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DIREITO INTERNACIONAL

PRIVADO
APONTAMENTOS TEÓRICOS
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Os seguintes apontamentos teóricos foram disponibilizados pelas Estudantes


Andreia Vidal, Margarida Morais e Rita Diogo, no âmbito da disciplina de Direito
Internacional Privado e das aulas lecionadas pela Professora Doutora Helena Mota.
Enquanto material auxiliar ao estudo, estes apontamentos não dispensam a
consulta da bibliografia obrigatória, indicada no SIGARRA.

Qualquer dúvida, sugestão ou correção poderá ser submetida em:


cc4fdup2122@gmail.com

Bons estudos!

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

24 de setembro de 2021

1. INTRODUÇÃO:
1.1. Noção e Objeto do DIP:

Importa começar por dizer o que é o DIP, determinar o seu objeto e quais as suas
principais características. Genericamente, podemos dizer que o DIP regula as relações
jurídicas privadas internacionais. Porém, com esta formulação permanecem as
seguintes questões: mas como? O que é regular? E o que são relações privadas
internacionais?

O professor Ferrer Correia apresenta, desde logo, uma noção:

“o Direito Internacional Privado é o ramo da ciência jurídica


onde se definem os princípios, se formulam os critérios, se
estabelecem as normas a que deve obedecer a pesquisa de soluções
adequadas para os problemas emergentes das relações privadas de
caráter internacional”.

A ideia é que o DIP se propõe a oferecer soluções jurídicas que, como iremos
ver, não serão necessariamente soluções materiais. Não consiste, porém, num mero
conjunto de normas, mas também de princípios e de critérios para oferecer uma solução
jurídica aos problemas que as relações privadas internacionais oferecem de forma
especial.

Mas o que são relações internacionais privadas?

Estamos a falar, em primeiro lugar, de relações que se estabelecem com relevo


para o Direito, ou seja, de relações jurídicas, mas do foro privado (o Estado não
intervém na sua veste pública). Dito de outro modo, falamos de relações que se
estabelecem entre particulares e que pertencem ao mundo do direito privado, pelo que
não estamos somente perante relações jurídicas civilísticas, mas privatísticas, o que
significa que teremos relações que cabem no âmbito do direito do trabalho, do direito
comercial, etc… Neste sentido, não estamos, no DIP, no âmbito da aplicação no espaço

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de normais penais, ainda que se trate de relações jurídicas extra territoriais, ou seja,
podem existir questões internacionais não tratadas pelo Direito Internacional Privado.

Temos, portanto, um ramo que irá regular relações jurídicas privadas naquele
sentido amplo. Ora, a especificidade deste ramo reside na internacionalidade, na
medida em que o seu objeto será aquelas relações jurídicas plurilocalizadas, isto é,
aquelas relações cujos seus elementos constituintes contactam com mais do que um
ordenamento jurídico. Não se trata, portanto, de relações internas.

⎯ Exemplo: tenho uma questão de divórcio regulada pelo Direito da Família


se o casamento foi realizado em Portugal, os nubentes são portugueses, os
factos ocorreram em Portugal. No entanto, se estes cônjuges tiverem
nacionalidades diferentes, residirem num país diferente do seu país de
origem e se os factos que levaram a tal decisão decorreram em local distinto
daquele em que é feito o pedido de divórcio, então esta questão já será
regulada pelo DIP.
Este contacto com mais do que um ordenamento jurídico não nos pode conduzir
a uma confusão com o problema dos ordenamentos plurilegislativos- trata-se de uma
confusão que às vezes acontece, uma vez que também se trata de um problema de DIP.
Ora, estes ordenamentos plurilegislativos são ordenamentos jurídicos que, no seu seio,
têm diversidade legislativa no âmbito do direito privado, especificamente, no âmbito do
direito civil e que normalmente tem como limites os seus limites geográficos (Portugal é
um ordenamento unitário).

Quando dizemos “ordenamento jurídico estrangeiro” estamos a adotar a


perspetiva nacional, do ponto de vista de um tribunal português em relação a um

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tribunal de outro ordenamento jurídico e, deste modo, estamos a adotar, no fundo, a


perspetiva da lei do foro. Pelo que importa determinar os seguintes conceitos:

🡺 O foro consiste no lugar ou ordenamento jurídico onde se situa o órgão de


aplicação do Direito.
Porquê que falamos em órgão e não em tribunal?
Não dizemos tribunal porque, em rigor, não são apenas os tribunais que
irão aplicar DIP, sendo comum existirem outras autoridades competentes como,
por exemplo, o notário e a Conservatória Civil).
Como é que sabemos que tribunal, notário, conservatória, etc… que
se situa no Porto é o órgão competente para apreciar uma questão jurídica
com contacto com vários ordenamentos jurídicos?
Ora, a determinação do órgão competente é feita, precisamente, de
acordo com regras de competência de DIP, o que, como veremos, convoca dois
problemas: conflito (positivo) de leis e conflito de jurisdições (qual é o
ordenamento jurídico competente para dirimir o litígio?)
🡺 Daquela noção de foro chegamos à “lei do foro” que, por sua vez, consiste na lei
do ordenamento jurídico em que se situa o órgão de aplicação do direito
competente.
🡺 É de notar que o órgão competente terá sempre o seguinte dilema: aplico a
minha própria lei ou aplico a lei que para si é estrangeira?
Um dilema que nos remete para a noção de “lex causae” e que consiste
na lei aplicanda, ou seja, na lei que se vai aplicar à relação jurídica e que pode
não ser a lei do foro, precisamente, porque o órgão competente acaba por
descobrir que àquela relação jurídica não se aplica a lei do foro, mas outra lei
que corresponde à lex causae.

Daniel Josephus Jita- distinguiu entre 3 tipos de relações, sendo que apenas 2 delas
interessam a DIP e que apenas 1 delas suscita um conflito de leis:

1. Relação Interna: relação que tem apenas contacto, nos seus elementos
constitutivos, com o ordenamento jurídico do foro;

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2. Relações Relativamente Internacionais: Relações jurídicas que estão em


contacto com um único ordenamento jurídico, mas que esse ordenamento é
estrangeiro em relação ao foro e que lhe vem a suscitar um problema de mero
reconhecimento;
a. Exemplo: um cidadão galego e um cidadão catalã casam em Madrid e
residem em Barcelona. Contudo, por qualquer circunstância, querem ver
reconhecida sua relação matrimonial em Portugal.
3. Relações absolutamente internacionais: correspondem ao objeto típico do
DIP, na medida em que dizem respeito a relações privadas cujos elementos
constitutivos se encontram em contacto com mais do que um ordenamento
jurídico.
Nota: Vamos falar sempre dos problemas que as relações absolutamente
internacionais convocam, que são os problemas da escolha de lei. Tudo
passa por saber que lei vai oferecer a solução jurídica adequada à relação
privada internacional, o que não significa que não haja uma via mais
direta.

A via material é uma via muito limitada para resolver os conflitos dentro do DIP,
pelo que a via regra é a via conflitual- Qual é a lei que se aplica? A função do DIP
passa muito por dizer qual a lei que se vai aplicar. Em regra, a solução jurídica que o
DIP oferece é a determinação da lei aplicável ou a seleção de lei para dirimir o litígio (é
mais correto dizer “seleção” em vez de “escolha”).

Porque é que este ramo específico de direito existe?

As relações jurídicas internacionais são cada vez mais importantes: temos


movimentos migratórios, fluxos de bens e serviços, fluxos de capitais, transportes que
realizam viagens entre vários Estados, etc... Na verdade, com o fenómeno da
globalização, com o desenvolvimento do turismo, da internet, etc… verifica-se que, do
ponto de vista jurídico, há uma tendência de cada Estado não ficar fechado nas suas
fronteiras, pertencendo a espaços económicos e jurídicos mais alargados (UE,

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MERCOSUL, ONU, OCDE…). Toda esta realidade testemunha a importância das


relações privadas internacionais.

Se, numa situação privada internacional, o DIP diz qual a lei aplicável, nada
impede que a lei aplicável seja estrangeira e o tribunal do foro vê-se obrigado a aplicar
lei que não é a lei do foro. Esta inevitabilidade de aplicar direito estrangeiro explica-se
pelo facto de se tratar da única via e solução que o DIP oferece. Moura Ramos diz-nos
que: “O direito não tem vocação de universalidade”, uma ideia que pretende
expressar que o Direito tenta e é construído para dirimir litígios internos, pelo que, por
vezes, quando a situação tem pontos de contacto com várias OJ, a lei a aplicar mais
adequada pode não ser a do foro.

No DIP verifica-se a aplicação dos seguintes princípios:

1. Princípio da não retroatividade: dirige-se ao problema de aplicação da lei no


tempo.
2. Princípio da não transatividade: é simétrico do princípio anterior, só que
dirige-se ao problema da aplicação no espaço.
São princípios cardeais para o DIP pois prendem-se com dois aspetos muito
importantes para o Direito: aplicação no tempo e aplicação no espaço. Na
irretroatividade das normas jurídicas, tudo passa por não aplicar uma lei que não seja
contemporânea dos atos. Já o princípio da não transatividade implica que não seja
aplicada uma lei que não tenha conexão espacial com os atos. Isto explica-se porque as
normas jurídicas são, por regra, normas de conduta, só podendo aplicar-se quando os
factos sejam coordenados por estes “guias” temporais e espaciais.

30 de setembro de 2021

Como vimos anteriormente, o objetivo do DIP é encontrar uma solução


jurídico-material para o caso ou encontrar a lei aplicável ao caso concreto. Pode haver,
claro, conflitos de jurisdições que, em regra, são resolvidos com recurso às regras de
competência internacional. Em sentido amplo, o DIP preocupa-se com uma tríade de
problemas. Em sentido estrito, o DIP preocupa-se com a determinação da lei aplicável.
A nossa preocupação vai-se centrar no conflito de leis.

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Através da enunciação dos princípios da irretroatividade e da não


transatividade (respetivamente), já adiantamos que não se pode aplicar uma lei que
não esteja em vigor no tempo da ocorrência do facto, nem se pode aplicar uma lei
que não tenha conexão espacial com o facto. O princípio da não transatividade não
nos diz, contudo, qual das leis é que devemos selecionar quando várias têm pontos de
conexão espacial com o facto. Ora, essa tarefa cabe às normas de DIP.

O DIP está em constante atualização e a europeização do DIP e dos conflitos de


leis é uma realidade dos últimos anos, justificando uma sucessiva alteração legislativa
no que toca a estas regras. O CC e as normas de conflitos nele previstas durante anos
regularam as situações e RJ privadas internacionais. Contudo, depois do Tratado de
Amesterdão, grande parte das regras de conflito do CC foram substituídas por regras
europeias e uniformizaram-se, nos Estados-Membros, as regras de conflitos
(substituindo as regras de DIP próprias de cada sistema jurídico). Esta iniciativa da U.E.
não alterou o método conflitual. Este modelo continua a ser metodológico. Portanto, a
via material não foi assumida como via principal para a resolução destas situações, mas
isto não quer dizer que ela não exista.

A resolução pela via material é viável?

Uma via material significa que as legislações oferecem soluções jus-materiais


para a resolução de uma situação. Considerando um contrato internacional: por ser um
contrato internacional, é uma realidade diferente da de um contrato puramente interno.
Pegando um pouco nessas particularidades de um contrato internacional, este terá uma
disciplina contratual criada propositadamente para esse contrato internacional. E esta
solução não passa pelo método dos conflitos- não se aponta a lei a aplicar para depois
encontrarmos a NJ aplicável dentro dessa lei. Esta é uma solução jus-material.
Vejamos os seguintes exemplos:

* No direito romano, o próprio ius gentium era pensado para o próprio direito
internacional. Todas as RJ que se estabeleciam no âmbito civilística, eram
regulados pelo ius gentium, até as internacionais.

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* Existem determinadas regras que só se aplicam se estiverem em causa uma


situação de DIP, sendo exemplo disso o Código de Propriedade Industrial.
* A Convenção de Genebra sobre letras, livranças e cheque vale tanto para as
relações internas como para as relações internacionais.
* A Convenção de Viena, por sua vez, vale só para relações internacionais. Só no
ano passado é que Portugal ratificou a CV de Viena.
O contrato de compra e venda de mercadorias é o contrato mais comum
no âmbito das relações jurídicas internacionais, pelo que importa
debruçarmo-nos um pouco sobre a Convenção de Viena sobre contratos de
compra e venda internacional de mercadorias. Há que atender a algumas
especificidades no âmbito da aplicação da convenção:
1. É direito convencional;
2. É direito substantivo, portanto não contém regras de conflitos, não
tem como escopo escolher a lei aplicável, é um disciplina normativa
ex novum;
3. É direito uniforme porque é idêntico para todos os estados que a
ratificaram;
4. É direito especial para relações internacionais.
Ou seja, ao contrário da anterior, esta vale apenas para os contratos de
compra e venda internacionais e não para os internos. E não são todos os
contratos de compra e venda internacional: têm de ser contratos entre
profissionais (B2B). Além disso, é ainda necessário que o estabelecimento das
partes se situe em estados diferentes, estados esses que devem ambos ter
ratificado a convenção. Assim sendo, temos que a CV de Viena não se aplica a
todos os CV de mercadorias:

1. Têm de ser contratos entre profissionais (business to business);


2. Partes que tenham estabelecimento em países diferentes, pelo que se
estiverem no mesmo país, não se aplica a Convenção Viena;
3. Para que haja aplicação imediata da Convenção, ambos os Estados
têm de ter ratificado a Convenção.

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O que acontece se não se puder aplicar a Convenção de Viena?


Se não se puder aplicar a convenção de Viena, tem de se seguir pela via
conflitual. No caso de Portugal, aplica-se o Regulamento Roma I e verifica-se qual é a
lei aplicável. Ou seja, um juiz português que não possa aplicar a Convenção de Viena,
deve aplicar o Regulamento Roma I. No entanto, na hipótese de a lei aplicável ser a lei
do foro, isto é, a lei portuguesa, o juiz já pode aplicar a convenção de Viena e o texto
porque Portugal é o estado contratante e absorveu a disciplina normativa da convenção
de Viena.

1 de outubro de 2021

Isto para Portugal é muito importante porque basta que surja um litígio perante
um tribunal português que é competente e esse tribunal poderá aplicar a Convenção de
Viena para este tipo de contratos:
(1) Imediatamente se ambas as partes contratantes tiverem estabelecimentos
em estados aderentes; ou
(2) Através da mediação da regra de conflitos, se essa regra indicar como lei
aplicável a lei de um estado aderente, como, por exemplo, a lei
portuguesa.

Depois, estávamos a ver, já no final da aula de ontem, uma outra possibilidade


que é muito diferente destas que vimos até agora que é a própria existência de regras
materiais que coexistem com o próprio sistema conflitual, ou seja, regras materiais
que existem ao lado ou no seio de regras de conflitos e, portanto, que vão, às vezes, até
aplicar-se mesmo que a lei competente não seja a lei portuguesa (isto falando das regras
materiais de DIP do foro português).
Como já dissemos, em regra, se é evidente que o estado do foro pode ter de
aplicar direito estrangeiro porque a regra de conflitos determina como aplicável uma lei
estrangeira. Quanto ao DIP, cada Estado aplica sempre o seu DIP, ou seja, as suas regras
de conflito mesmo que as mesmas tenham fonte internacional. Dito de outro modo, o
foro português, por exemplo, perante uma relação privada internacional, dependendo da
questão, pode ter de aplicar regras de conflito do CC ou regras de conflitos oriundas,

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por exemplo, de um regulamento europeu, mas não deixa de ser o seu DIP. Só aplicará
DIP estrangeiro quando se utiliza o mecanismo do reenvio (cada vez mais excecional).
Ora, aplicando o seu DIP, vai determinar que é aplicável uma lei que pode ser, de
facto uma lei estrangeira. No entanto, se nas regras de DIP existir uma disposição
material, vai aplica-se sempre essa disposição mesmo que a lei aplicável seja outra. Isto
pode causar confusão com uma outra abordagem de que iremos falar que são as normas
de aplicação imediata, porém não se confunde porque do que estamos a falar agora são
de normas materiais que estão ao lado, no seio, de regras de conflitos.
🡺 Um exemplo de uma norma material de DIP português é o artigo 54º nº2
CC:
ARTIGO 54º
(Modificações do regime de bens)
1. Aos cônjuges é permitido modificar o regime de bens, legal ou
convencional, se a tal forem autorizados pela lei competente nos termos
do artigo 52.º
2. A nova convenção em caso nenhum terá efeito retroativo em prejuízo
de terceiro.

Para nós compreendermos esta norma temos de explicar um


pouco a lógica do próprio artigo 54º CC e como é que ele funciona.
Desde logo, quanto ao seu âmbito material: este artigo refere-se a uma
questão jurídica muito particular- tem a ver com o Direito da Família,
mais concretamente, com os regimes de bens. E, dentro deste tema,
relaciona-se, muito concretamente, com a questão de saber se os
cônjuges, uma vez casados, podem alterar o seu regime de bens.
o Imaginemos que os cônjuges não fizeram qualquer convenção
antenupcial e, portanto, casaram no chamado regime supletivo-
“comunhão de adquiridos”. Vamos supor, agora, que, no
decurso do seu casamento, os cônjuges se apercebem que esse
regime não se adequa à sua situação matrimonial patrimonial e
querem passar para um regime de comunhão geral.
Será que o podem fazer?

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Se a questão fosse puramente interna (isto é, se os


cônjuges fossem portugueses, residissem em Portugal e tivessem
todos os bens situados em Portugal), resolver-se-ia pelo direito
material português, pelo Direito da Família, nomeadamente,
através do artigo 1714º CC e que tendencialmente não permite
essa alteração.
Mas nem todos os ordenamentos jurídicos têm essa
solução- aliás, a maioria, com mais ou menos restrições, permite
a modificação. Ora, se a relação interna não pode escapar à
aplicação do direito material português, a dúvida persiste se a
relação for internacional (porque eles têm diferente nacionalidade
ou residem num país estrangeiro ou têm bens situados num país
estrangeiro) e, neste caso, já se convoca o problema do DIP-
Qual é a lei aplicável a essa questão em concreto?
É que se for uma lei estrangeira, eventualmente essa lei irá
permitir aquilo que a lei portuguesa não permite. E, portanto, esse
problema é resolvido conflitualmente pelo artigo 54º nº1 CC:
“Aos cônjuges é permitido modificar o regime de bens, legal
ou convencional, se a tal forem autorizados pela lei
competente nos termos do artigo 52.º”.
Este artigo é, deste modo, remissivo- não diz qual é a lei,
antes diz-nos que esse problema é decidido pelo artigo 52º CC
que, por sua vez, nos dirá:
▪ que é aplicável a lei nacional comum dos cônjuges;
▪ se eles não tiverem a mesma nacionalidade, será aplicável
a lei da sua residência habitual comum;
▪ e se eles também residirem em estados diferentes, apesar
de casados, a lei com a qual a vida familiar se ache mais
estreitamente conexa.
E, portanto, até aqui nós temos uma resolução conflitual
típica- identificação da lei aplicável.

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Vamos supor que podem modificar o regime de bens e


que podem, até, ao abrigo dessa lei, determinar que essa
modificação tem efeitos retroativos ao momento da celebração do
casamento. Note-se que isto pode prejudicar terceiros que
estabeleceram relações patrimoniais com os cônjuges.
Precisamente para obviar a este inconveniente, mesmo que
a lei estrangeira o permita, diz-nos o artigo 54º nº2 CC que a
nova convenção de modificação, em caso nenhum terá efeito
retroativo em prejuízo de terceiros, ou seja, permite-se que tenha
efeitos retroativos, mas isso não pode afetar terceiros.

Neste sentido, esta regra não é uma indicação de uma lei


aplicável. Pelo contrário, pode até contrariar o sentido da lei aplicável,
isto é, a lei estrangeira permitia ignorar a posição dos terceiros e a nossa
lei vem dizer que esses direitos têm de ser acautelados em caso de
eficácia retroativa dessa modificação. Há aqui uma disposição material,
uma vez que é um comando direto. E repare-se: é uma norma material
que está inserida numa regra de conflitos e que até pode, no limite,
contrariar o sentido da regra de conflitos ao contrariar as disposições da
lei que é considerada aplicável por remissão do nº1 para o artigo 52º CC.

Não é forçoso que haja esta contrariedade. Aliás, podemos até ter uma situação
em que seria aplicável de qualquer forma a lei portuguesa, nos termos da regra de
conflitos, e, no entanto, existir também uma norma material, algo que acontece num
outro exemplo:
🡺 Vejamos, agora, o que resulta do artigo 51º CC:
Artigo 51.º
(Desvios)
1. O casamento de dois estrangeiros em Portugal pode ser celebrado
segundo a forma prescrita na lei nacional de qualquer dos contraentes,
perante os respetivos agentes diplomáticos ou consulares, desde que

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igual competência seja reconhecida por essa lei aos agentes


diplomáticos e consulares portugueses.
2. O casamento no estrangeiro de dois portugueses ou de português e
estrangeiro pode ser celebrado perante o agente diplomático ou consular
do Estado Português ou perante os ministros do culto católico.
3. Em qualquer dos casos previstos no número anterior, o casamento deve
ser precedido do processo respetivo, organizado pela entidade
competente, exceto se for dispensado nos termos do artigo 1599.º
4. O casamento no estrangeiro de dois portugueses ou de português e
estrangeiro, em harmonia com as leis canónicas, é havido como
casamento católico, seja qual for a forma legal da celebração do ato
segundo a lei local, e à sua transcrição servirá de base o assento do
registo paroquial.

Este artigo refere-se a uma outra questão, ainda que ainda no seio
do Direito Matrimonial. Neste caso, refere-se à forma do casamento.
Como iremos ver, o casamento rege-se por regras substanciais, mas
também por regras formais. No direito português, português, uma
questão que é formal, não tendo a ver com o próprio ato da celebração,
mas com um processo anterior ao casamento que é obrigatório- o
processo preliminar do casamento-, no seio do qual se averigua se os
cônjuges têm capacidade matrimonial (isto porque se trata de uma
capacidade específica e porque podem existir impedimentos).
Ora, esta averiguação prévia, que é uma característica muito
própria no contrato de casamento, é uma questão de forma. Assim sendo,
numa relação matrimonial internacional, é necessário saber qual é a lei
aplicável à forma do casamento. Dito de outro modo, o casamento, do
ponto de vista formal, tem de estar de acordo com uma determinada lei.
Mas qual lei?
Essa questão está resolvida, em regra, no artigo 50º CC em que se
diz que a forma do casamento é regulada pela lei do Estado em que o ato
é celebrado (é uma regra tendência que em questões formais se aplique a

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lei do lugar em que o ato é celebrado). Mas depois comporta alguns


“desvios” previstos, precisamente, no artigo 51º CC.
o Ora, o nº2, se o lermos, diz-nos que: “O casamento no
estrangeiro de dois portugueses ou de português e estrangeiro
pode ser celebrado perante o agente diplomático ou consular
do Estado Português ou perante os ministros do culto
católico”
Porquê que é um desvio?
É um desvio porque, se não existisse este desvio, os
portugueses que celebrassem casamento no estrangeiro tinham de
o fazer, de um ponto de vista formal, de acordo com a lei em
vigor nesse país e aqui o que se permite é que, apesar de estarem
no estrangeiro, se possam dirigir, por exemplo, ao consulado e
celebrar o casamento segundo a forma prescrita na lei portuguesa.
É, portanto, um desvio em direção à aplicação da lei
portuguesa.
Até aqui estamos a resolver, no fundo, um problema
conflitual: estamos a dizer que a forma é regulada pela lei do
lugar, mas que se eles forem portugueses podem celebrar o
casamento segundo a forma prescrita na lei portuguesa se o
fizerem num consulado português- regra de conflitos.
o Mas diz-nos o nº3: “Em qualquer dos casos previstos no
número anterior, o casamento deve ser precedido do processo
respetivo, organizado pela entidade competente, exceto se for
dispensado nos termos do artigo 1599.º”.
O que vem dizer é que a forma é, de facto, a forma
portuguesa se o casamento é celebrado, por exemplo, no
consulado, mas que o processo preliminar- aquele processo de
averiguação das capacidades- deve ser sempre organizado antes
da celebração do casamento e pela entidade competente.
No fundo, esta norma material que obriga ao cumprimento
prévio deste processo preliminar de casamento não é nenhuma

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novidade, na medida em que não vai contra a lei portuguesa, mas


é um reafirmar que esse processo tem de ser anterior, tal como
prevê a lei portuguesa.

Acabamos de ver, então, dois exemplos de como as regras de conflito podem


conter no seu seio verdadeiras disposições materiais.

Muito próximas destas normas materiais de DIP, temos as chamadas normas de


aplicação imediata/ normas de aplicação necessária e imediata:
Não estão no seio de regras de conflitos (são normais materiais de cada
ordenamento jurídico e que não visam, de forma nenhuma, uma relação internacional),
mas estão dotadas de certas características que, no fundo, se vão impor às relações
privadas internacionais quaisquer que seja a lei aplicável, derrogando, até, o sistema
conflitual.

Depois encontramos também, às vezes, algumas regras materiais de DIP mas


com uma função coadjuvante e de auxílio ao próprio funcionamento das regras de
conflitos:
🡺 Vejamos a título de exemplo o disposto no artigo 26º CC que consiste
numa regra de conflitos que fala sobre a questão do termo e do início da
personalidade jurídica. Diz-nos o nº1 que o início e termo da
personalidade jurídica são fixados igualmente pela lei pessoal de cada
indivíduo.
Há aqui a utilização de um conceito que ainda não estudamos-
“lei pessoal”: Quando falamos de lei pessoal, falamos de uma lei que
tem no seu âmbito material de aplicação uma série de questões que estão
ligadas incindivelmente ao indivíduo (precisamente como o termo e o
início da sua personalidade jurídica, os problemas da capacidade jurídica
e, no fundo, as relações familiares e sucessórias) Todas essas relações
jurídicas privadas internacionais estão submetidas à chamada lei pessoal.
Mas qual é essa lei pessoal?

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Em regra, será a lei nacional, mas pode ser substituída pela lei
da residência habitual. O que significa que as regras para decidir sobre o
início e o termo da personalidade jurídica vão ser fixadas, em princípio,
pela lei nacional de cada indivíduo.
Diz-nos, depois, o nº2 que “Quando certo efeito jurídico
depender da sobrevivência de uma a outra pessoa e estas tiverem leis
pessoais diferentes, se as presunções de sobrevivência dessas leis
forem inconciliáveis, é aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 68.º”.
Ora, este artigo 68º nº2 é, precisamente, uma regra material com
função auxiliar, na medida em que vem ajudar a regra de conflitos numa
determinada situação. Estamos a falar, nomeadamente, dos problemas de
comoriência: quando, por exemplo, para efeitos sucessórios, é necessário,
para a sua produção, que se afirme que uma pessoa sobreviveu a outra
pessoa. Este problema muitas vezes sucede em situações de acidente,
catástrofe, etc… em que há a chamada morte simultânea. Não se
conseguindo determinar a ordem do falecimento, a lei estabelece,
precisamente, a chamada presunção de comoriência, presumindo-se que
faleceram ao mesmo tempo.
Esta é uma solução da lei portuguesa, mas pode não ser idêntica à
solução dada por uma lei estrangeira. Aliás, existem ordenamentos
jurídicos que estabelecem presunções diferentes- presumem que a pessoa
mais velha morreu primeiro, ou que a mulher faleceu primeiro que o
marido, etc…
Assim sendo, numa relação jurídica internacional, podemos ter
aqui uma dificuldade enorme, na medida em que as pessoas que
faleceram podem ter leis pessoais diferentes, isto é, terem nacionalidades
diferentes e essas leis podem ter presunções de morte inconciliáveis.
o Imaginemos que a lei nacional de A diz que se presume a morte
da pessoa mais nova e que a lei nacional do B diz que se presume
que morreu a pessoa mais velha primeiro.
Então aqui é que surge a norma material do direito português para
auxiliar o funcionamento desta regra de conflitos. E, portanto, deixa-se

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de considerar uma lei competente para resolver o problema e oferece-se


uma solução material de presunção de não sobrevivência- artigo 68º nº2.
Atente-se que esta solução que é uma solução do direito
português, sendo que as leis pessoais envolvidas podem ser ambas
estrangeiras, vai ajudar uma impossibilidade de por via conflitual
resolver a questão.
🡺 Outro exemplo: a norma do artigo 32º nº2 CC relativamente às questões
de apatridia e que se refere à lei pessoal do apátrida, dizendo que a lei
pessoal do apátrida é a do seu domicílio legal quando o apátrida for
menor, maior acompanhado ou com domicílio legal determinado por
sentença. Ora, nós temos depois aqui a aplicação do artigo 82º nº2 que se
refere ao domicílio e que vem, no fundo, concretizar o quê que se
entende por domicílio legal.

Mas depois há outro tipo de normas matérias que também auxiliam, ou seja, que
também se integram nesta classificação de normas materiais que auxiliam o
funcionamento das regras de conflito, mas que o fazem com um sentido diferente:
🡺 É o caso, por exemplo, do artigo 45º nº2 CC que diz respeito à
responsabilidade extracontratual (aplica-se às situações respeitantes a
situações anteriores ao Regulamento Roma II).
Genericamente, o artigo 45º diz que será competente a lei do
estado em que ocorreu a principal atividade causadora do prejuízo e,
portanto, à partida será a lei do local em que ocorreu o facto ilícito (se
olharmos apenas para a responsabilidade por factos ilícitos) e não onde
ocorreu o dano- até aqui estamos perante uma regra de conflitos.
Diz-nos, de seguida, o nº2: “Se a lei do Estado onde se
produziu o efeito lesivo considerar responsável o agente, mas não o
considerar como tal a lei do país onde decorreu a sua atividade, é
aplicável a primeira lei, desde que o agente devesse prever a
produção de um dano, naquele país, como consequência do seu ato
ou omissão”. Aqui o legislador não veio oferecer uma verdadeira
alternativa, mas uma outra lei aplicável que seja mais exigente e que de

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

alguma forma tutele de uma forma mais intensa os direitos do lesado.


Dito de outro modo, o que este artigo vem dizer é que pode acontecer
que a lei do país em que ocorreu a principal atividade causadora do
prejuízo- o facto ilícito- não considere o agente responsável. Porém, se a
lei onde ocorreu o efeito lesivo- o dano- o tiver como responsável, a
regra de conflitos opta pela lei do lugar do dano porque vai chegar a um
determinado resultado que é a responsabilização do agente- solução
conflitual, mas que traz consigo alguma preocupação de resultado, de
justiça material.
Mas onde encontramos verdadeiramente a norma material é na
parte final: “(…) desde que o agente devesse prever a produção de
um dano, naquele país, como consequência do seu ato ou omissão”.
Aqui estamos a estabelecer uma condição para a aplicação da lei do dano
em lugar da lei do lugar do facto ilícito- uma condição material. O que é
importante aqui é perceber que esta parte final da norma acaba por
estabelecer uma condição material para a própria solução conflitual e,
aqui, aproxima-se até bastante de exemplos como o artigo 54º nº2 CC,
mas considera-se que o seu sentido é o de auxílio na própria decisão de
aplicar uma lei ou aplicar outra lei.

E, finalmente, para terminarmos esta questão da via material ou substancialista


da regulação privada das relações internacionais, importa ver que também há no
comércio internacional muitas vezes o recurso à chamada Lex mercatoria. Esta consiste
num complexo normativo material que é constituído pelos usos e as práticas do
comércio internacional.
Desde que o Comércio floresceu, os mercadores se habituaram a determinados
usos que a professora considera psicologicamente vinculativos, ainda que não o sejam
legalmente. A Lex mercatoria é muito importante na arbitragem. Os tribunais arbitrais
em matéria comercial usam muitas vezes a Lex mercatoria. Naturalmente que, como em
qualquer situação de arbitragem, é necessário que as partes se vinculem de forma
voluntária a estes usos e práticas do comércio.

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Também em matéria de comércio internacional, importa chamar a atenção para a


existência de um instituto -o Instituto para a Unificação do Direito Privado- que
também tem uma série de princípios bastante usados.
É necessário é que as partes se autovinculem e que submetam, em caso de litígio,
esse mesmo litígio a um tribunal arbitral que pode usar estes complexos normativos
materiais. E, portanto, a Lex mercatoria tem, enquanto complexo normativo material,
importância de facto.

Na maioria dos ordenamentos jurídicos há um corpo de regras de conflitos para


as várias matérias, sendo que no nosso temos o Código Civil, os Regulamentos
europeus sobre DIP e temos algumas convenções a que Portugal também aderiu no
âmbito do Direito Comercial Privado. E, portanto, o objeto do DIP através da resolução
do problema por via conflitual é, fundamentalmente, a regra, sem prejuízo da
importância que aqui e além aquela via material vá assumir.
A verdade é que depois da introdução de estas duas vias- a via conflitual e a via
material- podemos concluir que é através da regra de conflitos que primacialmente o
problema do DIP se revolve.
Podemos afirmar que nessa perspetiva conflitual, o objeto do DIP é sempre o
da averiguação da lei aplicável com vista a determinar a disciplina normativa
jus-material para essa relação privada internacional. Há quem chame a isto uma via
indireta; há quem, como o professor Baptista Machado, que vem dizer que não é
verdade que seja completamente indireta porque no fundo o problema do DIP é um
problema de aplicação das leis no espaço e o que faz o DIP, pela via conflitual, é

19
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

adjudicar competências das várias leis que estão em contacto com a situação para a
resolução de questões jurídicas concretas. Deste modo, na perspetiva de Baptista
Machado, o DIP não soluciona o problema das relações privadas internacionais, antes
previne o conflito de leis.
Dito de outro modo, o que tradicionalmente se diz é que o problema do DIP é o
conflito de leis e que é resolvido pelas regras de conflitos, mas este autor vem chamar a
atenção para o facto de que por essas regras previne-se o conflito de leis, no sentido em
que ao adjudicar a competência para determinadas questões jurídicas em particular está
a evitar o conflito, fazendo uma delimitação do próprio âmbito de aplicação espacial das
regras materiais desses ordenamentos jurídicos em contacto com a situação.

Nós no curso vamos incidir especialmente sobre as normas de conflitos, ainda


que eventualmente falemos de outras questões. Hoje, iremos falar, de uma forma muito
sumária, sobre dois temas que se podem englobar no âmbito do DIP:
1. Direito da Nacionalidade;
2. Direito dos estrangeiros.´

Quanto ao Direito da Nacionalidade:


É evidente a sua importância, especialmente em países como Portugal, Espanha
e Itália, embora tenha vindo a diminuir essa importância à medida em que os
regulamentos europeus vão dando prevalência à residência habitual em detrimento da
nacionalidade. Isto não quer dizer que a lei nacional, como lei aplicável a determinadas
matérias, não constitua, pelo menos subsidiariamente ou até alternativamente, um
elemento de conexão.
Evidentemente que a aplicação da Lei Nacional, pelo menos em matérias que
não estão europeizadas- e muitas delas são matérias do estatuto pessoal-, como solução
conflitual convoca necessariamente o problema da determinação da nacionalidade. O
Direito da Nacionalidade não pertence ao DIP, mas o seu estudo instrumental para a
aplicação das regras de conflitos que refiram a lei nacional pertence-lhe. Assim sendo,
corresponde a um conjunto de normas de direito material público que vão estabelecer as
condições e fixar os pressupostos para se atribuir ou perder uma determinada
nacionalidade.

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Ora, perguntar-se-á: se a regra de conflitos refere a lei nacional, quem é que


vai definir (ou por apelo a que lei de nacionalidade) a que lei da nacionalidade é que
o estado do foro se vai referir?
🡺 Exemplo: é suscitada a questão da capacidade jurídica de A (estrangeiro)
num determinado negócio perante um tribunal português que é
competente por força das regras de atribuição de competência
internacional. O tribunal vai dizer que a capacidade é regulada pela lei
nacional, algo que resulta das regras de conflitos do CC, e ele alega que é
nacional de Estado X.
Como é que eu vou afirmar que ele é nacional do Estado X, para
efeitos de aplicar a lei de X?
Ele alega que é nacional de X e o tribunal, neste caso, vai ter de
confirmar que ele o é efetivamente para efeitos de aplicar a lei de X.
Naturalmente que, se houver dúvidas, será convocada a lei da
nacionalidade de X.

Para a nossa disciplina, não iremos estudar a lei da nacionalidade nem os


critérios de atribuição da nacionalidade. Porém, existem pelo menos duas regras desta
lei para as quais vamos olhar com particular atenção- regras de conflitos de
nacionalidade (artigos 27º e 28º da Lei da Nacionalidade)
À partida não há grandes problemas em afirmar que o A é nacional de X- ele
tem elementos desde logo comprovativos.
Mas e se ele tiver mais do que uma nacionalidade? E se dentro dessas
nacionalidades, uma é de X, outra é de Y e a outra é portuguesa, isso muda alguma
coisa?
🡺 Artigo 27º da lei da nacionalidade: No caso de o sujeito ter duas
nacionalidades e uma ser portuguesa, a nacionalidade que deve
prevalecer é a portuguesa para efeitos de determinar a lei aplicável.
Esta solução acaba por ser conflituosa, pois há outros
ordenamentos jurídicos, que consagram a mesma solução. E não se trata
de uma solução incontestável: tendência nas convenções internacionais
tem sido a de adotar o princípio da nacionalidade efetiva, segundo o

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

qual se deve averiguar qual das nacionalidades em causa é a


nacionalidade efetiva, o que implica um juízo casuístico que pode levar a
que a lei aplicável não seja necessariamente a lei portuguesa.
No fundo, este artigo consagra uma presunção absoluta de
efetividade da nacionalidade portuguesa, presunção que, na opinião de
alguns autores, deveria ser transformada em presunção relativa sempre
que estivesse em causa a eventual aplicação de outras regras de conflitos.
De qualquer forma, na prática, a jurisprudência tem aplicado de forma
relativamente mecânica o artigo 27º e dado prevalência à nacionalidade
portuguesa.
🡺 Artigo 28º da lei da nacionalidade: Quid iuris se o interessado tem mais
do que uma nacionalidade e todas elas estrangeiras e não reside em
nenhum dos territórios dos países de que é nacional? Aplica-se o artigo
28º da lei da nacionalidade, sendo que apenas se aplica a parte final deste
artigo e não se aplica o critério da territorialidade, porque ele não reside
em nenhum dos territórios dos países de que é nacional. O que o artigo
vem estabelecer na parte final é que se deve encontrar o estado com o
qual o indivíduo tenha uma vinculação mais estreita, isto é, procurar
elementos verdadeiramente indicadores da cidadania. Se ele vivesse num
dos países de que é nacional, para efeitos do caso, teria importância a lei
do país onde ele morasse.

Portanto, se o tribunal português for o tribunal do foro- for o tribunal


competente para apreciar do litígio que emerge da questão de saber se o A tem
capacidade jurídica ou não e que vai aplicar a regra de conflitos portuguesa que diz
que a capacidade jurídica é regulada pela lei nacional de A, sendo que A é nacional do
estado X- e se o A tiver mais do que uma nacionalidade, aquele não pode aplicar as
diversas leis simultaneamente, pelo que terá de escolher uma delas.
Bem, essa escolha vai ser feita, não através da lei da nacionalidade de X ou de Y,
mas da nacionalidade portuguesa. E, portanto, o artigo 27º e o artigo 28º LN são regras
que o tribunal português vai aplicar para resolver o problema dos conflitos de
nacionalidades- é sempre o Estado do foro que tem de resolver este problema!

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Quanto ao Direito dos Estrangeiros:


Outro ramo do direito importante para o DIP é, naturalmente, o Direito dos
Estrangeiros- não é uma designação muito feliz, mas no fundo consiste no Direito sobre
a condição jurídica dos estrangeiros como um conjunto de normas que regula a
capacidade de gozo de direitos, quer públicos quer privados, daqueles que não são
nacionais portugueses.
Porquê que este problema é relevante para o DIP?
O professor Ferrer Correia ensina que o problema da lei aplicável a certo
negócio jurídico só se pode colocar depois de averiguarmos que as partes têm o gozo do
direito que tratam de exercer através desse negócio- se eles não podem gozar esse
direito que pretendem exercer através da celebração desse negócio, não vale a pena estar
a discutir qual é a lei aplicável ao negócio jurídico.
Assim sendo, antes de tudo, está o gozo dos direitos, públicos ou privados, dos
estrangeiros para saber se vale a pena discutir a questão conflitual.
Este Direito dos Estrangeiros consiste em preceitos materiais de caráter
territorialista, ou seja, aqui o foro também aplica as suas regras sobre estrangeiros.
Saliente-se que às vezes estes preceitos estabelecem um certo número de incapacidades
de gozo dos estrangeiros relativamente aos nacionais, mas Portugal, nesse aspeto,
sempre foi muito “avançado”.
Ora, aqui o princípio basilar do Direito dos Estrangeiros é aquilo que resulta do
artigo 15º da CRP e que se pode definir como o princípio da equipação (isto com
exceção dos direitos políticos). No âmbito do Direito Privado, o princípio da
equiparação tem de ser lido com o artigo 14º CC. Este princípio tem de implicar a
aplicação prioritária das regras de conflitos, ou seja, o princípio da equiparação tem de
ser visto, de alguma forma, sob reserva da aplicação prioritária das regras de conflitos.
🡺 Assim sendo: se ao estrangeiro não é reconhecido um determinado direito
privado porque, por aplicação da regra de conflitos, é aplicável uma lei
estrangeira que não reconhece esse direito, esse direito não lhe é reconhecido!
Isto não é desmentir o princípio da equiparação, o que não quer dizer que
essa negação do direito ao estrangeiro não possa constituir uma violação da ordem
pública internacional (e esta é um expediente próprio do DIP que está previsto no artigo

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

22º CC e em que se diz que a lei estrangeira aplicável, determinada como tal pela regra
de conflitos, pode casuisticamente não ser aplicada se o seu conteúdo violar princípios
fundamentais do Estado português).

Depois, o artigo 14º nº2 CC estabelece um outro princípio que condiciona esta
questão que é um princípio de reciprocidade. Diz: “Não são, porém, reconhecidos
aos estrangeiros os direitos que, sendo atribuídos pelo respetivo Estado aos seus
nacionais, o não sejam aos portugueses em igualdade de circunstâncias”. Há quem
chame a isto um direito mais do que de reciprocidade, um direito de retaliação, uma vez
que o objetivo é evitar que os portugueses sejam tratados em desigualdade nos países
estrangeiros.

