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Direito Internacional
Privado
Prof. Doutor Nuno Ascensã o Silva
Eduardo Figueiredo
2016/2017
Eduardo Figueiredo 2016/2017
INTRODUÇÃO
1Há autores holandeses, alemã es e até ingleses que se referem ao DIP com a designaçã o de «conflitos de leis»,
sendo que a designaçã o “DIP” tenha surgido essencialmente com a obra de FOELIX, embora já SCHAEFNER
se tenha referido a ela assim.
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As normas jurídicas materiais, enquanto normas de conduta, têm o seu â mbito limitado pelo
tempo e espaço, uma vez que nã o podem chamar a si condutas de indivíduos que passaram para
além da sua possível esfera de influência. Assim, enquanto que no direito intertemporal vigora o
principio na nã o retroactividade das leis, o DIP assenta sobre o principio da não transactividade –
para que uma norma seja aplicada, tem que estar em vigor no lugar onde a conduta é praticada
e/ou visa produzir efeitos. Para além disso, o DIP assenta ainda no princípio do reconhecimento
das situaçõ es jurídicas constituídas no âmbito de eficá cia de uma lei estrangeira.
A nã o retroactividade e nã o transactividade sã o duas faces da mesma moeda, a “nã o
transconexã o”: a quaisquer factos aplicam-se, e só se aplicam, as leis que se encontrem em
contacto com esses factos, seja de uma perspectiva temporal, seja espacial.
Este princípio, enquanto princípio geral de direito, resolve, por si só , os problemas puramente
internos e relativamente internacionais.
1.4. Conflitos de leis e regras de conflitos de leis. Referência ao modus operandi da regra
de conflitos e ao seu carácter instrumental no seio do Direito de Conflitos.
O DIP tem por objecto das situaçõ es da vida privada internacionais, ou seja, as situaçõ es
absolutamente internacionais e relativamente internas.
As questõ es objecto do DIP sã o resolvidas em cada Estado de acordo com normas do direito
desse Estado. Cada Estado tem o seu DIP para uso interno – a sua pró pria interpretaçã o do DIP.
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Nota: Não falta quem proponha outras soluções, propondo que o DIP constitui um direito que
disciplina os factos e relações que o legislador entende estranhos ao seu ordenamento – assim, as normas
materiais estrangeiras chamadas através das Regras de Conflitos seriam recebidas na OJ do Estado do foro,
ficando a constituir aí, ao lado das normas materiais deste Estado, o direito especial das relações jurídico-
privadas externas. (ROBERTO AGO) Outros consideram que os problemas do DIP poderiam ser resolvidos
pelo sistema de regras materiais especiais, sem haver necessidade de recorrer ao método ou sistema conflitual.
No entanto, este ponto de vista corresponde a uma visão errónea do DIP, porque tal só era possível se
existisse um direito material uniforme – o que é utópico, como vimos.
Uma vez analisada a natureza destas regras (nã o regulam directa ou materialmente a
relação, senã o que fazem parte de um processo indirecto consistente em determinar a lei ou leis
que a hão-de reger), importa analisar a sua estrutura pró pria.
Ora, a regra de conflitos vai privilegiar um dos contactos ou conexõ es, determinando como
aplicá vel a lei para a qual essa conexã o aponta, o que dependerá do domínio ou matéria jurídica
em causa. Entram, assim, na sua estrutura, três elementos essenciais:
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Para BAPTISTA MACHADO, sã o meras regras de «remissã o» ou de «reconhecimento».
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Tal pode conduzir a uma situaçã o especial: A, português, celebra com B, francês, um contrato de
compra e venda sobre um imóvel situado na Alemanha, em que as partes escolhem a lei inglesa. Devido a
esta divisã o, aplicar-se-ia a lei inglesa relativamente à perfeiçã o do contrato; a lei alemã quanto ao
regime da propriedade; e a lei portuguesa e francesa quanto à capacidade de A e B.
Também é de notar que há regras de conflito que têm, por variadas razõ es, dois ou mais
elementos de conexã o. Faz-se aqui uma classificaçã o:
a) Regras de conflito de conexão una ou simples: têm apenas um elemento de conexã o.
b) Regras de conflito de conexão múltipla ou complexa: as razõ es na sua base podem ser
variadas e é essa diferença que faz com que os elementos de conexã o se articulem entre si
de modos diversos.
a. Alternativa (Ex: art. 36º CC)
b. Subsidiária (Ex: art. 52º CC)
c. Cumulativa
d. Distributiva (art. 49º CC)
Importa também notar que o processo seguido perante os tribunais portugueses é sempre
regulado pela lei portuguesa, ainda que ao fundo da causa se aplique uma lei estrangeira. Assim, as
leis relativas ao formalismo ou rito processual nã o levantam um problema de conflito de leis (nem
no tempo, nem no espaço) porque nã o afectam os direito substanciais das partes. São, portanto, de
aplicaçã o imediata e de aplicaçã o territorial.
Há , no entanto, algumas leis sobre a prova que simultaneamente afectam o fundo,
repercutindo-se sobre a decisã o e que devem, por isso, considerar-se como pertinentes ao direito
substantivo, e nã o ao direito processual ou adjectivo. Devemos identificar duas espécies de leis
relativas à s provas:
a) As leis de direito probató rio formal – que se referem à actividade do juiz, dos peritos ou
das partes no decurso do processo
b) Leis de direito probató rio material – leis que decidem sobre a admissibilidade deste ou
daquele meio de prova, sobre o ó nus da prova e presunçõ es legais. A estas questõ es já
nã o se aplica a lex fori, mas a lei ou leis competentes para regular o fundo da causa.
À parte disto, importa apenas salientar que a competência da lei do foro enquanto pura lei
de processo nã o depende de qualquer conexã o particular que ligue a situaçã o jurídica em litigio ao
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2. O âmbito do DIP
Até agora tratá mos o DIP como conflito de leis. Mas será apenas esse o â mbito desta
disciplina? Aqui há vá rias orientaçõ es que relevam:
1) Teorias Minimalistas (Doutrina alemã e italiana) Restringe o â mbito do DIP ao
problema do conflito de leis, embora alguns manuais alemã es também se refiram ao
problema do reconhecimento e execuçã o de sentenças estrangeiras.
2) Teoria Maximalista (Doutrina francesa) O objecto do DIP compreende cinco matérias:
a nacionalidade, a condiçã o dos estrangeiros, os conflitos de leis, os conflitos de
jurisdiçõ es e o problema do reconhecimento e execuçã o de sentenças estrangeiras.
Autores como PILLET e MACHADO VILELLA apontam outro problema autó nomo, que
é o do reconhecimento dos direito adquiridos em país estrangeiro.
3) Teoria Anglo-Saxónica/ Intermédia/ Mitigada (FERRER CORREIA) Inclui no DIP
o estudo de três importantes questõ es, que sã o a jurisdiçã o competente, a lei competente
e a do reconhecimento das sentenças estrangeiras.
Seguindo este caminho, o objecto do DIP deve reduzir-se ao conflito de leis, de jurisdiçõ es e
reconhecimento e execuçã o de sentenças estrangeiras. Porque neste campo, tratamos de princípios
jurídicos com uma natureza especial, já que, em regra, nada dizem sobre o sentido da composiçã o
dos conflitos de interesses, nem sobre os direitos e deveres dos indivíduos, uns em face aos outros.
Aos problemas de comércio privado internacional obvia-se aqui, pura e simplesmente, remetendo a
decisã o deles para o â mbito de uma legislaçã o determinada. As normas de conflitos nã o sã o normas
substanciais, mas puramente instrumentais – dizem a lei que se aplica e nã o o regime aplicá vel.
Conflito de leis Conjunto de regras de conflito que servem para determinar que lei
competente e a aplicar ao caso concreto. Portanto, respondem à questã o: que lei devem os
tribunais aplicar em determinado caso? Essa lei tanto pode ser a lei do foro como a de algum país
estrangeiro. Outra nota relevante é que estas têm no direito privado a sua sede natural, decidindo
da aplicação aos diferentes cassos dos sistemas de direito privado em vigor nos diversos Estados.
Conflito de jurisdições Conjunto de regras de conflito que serve para determinar qual a
jurisdiçã o competente para conhecer de um determinado litigio – ou seja, a competência
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internacional dos tribunais portugueses, p.e.. Por outras palavras, indicam as hipó teses em que os
tribunais do Estado a que pertencem têm competência internacional. Outra nota relevante é que
estas normas pertencem ao direito processual civil internacional.
Normas de reconhecimento e execução de sentenças Conjunto de regras de conflito que
determinam que valor têm as sentenças proferidas no estrangeiro. Também estas normas pertencem
ao direito processual civil internacional. Há vá rios tipos de reconhecimento, a saber:
a) Sistema de controlo prévio.
b) Sistema de reconhecimento automá tico ou de pleno direito.
Todas estas normas sã o regras de conflitos e têm em comum o objectivo de salvaguarda de
continuidade e estabilidade das relaçõ es privadas internacionais.
Natureza bem distinta têm as regras sobre a nacionalidade e a condiçã o jurídica dos
estrangeiros.
Regras sobre a nacionalidade: Enumeram os factores de aquisiçã o e perda da
cidadania, definindo, portanto, as condiçõ es de atribuiçã o, no âmbito do direito local, de
um entre dois estatutos: o de nacional ou de estrangeiro. A sua natureza nã o é nem
parecida sequer à dos tipos de normas de conflitos. Sã o regras que pertencem ao direito
material- substancial, sendo definida por cada Estado a sua pró pria nacionalidade.
Regras de condição jurídica dos estrangeiros: Visam apurar quais os direitos atribuídos
no Estado local aos cidadã os estrangeiros, em confronto com os nacionais. As normas
referentes a esta matéria sã o normas de capacidade que nada têm em comum com as
regras de conflitos.
De acordo com esta visã o, o DIP seria um direito de conflitos – um conjunto de normas
relativas à aplicação dos diversos sistemas jurídico-privados estaduais e aos conflitos de
jurisdiçõ es.
2) O segundo caminho possível baseia-se na ideia de todas estas questões têm uma
origem comum: nascem das relações de comércio jurídico internacional. (defendida
pelas teorias maximalistas)
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matérias da condiçã o jurídica dos estrangeiros e da nacionalidade, ambas tã o chegadas com este
ramo, muitas vezes seus pressupostos – mas que sã o meramente instrumentais ou acessó rias para
a aplicaçã o das regras do DIP, nã o comungando de nenhum daqueles métodos normalmente
utilizados pelo DIP para conflitos de leis e jurisdiçõ es (regras de conflitos); e a finalidade desses
domínios nã o é a busca de estabilidade. Nã o existindo uma comunhã o, nem metodoló gica, nem
teleoló gica, estã o excluídos do â mbito do DIP.
Para além deste problema, existe um outro – o do reconhecimento dos direito adquiridos,
que MACHADO VILELLA, na esteira de PILLET, autonomia no â mbito do DIP. Estã o aqui em
causa os casos em que o direito ou situação jurídica se constitui num momento em que os seus
factos constitutivos e achavam em contacto com um só Estado, sendo este direito apreciado num
outro Estado. No entanto, a maioria da doutrina moderna rejeita a autonomizaçã o deste problema,
afirmando que nestes casos temos ainda um problema de conflitos de leis3. Já BAPTISTA
MACHADO rejeita a autonomização deste problema afirmando que a soluçã o se pode encontrar
igualmente no princípio da não transactividade: está em causa aplicar a lei em contacto com o facto
no momento da sua constituiçã o.
Direito dos estrangeiros é o conjunto de regras materiais que reservam para os estrangeiros
um tratamento diferente daquele que o direito local confere aos seus nacionais. (BAPTISTA
MACHADO) Sã o “normas de capacidade”: ao fixarem um tratamento diferenciado, caracterizam-se
por reduzir a capacidade de gozo dos estrangeiros, o conjunto de direitos e deveres que uma pessoa
jurídica, singular ou colectiva, nã o nacional, pode ser titular.
É princípio de direito comum aos Estados Modernos o reconhecimento da capacidade
jurídica aos estrangeiros. Mas se os Estados reconhecem a personalidade jurídica dos estrangeiros,
em contrapartida, eles gozam de liberdade muito apreciá vel na execuçã o deste princípio. Nenhum
preceito internacional obriga o estado a conceder aos estrangeiros os mesmos direitos que
concede aos respectivos nacionais, nã o existindo ainda uma equiparaçã o entre estrangeiros e
nacionais, embora exista uma clara tendência para a igualdade de direitos entre ambos.
Ora, tais restriçõ es constituem justamente o conteú do das normas do direito dos
estrangeiros. Como partem de uma ideia de equiparaçã o, nã o têm estas normas que enumerar, de
maneira taxativa e concreta, os mú ltiplos direitos e faculdades que sã o reconhecidos aos
estrangeiros: o que fazem é especificar aqueles que lhe sã o denegados – trata-se, pois, de regras que
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FERRER CORREIA: “E isto porque o reconhecimento de um suposto direito adquirido não prescinde de averiguar se o
direito alegado efectivamente existe segundo os preceitos de uma lei que, no âmbito do DIP do foro, possamos considerar competente. A
determinação da lei competente constitui, assim, um prius relativamente ao reconhecimento do respectivo direito adquirido.
Por outro lado, o problema da lei competente resolve-se pelo DIP da lex fori: as regras do direito de conflitos português tanto
se aplicam às relações constituídas ou a constituir em Portugal, como às situações já criadas em país estrangeiro.
Ora, se o reconhecimento de um direito como legitimamente adquirido decorre sem mais do reconhecimento da competência
da lei que presidiu à sua constituição e se não é pelo facto de se tratar do reconhecimento de um direito adquirido no estrangeiro que a
questão da determinação da lei aplicável deixa de se pôr em face das regras de conflitos da lex fori – temos que concluir que aquele
problema não é um problema autónomo relativamente ao do conflito de leis.”
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Antes esta decisã o, o Sr. Micheletti recorre da decisã o nos tribunais espanhó is e procedeu
ao reenvio prejudicial ao TJUE para saber se esta maneira de resoluçã o de conflitos era vá lida. O
TJUE afirmou:
1) Cada Estado é que sabe como resolver os seus conflitos de nacionalidade;
2) Mas a resoluçã o desses conflitos nunca pode ter como consequência a privaçã o de um
cidadã o europeu de um direito que ele tem pelo facto de o ser.
Assim, entendeu-se que interpretaçã o do direito interno nã o pode pô r em causa os direitos
ou as liberdades decorrentes do direito da UE. Assim, quando estamos perante casos dentro da UE,
a aplicaçã o destes artigos não pode servir como um entrave ao exercício de direitos ou liberdades
fundamentais europeus. Isto aplica-se quer a casos de pessoas singulares, quer a casos de pessoas
colectivas.
Podemos ainda referir os conflitos negativos de nacionalidade – o caso dos apá tridas.
Nestes casos, aplicamos o art. 32º CC, que manda aplicar a lei da residência habitual. Em caso de
que esta nã o exista ou nã o se possa determinar, o art. remete para o art. 82º/2 CC que manda
aplicar o critério da residência ocasional e, em falta desta, do lugar onde se encontra.
3.1. Confronto com disciplinas afins: o direito internacional público, o direito privado uniforme,
o direito transitório ou intertemporal, o direito interlocal e interpessoal, o direito da União
Europeia e o direito constitucional.
Já referimos que o DIP é o ramo do direito a que os tribunais dos vá rios estados recorrem a
fim de dar soluçã o aos problemas emergentes das relaçõ es jurídicas internacionais – incluindo,
conflitos de leis – sendo, porém, todo ele de fonte estadual. Internacional pelo objecto ou a funçã o,
o DIP é estadual pela fonte.
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pró prio da comunidade internacional, que delegaria nos diferentes ordenamentos estaduais a
competência para regular tal matéria.
A doutrina dominante recusa estas teses: a primeira porque do simples facto de
determinados princípios serem de aplicaçã o geral nã o pode concluir-se que eles correspondam a
autênticos preceitos de direito internacional pú blico. (referimo-nos, p.e. à regra que declara
aplicá vel aos imó veis a lex rei sitae).
Quanto à segunda, na verdade nã o existe um DIP geral de cará cter verdadeiramente
internacional. Demonstra-o o pró prio facto do procedimento geral dos Estados, que agem na
convicçã o de gozarem de uma liberdade quase ilimitada quando fixam os pressupostos de
aplicabilidade das leis estrangeiras in foro domestico.
BAPTISTA MACHADO critica estas teorias internacionalistas por partirem do pressuposto
erró neo de que a competência legislativa dos Estados nã o é mais do que um modo de manifestaçã o
da sua soberania, que se deve manter dentro dos limites assinalados pelo direito internacional –
porque o problema dos limites da soberania e o problema da lei aplicá vel nã o se confundem.
Assim, concluímos que as normas de DIP sã o normas estaduais que se integram apenas no
domínio de vigência de um Estado, e a liberdade de escolha do legislador nacional dos elementos
de conexão nã o sofre restriçõ es importantes por força de quaisquer princípios do DIPú blico (ainda
que dele resultem princípios relevantes para o DIP, como a nã o transactividade das leis e a
necessidade de reconhecimento de direito estrangeiros).
Mas e se houver convençõ es internacionais que contenham regras de conflito ou outras
regras de DIP? As regras que resultam de um instrumento de DIPú blico podem ser materialmente
semelhantes à s existentes na OJ portuguesa, mas sã o formalmente distintas porque têm de ser
recebidas no nosso ordenamento nos termos do art. 8º/2 CRP.
Conclui-se portanto que as normas de DIP criadas por convençõ es internacionais, enquanto
nã o convertidas ou transformadas em direito nacional, só obrigam os pró prios Estados para os
quais o texto da convençã o se tornou lei internacional. Através do instrumento da ratificaçã o, o
Estado fica internacionalmente obrigado a emanar na ordem interna os preceitos jurídicos
formulados pela convençã o ratificada ou os preceitos paralelos desses: sã o esses preceitos que
depois os tribunais vã o aplicar. Daqui resulta que tais preceitos, entendidos como normas aptas
para desempenhar a funçã o que lhes compete de orientar as decisõ es dos tribunais e a conduta dos
indivíduos, nã o têm propriamente por fonte a convençã o ou o tratado de que procedem – estes sã o
apenas fontes mediatas do DIP. É , portanto, a lei interna a ú nica fonte das normas de conflitos.
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Estes casos apresentam uma analogia flagrante com os conflitos internacionais. Em todos se
dá a circunstâ ncia de cada um desses sistemas jurídicos que entram em conflito ter o seu territó rio
pró prio, que nã o coincide com o territó rio do Estado, mas que é uma divisã o desse territó rio, uma
regiã o ou província do país. A estes conflitos interprovinciais, interlocais ou federais presidem
critérios idênticos aos do DIP propriamente dito. Mas entre as duas matérias existem diferenças:
1) Nã o poderá confiar-se à lei nacional das partes a regulamentaçã o do estatuto pessoal, visto
a nacionalidade ser uma só : o elemento de conexã o decisivo será o domicílio/residência.
2) Nã o poderá invocar-se a ordem pú blica para nã o aplicar a lei doutra província;
3) As normas de conflitos serão, em regra, ú nicas para todo o territó rio do Estado;
4) As sentenças proferidas numa província serão exequíveis de pleno direito nas restantes.
Existe outra variedade de conflitos internos – os conflitos interpessoais. Sã o leis que regem
distintas categorias de pessoas no mesmo territó rio. Existia essencialmente nos países coloniais,
em que subsistia um direito consuetudiná rio local e uma lei metropolitana. Como Portugal é um
Estado de legislaçã o unitá ria, estes problemas nã o se colocam. Também se pode verificar por
razõ es religiosas. Pode suceder, neste contexto, que uma relaçã o privada envolva pessoas destas
duas diferentes categorias, e seja necessá rio aplicar uma regra de conflitos.
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A nossa doutrina considera que a Constituiçã o constitui um limite autó nomo à aplicaçã o do
direito estrangeiro, quando este resultaria numa violaçã o dos preceitos constitucionais. Esta é uma
questã o de direito constitucional e nã o de DIP.
Isto nã o quer dizer, porém, que em qualquer situaçã o internacional a mínima desconformidade
com uma norma constitucional implica a intervençã o deste limite. Devemos contrabalançar, neste
â mbito, a afirmaçã o dos valores bá sicos da nossa ordem com os valores fundamentais de certeza e
segurança jurídica do comércio internacional. Ou seja, faz-se um juízo na intervençã o da
constituiçã o como um limite autó nomo.
Mas nã o é apenas quando um certo preceito é contrá rio à CRP que podemos obstar à aplicaçã o
de direito estrangeiro. O DIP prevê o mecanismo de reserva de ordem pú blica internacional. Este
mecanismo está regulado no art. 22º CC. O limite da CRP nã o se confunde com a reserva de ordem
pú blica internacional, uma vez que as noçõ es de norma constitucional e princípios de ordem
pú blica internacional nã o sã o coincidentes. FERRER CORREIA defende que o limite da CRP só
pode funcionar quando os pressupostos da ordem pú blica internacional estejam preenchidos. Sã o
eles:
1) Que se trate de valores de má xima importâ ncia do foro.
2) Existência de uma conexã o significativa da espécie a julgar com aquele
ordenamento A verificaçã o destes pressupostos permite dar resposta afirmativa à questã o
posta.
NUNO ASCENSÃO SILVA determina, pois, que há três “degraus” a percorrer neste
â mbito:
a) Há um leque de casos que podemos chamar de “normas de aplicaçã o universal”, como as
relativas aos DLG’s que têm sempre que ser respeitados.
b) Há outros casos em que estamos ante normas que devem aplicar-se mesmo que a OJ
portuguesa nã o seja a competente por força da regra de conflito – sã o as chamadas normas
de aplicaçã o necessá ria e imediata (p.e. art. 53º CRP)
c) Fora destes casos caímos na vala comum da ordem jurídica internacional, só podendo
afastar a lei estrangeira quando verificados os requisitos anteriormente verificados.
A resposta a esta questã o deve situar-se no plano pró prio, isto é, no plano dos critérios gerais
que hã o-de orientar o juiz na aplicaçã o do direito estrangeiro. O art. 23º do CC estabelece que, na
aplicaçã o de lei estrangeira, o julgador deve mover-se no quadro dessa lei e orientar-se pelos
princípios nela fixados.
Assim, se em dado sistema estrangeiro determinado preceito nã o é aplicado pelos tribunais
ordinários por colidir com normas da respectiva constituiçã o, cabe ao juiz português dar a essa
circunstâ ncia o devido valor, e abster-se identicamente de observar.
A resposta será , pois, a seguinte: nã o cabe ao julgador sindicar a compatibilidade constitucional
dos preceitos da lei estrangeira, devendo aplicá -la, tal como realizaria o juiz do respectivo sistema
jurídico de origem da norma.
MOURA RAMOS defende que, se o juiz local, perante a sua pró pria constituiçã o nã o tem
poderes para levantar o problema da constitucionalidade, a directiva que o juiz português deve
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recolher é o de decalcar os seus poderes dos do juiz estrangeiro e nã o deve fazer mais. Se o juiz
estrangeiro tem poderes de apreciar a constitucionalidade, podemos seguir a mesma orientaçã o.
