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FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

Direito Internacional
Privado
Prof. Doutor Nuno Ascensão Silva
Eduardo Figueiredo
2016/2017
Eduardo Figueiredo 2016/2017

INTRODUÇÃO

1. Noção e objecto do DIP

1.1. Situações jurídicas internas e situações jurídicas internacionais, espacialmente


heterogéneas ou plurilocalizadas – o comércio jurídico trans-fronteiriço.

O Direito Internacional Privado1 (DIP) é o ramo da ciência jurídica onde se definem os


princípios, se formulam os critérios, se estabelecem as normas a que deve obedecer a pesquisa de
soluções adequadas para os problemas emergentes das relações privadas de carácter internacional.
São essas relações aquelas que entram em contacto, através dos seus elementos, com diferentes
sistemas de direito. Não pertencem a um só domínio, mas a vários: são relações plurilocalizadas ou
absolutamente internacionais.
No entanto, a natureza da maioria de relações que são levadas à apreciação e julgamento dos
tribunais não é essa, porque essas são, na sua maioria, relações que pertencem à esfera jurídica
interna de um só Estado – questões puramente internas.
Não obstante, como sabemos, nem todos os factores e processos do comércio jurídico
ocorrem e se desenvolvem inteiramente no âmbito da mesma comunidade estadual. As sociedades
civis organizadas em Estados são solidárias e interdependentes, estabelecendo entre si vários
intercâmbios. E é daqui que nascem os problemas do DIP.
Todos os dias se desenvolvem no território de um Estado relações de direito privado de
cariz internacional, seja:
1) Pela nacionalidade ou domicílio dos sujeitos.
2) Lugar onde devem ser executadas as respectivas obrigações.
3) Situação das coisas a que respeitam.
Todas essas relações encerram na sua estrutura elementos estrangeiros em contacto com várias
ordens jurídicas. Como não seria benéfico sujeitar essas situações sempre e sem mais exame à
autoridade local, convém que se escolha dessas ordens jurídicas, a que lhe seja mais próxima, isto é,
a que tenha com elas o contacto mais forte ou mais estreito.
Não existiria DIP se o direito civil fosse igual em todas as partes. No entanto, como sabemos as
instituições civis e comerciais dos vários Estados possuem diferenças bem vincadas, o que
determina que este problema adquira um interesse premente.
Exemplos de situações plurilocalizadas: Caso Kaufman v. American Youth Hostels, Inc; Caso
Maldonado, Caso Babcock v. Jackson. (Cfr. FERRER CORREIA, pág. 12-15)

Conceito de DIP (FERRER CORREIA)


Direito internacional privado procura formular os princípios e regras conducentes à
determinação da lei ou leis aplicáveis às questões emergentes das relações privadas internacionais, e
bem assim assegurar o reconhecimento do Estado do foro das situações jurídicas puramente
internas, mas situadas na órbita de um sistema de direito estrangeiro (situações internacionais de
conexão única, situações relativamente internacionais).

1Há autores holandeses, alemães e até ingleses que se referem ao DIP com a designação de «conflitos de leis»,
sendo que a designação “DIP” tenha surgido essencialmente com a obra de FOELIX, embora já SCHAEFNER
se tenha referido a ela assim.

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1.2. Situações jurídicas absolutamente internacionais e situações jurídicas relativamente


internacionais. A problemática da regulamentação das relações jurídicas
plurilocalizadas: do princípio da territorialidade das leis à aceitação da exigência da
limitação espacial das normas jurídicas.

O comércio internacional e as deslocações de pessoas levam a um verdadeiro comércio


jurídico internacional, do qual resultam relações jurídicas internacionais.
Assim, uma relação jurídica pode, através de qualquer dos seus elementos, achar-se em
contacto apenas com o sistema jurídico português, ou apenas com um determinado sistema jurídico
estrangeiro, ou com vários sistemas jurídicos. Podemos, por isso, distinguir:
 Casos puramente internos – ao órgão português de aplicação do direito, não se põe
qualquer problema de determinação da lei estadual aplicável, que será necessariamente a
portuguesa, porque a relação jurídica tem contacto, através de qualquer dos seus elementos,
unicamente como o sistema jurídico português.
 Casos relativamente internacionais (ou puramente internos relativamente a um Estado
estrangeiro) – Aqui já se põem problemas de DIP ao órgão português, porque se trata de
uma situação em que os elementos da relação jurídica estão em contacto apenas com uma
ordem jurídica estrangeira. Por força do princípio universal do direito, a doutrina defende
que importa aqui respeitar os direitos adquiridos e garantir a continuidade da vida jurídica
dos indivíduos, tutelando as suas naturais expectativas, concluindo-se, por isso, que o juiz
do foro deve em tais casos aplicar o direito estrangeiro – o único com o qual a situação tem
contacto.
 Casos absolutamente internacionais – A relação jurídica tem contacto com várias ordens
jurídicas. Nestes casos põe-se um problema de determinação da lei aplicável, visto serem
duas ou mais as leis em contacto com a situação. Precisamos, pois, de uma regra de conflitos
que venha resolver este concurso de leis, determinando qual das leis «interessadas» é a
efectivamente aplicável, através do recurso a vários elementos de conexão de maior
relevância.

Quando tratamos destas relações plurilocalizadas, coloca-se sempre a problema do direito


aplicável, que poderá ser o que tiver com o caso concreto a conexão mais forte ou estreita (como
defendido pelo Método Tradicional ou Savigniano). E como determinar essa conexão?
Dissemos já que não seria uma boa solução sujeitar todos os factos e situações da vida jurídica
internacional à autoridade do direito local. Ora, a questão que se coloca é: porque não aceitar que os
tribunais de um país apliquem sempre as disposições das leis desse país (lex fori – Lei do país onde
se coloca o problema), presumivelmente boas e justas e por isso susceptíveis de ser aplicáveis a
todos? Para além disso, não aumentará a probabilidade de erro judiciário exigir a um juiz que deixe
de utilizar o direito nacional que tão bem conhece e aplique direito estrangeiro?
Ora, o princípio da territorialidade determinava exactamente que o juiz devia sempre aplicar a
lei do foro, isto é, a lei do lugar onde se colocou o conflito, mesmo a factos que lhe sejam estranhos.
No entanto, é fácil de ver que os inconvenientes desse sistema ultrapassam em larga medida as
vantagens (boa administração da justiça):
1) A aplicação da lex fori materialis a factos que lhe sejam estranhos e que com ela não têm
qualquer conexão espacial, violaria o princípio universal do direito que nos diz que a norma

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jurídica – como norma reguladora de comportamentos humanos – não é aplicável a


condutas que se situem fora da sua esfera de eficácia, fora do alcance do seu preceito, seja
em razão do tempo (principio da irretroactividade las leis), quer em razão do lugar em que
se verificaram (principio da não transactividade). A violação deste princípio conduziria ao
perigo de ofensa de direitos adquiridos e das expectativas legítimas dos interessados.
2) A aplicação sistemática do direito local pode levar a situações insatisfatórias de desarmonia
jurídica internacional – quando o DIP visa precisamente o contrário.
Estas razões demonstram que o problema da lei aplicável para todas e quaisquer situações com
elementos internacionais – situações do comércio jurídico internacional – é algo de complexo e
forçoso. E nem as divergências existentes entre os Estados quanto à regulamentação das várias
instituições podem tornar insuportável o acatamento e aplicação num país de leis estranhas –
porque cada lei é justa à sua medida. Passa-se, assim, de um princípio de “territorialidade” para
uma aceite “extraterritorialidade” das leis.
Tudo isto nos permite afirmar que existe um princípio do reconhecimento e aplicação das leis
estrangeiras, que hoje surge como princípio de direito internacional positivo ou de direito comum
 Os Estado consentem em excluir, no âmbito de aplicação das suas normas de direito privado,
determinadas categorias de relações e de factos, para os sujeitar aos critérios valorativos de outros
sistemas jurídicos. Esses factos são todos quantos se situarem for dos limites da vida jurídica local –
ou, pelo menos, se ligarem, mais estreitamente, na opinião do respectivo legislador, à vida de um
agregado social estranho. A aplicação e reconhecimento das leis civis além-fronteiras deve ser
realizada, não tendo em vista o interesse dos Estados, mas sim o interesse dos indivíduos.

1.3. O princípio da não-transactividade das leis: noção e fundamento.

As normas jurídicas materiais, enquanto normas de conduta, têm o seu âmbito limitado pelo
tempo e espaço, uma vez que não podem chamar a si condutas de indivíduos que passaram para
além da sua possível esfera de influência. Assim, enquanto que no direito intertemporal vigora o
principio na não retroactividade das leis, o DIP assenta sobre o principio da não transactividade –
para que uma norma seja aplicada, tem que estar em vigor no lugar onde a conduta é praticada
e/ou visa produzir efeitos. Para além disso, o DIP assenta ainda no princípio do reconhecimento
das situações jurídicas constituídas no âmbito de eficácia de uma lei estrangeira.
A não retroactividade e não transactividade são duas faces da mesma moeda, a “não
transconexão”: a quaisquer factos aplicam-se, e só se aplicam, as leis que se encontrem em contacto
com esses factos, seja de uma perspectiva temporal, seja espacial.
Este princípio, enquanto princípio geral de direito, resolve, por si só, os problemas puramente
internos e relativamente internacionais.

1.4. Conflitos de leis e regras de conflitos de leis. Referência ao modus operandi da regra
de conflitos e ao seu carácter instrumental no seio do Direito de Conflitos.

O DIP tem por objecto das situações da vida privada internacionais, ou seja, as situações
absolutamente internacionais e relativamente internas.
As questões objecto do DIP são resolvidas em cada Estado de acordo com normas do direito
desse Estado. Cada Estado tem o seu DIP para uso interno – a sua própria interpretação do DIP.

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Verdadeiramente, à comunidade de Estados, agindo concertadamente, é que pertenceria resolver os


referidos problemas – mas para tal era necessária uma solução uniforme entre todos. Como esse
consenso não existe, é prática cada Estado formular, para resolução dos conflitos de leis, normas
que tenha por mais convenientes e mais justas. Essas normas são as chamadas regras de conflitos
do DIP e fazem parte do “Direito de Conflitos” (BAPTISTA MACHADO). Estas são regras que se
propõem resolver um problema de concurso entre preceitos jurídico-materiais procedentes de
diversos sistemas de direito.
Como é que DIP escolhe para cada caso o preceito jurídico aplicável – isto é, qual a
metodologia do DIP? A técnica usada consiste em a regra de conflitos deferir determinada questão
ou área de questões de direito, ou determinada função ou tarefa normativa ao ordenamento jurídico
que for designado por certo elemento da situação de facto, a que chamamos elemento ou factor de
conexão. Através da concretização do factor de conexão, tornam-se conhecidas a lei e a norma
material chamadas a resolver a questão de direito proposta – daqui se vê, desde logo, que à mesma
situação da vida podem ser chamadas duas ou mais leis. Os elementos de conexão determinantes
da competência da lei podem referir-se:
1) À pessoa dos sujeitos da relação jurídica (sua nacionalidade, domicilio, residência)
2) Ao acto ou facto jurídico encarado em si mesmo (lugar da celebração ou da execução do
contrato, lugar da prática do facto gerador de responsabilidade civil)
3) À coisa objecto do negócio jurídico (sua situação).
Assim, diferentemente das normas de direito material, a norma de DIP não se propõe fixar
ela mesma o regime das relações da vida social, sendo uma regra de carácter meramente
instrumental2: limita-se a indicar a lei que fornecerá o regime da situação, a lei onde hão-de
procurar-se as normas que venham orientar a decisão do litígio. Ou seja, contribui para a resolução
da questão jurídico-privada, mas não diz por si própria qual ela seja.
Entre nós, os arts. 25º a 65º CC prevêem um conjunto de regras de DIP, apesar de muitas
delas estarem substituídas por convenções e, sobretudo, por regulamentos europeus.

Nota: Não falta quem proponha outras soluções, propondo que o DIP constitui um direito que
disciplina os factos e relações que o legislador entende estranhos ao seu ordenamento – assim, as normas
materiais estrangeiras chamadas através das Regras de Conflitos seriam recebidas na OJ do Estado do foro,
ficando a constituir aí, ao lado das normas materiais deste Estado, o direito especial das relações jurídico-
privadas externas. (ROBERTO AGO) Outros consideram que os problemas do DIP poderiam ser resolvidos
pelo sistema de regras materiais especiais, sem haver necessidade de recorrer ao método ou sistema conflitual.
No entanto, este ponto de vista corresponde a uma visão errónea do DIP, porque tal só era possível se existisse
um direito material uniforme – o que é utópico, como vimos.

Uma vez analisada a natureza destas regras (não regulam directa ou materialmente a
relação, senão que fazem parte de um processo indirecto consistente em determinar a lei ou leis que
a hão-de reger), importa analisar a sua estrutura própria.
Ora, a regra de conflitos vai privilegiar um dos contactos ou conexões, determinando como
aplicável a lei para a qual essa conexão aponta, o que dependerá do domínio ou matéria jurídica em
causa. Entram, assim, na sua estrutura, três elementos essenciais:

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Para BAPTISTA MACHADO, são meras regras de «remissão» ou de «reconhecimento».

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1) Conceito-quadro ou objecto-conexão: é o elemento da regra que circunscreve uma


matéria ou uma questão jurídica especifica. Para esta questão, a regra de conflitos vai
apontar uma conexão decisiva – sendo através dessa conexão que ficaremos a saber qual
a lei aplicável. Em suma, define-se o campo de aplicação da regra de conflitos.
2) Elemento ou factor de conexão: é o elemento da situação de facto que é escolhido pelo
legislador, na regra de conflitos, para adjudicar uma certa ordem jurídica a regulação de
uma questão jurídica, que foi circunscrita pelo conceito-quadro. Este elemento pode ser
extraído de várias características da relação jurídica.
3) Consequência jurídica: é a declaração de aplicabilidade dos preceitos jurídico-materiais
da lei designada pelo elemento de conexão. Ou seja, é a aplicação da lei indicada pelo
elemento de conexão à matéria indicada pelo conceito-quadro.

Tal pode conduzir a uma situação especial: A, português, celebra com B, francês, um contrato de
compra e venda sobre um imóvel situado na Alemanha, em que as partes escolhem a lei inglesa. Devido a esta
divisão, aplicar-se-ia a lei inglesa relativamente à perfeição do contrato; a lei alemã quanto ao
regime da propriedade; e a lei portuguesa e francesa quanto à capacidade de A e B.
Também é de notar que há regras de conflito que têm, por variadas razões, dois ou mais
elementos de conexão. Faz-se aqui uma classificação:
a) Regras de conflito de conexão una ou simples: têm apenas um elemento de conexão.
b) Regras de conflito de conexão múltipla ou complexa: as razões na sua base podem ser
variadas e é essa diferença que faz com que os elementos de conexão se articulem entre si
de modos diversos.
a. Alternativa (Ex: art. 36º CC)
b. Subsidiária (Ex: art. 52º CC)
c. Cumulativa
d. Distributiva (art. 49º CC)

Importa também notar que o processo seguido perante os tribunais portugueses é sempre
regulado pela lei portuguesa, ainda que ao fundo da causa se aplique uma lei estrangeira. Assim, as
leis relativas ao formalismo ou rito processual não levantam um problema de conflito de leis (nem
no tempo, nem no espaço) porque não afectam os direito substanciais das partes. São, portanto, de
aplicação imediata e de aplicação territorial.
Há, no entanto, algumas leis sobre a prova que simultaneamente afectam o fundo,
repercutindo-se sobre a decisão e que devem, por isso, considerar-se como pertinentes ao direito
substantivo, e não ao direito processual ou adjectivo. Devemos identificar duas espécies de leis
relativas às provas:
a) As leis de direito probatório formal – que se referem à actividade do juiz, dos peritos ou
das partes no decurso do processo
b) Leis de direito probatório material – leis que decidem sobre a admissibilidade deste ou
daquele meio de prova, sobre o ónus da prova e presunções legais. A estas questões já
não se aplica a lex fori, mas a lei ou leis competentes para regular o fundo da causa.
À parte disto, importa apenas salientar que a competência da lei do foro enquanto pura lei
de processo não depende de qualquer conexão particular que ligue a situação jurídica em litigio ao

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Estado do foro – basta que se verifique o pressuposto da competência internacional da jurisdição


desse Estado.

2. O âmbito do DIP

2.1. As questões jurídicas emergentes das relações jurídico-privadas internacionais: competência


internacional (directa), reconhecimento de sentenças estrangeiras, conflitos de leis, condição
jurídica dos estrangeiros e nacionalidade.
Breve caracterização de cada um destes domínios.

Até agora tratámos o DIP como conflito de leis. Mas será apenas esse o âmbito desta
disciplina? Aqui há várias orientações que relevam:
1) Teorias Minimalistas (Doutrina alemã e italiana)  Restringe o âmbito do DIP ao
problema do conflito de leis, embora alguns manuais alemães também se refiram ao
problema do reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras.
2) Teoria Maximalista (Doutrina francesa)  O objecto do DIP compreende cinco matérias:
a nacionalidade, a condição dos estrangeiros, os conflitos de leis, os conflitos de
jurisdições e o problema do reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras.
Autores como PILLET e MACHADO VILELLA apontam outro problema autónomo, que
é o do reconhecimento dos direito adquiridos em país estrangeiro.
3) Teoria Anglo-Saxónica/ Intermédia/ Mitigada (FERRER CORREIA)  Inclui no DIP o
estudo de três importantes questões, que são a jurisdição competente, a lei competente e
a do reconhecimento das sentenças estrangeiras.

Ora, diante do problema da delimitação do DIP, dois caminhos se nos oferecem.

1) O primeiro é fazer consistir o seu objecto numa matéria fortemente homogénea,


núcleo de questões da mesma natureza, a resolver por métodos idênticos. (Defendida
pela teoria anglo-saxónica)

Seguindo este caminho, o objecto do DIP deve reduzir-se ao conflito de leis, de jurisdições e
reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras. Porque neste campo, tratamos de princípios
jurídicos com uma natureza especial, já que, em regra, nada dizem sobre o sentido da composição
dos conflitos de interesses, nem sobre os direitos e deveres dos indivíduos, uns em face aos outros.
Aos problemas de comércio privado internacional obvia-se aqui, pura e simplesmente, remetendo a
decisão deles para o âmbito de uma legislação determinada. As normas de conflitos não são normas
substanciais, mas puramente instrumentais – dizem a lei que se aplica e não o regime aplicável.
Conflito de leis  Conjunto de regras de conflito que servem para determinar que lei
competente e a aplicar ao caso concreto. Portanto, respondem à questão: que lei devem os tribunais
aplicar em determinado caso? Essa lei tanto pode ser a lei do foro como a de algum país estrangeiro.
Outra nota relevante é que estas têm no direito privado a sua sede natural, decidindo da aplicação
aos diferentes cassos dos sistemas de direito privado em vigor nos diversos Estados.
Conflito de jurisdições  Conjunto de regras de conflito que serve para determinar qual a
jurisdição competente para conhecer de um determinado litigio – ou seja, a competência

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internacional dos tribunais portugueses, p.e.. Por outras palavras, indicam as hipóteses em que os
tribunais do Estado a que pertencem têm competência internacional. Outra nota relevante é que
estas normas pertencem ao direito processual civil internacional.
Normas de reconhecimento e execução de sentenças  Conjunto de regras de conflito que
determinam que valor têm as sentenças proferidas no estrangeiro. Também estas normas pertencem
ao direito processual civil internacional. Há vários tipos de reconhecimento, a saber:
a) Sistema de controlo prévio.
b) Sistema de reconhecimento automático ou de pleno direito.
Todas estas normas são regras de conflitos e têm em comum o objectivo de salvaguarda de
continuidade e estabilidade das relações privadas internacionais.

Natureza bem distinta têm as regras sobre a nacionalidade e a condição jurídica dos
estrangeiros.
 Regras sobre a nacionalidade: Enumeram os factores de aquisição e perda da cidadania,
definindo, portanto, as condições de atribuição, no âmbito do direito local, de um entre
dois estatutos: o de nacional ou de estrangeiro. A sua natureza não é nem parecida
sequer à dos tipos de normas de conflitos. São regras que pertencem ao direito material-
substancial, sendo definida por cada Estado a sua própria nacionalidade.
 Regras de condição jurídica dos estrangeiros: Visam apurar quais os direitos atribuídos
no Estado local aos cidadãos estrangeiros, em confronto com os nacionais. As normas
referentes a esta matéria são normas de capacidade que nada têm em comum com as
regras de conflitos.
De acordo com esta visão, o DIP seria um direito de conflitos – um conjunto de normas
relativas à aplicação dos diversos sistemas jurídico-privados estaduais e aos conflitos de jurisdições.

2) O segundo caminho possível baseia-se na ideia de todas estas questões têm uma
origem comum: nascem das relações de comércio jurídico internacional. (defendida
pelas teorias maximalistas)

Muitas destas questões obrigam, antes de mais, a resolver um problema de nacionalidade, já


porque o estatuto de nacional e o de estrangeiro não têm o mesmo conteúdo, já porque a
nacionalidade dos interessados comanda a determinação da lei aplicável, frequentemente (surgindo
como um elemento de conexão).
Por outro lado, é fundamental conhecer também a condição jurídica concedida em
determinado Estado aos cidadãos estrangeiros. Também esta é uma questão prévia relativamente à
do conflito de leis, porque o problema da lei aplicável a certo negócio jurídico só se põe depois de
averiguado que as partes tinham o gozo do direito que através desse negócio trataram de exercer.
Dada esta interdependência, é compreensível que muitos queiram estudar estes problemas
em comum, atraindo-os para a órbita do DIP- sendo este entendido como complexo de princípios e
normas por que se resolvem os problemas específicos das relações privadas internacionais.

FERRER CORREIA defende que o DIP é um direito de conflitos. Sendo assim, a


matéria da competência jurisdicional e do reconhecimento e execução de sentenças é
indubitavelmente pertencente ao âmbito do DIP. Isto não quer dizer que sejam dele excluídas as

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matérias da condição jurídica dos estrangeiros e da nacionalidade, ambas tão chegadas com este
ramo, muitas vezes seus pressupostos – mas que são meramente instrumentais ou acessórias para a
aplicação das regras do DIP, não comungando de nenhum daqueles métodos normalmente
utilizados pelo DIP para conflitos de leis e jurisdições (regras de conflitos); e a finalidade desses
domínios não é a busca de estabilidade. Não existindo uma comunhão, nem metodológica, nem
teleológica, estão excluídos do âmbito do DIP.

Para além deste problema, existe um outro – o do reconhecimento dos direito adquiridos,
que MACHADO VILELLA, na esteira de PILLET, autonomia no âmbito do DIP. Estão aqui em
causa os casos em que o direito ou situação jurídica se constitui num momento em que os seus
factos constitutivos e achavam em contacto com um só Estado, sendo este direito apreciado num
outro Estado. No entanto, a maioria da doutrina moderna rejeita a autonomização deste problema,
afirmando que nestes casos temos ainda um problema de conflitos de leis3. Já BAPTISTA
MACHADO rejeita a autonomização deste problema afirmando que a solução se pode encontrar
igualmente no princípio da não transactividade: está em causa aplicar a lei em contacto com o facto
no momento da sua constituição.

2.2. Direito dos Estrangeiros

Direito dos estrangeiros é o conjunto de regras materiais que reservam para os estrangeiros
um tratamento diferente daquele que o direito local confere aos seus nacionais. (BAPTISTA
MACHADO) São “normas de capacidade”: ao fixarem um tratamento diferenciado, caracterizam-se
por reduzir a capacidade de gozo dos estrangeiros, o conjunto de direitos e deveres que uma pessoa
jurídica, singular ou colectiva, não nacional, pode ser titular.
É princípio de direito comum aos Estados Modernos o reconhecimento da capacidade
jurídica aos estrangeiros. Mas se os Estados reconhecem a personalidade jurídica dos estrangeiros,
em contrapartida, eles gozam de liberdade muito apreciável na execução deste princípio. Nenhum
preceito internacional obriga o estado a conceder aos estrangeiros os mesmos direitos que concede
aos respectivos nacionais, não existindo ainda uma equiparação entre estrangeiros e nacionais,
embora exista uma clara tendência para a igualdade de direitos entre ambos.
Ora, tais restrições constituem justamente o conteúdo das normas do direito dos
estrangeiros. Como partem de uma ideia de equiparação, não têm estas normas que enumerar, de
maneira taxativa e concreta, os múltiplos direitos e faculdades que são reconhecidos aos
estrangeiros: o que fazem é especificar aqueles que lhe são denegados – trata-se, pois, de regras que

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FERRER CORREIA: “E isto porque o reconhecimento de um suposto direito adquirido não prescinde de averiguar se o
direito alegado efectivamente existe segundo os preceitos de uma lei que, no âmbito do DIP do foro, possamos considerar competente. A
determinação da lei competente constitui, assim, um prius relativamente ao reconhecimento do respectivo direito adquirido.
Por outro lado, o problema da lei competente resolve-se pelo DIP da lex fori: as regras do direito de conflitos português tanto
se aplicam às relações constituídas ou a constituir em Portugal, como às situações já criadas em país estrangeiro.
Ora, se o reconhecimento de um direito como legitimamente adquirido decorre sem mais do reconhecimento da competência
da lei que presidiu à sua constituição e se não é pelo facto de se tratar do reconhecimento de um direito adquirido no estrangeiro que a
questão da determinação da lei aplicável deixa de se pôr em face das regras de conflitos da lex fori – temos que concluir que aquele
problema não é um problema autónomo relativamente ao do conflito de leis.”

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criam para os estrangeiros incapacidades de gozo relativamente a certos e determinados direitos.


Estamos ante autênticas preceitos jurídico-materiais (com natureza nacionalista ou territorialista) e
não normas de conflitos (que têm um espírito universalista). Neste campo, há alguns princípios
fundamentais a ter em conta:

a. Princípio da equiparação dos estrangeiros aos nacionais


É o princípio que está em vigor no direito português (art. 15º/1 CRP, 14º/1 CC, art. 7º
CComercial) e este determina que, os estrangeiros, pelo facto de o serem, não vêem a sua
capacidade de gozo de direitos restringida em Portugal, embora tal não signifique que têm
exactamente os mesmos direitos – tudo dependerá da lei aplicável competente para atribuir o
direito. A interpretação do art. 14º CC é duvidosa e FERRER CORREIA propõe-nos a seguinte
interpretação:
Este artigo limita-se a estabelecer o princípio de que aos estrangeiros é reconhecida a
capacidade de gozo de direito privados, tal como aos nacionais e independentemente de
reciprocidade. Sob este aspecto, não há diferença entre nacionais e estrangeiros. Mas é só este o
alcance da regra da equiparação. Ela não pode deixar de ser entendida de acordo com as normas de
conflitos do nosso sistema. A lei competente para decidir se ao sujeito é reconhecido o direito que
ele pretende exercer não pode ser outra senão a lei definida como reguladora da respectiva relação
jurídica.
Se interpretássemos o art. 14º/1 no sentido de que aos estrangeiros são reconhecidos todos
os direitos civis dos cidadãos portugueses e mais nenhuns, tal poderia gerar discrepâncias que
convém evitar. Por isso se propõe o entendimento acima apresentado.
E nem por isso o art. 14º/1 deixa de consagrar a regra da equiparação. Efectivamente, se a lei
designada pelo nosso direito para regular o caso for estrangeira, o estrangeiro poderá prevalecer-se
entre nós de todos os direitos por essa lei reconhecidos, precisamente como se fosse um cidadão
português, salvo alguns limites. Se, pelo contrário, for a lei portuguesa a competente, então o
estrangeiro poderá exercer todos os direito dela decorrentes, como se fosse português – o
estrangeiro é sempre equiparado ao nacional, num caso ou noutro.
Este art. 14º/1 – princípio da equiparação - tem restrições:
1) O art. 14º/2  Princípio da reciprocidade (ver abaixo)
2) Art. 15º/2/3 CRP  Restrições constitucionais ao princípio da equiparação. Justificam-se
pelo facto de esse estrangeiro poder exercer funções públicas não no interesse do Estado
local, mas em benefício do seu Estado nacional.
3) Essa regra não pode funcionar em prejuízo da ordem pública internacional do Estado
português.
4) Quando o reconhecimento da instituição jurídica estrangeira exigir a uma autoridade
pública local uma forma de actividade que exorbite no quadro das suas atribuições.
(esta é duvidosa.)
Para direito públicos não políticos vale também o princípio da equiparação, embora com
inúmeras restrições. (Ver art. 15º/2 CRP, DL nº59/93, de 3 de Março; DL nº 60/93, de 3 de Março,
DL 97/77, de 17 de Março, etc…)

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b. Princípio da reciprocidade (diplomática ou convencional e legislativa ou de facto)


O princípio da reciprocidade (art. 14º/2 CC) só funciona quando o estrangeiro pretende
exercer em Portugal um direito que o respectivo Estado nacional reconhece aos seus súbditos, ou a
estes e aos súbditos de outros Estados com os quais mantenha relações particulares, mas recusa aos
portugueses em igualdade de circunstâncias, só porque estes são estrangeiros, ou porque são
portugueses. Tem que haver um tratamento discriminatório dos portugueses.
Assim, este é uma importante restrição, porque não reconheceremos um direito a um
estrangeiro em Portugal se, no seu estado, os portugueses não gozarem desse direito, evitando-se
uma desigualdade de tratamento.
No entanto, podem ser reconhecidos aos estrangeiros em Portugal direitos que o respectivo
estado não reconheça, desde que este não reconhecimento não tenha carácter discriminatório.
Alguns autores, como MÁRIO DOS SANTOS, que defendem a inconstitucionalidade deste
art. 14º/2 por não respeitar os limites impostos pelo art. 15º CRP ao princípio da equiparação.

2.3. Direito da nacionalidade

Vamos estudar dois artigos fundamentais da Lei da Nacionalidade, instrumentais para a


aplicação de regras de conflitos: art. 27.º e 28.º. Estes preceitos regulam o problema da
plurinacionalidade – conflitos positivos de nacionalidade – ajudando-nos a determinar qual é a
nacionalidade relevante para efeitos de resolução do caso.
Imaginemos que queremos saber se um certo sujeito tem capacidade para praticar um
negócio – art. 31.º do CC. Se conjugarmos as várias regras, a capacidade é regida pela lei da
nacionalidade do indivíduo cuja capacidade estamos a analisar. Se um indivíduo tiver várias
nacionalidades, qual das nacionalidades é relevante? Há duas respostas possíveis, que dependem
de estar envolvida uma nacionalidade portuguesa ou não.
• Art. 27.º: conflito de nacionalidades portuguesa e estrangeira. Ao aplicar a regra de
conflitos, vamos atender apenas à nacionalidade portuguesa (a capacidade é regida pela lei
portuguesa). Resulta de um costume internacional, de cada Estado dar prevalência à sua própria
nacionalidade.
• Art. 28.º: conflito de nacionalidades estrangeiras (nenhuma é portuguesa). Releva o Estado
em que o plurinacional tenha a sua residência habitual ou, na falta desta (não reside em nenhum
dos países da nacionalidade), com o qual tenha uma vinculação mais estreita (princípio da
proximidade – neste caso passamos a responsabilidade de escolher a lei aplicável para o julgador,
que deverá produzir prova para demonstrar qual a conexão mais estreita).
Isto pode não ser tão linear quando introduzimos um elemento novo - o direito da União
Europeia e o seu princípio da não discriminação em razão da nacionalidade.

Referência ao Caso Micheletti: O Sr. Micheletti, italiano e argentino, com residência em


Buenos Aires, quis estabelecer-se em Espanha para abrir um consultório médico. As autoridades
espanholas questionaram a possibilidade de este poder abrir esse consultório ao abrigo da liberdade
de estabelecimento reconhecida aos cidadãos europeus. O CCEsp. tem as mesmas soluções que o
português para resolver problemas de conflitos positivos de nacionalidade, o que determina que a
nacionalidade relevante para o caso seria a argentina, não sendo reconhecido a este o direito de
estabelecimento e não podendo este abrir o consultório.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

Antes esta decisão, o Sr. Micheletti recorre da decisão nos tribunais espanhóis e procedeu ao
reenvio prejudicial ao TJUE para saber se esta maneira de resolução de conflitos era válida. O TJUE
afirmou:
1) Cada Estado é que sabe como resolver os seus conflitos de nacionalidade;
2) Mas a resolução desses conflitos nunca pode ter como consequência a privação de um
cidadão europeu de um direito que ele tem pelo facto de o ser.
Assim, entendeu-se que interpretação do direito interno não pode pôr em causa os direitos
ou as liberdades decorrentes do direito da UE. Assim, quando estamos perante casos dentro da UE,
a aplicação destes artigos não pode servir como um entrave ao exercício de direitos ou liberdades
fundamentais europeus. Isto aplica-se quer a casos de pessoas singulares, quer a casos de pessoas
colectivas.
Podemos ainda referir os conflitos negativos de nacionalidade – o caso dos apátridas.
Nestes casos, aplicamos o art. 32º CC, que manda aplicar a lei da residência habitual. Em caso de
que esta não exista ou não se possa determinar, o art. remete para o art. 82º/2 CC que manda
aplicar o critério da residência ocasional e, em falta desta, do lugar onde se encontra.

E qual é o critério base da averiguação da nacionalidade das pessoas colectivas? É a sede


efectiva, ou seja, o lugar onde os órgãos de direcção superior de uma pessoa colectiva existem e
funcionam (o órgão decisivo para este efeito é a administração central). Para a determinação desta
solução, podemos encontrar apoio no art. 4º CSC, que implica que a sede efectiva é o critério para a
nacionalidade.

3. Fundamento e natureza jurídica do DIP.

3.1. Confronto com disciplinas afins: o direito internacional público, o direito privado uniforme,
o direito transitório ou intertemporal, o direito interlocal e interpessoal, o direito da União
Europeia e o direito constitucional.

Já referimos que o DIP é o ramo do direito a que os tribunais dos vários estados recorrem a
fim de dar solução aos problemas emergentes das relações jurídicas internacionais – incluindo,
conflitos de leis – sendo, porém, todo ele de fonte estadual. Internacional pelo objecto ou a função, o
DIP é estadual pela fonte.

1) O DIP é um direito estadual ou interestadual? Assenta em princípios do direito


internacional público ou de um direito de natureza estadual?
Quanto à sua função, o DIP é internacional porque visa arranjar soluções para os conflitos
derivados das relações privadas internacionais. Isto pode levantar a dúvida sobre se o DIP não seria
afinal um direito internacional, assente em princípios de direito internacional público. Autores
como KAHN assim o entendem, ao defender que o DIP pertence ao direito internacional público
por haver certas normas de conflitos postuladas pelo DIPúblico geral, que os Estados estão
obrigados a receber; já ZITELMANN defende que há um DIP geral de caracter internacional,
assente em princípios de DIPúblico (soberania pessoal e territorial dos Estados).
Há, ainda, uma teoria da delegação ou do desdobramento funcional, segundo a qual o DIP,
como direito regulador das relações internacionais de carácter privado, integrar-se-ia no direito

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

próprio da comunidade internacional, que delegaria nos diferentes ordenamentos estaduais a


competência para regular tal matéria.
A doutrina dominante recusa estas teses: a primeira porque do simples facto de
determinados princípios serem de aplicação geral não pode concluir-se que eles correspondam a
autênticos preceitos de direito internacional público. (referimo-nos, p.e. à regra que declara
aplicável aos imóveis a lex rei sitae).
Quanto à segunda, na verdade não existe um DIP geral de carácter verdadeiramente
internacional. Demonstra-o o próprio facto do procedimento geral dos Estados, que agem na
convicção de gozarem de uma liberdade quase ilimitada quando fixam os pressupostos de
aplicabilidade das leis estrangeiras in foro domestico.
BAPTISTA MACHADO critica estas teorias internacionalistas por partirem do pressuposto
erróneo de que a competência legislativa dos Estados não é mais do que um modo de manifestação
da sua soberania, que se deve manter dentro dos limites assinalados pelo direito internacional –
porque o problema dos limites da soberania e o problema da lei aplicável não se confundem.
Assim, concluímos que as normas de DIP são normas estaduais que se integram apenas no
domínio de vigência de um Estado, e a liberdade de escolha do legislador nacional dos elementos
de conexão não sofre restrições importantes por força de quaisquer princípios do DIPúblico (ainda
que dele resultem princípios relevantes para o DIP, como a não transactividade das leis e a
necessidade de reconhecimento de direito estrangeiros).
Mas e se houver convenções internacionais que contenham regras de conflito ou outras
regras de DIP? As regras que resultam de um instrumento de DIPúblico podem ser materialmente
semelhantes às existentes na OJ portuguesa, mas são formalmente distintas porque têm de ser
recebidas no nosso ordenamento nos termos do art. 8º/2 CRP.
Conclui-se portanto que as normas de DIP criadas por convenções internacionais, enquanto
não convertidas ou transformadas em direito nacional, só obrigam os próprios Estados para os
quais o texto da convenção se tornou lei internacional. Através do instrumento da ratificação, o
Estado fica internacionalmente obrigado a emanar na ordem interna os preceitos jurídicos
formulados pela convenção ratificada ou os preceitos paralelos desses: são esses preceitos que
depois os tribunais vão aplicar. Daqui resulta que tais preceitos, entendidos como normas aptas
para desempenhar a função que lhes compete de orientar as decisões dos tribunais e a conduta dos
indivíduos, não têm propriamente por fonte a convenção ou o tratado de que procedem – estes são
apenas fontes mediatas do DIP. É, portanto, a lei interna a única fonte das normas de conflitos.

2) As normas de DIP são de direito público ou de direito privado?


O DIP inclui-se no sistema de direito privado. Porquê?
1) Como vimos, o DIP consiste na averiguação da lei aplicável às relações privadas
internacionais, com vista à determinação da disciplina jurídico-material reguladora de
tais relações.
2) O DIP está ao serviço dos interesses relativos dos indivíduos e visa permitir a aplicação
de preceitos jurídico-privatísticos, uma vez aplicadas as regras de conflitos.
3) A problemática do DIP apresenta muitos mais pontos de contacto com o direito civil e
comercial que com qualquer outro ramo do direito público.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

3.1.1. O DIP e o direito internacional público.


Não se pode distinguir DIPúblico de DIP no plano das fontes, porque as fontes do primeiro
podem também ser fontes do segundo (LIMA PINHEIRO). No que toca às matérias reguladas
parece óbvio que há diferença entre os dois ramos – esta diferença não se reconduz à dicotomia
direito público/ direito privado, desde logo porque sabemos que o DIPúblico também regula
situações privadas e não está excluída a regulação pelo DIP de certas situações conformadas
primariamente pelo direito público.
A diferença surge antes no plano de regulação das situações em causa: situações que são
reguladas imediatamente pelo DIPúblico ao nível da ordem jurídica internacional e situações que
não relevam na ordem jurídica internacional. Por um lado, estão fora do DIP as relação na ordem
jurídica internacional que se estabelecem entre Estados e entre organizações internacionais, ou entre
estas e aquelas. Por outro lado, o DIPúblico não regula imediatamente a maior parte das situações
transnacionais, porque, em regra, os sujeitos não têm personalidade jurídica internacional. Estas
situações são, pois, reguladas na ordem jurídica dos Estados e no plano do DIP.
Numa visão global, podemos dizer que as relações entre o DIPúblico e o DIP são
multifacetadas e inscrevem-se em diferentes planos. Embora se tenha afirmado que o DIP pode
encontrar o seu fundamento último no DIPúblico, não é possível reconduzir o conjunto das
situações conflituais a princípios de DIPúblico. Continua, portanto, a justificar-se a autonomização
de ambos.

