relaçõ es conexas com diferentes sistemas de direito, perguntamo-nos
qual

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desses sistemas é que vai ser chamado a reger a situaçã o concreta, tendo em conta as conexõ es
existentes entre as leis interessadas e os factos a regular.
Esta concepçã o foi criada por Savigny, sendo que o que interessava era determinar para
cada relação jurídica, tendo em conta a sua natureza, a sua verdadeira sede. A sede da relaçã o
jurídica determina o direito local a que está sujeita. Savigny cria, assim, o método ainda
largamente predominante na actualidade – método conflitual ou de conexã o – baseado na
utilizaçã o de regras de conflitos. Este consiste em procurar para cada situaçã o jurídica típica, o
laço que mais estreitamente a prenda com um sistema jurídico determinado. (“Procura da lei mais bem
colocada para intervir”)
As regras de conflitos tinham como funçã o indicar o elemento da factualidade concreta, por
intermédio do qual se há -de determinar a lei aplicá vel às vá rias situaçõ es da vida. O critério devia
ser o da localizaçã o da relaçã o jurídica porque o que se pretendia tutelar é a segurança e a justiça
internacional privatística, de cunho formal - previsibilidade do direito, continuidade e estabilidade
das relaçõ es jurídicas internacionais.
Esta regra de conflitos clá ssica tem determinadas características:
- Rígida (eram hard-and-fast rules), isto é, normas que vinculam o juiz a utilizar um elemento de
conexã o pré-determinado ou determiná vel a partir de critérios enunciados pela pró pria norma,
sempre que se lhe apresente uma questã o jurídica do tipo correspondente à respectiva previsão.
- Geral e abstracta
- Neutra (que é indiferente ao resultado, isto é, ao conteú do das soluçõ es materiais)

Tudo isto visava a harmonia jurídica internacional através da uniformidade da lei aplicá vel.

Críticas à concepção clássica:


1) A dificuldade, quando nã o impossibilidade de, em muitos casos, apurar a conexã o mais
estreita ou mais significativa da relaçã o jurídica. Veja-se o caso do problema da conexã o
decisiva em matéria de estatuto pessoal ou de sucessõ es por morte.
2) Impropriedade das normas de direito interno para regular as situaçõ es internacionais,
situaçõ es cujos problemas específicos aquelas normas por completo ignoram, pois nã o
foram elaboradas tendo em conta tais problemas.
3) Dificuldades que surgem no processo de aplicaçã o da regra de conflitos – qualificação,
reenvio, adaptaçã o, ordem pú blica.

Tudo isto conduz a uma situaçã o que compromete a previsibilidade das decisõ es judiciais e
a estabilidade da vida jurídica. Há quem diga ainda que este método compromete a possibilidade
de encontrar, para as situaçõ es multinacionais, a soluçã o material mais consentâ nea com os seus
caracteres específicos, desde logo pela neutralidade das regras de conflitos.
2)Revolução Americana
A perspectiva conflitualista rígida foi alvo de críticas severas nos EUA, onde surgiram
diversas correntes de rejeiçã o do método conflitual europeu clá ssico – a American Revolution.
Neste sentido, David Cavers veio mesmo defender que "a histó ria do DIP é uma histó ria de seis
séculos de frustraçõ es".

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Nos EUA, a resolução do problema dos conflitos de lei foi sempre uma matéria estadual, e
tinham uma experiência enorme desde o século XVIII com conflitos de leis interestaduais (que
apresentam grandes semelhanças com os conflitos internacionais).
Neste contexto, especialistas de vá rias á reas reuniam-se no American Law Institute e
criavam o Restatement, uma recomendaçã o com uma autoridade científica tã o elevada que era
seguida pelos diversos legisladores (mesmo quando isto nã o sucedia, os tribunais convertiam-nos
em precedentes). O primeiro Restatement surgiu em 1934, redigido por JOSEPH BEALE, e foi uma
mistura da evoluçã o americana das ú ltimas décadas e da perspectiva europeia. Nele encontramos:
• Regras de conflitos de conteúdo rígido: como na Europa, também nos EUA se acreditou
durante muito tempo ser possível resolver o problema de DIP, através de regras de conteú do
rígido. Porém, os tribunais gozavam de uma certa liberdade e flexibilidade na aplicaçã o destas
normas.
• À parte destas, tínhamos uma grande influência de duas doutrinas:

o Doutrinas estatutárias holandesas (Huber, Volt)


A escola holandesa do século XVIII filiava-se no princípio formal segundo o qual a validade
das leis, enquanto ordens do legislador, seria exclusivamente territorial. A territorialidade da lei,
quase absoluta, levava à impossibilidade de aplicaçã o no foro de lei estrangeira. Isto era mitigado
com uma ideia que surge com as doutrinas holandesas e que é hoje um aspecto central, a comitas
gentium – uma mistura de cortesia internacional com um dever moral, político, que nã o
estritamente jurídico, de consideraçã o da lei estrangeira e da sua soberania. Porém, isto era nã o
vinculativo.

o Doutrinas dos vested rights.


Mais importante foi a doutrina dos vested rights (direito adquiridos), que servia para
acautelar todas as situaçõ es em que tivesse sido criada no estrangeiro uma dada relaçã o jurídica.
Estes direitos relevavam para o Estado do foro enquanto pressuposto necessá rio da criaçã o no
pró prio foro de um direito de idêntico conteú do, pelo que os direitos adquiridos eram assim meros
factos despidos de qualquer relevo jurídico autó nomo. Para além disto, o reconhecimento da sua
existência dependeria de terem sido constituídos à luz da lei competente pela regra de conflitos do
foro – o que leva MOURA RAMOS a afirmar que a doutrina norte-americana comungava dos
pressupostos europeus, aparecendo porém “ainda mais inutilmente complicada”.

Entretanto, começa o movimento de reacçã o à concepçã o conflitual clá ssica. Há três linhas
de crítica:

1) Momento Jurisprudencial (Caso Babcock vs. Jackson, 1963)


Neste caso, um casal (Mr. e Mrs. Jackson) convidou uma amiga (Babcock) para passear no
Canadá , e lá têm um acidente, sofrendo Babcock lesõ es graves. Babcock intentou assim uma acçã o
contra Mr. Jackson nos EUA pelos danos sofridos. A regra de conflitos tradicional, que resultava do
primeiro Restatement4 e da jurisprudência, era a de que a lei competente era a do lugar do dano
(neste caso, Ontá rio, Canadá ). Porém, a lei de Ontá rio continua uma regra que exigia, para que o
condutor fosse responsabilizado no caso de transporte título gratuito, um grau de culpa qualificado
(culpa grave), regra que já tinha sido abolida no estado de Nova Iorque, onde a acção foi proposta.
4
Chama-se Re-statement a compilaçã o das regras de conflitos criadas a partir dos conflitos judiciais e, por isso,
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de natureza jurisprudencial.

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Ou seja, aplicando a regra de conflitos rigidamente, aplicava-se a lei de Ontá rio e nã o havia
qualquer direito de indemnizaçã o. Porém, o tribunal concedeu a indemnizaçã o, aplicando a lei
americana, com os seguintes argumentos:
• Estreita relaçã o deste Estado com a relaçã o entre as partes.
• Interesse do Estado na aplicaçã o da sua lei, uma vez que Nova Iorque é o estado mais
directa e fortemente interessado na situaçã o.
Este caso veio reforçar e generalizar a descrença nas regras de conflitos tradicionais (que
eram cegas e injustas), apontando na direcçã o de uma soluçã o encontrada ad hoc, tendo em conta
certos factores-guia e a natureza da questã o controvertida e das circunstâ ncias concretas. Porém,
deixava em aberto uma questã o fundamental: a escolha da lei deveria ter em conta o interesse do
Estado em ver aplicada uma das suas leis, e este interesse depende do conteú do da lei e da política
legislativa a que esta responda. A decisã o abria assim caminho a um casuísmo inevitá vel.

2) Momento Doutrinal

DAVID CAVERS
Cavers defendeu, nos anos 30, a via da melhor lei (better law approach), criticando o facto
de que as regras clá ssicas de DIP serem configuradas de forma cega em relaçã o ao resultado, à
justiça material do caso concreto. A aplicaçã o da regra de conflitos seria um blindfold test, em que o
juiz é indiferente ao conteú do da lei, seu fim e resultados da sua aplicaçã o.
Cavers dizia que devíamos partir da ideia de que o que está em causa nã o é um litígio ou
conflito de sistemas de direito, senã o um conflito de regras materiais. Quando se verificava esta
oposiçã o de preceitos materiais, o juiz deve comparar os vários preceitos e as soluçõ es oferecidas e
escolher a melhor lei, tendo em vista a justiça material devida à s partes e os objectivos de política
legislativa prosseguidos pelas normas em competiçã o.
Logo se assinalou o cará cter casuístico desta doutrina (nã o se consegue prever qual a lei
aplicá vel, porque é o juiz que escolhe a lei mais justa – conduzindo a desarmonia jurídica
internacional e a uma violaçã o do principio da paridade das ordens jurídicas) e é por isso que numa
segunda fase (Contra-Revolução de Cavers), Cavers veio sugerir que deveriam ser elaborados os
princípios de preferência, que eram critérios orientadores do juiz na escolha da lei. Estes critérios de
preferência eram regras de conflitos mas em que a escolha nã o era feita unicamente em funçã o da
localizaçã o, mas de acordo com critérios de justiça material. O princípio da preferência determinava
a lei aplicá vel de acordo com uma localizaçã o material, justiça material, etc... Entre as regras de
conflitos e os princípios de preferência nã o existem verdadeiramente diferenças significativas,
porque em qualquer dos casos pretende-se escolher a lei. No caso de Cavers, a escolha é maleá vel
porque os princípios de preferência sã o meros critérios orientadores na escolha da lei mais justa.

Críticas:
 Cavers foi acusado de ser contra-revolucioná rio porque os princípios de conflitos
assemelhavam-se a autênticas regras de conflitos, ainda que também
atendessem ao conteú do da lei.
 Cavers só definiu critérios de preferência em matéria contratual e
extracontratual. Se há domínios em que podemos elaborar estes princípios de
preferência e determinar o resultado material que deve presidir a escolha, há
muitas matérias

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em que isso nã o é possível. É por isso que se diz que o método de Cavers nã o
pode ser generalizado a todas as matérias.
o Por isso, para FERRER CORREIA esta better law approach deve apenas ser
usada como método coadjuvante, sob pena de desarmonia jurídica
internacional.

Em suma, esta é uma visã o que incorpora uma ideia de materializaçã o, flexibilizaçã o ou
substancializaçã o do DIP.

BRAINERD CURRIE
Currie é mais radical porque propunha a aboliçã o das regras de conflitos e a ruptura total
com o método clássico. Como método alternativo, propõ e o método da aná lise do interesse
governamental (Governmental Interest Analysis) subjacente à s normas materiais. Ou seja, os
limites de aplicaçã o das normas materiais no espaço seriam dadas com base na aná lise do
interesse governamental que estivesse subjacente a cada norma. Parte do pressuposto que as
normas materiais têm por finalidade a realização de uma certa policy, e o Estado que edita essas
normas tem interesse na realização das políticas que a ela subjazem.
Assim, perante uma situação internacional, seria necessá rio analisar as políticas nas vá rias
leis em concurso, sendo o espaço de aplicaçã o de cada uma dessas normas delimitado em funçã o
do interesse estadual na base dessa norma. CURRIE faz assim uma aná lise publicista da resoluçã o
do conflito de leis.
Seria assim necessá rio abolir o sistema das regras de conflito: o autor aponta uma série de
casos para mostrar como, estando esses casos em contacto com várias leis, só há interesse em
aplicar uma delas. O critério decisivo para aplicaçã o de uma lei estava assim na ideia de interesse
estadual, havendo casos em que, analisando os interesses estaduais, já nã o há nenhum conflito
uma vez que apenas uma lei tem interesse em aplicar-se – false conflicts. O DIP, com o método
conflitual, estaria assim a potenciar estes falsos conflitos.

Como é que se resolve, analisando os interesses estaduais, os verdadeiros conflitos na


perspectiva do autor?
• Se ambas as leis (do foro e estrangeira) tenham interesse em aplicar-se, a lei a aplicar é a
lei do foro. Isto não significa que a lei estrangeira nunca possa ser aplicada, mas sim que há uma
certa exigência na sua aplicaçã o. Só se o estado do foro nã o tiver interesse é que se aplica a lei
estrangeira.
• Se o estado do foro nã o tiver interesse na aplicaçã o da sua pró pria lei, mas o caso tiver
contacto em simultâ neo com outras duas leis e essas duas leis teriam ambas interesse em aplicar a
sua pró pria norma, temos o problema do terceiro estado interessado. O que deve o estado do foro
fazer? CURRIE sugere a aplicaçã o da teoria do forum non conveniens (tribunal nã o conveniente) –
permite ao tribunal dizer, mesmo que regras de conflito internacionais digam que é competente, há
outro tribunal de outro Estado mais competente para resolver o caso. Ou seja, o Estado do foro diria
assim que nã o seria competente para resolver o caso. Se isto nã o for possível, entã o recorre-se
residualmente a lei do foro.

As críticas à s soluçõ es e método do Currie sã o as seguintes:

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- Este método nem sempre se dá praticá vel, ou seja, nem sempre nó s conseguimos determinar a
partir da aná lise da política subjacente a norma o seu â mbito de aplicaçã o no Espaço.
- Este método pode conduzir a alguma injustiça conflitual, porque através da análise da política
subjacente as normas podemos chegar a resultados desadequados. Por ex., o caso da forma do
negó cio jurídico – a exigência de uma forma pretende obrigar a uma reflexã o; e, por outro lado,
favorecem uma ideia de certeza jurídica. Assim, os preceitos de forma de um Estado seriam
aplicá veis nã o só aos negó cios aí celebrados (segundo objectivo), como aos negó cios celebrados
pelos nacionais no estrangeiro (primeiro objectivo). Isto levaria a resultados insatisfató rios, já
que levantaria obstá culos excessivos à livre contrataçã o.
- Há uma clara prevalência da lei do foro. Tal configura uma violação do princípio de paridade de
tratamento das ordens jurídicas. Isto tem o risco de conduzir a desarmonia jurídica internacional
e risco de forum shopping.
- Esta concepçã o assenta em pressupostos já ultrapassado: Os conflitos de leis eram vistos como
conflitos de soberania; O problema da escolha da lei era um problema político, isto é, determinar
qual o interesse político que devia relevar. Apontava uma subordinaçã o do DIP ao direito pú blico,
esquecendo que o DIP deve atender à estabilidade e segurança das situaçõ es jurídicas
transnacionais.

Em suma, esta teoria abre o caminho à politizaçã o do DIP.

EHRENZWEIG
EHRENZWEIG parte de duas ideias fundamentais: (1) por um lado, aceita o método
proposto pelo Currie - aná lise do interesse fundamental subjacente à s normas (casos de lex
incerta);
(2) mas admite regras de conflitos de leis (casos de lex certa). É aqui que se situa toda a sua
construçã o. Os conflitos de leis sã o resolvidos da seguinte forma:
O seu ponto de partida seria sempre a aplicaçã o da lei do foro, ou seja, o problema conflitual
só surge depois de se concluir que nã o se trata de um dos casos em que a lei do foro é
independente de qualquer escolha (Forum Rule by no choice). A ideia de prevalência da lei do foro
era confirmada por se verificar que, mesmo quando teoricamente o tribunal recorria a uma regra
de conflito, no fundo o que fazia era, através de uma série de expedientes (ex: reenvio), aplicar a
sua pró pria lei.
Uma vez chegada aquela conclusã o, caberia entã o à s regras de conflito do foro designar a lei
aplicá vel. E na falta de regras de conflitos? A aplicaçã o da norma estrangeira só poderia resultar da
interpretaçã o da norma da lex fori segundo a sua ratio ou policy (interpretaçã o bifocal da norma
material do foro). Por outras palavras, aplicar uma lei estrangeira está dependente, nã o da ratio da
lei estrangeira, mas sim da lei do foro: a interpretaçã o da lei do foro determina se é ela que se aplica
ou a lei estrangeira.
No fundo, este autor tentou evitar ao má ximo o perigo do Fórum Shopping. Resolvia as coisas
através das regras de competência internacional - lançava mã o do Fórum non-convenience. Se numa
situaçã o plurinacional, se achasse que devia aplicar-se a lei estrangeira, o tribunal devia abster-se de
aplicar a lei do foro e admitir que a questã o fosse resolvida nos tribunais de outros estados.
(Coincidência Forum – Ius)
Isto é criticá vel porque:
 Quando determinamos um conflito de leis, o critério da escolha é a proximidade

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ao caso. No caso da competência, o tribunal mais pró prio é escolhido de acordo

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com razõ es de natureza processual - comodidade das partes. Assim, o autor


desconhece a especificidade das regras de conflitos de competência
relativamente à s regras de conflitos de leis.
 Estamos a decidir se aplicamos uma lei estrangeira atendendo a penas à vontade
de aplicaçã o da lei do foro, quando deveria ser a vontade da lei estrangeira a
determinar a sua aplicaçã o, uma vez que nenhum preceito é separá vel da
razã o de ser que o inspir a. No fundo o autor sugere o autora separaçã o da
ratio do comando.
 Confere primazia à lex fori por princípio, violando o princípio da paridade do
tratamento das ordens jurídicas.

Em suma, para EHRENZWEIG, apesar de ser pró ximo da ideia de publicizaçã o, o ponto
focal é a prevalência dada à lei do foro. A ideia de paridade de tratamento era fortemente rejeitada.
Abre caminho à jurisdicionalizaçã o do DIP.

3) Momento Legislativo (2nd Restatement of 1969)


Este nã o rompe com o modelo conflitual, continuando a existir regras de conflitos clá ssicas,
embora umas sejam abertas (open-ended rules) – deixando ao julgador uma margem de
conformação perante o caso concreto – e existam parâ metros a que o juiz deve olhar na escolha da
lei aplicá vel quando nã o exista uma regra de conflitos aplicá vel ao caso.

3) Aproximação do DIP europeu à revolução americana


Vem do exposto que entre as características principais da perspectiva americana se contam,
além da tendência para o abandono do método conflitual (...) a ideia do primado da lex fori e a
propensã o para atribuir um relevo importante, na resoluçã o dos conflitos de leis, ao factor
representado pelo conteú do e fundamento das regras materiais em colisã o. Ora, se soubermos
utilizar convenientemente as novas contribuiçõ es doutrinais e o leque de possibilidades que nos
oferece a técnica tradicional da regra de conflitos, talvez possamos demonstrar que o método da
escolha de lei através da selecçã o, predeterminada por uma regra de conflitos, continua sendo uma
das vias possíveis para resolver o problema, senã o a melhor.
Muitas destas ideias americanas, apesar de serem alvos de fortes críticas, foram assim
aproveitadas pelas doutrinas europeias. Vamos ver quatro manifestaçõ es desta aproximaçã o entre
a doutrina europeia e a perspectiva estadunidense:
1. Apuramento da justiça conflitual (flexibilização);
2. Normas de conflitos de conexão substancial ou material (materializaçã o);
3. Relevo do fim das normas materiais no respectivo campo de aplicaçã o espacial (politizaçã o);
4. A jurisdicionalizaçã o do DIP.

- Apuramento da justiça conflitual (flexibilização do DIP) –

O apuramento da justiça conflitual passou a procurar a lei mais bem colocada para resolver
o caso, através de vá rios meios:

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1) Especialização das regras de conflitos ou «dépeçage».


Quer dizer que de algum modo houve uma certa substituiçã o daquilo a que chamamos
sistemas sintéticos por sistemas analíticos do DIP de modo a procurar a regra de conflitos mais
adequada para reger cada questã o jurídica autonomizada.
Antigamente, os sistemas conflituais clássicos estavam constituídos com base nas grandes
categorias do Direito Privado - estes sistemas eram parcos, existindo poucas regras de conflitos
que abrangiam grandes â mbitos normativos.
Contra isto, opô s-se o movimento de especializaçã o da regra de conflitos, surgindo sistemas
analíticos, sendo certo que quanto mais regras de conflitos existem há uma melhor adequaçã o das
soluçõ es conflituais à realidade. Se este desmembramento tem vantagens (mais adequaçã o das
soluçõ es à realidade) tem também um inconveniente (quanto mais regras de conflitos temos, mais
difíceis sã o as questõ es suscitadas no â mbito da qualificaçã o do DIP).
O que contribuiu para este movimento de especializaçã o foi a codificaçã o internacional.
Como esta é mais fá cil em sectores determinados, isto levou a que as convençõ es internacionais
tratassem de situaçõ es mais específicas, levando à especialização das soluçõ es. P.e. art. 49º a 55º
CC.

2) Criação das chamadas «open-ended rules».


Utilizam o princípio da proximidade - em vez de ser o legislador a indicar a lei aplicá vel
pela regra de conflitos, estabelece-se o princípio da proximidade (o juiz que veja qual a lei mais
pró xima). (ex: art 52º CC)

3) Cláusulas de excepção
Sã o uma relativização do valor da regra de conflitos legal, isto é, a clá usula de excepçã o
atenua a rigidez da regra de conflitos clássica. Trata-se de uma disposiçã o que corrige o
funcionamento normas das regras de conflitos, quanto este conduz a resultados insatisfató rios do
ponto de vista dos fins do DIP. No fundo, trata-se de um mecanismo dado pelo legislador ao juiz
para afastar a lei em princípio aplicá vel e para aplicar outra lei se entender que essa outra lei é
mais adequada. Há vá rios tipos de cláusulas de excepçã o:

Clá usulas de excepçã o materiais - é aquela em que o afastamento da lei se faz por razõ es de
justiça material, ou seja, há uma lei identificada como competente, mas que é substituída por outra
se esta outra lei promover um determinado resultado material mais justo. Ex: art. 45/2 CC.
Vs.
Clá usulas de excepçã o formal ou conflituais - aquilo que justifica a substituiçã o de uma lei
por outra é o facto de a primeira lei (em princípio, aplicá vel ao caso) nã o ter um contacto
suficientemente forte com o caso e a segunda lei ter um contacto mais forte. É quase um regresso a
Savigny - uma lei tem contacto mais forte que a lei em princípio aplicá vel. Veja-se o Regulamento
ROMA I (4º/3); ROMA II; 45º/3 CC e art. 15º da Lei Suíça do DIP. É o típico da cláusula de
excepçã o.

Clá usulas de excepçã o abertas - O legislador nã o justifica quais as causas que justificam a
substituiçã o de uma lei por outra, nem identifica qual a lei que afinal deva ser aplicada. Ver ROMA
I (art. 4º/3). É o intérprete que caso a caso decide se se justifica a substituição de uma lei por outra.

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Sã o a concretização judicial do princípio da conexã o mais estreita. É o típico da cláusula de


excepçã o.
Vs.
Clá usulas de excepçã o fechadas - o legislador diz quais as condiçõ es que se devem verificar
para justificar a substituiçã o de uma lei por outra e identifica que lei é essa. Ex: 45º/2; 45º/3 CC.

Clá usulas de excepçã o gerais - funcionam para todas as regras de conflitos. Existem nos
EUA ou na Suíça.
Vs.
Clá usulas de excepçã o especiais - funcionam só no â mbito de uma regra de conflitos. Sã o as
que temos em Portugal.

4) Concretização judicial do princípio da proximidade.


As regras de conflitos estabelecidas pelo legislador determinam a aplicaçã o de uma lei
pressupondo que essa lei é a que tem o contacto mais pró ximo - são uma concretizaçã o legal do
princípio geral da localização ou proximidade. Mas nada impede que o legislador venha a
estabelecer como elemento de conexão o princípio da conexã o mais estreita (art. 52º CC). É o juiz
que deve, nestes casos, concretizar judicialmente o princípio da proximidade.
Isto pode gerar insegurança da soluçã o conflitual, devendo arranjar-se uma nova conexã o
subsidiá ria antes de utilizar este princípio.

- Casos em que encontramos regras de conflitos de conexão material ou substancial -


O DIP conflictual passou a preocupar-se, nã o apenas com a lei que estava mais pró xima, mas
com o resultado material a dar. Ora, as regras de conflitos a que estamos acostumados são regras
que utilizam sobretudo conexõ es localizadoras (ex: o lugar da situaçã o da coisa, nos direitos reais).
Contudo, uma das formas de promover aspectos materiais no DIP, fazendo uma concessã o à s
críticas substancialistas, é a de estabelecer regras de conflitos que contêm elementos de conexã o
inscritos em funçã o de favorecer um dado resultado material. (Regras de Conflito de conexão material)
Interesses defendíveis:
- Manutenção da validade dos negó cios jurídicos. (Ex: 31º/2, 36º/1 e 65º/2 CC)
- Constituiçã o dos Estados de Família
- Defesa de certas liberdades, como o divó rcio, etc...
- Protecção mais forte de determinada pessoa (lesado, credor de alimentos, Etc...)
- Protecçã o da parte contratual mais fraca (contractos de adesã o, CT, contrato de seguro, contractos
com consumidores)
Todos estes casos constituem concretizaçõ es de uma ideia de escolha de lei em funçã o do
resultado. Contudo, estamos aqui bem longe do processo preconizado por CAVERS em 1993,
porquanto nestes casos é a pró pria regra de conflitos que enuncia o critério de escolha (...) A
previsibilidade das decisõ es judiciais não será gravemente afectada.
- Relevância do conteúdo e do fim das normas materiais na determinação do respectivo campo
de aplicação espacial -
Há casos em damos relevâ ncia ao fim e conteú do das normas, como:

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1) Qualificação. (Art 15º CC)


Este problema é fundamentalmente um problema de interpretaçã o da regra de conflitos e é
um problema suscitado pelo conceito-quadro da mesma. Dada uma norma potencialmente
aplicá vel a determinada situaçã o em virtude de uma regra de conflitos do foro, devemos averiguar
se as normas dessa lei reguladoras desse tipo de situaçõ es correspondem à categoria normativa
visada na pró pria regra de conflitos e expressa pelo respectivo conceito-quadro. Para tanto, haverá
que analisar à luz do seu escopo ou funçã o sociojurídica, os preceitos materiais cuja aplicaçã o está
justamente em causa.
Nã o se pretende chegar à soluçã o materialmente mais justa, mas apenas saber que normas
sã o chamadas pela regra de conflitos.

2) Adaptação
É uma operaçã o que surge naqueles casos em que sã o convocadas duas leis diferentes para
se aplicarem no mesmo caso (conflitos positivos de lei) e, por algum motivo, as estatuiçõ es de uma
lei e de outra sã o incompatíveis, seja do ponto de vista puramente ló gico, seja teleoló gico
(BAPTISTA MACHADO fala de «acidente técnico do DIP»). O expediente da adaptaçã o consiste
em, comparando as leis em presença (as políticas legislativas que elas vã o prosseguir), combiná -las
para tentar encontrar uma soluçã o que, respeitando o seu sentido, se adapte ao caso concreto. No
fundo, é uma autorização ao juiz para manipular o sistema conflitual de modo a cumprir as
políticas legislativas das leis envolvidas.
Quais as situaçõ es típicas?
1) O desmembramento - desmembramento das relaçõ es jurídicas conduz a contradiçõ es,
que se resolvem por adaptaçã o da norma material.
2) Questões jurídicas diversas mas interligadas - Caso Sueco; Casos em que a aplicação
das duas leis resultaria numa violaçã o da intençã o de ambas.
3) Conflitos de qualificações – Casos de conflito negativo de qualificaçõ es. Estas situaçõ es
de vá cuo jurídico sã o resolvidas por adaptaçã o do elemento de conexã o da regra de conflitos
(Magalhães Collaço); ou através de uma adaptaçã o ao nível do direito material. (Ferrer Correia e
Baptista Machado)
4) Conflito móvel (sucessã o da lei aplicá vel devido à mobilidade do elemento de conexã o):
Caso Chemouni. Alguma doutrina veio dizer que teríamos que adaptar as normas materiais,
estendendo a sua aplicaçã o. Outros autores, como Ferrer Correia preferiam suprimir ou ignorar a
sucessã o de estatutos ou conflito mó vel - se há aqui uma aplicaçã o sucessiva de leis inconciliáveis,
deveríamos esquecer a sucessã o de estatutos e petrificar a conexã o, tornando-a imó vel.

A adaptaçã o pode abrir caminho ao casuísmo e insegurança, mas temos que recorrer a ela
para resolver algumas situaçõ es. Para evitar esse casuísmo e insegurança:
 Há casos em que o legislador resolve expressamente problemas específicos da
adaptaçã o. (ex: art 26º/2 CC).
 Para mais, a doutrina defende a criaçã o de regras de conflitos especiais ou de 2º
grau que hierarquizassem as regras de conflitos.
 Em ú ltima aná lise, temos que casuisticamente fazer a adaptaçã o. Entre a adaptaçã o
da norma material ou da regra de conflitos, tende-se a defender que a adaptaçã o

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deve ser feita ao nível da regra de conflitos e nã o da regra material, sob pena de criar
direito que nã o existe nesse OJ e que é totalmente fantasioso.

3) Normas materiais espacialmente auto-limitadas ou auto-condicionadas.

Sã o normas materiais que se servem de uma conexã o espacial para delimitarem, explicita
ou implicitamente, o â mbito de casos em que têm aplicaçã o. Isto é uma excepçã o ao método
conflitual, porque é a pró prio norma material que inscreve determinados elementos espaciais, isto
é, delimita no espaço o seu â mbito de aplicaçã o tendo em conta o seu fim ou funçã o.
Estas normas sã o de aplicaçã o obrigató ria para os tribunais do respectivo Estado,
escapando ao controlo do direito de conflitos. Geralmente, o seu objectivo reside na tutela de
interesses de grande relevâ ncia na comunidade local, pelo que a sua aplicação nã o pode depender
do sistema conflitual.
Foi FRANCESCAKIS o primeiro autor a identificar este tipo de normas. Para mais, FERRER
CORREIA alerta-nos para o facto de que estas regras permitem resolver os problemas de conflitos
internacionais de maneira nã o tã o diferente da que a doutrina estadunidense propunha.
Dentro destas normas, temos duas modalidades:

 As normas espacialmente auto-limitadas em sentido estrito ou restritivo


Sã o normas materiais mas que delimitam o seu pró prio â mbito de aplicaçã o no espaço,
exigindo um contacto mais forte do que aquele que resultaria do funcionamento da regra de
conflitos para que se apliquem. Nã o basta que o sistema seja competente, sendo necessá rio um
elemento adicional de ligaçã o (extra) para que as normas se apliquem.
Um exemplo clá ssico é o do art. 36º DL 248/86 – EIRL: Para que ele se aplica, nã o basta que
o EIRL tenha a sede efectiva em PT, sendo necessá rio que tenha sido constituído também em PT.
(embora a regra de conflitos remeta para a lei da sede efectiva da organizaçã o)
Estas normas podiam ser, inclusivamente usadas para a resoluçã o do Caso Babcock vs.
Jackson – Como se podia fazer operar este instituto no caso? Poderíamos dizer que a norma
canadiana que estabelece a nã o indemnização pelos transportados gratuitos é uma norma que tem
em vista determinados objectivos - evitar a ganâ ncia da pessoa que vai à boleia e evitar conluios
entre o lesante e o lesado que podem afectar a seguradora. No caso concreto, estavam em causa
interesses que a lei do Ontá rio nã o tinha de assegurar porque tanto o transportado, como o
transportador e até mesmo o seguro nã o eram canadianos. Ou seja, a norma canadiana seria uma
norma espacialmente auto-limitada, nã o se aplicando ao caso. Que norma se ia aplicar? Ia aplicar-
se a norma geral do regime do Ontá rio que dizia que quem causa dano deve indemnizar.
Estas normas ainda se “situam” dentro do método conflitual.