Há cada vez mais uma relação íntima entre o DIP e o direito europeu – fenó meno da
comunitarizaçã o ou europeizaçã o do DIP.
As diferenças entre o DIP e o DUE sã o manifestas (MOURA RAMOS):
• O DIP tem um cará cter estadual ou interno, sendo constituído pela “normaçã o que em
cada sistema jurídico regula as relaçõ es plurilocalizadas”, enquanto que o DUE é direito
internacional.
• O DIP tem por objecto situaçõ es privadas, enquanto que o objecto do DUE comporta o
estatuto, organizaçã o e funcionamento da UE, bem com as relaçõ es cuja disciplina é da sua
competência.
• Finalmente, enquanto que o DIP, pressupondo uma série de ordenamentos aplicá veis à s
relaçõ es que regula, visa coordenar estes ú ltimos, o DUE constitui uma ordem jurídica pró pria, isto
é, um conjunto de princípios e normas com fonte pró pria e que sã o aplicadas pelo TJUE.
Apesar disto, o DIP e o DUE possuem certas afinidades: para além de se ocuparem
fundamentalmente de situaçõ es que ultrapassam as fronteiras de uma só ordem jurídica, a
existência do DUE faz surgir novas relaçõ es plurilocalizadas, entre o ordenamento europeu como
um todo e uma ordem que lhe seja exterior.
Quando pensamos nas relaçõ es entre o DUE e o DIP, podemos conceber cinco níveis de
relacionamento:
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foram elaborados ao abrigo deste artigo mas que nunca chegaram a entrar em vigor por motivos
vá rios – reconhecimento mú tuo de sociedades (1968), processo de falência (1975), citaçã o e
notificaçã o de actos judiciais (1997), e convençã o de Bruxelas II, com vista a uniformizar as regras
em matéria de divó rcio.
A Convençã o visou facilitar a livre circulação de sentenças, estabelecendo um regime mais
liberal do que o do nosso Có digo Civil. Esta liberalidade está , desde logo, no princípio do
reconhecimento automá tico (a sentença produz automaticamente efeitos), que veio substituir o
sistema de controlo prévio. Porém, é necessá rio ter cautelas: designadamente, garantir que a
sentença proferida no estrangeiro tinha uma competência legítima, sendo por isso necessá rio
garantir a uniformização da competência internacional – daí que a Convençã o tivesse igualmente
normas nesta matéria.
Este regime foi alargado através de uma convençã o gémea, revista em 97, que se aplica nas
relaçõ es entre os Estados-Membros e Estados terceiros integrados no espaço econó mico europeu.
Note-se que, nesta fase, as normas ainda nã o são criadas pela UE, mas sim pelos EM’s
através de convençõ es internacionais. Estas convençõ es tinham um protocolo internacional que
atribuía ao TJUE competência para poder decidir, a título prejudicial, questõ es relativas à
convençã o.
MOURA RAMOS fala ainda de uma fase intermédia, antes da fase da europeizaçã o, da
incidência, sobre o DIP, do processo de aproximaçã o das legislaçõ es nacionais. Destaca-se nesta
fase a introduçã o do art. 100.º-A pelo Acto Ú nico Europeu no Tratado CEE (hoje art. 95.º do TUE) e
a adopçã o de medidas tendo por objecto o estabelecimento e o funcionamento do mercado interno,
que levaram à adopçã o de vá rias directivas que continham regras de DIP. Esta fase é marcada por
um cará cter fragmentário, uma vez que as regras de conflitos se limitavam a garantir a
imperatividade internacional de certos patamares de unificaçã o do direito material.
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5)TJUE
Temos de pensar em dois fenó menos:
• Há situaçõ es em que o TJUE decide litígios da vida privada internacional aplicando regras
de conflito contidas nos tratados. Quando é que isto sucede? Por ex., o art. 268.º do TFUE diz-nos
que o TJUE é competente para conhecer litígios relativos à reparaçã o de certos danos
(responsabilidade extracontratual). Como é que resolve estes litígios? O art. 340.º responde a esta
questã o. Em matéria de responsabilidade, ver o art. 272.º e 340.º.
• O TJUE, ao aplicar direito europeu, designadamente normas relativas à funçã o pú blica,
resolve questõ es prejudiciais de direito privado e que manifestamente estã o fora da competência
da UE. Por ex., é necessá rio concretizar o conceito de filho, ou de casado.
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2) Os institutos e a pró pria aplicaçã o do DIP e dos seus institutos estão limitados pelo DUE
(p.e. pelas liberdades fundamentais) e só podem ser utilizados quando não se puserem em causa
esses valores fundamentais. Ver acó rdã o Micheletti.
3) A UE hoje é legislador conflitual, adoptando regras de conflitos ao nível europeu, para
permitir a harmonia jurídica internacional, unificando-as.
4) Há expedientes do DUE que funcionam como uma autêntica regra de conflitos. (P.e.
Acó rdã o Cassis de Dijon, que contém o princípio do reconhecimento mú tuo das legislaçõ es
(liberdade de circulaçã o de serviços ocasionais e mercadorias - à produçã o de uma mercadoria, é
aplicá vel a lei do país de origem).
4. Fontes do DIP
4.1. Fontes internas
Tradicionalmente o DIP era um direito de fonte estadual, de criaçã o meramente interna. As
fontes internas a considerar sã o a lei, o costume, a jurisprudência e a ciência jurídica (doutrina).
Lei
o Temos, em primeiro lugar, a CRP, que é fonte de DIP por foça dos vários planos
de incidência sobre o Direito de Conflitos e domínios conexos. (ex: art. 8º, 13º,
14º, 15º, 87º, 99º/d). Destacam-se as alteraçõ es realizadas à s normas do CC, de
modo a adequar o DIP aos novos princípios constitucionais - igualdade entre
homens e mulheres e nã o discriminação dos filhos nascidos fora do casamento.
o Lei ordinária: Có digo Civil (arts. 14º, 15º a 65º, 348º, 711º, 1651º, 2223º), Có digo
Comercial (ex: arts. 4º/2, 6º, 7º, 12º, 110º, etc…) É de notar que a especialidade de
algumas normas de conflitos contidas no Có digo Comercial é meramente formal,
por nã o ser justificada pelas circunstâ ncias particulares do sector a que se aplica.
o Leis avulsas.
Costume: O costume é ainda fonte importante do DIP em países em que este nã os e
encontra codificado, como na França. Perante um sistema codificado, como o nosso, o
costume pode ainda ter relevâ ncia, ainda que limitada, no desenvolvimento e
aperfeiçoamento do sistema. Trata-se, essencialmente de um costume jurisprudencial,
que se forma com base numa jurisprudência uniforme e constante.
Jurisprudência: Tem importância para o desenvolvimento e aperfeiçoamento do DIP,
embora seja mais relevante nos casos em que o sistema nã o é codificado ou quanto
vigora a regra do precedente. LIMA PINHEIRO considera que o papel desempenhado
pela jurisprudência portuguesa no aperfeiçoamento do DIP tem sido modesto, sendo de
registar que não raramente as decisõ es aplicam o direito material português a situaçõ es
transnacionais, o que sacrifica valores e princípios que enformam a justiça deste ramo
do Direito.
Ciência Jurídica: Tem uma importâ ncia enorme, já que é o labor doutrinal que tem
permitido aproximar os sistemas baseados em fontes nã o escritas dos sistemas
codificados e preparar a codificaçã o. O cará cter internacional e universalista do DIP
permite ainda que a ciência jurídica aproxime os sistemas nacionais de DIP e estimule
um intercâ mbio fecundo que contribui para a evolução deste ramo do Direito.
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Eduardo Figueiredo 2016/2017
4.2.1.Fontes internacionais
O DIP nã o tem necessariamente um cará cter nacional, seja quanto à s suas fontes, seja quanto
aos ó rgã os de aplicaçã o. Nada obsta, por isso, à vigência de normas de conflitos de fonte
internacional quer na ordem jurídica internacional, quer na ordem jurídica interna, caso tal decorra
do sistema de recepçã o do DIPú blico por ela adoptado.
Pode falar-se hoje de um Direito Internacional de Conflitos que se aplica a conflitos entre
jurisdiçõ es internacionais ou quase internacionais. As suas normas são necessariamente normas
internacionais e estã o contidas em tratados internacionais ou em direito derivado de organizaçõ es
internacionais com vista à determinaçã o do direito aplicá vel pelas jurisdiçõ es. Este direito de
conflitos de fonte internacional opera ao nível da OJ internacional.
Também o DIP privado vigente na OJ de um Estado pode ter fontes supraestaduais, que é o
que se verifica perante um sistema de relevâ ncia do Direito Internacional na esfera interna como o
consagrado no art. 8º CRP, que é um sistema de recepçã o automá tica. De entre estas fontes
internacionais de direito de conflitos vigente na OJ interna destacam-se as Convençõ es
Internacionais cujas normas vigoram uma vez ratificadas, aprovadas e apó s publicaçã o e enquanto
a Convençã o vincular internacionalmente o Estado português. Vigoram como normas
internacionais na ordem interna.
Também vigoram na esfera interna como normas internacionais as normas de Direito
derivado das organizaçõ es internacionais de que Portugal seja parte. (art. 8º/3 CRP) e as normas
de conflitos contidas em Regulamentos Europeus, que vigoram na esfera interna como normas de
DUE. (art. 8º/4 CRP) Todas estas normas destinam-se a unificar as normas de conflitos que
vigoram na rodem jurídica dos Estados contratantes/membros. Sendo, assim, só é interno o Direito
de conflitos que é originariamente de fonte interna.
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Eduardo Figueiredo 2016/2017
4.2.2.Fontes Europeias
Encontramos normas de DIP nos tratados instituintes e, principalmente, no direito
derivado emanado dos ó rgã os da UE. Além do mais, com a entrada em vigor do Tratado de
Amesterdã o, a UE passou a ter competência em matéria de DIP. O que era feito no â mbito das
convençõ es internacionais passou a ser feito através de regulamentos europeus. Efectivamente
estes sã o hoje a fonte principal de internacionalizaçã o do DIP. Destacam-se os regulamentos
europeus que derrogam as regras internas dos Estados e acabaram, de certa forma, por esvaziar as
regras do nosso CC. Mas ainda há outra dimensã o - transposição das directivas europeias que leva
à criaçã o ao nível interno de regras de conflitos especiais em diplomas avulsos. Para alé m disso,
as normas de DUE que consagram as liberdades fundamentais també m tê m incidê ncia
sobre o Direito dos Estrangeiros, podendo assumir significado para o DIP.
O Direito de conflitos de fonte europeia pode operar ao nível da ordem jurídica da UE ou
das ordens jurídicas dos EM’s. Opera ao nível da OJ da UE nos casos em que se trata de direito dos
conflitos aplicá vel pelas jurisdiçõ es europeias – é o que se verifica com o direito de conflitos
contido no TFUE (ver arts. 268º TFUE, relacionado com o art. 340º/2; e ver art. 272º TFUE,
relacionado com o art. 340º/1 TFUE). O DUE também é fonte de direito de conflitos vigente na
ordem jurídica interna. O TFUE nã o contém normas de conflitos que se dirijam aos ó rgã os de
aplicaçã o do direito dos EM’s. O significado do direito derivado como fonte de direito de conflitos
vigente na OJ interna foi limitado antes do Tratado de Amesterdã o, já que a maior parte destas
disposiçõ es conflituais estavam previstas em directivas. Apó s esse tratado, inicia-se uma vasta
comunitarizaçã o do DIP
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com fundamento nos arts. 61º/c e 65º do TCE (redacçã o pó stuma ao Tratado de Amesterdã o),
graças à adopçã o de numerosos regulamentos no domínio do DIP (ex: ROMA I, ROMA II).
Com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, o art. 3º/2 TUE veio referir-se ao
estabelecimento do mercado interno. A competência dos ó rgã os da UE em matéria de DIP passou a
estar incluída no Título V, da Parte III do TFUE. Veja-se o art. 67º e ainda o art. 81º relativo ao
princípio do reconhecimento mutuo de decisõ es no â mbito da cooperaçã o judiciá ria em matéria
civil.
Os actos em matéria de DIP sã o, em princípio, decididos por maioria qualificada no quadro
do processo legislativo ordiná rio (art. 81º/2 TFUE). Com excepçã o das medidas relativas ao direito
da Família que tenham incidência transfronteiriça que estã o estabelecidas pelo Conselho, que
delibera por unanimidade, apó s consulta ao Parlamento europeu (art. 81º/3 TFUE)
A necessidade de uma codificaçã o europeia do DIP tem também sido objecto de discussão –
principalmente com respeito à Parte Geral do Direito de Conflitos. Tal visa a unificaçã o do DIP à
escala europeia, o que pode ser frustrado pelas diferentes soluçõ es adoptadas pelos sistemas
conflituais dos EM’s relativamente à interpretaçã o e aplicaçã o dos instrumentos europeus em
questõ es como a resolução de concursos de nacionalidades, qualificaçã o, fraude à lei, aplicação do
direito estrangeiro, etc…
LIMA PINHEIRO entende que a opçã o por uma europeizaçã o do DIP nã o será consequente
se nã o for acompanhada por uma unificaçã o do regime aplicá vel a estas questõ es. A competência
dos ó rgã os da UE em matérias de DIP nã o é exclusiva, mas partilhada com os EM’s. Nas matérias
em que a Uniã o ainda nã o tiver exercido a sua competência reguladora, os EM’s sã o livres de
legislar. No entanto, uma vez exercida, esta competência exclui, ou pelo menos, limita a
competência dos EM’s (art. 2º/2 TFUE) Para mais, a UE tem competência externa relativamente à s
matérias em que exerceu as suas competências internas – ver art. 216º e art. 3º/2 TFUE (que
reconhece competência exclusiva à EU em matéria de DIP, no sentido de que só esta pode celebrar
convençõ es internacionais com Estados terceiros, quando estas afectem as normas europeias.).
4.2.3.Fontes transnacionais
LIMA PINHEIRO defende a existência de fontes transnacionais, referindo-se a processos
específicos de criaçã o de proposiçõ es jurídicas no seio da comunidade dos operadores do comércio
internacional que sã o independentes da acçã o dos ó rgã os estaduais e supraestaduais. Destaca-se o
costume jurisprudencial arbitral e os regulamentos de centros de arbitragem.
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pode ser ú til haver uma referência ao DIP internacional no texto interno. Isto pode ser feito através
de vá rios métodos:
Referência genérica: o legislador limita-se a lembrar a existência de fontes externas.
Referência específica: a propó sito de cada uma das matérias, diz qual é o instrumento
internacional que aí vigora.
Incorporação: o legislador reproduz internamente as soluçõ es já contidas nas situaçõ es
internacionais. Isto torna o sistema mais transparente para o juiz, mas tem um risco – as
normas contidas no tratado devem ser interpretadas de acordo com o espírito do
pró prio tratado, e com a incorporação podemos ser levados a esquecer esta regra.
Foi em finais do século XII que nasce o DIP na maneira como hoje o conhecemos: era
necessá rio determinar a lei aplicável, uma vez que, para além do direito comum romano, cada uma
das comunidades (cidades italianas) ia criando as suas pró prias leis – os estatutos. A partir daí,
colocava-se a questã o de saber qual a lei aplicá vel.
Até ao século XVII/XVIII, foi-se desenvolvendo o DIP, através de vá rias doutrinas
estatutá rias. Estas doutrinas olhavam para cada um dos estatutos e, analisando essa norma,
procuravam determinar o seu â mbito de aplicaçã o. A grande divisão inicial era se o estatuto seria
territorial, aplicando-se na comunidade que criou essa norma a quem quer que fosse; ou extra-
territorial / pessoal, no sentido em que acompanhariam a pessoa originá ria de certa comunidade
onde quer que se movimentasse.
6. O Método do DIP
Hoje em dia reina um certo pluralismo metodoló gico - natureza pluridimensional do DIP,
existindo vá rios métodos de regulamentaçã o das situaçõ es da vida privada internacional que
podem ser utilizados pelo legislador e pelo julgador.
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desses sistemas é que vai ser chamado a reger a situaçã o concreta, tendo em conta as conexõ es
existentes entre as leis interessadas e os factos a regular.
Esta concepçã o foi criada por Savigny, sendo que o que interessava era determinar para
cada relação jurídica, tendo em conta a sua natureza, a sua verdadeira sede. A sede da relaçã o
jurídica determina o direito local a que está sujeita. Savigny cria, assim, o método ainda
largamente predominante na actualidade – método conflitual ou de conexã o – baseado na
utilizaçã o de regras de conflitos. Este consiste em procurar para cada situaçã o jurídica típica, o
laço que mais estreitamente a prenda com um sistema jurídico determinado. (“Procura da lei mais bem
colocada para intervir”)
As regras de conflitos tinham como funçã o indicar o elemento da factualidade concreta, por
intermédio do qual se há -de determinar a lei aplicá vel às vá rias situaçõ es da vida. O critério devia
ser o da localizaçã o da relaçã o jurídica porque o que se pretendia tutelar é a segurança e a justiça
internacional privatística, de cunho formal - previsibilidade do direito, continuidade e estabilidade
das relaçõ es jurídicas internacionais.
Esta regra de conflitos clá ssica tem determinadas características:
- Rígida (eram hard-and-fast rules), isto é, normas que vinculam o juiz a utilizar um elemento de
conexã o pré-determinado ou determiná vel a partir de critérios enunciados pela pró pria norma,
sempre que se lhe apresente uma questã o jurídica do tipo correspondente à respectiva previsão.
- Geral e abstracta
- Neutra (que é indiferente ao resultado, isto é, ao conteú do das soluçõ es materiais)
Tudo isto visava a harmonia jurídica internacional através da uniformidade da lei aplicá vel.
Tudo isto conduz a uma situaçã o que compromete a previsibilidade das decisõ es judiciais e
a estabilidade da vida jurídica. Há quem diga ainda que este método compromete a possibilidade
de encontrar, para as situaçõ es multinacionais, a soluçã o material mais consentâ nea com os seus
caracteres específicos, desde logo pela neutralidade das regras de conflitos.
2)Revolução Americana
A perspectiva conflitualista rígida foi alvo de críticas severas nos EUA, onde surgiram
diversas correntes de rejeiçã o do método conflitual europeu clá ssico – a American Revolution.
Neste sentido, David Cavers veio mesmo defender que "a histó ria do DIP é uma histó ria de seis
séculos de frustraçõ es".
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Nos EUA, a resolução do problema dos conflitos de lei foi sempre uma matéria estadual, e
tinham uma experiência enorme desde o século XVIII com conflitos de leis interestaduais (que
apresentam grandes semelhanças com os conflitos internacionais).
Neste contexto, especialistas de vá rias á reas reuniam-se no American Law Institute e
criavam o Restatement, uma recomendaçã o com uma autoridade científica tã o elevada que era
seguida pelos diversos legisladores (mesmo quando isto nã o sucedia, os tribunais convertiam-nos
em precedentes). O primeiro Restatement surgiu em 1934, redigido por JOSEPH BEALE, e foi uma
mistura da evoluçã o americana das ú ltimas décadas e da perspectiva europeia. Nele encontramos:
• Regras de conflitos de conteúdo rígido: como na Europa, também nos EUA se acreditou
durante muito tempo ser possível resolver o problema de DIP, através de regras de conteú do
rígido. Porém, os tribunais gozavam de uma certa liberdade e flexibilidade na aplicaçã o destas
normas.
• À parte destas, tínhamos uma grande influência de duas doutrinas:
Entretanto, começa o movimento de reacçã o à concepçã o conflitual clá ssica. Há três linhas
de crítica:
de natureza jurisprudencial.
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Ou seja, aplicando a regra de conflitos rigidamente, aplicava-se a lei de Ontá rio e nã o havia
qualquer direito de indemnizaçã o. Porém, o tribunal concedeu a indemnizaçã o, aplicando a lei
americana, com os seguintes argumentos:
• Estreita relaçã o deste Estado com a relaçã o entre as partes.
• Interesse do Estado na aplicaçã o da sua lei, uma vez que Nova Iorque é o estado mais
directa e fortemente interessado na situaçã o.
Este caso veio reforçar e generalizar a descrença nas regras de conflitos tradicionais (que
eram cegas e injustas), apontando na direcçã o de uma soluçã o encontrada ad hoc, tendo em conta
certos factores-guia e a natureza da questã o controvertida e das circunstâ ncias concretas. Porém,
deixava em aberto uma questã o fundamental: a escolha da lei deveria ter em conta o interesse do
Estado em ver aplicada uma das suas leis, e este interesse depende do conteú do da lei e da política
legislativa a que esta responda. A decisã o abria assim caminho a um casuísmo inevitá vel.
2) Momento Doutrinal
DAVID CAVERS
Cavers defendeu, nos anos 30, a via da melhor lei (better law approach), criticando o facto
de que as regras clá ssicas de DIP serem configuradas de forma cega em relaçã o ao resultado, à
justiça material do caso concreto. A aplicaçã o da regra de conflitos seria um blindfold test, em que o
juiz é indiferente ao conteú do da lei, seu fim e resultados da sua aplicaçã o.
Cavers dizia que devíamos partir da ideia de que o que está em causa nã o é um litígio ou
conflito de sistemas de direito, senã o um conflito de regras materiais. Quando se verificava esta
oposiçã o de preceitos materiais, o juiz deve comparar os vários preceitos e as soluçõ es oferecidas e
escolher a melhor lei, tendo em vista a justiça material devida à s partes e os objectivos de política
legislativa prosseguidos pelas normas em competiçã o.
Logo se assinalou o cará cter casuístico desta doutrina (nã o se consegue prever qual a lei
aplicá vel, porque é o juiz que escolhe a lei mais justa – conduzindo a desarmonia jurídica
internacional e a uma violaçã o do principio da paridade das ordens jurídicas) e é por isso que numa
segunda fase (Contra-Revolução de Cavers), Cavers veio sugerir que deveriam ser elaborados os
princípios de preferência, que eram critérios orientadores do juiz na escolha da lei. Estes critérios de
preferência eram regras de conflitos mas em que a escolha nã o era feita unicamente em funçã o da
localizaçã o, mas de acordo com critérios de justiça material. O princípio da preferência determinava
a lei aplicá vel de acordo com uma localizaçã o material, justiça material, etc... Entre as regras de
conflitos e os princípios de preferência nã o existem verdadeiramente diferenças significativas,
porque em qualquer dos casos pretende-se escolher a lei. No caso de Cavers, a escolha é maleá vel
porque os princípios de preferência sã o meros critérios orientadores na escolha da lei mais justa.
Críticas:
Cavers foi acusado de ser contra-revolucioná rio porque os princípios de conflitos
assemelhavam-se a autênticas regras de conflitos, ainda que também
atendessem ao conteú do da lei.
Cavers só definiu critérios de preferência em matéria contratual e
extracontratual. Se há domínios em que podemos elaborar estes princípios de
preferência e determinar o resultado material que deve presidir a escolha, há
muitas matérias
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em que isso nã o é possível. É por isso que se diz que o método de Cavers nã o
pode ser generalizado a todas as matérias.
o Por isso, para FERRER CORREIA esta better law approach deve apenas ser
usada como método coadjuvante, sob pena de desarmonia jurídica
internacional.
Em suma, esta é uma visã o que incorpora uma ideia de materializaçã o, flexibilizaçã o ou
substancializaçã o do DIP.