3.1.2. DIP e o Direito intertemporal (transitório).


O DIP é um direito de conflitos. Ao seu lado, existem outros sistemas conflituais, como o
direito transitório – conjunto de disposições transitórias que resolvem conflitos de leis no tempo.
São manifestas as analogias entre o DIP e o direito transitório (intertemporal).
1) Ambos são “direito de segundo grau ou secundário”, isto é, “normas de aplicação de
normas”. Todavia o DIP tem por objecto os conflitos de leis no espaço (valendo o principio
da não transactividade), enquanto o segundo dirime os conflitos de normas jurídicas no
tempo (valendo o principio da não retroactividade).
2) O problema do DIP decorre da existência simultânea, em territórios diversos, de leis
distintas – problema de dinâmica das relações jurídicas; o problema direito transitório
deve-se ao fenómeno da sucessão no tempo, no seio da mesma ordem jurídica, de duas
normas ou complexos normativos diferentes – isto é, são normas que ao tomar o lugar de
outras normas vêm interferir com situações jurídicas preexistentes – problema de dinâmica
de leis. Estes dois fenómenos levam-nos a tomar consciência de um problema que lhes é
comum: o dos limites de aplicabilidade das normas jurídicas (DIP – no espaço; direito
transitório – no tempo). No fundo, trata-se sempre de apurar a qual de duas normas ou dois
sistemas normativos pertence a espécie jurídica considerada.
3) Concluindo, ambos têm o mesmo objectivo – garantir a estabilidade e continuidade das
situações jurídicas interestaduais e tutelar a confiança e as expectativas dos interessados.

3.1.2. DIP e o direito interterritorial e interpessoal.


Às vezes os conflitos de leis no espaço surgem da coexistência de vários sistemas de direito
no interior do mesmo Estado – são ordenamentos plurilegislativos. (ex: EUA, Canadá, Reino Unido,
Espanha, etc…)

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

Estes casos apresentam uma analogia flagrante com os conflitos internacionais. Em todos se
dá a circunstância de cada um desses sistemas jurídicos que entram em conflito ter o seu território
próprio, que não coincide com o território do Estado, mas que é uma divisão desse território, uma
região ou província do país. A estes conflitos interprovinciais, interlocais ou federais presidem
critérios idênticos aos do DIP propriamente dito. Mas entre as duas matérias existem diferenças:
1) Não poderá confiar-se à lei nacional das partes a regulamentação do estatuto pessoal, visto a
nacionalidade ser uma só: o elemento de conexão decisivo será o domicílio/residência.
2) Não poderá invocar-se a ordem pública para não aplicar a lei doutra província;
3) As normas de conflitos serão, em regra, únicas para todo o território do Estado;
4) As sentenças proferidas numa província serão exequíveis de pleno direito nas restantes.

Existe outra variedade de conflitos internos – os conflitos interpessoais. São leis que regem
distintas categorias de pessoas no mesmo território. Existia essencialmente nos países coloniais, em
que subsistia um direito consuetudinário local e uma lei metropolitana. Como Portugal é um Estado
de legislação unitária, estes problemas não se colocam. Também se pode verificar por razões
religiosas. Pode suceder, neste contexto, que uma relação privada envolva pessoas destas duas
diferentes categorias, e seja necessário aplicar uma regra de conflitos.

3.1.3. DIP e direito privado uniforme.


O Direito privado uniforme caracteriza-se por normas materiais de direito privado com
vigência internacional, distinguindo-se do DIP por este ser de natureza, não material, mas sim
formal.
As finalidades de um e de outro são claramente distintas: o DIP procura resolver os conflitos de
leis, enquanto o direito uniforme trata de os suprimir por intermédio de leis idênticas (p.e.
convenções). O DIP deixaria de ser necessário se o direito privado fosse o mesmo universalmente –
tal é utópico, como sabemos.
Porém, nada tem de utópico a possibilidade de unificação do direito privado quando limitada a
determinadas matérias, sobretudo as de direito mercantil, ou quando pensamos em grupos de
países estreitamente ligados entre si por interesses económicos (UE). Raramente, porém, a
unificação será completa, o que basta para que o DIP mantenha a sua razão de ser, já que estas leis
uniformes não se aplicam a todos os países e muitas das vezes deixam de fora determinadas
matérias, continuando a ser precisas as regras de conflitos nestes casos.

3.1.4. DIP e o direito comparado.


O DIP, sendo interno pela fonte, desempenha uma função internacional – promover o
reconhecimento e a aplicação no âmbito do Estado em que vigora de conteúdos e preceitos jurídicos
estrangeiros. Isto faz, desde logo, ressaltar a importância do papel que compete à investigação
comparatística nos domínios do DIP.
Várias são as funções atribuídas ao direito comparado:
1) Entre as duas GGM: realização de um direito mundial do séc. XX. Esta tese de unificação
jurídica à escala mundial defendida por LEVY-ULMANN entra, porém, em declínio.
2) Para outros, a função capital do direito comprado consiste em procurar no conjunto dos
sistemas legislativos os princípios básicos de todo o ordenamento jurídico e de todo o direito
– uma espécie de direito modelo, e que todo o legislador devia inspirar-se. Tinha o direito

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

comparado a importante função de captar os princípios jurídicos fundamentais e demarcar a


área inviolável de direito essenciais da pessoa humana, etc…
3) Para outros, o direito comprado tem como escopo o estudo sistemático das diferentes
instituições jurídicas, tal como se perfilam e desenham nas leis dos vários estados, em ordem
a determinar o que haja de comum e de diferente entre elas. O DIP é o primeiro beneficiário
destes estudos comparativos – porque o direito comparado procura apurar quais os
diferentes meios técnicos a que os vários legisladores recorrem para levar a cabo funções
socialmente equivalentes.
Ora, para o DIP, com a sua função de coordenar a aplicação de todas as leis existentes, o direito
comparado tem uma função primordial. O conhecimento crítico das divergências existentes entre os
sistemas conflituais dos Estados é essencial à tarefa de unificação das regras de conflitos e, bem
assim, à elaboração dessas normas pelo legislador interno.

3.1.5. DIP e Direito Constitucional


Há três questões a responder:
1) São as regras de conflitos susceptíveis de entrar em colisão com os preceitos constitucionais,
e especialmente os relativos à matéria dos direitos fundamentais?

Este problema colocou-se na Alemanha (Caso Espanhol), formando-se duas correntes de opinião
legítimas com vários adeptos.
Ora, uma delas considerava que o DIP se move num espaço exterior à Constituição, num espaço
livre relativamente aos princípios e normas constitucionais. Não compete, portanto, ao direito de
conflitos de estender a validade de um princípio reconhecido no direito interno além do seu próprio
domínio de aplicação, atribuindo-lhe um papel decisivo na escolha da lei competente. Deve
escolher-se sempre a regra de conflitos que se recomende segundo a natureza das coisas. (DÖLLE)
Em suma, as regras de conflitos são regras técnicas neutrais, que não têm o sentido de servir a
justiça material.
Esta visão do DIP é profundamente errónea. Certamente, não são os valores da justiça material
que no DIP predominam. Este propõe-se finalidades e norteia-se por princípios que não coincidem
em regra com os que se afirmam no plano do direito material. Contudo, os seus preceitos não são
meros preceitos de ordem, porque a ordem para que tende não é cega em valores e arbitrária, mas
associada a certos fins: justiça conflitual.
Assim, as regras de conflitos não são, portanto, regras técnicas axiologicamente neutrais, só que
a justiça conflitual que servem é de cunho predominantemente formal, nele avultando a certeza e a
estabilidade jurídica. Estas normas exprimem uma valoração, que não está imune a juízos de
inconstitucionalidade, mostrando-se o DIP aberto a certos juízos de valor jurídico-materiais.
Em suma, as normas de DIP são susceptíveis de colidir com os princípios constitucionais, e de
serem assim objecto de um juízo de inconstitucionalidade.

2) Podem os nossos tribunais recusar a aplicação a um preceito ou complexo normativo


estrangeiro, indiscutivelmente aplicável segundo as normas de DIP da lex fori, mas que pelo
seu conteúdo colida com algum dos direitos fundamentais consagrados na CRP?

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A nossa doutrina considera que a Constituição constitui um limite autónomo à aplicação do


direito estrangeiro, quando este resultaria numa violação dos preceitos constitucionais. Esta é uma
questão de direito constitucional e não de DIP.
Isto não quer dizer, porém, que em qualquer situação internacional a mínima desconformidade
com uma norma constitucional implica a intervenção deste limite. Devemos contrabalançar, neste
âmbito, a afirmação dos valores básicos da nossa ordem com os valores fundamentais de certeza e
segurança jurídica do comércio internacional. Ou seja, faz-se um juízo na intervenção da
constituição como um limite autónomo.
Mas não é apenas quando um certo preceito é contrário à CRP que podemos obstar à aplicação
de direito estrangeiro. O DIP prevê o mecanismo de reserva de ordem pública internacional. Este
mecanismo está regulado no art. 22º CC. O limite da CRP não se confunde com a reserva de ordem
pública internacional, uma vez que as noções de norma constitucional e princípios de ordem
pública internacional não são coincidentes. FERRER CORREIA defende que o limite da CRP só
pode funcionar quando os pressupostos da ordem pública internacional estejam preenchidos. São
eles:
1) Que se trate de valores de máxima importância do foro.
2) Existência de uma conexão significativa da espécie a julgar com aquele ordenamento
A verificação destes pressupostos permite dar resposta afirmativa à questão posta.

NUNO ASCENSÃO SILVA determina, pois, que há três “degraus” a percorrer neste
âmbito:
a) Há um leque de casos que podemos chamar de “normas de aplicação universal”, como as
relativas aos DLG’s que têm sempre que ser respeitados.
b) Há outros casos em que estamos ante normas que devem aplicar-se mesmo que a OJ
portuguesa não seja a competente por força da regra de conflito – são as chamadas normas
de aplicação necessária e imediata (p.e. art. 53º CRP)
c) Fora destes casos caímos na vala comum da ordem jurídica internacional, só podendo
afastar a lei estrangeira quando verificados os requisitos anteriormente verificados.

3) Podem os tribunais portugueses recusar-se a aplicar o direito estrangeiro competente, com


fundamento na sua inconstitucionalidade perante a Constituição do país de origem?

A resposta a esta questão deve situar-se no plano próprio, isto é, no plano dos critérios gerais
que hão-de orientar o juiz na aplicação do direito estrangeiro. O art. 23º do CC estabelece que, na
aplicação de lei estrangeira, o julgador deve mover-se no quadro dessa lei e orientar-se pelos
princípios nela fixados.
Assim, se em dado sistema estrangeiro determinado preceito não é aplicado pelos tribunais
ordinários por colidir com normas da respectiva constituição, cabe ao juiz português dar a essa
circunstância o devido valor, e abster-se identicamente de observar.
A resposta será, pois, a seguinte: não cabe ao julgador sindicar a compatibilidade constitucional
dos preceitos da lei estrangeira, devendo aplicá-la, tal como realizaria o juiz do respectivo sistema
jurídico de origem da norma.
MOURA RAMOS defende que, se o juiz local, perante a sua própria constituição não tem
poderes para levantar o problema da constitucionalidade, a directiva que o juiz português deve

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recolher é o de decalcar os seus poderes dos do juiz estrangeiro e não deve fazer mais. Se o juiz
estrangeiro tem poderes de apreciar a constitucionalidade, podemos seguir a mesma orientação.

3.1.6. DIP e o Direito Europeu

Há cada vez mais uma relação íntima entre o DIP e o direito europeu – fenómeno da
comunitarização ou europeização do DIP.
As diferenças entre o DIP e o DUE são manifestas (MOURA RAMOS):
• O DIP tem um carácter estadual ou interno, sendo constituído pela “normação que em
cada sistema jurídico regula as relações plurilocalizadas”, enquanto que o DUE é direito
internacional.
• O DIP tem por objecto situações privadas, enquanto que o objecto do DUE comporta o
estatuto, organização e funcionamento da UE, bem com as relações cuja disciplina é da sua
competência.
• Finalmente, enquanto que o DIP, pressupondo uma série de ordenamentos aplicáveis às
relações que regula, visa coordenar estes últimos, o DUE constitui uma ordem jurídica própria, isto
é, um conjunto de princípios e normas com fonte própria e que são aplicadas pelo TJUE.

Apesar disto, o DIP e o DUE possuem certas afinidades: para além de se ocuparem
fundamentalmente de situações que ultrapassam as fronteiras de uma só ordem jurídica, a
existência do DUE faz surgir novas relações plurilocalizadas, entre o ordenamento europeu como
um todo e uma ordem que lhe seja exterior.

Quando pensamos nas relações entre o DUE e o DIP, podemos conceber cinco níveis de
relacionamento:

1) Incidência do DUE sobre o conteúdo das regras de conflito internas.


Dizemos que o DIP tem fontes de direito europeu, ou que há regras de conflito europeias
que vigoram entre nós sem qualquer acto de recepção.

 Primeira fase: Cooperação Intergovernamental


A adopção de regras uniformes de DIP comum aos Estados-membros começou com o
Tratado de Roma, que previa a possibilidade de os EM celebrarem entre si acordos, convenções
internacionais, assegurando o reconhecimento mútuo de sociedades e o reconhecimento de
sentenças (art. 220.º). A CEE não interferia nesta regulação. Esta é uma fase de cooperação
intergovernamental: a interferência da CEE começou por ser uma cooperação intergovernamental,
porque se achou que era necessário assegurar uma liberdade, que era a liberdade de circulação de
sentenças.

Quais foram os principais instrumentos adoptados nesta fase?


1. Convenção de Bruxelas: Ao abrigo deste art. 220.º (mais tarde 293.º), nasceu desde logo a
Convenção de Bruxelas de 1968, sobre competência judiciária e execução de decisões em matéria
civil e comercial (hoje Regulamento n.º 44/2001), que abrangia regras de reconhecimento e execução
de sentenças estrangeiras e regras relativas à competência internacional. Há ainda outros textos que

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foram elaborados ao abrigo deste artigo mas que nunca chegaram a entrar em vigor por motivos
vários – reconhecimento mútuo de sociedades (1968), processo de falência (1975), citação e
notificação de actos judiciais (1997), e convenção de Bruxelas II, com vista a uniformizar as regras
em matéria de divórcio.
A Convenção visou facilitar a livre circulação de sentenças, estabelecendo um regime mais
liberal do que o do nosso Código Civil. Esta liberalidade está, desde logo, no princípio do
reconhecimento automático (a sentença produz automaticamente efeitos), que veio substituir o
sistema de controlo prévio. Porém, é necessário ter cautelas: designadamente, garantir que a
sentença proferida no estrangeiro tinha uma competência legítima, sendo por isso necessário
garantir a uniformização da competência internacional – daí que a Convenção tivesse igualmente
normas nesta matéria.
Este regime foi alargado através de uma convenção gémea, revista em 97, que se aplica nas
relações entre os Estados-Membros e Estados terceiros integrados no espaço económico europeu.

2. Convenção de Roma: o grau de unificação obtido pela Convenção de Bruxelas


possibilitava o forum shopping: quando o legislador estabelece as competências internacionais,
muitas vezes os foros têm competência concorrente. O facto de existirem foros concorrentes permite
uma maior facilidade no acesso à justiça; porém, decorre daqui que, se a mesma acção pode ser
interposta em sítios diferentes e se as regras de conflitos forem diferentes, a pessoa interpõe a acção
onde sabe que vai ser aplicado o direito que lhe é mais favorável. Assim, os Estados-Membros
decidiram prosseguir a uniformização jurídica das regras de conflito através da adopção da
Convenção de Roma, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (1980). Esta Convenção deu
mais tarde lugar ao Regulamento Roma I.

Note-se que, nesta fase, as normas ainda não são criadas pela UE, mas sim pelos EM’s
através de convenções internacionais. Estas convenções tinham um protocolo internacional que
atribuía ao TJUE competência para poder decidir, a título prejudicial, questões relativas à
convenção.
MOURA RAMOS fala ainda de uma fase intermédia, antes da fase da europeização, da
incidência, sobre o DIP, do processo de aproximação das legislações nacionais. Destaca-se nesta fase
a introdução do art. 100.º-A pelo Acto Único Europeu no Tratado CEE (hoje art. 95.º do TUE) e a
adopção de medidas tendo por objecto o estabelecimento e o funcionamento do mercado interno,
que levaram à adopção de várias directivas que continham regras de DIP. Esta fase é marcada por
um carácter fragmentário, uma vez que as regras de conflitos se limitavam a garantir a
imperatividade internacional de certos patamares de unificação do direito material.

 Segunda fase: Europeização


Entretanto, o Tratado de Roma foi revisto e o Tratado de Amsterdão trouxe várias novidades
nesta matéria, tendo marcado o início da fase da europeização. Este Tratado veio prever uma
competência comunitária específica em matéria de DIP, ou seja, veio permitir que aquilo que se
fazia por convenções se passasse a fazer através de actos comunitários (art. 3.º/c), art. 61.º/c) e art.
5.º). Houve uma unilateralização dos textos de DIP. O TFUE continua a prever competências
idênticas – art. 4.º/2, art. 67.º e ss. (particularmente art. 67.º/4) e 81.º (antigo art. 65.º).

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Assim, com a entrada do Tratado de Amsterdão em vigor, ocorreu a conversão das


convenções internacionais existentes em regulamentos. Para além disto, o TA veio dar origem a um
desenvolvimento crescente das regras de conflitos – permitiu, desde logo, que a Convenção de
Roma fosse transformado no Regulamento Roma I; e voltou a pensar-se na uniformização das
regras de conflitos em matéria de responsabilidade extracontratual (Regulamento Roma II). Depois
disto, há neste momento já regras de conflito em matéria de divórcio (Regulamento Roma III),
sucessões e obrigações alimentares. Neste momento está em estudo a uniformização em matéria de
regime patrimonial do casamento.
Este processo teve duas consequências:
• Para alguns EM, devido à necessidade de unanimidade, foi necessário permitir que só em
alguns casos ficassem vinculados.
• A partir do momento em que a UE adopta actos comunitários nestas matérias, para além
de derrogar as regras internas, traz uma limitação da competência externa dos Estados, que já não
podem celebrar livremente convenções internacionais. Tanto é assim que, hoje em dia, nas
instâncias que faziam a unificação do DIP (Conferência da Haia e Conselho da Europa) há um
representante da UE, que conduz as negociações e a UE tem de aderir aos textos. Só depois desta
adesão é que a convenção passa a valer nos EM’s.

Há assim regras da UE que entram em vigor em Portugal automaticamente – os


regulamentos. Mas há outros actos comunitários, como as directivas, que necessitam de
transposição e que visam a aproximação do direito material, tendo em vista certos princípios (ex:
protecção do consumidor nas cláusulas abusivas). O legislador europeu tem sempre a preocupação
de evitar que esta uniformização possa fracassar por causa das regras de DIP, porque no âmbito das
regras de direito privado vale o princípio da autonomia e facilmente podem determinar a aplicação
de uma outra lei. Como tal, nas directivas há normalmente uma norma que restringe a possibilidade
da escolha da lei, que dispõe sobre o âmbito de aplicação especial (ex: cláusulas contratuais gerais).

Concluindo, neste primeiro nível de relacionamento, temos:


1. Regras de conflito europeias que vigoram automaticamente nos ordenamentos internos.
2. Regras de conflito avulsas, que resultam da transposição de directivas.

2) As regras de conflito internas enquanto obstáculo ao funcionamento dos princípios


europeus
Para além de ter provocado o aparecimento de novas fontes de DIP, o direito europeu veio
limitar ou condicionar a actuação das regras de DIP dos Estados, podendo levar à desaplicação das
normas internas que o contradizem. No que toca aos conflitos de lei, encontramos os seguintes
pontos de tensão:
• Aplicação da lei nacional: a conexão da nacionalidade pode levar à violação do princípio
da não discriminação em detrimento da nacionalidade.
• Condição jurídica do direito estrangeiro: não devemos privilegiar a aplicação da nossa lei,
mas há sistemas jurídicos onde se viola o princípio da igualdade porque se acha que o direito
estrangeiro é matéria de facto e não é conhecimento oficioso.

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• Reconhecimento das situações constitutivas dos estrangeiros: em nome do princípio da


liberdade de circulação de pessoas, por força do funcionamento das regras de conflito não devemos
negar a aplicação do direito estrangeiro e negar os estados dos estrangeiros.
• Fraude à lei e ordem pública internacional: no que toca à fraude à lei, este instituto pode
constituir um obstáculo à liberdade de estabelecimento. A mesma coisa com a ordem pública: é um
mecanismo clássico do DIP que tenta evitar a violação dos valores fundamentais de uma ordem
jurídica, por força da aplicação de regras de conflito. Isto pode colidir com o DUE, podendo impedir
a aplicação de outra lei de um EM e violar o princípio da igualdade.

Em relação ao direito internacional:


• Condição dos estrangeiros: por causa do princípio da igualdade e não discriminação em
favor da nacionalidade, as pessoas individuais ou colectivas de origem estrangeira devem ter o
mesmo estatuto. Por ex., no CSC (art. 4.º), há regras que restringem o estabelecimento de regras
estrangeiras em Portugal.
• Regras internas relativas ao concurso da nacionalidade: estas podem pôr em causa os
valores europeus. É o que sucede com os nossos arts. 27.º e 28.º da lei da nacionalidade, relativos ao
concurso de nacionalidades. Ver casos Michelleti, Garcia Avello e Hadami.

3) O direito europeu enquanto limite à aplicação da lei estrangeira


O direito europeu pode funcionar como limite à aplicação da lei estrangeira designada pela
regra de conflitos. Certos autores dizem que devemos pôr dentro da excepção da ordem pública
internacional o direito europeu, enquanto que outros, mais ousados, defendem a constituição do
direito europeu como exceção autónoma.

4) Direito privado uniforme de origem europeia


Nalguns casos, temos direito material privado uniforme de origem europeia. Essas normas
são criadas directamente pela UE – por ex., o AEIE.

5) TJUE
Temos de pensar em dois fenómenos:
• Há situações em que o TJUE decide litígios da vida privada internacional aplicando regras
de conflito contidas nos tratados. Quando é que isto sucede? Por ex., o art. 268.º do TFUE diz-nos
que o TJUE é competente para conhecer litígios relativos à reparação de certos danos
(responsabilidade extracontratual). Como é que resolve estes litígios? O art. 340.º responde a esta
questão. Em matéria de responsabilidade, ver o art. 272.º e 340.º.
• O TJUE, ao aplicar direito europeu, designadamente normas relativas à função pública,
resolve questões prejudiciais de direito privado e que manifestamente estão fora da competência da
UE. Por ex., é necessário concretizar o conceito de filho, ou de casado.

Resumindo, há quatro pontos essenciais a ter em consideração:


1) Os princípios do DUE vinculam o legislador nacional graças ao princípio do primado da
UE, o que determina que as regras de conflitos não podem ser contrárias às regras da UE, porque
senão serão desaplicadas. Destaca-se o princípio da não discriminação em razão da nacionalidade
que é um verdadeiro limite às regras de conflitos internas.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

2) Os institutos e a própria aplicação do DIP e dos seus institutos estão limitados pelo DUE
(p.e. pelas liberdades fundamentais) e só podem ser utilizados quando não se puserem em causa
esses valores fundamentais. Ver acórdão Micheletti.
3) A UE hoje é legislador conflitual, adoptando regras de conflitos ao nível europeu, para
permitir a harmonia jurídica internacional, unificando-as.
4) Há expedientes do DUE que funcionam como uma autêntica regra de conflitos. (P.e.
Acórdão Cassis de Dijon, que contém o princípio do reconhecimento mútuo das legislações
(liberdade de circulação de serviços ocasionais e mercadorias - à produção de uma mercadoria, é
aplicável a lei do país de origem).

4. Fontes do DIP
4.1. Fontes internas
Tradicionalmente o DIP era um direito de fonte estadual, de criação meramente interna. As
fontes internas a considerar são a lei, o costume, a jurisprudência e a ciência jurídica (doutrina).

 Lei
o Temos, em primeiro lugar, a CRP, que é fonte de DIP por foça dos vários planos
de incidência sobre o Direito de Conflitos e domínios conexos. (ex: art. 8º, 13º, 14º,
15º, 87º, 99º/d). Destacam-se as alterações realizadas às normas do CC, de modo a
adequar o DIP aos novos princípios constitucionais - igualdade entre homens e
mulheres e não discriminação dos filhos nascidos fora do casamento.
o Lei ordinária: Código Civil (arts. 14º, 15º a 65º, 348º, 711º, 1651º, 2223º), Código
Comercial (ex: arts. 4º/2, 6º, 7º, 12º, 110º, etc…) É de notar que a especialidade de
algumas normas de conflitos contidas no Código Comercial é meramente formal,
por não ser justificada pelas circunstâncias particulares do sector a que se aplica.
o Leis avulsas.
 Costume: O costume é ainda fonte importante do DIP em países em que este nãos e
encontra codificado, como na França. Perante um sistema codificado, como o nosso, o
costume pode ainda ter relevância, ainda que limitada, no desenvolvimento e
aperfeiçoamento do sistema. Trata-se, essencialmente de um costume jurisprudencial,
que se forma com base numa jurisprudência uniforme e constante.
 Jurisprudência: Tem importância para o desenvolvimento e aperfeiçoamento do DIP,
embora seja mais relevante nos casos em que o sistema não é codificado ou quanto
vigora a regra do precedente. LIMA PINHEIRO considera que o papel desempenhado
pela jurisprudência portuguesa no aperfeiçoamento do DIP tem sido modesto, sendo de
registar que não raramente as decisões aplicam o direito material português a situações
transnacionais, o que sacrifica valores e princípios que enformam a justiça deste ramo do
Direito.
 Ciência Jurídica: Tem uma importância enorme, já que é o labor doutrinal que tem
permitido aproximar os sistemas baseados em fontes não escritas dos sistemas
codificados e preparar a codificação. O carácter internacional e universalista do DIP
permite ainda que a ciência jurídica aproxime os sistemas nacionais de DIP e estimule
um intercâmbio fecundo que contribui para a evolução deste ramo do Direito.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

Não obstante, as fontes internas foram sofrendo um certo esvaziamento, devido à


multiplicação das fontes internacionais – convenções, regulamentos, limites europeus ao
funcionamento do nosso sistema conflitual. O CC não nos dá uma imagem fiel do DIP que vigora
em Portugal. O art. 45.º tem uma aplicação residual (Roma II), assim como o art. 46. 47.º (Roma II), o
art. 55.º (Roma III), em matéria de sucessões, etc.
Existe uma dispersão de fontes, com várias normas avulsas internacionais e internas –
existem regimes especiais em certas matérias que prevêem as suas próprias normas de conflito
(muitas vezes em resultado da transposição de directivas).

4.2. Fontes internacionais e europeias

4.2.1. Fontes internacionais


O DIP não tem necessariamente um carácter nacional, seja quanto às suas fontes, seja quanto
aos órgãos de aplicação. Nada obsta, por isso, à vigência de normas de conflitos de fonte
internacional quer na ordem jurídica internacional, quer na ordem jurídica interna, caso tal decorra
do sistema de recepção do DIPúblico por ela adoptado.
Pode falar-se hoje de um Direito Internacional de Conflitos que se aplica a conflitos entre
jurisdições internacionais ou quase internacionais. As suas normas são necessariamente normas
internacionais e estão contidas em tratados internacionais ou em direito derivado de organizações
internacionais com vista à determinação do direito aplicável pelas jurisdições. Este direito de
conflitos de fonte internacional opera ao nível da OJ internacional.
Também o DIP privado vigente na OJ de um Estado pode ter fontes supraestaduais, que é o
que se verifica perante um sistema de relevância do Direito Internacional na esfera interna como o
consagrado no art. 8º CRP, que é um sistema de recepção automática. De entre estas fontes
internacionais de direito de conflitos vigente na OJ interna destacam-se as Convenções
Internacionais cujas normas vigoram uma vez ratificadas, aprovadas e após publicação e enquanto
a Convenção vincular internacionalmente o Estado português. Vigoram como normas
internacionais na ordem interna.
Também vigoram na esfera interna como normas internacionais as normas de Direito
derivado das organizações internacionais de que Portugal seja parte. (art. 8º/3 CRP) e as normas de
conflitos contidas em Regulamentos Europeus, que vigoram na esfera interna como normas de
DUE. (art. 8º/4 CRP) Todas estas normas destinam-se a unificar as normas de conflitos que vigoram
na rodem jurídica dos Estados contratantes/membros. Sendo, assim, só é interno o Direito de
conflitos que é originariamente de fonte interna.

Ora a fonte mais importante do Direito Internacional de Conflitos são os tratados


internacionais que instituem ou enquadram jurisdições internacionais ou quasi-internacionais – ex:
Convenção de Washington (CIRDI). Analisaremos agora as fontes internacionais do Direito dos
conflitos vigente na OJ interna:
1) Costume internacional (?) - Hoje discute-se a existência de certas directrizes de
DIPúblico geral sobre a conformação global dos sistemas estaduais de DIP e a
possibilidade de, por via consuetudinária, se terem formado algumas poucas regras de
conflitos internacionais. FERRER CORREIA entende que é possível extrair dos princípios
gerais de DIPúblico directrizes para a conformação dos Direitos de Conflitos nacionais,

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

em especial em matéria de direito dos estrangeiros e igualdade dos Estados. Entende-se


em última instância que o DIP tem o seu fundamento no Direito das Gentes e no
reconhecimento de coexistência de uma pluralidade de ordens jurídicas nacionais.
a. Quanto à possibilidade de existirem normas de conflitos que têm por fonte o
costuma internacional, a doutrina já se divide. LIMA PINHEIRO defende que
algumas regras ou princípios de conexão, geralmente consagrados pelos sistemas
de DIP nacionais sejam já acompanhados de uma convicção de vinculatividade.
Ex: critério da lex rei sitae.
2) Tratados internacionais – são a principal fonte internacional de direito dos conflitos
vigente na OJ interna. Podem ser multilaterais ou bilaterais. Ex: Convenção de Genebra,
Convenções emanadas das Conferências de Haia desde 1902, outras convenções de
direito material unificado que contêm ou de onde se inferem soluções conflituais e
convenções em matéria de direito dos estrangeiros; CEDH e outros instrumentos que
intervêm transversalmente e podem funcionar em limitação de regimes conflituais, sejam
eles internos, sejam eles de origem convencional.
3) Jurisprudência internacional – é fonte de direito de conflitos internacional, mas só
indirectamente, mediante a formação de costume jurisprudencial, a jurisprudência
internacional pode ser fonte de Direito dos Conflitos que opere na ordem interna.
4) Princípios comuns aos sistemas nacionais – Tendem a desempenhar algum papel como
fonte do DIP de arbitragem transnacional, designadamente quanto à conformação de
uma ordem pública transnacional. Já não são fontes de direito dos conflitos aplicável a
situações que só relevam na OJ estadual.

4.2.2. Fontes Europeias


Encontramos normas de DIP nos tratados instituintes e, principalmente, no direito
derivado emanado dos órgãos da UE. Além do mais, com a entrada em vigor do Tratado de
Amesterdão, a UE passou a ter competência em matéria de DIP. O que era feito no âmbito das
convenções internacionais passou a ser feito através de regulamentos europeus. Efectivamente estes
são hoje a fonte principal de internacionalização do DIP. Destacam-se os regulamentos europeus
que derrogam as regras internas dos Estados e acabaram, de certa forma, por esvaziar as regras do
nosso CC. Mas ainda há outra dimensão - transposição das directivas europeias que leva à criação
ao nível interno de regras de conflitos especiais em diplomas avulsos. Para além disso, as normas
de DUE que consagram as liberdades fundamentais também têm incidência sobre o Direito
dos Estrangeiros, podendo assumir significado para o DIP.
O Direito de conflitos de fonte europeia pode operar ao nível da ordem jurídica da UE ou
das ordens jurídicas dos EM’s. Opera ao nível da OJ da UE nos casos em que se trata de direito dos
conflitos aplicável pelas jurisdições europeias – é o que se verifica com o direito de conflitos contido
no TFUE (ver arts. 268º TFUE, relacionado com o art. 340º/2; e ver art. 272º TFUE, relacionado com
o art. 340º/1 TFUE). O DUE também é fonte de direito de conflitos vigente na ordem jurídica
interna. O TFUE não contém normas de conflitos que se dirijam aos órgãos de aplicação do direito
dos EM’s. O significado do direito derivado como fonte de direito de conflitos vigente na OJ interna
foi limitado antes do Tratado de Amesterdão, já que a maior parte destas disposições conflituais
estavam previstas em directivas. Após esse tratado, inicia-se uma vasta comunitarização do DIP

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

com fundamento nos arts. 61º/c e 65º do TCE (redacção póstuma ao Tratado de Amesterdão),
graças à adopção de numerosos regulamentos no domínio do DIP (ex: ROMA I, ROMA II).
Com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, o art. 3º/2 TUE veio referir-se ao
estabelecimento do mercado interno. A competência dos órgãos da UE em matéria de DIP passou a
estar incluída no Título V, da Parte III do TFUE. Veja-se o art. 67º e ainda o art. 81º relativo ao
princípio do reconhecimento mutuo de decisões no âmbito da cooperação judiciária em matéria
civil.
Os actos em matéria de DIP são, em princípio, decididos por maioria qualificada no quadro
do processo legislativo ordinário (art. 81º/2 TFUE). Com excepção das medidas relativas ao direito
da Família que tenham incidência transfronteiriça que estão estabelecidas pelo Conselho, que
delibera por unanimidade, após consulta ao Parlamento europeu (art. 81º/3 TFUE)
A necessidade de uma codificação europeia do DIP tem também sido objecto de discussão –
principalmente com respeito à Parte Geral do Direito de Conflitos. Tal visa a unificação do DIP à
escala europeia, o que pode ser frustrado pelas diferentes soluções adoptadas pelos sistemas
conflituais dos EM’s relativamente à interpretação e aplicação dos instrumentos europeus em
questões como a resolução de concursos de nacionalidades, qualificação, fraude à lei, aplicação do
direito estrangeiro, etc…
LIMA PINHEIRO entende que a opção por uma europeização do DIP não será consequente
se não for acompanhada por uma unificação do regime aplicável a estas questões. A competência
dos órgãos da UE em matérias de DIP não é exclusiva, mas partilhada com os EM’s. Nas matérias
em que a União ainda não tiver exercido a sua competência reguladora, os EM’s são livres de
legislar. No entanto, uma vez exercida, esta competência exclui, ou pelo menos, limita a
competência dos EM’s (art. 2º/2 TFUE) Para mais, a UE tem competência externa relativamente às
matérias em que exerceu as suas competências internas – ver art. 216º e art. 3º/2 TFUE (que
reconhece competência exclusiva à EU em matéria de DIP, no sentido de que só esta pode celebrar
convenções internacionais com Estados terceiros, quando estas afectem as normas europeias.).

4.2.3. Fontes transnacionais


LIMA PINHEIRO defende a existência de fontes transnacionais, referindo-se a processos
específicos de criação de proposições jurídicas no seio da comunidade dos operadores do comércio
internacional que são independentes da acção dos órgãos estaduais e supraestaduais. Destaca-se o
costume jurisprudencial arbitral e os regulamentos de centros de arbitragem.

4.2.4. Problemas da internacionalização do DIP.


Os tempos modernos são muito marcados pelas fontes internacionais de DIP. Quais são os
problemas que esta internacionalização trouxe? Falamos de problemas de meta-unificação.
• Conflitos de normas internacionais: Temos de compatibilizar as normas contidas nos
vários instrumentos internacionais. Temos várias convenções, provenientes de organismos
diferentes, que podem colidir entre si ou com regulamentos. Encontramos disposições de
compatibilidade dos regulamentos e convenções para resolver este problema.
• Outro problema tem a ver com o relacionamento entre as fontes internacionais e internas.
No que toca ao DUE, a questão não se coloca tanto porque os regulamentos têm vigência
automática; já no que às convenções diz respeito, pode discutir-se de que modo as devemos
introduzir no nosso sistema e qual a técnica legislativa a usar. Apesar do princípio do primado,

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

pode ser útil haver uma referência ao DIP internacional no texto interno. Isto pode ser feito através
de vários métodos:
 Referência genérica: o legislador limita-se a lembrar a existência de fontes externas.
 Referência específica: a propósito de cada uma das matérias, diz qual é o instrumento
internacional que aí vigora.
 Incorporação: o legislador reproduz internamente as soluções já contidas nas situações
internacionais. Isto torna o sistema mais transparente para o juiz, mas tem um risco – as
normas contidas no tratado devem ser interpretadas de acordo com o espírito do próprio
tratado, e com a incorporação podemos ser levados a esquecer esta regra.

5. Génese e desenvolvimento histórico do DIP (Matéria Facultativa)

Foi em finais do século XII que nasce o DIP na maneira como hoje o conhecemos: era
necessário determinar a lei aplicável, uma vez que, para além do direito comum romano, cada uma
das comunidades (cidades italianas) ia criando as suas próprias leis – os estatutos. A partir daí,
colocava-se a questão de saber qual a lei aplicável.
Até ao século XVII/XVIII, foi-se desenvolvendo o DIP, através de várias doutrinas
estatutárias. Estas doutrinas olhavam para cada um dos estatutos e, analisando essa norma,
procuravam determinar o seu âmbito de aplicação. A grande divisão inicial era se o estatuto seria
territorial, aplicando-se na comunidade que criou essa norma a quem quer que fosse; ou extra-
territorial / pessoal, no sentido em que acompanhariam a pessoa originária de certa comunidade
onde quer que se movimentasse.

6. O Método do DIP

Hoje em dia reina um certo pluralismo metodológico - natureza pluridimensional do DIP,


existindo vários métodos de regulamentação das situações da vida privada internacional que
podem ser utilizados pelo legislador e pelo julgador.

Como abordaremos este problema?


1) Concepção tradicional do DIP (Savigny)
2) Revolução Americana (crítica norte-americana à concepção clássica)
3) Perspectivar em que medida esta revolução americana e a crítica ao método conflitual
acabou por ter eco na Europa - aproximação desta orientação às orientações propugnadas nos
Estados de Liberdade.