Portanto, se no país estrangeiro da nacionalidade do individuo em causa não


praticam a equiparação nestes termos, ou seja, não reconhecem aos estrangeiros os
mesmos direitos que os seus nacionais só pelo facto de o serem, então esses direitos
também relativamente aos cidadãos nacionais desse país não vão ser reconhecidos cá.

7 de outubro de 2021

Não há o problema do DIP se não houver mobilidade, daí que este ramo vá
ganhando cada vez mais importância à medida que o mundo se torna mais próximo.
Pudemos assistir nestes últimos anos como uma situação de pouca mobilidade
fomentou, do ponto de vista das relações internacionais, o ressurgimento de um tipo de
normas- de aplicação imediata- que são fortemente territoriais. Houve, de facto, uma
atividade legislativa reativa à pandemia que, do ponto de vista das normas de conflito e
do DIP, manifestou um aumento da previsão de normas de aplicação imediata. Assim
sendo, percebemos que, mesmo no mundo contemporâneo que se caracteriza pela
grande mobilidade, uma situação como uma pandemia ao criar imobilismo também tem
reflexos ao nível do DIP.

Podemos dizer que esta questão foi ignorada até ao século XI, ou melhor, até à
última parte da Idade Média, por várias razões que passaremos a estudar:

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

1.2. História e Evolução do DIP:

O DIP que conhecemos hoje não foi criado pelos Romanos, mas desde aí que já
se sentia necessidade da criação de uma lei que fosse aplicável a estrangeiros. O ius
civile apenas se aplicava aos cidadãos romanos. Os peregrinos (cidadão latino mas não
romano) não tinham acesso ao ius civile. Era necessário encontrar um direito que
regulasse os casos mistos, isto é, as relações entre cidadãos e peregrinos. Este direito
seria então o ius gentium- lei material aplicável aos referidos casos.

Daqui nasceu uma prática nova: a aplicação por um mesmo juiz de leis
diferentes, segundo a origem das partes. Deste sistema não podiam deixar de resultar
conflitos de leis, mas estes problemas foram ignorados pelo direito romano.

Anos mais tarde, na Alta Idade Média, torna-se de aplicação universal o


princípio da personalidade do direito. Cada indivíduo tem um verdadeiro direito à
aplicação da sua própria lei: cada um pode sua lege vivere. Neste sistema não há
propriamente conflitos de leis, porque «é impensável a priori aplicar a um indivíduo a
lei de um grupo étnico diferente do seu. No entanto, há que resolver o problema da
combinação de duas leis quando a relação jurídica tem por sujeitos pessoas que
dependem de leis diferentes. Para tal fim, verifica-se se cada um pôde adquirir ou
alienar validamente, segundo a sua lei pessoal, o direito em questão.

Pouco a pouco, o princípio da personalidade é substituído pelo da


territorialidade, no sentido de que o âmbito das leis dos costumes é territorial. Mas
durante um período intermédio, isto é, enquanto a diversidade das leis subsiste,
pratica-se o sistema da professio juris: cada um declara a lei segundo a qual vive (lex
qua vivit).

No entanto, essa multiplicidade das leis num mesmo território vai desaparecer
em breve: as próprias leis antigas se fundem e novas instituições são criadas. Surge
assim um conflito de leis, que urge resolver. No sistema da territorialidade tal como
existiu na Idade Média, só a lei editada ou admitida pela autoridade local se aplica. Para

25
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

designar esta aplicação generalizada da lex fori fala-se de territorialismo. Em cada


território é aplicada uma única lei.

As origens do DIP moderno fazem-se remontar ao fim do séc. XIII, quando se


proliferaram os grandes centros comerciais do Norte de Itália. Os estatutos das cidades,
que se ocupam principalmente das relações jurídicas de carácter privado, diferem entre
si: a regulamentação que estabelecem para estas relações está longe de ser uniforme.
Devido ao desenvolvimento do comércio, origina-se contactos mais habituais com
cidadãos das mais diferentes cidades. Isto cria conflitos de leis.

🡺 A primeira solução, que o problema recebeu da parte da jurisprudência,


foi esta: se um bolonhês é demandado em Módena, será aplicável o
estatuto local, pois é ao tribunal de Módena que pertence dirimir o
litígio (lex fori).
No entanto, a aplicação do direito local comporta limites: o direito local, que
não se dirige senão aos súbditos do soberano local, só a estes pode obrigar.

Mas, se o direito local não é aplicável aos estrangeiros, que direito lhes há de ser
aplicado?

A. Movimento Estatutário:

A Teoria dos Estatutos foi a primeira tentativa de resolução dos conflitos de


sistemas jurídicos baseada no princípio do reconhecimento e da aplicabilidade do direito
estrangeiro pelo juiz local. Todos partiram, para resolver as dificuldades levantadas por
este problema, do próprio texto dos estatutos e costumes, ou, mais tarde, do próprio
texto das leis nacionais, sem sentir a necessidade de prescrições especiais relativas à
questão dos conflitos entre elas suscitados.

Este movimento foi iniciado pelos Glosadores. Podem considerar-se neste


período três épocas distintas e, paralelamente, três escolas estatutárias, no sentido de
que a teoria dos estatutos encontrou outras tantas realizações particulares:

🡺 A primeira é a escola estatutária italiana (séculos XIV a XVI);

26
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

🡺 a segunda a escola francesa dos séc. XVI a XVIII;


🡺 a terceira a escola holandesa (séc. XVII).
Na escola italiana, partiram os jurisconsultos da ideia de que um estrangeiro só
por ser demandado numa cidade estrangeira não tinha que ficar sujeito, só por isso, à lei
dessa cidade. A primeira distinção a que se chegou, no decurso da evolução da teoria
dos conflitos de estatutos, foi a distinção entre o processo e o fundo das causas:

→ O juiz não aplica senão a sua própria lei em matéria de processo (ad litem
ordinandam);
→ não é senão quanto ao fundo do litígio (ad litem decidendam) que se pode
conceber a aplicação de uma lei estrangeira.
Nesta escola, destaca-se BÁRTOLO, segundo o qual há que distinguir entre:

→ os estatutos que dispõem relativamente às pessoas: dirigem-se tão-só aos


súbditos, onde quer que se encontrem: são extraterritoriais.
→ os estatutos que dispõem relativamente às coisas: não se aplicam senão às
coisas situadas no território: são territoriais.
As solenidades dos contratos regulam-se pelo estatuto do lugar da celebração:
locus regit actum. Depois há estatutos mistos, que podem ser de aplicação territorial ou
extraterritorial. Quanto à substância e efeitos das obrigações, há que distinguir:

1. Ou se trata dos efeitos imediatos do contrato, dos direitos que nascem no


momento da formação do acordo, segundo a sua natureza celebração;
2. Ou se trata das consequências que se produzem posteriormente, por virtude de
negligência ou mora - e é aplicável o direito do lugar da execução, se as partes
escolheram um. ou o direito do lugar onde o processo corre, na falta de
estipulação.

A forma do processo (ordinatio litis) depende da lei do lugar onde o processo


é julgado (lex fori). Quanto aos testamentos, há que pôr o problema relativamente às
formalidades e ao conteúdo do ato testamentário, sendo que a forma do testamento é
determinada pelo estatuto do lugar onde o testamento é feito.

27
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Contributos da Escola Estatutária:

1. Proliferação de normas de aplicabilidade imediata. Pelo seu conteúdo, o juiz


não pode deixar de as aplicar, mesmo que o âmbito de aplicação espacial não
seja aquele.
2. Consideração da lei do foro como lei processual;
3. As questões formais devem ter sempre reconhecimento internacional (as
pessoas só devem submeter o NJ aos requisitos formais impostos pelo local que
o celebra), princípio da cortesia, etc.

Esta Escola vai influenciar novas Escolas: Escola Holandesa, por exemplo. Esta
Escola ajuda-nos a perceber muitas soluções de normas de DIP na atualidade porque são
pensamento que advieram daqui.

8 de outubro de 2021

B. Contributo de Savigny:

Portanto, as coisas acabaram por chegar ao seculo XIX com verdadeira


insuficiência. Não havia, até aí, um sistema de codificação de DIP. Este existia como
problema, mas a sua resolução não saía da discussão sobre se aquela norma material se
aplica ou não, se o tribunal pode aplicar a um individuo direito que não é do seu
território. Ou seja, as relações internacionais a existirem eram resolvidas praticamente
caso a caso. Aqui chegados, há, de facto, um contributo de 2 autores, salientando-se o
alemão Savigny:
→ Este autor lançou uma obra de 8 volumes: Direito Romano Atual, sendo que o 8º
é, no fundo, um tratado de DIP e que veio revolucionar (costuma-se dizer que é
uma revolução tão marcante porque inverte o ponto de partida do raciocínio) o
método, em oposição aos estatutários. Savigny não vai partir da norma material,
portanto, ainda que com o mesmo objetivo- decidir o âmbito de aplicação das leis
no espaço. A sua construção teórica de modelo consistiu no sistema conflitual- é
uma primeira abordagem conflitual.

28
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Mas, para que o modelo conflitual, no fundo, se justifique há aqui uma ideia de
base que era correta ao seu tempo. Partiu da existência de uma chamada
comunidade de direito internacional. No século XIX não é, ainda, a ONU; é sim a
constatação de que nas Nações que têm estruturas jurídicas físicas, materiais,
intelectuais, que têm órgãos de aplicação do direito, que têm regras que funcionam, no
fundo, em que há um certo grau de sofisticação do ponto de vista institucional e
jurídico- era entre essas nações que se estabeleciam relações internacionais e, portanto,
neste conjunto de nações o direito não é muito distinto, especialmente no Direito
Patrimonial. Ou seja, não há radicais diferenças entre o direito material vigente entre as
diversas nações, aliás os Códigos Civis na época eram maioritariamente influenciados
pelo Código de Napoleão.
A questão é que estas nações têm direito semelhante porque comungam de
valores sociais e culturais semelhantes. Portanto, para Savigny, se isso é assim, a
aplicação da lei francesa, alemã ou italiana é relativamente indiferente e essa paridade
entre os direitos é uma ideia que depois justifica todo o desenvolvimento do sistema
conflitual. Deste modo, Savigny diz que é perfeitamente legítimo ao tribunal do foro
aplicar direito estrangeiro e o que é realmente importante é que haja harmonia
internacional de decisões- isso é que garante segurança jurídica, que fomenta o
comércio, fomenta a continuidade das relações jurídicas internacionais.
Portanto, o que é importante é que todos os tribunais em todos os estados
apliquem a mesma lei A, B ou C, qualquer que ela seja. Ou seja, haver identidade de
aplicação de lei e evitar, por isso, o tal forum shopping que é a procura do foro mais
favorável. Esta harmonia que Savigny vem considerar como o objetivo da política
legislativa em DIP vem, então, desincentivar ao forum shopping.

Mas como é que se chega lá? Qual é o critério para escolher a lei, num caso
de conflito de leis?
É aqui que Savigny vem propor como elemento operativo fundamental a
chamada sede da relação jurídica. A relação jurídica como entidade abstrata, que,
dependendo da sua natureza ou tipologia, tem de uma forma natural um território
jurídico a que pertence, ou seja, tem uma sede. Portanto, em vez de se partir da norma
jurídica como faziam os estatutários para indagar o seu âmbito de aplicação territorial,

29
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

procura o território jurídico a que pertence a relação jurídica e, encontrando a sua sede,
vai pedir à lei desse território que a regule e que aplique as normas materiais. O que se
pergunta agora é: A que ordenamento jurídico deve a relação jurídica pertencer?
Isso implicará, necessariamente, a aplicação de direito estrangeiro, mas será o
mesmo direito estrangeiro para qualquer órgão de aplicação do direito porque como se
olha para a relação jurídica como abstração, essa será a mesma quer para o Estado A, B
ou C. Ora, é a partir daqui que surgem, no fundo, as regras de conflito. Não exatamente
como as vemos hoje.

A orientação de Savigny pode condensar-se em duas proposições:


→ Cada relação jurídica deve ser regulada pela lei mais conforme à sua
natureza;
→ A lei mais adequada à natureza da relação jurídica é a lei da sua sede. O
problema dos conflitos de leis consiste, pois, em determinar, para cada relação
jurídica, a lei da sua sede. Assim como as pessoas têm um domicílio, assim as
relações jurídicas têm uma sede- sede da RJ.

Para as relações jurídicas, há que levar a cabo uma investigação tendente a


estabelecer qual o espaço territorial a que pertencem pela sua natureza, ou em que se
localizam. É preciso, por isso, atribuir a cada classe de RJ uma sede. Os elementos
que podem determinar a sede da relação jurídica são:

→ o domicílio dos sujeitos;


→ o lugar da situação da coisa;
→ o lugar da celebração do ato ou facto jurídico;
→ o lugar do cumprimento da obrigação;
→ o lugar do tribunal chamado a conhecer do litígio.
Trata-se de optar, em cada caso, por um destes elementos. Como todos eles (ou
quase todos) se acham na dependência da vontade dos interessados, o direito local
aplicável às relações jurídicas encontra-se sob a influência da mesma vontade. Há,
portanto, uma submissão voluntária dos sujeitos da relação jurídica ao direito local.
Isto é: nós podemos dizer que o contacto duma relação jurídica com certo domínio de

30
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

direito - contacto que lhe determina a sede - tem na sua base a submissão voluntária dos
sujeitos da relação a esse domínio de direito.

Todavia, não significa isto que para SAVIGNY a determinação da lei competente
esteja sempre na dependência direta da vontade dos interessados. Só no domínio das
leis supletivas pode o interessado escolher diretamente a lei reguladora da relação,
justamente porque aí a lei se não impõe à vontade. O que aquele princípio da submissão
voluntária exprime, relativamente ao caso normal, é que o indivíduo é livre de
praticar os factos que, uma vez praticados, determinam a competência da lei.
Assim, eu tenho a liberdade de me domiciliar em certo Estado; mas se lá me domicílio,
a minha capacidade civil passará a ser regulada, imperativamente, pela lei desse Estado.

Categorias de leis e sua aplicação:

1. Lei reguladora do estado das pessoas 🡪 o domicílio é como que a sede legal da
pessoa;
2. Lei reguladora dos direitos reais 🡪 lex rei sitae
3. Lei reguladora das obrigações 🡪 Há que escolher entre o lugar da constituição e
o da execução das obrigações. Ora o primeiro é um facto acidental e estranho à
essência da obrigação. O segundo, pelo contrário, é da essência da relação
jurídica, visto a obrigação ter valor pela sua execução. Logo, é conforme à
natureza das coisas que o lugar do cumprimento seja considerado como a sede
da relação obrigacional.
4. Direito das sucessões 🡪 associado à pessoa do de cujus- a lei aplicável deve ser
a do último domicílio deste. A sede da sucessão deve ser o domicílio do autor
da herança.
5. Direito da família 🡪 lei do domicílio do marido;
a. Poder paternal🡪 lei do domicílio do pai na altura do nascimento do filho;
6. Forma dos atos jurídicos 🡪 lei que regula a RJ em geral. Todavia, Savigny
também considera suficiente a lei onde se celebrou o ato porque muitas vezes
há dificuldades de investigação de elementos do NJ.

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Se o juiz deve, em princípio, aplicar à relação jurídica o direito da sua sede, quer
esse direito seja ou não o do seu próprio país, há diversas leis cuja especial natureza o
força à aplicação do direito local, ainda nos casos em que se mostrasse competente um
direito estrangeiro. Há, assim, um certo número de exceções ao princípio da
aplicação das leis estrangeiras, exceções que SAVIGNY reduz a duas classes:

1. Leis positivas rigorosamente obrigatórias, que por isso mesmo não podem
ceder na concorrência com leis estrangeiras;
2. Instituições de um Estado estrangeiro cuja existência não é reconhecida no
Estado local e que, portanto, não podem obter aí a proteção dos tribunais. São
estas regras que constituem o limite à aplicação do direito estrangeiro.

À primeira categoria pertencem, não todas as leis imperativas, mas todas as que
não existem apenas no interesse dos indivíduos e são antes inspiradas, ou numa razão de
ordem moral, como a lei que proíbe a poligamia, ou num motivo de interesse geral, bem
como as que revestem um carácter político ou de polícia. Como exemplos de
instituições de um Estado estrangeiro que não podem ser reconhecidas pelos tribunais
do Estado local, indica SAVIGNY a escravatura e a morte civil.

O que aconteceu, depois, foi uma progressiva especialização em que os Estados


começam a ter DIP distinto, começam a não concordar que a sede da relação jurídica
seja a que Savigny apontou. Continua a ser o sistema conflitual, mas à medida que este
abandona a própria noção de relação jurídica para ir em conta a uma noção mais
moderna de questões jurídicas os próprios ordenamentos passam a ter critérios
conflituais distintos e, apesar do sistema conflitual ter-se baseado no pensamento de
Savigny, mantendo-se esse sistema conflitual, as divergências quanto às próprias regras
de conflitos vieram desmentir o objeto inicial que era a harmonia- desarmonia
internacional.
Ora, os regulamentos europeus o que pretendem, no fundo, é recuperar aquela
ideia inicial da harmonia internacional e unificam as normas conflituais para quase
todos os estados-membros. Ora, isto significa que os órgãos aplicadores de Direito irão
aplicar sempre a mesma lei. O que importa é a lei mais bem posicionada- maior

32
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

proximidade da lei com o caso concreto. E, portanto, nós vemos que Savigny continua a
estar presente e é até recuperado no âmbito da EU.
Voltando a Savigny, este evita a própria discussão da solução jurídica material
dos ordenamentos jurídicos em presença. Ele apenas procura a lei mais próxima,
independentemente da solução que essa lei oferece. De um ponto de vista estritamente
conflitual, não importa se ela é A, B ou C, o que importa é que esteja bem posicionada,
seja a mais próxima da relação jurídica. Esta ideia da maior proximidade ou da lei mais
bem colocada vai perdurar nos sistemas conflituais mesmo quando a própria noção de
relação jurídica é ultrapassada.

C. Contributo de Mancini:

Há um contemporâneo de Savigny- MANCINI- que dá um importante


contributo. Foi um jurista e político italiano muito conhecido na Reunificação Italiana e
é um dos fundadores da Conferência de Haia (das que emanam as Convenções de Haia).
Essas Convenções dependiam sempre da adesão dos vários Estados- se ratificavam, se
não ratificavam- para ver se eram instrumentos legislativos com aplicabilidade. Estas
Convenções partem de um princípio de compromisso (elemento denominador comum).
Mancini, pela sua atuação política, toma como elemento fundamental o elemento da
nacionalidade.

Resumidamente, a posição de Mancini caracterizava-se pelo seguinte:

Cada indivíduo pode reclamar, fora do seu país, em nome do princípio da


nacionalidade, o reconhecimento e o respeito do seu direito privado nacional. Mas
cada Estado, em nome do princípio da independência política, pode proibir, dentro do
seu território, toda a infração ao seu direito público, à sua ordem pública. Nesta
medida, o Estado pode recusar-se a reconhecer e aplicar leis estrangeiras. Do mesmo
modo, aos atos realizados em país estrangeiro pode o Estado negar todo o efeito, ainda
que no país onde foram realizados sejam considerados legítimos, desde que lesem
princípios essenciais da sua ordem pública.

33
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

O direito privado é pessoal e nacional: deve acompanhar a pessoa mesmo fora


da sua pátria. O direito público é territorial. O direito privado é necessário ou
voluntário, sendo este último dominado pelo princípio da autonomia da vontade.

Segundo o autor, tínhamos de distinguir entre:


● Direito privado necessário: direito privado que o cidadão não pode renunciar,
sendo por isso dever dos Estados respeitar, o que significa que, quando o
cidadão reside no estrangeiro o órgão tem de aplicar este direito da
nacionalidade do cidadão.
● Direito privado voluntário: é relativo às coisas, contratos e obrigações no
geral, aqui um indivíduo, se quiser, pode sujeitar-se à lei do estrangeiro, há aqui
uma supletividade e uma adesão voluntária.

Estão sujeitos à lei nacional o estado e a capacidade das pessoas, as relações de


família e sucessões. Já os bens e as obrigações são regulados pela lei expressa ou
tacitamente escolhida.

Confrontando esta doutrina com a de SAVIGNY:

Facilmente se verifica que o seu traço mais característico reside na importância


atribuída ao princípio da nacionalidade. Já no sistema de SAVIGNY as leis pessoais, de
aplicação extraterritorial, ocupavam um lugar preponderante; e os próprios estatutários,
ainda os mais firmemente territorialistas, admitiam a existência de estatutos pessoais.
Mas é na doutrina da escola italiana que pela primeira vez a lei pessoal nos aparece
identificada com a lei nacional. Ao velho princípio do domicílio, que uma tradição
muitas vezes secular impusera triunfantemente até então, substituiu MANCINI o
princípio da nacionalidade. Foi esta a grande inovação da escola italiana.

D. Revolução Americana dos Conflitos de Leis:

Os USA vêm tornando-se como que um laboratório de ensaios de conflito de


leis. Essa autonomia e essas diferenças fazem com que o número de relações privadas

34
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

que envolvem conflito de leis, ainda que interno, fazem com que a própria teoria dos
conflitos de leis se demonstre desadequada e rígida. Não leva em consideração as
próprias particularidades do caso concreto. A realidade passa muitas vezes uma visão
somente abstrata da situação e regulada como tal.

Os autores americanos vêm contestar este método germânico, sendo os EUA


considerados uma espécie de laboratório de conflito de leis, porque todos os Estados
têm leis diferentes e tradições jurídicas distintas como, por exemplo, a maioridade e o
casamento. É aqui que surgem críticas ao modelo tradicional europeu porque se começa
a perceber que este sistema é, muitas vezes, desadequado por ser muito rígido e não
levar em consideração as próprias particularidades do caso concreto.

Da evolução das duas críticas que os autores norte-americanos formularam, vão


resultar evoluções também diferentes no DIP. David Cavers e Brainerd Currie são o
expoente norte-americano da doutrina do DIP que criticaram o método conflitual.

Críticas de David Cavers e Bernard Currie ao método do conflito de leis de


Savigny:

1. Para estes autores o método conflitual clássico era mecânico e muito rígido
porque não era sensível e permeável às vicissitudes do caso concreto. Este
método determinava em função da relação jurídica a sua sede e dessa sede
resultava a aplicação de uma lei e isso era visto de uma forma abstrata. Havia
uma solução que era completamente dissociada do caso concreto.
Quando Savigny diz que a questão da capacidade jurídica é regulada pela
lei do domicílio, ele tanto aplica esta lei ao nacional desse Estado como ao
estrangeiro desse Estado. Para Savigny a relação é a mesma e a lei mais próxima
é a lei do domicílio, por isso aplica-se a lei do domicílio, independentemente do
caso concreto. As vicissitudes do caso concreto são completamente irrelevantes,
são absolutamente indiferentes as circunstâncias daquela pessoa mesmo que seja
a nível de elementos de conexão. A ideia de Savigny é não cairmos no casuísmo,
porque ao aplicarmos uma lei segundo o caso concreto, acabamos por aplicar
leis diferentes.

35
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Ora, esta crítica admite que as regras de conflito deveriam,


eventualmente, em determinados casos, atender a circunstâncias em
particular e características casuísticas.
A ligação que se tem com um Estado nacional pode ser mais ou menos
cambiante de acordo com o domicílio do individuo, se é no próprio Estado ou
não. Logo, a noção de sede como referência à sede de uma RJ pode ser
desadequada porque não olha para as vicissitudes do caso concreto. Este critério
territorial não pode fechar os olhos ao caso concreto.
2. Por outro lado, os americanos fazem uma outra crítica: dizem que não pode a
lei ser cega quanto ao resultado material da aplicação da lei ou que, pelo
menos, não é de aceitar que não compare.
Para garantir a harmonia jurídica, Savigny defendia que o sistema
conflitual tem de ser formal e tem de ser imparcial quanto ao resultado material.
Contudo, os americanos dizem que os contornos do caso concreto
começam a submergir e o método tem de se adaptar. O sistema é formal, sendo
indiferente ao resultado material a que se chega com a determinação da lei. É
um critério de localização que, ao não atender ao resultado material,
poderá levar à aplicação de uma lei que não oferece uma solução material
justa.
a. Exemplo: temos a realização de um negócio entre dois sujeitos, sendo
que se vai aplicar a lei francesa porque é a lei do domicílio do sujeito em
causa, independentemente de o sujeito ser capaz ou não à luz daquela lei.
A regra de conflitos ignora se a lei aplicável vai ter um resultado mais
desfavorável do que a lei da nacionalidade que até dizia que o negócio
era válido, mas seria completamente ignorada, devido à norma do
conflito.
Portanto, seguindo o método conflitual de Savigny, teríamos a
aplicação, neste caso, de uma lei desfavorável ao sujeito.
No fundo, o que os autores americanos dizem é que os resultados têm de
ser comparados e analisados. É de salientar que, esta crítica coloca em causa o

36
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

próprio sistema, porque ele vive precisamente do critério de localização e dessa


formalidade.

Salienta-se que este movimento crítico surgiu nos EUA, nos meados do seculo
XX, devido à sua larga tradição e necessidade de resolução de conflitos internos, dada a
dimensão do país e a grande quantidade de diversidade legislativa nos vários Estados.
Estas relações internas vão suscitar um desenvolvimento da doutrina da própria prática
jurisprudencial, acrescendo a isso o facto dessa diversidade normativa constituir uma
diversidade de famílias jurídicas e até ordenamentos.
Aquelas duas críticas são distintas, visando aspetos negativos diferentes. Estes
autores diziam que este é um sistema rígido, formal e mecânico, atuando sempre a ter
em conta a mesma lei aplicável, ao território de onde pertence a RJ e nunca olhando
para o caso concreto.
Esta rigidez nunca coloca em causa as normas em confronto. Ou seja, Currie e
Cavers não defendem que o juiz devesse escolher a lei mais justa ou conveniente para o
caso concreto. Quando criticam a rigidez, eles pretendem dizer que não olha para o caso
concreto nem para os índices de proximidade concretos. Ou seja, a proposta de Savingy
é construída em cima de uma abstração e que não atende ao resultado material. Esta
última crítica abala os alicerces básicos da tese de Savigny pois esta nasceu da rutura
com a tese estatutária, que partia da norma material.
14 de outubro de 2021

Bem, isto são críticas que começaram a ser recorrentes nos EUA, na literatura
jurídica, na doutrina, etc... E de repente surge uma decisão de um tribunal, neste caso do
Court of Apeals de NYC que dá eco a todas estas críticas e formula uma decisão que
contraria totalmente o sistema conflitual por várias razões:

🡺 O caso- Babcock v. Jackson- envolve um acidente de viação e o seu sentido é


um pedido de indemnização por danos sofridos no mesmo por culpa exclusiva
do Sr. William Jackson, sendo que a Miss Georgia era transportava
gratuitamente. Assim sendo, tem na base como questão jurídica um problema de
responsabilidade civil extracontratual em contexto de acidente de viação.

37
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Ora, ambos eram norte-americanos, domiciliados no Estado de Nova


Iorque e num determinado fim de semana iniciam um passeio de automóvel da
propriedade de Jackson (com matrícula nova iorquina e com seguro de
responsabilidade civil contratado com uma companhia de seguros nova
iorquino), o que nos levaria a concluir que se trata de uma relação jurídica
interna. No entanto, o passeio estendeu-se até ao Estado do Ontário no Canadá,
tendo sido aí que ocorre o acidente por culpa exclusiva do Sr. Jackson e do qual
resultaram danos para a Senhora Georgia Babcock. Como tal, a Seguradora
recusa-se a pagar a indemnização pelos danos causados e isto leva a um litígio
no Estado de Nova Iorque onde é pedida essa indemnização que se funda em
responsabilidade civil extracontratual do Senhor Jackson relativamente à
Senhora Babcock.
O tribunal, de acordo com as regras de conflitos que vigoravam no
Estado de Nova Iorque, teria de aplicar a lei do local onde ocorreram
simultaneamente o facto ilícito e o dano, ou seja, a lei do Estado do Ontário em
território Canadiano. Porém, se a lei do Estado de Nova Iorque protegia o
transportado gratuitamente, já a lei canadiana não o fazia; e o tribunal, pela
primeira vez, recusa a aplicação da regra conflitual a que estaria obrigado e
invoca aqui duas razões:
(1) A lei do Ontário não reconhecer qualquer direito de indemnização à
vítima e aqui claramente que há uma consideração pelo tribunal do
resultado material da lei aplicável de acordo com a regra de conflitos,
mas a razão é um pouco mais sofisticada do que esta porque diz que a
razão pela qual a lei canadiana não concede indemnização ao
transportado gratuito reside na tentativa de evitar conluios entre o
agente e o lesado de forma a prejudicar a seguradora.
Ora, o que o tribunal vem dizer é que esta norma material do
direito canadiano que limita a responsabilidade da seguradora em
relação aos transportados gratuitos e que tem por objetivo evitar
conluios só faz sentido ser aplicada se a seguradora em causa for
canadiana, mas ela não o é.

38
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Portanto, a lei canadiana consumava a sua ratio somente se a


Seguradora fosse canadiana e, não o sendo, não há razão nenhuma
para aplicar aquela limitação porque o próprio Estado Canadiano não
teria interesse nisso já que a política incita à norma não se consumava
no caso concreto.
(2) Para além disto, também afirma que a lei do Estado de Nova Iorque
estava por todos os modos ligados à relação, menos por aquele
elemento que estava conectado com a regra de conflitos. Ou seja,
coincidentemente, tudo naquela situação factual aproximava
territorialmente o litígio da lei do Estado de Nova Iorque, pelo que a
ligação com o território canadiano era literalmente e figuradamente
acidental.
Estas duas razões são de índole diferente e respondem favoravelmente às
duas críticas que estavam a ser formuladas pela doutrina:

o De facto, a regra de conflitos mandava aplicar uma lei que depois se


verificava que a ligação territorial da situação sub judice com essa lei era
uma ligação ocasional e com menos expressão do que a ligação que a
mesma tinha com outro ordenamento jurídico;
o Por outro lado, a aplicação da lei canadiana, para além de ser
desfavorável à vítima, nem sequer tem do ponto de vista material razões
para ser aplicada porque a sua ratio não se vai consumar no caso
concreto.
No fundo, esta decisão, porque responde às críticas da doutrina, constituirá
leading case pelo menos em matéria de responsabilidade extracontratual. Se nós
observarmos, por exemplo, a regra de conflitos do nosso CC quanto à responsabilidade
civil extracontratual, nós encontramos eco deste tipo de preocupações de índole
material- ex: artigo 45º nº2 e nº3.

Perguntar-se-á se Cavers e Currie defenderiam, em alternativa às regras de


conflitos, exatamente o mesmo e o quê que defenderiam exatamente:

⎯ Cavers:

39
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Defende um sistema que começa por ser muito radical, mas que com o
tempo vai moderando a sua posição.
Como ele considera que a justiça conflitual atua de olhos vendados ao
resultado material e que isso não é correto, entende que se deveria sempre dar o
poder suficiente ao órgão de aplicação do direito para, perante uma situação
internacional, olhar para as situações que estão em contacto com a questão
internacional e perceber quais são as soluções que cada uma delas oferece ao
caso concreto e para, depois de fazer essa análise, escolher aquela que lhe
parecer mais adequada e justa.
Deste modo, tudo passava por uma comparação, avaliação e escolha
entre os resultados hipotéticos de cada uma das várias leis potencialmente
aplicáveis.
🡺 Crítica: Evidentemente que isto resulta numa enorme insegurança
jurídica e num tremendo casuísmo porque, mesmo num sistema de
Common Law, as situações são sempre diferentes e nós nunca
poderemos dizer que numa situação futura esta análise do conteúdo
material das várias leis em presença qual seria o resultado a que iremos
chegar. É que isso iria depender sempre das normas que estavam em
contacto com as questões jurídicas e das suas soluções jurídicas.
Quando muito poderíamos dizer que o método a partir de agora
seria esse. Mas, por um lado, aquilo que o juiz considera justo ou não
sem qualquer tipo de critério de referência torna a sua decisão arbitrária
ou pelo menos não sindicável e, pelo outro lado, a multiplicidade de
situações que passariam pela aplicação deste método não garantia
nenhuma espécie de segurança.
Neste sentido, Cavers acaba por moderar a sua visão tão radical e numa
segunda fase propõe critérios de orientação para o tribunal. Ele vai fazer o
esforço de isolar questões jurídicas e vai estabelecer uma espécie de cardápio em
que indica quais são as leis que, em abstrato, podem ser consideradas próximas e
depois estabelece algum critério para dar preferência a uma em relação a outra- o
juiz poderia escolher entre a lei da verificação do lugar do dano, entre a lei da

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

verificação do lugar ilícito, entre a lei do lugar da residência do réu e entre a lei
que pudesse reger uma potencial relação que ligasse a vítima ao agente.

Perante essa lista, este autor vai estabelecer uma espécie de hierarquia,
dizendo que, em primeiro lugar, dever-se-á aplicar a lei do lugar da residência do
réu ou a lei da prática do ilícito, salvo se a lei do lugar da verificação do dano
contivesse normas de conduta mais estritas, isto é, fosse mais severa na
apreciação da ilicitude da conduta e que, em qualquer caso, sempre que existisse
a tal especial relação entre o lesado e o lesante, essa lei seria a preferida.

Não se trata de uma hierarquia aleatória, pelo contrário percebe-se que o


seu critério tem ainda uma dimensão material, uma vez que o critério, por
exemplo, da consideração da lei que estabelecesse normas de condutas mais
rígidas evidentemente que olha para o conteúdo matéria de uma determinada lei
e observa que do mesmo pode resultar uma maior exigência em relação ao
agente e, por isso mesmo, uma maior proteção para o lesado.

15 de outubro de 2021

Em balanço da doutrina de Cavers, podemos dizer que ele cria, no fundo,


um conjunto de regras de conflitos de conteúdo alternativo, na medida em que
ele diz que se pode aplicar uma lei ou outra, desde que um determinado
resultado seja alcançado. Ora, isto consiste naquilo que hoje designamos de
regras de conflitos de conteúdo alternativo comprometido com determinado
resultado. Deste modo, não é concebida uma alternativa de elementos de
conexão que esteja totalmente à disposição do órgão de aplicação do direito,
uma vez que ele pode sim escolher cada um deles desde que determinado
resultado seja alcançado- que, neste caso, é não só uma decisão mais justa, mas
que Cavers orienta, em matéria de responsabilidade civil extracontratual, para
uma maior proteção da vítima.
🡺 Crítica: O problema de um método deste género (e para qualquer tipo de
regras de conflitos)- e para se alcançar o objetivo da harmonia de
decisões- é que é muito complicado porque tenta conciliar a análise das
regras materiais em conflito com o método conflitual bilateral. Na

41
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

realidade, só um método unilateral é que vai limitar o âmbito de


aplicação de uma determinada lei. O método bilateral, de facto, é
abstrato.
E, para além disso, se é relativamente pacifico que em matéria de
RCE o objetivo ou a justiça material que se pretende alcançar é a
proteção da vítima, nem sempre os objetivos legislativos noutras
matérias são assim tao unívocos. Ou seja, podemos dizer que, por
exemplo, em matéria de estabelecimento de filiação, o objetivo comum
de todas as legislações é garantir que as pessoas tenham pais do ponto de
vista jurídica. Portanto, apontar sempre para a lei que de forma mais
eficaz alcança esse objetivo é pacífico. Mas, por exemplo, em matéria
de divórcio não é pacifico porque há muitas legislações que, em vez de
querer facilitar o divórcio, querem dificultá-lo.
Portanto, este método vai ter a sua influência e ressonância, mas não vai
conseguir ser o método universal. A indagação das políticas subjacentes às
normas pode, muitas vezes, ser feita, mas, de facto, ela não é consensual.

Onde é que hoje vemos, de facto, alguma ressonância do método de Cavers?

Nitidamente no artigo 36º do CC quanto à forma da declaração negocial.


Ou seja, encontramos aqui pelo menos três leis possíveis- a lei da substância, a
do lugar da declaração, a lei para onde remete a norma de conflitos desse
lugar- para o tribunal aplicar, tendo de escolher entre essas opções.

Mas essa escolha é indiferente?

Não – ela visa a validade formal e isso não é dito de uma forma muito
clara, mas resulta da interpretação da norma quando se diz “é porém suficiente
a observância da forma prescrita numa determinada lei”. Aliás, de acordo
com o nº2 a declaração negocial é ainda formalmente válida se estiver de acordo
com a Lei X. No fundo, aqui nós não temos uma regra de conflitos comum
porque nós não temos uma regra que diga que é aplicável a lei X, nem sequer
uma regra de conflitos que a esta questão jurídica se aplica a lei X ou a lei Y

42
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

porque a alternativa aqui existente não é total- esta alternativa só é conseguida se


visar um determinado resultado material.

Deste modo, há aqui, sem dúvida, uma regra de conflitos inspirada no


pensamento de David Cavers. No mesmo sentido, temos o artigo 65º CC quanto
às disposições por morte que, embora hoje esteja substituído pelo Regulamento
das Sucessões, se encontra dentro do seu âmbito de aplicação temporal.

Curiosamente, nós dentro da mesma ideia, embora não resulte


diretamente daquilo que Cavers escreveu, nós podemos ter a mesma
preocupação de justiça material mas num sentido não favorecedor, mas
dificultador. Tal resulta claro do artigo 55º nº2 CC que se refere à separação
judicial de pessoas e bens e divórcio, uma vez que, apesar de no nº1, nos ser dito
que é aplicável o disposto no artigo 52º CC, diz-nos o nº2: “Se, porém, na
constância do matrimónio houver mudança da lei competente, só pode
fundamentar a separação ou o divórcio algum facto relevante ao tempo da
sua verificação”. Ora, nós depois iremos estudar melhor esta regra, mas a ideia
é essencialmente dificultar porque vamos considerar uma outra lei que aqui não
é alternativa, mas sim cumulativa e no sentido de haver confirmação das duas
leis competentes de que os factos que são fundamento da ação são relevantes
para a obtenção do divórcio.

A mesma ideia está presente, quanto à relação adotiva, no artigo 60º nº1,
2 e 4 e também no artigo 61º quanto à filhação. O professor Marques dos
Santos chama a isto “erupções de justiça material dentro das regras de
conflitos”: o uso de certos elementos (alternativos ou cumulativos) de conexão
que visam um certo resultado (pode ser facilitar ou dificultar determinados
efeitos jurídicos). Assim sendo, o sentido pode ser um ou pode ser outro, mas em
qualquer dos casos há um objetivo de regulação material da situação, no fundo,
de uma solução concreta/determinada que pode ser alcançada por via indireta
através de uma lei aplicável, mas digamos que a escolha dessa lei aplicável em
termos conflituais está comprometida com esse resultado.

43
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Salvaguarde-se, contudo, que isto só foi possível porque houve uma


generalizada aceitação das críticas formadas por David Cavers, ou seja, se o
método que ele propõe não é viável enquanto método universal, não deixamos
de, em determinadas situações, aceitarmos o seu pensamento na construção da
regra de conflitos.

⎯ Brainerd Currie:
Este autor levou muito mais longe as críticas de Cavers ao método
tradicional do DIP. Nos EUA, nos anos 60, especialmente nos Estados de
Common Law, os conflitos de leis- internos e externos- viam as suas soluções
resultarem diretamente da aplicação de algum direito legislado. Dentro do
espírito de Common Law, não podemos dizer que existe aqui uma verdadeira
codificação à forma europeia, mas sim um conjunto de orientações e princípios
escritas para a aplicação da jurisprudência muitas vezes influenciadas pelas
lições de determinados autores.

Ora, Brainerd Currie vem contestar esses princípios e também se vai


basear num caso de uma decisão tomada pelo Tribunal Federal de 1956- caso
Walton vs. Arabian Royal Company:

🡺 Portanto, o cidadão Walton, americano, que estava deslocado


temporariamente na Arábia Saudita, tem um acidente de viação-
portanto, também é um caso de responsabilidade extracontratual-
contra um camião da Arabian Royal Company- companhia
petrolífera, com sede americana mas que operava na Arábia.
O cidadão interpõe a ação num tribunal americano e, segundo o
re-statement do conflict of laws, a solução conflitual que era comum
ser aplicada nesta matéria era a da aplicação da lei do lugar onde
ocorreu o facto ilícito e o dano. Ora, desse ponto de vista, seria
aplicável a lei em vigor na Arábia Saudita.
Sucede, porém, que nos sistemas de common law, o direito
estrangeiro é visto e qualificado como um facto e não como um
verdadeiro direito, ou seja, o direito estrangeiro ao ser encarado pelo
tribunal como um facto significa imediatamente que o ónus da sua

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

alegação e prova pertence à parte que o invoca. Deste modo, o autor


da ação tem que demonstrar ao tribunal que há um determinado
fundamento jurídico existente naquela OJ e é com base nele que a sua
pretensão pode ter fundamento jurídico.
Ora, este ónus dificultou muito a posição de Walton porque ele
não a consegue fazer, pelo que o tribunal federal considerou que não
tinha pretensão jurídica a defender e, por isso, indeferiu o
procedimento da ação.

É precisamente com base nesta decisão que Currie vem afirmar que o
sistema conflitual tradicional não faz sentido nenhum. Neste sentido,
consideramos, agora, relevante contextualizar este autor:

Currie era declaradamente um homem de Esquerda Radical, ainda que no


contexto americano (o nosso típico Socialista Democrático). Deste modo, todo o
seu pensamento jurídico assenta numa desvalorização dos interesses privados
para valorização dos interesses estatais(públicos.

Mas isso, em termos de DIP, tem alguma relevância?

Sim porque Currie vem dizer que num conflito internacional, mesmo de
direito privado, ou seja, em que estão em confronto leis de vários ordenamentos
jurídicos, o que está em causa é, do seu ponto de vista, o interesse de cada
Estado em aplicar as suas normas. No fundo, considera que toda e qualquer
norma jurídica, mesmo aquela que se situe no âmbito do Direito Privado,
expressa, antes de mais, políticas públicas, ou seja, interesses públicos
organizacionais, económicos, políticos e sociais.