BRAINERD CURRIE
Currie é mais radical porque propunha a aboliçã o das regras de conflitos e a ruptura total
com o método clássico. Como método alternativo, propõ e o método da aná lise do interesse
governamental (Governmental Interest Analysis) subjacente à s normas materiais. Ou seja, os
limites de aplicaçã o das normas materiais no espaço seriam dadas com base na aná lise do
interesse governamental que estivesse subjacente a cada norma. Parte do pressuposto que as
normas materiais têm por finalidade a realização de uma certa policy, e o Estado que edita essas
normas tem interesse na realização das políticas que a ela subjazem.
Assim, perante uma situação internacional, seria necessá rio analisar as políticas nas vá rias
leis em concurso, sendo o espaço de aplicaçã o de cada uma dessas normas delimitado em funçã o
do interesse estadual na base dessa norma. CURRIE faz assim uma aná lise publicista da resoluçã o
do conflito de leis.
Seria assim necessá rio abolir o sistema das regras de conflito: o autor aponta uma série de
casos para mostrar como, estando esses casos em contacto com várias leis, só há interesse em
aplicar uma delas. O critério decisivo para aplicaçã o de uma lei estava assim na ideia de interesse
estadual, havendo casos em que, analisando os interesses estaduais, já nã o há nenhum conflito
uma vez que apenas uma lei tem interesse em aplicar-se – false conflicts. O DIP, com o método
conflitual, estaria assim a potenciar estes falsos conflitos.
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- Este método nem sempre se dá praticá vel, ou seja, nem sempre nó s conseguimos determinar a
partir da aná lise da política subjacente a norma o seu â mbito de aplicaçã o no Espaço.
- Este método pode conduzir a alguma injustiça conflitual, porque através da análise da política
subjacente as normas podemos chegar a resultados desadequados. Por ex., o caso da forma do
negó cio jurídico – a exigência de uma forma pretende obrigar a uma reflexã o; e, por outro lado,
favorecem uma ideia de certeza jurídica. Assim, os preceitos de forma de um Estado seriam
aplicá veis nã o só aos negó cios aí celebrados (segundo objectivo), como aos negó cios celebrados
pelos nacionais no estrangeiro (primeiro objectivo). Isto levaria a resultados insatisfató rios, já
que levantaria obstá culos excessivos à livre contrataçã o.
- Há uma clara prevalência da lei do foro. Tal configura uma violação do princípio de paridade de
tratamento das ordens jurídicas. Isto tem o risco de conduzir a desarmonia jurídica internacional
e risco de forum shopping.
- Esta concepçã o assenta em pressupostos já ultrapassado: Os conflitos de leis eram vistos como
conflitos de soberania; O problema da escolha da lei era um problema político, isto é, determinar
qual o interesse político que devia relevar. Apontava uma subordinaçã o do DIP ao direito pú blico,
esquecendo que o DIP deve atender à estabilidade e segurança das situaçõ es jurídicas
transnacionais.
EHRENZWEIG
EHRENZWEIG parte de duas ideias fundamentais: (1) por um lado, aceita o método
proposto pelo Currie - aná lise do interesse fundamental subjacente à s normas (casos de lex
incerta);
(2) mas admite regras de conflitos de leis (casos de lex certa). É aqui que se situa toda a sua
construçã o. Os conflitos de leis sã o resolvidos da seguinte forma:
O seu ponto de partida seria sempre a aplicaçã o da lei do foro, ou seja, o problema conflitual
só surge depois de se concluir que nã o se trata de um dos casos em que a lei do foro é
independente de qualquer escolha (Forum Rule by no choice). A ideia de prevalência da lei do foro
era confirmada por se verificar que, mesmo quando teoricamente o tribunal recorria a uma regra
de conflito, no fundo o que fazia era, através de uma série de expedientes (ex: reenvio), aplicar a
sua pró pria lei.
Uma vez chegada aquela conclusã o, caberia entã o à s regras de conflito do foro designar a lei
aplicá vel. E na falta de regras de conflitos? A aplicaçã o da norma estrangeira só poderia resultar da
interpretaçã o da norma da lex fori segundo a sua ratio ou policy (interpretaçã o bifocal da norma
material do foro). Por outras palavras, aplicar uma lei estrangeira está dependente, nã o da ratio da
lei estrangeira, mas sim da lei do foro: a interpretaçã o da lei do foro determina se é ela que se aplica
ou a lei estrangeira.
No fundo, este autor tentou evitar ao má ximo o perigo do Fórum Shopping. Resolvia as coisas
através das regras de competência internacional - lançava mã o do Fórum non-convenience. Se numa
situaçã o plurinacional, se achasse que devia aplicar-se a lei estrangeira, o tribunal devia abster-se de
aplicar a lei do foro e admitir que a questã o fosse resolvida nos tribunais de outros estados.
(Coincidência Forum – Ius)
Isto é criticá vel porque:
Quando determinamos um conflito de leis, o critério da escolha é a proximidade
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Em suma, para EHRENZWEIG, apesar de ser pró ximo da ideia de publicizaçã o, o ponto
focal é a prevalência dada à lei do foro. A ideia de paridade de tratamento era fortemente rejeitada.
Abre caminho à jurisdicionalizaçã o do DIP.
O apuramento da justiça conflitual passou a procurar a lei mais bem colocada para resolver
o caso, através de vá rios meios:
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3) Cláusulas de excepção
Sã o uma relativização do valor da regra de conflitos legal, isto é, a clá usula de excepçã o
atenua a rigidez da regra de conflitos clássica. Trata-se de uma disposiçã o que corrige o
funcionamento normas das regras de conflitos, quanto este conduz a resultados insatisfató rios do
ponto de vista dos fins do DIP. No fundo, trata-se de um mecanismo dado pelo legislador ao juiz
para afastar a lei em princípio aplicá vel e para aplicar outra lei se entender que essa outra lei é
mais adequada. Há vá rios tipos de cláusulas de excepçã o:
Clá usulas de excepçã o materiais - é aquela em que o afastamento da lei se faz por razõ es de
justiça material, ou seja, há uma lei identificada como competente, mas que é substituída por outra
se esta outra lei promover um determinado resultado material mais justo. Ex: art. 45/2 CC.
Vs.
Clá usulas de excepçã o formal ou conflituais - aquilo que justifica a substituiçã o de uma lei
por outra é o facto de a primeira lei (em princípio, aplicá vel ao caso) nã o ter um contacto
suficientemente forte com o caso e a segunda lei ter um contacto mais forte. É quase um regresso a
Savigny - uma lei tem contacto mais forte que a lei em princípio aplicá vel. Veja-se o Regulamento
ROMA I (4º/3); ROMA II; 45º/3 CC e art. 15º da Lei Suíça do DIP. É o típico da cláusula de
excepçã o.
Clá usulas de excepçã o abertas - O legislador nã o justifica quais as causas que justificam a
substituiçã o de uma lei por outra, nem identifica qual a lei que afinal deva ser aplicada. Ver ROMA
I (art. 4º/3). É o intérprete que caso a caso decide se se justifica a substituição de uma lei por outra.
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Clá usulas de excepçã o gerais - funcionam para todas as regras de conflitos. Existem nos
EUA ou na Suíça.
Vs.
Clá usulas de excepçã o especiais - funcionam só no â mbito de uma regra de conflitos. Sã o as
que temos em Portugal.
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2) Adaptação
É uma operaçã o que surge naqueles casos em que sã o convocadas duas leis diferentes para
se aplicarem no mesmo caso (conflitos positivos de lei) e, por algum motivo, as estatuiçõ es de uma
lei e de outra sã o incompatíveis, seja do ponto de vista puramente ló gico, seja teleoló gico
(BAPTISTA MACHADO fala de «acidente técnico do DIP»). O expediente da adaptaçã o consiste
em, comparando as leis em presença (as políticas legislativas que elas vã o prosseguir), combiná -las
para tentar encontrar uma soluçã o que, respeitando o seu sentido, se adapte ao caso concreto. No
fundo, é uma autorização ao juiz para manipular o sistema conflitual de modo a cumprir as
políticas legislativas das leis envolvidas.
Quais as situaçõ es típicas?
1) O desmembramento - desmembramento das relaçõ es jurídicas conduz a contradiçõ es,
que se resolvem por adaptaçã o da norma material.
2) Questões jurídicas diversas mas interligadas - Caso Sueco; Casos em que a aplicação
das duas leis resultaria numa violaçã o da intençã o de ambas.
3) Conflitos de qualificações – Casos de conflito negativo de qualificaçõ es. Estas situaçõ es
de vá cuo jurídico sã o resolvidas por adaptaçã o do elemento de conexã o da regra de conflitos
(Magalhães Collaço); ou através de uma adaptaçã o ao nível do direito material. (Ferrer Correia e
Baptista Machado)
4) Conflito móvel (sucessã o da lei aplicá vel devido à mobilidade do elemento de conexã o):
Caso Chemouni. Alguma doutrina veio dizer que teríamos que adaptar as normas materiais,
estendendo a sua aplicaçã o. Outros autores, como Ferrer Correia preferiam suprimir ou ignorar a
sucessã o de estatutos ou conflito mó vel - se há aqui uma aplicaçã o sucessiva de leis inconciliáveis,
deveríamos esquecer a sucessã o de estatutos e petrificar a conexã o, tornando-a imó vel.
A adaptaçã o pode abrir caminho ao casuísmo e insegurança, mas temos que recorrer a ela
para resolver algumas situaçõ es. Para evitar esse casuísmo e insegurança:
Há casos em que o legislador resolve expressamente problemas específicos da
adaptaçã o. (ex: art 26º/2 CC).
Para mais, a doutrina defende a criaçã o de regras de conflitos especiais ou de 2º
grau que hierarquizassem as regras de conflitos.
Em ú ltima aná lise, temos que casuisticamente fazer a adaptaçã o. Entre a adaptaçã o
da norma material ou da regra de conflitos, tende-se a defender que a adaptaçã o
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deve ser feita ao nível da regra de conflitos e nã o da regra material, sob pena de criar
direito que nã o existe nesse OJ e que é totalmente fantasioso.
Sã o normas materiais que se servem de uma conexã o espacial para delimitarem, explicita
ou implicitamente, o â mbito de casos em que têm aplicaçã o. Isto é uma excepçã o ao método
conflitual, porque é a pró prio norma material que inscreve determinados elementos espaciais, isto
é, delimita no espaço o seu â mbito de aplicaçã o tendo em conta o seu fim ou funçã o.
Estas normas sã o de aplicaçã o obrigató ria para os tribunais do respectivo Estado,
escapando ao controlo do direito de conflitos. Geralmente, o seu objectivo reside na tutela de
interesses de grande relevâ ncia na comunidade local, pelo que a sua aplicação nã o pode depender
do sistema conflitual.
Foi FRANCESCAKIS o primeiro autor a identificar este tipo de normas. Para mais, FERRER
CORREIA alerta-nos para o facto de que estas regras permitem resolver os problemas de conflitos
internacionais de maneira nã o tã o diferente da que a doutrina estadunidense propunha.
Dentro destas normas, temos duas modalidades:
5 3 Notas prévias: (1) Nem todas as normas constitucionais sã o NANI's; (2) Nem todas as normas imperativas
(P.e. Obrigatoriedade de escritura pú blica) sã o NANI's; (3) As NANI's nã o se aplicam sempre.
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Sã o normas materiais espacialmente autolimitadas, ou seja, delimitam o seu pró prio â mbito
de aplicaçã o no espaço, tendo em conta as finalidades que visam assegurar. Mas têm um cará cter
ampliador e nã o restritivo, de tal modo que alargam imperativamente o campo de aplicaçã o do
sistema a que pertencem, ou seja, sã o normas que se vã o aplicar mesmo que o sistema jurídico em
que elas se integram nã o seja competente por força das regras de conflitos. Dizem-se pois, de
aplicaçã o imediata porque nã o sã o medidas pela regra de conflitos, fixando o seu pró prio campo de
aplicaçã o.
Tal justifica-se pela sua particular intensidade valorativa - protegem valores fundamentais
para o ordenamento jurídico. Estas normas sã o verdadeiros instrumentos de politizaçã o e
publicizaçã o do DIP, porque sã o normas que permitem ao Estado impor o cumprimento de valores
da ordem política, social e econó mica que lhe cabem.
NUNO ASCENSÃ O SILVA diz-nos que estas normas sã o normas em que o seu â mbito de
aplicaçã o espacial é recortado e determinado autonomamente por regras de conflitos unilaterais ad hoc
- elas é que dizem quando se querem aplicar através de um comando unilateral ad hoc. Tratam-se,
portanto, de comandos unilaterais, à partida insusceptíveis de bilateralizaçã o, embora tal seja
discutível.
Em suma: sã o normas de aplicaçã o necessá ria - porque não podem ser afastadas pela lei
estrangeira – e imediata - funcionam antes e independentemente da regra de conflitos. Será
errado, porém, dizer que sã o normas que se aplicam sempre. Na realidade, só se aplicam às
situaçõ es que querem regular através da aná lise do seu comando ad hoc, seja ele explícito ou
implícito.
Implícitas: MOURA RAMOS considera o art. 53º CRP uma norma de aplicaçã o necessá ria e
imediata implicitamente, devendo ser aplicada independentemente do que resultar da regra de
conflitos aplicá vel ao contrato de trabalho, dada a sua intensidade valorativa. Será aplicá vel aos
contractos executados em Portugal e aos contractos total ou parcialmente executados no
estrangeiro se for celebrado entre portugueses, ou estrangeiros residentes em Portugal e um
empregador português. Outro exemplo é o art. 1682º-A CC, que se aplica sempre que a casa da
morada de família seja em PT.
Explícitas: Consagrada pelo legislador na letra da lei. Muitas vezes, sã o normas que
derivam da transposiçã o de directivas europeias. Exemplos:
- Lei da Concorrência (Lei 19/2014, de 8 de maio) - art. 2º.
- DL 238/86 - art. 3º
- Clá usulas contratuais gerais, mediaçã o imobiliária, arbitragem internacional, etc...
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Hoje, o art. 9.º do Regulamento de Roma I vem responder ao problema de aplicaçã o das
normas necessá rias e imediatas em matéria contratual, nos casos em que o contrato, pela aplicaçã o
da lex causae, seja vá lido, mas haja uma norma de aplicaçã o necessá ria e imediata que o torne ilegal.
O n.º 1 define “normas de aplicação imediata”, enquanto que o n.º 2 estabelece que as disposiçõ es do
regulamento nã o obstam à aplicaçã o da lei do foro. Mais importante é o n.º 3, que estabelece que
“pode ser dada prevalência às normas de aplicação imediata da lei do país em que as obrigações decorrentes do
contrato devam ser ou tenham sido executadas, na medida em que, segundo essas normas de aplicação
imediata, a execução do contrato seja ilegal. Para decidir se deve ser dada prevalência a essas normas, devem
ser tidos em conta a sua natureza e o seu objecto, bem como as consequências da sua aplicação ou não
aplicação”. Ou seja, apenas se pode aplicar as normas de aplicaçã o necessá ria e imediata estrangeiras
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do país onde deveria ter lugar a execuçã o do contrato, e tal aplicaçã o depende de uma ponderaçã o
do juiz.
- Jurisdicionalização do DIP –
Falamos da relevâ ncia do momento jurisdicional na determinaçã o da lei aplicá vel. Para a
doutrina clá ssica, para resolver um situaçã o jurídica internacional, devíamos encontrar a lei mais
pró xima relativamente a cada uma das questõ es jurídicas, tarefa que é entregue ao legislador
através da construçã o de regras de conflitos. Só que é contra esta concepçã o que surge o
movimento de jurisdicionalizaçã o do DIP que se caracteriza por admitir que o foro e as suas leis
constituam a instâ ncia central para a resoluçã o de problemas do DIP, em termos de estes poderem
ser resolvidos por aplicaçã o das normas desta ordem jurídica, mas dá -se um maior relevo ao
momento jurisdicional, em termos de este apagar a operaçã o da determinaçã o - o problema central
nã o é o da escolha da lei, mas determinaçã o da autoridade competente e limites da sua actuaçã o.
Esta ideia manifesta-se em 3 planos:
1.1) Na obra de EHRENZWEIG, que partia da ideia de "lex fori in fórum proprium".
1.2) Teoria das normas de conflitos facultativas – Pró xima da teoria anterior, relativiza o
papel das regras de conflitos entendendo que estas sã o de aplicação facultativa. Há , pois,
uma preferência do judiciá rio sobre o legislativo, porque o juiz, quando fosse chamado a
resolver um caso, mesmo que se apercebesse que se tratava de um caso internacional que
provocava a competência de uma lei estrangeira, nã o estaria vinculado a aplicar a regra de
conflitos se as partes a não tivessem invocado. Ou seja, a obrigatoriedade da observâ ncia
das regras de conflitos ficaria dependente de uma manifestaçã o da vontade das partes. Esta
teoria surge com o caso Bisbal (1960) e com Flessner que defendia que as regras de
conflitos sã o facultativas porque pode ser conveniente para as partes que elas nã o
funcionem.
Estas duas teorias alargam o â mbito de aplicaçã o material da lei do foro, conduzindo a uma
indiscriminada aplicaçã o desta lei – pelo que têm de ser rejeitadas. A aplicaçã o indiscriminada da
lei do foro, ainda que pudesse favorecer uma boa administraçã o da justiça (é a lei que o juiz melhor
conhece), colocaria em causa a harmonia da segurança jurídica internacional, e consequentemente a
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estabilidade das relaçõ es privadas internacionais. Daqui decorre também a colocaçã o em paridade
das vá rias ordens jurídicas em contacto com o caso, que é posto em causa por esta perspectiva.
No que toca a estas convençõ es, a crítica é mais atenuada porque o juiz é menos severo, já
que a sua liberdade se circunscreve apenas a certas matérias e aplicaçã o da lei do foro é justificada.
P.e. Veja-se o mecanismo de protecçã o dos menores:
(1) Se o juiz quer aplicar medidas de protecçã o efectivas, deve ter uma grande familiaridade
com a lei que quer aplicar;
(2) Estes mecanismos de protecçã o exigem a intervençã o de autoridades administrativas.
Ora, naturalmente estas autoridades têm menos facilidade na aplicaçã o da lei estrangeira que os
tribunais, justificando-se que estas apliquem a sua pró pria lei.
(3) Por fim, como estamos face a matérias muito procedimentalizadas, a aplicação da lei
estrangeira competente pode supor a prá tica de actos desconhecidos do ordenamento da
autoridade. A melhor maneira de evitar estes problemas é aplicar a lei do foro.
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Críticas
Apesar de, em certos casos, ser justificável recorrer à correlaçã o forum-ius, nã o o podemos
fazer por sistema, uma vez que há uma diversidade de interesses e exigências que estã o na base da
regulaçã o dos conflitos de lei e de jurisdiçõ es.
• Quanto aos conflitos de leis, quer-se procurar a lei mais “adequada” a resolver o conflito,
o que pode assumir vá rios sentidos (para nó s, mais bem colocada para resolver o litígio ante a
localização do facto, com algumas concessõ es à perspectiva material).
• Já nos conflitos de jurisdiçõ es, entram ideias de equidade processual, facilidade no acesso
à prova, justiça mais có moda para as partes, etc. – ideias que frequentemente nã o têm reflexo no
conflito de leis.
• Para além disto, a aplicaçã o da lex fori conduz à insegurança e instabilidade das relaçõ es
jurídicas, potenciando o forum shopping.
Para Picone, há vá rios métodos possíveis para resolver o problema das relaçõ es jurídico-
privadas internacionais:
1) Método Clássico ou conflitual - escolha de lei através da utilizaçã o de regras de conflito.
2) Método jurisdicional - Usado nos países de Common Law através da jurisdictional approach. O
tribunal nã o aplica lei estrangeira, devendo resolver-se previamente o problema da
competência internacional e depois entã o, escolhido o tribunal competente, deve este aplicar a
lei do foro. Tem
6 Distingue-se dos processos indirectos (retorno, casos de aplicaçã o subsidiá ria da lei do foro); dentro dos processos directos
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a vantagem de que o tribunal aplica a lei que conhece melhor - princípio da boa administraçã o
da justiça. Porém, nã o permite considerar separadamente as razõ es que estã o na base da
escolha da regra de conflitos e as razõ es que estã o na base da escolha das normas de
competência internacional; e o método jurisdicional exige que exista um ú nico tribunal
competente para decidir determinada matéria. Exige-se, portanto, que os Estados combinem
qual é o ú nico país competente.
3) Método dos conflitos interestaduais - Utilizado nos EUA para resolver os conflitos de leis dos
diferentes estados.
4) Método material de determinação da lei aplicável - escolha da lei em funçã o do resultado, isto é,
regras de conexã o substancial ou material.
5) Método da referência ao ordenamento jurídico competente - Quais as suas características?
PAOLO PICONE convoca vá rios exemplos normativos onde é patente este método – apesar
de, hoje, a maior parte deles ter desaparecido, “continuam a existir casos em que tal metodologia é
utilizada, isto é, em que a criação de uma situaçã o jurídica do Estado do foro está dependente da
apreciaçã o de uma ou mais ordens jurídicas de referência consideradas no seu funcionamento
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global”. Isto sucede nos casos em que o valor da continuidade é especialmente relevante. (p.e. caso
da adopçã o internacional e art. 31º/2 CC)
A doutrina considera que esta posiçã o nã o está tã o afastada da perspectiva clá ssica como se
costuma pensar. O que está em causa é uma perspectiva localizadora – embora o que temos que
determinar nã o seja a lei aplicá vel, mas o ordenamento jurídico de referência, continuamos a ter
aqui um problema de escolha. Este método é ainda de difícil generalizaçã o e difícil operatividade.
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A justiça do DIP é uma justiça de cunho formal, uma vez que os valores de certeza,
segurança e estabilidade têm primazia. Isto porque ao DIP compete tutelar as relaçõ es jurídicas
plurilocalizadas, caracterizadas por uma particular instabilidade que importa mitigar.
Para BAPTISTA MACHADO, a especificidade da justiça do DIP é patente na configuração
da regra de conflitos, na sua hipó tese e estatuição. No direito de conflitos, ao contrá rio do direito
material, nã o é em atençã o ao tipo ou natureza dos factos que o legislador determina a estatuiçã o,
mas em atençã o à localizaçã o desses factos; no que toca á consequência jurídica, esta traduz-se na
atribuiçã o da competência para regular aqueles factos a um dado sistema de normas. Ou seja,
mantém-se uma prioridade na atendibilidade à localizaçã o do facto e nã o ao resultado material
pretendido.
Sendo assim, o Direito de Conflitos, nã o tendo a ver com essa valoraçã o de justiça material,
só pode propor-se um escopo de justiça formal, cuja actuaçã o fundamentalmente se traduz em
promover o reconhecimento dos conteú dos de justiça material que ‘impregnam’ os casos da vida
imersos em ordenamentos de comunidades jurídicas estranhas, a fim de corresponder à natural
expectativa dos particulares.
Terá sido desenvolvido no século XIX, por SAVIGNY. Este princípio traduz a ideia da
uniformidade da lei aplicá vel, isto é, a ideia de que, independentemente do lugar onde uma relaçã o
jurídica está a ser avaliada, a lei aplicá vel deverá ser sempre a mesma. O princípio da harmonia
jurídica internacional responde à intençã o primeira do direito de conflitos, que é assegurar a
continuidade e a uniformidade de valoraçã o das situaçõ es plurilocalizadas.