1) Concepção Clássica do DIP


Antes desta concepção, vigorava uma teoria (mal) apelidada de “estatutária”, sendo que
perante uma norma, procurava-se determinar o seu âmbito de aplicação, para saber se era de
aplicabilidade territorial ou extraterritorial.
Segundo a orientação tradicional, considera-se que o problema que se levanta é o de
designar a lei em cuja moldura deverão procurar-se os preceitos materiais aplicáveis ao caso. No
fundo, como se tratam de relações conexas com diferentes sistemas de direito, perguntamo-nos qual

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desses sistemas é que vai ser chamado a reger a situação concreta, tendo em conta as conexões
existentes entre as leis interessadas e os factos a regular.
Esta concepção foi criada por Savigny, sendo que o que interessava era determinar para cada
relação jurídica, tendo em conta a sua natureza, a sua verdadeira sede. A sede da relação jurídica
determina o direito local a que está sujeita. Savigny cria, assim, o método ainda largamente
predominante na actualidade – método conflitual ou de conexão – baseado na utilização de regras
de conflitos. Este consiste em procurar para cada situação jurídica típica, o laço que mais
estreitamente a prenda com um sistema jurídico determinado. (“Procura da lei mais bem colocada para
intervir”)
As regras de conflitos tinham como função indicar o elemento da factualidade concreta, por
intermédio do qual se há-de determinar a lei aplicável às várias situações da vida. O critério devia
ser o da localização da relação jurídica porque o que se pretendia tutelar é a segurança e a justiça
internacional privatística, de cunho formal - previsibilidade do direito, continuidade e estabilidade
das relações jurídicas internacionais.
Esta regra de conflitos clássica tem determinadas características:
- Rígida (eram hard-and-fast rules), isto é, normas que vinculam o juiz a utilizar um elemento de
conexão pré-determinado ou determinável a partir de critérios enunciados pela própria norma,
sempre que se lhe apresente uma questão jurídica do tipo correspondente à respectiva previsão.
- Geral e abstracta
- Neutra (que é indiferente ao resultado, isto é, ao conteúdo das soluções materiais)

Tudo isto visava a harmonia jurídica internacional através da uniformidade da lei aplicável.

Críticas à concepção clássica:


1) A dificuldade, quando não impossibilidade de, em muitos casos, apurar a conexão mais
estreita ou mais significativa da relação jurídica. Veja-se o caso do problema da conexão
decisiva em matéria de estatuto pessoal ou de sucessões por morte.
2) Impropriedade das normas de direito interno para regular as situações internacionais,
situações cujos problemas específicos aquelas normas por completo ignoram, pois não foram
elaboradas tendo em conta tais problemas.
3) Dificuldades que surgem no processo de aplicação da regra de conflitos – qualificação,
reenvio, adaptação, ordem pública.

Tudo isto conduz a uma situação que compromete a previsibilidade das decisões judiciais e
a estabilidade da vida jurídica. Há quem diga ainda que este método compromete a possibilidade
de encontrar, para as situações multinacionais, a solução material mais consentânea com os seus
caracteres específicos, desde logo pela neutralidade das regras de conflitos.
2) Revolução Americana
A perspectiva conflitualista rígida foi alvo de críticas severas nos EUA, onde surgiram
diversas correntes de rejeição do método conflitual europeu clássico – a American Revolution.
Neste sentido, David Cavers veio mesmo defender que "a história do DIP é uma história de seis
séculos de frustrações".

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

Nos EUA, a resolução do problema dos conflitos de lei foi sempre uma matéria estadual, e
tinham uma experiência enorme desde o século XVIII com conflitos de leis interestaduais (que
apresentam grandes semelhanças com os conflitos internacionais).
Neste contexto, especialistas de várias áreas reuniam-se no American Law Institute e criavam
o Restatement, uma recomendação com uma autoridade científica tão elevada que era seguida pelos
diversos legisladores (mesmo quando isto não sucedia, os tribunais convertiam-nos em
precedentes). O primeiro Restatement surgiu em 1934, redigido por JOSEPH BEALE, e foi uma
mistura da evolução americana das últimas décadas e da perspectiva europeia. Nele encontramos:
• Regras de conflitos de conteúdo rígido: como na Europa, também nos EUA se acreditou
durante muito tempo ser possível resolver o problema de DIP, através de regras de conteúdo rígido.
Porém, os tribunais gozavam de uma certa liberdade e flexibilidade na aplicação destas normas.
• À parte destas, tínhamos uma grande influência de duas doutrinas:

o Doutrinas estatutárias holandesas (Huber, Volt)


A escola holandesa do século XVIII filiava-se no princípio formal segundo o qual a validade
das leis, enquanto ordens do legislador, seria exclusivamente territorial. A territorialidade da lei,
quase absoluta, levava à impossibilidade de aplicação no foro de lei estrangeira. Isto era mitigado
com uma ideia que surge com as doutrinas holandesas e que é hoje um aspecto central, a comitas
gentium – uma mistura de cortesia internacional com um dever moral, político, que não estritamente
jurídico, de consideração da lei estrangeira e da sua soberania. Porém, isto era não vinculativo.

o Doutrinas dos vested rights.


Mais importante foi a doutrina dos vested rights (direito adquiridos), que servia para
acautelar todas as situações em que tivesse sido criada no estrangeiro uma dada relação jurídica.
Estes direitos relevavam para o Estado do foro enquanto pressuposto necessário da criação no
próprio foro de um direito de idêntico conteúdo, pelo que os direitos adquiridos eram assim meros
factos despidos de qualquer relevo jurídico autónomo. Para além disto, o reconhecimento da sua
existência dependeria de terem sido constituídos à luz da lei competente pela regra de conflitos do
foro – o que leva MOURA RAMOS a afirmar que a doutrina norte-americana comungava dos
pressupostos europeus, aparecendo porém “ainda mais inutilmente complicada”.

Entretanto, começa o movimento de reacção à concepção conflitual clássica. Há três linhas


de crítica:

1) Momento Jurisprudencial (Caso Babcock vs. Jackson, 1963)


Neste caso, um casal (Mr. e Mrs. Jackson) convidou uma amiga (Babcock) para passear no
Canadá, e lá têm um acidente, sofrendo Babcock lesões graves. Babcock intentou assim uma acção
contra Mr. Jackson nos EUA pelos danos sofridos. A regra de conflitos tradicional, que resultava do
primeiro Restatement4 e da jurisprudência, era a de que a lei competente era a do lugar do dano
(neste caso, Ontário, Canadá). Porém, a lei de Ontário continua uma regra que exigia, para que o
condutor fosse responsabilizado no caso de transporte título gratuito, um grau de culpa qualificado
(culpa grave), regra que já tinha sido abolida no estado de Nova Iorque, onde a acção foi proposta.

4
Chama-se Re-statement a compilação das regras de conflitos criadas a partir dos conflitos judiciais e, por isso,
de natureza jurisprudencial.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

Ou seja, aplicando a regra de conflitos rigidamente, aplicava-se a lei de Ontário e não havia
qualquer direito de indemnização. Porém, o tribunal concedeu a indemnização, aplicando a lei
americana, com os seguintes argumentos:
• Estreita relação deste Estado com a relação entre as partes.
• Interesse do Estado na aplicação da sua lei, uma vez que Nova Iorque é o estado mais
directa e fortemente interessado na situação.
Este caso veio reforçar e generalizar a descrença nas regras de conflitos tradicionais (que
eram cegas e injustas), apontando na direcção de uma solução encontrada ad hoc, tendo em conta
certos factores-guia e a natureza da questão controvertida e das circunstâncias concretas. Porém,
deixava em aberto uma questão fundamental: a escolha da lei deveria ter em conta o interesse do
Estado em ver aplicada uma das suas leis, e este interesse depende do conteúdo da lei e da política
legislativa a que esta responda. A decisão abria assim caminho a um casuísmo inevitável.

2) Momento Doutrinal

DAVID CAVERS
Cavers defendeu, nos anos 30, a via da melhor lei (better law approach), criticando o facto de
que as regras clássicas de DIP serem configuradas de forma cega em relação ao resultado, à justiça
material do caso concreto. A aplicação da regra de conflitos seria um blindfold test, em que o juiz é
indiferente ao conteúdo da lei, seu fim e resultados da sua aplicação.
Cavers dizia que devíamos partir da ideia de que o que está em causa não é um litígio ou
conflito de sistemas de direito, senão um conflito de regras materiais. Quando se verificava esta
oposição de preceitos materiais, o juiz deve comparar os vários preceitos e as soluções oferecidas e
escolher a melhor lei, tendo em vista a justiça material devida às partes e os objectivos de política
legislativa prosseguidos pelas normas em competição.
Logo se assinalou o carácter casuístico desta doutrina (não se consegue prever qual a lei
aplicável, porque é o juiz que escolhe a lei mais justa – conduzindo a desarmonia jurídica
internacional e a uma violação do principio da paridade das ordens jurídicas) e é por isso que numa
segunda fase (Contra-Revolução de Cavers), Cavers veio sugerir que deveriam ser elaborados os
princípios de preferência, que eram critérios orientadores do juiz na escolha da lei. Estes critérios de
preferência eram regras de conflitos mas em que a escolha não era feita unicamente em função da
localização, mas de acordo com critérios de justiça material. O princípio da preferência determinava
a lei aplicável de acordo com uma localização material, justiça material, etc... Entre as regras de
conflitos e os princípios de preferência não existem verdadeiramente diferenças significativas,
porque em qualquer dos casos pretende-se escolher a lei. No caso de Cavers, a escolha é maleável
porque os princípios de preferência são meros critérios orientadores na escolha da lei mais justa.

Críticas:
 Cavers foi acusado de ser contra-revolucionário porque os princípios de conflitos
assemelhavam-se a autênticas regras de conflitos, ainda que também atendessem
ao conteúdo da lei.
 Cavers só definiu critérios de preferência em matéria contratual e extracontratual.
Se há domínios em que podemos elaborar estes princípios de preferência e
determinar o resultado material que deve presidir a escolha, há muitas matérias

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

em que isso não é possível. É por isso que se diz que o método de Cavers não
pode ser generalizado a todas as matérias.
o Por isso, para FERRER CORREIA esta better law approach deve apenas ser
usada como método coadjuvante, sob pena de desarmonia jurídica
internacional.

Em suma, esta é uma visão que incorpora uma ideia de materialização, flexibilização ou
substancialização do DIP.

BRAINERD CURRIE
Currie é mais radical porque propunha a abolição das regras de conflitos e a ruptura total
com o método clássico. Como método alternativo, propõe o método da análise do interesse
governamental (Governmental Interest Analysis) subjacente às normas materiais. Ou seja, os
limites de aplicação das normas materiais no espaço seriam dadas com base na análise do interesse
governamental que estivesse subjacente a cada norma. Parte do pressuposto que as normas
materiais têm por finalidade a realização de uma certa policy, e o Estado que edita essas normas tem
interesse na realização das políticas que a ela subjazem.
Assim, perante uma situação internacional, seria necessário analisar as políticas nas várias
leis em concurso, sendo o espaço de aplicação de cada uma dessas normas delimitado em função do
interesse estadual na base dessa norma. CURRIE faz assim uma análise publicista da resolução do
conflito de leis.
Seria assim necessário abolir o sistema das regras de conflito: o autor aponta uma série de
casos para mostrar como, estando esses casos em contacto com várias leis, só há interesse em aplicar
uma delas. O critério decisivo para aplicação de uma lei estava assim na ideia de interesse estadual,
havendo casos em que, analisando os interesses estaduais, já não há nenhum conflito uma vez que
apenas uma lei tem interesse em aplicar-se – false conflicts. O DIP, com o método conflitual, estaria
assim a potenciar estes falsos conflitos.

Como é que se resolve, analisando os interesses estaduais, os verdadeiros conflitos na


perspectiva do autor?
• Se ambas as leis (do foro e estrangeira) tenham interesse em aplicar-se, a lei a aplicar é a lei
do foro. Isto não significa que a lei estrangeira nunca possa ser aplicada, mas sim que há uma certa
exigência na sua aplicação. Só se o estado do foro não tiver interesse é que se aplica a lei estrangeira.
• Se o estado do foro não tiver interesse na aplicação da sua própria lei, mas o caso tiver
contacto em simultâneo com outras duas leis e essas duas leis teriam ambas interesse em aplicar a
sua própria norma, temos o problema do terceiro estado interessado. O que deve o estado do foro
fazer? CURRIE sugere a aplicação da teoria do forum non conveniens (tribunal não conveniente) –
permite ao tribunal dizer, mesmo que regras de conflito internacionais digam que é competente, há
outro tribunal de outro Estado mais competente para resolver o caso. Ou seja, o Estado do foro diria
assim que não seria competente para resolver o caso. Se isto não for possível, então recorre-se
residualmente a lei do foro.

As críticas às soluções e método do Currie são as seguintes:

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- Este método nem sempre se dá praticável, ou seja, nem sempre nós conseguimos determinar a
partir da análise da política subjacente a norma o seu âmbito de aplicação no Espaço.
- Este método pode conduzir a alguma injustiça conflitual, porque através da análise da política
subjacente as normas podemos chegar a resultados desadequados. Por ex., o caso da forma do
negócio jurídico – a exigência de uma forma pretende obrigar a uma reflexão; e, por outro lado,
favorecem uma ideia de certeza jurídica. Assim, os preceitos de forma de um Estado seriam
aplicáveis não só aos negócios aí celebrados (segundo objectivo), como aos negócios celebrados
pelos nacionais no estrangeiro (primeiro objectivo). Isto levaria a resultados insatisfatórios, já que
levantaria obstáculos excessivos à livre contratação.
- Há uma clara prevalência da lei do foro. Tal configura uma violação do princípio de paridade de
tratamento das ordens jurídicas. Isto tem o risco de conduzir a desarmonia jurídica internacional e
risco de forum shopping.
- Esta concepção assenta em pressupostos já ultrapassado: Os conflitos de leis eram vistos como
conflitos de soberania; O problema da escolha da lei era um problema político, isto é, determinar
qual o interesse político que devia relevar. Apontava uma subordinação do DIP ao direito público,
esquecendo que o DIP deve atender à estabilidade e segurança das situações jurídicas
transnacionais.

Em suma, esta teoria abre o caminho à politização do DIP.

EHRENZWEIG
EHRENZWEIG parte de duas ideias fundamentais: (1) por um lado, aceita o método
proposto pelo Currie - análise do interesse fundamental subjacente às normas (casos de lex incerta);
(2) mas admite regras de conflitos de leis (casos de lex certa). É aqui que se situa toda a sua
construção. Os conflitos de leis são resolvidos da seguinte forma:
O seu ponto de partida seria sempre a aplicação da lei do foro, ou seja, o problema conflitual
só surge depois de se concluir que não se trata de um dos casos em que a lei do foro é independente
de qualquer escolha (Forum Rule by no choice). A ideia de prevalência da lei do foro era confirmada
por se verificar que, mesmo quando teoricamente o tribunal recorria a uma regra de conflito, no
fundo o que fazia era, através de uma série de expedientes (ex: reenvio), aplicar a sua própria lei.
Uma vez chegada aquela conclusão, caberia então às regras de conflito do foro designar a lei
aplicável. E na falta de regras de conflitos? A aplicação da norma estrangeira só poderia resultar da
interpretação da norma da lex fori segundo a sua ratio ou policy (interpretação bifocal da norma
material do foro). Por outras palavras, aplicar uma lei estrangeira está dependente, não da ratio da
lei estrangeira, mas sim da lei do foro: a interpretação da lei do foro determina se é ela que se aplica
ou a lei estrangeira.
No fundo, este autor tentou evitar ao máximo o perigo do Fórum Shopping. Resolvia as coisas
através das regras de competência internacional - lançava mão do Fórum non-convenience. Se numa
situação plurinacional, se achasse que devia aplicar-se a lei estrangeira, o tribunal devia abster-se de
aplicar a lei do foro e admitir que a questão fosse resolvida nos tribunais de outros estados.
(Coincidência Forum – Ius)
Isto é criticável porque:
 Quando determinamos um conflito de leis, o critério da escolha é a proximidade
ao caso. No caso da competência, o tribunal mais próprio é escolhido de acordo

30
Eduardo Figueiredo 2016/2017

com razões de natureza processual - comodidade das partes. Assim, o autor


desconhece a especificidade das regras de conflitos de competência relativamente
às regras de conflitos de leis.
 Estamos a decidir se aplicamos uma lei estrangeira atendendo apenas à vontade
de aplicação da lei do foro, quando deveria ser a vontade da lei estrangeira a
determinar a sua aplicação, uma vez que nenhum preceito é separável da
razão de ser que o inspira. No fundo o autor sugere o autora separação da
ratio do comando.
 Confere primazia à lex fori por princípio, violando o princípio da paridade do
tratamento das ordens jurídicas.

Em suma, para EHRENZWEIG, apesar de ser próximo da ideia de publicização, o ponto


focal é a prevalência dada à lei do foro. A ideia de paridade de tratamento era fortemente rejeitada.
Abre caminho à jurisdicionalização do DIP.

3) Momento Legislativo (2nd Restatement of 1969)


Este não rompe com o modelo conflitual, continuando a existir regras de conflitos clássicas,
embora umas sejam abertas (open-ended rules) – deixando ao julgador uma margem de conformação
perante o caso concreto – e existam parâmetros a que o juiz deve olhar na escolha da lei aplicável
quando não exista uma regra de conflitos aplicável ao caso.

3) Aproximação do DIP europeu à revolução americana


Vem do exposto que entre as características principais da perspectiva americana se contam,
além da tendência para o abandono do método conflitual (...) a ideia do primado da lex fori e a
propensão para atribuir um relevo importante, na resolução dos conflitos de leis, ao factor
representado pelo conteúdo e fundamento das regras materiais em colisão. Ora, se soubermos
utilizar convenientemente as novas contribuições doutrinais e o leque de possibilidades que nos
oferece a técnica tradicional da regra de conflitos, talvez possamos demonstrar que o método da
escolha de lei através da selecção, predeterminada por uma regra de conflitos, continua sendo uma
das vias possíveis para resolver o problema, senão a melhor.
Muitas destas ideias americanas, apesar de serem alvos de fortes críticas, foram assim
aproveitadas pelas doutrinas europeias. Vamos ver quatro manifestações desta aproximação entre a
doutrina europeia e a perspectiva estadunidense:
1. Apuramento da justiça conflitual (flexibilização);
2. Normas de conflitos de conexão substancial ou material (materialização);
3. Relevo do fim das normas materiais no respectivo campo de aplicação espacial (politização);
4. A jurisdicionalização do DIP.

- Apuramento da justiça conflitual (flexibilização do DIP) –

O apuramento da justiça conflitual passou a procurar a lei mais bem colocada para resolver
o caso, através de vários meios:

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1) Especialização das regras de conflitos ou «dépeçage».


Quer dizer que de algum modo houve uma certa substituição daquilo a que chamamos
sistemas sintéticos por sistemas analíticos do DIP de modo a procurar a regra de conflitos mais
adequada para reger cada questão jurídica autonomizada.
Antigamente, os sistemas conflituais clássicos estavam constituídos com base nas grandes
categorias do Direito Privado - estes sistemas eram parcos, existindo poucas regras de conflitos que
abrangiam grandes âmbitos normativos.
Contra isto, opôs-se o movimento de especialização da regra de conflitos, surgindo sistemas
analíticos, sendo certo que quanto mais regras de conflitos existem há uma melhor adequação das
soluções conflituais à realidade. Se este desmembramento tem vantagens (mais adequação das
soluções à realidade) tem também um inconveniente (quanto mais regras de conflitos temos, mais
difíceis são as questões suscitadas no âmbito da qualificação do DIP).
O que contribuiu para este movimento de especialização foi a codificação internacional.
Como esta é mais fácil em sectores determinados, isto levou a que as convenções internacionais
tratassem de situações mais específicas, levando à especialização das soluções. P.e. art. 49º a 55º CC.

2) Criação das chamadas «open-ended rules».


Utilizam o princípio da proximidade - em vez de ser o legislador a indicar a lei aplicável
pela regra de conflitos, estabelece-se o princípio da proximidade (o juiz que veja qual a lei mais
próxima). (ex: art 52º CC)

3) Cláusulas de excepção
São uma relativização do valor da regra de conflitos legal, isto é, a cláusula de excepção
atenua a rigidez da regra de conflitos clássica. Trata-se de uma disposição que corrige o
funcionamento normas das regras de conflitos, quanto este conduz a resultados insatisfatórios do
ponto de vista dos fins do DIP. No fundo, trata-se de um mecanismo dado pelo legislador ao juiz
para afastar a lei em princípio aplicável e para aplicar outra lei se entender que essa outra lei é mais
adequada. Há vários tipos de cláusulas de excepção:

Cláusulas de excepção materiais - é aquela em que o afastamento da lei se faz por razões de
justiça material, ou seja, há uma lei identificada como competente, mas que é substituída por outra
se esta outra lei promover um determinado resultado material mais justo. Ex: art. 45/2 CC.
Vs.
Cláusulas de excepção formal ou conflituais - aquilo que justifica a substituição de uma lei
por outra é o facto de a primeira lei (em princípio, aplicável ao caso) não ter um contacto
suficientemente forte com o caso e a segunda lei ter um contacto mais forte. É quase um regresso a
Savigny - uma lei tem contacto mais forte que a lei em princípio aplicável. Veja-se o Regulamento
ROMA I (4º/3); ROMA II; 45º/3 CC e art. 15º da Lei Suíça do DIP. É o típico da cláusula de
excepção.

Cláusulas de excepção abertas - O legislador não justifica quais as causas que justificam a
substituição de uma lei por outra, nem identifica qual a lei que afinal deva ser aplicada. Ver ROMA
I (art. 4º/3). É o intérprete que caso a caso decide se se justifica a substituição de uma lei por outra.

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São a concretização judicial do princípio da conexão mais estreita. É o típico da cláusula de


excepção.
Vs.
Cláusulas de excepção fechadas - o legislador diz quais as condições que se devem verificar
para justificar a substituição de uma lei por outra e identifica que lei é essa. Ex: 45º/2; 45º/3 CC.

Cláusulas de excepção gerais - funcionam para todas as regras de conflitos. Existem nos
EUA ou na Suíça.
Vs.
Cláusulas de excepção especiais - funcionam só no âmbito de uma regra de conflitos. São as
que temos em Portugal.

4) Concretização judicial do princípio da proximidade.


As regras de conflitos estabelecidas pelo legislador determinam a aplicação de uma lei
pressupondo que essa lei é a que tem o contacto mais próximo - são uma concretização legal do
princípio geral da localização ou proximidade. Mas nada impede que o legislador venha a
estabelecer como elemento de conexão o princípio da conexão mais estreita (art. 52º CC). É o juiz
que deve, nestes casos, concretizar judicialmente o princípio da proximidade.
Isto pode gerar insegurança da solução conflitual, devendo arranjar-se uma nova conexão
subsidiária antes de utilizar este princípio.

- Casos em que encontramos regras de conflitos de conexão material ou substancial -


O DIP conflictual passou a preocupar-se, não apenas com a lei que estava mais próxima, mas
com o resultado material a dar. Ora, as regras de conflitos a que estamos acostumados são regras
que utilizam sobretudo conexões localizadoras (ex: o lugar da situação da coisa, nos direitos reais).
Contudo, uma das formas de promover aspectos materiais no DIP, fazendo uma concessão às
críticas substancialistas, é a de estabelecer regras de conflitos que contêm elementos de conexão
inscritos em função de favorecer um dado resultado material. (Regras de Conflito de conexão material)
Interesses defendíveis:
- Manutenção da validade dos negócios jurídicos. (Ex: 31º/2, 36º/1 e 65º/2 CC)
- Constituição dos Estados de Família
- Defesa de certas liberdades, como o divórcio, etc...
- Protecção mais forte de determinada pessoa (lesado, credor de alimentos, Etc...)
- Protecção da parte contratual mais fraca (contractos de adesão, CT, contrato de seguro, contractos
com consumidores)
Todos estes casos constituem concretizações de uma ideia de escolha de lei em função do
resultado. Contudo, estamos aqui bem longe do processo preconizado por CAVERS em 1993,
porquanto nestes casos é a própria regra de conflitos que enuncia o critério de escolha (...) A
previsibilidade das decisões judiciais não será gravemente afectada.
- Relevância do conteúdo e do fim das normas materiais na determinação do respectivo campo de
aplicação espacial -
Há casos em damos relevância ao fim e conteúdo das normas, como:

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1) Qualificação. (Art 15º CC)


Este problema é fundamentalmente um problema de interpretação da regra de conflitos e é
um problema suscitado pelo conceito-quadro da mesma. Dada uma norma potencialmente
aplicável a determinada situação em virtude de uma regra de conflitos do foro, devemos averiguar
se as normas dessa lei reguladoras desse tipo de situações correspondem à categoria normativa
visada na própria regra de conflitos e expressa pelo respectivo conceito-quadro. Para tanto, haverá
que analisar à luz do seu escopo ou função sociojurídica, os preceitos materiais cuja aplicação está
justamente em causa.
Não se pretende chegar à solução materialmente mais justa, mas apenas saber que normas
são chamadas pela regra de conflitos.

2) Adaptação
É uma operação que surge naqueles casos em que são convocadas duas leis diferentes para
se aplicarem no mesmo caso (conflitos positivos de lei) e, por algum motivo, as estatuições de uma
lei e de outra são incompatíveis, seja do ponto de vista puramente lógico, seja teleológico
(BAPTISTA MACHADO fala de «acidente técnico do DIP»). O expediente da adaptação consiste
em, comparando as leis em presença (as políticas legislativas que elas vão prosseguir), combiná-las
para tentar encontrar uma solução que, respeitando o seu sentido, se adapte ao caso concreto. No
fundo, é uma autorização ao juiz para manipular o sistema conflitual de modo a cumprir as
políticas legislativas das leis envolvidas.
Quais as situações típicas?
1) O desmembramento - desmembramento das relações jurídicas conduz a contradições,
que se resolvem por adaptação da norma material.
2) Questões jurídicas diversas mas interligadas - Caso Sueco; Casos em que a aplicação das
duas leis resultaria numa violação da intenção de ambas.
3) Conflitos de qualificações – Casos de conflito negativo de qualificações. Estas situações
de vácuo jurídico são resolvidas por adaptação do elemento de conexão da regra de conflitos
(Magalhães Collaço); ou através de uma adaptação ao nível do direito material. (Ferrer Correia e
Baptista Machado)
4) Conflito móvel (sucessão da lei aplicável devido à mobilidade do elemento de conexão):
Caso Chemouni. Alguma doutrina veio dizer que teríamos que adaptar as normas materiais,
estendendo a sua aplicação. Outros autores, como Ferrer Correia preferiam suprimir ou ignorar a
sucessão de estatutos ou conflito móvel - se há aqui uma aplicação sucessiva de leis inconciliáveis,
deveríamos esquecer a sucessão de estatutos e petrificar a conexão, tornando-a imóvel.

A adaptação pode abrir caminho ao casuísmo e insegurança, mas temos que recorrer a ela
para resolver algumas situações. Para evitar esse casuísmo e insegurança:
 Há casos em que o legislador resolve expressamente problemas específicos da
adaptação. (ex: art 26º/2 CC).
 Para mais, a doutrina defende a criação de regras de conflitos especiais ou de 2º grau
que hierarquizassem as regras de conflitos.
 Em última análise, temos que casuisticamente fazer a adaptação. Entre a adaptação
da norma material ou da regra de conflitos, tende-se a defender que a adaptação

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deve ser feita ao nível da regra de conflitos e não da regra material, sob pena de criar
direito que não existe nesse OJ e que é totalmente fantasioso.

3) Normas materiais espacialmente auto-limitadas ou auto-condicionadas.

São normas materiais que se servem de uma conexão espacial para delimitarem, explicita ou
implicitamente, o âmbito de casos em que têm aplicação. Isto é uma excepção ao método conflitual,
porque é a próprio norma material que inscreve determinados elementos espaciais, isto é, delimita
no espaço o seu âmbito de aplicação tendo em conta o seu fim ou função.
Estas normas são de aplicação obrigatória para os tribunais do respectivo Estado, escapando
ao controlo do direito de conflitos. Geralmente, o seu objectivo reside na tutela de interesses de
grande relevância na comunidade local, pelo que a sua aplicação não pode depender do sistema
conflitual.
Foi FRANCESCAKIS o primeiro autor a identificar este tipo de normas. Para mais, FERRER
CORREIA alerta-nos para o facto de que estas regras permitem resolver os problemas de conflitos
internacionais de maneira não tão diferente da que a doutrina estadunidense propunha.
Dentro destas normas, temos duas modalidades:

 As normas espacialmente auto-limitadas em sentido estrito ou restritivo


São normas materiais mas que delimitam o seu próprio âmbito de aplicação no espaço,
exigindo um contacto mais forte do que aquele que resultaria do funcionamento da regra de
conflitos para que se apliquem. Não basta que o sistema seja competente, sendo necessário um
elemento adicional de ligação (extra) para que as normas se apliquem.
Um exemplo clássico é o do art. 36º DL 248/86 – EIRL: Para que ele se aplica, não basta que
o EIRL tenha a sede efectiva em PT, sendo necessário que tenha sido constituído também em PT.
(embora a regra de conflitos remeta para a lei da sede efectiva da organização)
Estas normas podiam ser, inclusivamente usadas para a resolução do Caso Babcock vs.
Jackson – Como se podia fazer operar este instituto no caso? Poderíamos dizer que a norma
canadiana que estabelece a não indemnização pelos transportados gratuitos é uma norma que tem
em vista determinados objectivos - evitar a ganância da pessoa que vai à boleia e evitar conluios
entre o lesante e o lesado que podem afectar a seguradora. No caso concreto, estavam em causa
interesses que a lei do Ontário não tinha de assegurar porque tanto o transportado, como o
transportador e até mesmo o seguro não eram canadianos. Ou seja, a norma canadiana seria uma
norma espacialmente auto-limitada, não se aplicando ao caso. Que norma se ia aplicar? Ia aplicar-se
a norma geral do regime do Ontário que dizia que quem causa dano deve indemnizar.
Estas normas ainda se “situam” dentro do método conflitual.

 As normas de aplicação necessária e imediata5 


Já estamos fora do método conflitual, sendo este um método diferente de regulação das situações
plurinacionais. É uma categoria relativamente recente, mas que já tem antecedentes no século XIX.

5
3 Notas prévias: (1) Nem todas as normas constitucionais são NANI's; (2) Nem todas as normas imperativas
(P.e. Obrigatoriedade de escritura pública) são NANI's; (3) As NANI's não se aplicam sempre.

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São normas materiais espacialmente autolimitadas, ou seja, delimitam o seu próprio âmbito
de aplicação no espaço, tendo em conta as finalidades que visam assegurar. Mas têm um carácter
ampliador e não restritivo, de tal modo que alargam imperativamente o campo de aplicação do
sistema a que pertencem, ou seja, são normas que se vão aplicar mesmo que o sistema jurídico em
que elas se integram não seja competente por força das regras de conflitos. Dizem-se pois, de
aplicação imediata porque não são medidas pela regra de conflitos, fixando o seu próprio campo de
aplicação.
Tal justifica-se pela sua particular intensidade valorativa - protegem valores fundamentais
para o ordenamento jurídico. Estas normas são verdadeiros instrumentos de politização e
publicização do DIP, porque são normas que permitem ao Estado impor o cumprimento de valores
da ordem política, social e económica que lhe cabem.
NUNO ASCENSÃO SILVA diz-nos que estas normas são normas em que o seu âmbito de
aplicação espacial é recortado e determinado autonomamente por regras de conflitos unilaterais ad hoc
- elas é que dizem quando se querem aplicar através de um comando unilateral ad hoc. Tratam-se,
portanto, de comandos unilaterais, à partida insusceptíveis de bilateralização, embora tal seja
discutível.
Em suma: são normas de aplicação necessária - porque não podem ser afastadas pela lei
estrangeira – e imediata - funcionam antes e independentemente da regra de conflitos. Será errado,
porém, dizer que são normas que se aplicam sempre. Na realidade, só se aplicam às situações que
querem regular através da análise do seu comando ad hoc, seja ele explícito ou implícito.

Implícitas: MOURA RAMOS considera o art. 53º CRP uma norma de aplicação necessária e
imediata implicitamente, devendo ser aplicada independentemente do que resultar da regra de
conflitos aplicável ao contrato de trabalho, dada a sua intensidade valorativa. Será aplicável aos
contractos executados em Portugal e aos contractos total ou parcialmente executados no estrangeiro
se for celebrado entre portugueses, ou estrangeiros residentes em Portugal e um empregador
português. Outro exemplo é o art. 1682º-A CC, que se aplica sempre que a casa da morada de
família seja em PT.

Explícitas: Consagrada pelo legislador na letra da lei. Muitas vezes, são normas que derivam
da transposição de directivas europeias. Exemplos:
- Lei da Concorrência (Lei 19/2014, de 8 de maio) - art. 2º.
- DL 238/86 - art. 3º
- Cláusulas contratuais gerais, mediação imobiliária, arbitragem internacional, etc...

Podemos ainda distinguir as normas de aplicação necessária e imediata:


1) Do foro - É pacífico na doutrina que essas normas devem ser aplicadas pela sua especial
intensidade valorativa. - art. 9º/2 ROMA I; art 16º ROMA II.
2) Estrangeiras - A aplicação das normas necessárias e imediatas estrangeiras suscita
problemas acrescidos. Podem ser:
 Da lex causae (lei competente)
Neste âmbito, a doutrina acabou por aceitar a teoria do estatuto internacional ou teoria
unitária - se estas normas se inserem na lei competente elas devem ser aplicadas, excepto quando
contrária à ordem pública internacional ou a uma norma do foro necessária ou imediata. Assim:

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1) Deve a norma integrar-se na lei competente.


2) Não violar a ordem pública internacional.
3) Passar o crivo do art. 15º CC, relativo ao problema da qualificação.
4) Querer aplicar-se ao caso, ou seja, a situação a que se vão aplicar tem que caber dentro do
âmbito de aplicação espacial por elas recortado.

 De ordenamentos jurídicos terceiros


Relativamente a estas, naturalmente a doutrina foi sempre mais receosa e discutiu-se o
problema de saber se estas normas deveriam ser verdadeiramente aplicadas ou apenas tomadas em
consideração (servindo meramente como um elemento de facto a ter em consideração pelo juiz na
aplicação da lei competente – Tese da tomada em consideração). A doutrina mais recente entende
que, a partir do momento que se respeita a finalidade da NANI, a lei competente retoma o seu
âmbito de aplicação.
A outra dúvida colocada pela doutrina foi de saber em que casos se aplicavam estas normas
de OJ terceiros - falava-se de uma teoria da conexão especial, que tratava diferentemente uma lei
consoante fosse indicada ou não pela regra de conflitos (distinguindo a lex causae da lei de um
Estado terceiro). Segundo esta teoria, uma norma de aplicação necessária e imediata, seja da lex
causae, como a de qualquer outro Estado, pode ser aplicada se houver uma conexão especial a
justificar a sua aplicação. Tem que haver uma vontade de aplicação. A conexão especial seria
estabelecida através da criação de regras de conflitos especiais que denominassem os casos em que
estas NANI’s se aplicavam. O certo é que estas normas não existem.
Sendo assim, o que podemos dizer?
• Há casos em que é o próprio legislador que define, através de disposições instrumentais,
qual o valor a dar a normas necessárias e imediatas estrangeiras. MARQUES DOS SANTOS chama a
estas regras, que definem em que circunstâncias a norma necessária e imediata deve ser aplicada,
“regras de conhecimento”.
• Quando tal não suceda, a aplicação da norma estrangeira tem de depender da sua vontade
de aplicação. Assim, em primeiro lugar, a própria norma material tem de querer alargar o seu
âmbito de aplicabilidade; depois, tem de haver uma conexão suficientemente estreita para que o
legislador aceite pôr de parte o método normal das regras de conflitos. A aplicação de uma norma
necessária e imediata passa sempre pelo crivo do juiz. Isto não significa que tenhamos de ter uma
regra igual no nosso direito, mas tem e haver uma mínima convergência valorativa para que
aceitemos pôr de lado o sistema de conflitos e aplicar esta norma.

Hoje, o art. 9.º do Regulamento de Roma I vem responder ao problema de aplicação das
normas necessárias e imediatas em matéria contratual, nos casos em que o contrato, pela aplicação
da lex causae, seja válido, mas haja uma norma de aplicação necessária e imediata que o torne ilegal.
O n.º 1 define “normas de aplicação imediata”, enquanto que o n.º 2 estabelece que as disposições do
regulamento não obstam à aplicação da lei do foro. Mais importante é o n.º 3, que estabelece que
“pode ser dada prevalência às normas de aplicação imediata da lei do país em que as obrigações decorrentes do
contrato devam ser ou tenham sido executadas, na medida em que, segundo essas normas de aplicação
imediata, a execução do contrato seja ilegal. Para decidir se deve ser dada prevalência a essas normas, devem
ser tidos em conta a sua natureza e o seu objecto, bem como as consequências da sua aplicação ou não
aplicação”. Ou seja, apenas se pode aplicar as normas de aplicação necessária e imediata estrangeiras

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

do país onde deveria ter lugar a execução do contrato, e tal aplicação depende de uma ponderação
do juiz.

- Jurisdicionalização do DIP –

Falamos da relevância do momento jurisdicional na determinação da lei aplicável. Para a


doutrina clássica, para resolver um situação jurídica internacional, devíamos encontrar a lei mais
próxima relativamente a cada uma das questões jurídicas, tarefa que é entregue ao legislador
através da construção de regras de conflitos. Só que é contra esta concepção que surge o movimento
de jurisdicionalização do DIP que se caracteriza por admitir que o foro e as suas leis constituam a
instância central para a resolução de problemas do DIP, em termos de estes poderem ser resolvidos
por aplicação das normas desta ordem jurídica, mas dá-se um maior relevo ao momento
jurisdicional, em termos de este apagar a operação da determinação - o problema central não é o da
escolha da lei, mas determinação da autoridade competente e limites da sua actuação. Esta ideia
manifesta-se em 3 planos:

1) Jurisdicionalização em sentido estrito. Há, de alguma maneira, uma absorção da questão dos
conflitos de leis pela questão dos conflitos de jurisdições. (Forum conveniens)
De acordo com esta jurisdicionalização, o foro e as suas leis são a instância central para a
resolução dos problemas de DIP - forum conveniens. E esse fórum conveniens aplicará a sua lei - lei do
foro - desde logo porque é a que a lei que conhece melhor e corresponde melhor aos seus modelos
de justiça.
Pode ser que por este modelo se chegue à conclusão que a lei do foro não é a mais adequada
para regular um certa relação jurídica – este problema é resolvido pela doutrina do fórum non
conveniens. Se a lei do foro não é a mais adequada, o melhor é o tribunal, que seria em princípio
competente, não decidir o litígio porque, aplicando a sua lei, a decisão não seria a melhor.
Encontramos esta absorção dos conflitos de leis pelos conflitos de jurisdição:

1.1) Na obra de EHRENZWEIG, que partia da ideia de "lex fori in fórum proprium".
1.2) Teoria das normas de conflitos facultativas – Próxima da teoria anterior, relativiza o papel
das regras de conflitos entendendo que estas são de aplicação facultativa. Há, pois, uma
preferência do judiciário sobre o legislativo, porque o juiz, quando fosse chamado a resolver
um caso, mesmo que se apercebesse que se tratava de um caso internacional que provocava
a competência de uma lei estrangeira, não estaria vinculado a aplicar a regra de conflitos se
as partes a não tivessem invocado. Ou seja, a obrigatoriedade da observância das regras de
conflitos ficaria dependente de uma manifestação da vontade das partes. Esta teoria surge
com o caso Bisbal (1960) e com Flessner que defendia que as regras de conflitos são
facultativas porque pode ser conveniente para as partes que elas não funcionem.

Estas duas teorias alargam o âmbito de aplicação material da lei do foro, conduzindo a uma
indiscriminada aplicação desta lei – pelo que têm de ser rejeitadas. A aplicação indiscriminada da
lei do foro, ainda que pudesse favorecer uma boa administração da justiça (é a lei que o juiz melhor
conhece), colocaria em causa a harmonia da segurança jurídica internacional, e consequentemente a

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

estabilidade das relações privadas internacionais. Daqui decorre também a colocação em paridade
das várias ordens jurídicas em contacto com o caso, que é posto em causa por esta perspectiva.

