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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Direito Internacional Privado

O Direito internacional privado, enquanto ramo de Direito, é o complexo normativo que regula
situações transnacionais mediante um processo conflitual. A cada Estado soberano corresponde um
sistema jurídico e nos sistemas internacionais temos áreas de correspondência e de divergência;
assim, por exemplo, pode e acontece que exista um sistema que atribua um direito que outro proíbe,
ou um sistema que tenha requisitos de validade mais rígidos do que outros. Estas diferenças entre
sistemas devem-se a opções diferentes quanto aos valores ou finalidades a alcançar. Outras vezes,
usam-se técnicas diferentes. As situações jurídicas podem ocorrer apenas na esfera de um Estado
soberano – nesses casos, dizemos que as situações jurídicas são internas.

A sociabilidade humana não para nas fronteiras; há muito que os seres humanos estabelecem
contactos além-fronteiras. As relações internacionais acentuaram-se a partir do séc. XX, o que se deve
a diversos fatores:

A internacionalização da economia;
Os movimentos migratórios;
O surgimento de novos Estados;
Os processos de integração regional;
O desenvolvimento de novas tecnologias de informação e comunicação.
Verificação de mais movimentos de pessoas, capitais e bens incorpóreos, de direitos,
designadamente dos direitos representados por realidades como os valores mobiliários.

Pensemos nos movimentos migratórios.

 Dois portugueses residem em França, onde se casam? Qual será a lei reguladora?

Pensemos no tráfico internacional de bens e serviços.

 Uma sociedade sedeada em Portugal vende um lote de cortiça a uma da Suíça, qual será a lei
reguladora?

Enfim, a regulação jurídica das situações transnacionais coloca três problemas:

1. Em primeiro lugar, o órgão de aplicação tem de escolher a lei aplicável ao caso, sendo que a
lei escolhida vai ter fortes impactos na decisão da questão;
2. Quando surge um litígio transnacional, torna-se também necessário, na falta de convenção de
arbitragem, determinar os tribunais internacionalmente competentes para a questão –
coloca-se assim a questão da determinação da jurisdição competente/competência
internacional;
3. Há ainda o problema dos efeitos que as decisões proferidas por tribunais estrangeiros podem
produzir na OJ portuguesa – surge assim o problema do reconhecimento de decisões
estrangeiras.

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O DIP depara-se assim com três problemas: a determinação do direito aplicável, a determinação da
jurisdição aplicável, e o reconhecimento das decisões. Vamos estudar apenas os problemas da
determinação do direito aplicável e o reconhecimento das decisões.

♢ Regulação de situações transnacionais

Relativamente à regulação das situações transnacionais, é importante ter em conta o aspeto da


internacionalidade e ainda um outro que se prende com o carácter privado das situações.

Será que o DIPrivado não regula questões de DIPúblico?

 Para o Regente, o DIPrivado regula todas as situações em que se coloque um problema de


determinação do Direito aplicável que deva ser resolvido pelo DIPrivado.

A ideia de que apenas se prende com questões de Direito privado prendia-se por uma antiga
lógica de territorialidade do Direito público: o Direito público seria territorial pelo que toca aos
seus órgãos de aplicação, que só aplicariam o Direito público interno. Por outro lado, começou a
desenvolver-se uma lógica de imunidade absoluta de jurisdição dos Estados, segundo a qual um
Estado não poderia ser acionado nos tribunais de outro Estado, salvo em casos verdadeiramente
excecionais – o que significava que os litígios emergentes de uma relação estabelecida por um
Estado ao abrigo do seu Direito público só podiam ser apreciados pelos tribunais desse Estado.
Quando muito, dizia-se que o Estado podia estabelecer relações como se de um privado se
tratasse.

Isto não é exato atualmente, tendo este dogma sido ultrapassado, pois a ideia de territorialidade
foi abandonada, e hoje admite-se que quando se aplica uma norma estrangeira podemos aplicar
não só normas de Direito privado, mas também normas de Direito público com incidência sobre
essas questões. Por outro lado, evoluiu-se de uma conceção ampla de imunidade para uma
estrita, considerando-se que o Estado só tem imunidade no exercício de iure imperii, e não no
âmbito da gestão privada, sendo que nestes últimos os conflitos podem ser regulados.

Relativamente à admissibilidade de pretensões formuladas por Estados estrangeiros, com


fundamento no seu Direito público, nos tribunais locais, regista-se uma vincada diferença de
opiniões:

 Na opinião do Regente, a OJ de um Estado é inteiramente livre de decidir se tutela ou não


juridicamente a pretensão de um Estado estrangeiro fundada no seu Direito público. É de
esperar que um Estado, na falta de motivos especiais, designadamente de solidariedade ou
cooperação judiciária entre os Estados, não admita nos seus tribunais pretensões de Estados
estrangeiros que digam respeito a situações ou aspetos de situações que, em princípio, só
podem ser objeto de regulação na OJ destes Estados.
o O Direito Internacional coloca alguns limites à regulação das situações em que estão
implicados entes públicos no âmbito de outras OJ; para a determinação desses
limites deve estabelecer-se um paralelo com o regime da imunidade de jurisdição.
Em resultado, não será admitida a pretensão de um Estado estrangeiro nos
tribunais portugueses quando esse Estado estrangeiro goze de imunidade de
jurisdição relativamente a litígios emergentes da mesma situação.

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A distinção entre os atos praticados iure imperii e atos praticados iure gestionis não corresponde sempre
ao caráter jurídico-público ou jurídico-privado do ato. Isto por três ordens de razões:

1) Muitos litígios emergentes das relações entre os Estados são arbitrários: se temos um contrato
internacional em que uma das partes é um sujeito público, e em que foi convencionada a
arbitragem, os árbitros têm de determinar o direito aplicável.
2) A imunidade de jurisdição relativamente aos atos praticados iure imperii é renunciável: o
Estado renuncia, por exemplo, quando celebra um pacto atributivo de jurisdição aos tribunais
de outro Estado.
3) A distinção entre atos iure imperii e iure gestionis releva do DIPúblico e não corresponde
necessariamente ao critério de classificação dos atos como sendo de DPúblico ou DPrivado
adotado por uma OJ nacional e, em particular, não corresponde aos critérios seguidos na OJ
portuguesa.

 Distinção entre iure imperium e iure gestionis

O critério de distinção iure imperiu/iure gestionis não corresponde à distinção entre DIPúblico e
DIPrivado: neste ponto há muita controvérsia.

Importa salientar que a imunidade resulta do costume internacional, e por isso o critério de distinção
é um critério de DIPúblico. A ideia base é a de que há determinado tipo de relações que podem ser
estabelecidas por particulares, e que a maioria dos sistemas são regulados por DIPrivado.

o Se um Estado estabelece uma relação deste tipo, essa relação considera-se como sendo
estabelecida no quadro de iure gestiones;
o Mas se a atuação na maioria dos sistemas é regulada por Direito público, não se tratará de
uma questão de Direito privado.

Nesta matéria há uma convenção das Nações Unidas (2005) sobre imunidades, que ainda não está em
vigor, mas que codifica o costume internacional, e vai além dele.

O que daqui decorre é que pode facilmente suceder que um Estado estabeleça um regime especial de
Direito público para um tipo de relação, mas que essa relação para o Direito internacional beneficie
da imunidade de jurisdição.

Esta convenção das Nações Unidas é uma convenção perante a qual o regime jurídico que o Estado
estabeleça para o contrato não é relevante para a qualificação da transação como comercial ou não
comercial. O que daqui decorre é que uma relação que é conformada por Direito público pode ser
para o Direito internacional ser considerada como iure gestiones, para que o Estado não beneficie de
jurisdição, pelo que pode ser julgada pelos tribunais de outro Estado.

Concluindo,

A participação de um sujeito público só obsta ao caráter transnacional da relação quando:

(a) A relação fique diretamente submetida ao Direito público interno;


(b) A relação, por força do DIPúblico, se insira exclusivamente na OJ de um Estado estrangeiro,
por se tratar de uma atuação iure imperii, não ter sido celebrada convenção de arbitragem
válida nem ter ocorrido renúncia à imunidade de jurisdição.

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Em suma, o DIPrivado português é aplicável a todas as relações que, embora implicando Estados ou
entes públicos autónomos estrangeiros, organizações internacionais ou agentes diplomáticos ou
consulares de Estados estrangeiros, sejam suscetíveis de regulação na esfera interna.

 Caráter transnacional das situações reguladas

Se uma situação se insere na esfera de um Estado soberano de forma exclusiva, o Direito que a regula
diretamente é o direito em vigor nesse Estado soberano.

Muitas vezes diz-se que a situação é internacional. O Prof. fala antes de situação transnacional, que
permite evitar a ambiguidade da palavra “internacional”. A situação transnacional é uma situação
que transcende a esfera social de um Estado soberano, entrando em contacto com outras sociedades
estaduais.

Na maior parte das vezes, as situações transnacionais são apreciadas através da aplicação do
DIPrivado de uma OJ estadual. Daí que a internacionalidade da situação seja vista, na perspetiva
desta OJ, como uma estraneidade, i.e., numa formulação muito divulgada, como produto de certos
elementos de estraneidade. Os elementos de estraneidade são os laços que ligam a situação a outros
Estados.

Contudo, o critério de transnacionalidade relevante depende das normas de DIPrivado em causa. A


relevância dos contactos com mais de um Estado soberano pode variar conforme o setor do DIPrivado
em jogo e consoante a matéria em causa.

o No que toca ao Direito de Conflitos geral, a determinação da transnacionalidade está facilitada


quando os laços que se verificam com mais de um Estado soberano constituem elementos de
conexão utilizados pelas normas de conflitos aplicáveis.

 Processo conflitual

O DIPrivado regula as situações transnacionais através de um processo conflitual.

Tradicionalmente, entende-se que o núcleo essencial do DIPrivado é constituído por normas de


conflitos, que são proposições que, perante uma situação em contacto com mais de um Estado
soberano, determinam o Direito aplicável. O que estas normas fazem é indicar a lei que vai fornecer
a regulação material da situação.

Assim, o DIPrivado é um Direito de conflitos. Este conceito não deve confundir-se com três outros,
que são:

- Conflitos de soberania;

- Conflitos de normas;

- Conflitos de sistemas de DIP.

O Direito de conflitos opera a regulação de situações transnacionais por meio de um processo de


regulação indireta: regula as situações transnacionais mediante a remissão para o Direito aplicável.

Na regulação das situações transnacionais, o DIPrivado não opera apenas através do Direito de
conflitos, mas também mediante o reconhecimento das situações jurídicas fixadas por decisão

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estrangeira, sob certas condições – assim, o DIPrivado engloba o Direito de conflitos e o Direito de
Reconhecimento.

♢ Caracterização das normas de conflitos de leis no espaço

São tradicionalmente atribuídas às normas de conflitos de leis no espaço três características:

1. Normas remissivas ou de regulação indireta;


2. Normas de proteção;
3. Normas fundamentalmente formais.

A grande maioria das normas apresentam estas 3 características, mas a característica


verdadeiramente essencial é a de que sejam normas remissivas ou de regulação indireta.

Normas materiais vs normas de regulação indireta

As normas materiais/de regulação direta desencadeiam efeitos jurídicos que modelam as situações
jurídicas das pessoas. Estas normas materiais estabelecem o regime para as situações descritas na
sua previsão e como tal definem situações jurídicas. É o caso dos arts. 483º, 875º e 1672º CC.

As normas de regulação indireta mandam aplicar à situação descrita na sua previsão outras normas
ou complexos normativos. No que toca às normas no DIPrivado, o que fazem é remeter para um
determinado Direito a disciplina da situação. Assim, a função destas normas é designar a OJ que
fornecerá a disciplina material. É o caso dos arts. 25º e 31º/1 e 2 CC.

 Há quem entenda que só as normas materiais são normas de conduta, enquanto as normas de
conflito, em princípio, só têm por destinatários os órgãos de aplicação do Direito, sendo meras
normas de decisão. O Prof. não concorda, pois entende que os sujeitos das situações
transnacionais necessitam de determinar o Direito aplicável para poderem orientar por ele as
suas condutas; ou seja, antes de surgir um litígio. Assim, as normas de conflitos são normas
de conduta, embora de regulação indireta (o Regente segue a orientação de ISABEL DE
MAGALHÃES COLLAÇO): cumprem a sua função reguladora, mas não diretamente e sim
através da remissão para o Direito que vai regular diretamente a situação. As normas de
conflito devem ser entendidas, na sua maioria, enquanto normas de conexão, que estabelecem
uma ligação entre uma situação da vida e um Direito, através de um determinado laço – o
elemento ou fator de conexão. No dizer de RAAPE, o legislador lança a ponte entre uma
situação da vida e uma norma jurídica.

Normas de conexão

As normas de conflitos que integram o sistema de Direito de conflitos são, de forma geral, normas de
conexão, porque conectam uma situação da vida ou um seu aspeto com o Direito aplicável, mediante
um elemento ou fator de conexão.

Esta conexão estabelece-se mediante a seleção de determinados laços que o DIPrivado considera
juridicamente relevantes e decisivos para a determinação do Direito aplicável.

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Os elementos de conexão apresentam fações bastante diversas em relação ao carácter jurídico do seu
conteúdo. Podem consistir em:

(a) Vínculos jurídicos – por exemplo, a nacionalidade;


(b) Laços fácticos – por exemplo, o lugar de residência habitual;
(c) Consequências jurídicas que se projetam num determinado território – por exemplo, o lugar
do efeito lesivo;
(d) Factos jurídicos – por exemplo, a designação da lei aplicável pelos interessados.

A designação dos elementos de conexão em função das matérias implica uma valoração, em que se
avalia qual o elemento de conexão mais adequado à matéria. Como tal, há aqui uma justiça da
conexão, que se exprime na escolha do elemento de conexão mais adequado (às vezes também se fala
de justiça formal).

Todas as normas de DIPrivado são deste tipo. Pode não ser utilizado um laço objetivo, mas sim um
laço subjetivo, como é o laço que resulta da designação pelas partes. Por outro lado, há normas de
conflitos que não utilizam um elemento de conexão determinado. Mas há outras normas de conflitos
que não são decididamente normas de conexão (como é o caso do art. 33º/2 LAV, em que falta por
absoluto o elemento de conexão).

 Aquilo que se pode questionar é: devemos manter a característica norma de conexão como
característica essencial? Ou devemos adotar um conceito mais amplo?

O Prof. considera que se temos normas que não são de conexão, mas que desempenham a mesma
função, devemos considerar também normas de conflito, pelo que a única característica deve ser a
de se tratar de uma norma de remissiva ou de regulação indireta.

Norma formal

As normas de conflito são fundamentalmente formais. No dizer de CAVERS, no método conflitual,


o juiz atua de olhos vendados, porque vai determinar a lei aplicável sem olhar para o conteúdo das
leis em presença, ou seja, não vai atender ao resultado material a que conduz a aplicação de cada uma
das leis em presença.

Este formalismo tem limitações:

o Desde logo, pode questionar-se se só é norma de conflito a fundamentalmente privada –


houve autores que disseram que a escolha se devia fazer em função do conteúdo da norma
em presença;
o Reserva de ordem pública internacional (art. 22º CC) – esta afasta o resultado que conduz à
aplicação da lei estrangeira quando esse for manifestamente incompatível com normas e
princípios fundamentais da OJ nacional. Há aqui um limite de carácter geral.
o Há normas de conflito materialmente orientadas, que atendem ao resultado material – por
exemplo, temos normas em matéria de forma de negócios jurídicos e temos também as normas
em matéria de responsabilidade parental e proteção de crianças da Convenção de Haia.
Verificamos que as normas de conflito apontam para várias leis, sendo suficiente a verificação
de forma escrita por uma dessas leis. Estas normas utilizam elementos de conexão.
o As normas de conflito, mesmo quando são normas formais, são normas que exercem uma
certa função modeladora na disciplina das situações jurídicas – verificamos que

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relativamente a diversos problemas de concretização do elemento de conexão e conjugação


de várias leis, vamos ser orientados pelas normas de conflito. Vamos buscar resposta à
interpretação das normas de conflito. O direito de conflitos não se desinteressa
completamente da resolução do caso e das suas especificidades.

Outros Direitos de conflitos

O DIPrivado não é o único Direito de conflitos – existem outros, como o Direito de conflitos
interlocal e o Direito de conflitos interpessoal. Estes existem nas OJ que são complexas (em que
coexistem diferentes sistemas de Direito privado):

a) A OJ complexa será de base territorial quando comportam diversos sistemas aplicáveis em


diversas circunscrições territoriais – art. 20º/1 e 2 CC;
b) Será de base pessoal quando comportam diferentes sistemas aplicáveis a diversas categorias
de pessoas, a que se refere o art. 20º/3 CC.

Por exemplo:

1. Nos EUA, cada Estado federal tem o seu sistema.


2. No Reino Unido, temos vários sistemas.
3. Em Espanha, o art. 149º/1 CRP permite, dentro de certos limites, que as comunidades
autónomas preservem os direitos locais, e esta permissão foi aproveitada pelas comunidades
gerais para o desenvolvimento de regimes locais.
4. Portugal também é uma OJ complexa porque as ALR têm autonomia legislativa, que diz
respeito às matérias previstas nos respetivos estatutos e que não estejam reservadas aos órgãos
de soberania.

 Sistemas de base pessoal:

A pluralidade de sistemas de base pessoal pode ser estabelecida em função da religião. Foi o que
aconteceu em Portugal até ao séc. XV. Pode depender também de uma opção do interessado.

O art. 20º CC refere-se a “ordenamentos plurilegislativos”, mas é mais correta a expressão


“ordenamento complexo”. Desde logo, porque o ordenamento pode ser complexo em resultado de
outras fontes do Direito que não sejam a lei.

Podemos também distinguir entre os ordenamentos complexos aqueles em que existe uma
pluralidade de sistemas materiais (ex: Espanha) e os em que existe uma pluralidade de sistemas
conflituais (ex: EUA e Reino Unido).

ATENÇÃO: não se deve confundir ordens jurídicas complexas com os Estados compostos. Há
Estados federados sem ordens jurídicas complexas e há Estados comunitários com ordens complexas.

Perante as atuais características da OJ portuguesa, não se coloca ainda o problema do estudo das
ordens interlocais. O direito interlocal e interpessoal irá interessar-nos quando uma norma remeter
para uma ordem complexa, em que o problema será qual dos sistemas internos aplicar.

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Temos ainda o Direito intertemporal, que resolve os problemas de aplicação da lei no tempo, e o
Direito de conflitos público. As normas de Direito público também suscitam a questão da aplicação
da lei no espaço.

PLANOS, PROCESSOS E TÉCNICAS DE REGULAÇÃO DAS SITUAÇÕES TRANSNACIONAIS

⭐ Processos de regulação das situações transnacionais:

Relativamente aos processos de regulação, existe:

1) Um método conflitual;
2) Métodos materiais, como:
o Aplicação direta do Direito material comum;
o Criação de um Direito especial de fonte interna;
o Unificação material de Direito material aplicável.

Muitos autores consideram que o DIPrivado se caracteriza pelo pluralismo metodológico. Também
para estes autores, o “método conflitual”, reportado ao sistema de Direito de conflitos, se contrapõe
a uma série de “métodos de regulação material”.

Para o Regente, isto não é assim: a distinção entre regulação indireta e direta deve fazer-se em função
da necessidade ou desnecessidade de uma valoração conflitual. A valoração conflitual consiste
tradicionalmente na avaliação do elemento de conexão mais adequado para a determinação do
Direito aplicável a uma categoria de situações ou a uma questão jurídica com vista a formular uma
norma de conflitos; mas pode consistir também numa apreciação casuística dos laços que uma
situação concreta apresenta com os Estados envolvidos ou num juízo sobre a adequação material de
determinado Direito para reger uma determinada categoria de situações.

Só temos uma verdade regulação direta material – sem mediação de uma valoração conflitual – em
três casos:

(1) Quando aplicamos o Direito material comum do foro a quaisquer situações


independentemente de comportarem elementos de estraneidade;
(2) Quando se criam soluções ad hoc ou Direito material especial de fonte interna para situações
que comportem determinados elementos de estraneidade, independentemente dos laços que
apresentem com o Estado local – suponha-se que os órgãos legislativos do Estado Y criam um
Direito material especial para regular todos os contratos internacionais ou os tribunais do
Estado Y desenvolvem caso a caso soluções para os problemas jurídicos suscitados por
quaisquer contratos internacionais;
(3) Quando Direito material especial de fonte supraestadual for aplicado a situações
transnacionais, independentemente de uma conexão entre estas situações e um dos Estados
em que vigora esse Direito – é o caso das Convenções internacionais que estabelecem um
Direito material unificado aplicável a certo tipo de contrato internacional na OJ dos Estados
contratantes mesmo que o contrato não tenha uma ligação significativa com nenhum Estado
contratante.

A regulação das situações transnacionais na OJ estadual é, em regra, indireta. A grande maioria dos
ditos “métodos de regulação material” são técnicas de regulação indireta. Por conseguinte, a

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assinalada “pluralidade de métodos” tem mais que ver com uma pluralidade de fontes de regulação
e de técnicas de regulação conflitual do que com um verdadeiro pluralismo metodológico.

Uma OJ tem, entre outras, uma dimensão normativa e uma dimensão institucional:

 Do ponto de vista normativo, as situações transnacionais são reguladas numa OJ estadual


quando as normas e princípios em primeira linha aplicáveis são os que vigoram na OJ desse
mesmo Estado.
 Do ponto de vista institucional, as situações transnacionais são reguladas numa OJ estadual
quando os órgãos competentes para a aplicação do Direito a estas situações pertencem ao
respetivo Estado.

Ex: Uma sociedade sedeada em Portugal celebra com uma sociedade sedeada no Brasil um contrato
para ser executado em Angola. Durante a execução do contrato surge uma controvérsia entre as
partes em que se suscita um problema de interpretação do contrato. Se esta controvérsia não for
resolvida amigavelmente, e na falta de convenção de arbitragem, a questão terá de ser dirimida pelos
tribunais estaduais que forem internacionalmente competentes: como sabemos qual é a lei que regula a
interpretação do contrato?

a) Em primeiro lugar, temos de determinar os tribunais internacionalmente competentes.


b) A questão complica-se quando há vários tribunais competentes (competências
concorrentes). Neste caso, deverá ter-se em conta os sistemas conflituais das diferentes
jurisdições estaduais competentes que podem divergir entre si e atribuir competência a
leis diferentes. Esta avaliação pode ser relevante para decidir qual a jurisdição estadual
que é mais conveniente para a propositura da ação.

(1) Regulação no plano do Direito estadual

Entende-se por regulação pelo Direito estadual aquela que opera na esfera da OJ estadual. Isto
significa que a situação é em primeira linha regulada pelo Direito vigente na OJ estadual em causa e
que este Direito é aplicado pelos tribunais estaduais ou por outros órgãos estaduais de aplicação do
Direito.

ATENÇÃO: planos de regulação ≠ fontes de regulação!

Na medida em que numa OJ estadual vigorem, a par das normas de fonte interna, normas de fontes
supraestaduais, esta regulação pode ser feita tanto por normas internas como por normas
internacionais ou europeias – é o que se verifica com a OJ portuguesa.

Tradicionalmente, todas as situações transnacionais eram reguladas na OJ estadual pelo sistema de


Direito de conflitos.

Em OJ como a portuguesa, o sistema de Direito de conflitos é formado essencialmente por um


conjunto de normas de conflitos bilaterais (i.e., que remetem tanto para o Direito do foro como para
o Direito estrangeiro) e de normas sobre a interpretação e aplicação destas normas bilaterais.

Atualmente:

o Em matéria de Direito pessoal – designadamente, estado, capacidade, direitos de


personalidade, família e sucessões –, as situações transnacionais continuam a ser na sua
generalidade reguladas na esfera de uma OJ estadual;

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o O mesmo não se pode dizer com respeito às relações comerciais internacionais e, em especial,
no que toca aos contratos comerciais internacionais.

Por outro lado, no seio da OJ estadual, surgiram alternativas à regulação pelo sistema do Direito de
conflitos:

 Aplicação direta do Direito material interno comum:

Neste caso, as situações internacionais seriam reguladas como se de situações puramente internas se
tratasse. Por exemplo, em Portugal, a validade do casamento celebrado na Holanda por um holandês
e uma belga, residentes na Holanda à data do casamento, mas que posteriormente estabeleceram
residência em Portugal, seria apreciada segundo o Direito material português.

Trata-se de uma técnica de regulação direta que prescinde de normas de conflitos.

Vantagem: é a via mais fácil para os órgãos de aplicação do Direito que, além de não terem de aplicar
o Direito de conflitos, estão mais familiarizados com o Direito material interno do que com Direito
estrangeiro.

Desvantagem: esta é uma solução que colide com a segurança jurídica e com a harmonia internacional
de soluções, e é incompatível com o DIPúblico:

(a) O Direito aplicável não seria previsível, porque variaria consoante o Estado em que a questão
se colocasse. A aplicação de um Direito diferente em cada Estado fomentaria a desarmonia
internacional de soluções;
(b) Isto conduziria à incerteza sobre as situações jurídicas existentes, o que poderia levar à
frustração de expectativas objetivamente fundadas dos interessados, em contradição com o
princípio da confiança;
(c) Por acréscimo, esta técnica de regulação fomentaria o forum shopping, i.e., a escolha do foro
mais conveniente à pretensão.

Pode questionar-se: não seria possível elaborar as normas sobre competência internacional por forma a que os
tribunais de cada Estado tivessem competência internacional só em relação às situações que apresentam uma
conexão com esse Estado suficientemente forte para justificar a aplicação do seu Direito material?

 Alguns autores apontam nesse sentido. Um Estado pode ter “interesse” em que certas
situações sejam apreciadas pelos seus tribunais mesmo que não exista uma conexão
suficientemente forte para determinar a aplicação do sei Direito material. Isto verifica-se
designadamente em dois grupos de casos:
i. Casos em que a ligação ao Estado do foro, embora insuficiente para determinar a aplicação
do Direito material do foro, chega para justificar a intervenção da ordem pública
internacional;
ii. Casos em que a incompetência dos tribunais do foro conduziria, apesar de não ser
competente o Direito material do foro, a uma denegação de justiça.

É, pois, frequente que as finalidades prosseguidas pelo Direito da competência internacional


justifiquem competências concorrentes de várias jurisdições estaduais. Ao passo que, à luz das
finalidades prosseguidas pelo Direito de conflitos, uma situação deve ser submetida à mesma lei,
qualquer que seja o Estado em que venha a ser apreciada.

Por conseguinte, não é possível assegurar em todos os casos uma coincidência entre a competência
internacional dos tribunais de um Estado e a aplicabilidade do seu Direito material.

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 Criação de um Direito material especial de fonte interna:

Em lugar de aplicar o seu Direito material comum, os Estados podem criar um Direito material
especial aplicável exclusivamente às relações transnacionais.

Nos sistemas em que a lei é a principal fonte do Direito, este Direito material especial terá de ser fonte
legal. Algumas conceções favoráveis à “regulação” das relações do comércio internacional por meio
de soluções materiais especiais de origem jurisprudencial só parecem ser defensáveis perante aquelas
OJ em que vigora um sistema de precedente vinculativo.

Vantagem: oferece uma maior adequação à especificidade das relações internacionais.

Mas até que ponto teremos aqui uma alternativa ao sistema de Direito de conflitos?

 Só constituirá uma técnica de regulação direta se for aplicável a quaisquer situações que
comportem elementos de estraneidade independentemente de uma ligação com o Estado do
foro.

Desvantagem: todas as que foram apontadas supra relativamente à aplicação direta do Direito
material comum.

Na opinião do Regente, se esta técnica de regulação direta é de rejeitar como alternativa global ao
processo conflitual, já nada obsta a que relativamente a certas questões bem delimitadas se possa
justificar a formulação de normas de Direito material especial diretamente aplicável – poderemos
designa-las por normas de Direito Internacional Privado material. Como exemplo temos o art. 54º/2
CC.

Assim, em regra, o Direito material especial vê a sua aplicação depender de uma ligação com o Estado
do foro – trata-se de uma das técnicas de regulação indireta, que não prescinde de normas de
conexão.

No quadro da regulação indireta, a aplicabilidade do Direito material especial pode depender:

(a) Do sistema de normas de conflitos – neste caso, diz-se que o Direito material especial é
dependente. Este não constitui qualquer alternativa à regulação pelo sistema de Direito de
conflitos. A única especialidade está em que o objeto da remissão operada pelo Direito de
conflitos, quando este remete para o Direito do foro, não é Direito material comum mas sim
Direito material especial.
(b) De normas de conexão especiais – neste caso, o Direito material especial é independente. É a
regra. Este Direito material especial delimita o seu âmbito de aplicação no espaço através de
dois pressupostos:
i. Uma conexão com um Estado estrangeiro (ou elemento de estraneidade);
ii. Uma conexão com o Estado do foro – definida por normas de conexão ad hoc (normas
de conflitos unilaterais que se reportam a normas ou conjuntos de normas materiais
individualizadas).

A evolução mais recente não se mostra favorável à criação de corpos de Direito material especial de
fonte interna, que constituam uma alternativa à aplicação do Direito material comum por via do
sistema de Direito de conflitos. Os esforços têm sido principalmente dirigidos à criação de Direito
material unificado ou de modelos de regulação.

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Isto não exclui que se criem normas de Direito material especial para resolver determinados conflitos
específicos, que sejam aplicadas a todas as situações transnacionais. Podemos agrupar estas em dois
grupos:

(i) Normas de aplicação dependente do sistema de Direito de conflitos – é o caso do art.


2223º CC: uma vez que esta norma é aplicável no quadro do título de vigência conferido à
lei portuguesa pelo art. 65º/2 CC, não há qualquer especialidade relativamente ao sistema
de Direito de conflitos. Parece que esta norma deixará de ser aplicável às sucessões
reguladas pelo Regulamento sobre sucessões (art. 27º).
(ii) Normas cuja aplicação resulta de normas de conexão especiais – é o caso das normas que
estabelecem um tratamento específico para os estrangeiros. Geralmente estas normas são
aplicáveis com base num elemento de conexão com o território português, por exemplo, a
localização em Portugal do lugar da execução do contrato de trabalho.

 Unificação internacional do Direito material aplicável

Falamos normalmente de Convenções Internacionais – têm sido as principais fontes de Direito


uniforme. Mas não são as únicas, há também fontes europeias, como dois Regulamentos de transporte
aéreo.

Para averiguar do significado desta unificação internacional para a regulação das situações
transnacionais é fundamental distinguir entre diferentes métodos de unificação internacional. São
estes:

i. Uniformização – consiste na criação, por uma fonte supraestadual, de Direito uniforme, i.e.,
Direito aplicável tanto nas relações internas como nas internacionais. Nas matérias reguladas
por este Direito uniforme, cessa-se ou suspende-se a vigência do Direito comum interno.

É o que se verifica com as Convenções de Genebra contendo:

- A Lei Uniforme em Matéria de Letras e Livranças;

- A Lei Uniforme em Matéria de Cheques.

Estas convenções uniformizam o Direito material aplicável. Não devem ser confundidas com as
Convenções de Genebra sobre:

- Os Conflitos de Leis em Matéria de Letras e Livranças;

- Os Conflitos de Leis em Matéria de Cheques.

Estas últimas convenções unificam o Direito de conflitos, são fonte de DIPrivado e não de Direito
material aplicável.

ii. Unificação stricto sensu – consiste na criação, por uma fonte supraestadual, de Direito
material unificado, i.e., Direito material especial de fonte supraestadual. Ao lado do Direito
comum de fonte interna passa a vigorar na ordem interna um Direito especial aplicável às
situações internacionais.

As principais áreas de unificação do Direito material são a venda internacional de mercadorias, os


transportes internacionais, os direitos sobre embarcações e aeronaves, outras áreas do Direito
Marítimo, o Direito da Propriedade Intelectual e o testamento.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

iii. Harmonização – traduz-se no estabelecimento de regras e princípios fundamentais comuns.


Os regimes continuam a ser diferentes de um Estado para outro, visando-se apenas aproximar
os diversos sistemas nacionais.

A harmonização tem instrumentos específicos tais como:

- Diretivas europeias – atos normativos de DUE que vinculam os EM quanto ao resultado a atingir,
mas deixam aos mesmos EM a escolha da forma e dos meios para o realizar no âmbito da OJ interna.

- Leis-modelo – corpos de regras uniformes propostos ou recomendados para a adoção no Direito


interno ou para que a legislação interna neles se inspire.

Além destes instrumentos específicos, há instrumentos que desempenham outras funções, mas
também constituem um instrumento de harmonização, como os princípios (conjunto sistematizados
de regras emanados por uma base predominantemente comparativa), que servem para influenciar a
OJ de cada Estado.

iv. Criação de Direito material especial optativo de fonte supraestadual (recente) – trata-se de
regimes privativos de situações transnacionais, cuja aplicação depende de uma opção dos
interessados. O Direito comum continua a ser aplicável não só às situações internas mas
também às situações transnacionais em que os interessados não optem pela aplicação do
Direito especial. Exemplos disso são matérias relativas ao Direito das pessoas coletivas e ao
Direito da propriedade intelectual.

Vantagens do Direito material unificado especial supraestadual:

1) Oferece soluções adequadas à especificidade das situações transnacionais e o processo da sua


elaboração tende a conduzir à adoção das soluções mais adequadas;
2) A partir do momento em que uma situação transnacional caia diretamente dentro da esfera
espacial e do domínio material de aplicação do regime convencional, elimina-se o problema
da escolha do sistema local aplicável, com todas as dificuldades que acarreta;
3) Os Estados contratantes assumem uma posição uniforme sobre a regulação jurídica da
situação transnacional, o que contribui para uma harmonia e previsibilidade de soluções;
4) Com o mesmo regime material aplicável nos diferentes Estados contratantes, facilita-se o
conhecimento desse regime pelos interessados, diminuindo os custos de transação.

Esta parece assim uma solução que garante a justiça, adequação à especificidade das situações
transnacionais e a segurança jurídica e facilidade do regime.

Porém, esta solução tem um alcance limitado:

a) Por razões práticas – o processo de unificação é difícil: é moroso, complicado, com custos
elevados.
b) A unificação só permitiria afastar o sistema de Direito dos conflitos se a unificação fosse geral
(se abrangesse todas as matérias) e universal (se as convenções estivessem em vigor para
todos os Estados):
o Ora, a unificação não é geral, dizendo respeito principalmente ao comércio
internacional, progredindo muito pouco noutras áreas, como no Direito da família,
pessoas ou sucessões, o que se entende, visto que nestas situações estão em causa
valores ético-jurídicos.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Por outro lado, nem todas as áreas do comércio internacional se prestam a uma
unificação internacional. Para haver unificação tem de estar em causa determinada
matéria que possa ser delimitada com clareza com base em várias notas. Tal não se
verifica em áreas que assumem grande variação de conformações como alguns
contratos (ex: contrato de consórcio).

o A unificação também não é universal. O número dos Estados que aceita cada
convenção é muito variável. Por outro lado, as convenções são modificadas por
protocolos, que unificam a convenção originária e nem todos os Estados partes na
convenção se tornam partes nos protocolos. Saber qual o regime aplicável torna-se
muito difícil em certos casos.
c) A unificação gera uma certa petrificação do regime aplicável – é muito mais difícil alterar um
regime internacional do que um regime interno/nacional, daí não ser muito recomendável
unificar certas matérias que estejam em expansão ou evolução.
d) Mesmo quando temos uma unificação de determinada matéria, muitas vezes essa unificação
tem um caráter fragmentário ou parcial.

Uma das áreas em que tem havido mais unificação é a do transporte marítimo de mercadorias. Houve
a Convenção de Bruxelas de 1924 para unificação de certas regras de conhecimento; contudo, não
temos um regime geral do contrato de transporte de mercadorias.

e) Há casos de sobreposição de domínio aplicável a certas convenções – se duas convenções


regulam a mesma matéria mas vigoram em Estados diferentes do ponto de vista de aplicação
entre esses Estados, não há problema; mas há casos em que no mesmo Estado vigoram duas
ou mais convenções cujo domínio de aplicação se sobrepõe pelo menos parcialmente. Tal leva
a um conflito de convenções que tem de ser resolvido.
f) Divergências na interpretação e integração – quem aplica o Direito material unificado são os
órgãos estaduais ou os tribunais arbitrais; tal levanta problemas. Na interpretação e integração
do Direito aplicado deve ser preservada a especialidade e autonomia do Direito material
unificado, de forma a tanto quanto possível estabelecer uma uniformidade de interpretação e
integração, independentemente do Estado contratante no qual a questão se coloca.
 Neste sentido, é importante o art. 7º da Convenção de Viena sobre venda de
mercadorias.

O que daqui decorre é que quando interpretamos uma proposição de uma convenção deve fazer-se
uma interpretação autónoma, e não uma interpretação à luz do direito do Estado material do foro.
Essa interpretação deve fazer-se através de critérios próprios, abstraindo-se do conteúdo do Direito
interno do Estado do foro.

Contudo, é inevitável que existam e surjam divergências nos vários Estados:

Quando surjam diferentes correntes interpretativas nos vários Estados, o problema que se coloca é:
quando o órgão de aplicação tem de apreciar um problema dessa natureza, deve seguir a orientação dos tribunais
do foro ou a orientação jurisprudencial da OJ competente segundo o sistema de Direito de conflitos?

1. Quando o órgão de aplicação for um tribunal estadual, há razões para seguir a orientação
interpretativa da OJ competente segundo o sistema de Direito de conflitos. Se procedermos
dessa forma, seguiremos uma orientação com que as partes geralmente poderão contar e onde
há a ligação mais significativa com a situação.

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2. Situação diferente é se o órgão de aplicação for um tribunal arbitral, na medida em que este
tem mais liberdade. Estes poderão ter em conta os princípios comuns aos sistemas em
presença, podendo também atender à própria jurisprudência arbitral. Só será pertinente
atender à orientação de uma particular jurisprudência nacional quando as partes tenham
escolhido o respetivo sistema jurídico para reger a situação.

Relação do Direito material especial optativo com o sistema de Direito de conflitos:

Em princípio, a aplicabilidade destes regimes especiais não depende do sistema de Direito de


conflitos, mas da verificação de pressupostos autónomos que incluem necessariamente um domínio
material de aplicação e uma opção dos interessados.

Entre estes pressupostos podem também contar-se laços relevantes com mais de um Estado, que
exprimem um determinado critério de internacionalidade.

 Regulação por normas de Direito comum do foro autolimitadas

Como referido anteriormente, existem normas de Direito material especial de fonte interna cuja
aplicação, por resultar de normas de conexão especiais, não depende do sistema de Direito dos
conflitos.

A partir de meados do séc. XX, a doutrina chamou a atenção para que a aplicação de certas normas
de Direito material comum também não depende do sistema de Direito de conflitos. Fala-se de
normas autolimitadas e de normas de aplicação imediata ou necessária.

 Quando é que se diz ser autolimitada? Quando é uma norma material que, apesar de incidir sobre
situações reguladas pelo DIPrivado, tem um âmbito de aplicação no espaço que não
corresponde ao que seria atribuído pelo sistema de Direito de conflitos.

Isto pode resultar:

(i) Em primeiro lugar, de esta norma material ser acompanhada de uma norma de conflitos
especial (explícita ou implícita) – por exemplo, com respeito ao contrato de agência, o art.
38º do DL 178/86 determina que aos contratos regulados por este diploma que se
desenvolvam exclusiva ou preponderantemente em território nacional só será aplicável
legislação diversa da portuguesa, no que respeita ao regime da cessação, se a mesma se
revelar mais vantajosa para o agente; encontramos aqui uma norma de conflitos unilateral
que alarga a competência atribuída à lei portuguesa pelas normas de conflitos gerais.
(ii) Em certos sistemas nacionais admite-se que a “autolimitação” também possa ser o produto
de uma valoração casuística, feita pelo intérprete face ao conjunto das circunstâncias do
caso.
 O Prof. LIMA PINHEIRO entende que isso só é aceitável no nosso sistema em
situações excecionais, em que seja necessário integrar uma lacuna através da criação
de uma solução conflitual ad hoc.

A regulação por normas autolimitadas configura uma técnica de regulação das situações
transnacionais em que o sistema de Direito de conflitos é substituído por normas de conflitos ad hoc
ou por uma valoração conflitual casuística.

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 A norma é de aplicação necessária quando o sistema de conflitos, por exemplo, designa uma
norma estrangeira, mas uma norma portuguesa se sobrepõe a essa norma internacional
estrangeira optada.

Na opinião do Regente, o processo é conflitual. Não é um processo material de regulação, mas uma
diferente técnica conflitual que em vez de passar pelo sistema de norma de conflitos passa por uma
norma de conflitos ad hoc ou por uma valoração conflitual casuística.

Este problema não é específico das normas autolimitadas, mas coloca-se também em normas
imperativas em Estados que reclamam a aplicação, de acordo com o Regente.

Em todo o caso, na opinião do Prof., estas técnicas de regulação são excecionais e não estão ao lado
do sistema de Direito de conflitos.

Reconhecimento de situações definidas perante uma OJ estrangeira:

Como verificámos, o DIPrivado também regula as situações transnacionais mediante o


reconhecimento autónomo das situações jurídicas fixadas por decisão estrangeira.

Alguns autores estendem esta técnica de regulação a situações constituídas ou consolidadas numa OJ
estrangeira – ou pelo menos na OJ de um Estado da EU –, independentemente de uma decisão
estrangeira.

 O problema é o seguinte: temos uma situação, independentemente de qualquer decisão


estrangeira, que se constitui ou consolida numa OJ estrangeira – será que se deve sempre verificar
essas decisões quando tal ocorre? Ou só reconhecemos as decisões dessas que estejam de acordo com a
nossa CRP?

A ideia geral é a de que a situação, a partir do momento em que se constituiu ou consolidou numa OJ
estrangeira, o Estado do foro deve reconhecer essa situação, sem fazer depender esse reconhecimento
da lei competente segundo o Direito de conflitos geral. Fala-se num método de reconhecimento.

Tal já inspirou a legislação holandesa, por exemplo, em que um casamento que seja celebrado fora da
Holanda e que seja válido segundo a lei do Estado em que teve lugar ou que se tenha tornado válido
posteriormente de acordo com a lei desse Estado, é reconhecido na Holanda como um casamento
válido.

Esta técnica de regulação apresenta diferenças em relação ao sistema de Direito de conflitos:

a) Só opera quando uma situação “privada” foi previamente definida perante uma OJ
estrangeira. Por conseguinte, esta técnica nunca pode constituir uma alternativa global ao
sistema de Direito de conflitos, visto que é inaplicável quando é apreciada uma situação que
não foi previamente definida por uma decisão estrangeira nem constituída ou consolidada
perante uma OJ estrangeira;
b) Em lugar das normas de conflitos gerais, são atuadas normas de reconhecimento, que
integram uma categoria especial de regras remissivas. As normas de reconhecimento só
remetem para o Direito estrangeiro e condicionam a sua aplicação à produção de um efeito
ou de uma determinada categoria de efeitos.

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Deverá esta técnica ser amplamente admitida?

 De acordo com o Regente, não:


1) Só se devem reconhecer decisões da OJ de um Estado estrangeiro quando haja uma ligação
especialmente significativa entre esse Estado e a situação. Caso contrário, aceitar-se-ia que
a situação fosse definida pela OJ de qualquer Estado, ainda que com base numa conexão
fortuita ou arbitrária, e mesmo que esta situação não fosse reconhecida por nenhuma das OJ
mais bem colocadas para a regular.
2) Por outro lado, não se deve sempre favorecer a OJ que afirma a validade de uma situação
relativamente a uma OJ que nega essa validade, nem se deve favorecer sempre determinado
sujeito jurídico com posição ativa contra o sujeito jurídico com posição passiva; tal levaria
sempre a reconhecer uma decisão quando se constitui ou consolida e tal levaria a um
favorecimento injustificado.

