Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Direito Internacional
Privado
Prof. Doutor Nuno Ascensão Silva
Eduardo Figueiredo
2016/2017
Eduardo Figueiredo 2016/2017
INTRODUÇÃO
1Há autores holandeses, alemães e até ingleses que se referem ao DIP com a designação de «conflitos de leis»,
sendo que a designação “DIP” tenha surgido essencialmente com a obra de FOELIX, embora já SCHAEFNER
se tenha referido a ela assim.
1
Eduardo Figueiredo 2016/2017
2
Eduardo Figueiredo 2016/2017
As normas jurídicas materiais, enquanto normas de conduta, têm o seu âmbito limitado pelo
tempo e espaço, uma vez que não podem chamar a si condutas de indivíduos que passaram para
além da sua possível esfera de influência. Assim, enquanto que no direito intertemporal vigora o
principio na não retroactividade das leis, o DIP assenta sobre o principio da não transactividade –
para que uma norma seja aplicada, tem que estar em vigor no lugar onde a conduta é praticada
e/ou visa produzir efeitos. Para além disso, o DIP assenta ainda no princípio do reconhecimento
das situações jurídicas constituídas no âmbito de eficácia de uma lei estrangeira.
A não retroactividade e não transactividade são duas faces da mesma moeda, a “não
transconexão”: a quaisquer factos aplicam-se, e só se aplicam, as leis que se encontrem em contacto
com esses factos, seja de uma perspectiva temporal, seja espacial.
Este princípio, enquanto princípio geral de direito, resolve, por si só, os problemas puramente
internos e relativamente internacionais.
1.4. Conflitos de leis e regras de conflitos de leis. Referência ao modus operandi da regra
de conflitos e ao seu carácter instrumental no seio do Direito de Conflitos.
O DIP tem por objecto das situações da vida privada internacionais, ou seja, as situações
absolutamente internacionais e relativamente internas.
As questões objecto do DIP são resolvidas em cada Estado de acordo com normas do direito
desse Estado. Cada Estado tem o seu DIP para uso interno – a sua própria interpretação do DIP.
3
Eduardo Figueiredo 2016/2017
Nota: Não falta quem proponha outras soluções, propondo que o DIP constitui um direito que
disciplina os factos e relações que o legislador entende estranhos ao seu ordenamento – assim, as normas
materiais estrangeiras chamadas através das Regras de Conflitos seriam recebidas na OJ do Estado do foro,
ficando a constituir aí, ao lado das normas materiais deste Estado, o direito especial das relações jurídico-
privadas externas. (ROBERTO AGO) Outros consideram que os problemas do DIP poderiam ser resolvidos
pelo sistema de regras materiais especiais, sem haver necessidade de recorrer ao método ou sistema conflitual.
No entanto, este ponto de vista corresponde a uma visão errónea do DIP, porque tal só era possível se existisse
um direito material uniforme – o que é utópico, como vimos.
Uma vez analisada a natureza destas regras (não regulam directa ou materialmente a
relação, senão que fazem parte de um processo indirecto consistente em determinar a lei ou leis que
a hão-de reger), importa analisar a sua estrutura própria.
Ora, a regra de conflitos vai privilegiar um dos contactos ou conexões, determinando como
aplicável a lei para a qual essa conexão aponta, o que dependerá do domínio ou matéria jurídica em
causa. Entram, assim, na sua estrutura, três elementos essenciais:
2
Para BAPTISTA MACHADO, são meras regras de «remissão» ou de «reconhecimento».
4
Eduardo Figueiredo 2016/2017
Tal pode conduzir a uma situação especial: A, português, celebra com B, francês, um contrato de
compra e venda sobre um imóvel situado na Alemanha, em que as partes escolhem a lei inglesa. Devido a esta
divisão, aplicar-se-ia a lei inglesa relativamente à perfeição do contrato; a lei alemã quanto ao
regime da propriedade; e a lei portuguesa e francesa quanto à capacidade de A e B.
Também é de notar que há regras de conflito que têm, por variadas razões, dois ou mais
elementos de conexão. Faz-se aqui uma classificação:
a) Regras de conflito de conexão una ou simples: têm apenas um elemento de conexão.
b) Regras de conflito de conexão múltipla ou complexa: as razões na sua base podem ser
variadas e é essa diferença que faz com que os elementos de conexão se articulem entre si
de modos diversos.
a. Alternativa (Ex: art. 36º CC)
b. Subsidiária (Ex: art. 52º CC)
c. Cumulativa
d. Distributiva (art. 49º CC)
Importa também notar que o processo seguido perante os tribunais portugueses é sempre
regulado pela lei portuguesa, ainda que ao fundo da causa se aplique uma lei estrangeira. Assim, as
leis relativas ao formalismo ou rito processual não levantam um problema de conflito de leis (nem
no tempo, nem no espaço) porque não afectam os direito substanciais das partes. São, portanto, de
aplicação imediata e de aplicação territorial.
Há, no entanto, algumas leis sobre a prova que simultaneamente afectam o fundo,
repercutindo-se sobre a decisão e que devem, por isso, considerar-se como pertinentes ao direito
substantivo, e não ao direito processual ou adjectivo. Devemos identificar duas espécies de leis
relativas às provas:
a) As leis de direito probatório formal – que se referem à actividade do juiz, dos peritos ou
das partes no decurso do processo
b) Leis de direito probatório material – leis que decidem sobre a admissibilidade deste ou
daquele meio de prova, sobre o ónus da prova e presunções legais. A estas questões já
não se aplica a lex fori, mas a lei ou leis competentes para regular o fundo da causa.
À parte disto, importa apenas salientar que a competência da lei do foro enquanto pura lei
de processo não depende de qualquer conexão particular que ligue a situação jurídica em litigio ao
5
Eduardo Figueiredo 2016/2017
2. O âmbito do DIP
Até agora tratámos o DIP como conflito de leis. Mas será apenas esse o âmbito desta
disciplina? Aqui há várias orientações que relevam:
1) Teorias Minimalistas (Doutrina alemã e italiana) Restringe o âmbito do DIP ao
problema do conflito de leis, embora alguns manuais alemães também se refiram ao
problema do reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras.
2) Teoria Maximalista (Doutrina francesa) O objecto do DIP compreende cinco matérias:
a nacionalidade, a condição dos estrangeiros, os conflitos de leis, os conflitos de
jurisdições e o problema do reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras.
Autores como PILLET e MACHADO VILELLA apontam outro problema autónomo, que
é o do reconhecimento dos direito adquiridos em país estrangeiro.
3) Teoria Anglo-Saxónica/ Intermédia/ Mitigada (FERRER CORREIA) Inclui no DIP o
estudo de três importantes questões, que são a jurisdição competente, a lei competente e
a do reconhecimento das sentenças estrangeiras.
Seguindo este caminho, o objecto do DIP deve reduzir-se ao conflito de leis, de jurisdições e
reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras. Porque neste campo, tratamos de princípios
jurídicos com uma natureza especial, já que, em regra, nada dizem sobre o sentido da composição
dos conflitos de interesses, nem sobre os direitos e deveres dos indivíduos, uns em face aos outros.
Aos problemas de comércio privado internacional obvia-se aqui, pura e simplesmente, remetendo a
decisão deles para o âmbito de uma legislação determinada. As normas de conflitos não são normas
substanciais, mas puramente instrumentais – dizem a lei que se aplica e não o regime aplicável.
Conflito de leis Conjunto de regras de conflito que servem para determinar que lei
competente e a aplicar ao caso concreto. Portanto, respondem à questão: que lei devem os tribunais
aplicar em determinado caso? Essa lei tanto pode ser a lei do foro como a de algum país estrangeiro.
Outra nota relevante é que estas têm no direito privado a sua sede natural, decidindo da aplicação
aos diferentes cassos dos sistemas de direito privado em vigor nos diversos Estados.
Conflito de jurisdições Conjunto de regras de conflito que serve para determinar qual a
jurisdição competente para conhecer de um determinado litigio – ou seja, a competência
6
Eduardo Figueiredo 2016/2017
internacional dos tribunais portugueses, p.e.. Por outras palavras, indicam as hipóteses em que os
tribunais do Estado a que pertencem têm competência internacional. Outra nota relevante é que
estas normas pertencem ao direito processual civil internacional.
Normas de reconhecimento e execução de sentenças Conjunto de regras de conflito que
determinam que valor têm as sentenças proferidas no estrangeiro. Também estas normas pertencem
ao direito processual civil internacional. Há vários tipos de reconhecimento, a saber:
a) Sistema de controlo prévio.
b) Sistema de reconhecimento automático ou de pleno direito.
Todas estas normas são regras de conflitos e têm em comum o objectivo de salvaguarda de
continuidade e estabilidade das relações privadas internacionais.
Natureza bem distinta têm as regras sobre a nacionalidade e a condição jurídica dos
estrangeiros.
Regras sobre a nacionalidade: Enumeram os factores de aquisição e perda da cidadania,
definindo, portanto, as condições de atribuição, no âmbito do direito local, de um entre
dois estatutos: o de nacional ou de estrangeiro. A sua natureza não é nem parecida
sequer à dos tipos de normas de conflitos. São regras que pertencem ao direito material-
substancial, sendo definida por cada Estado a sua própria nacionalidade.
Regras de condição jurídica dos estrangeiros: Visam apurar quais os direitos atribuídos
no Estado local aos cidadãos estrangeiros, em confronto com os nacionais. As normas
referentes a esta matéria são normas de capacidade que nada têm em comum com as
regras de conflitos.
De acordo com esta visão, o DIP seria um direito de conflitos – um conjunto de normas
relativas à aplicação dos diversos sistemas jurídico-privados estaduais e aos conflitos de jurisdições.
2) O segundo caminho possível baseia-se na ideia de todas estas questões têm uma
origem comum: nascem das relações de comércio jurídico internacional. (defendida
pelas teorias maximalistas)
7
Eduardo Figueiredo 2016/2017
matérias da condição jurídica dos estrangeiros e da nacionalidade, ambas tão chegadas com este
ramo, muitas vezes seus pressupostos – mas que são meramente instrumentais ou acessórias para a
aplicação das regras do DIP, não comungando de nenhum daqueles métodos normalmente
utilizados pelo DIP para conflitos de leis e jurisdições (regras de conflitos); e a finalidade desses
domínios não é a busca de estabilidade. Não existindo uma comunhão, nem metodológica, nem
teleológica, estão excluídos do âmbito do DIP.
Para além deste problema, existe um outro – o do reconhecimento dos direito adquiridos,
que MACHADO VILELLA, na esteira de PILLET, autonomia no âmbito do DIP. Estão aqui em
causa os casos em que o direito ou situação jurídica se constitui num momento em que os seus
factos constitutivos e achavam em contacto com um só Estado, sendo este direito apreciado num
outro Estado. No entanto, a maioria da doutrina moderna rejeita a autonomização deste problema,
afirmando que nestes casos temos ainda um problema de conflitos de leis3. Já BAPTISTA
MACHADO rejeita a autonomização deste problema afirmando que a solução se pode encontrar
igualmente no princípio da não transactividade: está em causa aplicar a lei em contacto com o facto
no momento da sua constituição.
Direito dos estrangeiros é o conjunto de regras materiais que reservam para os estrangeiros
um tratamento diferente daquele que o direito local confere aos seus nacionais. (BAPTISTA
MACHADO) São “normas de capacidade”: ao fixarem um tratamento diferenciado, caracterizam-se
por reduzir a capacidade de gozo dos estrangeiros, o conjunto de direitos e deveres que uma pessoa
jurídica, singular ou colectiva, não nacional, pode ser titular.
É princípio de direito comum aos Estados Modernos o reconhecimento da capacidade
jurídica aos estrangeiros. Mas se os Estados reconhecem a personalidade jurídica dos estrangeiros,
em contrapartida, eles gozam de liberdade muito apreciável na execução deste princípio. Nenhum
preceito internacional obriga o estado a conceder aos estrangeiros os mesmos direitos que concede
aos respectivos nacionais, não existindo ainda uma equiparação entre estrangeiros e nacionais,
embora exista uma clara tendência para a igualdade de direitos entre ambos.
Ora, tais restrições constituem justamente o conteúdo das normas do direito dos
estrangeiros. Como partem de uma ideia de equiparação, não têm estas normas que enumerar, de
maneira taxativa e concreta, os múltiplos direitos e faculdades que são reconhecidos aos
estrangeiros: o que fazem é especificar aqueles que lhe são denegados – trata-se, pois, de regras que
3
FERRER CORREIA: “E isto porque o reconhecimento de um suposto direito adquirido não prescinde de averiguar se o
direito alegado efectivamente existe segundo os preceitos de uma lei que, no âmbito do DIP do foro, possamos considerar competente. A
determinação da lei competente constitui, assim, um prius relativamente ao reconhecimento do respectivo direito adquirido.
Por outro lado, o problema da lei competente resolve-se pelo DIP da lex fori: as regras do direito de conflitos português tanto
se aplicam às relações constituídas ou a constituir em Portugal, como às situações já criadas em país estrangeiro.
Ora, se o reconhecimento de um direito como legitimamente adquirido decorre sem mais do reconhecimento da competência
da lei que presidiu à sua constituição e se não é pelo facto de se tratar do reconhecimento de um direito adquirido no estrangeiro que a
questão da determinação da lei aplicável deixa de se pôr em face das regras de conflitos da lex fori – temos que concluir que aquele
problema não é um problema autónomo relativamente ao do conflito de leis.”
8
Eduardo Figueiredo 2016/2017
9
Eduardo Figueiredo 2016/2017
10
Eduardo Figueiredo 2016/2017
Antes esta decisão, o Sr. Micheletti recorre da decisão nos tribunais espanhóis e procedeu ao
reenvio prejudicial ao TJUE para saber se esta maneira de resolução de conflitos era válida. O TJUE
afirmou:
1) Cada Estado é que sabe como resolver os seus conflitos de nacionalidade;
2) Mas a resolução desses conflitos nunca pode ter como consequência a privação de um
cidadão europeu de um direito que ele tem pelo facto de o ser.
Assim, entendeu-se que interpretação do direito interno não pode pôr em causa os direitos
ou as liberdades decorrentes do direito da UE. Assim, quando estamos perante casos dentro da UE,
a aplicação destes artigos não pode servir como um entrave ao exercício de direitos ou liberdades
fundamentais europeus. Isto aplica-se quer a casos de pessoas singulares, quer a casos de pessoas
colectivas.
Podemos ainda referir os conflitos negativos de nacionalidade – o caso dos apátridas.
Nestes casos, aplicamos o art. 32º CC, que manda aplicar a lei da residência habitual. Em caso de
que esta não exista ou não se possa determinar, o art. remete para o art. 82º/2 CC que manda
aplicar o critério da residência ocasional e, em falta desta, do lugar onde se encontra.
3.1. Confronto com disciplinas afins: o direito internacional público, o direito privado uniforme,
o direito transitório ou intertemporal, o direito interlocal e interpessoal, o direito da União
Europeia e o direito constitucional.
Já referimos que o DIP é o ramo do direito a que os tribunais dos vários estados recorrem a
fim de dar solução aos problemas emergentes das relações jurídicas internacionais – incluindo,
conflitos de leis – sendo, porém, todo ele de fonte estadual. Internacional pelo objecto ou a função, o
DIP é estadual pela fonte.
11
Eduardo Figueiredo 2016/2017
12
Eduardo Figueiredo 2016/2017
13
Eduardo Figueiredo 2016/2017
Estes casos apresentam uma analogia flagrante com os conflitos internacionais. Em todos se
dá a circunstância de cada um desses sistemas jurídicos que entram em conflito ter o seu território
próprio, que não coincide com o território do Estado, mas que é uma divisão desse território, uma
região ou província do país. A estes conflitos interprovinciais, interlocais ou federais presidem
critérios idênticos aos do DIP propriamente dito. Mas entre as duas matérias existem diferenças:
1) Não poderá confiar-se à lei nacional das partes a regulamentação do estatuto pessoal, visto a
nacionalidade ser uma só: o elemento de conexão decisivo será o domicílio/residência.
2) Não poderá invocar-se a ordem pública para não aplicar a lei doutra província;
3) As normas de conflitos serão, em regra, únicas para todo o território do Estado;
4) As sentenças proferidas numa província serão exequíveis de pleno direito nas restantes.
Existe outra variedade de conflitos internos – os conflitos interpessoais. São leis que regem
distintas categorias de pessoas no mesmo território. Existia essencialmente nos países coloniais, em
que subsistia um direito consuetudinário local e uma lei metropolitana. Como Portugal é um Estado
de legislação unitária, estes problemas não se colocam. Também se pode verificar por razões
religiosas. Pode suceder, neste contexto, que uma relação privada envolva pessoas destas duas
diferentes categorias, e seja necessário aplicar uma regra de conflitos.