 As normas de aplicação necessária e imediata5 


Já estamos fora do método conflitual, sendo este um método diferente de regulaçã o das
situaçõ es plurinacionais. É uma categoria relativamente recente, mas que já tem antecedentes no
século XIX.

5 3 Notas prévias: (1) Nem todas as normas constitucionais sã o NANI's; (2) Nem todas as normas imperativas
(P.e. Obrigatoriedade de escritura pú blica) sã o NANI's; (3) As NANI's nã o se aplicam sempre.

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Sã o normas materiais espacialmente autolimitadas, ou seja, delimitam o seu pró prio â mbito
de aplicaçã o no espaço, tendo em conta as finalidades que visam assegurar. Mas têm um cará cter
ampliador e nã o restritivo, de tal modo que alargam imperativamente o campo de aplicaçã o do
sistema a que pertencem, ou seja, sã o normas que se vã o aplicar mesmo que o sistema jurídico em
que elas se integram nã o seja competente por força das regras de conflitos. Dizem-se pois, de
aplicaçã o imediata porque nã o sã o medidas pela regra de conflitos, fixando o seu pró prio campo de
aplicaçã o.
Tal justifica-se pela sua particular intensidade valorativa - protegem valores fundamentais
para o ordenamento jurídico. Estas normas sã o verdadeiros instrumentos de politizaçã o e
publicizaçã o do DIP, porque sã o normas que permitem ao Estado impor o cumprimento de valores
da ordem política, social e econó mica que lhe cabem.
NUNO ASCENSÃ O SILVA diz-nos que estas normas sã o normas em que o seu â mbito de
aplicaçã o espacial é recortado e determinado autonomamente por regras de conflitos unilaterais ad hoc
- elas é que dizem quando se querem aplicar através de um comando unilateral ad hoc. Tratam-se,
portanto, de comandos unilaterais, à partida insusceptíveis de bilateralizaçã o, embora tal seja
discutível.
Em suma: sã o normas de aplicaçã o necessá ria - porque não podem ser afastadas pela lei
estrangeira – e imediata - funcionam antes e independentemente da regra de conflitos. Será
errado, porém, dizer que sã o normas que se aplicam sempre. Na realidade, só se aplicam às
situaçõ es que querem regular através da aná lise do seu comando ad hoc, seja ele explícito ou
implícito.

Implícitas: MOURA RAMOS considera o art. 53º CRP uma norma de aplicaçã o necessá ria e
imediata implicitamente, devendo ser aplicada independentemente do que resultar da regra de
conflitos aplicá vel ao contrato de trabalho, dada a sua intensidade valorativa. Será aplicá vel aos
contractos executados em Portugal e aos contractos total ou parcialmente executados no
estrangeiro se for celebrado entre portugueses, ou estrangeiros residentes em Portugal e um
empregador português. Outro exemplo é o art. 1682º-A CC, que se aplica sempre que a casa da
morada de família seja em PT.

Explícitas: Consagrada pelo legislador na letra da lei. Muitas vezes, sã o normas que
derivam da transposiçã o de directivas europeias. Exemplos:
- Lei da Concorrência (Lei 19/2014, de 8 de maio) - art. 2º.
- DL 238/86 - art. 3º
- Clá usulas contratuais gerais, mediaçã o imobiliária, arbitragem internacional, etc...

Podemos ainda distinguir as normas de aplicaçã o necessá ria e imediata:


1) Do foro - É pacífico na doutrina que essas normas devem ser aplicadas pela sua especial
intensidade valorativa. - art. 9º/2 ROMA I; art 16º ROMA II.
2) Estrangeiras - A aplicaçã o das normas necessá rias e imediatas estrangeiras suscita
problemas acrescidos. Podem ser:
 Da lex causae (lei competente)
Neste â mbito, a doutrina acabou por aceitar a teoria do estatuto internacional ou teoria
unitária - se estas normas se inserem na lei competente elas devem ser aplicadas, excepto quando
contrá ria à ordem pú blica internacional ou a uma norma do foro necessá ria ou imediata. Assim:

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1) Deve a norma integrar-se na lei competente.


2) Nã o violar a ordem pú blica internacional.
3) Passar o crivo do art. 15º CC, relativo ao problema da qualificaçã o.
4) Querer aplicar-se ao caso, ou seja, a situaçã o a que se vã o aplicar tem que caber dentro do
â mbito de aplicaçã o espacial por elas recortado.

 De ordenamentos jurídicos terceiros


Relativamente a estas, naturalmente a doutrina foi sempre mais receosa e discutiu-se o
problema de saber se estas normas deveriam ser verdadeiramente aplicadas ou apenas tomadas
em consideraçã o (servindo meramente como um elemento de facto a ter em consideração pelo juiz
na aplicaçã o da lei competente – Tese da tomada em consideração). A doutrina mais recente
entende que, a partir do momento que se respeita a finalidade da NANI, a lei competente retoma o
seu â mbito de aplicaçã o.
A outra dú vida colocada pela doutrina foi de saber em que casos se aplicavam estas normas
de OJ terceiros - falava-se de uma teoria da conexão especial, que tratava diferentemente uma lei
consoante fosse indicada ou nã o pela regra de conflitos (distinguindo a lex causae da lei de um
Estado terceiro). Segundo esta teoria, uma norma de aplicaçã o necessá ria e imediata, seja da lex
causae, como a de qualquer outro Estado, pode ser aplicada se houver uma conexã o especial a
justificar a sua aplicaçã o. Tem que haver uma vontade de aplicaçã o. A conexã o especial seria
estabelecida através da criaçã o de regras de conflitos especiais que denominassem os casos em que
estas NANI’s se aplicavam. O certo é que estas normas nã o existem.
Sendo assim, o que podemos dizer?
• Há casos em que é o pró prio legislador que define, através de disposiçõ es instrumentais,
qual o valor a dar a normas necessá rias e imediatas estrangeiras. M ARQUES DOS SANTOS chama a
estas regras, que definem em que circunstâ ncias a norma necessá ria e imediata deve ser aplicada,
“regras de conhecimento”.
• Quando tal não suceda, a aplicaçã o da norma estrangeira tem de depender da sua vontade
de aplicaçã o. Assim, em primeiro lugar, a pró pria norma material tem de querer alargar o seu
â mbito de aplicabilidade; depois, tem de haver uma conexã o suficientemente estreita para que o
legislador aceite pô r de parte o método normal das regras de conflitos. A aplicaçã o de uma norma
necessá ria e imediata passa sempre pelo crivo do juiz. Isto nã o significa que tenhamos de ter uma
regra igual no nosso direito, mas tem e haver uma mínima convergência valorativa para que
aceitemos pô r de lado o sistema de conflitos e aplicar esta norma.

Hoje, o art. 9.º do Regulamento de Roma I vem responder ao problema de aplicaçã o das
normas necessá rias e imediatas em matéria contratual, nos casos em que o contrato, pela aplicaçã o
da lex causae, seja vá lido, mas haja uma norma de aplicaçã o necessá ria e imediata que o torne ilegal.
O n.º 1 define “normas de aplicação imediata”, enquanto que o n.º 2 estabelece que as disposiçõ es do
regulamento nã o obstam à aplicaçã o da lei do foro. Mais importante é o n.º 3, que estabelece que
“pode ser dada prevalência às normas de aplicação imediata da lei do país em que as obrigações decorrentes do
contrato devam ser ou tenham sido executadas, na medida em que, segundo essas normas de aplicação
imediata, a execução do contrato seja ilegal. Para decidir se deve ser dada prevalência a essas normas, devem
ser tidos em conta a sua natureza e o seu objecto, bem como as consequências da sua aplicação ou não
aplicação”. Ou seja, apenas se pode aplicar as normas de aplicaçã o necessá ria e imediata estrangeiras

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do país onde deveria ter lugar a execuçã o do contrato, e tal aplicaçã o depende de uma ponderaçã o
do juiz.

- Jurisdicionalização do DIP –

Falamos da relevâ ncia do momento jurisdicional na determinaçã o da lei aplicá vel. Para a
doutrina clá ssica, para resolver um situaçã o jurídica internacional, devíamos encontrar a lei mais
pró xima relativamente a cada uma das questõ es jurídicas, tarefa que é entregue ao legislador
através da construçã o de regras de conflitos. Só que é contra esta concepçã o que surge o
movimento de jurisdicionalizaçã o do DIP que se caracteriza por admitir que o foro e as suas leis
constituam a instâ ncia central para a resoluçã o de problemas do DIP, em termos de estes poderem
ser resolvidos por aplicaçã o das normas desta ordem jurídica, mas dá -se um maior relevo ao
momento jurisdicional, em termos de este apagar a operaçã o da determinaçã o - o problema central
nã o é o da escolha da lei, mas determinaçã o da autoridade competente e limites da sua actuaçã o.
Esta ideia manifesta-se em 3 planos:

1) Jurisdicionalização em sentido estrito. Há , de alguma maneira, uma absorçã o da questã o dos


conflitos de leis pela questã o dos conflitos de jurisdiçõ es. (Forum conveniens)
De acordo com esta jurisdicionalização, o foro e as suas leis sã o a instâ ncia central para a
resoluçã o dos problemas de DIP - forum conveniens. E esse fórum conveniens aplicará a sua lei - lei
do foro - desde logo porque é a que a lei que conhece melhor e corresponde melhor aos seus
modelos de justiça.
Pode ser que por este modelo se chegue à conclusã o que a lei do foro nã o é a mais adequada
para regular um certa relaçã o jurídica – este problema é resolvido pela doutrina do fórum non
conveniens. Se a lei do foro nã o é a mais adequada, o melhor é o tribunal, que seria em princípio
competente, nã o decidir o litígio porque, aplicando a sua lei, a decisã o não seria a melhor.
Encontramos esta absorção dos conflitos de leis pelos conflitos de jurisdiçã o:

1.1) Na obra de EHRENZWEIG, que partia da ideia de "lex fori in fórum proprium".
1.2) Teoria das normas de conflitos facultativas – Pró xima da teoria anterior, relativiza o
papel das regras de conflitos entendendo que estas sã o de aplicação facultativa. Há , pois,
uma preferência do judiciá rio sobre o legislativo, porque o juiz, quando fosse chamado a
resolver um caso, mesmo que se apercebesse que se tratava de um caso internacional que
provocava a competência de uma lei estrangeira, nã o estaria vinculado a aplicar a regra de
conflitos se as partes a não tivessem invocado. Ou seja, a obrigatoriedade da observâ ncia
das regras de conflitos ficaria dependente de uma manifestaçã o da vontade das partes. Esta
teoria surge com o caso Bisbal (1960) e com Flessner que defendia que as regras de
conflitos sã o facultativas porque pode ser conveniente para as partes que elas nã o
funcionem.

Estas duas teorias alargam o â mbito de aplicaçã o material da lei do foro, conduzindo a uma
indiscriminada aplicaçã o desta lei – pelo que têm de ser rejeitadas. A aplicaçã o indiscriminada da
lei do foro, ainda que pudesse favorecer uma boa administraçã o da justiça (é a lei que o juiz melhor
conhece), colocaria em causa a harmonia da segurança jurídica internacional, e consequentemente a

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estabilidade das relaçõ es privadas internacionais. Daqui decorre também a colocaçã o em paridade
das vá rias ordens jurídicas em contacto com o caso, que é posto em causa por esta perspectiva.

1.3) Certas Convenções da Haia - Encontramos jurisdicionalizaçã o no âmbito das convençõ es


da Haia do DIP em matéria de adopçã o internacional, protecçã o de menores e protecçã o
dos incapazes adultos. Em qualquer uma das situaçõ es, o tribunal competente aplicará a
sua lei interna.

No que toca a estas convençõ es, a crítica é mais atenuada porque o juiz é menos severo, já
que a sua liberdade se circunscreve apenas a certas matérias e aplicaçã o da lei do foro é justificada.
P.e. Veja-se o mecanismo de protecçã o dos menores:
(1) Se o juiz quer aplicar medidas de protecçã o efectivas, deve ter uma grande familiaridade
com a lei que quer aplicar;
(2) Estes mecanismos de protecçã o exigem a intervençã o de autoridades administrativas.
Ora, naturalmente estas autoridades têm menos facilidade na aplicaçã o da lei estrangeira que os
tribunais, justificando-se que estas apliquem a sua pró pria lei.
(3) Por fim, como estamos face a matérias muito procedimentalizadas, a aplicação da lei
estrangeira competente pode supor a prá tica de actos desconhecidos do ordenamento da
autoridade. A melhor maneira de evitar estes problemas é aplicar a lei do foro.

2) Correlação ou alinhamento entre o fórum e o ius (coincidência fórum-ius)


A regra de conflitos deve ser formulada em termos de conduzir à aplicaçã o da lei do Estado
cuja competência se começou por determinar. No fundo, isto conduz a uma aplicaçã o da lei do foro,
mas apenas depois da designaçã o antecipada da entidade competente para resolver o caso – ou
seja, temos aqui ainda uma opçã o de cará cter conflitual, mas não no plano da determinaçã o da lei
aplicá vel. Isto é estabelecido através da identidade dos elementos eleitos para a competência
judiciá ria e legislativa.
Esta sintonia entre o forum e o ius pode ser conseguida através de duas formas:
• Subordinaçã o da competência legislativa à competência jurisdicional. Primeiro
estabelece- se a competência dos tribunais do foro, e depois manda-se aplicar as leis desse país, ou
seja, onde os tribunais de um país sejam competentes, aplica-se a lei do foro. (correlação fórum-
ius) Expressa-se no jurisdictional approach inglês ou no princípio do paralelismo alemão em
matéria de acçõ es constitutivas e jurisdiçã o voluntá ria.
• Subordinaçã o da competência jurisdicional à competência legislativa. Primeiro
determina- se a lei competente, e em funçã o da competência de uma lei fixa-se, em paralelo, a
competência dos tribunais desse país (competência do forum legis). Tem dois efeitos:
 Efeito positivo: a lei aplicá vel ao caso conduz à competência adicional dos
tribunais.
 Efeito negativo: embora os tribunais possam ser competentes, nã o vã o
resolver o caso porque a lei aplicá vel é a estrangeira.

Há dois regulamentos onde estas perspectivas sã o visíveis: Regulamento 1346/2000 (sobre


a insolvência – art 3º e 4º, correlaçã o fórum-ius) e Regulamento 650/2012 (sobre sucessõ es, art 4º, 5º,
7º- A, 22º, caso de fórum legis).

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Esta correlaçã o é directa6, intencional e o “ius” corresponde ao direito material a aplicar,


encontrando-se dentro do método de determinaçã o da lei aplicá vel.
Sendo assim, nã o se confunde com algumas figuras como o princípio da territorialidade das
regras materiais; os casos de convergência nã o intencional; princípio da territorialidade das regras
de conflitos ou do DIP (IUS = DIP, sendo que cada Estado utiliza as suas regras de conflitos, o que
nã o significa que nã o tenha de atender á s regras de conflitos estrangeiras, em casos de conexã o
subordinada ou reenvio) ou quando o IUS é o direito processual, ou seja, os tribunais aplicam o
direito processual do seu país, ainda que a lei material a aplicar seja estrangeira.

 Críticas
Apesar de, em certos casos, ser justificável recorrer à correlaçã o forum-ius, nã o o podemos
fazer por sistema, uma vez que há uma diversidade de interesses e exigências que estã o na base da
regulaçã o dos conflitos de lei e de jurisdiçõ es.
• Quanto aos conflitos de leis, quer-se procurar a lei mais “adequada” a resolver o conflito,
o que pode assumir vá rios sentidos (para nó s, mais bem colocada para resolver o litígio ante a
localização do facto, com algumas concessõ es à perspectiva material).
• Já nos conflitos de jurisdiçõ es, entram ideias de equidade processual, facilidade no acesso
à prova, justiça mais có moda para as partes, etc. – ideias que frequentemente nã o têm reflexo no
conflito de leis.
• Para além disto, a aplicaçã o da lex fori conduz à insegurança e instabilidade das relaçõ es
jurídicas, potenciando o forum shopping.

Poria, ainda, em causa o esquema de competências concorrentes.


• Pode haver conflitos de jurisdiçõ es. A concorrência é resolvida segunda uma regra
temporal: o tribunal competente vai ser o tribunal demandado em primeiro lugar.
• A existência de competências concorrentes é favorá vel aos particulares, que desta forma
têm vá rias alternativas no que toca ao seu acesso à justiça. Claro que há matérias em que isto nã o
pode valer, como aquelas em que a competência é exclusiva.
• Todo este esquema de competências concorrentes seria posto em causa com a correlaçã o
fórum-ius: ou deixava de haver competências concorrentes; ou, se houvesse, teríamos o problema
do forum shopping. Se a lei determinada como competente diz que é o tribunal desse país
competente, isto é incompatibilizá vel com as vantagens de um sistema de competências
concorrentes.

3) Concepção metodológica própria do método da referência ao ordenamento jurídico


competente. (Picone)

Para Picone, há vá rios métodos possíveis para resolver o problema das relaçõ es jurídico-
privadas internacionais:
1) Método Clássico ou conflitual - escolha de lei através da utilizaçã o de regras de conflito.
2) Método jurisdicional - Usado nos países de Common Law através da jurisdictional approach. O
tribunal nã o aplica lei estrangeira, devendo resolver-se previamente o problema da
competência internacional e depois entã o, escolhido o tribunal competente, deve este aplicar a
lei do foro. Tem

6 Distingue-se dos processos indirectos (retorno, casos de aplicaçã o subsidiá ria da lei do foro); dentro dos processos directos
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reconhecemos as NANI’s, Normas de DIP material e correlaçã o fó rum-ius.

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a vantagem de que o tribunal aplica a lei que conhece melhor - princípio da boa administraçã o
da justiça. Porém, nã o permite considerar separadamente as razõ es que estã o na base da
escolha da regra de conflitos e as razõ es que estã o na base da escolha das normas de
competência internacional; e o método jurisdicional exige que exista um ú nico tribunal
competente para decidir determinada matéria. Exige-se, portanto, que os Estados combinem
qual é o ú nico país competente.
3) Método dos conflitos interestaduais - Utilizado nos EUA para resolver os conflitos de leis dos
diferentes estados.
4) Método material de determinação da lei aplicável - escolha da lei em funçã o do resultado, isto é,
regras de conexã o substancial ou material.
5) Método da referência ao ordenamento jurídico competente - Quais as suas características?

O objectivo deste método é evitar as situaçõ es jurídicas claudicantes, ou seja, aquelas


situaçõ es que, constituídas no estado do foro, nã o vêem o seu reconhecimento assegurado nas
ordens jurídicas onde os seus efeitos se deverão essencialmente produzir. No fundo, visa garantir
que a situaçã o jurídica criada no Estado do foro possa ser reconhecida no quadro da ordem ou
ordens jurídicas estrangeiras em que ela está destinada a localizar-se e a desenvolver-se, o que
implica que a validade de uma situaçã o jurídica a criar no Estado do foro seja apreciada de acordo
com a avaliação feita pela ordem ou ordens jurídicas tidas como os ordenamentos de referência.

Podemos identificar quatro ideias principais caracterizadoras deste método:


• É necessário fazer uma consideração global do ordenamento ou ordenamentos jurídicos
envolvidos, ou seja unitá ria e simultaneamente todas as regras relativas à s situaçõ es
internacionais (competência dos tribunais e das autoridades, escolha de lei e reconhecimento das
situaçõ es jurídicas estrangeiras). PICONE critica a perspectiva clássica por conferir demasiado
relevo à operaçã o da determinaçã o da lei aplicá vel, fazendo apenas uma “referência parcial” aos
sistemas estrangeiros, na medida em que se limitaria a convocar a disciplina jurídica aplicá vel.
• Assim, o pró prio conceito de conflito aparece configurado de modo diverso – nã o
enquanto conflito de leis, mas enquanto conflito entre ordens jurídicas consideradas no seu
funcionamento global.
• Por outro lado, apresentava ainda uma noçã o de harmonia jurídica internacional distinta
da nossa – nã o apenas enquanto uniformidade de lei aplicá vel, mas enquanto continuidade da
situação jurídica. Ma perspectiva do autor, este princípio significa que uma relaçã o jurídica que
tenha sido criada possa ver os seus efeitos a manterem-se efectivos sem que uma outra ordem, que
nã o tenha relaçõ es fortes com o caso, possa colocar em causa a produçã o desses efeitos.
• Finalmente, este método supõ e que a situação jurídica seja apreciada, não apenas do
ponto de vista do ordenamento do foro, mas de uma ou mais ordens jurídicas consideradas na sua
totalidade.

PAOLO PICONE convoca vá rios exemplos normativos onde é patente este método – apesar
de, hoje, a maior parte deles ter desaparecido, “continuam a existir casos em que tal metodologia é
utilizada, isto é, em que a criação de uma situaçã o jurídica do Estado do foro está dependente da
apreciaçã o de uma ou mais ordens jurídicas de referência consideradas no seu funcionamento

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global”. Isto sucede nos casos em que o valor da continuidade é especialmente relevante. (p.e. caso
da adopçã o internacional e art. 31º/2 CC)
A doutrina considera que esta posiçã o nã o está tã o afastada da perspectiva clá ssica como se
costuma pensar. O que está em causa é uma perspectiva localizadora – embora o que temos que
determinar nã o seja a lei aplicá vel, mas o ordenamento jurídico de referência, continuamos a ter
aqui um problema de escolha. Este método é ainda de difícil generalizaçã o e difícil operatividade.

4) O Direito Internacional Privado Material


Estamos a pensar na criaçã o de normas especiais de direito material que regulam as
relaçõ es privadas internacionais. O antecedente histó rico destas normas é o chamado é o ius
gentium romano. Quais os argumentos que se invocam para sustentar a criaçã o destas normas
materiais especiais do DIP?
1) Especificidade das relações internacionais - a sua especificidade nã o deve ser resolvida tendo
em vista as normas criadas para aplicaçã o interna.
2) O método conflitual é incerto, dificultando o desenvolvimento do comércio internacional. O
sistema de regras de conflitos é complexo e nã o se dá facilmente a conhecer aos particulares,
sobretudo na sua aplicaçã o e interpretaçã o.
3) Em terceiro lugar, invocam a ideia da deslocalização espacial das situações internacionais. Há
situaçõ es internacionais que nã o se pode dizer que se localizam num ou noutro estado, sendo
verdadeiramente transnacionais e nã o devendo ser submetidas à lei de um determinado estado.

Onde podemos encontrar normas de DIP material?

1) Normas de origem legislativa interna (ex: Có digo de Comércio internacional da


Checoslová quia, de 1963. - claro que este não era um corpo de normas que dispensassem o
método conflitual, já que as normas só se aplicavam se o direito checoslováquio fosse o
competente por via da regra de conflitos; art. 2223º CC, 51º/2 CC, 54º/2 CC)
2) Norma de origem convencional e regulamentar (art. 3º Roma I)
1) Leis uniformes (LULL e Lei Uniforme dos Cheques)
2) Convenções de unificação (Estas criam normas materiais especiais para as relaçõ es
internacionais. P.e. Convenção de Varsó via sobre o transporte aéreo internacional)
3) Normas de origem jurisprudencial (ex: jurisprudência francesa, nomeadamente em matéria de
arbitragem comercial internacional)
4) Normas de origem consuetudinária (ex: lex mercatoria)

Conclusõ es/ Apreciaçã o Crítica:


1) Vinculação espacial da lei: é errado supor que a opçã o pelas normas de DIP material
eliminaria o problema da conexão e da escolha da lei. Nã o podemos esquecer o princípio da não
transactividade, pelo que o DIP material de um país, para ser aplicado, teria de ter uma conexã o
com as situaçõ es. Este princípio inviabiliza a tentativa de substituir a lei interna por regras de DIP
material que se aplicassem independentemente de qualquer ligaçã o espacial. Isto ocorre mesmo
nas convençõ es internacionais. Por ex., a LULL não dispõ e sobre a capacidade de entrar numa
relação cambiária. Ou seja, há matérias em que seria impossível querer regular
independentemente de ligaçã o espacial, tendo-se aí criado DIP conflitual.

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2) Ausência de especificidade das situações: os defensores do DIP material defendiam


que as relaçõ es internacionais sã o específicas, e por isso têm de ser reguladas por leis específicas.
Porém, foi-se apercebendo que a relaçã o jurídica privada nã o apresenta especificidades estruturais
pelo simples facto de ser internacional. Pode, de facto, haver situaçõ es em que pode haver esta
especificidade, quando se chama leis contraditó rias entre si; porém, o DIP conflitual tem
mecanismos que servem para resolver estes problemas. Ou seja, os sistemas de DIP tradicional
contêm instrumentos que permitem levar em conta a internacionalidade das relaçõ es jurídicas
(p.e. caso das normas espacialmente auto-limitadas). Há mesmo quem defenda que, na
interpretaçã o do direito interno, se deve tomar em consideraçã o a internacionalidade da relaçã o
jurídica.
3) Primazia da harmonia jurídica internacional/insegurança jurídica. A tendência para
resoluçã o do problema do DIP através da elaboraçã o de soluçõ es de índole material parte do
pressuposto da inadequaçã o dos resultados a que conduziria a via conflitual, ainda que o abandono
desta se faça em prejuízo da harmonia jurídica internacional. Porém, a nossa opçã o dá primazia à
harmonia jurídica internacional. Por outro lado, se se considerar que a inadequaçã o do método
conflitual é aferida em concreto, cabendo ao juiz descobrir normas materiais ajustadas à natureza
do caso, tal geraria um elevado grau de insegurança e imprevisibilidade.

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7. Fundamento geral do DIP. Princípios estruturantes do DIP e principais valores atendíveis.


7.1. A justiça do DIP como justiça “formal” ou conflitual.

A justiça do DIP é uma justiça de cunho formal, uma vez que os valores de certeza,
segurança e estabilidade têm primazia. Isto porque ao DIP compete tutelar as relaçõ es jurídicas
plurilocalizadas, caracterizadas por uma particular instabilidade que importa mitigar.
Para BAPTISTA MACHADO, a especificidade da justiça do DIP é patente na configuração
da regra de conflitos, na sua hipó tese e estatuição. No direito de conflitos, ao contrá rio do direito
material, nã o é em atençã o ao tipo ou natureza dos factos que o legislador determina a estatuiçã o,
mas em atençã o à localizaçã o desses factos; no que toca á consequência jurídica, esta traduz-se na
atribuiçã o da competência para regular aqueles factos a um dado sistema de normas. Ou seja,
mantém-se uma prioridade na atendibilidade à localizaçã o do facto e nã o ao resultado material
pretendido.
Sendo assim, o Direito de Conflitos, nã o tendo a ver com essa valoraçã o de justiça material,
só pode propor-se um escopo de justiça formal, cuja actuaçã o fundamentalmente se traduz em
promover o reconhecimento dos conteú dos de justiça material que ‘impregnam’ os casos da vida
imersos em ordenamentos de comunidades jurídicas estranhas, a fim de corresponder à natural
expectativa dos particulares.

7.2. Princípios estruturantes de um sistema de DIP de matriz conflitual

a) Princípio da harmonia jurídica internacional

Terá sido desenvolvido no século XIX, por SAVIGNY. Este princípio traduz a ideia da
uniformidade da lei aplicá vel, isto é, a ideia de que, independentemente do lugar onde uma relaçã o
jurídica está a ser avaliada, a lei aplicá vel deverá ser sempre a mesma. O princípio da harmonia
jurídica internacional responde à intençã o primeira do direito de conflitos, que é assegurar a
continuidade e a uniformidade de valoraçã o das situaçõ es plurilocalizadas.
Para tal, seria necessá rio que todos os Estados partilhassem o mesmo DIP; ora, nã o existe um
DIP mundial, unitá rio, o que nã o significa que o legislador nã o deva procurar, à sua medida,
contribuir para este universalismo. Assim, o legislador nacional deve criar regras de conflitos que
sejam susceptíveis de reconhecimento universal: se o legislador interno, no momento de elaborar
essas normas, estiver atento à s soluçõ es geralmente admitidas e se se esforçar sempre por adoptar
critérios que por sua razoabilidade sejam verdadeiramente susceptíveis de se tornar universais,
esse legislador estará realmente imbuído do autêntico espírito do DIP. Há algumas regras que sã o
tendencialmente universais: por ex., a aplicaçã o da lei do lugar da situaçã o do imó vel é uma
conexã o que, embora nã o esteja numa regra de DIP universal, existe na maioria dos Estados.
Destaca-se ainda a celebração de convençõ es internacionais, como na Conferência de Haia
sobre DIP, e as tentativas, a nível regional, de uma unificaçã o das regras de conflitos. Veja-se o
caso da UE, que busca a comunitarizaçã o do DIP, através de mú ltiplos regulamentos que gozam de
aplicabilidade directa e primado sobre o direito interno contrá rio. Sã o de aplicaçã o universal, o
que significa que se aplicam tanto nas relaçõ es entre EM’s, como em relaçõ es com Estados
Terceiros.

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Qual a importâ ncia deste princípio? Facilmente se concebem os inconvenientes que resultam
do facto de uma situaçã o jurídica não ser submetida em todos os países à mesma lei:
 As relaçõ es privadas internacionais caracterizam-se, por definiçã o, pela sua instabilidade,
pela ligaçã o a vá rias ordens jurídicos. A ambiguidade da lei aplicá vel geraria uma ainda maior
incerteza, pelo que a harmonia jurídica internacional é uma das melhores formas de garantir a
estabilidade e continuidade das relaçõ es internacionais privadas, a certeza e segurança jurídicas,
garantindo as expectativas legítimas dos particulares.
 A partir do momento em que existem vá rias leis aplicá veis a uma questã o jurídica concreta,
potencia-se o forum shopping. O princípio da harmonia jurídica internacional evita assim este
fenó meno.

Porém, é impossível construir um sistema de DIP baseado apenas neste princípio, uma vez que
este nã o resume toda a axiologia do DIP – se só ele estivesse em causa, o conteú do das normas de
conflitos seria indiferente.

b) Princípio da harmonia material

Exprime uma ideia de unidade do sistema jurídico. Dentro de uma mesma ordem jurídica, as
contradiçõ es nã o sã o tolerá veis: um sistema jurídico em coerência nã o pode ter normas
contraditó rias entre si. Este princípio nã o é específico do DIP, é comum a qualquer matéria. Esta
ideia favoreceria que a uma mesma questã o jurídica aplicá ssemos a mesma lei. Ora, a harmonia
material está em tensã o com a existência de inú meras regras de conflito para vá rios sectores
normativos, que fraccionam a relaçã o jurídica em funçã o das vá rias questõ es que ela levanta. Isto
porque para cada questã o pode haver uma lei mais bem colocada.
Cada vez mais temos regras de conflito autonomizadas para cada questã o jurídica – há uma
tendência actual especialização. O legislador vai ter de ponderar, para cada sector, quã o longe pode
ir na especializaçã o sem pô r em causa a harmonia material. FERRER CORREIA diz que não é
possível escolher um interesse prevalecente, só podendo ser resolvido em face das regras de
conflito e das matérias jurídicas em questã o: o legislador terá de fazer a escolha em cada matéria,
tentando que a especialização seja feita sem detrimento da harmonia material.

c) Princípio da efectividade ou melhor competência

Significa que a lei com melhor competência é a do Estado que esteja em melhores condiçõ es
para impor o acatamento dos seus preceitos.
Podemos ter dificuldades em aplicar uma sentença que aplique lei estrangeira. Isto tem
importâ ncia sobretudo nos imó veis: quaisquer actos jurisdicionais, ou qualquer acto de execuçã o
de uma sentença que queiramos pô r em prá tica, se o devedor não estiver de acordo em cumprir,
necessita sempre da intervençã o do Estado que tiver poderes coercivos naquele espaço. E
dificilmente um Estado aceitaria desencadear a sua má quina coerciva em aplicaçã o de uma regra
que nã o a sua.
Também quanto ao sistema sucessó rio: há sistemas que dividem a sucessã o mobiliá ria, ao qual
aplicam a lei pessoal; e a sucessã o imobiliária, na qual é competente a lei do lugar do imó vel. Isto
quando, à partida, a lei aplicá vel deveria ser a lei pessoal.