O Regente entende que parece preferível que se reconheça apenas certas categorias de situações que
se constituíram validamente segundo o Direito de conflitos de um Estado que apresenta determinada
conexão especialmente significativa com essas situações, apesar de não ser a conexão primariamente
relevante para o Direito de conflitos do Estado do foro (ex: o art. 31º/2 CC aponta para este sentido).

A técnica de reconhecimento atua a par do Direito de conflitos nesses casos, e atua em dois casos:

a) Quando se trate de reconhecimento da decisão estrangeira;


b) Quando há tutela da confiança depositada na situação consoante o Direito de conflitos no
Estado estrangeiro e quando haja uma relação e ligação significativa com a situação.

Concluindo:

(1) A regulação das situações transnacionais é, em regra, indireta ou conflitual;


(2) Só o Direito material unificado constitui uma alternativa global ao sistema de Direito de
conflitos;
(3) A atuação do sistema de Direito de conflitos é não só uma solução de recurso, mas também a
resposta mais adequada naquelas matérias em que as divergências entre os sistemas jurídicos
resultam de diferentes valorações ético-jurídicas e, mais em geral, do respeito da identidade
cultural das diferentes sociedades estaduais;
(4) O reconhecimento de situações definidas perante um OJ estrangeira constitui uma técnica de
regulação conflitual.

(2) Regulação pelo Direito Internacional Público

Trata-se da regulação que opera na esfera da OJ internacional. A situação é regulada na esfera da OJ


internacional quando:

o Lhe for imediatamente aplicável normas e princípios do DIPúblico (ponto de vista


dogmático);
o Os litígios que lhe dizem respeito forem apreciados por instituições internacionais (ponto de
vista institucional).

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 Relação entre DIPúblico e DIPrivado

As situações transnacionais que tradicionalmente recorrem ao DIPrivado são situações que, embora
tenham contacto com mais do que um Estado, relevam primariamente nas esferas institucional e de
regulação dos Estados: (i) inscrevem-se na esfera institucional dos Estados porque os órgãos de
aplicação do Direito que são chamados a apreciá-las são órgãos estaduais; (ii) relevam primariamente
da esfera de regulação dos Estados porque não são imediatamente reguladas por normas de Direito
Internacional.

A par destas situações surgem agora outras que ao mesmo tempo que colocam um problema de
determinação do Direito aplicável, são relevantes na OJ internacional.

Na atualidade, abstraindo da responsabilidade penal internacional, que não interessa ao DIPrivado,


os particulares podem ser partes na arbitragem quási-internacionalpública e em algumas jurisdições
de organizações internacionais e têm acesso a certas jurisdições internacionais em matéria de direitos
fundamentais, designadamente.

 O que é a arbitragem quási-internacionalpública? É uma arbitragem organizada pelo Direito


Internacional, mas tendo por objeto litígios emergentes de relações estabelecidas com
particulares. Nesta, o mérito da causa não tem de ser decidido obrigatoriamente segundo o
DIPúblico e, portanto, coloca-se um problema de determinação do Direito aplicável.

Perante estas arbitragens quási-internacionalpúblicas parece seguro que o DIPúblico mostra vocação
para regular certas situações transnacionais e que aos particulares sujeitos destas relações é conferida
uma personalidade jurídica internacional limitada.

Em conexão com o acesso dos particulares à arbitragem quási-internacionalpública surge a categoria


das situações quási-internacionalpúblicas, que é mais vasta, uma vez que pode incluir situações em
que os sujeitos particulares têm acesso a jurisdições sem caráter arbitral.

Passe-se agora às relações com organizações internacionais. Em alguns casos as jurisdições


internacionais estabelecidas pelos atos constitutivos de organizações internacionais, ou por atos dos
seus órgãos fundados nos atos constitutivos, para conhecerem de litígios emergentes de relações
internas, também são competentes para os litígios emergentes de relações estabelecidas com
particulares. É o que se verifica, por exemplo, com a Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Não se deve confundir a regulação pelo DIPúblico com a aplicação do DIPúblico à causa. Se tiver
uma situação abrangida por uma convenção arbitral, as normas primariamente aplicáveis são as da
convenção, mas essa convenção permite que as partes acordem a aplicação da lei de uma determinada
ordem estadual.

A hipótese mais frequente é, porém, a de os litígios emergentes de relações estabelecidas pelas


organizações internacionais com particulares serem submetidos à arbitragem transnacional. Trata-
se então de uma arbitragem que não é organizada pelo DIPúblico.

Novos casos de regulação imediata de situações transnacionais pelo DIPúblico foram introduzidos
pela Convenção das Unidas sobre o Direito do Mar (1982).

Também se verifica o acesso de particulares a jurisdições internacionais em caso de violação por


Estados contratantes de Convenções em matéria de direitos fundamentais.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

É muito controverso se além dos casos em que se institui uma jurisdição internacional para apreciar
litígios com particulares há outras situações transnacionais que sejam reguladas imediatamente pelo
DIPúblico.

NOTA: não se deve confundir regulação no plano do DIPúblico com aplicação de um regime material
de DIPúblico. A OJ internacional pode regular a situação, ou um aspeto da situação, mediante a
remissão para um Direito estadual. Inversamente, no plano da OJ estadual, uma situação pode ser
submetida a normas internacionais.

Os casos de regulação pelo DIPúblico aqui visados são outros: aqueles em que o DIPúblico é
imediatamente aplicável, independentemente da mediação de uma OJ estadual.

Importa ainda sublinhar que são ainda limitados os casos em que situações transnacionais são
reguladas imediatamente pelo DIPúblico; é justamente isso que permite distinguir o DIPrivado do
DIPúblico. Estes casos dizem fundamentalmente respeito a certos contratos internacionais celebrados
entre Estados ou entes públicos autónomos e nacionais de outros Estados, ou entre organizações
internacionais e particulares, ou a certos aspetos de situações s transnacionais que dizem respeito a
direitos fundamentais protegidos internacionalmente.

(3) Regulação pelo Direito da União Europeia

Uma vez que o DUE constitui uma OJ autónoma – a OJ da UE – coloca-se o problema da relevância
direta de situações transnacionais perante esta OJ, em termos paralelos ao da relevância direta perante
a OJ internacional.

A primeira impressão é a de que o DUE tem uma vocação mais ampla para regular imediatamente
situações transnacionais, porque de acordo com o entendimento do TJUE e de alguma doutrina, o
DUE auto-executório tem eficácia para os particulares independentemente do Direito interno dos
EM. A seguir-se este entendimento, o DUE é suscetível de eficácia direta para os particulares e, por
conseguinte, certas relações entre particulares podem ser imediatamente conformadas e reguladas
pelo DUE.

Uma parte da doutrina distingue este “efeito direto” da “aplicabilidade direta” ou “vigência direta”
das normas comunitárias na ordem interna:

 Uma norma tem efeito direto (ou é auto-executória) quando os particulares a podem invocar
na ordem interna sem que sejam necessárias medidas internas de execução;
 A dita aplicabilidade direta das normas europeias significa que tais normas vigoram imediata
e automaticamente na ordem interna, sem necessidade de interposição de qualquer ato. Se
por “aplicabilidade direta” se entender a desnecessidade de um ato individualizado de
receção na ordem interna, esta identifica-se com a receção automática do DUE na ordem
interna que resulta dos art. 8º/4 CRP. Por vezes, porém, entende-se a “aplicabilidade direta”
no sentido de o DUE vigorar na ordem interna independentemente de qualquer receção, por
força do próprio primado do DUE; isto leva alguns autores a considerar que não é necessário
distinguir no DUE aplicabilidade direta e efeito direto (ANDRÉ GONÇALVES
PEREIRA/FAUSTO QUADROS).

A relevância das situações entre particulares na esfera institucional da EU é limitada: as jurisdições


competentes para conhecerem dos litígios emergentes das relações entre particulares são

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

normalmente estaduais ou arbitrais. Estas jurisdições não estão hierarquicamente subordinadas ao


TUE.

Pode assim dizer-se que há uma regulação imediata dessas situações pelo DUE?

O mecanismo do reenvio prejudicial, embora faculte, e imponha em certos casos, que o tribunal
nacional solicite o concurso da jurisdição do TUE com respeito à validade de disposições de Direito
derivado e à interpretação do DUE (art. 267º TFUE), representa ainda uma forma de cooperação entre
instâncias nacionais e europeias.

 Na verdade, o TUE não pode anular a decisão do tribunal estadual e o incumprimento pelo
Estado das suas obrigações com respeito à conformação do Direito interno ou o
incumprimento pelo tribunal estadual das suas obrigações só desencadeia o processo geral
previsto nos arts. 258º e ss. TFUE, em que o Estado responde por tais violações do DUE.

Há quem diga, assim, que quando os órgãos estaduais aplicam o DUE estão a agir como órgãos da
UE. LP não concorda – para isso era preciso que o seu estatuto fosse definido pelo DUE e não pela
legislação nacional.

 O Regente considera que a posição mais correta será a de entender que o DUE é superior à lei
ordinária, mas tem valor inferior à CRP (é infraconstitucional). Por conseguinte, as jurisdições
estaduais, quando aplicam o DUE, fazem-no por força de normas da OJ estadual.

Em suma, a situação atual caracteriza-se por um certo compromisso ou transição entre o quadro que
corresponde ao relacionamento do Direito Internacional derivado clássico com o Direito interno dos
Estados por ele vinculados e o que resulta da integração das OJ destes Estados numa OJ complexa.

Em certos casos, porém, as jurisdições europeias têm competência para dirimir litígios emergentes de
relações transnacionais (ex: o TUE tem competência para conhecer dos litígios relativos à
responsabilidade extracontratual). Nestes casos, um tribunal da UE tem competência para decidir, a
título principal, certas questões transnacionais, sendo facultado o acesso de particulares a esta
jurisdição.

Acontece, no entanto, que o DUE ainda não tem regimes jurídico-materiais aplicáveis a estas questões.
Para a obtenção do critério de decisão do caso, o TFUE aponta em dois sentidos diferentes:

(a) No que respeita à responsabilidade extracontratual, o art. 340º/2 TFUE remete para os
princípios gerais comuns aos Direitos dos EM;
(b) No que se refere aos litígios emergentes de contratos de Direito privado ou de Direito público
celebrados pela UE ou por sua conta, o art. 340º/1 TFUE determina que a responsabilidade
contratual da UE é regulada pela lei aplicável ao contrato em causa.

As normas da UE primariamente aplicáveis a estas situações são normas de conflitos.

(4) Regulação pelo Direito Autónomo do Comércio Internacional

A formação de regras e princípios, no seio da comunidade dos operadores de comércio internacional,


que regulam as relações que entre si se estabelecem, é uma constante na história do Direito comercial
e de todo o Direito relativo ao tráfico corrente de bens e serviços.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

LIMA PINHEIRO entende por Direito autónomo do comércio internacional aquelas regras e
princípios aplicáveis às relações do comércio internacional que se formam independentemente da
ação dos órgãos estaduais e supraestaduais, a nova lex mercatoria. Tem em vista, designadamente,
os usos e costumes do comércio internacional e as regras criadas no âmbito da autonomia associativa
dos operadores do comércio internacional ou por entidades gestoras de mercados regulamentados
de instrumentos financeiros.

Estas fontes podem ter determinada relevância para OJ estadual.

A regulação imediata de situações transnacionais pelo Direito autónomo do comércio internacional


(i.e., independentemente da mediação de uma OJ estadual) merece considerável atenção, porque se
verifica a aplicação de normas e princípios de Direito autónomo a muitas relações comerciais
internacionais. Na verdade, a arbitragem transnacional é o modo normal de resolução jurisdicional
de litígios no comércio internacional.

 Teses favoráveis ao Direito autónomo do comércio internacional:

1. SCHMITTHOFF

Para este, a lex mercatoria é encarada essencialmente como Direito material especial do comércio
internacional dotado de um certo grau de uniformidade internacional.

Este autor invoca a falta de flexibilidade dos mecanismos legislativos estaduais e interestaduais na
regulação das relações do comércio internacional e alega que o Direito de conflitos constitui uma
“barreira artificial criada pelo homem à condução dos negócios e à resolução de dificuldades de um
modo prático”. Precisaríamos assim de um Direito comercial internacional autónomo, fundado em
regras uniformes aceites em todos os países – em suma, de uma nova lex mercatoria.

Para SCHMITTHOFF, o Direito autónomo tem de se basear principalmente na autonomia privada no


domínio contratual e no recurso privilegiado à arbitragem comercial internacional. Na conjugação
das duas coisas, decorre o papel do Direito transnacional.

As fontes do Direito transnacional seriam a legislação internacional (Convenções Internacionais de


Direito material unificado e leis-modelo elaboradas por instituições internacionais que os Estados
poderão unilateralmente adotar) e o costume comercial internacional (costume em sentido estrito,
práticas comerciais, usos, cláusulas padronizadas, que foram formulados por agências
internacionais).

Nesta conceção, o acento é colocado na criação jurídica feita pelo legislador internacional e pelas
organizações privadas.

A soberania nacional não se oporá a que, no âmbito da liberdade contratual, as partes possam
desenvolver um Direito autónomo do comércio internacional, contanto que este Direito respeite,
na esfera de cada Estado, os limites impostos pela ordem pública.

Para SCHMITTOF, este Direito transnacional assenta no reconhecimento direto ou indireto pelos
próprios Direitos estaduais, apesar de ocupar um espaço pelo qual os Direitos estaduais à partida se
desinteressam.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Nesta visão das coisas, a lex mercatoria não é concebida como uma OJ autónoma na qual os contratos
internacionais se encontrem radicados. A lex mercatoria desempenha essencialmente uma função
interpretativa e integrativa do negócio jurídico e, eventualmente, o papel de fonte subsidiária da OJ
estadual.

2. GOLDMAN

Segundo a conceção apresentada por este autor, a lex mercatoria é uma OJ autónoma do comércio
internacional – societas mercatorum – ou, pelo menos, é uma OJ em formação.

A lex mercatoria consistirá num conjunto de princípios gerais e regras costumeiras espontaneamente
referidas ou elaboradas no quadro do comércio internacional, sem referência a um particular sistema
jurídico nacional, que exprime conceções jurídicas partilhadas pela comunidade dos sujeitos do
comércio internacional.

Esta conceção também encontra pontos de apoio na autonomia dos operadores do comércio
internacional e na regulação autónoma por eles operada a nível das relações individuais ou por via
de organizações que prosseguem os seus fins coletivos.

Esta tese coloca o acento nas fontes espontâneas:

(a) Numa primeira fase, GOLDMAN e os seus seguidores colocam em primeiro lugar, no elenco
dos elementos da lex mercatoria, as regras de costume internacional, os usos, cláusulas
contratuais gerais e modelos contratuais.
(b) Numa segunda fase, surgem os “princípios gerais de Direito”, encarados como fonte
subsidiária, a que é atribuída uma função integrativa de lacunas deixadas pelas “fontes”
anteriormente mencionadas, e as regras desenvolvidas pela jurisprudência arbitral.

As contribuições mais recentes, porém, tendem a acentuar a natureza pretoriana da lex mercatoria. Os
princípios gerais de Direito e os princípios comuns aos sistemas nacionais envolvidos surgem como
elementos primordiais desta OJ autónoma e a jurisprudência arbitral é elevada à categoria das
principais fontes da lex mercatoria, se não considerada a fonte mais importante desta OJ autónoma do
comércio internacional.

A adesão massiva dos operadores do comércio internacional à arbitragem como modo normal de
resolução jurisdicional dos litígios do comércio internacional e a observância das suas decisões pelos
sujeitos do comércio internacional, aliadas à autonomia que lhe é reconhecida por grande número de
sistemas nacionais, constituem a espinha dorsal desta tese.

Os tribunais arbitrais desempenhariam duas funções: a de dirimir os litígios emergentes das relações
do comércio internacional segundo as regras e princípios transnacionais (órgãos de aplicação da lex
mercatoria) e a de desenvolvimento dessa mesma lex.

Os partidários desta tese concedem que a lex mercatoria não constitui uma “ordem jurídica completa”,
i.e., de uma ordem que regule, no seu conjunto, as relações do comércio internacional:

i. Primeiro, a lex mercatoria limita-se às questões de natureza contratual, na aceção ampla


retida na arbitragem transnacional. Trata-se, na verdade, de um Direito autónomo dos
contratos do comércio internacional.
ii. Segundo, as questões relativas aos pressupostos de formação do consentimento, aos
requisitos de validade do objeto e do fim do contrato e ao poder de representação não
seriam, em geral, reguladas pela lex mercatoria.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

As relações entre a lex mercatoria e a OJ estadual são entendidas segundo duas ideias fundamentais:

1) Por um lado, há uma certa primazia de princípio da OJ estadual em relação à lex mercatoria;
2) Por outro lado, existe uma sobrelevância prática da lex mercatoria, em virtude do recurso à
arbitragem transnacional e da contenção dos Estados no exercício das suas competências
normativas.

Quando se verifique um ponto de contacto entre a lex mercatoria e a OJ estadual, é a OJ estadual que
prevalece.

Para GOLDMAN, a lex mercatoria também é aplicável segundo uma norma de conflitos. Se as partes
escolherem a lex mercatoria, o tribunal arbitral deve aplicá-la e essa aplicação afasta a aplicação das
normas imperativas estaduais. Só não será assim quando se trate de norma de aplicação necessária
que o tribunal estadual deva aplicar ou que o árbitro deva respeitar por se revestir do caráter de
ordem pública transnacional.

Se as partes não escolherem a lex mercatoria, os tribunais arbitrais podem ainda assim decidir aplicá-
la. A lex mercatoria não se apresenta assim como uma mera opção que está a par do Direito nacional,
mas deve ser a opção de preferência, pois é a mais apta a regular as relações económicas
internacionais.

⭐ Significado real da lex mercatoria na regulação das relações comerciais internacionais

Quanto a esta questão existem opiniões díspares:

1) Uma corrente doutrinária entende que os contratos internacionais tendem a ser regulados
principalmente por Direito autónomo do comércio internacional – a lex mercatoria assume
assim real importância;
2) Para os seus principais oponentes, a lex mercatoria não passa de uma fantasia, e não passa, na
melhor das hipóteses, de uma soma de usos setoriais e fragmentários cuja relevância depende
inteiramente do Direito estadual designado pela norma de conflitos.

Onde está a razão?

Existe vasto consenso sobre a existência de ramos da atividade económica marcados por um elevado
grau de internacionalização, de padronização do conteúdo negocial dos contratos e de recurso à
arbitragem para resolução dos litígios deles emergentes. São exemplos os contratos bancários
internacionais, as operações sobre instrumentos financeiros, a venda internacional de mercadorias,
os contratos de prospeção e exploração de petróleo, etc.

Já a averiguação do grau de desenvolvimento da lex mercatoria à escala mundial tem conduzido a


resultados em certa medida contraditórios: a maioria dos estudos assinala que os usos do comércio
internacional se formam, em princípio, no âmbito de cada um dos setores do comércio internacional
e que, por vezes, se revestem igualmente de caráter regional. Afirma-se que raramente os usos obtêm
um reconhecimento à escala mundial.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

 Quanto ao significado da jurisprudência arbitral para o desenvolvimento da lex mercatoria:

Numa primeira fase, as soluções autónomas desenvolvidas pela jurisprudência arbitral incidiram
principalmente sobre questões de caráter processual ou que se suscitam a título prejudicial, à
determinação do Direito aplicável e à relevância dos usos do comércio internacional. Assim, nesta
primeira fase, a jurisprudência arbitral contribuiu mais para o desenvolvimento do Direito
Transnacional da Arbitragem do que para a formação de um Direito material conformador e
regulador dos contratos internacionais.

Nos últimos anos, contudo, o acervo de soluções autónomas formuladas pela jurisprudência arbitral
em crescido consideravelmente.

É preciso sublinhar dois pontos:

1. É limitado o número de casos em que a decisão foi proferida exclusivamente com base em
Direito autónomo do comércio internacional;
2. A jurisprudência arbitral não constitui per si uma fonte do Direito autónomo do comércio
internacional em sentido técnico-jurídico. As decisões arbitrais não constituem precedente
vinculativo, tendo importância imediata apenas para o caso concreto a resolver. As soluções
desenvolvidas pela jurisprudência arbitral só se positivam (ganham validade normativa)
quando integram um costume jurisprudencial: para tal, é necessário que se forme uma
convicção geral, no círculo dos interessados, de que essas soluções são juridicamente
vinculantes.

Ora, o assinalado progresso da lex mercatoria na regulação dos contratos internacionais traduz-se
principalmente no desenvolvimento de soluções arbitrais baseadas na concretização de princípios
gerais e de “princípios” comuns aos sistemas nacionais e em modelos de regulação; mas a maior parte
destas soluções ainda não integra um costume jurisprudencial.

NOTA: a questão da vigência de regras e princípios atribuídos à lex mercatoria não deve ser
confundida com a sua “aplicabilidade” na decisão de litígios pelos árbitros transnacionais.

 Princípios dos contratos comerciais internacionais

Dois passos de grande importância para a evolução da lex mercatoria são:

a) Publicação dos Princípios Relativos ao Comércio Internacional do UNIDROIT – trata-se de


um conjunto sistematizado de soluções, que um vasto grupo de especialistas provenientes de
diferentes culturas jurídicas considerou serem comuns aos principais sistemas nacionais e
mais adequadas aos contratos nacionais.

Para que servem?

i. Há quem entenda que estes princípios devem ser aplicados quando as partes estipularam
nesse sentido ou quando estipularam que os litígios emergentes de um determinado contrato
sejam resolvidos com recurso à lex mercatoria ou forma semelhante.
ii. Outros entendem que estes princípios podem servir como elemento de interpretação e
integração das convenções internacionais de Direito material unificado e Direito material
interno, oferecendo um modelo em que o legislador nacional ou internacional se pode basear.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

b) Publicação dos Princípios de Direito Europeu dos Contratos, a cargo de uma comissão ad hoc
que se formou sob o impulso de LANDO – também estes não são princípios jurídicos gerais,
mas apresentam uma base comparativa mais marcada que os “princípios” do UNIDROIT.

Para que servem?

i. Procuram refletir um fundo comum aos sistemas jurídicos dos EM da EU, embora
pretendam simultaneamente ser “progressivos”.
ii. O principal objetivo dos Princípios de Direito Europeu dos Contratos é o de constituírem
um sistema geral de regras de Direito dos Contratos na UE baseado nos Direitos
nacionais dos seus EM. Enquanto tal, os princípios poderão servir para a criação de uma
“infraestrutura” para a legislação da europeia sobre contratos e inspirar eventualmente
um Código Europeu de Direito dos Contratos.
iii. Destinam-se ainda a ser aplicados quando as partes o convencionem e podem ser
aplicados quando as partes estipulem que o seu contrato será regido pelos “princípios
gerais de Direito”, pela lex mercatoria ou utilizem uma expressão similar e quando as partes
não escolham o sistema ou as regras jurídicas que devem reger o seu contrato.
iv. Podem ainda auxiliar a obtenção da solução em caso de lacuna do sistema ou das regras
jurídicas aplicáveis.

No entanto, note-se que as indicações relativas à aplicabilidade dos princípios são ambíguas e podem
induzir em erro: os “princípios” são meros modelos de regulação que podem ser incorporados no
contrato, com o valor de cláusulas contratuais, ou podem ser recebidos no conteúdo de normas
materiais de um Direito estadual, de uma Convenção Internacional ou de um instrumento da UE.
Contêm uma regulação sistemática para aspetos gerais, mas isso não significa que eles vigorem por
não serem uma codificação de usos ou costumes.

⭐ Apreciação crítica das teses favoráveis ao Direito autónomo do comércio internacional

As teses favoráveis ao Direito autónomo do comércio internacional têm deparado com a oposição da
doutrina tradicional, i.e., daqueles autores para quem as situações transnacionais são sempre
reguladas ao nível da OJ estadual por meio da remissão para um Direito estadual.

 Assim, a opinião dominante na Alemanha encara a lex mercatoria como um “fenómeno


sociológico” – as cláusulas contratuais gerais, os usos do comércio e a jurisprudência arbitral
são realidades sociais, mas estas realidades só relevariam juridicamente mediante a sua
“receção” pelo Direito dos conflitos ou pelo Direito material dos sistemas nacionais
individualmente considerados.

A crítica movida à lex mercatoria assenta em dois postulados:

1. As situações transnacionais só seriam imediatamente relevantes perante as OJ estaduais;


2. A permissão para a criação de Direito por particulares dependeria sempre do legislador
estadual.

Na opinião do Regente, estes postulados são equivocados:

i. Há um determinado círculo de contratos do comércio internacional que são direta e


imediatamente regulados na OJ internacional e na OJ da UE;

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

ii. A doutrina tradicional parte do princípio de que não pode haver fontes do Direito autónomas
relativamente aos Direitos estaduais e supraestaduais, concluindo que as fontes da lex
mercatoria só podem ter relevância se essa lhes for dada pelas OJ estaduais, o que é falacioso,
pois contém a conclusão nas premissas;

À OJ estadual corresponde a sociedade perfeita que integra, na sua globalidade, a vida social e
apresenta um elevado nível de institucionalização e de autossuficiência. Mas a institucionalização de
grupos sociais que prosseguem fins limitados a uma certa esfera de vida (sociedades imperfeitas ou
de fins específicos) também pressupõe a existência de complexos normativos.

Onde se há de encontrar o fundamento dessas regras e princípios autónomos?

No processo de estabilização da sociedade paraestadual (formada por pessoas ligadas a diferentes


Estados), na referência à consciência dos membros da sociedade paraestadual e na conformidade do
ordenamento dessa sociedade perante os princípios gerais do Direito e os princípios geralmente
acolhidos na comunidade internacional.

Nesta visão das coisas, não é inconcebível que exista uma OJ autónoma do comércio internacional ou
uma pluralidade de OJ autónomas. O que ficou exposto é suficiente, na ótica de LP, para concluir que
os postulados em que assenta a crítica da doutrina tradicional à tese da OJ autónoma do comércio
internacional são infundadas.

Ainda assim, da rejeição dos postulados em que assenta a crítica da doutrina tradicional não decorre
necessariamente a aceitação das teses favoráveis ao Direito autónomo do comércio internacional.

Que dizer destas teses?

Em relação à tese de SCHMITTHOFF:

1) Ajusta-se relativamente bem à realidade da arbitragem transnacional, uma vez que os


tribunais arbitrais geralmente atribuem aos usos do comércio uma função interpretativa e
integrativa dos contratos do comércio internacional que é autónomo relativamente à lex
contractus (a lei primariamente aplicável ao contrato). Mas saber se eles desempenham essa
função para os tribunais estaduais, já depende da OJ estadual;
2) Esta tese não justifica a autonomia do Direito transnacional – por um lado, as Convenções
internacionais de Direito material unificado são fontes de DIPúblico, e uma vez recebidas na
OJ interna dos Estados, fontes da sua OJ; por outro lado, esta tese admite que o Direito
transnacional se fundamenta, em última análise, nos sistemas jurídicos estaduais;
3) A teoria das fontes em que assenta esta tese também é deficiente – não podemos considerar
que quaisquer práticas contratuais, leis-modelo, modelos contratuais, cláusulas gerais, são per
se fontes do Direito em sentido técnico-jurídico.
4) Em conclusão, SCHMITTHOFF e os seus seguidores deram um impulso prático importante
para o desenvolvimento do Direito transnacional, mas o seu contributo para a análise
científica e justificação teórica deste fenómeno é bastante limitado.

Em relação à tese de GOLDMAN:

1) Procuraram fundamentar a lex mercatoria como uma OJ autónoma.

Na opinião do Regente, só podemos aceitar que haja um OJ autónoma do comércio internacional se:

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a) Houver um espaço transnacional adequado para o efeito (esfera de ação com autonomia) –
podemos dizer que existe: os principais sistemas jurídicos nacionais e as OJ supraestaduais
permitem que as relações do comércio internacional seja, em primeira linha, reguladas pelos
respetivos sujeitos (autorreguladas), por costumes e usos do comércio internacional, pelo
costume jurisprudencial arbitral e por regras criadas por centros autónomos, só intervindo
para suprir as insuficiências da autorregulação e da heterorregulação autónoma na realização
dos valores da OJ.
b) Existir um determinado consenso básico sobre um certo núcleo de valores comuns, de uma
disposição para prosseguir fins comuns por parte dos operadores do comércio internacional
– temos de saber se o conjunto de operadores do comércio internacional é suficientemente
homogéneo e coeso para dar origem a uma OJ autónoma. O Regente acha que este pressuposto
não se verifica:
i. Os operadores são muito heterogéneos (temos PME, empresas nacionais comuns,
empresas privadas, operadores que vêm de áreas geográficas muito diferentes).
ii. Os pólos organizativos centrais são muito incipientes.
iii. Diferença entre os vários setores do comércio internacional.

Assim, o Regente conclui que não existe uma OJ autónoma do comércio internacional. E entende que
o presente grau de desenvolvimento do comércio internacional está em coerência com esta visão: o
que temos são regras vigentes em determinados setores do comércio internacional ou usos (que não
são fonte imediata de Direito e sim mediata).

Quais serão as fontes imediatas do direito autónomo de comércio internacional?

1. Costume comercial internacional;


2. Costume jurisprudencial arbitral;
3. Regras criadas por centros autónomos de regulação.

Para que se forme uma OJ autónoma de comércio internacional não basta que os tribunais arbitrais
possam encontrar critérios de solução, mas têm de se positivar num costume jurisprudencial. Tal não
exclui, contudo, que possam existir ordenamentos autónomos sectoriais.

Interessa contudo assinalar que a formação por via consuetudinária ou no quadro de organizações
setoriais de regimes jurídicos fragmentários do comércio internacional não depende da sua integração
numa OJ autónoma, na societas mercatorum, nem da sua inclusão num ordenamento autónomo
sectorial.

Como assinalou ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO, a vigência de regras jurídicas da lex


mercatoria não supõe necessariamente a sua inserção numa OJ. Estas regras vigoram automaticamente
na medida em que:

a) Exprimem certos valores partilhados pela generalidade dos operadores do comércio


internacional;
b) São aptas para a realização desses valores perante a consciência desses operadores;
c) São formadas por processos autónomos geralmente reconhecidos como idóneos para a criação
de regras juridicamente vinculativas pelos mesmos operadores.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

 Valor do Direito autónomo do comércio internacional:

O Regente entende que este Direito deve ser favorecido, porque se traduz em soluções que são mais
adequadas às relações comerciais internacionais.

Como é um Direito com um certo grau de uniformidade internacional, é mais fácil de ser conhecido
pelos interessados, dispensando o recurso ao sistema de Direito de conflitos, o que evita a necessidade
de averiguar o conteúdo da norma jurídica estrangeira. É um Direito que vigora em todo o lado, ou
pelo menos em todo o setor do comércio internacional.

Com isto, aumenta a previsibilidade jurídica e diminui os custos de transação resultantes da


transnacionalidade da relação.

⭐ Relevância da lex mercatoria na arbitragem transnacional

Uma vez que a arbitragem transnacional é a jurisdição normal dos litígios do comércio internacional,
importa averiguar se, e até que ponto, a lex mercatoria é fonte de Direito imediatamente aplicável nesta
jurisdição.

Para o efeito, há que fazer uma distinção entre:

i. Estatuto da arbitragem – conjunto de regras e princípios primariamente aplicáveis pelo


tribunal arbitral. Compreende as proposições aplicáveis a todos os aspetos, quer
processuais quer substantivos, do processo arbitral, designadamente a validade da
convenção de arbitragem, a constituição, competência e funcionamento do tribunal
arbitral, etc.

Os tribunais arbitrais internacionais não são criados pelo Direito de um Estado e, por isso, não têm
uma lex fori e também não estão submetidos a um particular sistema nacional de Direito privado. Isso
não significa que a arbitragem fique imune às competências normativas dos Estados que têm laços
significativos com a arbitragem, mas a autonomia de que goza relativamente às OJ estaduais
singularmente consideradas permite que o seu estatuto seja em primeira linha definido por Direito
autónomo. Ou seja, os árbitros devem ter em conta diretrizes emanadas pelos Estados que têm uma
ligação significativa com a arbitragem, mas devem também, tanto quanto possível, respeitar as regras
e princípios do Direito Transnacional da Arbitragem.

 Fontes do Estatuto da Arbitragem:

a) Regulamentos dos centros de arbitragem – na arbitragem personalizada, os árbitros aplicam


em primeira linha as regras destes regulamentos.
b) Costume jurisprudencial.
c) Certos princípios fundamentais em matéria de processo, que são comuns à vasta maioria dos
sistemas nacionais, tais como o do contraditório e da igualdade das partes.

ii. Direito aplicável ao mérito da causa – regras e princípios que são aplicados para decidir o
mérito da causa. A questão que se coloca é a de saber se a lex mercatoria pode ser aplicada
à relação controvertida independentemente da sua receção por uma OJ estadual.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

 A resposta é sim – o Direito transnacional é aplicado imediatamente por dois processos:

1) Por força de normas de conflitos de Direito transnacional da arbitragem. Perante este Direito,
a decisão será proferida com base no Direito autónomo do comércio internacional quando as
partes o designarem. Na falta de designação, parece de reconhecer que o Direito transnacional
da arbitragem permite que os árbitros recorram à lex mercatoria.

Em ambos os casos não é necessário determinar o Direito estadual aplicável e, por


conseguinte, a aplicação do Direito transnacional não depende da sua receção pelo Direito
estadual.

Trata-se aqui de um processo de regulação indireta ou conflitual, porque a lex mercatoria é


aplicável por força de proposições conflituais de Direito transnacional da arbitragem.

2) E não haverá casos de aplicação direta, em que o mérito da causa seja resolvido através de regras e
princípios autónomos?

Em princípio, a resposta será negativa. Tem-se geralmente por evidente que o tribunal arbitral não
tem poder para decidir exclusivamente segundo a lex mercatoria contra a vontade manifestada pelas
partes.

Mas há uma regra que se desenvolveu como costume jurisprudencial arbitral que foi depois acolhida
em Convenções Internacionais e em algumas legislações, segundo a qual em qualquer caso (qualquer
que seja o Direito aplicável), os árbitros têm de ter em conta as cláusulas do contrato e os usos do
comércio internacional. Quanto a esta solução existe divergência, mas a maioria da doutrina entende
que os usos do comércio têm um valor interpretativo e integrativo do negócio jurídico,
independentemente da importância que lhe seja dada pela lei aplicável.

De acordo com LP, há que fazer uma distinção consoante:

(i) A questão seja apreciada segundo o Direito estadual – os usos têm esse valor interpretativo
e integrativo, independentemente da lei estadual aplicável, mas tem como limite as
normas imperativas dessa lei estadual;
(ii) A questão seja apreciada segundo o Direito autónomo do comércio internacional ou
segundo princípios comuns – neste caso, a relevância dos usos não é limitada pelas normas
imperativas dos Estados, mas apenas pela ordem pública internacional.

Assim, LP conclui que o Direito autónomo do comércio internacional também acaba por ser aplicado
diretamente, independentemente de uma norma de conflitos, a contratos comerciais internacionais.

Conclusões sobre a regulação pelo Direito autónomo do comércio internacional:

1) Há um setor importante das relações comerciais internacionais que são reguladas


imediatamente pelo Direito autónomo do comércio internacional, independentemente da
relevância que lhe seja dada pelo Estado em causa;
2) Na falta de convenção de arbitragem, a lei aplicável é a estadual;
3) Esta regulação pelo Direito autónomo do comércio internacional não subtrai totalmente a
regulação pelo Direito estadual: (i) há matérias que não podem ser sujeitas a arbitragem, sendo
nesses casos competentes os tribunais estaduais e (ii) os tribunais arbitrais devem ter em conta

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as diretrizes emanadas dos Estados que apresentam um laço especialmente significativo com
a arbitragem ou em que possa previsivelmente ser pedida a execução da sentença;
4) Esta regulação é em parte conflitual – na determinação do Direito aplicável recorremos em
princípio a normas de conflitos – e em parte material/direta – valor autónomo que os usos do
comércio têm na arbitragem transnacional.

DIREITO DE CONFLITOS – PARTE GERAL

⭐ Órgãos de aplicação do Direito de conflitos

São órgãos supraestaduais quando relevam da OJ internacional ou da OJ da UE. É o caso das


jurisdições internacionais (ex: Tribunal Internacional de Justiça), quási-internacionais (ex: Tribunal
Permanente de Arbitragem) e da União Europeia (ex: TJUE).

São órgãos estaduais quando relevam das OJ estaduais. Na OJ portuguesa, os órgãos nacionais são
jurisdicionais e administrativos (ex: conservadores, notários, agentes diplomáticos).

São órgãos transnacionais quando nem relevam de uma ordem supraestadual nem relevam da OJ
portuguesa. É o caso dos tribunais da arbitragem transnacional (em sentido estrito).

Em regra, os órgãos de aplicação do Direito de conflitos são estaduais e transnacionais; os


supraestaduais ainda são a exceção.

⭐ Fontes do Direito de conflitos

O Direito de conflitos tem fontes internacionais, europeias, transnacionais e internas. O DIPrivado e


o DIPúblico não se distinguem, assim, pelas suas fontes (que podem ser as mesmas), mas sim pela
sua regulação.

O Direito de conflitos de fonte internacional pode ser relevante:

i) No plano da OJ internacional – quando se trata de Direito internacional de conflitos, ou


seja, Direito de conflitos que se destina a ser aplicado por jurisdições internacionais ou
quási-internacionais (ex: art. 42º Convenção de Washington).
ii) No plano da OJ estadual – o DIPrivado vigente num Estado também pode ser relevante
no Direito estadual (ex: art. 8º CRP). As normas de Direito de conflitos internacionais
constantes de Convenções Internacionais de que Portugal seja parte vigoram na OJ interna
como normas internacionais (art. 8º/2 CRP). Também vigoram como normas
internacionais as normas de Direito derivado constantes de Convenções Internacionais de
que Portugal seja parte (art. 8º/3 CRP); e o mesmo se diga em relação às normas de
conflitos constantes de regulamentos europeus (art. 8º/4 CRP).

Por conseguinte, num sistema de relevância do Direito internacional na esfera interna, como o nosso,
só é interno o Direito de conflitos que é “originariamente” de fonte interna.

1) Fontes de Direito Internacional

Qualquer dos processos específicos de criação de normas pela comunidade internacional poder ser
fonte de Direito internacional de conflitos. Mas a fonte mais importante são as Convenções
Internacionais, nomeadamente a Convenção de Washington. É uma evidência que na determinação

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

do Direito aplicável os órgãos internacionais devem aplicar as regras de conflitos que constem do
próprio Tratado que os cria ou enquadra.

 E em caso de omissão do ato institutivo sobre a determinação do Direito aplicável, como devem proceder
os órgãos internacionais?

Nesses casos, os órgãos internacionais terão de formular regras de conflitos próprias.

1.1) Fontes internacionais do Direito de conflitos vigentes na OJ interna

A primeira questão que se coloca é a de saber se o costume internacional integra uma destas fontes.

 Houve uma escola – universalista – que entendeu que existia um sistema universal de
DIPrivado de resolução de litígios, que se basearia no DIPúblico ou no próprio conceito de
Direito e vincularia os legisladores nacionais. Esta conceção foi abandonada porque se
percebeu que os Direitos de conflitos eram muito divergentes de Estado para Estado.

O que se questiona hoje é principalmente a existência de certas diretrizes de DIPúblico geral sobre a
conformação global dos sistemas estaduais de DIPrivado e a possibilidade de, por via
consuetudinária, se terem formado algumas poucas regras de conflitos internacionais, que já se
consolidaram como costume internacional:

a) Para uma primeira tese, afirmada pelo nacionalismo mais radical, do DIPúblico geral não
decorreriam quaisquer diretrizes sobre a conformação dos sistemas estaduais de DIPrivado,
sendo os Estados inteiramente livres na sua conformação;
b) Para outros autores, de certos princípios gerais de DIPúblico (em especial dos que dizem
respeito à proteção dos direitos dos estrangeiros e à igualdade dos Estados enquanto membros
da comunidade internacional) é possível extrair diretrizes para a conformação dos Direitos de
conflitos nacionais – o Regente concorda:
o Tem de ser conferida um mínimo de tutela aos direitos dos estrangeiros. Este princípio
é incompatível com a exclusiva aplicação do Direito material do foro às situações
comportando elementos de estraneidade; tal levaria a negar, injustificadamente, aos
estrangeiros direitos que validamente adquiriram no estrangeiro através de uma lei
estrangeira.
o Além disso, ao participar na comunidade internacional, um Estado não pode ignorar
a vigência de outros ordenamentos estaduais nem pode ter a pretensão de
competência exclusiva de regulação das relações que atravessam as suas fronteiras.
o Por estas razões, cada Estado deve reconhecer às ordens jurídicas estrangeiras uma
esfera razoável de aplicação e abster-se de discriminar a aplicação de uns Direitos
estrangeiros relativamente a outros.

Indo mais além, podemos dizer que a tutela dos direitos dos estrangeiros combina com a tutela dos
direitos dos nacionais, no sentido em que o sistema de DIPrivado tem de estar racionalmente
orientado para soluções que sejam conformes com a tutela desses direitos.

Nesta visão das coisas, o DIPrivado tem o seu fundamento no DIPúblico e no reconhecimento de uma
coexistência entre várias OJ.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Outra questão que se coloca é a seguinte: há normas de conflitos, tendo por base costume internacional, que
vinculem os Estados?

a) A maioria dos autores nega ou põe em dúvida a existência de tais normas de conflitos;
b) LP afirma que não parece indefensável que algumas regras ou princípios de conexão,
geralmente consagrados pelos sistemas de DIPrivado nacionais, sejam já acompanhados de
uma convicção de vinculatividade, como é o caso da regra da lex rei sitae em matéria de direitos
reais imobiliários;
c) Há uma linha de pensamento que também entende que a relevância do DIPúblico vai além de
Diretrizes globais de conformação dos Estados, mas segue um caminho diverso: o DIPúblico
fundamenta e limita a competência legislativa dos Estados com base na territorialidade e a
personalidade (designadamente a nacionalidade e o domicílio). Este entendimento encontra-
se muito divulgado entre os autores ingleses.

Os Tratados internacionais são a principal fonte internacional de Direito de conflitos vigente na OJ


interna. Há Tratados que contêm direito material unificado, destinado a construir regimes materiais.
Há ainda as Convenções sobre matéria de Direito dos estrangeiros.

A jurisprudência internacional é fonte de Direito internacional de conflitos. Mas as soluções


desenvolvidas pela jurisprudência internacional dirigem-se em primeira linha aos órgãos
internacionais e não aos órgãos estaduais, pelo que só indiretamente – mediante a formação de
costume jurisprudencial – pode ser fonte de Direito de conflitos que opere na ordem interna.

Os princípios comuns aos sistemas nacionais podem ser fonte de Direito internacional de conflitos.
Também tendem a desempenhar algum papel como fonte de DIPrivado da arbitragem transnacional.
Mas já não são fonte de Direito de conflitos aplicável a situações que só relevem na OJ estadual.

2) Fontes da União Europeia

Encontramos normas de DIPrivado quer no Direito derivado emanado pelos órgãos da EU, quer nos
tratados instituintes.