1.3) Certas Convenções da Haia - Encontramos jurisdicionalização no âmbito das convenções


da Haia do DIP em matéria de adopção internacional, protecção de menores e protecção dos
incapazes adultos. Em qualquer uma das situações, o tribunal competente aplicará a sua lei
interna.

No que toca a estas convenções, a crítica é mais atenuada porque o juiz é menos severo, já
que a sua liberdade se circunscreve apenas a certas matérias e aplicação da lei do foro é justificada.
P.e. Veja-se o mecanismo de protecção dos menores:
(1) Se o juiz quer aplicar medidas de protecção efectivas, deve ter uma grande familiaridade
com a lei que quer aplicar;
(2) Estes mecanismos de protecção exigem a intervenção de autoridades administrativas.
Ora, naturalmente estas autoridades têm menos facilidade na aplicação da lei estrangeira que os
tribunais, justificando-se que estas apliquem a sua própria lei.
(3) Por fim, como estamos face a matérias muito procedimentalizadas, a aplicação da lei
estrangeira competente pode supor a prática de actos desconhecidos do ordenamento da
autoridade. A melhor maneira de evitar estes problemas é aplicar a lei do foro.

2) Correlação ou alinhamento entre o fórum e o ius (coincidência fórum-ius)


A regra de conflitos deve ser formulada em termos de conduzir à aplicação da lei do Estado
cuja competência se começou por determinar. No fundo, isto conduz a uma aplicação da lei do foro,
mas apenas depois da designação antecipada da entidade competente para resolver o caso – ou seja,
temos aqui ainda uma opção de carácter conflitual, mas não no plano da determinação da lei
aplicável. Isto é estabelecido através da identidade dos elementos eleitos para a competência
judiciária e legislativa.
Esta sintonia entre o forum e o ius pode ser conseguida através de duas formas:
• Subordinação da competência legislativa à competência jurisdicional. Primeiro estabelece-
se a competência dos tribunais do foro, e depois manda-se aplicar as leis desse país, ou seja, onde os
tribunais de um país sejam competentes, aplica-se a lei do foro. (correlação fórum-ius) Expressa-se
no jurisdictional approach inglês ou no princípio do paralelismo alemão em matéria de acções
constitutivas e jurisdição voluntária.
• Subordinação da competência jurisdicional à competência legislativa. Primeiro determina-
se a lei competente, e em função da competência de uma lei fixa-se, em paralelo, a competência dos
tribunais desse país (competência do forum legis). Tem dois efeitos:
 Efeito positivo: a lei aplicável ao caso conduz à competência adicional dos
tribunais.
 Efeito negativo: embora os tribunais possam ser competentes, não vão
resolver o caso porque a lei aplicável é a estrangeira.

Há dois regulamentos onde estas perspectivas são visíveis: Regulamento 1346/2000 (sobre a
insolvência – art 3º e 4º, correlação fórum-ius) e Regulamento 650/2012 (sobre sucessões, art 4º, 5º, 7º-
A, 22º, caso de fórum legis).

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Esta correlação é directa6, intencional e o “ius” corresponde ao direito material a aplicar,


encontrando-se dentro do método de determinação da lei aplicável.
Sendo assim, não se confunde com algumas figuras como o princípio da territorialidade das
regras materiais; os casos de convergência não intencional; princípio da territorialidade das regras
de conflitos ou do DIP (IUS = DIP, sendo que cada Estado utiliza as suas regras de conflitos, o que
não significa que não tenha de atender ás regras de conflitos estrangeiras, em casos de conexão
subordinada ou reenvio) ou quando o IUS é o direito processual, ou seja, os tribunais aplicam o
direito processual do seu país, ainda que a lei material a aplicar seja estrangeira.

 Críticas
Apesar de, em certos casos, ser justificável recorrer à correlação forum-ius, não o podemos
fazer por sistema, uma vez que há uma diversidade de interesses e exigências que estão na base da
regulação dos conflitos de lei e de jurisdições.
• Quanto aos conflitos de leis, quer-se procurar a lei mais “adequada” a resolver o conflito, o
que pode assumir vários sentidos (para nós, mais bem colocada para resolver o litígio ante a
localização do facto, com algumas concessões à perspectiva material).
• Já nos conflitos de jurisdições, entram ideias de equidade processual, facilidade no acesso
à prova, justiça mais cómoda para as partes, etc. – ideias que frequentemente não têm reflexo no
conflito de leis.
• Para além disto, a aplicação da lex fori conduz à insegurança e instabilidade das relações
jurídicas, potenciando o forum shopping.

Poria, ainda, em causa o esquema de competências concorrentes.


• Pode haver conflitos de jurisdições. A concorrência é resolvida segunda uma regra
temporal: o tribunal competente vai ser o tribunal demandado em primeiro lugar.
• A existência de competências concorrentes é favorável aos particulares, que desta forma
têm várias alternativas no que toca ao seu acesso à justiça. Claro que há matérias em que isto não
pode valer, como aquelas em que a competência é exclusiva.
• Todo este esquema de competências concorrentes seria posto em causa com a correlação
fórum-ius: ou deixava de haver competências concorrentes; ou, se houvesse, teríamos o problema do
forum shopping. Se a lei determinada como competente diz que é o tribunal desse país competente,
isto é incompatibilizável com as vantagens de um sistema de competências concorrentes.

3) Concepção metodológica própria do método da referência ao ordenamento jurídico


competente. (Picone)

Para Picone, há vários métodos possíveis para resolver o problema das relações jurídico-
privadas internacionais:
1) Método Clássico ou conflitual - escolha de lei através da utilização de regras de conflito.
2) Método jurisdicional - Usado nos países de Common Law através da jurisdictional approach. O
tribunal não aplica lei estrangeira, devendo resolver-se previamente o problema da competência
internacional e depois então, escolhido o tribunal competente, deve este aplicar a lei do foro. Tem

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Distingue-se dos processos indirectos (retorno, casos de aplicação subsidiária da lei do foro); dentro dos processos directos
reconhecemos as NANI’s, Normas de DIP material e correlação fórum-ius.

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a vantagem de que o tribunal aplica a lei que conhece melhor - princípio da boa administração da
justiça. Porém, não permite considerar separadamente as razões que estão na base da escolha da
regra de conflitos e as razões que estão na base da escolha das normas de competência
internacional; e o método jurisdicional exige que exista um único tribunal competente para
decidir determinada matéria. Exige-se, portanto, que os Estados combinem qual é o único país
competente.
3) Método dos conflitos interestaduais - Utilizado nos EUA para resolver os conflitos de leis dos
diferentes estados.
4) Método material de determinação da lei aplicável - escolha da lei em função do resultado, isto é,
regras de conexão substancial ou material.
5) Método da referência ao ordenamento jurídico competente - Quais as suas características?

O objectivo deste método é evitar as situações jurídicas claudicantes, ou seja, aquelas


situações que, constituídas no estado do foro, não vêem o seu reconhecimento assegurado nas
ordens jurídicas onde os seus efeitos se deverão essencialmente produzir. No fundo, visa garantir
que a situação jurídica criada no Estado do foro possa ser reconhecida no quadro da ordem ou
ordens jurídicas estrangeiras em que ela está destinada a localizar-se e a desenvolver-se, o que
implica que a validade de uma situação jurídica a criar no Estado do foro seja apreciada de acordo
com a avaliação feita pela ordem ou ordens jurídicas tidas como os ordenamentos de referência.

Podemos identificar quatro ideias principais caracterizadoras deste método:


• É necessário fazer uma consideração global do ordenamento ou ordenamentos jurídicos
envolvidos, ou seja unitária e simultaneamente todas as regras relativas às situações internacionais
(competência dos tribunais e das autoridades, escolha de lei e reconhecimento das situações
jurídicas estrangeiras). PICONE critica a perspectiva clássica por conferir demasiado relevo à
operação da determinação da lei aplicável, fazendo apenas uma “referência parcial” aos sistemas
estrangeiros, na medida em que se limitaria a convocar a disciplina jurídica aplicável.
• Assim, o próprio conceito de conflito aparece configurado de modo diverso – não
enquanto conflito de leis, mas enquanto conflito entre ordens jurídicas consideradas no seu
funcionamento global.
• Por outro lado, apresentava ainda uma noção de harmonia jurídica internacional distinta
da nossa – não apenas enquanto uniformidade de lei aplicável, mas enquanto continuidade da
situação jurídica. Ma perspectiva do autor, este princípio significa que uma relação jurídica que
tenha sido criada possa ver os seus efeitos a manterem-se efectivos sem que uma outra ordem, que
não tenha relações fortes com o caso, possa colocar em causa a produção desses efeitos.
• Finalmente, este método supõe que a situação jurídica seja apreciada, não apenas do
ponto de vista do ordenamento do foro, mas de uma ou mais ordens jurídicas consideradas na sua
totalidade.

PAOLO PICONE convoca vários exemplos normativos onde é patente este método – apesar
de, hoje, a maior parte deles ter desaparecido, “continuam a existir casos em que tal metodologia é
utilizada, isto é, em que a criação de uma situação jurídica do Estado do foro está dependente da
apreciação de uma ou mais ordens jurídicas de referência consideradas no seu funcionamento

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global”. Isto sucede nos casos em que o valor da continuidade é especialmente relevante. (p.e. caso
da adopção internacional e art. 31º/2 CC)
A doutrina considera que esta posição não está tão afastada da perspectiva clássica como se
costuma pensar. O que está em causa é uma perspectiva localizadora – embora o que temos que
determinar não seja a lei aplicável, mas o ordenamento jurídico de referência, continuamos a ter
aqui um problema de escolha. Este método é ainda de difícil generalização e difícil operatividade.

4)_O Direito Internacional Privado Material


Estamos a pensar na criação de normas especiais de direito material que regulam as relações
privadas internacionais. O antecedente histórico destas normas é o chamado é o ius gentium
romano. Quais os argumentos que se invocam para sustentar a criação destas normas materiais
especiais do DIP?
1) Especificidade das relações internacionais - a sua especificidade não deve ser resolvida tendo
em vista as normas criadas para aplicação interna.
2) O método conflitual é incerto, dificultando o desenvolvimento do comércio internacional. O
sistema de regras de conflitos é complexo e não se dá facilmente a conhecer aos particulares,
sobretudo na sua aplicação e interpretação.
3) Em terceiro lugar, invocam a ideia da deslocalização espacial das situações internacionais. Há
situações internacionais que não se pode dizer que se localizam num ou noutro estado, sendo
verdadeiramente transnacionais e não devendo ser submetidas à lei de um determinado estado.

Onde podemos encontrar normas de DIP material?

1) Normas de origem legislativa interna (ex: Código de Comércio internacional da


Checoslováquia, de 1963. - claro que este não era um corpo de normas que dispensassem o
método conflitual, já que as normas só se aplicavam se o direito checoslováquio fosse o
competente por via da regra de conflitos; art. 2223º CC, 51º/2 CC, 54º/2 CC)
2) Norma de origem convencional e regulamentar (art. 3º Roma I)
1) Leis uniformes (LULL e Lei Uniforme dos Cheques)
2) Convenções de unificação (Estas criam normas materiais especiais para as relações
internacionais. P.e. Convenção de Varsóvia sobre o transporte aéreo internacional)
3) Normas de origem jurisprudencial (ex: jurisprudência francesa, nomeadamente em matéria de
arbitragem comercial internacional)
4) Normas de origem consuetudinária (ex: lex mercatoria)

Conclusões/ Apreciação Crítica:


1) Vinculação espacial da lei: é errado supor que a opção pelas normas de DIP material
eliminaria o problema da conexão e da escolha da lei. Não podemos esquecer o princípio da não
transactividade, pelo que o DIP material de um país, para ser aplicado, teria de ter uma conexão
com as situações. Este princípio inviabiliza a tentativa de substituir a lei interna por regras de DIP
material que se aplicassem independentemente de qualquer ligação espacial. Isto ocorre mesmo nas
convenções internacionais. Por ex., a LULL não dispõe sobre a capacidade de entrar numa relação
cambiária. Ou seja, há matérias em que seria impossível querer regular independentemente de
ligação espacial, tendo-se aí criado DIP conflitual.

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2) Ausência de especificidade das situações: os defensores do DIP material defendiam que


as relações internacionais são específicas, e por isso têm de ser reguladas por leis específicas. Porém,
foi-se apercebendo que a relação jurídica privada não apresenta especificidades estruturais pelo
simples facto de ser internacional. Pode, de facto, haver situações em que pode haver esta
especificidade, quando se chama leis contraditórias entre si; porém, o DIP conflitual tem
mecanismos que servem para resolver estes problemas. Ou seja, os sistemas de DIP tradicional
contêm instrumentos que permitem levar em conta a internacionalidade das relações jurídicas (p.e.
caso das normas espacialmente auto-limitadas). Há mesmo quem defenda que, na interpretação do
direito interno, se deve tomar em consideração a internacionalidade da relação jurídica.
3) Primazia da harmonia jurídica internacional/insegurança jurídica. A tendência para
resolução do problema do DIP através da elaboração de soluções de índole material parte do
pressuposto da inadequação dos resultados a que conduziria a via conflitual, ainda que o abandono
desta se faça em prejuízo da harmonia jurídica internacional. Porém, a nossa opção dá primazia à
harmonia jurídica internacional. Por outro lado, se se considerar que a inadequação do método
conflitual é aferida em concreto, cabendo ao juiz descobrir normas materiais ajustadas à natureza do
caso, tal geraria um elevado grau de insegurança e imprevisibilidade.

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7. Fundamento geral do DIP. Princípios estruturantes do DIP e principais valores atendíveis.


7.1. A justiça do DIP como justiça “formal” ou conflitual.

A justiça do DIP é uma justiça de cunho formal, uma vez que os valores de certeza,
segurança e estabilidade têm primazia. Isto porque ao DIP compete tutelar as relações jurídicas
plurilocalizadas, caracterizadas por uma particular instabilidade que importa mitigar.
Para BAPTISTA MACHADO, a especificidade da justiça do DIP é patente na configuração
da regra de conflitos, na sua hipótese e estatuição. No direito de conflitos, ao contrário do direito
material, não é em atenção ao tipo ou natureza dos factos que o legislador determina a estatuição,
mas em atenção à localização desses factos; no que toca á consequência jurídica, esta traduz-se na
atribuição da competência para regular aqueles factos a um dado sistema de normas. Ou seja,
mantém-se uma prioridade na atendibilidade à localização do facto e não ao resultado material
pretendido.
Sendo assim, o Direito de Conflitos, não tendo a ver com essa valoração de justiça material,
só pode propor-se um escopo de justiça formal, cuja actuação fundamentalmente se traduz em
promover o reconhecimento dos conteúdos de justiça material que ‘impregnam’ os casos da vida
imersos em ordenamentos de comunidades jurídicas estranhas, a fim de corresponder à natural
expectativa dos particulares.

7.2. Princípios estruturantes de um sistema de DIP de matriz conflitual

a) Princípio da harmonia jurídica internacional

Terá sido desenvolvido no século XIX, por SAVIGNY. Este princípio traduz a ideia da
uniformidade da lei aplicável, isto é, a ideia de que, independentemente do lugar onde uma relação
jurídica está a ser avaliada, a lei aplicável deverá ser sempre a mesma. O princípio da harmonia
jurídica internacional responde à intenção primeira do direito de conflitos, que é assegurar a
continuidade e a uniformidade de valoração das situações plurilocalizadas.
Para tal, seria necessário que todos os Estados partilhassem o mesmo DIP; ora, não existe um
DIP mundial, unitário, o que não significa que o legislador não deva procurar, à sua medida,
contribuir para este universalismo. Assim, o legislador nacional deve criar regras de conflitos que
sejam susceptíveis de reconhecimento universal: se o legislador interno, no momento de elaborar
essas normas, estiver atento às soluções geralmente admitidas e se se esforçar sempre por adoptar
critérios que por sua razoabilidade sejam verdadeiramente susceptíveis de se tornar universais, esse
legislador estará realmente imbuído do autêntico espírito do DIP. Há algumas regras que são
tendencialmente universais: por ex., a aplicação da lei do lugar da situação do imóvel é uma
conexão que, embora não esteja numa regra de DIP universal, existe na maioria dos Estados.
Destaca-se ainda a celebração de convenções internacionais, como na Conferência de Haia sobre
DIP, e as tentativas, a nível regional, de uma unificação das regras de conflitos. Veja-se o caso da
UE, que busca a comunitarização do DIP, através de múltiplos regulamentos que gozam de
aplicabilidade directa e primado sobre o direito interno contrário. São de aplicação universal, o que
significa que se aplicam tanto nas relações entre EM’s, como em relações com Estados Terceiros.

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Qual a importância deste princípio? Facilmente se concebem os inconvenientes que resultam do


facto de uma situação jurídica não ser submetida em todos os países à mesma lei:
 As relações privadas internacionais caracterizam-se, por definição, pela sua instabilidade,
pela ligação a várias ordens jurídicos. A ambiguidade da lei aplicável geraria uma ainda maior
incerteza, pelo que a harmonia jurídica internacional é uma das melhores formas de garantir a
estabilidade e continuidade das relações internacionais privadas, a certeza e segurança jurídicas,
garantindo as expectativas legítimas dos particulares.
 A partir do momento em que existem várias leis aplicáveis a uma questão jurídica concreta,
potencia-se o forum shopping. O princípio da harmonia jurídica internacional evita assim este
fenómeno.

Porém, é impossível construir um sistema de DIP baseado apenas neste princípio, uma vez que
este não resume toda a axiologia do DIP – se só ele estivesse em causa, o conteúdo das normas de
conflitos seria indiferente.

b) Princípio da harmonia material

Exprime uma ideia de unidade do sistema jurídico. Dentro de uma mesma ordem jurídica, as
contradições não são toleráveis: um sistema jurídico em coerência não pode ter normas
contraditórias entre si. Este princípio não é específico do DIP, é comum a qualquer matéria. Esta
ideia favoreceria que a uma mesma questão jurídica aplicássemos a mesma lei. Ora, a harmonia
material está em tensão com a existência de inúmeras regras de conflito para vários sectores
normativos, que fraccionam a relação jurídica em função das várias questões que ela levanta. Isto
porque para cada questão pode haver uma lei mais bem colocada.
Cada vez mais temos regras de conflito autonomizadas para cada questão jurídica – há uma
tendência actual especialização. O legislador vai ter de ponderar, para cada sector, quão longe pode
ir na especialização sem pôr em causa a harmonia material. FERRER CORREIA diz que não é
possível escolher um interesse prevalecente, só podendo ser resolvido em face das regras de conflito
e das matérias jurídicas em questão: o legislador terá de fazer a escolha em cada matéria, tentando
que a especialização seja feita sem detrimento da harmonia material.

c) Princípio da efectividade ou melhor competência

Significa que a lei com melhor competência é a do Estado que esteja em melhores condições
para impor o acatamento dos seus preceitos.
Podemos ter dificuldades em aplicar uma sentença que aplique lei estrangeira. Isto tem
importância sobretudo nos imóveis: quaisquer actos jurisdicionais, ou qualquer acto de execução de
uma sentença que queiramos pôr em prática, se o devedor não estiver de acordo em cumprir,
necessita sempre da intervenção do Estado que tiver poderes coercivos naquele espaço. E
dificilmente um Estado aceitaria desencadear a sua máquina coerciva em aplicação de uma regra
que não a sua.
Também quanto ao sistema sucessório: há sistemas que dividem a sucessão mobiliária, ao qual
aplicam a lei pessoal; e a sucessão imobiliária, na qual é competente a lei do lugar do imóvel. Isto
quando, à partida, a lei aplicável deveria ser a lei pessoal.

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d) Princípio da paridade de tratamento das ordens jurídicas.

O DIP deve colocar as várias ordens jurídicas em pé de igualdade, de tal modo que uma lei
estrangeira seja considerada competente sempre que a lei do foro, em circunstâncias análogas, fosse
também ela considerada competente. A regra de conflitos bilateral é um instrumento perfeito para
assegurar este princípio, uma vez que tem como função designar por competente, nas mesmas
condições, quer a lei do foro, quer a lei estrangeira.
No entanto, quando o juiz aplica uma lei estrangeira, aumenta o risco de erro judiciário. Assim,
podemos dizer que a boa administração da justiça favoreceria, em tese, a aplicação da lei do foro, ou
seja, existe uma tensão entre o princípio da paridade de tratamento e o interesse da boa
administração da justiça.
Porém, se este interesse fosse levado ao extremo, cada Estado aplicaria a sua própria lei, o que
seria incomportável para as relações jurídicas internacionais.

e) Princípio da boa administração da justiça

O DIP deve escolher a lei que o juiz conhece melhor, de modo a evitar o erro judiciário. Entre as
várias leis possíveis, o DIP devia escolher a lei do foro, isto é a lei do país onde se coloca o problema
– porque é a lei que o juiz melhor conhece. Este princípio é claramente contrário ao anterior, e, por
isso, FERRER CORREIA considera que este só terá relevância quando os demais princípios já
estiverem satisfeitos.

7.3. Conflitos entre princípios

Por vezes, podem surgir conflitos entre estes vários princípios – um exemplo claro é entre o
princípio da harmonia jurídica internacional e a harmonia material, na regulação da questão prévia.
Por vezes, para resolver uma questão principal, é necessário resolver uma questão prévia, decisiva
para a regulação da questão principal.
Qual é a regra de conflitos que nos diz qual é a lei aplicável à questão prévia para a resolução da
questão principal? Há duas respostas possíveis:
• É a regra de conflitos do foro – perspectiva da conexão autónoma. No fundo, a lei
aplicável à questão prévia é encontrada tal como se fosse uma questão principal, autónoma. Pode
favorecer uma ideia de harmonia material, pois estabelecemos as várias conexões de modo
congruente.
• É a regra de conflitos da lex causae, da lei competente para a questão principal –
perspectiva da conexão subordinada.

Esta segunda perspectiva é claramente favorável à harmonia jurídica internacional:


independentemente do lugar onde é colocada a questão prévia, esta é resolvida como se se tivesse
levantado no Estado da questão principal. Mas podem decorrer daqui resultados absurdos: em tese,
ao chamarmos a lei competente para questões diferentes que vão ser ambas necessárias, estamos a
potenciar as hipóteses de contradições.
Em Coimbra, FERRER CORREIA e BATISTA MACHADO defendiam que devemos partir da
segunda perspectiva para chegar à primeira. Favorecem a conexão subordinada, mas aceitam em
certos casos que se façam concessões à conexão autónoma. Este é um ponto em relação ao qual a
doutrina se encontra muito dividida.

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7.4. Princípios de política legislativa que devem presidir à eleição do elemento de


conexão.

Vimos os princípios gerais que devem informar o sistema de DIP como um todo; porém,
estes princípios não nos conduzem a soluções concretas dos conflitos de leis. É necessário averiguar
quais os interesses que subjazem à escolha do elemento de conexão.
Para FERRER CORREIA, devemos seguir aqui uma directiva geral – “a lei aplicável será a que
tiver uma conexão mais forte ou estreita com a relação ou situação jurídica em causa, tendo em conta uma
ponderada avaliação dos interesses que se apresentem como prevalecentes no sector considerado”. Ou seja,
mediante o sector normativo em causa, o legislador de conflitos deve fazer uma ponderada
avaliação das exigências em causa, sendo em função disso que escolhe as conexões.
Ora, na determinação do elemento de conexão entram em jogo interesses individuais e
interesses colectivos.

• Interesses individuais:
 Justificam que exista a conexão da lei pessoal, uma vez que o indivíduo tem interesse em
que exista uma lei com certa estabilidade ou permanência, que rege as suas relações jurídico-
pessoais. O principal campo de incidência destes interesses é o das matérias de carácter pessoal
mais vincado, como os direitos de personalidade, estado e capacidade, relações de família e
sucessões mortis causa. Por ex., o art. 25.º do CC contém esta afirmação da lei pessoal.
 Por outro lado, o interesse individual está na matéria das obrigações contratuais, na qual
existe, à partida, uma liberdade de escolha. Visa-se aqui facilitar o comércio jurídico: se os
contractos produzem efeitos inter partes, porque não deixar as partes escolher a lei que regula a sua
relação? Ver art. 41.º do CC e, mais importante na prática, o art. 3.º do Regulamento Roma I. Há
uma tendência cada vez maior para esta autonomia conflitual, extravasando o seu âmbito
tradicional – obrigações extracontratuais, matéria de sucessões, etc.

• Interesses gerais: reportam-se a pessoas indeterminadas ou ao público em geral, e aconselham o


uso de conexão de natureza puramente objectiva.
 São estes interesses que subjazem à escolha da conexão do lugar da situação dos bens nos
direitos que produzem efeitos erga omnes (direitos reais), uma vez que estes interessam não apenas
às partes. Ver art. 46.º.
 Outro ponto em que têm prevalência os interesses gerais é naquelas normas que visam a
protecção do comércio jurídico local. Ver art. 13.º do Regulamento de Roma I, correspondente ao
art. 28.º do nosso CC.

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PARTE GERAL

1. A regra de conflitos no seio de um DIP de matriz conflitual – estrutura e função.


1.1. Elementos estruturais da regra de conflitos.

As normas de conflitos não resolvem directamente a questão jurídica, apenas nos indicam a
ordem jurídica que vai dar resposta a esta questão: delimitam um sector ou matéria jurídica e
indicam, de entre os elementos da factualidade concreta, aquele que permitirá apurar a lei aplicável.
A norma de conflitos é constituída por três elementos:
 Conceito-quadro;
 Elemento de conexão;
 Consequência jurídica.
Os arts. 14.º a 65.º do CC prevêem um conjunto de regras de DIP, apesar de muitas delas
estarem substituídas por convenções e, sobretudo, regulamentos. O DIP tem vindo a sofrer uma
forte europeização, que tem implicações importantes.

1)_Conceito-quadro: é o elemento da regra de conflitos que circunscreve uma matéria ou uma


questão jurídica específica. Para esta questão, a regra de conflitos vai apontar a conexão decisiva,
sendo através dessa conexão que ficaremos a saber qual a lei aplicável. Ou seja, tem por finalidade,
definir o âmbito de aplicação da regra de conflitos e recorta as normas da lei competente que vamos
aplicar.
No fundo, o conceito-quadro, está para a regra de conflitos, como a hipótese está para a norma
jurídica. No entanto, as hipóteses das normas materiais descrevem situações da vida; as regras de
conflitos não descrevem situações da vida, senão que descrevem conceitos técnico-jurídicos.
Note-se que pode haver dificuldade em delimitar o âmbito normativo das várias regras de
conflitos. (problema da qualificação)

Teorias sobre o objecto do conceito-quadro:


_Há quem entenda que o conceito-quadro designaria a relação jurídica. Não é a posição que
se deve seguir porque a relação jurídica apenas surge com base num ordenamento jurídico-material
determinado, que a norma de conflitos trata de individualizar.
_Há quem entenda que o conceito-quadro se refere directamente a uma relação ou situação da
vida – a puros factos. Também não é de aceitar, porque a cada situação de facto podem corresponde
problemas de diferentes natureza, e a cada um desses problemas uma norma de conflitos distinta.
_Há quem entenda que o conceito quadro se refere a uma situação jurídico privada – não se
segue esta teoria pelas razões apresentadas na primeira teoria.
_Há quem entenda que o conceito-quadro designa e circunscreve um certo grupo, classe ou
categoria de normas materiais, sendo as normas materiais o objecto ou conteúdo da regra de
conflitos. É a posição de BAPTISTA MACHADO, porque entende que as regras de conflitos, sendo
normas sobre normas, servem para designar ou circunscrever o tipo de matérias ou de questões
jurídicas dentro do qual é relevante ou decisivo para a fixação da lei competente o elemento de
conexão a que a mesma regra de conflitos se refere. Há-de pois reportar-se a matérias ou questões
jurídicas e não a factos.

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2)_Elemento de conexão: é o elemento da situação de facto que é escolhido pelo legislador, na


regra de conflitos, para adjudicar a uma certa ordem jurídica a regulação de uma questão jurídica
que foi circunscrita pelo conceito-quadro. Este elemento pode ser extraído de várias características
da relação jurídica. É em função dos interesses que se fazem valer nos vários sectores do DIP que se
escolherá o elemento de conexão, optando-se ou por um sistema de conexão única, ou por um de
conexão múltipla. Os elementos de conexão podem ser:
o Pessoais (determinam a lei atendendo aos sujeitos da relação jurídica. P.e.
Nacionalidade, residência, vontade das partes) ou Reais (olha para os lugares onde a
relação jurídica se desenrola. P.e. Lugar da situação da coisa, lugar onde decorre a
actividade causadora do prejuízo, local da celebração do casamento.)
o Factuais (São aqueles que conseguimos concretizar sem atender a dados jurídicos. Ex:
lugar da situação da coisa, residência habitual) ou Jurídicos (São aqueles que nós
precisamos previamente aplicar uma norma para o poder concretizar. Ex: nacionalidade
e domicílio legal)
o Móveis (A sua concretização pode vir a ser alterada. Ex: residência, nacionalidade) ou
Imóveis (A sua concretização não pode vir a ser alterada. Ex: Lex rei sitae). Note-se que
o lugar da situação da coisa tanto pode ser um elemento móvel ou imóvel, dependendo
de se a coisa é móvel ou imóvel.

3)_Consequência jurídica: é a declaração de aplicabilidade dos preceitos jurídico-materiais da


lei designada pelo elemento de conexão. Numa regra de conflitos bilateral, a consequência jurídica é
enunciada em termos genéricos; em rigor, a uma norma de conflitos não corresponde uma norma
jurídica, mas tantas quantos os ordenamentos existentes. Neste sentido, o chamamento de várias
leis em simultâneo pode gerar problemas de coordenação na aplicação das várias leis.

1.1.2. Tipos de conexão

Algumas regras de conflitos têm apenas um elemento de conexão; porém, há outras regras de
conflitos que, por variadas razões, têm dois ou mais elementos de conexão. Faz-se aqui uma
classificação dos elementos de conexão em conexão única ou conexão múltipla.
1) Regras de conflito de conexão única ou simples: têm apenas um elemento de conexão.
Note-se que o sistema de conexão única nem sempre conduzirá à determinação de uma só lei: há
factores de conexão que podem levar por duas ou mais vias. Neste caso, é necessário escolher a lei
que melhor corresponde ao sentido da regra de conflitos. Ou seja, o critério que deverá presidir a
esta forçosa especificação ulterior do elemento de conexão não poderá ser outro senão aquele
mesmo que levou à escolha do factor utilizado pela norma de conflitos. Ex: art. 30º e 50º CC.
2) Regras de conflito de conexão múltipla ou complexa: têm dois ou mais elementos de
conexão. Consoante os interesses em causa, os elementos de conexão articulam-se entre si de modos
diversos:

• Alternativa: os interesses a que o DIP responde podem exigir o recurso a duas ou mais
conexões – por ex., para garantir a validade de um acto, proteger certas liberdades ou facilitar a
constituição ou extinção de certa situação jurídica. Quando o legislador pretende obter um
determinado resultado, pode indicar dois ou mais elementos em alternativa, vindo a ser escolhida a

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lei que conduza ao resultado tido a priori como mais justo. Subjaz à conexão alternativa o
favorecimento de um determinado resultado, o que demonstra que as regras de conexão nem
sempre são rígidas e formais. É exemplo a norma do art. 36.º CC e art. 11º/1 RRoma I.
Note-se que, por vezes, o legislador desiste da conexão alternativa, consagrando a
competência exclusiva de uma das leis designadas, quando esta lei formule certas exigências – art.
65.º/2. Está aqui em causa a harmonia jurídica internacional.

• Cumulativa7: no pólo oposto da conexão alternativa, encontramos a conexão cumulativa.


Trata-se agora de subordinar a produção de certo evento jurídico ao acordo de duas leis, ou seja, à
satisfação dos requisitos estabelecidos em cada uma delas, com vista a evitar a criação de situações
que não possam aspirar ao reconhecimento num dos Estados com elas mais estreitamente conexos
(situações coxas ou claudicantes). O escopo aqui visado é, portanto, a harmonia jurídica internacional.
Ex: art. 60º CC.
FERRER CORREIA defende que este sistema não é recomendável como critério geral, e dele
só encontramos raras aplicações nas legislações mais recentes. No fundo, promete mais do que dá
(BATIFOL): promete aplicar mais do que uma lei, para depois na prática só aplicar a lei mais
restritiva. Assim, a doutrina da aplicação cumulativa levantaria graves obstáculos à actividade
jurídica internacional – dificultando o reconhecimento das relações jurídicas.

• Distributiva: aqui existe uma distribuição por ordens jurídicas diversas das condições de
validade do mesmo acto. No fundo, apresenta dois ou mais elementos de conexão, mas aplica as leis
a partes diferentes da relação jurídica. É o caso do art. 49º CC. A primeira razão para a sua
utilização é um propósito de lei formal, aplicando a cada sujeito a lei que está mais próxima dele;
Para além disso facilita a constituição da relação jurídica.

• Subsidiária: como forma de prevenir a hipótese de faltar o elemento primário de conexão, a


norma de conflitos de conexão subsidiária designa o elemento sucedâneo a que tal norma recorre.
Pode utilizar-se o mesmo sistema quando se torne impossível averiguar o conteúdo do direito
estrangeiro ou quando não se consiga determinar o elemento de conexão (art. 23.º/2). É exemplo a
norma e conflitos do art. 52.º CC. Porque existe este sistema? Para evitar a aplicação da lei do foro
que será aplicada apenas quando não se consiga concretizar o elemento de conexão previsto na
regra de conflitos.

1.1.3. Relevância do factor tempo no funcionamento das regras de conflitos.

Encontramos aqui três problemas:


• Sucessão de regras de conflito no tempo.
• Conflitos móveis.
• Sucessão de regras materiais no tempo.

7
O sistema de conexão múltipla cumulativa é distinto da cumulação de conexões! A cumulação de conexões
é um expediente em que se indica uma única lei que só é relevante se for comum a duas partes. É aquela
figura de quando a regra de conflitos diz "nacionalidade comum dos cônjuges", que só é relevante se for das
duas partes.

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1.1.3.1. Sucessão de regras de conflito no tempo

O problema surgiu no início do século passado, com a entrada em vigor do Código Civil
alemão (BGB), que foi acompanhado de um conjunto de regras de conflitos. Colocou-se assim a
questão de saber se estas regras de conflitos se aplicam a factos passados ou somente para o futuro.
Este problema não se coloca se a regra de conflitos nova tiver uma norma transitória,
indicando quando é que esta se aplica no tempo. E se não houver norma transitória?
A posição tradicional diz que se aplica a regra de conflitos antiga, para defesa da protecção
da confiança, já que as normas jurídicas não podem ter eficácia retroactiva. (Zittelmann; Tese de
Lisboa)
Porém, KAHN, BAPTISTA MACHADO e FERRER CORREIA consideram que o princípio
da não retroactividade das normas jurídicas assenta no facto de a norma jurídica ser uma regra de
conduta, logo aplica-se apenas às normas materiais. Ou seja, é a natureza da norma enquanto
norma material que conduz a que digamos que tem de ser limitada no espaço e no tempo; já as
regras de conflito não visam orientar condutas humanas, tratando-se de “normas sobre normas”.
Assim sendo, se a razão da limitação da lei no tempo é o seu carácter jurídico-material, com que
fundamento vamos limitar temporalmente a vigência das regras de conflito? Não há razões para o
fazer, logo a nova regra de conflito deve aplicar-se a factos passados. Só assim se alcança maior
justiça conflitual.
Porém, pode levantar-se um problema: os particulares podem consultar as regras de conflito
para escolher a lei aplicável. Aqui, a regra de conflitos funciona indirectamente como uma regra
material e não como uma pura regra de conflitos. Poderá o particular exigir que se aplique a antiga
regra de conflitos, uma vez que conformou o seu comportamento?
Sim: entende-se que a regra de conflitos normalmente actua como pura norma decisória,
mas pode, em certas circunstâncias, actuar como norma material. Se assim for, a regra de conflitos
deve ser encarada como norma material e já se aplicam as normas do direito material quanto à
sucessão de normas.
É, no entanto, necessário que, no momento da constituição jurídica, o particular tenha algum
contacto com a ordem jurídica portuguesa (foro). Esta possibilidade de ter em consideração a regra
de conflitos como norma material pressupõe alguma ligação fáctica com a ordem portuguesa, caso
contrário não temos nenhum indício que nos permita concluir que a regra conformou o
comportamento do particular. A aplicabilidade da antiga regra de conflitos pressupõe uma conexão
apreciável com a ordem portuguesa no momento da constituição da relação jurídica.

1.1.3.2. Conflitos móveis

O problema do conflito móvel é suscitado por uma alteração na concretização do elemento


de conexão (também recebe o nome de sucessão de estatutos), e consiste em determinar qual a
influência que poderão exercer em situações jurídicas já existentes as mutações verificadas nas
circunstâncias de facto ou de direito em que se funda a determinação da lei aplicável – trata-se de
um “deslocação da relação jurídica”.
Imaginemos que o elemento de conexão é a nacionalidade, e num momento o sujeito tem a
nacionalidade A e no outro a nacionalidade B (renunciando à A). A regra de conflitos mantém-se igual, o
que muda é a concretização do elemento de conexão. Daqui decorre, claro, que só se coloca o

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problema dos conflitos móveis perante uma conexão variável ou móvel (por ex., o lugar da situação
das coisas imóveis é uma conexão constante).

Como se resolve este problema? Temos duas hipóteses: ou o legislador resolve este
problema, ou não resolve.
1) Em relação à primeira hipótese, o legislador pode resolver o problema dos conflitos
móveis de duas maneiras:
• Através da imutabilidade/cristalização no tempo dos efeitos já produzidos, segundo o
estatuto antigo. É o que sucede no art. 29.º do CC – uma mudança do estatuto pessoal não prejudica
a maioridade adquirida segundo a lei anterior. Há aqui uma intenção de protecção do comércio
jurídico.
• Através de uma repartição do âmbito de aplicação dos vários estatutos. O exemplo
paradigmático é o art. 488.º CSC.

2) Já na segunda hipótese, se o legislador não resolveu este problema, temos de interpretar a


regra de conflitos e, tendo em conta a sua teleologia, saber qual o elemento relevante. Isto tem de ser
feito norma a norma. No entanto, a doutrina avança alguns critérios, quer no âmbito do estatuto
pessoal, quer no estatuto real.

Estatuto pessoal:
• Em primeiro lugar, é preciso exceptuar aqui o regime das relações dos cônjuges
respeitantes a convenções antenupciais e regimes de bens, uma vez que o legislador resolveu aqui o
conflito móvel – no art. 53.º. Este tipo de conexões imobilizadas não podem colocar problemas de
conflito móvel.
• O problema coloca-se em relação ao art. 52.º, que trata da relação matrimonial. Nestas
relações, estão abrangidos não só efeitos pessoais, como efeitos patrimoniais independentes do
regime de bens. Novamente, o legislador não resolve aqui o problema dos conflitos móveis; logo,
qual é o momento relevante? Para FERRER CORREIA, é aqui relevante o carácter voluntário da
adesão a uma nova comunidade (pela nacionalidade); logo, é por isso que se entende que a nova lei
deve ser aplicável, não apenas à constituição de relações novas, mas também aos efeitos decorrentes
de relações jurídicas duradouras (neste caso, já constituídas) existentes antes da mudança. Ao
contrário do art. 49.º, já não estão em causa as expectativas em relação à validade de um acto,
aplicando-se a lei nova.
• Porém, note-se que em relação à validade de um acto, como o casamento, aplica-se o art.
49.º, em relação ao qual se podem levantar conflitos móveis. O legislador não resolve este problema,
porém, o momento que faz sentido é o da celebração do casamento. Quando se trata da validade de
um acto jurídico celebrado, faz sentido dar relevância à concretização da conexão existente à data
desta celebração – é a maneira de respeitar as únicas expectativas possíveis dos particulares –
devendo aplicar-se, pois, a lei velha. Atenção que esta norma só se refere ao momento em que se
institui a relação.