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d) Princípio da paridade de tratamento das ordens jurídicas.

O DIP deve colocar as vá rias ordens jurídicas em pé de igualdade, de tal modo que uma lei
estrangeira seja considerada competente sempre que a lei do foro, em circunstâ ncias aná logas, fosse
também ela considerada competente. A regra de conflitos bilateral é um instrumento perfeito para
assegurar este princípio, uma vez que tem como funçã o designar por competente, nas mesmas
condiçõ es, quer a lei do foro, quer a lei estrangeira.
No entanto, quando o juiz aplica uma lei estrangeira, aumenta o risco de erro judiciário. Assim,
podemos dizer que a boa administraçã o da justiça favoreceria, em tese, a aplicaçã o da lei do foro,
ou seja, existe uma tensã o entre o princípio da paridade de tratamento e o interesse da boa
administraçã o da justiça.
Porém, se este interesse fosse levado ao extremo, cada Estado aplicaria a sua pró pria lei, o que
seria incomportá vel para as relaçõ es jurídicas internacionais.

e) Princípio da boa administração da justiça

O DIP deve escolher a lei que o juiz conhece melhor, de modo a evitar o erro judiciá rio. Entre as
vá rias leis possíveis, o DIP devia escolher a lei do foro, isto é a lei do país onde se coloca o
problema
– porque é a lei que o juiz melhor conhece. Este princípio é claramente contrá rio ao anterior, e, por
isso, FERRER CORREIA considera que este só terá relevâ ncia quando os demais princípios já
estiverem satisfeitos.

7.3. Conflitos entre princípios

Por vezes, podem surgir conflitos entre estes vá rios princípios – um exemplo claro é entre o
princípio da harmonia jurídica internacional e a harmonia material, na regulaçã o da questã o
prévia. Por vezes, para resolver uma questã o principal, é necessá rio resolver uma questã o prévia,
decisiva para a regulaçã o da questã o principal.
Qual é a regra de conflitos que nos diz qual é a lei aplicável à questão prévia para a resoluçã o da
questã o principal? Há duas respostas possíveis:
• É a regra de conflitos do foro – perspectiva da conexão autónoma. No fundo, a lei
aplicá vel à questã o prévia é encontrada tal como se fosse uma questã o principal, autó noma. Pode
favorecer uma ideia de harmonia material, pois estabelecemos as vá rias conexõ es de modo
congruente.
• É a regra de conflitos da lex causae, da lei competente para a questã o principal –
perspectiva da conexão subordinada.

Esta segunda perspectiva é claramente favorá vel à harmonia jurídica internacional:


independentemente do lugar onde é colocada a questã o prévia, esta é resolvida como se se tivesse
levantado no Estado da questã o principal. Mas podem decorrer daqui resultados absurdos: em
tese, ao chamarmos a lei competente para questõ es diferentes que vã o ser ambas necessá rias,
estamos a potenciar as hipó teses de contradiçõ es.
Em Coimbra, FERRER CORREIA e BATISTA MACHADO defendiam que devemos partir da
segunda perspectiva para chegar à primeira. Favorecem a conexã o subordinada, mas aceitam em
certos casos que se façam concessõ es à conexã o autó noma. Este é um ponto em relaçã o ao qual a
doutrina se encontra muito dividida.
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Eduardo Figueiredo 2016/2017

7.4. Princípios de política legislativa que devem presidir à eleição do elemento de


conexão.

Vimos os princípios gerais que devem informar o sistema de DIP como um todo; porém,
estes princípios nã o nos conduzem a soluçõ es concretas dos conflitos de leis. É necessá rio
averiguar quais os interesses que subjazem à escolha do elemento de conexã o.
Para FERRER CORREIA, devemos seguir aqui uma directiva geral – “a lei aplicável será a que
tiver uma conexão mais forte ou estreita com a relação ou situação jurídica em causa, tendo em conta uma
ponderada avaliação dos interesses que se apresentem como prevalecentes no sector considerado”. Ou seja,
mediante o sector normativo em causa, o legislador de conflitos deve fazer uma ponderada
avaliaçã o das exigências em causa, sendo em funçã o disso que escolhe as conexõ es.
Ora, na determinaçã o do elemento de conexã o entram em jogo interesses individuais e
interesses colectivos.

• Interesses individuais:
 Justificam que exista a conexã o da lei pessoal, uma vez que o indivíduo tem interesse em
que exista uma lei com certa estabilidade ou permanência, que rege as suas relaçõ es jurídico-
pessoais. O principal campo de incidência destes interesses é o das matérias de cará cter pessoal
mais vincado, como os direitos de personalidade, estado e capacidade, relaçõ es de família e
sucessõ es mortis causa. Por ex., o art. 25.º do CC contém esta afirmaçã o da lei pessoal.
 Por outro lado, o interesse individual está na matéria das obrigaçõ es contratuais, na qual
existe, à partida, uma liberdade de escolha. Visa-se aqui facilitar o comércio jurídico: se os
contractos produzem efeitos inter partes, porque nã o deixar as partes escolher a lei que regula a sua
relaçã o? Ver art. 41.º do CC e, mais importante na prá tica, o art. 3.º do Regulamento Roma I. Há
uma tendência cada vez maior para esta autonomia conflitual, extravasando o seu â mbito
tradicional – obrigaçõ es extracontratuais, matéria de sucessõ es, etc.

• Interesses gerais: reportam-se a pessoas indeterminadas ou ao pú blico em geral, e aconselham o


uso de conexã o de natureza puramente objectiva.
 Sã o estes interesses que subjazem à escolha da conexã o do lugar da situaçã o dos bens nos
direitos que produzem efeitos erga omnes (direitos reais), uma vez que estes interessam nã o apenas
à s partes. Ver art. 46.º.
 Outro ponto em que têm prevalência os interesses gerais é naquelas normas que visam a
protecçã o do comércio jurídico local. Ver art. 13.º do Regulamento de Roma I, correspondente ao
art. 28.º do nosso CC.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

PARTE GERAL

1. A regra de conflitos no seio de um DIP de matriz conflitual – estrutura e função.


1.1. Elementos estruturais da regra de conflitos.

As normas de conflitos nã o resolvem directamente a questã o jurídica, apenas nos indicam a


ordem jurídica que vai dar resposta a esta questã o: delimitam um sector ou matéria jurídica e
indicam, de entre os elementos da factualidade concreta, aquele que permitirá apurar a lei aplicá vel.
A norma de conflitos é constituída por três elementos:
 Conceito-quadro;
 Elemento de conexã o;
 Consequência jurídica.
Os arts. 14.º a 65.º do CC prevêem um conjunto de regras de DIP, apesar de muitas delas
estarem substituídas por convençõ es e, sobretudo, regulamentos. O DIP tem vindo a sofrer uma
forte europeizaçã o, que tem implicaçõ es importantes.

1) Conceito-quadro: é o elemento da regra de conflitos que circunscreve uma matéria ou uma


questã o jurídica específica. Para esta questã o, a regra de conflitos vai apontar a conexã o decisiva,
sendo através dessa conexã o que ficaremos a saber qual a lei aplicá vel. Ou seja, tem por finalidade,
definir o â mbito de aplicaçã o da regra de conflitos e recorta as normas da lei competente que vamos
aplicar.
No fundo, o conceito-quadro, está para a regra de conflitos, como a hipó tese está para a norma
jurídica. No entanto, as hipó teses das normas materiais descrevem situaçõ es da vida; as regras de
conflitos nã o descrevem situaçõ es da vida, senã o que descrevem conceitos técnico-jurídicos.
Note-se que pode haver dificuldade em delimitar o â mbito normativo das vá rias regras de
conflitos. (problema da qualificaçã o)

Teorias sobre o objecto do conceito-quadro:


 Há quem entenda que o conceito-quadro designaria a relaçã o jurídica. Nã o é a posiçã o que
se deve seguir porque a relação jurídica apenas surge com base num ordenamento jurídico-
material determinado, que a norma de conflitos trata de individualizar.
 Há quem entenda que o conceito-quadro se refere directamente a uma relação ou situaçã o
da vida – a puros factos. Também nã o é de aceitar, porque a cada situaçã o de facto podem
corresponde problemas de diferentes natureza, e a cada um desses problemas uma norma de
conflitos distinta.
 Há quem entenda que o conceito quadro se refere a uma situaçã o jurídico privada – nã o se
segue esta teoria pelas razõ es apresentadas na primeira teoria.
 Há quem entenda que o conceito-quadro designa e circunscreve um certo grupo, classe ou
categoria de normas materiais, sendo as normas materiais o objecto ou conteú do da regra de
conflitos. É a posição de BAPTISTA MACHADO, porque entende que as regras de conflitos, sendo
normas sobre normas, servem para designar ou circunscrever o tipo de matérias ou de questõ es
jurídicas dentro do qual é relevante ou decisivo para a fixaçã o da lei competente o elemento de
conexã o a que a mesma regra de conflitos se refere. Há -de pois reportar-se a matérias ou questõ es
jurídicas e nã o a factos.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

2) Elemento de conexão: é o elemento da situaçã o de facto que é escolhido pelo legislador, na


regra de conflitos, para adjudicar a uma certa ordem jurídica a regulaçã o de uma questã o jurídica
que foi circunscrita pelo conceito-quadro. Este elemento pode ser extraído de vá rias características
da relação jurídica. É em funçã o dos interesses que se fazem valer nos vá rios sectores do DIP que
se escolherá o elemento de conexã o, optando-se ou por um sistema de conexã o ú nica, ou por um de
conexã o mú ltipla. Os elementos de conexã o podem ser:
o Pessoais (determinam a lei atendendo aos sujeitos da relação jurídica. P.e.
Nacionalidade, residência, vontade das partes) ou Reais (olha para os lugares onde a
relação jurídica se desenrola. P.e. Lugar da situaçã o da coisa, lugar onde decorre a
actividade causadora do prejuízo, local da celebração do casamento.)
o Factuais (Sã o aqueles que conseguimos concretizar sem atender a dados jurídicos. Ex:
lugar da situaçã o da coisa, residência habitual) ou Jurídicos (Sã o aqueles que nó s
precisamos previamente aplicar uma norma para o poder concretizar. Ex: nacionalidade
e domicílio legal)
o Móveis (A sua concretizaçã o pode vir a ser alterada. Ex: residência, nacionalidade) ou
Imóveis (A sua concretizaçã o nã o pode vir a ser alterada. Ex: Lex rei sitae). Note-se que
o lugar da situaçã o da coisa tanto pode ser um elemento mó vel ou imó vel, dependendo
de se a coisa é mó vel ou imó vel.

3) Consequência jurídica: é a declaração de aplicabilidade dos preceitos jurídico-materiais da


lei designada pelo elemento de conexã o. Numa regra de conflitos bilateral, a consequência jurídica
é enunciada em termos genéricos; em rigor, a uma norma de conflitos nã o corresponde uma norma
jurídica, mas tantas quantos os ordenamentos existentes. Neste sentido, o chamamento de vá rias
leis em simultâ neo pode gerar problemas de coordenação na aplicaçã o das vá rias leis.

1.1.2.Tipos de conexão

Algumas regras de conflitos têm apenas um elemento de conexã o; porém, há outras regras de
conflitos que, por variadas razõ es, têm dois ou mais elementos de conexã o. Faz-se aqui uma
classificaçã o dos elementos de conexã o em conexã o ú nica ou conexã o mú ltipla.
1) Regras de conflito de conexão única ou simples: têm apenas um elemento de conexã o.
Note-se que o sistema de conexã o ú nica nem sempre conduzirá à determinaçã o de uma só lei: há
factores de conexã o que podem levar por duas ou mais vias. Neste caso, é necessá rio escolher a lei
que melhor corresponde ao sentido da regra de conflitos. Ou seja, o critério que deverá presidir a
esta forçosa especificaçã o ulterior do elemento de conexã o nã o poderá ser outro senão aquele
mesmo que levou à escolha do factor utilizado pela norma de conflitos. Ex: art. 30º e 50º CC.
2) Regras de conflito de conexão múltipla ou complexa: têm dois ou mais elementos de
conexã o. Consoante os interesses em causa, os elementos de conexã o articulam-se entre si de modos
diversos:

• Alternativa: os interesses a que o DIP responde podem exigir o recurso a duas ou mais
conexõ es – por ex., para garantir a validade de um acto, proteger certas liberdades ou facilitar a
constituiçã o ou extinção de certa situaçã o jurídica. Quando o legislador pretende obter um
determinado resultado, pode indicar dois ou mais elementos em alternativa, vindo a ser escolhida
a

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lei que conduza ao resultado tido a priori como mais justo. Subjaz à conexã o alternativa o
favorecimento de um determinado resultado, o que demonstra que as regras de conexã o nem
sempre sã o rígidas e formais. É exemplo a norma do art. 36.º CC e art. 11º/1 RRoma I.
Note-se que, por vezes, o legislador desiste da conexã o alternativa, consagrando a
competência exclusiva de uma das leis designadas, quando esta lei formule certas exigências – art.
65.º/2. Está aqui em causa a harmonia jurídica internacional.

• Cumulativa7: no pó lo oposto da conexã o alternativa, encontramos a conexã o cumulativa.


Trata-se agora de subordinar a produçã o de certo evento jurídico ao acordo de duas leis, ou seja, à
satisfaçã o dos requisitos estabelecidos em cada uma delas, com vista a evitar a criaçã o de situaçõ es
que nã o possam aspirar ao reconhecimento num dos Estados com elas mais estreitamente conexos
(situações coxas ou claudicantes). O escopo aqui visado é, portanto, a harmonia jurídica internacional.
Ex: art. 60º CC.
FERRER CORREIA defende que este sistema nã o é recomendá vel como critério geral, e dele
só encontramos raras aplicaçõ es nas legislaçõ es mais recentes. No fundo, promete mais do que dá
(BATIFOL): promete aplicar mais do que uma lei, para depois na prá tica só aplicar a lei mais
restritiva. Assim, a doutrina da aplicaçã o cumulativa levantaria graves obstá culos à actividade
jurídica internacional – dificultando o reconhecimento das relaçõ es jurídicas.

• Distributiva: aqui existe uma distribuiçã o por ordens jurídicas diversas das condiçõ es de
validade do mesmo acto. No fundo, apresenta dois ou mais elementos de conexã o, mas aplica as leis
a partes diferentes da relaçã o jurídica. É o caso do art. 49º CC. A primeira razã o para a sua
utilizaçã o é um propó sito de lei formal, aplicando a cada sujeito a lei que está mais pró xima dele;
Para além disso facilita a constituiçã o da relaçã o jurídica.

• Subsidiária: como forma de prevenir a hipó tese de faltar o elemento primá rio de conexã o, a
norma de conflitos de conexã o subsidiá ria designa o elemento sucedâ neo a que tal norma recorre.
Pode utilizar-se o mesmo sistema quando se torne impossível averiguar o conteú do do direito
estrangeiro ou quando nã o se consiga determinar o elemento de conexã o (art. 23.º/2). É exemplo a
norma e conflitos do art. 52.º CC. Porque existe este sistema? Para evitar a aplicaçã o da lei do foro
que será aplicada apenas quando nã o se consiga concretizar o elemento de conexã o previsto na
regra de conflitos.

1.1.3.Relevância do factor tempo no funcionamento das regras de conflitos.

Encontramos aqui três problemas:


• Sucessã o de regras de conflito no tempo.
• Conflitos mó veis.
• Sucessã o de regras materiais no tempo.

7
O sistema de conexão múltipla cumulativa é distinto da cumulação de conexões! A cumulaçã o de conexõ es
é um expediente em que se indica uma ú nica lei que só é relevante se for comum a duas partes. É aquela
figura de quando a regra de conflitos diz "nacionalidade comum dos cô njuges", que só é relevante se for das
duas partes.

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1.1.3.1. Sucessão de regras de conflito no tempo

O problema surgiu no início do século passado, com a entrada em vigor do Có digo Civil
alemã o (BGB), que foi acompanhado de um conjunto de regras de conflitos. Colocou-se assim a
questã o de saber se estas regras de conflitos se aplicam a factos passados ou somente para o
futuro.
Este problema nã o se coloca se a regra de conflitos nova tiver uma norma transitó ria,
indicando quando é que esta se aplica no tempo. E se nã o houver norma transitó ria?
A posiçã o tradicional diz que se aplica a regra de conflitos antiga, para defesa da protecçã o
da confiança, já que as normas jurídicas nã o podem ter eficá cia retroactiva. (Zittelmann; Tese de
Lisboa)
Porém, KAHN, BAPTISTA MACHADO e FERRER CORREIA consideram que o princípio
da nã o retroactividade das normas jurídicas assenta no facto de a norma jurídica ser uma regra de
conduta, logo aplica-se apenas à s normas materiais. Ou seja, é a natureza da norma enquanto
norma material que conduz a que digamos que tem de ser limitada no espaço e no tempo; já as
regras de conflito não visam orientar condutas humanas, tratando-se de “normas sobre normas”.
Assim sendo, se a razã o da limitaçã o da lei no tempo é o seu cará cter jurídico-material, com que
fundamento vamos limitar temporalmente a vigência das regras de conflito? Nã o há razõ es para o
fazer, logo a nova regra de conflito deve aplicar-se a factos passados. Só assim se alcança maior
justiça conflitual.
Porém, pode levantar-se um problema: os particulares podem consultar as regras de
conflito para escolher a lei aplicá vel. Aqui, a regra de conflitos funciona indirectamente como uma
regra material e nã o como uma pura regra de conflitos. Poderá o particular exigir que se aplique a
antiga regra de conflitos, uma vez que conformou o seu comportamento?
Sim: entende-se que a regra de conflitos normalmente actua como pura norma decisó ria,
mas pode, em certas circunstâncias, actuar como norma material. Se assim for, a regra de conflitos
deve ser encarada como norma material e já se aplicam as normas do direito material quanto à
sucessã o de normas.
É , no entanto, necessá rio que, no momento da constituiçã o jurídica, o particular tenha
algum contacto com a ordem jurídica portuguesa (foro). Esta possibilidade de ter em consideraçã o
a regra de conflitos como norma material pressupõ e alguma ligaçã o fáctica com a ordem
portuguesa, caso contrá rio nã o temos nenhum indício que nos permita concluir que a regra
conformou o comportamento do particular. A aplicabilidade da antiga regra de conflitos pressupõ e
uma conexã o apreciável com a ordem portuguesa no momento da constituiçã o da relaçã o jurídica.

1.1.3.2. Conflitos móveis

O problema do conflito mó vel é suscitado por uma alteraçã o na concretizaçã o do elemento


de conexã o (também recebe o nome de sucessão de estatutos), e consiste em determinar qual a
influência que poderã o exercer em situaçõ es jurídicas já existentes as mutaçõ es verificadas nas
circunstâ ncias de facto ou de direito em que se funda a determinaçã o da lei aplicá vel – trata-se de
um “deslocaçã o da relaçã o jurídica”.
Imaginemos que o elemento de conexão é a nacionalidade, e num momento o sujeito tem a
nacionalidade A e no outro a nacionalidade B (renunciando à A). A regra de conflitos mantém-se igual, o
que muda é a concretizaçã o do elemento de conexã o. Daqui decorre, claro, que só se coloca o

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problema dos conflitos mó veis perante uma conexã o variá vel ou mó vel (por ex., o lugar da situaçã o
das coisas imó veis é uma conexã o constante).

Como se resolve este problema? Temos duas hipó teses: ou o legislador resolve este
problema, ou nã o resolve.
1) Em relaçã o à primeira hipó tese, o legislador pode resolver o problema dos conflitos
mó veis de duas maneiras:
• Através da imutabilidade/cristalizaçã o no tempo dos efeitos já produzidos, segundo o
estatuto antigo. É o que sucede no art. 29.º do CC – uma mudança do estatuto pessoal nã o prejudica
a maioridade adquirida segundo a lei anterior. Há aqui uma intenção de protecçã o do comércio
jurídico.
• Através de uma repartiçã o do â mbito de aplicaçã o dos vá rios estatutos. O exemplo
paradigmá tico é o art. 488.º CSC.

2) Já na segunda hipó tese, se o legislador nã o resolveu este problema, temos de interpretar


a regra de conflitos e, tendo em conta a sua teleologia, saber qual o elemento relevante. Isto tem de
ser feito norma a norma. No entanto, a doutrina avança alguns critérios, quer no â mbito do
estatuto pessoal, quer no estatuto real.

Estatuto pessoal:
• Em primeiro lugar, é preciso exceptuar aqui o regime das relaçõ es dos cô njuges
respeitantes a convençõ es antenupciais e regimes de bens, uma vez que o legislador resolveu aqui
o conflito mó vel – no art. 53.º. Este tipo de conexõ es imobilizadas não podem colocar problemas de
conflito mó vel.
• O problema coloca-se em relaçã o ao art. 52.º, que trata da relaçã o matrimonial. Nestas
relaçõ es, estão abrangidos nã o só efeitos pessoais, como efeitos patrimoniais independentes do
regime de bens. Novamente, o legislador não resolve aqui o problema dos conflitos mó veis; logo,
qual é o momento relevante? Para FERRER CORREIA, é aqui relevante o carácter voluntá rio da
adesã o a uma nova comunidade (pela nacionalidade); logo, é por isso que se entende que a nova lei
deve ser aplicá vel, nã o apenas à constituiçã o de relaçõ es novas, mas também aos efeitos
decorrentes de relaçõ es jurídicas duradouras (neste caso, já constituídas) existentes antes da
mudança. Ao contrá rio do art. 49.º, já nã o estã o em causa as expectativas em relação à validade de
um acto, aplicando-se a lei nova.
• Porém, note-se que em relaçã o à validade de um acto, como o casamento, aplica-se o art.
49.º, em relaçã o ao qual se podem levantar conflitos mó veis. O legislador nã o resolve este problema,
porém, o momento que faz sentido é o da celebraçã o do casamento. Quando se trata da validade de
um acto jurídico celebrado, faz sentido dar relevâ ncia à concretizaçã o da conexã o existente à data
desta celebraçã o – é a maneira de respeitar as ú nicas expectativas possíveis dos particulares –
devendo aplicar-se, pois, a lei velha. Atençã o que esta norma só se refere ao momento em que se
institui a relaçã o.

Estatuto real: quanto ao estatuto real, a regra é a lex rei sitae, art. 46.º, que se justifica por
interesses gerais do comércio. Porém, que dizer se a coisa é movimentada? A ideia aqui é que há
interesses do comércio jurídico local que faz com que se deva dar preferência à lei actual da
coisa, em nome da

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

certeza das transacçõ es que sobre ele venham a realizar-se. Porém, não se pode ignorar direitos
adquiridos no momento da constituiçã o. Em suma, a perspectiva tradicional é a de que se aplica o
estatuto antigo à constituiçã o e aquisiçã o dos direitos, mas aplica-se a lei do estatuto novo ao
conteú do e exercício desses direitos.

1.1.3.3. Sucessão de regras materiais no tempo

O problema coloca-se quando a regra de conflitos diz que uma lei estrangeira é competente,
mas nessa lei estrangeira houve uma sucessã o de regras materiais. Aplica-se o direito material
antigo ou o direito material novo? Deve ser o direito transitó rio da lei aplicá vel (lex causae) a
responder a este problema – art. 23º CC, que diz que devemos interpretar a lei estrangeira dentro
do sistema a que pertence.
Poderia em abstracto admitir-se a opçã o pelo direito intertemporal do foro; porém, esta
soluçã o nã o estaria em consonâ ncia com o sentido da atribuiçã o da competência a um direito
estrangeiro para a regulamentaçã o de uma situaçã o plurilocalizada.
Porém, a esta doutrina devem admitir-se duas ressalvas (FERRER CORREIA):
• Pode suceder que, em face da regra de conflitos, faça sentido aplicar o direito antigo ou o
direito novo. Tudo depende da interpretaçã o da regra de conflitos.
• Também pode intervir aqui a ordem pú blica internacional, algo que devemos ter sempre
em conta.

1.1.2.Função da regra de conflitos

As regras de conflitos podem ser bilaterais, quando indicam como competente quer a lei do
foro, quer a lei estrangeira; ou unilaterais, quando indicam como competente apenas uma ordem
jurídica. A norma paradigmá tica do modelo tradicional da regra de conflitos é a bilateral. Esta é a
orientaçã o geralmente seguida na prá tica, mas nã o a ú nica possível. Ao sistema bilateralista opõ e-
se o da unilateralidade.
Por ex., art. 49.º é uma regra bilateral, porque pelo elemento de conexã o pode ser competente
a lei do foro ou qualquer outra lei. Seria unilateral se dispusesse que “a capacidade é regulada em
relação a nubentes de nacionalidade portuguesa pela lei portuguesa”.

Porém, para além das regras unilaterais e bilaterais, podemos ainda ter as regras
imperfeitamente bilaterais, que exigem, para funcionar, uma qualquer ligaçã o com a nossa ordem
jurídica; funcionando, sã o bilaterais. A bilateralidade é imperfeita na medida em que, funcionando
como uma regra de conflitos bilateral, só actua em determinados casos que tenham com a ordem
do foro um determinado contacto. O problema destas normas é o que deixam situaçõ es por regular
(o que pode ser, no entanto, intencional, servindo um interesse de política legislativa).

1.1.2.1. Unilateralismo

As perspectivas que vêem as regras de conflito como regras unilaterais sã o as


unilateralistas. A norma de conflitos é unilateral quando se propõ e apenas delimitar o domínio
de aplicaçã o das

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leis materiais do ordenamento onde vigora, ou seja, quando indica apenas como competente a lei
do foro. Temos duas modalidades.
1) Unilateralismo extroverso: para a tese unilateralista extroversa, a funçã o da regra de
conflitos é a indicar como competente sempre uma lei estrangeira, assentando na concepçã o de
ROBERTO AGO. Para este autor, a concepçã o bilateralista, ao subordinar a aplicação do direito
interno à prévia intervençã o de uma norma de DIP, nã o faria sentido: se a designaçã o de um
ordenamento estrangeiro por parte de uma norma de DIP se compreende, porque serve para
tornar aplicá veis pelo juiz do foro normas que de outro modo nã o o seriam, já nenhum significado
pode ter a designaçã o, por parte de uma norma de DIP, do pró prio ordenamento de que ela faz
parte. Para além disto, alega-se contra a tese bilateralista que esta confere ao legislador estadual
um papel de legislador supra-estadual, e que coloca num mesmo plano o direito material do foro e
os direitos estrangeiros.
Assim, quando é que a lei do foro seria competente? O ponto de partida desta teoria é o de
que, na falta de indicaçã o, a lei material do foro é a lei aplicá vel; assim, precisaríamos de uma regra
de conflito apenas para dizer quando é que uma lei estrangeira é necessá ria. Tecnicamente,
propunha uma espécie de recepçã o do direito estrangeiro por uma norma jurídica.
Uma das críticas que podemos apontar a esta tese é a de que as vá rias leis nã o estã o
colocadas numa perspectiva de paridade. Para além disto, há uma falta de autonomia do direito
internacional privado em relação ao direito material, que nã o é a nossa perspectiva – as regras de
conflito têm um fim e estrutura diferentes.

2) Unilateralismo introverso: aqui, podemos encontrar duas formulaçõ es, uma formulação
tradicional e outra mais elaborada, defendida por QUADRI8.
Na sua justificaçã o tradicional, esta teoria faz apelo a um pretenso princípio conforme o
qual o legislador interno nã o teria poderes senã o para delimitar a esfera de competência das suas
pró prias leis. Ou seja, a funçã o da regra de conflitos é a de designar por competente tã o só a lei do
foro. Críticas possíveis:
• Esta doutrina parte da ideia de que o conflito de leis é um conflito de soberanias e o DIP
seria assim um sistema de normas tendente a resolver conflitos de soberania entre os Estados.
• Para além disto, FERRER CORREIA afirma que esta doutrina enferma ainda de um “erro
fundamental”: quando um Estado aplica uma lei estrangeira, isso nã o significa que é a soberania
estrangeira que se afirma, pois a soberania só pode exercer-se mediante o emprego de
mecanismos de coerção. Assim, no territó rio de certo Estado só a soberania desse Estado pode
tornar-se efectiva.

Fica, porém, a dever-se a QUADRI a formulação mais elaborada desta doutrina. Para o
autor, a aplicabilidade de uma norma estrangeira apenas pode resultar de uma norma do sistema a

8
Não se deve confundir o unilateralismo moderado de Quadri e o unilateralismo selvagem de Currie.
Quadri admite regras de conflitos; defende que uma lei se aplica quando tiver vontade de aplicaçã o; É
unilateralista ab extrínseco porque a vontade de aplicaçã o das normas é vista nas regras de conflitos do seu sistema.; É
um unilateralista mais moderado que procura a harmonia jurídica internacional atravé s da boa coordenaçã o das ordens
jurídicas, que dependia do unilateralismo das regras de conflito.
Já Currie, nã o admite regras de conflitos.; Também parte da vontade de aplicaçã o das leis; É unilateralista ab
intrínseco porque a vontade de aplicaçã o de uma lei está na sua ratio, isto é, nela pró pria; É um “unilateralista selvagem”
porque a sua construçã o nã o tem em vista qualquer preocupaçã o com a harmonia jurídica internacional.
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que ele pertence, ou seja, essa norma tem de ter vontade de aplicação – e só assim se garantia a
harmonia jurídica internacional e reconhecimento de direitos adquiridos. Assim, para que uma lei
estrangeira pudesse ser aplicada, teria de verificar-se uma dupla condiçã o cumulativa:
• Que a ordem jurídica do foro não tenha vontade de aplicaçã o, ou seja, a situação sub
iudice nã o poderia estar ligada à lex fori através do elemento de conexã o que a lei considera
decisivo no sector em causa.
• Que a lei estrangeira tenha vontade de aplicaçã o: de acordo com a lei estrangeira, tem de
haver uma regra de conflitos que atribua ao ordenamento estrangeiro a competência para tratar
aquela questã o. A situaçã o sub iudice tem de estar ligada pelo elemento que a lei estrangeira
designa como decisivo para que essa ordem seja competente.
Que críticas podem ser apontadas a esta doutrina? Como nota FERRER CORREIA, esta é
uma doutrina merecedora da maior atençã o, desdobrando-se em duas proposiçõ es – que, nã o
estando em causa a competência do direito local, há que aplicar à situação controvertida o direito
que se julgar competente para a reger; e que jamais deve decidir-se um caso pelas disposiçõ es de
uma lei que o não inclua no seu âmbito de aplicaçã o. Porém, apesar dos méritos do unilateralismo,
este tem também graves inconvenientes, uma vez que pode dar origem a situaçõ es de conflitos,
quer positivos, quer negativos.
• Conflitos positivos (várias leis querem aplicar-se num determinado caso): os autores
foram avançando vá rias soluçõ es para este problema. Para QUADRI, a soluçã o apenas poderia ser a
de ir buscar a lei à qual a situaçã o concreta estivesse ligada pelo vínculo mais forte, que seria
também, por legítima presunçã o, a lei que as partes terão tido em vista. Porém, qualquer das
soluçõ es avançadas é menos segura, e logo menos tuteladora das expectativas particulares, do que
as regras de conflito bilaterais.
• Vácuo jurídico (nenhuma lei se quer aplicar): para não denegarmos a justiça, temos
sempre de aplicar uma das leis, e teremos de ir contra a ideia fundamental desta doutrina – a lei só
se aplica quando tem vontade de aplicaçã o. QUADRI nã o propunha aqui nenhuma soluçã o, pelo
que DE NOVA veio sugerir que, no espírito da obra deste autor, se criasse uma regra especial, tanto
quanto possível conforme ao sentido daquele sistema jurídico que tenha com o caso vertente a
conexã o mais estreita. O unilateralismo gera, pois, um problema que só é resolvido com o regresso
ao bilateralismo, através da escolha de uma lei com ligaçã o mais pró xima ao caso.