Para tal, seria necessá rio que todos os Estados partilhassem o mesmo DIP; ora, nã o existe um
DIP mundial, unitá rio, o que nã o significa que o legislador nã o deva procurar, à sua medida,
contribuir para este universalismo. Assim, o legislador nacional deve criar regras de conflitos que
sejam susceptíveis de reconhecimento universal: se o legislador interno, no momento de elaborar
essas normas, estiver atento à s soluçõ es geralmente admitidas e se se esforçar sempre por adoptar
critérios que por sua razoabilidade sejam verdadeiramente susceptíveis de se tornar universais,
esse legislador estará realmente imbuído do autêntico espírito do DIP. Há algumas regras que sã o
tendencialmente universais: por ex., a aplicaçã o da lei do lugar da situaçã o do imó vel é uma
conexã o que, embora nã o esteja numa regra de DIP universal, existe na maioria dos Estados.
Destaca-se ainda a celebração de convençõ es internacionais, como na Conferência de Haia
sobre DIP, e as tentativas, a nível regional, de uma unificaçã o das regras de conflitos. Veja-se o
caso da UE, que busca a comunitarizaçã o do DIP, através de mú ltiplos regulamentos que gozam de
aplicabilidade directa e primado sobre o direito interno contrá rio. Sã o de aplicaçã o universal, o
que significa que se aplicam tanto nas relaçõ es entre EM’s, como em relaçõ es com Estados
Terceiros.
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Qual a importâ ncia deste princípio? Facilmente se concebem os inconvenientes que resultam
do facto de uma situaçã o jurídica não ser submetida em todos os países à mesma lei:
As relaçõ es privadas internacionais caracterizam-se, por definiçã o, pela sua instabilidade,
pela ligaçã o a vá rias ordens jurídicos. A ambiguidade da lei aplicá vel geraria uma ainda maior
incerteza, pelo que a harmonia jurídica internacional é uma das melhores formas de garantir a
estabilidade e continuidade das relaçõ es internacionais privadas, a certeza e segurança jurídicas,
garantindo as expectativas legítimas dos particulares.
A partir do momento em que existem vá rias leis aplicá veis a uma questã o jurídica concreta,
potencia-se o forum shopping. O princípio da harmonia jurídica internacional evita assim este
fenó meno.
Porém, é impossível construir um sistema de DIP baseado apenas neste princípio, uma vez que
este nã o resume toda a axiologia do DIP – se só ele estivesse em causa, o conteú do das normas de
conflitos seria indiferente.
Exprime uma ideia de unidade do sistema jurídico. Dentro de uma mesma ordem jurídica, as
contradiçõ es nã o sã o tolerá veis: um sistema jurídico em coerência nã o pode ter normas
contraditó rias entre si. Este princípio nã o é específico do DIP, é comum a qualquer matéria. Esta
ideia favoreceria que a uma mesma questã o jurídica aplicá ssemos a mesma lei. Ora, a harmonia
material está em tensã o com a existência de inú meras regras de conflito para vá rios sectores
normativos, que fraccionam a relaçã o jurídica em funçã o das vá rias questõ es que ela levanta. Isto
porque para cada questã o pode haver uma lei mais bem colocada.
Cada vez mais temos regras de conflito autonomizadas para cada questã o jurídica – há uma
tendência actual especialização. O legislador vai ter de ponderar, para cada sector, quã o longe pode
ir na especializaçã o sem pô r em causa a harmonia material. FERRER CORREIA diz que não é
possível escolher um interesse prevalecente, só podendo ser resolvido em face das regras de
conflito e das matérias jurídicas em questã o: o legislador terá de fazer a escolha em cada matéria,
tentando que a especialização seja feita sem detrimento da harmonia material.
Significa que a lei com melhor competência é a do Estado que esteja em melhores condiçõ es
para impor o acatamento dos seus preceitos.
Podemos ter dificuldades em aplicar uma sentença que aplique lei estrangeira. Isto tem
importâ ncia sobretudo nos imó veis: quaisquer actos jurisdicionais, ou qualquer acto de execuçã o
de uma sentença que queiramos pô r em prá tica, se o devedor não estiver de acordo em cumprir,
necessita sempre da intervençã o do Estado que tiver poderes coercivos naquele espaço. E
dificilmente um Estado aceitaria desencadear a sua má quina coerciva em aplicaçã o de uma regra
que nã o a sua.
Também quanto ao sistema sucessó rio: há sistemas que dividem a sucessã o mobiliá ria, ao qual
aplicam a lei pessoal; e a sucessã o imobiliária, na qual é competente a lei do lugar do imó vel. Isto
quando, à partida, a lei aplicá vel deveria ser a lei pessoal.
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O DIP deve colocar as vá rias ordens jurídicas em pé de igualdade, de tal modo que uma lei
estrangeira seja considerada competente sempre que a lei do foro, em circunstâ ncias aná logas, fosse
também ela considerada competente. A regra de conflitos bilateral é um instrumento perfeito para
assegurar este princípio, uma vez que tem como funçã o designar por competente, nas mesmas
condiçõ es, quer a lei do foro, quer a lei estrangeira.
No entanto, quando o juiz aplica uma lei estrangeira, aumenta o risco de erro judiciário. Assim,
podemos dizer que a boa administraçã o da justiça favoreceria, em tese, a aplicaçã o da lei do foro,
ou seja, existe uma tensã o entre o princípio da paridade de tratamento e o interesse da boa
administraçã o da justiça.
Porém, se este interesse fosse levado ao extremo, cada Estado aplicaria a sua pró pria lei, o que
seria incomportá vel para as relaçõ es jurídicas internacionais.
O DIP deve escolher a lei que o juiz conhece melhor, de modo a evitar o erro judiciá rio. Entre as
vá rias leis possíveis, o DIP devia escolher a lei do foro, isto é a lei do país onde se coloca o
problema
– porque é a lei que o juiz melhor conhece. Este princípio é claramente contrá rio ao anterior, e, por
isso, FERRER CORREIA considera que este só terá relevâ ncia quando os demais princípios já
estiverem satisfeitos.
Por vezes, podem surgir conflitos entre estes vá rios princípios – um exemplo claro é entre o
princípio da harmonia jurídica internacional e a harmonia material, na regulaçã o da questã o
prévia. Por vezes, para resolver uma questã o principal, é necessá rio resolver uma questã o prévia,
decisiva para a regulaçã o da questã o principal.
Qual é a regra de conflitos que nos diz qual é a lei aplicável à questão prévia para a resoluçã o da
questã o principal? Há duas respostas possíveis:
• É a regra de conflitos do foro – perspectiva da conexão autónoma. No fundo, a lei
aplicá vel à questã o prévia é encontrada tal como se fosse uma questã o principal, autó noma. Pode
favorecer uma ideia de harmonia material, pois estabelecemos as vá rias conexõ es de modo
congruente.
• É a regra de conflitos da lex causae, da lei competente para a questã o principal –
perspectiva da conexão subordinada.
Vimos os princípios gerais que devem informar o sistema de DIP como um todo; porém,
estes princípios nã o nos conduzem a soluçõ es concretas dos conflitos de leis. É necessá rio
averiguar quais os interesses que subjazem à escolha do elemento de conexã o.
Para FERRER CORREIA, devemos seguir aqui uma directiva geral – “a lei aplicável será a que
tiver uma conexão mais forte ou estreita com a relação ou situação jurídica em causa, tendo em conta uma
ponderada avaliação dos interesses que se apresentem como prevalecentes no sector considerado”. Ou seja,
mediante o sector normativo em causa, o legislador de conflitos deve fazer uma ponderada
avaliaçã o das exigências em causa, sendo em funçã o disso que escolhe as conexõ es.
Ora, na determinaçã o do elemento de conexã o entram em jogo interesses individuais e
interesses colectivos.
• Interesses individuais:
Justificam que exista a conexã o da lei pessoal, uma vez que o indivíduo tem interesse em
que exista uma lei com certa estabilidade ou permanência, que rege as suas relaçõ es jurídico-
pessoais. O principal campo de incidência destes interesses é o das matérias de cará cter pessoal
mais vincado, como os direitos de personalidade, estado e capacidade, relaçõ es de família e
sucessõ es mortis causa. Por ex., o art. 25.º do CC contém esta afirmaçã o da lei pessoal.
Por outro lado, o interesse individual está na matéria das obrigaçõ es contratuais, na qual
existe, à partida, uma liberdade de escolha. Visa-se aqui facilitar o comércio jurídico: se os
contractos produzem efeitos inter partes, porque nã o deixar as partes escolher a lei que regula a sua
relaçã o? Ver art. 41.º do CC e, mais importante na prá tica, o art. 3.º do Regulamento Roma I. Há
uma tendência cada vez maior para esta autonomia conflitual, extravasando o seu â mbito
tradicional – obrigaçõ es extracontratuais, matéria de sucessõ es, etc.
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PARTE GERAL
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1.1.2.Tipos de conexão
Algumas regras de conflitos têm apenas um elemento de conexã o; porém, há outras regras de
conflitos que, por variadas razõ es, têm dois ou mais elementos de conexã o. Faz-se aqui uma
classificaçã o dos elementos de conexã o em conexã o ú nica ou conexã o mú ltipla.
1) Regras de conflito de conexão única ou simples: têm apenas um elemento de conexã o.
Note-se que o sistema de conexã o ú nica nem sempre conduzirá à determinaçã o de uma só lei: há
factores de conexã o que podem levar por duas ou mais vias. Neste caso, é necessá rio escolher a lei
que melhor corresponde ao sentido da regra de conflitos. Ou seja, o critério que deverá presidir a
esta forçosa especificaçã o ulterior do elemento de conexã o nã o poderá ser outro senão aquele
mesmo que levou à escolha do factor utilizado pela norma de conflitos. Ex: art. 30º e 50º CC.
2) Regras de conflito de conexão múltipla ou complexa: têm dois ou mais elementos de
conexã o. Consoante os interesses em causa, os elementos de conexã o articulam-se entre si de modos
diversos:
• Alternativa: os interesses a que o DIP responde podem exigir o recurso a duas ou mais
conexõ es – por ex., para garantir a validade de um acto, proteger certas liberdades ou facilitar a
constituiçã o ou extinção de certa situaçã o jurídica. Quando o legislador pretende obter um
determinado resultado, pode indicar dois ou mais elementos em alternativa, vindo a ser escolhida
a
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lei que conduza ao resultado tido a priori como mais justo. Subjaz à conexã o alternativa o
favorecimento de um determinado resultado, o que demonstra que as regras de conexã o nem
sempre sã o rígidas e formais. É exemplo a norma do art. 36.º CC e art. 11º/1 RRoma I.
Note-se que, por vezes, o legislador desiste da conexã o alternativa, consagrando a
competência exclusiva de uma das leis designadas, quando esta lei formule certas exigências – art.
65.º/2. Está aqui em causa a harmonia jurídica internacional.
• Distributiva: aqui existe uma distribuiçã o por ordens jurídicas diversas das condiçõ es de
validade do mesmo acto. No fundo, apresenta dois ou mais elementos de conexã o, mas aplica as leis
a partes diferentes da relaçã o jurídica. É o caso do art. 49º CC. A primeira razã o para a sua
utilizaçã o é um propó sito de lei formal, aplicando a cada sujeito a lei que está mais pró xima dele;
Para além disso facilita a constituiçã o da relaçã o jurídica.
• Subsidiária: como forma de prevenir a hipó tese de faltar o elemento primá rio de conexã o, a
norma de conflitos de conexã o subsidiá ria designa o elemento sucedâ neo a que tal norma recorre.
Pode utilizar-se o mesmo sistema quando se torne impossível averiguar o conteú do do direito
estrangeiro ou quando nã o se consiga determinar o elemento de conexã o (art. 23.º/2). É exemplo a
norma e conflitos do art. 52.º CC. Porque existe este sistema? Para evitar a aplicaçã o da lei do foro
que será aplicada apenas quando nã o se consiga concretizar o elemento de conexã o previsto na
regra de conflitos.
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O sistema de conexão múltipla cumulativa é distinto da cumulação de conexões! A cumulaçã o de conexõ es
é um expediente em que se indica uma ú nica lei que só é relevante se for comum a duas partes. É aquela
figura de quando a regra de conflitos diz "nacionalidade comum dos cô njuges", que só é relevante se for das
duas partes.
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O problema surgiu no início do século passado, com a entrada em vigor do Có digo Civil
alemã o (BGB), que foi acompanhado de um conjunto de regras de conflitos. Colocou-se assim a
questã o de saber se estas regras de conflitos se aplicam a factos passados ou somente para o
futuro.
Este problema nã o se coloca se a regra de conflitos nova tiver uma norma transitó ria,
indicando quando é que esta se aplica no tempo. E se nã o houver norma transitó ria?
A posiçã o tradicional diz que se aplica a regra de conflitos antiga, para defesa da protecçã o
da confiança, já que as normas jurídicas nã o podem ter eficá cia retroactiva. (Zittelmann; Tese de
Lisboa)
Porém, KAHN, BAPTISTA MACHADO e FERRER CORREIA consideram que o princípio
da nã o retroactividade das normas jurídicas assenta no facto de a norma jurídica ser uma regra de
conduta, logo aplica-se apenas à s normas materiais. Ou seja, é a natureza da norma enquanto
norma material que conduz a que digamos que tem de ser limitada no espaço e no tempo; já as
regras de conflito não visam orientar condutas humanas, tratando-se de “normas sobre normas”.
Assim sendo, se a razã o da limitaçã o da lei no tempo é o seu cará cter jurídico-material, com que
fundamento vamos limitar temporalmente a vigência das regras de conflito? Nã o há razõ es para o
fazer, logo a nova regra de conflito deve aplicar-se a factos passados. Só assim se alcança maior
justiça conflitual.
Porém, pode levantar-se um problema: os particulares podem consultar as regras de
conflito para escolher a lei aplicá vel. Aqui, a regra de conflitos funciona indirectamente como uma
regra material e nã o como uma pura regra de conflitos. Poderá o particular exigir que se aplique a
antiga regra de conflitos, uma vez que conformou o seu comportamento?
Sim: entende-se que a regra de conflitos normalmente actua como pura norma decisó ria,
mas pode, em certas circunstâncias, actuar como norma material. Se assim for, a regra de conflitos
deve ser encarada como norma material e já se aplicam as normas do direito material quanto à
sucessã o de normas.
É , no entanto, necessá rio que, no momento da constituiçã o jurídica, o particular tenha
algum contacto com a ordem jurídica portuguesa (foro). Esta possibilidade de ter em consideraçã o
a regra de conflitos como norma material pressupõ e alguma ligaçã o fáctica com a ordem
portuguesa, caso contrá rio nã o temos nenhum indício que nos permita concluir que a regra
conformou o comportamento do particular. A aplicabilidade da antiga regra de conflitos pressupõ e
uma conexã o apreciável com a ordem portuguesa no momento da constituiçã o da relaçã o jurídica.
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problema dos conflitos mó veis perante uma conexã o variá vel ou mó vel (por ex., o lugar da situaçã o
das coisas imó veis é uma conexã o constante).
Como se resolve este problema? Temos duas hipó teses: ou o legislador resolve este
problema, ou nã o resolve.
1) Em relaçã o à primeira hipó tese, o legislador pode resolver o problema dos conflitos
mó veis de duas maneiras:
• Através da imutabilidade/cristalizaçã o no tempo dos efeitos já produzidos, segundo o
estatuto antigo. É o que sucede no art. 29.º do CC – uma mudança do estatuto pessoal nã o prejudica
a maioridade adquirida segundo a lei anterior. Há aqui uma intenção de protecçã o do comércio
jurídico.
• Através de uma repartiçã o do â mbito de aplicaçã o dos vá rios estatutos. O exemplo
paradigmá tico é o art. 488.º CSC.
Estatuto pessoal:
• Em primeiro lugar, é preciso exceptuar aqui o regime das relaçõ es dos cô njuges
respeitantes a convençõ es antenupciais e regimes de bens, uma vez que o legislador resolveu aqui
o conflito mó vel – no art. 53.º. Este tipo de conexõ es imobilizadas não podem colocar problemas de
conflito mó vel.
• O problema coloca-se em relaçã o ao art. 52.º, que trata da relaçã o matrimonial. Nestas
relaçõ es, estão abrangidos nã o só efeitos pessoais, como efeitos patrimoniais independentes do
regime de bens. Novamente, o legislador não resolve aqui o problema dos conflitos mó veis; logo,
qual é o momento relevante? Para FERRER CORREIA, é aqui relevante o carácter voluntá rio da
adesã o a uma nova comunidade (pela nacionalidade); logo, é por isso que se entende que a nova lei
deve ser aplicá vel, nã o apenas à constituiçã o de relaçõ es novas, mas também aos efeitos
decorrentes de relaçõ es jurídicas duradouras (neste caso, já constituídas) existentes antes da
mudança. Ao contrá rio do art. 49.º, já nã o estã o em causa as expectativas em relação à validade de
um acto, aplicando-se a lei nova.
• Porém, note-se que em relaçã o à validade de um acto, como o casamento, aplica-se o art.
49.º, em relaçã o ao qual se podem levantar conflitos mó veis. O legislador nã o resolve este problema,
porém, o momento que faz sentido é o da celebraçã o do casamento. Quando se trata da validade de
um acto jurídico celebrado, faz sentido dar relevâ ncia à concretizaçã o da conexã o existente à data
desta celebraçã o – é a maneira de respeitar as ú nicas expectativas possíveis dos particulares –
devendo aplicar-se, pois, a lei velha. Atençã o que esta norma só se refere ao momento em que se
institui a relaçã o.
Estatuto real: quanto ao estatuto real, a regra é a lex rei sitae, art. 46.º, que se justifica por
interesses gerais do comércio. Porém, que dizer se a coisa é movimentada? A ideia aqui é que há
interesses do comércio jurídico local que faz com que se deva dar preferência à lei actual da
coisa, em nome da
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certeza das transacçõ es que sobre ele venham a realizar-se. Porém, não se pode ignorar direitos
adquiridos no momento da constituiçã o. Em suma, a perspectiva tradicional é a de que se aplica o
estatuto antigo à constituiçã o e aquisiçã o dos direitos, mas aplica-se a lei do estatuto novo ao
conteú do e exercício desses direitos.
O problema coloca-se quando a regra de conflitos diz que uma lei estrangeira é competente,
mas nessa lei estrangeira houve uma sucessã o de regras materiais. Aplica-se o direito material
antigo ou o direito material novo? Deve ser o direito transitó rio da lei aplicá vel (lex causae) a
responder a este problema – art. 23º CC, que diz que devemos interpretar a lei estrangeira dentro
do sistema a que pertence.
Poderia em abstracto admitir-se a opçã o pelo direito intertemporal do foro; porém, esta
soluçã o nã o estaria em consonâ ncia com o sentido da atribuiçã o da competência a um direito
estrangeiro para a regulamentaçã o de uma situaçã o plurilocalizada.
Porém, a esta doutrina devem admitir-se duas ressalvas (FERRER CORREIA):
• Pode suceder que, em face da regra de conflitos, faça sentido aplicar o direito antigo ou o
direito novo. Tudo depende da interpretaçã o da regra de conflitos.
• Também pode intervir aqui a ordem pú blica internacional, algo que devemos ter sempre
em conta.
As regras de conflitos podem ser bilaterais, quando indicam como competente quer a lei do
foro, quer a lei estrangeira; ou unilaterais, quando indicam como competente apenas uma ordem
jurídica. A norma paradigmá tica do modelo tradicional da regra de conflitos é a bilateral. Esta é a
orientaçã o geralmente seguida na prá tica, mas nã o a ú nica possível. Ao sistema bilateralista opõ e-
se o da unilateralidade.
Por ex., art. 49.º é uma regra bilateral, porque pelo elemento de conexã o pode ser competente
a lei do foro ou qualquer outra lei. Seria unilateral se dispusesse que “a capacidade é regulada em
relação a nubentes de nacionalidade portuguesa pela lei portuguesa”.
Porém, para além das regras unilaterais e bilaterais, podemos ainda ter as regras
imperfeitamente bilaterais, que exigem, para funcionar, uma qualquer ligaçã o com a nossa ordem
jurídica; funcionando, sã o bilaterais. A bilateralidade é imperfeita na medida em que, funcionando
como uma regra de conflitos bilateral, só actua em determinados casos que tenham com a ordem
do foro um determinado contacto. O problema destas normas é o que deixam situaçõ es por regular
(o que pode ser, no entanto, intencional, servindo um interesse de política legislativa).
1.1.2.1. Unilateralismo
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Eduardo Figueiredo 2016/2017
leis materiais do ordenamento onde vigora, ou seja, quando indica apenas como competente a lei
do foro. Temos duas modalidades.
1) Unilateralismo extroverso: para a tese unilateralista extroversa, a funçã o da regra de
conflitos é a indicar como competente sempre uma lei estrangeira, assentando na concepçã o de
ROBERTO AGO. Para este autor, a concepçã o bilateralista, ao subordinar a aplicação do direito
interno à prévia intervençã o de uma norma de DIP, nã o faria sentido: se a designaçã o de um
ordenamento estrangeiro por parte de uma norma de DIP se compreende, porque serve para
tornar aplicá veis pelo juiz do foro normas que de outro modo nã o o seriam, já nenhum significado
pode ter a designaçã o, por parte de uma norma de DIP, do pró prio ordenamento de que ela faz
parte. Para além disto, alega-se contra a tese bilateralista que esta confere ao legislador estadual
um papel de legislador supra-estadual, e que coloca num mesmo plano o direito material do foro e
os direitos estrangeiros.
Assim, quando é que a lei do foro seria competente? O ponto de partida desta teoria é o de
que, na falta de indicaçã o, a lei material do foro é a lei aplicá vel; assim, precisaríamos de uma regra
de conflito apenas para dizer quando é que uma lei estrangeira é necessá ria. Tecnicamente,
propunha uma espécie de recepçã o do direito estrangeiro por uma norma jurídica.
Uma das críticas que podemos apontar a esta tese é a de que as vá rias leis nã o estã o
colocadas numa perspectiva de paridade. Para além disto, há uma falta de autonomia do direito
internacional privado em relação ao direito material, que nã o é a nossa perspectiva – as regras de
conflito têm um fim e estrutura diferentes.
2) Unilateralismo introverso: aqui, podemos encontrar duas formulaçõ es, uma formulação
tradicional e outra mais elaborada, defendida por QUADRI8.
Na sua justificaçã o tradicional, esta teoria faz apelo a um pretenso princípio conforme o
qual o legislador interno nã o teria poderes senã o para delimitar a esfera de competência das suas
pró prias leis. Ou seja, a funçã o da regra de conflitos é a de designar por competente tã o só a lei do
foro. Críticas possíveis:
• Esta doutrina parte da ideia de que o conflito de leis é um conflito de soberanias e o DIP
seria assim um sistema de normas tendente a resolver conflitos de soberania entre os Estados.