Estatuto real: quanto ao estatuto real, a regra é a lex rei sitae, art. 46.º, que se justifica por interesses
gerais do comércio. Porém, que dizer se a coisa é movimentada? A ideia aqui é que há interesses do
comércio jurídico local que faz com que se deva dar preferência à lei actual da coisa, em nome da

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certeza das transacções que sobre ele venham a realizar-se. Porém, não se pode ignorar direitos
adquiridos no momento da constituição. Em suma, a perspectiva tradicional é a de que se aplica o
estatuto antigo à constituição e aquisição dos direitos, mas aplica-se a lei do estatuto novo ao
conteúdo e exercício desses direitos.

1.1.3.3. Sucessão de regras materiais no tempo

O problema coloca-se quando a regra de conflitos diz que uma lei estrangeira é competente,
mas nessa lei estrangeira houve uma sucessão de regras materiais. Aplica-se o direito material
antigo ou o direito material novo? Deve ser o direito transitório da lei aplicável (lex causae) a
responder a este problema – art. 23º CC, que diz que devemos interpretar a lei estrangeira dentro do
sistema a que pertence.
Poderia em abstracto admitir-se a opção pelo direito intertemporal do foro; porém, esta
solução não estaria em consonância com o sentido da atribuição da competência a um direito
estrangeiro para a regulamentação de uma situação plurilocalizada.
Porém, a esta doutrina devem admitir-se duas ressalvas (FERRER CORREIA):
• Pode suceder que, em face da regra de conflitos, faça sentido aplicar o direito antigo ou o
direito novo. Tudo depende da interpretação da regra de conflitos.
• Também pode intervir aqui a ordem pública internacional, algo que devemos ter sempre
em conta.

1.1.2. Função da regra de conflitos

As regras de conflitos podem ser bilaterais, quando indicam como competente quer a lei do
foro, quer a lei estrangeira; ou unilaterais, quando indicam como competente apenas uma ordem
jurídica. A norma paradigmática do modelo tradicional da regra de conflitos é a bilateral. Esta é a
orientação geralmente seguida na prática, mas não a única possível. Ao sistema bilateralista opõe-se
o da unilateralidade.
Por ex., art. 49.º é uma regra bilateral, porque pelo elemento de conexão pode ser competente
a lei do foro ou qualquer outra lei. Seria unilateral se dispusesse que “a capacidade é regulada em
relação a nubentes de nacionalidade portuguesa pela lei portuguesa”.

Porém, para além das regras unilaterais e bilaterais, podemos ainda ter as regras
imperfeitamente bilaterais, que exigem, para funcionar, uma qualquer ligação com a nossa ordem
jurídica; funcionando, são bilaterais. A bilateralidade é imperfeita na medida em que, funcionando
como uma regra de conflitos bilateral, só actua em determinados casos que tenham com a ordem do
foro um determinado contacto. O problema destas normas é o que deixam situações por regular (o
que pode ser, no entanto, intencional, servindo um interesse de política legislativa).

1.1.2.1. Unilateralismo

As perspectivas que vêem as regras de conflito como regras unilaterais são as unilateralistas.
A norma de conflitos é unilateral quando se propõe apenas delimitar o domínio de aplicação das

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leis materiais do ordenamento onde vigora, ou seja, quando indica apenas como competente a lei do
foro. Temos duas modalidades.
1) Unilateralismo extroverso: para a tese unilateralista extroversa, a função da regra de
conflitos é a indicar como competente sempre uma lei estrangeira, assentando na concepção de
ROBERTO AGO. Para este autor, a concepção bilateralista, ao subordinar a aplicação do direito
interno à prévia intervenção de uma norma de DIP, não faria sentido: se a designação de um
ordenamento estrangeiro por parte de uma norma de DIP se compreende, porque serve para tornar
aplicáveis pelo juiz do foro normas que de outro modo não o seriam, já nenhum significado pode
ter a designação, por parte de uma norma de DIP, do próprio ordenamento de que ela faz parte.
Para além disto, alega-se contra a tese bilateralista que esta confere ao legislador estadual um papel
de legislador supra-estadual, e que coloca num mesmo plano o direito material do foro e os direitos
estrangeiros.
Assim, quando é que a lei do foro seria competente? O ponto de partida desta teoria é o de
que, na falta de indicação, a lei material do foro é a lei aplicável; assim, precisaríamos de uma regra
de conflito apenas para dizer quando é que uma lei estrangeira é necessária. Tecnicamente,
propunha uma espécie de recepção do direito estrangeiro por uma norma jurídica.
Uma das críticas que podemos apontar a esta tese é a de que as várias leis não estão
colocadas numa perspectiva de paridade. Para além disto, há uma falta de autonomia do direito
internacional privado em relação ao direito material, que não é a nossa perspectiva – as regras de
conflito têm um fim e estrutura diferentes.

2) Unilateralismo introverso: aqui, podemos encontrar duas formulações, uma formulação


tradicional e outra mais elaborada, defendida por QUADRI8.
Na sua justificação tradicional, esta teoria faz apelo a um pretenso princípio conforme o qual
o legislador interno não teria poderes senão para delimitar a esfera de competência das suas
próprias leis. Ou seja, a função da regra de conflitos é a de designar por competente tão só a lei do
foro. Críticas possíveis:
• Esta doutrina parte da ideia de que o conflito de leis é um conflito de soberanias e o DIP
seria assim um sistema de normas tendente a resolver conflitos de soberania entre os Estados.
• Para além disto, FERRER CORREIA afirma que esta doutrina enferma ainda de um “erro
fundamental”: quando um Estado aplica uma lei estrangeira, isso não significa que é a soberania
estrangeira que se afirma, pois a soberania só pode exercer-se mediante o emprego de mecanismos
de coerção. Assim, no território de certo Estado só a soberania desse Estado pode tornar-se efectiva.

Fica, porém, a dever-se a QUADRI a formulação mais elaborada desta doutrina. Para o
autor, a aplicabilidade de uma norma estrangeira apenas pode resultar de uma norma do sistema a

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Não se deve confundir o unilateralismo moderado de Quadri e o unilateralismo selvagem de Currie.
Quadri admite regras de conflitos; defende que uma lei se aplica quando tiver vontade de aplicação; É
unilateralista ab extrínseco porque a vontade de aplicação das normas é vista nas regras de conflitos do seu sistema.; É um
unilateralista mais moderado que procura a harmonia jurídica internacional através da boa coordenação das ordens
jurídicas, que dependia do unilateralismo das regras de conflito.
Já Currie, não admite regras de conflitos.; Também parte da vontade de aplicação das leis; É unilateralista ab
intrínseco porque a vontade de aplicação de uma lei está na sua ratio, isto é, nela própria; É um “unilateralista selvagem”
porque a sua construção não tem em vista qualquer preocupação com a harmonia jurídica internacional.

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que ele pertence, ou seja, essa norma tem de ter vontade de aplicação – e só assim se garantia a
harmonia jurídica internacional e reconhecimento de direitos adquiridos. Assim, para que uma lei
estrangeira pudesse ser aplicada, teria de verificar-se uma dupla condição cumulativa:
• Que a ordem jurídica do foro não tenha vontade de aplicação, ou seja, a situação sub iudice
não poderia estar ligada à lex fori através do elemento de conexão que a lei considera decisivo no
sector em causa.
• Que a lei estrangeira tenha vontade de aplicação: de acordo com a lei estrangeira, tem de
haver uma regra de conflitos que atribua ao ordenamento estrangeiro a competência para tratar
aquela questão. A situação sub iudice tem de estar ligada pelo elemento que a lei estrangeira designa
como decisivo para que essa ordem seja competente.
Que críticas podem ser apontadas a esta doutrina? Como nota FERRER CORREIA, esta é
uma doutrina merecedora da maior atenção, desdobrando-se em duas proposições – que, não
estando em causa a competência do direito local, há que aplicar à situação controvertida o direito
que se julgar competente para a reger; e que jamais deve decidir-se um caso pelas disposições de
uma lei que o não inclua no seu âmbito de aplicação. Porém, apesar dos méritos do unilateralismo,
este tem também graves inconvenientes, uma vez que pode dar origem a situações de conflitos,
quer positivos, quer negativos.
• Conflitos positivos (várias leis querem aplicar-se num determinado caso): os autores
foram avançando várias soluções para este problema. Para QUADRI, a solução apenas poderia ser a
de ir buscar a lei à qual a situação concreta estivesse ligada pelo vínculo mais forte, que seria
também, por legítima presunção, a lei que as partes terão tido em vista. Porém, qualquer das
soluções avançadas é menos segura, e logo menos tuteladora das expectativas particulares, do que
as regras de conflito bilaterais.
• Vácuo jurídico (nenhuma lei se quer aplicar): para não denegarmos a justiça, temos
sempre de aplicar uma das leis, e teremos de ir contra a ideia fundamental desta doutrina – a lei só
se aplica quando tem vontade de aplicação. QUADRI não propunha aqui nenhuma solução, pelo
que DE NOVA veio sugerir que, no espírito da obra deste autor, se criasse uma regra especial, tanto
quanto possível conforme ao sentido daquele sistema jurídico que tenha com o caso vertente a
conexão mais estreita. O unilateralismo gera, pois, um problema que só é resolvido com o regresso
ao bilateralismo, através da escolha de uma lei com ligação mais próxima ao caso.

Para além do mais, os problemas do bilateralismo, identificados por Quadri, não são uma
fatalidade. O sistema bilateral pode ser corrigido através do reenvio (art. 16º a 19º CC) e a teoria do
reconhecimento de direitos adquiridos.
Assim, FERRER CORREIA conclui que, sob o ponto de vista da certeza do direito, a doutrina
da bilateralidade suplanta o sistema unilateralista. Porém, o sistema bilateralista na sua forma pura
também não é aceitável, sendo necessário introduzir algumas correcções.

1.1.2.2. Bilateralismo

Os autores unilateralistas criticam os bilateralistas, denunciando a ideia paradoxal de que o


bilateralismo, numa feição pura, conduzia ao funcionamento da regra de conflito em situações
internas. Isto não faz sentido. Assim, corrigimos a doutrina bilateralista para evitar esta crítica
(BATISTA MACHADO), chegando a um bilateralismo corrigido: a função da regra de conflitos

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bilateral é a de designar por competente quer a lei do foro, quer uma lei estrangeira; contudo, no
que toca aquela primeira função, ou seja, quando se designa como competente a lei do foro, a regra
de conflitos só intervém quando se trate de uma situação internacional, ou seja, relação privada
internacional. Isto relaciona-se com o princípio da não transactividade: só se aplicam as leis que
estejam em contacto com os factos. Vemos, assim, que a regra de conflitos tem uma função
subordinada.
O nosso sistema tem predominantemente regras bilaterais; porém, note-se que os sistemas
não precisam de ter só regras unilaterais ou regras bilaterais. As regras de conflitos não precisam de
ter sempre a mesma função. O art. 28.º/1 é um exemplo de uma regra de conflitos unilateral; porém,
no n.º 3 deste artigo, o legislador bilateraliza a norma. Noutros sistemas de regras unilaterais, a
jurisprudência bilateralizou as normas.

1.1.2.3. Doutrina da auto-limitação espacial

Há ainda uma doutrina que defende a auto-limitação espacial das regras de conflito
(FRANCESCAKIS), surgindo como tese intermédia entre o unilateralismo e o bilateralismo.
Como o próprio nome indica, entende que as regras de conflitos estão, na sua aplicação,
limitadas no espaço. Como se define o âmbito de aplicação? É necessário separar dois núcleos de
situações:
• Situações que, à data da sua constituição, tinham algum contacto com a ordem jurídica do
foro. Nestas situações, a regra de conflito pode aplicar-se.
• Situações que, no momento da sua constituição, não tinham nenhuma ligação com a
ordem jurídica do foro, isto é, situações que se constituíram no estrangeiro, num momento em que
não tinham nenhuma ligação com a nossa ordem. A este segundo grupo não podemos aplicar a
regra de conflitos, segundo esta visão: caem fora do âmbito de aplicação especial.

Assim sendo, que lei seria aplicada a este segundo grupo de situações? Aplica-se a lei que
tiver sido efectivamente aplicada na constituição da ordem jurídica, sem qualquer controlo da nossa
lei. Faz sentido que a regra de conflitos esteja limitada no espaço? Já vimos que não faz sentido estar
limitada no tempo, uma vez que não se trata de uma norma de conduta. A mesma ideia vale para o
espaço: esta é uma crítica fundamental que se aponta a esta doutrina.
Há uma outra crítica que podemos acrescentar – neste segundo grupo de casos, diz-se que a
nossa ordem jurídica não tem interesse em controlar as relações jurídicas. Porém, produzem efeitos
no foro, logo há algum controlo que devemos fazer sobre as situações constituídas no estrangeiro,
não são necessariamente irrelevantes para a nossa ordem. Esta doutrina tem um ponto de partida
bilateral, mas no fundamento fica próximo do unilateralismo: nas situações não ligadas à nossa lei
não temos nada a dizer.

2. O problema da qualificação.
2.1. Introdução

Vimos já a definição de conceito-quadro, um conceito técnico-jurídico destinado a incorporar


uma multiplicidade de conteúdos jurídicos (seja do foro, quer de OJ estrangeiros), limitando o
âmbito de actuação da lei competente indicada pelo elemento de conexão. O problema da

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qualificação é um problema geral de direito; porém, a particularidade que existe no DIP resulta do
facto de os conceitos-quadro não serem conceitos descritivos mas sim técnico-jurídicos. Se as regras
de conflitos recorressem a conceitos descritivos, tudo se resumiria a descrever as situações factuais
contidas na previsão normativa e depois, face ao caso concreto, subsumi-lo à categoria apropriada
do direito de conflitos – a operação de qualificação não apresentaria nenhuma especificidade face às
regras de direito material. Porém, não é isso que aqui ocorre.

Exemplo de qualificação

Imaginemos que temos uma família de ingleses (A, pai e B, filho). A e B celebram um contrato de
compra e venda, válido à luz da lei inglesa mas não à luz da portuguesa (art. 877.º). Se A e B são pai e filho, as
relações familiares são regidas pela lei inglesa; pelo contrário, as relações obrigacionais serão reguladas, desde
logo, pela lei escolhida pelas partes – imaginemos que tinham escolhido a lei portuguesa. O problema da
qualificação começa quando vamos pegar numa norma material, neste caso o art. 877.º, e vamos tentar
qualificá-la, ou seja, dar-lhe uma certa natureza jurídica atendendo à sua função sócio-jurídica. O art. 877.º,
pelo seu conteúdo e função, não é uma norma obrigacional: o que quer proteger é a paz familiar, evitar a
justiça sucessória (tentando fugir às regras sucessórias que tentam fazer uma repartição igualitária). Assim, é
uma norma de natureza familiar – para uns – ou de natureza sucessória – para outros. De qualquer forma,
pelo conteúdo e função não corresponde à função normativa para que o direito português é
chamado neste contexto: a lei competente no caso para regular as relações familiares é a lei inglesa.
O art. 877.º não se subsume no conceito quadro de obrigações da regra de conflitos que chama a lei
portuguesa. Isto implica um juízo de correspectividade.

2.2. Momentos da qualificação.

O problema da qualificação é um problema de interpretação e aplicação das regras de conflitos.


Normalmente, dividimos a qualificação em dois momentos:

• Critério da qualificação: é o problema da interpretação do conceito-quadro. Está em causa


saber qual o critério que deve guiar a interpretação do conceito-quadro.
• Qualificação propriamente dita ou objecto da qualificação: é o problema da aplicação da
regra de conflitos. Está em causa saber se um dado instituto ou preceito do ordenamento designado
por uma regra de conflitos pode subsumir-se à categoria normativa visada pela norma.

No que toca ao critério da qualificação: há várias teorias sobre o modo como a interpretação
deve ser feita.

• Perspectiva tradicional – Teoria da qualificação da lex materialis fori: segundo esta


teoria, a determinação do conteúdo dos conceitos-quadro obtém-se recorrendo ao direito material
da ordem jurídica do foro. Ou seja, os conceitos usados na regra de conflitos têm o mesmo sentido
que os conceitos homólogos do direito material interno. Desde logo, podemos ver que esta
concepção não respeita a função internacional do DIP, não havendo aqui abertura a conteúdos
jurídicos estrangeiros ou institutos que, embora não inteiramente coincidentes, têm em vista a
mesma função sociojurídica que os nossos.

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• Interpretação segundo a lei competente (lex causae): outra doutrina, defendida por
RABEL e WOLFF, preconiza a interpretação do conceito-quadro segundo a lei competente, ou seja,
segundo a lei aplicável. Porém, a crítica é a de que, se admitíssemos esta interpretação, a regra de
conflitos tornar-se-ia num “cheque em branco”: a matéria jurídica de que trata seria definida não
pela regra de conflitos, mas pela lei competente.

• Interpretação segundo o direito comparado: de acordo com uma terceira perspectiva, a


interpretação do conceito-quadro deve ter em conta o direito comparado, i.e., o conteúdo do
conceito-quadro deve definir-se por um processo de abstracção, a partir dos diferentes sistemas
jurídico-materiais. Porém, como aponta FERRER CORREIA, esta é uma tarefa irrealizável na
prática: mesmo que fosse possível ao intérprete conhecer todas as leis existentes, ser-lhe-ia
impossível prever as mudanças futuras do respectivo conteúdo. Não é fácil construir um conceito
comum e bastaria que um dos ordenamentos mudasse para que deixasse de existir esse conceito.
Para FERRER CORREIA, embora se reconheça a importância do direito comparado nesta
matéria, é de recusar uma posição desta índole. Para este autor, as categorias de conexão hão-de ter
a elasticidade necessária para que em cada uma possamos incluir todas as normas e instituições
que, seja qual for o seu nome, a sua forma concreta ou até mesmo o seu conteúdo, desempenhem,
no ordenamento estadual a que pertencem, uma função sociojurídica equivalente àquela que o
legislador tinha em mente, quando resolveu optar por determinado factor de conexão. É preciso
fazer uma reconstituição do juízo de valor em que a norma de conflitos se baseia.

Assim, de acordo com FERRER CORREIA, a interpretação do conceito-quadro deve ser uma
interpretação:
• Teleológica, ou seja, temos de tentar perceber porque é que o legislador, naquela concreta
regra de conflitos, escolheu determinada conexão. Todo o sistema de regras de conflitos deve ser
preordenado à satisfação de determinados interesses, e assim a conexão deve ser a mais adequada a
satisfazer esses mesmos interesses. Como tal, a interpretação do conceito-quadro tem de passar
obrigatoriamente pela determinação do juízo valorativo que conforma a regra de conflitos.
• Para além disto, deve ser autónoma em relação ao direito material: devemos atender às
finalidades próprias do DIP e não do direito material. Se o DIP tem a sua intencionalidade e a sua
justiça própria, a interpretação dos seus preceitos e dos respectivos conceitos-quadro tem de ser
conduzida com autonomia. A interpretação deve ser feita no quadro do DIP a que pertence (à lex
formalis fori e não à lex materialis fori).

A reunião destas duas características – interpretação autónoma e teleológica – conduz ao


critério da lex formalis fori. Cada conceito quadro tende a ter um núcleo duro, que é constituído pelo
conceito homólogo do direito material, mas depois há uma zona periférica onde podemos abranger
dados normativos de outros ordenamentos que, embora sejam diversos, correspondem à mesma
função.
Em suma, a conclusão primordial é a seguinte: um conceito-quadro abrange todos os institutos
ou conteúdos jurídicos, quer de direito nacional ou estrangeiro, aos quais convenha, segundo a ratio
legis, o tipo de conexão adoptado pela regra de conflitos que usa o mesmo conceito.

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No que diz respeito à qualificação propriamente dita ou objecto da qualificação, trata-se de


averiguar quais, de entre os preceitos materiais do ordenamento designado por certa norma de
conflitos, os correspondentes à categoria definida pelo conceito-quadro dessa norma; isto é, se
determinado instituto ou conceito do ordenamento competente pode ser subsumido à categoria
definida pelo conceito-quadro da regra de conflitos. A qualificação em sentido estrito é assim um
problema de subsunção.
Como é que isto se faz? Temos de recorrer ao conteúdo e função dos preceitos em causa, sendo
que a determinação da função sociojurídica da norma competente só se pode fazer no contexto do
ordenamento jurídico competente. Por isso se diz que com esta posição superamos a dicotomia
tradicional entre uma qualificação de acordo com a lex fori ou lex causae: a delimitação do conceito
quadro pertence à lei do foro, enquanto que a função sociojurídica da norma que vamos subsumir
na regra de conflitos vai ser encontrada no ordenamento a que a norma material pertence –
estabelecendo-se um compromisso entre a lege fori e a lege causae.

2.3. A opção portuguesa: o art. 15º do CC.

O legislador acabou por resolver o problema da qualificação entre nós no art. 15.º do CC.
Algumas notas sobre este artigo:
• O legislador só trata aqui da qualificação propriamente dita, diz como se vão qualificar as
normas – para nós, materiais.
• Resulta do art. 15.º que essas normas são qualificadas de acordo com a sua função e
conteúdo, e não tanto em função da sua inserção sistemática.
• Este conteúdo e função são apreciados à luz da lex causae, à luz do ordenamento jurídico a
que a norma pertence.
• O chamamento que a regra de conflitos faz é um chamamento circunscrito ou limitado: a
regra de conflitos, quando designa um ordenamento jurídico, não quer dizer que esse ordenamento
vai ser aplicado em bloco, apenas aquelas que correspondem ao instituto visado.
• Finalmente, o art. 15.º pressupõe que a competência já esteja atribuída, ou seja, a
qualificação não serve para determinar a lei aplicável. Só procedemos à qualificação depois de
sabermos quais os ordenamentos competentes. A lei competente é determinada através do princípio
da não transactividade da lei (exclui os ordenamentos que não têm conexão com a situação); e,
dentro dos ordenamentos com contacto, só serão competentes os designados pela regra de conflitos.
No problema da qualificação, já fizemos funcionar estes dois momentos.
A qualificação de acordo com o direito português traduz-se no seguinte: quanto ao primeiro
momento, recorremos ao critério da lex formalis fori; no segundo, rege o art. 15.º CC. Segundo
FERRER CORREIA, este segundo momento trata-se da resolução de um problema de
subsumibilidade de um quid ao conceito-quadro.

2.4. Conceito tradicional de qualificação.

A concepção em que o legislador português se inspirou distingue-se da chamada concepção


tradicional da qualificação – teoria da qualificação lege fori ou teoria da dupla qualificação. Esta é
uma teoria da dupla da qualificação porque os autores que a defendem identificam duas

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qualificações: (1) qualificação primária ou de competência e (2) uma qualificação secundária ou


material. Esta é a concepção seguida, por ex., pela doutrina italiana.

Em que consistem as operações de qualificação primária e secundária?


• Qualificação primária: Tem por objectivo a determinação do ordenamento jurídico
competente. Para tal, é feita na perspectiva da lei do foro e consiste em pegar numa situação
concreta e subsumir esses factos nas normas materiais do foro, tal como se fosse uma questão
puramente interna. Essas normas materiais terão uma correspondência nas regras de conflitos e, a
partir daqui, designamos definitivamente a lei aplicável. Trata-se de uma qualificação de factos ou
situações da vida, porque para estes autores o objecto do conceito-quadro são situações da vida ou
factos.
Procedimento: Vamos qualificar os factos de acordo com a natureza que esses factos têm no
direito material do foro. Tal vai permitir subsumir os factos à regra de conflitos correspondente que
indica a lei competente. (ROBERTSON; ROBERTO AGO)

• Qualificação secundária: aqui, visa-se determinar, dentro da lei já determinada como


competente pela qualificação primária, quais as normas materiais aplicáveis. Aqui, temos duas
perspectivas:
 Perspectiva clássica (AGO): deve ser feito um chamamento indiscriminado, aberto, de toda a
ordem jurídica competente. A lei é competente independentemente da natureza e função de cada
norma material.
 Perspectiva de ROBERTSON: dentro da lei determinada como competente, fazemos um
chamamento circunscrito, selectivo, discriminado ou funcional, ou seja, consideramos aplicáveis
apenas as normas que tenham natureza análoga à categoria circunscrita – o que pode causar
problemas de vácuo jurídico, uma vez que fazemos uma espécie de pré-resolução do problema.

Quais são assim as diferenças da concepção da dupla qualificação face à perfilhada entre nós?
• A qualificação primária serve para identificar a lei aplicável, o ordenamento jurídico
definitivamente competente. Aqui, há uma diferença em relação ao nosso sistema de qualificação,
que não serve para determinar o ordenamento competente: esta é uma operação anterior à
qualificação.  Muitos autores italianos criticaram o nosso sistema por não atender à qualificação
primária. FERRER CORREIA defende o nosso sistema ao afirmar que a qualificação primária é um
“falso problema e desnecessária”, pelo que já vimos antes.
• Para além disto, o objecto da qualificação são factos, situações de vida; já para nós o objecto da
qualificação são normas materiais. Como é que se qualificariam os factos? Os autores italianos,
(AGO, bem como o americano ROBERTSON) defendiam que os factos deveriam ser qualificados de
acordo com a lei do foro.
• Em relação à qualificação secundária ou material, na concepção de AGO faz-se um
chamamento indiscriminado das normas. ROBERTSON aproxima-se mais da nossa concepção: só
aplica as normas, discriminadamente, que se aproximam do instituto em questão.

Que críticas é que podemos apontar a esta perspectiva?


Em relação à qualificação secundária, criticamos o chamamento indiscriminado: ao aplicar
todas as normas do ordenamento competente, ignorando a função que têm, está-se a ignorar a

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própria função do conceito quadro, que quer repartir as matérias jurídicas. O sentido da regra de
conflitos é atribuir uma certa função normativa a uma determinada lei, logo só podem estar
compreendidas no seu âmbito as normas que correspondem a essa função. A referência da norma
de DIP a uma lei não abrange a totalidade das suas disposições, mas apenas aquelas que possam
subsumir-se na categoria normativa da regra de conflitos.

Porém, as críticas são fundamentalmente dirigidas à qualificação primária:


• A qualificação primária é desnecessária. Com efeito, não precisamos da qualificação primária
por causa do princípio da não transactividade: este princípio já circunscreve os ordenamentos
jurídicos potencialmente aplicáveis. A própria relação jurídica comporta em si a circunscrição das
leis potencialmente aplicáveis. Então mas o juiz tem de andar a investigar qual o direito aplicável?
A isto respondemos que as partes têm um dever de colaboração e deverão indicar as normas
potencialmente aplicáveis.
• Para além de ser desnecessária, padece de outros vícios. Em primeiro lugar, viola o princípio
da paridade de tratamento das ordens jurídicas, pois à questão é dada a natureza que tem na
natureza do foro. Ao violar a paridade, também perturba a harmonia jurídica internacional.
• Por outro lado, há aqui um certo ilogicismo do critério: estamos a aplicar leis estrangeiras de
acordo com a perspectiva jurídica do ordenamento do foro.
• Para além disso, esta doutrina não consegue ligar com o problema do instituto desconhecido.
Se houver um instituto desconhecido, não conseguimos subsumir a nenhuma regra de conflitos,
logo não conseguimos determinar nenhuma lei competente.
• Por fim, a concepção não é inocente e está ligada a uma função da regra de conflitos que
rejeitamos: reflecte a posição que HART tinha do unilateralismo extroverso, ou seja, as normas de
conflito seriam exclusivamente destinadas a definir o campo de aplicação dos sistemas jurídicos
estrangeiros. Se a regra de conflitos tem de incorporar no ordenamento do foro conteúdos
estrangeiros, é natural que o faça à luz do direito interno. Já vimos que a concepção por nós
adoptada é outra – as regras de conflitos são essencialmente bilaterais, atendendo ao princípio da
paridade de tratamento, que se impõe principalmente por ser justa.

2.5. Conflitos de qualificações.

De acordo com o nosso método, podem surgir conflitos de qualificações – o que, como nota
FERRER CORREIA, não faz com que o tenhamos de rejeitar. Estes só seriam evitáveis com uma
rígida qualificação lege fori, ou seja, se fizéssemos a tal qualificação primária definitiva – aí, só
chegaríamos a uma lei competente e não poderiam existir conflitos. Porém, como já vimos, esta
posição é inaceitável. Por outro lado, estes conflitos não são uma consequência exclusiva do método
de qualificação adoptado.
Assim, não fazendo a qualificação primária, podemos ter vários ordenamentos jurídicos
chamados simultaneamente por regras de conflitos diferentes e, depois de termos feito funcionar o
art. 15.º, podemos chegar a resultados contraditórios. Qual é este resultado incongruente? Temos de
distinguir entre conflitos positivos e negativos:
• Conflitos positivos: ocorrem quando as normas dos vários ordenamentos competentes
passam o crivo da qualificação e a sua aplicação simultânea é inconciliável.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

Ex1: A e B, alemães, fazem contrato promessa de casamento. O contrato promessa é quebrado na


França.
Relações familiares - Lei alemã (pelo conteúdo e função tem uma natureza familiar)
Regime de responsabilidade civil - Lei francesa (pelo conteúdo e função tem uma natureza
obrigacional)

• Conflitos negativos: ocorrem quando há dois ou mais ordenamentos competentes por força
das várias regras de conflito, mas nenhum desses passa o crivo da qualificação.

Ex2: A e B, alemães, fazem contrato promessa de casamento. O contrato promessa é quebrado na


França.
Regime familiar - Lei francesa (pelo seu conteúdo e função, tem natureza obrigacional)
Regime de responsabilidade civil - Lei alemã (pelo seu conteúdo e função tem natureza familiar)

Temos de distinguir conflitos de lei, sistemas e de qualificações:


• Conflitos de lei: ocorre sempre que temos uma situação que tem contacto com vários
ordenamentos – situação absolutamente internacional.
• Conflitos de sistemas: correspondem aos casos em que as regras de conflito são diferentes de
Estado para Estado.
 Positivo - casos em que a nossa lei se quer aplicar e há outra lei estrangeira que se
queira aplicar.
 Negativo - casos em que nem a lei portuguesa se quer aplicar, nem a lei
estrangeira. Pode gerar um problema de direito adquiridos.
• Conflito de qualificações: existe quando estamos a trabalhar com vários ordenamentos
jurídicos, são competentes a títulos diferentes, e depois de feita a qualificação (art. 15.º):
 Chegamos à conclusão que só as normas de um sistema é que subsumem e aí
temos o problema resolvido; (não há conflito neste caso)
 As duas normas se subsumem no conceito quadro e aí temos um conflito
positivo;
 Nenhuma das normas se subsume e aí temos um conflito negativo.

Como se resolvem estes conflitos? O CC não propõe aqui qualquer directiva, o que se
percebe – este é um tema complexo e a doutrina mostra-se hesitante. Para FERRER CORREIA,
devemos procurar uma solução no plano do DIP, o que significa que devemos preferencialmente
tentar hierarquizar as regras de conflitos, em função dos interesses que elas visam servir; quando
isto não seja possível (o que será raro), devemos adoptar uma perspectiva material. Segundo esta
perspectiva, deveremos ter em conta as soluções oferecidas pelas leis em presença, para as depois
harmonizar, em termos de tornar possível a sua aplicação combinada; ou para aplicar uma delas,
depois de convenientemente ajustada à nova situação (temos sempre uma adaptação).

2.5.1. Princípios para os conflitos positivos.

Na linha da hierarquização das regras de conflitos, encontramos princípios doutrinários de


hierarquização. FERRER CORREIA propõe os seguintes princípios para os conflitos positivos:

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

1)_Conflito entre a qualificação forma e a qualificação substância: deve prevalecer a


qualificação substância.
Temos de olhar aqui para a história do DIP: de modo natural, a lei que rege o conteúdo do
acto também deveria ser a lei que regula as suas formalidades. Porém, logo no início do DIP,
afirmou-se uma ideia contrária: a forma é regulada pela lei do lugar da celebração (locus regit
actum), uma vez que é nesse país que é mais fácil cumprir as formalidades exigidas. Esta regra
começou por ter natureza imperativa, mas a partir do século XIX, com SAVIGNY, passou a ser uma
regra alternativa – a forma tanto pode ser regulada pela lei do lugar ou pela lei da substância. Esta
posição implica o reconhecimento de que a competência do “estatuto do acto” abrange a forma
externa, desvalorizando o princípio locus regis actum. Mas, a evolução do princípio locus regis actum
não ficou por aqui, tendo-se chegado à orientação segundo a qual em certos casos deve prevalecer a
lei da substância: quando a lei da substância exija determinada forma, independentemente do lugar
da celebração, essa forma tem de ser respeitada. O estatuto da forma seria assim incompleto, uma
vez que o estatuto do negócio jurídico pode exigir a observância de uma forma especial.
Encontramos esta posição, entre nós, nos arts. 36.º/1 e 66.º/2, parte final. É neste sentido que se
pode dizer que o lugar da celebração só vale entre nós em matéria de forma como conexão
secundária (RAAPE). Assim sendo, parece que o DIP vigente atribui ao estatuto da forma uma
posição subordinada face ao da validade intrínseca, e assim nos conflitos de qualificação deve
prevalecer a qualificação substância.

Há um exemplo de escola. Até 75, os gregos ortodoxos tinham de casar de acordo com o rito ortodoxo.
Imaginemos que temos dois gregos que querem casar na Alemanha: a questão do rito, que para os gregos tem a
ver com a própria substância do casamento, com a sua natureza sacramental, contende com a validade do
casamento; por outro lado, para a Alemanha, é uma questão de mera formalidade extrínseca, regulada pela lei
do lugar da celebração. Para a lei grega, subsume-se no conceito quadro de validade e existência do casamento;
para a lei alemã, no conceito quadro da forma de casamento. Temos aqui um conflito positivo de qualificações.
Para FERRER CORREIA, deve prevalecer a qualificação substância, logo a lei grega é a competente. Claro
que isto depois vai violar o princípio da liberdade religiosa (invocação da excepção da ordem pública).

2)_Conflito entre a qualificação real e a qualificação pessoal: deverá prevalecer a


qualificação real. por razões de efectividade e da eficácia das decisões - devemos procurar aplicar o
direito do estado que está em melhores condições para fazer respeitar os seus preceitos, que será o
estado da localização das coisas. Este princípio da efetividade também justificará o princípio da
proximidade.

Costuma dar-se o exemplo de alguém que morre sem herdeiros e sem testamento. Os ordenamentos
jurídicos tratam esta questão de forma diferente: no caso português, o Estado é herdeiro; noutros
ordenamentos, o Estado ou a Coroa tem um direito real de apropriação. Podemos assim ter dois ordenamentos
competentes, de acordo com duas regras de conflito portugueses: por ex., um português morre sem testamento
ou herdeiros, deixando os seus bens em Inglaterra. A norma portuguesa que diz que o Estado é herdeiro tem
natureza sucessória; por outro lado, na Inglaterra, sendo o direito de natureza real o direito inglês é chamado
como lei do local da coisa. Deve prevalecer a qualificação real, o art. 46.º: aqueles bens devem ficar para a coroa
inglesa.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

3)_Conflito entre a qualificação matrimonial e qualificação sucessória: Costuma surgir o


problema no âmbito da tutela do cônjuge sobrevivo. Neste âmbito:
 Há casos em que podemos reconhecer ao cônjuge sobrevivo os direitos que
decorrem do estatuto matrimonial e sucessório sem que haja contradição:

Por exemplo, um casal de portugueses casa sem convenção e mais tarde um deles adquire a
nacionalidade alemã e perde a portuguesa. De acordo com o art. 53.º, o regime de bens é definido pela lei
portuguesa porque era português no momento da celebração; porém, quando morre, e não sendo português, a
lei que regula a sucessão é a lei alemã. O cônjuge tem os direitos de participação na comunhão, e naquilo que
resta entra como herdeiro, cumulando as duas posições (o mesmo sucede no direito alemão) – a lei portuguesa
não coloca nenhum obstáculo a que o cônjuge sobrevivo concentre em si a qualidade de meeiro dos bens
adquiridos e a de sucessor ex lege (arts. 2133.º, 2146.º e 2147.º do CC).

 Porém, podemos ter casos em que os dois estatutos não sejam cumuláveis, se
estivermos perante um ordenamento no qual a tutela do cônjuge sobrevivo se faz
apenas por um dos estatutos.

Por exemplo, um casal sueco no qual um deles adquire a nacionalidade inglesa: no direito sueco, o
cônjuge sobrevivo é apenas protegido na comunhão post-mortem (no momento da morte, reparte-se os bens
todos do casal). Porém, entretanto passou a ser inglês e no direito inglês a única tutela é a hereditária: temos
um conflito de qualificações porque, se aplicarmos sucessivamente as duas leis, estamos a dar duas protecções
quando qualquer um dos ordenamentos só dá uma. A cumulação das duas pretensões não é uma solução
razoável, uma vez que qualquer uma das normas esgota a tutela jurídica do interesse visado.

Como é que resolvemos estes conflitos? Há autores portugueses (MAGALHÃES COLLAÇO


e MOURA RAMOS) que defende que deve prevalecer a qualificação matrimonial, ou seja, o cônjuge
só deve ter os direitos que advêm desse estatuto, porque cronologicamente é anterior e impregna
mais duradouramente a relação.
FERRER CORREIA tem um tratamento distinto:
• Uma primeira ideia é a de que nada se opõe a que o cônjuge deva poder optar entre os
dois estatutos.
• Na falta de escolha, na linha da posição de um autor alemão (KEGEL), devemos olhar para
a natureza da comunhão em causa:
 Quando estivermos perante uma comunhão mortis causa, como a do direito
sueco, devem prevalecer os direitos sucessórios de acordo com a lei competente
(art. 62.º).
 Se a comunhão for inter vivos, aí deve prevalecer o estatuto matrimonial (art. 53.º)
e já não faz sentido aplicar o art. 62.º.
A distinção de KEGEL justifica-se uma vez que a lei reguladora do regime de bens no caso
da comunhão mortis causa se limita a constituir com estes bens uma massa comum no momento do
falecimento de um deles, logo aproxima-se mais do direito sucessório do que do direito
matrimonial. Assim, no fudo teremos lado a lado duas normas e duas pretensões de natureza

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

sucessória – pelo que se deverá optar pela lei competente no estatuto sucessório. Acaba por ficar
sozinha a regra de conflitos do art. 62.º e a lei por ela declarada competente.

2.5.2. Princípios para os conflitos negativos.

A primeira ideia a destacar é a de que apenas se levanta aqui um verdadeiro problema quando
estamos perante uma autêntica lacuna de regulamentação: não aplicar nem uma norma nem outra
tem de ser contraditório do ponto de vista dos dois ordenamentos jurídicos, levando a um resultado
claramente insatisfatório.
Em segundo lugar, FERRER CORREIA diz que muitas vezes o conflito é apenas aparente,
porque um dos preceitos em causa pode subsumir-se na regra de conflitos. Nestes casos, fazemos
uma qualificação subsidiária, de modo a que aquela norma, alterando-lhe a natureza, se possa
considerar já corresponder ao instituto visado.