Para além do mais, os problemas do bilateralismo, identificados por Quadri, nã o sã o uma


fatalidade. O sistema bilateral pode ser corrigido através do reenvio (art. 16º a 19º CC) e a teoria do
reconhecimento de direitos adquiridos.
Assim, FERRER CORREIA conclui que, sob o ponto de vista da certeza do direito, a doutrina
da bilateralidade suplanta o sistema unilateralista. Porém, o sistema bilateralista na sua forma
pura também nã o é aceitá vel, sendo necessá rio introduzir algumas correcçõ es.

1.1.2.2. Bilateralismo

Os autores unilateralistas criticam os bilateralistas, denunciando a ideia paradoxal de que o


bilateralismo, numa feição pura, conduzia ao funcionamento da regra de conflito em situaçõ es
internas. Isto nã o faz sentido. Assim, corrigimos a doutrina bilateralista para evitar esta crítica
(BATISTA MACHADO), chegando a um bilateralismo corrigido: a funçã o da regra de conflitos

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

bilateral é a de designar por competente quer a lei do foro, quer uma lei estrangeira; contudo, no
que toca aquela primeira funçã o, ou seja, quando se designa como competente a lei do foro, a regra
de conflitos só intervém quando se trate de uma situação internacional, ou seja, relação privada
internacional. Isto relaciona-se com o princípio da nã o transactividade: só se aplicam as leis que
estejam em contacto com os factos. Vemos, assim, que a regra de conflitos tem uma funçã o
subordinada.
O nosso sistema tem predominantemente regras bilaterais; porém, note-se que os sistemas
nã o precisam de ter só regras unilaterais ou regras bilaterais. As regras de conflitos nã o precisam
de ter sempre a mesma funçã o. O art. 28.º/1 é um exemplo de uma regra de conflitos unilateral;
porém, no n.º 3 deste artigo, o legislador bilateraliza a norma. Noutros sistemas de regras
unilaterais, a jurisprudência bilateralizou as normas.

1.1.2.3. Doutrina da auto-limitação espacial

Há ainda uma doutrina que defende a auto-limitaçã o espacial das regras de conflito
(FRANCESCAKIS), surgindo como tese intermédia entre o unilateralismo e o bilateralismo.
Como o pró prio nome indica, entende que as regras de conflitos estã o, na sua aplicaçã o,
limitadas no espaço. Como se define o â mbito de aplicaçã o? É necessá rio separar dois nú cleos de
situaçõ es:
• Situaçõ es que, à data da sua constituiçã o, tinham algum contacto com a ordem jurídica do
foro. Nestas situaçõ es, a regra de conflito pode aplicar-se.
• Situaçõ es que, no momento da sua constituiçã o, nã o tinham nenhuma ligaçã o com a
ordem jurídica do foro, isto é, situaçõ es que se constituíram no estrangeiro, num momento em que
nã o tinham nenhuma ligaçã o com a nossa ordem. A este segundo grupo nã o podemos aplicar a
regra de conflitos, segundo esta visã o: caem fora do â mbito de aplicaçã o especial.

Assim sendo, que lei seria aplicada a este segundo grupo de situaçõ es? Aplica-se a lei que
tiver sido efectivamente aplicada na constituiçã o da ordem jurídica, sem qualquer controlo da
nossa lei. Faz sentido que a regra de conflitos esteja limitada no espaço? Já vimos que nã o faz
sentido estar limitada no tempo, uma vez que nã o se trata de uma norma de conduta. A mesma
ideia vale para o espaço: esta é uma crítica fundamental que se aponta a esta doutrina.
Há uma outra crítica que podemos acrescentar – neste segundo grupo de casos, diz-se que a
nossa ordem jurídica nã o tem interesse em controlar as relaçõ es jurídicas. Porém, produzem
efeitos no foro, logo há algum controlo que devemos fazer sobre as situaçõ es constituídas no
estrangeiro, nã o sã o necessariamente irrelevantes para a nossa ordem. Esta doutrina tem um
ponto de partida bilateral, mas no fundamento fica pró ximo do unilateralismo: nas situaçõ es nã o
ligadas à nossa lei nã o temos nada a dizer.

2. O problema da qualificação.
2.1. Introdução

Vimos já a definiçã o de conceito-quadro, um conceito técnico-jurídico destinado a incorporar


uma multiplicidade de conteú dos jurídicos (seja do foro, quer de OJ estrangeiros), limitando o
â mbito de actuaçã o da lei competente indicada pelo elemento de conexã o. O problema da

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qualificaçã o é um problema geral de direito; porém, a particularidade que existe no DIP resulta do
facto de os conceitos-quadro nã o serem conceitos descritivos mas sim técnico-jurídicos. Se as
regras de conflitos recorressem a conceitos descritivos, tudo se resumiria a descrever as situaçõ es
factuais contidas na previsã o normativa e depois, face ao caso concreto, subsumi-lo à categoria
apropriada do direito de conflitos – a operaçã o de qualificaçã o nã o apresentaria nenhuma
especificidade face à s regras de direito material. Porém, nã o é isso que aqui ocorre.

Exemplo de qualificação

Imaginemos que temos uma família de ingleses (A, pai e B, filho). A e B celebram um contrato de
compra e venda, válido à luz da lei inglesa mas não à luz da portuguesa (art. 877.º). Se A e B são pai e
filho, as relações familiares são regidas pela lei inglesa; pelo contrário, as relações obrigacionais serão
reguladas, desde logo, pela lei escolhida pelas partes – imaginemos que tinham escolhido a lei portuguesa.
O problema da qualificação começa quando vamos pegar numa norma material, neste caso o art. 877.º, e
vamos tentar qualificá-la, ou seja, dar-lhe uma certa natureza jurídica atendendo à sua função sócio-jurídica. O
art. 877.º, pelo seu conteúdo e função, não é uma norma obrigacional: o que quer proteger é a paz
familiar, evitar a justiça sucessória (tentando fugir às regras sucessórias que tentam fazer uma repartição
igualitária). Assim, é uma norma de natureza familiar – para uns – ou de natureza sucessória – para outros.
De qualquer forma, pelo conteúdo e função não corresponde à função normativa para que o direito
português é chamado neste contexto: a lei competente no caso para regular as relações familiares
é a lei inglesa. O art. 877.º não se subsume no conceito quadro de obrigações da regra de conflitos
que chama a lei portuguesa. Isto implica um juízo de correspectividade.

2.2. Momentos da qualificação.

O problema da qualificaçã o é um problema de interpretaçã o e aplicaçã o das regras de conflitos.


Normalmente, dividimos a qualificaçã o em dois momentos:

• Critério da qualificação: é o problema da interpretação do conceito-quadro. Está em


causa saber qual o critério que deve guiar a interpretaçã o do conceito-quadro.
• Qualificação propriamente dita ou objecto da qualificação: é o problema da aplicaçã o da
regra de conflitos. Está em causa saber se um dado instituto ou preceito do ordenamento
designado por uma regra de conflitos pode subsumir-se à categoria normativa visada pela norma.

No que toca ao critério da qualificação: há vá rias teorias sobre o modo como a interpretaçã o
deve ser feita.

• Perspectiva tradicional – Teoria da qualificação da lex materialis fori: segundo esta


teoria, a determinaçã o do conteú do dos conceitos-quadro obtém-se recorrendo ao direito material
da ordem jurídica do foro. Ou seja, os conceitos usados na regra de conflitos têm o mesmo sentido
que os conceitos homó logos do direito material interno. Desde logo, podemos ver que esta
concepçã o nã o respeita a funçã o internacional do DIP, nã o havendo aqui abertura a conteú dos
jurídicos estrangeiros ou institutos que, embora nã o inteiramente coincidentes, têm em vista a
mesma funçã o sociojurídica que os nossos.

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• Interpretação segundo a lei competente (lex causae): outra doutrina, defendida por
RABEL e WOLFF, preconiza a interpretação do conceito-quadro segundo a lei competente, ou seja,
segundo a lei aplicá vel. Porém, a crítica é a de que, se admitíssemos esta interpretação, a regra de
conflitos tornar-se-ia num “cheque em branco”: a matéria jurídica de que trata seria definida nã o
pela regra de conflitos, mas pela lei competente.

• Interpretação segundo o direito comparado: de acordo com uma terceira perspectiva, a


interpretaçã o do conceito-quadro deve ter em conta o direito comparado, i.e., o conteú do do
conceito-quadro deve definir-se por um processo de abstracçã o, a partir dos diferentes sistemas
jurídico-materiais. Porém, como aponta FERRER CORREIA, esta é uma tarefa irrealizável na
prá tica: mesmo que fosse possível ao intérprete conhecer todas as leis existentes, ser-lhe-ia
impossível prever as mudanças futuras do respectivo conteú do. Nã o é fá cil construir um conceito
comum e bastaria que um dos ordenamentos mudasse para que deixasse de existir esse conceito.
Para FERRER CORREIA, embora se reconheça a importâ ncia do direito comparado nesta
matéria, é de recusar uma posiçã o desta índole. Para este autor, as categorias de conexã o hã o-de ter
a elasticidade necessá ria para que em cada uma possamos incluir todas as normas e instituiçõ es
que, seja qual for o seu nome, a sua forma concreta ou até mesmo o seu conteú do, desempenhem,
no ordenamento estadual a que pertencem, uma funçã o sociojurídica equivalente à quela que o
legislador tinha em mente, quando resolveu optar por determinado factor de conexã o. É preciso
fazer uma reconstituiçã o do juízo de valor em que a norma de conflitos se baseia.

Assim, de acordo com FERRER CORREIA, a interpretaçã o do conceito-quadro deve ser uma
interpretaçã o:
• Teleológica, ou seja, temos de tentar perceber porque é que o legislador, naquela
concreta regra de conflitos, escolheu determinada conexão. Todo o sistema de regras de conflitos
deve ser preordenado à satisfação de determinados interesses, e assim a conexã o deve ser a mais
adequada a satisfazer esses mesmos interesses. Como tal, a interpretaçã o do conceito-quadro tem
de passar obrigatoriamente pela determinaçã o do juízo valorativo que conforma a regra de
conflitos.
• Para além disto, deve ser autónoma em relação ao direito material: devemos atender à s
finalidades pró prias do DIP e nã o do direito material. Se o DIP tem a sua intencionalidade e a sua
justiça pró pria, a interpretaçã o dos seus preceitos e dos respectivos conceitos-quadro tem de ser
conduzida com autonomia. A interpretaçã o deve ser feita no quadro do DIP a que pertence (à lex
formalis fori e nã o à lex materialis fori).

A reuniã o destas duas características – interpretação autónoma e teleológica – conduz ao


critério da lex formalis fori. Cada conceito quadro tende a ter um nú cleo duro, que é constituído pelo
conceito homó logo do direito material, mas depois há uma zona periférica onde podemos abranger
dados normativos de outros ordenamentos que, embora sejam diversos, correspondem à mesma
funçã o.
Em suma, a conclusã o primordial é a seguinte: um conceito-quadro abrange todos os institutos
ou conteú dos jurídicos, quer de direito nacional ou estrangeiro, aos quais convenha, segundo a
ratio legis, o tipo de conexão adoptado pela regra de conflitos que usa o mesmo conceito.

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No que diz respeito à qualificação propriamente dita ou objecto da qualificação, trata-se de


averiguar quais, de entre os preceitos materiais do ordenamento designado por certa norma de
conflitos, os correspondentes à categoria definida pelo conceito-quadro dessa norma; isto é, se
determinado instituto ou conceito do ordenamento competente pode ser subsumido à categoria
definida pelo conceito-quadro da regra de conflitos. A qualificação em sentido estrito é assim um
problema de subsunçã o.
Como é que isto se faz? Temos de recorrer ao conteú do e funçã o dos preceitos em causa, sendo
que a determinaçã o da funçã o sociojurídica da norma competente só se pode fazer no contexto do
ordenamento jurídico competente. Por isso se diz que com esta posiçã o superamos a dicotomia
tradicional entre uma qualificaçã o de acordo com a lex fori ou lex causae: a delimitaçã o do conceito
quadro pertence à lei do foro, enquanto que a funçã o sociojurídica da norma que vamos subsumir
na regra de conflitos vai ser encontrada no ordenamento a que a norma material pertence –
estabelecendo-se um compromisso entre a lege fori e a lege causae.

2.3. A opção portuguesa: o art. 15º do CC.

O legislador acabou por resolver o problema da qualificaçã o entre nó s no art. 15.º do CC.
Algumas notas sobre este artigo:
• O legislador só trata aqui da qualificaçã o propriamente dita, diz como se vã o qualificar as
normas – para nó s, materiais.
• Resulta do art. 15.º que essas normas sã o qualificadas de acordo com a sua funçã o e
conteú do, e não tanto em funçã o da sua inserção sistemá tica.
• Este conteú do e funçã o sã o apreciados à luz da lex causae, à luz do ordenamento jurídico
a que a norma pertence.
• O chamamento que a regra de conflitos faz é um chamamento circunscrito ou limitado: a
regra de conflitos, quando designa um ordenamento jurídico, nã o quer dizer que esse
ordenamento vai ser aplicado em bloco, apenas aquelas que correspondem ao instituto visado.
• Finalmente, o art. 15.º pressupõ e que a competência já esteja atribuída, ou seja, a
qualificaçã o não serve para determinar a lei aplicá vel. Só procedemos à qualificaçã o depois de
sabermos quais os ordenamentos competentes. A lei competente é determinada através do
princípio da nã o transactividade da lei (exclui os ordenamentos que nã o têm conexã o com a
situaçã o); e, dentro dos ordenamentos com contacto, só serão competentes os designados pela
regra de conflitos. No problema da qualificaçã o, já fizemos funcionar estes dois momentos.
A qualificaçã o de acordo com o direito português traduz-se no seguinte: quanto ao primeiro
momento, recorremos ao critério da lex formalis fori; no segundo, rege o art. 15.º CC. Segundo
FERRER CORREIA, este segundo momento trata-se da resoluçã o de um problema de
subsumibilidade de um quid ao conceito-quadro.

2.4. Conceito tradicional de qualificação.

A concepçã o em que o legislador português se inspirou distingue-se da chamada concepçã o


tradicional da qualificaçã o – teoria da qualificação lege fori ou teoria da dupla qualificação. Esta é
uma teoria da dupla da qualificaçã o porque os autores que a defendem identificam duas

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qualificaçõ es: (1) qualificaçã o primá ria ou de competência e (2) uma qualificaçã o secundária ou
material. Esta é a concepçã o seguida, por ex., pela doutrina italiana.

Em que consistem as operaçõ es de qualificaçã o primá ria e secundária?


• Qualificação primária: Tem por objectivo a determinaçã o do ordenamento jurídico
competente. Para tal, é feita na perspectiva da lei do foro e consiste em pegar numa situação
concreta e subsumir esses factos nas normas materiais do foro, tal como se fosse uma questã o
puramente interna. Essas normas materiais terã o uma correspondência nas regras de conflitos e, a
partir daqui, designamos definitivamente a lei aplicá vel. Trata-se de uma qualificação de factos ou
situaçõ es da vida, porque para estes autores o objecto do conceito-quadro sã o situaçõ es da vida ou
factos.
Procedimento: Vamos qualificar os factos de acordo com a natureza que esses factos têm no
direito material do foro. Tal vai permitir subsumir os factos à regra de conflitos correspondente que
indica a lei competente. (ROBERTSON; ROBERTO AGO)

• Qualificação secundária: aqui, visa-se determinar, dentro da lei já determinada como


competente pela qualificaçã o primá ria, quais as normas materiais aplicá veis. Aqui, temos duas
perspectivas:
 Perspectiva clássica (AGO): deve ser feito um chamamento indiscriminado, aberto, de toda a
ordem jurídica competente. A lei é competente independentemente da natureza e função de cada
norma material.
 Perspectiva de ROBERTSON: dentro da lei determinada como competente, fazemos um
chamamento circunscrito, selectivo, discriminado ou funcional, ou seja, consideramos aplicáveis
apenas as normas que tenham natureza aná loga à categoria circunscrita – o que pode causar
problemas de vá cuo jurídico, uma vez que fazemos uma espécie de pré-resolução do problema.

Quais são assim as diferenças da concepção da dupla qualificação face à perfilhada entre nós?
• A qualificaçã o primá ria serve para identificar a lei aplicá vel, o ordenamento jurídico
definitivamente competente. Aqui, há uma diferença em relaçã o ao nosso sistema de qualificaçã o,
que nã o serve para determinar o ordenamento competente: esta é uma operaçã o anterior à
qualificaçã o.  Muitos autores italianos criticaram o nosso sistema por nã o atender à qualificaçã o
primá ria. FERRER CORREIA defende o nosso sistema ao afirmar que a qualificaçã o primá ria é um
“falso problema e desnecessá ria”, pelo que já vimos antes.
• Para além disto, o objecto da qualificaçã o sã o factos, situaçõ es de vida; já para nó s o objecto
da qualificaçã o sã o normas materiais. Como é que se qualificariam os factos? Os autores italianos,
(AGO, bem como o americano ROBERTSON) defendiam que os factos deveriam ser qualificados de
acordo com a lei do foro.
• Em relação à qualificaçã o secundária ou material, na concepçã o de AGO faz-se um
chamamento indiscriminado das normas. ROBERTSON aproxima-se mais da nossa concepçã o: só
aplica as normas, discriminadamente, que se aproximam do instituto em questã o.

Que críticas é que podemos apontar a esta perspectiva?


Em relaçã o à qualificação secundária, criticamos o chamamento indiscriminado: ao aplicar
todas as normas do ordenamento competente, ignorando a funçã o que têm, está -se a ignorar a

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pró pria funçã o do conceito quadro, que quer repartir as matérias jurídicas. O sentido da regra de
conflitos é atribuir uma certa funçã o normativa a uma determinada lei, logo só podem estar
compreendidas no seu â mbito as normas que correspondem a essa funçã o. A referência da norma
de DIP a uma lei nã o abrange a totalidade das suas disposiçõ es, mas apenas aquelas que possam
subsumir-se na categoria normativa da regra de conflitos.

Porém, as críticas sã o fundamentalmente dirigidas à qualificação primária:


• A qualificaçã o primá ria é desnecessá ria. Com efeito, nã o precisamos da qualificaçã o primá ria
por causa do princípio da não transactividade: este princípio já circunscreve os ordenamentos
jurídicos potencialmente aplicá veis. A pró pria relaçã o jurídica comporta em si a circunscriçã o das
leis potencialmente aplicá veis. Entã o mas o juiz tem de andar a investigar qual o direito aplicá vel?
A isto respondemos que as partes têm um dever de colaboraçã o e deverã o indicar as normas
potencialmente aplicá veis.
• Para além de ser desnecessá ria, padece de outros vícios. Em primeiro lugar, viola o princípio
da paridade de tratamento das ordens jurídicas, pois à questã o é dada a natureza que tem na
natureza do foro. Ao violar a paridade, também perturba a harmonia jurídica internacional.
• Por outro lado, há aqui um certo ilogicismo do critério: estamos a aplicar leis estrangeiras de
acordo com a perspectiva jurídica do ordenamento do foro.
• Para além disso, esta doutrina nã o consegue ligar com o problema do instituto desconhecido.
Se houver um instituto desconhecido, nã o conseguimos subsumir a nenhuma regra de conflitos,
logo nã o conseguimos determinar nenhuma lei competente.
• Por fim, a concepçã o nã o é inocente e está ligada a uma funçã o da regra de conflitos que
rejeitamos: reflecte a posição que HART tinha do unilateralismo extroverso, ou seja, as normas de
conflito seriam exclusivamente destinadas a definir o campo de aplicaçã o dos sistemas jurídicos
estrangeiros. Se a regra de conflitos tem de incorporar no ordenamento do foro conteú dos
estrangeiros, é natural que o faça à luz do direito interno. Já vimos que a concepção por nó s
adoptada é outra – as regras de conflitos são essencialmente bilaterais, atendendo ao princípio da
paridade de tratamento, que se impõ e principalmente por ser justa.

2.5. Conflitos de qualificações.

De acordo com o nosso método, podem surgir conflitos de qualificaçõ es – o que, como nota
FERRER CORREIA, nã o faz com que o tenhamos de rejeitar. Estes só seriam evitá veis com uma
rígida qualificaçã o lege fori, ou seja, se fizéssemos a tal qualificaçã o primá ria definitiva – aí, só
chegaríamos a uma lei competente e nã o poderiam existir conflitos. Porém, como já vimos, esta
posição é inaceitá vel. Por outro lado, estes conflitos nã o sã o uma consequência exclusiva do
método de qualificaçã o adoptado.
Assim, nã o fazendo a qualificaçã o primá ria, podemos ter vá rios ordenamentos jurídicos
chamados simultaneamente por regras de conflitos diferentes e, depois de termos feito funcionar o
art. 15.º, podemos chegar a resultados contraditó rios. Qual é este resultado incongruente? Temos
de distinguir entre conflitos positivos e negativos:
• Conflitos positivos: ocorrem quando as normas dos vá rios ordenamentos competentes
passam o crivo da qualificaçã o e a sua aplicaçã o simultâ nea é inconciliá vel.

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Ex1: A e B, alemães, fazem contrato promessa de casamento. O contrato promessa é quebrado na


França
. Relações familiares - Lei alemã (pelo conteúdo e função tem uma natureza familiar)
Regime de responsabilidade civil - Lei francesa (pelo conteúdo e função tem uma natureza
obrigacional)

• Conflitos negativos: ocorrem quando há dois ou mais ordenamentos competentes por força
das vá rias regras de conflito, mas nenhum desses passa o crivo da qualificaçã o.

Ex2: A e B, alemães, fazem contrato promessa de casamento. O contrato promessa é quebrado na


França
. Regime familiar - Lei francesa (pelo seu conteúdo e função, tem natureza obrigacional)
Regime de responsabilidade civil - Lei alemã (pelo seu conteúdo e função tem natureza familiar)

Temos de distinguir conflitos de lei, sistemas e de qualificaçõ es:


• Conflitos de lei: ocorre sempre que temos uma situaçã o que tem contacto com vá rios
ordenamentos – situaçã o absolutamente internacional.
• Conflitos de sistemas: correspondem aos casos em que as regras de conflito sã o diferentes de
Estado para Estado.
 Positivo - casos em que a nossa lei se quer aplicar e há outra lei estrangeira que se
queira aplicar.
 Negativo - casos em que nem a lei portuguesa se quer aplicar, nem a lei
estrangeira. Pode gerar um problema de direito adquiridos.
• Conflito de qualificações: existe quando estamos a trabalhar com vá rios ordenamentos
jurídicos, sã o competentes a títulos diferentes, e depois de feita a qualificaçã o (art. 15.º):
 Chegamos à conclusã o que só as normas de um sistema é que subsumem e aí
temos o problema resolvido; (nã o há conflito neste caso)
 As duas normas se subsumem no conceito quadro e aí temos um conflito
positivo;
 Nenhuma das normas se subsume e aí temos um conflito negativo.

Como se resolvem estes conflitos? O CC nã o propõ e aqui qualquer directiva, o que se


percebe – este é um tema complexo e a doutrina mostra-se hesitante. Para FERRER CORREIA,
devemos procurar uma soluçã o no plano do DIP, o que significa que devemos preferencialmente
tentar hierarquizar as regras de conflitos, em funçã o dos interesses que elas visam servir; quando
isto nã o seja possível (o que será raro), devemos adoptar uma perspectiva material. Segundo esta
perspectiva, deveremos ter em conta as soluçõ es oferecidas pelas leis em presença, para as depois
harmonizar, em termos de tornar possível a sua aplicaçã o combinada; ou para aplicar uma delas,
depois de convenientemente ajustada à nova situaçã o (temos sempre uma adaptaçã o).

2.5.1. Princípios para os conflitos positivos.

Na linha da hierarquizaçã o das regras de conflitos, encontramos princípios doutriná rios de


hierarquizaçã o. FERRER CORREIA propõ e os seguintes princípios para os conflitos positivos:

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1) Conflito entre a qualificação forma e a qualificação substância: deve prevalecer a


qualificaçã o substâ ncia.
Temos de olhar aqui para a histó ria do DIP: de modo natural, a lei que rege o conteú do do
acto também deveria ser a lei que regula as suas formalidades. Porém, logo no início do DIP,
afirmou-se uma ideia contrá ria: a forma é regulada pela lei do lugar da celebraçã o (locus regit
actum), uma vez que é nesse país que é mais fá cil cumprir as formalidades exigidas. Esta regra
começou por ter natureza imperativa, mas a partir do século XIX, com SAVIGNY, passou a ser uma
regra alternativa – a forma tanto pode ser regulada pela lei do lugar ou pela lei da substâ ncia. Esta
posição implica o reconhecimento de que a competência do “estatuto do acto” abrange a forma
externa, desvalorizando o princípio locus regis actum. Mas, a evoluçã o do princípio locus regis
actum nã o ficou por aqui, tendo-se chegado à orientaçã o segundo a qual em certos casos deve
prevalecer a lei da substâ ncia: quando a lei da substâ ncia exija determinada forma,
independentemente do lugar da celebraçã o, essa forma tem de ser respeitada. O estatuto da forma
seria assim incompleto, uma vez que o estatuto do negó cio jurídico pode exigir a observâ ncia de
uma forma especial. Encontramos esta posiçã o, entre nó s, nos arts. 36.º/1 e 66.º/2, parte final. É
neste sentido que se pode dizer que o lugar da celebração só vale entre nó s em matéria de forma
como conexã o secundária (RAAPE). Assim sendo, parece que o DIP vigente atribui ao estatuto da
forma uma posição subordinada face ao da validade intrínseca, e assim nos conflitos de
qualificaçã o deve prevalecer a qualificaçã o substâ ncia.

Há um exemplo de escola. Até 75, os gregos ortodoxos tinham de casar de acordo com o rito ortodoxo.
Imaginemos que temos dois gregos que querem casar na Alemanha: a questão do rito, que para os gregos tem a
ver com a própria substância do casamento, com a sua natureza sacramental, contende com a validade do
casamento; por outro lado, para a Alemanha, é uma questão de mera formalidade extrínseca, regulada pela lei
do lugar da celebração. Para a lei grega, subsume-se no conceito quadro de validade e existência do casamento;
para a lei alemã, no conceito quadro da forma de casamento. Temos aqui um conflito positivo de qualificações.
Para FERRER CORREIA, deve prevalecer a qualificação substância, logo a lei grega é a competente. Claro
que isto depois vai violar o princípio da liberdade religiosa (invocação da excepção da ordem pública).

2) Conflito entre a qualificação real e a qualificação pessoal: deverá prevalecer a


qualificaçã o real. por razõ es de efectividade e da eficá cia das decisõ es - devemos procurar aplicar o
direito do estado que está em melhores condiçõ es para fazer respeitar os seus preceitos, que será o
estado da localizaçã o das coisas. Este princípio da efetividade também justificará o princípio da
proximidade.

Costuma dar-se o exemplo de alguém que morre sem herdeiros e sem testamento. Os ordenamentos
jurídicos tratam esta questão de forma diferente: no caso português, o Estado é herdeiro; noutros
ordenamentos, o Estado ou a Coroa tem um direito real de apropriação. Podemos assim ter dois ordenamentos
competentes, de acordo com duas regras de conflito portugueses: por ex., um português morre sem testamento
ou herdeiros, deixando os seus bens em Inglaterra. A norma portuguesa que diz que o Estado é herdeiro
tem natureza sucessória; por outro lado, na Inglaterra, sendo o direito de natureza real o direito inglês é
chamado como lei do local da coisa. Deve prevalecer a qualificação real, o art. 46.º: aqueles bens devem ficar
para a coroa inglesa.

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3) Conflito entre a qualificação matrimonial e qualificação sucessória: Costuma surgir o


problema no â mbito da tutela do cô njuge sobrevivo. Neste â mbito:
 Há casos em que podemos reconhecer ao cô njuge sobrevivo os direitos que
decorrem do estatuto matrimonial e sucessó rio sem que haja contradiçã o:

Por exemplo, um casal de portugueses casa sem convenção e mais tarde um deles adquire a
nacionalidade alemã e perde a portuguesa. De acordo com o art. 53.º, o regime de bens é definido pela lei
portuguesa porque era português no momento da celebração; porém, quando morre, e não sendo português, a
lei que regula a sucessão é a lei alemã. O cônjuge tem os direitos de participação na comunhão, e naquilo
que resta entra como herdeiro, cumulando as duas posições (o mesmo sucede no direito alemão) – a lei
portuguesa não coloca nenhum obstáculo a que o cônjuge sobrevivo concentre em si a qualidade de meeiro
dos bens adquiridos e a de sucessor ex lege (arts. 2133.º, 2146.º e 2147.º do CC).

 Porém, podemos ter casos em que os dois estatutos nã o sejam cumulá veis, se
estivermos perante um ordenamento no qual a tutela do cô njuge sobrevivo se
faz apenas por um dos estatutos.

Por exemplo, um casal sueco no qual um deles adquire a nacionalidade inglesa: no direito sueco, o
cônjuge sobrevivo é apenas protegido na comunhão post-mortem (no momento da morte, reparte-se os bens
todos do casal). Porém, entretanto passou a ser inglês e no direito inglês a única tutela é a hereditária: temos
um conflito de qualificações porque, se aplicarmos sucessivamente as duas leis, estamos a dar duas protecções
quando qualquer um dos ordenamentos só dá uma. A cumulação das duas pretensões não é uma solução
razoável, uma vez que qualquer uma das normas esgota a tutela jurídica do interesse visado.

Como é que resolvemos estes conflitos? Há autores portugueses (MAGALHÃ ES COLLAÇO


e MOURA RAMOS) que defende que deve prevalecer a qualificaçã o matrimonial, ou seja, o cô njuge
só deve ter os direitos que advêm desse estatuto, porque cronologicamente é anterior e impregna
mais duradouramente a relação.
FERRER CORREIA tem um tratamento distinto:
• Uma primeira ideia é a de que nada se opõ e a que o cô njuge deva poder optar entre os
dois estatutos.
• Na falta de escolha, na linha da posição de um autor alemã o (KEGEL), devemos olhar para
a natureza da comunhã o em causa:
 Quando estivermos perante uma comunhã o mortis causa, como a do direito
sueco, devem prevalecer os direitos sucessó rios de acordo com a lei competente
(art. 62.º).
 Se a comunhã o for inter vivos, aí deve prevalecer o estatuto matrimonial (art.
53.º) e já nã o faz sentido aplicar o art. 62.º.
A distinçã o de KEGEL justifica-se uma vez que a lei reguladora do regime de bens no caso
da comunhão mortis causa se limita a constituir com estes bens uma massa comum no momento
do falecimento de um deles, logo aproxima-se mais do direito sucessó rio do que do direito
matrimonial. Assim, no fudo teremos lado a lado duas normas e duas pretensõ es de natureza

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sucessó ria – pelo que se deverá optar pela lei competente no estatuto sucessó rio. Acaba por ficar
sozinha a regra de conflitos do art. 62.º e a lei por ela declarada competente.