• Para além disto, FERRER CORREIA afirma que esta doutrina enferma ainda de um “erro
fundamental”: quando um Estado aplica uma lei estrangeira, isso nã o significa que é a soberania
estrangeira que se afirma, pois a soberania só pode exercer-se mediante o emprego de
mecanismos de coerção. Assim, no territó rio de certo Estado só a soberania desse Estado pode
tornar-se efectiva.
Fica, porém, a dever-se a QUADRI a formulação mais elaborada desta doutrina. Para o
autor, a aplicabilidade de uma norma estrangeira apenas pode resultar de uma norma do sistema a
8
Não se deve confundir o unilateralismo moderado de Quadri e o unilateralismo selvagem de Currie.
Quadri admite regras de conflitos; defende que uma lei se aplica quando tiver vontade de aplicaçã o; É
unilateralista ab extrínseco porque a vontade de aplicaçã o das normas é vista nas regras de conflitos do seu sistema.; É
um unilateralista mais moderado que procura a harmonia jurídica internacional atravé s da boa coordenaçã o das ordens
jurídicas, que dependia do unilateralismo das regras de conflito.
Já Currie, nã o admite regras de conflitos.; Também parte da vontade de aplicaçã o das leis; É unilateralista ab
intrínseco porque a vontade de aplicaçã o de uma lei está na sua ratio, isto é, nela pró pria; É um “unilateralista selvagem”
porque a sua construçã o nã o tem em vista qualquer preocupaçã o com a harmonia jurídica internacional.
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que ele pertence, ou seja, essa norma tem de ter vontade de aplicação – e só assim se garantia a
harmonia jurídica internacional e reconhecimento de direitos adquiridos. Assim, para que uma lei
estrangeira pudesse ser aplicada, teria de verificar-se uma dupla condiçã o cumulativa:
• Que a ordem jurídica do foro não tenha vontade de aplicaçã o, ou seja, a situação sub
iudice nã o poderia estar ligada à lex fori através do elemento de conexã o que a lei considera
decisivo no sector em causa.
• Que a lei estrangeira tenha vontade de aplicaçã o: de acordo com a lei estrangeira, tem de
haver uma regra de conflitos que atribua ao ordenamento estrangeiro a competência para tratar
aquela questã o. A situaçã o sub iudice tem de estar ligada pelo elemento que a lei estrangeira
designa como decisivo para que essa ordem seja competente.
Que críticas podem ser apontadas a esta doutrina? Como nota FERRER CORREIA, esta é
uma doutrina merecedora da maior atençã o, desdobrando-se em duas proposiçõ es – que, nã o
estando em causa a competência do direito local, há que aplicar à situação controvertida o direito
que se julgar competente para a reger; e que jamais deve decidir-se um caso pelas disposiçõ es de
uma lei que o não inclua no seu âmbito de aplicaçã o. Porém, apesar dos méritos do unilateralismo,
este tem também graves inconvenientes, uma vez que pode dar origem a situaçõ es de conflitos,
quer positivos, quer negativos.
• Conflitos positivos (várias leis querem aplicar-se num determinado caso): os autores
foram avançando vá rias soluçõ es para este problema. Para QUADRI, a soluçã o apenas poderia ser a
de ir buscar a lei à qual a situaçã o concreta estivesse ligada pelo vínculo mais forte, que seria
também, por legítima presunçã o, a lei que as partes terão tido em vista. Porém, qualquer das
soluçõ es avançadas é menos segura, e logo menos tuteladora das expectativas particulares, do que
as regras de conflito bilaterais.
• Vácuo jurídico (nenhuma lei se quer aplicar): para não denegarmos a justiça, temos
sempre de aplicar uma das leis, e teremos de ir contra a ideia fundamental desta doutrina – a lei só
se aplica quando tem vontade de aplicaçã o. QUADRI nã o propunha aqui nenhuma soluçã o, pelo
que DE NOVA veio sugerir que, no espírito da obra deste autor, se criasse uma regra especial, tanto
quanto possível conforme ao sentido daquele sistema jurídico que tenha com o caso vertente a
conexã o mais estreita. O unilateralismo gera, pois, um problema que só é resolvido com o regresso
ao bilateralismo, através da escolha de uma lei com ligaçã o mais pró xima ao caso.
1.1.2.2. Bilateralismo
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bilateral é a de designar por competente quer a lei do foro, quer uma lei estrangeira; contudo, no
que toca aquela primeira funçã o, ou seja, quando se designa como competente a lei do foro, a regra
de conflitos só intervém quando se trate de uma situação internacional, ou seja, relação privada
internacional. Isto relaciona-se com o princípio da nã o transactividade: só se aplicam as leis que
estejam em contacto com os factos. Vemos, assim, que a regra de conflitos tem uma funçã o
subordinada.
O nosso sistema tem predominantemente regras bilaterais; porém, note-se que os sistemas
nã o precisam de ter só regras unilaterais ou regras bilaterais. As regras de conflitos nã o precisam
de ter sempre a mesma funçã o. O art. 28.º/1 é um exemplo de uma regra de conflitos unilateral;
porém, no n.º 3 deste artigo, o legislador bilateraliza a norma. Noutros sistemas de regras
unilaterais, a jurisprudência bilateralizou as normas.
Há ainda uma doutrina que defende a auto-limitaçã o espacial das regras de conflito
(FRANCESCAKIS), surgindo como tese intermédia entre o unilateralismo e o bilateralismo.
Como o pró prio nome indica, entende que as regras de conflitos estã o, na sua aplicaçã o,
limitadas no espaço. Como se define o â mbito de aplicaçã o? É necessá rio separar dois nú cleos de
situaçõ es:
• Situaçõ es que, à data da sua constituiçã o, tinham algum contacto com a ordem jurídica do
foro. Nestas situaçõ es, a regra de conflito pode aplicar-se.
• Situaçõ es que, no momento da sua constituiçã o, nã o tinham nenhuma ligaçã o com a
ordem jurídica do foro, isto é, situaçõ es que se constituíram no estrangeiro, num momento em que
nã o tinham nenhuma ligaçã o com a nossa ordem. A este segundo grupo nã o podemos aplicar a
regra de conflitos, segundo esta visã o: caem fora do â mbito de aplicaçã o especial.
Assim sendo, que lei seria aplicada a este segundo grupo de situaçõ es? Aplica-se a lei que
tiver sido efectivamente aplicada na constituiçã o da ordem jurídica, sem qualquer controlo da
nossa lei. Faz sentido que a regra de conflitos esteja limitada no espaço? Já vimos que nã o faz
sentido estar limitada no tempo, uma vez que nã o se trata de uma norma de conduta. A mesma
ideia vale para o espaço: esta é uma crítica fundamental que se aponta a esta doutrina.
Há uma outra crítica que podemos acrescentar – neste segundo grupo de casos, diz-se que a
nossa ordem jurídica nã o tem interesse em controlar as relaçõ es jurídicas. Porém, produzem
efeitos no foro, logo há algum controlo que devemos fazer sobre as situaçõ es constituídas no
estrangeiro, nã o sã o necessariamente irrelevantes para a nossa ordem. Esta doutrina tem um
ponto de partida bilateral, mas no fundamento fica pró ximo do unilateralismo: nas situaçõ es nã o
ligadas à nossa lei nã o temos nada a dizer.
2. O problema da qualificação.
2.1. Introdução
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qualificaçã o é um problema geral de direito; porém, a particularidade que existe no DIP resulta do
facto de os conceitos-quadro nã o serem conceitos descritivos mas sim técnico-jurídicos. Se as
regras de conflitos recorressem a conceitos descritivos, tudo se resumiria a descrever as situaçõ es
factuais contidas na previsã o normativa e depois, face ao caso concreto, subsumi-lo à categoria
apropriada do direito de conflitos – a operaçã o de qualificaçã o nã o apresentaria nenhuma
especificidade face à s regras de direito material. Porém, nã o é isso que aqui ocorre.
Exemplo de qualificação
Imaginemos que temos uma família de ingleses (A, pai e B, filho). A e B celebram um contrato de
compra e venda, válido à luz da lei inglesa mas não à luz da portuguesa (art. 877.º). Se A e B são pai e
filho, as relações familiares são regidas pela lei inglesa; pelo contrário, as relações obrigacionais serão
reguladas, desde logo, pela lei escolhida pelas partes – imaginemos que tinham escolhido a lei portuguesa.
O problema da qualificação começa quando vamos pegar numa norma material, neste caso o art. 877.º, e
vamos tentar qualificá-la, ou seja, dar-lhe uma certa natureza jurídica atendendo à sua função sócio-jurídica. O
art. 877.º, pelo seu conteúdo e função, não é uma norma obrigacional: o que quer proteger é a paz
familiar, evitar a justiça sucessória (tentando fugir às regras sucessórias que tentam fazer uma repartição
igualitária). Assim, é uma norma de natureza familiar – para uns – ou de natureza sucessória – para outros.
De qualquer forma, pelo conteúdo e função não corresponde à função normativa para que o direito
português é chamado neste contexto: a lei competente no caso para regular as relações familiares
é a lei inglesa. O art. 877.º não se subsume no conceito quadro de obrigações da regra de conflitos
que chama a lei portuguesa. Isto implica um juízo de correspectividade.
No que toca ao critério da qualificação: há vá rias teorias sobre o modo como a interpretaçã o
deve ser feita.
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• Interpretação segundo a lei competente (lex causae): outra doutrina, defendida por
RABEL e WOLFF, preconiza a interpretação do conceito-quadro segundo a lei competente, ou seja,
segundo a lei aplicá vel. Porém, a crítica é a de que, se admitíssemos esta interpretação, a regra de
conflitos tornar-se-ia num “cheque em branco”: a matéria jurídica de que trata seria definida nã o
pela regra de conflitos, mas pela lei competente.
Assim, de acordo com FERRER CORREIA, a interpretaçã o do conceito-quadro deve ser uma
interpretaçã o:
• Teleológica, ou seja, temos de tentar perceber porque é que o legislador, naquela
concreta regra de conflitos, escolheu determinada conexão. Todo o sistema de regras de conflitos
deve ser preordenado à satisfação de determinados interesses, e assim a conexã o deve ser a mais
adequada a satisfazer esses mesmos interesses. Como tal, a interpretaçã o do conceito-quadro tem
de passar obrigatoriamente pela determinaçã o do juízo valorativo que conforma a regra de
conflitos.
• Para além disto, deve ser autónoma em relação ao direito material: devemos atender à s
finalidades pró prias do DIP e nã o do direito material. Se o DIP tem a sua intencionalidade e a sua
justiça pró pria, a interpretaçã o dos seus preceitos e dos respectivos conceitos-quadro tem de ser
conduzida com autonomia. A interpretaçã o deve ser feita no quadro do DIP a que pertence (à lex
formalis fori e nã o à lex materialis fori).
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O legislador acabou por resolver o problema da qualificaçã o entre nó s no art. 15.º do CC.
Algumas notas sobre este artigo:
• O legislador só trata aqui da qualificaçã o propriamente dita, diz como se vã o qualificar as
normas – para nó s, materiais.
• Resulta do art. 15.º que essas normas sã o qualificadas de acordo com a sua funçã o e
conteú do, e não tanto em funçã o da sua inserção sistemá tica.
• Este conteú do e funçã o sã o apreciados à luz da lex causae, à luz do ordenamento jurídico
a que a norma pertence.
• O chamamento que a regra de conflitos faz é um chamamento circunscrito ou limitado: a
regra de conflitos, quando designa um ordenamento jurídico, nã o quer dizer que esse
ordenamento vai ser aplicado em bloco, apenas aquelas que correspondem ao instituto visado.
• Finalmente, o art. 15.º pressupõ e que a competência já esteja atribuída, ou seja, a
qualificaçã o não serve para determinar a lei aplicá vel. Só procedemos à qualificaçã o depois de
sabermos quais os ordenamentos competentes. A lei competente é determinada através do
princípio da nã o transactividade da lei (exclui os ordenamentos que nã o têm conexã o com a
situaçã o); e, dentro dos ordenamentos com contacto, só serão competentes os designados pela
regra de conflitos. No problema da qualificaçã o, já fizemos funcionar estes dois momentos.
A qualificaçã o de acordo com o direito português traduz-se no seguinte: quanto ao primeiro
momento, recorremos ao critério da lex formalis fori; no segundo, rege o art. 15.º CC. Segundo
FERRER CORREIA, este segundo momento trata-se da resoluçã o de um problema de
subsumibilidade de um quid ao conceito-quadro.
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qualificaçõ es: (1) qualificaçã o primá ria ou de competência e (2) uma qualificaçã o secundária ou
material. Esta é a concepçã o seguida, por ex., pela doutrina italiana.
Quais são assim as diferenças da concepção da dupla qualificação face à perfilhada entre nós?
• A qualificaçã o primá ria serve para identificar a lei aplicá vel, o ordenamento jurídico
definitivamente competente. Aqui, há uma diferença em relaçã o ao nosso sistema de qualificaçã o,
que nã o serve para determinar o ordenamento competente: esta é uma operaçã o anterior à
qualificaçã o. Muitos autores italianos criticaram o nosso sistema por nã o atender à qualificaçã o
primá ria. FERRER CORREIA defende o nosso sistema ao afirmar que a qualificaçã o primá ria é um
“falso problema e desnecessá ria”, pelo que já vimos antes.
• Para além disto, o objecto da qualificaçã o sã o factos, situaçõ es de vida; já para nó s o objecto
da qualificaçã o sã o normas materiais. Como é que se qualificariam os factos? Os autores italianos,
(AGO, bem como o americano ROBERTSON) defendiam que os factos deveriam ser qualificados de
acordo com a lei do foro.
• Em relação à qualificaçã o secundária ou material, na concepçã o de AGO faz-se um
chamamento indiscriminado das normas. ROBERTSON aproxima-se mais da nossa concepçã o: só
aplica as normas, discriminadamente, que se aproximam do instituto em questã o.
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pró pria funçã o do conceito quadro, que quer repartir as matérias jurídicas. O sentido da regra de
conflitos é atribuir uma certa funçã o normativa a uma determinada lei, logo só podem estar
compreendidas no seu â mbito as normas que correspondem a essa funçã o. A referência da norma
de DIP a uma lei nã o abrange a totalidade das suas disposiçõ es, mas apenas aquelas que possam
subsumir-se na categoria normativa da regra de conflitos.
De acordo com o nosso método, podem surgir conflitos de qualificaçõ es – o que, como nota
FERRER CORREIA, nã o faz com que o tenhamos de rejeitar. Estes só seriam evitá veis com uma
rígida qualificaçã o lege fori, ou seja, se fizéssemos a tal qualificaçã o primá ria definitiva – aí, só
chegaríamos a uma lei competente e nã o poderiam existir conflitos. Porém, como já vimos, esta
posição é inaceitá vel. Por outro lado, estes conflitos nã o sã o uma consequência exclusiva do
método de qualificaçã o adoptado.
Assim, nã o fazendo a qualificaçã o primá ria, podemos ter vá rios ordenamentos jurídicos
chamados simultaneamente por regras de conflitos diferentes e, depois de termos feito funcionar o
art. 15.º, podemos chegar a resultados contraditó rios. Qual é este resultado incongruente? Temos
de distinguir entre conflitos positivos e negativos:
• Conflitos positivos: ocorrem quando as normas dos vá rios ordenamentos competentes
passam o crivo da qualificaçã o e a sua aplicaçã o simultâ nea é inconciliá vel.
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• Conflitos negativos: ocorrem quando há dois ou mais ordenamentos competentes por força
das vá rias regras de conflito, mas nenhum desses passa o crivo da qualificaçã o.
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Há um exemplo de escola. Até 75, os gregos ortodoxos tinham de casar de acordo com o rito ortodoxo.
Imaginemos que temos dois gregos que querem casar na Alemanha: a questão do rito, que para os gregos tem a
ver com a própria substância do casamento, com a sua natureza sacramental, contende com a validade do
casamento; por outro lado, para a Alemanha, é uma questão de mera formalidade extrínseca, regulada pela lei
do lugar da celebração. Para a lei grega, subsume-se no conceito quadro de validade e existência do casamento;
para a lei alemã, no conceito quadro da forma de casamento. Temos aqui um conflito positivo de qualificações.
Para FERRER CORREIA, deve prevalecer a qualificação substância, logo a lei grega é a competente. Claro
que isto depois vai violar o princípio da liberdade religiosa (invocação da excepção da ordem pública).
Costuma dar-se o exemplo de alguém que morre sem herdeiros e sem testamento. Os ordenamentos
jurídicos tratam esta questão de forma diferente: no caso português, o Estado é herdeiro; noutros
ordenamentos, o Estado ou a Coroa tem um direito real de apropriação. Podemos assim ter dois ordenamentos
competentes, de acordo com duas regras de conflito portugueses: por ex., um português morre sem testamento
ou herdeiros, deixando os seus bens em Inglaterra. A norma portuguesa que diz que o Estado é herdeiro
tem natureza sucessória; por outro lado, na Inglaterra, sendo o direito de natureza real o direito inglês é
chamado como lei do local da coisa. Deve prevalecer a qualificação real, o art. 46.º: aqueles bens devem ficar
para a coroa inglesa.
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Por exemplo, um casal de portugueses casa sem convenção e mais tarde um deles adquire a
nacionalidade alemã e perde a portuguesa. De acordo com o art. 53.º, o regime de bens é definido pela lei
portuguesa porque era português no momento da celebração; porém, quando morre, e não sendo português, a
lei que regula a sucessão é a lei alemã. O cônjuge tem os direitos de participação na comunhão, e naquilo
que resta entra como herdeiro, cumulando as duas posições (o mesmo sucede no direito alemão) – a lei
portuguesa não coloca nenhum obstáculo a que o cônjuge sobrevivo concentre em si a qualidade de meeiro
dos bens adquiridos e a de sucessor ex lege (arts. 2133.º, 2146.º e 2147.º do CC).
Porém, podemos ter casos em que os dois estatutos nã o sejam cumulá veis, se
estivermos perante um ordenamento no qual a tutela do cô njuge sobrevivo se
faz apenas por um dos estatutos.
Por exemplo, um casal sueco no qual um deles adquire a nacionalidade inglesa: no direito sueco, o
cônjuge sobrevivo é apenas protegido na comunhão post-mortem (no momento da morte, reparte-se os bens
todos do casal). Porém, entretanto passou a ser inglês e no direito inglês a única tutela é a hereditária: temos
um conflito de qualificações porque, se aplicarmos sucessivamente as duas leis, estamos a dar duas protecções
quando qualquer um dos ordenamentos só dá uma. A cumulação das duas pretensões não é uma solução
razoável, uma vez que qualquer uma das normas esgota a tutela jurídica do interesse visado.
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sucessó ria – pelo que se deverá optar pela lei competente no estatuto sucessó rio. Acaba por ficar
sozinha a regra de conflitos do art. 62.º e a lei por ela declarada competente.
A primeira ideia a destacar é a de que apenas se levanta aqui um verdadeiro problema quando
estamos perante uma autêntica lacuna de regulamentaçã o: nã o aplicar nem uma norma nem outra
tem de ser contraditó rio do ponto de vista dos dois ordenamentos jurídicos, levando a um
resultado claramente insatisfató rio.
Em segundo lugar, FERRER CORREIA diz que muitas vezes o conflito é apenas aparente,
porque um dos preceitos em causa pode subsumir-se na regra de conflitos. Nestes casos, fazemos
uma qualificaçã o subsidiá ria, de modo a que aquela norma, alterando-lhe a natureza, se possa
considerar já corresponder ao instituto visado.
Por ex., imaginemos que um casal britânico ao tempo do casamento toma mais tarde a nacionalidade sueca
(hipótese inversa à que já vimos): a lei sueca estabelece a comunhão mortis causa, e à primeira vista diríamos
que este é um regime de bens do casamento. Porém, este regime de bens, embora o sendo, tem em vista a tutela
dos direitos sucessórios, logo subsidiariamente o regime de bens suecos pode ser concebido como sendo um
regime sucessório. E, se qualificamos sucessoriamente, já se subsume no art. 62.º e pode ser aplicado.
Quando nã o conseguimos esta qualificaçã o subsidiá ria, temos uma verdadeira lacuna.
Por exemplo, um inglês morre sem herdeiros e testamentos e deixa bens em Portugal. O art. 62º.
manda aplicar a lei inglesa, que confere à coroa britânica um direito real de apropriação, não se subsumindo no
art. 62.º; já o art. 46.º diz que se aplica a lei do lugar da situação da coisa, sendo que no direito português
há um direito do Estado, porém é sucessório, logo não se subsume no art. 46.º. Nenhum dos ordenamentos
quer que os bens fiquem sem dono, logo temos uma verdadeira lacuna e um conflito negativo de
qualificações.
Temos aqui dois entendimentos:
• MAGALHÃ ES COLLAÇO diz que devemos fazer uma adaptaçã o da regra de conflitos, sendo
tal preferível a adaptar normas materiais, porque ao menos chegamos a um ordenamento real. Ou
seja, devemos adaptar o art. 62.º do CC, mudando o elemento de conexão que lá está – a lei que
regula a sucessã o passa a ser a lei do país da situaçã o dos bens (Portugal), logo a norma
portuguesa já se pode subsumir no conceito quadro porque é sucessó ria. É a posiçã o dominante.
• FERRER CORREIRA e BAPTISTA MACHADO falam antes de uma adaptaçã o da norma
material, desde logo do art. 2133.º e 2152º CC. Devemos aplicar analogicamente esta norma,
mesmo que a lei portuguesa nã o seja a lei reguladora da sucessã o (é o caso), se, de acordo com a lei
da sucessã o, nã o existirem herdeiros para os bens situados em Portugal. Deverá criar-se uma
norma que habilite o Estado da situaçã o (o Estado português) a apoderar-se de todas as heranças
existentes no seu territó rio, sempre que segundo a lei de sucessã o o de cujus nã o tenha deixado
sucessores. Temos aqui um grande espaço de abertura que pode conduzir à criaçã o de um “direito
fantasioso”.
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Estes conflitos resultam da diversidade dos elementos de conexã o adoptados nos vá rios
sistemas de direitos para a mesma matéria jurídica. Este problema acaba por ser agravado pelo
bilateralismo, porque pode acontecer que o critério de conexã o do direito de conflitos do foro nã o
coincida com o das outras leis em contacto com a situaçã o sub iudice, resultando que a legislaçã o
aplicá vel nos vá rios estados interessados nã o seja a mesma.
9 A doutrina da autolimitaçã o espacial das regras de conflitos foi defendida por FRANCESCAKIS, segundo a qual as
regras de conflitos apenas se aplicariam a situaçõ es que tivessem algum tipo de contacto com a ordem jurídica, ou seja, o
domínio de aplicaçã o das regras de conflito é restrito. Note-se que para o autor qualquer contacto com a ordem jurídica
chegaria para fundamentar a aplicaçã o da regra de conflitos, podendo nã o ser necessariamente o contacto do elemento
de conexã o. Nas situaçõ es absolutamente internacionais, a lei aplicá vel é a lei que tiver sido efectivamente aplicada, sem
qualquer controlo pré vio, o que se aproxima do unilateralismo, que enuncia como princípio o de que a lei aplicá vel a é a
lei que queria aplicar-se e lhe tenha sido efectivamente aplicada. As objecçõ es à doutrina de FRANCESCAKIS sã o as
seguintes: se está em causa o interesse do ordenamento em vigiar as situaçõ es que têm conexã o estreita com ele, entã o
este interesse está suficientemente acautelado através da excepçã o da ordem pú blica internacional; as normas de
conflitos apenas tê m por escopo resolver conflitos de lei, nã o sendo regras de conduta, logo nã o é possível deduzir destas
normas quaisquer limites à sua aplicaçã o espacial; constitui proposiçã o erró nea a de que o sistema jurídico nacional nã o
tem interesse em ver aplicadas as suas normas de DIP a situaçõ es que nã o tenham com ele qualquer conexã o, ou uma
conexã o estreita (o que é patente nas regras de conflitos bilaterais); e nã o se deve renunciar ao controlo pré vio da
competê ncia de um dado sistema jurídico só porque foi o efectivamente aplicado.