Por ex., imaginemos que um casal britânico ao tempo do casamento toma mais tarde a nacionalidade sueca
(hipótese inversa à que já vimos): a lei sueca estabelece a comunhão mortis causa, e à primeira vista diríamos
que este é um regime de bens do casamento. Porém, este regime de bens, embora o sendo, tem em vista a tutela
dos direitos sucessórios, logo subsidiariamente o regime de bens suecos pode ser concebido como sendo um
regime sucessório. E, se qualificamos sucessoriamente, já se subsume no art. 62.º e pode ser aplicado.

Quando não conseguimos esta qualificação subsidiária, temos uma verdadeira lacuna.

Por exemplo, um inglês morre sem herdeiros e testamentos e deixa bens em Portugal. O art. 62º. manda
aplicar a lei inglesa, que confere à coroa britânica um direito real de apropriação, não se subsumindo no art.
62.º; já o art. 46.º diz que se aplica a lei do lugar da situação da coisa, sendo que no direito português há um
direito do Estado, porém é sucessório, logo não se subsume no art. 46.º. Nenhum dos ordenamentos quer que
os bens fiquem sem dono, logo temos uma verdadeira lacuna e um conflito negativo de qualificações.

Temos aqui dois entendimentos:


• MAGALHÃES COLLAÇO diz que devemos fazer uma adaptação da regra de conflitos, sendo
tal preferível a adaptar normas materiais, porque ao menos chegamos a um ordenamento real. Ou
seja, devemos adaptar o art. 62.º do CC, mudando o elemento de conexão que lá está – a lei que
regula a sucessão passa a ser a lei do país da situação dos bens (Portugal), logo a norma portuguesa
já se pode subsumir no conceito quadro porque é sucessória. É a posição dominante.
• FERRER CORREIRA e BAPTISTA MACHADO falam antes de uma adaptação da norma
material, desde logo do art. 2133.º e 2152º CC. Devemos aplicar analogicamente esta norma, mesmo
que a lei portuguesa não seja a lei reguladora da sucessão (é o caso), se, de acordo com a lei da
sucessão, não existirem herdeiros para os bens situados em Portugal. Deverá criar-se uma norma
que habilite o Estado da situação (o Estado português) a apoderar-se de todas as heranças existentes
no seu território, sempre que segundo a lei de sucessão o de cujus não tenha deixado sucessores.
Temos aqui um grande espaço de abertura que pode conduzir à criação de um “direito fantasioso”.

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3. Os conflitos de sistemas de DIP: a origem do problema, as modalidades de conflitos e as


orientações fundamentais traçadas para a sua resolução.

Estes conflitos resultam da diversidade dos elementos de conexão adoptados nos vários
sistemas de direitos para a mesma matéria jurídica. Este problema acaba por ser agravado pelo
bilateralismo, porque pode acontecer que o critério de conexão do direito de conflitos do foro não
coincida com o das outras leis em contacto com a situação sub iudice, resultando que a legislação
aplicável nos vários estados interessados não seja a mesma.

Quando pensamos em conflitos de sistemas de DIP, podem ser:


 Positivos - quando há duas ou mais ordens jurídicas que se reputam como
aplicáveis. Vamos encontrá-lo no âmbito do chamado princípio da maior
proximidade, do problema dos direitos adquiridos e problema da questão prévia.
 Negativos - quando nenhuma das ordens jurídicas envolvidas se considera
competente. P.e. Quando a lei do foro não se considera competente, reconhecendo a
competência de um ordenamento jurídico estrangeiro, que ele próprio não se
considera aplicável. Dá origem ao problema do reenvio.

Em qualquer destas questões, há um problema comum que é o problema de saber se o


tribunal deve (e em que condições) considerar as regras de conflitos estrangeiras, isto é, os juízos
conflituais estrangeiros. Tradicionalmente, vigorava aqui o princípio da territorialidade do DIP;
porém, a partir de certo momento, passou a considerar-se que em certos casos se poderia aplicar a
regra de conflitos estrangeira. Houve várias tentativas doutrinais de resolução deste problema:
 Desde logo, começou-se a discutir a questão de saber se nós poderíamos criar um
princípio de nível superior que tenha por objecto e escopo dirimir entre as normas de
DIP (normas de DIP sobre DIP ou de 2º nível). A proposta foi de NEUMANN e
GABBA.
 Mais tarde, FRANKENSTEIN defende a existência de conexões primárias, conexões
secundárias e conexões falsas. As conexões primárias seriam conexões a priori que
serviriam de base às conexões secundárias.
 Posteriormente, acabou por afirmar-se a ideia de que também as regras de conflitos
têm limites de aplicação no espaço: surge a doutrina da auto-limitação espacial das
regras de conflitos da lex fori (FRANCESCAKIS)9

9 A doutrina da autolimitação espacial das regras de conflitos foi defendida por FRANCESCAKIS, segundo a qual as
regras de conflitos apenas se aplicariam a situações que tivessem algum tipo de contacto com a ordem jurídica, ou seja, o
domínio de aplicação das regras de conflito é restrito. Note-se que para o autor qualquer contacto com a ordem jurídica
chegaria para fundamentar a aplicação da regra de conflitos, podendo não ser necessariamente o contacto do elemento de
conexão. Nas situações absolutamente internacionais, a lei aplicável é a lei que tiver sido efectivamente aplicada, sem
qualquer controlo prévio, o que se aproxima do unilateralismo, que enuncia como princípio o de que a lei aplicável a é a
lei que queria aplicar-se e lhe tenha sido efectivamente aplicada. As objecções à doutrina de FRANCESCAKIS são as
seguintes: se está em causa o interesse do ordenamento em vigiar as situações que têm conexão estreita com ele, então este
interesse está suficientemente acautelado através da excepção da ordem pública internacional; as normas de conflitos
apenas têm por escopo resolver conflitos de lei, não sendo regras de conduta, logo não é possível deduzir destas normas
quaisquer limites à sua aplicação espacial; constitui proposição errónea a de que o sistema jurídico nacional não tem
interesse em ver aplicadas as suas normas de DIP a situações que não tenham com ele qualquer conexão, ou uma conexão
estreita (o que é patente nas regras de conflitos bilaterais); e não se deve renunciar ao controlo prévio da competência de
um dado sistema jurídico só porque foi o efectivamente aplicado.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

Entre nós, fundamentalmente, a perspectiva que temos sobre os conflitos de sistemas de DIP
é a seguinte: desde logo, a regra de conflitos não é um prius metodológico, isto é, tem um carácter
subordinado no contexto do ordenamento jurídico conflitual. Assim, a aceitação ou não da
decadência da nossa regra de conflitos e a aceitação das regras de conflitos estrangeiras, há-de
decorrer das próprias finalidades do DIP. Ou, de outra maneira, para nós resolvermos os conflitos
de leis, por vezes temos que deixar cair os valores subjacentes à nossa regra de conflitos e ter em
consideração os valores gerais do DIP. Quais são estes valores que indicam a necessidade de
reconhecer a aplicação da regra de conflitos estrangeira e o papel subordinado da nossa justiça
conflitual?
• Princípio da harmonia jurídica internacional: dita as soluções em matéria de reenvio, é o
valor que nos faz aceitar o reenvio e o que diz a regra de conflitos estrangeira.
• Princípio da efectividade das decisões: leva-nos a respeitar o princípio da maior
proximidade (a lei pessoal cede perante a lei do lugar da situação das coisas).
• Tutela das expectativas: leva-nos ao reconhecimento dos direitos adquiridos.

O modo como resolvemos os conflitos de sistemas do DIP parte da aceitação do valor


meramente instrumental da regra de conflitos, podendo ser sacrificada para proteger a teleologia do
DIP globalmente considerado.

3.1. O reenvio.

O reenvio veio dar resposta ao problema do conflito negativo de sistemas de DIP, isto é, quando
a legislação estrangeira designada pelo DIP do foro para regular certa questão jurídica não se
considera aplicável e antes remete para outra ordem jurídica. Esta ordem jurídica tanto pode ser a
do Estado do foro (retorno), como a de estado terceiro (transferência da competência).

Retorno: L1  L2  L1
Transmissão de competência: L1  L2  L3

A solução do reenvio surgiu numa decisão de um tribunal francês em 1982 (Caso Forgo),
embora em rigor o problema já tivesse sido abordado em sentenças inglesas e alemãs no século XIX.
Nessa decisão, a Cour de Cassation tomou a posição inovadora de afirmar que temos que olhar para
as regras de conflitos da lei aplicável.

Antes de mais, saber se deve haver reenvio ou não é um problema de interpretação da nossa
regra de conflitos, isto é, de saber que referência faz a nossa regra de conflitos à lei estrangeira.
Podemos ter dois tipos de referências:
Referência material - (RM) Se a regra de conflitos fizer uma referência material, isto quer
dizer que, quando a ordem jurídica reconhece competência a lei estrangeira, chama apenas as
normas materiais desse ordenamento, independente de essa lei se achar ou não competente.
Referência Global - faz um chamamento do ordenamento jurídico na sua totalidade, ou
seja, chama as normas materiais, mas também o sistema conflitual estrangeiro. Só aqui é que se

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

atende ao facto de este ordenamento jurídico se considerar ou não competente. Aqui, há quatro
possibilidades:
A) L1  L2  L1 - Reenvio em 1º grau ou de retorno directo
B) L1  L2  L3  L1 – Reenvio em 2º grau ou de retorno indirecto
C) L1  L2  L3 - Transmissão simples
D) L1  L2  L3  L4 - Transmissão em cadeia

Em suma, perante um conflito negativo de regras de conflitos, são possíveis três atitudes:
• Atitude favorável ao reenvio como princípio geral – doutrina da devolução ou do
reenvio, que parte da ideia de que a referência da norma de conflitos do foro à lei estrangeira tem
carácter global.
• Atitude absolutamente condenatória do reenvio – doutrina da referência material,
segundo a qual a referência da norma de conflitos à lei estrangeira apenas abrange o direito
material. São sistemas hostis ao reenvio (como o brasileiro).
• Atitude condenatória do princípio, mas favorável ao reenvio com alcance limitado – é a
posição moderna, defendida sobretudo pela doutrina alemã. Toma-se como ponto de partida o
princípio da referência material; porém, reconhece-se casos em que o reenvio pode levar a
resultados úteis.
As duas primeiras são posições dogmáticas; a última é pragmática.

3.1.1. Posições dogmáticas assumidas perante a questão do reenvio.

Como vimos, temos duas visões dogmáticas possíveis perante a questão do reenvio: ou as que
negam em absoluto qualquer atendibilidade à regra de conflitos estrangeira (teoria da referência
material); ou as que entendem que, por princípio geral, devemos tomar em consideração o DIP
estrangeiro (teoria da devolução ou da referência global).

 Tese da referência material 

O que a caracteriza é o facto de que rejeita o reenvio, porque não atende àquilo que a lei
estrangeira diz sobre a sua competência. Ou seja, a referência da regra de conflitos a uma lei
estrangeira deve ser entendida como feita directa e imediatamente ao direito material estrangeiro.
Os defensores da referência material defendem a sua existência com base no seguinte:
A regra de conflitos, pela sua própria natureza, é uma norma destinada a resolver
concursos de normas materiais no espaço. Logo, se o objecto da regra de conflitos são as normas
materiais, só essas devem ser chamadas. Mais – o DIP nasce com um sentido ou aspiração de
universalidade, para assinar às relações jurídicas internacionais privadas a sua lei reguladora, que
deverá ser a mesma lei em toda a parte. Assim, seria uma contradição nos termos admitir que as
suas normas tivessem sido marcadas do selo de uma referência a outras normas com idêntica
função mas sentido diferente.
A referência material é a única posição consentânea que respeita o próprio juízo da regra
de conflitos. Em cada regra de conflitos está uma ponderação do legislador e, se quisermos manter-
nos fiéis ao nosso juízo conflitual, devemos aplicar imediatamente o direito material designado pela
regra de conflitos.

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 Cada Estado tem as suas próprias regras de conflito, que têm, pelo seu objecto, carácter
internacional. Se a regra de conflitos tem esta função universal, então pelas mesmas razões não faria
sentido apontar outras regras com funções semelhantes, que deveriam na pureza dos sentidos ser
iguais às nossas, mas sim apontar directamente um direito material.

 Tese da referência global 

O sistema que faz essa referência, quando remete para um OJ remete para esse OJ na sua
totalidade, atendendo não apenas às suas normas materiais, mas também ao seu direito conflitual,
isto é, ao facto de este se considerar competente ou não. Dentro desta tese, temos 3 variantes:

1) Teoria da referência subsidiária


De acordo com esta perspectiva, sempre que a regra de conflitos interna manda aplicar a lei
estrangeira e, sendo essa referência global, aquele ordenamento jurídico eventualmente não se
queira aplicar, não devemos seguir aquilo que esse ordenamento indica: na regra de conflitos
nacional deve haver um elemento de conexão subsidiário, até que cheguemos a um OJ que se
considere competente.
É um sistema que, desde logo, implica uma dificuldade prática: todas as regras de conflitos
tinham que ter inúmeros elementos de conexão, ainda que subsidiários. Podia ainda acontecer que,
ainda que existissem vários elementos subsidiários, nenhuma lei se considerasse aplicável ao caso.

2) Teoria da devolução simples (posição clássica)


Segundo esta teoria, devemos tomar em consideração a regra de conflitos da ordem jurídica
competente de acordo com a nossa regra de conflitos, e será essa a lei material aplicável. Devemos
tomar em consideração a ordem jurídica estrangeira como um todo, e dentro dessa ordem atentar
na regra de conflitos dessa lei: a lei indicada por essa regra é o direito material aplicável no caso
concreto. As soluções avançadas por esta teoria são as seguintes:
 Retorno: L1  L2  L1 (aplica-se a L1)
 Transmissão de competências: L1  L2  L3 (aplica-se a L3)

Argumentos invocados a favor desta teoria:


_Pode pensar-se que, se nós não fizermos o reenvio e aplicarmos uma lei que não se
considera competente, tal significa a violação da soberania do OJ estrangeiro. É facilmente afastado
este argumento, porque os conflitos de leis não são conflitos de soberanias. Quando aplicamos uma
lei estrangeira, não estamos a exercer a soberania estrangeira.
_O direito material e direito de conflitos constituem uma ordem jurídica una, um todo
incindível, pelo que o juiz estrangeiro não pode efectuar uma cisão entre estes. Este argumento
acaba por ser facilmente atacado: apenas existiria uma unidade substancial das duas espécies de
normas jurídicas, as de regulamentação e de conflitos, se as primeiras só pudessem exercer a sua
função sociojurídica ou actuar os seus fins no enquadramento definido pelas segundas. As
valorações e conteúdos jurídico-materiais não estão condicionados a um determinado esquema de
direito conflitual; tanto assim é que as alterações legislativas operadas num dos planos deixam o
outro intacto. É perfeitamente possível separar o direito material e o direito de conflitos, tanto mais
que preenchem funções diferentes: o DIP tem uma justiça conflitual. Assim, esta unidade é uma

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

ficção. Para além disto, costuma ainda apontar-se a objecção do círculo vicioso: se devemos atender
às normas de conflito da lei designada pela lei do foro, também devemos atender às regras de
conflito da lei indicada por esta, e assim sucessivamente.
 Argumenta-se também que esta doutrina potenciaria a aplicação da lei do foro, o que é
vantajoso do ponto de vista da boa administração da justiça. Este é um argumento datado – é bom,
sem dúvida, que os tribunais possam aplicar as suas próprias leis. Mas é melhor ainda que eles
apliquem às situações da vida internacional a legislação que em melhores condições estiver para
intervir. Para além disto, este argumento, a valer, apenas valeria par ao caso do retorno, em que a
aceitação do reenvio determina a aplicação da lei do foro.
 Devemos aceitar o reenvio porque ele favorece a harmonia jurídica internacional. Se
aceitarmos o reenvio da Lei 2 para a Lei 1 (retorno) ou para a Lei 3 (transmissão), a decisão será
idêntica à proferida por um juiz que pertença à Lei 2. Independentemente do lugar onde a causa
seja julgada, a lei aplicada é a mesma, ou seja, a justiça da causa deixa de depender do lugar da
propositura da acção. Acontece, porém, que a devolução simples constitui, por vezes, um obstáculo
à própria harmonia jurídica internacional. Veremos alguns casos:
Caso 1 (retorno): L1  (DS) L2  (RM) L1 (aplica-se a L1 porque a referência feita
pela L2 é material - aqui há harmonia jurídica internacional)
Caso 2 (retorno): L1  (DS) L2  (DS) L1 (aqui não há harmonia jurídica
internacional, porque a L1 aplicaria a L1 e a L2 aplicaria a L2.)
Caso 3 (transmissão de competências): L1  L2  L3 (a L3 tem que se considerar
competente para haver harmonia jurídica internacional)

3) Teoria do duplo reenvio, dupla devolução, reenvio total ou Foreign Court Theory
De acordo com esta teoria, o juiz deve, ao interpretar e aplicar a regra de conflitos, alinhar
rigorosamente a sua decisão por aquela que seria tomada pelo juiz estrangeiro. A referência da
norma de conflitos do foro a determinada lei estrangeira impõe aos tribunais locais o dever de
julgarem a causa tal como ela seria provavelmente julgada no Estado onde essa lei vigora.
Em termos técnicos, qual é a diferença em relação à perspectiva da devolução simples?
Quanto partimos do sistema de devolução simples, devemos atender às regras de conflito da L2; no
da devolução dupla, devemos tomar em consideração não apenas as suas regras de conflito da L2,
mas também as regras sobre o reenvio, o próprio sistema de reenvio da lei indicada.

Vamos ver vários casos para compreender estas teorias:

L1  (DD) L2  (RM) L3
Resolução: L1  L3 (aplica a L3, porque “faz tudo” o que a L2 fará e a referência da L2  L3 é
material.)

L1 (DS) L2  (DS) L3  (RM) L4


Resolução: L1  L3
Se a L1 faz uma DS à L2, olhamos para a regra de conflitos da L2 (não olhamos ao sistema de
reenvio, porque a devolução é simples), que manda aplicar a L3. A L1 aplica a L3. Há só um
reenvio - da L2 para a L3.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

L1  (DD) L2  (DS) L3  (RM) L4


Resolução: L1  L4
Se a L1 faz DD à L2, o juiz vai alinhar a posição que toma por aquilo que decidiria o juiz da
L2. Como a L2 faz uma DS à L3 e a L3 faz uma RM à L4, aplicamos a L4. Há dois reenvios: da L2
para a L3 e da L3 para a L4.

L1  (DD) L2  (RM) L3  (RM) L4


Resolução: L1  L3
A L1 faz uma dupla devolução para a L2; a L2 aplica a L3, porque a referência é material.
Logo, a L1 aplicará a L3. Atente-se que embora exista um duplo reenvio, só há um reenvio neste
caso: L2  L3.

A perspectiva da dupla devolução contribui ainda mais para a harmonia jurídica


internacional, uma vez que resolve o litígio tal como se surgisse perante o juiz da Lei 2. Este é assim
o grande argumento favorável a esta doutrina; porém, mais uma vez, criticamos aqui que, levada às
últimas consequências, esta teoria levaria a um círculo vicioso. Se todos os sistemas adoptassem esta
perspectiva, teríamos aquele jogo internacional de espelhos. Ora veja-se:

L1  (DD) L2  (DD) L3  (DD) L4  (DD) L2

3.1.2. Posições pragmáticas.

O reenvio não pode ser aceite como princípio geral na aplicação da regra de conflitos. Isto
não significa, porém, que ele não possa servir como uma técnica utilizada sempre que tal seja útil à
prossecução de interesses ou valores fundamentais do DIP, nomeadamente para garantir a
harmonia jurídica internacional e, consequentemente, a segurança jurídica. O reenvio é um
expediente prático-normativo, uma técnica e não um princípio geral do DIP. Adoptamos entre nós
uma posição pragmática – BAPTISTA MACHADO e FERRER CORREIA.
No caso português, adoptou-se a via pragmática no CC de 1966, rejeitando-se a aplicação
sistemática do reenvio (art. 16.º) e definindo com rigor o âmbito em que o reenvio deve actuar. A
posição adoptada pelo legislador português vai assim na linha da posição pragmática, garantindo
nomeadamente a harmonia jurídica internacional e podendo constituir como tal um factor de
certeza jurídica. A ideia da harmonia jurídica internacional foi, com efeito, a principal inspiração do
legislador, numa orientação altamente progressiva. Fala-se de um reenvio-coordenação por este é
utilizado como instrumento de coordenação dos OJ's.
Temos de atentar num conjunto de artigos: arts. 16.º a 19.º; e 36.º/2, bem como 65.º/1, parte
final, do CC.

Grandes princípios que estruturam o regime legal relativo ao reenvio:


o Harmonia jurídica internacional
o Harmonia jurídica qualificada - matéria de estatuto pessoal
o Princípio da maior proximidade ou efectividade das decisões
o Princípio do favor negotii
o Princípio da boa administração da justiça

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

Art. 16º CC - O legislador, quando fala de direito interno, refere-se ao direito material e não
ao direito de conflitos. Ou seja, salvo solução contrária, a referência que deve valer é material. Há
muitos preceitos que apontam em sentido contrário. Por isso, BAPTISTA MACHADO dizia que “no
art. 16º não podemos dizer que esteja consagrado um princípio geral “anti-reenviante”. Está apenas
consagrada uma regra pragmática que cederá sempre que se justifiquem os desvios em nome dos princípios
caros do nosso DIP”.
Isto terá grande relevância, porque se entendermos este artigo como um princípio geral
apenas com as excepções legalmente previstas, tal impossibilitaria uma interpretação analógica dos
arts. 17º e 18º - contemplariam uma lista taxativa. Mas isto não acontece: para além dos casos
expressamente previstos na lei, aceitamos o reenvio noutros casos quando estejam em causa
princípios fundamentais do DIP.

Vamos agora analisar os princípios do DIP que podem levar à aceitação do reenvio:

1) Harmonia jurídica internacional (art. 17º/1 e 18º/1 CC)

Estes dois preceitos tratam de casos diferentes:


• Art. 17.º: trata das situações de transmissão de competência. A nossa lei considera como
competente uma L2, e esta segunda lei, por sua vez, atentando às suas regras de conflito, considera
como competente uma L3.
• Art. 18.º: aplica-se aos casos de retorno. A L2 devolve a competência à L1 (lei portuguesa).
Para que estejamos perante estes casos, não pode suceder que a L2 se considere a si própria
competente – aí, não temos um conflito de sistemas. Só temos conflito quando a L2 remete para a L1
ou para uma L3.

O art. 17.º/1 afirma que, num caso de transmissão de competência, aceita-se o reenvio se a L3
se considerar competente. Porque é que o legislador toma esta posição? Em virtude da harmonia
jurídica internacional: se o problema tivesse sido colocado perante um tribunal da L2 ou da L3, a lei
aplicável seria também a L3. Ou seja: se aceitarmos o reenvio, e este art. 17.º permite fazê-lo, temos
sempre a mesma lei aplicável.
Porém, e se a terceira lei se não se considerar competente?
• Se remeter de novo para a L2 e esta se considerar competente, aplica-se a L2 (quer porque
esta lei se considera aplicável e temos harmonia de soluções, quer porque não está verificado o
requisito de que dependia a aplicabilidade da L3). No fundo, a L2 não se considera directamente
competente, mas apenas indirectamente competente.
Ex1: L1  L2  (DS) L3  (RM) L2 Ex2: L1  L2  L3  (DS)  L2
L1  L2 / L2  L2 / L3  L2 L1  L3 / L2  L3 / L3  L3

• Se remeter para uma L4, que se considere competente, temos um caso de transmissão de
competência em cadeia. Também aqui podemos aplicar a L4, potenciando a harmonia jurídica
internacional. Mas temos de fazer aqui uma precisão: para que se aplique a L4, é necessário que a L2
adopte um qualquer sistema de referência global, pois aí vai olhar, não para o direito material da
L3, mas para as suas regras de conflitos. Só neste caso é que existe acordo quanto à competência e
atingimos a harmonia jurídica internacional: a L2, 3 e 4 aplicariam todas a L4.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

Ex: L1  L2 (DS ou DD) L3  L4


L4  L4 (tem que se considerar competente) /L3  L4 /L2  L4 / L1  L4

Quanto ao art. 18.º/1, este estabelece que, num caso de retorno, a lei material do foro (lei
portuguesa) é aplicável se a L2 devolver para o direito português. Ou seja, é necessário que a L2
adopte um sistema de referência material (FERRER CORREIA), pois só neste caso é que estamos a
cumprir o preceito do art. 18.º/1 – a L2 tem de remeter para o direito material português. Se
adoptássemos aqui o sistema da referência material, as duas leis teriam posições diferentes quanto à
lei aplicável; com o retorno, ambas aplicam a L1 – mais uma vez, está aqui subjacente a harmonia
jurídica internacional (o reenvio é “um meio necessário” para atingir este fim). Já se a referência da
norma de conflitos estrangeira for uma referência global (devolução simples ou dupla), o reenvio
não promove, antes impede, a uniformidade de valoração – nesta hipótese, aplica-se o direito
material da L2.
Ex1: L1  L2  (RM) L1
Deve haver reenvio!
L1  L1 / L2  L1

Ex2: L1  L2  (DS) L1 Não deve haver reenvio, aplicando-se o art. 16º CC.*
L1  L2 / L2  L2

Ex3: L1  L2  (DD) L1 Não deve haver reenvio, aplicando-se o art. 16º CC.
L1  L2 / L2  L2

Á partida, no Ex2 e Ex3 não se justifica o reenvio porque já está assegurada a harmonia
jurídica internacional (FERRER CORREIA). Porém, no que toca ao Ex3, há divergência doutrinal
quanto à sua interpretação, existindo autores (como BAPTISTA MACHADO) que consideram que o
reenvio deve ser aceite. (que veremos já no próximo ponto)

E se a L2, em vez de remeter para a L1, remeter para uma L3 e esta remeter para a L1? Temos
aqui um retorno indirecto, feito por intermédio da L2. Aqui, justifica-se aplicar a L1? A resposta é
positiva: tendo em vista a ratio legis (a harmonia jurídica), deveremos aceitar aqui o reenvio quando
se verifiquem aqui duas condições cumulativas:
• A remissão da L2 para a L3 ser uma referência global (DS ou DD).
• A remissão da L3 para a L1 ser uma referência material.
Estes requisitos são exigidos pois só neste caso é que o reenvio é um meio de assegurar a
harmonia jurídica internacional. Por outro lado, apesar de a letra do art. 18.º/1 falar em devolver
para o direito português, basta interpretar este devolver como sendo directa ou indirectamente para
também podermos aplicar a L1.
Ex: L1  L2  (DS ou DD) L3  (RM) L1
L1  L1 / L2  L1 / L3  L1

2) Boa administração da justiça


Há uma hipótese em que poderá cobrar relevo este princípio. Imaginemos que a L1, portuguesa,
considera como competente uma L2, e esta devolve a competência para a L1 segundo o sistema da

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dupla devolução (ou seja, o juiz da L2 alinha a sua posição por aquela que seria tomada pelo juiz da
lei indicada pela sua regra de conflitos, no caso da L1).

Há aqui duas leituras possíveis para esta situação:


• A leitura mais literal diria que, quando o art. 18.º/1 exige uma devolução para o direito
material português, exige que esta adopte um sistema de referência material. Como a L2 adopta um
sistema de dupla devolução, a lei portuguesa não pode aceitar o retorno, logo voltaríamos ao art.
16.º e faríamos uma mera referência material para o direito estrangeiro. Quer o caso fosse resolvido
pelo juiz da L1, quer da L2, aplica-se sempre a L2, respeitando a harmonia jurídica internacional.
Esta é a leitura que FERRER CORREIA faz.
• Porém, é possível uma outra leitura: o sistema da L2 é interpretável em rigor como aceitando a
competência da lei portuguesa, sob a condição de esta se considerar a si própria aplicável. A lei
portuguesa, ao aceitar o retorno, aplicaria a lei portuguesa; e, neste caso, o juiz da L2 consideraria
também como competente a lei portuguesa (uma vez que o juiz da L2 decidiria como o juiz
português).

Ou seja: em ambos os casos há harmonia jurídica internacional; porém, na segunda leitura,


temos mais uma vantagem – o juiz português aplica uma lei que conhece (boa administração da
justiça). O reenvio é aceite mesmo que não seja preciso para a harmonia jurídica internacional.
Assim, aceitamos aqui o reenvio, na linha de BAPTISTA MACHADO.

3) Princípio da harmonia jurídica qualificada (art. 17º/2 e 18º/2 CC)

Em matéria de estatuto pessoal, temos regras específicas. Na perspectiva do legislador, existe


um conjunto de matérias que, pela natureza eminentemente pessoal (art. 25º CC), devem ser
governadas por uma lei que os indivíduos possam olhar como sua lei, à qual possam considerar-se
ligados por um vínculo verdadeiramente substancial e permanente. Esta lei apenas pode ser a lei da
nacionalidade ou a lei da residência habitual. Apesar de o legislador português ter escolhido o
elemento da nacionalidade, isto não significa que não tenha dado importância à lei da residência
habitual. Encontramos vários pontos em que isto é visível, nomeadamente no art. 31.º/2 e em
matéria de reenvio. Quando não haja acordo entre a nacionalidade e a residência habitual, isto é,
quando não tenhamos uma harmonia jurídica qualificada, o legislador vai ter relutância em aceitar
o reenvio.
O princípio aqui é o seguinte: a aplicação de uma lei diferente tanto da lei da nacionalidade ou
da lei do foro constitui uma má solução; porém, esta solução será aceite quando haja acordo entre
estas duas leis (harmonia jurídica qualificada).

O art. 17º/2 CC refere-se aos casos de transmissão da competência, e diz que a L3 não será
aplicável (isto é, cessa o reenvio, embora exista harmonia jurídica internacional, porque se releva
a harmonia jurídica qualificada), apesar de se considerar competente, em dois casos:
• Se o interessado residir habitualmente em território português. Ou seja, a L1 (da
residência) remete para a L2 (da nacionalidade), que por sua vez remete para uma L3, que se
considera competente. Neste caso, cessa o reenvio e aplica-se a lei da nacionalidade (L2). Se a L3 for,
por ex., a lei do local, esta solução terá a sua eficácia garantia nesse Estado que, tal como o da

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

residência é um dos mais fortemente ligados à relação controvertida; assim, não haveria grande
vantagem em renunciar à aplicação da lei pessoal.
Ex: L1 (RH)  L2 (N)  L3 (que se considera competente)

• Se o interessado residir num país cujo direito de conflitos devolva para a lei da
nacionalidade. Ou seja, a L1 remete para a L2 (da nacionalidade), que por sua vez remete para uma
L3, que se considera competente; porém, ao mesmo tempo, temos um outro Estado que não o
português, da residência, que remete igualmente para a L2. Neste caso, o reenvio cessa igualmente e
aplica-se a L2, da nacionalidade. Aqui, não aceitar o reenvio não significa ter de aplicar uma lei que
em parte alguma seja considerada aplicável: a lei da nacionalidade é tida como competente num dos
Estados mais fortemente interessados na situação, o Estado do domicílio; e segue-se aqui o critério
de aplicação da lei da nacionalidade ou da lei da residência.
Ex: L1  L2 (N)  L3 (que se considera competente)

L4 (RH)

Nestas hipóteses, a lei aplicável é sempre a L2, da nacionalidade. A L3 em princípio aplicar-


se-ia pelo art. 17.º/1; porém, nestes casos, o legislador prefere a lei da nacionalidade por ser uma
das leis mais importantes.

O art. 18.º/2 refere-se aos casos de retorno, e diz que o reenvio só é de admitir em duas
hipóteses:
• Na hipótese de o interessado ter a residência habitual em território português – ou seja, a
L1 (portuguesa, da residência habitual) indica como competente a L2 (da nacionalidade), que
devolve a competência para o direito material português.
Ex: L1 (RH, PT)  L2 (N)  (RM) L1
L1  L1 / L2  L1

• Na hipótese de a lei da residência habitual remeter também para a lei portuguesa – ou seja,
a L1 indica como competente a L2 (da nacionalidade), que devolve a competência para o direito
material português; ao mesmo tempo, existe uma L3 (da residência habitual), que remete também
para a L1.
L1  L2 (N)  L1

L3 (RH)

Neste último caso, a aceitação do reenvio significa a aplicação de uma lei que não é nem a da
nacionalidade, nem a da residência. Porque é que isto é possível? Porque, apesar de a L1 não ser
nem a lei da residência nem da nacionalidade, quer a lei da residência, quer a lei da nacionalidade,
consideram como competente a lei portuguesa. Faz sentido respeitar o acordo destas duas leis. E
isto não significa que estejamos a pôr em causa o princípio da harmonia jurídica material – antes
pelo contrário.
Nas restantes hipóteses possíveis de retorno, deve entender-se que o reenvio deve ser
rejeitado: a definição do estatuto pessoal por uma lei diferente da lei da nacionalidade ou da

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

residência habitual é tida, em princípio, como uma má solução, e só motivos especiais podem levar-
nos a aceitá-la.
Por outro lado, como a situação jurídica em causa está ligada à lei do foro, não há grande
risco de a aplicação da lei da nacionalidade não vir a ser reconhecida em lado nenhum: será eficaz
pelo menos no Estado do foro.

Com uma certa analogia com esta situação está uma outra hipótese, não prevista.
Imaginemos que a L1, portuguesa, considera como competente a lei da nacionalidade (L2);
por sua vez, a L2 considera como competente uma L3, a lei do lugar dos bens, de acordo com o
sistema da referência material. Porém, a L3 remete para a L2 de acordo com o sistema da referência
material. De acordo com o art. 17.º/1, não haveria reenvio, pois a L3 não se considera competente:
assim, não faria sentido aplicar a L3, aplicando-se antes a L2.
Mas imaginemos que a residência habitual do sujeito é num Estado de uma L4, que
considera como competente também a lei do lugar da situação dos bens (L3), mais uma vez com
referência material. Aqui, já faz sentido aplicar a L3, respeitando o acordo entre a lei da
nacionalidade e da residência, sempre que esteja em causa matéria pessoal.
Ex: L1  L2 (N)  (RM) L3  (RM) L2
↑(RM)
L4 (RH)

Ou seja: a lei da nacionalidade, L2, considera como competente a L3; e a lei da residência, a
L4, também aplicaria a L3 – se é verdade que não há harmonia jurídica internacional, as duas leis
mais importantes estão de acordo na competência da L3, pelo que vamos estar a dar efeito à ideia
da harmonia jurídica qualificada. Isto implica desconsiderarmos a letra do art. 17.º/1, quando este
exige que a L3 se considere competente, pois o seu fundamento é a harmonia jurídica internacional.
Nesta situação, não prevista pelo legislador, é, não a harmonia jurídica internacional, mas sim a
harmonia jurídica qualificada que vai servir de fundamento. Apesar de esta solução não se inferir
directamente do Código, está de acordo com os seus princípios.

Nota:
Aqui chegados pode surgir uma dúvida: porque é que estando no âmbito do estatuto
pessoal, só aceitamos retorno se houver harmonia jurídica qualificada (exista acordo entre a lei da
nacionalidade e a lei da residência habitual) e, pelo contrário, podemos aceitar a transmissão
mesmo sem o tal acordo? Veremos este exemplo clássico:
L1  L2 (N)  L3
L4 (RH - considera-se competente a ela própria)
Esta é uma hipótese em que não se aplica o 17º/2, devendo haver em princípio reenvio,
aplicando-se a L3 (ora, fazemos reenvio no âmbito do estatuto pessoal sem haver esse acordo)

Quanto a esta diferença, costumam ser dadas duas explicações:


- Ferrer Correia parte da seguinte ideia: em matéria de retorno (art. 18º/2) é natural que o
legislador fosse mais exigente para aceitar o reenvio porque as situações de retorno têm uma
ligação mais forte com o nosso OJ do que os casos de transmissão. (art. 17º/2)

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

- Baptista Machado considera que não é o art. 18º/2 que é mais exigente, mas o art. 17º/2 que é
menos exigente, porque entende que se parte do princípio segundo o qual, em matéria de estatuto
pessoal, só deve haver reenvio se houver acordo da lei nacional e da lei do domicílio. Ora, porque
na transmissão pode haver reenvio sem acordo? Porque neste caso, se exigíssemos sempre o
acordo, poderíamos chegar a soluções desfavoráveis - a casos em que exigindo harmonia jurídica
qualificada, e não fazendo o reenvio, podíamos ser conduzidos a aplicar uma lei não aplicada nem
pela lei da nacionalidade nem pela lei da residência. Parte-se de uma ideia de “mal menor”.

4) Princípio da maior proximidade (art. 17º/3 CC)

Tem relevo indirecto (art. 17.º/3). Imaginemos agora que a L2, da nacionalidade, remete para
uma L3, que é a lei do lugar da situação dos bens, que se considera competente. Neste caso, o art.
17.º/3 diz que, tratando-se de uma das matérias nele enunciada (designadamente, matéria
sucessória) se aplica a regra do n.º 1 (ou seja, desaplica-se o n.º 2), havendo reenvio a aplicando-se a
L3.
Ex: L1  L2 (N)  L3 (lex rei sitae e que se considera competente)

L4 (RH)

Porque é que damos preferência à L3? Este art. 17.º/3 constitui uma manifestação indirecta do
princípio da maior proximidade: apesar de não ter consagrado este princípio com regra geral, o
legislador entende que, por vezes, faz sentido dar competência a uma lei por ser a que está mais
bem colocada para impor o acatamento das suas regras. Existindo um regime específico para os
bens imóveis, o legislador não adoptou uma perspectiva geral de dar competência à lei do lugar dos
bens imóveis, mas aceitou dar algum valor a essa lei em certas circunstâncias – esta é uma delas.
Porém, não é apenas o facto de ser a lei mais bem colocada que fundamenta esta solução; além
disso, a L3 é a lei considerada competente no país da nacionalidade, ou seja, é a própria lei da
nacionalidade que determina como competente essa lei. Assim, aceitamos, ainda que a lei da
residência determine que é aplicável a lei da nacionalidade, aplicar a terceira lei na medida em que
esta se considera competente e é considerada competente pela lei da nacionalidade. Já se houver
acordo entre a lei da nacionalidade e da residência habitual, temos ainda a ideia de harmonia
jurídica qualificada.
Assim, temos a fundamentar o reenvio o princípio da maior proximidade, que tem valor em
matéria, e ainda e sempre o princípio da harmonia jurídica internacional. Se considerarmos apenas
as leis envolvidas, a L1, 2 e 3 manter-se-ão em acordo em aplicar a terceira lei.
Trata-se de um afloramento indirecto do princípio da maior proximidade porque para
aplicarmos a lex rei sitae não basta que se considere competente, senão que tem que ser indicada
pela lei da nacionalidade.

5) Princípio da conservação dos negócios jurídicos ou do favor negotii

Temos que ter em conta que pode funcionar em dois sentidos:

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

1) Casos em que o favor negotii é um limite ao reenvio.