14
Eduardo Figueiredo 2016/2017
Este problema colocou-se na Alemanha (Caso Espanhol), formando-se duas correntes de opinião
legítimas com vários adeptos.
Ora, uma delas considerava que o DIP se move num espaço exterior à Constituição, num espaço
livre relativamente aos princípios e normas constitucionais. Não compete, portanto, ao direito de
conflitos de estender a validade de um princípio reconhecido no direito interno além do seu próprio
domínio de aplicação, atribuindo-lhe um papel decisivo na escolha da lei competente. Deve
escolher-se sempre a regra de conflitos que se recomende segundo a natureza das coisas. (DÖLLE)
Em suma, as regras de conflitos são regras técnicas neutrais, que não têm o sentido de servir a
justiça material.
Esta visão do DIP é profundamente errónea. Certamente, não são os valores da justiça material
que no DIP predominam. Este propõe-se finalidades e norteia-se por princípios que não coincidem
em regra com os que se afirmam no plano do direito material. Contudo, os seus preceitos não são
meros preceitos de ordem, porque a ordem para que tende não é cega em valores e arbitrária, mas
associada a certos fins: justiça conflitual.
Assim, as regras de conflitos não são, portanto, regras técnicas axiologicamente neutrais, só que
a justiça conflitual que servem é de cunho predominantemente formal, nele avultando a certeza e a
estabilidade jurídica. Estas normas exprimem uma valoração, que não está imune a juízos de
inconstitucionalidade, mostrando-se o DIP aberto a certos juízos de valor jurídico-materiais.
Em suma, as normas de DIP são susceptíveis de colidir com os princípios constitucionais, e de
serem assim objecto de um juízo de inconstitucionalidade.
15
Eduardo Figueiredo 2016/2017
NUNO ASCENSÃO SILVA determina, pois, que há três “degraus” a percorrer neste
âmbito:
a) Há um leque de casos que podemos chamar de “normas de aplicação universal”, como as
relativas aos DLG’s que têm sempre que ser respeitados.
b) Há outros casos em que estamos ante normas que devem aplicar-se mesmo que a OJ
portuguesa não seja a competente por força da regra de conflito – são as chamadas normas
de aplicação necessária e imediata (p.e. art. 53º CRP)
c) Fora destes casos caímos na vala comum da ordem jurídica internacional, só podendo
afastar a lei estrangeira quando verificados os requisitos anteriormente verificados.
A resposta a esta questão deve situar-se no plano próprio, isto é, no plano dos critérios gerais
que hão-de orientar o juiz na aplicação do direito estrangeiro. O art. 23º do CC estabelece que, na
aplicação de lei estrangeira, o julgador deve mover-se no quadro dessa lei e orientar-se pelos
princípios nela fixados.
Assim, se em dado sistema estrangeiro determinado preceito não é aplicado pelos tribunais
ordinários por colidir com normas da respectiva constituição, cabe ao juiz português dar a essa
circunstância o devido valor, e abster-se identicamente de observar.
A resposta será, pois, a seguinte: não cabe ao julgador sindicar a compatibilidade constitucional
dos preceitos da lei estrangeira, devendo aplicá-la, tal como realizaria o juiz do respectivo sistema
jurídico de origem da norma.
MOURA RAMOS defende que, se o juiz local, perante a sua própria constituição não tem
poderes para levantar o problema da constitucionalidade, a directiva que o juiz português deve
16
Eduardo Figueiredo 2016/2017
recolher é o de decalcar os seus poderes dos do juiz estrangeiro e não deve fazer mais. Se o juiz
estrangeiro tem poderes de apreciar a constitucionalidade, podemos seguir a mesma orientação.
Há cada vez mais uma relação íntima entre o DIP e o direito europeu – fenómeno da
comunitarização ou europeização do DIP.
As diferenças entre o DIP e o DUE são manifestas (MOURA RAMOS):
• O DIP tem um carácter estadual ou interno, sendo constituído pela “normação que em
cada sistema jurídico regula as relações plurilocalizadas”, enquanto que o DUE é direito
internacional.
• O DIP tem por objecto situações privadas, enquanto que o objecto do DUE comporta o
estatuto, organização e funcionamento da UE, bem com as relações cuja disciplina é da sua
competência.
• Finalmente, enquanto que o DIP, pressupondo uma série de ordenamentos aplicáveis às
relações que regula, visa coordenar estes últimos, o DUE constitui uma ordem jurídica própria, isto
é, um conjunto de princípios e normas com fonte própria e que são aplicadas pelo TJUE.
Apesar disto, o DIP e o DUE possuem certas afinidades: para além de se ocuparem
fundamentalmente de situações que ultrapassam as fronteiras de uma só ordem jurídica, a
existência do DUE faz surgir novas relações plurilocalizadas, entre o ordenamento europeu como
um todo e uma ordem que lhe seja exterior.
Quando pensamos nas relações entre o DUE e o DIP, podemos conceber cinco níveis de
relacionamento:
17
Eduardo Figueiredo 2016/2017
foram elaborados ao abrigo deste artigo mas que nunca chegaram a entrar em vigor por motivos
vários – reconhecimento mútuo de sociedades (1968), processo de falência (1975), citação e
notificação de actos judiciais (1997), e convenção de Bruxelas II, com vista a uniformizar as regras
em matéria de divórcio.
A Convenção visou facilitar a livre circulação de sentenças, estabelecendo um regime mais
liberal do que o do nosso Código Civil. Esta liberalidade está, desde logo, no princípio do
reconhecimento automático (a sentença produz automaticamente efeitos), que veio substituir o
sistema de controlo prévio. Porém, é necessário ter cautelas: designadamente, garantir que a
sentença proferida no estrangeiro tinha uma competência legítima, sendo por isso necessário
garantir a uniformização da competência internacional – daí que a Convenção tivesse igualmente
normas nesta matéria.
Este regime foi alargado através de uma convenção gémea, revista em 97, que se aplica nas
relações entre os Estados-Membros e Estados terceiros integrados no espaço económico europeu.
Note-se que, nesta fase, as normas ainda não são criadas pela UE, mas sim pelos EM’s
através de convenções internacionais. Estas convenções tinham um protocolo internacional que
atribuía ao TJUE competência para poder decidir, a título prejudicial, questões relativas à
convenção.
MOURA RAMOS fala ainda de uma fase intermédia, antes da fase da europeização, da
incidência, sobre o DIP, do processo de aproximação das legislações nacionais. Destaca-se nesta fase
a introdução do art. 100.º-A pelo Acto Único Europeu no Tratado CEE (hoje art. 95.º do TUE) e a
adopção de medidas tendo por objecto o estabelecimento e o funcionamento do mercado interno,
que levaram à adopção de várias directivas que continham regras de DIP. Esta fase é marcada por
um carácter fragmentário, uma vez que as regras de conflitos se limitavam a garantir a
imperatividade internacional de certos patamares de unificação do direito material.
18
Eduardo Figueiredo 2016/2017
19
Eduardo Figueiredo 2016/2017
5) TJUE
Temos de pensar em dois fenómenos:
• Há situações em que o TJUE decide litígios da vida privada internacional aplicando regras
de conflito contidas nos tratados. Quando é que isto sucede? Por ex., o art. 268.º do TFUE diz-nos
que o TJUE é competente para conhecer litígios relativos à reparação de certos danos
(responsabilidade extracontratual). Como é que resolve estes litígios? O art. 340.º responde a esta
questão. Em matéria de responsabilidade, ver o art. 272.º e 340.º.
• O TJUE, ao aplicar direito europeu, designadamente normas relativas à função pública,
resolve questões prejudiciais de direito privado e que manifestamente estão fora da competência da
UE. Por ex., é necessário concretizar o conceito de filho, ou de casado.
20
Eduardo Figueiredo 2016/2017
2) Os institutos e a própria aplicação do DIP e dos seus institutos estão limitados pelo DUE
(p.e. pelas liberdades fundamentais) e só podem ser utilizados quando não se puserem em causa
esses valores fundamentais. Ver acórdão Micheletti.
3) A UE hoje é legislador conflitual, adoptando regras de conflitos ao nível europeu, para
permitir a harmonia jurídica internacional, unificando-as.
4) Há expedientes do DUE que funcionam como uma autêntica regra de conflitos. (P.e.
Acórdão Cassis de Dijon, que contém o princípio do reconhecimento mútuo das legislações
(liberdade de circulação de serviços ocasionais e mercadorias - à produção de uma mercadoria, é
aplicável a lei do país de origem).
4. Fontes do DIP
4.1. Fontes internas
Tradicionalmente o DIP era um direito de fonte estadual, de criação meramente interna. As
fontes internas a considerar são a lei, o costume, a jurisprudência e a ciência jurídica (doutrina).
Lei
o Temos, em primeiro lugar, a CRP, que é fonte de DIP por foça dos vários planos
de incidência sobre o Direito de Conflitos e domínios conexos. (ex: art. 8º, 13º, 14º,
15º, 87º, 99º/d). Destacam-se as alterações realizadas às normas do CC, de modo a
adequar o DIP aos novos princípios constitucionais - igualdade entre homens e
mulheres e não discriminação dos filhos nascidos fora do casamento.
o Lei ordinária: Código Civil (arts. 14º, 15º a 65º, 348º, 711º, 1651º, 2223º), Código
Comercial (ex: arts. 4º/2, 6º, 7º, 12º, 110º, etc…) É de notar que a especialidade de
algumas normas de conflitos contidas no Código Comercial é meramente formal,
por não ser justificada pelas circunstâncias particulares do sector a que se aplica.
o Leis avulsas.
Costume: O costume é ainda fonte importante do DIP em países em que este nãos e
encontra codificado, como na França. Perante um sistema codificado, como o nosso, o
costume pode ainda ter relevância, ainda que limitada, no desenvolvimento e
aperfeiçoamento do sistema. Trata-se, essencialmente de um costume jurisprudencial,
que se forma com base numa jurisprudência uniforme e constante.
Jurisprudência: Tem importância para o desenvolvimento e aperfeiçoamento do DIP,
embora seja mais relevante nos casos em que o sistema não é codificado ou quanto
vigora a regra do precedente. LIMA PINHEIRO considera que o papel desempenhado
pela jurisprudência portuguesa no aperfeiçoamento do DIP tem sido modesto, sendo de
registar que não raramente as decisões aplicam o direito material português a situações
transnacionais, o que sacrifica valores e princípios que enformam a justiça deste ramo do
Direito.
Ciência Jurídica: Tem uma importância enorme, já que é o labor doutrinal que tem
permitido aproximar os sistemas baseados em fontes não escritas dos sistemas
codificados e preparar a codificação. O carácter internacional e universalista do DIP
permite ainda que a ciência jurídica aproxime os sistemas nacionais de DIP e estimule
um intercâmbio fecundo que contribui para a evolução deste ramo do Direito.
21
Eduardo Figueiredo 2016/2017
22
Eduardo Figueiredo 2016/2017
23
Eduardo Figueiredo 2016/2017
com fundamento nos arts. 61º/c e 65º do TCE (redacção póstuma ao Tratado de Amesterdão),
graças à adopção de numerosos regulamentos no domínio do DIP (ex: ROMA I, ROMA II).
Com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, o art. 3º/2 TUE veio referir-se ao
estabelecimento do mercado interno. A competência dos órgãos da UE em matéria de DIP passou a
estar incluída no Título V, da Parte III do TFUE. Veja-se o art. 67º e ainda o art. 81º relativo ao
princípio do reconhecimento mutuo de decisões no âmbito da cooperação judiciária em matéria
civil.
Os actos em matéria de DIP são, em princípio, decididos por maioria qualificada no quadro
do processo legislativo ordinário (art. 81º/2 TFUE). Com excepção das medidas relativas ao direito
da Família que tenham incidência transfronteiriça que estão estabelecidas pelo Conselho, que
delibera por unanimidade, após consulta ao Parlamento europeu (art. 81º/3 TFUE)
A necessidade de uma codificação europeia do DIP tem também sido objecto de discussão –
principalmente com respeito à Parte Geral do Direito de Conflitos. Tal visa a unificação do DIP à
escala europeia, o que pode ser frustrado pelas diferentes soluções adoptadas pelos sistemas
conflituais dos EM’s relativamente à interpretação e aplicação dos instrumentos europeus em
questões como a resolução de concursos de nacionalidades, qualificação, fraude à lei, aplicação do
direito estrangeiro, etc…
LIMA PINHEIRO entende que a opção por uma europeização do DIP não será consequente
se não for acompanhada por uma unificação do regime aplicável a estas questões. A competência
dos órgãos da UE em matérias de DIP não é exclusiva, mas partilhada com os EM’s. Nas matérias
em que a União ainda não tiver exercido a sua competência reguladora, os EM’s são livres de
legislar. No entanto, uma vez exercida, esta competência exclui, ou pelo menos, limita a
competência dos EM’s (art. 2º/2 TFUE) Para mais, a UE tem competência externa relativamente às
matérias em que exerceu as suas competências internas – ver art. 216º e art. 3º/2 TFUE (que
reconhece competência exclusiva à EU em matéria de DIP, no sentido de que só esta pode celebrar
convenções internacionais com Estados terceiros, quando estas afectem as normas europeias.).
24
Eduardo Figueiredo 2016/2017
pode ser útil haver uma referência ao DIP internacional no texto interno. Isto pode ser feito através
de vários métodos:
Referência genérica: o legislador limita-se a lembrar a existência de fontes externas.
Referência específica: a propósito de cada uma das matérias, diz qual é o instrumento
internacional que aí vigora.
Incorporação: o legislador reproduz internamente as soluções já contidas nas situações
internacionais. Isto torna o sistema mais transparente para o juiz, mas tem um risco – as
normas contidas no tratado devem ser interpretadas de acordo com o espírito do próprio
tratado, e com a incorporação podemos ser levados a esquecer esta regra.
Foi em finais do século XII que nasce o DIP na maneira como hoje o conhecemos: era
necessário determinar a lei aplicável, uma vez que, para além do direito comum romano, cada uma
das comunidades (cidades italianas) ia criando as suas próprias leis – os estatutos. A partir daí,
colocava-se a questão de saber qual a lei aplicável.
Até ao século XVII/XVIII, foi-se desenvolvendo o DIP, através de várias doutrinas
estatutárias. Estas doutrinas olhavam para cada um dos estatutos e, analisando essa norma,
procuravam determinar o seu âmbito de aplicação. A grande divisão inicial era se o estatuto seria
territorial, aplicando-se na comunidade que criou essa norma a quem quer que fosse; ou extra-
territorial / pessoal, no sentido em que acompanhariam a pessoa originária de certa comunidade
onde quer que se movimentasse.
6. O Método do DIP
25
Eduardo Figueiredo 2016/2017
desses sistemas é que vai ser chamado a reger a situação concreta, tendo em conta as conexões
existentes entre as leis interessadas e os factos a regular.
Esta concepção foi criada por Savigny, sendo que o que interessava era determinar para cada
relação jurídica, tendo em conta a sua natureza, a sua verdadeira sede. A sede da relação jurídica
determina o direito local a que está sujeita. Savigny cria, assim, o método ainda largamente
predominante na actualidade – método conflitual ou de conexão – baseado na utilização de regras
de conflitos. Este consiste em procurar para cada situação jurídica típica, o laço que mais
estreitamente a prenda com um sistema jurídico determinado. (“Procura da lei mais bem colocada para
intervir”)
As regras de conflitos tinham como função indicar o elemento da factualidade concreta, por
intermédio do qual se há-de determinar a lei aplicável às várias situações da vida. O critério devia
ser o da localização da relação jurídica porque o que se pretendia tutelar é a segurança e a justiça
internacional privatística, de cunho formal - previsibilidade do direito, continuidade e estabilidade
das relações jurídicas internacionais.
Esta regra de conflitos clássica tem determinadas características:
- Rígida (eram hard-and-fast rules), isto é, normas que vinculam o juiz a utilizar um elemento de
conexão pré-determinado ou determinável a partir de critérios enunciados pela própria norma,
sempre que se lhe apresente uma questão jurídica do tipo correspondente à respectiva previsão.
- Geral e abstracta
- Neutra (que é indiferente ao resultado, isto é, ao conteúdo das soluções materiais)
Tudo isto visava a harmonia jurídica internacional através da uniformidade da lei aplicável.
Tudo isto conduz a uma situação que compromete a previsibilidade das decisões judiciais e
a estabilidade da vida jurídica. Há quem diga ainda que este método compromete a possibilidade
de encontrar, para as situações multinacionais, a solução material mais consentânea com os seus
caracteres específicos, desde logo pela neutralidade das regras de conflitos.