Assim sendo, este autor assenta a sua teoria no que designa por
Governmental Interest, isto é, no interesse público, sendo que a conceção
tradicional do DIP assentaria muito mais na consideração dos interesses privados
e da vontade individual. Mas Currie diz que não e que o interesse estadual é que
deve prevalecer em qualquer situação, pelo que sempre que exista mais do que
um Estado interessado em, numa situação concreta, ver aplicadas as suas normas

45
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

vamos dar preferência, precisamente, à lei do foro. Deste modo, o órgão de


aplicação do direito no qual a ação é submetida a juízo, constatando que a sua lei
tem um interesse em ver aplicadas as suas normas, vai aplicá-las e isto de uma
forma inflexível e não considerando a paridade do seu direito com os direitos
estrangeiros. Aliás, considera que só há um verdadeiro conflito de leis quando
isso acontece, ou seja, quando o Estado do foro está interessado em aplicar as
suas normas ao caso.

Ora, o que ele propõe é, então, que: em cada situação o órgão do foro
analise o interesse que a lei do foro possa ter na aplicação das políticas
subjacentes às suas normas:
🡺 e, se isso acontecer, em relação a outro Estado que tenha a mesma
pretensão a lei do foro deve prevalecer.
🡺 Pelo contrário, se o Estado do foro não tiver esse interesse, aí sim já
se poderia aplicar a lei estrangeira.
🡺 Se, no limite, nenhum deles visse interesse em ver aplicada a sua lei,
aplicar-se-á, então, a lei do foro por ser a lei mais conveniente
atendendo ao foro.

E se o Estado do foro não tiver interesse, mas existirem duas leis


estrangeiras conflituantes?

Este autor diz que, nesse caso, o foro deve desinteressar-se e aplica o
princípio do forum non convenience que é: “não nos consideramos
competentes”. A ideia será, então, que a lei do foro não está interessada e
também não vai resolver um problema alheio.

No fundo, se repararmos bem, o que ele pretende fazer é abolir as regras


de conflitos e tudo passa pela pesquisa em cada situação dos limites de
aplicação das normas materiais, atendendo a um princípio base que é a
consumação das políticas públicas subjacentes às normas materiais e o interesse
do Estado do Foro.

Podemos dizer que isto é tão radical que foi completamente abandonado?

46
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Não porque é precisamente nesta ideia de Currie que vamos encontrar a


justificação para as chamadas normas de aplicação imediata já que estas- não
todas, mas bastantes-, apesar de regularem relações jurídicas privadas,
prosseguem um interesse público, tendo, por isso, condicionamento territorial: o
tribunal do foro não pode deixar de aplicar essas normas porque visam um
objetivo que tem de concretizar no seu ordenamento jurídico- há um interesse
público a ser defendido.

Todavia, o método de Currie não foi considerado como um método


absolutamente alternativo. O Professor Ferrer Correia chama a atenção para
uma impossibilidade que já tinha sido apontada por Savigny aos Estatutários:
🡺 quando, por exemplo, a norma jurídica decide sujeitar um determinado
negócio jurídico a uma certa forma especial não só para a prova do
negócio, mas também para a sua validade. Ora, uma exigência formal visa,
simultaneamente, dois objetivos:
o por um lado, a certeza e segurança jurídica: um negócio
formal é um negócio sobre o qual não existem dúvidas; e
o por outro lado, em negócios mais relevantes, para que as
partes se consciencializem do que estão a celebrar
(proteção das partes).
Estes dois objetivos são omnipresentes em qualquer exigência
formal relativamente a qualquer tipo de negócio. Ora, repare-se
que o primeiro só é verdadeiramente alcançado se aquilo se
aplicar no território onde o negócio se realiza. Mas, já o segundo
(consciência das partes), só é alcançado se aquela forma for
observada pelos nacionais daquele estado onde quer que se
encontrem. Ou seja, temos, dos objetivos da mesma norma,
eventualmente dois âmbitos de aplicação no espaço distintos.
Assim sendo, aquele segundo objetivo resulta num entrave
formal porque não basta a lei do lugar, tem de ser também, por
exemplo, a lei pessoal (nacional) do declarante.

47
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Em síntese, basta este exemplo para perceber que tentar decidir o âmbito
de aplicação espacial das normas através dos seus objetivos não é só
insuficiente, como resulta em contradições dos termos, dado que temos vários
objetivos e esses objetivos são alcançados por âmbitos de aplicação territoriais
diferentes.

Não obstante, o seu contributo (especialmente chamando a atenção para


os interesse públicos que muitas vezes estão subjacentes às normas também de
direito privado), veio permitir que, às vezes, o estado do foro não deixe de
aplicar as suas normas, à partida ignorando a internacionalidade da questão
através da aplicação das chamadas normas de aplicação imediata.

E, agora vamos começar a estudar duas técnicas muito comuns nos sistemas
conflituais modernos que resultaram dos contributos destes dois autores:

No âmbito europeu, muitos Estados adotaram, já nos últimos 20 anos, e


reformaram profundamente a sua legislação do DIP. Mas a professora diria que esse
movimento reformista acabou por parar e se suspender aquando do Tratado de
Amesterdão, onde a própria União Europeia passa a assumir competência em matéria de
DIP.

Já tínhamos assistido a essa europeização no âmbito do Processo Civil


Internacional, mas, de facto, quando aos conflitos de lei houve primeiro a Convenção de
Roma que depois resulta no Regulamento de Roma I. Ou seja, na primeira década do
século XXI começam a surgir os regulamentos em matéria de DIP e, portanto, deixa de
haver movimentos reformistas nos DIPs de cada Estado membro (precisamente porque
veem substituídas as suas regras de conflitos por estes novos atos legislativos).

Aconteceu também, quanto ao Código Civil Português (que é das mais modernas
codificações existentes), que este não acolheu algumas tendências mais recentes;
tendências essas que se vão concretizar em duas espécies de regras de DIP que são hoje
muito comuns:
🡺 Cláusulas de Exceção;

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

🡺 Normas de aplicação imediata.

De facto, o nosso CC não tem verdadeiramente cláusulas de exceção. Quando


muito poderá ter algumas regras de conflitos que exprimem a ideia que está na base das
cláusulas de exceção: a ideia de flexibilizar o método conflitual.

Quando se fala em flexibilização do método conflitual, importa atentar que


essa flexibilização se mantém dentro do método conflitual em si mesmo e não é, de
modo nenhum, uma resposta às críticas dos norte-americanos sobre a falta de
materialização. Antes é uma resposta dos ordenamentos jurídicos modernos àquela
crítica que também era feita pelos norte americanos sobre a rigidez da regra de conflitos
que não atendia às vicissitudes do caso concreto, vicissitudes essas que só tinham a ver
com os critérios de localização.
🡺 Pensemos naquele caso do Jackson vs. Babcock: A flexibilização tinha só a
ver com o facto de naquelas circunstâncias a lei mais próxima designada pelo
sistema conflitual era a lei do acidente e esse local era o único ponto de contacto
com esse OJ naquela situação.
Ou seja, tínhamos como leis em contacto com a situação a lei americana
e a lei canadiana. Todos os pontos de contacto ligavam a situação ao estado de
NY e havia um único ponto de ligação com o Canadá que era o lugar do
acidente. Mas era esse único que era o relevante para a regra de conflitos.
Ora, o que os americanos diziam é que, numa situação como esta, apesar
de em abstrato, a lei mas próxima ser a lei da prática do dano e do ilícito,
naquele caso concreto, não era a lei mais próxima.

Portanto, a ideia de flexibilizar a regra de conflitos, é torná-la, de alguma forma,


permeável a outros elementos de localização; ou considerar que, às vezes, a lei indicada
pode não ser a mais próxima, isto se as circunstâncias provarem que há uma outra lei
que é mais próxima e isso carece de uma decisão fundamentada ou é a própria regra de
conflitos que vem demonstrar que há uma lei mais próxima. Em caso nenhum entram
aqui em linha de consideração questões que tenham a ver com as soluções jurídicas das
leis em presença, ou seja, com o resultado material da aplicação de cada uma das leis.

49
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Tem apenas a ver com o facto de a lei norte americana ser a lei que está mais
intensamente ligada à situação sub judice.

Esta primeira dimensão crítica que tem precisamente a ver com o caráter rígido
da regra de conflitos leva consigo a ideia de que é preciso criar uma certa aproximação
ao caso concreto, mas não no sentido do seu desfecho material, mas sim na perspetiva
de que a história aconteceu como aconteceu. Ou seja, a ideia é permitir ao tribunal fazer
a narrativa do caso e tentar perceber se a lei indicada pelo sistema conflitual é, de facto,
a lei mais próxima- flexibilização das regras de conflitos.

No Direito Português nós temos algumas evidências dessa flexibilização:


🡺 artigo 52º nº2 CC: “Não tendo os cônjuges a mesma nacionalidade, é
aplicável a lei da sua residência habitual comum e, na falta desta, a lei do
país com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa”.
Dito de outro modo, este artigo diz-nos que, em princípio, se aplica a lei
nacional comum. Porém, se os cônjuges não tiverem a mesma nacionalidade
aplicar-se-á a lei da residência comum e, na redeira hipótese de os cônjuges não
terem residência comum, aplica-se a lei do país com o qual a vida familiar se
ache mais estreitamente conexa. Repare-se, portanto, que aquela última parte
não nos identifica à priori uma determinada lei- não há aqui um elemento de
conexão, mas apenas a ideia da conexão mais estreita. Assim sendo, isso vai ter
de ser avaliado pelo órgão de aplicação do direito atendendo às circunstâncias.
E, portanto, há aqui uma abertura total ao órgão de aplicação do direito.
Aliás, o professor Ferrer Correia foi muito crítico desta alteração de 77,
entendendo que foi prematura esta abertura à discricionariedade, ainda que
vinculada na medida em que está dependente de fundamentação, do Tribunal.
A ideia da conexão mais estreita da vida familiar é, então, uma ideia de
flexibilização e constitui o que se pode denominar de open ended rule- não
sabemos qual é a lei que no final o Tribunal vai aplicar. Mas essa decisão
judicial de aplicação de uma lei vai viver do caso concreto, mas
independentemente do resultado material de cada uma, uma vez que o juiz não
vai escolher porque a lei A, B ou C regula desta ou daquela forma as relações

50
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

entre os cônjuges, mas sim porque considera que, na falta de nacionalidade


comum e de residência habitual comum, é a lei mais próxima da vida familiar.
🡺 E nós encontramos isto também no artigo 60 nº2 CC quanto à relação de
adoção: “Se a adoção for realizada por marido e mulher ou o adotando for
filho do cônjuge do adotante, é competente a lei nacional comum dos
cônjuges e, na falta desta, a lei da sua residência habitual comum; se
também esta faltar, será aplicável a lei do país com o qual a vida familiar
dos adotantes se ache mais estreitamente conexa”.

Esta ideia de flexibilização não veio só para o Direito Português; o próprio


Direito norte-americano a vai acolher no segundo re-statement of law nos Conflicts of
Law, uma vez que este vem permitir aplicar a lei com a relação mais significativa. Até
aqui a professora diria que há apenas um aflorar de uma certa flexibilidade, mas que
está de alguma forma condicionada.

Por exemplo, no caso do artigo 52º nº2 CC, o tribunal só pode aplicar a lei que
considere ser a mais próxima da vida familiar na falta de nacionalidade comum e/ou na
falta de lei de residência habitual comum. Isto é, há aqui uma subsidiariedade que o
obriga a aplicar, desde logo, a primeira conexão e isto vai ser muito diferente daquilo
que vamos ver já nos Regulamentos Europeus.
o Exemplo: dois jovens portugueses vão trabalhar para o Reino Unido,
casam-se lá e passados 50 anos discute-se a lei aplicável às suas
relações conjugais- Sendo ambos portugueses, aplica-se a lei portuguesa,
ainda que seja evidente que seja a lei da sua residência habitual e em que
viveram a sua vida de casados a mais próxima. Isto porque, segundo a
nossa lei de conflitos não há alternativa à aplicação da lei da
nacionalidade já que a lei mais próxima da vida familiar só seria
aplicável em 3ª linha.

🡺 Temos, ainda, um exemplo diferente no artigo 45º nº3 CC: “Se, porém, o
agente e o lesado tiverem a mesma nacionalidade ou, na falta dela, a mesma
residência habitual, e se encontrarem ocasionalmente em país estrangeiro, a

51
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

lei aplicável será a da nacionalidade ou a da residência comum, sem


prejuízo das disposições do Estado local que devam ser aplicadas
indistintamente a todas as pessoas”.
Esta regra funciona verdadeiramente como exceção ao nº1 e ao nº2
porque, considerando aquelas circunstâncias, será a lei de facto aplicável. Ao ser
uma exceção à regra geral da lei da prática do ilícito ou do dano, verificando-se
o circunstancialismo descrito, leva a que haja quem venha dizer que se trata de
uma cláusula de exceção, mas nós iremos ver o que é uma cláusula de exceção e
veremos que não é isto.
Agora, não deixa de ser uma exceção e não deixa de refletir o princípio
da maior proximidade. Aqui não há propriamente a ideia de flexibilização no
sentido de aproximar às circunstâncias do caso já que estas já estão
abstratamente enunciados, mas há, sim, a ideia da conexão mais estreita.

Então, o que é uma cláusula de exceção?

Trata-se, então, de uma daquelas técnicas supramencionadas e que hoje é comum


em todos os Regulamentos Europeus em matéria de DIP e em todos os ordenamentos
jurídicos em que houve reformas profundas do DIP nos últimos anos.

A cláusula de exceção surge, pela primeira vez, na lei de DIP suíça no artigo
15º. Como sabemos, a Suíça é um ordenamento plurilegislativo, pelo que tem grande
autonomia legislativa nos seus vários Cantões. Contudo, esta tem uma lei de DIP
comum- lei federal de DIP-, o que significa que nas relações entre a Suíça e outros
ordenamentos jurídicos, os conflitos de leis são regulados por essa lei.

É precisamente no artigo 15º dessa lei federal que aparece a cláusula de exceção
que depois vai ser replicada nos Regulamentos Europeus de DIP. Esta cláusula é muito
diferente daqueles afloramentos de flexibilidade que vimos quanto ao nosso CC,
constituindo um comando geral que determina a inaplicabilidade total da lei
referida pela regra de conflitos em relação a determinada relação jurídica quando
se demonstre que a situação sub iudice tem uma relação muito acidental e pouco
expressiva com essa lei comparativamente com uma outra que tem uma conexão

52
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

mais estreita com a situação. Deste modo, surge na lei de DIP suíça como uma carta
branca. Contudo, isto só ocorre quando cumulativamente há uma relação ténue entre a
lei mandada aplicar pela regra de conflitos e o caso e quando houver uma ligação
específica e forte de outra lei com o caso concreto.

Para além destas características essenciais da cláusula de exceção, o que é


evidente é a sua natureza conflitual: em nenhum momento o tribunal pode justificar o
afastamento ao sistema conflitual por razões que não sejam puramente conflituais, ou
seja, razões que não sejam de localização/proximidade das leis em contacto em contacto
com a situação e a mesma. É, no fundo, uma “correção do sistema dentro do sistema”.

Outra característica destas cláusulas é que ela em momento algum pode resultar
de uma maximização da aplicação da lei do foro- não é disso que se trata!

O que também é evidente é que ela intervém em concreto e de forma


casuística. É, ainda, absolutamente excecional, não podendo haver um recurso
excessivo a esta já que isso resultaria, por um lado, na derrogação do próprio sistema
conflitual e, por outro lado, numa insustentável incerteza jurídica. Aliás, se olharmos
para esta exigência de intervenção casuística e em concreto, percebemos claramente a
diferença entre estas e o artigo 45º nº3 CC porque esta norma o que faz é, em abstrato,
considerar uma outra lei mais próxima, independentemente das vicissitudes do caso
concreto.

Há aqui um limite: a cláusula de exceção não pode funcionar quando está


em causa o exercício da autonomia conflitual, isto é, quando se permite às partes
intervenientes na relação jurídica acordar numa relação internacional sobre a lei
aplicável. Havendo escolha e sendo esta válida, o tribunal não pode derrogar esta
solução conflitual por causa da cláusula de exceção porque se entende que, em primeiro
lugar, a lei mais próxima de uma relação jurídica é a lei escolhida pelas partes, uma vez
que nada é mais próximo destas do que a expressão da sua própria vontade e, por outro
lado, se não fosse assim, então a própria escolha em si mesma perdia todo o sentido.

Também não vai funcionar nas regras de conflitos de caráter


substancialista: regras de conflito que, na esteira do pensament de Cavers, têm em si

53
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

um objetivo expresso ou implícito de ordem material- em que a solução conflitual foi


desenhada de acordo com um objetivo jusmaterial- então também não pode haver
cláusula de exceção porque o desvirtuaria.

21 de outubro de 2021

Vimos, portanto, que no nosso CC não existem verdadeiras cláusulas de exceção,


mas e quanto aos Regulamentos Europeus?
Vemos hoje clausulas de exceção na legislação europeia com muita abundância.
Elas não têm exatamente, no entanto, a configuração da cláusula de exceção original da
lei suíça. Vai ser uma cláusula de exceção naturalmente não geral no sentido de se
aplicar a qualquer situação jurídica. Elas vão surgir nos vários regulamentos europeus,
sendo que cada um deles tem o seu âmbito de aplicação delimitado:

1. Artigo 4º nº3 Regulamento Roma I: em matéria de contratos internacionais, a


lei indicada por este Regulamento Europeu passa muito pela vontade das Partes
e pela escolha da lei, mas muitas vezes as Partes não escolhem a lei a aplicar,
caso em que há de se aplicar a conexão supletiva prevista. Este artigo diz-nos,
precisamente, qual a lei a aplicar na falta de estipulação, tendo em conta os
vários tipos de contrato.
O nº3 fala em “circunstâncias do caso”, algo que aponta para a análise
casuística, assim sendo, ele expressa um caráter exceciona e casuístico e temos
claramente uma cláusula de exceção: se resultar claramente do conjunto das
circunstância que há uma lei diferente da indicada com uma
conexão manifestamente mais estreita (exigência da conexão cumulativa – haver
uma clara preferência por uma outra lei), pode aplicar-se essa mesma lei.

Este mesmo regulamento dá-nos, ainda, soluções especiais como, por exemplo,
em matéria de contratos de trabalho:
2. Artigo 8º do Regulamento Roma I: O contrato de trabalho tem características
especiais que, por exemplo, justificam que a autonomia conflitual (poder que as
partes têm para escolher a lei aplicável) seja relativamente limitada (isso nunca

54
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

pode privar o trabalhador das normas que lhe sejam mais favoráveis da lei da
residência habitual).
Esse caráter favorecedor da posição do trabalhador, é nitidamente um
objetivo de ordem material. Porém, não é que isto seja uma regra de conflitos
substancialista porque tem a ver com a autonomia conflitual sendo apenas
limitativa desta. A utilização em qualquer caso da cláusula de exceção vai-se
fazer exclusivamente por critérios de proximidade, no sentido em que só se se
provar quer o CT tem uma conexão mais estreita com outro Estado que não os
indicados acima, é aplicada a lei desse Estado.
Há acórdãos do TJUE que aplicam este artigo dada a sua competência
conflitual. O empregador nunca poderá impor ao trabalhador leis menos
favoráveis do que aquelas que resultam da sua lei pessoal. Num determinado
acórdão, se o juiz recorresse à CE, se fizesse isso, o utilizador da cláusula de
exceção iria ficar numa posição desfavorecida. E mesmo assim, o juiz fê-lo,
porque disse que a CE tinha apenas um critério localizador. Foi uma
interpretação polémica deste artigo.

Noutras matérias vemos Cláusulas de Exceção com características muito


diferentes, sendo o caso do:
3. Regulamento 2016/1103, de 24/6/2016 (lei aplicável ao regime de bens
matrimonial): prevê o regime supletivo em relações jurídicas matrimoniais
internacionais, uma vez que também aqui se permite aos cônjuges escolher qual
a lei aplicável. O que importa para efeitos da cláusula de exceção é o artigo 26º
nº3.
Diz-se no artigo 26º que, a título excecional e a pedido de qualquer um
dos cônjuges, a autoridade (…) pode decidir que o regime seja regulado por uma
lei de um Estado diferente se se demonstrar que há uma conexão mais estreita da
lei desse Estado com o casal. Esta é uma CE particular: tem de ser a pedido dos
cônjuges, o que não é normal nas CE, está sujeita a determinadas condições e
apenas vai funcionar para uma conexão supletiva e não para todas;
4. Regulamento Roma II, artigo 5º nº2;
5. Regulamento das Sucessões, artigo 21º nº2.

55
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Estas cláusulas de exceção são mais ou menos típicas. Já no Regime do regime


de bens no casamento, a CE é mais sofisticada, o que dá grande margem de manobra ao
órgão de aplicação de Direito.

Vejamos, agora, a segunda técnica comum no DIP moderno- Normas de


aplicação imediata:

Vimos que as cláusulas de exceção respondem à primeira dimensão de críticas


ao sistema conflitual e que a outra dimensão das críticas ao método conflitual
savigniano prendia-se com a justiça material. Ora, as normas de aplicação imediata
são assim designadas na doutrina pela primeira vez por um autor grego em meados do
século XX, mas, na verdade, a ideia que lhes subjaz podemos ir buscar a Breinerd
Currie, na medida em que este pretendia a abolição do sistema conflitual e a aplicação
de apenas normas materiais.

Esta ideia que Curie tinha de que as normas materiais servem interesses
essencialmente públicos não é uma ideia consensual. O DIP, baseando-se na ideia de
certeza, pretende uma continuidade das relações jurídicos no plano internacional,
olhando a esfera privada. Daí que as ideias de Curie não tenham sido acolhidas, mas
exerçam a sua influência. E influenciam notoriamente as normas de aplicação imediata.

Como se aplicam as NJ de aplicação imediata?

Apesar da sua tese não ter sido acolhida, verifica-se que algumas normas de DIP,
ao contrário do que será natural, não servem apenas interesses privados- não se trata
apenas de estimular o comércio e o tráfico jurídico-, mas também interesses sociais,
políticos e até económicos. Quando se percebe que as normas materiais de um
determinado OJ têm de facto essa natureza, elas tornam-se internacionalmente
imperativas. Ou seja, tornam-se normas que têm de se aplicar num certo território,
independente da lei apontada pela regra de conflitos. Ultrapassa-se a regra de conflitos.
Portanto, há aqui um territorialismo e uma imperatividade evidentes.

56
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Não há nada que diga que a NJ de aplicação imediata tem essa natureza. Será o
juiz ou o órgão aplicador do Direito que vai dizer qual é a natureza da norma.

Todavia, no ordenamento jurídico português existem algumas dúvidas que o


órgão de aplicação do direito possa entender que uma norma é uma norma de aplicação
imediata por seu livre-arbítrio, isto porque nós não temos uma norma habilitante, uma
norma que diga qualquer coisa como «sempre que o órgão de aplicação do direito
entenda que há uma norma que, dados os seus objetivos, não pode deixar de aplicar,
mesmo numa situação internacional, ele tem mesmo de a aplicar». Não existe na nossa
OJ essa norma habilitante.

Por exemplo, o art.º 9 do regulamento de Roma I é uma norma habilitante do


entendimento e aplicação de normas de aplicação imediata.

As NJ de aplicação imediata são normas que, pelas suas características,


percebemos que são de aplicação imperativa internacional. O juiz não poderá deixar de
atender àquela situação jurídica material ainda que esta situação não faça parte do
sistema conflitual.

22 de outubro de 2021

Isto significa que nós podemos enumerar 4 características essenciais destas


normas jurídicas:

1. São normas de direito material:


Assim sendo, não falamos de regras de conflitos e importa não confundir com as
normas habilitantes que surgem no seio do método conflitual. Ou seja, a norma
de aplicação imediata é a norma material que surge nos ordenamentos jurídicos.
2. São espacialmente delimitadas:
Percebemos que, de forma implícita ou explícita, se autodelimitam: dizem
em que casos se vão aplicar a nível territorial. Contudo, por vezes, a própria
norma não se delimita e, quando assim é, temos que retirar do conteúdo da
norma o seu âmbito de aplicação espacial- o que é muito difícil-, isto é, às vezes,

57
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

não há de todo uma indicação expressa quanto à autolimitação espacial. Mas,


atendendo à ratio da norma, podemos extrair a sua limitação espacial.
a. Um exemplo que tem sido consensual tratar-se de uma norma de
aplicação imediata – Há 20 anos era muito comum o timesharing, ou
seja, o direito real de habitação periódica. Foi elaborada legislação
sobre esse timesharing e essa legislação determina que deve ser
aplicada, qualquer que seja o lugar e a forma de celebração do contrato.
O diploma diz que, se o empreendimento turístico se situa em Portugal,
fisicamente, o diploma sobre o timesharing (direito material português)
vai-se aplicar, em caso de litígio, se o órgão de aplicação do direito for
português, independentemente do lugar e forma de celebração do
contrato e independentemente da lei aplicável.
Essa imperatividade resulta do preâmbulo. Aí podemos dizer que
se percebe que o objetivo é que aquele norma fosse uma norma
imediata, apesar de o legislador não o dizer expressamente
b. Artigo 1682-A CC: O Professor Marques dos Santos defendia que uma
determinada regra do direito da família (art.º 1682-A nº2) era uma
norma de aplicação imediata. Relativamente à casa de morada de
família, os cônjuges têm de tomar as decisões em conjunto, mesmo que
apenas um deles seja o proprietário.
Quando é que esta norma normalmente se aplicaria a situações
estrangeiras?
Se se tratasse de uma situação estrangeira e se o órgão de
aplicação fosse português, teria de se recorrer ao art.º 52 do CC,
segundo o qual:
▪ Se ambos fossem portugueses, aplicar-se-ia a lei portuguesa;
▪ Se não fossem os dois portugueses, mas a sua casa estivesse em
Portugal, aplicar-se-ia também a lei portuguesa.
Ou seja, esta norma do art.º 1685-A CC apenas se aplicaria caso a
lei portuguesa fosse a aplicável. Vamos imaginar que, de facto, a lei
portuguesa não é a lei aplicável porque eles são ambos alemães, mas

58
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

vivem em Portugal. Ora, neste caso, se são ambos alemães, a lei alemã é
a lei aplicável às suas relações e o art.º 1682-A não será aplicável.

O que o legislador pretende com esta norma é proteger o direito à


habitação por parte do outro membro do casal que não é o proprietário.
Porque o bem habitação em PT é escasso, ao proteger este direito à
habitação por parte do outro membro do casal, o que se pretende é evitar
que o direito à habitação se faça à custa do estado em vez de à custa da
solidariedade familiar. Atendendo a essa ratio da norma, a norma tem
de se aplicar desde que a casa de família se situe em Portugal e
mesmo que os cônjuges sejam estrangeiros.

Temos de distinguir as meras normas de aplicação espacialmente


limitada das normas de aplicação imediata porque pode haver uma norma
espacialmente limitada que não é uma norma de aplicação imediata.
O que é mais decisivo nas normas de aplicação imediata é o facto de
derrogarem o sistema conflitual. Podemos ter uma norma espacialmente
autolimitada que não derroga o sistema conflitual.
c. Há um exemplo muito claro que é relativo à legislação sobre o
estabelecimento individual de responsabilidade limitada. Este regime
jurídico, hoje, porque há sociedade unipessoais, faz com que aquela
figura deixe de ter grande utilização. A lei que regulamenta a atividade
desta figura jurídica será a lei da sua sede.
Portanto, à partida, só aplicaríamos esta legislação se a lei
portuguesa fosse aplicável e esta só seria aplicável se a sede fosse em
PT- art.º 33 CC. O próprio diploma dizia que aquele diploma se aplicava
se o estabelecimento tivesse sede efetiva em PT (confirmar o art.º 33) e
se constituíssem em PT. Ora, significa que:
▪ por um lado, esta legislação não pretende derrogar o sistema
conflitual (até o confirma);

59
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

▪ por outro lado, ainda restringe mais: a legislação só se aplica se,


para além da sede em PT, o estabelecimento se tiver constituído
em PT.
Isto é um ótimo exemplo para perceber que este diploma não é
uma norma de aplicação imediata porque ele não derroga o sistema
conflitual, antes ele próprio afirma que só se aplica quando a sede
principal efetiva se situar em PT e esse é o critério conflitual da regra de
conflitos pertinente. Portanto, vem confirmar que apenas se aplica
naquele caso. Mais ainda faz mais do que isso: ainda limita mais o
âmbito de aplicação. Se o estabelecimento não se tiver constituído em PT,
então não se aplica esta legislação especial.

3. Dotadas de especial intensidade valorativa:


Esta imperatividade, que chega à imperatividade internacional, resulta de
uma particular intensidade valorativa. No fundo, são normas às quais preside a
concretização de políticas que são essencialmente públicas e que, por causa
desses interesses, oferecem essa autolimitação. No fundo, elas vão, no final,
conduzir à exclusão da aplicação do direito estrangeiro em favor das normas
materiais do foro, em função da sua territorialidade e dos interesses que
salvaguarda. Daí decorre a sua particular intensidade valorativa
Dito por outras palavras, têm especial intensidade valorativa, seguindo
interesses públicos normalmente ou interesses fundamentais da comunidade,
verificando-se uma ligação muito forte à vertente social, ao ordenamento
jurídico onde se devem aplicar. Ou seja, estas normas têm finalidades próprias,
de proteção. Há aqui um certo protecionismo. E, assim sendo, o cidadão
português tem de se consciencializar do ato que está a realizar mesmo que esteja
no estrangeiro e isso vai permitir que se considere a norma, uma norma de
aplicação imediata.
Isto deixa sempre uma margem de discricionariedade e de
apreciação. Estas normas não estão assim definidas pelo legislador, passando a
ser tendencialmente qualificadas como tal. Para além disso, é esta característica

60
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

que permite elevar uma norma material espacialmente delimitada para o


patamar de norma de aplicação imediata:
a. Exemplo: Caso Ryanair- o tribunal entendeu que havia normas do
Código do Trabalho que se aplicavam aos trabalhadores portugueses
independentemente do lugar onde estejam a trabalhar e
independentemente do lugar onde foi celebrado o contrato de trabalho –
à partida, seriam competentes os tribunais irlandeses, mas com esta
característica imperativa das normas de aplicação imediata passam a ser
os tribunais portugueses.

4. Relativas ao foro (ou de outros ordenamentos jurídicos):


São normas do foro e, excecionalmente, podem ser normas estrangeiras,
ou seja, pode haver aplicação de normas de aplicação imediata de outros
ordenamentos jurídicos, ainda que isso não seja muito vulgar. Em todos os casos
que vimos o juiz faz uma avaliação da importância da solução jurídica para o
ordenamento jurídico do foro, mas não é assim, o juiz pode estar a olhar para a
norma material de outro foro. As normas de aplicação imediata podem então ser
do foro ou estrangeiras.
Numa relação jurídica, uma das partes particulares invoca a lei Y, que
nem é a lei do foro nem a lei que é mandada aplicar pela lei de conflitos. Tem
uma solução material espacialmente delimitada, que, naquele caso parece que a
política incita à norma se concretizava e o juiz pode aceitar que essa norma de
aplicação imediata, ainda que de um ordenamento jurídico estrangeiro, seja
considerada. Nem todos os ordenamentos jurídicos aceitam normas de aplicação
imediata estrangeira, normalmente a ideia é de permitir a aplicação excecional
de normas de aplicação imediata do foro, mas nem sempre. Há mais reserva em
aceitar as normas de aplicação imediata estrangeiras, mas é possível.
A autolimitação espacial, por si mesma, não chega. Tem que haver uma
intenção clara – ainda que não expressa – de que os objetivos político-sociais
têm que se consumar. Há normas especialmente autolimitadas, que não são de
aplicação imediata. O que é mais decisivo nestas é o facto de elas derrogarem o
sistema conflitual.

61
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Mas quando podem ser estrangeiras?


Por regra, se a norma habilitante assim o determina. Se olharmos para
o nº3 do artigo 9º do Regulamento Roma I vemos que a sua solução não surge
em todos os regulamentos, o que pode suscitar alguns problemas. Temos aqui a
obrigação de aplicar uma norma de aplicação imediata de outro país, mas apenas
nas situações aí elencadas. Isto leva-nos para o Covid:
▪ Por exemplo, para as situações em que há cancelamento de
viagem de passageiros oriundos de países de risco.
Como é que um transporte internacional de passageiros é
regulado?
Pelo art.º 5º nº2 do regulamento Roma I que nos remete
para a residência habitual do estrangeiro que está a viajar.
Qual o impacto disto se a lei para a qual se viaja impõe
restrições que fazem com a viagem não se possa realizar?
Desde logo, será que é valida esta restrição de entrada?
Estas restrições de entrada no país podem ser consideradas
normas de aplicação de imediata. Se for o estado-membro de
partida (português que vai para frança), estes tribunais também
podem aplicar as mesmas regras de restrição do país, mas não
como normas de aplicação imediata do foro. A aceitarem essas
restrições francesas, aplicam as normas de aplicação imediata do
país estrangeiro, porque este é o país de execução das obrigações
assumidas.
Com a situação pandémica está a haver uma proliferação de intervenção
legislativa nos vários Estados para reagir a esta situação do ponto de vista
económico. Muitas vezes questiona-se, como os contratos são internacionais, se
este intervencionismo pode ser considerado normas de aplicação imediata ou
não? As mais comuns, não levantam problema, porque todos os estados as
aplicam. A questão levanta-se relativamente a todas aquelas normas que
consideram o objeto impossível, por exemplo, contratos de viagens, em que as
pessoas não podem entrar no país. Isso tem sido sucessivamente estabelecido e
essas restrições são restrições da lei do país do destino, mas à partida não é essa

62
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

a lei aplicável ao contrato, com essas restrições o contrato torna-se impossível,


havendo o reembolso. Mas o reembolso teve regras especiais que foram
estabelecidas devido a esta situação. Vão sendo aplicadas como normas de
aplicação comum, porque salvaguardam o interesse público. Mas já há uma
doutrina que contesta se é o interesse público em causa ou o interesse
empresarial. São normas que pretendem proteger pessoas, porque se os contratos
fossem válidos, havia uma tentativa de os cumprir e não se limitava a entrada de
pessoas. Estas normas são aplicadas como normas de aplicação imediata.

Há situações mais sensíveis, como na Itália, que em matéria de contrato


de trabalho, impedia o despedimento, mas o diploma que previa isto já foi
revogado. Isto era aplicado, segundo o diploma italiano quando os contratos são
regidos pela lei italiana, mas muitas vezes os contratos de trabalho podem ser
regidos por lei estrangeira e a questão era saber se se aplica ou não? O que
acontece é que, só poderia ser aplicado como norma de aplicação imediata, só
resta saber que tipo de ligação a situação tem com Itália. Se as normas de
aplicação imediata fossem usadas com menos cautela pelos tribunais, haveria um
retrocesso ao territorialismo.

Há alguma jurisprudência do tribunal de justiça em situações muito


excecionais, havendo um caso de um cidadão grego, em que se trata de um
funcionário publico grego, mas que reside na Alemanha e que dá aulas na Grécia
mas a escola era alemã e o seu contrato de trabalho (privado) é tratado pela lei
alemã. Na altura da TROIKA, o Estado Grego estabelece uma norma que atinge
o contrato do cidadão, pois estabelecia uma redução do salário de todos os
funcionários públicos gregos que trabalham na Grécia, mesmo que o contrato
seja regido pela lei estrangeira. Ele recorreu para o tribunal, que considera que, a
lei sendo a alemã, não poderia haver redução do salário. Mas a norma do estado
grego teria um interesse público inegável e consideravam que como a escola se
situava na Grécia estaria abrangida por esta alteração. Para além disso, a norma
grega estabelece aquela questão abrangendo os cidadãos alemães, sendo por isso
uma norma de aplicação imediata estrangeira. O tribunal alemão questiona o

63
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

tribunal de justiça para saber se esta não podia ser aplicada pelo artigo 9º/3 do
Regulamento Roma I. Será uma NJ de aplicação imediata estrangeira a que
podemos dar voz de acordo com o 9/3º?

O TJUE disse que não, que não era lex fori nem era NJ de aplicação
imediata a nível laboral. O que se podia perguntar era se uma regra de
despedimento era uma regra quanto à execução do CT e se poderia ser atendida
nos termos do 9/3 RR I.

Depois houve uma discussão com o advogado geral, porque ele entende
que a alteração do contrato com a redução poderia ser um ato de execução com o
contrato. Ele questionava que se a redução grega seria um incumprimento da
obrigação que pertencia ao país de execução, mas o TJ não acolheu essa
interpretação. Estas questões não foram acolhidas. Este caso demostra que, estas
questões estão muito longe de ser questões teóricas, estando na ordem do dia.

É de salientar, que a professora considera que, estas questões levantadas pela


situação pandémica e que estão já a ser consideradas o novo normal, não se podem
tornar comuns, pois a aplicação de normas de aplicação imediata, não se deve
tornar um generalidade, porque derrogam o sistema conflitual.

1.3. Relação entre DIP e Direito Constitucional:

As regras de conflitos devem ser conformes à CRP?

Esta relação entre Sistema de Conflitos e Constituição não era sequer questão até
meados do séc. XX. A questão não se colocava porque o DIP era um espaço livre de
constitucionalidade, ou seja, as regras de conflitos eram normas sobre normas e,
portanto, vistas como um expediente técnico neutro.

Esta ideia começa a ser contestada. Desde logo porque o DIP não é
supraconstitucional, uma vez que pertence a um OJ que deve obediência ao que a
Constituição diz. Para além disso, o Direito Constitucional tem particular incidência em
matérias que também fazem parte do DIP, nomeadamente os direitos dos estrangeiros.

64
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Tem também o direito constitucional a ver com o direito da nacionalidade, algo que é
também regulado pelo DIP.

Mais importante foi a constatação, resultante do princípio da igualdade


consagrado na Constituição de Bona, de que o princípio da igualdade das famílias foi
algo que teria ressonância nas regras de conflitos porque a própria escolha da lei
aplicável não era neutra. As regras de conflitos do CC relativamente às relações
conjugais, adotivas e filiação eram a lei da nacionalidade do pai, do adotante homem ou
do marido. De alguma forma, o crivo da inconstitucionalidade passava em branco até à
Constituição de 1976 que proclamou a igualdade entre cônjuges. Este princípio passa a
estar consagrado na Constituição e, obviamente, a partir daí, as regras de conflitos
tinham de estar de acordo com esses ditames. O que se discutia é se a construção da
regra de conflitos em si mesma tinha de ser equidistantes aos cônjuges.

Assim, passou a aceitar-se que o DIP, ainda que entendido como neutro,
deve estar sujeito à constituição, não podendo ser desenhadas situações conflituais
que desrespeitem princípios constitucionais.

Aliás, não se pode dizer que todas as regras de conflitos sejam


axiologicamente neutras, pois estas refletem aspetos de índole material e de
construção do próprio Estado de Direito democrático. Com efeito, as regras de conflitos,
devem consagrar certos elementos de conexão, e estes permitem identificar a lei
aplicável, respeitando-se valores de ordem material como os constitucionais. Por
exemplo, se o ordenamento aplica sempre a lei nacional do marido, está a dar
preferência à posição do marido, que vai poder contar com a sua lei, que conhece
melhor e que só ele pode mudar e por isso o princípio constitucional de igualdade entre
os cônjuges, deve aplicar-se às regras de conflito não podendo haver conexões que
privilegia seja o marido, seja a mulher e por isso tem de se encontrar elemento
equidistantes.

Para além disso, o direito constitucional tem uma forte influência em áreas como
o direito dos estrangeiros ou o direito da nacionalidade. Ora, tanto um como outro, se
bem que não se trate de regras de conflitos srtictu sensu, pertencem ao ramo do DIP,
visam relações privadas internacionais, estão no âmbito desta disciplina. A questão da

65
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

compatibilidade das regras de conflitos de DIP e a CRP é um imperativo sistemático, ou


seja, as regras de conflitos pertencem ao todo sistemático do ordenamento jurídico que
obedece sempre às regras constitucionais.

É ainda importante referir que, o que prova que as regras de conflito não são
assim tão neutras é a reforma de 97 do CC, que surge para aplicar as regras do CC à
nova CRP e que incidiu muito na parte da família. Não foi só no direito da família, foi
também no DIP relativamente à família. Os artigos 52º,60º e 53º do CC foram todos
alterados, sendo substituído por outras conexões. Esta alteração aconteceu, porque estes
artigos privilegiavam a aplicação da lei do marido como lei supletiva, isto é, no caso de
mais nenhuma das soluções poder ser aplicada. Foi o princípio constitucional da
igualdade que forçou uma alteração da regra de conflitos, porque se considerou que esta
violava princípios constitucionais. Tendo tudo isto em conta, podemos dizer que as
regras de conflitos devem obediência à CRP. Temos três dimensões diferentes a
considerar, relativamente a esta questão:

1. As regras de conflitos em si mesmas devem ou não obediência à CRP? Sim,


devido à reforma de 1977 e ao que foi referido.
2. Se, por força das regras de conflitos, se manda aplicar uma lei estrangeira,
essa mesma lei estrangeira deve ser constitucional, ou seja, devo obediência
à CRP? Não há um entendimento pacifico sobre esta questão. Contudo,
consideramos que deve respeitar os princípios constitucionais. Se as normas
portuguesas podem não ser aplicadas, também uma norma estrangeira pode não
ser aplicada se se considerar que viola preceitos constitucionais.
A primeira vez que esta questão foi suscitada foi no tribunal
constitucional alemão, conhecido pelo «Caso Espanhol». Este foi um leading
case para uma jurisprudência que veio defender que toda a aplicação de direito,
seja ele estrangeiro ou não, deve obediência aos princípios constitucionais.
a. Vejamos o caso: caso em que tínhamos uma mulher divorciada (Alemã)
e um homem solteiro (Espanhol) que pretendiam casar. As regras de
conflitos alemãs determinavam que seria aplicável a lei pessoal de
capacidade. Ambos tinham capacidade.