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3.1. O reenvio.
O reenvio veio dar resposta ao problema do conflito negativo de sistemas de DIP, isto é, quando
a legislaçã o estrangeira designada pelo DIP do foro para regular certa questão jurídica nã o se
considera aplicá vel e antes remete para outra ordem jurídica. Esta ordem jurídica tanto pode ser a
do Estado do foro (retorno), como a de estado terceiro (transferência da competência).
Retorno: L1 L2 L1
Transmissão de competência: L1 L2 L3
A soluçã o do reenvio surgiu numa decisã o de um tribunal francês em 1982 (Caso Forgo),
embora em rigor o problema já tivesse sido abordado em sentenças inglesas e alemã s no século
XIX. Nessa decisã o, a Cour de Cassation tomou a posiçã o inovadora de afirmar que temos que olhar
para as regras de conflitos da lei aplicá vel.
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Como vimos, temos duas visõ es dogmá ticas possíveis perante a questã o do reenvio: ou as que
negam em absoluto qualquer atendibilidade à regra de conflitos estrangeira (teoria da referência
material); ou as que entendem que, por princípio geral, devemos tomar em consideraçã o o DIP
estrangeiro (teoria da devoluçã o ou da referência global).
O que a caracteriza é o facto de que rejeita o reenvio, porque nã o atende à quilo que a lei
estrangeira diz sobre a sua competência. Ou seja, a referência da regra de conflitos a uma lei
estrangeira deve ser entendida como feita directa e imediatamente ao direito material estrangeiro.
Os defensores da referência material defendem a sua existência com base no seguinte:
A regra de conflitos, pela sua pró pria natureza, é uma norma destinada a resolver
concursos de normas materiais no espaço. Logo, se o objecto da regra de conflitos sã o as normas
materiais, só essas devem ser chamadas. Mais – o DIP nasce com um sentido ou aspiração de
universalidade, para assinar às relaçõ es jurídicas internacionais privadas a sua lei reguladora, que
deverá ser a mesma lei em toda a parte. Assim, seria uma contradiçã o nos termos admitir que as
suas normas tivessem sido marcadas do selo de uma referência a outras normas com idêntica
funçã o mas sentido diferente.
A referência material é a ú nica posiçã o consentâ nea que respeita o pró prio juízo da regra
de conflitos. Em cada regra de conflitos está uma ponderação do legislador e, se quisermos manter-
nos fiéis ao nosso juízo conflitual, devemos aplicar imediatamente o direito material designado
pela regra de conflitos.
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Cada Estado tem as suas pró prias regras de conflito, que têm, pelo seu objecto, cará cter
internacional. Se a regra de conflitos tem esta funçã o universal, entã o pelas mesmas razõ es nã o
faria sentido apontar outras regras com funçõ es semelhantes, que deveriam na pureza dos
sentidos ser iguais à s nossas, mas sim apontar directamente um direito material.
O sistema que faz essa referência, quando remete para um OJ remete para esse OJ na sua
totalidade, atendendo nã o apenas à s suas normas materiais, mas também ao seu direito conflitual,
isto é, ao facto de este se considerar competente ou nã o. Dentro desta tese, temos 3 variantes:
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ficçã o. Para além disto, costuma ainda apontar-se a objecção do círculo vicioso: se devemos atender
à s normas de conflito da lei designada pela lei do foro, também devemos atender à s regras de
conflito da lei indicada por esta, e assim sucessivamente.
Argumenta-se também que esta doutrina potenciaria a aplicação da lei do foro, o que
é vantajoso do ponto de vista da boa administraçã o da justiça. Este é um argumento datado – é
bom, sem dú vida, que os tribunais possam aplicar as suas pró prias leis. Mas é melhor ainda que
eles apliquem à s situaçõ es da vida internacional a legislação que em melhores condiçõ es estiver
para intervir. Para além disto, este argumento, a valer, apenas valeria par ao caso do retorno, em
que a aceitaçã o do reenvio determina a aplicaçã o da lei do foro.
Devemos aceitar o reenvio porque ele favorece a harmonia jurídica internacional. Se
aceitarmos o reenvio da Lei 2 para a Lei 1 (retorno) ou para a Lei 3 (transmissã o), a decisão será
idêntica à proferida por um juiz que pertença à Lei 2. Independentemente do lugar onde a causa
seja julgada, a lei aplicada é a mesma, ou seja, a justiça da causa deixa de depender do lugar da
propositura da acção. Acontece, porém, que a devoluçã o simples constitui, por vezes, um obstá culo
à pró pria harmonia jurídica internacional. Veremos alguns casos:
Caso 1 (retorno): L1 (DS) L2 (RM) L1 (aplica-se a L1 porque a referência feita
pela L2 é material - aqui há harmonia jurídica internacional)
Caso 2 (retorno): L1 (DS) L2 (DS) L1 (aqui nã o há harmonia jurídica
internacional, porque a L1 aplicaria a L1 e a L2 aplicaria a L2.)
Caso 3 (transmissão de competências): L1 L2 L3 (a L3 tem que se considerar
competente para haver harmonia jurídica internacional)
3) Teoria do duplo reenvio, dupla devolução, reenvio total ou Foreign Court Theory
De acordo com esta teoria, o juiz deve, ao interpretar e aplicar a regra de conflitos, alinhar
rigorosamente a sua decisã o por aquela que seria tomada pelo juiz estrangeiro. A referência da
norma de conflitos do foro a determinada lei estrangeira impõ e aos tribunais locais o dever de
julgarem a causa tal como ela seria provavelmente julgada no Estado onde essa lei vigora.
Em termos técnicos, qual é a diferença em relaçã o à perspectiva da devoluçã o simples?
Quanto partimos do sistema de devoluçã o simples, devemos atender à s regras de conflito da L2; no
da devoluçã o dupla, devemos tomar em consideração nã o apenas as suas regras de conflito da L2,
mas também as regras sobre o reenvio, o pró prio sistema de reenvio da lei indicada.
L1 (DD) L2 (RM) L3
Resolução: L1 L3 (aplica a L3, porque “faz tudo” o que a L2 fará e a referência da L2 L3 é
material.)
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O reenvio nã o pode ser aceite como princípio geral na aplicaçã o da regra de conflitos. Isto
nã o significa, porém, que ele nã o possa servir como uma técnica utilizada sempre que tal seja ú til à
prossecuçã o de interesses ou valores fundamentais do DIP, nomeadamente para garantir a
harmonia jurídica internacional e, consequentemente, a segurança jurídica. O reenvio é um
expediente prá tico-normativo, uma técnica e nã o um princípio geral do DIP. Adoptamos entre nó s
uma posição pragmá tica – BAPTISTA MACHADO e FERRER CORREIA.
No caso português, adoptou-se a via pragmá tica no CC de 1966, rejeitando-se a aplicaçã o
sistemá tica do reenvio (art. 16.º) e definindo com rigor o â mbito em que o reenvio deve actuar. A
posição adoptada pelo legislador português vai assim na linha da posição pragmá tica, garantindo
nomeadamente a harmonia jurídica internacional e podendo constituir como tal um factor de
certeza jurídica. A ideia da harmonia jurídica internacional foi, com efeito, a principal inspiraçã o do
legislador, numa orientaçã o altamente progressiva. Fala-se de um reenvio-coordenação por este é
utilizado como instrumento de coordenaçã o dos OJ's.
Temos de atentar num conjunto de artigos: arts. 16.º a 19.º; e 36.º/2, bem como 65.º/1,
parte final, do CC.
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Art. 16º CC - O legislador, quando fala de direito interno, refere-se ao direito material e nã o
ao direito de conflitos. Ou seja, salvo soluçã o contrá ria, a referência que deve valer é material. Há
muitos preceitos que apontam em sentido contrá rio. Por isso, BAPTISTA MACHADO dizia que “no
art. 16º não podemos dizer que esteja consagrado um princípio geral “anti-reenviante”. Está apenas
consagrada uma regra pragmática que cederá sempre que se justifiquem os desvios em nome dos princípios
caros do nosso DIP”.
Isto terá grande relevâ ncia, porque se entendermos este artigo como um princípio geral
apenas com as excepçõ es legalmente previstas, tal impossibilitaria uma interpretaçã o analó gica
dos arts. 17º e 18º - contemplariam uma lista taxativa. Mas isto nã o acontece: para além dos casos
expressamente previstos na lei, aceitamos o reenvio noutros casos quando estejam em causa
princípios fundamentais do DIP.
Vamos agora analisar os princípios do DIP que podem levar à aceitaçã o do reenvio:
O art. 17.º/1 afirma que, num caso de transmissã o de competência, aceita-se o reenvio se a L3
se considerar competente. Porque é que o legislador toma esta posiçã o? Em virtude da harmonia
jurídica internacional: se o problema tivesse sido colocado perante um tribunal da L2 ou da L3, a lei
aplicá vel seria também a L3. Ou seja: se aceitarmos o reenvio, e este art. 17.º permite fazê-lo, temos
sempre a mesma lei aplicá vel.
Porém, e se a terceira lei se nã o se considerar competente?
• Se remeter de novo para a L2 e esta se considerar competente, aplica-se a L2 (quer
porque esta lei se considera aplicá vel e temos harmonia de soluçõ es, quer porque não está
verificado o requisito de que dependia a aplicabilidade da L3). No fundo, a L2 nã o se considera
directamente competente, mas apenas indirectamente competente.
Ex1: L1 L2 (DS) L3 (RM) L2 Ex2: L1 L2 L3 (DS) L2
L1 L2 / L2 L2 / L3 L2 L1 L3 / L2 L3 / L3 L3
• Se remeter para uma L4, que se considere competente, temos um caso de transmissão de
competência em cadeia. Também aqui podemos aplicar a L4, potenciando a harmonia jurídica
internacional. Mas temos de fazer aqui uma precisã o: para que se aplique a L4, é necessá rio que a L2
adopte um qualquer sistema de referência global, pois aí vai olhar, nã o para o direito material da
L3, mas para as suas regras de conflitos. Só neste caso é que existe acordo quanto à competência e
atingimos a harmonia jurídica internacional: a L2, 3 e 4 aplicariam todas a L4.
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Quanto ao art. 18.º/1, este estabelece que, num caso de retorno, a lei material do foro (lei
portuguesa) é aplicá vel se a L2 devolver para o direito português. Ou seja, é necessá rio que a L2
adopte um sistema de referência material (FERRER CORREIA), pois só neste caso é que estamos a
cumprir o preceito do art. 18.º/1 – a L2 tem de remeter para o direito material português. Se
adoptássemos aqui o sistema da referência material, as duas leis teriam posiçõ es diferentes quanto
à lei aplicá vel; com o retorno, ambas aplicam a L1 – mais uma vez, está aqui subjacente a harmonia
jurídica internacional (o reenvio é “um meio necessá rio” para atingir este fim). Já se a referência da
norma de conflitos estrangeira for uma referência global (devoluçã o simples ou dupla), o reenvio
nã o promove, antes impede, a uniformidade de valoraçã o – nesta hipó tese, aplica-se o direito
material da L2.
Ex1: L1 L2 (RM) L1
Deve haver reenvio!
L1 L1 / L2 L1
Ex2: L1 L2 (DS) L1 Não deve haver reenvio, aplicando-se o art. 16º CC.*
L1 L2 / L2 L2
Ex3: L1 L2 (DD) L1 Não deve haver reenvio, aplicando-se o art. 16º CC.
L1 L2 / L2 L2
Á partida, no Ex2 e Ex3 não se justifica o reenvio porque já está assegurada a harmonia
jurídica internacional (FERRER CORREIA). Porém, no que toca ao Ex3, há divergência doutrinal
quanto à sua interpretação, existindo autores (como BAPTISTA MACHADO) que consideram que o
reenvio deve ser aceite. (que veremos já no pró ximo ponto)
E se a L2, em vez de remeter para a L1, remeter para uma L3 e esta remeter para a L1?
Temos aqui um retorno indirecto, feito por intermédio da L2. Aqui, justifica-se aplicar a L1? A
resposta é positiva: tendo em vista a ratio legis (a harmonia jurídica), deveremos aceitar aqui o
reenvio quando se verifiquem aqui duas condiçõ es cumulativas:
• A remissã o da L2 para a L3 ser uma referência global (DS ou DD).
• A remissã o da L3 para a L1 ser uma referência material.
Estes requisitos sã o exigidos pois só neste caso é que o reenvio é um meio de assegurar a
harmonia jurídica internacional. Por outro lado, apesar de a letra do art. 18.º/1 falar em devolver
para o direito português, basta interpretar este devolver como sendo directa ou indirectamente para
também podermos aplicar a L1.
Ex: L1 L2 (DS ou DD) L3 (RM) L1
L1 L1 / L2 L1 / L3 L1
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dupla devoluçã o (ou seja, o juiz da L2 alinha a sua posiçã o por aquela que seria tomada pelo juiz da
lei indicada pela sua regra de conflitos, no caso da L1).
O art. 17º/2 CC refere-se aos casos de transmissão da competência, e diz que a L3 não será
aplicável (isto é, cessa o reenvio, embora exista harmonia jurídica internacional, porque se
releva a harmonia jurídica qualificada), apesar de se considerar competente, em dois casos:
• Se o interessado residir habitualmente em territó rio português. Ou seja, a L1 (da
residência) remete para a L2 (da nacionalidade), que por sua vez remete para uma L3, que se
considera competente. Neste caso, cessa o reenvio e aplica-se a lei da nacionalidade (L2). Se a L3
for, por ex., a lei do local, esta soluçã o terá a sua eficá cia garantia nesse Estado que, tal como
o da
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residência é um dos mais fortemente ligados à relação controvertida; assim, nã o haveria grande
vantagem em renunciar à aplicaçã o da lei pessoal.
Ex: L1 (RH) L2 (N) L3 (que se considera competente)
• Se o interessado residir num país cujo direito de conflitos devolva para a lei da
nacionalidade. Ou seja, a L1 remete para a L2 (da nacionalidade), que por sua vez remete para uma
L3, que se considera competente; porém, ao mesmo tempo, temos um outro Estado que nã o o
português, da residência, que remete igualmente para a L2. Neste caso, o reenvio cessa igualmente
e aplica-se a L2, da nacionalidade. Aqui, nã o aceitar o reenvio nã o significa ter de aplicar uma lei
que em parte alguma seja considerada aplicá vel: a lei da nacionalidade é tida como competente
num dos Estados mais fortemente interessados na situaçã o, o Estado do domicílio; e segue-se aqui
o critério de aplicaçã o da lei da nacionalidade ou da lei da residência.
Ex: L1 L2 (N) L3 (que se considera competente)
↑
L4 (RH)
Nestas hipó teses, a lei aplicável é sempre a L2, da nacionalidade. A L3 em princípio aplicar-
se-ia pelo art. 17.º/1; porém, nestes casos, o legislador prefere a lei da nacionalidade por ser uma
das leis mais importantes.
O art. 18.º/2 refere-se aos casos de retorno, e diz que o reenvio só é de admitir em duas
hipó teses:
• Na hipó tese de o interessado ter a residência habitual em territó rio português – ou seja, a
L1 (portuguesa, da residência habitual) indica como competente a L2 (da nacionalidade), que
devolve a competência para o direito material português.
Ex: L1 (RH, PT) L2 (N) (RM) L1
L1 L1 / L2 L1
• Na hipó tese de a lei da residência habitual remeter também para a lei portuguesa – ou
seja, a L1 indica como competente a L2 (da nacionalidade), que devolve a competência para o
direito material português; ao mesmo tempo, existe uma L3 (da residência habitual), que remete
também para a L1.
L1 L2 (N) L1
↑
L3 (RH)
Neste ú ltimo caso, a aceitaçã o do reenvio significa a aplicação de uma lei que não é nem a da
nacionalidade, nem a da residência. Porque é que isto é possível? Porque, apesar de a L1 não ser
nem a lei da residência nem da nacionalidade, quer a lei da residência, quer a lei da nacionalidade,
consideram como competente a lei portuguesa. Faz sentido respeitar o acordo destas duas leis. E
isto nã o significa que estejamos a pô r em causa o princípio da harmonia jurídica material – antes
pelo contrá rio.
Nas restantes hipó teses possíveis de retorno, deve entender-se que o reenvio deve ser
rejeitado: a definiçã o do estatuto pessoal por uma lei diferente da lei da nacionalidade ou da
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residência habitual é tida, em princípio, como uma má soluçã o, e só motivos especiais podem levar-
nos a aceitá -la.
Por outro lado, como a situaçã o jurídica em causa está ligada à lei do foro, não há grande
risco de a aplicaçã o da lei da nacionalidade não vir a ser reconhecida em lado nenhum: será eficaz
pelo menos no Estado do foro.
Com uma certa analogia com esta situaçã o está uma outra hipó tese, nã o prevista.
Imaginemos que a L1, portuguesa, considera como competente a lei da nacionalidade (L2);
por sua vez, a L2 considera como competente uma L3, a lei do lugar dos bens, de acordo com o
sistema da referência material. Porém, a L3 remete para a L2 de acordo com o sistema da
referência material. De acordo com o art. 17.º/1, nã o haveria reenvio, pois a L3 nã o se considera
competente: assim, nã o faria sentido aplicar a L3, aplicando-se antes a L2.
Mas imaginemos que a residência habitual do sujeito é num Estado de uma L4, que
considera como competente também a lei do lugar da situaçã o dos bens (L3), mais uma vez com
referência material. Aqui, já faz sentido aplicar a L3, respeitando o acordo entre a lei da
nacionalidade e da residência, sempre que esteja em causa matéria pessoal.
Ex: L1 L2 (N) (RM) L3 (RM)
L2
↑(RM)
L4 (RH)
Ou seja: a lei da nacionalidade, L2, considera como competente a L3; e a lei da residência, a
L4, também aplicaria a L3 – se é verdade que nã o há harmonia jurídica internacional, as duas leis
mais importantes estão de acordo na competência da L3, pelo que vamos estar a dar efeito à ideia
da harmonia jurídica qualificada. Isto implica desconsiderarmos a letra do art. 17.º/1, quando este
exige que a L3 se considere competente, pois o seu fundamento é a harmonia jurídica
internacional. Nesta situaçã o, não prevista pelo legislador, é, nã o a harmonia jurídica internacional,
mas sim a harmonia jurídica qualificada que vai servir de fundamento. Apesar de esta soluçã o não
se inferir directamente do Có digo, está de acordo com os seus princípios.
Nota:
Aqui chegados pode surgir uma dú vida: porque é que estando no â mbito do estatuto
pessoal, só aceitamos retorno se houver harmonia jurídica qualificada (exista acordo entre a lei da
nacionalidade e a lei da residência habitual) e, pelo contrá rio, podemos aceitar a transmissão
mesmo sem o tal acordo? Veremos este exemplo clássico:
L1 L2 (N) L3
L4 (RH - considera-se competente a ela própria)
Esta é uma hipó tese em que nã o se aplica o 17º/2, devendo haver em princípio reenvio,
aplicando-se a L3 (ora, fazemos reenvio no â mbito do estatuto pessoal sem haver esse acordo)
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- Baptista Machado considera que nã o é o art. 18º/2 que é mais exigente, mas o art. 17º/2 que é
menos exigente, porque entende que se parte do princípio segundo o qual, em matéria de
estatuto pessoal, só deve haver reenvio se houver acordo da lei nacional e da lei do domicílio. Ora,
porque na transmissão pode haver reenvio sem acordo? Porque neste caso, se exigíssemos
sempre o acordo, poderíamos chegar a soluçõ es desfavorá veis - a casos em que exigindo
harmonia jurídica qualificada, e nã o fazendo o reenvio, podíamos ser conduzidos a aplicar uma lei
nã o aplicada nem pela lei da nacionalidade nem pela lei da residência. Parte-se de uma ideia de
“mal menor”.
4) Princípio da maior proximidade (art. 17º/3 CC)
Tem relevo indirecto (art. 17.º/3). Imaginemos agora que a L2, da nacionalidade, remete para
uma L3, que é a lei do lugar da situaçã o dos bens, que se considera competente. Neste caso, o art.
17.º/3 diz que, tratando-se de uma das matérias nele enunciada (designadamente, matéria
sucessó ria) se aplica a regra do n.º 1 (ou seja, desaplica-se o n.º 2), havendo reenvio a aplicando-se
a L3.
Ex: L1 L2 (N) L3 (lex rei sitae e que se considera competente)
↑
L4 (RH)
Porque é que damos preferência à L3? Este art. 17.º/3 constitui uma manifestaçã o indirecta do
princípio da maior proximidade: apesar de nã o ter consagrado este princípio com regra geral, o
legislador entende que, por vezes, faz sentido dar competência a uma lei por ser a que está mais
bem colocada para impor o acatamento das suas regras. Existindo um regime específico para os
bens imó veis, o legislador nã o adoptou uma perspectiva geral de dar competência à lei do lugar
dos bens imó veis, mas aceitou dar algum valor a essa lei em certas circunstâ ncias – esta é uma
delas. Porém, nã o é apenas o facto de ser a lei mais bem colocada que fundamenta esta soluçã o;
além disso, a L3 é a lei considerada competente no país da nacionalidade, ou seja, é a pró pria lei da
nacionalidade que determina como competente essa lei. Assim, aceitamos, ainda que a lei da
residência determine que é aplicá vel a lei da nacionalidade, aplicar a terceira lei na medida em que
esta se considera competente e é considerada competente pela lei da nacionalidade. Já se houver
acordo entre a lei da nacionalidade e da residência habitual, temos ainda a ideia de harmonia
jurídica qualificada.
Assim, temos a fundamentar o reenvio o princípio da maior proximidade, que tem valor em
matéria, e ainda e sempre o princípio da harmonia jurídica internacional. Se considerarmos apenas
as leis envolvidas, a L1, 2 e 3 manter-se-ã o em acordo em aplicar a terceira lei.
Trata-se de um afloramento indirecto do princípio da maior proximidade porque para
aplicarmos a lex rei sitae nã o basta que se considere competente, senão que tem que ser indicada
pela lei da nacionalidade.
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L1 L2 L3 (considera-se competente)
L1 L2 (RG) L3 (RM) L1
Essa soluçã o está expressamente consagrada no art. 19º/1 CC. O princípio favor negotii actua
assim como limite ao reenvio, como sua causa de afastamento: se a questã o da validade do negó cio
for decidida em termos opostos pela lei que reenvia e por aquela para a qual se reenvia, prevalecerá
a que tiver o negó cio como vá lido. Pressupostos da sua aplicaçã o:
1) É necessá rio que à partida pudesse haver reenvio.