2) Revolução Americana
A perspectiva conflitualista rígida foi alvo de críticas severas nos EUA, onde surgiram
diversas correntes de rejeição do método conflitual europeu clássico – a American Revolution.
Neste sentido, David Cavers veio mesmo defender que "a história do DIP é uma história de seis
séculos de frustrações".
26
Eduardo Figueiredo 2016/2017
Nos EUA, a resolução do problema dos conflitos de lei foi sempre uma matéria estadual, e
tinham uma experiência enorme desde o século XVIII com conflitos de leis interestaduais (que
apresentam grandes semelhanças com os conflitos internacionais).
Neste contexto, especialistas de várias áreas reuniam-se no American Law Institute e criavam
o Restatement, uma recomendação com uma autoridade científica tão elevada que era seguida pelos
diversos legisladores (mesmo quando isto não sucedia, os tribunais convertiam-nos em
precedentes). O primeiro Restatement surgiu em 1934, redigido por JOSEPH BEALE, e foi uma
mistura da evolução americana das últimas décadas e da perspectiva europeia. Nele encontramos:
• Regras de conflitos de conteúdo rígido: como na Europa, também nos EUA se acreditou
durante muito tempo ser possível resolver o problema de DIP, através de regras de conteúdo rígido.
Porém, os tribunais gozavam de uma certa liberdade e flexibilidade na aplicação destas normas.
• À parte destas, tínhamos uma grande influência de duas doutrinas:
4
Chama-se Re-statement a compilação das regras de conflitos criadas a partir dos conflitos judiciais e, por isso,
de natureza jurisprudencial.
27
Eduardo Figueiredo 2016/2017
Ou seja, aplicando a regra de conflitos rigidamente, aplicava-se a lei de Ontário e não havia
qualquer direito de indemnização. Porém, o tribunal concedeu a indemnização, aplicando a lei
americana, com os seguintes argumentos:
• Estreita relação deste Estado com a relação entre as partes.
• Interesse do Estado na aplicação da sua lei, uma vez que Nova Iorque é o estado mais
directa e fortemente interessado na situação.
Este caso veio reforçar e generalizar a descrença nas regras de conflitos tradicionais (que
eram cegas e injustas), apontando na direcção de uma solução encontrada ad hoc, tendo em conta
certos factores-guia e a natureza da questão controvertida e das circunstâncias concretas. Porém,
deixava em aberto uma questão fundamental: a escolha da lei deveria ter em conta o interesse do
Estado em ver aplicada uma das suas leis, e este interesse depende do conteúdo da lei e da política
legislativa a que esta responda. A decisão abria assim caminho a um casuísmo inevitável.
2) Momento Doutrinal
DAVID CAVERS
Cavers defendeu, nos anos 30, a via da melhor lei (better law approach), criticando o facto de
que as regras clássicas de DIP serem configuradas de forma cega em relação ao resultado, à justiça
material do caso concreto. A aplicação da regra de conflitos seria um blindfold test, em que o juiz é
indiferente ao conteúdo da lei, seu fim e resultados da sua aplicação.
Cavers dizia que devíamos partir da ideia de que o que está em causa não é um litígio ou
conflito de sistemas de direito, senão um conflito de regras materiais. Quando se verificava esta
oposição de preceitos materiais, o juiz deve comparar os vários preceitos e as soluções oferecidas e
escolher a melhor lei, tendo em vista a justiça material devida às partes e os objectivos de política
legislativa prosseguidos pelas normas em competição.
Logo se assinalou o carácter casuístico desta doutrina (não se consegue prever qual a lei
aplicável, porque é o juiz que escolhe a lei mais justa – conduzindo a desarmonia jurídica
internacional e a uma violação do principio da paridade das ordens jurídicas) e é por isso que numa
segunda fase (Contra-Revolução de Cavers), Cavers veio sugerir que deveriam ser elaborados os
princípios de preferência, que eram critérios orientadores do juiz na escolha da lei. Estes critérios de
preferência eram regras de conflitos mas em que a escolha não era feita unicamente em função da
localização, mas de acordo com critérios de justiça material. O princípio da preferência determinava
a lei aplicável de acordo com uma localização material, justiça material, etc... Entre as regras de
conflitos e os princípios de preferência não existem verdadeiramente diferenças significativas,
porque em qualquer dos casos pretende-se escolher a lei. No caso de Cavers, a escolha é maleável
porque os princípios de preferência são meros critérios orientadores na escolha da lei mais justa.
Críticas:
Cavers foi acusado de ser contra-revolucionário porque os princípios de conflitos
assemelhavam-se a autênticas regras de conflitos, ainda que também atendessem
ao conteúdo da lei.
Cavers só definiu critérios de preferência em matéria contratual e extracontratual.
Se há domínios em que podemos elaborar estes princípios de preferência e
determinar o resultado material que deve presidir a escolha, há muitas matérias
28
Eduardo Figueiredo 2016/2017
em que isso não é possível. É por isso que se diz que o método de Cavers não
pode ser generalizado a todas as matérias.
o Por isso, para FERRER CORREIA esta better law approach deve apenas ser
usada como método coadjuvante, sob pena de desarmonia jurídica
internacional.
Em suma, esta é uma visão que incorpora uma ideia de materialização, flexibilização ou
substancialização do DIP.
BRAINERD CURRIE
Currie é mais radical porque propunha a abolição das regras de conflitos e a ruptura total
com o método clássico. Como método alternativo, propõe o método da análise do interesse
governamental (Governmental Interest Analysis) subjacente às normas materiais. Ou seja, os
limites de aplicação das normas materiais no espaço seriam dadas com base na análise do interesse
governamental que estivesse subjacente a cada norma. Parte do pressuposto que as normas
materiais têm por finalidade a realização de uma certa policy, e o Estado que edita essas normas tem
interesse na realização das políticas que a ela subjazem.
Assim, perante uma situação internacional, seria necessário analisar as políticas nas várias
leis em concurso, sendo o espaço de aplicação de cada uma dessas normas delimitado em função do
interesse estadual na base dessa norma. CURRIE faz assim uma análise publicista da resolução do
conflito de leis.
Seria assim necessário abolir o sistema das regras de conflito: o autor aponta uma série de
casos para mostrar como, estando esses casos em contacto com várias leis, só há interesse em aplicar
uma delas. O critério decisivo para aplicação de uma lei estava assim na ideia de interesse estadual,
havendo casos em que, analisando os interesses estaduais, já não há nenhum conflito uma vez que
apenas uma lei tem interesse em aplicar-se – false conflicts. O DIP, com o método conflitual, estaria
assim a potenciar estes falsos conflitos.
29
Eduardo Figueiredo 2016/2017
- Este método nem sempre se dá praticável, ou seja, nem sempre nós conseguimos determinar a
partir da análise da política subjacente a norma o seu âmbito de aplicação no Espaço.
- Este método pode conduzir a alguma injustiça conflitual, porque através da análise da política
subjacente as normas podemos chegar a resultados desadequados. Por ex., o caso da forma do
negócio jurídico – a exigência de uma forma pretende obrigar a uma reflexão; e, por outro lado,
favorecem uma ideia de certeza jurídica. Assim, os preceitos de forma de um Estado seriam
aplicáveis não só aos negócios aí celebrados (segundo objectivo), como aos negócios celebrados
pelos nacionais no estrangeiro (primeiro objectivo). Isto levaria a resultados insatisfatórios, já que
levantaria obstáculos excessivos à livre contratação.
- Há uma clara prevalência da lei do foro. Tal configura uma violação do princípio de paridade de
tratamento das ordens jurídicas. Isto tem o risco de conduzir a desarmonia jurídica internacional e
risco de forum shopping.
- Esta concepção assenta em pressupostos já ultrapassado: Os conflitos de leis eram vistos como
conflitos de soberania; O problema da escolha da lei era um problema político, isto é, determinar
qual o interesse político que devia relevar. Apontava uma subordinação do DIP ao direito público,
esquecendo que o DIP deve atender à estabilidade e segurança das situações jurídicas
transnacionais.
EHRENZWEIG
EHRENZWEIG parte de duas ideias fundamentais: (1) por um lado, aceita o método
proposto pelo Currie - análise do interesse fundamental subjacente às normas (casos de lex incerta);
(2) mas admite regras de conflitos de leis (casos de lex certa). É aqui que se situa toda a sua
construção. Os conflitos de leis são resolvidos da seguinte forma:
O seu ponto de partida seria sempre a aplicação da lei do foro, ou seja, o problema conflitual
só surge depois de se concluir que não se trata de um dos casos em que a lei do foro é independente
de qualquer escolha (Forum Rule by no choice). A ideia de prevalência da lei do foro era confirmada
por se verificar que, mesmo quando teoricamente o tribunal recorria a uma regra de conflito, no
fundo o que fazia era, através de uma série de expedientes (ex: reenvio), aplicar a sua própria lei.
Uma vez chegada aquela conclusão, caberia então às regras de conflito do foro designar a lei
aplicável. E na falta de regras de conflitos? A aplicação da norma estrangeira só poderia resultar da
interpretação da norma da lex fori segundo a sua ratio ou policy (interpretação bifocal da norma
material do foro). Por outras palavras, aplicar uma lei estrangeira está dependente, não da ratio da
lei estrangeira, mas sim da lei do foro: a interpretação da lei do foro determina se é ela que se aplica
ou a lei estrangeira.
No fundo, este autor tentou evitar ao máximo o perigo do Fórum Shopping. Resolvia as coisas
através das regras de competência internacional - lançava mão do Fórum non-convenience. Se numa
situação plurinacional, se achasse que devia aplicar-se a lei estrangeira, o tribunal devia abster-se de
aplicar a lei do foro e admitir que a questão fosse resolvida nos tribunais de outros estados.
(Coincidência Forum – Ius)
Isto é criticável porque:
Quando determinamos um conflito de leis, o critério da escolha é a proximidade
ao caso. No caso da competência, o tribunal mais próprio é escolhido de acordo
30
Eduardo Figueiredo 2016/2017
O apuramento da justiça conflitual passou a procurar a lei mais bem colocada para resolver
o caso, através de vários meios:
31
Eduardo Figueiredo 2016/2017
3) Cláusulas de excepção
São uma relativização do valor da regra de conflitos legal, isto é, a cláusula de excepção
atenua a rigidez da regra de conflitos clássica. Trata-se de uma disposição que corrige o
funcionamento normas das regras de conflitos, quanto este conduz a resultados insatisfatórios do
ponto de vista dos fins do DIP. No fundo, trata-se de um mecanismo dado pelo legislador ao juiz
para afastar a lei em princípio aplicável e para aplicar outra lei se entender que essa outra lei é mais
adequada. Há vários tipos de cláusulas de excepção:
Cláusulas de excepção materiais - é aquela em que o afastamento da lei se faz por razões de
justiça material, ou seja, há uma lei identificada como competente, mas que é substituída por outra
se esta outra lei promover um determinado resultado material mais justo. Ex: art. 45/2 CC.
Vs.
Cláusulas de excepção formal ou conflituais - aquilo que justifica a substituição de uma lei
por outra é o facto de a primeira lei (em princípio, aplicável ao caso) não ter um contacto
suficientemente forte com o caso e a segunda lei ter um contacto mais forte. É quase um regresso a
Savigny - uma lei tem contacto mais forte que a lei em princípio aplicável. Veja-se o Regulamento
ROMA I (4º/3); ROMA II; 45º/3 CC e art. 15º da Lei Suíça do DIP. É o típico da cláusula de
excepção.
Cláusulas de excepção abertas - O legislador não justifica quais as causas que justificam a
substituição de uma lei por outra, nem identifica qual a lei que afinal deva ser aplicada. Ver ROMA
I (art. 4º/3). É o intérprete que caso a caso decide se se justifica a substituição de uma lei por outra.
32
Eduardo Figueiredo 2016/2017
Cláusulas de excepção gerais - funcionam para todas as regras de conflitos. Existem nos
EUA ou na Suíça.
Vs.
Cláusulas de excepção especiais - funcionam só no âmbito de uma regra de conflitos. São as
que temos em Portugal.
33
Eduardo Figueiredo 2016/2017
2) Adaptação
É uma operação que surge naqueles casos em que são convocadas duas leis diferentes para
se aplicarem no mesmo caso (conflitos positivos de lei) e, por algum motivo, as estatuições de uma
lei e de outra são incompatíveis, seja do ponto de vista puramente lógico, seja teleológico
(BAPTISTA MACHADO fala de «acidente técnico do DIP»). O expediente da adaptação consiste
em, comparando as leis em presença (as políticas legislativas que elas vão prosseguir), combiná-las
para tentar encontrar uma solução que, respeitando o seu sentido, se adapte ao caso concreto. No
fundo, é uma autorização ao juiz para manipular o sistema conflitual de modo a cumprir as
políticas legislativas das leis envolvidas.
Quais as situações típicas?
1) O desmembramento - desmembramento das relações jurídicas conduz a contradições,
que se resolvem por adaptação da norma material.
2) Questões jurídicas diversas mas interligadas - Caso Sueco; Casos em que a aplicação das
duas leis resultaria numa violação da intenção de ambas.
3) Conflitos de qualificações – Casos de conflito negativo de qualificações. Estas situações
de vácuo jurídico são resolvidas por adaptação do elemento de conexão da regra de conflitos
(Magalhães Collaço); ou através de uma adaptação ao nível do direito material. (Ferrer Correia e
Baptista Machado)
4) Conflito móvel (sucessão da lei aplicável devido à mobilidade do elemento de conexão):
Caso Chemouni. Alguma doutrina veio dizer que teríamos que adaptar as normas materiais,
estendendo a sua aplicação. Outros autores, como Ferrer Correia preferiam suprimir ou ignorar a
sucessão de estatutos ou conflito móvel - se há aqui uma aplicação sucessiva de leis inconciliáveis,
deveríamos esquecer a sucessão de estatutos e petrificar a conexão, tornando-a imóvel.
A adaptação pode abrir caminho ao casuísmo e insegurança, mas temos que recorrer a ela
para resolver algumas situações. Para evitar esse casuísmo e insegurança:
Há casos em que o legislador resolve expressamente problemas específicos da
adaptação. (ex: art 26º/2 CC).
Para mais, a doutrina defende a criação de regras de conflitos especiais ou de 2º grau
que hierarquizassem as regras de conflitos.
Em última análise, temos que casuisticamente fazer a adaptação. Entre a adaptação
da norma material ou da regra de conflitos, tende-se a defender que a adaptação
34
Eduardo Figueiredo 2016/2017
deve ser feita ao nível da regra de conflitos e não da regra material, sob pena de criar
direito que não existe nesse OJ e que é totalmente fantasioso.
São normas materiais que se servem de uma conexão espacial para delimitarem, explicita ou
implicitamente, o âmbito de casos em que têm aplicação. Isto é uma excepção ao método conflitual,
porque é a próprio norma material que inscreve determinados elementos espaciais, isto é, delimita
no espaço o seu âmbito de aplicação tendo em conta o seu fim ou função.
Estas normas são de aplicação obrigatória para os tribunais do respectivo Estado, escapando
ao controlo do direito de conflitos. Geralmente, o seu objectivo reside na tutela de interesses de
grande relevância na comunidade local, pelo que a sua aplicação não pode depender do sistema
conflitual.
Foi FRANCESCAKIS o primeiro autor a identificar este tipo de normas. Para mais, FERRER
CORREIA alerta-nos para o facto de que estas regras permitem resolver os problemas de conflitos
internacionais de maneira não tão diferente da que a doutrina estadunidense propunha.
Dentro destas normas, temos duas modalidades:
5
3 Notas prévias: (1) Nem todas as normas constitucionais são NANI's; (2) Nem todas as normas imperativas
(P.e. Obrigatoriedade de escritura pública) são NANI's; (3) As NANI's não se aplicam sempre.
35
Eduardo Figueiredo 2016/2017
São normas materiais espacialmente autolimitadas, ou seja, delimitam o seu próprio âmbito
de aplicação no espaço, tendo em conta as finalidades que visam assegurar. Mas têm um carácter
ampliador e não restritivo, de tal modo que alargam imperativamente o campo de aplicação do
sistema a que pertencem, ou seja, são normas que se vão aplicar mesmo que o sistema jurídico em
que elas se integram não seja competente por força das regras de conflitos. Dizem-se pois, de
aplicação imediata porque não são medidas pela regra de conflitos, fixando o seu próprio campo de
aplicação.
Tal justifica-se pela sua particular intensidade valorativa - protegem valores fundamentais
para o ordenamento jurídico. Estas normas são verdadeiros instrumentos de politização e
publicização do DIP, porque são normas que permitem ao Estado impor o cumprimento de valores
da ordem política, social e económica que lhe cabem.