As normas da UE que consagram as liberdades fundamentais (de circulação e de estabelecimento)


têm incidência sobre o Direito dos estrangeiros, mormente no que toca aos princípios gerais sobre a
condição jurídica dos estrangeiros nos domínios do Direito da economia e da entrada, permanência
e saída de estrangeiros. Estas normas da UE também podem assumir algum significado para o Direito
privado, designadamente no caso do princípio da igualdade de tratamento dos trabalhadores
nacionais de outros EM da UE.

 Questão controvérsia é a da incidência destas normas sobre o Direito dos conflitos:


a) Em paralelo com o que se verifica com as fontes internacionais, também o Direito de
conflitos de fonte europeia pode operar ao nível da OJ da UE ou das OJ dos EM;
b) É indiscutível que opera ao nível da OJ europeia nos casos em que se trata de Direito de
conflitos aplicável pelas jurisdições europeias. É o que se verifica com o Direito de
conflitos contido no TFUE.

Normas de conflitos que devem ser aplicadas pelas jurisdições da UE: responsabilidade
extracontratual, litígios relativos a contratos celebrados pela UE.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

c) O DUE também é fonte de Direito de conflitos na OJ interna. O TFUE não contém normas
de conflitos que se dirijam aos órgãos de aplicação do Direito dos EM.

No que toca ao Direito derivado, este é uma fonte de Direito de conflitos da OJ dos EM. Podem
distinguir-se, quanto a esta fonte, três fases:

i. Até à entrada em vigor do Tratado de Amsterdão, em que a maior parte das disposições
contratuais estavam contidas em Diretivas da UE, tratando-se de medidas de harmonização
dos Direitos de conflitos dos EM, o TJUE reconhece uma eficácia direta para os particulares
das diretivas que não sejam transpostas dentro do prazo estabelecido para o efeito, mas essa
eficácia direta limita-se à eficácia direta vertical: na falta de medidas de execução pelos
Estados estes atos apenas podem ser opostos pelos particulares aos Estados que os não
cumpram e não nas relações interparticulares.

ii. Entrada em vigor do Tratado de Amsterdão (1999) à entrada em vigor do Tratado de Lisboa
(2009) – embora o alcance da competência legislativa e da competência externa atribuída aos
órgãos comunitários em matéria de DIPrivado oferecesse dúvidas, e o fundamento jurídico
para certos atos nessa matéria fosse discutível, os EM não se opuseram à ação dos órgãos
comunitários, que se orientou no sentido de uma ampla comunitarização do DIPrivado.
Assim, com fundamento nos arts. 61º/c) e 65º do Tratado da CE, com a redação dada pelo
Tratado de Amsterdão, foram adotados numerosos Regulamentos no domínio do DIPrivado.

iii. Entrada em vigor do Tratado de Lisboa (2009) – o TFUE passou a estabelecer a liberdade de
circulação (art. 3º/2 TUE). O espaço de liberdade, segurança e justiça é autonomizado
relativamente ao mercado interno. O reconhecimento mútuo de decisões é elevado ao aspeto
essencial da cooperação judiciária em matéria civil e é relacionado com o direito de acesso à
justiça, que constitui um direito fundamental na OJ da EU. O raciocínio subjacente parece ser
o de que estas liberdades levam a um crescimento das relações transnacionais, que criam
dificuldades e incertezas (designadamente, os custos do reconhecimento de decisões) que
consubstanciam limites a essa liberdade.

Os atos em matéria de DIPrivado são, em princípio, decididos por maioria qualificada no quadro do
processo legislativo ordinário (art. 81º/2 TFUE). O TUE e TFUE permitem que haja cooperações
reforçadas (art. 20º e arts. 326º e ss., respetivamente).

Continuou a haver normas de conflitos nas Diretivas, e o que se tem discutido é a necessidade de
uma codificação europeia de DIPrivado. O que se verifica é que a maioria das matérias já estão
codificadas na UE, mas em diversos instrumentos, o que torna difícil o seu conhecimento e a
harmonia de soluções.

A coerência sistemática do sistema de Direito de conflitos também é posta em causa com respeito a
problemas que, em princípio, são abrangidos por esses instrumentos, tais como a remissão para OJ
complexas, a devolução, a ordem pública internacional, as regras de aplicação necessária do Estado
do foro e as regras imperativas de terceiros Estados.

O Regente entende que será necessária a criação de um Regulamento que trate da parte geral; a
situação atual frustra em certa medida as liberdades visadas pelo legislador europeu.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

A competência dos órgãos da UE em matéria de DIPrivado não é exclusiva, e sim partilhada com os
EM. Nas matérias do DIP em que o DUE não tenha ainda exercido uma competência reguladora, é
possível aos EM legislarem. Mas uma vez exercida esta competência pelos órgãos da UE, ela exclui
ou limita a competência dos EM (art. 2º/2 TFUE).

Por acréscimo, a jurisprudência do TCE estabeleceu que a Comunidade Europeia tinha ainda uma
competência externa relativamente às matérias em que exerceu as suas competências internas – art.
216º TFUE.

Era controverso, antes do Tratado de Lisboa, se esta competência externa era exclusiva dos órgãos do
UE, no sentido em que só a Comunidade podia celebrar acordos com Estados terceiros que afetassem
as normas europeias. Os órgãos comunitários tenderam para a posição afirmativa e no mesmo sentido
se pronunciou o TCE, concluindo que a celebração da nova Convenção de Lugano relativa à
competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial era
da competência exclusiva da Comunidade Europeia.

Também parece ter sido esse o entendimento acolhido e desenvolvido pelo Tratado de Lisboa no
TFUE, quando determina que a competência da UE para celebrar acordos internacionais com Estados
terceiros é exclusiva quando (art. 3º/2):

(a) Tal celebração esteja prevista num ato legislativo da UE;


(b) Seja necessária para lhe dar a possibilidade de exercer a sua competência interna;
(c) Seja suscetível de afetar regras comuns ou de alterar o alcance das mesmas.

3) Fontes Transnacionais

As fontes transnacionais são as que resultam de um processo específico de criação de proposições


jurídicas no seio da comunidade dos operadores do comércio internacional, que são independentes
da ação dos órgãos estaduais e supraestaduais.

No que toca ao Direito de conflitos, estas fontes são fundamentalmente os regulamentos dos centros
de arbitragem e o costume jurisprudencial arbitral.

Estas fontes têm desempenhado um papel significativo na criação de normas e princípios de


DIPrivado da arbitragem transnacional.

4) Fontes Internas

Apesar do avanço das fontes internacionais, europeias e transnacionais, ainda é importante o Direito
de conflitos de fonte interna.

As fontes a considerar são a lei, o costume, a jurisprudência e a ciência jurídica.

o Em relação à lei, temos em primeiro lugar a CRP. Esta não contém normas de Direito de
conflitos, mas não deixa de ser fonte de DIPrivado, por força dos vários planos de incidência
sobre o Direito de conflitos e domínios conexos (arts. 8º, 13º, 14º, 15º, 87º, 99º/d) e 100º/a) e
e)). Na lei ordinária, a principal fonte é o Código Civil, designadamente o cap. III do Tít. I do
Livro 1. No CCom devem considerar-se em vigor as normas contidas nos arts. 4º/2, 6º, 7º, 12º,
110º, 255º, 488º, 606º, 650º e 674º.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

 As normas de conflitos do CCom foram revogadas tacitamente pelo CC?

Em princípio, as normas de conflitos do CC não revogariam as normas de conflitos do CCom, uma


vez que, e de acordo com o art. 7º/3 CC, a lei geral não revoga a lei especial, exceto se outra for a
intenção inequívoca do legislador.

O que justifica a não revogação da lei especial pela lei geral é a especialidade substancial, que decorre
do estabelecimento de um regime específico mais adequado a circunstâncias particulares e não uma
especialidade meramente formal. Ora, a especialidade de algumas normas de conflitos contidas no
CCom é meramente formal. Assim, as normas do art. 4º CCom vieram preencher uma lacuna da lei
civil, sendo substancialmente normas gerais. Assim, considera-se que estas normas foram revogadas
pelo CC.

Existem ainda normas de DIPrivado em numerosas leis avulsas.

o Em relação ao costume, pode dizer-se que o costume é uma fonte importante de DIPrivado
nos países em que este não se encontra codificado (ex: França). Perante um sistema de Direito
de conflitos codificado, como o português, o costume pode ainda ter algum relevo, posto que
limitado, no desenvolvimento e aperfeiçoamento do sistema. Mas trata-se hoje
fundamentalmente de costume jurisprudencial, que se forma com base numa jurisprudência
uniforme e constante.

o No que toca à jurisprudência, esta é uma importante fonte de Direito de conflitos, seja em
países onde vigora um sistema de precedente, seja em países em que o sistema de Direito de
conflitos não está codificado. Na falta de norma legal ou consuetudinária, os tribunais tiveram
frequentemente de formular normas de conflitos, porventura com apelo a certas ideias
orientadoras ou princípios gerais, e consolidaram soluções numa jurisprudência constante.
Quando estas soluções jurisprudenciais se impuseram como soluções vinculativas perante a
consciência jurídica geral, formou-se um costume jurisprudencial.

O papel desempenhado pela jurisprudência portuguesa recente no desenvolvimento e


aperfeiçoamento do DIPrivado tem sido, porém, modesto, sendo de registar que não raramente as
decisões aplicam diretamente o Direito material português a situações transnacionais, o que por vezes
sacrifica os valores e princípios que enformam a justiça deste ramo do Direito.

o A ciência jurídica tem desempenhado um papel importante no desenvolvimento do Direito


de conflitos. Em Portugal, antes da entrada em vigor no novo CC, muitas soluções foram
estabelecidas pelo labor conjunto da ciência jurídica e da jurisprudência, tendo o novo CC
retido muitas dessas soluções.

NOTA: a tendência na maioria dos sistemas é para que a principal fonte interna seja a lei.

Natureza pública ou privada do Direito de conflitos:

A tese clássica sobre o objeto e a função da norma de conflitos encara-a como uma norma de
delimitação de competências legislativas que resolve conflitos de soberanias estaduais – esta tese
mostra-se adversa à natureza privada do Direito de conflitos.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Neste âmbito, desenvolveram-se as seguintes teorias:

 Construções universalistas – defendem a inclusão do DIPrivado no DIPúblico, reclamando-se


a existência de um sistema de DIPrivado com validade universal que se impõe aos
ordenamentos nacionais;
 Construções particularistas – segundo estas, a norma de conflitos tem por função a
delimitação da competência legislativa dos Estados, ainda que o DIPrivado tenha carácter
interno;
 Ainda a favor da natureza pública do Direito de conflitos encontram-se alguns setores da
doutrina italiana.

A opinião dominante, contudo, é a de que o DIPrivado é Direito privado, sendo um Direito privado
especial regulador das situações privadas transnacionais. Há situações transnacionais que, apesar
de conformadas por Direito público, devem ser resolvidas pelo DIPrivado (ex: no caso de as partes
estabelecerem uma cláusula de arbitragem).

O Regente entende que a posição mais ajustada às características atuais e às tendências de


desenvolvimento do DIPrivado, é a de o considerar, essencialmente, como um Direito privado, sem
excluir o surgimento de certas áreas especializadas em que podem desenvolver-se soluções
específicas para relações que comportam elementos públicos.

OBJETO E FUNÇÃO DA NORMA DE CONFLITOS

⭐ Objeto e função das normas de conflitos bilaterais

O objeto da norma é a realidade que a norma regula. Por função da norma pode entender-se o fim
que prossegue, a sua teleologia. A função que agora se tem em vista é a função jurídica ou técnico-
jurídica: o problema jurídico que a norma tem por missão resolver e o processo por que o resolve.

Para analisar o objeto e função da norma de conflitos, é necessário distinguir entre:

i) Normas unilaterais – só determinam a aplicação do Direito do próprio foro, ou seja, o


sistema destinatário é o do Estado da lei do foro. Como exemplos temos os art. 3º/3 CC e
61º LAV.
ii) Normas bilaterais/plurilaterais – tanto remetem para o Direito do foro como para o
Direito estrangeiro, ou seja, o sistema destinatário é o da Lei do foro ou um sistema
estrangeiro. É o caso do art. 50º CC e é o que se verifica, por forma geral, com as normas
de conflitos contidas no CC.

⇒ Objeto da norma de conflitos

O objeto da norma de conflitos é o mesmo que o objeto do DIPrivado enquanto ramo de Direito: a
situação transnacional, na medida em que é esta a realidade que regulam.

A Escola de Coimbra segue um entendimento diferente, sustentando que o objeto da norma de


conflitos são as normas materiais, porquanto as normas de conflitos são encaradas como normas
sobre normas e não como normas de regulação indireta.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

⇒ Teleologia/fins da norma de conflitos

É certo que a norma de conflitos não prossegue só interesses do Estado. É a realização da justiça do
Direito privado que está primeiramente em causa no DIPrivado. Os interesses particulares assumem
grande importância para este ramo do Direito.

No próprio Direito privado material não estão apenas em causa interesses particulares. O DIPrivado
não pode ser alheio à prossecução, na regulação das situações transnacionais, de políticas estaduais
de índole social, económica, ambiental, cultural, designadamente, bem como de fins políticos em
sentido estrito.

⇒ Função técnico-jurídica

O que há em comum em todas as normas de conflitos é o facto de regularem situações transnacionais


através de um processo conflitual/indireto.

Num segundo momento, surgem aspetos específicos da função dos diferentes tipos de normas de
conflitos: normas bilaterais, normas unilaterais gerais, normas unilaterais ad hoc.

Dupla função técnico-jurídica das normas de conflitos bilaterais:

Diz-se que as normas de conflitos bilaterais têm uma dupla função técnico-jurídica, na medida em
que:

a) Determinam o Direito aplicável;


b) Confere um título de aplicação na OJ interna ao Direito estrangeiro, caso seja este o aplicável.

Através da atribuição de competência a uma ordem local, a norma de conflitos contribui para
reconhecer determinada esfera de aplicação no espaço quer ao Direito do foro quer ao Direito
estrangeiro. Por exemplo, da norma de conflitos que submete a sucessão por morte à lei da última
nacionalidade do de cuius decorre que, na perspetiva do nosso Direito de conflitos, o Direito
sucessório português se aplica à sucessão dos portugueses e o Direito sucessório italiano à sucessão
dos italianos.

Contudo, a remissão operada pela norma de conflitos é não recipienda, i.e., quando remete para a lei
estrangeira, a lei estrangeira não é incorporada na lei do foro. O que acontece é que recebemos na OJ
do foro os efeitos jurídicos desencadeados pela lei estrangeira.

⭐ Objeto e função das normas de conflitos unilaterais. Bilateralização

⇒ Bilateralismo e unilateralismo

Sistemas unilateralistas

Os universalistas defenderam a existência de um sistema de DIPrivado com validade universal que


se impunha aos ordenamentos nacionais. A partir de finais do séc. XIX fez-se sentir uma reação
nacionalista/particularista a estes sistemas, que chamou a atenção para as diferenças dos vários
sistemas nacionais de DIPrivado.

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Mas os particularistas não divergem dos universalistas quanto à função do Direito de conflitos:
repartir a competência legislativa entre os Estados.

Então, como conciliar esta função com a natureza interna da norma de conflitos?

Um Estado não pode, por meio das suas normas de conflitos, delimitar a competência legislativa de
outros Estados. Daí que no final do séc. XIX uma corrente doutrinal tenha salientado que o legislador
de DIPrivado deve unicamente fixar os limites de aplicação do seu próprio Direito material. Isto é
dizer que todas as regras de conflitos deveriam ser unilaterais.

As tendências unilateralistas mais próximas já não se baseiam na conceção clássica sobre o objeto e a
função do DIPrivado, mas, em primeira linha, na vocação da norma material para um determinado
domínio especial de aplicação. Cada norma material conteria, necessariamente, a par da
determinação do seu domínio material de aplicação, também a determinação dos limites da sua
aplicação no tempo e no espaço. Se a norma material fosse aplicada sem preencher esses pressupostos,
não seria admissível. As normas de conflitos seriam indissociáveis das suas normas materiais.

Enfim, o unilateralismo, ao tomar em conta a vontade de aplicação da lei estrangeira, serviria melhor
a promoção da harmonia internacional de soluções que o bilateralismo.

Contudo, na opinião de LP, os argumentos a favor do unilateralismo merecem muitas reservas:

1) Não há uma ligação mecânica entre as normas materiais e as normas de conflitos – nas normas
materiais o legislador consagrou a solução que considerou mais adequada para certa situação.
Para determinar o âmbito de aplicação do espaço tem de se fazer um juízo para além da
situação concreta em que foi pensada. Daqui decorre que:
i. O relacionamento entre normas materiais e normas de conflitos não obriga ao
unilateralismo;
ii. É concebível que apliquemos as normas materiais de uma lei estrangeira que não se
considera competente por via do respetivo Direito de conflitos.

2) A vantagem do unilateralismo quanto à prossecução da harmonia internacional de soluções


só pode ser invocada perante um sistema em que se negue a devolução (como era o caso do
sistema italiano). Para um sistema que admita a devolução quando tal seja justificado, não há
qualquer vantagem do unilateralismo sobre o bilateralismo no que toca à harmonia
internacional. Pelo contrário: o bilateralismo favorece mais a harmonia internacional; muitas
vezes, o unilateralismo serve para conferir um âmbito de aplicação mais vasto à lei do Estado
do foro em detrimento do Direito estrangeiro.

Relativamente às situações que se encontram fora da esfera de aplicação da lei do Estado do foro, há
situações que se colocam, como saber que lei se aplica se mais que uma for aplicável, ou se nenhuma
lei estrangeira for aplicável.

Sob pena de denegação de justiça, o juiz tem de escolher entre os Direitos em presença que reclamam
a aplicação, no primeiro caso e, no segundo caso, de chamar à aplicação algum dos Direitos em
presença, apesar de nenhum deles mostrar disposição para o efeito.

Concluindo, o unilateralismo como sistema universal continua a ser uma solução teórica que
contrasta com a realidade prática dos sistemas bilaterais.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

O que se verificou face às normas de conflitos unilaterais foi que os tribunais dos diferentes Estados,
quando chamados a apreciar situações que caíam fora da esfera de aplicação do Direito do foro,
integraram as lacunas mediante uma bilateralização das normas unilaterais.

⇒ Coexistência de bilateralismo e unilateralismo nos atuais sistemas de DIPrivado:

O nosso sistema de conflitos é essencialmente bilateralista, mas não é puramente bilateralista: em


algumas situações, de forma a garantir à parte mais fraca uma proteção que não resultaria do sistema
bilateral, formulam-se soluções unilaterais (ex: art. 38º regime contrato de agência).

A opção por soluções unilaterais ainda se justifica em relação a matérias novas, complexas, em que o
legislador ainda não quer formular soluções bilaterais (como é o caso da matéria dos valores
mobiliários).

O unilateralismo também influenciou as soluções para os casos de relevância de normas imperativas


estrangeiras.

A renovação do unilateralismo que se tem assistido em muitos ordenamentos distingue-se do


unilateralismo clássico por não se colocar como alternativa global ao sistema de Direito de conflitos
de base bilateral, mas a par deste sistema ou como seu elemento. Temos aqui um unilateralismo
limitado.

⇒ Normas unilaterais gerais vs especiais

As normas unilaterais gerais referem-se normalmente a estados ou categorias de relações jurídicas.

As normas unilaterais especiais encontram-se numa relação de especialidade com outras normas de
conflitos, bilaterais ou unilaterais. Estas podem assumir três modalidades:

a) Normas unilaterais que se reportam a estados ou categorias de relações jurídicas – ex: art. 3º/1
CSC (a sua primeira parte é bilateral; a segunda parte é unilateral especial – está em
especialidade com a primeira parte – que se reporta a certas relações jurídicas).
b) Normas unilaterais que se reportam a questões parciais – ex: questões relacionadas com a
validade de determinadas cláusulas de um contrato.
c) Norma de conflitos ad hoc – ex: regra do art. 38º do regime do contrato de agência ou art. 61º
da LAV. Estas normas têm normalmente uma relação íntima e direta com a norma ou lei
material a que se reportam. Estão “impregnadas” de preocupações jurídico-materiais,
segundo o juízo de valor do legislador.

Um sistema de Direito de conflitos como o português assenta em normas de conflitos bilaterais que
estão conjugadas com normas sobre a sua interpretação e aplicação. As normas unilaterais especiais
e, em especial, as normas de conflitos ad hoc são frequentemente encaradas como normas adversas
em relação ao “sistema de normas de conflitos”.

 LP – este é um modo simplista de ver as coisas. Devemos considerar as normas unilaterais


como um complemento necessário do sistema de Direito de conflitos de base bilateral.
Devemos assim procurar inseri-las no sistema através de uma generalização e bilateralização.
No caso das normas unilaterais especiais ad hoc, a bilateralização tem de ter em conta as
finalidades gerais do sistema de conflitos.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

⇒ Normas autolimitadas:

Diz-se “autolimitada” aquela norma material que, apesar de incidir sobre situações reguladas pelo
DIP, tem uma esfera de aplicação no espaço diferente da que resultaria da atuação do sistema de
Direito de conflitos.

Isto pode resultar de esta norma material ser acompanhada de uma norma de conflitos unilateral ad
hoc, que se reporta exclusivamente a uma norma ou a uma lei material determinada da OJ do foro, ou
de uma valoração casuística, feita pelo intérprete face ao conjunto das circunstâncias do caso.

As normas autolimitadas podem ser divididas em quatro categorias:

1) As que têm uma esfera de aplicação no espaço mais vasta do que aquela que decorreria do
Direito de conflitos geral (Normas de tipo I) – estas normas são aplicáveis sempre que o
Direito do foro é chamado pelo Direito de conflitos geral e ainda noutros casos (ex: normas
relativas à cessação do contrato de agência).
2) As que têm uma esfera de aplicação no espaço que só em parte coincide com aquela que
decorreria do Direito de conflitos geral (Normas de tipo II) – estas normas aplicam-se em
alguns casos em que o Direito do foro é chamado pelo Direito de conflitos geral, mas não em
todos, e também se aplicam noutros casos em que o Direito do foro não é competente (ex:
normas do Direito da concorrência).
3) As que têm uma esfera de aplicação no espaço mais restrita do que aquela que decorreria do
Direito de conflitos geral (Normas de tipo III).
4) As que têm uma esfera de aplicação no espaço inteiramente diferente da que decorreria do
Direito de conflitos geral (Normas de tipo IV).

LP começou por entender que as normas de aplicação imediata/necessária eram uma modalidade de
norma autolimitada, que se verifica quando a norma autolimitada tem uma esfera de aplicação mais
vasta do que resultaria do SDC. Mas aquela tipologia de normas autolimitadas levou LP a rever a sua
posição: a norma de aplicação imediata é antes um modo de atuação de certas normas autolimitadas.
Assim, o Prof. prefere a designação “normas suscetíveis de aplicação necessária” e não “normas de
aplicação imediata/necessária”.

Nesta visão, as normas suscetíveis de aplicação necessária são definidas por um critério formal: são
normas que em determinados casos reclamam aplicação apesar de ser competente, segundo o Direito
de conflitos geral, uma lei estrangeira.

NOTA: este critério formal surge no art. 30º do Regulamento sobre os efeitos patrimoniais das
parcerias registadas e nos arts. 9º/1 Reg. Roma I e 16º Roma II.

Questão que se coloca: a aplicabilidade de uma norma imperativa – que pressupõe que ela implique a sua
aplicação para além da sua esfera de aplicação delimitada pelo SDC – tem de preencher também um critério
material?

Há autores que entendem que as normas de aplicação necessária, para serem aplicadas, têm de
preencher também um critério material: serem necessárias para tutelar a organização política, social
ou económica do Estado e interesses públicos.

Estas conceções respondem com uma preocupação legítima: a de restringir a aplicabilidade de


normas imperativas enquanto normas de aplicação imediata, mas segundo LP, este caminho não é o

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

melhor: é certo que a atual importância das normas autolimitadas suscetíveis de aplicação necessária
está até certo ponto relacionada com o fenómeno da ordenação e intervenção estadual por via
normativa nas relações privadas. Mas nem sempre tais normas autolimitadas são expressão do
intervencionismo estadual; as normas de aplicação necessária podem prosseguir várias finalidades.
LP aceita como normas autolimitadas suscetíveis de aplicação imediata:

o Normas cuja preocupação é a de tutelar a parte contratual mais fraca – ex: normas sobre a
cessação do contrato de agência.
o Normas que se encontram nos embargos e outras sanções económicas decretadas por
organizações internacionais ou supranacionais, maxime a ONU e a UE – trata-se de normas
imperativas de fonte supraestadual que operam como um limite autónomo à aplicação do
Direito competente.

Assim, LP conclui que não parece possível caracterizar as normas suscetíveis de aplicação necessária
pelo seu conteúdo e fim, dado que podem prosseguir múltiplas finalidades. Assim:

i) Dentro dos limites que resultam de normas internacionais ou europeias, se, por indicação
expressa do legislador português, uma norma se sobrepõe à OJ chamada pelo Direito de
conflitos geral, esta norma é suscetível de aplicação necessária, independentemente de
quaisquer outras considerações.

Tem importância o critério que foi adotado pelo TJUE (Ac. Arblade, 1999): estas normas são disposições
nacionais cuja observância é necessária para salvaguardar a integridade social, política e económica do Estado-
membro.

Esta definição passou para o Reg. Roma I, para o art. 9º/1, que vem definir estas normas como
disposições que visam proteger interesses do Estado de onde emana – essas normas, em função das
finalidades que prosseguem, reclamam a sua aplicação ao caso concreto, mesmo não sendo da lei
aplicável.

NOTA: o art. 9º não é uma norma imperativa/norma de aplicação imediata – trata-se de normas de
conflitos que dão relevância às normas internacionalmente imperativas.

Quando é que o intérprete sabe se a norma em questão é autolimitada?

1. Se o legislador expressamente formular uma norma de conflitos unilateral ad hoc com


referência a uma norma material, então não há dúvidas de que se trata de uma norma de
aplicação necessária.
2. Se não encontrarmos uma solução expressa, são três as vias que se abrem para a qualificação
de uma norma material como autolimitada:
i. Por inferência de uma norma de conflitos unilateral ad hoc implícita – esta norma
deve inferir-se das disposições legais ou das práticas com convicção de
obrigatoriedade. Pode inferir-se também das regras materiais que sejam concretização
de direitos fundamentais, da norma de conflitos especial que tenha sido estabelecida
com respeito à aplicação no espaço da regra constitucional que consagre este direito
fundamental (ex: art. 53º CRP, do qual se pode inferir uma norma de conflitos especial
sobre o âmbito de aplicação no espaço das regras portuguesas sobre despedimentos).

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

ii. Por criação de uma solução conflitual ad hoc à luz da teoria das lacunas da lei – se
chegarmos à conclusão que não se identifica no caso concreto uma norma de conflitos
implícita, a criação de uma situação conflitual pelo intérprete pressupõe a existência
de uma lacuna. A maioria das lacunas em DIP são lacunas ocultas, na medida em que
a situação se encontra, em princípio, abrangida por uma norma do sistema de Direito
de conflitos, mas face ao caso concreto, os princípios subjacentes ao sistema não se
compadecem com a aplicação da norma de conflitos geral bilateral, porque da
aplicação dessa norma iria resultar uma contradição com os princípios e valores do
sistema. Ou seja, a revelação dessa lacuna pressupõe uma interpretação restritiva ou
uma redução teleológica. Por exemplo, as normas de conflitos em matéria de contratos
obrigacionais (contidas no Reg. Roma I), embora aplicáveis aos contratos de
arrendamento de imóveis, não atendem ao fim de proteção da parte contratual mais
fraca (o arrendatário) de muitas normas imperativas que integram o regime português
do arrendamento; por isso, perante estas normas de conflitos, a aplicação das normas
protetoras do arrendatário pode ser afastada, relativamente ao arrendamento de
imóveis situados em Portugal, designadamente mediante a escolha de uma lei
estrangeira para reger o contrato.
iii. Vigência de uma cláusula geral que permita colocar o problema da aplicabilidade
da norma material em função das circunstâncias do caso concreto – este é um ponto
controverso, porque não encontramos no nosso sistema de Direito de conflitos uma
norma geral (daí que LP não veja fundamento para a vigência desta cláusula geral).
Encontramos algumas regras especiais, como o art. 9º Reg. Roma I, 16º Convenção de
Haia sobre a regulação de contratos de mediação e encontramos no ordenamento
italiano o art. 17º. O Prof. Regente entende ainda que a introdução desta cláusula geral
no nosso OJ não seria desejável, dado o sacrifício da certeza e previsibilidade jurídicas
e pela potencial restrição injustificada da autonomia negocial que acarretaria. As
normas autolimitadas são, por isso, excecionais, sendo a missão do legislador a de
formular as normas de conflitos ad hoc apropriadas e não a de passar um cheque em
branco aos tribunais: uma cláusula geral que permita ao órgão de aplicação do Direito
estabelecer a “autolimitação” com base numa valoração casuística prejudica
gravemente a certeza e a previsibilidade jurídicas e limita muito a função orientadora
de condutas do Direito de conflitos. Ou seja, a norma “autolimitada” só pode relevar
através da cláusula de ordem pública internacional, como limite à aplicação do
Direito estrangeiro; mas para isso é preciso que se trate de uma norma fundamental
da OJ portuguesa e que o resultado concreto a que conduza o Direito estrangeiro
competente seja manifestamente incompatível com esta norma.

⇒ As funções das normas de conflitos unilaterais no Direito vigente:

As normas de conflitos unilaterais também têm por função realizar um processo de regulação indireta
de situações transnacionais. Mas realizam esta função exclusivamente por meio do chamamento do
Direito do foro. Por conseguinte, não têm uma dupla função nem podem servir para conferir um
título de aplicação às normas do ordenamento estrangeiro.

A função da norma de conflitos unilateral assume certa especificidade conforme o tipo de norma
unilateral em causa.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Em Portugal, não encontramos uma norma geral de DIP, mas apenas algumas normas especiais, como
os arts. 28º/1 CC e 3º/1 2ª parte CSC.

A maior parte das normas de conflitos unilaterais especiais vigentes na OJ portuguesa são, contudo,
normas de conflitos ad hoc.

⇒ Bilateralização das normas unilaterais; A generalização de normas unilaterais ad hoc:

Tem-se entendido que a bilateralização só é possível quando a regra unilateral valha como revelação
de um “princípio geral”, i.e., como conexão adequada à situação ou questão parcial em causa.

 ISABEL MAGALHÃES COLLAÇO afirma que a bilateralização não é admissível quando a


norma unilateral visa estender o âmbito de aplicação da lei interna, quer com vista à
proteção de certos interesses locais, quer com vista à defesa de interesses dos seus nacionais
no estrangeiro. Neste caso poderá apenas haver uma generalização da ratio subjacente. É o
que se verificaria com o art. 28º CC.

Na opinião de LP, o problema tem de ser colocado em dois níveis diferentes:

1. Existe uma lacuna?

Para responder a esta questão, é importante distinguir os diferentes tipos de normas unilaterais –
normas unilaterais gerais, normas unilaterais especiais que se referem a estados ou categorias de
situações jurídicas e normas unilaterais especiais que se referem a questões parciais:

i. Quando, relativamente a certos estados ou categorias de relações jurídicas, um


sistema jurídico não dispõe de normas bilaterais, mas apenas de normas unilaterais,
surge uma lacuna sempre que não seja aplicável o Direito do foro. Se a norma de
conflitos se limitava, por exemplo, a estabelecer a competência do Direito do foro
para reger o estado e a capacidade dos nacionais, surge uma lacuna a partir do
momento em que se coloca o problema do Direito aplicável ao estado e capacidade
de um estrangeiro.
ii. Mas é mais controverso o caso em que tais normas de conflitos unilaterais, embora se
refiram a estados ou categorias de relações jurídicas, tenham caráter especial
relativamente a normas de conflitos bilaterais. Aí cabe questionar, quando não é
aplicável ao estado ou à relação jurídica visados na norma unilateral o Direito do
foro, se há uma lacuna ou se deve simplesmente aplicar-se a norma de conflitos geral.
Por exemplo, o art. 3º/1 2ª parte CSC só contempla diretamente a hipótese em que a
sociedade tem sede da administração no estrangeiro e sede estatutária em Portugal;
quando se tenha de determinar o Direito aplicável ao estatuto pessoal da sociedade
nas relações com terceiros e a sociedade tenha a sua sede estatutária num país
estrangeiro que não é aquele onde se situa a sede da administração, deverá aplicar-se a
regra geral segundo a qual o estatuto pessoal é regido pela lei da sede da administração, ou
bilateralizar-se a norma unilateral especial, por forma a que releve a lei da sede estatutária
estrangeira?
 LP entende que, por meio desta norma, o legislador português atendeu à
confiança depositada por terceiros na competência da lei da sede
estatutária. De acordo com o plano legislativo, a confiança de terceiros
também deve ser tutelada quando a sede estatutária esteja situada no

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

estrangeiro. Há, por conseguinte, uma lacuna, que deve ser suprida
mediante a bilateralização da norma.
iii. As dúvidas sobre a existência de uma lacuna também são prementes quando as
normas de conflitos unilaterais se refiram a questões parciais que, em princípio,
estariam englobadas no domínio de aplicação de normas de conflitos bilaterais. E o
mesmo se diga das normas unilaterais ad hoc, que se reportam a normas
individualizadas ou conjuntos determinados de normas. Segundo LP, nestes casos
tem de se demonstrar que há lacuna, que, na impossibilidade de determinar o Direito
aplicável às referidas situações ou aspetos de situações por meio da norma de
conflitos unilateral, não se deverá recorrer às normas de conflitos gerais.

2. Integração da lacuna: a lacuna deve ser preenchida do mesmo modo que a suscitada pelas normas
unilaterais gerais, ou seja, por meio de uma bilateralização?

Para LP, a resposta é, em princípio, positiva, mas importa atender ao tipo de norma unilateral em
causa e às finalidades por ela prosseguidas.

No que toca às normas unilaterais ad hoc, que se reportam a normas materiais determinadas, parece
que a bilateralização terá sempre de ser condicionada à existência no sistema designado de normas e
regimes com o mesmo conteúdo e função, embora se possa não ver aí mais que uma concretização
dos princípios gerais em matéria de qualificação.

Assim, procedendo a uma bilateralização da norma unilateral contida no art. 2º/2 Lei nº 19/2012,
parece que poderemos aplicar à questão da validade de um contrato restritivo da concorrência, fora
do âmbito de aplicação do Direito europeu e interno da Concorrência, as normas do país estrangeiro
em que ocorra a prática restritiva da concorrência ou em que se produzam os efeitos dessa prática.

A bilateralização das normas de conflitos unilaterais deve ser condicionada à “vontade de aplicação” de tais
normas e regimes materiais estrangeiros por forma distinta da devolução?

Poderá pensar-se que para um sistema de base bilateralista não se deve partir da “vontade de
aplicação” de quaisquer normas estrangeiras. Em princípio, a circunstância de as normas e regimes
materiais em causa não serem aplicáveis perante as normas de conflitos gerais ou especiais da OJ a
que pertencem só pode relevar no quadro da devolução, uma vez que está em causa a competência
desta OJ.

Mas também nada obsta a que, no interesse da harmonia internacional e da confiança


objetivamente fundada das partes, a OJ do foro possa condicionar a aplicação de tais normas
estrangeiras à posição assumida pela ordem estrangeira. É o que se verifica, por exemplo, no art.
28º/3 CC.

Por estas razões, e também porque frequentemente há uma impregnação da norma unilateral ad hoc
por preocupações materiais, parece defensável, de iure condendo, que a “bilateralização” desta norma
se venha a traduzir na formulação de regras de remissão condicionada. Isto justifica-se, em especial,
quando a norma unilateral tem por finalidade a proteção da confiança depositada no Direito local.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Assim, quanto ao modo de proceder à bilateralização:

Para bilateralizar uma norma, temos de encontrar o elemento de conexão que está a funcionar
implicitamente e depois formular uma norma utilizando esse mesmo elemento de conexão, mas de
forma a que ele designe Direito material do foro e estrangeiro.

Temos os exemplos do art. 28º/1 CC e, com mais utilidade prática, o art. 3º/1 2ª parte CSC.

Qual é a grande diferença entre uma norma de conflitos unilateral geral e uma norma de conflitos unilateral
especial? Sempre que temos uma norma em relação de especialidade, a lacuna pode não ser evidente,
pois pode não estar preenchida a norma de conflitos unilateral especial, mas estar a norma de
conflitos unilateral geral, que é bilateral.

A norma de conflitos unilateral traz assim um problema novo, que é prévio: determinar a lacuna
oculta. Como fazemos isso? Olhando para a teleologia da norma de conflitos unilateral especial. Por
isso é que o art. 3º/1 2ª parte CSC gera uma discussão doutrinária sobre se a norma deve ser
bilateralizada ou não:

i. LP entende que a teleologia é a tutela da confiança de terceiros, daí que entenda que a
tutela da confiança no registo de outros países também é merecedora de tutela,
sustentando a bilateralização.
ii. Já MARQUES DOS SANTOS entende que a razão desse artigo não é a tutela da confiança
de terceiros, mas apenas a tutela do registo português, daí que não haja razão para
bilateralizá-la.

No caso das normas de conflitos unilaterais ad hoc, relativas às normas suscetíveis de aplicação
imediata: o problema da bilateralização prende-se igualmente com a determinação de se se deve
bilateralizar ou não. Para bilateralizar, tenho de mexer não só no elemento de conexão, mas na
menção da norma de conflitos unilateral ad hoc que identifica quais são as normas de Direito
material a que ela se aplica. É o caso do art. 23º/2 LCCG.

Que impedimentos podem colocar-se à bilateralização?

Adversos à bilateralização apresentam-se em geral os regimes que vão em primeira linha orientados
a promover:

i. Interesses públicos nacionais ou interesses privados locais perante interesses estrangeiros


ou em função de condições específicas de âmbito estritamente local – a prossecução de
interesses nacionais ou locais não é, por si, incompatível com o Direito de conflitos
bilateral. Também não constitui impedimento a prossecução de interesses públicos, uma
vez que há interesses públicos comummente tutelados pela generalidade das OJ. O que
pode constituir um impedimento dirimente à bilateralização é a circunstância de os
“interesses nacionais” serem protegidos perante interesses estrangeiros ou em função
de condições específicas de âmbito estritamente local. Note-se que no DIP português não
existe nenhum exemplo de norma unilateral que esteja nestas circunstâncias. Por
conseguinte, perante a verificação de uma lacuna, as normas unilaterais são, em regra,
bilateralizáveis (LP).
ii. Interesses que digam respeito à organização administrativa ou a atividades realizadas por
entes públicos no âmbito da gestão pública – a unilateralidade associada a normas

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

organizativas e a certas atividades públicas é um problema específico que diz


essencialmente respeito à aplicação no espaço do Direito público e não ao DIP.

As normas unilaterais insuscetíveis de bilateralização podem ser designadas por normas de


delimitação.

A bilateralização das normas unilaterais ad hoc envolve um processo – generalização – que


compreende dois processos:

a) O “alargamento da previsão”, com a passagem de uma norma ou lei individualizada para


uma categoria de relações jurídicas ou questão parcial – a norma ad hoc reporta-se a normas
materiais determinadas do Direito do foro. É necessário então que a sua previsão seja
reformulada, por forma a abranger normas materiais estrangeiras com o mesmo conteúdo e
função. Por exemplo, enquanto a norma ad hoc contida no art. 2º/2 do regime jurídico da
concorrência se refere apenas às normas materiais contidas nesta lei, a norma bilateralizada
terá de reportar-se à generalidade das normas que visem promover e proteger a concorrência
(função) através da proibição de práticas restritivas e do controlo das operações de
concentração de empresas (conteúdo).
b) A bilateralização.

⇒ Normas bilaterais imperfeitas:

São aquelas que, podendo determinar a aplicação tanto do Direito do foro como de Direito
estrangeiro, limitam o seu objeto a certos casos que têm uma ligação especial com o Estado do foro,
não fornecendo diretamente a solução para as situações do mesmo tipo abstrato, mas em que falta a
referida ligação.

É o caso do art. 51º CC, que prevê o casamento de dois estrangeiros em Portugal (nº 1) e o casamento
de dois portugueses ou de um português e de um estrangeiro no estrangeiro (nº 2), mas deixa de fora
o casamento de dois estrangeiros em país terceiro.

Estas normas colocam ainda a questão de saber se há uma lacuna. Caso a resposta seja afirmativa,
esta lacuna pode, em princípio, ser integrada mediante uma aplicação analógica da norma bilateral
imperfeita. Mas tem de ser examinado, relativamente a cada caso, se por esta via é possível formular
uma norma bilateral perfeita, ou se a bilateralização perfeita é limitada e, eventualmente,
condicionada a pressupostos adicionais.

⇒ Normas de remissão condicionada e Normas de reconhecimento:

i) Normas de remissão condicionada:

LP adota um conceito restrito, segundo o qual é regra de remissão condicionada aquela que tem em
conta a competência da lei estrangeira segundo o respetivo DIP. Isto permite relacionar estas normas
com um reforço atual do unilateralismo.

Mas tal não obsta a que a remissão possa ser cumulativamente condicionada a um determinado
resultado material ou à existência de normas com determinado conteúdo ou intencionalidade
normativa. Por exemplo, o art. 31º/2 CC remete para a lei da residência habitual do interessado ou

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interessados não só sob a condição de esta lei se considerar competente, mas também de conduzir à
validade de um negócio do estatuto pessoal que seria inválido segundo a lei da nacionalidade.

Assim, devem considerar-se normas de remissão condicionada as seguintes normas do CC: arts.
28º/3, 31º/2, 36º/1 in fine, 45º/3, 47º e 65º/2.

Uma vez que na remissão condicionada está sempre em causa a posição do DIP, cabe perguntar: qual
é a diferença entre a remissão condicionada e a devolução?

Aceitar a devolução significa que se a lei estrangeira designada pela nossa norma de conflitos não
aceitar a competência, porque o seu Direito de conflitos remete para a lei portuguesa (retorno de
competência) ou para uma terceira lei (transmissão de competência), nós vamos aplicar a lei
portuguesa ou a terceira lei.

No caso da remissão condicionada:

i. Nuns casos, a consideração do DIP estrangeiro parece limitar-se à vontade de aplicação,


já não se atendendo ao retorno de competência ou à transmissão de competência.
Manifestar-se-ia aqui uma abordagem unilateralista, que se distingue da devolução (ex:
art. 47º CC).
ii. Noutros casos, designadamente aqueles em que se prefigura um determinado resultado
material, parece que o DIP estrangeiro pode ser considerado ilimitadamente (ex: art. 31º/2
CC).

A técnica da remissão condicionada parece justificar-se principalmente em dois tipos de situações:

1) Quando se admita um desvio excecional à lei normalmente competente, que só se justifica


quando a situação esteja ligada por determinado elemento de conexão a outro Estado e a OJ
deste Estado reclame aplicação. Por exemplo, quando os interessados devam poder confiar na
aplicabilidade desta OJ (como é o caso do art. 28º/3 CC) ou quando esta OJ esteja em posição
privilegiada para impor o seu ponto de vista sobre a solução do caso (como é o caso do art.
47º CC).
2) No que diz respeito à remissão para normas ou regimes imperativos contidos numa OJ
estrangeira que não é a primariamente competente para reger a situação – este tipo de
situações diz respeito ao tema da relevância das normas imperativas de terceiros Estados.

ii) Normas de reconhecimento:

Segundo LP, as normas de reconhecimento são aquelas que estabelecem um determinado resultado
material ou que estabelecem que determinados efeitos de determinada categoria se vão produzir
na OJ do foro caso elas também se verifiquem noutro Direito estrangeiro.