2) É necessá rio que fazendo-se o reenvio, ele conduza à invalidade do negó cio ou ilegitimidade do
estado
3) Fazendo funcionar a regra do art. 16º (RM), a L2 considere o negó cio vá lido ou o estado legítimo.
De qualquer modo, Ferrer Correia defenda uma interpretaçã o restritiva do art. 19º/1 CC ao
entender que a sua ratio legis é a seguinte: se os interessados realizaram o negó cio jurídico de
conformidade com as disposiçõ es de um sistema de direito material que é o declarado competente
pela regra de conflitos do foro, e se for de crer que eles se orientaram por esta norma de conflitos,
entã o nã o seria justo frustrar a confiança que depositaram na validade do acto. Assim, devemos
fazer uma interpretaçã o restritiva do art. 19.º/1, o que significa acrescentar dois requisitos
fundamentais para que a norma possa ser aplicada, em funçã o da pró pria teleologia desta regra – o
favor negotii, que se funda na ideia da tutela de expectativas legítimas do particular.
Sendo este o fundamento da regra, só podemos aplicá -la quando estiverem preenchidos
dois requisitos adicionais:
• Que o negócio tivesse com a ordem jurídica portuguesa algum contacto no momento da
sua constituição. Porquê? Porque só se houvesse algum contacto com a ordem jurídica portuguesa
é que poderemos de alguma maneira presumir que as partes confiaram ou podem ter confiado na
aplicaçã o da lei designada pela nossa regra de conflitos. Se o negó cio nã o tivesse nenhuma ligaçã o
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com a ordem jurídica portuguesa, nã o se poderia dizer que os particulares confiaram na aplicaçã o
da nossa regra de conflitos portuguesa. Este é o índice mínimo para podermos presumir que os
particulares confiaram nessa regra, ou seja, presumimos que os particulares confiaram apenas na
regra de conflitos, nã o formulando aqui maior exigência.
• Temos de estar perante um negócio jurídico, ou um estado, já constituído, isto é, o art.
19.º/1 aplica-se apenas a relaçõ es jurídicas já constituídos e nã o também a negó cios jurídicos a
constituir. Nos negó cios jurídicos a constituir, ainda nã o há nenhuma expectativa legítima a
proteger. Isto assume relevâ ncia prá tica no caso de negó cios jurídicos a celebrar em Portugal com
intervençã o de um agente do Estado ou autoridade pú blica.
O Có digo de 1966 só aceitou o reenvio com fundamento autó nomo no favor negotii na hipó tese
de a invalidade do negó cio resultar de vício de forma, arts. 36.º/2 e 65.º/1 CC. O art. 36.º/2 trata da
forma geral; o art. 65.º/1, da forma do testamento. Imaginemos que, segundo a L2 (lei do lugar da
celebração), o negó cio é invá lido; mas que esta lei remete para uma L3, segundo a qual o negó cio é
vá lido. Aceitamos o reenvio e aplicamos a L3 na busca da validade formal e independentemente de
ela se considerar competente (ao contrá rio do que sucede no art. 17.º/1). A forma observada é
uma daquelas que sã o reconhecidas pela ordem jurídica do país da celebração do acto, o que se
considera bastante. A mesma ideia está presente no art. 65.º/1 em matéria de testamentos. Assim,
nos termos dos artigos mencionados, o favor negotii funciona como um fundamento autó nomo do
reenvio: é ele que faz com que nã o apliquemos a lei designada pela regra de conflitos, mas sim uma
terceira lei.
Estas normas têm hoje uma aplicaçã o residual. Em matéria de forma, há regras de conflitos
especiais nos instrumentos europeus que derrogam estes artigos. (Veja-se o Regulamento Roma I;
Regulamento Europeu das Sucessõ es).
Em alguns casos podemos falar de conexõ es que sã o por natureza anti reenviantes, ou seja,
que, quando existam, em princípio nã o devíamos aceitar o reenvio. Onde costumamos ver estas
conexõ es?
1) Vontade das partes. Nã o há reenvio (mas sim mera referência material) se a lei
estrangeira tiver sido designada pelos interessados, quando essa designaçã o for permitida. Existe
esta conexã o em matéria obrigacional, sucessó ria, divó rcio, extracontratual, alimentos, etc... Nestes
casos o que as partes querem é designar uma ordem jurídica material para reger o contrato, logo
deve entender-se que essa escolha é dirigida ao direito material. Em tese, seria possível que as
partes quisessem estar a remeter para o DIP dessa lei, mas isto nã o sucede na prá tica. E mais – em
rigor, nã o temos aqui um conflito de sistemas, uma vez que a vontade das partes é a de aplicar um
certo sistema de direito material. Em suma, deve aplicar-se a lei designada pelas partes, mesmo
que essa lei nã o se considere competente. Esta ideia está consagrada no art. 19º/2 CC.
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Eduardo Figueiredo 2016/2017
Nota: Mas as partes, ao escolher a lei espanhola, podem estar a contar com o
funcionamento da regra de conflitos espanhola. Nestes casos o que temos é um problema de
interpretaçã o da vontade das partes.
3) Princípio da conexão mais estreita. (P.e. 52º/2 e 60º/2 CC). Nã o teria muito sentido
mandar aplicar a lei que tem uma conexã o mais estreita e depois aplicar-se outra lei para a qual
esse ordenamento remete. Deve aplicar-se o ordenamento jurídico indicado mesmo que ele não se
considere competente.
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FERRER CORREIA pronuncia-se a favor da primeira acepçã o: nos casos que ela pretende
abranger, a competência da lex rei sitae impõ e-se a todas as luzes – trata-se de patrimó nios
destacados de um patrimó nio geral, sendo-lhes aplicado um regime especial; e a afectaçã o a um
regime especial justifica-se por razõ es ponderosas, de política social ou econó mica.
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• Essa aplicaçã o do direito do lugar da situaçã o do bem nem sempre é exigida. Nem sempre
o reconhecimento de uma sentença estrangeira (hoje, cada vez menos) está dependente de ter sido
aplicado um determinado direito material (no caso, do lugar da situação do bem). Ou seja, em
muitas circunstâ ncias, este princípio não é uma condição necessária para a eficácia da decisão
judicial.
• Se o Estado do lugar da situaçã o do bem for tã o exigente quanto ao regime jurídico dos
bens nele situados, normalmente exigirá que sejam os seus tribunais a regerem esses bens. E,
nessa circunstâ ncia, qualquer sentença estrangeira nã o poderá produzir efeitos nesse país – ou
seja, a aplicação de DIP não é condição suficiente para que uma sentença estrangeira seja
reconhecida.
Em suma, pode nã o ser nem necessá rio, nem suficiente – e foi por isso que FERRER
CORREIA propô s no anteprojecto do Có digo uma regra que consagrava o princípio da
proximidade nesta acepçã o ampla apenas se tal fosse necessá rio e suficiente para assegurar uma
sentença do juiz português. Este artigo nã o passou; porém, ficaram dois afloramentos deste
princípio no nosso Có digo, o art. 17.º/3 e o 47.º.
Em suma: a primeira acepçã o vale inteiramente entre nó s; a segunda, apenas nos arts. 17.º/3
e 43.º.
Trata-se de um conflito positivo de sistemas de DIP em que está em causa saber qual é o
tratamento a dar a uma relação jurídica que foi constituída no estrangeiro, e que é vá lida à luz da
lei do lugar onde se constituiu, mas que não é vá lida à luz da lei indicada pela nossa regra de
conflitos. No que toca à s situaçõ es internacionais constituídas no estrangeiro, nã o deverá aceitar-
se uma ideia de competência alternativa, de modo a que essas relaçõ es possam ser reconhecidas
ou com base na lei de primordial designaçã o (a indicada pelo DIP do foro), ou com base naquela
conforme a qual foram criadas.
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Este problema começou a sentir-se muito em 1920-1930, quando as ordens jurídicas eram
estritamente nacionais e fechadas sobre si mesmas - a regra de conflitos era um instrumento que
tinha cará cter absoluto e formal, nã o conseguindo o DIP responder à s necessidades de tutela das
expectativas individuais e promover uma boa coordenaçã o das ordens jurídicas. Já vimos que hoje a
regra de conflitos nã o é vista dessa forma absoluta, mas sim de maneira relativa, podendo “cair” a
nossa regra de conflitos e aplicar-se consequentemente uma regra de conflitos estrangeira em prol
da prossecuçã o das finalidades fundamentais do DIP e de justiça conflitual. (embora este método
nã o seja absoluto, existindo outros que visam a prossecuçã o destas finalidades fundamentais do
DIP)
A noçã o de direito adquirido tem sido usada no DIP para diversos fins:
• Para conciliar a prá tica universal da aplicaçã o de direito estrangeiro com o princípio da
territorialidade das leis e o dogma da soberania estatal – teoria dos vested rights, que assume hoje
um interesse meramente histó rico.
• Para PILLET e seus continuadores (entre os quais, entre nó s, MACHADO VILLELA), o
conflito de leis e o reconhecimento de direitos adquiridos sã o problemas distintos porque, na
hipó tese de reconhecer, no Estado do foro, uma situaçã o cujos factos constitutivos estavam todos
em contacto com um ú nico ordenamento, nenhum conflito de leis se divisa.
• Para BAPTISTA MACHADO, o reconhecimento dos direitos adquiridos decorre do
princípio da nã o transactividade: uma lei é aplicável a todos e quaisquer factos que apenas estejam
em contacto com essa lei; e qualquer lei é potencialmente aplicá vel a quaisquer factos que estejam
conectados com ela. FERRER CORREIA critica esta formulaçã o – apenas se pode retirar da natureza
da lei enquanto regula agendi que nenhum obstá culo deriva a que uma norma material se aplique a
determinadas situaçõ es factuais, desde que entre estas e a norma exista uma conexã o susceptível
de relevâ ncia jurídica.
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aplicaçã o. De acordo com estes autores, a partir do momento que a lei do foro nã o tenha vontade
de aplicaçã o, esse OJ reconheceria qualquer situação constituída à luz de uma ordem jurídica que
queira aplicar-se. Esta é uma soluçã o que resulta do pró prio funcionamento normal unilateralismo.
Ora, estes autores, por um lado, ao serem demasiado favorá veis ao reconhecimento, negligenciam
o título do reconhecimento, isto é, podem reconhecer situaçõ es jurídicas criadas a luz de uma lei
que tem poucas conexõ es com o caso; por outro lado, podem ser demasiado restritivos, porque em
todas as situaçõ es que a lei do foro se considerar competente, eles nã o vã o reconhecer essas
situaçõ es criadas por outras ordens jurídicas que na altura possam ter conexã o com o caso.
À partida, o sistema bilateralista é menos favorá vel ao reconhecimento de direitos
adquiridos que o sistema unilateralista. A regra de conflitos bilateral tanto delimita os casos de
aplicaçã o da lei do foro, como da lei estrangeira, tanto nas situaçõ es a constituir como nas situaçõ es
a reconhecer. Reconhece-se, quanto a estes, três fases distintas:
1)Fase de esterilidade
Pensamos na obra de PILLET e MACHADO VILLELA. Esses autores deram um contributo
estéril para este problema, porque nã o abandonaram a rigidez bilateralista. Defendiam que se
deviam distinguir entre situaçõ es a constituir (conflito de leis) e situaçõ es a reconhecer (problema
cientificamente autó nomo de reconhecimento), tendo sido esse o seu grande mérito.
Mas depois, defendiam que só se devem reconhecer as situaçõ es já constituídas que tenham
respeitado o direito competente de acordo com a regra de conflitos do foro, o que é totalmente
estéril.
2)Fase da abertura
A abertura começou a sentir-se a partir do momento em que a doutrina começou a
reconhecer limites de aplicaçã o espacial à s regras de conflitos – quando uma situaçã o é criada sem
qualquer conexã o com a OJ do foro, nã o se deve aplicar a regra de conflitos do foro. Inicialmente,
alguns autores começaram por defender que o reconhecimento de direitos adquiridos devia ser
feito sempre que a situaçã o, embora constituída sem contacto com o foro no momento da sua
constituiçã o, fosse vá lida face à unanimidade das OJ envolvidas – MERGERS e BATTIFOL.
Ora, exigindo a unanimidade das OJ, reconhecem poucas situaçõ es. Para mais, podemos
chegar ao mesmo resultado por outros institutos - se há unanimidade em todas as OJ, é possível o
reenvio porque há harmonia jurídica internacional (Ferrer Correia); Baptista Machado diz que se
todos estã o de acordo, nã o há conflito de leis.
Na sequência desta construçã o, MAKAROV defende que, neste contexto, basta a maioria
preponderante. Aqui há mais situaçõ es de reconhecimento, embora se crie o problema de saber
como se densifica esse conceito de “maioria preponderante”
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Nas situaçõ es a constituir, a lei aplicá vel era determinada pela regra de conflitos do foro,
assim como nas situaçõ es a reconhecer com contacto com o foro. Porém, quanto à s situaçõ es a
reconhecer sem contacto com o foro, nã o deve fazer-se funcionar a regra de conflitos do foro, mas
sim a lei que presidiu à constituiçã o da relaçã o. Por conseguinte, nenhuma investigaçã o terá de ser
feita acerca da competência dessa lei.
VALLADÃ O partilhava desta posição, excluindo apenas os casos de ordem pú blica, fraude
à lei e competência exclusiva da lei do foro. Já GRAULICH prescinde destes critérios.
Ora, todas as teorias avançadas ao longo dos séculos permitem-nos perceber que a soluçã o
está num equilíbrio entre os seguintes aspectos:
• Tutela da confiança das partes;
• Defesa da justiça conflitual – o nosso ponto de partida é sempre uma ideia de justiça
internacional privatística, com finalidades pró prias - assegurar e promover a estabilidade e
continuidade da vida jurídica internacional.
• Princípio da Favor Negotii
À luz destes princípios, entendemos que devemos assim aceitar situaçõ es jurídicas
constituídas à luz de leis estrangeiras, diferente da designada pela regra de conflitos. Para FERRER
CORREIA, a solução é que se adopte, com vista à hipó tese da situaçã o plurilocalizada criada em
país estrangeiro, um sistema de conexã o mú ltipla alternativa, devendo a alternativa resolver-se a
favor da lei segundo a qual os factos constitutivos (ou extintivos) da mesma situação se realizaram
por modo juridicamente vá lido”.
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porque é expressã o de uma ideia mais ampla, para a doutrina justifica-se ir além da letra do art.
31.º. Isto é, ao mesmo tempo que se impõ em certos requisitos, a doutrina propõ e uma série de
interpretaçõ es extensivas e analó gicas.
3) Negócios celebrados segundo uma lei que não se considera competente: podemos
dispensar o requisito de a lei se considerar competente, no caso de a lei do país da residência
habitual (ou da nacionalidade, por analogia, como veremos abaixo) considerar como competente a
lei do lugar da celebração.
4) Negócios celebrados por uma lei para a qual remete a lei da nacionalidade, e de acordo
com a qual o negócio é válido. Este ponto implica maiores desenvolvimentos. Com efeito, com
esta interpretaçã o extensiva do art. 31.º/2, chegamos a uma dificuldade: poderíamos estar a dar
mais valor à residência habitual do que à nacionalidade. Assim, FERRER CORREIA faz uma
interpretaçã o analó gica com a nacionalidade. A lei da nacionalidade é a lei que consideramos
competente em matéria de estatuto pessoal.
Negócio é válido
Em matéria de estatuto pessoal, vimos que a lei é mais exigente (art. 17.º/2): nestes casos,
cessa o reenvio, ou seja, de acordo com as nossas regras a lei aplicá vel seria a lei da nacionalidade,
que considera o negó cio invá lido. Esta soluçã o justifica-se no caso do reconhecimento de direitos
adquiridos? Se considerá ssemos que nã o se aplicava o art. 31.º/2, estaríamos a dar mais importâ ncia
à lei da residência (se fosse esta a remeter para a L3, já se validava o negó cio). Porém, faz todo o
sentido, à luz do art. 31.º/2, aceitar também aqui o reconhecimento dos direitos adquiridos. Esta
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soluçã o justifica-se tecnicamente por duas vias: recorrendo simultaneamente a uma extensão
analó gica do art. 31.º/2, e a uma interpretação extensiva do art. 17.º/2.10
Ao mesmo tempo que se comprova a necessidade de estender a regra do reconhecimento à s
situaçõ es jurídicas criadas ao abrigo da lei para que remete a norma de conflitos da lex patriae, verifica-
se também a de restringir o preceito do art. 17.º/2 à s relaçõ es constituídas ou a constituir no Estado do
foro.
E se a terceira lei, em vez de se considerar competente, fizer uma referência material para a
lei da nacionalidade? Mais uma vez, a analogia que vimos para a residência habitual justifica que
aceitemos que se aplique a L3, ainda que esta nã o se considere competente.
Concluindo, podemos dizer, com FERRER CORREIA, que o texto referido no Có digo
Português não é senã o um caso particular de aplicaçã o de uma directiva geral: a que nos leva a
adoptar soluçõ es inspiradas por uma ideia de reconhecimento das situaçõ es jurídicas
multinacionais criadas ao abrigo de leis estrangeiras, mesmo que essas leis se nã o mostrem
aplicá veis, à luz dos critérios normais de atribuiçã o de competência consagrados no direito de
conflitos do foro.
Neste caso verifica-se o 17º/1; mas também o 17º/2 que exclui o reenvio (a lei aplicá vel é a L2 ao
abrigo do art. 16º). Se fosse uma situaçã o a constituir (celebraçã o do casamento) aplica-se a L2 e o negó cio era
invá lido. Mas como se trata de uma situaçã o de reconhecimento (o casamento já se celebrou), devemos aplicar
a L3 por interpretaçã o analó gica do art. 31º/2 CC. Esta interpretaçã o do art. 31º/2 tem um efeito sobre as
regras do reenvio. De acordo com as regras do reenvio, nã o existia reenvio e aplicaríamos a L2; mas com a
aplicaçã o analó gica deste artigo, aplicamos a L3. Nestas situaçõ es o art 17º/2 fica restringido e limitado.
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- Conflitos interpessoais
O n.º 3 do art. 20.º trata dos conflitos interpessoais: dentro de um sistema jurídico complexo,
podem existir regras de direito material diferentes para categorias de pessoas diferentes,
geralmente em torno de questõ es como religiã o e etnia. Assim, o n.º 3 diz que devemos atender às
regras de conflitos interpessoais. Normalmente, quando o elemento de conexão é o da
nacionalidade, pelo contexto da vida daquele sujeito e da sua pertença a esta ou aquela
comunidade, nã o será difícil de encontrar qual das leis pessoais em que se insere. Se tal nã o for
possível, devemos resolver o problema com base na ideia de conexã o mais estreita.
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O Regulamento 650/2012, relativo a sucessõ es, tem uma regra aplicá vel aos conflitos interlocais
(art. 36.º) e aplicá vel aos conflitos interpessoais (art. 37.º).
O n.º 3 nã o faz uma distinçã o quanto ao elemento de conexã o em causa, aplica-se a todos;
enquanto que o n.º 1 fala apenas no elemento da nacionalidade. E se o problema for causado por
outro elemento? Normalmente, a regra de conflitos já resolve o problema: por ex., se for
competente a lei da residência habitual, o sujeito terá residência num dos estados. Ou seja,
normalmente as outras conexõ es trazem em sia resoluçã o do problema.
O juiz português pode ser chamado a aplicar lei estrangeira, e podem surgir problemas quanto à
interpretaçã o deste direito. Mais – além da questã o da interpretaçã o, podem surgir problemas de
cogniçã o do direito estrangeiro.
O primeiro aspecto a reter é o de que o direito estrangeiro tem um cará cter de verdadeiro
direito. Existe uma grande discussão em torno da questã o de saber qual o estatuto do direito
estrangeiro: se é um verdadeiro direito ou antes um facto. Em certos Estados (ex: Reino Unido e
França – Caso Bisbal), considera-se que o direito estrangeiro é facto, isto é, a existência e conteú do
do direito estrangeiro têm de ser provados pelo interessado na sua aplicaçã o, nomeadamente com
a intervençã o de peritos.
Em face do nosso direito, podemos dizer que o direito estrangeiro é verdadeiro direito, sendo
aplicado como tal. Temos aqui uma base legal dupla:
• Art. 348.º do CC: refere-se a direito consuetudinário, local ou estrangeiro e estabelece que,
apesar de as partes deverem provar o conteú do e existência do direito estrangeiro, o juiz deve
procurar ex officio averiguar o seu conteú do. Devemos interpretar a primeira parte do artigo como
um mero dever de colaboração dos particulares com o juiz. Ao nível do direito europeu, temos a
rede judiciá ria europeia, em matéria civil e comercial – em Portugal, há um juiz que serve de ponto
de contacto. Outro meio é recorrer ao chamado GGDDC, que funciona junto da Procuradoria Geral
e tem uma base de dados de direito estrangeiro.
• Art. 674.º do CPC: temos de conjugar o n.º 1, al. a) e o n.º 2. Este artigo refere-se aos
fundamentos do recurso de revista, sendo um deles a violaçã o de lei substantiva – mas poderá esta
lei ser estrangeira? O n.º 2 resolve esta questã o, dizendo que as normas emanadas de ó rgãos de
soberania estrangeiros consubstanciam lei substantiva, susceptível de justificar recurso de revista.
Neste momento, há um dado legal que indicia uma concepçã o diferente - art. 43º-A do
Có digo Registo Predial. Junto dos serviços de registo predial, sempre que se queira registar um
direito relativo a um bem imó vel, fundado na aplicaçã o da lei estrangeira, as conservató rias do
registo exigem que seja o interessado a comprovar o conteú do da lei estrangeira.
Note-se que o direito estrangeiro é tomado em consideração tal como existe na ordem
jurídica pró pria, logo devemos atender à s fontes desse direito. Se, porventura, o juiz português
tiver dú vidas quanto à compatibilidade da norma com a ordem constitucional desse Estado, deve
decalcar os seus poderes dos do juiz local. Assim, sendo o tribunal português deve fazer um
controlo da constitucionalidade da lei estrangeira face a lei estrangeira se os tribunais do estado da
lei competente também puderem fazer esse controlo. Se se remeter para um OJ com controlo
difuso da constitucionalidade, o juiz português também o pode fazer. Se a regra de conflitos
reconhecer a
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Sendo assim:
1) Quando digo que a lei competente é a francesa, aplica-se todo o direito material de origem
estadual, como todas as normas de DIPú blico ou DUE vigentes na França.
2) Este chamamento vale inclusivamente para as normas que tenham sido postas em vigor por
uma autoridade de ocupaçã o num Estado e independentemente de esse ocupação ter sido ou
nã o reconhecida de acordo com o DIPú blico. O mesmo vale para situaçõ es de governos exilados
que mantêm em vigor as suas normas para os sú bditos desse governo.
3) Nã o têm de ser normas de origem legislativa. Podem aplicar-se normas de direito
consuetudiná rio ou de origem jurisprudencial se estiverem em vigor nesse Estado.
O juiz tem mecanismos que facilitam esta actividade como a Internet e outros mecanismos
institucionais que facilitam a determinaçã o do conteú do da lei estrangeira - P.e. Convençã o de
Londres de 1968 e Convençã o de Brasília de 1972. Para além disto, isto também vem previsto nas
convençõ es bilaterais de cooperaçã o jurídica e judiciá ria, designadamente com os países de língua
oficial portuguesa.