NUNO ASCENSÃO SILVA diz-nos que estas normas são normas em que o seu âmbito de
aplicação espacial é recortado e determinado autonomamente por regras de conflitos unilaterais ad hoc
- elas é que dizem quando se querem aplicar através de um comando unilateral ad hoc. Tratam-se,
portanto, de comandos unilaterais, à partida insusceptíveis de bilateralização, embora tal seja
discutível.
Em suma: são normas de aplicação necessária - porque não podem ser afastadas pela lei
estrangeira – e imediata - funcionam antes e independentemente da regra de conflitos. Será errado,
porém, dizer que são normas que se aplicam sempre. Na realidade, só se aplicam às situações que
querem regular através da análise do seu comando ad hoc, seja ele explícito ou implícito.
Implícitas: MOURA RAMOS considera o art. 53º CRP uma norma de aplicação necessária e
imediata implicitamente, devendo ser aplicada independentemente do que resultar da regra de
conflitos aplicável ao contrato de trabalho, dada a sua intensidade valorativa. Será aplicável aos
contractos executados em Portugal e aos contractos total ou parcialmente executados no estrangeiro
se for celebrado entre portugueses, ou estrangeiros residentes em Portugal e um empregador
português. Outro exemplo é o art. 1682º-A CC, que se aplica sempre que a casa da morada de
família seja em PT.
Explícitas: Consagrada pelo legislador na letra da lei. Muitas vezes, são normas que derivam
da transposição de directivas europeias. Exemplos:
- Lei da Concorrência (Lei 19/2014, de 8 de maio) - art. 2º.
- DL 238/86 - art. 3º
- Cláusulas contratuais gerais, mediação imobiliária, arbitragem internacional, etc...
36
Eduardo Figueiredo 2016/2017
Hoje, o art. 9.º do Regulamento de Roma I vem responder ao problema de aplicação das
normas necessárias e imediatas em matéria contratual, nos casos em que o contrato, pela aplicação
da lex causae, seja válido, mas haja uma norma de aplicação necessária e imediata que o torne ilegal.
O n.º 1 define “normas de aplicação imediata”, enquanto que o n.º 2 estabelece que as disposições do
regulamento não obstam à aplicação da lei do foro. Mais importante é o n.º 3, que estabelece que
“pode ser dada prevalência às normas de aplicação imediata da lei do país em que as obrigações decorrentes do
contrato devam ser ou tenham sido executadas, na medida em que, segundo essas normas de aplicação
imediata, a execução do contrato seja ilegal. Para decidir se deve ser dada prevalência a essas normas, devem
ser tidos em conta a sua natureza e o seu objecto, bem como as consequências da sua aplicação ou não
aplicação”. Ou seja, apenas se pode aplicar as normas de aplicação necessária e imediata estrangeiras
37
Eduardo Figueiredo 2016/2017
do país onde deveria ter lugar a execução do contrato, e tal aplicação depende de uma ponderação
do juiz.
- Jurisdicionalização do DIP –
1) Jurisdicionalização em sentido estrito. Há, de alguma maneira, uma absorção da questão dos
conflitos de leis pela questão dos conflitos de jurisdições. (Forum conveniens)
De acordo com esta jurisdicionalização, o foro e as suas leis são a instância central para a
resolução dos problemas de DIP - forum conveniens. E esse fórum conveniens aplicará a sua lei - lei do
foro - desde logo porque é a que a lei que conhece melhor e corresponde melhor aos seus modelos
de justiça.
Pode ser que por este modelo se chegue à conclusão que a lei do foro não é a mais adequada
para regular um certa relação jurídica – este problema é resolvido pela doutrina do fórum non
conveniens. Se a lei do foro não é a mais adequada, o melhor é o tribunal, que seria em princípio
competente, não decidir o litígio porque, aplicando a sua lei, a decisão não seria a melhor.
Encontramos esta absorção dos conflitos de leis pelos conflitos de jurisdição:
1.1) Na obra de EHRENZWEIG, que partia da ideia de "lex fori in fórum proprium".
1.2) Teoria das normas de conflitos facultativas – Próxima da teoria anterior, relativiza o papel
das regras de conflitos entendendo que estas são de aplicação facultativa. Há, pois, uma
preferência do judiciário sobre o legislativo, porque o juiz, quando fosse chamado a resolver
um caso, mesmo que se apercebesse que se tratava de um caso internacional que provocava
a competência de uma lei estrangeira, não estaria vinculado a aplicar a regra de conflitos se
as partes a não tivessem invocado. Ou seja, a obrigatoriedade da observância das regras de
conflitos ficaria dependente de uma manifestação da vontade das partes. Esta teoria surge
com o caso Bisbal (1960) e com Flessner que defendia que as regras de conflitos são
facultativas porque pode ser conveniente para as partes que elas não funcionem.
Estas duas teorias alargam o âmbito de aplicação material da lei do foro, conduzindo a uma
indiscriminada aplicação desta lei – pelo que têm de ser rejeitadas. A aplicação indiscriminada da
lei do foro, ainda que pudesse favorecer uma boa administração da justiça (é a lei que o juiz melhor
conhece), colocaria em causa a harmonia da segurança jurídica internacional, e consequentemente a
38
Eduardo Figueiredo 2016/2017
estabilidade das relações privadas internacionais. Daqui decorre também a colocação em paridade
das várias ordens jurídicas em contacto com o caso, que é posto em causa por esta perspectiva.
No que toca a estas convenções, a crítica é mais atenuada porque o juiz é menos severo, já
que a sua liberdade se circunscreve apenas a certas matérias e aplicação da lei do foro é justificada.
P.e. Veja-se o mecanismo de protecção dos menores:
(1) Se o juiz quer aplicar medidas de protecção efectivas, deve ter uma grande familiaridade
com a lei que quer aplicar;
(2) Estes mecanismos de protecção exigem a intervenção de autoridades administrativas.
Ora, naturalmente estas autoridades têm menos facilidade na aplicação da lei estrangeira que os
tribunais, justificando-se que estas apliquem a sua própria lei.
(3) Por fim, como estamos face a matérias muito procedimentalizadas, a aplicação da lei
estrangeira competente pode supor a prática de actos desconhecidos do ordenamento da
autoridade. A melhor maneira de evitar estes problemas é aplicar a lei do foro.
Há dois regulamentos onde estas perspectivas são visíveis: Regulamento 1346/2000 (sobre a
insolvência – art 3º e 4º, correlação fórum-ius) e Regulamento 650/2012 (sobre sucessões, art 4º, 5º, 7º-
A, 22º, caso de fórum legis).
39
Eduardo Figueiredo 2016/2017
Críticas
Apesar de, em certos casos, ser justificável recorrer à correlação forum-ius, não o podemos
fazer por sistema, uma vez que há uma diversidade de interesses e exigências que estão na base da
regulação dos conflitos de lei e de jurisdições.
• Quanto aos conflitos de leis, quer-se procurar a lei mais “adequada” a resolver o conflito, o
que pode assumir vários sentidos (para nós, mais bem colocada para resolver o litígio ante a
localização do facto, com algumas concessões à perspectiva material).
• Já nos conflitos de jurisdições, entram ideias de equidade processual, facilidade no acesso
à prova, justiça mais cómoda para as partes, etc. – ideias que frequentemente não têm reflexo no
conflito de leis.
• Para além disto, a aplicação da lex fori conduz à insegurança e instabilidade das relações
jurídicas, potenciando o forum shopping.
Para Picone, há vários métodos possíveis para resolver o problema das relações jurídico-
privadas internacionais:
1) Método Clássico ou conflitual - escolha de lei através da utilização de regras de conflito.
2) Método jurisdicional - Usado nos países de Common Law através da jurisdictional approach. O
tribunal não aplica lei estrangeira, devendo resolver-se previamente o problema da competência
internacional e depois então, escolhido o tribunal competente, deve este aplicar a lei do foro. Tem
6
Distingue-se dos processos indirectos (retorno, casos de aplicação subsidiária da lei do foro); dentro dos processos directos
reconhecemos as NANI’s, Normas de DIP material e correlação fórum-ius.
40
Eduardo Figueiredo 2016/2017
a vantagem de que o tribunal aplica a lei que conhece melhor - princípio da boa administração da
justiça. Porém, não permite considerar separadamente as razões que estão na base da escolha da
regra de conflitos e as razões que estão na base da escolha das normas de competência
internacional; e o método jurisdicional exige que exista um único tribunal competente para
decidir determinada matéria. Exige-se, portanto, que os Estados combinem qual é o único país
competente.
3) Método dos conflitos interestaduais - Utilizado nos EUA para resolver os conflitos de leis dos
diferentes estados.
4) Método material de determinação da lei aplicável - escolha da lei em função do resultado, isto é,
regras de conexão substancial ou material.
5) Método da referência ao ordenamento jurídico competente - Quais as suas características?
PAOLO PICONE convoca vários exemplos normativos onde é patente este método – apesar
de, hoje, a maior parte deles ter desaparecido, “continuam a existir casos em que tal metodologia é
utilizada, isto é, em que a criação de uma situação jurídica do Estado do foro está dependente da
apreciação de uma ou mais ordens jurídicas de referência consideradas no seu funcionamento
41
Eduardo Figueiredo 2016/2017
global”. Isto sucede nos casos em que o valor da continuidade é especialmente relevante. (p.e. caso
da adopção internacional e art. 31º/2 CC)
A doutrina considera que esta posição não está tão afastada da perspectiva clássica como se
costuma pensar. O que está em causa é uma perspectiva localizadora – embora o que temos que
determinar não seja a lei aplicável, mas o ordenamento jurídico de referência, continuamos a ter
aqui um problema de escolha. Este método é ainda de difícil generalização e difícil operatividade.
42
Eduardo Figueiredo 2016/2017
43
Eduardo Figueiredo 2016/2017
44
Eduardo Figueiredo 2016/2017
A justiça do DIP é uma justiça de cunho formal, uma vez que os valores de certeza,
segurança e estabilidade têm primazia. Isto porque ao DIP compete tutelar as relações jurídicas
plurilocalizadas, caracterizadas por uma particular instabilidade que importa mitigar.
Para BAPTISTA MACHADO, a especificidade da justiça do DIP é patente na configuração
da regra de conflitos, na sua hipótese e estatuição. No direito de conflitos, ao contrário do direito
material, não é em atenção ao tipo ou natureza dos factos que o legislador determina a estatuição,
mas em atenção à localização desses factos; no que toca á consequência jurídica, esta traduz-se na
atribuição da competência para regular aqueles factos a um dado sistema de normas. Ou seja,
mantém-se uma prioridade na atendibilidade à localização do facto e não ao resultado material
pretendido.
Sendo assim, o Direito de Conflitos, não tendo a ver com essa valoração de justiça material,
só pode propor-se um escopo de justiça formal, cuja actuação fundamentalmente se traduz em
promover o reconhecimento dos conteúdos de justiça material que ‘impregnam’ os casos da vida
imersos em ordenamentos de comunidades jurídicas estranhas, a fim de corresponder à natural
expectativa dos particulares.
Terá sido desenvolvido no século XIX, por SAVIGNY. Este princípio traduz a ideia da
uniformidade da lei aplicável, isto é, a ideia de que, independentemente do lugar onde uma relação
jurídica está a ser avaliada, a lei aplicável deverá ser sempre a mesma. O princípio da harmonia
jurídica internacional responde à intenção primeira do direito de conflitos, que é assegurar a
continuidade e a uniformidade de valoração das situações plurilocalizadas.
Para tal, seria necessário que todos os Estados partilhassem o mesmo DIP; ora, não existe um
DIP mundial, unitário, o que não significa que o legislador não deva procurar, à sua medida,
contribuir para este universalismo. Assim, o legislador nacional deve criar regras de conflitos que
sejam susceptíveis de reconhecimento universal: se o legislador interno, no momento de elaborar
essas normas, estiver atento às soluções geralmente admitidas e se se esforçar sempre por adoptar
critérios que por sua razoabilidade sejam verdadeiramente susceptíveis de se tornar universais, esse
legislador estará realmente imbuído do autêntico espírito do DIP. Há algumas regras que são
tendencialmente universais: por ex., a aplicação da lei do lugar da situação do imóvel é uma
conexão que, embora não esteja numa regra de DIP universal, existe na maioria dos Estados.
Destaca-se ainda a celebração de convenções internacionais, como na Conferência de Haia sobre
DIP, e as tentativas, a nível regional, de uma unificação das regras de conflitos. Veja-se o caso da
UE, que busca a comunitarização do DIP, através de múltiplos regulamentos que gozam de
aplicabilidade directa e primado sobre o direito interno contrário. São de aplicação universal, o que
significa que se aplicam tanto nas relações entre EM’s, como em relações com Estados Terceiros.
45
Eduardo Figueiredo 2016/2017
Porém, é impossível construir um sistema de DIP baseado apenas neste princípio, uma vez que
este não resume toda a axiologia do DIP – se só ele estivesse em causa, o conteúdo das normas de
conflitos seria indiferente.
Exprime uma ideia de unidade do sistema jurídico. Dentro de uma mesma ordem jurídica, as
contradições não são toleráveis: um sistema jurídico em coerência não pode ter normas
contraditórias entre si. Este princípio não é específico do DIP, é comum a qualquer matéria. Esta
ideia favoreceria que a uma mesma questão jurídica aplicássemos a mesma lei. Ora, a harmonia
material está em tensão com a existência de inúmeras regras de conflito para vários sectores
normativos, que fraccionam a relação jurídica em função das várias questões que ela levanta. Isto
porque para cada questão pode haver uma lei mais bem colocada.
Cada vez mais temos regras de conflito autonomizadas para cada questão jurídica – há uma
tendência actual especialização. O legislador vai ter de ponderar, para cada sector, quão longe pode
ir na especialização sem pôr em causa a harmonia material. FERRER CORREIA diz que não é
possível escolher um interesse prevalecente, só podendo ser resolvido em face das regras de conflito
e das matérias jurídicas em questão: o legislador terá de fazer a escolha em cada matéria, tentando
que a especialização seja feita sem detrimento da harmonia material.
Significa que a lei com melhor competência é a do Estado que esteja em melhores condições
para impor o acatamento dos seus preceitos.
Podemos ter dificuldades em aplicar uma sentença que aplique lei estrangeira. Isto tem
importância sobretudo nos imóveis: quaisquer actos jurisdicionais, ou qualquer acto de execução de
uma sentença que queiramos pôr em prática, se o devedor não estiver de acordo em cumprir,
necessita sempre da intervenção do Estado que tiver poderes coercivos naquele espaço. E
dificilmente um Estado aceitaria desencadear a sua máquina coerciva em aplicação de uma regra
que não a sua.
Também quanto ao sistema sucessório: há sistemas que dividem a sucessão mobiliária, ao qual
aplicam a lei pessoal; e a sucessão imobiliária, na qual é competente a lei do lugar do imóvel. Isto
quando, à partida, a lei aplicável deveria ser a lei pessoal.
46
Eduardo Figueiredo 2016/2017
O DIP deve colocar as várias ordens jurídicas em pé de igualdade, de tal modo que uma lei
estrangeira seja considerada competente sempre que a lei do foro, em circunstâncias análogas, fosse
também ela considerada competente. A regra de conflitos bilateral é um instrumento perfeito para
assegurar este princípio, uma vez que tem como função designar por competente, nas mesmas
condições, quer a lei do foro, quer a lei estrangeira.
No entanto, quando o juiz aplica uma lei estrangeira, aumenta o risco de erro judiciário. Assim,
podemos dizer que a boa administração da justiça favoreceria, em tese, a aplicação da lei do foro, ou
seja, existe uma tensão entre o princípio da paridade de tratamento e o interesse da boa
administração da justiça.
Porém, se este interesse fosse levado ao extremo, cada Estado aplicaria a sua própria lei, o que
seria incomportável para as relações jurídicas internacionais.
O DIP deve escolher a lei que o juiz conhece melhor, de modo a evitar o erro judiciário. Entre as
várias leis possíveis, o DIP devia escolher a lei do foro, isto é a lei do país onde se coloca o problema
– porque é a lei que o juiz melhor conhece. Este princípio é claramente contrário ao anterior, e, por
isso, FERRER CORREIA considera que este só terá relevância quando os demais princípios já
estiverem satisfeitos.
Por vezes, podem surgir conflitos entre estes vários princípios – um exemplo claro é entre o
princípio da harmonia jurídica internacional e a harmonia material, na regulação da questão prévia.
Por vezes, para resolver uma questão principal, é necessário resolver uma questão prévia, decisiva
para a regulação da questão principal.