É o caso das normas sobre o reconhecimento de efeitos de sentenças estrangeiras e também o caso
das normas que reconheçam situações constituídas ou consolidadas segundo uma OJ estrangeira,
mesmo que não se tenham constituído validamente segundo a lei primariamente competente por
força do nosso Direito de conflitos.

Estas normas de reconhecimento são ainda normas de remissão, porque determina a aplicação do
Direito estrangeiro ou extraestadual à produção do efeito. Mas não são simples normas de remissão,

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na ótica de LP: a norma de reconhecimento distingue-se das normas de remissão gerais porque se
reporta a um resultado material ou a uma categoria de efeitos jurídicos e porque conserva um maior
controlo sobre a solução material. Este maior controlo da solução material pode resultar de a norma
de reconhecimento se reportar a um resultado material determinado.

Quando a norma de reconhecimento se reportar a uma categoria de efeitos jurídicos (como é o caso
das normas substantivas de reconhecimento de efeitos de atos públicos estrangeiros), a consequência
jurídica que se produz na OJ do foro pode ser modelada, não sendo sempre uma pura receção de
efeitos jurídicos produzidos na OJ estrangeira. Assim, deve entender-se que no reconhecimento de
efeito de caso julgado da sentença estrangeira são excluídos certos efeitos desconhecidos da OJ do
Estado de reconhecimento.

A norma de reconhecimento pode ainda ser ou não uma norma de conexão. Assim, as normas de
reconhecimento de efeitos de atos públicos estrangeiros serão normas de conexão se condicionarem
o reconhecimento à existência de uma conexão adequada entre o Estado de origem da decisão e a
situação.

⭐ O problema da relevância das normas imperativas de Estados terceiros

De acordo com LP, as normas imperativas estrangeiras só podem ser aplicadas na OJ local por força
do título de aplicação que uma proposição vigente nesta OJ lhes conceda.

A esta luz cabe distinguir entre normas imperativas da lex causae (lei designada pelo sistema do
Direito de conflitos) e normas imperativas de terceiros ordenamentos.

As normas imperativas lex causae são, em princípio, aplicáveis no quadro do título de aplicação
conferido a essa lei pelas normas de conflitos gerais.

Mas há quem defenda que a aplicabilidade de certas categorias de normas imperativas,


designadamente as chamadas “normas de intervenção” põem em jogo “interesses conflituais
específicos”, diferentes dos que são tutelados pelas normas de conflitos gerais, devendo por isso
depender exclusivamente de normas de conflitos especiais.

Com efeito, as normas de conflitos especiais delimitam o âmbito de aplicação das normas de conflitos
gerais, o que comina na inaplicabilidade das normas imperativas da lex causae que sejam
reconduzíveis à categoria normativa prevista na norma de conflitos especiais.

 Por exemplo, caso se entenda que, pelo que toca aos efeitos sobre a validade de um contrato,
são aplicáveis as normas de defesa da concorrência do Estado em que ocorram as práticas
restritivas da concorrência ou em que produzam os seus efeitos, não serão chamadas as
normas de defesa da concorrência do Direito regulador do contrato, quando não seja o do
mesmo Estado.
o Só não será assim se for configurada uma conexão cumulativa, por forma a que tais
normas imperativas sejam aplicáveis quer quando integram a lex causae quer quando
vigoram na ordem jurídica do Estado que apresenta a conexão especial com a situação.
o Este raciocínio, porém, pressupõe a vigência de uma norma de conflitos especial ou
a possibilidade de o intérprete introduzir um desvio às normas de conflitos gerais
mediante a criação de uma solução ad hoc.

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Outra dificuldade quanto à aplicação de normas imperativas da lex causae surge quando estas normas
forem “autolimitadas”, excluindo a sua aplicação à situação que são chamadas a aplicar. Esta
dificuldade deve resolver-se segundo duas regras:

1) Se a negação de aplicabilidade da norma não põe em causa a competência da OJ a que pertence


a “autolimitação”, deve ser respeitada. Na maioria dos casos a norma “autolimitada” é uma
norma especial. A negação da sua aplicabilidade significa apenas que serão aplicáveis apenas
as outras normas da lex causae que forem reconduzíveis à categoria normativa prevista na
norma de conflitos geral.
2) Se a negação de aplicabilidade da norma põe em causa a competência da OJ a que pertence, a
“autolimitação” só poderá relevar no quadro das regras sobre devolução.

Quanto às normas imperativas de terceiros ordenamentos, coloca-se a questão de saber se a OJ local


lhes confere um título de aplicação mediante proposições jurídicas especiais ou se, de outro modo,
permite a sua tomada em consideração.

O art. 9º/3 Reg. Roma I contém uma norma relevante nesta matéria, mas que permite apenas dar
prevalência às normas de aplicação imediata do país da execução do contrato, na medida em que
segundo essas normas a execução do contrato seja ilegal.

Este preceito só confere relevância às normas imperativas de terceiro Estado que sejam de aplicação
necessária. Se as normas imperativas do terceiro Estado forem aplicáveis a título de Direito regulador
do contrato, estes preceitos não lhes conferem relevância.

 LP não concorda com este entendimento: por que razão se há de tratar diferentemente as normas
imperativas de terceiros Estados, que apresentam uma ligação significativa com a situação, conforme
na OJ estrangeira sejam ou não encaradas como “normas de aplicação necessária”?

Segundo o autor, a distinção conduzirá, designadamente, a que normas imperativas de conteúdo e


finalidades semelhantes e que são consideradas aplicáveis no caso pelo DIPrivado do sistema de onde
promanam sejam tratadas de modo diferente, consoante a sua aplicação dependa ou não, segundo o
mesmo DIPrivado, de integrarem o estatuto obrigacional.

Por conseguinte, o problema dirá respeito à relevância de quaisquer normas imperativas


estrangeiras, que não estejam integradas na OJ competente segundo o Direito de conflitos geral.

⇒ Principais teses sobre a relevância das normas imperativas estrangeiras:

1) Teoria do estatuto obrigacional

Segundo este entendimento tradicional, as normas imperativas estrangeiras só serão aplicadas


quando integrarem a lex causae. Normas de terceiros ordenamentos só poderão relevar enquanto
pressupostos de facto de normas da lex causae.

Na opinião de LIMA PINHEIRO:

i. Esta teoria promove a harmonia internacional entre a ordem jurídica do foro e a lei
primariamente aplicável à situação, que é aquela que apresenta ligação mais significativa
com a situação considerada no seu conjunto;

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ii. Evita o cúmulo de normas imperativas de diferentes Estados;


iii. Contudo, não tem em conta o bem comum universal, que postula uma determinada
relevância de normas imperativas de terceiros ordenamentos que prossigam finalidades
relevantes para a OJ do foro ou amplamente acolhidas na comunidade internacional;
iv. Também não tem em conta a harmonia internacional com outros ordenamentos que
podem ter uma conexão significativa com o caso;
v. E também não considera as exigências que podem decorrer da cooperação entre EM da
UE;
vi. Levada às últimas consequências, esta teoria impediria qualquer desenvolvimento e
aperfeiçoamento do sistema pela jurisprudência e pela ciência jurídica – estaria vedado o
desenvolvimento de normas de conflitos especiais ou de cláusulas gerais, com caráter
bilateral.

2) Teoria da conexão especial

Entre nós têm sido defendidas conceções próximas da original, designadamente por MARQUES DOS
SANTOS, que partindo da ideia básica de reconhecimento no Estado do foro da vontade de aplicação
das normas de aplicação imediata estrangeira propôs a adoção de uma “regra de reconhecimento”
que dê um título e legitime a relevância, no Estado do foro, de tais regras, de acordo com as condições
e dentro dos limites fixados por este último Estado.

o Como limites ao reconhecimento, MS refere:


i. A exclusão de pretensões de aplicação exorbitantes;
ii. Normas que colidam com interesses do Estado do foro;
iii. Normas com interesses afins aos do Estado do foro.

Na opinião de LP:

a) Esta teoria permite ter em conta a harmonia internacional com Estados terceiros que tenham
uma conexão significativa com o caso;
b) Permite também, eventualmente, ter em conta o bem comum universal, dependendo do modo
como seja entendida;
c) Permite também considerar as exigências da cooperação regional;
d) Contudo, também não é adequada:
i. Não tem suficientemente em conta a importância da harmonia com a lei
primariamente aplicável à situação por força do Direito de conflitos geral;
ii. Recorre à técnica da cláusula geral, que deixa uma larga margem de apreciação ao
intérprete, com as correlativas incerteza sobre o regime jurídico aplicável e
imprevisibilidade de soluções;
iii. Aumenta o risco de cúmulo de normas imperativas de diferentes Estados que, além
dos conflitos de deveres que podem originar, implica uma desigualdade de tratamento
das situações transnacionais e uma indesejável restrição da autonomia privada nestas
situações.

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3) Tese intermédia

LIMA PINHEIRO entende que uma maior clareza, previsibilidade e adequação das soluções só pode
ser alcançada mediante uma determinação das conexões relevantes e das exigências que devem ser
postas ao conteúdo e fim das normas imperativas estrangeiras – o que aponta para o
desenvolvimento de normas de conflitos especiais.

Assim:

i) De iure condendo:

Dá preferência à criação de normas de remissão condicionada a certas categorias de normas


imperativas vigentes em Estados que apresentam determinada conexão com a situação.

A remissão será condicionada à “disposição de aplicar-se” das normas em causa, quer se trate de
normas suscetíveis de aplicação necessária ou de outras normas imperativas “que reclamam
aplicação” por força do respetivo sistema de Direito de conflitos.

Na elaboração destas normas entrarão em linha de conta não só as finalidades de política legislativa
de normas e regimes materiais individualizados, mas também o conjunto de princípios e ideias
orientadoras do DIPrivado, designadamente os princípios relativos à conformação global do sistema
e a tutela dos interesses típicos das partes.

ii) De iure constituto:

Não vigora na OJ portuguesa, na opinião de LP, qualquer regra geral sobre a relevância de normas
imperativas de terceiros ordenamentos.

Todavia, o DIPrivado português contém algumas regras relevantes em domínios específicos:

(a) A mais importante é a que consta do nº 3 do art. 9º Reg. Roma I

Este preceito converge com a posição que o autor defende de iure condendo, embora esteja redigido de
forma mais restritiva e apenas permita a relevância de “normas de aplicação imediata”. Não obstante,
parece defensável o entendimento segundo o qual abrange não só as normas de aplicação imediata
relativas à execução do contrato, mas também as que estabeleçam requisitos de validade do
conteúdo e do fim do contrato. Também é sugerido que possam ser aplicadas não só regras
imperativas proibitivas, mas também regras imperativas prescritivas que regulem as obrigações das
partes.

LP defende ainda que parece também de admitir que não exclui em absoluto a própria aplicabilidade
de normas imperativas que não pertençam à lei do lugar da execução, quando se demonstre
claramente uma lacuna no Regulamento, como parece verificar-se, por exemplo, com a incidência
sobre a validade do contrato das normas de Direito da Concorrência.

(b) Art. 23º Lei das Cláusulas Contratuais Gerais.

LP entende que, na falta de norma especial que dê um título de aplicação a normas imperativas de
terceiros ordenamentos, os tribunais portugueses estão, em princípio, vinculados pelo sistema de
Direito de conflitos a aplicar exclusivamente as normas imperativas da lei competente. Mas isto não

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excluirá, em absoluto, a possibilidade de se fundamentar a aplicação de normas imperativas de


terceiros ordenamentos na analogia ou em soluções especiais criadas pelo intérprete.

A criação, pelo intérprete, de soluções conflituais especiais, que atribuam um título de aplicação a
normas imperativas de terceiros Estados, deve ser orientada por diretrizes metodológicas estritas:

1) Pressupõe a revelação de uma lacuna oculta, mediante interpretação restritiva ou redução


teleológica das normas de conflitos gerais em causa;
2) Deve obedecer aos critérios estabelecidos na OJ para a sua integração.

ESTRUTURA GERAL DA NORMA DE CONFLITOS

⭐ Elementos da Norma de Conflitos

⇒ Previsão:

1) Objeto da norma de conflitos:

A previsão da norma de conflitos define os pressupostos de cuja verificação depende a sua aplicação.
Através destes pressupostos, a previsão da norma delimita o seu objeto e delimita o alcance material
da remissão. O objeto da norma de conflitos é, como referido, a situação transnacional ou um seu
aspeto.

As normas de conflitos do tipo utilizado no Direito de conflitos geral delimitam as situações da vida
através de conceitos técnico-jurídicos que atendem ao conteúdo típico e a notas funcionais. Assim,
as normas de conflitos deste tipo determinam a aplicação de certa ordem local a uma categoria de
situações ou a uma dada questão parcial, por exemplo, a capacidade ou a forma do negócio jurídico.

Os conceitos utilizados na previsão das normas de conflitos são de extensão variável. Em média, esta
extensão depende do maior ou menor número de normas de conflitos que compõem o sistema: num
sistema que disponha de umas poucas normas de conflitos, os conceitos tendem a ter um alcance
muito vasto; num sistema muito especializado, o objeto de cada uma das normas tende a ser muito
mais restrito.

A extensão do objeto da norma de conflitos deve ser aquela que convenha à sua estatuição, à remissão.
Ao eleger os diferentes elementos de conexão, o legislador tem em vista aqueles que, em função da
especificidade das diferentes categorias de situações ou dos seus diferentes aspetos, são os mais
adequados para designar o Direito que lhes há de ser aplicado. Importa pois que a previsão de uma
norma de conflitos compreenda aquelas situações, e só aquelas, para as quais, segundo o juízo de
valor legislativo, é adequada a conexão.

Na formação dos conceitos utilizados na previsão das normas de conflitos o legislador deve atender
ao Direito Comparado:

i. Por um lado, no interesse da harmonia internacional de soluções, importa ter em conta a


tendência seguida por outros Direitos de Conflitos;
ii. Por outro lado, estes conceitos devem tanto quanto possível abranger a generalidade dos
institutos jurídicos, incluindo institutos jurídicos desconhecidos do ordenamento do foro.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Já se falou em normas unilaterais ad hoc, que se reportam à aplicação do Direito material unificado ou
de determinadas normas ou leis de fonte interna: estas normas também têm por objeto situações da
vida, ou aspetos de situações da vida. A principal diferença relativamente às normas de conflitos do
tipo anteriormente referido decorre de a delimitação destas situações da vida ser feita, no caso das
normas de conexão do Direito material unificado, por normas sobre o domínio material de
aplicação da Convenção e, no caso de outras normas de conexão ad hoc, pela previsão da norma
material cuja aplicabilidade está em causa.

Uma parte das Convenções de unificação do Direito de conflitos também utiliza, na previsão das suas
normas de conflitos, conceitos técnico-jurídicos que se reportam a categorias de situações jurídicas e
a questões parciais. Noutras Convenções, porém, manifesta-se uma preferência por conceitos
eminentemente fáticos, que procuram evitar as dificuldades suscitadas pelos conceitos técnico-
jurídicos e preservar a unidade funcional entre normas e regimes de diferentes ramos do Direito. A
preferência por conceitos funcionais deste tipo é manifestada por alguns autores, mas dificilmente se
poderia generalizar a todas as matérias.

Os conceitos utilizados na previsão da norma de conflitos não desempenham apenas a função de


delimitar o objeto da norma. Eles também delimitam o alcance material da remissão operada pela
norma, na medida em que a norma de conflitos só chama à aplicação as normas e princípios materiais
que sejam reconduzíveis a esses conceitos (art. 15º CC). Neste sentido, pode dizer-se que os conceitos
utilizados na previsão da norma de conflitos desempenham uma dupla função:

i. Delimitam o objeto da norma;


ii. Delimitam o alcance material da remissão.

2) O fenómeno do dépeçage e suas implicações:

Muitas normas de conflitos não se reportam a situações típicas globalmente consideradas mas apenas
a certos aspetos parcelares. Estas normas reportam-se a questões parciais.

Muitas normas de conexão ad hoc também se reportam só a aspetos parcelares (ex: art. 23º LCCG).
Mesmo as normas de conflitos que se reportam a categorias de relações jurídicas causam
fracionamento na regulação das situações da vida dado o cruzamento de diferentes domínios do
Direito material na disciplina de uma concreta situação da vida.

Para definir a disciplina aplicável, por exemplo, a uma relação internacional de compra e venda é
necessário atuar uma pluralidade de normas de conflitos, designadamente as relativas à substância
do contrato, à forma do contrato e aos efeitos reais. Estas normas de conflitos podem desencadear a
aplicação de uma pluralidade de Direitos a diferentes aspetos da relação.

A especialização do Direito de Conflitos acentua o fracionamento na regulação das situações


transnacionais. Este fenómeno de fracionamento das situações nacionais pelo Direito de conflitos é
geralmente designado por dépeçage, que vem realçar a função reguladora do Direito de conflitos.

A conceção savignyana de DIP favorece a ideia segundo a qual cada relação jurídica está inserida
numa determinada ordem jurídica, que é justamente aquela onde tem a sua sede. Esta ideia não
corresponde à realidade jurídico-positiva. Em regra, a globalidade da disciplina de uma concreta
relação da vida internacional só pode ser definida pela atuação de uma pluralidade de normas de
conflitos.

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Acresce que, por vezes, a mesma norma de conflitos admite o chamamento de mais de um Direito
para reger diferentes questões. Daí decorre que, em regra, cada relação da vida internacional é
suscetível de ser regulada mediante a remissão para uma pluralidade de Direitos.

Esta realidade jurídico-positiva exprime uma preocupação de justiça conflitual objetiva, de busca
das soluções mais adequadas à matéria a regular.

A regulação das situações transnacionais pelo Direito de conflitos não se traduz, por conseguinte, na
sua inserção numa determinada ordem jurídica, mas no estabelecimento de uma disciplina material
coerente com base numa pluralidade de remissões para diferentes Direitos. A busca de soluções
mais adequadas à matéria, que leva a uma crescente especialização de soluções, colide com outra
exigência da justiça conflitual, que é a da harmonia material. Com efeito, o dépeçage traz consigo o
risco de contradições normativas ou valorativas, ou de dessintonias, entre as proposições jurídicas
que são pedidas a diferentes ordens jurídicas; este risco é tanto menor quanto mais vasto for o alcance
da previsão da norma de conflitos.

Na formação dos conceitos que delimitam o objeto da norma este risco pode ser atenuado. É
necessário que estes conceitos respeitem, tanto quanto possível, as unidades de regulação em que
estão inseridas as normas singulares e os conjuntos normativos interdependentes.

Mesmo que se siga este caminho, porém, o risco de antinomias não pode ser evitado. A preservação
da harmonia material exige então que as normas de conflitos desempenhem uma função modeladora
do resultado material, que pode passar nomeadamente por uma adaptação.

⇒ Estatuição:

1) A estatuição da norma de conflitos:

A estatuição da norma de conflitos, a consequência jurídica que desencadeia, é tradicionalmente


identificada com a conexão. A conexão é o chamamento de um ou mais Direitos a regular a questão.

A estatuição da norma de conflitos carece de uma concretização; esta resulta da concretização do


elemento de conexão que é co-gerador da consequência jurídica concreta.

Pode todavia pensar-se que à dupla função técnico-jurídica da norma de conflitos corresponde uma
dupla consequência jurídica ou uma consequência jurídica complexa. Por um lado, a norma de
conflitos remete para um Direito. Esta remissão é geralmente feita através de uma conexão, mas como
sabemos que nem todas as normas de conflitos são normas de conexão, é preferível designar esta
primeira consequência por remissão.

Quando a remissão é feita para uma OJ estrangeira, suscita-se o problema da determinação do


alcance conflitual da remissão, i.e., a questão de saber se a remissão abrange o DIP da OJ designada.

Um segundo problema, que se coloca tanto quando a remissão é feita para o Direito estrangeiro como
quando é feita para o Direito do foro, diz respeito ao alcance material da remissão; trata-se de
determinar, no seio do Direito designado pela norma de conflitos, quais as proposições jurídico-
materiais que são chamadas por esta norma.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Quando a remissão é feita para um Direito estrangeiro ou extraestadual, produz-se uma segunda
consequência jurídica que se traduz na atribuição de um título de aplicação ao Direito material
estrangeiro ou extraestadual.

O conjunto de proposições jurídico-materiais que são chamadas por uma norma de conflitos é
geralmente designado por estatuto. Em certos casos a palavra “estatuto” também pode designar o
conjunto de proposições jurídico-materiais que são chamadas pelas várias normas de conflitos que
regulam determinado âmbito de matérias.

Já as expressões “Direito aplicável”, “lei aplicável” ou “lex causae” são polissémicas: tanto podem
significar o mesmo que estatuto como podem abranger o DIP aplicável da OJ designada pela norma
de conflitos.

2) Modalidades de conexão em geral:

A conexão pode ser:

a) Singular, quando, em resultado, desencadeia a aplicação de um só Direito para reger a


questão. Esta conexão singular subdivide-se em:
i. Simples: a norma de conflitos designa por forma direta e imediata um único Direito
aplicável à questão (ex: art. 46º CC);
ii. Subsidiária: a norma de conflitos dispõe de uma série de elementos de conexão que
operam em ordem sucessiva, por forma a que a atuação do elemento de conexão
seguinte depende da falta de conteúdo concreto do elemento de conexão anterior (ex:
arts. 3º e 4º Reg. Roma I e 52º CC);
iii. Alternativa: a norma de conflitos contém dois ou mais elementos de conexão,
suscetíveis de designarem dois ou mais Direitos, sendo efetivamente aplicado aquele
que, no caso concreto, se mostrar mais favorável à produção de determinado efeito
jurídico (ex: art. 11º Reg. Roma I);
iv. Optativa: a norma de conflitos também dispõe de dois ou mais elementos de conexão,
suscetíveis de designarem dois ou mais Direitos, mas é agora a vontade de uma
determinada categoria de interessados que vai determinar o Direito efetivamente
aplicável. Esta modalidade de conexão é pouco frequente no Direito de Conflitos
português. Ex: art. 7º Reg. Roma II. A norma de conexão optativa pode favorecer
resultados materiais. É certo que na conexão optativa também há uma manifestação
da autonomia privada, mas há uma diferença importante com outras manifestações
da autonomia da vontade na escolha da lei aplicável: geralmente, quando se fala de
liberdade de escolha da lei aplicável, tem-se em vista um acordo entre os sujeitos de
uma relação; na conexão optativa a escolha pertence a um dos sujeitos da relação.
Esta escolha, se for feita para uma relação determinada, favorece os resultados
materiais pretendidos por um dos seus sujeitos.

b) Plural, quando, em resultado, desencadeia a aplicação de mais de um Direito para regular a


questão. Esta conexão, que não se deve confundir com a aplicação distributiva de dois
Direitos, pode assumir duas modalidades:
i. Cumulativa simples: a norma de conflitos exige, para que se produza certo efeito
jurídico, a concorrência de dois ou mais Direitos; o efeito tem de ser desencadeado ou
reconhecido simultaneamente por dois ou mais Direitos (ex: art. 33º/3 CC). A conexão

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

cumulativa simples apresenta-se como simétrica relativamente à conexão alternativa.


A alternativa favorece a produção de um efeito jurídico, a cumulativa simples dificulta
a sua produção. Em certos casos, este desfavorecimento de um efeito jurídico pode ser
intencional, mas nem sempre é assim: por vezes, a conexão cumulativa simples resulta
de certos problemas específicos de regulação, sem exprimir uma valoração negativa
do legislador de DIP relativamente a determinado efeito jurídico.
ii. Cumulativa condicionante: difere da cumulativa simples porque não há uma
atribuição de competência paritária a dois ou mais Direitos. A norma de conflitos
chama um Direito como primariamente competente, mas atribui a outro sistema uma
função limitativa ou condicionante quanto à produção de certo efeito (ex: art. 60º CC).
Também a conexão condicionante pode resultar de um juízo de valor desfavorável
específicos de regulação ou na promoção da harmonia jurídica internacional. Assim, a
necessidade de conjugar estatutos, i.e., conjuntos normativos que se vão pedir a
Direitos diferentes para reger diversos aspetos de uma mesma situação, pode
frequentemente levar a conexões condicionantes. Do mesmo modo, a conexão
condicionante pode ter subjacente a preocupação de evitar a criação de situações
coxas, i.e., que não são reconhecidas num dos Estados com elas mais estreitamente
conexos.

Segundo um outro critério, as conexões podem classificar-se como:

c) Autónomas, porque a respetiva norma de conflitos dispõe de um elemento de conexão que


opera a designação do Direito aplicável;
d) Dependentes, quando é necessário recorrer a outra norma de conflitos para determinar o
Direito aplicável, porque a norma de conflitos não dispõe de um elemento de conexão
autónomo (ex: art. 11º Reg. Roma I e 40º CC).

⇒ Elemento de conexão:

1) Noção e função:

Segundo a noção tradicional, o elemento de conexão é um laço entre uma situação da vida e dado
ordenamento de um Estado soberano que se entende ser o determinante para a escolha do
ordenamento aplicável.

Esta noção tradicional suscita a LP alguma reserva: a situação da vida, enquanto realidade social,
situa-se num plano da realidade diverso do das OJ, que são realidades jurídicas. Razão por que, no
seu entender, o elemento de conexão pode consistir:

1. Num laço fático entre um dos elementos da situação da vida e um determinado lugar no
espaço que permita individualizar o Direito aí vigente (ex: lugar da situação da coisa);
2. Num vínculo ou qualidade jurídica que permita individualizar o Direito que o estabelece (ex:
nacionalidade e domicílio);
3. Numa consequência jurídica que se projeta num determinado lugar no espaço possibilitando
a individualização do Direito aí vigente (ex: lugar do efeito lesivo);
4. Num facto jurídico, tal como a designação pelas partes do Direito aplicável.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

O elemento de conexão é diferente da conexão:

 O elemento de conexão individualiza o Direito a ser aplicado. O elemento de conexão


estabelece a ponte entre a situação e a ordem jurídica aplicável e tem um caráter bifrontal.
Para estabelecer a ponte tem de relacionar-se, mergulhar as suas raízes na situação da vida
em causa (ex: arts. 25º e 31º/1 CC). Por outro lado, se o elemento de conexão participa da
previsão, também aponta, individualiza, serve a estatuição. Nesta medida integra também a
estatuição. O elemento de conexão é um elemento essencial da norma de conexão.
 A conexão é o chamamento de uma ou mais ordem jurídicas. A norma de conexão tem uma
estrutura tripartida (previsão/estatuição/elemento de conexão) que a distingue das restantes
normas que têm uma estrutura bipartida (previsão/estatuição). Para quem adota um conceito
restritivo de norma de conflitos, todas as normas de conflitos serão normas de conexão e,
portanto, poderá pensar que a estrutura tripartida é característica da norma de conflitos. Não
será assim para quem adote uma conceção ampla de norma de conflitos, que inclua todas as
proposições sobre a determinação do Direito aplicável. Segundo esta conceção ampla, atrás
adotada, há normas de conflitos que não são normas de conexão e que, portanto, não têm
elemento de conexão. Também há normas que contêm um elemento de conexão e que não são
normas de conflitos, como é o caso das normas de competência internacional. Estas normas
também não são normas de conexão, porque o elemento de conexão nelas contido não serve
para conectar uma situação com o Direito aplicável.

2) Classificações do elemento de conexão:

Segundo uma primeira classificação, os elementos de conexão podem ser:

1. Pessoais – referem-se às pessoas, i.e., aos sujeitos da relação. Referem-se às pessoas a


nacionalidade, o domicílio, a residência habitual e a sede da pessoa coletiva;
2. Reais – referem-se ao seu objeto ou a factos materiais:
i. Referem-se ao objeto o lugar da situação da coisa e o lugar do destino das coisas em
trânsito.
ii. Referem-se a factos materiais, designadamente, o lugar onde é praticado o delito, o
lugar da celebração de um ato e o lugar onde se desenrola um processo.

Esta classificação não é exaustiva. Uma segunda classificação atende ao modo como os elementos de
conexão realizam a sua função de designação do Direito aplicável. Esta função é realizada:

3. Por via direta – quando o elemento de conexão aponta diretamente o Direito aplicável, sem a
mediação de um preciso ponto no espaço;
4. Por via indireta – quando o elemento de conexão aponta para um determinado lugar no
espaço, como via para, indiretamente, designar como aplicável o Direito vigente nesse lugar.

Uma terceira classificação atende à estrutura do elemento de conexão. Segundo vimos, o elemento
de conexão pode consistir num laço fático, num vínculo jurídico, numa consequência jurídica e num
facto jurídico. Deste ponto de vista, também se podem classificar os elementos de conexão conforme
os conceitos designativos sejam:

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5. Descritivos (ou de facto) – a determinação do conteúdo dos conceitos descritivos baseia-se na


experiência social do intérprete e nos usos linguísticos gerais;
6. Técnico-jurídicos (ou normativos) – a determinação do conteúdo dos conceitos técnico-
jurídicos exige o recurso a outras normas ou à elaboração realizada pela ciência jurídica.
Repare-se que os conceitos técnico-jurídicos se podem reportar tanto a dados normativos,
designadamente vínculos jurídicos como a nacionalidade e factos jurídicos como a designação
pelas partes, como a dados puramente fáticos.

Esta distinção tem um alcance relativo, uma vez que a determinação do alcance dos conceitos fáticos
utilizados numa norma pode suscitar problemas de interpretação a resolver, entre outros critérios, à
luz da intenção do legislador histórico e do fim de política legislativa prosseguido com a norma.

Uma quarta classificação atente à modificabilidade temporal do conteúdo concreto do elemento de


conexão. Segundo este critério os elementos de conexão são:

7. Móveis – são os elementos de conexão cujo conteúdo concreto é suscetível de variar no tempo.
Não se devem confundir os elementos de conexão móveis com elementos cujo conteúdo
concreto pode ser modelado pelos interessados;
8. Imóveis – são os elementos de conexão cujo conteúdo é invariável no tempo. Esta categoria
de elementos de conexão tem relevância para a fraude à lei. Mas há elementos de conexão
que são imóveis apesar do seu conteúdo concreto poder ser modelado pelos interessados.

⭐ A Determinação da Remissão em Função das Circunstâncias do Caso Concreto

A determinação do Direito aplicável não resulta da concretização do elemento de conexão fixado


numa norma de conflitos, mas de critérios flexíveis que deixam uma margem de apreciação ao
intérprete.

Esta justiça do caso concreto pode ser material, “conflitual” ou mista. Os sistemas positivos de DIP,
embora consagrem certas normas de conflitos materialmente orientadas, não admitem uma escolha
do Direito aplicável exclusivamente em função do resultado material.

Já em certos casos se admite que a escolha do Direito aplicável se baseie inteiramente numa justiça
da conexão do caso concreto:

 É o que se verifica no Regulamento Roma I quando, subsidiariamente, se submete o contrato


à lei do país com o qual apresente a conexão mais estreita (art. 4º/4).

Noutros casos, admite-se que sem prejuízo de considerações de tipo conflitual também possa de
algum modo ser tido em consideração o conteúdo das leis em presença.

A tendência recente para soluções individualizadoras vem a exprimir-se em proposições conflituais


de novo tipo:

o Na estrutura destas proposições conflituais não encontraremos um conceito designativo do


elemento de conexão; este é substituído por um conceito altamente indeterminado, como o
de conexão mais estreita (art. 4º/4 Reg. Roma I), Direito mais apropriado ao litígio (artigo 33.º,
n.º2 LAV 1986) ou centro dos principais interesses do devedor (arts. 3º/1 e 4º/1 Regulamento
sobre processos de insolvência).

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

o Trata-se de conceitos carecidos de preenchimento valorativo, uma vez que a sua concretização
exige uma valoração conflitual e, por vezes, também uma valoração jurídico-material.
o Algumas destas proposições jurídicas poderão ser consideradas cláusulas gerais, dado que a
sua previsão, muito ampla, carece de ser preenchida com recurso a critérios valorativos.
Nestes casos, verifica-se uma elevada indeterminabilidade quer com respeito à previsão da
norma quer pelo que toca à sua estatuição. Estas cláusulas gerais distinguem-se das outras
normas de conflitos por não utilizarem na sua previsão categorias de situações jurídicas ou
de questões parciais.
o Outras normas de conflitos delimitam a sua previsão com recurso a categorias de situações
jurídicas, tais como obrigações contratuais, relações entre cônjuges e processos de insolvência,
mas utilizam conceitos indeterminados para designarem critérios gerais de conexão, tais
como a lei do país com o qual o contrato apresente uma conexão mais estreita, a lei com a qual
a vida familiar se ache mais estreitamente conexa ou a lei do país em que se situa o centro dos
principais interesses do devedor.

⇒ O critério da conexão mais estreita:

O critério da conexão mais estreita surge, no nosso Direito de Conflitos:

i. No art. 4º/4 Reg. Roma I, em matéria de contratos obrigacionais;


ii. No art. 52º/2, 2.ª parte CC, em matéria de relações entre cônjuges;
iii. No art. 60º/2, in fine CC, em matéria de adoção;
iv. No art. 52º/2 LAV, para a determinação do Direito aplicável ao mérito da causa na
arbitragem.

O conceito de conexão mais estreita é um conceito carecido de preenchimento valorativo. Trata-se,


em primeira linha, de uma valoração conflitual, que atende aos laços existentes entre a situação em
causa e a esfera social dos Estados. Esta valoração não se destina necessariamente a determinar qual
o laço mais significativo; a conexão mais estreita pode resultar de uma combinação de diferentes
laços.

Qual o peso relativo que o intérprete deve atribuir aos diferentes laços, designadamente aos laços objetivos e
subjetivos? Esse é um problema de interpretação da norma de conflitos que utiliza o conceito. É
também um problema de interpretação o de saber se, e até que ponto, podem ser levadas em conta
considerações legadas ao conteúdo dos Direitos em presença.

⇒ Cláusula de exceção:

É uma proposição que permite afastar a lei primariamente aplicável de um Estado, quando existe
uma ligação manifestamente mais estreita com outro Estado, aplicando esta última lei. Assim, nas
cláusulas de exceção a equidade conflitual intervém para corrigir a designação do Direito estadual
primariamente aplicável.

É o caso do art. 15º da Lei Suíça. Também vingou em algumas Convenções da Haia, como é o caso da
Convenção sobre a lei aplicável aos contratos de venda internacional de mercadorias.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Podemos distinguir:

i) Cláusula geral de exceção – aplica-se na generalidade das categorias de situações


transnacionais que não sejam dela excluídas. No Direito de Conflitos português não vigora
uma cláusula geral de exceção.

Certamente que quem entenda as normas de conflitos como simples critérios instrumentais, que
podem ser afastados quando se demonstre que a conexão mais estreita se estabelece com um Direito
diferente do por elas designado, admitirá, no mínimo, a vigência de uma cláusula de exceção
implícita. Não se estranhará, por isso, que MOURA RAMOS defenda a vigência desta cláusula de
exceção, com base no princípio da proximidade e em algumas soluções particulares que, em seu
entender, constituem cláusulas de exceção fechadas.

Não é este o entendimento de LIMA PINHEIRO:

1) Considera as normas de conflitos tão vinculativas como as normas materiais.


2) O legislador de 1966 optou conscientemente por regras de conflitos de tipo tradicional que,
em geral, utilizam conceitos designativos do elemento de conexão determinados, mostrando-
se desfavorável a critérios de remissão flexíveis. A introdução por via interpretativa de uma
cláusula de exceção não se afigura compatível com a intenção do legislador histórico.

ii) Cláusulas especiais de exceção – privativas de matérias específicas.

Embora hoje vigorem na nossa OJ cláusulas de exceção especiais, em matérias bem delimitadas, não
se pode inferir daí uma cláusula geral de exceção. Antes dos Regulamentos Roma I e Roma II, era
discutível que vigorasse no Direito de Conflitos português qualquer cláusula especial de exceção.

O n.º 5 do art. 4º Convenção Roma tem sido encarado, pela doutrina dominante, como uma cláusula
de exceção, mas LP não concorda, porque resulta da conjugação dos n.º 1 e 5 do art. 4º que a lei da
conexão mais estreita é, na falta de escolha pelas partes, a conexão primária em matéria de contratos
obrigacionais.

Com os Regulamentos de Roma I e Roma II passaram a integrar o Direito de Conflitos português


diversas cláusulas especiais de exceção em matéria de contratos obrigacionais e obrigações
extracontratuais (designadamente, art. 4º/3 de ambos os Regulamentos).

 De iure condendo, o Regente defende a introdução de uma cláusula geral de exceção no OJ


português, por tal ser exigível pela justiça da conexão: esta é posta em causa quando a norma
de conflitos remete para o Direito de um Estado e a situação apresenta uma ligação
manifestamente mais estreita com outro Estado.

Mas esta cláusula geral de exceção deve ser excecional, sendo apenas aplicada quando o laço com a
lei primariamente aplicável é ostensivamente fraco e o laço com a outra lei é manifestamente mais
forte.

Esta ideia é reforçada pelo crescente número de situações em que existe uma dispersão dos elementos
de conexão ou em que estes são difíceis de concretizar ou são dificilmente cognoscíveis pelos
interessados, como sucede recorrentemente nos contratos celebrados pela internet.

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A sua aplicação deve ainda ser acompanhada de certos critérios orientadores, com influência do
Código Belga:

i. Se a nossa norma de conflitos designa a Lei X, e se vamos aceitar o funcionamento da


cláusula de exceção, aplicando a Lei Y, não se está a frustrar a confiança depositada na nossa
norma de conflitos? Se a situação tem uma ligação mais estreita com o Estado Y, em
comparação com o Estado X, e se o Direito de conflitos do Estado Y considera competente
a sua lei material, aplicar essa lei não frustra a confiança; as pessoas não confiam apenas
no Direito de conflitos português, mas confiam também no Direito de conflitos do Estado
com que a situação apresenta uma conexão mais estreita.
ii. Se temos situações que se constituíram ou consolidaram de acordo com as regras de DIP
de um Estado que apresenta uma conexão significativamente mais estreita com a situação,
devemos aplicar a técnica de reconhecimento.

INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA NORMA DE CONFLITOS

⭐ Interpretação da Norma de Conflitos

No Direito de Conflitos português vigoram essencialmente normas de fonte supraestadual e de fonte


interna. Os critérios de interpretação aplicáveis são os que regem a interpretação de cada uma destas
categorias de fontes.

i. Relativamente às normas de fonte interna deve ter-se em conta o disposto nos arts. 8º e 9º
CC e a metodologia desenvolvida pela ciência jurídica.
ii. Quanto às normas de fonte internacional há que atender às regras próprias que se
estudam no DIPúblico e, designadamente, ao disposto no art. 31º Convenção de Viena
sobre o Direito dos Tratados.
iii. No que toca às normas de fonte europeia valem os critérios de interpretação reconhecidos
pela jurisprudência e pela doutrina europeias, em que se salientam os critérios teleológicos
que atendem às finalidades prosseguidas com os tratados instituintes e aos princípios
gerais de DUE
iv. Também podem suscitar-se problemas de interpretação de normas de conflitos
estrangeiras quando haja lugar à aplicação de DIP estrangeiro, como sucede,
designadamente, na devolução e na aplicação de normas de remissão condicionada. As
normas de conflitos estrangeiras devem ser interpretadas segundo os critérios que lhes
forem aplicáveis no sistema a que pertencem.

Os problemas de interpretação podem dizer respeito a qualquer dos elementos da norma de conflitos:

a) Com respeito aos conceitos utilizados na delimitação do objeto da remissão;


b) Quanto aos conceitos que exprimem o elemento de conexão, sobretudo quando forem
conceitos técnico-jurídicos.

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⇒ Normas de conflitos de fonte interna:

As normas de conflitos de fonte interna têm de ser interpretadas como parte do sistema jurídico
português. Na determinação do sentido e alcance dos conceitos técnico-jurídicos utilizados quer para
delimitar o objeto da remissão quer para designar o elemento de conexão há que partir do Direito
material interno, do conteúdo aí atribuído, por exemplo, a capacidade, forma, obrigações, direitos reais,
nacionalidade, etc.

Mas se a interpretação é ancorada no Direito material interno, ela não lhe está subordinada. A
especialidade do Direito de Conflitos, que tem de lidar com OJ estrangeiras e, por vezes, com Direito
extra-estadual, obriga a que a interpretação dos conceitos da norma de conflitos tenha em conta os
fins próprios do DIP. Daí decorre que se possa atribuir a estes conceitos um sentido e alcance
diferente do dos conceitos homólogos do Direito material interno.

A interpretação da norma de conflitos é, por isso, uma interpretação autónoma relativamente ao


Direito material interno.

⇒ Normas de conflitos de fonte supraestadual:

Quanto às normas de conflitos de fonte supraestadual, temos especialmente as que constam de


Convenções Internacionais de unificação do Direito de Conflitos e de Regulamentos europeus:

i. No caso das normas de conflitos convencionais, decorre do sentido e do fim das


Convenções de unificação do Direito de Conflitos que a interpretação da norma de
conflitos tem de ser autónoma relativamente às OJ nacionais individualmente
consideradas e assentar numa comparação de Direitos. Só desta forma se pode promover
a uniformidade de interpretação das normas convencionais pelas diferentes jurisdições
nacionais. A Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais contém
no seu art. 18º um preceito sobre interpretação, inspirado no n.º 1 do art. 7º da Convenção
das Nações Unidas sobre Venda Internacional de Mercadorias. Naturalmente que nesta
interpretação deverão ser tidos ainda em conta os fins do DIP que estão subjacentes ao
Direito de Conflitos unificado, bem como os fins gerais do DIP comuns aos sistemas
dos Estados contratantes.
ii. Também a interpretação das normas de conflitos contidas em Regulamentos da União
Europeia deve ser autónoma. Isto significa que não deve ser feita referência ao Direito de
um EM em presença, mas antes ter em conta o contexto da disposição e o objeto
prosseguido pelas normas e causa e a conformidade com os direitos fundamentais
protegidos pela OJ comunitária ou com outros princípios gerais do Direito
Comunitário. Tratando-se de Convenções que estão ligadas à União Europeia ou de
regulamentos da União Europeia justifica-se, a par de outros critérios de interpretação
relevantes, o recurso a uma interpretação comparativa que atenda aos princípios gerais
que resultam do conjunto das ordens jurídicas dos Estados Membros. Na falta de
concordância geral seria defensável que se atendesse às soluções reconhecidas nos Estados
Membros mais interessados, mas o TJUE e a doutrina tendem a ter em conta as soluções
reconhecidas na maioria dos Estados Membros.

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⭐ A Integração de Lacunas no Direito de Conflitos

Podemos dizer que há uma lacuna da lei no Direito de Conflitos quando não encontramos uma norma
de conflitos de fonte legal que indique a lei reguladora de determinada situação transnacional que,
segundo o sentido regulador do sistema, deve estar submetida ao regime especial constituído pelo
Direito de Conflitos.

O problema em causa coloca-se de maneira muito diferente consoante tenhamos um sistema não
codificado ou um sistema codificado (que se verifica hoje na OJ portuguesa):

i. Aparentemente, perante um sistema codificado as lacunas seriam raras. Sucede, porém,


que a lacuna pode não ser patente, mas oculta, que se descobre mediante a interpretação
restritiva ou a redução teleológica de uma norma de conflitos existente.

Afirma-se frequentemente que as lacunas de DIP são necessariamente patentes (BAPTISTA


MACHADO e MOURA RAMOS): quer-se com isto significar que, perante a falta de uma norma de
conflitos aplicável a uma situação transnacional, surge necessariamente uma lacuna, sendo de
excluir que a situação deva ser regulada por uma aplicação direta do Direito material interno.