66
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Contudo, o divórcio não era naquela altura admitido no direito


espanhol, ou seja, para este direito a mulher alemã ainda estava casada e,
apesar do ordenamento jurídico espanhol não ser competente para avaliar
a capacidade matrimonial dela, é sempre evidente que há impedimento
bilateral. Para todos os efeitos, à luz do direito espanhol, o homem estava
a casar com uma senhora casada. A lei de conflitos declara como
aplicável a lei pessoal de cada um dos nubentes. À primeira vista, não
havia problema porque o homem só tinha de ser capaz à luz da lei
espanhola e mutatis mutandi para a mulher. Mas este impedimento é
bilateral: o impedimento também é averiguado quanto à pessoa com
quem se casa. Assim sendo, o tribunal à partida não podia aceitar este
casamento porque, à luz da lei espanhola-lei nacional do homem-, tal não
seria possível.
Esta questão foi para o Tribunal Constitucional Alemão que considerou
que a norma espanhola era inconstitucional e que não se podia aplicar. Assim
sendo, eles podiam casar na Alemanha mesmo que a lei espanhola dissesse que
aquele casamento não era possível. Esta é a primeira decisão que se funda não
na ordem pública internacional, mas sim na própria constituição e nos
valores constitucionais. Está aqui em causa a liberdade de contrair matrimónio
e de dissolução de casamento.

Existem autores internacionais privatísticos para quem esta é uma falsa


questão porque o DIP tem o expediente próprio para contornar estas situações
em que há violação dos princípios consagrados que é a reserva de ordem
pública (artigo 22º CC): porque é que o tribunal alemão considerou esta
questão do ponto de vista constitucional quando podia declarar apenas a
reserva de ordem pública?
A doutrina, num outro sentido, vem dizer que a reserva de ordem pública
tem tecnicamente algumas limitações, é uma figura que só deve intervir de
forma excecional, tendo de se justificar no caso concreto. Temos de estar perante
a avaliação, em abstrato, da constitucionalidade da norma alemã, o raciocínio
não era se a não consagração do negócio era ou não constitucional,

67
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

considerou-se que a aplicação, no caso concreto, iria afetar a capacidade


matrimonial da outra pessoal e o direito espanhol não era competente nessa
matéria, era uma decisão má do ponto de vista da liberdade de celebrar
casamento. O tribunal alemão fez um raciocínio de ordem pública e não de
constitucionalidade.
A partir deste caso espanhol, que não é o melhor exemplo,
desenvolveu-se esta matéria, o tribunal considerou que a aplicação do direito
espanhol era, naquele caso, inconstitucional pois violava a liberdade de celebrar
casamento, permitindo, assim, o casamento entre os dois, recusando que a
solução espanhola pudesse impedir o casamento entre as duas pessoas pelo facto
da cidadã alemã ser divorciada.
Nesta lógica, há quem entenda que sim, sendo o caso de Moura
Ramos.

3. Quando o órgão do foro tem de aplicar lei estrangeira, deve verificar se essa
lei é constitucional à luz do Ordenamento Jurídico da origem da norma?
Ferrer Correia diz que esta é uma falsa questão porque isto é um
problema de saber como aplicar o direito estrangeiro, algo que está resolvido no
art.º 23 do CC. Em geral, a ideia é de que o direito estrangeiro deve ser
aplicado como o tribunal da norma o aplicaria. Como é que verificamos esta
constitucionalidade?
Deve seguir-se os meios de controlo de constitucionalidade que possam
existir no OJ de origem. Ou seja, o juiz aqui em PT não pode aplicar a norma
estrangeira se ela tiver sido declarada inconstitucional no país de origem. Se há,
de facto, um entendimento no OJ de origem que que a norma é inconstitucional,
o juiz deve seguir esse entendimento.
Há, por isso, um dever de averiguação, ainda que tenha de recorrer a
peritagem, recorrendo a especialistas do direito estrangeiro, e afirmar e provar se
ela foi ou não declarada inconstitucional à luz da OJ do Estado legislador da lei
em causa.
Dito por outras palavras, a ideia do artigo 23º CC é que se aplica direito
estrangeiro como este seria aplicado no seu foro, ou seja, se ele no seu

68
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

ordenamento não foi aplicado, aqui também não vai poder ser. Neste sentido, se
a norma foi considerada inconstitucional, segundo os critérios de fiscalização da
constitucionalidade no ordenamento de origem, nós temos de seguir a orientação
e não se aplica essa norma.
Assim, este problema é um problema de como aplicar o direito
estrangeiro no foro e não um problema de relação do DIP com o direito
constitucional (daí ser uma falsa questão).

1.4. Relação entre DIP e Direito da União Europeia:

A UE criou um espaço e criou medidas de aplicação judiciária transfronteiriça.


Entretanto, a UE diz que, em matéria civil, podemos não conseguir uma unificação do
direito internacional, mas que vamos conseguir que, pelo menos, haja a uniformização
da lei aplicável e dos critérios aplicáveis. É importante promover a compatibilidade das
normas para conseguir que os cidadãos circulem sem medo.

Isto justifica que, atualmente, a quase totalidade da legislação referente ao


Direito dos conflitos é de origem europeia, sendo os regulamentos da União Europeia a
sua principal fonte. Por isso mesmo, pode-se dizer que ocorreu um fenómeno de
europeização do DIP: o Tratado de Amesterdão veio admitir competência legislativa
no âmbito do DIP.

Ora, este DIP fortemente europeizado é feito essencialmente por regras de


conflitos que são mais flexíveis, que estão abertas a alguns objetivos de natureza
jusmaterial, que aceitam normas de aplicação imediata, que flexibilizam ao ponto de
admitir cláusulas de exceção, e é um DIP constitucionalizado.

A legislação está a ser feita a duas velocidades:

1. Em matéria patrimonial, o processo legislativo ordinário é seguido. Isto


está a ser feito por regulamento e não por diretiva.
2. Em matéria de direito da família, há um processo legislativo diferente
que exige a unanimidade dos estados-membros, por exigência do Tratado

69
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

de Amesterdão. Isto gerou confusão. Por isso, vão surgir 3 regulamentos


que não abrangem todos os estados-membros.
A Dinamarca, a Irlanda e o RU desde o início declaram que não
iriam aprovar este tipo de regulamentos em matéria de DIP mas
reservavam-se no direito de depois aderirem. Como não têm sido
aprovados por unanimidade, partiu-se então para a segunda velocidade
que são regulamentos para uma cooperação reforçada (divórcio, regime
de bens e união de facto) em que participam apenas os estados-membros
que tenham aprovado.

O ponto de partida deste movimento de europeização do DIP foi o artigo 65º do


Tratado de Amesterdão (atual artigo 81º do TFUE). Com efeito, foi esta a base jurídica
da iniciativa da União Europeia em matéria de DIP, definindo-se a adoção de medidas
de cooperação judiciária com incidência transfronteiriça, por forma a compatibilizar o
Direito conflitual dos vários estados-membros. E foi a partir daqui que se passou a
procurar a uniformização das regras de conflitos nos Estados pertencentes à União
Europeia.

A homogeneização da lei aplicável permitiu a criação de um espaço uniforme


de liberdade, segurança e justiça, o que é fundamental para o bom funcionamento do
mercado interno, pois só assim os cidadãos se podem estabelecer num outro país da
União Europeia com a certeza de que a lei aplicável às suas relações jurídicas será a
mesma. Os regulamentos da União Europeia abrangem os conflitos de leis e os conflitos
de jurisdições. Temos, deste modo, regulamentos que tratam da questão processual e
outros que abrangem tanto a questão processual como a substantiva.

Exemplos de regulamentos:

→ Os que tratam das obrigações contratuais e extracontratuais,


→ Os que tratam do divórcio e da separação,
→ Os que tratam das sucessões por morte, da obrigação de alimentos, entre outros.
→ Em matéria processual, merecem destaque os regulamentos sobre questões
comerciais, civis e familiares ou de matéria matrimonial.

70
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Quanto à aplicação territorial dos regulamentos da UE, importa não esquecer que
o Reino Unido, a Dinamarca e a Irlanda celebraram um protocolo aquando do Tratado
de Amsterdão, segundo o qual esses regulamentos só serão aplicáveis nesses Estados na
medida em que eles, voluntariamente, os quiserem adotar.

28 de outubro de 2021

2. PARTE GERAL DO DIP PORTUGUÊS:

Desejavelmente, o estudo da Parte Geral, ou seja, das disposições gerais que se


aplicam a qualquer regra de conflitos, qualquer que seja a situação jurídica específica,
deveria seguir um modelo harmonioso e coerente para que consiga cumprir o seu
desígnio de generalidade.

Isto é, nós no CC temos um corpo de regras de conflitos em que podemos


dividir, numa primeira parte, as regras gerias e, depois, as regras especiais ou
específicas com soluções de lei aplicável para cada questão jurídica. E, portanto, na
Parte Geral o que encontramos são normas que permitem o bom funcionamento
das regras de conflitos especiais; regras que, no fundo, conduzem o aplicador do
direito na compreensão, interpretação e aplicação dessas regras de conflitos.

Ora, o que acontece com a europeização do DIP é que esse fenómeno ao nível
conflitual dever-se-ia ter limitado apenas às soluções da parte especial, mas das 2 umas:

1- ou havia aquilo que alguém já designou por um Regulamento Roma 0, isto é, um


regulamento europeu que unificasse também as regras da Parte geral;
2- ou então deixava-se, no fundo, que algumas questões gerais continuassem a ser
regidas pelo seu DIP interno.
A solução ideal seria, de facto, existirem regras gerais, mas não se seguiu esse
caminho (é claro que essas regras gerais só se poderiam aplicar às regras de conflitos
que estivessem harmonizadas). E, não se tendo feito isso, o que deveria acontecer é que,
por exemplo: sendo a lei do foro (portuguesa), o tribunal vai considerar a lei aplicável
a um contrato regulado pelo Regulamento de Roma I, mas se considerasse que a lei
aplicável conflituava com a ordem pública, que tinha havido fraude à lei ou que era

71
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

necessário reenvio- essas possibilidades teriam de ser conformadas pela Parte Geral do
DIP português (das regras do CC).

Porém, mais uma vez, não foi isso que foi feito. De facto, quando nós olhamos
para os Regulamentos Europeus, verificamos que a par da designação da lei aplicável
específica encontramos regras da parte geral, isto é, regras que incidem com a
interpretação, aplicação em geral das regras de conflitos. Essas regras são, todavia, por
vezes distintas, ou seja, nós encontramos, por exemplo, uma solução de reenvio no
Regulamento de Roma I que não é a mesma solução de reenvio do Regulamento das
Sucessões.

Deste modo, o que temos é que: cada regulamento europeu não se limitou a
indicar a lei aplicável àquela questão jurídica, como também criou regras sobre a
Parte Geral. Assim sendo, quando nós hoje dizemos que estudamos a Parte Geral do
DIP português, se nós considerarmos que este tanto tem fonte interna quanto fonte
internacional, estamos a dizer que vamos estudar regras que estão no CC e nos diversos
Regulamentos Europeus, sendo que as soluções apresentadas por estes são todas
diferentes.

Não obstante, nós vamos olhar para alguns princípios gerais, nomeadamente,
para algumas questões que devem ser observadas e que, apesar de dizerem respeito às
regras de conflitos do CC, de alguma forma também podem ser, como princípios gerais,
aplicadas também às regras dos regulamentos europeus.

2.1. Fontes do DIP: órgãos de aplicação do DIP; princípios estruturantes e


principais interesses atendíveis:

Obviamente que já percebemos, ao fim deste percurso, que quanto às fontes


podemos ter:

→ Fontes internas: referimo-nos, naturalmente, à lei, mais concretamente ao CC.


O Código Civil será aquele que oferece maior número de regras de conflitos,
mas nós também encontramos regras de conflitos no CSC no artigo 3º, no
Código de Trabalho. Isto não acontecia, assim, até 1966, uma vez que o Código

72
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

de Seabra não sistematizou regras de conflitos (tinha apenas algumas soluções


conflituais) e depois o que havia eram algumas decisões jurisprudenciais que,
indo beber um pouco à doutrina e a soluções estrangeiras, aplicavam soluções
que hoje estão incorporadas no nosso DIP.
→ Fontes internacionais: hoje ganham uma dimensão e importância inegável e
existem quando o DIP resulta de um ato legislativo internacional como uma
Convenção ou do Direito Europeu. Sempre existiram fontes internacionais de
DIP, nomeadamente através das Convenções a que o nosso país tem vindo a
ratificar e que, por força do artigo 8º nº2 CRP, eram naturalmente aplicáveis em
Portugal, algo que vale igualmente, agora, para os Regulamentos Europeus (a
sua aplicação em Portugal resulta também dos Tratados de DUE).
Conta-se, portanto, para além de todos os Regulamentos Europeus (sendo
que alguns vamos estudar), algumas convenções das quais já falamos:
Convenção de Viena; Convenção de Genebra quanto às letras, livranças e
cheques; e algumas Convenções de Haia que também se aplicam em Portugal.

Quanto aos órgãos de aplicação de DIP importa referir o seguinte:

Apesar de muitas vezes nos referirmos, de forma redutora, a tribunal, na


verdade o órgão jurisdicional pode, dependendo da competência que lhe é atribuída, ser
um tribunal como um notário, conservador de registo civil- estes aplicam muito DIP
especialmente em matéria de Direito da Família- etc... Podemos ver, ainda, ser aplicado
DIP pelo próprio Consulado- no que se refere, por exemplo, a testamentos ou
casamentos celebrados no estrangeiro- e até, de alguma forma, por ministros de culto.

Quanto à função das regras de conflitos:

Nós já sabemos que a regra de conflitos tem como função, em geral, designar a
lei aplicável a uma determinada questão jurídica. Mas, quanto à sua função, nós
podemos distinguir entre:

🡺 Regras de conflitos bilaterais: Estas atribuem um título de vigência e de


competência a um ordenamento, a uma lei para regular um dado aspeto de uma

73
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

relação internacional privada, seja a lei do foro, seja uma lei estrangeira. Ou
seja, é bilateral porque tem competência para designar quer a lei do foro, quer a
lei estrangeira, dependendo do elemento de conexão;
🡺 Regras de conflitos unilaterais: não determinam uma solução
jurídico-material, pelo que continuam a ser regras de conflitos. Antes dão título
de vigência à lei do foro e têm como função delimitar espacialmente a aplicação
da mesma.

Atualmente, as regras de conflitos têm uma feição predominantemente bilateral.


Mas a unilateralidade da regra de conflitos foi defendida por muita gente e durante
muito tempo, existindo dois nomes que se destacam na evolução do DIP: Rolando
Quadri e Roberto Ago.

E, portanto, temos aqui dois autores italianos que se destacaram pela defesa do
unilateralismo como função cometida à regra de conflitos que, por sua vez e neste
sentido, não poderia ser bilateral porque isso comprometeria até a própria soberania do
Estado.

Como é que resolviam uma situação privada internacional através de regras de


conflitos unilaterais?

Ora, de acordo com o Unilateralismo Introverso de Rolando Quadri, dizendo


apenas que a regra de conflitos tinha como função, não chamar direito estrangeiro
eventualmente, mas delimitar somente o campo de aplicação territorial ou
extraterritorial das normas materiais do foro, ou seja, a lei do foro aplicava-se à situação
X se entre X e essa lei do foro houver uma conexão do tipo Y.

Pense-se, a este propósito, naquele exemplo do artigo 3º do CC Francês que


dizia que aos franceses se aplicam as normas francesas sobre a capacidade mesmo que
residissem no estrangeiro. Aqui o elemento de conexão acaba por ser a nacionalidade,
só que referente apenas à nacionalidade francesa e de forma a extravasar a
territorialidade da aplicação da lei francesa.

Ora, já vimos nas aulas práticas que esta solução que resolve um problema de
aplicação de espaço das leis, mas apenas das leis do foro. Deste modo, torna impossível
resolver problemas que podem ser colocados como o da capacidade dos estrangeiros

74
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

que residam em França. Em síntese, trata-se de uma solução lacunosa e que provoca
situações de total vácuo jurídico.

→ Por exemplo: se A, italiano, tem residência habitual em França, celebra


um negócio jurídico e questiona-se a sua capacidade- Em França temos
a regra de conflitos unilateral que diz que aos franceses se aplicam
aquelas regras sobre a capacidade aos franceses, mesmo que residam no
estrangeiro, pelo que a A, uma vez que é italiano, não lhe poderemos
aplicar a lei francesa.
Tudo estaria bem se a questão fosse suscitada em Itália e nesta e
aplicasse a mesma solução, mas e se a lei italiana tiver uma regra de
conflitos unilateral exatamente inversa?
Vamos supor que em Itália, a regra de conflitos unilateral
determina que aos residentes em Itália se aplicam as normas materiais
sobre capacidade.
Ou seja, duas soluções unilaterais podem gerar uma situação de vácuo
jurídico ou de cúmulo jurídico. Daí que este sistema tivesse “os dias contados”.

Roberto Ago já foi um pouco mais sensível ao problema das lacunas geradas
pelas regras de conflitos unilaterais e propõe um unilateralismo extroverso: um
unilateralismo em que se defendia uma nacionalização do direito estrangeiro.

Como é que tal seria possível?

Este autor dizia que as regras de conflitos unilaterais, ao chamarem direito


estrangeiro de forma que o tribunal do foro as pudesse aplicar, estavam a nacionalizá-lo;
estava a tornar o direito estrangeiro uma solução jurídica interna porque estava a ser
aplicado pelo tribunal do foro.

Claro que isto não passa de um artificialismo para justificar, de alguma forma,
esta receção material do direito estrangeiro. O problema teórico desta construção
dogmática é que esta receção fazia com que ele depois devesse ser interpretado segundo
os cânones interpretativos do foro, na medida em que se passava a ser direito nacional
por virtualidade da regra de conflitos, então teria de ser interpretado segundo os cânones
e regras nacionais. Além disso, na eventualidade de haver uma qualquer alteração

75
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

legislativa no ordenamento de origem daquela regra, essa alteração seria completamente


ignorada.

Assim sendo, já vimos que estas teorias acabaram por ser ultrapassadas. Todavia,
podemos dizer que a função da regra de conflitos se pode dividir entre:

→ Função unilateral:
→ Função bilateral.

Quanto à estrutura das regras de conflitos:

Nós nas aulas práticas demos como absolutamente aceite que a estrutura da regra
de conflitos comporta uma previsão- hipóteses que é composta por conceitos ou figuras
jurídicas, categoria de questões jurídicas- e que a estatuição se resumia ao chamamento
de uma determinada lei- isto na regra de conflitos bilateral.

Vimos, ainda, que isso passava pela identificação de um outro elemento


orgânico/estrutural que era um elemento de conexão que conseguia fazer a ponte entre
a situação devida a regular e o território a regulá-la.

A esta estrutura assente na ideia de que a um conjunto de questões jurídicas,


definidas pelo seu conteúdo típico, se aplica uma lei global, a professora Magalhães
Colaço designava por regras de conflito de tipo 3. Ora, se há um tipo 3 significa que
ainda existem as de tipo 1 e de tipo 2. De facto, nós encontrávamos noutros
ordenamentos jurídicos a aplicação de outros modelos e aquela professora
identificava-os da seguinte forma:

1. Regras de conflito de Tipo 1: diziam que a uma situação fáctica se aplicava


uma lei global: aos imóveis aplica-se a lex rei sitae.
Mas isto não é igual ao nosso artigo 46ºCC?

Este diz-nos que: “O regime da posse, propriedade e demais direitos


reais é definido pela lei do Estado em cujo território as coisas se encontrem
situadas”.

76
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Repare-se que na hipóteses estão identificadas questões jurídicas- posse,


propriedade e direitos reais- e não se fala em imóveis, sendo que estes, embora
sejam em si uma situação jurídica, são uma situação fáctica (ainda que conteúdo
jurídico). Isto acontece muito nas normas de conflitos unilaterais, embora não
estejamos a falar de normas de conflitos unilaterais quando nos referimos àquele
exemplo.

2. Regras de conflito tipo 2: também aqui nos referimos a uma situação fáctica,
mas a esta não se vai aplicar uma lei global, mas apenas uma determinada
categoria de normas. Trata-se precisamente da norma de conflitos unilateral do
artigo 3º do Código Civil francês, na medida em que “aos franceses” é outra vez
uma situação fáctica e a consequência consiste nas normas francesas sobre
capacidade.
Porquê que é importante referir isto se a maioria das regras de conflitos atuais são
do tipo 3?

Na verdade, através da qualificação jurídica e daquilo que o artigo 15º CC nos


diz sobre qualificação jurídica, nós nunca aplicamos uma lei globalmente considerada,
mas sim uma categoria de normas porque, repare-se: se aos direitos reais aplicamos a lei
da situação das coisas e se a coisa está situada em França, eu não vou aplicar da Lei
Francesa as normas sobre as Obrigações ou do Direito da Família, mas sim as regras
francesas sobre direitos reais.

Simplificando, o que o órgão de aplicação do DIP vai fazer é isolar, dentro da lei
globalmente considerada, o conjunto de normas que dizem respeito àquela questão
jurídica- esse é um problema de qualificação.

Isto também significa que as regras de conflitos de tipo 3 acabam por, nas
palavras da professor Magalhães Colaço, “se vazar nos moldes das de tipo 2”. Quer
isto dizer, a regra de conflitos é de tipo 3, mas a seleção que nós vamos fazer na lei
globalmente considerada de acordo com a estatuição leva a que acabemos por ir buscar
apenas uma categoria de normas, ou seja, essa necessária seleção de normas que são
subsumíveis ao conceito quadro- o que consiste na tarefa da qualificação-, não deixa de

77
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

consistir em ir buscar, pelo menos a 2ª parte, do modelo das regras de conflitos de tipo
2.

29/10/2021

2.2 Problemas de compatibilização

Vimos que Savigny construiu um sistema muito simples de regras de conflitos.


Porém, temos assistido a uma progressiva especialização do conceito-quadro.
Evidentemente que os sistemas de DIP foram evoluindo e a noção de relação jurídica
foi mudando e no âmbito do conceito-quadro vêm surgindo cada vez situações mais
especificidades. Basta olhar para o direito da família e vermos que temos normas para a
forma do casamento, para a filiação, para o regime de bens, para a adoção, etc.

Esta especialização das regras de conflito pode conduzir a problemas de


compatibilização, pois estas questões jurídicas, pela sua especialidade, podem ser de tal
forma fragmentadas, podem gerar a aplicação de várias leis. Quanto mais
especialização, mais possíveis leis aplicáveis há. Ora, estas diferentes leis, muitas vezes,
não são compatíveis entre si, gerando situações denominadas pela doutrina de dépeçage
ou fragmentação. Ou seja, geram-se situações de incoerência.

Vamos imaginar uma situação litigiosa relativamente simples: por exemplo, a


questão em que surge a validade de um contrato de CV sobre um imóvel. À
partida, diríamos que temos aqui uma validade ou o cumprimento de uma das
obrigações. Rapidamente diríamos que esta é uma questão que nos remete para
as obrigações contratuais e, hoje em dia, para o Regulamento Roma I. Mas
vamos supor que as partes têm nacionalidade diferentes. A argentino e B
brasileiro e celebraram o contrato de CV em PT relativo a um imóvel na
Alemanha. Apesar de a questão poder incidir sobre o cumprimento de uma das

78
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

obrigações ou sobre validade do contrato, outras questões podem surgir como a


capacidade dos contraentes ou a forma do negócio. Temos ainda o problema da
transferência de propriedade. Pelo arranjo desta situação de facto, podemos ter
várias leis convocadas. A capacidade, em princípio, será regulada pelo art.º 25,
sendo aplicável a lei nacional (argentina e brasileira). Isto se excluirmos, como
temos neste caso de o fazer, o art.º 28 do CC ou o art.º 13 do Regulamento Roma
I na medida em que temos um imóvel situado no estrangeiro. Mas temos,
eventualmente que convocar o art.º 47 embora sujeito aos seus pressupostos.
Pelo menos, no termos do art.º 25, temos logo duas leis. A substância das
obrigações será regulada pelo Regulamento Roma I e pode ser uma lei diferente
das indicadas. Quanto à forma do negócio, temos o art.º 36 do CC, mas como
estamos a aplicar o Regulamento Roma I, a forma está prevista no art.º 11. E
temos, também, o lugar da celebração do negócio. Temos, ainda, o art.º 46 –
Alemanha. Portanto, podemos ter aqui convocadas disposições de leis de vários
países.

O problema é que, às vezes, há dificuldade de compatibilização. A harmonia


interna de um sistema muitas vezes joga com pesos e medidas, equilibrando os vários
interesses. Essa harmonia perde-se quando são leis diferentes a regular a mesma
situação sob judice porque não há essa coordenação. Isso é muito visível nos efeitos
patrimoniais do casamento em que nós temos um sistema que faz um balanço entre
normas imperativas e supletivas (art.º 52 e 53 CC), mas, noutros sistemas, esse balanço
é feito de forma diferente. E se tivermos esses efeitos regulados por duas leis, esse
equilíbrio pode ficar comprometido.

Elemento de conexão

Esses elementos de conexão não nos aparecem todos da mesma forma. Há vários
tipos de elementos de conexão o que está muito ligado aos objetivos da regra de
conflitos.

79
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

A regra de conflitos meramente localizadora foi relativamente ultrapassada com


as críticas das doutrinas norte-americanas. As Regras de Conflitos começam a ter
objetivos politico-legislativos muito concretos. Por exemplo, a harmonia jurídica
internacional, jurisprudência dos interesses, maior efetividade, justiça material, etc.

Batista Machado e Ferrer Correia partilham a mesma classificação (escola de


Coimbra). Estes autores dividem as regras de conflito atendendo ao elemento de
conexão:

1. Regra de conflitos simples

As RC simples só têm um elemento de conexão. Por exemplo, art.º 46 CC.

2. Regras de conflito múltiplas

As regras de conflito múltiplas têm mais do que um elemento de conexão. Por exemplo,
se uma RC diz que àquela situação jurídica é aplicável a lei X, a lei Y ou a lei Z.

Dentro das regras de conflito múltiplas (as mais comuns) temos as regras de conflito
subsidiárias, alternativas, distributivas e cumulativas.

2.1 Regra de conflitos subsidiária

Prevenindo a hipótese de faltar o elemento erigido em fator primário de conexão, a


norma de conflitos designa o elemento sucedâneo a que tal hipótese deverá recorrer. O

80
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

órgão de aplicação do direito não é livre de escolher a lei a aplicar: ele deve seguir a
hierarquia estabelecida.

Este sistema destina-se fundamentalmente a obviar a uma situação de impasse. Com


efeito, a via proposta em primeira linha pela regra de conflitos não permite chegar à
resolução do conflito de leis, pelo que há que escolher outro processo para chegar à
determinação da lei aplicável.

É o caso do art.º 52/2 CC. No art.º 52 temos uma regra de conflitos com 3 elementos de
conexão. O último elemento é o que se chama um elemento aberto porque não há
indicação precisa de qual a lei, dependendo do órgão de aplicação do direito. Estas leis
não estão todas no mesmo plano. A lei da residência habitual (LRH) comum só se
aplica se não houver lei da nacionalidade comum. A lei mais ligada à vida familiar só
será aplicável se não houver nem lei nacional comum nem lei da residência habitual. A
ordem pela qual se considera a aplicação destes elementos de conexão está
hierarquizada.

O mesmo sucede no art.º 53/2. Esta conexão é subsidiária e percebe-se porquê: ela
parte, para respeitar a equidade dos interesses de ambos, para uma solução que é uma
solução de cumulação de conexões (Batista machado). Não é a lei nacional de cada um
dos cônjuges, mas sim a nacionalidade comum. Como é evidente, este elemento de
conexão pode ser de difícil concretização. Portanto, teria de haver uma solução
subsidiaria para a inexistência de nacionalidade comum. Também pode acontecer que
não residam no mesmo estado, então parte-se para outra conexão. É desta dificuldade
natural de haver coincidência da concretização do elemento de conexão que se cria a
subsidiariedade. Porque é que não é alternativa? O legislador tem o objetivo de aplicar
ao estatuto pessoal e à de família a lei da nacionalidade – privilegia-se a lei nacional.

2.2 Regra de conflitos alternativa

81
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Os interesses a cuja satisfação o DIP vai dirigindo aconselham, por vezes, o recurso a
duas ou mais conexões para uma só matéria. É o que se passa quando o que sobretudo
releva é garantir a validade de um ato, proteger certas liberdades ou facilitar a
constituição ou a extinção de certa situação jurídica.

Neste sistema, das leis indicadas virá a ser escolhida aquela que conduza na espécie ao
resultado tido a priori por mais justo.

Assim, é possível que, ao admitir-se o princípio de que a forma externa dos negócios
jurídicos se rege por uma outra de diversas leis, se excetue a hipótese de uma dessas leis
exigir, sob pena de nulidade, a observância de determinada forma, ainda que o ato seja
praticado no estrangeiro. Esta é, aliás, a solução consagrada no art.º 65/2 CC e no art.º
36/1, 2ª parte CC.

2.3 Regras de conflitos distributivas

Neste caso, tal como nas regras de conflitos cumulativas, também se trata de fazer
apreciar por dois sistemas jurídicos as condições de validade do mesmo ato, porém em
termos de a matéria ser entre eles repartida conforme determinado critério.

Assim, por exemplo, pode estabelecer-se que a capacidade para contrair casamento se
avalia, quanto a cada um dos futuros cônjuges, pela respetiva lei nacional. Isto é o que
sucede com o art.º 49 CC. Mas, a este respeito, importa advertir que certos
impedimentos matrimoniais assumem caráter bilateral. Trata-se de proibições que,
parecendo dirigirem-se a um só dos interessados, na realidade atingem os dois.
Pensemos, por exemplo, no art.º 1601/c) CC.

2.4 Regras de conflito cumulativas

Trata-se de subordinar a produção de certo evento jurídico ao acordo de duas leis, ou


seja, à satisfação dos requisitos estabelecidos em cada uma delas. Isto com vista a evitar

82
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

a criação de situações que não possam aspirar ao reconhecimento num dos Estados com
elas mais estreitamente conexos (situações coxas ou claudicantes). O escopo aqui
visado é, portanto, a harmonia jurídica internacional.

Este sistema não é certamente recomendável como critério geral e dele só encontramos
raras aplicações nas legislações mais recentes.

Esta é a solução consagrada no art.º 60/4 CC, solução que tem por base a consideração
de que a adoção não põe somente em causa os interesses do adotante e do adotado, mas
afeta também a família natural do último.

É ainda a solução consagrada no art.º 55/2 CC. Este artigo prevê a hipótese de haver,
entre o momento da prática dos factos que fundamentam a ação de divórcio ou a
separação judicial de pessoas e bens e o momento da propositura da ação, mudança da
lei competente. Se houve essa mudança, os factos têm de ser relevantes para efeitos de
pedido de divórcio para as duas leis, a anterior e a atual.

Qualquer uma destas tipologias acaba por ter subjacente uma qualquer política
legislativa.

2.3 Mobilidade do elemento de conexão

Os elementos de conexão pode ser móveis ou imóveis.

Pensemos, por exemplo, no art.º 52 CC: este artigo pressupõe que pode haver
mobilidade do elemento de conexão.

1. Elementos de conexão móveis: elementos de conexão cuja concretização


e, portanto, determinação da lei aplicável, pode mudar no decurso do

83
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

tempo, devido à natureza fática ou jurídica destes elementos. É da


mobilidade dos elementos de conexão que resulta a mudança de lei. Têm a
capacidade de se concretizar de forma diferente e, portanto, de aplicar leis
diferentes. São elementos de conexão móveis os seguintes:

(1) Residência habitual

(2) Nacionalidade

(3) Sede da pessoa coletiva

(4) Lugar da situação dos móveis

(5) Domicílio

(6) Designação da lei aplicável em matérias de obrigações

Este elemento pode convocar alguns problemas:

o Fraude à lei

o Conflito móvel: quando há elementos de conexão móveis, a própria


relação jurídica movimenta-se, o que pode gerar a aplicação de leis
diferentes ao longo do tempo e, consequentemente, conflitos.

2. Elementos de conexão imóveis: são elementos de conexão que não são em caso
algum mobilizáveis. São elementos de conexão imóveis os seguintes:

(1) Lugar da celebração do negócio jurídico

(2) Lugar da prática do facto ilícito

(3) Lugar da situação dos bens imóveis

(4) Lugar da ocorrência do dano

84
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Os elementos de conexão imóveis, por vezes, produzem um problema de


interpretação da norma de conflitos. Pode haver situações em que se aplica a lei a
aplicar no momento da apreciação da questão, mas ser eventualmente mais correto
considerar a concretização do elemento de conexo em momento anterior, por
exemplo. Isto vai depender muito da ratio. Pensemos, por exemplo, num litígio que
diga respeito à relação matrimonial: será mais razoável considerar-se o elemento de
conexão à data do acontecimento mesmo que seja diferente a lei aplicável no
momento da propositura da ação.

3. Elementos de conexão imobilizados: falamos de elementos de conexão móveis,


mas que são imobilizados pelo próprio legislador. Ou seja, são elementos de
conexão móveis, mas apenas a sua concretização num dado momento em que é
relevante, sendo que qualquer alteração posterior desse elemento de conexão não
tem consequências do ponto de vista da lei aplicável ao caso. Um exemplo deste
tipo é o art.º 53 CC.

Os elementos de conexão imobilizados também podem ser objeto de fraude


como os elementos de conexão móveis, mas é mais difícil. Se os cônjuges quiserem
que o regime de bens seja o da lei da residência habitual ao tempo da celebração do
casamento eles podem tentar que ao tempo da celebração eles residam no local X
por lhes ser mais favorável a lei aplicável nesse local. Esta imobilização pretende
que haja uma certa certeza ou segurança jurídica na aplicação da lei. Se não
houvesse esta imobilização, ficaria ao cargo do intérprete. Mas há um inconveniente
que é a não adaptação da vida dos cônjuges à lei aplicável. Hoje o DUE,
mantendo-se estas conexões imobilizadas para o regime de bens, prevê que a
vontade dos cônjuges possa ultrapassar estes inconvenientes.

4. Elementos de conexão imobilizados de forma suspensa: sabe-se que o


elemento de conexão vai ser imobilizado num dado momento, mas não se sabe

85
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

quando é que esse momento vai ocorrer. É o caso do estatuto das sucessões –
art.º 62. Outro exemplo será o art.º 63 CC.

3. PRINCÍPIOS DE DIP

A análise dos elementos de conexão permite-nos intuir os princípios do DIP português.

1. Princípio da harmonia jurídica internacional

O princípio básico (já desde Savigny) é a harmonia jurídica internacional. O


desejável é que todas as leis em contacto com a RPI mandem aplicar a mesma lei àquela
situação. Só dessa forma é que temos pleno reconhecimento de direitos adquiridos,
defesa das expectativas das partes, continuidade das relações jurídicas. Para além disso,
deixa de se levantar a questão da mudança de residência ou de nacionalidade poder
deixar as pessoas na dúvida de qual a lei aplicável em virtude dessas alterações

Este princípio, que era desejado por Savigny, tornou-se impossível quando os
estados passaram a ter cada um o seu DIP com soluções distintas. Mas sem dúvida que
esta harmonia é sempre um objetivo.

No nosso sistema interno encontramos regras que tentam maximizar essa


harmonia. De todas, a mais eficazes são as regras do reenvio: art.º 17 e 18 do CC. Mas
há outras, como por exemplo o art.º 31/2.

Outras vezes a harmonia jurídica que se pretende alcançar é interna. Ou seja,


haver harmonia entre as regras de conflitos e a lei interna. O grande exemplo é o caso
das regras auxiliares materiais que complementam a própria regra de conflitos. É o caso
do art.º 26 e do art.º 68/2. Quer a justiça material quer a composição dos interesses são
os reflexos mais evidentes do DIP. E temos imensos exemplos. É o caso do art.º 28 que
tentativa equilibrar o interesse do incapaz e da contraparte. Temos ainda o art.º 66 e 65.
A própria previsão de autonomia conflitual que no CC ainda é muito tímida que é o art.º
41. Temos ainda o art.º 45/2. Outro exemplo é o art.º 29.

86
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Às vezes há uma tentativa de maximizar a aplicação da lei do foro. Poderíamos


dizer isso do art.º 28, mas como ele é bilateralizado não podemos dizer. Essa
maximização corresponde a um interesse de boa administração da justiça.

2. Princípio da efetividade

No fundo, pode-se subdividir entre:

· Aplicar a lei mais competente. Nos direitos reais é o lugar da situação das
coisas. E essa maior competência tem a ver com todo um conjunto de
instrumentos processuais associados às ações de direitos reais. É o caso do
art.º 46.

· Dimensão da maior proximidade. É o caso do art.º 47.

4. INTERPRETAÇÃO DAS REGRAS DE CONFLITO E INTEGRAÇÃO DE


LACUNAS

4.1 Interpretação das regras de conflitos

A qualificação e o reenvio são, no fundo, regras de interpretação das normas de


conflito. Do ponto de vista da interpretação estrutura da regra de conflitos não vamos
buscar os pressupostos hermenêuticos. É ao TJUE que se pede a interpretação de regras
de DUE.

4.2 Integração de lacunas

87
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

A regra de conflitos, às vezes, apesar de esta muito especializada, omite certas


situações jurídicas que hoje são importantes. Por exemplo, não há uma regra de
conflitos sobre a união de facto ou sobre a promessa de casamento.

Na ausência de uma regra de conflitos, a Escola de Lisboa defende


pacificamente a integração da lacuna por analogia a outras regras de conflitos, quando
tal for possível (art.º 10/1 e 2 do CC), como se fosse uma lacuna de direito material. Por
exemplo, para a UF faz-se analogia com o art.º 52; para os casamentos de pessoas do
mesmo sexo faz-se analogia com o art.º 49.

A única voz discordante é a de Batista Machado (Escola de Coimbra). Este


autor não advoga a aplicação do art.º 10 CC. Defende que a aplicação analógica em DIP
não é possível, pois o DIP, pela sua própria natureza, funciona sempre numa lógica de
colmatar lacunas. Ele chama a atenção para que as omissões em DIP são, do ponto de
vista da regulamentação de uma RPI, imanentes. Ou seja, se não há um direito material
especial para as RPI (porque não há; há apenas pontualmente), as lacunas em DIP são
todas patentes, não há casos omissos ou situações ocultas de espaços não
regulamentados. Aquilo é tudo lacunoso no sentido de que não há regulamentação
material específica. O que diz é que, se isso é assim, a analogia é o próprio
funcionamento normal das regras de conflitos. O que elas fazem e chamar um direito
que vai aplicar a sua solução material por analogia à RPI. Que resolução dá Batista
Machado? Defende que se deve criar a regra de conflitos nos termos do art.º 10/3.

O resultado das duas vias acaba por ser o mesmo; a sua fundamentação é que
diverge.

4.3 Aplicação das regras de conflito no tempo

88
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Em primeiro lugar, temos de distinguir de figuras próximas. Uma coisa é a regra de


conflitos alterar a solução no tempo e com isso mudar a lei aplicável; outra coisa é
mudar-se a concretização do elemento de conexão e mudar a aplicação da lei.

Exemplificando: temos o art.º 52 do CC que foi alterado em 1977. Tínhamos a


aplicação da lei nacional comum, lei da residência habitual comum, lei pessoa do
marido. Foi considerado inconstitucional e alterada em 1977 com a reforma do CC. O
novo artigo comporta a lei nacional comum, lei da residência habitual comum e lei mais
próxima da vida familiar. Isto corresponde a uma sucessão de regras de conflitos no
tempo. No caso dos Regulamentos Europeus, estamos a ter uma avalanche de sucessão
de regras de conflitos no tempo.

Isto não tem nada a ver com o caso de, no âmbito do art.º 52, os cônjuges eram
de nacionalidade portuguesa e mudam ambos de nacionalidade, por exemplo. Isto não
significa alteração da regra de conflitos, mas sim alteração da concretização do
elemento de conexão.

Da mesma forma, também não se pode confundir este problema de sucessão de


regras de conflito no tempo com o problema da alteração legislativa da lei mandada
aplicar pela regra de conflitos. Como é que se resolve esta questão? Pelo art.º 23.

Para o conflito móvel não há sempre uma solução. Às vezes há: os elementos
imobilizados ou suspensos são a solução. Outras vezes, a solução do conflito móvel vai
resolver-se pela interpretação da própria regra de conflitos. A maioria das vezes tem-se
em conta o momento da propositura da ação. Em certas situações pode ser admissível
defender a aplicação de uma concretização do elemento de conexão anterior.

89
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Como é que resolvemos este problema de sucessão de regras de conflito no tempo?

Ele fica resolvido quando há direito transitório que é o que acontece nos regulamentos
europeus.

No CC isso não acontece e havendo alterações legislativas, como se resolve a


questão? Aí a doutrina divide-se.

04/11/2021

Na aula passada não terminamos a questão da sucessão no tempo das regras de


conflitos. Como estávamos nas últimas aulas a ver, as regras de conflitos convocam
problemas comuns a outras normas jurídicas, sendo estes problemas de aplicação,
interpretativos, de integração de lacunas. Já vimos que, em relação à possibilidade do
uso da analogia ou situações em que não há normas de conflitos que não se aplicam
numa dada situação (exemplo da união de facto), o legislador não fixou uma regra de
conflitos específicos para essa situação. A doutrina não é consensual quanto à
utilização da analogia no preenchimento de lacunas. A Escola de Coimbra, bem como
Batista Machado, preferiam a criação de norma de conflitos nova para a União de Facto
dentro do espírito do sistema – art.º10/3 CC. Por sua vez, a Escola de Lisboa admite a
aplicação das regras do casamento à União de Facto.

Sucessão no tempo: vimos as figuras afins. O conflito móvel não acontece


quando há sucessão no tempo verdadeira. Na aula passada vimos a diferença entre a
própria resolução do conflito móvel e o problema da aplicação da lei no tempo. Os
elementos de conexão são móveis. Por serem móveis, pode haver aplicação da lei
diferente. Isso não constitui mudança da regra de conflitos em si mesma. Constitui
mudança da dinâmica da relação jurídica com resultado idêntico.