Qual é a regra de conflitos que nos diz qual é a lei aplicável à questão prévia para a resolução da
questão principal? Há duas respostas possíveis:
• É a regra de conflitos do foro – perspectiva da conexão autónoma. No fundo, a lei
aplicável à questão prévia é encontrada tal como se fosse uma questão principal, autónoma. Pode
favorecer uma ideia de harmonia material, pois estabelecemos as várias conexões de modo
congruente.
• É a regra de conflitos da lex causae, da lei competente para a questão principal –
perspectiva da conexão subordinada.
47
Eduardo Figueiredo 2016/2017
Vimos os princípios gerais que devem informar o sistema de DIP como um todo; porém,
estes princípios não nos conduzem a soluções concretas dos conflitos de leis. É necessário averiguar
quais os interesses que subjazem à escolha do elemento de conexão.
Para FERRER CORREIA, devemos seguir aqui uma directiva geral – “a lei aplicável será a que
tiver uma conexão mais forte ou estreita com a relação ou situação jurídica em causa, tendo em conta uma
ponderada avaliação dos interesses que se apresentem como prevalecentes no sector considerado”. Ou seja,
mediante o sector normativo em causa, o legislador de conflitos deve fazer uma ponderada
avaliação das exigências em causa, sendo em função disso que escolhe as conexões.
Ora, na determinação do elemento de conexão entram em jogo interesses individuais e
interesses colectivos.
• Interesses individuais:
Justificam que exista a conexão da lei pessoal, uma vez que o indivíduo tem interesse em
que exista uma lei com certa estabilidade ou permanência, que rege as suas relações jurídico-
pessoais. O principal campo de incidência destes interesses é o das matérias de carácter pessoal
mais vincado, como os direitos de personalidade, estado e capacidade, relações de família e
sucessões mortis causa. Por ex., o art. 25.º do CC contém esta afirmação da lei pessoal.
Por outro lado, o interesse individual está na matéria das obrigações contratuais, na qual
existe, à partida, uma liberdade de escolha. Visa-se aqui facilitar o comércio jurídico: se os
contractos produzem efeitos inter partes, porque não deixar as partes escolher a lei que regula a sua
relação? Ver art. 41.º do CC e, mais importante na prática, o art. 3.º do Regulamento Roma I. Há
uma tendência cada vez maior para esta autonomia conflitual, extravasando o seu âmbito
tradicional – obrigações extracontratuais, matéria de sucessões, etc.
48
Eduardo Figueiredo 2016/2017
PARTE GERAL
As normas de conflitos não resolvem directamente a questão jurídica, apenas nos indicam a
ordem jurídica que vai dar resposta a esta questão: delimitam um sector ou matéria jurídica e
indicam, de entre os elementos da factualidade concreta, aquele que permitirá apurar a lei aplicável.
A norma de conflitos é constituída por três elementos:
Conceito-quadro;
Elemento de conexão;
Consequência jurídica.
Os arts. 14.º a 65.º do CC prevêem um conjunto de regras de DIP, apesar de muitas delas
estarem substituídas por convenções e, sobretudo, regulamentos. O DIP tem vindo a sofrer uma
forte europeização, que tem implicações importantes.
49
Eduardo Figueiredo 2016/2017
Algumas regras de conflitos têm apenas um elemento de conexão; porém, há outras regras de
conflitos que, por variadas razões, têm dois ou mais elementos de conexão. Faz-se aqui uma
classificação dos elementos de conexão em conexão única ou conexão múltipla.
1) Regras de conflito de conexão única ou simples: têm apenas um elemento de conexão.
Note-se que o sistema de conexão única nem sempre conduzirá à determinação de uma só lei: há
factores de conexão que podem levar por duas ou mais vias. Neste caso, é necessário escolher a lei
que melhor corresponde ao sentido da regra de conflitos. Ou seja, o critério que deverá presidir a
esta forçosa especificação ulterior do elemento de conexão não poderá ser outro senão aquele
mesmo que levou à escolha do factor utilizado pela norma de conflitos. Ex: art. 30º e 50º CC.
2) Regras de conflito de conexão múltipla ou complexa: têm dois ou mais elementos de
conexão. Consoante os interesses em causa, os elementos de conexão articulam-se entre si de modos
diversos:
• Alternativa: os interesses a que o DIP responde podem exigir o recurso a duas ou mais
conexões – por ex., para garantir a validade de um acto, proteger certas liberdades ou facilitar a
constituição ou extinção de certa situação jurídica. Quando o legislador pretende obter um
determinado resultado, pode indicar dois ou mais elementos em alternativa, vindo a ser escolhida a
50
Eduardo Figueiredo 2016/2017
lei que conduza ao resultado tido a priori como mais justo. Subjaz à conexão alternativa o
favorecimento de um determinado resultado, o que demonstra que as regras de conexão nem
sempre são rígidas e formais. É exemplo a norma do art. 36.º CC e art. 11º/1 RRoma I.
Note-se que, por vezes, o legislador desiste da conexão alternativa, consagrando a
competência exclusiva de uma das leis designadas, quando esta lei formule certas exigências – art.
65.º/2. Está aqui em causa a harmonia jurídica internacional.
• Distributiva: aqui existe uma distribuição por ordens jurídicas diversas das condições de
validade do mesmo acto. No fundo, apresenta dois ou mais elementos de conexão, mas aplica as leis
a partes diferentes da relação jurídica. É o caso do art. 49º CC. A primeira razão para a sua
utilização é um propósito de lei formal, aplicando a cada sujeito a lei que está mais próxima dele;
Para além disso facilita a constituição da relação jurídica.
7
O sistema de conexão múltipla cumulativa é distinto da cumulação de conexões! A cumulação de conexões
é um expediente em que se indica uma única lei que só é relevante se for comum a duas partes. É aquela
figura de quando a regra de conflitos diz "nacionalidade comum dos cônjuges", que só é relevante se for das
duas partes.
51
Eduardo Figueiredo 2016/2017
O problema surgiu no início do século passado, com a entrada em vigor do Código Civil
alemão (BGB), que foi acompanhado de um conjunto de regras de conflitos. Colocou-se assim a
questão de saber se estas regras de conflitos se aplicam a factos passados ou somente para o futuro.
Este problema não se coloca se a regra de conflitos nova tiver uma norma transitória,
indicando quando é que esta se aplica no tempo. E se não houver norma transitória?
A posição tradicional diz que se aplica a regra de conflitos antiga, para defesa da protecção
da confiança, já que as normas jurídicas não podem ter eficácia retroactiva. (Zittelmann; Tese de
Lisboa)
Porém, KAHN, BAPTISTA MACHADO e FERRER CORREIA consideram que o princípio
da não retroactividade das normas jurídicas assenta no facto de a norma jurídica ser uma regra de
conduta, logo aplica-se apenas às normas materiais. Ou seja, é a natureza da norma enquanto
norma material que conduz a que digamos que tem de ser limitada no espaço e no tempo; já as
regras de conflito não visam orientar condutas humanas, tratando-se de “normas sobre normas”.
Assim sendo, se a razão da limitação da lei no tempo é o seu carácter jurídico-material, com que
fundamento vamos limitar temporalmente a vigência das regras de conflito? Não há razões para o
fazer, logo a nova regra de conflito deve aplicar-se a factos passados. Só assim se alcança maior
justiça conflitual.
Porém, pode levantar-se um problema: os particulares podem consultar as regras de conflito
para escolher a lei aplicável. Aqui, a regra de conflitos funciona indirectamente como uma regra
material e não como uma pura regra de conflitos. Poderá o particular exigir que se aplique a antiga
regra de conflitos, uma vez que conformou o seu comportamento?
Sim: entende-se que a regra de conflitos normalmente actua como pura norma decisória,
mas pode, em certas circunstâncias, actuar como norma material. Se assim for, a regra de conflitos
deve ser encarada como norma material e já se aplicam as normas do direito material quanto à
sucessão de normas.
É, no entanto, necessário que, no momento da constituição jurídica, o particular tenha algum
contacto com a ordem jurídica portuguesa (foro). Esta possibilidade de ter em consideração a regra
de conflitos como norma material pressupõe alguma ligação fáctica com a ordem portuguesa, caso
contrário não temos nenhum indício que nos permita concluir que a regra conformou o
comportamento do particular. A aplicabilidade da antiga regra de conflitos pressupõe uma conexão
apreciável com a ordem portuguesa no momento da constituição da relação jurídica.
52
Eduardo Figueiredo 2016/2017
problema dos conflitos móveis perante uma conexão variável ou móvel (por ex., o lugar da situação
das coisas imóveis é uma conexão constante).
Como se resolve este problema? Temos duas hipóteses: ou o legislador resolve este
problema, ou não resolve.
1) Em relação à primeira hipótese, o legislador pode resolver o problema dos conflitos
móveis de duas maneiras:
• Através da imutabilidade/cristalização no tempo dos efeitos já produzidos, segundo o
estatuto antigo. É o que sucede no art. 29.º do CC – uma mudança do estatuto pessoal não prejudica
a maioridade adquirida segundo a lei anterior. Há aqui uma intenção de protecção do comércio
jurídico.
• Através de uma repartição do âmbito de aplicação dos vários estatutos. O exemplo
paradigmático é o art. 488.º CSC.
Estatuto pessoal:
• Em primeiro lugar, é preciso exceptuar aqui o regime das relações dos cônjuges
respeitantes a convenções antenupciais e regimes de bens, uma vez que o legislador resolveu aqui o
conflito móvel – no art. 53.º. Este tipo de conexões imobilizadas não podem colocar problemas de
conflito móvel.
• O problema coloca-se em relação ao art. 52.º, que trata da relação matrimonial. Nestas
relações, estão abrangidos não só efeitos pessoais, como efeitos patrimoniais independentes do
regime de bens. Novamente, o legislador não resolve aqui o problema dos conflitos móveis; logo,
qual é o momento relevante? Para FERRER CORREIA, é aqui relevante o carácter voluntário da
adesão a uma nova comunidade (pela nacionalidade); logo, é por isso que se entende que a nova lei
deve ser aplicável, não apenas à constituição de relações novas, mas também aos efeitos decorrentes
de relações jurídicas duradouras (neste caso, já constituídas) existentes antes da mudança. Ao
contrário do art. 49.º, já não estão em causa as expectativas em relação à validade de um acto,
aplicando-se a lei nova.
• Porém, note-se que em relação à validade de um acto, como o casamento, aplica-se o art.
49.º, em relação ao qual se podem levantar conflitos móveis. O legislador não resolve este problema,
porém, o momento que faz sentido é o da celebração do casamento. Quando se trata da validade de
um acto jurídico celebrado, faz sentido dar relevância à concretização da conexão existente à data
desta celebração – é a maneira de respeitar as únicas expectativas possíveis dos particulares –
devendo aplicar-se, pois, a lei velha. Atenção que esta norma só se refere ao momento em que se
institui a relação.
Estatuto real: quanto ao estatuto real, a regra é a lex rei sitae, art. 46.º, que se justifica por interesses
gerais do comércio. Porém, que dizer se a coisa é movimentada? A ideia aqui é que há interesses do
comércio jurídico local que faz com que se deva dar preferência à lei actual da coisa, em nome da
53
Eduardo Figueiredo 2016/2017
certeza das transacções que sobre ele venham a realizar-se. Porém, não se pode ignorar direitos
adquiridos no momento da constituição. Em suma, a perspectiva tradicional é a de que se aplica o
estatuto antigo à constituição e aquisição dos direitos, mas aplica-se a lei do estatuto novo ao
conteúdo e exercício desses direitos.
O problema coloca-se quando a regra de conflitos diz que uma lei estrangeira é competente,
mas nessa lei estrangeira houve uma sucessão de regras materiais. Aplica-se o direito material
antigo ou o direito material novo? Deve ser o direito transitório da lei aplicável (lex causae) a
responder a este problema – art. 23º CC, que diz que devemos interpretar a lei estrangeira dentro do
sistema a que pertence.
Poderia em abstracto admitir-se a opção pelo direito intertemporal do foro; porém, esta
solução não estaria em consonância com o sentido da atribuição da competência a um direito
estrangeiro para a regulamentação de uma situação plurilocalizada.
Porém, a esta doutrina devem admitir-se duas ressalvas (FERRER CORREIA):
• Pode suceder que, em face da regra de conflitos, faça sentido aplicar o direito antigo ou o
direito novo. Tudo depende da interpretação da regra de conflitos.
• Também pode intervir aqui a ordem pública internacional, algo que devemos ter sempre
em conta.
As regras de conflitos podem ser bilaterais, quando indicam como competente quer a lei do
foro, quer a lei estrangeira; ou unilaterais, quando indicam como competente apenas uma ordem
jurídica. A norma paradigmática do modelo tradicional da regra de conflitos é a bilateral. Esta é a
orientação geralmente seguida na prática, mas não a única possível. Ao sistema bilateralista opõe-se
o da unilateralidade.
Por ex., art. 49.º é uma regra bilateral, porque pelo elemento de conexão pode ser competente
a lei do foro ou qualquer outra lei. Seria unilateral se dispusesse que “a capacidade é regulada em
relação a nubentes de nacionalidade portuguesa pela lei portuguesa”.
Porém, para além das regras unilaterais e bilaterais, podemos ainda ter as regras
imperfeitamente bilaterais, que exigem, para funcionar, uma qualquer ligação com a nossa ordem
jurídica; funcionando, são bilaterais. A bilateralidade é imperfeita na medida em que, funcionando
como uma regra de conflitos bilateral, só actua em determinados casos que tenham com a ordem do
foro um determinado contacto. O problema destas normas é o que deixam situações por regular (o
que pode ser, no entanto, intencional, servindo um interesse de política legislativa).
1.1.2.1. Unilateralismo
As perspectivas que vêem as regras de conflito como regras unilaterais são as unilateralistas.
A norma de conflitos é unilateral quando se propõe apenas delimitar o domínio de aplicação das
54
Eduardo Figueiredo 2016/2017
leis materiais do ordenamento onde vigora, ou seja, quando indica apenas como competente a lei do
foro. Temos duas modalidades.
1) Unilateralismo extroverso: para a tese unilateralista extroversa, a função da regra de
conflitos é a indicar como competente sempre uma lei estrangeira, assentando na concepção de
ROBERTO AGO. Para este autor, a concepção bilateralista, ao subordinar a aplicação do direito
interno à prévia intervenção de uma norma de DIP, não faria sentido: se a designação de um
ordenamento estrangeiro por parte de uma norma de DIP se compreende, porque serve para tornar
aplicáveis pelo juiz do foro normas que de outro modo não o seriam, já nenhum significado pode
ter a designação, por parte de uma norma de DIP, do próprio ordenamento de que ela faz parte.
Para além disto, alega-se contra a tese bilateralista que esta confere ao legislador estadual um papel
de legislador supra-estadual, e que coloca num mesmo plano o direito material do foro e os direitos
estrangeiros.
Assim, quando é que a lei do foro seria competente? O ponto de partida desta teoria é o de
que, na falta de indicação, a lei material do foro é a lei aplicável; assim, precisaríamos de uma regra
de conflito apenas para dizer quando é que uma lei estrangeira é necessária. Tecnicamente,
propunha uma espécie de recepção do direito estrangeiro por uma norma jurídica.
Uma das críticas que podemos apontar a esta tese é a de que as várias leis não estão
colocadas numa perspectiva de paridade. Para além disto, há uma falta de autonomia do direito
internacional privado em relação ao direito material, que não é a nossa perspectiva – as regras de
conflito têm um fim e estrutura diferentes.
Fica, porém, a dever-se a QUADRI a formulação mais elaborada desta doutrina. Para o
autor, a aplicabilidade de uma norma estrangeira apenas pode resultar de uma norma do sistema a
8
Não se deve confundir o unilateralismo moderado de Quadri e o unilateralismo selvagem de Currie.
Quadri admite regras de conflitos; defende que uma lei se aplica quando tiver vontade de aplicação; É
unilateralista ab extrínseco porque a vontade de aplicação das normas é vista nas regras de conflitos do seu sistema.; É um
unilateralista mais moderado que procura a harmonia jurídica internacional através da boa coordenação das ordens
jurídicas, que dependia do unilateralismo das regras de conflito.
Já Currie, não admite regras de conflitos.; Também parte da vontade de aplicação das leis; É unilateralista ab
intrínseco porque a vontade de aplicação de uma lei está na sua ratio, isto é, nela própria; É um “unilateralista selvagem”
porque a sua construção não tem em vista qualquer preocupação com a harmonia jurídica internacional.