É ponto controverso; LIMA PINHEIRO entende que o Direito material de um Estado não tem, em
princípio, uma vocação de aplicação universal que justifique a sua aplicação direta a situações
transnacionais e que a função reguladora do Direito de Conflitos abrange potencialmente todas as
situações transnacionais. Pelo menos à face do sistema português de Direito dos Conflitos, pode
assentar-se que todas as situações transnacionais carecidas de regulação jurídica colocam um
problema de determinação do Direito aplicável. Na falta de normas de conflitos que resolva o
problema surge necessariamente uma lacuna que deve ser integrada por uma solução conflitual.

Mas isto não significa que não possa haver lacunas ocultas: pode suceder que uma situação
transnacional se encontre à primeira vista abrangida pela previsão de uma norma de conflitos, mas
que por via de uma interpretação restritiva ou de uma redução teleológica se venha a concluir que
existe uma lacuna. Isto é particularmente importante em ligação com os temas das normas suscetíveis
de aplicação necessária do foro e da relevância de normas imperativas de terceiros Estados.

Na integração da lacuna, devem ter-se em conta os critérios referidos no art. 10º CC e a metodologia
desenvolvida pela ciência jurídica:

 Em primeiro lugar, deve recorrer-se à norma aplicável a caso análogo (analogia legis). Suscita
alguma dificuldade a distinção entre a interpretação dos conceitos utilizados na previsão de
uma norma de conflitos e a aplicação analógica da norma. E isto porque o conteúdo destes
conceitos é, em elevado grau, determinado teleologicamente. Daí que alguns autores, como
BAPTISTA MACHADO e MOURA RAMOS, entendam que o raciocínio por analogia
intervém no próprio plano da interpretação da norma de conflitos, por forma que a norma
de conflitos é diretamente aplicável a todos os casos análogos. De onde resultaria que a
analogia legis não constitui um processo de integração de lacunas em DIP.
 LIMA PINHEIRO não segue este ponto de vista, entendendo antes que a fronteira entre
interpretação e aplicação analógica é ainda aqui traçada em função do sentido literal
possível da proposição jurídica. Uma extensão do âmbito de aplicação da norma ou uma
redução deste âmbito que vá além ou fique aquém do sentido literal possível não é
interpretação mas, respetivamente, aplicação analógica e redução teleológica.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

 Na falta de norma aplicável a um caso análogo, a solução do caso deve ser obtida mediante
uma concretização dos princípios e ideias orientadoras do Direito de Conflitos (analogia
iuris). Também aqui LIMA PINHEIRO diverge de BAPTISTA MACHADO, quando este
entende que o conjunto das normas de DIP vigentes num dado ordenamento não dá vida a
um sistema jurídico dominado por princípios gerais específicos aptos a colmatarem lacunas.
Assinale-se ainda que este processo de integração de lacunas tem grande afinidade com a
metodologia a seguir na aplicação das normas que utilizam critérios gerais de conexão.
 Não sendo possível integrar a lacuna por um dos processos anteriores, caberá ao intérprete
criar um critério de decisão dentro do espírito do sistema. Na formulação do critério de
decisão o intérprete tem de respeitar os valores e os princípios do DIP, sem que, porém, a
solução decorra da concretização destes valores e princípios. A solução tem de ser compatível
com o sistema. Acrescente-se que o intérprete tem de formular o critério de decisão sob a
forma de uma proposição geral e abstrata, de uma regra de conflitos, que seja suscetível de
ser seguida em casos semelhantes.
 Embora o costume interno não seja uma fonte importante de DIP português, importa ainda
observar que as lacunas do Direito de Conflitos de fonte legal podem ser integradas pelo
costume praeter legem e que, por conseguinte, só haverá lugar para o recurso aos processos
de integração atrás referidos na falta de norma de conflitos de fonte consuetudinária que
seja aplicável.

⭐ Aplicação no Tempo e no Espaço das Normas de Conflitos

Afirma-se frequentemente que todo o Direito estadual é situado no tempo e no espaço. O Direito
estadual é relativo no espaço (havendo pluralidade de sistemas) e no tempo (dada a mutabilidade
das OJ).

Mas esta afirmação é geralmente pensada para as normas materiais de conduta: poderá ela ser
transposta para o Direito de Conflitos? Uma primeira questão que se suscita é a de saber se as normas
de conflito serão normas de conduta, i.e., se têm por missão orientar a atuação dos sujeitos jurídicos.
Existe uma controvérsia quanto à determinação dos principais destinatários das normas de
conflitos:

i) Para a Escola de Coimbra, designadamente FERRER CORREIA e BAPTISTA


MACHADO, as normas de conflitos têm por principais destinatários os tribunais e não os
particulares; são normas que teriam por principal escopo resolver um conflito de leis, i.e.,
eliminar uma situação de concorrência ou de concurso entre preceitos materiais
procedentes de ordenamentos distintos. Segundo esta doutrina, a norma de conflitos em
sentido estrito, enquanto norma que tem por função específica resolver um concurso de
leis, tem um âmbito de aplicação ilimitado no espaço e no tempo, e é de aplicação
imediata. No entanto, estes autores admitem que a norma de conflitos pode eventual e
indiretamente operar como norma de conduta quando a lex fori for uma das leis
interessadas, i.e., quando há uma conexão entre a situação da lei do foro. Enquanto norma
agendi, a norma de conflitos tem o âmbito de aplicabilidade limitado pela existência de
uma conexão espacial e temporal; com efeito, as partes só podem ter orientado a sua
atuação pelo Direito de Conflitos do foro se no momento da conduta havia um laço
significativo entre a situação e o Estado do foro. Mas para esta doutrina, a existência de

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

um laço com o Estado do foro não é um pressuposto de aplicação no espaço do Direito


de Conflitos. O ponto de partida é antes o oposto: em regra, as normas de conflitos são de
aplicação universal e são de aplicação imediata às situações que no momento da
constituição não apresentavam conexão com o Estado do foro. A escola de Coimbra
modera as consequências deste entendimento mediante o recurso à doutrina dos direitos
adquiridos (BAPTISTA MACHADO) ou de um sistema e conexões alternativas (FERRER
CORREIA).
ii) De acordo com LIMA PINHEIRO, as normas de conflitos são normas de regulação
indireta e que, por regra, têm por função orientar a conduta dos sujeitos jurídicos. Só
excecionalmente as normas de conflitos são aplicadas como meros critérios de decisão.
Quando se coloca a questão da regulação de uma situação face ao Direito de Conflitos
português, há normalmente algum laço com o Estado português. Isto é claro quando
pensamos nos casos submetidos a tribunais portugueses: a competência internacional
pressupõe uma ligação, por ténue ou indireta que seja, da situação com o Estado do foro.
Normalmente há mais do que uma ligação ténue ou indireta, há uma ligação significativa.
Do reconhecimento de uma função reguladora à norma de conflitos hão de advir
consequências para as questões sobre a aplicação no tempo e a aplicação no espaço do
Direito de Conflitos: designadamente, não há razão para a priori considerar que as normas
de conflitos portuguesas sejam, no tempo, de aplicação imediata e que, no espaço,
reclamem uma esfera de aplicação universal.

⇒ Aplicação no tempo do Direito de Conflitos:

O início e termo da vigência das normas de conflitos não suscita dificuldades especiais, resolvendo-
se por aplicação das regras gerais, designadamente as da vacatio legis.

O problema que aqui interessa examinar é o da sucessão no tempo das normas de conflitos. Este
problema coloca-se quando muda a regulação conflitual de uma situação transnacional.

Qual a norma de conflitos aplicável? Trata-se de determinar se a situação transnacional a regular está
submetida à norma de conflitos antiga ou à norma de conflitos nova, ou de distinguir os aspetos das
situações que continuam a ser regidos pela norma de conflitos antiga daqueles que passam a ser
regulados pela norma de conflitos nova.

Quanto às situações jurídicas que são em parte regidas pela lei antiga e em parte pela lei nova
torna-se ainda necessário coordenar as duas leis por forma a fornecer uma regulação coerente e a
evitar que, sem justificação suficiente, se comprometa a continuidade das situações.

Não deve, assim, confundir-se a questão da aplicação no tempo das normas de conflitos com o
problema da sucessão no tempo das normas materiais do Direito aplicável.

⇒ Solução:

O problema pode ser resolvido pelo legislador por meio de normas transitórias que disponham
expressamente sobre a aplicação no tempo do Direito de Conflitos.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Na omissão do legislador, deve recorrer-se ao Direito Intertemporal da OJ em que estão integradas


as normas de conflitos em causa – esta é a tese dominante na Alemanha e em França, defendida, entre
nós, por ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO e seguida pelo STJ e pelo TC.

o Este entendimento foi contestado por autores que defenderam a aplicação imediata do novo
Direito de Conflitos:
a. BATISTA MACHADO entende que a norma de conflitos não tem uma função reguladora
de situações transnacionais e, por isso, não constitui uma norma de conduta, não havendo
razão para a intervenção do princípio da retroatividade. Restringe, contudo, esta solução
aos casos em que se trata de relações constituídas no estrangeiro sem conexão com o
Direito do foro e modera as suas consequências com base na doutrina dos direitos
adquiridos.
b. FERRER CORREIA admite que, se a situação foi constituída no Estado do foro ou num
momento em que existia uma conexão relevante com o Estado do foro, deve aplicar-se a
regra de conflitos antiga, sob pena de retroatividade.

Na opinião de LIMA PINHEIRO, o legislador pode formular regras especiais de Direito Intertemporal
sobre a sucessão no tempo das normas de conflitos; tais regras, porém, não existem no Direito de
fonte interna. Por conseguinte, são em princípio aplicáveis as regras gerais contidas nos arts. 12º e
13º CC:

i. O art. 12º CC consagra a doutrina do facto passado: a valoração jurídica dos factos
ocorridos na vigência da lei antiga não é, em princípio, prejudicada pela lei nova.
ii. A existência destas regras gerais não obsta, contudo, a que o legislador adote normas
especiais de Direito transitório, e também não significa que, na omissão do legislador, a
doutrina e a jurisprudência não possam desenvolver soluções adequadas às
especificidades dos diferentes complexos normativos, dentro de certos parâmetros: em
princípio, também se aplicam as regras especiais de Direito Transitório sobre a aplicação
no tempo de certo diploma legal que contenha normas de conflitos.
iii. Mas pode suceder que um diploma legal, contendo normas materiais e normas de
conflitos, só inclua regras especiais de Direito Transitório relativamente às suas normas
materiais. Neste caso, a aplicação às normas de conflitos de regras especiais de Direito
Transitório que se reportem apenas a normas materiais tem de se fundamentar em
analogia.
iv. A menos que os comandos da lei fundamental reclamem aplicação retroativa, o que, em
princípio, não se verifica, não há que estender o império da lei fundamental a factos
passados.
v. Por outro lado, os problemas de sucessão no tempo das normas de conflitos têm sempre
de ser examinados à luz da sucessão de sistemas materiais por ela desencadeada: a
aplicação da norma de conflitos antiga é imposta pelo princípio da continuidade das
situações jurídicas, que é um princípio fundamental de Direito Intertemporal – esta
doutrina foi acolhida pelo TC, no seu Ac. n.º 90/03, 14 fevereiro 2003, bem como pelo STJ
no seu Ac. de 12/9/2006.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

⇒ Aplicação no espaço do Direito de Conflitos:

Cada OJ tem o seu próprio DIP. Os progressos realizados na unificação do Direito de Conflitos e do
regime de reconhecimento de decisões estrangeiras não eliminaram as divergências entre os sistemas
nacionais de DIP.

Ora, nos casos em que não há harmonia entre os sistemas nacionais em presença quanto à
determinação do Direito aplicável a uma situação transnacional, fala-se em conflitos de sistemas de
DIP. A divergência entre sistemas nacionais de Direito Internacional Privado, designadamente a
utilização de elementos de conexão diferentes, podem conduzir a dois resultados diversos:

1. Se a atuação dos dois ou mais sistemas conduz à competência de dois Direitos para regular a
mesma situação, temos um conflito positivo;
2. Se nenhum dos Direitos em presença reclama aplicação, temos um conflito negativo.

Os conflitos de sistemas de DIP podem levar à existência de situações coxas. Por exemplo, suponha-se
que a capacidade matrimonial é regida no Estado X pela lei da nacionalidade e no Estado Y pela lei
da residência habitual; um casamento celebrado por dois nacionais do Estado X, no Estado Y da sua
residência habitual, pode ser válido perante o sistema jurídico do Estado da residência habitual, mas
inválido perante o sistema jurídico do Estado da nacionalidade.

Os conflitos de sistemas também podem conduzir a conflitos de deveres, quando dois ou mais
Direitos que se consideram aplicáveis à situação impõem a um sujeito obrigações de conduta
diferentes e inconciliáveis entre si.

O atual DIP não é alheio a estes problemas:

i) Em alguns casos, o DIP de um Estado permite tomar em consideração o Direito de


Conflitos estrangeiro:
a. O instituto da devolução, nomeadamente, relaciona-se com o conflito negativo de
sistemas.
b. O princípio da maior proximidade opera em casos de conflito positivo (ex: art. 47º
CC).
c. O problema da questão prévia tanto pode relacionar-se com um conflito negativo
como com um conflito positivo.

Mas num momento logicamente anterior ao da resolução dos problemas suscitados pelos conflitos de
sistemas de DIP, coloca-se o problema da aplicação no espaço de cada sistema de DIP: pergunta-se
agora:

1) O Direito de Conflitos vigente numa OJ estadual regula todas as situações transnacionais que ocorram
no mundo, quaisquer que sejam os seus laços com o Estado do foro, e mesmo que não haja qualquer
conexão entre a situação e o Estado do foro?
2) Ou existem certos limites à sua esfera de aplicação no espaço?

Por outras palavras: este Direito de Conflitos tem validade universal?

 Alguns autores entendem que a esfera de aplicação do Direito de Conflitos de um Estado é


limitada casos em que são internacionalmente competentes os respetivos órgãos de aplicação
do Direito. Por isso haveria coincidência entre a competência dos tribunais de um Estado e a
aplicabilidade do seu Direito de Conflitos. Esta tese foi atrás refutada.

67
Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Rejeitada a coincidência necessária entre a competência internacional e o Direito de Conflitos


aplicável, coloca-se a questão de saber se os órgãos de aplicação do Direito de um Estado devem
aplicar, em certos casos, em lugar do Direito de Conflitos do foro, Direito de Conflitos estrangeiro.

Note-se que a questão é colocada exclusivamente com respeito à regulação conflitual de situações
transnacionais na esfera estadual.

E quanto ao Direito Internacional de Conflitos, que opera a regulação das relações transnacionais na OJ
internacional? O Direito Internacional de Conflitos também pode ter limites à aplicação no espaço,
designadamente quando for de fonte convencional. Estes limites decorrem das normas sobre
aplicação no espaço da Convenção que o contém. Mas também pode ser de aplicação universal, como
sucede quando se trate de regras ou princípios conflituais de DIPúblico geral.

Na exposição que se segue refere-se exclusivamente quanto ao Direito de Conflitos que regula
situações que só relevam na OJ estadual.

São duas as conceções tradicionais nesta matéria:

1. Alcance universal e territorialismo quanto aos órgãos de aplicação do Direito de Conflitos


– toda e qualquer designação da lei competente para regular uma situação transnacional passa
exclusivamente pelo Direito de Conflitos do foro. Associa caráter universal e territorialismo
quanto aos órgãos de aplicação: as normas de conflitos de uma ordem estadual são as únicas
que podem ser aplicadas pelos órgãos do respetivo Estado. O fundamento desta posição
encontram-no uns na função internacional exercida pelo legislador estadual de DIP e outros
no alegado caráter público das normas de conflitos. Não importam as divergências com
outros Direitos de Conflitos estaduais e, designadamente, a existência de situações
constituídas com base em Direitos diferentes dos designados pela norma de conflitos do foro
e que se considerem competentes. Para quem aceite que o Direito de Conflitos Internacional
Privado tem uma função reguladora de relações transnacionais e é fundamentalmente Direito
Privado, esta tese é privada do seu fundamento. O objeto, função e natureza da norma de
conflitos não obstam à existência de limites à sua aplicação no espaço como também não
obstam a que uma norma da ordem jurídica do foro atribua relevância ao Direito de Conflitos
estrangeiro;
2. Limitação do Direito de Conflitos pelo princípio dos direitos adquiridos – para a escola de
PILLET, que contou com MACHADO VILLELA como um dos seus continuadores, o conflito
de leis e o reconhecimento dos direitos adquiridos são problemas perfeitamente distintos:
i. O problema dos conflitos de leis suscita-se quando no momento da constituição de
uma situação é necessário escolher entre várias leis em contacto com os factos
constitutivos.
ii. O respeito internacional dos direitos adquiridos concerne ao efeito no estrangeiro de
um direito subjetivo regularmente adquirido. Quando os factos constitutivos, ao
tempo da sua verificação, estavam todos em contacto com um só país, surgiria um
problema de reconhecimento da situação. Isto é, porém, contestado. O problema do
reconhecimento de uma situação que se constitui exclusivamente em contacto com um
Estado só se coloca quando a situação entra em contacto com outros Estados; a partir
do momento em que a situação está em contacto com vários Estados coloca-se um
problema de determinação do Direito aplicável.

O órgão de aplicação terá de determinar o Direito aplicável à constituição da situação. Só


depois de aplicada a lei competente pode afirmar-se que há um direito adquirido.

68
Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Resta saber se as proposições sobre a determinação da lei competente aplicáveis nestas


hipóteses serão as normas de conflitos gerais ou se atuarão aqui normas ou princípios
especiais:

a) Para FERRER CORREIA, há uma lacuna no sistema jurídico do foro, lacuna que se deve
preencher com a formulação de uma norma específica que determine a aplicação da lei
estrangeira da qual a relação sub iudice exclusivamente dependa.

Com respeito à regulação das situações transnacionais, a doutrina de PILLET não introduz
qualquer limitação à esfera de aplicação no espaço do Direito de Conflitos: quando a situação
se constitui em contacto com vários Estados, não se pode colocar o respeito dos direitos como
limite ao Direito de Conflitos. Tem de se saber com base em que OJ é adquirido o direito: o
Direito é sempre adquirido à sombra de determinada lei; para o efeito, é necessário escolher a
lei aplicável.

Daí que a doutrina dos direitos adquiridos esbarre com a objeção do círculo vicioso. Uma
forma de evitar esta objeção é a adoção de uma perspetiva unilateralista: será aplicável toda
a OJ que se considere aplicável e que constitui um direito subjetivo.

Mas contra esta variante da doutrina dos direitos adquiridos procede agora a objeção, já
oposta ao unilateralismo, segundo a qual em caso de conflito positivo o órgão de aplicação
tem de escolher entre as leis em conflito.

Enfim, a teoria parece supor que em todos os conflitos de leis está em causa um direito,
quando na verdade também entram em jogo expectativas jurídicas, interesses legalmente
protegidos e requisitos de validade de negócios jurídicos.

3. Novas doutrinas dos direitos adquiridos – estas doutrinas são dominadas pela ideia de
autolimitação geral da esfera de aplicação no espaço dos sistemas nacionais de Direito de
Conflitos. O que distingue as normas de referência ao ordenamento competente das normas
de conflitos gerais é a circunstância de o ordenamento referido ser considerado em bloco,
incluindo as normas sobre competência internacional e sobre reconhecimento de efeitos de
sentenças estrangeiras e de outros atos públicos. A delimitação do campo de aplicação destes
dois tipos de normas deve orientar-se segundo a proximidade destas situações em relação ao
ordenamento do foro. As situações jurídicas mais próximas deverão ser valoradas mediante
uma técnica internacionalprivatística de referência ao Direito aplicável, as situações
predominantemente estrangeiras mediante a técnica da referência ao ordenamento
competente.

A criação de situações estrangeiras no país do foro depende da suscetibilidade do seu


reconhecimento no ordenamento para que remete a norma de referência ao ordenamento
competente. As situações estrangeiras criadas no estrangeiro serão reconhecidas automaticamente
no ordenamento do foro caso sejam válidas e eficazes no ordenamento para que remete a norma de
referência ao ordenamento competente. Serão situações estrangeiras aquelas em que o elemento de
conexão individualiza um ordenamento estrangeiro, ou, mais restritivamente aquelas em que se
verifique um elemento de estraneidade adicional.

Na ótica de LIMA PINHEIRO:

1) É certo que a norma de conflitos, como norma de regulação indireta, não tem a pretensão de
regular todas as situações transnacionais que se verifiquem no mundo. Mas as construções

69
Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

que se acabam de expor têm uma visão demasiado abstrata do problema que, em sua opinião,
não propicia a obtenção das soluções mais adequadas.
2) É concebível que um sistema jurídico estabeleça um regime especial para as situações que se
constituem sem qualquer contacto ou sem um contacto significativo com o Estado do foro,
excluindo a aplicação das normas de conflitos gerais. Este regime especial pode consistir,
designadamente, numa remissão global para os sistemas de DIP dos Estados que apresentam
um laço significativo com a situação no momento relevante. Mas esta via mostra-se
desnecessária para um sistema de DIP que admita a devolução: se todas as leis estrangeiras
interessadas estiverem de acordo na aplicação da lei com base no qual a situação se constitui,
a devolução permite solucionar o problema, o órgão de aplicação do Direito português irá
sempre aplicar esta lei.
3) Se a devolução não permite resolver o problema é porque não há harmonia entre as leis
estrangeiras em presença. Neste caso é irrenunciável a escolha pelo Direito de Conflitos do
foro.
4) Estas teses apresentam ainda as desvantagens anteriormente assinaladas com respeito a uma
visão unilateralista da teoria dos direitos adquiridos.
5) Como assinala FERRER CORREIA, dificilmente se concebe o reconhecimento de direitos
adquiridos no estrangeiro sem um controlo, pelo DIP do foro, do título de competência da OJ
ao abrigo da qual se constitui a situação; sem uma valoração, pelo Direito do foro, da
relevância da conexão existente entre a situação e essa OJ.
6) A partir do momento em que a relevância da lei com base na qual determinada situação se
constitui dependa da verificação da conexão definida por uma norma de DIP do foro, será
equívoco entender o princípio de reconhecimento dos direitos adquiridos como um limite ao
Direito de Conflitos, uma vez que se trata afinal da limitação de uma norma de conflitos geral
por outra norma de conexão do foro.
7) Para ultrapassar esta dificuldade, MOURA RAMOS defendeu que devem ser reconhecidos no
Estado do foro os direitos ou situações jurídicas que no estrangeiro produziram os seus efeitos
típicos, à luz de um sistema legal que apresente, na ótica do DIP do foro, uma conexão
suficientemente forte com a situação da vida a regular, e se repute aplicável, quer de um outro
a quem o primeiro considere competente.
8) Mas estas soluções trazem consigo as incertezas e dificuldade que normalmente acompanham
a renúncia a normas de conflitos com elemento de conexão determinado: se mediante o
recurso às soluções geralmente reconhecidas fosse possível chegar a um resultado mais
previsível para as partes que aquele a que se chegaria por aplicação da norma de conflitos
geral do Estado do foro, tais incertezas e dificuldades poderiam ser contrabalançadas. Mas é
justamente naquelas matérias em que há desacordo entre os sistemas em presença que é
mais difícil encontrar soluções geralmente reconhecidas.
9) Toda a norma de conexão procura ir ao encontro da inserção social e económica da situação
da vida num determinado sistema jurídico.

Enfim, a tutela da confiança justificada é uma consideração com grande peso no reconhecimento de
determinadas situações, mas a justificação da confiança, em caso de divergência dos Direitos de
Conflitos dos Estados envolvidos, pressupõe a constituição ou consolidação da situação perante a
OJ de um Estado que apresenta uma ligação especialmente significativa com a situação. Da
articulação da tutela da confiança com os valores da certeza e previsibilidade decorre que esta ligação
especialmente significativa deve ser determinada pelo legislador.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Na UE, um setor da doutrina, invocando as liberdades de circulação e o direito de estabelecimento


consagradas nos Tratados instituintes, e certa jurisprudência TCE/TJUE, sobretudo a partir de 1999,
tem defendido uma técnica de reconhecimento que se inspira, pelo menos até certo ponto, na teoria
dos direitos adquiridos. No entender de LIMA PINHEIRO, esta técnica de reconhecimento não é
imposta pelo Direito europeu originário; por conseguinte, o papel que a técnica de reconhecimento
deve desempenhar no DIP depende inteiramente dos valores e princípios que o inspiram.

⇒ Posição adotada por LIMA PINHEIRO:

O núcleo de verdade comum às diferentes teorias dos direitos adquiridos parece estar a necessidade
de, em certos casos, tutelar a confiança depositada pelas partes na existência de situações que se
constituíram ou consolidaram perante a OJ de um Estado que apresenta um laço particularmente
significativo com a situação, embora não seja o Direito considerado competente por aplicação do
sistema conflitual do foro.

Mas as teorias dos direitos adquiridos não são a resposta mais adequada para esta preocupação:

i. Ao falarmos de aplicação no espaço do Direito de Conflitos poderemos ter em vista o DIP


no seu conjunto ou apenas as normas de conflitos.

É óbvio que um sistema de DIP pode conter regras que limitem a aplicação no espaço de normas de
conflitos gerais e (ou) que deem relevância na ordem interna ao Direito de Conflitos estrangeiro; são
técnicas de que o DIP pode lançar mão para a realização dos seus fins na regulação das situações
transnacionais. Se uma norma especial de DIP limita a aplicação no espaço de uma norma de conflitos
geral, não há um limite à aplicação no espaço do sistema estadual de DIP.

ii. A aplicação de DIP estrangeiro por força do Direito Internacional do foro tanto pode estar
ligada à limitação da esfera espacial de aplicação de uma norma de conflitos como ser
independentemente desta limitação.

Os limites à aplicação no espaço de um sistema estadual de DIP no seu conjunto, a existirem, são
necessariamente limites externos à OJ estadual: será o caso dos limites que sejam impostos pelo
DIPúblico, por um princípio suprapositivo ou por uma razão ontológica, ligada à natureza da norma
de conflitos.

Quanto ao DIPúblico, o que nos interessa são os limites que porventura existam quanto à própria
aplicação no espaço do DIP vigente na ordem jurídica estadual. Estes limites decorrem, segundo LP,
do anteriormente exposto quanto aos princípios internacionais em matéria de competência
legislativa. Em matéria de regulação de situações transnacionais, a atuação destes princípios deve
dizer respeito à aplicação no espaço do DIP e não à aplicação no espaço do Direito material. A seguir-
se este raciocínio, e de acordo com o então exposto, o sistema de DIP de um Estado não será, em
princípio, aplicável:

1. A situações relativamente internacionais, i.e., puramente internas a outro Estado;


2. A situações que, por dizerem respeito à atuação iure imperii de um sujeito público estrangeiro,
se inscrevem exclusivamente na sua OJ;
3. A outras situações transnacionais quando não se verifique um dos títulos de competência
legislativa anteriormente referidos.

71
Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Assim, em princípio, o DIP de um Estado não será primariamente aplicável a uma situação
transnacional, que não apresente um laço pessoal ou territorial com o Estado do foro nem produza
aí efeitos.

Mas já será aplicável:

i) Caso se trate de uma matéria em que se admite o pacto de jurisdição;


ii) As partes tenham atribuído competência aos tribunais deste Estado;
iii) Quando estiverem preenchidos os pressupostos do critério da universalidade.

O DIPúblico já não exclui que o DIP de um Estado regule uma situação que após se ter constituído
como situação interna de um Estado estrangeiro venha a entrar em contacto, pelos seus elementos ou
efeitos, com o Estado local. O mesmo se diga do caso em que uma situação que se constitui
exclusivamente em contacto com dois ou mais Estados estrangeiros vem posteriormente a conectar-
se com o Estado local.

É possível que os órgãos de aplicação de um Estado sejam chamados a decidir questões relativas a
situações que estão subtraídas ao seu DIP. Coloca-se então a questão de saber como é que se
processará a determinação do Direito aplicável: não será afinal necessário recorrer a normas ou princípios
do DIP deste Estado?

LP entende que a solução para este problema se deve procurar no próprio DIPúblico. Deve ser
aplicado o DIP de um Estado que tenha competência legislativa:

(a) Se houver um concurso de competências legislativas de Estados estrangeiros, serão


aplicáveis os princípios comuns dos seus Direitos de Conflitos.
(b) Em última instância, se houver uma divergência dos Direitos de Conflitos dos Estados que
têm competência legislativa, dever-se-á aplicar o DIP do Estado que se apresenta com melhor
competência legislativa, o que poderá envolver uma ponderação de bens e interesses no caso
concreto.

Quanto à existência de um princípio suprapositivo ou razão ontológica, há vários entendimentos dos


quais se salientam os que dizem respeito ao princípio dos direitos adquiridos e à manifestação social
do Direito como ordem reguladora de condutas:

 Resulta do anteriormente exposto que o princípio dos direitos adquiridos não se mostra
idóneo para constituir um limite à aplicação no espaço de um sistema estadual de DIP.
 No que toca à atuação da norma de conflitos como norma de conduta, não há dúvida que se
aferirmos até onde os particulares podem ou não orientar-se por dada norma ou complexo
normativo chegamos a limites mais ou menos claros de aplicação da norma no espaço.
 Mas os particulares podem orientar-se, ao menos teoricamente, por todas as OJ dos Estados
em contacto com a situação. A ideia de norma de conduta pouco vem acrescentar aos limites
que já decorrem do DIPúblico.
 Poderia argumentar-se que a constituição de uma situação relativamente internacional não
pode ser apreciada à luz do Direito de Conflitos do Estado local porque os sujeitos não se
poderiam ter orientado por esse Direito de Conflitos. Mas o argumento reflete uma visão
abstrata do problema. A ideia de norma de conflitos, aliada à tutela da confiança, intervém
aqui como critério para a determinação do momento relevante da conexão e não como limite
à aplicação no espaço da norma de conflitos do foro. Caso se pretendesse ver aqui um limite
à aplicação no espaço da norma de conflitos geral, sempre haveria que formular, como parte

72
Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

do sistema de DIP do foro, uma norma ou princípio aplicável à determinação do Direito


aplicável a situações deste tipo. Mas este passo parece desnecessário.
 Por outro lado, se a norma de conflitos desempenha por regra uma função reguladora, esta
regra conhece exceções, à semelhança do que verifica no Direito material. Também no Direito
Intertemporal há razões que em certos casos justificam a retroatividade da lei. Por
conseguinte, não é de excluir que excecionalmente a norma de conflitos possa aplicar-se como
puro critério de decisão, independentemente da previsibilidade da sua aplicação.
 Assim, se no momento da ocorrência do facto constitutivo a situação estava exclusivamente
conectada com dois ou mais Estados estrangeiros, mas posteriormente a situação entrou em
contacto com o Estado local, a norma de conflitos do Estado local atua, relativamente à
valoração do facto constitutivo, como um puro critério de decisão. Por conseguinte, parece
que a ideia de norma de conduta não se retira qualquer limite externo que não decorra já do
DIPúblico.

Resta examinar até que ponto normas de DIP do foro estabelecem limites internos, i.e., limites à
aplicação no espaço das normas de conflitos gerais:

o No sistema português, como parece ser o caso da maior parte dos sistemas estrangeiros, não
há limites genéricos à aplicação no espaço das normas de conflitos gerais. Designadamente,
as situações que se constituem sem um contacto relevante com o Estado do foro não estão, em
regra, subtraídas à aplicação das normas de conflitos gerais. Se estas situações vêm
posteriormente a entrar em contacto com o Estado do foro, por forma a fundamentar a sua
competência legislativa, aplicam-se-lhes as normas de conflitos gerais.
o Pode todavia ser questionado se o regime da competência internacional dos tribunais
portugueses e o sistema essencialmente formal de reconhecimento de sentenças
estrangeiras não constituem limites ao âmbito de aplicação no espaço do sistema de Direito
de Conflitos.
i. De acordo com o sistema essencial formal de reconhecimento de sentenças
estrangeiras, o reconhecimento não depende da lei aplicada pelo tribunal. Não se trata
aqui de um limite à aplicação no espaço do sistema de Direito de Conflitos com respeito às
situações que sejam objeto de uma decisão estrangeira? Importa aqui distinguir dois
aspetos:
a. Na regulação das situações transnacionais, o DIP não opera apenas através do
Direito de Conflitos, entendido stricto sensu, mas também mediante o
reconhecimento das situações jurídicas fixadas por decisão estrangeira, sob certas
condições. O regime de reconhecimento de sentenças estrangeiras, na medida em
que permite reconhecer situações jurídicas fixadas por decisão judicial estrangeira
com base num Direito de conflitos estrangeiro, limita o âmbito de aplicação do
Direito de Conflitos do foro.
b. Mas, para o reconhecimento de uma situação fixada por uma decisão judicial
estrangeira é indiferente que a situação tenha ou não tenha um contacto
significativo com o Estado do foro no momento da constituição, pelo que não se
trata de um limite ao âmbito de aplicação no espaço do Direito de Conflitos. A
situação até pode ter um contacto mais significativo com o Estado português do
que com o Estado em que a decisão foi proferida. Pode, por conseguinte, tratar-se
de situações reguladas pelo Direito de Conflitos português.

73
Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

A OJ portuguesa já conhece limites específicos à aplicação no espaço de certas normas de conflitos.


Com efeito, vigoram na OJ portuguesa certas normas de conflitos que de um ou outro modo limitam
o campo de aplicação no espaço de outras normas de conflitos. É o que se verifica com as seguintes
normas de conflitos:

1. O art. 31º/2 CC, quando limita a competência da lei nacionalidade para salvar a validade de
negócios que tenham sido celebrados no país da residência habitual segundo o Direito deste
país que se considere competente (é um limite à norma que resulta da conjugação do art. 25º
com o art. 31º/1 CC);
2. O art. 47º CC, quando consagra um desvio à lei pessoal em matéria de capacidade para
constituir direitos reais sobre imóveis ou para dispor deles quando a lex rei sitae se considere
competente (é um limite à norma que resulta da conjugação do art. 25º com os arts. 31º/1 e
32º CC em que se manifesta o princípio da maior proximidade);
3. O art. 61º LAV, quando limita o DIP especial da arbitragem transnacional às arbitragens que
tenham lugar em território português.

Observe-se que as duas normas primeiramente referidas são normas de remissão condicionada que
dão relevância ao Direito de Conflitos de estrangeiro. LP considera que, na omissão do legislador,
não pode o órgão de aplicação do Direito derrogar as normas de conflitos vigentes através da
formulação jurisprudencial de soluções inspiradas em teorias doutrinais.

DO ELEMENTO DE CONEXÃO

⭐ Princípios Gerais de Interpretação e Aplicação

⇒ Interpretação:

Do ponto de vista da interpretação, há uma diferença relativa entre os conceitos técnico-jurídicos e


os conceitos fáticos:

i. A interpretação dos conceitos técnico-jurídicos suscita dificuldades particulares: perante


a diversidade do conteúdo atribuído a estes conceitos nos diferentes sistemas nacionais
torna-se necessário determinar quais as regras e princípios jurídicos a que se deve recorrer.
A norma de conflitos deve ser interpretada segundo os critérios aplicáveis em função da
sua fonte (internacional, europeia, transnacional ou interna):
a. Os conceitos designativos dos elementos de conexão contidos em Convenções
Internacionais e Regulamentos europeus devem ser objeto de uma interpretação
autónoma em relação às OJ dos Estados Contratantes/Membros singularmente
consideradas, designadamente o ordenamento do foro.
b. As normas de fonte interna devem ser interpretadas no contexto do sistema a que
pertencem, mas também com autonomia relativamente ao Direito material vigente
neste sistema. Há que partir das regras e princípios de Direito material interno para
obter as notas dos conceitos designativos técnico-jurídicos, tais como a nacionalidade.
Mas as finalidades prosseguidas pelas normas de conflitos podem justificar a
atribuição a estes conceitos de um sentido e alcance diferente do atribuído aos
conceitos homólogos de Direito material interno. Esta diferença traduzir-se-á
normalmente numa maior indeterminação dos conceitos designativos, o que lhes dá
uma maior abertura a realidades jurídicas estrangeiras.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

⇒ Concretização:

I- Aspetos gerais:

A determinação do conteúdo concreto do elemento de conexão pode não oferecer especiais


dificuldades, sobretudo quando se trata de elementos de conexão que consistem em laços fáticos
como o lugar da situação da coisa ou o lugar da celebração de um contrato entre presentes. Em
princípio, trata-se apenas de estabelecer os factos relevantes.

Diferentemente, a concretização de elementos de conexão que se reportam a um vínculo jurídico, a


consequências jurídicas ou a factos jurídicos suscita diversas questões jurídicas:

a) No caso de elementos de conexão que se reportam a um vínculo jurídico – como a


nacionalidade – suscita-se desde logo a questão de saber se o elemento de conexão se
concretiza lege fori (com base na OJ do foro) ou lege causae (com base na OJ cuja designação
está em causa).
b) No que se refere aos elementos de conexão que se referem a consequências jurídicas que se
projetam num determinado lugar, também é necessário determinar se a consequência jurídica
se estabelece lege fori ou lege causae. Aqui a determinação do conteúdo concreto do elemento
de conexão relaciona-se com a recondução da situação da vida à previsão da norma de
conflitos e, por conseguinte, deve ser orientada pelos mesmos critérios que presidem à
qualificação. Assim, LP entende que se interpreta com base no Direito de Conflitos em jogo,
mas também tem de se apreciar perante a lei potencialmente aplicável se ocorre no território
do respetivo Estado a lesão de um bem jurídico.
c) Como elemento de conexão que consiste num facto jurídico temos a designação pelos
interessados do Direito aplicável. Geralmente a designação é objeto de um acordo das partes,
caso em que se suscita a questão de saber se a formação e a validade do consentimento são
apreciadas segundo o Direito material do foro ou segundo a lei escolhida. Seguindo a melhor
doutrina, os Regulamentos europeus optam geralmente pela segunda solução (arts. 4º/5 Reg.
Roma I, 6º/1 Reg. Roma III e 22º/3 Regulamento sobre sucessões).

II- Conteúdo múltiplo e falta de conteúdo:

Há um problema de conteúdo múltiplo quando no caso concreto surgem vários laços, que se
estabelecem com diferentes Estados, reconduzíveis ao mesmo conceito designativo.

Na hipótese inversa, há falta de conteúdo quando não existe no caso concreto o laço designativo.

Vejamos quais os critérios de resolução destes problemas:

1. O problema de conteúdo múltiplo:


i. Pode ser resolvido por uma norma especial. É o que se verifica com a nacionalidade:
os arts. 27º e 28º Lei Nacionalidade estabelecem critérios de resolução dos concursos
de nacionalidades:
- Nos termos do art. 27º, se uma das nacionalidades for a portuguesa é esta que
prevalece. E é assim mesmo que seja mais efetiva a nacionalidade estrangeira. É uma
solução adotada na maioria das legislações e também em Convenções Internacionais
nesta matéria (de que Portugal não é parte).

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

- Por força do art. 28º, em caso de concurso de duas ou mais nacionalidades


estrangeiras releva apenas a nacionalidade do Estado em cujo território o plurinacional
tenha a sua residência habitual. Se não tiver residência habitual num dos Estados de
que é nacional, releva a nacionalidade do Estado com que mantenha a vinculação mais
estreita. Manifesta-se aqui o princípio da nacionalidade efetiva, há muito acolhido em
Convenções Internacionais e pela jurisprudência internacional. A mesma solução é
seguida, para os casos de concurso de nacionalidades estrangeiras, pela maioria dos
sistemas nacionais. Na determinação da vinculação mais estreita haverá que atender a
todos os laços, de caráter objetivo ou subjetivo, que exprimam ligação a uma sociedade
estadual. Deverá dar-se especial importância aos laços que exprimam a identidade
cultural do plurinacional, designadamente a língua por ele falada.
 Levanta-se a questão de saber se o art. 28º LN também se aplica quando uma das
nacionalidades estrangeiras for a de um Estado da UE. No acórdão Micheletti
(1992), o TCE entendeu que para efeitos de direito de estabelecimento a
nacionalidade relevante é sempre a do EM. Valerá isto para outros efeitos,
designadamente para a aplicação das normas de conflitos? MARQUES DOS SANTOS
defendeu que sim. Este entendimento parece de seguir (LP), pois seria indesejável
que em Portugal um plurinacional fosse tratado como nacional de um Estado para
uns efeitos e como nacional de outro Estado para outros. Na falta de norma
especial, o problema deve resolver-se com base na interpretação da norma de
conflitos.
2. O problema da falta de conteúdo:
i. Quando se conclui pela falta de conteúdo concreto do elemento de conexão há que
atender, em primeiro lugar, à norma especial que resolva o problema. Assim, o art. 12º da
Convenção de Nova Iorque Relativa ao Estatuto do Apátrida determina que a lei pessoal
do apátrida é a do país do domicílio que deve ser entendido no sentido de residência
habitual. Se o apátrida não tiver residência habitual, releva a lei do país da residência
ocasional.
 LP entende que esta solução é criticável e contrária às exigências que a conexão deve
satisfazer em matéria de estatuto pessoal; seria preferível que na falta de residência
habitual se recorresse à lei do pais com o qual o apátrida apresenta a conexão mais
estreita (tendo especialmente em conta a sua inserção num determinado meio
sociocultural).
ii. Não havendo norma especial que resolva o problema há que atender ao critério geral
estabelecido pelo art. 23º/2, 2ª parte CC, que manda recorrer à lei que for
subsidiariamente competente.
iii. Na falta de conexão subsidiária, resta o recurso ao Direito material do foro, por aplicação
analógica do disposto no art. 348º/3 CC.
iv. Hipótese algo diversa que se pode configurar é a de o conteúdo concreto do elemento de
conexão ser incerto. Por exemplo, não se consegue apurar ao certo se um indivíduo tem
ou não a nacionalidade de determinado Estado. Se for possível determinar que o
indivíduo tem a nacionalidade de outro Estado, deverá aplicar-se a lei deste Estado. Caso
contrário, LP afirma que são aplicáveis as soluções que foram expostas para o caso de falta
de conteúdo concreto do elemento de conexão.

76
Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

III- Concretização no tempo:

O problema da concretização no tempo é colocado pelos elementos de conexão móveis que são
aqueles cujo conteúdo concreto é suscetível de sofrer alteração no tempo.

Com a alteração do conteúdo concreto do elemento de conexão surge uma sucessão de estatutos ou
conflito móvel; daí que se fale de uma sucessão de estatutos. Em matéria de sucessão de estatutos há
duas teses fundamentais:

1. Há analogia entre a sucessão de estatutos e o conceito de leis no tempo e, por conseguinte,


são aplicáveis analogicamente as regras gerais do Direito Intertemporal (BAPTISTA
MACHADO);
2. Não é possível formular regras gerais em matéria de sucessão de estatutos. Para a solução dos
problemas de sucessão de estatutos deve recorrer-se a uma interpretação da norma de
conflitos que suscita o problema (FERRER CORREIA e ISABEL DE MAGALHÃES
COLLAÇO).

Como ponto de partida, esta segunda tese oferece uma base metodológica mais segura. A fixação dos
momentos relevantes da conexão deve depender, em última instância, do complexo de fins que
subjaz à norma de conflitos em causa e ao sistema de DIP em que se integra.

O que muda é a situação da vida: há um deslocamento da situação da vida relativamente aos Estados
em presença, que leva a que o laço, considerado relevante para designar o Direito aplicável, se passe
a estabelecer com um Estado diferente. Este elemento espacial está ausente no conflito intertemporal.