2.5.2. Princípios para os conflitos negativos.

A primeira ideia a destacar é a de que apenas se levanta aqui um verdadeiro problema quando
estamos perante uma autêntica lacuna de regulamentaçã o: nã o aplicar nem uma norma nem outra
tem de ser contraditó rio do ponto de vista dos dois ordenamentos jurídicos, levando a um
resultado claramente insatisfató rio.
Em segundo lugar, FERRER CORREIA diz que muitas vezes o conflito é apenas aparente,
porque um dos preceitos em causa pode subsumir-se na regra de conflitos. Nestes casos, fazemos
uma qualificaçã o subsidiá ria, de modo a que aquela norma, alterando-lhe a natureza, se possa
considerar já corresponder ao instituto visado.

Por ex., imaginemos que um casal britânico ao tempo do casamento toma mais tarde a nacionalidade sueca
(hipótese inversa à que já vimos): a lei sueca estabelece a comunhão mortis causa, e à primeira vista diríamos
que este é um regime de bens do casamento. Porém, este regime de bens, embora o sendo, tem em vista a tutela
dos direitos sucessórios, logo subsidiariamente o regime de bens suecos pode ser concebido como sendo um
regime sucessório. E, se qualificamos sucessoriamente, já se subsume no art. 62.º e pode ser aplicado.

Quando nã o conseguimos esta qualificaçã o subsidiá ria, temos uma verdadeira lacuna.

Por exemplo, um inglês morre sem herdeiros e testamentos e deixa bens em Portugal. O art. 62º.
manda aplicar a lei inglesa, que confere à coroa britânica um direito real de apropriação, não se subsumindo no
art. 62.º; já o art. 46.º diz que se aplica a lei do lugar da situação da coisa, sendo que no direito português
há um direito do Estado, porém é sucessório, logo não se subsume no art. 46.º. Nenhum dos ordenamentos
quer que os bens fiquem sem dono, logo temos uma verdadeira lacuna e um conflito negativo de
qualificações.
Temos aqui dois entendimentos:
• MAGALHÃ ES COLLAÇO diz que devemos fazer uma adaptaçã o da regra de conflitos, sendo
tal preferível a adaptar normas materiais, porque ao menos chegamos a um ordenamento real. Ou
seja, devemos adaptar o art. 62.º do CC, mudando o elemento de conexão que lá está – a lei que
regula a sucessã o passa a ser a lei do país da situaçã o dos bens (Portugal), logo a norma
portuguesa já se pode subsumir no conceito quadro porque é sucessó ria. É a posiçã o dominante.
• FERRER CORREIRA e BAPTISTA MACHADO falam antes de uma adaptaçã o da norma
material, desde logo do art. 2133.º e 2152º CC. Devemos aplicar analogicamente esta norma,
mesmo que a lei portuguesa nã o seja a lei reguladora da sucessã o (é o caso), se, de acordo com a lei
da sucessã o, nã o existirem herdeiros para os bens situados em Portugal. Deverá criar-se uma
norma que habilite o Estado da situaçã o (o Estado português) a apoderar-se de todas as heranças
existentes no seu territó rio, sempre que segundo a lei de sucessã o o de cujus nã o tenha deixado
sucessores. Temos aqui um grande espaço de abertura que pode conduzir à criaçã o de um “direito
fantasioso”.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

3. Os conflitos de sistemas de DIP: a origem do problema, as modalidades de conflitos e as


orientações fundamentais traçadas para a sua resolução.

Estes conflitos resultam da diversidade dos elementos de conexã o adoptados nos vá rios
sistemas de direitos para a mesma matéria jurídica. Este problema acaba por ser agravado pelo
bilateralismo, porque pode acontecer que o critério de conexã o do direito de conflitos do foro nã o
coincida com o das outras leis em contacto com a situaçã o sub iudice, resultando que a legislaçã o
aplicá vel nos vá rios estados interessados nã o seja a mesma.

Quando pensamos em conflitos de sistemas de DIP, podem ser:


 Positivos - quando há duas ou mais ordens jurídicas que se reputam como
aplicá veis. Vamos encontrá -lo no â mbito do chamado princípio da maior
proximidade, do problema dos direitos adquiridos e problema da questã o prévia.
 Negativos - quando nenhuma das ordens jurídicas envolvidas se considera
competente. P.e. Quando a lei do foro nã o se considera competente, reconhecendo a
competência de um ordenamento jurídico estrangeiro, que ele pró prio nã o se
considera aplicá vel. Dá origem ao problema do reenvio.

Em qualquer destas questõ es, há um problema comum que é o problema de saber se o


tribunal deve (e em que condiçõ es) considerar as regras de conflitos estrangeiras, isto é, os juízos
conflituais estrangeiros. Tradicionalmente, vigorava aqui o princípio da territorialidade do DIP;
porém, a partir de certo momento, passou a considerar-se que em certos casos se poderia aplicar a
regra de conflitos estrangeira. Houve vá rias tentativas doutrinais de resoluçã o deste problema:
 Desde logo, começou-se a discutir a questã o de saber se nó s poderíamos criar um
princípio de nível superior que tenha por objecto e escopo dirimir entre as normas
de DIP (normas de DIP sobre DIP ou de 2º nível). A proposta foi de NEUMANN e
GABBA.
 Mais tarde, FRANKENSTEIN defende a existência de conexõ es primá rias, conexõ es
secundárias e conexõ es falsas. As conexõ es primá rias seriam conexõ es a priori que
serviriam de base à s conexõ es secundárias.
 Posteriormente, acabou por afirmar-se a ideia de que também as regras de conflitos
têm limites de aplicaçã o no espaço: surge a doutrina da auto-limitaçã o espacial das
regras de conflitos da lex fori (FRANCESCAKIS)9

9 A doutrina da autolimitaçã o espacial das regras de conflitos foi defendida por FRANCESCAKIS, segundo a qual as
regras de conflitos apenas se aplicariam a situaçõ es que tivessem algum tipo de contacto com a ordem jurídica, ou seja, o
domínio de aplicaçã o das regras de conflito é restrito. Note-se que para o autor qualquer contacto com a ordem jurídica
chegaria para fundamentar a aplicaçã o da regra de conflitos, podendo nã o ser necessariamente o contacto do elemento
de conexã o. Nas situaçõ es absolutamente internacionais, a lei aplicá vel é a lei que tiver sido efectivamente aplicada, sem
qualquer controlo pré vio, o que se aproxima do unilateralismo, que enuncia como princípio o de que a lei aplicá vel a é a
lei que queria aplicar-se e lhe tenha sido efectivamente aplicada. As objecçõ es à doutrina de FRANCESCAKIS sã o as
seguintes: se está em causa o interesse do ordenamento em vigiar as situaçõ es que têm conexã o estreita com ele, entã o
este interesse está suficientemente acautelado através da excepçã o da ordem pú blica internacional; as normas de
conflitos apenas tê m por escopo resolver conflitos de lei, nã o sendo regras de conduta, logo nã o é possível deduzir destas
normas quaisquer limites à sua aplicaçã o espacial; constitui proposiçã o erró nea a de que o sistema jurídico nacional nã o
tem interesse em ver aplicadas as suas normas de DIP a situaçõ es que nã o tenham com ele qualquer conexã o, ou uma
conexã o estreita (o que é patente nas regras de conflitos bilaterais); e nã o se deve renunciar ao controlo pré vio da
competê ncia de um dado sistema jurídico só porque foi o efectivamente aplicado.

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Entre nó s, fundamentalmente, a perspectiva que temos sobre os conflitos de sistemas de


DIP é a seguinte: desde logo, a regra de conflitos nã o é um prius metodológico, isto é, tem um
cará cter subordinado no contexto do ordenamento jurídico conflitual. Assim, a aceitaçã o ou nã o da
decadência da nossa regra de conflitos e a aceitaçã o das regras de conflitos estrangeiras, há -de
decorrer das pró prias finalidades do DIP. Ou, de outra maneira, para nó s resolvermos os conflitos
de leis, por vezes temos que deixar cair os valores subjacentes à nossa regra de conflitos e ter em
consideraçã o os valores gerais do DIP. Quais sã o estes valores que indicam a necessidade de
reconhecer a aplicaçã o da regra de conflitos estrangeira e o papel subordinado da nossa justiça
conflitual?
• Princípio da harmonia jurídica internacional: dita as soluçõ es em matéria de reenvio, é o
valor que nos faz aceitar o reenvio e o que diz a regra de conflitos estrangeira.
• Princípio da efectividade das decisões: leva-nos a respeitar o princípio da maior
proximidade (a lei pessoal cede perante a lei do lugar da situaçã o das coisas).
• Tutela das expectativas: leva-nos ao reconhecimento dos direitos adquiridos.

O modo como resolvemos os conflitos de sistemas do DIP parte da aceitaçã o do valor


meramente instrumental da regra de conflitos, podendo ser sacrificada para proteger a teleologia
do DIP globalmente considerado.

3.1. O reenvio.

O reenvio veio dar resposta ao problema do conflito negativo de sistemas de DIP, isto é, quando
a legislaçã o estrangeira designada pelo DIP do foro para regular certa questão jurídica nã o se
considera aplicá vel e antes remete para outra ordem jurídica. Esta ordem jurídica tanto pode ser a
do Estado do foro (retorno), como a de estado terceiro (transferência da competência).

Retorno: L1  L2  L1
Transmissão de competência: L1  L2  L3

A soluçã o do reenvio surgiu numa decisã o de um tribunal francês em 1982 (Caso Forgo),
embora em rigor o problema já tivesse sido abordado em sentenças inglesas e alemã s no século
XIX. Nessa decisã o, a Cour de Cassation tomou a posiçã o inovadora de afirmar que temos que olhar
para as regras de conflitos da lei aplicá vel.

Antes de mais, saber se deve haver reenvio ou nã o é um problema de interpretaçã o da nossa


regra de conflitos, isto é, de saber que referência faz a nossa regra de conflitos à lei estrangeira.
Podemos ter dois tipos de referências:
Referência material - (RM) Se a regra de conflitos fizer uma referência material, isto quer
dizer que, quando a ordem jurídica reconhece competência a lei estrangeira, chama apenas as
normas materiais desse ordenamento, independente de essa lei se achar ou nã o competente.
Referência Global - faz um chamamento do ordenamento jurídico na sua totalidade, ou
seja, chama as normas materiais, mas também o sistema conflitual estrangeiro. Só aqui é que se

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atende ao facto de este ordenamento jurídico se considerar ou nã o competente. Aqui, há quatro


possibilidades:
A) L1  L2  L1 - Reenvio em 1º grau ou de retorno directo
B) L1  L2  L3  L1 – Reenvio em 2º grau ou de retorno indirecto
C) L1  L2  L3 - Transmissão simples
D) L1  L2  L3  L4 - Transmissão em cadeia

Em suma, perante um conflito negativo de regras de conflitos, sã o possíveis três atitudes:


• Atitude favorável ao reenvio como princípio geral – doutrina da devoluçã o ou do
reenvio, que parte da ideia de que a referência da norma de conflitos do foro à lei estrangeira tem
cará cter global.
• Atitude absolutamente condenatória do reenvio – doutrina da referência material,
segundo a qual a referência da norma de conflitos à lei estrangeira apenas abrange o direito
material. Sã o sistemas hostis ao reenvio (como o brasileiro).
• Atitude condenatória do princípio, mas favorável ao reenvio com alcance limitado – é a
posiçã o moderna, defendida sobretudo pela doutrina alemã . Toma-se como ponto de partida o
princípio da referência material; porém, reconhece-se casos em que o reenvio pode levar a
resultados ú teis.
As duas primeiras sã o posiçõ es dogmá ticas; a ú ltima é pragmá tica.

3.1.1. Posições dogmáticas assumidas perante a questão do reenvio.

Como vimos, temos duas visõ es dogmá ticas possíveis perante a questã o do reenvio: ou as que
negam em absoluto qualquer atendibilidade à regra de conflitos estrangeira (teoria da referência
material); ou as que entendem que, por princípio geral, devemos tomar em consideraçã o o DIP
estrangeiro (teoria da devoluçã o ou da referência global).

 Tese da referência material 

O que a caracteriza é o facto de que rejeita o reenvio, porque nã o atende à quilo que a lei
estrangeira diz sobre a sua competência. Ou seja, a referência da regra de conflitos a uma lei
estrangeira deve ser entendida como feita directa e imediatamente ao direito material estrangeiro.
Os defensores da referência material defendem a sua existência com base no seguinte:
A regra de conflitos, pela sua pró pria natureza, é uma norma destinada a resolver
concursos de normas materiais no espaço. Logo, se o objecto da regra de conflitos sã o as normas
materiais, só essas devem ser chamadas. Mais – o DIP nasce com um sentido ou aspiração de
universalidade, para assinar às relaçõ es jurídicas internacionais privadas a sua lei reguladora, que
deverá ser a mesma lei em toda a parte. Assim, seria uma contradiçã o nos termos admitir que as
suas normas tivessem sido marcadas do selo de uma referência a outras normas com idêntica
funçã o mas sentido diferente.
A referência material é a ú nica posiçã o consentâ nea que respeita o pró prio juízo da regra
de conflitos. Em cada regra de conflitos está uma ponderação do legislador e, se quisermos manter-
nos fiéis ao nosso juízo conflitual, devemos aplicar imediatamente o direito material designado
pela regra de conflitos.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

 Cada Estado tem as suas pró prias regras de conflito, que têm, pelo seu objecto, cará cter
internacional. Se a regra de conflitos tem esta funçã o universal, entã o pelas mesmas razõ es nã o
faria sentido apontar outras regras com funçõ es semelhantes, que deveriam na pureza dos
sentidos ser iguais à s nossas, mas sim apontar directamente um direito material.

 Tese da referência global 

O sistema que faz essa referência, quando remete para um OJ remete para esse OJ na sua
totalidade, atendendo nã o apenas à s suas normas materiais, mas também ao seu direito conflitual,
isto é, ao facto de este se considerar competente ou nã o. Dentro desta tese, temos 3 variantes:

1)Teoria da referência subsidiária


De acordo com esta perspectiva, sempre que a regra de conflitos interna manda aplicar a lei
estrangeira e, sendo essa referência global, aquele ordenamento jurídico eventualmente nã o se
queira aplicar, nã o devemos seguir aquilo que esse ordenamento indica: na regra de conflitos
nacional deve haver um elemento de conexã o subsidiá rio, até que cheguemos a um OJ que se
considere competente.
É um sistema que, desde logo, implica uma dificuldade prá tica: todas as regras de conflitos
tinham que ter inú meros elementos de conexã o, ainda que subsidiá rios. Podia ainda acontecer que,
ainda que existissem vá rios elementos subsidiá rios, nenhuma lei se considerasse aplicá vel ao caso.

2)Teoria da devolução simples (posição clássica)


Segundo esta teoria, devemos tomar em consideraçã o a regra de conflitos da ordem jurídica
competente de acordo com a nossa regra de conflitos, e será essa a lei material aplicá vel. Devemos
tomar em consideraçã o a ordem jurídica estrangeira como um todo, e dentro dessa ordem atentar
na regra de conflitos dessa lei: a lei indicada por essa regra é o direito material aplicá vel no caso
concreto. As soluçõ es avançadas por esta teoria sã o as seguintes:
 Retorno: L1  L2  L1 (aplica-se a L1)
 Transmissã o de competências: L1  L2  L3 (aplica-se a L3)

Argumentos invocados a favor desta teoria:


 Pode pensar-se que, se nó s nã o fizermos o reenvio e aplicarmos uma lei que nã o se
considera competente, tal significa a violação da soberania do OJ estrangeiro. É facilmente afastado
este argumento, porque os conflitos de leis nã o sã o conflitos de soberanias. Quando aplicamos uma
lei estrangeira, nã o estamos a exercer a soberania estrangeira.
 O direito material e direito de conflitos constituem uma ordem jurídica una, um todo
incindível, pelo que o juiz estrangeiro nã o pode efectuar uma cisã o entre estes. Este argumento
acaba por ser facilmente atacado: apenas existiria uma unidade substancial das duas espécies de
normas jurídicas, as de regulamentaçã o e de conflitos, se as primeiras só pudessem exercer a sua
funçã o sociojurídica ou actuar os seus fins no enquadramento definido pelas segundas. As
valoraçõ es e conteú dos jurídico-materiais nã o estã o condicionados a um determinado esquema de
direito conflitual; tanto assim é que as alteraçõ es legislativas operadas num dos planos deixam o
outro intacto. É perfeitamente possível separar o direito material e o direito de conflitos, tanto mais
que preenchem funçõ es diferentes: o DIP tem uma justiça conflitual. Assim, esta unidade é uma

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ficçã o. Para além disto, costuma ainda apontar-se a objecção do círculo vicioso: se devemos atender
à s normas de conflito da lei designada pela lei do foro, também devemos atender à s regras de
conflito da lei indicada por esta, e assim sucessivamente.
 Argumenta-se também que esta doutrina potenciaria a aplicação da lei do foro, o que
é vantajoso do ponto de vista da boa administraçã o da justiça. Este é um argumento datado – é
bom, sem dú vida, que os tribunais possam aplicar as suas pró prias leis. Mas é melhor ainda que
eles apliquem à s situaçõ es da vida internacional a legislação que em melhores condiçõ es estiver
para intervir. Para além disto, este argumento, a valer, apenas valeria par ao caso do retorno, em
que a aceitaçã o do reenvio determina a aplicaçã o da lei do foro.
 Devemos aceitar o reenvio porque ele favorece a harmonia jurídica internacional. Se
aceitarmos o reenvio da Lei 2 para a Lei 1 (retorno) ou para a Lei 3 (transmissã o), a decisão será
idêntica à proferida por um juiz que pertença à Lei 2. Independentemente do lugar onde a causa
seja julgada, a lei aplicada é a mesma, ou seja, a justiça da causa deixa de depender do lugar da
propositura da acção. Acontece, porém, que a devoluçã o simples constitui, por vezes, um obstá culo
à pró pria harmonia jurídica internacional. Veremos alguns casos:
Caso 1 (retorno): L1  (DS) L2  (RM) L1 (aplica-se a L1 porque a referência feita
pela L2 é material - aqui há harmonia jurídica internacional)
Caso 2 (retorno): L1  (DS) L2  (DS) L1 (aqui nã o há harmonia jurídica
internacional, porque a L1 aplicaria a L1 e a L2 aplicaria a L2.)
Caso 3 (transmissão de competências): L1  L2  L3 (a L3 tem que se considerar
competente para haver harmonia jurídica internacional)

3) Teoria do duplo reenvio, dupla devolução, reenvio total ou Foreign Court Theory
De acordo com esta teoria, o juiz deve, ao interpretar e aplicar a regra de conflitos, alinhar
rigorosamente a sua decisã o por aquela que seria tomada pelo juiz estrangeiro. A referência da
norma de conflitos do foro a determinada lei estrangeira impõ e aos tribunais locais o dever de
julgarem a causa tal como ela seria provavelmente julgada no Estado onde essa lei vigora.
Em termos técnicos, qual é a diferença em relaçã o à perspectiva da devoluçã o simples?
Quanto partimos do sistema de devoluçã o simples, devemos atender à s regras de conflito da L2; no
da devoluçã o dupla, devemos tomar em consideração nã o apenas as suas regras de conflito da L2,
mas também as regras sobre o reenvio, o pró prio sistema de reenvio da lei indicada.

Vamos ver vá rios casos para compreender estas teorias:

L1  (DD) L2  (RM) L3
Resolução: L1  L3 (aplica a L3, porque “faz tudo” o que a L2 fará e a referência da L2  L3 é
material.)

L1 (DS) L2  (DS) L3  (RM) L4


Resolução: L1  L3
Se a L1 faz uma DS à L2, olhamos para a regra de conflitos da L2 (nã o olhamos ao sistema
de reenvio, porque a devoluçã o é simples), que manda aplicar a L3. A L1 aplica a L3. Há só um
reenvio - da L2 para a L3.

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L1  (DD) L2  (DS) L3  (RM) L4


Resolução: L1  L4
Se a L1 faz DD à L2, o juiz vai alinhar a posição que toma por aquilo que decidiria o juiz da
L2. Como a L2 faz uma DS à L3 e a L3 faz uma RM à L4, aplicamos a L4. Há dois reenvios: da L2
para a L3 e da L3 para a L4.

L1  (DD) L2  (RM) L3  (RM) L4


Resolução: L1  L3
A L1 faz uma dupla devoluçã o para a L2; a L2 aplica a L3, porque a referência é material.
Logo, a L1 aplicará a L3. Atente-se que embora exista um duplo reenvio, só há um reenvio neste
caso: L2  L3.

A perspectiva da dupla devoluçã o contribui ainda mais para a harmonia jurídica


internacional, uma vez que resolve o litígio tal como se surgisse perante o juiz da Lei 2. Este é
assim o grande argumento favorável a esta doutrina; porém, mais uma vez, criticamos aqui que,
levada à s ú ltimas consequências, esta teoria levaria a um círculo vicioso. Se todos os sistemas
adoptassem esta perspectiva, teríamos aquele jogo internacional de espelhos. Ora veja-se:

L1  (DD) L2  (DD) L3  (DD) L4  (DD) L2

3.1.2. Posições pragmáticas.

O reenvio nã o pode ser aceite como princípio geral na aplicaçã o da regra de conflitos. Isto
nã o significa, porém, que ele nã o possa servir como uma técnica utilizada sempre que tal seja ú til à
prossecuçã o de interesses ou valores fundamentais do DIP, nomeadamente para garantir a
harmonia jurídica internacional e, consequentemente, a segurança jurídica. O reenvio é um
expediente prá tico-normativo, uma técnica e nã o um princípio geral do DIP. Adoptamos entre nó s
uma posição pragmá tica – BAPTISTA MACHADO e FERRER CORREIA.
No caso português, adoptou-se a via pragmá tica no CC de 1966, rejeitando-se a aplicaçã o
sistemá tica do reenvio (art. 16.º) e definindo com rigor o â mbito em que o reenvio deve actuar. A
posição adoptada pelo legislador português vai assim na linha da posição pragmá tica, garantindo
nomeadamente a harmonia jurídica internacional e podendo constituir como tal um factor de
certeza jurídica. A ideia da harmonia jurídica internacional foi, com efeito, a principal inspiraçã o do
legislador, numa orientaçã o altamente progressiva. Fala-se de um reenvio-coordenação por este é
utilizado como instrumento de coordenaçã o dos OJ's.
Temos de atentar num conjunto de artigos: arts. 16.º a 19.º; e 36.º/2, bem como 65.º/1,
parte final, do CC.

Grandes princípios que estruturam o regime legal relativo ao reenvio:


o Harmonia jurídica internacional
o Harmonia jurídica qualificada - matéria de estatuto pessoal
o Princípio da maior proximidade ou efectividade das decisõ es
o Princípio do favor negotii
o Princípio da boa administraçã o da justiça

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Art. 16º CC - O legislador, quando fala de direito interno, refere-se ao direito material e nã o
ao direito de conflitos. Ou seja, salvo soluçã o contrá ria, a referência que deve valer é material. Há
muitos preceitos que apontam em sentido contrá rio. Por isso, BAPTISTA MACHADO dizia que “no
art. 16º não podemos dizer que esteja consagrado um princípio geral “anti-reenviante”. Está apenas
consagrada uma regra pragmática que cederá sempre que se justifiquem os desvios em nome dos princípios
caros do nosso DIP”.
Isto terá grande relevâ ncia, porque se entendermos este artigo como um princípio geral
apenas com as excepçõ es legalmente previstas, tal impossibilitaria uma interpretaçã o analó gica
dos arts. 17º e 18º - contemplariam uma lista taxativa. Mas isto nã o acontece: para além dos casos
expressamente previstos na lei, aceitamos o reenvio noutros casos quando estejam em causa
princípios fundamentais do DIP.

Vamos agora analisar os princípios do DIP que podem levar à aceitaçã o do reenvio:

1) Harmonia jurídica internacional (art. 17º/1 e 18º/1 CC)

Estes dois preceitos tratam de casos diferentes:


• Art. 17.º: trata das situaçõ es de transmissão de competência. A nossa lei considera como
competente uma L2, e esta segunda lei, por sua vez, atentando à s suas regras de conflito, considera
como competente uma L3.
• Art. 18.º: aplica-se aos casos de retorno. A L2 devolve a competência à L1 (lei
portuguesa). Para que estejamos perante estes casos, nã o pode suceder que a L2 se considere a si
pró pria competente – aí, nã o temos um conflito de sistemas. Só temos conflito quando a L2 remete
para a L1
ou para uma L3.

O art. 17.º/1 afirma que, num caso de transmissã o de competência, aceita-se o reenvio se a L3
se considerar competente. Porque é que o legislador toma esta posiçã o? Em virtude da harmonia
jurídica internacional: se o problema tivesse sido colocado perante um tribunal da L2 ou da L3, a lei
aplicá vel seria também a L3. Ou seja: se aceitarmos o reenvio, e este art. 17.º permite fazê-lo, temos
sempre a mesma lei aplicá vel.
Porém, e se a terceira lei se nã o se considerar competente?
• Se remeter de novo para a L2 e esta se considerar competente, aplica-se a L2 (quer
porque esta lei se considera aplicá vel e temos harmonia de soluçõ es, quer porque não está
verificado o requisito de que dependia a aplicabilidade da L3). No fundo, a L2 nã o se considera
directamente competente, mas apenas indirectamente competente.
Ex1: L1  L2  (DS) L3  (RM) L2 Ex2: L1  L2  L3  (DS)  L2
L1  L2 / L2  L2 / L3  L2 L1  L3 / L2  L3 / L3  L3

• Se remeter para uma L4, que se considere competente, temos um caso de transmissão de
competência em cadeia. Também aqui podemos aplicar a L4, potenciando a harmonia jurídica
internacional. Mas temos de fazer aqui uma precisã o: para que se aplique a L4, é necessá rio que a L2
adopte um qualquer sistema de referência global, pois aí vai olhar, nã o para o direito material da
L3, mas para as suas regras de conflitos. Só neste caso é que existe acordo quanto à competência e
atingimos a harmonia jurídica internacional: a L2, 3 e 4 aplicariam todas a L4.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

Ex: L1  L2 (DS ou DD) L3  L4


L4  L4 (tem que se considerar competente) /L3  L4 /L2  L4 / L1  L4

Quanto ao art. 18.º/1, este estabelece que, num caso de retorno, a lei material do foro (lei
portuguesa) é aplicá vel se a L2 devolver para o direito português. Ou seja, é necessá rio que a L2
adopte um sistema de referência material (FERRER CORREIA), pois só neste caso é que estamos a
cumprir o preceito do art. 18.º/1 – a L2 tem de remeter para o direito material português. Se
adoptássemos aqui o sistema da referência material, as duas leis teriam posiçõ es diferentes quanto
à lei aplicá vel; com o retorno, ambas aplicam a L1 – mais uma vez, está aqui subjacente a harmonia
jurídica internacional (o reenvio é “um meio necessá rio” para atingir este fim). Já se a referência da
norma de conflitos estrangeira for uma referência global (devoluçã o simples ou dupla), o reenvio
nã o promove, antes impede, a uniformidade de valoraçã o – nesta hipó tese, aplica-se o direito
material da L2.
Ex1: L1  L2  (RM) L1
Deve haver reenvio!
L1  L1 / L2  L1

Ex2: L1  L2  (DS) L1 Não deve haver reenvio, aplicando-se o art. 16º CC.*
L1  L2 / L2  L2

Ex3: L1  L2  (DD) L1 Não deve haver reenvio, aplicando-se o art. 16º CC.
L1  L2 / L2  L2

Á partida, no Ex2 e Ex3 não se justifica o reenvio porque já está assegurada a harmonia
jurídica internacional (FERRER CORREIA). Porém, no que toca ao Ex3, há divergência doutrinal
quanto à sua interpretação, existindo autores (como BAPTISTA MACHADO) que consideram que o
reenvio deve ser aceite. (que veremos já no pró ximo ponto)

E se a L2, em vez de remeter para a L1, remeter para uma L3 e esta remeter para a L1?
Temos aqui um retorno indirecto, feito por intermédio da L2. Aqui, justifica-se aplicar a L1? A
resposta é positiva: tendo em vista a ratio legis (a harmonia jurídica), deveremos aceitar aqui o
reenvio quando se verifiquem aqui duas condiçõ es cumulativas:
• A remissã o da L2 para a L3 ser uma referência global (DS ou DD).
• A remissã o da L3 para a L1 ser uma referência material.
Estes requisitos sã o exigidos pois só neste caso é que o reenvio é um meio de assegurar a
harmonia jurídica internacional. Por outro lado, apesar de a letra do art. 18.º/1 falar em devolver
para o direito português, basta interpretar este devolver como sendo directa ou indirectamente para
também podermos aplicar a L1.
Ex: L1  L2  (DS ou DD) L3  (RM) L1
L1  L1 / L2  L1 / L3  L1

2) Boa administração da justiça


Há uma hipó tese em que poderá cobrar relevo este princípio. Imaginemos que a L1,
portuguesa, considera como competente uma L2, e esta devolve a competência para a L1 segundo
o sistema da

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dupla devoluçã o (ou seja, o juiz da L2 alinha a sua posiçã o por aquela que seria tomada pelo juiz da
lei indicada pela sua regra de conflitos, no caso da L1).

Há aqui duas leituras possíveis para esta situaçã o:


• A leitura mais literal diria que, quando o art. 18.º/1 exige uma devoluçã o para o direito
material português, exige que esta adopte um sistema de referência material. Como a L2 adopta
um sistema de dupla devolução, a lei portuguesa nã o pode aceitar o retorno, logo voltaríamos ao
art. 16.º e faríamos uma mera referência material para o direito estrangeiro. Quer o caso fosse
resolvido pelo juiz da L1, quer da L2, aplica-se sempre a L2, respeitando a harmonia jurídica
internacional. Esta é a leitura que FERRER CORREIA faz.
• Porém, é possível uma outra leitura: o sistema da L2 é interpretá vel em rigor como aceitando a
competência da lei portuguesa, sob a condiçã o de esta se considerar a si pró pria aplicá vel. A lei
portuguesa, ao aceitar o retorno, aplicaria a lei portuguesa; e, neste caso, o juiz da L2 consideraria
também como competente a lei portuguesa (uma vez que o juiz da L2 decidiria como o juiz
português).

Ou seja: em ambos os casos há harmonia jurídica internacional; porém, na segunda leitura,


temos mais uma vantagem – o juiz português aplica uma lei que conhece (boa administraçã o da
justiça). O reenvio é aceite mesmo que nã o seja preciso para a harmonia jurídica internacional.
Assim, aceitamos aqui o reenvio, na linha de BAPTISTA MACHADO.