E, portanto, nós temos alterações a nível legislativo muito importantes com o


fenómeno da europeização e Portugal é um dos países mais afetados por essa dinâmica

90
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

porque aderiu a todos os regulamentos da UE, nomeadamente àqueles que alguns países
não aderiram. Assim sendo, em muitas questões jurídicas deixa de vigorar as regras de
conflitos do CC

O legislador europeu teve, todavia, o cuidado de estabelecer nos vários


regulamentos, normas de direito transitório e de definir exatamente a partir de que
momento é que se aplicam as novas regras europeias, não se limitando a dizer a data de
entrada em vigor do regulamento, uma vez que isso não nos diz nada relativamente às
relações jurídicas continuadas. Os RE foram ao ponto de esclarecer este tipo de
questões. Por exemplo, no Regulamento Roma I é dito claramente que aquelas soluções
conflituais se vão aplicar nos contratos celebrados a partir da data X, pelo que se o
litígio se verificar hoje, mas o contrato tiver sido celebrado antes daquela data, não se
irá aplicar aquele Regulamento.

Tivemos alterações com a reforma de 1977 do Código Civil. Veio expurgar


algumas inconstitucionalidades, nomeadamente nas regras de conflitos, sempre que se
referiam à posição jurídica de uma das partes (a preferência dada como lei aplicável a
uma das partes foi declarada inconstitucional – no âmbito do casamento ou relações
familiares, adoção, etc.). Essa alteração ocorre e legislador não diz se nas relações
familiares continuas se vai correr. Perante o silêncio do legislador, como resolveu?
Há aqui divergência doutrinal.

Considerando a Escola de Lisboa, pela voz da professora Magalhães


Colaço: face o silêncio do legislador, será o intérprete a resolver a questão mas por
apelo às regras de aplicação do tempo do próprio sistema a que as regras de conflito
pertencem, isto é, teremos de aplicar o artigo 12º CC e considerar que, em relação às
relações jurídicas já constituídas e seus efeitos futuros, há um comando de não
retroatividade. Assim sendo, para esta escola a sucessão no tempo das regras de
conflitos é tratada da mesma forma que a sucessão no tempo das regras materiais.

Ora, aqui diverge Baptista Machado: a sua posição tem a ver com a natureza
jurídica das regras de conflitos. Para este autor, este problema tem de ser resolvido à luz
dos propósitos do sistema de conflitos, pelo que vai buscar a sua visão à natureza do

91
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

direito conflitual. Diz, neste caso particular, que o Direito dos Conflitos não é
constituído por “regulae agendi”- normas de conduta. Então, relativamente à regra de
conflitos não se impõe os mesmos princípios de irretroatividade, ou seja, não há
relativamente à regra de conflitos a mesma preocupação que há quanto à norma material
de conduta que ela seja contemporânea dos factos e, não havendo essa preocupação
direta, o problema da irretroatividade perde-se. O que este autor vem dizer é que a regra
de conflitos é, antes, uma norma de reconhecimento de uma competência especifica de
uma determinada lei que está conectada com determinada questão jurídica por um
critério de proximidade, é “regulae decidendi”.

Sendo uma norma de reconhecimento, não se coloca do seu ponto de vista


aqueles problemas porque, de qualquer forma, sendo a regra de conflitos antiga ou
nova, a lei mandada aplicar, será sempre uma lei próxima da situação. Assim sendo,
para este autor as regras de conflitos levam consigo um “doravante” e, a partir do
momento em que há uma alteração legislativa ao nível conflitual, é essa a regra de
conflitos que se irá aplicar quer para as situações pretéritas, quer para as situações
futuros.

Batista Machado admite que algumas regras se possam comportar como regulae
agendi. Caso paradigmático do art.º53 quanto ao regime de bens. Este artigo diz qual a
lei aplicável aos regimes de bens. Batista Machado admite que esta regra, paralisada no
tempo, admite que os nubentes quando pretendem casar, sabendo da sua situação,
podem ter orientado as suas disposições patrimoniais e até a escolha de um determinado
regime de bens se lhe é possível essa escolha, em função precisamente dessa lei
aplicável. Ora, o professor admite que, aí sim, a regra de conflitos está, ela própria, a
influenciar a vida das partes, caso em que um juízo de irretroatividade já fará sentido e
já se poderá aplicar a regra de conflitos antiga mesmo que o litígio venha a surgir no
decurso da regra de conflitos nova.

Podiam até escolhido um regime de bens em função dessa lei aplicável. Podem
ter pensado – lei da primeira residência conjugal ou lei pessoal do marido.
Conformaram as suas expectativas e escolhas. Batista Machado admite que aí sim, a

92
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

regra de conflitos está a conformar as escolhas. Admitirá juízo de irretroatividade.


Mesmo que o litígio venha a desencadear-se mais tarde.

Tudo vai depender da solução conflitual. Dito de outro modo, no seu ponto de
vista, tudo vai depender do próprio desenho da situação conflitual e, se a situação tiver
uma proximidade grande com o foro, vamos aceitar a aplicação do artigo 12º CC.

Os nossos tribunais já se pronunciaram: já chegaram aos tribunais superiores


questões deste género. Decisões anteriores com regime de bens, coisa que se discute
mais tarde. Partilha e estatuto de bens. Exemplo: casamento celebrado antes de 1977, ao
tempo em que a regra de conflitos tinha conexão com lei do marido. Seria a conexão a
utilizar quando as pessoas não residiam no mesmo local, no mesmo Estado.
Aplicar-se-ia a lei pessoal do marido.

Foi feita convenção de escolha de regime de bens. Cônjuges acabaram por casar
no regime supletivo.

Acresce a este problema de sucessão de leis no tempo o prolema de


inconstitucionalidade. Imaginemos que o Tribunal segue a primeira posição da
Professora Magalhães Colaço ou segue a posição de Batista Machado. Mesmo que o
Tribunal aplique o art.º12 e considere que o casamento foi celebrado antes da alteração
legislativa e que pacificamente foi aplicada norma de conflitos do marido, surge aqui
um problema. Essa solução é inconstitucional. Poderá o Tribunal aplicar uma norma
de conflitos inconstitucional? Há aqui 2 problemas que se entrecruzam – problema da
inconstitucionalidade e problema da sucessão no tempo de leis.

Há um acórdão do STJ de 6/11/2003 que se pronunciou sobre a aplicação do


artigo 52º CC, mas que tinha a ver com efeitos patrimoniais do casamento. Neste caso,
o tribunal, sem qualquer tipo de hesitação, aplica aquele artigo na versão de 77 porque,
no fundo, a solução seria a mesma. Ou seja, como eles tinham a mesma residência
habitual (ainda que tivessem nacionalidade distinta), a consideração de uma regra de
conflitos ou outra era a mesma, mas de qualquer forma era necessário saber qual seria a
versão que estaria a ser aplicada.

93
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Temos, antes daquele, o acórdão do STJ de 17/12/1991 em que já se estava a


discutir o artigo 53º CC e em que os nubentes não tinham nem nacionalidade, nem
residência comum e, ao aplicar-se a lei anterior a 77 aplicava-se a “lei pessoal do
marido”. Este foi o entendimento seguido, precisamente, pelo tribunal que,
pacificamente, aplicou uma regra de conflitos inconstitucional.

Temos, também o acórdão do STJ de 3/10/2002, que tem a posição idêntica ao


acórdão acima mencionado. Quer na relação, como no STJ, houve uma confusão entre o
conflito móvel e a sucessão de leis no tempo. Diz que o artigo 53, ao imobilizar o
elemento de conexão, esgotava no tempo os seus efeitos jurídicos, por isso, não se podia
discutir o problema. Chamou à colação o artigo 1714. Este artigo impõe a imutabilidade
dos regimes de bens e é uma norma do direito da família português. Estávamos perante
uma regulamentação internacional, não regulada pelo artigo 1714. Chamar à colação
uma norma do direito português para tegular uma situação internacional não regulável
pelo direito português não faz sentido. Este acórdão aplica a regra antiga de conflitos,
com os piores argumentos, porque tudo isto passava pela aplicação do artigo 12, porque
era uma situação que se ligava com o foro português, era uma regra de conflitos que
podia ter criado expectativas às partes – não tinha nada que ver com sucessão de leis no
tempo -, mas havia a questão da inconstitucionalidade.

A Professora Helena Mota considera que, quer no acórdão de 1991, como 2002,
se deve considerar a regra de conflitos antiga, mesmo na posição de Batista Machado,
mas tínhamos que resolver o problema da constitucionalidade.

Podemos considerar que o regime de bens determinável pela lei aplicável é o que
vigora até à nova regra de conflitos e, a partir daí, aplica-se a regra de conflitos nova. Os
cônjuges vivem sobre dois regimes. Isso pode acontecer, porque até à alteração
legislativa, a situação pretérita não era inconstitucional, porque se conjugava com a
constituição de 1933. O que há é apenas um regime de bens, mas tem que se
salvaguardar os direitos adquiridos nesse período. Podemos imaginar que os cônjuges
casam em 1968, num regime de bens determinado pela lei aplicável nos termos do
artigo 53 (lei pessoal do marido). Em 1977, há nova redação do artigo 53.º, que
manda aplicar a lei da primeira residência conjugal. Se a decisão é discutida em

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

2000, quanto ao regime de bens, temos que considerar que no período entre 1968 e
1977, temos que salvaguardar os direitos adquiridos, nomeadamente por terceiros, à luz
do outro regime. Depois disso, aplicamos a lei nova. Depois de 1977 a lei é outra. Os
cônjuges têm que entender isso.

05/11/2021

Vamos hoje falar sobre um problema da parte geral de DIP que é comum quer ao
DIP de fonte interna e que está regulado na parte geral dos direitos dos conflitos no CC
no artigo 20º CC; mas que os regulamentos europeus também se debruçam que é a
referência aos ordenamentos plurilegislativos- isto acontece quando a regra de conflitos
remete para uma lei estadual e essa lei estadual não está unificada.

Vimos as regras de direito transitório que nos indicam quando é que aplicamos
as regras dos Regulamentos. Há uma regra específica sobre a temática do art.º20 CC –
referência aos ordenamentos plurilegislativos. Esta referência a um ordenamento
plurilegislativo acontece quando regra de conflitos remete para lei estadual e essa lei
estadual não é unificada para aquele questão jurídica em particular. O art.º20 dirige-se a
qualquer questão jurídica.

Na sua aplicação a lei estadual, para a qual a lei de conflitos remete, tem
diversos atos legislativos. Existem, portanto, diferentes soluções para a mesma questão
jurídica.

Existência de subordenamentos legislativos dentro de uma lei estadual. Por


regra, acontece com uma delimitação territorial. No mesmo Estado há varias regiões e
espaços territorialmente delimitados nos quais existe autonomia legislativa ao ponto de
regular a mesma questão do ponto de vista do direito privado. Mesmo nos Estados
Federais com vários graus de grande autonomia legislativa no seu território, é habitual
que essa autonomia incida sobre matéria fiscal, administrativa e não tanto sobre o DIP.
Isto é, o mais comum é que mesmo nesses estados o DIP esteja unificado- pense-se no
caso da Suíça em que o direito civil e o DIP é comum.

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Não é fácil encontrar ordenamentos plurilegislativos nestes campos do direito


privado – os principais exemplos são: o Reino Unido, a Austrália, os EUA, o Canadá e a
Espanha. A Constituição Espanhola de 1978 manteve autonomia do direito foral que
existia em várias localidades autónomas. Na Catalunha existe e foi publicado um
Código Civil Catalão que cobre todas as matérias de direito civil. Em Espanha,
encontramos soluções jurídicas distintas. Por exemplo, em matéria de união de facto,
não há uma lei da união de facto unificada. Todas as comunidades têm as suas regras
próprias quanto à união de facto. Encontramos tal situação noutras matérias, como a do
regime de bens. Encontramos, pois, soluções que são diferentes de outras comunidades
autónomas.

Não existem, no entanto, apenas ordenamentos plurilegislativos de base


territorial, ainda que estes sejam os que sugerem problemas mais comuns. Deste modo,
pode acontecer que os ordenamentos plurilegislativos possam ser de base pessoal-
casos em que um Estado Unitário tem regras diferentes para determinados grupos de
pessoas. Nós vamos, contudo, incidir o nosso estudo sobre os de base territorial (nº1 e
2 artigo 20º CC) porque os de base pessoal, que hoje encontramos basicamente nos
estados confessionais, acabam por não produzir problemas com tanta frequência, uma
vez que acabam quase sempre por esbarrar na ordem pública, o que acaba por travar a
aplicação desse tipo de corpos normativos especiais.

Encontramos ordenamentos plurilegislativos de base pessoal nos Estados


confessionais (regras diferentes quanto ao direito da família, direito sucessório),
sobretudo na Índia, África do Sul.

Quando a regra de conflitos remete para algum estado e essa lei não tem uma
solução jurídica, mas várias consoante o subordenamentos individualmente considerado
que atendemos. Vamos ver que o artigo 20º CC nos oferece uma solução e que os
regulamentos europeus também oferecem soluções, umas semelhantes outras diferentes.

Sabendo que existe este problema e sabendo que a regra de conflitos se pode referir à lei
da Espanha ou à lei do Reino Unido, que são exemplos de países onde existe esta
diversidade legislativa, como é que se resolve a questão? Aparentemente, quando a

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

regra de conflitos tem um elemento de conexão que é imediatamente localizável no


espaço, à partida, não há nenhum problema. Exemplo: regra de conflitos diz que é
aplicável a lei da residência habitual do sujeito. Imaginemos que o sujeito em causa
reside em Glasglow, no território escocês que integra o Reino Unido. A própria
conexão é concretizável no espaço, num determinado território. Se reside em Glasglow,
reside no território escocês que é onde vigora a lei jurídica em apreço. Não se colocaria
nenhum problema. Ou seja, nós temos elementos de conexão territorializáveis que, à
partida, eliminariam esse problema.

Todavia, esta perspetiva não é absolutamente pacífica na doutrina, quer


internacional quer interna, porque há quem considere que quando a regra de conflitos
chama uma lei, chama o Estado Unitário, o Estado Soberano e que a questão deveria ser
sempre resolvida do ponto de vista desse Estado Soberano- resta saber como. Esta é
uma perspetiva menos prática mas que tem a ver com o próprio sentido da regra de
conflitos que chama uma lei estadual e, nesse sentido, chama um Estado Soberano que
deve dizer qual a lei do subordenamento que considera aplicável.

Mas vamos ver que quer o artigo 20º CC, quer alguns regulamentos europeus adotaram
aquela primeira perspetiva. Há, todavia, uma situação em que ele não é, de facto,
ultrapassável: quando a regra de conflitos chama a lei nacional- Quid Iuris?

· Se o elemento de conexão individualiza, aproveita-se esse elemento circunscrito


e ultrapassa-se a questão dos ordenamentos plurilegislativos. Mas há uma
situação em que não é ultrapassável: quando a lei de conflitos chama a lei
nacional.

● Se a lei de conflitos chamar a lei da residência habitual, é possível


circunscrever e identificar o subordenamento. Exemplo: sujeito era
nacional do Reino Unido e tinha residência habitual na Escócia. Neste
caso, se a lei de conflitos manda aplicar a lei da residência habitual e
esta, por sua vez, pertence já a um subordenamento, será a lei desse

97
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

subordenamento que se irá aplicar. Se reside na Escócia, aplicar-se-á a lei


escocesa.

● Se a lei de conflitos chamar a lei nacional, é a lei nacional que se aplica.


Exemplo: Lei de conflitos chama lei nacional. Sujeito era cidadão do
Reino Unido, mas residia na Escócia. Vai-se aplicar a lei do Reino
Unido, porque é a lei nacional. Aqui a regra de conflitos não invoca
nenhum subordenamento. Não há referência a um subordenamento
legislativo (como a Escócia, País de Gales ou Irlanda).

Portanto, nestes casos, temos um problema mais sério.

Vamos imaginar que se discute, perante um tribunal português, a capacidade de


exercício para a prática de um determinado negócio pelo cidadão M, isto é, que se
discute se ele será maior ou menor- M tem 20 anos de idade. O artigo 25º e o artigo 31º
nº1 remete-nos para a lei nacional de M- o Estado X. No Estado X nós temos 3
subordenamentos:

A- A maioridade é atingida aos 18 anos;


B- A maioridade é atingida aos 21 anos;
C- A maioridade é atingida aos 19 anos.

Temos aqui uma hipótese em que a referência da regra de conflitos a um Estado (X) que
tem 3 subordenamentos. Tendo M 20 anos, ele seria menor em B.

A regra de conflitos identifica como elemento de conexão a nacionalidade. No


Estado X há três subordenamentos. Ele tinha 20 anos. Seria maior em A e em B e menor
em C.

Como se resolve? Os ordenamentos plurilegislativos normalmente têm soluções


para os seus conflitos internos. Essa solução interna chama-se, vulgarmente, direito
interlocal (DIL) ou inter-regional . E, portanto, se a regra de conflitos remete para a

98
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

lei nacional daquele Estado, então vamos pedir ao ordenamento plurilegislativo que
determine qual o subordenamento aplicável através do seu direito interno.

Suponhamos que, de acordo com DIL de X, se aplica a lei da residência


habitual do sujeito. Assim sendo se a residência de M for em:

A- Aquele seria maior;

B- Aquele seria menor;

C- Aquele seria maior.

Até aqui nós diríamos que, se a regra de conflitos tem um elemento de conexão
territorializável, aplica-se esse subordenamento. Contudo, se a regra de conflitos aponta
expressamente para a lei nacional, teremos de reenviar a questão para esse mesmo
Estado que aplicará as regras de DIL que nos fornecerá a solução.

Simplesmente, nem sempre as coisas acontecem desta maneira porque nestes


ordenamentos plurilegislativos- eles são-no não só do ponto de vista material, mas
também do ponto de vista do próprio DIL e do DIP, gerando-se uma situação próxima
de reenvio entre eles.

Retomemos o nosso caso e vamos supor que na LA o DIL diz que a capacidade
jurídica é regulada pelo lugar da celebração do negócio; que em B a capacidade jurídica
é regulada pela lei da residência habitual do sujeito e que em C é regulada pelo lugar da
residência habitual da contraparte. M vivia em A, o negócio foi celebrado em C e a
contraparte reside em B- E agora?

M tem relações jurídicas com elementos de extraterritorialidade. Pode residir no


Estado A, celebrar um negócio jurídico no Estado C e a contraparte residir no Estado B.

Será que o DIP de X não resolveria? Também esse pode ser diferente de
subordenamento para subordenamento- é o caso, mais uma vez, dos EUA e do Reino
Unido.

99
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

A verdade é que, por regra, estes países têm regras para dirimir conflitos
internos. Estas relações jurídicas têm vários pontos no território que correspondem a
soluções jurídicas diferentes. Em Espanha, se uma cidadã espanhola casa com catalão,
surge um problema quanto ao regime de bens. Esta questão normalmente tem uma
solução interna. Essa solução interna chama-se vulgarmente direito interlocal ou
direito inter-regional (em Espanha diz-se assim). É uma espécie de DIP interno. Para
cada situação, é oferecido um elemento de conexão. Em Espanha, oferece-se para as
questões de conflitos inter-regionais a mesma solução para as questões internacionais.
Ou seja, o DIP, que é unificado, garante solução para os conflitos internos com
adaptações. Este tema tem sido fortemente discutido em Espanha, graças à
europeização.

Se a lei de conflitos remete para a lei nacional, não sendo possível individualizar
o subordenamento, vamos utilizar o DIP desse país. Voltemos ao nosso exemplo de há
pouco:

o No Estado X, a capacidade jurídica no DIP é regulada pela lei da residência habitual


(LRH) do declarante. Se o M residir habitualmente em A, vai ser considerado maior,
mesmo que a sua contraparte resida em B e o negócio tenha sido celebrado em C. Se
remetesse para o local da celebração do negócio, M já não seria maior. Se o direito
interlocal tivesse como elemento de conexão a residência habitual da contraparte,
que residia em B, M não era menor.

Se a lei invocada pela regra de conflitos é a lei nacional (referência ao Estado soberano),
teremos que reenviar a questão para aplicar as regras de direito interlocal que nos dirá
que a capacidade é regulada pela lei da residência do indivíduo, se for o caso, por
exemplo.

Já vimos que é pedir ao Estado X que através do DIL (direito interlocal) nos
envie elemento de conexão. Retomemos ao nosso caso e vamos supor que na Lei A o
direito interlocal (DIL) diz que a capacidade jurídica é regulada pelo lugar da
celebração do negócio. Na Lei B diz-se que a capacidade é regulada pela Lei da

100
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Residência Habitual. A Lei C diz que é regulada pela lei da residência habitual da
contraparte.

O que é que vai acontecer? Tínhamos dito que M residia habitualmente em A.


Para a Lei B, vai-se aplicar a Lei A. Para a Lei A aplica-se a Lei C. Para a lei C,
aplica-se lei C. Cada subordenamento tem um direito interlocal distinto, com soluções
contraditórias.

Na prática acabam por convergir quanto à solução, mas pode acontecer o


inverso, ou seja, termos direito interlocal que é diferente de subordenamento para
subordenamento – este é o problema que merece maior atenção. Temos um problema
duplicado e continuamos a não ter solução.

Será que o DIP do Estado X não resolve? Pode acontecer que de


subordenamento para subordenamento haja regras especiais ou próprias (caso do EUA e
do Reino Unido). Ficamos numa espécie de impasse. Nesta situação ficamos numa
espécie de impasse. Perante uma situação destas tem de haver uma conexão subsidiária
(situações em que a referência da regra de conflitos à lei nacional não pode ser
suficientemente resolvida por essa mesma lei nacional).

Se a regra de conflitos individualiza um ponto, conseguimos resolver, aplicando


a lei do subordenamento. Suponhamos que a lei de conflitos manda aplicar a lei
nacional (exemplo Lei do Estado X). Pode acontecer que esse Estado não tenha DIL ou
o próprio DIP não é unificado. A alternativa seria escolher outro elemento de conexão
diferente da lei nacional.

Perante uma situação destas teria que haver uma conexão subsidiária. A
solução passaria por estabelecer uma conexão subsidiária para as situações em que a
referência pela lei de conflitos não pode ser satisfatoriamente resolvida pela lex causae.

Nós vimos isso acontecer para os apátridas, em que se aplica a lei da residência
habitual. Mas aqui M tem nacionalidade e se eu substituo esse elemento pelo da
residência habitual- mandando aplicar a lei A-, essa substituição não é estranha, uma
vez que estamos a falar de matéria do estatuto pessoal. O problema é que se M não

101
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

reside dentro do Estado X dentro da Lei A, mas sim em Y - fora do estado da sua
nacionalidade-, ora neste caso estaremos a aplicar uma lei que não será integrante da lei
da nacionalidade (para a qual a regra de conexão remete). Ora, M tem nacionalidade e
nesta situação significaria que se iria aplicar uma lei estrangeira, quando ele deveria ver
a sua situação jurídica regulada pela sua lei nacional.

E temos ainda uma questão mais premente: é que se a regra de conflitos permitia
a M escolher a sua própria lei e ele escolheu a lei da sua nacionalidade, ao ser
confrontado com esta solução de substituição, ele vê a sua escolha completamente
desvirtuada.

Aliás, nas cláusulas de exceção também pode acontecer que o órgão de


aplicação de direito se afasta da regra conflitual por considerar que existe uma mais
próxima. Fá-lo na consumação de vontade própria da vontade do indivíduo que é
pedida, ou quando a regra de conflitos prevê cláusula de exceção. Ora, aquela
substituição pode vir desvirtuar o próprio sentido da cláusula de exceção que já veio
dizer que a lei mais próxima é a da nacionalidade.

A professora Magalhães Colaço chamou a este problema “a situação do


americano em Paris”. Na verdade, nunca deixou de ser americano. Está em França -
aplicar lei francesa quando tinha nacionalidade americana não parecia boa solução.

O uso da autonomia conflitual tem que fixar o subordenamento a que se refere essa
escolha.

Perante estes problemas quais são as soluções de Direito Positivo?

Como é que o Código Civil tratou esta questão? Situação gerada por diversidade
legislativa em matéria de direito privado. Este problema está aparentemente minimizado
quando a lei de conflitos refere um ponto dentro de um OJ. Contudo, não está resolvida
quando a lei de conflitos remete para a lei de um Estado Nacional que não seja unitário.

102
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

O que fazer quando o Estado para o qual remete a lei de conflitos não é um Estado
Unitário? A solução é a de que o próprio OJ deve resolver o problema e deve estar
munido para o resolver. Os Estados devem ter corpos de normas de conflitos
internos – DIL ou DIR - que permitem resolver como se fosse um conflito interno,
embora seja um conflito internacional.

O problema só se agudiza quando o direito interlocal não está unificado ou não foi
pensado para conflitos internacionais. Quando isso acontece, a lei de conflitos tem que
ter uma conexão subsidiária.

Está tudo bem quando a conexão subsidiaria se situa dentro do estado cujo
ordenamento é plurilegislativo já que a ideia é manter-nos dentro deste, mas tal
pode não acontecer.

O artigo 20º nº1 e 2 CC dedica-se no CC a esta matéria. Vamos recorrer ao art.º20 se a


regra de conflitos for uma do CC e não uma europeizada.

[Nota: Se estivermos a aplicar o Regulamento Europeu, temos que ir ver a solução do


Regulamento Europeu. Se estivermos no Regulamento Europeu (exceto o das
sucessões), não há reenvio. Se estivermos no âmbito do regulamento, não temos que nos
preocupar com o reenvio. Se estivermos no CC, temos que respeitar as regras do
reenvio do CC.]

Os dois Regulamentos que vamos estudar têm uma solução simples, nem o
Regulamento Roma I, nem o Roma II se referem à lei nacional.]

Duas conclusões que se pode retirar deste artigo 20.º:

1. O problema dos ordenamentos plurilegislativos só acontece quando a regra de


conflitos remete para a lei nacional, o que significa que se descartam as
hipóteses em que a regra de conflitos indica elementos de conexão
territorializaveis (uma perspetiva que já vimos ser criticada). Ou seja, descarta
imediatamente as hipóteses em que a lei de conflitos já individualiza, por
exemplo, LRH, lei do lugar dos imóveis.

103
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Há aqui a dúvida de saber se esta referência à lei nacional se faz em qualquer


situação em que a regra de conflitos menciona aquela lei nacional ou se se circunscrita
às matérias do estatuto pessoal, uma vez que utiliza a expressão “como lei pessoal”. E
se se aplicar em matéria de REC? O artigo 45º nº3 remete-nos para a lei nacional
também, reunidas cercas circunstâncias, aplica-se o artigo 20º ou não? É uma dúvida
que fica no ar.

A solução do artigo 20º é a aplicação do DIL do ordenamento plurilegislativos ou


então do seu DIP porque muitas vezes aquele DIL resolve os seus conflitos internos por
mera remissão para o DIP. Como vimos, no Estado Espanhol que não é unitário,
remete-se para o seu DIP unificado.

Quando o legislador fala em “direito interno”- em DIP ele é sempre assumido como
direito material, mas não é aqui esse o caso, algo que a doutrina já esclareceu
pacificamente.

2. Nº2 do artigo: Temos, portanto, presente a solução clássica e se aquele DIL/DIP


não for suficiente por não existir ou não ser unificado, aplica-se a lei da
residência habitual.

E se a residência habitual não for dentro do Ordenamento Plurilegislativo?


Ora, é precisamente nesta parte final que a Escola de Lisboa e a Professora Magalhães
Colaço tecem as suas críticas mais duras, recorrendo à tal imagem do “americano em
paris” e dizem que, se obviamente acontecer esta situação, o artigo 20º dá uma solução
que deve ser interpretada restritivamente no sentido de só aplicar a lei da residência
habitual se esta se situar dentro do ordenamento plurilegislativo. Caso não o seja, há
aqui uma lacuna que pode ser integrada com base no artigo 28º da Lei da
Nacionalidade.

Este artigo 28º LN refere-se a um problema distinto dos dos ordenamentos


plurilegislativos, que é o do conflito positivo de nacionalidade, mas, segundo a
perspetiva daquela Professora, este artigo contribui com o seu raciocínio e deveremos

104
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

solucionar o nosso conflito procurando determinar dentro do ordenamento


plurilegislativo qual é o subordenamento com o qual tem uma relação mais próxima.
Portanto, a Professora Magalhães Colaço diz que só se poderia referir a lei da residência
habitual dentro do estado plurilegislativo. A solução passar por tentar procurar
subordenamento em que o indivíduo tenha uma conexão mais estreita.

Vamos supor o caso de um sujeito cidadão do Reino Unido (falecido em Portugal antes
do Regulamento. Aplicava-se a lei portuguesa). A regra de conflitos remete para a lei
nacional. Aplica-se a lei nacional ex vi art.º62. O Reino Unido não tem normas
unificadas. Art.º20 diz que se aplica a LRH. Residia em Portugal. Aplica-se a lei
portuguesa à abertura da sucessão. Magalhães Colaço entende que se deve fazer uma
interpretação restritiva – esta solução não dá, porque a LRH não é no Reino Unido.
Integrava-se a lacuna com art.º28 Lei da Nacionalidade. Ou seja, tínhamos que tentar
encontrar no ordenamento plurilegislativo algum elemento de conexão mais próximo.
Tínhamos que analisar o seu percurso de vida. Suponhamos que nasceu em Londres,
estudou em Oxford e casou em Manchester. Todos os elementos da sua vida pessoal
estão em Inglaterra. Não se vai aplicar a lei portuguesa, segundo a Escola de Lisboa.
Ferrer Correia discorda.

O que é que a Jurisprudência tem dito sobre esta questão? Qual das perspetivas
tem sido acolhida?

· Acórdão Relação de Évora e confirmado pelo STJ de 1994: mandou aplicar a lei
inglesa. Houve reenvio. Consideraram sempre que era aplicável a lei inglesa.
Generalização – nacionalidade inglesa. Crítica: pode ter ligação com outros
subordenamentos. Não se percebe bem qual foi o raciocínio.

· Acórdão Relação de Lisboa de 2017 que perfilha a posição de Magalhães Colaço:


aplicar a LRH não seria a melhor solução porque esta era fora do ordenamento
pluri-legislativo.

105
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Em 2018, o STJ veio dizer o contrário. Baseou-se em elementos históricos. Não aceita
que deva haver interpretação restritiva.

Os Regulamentos Europeus ignoram que a lei nacional seja aplicada? Os


Ordenamentos Jurídicos pluri-legislativos são mais comuns nas questões pessoais. As
conexões nos domínios das obrigações nunca remetem para a lei nacional. Nenhum dos
Regulamentos considerou o facto de as partes escolherem a lei nacional, nem a cláusula
de exceção. Partem do princípio de que as regras de conflitos partem de uma unidade
territorial. Devia haver expressa indicação de que quando as partes escolhem, deviam
escolher o subordenamento. Tem que haver individualização. Esta questão não ficou
totalmente resolvida.

11/11/2021

Vimos a figura da parte geral que está no art.20º CC.

A solução do art.º20 é a solução mais próxima do Regulamento do divórcio.

Diferente foi o Regulamento das Sucessões. Não se previu a hipótese de haver


referencia à lei nacional. Os problemas acabam por se resolver por si mesmos, no
sentido em que há identificação do elemento de conexão dentro do OJ plurilegislativo (o
problema morre aí).

Outra figura que vamos estudar da Parte Geral está prevista no 21º do CC: figura da
fraude à lei.

Art.º21 CC – Figura da Fraude à lei

Não resulta de nenhum Regulamento Europeu. Esta figura é conhecida no DIP, está
sempre omnipresente e é simples a sua solução (talvez por isso o legislador não quis
incluir em RE). A fraude à lei é sempre uma ofensa indireta a uma norma legal ou
comando jurídico. Essa ofensa indireta já é conhecida no direito material. Tomemos
como exemplo uma norma imperativa do CC – exemplo: art.º877 CC (tem forte
incidência familiar e sucessória). Tem natureza jurídica sucessória. A venda de pais a

106
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

filhos sem consentimento de outros filhos é nula. Suponhamos o indivíduo A com filhos
B e C. Se A vender a B; e C não consentir, há violação direta do art.º877. É violação
direta de norma imperativa. Não há fraude à lei.

Contudo, o A pode doar a B, mas A recebe o preço. É uma simulação relativa. Não
houve doação nenhuma, houve recebimento do preço. O NJ dissimulado pode ser
considerado válido dentro das condições que a lei impõe. Temos uma violação indireta.
Mas ainda não é fraude. A fraude existe se A vende a D, que vende a B. Aqui sim, há
uma situação de fraude à lei. Há uma violação indireta da norma material do art.º877
CC. Em DIP só podemos ter fraude quando o objeto não é norma material, mas
regra de conflitos. O seu objeto é uma regra de conflitos. É esta regra de conflitos que
é defraudada. Se este é o objeto, o seu objetivo último é fugir a uma regime material,
para ficar submetido a um regime material mais favorável. A regra de conflitos não
afeta diretamente a esfera jurídica do sujeito. Pretendem fugir do regime jurídico
aplicável pela regra de conflitos, querem que seja aplicada outra lei/ regime
jurídico mais favorável.

A fraude à lei em DIP distingue-se da fraude à lei em geral. O seu objeto é a


violação de norma de conflitos. Os elementos são o animus fraudandi (tentativa de
contornar um regime material. Trata-se do elemento subjetivo – intenção fraudatória) e
o elemento objetivo que é a manipulação com êxito do elemento de conexão (vai
permitir que, em vez aplicar lei X, aplica Y).

Os elementos de conexão que são mais suscetíveis de serem manipulados com


êxito são os móveis, como a residência, nacionalidade, localização dos móveis. Quando
dizemos que são mais fáceis de manipular, queremos dizer que é mais fácil resultar na
aplicação de uma lei diferente). Contudo, também é possível manipular os elementos de
conexão móveis, mas que estejam imobilizados. Por exemplo, basta adequar o tempo da
celebração do casamento ou do contrato em relação ao elemento de conexão móvel e
direcionar a residência que se tem e conseguir que a lei aplicável seja a que se pretende.
Exemplo: A residência habitual –ao tempo da celebração do casamento – direcionar a

107
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

residência que se tem nesse momento e conseguir que a lei aplicável seja a que se
pretende.

Até os elementos de conexões imóveis podem, de alguma forma, ser suscetíveis


de serem influenciados pela vontade das partes. Exemplo: lugar da celebração do
negócio ou transformação de imóveis em móveis.

A figura da fraude já tem largos anos de jurisprudência e há um caso que


ocorreu no século XIX que se tornou exemplo de fraude à lei em DIP. É o caso
conhecido da princesa de Beauffremont que pretende casar o príncipe romeno Bibesco.
A princesa era separada judicialmente e pretendia obter divórcio para casar com o
príncipe romano. O direito francês (que era o direito da nacionalidade, logo, lei
aplicável) não lhe permitia o divórcio, e, então, ela naturalizou-se na Alemanha porque
a lei alemã já permitia o divórcio. Assim, casa com o príncipe e mais tarde o tribunal
superior francês entendeu que havia fraude à lei e anulou o casamento. Com isso
produziu o efeito típico da fraude à lei. Considerou que mudança de nacionalidade não
era séria e visa um objetivo único que era a obtenção de divórcio que não lhe era
permitido pela lei francesa e, assim, conseguir o casamento.

O Tribunal francês ignorou a mudança de nacionalidade. Ou seja, tudo se passa


como se não tivesse mudado de nacionalidade e esta manipulação vai ser ignorada. A
manipulação vai ser desconsiderada e tudo volta a ser como antes, antes da manipulação
em que o elemento de conexão remetia para a nacionalidade e consequentemente para a
lei francesa.

Este é o primeiro caso que vai fazer escola para a forma como a fraude à lei é
encarada e isso fica claro no artigo 21º.

Notem que o animus fraudandi tem de estar provado. Este artigo resume-se a
uma reposição da justiça conflitual. Para o artigo 21º é indiferente se a regra de conflitos
remete para a lei portuguesa ou estrangeira, como é indiferente o conteúdo da lei que
seria aplicável.

108
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Mais, para haver fraude à lei tem de existir criação de situações de facto ou de
direito. Por exemplo, mudança de nacionalidade é criação de nova situação de direito;
mudar de residência é criar uma nova situação de facto. Depois, estas novas situações
criadas serão desconsideradas.

Nesta questão de fraude à lei, é importante distinguir a verdadeira fraude de


situações de aparência de fraude. E ainda distinguir as situações em que a regra de
conflitos é de tal maneira flexível que parece que potencia situações de fraude que não o
são.

O caso aparente de fraude à lei é a situação em que alguém manipula a regra de


conflitos por julgar erroneamente que havia um regime jurídico aplicável que se revela
inexistente.

● Também não é caso de fraude à lei quando a manipulação é falhada e isso


acontece quando alguém manipula um elemento de conexão, mas a regra de
conflitos considera outro elemento de conexão.
● Também pode haver situações em que deixa de haver fraude por decurso do
tempo porque cria-se ligação efetiva com a nacionalidade.
● Outra situação é a situação da mera intenção fraudatória. Ou seja, quando há
uma intenção de ficar submetido a regime jurídico mais favorável, mas
estabelece-se uma ligação efetiva com determinado ordenamento jurídico. É o
que se passa com a lei pessoal das pessoas coletivas que é determinada pela sede
real.

A questão torna-se delicada quando é a própria regra de conflitos que acaba


por potenciar a fraude no sentido de ela própria permitir e potenciar essa procura
pelo regime mais favorável. É o caso da lei pessoal dos sistemas da incorporação ou da
sede estatutária. Ou seja, é própria regra de conflitos que o permite que as pessoas
escolham a lei que mais favorece os seus interesses.

109
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Acontece o mesmo com os contratos. Segundo o Regulamento de Roma I, as


partes podem escolher a lei aplicável às obrigações contratuais e não há qualquer
restrição nesta escolha.

Tudo isto pressupõe, no entanto, que não haja internacionalização fictícia.


Pressupõe que a situação seja ab initio internacional – que não esteja confinada nos
seus elementos de conexão a um ordenamento jurídico que, por força da escolha da lei
ou da fixação da sede estatutária ou da incorporação, se procure um ordenamento
jurídico estrangeiro e se transforme numa situação internacional.

Quanto à sede real, não parece para a maioria da doutrina que haja fraude à lei,
desde que haja elementos de internacionalização. Não parece que a mudança de sede
real possa constituir situações de fraude à lei, desde que haja conexão objetiva
internacional. Contudo, Lima Pinheiro entende que o lugar onde se reúne a
administração deve corresponder ao centro de gravidade dos interesses da empresa.
Entende que a ligação objetiva tem de ser qualificada. É uma opinião isolada, mas que
chama à atenção para que a sede real possa de alguma forma implicar essa ligação.

12/11/2021

RESERVA DE ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL

Surge necessariamente depois do artigo 21º do CC, não por acaso, mas porque
no artigo 21º o que se pretende é repor a justiça conflitual. Através da manipulação do
elemento de conexão, as pessoas quiseram mudar de lei.

Na reserva de Ordem Pública, as luzes estão a incidir só sobre a lei estrangeira.


Aqui, diferentemente da fraude à lei, é uma questão de ordem material. É uma
desconformidade insuportável entre o resultado de aplicação da lei estrangeira e os
princípios fundamentais do estado do foro.

Isto significa que se houver uma situação de fraude à lei, primeiro temos que
resolver o problema de fraude à lei para, no fundo, encontrar a lei aplicável.

110
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Se se concluir que é aplicável a lei do foro, nunca temos problema de reserva de


ordem pública porque o problema só se coloca relativamente à lei estrangeira. Primeiro
resolvemos o problema da fraude à lei. Se for aplicável a lei estrangeira, temos de
verificar se é compatível com o Estado do foro.

Isto é frequente, porque mesmo os Regulamentos Europeus têm as suas


cláusulas de reserva de ordem pública. Têm uma configuração relativamente parecida
com o artigo 22º do CC.

O nosso artigo 22º tem 1 solução que é muito mais consentânea com DIP e com
o princípio da paridade entre lei do foro e lei do estrangeiro. A reserva da ordem
pública tem uma necessária excecionalidade. Se a invocação da reserva de OP passar a
ser habitual, não excecional, podemos pegar nos sistemas conflituais e deitar ao lixo,
fazer tábua rasa do DIP.

Há princípio de paridade entre lei do foro e lei estrangeira em DIP. Travar


aplicação da lei estrangeira porque vai contra os valores fundamentais do estado do foro
só pode suceder numa situação de excecionalidade.

O que os regulamentos europeus vieram trazer de novo é que o foro dos


Estados-Membro não tem só princípios estruturantes que decorrem do seu sistema
jurídico interno, mas também estão sujeitos a princípios europeus. Quando falamos de
direitos europeus que falam da reserva de ordem pública do foro, o foro passa a ser do
Estado-Membro. E por isso estes têm de respeitar os princípios a que vinculam quando
entraram para a União Europeia.

Quando se diz que não se pode aplicar lei estrangeira porque a sua aplicação iria
levar a uma violação de valores fundamentais de reserva de ordem pública –
evidencia-se a excecionalidade, porque vai-se tentar encontrar a lei estrangeira
competente mais adequada. O recurso ao direito interno português será sempre
obrigatoriamente subsidiário.

A reserva de ordem pública é um conceito indeterminado, como vemos pelo


artigo 22º, que naturalmente terá de ser densificado e avaliado pelo julgador em cada

111
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

situação. Quando falamos da reserva da ordem pública, falamos do artigo 22º, mas este
refere-se apenas ao sistema conflitual. Mas também temos menção no CPC quanto ao
reconhecimento de decisões e atos públicos estrangeiros no artigo 980º CPC – refere-se
a duas ordens públicas: uma que diz respeito ao conteúdo material da sentença
estrangeira e outra que se designa ordem pública processual.

Este conceito indeterminado, que terá de ser densificado pelo órgão da aplicação
do direito, exige que se distinga entre ordem pública internacional e interna.

Ordem pública interna é o conjunto de normas imperativas do foro porque


servem interesses gerais da comunidade e não são supletivas.

Estas normas imperativas não podem ser todas consideradas nas situações
internacionais porque se assim fosse bastava que a lei estrangeira tivesse uma solução
que não era semelhante para travar a sua aplicação.

Ordem pública internacional comporta aquelas normas imperativas cuja


violação não seria tolerada pelo ordenamento jurídico interno mesmo numa
situação jurídica internacional.

Há quem discuta se nesta noção de ordem pública interna também temos de


incluir princípios gerais de direito como o princípio da boa-fé. É discutível
nomeadamente a propósito de modificar um contrato com base na alteração das
circunstâncias.