Embora a sucessão de estatutos não se confunda com a sucessão de leis no tempo, LP admite que
possa haver uma certa analogia entre os critérios valorativos que presidem à escolha do momento
relevante da conexão e os que fundamentam as soluções do Direito Intertemporal, bem como no que
toca à salvaguarda da continuidade das situações jurídicas constituídas.

Mas a aplicação analógica de regras gerais de Direito Intertemporal terá como limite a
compatibilidade dos resultados a que conduz com as finalidades prosseguidas pela norma de
conflitos em causa e com os princípios gerais do Direito de Conflitos que ela integra.

Na resolução dos problemas de sucessão de estatutos importa distinguir dois aspetos:

1) A determinação do momento relevante da conexão: em certos casos o legislador fixou o


momento relevante; por exemplo, os arts. 53º/1 e 2, 2.ª parte, 56º/1, 2 e 3 CC ou art. 21º/1 Reg.
sobre sucessões. Na omissão do legislador, a fixação do momento relevante da conexão é um
problema de interpretação da norma de conflitos em causa. No entanto, na medida em que
outra coisa não resulte desta interpretação, são de aplicar analogicamente as regras gerais de
Direito Intertemporal. De onde decorre que releva a conexão no momento da verificação dos
factos (constitutivos, modificativos ou extintivos das situações jurídicas) que estejam em
causa.
2) A conjugação dos estatutos em presença: nesta matéria a doutrina internacional privatista
tem afirmado, à face dos diferentes sistemas locais de DIP, a existência de um princípio da
continuidade das situações jurídicas preexistentes. À semelhança do Direito Intertemporal,
a destruição ou modificação essencial das situações constituídas tem de firmar-se em valores
ou princípios supraordenados às exigências gerais da segurança jurídica e à confiança dos
sujeitos jurídicos (quando objetivamente justificada) na permanência da situação existente.
Assim, a situação validamente constituída sob o império do estatuto anterior deve persistir

77
Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

em caso de mudança de estatuto, a menos que se lhe oponham razões suficientemente


ponderosas. Certas disposições especiais sobre sucessão de estatutos podem ser vistas como
manifestações particulares deste princípio: por exemplo, o art. 29º CC. O Princípio da
continuidade também pode reclamar o desenvolvimento de soluções materiais especiais para
certos problemas de sucessão de estatutos; encontramos exemplos destas soluções materiais
especiais nos nºs 2 a 5 do art. 3º CSC, no caso de transferência internacional da sede da
sociedade.

REMISSÃO PARA ORDENAMENTOS JURÍDICOS COMPLEXOS

O DIPrivado não é o único Direito de conflitos – existem outros, como o Direito de conflitos
interlocal e o Direito de conflitos interpessoal. Estes existem nas OJ que são complexas (em que
coexistem diferentes sistemas de Direito privado):

c) A OJ complexa será de base territorial quando comporte diversos sistemas aplicáveis em


diversas circunscrições territoriais – art. 20º/1 e 2 CC;
d) Será de base pessoal quando comporte diferentes sistemas aplicáveis a diversas categorias de
pessoas, a que se refere o art. 20º/3 CC.

Por exemplo:

5. Nos EUA, cada Estado federal tem o seu sistema.


6. No Reino Unido, temos vários sistemas.
7. Em Espanha, o art. 149º/1 CRP permite, dentro de certos limites, que as comunidades
autónomas preservem os direitos locais, e esta permissão foi aproveitada pelas comunidades
gerais para o desenvolvimento de regimes locais.
8. Portugal também é uma OJ complexa porque as ALR têm autonomia legislativa, que diz
respeito às matérias previstas nos respetivos estatutos e que não estejam reservadas aos órgãos
de soberania.

 Sistemas de base pessoal:

A pluralidade de sistemas de base pessoal pode ser estabelecida em função da religião. Foi o que
aconteceu em Portugal até ao séc. XV. Pode depender também de uma opção do interessado.

O art. 20º CC refere-se a “ordenamentos plurilegislativos”, mas é mais correta a expressão


“ordenamento complexo”. Desde logo, porque o ordenamento pode ser complexo em resultado de
outras fontes do Direito que não sejam a lei.

Podemos também distinguir entre os ordenamentos complexos aqueles em que existe uma
pluralidade de sistemas materiais (ex: Espanha) e os em que existe uma pluralidade de sistemas
conflituais (ex: EUA e Reino Unido).

ATENÇÃO: não se deve confundir ordens jurídicas complexas com os Estados compostos. Há
Estados federados sem ordens jurídicas complexas e há Estados comunitários com ordens complexas.

Perante as atuais características da OJ portuguesa, não se coloca ainda o problema do estudo das
ordens interlocais. O direito interlocal e interpessoal irá interessar-nos quando uma norma remeter
para uma ordem complexa, em que o problema será qual dos sistemas internos aplicar.

78
Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Temos ainda o Direito intertemporal, que resolve os problemas de aplicação da lei no tempo, e o
Direito de conflitos público. As normas de Direito público também suscitam a questão da aplicação
da lei no espaço.

⇒ Os ordenamentos jurídicos complexos suscitam ao Direito de conflitos dois problemas:

1) Quando é que a norma de conflitos remete para o ordenamento jurídico complexo?


2) Supondo que a norma de conflitos remete para o ordenamento jurídico complexo, como se determina,
entre os vários sistemas que nele vigoram, o aplicável ao caso?

Temos de considerar, para responder a estas questões:

 Art. 20º CC;


 Art. 19º/1 Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais;
 Art. 22º/1 Reg. Roma I;
 Art. 25º Reg. Roma II;
 Art. 19º Convenção de Haia sobre a Lei Aplicável aos Contratos de Mediação e à
Representação;
 Arts. 14º e 15º Reg. Roma III;
 Arts. 36º e 37º Regulamento sobre sucessões.

Passando às questões:

1) Quando é que a norma de conflitos remete para o OJ complexo no seu conjunto?

O art. 20º CC só se refere à remissão feita pelo elemento de conexão nacionalidade. Então, como
proceder quando o elemento de conexão seja a residência habitual, o domicílio, o lugar da celebração, o lugar do
efeito lesivo, o lugar da situação da coisa, etc.?

Há duas posições:

i. FERRER CORREIA entende que quando o elemento de conexão aponta diretamente para
determinado lugar no espaço, será competente o sistema em vigor neste lugar. Nos casos
em que haja uma norma de Direito interlocal que estabeleça uma lei diferente, este Prof.
defende um reenvio interno;
ii. ISABEL MAGALHÃES COLLAÇO defende que a remissão da norma de conflitos é feita,
em princípio, para o ordenamento do Estado soberano. LP subscreve esta posição, pois ao
DIPrivado compete determinar o Direito aplicável, quando a situação está em contacto
com mais de um Estado soberano, e não resolver conflitos internos. Em princípio, a norma
de conflitos de DIPrivado, quando remete para o Direito estadual, fá-lo para o Direito de
um Estado soberano. A Prof. reconhece que a norma tem capacidade para determinar a
lei aplicável, mas não deve ainda assim fazê-lo. Tem em conta o objeto e função da norma
de conflitos: determinar o Direito estadual aplicável. Assim, a Prof. propõe a analogia com
o art. 20º/1 e 20º/2 primeira parte. Se a analogia não funcionar (se não houver DIP
unificado nem Direito interlocal), aí sim recorre-se à capacidade de aplicação da norma de
conflitos.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

o Neste sentido, apontam o art. 5º/3 da Lei austríaca de DIPrivado, o art. 18º da Lei
italiana de DIPrivado, os arts. 19º e 20º da Convenção de Haia sobre a Lei Aplicável
às Sucessões por Morte e os arts. 36º e 37º do Regulamento sobre sucessões.

Já em matéria de obrigações contratuais e extracontratuais e de “contratos de mediação” e


representação resulta do disposto nos arts. 22º/1 do Reg. Roma I, 25º/1 Reg. Roma II e 19º Convenção
de Haia que a remissão feita pelas normas de conflitos contidas nestes instrumentos é entendida como
uma referência direta a um dos sistemas locais.

O legislador internacional e europeu, porém, não contemplou a hipótese em que as partes designem
a OJ complexa no seu conjunto (por exemplo, o Direito do Reino Unido). Neste caso, será inevitável
considerar a remissão feita ao ordenamento do Estado soberano e proceder à determinação do
sistema aplicável nos termos que se seguem.

O Reg. Roma III adotou uma posição intermédia em matéria de divórcio e separação judicial:

i. A remissão feita pelas normas de conflitos no caso de uma OJ complexa de base territorial
é, em princípio, entendida como uma referência direta a um dos sistemas locais (art.
14º/a) e b));
ii. A referência à lei da nacionalidade, bem como a referência no caso de OJ complexa de base
pessoal são entendidas como uma referência feita, em princípio, à OJ complexa no seu
conjunto (arts. 14º/c) e 15º).

2) Como determinar, de entre os sistemas que vigoram no OJ complexo, o aplicável?

Os princípios que orientam a determinação do sistema aplicável, dentro do OJ complexo, são dois:

i. Pertence ao OJ complexo resolver os conflitos de leis internos e, por isso, determinar qual
o sistema interno aplicável;
ii. Se, porém, o ordenamento complexo não resolver o problema, deve aplicar-se, de entre os
sistemas que vigoram no âmbito do ordenamento complexo, o que tem uma conexão mais
estreita com a situação a regular.

Vejamos como estes princípios se concretizam quando a remissão para o OJ complexo é feita pelo
elemento de conexão nacionalidade:

a) No caso de ordenamentos complexos de base territorial:

Em conformidade com o primeiro princípio, o art. 20º/1 CC determina que pertence ao ordenamento
complexo fixar o sistema interno aplicável. No mesmo sentido dispõem os arts. 36º/1 e 37º do
Regulamento sobre sucessões.

1. É o que se verifica quando a OJ complexa dispuser de um sistema unitário de Direito


Interlocal ou quando todos os ordenamentos locais estejam de acordo sobre o ordenamento
aplicável. Parece que na falta de concordância entre todos os ordenamentos locais será
suficiente o acordo daqueles que estão em contacto com a situação sobre a competência de um
deles.
2. Não sendo possível resolver a questão com base no Direito Interlocal vigente na OJ complexa,
o n.º 2 do art. 20º presume analogia com o DIPrivado e prescreve o recurso ao DIPrivado
unificado.

80
Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

3. E se não houver DIPrivado unificado? O n.º 2 do art. 20º manda atender à lei da residência
habitual. Esta parte do preceito suscita divergências de interpretação:
i. MAGALHÃES COLLAÇO entende que só releva a residência habitual dentro do
Estado da nacionalidade – para esta autora, existe uma lacuna descoberta através de
interpretação restritiva do art. 20º/2 in fine: a função deste preceito é indicar o sistema
aplicável de entre os que integram o ordenamento complexo; como este preceito não
fornece um critério para determinar o sistema aplicável quando a residência habitual
se situa fora do Estado da nacionalidade, surge uma lacuna. Esta lacuna deve ser
integrada com recurso ao princípio da conexão mais estreita.
o LIMA PINHEIRO crê ser este o melhor entendimento: por certo que o recurso à lei
da residência habitual, quando o ordenamento complexo não dispõe de Direito
Interlocal ou de DIPrivado unificados, evita certas dificuldades na determinação
da lei aplicável. Mas é de rejeitar, porque significa tratar como apátrida quem tem
uma nacionalidade e menospreza a primazia da nacionalidade em matéria de
estatuto pessoal.
Por conseguinte, em matéria de estatuto pessoal, quando a residência habitual for
fora do Estado da nacionalidade, devemos aplicar, de entre os sistemas que
integram o ordenamento complexo, aquele com que a pessoa está mais ligada.
Para determinar esta conexão mais estreita há que atender a todos os laços
objetivos e subjetivos que exprimam uma ligação entre a pessoa em causa e um
dos sistemas vigentes no ordenamento complexo e, designadamente, ao vínculo
de subnacionalidade que nos Estados federais se estabeleça com os Estados
federados, ao vínculo de domicílio e, na sua falta, à última residência habitual ou
último domicílio dentro do Estado da nacionalidade.
o LP: no caso de a remissão para a OJ complexa ter sido operada pelo art. 45º/3 CC,
deve aplicar-se o art. 20º CC, seja diretamente seja por analogia. Na falta de Direito
Interlocal e de DIPrivado unificado e se os interessados não tiverem residência
habitual comum na mesma unidade territorial dentro do Estado da nacionalidade,
deve regressar-se ao art. 45º/1 CC. Em sentido próximo, MS.
o DMV: a parte final do art. 20º/2 deve ser alvo de uma redução teleológica e não
de uma interpretação restritiva, pois este Prof. entende que o legislador, no art.
20º/2 parte final quis abranger a residência habitual fosse ela onde fosse. IMC e LP
não aceitam esse argumento e por isso é que defendem uma interpretação
restritiva.
ii. A Escola de Coimbra entende que se aplica a lei da residência habitual mesmo que esta
se situe fora do Estado da nacionalidade. Esta tese abandona o elemento de conexão
nacionalidade e passa para o elemento subsidiário.

b) No caso de ordenamentos complexos de base pessoal:

O art. 20º/3 CC também consagra o princípio de que pertence ao ordenamento complexo determinar
o sistema pessoal competente.

Assim, são aplicáveis as normas de Direito Interpessoal da OJ designada, incluindo tanto as normas
de conflitos interpessoais como as normas de Direito material especial como, por exemplo, as que
regulem o casamento entre pessoas de religião diferente.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

O legislador supôs que o ordenamento complexo de base pessoal disporá sempre de critérios para
determinar o sistema pessoal aplicável. Mas isto pode não se verificar: neste caso, devemos aplicar o
sistema com o qual a situação a regular tem uma conexão mais estreita.

⇒ Determinação do sistema aplicável quando a remissão para o ordenamento complexo é


operada por um elemento de conexão que não seja a nacionalidade:

Este caso não é contemplado pelo art. 20º CC. Quer isto dizer que, no caso de remissão para um
ordenamento complexo de base territorial se deve sempre atender ao Direito Interlocal e ao DIPrivado
unificados de que o ordenamento complexo disponha.

E como proceder se não houver Direito Interlocal nem DIPrivado unificados?

1. Se a remissão operada pela norma de conflitos apontar para um determinado lugar no espaço
ou diretamente para determinado sistema local, há que entender a remissão operada pela
norma de conflitos como uma remissão para o sistema local.

Quando os elementos de conexão apontam para um determinado lugar no espaço, há que considerar
os sistemas locais como se fossem autónomos e entende-se que a norma de conflitos, ao remeter para
um lugar no espaço, está a remeter indiretamente para o sistema que aí vigora.

2. Quanto aos elementos de conexão que não indiquem um preciso lugar no espaço – por
exemplo, a designação pelas partes –, atender-se-á igualmente ao sistema local para que
diretamente remetam.

No caso de o elemento de conexão ser a designação pelas partes e de as partes terem designado a OJ
complexa no seu conjunto, dever-se-á aplicar o sistema local que representa a conexão mais estreita
com a situação.

Na prática, a diferença entre as doutrinas de MAGALHÃES COLLAÇO e FERRER CORREIA é menor


do que parece, por duas razões:

i) FERRER CORREIA admite a transmissão de competência dentro do ordenamento


complexo, dando assim relevância às soluções dos conflitos interlocais aí vigentes;
ii) MAGALHÃES COLLAÇO concede que quando a OJ complexa não resolve o problema
haverá que entender a remissão feita pela norma de conflitos como referência a um dos
sistemas locais.

No caso de remissão para um ordenamento complexo de base pessoal operada por um elemento de
conexão que não seja a nacionalidade deve sempre atender-se, por aplicação analógica do art. 20º/3
CC, às normas de Direito Interpessoal da OJ designada. Na falta de normas de Direito Interpessoal
que resolvam o problema deve ser aplicado o sistema com o qual a situação a regular tem uma
conexão mais estreita (esta é a solução consagrada pelo art. 37º do Regulamento sobre sucessões).

A DEVOLUÇÃO OU REENVIO

Quando a norma de conflitos portuguesa remete para uma OJ estrangeira pode suceder que esta OJ,
por ter uma norma de conflitos idêntica à nossa, também considere aplicável o seu Direito material.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Mas pode suceder igualmente que esta OJ, por ter uma norma de conflitos diferente da nossa, não se
considere competente e remeta para outra lei. Surge então o problema da devolução.

O problema é o seguinte: devemos aplicar a lei designada, mesmo que esta não se considere competente, ou
devemos ter em conta o DIPrivado da lei designada?

A resposta a dar a este problema depende do sentido e alcance que atribuímos à referência feita pela
nossa norma de conflitos. Será que esta referência se dirige direta e imediatamente ao Direito material da lei
designada (referência material) ou será que, diferentemente, esta referência pode abranger o DIPrivado da lei
designada (referência global)?

Um problema de devolução tem três pressupostos:

1) Que a norma de conflitos do foro remeta para uma lei estrangeira;


2) Que a remissão não possa ser entendida como uma referência material;
3) Que a lei estrangeira designada não se considere competente – verifica-se quando a norma de
conflitos estrangeira utiliza um elemento de conexão diferente da norma de conflitos do foro
ou quando, embora utilizando o mesmo elemento de conexão, seja interpretada de forma
diferente.

⭐ Tipos de Devolução

i. Retorno de competência:

Também designada por “reenvio de primeiro grau”, sucede quando o Direito de conflitos estrangeiro
remete a solução da questão para o Direito do foro.

É o que se verifica, por exemplo, quanto à lei aplicável à capacidade de um brasileiro domiciliado em
Portugal: o Direito português remete para o Direito brasileiro a título de lei da nacionalidade, mas o
Direito de conflitos brasileiro submete a capacidade à lei do domicílio, devolvendo, por esta razão,
para o Direito português.

ii. Transmissão de competência:

Também designada por “reenvio de segundo grau”, verifica-se quando o Direito de conflitos
estrangeiro remete a solução da questão para outro ordenamento estrangeiro.

Por exemplo, em matéria de sucessão por morte, a lei reguladora da sucessão imobiliária de britânico,
com última residência habitual em Londres, que deixa imóveis sitos num Estado dos EUA: o Direito
de conflitos português remete para a lei inglesa, a título de lei da última nacionalidade do de cuiús
(art. 62º CC) ou, no futuro, a título de lei da última residência habitual (art. 21º/1 do Regulamento
sobre sucessões), mas o Direito de conflitos inglês submete a sucessão imobiliária à lei da situação
dos imóveis, devolvendo, por esta razão, para o Direito do Estado dos EUA.

Podemos ainda ter:

(a) Retorno indireto quando L2 (lei designada) remete para L3 (lei estrangeira designada por L2)
com referência global e L3, por sua vez, devolve para o Direito do foro.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

(b) Transmissão em cadeia quando L2 remete para L3 com referência global e esta lei também
não se considere competente, devolvendo para uma quarta lei.
(c) Transmissão com retorno quando, por exemplo, L3 remeta para L2.

⭐ Critérios Gerais de Solução

⇒ Tese da referência material

Segundo esta tese, a referência feita pela norma de conflitos é sempre e necessariamente entendida
como uma referência material, i.e., como uma remissão direta e imediata para o Direito material da
lei designada, não interessando o Direito de conflitos da lei designada.

A tese da referência material não se contrapõe apenas à tese da referência global; contrapõe-se a
qualquer sistema de devolução, a qualquer sistema em que se tenha em conta o Direito de conflitos
estrangeiro, ainda que este Direito de conflitos não seja sempre e necessariamente aplicado.

Esta tese encontra-se consagrada em matéria de obrigações no art. 15º da Convenção de Roma sobre
a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais, no art. 20º Reg. Roma I e no art. 24º Reg. Roma II; e no art.
11º Reg. Roma III em matéria de divórcio e separação.

Hoje, o principal argumento a favor da tese da referência material é o respeito pela valoração feita
pelo legislador na escolha da conexão mais adequada, a justiça da conexão veiculada pelo Direito de
conflitos. Aceitar a devolução implica abdicar da escolha consagrada na norma de conflitos do foro.

Contra a tese da referência material pode, no entanto, invocar-se o princípio da harmonia jurídica
internacional: ao ignorar o Direito de conflitos estrangeiro, a tese da referência material fomenta a
desarmonia internacional de soluções.

⇒ Tese da referência global

Segundo esta teoria, a remissão da norma de conflitos para uma OJ estrangeira abrange sempre e
necessariamente o seu Direito de conflitos.

Embora as normas de conflitos tenham por função designar o Direito material competente, quando
remetam para uma OJ estrangeira a designação das normas materiais aplicáveis não é feita direta e
imediatamente, é antes feita com a mediação do Direito de conflitos da OJ estrangeira.

Os fundamentos desta teoria são:

♢ Princípio da harmonia jurídica internacional – ao ter-se em conta o Direito de conflitos da lei


para que se remeta fomenta-se a harmonia de soluções, pelo menos com esta lei.
♢ Incindibilidade ou indissociabilidade das normas de conflitos em relação às normas materiais
– tal decorreria da unidade do sistema jurídico ou da integração das normas de conflitos na
previsão das normas materiais. Na opinião de LP, este entendimento deve ser rejeitado:
dentro do sistema jurídico, o Direito material e o Direito de conflitos são subsistemas
suficientemente autónomos para que seja perfeitamente concebível que outra OJ determine a
aplicação desse Direito material apesar de ele não ser competente segundo o Direito de
conflitos do sistema a que pertence.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Contra a referência global podem invocar-se:

1) Objeções de fundo:
i. É de rejeitar a objeção que se estriba no alegado territorialismo do Direito de conflitos,
segundo a qual o órgão de aplicação está sujeito ao Direito de conflitos do foro, não
podendo aplicar Direito de conflitos estrangeiro – nada obsta a que uma norma de
DIPrivado do foro confira relevância ao Direito de conflitos estrangeiro.
ii. A verdadeira objeção de fundo é quanto ao facto de, ao fazer referência global, o
Direito de conflitos do foro vai renunciar ao seu juízo de valor sobre a conexão mais
adequada para acompanhar o critério de conexão do Direito de conflitos estrangeiro.

2) Objeções de natureza prática:


i. Transmissão ad infinitum – pode acontecer que a L2 remeta para L3, L3 para L4, L4 para
L5 e assim sucessivamente, sem que se chegue definitivamente a nenhuma lei. LP
considera o valor desta objeção diminuto: em toda a regra as situações internacionais
estão em contacto com um número limitado de Estados, pelo que as hipóteses de
transmissão em cadeia são raras e não colocam outra dificuldade que não seja a
necessidade de ter em conta dois ou três Direitos de conflitos estrangeiros.
ii. Pingue-pongue perpétuo – em caso de retorno entre dois sistemas que praticam
referência global, L1 acompanha a remissão feita por L2 para L1 e L2 acompanha a
remissão feita por L1 para L2. Só é possível quebrar o círculo vicioso se um deles
praticar referência material.

Dentro da tese de referência global temos:

i. Teoria da devolução simples

Segundo esta teoria, a remissão da norma de conflitos de foro abrange as normas de conflitos da
ordem estrangeira, mas entende-se necessariamente a remissão operada pela norma de conflitos
estrangeira como uma referência material.

Em Portugal, parece que esta teoria foi sempre aplicada em casos de retorno.

A devolução simples tem a vantagem de ser relativamente fácil de aplicar e de evitar as situações de
pingue-pongue perpétuo.

Mas verifica-se que só casualmente a devolução simples leva à harmonia internacional de soluções:

a) A devolução simples leva a aceitar o retorno direto mesmo que L2 não aplique L1. Por
exemplo, na situação de retorno direto entre dois sistemas que pratiquem devolução simples
cada um aplica o seu próprio Direito;
b) A devolução simples também leva a aceitar a transmissão de competência para L3 mesmo que
esta lei não seja aplicada por L2 nem se considere competente. Por exemplo, quando L1 e L2
pratiquem devolução simples e L3 remeta para L2 com referência material, L1 aplica L3,
enquanto L2 e L3 aplicam L2.

Truque para devolução simples – contar sempre duas setas e dá o resultado. Quando remeta para
ela própria, contamos a seta duas vezes.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

ii. Teoria da devolução integral, foreign court theory ou dupla devolução

Na devolução integral, o tribunal do foro deve decidir a questão transnacional tal como ela seria
julgada pelo tribunal do país da OJ designada. Ou seja, vai copiar a solução da OJ para a qual remete.

Em princípio, a devolução integral assegura que o tribunal de L1 aplicará a mesma lei e dará a mesma
solução ao caso que o tribunal de L2 – garante a harmonia entre L1 e L2.

 Esta teoria é aceite no Direito de conflitos inglês, mas não parecer ser aí de aplicação geral,
dependendo, designadamente, das matérias em causa – as decisões que a seguem dizem
respeito ao estatuto pessoal.
 Embora tradicionalmente o Direito de conflitos dos EUA não seja pró-devolucionista, tende
a admitir-se a devolução em certas matérias em que é importante alcançar a harmonia de
soluções com a lei estrangeira designada, especialmente no caso de retorno para o Direito dos
EUA. Nas matérias em que, como a sucessão por morte, se tende a admitir a devolução, esta
é geralmente entendida em termos de devolução integral.
Além disso, segundo uma orientação influente nos tribunais dos EUA, só se aplica a lei
estrangeira designada pela norma de conflito quando esta tem “interesse” na regulação do
caso; ora, no caso de a lei estrangeira remeter para o Direito dos EUA tende a entender-se que
a lei estrangeira não tem “interesse” na regulação do caso, tratando-se pois de um “falso
conflito”, em que se deve simplesmente aplicar o Direito material do foro na medida em que
tenha algum “interesse” no caso.

A grande novidade da devolução integral reside no facto de a norma de conflitos remeter para a
ordem estrangeira no seu conjunto, incluindo as próprias normas de L2 sobre a devolução. Assim,
atende ao tipo de referência feito por L2.

A tese da devolução integral é dificilmente generalizável. Pressupõe, em caso de retorno, que a OJ


designada não pratica também devolução integral, sob pena de círculo vicioso ou pingue-pongue
perpétuo. Para quebrar o círculo é preciso recorrer à devolução simples ou à referência material.

⇒ Balanço:

O sistema português parte de uma regra geral de referência material mas aceita a devolução em certos
casos. Também uma parte das codificações recentes se mostra desfavorável à admissão geral do
reenvio, mas não o exclui em determinadas hipóteses.

Por forma geral, pode dizer-se que a devolução deve ser admitida como um mecanismo de correção
do resultado a que conduz no caso concreto a aplicação da norma de conflitos do foro, quando tal
seja exigido pela justiça conflitual.

No quadro da justiça conflitual, é principalmente o princípio da harmonia internacional de soluções


que pode fundamentar a aceitação da devolução – este princípio está subjacente ao regime
consagrado nos arts. 17º/1 e 18º/1 CC.

No entanto, o princípio favor negotii e a ideia de favorecimento de pessoas que são merecedoras de
especial proteção também têm um papel a desempenhar e justificam, designadamente, que perante
normas de conflitos que visam favorecer estes resultados materiais, a devolução só seja admitida
quando favoreça ou, pelo menos, não prejudique estes resultados materiais.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Em esquema:

Norma de Direito
Norma de Conflitos Sistema de Devolução
Material
Referência Material   
Devolução Simples   
Dupla Devolução   

Sistemas de Referência Global

⭐ Regime vigente

⇒ A regra geral da referência material:

O art. 16º CC estabelece que “a referência das normas de conflitos a qualquer lei estrangeira determina apenas,
na falta de preceito em contrário, a aplicação do direito interno dessa lei”.

Quando o art. 16º se refere a “Direito interno” quer significar o Direito material, e o Direito material
de L2 tanto pode ser de fonte interna, como de fonte supraestadual ou transnacional. O mesmo se
diga da utilização da mesma expressão nos arts. 17º e 18º CC.

Deste preceito resulta que a referência material é enunciada como regra geral. Mas não resulta a
adoção da tese da referência material, visto que se admite “preceito em contrário”, i.e., que se aceite a
devolução nos casos em que a lei o determine. Isto verifica-se desde logo nos arts. 17º, 18º, 36º/2 e
65º/1 in fine.

O legislador português consagrou então um sistema atípico de devolução.

⇒ Transmissão de competência:

O art. 17º permite, sob certas condições, a transmissão de competência.

Nos termos do seu nº 1, “se, porém, o direito internacional privado da lei referida pela norma de conflitos
portuguesa remeter para outra legislação e esta se considerar competente para regular o caso, é o direito interno
desta legislação que deve ser aplicado”.

“Remeter” deve entender-se “aplicar”; o que interessa é que L2 aplique uma terceira lei.

Os pressupostos da transmissão de competência são dois:

1) Que o Direito estrangeiro designado pela norma de conflitos portuguesa aplique outra OJ
estrangeira;
2) Que esta OJ estrangeira aceite a competência.

A transmissão de competência também é de admitir num caso de transmissão em cadeia, em que L2


aplique L4 e L4 se considere competente. Esta hipótese não é diretamente visada pelo texto do art.
17º/1, mas é abrangida pela sua ratio.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Isto é de admitir mesmo que uma lei instrumental fique em desarmonia, por exemplo, quando L2
aplicar L4, e L4 se considerar competente, mas L3 aplicar L3; se não se atinge a harmonia com todas
as leis do circuito, alcança-se, pelo menos, a harmonia com L2 e com a lei aplicada por L2.

Logo, pode dizer-se, como diz MARQUES DOS SANTOS, que os pressupostos são:

i) Que L2 aplique Ln (pode ser L3, L4, etc.);


ii) Que Ln se considere competente.

Só podemos aplicar através da transmissão de competência uma lei que L2 aplique e que se considere
competente.

Vejamos o seguinte exemplo:

Sucessão mobiliária de francês, ainda não regida pelo Regulamento sobre sucessões, que falece com
último domicílio na Alemanha.

i. A norma de conflitos portuguesa remete para o Direito francês, a título de lei da última
nacionalidade do de cuiús;
ii. O Direito francês submete a sucessão mobiliária à lei do último domicílio do de cuius,
remetendo por isso para o Direito alemão;
iii. O Direito alemão, por seu turno, regula a sucessão pela lei da última nacionalidade,
remetendo para o Direito francês;
iv. Como tanto os tribunais franceses como os alemães praticam devolução simples, o
sistema francês aceita o retorno operado pela lei alemã, aplicando o seu Direito, e o sistema
alemão aceita o retorno operado pela lei francesa, aplicando o seu Direito;
v. Logo, L2 aplica L2 e L3 aplica L3;
vi. Neste caso não há transmissão de competência, porque L2, apesar de remeter
primariamente para L3, não aplica L3. Funciona a regra da referência material do art. 16º,
nos termos da qual se deve aplicar a lei francesa.

O art. 17º/2 determina que “cessa o disposto no número anterior, se a lei referida pela norma de conflitos
portuguesa for a lei pessoal e o interessado residir habitualmente em território português ou em país cujas
normas de conflitos considerem competente o Direito interno do Estado da sua nacionalidade”.

Este preceito aplica-se em matéria de estatuto pessoal. Nesta matéria, a transmissão de competência,
estabelecida nos termos do nº 1, cessa em duas hipóteses:

i) O interessado tem residência habitual em Portugal;


ii) O interessado tem residência habitual noutro Estado que aplica o Direito material do
Estado da nacionalidade.

 Uma primeira dificuldade de interpretação deste preceito surge quando a lei pessoal não for
a lei da nacionalidade:

A 2ª parte do art. 17º/2 revela que o legislador representou L2 como sendo a lei da nacionalidade. À
luz da ratio deste preceito, também não faria sentido aplica-lo quando a lei pessoal fosse a da
residência habitual.

Em princípio, L2 tem de ser a lei da nacionalidade chamada a reger a matéria do estatuto pessoal.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

 Outra dificuldade é determinar o interessado. Deve entender-se que é interessado aquele que
desencadeou o funcionamento do elemento de conexão que designou L2. Por exemplo, na
sucessão o interessado é o de cuius.
 A concretização no tempo do elemento de conexão residência habitual também pode
suscitar dificuldades. Por exemplo, perante o art. 53º CC que, em matéria de substância e
efeitos das convenções antenupciais e do regime de bens, manda atender à lei nacional dos
nubentes ao tempo da celebração do casamento. Se entretanto mudou a residência habitual,
qual é a relevante para a aplicação do art. 17º/2: a residência habitual à data do casamento ou a
residência habitual atual? Parece que é a residência habitual ao tempo do casamento, pois de
outro modo a mudança de residência habitual poderia desencadear uma mudança do regime
de bens.

Enfim, a lei da residência habitual pode remeter para a lei da nacionalidade (L2), mas não a aplicar,
por aceitar a transmissão de competência operada pela lei da nacionalidade, ou pode remeter para o
Direito português e vir a aplicar a lei da nacionalidade, também através da devolução.

Qual a razão de ser do art. 17º/2? Por que razão se dificulta a transmissão em matéria de estatuto pessoal?

Aqui dá-se relevância ao elemento de conexão residência habitual, mas para dificultar a aplicação de
uma lei diferente da lei da nacionalidade. É a primazia da conexão nacionalidade que sai realçada.

São estas as razões apresentadas no anteprojeto de 1964, que é da autoria de FERRER CORREIA e
contou com a colaboração de BATISTA MACHADO:

1) Quando o interessado tem residência habitual em Portugal, existe uma conexão estreita com
o Estado do foro. “Se o Estado do foro é o da residência do interessado, o Estado do foro não deve
abdicar da solução que elegeu por mais justa: a lei competente continuará a ser para ele a lei nacional”.
2) Quando o interessado tem residência habitual no Estado da nacionalidade ou no Estado para
que remete a lei da nacionalidade, o problema não se coloca, visto que obviamente neste caso
a lei da residência habitual não aplica a lei da nacionalidade.

A 2ª parte do 17º/2 releva quando o interessado tem residência habitual noutro Estado que aplica a
lei da nacionalidade. Nesta hipótese, verificamos que a lei da nacionalidade remete para um Estado
que não é o da residência habitual. Portanto, a lei da nacionalidade não consagra, em princípio,
relativamente a dada matéria que para nós se integra no estatuto pessoal, os elementos de conexão
normalmente relevantes nesta matéria: a nacionalidade, o domicílio ou a residência habitual.

E verificamos que face à lei da residência habitual, é aplicável a lei da nacionalidade. Neste caso, se
aplicarmos L3 conseguimos harmonia com a lei da nacionalidade, mas não com a lei da residência
habitual; e vamos aplicar uma lei que porventura não tem uma ligação íntima nem estável com o
interessado.

Nestas circunstâncias, a harmonia internacional não justificaria o abandono da conexão julgada mais
adequada para reger o estatuto pessoal, a lei da nacionalidade. Por isto cessa a devolução e aplicamos
a lei da nacionalidade.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

 LP: esta fundamentação tem a sua lógica, mas suscita algumas reservas:
i. Por um lado, observe-se que o art. 17º/2 também faz cessar a devolução quando L3 for
a lei do domicílio, se este não coincidir com a residência habitual, e a lei da residência
habitual aplicar a lei da nacionalidade.
ii. Por outro lado, a harmonia internacional é especialmente importante em matérias do
estatuto pessoal e, em princípio, é mais importante a harmonia com a lei da
nacionalidade do que a harmonia com a lei da residência habitual.

Em certos casos, porém, o art. 17º/3 vem repor a transmissão de competência. Assim como o art.
17º/2 só se aplica quando há transmissão de competência face ao art. 17º/1, o art. 17º/1 só se aplica
quando antes se tenham verificado as previsões das normas contidas nos nºs 1 e 2.

Determina este preceito: “Ficam, todavia, unicamente sujeitos à regra do n.º 1 os casos da tutela e curatela,
relações patrimoniais entre os cônjuges, poder paternal, relações entre adotante e adotado e sucessão por morte,
se a lei nacional indicada pela norma de conflitos devolver para a lei da situação dos bens imóveis e esta se
considerar competente”.

São quatro os pressupostos de aplicação deste preceito:

1. Que se trate de uma das matérias nele indicadas;


2. Que a lei da nacionalidade aplique a lex rei sitae;
3. Que a lex rei sitae se considere competente;
4. Que se verifique um dos casos de cessação da transmissão de competência previstos no nº 2.

Temos aqui um afloramento do princípio da maior proximidade. Nos termos do art. 17º/3, o Direito
de conflitos português admite abandonar o seu critério de conexão para assegurar a efetividade das
decisões dos seus tribunais, quando o Direito da nacionalidade estiver de acordo na aplicação da lex
rei sitae.

⇒ Retorno:

O art. 18º CC vem admitir, sob certas condições, o retorno de competência. Este art. estabelece que
“Se o direito internacional privado da lei designada pela norma de conflitos devolver para o direito interno
português, é este o direito aplicável”.

O retorno de competência depende, pois, em princípio, de um único pressuposto: que L2 aplique o


Direito material português.

A razão de ser deste pressuposto prende-se com o facto de só neste caso o retorno ser condição
necessária e suficiente para assegurar a harmonia com L2. Logo, se L2 remete para o Direito
português, mas não aplica a lei portuguesa, não aceitamos o retorno.

Por exemplo, a sucessão mobiliária de um francês, ainda não regida pelo Regulamento sobre
sucessões, com último domicílio em Portugal:

i. A norma de conflitos portuguesa remete para a lei francesa como lei da última
nacionalidade do de cuius;
ii. A lei francesa submete a sucessão mobiliária à lei do último domicílio, razão por que
remete para a lei portuguesa;

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

iii. Mas, como pratica devolução simples, aceita o retorno operado pela lei portuguesa e
considera-se competente;
iv. Como L2 não aplica L1, não aceitamos o retorno, e aplicamos L2, nos termos do art. 16º
CC.

Por forma geral, podemos dizer que nunca aceitamos o retorno direto operado por um sistema que
pratica devolução simples.

NOTA: o retorno pode ser indireto; o que interessa é que L2 aplique o Direito material português.
Assim, se L2 remete para L3, com devolução simples, e L3 remete para o Direito português, L2 aplica
o Direito material português.

Maiores dificuldades suscita a hipótese de retorno direto em que L2 não remeta direta e
imediatamente para o Direito material português, mas antes condicione a resposta ao sistema de
devolução português. Ou seja, um sistema que aplique ou não o Direito material português conforme
o nosso Direito de conflitos aceite ou não o retorno:

o Isto pode suceder no caso de retorno direto operado seja por um sistema que faça devolução
integral seja por uma lei que tenha um sistema de devolução igual ao nosso. Pode ser um
PALOP, uma vez que alterámos certos elementos de conexão com a reforma de 1977.
 Para o caso de L2 fazer devolução integral, BATISTA MACHADO defendeu que seria
de aceitar o retorno, porque se o Direito português aceitar o retorno, L2 aplicará o Direito
material português. Invocou ainda, neste sentido, que a aplicação da lei portuguesa
facilita a administração da justiça.
 LP entende que este argumento encerra um paralogismo, uma vez que tem de entrar
com a conclusão nas premissas: nós aceitamos o retorno se L2 aplicar Direito material
português; L2 aplica o Direito material português se nós aceitarmos o retorno.

O retorno também é limitado em matéria de estatuto pessoal. Com efeito, o art. 18º/2 estabelece que
“Quando, porém, se trate de matéria compreendida no estatuto pessoal, a lei portuguesa só é aplicável se o
interessado tiver em território português a sua residência habitual ou se a lei do país desta residência considerar
igualmente competente o direito interno português”.

Este preceito só se aplica quando há retorno nos termos do nº 1. Em matéria de estatuto pessoal, o
retorno só é aceite em duas hipóteses:

i) Quando o interessado tem residência habitual em Portugal;


ii) Quando o interessado tem residência habitual num Estado que aplica o Direito material
português.

A razão de ser deste preceito também é a ideia de primazia da conexão lei da nacionalidade. Mas é
difícil de entender a razão por que se dificulta mais o retorno do que a transmissão de competência:
perante o art. 17º/2, a transmissão de competência só cessa em duas hipóteses; perante o art. 18º/2, o
retorno só se mantém em dois casos.

Nos casos em que a lei da residência habitual se considera competente ou aplica uma lei estrangeira
que não é a da nacionalidade, há transmissão mas não há retorno.

 Segundo a nota do anteprojeto, a explicação está em que, em caso de retorno, se o elemento


de conexão da lei da nacionalidade designa a lei portuguesa, tal significa, em regra, que há
uma conexão forte com a OJ do foro. Se há, por regra, forte conexão com o foro, também por

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

regra a harmonia com a lei da nacionalidade não justifica o abandono do critério de conexão
do foro. A harmonia internacional só justificaria neste caso o retorno quando este for condição
necessária e suficiente para se alcançar a harmonia entre a lei portuguesa, a lei da
nacionalidade e a lei da residência habitual.

⭐ Favor negotii como limite à devolução

O art. 19º CC dispõe que “Cessa o disposto nos dois artigos anteriores, quando da aplicação deles resulte a
invalidade ou ineficácia de um negócio jurídico que seria válido ou eficaz segundo a regra fixada no artigo 16.º,
ou a ilegitimidade de um estado que de outro modo seria legítimo”.

Neste preceito, o favor negotii paralisa a devolução. A nota do anteprojeto manifesta a preocupação
de facilitar e desenvolver o comércio internacional por meio do favorecimento da validade e eficácia
dos negócios jurídicos. Isto significa, na prática, uma primazia do favor negotii sobre a harmonia
jurídica internacional.

Este preceito tem um enorme alcance: sempre que haja devolução por força dos arts. 17º ou 18º, esta
devolução é paralisada se L2 for mais favorável à validade ou eficácia do negócio ou à legitimidade
de um Estado que a lei aplicada através da devolução.

 FERRER CORREIA e BATISTA MACHADO vieram defender uma interpretação restritiva


que limita o alcance do preceito com base na ideia da tutela da confiança: o art. 19º/1 só seria
aplicável às situações já constituídas – e não à sua constituição em Portugal com a intervenção
de uma autoridade pública –, e desde que a situação esteja em contacto com a OJ portuguesa
ao tempo da sua constituição. Só neste caso o interessado ou interessados poderiam ter
confiado na válida constituição da situação segundo a lei designada pela nossa norma de
conflitos.
 LP não concorda com esta interpretação restritiva. A interpretação terá que respeitar o sentido
possível do texto legal. A restrição proposta parece ir além de uma interpretação restritiva,
tratando-se antes de uma verdadeira redução teleológica, que teria de ser justificada à luz do
fim da norma ou de outros princípios ou valores do sistema de Direito de conflitos.
i. Ora, tudo indica que o legislador quis dar primazia ao princípio do favor negotii
relativamente à harmonia internacional.
ii. Por outro lado, fundamentar o disposto no art. 19º/1 na tutela da confiança
pressuporia que os sujeitos das situações transnacionais se podem orientar pelas
nossas normas de conflitos, mas não pelas nossas normas sobre devolução.

⭐ Casos em que Não é Admitida a Devolução

1) À face do Direito de conflitos de fonte interna, a devolução não é admitida quando a remissão
é feita pelo elemento de conexão designação pelos interessados, utilizado mormente nos arts.
34º CC (pessoas coletivas internacionais) e 41º CC (obrigações voluntárias).

Com efeito, o nº 2 do art. 19º determina que “Cessa igualmente o disposto nos mesmos artigos, se a lei
estrangeira tiver sido designada pelos interessados, nos casos em que a designação é permitida”. Em rigor não
se trata de fazer cessar ou paralisar a devolução. Não se aplicam os arts. 17º ou 18º dada a natureza
do elemento de conexão.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Pode ver-se aqui um afloramento da ideia de que há conexões adversas ao reenvio.

2) A devolução também não é admitida em certas matérias reguladas por Direito de conflitos
europeu e internacional.