Em princípio, podia haver reenvio, porque se cumprem os requisitos do art. 17º/1 ou 17º/3;
18º/1 ou 18º/2 CC, mas vamos rejeitá-lo sempre que ele leve à invalidade do negócio. Assim,
estamos a falar do caso em que o negócio é válido substancialmente na perspectiva material da L2,
indicada pela nossa regra de conflitos, mas inválido de aplicarmos a L3 ao aceitar o reenvio. Ou
seja:

L1  L2  L3 (considera-se competente)

Verifica-se o 17º/1, em princípio devia haver reenvio.


Mas, imaginemos que na L3 o acto é inválido e, se não houvesse reenvio, o negócio seria
válido. Nestes casos, fazemos cessar o reenvio e aplicamos a lei designada pela nossa regra de
conflitos, para evitar que se frustre a validade do negócio ou as expectativas jurídicas das partes.

L1  L2  (RG) L3  (RM) L1

Verifica-se o art. 18º/1, em princípio devia haver reenvio, aplicando a L1.


Mas se o acto for inválido em L1 e válido em L2, neste caso não tem sentido aceitar este
retorno porque sacrificaria as expectativas individuais, embora houvesse harmonia jurídica
internacional. O melhor é não fazer o reenvio e fazer funcionar o art. 16º CC.

Essa solução está expressamente consagrada no art. 19º/1 CC. O princípio favor negotii actua
assim como limite ao reenvio, como sua causa de afastamento: se a questão da validade do negócio
for decidida em termos opostos pela lei que reenvia e por aquela para a qual se reenvia, prevalecerá
a que tiver o negócio como válido. Pressupostos da sua aplicação:
1) É necessário que à partida pudesse haver reenvio.
2) É necessário que fazendo-se o reenvio, ele conduza à invalidade do negócio ou ilegitimidade do
estado
3) Fazendo funcionar a regra do art. 16º (RM), a L2 considere o negócio válido ou o estado legítimo.

De qualquer modo, Ferrer Correia defenda uma interpretação restritiva do art. 19º/1 CC ao
entender que a sua ratio legis é a seguinte: se os interessados realizaram o negócio jurídico de
conformidade com as disposições de um sistema de direito material que é o declarado competente
pela regra de conflitos do foro, e se for de crer que eles se orientaram por esta norma de conflitos,
então não seria justo frustrar a confiança que depositaram na validade do acto. Assim, devemos
fazer uma interpretação restritiva do art. 19.º/1, o que significa acrescentar dois requisitos
fundamentais para que a norma possa ser aplicada, em função da própria teleologia desta regra – o
favor negotii, que se funda na ideia da tutela de expectativas legítimas do particular.
Sendo este o fundamento da regra, só podemos aplicá-la quando estiverem preenchidos dois
requisitos adicionais:
• Que o negócio tivesse com a ordem jurídica portuguesa algum contacto no momento da
sua constituição. Porquê? Porque só se houvesse algum contacto com a ordem jurídica portuguesa
é que poderemos de alguma maneira presumir que as partes confiaram ou podem ter confiado na
aplicação da lei designada pela nossa regra de conflitos. Se o negócio não tivesse nenhuma ligação

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com a ordem jurídica portuguesa, não se poderia dizer que os particulares confiaram na aplicação
da nossa regra de conflitos portuguesa. Este é o índice mínimo para podermos presumir que os
particulares confiaram nessa regra, ou seja, presumimos que os particulares confiaram apenas na
regra de conflitos, não formulando aqui maior exigência.
• Temos de estar perante um negócio jurídico, ou um estado, já constituído, isto é, o art.
19.º/1 aplica-se apenas a relações jurídicas já constituídos e não também a negócios jurídicos a
constituir. Nos negócios jurídicos a constituir, ainda não há nenhuma expectativa legítima a
proteger. Isto assume relevância prática no caso de negócios jurídicos a celebrar em Portugal com
intervenção de um agente do Estado ou autoridade pública.

2) Casos em que o favor negotii é um fundamento autónomo do reenvio, porque o vamos


aceitar independentemente dos requisitos gerais, isto é, embora não exista harmonia jurídica
internacional. Para FERRER CORREIA, o ideal seria examinar o problema no quadro de cada
tipo negocial, só admitindo o reenvio com este fundamento nos domínios em que o interesse
na conservação do negócio se faça sentir com particular intensidade.

O Código de 1966 só aceitou o reenvio com fundamento autónomo no favor negotii na hipótese
de a invalidade do negócio resultar de vício de forma, arts. 36.º/2 e 65.º/1 CC. O art. 36.º/2 trata da
forma geral; o art. 65.º/1, da forma do testamento. Imaginemos que, segundo a L2 (lei do lugar da
celebração), o negócio é inválido; mas que esta lei remete para uma L3, segundo a qual o negócio é
válido. Aceitamos o reenvio e aplicamos a L3 na busca da validade formal e independentemente de
ela se considerar competente (ao contrário do que sucede no art. 17.º/1). A forma observada é uma
daquelas que são reconhecidas pela ordem jurídica do país da celebração do acto, o que se
considera bastante. A mesma ideia está presente no art. 65.º/1 em matéria de testamentos. Assim,
nos termos dos artigos mencionados, o favor negotii funciona como um fundamento autónomo do
reenvio: é ele que faz com que não apliquemos a lei designada pela regra de conflitos, mas sim uma
terceira lei.
Estas normas têm hoje uma aplicação residual. Em matéria de forma, há regras de conflitos
especiais nos instrumentos europeus que derrogam estes artigos. (Veja-se o Regulamento Roma I;
Regulamento Europeu das Sucessões).

Em alguns casos podemos falar de conexões que são por natureza anti reenviantes, ou seja,
que, quando existam, em princípio não devíamos aceitar o reenvio. Onde costumamos ver estas
conexões?
1)_Vontade das partes. Não há reenvio (mas sim mera referência material) se a lei
estrangeira tiver sido designada pelos interessados, quando essa designação for permitida. Existe
esta conexão em matéria obrigacional, sucessória, divórcio, extracontratual, alimentos, etc... Nestes
casos o que as partes querem é designar uma ordem jurídica material para reger o contrato, logo
deve entender-se que essa escolha é dirigida ao direito material. Em tese, seria possível que as
partes quisessem estar a remeter para o DIP dessa lei, mas isto não sucede na prática. E mais – em
rigor, não temos aqui um conflito de sistemas, uma vez que a vontade das partes é a de aplicar um
certo sistema de direito material. Em suma, deve aplicar-se a lei designada pelas partes, mesmo que
essa lei não se considere competente. Esta ideia está consagrada no art. 19º/2 CC.

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

Nota: Mas as partes, ao escolher a lei espanhola, podem estar a contar com o funcionamento
da regra de conflitos espanhola. Nestes casos o que temos é um problema de interpretação da
vontade das partes.

2) Lugar da celebração. Quando o legislador prevê que é competente a lei do lugar da


celebração, é com vista a facilitar às partes a realização de negócios jurídicos em Estados diferentes
daquele a que os mesmos negócios pertencem. Mas a verdade é que há sistemas como o nosso (art.
36.º/2 e 65.º/1) que estabelecem casos de reenvio precisamente em matéria de validade formal. Há
aqui uma circunstância material que justifica reenvio mas, tirando esta salvaguarda, podemos dizer
que esta é uma conexão inimiga do reenvio.

3) Princípio da conexão mais estreita. (P.e. 52º/2 e 60º/2 CC). Não teria muito sentido
mandar aplicar a lei que tem uma conexão mais estreita e depois aplicar-se outra lei para a qual esse
ordenamento remete. Deve aplicar-se o ordenamento jurídico indicado mesmo que ele não se
considere competente.

3.2. O princípio da maior proximidade.

Surge para resolver os conflitos positivos de sistemas de DIP. Estes nascem da circunstância
de as regras de conflitos serem diferentes de Estado para Estado, traduzindo-se no facto de que
podem existir vários ordenamentos jurídicos que se consideram aplicáveis a uma mesma relação
privada internacional. Para resolver este conflito, volta a aparecer a ideia segundo a qual a questão
de sabermos se e quando devemos aplicar a regra de conflitos do foro ou a regra de conflitos
estrangeira, depende se aceitamos a possibilidade de afastar a aplicação da nossa regra de conflitos
para tutelar a justiça conflitual imanente ao nosso sistema de DIP.
Este é um princípio que foi formulado por Zittelmann, mas já tinha sido aplicado em Itália
(Turim). A sua formulação é a seguinte: sendo um conjunto de bens e direitos concebidos
unitariamente pela lei mais apropriada para o reger, há no entanto que distrair da universalidade
aqueles elementos que a ela não pertençam, segundo o estatuto próprio de cada um. Ou seja, a lei
do foro concebe determinado conjunto de bens e direitos (por ex., a herança) unitariamente e por
isso manda-o regular por uma única lei (a e lei pessoal do de cujus); porém, alguns dos elemento da
universalidade estão sujeitos a uma ordem jurídica que não perfilha a concepção unitária – nestes
casos, é necessário extrair esses elementos do conjunto e aplicar-lhes o estatuto próprio, ou seja, o
estatuto do todo cede perante o estatuto da parte. O princípio da maior proximidade impõe assim a
abdicação da competência por parte da lei normalmente competente para reger um conjunto de
bens ou direitos em favor da aplicação da lei da situação de alguns desses elementos.
Quando falamos deste princípio, há, desde logo, uma tendência para haver uma certa
confusão deste princípio com o princípio da proximidade ou da localização – este último é um
princípio geral do DIP que diz que cada situação jurídica deve ser regida pela lei que se encontra
mais próxima (art. 46º CC).

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

Em sentido estrito, podemos ter duas acepções deste princípio:

1) Uma acepção restrita ou material


Nesta acepção, a lei reguladora de um património cederá a sua competência à lei do Estado
da situação das coisas na medida em que tais elementos estejam sujeitos, no Estado onde se situam,
a um regime especial de direito material (por motivos de política económica ou semelhantes). É o
caso da casa de morada de família que tem um regime especial de direito material diferente do
existente face à generalidade dos bens.
Esta acepção restrita ou material do princípio não está expressamente consagrada na lei. Mas
é uma formulação que deve e pode ser aceite através de dois expedientes:
(1) O instituto da qualificação (A norma, pelo conteúdo e função, é uma norma real e por
isso subsume-se ao conceito quadro do art. 46º CC);
(2) Categoria das normas de aplicação necessária e imediata. É o caso do regime da casa de
morada de família. Aplica-se quando existir uma conexão ad hoc, isto é, quando a casa de morada de
família esteja situada em Portugal. Através deste instrumento que se inclui dentro dos métodos do
DIP – neste caso, as normas de aplicação necessária e imediata – estamos a criar um regime especial
para um certo bem, distraído da universalidade. Se existir este regime material especial, podemos
dizer que a afirmação da competência desta regra é, numa acepção restrita, a afirmação do princípio
da maior proximidade.

FERRER CORREIA pronuncia-se a favor da primeira acepção: nos casos que ela pretende
abranger, a competência da lex rei sitae impõe-se a todas as luzes – trata-se de patrimónios
destacados de um património geral, sendo-lhes aplicado um regime especial; e a afectação a um
regime especial justifica-se por razões ponderosas, de política social ou económica.

2) Uma acepção ampla ou conflitual


Nesta acepção, a competência da lei da situação dos bens impõe-se não só na hipótese
referida acima, mas também quando a lei do lugar das coisas se considere exclusivamente
competente no que respeita a esses bens. Ou seja, segundo esta acepção, são dois os casos em que se
deve aceitar a citada abdicação da competência:
• Quando a lei do lugar das coisas submete certos elementos a um regime especial de direito
material;
• Quando essa lei organiza para os bens imóveis uma regulamentação especial de DIP – ou seja,
basta que o regime especial seja, não de direito material, mas de DIP. Note-se que a lex rei sitae se
tem de considerar competente a esse título.

Historicamente, esta formulação do princípio da maior proximidade foi aceite na Alemanha


e serviu de base para a interpretação do art. 28º da Lei de introdução ao BGB.
Ferrer Correia fazia vários reparos a esta acepção ampla. O argumento teórico em que se
baseia diz que a eficácia de uma sentença judicial que incida sobre um daqueles bens destacados,
em princípio, está dependente de, nessa sentença, se terem aplicado as normas materiais do lugar
da situação dos bens – dada a ligação tão intensa do bem imóvel ao lugar da situação. Ora, este é
um argumento falível, por duas razões:

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• Essa aplicação do direito do lugar da situação do bem nem sempre é exigida. Nem sempre
o reconhecimento de uma sentença estrangeira (hoje, cada vez menos) está dependente de ter sido
aplicado um determinado direito material (no caso, do lugar da situação do bem). Ou seja, em
muitas circunstâncias, este princípio não é uma condição necessária para a eficácia da decisão
judicial.
• Se o Estado do lugar da situação do bem for tão exigente quanto ao regime jurídico dos
bens nele situados, normalmente exigirá que sejam os seus tribunais a regerem esses bens. E, nessa
circunstância, qualquer sentença estrangeira não poderá produzir efeitos nesse país – ou seja, a
aplicação de DIP não é condição suficiente para que uma sentença estrangeira seja reconhecida.

Em suma, pode não ser nem necessário, nem suficiente – e foi por isso que FERRER
CORREIA propôs no anteprojecto do Código uma regra que consagrava o princípio da
proximidade nesta acepção ampla apenas se tal fosse necessário e suficiente para assegurar uma
sentença do juiz português. Este artigo não passou; porém, ficaram dois afloramentos deste
princípio no nosso Código, o art. 17.º/3 e o 47.º.

• Art. 17.º/3: é um afloramento indirecto na medida em que não é previsto em primeira


linha nas regras de conflito sobre bens imóveis, mas apenas quando é a lei da nacionalidade a
considerar competente a lei do lugar da situação dos bens imóveis (e ela se considerar competente a
ela própria).
• Art. 47.º: é um afloramento directo mas limitado. Se quisermos saber a lei aplicável para a
constituição/transmissão de um direito real, aplica-se a lei do lugar da situação; mas e a para a
capacidade para dispor de um bem imóvel? Na ausência de regra especial, aplicar-se-ia a lei
pessoal, da nacionalidade, porque a questão da capacidade é uma das questões incluídas no âmbito
da lei pessoal. Porém, o art. 47.º diz que é igualmente definida pela lei do lugar dos bens imóveis a
capacidade para dispor desses bens, desde que essa lei se considere competente. Se a lei do lugar da
situação do bem não se considerar competente, voltamos à lei pessoal. Este é um afloramento
directo, na medida é que é uma regra de conflitos que dá competência à lei da situação do bem
imóvel; mas limitado pois, ao contrário da proposta doutrinária do Anteprojecto, apenas vale
limitadamente para a questão da capacidade.

Em suma: a primeira acepção vale inteiramente entre nós; a segunda, apenas nos arts. 17.º/3
e 43.º.

3.3. O reconhecimento de direitos adquiridos.

Trata-se de um conflito positivo de sistemas de DIP em que está em causa saber qual é o
tratamento a dar a uma relação jurídica que foi constituída no estrangeiro, e que é válida à luz da lei
do lugar onde se constituiu, mas que não é válida à luz da lei indicada pela nossa regra de conflitos.
No que toca às situações internacionais constituídas no estrangeiro, não deverá aceitar-se uma ideia
de competência alternativa, de modo a que essas relações possam ser reconhecidas ou com base na
lei de primordial designação (a indicada pelo DIP do foro), ou com base naquela conforme a qual
foram criadas.

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Este problema começou a sentir-se muito em 1920-1930, quando as ordens jurídicas eram
estritamente nacionais e fechadas sobre si mesmas - a regra de conflitos era um instrumento que
tinha carácter absoluto e formal, não conseguindo o DIP responder às necessidades de tutela das
expectativas individuais e promover uma boa coordenação das ordens jurídicas. Já vimos que hoje a
regra de conflitos não é vista dessa forma absoluta, mas sim de maneira relativa, podendo “cair” a
nossa regra de conflitos e aplicar-se consequentemente uma regra de conflitos estrangeira em prol
da prossecução das finalidades fundamentais do DIP e de justiça conflitual. (embora este método
não seja absoluto, existindo outros que visam a prossecução destas finalidades fundamentais do
DIP)

A noção de direito adquirido tem sido usada no DIP para diversos fins:
• Para conciliar a prática universal da aplicação de direito estrangeiro com o princípio da
territorialidade das leis e o dogma da soberania estatal – teoria dos vested rights, que assume hoje
um interesse meramente histórico.
• Para PILLET e seus continuadores (entre os quais, entre nós, MACHADO VILLELA), o
conflito de leis e o reconhecimento de direitos adquiridos são problemas distintos porque, na
hipótese de reconhecer, no Estado do foro, uma situação cujos factos constitutivos estavam todos
em contacto com um único ordenamento, nenhum conflito de leis se divisa.
• Para BAPTISTA MACHADO, o reconhecimento dos direitos adquiridos decorre do
princípio da não transactividade: uma lei é aplicável a todos e quaisquer factos que apenas estejam
em contacto com essa lei; e qualquer lei é potencialmente aplicável a quaisquer factos que estejam
conectados com ela. FERRER CORREIA critica esta formulação – apenas se pode retirar da natureza
da lei enquanto regula agendi que nenhum obstáculo deriva a que uma norma material se aplique a
determinadas situações factuais, desde que entre estas e a norma exista uma conexão susceptível de
relevância jurídica.

Em suma: na opção da situação jurídica de conexão única, não é necessário conceber a


existência de um princípio postulante do reconhecimento extraterritorial dos direitos adquiridos,
este decorre imediatamente da aplicação da lei estrangeira e esta, por seu turno, de uma norma de
atribuição de competência do ordenamento do foro.

Porém, sempre houve um temor em afirmar o problema do reconhecimento dos direitos


adquiridos, porque tal implica a não aplicação da lei que a regra de conflitos do foro manda
determina como aplicável. Vários autores procuraram equilibrar este jogo de tensões.

NIEDERER defendeu que sempre que o funcionamento da regra de conflitos bilateral


levasse ao não reconhecimento de uma situação e isso violasse a ordem jurídica fundamental do
foro, devíamos assegurar o reconhecimento dos direitos adquiridos, recorrendo ao expediente da
ordem pública internacional. Tal apresentava alguns riscos, como a subjectividade e incerteza que o
recurso a esse expediente criava e o facto de que o autor nunca se afastou dos quadros dogmáticos
tradicionais do direito de conflitos.
Já as doutrinas unilateralistas (em especial, NIBOYET) deram origem a um sistema
favorável de reconhecimento dos direitos adquiridos. Em primeiro lugar, devemos ver se a lei do
foro se quer aplicar; se não se quiser aplicar, aplicamos a lei estrangeira que tenha vontade de

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aplicação. De acordo com estes autores, a partir do momento que a lei do foro não tenha vontade de
aplicação, esse OJ reconheceria qualquer situação constituída à luz de uma ordem jurídica que
queira aplicar-se. Esta é uma solução que resulta do próprio funcionamento normal unilateralismo.
Ora, estes autores, por um lado, ao serem demasiado favoráveis ao reconhecimento, negligenciam o
título do reconhecimento, isto é, podem reconhecer situações jurídicas criadas a luz de uma lei que
tem poucas conexões com o caso; por outro lado, podem ser demasiado restritivos, porque em todas
as situações que a lei do foro se considerar competente, eles não vão reconhecer essas situações
criadas por outras ordens jurídicas que na altura possam ter conexão com o caso.
À partida, o sistema bilateralista é menos favorável ao reconhecimento de direitos
adquiridos que o sistema unilateralista. A regra de conflitos bilateral tanto delimita os casos de
aplicação da lei do foro, como da lei estrangeira, tanto nas situações a constituir como nas situações
a reconhecer. Reconhece-se, quanto a estes, três fases distintas:

1) Fase de esterilidade
Pensamos na obra de PILLET e MACHADO VILLELA. Esses autores deram um contributo
estéril para este problema, porque não abandonaram a rigidez bilateralista. Defendiam que se
deviam distinguir entre situações a constituir (conflito de leis) e situações a reconhecer (problema
cientificamente autónomo de reconhecimento), tendo sido esse o seu grande mérito.
Mas depois, defendiam que só se devem reconhecer as situações já constituídas que tenham
respeitado o direito competente de acordo com a regra de conflitos do foro, o que é totalmente
estéril.

2) Fase da abertura
A abertura começou a sentir-se a partir do momento em que a doutrina começou a
reconhecer limites de aplicação espacial às regras de conflitos – quando uma situação é criada sem
qualquer conexão com a OJ do foro, não se deve aplicar a regra de conflitos do foro. Inicialmente,
alguns autores começaram por defender que o reconhecimento de direitos adquiridos devia ser
feito sempre que a situação, embora constituída sem contacto com o foro no momento da sua
constituição, fosse válida face à unanimidade das OJ envolvidas – MERGERS e BATTIFOL.
Ora, exigindo a unanimidade das OJ, reconhecem poucas situações. Para mais, podemos
chegar ao mesmo resultado por outros institutos - se há unanimidade em todas as OJ, é possível o
reenvio porque há harmonia jurídica internacional (Ferrer Correia); Baptista Machado diz que se
todos estão de acordo, não há conflito de leis.
Na sequência desta construção, MAKAROV defende que, neste contexto, basta a maioria
preponderante. Aqui há mais situações de reconhecimento, embora se crie o problema de saber
como se densifica esse conceito de “maioria preponderante”

3) Fase do reconhecimento mais amplo


Com a ideia da autolimitação espacial da regra de conflitos, deixaram de se exigir tantos
requisitos para o reconhecimento de direitos adquiridos. Destaca-se o contributo de
FRANCESCAKIS, VALLADÃO e GRANLICH.
FRANCESCAKIS distinguia entre (1) situações a constituir e as (2) situações a reconhecer -
dentro destas, (2.1.) as situações a reconhecer que se criam sem contacto com o foro; (2.2.) as
situações a reconhecer que se criam com contacto com o foro.

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Nas situações a constituir, a lei aplicável era determinada pela regra de conflitos do foro,
assim como nas situações a reconhecer com contacto com o foro. Porém, quanto às situações a
reconhecer sem contacto com o foro, não deve fazer-se funcionar a regra de conflitos do foro, mas
sim a lei que presidiu à constituição da relação. Por conseguinte, nenhuma investigação terá de ser
feita acerca da competência dessa lei.
VALLADÃO partilhava desta posição, excluindo apenas os casos de ordem pública, fraude
à lei e competência exclusiva da lei do foro. Já GRAULICH prescinde destes critérios.

Quais as críticas que se fazem a estas doutrinas?


 Críticas quanto aos pressupostos:
o Estes autores partam da ideia de que a regra de conflitos deve ter limites de
aplicação no espaço. Porém, como sabemos, a regra de conflitos não é uma
regra de conduta e por isso não deve ter limites de aplicação, nem no espaço,
nem no tempo. Esta construção desconhece a verdadeira natureza da regra de
conflitos.
o Estes autores partem da ideia segundo a qual quando não há contacto com o
foro, a regra de conflitos do foro deve ceder, porque nestes casos o foro como
que se desinteressaria da regulamentação das situações. Ora, defendemos que
tanto nas situações a constituir como nas situações a reconhecer, quer tenham
contacto ou não, sempre se justificará que o OJ do foro controle a forma de
constituição das situações jurídicas.
 Críticas quanto aos resultados:
o Não se controla o tipo de reconhecimento, porque se reconhece qualquer
situação criada à luz de uma lei que se considerasse competente, quando a lei
do foro não se considerasse aplicável.
o Estas construções partem de uma ideia segundo a qual nós teríamos de criar
regras de conflitos sobre regras de conflitos - um DIP de segunda potência –
para resolver estes conflitos de sistemas de DIP. Tal conduziria a um ciclo
vicioso.

Ora, todas as teorias avançadas ao longo dos séculos permitem-nos perceber que a solução
está num equilíbrio entre os seguintes aspectos:
• Tutela da confiança das partes;
• Defesa da justiça conflitual – o nosso ponto de partida é sempre uma ideia de justiça
internacional privatística, com finalidades próprias - assegurar e promover a estabilidade e
continuidade da vida jurídica internacional.
• Princípio da Favor Negotii

À luz destes princípios, entendemos que devemos assim aceitar situações jurídicas
constituídas à luz de leis estrangeiras, diferente da designada pela regra de conflitos. Para FERRER
CORREIA, a solução é que se adopte, com vista à hipótese da situação plurilocalizada criada em
país estrangeiro, um sistema de conexão múltipla alternativa, devendo a alternativa resolver-se a
favor da lei segundo a qual os factos constitutivos (ou extintivos) da mesma situação se realizaram
por modo juridicamente válido”.

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Para se verificar um problema autónomo de reconhecimento de direitos adquiridos, é


necessário:
1) Requisitos literais
a. É necessário estarmos perante negócios jurídicos de carácter particular.
b. Que o negócio tenha sido celebrado no país da residência habitual do declarante.
c. Que o negócio seja válido segundo essa lei.
d. Que essa lei se considere competente.

2) Requisitos decorrentes da sua ratio:


a. Que a questão seja suscitada a título principal. Não funciona este problema sempre
que o reconhecimento de uma situação jurídica se coloque a título meramente
incidental, prejudicial ou prévio. Neste caso, estamos ante o problema da questão
prévia.
b. Decorrente da celebração de um acto ou negócio jurídico e não de uma situação
jurídica criada ex lege. Neste último caso, não há fundamento para a tutela das
expectativas - nestes casos há um verdadeiro conflito de leis; quando se trata de um
negócio jurídico, há uma vontade e expectativas comuns a proteger.
c. Não ter sido objecto de decisão judicial transitada em julgado. Quando a situação
está “coberta” por uma sentença, consolidam-se expectativas e o problema que se
coloca é um problema de reconhecimento de sentenças e não de direitos adquiridos.
Também aqui pode discutir-se se só devemos reconhecer sentenças que aplicaram a
lei considerada competente pela nossa regra de conflitos. A tendência geral é a da
revisão meramente formal ou delibatória das sentenças, reconhecendo-se a sentença
estrangeira sem que se exija que o tribunal estrangeiro tenha aplicado a lei
competente de acordo com a lei do foro.
d. Que se trate de uma situação consolidada. Este requisito exige que se tenham
produzido efeitos mais ou menos estáveis. Só existindo uma situação de direito já
consolidada é que se justifica que aceitemos aplicar uma outra lei, tutelando as
expectativas de particulares por um imperativo de justiça.

A solução na lei portuguesa


O nosso ponto de partida é o sistema bilateralista que tem regras de conflitos que escolhem
entre a lei do foro e a lei estrangeira, não sendo, à partida, um sistema favorável ao reconhecimento
dos direitos adquiridos. O legislador português veio adoptar a doutrina do curso, mas em termos
limitados, pois não consagrou nenhuma fórmula que consagrasse em termos latos a doutrina dos
direitos adquiridos – apenas o faz em matéria de estatuto pessoal. Isto está expresso no art. 31.º/2
CC: de acordo com o n.º 1, a lei pessoal dos indivíduos é a do seu Estado nacional (só
reconhceriamos os negócio que fossem válidos à luz da lei da nacionalidade); porém, de acordo com
o n.º 2, são reconhecidos em Portugal os negócios jurídicos (1) celebrados no país da residência
habitual do declarante, (2) de conformidade com a lei desse país, (3) desde que esta lei se considere
competente. A principal inspiração deste artigo é a ideia de favor negotii.
Mais uma vez, em função da teleologia desta regra e de todo este contexto, é natural que a
doutrina tenha desenvolvido um conjunto de requisitos para que o art. 31.º/2 se aplique; mas,

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porque é expressão de uma ideia mais ampla, para a doutrina justifica-se ir além da letra do art.
31.º. Isto é, ao mesmo tempo que se impõem certos requisitos, a doutrina propõe uma série de
interpretações extensivas e analógicas.

1) Negócios celebrados num terceiro país: imaginemos que o lugar da celebração do


negócio foi, não o Estado da residência habitual, mas noutro Estado, porém segundo os requisitos
da lei da residência habitual. Ora, o lugar da celebração do negócio não é o elemento essencial do
art. 31.º/2, mas sim o facto de as partes se terem colocado sobre a égide da lei do país do seu
domicílio comum, dando assim nascimento a uma relação que pôde produzir neste país, sob a égide
da lei do país do seu domicílio comum, os seus efeitos normais. Ou seja, importa apenas que seja
celebrado segundo as regras da lei da residência habitual e aí produza efeitos. Assim, de acordo
com a ratio legis do art. 31.º/2, podemos aplicá-lo também nesta hipótese.

2) Negócios celebrados segundo a lei de um Estado terceiro, competente à luz do DIP do


Estado da residência: imaginemos que o negócio é celebrado segundo as regras da lei do lugar da
celebração, para a qual remetem as regras de conflito do país da residência habitual (referência
material), e o negócio é válido (ainda que, à luz do direito material do país da residência habitual, o
negócio fosse inválido). Ou seja, sendo a lei de um país terceiro competente para regular o caso
segundo o DIP do Estado da residência, a situação jurídica assim criada é reconhecida pela lei deste
Estado, no qual pôde desenvolver, de facto, os seus efeitos. Este caso deve ser igualmente abrangido
no art. 31.º/2.

3) Negócios celebrados segundo uma lei que não se considera competente: podemos
dispensar o requisito de a lei se considerar competente, no caso de a lei do país da residência
habitual (ou da nacionalidade, por analogia, como veremos abaixo) considerar como competente a
lei do lugar da celebração.

4) Negócios celebrados por uma lei para a qual remete a lei da nacionalidade, e de acordo
com a qual o negócio é válido. Este ponto implica maiores desenvolvimentos. Com efeito, com esta
interpretação extensiva do art. 31.º/2, chegamos a uma dificuldade: poderíamos estar a dar mais
valor à residência habitual do que à nacionalidade. Assim, FERRER CORREIA faz uma
interpretação analógica com a nacionalidade. A lei da nacionalidade é a lei que consideramos
competente em matéria de estatuto pessoal.

L1 (RH)  L2 (N)  L3 (considera-se competente)

L2  Negócio é inválido; L3  Negócio é válido

Em matéria de estatuto pessoal, vimos que a lei é mais exigente (art. 17.º/2): nestes casos,
cessa o reenvio, ou seja, de acordo com as nossas regras a lei aplicável seria a lei da nacionalidade,
que considera o negócio inválido. Esta solução justifica-se no caso do reconhecimento de direitos
adquiridos? Se considerássemos que não se aplicava o art. 31.º/2, estaríamos a dar mais importância
à lei da residência (se fosse esta a remeter para a L3, já se validava o negócio). Porém, faz todo o
sentido, à luz do art. 31.º/2, aceitar também aqui o reconhecimento dos direitos adquiridos. Esta

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solução justifica-se tecnicamente por duas vias: recorrendo simultaneamente a uma extensão
analógica do art. 31.º/2, e a uma interpretação extensiva do art. 17.º/2.10
Ao mesmo tempo que se comprova a necessidade de estender a regra do reconhecimento às
situações jurídicas criadas ao abrigo da lei para que remete a norma de conflitos da lex patriae,
verifica-se também a de restringir o preceito do art. 17.º/2 às relações constituídas ou a constituir no
Estado do foro.
E se a terceira lei, em vez de se considerar competente, fizer uma referência material para a
lei da nacionalidade? Mais uma vez, a analogia que vimos para a residência habitual justifica que
aceitemos que se aplique a L3, ainda que esta não se considere competente.

L1  L2 (N)  L3 (LLC)  (RM) L2 (N)


L4 (RH, considera-se competente)

LN – Negócio inválido; LLC – negócio válido; LRH – negócio inválido.

Concluindo, podemos dizer, com FERRER CORREIA, que o texto referido no Código
Português não é senão um caso particular de aplicação de uma directiva geral: a que nos leva a
adoptar soluções inspiradas por uma ideia de reconhecimento das situações jurídicas
multinacionais criadas ao abrigo de leis estrangeiras, mesmo que essas leis se não mostrem
aplicáveis, à luz dos critérios normais de atribuição de competência consagrados no direito de
conflitos do foro.

4. A referência da norma de conflitos a um ordenamento jurídico pluri-legislativo.

Dentro de um mesmo Estado podem existir vários ordenamentos - ordenamentos


plurilegislativos ou complexos. Pode surgir-nos um problema ao concretizar o elemento de
conexão, quando a nossa regra de conflitos aponta para uma lei através do elemento de conexão
nacionalidade, mas essa referência nada nos diz sobre qual das ordens jurídicas particulares é de
aplicar. Nesta matéria, é importante distinguir:
- Conflitos interlocais ou interterritoriais (remete para um OJ estadual que tem diferentes ordens
jurídicas para cada parte do seu território. Afinal qual é o direito que vamos aplicar? Há alguns
países que têm direito interlocal unitário - Direito comum a todas as unidades territoriais; Há
quem não tenha um direito interlocal unitário - EUA) Como é que resolvemos isto? O CC parte do
art. 20º.

10 Ver ainda o seguinte caso:


RC  LN  LLC (considera-se competente)
LRH  (RM) LN
LRH – inválido; LN – inválido; LLC - válido.

Neste caso verifica-se o 17º/1; mas também o 17º/2 que exclui o reenvio (a lei aplicável é a L2 ao
abrigo do art. 16º). Se fosse uma situação a constituir (celebração do casamento) aplica-se a L2 e o negócio era
inválido. Mas como se trata de uma situação de reconhecimento (o casamento já se celebrou), devemos aplicar
a L3 por interpretação analógica do art. 31º/2 CC. Esta interpretação do art. 31º/2 tem um efeito sobre as
regras do reenvio. De acordo com as regras do reenvio, não existia reenvio e aplicaríamos a L2; mas com a
aplicação analógica deste artigo, aplicamos a L3. Nestas situações o art 17º/2 fica restringido e limitado.

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1) Em primeiro lugar, a concretização do elemento de conexão é feita recorrendo ao direito


interlocal. Se o problema é causado pelo Estado em causa, devem ser as regras existentes nesse
Estado a resolvê-lo – ou seja, remetemos para as regras de conflitos interlocais. Isto justifica-se por
duas razões: por um lado, contestar a legitimidade deste critério seria não reconhecer o princípio da
harmonia jurídica internacional; por outro, é ao legislador do sistema complexo que compete
determinar a esfera de competência de cada um dos sistemas particulares.
2) Mas pode suceder que não exista um direito interlocal unitário, que vincula todos os
estados. A primeira sugestão que se faz, antes de partir para o nº 2, é a de procurar saber se, dentro
desse sistema legislativo complexo, todos os direitos locais prevêem a mesma solução para este
conflito interlocal. Pode não existir um direito interlocal unitário, mas podem existir regras de
direito interlocal de cada um dos Estados – se todas elas tiveram e mesma opinião, apesar de
formalmente não termos um só direito interlocal, temos esse direito materialmente. Há autores que
vão ainda mais longe, defendendo que basta olhar para os estados em contacto com a relação.
3) Se tal não for possível, o n.º 2 diz que se recorrem às regras de conflitos, não
interlocais, mas internacionais. Pode suceder que não haja um direito interlocal, formal ou
materialmente unitário, mas haja um DIP unitário. Aqui, estamos a presumir que as soluções que
estão na base da resolução de conflitos de leis internacionais têm uma analogia muito próxima com
as soluções da regra de conflitos interlocais.
4) E pode isto não bastar, ou seja, pode não existir um DIP unitário (é o que sucede nos
EUA e RU). Podemos ver se todas as regras de conflitos internacionais de cada um dos estados é
igual – se forem todas iguais, temos um DIP materialmente unitário.

Se, no fim, não conseguirmos concretizar a lei da nacionalidade, temos de encontrar uma
conexão subsidiária – e a que o legislador português privilegia é a da residência habitual. No plano
do direito comparado e de jure condendo, esta é uma solução criticável: o que se deve procurar é a lei
que em concreto tenha uma relação mais estreita. Há OJ onde isso acontece (P.e. Em Itália), sendo
que era uma solução de esta índole que estava no ante projecto do CC português de 1966.
Por conseguinte, há aqui uma discussão doutrinária: FERRER CORREIA e BAPTISTA
MACHADO sempre entenderam que é aplicável, quer a residência seja num dos sistemas
legislativos locais do país da nacionalidade, quer seja num país diferente. Imaginemos que um
sujeito é cidadão de um Estado com sistema jurídico complexo (ex: EUA), e não conseguimos
através de nenhum destes critérios encontrar uma lei aplicável, e o sujeito vive num outro Estado,
por ex., França. Numa interpretação literal e segundo a opinião dos autores, aplica-se a lei francesa.
MAGALHÃES COLAÇO defende que só valeria a residência habitual se residisse num dos estados
locais; se vivesse fora, teríamos de partir para a conexão mais estreita.

- Conflitos interpessoais
O n.º 3 do art. 20.º trata dos conflitos interpessoais: dentro de um sistema jurídico complexo,
podem existir regras de direito material diferentes para categorias de pessoas diferentes, geralmente
em torno de questões como religião e etnia. Assim, o n.º 3 diz que devemos atender às regras de
conflitos interpessoais. Normalmente, quando o elemento de conexão é o da nacionalidade, pelo
contexto da vida daquele sujeito e da sua pertença a esta ou aquela comunidade, não será difícil de
encontrar qual das leis pessoais em que se insere. Se tal não for possível, devemos resolver o
problema com base na ideia de conexão mais estreita.

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O Regulamento 650/2012, relativo a sucessões, tem uma regra aplicável aos conflitos interlocais
(art. 36.º) e aplicável aos conflitos interpessoais (art. 37.º).
O n.º 3 não faz uma distinção quanto ao elemento de conexão em causa, aplica-se a todos;
enquanto que o n.º 1 fala apenas no elemento da nacionalidade. E se o problema for causado por
outro elemento? Normalmente, a regra de conflitos já resolve o problema: por ex., se for competente
a lei da residência habitual, o sujeito terá residência num dos estados. Ou seja, normalmente as
outras conexões trazem em sia resolução do problema.

5. A aplicação do direito material estrangeiro.

O juiz português pode ser chamado a aplicar lei estrangeira, e podem surgir problemas quanto à
interpretação deste direito. Mais – além da questão da interpretação, podem surgir problemas de
cognição do direito estrangeiro.
O primeiro aspecto a reter é o de que o direito estrangeiro tem um carácter de verdadeiro
direito. Existe uma grande discussão em torno da questão de saber qual o estatuto do direito
estrangeiro: se é um verdadeiro direito ou antes um facto. Em certos Estados (ex: Reino Unido e
França – Caso Bisbal), considera-se que o direito estrangeiro é facto, isto é, a existência e conteúdo
do direito estrangeiro têm de ser provados pelo interessado na sua aplicação, nomeadamente com a
intervenção de peritos.
Em face do nosso direito, podemos dizer que o direito estrangeiro é verdadeiro direito, sendo
aplicado como tal. Temos aqui uma base legal dupla:
• Art. 348.º do CC: refere-se a direito consuetudinário, local ou estrangeiro e estabelece que,
apesar de as partes deverem provar o conteúdo e existência do direito estrangeiro, o juiz deve
procurar ex officio averiguar o seu conteúdo. Devemos interpretar a primeira parte do artigo como
um mero dever de colaboração dos particulares com o juiz. Ao nível do direito europeu, temos a
rede judiciária europeia, em matéria civil e comercial – em Portugal, há um juiz que serve de ponto
de contacto. Outro meio é recorrer ao chamado GGDDC, que funciona junto da Procuradoria Geral
e tem uma base de dados de direito estrangeiro.
• Art. 674.º do CPC: temos de conjugar o n.º 1, al. a) e o n.º 2. Este artigo refere-se aos
fundamentos do recurso de revista, sendo um deles a violação de lei substantiva – mas poderá esta
lei ser estrangeira? O n.º 2 resolve esta questão, dizendo que as normas emanadas de órgãos de
soberania estrangeiros consubstanciam lei substantiva, susceptível de justificar recurso de revista.
Neste momento, há um dado legal que indicia uma concepção diferente - art. 43º-A do
Código Registo Predial. Junto dos serviços de registo predial, sempre que se queira registar um
direito relativo a um bem imóvel, fundado na aplicação da lei estrangeira, as conservatórias do
registo exigem que seja o interessado a comprovar o conteúdo da lei estrangeira.