3) Princípio da harmonia jurídica qualificada (art. 17º/2 e 18º/2 CC)

Em matéria de estatuto pessoal, temos regras específicas. Na perspectiva do legislador, existe


um conjunto de matérias que, pela natureza eminentemente pessoal (art. 25º CC), devem ser
governadas por uma lei que os indivíduos possam olhar como sua lei, à qual possam considerar-se
ligados por um vínculo verdadeiramente substancial e permanente. Esta lei apenas pode ser a lei
da nacionalidade ou a lei da residência habitual. Apesar de o legislador português ter escolhido o
elemento da nacionalidade, isto nã o significa que nã o tenha dado importâ ncia à lei da residência
habitual. Encontramos vários pontos em que isto é visível, nomeadamente no art. 31.º/2 e em
matéria de reenvio. Quando nã o haja acordo entre a nacionalidade e a residência habitual, isto é,
quando nã o tenhamos uma harmonia jurídica qualificada, o legislador vai ter relutâ ncia em aceitar
o reenvio.
O princípio aqui é o seguinte: a aplicação de uma lei diferente tanto da lei da nacionalidade ou
da lei do foro constitui uma má solução; porém, esta soluçã o será aceite quando haja acordo entre
estas duas leis (harmonia jurídica qualificada).

O art. 17º/2 CC refere-se aos casos de transmissão da competência, e diz que a L3 não será
aplicável (isto é, cessa o reenvio, embora exista harmonia jurídica internacional, porque se
releva a harmonia jurídica qualificada), apesar de se considerar competente, em dois casos:
• Se o interessado residir habitualmente em territó rio português. Ou seja, a L1 (da
residência) remete para a L2 (da nacionalidade), que por sua vez remete para uma L3, que se
considera competente. Neste caso, cessa o reenvio e aplica-se a lei da nacionalidade (L2). Se a L3
for, por ex., a lei do local, esta soluçã o terá a sua eficá cia garantia nesse Estado que, tal como
o da

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residência é um dos mais fortemente ligados à relação controvertida; assim, nã o haveria grande
vantagem em renunciar à aplicaçã o da lei pessoal.
Ex: L1 (RH)  L2 (N)  L3 (que se considera competente)

• Se o interessado residir num país cujo direito de conflitos devolva para a lei da
nacionalidade. Ou seja, a L1 remete para a L2 (da nacionalidade), que por sua vez remete para uma
L3, que se considera competente; porém, ao mesmo tempo, temos um outro Estado que nã o o
português, da residência, que remete igualmente para a L2. Neste caso, o reenvio cessa igualmente
e aplica-se a L2, da nacionalidade. Aqui, nã o aceitar o reenvio nã o significa ter de aplicar uma lei
que em parte alguma seja considerada aplicá vel: a lei da nacionalidade é tida como competente
num dos Estados mais fortemente interessados na situaçã o, o Estado do domicílio; e segue-se aqui
o critério de aplicaçã o da lei da nacionalidade ou da lei da residência.
Ex: L1  L2 (N)  L3 (que se considera competente)

L4 (RH)

Nestas hipó teses, a lei aplicável é sempre a L2, da nacionalidade. A L3 em princípio aplicar-
se-ia pelo art. 17.º/1; porém, nestes casos, o legislador prefere a lei da nacionalidade por ser uma
das leis mais importantes.

O art. 18.º/2 refere-se aos casos de retorno, e diz que o reenvio só é de admitir em duas
hipó teses:
• Na hipó tese de o interessado ter a residência habitual em territó rio português – ou seja, a
L1 (portuguesa, da residência habitual) indica como competente a L2 (da nacionalidade), que
devolve a competência para o direito material português.
Ex: L1 (RH, PT)  L2 (N)  (RM) L1
L1  L1 / L2  L1

• Na hipó tese de a lei da residência habitual remeter também para a lei portuguesa – ou
seja, a L1 indica como competente a L2 (da nacionalidade), que devolve a competência para o
direito material português; ao mesmo tempo, existe uma L3 (da residência habitual), que remete
também para a L1.
L1  L2 (N)  L1

L3 (RH)

Neste ú ltimo caso, a aceitaçã o do reenvio significa a aplicação de uma lei que não é nem a da
nacionalidade, nem a da residência. Porque é que isto é possível? Porque, apesar de a L1 não ser
nem a lei da residência nem da nacionalidade, quer a lei da residência, quer a lei da nacionalidade,
consideram como competente a lei portuguesa. Faz sentido respeitar o acordo destas duas leis. E
isto nã o significa que estejamos a pô r em causa o princípio da harmonia jurídica material – antes
pelo contrá rio.
Nas restantes hipó teses possíveis de retorno, deve entender-se que o reenvio deve ser
rejeitado: a definiçã o do estatuto pessoal por uma lei diferente da lei da nacionalidade ou da

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residência habitual é tida, em princípio, como uma má soluçã o, e só motivos especiais podem levar-
nos a aceitá -la.
Por outro lado, como a situaçã o jurídica em causa está ligada à lei do foro, não há grande
risco de a aplicaçã o da lei da nacionalidade não vir a ser reconhecida em lado nenhum: será eficaz
pelo menos no Estado do foro.

Com uma certa analogia com esta situaçã o está uma outra hipó tese, nã o prevista.
Imaginemos que a L1, portuguesa, considera como competente a lei da nacionalidade (L2);
por sua vez, a L2 considera como competente uma L3, a lei do lugar dos bens, de acordo com o
sistema da referência material. Porém, a L3 remete para a L2 de acordo com o sistema da
referência material. De acordo com o art. 17.º/1, nã o haveria reenvio, pois a L3 nã o se considera
competente: assim, nã o faria sentido aplicar a L3, aplicando-se antes a L2.
Mas imaginemos que a residência habitual do sujeito é num Estado de uma L4, que
considera como competente também a lei do lugar da situaçã o dos bens (L3), mais uma vez com
referência material. Aqui, já faz sentido aplicar a L3, respeitando o acordo entre a lei da
nacionalidade e da residência, sempre que esteja em causa matéria pessoal.
Ex: L1  L2 (N)  (RM) L3  (RM)
L2
↑(RM)
L4 (RH)

Ou seja: a lei da nacionalidade, L2, considera como competente a L3; e a lei da residência, a
L4, também aplicaria a L3 – se é verdade que nã o há harmonia jurídica internacional, as duas leis
mais importantes estão de acordo na competência da L3, pelo que vamos estar a dar efeito à ideia
da harmonia jurídica qualificada. Isto implica desconsiderarmos a letra do art. 17.º/1, quando este
exige que a L3 se considere competente, pois o seu fundamento é a harmonia jurídica
internacional. Nesta situaçã o, não prevista pelo legislador, é, nã o a harmonia jurídica internacional,
mas sim a harmonia jurídica qualificada que vai servir de fundamento. Apesar de esta soluçã o não
se inferir directamente do Có digo, está de acordo com os seus princípios.

Nota:
Aqui chegados pode surgir uma dú vida: porque é que estando no â mbito do estatuto
pessoal, só aceitamos retorno se houver harmonia jurídica qualificada (exista acordo entre a lei da
nacionalidade e a lei da residência habitual) e, pelo contrá rio, podemos aceitar a transmissão
mesmo sem o tal acordo? Veremos este exemplo clássico:
L1  L2 (N)  L3
L4 (RH - considera-se competente a ela própria)
Esta é uma hipó tese em que nã o se aplica o 17º/2, devendo haver em princípio reenvio,
aplicando-se a L3 (ora, fazemos reenvio no â mbito do estatuto pessoal sem haver esse acordo)

Quanto a esta diferença, costumam ser dadas duas explicaçõ es:


- Ferrer Correia parte da seguinte ideia: em matéria de retorno (art. 18º/2) é natural que o
legislador fosse mais exigente para aceitar o reenvio porque as situaçõ es de retorno têm uma
ligaçã o mais forte com o nosso OJ do que os casos de transmissã o. (art. 17º/2)

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- Baptista Machado considera que nã o é o art. 18º/2 que é mais exigente, mas o art. 17º/2 que é
menos exigente, porque entende que se parte do princípio segundo o qual, em matéria de
estatuto pessoal, só deve haver reenvio se houver acordo da lei nacional e da lei do domicílio. Ora,
porque na transmissão pode haver reenvio sem acordo? Porque neste caso, se exigíssemos
sempre o acordo, poderíamos chegar a soluçõ es desfavorá veis - a casos em que exigindo
harmonia jurídica qualificada, e nã o fazendo o reenvio, podíamos ser conduzidos a aplicar uma lei
nã o aplicada nem pela lei da nacionalidade nem pela lei da residência. Parte-se de uma ideia de
“mal menor”.
4) Princípio da maior proximidade (art. 17º/3 CC)

Tem relevo indirecto (art. 17.º/3). Imaginemos agora que a L2, da nacionalidade, remete para
uma L3, que é a lei do lugar da situaçã o dos bens, que se considera competente. Neste caso, o art.
17.º/3 diz que, tratando-se de uma das matérias nele enunciada (designadamente, matéria
sucessó ria) se aplica a regra do n.º 1 (ou seja, desaplica-se o n.º 2), havendo reenvio a aplicando-se
a L3.
Ex: L1  L2 (N)  L3 (lex rei sitae e que se considera competente)

L4 (RH)

Porque é que damos preferência à L3? Este art. 17.º/3 constitui uma manifestaçã o indirecta do
princípio da maior proximidade: apesar de nã o ter consagrado este princípio com regra geral, o
legislador entende que, por vezes, faz sentido dar competência a uma lei por ser a que está mais
bem colocada para impor o acatamento das suas regras. Existindo um regime específico para os
bens imó veis, o legislador nã o adoptou uma perspectiva geral de dar competência à lei do lugar
dos bens imó veis, mas aceitou dar algum valor a essa lei em certas circunstâ ncias – esta é uma
delas. Porém, nã o é apenas o facto de ser a lei mais bem colocada que fundamenta esta soluçã o;
além disso, a L3 é a lei considerada competente no país da nacionalidade, ou seja, é a pró pria lei da
nacionalidade que determina como competente essa lei. Assim, aceitamos, ainda que a lei da
residência determine que é aplicá vel a lei da nacionalidade, aplicar a terceira lei na medida em que
esta se considera competente e é considerada competente pela lei da nacionalidade. Já se houver
acordo entre a lei da nacionalidade e da residência habitual, temos ainda a ideia de harmonia
jurídica qualificada.
Assim, temos a fundamentar o reenvio o princípio da maior proximidade, que tem valor em
matéria, e ainda e sempre o princípio da harmonia jurídica internacional. Se considerarmos apenas
as leis envolvidas, a L1, 2 e 3 manter-se-ã o em acordo em aplicar a terceira lei.
Trata-se de um afloramento indirecto do princípio da maior proximidade porque para
aplicarmos a lex rei sitae nã o basta que se considere competente, senão que tem que ser indicada
pela lei da nacionalidade.

5) Princípio da conservação dos negócios jurídicos ou do favor negotii

Temos que ter em conta que pode funcionar em dois sentidos:

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

1) Casos em que o favor negotii é um limite ao reenvio.


Em princípio, podia haver reenvio, porque se cumprem os requisitos do art. 17º/1 ou
17º/3; 18º/1 ou 18º/2 CC, mas vamos rejeitá -lo sempre que ele leve à invalidade do negó cio.
Assim, estamos a falar do caso em que o negó cio é vá lido substancialmente na perspectiva material
da L2, indicada pela nossa regra de conflitos, mas invá lido de aplicarmos a L3 ao aceitar o reenvio.
Ou seja:

L1  L2  L3 (considera-se competente)

Verifica-se o 17º/1, em princípio devia haver reenvio.


Mas, imaginemos que na L3 o acto é invá lido e, se nã o houvesse reenvio, o negó cio seria
vá lido. Nestes casos, fazemos cessar o reenvio e aplicamos a lei designada pela nossa regra de
conflitos, para evitar que se frustre a validade do negó cio ou as expectativas jurídicas das partes.

L1  L2  (RG) L3  (RM) L1

Verifica-se o art. 18º/1, em princípio devia haver reenvio, aplicando a L1.


Mas se o acto for inválido em L1 e vá lido em L2, neste caso nã o tem sentido aceitar este
retorno porque sacrificaria as expectativas individuais, embora houvesse harmonia jurídica
internacional. O melhor é nã o fazer o reenvio e fazer funcionar o art. 16º CC.

Essa soluçã o está expressamente consagrada no art. 19º/1 CC. O princípio favor negotii actua
assim como limite ao reenvio, como sua causa de afastamento: se a questã o da validade do negó cio
for decidida em termos opostos pela lei que reenvia e por aquela para a qual se reenvia, prevalecerá
a que tiver o negó cio como vá lido. Pressupostos da sua aplicaçã o:
1) É necessá rio que à partida pudesse haver reenvio.
2) É necessá rio que fazendo-se o reenvio, ele conduza à invalidade do negó cio ou ilegitimidade do
estado
3) Fazendo funcionar a regra do art. 16º (RM), a L2 considere o negó cio vá lido ou o estado legítimo.

De qualquer modo, Ferrer Correia defenda uma interpretaçã o restritiva do art. 19º/1 CC ao
entender que a sua ratio legis é a seguinte: se os interessados realizaram o negó cio jurídico de
conformidade com as disposiçõ es de um sistema de direito material que é o declarado competente
pela regra de conflitos do foro, e se for de crer que eles se orientaram por esta norma de conflitos,
entã o nã o seria justo frustrar a confiança que depositaram na validade do acto. Assim, devemos
fazer uma interpretaçã o restritiva do art. 19.º/1, o que significa acrescentar dois requisitos
fundamentais para que a norma possa ser aplicada, em funçã o da pró pria teleologia desta regra – o
favor negotii, que se funda na ideia da tutela de expectativas legítimas do particular.
Sendo este o fundamento da regra, só podemos aplicá -la quando estiverem preenchidos
dois requisitos adicionais:
• Que o negócio tivesse com a ordem jurídica portuguesa algum contacto no momento da
sua constituição. Porquê? Porque só se houvesse algum contacto com a ordem jurídica portuguesa
é que poderemos de alguma maneira presumir que as partes confiaram ou podem ter confiado na
aplicaçã o da lei designada pela nossa regra de conflitos. Se o negó cio nã o tivesse nenhuma ligaçã o

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com a ordem jurídica portuguesa, nã o se poderia dizer que os particulares confiaram na aplicaçã o
da nossa regra de conflitos portuguesa. Este é o índice mínimo para podermos presumir que os
particulares confiaram nessa regra, ou seja, presumimos que os particulares confiaram apenas na
regra de conflitos, nã o formulando aqui maior exigência.
• Temos de estar perante um negócio jurídico, ou um estado, já constituído, isto é, o art.
19.º/1 aplica-se apenas a relaçõ es jurídicas já constituídos e nã o também a negó cios jurídicos a
constituir. Nos negó cios jurídicos a constituir, ainda nã o há nenhuma expectativa legítima a
proteger. Isto assume relevâ ncia prá tica no caso de negó cios jurídicos a celebrar em Portugal com
intervençã o de um agente do Estado ou autoridade pú blica.

2) Casos em que o favor negotii é um fundamento autónomo do reenvio , porque o vamos


aceitar independentemente dos requisitos gerais, isto é, embora nã o exista harmonia
jurídica internacional. Para FERRER CORREIA, o ideal seria examinar o problema no quadro
de cada tipo negocial, só admitindo o reenvio com este fundamento nos domínios em que o
interesse na conservaçã o do negó cio se faça sentir com particular intensidade.

O Có digo de 1966 só aceitou o reenvio com fundamento autó nomo no favor negotii na hipó tese
de a invalidade do negó cio resultar de vício de forma, arts. 36.º/2 e 65.º/1 CC. O art. 36.º/2 trata da
forma geral; o art. 65.º/1, da forma do testamento. Imaginemos que, segundo a L2 (lei do lugar da
celebração), o negó cio é invá lido; mas que esta lei remete para uma L3, segundo a qual o negó cio é
vá lido. Aceitamos o reenvio e aplicamos a L3 na busca da validade formal e independentemente de
ela se considerar competente (ao contrá rio do que sucede no art. 17.º/1). A forma observada é
uma daquelas que sã o reconhecidas pela ordem jurídica do país da celebração do acto, o que se
considera bastante. A mesma ideia está presente no art. 65.º/1 em matéria de testamentos. Assim,
nos termos dos artigos mencionados, o favor negotii funciona como um fundamento autó nomo do
reenvio: é ele que faz com que nã o apliquemos a lei designada pela regra de conflitos, mas sim uma
terceira lei.
Estas normas têm hoje uma aplicaçã o residual. Em matéria de forma, há regras de conflitos
especiais nos instrumentos europeus que derrogam estes artigos. (Veja-se o Regulamento Roma I;
Regulamento Europeu das Sucessõ es).

Em alguns casos podemos falar de conexõ es que sã o por natureza anti reenviantes, ou seja,
que, quando existam, em princípio nã o devíamos aceitar o reenvio. Onde costumamos ver estas
conexõ es?
1) Vontade das partes. Nã o há reenvio (mas sim mera referência material) se a lei
estrangeira tiver sido designada pelos interessados, quando essa designaçã o for permitida. Existe
esta conexã o em matéria obrigacional, sucessó ria, divó rcio, extracontratual, alimentos, etc... Nestes
casos o que as partes querem é designar uma ordem jurídica material para reger o contrato, logo
deve entender-se que essa escolha é dirigida ao direito material. Em tese, seria possível que as
partes quisessem estar a remeter para o DIP dessa lei, mas isto nã o sucede na prá tica. E mais – em
rigor, nã o temos aqui um conflito de sistemas, uma vez que a vontade das partes é a de aplicar um
certo sistema de direito material. Em suma, deve aplicar-se a lei designada pelas partes, mesmo
que essa lei nã o se considere competente. Esta ideia está consagrada no art. 19º/2 CC.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

Nota: Mas as partes, ao escolher a lei espanhola, podem estar a contar com o
funcionamento da regra de conflitos espanhola. Nestes casos o que temos é um problema de
interpretaçã o da vontade das partes.

2) Lugar da celebração. Quando o legislador prevê que é competente a lei do lugar da


celebraçã o, é com vista a facilitar à s partes a realizaçã o de negó cios jurídicos em Estados diferentes
daquele a que os mesmos negó cios pertencem. Mas a verdade é que há sistemas como o nosso (art.
36.º/2 e 65.º/1) que estabelecem casos de reenvio precisamente em matéria de validade formal. Há
aqui uma circunstâ ncia material que justifica reenvio mas, tirando esta salvaguarda, podemos dizer
que esta é uma conexã o inimiga do reenvio.

3) Princípio da conexão mais estreita. (P.e. 52º/2 e 60º/2 CC). Nã o teria muito sentido
mandar aplicar a lei que tem uma conexã o mais estreita e depois aplicar-se outra lei para a qual
esse ordenamento remete. Deve aplicar-se o ordenamento jurídico indicado mesmo que ele não se
considere competente.

3.2. O princípio da maior proximidade.

Surge para resolver os conflitos positivos de sistemas de DIP. Estes nascem da


circunstâ ncia de as regras de conflitos serem diferentes de Estado para Estado, traduzindo-se no
facto de que podem existir vá rios ordenamentos jurídicos que se consideram aplicá veis a uma
mesma relação privada internacional. Para resolver este conflito, volta a aparecer a ideia segundo
a qual a questão de sabermos se e quando devemos aplicar a regra de conflitos do foro ou a regra
de conflitos estrangeira, depende se aceitamos a possibilidade de afastar a aplicaçã o da nossa
regra de conflitos para tutelar a justiça conflitual imanente ao nosso sistema de DIP.
Este é um princípio que foi formulado por Zittelmann, mas já tinha sido aplicado em Itá lia
(Turim). A sua formulaçã o é a seguinte: sendo um conjunto de bens e direitos concebidos
unitariamente pela lei mais apropriada para o reger, há no entanto que distrair da universalidade
aqueles elementos que a ela nã o pertençam, segundo o estatuto pró prio de cada um. Ou seja, a lei
do foro concebe determinado conjunto de bens e direitos (por ex., a herança) unitariamente e por
isso manda-o regular por uma ú nica lei (a e lei pessoal do de cujus); porém, alguns dos elemento da
universalidade estã o sujeitos a uma ordem jurídica que nã o perfilha a concepçã o unitária – nestes
casos, é necessário extrair esses elementos do conjunto e aplicar-lhes o estatuto pró prio, ou seja, o
estatuto do todo cede perante o estatuto da parte. O princípio da maior proximidade impõ e assim a
abdicaçã o da competência por parte da lei normalmente competente para reger um conjunto de
bens ou direitos em favor da aplicaçã o da lei da situaçã o de alguns desses elementos.
Quando falamos deste princípio, há, desde logo, uma tendência para haver uma certa
confusã o deste princípio com o princípio da proximidade ou da localizaçã o – este ú ltimo é um
princípio geral do DIP que diz que cada situação jurídica deve ser regida pela lei que se encontra
mais pró xima (art. 46º CC).

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Em sentido estrito, podemos ter duas acepçõ es deste princípio:

1) Uma acepção restrita ou material


Nesta acepçã o, a lei reguladora de um patrimó nio cederá a sua competência à lei do Estado
da situaçã o das coisas na medida em que tais elementos estejam sujeitos, no Estado onde se
situam, a um regime especial de direito material (por motivos de política econó mica ou
semelhantes). É o caso da casa de morada de família que tem um regime especial de direito
material diferente do existente face à generalidade dos bens.
Esta acepçã o restrita ou material do princípio nã o está expressamente consagrada na lei. Mas
é uma formulaçã o que deve e pode ser aceite através de dois expedientes:
(1) O instituto da qualificação (A norma, pelo conteú do e funçã o, é uma norma real e por
isso subsume-se ao conceito quadro do art. 46º CC);
(2) Categoria das normas de aplicação necessária e imediata. É o caso do regime da casa de
morada de família. Aplica-se quando existir uma conexã o ad hoc, isto é, quando a casa de morada
de família esteja situada em Portugal. Através deste instrumento que se inclui dentro dos métodos
do DIP – neste caso, as normas de aplicaçã o necessá ria e imediata – estamos a criar um regime
especial para um certo bem, distraído da universalidade. Se existir este regime material especial,
podemos dizer que a afirmaçã o da competência desta regra é, numa acepçã o restrita, a afirmaçã o
do princípio da maior proximidade.

FERRER CORREIA pronuncia-se a favor da primeira acepçã o: nos casos que ela pretende
abranger, a competência da lex rei sitae impõ e-se a todas as luzes – trata-se de patrimó nios
destacados de um patrimó nio geral, sendo-lhes aplicado um regime especial; e a afectaçã o a um
regime especial justifica-se por razõ es ponderosas, de política social ou econó mica.

2) Uma acepção ampla ou conflitual


Nesta acepçã o, a competência da lei da situaçã o dos bens impõ e-se não só na hipó tese
referida acima, mas também quando a lei do lugar das coisas se considere exclusivamente
competente no que respeita a esses bens. Ou seja, segundo esta acepçã o, sã o dois os casos em que
se deve aceitar a citada abdicaçã o da competência:
• Quando a lei do lugar das coisas submete certos elementos a um regime especial de direito
material;
• Quando essa lei organiza para os bens imó veis uma regulamentaçã o especial de DIP – ou seja,
basta que o regime especial seja, não de direito material, mas de DIP. Note-se que a lex rei sitae se
tem de considerar competente a esse título.

Historicamente, esta formulaçã o do princípio da maior proximidade foi aceite na Alemanha


e serviu de base para a interpretaçã o do art. 28º da Lei de introduçã o ao BGB.
Ferrer Correia fazia vá rios reparos a esta acepçã o ampla. O argumento teó rico em que se
baseia diz que a eficá cia de uma sentença judicial que incida sobre um daqueles bens destacados,
em princípio, está dependente de, nessa sentença, se terem aplicado as normas materiais do lugar
da situaçã o dos bens – dada a ligaçã o tã o intensa do bem imó vel ao lugar da situaçã o. Ora, este é
um argumento falível, por duas razõ es:

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

• Essa aplicaçã o do direito do lugar da situaçã o do bem nem sempre é exigida. Nem sempre
o reconhecimento de uma sentença estrangeira (hoje, cada vez menos) está dependente de ter sido
aplicado um determinado direito material (no caso, do lugar da situação do bem). Ou seja, em
muitas circunstâ ncias, este princípio não é uma condição necessária para a eficácia da decisão
judicial.
• Se o Estado do lugar da situaçã o do bem for tã o exigente quanto ao regime jurídico dos
bens nele situados, normalmente exigirá que sejam os seus tribunais a regerem esses bens. E,
nessa circunstâ ncia, qualquer sentença estrangeira nã o poderá produzir efeitos nesse país – ou
seja, a aplicação de DIP não é condição suficiente para que uma sentença estrangeira seja
reconhecida.

Em suma, pode nã o ser nem necessá rio, nem suficiente – e foi por isso que FERRER
CORREIA propô s no anteprojecto do Có digo uma regra que consagrava o princípio da
proximidade nesta acepçã o ampla apenas se tal fosse necessá rio e suficiente para assegurar uma
sentença do juiz português. Este artigo nã o passou; porém, ficaram dois afloramentos deste
princípio no nosso Có digo, o art. 17.º/3 e o 47.º.

• Art. 17.º/3: é um afloramento indirecto na medida em que nã o é previsto em primeira


linha nas regras de conflito sobre bens imó veis, mas apenas quando é a lei da nacionalidade a
considerar competente a lei do lugar da situaçã o dos bens imó veis (e ela se considerar competente
a ela pró pria).
• Art. 47.º: é um afloramento directo mas limitado. Se quisermos saber a lei aplicá vel para
a constituiçã o/transmissã o de um direito real, aplica-se a lei do lugar da situaçã o; mas e a para a
capacidade para dispor de um bem imó vel? Na ausência de regra especial, aplicar-se-ia a lei
pessoal, da nacionalidade, porque a questã o da capacidade é uma das questõ es incluídas no â mbito
da lei pessoal. Porém, o art. 47.º diz que é igualmente definida pela lei do lugar dos bens imó veis a
capacidade para dispor desses bens, desde que essa lei se considere competente. Se a lei do lugar
da situaçã o do bem nã o se considerar competente, voltamos à lei pessoal. Este é um afloramento
directo, na medida é que é uma regra de conflitos que dá competência à lei da situaçã o do bem
imó vel; mas limitado pois, ao contrá rio da proposta doutriná ria do Anteprojecto, apenas vale
limitadamente para a questã o da capacidade.

Em suma: a primeira acepçã o vale inteiramente entre nó s; a segunda, apenas nos arts. 17.º/3
e 43.º.

3.3. O reconhecimento de direitos adquiridos.

Trata-se de um conflito positivo de sistemas de DIP em que está em causa saber qual é o
tratamento a dar a uma relação jurídica que foi constituída no estrangeiro, e que é vá lida à luz da
lei do lugar onde se constituiu, mas que não é vá lida à luz da lei indicada pela nossa regra de
conflitos. No que toca à s situaçõ es internacionais constituídas no estrangeiro, nã o deverá aceitar-
se uma ideia de competência alternativa, de modo a que essas relaçõ es possam ser reconhecidas
ou com base na lei de primordial designaçã o (a indicada pelo DIP do foro), ou com base naquela
conforme a qual foram criadas.

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Este problema começou a sentir-se muito em 1920-1930, quando as ordens jurídicas eram
estritamente nacionais e fechadas sobre si mesmas - a regra de conflitos era um instrumento que
tinha cará cter absoluto e formal, nã o conseguindo o DIP responder à s necessidades de tutela das
expectativas individuais e promover uma boa coordenaçã o das ordens jurídicas. Já vimos que hoje a
regra de conflitos nã o é vista dessa forma absoluta, mas sim de maneira relativa, podendo “cair” a
nossa regra de conflitos e aplicar-se consequentemente uma regra de conflitos estrangeira em prol
da prossecuçã o das finalidades fundamentais do DIP e de justiça conflitual. (embora este método
nã o seja absoluto, existindo outros que visam a prossecuçã o destas finalidades fundamentais do
DIP)

A noçã o de direito adquirido tem sido usada no DIP para diversos fins:
• Para conciliar a prá tica universal da aplicaçã o de direito estrangeiro com o princípio da
territorialidade das leis e o dogma da soberania estatal – teoria dos vested rights, que assume hoje
um interesse meramente histó rico.
• Para PILLET e seus continuadores (entre os quais, entre nó s, MACHADO VILLELA), o
conflito de leis e o reconhecimento de direitos adquiridos sã o problemas distintos porque, na
hipó tese de reconhecer, no Estado do foro, uma situaçã o cujos factos constitutivos estavam todos
em contacto com um ú nico ordenamento, nenhum conflito de leis se divisa.
• Para BAPTISTA MACHADO, o reconhecimento dos direitos adquiridos decorre do
princípio da nã o transactividade: uma lei é aplicável a todos e quaisquer factos que apenas estejam
em contacto com essa lei; e qualquer lei é potencialmente aplicá vel a quaisquer factos que estejam
conectados com ela. FERRER CORREIA critica esta formulaçã o – apenas se pode retirar da natureza
da lei enquanto regula agendi que nenhum obstá culo deriva a que uma norma material se aplique a
determinadas situaçõ es factuais, desde que entre estas e a norma exista uma conexã o susceptível
de relevâ ncia jurídica.

Em suma: na opçã o da situaçã o jurídica de conexã o ú nica, nã o é necessá rio conceber a


existência de um princípio postulante do reconhecimento extraterritorial dos direitos adquiridos,
este decorre imediatamente da aplicaçã o da lei estrangeira e esta, por seu turno, de uma norma de
atribuiçã o de competência do ordenamento do foro.

Porém, sempre houve um temor em afirmar o problema do reconhecimento dos direitos


adquiridos, porque tal implica a nã o aplicaçã o da lei que a regra de conflitos do foro manda
determina como aplicá vel. Vá rios autores procuraram equilibrar este jogo de tensõ es.

NIEDERER defendeu que sempre que o funcionamento da regra de conflitos bilateral


levasse ao nã o reconhecimento de uma situação e isso violasse a ordem jurídica fundamental do
foro, devíamos assegurar o reconhecimento dos direitos adquiridos, recorrendo ao expediente da
ordem pú blica internacional. Tal apresentava alguns riscos, como a subjectividade e incerteza que
o recurso a esse expediente criava e o facto de que o autor nunca se afastou dos quadros
dogmá ticos tradicionais do direito de conflitos.
Já as doutrinas unilateralistas (em especial, NIBOYET) deram origem a um sistema
favorá vel de reconhecimento dos direitos adquiridos. Em primeiro lugar, devemos ver se a lei do
foro se quer aplicar; se nã o se quiser aplicar, aplicamos a lei estrangeira que tenha vontade de

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aplicaçã o. De acordo com estes autores, a partir do momento que a lei do foro nã o tenha vontade
de aplicaçã o, esse OJ reconheceria qualquer situação constituída à luz de uma ordem jurídica que
queira aplicar-se. Esta é uma soluçã o que resulta do pró prio funcionamento normal unilateralismo.
Ora, estes autores, por um lado, ao serem demasiado favorá veis ao reconhecimento, negligenciam
o título do reconhecimento, isto é, podem reconhecer situaçõ es jurídicas criadas a luz de uma lei
que tem poucas conexõ es com o caso; por outro lado, podem ser demasiado restritivos, porque em
todas as situaçõ es que a lei do foro se considerar competente, eles nã o vã o reconhecer essas
situaçõ es criadas por outras ordens jurídicas que na altura possam ter conexã o com o caso.
À partida, o sistema bilateralista é menos favorá vel ao reconhecimento de direitos
adquiridos que o sistema unilateralista. A regra de conflitos bilateral tanto delimita os casos de
aplicaçã o da lei do foro, como da lei estrangeira, tanto nas situaçõ es a constituir como nas situaçõ es
a reconhecer. Reconhece-se, quanto a estes, três fases distintas:

1)Fase de esterilidade
Pensamos na obra de PILLET e MACHADO VILLELA. Esses autores deram um contributo
estéril para este problema, porque nã o abandonaram a rigidez bilateralista. Defendiam que se
deviam distinguir entre situaçõ es a constituir (conflito de leis) e situaçõ es a reconhecer (problema
cientificamente autó nomo de reconhecimento), tendo sido esse o seu grande mérito.
Mas depois, defendiam que só se devem reconhecer as situaçõ es já constituídas que tenham
respeitado o direito competente de acordo com a regra de conflitos do foro, o que é totalmente
estéril.