No que toca às obrigações, o art. 15º da Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações
Contratuais, o art. 20º Reg. Roma I (em princípio) e o art. 24º Reg. Roma II excluem o reenvio, quer
se trate da lei designada pelas partes, quer da lei objetivamente determinada. O mesmo se verifica
com o art. 11º Reg. Roma III em matéria de divórcio e separação judicial.

Pelo menos em matéria de obrigações, estes preceitos não excluem que as partes designem como
aplicável um sistema globalmente considerado, incluindo o respetivo Direito de conflitos. É o que
se verifica, por exemplo, quando as partes remetam para o “Direito aplicável nos tribunais do Estado X”.
Neste caso, tem de ser tomado em conta o Direito de conflitos da lei designada, mas trata-se de
respeitar a vontade das partes e não de devolução.

Outras matérias em que a devolução não é admitida por Convenções internacionais de unificação do
Direito de conflitos são as obrigações alimentares, a representação voluntária e os “contratos de
mediação”. Assim, a referência feita pelas normas de conflitos das Convenções sobre estas matérias
deve ser entendida como referência material.

 LP considera, por princípio, injustificada a exclusão geral do reenvio feita nas Convenções
internacionais atrás mencionadas e Regs. Roma I, II e III. O objetivo visado com a unificação
justifica a exclusão do reenvio quando as normas de conflitos unificadas remetam para a lei
de um Estado vinculado pelo instrumento de unificação, mas já não quando remetam para a
lei de um terceiro Estado. É assim correta a mudança de orientação ocorrida com o
Regulamento sobre sucessões.

O art. 24º CVM exclui a devolução em certas matérias relativas a valores mobiliários, introduzindo
assim um desvio em relação ao regime aplicável a outras normas de conflitos internas que é
dificilmente compreensível à luz das finalidades prosseguidas pelo Direito de conflitos.

⭐ Regimes Especiais de Devolução

No Código Civil encontramos disposições especiais sobre devolução em matéria de forma, nos arts.
36º/2 e 65º/1 in fine.

Aqui o favor negotii atua como fundamento autónomo de devolução. É o favorecimento da validade
formal do negócio e não apenas a harmonia jurídica internacional o objetivo que é prosseguido pela
admissibilidade da devolução nestes casos.

O nº 1 do art. 36º contém uma conexão alternativa, que abre a possibilidade de o negócio obedecer
à forma prescrita por uma das duas leis aí indicadas. O nº 2 cria uma terceira possibilidade: a
observância da forma prescrita pela lei para que remete a norma de conflitos da lei do lugar da
celebração.

Não se exige que L3 se considere competente, e é aí que reside a grande diferença com o regime
contido no nº 1 do art. 17º.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Tem-se entendido que o art. 36º/2 adota um sistema de devolução simples:

 Neste sentido pode argumentar-se que o preceito manda atender à norma de conflitos da lei
do lugar da celebração, nada referindo sobre o seu sistema de devolução.
 Mas será de entender o termo “remete” de forma diferente no art. 36º/2 e no art. 17º/1? LP entende
que não: o que releva é a lei aplicada pela lei do lugar da celebração. O favorecimento da
validade formal não deve ser cego à importância da harmonia com L2 e à confiança depositada
no DIP desta lei. Assim, o Prof. entende que este caso de devolução deve ser considerado em
termos de devolução integral.
 E se a lei do lugar da celebração aplicar o Direito material português? A ideia reguladora parece
abranger esta hipótese. Mas para quem entenda, como é o caso de LP, que não está excluída a
aplicação do art. 18º à remissão operada pela norma de conflitos do art. 36º/1, pode
configurar-se uma hipótese de retorno nos termos desse preceito, sem que seja necessário
recorrer ao art. 36º/2.

O que ficou exposto em relação ao art. 36º/2 aplica-se à hipótese de devolução admitida pelo art.
65º/1 in fine. Aqui a devolução vem abrir uma quarta possibilidade para salvar a validade formal de
uma disposição por morte.

Fora do Código Civil encontramos regimes especiais de devolução, em matéria de nome, direitos
de propriedade intelectual e sucessões.

o A Convenção de Munique sobre a Lei Aplicável aos Nomes Próprios e Apelidos remete para
a lei da nacionalidade; esta remissão deve ser entendida como uma referência global, que
abrange o Direito de conflitos desta lei.
o Também em matéria de direitos de propriedade intelectual, a remissão para o Direito do
Estado de proteção deve ser entendida como referência global; isto decorre do fundamento
desta conexão.
o O Regulamento sobre sucessões, alterando a orientação até aí seguida pelos regulamentos
europeus, admite a devolução em caso de remissão para a lei de um terceiro Estado (i.e., de
um Estado que não é vinculado pelo Regulamento). Neste caso, a devolução é admitida
quando as normas de DIP do terceiro Estado remetam (art. 34º/1):
i. Para a lei de um EM; ou
ii. Para a lei de outro Estado terceiro que se considere competente.

A devolução não opera quando a lei aplicável à sucessão resultar da cláusula de exceção (art. 21º/2)
ou escolha pelo autor da sucessão (art. 22º), em matéria de validade formal das disposições por
morte feitas por escrito (art. 27º) e da aceitação ou repúdio da herança (art. 28º), nos termos do art.
34º/2.

O preceito contido no art. 34º/1 suscita diversos problemas de interpretação:

i) Em primeiro lugar, coloca-se a questão de saber se a remissão operada pela lei do Estado
terceiro para outro ordenamento deve ou não ser entendida em termos de aplicabilidade
da lei deste ordenamento.

Ou seja:

a) Há quem entenda que basta que a lei do Estado terceiro remeta para a lei de um EM (al. a)) –
critério literal;

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

b) A maioria da doutrina portuguesa (incluindo LP), entende que não basta que a lei do Estado
terceiro remeta para a lei de um EM, é necessário também que aplique essa lei do EM. O Prof.
LIMA PINHEIRO apresenta dois argumentos neste sentido:
i. A expressão “normas de direito internacional privado” é suficientemente ampla para abarcar
não só as normas de conflitos mas também as normas do sistema de devolução.
ii. Considerando 57 – este Regulamento só admitiu o reenvio para assegurar a coerência
internacional com Estados-terceiros; isso significa conseguir harmonia internacional de
julgados com os Estados-terceiros. Assim, se é esse o objetivo, não faz sentido interpretar
“remeter” literalmente; desse modo acabaríamos por usar o reenvio para aplicar uma lei
diferente daquela que seria aplicada pelos tribunais do Estado-terceiro.

ii) Em segundo lugar, parece que o preceito admite a devolução sempre que a lei de um
terceiro Estado considera aplicável a lei de um EM, mesmo que não seja o EM do foro. Isto
abrange, por conseguinte, casos de transmissão de competência (para a lei de um EM que
não é o do foro) e casos de retorno.

Na opinião de LP, a aceitação do retorno parece justificada, neste caso, desde que se entenda que ele
só opera quando a lei do terceiro Estado considere aplicável o Direito material do foro ou de outro
EM.

⭐ Caracterização do Sistema de Devolução

São três as características do sistema de devolução vigente na OJ portuguesa:

♢ A regra geral é a da referência material. Isto decorre não tanto dos pressupostos da devolução
enunciados nos nºs 1 dos arts. 17º e 18º, mas dos limites colocados à devolução pelos seus nºs
2, em matéria de estatuto pessoal, pelo art. 19º e pela maioria dos instrumentos internacionais
e europeus.
♢ Os arts. 17º e 18º contêm regras especiais, que admitem a devolução, configurando um
sistema de devolução sui generis, visto que não corresponde à devolução simples nem à
devolução integral. No entanto, parece mais próximo da inspiração da devolução integral,
visto que a devolução depende sempre do acordo com L2.
♢ Em matéria de forma do negócio jurídico, admite-se a transmissão de competência para uma
lei que não esteja disposta a aplicar-se para obter a validade formal do negócio (arts. 36º e 65º
CC).

⭐ Apreciação Crítica (LP)

O sistema de devolução configurado pelos nºs 1 dos arts. 17º e 18º tem a sua lógica: à semelhança da
devolução integral, promove a harmonia com L2, mas mostra-se superior à devolução integral
porquanto evita o círculo vicioso em caso de retorno direto por parte de um Direito que faça
devolução integral ou tenha um sistema de devolução semelhante ao nosso e faz depender a
transmissão de competência da harmonia com a lei aplicada por L2.

No entanto, suscitam reservas os limites colocados à devolução em matéria de estatuto pessoal, como
anteriormente referido. É justamente em matéria de estatuto pessoal que a harmonia internacional é

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

mais importante; estes limites vão ao arrepio da tendência geral que se manifesta nos principais
sistemas estrangeiros.

LP afirma que ainda mais difícil de entender é que, nesta matéria, se dificulte mais o retorno que a
transmissão. A razão de ser desta diferença de tratamento reside no facto de nos casos de retorno
haver em regra uma conexão mais significativa com o ordenamento do foro, visto que o elemento de
conexão da lei da nacionalidade aponta para o nosso ordenamento.

Contudo, LP entende que este argumento não oferece uma explicação suficientemente satisfatória:
tem de haver sempre uma conexão com o ordenamento português tanto nos casos de retorno como
nos de transmissão, pois caso contrário o Direito de conflitos português não será aplicável.

O Prof. entende que apenas em domínios como o do Direito patrimonial se justifica que o princípio
do favor negotii tenha um valor superior àquele que lhe é de conceder em matéria de estatuto pessoal.
Mas mesmo aí crê que não se justifica sempre um favorecimento da validade do negócio jurídico.

A FRAUDE À LEI

A fraude à lei é conhecida como um instituto jurídico de alcance geral em alguns sistemas (como o
francês). Não é o caso dos sistemas do Common Law nem do Direito alemão. No Direito português, o
ponto é controverso:

 A favor da autonomia do instituto: ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO, CASTRO


MENDES, entre outros;
 Contra esta autonomia: VAZ SERRA, MENEZES CORDEIRO, PPV, entre outros.

O problema da fraude à lei em Direito privado material surge-nos principalmente no domínio dos
negócios jurídicos, quando os sujeitos procuram tornear uma proibição legal através da utilização de
um tipo negocial não proibido. Para quem admite a autonomia da fraude à lei, esta apresenta-se,
então, como uma violação indireta de uma norma proibitiva.

No Direito de conflitos internacional privado, a ideia geral é a mesma, mas o processo é diferente.
Trata-se geralmente de alcançar o resultado que a norma proibitiva visa evitar, mas a manobra
defraudatória consiste no afastamento da lei que contém essa norma proibitiva, na “fuga de uma
ordem jurídica para outra”.

Mas também é concebível a defraudação de normas imperativas não proibitivas (por exemplo, as
que estabeleçam requisitos de forma de negócios jurídicos) através do afastamento da lei que as
contém – é o caso das normas que contêm requisitos de forma para os negócios jurídicos.

O instituto da fraude à lei suscitou sempre muita controvérsia no Direito de conflitos internacional
privado:

i. A doutrina dominante na Itália e alguns autores germânicos negam a relevância autónoma


da fraude à lei neste ramo do Direito. Mas isto tem por consequência ou a complacência
com as manobras defraudatórias ou remeter para o plano da interpretação de cada norma
de conflitos a questão de saber se a manobra contra a lei normalmente competente é ou
não eficaz, o que gera uma indesejável incerteza.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

ii. Um importante setor da doutrina menos recente encarava a fraude à lei como um caso
particular da ordem pública internacional. Hoje tende-se a estabelecer uma clara distinção
entre os dois institutos:
a. Na ordem pública internacional está em causa a compatibilidade do resultado a que
conduz a aplicação da lei estrangeira com a justiça material da ordem jurídica do foro;
b. Na fraude à lei está em causa o afastamento da lei normalmente competente e o
desrespeito da norma imperativa nela contida, ainda que o Direito do foro não
contenha uma norma equivalente.
iii. Os regulamentos europeus também são omissos sobre a relevância da fraude à lei no
Direito de Conflitos. Para além de ser desejável que este instituto fosse abrangido por uma
codificação europeia do DIP, LP entende que a jurisprudência do TCE/TJUE não
condiciona a atuação das normas internas dos Estados Membros nesta matéria. Será,
porém, bem vinda uma clarificação do TJUE sobre a possibilidade de a fraude à lei ser
autonomamente sancionada dentro do domínio de aplicação destes Regulamentos.
iv. Tal como é conformado pelo Direito de Conflitos português, o instituto da fraude à lei
constitui um instrumento da justiça da conexão e um limite ético colocado à autonomia
privada na modelação do conteúdo concreto dos elementos de conexão.

Quanto à tipologia da fraude à lei em Direito dos Conflitos, podemos distinguir:

 Manipulação do elemento de conexão – para afastar a lei normalmente competente, o agente


da fraude vai modelar o conteúdo concreto do elemento de conexão.
 Internacionalização fictícia de uma situação interna – para afastar o Direito material vigente
na OJ interna, que é exclusivamente aplicável a uma situação interna, estabelece-se uma
conexão com um Estado estrangeiro, por forma a desencadear a aplicação de Direito
estrangeiro. Por exemplo, dois portugueses, residentes em Portugal, para fugirem aos limites
fixados pela lei portuguesa à taxa de juros do mútuo, vão celebrar um contrato interno a
Badajoz e escolhem a lei espanhola para reger o contrato.

Os elementos da fraude são dois:

i) Elemento objetivo – consiste na manipulação com êxito do elemento de conexão ou na


internacionalização fictícia de uma situação interna.

Para que se verifique a manipulação com êxito do elemento de conexão, tem de haver, em primeiro
lugar, uma manobra contra a lei normalmente aplicável. Tal não ocorre quando se dá às partes a
possibilidade de escolher a lei normalmente competente, como sucede, designadamente, em matéria
de contratos obrigacionais (desde que o contrato seja internacional). Entende-se geralmente que é
necessário que na lei normalmente competente exista efetivamente uma norma imperativa que é
objeto da fraude.

Como conciliar isto com a afirmação de que é a norma de conflitos o objeto da fraude feita por autores como
Kegel, Ferrer Correia e Baptista Machado? Segundo LP, importa esclarecer em que sentido se fala de
objeto de fraude: a fraude visa afastar uma norma material utilizando a norma de conflitos como um
instrumento. A norma de conflitos não é objeto de fraude no sentido de ser afastada pela manobra
defraudatória; mas já será objeto da fraude no sentido em que há uma atuação sobre esta norma que
conduz à frustração das suas finalidades. A instrumentalização da norma de conflitos põe em causa
a justiça da conexão que ela veicula.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

A manipulação tem de ter êxito, i.e., tem de desencadear o chamamento de uma lei diferente. Com
FERRER CORREIA, podemos ainda afirmar que não haverá fraude no caso de a conduta fraudulenta
consistir na mudança de nacionalidade e o naturalizado se integrar seriamente na sua nova
comunidade nacional. Neste caso, poderá dizer-se que há inicialmente fraude à lei – porque a
naturalização é feita com o intuito de afastar a lei da nacionalidade anterior –, mas que a fraude é
sanada pela integração efetiva na nova comunidade nacional.

ii) Elemento subjetivo – consiste na vontade de afastar a aplicação de uma norma imperativa
que seria normalmente aplicável. É necessário dolo, não há fraude por negligência. O dolo
incide sobre a modelação do conteúdo concreto do elemento de conexão ou sobre a
internacionalização fictícia da situação interna. Este elemento subjetivo tem geralmente de
ser inferido dos factos, com base em juízos de probabilidade fundados em regras de
experiência.

Ao consagrar este elemento subjetivo, o Direito de conflitos português adota uma conceção
subjetivista de fraude à lei.

Casos em que o legislador qualifica o elemento de conexão de modo a evitar ou dificultar a fraude;
fala-se, a este respeito, de medidas preventivas da fraude:

 Assim, no art. 33º/1 CC, quanto à lei pessoal da pessoa coletiva, o legislador manda atender
à sede principal e efetiva da administração da pessoa coletiva. Evita-se assim a relevância de
uma sede fictícia, i.e., de uma sede em que não funcionam quaisquer órgãos da pessoa coletiva.
Não é de excluir, porém, que possa verificar-se uma manipulação fraudulenta da própria sede
da administração, caso em que a fraude deve ser sancionada.
 Assim também em certos casos de imobilização do elemento de conexão em que se fixa
definitivamente o momento da sua concretização. Por exemplo, no art. 55º/2 CC, quando se
determinava que em caso de mudança de lei competente na constância do matrimónio só pode
fundamentar a separação ou o divórcio algum facto relevante perante a lei competente ao
tempo da sua verificação. Pretendia-se evitar a alteração da relevância do facto mediante a
mudança da lei aplicável. Hoje esta matéria é regulada pelo Regulamento Roma III.

⭐ Sanção da Fraude

Quanto à sanção da fraude existem duas posições:

i. Fraus omnia corrumpit (FERNANDO OLAVO), considera que todos os atos integrados no
processo fraudulento, incluindo, por exemplo, a própria naturalização no estrangeiro, são
nulos ou, para todos os efeitos, inoperantes (desenvolvida pela jurisprudência francesa e
seguida, entre nós, por Fernando Olavo);
ii. Outra posição, aceite posteriormente na doutrina portuguesa, assinala que o Estado do
foro não pode declarar inválida a aquisição de uma nacionalidade estrangeira. O que o
Direito de Conflitos do foro pode fazer é recusar a essa naturalização qualquer efeito na
aplicação da norma de conflitos.

O caminho seguido pelo legislador português, no art. 21º CC, vai neste segundo sentido. Dispõe este
preceito que “na aplicação das normas de conflitos são irrelevantes as situações de facto ou de direito criadas
com o intuito fraudulento de evitar a aplicabilidade da lei que, noutras circunstâncias, seria competente”.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Do texto deste artigo decorre claramente que a sanção da fraude à lei no Direito de conflitos se
confina àquilo que respeite à aplicação das normas de conflitos. Sendo irrelevante a manipulação
do elemento de conexão ou a internacionalização fictícia com intuito fraudulento, a sanção da fraude
consiste em aplicar a lei normalmente competente.

Mas note-se, irrelevante é a manipulação ou a internacionalização, não os atos praticados.

Outro ponto controverso tem sido o da sanção da fraude à lei estrangeira, que acontece quando é o
elemento de conexão da lei estrangeira que é manipulado:

o Segundo uma orientação, que no passado foi dominante na Alemanha e em Franca, só deveria
ser sancionada a fraude à lei do foro.
o Hoje é geralmente aceite que a fraude à lei estrangeira também deve ser sancionada.

Outra questão é a de saber se no tratamento da fraude à lei estrangeira se deve ter em conta a posição
da lei defraudada. Esta questão divide a doutrina portuguesa:

 FERRER CORREIA e BAPTISTA MACHADO não diferenciam entre a sanção da fraude à lei
do foro e a sanção da fraude à lei estrangeira;
 ISABEL DE MAGALHÃES COLLAÇO defende que enquanto a fraude à lei do foro é sempre
sancionada, a fraude à lei estrangeira só é sancionada em dois casos:
i. Se a lei estrangeira defraudada também sanciona a fraude;
ii. Se embora a lei estrangeira defraudada não sancione a fraude, está em causa, na
perspetiva do DIP do foro, um princípio do mínimo ético nas relações internacionais,
que não se conforma com o desrespeito da proibição contida na lei normalmente
competente.

A favor desta diferenciação pesa a harmonia internacional de soluções: se não atendermos à posição
da lei estrangeira defraudada perante a fraude, arriscamo-nos a sancionar uma fraude que esta lei
não sanciona, o que conduz à desarmonia de soluções.

Claro que este resultado também poderia ser evitado mediante a aceitação da devolução operada pela
lei normalmente competente quando esta não reage à fraude. Mas perante um sistema de devolução
como o nosso, em que a regra geral é a referência material, parece necessário atender à harmonia
internacional no próprio plano da sanção da fraude.

Na opinião de LIMA PINHEIRO, a fraude à lei estrangeira que não reaja à fraude deve ser sancionada,
excecionalmente, quando seja eticamente intolerável à face do Direito de Conflitos português. O
afastamento de uma norma imperativa estrangeira através de uma manipulação do elemento de
conexão pode ser inaceitável à luz de valores éticos que integram a justiça da conexão. Mesmo neste
caso, portanto, é a justiça da conexão e não a justiça material que está em causa, mantendo-se uma
distinção clara entre fraude à lei e ordem pública internacional.

QUALIFICAÇÃO

⭐ Enquadramento e Método

Numa aceção ampla, trata-se de resolver os problemas de interpretação e aplicação da norma de


conflitos que dizem respeito aos conceitos técnico-jurídicos utilizados na sua previsão, como
“estado”, “capacidade”, etc.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Estes conceitos delimitam o objeto da remissão. O que é objeto da remissão, a matéria que a norma de
conflitos remete para dado Direito? O objeto da remissão são situações da vida ou aspetos de situações
da vida transnacional.

Em sentido estrito, a qualificação é tradicionalmente concebida como a operação pela qual se


subsume uma situação da vida, ou um seu aspeto, no conceito técnico-jurídico utilizado para
delimitar o objeto da remissão.

O interesse e a dificuldade da qualificação está, em primeira linha, em saber se dada realidade se


reconduz à previsão de determinada norma, designadamente se é reconduzível à norma x ou à norma
y. É o problema da delimitação do âmbito de aplicação das diferentes normas.

A qualificação é um processo que se verifica quer na aplicação das normas de conflitos quer na
aplicação das normas materiais. Para o DIP vale muito da temática geral, mas soma-se-lhe uma
problemática específica que advém de não se operar apenas com um sistema de normas materiais. A
qualificação em Direito Internacional Privado tem de ter em conta dois níveis:

i. O Direito material;
ii. O Direito de Conflitos;

e a pluralidade de ordens jurídicas em presença.

O nosso sistema de Direito de conflitos dispõe de uma norma relevante em matéria de qualificação.
Nos termos do art. 15º CC, “a competência atribuída a uma lei abrange somente as normas que, pelo seu
conteúdo e pela função que têm nessa lei, integram o regime do instituto visado na regra de conflitos”.

⇒ Operações envolvidas na qualificação:

Não deve isolar-se a interpretação da aplicação, nem a delimitação do âmbito de aplicação da norma
do apuramento das circunstâncias do caso relevantes para a sua aplicação. O aplicador tem de fazer
um “vaivém” entre a norma e o caso, o qual se vem a traduzir quer numa adaptação da norma às
circunstâncias do caso quer num enriquecimento do conteúdo dos conceitos a que recorre a previsão
normativa.

Os problemas que estudamos dentro da qualificação em sentido amplo são, fundamentalmente,


problemas de interpretação da norma de conflitos. Tradicionalmente, a qualificação é encarada
segundo um esquema subsuntivo, baseado na lógica formal, o silogismo de subsunção. Assim, em
sentido amplo, o problema da qualificação envolve três momentos:

1) Estabelece-se a premissa maior, que é a previsão da norma de conflitos. O estabelecimento


desta premissa envolve a interpretação da proposição jurídica, por forma a determinar a
previsão normativa, mediante um enunciado das suas notas concetuais.
2) Estabelece-se a premissa menor, por meio de uma delimitação do objeto da remissão, i.e., a
determinação das situações da vida (alguns autores sustentam que o objeto da remissão é a
caracterização das normas materiais aplicáveis a essa situação da vida) que se vão subsumir.
Esta delimitação é feita tendo em atenção notas características jurídicas, envolvendo uma
caracterização das situações da vida. Em rigor, a premissa menor não é constituída por factos,
mas por um enunciado de que as notas características da previsão normativa se encontram
preenchidas em determinada situação da vida.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

3) Subsunção, traduzindo-se na recondução da matéria delimitada na previsão normativa.


Corresponde à qualificação em sentido estrito. É um momento largamente pré-determinado
pelos dois anteriores.

Relativamente a este esquema subsuntivo cabe fazer duas advertências:

i. Tende hoje a admitir-se que na maioria dos casos a interpretação-aplicação não poderá
ser reconduzida exclusivamente a operações lógico-formais. Frequentemente será
necessária uma valoração. Isto assume especial importância perante conceitos
caracterizados por uma elevada indeterminabilidade, como são os conceitos utilizados na
previsão das normas de conflitos.

Já é controverso se o esquema subsuntivo pode ou não ser mantido:

o Alguns autores entendem que a recondução dos factos à previsão normativa pode assentar
não só numa subsunção mas também num raciocínio de coordenação valorativa;
o Outros defendem que as operações envolvidas na aplicação da regra, apesar de envolverem
uma valoração, ainda podem ser configuradas segundo um esquema subsuntivo.

Na opinião de LIMA PINHEIRO, pela simples circunstância de o preenchimento de uma nota


concetual ser objeto de uma valoração não fica excluída a sua idoneidade para a subsunção. Todavia,
há conceitos carecidos de preenchimento valorativo que são insuscetíveis de uma definição, mesmo
perante as modernas teorias de definição, daí que o Prof. considere duvidoso que ainda se possa falar
de subsunção a respeito da recondução dos factos a estes conceitos.

Enfim, é certo que isto diz respeito ao estabelecimento da premissa menor do silogismo judiciário – a
recondução dos factos à previsão normativa – e não impede que a aplicação destas regras seja
silogisticamente fundamentada. Por outras palavras, o silogismo judiciário parece possível sem o
silogismo de subsunção. Sendo também certo que este silogismo judiciário não permite fundamentar
a solução segundo processos lógico-formais, mas tão-somente assegurar a racionalidade desta
fundamentação.

A elevada indeterminabilidade dos conceitos utilizados na previsão das normas de conflitos não
obsta, de per si, ao enunciado das suas notas características. Estas notas tanto podem ser estruturais
como funcionais e na apreciação do seu preenchimento é frequentemente necessária uma valoração.
O esquema subsuntivo pode geralmente ser mantido (em sentido contrário, DÁRIO MOURA
VICENTE), mas a aplicação da norma de conflitos transcende frequentemente as operações lógico-
formais.

ii. O esquema subsuntivo apresentado não é um esquema para a resolução de casos práticos,
serve apenas para a compreensão das várias operações incluídas na qualificação em
sentido amplo.

⇒ Interpretação dos conceitos que delimitam o objeto da remissão:

No Código Civil, o legislador optou por utilizar na previsão das normas de conflitos conceitos
técnico-jurídicos que se reportam a categorias de situações jurídicas definidas pelo seu conteúdo
típico e por notas funcionais ou a questões parciais.

A secção do Código Civil dedicada ao Direito de conflitos reproduz grosso modo toda a sistemática do
Código Civil e, com ela, a classificação germânica das situações jurídicas em obrigações, direitos reais,

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

relações de família e sucessões por morte. Esta classificação não obedece a um critério unívoco, nem
permite uma inserção adequada de todas as figuras. É uma classificação que reparte as matérias em
centros de regulação numa ótica pragmática e que reflete certos elementos culturais.

As obrigações e os direitos reais são situações jurídicas agrupadas segundo um critério estrutural,
i.e., atendendo ao conteúdo da situação jurídica. Em matéria de obrigações, a secção do Código
dedicada ao Direito de conflitos também distingue, seguindo o critério das fontes das obrigações,
entre obrigações provenientes de negócio jurídico, a gestão de negócios, o enriquecimento sem causa
e a responsabilidade extracontratual. Esta distinção também é seguida pela Convenção de Roma, pelo
Regulamento Roma I e Roma II.

Já o critério de agrupamento seguido relativamente às relações de família e às sucessões parece ser


outro; é um critério de pendor funcional e institucional. Nas sucessões, a transmissão de direitos
mortis causa; no Direito da família, as situações jurídicas que respeitam à instituição familiar.

A propósito da estrutura da norma de conflitos já observámos que certas normas de conflitos se


reportam a questões parciais, tais como a capacidade negocial e a forma, que são requisitos de
validade de negócios jurídicos. A extensão do objeto da norma de conflitos deve ser aquele que
convenha à sua estatuição, à remissão. A interpretação da norma de conflitos tem assim de atender
às finalidades por ela prosseguidas, designadamente ao fundamento da conexão. Mas também deve
atender aos fins gerais do sistema de DIP.

Primeira questão: a que Direito devemos recorrer para a interpretação dos conceitos técnico-jurídicos
utilizados na previsão das normas de conflitos de fonte interna?

1) Teoria da lege fori

A solução clássica consiste no recurso aos conceitos homólogos do Direito material do foro. Neste
sentido, invoca-se a união pessoal entre o legislador do Direito de conflitos e o legislador de Direito
material interno ou o princípio da unidade do sistema jurídico.

Contra esta tese é de assinalar que se os conceitos que delimitam o objeto da remissão tiverem o
conteúdo que decorre expressamente ou por via da construção jurídica do Direito material interno,
eles vão deixar de fora realidades jurídicas diferentes existentes no Direito estrangeiro.

Em suma, há a necessidade de uma maior abertura dos conceitos das normas de conflitos.

2) Teoria do Direito comparado

Esta insuficiência clássica levou RABEL a formular uma conceção diferente, segundo a qual na
formulação e, em todo o caso, na interpretação dos conceitos das normas de conflitos nos
deveríamos basear no Direito Comparado. A esta conceção é de objetar que não pode ser o Direito
Comparado a decidir qual o sentido e alcance dos conceitos das normas de conflitos.

De iure condendo, é uma questão de política jurídica; depende dos fins que se querem prosseguir, como
se conformam as previsões das normas de conflitos, qual a extensão que lhes deve ser dada. O Direito
Comparado pode ser um instrumento útil para este efeito, mas não é ele que decide.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

De iure constituto, como o Direito comparado não é Direito positivo, não pode ser o Direito comparado
a decidir qual o alcance do conceito de uma norma de conflitos. Saber até onde o conceito utilizado
na previsão da norma de conflitos abarca conteúdos jurídicos estrangeiros estranhos ao Direito do
foro é um problema de interpretação da norma que o intérprete tem de resolver mediante o emprego
dos critérios de interpretação do sistema em que se integra a norma de conflitos. O Direito comparado
apenas auxilia esta tarefa.

Enfim, como afirma ISABEL MAGALHÃES COLLAÇO, o método da comparação de Direitos é um


instrumento e não uma solução. Pelas mesmas razões, também não se deve, em princípio, abandonar
a determinação do conceito utilizado pela norma de conflitos do foro à lex causae. O sentido e alcance
do conceito utilizado na norma de conflitos depende das finalidades prosseguidas pelo DIP do
foro, e não das opções feitas pela lex causae.

3) Teoria da interpretação autónoma

A posição adotada por LIMA PINHEIRO com respeito às normas de conflitos de fonte interna é, e
seguindo ISABEL MAGALHÃES COLLAÇO, a de partir do Direito material do foro, retirando da
sua análise notas para a determinação do conceito empregue pela norma de conflitos, mas tendo
em conta as finalidades específicas prosseguidas pelo Direito de Conflitos.

A especialidade do Direito de conflitos leva, em primeiro lugar, a uma certa indeterminabilidade dos
conceitos aqui utilizados, de modo a poderem abranger realidades jurídicas diferentes ou
desconhecidas do Direito material do foro.

Por exemplo, perante um direito sobre uma coisa desconhecido do Direito material português,
devemos atender a notas que se retiram do Direito material interno. Como notas relevantes para a
determinação do conteúdo do conceito de direito real utilizado no art. 46º CC ocorrem a atribuição
de uma coisa corpórea independentemente de uma relação intersubjetiva (oponibilidade erga omnes)
que funda pretensões perante terceiros que exprimem a sequela. Se o direito conformado pela lex rei
sitae apresentar estas notas, será possível reconduzir a situação à previsão da norma de conflitos do
art. 46º CC.

Em suma, a interpretação das normas de conflitos de fonte interna é ancorada no Direito material do
foro, mas autónoma.

Esta abertura dos conceitos utilizado para delimitar o objeto da remissão a realidades jurídicas
estrangeiras diferentes ou desconhecidas do Direito material do foro é por vezes expressamente
enunciada no texto legal: por exemplo, o art. 30º CC quando se reporta à tutela e instituições análogas
de proteção aos incapazes.

Quando as finalidades do DIP e a necessidade de prevenir ou solucionar certos problemas técnico-


jurídicos de atuação da norma de conflitos o exigirem, pode mesmo justificar-se a formulação de
regras especiais que se reportam exclusivamente a institutos jurídicos estrangeiros desconhecidos
do Direito do foro: por exemplo, o art. 64º CC reporta-se à validade de um testamento de mão
comum, que não é admitido pelo nosso Direito material.

No que toca às normas de conflitos de fonte supraestadual, a interpretação dos conceitos utilizados
na sua previsão deve obedecer aos critérios atrás enunciados. No caso das normas de conflitos
contidas em Convenções internacionais, a interpretação tem de ser autónoma relativamente às
ordens jurídicas nacionais individualmente consideradas e assentar numa comparação de Direitos;

103
Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

mas antes de proceder a uma interpretação comparativa, é necessário tentar uma interpretação tendo
em conta o contexto e as finalidades; a interpretação comparativa é subsidiária. No que toca às
normas de conflitos contidas em Regulamento da UE, a interpretação também deve ser autónoma:
não deve ser feita referência ao Direito de um dos Estados em presença, mas antes ter em conta o
contexto da disposição e o objetivo prosseguido pelas normas em causa e a conformidade com os
direitos fundamentais protegidos pela ordem jurídica comunitária ou com outros princípios gerais
do Direito comunitário. A “interpretação comparativa” também constitui um importante critério de
interpretação destes instrumentos.

⇒ Delimitação do objeto da remissão:

Coloca-se agora uma segunda questão: como delimitamos as situações da vida que se hão de reconduzir aos
conceitos interpretados nos termos atrás expostos?

Já sabemos que o objeto da norma de conflitos são situações da vida ou aspetos destas situações mas,
para a sua delimitação, a previsão das normas de conflitos utiliza conceitos técnico-jurídicos que
atendem ao conteúdo jurídico típico e (ou) a critérios funcionais.

O objeto da remissão é um concretum, uma situação da vida ou um seu aspeto. A caracterização tem
de incidir sobre a situação da vida em causa e consiste na determinação da relevância jurídica desta
situação.

A que sistema pedir a caracterização da situação da vida? São possíveis duas respostas fundamentais:

i. Ao Direito material do foro, mas tal opção apresenta vários inconvenientes e é contrária
à ideia de paridade de tratamento entre a lei e a lei estrangeira. Com efeito, se
determinarmos a relevância da situação segundo o Direito material do foro e, nesta base,
designarmos uma lei estrangeira como competente, podemos ser levados a aplicar, por
força de uma norma de conflitos, normas materiais estrangeiras que não correspondem à
categoria normativa utilizada na previsão da norma de conflitos. Isto contraria a justiça da
conexão e a ideia de adequação que lhe está ínsita, pois o nexo de adequação entre a
previsão e a estatuição da norma não seria respeitado. A competência atribuída a um
Direito deve ter em conta o conteúdo e os fins das normas materiais que, neste Direito, são
aplicáveis à situação; só assim se garante a adequação do elemento de conexão à
especificidade do domínio jurídico-material a regular. Por conseguinte, só devemos
aplicar por força de uma norma de conflitos as normas materiais que correspondem à
categoria normativa utilizada na previsão da norma de conflitos. É por esta razão que o
alcance material da remissão é limitado.
ii. Ao Direito material da lex causae, i.e., da lei competente. Se determinarmos a relevância
jurídica da situação segundo o Direito material do foro, para nesta base designarmos a lei
estrangeira competente, mas excluirmos a aplicação das normas desta lei, quando não
corresponderem à categoria normativa utilizada pela previsão da norma de conflitos,
vamos gerar, desnecessariamente, problemas de falta de normas aplicáveis. Pode
acontecer que a situação seja juridicamente relevante perante o sistema ou sistemas com
que está mais estreitamente conexa e não o seja perante o Direito material do foro. Uma
caracterização lege fori levaria neste caso a negar tutela jurídica de uma situação que é
tutelada pelo sistema ou sistemas com que está mais conectada, o que contradiz a justiça
da conexão. Daí que pareça preferível a caracterização lege causae.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Mas não haverá aqui um círculo vicioso, visto que não sabemos qual é a lei competente antes de completarmos
o processo de qualificação? Não há círculo vicioso porque procedemos segundo um raciocínio
hipotético, atendendo à relevância jurídica dos factos perante cada uma das ordens jurídicas
potencialmente aplicáveis.

Quais são as ordens jurídicas potencialmente aplicáveis? São as de todos os Estados com as quais a situação
concreta tenha alguma das conexões relevantes para o Direito de Conflitos português. Procederemos
segundo um método de tentativas (para saber qual a norma de conflitos que vai ser aplicada), à
semelhança do que fizemos para a determinação da nacionalidade de uma pessoa, em que fomos
perguntar ao Direito dos Estados cuja nacionalidade pudesse estar em causa se consideram ou não
essa pessoa como seu nacional.

Na delimitação do objeto da remissão, perguntamos às várias OJ em presença qual a relevância


jurídica que dariam aos factos se lhes fossem aplicáveis: a caracterização só tem de ser feita segundo
o Direito material do foro quando a OJ do foro for uma das potencialmente aplicáveis, i.e., quando
a lex fori for também uma potencial lex causae.

A caracterização é feita por via de uma indagação acerca das proposições jurídico-materiais aplicáveis
ao caso em cada uma das ordens jurídicas potencialmente competentes. Nesta indagação, atendemos
ao conjunto dos efeitos jurídicos estatuídos pelas normas materiais em causa, designadamente à
definição de poderes e deveres. Atendemos, necessariamente aos institutos em que estas normas se
inserem, e, mais em geral, aos nexos intrassistemáticos existentes, às finalidades prosseguidas por
essas normas ou institutos e à função jurídica dos institutos, i.e., ao papel que desempenham no
sistema jurídico.

A importância relativa das notas estruturais (relativas ao conteúdo) e das notas funcionais pode
depender da categoria normativa em causa. Foi anteriormente assinalado que há categorias que são
definidas pelo seu conteúdo típico e categorias agrupadas segundo critérios funcionais. Isto não quer
dizer que face a categorias como obrigações contratuais, responsabilidade extracontratual ou direitos
reais sejam irrelevantes as notas funcionais, até porque essas categorias não são apenas definidas
estruturalmente.

A inserção na sistemática legal de um preceito pode constituir um indício para a qualificação. Mas
mesmo que se trate de um preceito de Direito material português a sua inserção numa parte do
Código Civil apenas indicia a sua qualificação.

⇒ Qualificação em sentido estrito:

No terceiro momento, trata-se de reconduzir a matéria, o concretum caracterizado juridicamente nos


termos anteriormente expostos, ao conceito empregue na previsão da norma de conflitos.

Esta operação tem:

i. Vertente positiva: a recondução da matéria ao conceito utilizado na previsão da norma


de conflitos, que desencadeia a aplicação desta norma;
ii. Vertente negativa: não recondução da matéria aos conceitos utilizados na previsão de
outras normas de conflitos, que determina o seu afastamento; isto sem prejuízo da
possibilidade concurso de normas de conflitos.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Assim, por exemplo, se concluirmos que a exigência de consentimento de outros filhos, na venda feita
pelos pais a um dos filhos, que consta do art. 877º CC, é de reconduzir à categoria de relações entre
pais e filhos prevista no art. 57º, excluímos a qualificação obrigacional e, por isso, afastamos as normas
de conflitos reguladoras das obrigações contratuais da resolução ao caso. Se o Direito português for
chamado a título de lei reguladora das obrigações contratuais e o Direito inglês a título de lei
reguladora das relações entre pais e filhos, o art. 877º não é aplicável. Não existindo no Direito inglês
preceito equivalente, a venda é válida independentemente de consentimento dos outros filhos.

Entre Direitos vizinhos, i.e., sistemas jurídicos pertencentes à mesma família de Direitos, pode
presumir-se a equivalência de qualificações: uma matéria que no Direito italiano, alemão ou francês
é vista como relativa aos Direitos Reais, é presumivelmente de qualificar do mesmo modo perante o
Direito de Conflitos português.

Mas atenção: é uma presunção que pode e deve ser ilidida sempre que, à luz do conteúdo e função
do instituto jurídico estrangeiro, se imponha uma qualificação diferente perante o Direito de conflitos
português.

Por exemplo, qual a norma de conflitos reguladora de um negócio de disposição de um direito real sobre uma
coisa situada na Alemanha?

No Direito alemão vigora o princípio da separação entre efeitos reais e efeitos obrigacionais. Mesmo
uma relação complexa real-obrigacional, como a compra e venda (em que há obrigações e efeitos
reais), é fracionada em termos tais que se distingue o negócio obrigacional, submetido à lei reguladora
das obrigações, do negócio de disposição, submetido à lex rei sitae.

A presunção de equivalência de qualificações levaria a reter a qualificação real e, portanto, a aplicar


a norma de conflitos reguladora dos direitos reais. Porém, no entendimento de LIMA PINHEIRO,
quando há um negócio com efeitos reais e obrigacionais, ou outra correlação íntima entre negócio
obrigacional e real, a formação e validade destes negócios é regulada pelas normas de conflitos
contidas no Reg. Roma I. A norma do art. 46º CC apenas controlará a produção de efeitos reais.

Em suma, embora o objeto da qualificação, as situações da vida ou aspetos parcelares, tenha de ser
caracterizado à face da lei ou leis potencialmente aplicáveis, a última palavra sobre a qualificação do
objeto deve ser proferida segundo o critério de qualificação do sistema a que pertencem as normas
de conflitos em jogo. Este critério de qualificação é definido com base na estrutura e nas finalidades
prosseguidas pelo sistema de Direito de conflitos aplicável.

 Como o Direito de Conflitos aplicável é, em primeira linha, o Direito de Conflitos do foro, o


critério de qualificação é, em primeira linha, o critério de qualificação do foro.
 Mas nos casos em que haja aplicação do Direito de Conflitos estrangeiro, o critério de
qualificação há de ser definido perante o respetivo sistema de Direito de conflitos.
 Quando as normas de conflitos em presença forem de fonte supraestadual, o critério de
qualificação deve fundar-se, em primeira linha, na estrutura e finalidades do Direito de
Conflitos contido na Convenção Internacional ou Regulamentos europeus. Mas porquanto,
frequentemente, entram em jogo simultaneamente normas de conflitos supraestaduais e
internas, o critério de qualificação tem de resultar de uma integração sistemática das normas
de conflitos de diferentes fontes.

NOTA: A circunstância de a lex causae qualificar dado instituto como processual não obriga a que o
Direito de conflitos do foro também o qualifique como processual. Embora a caracterização seja feita

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

lege causae, a qualificação é feita lege fori, rectius segundo o sistema de Direito de conflitos que for
aplicável.

⇒ Especialidades das normas de conflitos ad hoc e das normas de remissão condicionada:

A norma de conflitos ad hoc tem uma característica estrutural própria: não carece de delimitar ela
própria a categoria de situações jurídicas ou a questão parcial a que se reporta, visto que só atua em
função de uma determinada norma ou conjunto de normas materiais. A norma de conflitos ad hoc
tem por objeto as situações ou aspetos de situações suscetíveis de serem disciplinadas pela norma ou
conjunto de normas materiais a que está indissociavelmente ligada.

Não se coloca, portanto, um problema específico de qualificação no plano do DIP.

Em relação às normas de remissão condicionada, diga-se que para operar a remissão condicionada
tem, em princípio, de se encontrar uma situação da vida ou um aspeto de uma situação da vida,
juridicamente caracterizada, que seja reconduzível à previsão da norma; isto é comum às normas de
conflitos tradicionais.

Se houver uma condição adicional relativa ao resultado material, esta condição integra a previsão da
norma e, por conseguinte, a previsão não se verifica se no Direito estrangeiro não se verificar o
resultado ou não existirem determinadas normas. Todavia, pode acontecer que na previsão da
norma de remissão condicionada não se encontre outro conceito delimitador do objeto da remissão
que não seja o conceito relativo à condição material da remissão. Por exemplo, quando a validade de
um negócio seja objeto de uma remissão condicionada para determinada lei, na condição de esta lei
considerar o negócio válido.