Note-se que o direito estrangeiro é tomado em consideração tal como existe na ordem
jurídica própria, logo devemos atender às fontes desse direito. Se, porventura, o juiz português tiver
dúvidas quanto à compatibilidade da norma com a ordem constitucional desse Estado, deve
decalcar os seus poderes dos do juiz local. Assim, sendo o tribunal português deve fazer um
controlo da constitucionalidade da lei estrangeira face a lei estrangeira se os tribunais do estado da
lei competente também puderem fazer esse controlo. Se se remeter para um OJ com controlo difuso
da constitucionalidade, o juiz português também o pode fazer. Se a regra de conflitos reconhecer a

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Eduardo Figueiredo 2016/2017

competência de um OJ onde apenas uma instância constitucional pode controlar a


constitucionalidade das leis, o tribunal português já não deve poder fazer esse controlo. Nos casos
em que os tribunais portugueses podem controlar a constitucionalidade das leis estrangeiras, ainda
assim devem gozar de alguma contenção - self restraint - porque o juiz português é exterior ao OJ
estrangeiro, não devendo ser tão ousados e devemos seguir a posição maioritário doutrinal e
jurisprudencial aí seguida nesse país.
Também devemos ter em conta que é indiferente o direito vir de um Estado que se não se
considera internacionalmente como um Estado. É indiferente este aspecto publicista, uma vez que o
problema do DIP não é o de conflitos de soberania.
Por último, coloca-se a questão de saber se a regra de conflitos é ou não de aplicação oficiosa.
Por ex., as partes litigam no pressuposto errado que a lei portuguesa é a lei aplicável, quando na
verdade a lei aplicável é outra lei. Consideramos que a regra de conflitos é de aplicação oficiosa,
esclarecendo o n.º 2 do art. 348.º que incumbe ao juiz conhecer do direito estrangeiro “mesmo que as
partes não o tenham invocado”. Isto justifica-se por duas razões: por um lado, “o objecto da regra
de conflitos é promover a justiça do DIP, designando a lei que se considera mais apropriada, e não
conferir aos indivíduos prerrogativas aos quais eles sejam livres de renunciar”; por outro, a atitude
contrária encorajaria o fórum shopping.

Sendo assim:
1) Quando digo que a lei competente é a francesa, aplica-se todo o direito material de origem
estadual, como todas as normas de DIPúblico ou DUE vigentes na França.
2) Este chamamento vale inclusivamente para as normas que tenham sido postas em vigor por uma
autoridade de ocupação num Estado e independentemente de esse ocupação ter sido ou não
reconhecida de acordo com o DIPúblico. O mesmo vale para situações de governos exilados que
mantêm em vigor as suas normas para os súbditos desse governo.
3) Não têm de ser normas de origem legislativa. Podem aplicar-se normas de direito
consuetudinário ou de origem jurisprudencial se estiverem em vigor nesse Estado.

5.1. Averiguação do conteúdo do direito estrangeiro.

O juiz tem mecanismos que facilitam esta actividade como a Internet e outros mecanismos
institucionais que facilitam a determinação do conteúdo da lei estrangeira - P.e. Convenção de
Londres de 1968 e Convenção de Brasília de 1972. Para além disto, isto também vem previsto nas
convenções bilaterais de cooperação jurídica e judiciária, designadamente com os países de língua
oficial portuguesa.
Pode acontecer que, mesmo existindo estas convenções, podem colocar-se problemas na
averiguação do conteúdo da lei estrangeira. O que se há-de fazer? À partida, existiriam várias
soluções possíveis:
1) Poderíamos pensar numa denegação de justiça – recusa-se dada a proibição do non liquet.
2) Determinar ou decidir contra a parte que invoca a aplicação da lei estrangeira - não é aceitável
porque estaríamos a tratar o direito estrangeiro como matéria de facto e ele é tratado como
matéria de direito. O interessado não tem o ónus da prova do conteúdo da lei estrangeira.

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3) Recurso a presunções. Sempre que não consigamos determinar o conteúdo da lei estrangeira,
deveríamos recorrer a presunções de modo a determinar o direito provavelmente em vigor num
estado, recorrendo-se às famílias de direito e princípios gerais vigentes.
4) Aplicação da lei do foro. À primeira vista poderia parecer a solução que decorre do art. 348º/3
CC, que deve ser lido em conjunto com o art. 23º/2 CC:
1) O art. 23.º/2 diz-nos que, na impossibilidade de conhecer o direito estrangeiro, se
recorre à lei que for subsidiariamente competente – ou seja, recorre-se a uma conexão
subsidiária. Esta deve ser a solução seguida pelo juiz português: depois de tentar
conhecer a lei primariamente competente, se não o consegue, deverá procurar uma
conexão subsidiária.
2) Mas e se o juiz também não conseguir conhecer o direito da conexão subsidiária? É
neste contexto que deve recorrer-se (ou também quando não existe conexão
subsidiária, por ex., se a conexão primária for a do lugar da situação dos bens) ao art.
348.º/3. Na impossibilidade de conhecer o direito estrangeiro (leia-se, da conexão
subsidiária, se houver), o tribunal recorrerá às regras de direito português.

Qual a solução defendida por FERRER CORREIA? Na falta de conhecimento directo da lei
estrangeira, devemos recorrer às presunções - famílias de direito, princípios inspiradores de uma
reforma legislativa - porque a presunção também é um modo de prova; sempre que isso não seja
possível, então, de acordo com o art. 23º/2, devemos abandonar o campo das presunções e recorrer
à lei subsidiariamente aplicável (Em matéria de estatuto pessoal, é a lei da residência habitual);
pode ainda acontecer que não consiga determinar o conteúdo desta lei aplicável directa ou
indirectamente ou que não exista lei subsidiária - só para estes casos se justifica a aplicação da lei do
foro.
Estas são soluções um pouco difíceis de aceitar hoje em dia, e assim MOURA RAMOS já veio
defender que é hoje dificilmente aceitável que tenhamos de recorrer a estas presunções de base tão
movediça. Devemos rejeitar esta solução.

Este tipo de soluções vale também para os casos em que não conseguimos determinar o
elemento de conexão usado pela regra de conflitos. Aqui o art. 23.º/2, última parte, vem resolver
um problema diferente: diz que se recorre a uma conexão subsidiária quando não seja possível
determinar os elementos de facto ou de direito que preenchem a conexão primária. Por ex., não
conseguimos determinar com segurança de que país o sujeito nacional, por falta de documentos.
A norma estrangeira deve ainda ser interpretada como a interpretam no OJ competente, de
acordo com os seus cânones interpretativos.
Pode acontecer ainda que não seja o tribunal a entidade chamada a aplicar o direito
estrangeiro. Nestes casos a entidade que exerça funções públicas deverá estar sujeito, em princípio
às mesmas regras. (excepções: art. 85º/2 Código do Notariado e art. 43º-A CRPredial).

6. A excepção de ordem pública internacional.

Na correcção do sistema de DIP, que é eminentemente formal, não deixa de haver no final
necessidade de atentar ao resultado da aplicação da lei estrangeira, pois o juiz pode ser confrontado
com um resultado manifestamente contrário aos valores éticos fundantes da nossa comunidade.

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Nestes casos, o juiz deverá afastar a aplicação desta norma estrangeira, com base na reserva de
ordem pública internacional (art. 21.º).
É necessário distinguir a ordem pública interna da de ordem pública internacional.
• Ordem pública interna: é o conjunto de todas as normas que, num sistema jurídico dado
revestem natureza imperativa (art. 280.º). Afirma-se como limite à liberdade individual.
• Ordem pública internacional: se a ordem pública interna restringe a liberdade individual, a
ordem pública internacional ou externa limita a aplicabilidade das leis estrangeiras. A ordem
pública internacional é constituída pelos valores jurídicos fundamentais de um Estado, que reputa
essenciais e lhe incumbe proteger. A ordem pública internacional do Estado português, que pode
ser diferente das dos outros Estados, é um limite à aplicabilidade de uma norma estrangeira,
independentemente de essa lei ser designada pela regra de conflitos.

Importa ainda distinguir duas concepções diversas da OPI:


1) Concepção a posteriorística da Ordem Pública - Foi estabelecida por Savigny, sendo que
a OP funciona como excepção ou limite à aplicação da lei estrangeira, intervindo depois de
sabermos qual a lei competente. Predomina esta concepção.
2) Concepção a priorística da Ordem Pública - Foi defendida por PILLET, correspondendo
a normas de aplicação territorial, isto é, normas que seriam sempre aplicadas no território de um
Estado, sendo leis de competência normal. A OP não é uma excepção, mas sim uma ordem
constituída por normas aplicáveis com competência normal, à semelhança das normas de
competência extraterritorial. Esta concepção a prioristica tem entre nós eco nas normas de aplicação
necessária e imediata.

A concepção que perfilhamos é a primeira. O problema da ordem pública é o de evitar a


situação que se produziria com a aplicação da norma estrangeira aos factos a regular; não se trata de
excluir genericamente a intervenção de quaisquer leis estrangeiras em determinado sector do direito
privado local. Ora, para que seja um limite à aplicabilidade de uma lei estrangeira, naturalmente
que é necessário que antes se faça funcionar a regra de conflitos – só depois desta aplicação, da
averiguação do conteúdo e da conclusão de que é contrária aos valores fundamentais é que fazemos
funcionar a excepção da ordem pública. Assim, perfilhamos uma concepção aposteriorística da
excepção da ordem pública.

Quais as características da OPI?


 Imprecisão - o conteúdo da noção da ordem pública internacional é forçosamente impreciso
e vago – FERRER CORREIA diz que este carácter impreciso é um “mal sem remédio”. Não
há um conjunto limitado de situações em que podemos dizer que o resultado é incompatível
com a nossa ordem pública; isto tem de ser sempre visto em concreto. A excepção de ordem
pública é uma cláusula geral que tem de ser concretizada caso a caso pelo juiz, sendo que
esta imprecisão se liga assim a uma ideia de casuística.
 Actualidade - o momento relevante para esta ponderação é o momento actual, o momento
em que o juiz decide, e não o momento em que a relação jurídica se tenha constituído. Por
ex., um casamento celebrado há 30 anos entre pessoas do mesmo sexo, colocando-se hoje a
questão da sua validade em Portugal – nunca poderíamos dizer que é contrário à ordem
pública internacional portuguesa. Esta característica deduz-se da própria noção de ordem

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pública – se se trata de defender valores do direito nacional, não se compreenderia que o juiz
pudesse contestar a justiça conflitual do DIP em nome de concepções já abandonadas.
 Carácter Nacional - visa-se a protecção de valores fundamentais da ordem jurídica do foro,
neste caso, da ordem portuguesa. É por apelo a essa concepção jurídica fundante que o juiz
terá desfazer esta ponderação, o que significa que algo que é contrário à ordem pública
internacional do Estado português poderá não o ser para outro Estado (ex: a aceitação de um
casamento poligâmico é contrário à ordem pública internacional portuguesa, mas não
noutros Estados que consagram a sua admissibilidade).
 Carácter Excepcional - a concepção em vigor da ordem pública é, e deve ser, relativamente
minimalista. É uma excepção; a regra é a da determinação, pela regra de conflitos, da lei
aplicável. Apenas em circunstâncias excepcionais, ditadas pela contrariedade com os valores
fundamentais, é que se aplica; pois caso contrário estaríamos a colocar em causa os próprios
fins do DIP, principalmente a harmonia jurídica internacional, a paridade de tratamento e,
no final, a estabilidade das relações jurídicas.

6.1. Pressupostos da aplicação da excepção de OPI.

Há três critérios que, só per si, não chegam para a mobilização deste instrumento:
1) Imperatividade – Segundo este critério fazem parte da OPI todos os valores consagrados em
normas públicas imperativas. Mas nem todas as normas imperativas integram a OPI. Também
não deve ser confundida esta com o catálogo constitucional - nem todas as normas
constitucionais constituem o catálogo da OPI portuguesa.
2) Recurso à natureza dos interesses - põe-se em causa a OPI sempre que se coloquem em questão
interesses fundamentais da organização do Estado. Não sabemos, porém, que interesses são estes
nem os casos em que podem levar a aplicação da excepção.
3) Critério do grau de divergência - viola a OPI uma lei estrangeira, sempre que exista entre ela e o
OJ do foro uma divergência essencial. Também aqui não há grande avanço.
Notemos que não conseguimos estabelecer um elenco/catálogo dos valores que integram a
OPI, desde logo porque estes valores que compõem a ordem jurídica internacional têm um carácter
evolutivo.

Há, no entanto, alguns arrimos que funcionam como pressupostos para o funcionamento da
excepção de OPI.
1) O que conduz a que não seja possível aplicar uma lei estrangeira nestes casos é a ofensa à
ordem pública internacional, não por uma regra material estrangeira, mas pela aplicação da
regra material estrangeira ao caso. Não fazemos um juízo sobre a norma material
estrangeira, mas pelo resultado da aplicação dessa norma ao caso concreto.
2) Por outro lado, exige-se que entre a relação ou situação jurídica e o ordenamento do foro
exista um nexo suficientemente forte para justificar a não aplicação da norma estrangeira
em princípio aplicável. Esta última ideia é muito importante: se uma relação jurídica tem
uma ligação menos forte a Portugal, a ordem pública deve ter um carácter minimalista; se
tiver uma ligação forte, podemos ser menos exigentes quanto à gravidade. Claro que há
casos gritantes em que é gritante a contrariedade com valores fundamentais de uma nação
civilizada, e em que por vezes se fala de ordem pública verdadeiramente internacional (por

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ex., a denegação da personalidade jurídica). A violação desta ordem dispensa a análise da


averiguação da intensidade dos factos (podemos dizer que o elemento que funciona como
ligação suficiente é o próprio facto de a questão poder ser resolvida por um tribunal deste
Estado).
3) Finalmente, interessa a teoria do efeito atenuado da intervenção da cláusula de ordem
pública. Segundo esta teoria, a ordem pública internacional opera de maneiras diferentes,
consoante se trate de constituir uma relação jurídica ex novo, caso em que actua sem
qualquer restrição; ou os casos em que se visa permitir em Portugal a produção de efeitos de
um direito ou uma relação jurídica constituída sem fraude no estrangeiro, caso em que
adquire um efeito atenuado. A ordem pública não intervirá em regra quando a relação tiver
sido constituída no estrangeiro, apenas se manifestando nos casos mais graves (para B.
MACHADO, isto decorre precisamente da natureza da ordem pública, extremamente
sensível a todos os pormenores e elementos fácticos que na decisão se congreguem).

6.2. Efeitos da excepção de OPI.


A ordem pública pode ter uma função proibitiva ou permissiva:
• Função proibitiva: evita a constituição ou o reconhecimento em Portugal de uma relação
sujeita a um direito estrangeiro.
• Função permissiva: permite a constituição no país de uma situação jurídica que a lei
estrangeira aplicável por si não autorizaria.
Note-se que estamos a falar aqui da função: em bom rigor, o efeito da ordem pública
internacional é sempre um efeito negativo ou impeditivo, isto é, afasta-se a aplicação da norma
material estrangeira.

6.3. Consequências.

A ordem pública internacional tem sempre como consequência o afastamento de um


preceito ou conjunto de preceitos da lei que o DIP do foro considera como competente – ora, a
exclusão da norma de direito estrangeiro pode dar origem á formação de uma lacuna, surgindo
assim a questão de saber como a colmatar.
Uma teoria, defendida por AGO, estabelece que esta lacuna deve ser colmatada recorrendo à lei
do foro, uma vez que o direito nacional tem um valor geral e o direito de conflitos é um regime
especial aplicável às relações internacionais. Porém, não é esta a concepção a que aderimos.
Em primeiro lugar, é preciso notar que nem sempre o afastamento da lei estrangeira origina
uma lacuna – por vezes, o caso fica resolvido com a simples não aplicação do preceito estrangeiro
contrário à ordem pública internacional. É o caso do casamento entre dois indivíduos de raças
diferentes, nacionais de um Estado que considera esse facto como impedimento matrimonial.
Porém, nos casos em que exista uma autêntica lacuna, o que fazer? A doutrina alemã afirma que
o desejável é que, tanto quanto possível, se resolva o problema no quadro da lei designada como
competente, mediante recurso a outras normas da mesma lei – a legislação estrangeira não foi
afastada no seu todo, mas apenas num preceito determinado. Isto é particularmente evidente no
caso em que o preceito rejeitado constitui uma excepção: afastada a excepção, recorre-se à regra.
Na linha desta doutrina, o art. 22.º/2 diz que são aplicáveis as normas mais apropriadas da lei
estrangeira ou, subsidiariamente, as normas de direito interno português. Assim, não vamos logo

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para o direito material português: em primeira linha, devemos procurar dentro da lei estrangeira
aplicável as normas que possam resolver o problema.
Temos aqui uma ideia de menor dano à lei estrangeira: se esta é a lei aplicável, mas tem uma
norma incompatível, devemos afastar essa norma e continuar a aplicá-la.
7. A fraude à lei no DIP.

A fraude à lei em DIP integra dois elementos, um elemento subjectivo e outro objectivo:
• Elemento subjectivo: consiste em alguém iludir a competência da lei de aplicação normal, a
fim de afastar um preceito material dessa lei (preceito rigorosamente imperativo), substituindo-lhe
outra lei onde tal preceito, que não convém às partes ou a uma delas, não existe.
• Elemento objectivo: a intenção fraudulenta é levada a cabo através de uma adequada
manipulação da regra de conflitos, normalmente do elemento de conexão.
Caso Clássico de fraude à lei quanto ao elemento de conexão: Caso Beauffremont. (Séc. XIX)
Caso Clássico de fraude à lei quanto ao conceito-quadro: Caso Caron.

Para que tenhamos fraude à lei, é necessário que seja possível uma manipulação, e por isso os
elementos de conexão móveis prestam-se mais facilmente a este tipo de manipulação. Mas não é
somente perante regras de conflito com conexões móveis que podemos ter um caso de fraude à lei.

Este trata-se de um instituto que sofreu largas objecções que levavam a concluir-se que a
fraude à lei em DIP era dogmaticamente ilógica, desvantajosa e inconveniente, porque se entendia
que não se podia transpor o instituto da fraude à lei para o DIP, porque verdadeiramente, se se
altera a situação de facto ou de direito, isto quer dizer que a lei potencialmente aplicável nunca
chega a ser a lei competente. É ainda praticamente inconveniente porque este seria um instituto que
geraria insegurança quanto aos efeitos a derivar da fraude e provocaria grande incerteza a aplicação
no direito de conflitos de uma clausula geral repressiva da fraude à lei. Estas objecções culminaram
numa posição segundo a qual as únicas situações de abuso deveriam ser aquelas em que houvesse
um verdadeiro abuso de direito ou uma situação destinada a prejudicar ou pôr em causa interesses
de terceiros. (NIEDERER)

Outros autores, como BARTIN, viram a fraude à lei como uma variante da OPI. Este autor
dizia que tanto na OPI como na fraude à lei produzem-se os mesmos resultados: a perturbação
social. No caso da OPI, essa perturbação social deve-se ao facto de a OJ estrangeira pôr em causa
valores fundamentais do foro; na fraude à lei deriva da manipulação de um elemento de conexão
pelas partes para chegar a aplicação de uma determinada lei.
BAPTISTA MACHADO aponta as diferenças entre a fraude à lei e a ordem pública
internacional:
• A excepção da ordem pública limita-se a proteger o meio jurídico interno contra os efeitos
nocivos que poderiam resultar da aplicação de uma lei estrangeira normalmente competente;
enquanto que o recurso à fraude não é utilizado porque a aplicação da lei estrangeira seja
inconciliável com as concepções jurídicas do foro, ou por qualquer razão que se ligue com o
conteúdo do direito estrangeiro.
• Através da excepção da ordem pública, a justiça privada material do foro sobrepõe-se à
justiça própria do DIP; ao passo que a questão da relevância da fraude à lei é apenas uma questão

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de justiça de DIP. O problema da ordem pública só pode pôr-se depois de resolvido o problema da
fraude à lei.
• Por último, como já vimos, a excepção da ordem pública só protege os interesses da lei do
foro; ao passo que a fraude à lei serve ainda para reprimir a fraude à lei estrangeira.

De qualquer modo, a doutrina moderna assenta na relevância da fraude à lei em DIP e,


desde logo, conseguiu vencer a objecção do ilogicismo ao defender a configuração da fraude à lei no
DIP colocando a questão no plano estritamente conflitual e dando à norma instrumento e à norma
objecto um determinado entendimento próprio. Não podemos esquecer que será perante esta justiça
própria do DIP que teremos de averiguar se podemos ou não aceitar como legítima uma modelação
da relação jurídica que é feita para fugir à aplicação da lei indicada pela regra de conflitos – isto
acaba por levar-nos para a interpretação da regra de conflitos.
BAPTISTA MACHADO identifica, pois, na fraude à lei, uma norma objecto (parte da regra
de conflitos que remete para o ordenamento a cuja aplicação se pretende escapar) e uma norma
instrumento (é parte daquela norma de conflitos que designa o instrumento cuja aplicabilidade se
pretende provocar). São normalmente a mesma regra de conflitos, mas concretizada em sentidos
diversos porque as partes manipulam a concretização do elemento de conexão.
Isto parte da ideia de que a regra de conflitos tem uma consequência jurídica genérica; na
verdade, em concreto, existem tantas consequências jurídicas como as ordens jurídicas no mundo.
Ora, cada uma das consequências jurídicas possíveis seria uma parte da regra de conflitos: a norma
objecto seria a parte da regra de conflitos que, na ausência da manipulação, conduziria à
competência da lei A; e a norma instrumento é a outra parte da regra de conflitos (normalmente,
estamos a falar da mesma regra) que, por causa ou através da manipulação, convoca a competência
da lei B.
Assim, é dogmaticamente concebível a construção da fraude à lei em DIP. Para BAPTISTA
MACHADO, esta mais não é do que a extensão, a este domínio jurídico, da noção geral da fraude à
lei – tendo sido esta a doutrina a inspirar o art. 21.º.

7.1. Pressupostos da fraude à lei em DIP.

Quando falamos em fraude à lei no DIP, há 4 elementos:


1) Norma-objecto - norma defraudada. É também a regra de conflitos, mais propriamente a parte
ou segmento que leva a aplicabilidade da ordem jurídica que as partes não querem ver aplicada e
por isso é que modificaram a concretização do elemento de conexão. Mas ainda assim é relevante
a finalidade da norma material que as pessoas não querem aplicar, porque só há fraude se se
puser em causa a finalidade da norma material a que chegava pela norma-objecto.
2) Norma-instrumento - utilização de uma regra jurídica, como instrumento da fraude, a fim
de assegurar o resultado que a norma fraudada não permite – esta norma é, no DIP, uma
regra de conflitos.
3) Comportamento fraudatório - Actividade fraudatória que se traduza na adopção de meios
eficazes que conduzam à aplicabilidade da lei que as partes querem. Não pode haver aquilo a
que nós chamamos uma conexão falhada. Há uma conexão falhada, quando as pessoas mudam o
elemento de conexão com um propósito fraudulento, mas ela não é suficiente para que conduzir
a aplicabilidade da outra lei.

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4) Animus fraudandi ou intenção fraudatória - as partes têm de ter a intenção de fugir à


aplicabilidade de uma determinada ordem jurídica. Quando exigimos o elemento da intenção,
serve desde logo para excluir, no âmbito da fraude à lei, as situações em que ela não existe.

7.2. Consequências da fraude à lei em DIP.

Em que consiste a sanção da fraude à lei? Com efeito, a fraude à lei é inadmissível – caso
contrário, estaríamos a admitir que, através de uma manipulação dos elementos de facto, se
afastasse a autoridade de um sistema jurídico que, na ausência desta actividade, seria o competente.
A sanção da fraude à lei consiste no regresso ao estado de coisas a que fraudante pretendeu evitar,
sendo ineficazes os actos jurídicos realizados e os direitos adquiridos em fraude à lei do foro neste
ordenamento jurídico.
Mas a sanção não vai para além disto, ou seja, não origina a ineficácia absoluta dos actos ou
situações constituídas – assim, se por ex. alguém se naturaliza no estrangeiro com o fim de se
subtrair a uma disposição da lei nacional, não há qualquer motivo para negar a eficácia em termos
gerais à cidadania estrangeira, esta será apenas ignorada na medida em que redunde em prejuízo
da norma fraudada.
Coloca-se ainda a questão de saber se é admitida a fraude à lei estrangeira: a orientação clássica
pronunciava-se no sentido negativo; porém, hoje admite-se a sua relevância, pelo menos quando a
fraude tenha consistido no afastamento da lei estrangeira competente a favor doutra também
estrangeira.

7.3. Situações típicas da fraude à lei em DIP

1) Pessoas colectivas e internacionalização fictícia das pessoas colectivas - art 3º CSC - Exclui a
possibilidade de existir fraude, graças à conexão sede real e efectiva da administração. Esta
matéria tem perdido importância por causa das liberdades fundamentais, nomeadamente com o
reconhecimento do direito de estabelecimento.
2) Contractos e designadamente no caso de internacionalização fictícia dos contractos - Hoje em
dia não se fala muito de fraude à lei porque no domínio dos contractos ou o contrato é interno ou
é internacional. No primeiro caso não é necessário recorrer a fraude à lei porque se o contrato é
interno não há escolha de lei; se for internacional, pode haver escolha de lei e não há limites ao
leque das leis que podem ser escolhidas. (Ver, porém, art. 3º/3/4 RROMA I)
3) Conexão nacionalidade, no âmbito das pessoas singulares. Aqui também se chegou a acordo -
só devemos recorrer a fraude à lei quando há alteração da conexão da lei pessoal, sempre que a
alteração da nacionalidade não se traduza numa integração efectiva na nova comunidade
nacional.

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DIREITO PROCESSUAL CIVIL INTERNACIONAL

1. Considerações Gerais.

Vimos que o âmbito do DIP integra o problema do conflito de leis e o conflito de jurisdições, que
se subdivide em outros dois: o problema da competência internacional dos tribunais portugueses; e
o do reconhecimento de sentenças estrangeiras. O problema do reconhecimento das sentenças
estrangeiras coloca-se quando um juiz estrangeiro, confrontado com uma dada relação jurídica,
aplicou o direito competente e ditou uma sentença – importando agora saber se essa sentença vale
ou não em Portugal como um verdadeiro acto jurisdicional.
O reconhecimento de sentenças estrangeiras consiste na atribuição, no Estado do foro, dos
efeitos que lhe competem segundo a lei do Estado em que foi proferida (ou, pelo menos, alguns
desses efeitos). Os efeitos próprios da sentença são normalmente o efeito de caso julgado (após,
naturalmente, o trânsito em julgado); e o efeito executivo. Também se fala de um efeito constitutivo,
por ex., numa sentença que reconheça o direito de reivindicação – mas isto decorre, em rigor, do
direito material.
Iremos ver apenas o problema da eficácia no país requerido das sentenças que recaiam sobre
direitos privados; e proferidas, não apenas por tribunais judiciais, mas por quaisquer autoridades
que as devam proferir. Interessam-nos todas as decisões que, recaindo sobre matéria do âmbito do
direito privado, tenham carácter jurisdicional e sejam pronunciadas em nome de uma soberania
estrangeira.
Qual é o fundamento das regras do reconhecimento das sentenças estrangeiras? É um
fundamento de índole prática: houve um juiz estrangeiro que emitiu uma sentença, e deste acto
geraram-se expectativas legítimas dos envolvidos. Assim, está em causa assegurar a continuidade e
estabilidade das situações da vida jurídica internacional, a fim de que os direitos adquiridos e as
expectativas dos interessados não sejam ofendidos, i.e., tutelar as expectativas dos particulares. Se,
ao olharmos para a lei aplicável, os particulares podem ter alguma expectativa, com a intervenção
do tribunal que emita um acto jurisdicional sobre o assunto, estão exponencialmente aumentadas
estas expectativas. Por outro lado, a propositura de um novo processo poderia dar azo a decisões
contraditórias, ferindo assim a harmonia jurídica material.
Temos assim um fundamento de defesa das expectativas dos particulares, aliado ainda à ideia
de harmonia jurídica material.
No entanto, se aceitássemos sem qualquer espécie de controlo a eficácia das decisões provenientes
de uma decisão estrangeira, isto poderia ofender princípios fundamentais da ordem pública
internacional do Estado do foro, quer material, quer processual. Assim, podemos aceitar que o
Estado coloque certas exigências quanto ao reconhecimento de um acto jurisdicional que lhe é
alheio, ou seja, pode justificar-se que o juiz queira fazer algum tipo de controlo.

2. Reconhecimento de sentenças estrangeiras.

2.1. Sistemas de Reconhecimento


Há dois grandes sistemas de controlo, os dois em vigor em Portugal.

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1) Sistema de reconhecimento automático: este sistema dispensa o controlo prévio da sentença


estrangeira, que é automaticamente reconhecida como acto jurisdicional, tal como se fosse uma
sentença interna. Note-se que isto não significa um reconhecimento sem condições, mas apenas que
as condições exigidas apenas serão objecto de controlo judicial na hipótese de a decisão ser
invocada no processo, a título principal ou incidental.
Este sistema pressupõe uma enorme confiança no sistema jurisdicional estrangeiro, pelo que
normalmente só existe quando vigora o princípio de confiança mútuo, que encontramos
implicitamente em convenções internacionais ou, mais importante, em regulamentos europeus. Nos
regulamentos europeus que tratam de questões de reconhecimento, temos este princípio: por ex., o
Regulamento Bruxelas I ou 44/2001, que irá ser substituído pelo Regulamento Bruxelas I bis,
215/2012; Bruxelas II bis 2201/2003, em matéria de responsabilidade parental; 650/2012 sobre
sucessões, que irá entrar em vigor em Agosto de 2015. Em todos estes regulamentos temos, em
simultâneo com as regras de reconhecimento de sentenças estrangeiras, assim uniformizadas, regras
de competência internacional. Normalmente, os Estados só estão dispostos a reconhecer as
sentenças quando têm confiança, e num contexto em que todos estão de acordo quanto às bases de
jurisdição, i.e., às regras de competência internacional. Este é o sistema que vigora em Itália e na
Alemanha (salvo nas causas de esfera matrimonial).

2) Sistema de controlo prévio, ou de verificação prévia: o Estado do foro não atribui efeitos
jurisdicionais automaticamente à sentença estrangeira, arrogando-se um controlo prévio. Há dois
tipos de controlo prévio:
• Revisão de mérito: faz-se uma revisão da própria decisão material do juiz, o que no fundo
equivale a um novo juízo.
• Revisão formal: por influência italiana, chama-se um sistema de delibação. Não se vai ao
mérito da própria decisão estrangeira, mas é feito um controlo do modo como foi tomada a decisão
estrangeira. O sistema de delibação é o seguido em Portugal, no Brasil e na Suíça. O sistema de
revisão de mérito está hoje “em franco declínio”, tendência que se iniciou um o arrêt Munzer da
Cassação francesa.

2.2. Sistema português


Quanto às fontes em vigor em Portugal, temos de atender a:
• Regulamentos;
• Concordata;
• Código de Processo Civil.

1) Regulamentos da UE. Notas gerais:


• Tratamento simultâneo de competência e de reconhecimento: o âmbito de muitos
regulamentos abrange regras quer de competência internacional, quer de reconhecimento de
sentenças. Isto sucede com o Regulamento de Bruxelas I e Bruxelas II bis; já o Regulamento das
sucessões é completo: resolve os problemas de conflitos de jurisdições e conflitos de leis, que é,
aliás, a abordagem preferível tendo em conta o âmbito do DIP.
• Cisão de reconhecimento e execução: para nós, quando uma sentença é reconhecida, é
uma sentença passível de ser executada. Note-se que são problemas teóricos distintos: uma coisa é a

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produção de efeitos como acto jurisdicional, outra a execução da sentença. Há vários regulamentos
europeus em que estes aspectos são separados.
 Em relação ao reconhecimento, o art. 33.º/1 do Regulamento Bruxelas I diz que
não há necessidade de recurso a processo; e o actual artigo diz o mesmo – consagram o
reconhecimento automático.
 Já no que toca à execução, houve uma evolução: o art. 38.º de Bruxelas I diz que,
depois do reconhecimento, é necessária uma declaração de executoriedade; já no novo
regulamento, no art. 39.º diz-se que uma decisão proferida num EM, que aí tenha força
executória, pode ser executada noutro EM sem necessidade de declaração de
executoriedade, i.e., aboliu-se o exequato. Porém, nos outros regulamentos mantém-se: ver
art. 28.º de Bruxelas II bis e 43.º do Regulamento de sucessões.
• Possibilidade de impugnação das sentenças estrangeiras: apesar de, dentro dos vários
EM, o efeito ser o do reconhecimento automático, mesmo assim é possível impugnar o
reconhecimento da sentença estrangeira. Existem fundamentos de recusa do reconhecimento, que
são essencialmente formais. O art. 45.º de Bruxelas I bis permite a recusa com fundamento em
incompetência internacional; violação de regras de competência que protegem a parte mais fraca
(ex: seguros) e das regras de competência exclusiva previstas no regulamento. A ordem pública
internacional também é um fundamento admissível, logo existe não só ao nível da lei aplicável, mas
também ao nível do reconhecimento da sentença estrangeira. Note-se que a sentença estrangeira
pode ter aplicado lei estrangeira.

2) Concordata: existe um regime previsto na Concordata de 2004, cujo art. 16.º consagra um
sistema de controlo prévio quanto às sentenças estrangeiras de declaração de nulidade do
casamento rato e não consumado. Este controlo é um controlo meramente formal, sem revisão de
mérito, sendo um dos requisitos avaliados o respeito pela ordem pública internacional. Claro que
podemos sempre dizer que o controlo da ordem pública internacional introduz uma dimensão
material, mas na matriz deste tipo de controlo é uma revisão formal.

3) Código de Processo Civil: o art. 980.º do CPC estabelece as condições de conformação das
sentenças estrangeiras exigidas entre nós (apesar de falar em revisão e confirmação, isto é a mesma
coisa que reconhecimento). O reconhecimento é competência entre nós dos tribunais da relação. O
n.º 1 estabelece a necessidade de revisão e confirmação, o n.º 2 fala da hipótese de entrar em
Portugal como meio de prova.
Como é que se faz esta revisão e confirmação? O art. 980.º estabelece os vários requisitos:
• Al. a): não pode haver dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a
sentença, nem sobre a inteligência da decisão. É necessário um documento autêntico da própria
sentença, obtida por uma certidão do tribunal estrangeiro; e ainda a inteligência do documento,
aqui no sentido de compreensibilidade, inteligibilidade.
• Al. b): a sentença tem de ter transitado em julgado no país da origem. No sistema europeu,
no regulamento de Bruxelas I não se faz esta exigência: é possível em Portugal reconhecer uma
sentença espanhola ainda não transitada em julgado, uma vez que se quer favorecer a circulação as
sentenças.

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• Al. c): exige a competência do tribunal estrangeiro, não podendo esta ter sido provocada
em fraude à lei; nem podendo a sentença versar sobre matéria da exclusiva competência dos
tribunais portugueses. Há dois sistemas de controlo da competência:
 O primeiro, que vigorou em Portugal até 1997, é um sistema de bilateralidade: o
controlo da competência de um tribunal estrangeiro é feito verificando se esse tribunal
estrangeiro é internacionalmente competente de acordo com as nossas regras de
competência internacional. Porém, esta solução está em desacordo quer com o princípio da
necessária cooperação entre as autoridades dos diferentes Estados, quer com as exigências
da vida internacional, que reclamam um sistema o mais possível favorável à circulação das
decisões. Além disso, nenhum Estado pode razoavelmente pretender que só as regras por
ele aprovadas estão de acordo com o sistema ideal nesta matéria.
 Assim, em 1997, passámos a ter um sistema de unilateralidade: aceitamos a
competência se o tribunal estrangeiro, de acordo com as suas próprias regras de
competência, era competente. As regras de conflitos de jurisdições tornam-se unilaterais: as
nossas regras dizem quando os nossos tribunais são competentes; e as estrangeiras dizem
quando os tribunais estrangeiros são competentes.
Mas temos uma unilateralidade atenuada, com dois desvios: a competência não pode ter
sido provocado em fraude à lei (muito difícil de determinar); e não pode tratar-se de matéria de
competência exclusiva de tribunais portugueses.
• Al. d): não pode haver litispendência ou caso julgado. A litispendência não impede o
reconhecimento se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição (ou seja, se a acção tiver sido
proposta em primeiro lugar no tribunal estrangeiro). Se tal sucedeu, não podemos, para recusar o
reconhecimento em Portugal, propor aqui uma acção para termos uma litispendência. A mesma
doutrina vale para o caso julgado.
• Al. e): consagra aquilo a que podemos chamar ordem pública processual – regularidade da
citação e observação dos princípios de contraditório e igualdade das partes.
• Al. f): exige o respeito pela ordem pública internacional (aqui material). O reconhecimento
não pode conduzir a um resultado manifestamente incompatível com os valores fundamentais do
Estado português.
Note-se que só o primeiro e o último requisito são de reconhecimento oficioso (art. 984.º). O
que daqui resulta é um controlo formal, com concessões à revisão material. Podemos identificar
duas, visíveis no art. 983.º:
• Art. 983.º/1: o pedido de reconhecimento só pode ser impugnado pela falta dos requisitos
ou se se verificar um dos casos do art. 696.º, interessando-nos a remissão para a alínea c) – se a parte
vencida traz um documento novo, que só por si implica uma nova decisão, este é um fundamento
que permite a impugnação. Isto implica uma revisão da decisão.
• Art. 983.º/2: se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou colectiva de
nacionalidade portuguesa, a impugnação do reconhecimento pode ainda fundar-se no facto de que
o resultado da acção teria sido mais favorável se tivesse aplicado normas de direito português. Um
tribunal estrangeiro decide contra uma parte portuguesa, e o direito aplicável não foi o direito
português; porém, de acordo com as nossas regras, a lei aplicável deveria ter sido portuguesa. Neste
caso, se o litígio tivesse sido resolvido de forma mais favorável, a parte interessada pode impugnar
o reconhecimento. Há uma certa interpretação desta regra que pode ser incompatível com o
princípio da não discriminação em favor da nacionalidade: imaginemos que aparte contrária é uma

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parte europeia, que beneficia das regras do tratado, nomeadamente o princípio da não
discriminação: como poderíamos aplicar esta regra sem violar este princípio? Note-se que esta
hipótese só é quando a sentença vem de um tribunal estrangeiro, ainda que entre uma parte
portuguesa e europeia – caso contrário, aplicar-se-ia o regulamento.

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