2)Fase da abertura
A abertura começou a sentir-se a partir do momento em que a doutrina começou a
reconhecer limites de aplicaçã o espacial à s regras de conflitos – quando uma situaçã o é criada sem
qualquer conexã o com a OJ do foro, nã o se deve aplicar a regra de conflitos do foro. Inicialmente,
alguns autores começaram por defender que o reconhecimento de direitos adquiridos devia ser
feito sempre que a situaçã o, embora constituída sem contacto com o foro no momento da sua
constituiçã o, fosse vá lida face à unanimidade das OJ envolvidas – MERGERS e BATTIFOL.
Ora, exigindo a unanimidade das OJ, reconhecem poucas situaçõ es. Para mais, podemos
chegar ao mesmo resultado por outros institutos - se há unanimidade em todas as OJ, é possível o
reenvio porque há harmonia jurídica internacional (Ferrer Correia); Baptista Machado diz que se
todos estã o de acordo, nã o há conflito de leis.
Na sequência desta construçã o, MAKAROV defende que, neste contexto, basta a maioria
preponderante. Aqui há mais situaçõ es de reconhecimento, embora se crie o problema de saber
como se densifica esse conceito de “maioria preponderante”

3)Fase do reconhecimento mais amplo


Com a ideia da autolimitaçã o espacial da regra de conflitos, deixaram de se exigir tantos
requisitos para o reconhecimento de direitos adquiridos. Destaca-se o contributo de
FRANCESCAKIS, VALLADÃ O e GRANLICH.
FRANCESCAKIS distinguia entre (1) situaçõ es a constituir e as (2) situaçõ es a reconhecer -
dentro destas, (2.1.) as situaçõ es a reconhecer que se criam sem contacto com o foro; (2.2.) as
situaçõ es a reconhecer que se criam com contacto com o foro.

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Nas situaçõ es a constituir, a lei aplicá vel era determinada pela regra de conflitos do foro,
assim como nas situaçõ es a reconhecer com contacto com o foro. Porém, quanto à s situaçõ es a
reconhecer sem contacto com o foro, nã o deve fazer-se funcionar a regra de conflitos do foro, mas
sim a lei que presidiu à constituiçã o da relaçã o. Por conseguinte, nenhuma investigaçã o terá de ser
feita acerca da competência dessa lei.
VALLADÃ O partilhava desta posição, excluindo apenas os casos de ordem pú blica, fraude
à lei e competência exclusiva da lei do foro. Já GRAULICH prescinde destes critérios.

Quais as críticas que se fazem a estas doutrinas?


 Críticas quanto aos pressupostos:
o Estes autores partam da ideia de que a regra de conflitos deve ter limites de
aplicaçã o no espaço. Porém, como sabemos, a regra de conflitos nã o é uma
regra de conduta e por isso não deve ter limites de aplicaçã o, nem no espaço,
nem no tempo. Esta construçã o desconhece a verdadeira natureza da regra
de conflitos.
o Estes autores partem da ideia segundo a qual quando não há contacto com o
foro, a regra de conflitos do foro deve ceder, porque nestes casos o foro como
que se desinteressaria da regulamentaçã o das situaçõ es. Ora, defendemos
que tanto nas situaçõ es a constituir como nas situaçõ es a reconhecer, quer
tenham contacto ou nã o, sempre se justificará que o OJ do foro controle a
forma de constituiçã o das situaçõ es jurídicas.
 Críticas quanto aos resultados:
o Nã o se controla o tipo de reconhecimento, porque se reconhece qualquer
situaçã o criada à luz de uma lei que se considerasse competente, quando a lei
do foro nã o se considerasse aplicá vel.
o Estas construçõ es partem de uma ideia segundo a qual nó s teríamos de criar
regras de conflitos sobre regras de conflitos - um DIP de segunda potência –
para resolver estes conflitos de sistemas de DIP. Tal conduziria a um ciclo
vicioso.

Ora, todas as teorias avançadas ao longo dos séculos permitem-nos perceber que a soluçã o
está num equilíbrio entre os seguintes aspectos:
• Tutela da confiança das partes;
• Defesa da justiça conflitual – o nosso ponto de partida é sempre uma ideia de justiça
internacional privatística, com finalidades pró prias - assegurar e promover a estabilidade e
continuidade da vida jurídica internacional.
• Princípio da Favor Negotii

À luz destes princípios, entendemos que devemos assim aceitar situaçõ es jurídicas
constituídas à luz de leis estrangeiras, diferente da designada pela regra de conflitos. Para FERRER
CORREIA, a solução é que se adopte, com vista à hipó tese da situaçã o plurilocalizada criada em
país estrangeiro, um sistema de conexã o mú ltipla alternativa, devendo a alternativa resolver-se a
favor da lei segundo a qual os factos constitutivos (ou extintivos) da mesma situação se realizaram
por modo juridicamente vá lido”.

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Para se verificar um problema autó nomo de reconhecimento de direitos adquiridos, é


necessá rio:
1) Requisitos literais
a. É necessá rio estarmos perante negó cios jurídicos de cará cter particular.
b. Que o negó cio tenha sido celebrado no país da residência habitual do declarante.
c. Que o negó cio seja vá lido segundo essa lei.
d. Que essa lei se considere competente.

2) Requisitos decorrentes da sua ratio:


a. Que a questão seja suscitada a título principal. Nã o funciona este problema sempre
que o reconhecimento de uma situaçã o jurídica se coloque a título meramente
incidental, prejudicial ou prévio. Neste caso, estamos ante o problema da questã o
prévia.
b. Decorrente da celebração de um acto ou negócio jurídico e não de uma situação
jurídica criada ex lege. Neste ú ltimo caso, nã o há fundamento para a tutela das
expectativas - nestes casos há um verdadeiro conflito de leis; quando se trata de um
negó cio jurídico, há uma vontade e expectativas comuns a proteger.
c. Não ter sido objecto de decisão judicial transitada em julgado. Quando a situaçã o
está “coberta” por uma sentença, consolidam-se expectativas e o problema que se
coloca é um problema de reconhecimento de sentenças e nã o de direitos adquiridos.
Também aqui pode discutir-se se só devemos reconhecer sentenças que aplicaram a
lei considerada competente pela nossa regra de conflitos. A tendência geral é a da
revisã o meramente formal ou delibató ria das sentenças, reconhecendo-se a sentença
estrangeira sem que se exija que o tribunal estrangeiro tenha aplicado a lei
competente de acordo com a lei do foro.
d. Que se trate de uma situação consolidada. Este requisito exige que se tenham
produzido efeitos mais ou menos está veis. Só existindo uma situaçã o de direito já
consolidada é que se justifica que aceitemos aplicar uma outra lei, tutelando as
expectativas de particulares por um imperativo de justiça.

A solução na lei portuguesa


O nosso ponto de partida é o sistema bilateralista que tem regras de conflitos que escolhem
entre a lei do foro e a lei estrangeira, nã o sendo, à partida, um sistema favorá vel ao
reconhecimento dos direitos adquiridos. O legislador português veio adoptar a doutrina do curso,
mas em termos limitados, pois nã o consagrou nenhuma fó rmula que consagrasse em termos latos
a doutrina dos direitos adquiridos – apenas o faz em matéria de estatuto pessoal. Isto está
expresso no art. 31.º/2 CC: de acordo com o n.º 1, a lei pessoal dos indivíduos é a do seu Estado
nacional (só reconhceriamos os negó cio que fossem vá lidos à luz da lei da nacionalidade); porém,
de acordo com o n.º 2, sã o reconhecidos em Portugal os negó cios jurídicos (1) celebrados no país
da residência habitual do declarante, (2) de conformidade com a lei desse país, (3) desde que esta
lei se considere competente. A principal inspiraçã o deste artigo é a ideia de favor negotii.
Mais uma vez, em funçã o da teleologia desta regra e de todo este contexto, é natural que a
doutrina tenha desenvolvido um conjunto de requisitos para que o art. 31.º/2 se aplique; mas,

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porque é expressã o de uma ideia mais ampla, para a doutrina justifica-se ir além da letra do art.
31.º. Isto é, ao mesmo tempo que se impõ em certos requisitos, a doutrina propõ e uma série de
interpretaçõ es extensivas e analó gicas.

1) Negócios celebrados num terceiro país: imaginemos que o lugar da celebraçã o do


negó cio foi, nã o o Estado da residência habitual, mas noutro Estado, porém segundo os requisitos
da lei da residência habitual. Ora, o lugar da celebraçã o do negó cio nã o é o elemento essencial do
art. 31.º/2, mas sim o facto de as partes se terem colocado sobre a égide da lei do país do seu
domicílio comum, dando assim nascimento a uma relação que pô de produzir neste país, sob a
égide da lei do país do seu domicílio comum, os seus efeitos normais. Ou seja, importa apenas que
seja celebrado segundo as regras da lei da residência habitual e aí produza efeitos. Assim, de
acordo com a ratio legis do art. 31.º/2, podemos aplicá -lo também nesta hipó tese.

2) Negócios celebrados segundo a lei de um Estado terceiro, competente à luz do DIP do


Estado da residência: imaginemos que o negó cio é celebrado segundo as regras da lei do lugar da
celebração, para a qual remetem as regras de conflito do país da residência habitual (referência
material), e o negó cio é vá lido (ainda que, à luz do direito material do país da residência habitual, o
negó cio fosse invá lido). Ou seja, sendo a lei de um país terceiro competente para regular o caso
segundo o DIP do Estado da residência, a situaçã o jurídica assim criada é reconhecida pela lei deste
Estado, no qual pô de desenvolver, de facto, os seus efeitos. Este caso deve ser igualmente
abrangido no art. 31.º/2.

3) Negócios celebrados segundo uma lei que não se considera competente: podemos
dispensar o requisito de a lei se considerar competente, no caso de a lei do país da residência
habitual (ou da nacionalidade, por analogia, como veremos abaixo) considerar como competente a
lei do lugar da celebração.

4) Negócios celebrados por uma lei para a qual remete a lei da nacionalidade, e de acordo
com a qual o negócio é válido. Este ponto implica maiores desenvolvimentos. Com efeito, com
esta interpretaçã o extensiva do art. 31.º/2, chegamos a uma dificuldade: poderíamos estar a dar
mais valor à residência habitual do que à nacionalidade. Assim, FERRER CORREIA faz uma
interpretaçã o analó gica com a nacionalidade. A lei da nacionalidade é a lei que consideramos
competente em matéria de estatuto pessoal.

L1 (RH)  L2 (N)  L3 (considera-se

competente) L2  Negócio é inválido; L3 

Negócio é válido

Em matéria de estatuto pessoal, vimos que a lei é mais exigente (art. 17.º/2): nestes casos,
cessa o reenvio, ou seja, de acordo com as nossas regras a lei aplicá vel seria a lei da nacionalidade,
que considera o negó cio invá lido. Esta soluçã o justifica-se no caso do reconhecimento de direitos
adquiridos? Se considerá ssemos que nã o se aplicava o art. 31.º/2, estaríamos a dar mais importâ ncia
à lei da residência (se fosse esta a remeter para a L3, já se validava o negó cio). Porém, faz todo o
sentido, à luz do art. 31.º/2, aceitar também aqui o reconhecimento dos direitos adquiridos. Esta

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soluçã o justifica-se tecnicamente por duas vias: recorrendo simultaneamente a uma extensão
analó gica do art. 31.º/2, e a uma interpretação extensiva do art. 17.º/2.10
Ao mesmo tempo que se comprova a necessidade de estender a regra do reconhecimento à s
situaçõ es jurídicas criadas ao abrigo da lei para que remete a norma de conflitos da lex patriae, verifica-
se também a de restringir o preceito do art. 17.º/2 à s relaçõ es constituídas ou a constituir no Estado do
foro.
E se a terceira lei, em vez de se considerar competente, fizer uma referência material para a
lei da nacionalidade? Mais uma vez, a analogia que vimos para a residência habitual justifica que
aceitemos que se aplique a L3, ainda que esta nã o se considere competente.

L1  L2 (N)  L3 (LLC)  (RM) L2 (N)


L4 (RH, considera-se competente)

LN – Negócio inválido; LLC – negócio válido; LRH – negócio inválido.

Concluindo, podemos dizer, com FERRER CORREIA, que o texto referido no Có digo
Português não é senã o um caso particular de aplicaçã o de uma directiva geral: a que nos leva a
adoptar soluçõ es inspiradas por uma ideia de reconhecimento das situaçõ es jurídicas
multinacionais criadas ao abrigo de leis estrangeiras, mesmo que essas leis se nã o mostrem
aplicá veis, à luz dos critérios normais de atribuiçã o de competência consagrados no direito de
conflitos do foro.

4. A referência da norma de conflitos a um ordenamento jurídico pluri-legislativo.

Dentro de um mesmo Estado podem existir vá rios ordenamentos - ordenamentos


plurilegislativos ou complexos. Pode surgir-nos um problema ao concretizar o elemento de
conexã o, quando a nossa regra de conflitos aponta para uma lei através do elemento de conexã o
nacionalidade, mas essa referência nada nos diz sobre qual das ordens jurídicas particulares é de
aplicar. Nesta matéria, é importante distinguir:
- Conflitos interlocais ou interterritoriais (remete para um OJ estadual que tem diferentes ordens
jurídicas para cada parte do seu territó rio. Afinal qual é o direito que vamos aplicar? Há alguns
países que têm direito interlocal unitá rio - Direito comum a todas as unidades territoriais; Há
quem nã o tenha um direito interlocal unitá rio - EUA) Como é que resolvemos isto? O CC parte do
art. 20º.
10 Ver ainda o seguinte caso:
RC  LN  LLC (considera-se competente)
LRH  (RM) LN
LRH – inválido; LN – inválido; LLC - válido.

Neste caso verifica-se o 17º/1; mas também o 17º/2 que exclui o reenvio (a lei aplicá vel é a L2 ao
abrigo do art. 16º). Se fosse uma situaçã o a constituir (celebraçã o do casamento) aplica-se a L2 e o negó cio era
invá lido. Mas como se trata de uma situaçã o de reconhecimento (o casamento já se celebrou), devemos aplicar
a L3 por interpretaçã o analó gica do art. 31º/2 CC. Esta interpretaçã o do art. 31º/2 tem um efeito sobre as
regras do reenvio. De acordo com as regras do reenvio, nã o existia reenvio e aplicaríamos a L2; mas com a
aplicaçã o analó gica deste artigo, aplicamos a L3. Nestas situaçõ es o art 17º/2 fica restringido e limitado.

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1) Em primeiro lugar, a concretização do elemento de conexão é feita recorrendo ao direito


interlocal. Se o problema é causado pelo Estado em causa, devem ser as regras existentes nesse
Estado a resolvê-lo – ou seja, remetemos para as regras de conflitos interlocais. Isto justifica-se por
duas razõ es: por um lado, contestar a legitimidade deste critério seria nã o reconhecer o princípio da
harmonia jurídica internacional; por outro, é ao legislador do sistema complexo que compete
determinar a esfera de competência de cada um dos sistemas particulares.
2) Mas pode suceder que não exista um direito interlocal unitário, que vincula todos os
estados. A primeira sugestã o que se faz, antes de partir para o nº 2, é a de procurar saber se,
dentro desse sistema legislativo complexo, todos os direitos locais prevêem a mesma soluçã o para
este conflito interlocal. Pode nã o existir um direito interlocal unitá rio, mas podem existir regras de
direito interlocal de cada um dos Estados – se todas elas tiveram e mesma opiniã o, apesar de
formalmente nã o termos um só direito interlocal, temos esse direito materialmente. Há autores
que vã o ainda mais longe, defendendo que basta olhar para os estados em contacto com a relação.
3) Se tal não for possível, o n.º 2 diz que se recorrem à s regras de conflitos, não
interlocais, mas internacionais. Pode suceder que nã o haja um direito interlocal, formal ou
materialmente unitá rio, mas haja um DIP unitá rio. Aqui, estamos a presumir que as soluçõ es que
estã o na base da resoluçã o de conflitos de leis internacionais têm uma analogia muito pró xima com
as soluçõ es da regra de conflitos interlocais.
4) E pode isto nã o bastar, ou seja, pode não existir um DIP unitário (é o que sucede nos
EUA e RU). Podemos ver se todas as regras de conflitos internacionais de cada um dos estados é
igual – se forem todas iguais, temos um DIP materialmente unitá rio.

Se, no fim, nã o conseguirmos concretizar a lei da nacionalidade, temos de encontrar uma


conexã o subsidiá ria – e a que o legislador português privilegia é a da residência habitual. No plano
do direito comparado e de jure condendo, esta é uma soluçã o criticá vel: o que se deve procurar é a
lei que em concreto tenha uma relaçã o mais estreita. Há OJ onde isso acontece (P.e. Em Itá lia),
sendo que era uma soluçã o de esta índole que estava no ante projecto do CC português de 1966.
Por conseguinte, há aqui uma discussã o doutriná ria: FERRER CORREIA e BAPTISTA
MACHADO sempre entenderam que é aplicá vel, quer a residência seja num dos sistemas
legislativos locais do país da nacionalidade, quer seja num país diferente. Imaginemos que um
sujeito é cidadão de um Estado com sistema jurídico complexo (ex: EUA), e nã o conseguimos
através de nenhum destes critérios encontrar uma lei aplicável, e o sujeito vive num outro Estado,
por ex., França. Numa interpretaçã o literal e segundo a opiniã o dos autores, aplica-se a lei francesa.
MAGALHÃ ES COLAÇO defende que só valeria a residência habitual se residisse num dos estados
locais; se vivesse fora, teríamos de partir para a conexã o mais estreita.

- Conflitos interpessoais
O n.º 3 do art. 20.º trata dos conflitos interpessoais: dentro de um sistema jurídico complexo,
podem existir regras de direito material diferentes para categorias de pessoas diferentes,
geralmente em torno de questõ es como religiã o e etnia. Assim, o n.º 3 diz que devemos atender às
regras de conflitos interpessoais. Normalmente, quando o elemento de conexão é o da
nacionalidade, pelo contexto da vida daquele sujeito e da sua pertença a esta ou aquela
comunidade, nã o será difícil de encontrar qual das leis pessoais em que se insere. Se tal nã o for
possível, devemos resolver o problema com base na ideia de conexã o mais estreita.

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O Regulamento 650/2012, relativo a sucessõ es, tem uma regra aplicá vel aos conflitos interlocais
(art. 36.º) e aplicá vel aos conflitos interpessoais (art. 37.º).
O n.º 3 nã o faz uma distinçã o quanto ao elemento de conexã o em causa, aplica-se a todos;
enquanto que o n.º 1 fala apenas no elemento da nacionalidade. E se o problema for causado por
outro elemento? Normalmente, a regra de conflitos já resolve o problema: por ex., se for
competente a lei da residência habitual, o sujeito terá residência num dos estados. Ou seja,
normalmente as outras conexõ es trazem em sia resoluçã o do problema.

5. A aplicação do direito material estrangeiro.

O juiz português pode ser chamado a aplicar lei estrangeira, e podem surgir problemas quanto à
interpretaçã o deste direito. Mais – além da questã o da interpretaçã o, podem surgir problemas de
cogniçã o do direito estrangeiro.
O primeiro aspecto a reter é o de que o direito estrangeiro tem um cará cter de verdadeiro
direito. Existe uma grande discussão em torno da questã o de saber qual o estatuto do direito
estrangeiro: se é um verdadeiro direito ou antes um facto. Em certos Estados (ex: Reino Unido e
França – Caso Bisbal), considera-se que o direito estrangeiro é facto, isto é, a existência e conteú do
do direito estrangeiro têm de ser provados pelo interessado na sua aplicaçã o, nomeadamente com
a intervençã o de peritos.
Em face do nosso direito, podemos dizer que o direito estrangeiro é verdadeiro direito, sendo
aplicado como tal. Temos aqui uma base legal dupla:
• Art. 348.º do CC: refere-se a direito consuetudinário, local ou estrangeiro e estabelece que,
apesar de as partes deverem provar o conteú do e existência do direito estrangeiro, o juiz deve
procurar ex officio averiguar o seu conteú do. Devemos interpretar a primeira parte do artigo como
um mero dever de colaboração dos particulares com o juiz. Ao nível do direito europeu, temos a
rede judiciá ria europeia, em matéria civil e comercial – em Portugal, há um juiz que serve de ponto
de contacto. Outro meio é recorrer ao chamado GGDDC, que funciona junto da Procuradoria Geral
e tem uma base de dados de direito estrangeiro.
• Art. 674.º do CPC: temos de conjugar o n.º 1, al. a) e o n.º 2. Este artigo refere-se aos
fundamentos do recurso de revista, sendo um deles a violaçã o de lei substantiva – mas poderá esta
lei ser estrangeira? O n.º 2 resolve esta questã o, dizendo que as normas emanadas de ó rgãos de
soberania estrangeiros consubstanciam lei substantiva, susceptível de justificar recurso de revista.
Neste momento, há um dado legal que indicia uma concepçã o diferente - art. 43º-A do
Có digo Registo Predial. Junto dos serviços de registo predial, sempre que se queira registar um
direito relativo a um bem imó vel, fundado na aplicaçã o da lei estrangeira, as conservató rias do
registo exigem que seja o interessado a comprovar o conteú do da lei estrangeira.

Note-se que o direito estrangeiro é tomado em consideração tal como existe na ordem
jurídica pró pria, logo devemos atender à s fontes desse direito. Se, porventura, o juiz português
tiver dú vidas quanto à compatibilidade da norma com a ordem constitucional desse Estado, deve
decalcar os seus poderes dos do juiz local. Assim, sendo o tribunal português deve fazer um
controlo da constitucionalidade da lei estrangeira face a lei estrangeira se os tribunais do estado da
lei competente também puderem fazer esse controlo. Se se remeter para um OJ com controlo
difuso da constitucionalidade, o juiz português também o pode fazer. Se a regra de conflitos
reconhecer a

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competência de um OJ onde apenas uma instâ ncia constitucional pode controlar a


constitucionalidade das leis, o tribunal português já nã o deve poder fazer esse controlo. Nos casos
em que os tribunais portugueses podem controlar a constitucionalidade das leis estrangeiras,
ainda assim devem gozar de alguma contençã o - self restraint - porque o juiz português é exterior
ao OJ estrangeiro, nã o devendo ser tã o ousados e devemos seguir a posição maioritá rio doutrinal e
jurisprudencial aí seguida nesse país.
Também devemos ter em conta que é indiferente o direito vir de um Estado que se nã o se
considera internacionalmente como um Estado. É indiferente este aspecto publicista, uma vez que
o problema do DIP nã o é o de conflitos de soberania.
Por ú ltimo, coloca-se a questão de saber se a regra de conflitos é ou não de aplicação oficiosa .
Por ex., as partes litigam no pressuposto errado que a lei portuguesa é a lei aplicá vel, quando na
verdade a lei aplicá vel é outra lei. Consideramos que a regra de conflitos é de aplicaçã o oficiosa,
esclarecendo o n.º 2 do art. 348.º que incumbe ao juiz conhecer do direito estrangeiro “mesmo que as
partes nã o o tenham invocado”. Isto justifica-se por duas razõ es: por um lado, “o objecto da regra
de conflitos é promover a justiça do DIP, designando a lei que se considera mais apropriada, e nã o
conferir aos indivíduos prerrogativas aos quais eles sejam livres de renunciar”; por outro, a atitude
contrá ria encorajaria o fórum shopping.

Sendo assim:
1) Quando digo que a lei competente é a francesa, aplica-se todo o direito material de origem
estadual, como todas as normas de DIPú blico ou DUE vigentes na França.
2) Este chamamento vale inclusivamente para as normas que tenham sido postas em vigor por
uma autoridade de ocupaçã o num Estado e independentemente de esse ocupação ter sido ou
nã o reconhecida de acordo com o DIPú blico. O mesmo vale para situaçõ es de governos exilados
que mantêm em vigor as suas normas para os sú bditos desse governo.
3) Nã o têm de ser normas de origem legislativa. Podem aplicar-se normas de direito
consuetudiná rio ou de origem jurisprudencial se estiverem em vigor nesse Estado.

5.1. Averiguação do conteúdo do direito estrangeiro.

O juiz tem mecanismos que facilitam esta actividade como a Internet e outros mecanismos
institucionais que facilitam a determinaçã o do conteú do da lei estrangeira - P.e. Convençã o de
Londres de 1968 e Convençã o de Brasília de 1972. Para além disto, isto também vem previsto nas
convençõ es bilaterais de cooperaçã o jurídica e judiciá ria, designadamente com os países de língua
oficial portuguesa.
Pode acontecer que, mesmo existindo estas convençõ es, podem colocar-se problemas na
averiguaçã o do conteú do da lei estrangeira. O que se há -de fazer? À partida, existiriam vá rias
soluçõ es possíveis:
1) Poderíamos pensar numa denegação de justiça – recusa-se dada a proibiçã o do non liquet.
2) Determinar ou decidir contra a parte que invoca a aplicaçã o da lei estrangeira - nã o é aceitá vel
porque estaríamos a tratar o direito estrangeiro como matéria de facto e ele é tratado como
matéria de direito. O interessado nã o tem o ó nus da prova do conteú do da lei estrangeira.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

3) Recurso a presunçõ es. Sempre que nã o consigamos determinar o conteú do da lei estrangeira,
deveríamos recorrer a presunçõ es de modo a determinar o direito provavelmente em vigor num
estado, recorrendo-se à s famílias de direito e princípios gerais vigentes.
4) Aplicaçã o da lei do foro. À primeira vista poderia parecer a soluçã o que decorre do art. 348º/3
CC, que deve ser lido em conjunto com o art. 23º/2 CC:
1) O art. 23.º/2 diz-nos que, na impossibilidade de conhecer o direito estrangeiro, se
recorre à lei que for subsidiariamente competente – ou seja, recorre-se a uma conexã o
subsidiá ria. Esta deve ser a soluçã o seguida pelo juiz português: depois de tentar
conhecer a lei primariamente competente, se nã o o consegue, deverá procurar uma
conexã o subsidiá ria.
2) Mas e se o juiz também não conseguir conhecer o direito da conexão subsidiá ria? É
neste contexto que deve recorrer-se (ou também quando nã o existe conexã o
subsidiá ria, por ex., se a conexã o primá ria for a do lugar da situaçã o dos bens) ao art.
348.º/3. Na impossibilidade de conhecer o direito estrangeiro (leia-se, da conexã o
subsidiá ria, se houver), o tribunal recorrerá à s regras de direito português.

Qual a solução defendida por FERRER CORREIA? Na falta de conhecimento directo da lei
estrangeira, devemos recorrer às presunçõ es - famílias de direito, princípios inspiradores de uma
reforma legislativa - porque a presunção também é um modo de prova; sempre que isso nã o seja
possível, entã o, de acordo com o art. 23º/2, devemos abandonar o campo das presunçõ es e
recorrer à lei subsidiariamente aplicá vel (Em matéria de estatuto pessoal, é a lei da residência
habitual); pode ainda acontecer que nã o consiga determinar o conteú do desta lei aplicá vel directa
ou indirectamente ou que nã o exista lei subsidiá ria - só para estes casos se justifica a aplicaçã o da
lei do foro.
Estas sã o soluçõ es um pouco difíceis de aceitar hoje em dia, e assim MOURA RAMOS já veio
defender que é hoje dificilmente aceitá vel que tenhamos de recorrer a estas presunçõ es de base
tã o movediça. Devemos rejeitar esta soluçã o.

Este tipo de soluçõ es vale também para os casos em que nã o conseguimos determinar o
elemento de conexã o usado pela regra de conflitos. Aqui o art. 23.º/2, ú ltima parte, vem resolver
um problema diferente: diz que se recorre a uma conexã o subsidiá ria quando nã o seja possível
determinar os elementos de facto ou de direito que preenchem a conexão primá ria. Por ex., nã o
conseguimos determinar com segurança de que país o sujeito nacional, por falta de documentos.
A norma estrangeira deve ainda ser interpretada como a interpretam no OJ competente, de
acordo com os seus câ nones interpretativos.
Pode acontecer ainda que nã o seja o tribunal a entidade chamada a aplicar o direito
estrangeiro. Nestes casos a entidade que exerça funçõ es pú blicas deverá estar sujeito, em princípio
à s mesmas regras. (excepçõ es: art. 85º/2 Có digo do Notariado e art. 43º-A CRPredial).

6. A excepção de ordem pública internacional.

Na correcçã o do sistema de DIP, que é eminentemente formal, nã o deixa de haver no final


necessidade de atentar ao resultado da aplicaçã o da lei estrangeira, pois o juiz pode ser
confrontado com um resultado manifestamente contrá rio aos valores éticos fundantes da nossa
comunidade.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

Nestes casos, o juiz deverá afastar a aplicaçã o desta norma estrangeira, com base na reserva de
ordem pú blica internacional (art. 21.º).
É necessá rio distinguir a ordem pú blica interna da de ordem pú blica internacional.
• Ordem pública interna: é o conjunto de todas as normas que, num sistema jurídico dado
revestem natureza imperativa (art. 280.º). Afirma-se como limite à liberdade individual.
• Ordem pública internacional: se a ordem pú blica interna restringe a liberdade individual, a
ordem pú blica internacional ou externa limita a aplicabilidade das leis estrangeiras. A ordem
pú blica internacional é constituída pelos valores jurídicos fundamentais de um Estado, que reputa
essenciais e lhe incumbe proteger. A ordem pú blica internacional do Estado português, que pode
ser diferente das dos outros Estados, é um limite à aplicabilidade de uma norma estrangeira,
independentemente de essa lei ser designada pela regra de conflitos.

Importa ainda distinguir duas concepçõ es diversas da OPI:


1) Concepção a posteriorística da Ordem Pública - Foi estabelecida por Savigny, sendo que
a OP funciona como excepçã o ou limite à aplicaçã o da lei estrangeira, intervindo depois de
sabermos qual a lei competente. Predomina esta concepçã o.
2) Concepção a priorística da Ordem Pública - Foi defendida por PILLET, correspondendo
a normas de aplicaçã o territorial, isto é, normas que seriam sempre aplicadas no territó rio de um
Estado, sendo leis de competência normal. A OP nã o é uma excepçã o, mas sim uma ordem
constituída por normas aplicá veis com competência normal, à semelhança das normas de
competência extraterritorial. Esta concepçã o a prioristica tem entre nó s eco nas normas de aplicaçã o
necessá ria e imediata.

A concepçã o que perfilhamos é a primeira. O problema da ordem pú blica é o de evitar a


situaçã o que se produziria com a aplicaçã o da norma estrangeira aos factos a regular; nã o se trata de
excluir genericamente a intervençã o de quaisquer leis estrangeiras em determinado sector do direito
privado local. Ora, para que seja um limite à aplicabilidade de uma lei estrangeira, naturalmente
que é necessá rio que antes se faça funcionar a regra de conflitos – só depois desta aplicaçã o, da
averiguaçã o do conteú do e da conclusã o de que é contrá ria aos valores fundamentais é que fazemos
funcionar a excepçã o da ordem pú blica. Assim, perfilhamos uma concepçã o aposteriorística da
excepçã o da ordem pú blica.