55
Eduardo Figueiredo 2016/2017
que ele pertence, ou seja, essa norma tem de ter vontade de aplicação – e só assim se garantia a
harmonia jurídica internacional e reconhecimento de direitos adquiridos. Assim, para que uma lei
estrangeira pudesse ser aplicada, teria de verificar-se uma dupla condição cumulativa:
• Que a ordem jurídica do foro não tenha vontade de aplicação, ou seja, a situação sub iudice
não poderia estar ligada à lex fori através do elemento de conexão que a lei considera decisivo no
sector em causa.
• Que a lei estrangeira tenha vontade de aplicação: de acordo com a lei estrangeira, tem de
haver uma regra de conflitos que atribua ao ordenamento estrangeiro a competência para tratar
aquela questão. A situação sub iudice tem de estar ligada pelo elemento que a lei estrangeira designa
como decisivo para que essa ordem seja competente.
Que críticas podem ser apontadas a esta doutrina? Como nota FERRER CORREIA, esta é
uma doutrina merecedora da maior atenção, desdobrando-se em duas proposições – que, não
estando em causa a competência do direito local, há que aplicar à situação controvertida o direito
que se julgar competente para a reger; e que jamais deve decidir-se um caso pelas disposições de
uma lei que o não inclua no seu âmbito de aplicação. Porém, apesar dos méritos do unilateralismo,
este tem também graves inconvenientes, uma vez que pode dar origem a situações de conflitos,
quer positivos, quer negativos.
• Conflitos positivos (várias leis querem aplicar-se num determinado caso): os autores
foram avançando várias soluções para este problema. Para QUADRI, a solução apenas poderia ser a
de ir buscar a lei à qual a situação concreta estivesse ligada pelo vínculo mais forte, que seria
também, por legítima presunção, a lei que as partes terão tido em vista. Porém, qualquer das
soluções avançadas é menos segura, e logo menos tuteladora das expectativas particulares, do que
as regras de conflito bilaterais.
• Vácuo jurídico (nenhuma lei se quer aplicar): para não denegarmos a justiça, temos
sempre de aplicar uma das leis, e teremos de ir contra a ideia fundamental desta doutrina – a lei só
se aplica quando tem vontade de aplicação. QUADRI não propunha aqui nenhuma solução, pelo
que DE NOVA veio sugerir que, no espírito da obra deste autor, se criasse uma regra especial, tanto
quanto possível conforme ao sentido daquele sistema jurídico que tenha com o caso vertente a
conexão mais estreita. O unilateralismo gera, pois, um problema que só é resolvido com o regresso
ao bilateralismo, através da escolha de uma lei com ligação mais próxima ao caso.
Para além do mais, os problemas do bilateralismo, identificados por Quadri, não são uma
fatalidade. O sistema bilateral pode ser corrigido através do reenvio (art. 16º a 19º CC) e a teoria do
reconhecimento de direitos adquiridos.
Assim, FERRER CORREIA conclui que, sob o ponto de vista da certeza do direito, a doutrina
da bilateralidade suplanta o sistema unilateralista. Porém, o sistema bilateralista na sua forma pura
também não é aceitável, sendo necessário introduzir algumas correcções.
1.1.2.2. Bilateralismo
56
Eduardo Figueiredo 2016/2017
bilateral é a de designar por competente quer a lei do foro, quer uma lei estrangeira; contudo, no
que toca aquela primeira função, ou seja, quando se designa como competente a lei do foro, a regra
de conflitos só intervém quando se trate de uma situação internacional, ou seja, relação privada
internacional. Isto relaciona-se com o princípio da não transactividade: só se aplicam as leis que
estejam em contacto com os factos. Vemos, assim, que a regra de conflitos tem uma função
subordinada.
O nosso sistema tem predominantemente regras bilaterais; porém, note-se que os sistemas
não precisam de ter só regras unilaterais ou regras bilaterais. As regras de conflitos não precisam de
ter sempre a mesma função. O art. 28.º/1 é um exemplo de uma regra de conflitos unilateral; porém,
no n.º 3 deste artigo, o legislador bilateraliza a norma. Noutros sistemas de regras unilaterais, a
jurisprudência bilateralizou as normas.
Há ainda uma doutrina que defende a auto-limitação espacial das regras de conflito
(FRANCESCAKIS), surgindo como tese intermédia entre o unilateralismo e o bilateralismo.
Como o próprio nome indica, entende que as regras de conflitos estão, na sua aplicação,
limitadas no espaço. Como se define o âmbito de aplicação? É necessário separar dois núcleos de
situações:
• Situações que, à data da sua constituição, tinham algum contacto com a ordem jurídica do
foro. Nestas situações, a regra de conflito pode aplicar-se.
• Situações que, no momento da sua constituição, não tinham nenhuma ligação com a
ordem jurídica do foro, isto é, situações que se constituíram no estrangeiro, num momento em que
não tinham nenhuma ligação com a nossa ordem. A este segundo grupo não podemos aplicar a
regra de conflitos, segundo esta visão: caem fora do âmbito de aplicação especial.
Assim sendo, que lei seria aplicada a este segundo grupo de situações? Aplica-se a lei que
tiver sido efectivamente aplicada na constituição da ordem jurídica, sem qualquer controlo da nossa
lei. Faz sentido que a regra de conflitos esteja limitada no espaço? Já vimos que não faz sentido estar
limitada no tempo, uma vez que não se trata de uma norma de conduta. A mesma ideia vale para o
espaço: esta é uma crítica fundamental que se aponta a esta doutrina.
Há uma outra crítica que podemos acrescentar – neste segundo grupo de casos, diz-se que a
nossa ordem jurídica não tem interesse em controlar as relações jurídicas. Porém, produzem efeitos
no foro, logo há algum controlo que devemos fazer sobre as situações constituídas no estrangeiro,
não são necessariamente irrelevantes para a nossa ordem. Esta doutrina tem um ponto de partida
bilateral, mas no fundamento fica próximo do unilateralismo: nas situações não ligadas à nossa lei
não temos nada a dizer.
2. O problema da qualificação.
2.1. Introdução
57
Eduardo Figueiredo 2016/2017
qualificação é um problema geral de direito; porém, a particularidade que existe no DIP resulta do
facto de os conceitos-quadro não serem conceitos descritivos mas sim técnico-jurídicos. Se as regras
de conflitos recorressem a conceitos descritivos, tudo se resumiria a descrever as situações factuais
contidas na previsão normativa e depois, face ao caso concreto, subsumi-lo à categoria apropriada
do direito de conflitos – a operação de qualificação não apresentaria nenhuma especificidade face às
regras de direito material. Porém, não é isso que aqui ocorre.
Exemplo de qualificação
Imaginemos que temos uma família de ingleses (A, pai e B, filho). A e B celebram um contrato de
compra e venda, válido à luz da lei inglesa mas não à luz da portuguesa (art. 877.º). Se A e B são pai e filho, as
relações familiares são regidas pela lei inglesa; pelo contrário, as relações obrigacionais serão reguladas, desde
logo, pela lei escolhida pelas partes – imaginemos que tinham escolhido a lei portuguesa. O problema da
qualificação começa quando vamos pegar numa norma material, neste caso o art. 877.º, e vamos tentar
qualificá-la, ou seja, dar-lhe uma certa natureza jurídica atendendo à sua função sócio-jurídica. O art. 877.º,
pelo seu conteúdo e função, não é uma norma obrigacional: o que quer proteger é a paz familiar, evitar a
justiça sucessória (tentando fugir às regras sucessórias que tentam fazer uma repartição igualitária). Assim, é
uma norma de natureza familiar – para uns – ou de natureza sucessória – para outros. De qualquer forma,
pelo conteúdo e função não corresponde à função normativa para que o direito português é
chamado neste contexto: a lei competente no caso para regular as relações familiares é a lei inglesa.
O art. 877.º não se subsume no conceito quadro de obrigações da regra de conflitos que chama a lei
portuguesa. Isto implica um juízo de correspectividade.
No que toca ao critério da qualificação: há várias teorias sobre o modo como a interpretação
deve ser feita.
58
Eduardo Figueiredo 2016/2017
• Interpretação segundo a lei competente (lex causae): outra doutrina, defendida por
RABEL e WOLFF, preconiza a interpretação do conceito-quadro segundo a lei competente, ou seja,
segundo a lei aplicável. Porém, a crítica é a de que, se admitíssemos esta interpretação, a regra de
conflitos tornar-se-ia num “cheque em branco”: a matéria jurídica de que trata seria definida não
pela regra de conflitos, mas pela lei competente.
Assim, de acordo com FERRER CORREIA, a interpretação do conceito-quadro deve ser uma
interpretação:
• Teleológica, ou seja, temos de tentar perceber porque é que o legislador, naquela concreta
regra de conflitos, escolheu determinada conexão. Todo o sistema de regras de conflitos deve ser
preordenado à satisfação de determinados interesses, e assim a conexão deve ser a mais adequada a
satisfazer esses mesmos interesses. Como tal, a interpretação do conceito-quadro tem de passar
obrigatoriamente pela determinação do juízo valorativo que conforma a regra de conflitos.
• Para além disto, deve ser autónoma em relação ao direito material: devemos atender às
finalidades próprias do DIP e não do direito material. Se o DIP tem a sua intencionalidade e a sua
justiça própria, a interpretação dos seus preceitos e dos respectivos conceitos-quadro tem de ser
conduzida com autonomia. A interpretação deve ser feita no quadro do DIP a que pertence (à lex
formalis fori e não à lex materialis fori).
59
Eduardo Figueiredo 2016/2017
O legislador acabou por resolver o problema da qualificação entre nós no art. 15.º do CC.
Algumas notas sobre este artigo:
• O legislador só trata aqui da qualificação propriamente dita, diz como se vão qualificar as
normas – para nós, materiais.
• Resulta do art. 15.º que essas normas são qualificadas de acordo com a sua função e
conteúdo, e não tanto em função da sua inserção sistemática.
• Este conteúdo e função são apreciados à luz da lex causae, à luz do ordenamento jurídico a
que a norma pertence.
• O chamamento que a regra de conflitos faz é um chamamento circunscrito ou limitado: a
regra de conflitos, quando designa um ordenamento jurídico, não quer dizer que esse ordenamento
vai ser aplicado em bloco, apenas aquelas que correspondem ao instituto visado.
• Finalmente, o art. 15.º pressupõe que a competência já esteja atribuída, ou seja, a
qualificação não serve para determinar a lei aplicável. Só procedemos à qualificação depois de
sabermos quais os ordenamentos competentes. A lei competente é determinada através do princípio
da não transactividade da lei (exclui os ordenamentos que não têm conexão com a situação); e,
dentro dos ordenamentos com contacto, só serão competentes os designados pela regra de conflitos.
No problema da qualificação, já fizemos funcionar estes dois momentos.
A qualificação de acordo com o direito português traduz-se no seguinte: quanto ao primeiro
momento, recorremos ao critério da lex formalis fori; no segundo, rege o art. 15.º CC. Segundo
FERRER CORREIA, este segundo momento trata-se da resolução de um problema de
subsumibilidade de um quid ao conceito-quadro.
60
Eduardo Figueiredo 2016/2017
Quais são assim as diferenças da concepção da dupla qualificação face à perfilhada entre nós?
• A qualificação primária serve para identificar a lei aplicável, o ordenamento jurídico
definitivamente competente. Aqui, há uma diferença em relação ao nosso sistema de qualificação,
que não serve para determinar o ordenamento competente: esta é uma operação anterior à
qualificação. Muitos autores italianos criticaram o nosso sistema por não atender à qualificação
primária. FERRER CORREIA defende o nosso sistema ao afirmar que a qualificação primária é um
“falso problema e desnecessária”, pelo que já vimos antes.
• Para além disto, o objecto da qualificação são factos, situações de vida; já para nós o objecto da
qualificação são normas materiais. Como é que se qualificariam os factos? Os autores italianos,
(AGO, bem como o americano ROBERTSON) defendiam que os factos deveriam ser qualificados de
acordo com a lei do foro.
• Em relação à qualificação secundária ou material, na concepção de AGO faz-se um
chamamento indiscriminado das normas. ROBERTSON aproxima-se mais da nossa concepção: só
aplica as normas, discriminadamente, que se aproximam do instituto em questão.
61
Eduardo Figueiredo 2016/2017
própria função do conceito quadro, que quer repartir as matérias jurídicas. O sentido da regra de
conflitos é atribuir uma certa função normativa a uma determinada lei, logo só podem estar
compreendidas no seu âmbito as normas que correspondem a essa função. A referência da norma
de DIP a uma lei não abrange a totalidade das suas disposições, mas apenas aquelas que possam
subsumir-se na categoria normativa da regra de conflitos.
De acordo com o nosso método, podem surgir conflitos de qualificações – o que, como nota
FERRER CORREIA, não faz com que o tenhamos de rejeitar. Estes só seriam evitáveis com uma
rígida qualificação lege fori, ou seja, se fizéssemos a tal qualificação primária definitiva – aí, só
chegaríamos a uma lei competente e não poderiam existir conflitos. Porém, como já vimos, esta
posição é inaceitável. Por outro lado, estes conflitos não são uma consequência exclusiva do método
de qualificação adoptado.
Assim, não fazendo a qualificação primária, podemos ter vários ordenamentos jurídicos
chamados simultaneamente por regras de conflitos diferentes e, depois de termos feito funcionar o
art. 15.º, podemos chegar a resultados contraditórios. Qual é este resultado incongruente? Temos de
distinguir entre conflitos positivos e negativos:
• Conflitos positivos: ocorrem quando as normas dos vários ordenamentos competentes
passam o crivo da qualificação e a sua aplicação simultânea é inconciliável.
62
Eduardo Figueiredo 2016/2017
• Conflitos negativos: ocorrem quando há dois ou mais ordenamentos competentes por força
das várias regras de conflito, mas nenhum desses passa o crivo da qualificação.
Como se resolvem estes conflitos? O CC não propõe aqui qualquer directiva, o que se
percebe – este é um tema complexo e a doutrina mostra-se hesitante. Para FERRER CORREIA,
devemos procurar uma solução no plano do DIP, o que significa que devemos preferencialmente
tentar hierarquizar as regras de conflitos, em função dos interesses que elas visam servir; quando
isto não seja possível (o que será raro), devemos adoptar uma perspectiva material. Segundo esta
perspectiva, deveremos ter em conta as soluções oferecidas pelas leis em presença, para as depois
harmonizar, em termos de tornar possível a sua aplicação combinada; ou para aplicar uma delas,
depois de convenientemente ajustada à nova situação (temos sempre uma adaptação).
63
Eduardo Figueiredo 2016/2017
Há um exemplo de escola. Até 75, os gregos ortodoxos tinham de casar de acordo com o rito ortodoxo.
Imaginemos que temos dois gregos que querem casar na Alemanha: a questão do rito, que para os gregos tem a
ver com a própria substância do casamento, com a sua natureza sacramental, contende com a validade do
casamento; por outro lado, para a Alemanha, é uma questão de mera formalidade extrínseca, regulada pela lei
do lugar da celebração. Para a lei grega, subsume-se no conceito quadro de validade e existência do casamento;
para a lei alemã, no conceito quadro da forma de casamento. Temos aqui um conflito positivo de qualificações.
Para FERRER CORREIA, deve prevalecer a qualificação substância, logo a lei grega é a competente. Claro
que isto depois vai violar o princípio da liberdade religiosa (invocação da excepção da ordem pública).
Costuma dar-se o exemplo de alguém que morre sem herdeiros e sem testamento. Os ordenamentos
jurídicos tratam esta questão de forma diferente: no caso português, o Estado é herdeiro; noutros
ordenamentos, o Estado ou a Coroa tem um direito real de apropriação. Podemos assim ter dois ordenamentos
competentes, de acordo com duas regras de conflito portugueses: por ex., um português morre sem testamento
ou herdeiros, deixando os seus bens em Inglaterra. A norma portuguesa que diz que o Estado é herdeiro tem
natureza sucessória; por outro lado, na Inglaterra, sendo o direito de natureza real o direito inglês é chamado
como lei do local da coisa. Deve prevalecer a qualificação real, o art. 46.º: aqueles bens devem ficar para a coroa
inglesa.
64
Eduardo Figueiredo 2016/2017
Por exemplo, um casal de portugueses casa sem convenção e mais tarde um deles adquire a
nacionalidade alemã e perde a portuguesa. De acordo com o art. 53.º, o regime de bens é definido pela lei
portuguesa porque era português no momento da celebração; porém, quando morre, e não sendo português, a
lei que regula a sucessão é a lei alemã. O cônjuge tem os direitos de participação na comunhão, e naquilo que
resta entra como herdeiro, cumulando as duas posições (o mesmo sucede no direito alemão) – a lei portuguesa
não coloca nenhum obstáculo a que o cônjuge sobrevivo concentre em si a qualidade de meeiro dos bens
adquiridos e a de sucessor ex lege (arts. 2133.º, 2146.º e 2147.º do CC).