Outra questão muito discutível é a questão da legítima, de saber se os direitos


dos herdeiros legitimários são aqueles que não podem ser afastados por vontade do de
cujus. No nosso OJ, há direito à legítima. Mas noutros ordenamentos jurídicos pode não
haver ou estar previsto, mas regulado de forma diferente. O direito a legítima em
Portugal é regra de ordem pública interna porque é norma imperativa.

Resta saber se a sucessão regida por lei estrangeira, esta norma mantém
imperatividade internacional, travando a aplicação da lei estrangeira. A jurisprudência

112
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

divide-se. A maioria dos autores considera que a legítima não é ordem púbica
internacional pelo facto de ela não estar prevista na CRP.

Podemos concluir que o direito à legítima é norma imperativa que pertence à


ordem pública interna, mas nem tem consagração constitucional nem tem essa
incontestabilidade que permite dizer que quando for aplicável uma lei estrangeira que
não preveja o direito à legítima, que é prontamente aplicável essa regra de total
liberdade de disposição do património.

Circunscrição da figura da reserva de ordem pública

Para violar a reserva de ordem pública não basta que se viole um princípio
fundamental do direito privado. É preciso que ofenda de forma insuportável os valores
fundamentais.

Esta ideia de o sentimento ético-jurídico da comunidade ser abalado. Batista


Machado, diz que a solução material da lei estrangeira tenha produzido um incómodo
tal na comunidade jurídica que se torna um corpo poluente que é necessário expurgar
porque não pode ser admitido.

E quais são então os modos de atuação/as características da reserva de OP a que


o legislador deve atender?

1. EXCECIONALIDADE

Só em situações excecionais é que podemos travar aplicação da lei estrangeira.


Isso justifica que reduto da OPI seja muito mais pequeno e estreito do que opi – senão
aplicávamos lei estrangeira só quando ela fosse idêntica a lei do foro.

2. ATUALIDADE

O sentimento ético jurídico da comunidade que é beliscado pela aplicação de 1


solução jurídica estrangeira implica 1 atualidade. Essa desconformidade tem de ser
contemporânea da decisão.

113
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

3. NACIONALIDADE

Esta característica só é verdadeira relativamente ao artigo 22º. No caso dos


regulamentos europeus, o que está em causa é talvez a tal ordem pública europeia. Há
várias decisões sobre isto. Mas há uma relativamente recente que tem a ver com
conceito de casamento – acórdão Coman do TJUE.

Era um casal do mesmo sexo. Um membro do casal tem dupla nacionalidade: é


americano e romeno. Casam e decidem ir morar para a Roménia e pede visto que é
atribuído automaticamente aos cônjuges. Mas a Roménia não reconhece casamento
homossexual. Neste acórdão, TJUE disse ao estado romeno: podem utilizar a reserva de
ordem pública, mas têm de o fazer de uma forma restritiva quando estiver em causa o
gozo dos direitos ou liberdades instituídas nos tratados. O facto de a autoridade romena
ter de aplicar a diretiva, não contende com a autonomia que o Estado romeno tem para
reconhecer ou não o casamento.

4. CONCRETA

A reserva da ordem pública tem de ser vista no caso concreto e na aplicação do


caso concreto. Ou seja, não se pode deixar de aplicar uma lei só porque, em abstrato, ela
seria contrária aos valores fundamentais.

5. PROXIMIDADE COM O FORO

A situação sub judice tem de ter uma ligação com estado do foro que seja
relevante ao ponto de provocar esse sentimento de incómodo.

Isto só não será assim nas situações que doutrina designa por princípios
absolutamente internacionais. Seriam princípios universais – tipo escravatura,
perseguição racial. Independentemente da relação da situação sub judice com
ordenamento jurídico do foro, tribunal não podia aplicar aquele tipo de solução que
ofendia princípios universais.

114
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Aplicação da reserva de ordem pública pelos tribunais portugueses

Temos decisões bem fundamentadas que respeitam os pressupostos da reserva da ordem


pública, mas outras não.

Olhando para a nossa jurisprudência, há algumas decisões que são contestavelmente


erradas, que revelam uma ignorância e desconhecimento dos pressupostos da reserva da
ordem pública e do entendimento da questão.
· Ac. STJ 25/05/1982
· Ac. STJ 15/05/1973

A primeira decisão é sobre divorcio por mútuo consentimento. A segunda é


divórcio litigioso. O primeiro acórdão é regulado pela lei escocesa. E o segundo acórdão
é regulado pela lei alemã. A lei escocesa não previa um hiato temporal semelhante ao
direito português, entre a data de celebração do casamento e o divórcio por mútuo
consentimento. À data, o direito português previa esse hiato temporal. Esse tempo não
foi respeitado porque lei aplicável escocesa não o exigia.

E o Tribunal não aplicou a lei escocesa por haver esta dissemelhança.

No segundo Acórdão, divórcio apreciado pela lei alemã previa um fundamento


que não era fundamento de divórcio previsto na lei portuguesa. Por causa dessa
dissemelhança, entendeu o tribunal que não podia conceder divórcio por violação da
reserva de ordem pública.

O problema das duas decisões: não se faz apelo à violação dos princípios
fundamentais da ordem pública, mas é mera constatação que a solução jurídica
estrangeira era diferente da solução jurídica portuguesa. Na reserva de ordem pública
tem de ser distinta de uma forma que viola os princípios de ordem pública
internacional. Porque é que aquelas questões são estruturantes para o ordenamento
jurídico português.

Depois temos acórdãos sobre o problema da consagração da legítima e


sucessão legitimária.

115
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

São princípios de ordem pública interna – no nosso ordenamento, cônjuge,


ascendentes e descendentes têm direito a uma parte da sua herança. Há mecanismos
para defender essa sucessão. Isso não sucede noutros ordenamentos ou não sucedem do
mesmo modo.

É norma de ordem pública interna. Neste sentido, temos o Acórdão da


Relação de Évora de 20/10/93 que foi confirmado pelo ac. STJ 27/09/94.

Aqui o tribunal considerou que a legítima não era princípio de ordem pública
internacional, mas não foi muito claro. O que disse foi que a situação sub judice não
tinha uma relação com o foro suficiente para justificar a invocação da reserva de ordem
pública. Tínhamos aqui o de cujus que vem a falecer em Portugal, vem passar reforma
em Portugal. Tinha feito testamento no Reino Unido, em que deixava tudo à sua 3ª
mulher, que seria herdeira universal dos seus bens. Afastou os filhos que tinha do 1º e 2º
casamento. Filhos são cidadãos do Reino Unido, a 3ª mulher também e ele também. O
tribunal português era competente para decidir a sucessão porque ele tinha os bens em
Portugal. E residiu em Portugal nos últimos anos de vida.

O Tribunal considerou que não havia ligação com o foro suficiente, porque nem
a residência na última parte da sua vida lhe parecia justificação para elevar o princípio
da legítima à reserva de ordem pública internacional.

Este raciocínio acabou por ser confirmado pelo STJ.

Temos uma decisão radicalmente oposta no Acórdão da Relação de Lisboa de


7 março 2017, que depois foi confirmada pelo acórdão STJ 16/05/2018.

Esta situação já tinha com o foro uma ligação mais próxima.

Neste caso, duas filhas eram portuguesas e outra tinha dupla nacionalidade. A
legítima é princípio estruturante da nossa ordem jurídica e defesa dos herdeiros

116
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

legitimários (filhas portuguesas) tinha de ser feita e não se podia aceitar decisão do
direito estrangeiro, ainda que competente, que recusasse tal proteção como herdeiras
legitimárias.

Esta decisão foi confirmada pelo STJ, mas confirmação pelo STJ não atingiu a
questão da legítima. STJ considerou, neste caso, que lei aplicável não era lei do Reino
Unido, mas lei portuguesa. O tribunal seguiu a posição da interpretação literal do Ferrer
Correia quanto ao artigo 20.º - apesar do de cujus ser cidadão do Reino Unido, como era
residente em Portugal, e na falta de direito interno local unificado no Reino Unido, tinha
de se aplicar lei da residência habitual; e sendo residência habitual em Portugal, tinha de
aplicar lei portuguesa. Ao aplicar lei portuguesa, questão da reserva de ordem pública
cai por base.

Há acórdão em sentido também diferente – Ac. da Relação de 19/11/2019.


Mais uma vez, a legítima de um cônjuge moçambicano, sendo que esta situação era
regulada pela lei moçambicana. O cônjuge não era, em Portugal, herdeiro legitimário
até 1977. O CC vigente em Moçambique na parte das sucessões é aquele que resulta do
CC 1966 português sem a reforma de 1977 – em que cônjuge não é herdeiro legitimário.
Tribunal considerou que essa era uma solução do direito moçambicano que tinha de
respeitar – diz que a legitima não é um princípio estruturante da ordem pública
portuguesa, é apenas opção do legislador ordinário; nem tem consagração
constitucional, diz ele; pelo contrário, a CRP consagrava a propriedade privada e livre
transmissão por morte do património dos bens.

Considerou que não pertencia ao âmbito da legítima.

Depois temos uma decisão surpreendente: Acórdão STJ 15/01/2015. É uma


questão sucessória. Um casal vivia em união de facto no Brasil. Ele é português e ela
brasileira. Têm bens espalhados pelos dois países e ele não tem mais herdeiros senão
irmãos. Não era casado, não tinha ascendentes vivos e não chegou a ter filhos. Tinha

117
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

irmãos, que são herdeiros legítimos. Mas a união de facto no nosso ordenamento não
produz efeitos sucessórios. E nesta decisão a companheira sobreviva, ao abrigo da lei
brasileira que regula a união de facto, vinha invocar direitos sucessórios, porque a lei
brasileira lhe confere esses direitos sucessórios. O tribunal diz que a união de facto em
Portugal não produz efeitos sucessórios – se atribuísse efeitos sucessórios provocaria
diferença de tratamento em Portugal que é intolerável e ofende a ordem pública
internacional do Estado português. Mas o tribunal esquece-se que: não é a mera
diferença que está em causa na reserva de ordem pública, tem de ser mais do que isso. E
esquece também que a sucessão legítima, se fosse aplicável a lei portuguesa, eram
exercidos como sucessão legítima, como herdeiros legítimos – e estes têm uma
invocação sucessória que é meramente supletiva, que pode ser afastada pelo de cujus.

Mais uma vez, a decisão não foi precisa na consideração da ordem pública.

Acórdão da Relação 18/10/2007:

Tem que ver com uma confirmação de sentença estrangeira de divórcio,


proferida por tribunal em Marrocos com base no direito islâmico – pedido de divórcio
por repúdio da mulher exercido pelo marido que é confirmado pelo tribunal. O direito
marroquino tem regras, à época, de repúdio sem invocação de motivo. Até pode ser
proferido perante um ente religioso, mas é confirmado por tribunal, por aplicação do
direito marroquino, que, relativamente aos cidadãos muçulmanos, tem regras
específicas. A mulher não tem idêntico direito de repúdio do marido. Mas no direito
marroquino ela pode opor-se e isso tem algumas consequências.

Este Acórdão reflete um processo de revisão e confirmação de sentença


estrangeira de reconhecimento deste divórcio por repúdio. E o tribunal considerou que
não tendo havido oposição da mulher - considerou que se tratava, ao fim ao cabo, de
uma figura muito próxima de um divórcio unilateral. O tribunal considera que na sua
aplicação em concreto este repúdio funcionou assim, porque a mulher não se opôs.
Mais, admite que em abstrato a norma do direito marroquino é violadora do princípio da

118
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

igualdade (porque mulher não tem esse direito), mas que na sua aplicação no caso
concreto, não foi assim, porque ela não se opôs.

O tribunal acaba por invocar a ordem publica atenuada, porque se tratava de um


mero reconhecimento.

Contudo, esta decisão não é pacífica e há autores que dizem que há razões para
invocar a reserva de ordem pública!

Há outro Acórdão da Relação de 19/11/2019 – foi divórcio por repúdio


também. Foi feito no Bangladesh perante notário e a mulher e os filhos não são ouvidos.
Tribunal considerou que havia, neste caso, uma violação da ordem publica
internacional processual, por falta do respeito pelo princípio do contraditório. Esta
decisão só peca porque nem sequer podia haver processo de revisão e confirmação de
sentença estrangeira. Não sendo ato publico estrangeiro sequer, não devia sequer ser
sujeita a processo de revisão e confirmação.

19/11/2021

Os conflitos de sistemas de direito internacional privado:

a devolução ou reenvio

A partir do momento em que temos uma forte europeização do DIP com a


substituição de muitas das regras de conflitos internas pelas dos RE. Ora, o legislador
europeu decidiu incluir regras especiais de reenvio em cada um deles, pelo que nos
tribunais portugueses devem aplicá-los. Note-se que na maioria dos casos, exceto no
regulamento das sucessões, não se admite reenvio.

119
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Em resumo, as regras do reenvio que vamos estudar- artigo 16º a 19º CC- só vão
ser aplicadas se estiver em causa uma matéria que é tratada conflitualmente ainda pelas
regras de conflitos do CC. Nos restantes casos, como vão ser aplicáveis os RE, as regras
a aplicar serão as desses regulamentos.

REENVIO

O que é o reenvio? Falamos de um problema de interpretação da regra de


conflitos. Quando numas aulas atrás, no âmbito da apresentação da Parte Geral do DIP,
debruçamo-nos sobre problemas gerais e, quanto à interpretação das próprias regras de
conflitos, dissemos que isto é, no fundo, tratado pelas questões do reenvio e da
qualificação que não deixam de ser pressupostos hermenêuticos da própria regra de
conflitos.

Na matéria do reenvio, tudo passa pela estatuição que remete para aplicação de
lei. O que consideramos lei? Se as normas materiais de esse OJ, das normas materiais
dessa lei estrangeira ou se estamos a falar das regras de conflitos da lei estrangeira. É
sempre feita para um OJ. Esse OJ comporta regras processuais, substantivas, regras de
direito internacional privado. Essa referência, se for feita as regras de DIP pode resultar
num problema.

L1 é a lei do foro. Quando resolvemos problema de regra de conflito,


colocamo-nos no ponto de vista da lei do foro. Antes de resolvermos o litígio, como a
questão é internacional, podemos decidir qual a regra aplicável. Nós vamos pensar
“somos o juiz e temos de resolver problema de uma relação privada internacional”.
Temos que saber à luz de que lei vamos oferecer uma resposta substantiva. L1 é a lei do
foro ou a lei do Estado onde esta órgão de aplicação do direito. O órgão jurisdicional
competente vai decidir. Como a questão é internacional, importa fazer apelo às regras de
conflitos, para ver qual a lei aplicável. L1 remete para L2. L2 é a lei aplicável pelas
regras de conflito do foro. Portanto, para iniciarmos uma situação de reenvio, a lei do
foro tem de remeter o tratamento da questão jurídica para uma lei estrangeira.

120
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Ora, mas tudo depende de como vamos entender esta remissão: vou entendê-la
como referência material ou também para o DIP da lei estrangeira. Pode acontecer que a
lei nacional que consideramos competente pode ter uma solução conflitual que
considere que é aplicável a lei da residência habitual. Bem, o interessado pode residir
em L1 ou, até, em L3.

Mas porquê que vamos agora considerar o sistema conflitual estrangeiro?

Isto não é desvirtuar o sistema conflitual?

O problema surge porque os sistemas conflituais são diferentes de OJ para OJ.


Savigny imaginou um sistema conflitual em que isto não aconteceria, aliás, para que
isto não acontecesse porque, na sua origem, a sede da relação jurídica seria sempre a
mesma sede, pelo que para qualquer ordenamento jurídico a lei aplicável seria sempre a
daquela sede invariável- havia sempre harmonia jurídica internacional. Esta ideia de
harmonia jurídica internacional, ou como os regulamentos designam por coerência
internacional, era o fim último do sistema conflitual.

O problema das relações privadas internacionais derivava do facto de serem


tratadas materialmente de forma diferente de OJ para OJ. Se os pressupostos da
responsabilidade extracontratual fossem iguais em todos os ordenamentos jurídicos, este
problema não se colocava, por exemplo. As relações privadas internacionais vão-se
revelar inseguras. Há insegurança jurídica e problema de continuidade.

Tudo ficaria resolvido de uma forma mais satisfatória se todos tivessem a


mesma solução jurídica, mas não o tendo existe o sistema conflitual que iria tender para
aquela harmonia internacional, mas isto não aconteceu porque Savigny partiu de um
modelo em que todos mandariam aplicar a mesma lei e, pelo menos, existiria
harmonização conflitual.

A realidade e a História provaram que o sistema não funcionava assim porque


cada ordenamento jurídico foi evoluindo e as próprias regras de conflitos deixaram de
olhar só para objetivos de proximidade, refletindo até objetivos de ordem material e, ao
fazerem isso, naturalmente que passaram a ser distintas e cria-se a tal desarmonia

121
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

jurídica internacional. Ou seja, cada ordenamento jurídico, através do seu sistema


conflitual, pode aplicar lei diferente.

Está outra vez instaurado o caos. Existem duas soluções possíveis:

(1) Estimular a que todos tenham as mesmas soluções conflituais:

a. Através de processo convencional e aqui salienta-se a importância


da Convenção de Haia de DIP. Temos dois tipos de limitação:

i. Liberdade de adesão: os Estados são


livres de ratificarem convenções ou não; e

ii. Em segundo lugar, normalmente as


Convenções só se vão aplicar quando a
relação privada internacional em apreço
tenha pontos de contacto com os Estados
que a tenham ratificado;

b. Através da criação de espaços jurídicos alargados: é o caso da UE,


pelo que se salientam aqui os Regulamentos Europeus. Ora, pelo
menos entre os estados-membros da UE, aquela desarmonia terá
tendência a desaparecer, já que aqueles regulamentos vêm tornar
comum a solução conflitual para determinadas matérias e isso valerá
para todos os estados-membros. Portanto, os regulamentos europeus
nem sequer levantam, pelo menos nas relações entre os
estados-membros, esta questão do reenvio.

É claro que isto não é totalmente assim porque os regulamentos


são de aplicação universal e a lei aplicável pode ser a de um estado
terceiro e aí a questão permanece porque nada nos garante que esse
terceiro tenha a mesma solução jurídica que o Regulamento.

E quando isto não é possível ou tem limitações?

(2) O Reenvio: é uma forma de se alcançar a harmonia internacional quando há


diversidade conflitual entre os vários ordenamentos jurídicos. O reenvio o que vai

122
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

fazer é colocar-se de acordo com o sistema conflitual estrangeiro para o qual a


regra de conflitos remete.

O reenvio não é uma solução, é um problema, pelo que os Estados podem dizer
que não fazem reenvio e isso será uma resposta ao problema do reenvio, pelo que um
sistema que não faz reenvio é um sistema que olha para L1 e averigua que esta remete
para L2- ora, esta referência será apenas material- é esta a solução de quase todos os
Regulamentos Europeus.

Já os sistemas que admitem o reenvio vão ter outras designações, consoante a


sua aceitação do direito conflitual estrangeiro seja mais ou menos ampla.

Colocar-se de acordo com essa lei vai-se conseguir pela admissão do reenvio. Quando
os Estados não fazem reenvio, interpretam a sua regra de conflitos que só se refere
somente a título material da lei estrangeira. Olha para a L1 e só atende à
materialidade. Exemplo: validade do casamento, art.º49. Referência material (RM) à
lei estrangeira. À L2 vamos buscar normas sobre impedimentos matrimoniais dessa lei.
Não vão querer saber se a lei nacional se considera competente. Se a lei for colocada
nos Tribunais e for diferente, isso é com eles. O que interessa é que para eles e
competente e vão ver solução material.

Já os sistemas que admitem reenvio vão ter outras designações consoante a sua
aceitação do sistema conflitual estrangeiro seja menos ou mais amplo. Pode ser
aceitação com limites ou mais aberta.

Modalidades de reenvio:

Vamos agora concretizar, com uma hipótese, para determinarmos quais são
as modalidades de reenvio existente:

A é senegalês, reside atualmente no Porto, e pretende casar com B, portuguesa, que é


sua prima direita (colateral no 4º grau); dirigem-se à conservatória de registo civil,

123
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

declaram que querem casar e dar início ao processo preliminar de casamento- neste
caso, o Conservador do registo civil do Porto é o órgão de aplicação do direito, pelo
que a lei portuguesa será (L1). Se ignorássemos a nacionalidade do nubente, este
casamento seria válido, já que aquele parentesco não constitui impedimento
matrimonial.

No entanto, temos aqui um cidadão estrangeiro, pelo que a sua lei pessoal pode ter
uma previsão diferente quanto aos impedimentos- artigo 49º e 31º nº1 CC -, o que nos
remete para L2 (lei do Senegal). Ora, no âmbito desta lei existe impedimento
matrimonial.

Pode acontecer, no entanto, que aquela resposta pode não ser definitiva porque a
Conservadora vai ter de pensar se a lei nacional de A se aplica a si própria, já que nos
termos do artigo 16º a 19º CC, em alguns casos, se admite reenvio.

Acontece que com o resultado da aplicação do DIP senegalês, se vem a concluir que
a lei que o Senegal aplicaria seria a lei da residência habitual, ou seja, L1. Isto significa
que:

o Se não fizermos o reenvio, o casamento não pode ser celebrado;

o Se, pelo contrário, nós aceitarmos a solução conflitual do Senegal,


aplicaremos a lei portuguesa e o casamento já poderá ser celebrado.

No fundo, o essencial, é conseguir por via do reenvio a harmonia


internacional, na medida em que este mecanismo a permite ao aceitar o sistema
conflitual estrangeiro para que a lei aplicável seja a mesmo num país e no outro.

Evidentemente que a situação poderia ser outra e não se tratar da permissão do


casamento, mas de uma situação em que eles já estavam casados, vieram residir
para Portugal e a validade do casamento é questionada por algum motivo. Eles
casaram no Mali- vamos supor que a regra de conflitos do Senegal não remete para
o lugar da residência habitual, mas do local da celebração do casamento, ou seja, L3
(Lei do Mali).

124
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Se Portugal se quer colocar de acordo com a solução dos outros ordenamentos jurídicos,
vai questionar a L2. Se se quer por de acordo com os demais sistemas, vai aplicar L3.
Como vimos que Portugal quer aceitar a lei aplicável em L2, o tribunal iria questionar a
regra de conflitos do Senegal. Ora, se o tribunal português quer adotar a mesma solução
que os demais sistemas, vai aplicar também L3.

Estes exemplos mostram as duas modalidades de reenvio:

RETORNO ou de TRANSMISSÃO DE COMPETÊCIAS.

As duas modalidades são alternativas, não podem acontecer ao mesmo tempo.

(1) De retorno- artigo 18º CC: L1- L2- L1

Pode existir o chamado reenvio indireto: Temos como elementos o seguinte: L1


(lei da residência habitual); L2 (Lei nacional); L3 (lugar da celebração do casamento);
vamos supor que a L3 considera que a validade do casamento é regulada pela lei da
residência habitual, ou seja, L1- aqui continuamos a ter um problema de retorno, mas
este retorno é indireto.

Mas se L3 remetesse para L2 não temos retorno, mas sim uma transmissão de
competências porque o que interessa é o ponto de vista do órgão de aplicação do
Direito.

(2) Transmissão de competências- artigo 17º CC: L1-L2-L3

L1 – L2 – L3: modalidade de transmissão de competências

Evidentemente, pode existir retorno indireto. Vamos supor que A é senegalês e


casou no Mali e vive no Porto. O sistema senegalês considera que o problema da
capacidade matrimonial é regulado pela lei do lugar da celebração do casamento (L3).

125
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Vamos supor que a L3 considera que a validade é regulada pela Lei da residência
habitual (LRH) que é L1. É um retorno indireto, mas no final voltamos à lei do foro. Se
L1 remete para L2 e volta para L1 temos retorno. Se temos L1- L2 que remete para L3
são transmissão de competências. Se L3 volta para L1 é retorno indireto.

Segunda pergunta mais comum é: mas isto na transmissão de competências


nunca mais acaba? Pode ser L3 – L4 – L5…? Porque é que há transmissão de
competências? Porque há diversidade conflitual. Para cada questão jurídica, os
elementos de conexão são infinitos? Não. Como as regras de conflito estão cada vez
mais especificadas, para cada questão há elementos de conexão cada vez mais limitados.
Não haverá muita dispersão de elementos de conexão para cada questão jurídica. Nas
obrigações contratuais, entre a LRH e a lei escolhida por ambos também não haverá
muita diversidade. Assim sendo, a hipótese aterradora de L1 remeter para L2, que
remete para L3 e esta para L4 que, por sua vez, remete para L5 é pouco plausível. Para
L4 pode acontecer nas questões relacionadas com pessoas coletivas.

Suponhamos que: L1 – L2 – L3 – L2. A regra de conflitos da L2 considera que


é competente a L3. Comum acaso, o sistema conflitual de L3 remete para L2. A
situação é tão internacional que está conexionada com estes sistemas todos. Se L3
remete para L2, não temos retorno, nem indireto. Temos transmissão de competências
na mesma! Do ponto de vista de L1, que é o que nos interessa, é uma transmissão de
competências. A norma a aplicar do Código Civil seria a do art.º17 CC. Só temos
retorno quando a última lei do circuito retoma para a lei do foro.

Até agora vimos o que significa o reenvio, os objetivos e o que se pretende alcançar.
Reenvio pode ocorrer numa situação de retorno ou transmissão de competências. Os
sistemas podem optar por reenvio de várias intensidades (ser mais ou menos
favoráveis ao reenvio).

Três modelos de reenvio:

O artigo 16º CC é uma norma interpretativa e diz-nos que o sentido de uma


regra de conflitos bilateral quando faz referência a uma lei estrangeira é o de se tratar de

126
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

uma referência material. O art.º16 diz que “não há reenvio, salvo se houver”. Direito
interno aqui significa direito material. Não é a acessão do art.º20.

A questão do reenvio não pode ser vista como uma questão dogmática. Vamos
fazer reenvio se com isso tivermos a harmonia jurídica internacional que deve existir.
Temos um reenvio que cede determinados interesses.

No entanto, se lermos os artigos 17º e 18º CC, vemos que afinal há reenvio em
Portugal - temos aqui um reenvio instrumento, quer serve determinados interesses mas
que, ao fazê-lo, acaba por ser a regra, uma vez que o “quando for necessário” é
entendido como “se se conseguir a harmonia jurídica internacional”. Daí que seja
importante salvaguardar-se que a Professora considera as classificações seguintes
redutoras, já que o sistema português não se consegue incluir completamente em
nenhuma das seguintes categorias.

(1) Isto visto, o artigo 16º CC, sozinho, reflete um sistema de referência material
(RM) à lei estrangeira quando se refere a “direito interno dessa lei”. Este é o sistema
aplicado em quase todos os Regulamentos Europeus, exceto o das Sucessões.

(2) Temos, depois, um sistema que já é favorável ao reenvio- referência global ou


Devolução simples (DS): quando a regra de conflitos remete para uma lei
estrangeira, também aceita a solução conflitual dessa lei estrangeira e, com isso,
coloca-se de acordo com as outras leis do circuito.

Mas este reenvio é limitado porque apenas se refere ao sistema conflitual de L2.
Ora, como já vimos, L3 pode remeter para L4. Neste caso, aplicando-se este sistema,
aplicar-se-á logo L3 porque só temos em conta L2 e, deste modo, a harmonia jurídica
não é totalmente conseguida, já que se a questão for colocada num tribunal L3, este vai
aplicar L4.

A única hipótese de conseguirmos a harmonia total era se L2 também tivesse um


sistema de devolução simples porque e se, quando L1 faz uma referência global a L2,
fizesse uma referência global dupla porque também aceitará o seu sistema de reenvio, já
que L2 iria remeter para L3 que, pelo seu lado, remeteria para L4 e esta seria aplicável

127
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

por L1 já que L2 tem aquele sistema de devolução simples para o qual também se
referiu.

Portanto, quando se faz uma referência global a L2, é uma referência global dupla ou
devolução dupla que significa não apenas atender ao sistema conflitual, mas ao sistema
de reenvio também.

25/11/2021

Temos muitos ordenamentos jurídicos que aderem a estes modelos tipo.

1º Sistema – referência material à lei estrangeira (RM)

A referência que a regra de conflitos faz a uma lei estrangeira é somente às normas
materiais. Portanto, se L1 remete para L2, se essa lei estrangeira não se considerar
competente remeter para L3, L1 continua a aplicar L2 porque não remete para o sistema
conflitual de L2 (remete apenas para as suas normas materiais).
Inconveniente: falta de harmonia de julgados.

2º Sistema – sistema de devolução simples (DS) ou referência global à lei


estrangeira

Isto significa que quando L1 remete para L2, não aplica apenas às regras materiais de
L2, mas também as suas regras de conflitos. Por isso, temos o caso do Regulamento das
Sucessões em que se diz que a referência a uma lei estrangeira inclui as suas normas de
DIP.

Nessa situação, L1, se for uma lei de devolução simples, considera competente L2.
Imaginemos que L2 remete para L3. Sendo L1 uma lei de devolução simples, vai aceitar
a referência de L2 para L3 e, portanto, L1 vai aplicar L3.

128
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Supondo que L3 também não se considera aplicável e considera aplicável L4. Como a
referência de L1 é apenas às regras de conflitos de L2, então vai-se aplicar L3 (porque
L2 manda aplicar) e não se aplica L4.

Este sistema consegue alguma harmonia de julgados, mas não todo porque, apesar de
L1 aplicar L3 (porque referência à regra de conflitos de L2) e L2 também aplicar L3, L3
vai aplicar L4.

Ou seja, L1 não vai para além da aceitação da Regra de conflitos de L2.

3º Sistema – sistema de devolução dupla (DD) ou referência global dupla ou foreign


court theory

A Teoria do Tribunal Estrangeiro significa que: quando um sistema é de devolução


dupla (DD), significa que o tribunal do foro vai fazer tudo aquilo que a lei estrangeira
competente fizer. L1 vai fazer o que o tribunal de L2 vai fazer. Ou seja, temos de nos
colocar em L2.

Esta referência global dupla significa que a referência à L2 não é apenas às suas normas
materiais nem é apenas às suas regras de conflitos: é também ao seu próprio sistema
de reenvio (de aceitação ou não aceitação de reenvio e em que modalidade). Por isso é
que se diz que L1 faz o que o tribunal de L2 fizer (e não o que a lei estrangeira fizer).
O que o tribunal vai fazer vai depender do seu sistema de reenvio.

Suponhamos que L1 segue o sistema de devolução dupla (DD). Suponhamos que L1


remete para L2 e que L2 remete para L3 e que L3 remete para L4. Provavelmente, não
haverá esquemas de transmissão de competências com mais de 4 leis (porque para a
mesma questão jurídica não há assim tantos elementos de conexão diferentes. Vimos
mais atrás esta ideia).

129
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

L1, se faz uma referência global dupla (DD) a L2, vai considerar as suas normas
materiais, as suas regras de conflitos (que mandam aplicar L3), mas também vai
considerar o sistema de reenvio de L2.

Vamos considerar que L2 é sistema de referência material (RM). Neste caso, L2 remete
para L3. Ora, L1, como faz uma referência global dupla (DD) a L2, aceita totalmente a
solução de L2. Portanto, se L2 faz referência material (ou seja, não admite o reenvio) a
L3, significa que L1 vai aplicar L3 (mesmo que L3 remeta L4; porque L2 não admite o
reenvio).

Vamos considerar que L2 tem o sistema de devolução simples (DS). Que lei é que L2
aplica? L4. Se L1 é um sistema de devolução dupla, faz o que L2 fizer. Então, L1 vai
aplicar L4, pois L1 aceita o sistema de reenvio de L2.

Vamos considerar que L2 é também um sistema de dupla devolução (DD). Significa que
L2 vai fazer o que L3 fizer. Portanto, temos de nos colocar como se fossemos o tribunal
de L3.

Aqui, provavelmente, será indiferente porque, em algum momento, L4 vai-se considerar


competente ou remeter para L3.

Vamos supor que L4 remete para L3. Ou seja, L1 - L2 - L3 - L4 - L3. Se L2 é um


sistema de dupla devolução, então depende do sistema de devolução de L3. Se L3 for
um sistema material, aplica L4 (mesmo que L4 remeta para L3, porque L3 é de
referência material). Se L3 for um sistema de devolução simples, então L3 vai se aplicar
a si própria, pois L4 remete para L3 (e como L3 é um sistema de devolução simples,
significa que vai aceitar as normas materiais e as regras de conflitos de L4, mas não o
seu sistema de reenvio; como tal, como L4, pelas suas regras de conflito, vai aplicar L3,
então L3 aplica-se a si própria). Então, L1 vai aplicar L3.

130
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

E se L3 for de devolução dupla? Aqui chegamos a um problema que é o de devolução


dupla eterna. Isto é o grande problema. Por isso é que não há muitos sistemas de foreign
court law (só os países de common law).

O sistema português de devolução

O que nos interessa é saber é que sistema de reenvio é que o OJ português adota. O
nosso sistema não segue o modelo típico. É um modelo suis generis que normalmente
remete para uma lei que aplica um daqueles sistemas tipo.

Agora, vamos olhar para L1 como se fosse a lei portuguesa. Nós não temos nenhum
daqueles 3 sistemas que vimos. Vimos estes modelos porque eles podem aparecer no
circuito. Agora, vamos colocar-nos na perspetiva L1, sendo que o que vamos considerar
são as regras do art.º 16 ao art.º 19 do CC.

Aparentemente, o nosso sistema não parece muito complicado. Porém, tem as suas
voltas. Em primeiro lugar, no CC encontramos soluções diferentes para transferência de
competências e para retorno. O art.º 17 refere-se à transmissão de competências e o art.º
18 refere-se ao retorno.
Vamos supor que L1-L2-L3 e L3 considera-se competente. Quando terminamos de
preencher o circuito é que podemos colocar a hipótese do reenvio. Porque, à partida,
quando dizemos que L1 remete para L2, se não fizermos reenvio, aplicamos L2. Mas
como L2 pode fazer reenvio, podemos ter de aplicar L3. Esta é uma situação de
transmissão de competências - art.º 17.

Se, eventualmente, L1 - L2 - L1, teríamos uma situação de retorno. Esta situação


resolver-se-ia pelo art.º 18.

Ou seja, não aplicamos o art.º 17 e o art.º 18. Ou aplicamos um ou aplicamos outro.

131
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

O art.º 16 diz que somos um sistema de referência material, salvo se existir uma
situação de reenvio (art.º 17 e art.º 18).

O art.º 19 é a última norma a que devemos atender porque nos vem dizer que, mesmo
que seja desejável que haja reenvio porque os pressupostos do reenvio ou do art.º 17 ou
do art.º 18, há duas situações em que não podemos fazer reenvio:

· Se a lei designada pela regra de conflitos for a lei escolhida pelas partes;

· Se com o reenvio o negócio se tornar inválido ou a situação jurídica ineficaz,


quando era válida ou eficaz à luz da lei competente. Vamos supor que L1 - L2 - L3.
Suponhamos que o negócio é válido em L2, mas porque L2 não se considera
competente, vamos supor que aplicamos L3. E vamos supor que em L3 o negócio é
inválido. Então, aplicamos na mesma L2.

Assim, o favor negotti precede à harmonia subjacente ao reenvio.

26/11/2021

A compreensão dos modelos é muito importante para a aplicação do nosso


sistema do CC em matéria de reenvio. No final da aula passada vimos que as regras
sobre reenvio do CC só deverão ser consideradas quando a regra de conflitos de
que partem para resolver a questão jurídico-privada internacional é uma regra do
CC porque se estivermos a aplicar uma regra do regulamento europeu, aplicam-se as
regras de reenvio desse RE.

No final da aula passada, então, vimos que o artigo 16º CC começa por negar a
existência de reenvio. Mas os artigos seguintes- 17º e 18º CC- derrogam essa regra geral
e a sua aplicação nunca será coincidente entre si.

Artigo 17º CC- refere-se à transferência de competências:

o Nº1:

132
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Afasta-se de um sistema de devolução de solução simples. Neste sistema se L1,


tendo este sistema, refere-se a L2, aceita as suas regras materiais e de conflitos. Ora,
vamos supor que L2 manda aplicar L3 que, por sua vez, manda aplicar L4. Ora, tendo
L1 um sistema de devolução simples, aquela referência de L3 a L4 não vai relevar e L1
vai apenas respeitar a solução conflitual da lei que L2 considera competente e aplicar
L3.

Nesta situação não há muitas vezes harmonia de julgados, ou seja, o sistema de


devolução simples tenta a harmonia internacional de julgados e tudo poderá correr bem
se, por exemplo, L3 se considerar competente, mas pode não acontecer.

Ora, por causa disso, este artigo afasta-se deste sistema de devolução simples
e diz que: Se, porém, o direito internacional privado da lei referida pela norma de
conflitos portuguesa- L2- remeter para outra legislação- L3, daí ser transferência de
competências- e essa se considerar competente é de aplicar o direito interno dessa outra
legislação. Temos ilustrada a seguinte situação: L1-L2-L3 que se considera competente
para regular o caso.

Repare-se que nesta situação se vai realizar o reenvio, mas só nesta situação
porque o DIP português considerou que o reenvio só era excecionalmente admissível se
se criar a harmonia internacional de julgados.

No sistema de devolução simples, pelo contrário, se L3 remeter para L4 ou para


L2 vai sempre considerar-se competente L3. Ora, no DIP português isto não é possível
porque, caso isto aconteça, não se vai conseguir a harmonia internacional de julgados.
Daí, o nosso sistema ser mais exigente do que um sistema de devolução simples.

Portanto, nós temos de ler as normas de reenvio segundo a sua teleologia, isto é,
segundo a sua causa de excecionalidade- a harmonia internacional de julgados.

Tendo isto em consideração, vamos supor que L1 aplica L2 que remete para L3
que não se acha competente e reenvia para L2. Aparentemente, se olharmos para o
exemplo típico do artigo 17º diríamos que nesta situação não existiria reenvio e
aplica-se as normas materiais de L2. Mas vamos supor, agora, esta hipótese: L1- L2

133
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

(DS)- L3- (DS)-L2. Qual é a lei que L3 aplica? L3 porque L3 de facto remete para L2,
mas como tem um sistema de devolução simples remete para o sistema conflitual de L2
que vai no sentido de aplicar L3, mas aplica-se indiretamente e não diretamente.

Assim sendo, diremos que, quando o artigo 17º diz aquilo que já vimos,
devemos interpretar isso como: se acha competente direta ou indiretamente. Mas há
aqui um problema: é que L2, porque tem um sistema de devolução simples, aplica L2
indiretamente.

Ora assim sendo, se L1 fizer reenvio nunca haveria, neste caso, harmonia
internacional de julgados, pelo que não se pode fazer reenvio. O que se pode retirar
disto é que quando o artigo 17º diz “remeter para outra legislação”, o verbo “remeter”
deve ser lido como “aplicar”. Para poder existir harmonia, neste caso, L2 teria de ter um
sistema de referência material já que L3 aplicaria L3 e L2 também aplicaria L3 e, neste
caso, devemos fazer reenvio.

Resta fazer uma outra observação: será que por terceira legislação nós queremos
dizer necessariamente L3? Se tivermos: L1-L2 (DS)-L3-L4 que se considera
competente. Olhando para aqui, pode parecer que não se aplica o artigo 17º porque
temos 4 leis. Terceira legislação é uma outra legislação ou necessariamente L3?

Vamos ver e há harmonia internacional de julgados: L4 aplica L4; L3, qualquer


que seja o sistema de reenvio, aplica L4; L3, por causa do seu sistema de reenvio, aplica
L4. Assim sendo, L1 também deve aplicar L4. Ora, se o artigo 17º exigisse efetivamente
que terceira legislação significa L3, não realizaríamos reenvio e aplicaríamos L2, pelo
que não atingiríamos a harmonia internacional de julgados.

Deste modo, terceira legislação significa outra legislação que se considere direta
ou indiretamente competente. Vejamos esta outra situação em que também vai existir
harmonia e, por isso, reenvio: L1-L2 (DS)-L3-L4(DS).

No fundo os pressupostos do artigo 17º, resumem-se a isto: para haver reenvio,


em matéria de transferência de competências, é necessário que L2 aplique Ln (outra
legislação que não tem de ser L3) e a Ln se considere competente direta ou

134
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

indiretamente. Considerando esta espécie de fórmula, conseguimos sempre resolver


qualquer situação de reenvio.

Exemplo: L1- L2 (RM) -L3 (RM)-L2. Se aplicarmos a fórmula: qual é a lei que
L2 aplica? L3. L3 considera-se competente direta ou indiretamente? Não, pelo que não
há reenvio e aplicamos L2.

De facto, há um caso que gera alguma controvérsia na doutrina quanto à


aplicação daquela norma: L1- L2(DS)-L3 (RM)-L4(DS)-L3. Segundo a fórmula,
sabemos que L2 aplica Ln que se acha competente direta ou indiretamente. Ora. L2
aplica L4; L3 aplica L4 e L4 aplica L4- existe reenvio.

Mas e se L3 fizer devolução simples? L2 vai aplicar L4, que aplica L4, mas L3
aplica L3: repare-se que se verificam os pressupostos da fórmula, mas não há total
harmonia internacional de julgados porque L3 vai remeter para L4, mas aceitar o seu
sistema conflitual que remete para L3.

Em princípio, neste caso, não existiria reenvio- posição adotada por Ferrer
Correia. Mas a Escola de Lisboa- professora Magalhães Colaço, considera que, não
sendo uma solução ótima, é uma solução subótima e considera que é melhor fazer-se o
reenvio do que não se fazer porque se não se fizer o reenvio, aplicar-se-ia L2 que é uma
lei que nenhuma das outras aplicaria.

o Nº2:

Os nº2 e nº3 do artigo 17º CC preveem duas hipóteses que só se aplicam se a


regra de conflitos que o tribunal português estiver a lidar incidir sobre uma matéria do
estatuto pessoal das pessoas singulares em questões que não estejam europeizadas.

O nº2 diz-nos que: “Cessa o disposto no nº anterior”, ou seja, volta-se ao sistema


de referência material do artigo 16º CC, “se a lei referida pela norma de conflitos
portuguesa for a lei pessoal de um interessado que residir habitualmente em território
português ou em país que considere competente o direito interno do Estado da sua
nacionalidade”.