Quais as características da OPI?


 Imprecisão - o conteú do da noção da ordem pú blica internacional é forçosamente
impreciso e vago – FERRER CORREIA diz que este cará cter impreciso é um “mal sem
remédio”. Nã o há um conjunto limitado de situaçõ es em que podemos dizer que o resultado
é incompatível com a nossa ordem pú blica; isto tem de ser sempre visto em concreto. A
excepçã o de ordem pú blica é uma clá usula geral que tem de ser concretizada caso a caso
pelo juiz, sendo que esta imprecisã o se liga assim a uma ideia de casuística.
 Actualidade - o momento relevante para esta ponderaçã o é o momento actual, o momento
em que o juiz decide, e nã o o momento em que a relaçã o jurídica se tenha constituído. Por
ex., um casamento celebrado há 30 anos entre pessoas do mesmo sexo, colocando-se hoje a
questã o da sua validade em Portugal – nunca poderíamos dizer que é contrá rio à ordem
pú blica internacional portuguesa. Esta característica deduz-se da pró pria noção de ordem

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pú blica – se se trata de defender valores do direito nacional, nã o se compreenderia que o


juiz pudesse contestar a justiça conflitual do DIP em nome de concepçõ es já abandonadas.
 Carácter Nacional - visa-se a protecção de valores fundamentais da ordem jurídica do foro,
neste caso, da ordem portuguesa. É por apelo a essa concepçã o jurídica fundante que o juiz
terá desfazer esta ponderaçã o, o que significa que algo que é contrário à ordem pú blica
internacional do Estado português poderá nã o o ser para outro Estado (ex: a aceitaçã o de
um casamento poligâ mico é contrá rio à ordem pú blica internacional portuguesa, mas nã o
noutros Estados que consagram a sua admissibilidade).
 Carácter Excepcional - a concepção em vigor da ordem pú blica é, e deve ser, relativamente
minimalista. É uma excepçã o; a regra é a da determinação, pela regra de conflitos, da lei
aplicá vel. Apenas em circunstâ ncias excepcionais, ditadas pela contrariedade com os
valores fundamentais, é que se aplica; pois caso contrá rio estaríamos a colocar em causa os
pró prios fins do DIP, principalmente a harmonia jurídica internacional, a paridade de
tratamento e, no final, a estabilidade das relaçõ es jurídicas.

6.1. Pressupostos da aplicação da excepção de OPI.

Há três critérios que, só per si, nã o chegam para a mobilizaçã o deste instrumento:
1) Imperatividade – Segundo este critério fazem parte da OPI todos os valores consagrados em
normas pú blicas imperativas. Mas nem todas as normas imperativas integram a OPI. Também
nã o deve ser confundida esta com o catá logo constitucional - nem todas as normas
constitucionais constituem o catá logo da OPI portuguesa.
2) Recurso à natureza dos interesses - põ e-se em causa a OPI sempre que se coloquem em
questã o interesses fundamentais da organizaçã o do Estado. Nã o sabemos, porém, que interesses
sã o estes nem os casos em que podem levar a aplicaçã o da excepçã o.
3) Critério do grau de divergência - viola a OPI uma lei estrangeira, sempre que exista entre ela e
o OJ do foro uma divergência essencial. Também aqui nã o há grande avanço.
Notemos que nã o conseguimos estabelecer um elenco/catá logo dos valores que integram a
OPI, desde logo porque estes valores que compõ em a ordem jurídica internacional têm um cará cter
evolutivo.

Há , no entanto, alguns arrimos que funcionam como pressupostos para o funcionamento da


excepçã o de OPI.
1) O que conduz a que nã o seja possível aplicar uma lei estrangeira nestes casos é a ofensa à
ordem pública internacional, nã o por uma regra material estrangeira, mas pela aplicaçã o da
regra material estrangeira ao caso. Nã o fazemos um juízo sobre a norma material
estrangeira, mas pelo resultado da aplicaçã o dessa norma ao caso concreto.
2) Por outro lado, exige-se que entre a relação ou situação jurídica e o ordenamento do foro
exista um nexo suficientemente forte para justificar a não aplicação da norma
estrangeira em princípio aplicável. Esta ú ltima ideia é muito importante: se uma relaçã o
jurídica tem uma ligaçã o menos forte a Portugal, a ordem pú blica deve ter um cará cter
minimalista; se tiver uma ligaçã o forte, podemos ser menos exigentes quanto à gravidade.
Claro que há casos gritantes em que é gritante a contrariedade com valores fundamentais de
uma naçã o civilizada, e em que por vezes se fala de ordem pú blica verdadeiramente
internacional (por
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ex., a denegaçã o da personalidade jurídica). A violaçã o desta ordem dispensa a aná lise da
averiguaçã o da intensidade dos factos (podemos dizer que o elemento que funciona como
ligaçã o suficiente é o pró prio facto de a questã o poder ser resolvida por um tribunal deste
Estado).
3) Finalmente, interessa a teoria do efeito atenuado da intervenção da cláusula de ordem
pública. Segundo esta teoria, a ordem pú blica internacional opera de maneiras diferentes,
consoante se trate de constituir uma relação jurídica ex novo, caso em que actua sem
qualquer restriçã o; ou os casos em que se visa permitir em Portugal a produçã o de efeitos
de um direito ou uma relaçã o jurídica constituída sem fraude no estrangeiro, caso em que
adquire um efeito atenuado. A ordem pú blica nã o intervirá em regra quando a relação tiver
sido constituída no estrangeiro, apenas se manifestando nos casos mais graves (para B.
MACHADO, isto decorre precisamente da natureza da ordem pú blica, extremamente
sensível a todos os pormenores e elementos fá cticos que na decisã o se congreguem).

6.2. Efeitos da excepção de OPI.


A ordem pú blica pode ter uma funçã o proibitiva ou permissiva:
• Função proibitiva: evita a constituição ou o reconhecimento em Portugal de uma relaçã o
sujeita a um direito estrangeiro.
• Função permissiva: permite a constituiçã o no país de uma situação jurídica que a lei
estrangeira aplicá vel por si nã o autorizaria.
Note-se que estamos a falar aqui da funçã o: em bom rigor, o efeito da ordem pú blica
internacional é sempre um efeito negativo ou impeditivo, isto é, afasta-se a aplicaçã o da norma
material estrangeira.

6.3. Consequências.

A ordem pú blica internacional tem sempre como consequência o afastamento de um


preceito ou conjunto de preceitos da lei que o DIP do foro considera como competente – ora, a
exclusã o da norma de direito estrangeiro pode dar origem á formaçã o de uma lacuna, surgindo
assim a questã o de saber como a colmatar.
Uma teoria, defendida por AGO, estabelece que esta lacuna deve ser colmatada recorrendo à lei
do foro, uma vez que o direito nacional tem um valor geral e o direito de conflitos é um regime
especial aplicá vel à s relaçõ es internacionais. Porém, nã o é esta a concepçã o a que aderimos.
Em primeiro lugar, é preciso notar que nem sempre o afastamento da lei estrangeira origina
uma lacuna – por vezes, o caso fica resolvido com a simples nã o aplicaçã o do preceito estrangeiro
contrá rio à ordem pú blica internacional. É o caso do casamento entre dois indivíduos de raças
diferentes, nacionais de um Estado que considera esse facto como impedimento matrimonial.
Porém, nos casos em que exista uma autêntica lacuna, o que fazer? A doutrina alemã afirma que
o desejá vel é que, tanto quanto possível, se resolva o problema no quadro da lei designada como
competente, mediante recurso a outras normas da mesma lei – a legislaçã o estrangeira nã o foi
afastada no seu todo, mas apenas num preceito determinado. Isto é particularmente evidente no
caso em que o preceito rejeitado constitui uma excepçã o: afastada a excepçã o, recorre-se à regra.
Na linha desta doutrina, o art. 22.º/2 diz que sã o aplicá veis as normas mais apropriadas da lei
estrangeira ou, subsidiariamente, as normas de direito interno português. Assim, nã o vamos logo

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para o direito material português: em primeira linha, devemos procurar dentro da lei estrangeira
aplicá vel as normas que possam resolver o problema.
Temos aqui uma ideia de menor dano à lei estrangeira: se esta é a lei aplicá vel, mas tem uma
norma incompatível, devemos afastar essa norma e continuar a aplicá -la.
7. A fraude à lei no DIP.

A fraude à lei em DIP integra dois elementos, um elemento subjectivo e outro objectivo:
• Elemento subjectivo: consiste em alguém iludir a competência da lei de aplicaçã o normal, a
fim de afastar um preceito material dessa lei (preceito rigorosamente imperativo), substituindo-
lhe outra lei onde tal preceito, que nã o convém à s partes ou a uma delas, nã o existe.
• Elemento objectivo: a intençã o fraudulenta é levada a cabo através de uma adequada
manipulação da regra de conflitos, normalmente do elemento de conexã o.
Caso Clá ssico de fraude à lei quanto ao elemento de conexã o: Caso Beauffremont. (Séc. XIX)
Caso Clá ssico de fraude à lei quanto ao conceito-quadro: Caso Caron.

Para que tenhamos fraude à lei, é necessá rio que seja possível uma manipulaçã o, e por isso os
elementos de conexã o mó veis prestam-se mais facilmente a este tipo de manipulaçã o. Mas nã o é
somente perante regras de conflito com conexõ es mó veis que podemos ter um caso de fraude à lei.

Este trata-se de um instituto que sofreu largas objecçõ es que levavam a concluir-se que a
fraude à lei em DIP era dogmaticamente iló gica, desvantajosa e inconveniente, porque se entendia
que nã o se podia transpor o instituto da fraude à lei para o DIP, porque verdadeiramente, se se
altera a situaçã o de facto ou de direito, isto quer dizer que a lei potencialmente aplicá vel nunca
chega a ser a lei competente. É ainda praticamente inconveniente porque este seria um instituto
que geraria insegurança quanto aos efeitos a derivar da fraude e provocaria grande incerteza a
aplicaçã o no direito de conflitos de uma clausula geral repressiva da fraude à lei. Estas objecçõ es
culminaram numa posiçã o segundo a qual as ú nicas situaçõ es de abuso deveriam ser aquelas em
que houvesse um verdadeiro abuso de direito ou uma situaçã o destinada a prejudicar ou pô r em
causa interesses de terceiros. (NIEDERER)

Outros autores, como BARTIN, viram a fraude à lei como uma variante da OPI. Este autor
dizia que tanto na OPI como na fraude à lei produzem-se os mesmos resultados: a perturbaçã o
social. No caso da OPI, essa perturbaçã o social deve-se ao facto de a OJ estrangeira pô r em causa
valores fundamentais do foro; na fraude à lei deriva da manipulaçã o de um elemento de conexã o
pelas partes para chegar a aplicaçã o de uma determinada lei.
BAPTISTA MACHADO aponta as diferenças entre a fraude à lei e a ordem pú blica
internacional:
• A excepçã o da ordem pú blica limita-se a proteger o meio jurídico interno contra os
efeitos nocivos que poderiam resultar da aplicaçã o de uma lei estrangeira normalmente
competente; enquanto que o recurso à fraude nã o é utilizado porque a aplicaçã o da lei estrangeira
seja inconciliável com as concepçõ es jurídicas do foro, ou por qualquer razã o que se ligue com o
conteú do do direito estrangeiro.
• Através da excepçã o da ordem pú blica, a justiça privada material do foro sobrepõ e-se à
justiça pró pria do DIP; ao passo que a questã o da relevâ ncia da fraude à lei é apenas uma questã o

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de justiça de DIP. O problema da ordem pú blica só pode pô r-se depois de resolvido o problema da
fraude à lei.
• Por ú ltimo, como já vimos, a excepçã o da ordem pú blica só protege os interesses da lei do
foro; ao passo que a fraude à lei serve ainda para reprimir a fraude à lei estrangeira.

De qualquer modo, a doutrina moderna assenta na relevância da fraude à lei em DIP e,


desde logo, conseguiu vencer a objecçã o do ilogicismo ao defender a configuração da fraude à lei
no DIP colocando a questão no plano estritamente conflitual e dando à norma instrumento e à
norma objecto um determinado entendimento pró prio. Não podemos esquecer que será perante
esta justiça pró pria do DIP que teremos de averiguar se podemos ou nã o aceitar como legítima
uma modelaçã o da relaçã o jurídica que é feita para fugir à aplicaçã o da lei indicada pela regra de
conflitos – isto acaba por levar-nos para a interpretaçã o da regra de conflitos.
BAPTISTA MACHADO identifica, pois, na fraude à lei, uma norma objecto (parte da regra
de conflitos que remete para o ordenamento a cuja aplicaçã o se pretende escapar) e uma norma
instrumento (é parte daquela norma de conflitos que designa o instrumento cuja aplicabilidade se
pretende provocar). Sã o normalmente a mesma regra de conflitos, mas concretizada em sentidos
diversos porque as partes manipulam a concretização do elemento de conexã o.
Isto parte da ideia de que a regra de conflitos tem uma consequência jurídica genérica; na
verdade, em concreto, existem tantas consequências jurídicas como as ordens jurídicas no mundo.
Ora, cada uma das consequências jurídicas possíveis seria uma parte da regra de conflitos: a norma
objecto seria a parte da regra de conflitos que, na ausência da manipulação, conduziria à
competência da lei A; e a norma instrumento é a outra parte da regra de conflitos (normalmente,
estamos a falar da mesma regra) que, por causa ou através da manipulaçã o, convoca a competência
da lei B.
Assim, é dogmaticamente concebível a construçã o da fraude à lei em DIP. Para BAPTISTA
MACHADO, esta mais nã o é do que a extensã o, a este domínio jurídico, da noçã o geral da fraude à
lei – tendo sido esta a doutrina a inspirar o art. 21.º.

7.1. Pressupostos da fraude à lei em DIP.

Quando falamos em fraude à lei no DIP, há 4 elementos:


1) Norma-objecto - norma defraudada. É também a regra de conflitos, mais propriamente a parte
ou segmento que leva a aplicabilidade da ordem jurídica que as partes nã o querem ver aplicada
e por isso é que modificaram a concretização do elemento de conexã o. Mas ainda assim é
relevante a finalidade da norma material que as pessoas nã o querem aplicar, porque só há
fraude se se puser em causa a finalidade da norma material a que chegava pela norma-objecto.
2) Norma-instrumento - utilizaçã o de uma regra jurídica, como instrumento da fraude, a fim
de assegurar o resultado que a norma fraudada nã o permite – esta norma é, no DIP, uma
regra de conflitos.
3) Comportamento fraudatório - Actividade fraudató ria que se traduza na adopção de meios
eficazes que conduzam à aplicabilidade da lei que as partes querem. Nã o pode haver aquilo a
que nó s chamamos uma conexão falhada. Há uma conexã o falhada, quando as pessoas mudam o
elemento de conexã o com um propó sito fraudulento, mas ela nã o é suficiente para que conduzir
a aplicabilidade da outra lei.

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4) Animus fraudandi ou intenção fraudatória - as partes têm de ter a intençã o de fugir à


aplicabilidade de uma determinada ordem jurídica. Quando exigimos o elemento da intenção,
serve desde logo para excluir, no â mbito da fraude à lei, as situaçõ es em que ela nã o existe.

7.2. Consequências da fraude à lei em DIP.

Em que consiste a sançã o da fraude à lei? Com efeito, a fraude à lei é inadmissível – caso
contrá rio, estaríamos a admitir que, através de uma manipulação dos elementos de facto, se
afastasse a autoridade de um sistema jurídico que, na ausência desta actividade, seria o
competente. A sançã o da fraude à lei consiste no regresso ao estado de coisas a que fraudante
pretendeu evitar, sendo ineficazes os actos jurídicos realizados e os direitos adquiridos em fraude
à lei do foro neste ordenamento jurídico.
Mas a sançã o nã o vai para além disto, ou seja, nã o origina a ineficá cia absoluta dos actos ou
situaçõ es constituídas – assim, se por ex. alguém se naturaliza no estrangeiro com o fim de se
subtrair a uma disposição da lei nacional, nã o há qualquer motivo para negar a eficá cia em termos
gerais à cidadania estrangeira, esta será apenas ignorada na medida em que redunde em prejuízo
da norma fraudada.
Coloca-se ainda a questã o de saber se é admitida a fraude à lei estrangeira: a orientaçã o
clássica pronunciava-se no sentido negativo; porém, hoje admite-se a sua relevâ ncia, pelo menos
quando a fraude tenha consistido no afastamento da lei estrangeira competente a favor doutra
também estrangeira.

7.3. Situações típicas da fraude à lei em DIP

1) Pessoas colectivas e internacionalização fictícia das pessoas colectivas - art 3º CSC - Exclui a
possibilidade de existir fraude, graças à conexã o sede real e efectiva da administraçã o. Esta
matéria tem perdido importâ ncia por causa das liberdades fundamentais, nomeadamente com o
reconhecimento do direito de estabelecimento.
2) Contractos e designadamente no caso de internacionalização fictícia dos contractos - Hoje em
dia nã o se fala muito de fraude à lei porque no domínio dos contractos ou o contrato é interno ou
é internacional. No primeiro caso nã o é necessá rio recorrer a fraude à lei porque se o contrato é
interno nã o há escolha de lei; se for internacional, pode haver escolha de lei e nã o há limites ao
leque das leis que podem ser escolhidas. (Ver, porém, art. 3º/3/4 RROMA I)
3) Conexão nacionalidade, no âmbito das pessoas singulares. Aqui também se chegou a acordo
- só devemos recorrer a fraude à lei quando há alteração da conexão da lei pessoal, sempre que a
alteração da nacionalidade nã o se traduza numa integraçã o efectiva na nova comunidade
nacional.

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DIREITO PROCESSUAL CIVIL INTERNACIONAL

1. Considerações Gerais.

Vimos que o â mbito do DIP integra o problema do conflito de leis e o conflito de jurisdiçõ es, que
se subdivide em outros dois: o problema da competência internacional dos tribunais portugueses; e
o do reconhecimento de sentenças estrangeiras. O problema do reconhecimento das sentenças
estrangeiras coloca-se quando um juiz estrangeiro, confrontado com uma dada relaçã o jurídica,
aplicou o direito competente e ditou uma sentença – importando agora saber se essa sentença vale
ou nã o em Portugal como um verdadeiro acto jurisdicional.
O reconhecimento de sentenças estrangeiras consiste na atribuiçã o, no Estado do foro, dos
efeitos que lhe competem segundo a lei do Estado em que foi proferida (ou, pelo menos, alguns
desses efeitos). Os efeitos pró prios da sentença sã o normalmente o efeito de caso julgado (apó s,
naturalmente, o trâ nsito em julgado); e o efeito executivo. Também se fala de um efeito constitutivo,
por ex., numa sentença que reconheça o direito de reivindicaçã o – mas isto decorre, em rigor, do
direito material.
Iremos ver apenas o problema da eficá cia no país requerido das sentenças que recaiam sobre
direitos privados; e proferidas, nã o apenas por tribunais judiciais, mas por quaisquer autoridades
que as devam proferir. Interessam-nos todas as decisõ es que, recaindo sobre matéria do â mbito do
direito privado, tenham cará cter jurisdicional e sejam pronunciadas em nome de uma soberania
estrangeira.
Qual é o fundamento das regras do reconhecimento das sentenças estrangeiras? É um
fundamento de índole prá tica: houve um juiz estrangeiro que emitiu uma sentença, e deste acto
geraram-se expectativas legítimas dos envolvidos. Assim, está em causa assegurar a continuidade e
estabilidade das situaçõ es da vida jurídica internacional, a fim de que os direitos adquiridos e as
expectativas dos interessados nã o sejam ofendidos, i.e., tutelar as expectativas dos particulares. Se,
ao olharmos para a lei aplicá vel, os particulares podem ter alguma expectativa, com a intervenção
do tribunal que emita um acto jurisdicional sobre o assunto, estã o exponencialmente aumentadas
estas expectativas. Por outro lado, a propositura de um novo processo poderia dar azo a decisõ es
contraditó rias, ferindo assim a harmonia jurídica material.
Temos assim um fundamento de defesa das expectativas dos particulares, aliado ainda à ideia
de harmonia jurídica material.
No entanto, se aceitá ssemos sem qualquer espécie de controlo a eficá cia das decisõ es provenientes
de uma decisã o estrangeira, isto poderia ofender princípios fundamentais da ordem pú blica
internacional do Estado do foro, quer material, quer processual. Assim, podemos aceitar que o
Estado coloque certas exigências quanto ao reconhecimento de um acto jurisdicional que lhe é
alheio, ou seja, pode justificar-se que o juiz queira fazer algum tipo de controlo.

2. Reconhecimento de sentenças estrangeiras.

2.1. Sistemas de Reconhecimento


Há dois grandes sistemas de controlo, os dois em vigor em Portugal.

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1) Sistema de reconhecimento automático: este sistema dispensa o controlo prévio da sentença


estrangeira, que é automaticamente reconhecida como acto jurisdicional, tal como se fosse uma
sentença interna. Note-se que isto nã o significa um reconhecimento sem condiçõ es, mas apenas
que as condiçõ es exigidas apenas serão objecto de controlo judicial na hipó tese de a decisã o ser
invocada no processo, a título principal ou incidental.
Este sistema pressupõ e uma enorme confiança no sistema jurisdicional estrangeiro, pelo que
normalmente só existe quando vigora o princípio de confiança mú tuo, que encontramos
implicitamente em convençõ es internacionais ou, mais importante, em regulamentos europeus.
Nos regulamentos europeus que tratam de questõ es de reconhecimento, temos este princípio: por
ex., o Regulamento Bruxelas I ou 44/2001, que irá ser substituído pelo Regulamento Bruxelas I bis,
215/2012; Bruxelas II bis 2201/2003, em matéria de responsabilidade parental; 650/2012 sobre
sucessõ es, que irá entrar em vigor em Agosto de 2015. Em todos estes regulamentos temos, em
simultâneo com as regras de reconhecimento de sentenças estrangeiras, assim uniformizadas,
regras de competência internacional. Normalmente, os Estados só estã o dispostos a reconhecer as
sentenças quando têm confiança, e num contexto em que todos estã o de acordo quanto à s bases de
jurisdiçã o, i.e., às regras de competência internacional. Este é o sistema que vigora em Itá lia e na
Alemanha (salvo nas causas de esfera matrimonial).

2) Sistema de controlo prévio, ou de verificação prévia: o Estado do foro nã o atribui efeitos


jurisdicionais automaticamente à sentença estrangeira, arrogando-se um controlo prévio. Há dois
tipos de controlo prévio:
• Revisão de mérito: faz-se uma revisã o da pró pria decisã o material do juiz, o que no
fundo equivale a um novo juízo.
• Revisão formal: por influência italiana, chama-se um sistema de delibaçã o. Nã o se vai ao
mérito da pró pria decisã o estrangeira, mas é feito um controlo do modo como foi tomada a decisã o
estrangeira. O sistema de delibaçã o é o seguido em Portugal, no Brasil e na Suíça. O sistema de
revisã o de mérito está hoje “em franco declínio”, tendência que se iniciou um o arrêt Munzer da
Cassaçã o francesa.

2.2. Sistema português


Quanto à s fontes em vigor em Portugal, temos de atender a:
• Regulamentos;
• Concordata;
• Có digo de Processo Civil.

1)Regulamentos da UE. Notas gerais:


• Tratamento simultâneo de competência e de reconhecimento: o â mbito de muitos
regulamentos abrange regras quer de competência internacional, quer de reconhecimento de
sentenças. Isto sucede com o Regulamento de Bruxelas I e Bruxelas II bis; já o Regulamento das
sucessõ es é completo: resolve os problemas de conflitos de jurisdiçõ es e conflitos de leis, que é,
aliá s, a abordagem preferível tendo em conta o â mbito do DIP.
• Cisão de reconhecimento e execução: para nó s, quando uma sentença é reconhecida, é
uma sentença passível de ser executada. Note-se que sã o problemas teó ricos distintos: uma coisa é a

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produçã o de efeitos como acto jurisdicional, outra a execuçã o da sentença. Há vá rios regulamentos
europeus em que estes aspectos sã o separados.
 Em relaçã o ao reconhecimento, o art. 33.º/1 do Regulamento Bruxelas I diz que
nã o há necessidade de recurso a processo; e o actual artigo diz o mesmo – consagram o
reconhecimento automá tico.
 Já no que toca à execução, houve uma evoluçã o: o art. 38.º de Bruxelas I diz que,
depois do reconhecimento, é necessá ria uma declaração de executoriedade; já no novo
regulamento, no art. 39.º diz-se que uma decisã o proferida num EM, que aí tenha força
executó ria, pode ser executada noutro EM sem necessidade de declaraçã o de
executoriedade, i.e., aboliu-se o exequato. Porém, nos outros regulamentos mantém-se: ver
art. 28.º de Bruxelas II bis e 43.º do Regulamento de sucessõ es.
• Possibilidade de impugnação das sentenças estrangeiras: apesar de, dentro dos vá rios
EM, o efeito ser o do reconhecimento automá tico, mesmo assim é possível impugnar o
reconhecimento da sentença estrangeira. Existem fundamentos de recusa do reconhecimento, que
sã o essencialmente formais. O art. 45.º de Bruxelas I bis permite a recusa com fundamento em
incompetência internacional; violaçã o de regras de competência que protegem a parte mais fraca
(ex: seguros) e das regras de competência exclusiva previstas no regulamento. A ordem pú blica
internacional também é um fundamento admissível, logo existe nã o só ao nível da lei aplicável, mas
também ao nível do reconhecimento da sentença estrangeira. Note-se que a sentença estrangeira
pode ter aplicado lei estrangeira.

2) Concordata: existe um regime previsto na Concordata de 2004, cujo art. 16.º consagra
um sistema de controlo prévio quanto à s sentenças estrangeiras de declaraçã o de nulidade do
casamento rato e nã o consumado. Este controlo é um controlo meramente formal, sem revisã o de
mérito, sendo um dos requisitos avaliados o respeito pela ordem pú blica internacional. Claro que
podemos sempre dizer que o controlo da ordem pú blica internacional introduz uma dimensã o
material, mas na matriz deste tipo de controlo é uma revisã o formal.

3) Código de Processo Civil: o art. 980.º do CPC estabelece as condiçõ es de conformaçã o das
sentenças estrangeiras exigidas entre nó s (apesar de falar em revisã o e confirmaçã o, isto é a mesma
coisa que reconhecimento). O reconhecimento é competência entre nó s dos tribunais da relaçã o. O
n.º 1 estabelece a necessidade de revisã o e confirmaçã o, o n.º 2 fala da hipó tese de entrar em
Portugal como meio de prova.
Como é que se faz esta revisão e confirmação? O art. 980.º estabelece os vá rios requisitos:
• Al. a): não pode haver dú vidas sobre a autenticidade do documento de que conste a
sentença, nem sobre a inteligência da decisã o. É necessá rio um documento autêntico da pró pria
sentença, obtida por uma certidã o do tribunal estrangeiro; e ainda a inteligência do documento,
aqui no sentido de compreensibilidade, inteligibilidade.
• Al. b): a sentença tem de ter transitado em julgado no país da origem. No sistema
europeu, no regulamento de Bruxelas I nã o se faz esta exigência: é possível em Portugal
reconhecer uma sentença espanhola ainda nã o transitada em julgado, uma vez que se quer
favorecer a circulaçã o as sentenças.

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• Al. c): exige a competência do tribunal estrangeiro, nã o podendo esta ter sido provocada
em fraude à lei; nem podendo a sentença versar sobre matéria da exclusiva competência dos
tribunais portugueses. Há dois sistemas de controlo da competência:
 O primeiro, que vigorou em Portugal até 1997, é um sistema de bilateralidade: o
controlo da competência de um tribunal estrangeiro é feito verificando se esse tribunal
estrangeiro é internacionalmente competente de acordo com as nossas regras de
competência internacional. Porém, esta soluçã o está em desacordo quer com o princípio da
necessá ria cooperaçã o entre as autoridades dos diferentes Estados, quer com as exigências
da vida internacional, que reclamam um sistema o mais possível favorá vel à circulaçã o das
decisõ es. Além disso, nenhum Estado pode razoavelmente pretender que só as regras por
ele aprovadas estã o de acordo com o sistema ideal nesta matéria.
 Assim, em 1997, passá mos a ter um sistema de unilateralidade: aceitamos a
competência se o tribunal estrangeiro, de acordo com as suas pró prias regras de
competência, era competente. As regras de conflitos de jurisdiçõ es tornam-se unilaterais: as
nossas regras dizem quando os nossos tribunais sã o competentes; e as estrangeiras dizem
quando os tribunais estrangeiros sã o competentes.
Mas temos uma unilateralidade atenuada, com dois desvios: a competência não pode ter
sido provocado em fraude à lei (muito difícil de determinar); e nã o pode tratar-se de matéria de
competência exclusiva de tribunais portugueses.
• Al. d): nã o pode haver litispendência ou caso julgado. A litispendência nã o impede o
reconhecimento se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdiçã o (ou seja, se a acção tiver
sido proposta em primeiro lugar no tribunal estrangeiro). Se tal sucedeu, não podemos, para
recusar o reconhecimento em Portugal, propor aqui uma acção para termos uma litispendência. A
mesma doutrina vale para o caso julgado.
• Al. e): consagra aquilo a que podemos chamar ordem pú blica processual – regularidade da
citaçã o e observaçã o dos princípios de contraditó rio e igualdade das partes.
• Al. f): exige o respeito pela ordem pú blica internacional (aqui material). O reconhecimento
nã o pode conduzir a um resultado manifestamente incompatível com os valores fundamentais do
Estado português.
Note-se que só o primeiro e o ú ltimo requisito sã o de reconhecimento oficioso (art. 984.º). O
que daqui resulta é um controlo formal, com concessõ es à revisã o material. Podemos identificar
duas, visíveis no art. 983.º:
• Art. 983.º/1: o pedido de reconhecimento só pode ser impugnado pela falta dos requisitos
ou se se verificar um dos casos do art. 696.º, interessando-nos a remissã o para a alínea c) – se a parte
vencida traz um documento novo, que só por si implica uma nova decisã o, este é um fundamento
que permite a impugnaçã o. Isto implica uma revisã o da decisã o.
• Art. 983.º/2: se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou colectiva de
nacionalidade portuguesa, a impugnaçã o do reconhecimento pode ainda fundar-se no facto de que
o resultado da acçã o teria sido mais favorável se tivesse aplicado normas de direito português. Um
tribunal estrangeiro decide contra uma parte portuguesa, e o direito aplicá vel não foi o direito
português; porém, de acordo com as nossas regras, a lei aplicá vel deveria ter sido portuguesa.
Neste caso, se o litígio tivesse sido resolvido de forma mais favorá vel, a parte interessada pode
impugnar o reconhecimento. Há uma certa interpretaçã o desta regra que pode ser incompatível
com o princípio da nã o discriminação em favor da nacionalidade: imaginemos que aparte contrá ria
é uma

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parte europeia, que beneficia das regras do tratado, nomeadamente o princípio da nã o


discriminaçã o: como poderíamos aplicar esta regra sem violar este princípio? Note-se que esta
hipó tese só é quando a sentença vem de um tribunal estrangeiro, ainda que entre uma parte
portuguesa e europeia – caso contrá rio, aplicar-se-ia o regulamento.

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