Porém, podemos ter casos em que os dois estatutos não sejam cumuláveis, se
estivermos perante um ordenamento no qual a tutela do cônjuge sobrevivo se faz
apenas por um dos estatutos.
Por exemplo, um casal sueco no qual um deles adquire a nacionalidade inglesa: no direito sueco, o
cônjuge sobrevivo é apenas protegido na comunhão post-mortem (no momento da morte, reparte-se os bens
todos do casal). Porém, entretanto passou a ser inglês e no direito inglês a única tutela é a hereditária: temos
um conflito de qualificações porque, se aplicarmos sucessivamente as duas leis, estamos a dar duas protecções
quando qualquer um dos ordenamentos só dá uma. A cumulação das duas pretensões não é uma solução
razoável, uma vez que qualquer uma das normas esgota a tutela jurídica do interesse visado.
65
Eduardo Figueiredo 2016/2017
sucessória – pelo que se deverá optar pela lei competente no estatuto sucessório. Acaba por ficar
sozinha a regra de conflitos do art. 62.º e a lei por ela declarada competente.
A primeira ideia a destacar é a de que apenas se levanta aqui um verdadeiro problema quando
estamos perante uma autêntica lacuna de regulamentação: não aplicar nem uma norma nem outra
tem de ser contraditório do ponto de vista dos dois ordenamentos jurídicos, levando a um resultado
claramente insatisfatório.
Em segundo lugar, FERRER CORREIA diz que muitas vezes o conflito é apenas aparente,
porque um dos preceitos em causa pode subsumir-se na regra de conflitos. Nestes casos, fazemos
uma qualificação subsidiária, de modo a que aquela norma, alterando-lhe a natureza, se possa
considerar já corresponder ao instituto visado.
Por ex., imaginemos que um casal britânico ao tempo do casamento toma mais tarde a nacionalidade sueca
(hipótese inversa à que já vimos): a lei sueca estabelece a comunhão mortis causa, e à primeira vista diríamos
que este é um regime de bens do casamento. Porém, este regime de bens, embora o sendo, tem em vista a tutela
dos direitos sucessórios, logo subsidiariamente o regime de bens suecos pode ser concebido como sendo um
regime sucessório. E, se qualificamos sucessoriamente, já se subsume no art. 62.º e pode ser aplicado.
Quando não conseguimos esta qualificação subsidiária, temos uma verdadeira lacuna.
Por exemplo, um inglês morre sem herdeiros e testamentos e deixa bens em Portugal. O art. 62º. manda
aplicar a lei inglesa, que confere à coroa britânica um direito real de apropriação, não se subsumindo no art.
62.º; já o art. 46.º diz que se aplica a lei do lugar da situação da coisa, sendo que no direito português há um
direito do Estado, porém é sucessório, logo não se subsume no art. 46.º. Nenhum dos ordenamentos quer que
os bens fiquem sem dono, logo temos uma verdadeira lacuna e um conflito negativo de qualificações.
66
Eduardo Figueiredo 2016/2017
Estes conflitos resultam da diversidade dos elementos de conexão adoptados nos vários
sistemas de direitos para a mesma matéria jurídica. Este problema acaba por ser agravado pelo
bilateralismo, porque pode acontecer que o critério de conexão do direito de conflitos do foro não
coincida com o das outras leis em contacto com a situação sub iudice, resultando que a legislação
aplicável nos vários estados interessados não seja a mesma.
9 A doutrina da autolimitação espacial das regras de conflitos foi defendida por FRANCESCAKIS, segundo a qual as
regras de conflitos apenas se aplicariam a situações que tivessem algum tipo de contacto com a ordem jurídica, ou seja, o
domínio de aplicação das regras de conflito é restrito. Note-se que para o autor qualquer contacto com a ordem jurídica
chegaria para fundamentar a aplicação da regra de conflitos, podendo não ser necessariamente o contacto do elemento de
conexão. Nas situações absolutamente internacionais, a lei aplicável é a lei que tiver sido efectivamente aplicada, sem
qualquer controlo prévio, o que se aproxima do unilateralismo, que enuncia como princípio o de que a lei aplicável a é a
lei que queria aplicar-se e lhe tenha sido efectivamente aplicada. As objecções à doutrina de FRANCESCAKIS são as
seguintes: se está em causa o interesse do ordenamento em vigiar as situações que têm conexão estreita com ele, então este
interesse está suficientemente acautelado através da excepção da ordem pública internacional; as normas de conflitos
apenas têm por escopo resolver conflitos de lei, não sendo regras de conduta, logo não é possível deduzir destas normas
quaisquer limites à sua aplicação espacial; constitui proposição errónea a de que o sistema jurídico nacional não tem
interesse em ver aplicadas as suas normas de DIP a situações que não tenham com ele qualquer conexão, ou uma conexão
estreita (o que é patente nas regras de conflitos bilaterais); e não se deve renunciar ao controlo prévio da competência de
um dado sistema jurídico só porque foi o efectivamente aplicado.
67
Eduardo Figueiredo 2016/2017
Entre nós, fundamentalmente, a perspectiva que temos sobre os conflitos de sistemas de DIP
é a seguinte: desde logo, a regra de conflitos não é um prius metodológico, isto é, tem um carácter
subordinado no contexto do ordenamento jurídico conflitual. Assim, a aceitação ou não da
decadência da nossa regra de conflitos e a aceitação das regras de conflitos estrangeiras, há-de
decorrer das próprias finalidades do DIP. Ou, de outra maneira, para nós resolvermos os conflitos
de leis, por vezes temos que deixar cair os valores subjacentes à nossa regra de conflitos e ter em
consideração os valores gerais do DIP. Quais são estes valores que indicam a necessidade de
reconhecer a aplicação da regra de conflitos estrangeira e o papel subordinado da nossa justiça
conflitual?
• Princípio da harmonia jurídica internacional: dita as soluções em matéria de reenvio, é o
valor que nos faz aceitar o reenvio e o que diz a regra de conflitos estrangeira.
• Princípio da efectividade das decisões: leva-nos a respeitar o princípio da maior
proximidade (a lei pessoal cede perante a lei do lugar da situação das coisas).
• Tutela das expectativas: leva-nos ao reconhecimento dos direitos adquiridos.
3.1. O reenvio.
O reenvio veio dar resposta ao problema do conflito negativo de sistemas de DIP, isto é, quando
a legislação estrangeira designada pelo DIP do foro para regular certa questão jurídica não se
considera aplicável e antes remete para outra ordem jurídica. Esta ordem jurídica tanto pode ser a
do Estado do foro (retorno), como a de estado terceiro (transferência da competência).
Retorno: L1 L2 L1
Transmissão de competência: L1 L2 L3
A solução do reenvio surgiu numa decisão de um tribunal francês em 1982 (Caso Forgo),
embora em rigor o problema já tivesse sido abordado em sentenças inglesas e alemãs no século XIX.
Nessa decisão, a Cour de Cassation tomou a posição inovadora de afirmar que temos que olhar para
as regras de conflitos da lei aplicável.
Antes de mais, saber se deve haver reenvio ou não é um problema de interpretação da nossa
regra de conflitos, isto é, de saber que referência faz a nossa regra de conflitos à lei estrangeira.
Podemos ter dois tipos de referências:
Referência material - (RM) Se a regra de conflitos fizer uma referência material, isto quer
dizer que, quando a ordem jurídica reconhece competência a lei estrangeira, chama apenas as
normas materiais desse ordenamento, independente de essa lei se achar ou não competente.
Referência Global - faz um chamamento do ordenamento jurídico na sua totalidade, ou
seja, chama as normas materiais, mas também o sistema conflitual estrangeiro. Só aqui é que se
68
Eduardo Figueiredo 2016/2017
atende ao facto de este ordenamento jurídico se considerar ou não competente. Aqui, há quatro
possibilidades:
A) L1 L2 L1 - Reenvio em 1º grau ou de retorno directo
B) L1 L2 L3 L1 – Reenvio em 2º grau ou de retorno indirecto
C) L1 L2 L3 - Transmissão simples
D) L1 L2 L3 L4 - Transmissão em cadeia
Em suma, perante um conflito negativo de regras de conflitos, são possíveis três atitudes:
• Atitude favorável ao reenvio como princípio geral – doutrina da devolução ou do
reenvio, que parte da ideia de que a referência da norma de conflitos do foro à lei estrangeira tem
carácter global.
• Atitude absolutamente condenatória do reenvio – doutrina da referência material,
segundo a qual a referência da norma de conflitos à lei estrangeira apenas abrange o direito
material. São sistemas hostis ao reenvio (como o brasileiro).
• Atitude condenatória do princípio, mas favorável ao reenvio com alcance limitado – é a
posição moderna, defendida sobretudo pela doutrina alemã. Toma-se como ponto de partida o
princípio da referência material; porém, reconhece-se casos em que o reenvio pode levar a
resultados úteis.
As duas primeiras são posições dogmáticas; a última é pragmática.
Como vimos, temos duas visões dogmáticas possíveis perante a questão do reenvio: ou as que
negam em absoluto qualquer atendibilidade à regra de conflitos estrangeira (teoria da referência
material); ou as que entendem que, por princípio geral, devemos tomar em consideração o DIP
estrangeiro (teoria da devolução ou da referência global).
O que a caracteriza é o facto de que rejeita o reenvio, porque não atende àquilo que a lei
estrangeira diz sobre a sua competência. Ou seja, a referência da regra de conflitos a uma lei
estrangeira deve ser entendida como feita directa e imediatamente ao direito material estrangeiro.
Os defensores da referência material defendem a sua existência com base no seguinte:
A regra de conflitos, pela sua própria natureza, é uma norma destinada a resolver
concursos de normas materiais no espaço. Logo, se o objecto da regra de conflitos são as normas
materiais, só essas devem ser chamadas. Mais – o DIP nasce com um sentido ou aspiração de
universalidade, para assinar às relações jurídicas internacionais privadas a sua lei reguladora, que
deverá ser a mesma lei em toda a parte. Assim, seria uma contradição nos termos admitir que as
suas normas tivessem sido marcadas do selo de uma referência a outras normas com idêntica
função mas sentido diferente.
A referência material é a única posição consentânea que respeita o próprio juízo da regra
de conflitos. Em cada regra de conflitos está uma ponderação do legislador e, se quisermos manter-
nos fiéis ao nosso juízo conflitual, devemos aplicar imediatamente o direito material designado pela
regra de conflitos.
69
Eduardo Figueiredo 2016/2017
Cada Estado tem as suas próprias regras de conflito, que têm, pelo seu objecto, carácter
internacional. Se a regra de conflitos tem esta função universal, então pelas mesmas razões não faria
sentido apontar outras regras com funções semelhantes, que deveriam na pureza dos sentidos ser
iguais às nossas, mas sim apontar directamente um direito material.
O sistema que faz essa referência, quando remete para um OJ remete para esse OJ na sua
totalidade, atendendo não apenas às suas normas materiais, mas também ao seu direito conflitual,
isto é, ao facto de este se considerar competente ou não. Dentro desta tese, temos 3 variantes:
70
Eduardo Figueiredo 2016/2017
ficção. Para além disto, costuma ainda apontar-se a objecção do círculo vicioso: se devemos atender
às normas de conflito da lei designada pela lei do foro, também devemos atender às regras de
conflito da lei indicada por esta, e assim sucessivamente.
Argumenta-se também que esta doutrina potenciaria a aplicação da lei do foro, o que é
vantajoso do ponto de vista da boa administração da justiça. Este é um argumento datado – é bom,
sem dúvida, que os tribunais possam aplicar as suas próprias leis. Mas é melhor ainda que eles
apliquem às situações da vida internacional a legislação que em melhores condições estiver para
intervir. Para além disto, este argumento, a valer, apenas valeria par ao caso do retorno, em que a
aceitação do reenvio determina a aplicação da lei do foro.
Devemos aceitar o reenvio porque ele favorece a harmonia jurídica internacional. Se
aceitarmos o reenvio da Lei 2 para a Lei 1 (retorno) ou para a Lei 3 (transmissão), a decisão será
idêntica à proferida por um juiz que pertença à Lei 2. Independentemente do lugar onde a causa
seja julgada, a lei aplicada é a mesma, ou seja, a justiça da causa deixa de depender do lugar da
propositura da acção. Acontece, porém, que a devolução simples constitui, por vezes, um obstáculo
à própria harmonia jurídica internacional. Veremos alguns casos:
Caso 1 (retorno): L1 (DS) L2 (RM) L1 (aplica-se a L1 porque a referência feita
pela L2 é material - aqui há harmonia jurídica internacional)
Caso 2 (retorno): L1 (DS) L2 (DS) L1 (aqui não há harmonia jurídica
internacional, porque a L1 aplicaria a L1 e a L2 aplicaria a L2.)
Caso 3 (transmissão de competências): L1 L2 L3 (a L3 tem que se considerar
competente para haver harmonia jurídica internacional)
3) Teoria do duplo reenvio, dupla devolução, reenvio total ou Foreign Court Theory
De acordo com esta teoria, o juiz deve, ao interpretar e aplicar a regra de conflitos, alinhar
rigorosamente a sua decisão por aquela que seria tomada pelo juiz estrangeiro. A referência da
norma de conflitos do foro a determinada lei estrangeira impõe aos tribunais locais o dever de
julgarem a causa tal como ela seria provavelmente julgada no Estado onde essa lei vigora.
Em termos técnicos, qual é a diferença em relação à perspectiva da devolução simples?
Quanto partimos do sistema de devolução simples, devemos atender às regras de conflito da L2; no
da devolução dupla, devemos tomar em consideração não apenas as suas regras de conflito da L2,
mas também as regras sobre o reenvio, o próprio sistema de reenvio da lei indicada.
L1 (DD) L2 (RM) L3
Resolução: L1 L3 (aplica a L3, porque “faz tudo” o que a L2 fará e a referência da L2 L3 é
material.)
71
Eduardo Figueiredo 2016/2017
O reenvio não pode ser aceite como princípio geral na aplicação da regra de conflitos. Isto
não significa, porém, que ele não possa servir como uma técnica utilizada sempre que tal seja útil à
prossecução de interesses ou valores fundamentais do DIP, nomeadamente para garantir a
harmonia jurídica internacional e, consequentemente, a segurança jurídica. O reenvio é um
expediente prático-normativo, uma técnica e não um princípio geral do DIP. Adoptamos entre nós
uma posição pragmática – BAPTISTA MACHADO e FERRER CORREIA.
No caso português, adoptou-se a via pragmática no CC de 1966, rejeitando-se a aplicação
sistemática do reenvio (art. 16.º) e definindo com rigor o âmbito em que o reenvio deve actuar. A
posição adoptada pelo legislador português vai assim na linha da posição pragmática, garantindo
nomeadamente a harmonia jurídica internacional e podendo constituir como tal um factor de
certeza jurídica. A ideia da harmonia jurídica internacional foi, com efeito, a principal inspiração do
legislador, numa orientação altamente progressiva. Fala-se de um reenvio-coordenação por este é
utilizado como instrumento de coordenação dos OJ's.
Temos de atentar num conjunto de artigos: arts. 16.º a 19.º; e 36.º/2, bem como 65.º/1, parte
final, do CC.
72
Eduardo Figueiredo 2016/2017
Art. 16º CC - O legislador, quando fala de direito interno, refere-se ao direito material e não
ao direito de conflitos. Ou seja, salvo solução contrária, a referência que deve valer é material. Há
muitos preceitos que apontam em sentido contrário. Por isso, BAPTISTA MACHADO dizia que “no
art. 16º não podemos dizer que esteja consagrado um princípio geral “anti-reenviante”. Está apenas
consagrada uma regra pragmática que cederá sempre que se justifiquem os desvios em nome dos princípios
caros do nosso DIP”.
Isto terá grande relevância, porque se entendermos este artigo como um princípio geral
apenas com as excepções legalmente previstas, tal impossibilitaria uma interpretação analógica dos
arts. 17º e 18º - contemplariam uma lista taxativa. Mas isto não acontece: para além dos casos
expressamente previstos na lei, aceitamos o reenvio noutros casos quando estejam em causa
princípios fundamentais do DIP.
Vamos agora analisar os princípios do DIP que podem levar à aceitação do reenvio:
O art. 17.º/1 afirma que, num caso de transmissão de competência, aceita-se o reenvio se a L3
se considerar competente. Porque é que o legislador toma esta posição? Em virtude da harmonia
jurídica internacional: se o problema tivesse sido colocado perante um tribunal da L2 ou da L3, a lei
aplicável seria também a L3. Ou seja: se aceitarmos o reenvio, e este art. 17.º permite fazê-lo, temos
sempre a mesma lei aplicável.