135
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Vejamos: L1- L2- L3-L3:

Obviamente que este artigo só se aplica se estiverem reunidas as condições do


nº1 já que se não existir reenvio nos termos deste voltamos logo à regra geral do artigo
16º CC. Assim sendo, só partimos para a análise deste nº2 se os pressupostos no nº1
estiverem verificados, sendo que falamos agora de uma exceção à exceção, pelo que
voltamos à regra.

Temos de estar perante matéria de estatuto pessoal em que L2 é a Lei Nacional,


sendo que o nosso artigo 31º nº1 nos diz que a lei pessoal é a lei pessoal do indivíduo.
L1 terá de ser a lei da residência habitual ou pode existir uma lei fora do circuito que
consiste na lei da residência habitual desde que esta faça referência material para L2
(Lei Nacional do indivíduo). Podemos ter, portanto, as seguintes opções:

(1) L1 (LRH)- L2 (LN)-L3-L3;

(2) L1 – L2 (LN)- L3-L3, mas a lei da residência habitual situa-se fora do circuito só
que faz referência material esta lei considera competente a lei da nacionalidade.

Em qualquer uma destas situações, apesar de estarem verificados os


pressupostos para haver reenvio porque haverá harmonia internacional se aplicarmos
L3, vai-se aplicar a regra geral e fazer cessar o reenvio.

Porquê?

Porque estamos em matéria de estatuto pessoal, as duas conexões mais


importantes são: a lei nacional e, depois, a lei da residência habitual. Portanto, a
residência habitual, ainda que em posição subalterna à lei nacional, tem muito
relevância e o legislador entendeu que realizar o reenvio significaria sacrificar a solução
conflitual portuguesa numa situação em que a lei da residência habitual insistia na
aplicação da lei nacional. A insistência da segunda lei mais qualificada na aplicação da
lei nacional afasta a possibilidade de reenvio.

136
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Em suma, nós não podemos desistir da aplicação da lei nacional se o


interessado residir na lei do foro ou se residir noutro estado cuja regra de conflitos
faz referência para a Lei Nacional do interessado.

o Nº3:

Este artigo vem considerar uma hipótese igual à que vimos para 17/2 com uma
nuance: é que L3 é a lex rei sitae. A matéria continua a ser do estatuto pessoal, mas tem
de ter relevância patrimonial. Todas as matérias do estatuto pessoal que têm incidência
material, à exceção da capacidade de celebração de negócio sobre bem imóvel, estão
europeizadas.

Neste reduto de relações pessoais com incidência patrimonial de bens imóveis,


se esta terceira lei for o lugar da situação dos imóveis voltamos a fazer reenvio mesmo
que se aplique aquela situação toda do nº2.

É o princípio da efetividade é o que justifica a aplicação deste artigo.

02/12/2021

Nas aulas anteriores estudamos o reenvio no sistema de DIP português. Vimos


que os arts.º17 e 18 tratam situações diferentes.

Se nós analisarmos o artigo 17º, podemos dizer que o nº1 é uma exceção à
referência material à lei estrangeira por homenagem à harmonia internacional de
julgados que parece ser mais importante do que a resolução conflitual do foro. Vimos
que as coisas não são tão simples. O art.º17 não deve ser interpretado no sentido de que
L2 remete apenas para L3. Pode aplicar terceira legislação (LN). É necessário que esse
LN se considere competente direta ou indiretamente, pela sua regra de conflitos ou pelo
sistema de reenvio. Só assim é que conseguimos a harmonia internacional de julgados.
Tanto L2 como LN vão aplicar a mesma lei e então L1 vai aplicar LN, conseguindo-se a
harmonia internacional de julgados. Vimos que há duas situações especiais previstas no

137
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

art.º17/2 e art.º17/3, que referem a termos materiais a questões jurídicas ligadas ao


estatuto pessoal (relações patrimoniais, sucessão por morte, responsabilidades parentais,
tutela e institutos análogos).

No nº2, porque estamos em matéria do foro pessoal, privilegia-se a conexão


nacionalidade porque há uma intervenção qualificada da aplicação da lei nacional e
desvaloriza-se o princípio da harmonia de julgados em benefício do princípio da
aplicação da lei nacional e da lei da residência habitual. E, finalmente, mesmo
considerando a importância dessa lei nacional até por convergência do sistema
conflitual da lei da residência habitual, o princípio da efetividade passa a ter mais
importância.

Neste sentido, temos uma ponderação entre o princípio da harmonia


internacional jurídica, o princípio da aplicação da lei nacional (com insistência da lei da
residência habitual) e, finalmente, com o princípio da efetividade que se sobrepõe ao
anterior se se tratar de imóveis.

Pode parecer uma opção demasiado complicada, mas que tem uma lógica e uma
ratio legis muito precisa que tem a ver com a ponderação dos interesses, atendendo às
matérias em causa.

A circunscrição a matérias patrimoniais dentro do estatuto pessoal encontra-se


no n.º3.

Recapitulando:

Suponhamos que L2 é a lei nacional e a lei do foro é a lei da residência habitual (LRH),
ou LRH é lei fora do circuito que considera L2 competente. A LRH na aplicação da L2
faz com que o legislador entenda que não se possa fazer reenvio apesar de os
pressupostos do n.º1 estarem cumpridos. Aqui L2 remete para L3 que se acha
competente. Se a questão jurídica se situa dentro do perímetro da lei pessoal em que L2
é a lei nacional (lei aplicável ao estatuto pessoal em PT), e simultaneamente houver
existência da lei pessoal (seja lei do foro ou interessado residir noutra localização). Isto
faz com que o legislador diga que se vai aplicar o estatuto pessoal. A 2.º conexão mais

138
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

relevante do estatuto pessoal insiste na aplicação da lei pessoal, quer essa residência
habitual se situe no foro português ou noutro OJ que remeta para a lei nacional.

Depois sim, no art.º17/3 dentro deste estatuto pessoal, um certo número de relações
específicas em que estão envolvidos interesses patrimoniais quanto a imóveis, basta que
L3 seja a lex rei sitae que se volta a fazer reenvio em benefício da L3 que é a lex rei
sitae. Numa ponderação de interesses numa matéria de estatuto pessoal e mesmo que
haja convergência da LRH na aplicação da LN, há terceira aplicação (lugar da situação
dos imóveis).

Volta-se no fundo a fazer reenvio. Se analisarmos o art.º17 na ponderação de interesses


e princípios no jogo, o art.º17/1 é referência material da lei estrangeira por forma a
obter-se a harmonia internacional de julgados que parece mais importante do que a lei
do foro.

Porque estamos em matéria do estatuto pessoal, privilegia-se a conexão com a lei


nacional. Há intervenção qualificada da LRH. Esta convergência destas duas leis cai o
princípio da harmonia de julgados sem benefício da aplicação da LN e LRH. Há
insistência da LRH na aplicação da LN.

No art.º17/3, por estarem imóveis envolvidos, o princípio da efetividade passa a ter


mais importância, podemos dizer que há ponderação entre princípio da harmonia
internacional de julgados, mas que depois vai ser colocado em segundo lugar quando
em matéria de estatuto pessoal há convergência da LN e LRH ou melhor, insistência de
na LRH se aplicar LN, deixamos de ter reenvio. E temos o princípio da efetividade que
se sobrepõe ao anterior quando estejam em causa imóveis. Não valia estarmos a falar do
princípio da efetividade sem estarem reunidos os pressupostos do reenvio. A ideia aqui
é que L3 se ache competente por ser o lugar dos imóveis. Precisamos, por causa do
princípio da efetividade, desta colaboração da lei o lugar dos imóveis. É conveniente
que aquela lei se aplique a si própria. Aplicamos lei que se reputa competente,

É necessário que os pressupostos do reenvio estejam verificados.

139
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Temos aqui uma opção que tem uma ratio legis muito precisa que tem que ver com a
ponderação dos interesses.

A solução do art.º18 é bastante mais simples.

Artigo 18º CC: quando estamos no seu âmbito, não se pode aplicar o artigo anterior,
uma vez que, aqui, estamos a falar de situações de retorno para a lei do foro:

A situação típica de retorno é quando: L1- L2- L1, ou seja, L1 considera que é
competente uma lei estrangeira, mas as regras de conflitos de L2 consideram que a
mesma situação jurídica é regulada pela própria L1. Este retorno pode ser indireto
quando L2 remete para L3, mas L3 remete para L1.

Será que podemos admitir o reenvio nestes termos?

Sabemos que o sistema português, nos termos do artigo 16º, exceciona a sua
aplicação, nomeadamente, quando verificados, nomeadamente, os pressupostos do
artigo 18º.

o Nº1:

A condição que este artigo acaba por estabelecer para que haja este retorno é a
de que L2 aplique o direito interno português, não bastando que haja uma remissão para
a lei do foro. É necessário que o DIP da lei designada pela nossa lei de conflitos devolva
para o direito interno português. Se o DIP da lei designada pela norma de conflitos- a lei
estrangeira, L2- devolver para o direito interno português é este o direito aplicável e
faz-se reenvio sob a forma de retorno.

Como é que podemos afirmar categoricamente que este pressuposto está


verificado?

L2 terá de ser uma lei de referência material, o que significa que L2, ao remeter
por L1, ao ser uma lei de referência material vai aplicar, sem sombra de dúvidas, o
direito material de L1. Assim sendo: L1- L2(RM)-L1. Isto porque se L2 tivesse um

140
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

sistema de devolução simples considerar-se-ia competente indiretamente: L1-


L2(DS)-L1, significa que L2 se aplica a si própria e se L1 fizer o reenvio aplica L1.

E é por isto que o artigo 18º exige que L2 aplique o direito interno de L1 porque
só nessa circunstância haveria harmonia internacional de julgados que justifica a
excecionalidade do nosso sistema de reenvio.

Vejamos a seguinte situação: L1- L2(DD)-L3(RM). Os pressupostos estão


verificados. Mas haveria uma situação ainda mais simples: L1- L2(DS)-L3.

Há ainda uma situação que ainda não foi tratada: L1- L2(DD)-L1- como L2 faz
aquilo que L1 fizer a harmonia internacional de julgados está sempre assegurada, pelo
que não é capaz de assegurar o afastamento da regra geral, o que leva a que
nomeadamente a Escola de Coimbra considere que devemos sempre fazer o retorno
aqui, ou seja, L1 deve aplicar-se a si própria. É que a lei do foro é a lei que, segundo o
princípio da boa administração da justiça, é a que é melhor de se aplicar porque é a que
o tribunal conhece melhor.

Mas a Escola de Lisboa tem um entendimento completamente diferente: é que o


reenvio é excecional e está sujeito a uma condição (que é L2 aplicar o direito interno de
L1) e aqui essa condição não está verificada ou não se pode dar como verificada. A
condição é L2 aplicar o direito interno de L1, algo que sabemos que se verifica se L2 for
uma lei de RM, não se verifica se for de DS, mas L2, tendo DD, só aplica o direito
interno de L1 se L1 fizer o reenvio. A ideia é que há um resultado que se pretende
alcançar e que esse resultado está condicionado e damos por verificada através do
próprio resultado, ora isso é petição de princípio- este entendimento teve aplicação num
acórdão da Relação de Évora.

o Nº2:

Em matéria de estatuto pessoal, considera que, numa hipótese em que pode


haver reenvio, se estivermos perante o estatuto pessoal, L2 é a lei nacional e só há
reenvio se L1 for a lei da residência habitual ou se a Lei da residência habitual remeter
para L1. Atente-se que 18/1 e 2 são cumulativos: L1(LRH)-L2(LN c /RM) ou LHR-L1.

141
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

03/12/2021

Art.19º:

O art.º19 CC veio limitar as situações de reenvio quando delas possa resultar uma
situação de invalidade num negócio jurídico, ineficácia ou ilegitimidade de posição
jurídica adquirida. Esse efeito negativo quanto à validade e eficácia por causa do
reenvio, e só por causa do reenvio, deve sobrepor-se a quaisquer outros valores como a
harmonia internacional de julgados.

Suponhamos que temos uma situação de transmissão de competências em que


pudéssemos fazer reenvio: L1 – L2 – L3 –L2. A harmonia internacional de julgados
mandaria fazer reenvio. Se virmos que à luz de L3, o negócio jurídico é inválido,
quando seria válido à luz da L2, então não podemos fazer reenvio, porque resultaria na
invalidade do NJ. Temos aqui soluções que jogam com os interesses em presença ou
com princípios e valores jurídicos que são colocados numa posição hierárquica
ordenada pelo legislador. Vimos também o princípio da efetividade. Há aqui uma série
de princípios que, em cada caso, vão ser prioritários em relação aos demais.

No art.º19, numa situação de harmonia de julgados que reclamaria reenvio, a lei


diz não ao reenvio, porque daí resultaria a invalidade do negócio. Se eventualmente o
NJ fosse na mesma inválido em L2, obviamente faríamos o reenvio. Não seria por causa
do reenvio que o NJ se tornaria inválido. Nesse caso, é preferível aplicara L3 que todas
as leis aplicam e conseguir a harmonia internacional de julgados.

NOTA: não esquecer que para travar o reenvio, a invalidade ou ineficácia têm que
resultar tão só do reenvio.

Quando L2 for lei escolhida pelas partes, quando estejamos perante autonomia
conflitual, não devemos fazer reenvio. No fundo, o reenvio iria desvirtuar o sentido da
regra de conflitos que indicava a lei escolhida pelas partes. As suas expectativas sairiam
completamente defraudadas. Vamos fazer comparação com Regulamento das sucessões
com este sistema de reenvio. Veremos que há situações que não estão no art.º19, como
lei aplicável à forma da declaração negocial (art.º36) ou formas especiais. Elas

142
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

obedecem ao princípio de conexão alternativa – aplicar qualquer lei desde que resulte a
validade formal do NJ. São regras de conflitos contrárias ao reenvio. Vão ter situação de
reenvio autónomo. Uma das leis que é referida pela 36.º e 86.º é a lei de conflitos local.

As restantes conexões, diz Ferrer Correia, devem ser contrárias ao reenvio. A


escolha do órgão de decisão do direito já está condicionada à validade formal do
negócio que é obtida através das disposições materiais. A lei da qual resulte a validade
do NJ é a que se aplica sem reenvio. Esta situação está prevista no regulamento das
sucessões. Não vem no art.º19, mas doutrina diz que é extensível às conexões de forma
(art.º36, 65º e 50º).

Portanto, a doutrina vem considerar ser extensível às chamadas conexões de forma:


artigo 36º, 65º e 50º CC. Na visão do professor Ferrer Ferreira, todas estas regras de
reenvio são contrárias ao reenvio porque a lei para a qual se remete é a que prevê o
resultado material que é querido pelo legislador. Mas a verdade é que elas não são
indicadas, de facto, pelo artigo 19º que, por sua vez, apenas contempla a autonomia
conflitual e as que resultem na invalidade do negócio.

CASO PRÁTICO:

Albert, nacional do Reino Unido, faleceu em Portugal no ano de 2010, onde


residia há 10 anos, deixando bens móveis e imóveis em Florença. Antes da sua
morte, Albert fez testamento deixando todos os seus bens à Fundação Calouste
Gulbenkian, com a condição de, por sua morte, a Fundação mandar fazer a
trasladação do seu corpo para um cemitério de Liverpool, onde se encontram os
restos mortais dos seus pais.

Liverpool era a cidade natal de Albert e onde residiu até ter vindo para
Portugal.

A Fundação não cumpriu o encargo e os filhos de Albert pretendem obter a


resolução da disposição testamentária junto de um tribunal português.

143
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Sabendo que:

a) O Reino Unido não tem regras de direito interlocal, nem normas de


direito internacional privado unificadas;
b) Em matéria de remissão para ordenamentos jurídicos
plurilegislativos, o direito italiano manda atender, para
determinação da lei local aplicável, aos critérios utilizados por
aquele ordenamento e, na falta deles, ao critério da conexão mais
estreita (Lei de 31 de Maio de 1995).
c) O direito inglês manda regular a sucessão por morte pela lei do
domicílio do de cujus, quanto aos bens móveis, e pela lex rei sitae
quanto aos imóveis, enquanto o DIP italiano manda aplicar nesta
matéria a lei nacional do de cujus.
d) Os tribunais ingleses praticam a dupla devolução; o direito italiano
aceita o reenvio nas situações de retorno, praticando devolução
simples
e) O direito material português e o italiano permitem a resolução da
disposição testamentária em causa, o que não acontece com o direito
inglês;
f) Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes.

Diga se a pretensão dos filhos de Albert deve proceder.

Resolução:

Trata-se, desde logo, de uma hipótese que acaba por tocar outras questões. Foi
construída com base no Ac. da Relação de Évora de 1993 (Situação que envolvia
ordenamentos plurilegislativos, ordem pública, reenvio).

Trata-se de um caso de sucessões. Se a abertura da sucessão tivesse ocorrido hoje ou


depois de 2015, não lidaríamos da mesma forma. Iríamos aplicar o regulamento das

144
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

sucessões que não tem a mesma solução conflitual, já que o nosso CC remete para a lei
nacional do de cujus.

O de cujus aqui é Albert e faleceu em 2010. Vigorariam, portanto, as regras do CC. Se


houver hipótese de reenvio, serão as regras de reenvio do CC que vamos aplicar.

Albert falece em Portugal em 2010. É nacional do UK. A Lei Nacional é a lei do Reino
Unido. Faleceu em Portugal onde residia há 10 anos. A lei da residência ao tempo da
morte era a lei portuguesa. O Albert deixa bens móveis e imóveis em Florença. Na
situação do acórdão deixa em Portugal. Aqui vamos considerar Florença. Se L2 remete
para a lei dos imóveis, se estão em países diferentes, íamos ter varias leis para lex rei
sitae.

A lex rei sitae dos bens móveis e imóveis é em Itália.

Dados até agora:

(1) Lei Nacional: Reino Unido;

(2) Lei da residência habitual ao tempo da morte: Portugal;

(3) Lei do lugar do património (Lex rei sitae): Itália;

(4) Lei da residência habitual anterior/local de nascimento: Liverpool

Antes da sua morte, fez testamento e deixou todos os bens à Fundação Calouste
Gulbenkian. Condição – fundação tinha que fazer transladação do seu corpo para
Liverpool. Este testamento estava sujeito a uma condição que devia ser cumprida pela
Fundação. Não sendo cumprida a condição, o testamento deixava de ser eficaz.

A lei da residência habitual anterior, o local de nascimento de Albert e local onde estão
sepultados os seus antepassados é em Liverpool.

A Fundação não cumpriu e os filhos de Albert pretendem obter a resolução da


disposição testamentária junto dos Tribunais portugueses. No acórdão, invocam a

145
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

inoficiosidade do testamento. Aqui não vem ao caso. Os filhos do Albert pretendem


obter a destruição testamentária.

O que sabemos? O Reino Unido não tem regras de interlocal, nem normas de DIP
unificadas. Sabemos que o Reino Unido é um ordenamento plurilegislativo e tem 3
subordenamentos nesta matéria de sucessões (Inglaterra e País de Gales, Escócia e
Irlanda). As regras de DIP não são unificadas.

Em Itália, há modo de resolver o problema da mesma forma que a Professora


Magalhães Colaço defende, a propósito do nosso art.º20. Ou seja, o problema deve ser
resolvido pelo próprio ordenamento e pelo seu direito local. Solução no art.º28 Lei da
nacionalidade.

Estas duas primeiras alíneas do caso prático têm que ver com os ordenamentos
plurilegislativos. O que interessa para a questão do reenvio são as alíneas seguintes. O
direito inglês manda regular a sucessão por morte pela Lei da residência habitual.
Quanto aos bens móveis, interessa a lex rei sitae. Em matéria sucessória, o sistema
conflitual deste OJ divide as coisas em móveis e imóveis e aplica lei diferente.

Sabemos que no DIP inglês, aplica-se a LRH para sucessão dos móveis e Lex rei sitae
para a sucessão dos bens imóveis. Qual é a LRH do Albert? Portugal. Para o DIP inglês,
a lei reguladora da sucessão dos móveis é regulada pela lei Portuguesa e a sucessão dos
imóveis é regulada pela lei italiana.

DIP inglês:

· Bens móveis: LRH – lei portuguesa

· Bens imóveis: Lex rei sitae – lei italiana

O DIP italiano quer para móveis/imóveis manda aplicar a lei nacional.

Sabemos que a lei nacional é a lei do Reino Unido. Vamos ter que depois resolver este
problema dos ordenamentos plurilegislativos. Aplicação do art.º62. Temos situação
idêntica ao DIP italiano.

146
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

O caso prático diz-nos que os Tribunais ingleses praticam dupla devolução (DD). O
direito italiano aceita situações de retorno com DS. Uma das leis em presença tem
solução que não contempla resolução testamentária, para o direito inglês o testamento é
sempre valido independentemente de ter sido cumprida a condição. Já o direito
português e italiano dizem que se a condição não tiver sido cumprida, é resolvida. Os
tribunais portugueses são competentes (L1).

Se os tribunais competentes são internacionalmente competentes, qual é a L1? É a lei


portuguesa. Se não fosse esta divisão do DIP inglês de móveis e imóveis, teríamos um
único esquema para resolver esta hipótese. Por causa desta divisão, vamos ter que
separar a sucessão de móveis e imóveis.

- Vamos começar pela sucessão de móveis:

Qual é a lei que a L1 (PT) vai aplicar em 1.ª linha? A lei nacional. Através do art.º62
CC. Se Albert tivesse falecido em 2015 ou depois de 2015, em vez do art.º62,
aplicávamos o Regulamento das Sucessões. Vamos aplicar o art.º62 que diz que a lei
competente (L2) é a lei nacional.

Aqui começa o primeiro problema, que não é estritamente de reenvio, mas que é
fundamental para determinar a L2. Enquanto não concretizarmos a L2, não vamos saber
o seu DIP, qual o seu sistema de reenvio, etc. Ao contrário de Espanha, o direito
interlocal é o próprio DIP e por essa via resolve.

É-nos dito que o reino unido não tem direito interlocal, o que
significa que importa ler o disposto no artigo 20º CC e
perceber que se afasta o disposto no nº1. Assim sendo, o
artigo 20º remete para a lei da residência habitual. Ora, Albert
reside fora do ordenamento plurilegislativo, pelo que
aplicando-se uma interpretação literal deste artigo implica
aplicar como lei nacional de Albert, a lei portuguesa. Assim
sendo, iremos aplicar o entendimento da professora
Magalhães Colaço e procurar determinar a lei do

147
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

ordenamento com quem o de cujus tem uma conexão mais


próxima.

Magalhães Colaço diz que quando o interessado tiver a sua residência fora do OJ
plurilegislativo, vamos ter que encontrar um subordenamento com o qual tenha conexão
mais estreita. A referência que é feita à ligação de Albert com país natal é Liverpool.
Vimos que Liverpool foi o local onde residiu toda a vida e é o local onde estão
sepultados os seus antepassados. Liverpool é o elemento de ligação mais próxima
dentro do Reino Unido. Liverpool situa-se em Inglaterra.

Portanto, o subordenamento é o inglês. A L2 passa a ser realmente a lei inglesa e a sua


forma particular de regular as sucessões por morte (bastante diferentes até do
subordenamento escocês).

O que temos que fazer a seguir? Temos que ver o que a lei inglesa faz porque podemos
ter uma divergência. Temos que ver a lei competente que a lei inglesa indica para
regular os móveis. É a lei do domicílio do de cujus, que é a lei da residência habitual. É
a lei portuguesa. L2 retorna para L1. A partir deste momento, sabemos que temos caso
de reenvio sob forma de retorno.

Não haveria reenvio se:

(1) Lei inglesa se considerasse competente (caso remetesse, por exemplo, para o
local de nascimento do de cujus ou LRH antes de sair do seu pais nacional)

(2) Própria lei portuguesa se considerasse competente, o que não levaria se quer à
aplicação de L2. Posição de Ferrer Correia.

E, a partir deste momento, temos um caso de reenvio sob a forma de retorno,


pelo que vamos aplicar o artigo 18º CC. Já sabemos que temos um sistema de referência
material no artigo 16º, mas que admite o reenvio nos artigos 17º e 18º, verificados os
seus pressupostos, pelo que importa determinar se se encontram verificados os
pressupostos deste último.

148
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

A lei designada pela nossa regra de conflitos é a lei inglesa. Deve indicar o direito
interno português (direito material), ou seja, é necessário que a lei inglesa
remeta para a lei portuguesa com referência material. Qual é o sistema de
reenvio da L2? Devolução dupla. Ora, se L2 faz dupla devolução, temos um
problema:
· Ou consideramos, como a Escola de Lisboa faz, que não estão
verificados os pressupostos de L2 e, como o reenvio é excecional, só se
deve admitir se L2 aplicasse o direito material português, uma condição
que não conseguimos assegurar se não fizermos o reenvio. Se não
fazemos o reenvio, significa que vamos aplicar L2;
· Se, pelo contrário, concordarmos com a Escola de Coimbra
consideramos que, neste caso, uma vez que L2 vai fazer sempre o que L1
fizer, a harmonia internacional de julgados vai estar sempre assegurada,
pelo que, entre fazer ou não fazer reenvio, fazê-lo tem a vantagem de L1
aplicar a lei do foro, aplicando-se o princípio da boa administração da
justiça. Se fizermos o reenvio, L1 aplica L1.

Note-se que aplicar L2 tem um resultado material preciso. É que o direito


inglês não admite a resolução testamentária, ao contrário do que acontece na lei
portuguesa.

o Em matéria de retorno, nos termos do artigo 18º, nº2, só pode haver reenvio, em
matéria de estatuto pessoal, se o interessado residir habitualmente em Portugal, pelo
que este deixa passar o reenvio (o interessado reside em Portugal), pelo que para a
Escola de Coimbra havia reenvio nos termos do nº1 que era confirmado com este
nº2. Atenção: notar que ao contrário do art.17.º/2 (que funciona em regime regra -
exceção), o art.º18 é cumulativo.
Mas a aplicação desta doutrina leva à questão da aplicação do artigo 19º CC. É
que, fazendo-se reenvio, o negócio seria resolvido, situação em que este artigo proíbe o
reenvio mesmo que reunidos os pressupostos dos artigos anteriores.
o Deste modo, seja qualquer for o caminho que tomemos, L1 aplicaria L2.

149
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

- Quanto à sucessão dos bens imóveis:

A lei aplicável à sucessão é a lei inglesa. Isso não muda, porque o art.62º manda aplica
a lei nacional quer aos móveis e imóveis. Também já sabemos que se vai aplicar a lei do
subordenamento inglês. Esta primeira parte já está resolvida.

L1 (PT, 62.º CC) ------ L2 (LN, que é a lei inglesa, por aplicação do art.º20 e segundo
perspetiva de Magalhães Colaço de não aplicar aqui a lei da residência habitual por
insuficiência das regras internas) -------------- L3 (Lei italiana).

o Assim sendo, estamos perante uma situação de transferência de


competências, pelo que importa aplicar o artigo 17º CC.

O objetivo de legislador é conseguir a harmonia internacional de julgados e admitir


excecionalmente o reenvio.

- Nº1- o direito italiano manda aplicar nesta matéria a lei nacional do de cujus e
tinha sido dito atrás que em matéria de remissão para ordenamentos
plurilegislativos manda aplicar a mesma solução que a que nós adotamos aqui,
ou seja, L3- L2. Importa, agora, determinar os sistemas de reenvio: L2 (DD) e
L3 (DS porque do ponto de vista do DIP italiano existiria retorno se fosse o
tribunal do foro. Retorno aqui é no sentido do direito italiano). Assim temos, em
suma: L1- L2 (DD) - L3(DS) - L2. Assim sendo, L2 vai fazer aquilo que L3
fizer e L3, se faz DS, apesar de considerar competente L2 vai no sentido de
aceitar a solução que L2 fizer e considera-se competente indiretamente. E, no
mesmo sentido, L2 também vai aplicar L3. Deste modo, nós podíamos fazer o
reenvio e aplicar L3.

Portanto, recapitulando:

L1---------L2 (DD) ------L3 (DS) ----- L2

Que lei é que L2 aplica? L2 vai aplicar o que L3 fizer. L3 se faz DS, aceita a solução
conflitual de L2 que vai no sentido de aplicar L3. L3 aplica-se a si própria

150
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

indiretamente. L2 faz o que o Tribunal de L3 fizer. Dizemos que L2 vai aplicar L3.
Apesar de L2 remeter L3, temos que saber se efetivamente se aplica L3. L3 apesar de
remeter para L2, através de DS vai-se considerar competente indiretamente. L3 vai
aplicar L3 ainda que indiretamente. L2 sendo um sistema de DD vai fazer o que L3
fizer. O problema passa a estar centrado em L3. Se L3 faz devolução simples, apesar de
remeter para L2, aceita o sistema conflitual.

Nos termos do art.17.º/1 podíamos fazer reenvio e aplicar L3, só que aqui estamos em
matéria de estatuto pessoal. O art.17.º/2, ao contrário do que vimos para o art.18.º
(pressupostos cumulativos), paralisa o reenvio se houver insistência na aplicação da lei
nacional, que é L2.

O que nos diz o art.17.º/2? Se estivermos em matéria de estatuto pessoal, que é


L2, e se o interessado residir habitualmente em PT, será essa a lei aplicável.
Sabemos que o interessado reside em PT e há insistência. Não se deve fazer
reenvio, deve-se insistir na aplicação da Lei pessoal.

Mas dentro do estatuto pessoal, estamos no âmbito das sucessões por morte e
estão imóveis envolvidos. Este nº2 afasta, portanto, o reenvio.

Temos que ver o art.º17/3. Nesta circunstância, se L3 for a lei do lugar dos
imóveis, deverá ser esta a aplicar. Vem dizer que se L3 for, contudo, a lex rei
sitae se afasta o nº2 e pode haver reenvio.

Nesta hipótese, temos que percorrer e dar como confirmado o


art.º17/1. Há reenvio, mas estamos em matéria de estatuto
pessoal e o interessado está em Portugal, logo deixaremos de
estar em reenvio. E no art.º17/3 (se não houvesse condições
para fazer reenvio, a questão não se colocava), estamos no
âmbito de sucessões por morte, logo este art.º17/3 tem os
pressupostos verificados. Logo, temos reenvio para a lei
italiana. Há reenvio e L1 vai fazer reenvio e aplicar L3.

151
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

[Nota: Imaginemos que L2 fosse sistema de DS. Haveria reenvio? L2 iria considerar-se
competente. A lei que L2 aplica é a sua própria lei. Vai apenas respeitar as regras de
conflitos de L3. Numa hipótese como esta, basta alterar o sistema de devolução de L2
para não passarmos ao art.º17. Não há condições para fazer reenvio. Não vale a pena
discutir o estatuto pessoal. Isto só vai até ao fim, porque todas as condições estão
integralmente verificadas.]

Se fazemos reenvio, qual é a lei que aplicamos? L3, que é italiana. ? Permite a
resolução testamentária, pelo que, através do artigo 19º CC, não deveríamos fazer o
reenvio, sendo certo que a L2 não considera o testamento resolúvel. O art.º19 CC
deveria ser chamado. A lei inglesa salvaria o negócio. Chegamos à conclusão, portanto,
que L1 aplicaria L2.

09/12/2021

QUALIFICAÇÃO

a. O problema da qualificação:

É uma questão antiga à qual se volta recorrentemente e mesmo no âmbito dos


Regulamentos Europeus se volta a demonstrar que continua a ser um dos problemas
mais complexos de DIP. Podemos olhar para esta questão de modo a, em tese,
determinar qual o método para resolver este problema, mas depois temos de ver a
aplicabilidade desse método ou de outro.

Qual é o problema? Se pensarmos no termo qualificar, qualquer um de nós sabe


que, no fundo, qualificar será o mesmo que classificar, dotar ou revestir de
características para, de forma a, atendendo a essas características subsumir um quid a
um conceito- vamos revestir este quid de determinadas características que se adaptam a
um conceito.

152
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Em termos semânticos é assim. Aliás, na literatura jurídica e, em especial, no


DIP, aparece-nos muitas vezes não qualificação, mas classificação ou caracterização,
embora pelo menos a caracterização seja relativamente insuficiente para designar este
problema já que não basta caracterizar. Não basta caracterizar, é preciso que as
características se subsumam ao quid.

Quando falamos em qualificação em termos jurídicos, no fundo estamos a falar


da subsunção de factos, de situações da vida, à hipótese típica da norma jurídica. E
porque a norma material é composta na sua hipótese por uma descrição típica de factos-
facti-species-, ou seja, uma descrição factual mas típica, não concretizada e à qual é
fácil depois subsumir as situações a essa hipótese jurídica que a espelhem. Quando
aplicamos qualquer norma material realizamos uma tarefa de qualificação.

Temos uma tendência para ver o fenómeno de forma inversa que é a aplicação da
norma aos factos, mas, se pensarmos bem, ao fazê-lo também fizemos o inverso que é
subsumir os factos à descrição factual típica prevista na norma. Portanto, a qualificação
jurídica é igual quer vista de uma destas duas perspetivas.

E se obviamente não é uma tarefa óbvia a descoberta da solução


jurídico-material para uma situação controversa da vida e em que as partes apresentam
versões diferentes, ainda assim temos uma subsunção direta a partir do momento em
que determinamos que vai ser aquela norma jurídica a ser aplicada não temos grande
dificuldade em subsumir os factos àquela hipótese. Na realidade, os juristas fazem esta
tarefa de forma natural.

Ora, isto tudo que os juristas muitas vezes fazem de forma intuitiva, esta tarefa
normal de qualificação jurídica ganha no DIP uma determinada feição particular e
também uma determinada complexidade. Porquê? Precisamente porque a regra de
conflitos de tipo 3 (como a professora Magalhães Colaço identificou) na sua hipótese
não tem uma descrição, ainda que típica, de factos. A regra de conflitos, na sua hipótese,
vai conter conceitos técnico-jurídicos, institutos, questões e figuras jurídicas. Por mais
específica que seja a hipótese da regra de conflitos hoje (exemplo: regras de conflitos
que se referem de forma especializada aos regimes de bens, forma do casamento, forma

153
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

da disposição testamentária e capacidade para fazer disposição testamentaria), teremos


sempre uma questão jurídica que naturalmente vai ter um conteúdo variável em
função de cada ordenamento jurídico.

Por exemplo, do ponto de vista da gestão de negócios, nós


entendemos por gestão de negócios aquilo que à partida o CC entende por
Gestão de Negócios, pelo que é o direito material que confere a esse instituto
uma determinada densificação. Contudo, como a regra de conflitos é bilateral,
ela eventualmente vai chamar um ordenamento jurídico estrangeiro nos termos
do qual a GN pode não ter os mesmos contornos, referindo-se a uma realidade
que para nós não seria GN ou até podem coincidir, mas não prever as mesmas
consequências. Ou seja, pode ter um regime de GN diferente.

Ou seja, existem conceitos quadros que precisam de ser densificados no


âmbito do direito material, podendo essa densificação variar de ordenamento para
ordenamento. Irá ter uma geometria variável. Esta é a primeira dificuldade. A
própria hipótese da norma não se resume à descrição típica factual. É uma abstração. O
quid terá uma densificação variável de ordenamento jurídico para ordenamento jurídico.

A segunda dificuldade tem a ver com o próprio quid a subsumir: o que vamos
trazer à hipótese da norma, ao tipo legal? Aquilo que vamos trazer à descrição típica são
factos tal como eles sucederem. Temos uma realidade que vamos subsumir ao tipo legal.
Ora, isso na norma material, mas na regra de conflitos não é exatamente isso que
trazemos ao conceito-quadro. O que lhe vamos trazer para saber se de facto é aquela
regra de conflitos que vamos aplicar? Vamos trazer ao conceito quadro posições
jurídicas já acomodadas juridicamente ou, se quisermos simplificar, normas materiais.

O que é que temos quando o problema é estritamente um conflitual? Temos uma


das partes a dizer, por exemplo, que se aplica o direito alemão, nos termos do qual a
dívida já prescreveu. Na outra parte, aplica-se direito francês, nos termos do qual a
dívida ainda não prescreveu. Temos uma controvérsia de leis aplicáveis e respetivas
soluções jurídicas.

154
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

O que nós temos, no fundo, é uma controvérsia sobre leis aplicáveis e


respetivas soluções jurídicas, pelo que o que iremos levar ao quid serão pelo menos
situações já qualificadas juridicamente ou normas jurídicas. Mais uma vez, as soluções
materiais que são invocadas pelas partes e que pertencem a ordenamentos jurídicos
diferentes (não se trata de saber se a posição jurídica de A e B são antagónicas porque
se justificam por soluções materiais diferentes mas dentro do mesmo ordenamento
jurídico, aí o litígio envolve mais do que um OJ). Aqui são de OJ diferentes, daí haver
conflito de leis.

Ora, o facto de estas normas nos seus ordenamentos de origem conterem


soluções jurídicas diferentes, ou seja, normas em que se referem à mesma realidade mas
que por estarem em OJ têm inserções sistemáticas diferentes, exercem funções
diferentes, dificultam a subsunção da situação ao conceito quadro e, consequentemente,
a aplicação da regra de conflitos.

Neste sentido, quer do ponto de vista da hipótese da norma, vamos ter


dificuldades de qualificação quer diga respeito à hipótese (conteúdo não é fácil de
determinar com muita certeza, os conceitos podem variar de OJ para OJ) e dificuldades
quanto à estatuição (as normas materiais que servem de fundamento têm características
tão diversas que se torna difícil subsumível ao conceito quadro).

Como é que vamos ultrapassar estas dificuldades?

Teoricamente podemos distinguir 3 momentos na operação de qualificação


jurídica em DIP:

(1) Então, o primeiro problema é o da interpretação do conceito quadro que pode


teoricamente ser feita de uma de quatro maneiras:

a. Segundo o direito material do foro (lex materialis fori), ou seja,


vamos densificar o conceito quadro do modo que ele é configurado
no âmbito do direito interno do foro: significaria que cada figura ou
instituto referido pela regra de conflitos teria exatamente o conteúdo,

155
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

os limites, que o direito material do foro conferisse àquela mesma


figura.

i. Exemplo: por direitos reais entendemos aquilo que o


CC entende que são os direitos reais. Neste exemplo, nós
sabemos que existe um princípio de tipicidade e o artigo
46º refere-se à posse, à propriedade e aos demais direitos
reais. Imagine-se, agora, que o penhor sem entrega, que à
luz do nosso CC não é direito real, o era à luz da lei do
lugar da situação dos bens. Assim sendo, aquela solução
jurídica prevista na lei do lugar dos bens não se poderia
aplicar porque ela não se subsumiria ao conceito quadro
previsto no nosso artigo 46º CC.

ii. Acontecia isto com a União de Facto até à Lei 7/2001-


esta tinha alguns efeitos jurídicos, mas não existia uma lei
que a regulasse especificamente. Ora, outros OJ, à data da
entrada em vigor desta Lei, já continham disposições
sobre a União de Facto. Numa situação internacional
colocava-se a questão de saber como trataríamos uma
situação internacional de União de Facto. Teríamos
dificuldade em considerar aquele regime jurídico previsto
na lei estrangeira que nós desconhecíamos enquanto tal
como uma forma de constituição de família.

Ou seja, vamos inviabilizar muitas vezes a aplicação de uma lei


estrangeira só porque tem uma forma de distinta de a regular ou
delimitar ou até mesmo porque o nosso Direito não lhe confere validade
ou existência.

E, portanto, esta visão restrita do conceito-quadro àquilo que é


emprestado pelo direito material do foro deve ser colocado de lado, pelo
menos numa primeira análise.

156
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Pense-se no seguinte caso: a figura da prescrição das dívidas


corresponde nos direitos continentais a uma figura no âmbito das
obrigações, de direito material. Mas nos ordenamentos de Common Law
tem uma feição meramente processual, ou seja, o direito não se extingue,
apenas fica limitado na sua reivindicação, na sua ação, no sentido em que
o direito, do ponto de vista processual, deixa de poder ser exercido.
Enquanto para nós isto é diferente da extinção da obrigação por
prescrição.

Ora, na Alemanha alguém interpôs uma ação contra um devedor


que alegou a prescrição da dívida. Esta figura no direito material alemão
constitui, de facto, uma extinção da obrigação que faz com que ela se
qualifique- a prescrição- como um problema atinente à lex contratus, ou
seja, é a lei reguladora do contrato que inclui, no seu âmbito material, a
questão das obrigações. A lex contratus naquele caso é a lei dos EUA,
especificamente, a californiana, pelo que temos aqui alguém que interpõe
uma ação de dívida, o devedor alega a prescrição, o foro é alemão, a
questão é internacional. O tribunal alemão aplica o seu direito de
conflitos e enquadra esta questão no âmbito da lex contratus que será a
lei da Califórnia.

Ora, questionada aquela lei sobre a figura da prescrição, o direito


conflitual vem dizer que esta se trata de uma figura processual e não
existe enquanto forma de extinção de obrigação, mas apenas como
mecanismo processual, que apenas se aplicaria se fosse a lei do foro.
Contudo, a lei do foro era alemã.

Isto são exemplos de como deduzir o conceito quadro ao direito


material do foro pode resultar na inviabilização do direito estrangeiro
mencionada pela regra de conflitos que o chamou.

b. Segundo o direito material da lex causae, ou seja, da lei referida


pela própria regra de conflitos: ou seja, pensemos no caso do artigo

157
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

46º que manda aplicar a lex rei sitae. Se a interpretação do conceito


quadro do artigo 46º fosse deixado na dependência da lei mandada
aplicar, ele ia ter sempre um conteúdo diferente consoante essa lei
entendesse que os direitos reais fosse A, B, C, D e outra incluísse F.