⭐ Dificuldades suscitadas pelo Fracionamento Conflitual das Situações da Vida; Delimitação

Este fracionamento suscita vários tipos de problemas. Cuidando, por agora, apenas daqueles
problemas que concernem diretamente à qualificação, temos, por um lado, as dificuldades que suscita
a delimitação dos aspetos que são abrangidos por uma e outra das normas de conflitos em jogo e, por
outro, o do concurso e falta de normas aplicáveis.

 O problema da delimitação surge principalmente quando as situações, com o conteúdo que


lhes é atribuído pelas leis em presença, têm um caráter misto, pondo em jogo mais do que
uma norma de conflitos que se reporta a categorias de situações jurídicas. Por exemplo, um
contrato de compra e venda que gera obrigações e vai orientado à produção de efeitos reais.

As questões jurídicas suscitadas por diferentes aspetos de uma mesma situação da vida são
designadas questões parciais. A delimitação vem a traduzir-se na recondução das questões parciais
a uma ou outra das normas de conflitos aplicáveis.

O problema não se coloca em relação às questões parciais que são objeto de normas de conflitos
especializadas. Noutros casos o legislador indica que determinadas questões estão submetidas a uma
norma de conflitos. Por exemplo, o art. 12º Reg. Roma I. Relativamente a estas questões o problema
de delimitação está resolvido.

Em muitos casos, porém, não se pode contar com uma indicação do legislador. Podemos distinguir
entre um:

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

i. Núcleo ou conteúdo mínimo determinado do conceito utilizado para delimitar pela


previsão da remissão, que abrange o conjunto de questões jurídicas que são
indubitavelmente abrangidas pela previsão da norma, razão por que não suscitam
dificuldades de delimitação;
ii. Zonas cinzentas ou periféricas, que suscitam um problema específico de interpretação
dos conceitos que delimitam o objeto da remissão das normas de conflitos em jogo. A
resolução deste problema exige uma apreciação dos fundamentos que subjazem às normas
de conflitos em presença, tendo também em atenção os fins gerais do Direito de Conflitos.
Esta apreciação há de fornecer o critério orientador, que deve exprimir os nexos
funcionais e axiológicos entre as normas de conflitos em presença. Estes nexos podem
corresponder, por exemplo, a uma preordenação de uma norma relativamente a outra ou
a uma prejudicabilidade. Por vezes estes nexos poderão valer como critério geral, para a
resolução de todos os problemas de delimitação que venham a surgir; outras vezes será
mais difícil superar uma apreciação casuística.

O legislador, pode, em vasta medida, obviar a este tipo de dificuldades por meio de uma
especialização de soluções, i.e., adotando normas de conflitos especializadas para as questões que
suscitam tais dificuldades.

Em todo o caso, não é de excluir que certas questões parciais, que se inscrevem na zona cinzenta entre
duas normas de conflitos, possam, conforme o contexto em que se suscitam no caso concreto, ser
apreciadas segundo uma ou outra das normas de conflitos em jogo – isto vem sublinhar que o objeto
da remissão está ancorado na realidade e que, em última instância, não há uma equivalência entre a
perspetiva da norma de conflitos bilateral e a da determinação da esfera de aplicação no espaço de
normas ou categorias de normas.

Um segundo tipo de problemas decorre de uma combinação do fracionamento com valorações


contraditórias dos mesmos aspetos das situações da vida ou do recurso a meios técnico-jurídicos
diferentes para tutelar valores substancialmente idênticos por parte das leis em presença. Da ação
combinada destes fatores vai resultar que, pelo menos em primeira linha, nos possam surgir como
simultaneamente aplicáveis ao mesmo aspeto de uma situação da vida duas ou mais leis, por força
de duas ou mais normas de conflitos, ou que, ao contrário, não surjam como aplicáveis quaisquer
normas das leis em presença.

⭐ Exegese do art. 15º CC; Articulação entre a Qualificação e o Alcance Jurídico-material da


Remissão

Segundo o art. 15º CC, “A competência atribuída a uma lei abrange somente as normas que, pelo seu conteúdo
e pela função que têm nessa lei, integram o regime do instituto visado na regra de conflitos”.

Este preceito só faz alusão ao primeiro momento da qualificação – interpretação dos conceitos que
delimitam o objeto da remissão –, quando se refere ao regime do instituto visado na regra de conflitos.

“Instituto” é um termo pouco feliz, na opinião de LP, porque grande parte dos conceitos que
delimitam o objeto da remissão não se reportam a institutos. Assim, “instituto” tem de ser entendido
como referindo qualquer uma das categorias normativas utilizadas para delimitar o objeto da
remissão.

108
Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

O preceito não define um critério de interpretação destas categorias normativas, tarefa que tem sido
desempenhada pela ciência jurídica.

Quanto à delimitação do objeto da remissão, o art. 15º já contém uma indicação importante: manda
atender ao conteúdo das normas aplicáveis e à função que têm no sistema a que pertencem. Aponta-
se aqui claramente no sentido de uma caracterização lege causae. Acentua-se a necessidade de inserir
as normas da lei competente no sistema a que pertencem e de atender a notas funcionais.

A qualificação em sentido estrito é indiretamente visada no início do preceito: “a competência


atribuída a uma lei abrange somente”. Diretamente esta parte do preceito diz respeito ao alcance jurídico-
material da remissão e, por conseguinte, à sua estatuição.

Como referido, não podem ser reconduzidas à previsão de uma norma de conflitos situações da vida
que, com a relevância jurídica que lhes seja atribuída pela lei para que aponta o respetivo elemento
de conexão, não sejam reconduzíveis ao conceito que delimita o objeto da norma.

A letra do art. 15º parece sugerir que o objeto da qualificação são normas, e não situações da vida.
Mas ao legislador não cabe tomar posição em questões de dogmática jurídica; o que interessa é que
na caracterização e qualificação em sentido estrito a lei aponta no sentido que vem sendo defendido
pela doutrina portuguesa, designadamente por ISABEL MAGALHÃES COLLAÇO e FERRER
CORREIA: a formulação dada ao art. 15º CC deve antes ser entendida à luz da correlação entre
qualificação e estatuição da norma de conflitos. A determinação do sentido e alcance do conceito
utilizado na previsão da norma e a delimitação do objeto da remissão (que ocorrem nos dois primeiros
momentos da qualificação) pré-determinam o alcance jurídico-material da remissão (que integra a
estatuição da norma de conflitos).

Com efeito, da repartição de matérias operada pelas categorias normativas utilizadas nas normas de
conflitos pode resultar que diversos aspetos da mesma situação sejam reconduzíveis a normas de
conflitos diferentes. Essas categorias normativas delimitam o objeto da remissão com recurso a notas
jurídicas e, por conseguinte, a recondução de diversos aspetos da situação a várias categorias
normativas é feita em função da conformação jurídica da situação por diferentes complexos
normativos contidos no Direito ou Direitos aplicáveis. Daí resulta que a remissão operada por cada
uma das normas de conflitos em causa para determinado Direito só pode, em princípio, abranger
o complexo normativo que conforma o aspeto da situação que é reconduzível à categoria normativa
utilizada na sua previsão. No mesmo sentido depõe o nexo de adequação entre a previsão e a
estatuição da norma de conflitos.

Para utilizar uma imagem, os conceitos utilizados na previsão das normas de conflitos para delimitar
o objeto da remissão atuam como uma janela através da qual o aplicado do Direito olha duas vezes:

o Num primeiro olhar, a janela recorta as situações da vida que podem ser reconduzidas à
previsão da norma;
o Num segundo olhar, a janela delimita as proposições jurídico-materiais que podem ser
chamadas pela norma.

Por isso se afirmou que estes conceitos desempenham uma dupla função:

i. Delimitam o objeto da norma;


ii. Delimitam o alcance material da remissão.

109
Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Daí resulta que as normas de conflitos portuguesas desencadeiam uma remissão de alcance jurídico-
material limitado. Sublinhe-se, de novo, que esta consequência, embora interrelacionada com a
qualificação, diz respeito à estatuição da norma de conflitos.

INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO DIREITO ESTRANGEIRO

Tradicionalmente, o Direito aplicável às situações transnacionais é necessariamente o Direito vigente


numa ordem jurídica estadual: a ordem jurídica do foro ou uma ordem jurídica estrangeira. Quando
a norma de conflitos remete para uma ordem jurídica estrangeira levantam-se certas questões,
designadamente quanto à interpretação, conhecimento e prova do Direito aplicável.

⇒ Direito estrangeiro aplicável:

É aplicável o Direito estrangeiro que vigora na OJ designada pelo Direito de conflitos. Não têm de ser
normas que emanam diretamente de fonte estadual; podem ser normas de fonte não estadual que
segundo o sistema de fontes da ordem jurídica estrangeira, incluindo o seu sistema de relevância
do Direito Internacional na ordem interna, vigoram nessa ordem jurídica. Para saber quais são as
normas juridicamente vigentes atende-se ao sistema de fontes da ordem jurídica em causa: assim, se
na ordem jurídica estrangeira designadas vigora um sistema de precedent law, em que as decisões
dos tribunais superiores estabelecem um precedente que deve ser respeitado em decisões futuras
(pelo menos dos tribunais inferiores), o órgão de aplicação do Direito Português também respeitará
as decisões proferidas nos casos precedentes.

Já é discutido se o órgão de aplicação português deve respeitar a jurisprudência estrangeira constante


ou dominante, quando na ordem jurídica em causa não vigora um sistema de precedente vinculativo.
LIMA PINHEIRO entende que, em princípio, a questão deve ser respondida afirmativamente.

Também será respeitada a hierarquia das fontes da ordem jurídica estrangeira, o que pode ser
importante, designadamente, quanto à relação entre o costume e a lei.

Quanto ao controlo da constitucionalidade das normas materiais estrangeiras à face da Constituição


estrangeira, é de entender que o tribunal português o pode exercer em dois casos:

i. Se a inconstitucionalidade foi declarada com força obrigatória geral na ordem jurídica


estrangeira;
ii. Se, e nos termos em que, os tribunais do Estado estrangeiro possam exercer este controlo,
como se verifica com o sistema de controlo difuso da constitucionalidade. Já não perante
os sistemas de controlo concentrado de constitucionalidade em que este controlo está
reservado a um órgão especial (é o caso dos ordenamentos francês e suíço).

O Direito estrangeiro aplicável não tem de ser emanado de órgãos estaduais legítimos ou
reconhecidos pelo Estado português. Neste contexto sobrelevam as considerações de efetividade,
designadamente a aplicação dos complexos normativos em causa pelos órgãos do poder político e
um mínimo de observância destes complexos normativos, considerados no seu conjunto, pelos
destinatários.

Não é sequer inconcebível a aplicação do Direito de um Estado não reconhecido pelo Estado
português. O Direito que é aplicado por um poder político juridicamente organizado e que

110
Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

efetivamente vigora num território será em princípio aplicável por força do Direito de Conflitos
português mesmo que o Estado português não reconheça o Estado em causa.

Note-se ainda que não tem de ser necessariamente privado. Também serão aplicáveis as normas de
Direito Público e que ocupam zonas cinzentas entre o público e o privado que regulem ou tenham
incidência sobre situações reguladas pelo Direito Internacional Privado. É frequentemente o caso de
normas de Direito Económico, por exemplo, em matéria de concorrência, de titularidade de certos
bens, etc.

Decorre do exposto relativamente à qualificação, que a circunstância de o Direito estrangeiro


competente conter um instituto jurídico desconhecido da OJ do foro não obsta ao seu chamamento
pelo Direito de conflitos português. A divergência entre o conteúdo do Direito estrangeiro
competente e o Direito material do foro só excecionalmente releva como limite à sua aplicação.

Resta acrescentar que a aplicação do Direito estrangeiro pode também não ser possível em dois casos:

 Quando este Direito exija a intervenção de uma autoridade pública e não exista, no Estado
local, nenhuma autoridade com competência para praticar os atos necessários;
 Quando a sua aplicação requeira procedimentos especiais que sejam de todo incompatíveis
com o Direito processual do foro. O art. 27º CC pode ser entendido como uma manifestação
deste princípio.

⇒ Interpretação do Direito estrangeiro:

Como determina o art. 23º/1 CC, o Direito estrangeiro tem de ser interpretado em conformidade com
os critérios de interpretação seguidos no país de origem e com a jurisprudência e doutrina aí
dominantes.

O intérprete encontra-se menos familiarizado com o Direito estrangeiro e, por isso, deve atuar com
especial prudência. GOLDSCHMIDT afirmou que na construção do próprio Direito somos arquitetos
ao passo que apenas “fotografamos” o Direito estrangeiro. LP entende que há algum exagero nesta
afirmação: o intérprete local tem a margem de apreciação e a competência de um desenvolvimento
do Direito que a OJ estrangeira reconhece aos seus juízes e, mais em geral, aos seus intérpretes. Mas
devem ser mais prudente e seguir a opinião dominante na cultura jurídica estrangeira.

A ideia por detrás do art. 23º é a de que, por força da norma de conflitos, o juiz português terá os
mesmos poderes que o juiz estrangeiro teria para apreciar o caso.

A circunstância de o mesmo preceito vigorar simultaneamente em várias OJ não impede que a


respetiva interpretação seja diferente. Por exemplo, o art. 970º CC francês, que manda datar o
testamento ológrafo, foi literalmente transcrito no CC belga: enquanto o texto francês é interpretado
no sentido da nulidade do testamento ológrafo erroneamente datado, o texto belga é interpretado no
sentido da sua validade.

⇒ Conhecimento e prova do Direito estrangeiro:

Para decidir, o tribunal precisa de conhecer os factos e o Direito.

111
Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Segundo o princípio do dispositivo, os factos têm, em regra, de ser alegados e provados pelas partes.
Já o Direito deve ser conhecido pelo tribunal, deve ser investigado e determinado por sua própria
iniciativa, em conformidade com o princípio da oficiosidade (art. 412º CPC).

Pergunta-se: poderá exigir-se o conhecimento oficioso do Direito estrangeiro?

o Nos Direitos anglo-saxónicos, entende-se tradicionalmente que não. Há um ónus de alegação


e prova do Direito estrangeiro pelas partes.
o Este entendimento mantém-se no sistema inglês.
o Já nos EUA existe legislação que modificou a regra da Common Law em muitos Estados
federados e especialmente em relação aos tribunais federais, em muitos casos aproximando-
se dos sistemas que encaram a lei estrangeira como Direito, sem, contudo, dispensar a
colaboração das partes.
o Em Portugal, a questão é resolvida pelo art. 348º/1 e 2 CC: há um dever de colaboração da
parte que invoca o Direito estrangeiro na determinação do seu conteúdo; não há ónus da
prova. O incumprimento do dever de colaboração não tem por consequência o indeferimento
da pretensão nem, necessariamente, a aplicação do Direito material português, embora possa
contribuir para uma situação de impossibilidade de determinar o conteúdo da lei estrangeira.
O Direito estrangeiro é de conhecimento oficioso, tem o estatuto de Direito.
o A mesma posição é assumida pelos sistemas alemão e italiano, bem como pelos sistemas dos
países africanos de expressão oficial portuguesa, em que vigora o art. 348º CC, e pelo Direito
de Macau.

Por conseguinte, os tribunais portugueses, quando conheçam de uma relação controvertida


transnacional, seja em primeira instância seja como instância de recurso, estão obrigados a aplicar ex
officio o Direito de Conflitos vigente na OJ portuguesa e, sendo o caso, o Direito estrangeiro
designado por este Direito de conflitos. Note-se que não existe qualquer ónus de alegação da
competência da lei estrangeira quer perante o tribunal de primeira instância quer perante tribunais
de recurso.

A aplicação oficiosa do Direito de Conflitos e o conhecimento oficioso do Direito estrangeiro para que
remeta são, em princípio, postulados pela justiça do DIP, que inclui valores e princípios que
transcendem a vontade das partes:

 Ela assegura que a situação transnacional é apreciada segundo o Direito designado pelo
elemento de conexão mais adequado à matéria.
 Ao mesmo tempo, porém, deve atender-se à primazia que o princípio da autonomia privada
tende a alcançar neste ramo do Direito em matéria de relações disponíveis, que são a regra
no Direito patrimonial.
 Deve também ter-se em conta as dificuldades para a administração da justiça que resultam
do crescente peso das situações transnacionais no conjunto de casos submetidos aos tribunais.

Contra uma aplicação facultativa do Direito de Conflitos e/ou um ónus de alegação e prova do
Direito estrangeiro por ele designado em matérias disponíveis, pode invocar-se o risco de que as
partes, ou os seus representantes forenses, não prestem a devida atenção à relevância da questão
para a decisão do litígio.

No entender de LP, uma solução equilibrada poderia consistir no seguinte:

i. O Direito de conflitos continuaria a ser, como todo o Direito, de aplicação oficiosa.

112
Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

ii. Em matérias disponíveis, no caso de o Direito de conflitos remeter para uma lei
estrangeira e de nenhuma das partes o ter invocado, o tribunal convidaria as partes a
alegarem e provarem o conteúdo desta lei, sob pena de ser aplicada a lei do foro.
iii. Isto poderia ser complementado por soluções especiais, que poderiam restringir esta
regra relativamente a determinadas matérias disponíveis, ou estendê-la a determinadas
matérias indisponíveis.

Os sistemas nacionais de DIP também se dividem quanto ao controlo pelos tribunais supremos da
interpretação e aplicação do Direito estrangeiro:

 Este controlo não é em princípio efetuado em países como a Alemanha e a França.


 Solução contrária é adotada entre nós, à semelhança do que se verifica em Itália. Com efeito,
o art. 674.º CPC estabelece que o erro na determinação e aplicação das normas legais
estrangeiras constitui fundamento do recurso de revista (nº 2). Já o erro na determinação de
costume, nacional ou estrangeiro, é excluído do recurso de revista. Mas isto não prejudica que
o costume estrangeiro tenha estatuto de Direito: o tribunal, ao determinar o conteúdo do
Direito estrangeiro, deverá contentar-se com um conhecimento suficiente para formar a sua
convicção; a dúvida não deve levá-lo a concluir pela impossibilidade.

Quanto aos meios de averiguação do conteúdo do Direito estrangeiro, os tribunais, devem contar:

i. Em primeiro lugar, com a colaboração das partes, que podem juntar aos articulados
elementos tais como textos legais traduzidos, pareceres jurídicos, cópias de decisões
judiciais, informações prestadas pelas representações diplomáticas ou consulares do
Estado de origem do Direito em causa, bem como solicitar depoimentos de peritos sobre
o conteúdo do Direito estrangeiro.
ii. Se os elementos trazidos ao processo pelas partes não forem suficientes ou conclusivos, os
tribunais também podem tomar a iniciativa de obter esses elementos e têm ao seu dispor
certos mecanismos para o conhecimento do Direito estrangeiro estabelecidos em
Convenções internacionais – Protocolo Relativo à Comissão Internacional do Estado Civil
(Berna, 1950), Convenção Europeia no Campo da Informação sobre o Direito estrangeiro
(Londres, 1968) e Convenção sobre Informação em Matéria Jurídica com Respeito ao
Direito Vigente e sua Aplicação (Brasília, 1972).
iii. No âmbito da UE, há também a referir o sítio na internet da Rede Judiciária Europeia em
Matéria Civil e Comercial, que contém informações sobre os EM, sobre o DUE e sobre
certas matérias de Direito Civil e Comercial nas OJ dos EM. Está prevista a migração desta
informação para o Portal Europeu da Justiça. Estes mecanismos deveriam ser reforçados.
Seria também desejável que Portugal dispusesse de uma instituição independente que
fornecesse aos tribunais pareceres sobre o Direito estrangeiro. O Gabinete de
Documentação e Direito Comparado, dependente da Procuradoria Geral da República,
tem a atribuição de prestar informação jurídica, designadamente sobre Direito estrangeiro,
mas os seus recursos são bastante limitados.
iv. Tem sido defendido que, em caso de dificuldade, o tribunal pode mesmo recorrer a
presunções para fixar o conteúdo do Direito estrangeiro. Assim, o tribunal poderia
recorrer aos sistemas jurídicos da mesma família que presumivelmente sejam mais
semelhantes (KEGEL e SCHURING falam do princípio da maior semelhança).
 LP tem muitas dúvidas sobre a conveniência deste recurso a presunções, uma vez
que pode conduzir a soluções completamente diferentes das que decorreria do

113
Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Direito competente. Em qualquer caso, não lhe parece que o Direito positivo
autorize o recurso a presunções sobre o conteúdo do Direito estrangeiro.
v. Havendo real impossibilidade de determinar o conteúdo do Direito estrangeiro aplicável,
art. 23º/2 CC manda passar à conexão subsidiária. Só na falta de conexão subsidiária é
que, de acordo com o art. 348º/3 CC, há lugar à aplicação do Direito material português –
isto vale apenas para o Direito material estrangeiro. Se, para efeitos de devolução, não
for possível determinar o conteúdo do Direito de Conflitos estrangeiro, deve entender-
se a remissão operada pela nossa norma de conflitos como uma referência ao Direito
material da OJ estrangeira designada, em conformidade com a regra geral do art. 16º
CC.
a. A impossibilidade de determinar o conteúdo do Direito estrangeiro aplicável pode ser
parcial, quando o tribunal só obtenha conhecimento de certos princípios gerais ou de
algumas regras que não permitem resolver inteiramente o caso. Nesta hipótese, LP
entende que o tribunal deve aplicar as regras do Direito competente que conhece. O
Direito subsidiariamente aplicável ou o Direito material do foro só devem ser
aplicados às questões que não sejam resolvidas por essas regras e, em qualquer caso,
desde que não contrariem os princípios fundamentais do Direito competente. Atenua-
se assim o risco de a solução do caso ser manifestamente contrária à que decorreria do
Direito que apresenta a ligação mais significativa com a situação.
b. Quanto aos outros órgãos de aplicação do Direito, designadamente aos notários e
conservadores, a lei não exige expressamente que conheçam oficiosamente o Direito
estrangeiro aplicável.
o Parece ao Prof. que perante o Direito vigente, os notários não estão obrigados a
conhecer oficiosamente do Direito estrangeiro aplicável (art. 85º/2 C. Not.). Desta
solução particular parece inferir-se que, por forma geral, os notários não têm o
dever de conhecer oficiosamente o Direito estrangeiro aplicável. Mas isto não
significa que, na falta de prova pelos interessados do Direito estrangeiro
competente, os notários possam realizar o ato segundo o Direito material
português. Deve entender-se que, perante situações transnacionais, os notários
estão sempre obrigados a determinar o Direito competente e que, no caso de ser
competente um Direito estrangeiro, só devem realizar o ato se conhecerem o
conteúdo deste Direito ou se as partes fizerem a prova do mesmo.
o Quanto aos conservadores, parece que, na falta de disposições especiais, se lhes
deva aplicar analogicamente o regime estabelecido para os tribunais. Como
solução especial, avulta o art. 43º-A CRPr. No caso do casamento de estrangeiro,
o CRCivil determina que o nubente deve apresentar um certificado passado pela
entidade competente do Estado da nacionalidade, destinado a provar que a lei
pessoal não coloca impedimento à celebração do casamento (art. 166º/1). Se, por
falta de representação diplomática ou consular do país da nacionalidade, ou por
outro motivo de força maior, o nubente não puder apresentar o certificado, a sua
falta pode ser suprida por um processo de verificação de capacidade matrimonial
de estrangeiros, organizado na conservatória (arts. 166º/2 e 261º e ss.), em que o
Direito estrangeiro competente é de conhecimento oficioso.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

LIMITES À APLICAÇÃO DO DIREITO ESTRANGEIRO OU TRANSNACIONAL

⭐ Reserva de Ordem Pública Internacional

⇒ A reserva de ordem pública internacional enquanto cláusula geral que veicula princípios e
normas fundamentais da OJ do foro:

A reserva de ordem pública internacional encontra-se desde logo consagrada no art. 22º CC. Há
outras disposições de fonte interna que se referem à ordem pública internacional, designadamente:

i. Art. 1651º/2 CC;


ii. Art. 980º/ f) CPC;
iii. Art. 6º/1 CRC.

A reserva de ordem pública internacional consta ainda de diversas Convenções internacionais e


Regulamentos europeus de unificação do Direito de Conflitos e sobre reconhecimento de sentenças
estrangeiras vigentes na ordem jurídica portuguesa.

A reserva de ordem pública internacional é um limite à aplicação do Direito estrangeiro ou


transnacional competente segundo o Direito de Conflitos ou ao reconhecimento de uma decisão
estrangeira.

Perante a diversidade das situações em que o resultado a que conduz a aplicação do Direito
estrangeiro ou transnacional ou o reconhecimento de decisão estrangeira pode ser intolerável
perante a conceção de justiça do foro, o legislador formulou uma cláusula geral.

A cláusula geral da ordem pública internacional é um veículo para a atuação dos princípios e normas
fundamentais da OJ portuguesa. Não é possível determinar, a priori, o conteúdo desta cláusula geral,
i.e., formular um conjunto de regras que esgotem o seu conteúdo:

 Isto resulta não só da dificuldade em enumerar taxativamente os princípios e normas


fundamentais da ordem jurídica portuguesa;
 Mas também, e principalmente, de a atuação da reserva de ordem pública internacional
depender do conjunto das circunstâncias do caso. Só perante as circunstâncias do caso
concreto se pode dizer se uma determinada violação de um princípio ou norma fundamental
é intolerável.

Esta ordem pública é internacional porquanto é específica do DIP, e não, porventura, por ser uma
ordem pública de Direito Internacional. Pelo contrário, diz-se que a ordem pública internacional é
nacional, porque veicula princípios e normas fundamentais da OJ do foro.

Mas não deve confundir-se a OJ do foro com o Direito de fonte interna. O caráter nacional da ordem
pública internacional presta-se a equívocos:

o Numa OJ em que o Direito Internacional é objeto de receção automática, como é o caso da OJ


portuguesa (art. 8º CRP), a ordem pública internacional é também informada por normas e
princípios fundamentais de Direito Internacional.
 A ordem pública de Direito Internacional integra necessariamente a OJ portuguesa.
Os princípios fundamentais de DUE e a Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia (art. 6º TUE) também enformam a nossa ordem pública internacional. O
mesmo se diga de Convenções internacionais em vigor na OJ portuguesa.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

Por outro lado, os Estados podem obrigar-se por Convenção internacional a só recorrerem a esta
reserva em situações especialmente qualificadas: o art. 16º Convenção Roma, o art. 21º Reg. Roma I,
o art. 26º Reg. Roma II, o art. 12º Reg. Roma III e o art. 35º Reg. sobre Sucessões exigem uma manifesta
incompatibilidade da lei designada com a ordem pública do foro.

Além disso, o TJUE pode exercer algum controlo sobre os limites no quadro dos quais um EM pode
invocar a ordem pública internacional ao abrigo destes preceitos, designadamente quando esteja em
causa a aplicação do Direito de outro EM:

i. Este controlo prende-se, por um lado, com o caráter necessariamente excecional da


intervenção da ordem pública internacional.
ii. Por outro lado, o Considerando n.º 25 do Reg. Roma III refere que os tribunais de um EM
“não deverão poder aplicar a exceção da ordem pública para recusar uma disposição da lei de outro
Estado quando tal seja contrário à Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, em especial
ao seu artigo 21º, que proíbe qualquer forma de discriminação”.

A ordem pública internacional estrangeira pode ser relevante nos casos em que o Direito de Conflitos
estrangeiro seja aplicado por força do Direito Internacional Privado do foro. É o que se verifica em
sede de devolução.

É usual contrapor-se a ordem pública internacional à ordem pública de Direito material, referida
designadamente nos arts. 271º/1, 280º/2 e 281º CC. Há algo de comum a estes dois preceitos de ordem
pública: certos princípios e regras, pela sua importância, não podem ser afastados na solução de um
caso. Mas há diferenças óbvias entre os dois conceitos:

 O conceito de ordem pública de Direito material é controverso. Parece que, enquanto conceito
científico, incluirá as regras e os princípios gerais imperativos, ao passo que nos preceitos
atrás referidos se reportará apenas aos princípios gerais imperativos.
 A ordem pública de Direito material constitui um limite à autonomia privada no contexto do
Direito material e, em especial, à liberdade contratual de estipulação.
 Os princípios e regras veiculados pela ordem pública internacional representam um núcleo
mais restrito do que aqueles que subjazem à ordem pública de Direito material. Mesmo que
se trate de um princípio que é veiculado tanto pela ordem pública de Direito material como
pela ordem pública internacional (por exemplo, o princípio da confiança), nem todas as
violações sancionadas pela ordem pública de Direito material são suficientemente graves para
justificarem a atuação da ordem pública internacional.
 Enquanto contraproposta à ordem pública de Direito material, a ordem pública internacional
constitui um reduto de princípios e normas do ordenamento do foro de cuja aplicação esta
ordem jurídica não abdica posto que se trate de uma situação transnacional e que seja
estrangeiro ou transnacional o Direito chamado a regê-la. Daí que a ordem pública
internacional constitua um limite excecional à aplicação do Direito estrangeiro ou
transnacional.

Tende hoje a entender-se que as normas e princípios constitucionais, principalmente os que tutelam
direitos fundamentais, não só informam mas também conformam a ordem pública internacional.

A cláusula de ordem pública internacional é um limite à aplicação do Direito estrangeiro ou


transnacional ou ao reconhecimento de uma decisão estrangeira. Neste momento, interessa, em
primeira linha, a reserva de ordem pública internacional enquanto limite à aplicação do Direito
estrangeiro ou transnacional:

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

A atuação da reserva de ordem pública internacional pressupõe que o Direito de Conflitos português
chama o Direito estrangeiro ou transnacional a regular a situação. O problema só se coloca depois
de resolvidas todas as questões de concretização do elemento de conexão, de devolução, de fraude
à lei e de qualificação. É no fim do processo que se aprecia a compatibilidade da solução a que conduz
o Direito estrangeiro ou transnacional designado com a ordem pública internacional.

O art. 22º CC acolhe a conceção aposteriorística de ordem pública internacional.

Nem sempre a ordem pública internacional foi assim entendida:

 Em finais do séc. XIX e princípios do séc. XX, autores como MANCINI e PILLET defenderam
uma conceção apriorística, segundo a qual certas leis do foro teriam como qualidade inerente
serem de ordem pública. A ordem pública constituiria uma categoria autónoma de conexão,
a par do estatuto pessoal.
 Na conceção vigente no Direito português, a reserva de ordem pública internacional só
intervém a posteriori, quando a solução material concreta a que o Direito estrangeiro ou
transnacional conduz é intolerável face a certos princípios e normas da OJ portuguesa. A
atuação da reserva de ordem pública internacional requer assim uma comparação dos efeitos
desencadeados pela lei estrangeira ou pelo Direito transnacional com os que seriam
ordenados pela lei do foro.

A reserva de ordem pública internacional não fundamenta um juízo de desvalor da lei estrangeira ou
da norma transnacional. Ela atua perante o resultado da aplicação do Direito estrangeiro ou
transnacional. Não pode dizer-se, em rigor, que uma lei estrangeira viola a ordem pública
internacional portuguesa; pode é dizer-se que não é aceite a solução a que esta lei conduza num caso
concreto.

Há um setor da doutrina que encara as normas de aplicação imediata ou necessária como normas
de ordem pública internacional, manifestando assim uma abertura à conceção apriorística de ordem
pública internacional:

 BAPTISTA MACHADO entende que as leis de Direito público estão fora do âmbito do
problema específico da ordem pública internacional, já que o primeiro pressuposto do recurso
à ordem pública internacional é que se esteja em presença de um caso de competência normal
da lei estrangeira.
 LIMA PINHEIRO não concorda com este entendimento, pois a ordem pública internacional
portuguesa pode veicular quaisquer princípios e normas fundamentais que encontrem
aplicação a situações transnacionais.

Como se referiu, trata-se aqui de normas materiais da OJ do foro que reclamam aplicação a uma
situação que, em princípio, está submetida a um Direito estrangeiro por força do sistema de Direito
de Conflitos. A inclusão ou exclusão destas normas do âmbito da ordem pública internacional pode
relacionar-se com a delimitação dos valores jurídico-materiais em jogo: para alguns autores, a
ordem pública internacional só teria que ver com valores ético-jurídicos e específicos do Direito
privado; as normas de aplicação necessária prosseguiriam fins de polícia economia e social e
interesses políticos em sentido estrito, enfim, finalidades de natureza pública.

Mas nem a cláusula de ordem pública internacional se tem acantonado aos valores ético-jurídicos,
nem a realidade das normas suscetíveis de aplicação necessária se circunscreve a fins económicos,
sociais e políticos.

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

A ordem pública internacional é apta para veicular todos os princípios e normas fundamentais da OJ
do foro que tenham aplicação a situações transnacionais. Não pode fazer-se uma limitação a
princípios ético-jurídicos. Também pode fazer-se uma limitação a princípios ético-jurídicos.
Também pode ser veiculados, como vem sendo reconhecido pela jurisprudência, princípios e normas
que prosseguem finalidades económico-sociais, políticas ou outras.

Na opinião de LIMA PINHEIRO, porém, é justificada a tendência para separar a ordem pública
internacional da temática das normas suscetíveis de aplicação necessária:

o A norma de aplicação necessária sobrepõe-se ao sistema de Direito de Conflitos por força de


uma norma de conflitos unilateral que prevalece, como norma especial, sobre a norma de
conflitos geral ou de uma solução conflitual especial criada para integrar uma lacuna do
sistema de Direito de Conflitos. Pode não ser uma norma fundamental no sentido de
desencadear a intervenção da ordem pública internacional em razão do seu conteúdo de
justiça material.
o Por conseguinte, não é correto considerar as normas suscetíveis de aplicação necessária, na
sua generalidade, como expressão de uma ordem pública internacional apriorística.

Vem a propósito referir as chamadas cláusulas especiais de ordem pública. Estas cláusulas especiais
constituem, segundo LP, normas autolimitadas que por força de normas de conflitos unilaterais ad
hoc, são aplicáveis qualquer que seja o conteúdo da lei estrangeira que, na ausência delas, seria
competente.

Mas, de acordo com o anteriormente exposto, só faz sentido qualificar como cláusula especial de
ordem pública a norma autolimitada que possa ser vista como concretização legislativa ou
jurisprudencial da cláusula geral de ordem pública internacional.

⇒ Outras características da ordem pública internacional:

i) Uma característica fundamental da cláusula de ordem pública internacional consiste na


sua excecionalidade: esta cláusula só intervém como limite à aplicação do Direito
estrangeiro ou transnacional quando a solução dada ao caso for não apenas divergente da
que resultaria da aplicação do Direito português, mas também manifestamente
intolerável.

Em rigor, a natureza manifestamente intolerável da solução também não se confunde com o grau de
divergência entre a OJ interna e o Direito estrangeiro ou transnacional. Com efeito, a solução dada ao
caso pelo Direito estrangeiro ou transnacional pode ser incompatível com a OJ do foro mesmo que
esta contenha disposições semelhantes, quando estas disposições tutelam interesses públicos
nacionais ou interesses privados locais e entram em contradição no caso concreto com as normas
estrangeiras ou transnacionais.

Enquanto limite ao reconhecimento de uma decisão estrangeira, a cláusula de ordem pública


internacional só intervém quando o reconhecimento for manifestamente incompatível com normas
e princípios fundamentais da OJ do foro.

A distinção entre ordem pública internacional e ordem pública interna, ou de Direito material e o
caráter excecional da primeira são, aliás, impostos pela grande maioria das Convenções de unificação
do Direito de Conflitos vigentes na OJ portuguesa e pelos Regulamentos europeus e têm sido

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

reiteradamente afirmados pela jurisprudência dos tribunais portugueses relativa ao reconhecimento


de decisões judiciais estrangeiras.

Nas OJ em que a Constituição constitui a sede dos valores básicos da comunidade, como sucede com
a CRP, o conteúdo da ordem pública internacional tende a ser determinado à luz dos princípios
constitucionais.

Excecionalmente, poderão existir princípios fundamentais estruturantes da OJ portuguesa que não


tenham dignidade constitucional, mas terão de resultar de uma sedimentação e consolidação em
setores importantes da OJ, mediante uma consagração legislativa ou consuetudinária, facultada pela
vontade coletiva manifestada pelos órgãos do poder político com competência legislativa ou pelo
consenso social. Meras soluções particulares, que resultam de opções conjunturais ou pontuais do
legislador em matéria de Direito privado, não se revestem destas características; o mesmo se diga, em
princípio, de soluções excecionais nesta matéria.

Por maioria de razão, meras construções doutrinais ou jurisprudenciais, de sentido e alcance


controversos, nunca poderão constituir conceções fundamentais de justiça relevantes para a ordem
pública internacional.

Todo o órgão público que aplique esta cláusula tem de fundamentar claramente a sua decisão em
conformidade com estas diretrizes.

ii) Uma outra característica da cláusula de ordem pública internacional é o seu caráter
evolutivo: o conteúdo da ordem pública internacional acompanha a evolução da OJ,
designadamente dos seus valores fundamentais que se encontram consagrados
constitucionalmente.

O tribunal tem de atender ao conteúdo atual da ordem pública internacional, no momento em que
aprecia a questão.

iii) A cláusula de ordem pública internacional caracteriza-se ainda pela sua relatividade, i.e.,
pela sua atuação depender da intensidade dos laços que a situação apresenta com o Estado
do foro. A importância dos diversos elementos de conexão que a situação possa apresentar
com o Estado do foro depende, em certa medida, da matéria em causa: em matéria de
estatuto pessoal avulta a nacionalidade e a residência habitual dos interessados; noutras
matérias podem ser importantes outros laços, tais como a localização de bens com especial
valor económico, histórico ou cultural.

Em muitos casos, a situação tem laços significativos com o Estado do foro, fundando-se nestes laços
a competência internacional dos tribunais deste Estado. Mas isto pode não se verificar,
designadamente quando a competência internacional resultar de um pacto de jurisdição.

Um determinado resultado pode ser manifestamente intolerável quando a ligação com o Estado do
foro for mais intensa e já não o ser quando a ligação for menos intensa. Em todo o caso, a cláusula de
ordem pública internacional deve intervir mesmo na falta de laços significativos quando estejam
em causa direitos fundamentais de especial importância.

A este respeito, também parece de atender à ligação que a situação apresente com outro Estado em
que vigorem normas ou princípios fundamentais convergentes como aqueles que integram a ordem
pública internacional do Estado do foro: na falta de uma conexão suficiente com o Estado do foro, a

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Direito Internacional Privado Leonor Branco Jaleco

atuação de uma norma ou princípio fundamental deste Estado pode ser justificada pela
intensidade da ligação existente com outro Estado em que vigore uma norma ou princípio de
ordem pública internacional convergente.

Já oferece certa margem para dúvida a “variabilidade” da ordem pública internacional conforme se
trate da constituição de uma situação ou do reconhecimento de efeitos de situações constituídas no
estrangeiro:

 A doutrina francesa (BATIFFOL), seguida por muitos autores portugueses, como ISABEL DE
MAGALHÃES COLLAÇO, BAPTISTA MACHADO ou MARQUES DOS SANTOS, fala de
um efeito atenuado da ordem pública internacional quanto ao reconhecimento de situações
constituídas no estrangeiro. Por exemplo, enquanto a celebração de um segundo casamento
ao abrigo de um Direito que admite a poligamia violaria a ordem pública internacional, esta
cláusula já não se oporia à pretensão de alimentos deduzida por uma das mulheres quando
o casamento poligâmico tenha sido celebrado no estrangeiro.

Mas uma certa flexibilização da ordem pública internacional em relação aos efeitos não significa que
a própria constituição da situação no estrangeiro não possa ser considerada contrária à ordem pública
internacional. Assim, o n.º 2 do art. 1651º CC condiciona o registo do casamento celebrado por
estrangeiros no estrangeiro à sua conformidade com os princípios fundamentais da ordem pública
internacional do Estado português. Por conseguinte, a ordem pública internacional pode opor-se ao
reconhecimento de um casamento celebrado no estrangeiro. Mesmo nesse caso, porém, a ordem
pública internacional não obsta a que o mesmo casamento seja indiretamente reconhecido para efeitos
de obrigação alimentar ou de direitos sucessórios. Ou seja, o que a doutrina do efeito atenuado
defende é: eu não reconheço o casamento poligâmico, mas vou reconhecer apenas alguns dos seus
efeitos.

Em última análise, o que releva não é tanto a distinção entre constituição de uma situação e
reconhecimento de uma situação, mas a intensidade da ligação que a situação apresenta com o
Estado do foro em cada momento. Em muitos casos que se relacionam com o dito efeito atenuado da
ordem pública internacional verifica-se que no momento da constituição a situação não tinha laços
significativos com o Estado do foro; já no momento em que se coloca o problema da produção de
certos efeitos, estes laços significativos existem mas, então, já não está em causa a título principal a
válida constituição da situação (ex: do casamento), mas efeitos que pressupõem, a título prejudicial,
essa válida constituição (ex: o direito a alimentos ou os direitos sucessórios) e que configuram outras
situações que são compatíveis com os princípios fundamentais da OJ do foro.

Esta teoria, contudo, cria um critério geral e abstrato, o que é contrário à conceção aposteriorística da
ordem pública internacional. No fundo, a teoria do efeito atenuado mais não é do que uma
concretização da ideia da relatividade.

⇒ Consequências da intervenção da reserva de ordem pública internacional:

A ação preclusiva da cláusula de ordem jurídica internacional incide sobre os efeitos jurídicos
desencadeados pelo Direito estrangeiro ou transnacional ou por uma decisão estrangeira.

As consequências da intervenção da cláusula são o afastamento do resultado a que conduz a


aplicação do Direito estrangeiro ou transnacional ou o não reconhecimento de uma decisão
estrangeira.

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Quando a cláusula atua como um limite à aplicação do Direito estrangeiro ou transnacional vale um
princípio do mínimo dano à lei estrangeira ou ao Direito transnacional.

o Se do afastamento da solução contrária à ordem pública internacional não resultar uma


lacuna, continua a aplicar-se o Direito estrangeiro ou transnacional. É o que se verifica quando
a solução contrária à ordem pública internacional resulta da atuação de uma norma especial.
Neste caso passa-se à aplicação do regime geral contido no Direito estrangeiro ou
transnacional.
o Se surgir uma lacuna, deve procurar obter-se a solução nos quadros do Direito estrangeiro
competente ou do Direito Transnacional, mediante o recurso à analogia ou aos princípios
jurídicos.

Estes ajustamentos da solução desencadeada pelo Direito estrangeiro ou transnacional às exigências


da nossa ordem pública internacional configuram casos de adaptação. Só em último caso,
subsidiariamente, é que se recorre às regras de Direito material do foro (art. 22º/2 CC):

 O recurso ao Direito material do foro é necessário, designadamente, quando a cláusula de


ordem pública internacional intervém por falta no Direito estrangeiro ou transnacional de
norma que desencadeie uma obrigação de conduta, por exemplo, uma obrigação de
alimentos.

De iure condendo, LIMA PINHEIRO entende que na impossibilidade de resolver o caso nos quadros
do Direito estrangeiro competente se deveria recorrer ao Direito subsidiariamente competente e só
na falta deste, ou se na sua aplicação também fosse incompatível com a ordem pública internacional,
se passaria ao Direito material do foro. Com efeito, a justiça da conexão postula que se aplique à
situação transnacional, tanto quanto possível, o Direito que apresenta a ligação mais significativa
com a situação.

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