Pode acontecer que, mesmo existindo estas convençõ es, podem colocar-se problemas na
averiguaçã o do conteú do da lei estrangeira. O que se há -de fazer? À partida, existiriam vá rias
soluçõ es possíveis:
1) Poderíamos pensar numa denegação de justiça – recusa-se dada a proibiçã o do non liquet.
2) Determinar ou decidir contra a parte que invoca a aplicaçã o da lei estrangeira - nã o é aceitá vel
porque estaríamos a tratar o direito estrangeiro como matéria de facto e ele é tratado como
matéria de direito. O interessado nã o tem o ó nus da prova do conteú do da lei estrangeira.
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3) Recurso a presunçõ es. Sempre que nã o consigamos determinar o conteú do da lei estrangeira,
deveríamos recorrer a presunçõ es de modo a determinar o direito provavelmente em vigor num
estado, recorrendo-se à s famílias de direito e princípios gerais vigentes.
4) Aplicaçã o da lei do foro. À primeira vista poderia parecer a soluçã o que decorre do art. 348º/3
CC, que deve ser lido em conjunto com o art. 23º/2 CC:
1) O art. 23.º/2 diz-nos que, na impossibilidade de conhecer o direito estrangeiro, se
recorre à lei que for subsidiariamente competente – ou seja, recorre-se a uma conexã o
subsidiá ria. Esta deve ser a soluçã o seguida pelo juiz português: depois de tentar
conhecer a lei primariamente competente, se nã o o consegue, deverá procurar uma
conexã o subsidiá ria.
2) Mas e se o juiz também não conseguir conhecer o direito da conexão subsidiá ria? É
neste contexto que deve recorrer-se (ou também quando nã o existe conexã o
subsidiá ria, por ex., se a conexã o primá ria for a do lugar da situaçã o dos bens) ao art.
348.º/3. Na impossibilidade de conhecer o direito estrangeiro (leia-se, da conexã o
subsidiá ria, se houver), o tribunal recorrerá à s regras de direito português.
Qual a solução defendida por FERRER CORREIA? Na falta de conhecimento directo da lei
estrangeira, devemos recorrer às presunçõ es - famílias de direito, princípios inspiradores de uma
reforma legislativa - porque a presunção também é um modo de prova; sempre que isso nã o seja
possível, entã o, de acordo com o art. 23º/2, devemos abandonar o campo das presunçõ es e
recorrer à lei subsidiariamente aplicá vel (Em matéria de estatuto pessoal, é a lei da residência
habitual); pode ainda acontecer que nã o consiga determinar o conteú do desta lei aplicá vel directa
ou indirectamente ou que nã o exista lei subsidiá ria - só para estes casos se justifica a aplicaçã o da
lei do foro.
Estas sã o soluçõ es um pouco difíceis de aceitar hoje em dia, e assim MOURA RAMOS já veio
defender que é hoje dificilmente aceitá vel que tenhamos de recorrer a estas presunçõ es de base
tã o movediça. Devemos rejeitar esta soluçã o.
Este tipo de soluçõ es vale também para os casos em que nã o conseguimos determinar o
elemento de conexã o usado pela regra de conflitos. Aqui o art. 23.º/2, ú ltima parte, vem resolver
um problema diferente: diz que se recorre a uma conexã o subsidiá ria quando nã o seja possível
determinar os elementos de facto ou de direito que preenchem a conexão primá ria. Por ex., nã o
conseguimos determinar com segurança de que país o sujeito nacional, por falta de documentos.
A norma estrangeira deve ainda ser interpretada como a interpretam no OJ competente, de
acordo com os seus câ nones interpretativos.
Pode acontecer ainda que nã o seja o tribunal a entidade chamada a aplicar o direito
estrangeiro. Nestes casos a entidade que exerça funçõ es pú blicas deverá estar sujeito, em princípio
à s mesmas regras. (excepçõ es: art. 85º/2 Có digo do Notariado e art. 43º-A CRPredial).
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Nestes casos, o juiz deverá afastar a aplicaçã o desta norma estrangeira, com base na reserva de
ordem pú blica internacional (art. 21.º).
É necessá rio distinguir a ordem pú blica interna da de ordem pú blica internacional.
• Ordem pública interna: é o conjunto de todas as normas que, num sistema jurídico dado
revestem natureza imperativa (art. 280.º). Afirma-se como limite à liberdade individual.
• Ordem pública internacional: se a ordem pú blica interna restringe a liberdade individual, a
ordem pú blica internacional ou externa limita a aplicabilidade das leis estrangeiras. A ordem
pú blica internacional é constituída pelos valores jurídicos fundamentais de um Estado, que reputa
essenciais e lhe incumbe proteger. A ordem pú blica internacional do Estado português, que pode
ser diferente das dos outros Estados, é um limite à aplicabilidade de uma norma estrangeira,
independentemente de essa lei ser designada pela regra de conflitos.
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Há três critérios que, só per si, nã o chegam para a mobilizaçã o deste instrumento:
1) Imperatividade – Segundo este critério fazem parte da OPI todos os valores consagrados em
normas pú blicas imperativas. Mas nem todas as normas imperativas integram a OPI. Também
nã o deve ser confundida esta com o catá logo constitucional - nem todas as normas
constitucionais constituem o catá logo da OPI portuguesa.
2) Recurso à natureza dos interesses - põ e-se em causa a OPI sempre que se coloquem em
questã o interesses fundamentais da organizaçã o do Estado. Nã o sabemos, porém, que interesses
sã o estes nem os casos em que podem levar a aplicaçã o da excepçã o.
3) Critério do grau de divergência - viola a OPI uma lei estrangeira, sempre que exista entre ela e
o OJ do foro uma divergência essencial. Também aqui nã o há grande avanço.
Notemos que nã o conseguimos estabelecer um elenco/catá logo dos valores que integram a
OPI, desde logo porque estes valores que compõ em a ordem jurídica internacional têm um cará cter
evolutivo.
ex., a denegaçã o da personalidade jurídica). A violaçã o desta ordem dispensa a aná lise da
averiguaçã o da intensidade dos factos (podemos dizer que o elemento que funciona como
ligaçã o suficiente é o pró prio facto de a questã o poder ser resolvida por um tribunal deste
Estado).
3) Finalmente, interessa a teoria do efeito atenuado da intervenção da cláusula de ordem
pública. Segundo esta teoria, a ordem pú blica internacional opera de maneiras diferentes,
consoante se trate de constituir uma relação jurídica ex novo, caso em que actua sem
qualquer restriçã o; ou os casos em que se visa permitir em Portugal a produçã o de efeitos
de um direito ou uma relaçã o jurídica constituída sem fraude no estrangeiro, caso em que
adquire um efeito atenuado. A ordem pú blica nã o intervirá em regra quando a relação tiver
sido constituída no estrangeiro, apenas se manifestando nos casos mais graves (para B.
MACHADO, isto decorre precisamente da natureza da ordem pú blica, extremamente
sensível a todos os pormenores e elementos fá cticos que na decisã o se congreguem).
6.3. Consequências.
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para o direito material português: em primeira linha, devemos procurar dentro da lei estrangeira
aplicá vel as normas que possam resolver o problema.
Temos aqui uma ideia de menor dano à lei estrangeira: se esta é a lei aplicá vel, mas tem uma
norma incompatível, devemos afastar essa norma e continuar a aplicá -la.
7. A fraude à lei no DIP.
A fraude à lei em DIP integra dois elementos, um elemento subjectivo e outro objectivo:
• Elemento subjectivo: consiste em alguém iludir a competência da lei de aplicaçã o normal, a
fim de afastar um preceito material dessa lei (preceito rigorosamente imperativo), substituindo-
lhe outra lei onde tal preceito, que nã o convém à s partes ou a uma delas, nã o existe.
• Elemento objectivo: a intençã o fraudulenta é levada a cabo através de uma adequada
manipulação da regra de conflitos, normalmente do elemento de conexã o.
Caso Clá ssico de fraude à lei quanto ao elemento de conexã o: Caso Beauffremont. (Séc. XIX)
Caso Clá ssico de fraude à lei quanto ao conceito-quadro: Caso Caron.
Para que tenhamos fraude à lei, é necessá rio que seja possível uma manipulaçã o, e por isso os
elementos de conexã o mó veis prestam-se mais facilmente a este tipo de manipulaçã o. Mas nã o é
somente perante regras de conflito com conexõ es mó veis que podemos ter um caso de fraude à lei.
Este trata-se de um instituto que sofreu largas objecçõ es que levavam a concluir-se que a
fraude à lei em DIP era dogmaticamente iló gica, desvantajosa e inconveniente, porque se entendia
que nã o se podia transpor o instituto da fraude à lei para o DIP, porque verdadeiramente, se se
altera a situaçã o de facto ou de direito, isto quer dizer que a lei potencialmente aplicá vel nunca
chega a ser a lei competente. É ainda praticamente inconveniente porque este seria um instituto
que geraria insegurança quanto aos efeitos a derivar da fraude e provocaria grande incerteza a
aplicaçã o no direito de conflitos de uma clausula geral repressiva da fraude à lei. Estas objecçõ es
culminaram numa posiçã o segundo a qual as ú nicas situaçõ es de abuso deveriam ser aquelas em
que houvesse um verdadeiro abuso de direito ou uma situaçã o destinada a prejudicar ou pô r em
causa interesses de terceiros. (NIEDERER)
Outros autores, como BARTIN, viram a fraude à lei como uma variante da OPI. Este autor
dizia que tanto na OPI como na fraude à lei produzem-se os mesmos resultados: a perturbaçã o
social. No caso da OPI, essa perturbaçã o social deve-se ao facto de a OJ estrangeira pô r em causa
valores fundamentais do foro; na fraude à lei deriva da manipulaçã o de um elemento de conexã o
pelas partes para chegar a aplicaçã o de uma determinada lei.
BAPTISTA MACHADO aponta as diferenças entre a fraude à lei e a ordem pú blica
internacional:
• A excepçã o da ordem pú blica limita-se a proteger o meio jurídico interno contra os
efeitos nocivos que poderiam resultar da aplicaçã o de uma lei estrangeira normalmente
competente; enquanto que o recurso à fraude nã o é utilizado porque a aplicaçã o da lei estrangeira
seja inconciliável com as concepçõ es jurídicas do foro, ou por qualquer razã o que se ligue com o
conteú do do direito estrangeiro.
• Através da excepçã o da ordem pú blica, a justiça privada material do foro sobrepõ e-se à
justiça pró pria do DIP; ao passo que a questã o da relevâ ncia da fraude à lei é apenas uma questã o
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de justiça de DIP. O problema da ordem pú blica só pode pô r-se depois de resolvido o problema da
fraude à lei.
• Por ú ltimo, como já vimos, a excepçã o da ordem pú blica só protege os interesses da lei do
foro; ao passo que a fraude à lei serve ainda para reprimir a fraude à lei estrangeira.
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Em que consiste a sançã o da fraude à lei? Com efeito, a fraude à lei é inadmissível – caso
contrá rio, estaríamos a admitir que, através de uma manipulação dos elementos de facto, se
afastasse a autoridade de um sistema jurídico que, na ausência desta actividade, seria o
competente. A sançã o da fraude à lei consiste no regresso ao estado de coisas a que fraudante
pretendeu evitar, sendo ineficazes os actos jurídicos realizados e os direitos adquiridos em fraude
à lei do foro neste ordenamento jurídico.
Mas a sançã o nã o vai para além disto, ou seja, nã o origina a ineficá cia absoluta dos actos ou
situaçõ es constituídas – assim, se por ex. alguém se naturaliza no estrangeiro com o fim de se
subtrair a uma disposição da lei nacional, nã o há qualquer motivo para negar a eficá cia em termos
gerais à cidadania estrangeira, esta será apenas ignorada na medida em que redunde em prejuízo
da norma fraudada.
Coloca-se ainda a questã o de saber se é admitida a fraude à lei estrangeira: a orientaçã o
clássica pronunciava-se no sentido negativo; porém, hoje admite-se a sua relevâ ncia, pelo menos
quando a fraude tenha consistido no afastamento da lei estrangeira competente a favor doutra
também estrangeira.
1) Pessoas colectivas e internacionalização fictícia das pessoas colectivas - art 3º CSC - Exclui a
possibilidade de existir fraude, graças à conexã o sede real e efectiva da administraçã o. Esta
matéria tem perdido importâ ncia por causa das liberdades fundamentais, nomeadamente com o
reconhecimento do direito de estabelecimento.
2) Contractos e designadamente no caso de internacionalização fictícia dos contractos - Hoje em
dia nã o se fala muito de fraude à lei porque no domínio dos contractos ou o contrato é interno ou
é internacional. No primeiro caso nã o é necessá rio recorrer a fraude à lei porque se o contrato é
interno nã o há escolha de lei; se for internacional, pode haver escolha de lei e nã o há limites ao
leque das leis que podem ser escolhidas. (Ver, porém, art. 3º/3/4 RROMA I)
3) Conexão nacionalidade, no âmbito das pessoas singulares. Aqui também se chegou a acordo
- só devemos recorrer a fraude à lei quando há alteração da conexão da lei pessoal, sempre que a
alteração da nacionalidade nã o se traduza numa integraçã o efectiva na nova comunidade
nacional.
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1. Considerações Gerais.
Vimos que o â mbito do DIP integra o problema do conflito de leis e o conflito de jurisdiçõ es, que
se subdivide em outros dois: o problema da competência internacional dos tribunais portugueses; e
o do reconhecimento de sentenças estrangeiras. O problema do reconhecimento das sentenças
estrangeiras coloca-se quando um juiz estrangeiro, confrontado com uma dada relaçã o jurídica,
aplicou o direito competente e ditou uma sentença – importando agora saber se essa sentença vale
ou nã o em Portugal como um verdadeiro acto jurisdicional.
O reconhecimento de sentenças estrangeiras consiste na atribuiçã o, no Estado do foro, dos
efeitos que lhe competem segundo a lei do Estado em que foi proferida (ou, pelo menos, alguns
desses efeitos). Os efeitos pró prios da sentença sã o normalmente o efeito de caso julgado (apó s,
naturalmente, o trâ nsito em julgado); e o efeito executivo. Também se fala de um efeito constitutivo,
por ex., numa sentença que reconheça o direito de reivindicaçã o – mas isto decorre, em rigor, do
direito material.
Iremos ver apenas o problema da eficá cia no país requerido das sentenças que recaiam sobre
direitos privados; e proferidas, nã o apenas por tribunais judiciais, mas por quaisquer autoridades
que as devam proferir. Interessam-nos todas as decisõ es que, recaindo sobre matéria do â mbito do
direito privado, tenham cará cter jurisdicional e sejam pronunciadas em nome de uma soberania
estrangeira.
Qual é o fundamento das regras do reconhecimento das sentenças estrangeiras? É um
fundamento de índole prá tica: houve um juiz estrangeiro que emitiu uma sentença, e deste acto
geraram-se expectativas legítimas dos envolvidos. Assim, está em causa assegurar a continuidade e
estabilidade das situaçõ es da vida jurídica internacional, a fim de que os direitos adquiridos e as
expectativas dos interessados nã o sejam ofendidos, i.e., tutelar as expectativas dos particulares. Se,
ao olharmos para a lei aplicá vel, os particulares podem ter alguma expectativa, com a intervenção
do tribunal que emita um acto jurisdicional sobre o assunto, estã o exponencialmente aumentadas
estas expectativas. Por outro lado, a propositura de um novo processo poderia dar azo a decisõ es
contraditó rias, ferindo assim a harmonia jurídica material.
Temos assim um fundamento de defesa das expectativas dos particulares, aliado ainda à ideia
de harmonia jurídica material.
No entanto, se aceitá ssemos sem qualquer espécie de controlo a eficá cia das decisõ es provenientes
de uma decisã o estrangeira, isto poderia ofender princípios fundamentais da ordem pú blica
internacional do Estado do foro, quer material, quer processual. Assim, podemos aceitar que o
Estado coloque certas exigências quanto ao reconhecimento de um acto jurisdicional que lhe é
alheio, ou seja, pode justificar-se que o juiz queira fazer algum tipo de controlo.
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produçã o de efeitos como acto jurisdicional, outra a execuçã o da sentença. Há vá rios regulamentos
europeus em que estes aspectos sã o separados.
Em relaçã o ao reconhecimento, o art. 33.º/1 do Regulamento Bruxelas I diz que
nã o há necessidade de recurso a processo; e o actual artigo diz o mesmo – consagram o
reconhecimento automá tico.
Já no que toca à execução, houve uma evoluçã o: o art. 38.º de Bruxelas I diz que,
depois do reconhecimento, é necessá ria uma declaração de executoriedade; já no novo
regulamento, no art. 39.º diz-se que uma decisã o proferida num EM, que aí tenha força
executó ria, pode ser executada noutro EM sem necessidade de declaraçã o de
executoriedade, i.e., aboliu-se o exequato. Porém, nos outros regulamentos mantém-se: ver
art. 28.º de Bruxelas II bis e 43.º do Regulamento de sucessõ es.
• Possibilidade de impugnação das sentenças estrangeiras: apesar de, dentro dos vá rios
EM, o efeito ser o do reconhecimento automá tico, mesmo assim é possível impugnar o
reconhecimento da sentença estrangeira. Existem fundamentos de recusa do reconhecimento, que
sã o essencialmente formais. O art. 45.º de Bruxelas I bis permite a recusa com fundamento em
incompetência internacional; violaçã o de regras de competência que protegem a parte mais fraca
(ex: seguros) e das regras de competência exclusiva previstas no regulamento. A ordem pú blica
internacional também é um fundamento admissível, logo existe nã o só ao nível da lei aplicável, mas
também ao nível do reconhecimento da sentença estrangeira. Note-se que a sentença estrangeira
pode ter aplicado lei estrangeira.
2) Concordata: existe um regime previsto na Concordata de 2004, cujo art. 16.º consagra
um sistema de controlo prévio quanto à s sentenças estrangeiras de declaraçã o de nulidade do
casamento rato e nã o consumado. Este controlo é um controlo meramente formal, sem revisã o de
mérito, sendo um dos requisitos avaliados o respeito pela ordem pú blica internacional. Claro que
podemos sempre dizer que o controlo da ordem pú blica internacional introduz uma dimensã o
material, mas na matriz deste tipo de controlo é uma revisã o formal.
3) Código de Processo Civil: o art. 980.º do CPC estabelece as condiçõ es de conformaçã o das
sentenças estrangeiras exigidas entre nó s (apesar de falar em revisã o e confirmaçã o, isto é a mesma
coisa que reconhecimento). O reconhecimento é competência entre nó s dos tribunais da relaçã o. O
n.º 1 estabelece a necessidade de revisã o e confirmaçã o, o n.º 2 fala da hipó tese de entrar em
Portugal como meio de prova.
Como é que se faz esta revisão e confirmação? O art. 980.º estabelece os vá rios requisitos:
• Al. a): não pode haver dú vidas sobre a autenticidade do documento de que conste a
sentença, nem sobre a inteligência da decisã o. É necessá rio um documento autêntico da pró pria
sentença, obtida por uma certidã o do tribunal estrangeiro; e ainda a inteligência do documento,
aqui no sentido de compreensibilidade, inteligibilidade.
• Al. b): a sentença tem de ter transitado em julgado no país da origem. No sistema
europeu, no regulamento de Bruxelas I nã o se faz esta exigência: é possível em Portugal
reconhecer uma sentença espanhola ainda nã o transitada em julgado, uma vez que se quer
favorecer a circulaçã o as sentenças.
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• Al. c): exige a competência do tribunal estrangeiro, nã o podendo esta ter sido provocada
em fraude à lei; nem podendo a sentença versar sobre matéria da exclusiva competência dos
tribunais portugueses. Há dois sistemas de controlo da competência:
O primeiro, que vigorou em Portugal até 1997, é um sistema de bilateralidade: o
controlo da competência de um tribunal estrangeiro é feito verificando se esse tribunal
estrangeiro é internacionalmente competente de acordo com as nossas regras de
competência internacional. Porém, esta soluçã o está em desacordo quer com o princípio da
necessá ria cooperaçã o entre as autoridades dos diferentes Estados, quer com as exigências
da vida internacional, que reclamam um sistema o mais possível favorá vel à circulaçã o das
decisõ es. Além disso, nenhum Estado pode razoavelmente pretender que só as regras por
ele aprovadas estã o de acordo com o sistema ideal nesta matéria.
Assim, em 1997, passá mos a ter um sistema de unilateralidade: aceitamos a
competência se o tribunal estrangeiro, de acordo com as suas pró prias regras de
competência, era competente. As regras de conflitos de jurisdiçõ es tornam-se unilaterais: as
nossas regras dizem quando os nossos tribunais sã o competentes; e as estrangeiras dizem
quando os tribunais estrangeiros sã o competentes.
Mas temos uma unilateralidade atenuada, com dois desvios: a competência não pode ter
sido provocado em fraude à lei (muito difícil de determinar); e nã o pode tratar-se de matéria de
competência exclusiva de tribunais portugueses.
• Al. d): nã o pode haver litispendência ou caso julgado. A litispendência nã o impede o
reconhecimento se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdiçã o (ou seja, se a acção tiver
sido proposta em primeiro lugar no tribunal estrangeiro). Se tal sucedeu, não podemos, para
recusar o reconhecimento em Portugal, propor aqui uma acção para termos uma litispendência. A
mesma doutrina vale para o caso julgado.
• Al. e): consagra aquilo a que podemos chamar ordem pú blica processual – regularidade da
citaçã o e observaçã o dos princípios de contraditó rio e igualdade das partes.
• Al. f): exige o respeito pela ordem pú blica internacional (aqui material). O reconhecimento
nã o pode conduzir a um resultado manifestamente incompatível com os valores fundamentais do
Estado português.
Note-se que só o primeiro e o ú ltimo requisito sã o de reconhecimento oficioso (art. 984.º). O
que daqui resulta é um controlo formal, com concessõ es à revisã o material. Podemos identificar
duas, visíveis no art. 983.º:
• Art. 983.º/1: o pedido de reconhecimento só pode ser impugnado pela falta dos requisitos
ou se se verificar um dos casos do art. 696.º, interessando-nos a remissã o para a alínea c) – se a parte
vencida traz um documento novo, que só por si implica uma nova decisã o, este é um fundamento
que permite a impugnaçã o. Isto implica uma revisã o da decisã o.
• Art. 983.º/2: se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou colectiva de
nacionalidade portuguesa, a impugnaçã o do reconhecimento pode ainda fundar-se no facto de que
o resultado da acçã o teria sido mais favorável se tivesse aplicado normas de direito português. Um
tribunal estrangeiro decide contra uma parte portuguesa, e o direito aplicá vel não foi o direito
português; porém, de acordo com as nossas regras, a lei aplicá vel deveria ter sido portuguesa.
Neste caso, se o litígio tivesse sido resolvido de forma mais favorá vel, a parte interessada pode
impugnar o reconhecimento. Há uma certa interpretaçã o desta regra que pode ser incompatível
com o princípio da nã o discriminação em favor da nacionalidade: imaginemos que aparte contrá ria
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