Obviamente que isso levaria a que cada regra de conflitos se


transformasse numa espécie de norma em branco. Ou seja, nós não
podemos dizer simultaneamente que não vamos densificar o conceito
quadro de acordo com o direito do foro para depois alegarmos a sua
transformação numa regra em branco. Isto para não falar que cairíamos
novamente naquele argumento da petição de princípio, porque se o
conteúdo da regra de conflitos estiver em branco não lhe conseguimos
subsumir uma realidade.

c. Segundo o direito comparado: consistiria em tentar encontrar um


conteúdo intermédio entre todas as soluções globalmente
consideradas para uma determinada figura jurídica- o que a maioria
dos países entende por GN? Qual é o denominador comum
internacional? Esta ideia de através do direito comparado criar para
as regras de conflitos uma espécie de conceito quadro como sumula
de conteúdos materiais universalmente aceites é bastante sedutora,
mas acaba por não ser muito praticável desde logo porque as diversas
soluções vão evoluindo ao longo do tempo e porque uma ideia de
conceito maioritário deixaria de fora muitas soluções jurídicas.

d. Segundo o direito formal ou conflitual do foro: será uma hipótese


que reúne algum consenso. Significa que aceitamos que o conceito
quadro de uma regra de conflitos pertence ao todo que é o
ordenamento jurídico do foro sem que com isso não possamos de
alguma forma aceitar que outras soluções jurídicas de alguma forma

158
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

diferentes, sistematicamente diferentes, inseridas de forma diferente


ou até desconhecidas pelo foro não possam assumir funções
semelhantes. Ou seja, chegamos a uma interpretação teleológica e
funcional dos conceitos usados por regras de conflitos.

i. A Professora Magalhães Colaço dá o seguinte


exemplo: a presunção de paternidade recai em relação ao
marido da mãe, mas no direito islâmico esta presunção
também existe mas perdura por 3 ou 4 anos após a morte
do cônjuge. A nossa presunção assenta numa realidade
biológica. Ora, como é evidente esta presunção de
paternidade não assenta nas mesmas premissas que a
nossa [portuguesa], já que a nossa assenta na ideia de que,
normalmente, o marido da mãe é o pai biológico da
criança, o que não nos permite justificar a continuidade
daquela presunção de anos após a morte do marido. Ou
seja, nós podemos ter a mesma regra, mas essa regra
assenta numa ratio legis que não tem nada que ver com
esta mesma figura naquele outro ordenamento. Este é um
exemplo de uma figura cujo conteúdo se afasta da
natureza jurídica da lei do foro. Neste caso, não pode
haver uma integração no conceito quadro.

10/12/2021

Vimos que a regra de conflitos tem por função chamar lei e dentro dessa lei pode
contemplar várias regras jurídicas. Nem sempre as regras materiais apresentam regras
iguais às do foro. Atendendo à sua diversidade e características, nem sempre é fácil
estabelecer uma relação entre uma norma estrangeira e figura enunciada no conceito
quadro.

159
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Vimos 4 hipóteses. A mais comum é a da interpretação do conceito quadro,


exclusivamente do direito material do foro.

No direito português, quando alguém vem a falecer e não dispôs dos bens e não
teve herdeiros do elenco do artigo 2133.º, será o Estado a herdar. Para o direito material
português, a sucessão do Estado é uma verdadeira sucessão pro morte. Mas noutros
ordenamentos jurídicos não é assim. No Reino Unido não é assim. O Estado não é
encarado como herdeiro. A coroa tem direito de apropriação – right to escheat. Este
right não é nem sistemática, nem conceptualmente entendido como direito à herança.
Não é visto como direito sucessório, é apenas uma forma de organização dominial de
bens que ficam sem dono. Este right tem natureza de direito real. Apesar de ser exercido
no momento da morte do proprietário e apesar de factualmente isso acontecer, do ponto
de vista jurídico, não há figura da herança. É visto apenas como direito real. De facto, se
olharmos para os direitos reais do ponto de vista do direito material do foro, nunca esta
norma seria configurada nos termos do art.º46, porque, para nós, é um artigo sucessório.

Para o Reino Unido, é solução de mera ocupação dominial com características


erga omnes. Podemos subsumi-la ao art.º46, mesmo não havendo essa exata
correspondência.

Temos o exemplo do testamento de mão comum. Não é admitida no nosso OJ.


Noutros OJ já é. O art.º52 quando refere relações entre os cônjuges levaria a que
tivéssemos dificuldade em subsumir hipótese deste género. Sendo uma instituição
desconhecida do foro, não conseguíamos encontrar uma regra de conflitos para lei
estrangeira. Teríamos dificuldade em subsumi-la ao art.º52. Mas atenção, porque as
situações são diferentes. Uma coisa é termos regulação material. Vimos a questão do
caso omisso relativamente à união de facto – não há regra de conflitos específica para a
união de facto – aqui não é um problema de qualificação. Antes da Lei 7/2001,
podíamos dizer que era uma situação desconhecida do ponto de vista do foro. Contudo,
do ponto de vista do OJ aplicável, não será desconhecida. Desde que a função primária
esteja a ser cumprida analisando a norma material aplicável no ordenamento
estrangeiro, aplica-se o RC. Ou seja, a UF não era conhecida no direito português mas

160
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

no seu ordenamento jurídico cumpria a mesma função que o casamento aqui que era
regular a comunhão de vida.

Começamos a ver que o conceito quadro não deve ser interpretado de


forma estanque, limitada, idêntico ao conteúdo oferecido pelo direito
material do foro, mas como um conceito aberto. Estará aberto a outras
soluções com inserções sistemáticas diversas, desde que o conteúdo
funcional seja respeitado. Esse conteúdo funcional tem que ser
respeitado.

Vimos o exemplo da ocupação dominial. Portanto, são soluções jurídicas,


normas materiais que, de facto, não são idênticas às do foro, mas cumprem a mesma
função, cumprem a mesma ratio e têm a mesma teleologia.

O conceito quadro deve ser interpretado não pelo direito material do foro, não como
noção de direito comparado. No fundo, quando o legislador conflitual cria uma regra de
conflitos, enuncia uma questão jurídica que pode ser respondida pelas potenciais leis
aplicáveis de formas ligeiramente diferentes, desde que cumpram a teleologia daquela
questão jurídica. De facto, é preciso que as soluções das leis oferecidas se relacionem de
forma essencial com esta questão jurídica.

Portanto, o conceito quadro deve ser interpretado segundo o direito


conflitual do foro, o que significa que o legislador conflitual quando cria a regra de
conflitos, cria um conceito-quadro que é um conceito-questão. No fundo coloca uma
questão jurídica que pode ser respondida pelas potenciais leis aplicáveis de forma
ligeiramente diferentes desde que cumpram a função/teleologia daquela mesma questão
jurídica.

No fundo é necessário que as diversas soluções se relacionem do ponto de vista


teleológico e funcional de forma essencial com esta questão jurídica. É do elemento de
conexão eleito que se consegue revelar a natureza jurídica ou função da hipótese
prevista nessa mesma norma.

161
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Ferrer Correia diz até que um conceito-quadro abrange todos os institutos ou


conteúdos jurídicos, PT ou estrangeiros, aos quais convenha, segundo a sua ratio legis,
o tipo de conexão adotado pela regra de conflitos que utiliza o mesmo conceito.

Será que o legislador europeu segue esta abordagem?

Nós temos de pensar que neste caso o legislador europeu é o foro para estes
efeitos. Quando nós falamos do âmbito material de um Regulamento Europeu, importa
saber se a situação sub judice se enquadra na matéria que ele pretende regular, algo que
geralmente faz através do seu artigo 1º nº1, mas depois o nº2 vem ajudar excluindo
determinadas questões.

Ou seja, é o próprio legislador europeu que diz o que está e não está lá, mas
ainda assim muitas vezes existem dúvidas porque os conceitos que utilizam não estão
dependentes dos direitos materiais de cada Estado- são conceitos próprios regulados
pelo próprio legislador europeu.

No fundo, faz uma interpretação do conceito-quadro que é própria, isto é,


segundo o direito formal do foro, neste caso, segundo o legislador conflitual europeu.

(2) A segunda questão que é relevante é a própria determinação do objeto da


qualificação: o quid a subsumir são, no fundo, normas materiais de qualquer uma
das leis aplicandas. Normas materiais essas que vão, no fundo, acomodar
juridicamente uma situação de facto. Há uma controvérsia na doutrina. A Escola de
Coimbra refere normas materiais e a Escola de Lisboa fala de situações da vida
acomodadas juridicamente. É exatamente a mesma coisa, porque a situação da vida
acomodada tem veste jurídica pelas normas materiais desse OJ.

Tomemos como exemplo A e B que têm um litígio do foro privado, cada um


deles alega a aplicação da lei de ordenamentos distintos, invocando as suas normas

162
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

materiais. Perante esta circunstância, o órgão de aplicação de direito compreende que


temos aqui um conflito de leis e, perante esta diversidade, ele percebe que as partes
alicerçam as suas pretensões em normas materiais oriundas de ordenamentos distintos.
Ele vai ter de olhar para essas regras materiais e determinar se se enquadram no
conceito-quadro para determinar se a regra de conflitos é aplicável ou não.

Essa qualificação é feita por quem?

Na tarefa da qualificação, o próprio Tribunal do foro deve analisar um direito estrageiro


e deve fazê-lo no seio do seu próprio OJ – lex causae para tarefa da caracterização da
norma material. Um Ac. TJUE 2018 considerou que essa norma material recai na
aplicação do Regulamento das Sucessões ou regulamento dos regimes de bens. Para
saber se aquela lei é aplicável, tem que ser competente. O prolema é que a regra de
conflitos, ou seja, a sua própria determinação era duvidosa. Era duvidoso se a norma
recaia sobre regulamento de sucessões ou sobre regime de bens. Essa tarefa de
qualificação precisa sempre de ser feita. O que se pede ao TJUE é que diga se esta
solução tem natureza sucessória ou de regime de bens. Ao fim ao cabo, o legislador
conflitual tem que dizer a interpretação que faz o conceito-quadro e vai ter que dizer se
aquela norma responde à questão jurídica do Regulamento das Sucessões ou
Regulamento do regime de bens. O TJUE acaba por ser um órgão interpretativo do
direito europeu. Vamos ter que saber se a questão é sucessória ou se é de regime de
bens. Para fazer isso, o Tribunal analisou a solução material alemã de acordo com as
características que o próprio direito alemão atribuía à solução jurídica. Não entendeu
que essas características fossem suficientes para subsumir ao regime de bens. Entendeu
que era sucessório. A doutrina sempre entendeu como regime de bens. TJUE foi
acusado de não seguir a lex causae. Não seguiu a opinião maioritária no OJ alemão
relativamente aquela situação jurídica. Não fez a caracterização lege causae. A
Professora considera que o TJUE fez essa caracterização. Não parece que o TJUE se
tenha desviado. O TJUE analisou a função daquela concreta norma. Analisou, mas

163
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

concluiu que a questão deveria ser subsumível ao Regulamento das sucessões. Não
considerou que era uma questão do regime de bens.

O tribunal do foro para saber se pode ou não subsumir aquela norma ao


conceito-quadro da regra de conflitos tem de saber quais são as funções, a teleologia,
dessa norma, especialmente quando a situação material estrangeira é diferente da do
foro. A interpretação do conceito quadro deve ser ampla, não deve ficar “agarrada ao
foro”. Essas características vão ser colhidas ao direito material do outro Estado. Ou seja,
tem de se perceber no seio do seu ordenamento de origem quais são as suas
características.

(3) Temos, por fim, o terceiro momento que é o da aplicação das regras de conflitos:

Robertson e Roberto Ago vieram dizer que havia uma coisa que teria de se fazer
primeiro a que eles chamaram de qualificação primária- esta seria, no fundo, uma
tarefa que passava por olhar para os factos tal como eles são apresentados ao Tribunal e
caracterizá-los de acordo com o direito material do foro, porque só assim é que
encontramos a regra de conflitos, ou seja, diziam que a questão tem de ser enquadrada
segundo o direito material do foro para conseguirmos encontrar a regra de conflitos
aplicável já que só através desta é que sabemos qual é a lei aplicanda.

Parecia que esta qualificação primária era absolutamente inultrapassável porque


nós falamos do quid a subsumir, das normas materiais das leis aplicandas, mas que leis
são essas se nós não partimos de uma regra de conflitos?

Mas quando olhamos para o artigo 15º CC este diz-nos que a competência
atribuída a uma lei abrange somente as normas que, pelo seu conteúdo e pela função que
têm nessa lei, integram o regime do instituto visado na regra de conflitos
(conceito-quadro). Portanto, este artigo refere, desde logo, que há uma seleção na lei
aplicanda das normas materiais pertinentes que se vão subsumir ao conceito-quadro
como conceito-questão.

164
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Isto significa que o artigo 15º CC nunca se preocupa com aquilo que aqueles
autores chamavam de qualificação primária e vê apenas como problema o saber, dentro
da lei aplicanda, quais são as normas que pelo seu conteúdo se função se enquadra no
conceito-quadro da regra de conflitos- mas qual regra de conflitos?

Na verdade, o que o legislador conflitual aqui entendeu é que isso não era
necessário. Aliás, que seria redutor e até errado do ponto de vista do Direito e isso
ilustra-se através de um caso:

a. Vamos supor que o A, português, vem a falecer sem testamento


nem parentes sobrevivos e deixa bens imóveis em Londres. Temos
aqui duas leis potencialmente aplicáveis: a lei nacional que é a lei
portuguesa e a lex rei sitae (lei do lugar da situação dos bens) que é a
lei inglesa.

Para a doutrina portuguesa, nós temos aqui como objeto de


qualificação duas normas jurídicas de dois ordenamentos diferentes:
artigo 2133º CC (PT) e “right to escheat” (I).

Segundo a teoria daqueles autores nós temos, perante estes factos,


de, segundo o direito material do foro, qualificá-los, pelo que, de acordo
com a nossa norma, estaríamos perante um caso de aplicação do artigo
62º CC que manda aplicar a lei nacional que é a lei portuguesa.

Acontece que, atendendo às características da norma inglesa, o


conceito- quadro do artigo 46º CC comportaria esta situação. E este
artigo manda aplicar a lex rei sitae que corresponde ao subordenamento
jurídico inglês. Robertson diz que eliminamos as pretensões da coroa
britânica. Não temos razão para preterir uma em relação a outra. O
art.º15 não refere qualificação primária. Estamos de alguma forma a
preterir um direito em relação a outro quando ambos estão em contacto.
No OJ estas regras assumem natureza diferente.

165
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Mas e agora? Qual das leis aplicamos?

E se o A fosse inglês e os bens estivessem situados em Lisboa?

Na lei inglesa não há nenhuma regra sucessória que se possa aplicar a esta
hipótese fáctica já que a Coroa britânica não é herdeira, o que ainda tornava a situação
mais difícil se aplicável a tese daqueles autores.

Obviamente que se percebe que esta solução do artigo 15º CC- que não nos
compromete com nenhuma regra de conflitos-, se por azar essas normas jurídicas
integrarem o instituto visado por mais de uma regra de conflitos. Nós temos aquilo que
se chama de conflito positivo de qualificações (também pode haver um conflito
negativo) e isto tem de ser resolvido.

O que não podemos fazer nunca é aquela qualificação primária já que essa visão
pode resultar na preterição de uma das leis em presença sem justificação ou, até, numa
impossibilidade de resolver a questão fáctica. Nós podemos partir para uma qualificação
secundária, analisar as diversas normas materiais das diversas leis aplicandas e, se as
mesmas nos direcionarem para a aplicação de regras de conflitos distintas que remetem
nos mandam aplicar as leis a que essas normas pertencem, aí sim teremos um conflito
positivo de qualificações que importa resolver.

A doutrina defende que para partimos de uma RC temos que fazer submissão
dos factos ao direito material. Vimos que o art.º15 não nos compromete com nenhuma
regra de conflitos. Corremos o risco de a questão ser puramente sucessória e
mandarmos aplicar apenas uma das leis em presença quando a outra também seria
competente.

Na primeira hipótese, vimos que era português, intestado e deixava móveis em


Londres. Agora vamos supor que era italiano e o Tribunal competente era português
porque residia em Portugal. Reclama a coroa britânica e o estado italiano. Temos que

166
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

fazer triagem segundo o direito do foro, que é Portugal. Art.º2133 CC. Decidimos a
cabeça sem questionar os outros direitos que estão em presença, decidimos que a
questão é sucessória. Aplicamos o art.º62 e como tal o direito italiano. No direito
Italiano, o Estado é um dos sucessíveis. Prefere-se os direitos do estado italiano por
causa de uma qualificação segundo a nossa lei portuguesa. É uma questão de direitos
reais para o direito inglês. Tem características suficientemente atinente aos direitos
reais. Portanto, a lei inglesa tem o mesmo titulo de aplicação que a lei italiana. Isto é o
que art.º15 determina e não depende de uma qualificação dos factos. Nesse caso, vai
resultar num conflito positivo.

Tem que ser resolvido. Temos que resolver a jusante um conflito de


qualificações. Só não podemos ignorar a outra rega de conflitos, porque a lei material
do foro se reveste de natureza sucessória.

Devem ser resolvidos a jusante e a doutrina vem estabelecendo critérios para a sua
resolução.

Importa atentar no MahnKopf do TJUE, de 2018: caso de um casal que reside na


Alemanha, mas tem uma propriedade na Suécia. O marido vem a falecer e a esposa quer
que a sua qualificação como herdeira do marido e o seu direito à herança (metade dos
bens) fosse inscrita numa habilitação europeia (instituída pelo Regulamento das
sucessões a partir de 2015). Este certificado permite fazer as coisas à distância. O
certificado sucessório europeu funciona como documento que certifica que determinada
pessoa é herdeira e que tem direito a X do bem Y. O Tribunal alemão diz que o
certificado só pode incluir direitos sucessórios.

O problema é que o regime de bens é do direito alemão especial; é uma espécie de


regime de separação que no fim contabiliza o património dos cônjuges. A diferença
entre eles é repartida e é atribuída diferença ao que tem menos. Acontece que o direito
alemão, no caso de morte, por considerar que tem que haver solução mais fácil, ao
cônjuge sobrevivo é atribuído ¼. Esse direito está inserido no capítulo das sucessões e
funciona só em caso de morte. É uma regra de regime de bens própria para a dissolução
do regime de bens por morte. O tribunal alemão tem dúvidas se aquela norma é então

167
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

uma norma de partilha de bens ou se é uma norma sucessória. O TJUE entendeu ser
uma norma sucessória. O que consideramos é que as características da norma alemã têm
uma função também sucessória. Uma função prevista no Regulamento das sucessões.
Fez o que o art.º15 determinaria.

16/12/2021

CONFLITOS DE QUALIFICAÇÕES

É um problema que resulta da abordagem metodológica que o legislador


português adotou no artigo 15º CC. Evidentemente, que serão situações excecionais,
mas tao problemáticas são que muitos dos casos mais emblemáticos da jurisprudência
de DIP têm a ver com estes problemas de qualificação.

Mesmo nos regulamentos europeus em que existe uma ideia de interpretação das
categorias normativas através da definição, quer positiva quer negativa, do seu âmbito
material de aplicação. Quando o regulamento diz que aquelas soluções conflituais se
aplicam a determinadas situações, excluem outras situações que poderiam suscitar
dúvidas por serem soluções próximas ou conexas ou porque os estados-membros
emprestam a essa categoria normativa uma definição diferente.

Portanto, o critério da pertença ao âmbito material de cada um dos regulamentos


cabe ao próprio legislador conflitual, sendo que serão o TJUE que funcionara como
órgão interpretativo. Pelo que esta abordagem europeia não é muito distinta da do artigo
15º CC.

Podia ter acontecido com o caso Mahnkopf se tivesse havido uma alteração das
circunstâncias de facto: em que um deles tivesse vindo viver e falecer em Portugal, a lei
aplicável ao regime de bens seria a lei da residência habitual ao tempo do casamento, ou
seja, a lei alemã.

Recordando, temos 3 momentos:

168
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

(1) Interpretação do conceito-quadro;

(2) Objeto de qualificação;

(3) Momento de aplicação da norma de conflitos.

O que é necessário é que a solução material estrangeira responda à questão


jurídica enunciada na regra de conflitos, tenha o mesmo conteúdo funcional-teleológico.
Agora, saber como se caracteriza essa solução jurídica estrangeira (ou as soluções)
refere-se ao segundo momento, sendo que a caracterização das normas materiais é feita
pelo ordenamento de origem. O último momento da qualificação cabe outra vez ao
intérprete do foro que vai decidir se as características da norma material estrangeira são
suficientes para responder à questão jurídica enunciada no conceito-quadro.

É neste momento que vimos que a doutrina tradicional exigia que houvesse uma
qualificação primária dos factos (teríamos de partir da regra de conflitos para ir buscar
as normas materiais estrangeiras). Ao que a doutrina portuguesa e o artigo 15º dizem
que não é necessário- não é necessário determinar de forma definitiva à priori qual é a
regra de conflitos porque isso se faz do prisma do direito material do foro que tem uma
resposta à questão sub judice diferente da que é dada por outro OJ que, por sua vez, até
pode dar uma resposta diferente à questão jurídica enunciada. Vejamos as seguintes
situações:

- A, italiano, faleceu e deixa bens em Londres:

Vamos considerar que o tribunal português é internacionalmente competente. O


direito italiano tem uma solução idêntica à do direito português e considera que o
Estado, porque A não tem herdeiros legais, é o último dos herdeiros legais. Se nós
olhássemos para esta questão do ponto de vista do direito material do foro, esta situação
de facto para o direito português seria uma questão sucessória e aplicávamos o artigo
62º que manda aplicar a lei nacional (lei italiana) e preteríamos a lei britânica sem
nenhuma justificação.

O artigo 15º olha diretamente para as leis materiais em contacto com a situação:
temos o direito italiano e o direito inglês. A solução italiana já vimos, mas a solução

169
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

jurídica inglesa vai no sentido de atribuir os bens à coroa por considerar que esta tem
um direito de apropriação dos bens de quem não tem herdeiros legais. Para o direito
italiano é uma questão sucessória, o que vai reconduzir à aplicação do artigo 62º CC que
manda aplicar a lei nacional (isto significa que a tal solução jurídica italiana se pode
aplicar porque é a regra que a regra de conflitos manda aplicar). O direito inglês
responde, contudo, a uma mera questão de ordenação patrimonial (Direito Real), pelo
que se aplicaria, agora, o artigo 46º CC. Ora, este manda aplicar a lex rei sitae, ou seja, a
lei inglesa.

Isto significa que as críticas da doutrina tradicional se justificam porque vai


haver um conflito positivo de qualificação- nós não podemos aplicar ambas e teremos,
de alguma forma, corrigir esta patologia de funcionamento das regras de conflitos.

Mas o que não podemos é fazê-lo à priori porque essa qualificação segundo o
direito material do foro não justifica o afastamento do direito material inglês- é
preferível resolver o conflito do que preterir o direito material daquele ordenamento
jurídico sem justificação.

Estes conflitos devem ser resolvidos segundo princípios gerais de direito. Estes
estão mais ou menos tratados já que correspondem a casos clássicos de jurisprudência
Internacional. As sucessões integram a matéria do estatuto pessoal e entre uma questão
pessoal e uma questão meramente real, a preferência dada será sempre dada ao estatuto
pessoal porque estão em causa interesses pessoais. Ou seja, neste caso, dever-se-ia
aplicar o direito italiano, mas agora já temos uma justificação – seria mais relevante o
estatuto pessoal do que o estatuto real.

¾ A e B são alemães e prometem-se mutuamente a celebração do casamento. Mas B


rompe a promessa casando em Paris com C.

Temos em presença a lei alemã e a lei francesa. O direito francês não conhece
esta figura da promessa de casamento. Numa situação como esta os danos causados
poderiam ser ressarcidos através de uma situação normal de aplicação da

170
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

responsabilidade civil extracontratual, mas não por via da concreta figura da promessa
de casamento.

Acontece que o direito alemão que prevê esta figura, subsume-se ao estatuto
pessoal, pelo que teríamos a aplicação do artigo 25º e 31º, nº1 CC que mandaria aplicar
a lei nacional (lei alemã). O direito francês, pelo seu lado, poderia considerar esta
questão através da responsabilidade civil extracontratual, regulada pela regra de conflito
do artigo 45º CC que manda aplicar a lei do facto ilícito, ou seja, a lei francesa. Mais
uma vez, temos um conflito positivo. Entre um conflito entre a responsabilidade delitual
e o estatuto familiar, aplica-se o princípio da lei geral vs. lei especial, sendo que a lei
francesa enquadra a questão em termos gerais e a lei alemã consagra uma especial
forma de violação de ilicitude, uma lei especial – a lei alemã seria aplicada porque a
norma especial afasta a norma geral.

¾ A e B são gregos, casam civilmente na Alemanha: porque o casamento civil não


era reconhecido, na altura, na Grécia

Do ponto de vista do Direito Alemão trata-se de uma questão meramente formal


e, portanto, subsume-se ao artigo 50º CC, o que significa que se aplica a lei do lugar da
celebração do casamento (lei alemã). Mas o Direito Grego que tinha à época um sistema
de casamento católico obrigatório, considerava este casamento inexistente, pelo que não
se tratava apenas de uma questão formal, mas de validade, pelo que se subsumiria ao
artigo 49º CC que manda aplicar a lei nacional, neste caso a lei grega. Assim sendo,
temos, mais uma vez, um conflito positivo de qualificações já que atendendo às
características das regras materiais lidas pelo seu ponto de vista vão subsumir-se a
regras de conflitos distintas que mandam aplicar leis de ordenamento jurídicos
diferentes.

Mais uma vez, aqui o critério será o da preferência do estatuto pessoal em


relação ao estatuto formal, pelo que se iria preferir pela aplicação do artigo 49º CC.
Só que esta solução conduzia à invalidade do casamento por razões religiosas, o que, do
ponto de vista do tribunal do foro, seria contrária ao princípio da ordem pública, pelo
que a solução seria pela validade do casamento porque o nosso artigo 22º manda

171
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

considerar a solução mais atinente ao princípio da ordem pública, pelo que seria de
considerar o casamento válido.

Os conflitos quando são positivos podem resolver-se dando preferência a uma


regra de conflitos em relação à outra, como acabamos de ver. Mas e se o conflito for
negativo?

Olhemos para o caso da promessa de casamento, mas vamos supor, agora, que o
A e B são franceses e que B rompe a promessa em Hamburgo (Alemanha). Repare-se
que a situação é a mesma só que agora invertemos os elementos de facto. Ao fazê-lo
continuamos a olhar para os mesmos ordenamentos jurídicos em presença.

Olhando para o direito francês (nacionalidade dos nubentes) já vimos que esta lei
não contém norma especial para esta situação sub judice, podendo justificar uma
eventual indemnização segundo a aplicação geral da responsabilidade civil
extracontratual, pelo que se subsume ao artigo 45º que manda aplicar a lei do lugar da
prática do ilícito, ou seja, a lei alemã. Se olharmos, agora, para o direito alemão, este
direito enquadra este artigo no âmbito do estatuto pessoal (artigo 25º e 31º, nº1 CC) que
remete para a lei nacional, ou seja, para a lei francesa. Ora, neste caso não nos adianta
nada preferir uma das regras de conflitos à outra porque nenhum dos ordenamentos
jurídicos se quer aplicar.

Neste caso, ter-se-ia de recorrer à figura da adaptação (última ratio de decisão


quando o sistema conflitual encontra situações como esta): aqui a adaptação seria
relativamente simples. Sabemos que nos termos do artigo 45º CC existe um nº3 que
manda aplicar a lei nacional comum. Ora, se aplicássemos a norma francesa de
responsabilidade civil por força do 45º, nº3, este mandava aplicar a lei francesa e já
conseguiríamos responder à questão jurídica. Não corresponde exatamente à hipótese
prevista no nº3, mas, por adaptação, poder-se-ia equacionar a sua aplicação.

Será sempre um juízo casuístico.

172
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

17/12/2021

Há duas normas do CC que interessam ao problema do estatuto e da forma de


aplicação de direito estrangeiro por um órgão de aplicação do Direito Português: artigo
23º CC e artigo 348º CC (este artigo vai auxiliar-nos na interpretação daquele). É da
articulação destes dois preceitos que chegamos a alguma conclusão. No fundo a questão
é saber se o direito estrangeiro que é mandado aplicar pela regra de conflitos é visto
como um mero facto ou como direito material idêntico ao do foro.

Começando por saber como é que se aplica o direito estrangeiro em Portugal,


desde logo o artigo 23º diz-nos que a lei estrangeira é interpretada dentro do sistema a
que pertence e de acordo com as regras nele fixada, ou seja, remete-nos para a aplicação
de direito estrangeiro tal como ele é interpretado no seu ordenamento jurídico de
origem.

Portanto, nós não podemos fazer a interpretação ou integração de lacunas


utilizando, por exemplo, o artigo 10º ou 11º do nosso CC. A ideia é que o direito
estrangeiro seja aplicado por um órgão de aplicação do direito português tal como seria
aplicado no seu direito de origem.

Quando nós dizemos que o direito estrangeiro que é aplicado pelo órgão de
aplicação do direito do foro é-o de acordo com o seu direito de origem, isto é assim
mesmo quando haja problemas de reconhecimento internacional desse Estado.
Exemplo: pense-se no problema da independência de Timor-Leste. Antes desta,
Portugal tinha cortado relações diplomáticas com a Indonésia. Ora, isto não significa
que se o direito material da Indonésia fosse chamado a ser aplicado, Portugal não o
fosse fazer. Estas situações não afetam a aplicação do Direito, tal como ele é aplicado
nesse ordenamento jurídico.

Também as fontes formais de regulação do Direito serão não as nossas, mas as


desse direito. Pelo que se aplicarmos um direito pertencente à família de Common Law,

173
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

nós vamos aceitar a jurisprudência como fonte de direito. Devemos aceitar essas fontes
de direito, mesmo que não correspondam às nossas fontes de direito.

Se possível vamos interpretar o direito estrageiro tal como ele é interpretado no


seu direito de origem e existem algumas situações que são conhecidas como no direito
inglês em que o direito escrito é excecional. Temos exemplos interessantes em que a
mesma regra jurídica é aplicada em dois países diferentes, mas que, por razões de
evolução histórica, são interpretadas de forma diferente. Por exemplo, em Moçambique:
uma regra do nosso Código, que é o artigo 877º CC, a letra do nosso preceito é a mesma
que a dele, mas em Moçambique isto é interpretado até aos bisnetos e aos bisavós.
Outro exemplo interessante é que as regras do CC Francês são ainda as que se aplicam
na Bélgica e, em matéria de sucessões, saber se um testamento é um mero documento
particular – isto é admitido no direito francês, mas no direito belga essa forma de
testamento não é vista da mesma maneira e é interpretada num sentido mais restritivo.

Qual é o estatuto deste direito estrangeiro?

Será que esse direito estrangeiro vai ser visto como um verdadeiro direito como
o é o direito material do foro ou apenas como um facto? Isto é tão relevante quanto os
efeitos da questão de saber de as partes terem de alegar e provar a aplicação desse
direito estrangeiro. A aplicação de direito estrangeiro é sempre mais difícil, embora isso
às vezes possa ser relativamente falacioso porque um órgão, especialmente no caso dos
de competências especializadas, é mais fácil que os seus operadores conheçam melhor
Direito da Família estrangeiro do que Direito Administrativo.

Por outro lado, o acesso ao direito estrangeiro é cada vez mais fácil. O grande
apoio que o gabinete de direito comparado da procuradoria geral da república continua a
dar e o acesso a bibliotecas especializadas em direito comparado ou direito estrangeiro,
torna mais simples aceder ao conhecimento do direito estrangeiro. Mas não deixa e ser
uma dificuldade porque: uma coisa é ter acesso aos códigos, leis; outra coisa é ter
acesso à interpretação, jurisprudência, doutrina – isto implica consulta e investigação.

Nos sistemas de Common Law, o direito estrangeiro é olhado como um facto,


pelo que as partes que o alegam têm o ónus da sua alegação e prova. Isso alivia o papel

174
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

do órgão de aplicação do Direito, para além de permitir que as partes, na prova desse
direito estrangeiro que é visto como um facto, poderem recorrer a meios probatórios
normais como é o caso de testemunhas- no caso do direito inglês as testemunhas que
vão fazer prova deste direito estrangeiro são peritos (“expert witness”). Este é um
sistema em que o direito estrangeiro é visto como um facto cujo ónus da prova cabe às
partes.

Mas também existe em muitos dos sistemas continentais, um sistema em que o


DE é visto como Direito, ou seja, oficiosamente reconhecido pelo tribunal. As partes
podem trazer ao tribunal informações sobre esse direito estrangeiro, mas o seu
reconhecimento e aplicação será oficiosamente feito pelo tribunal.

Que sistema é que vigora em Portugal?

Para responder a isto precisamos do auxílio de uma contrarregra do CC porque o


artigo 23º começa por dizer aquilo que supra referimos e no nº2 dá um passo em frente e
diz-nos o quê que se faz na impossibilidade de averiguar o conteúdo da lei estrangeira
aplicada. Entre uma afirmação de que o direito estrangeiro deve ser interpretado
segundo os seus próprios cânones e a questão da sua impossibilidade fica a questão de
saber como é que se determina a sua aplicação e como é que esta se prova, ou seja,
quem é que tem o dever de trazer o direito estrangeiro ao conhecimento do órgão de
aplicação de direito e isto remete-nos para o problema do tal estatuto do direito
estrangeiro.

Ora, se formos ao artigo 348º CC, este diz-nos que àquele que invocar Direito
Consuetudinário, local e estrangeiro, compete fazer a prova da sua existência e
conteúdo. Até aqui diríamos que estaríamos perante um sistema de facto, mas o artigo
continua e diz-nos que o tribunal deve averiguar oficiosamente o seu respetivo
conhecimento.

O nº2 parece que vem reforçar a 2ª parte do nº1 segundo a qual o


reconhecimento e averiguação do direito estrangeiro é oficiosa, pelo que o direito
estrangeiro é visto como um verdadeiro Direito – artigo 348º, nº1, 2ª parte e nº2!

175
APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Quanto ao nº1, 1ª parte do artigo 348º CC, entende-se que existe um ónus de
colaboração, sendo que se o direito estrangeiro for de fácil averiguação as partes não
têm de fazer nada já que existe aquele dever oficioso, mas se o direito estrangeiro
aplicável for de reconhecida dificuldade de aplicação, averiguação, prova, etc. – aquilo
que da perspetiva do tribunal do foro se pode chamar de Direito Exótico – de facto, as
partes têm de colaborar, sendo que se o não o fizerem, aí o tribunal pode legitimamente
recorrer ao nº2 do artigo 23º CC.

O que o artigo 23º, nº2 vem dizer é que, se por exemplo for aplicável a Lei
Nacional (Lei Malaia) e cujo acesso se revela muito difícil para o tribunal. As partes não
colaboraram com o tribunal no conhecimento e interpretação desse Direito, pelo que o
tribunal recorre a este artigo que diz que na impossibilidade de reconhecimento do
direito estrangeiro se aplica a lei subsidiariamente competente. É necessário que haja
uma conexão subsidiária, algo que nem sempre acontece (neste caso poderíamos
recorrer à lei da residência habitual). Pode acontecer que também essa lei da residência
habitual seja igualmente de difícil conhecimento ou podemos estar a falar de um outro
estatuto que não o pessoal e em que não há conexão subsidiária.

Assim sendo, parece que este artigo não dá uma resposta completa. Ferrer
Correia acha que se salta precipitadamente para a aplicação do direito material do foro,
não aplicando a lei que a regra de conflitos manda mesmo aplicar. O prof. Ferrer
defende que se possa fazer um conhecimento presuntivo desse direito quando esse
direito pertencer a uma família jurídica em que há soluções idênticas que podem ser
interpretadas à luz de um direito familiar.

SUCESSÕES POR MORTE NO DIP: REGULAMENTO DAS


SUCESSÕES

O art. 62º determinava que a sucessão era regida pela lei pessoal do de cujus à lei
do falecimento, com algumas exceções. Mas fora estas exceções, a sucessão aberta
deveria ser regulada pela lei pessoal do de cujus ao tempo do falecimento. Se as pessoas
tivessem uma nacionalidade diferente anteriormente, seria no momento do falecimento
que seria determinada a lei aplicável, que em regra, seria a lei nacional. Esta norma

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

revela bem a autonomia do DIP quanto ao direito interno. Esta norma deixa de ser
avaliada pela lei indicada pela lei de conflitos. Depois havia mais duas regras que têm a
ver com a solução voluntária que diz respeito a atos voluntários de disposição pos
mortem e as regras do artigo 63º e 64º referiam-se à capacidade para celebrar esses tipos
de disposições. Esta norma diz que esta questão é de substância e reconduzi-la ao art.
64º, sendo que se deve ter em consideração o art. 53º (alguns factos sucessórios são
feitos na convenção nupcial). Será a lei nacional ao tempo da própria disposição. A
interpretação será feita pela lei nacional também determinada naquele momento.

Isto muda radicalmente com a entrada do Regulamento Europeu das Sucessões.


Tem um âmbito muito mais amplo do que os outros regulamentos. O regulamento
europeu das Sucessões é o que gera as maiores discussões no âmbito jurídico europeu.

A aplicação territorial só não se aplica à Dinamarca e à Irlanda. Tem aplicação


universal: a lei aplicável pode ser a lei de um Estado 3º ou não vinculado no
Regulamento. O que importa é que o tribunal do foro esteja vinculado ao regulamento
europeu e Portugal está.

Todos os óbitos ocorridos a partir de 17 de agosto de 2015 estão abrangidos por


este regulamento europeu, sem prejuízo pela escolha de lei feita em momento anterior
nos termos do nº 2, 3 e 4 do art. 83º (e considerando 51).

Vamos às regras: para percebermos a diferença ao artigo 62º.

Art. 21º: aplicação da lei da nacionalidade e, supletivamente, da lei residência


habitual. Caso, a título excecional das circunstâncias, o óbito tenha maior conexão com
outro Estado em detrimento da lei do art. 21º, nº1 do regulamento europeu, é aplicada a
lei desse ordenamento- temos aqui uma cláusula de exceção.

Art. 22º: Temos a autonomia conflitual. Se tiver nacionalidade múltipla, pode


escolher a lei de qualquer dos Estados de que é nacional.

A solução do regulamento europeu é estranha: podemos aproveitar o


conhecimento do art. 20º dos ordenamentos plurilegislativos para entendermos a
solução. Art. 36º: o que o nº1 nos diz é que se aplica o direito interno local; e depois

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

refere-se a “ausência de direito interno local” (nós já sabemos pelo art. 20º é que não
um problema apenas de ausência, mas falta de uniformização). No fundo, o que o
regulamento faz é que qualquer que seja a norma de conflitos, nós recorremos sempre
ao direito interno local. Só que, pelo art. 20º, isso só acontece para a nacionalidade. Se a
regra de conflitos diz residência habitual, é a lei do subordenamento da residência
habitual que se aplica; se for a nacionalidade, é a unidade territorial com quem o
falecido tinha uma relação mais estreita (como M. COLLAÇO defendia); se indicar a lei
de situação dos imóveis, é a lei onde se localiza o imóvel que se aplica.

Este sistema é um sistema de remissão indireta ao direito de conflitos das leis


internas do ordenamento plurilegislativo. Corresponde, no fundo, ao entendimento da
prof. COLLAÇO que diz que as regras de conflitos referem-se sempre a Estados
soberanos. O modo como o fazem pode diferir. Não importa o elemento de conexão- o
artigo 20º restringe o problema às regras de conflitos que têm como elemento de
conexão a nacionalidade. Ela diz que o problema é geral – temos de ver como é que o
Estado soberano resolve o problema internamente e só se não conseguirmos vamos para
as conexões subsidiárias.

Depois diz-se na falta de direito interlocal – mas é só na ausência ou quando há


sub- ordenamentos também? O entendimento do art. 20º é na ausência ou na
insuficiência. Aqui parece que sim, mas a letra da lei não é clara.

Sempre que haja escolha de lei, esta escolha não deve delimitar o
sub-ordenamento. A escolha deve dizer qual a lei que regula, mas esta tem de ser uma
lei de um Estado soberano: lei inglesa, lei espanhola, etc.

Este sistema de ordenamentos plurilegislativos tem muitas falhas, lacunas,


espaços que não estão devidamente esclarecidos, tem soluções discutíveis e outras
razoáveis. Podemos dizer o mesmo sobre o reenvio.

O reenvio está estabelecido na norma 34º: por aplicação de um Estado terceiro


(Estado não vinculado ao regulamento, uma vez que assim ele pode ter regras ≠
regulamento europeu). Podemos ter o seguinte caso:

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

L1 → L2→ L3

L1: regulamento por aplicação de um EM

L2: lei da RH (china)

L3: lei para a qual remete a China.

Teremos então 3 situações típicas de reenvio:

• L1 (PT) →L2 (Estado terceiro) →L3 (lei de um EM, ex. espanhola) =


nesta hipótese, há reenvio

• L1→L2→ L1 = também há reenvio

• L1→L2→L3→L3= também há reenvio caso a L3 se ache diretamente


competente. Em todos os casos, o reenvio criou harmonia internacional de decisões ou
julgados.

Contudo, pensemos: se L2 remete para uma L3 de uma lei de um EM, então não
aplicamos o RE e, por consequência, o reenvio, achando-se indiretamente competente?

Vejamos melhor: L1 – L2 (lei de Estado terceiro – Suíça) – L3 (lei de um Estado


membro – Lei espanhola) – há reenvio. A lei espanhola aplica o regulamento e, nos
termos deste, aplica a lei da residência habitual que é L2. O que acontece aqui é que se
L3 aplica o regulamento, tem reenvio, logo, remete para a lei da residência habitual, que
aceita que é a L2. Ou seja, L3 acha-se indiretamente competente.

Muitos dizem que à partida, olhando para este sistema não se percebe onde está
a harmonia internacional de julgados, mas esquecem-se que L3 sendo um
Estado-membro admite o reenvio do regulamento, logo, acha-se indiretamente
competente.

Se nós considerarmos por hipótese que, por exemplo, se L2 for de devolução


simples, nós devemos aceitar o reenvio porque há harmonia internacional de julgados.

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APONTAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO

Temos de interpretar o art. 34º no sentido que quando se diz que L3 se considere
competente, devemos entender aqui “competente” direta ou indiretamente.

Vamos supor agora que a lei suíça é uma lei de Devolução simples (L2).

L1 (lei estado-membro) → L2 DS → L3 (lei espanhola) → L2

L2 acha-se competente e, por isso, não há reenvio nos termos do artigo 17º.

Logo, o que interessa é que a competência aqui seja direta ou indireta.

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