Porém, e se a terceira lei se não se considerar competente?
• Se remeter de novo para a L2 e esta se considerar competente, aplica-se a L2 (quer porque
esta lei se considera aplicável e temos harmonia de soluções, quer porque não está verificado o
requisito de que dependia a aplicabilidade da L3). No fundo, a L2 não se considera directamente
competente, mas apenas indirectamente competente.
Ex1: L1 L2 (DS) L3 (RM) L2 Ex2: L1 L2 L3 (DS) L2
L1 L2 / L2 L2 / L3 L2 L1 L3 / L2 L3 / L3 L3
• Se remeter para uma L4, que se considere competente, temos um caso de transmissão de
competência em cadeia. Também aqui podemos aplicar a L4, potenciando a harmonia jurídica
internacional. Mas temos de fazer aqui uma precisão: para que se aplique a L4, é necessário que a L2
adopte um qualquer sistema de referência global, pois aí vai olhar, não para o direito material da
L3, mas para as suas regras de conflitos. Só neste caso é que existe acordo quanto à competência e
atingimos a harmonia jurídica internacional: a L2, 3 e 4 aplicariam todas a L4.
73
Eduardo Figueiredo 2016/2017
Quanto ao art. 18.º/1, este estabelece que, num caso de retorno, a lei material do foro (lei
portuguesa) é aplicável se a L2 devolver para o direito português. Ou seja, é necessário que a L2
adopte um sistema de referência material (FERRER CORREIA), pois só neste caso é que estamos a
cumprir o preceito do art. 18.º/1 – a L2 tem de remeter para o direito material português. Se
adoptássemos aqui o sistema da referência material, as duas leis teriam posições diferentes quanto à
lei aplicável; com o retorno, ambas aplicam a L1 – mais uma vez, está aqui subjacente a harmonia
jurídica internacional (o reenvio é “um meio necessário” para atingir este fim). Já se a referência da
norma de conflitos estrangeira for uma referência global (devolução simples ou dupla), o reenvio
não promove, antes impede, a uniformidade de valoração – nesta hipótese, aplica-se o direito
material da L2.
Ex1: L1 L2 (RM) L1
Deve haver reenvio!
L1 L1 / L2 L1
Ex2: L1 L2 (DS) L1 Não deve haver reenvio, aplicando-se o art. 16º CC.*
L1 L2 / L2 L2
Ex3: L1 L2 (DD) L1 Não deve haver reenvio, aplicando-se o art. 16º CC.
L1 L2 / L2 L2
Á partida, no Ex2 e Ex3 não se justifica o reenvio porque já está assegurada a harmonia
jurídica internacional (FERRER CORREIA). Porém, no que toca ao Ex3, há divergência doutrinal
quanto à sua interpretação, existindo autores (como BAPTISTA MACHADO) que consideram que o
reenvio deve ser aceite. (que veremos já no próximo ponto)
E se a L2, em vez de remeter para a L1, remeter para uma L3 e esta remeter para a L1? Temos
aqui um retorno indirecto, feito por intermédio da L2. Aqui, justifica-se aplicar a L1? A resposta é
positiva: tendo em vista a ratio legis (a harmonia jurídica), deveremos aceitar aqui o reenvio quando
se verifiquem aqui duas condições cumulativas:
• A remissão da L2 para a L3 ser uma referência global (DS ou DD).
• A remissão da L3 para a L1 ser uma referência material.
Estes requisitos são exigidos pois só neste caso é que o reenvio é um meio de assegurar a
harmonia jurídica internacional. Por outro lado, apesar de a letra do art. 18.º/1 falar em devolver
para o direito português, basta interpretar este devolver como sendo directa ou indirectamente para
também podermos aplicar a L1.
Ex: L1 L2 (DS ou DD) L3 (RM) L1
L1 L1 / L2 L1 / L3 L1
74
Eduardo Figueiredo 2016/2017
dupla devolução (ou seja, o juiz da L2 alinha a sua posição por aquela que seria tomada pelo juiz da
lei indicada pela sua regra de conflitos, no caso da L1).
O art. 17º/2 CC refere-se aos casos de transmissão da competência, e diz que a L3 não será
aplicável (isto é, cessa o reenvio, embora exista harmonia jurídica internacional, porque se releva
a harmonia jurídica qualificada), apesar de se considerar competente, em dois casos:
• Se o interessado residir habitualmente em território português. Ou seja, a L1 (da
residência) remete para a L2 (da nacionalidade), que por sua vez remete para uma L3, que se
considera competente. Neste caso, cessa o reenvio e aplica-se a lei da nacionalidade (L2). Se a L3 for,
por ex., a lei do local, esta solução terá a sua eficácia garantia nesse Estado que, tal como o da
75
Eduardo Figueiredo 2016/2017
residência é um dos mais fortemente ligados à relação controvertida; assim, não haveria grande
vantagem em renunciar à aplicação da lei pessoal.
Ex: L1 (RH) L2 (N) L3 (que se considera competente)
• Se o interessado residir num país cujo direito de conflitos devolva para a lei da
nacionalidade. Ou seja, a L1 remete para a L2 (da nacionalidade), que por sua vez remete para uma
L3, que se considera competente; porém, ao mesmo tempo, temos um outro Estado que não o
português, da residência, que remete igualmente para a L2. Neste caso, o reenvio cessa igualmente e
aplica-se a L2, da nacionalidade. Aqui, não aceitar o reenvio não significa ter de aplicar uma lei que
em parte alguma seja considerada aplicável: a lei da nacionalidade é tida como competente num dos
Estados mais fortemente interessados na situação, o Estado do domicílio; e segue-se aqui o critério
de aplicação da lei da nacionalidade ou da lei da residência.
Ex: L1 L2 (N) L3 (que se considera competente)
↑
L4 (RH)
O art. 18.º/2 refere-se aos casos de retorno, e diz que o reenvio só é de admitir em duas
hipóteses:
• Na hipótese de o interessado ter a residência habitual em território português – ou seja, a
L1 (portuguesa, da residência habitual) indica como competente a L2 (da nacionalidade), que
devolve a competência para o direito material português.
Ex: L1 (RH, PT) L2 (N) (RM) L1
L1 L1 / L2 L1
• Na hipótese de a lei da residência habitual remeter também para a lei portuguesa – ou seja,
a L1 indica como competente a L2 (da nacionalidade), que devolve a competência para o direito
material português; ao mesmo tempo, existe uma L3 (da residência habitual), que remete também
para a L1.
L1 L2 (N) L1
↑
L3 (RH)
Neste último caso, a aceitação do reenvio significa a aplicação de uma lei que não é nem a da
nacionalidade, nem a da residência. Porque é que isto é possível? Porque, apesar de a L1 não ser
nem a lei da residência nem da nacionalidade, quer a lei da residência, quer a lei da nacionalidade,
consideram como competente a lei portuguesa. Faz sentido respeitar o acordo destas duas leis. E
isto não significa que estejamos a pôr em causa o princípio da harmonia jurídica material – antes
pelo contrário.
Nas restantes hipóteses possíveis de retorno, deve entender-se que o reenvio deve ser
rejeitado: a definição do estatuto pessoal por uma lei diferente da lei da nacionalidade ou da
76
Eduardo Figueiredo 2016/2017
residência habitual é tida, em princípio, como uma má solução, e só motivos especiais podem levar-
nos a aceitá-la.
Por outro lado, como a situação jurídica em causa está ligada à lei do foro, não há grande
risco de a aplicação da lei da nacionalidade não vir a ser reconhecida em lado nenhum: será eficaz
pelo menos no Estado do foro.
Com uma certa analogia com esta situação está uma outra hipótese, não prevista.
Imaginemos que a L1, portuguesa, considera como competente a lei da nacionalidade (L2);
por sua vez, a L2 considera como competente uma L3, a lei do lugar dos bens, de acordo com o
sistema da referência material. Porém, a L3 remete para a L2 de acordo com o sistema da referência
material. De acordo com o art. 17.º/1, não haveria reenvio, pois a L3 não se considera competente:
assim, não faria sentido aplicar a L3, aplicando-se antes a L2.
Mas imaginemos que a residência habitual do sujeito é num Estado de uma L4, que
considera como competente também a lei do lugar da situação dos bens (L3), mais uma vez com
referência material. Aqui, já faz sentido aplicar a L3, respeitando o acordo entre a lei da
nacionalidade e da residência, sempre que esteja em causa matéria pessoal.
Ex: L1 L2 (N) (RM) L3 (RM) L2
↑(RM)
L4 (RH)
Ou seja: a lei da nacionalidade, L2, considera como competente a L3; e a lei da residência, a
L4, também aplicaria a L3 – se é verdade que não há harmonia jurídica internacional, as duas leis
mais importantes estão de acordo na competência da L3, pelo que vamos estar a dar efeito à ideia
da harmonia jurídica qualificada. Isto implica desconsiderarmos a letra do art. 17.º/1, quando este
exige que a L3 se considere competente, pois o seu fundamento é a harmonia jurídica internacional.
Nesta situação, não prevista pelo legislador, é, não a harmonia jurídica internacional, mas sim a
harmonia jurídica qualificada que vai servir de fundamento. Apesar de esta solução não se inferir
directamente do Código, está de acordo com os seus princípios.
Nota:
Aqui chegados pode surgir uma dúvida: porque é que estando no âmbito do estatuto
pessoal, só aceitamos retorno se houver harmonia jurídica qualificada (exista acordo entre a lei da
nacionalidade e a lei da residência habitual) e, pelo contrário, podemos aceitar a transmissão
mesmo sem o tal acordo? Veremos este exemplo clássico:
L1 L2 (N) L3
L4 (RH - considera-se competente a ela própria)
Esta é uma hipótese em que não se aplica o 17º/2, devendo haver em princípio reenvio,
aplicando-se a L3 (ora, fazemos reenvio no âmbito do estatuto pessoal sem haver esse acordo)
77
Eduardo Figueiredo 2016/2017
- Baptista Machado considera que não é o art. 18º/2 que é mais exigente, mas o art. 17º/2 que é
menos exigente, porque entende que se parte do princípio segundo o qual, em matéria de estatuto
pessoal, só deve haver reenvio se houver acordo da lei nacional e da lei do domicílio. Ora, porque
na transmissão pode haver reenvio sem acordo? Porque neste caso, se exigíssemos sempre o
acordo, poderíamos chegar a soluções desfavoráveis - a casos em que exigindo harmonia jurídica
qualificada, e não fazendo o reenvio, podíamos ser conduzidos a aplicar uma lei não aplicada nem
pela lei da nacionalidade nem pela lei da residência. Parte-se de uma ideia de “mal menor”.
Tem relevo indirecto (art. 17.º/3). Imaginemos agora que a L2, da nacionalidade, remete para
uma L3, que é a lei do lugar da situação dos bens, que se considera competente. Neste caso, o art.
17.º/3 diz que, tratando-se de uma das matérias nele enunciada (designadamente, matéria
sucessória) se aplica a regra do n.º 1 (ou seja, desaplica-se o n.º 2), havendo reenvio a aplicando-se a
L3.
Ex: L1 L2 (N) L3 (lex rei sitae e que se considera competente)
↑
L4 (RH)
Porque é que damos preferência à L3? Este art. 17.º/3 constitui uma manifestação indirecta do
princípio da maior proximidade: apesar de não ter consagrado este princípio com regra geral, o
legislador entende que, por vezes, faz sentido dar competência a uma lei por ser a que está mais
bem colocada para impor o acatamento das suas regras. Existindo um regime específico para os
bens imóveis, o legislador não adoptou uma perspectiva geral de dar competência à lei do lugar dos
bens imóveis, mas aceitou dar algum valor a essa lei em certas circunstâncias – esta é uma delas.
Porém, não é apenas o facto de ser a lei mais bem colocada que fundamenta esta solução; além
disso, a L3 é a lei considerada competente no país da nacionalidade, ou seja, é a própria lei da
nacionalidade que determina como competente essa lei. Assim, aceitamos, ainda que a lei da
residência determine que é aplicável a lei da nacionalidade, aplicar a terceira lei na medida em que
esta se considera competente e é considerada competente pela lei da nacionalidade. Já se houver
acordo entre a lei da nacionalidade e da residência habitual, temos ainda a ideia de harmonia
jurídica qualificada.
Assim, temos a fundamentar o reenvio o princípio da maior proximidade, que tem valor em
matéria, e ainda e sempre o princípio da harmonia jurídica internacional. Se considerarmos apenas
as leis envolvidas, a L1, 2 e 3 manter-se-ão em acordo em aplicar a terceira lei.
Trata-se de um afloramento indirecto do princípio da maior proximidade porque para
aplicarmos a lex rei sitae não basta que se considere competente, senão que tem que ser indicada
pela lei da nacionalidade.
78
Eduardo Figueiredo 2016/2017
L1 L2 L3 (considera-se competente)
L1 L2 (RG) L3 (RM) L1
Essa solução está expressamente consagrada no art. 19º/1 CC. O princípio favor negotii actua
assim como limite ao reenvio, como sua causa de afastamento: se a questão da validade do negócio
for decidida em termos opostos pela lei que reenvia e por aquela para a qual se reenvia, prevalecerá
a que tiver o negócio como válido. Pressupostos da sua aplicação:
1) É necessário que à partida pudesse haver reenvio.
2) É necessário que fazendo-se o reenvio, ele conduza à invalidade do negócio ou ilegitimidade do
estado
3) Fazendo funcionar a regra do art. 16º (RM), a L2 considere o negócio válido ou o estado legítimo.
De qualquer modo, Ferrer Correia defenda uma interpretação restritiva do art. 19º/1 CC ao
entender que a sua ratio legis é a seguinte: se os interessados realizaram o negócio jurídico de
conformidade com as disposições de um sistema de direito material que é o declarado competente
pela regra de conflitos do foro, e se for de crer que eles se orientaram por esta norma de conflitos,
então não seria justo frustrar a confiança que depositaram na validade do acto. Assim, devemos
fazer uma interpretação restritiva do art. 19.º/1, o que significa acrescentar dois requisitos
fundamentais para que a norma possa ser aplicada, em função da própria teleologia desta regra – o
favor negotii, que se funda na ideia da tutela de expectativas legítimas do particular.
Sendo este o fundamento da regra, só podemos aplicá-la quando estiverem preenchidos dois
requisitos adicionais:
• Que o negócio tivesse com a ordem jurídica portuguesa algum contacto no momento da
sua constituição. Porquê? Porque só se houvesse algum contacto com a ordem jurídica portuguesa
é que poderemos de alguma maneira presumir que as partes confiaram ou podem ter confiado na
aplicação da lei designada pela nossa regra de conflitos. Se o negócio não tivesse nenhuma ligação
79
Eduardo Figueiredo 2016/2017
com a ordem jurídica portuguesa, não se poderia dizer que os particulares confiaram na aplicação
da nossa regra de conflitos portuguesa. Este é o índice mínimo para podermos presumir que os
particulares confiaram nessa regra, ou seja, presumimos que os particulares confiaram apenas na
regra de conflitos, não formulando aqui maior exigência.
• Temos de estar perante um negócio jurídico, ou um estado, já constituído, isto é, o art.
19.º/1 aplica-se apenas a relações jurídicas já constituídos e não também a negócios jurídicos a
constituir. Nos negócios jurídicos a constituir, ainda não há nenhuma expectativa legítima a
proteger. Isto assume relevância prática no caso de negócios jurídicos a celebrar em Portugal com
intervenção de um agente do Estado ou autoridade pública.
O Código de 1966 só aceitou o reenvio com fundamento autónomo no favor negotii na hipótese
de a invalidade do negócio resultar de vício de forma, arts. 36.º/2 e 65.º/1 CC. O art. 36.º/2 trata da
forma geral; o art. 65.º/1, da forma do testamento. Imaginemos que, segundo a L2 (lei do lugar da
celebração), o negócio é inválido; mas que esta lei remete para uma L3, segundo a qual o negócio é
válido. Aceitamos o reenvio e aplicamos a L3 na busca da validade formal e independentemente de
ela se considerar competente (ao contrário do que sucede no art. 17.º/1). A forma observada é uma
daquelas que são reconhecidas pela ordem jurídica do país da celebração do acto, o que se
considera bastante. A mesma ideia está presente no art. 65.º/1 em matéria de testamentos. Assim,
nos termos dos artigos mencionados, o favor negotii funciona como um fundamento autónomo do
reenvio: é ele que faz com que não apliquemos a lei designada pela regra de conflitos, mas sim uma
terceira lei.
Estas normas têm hoje uma aplicação residual. Em matéria de forma, há regras de conflitos
especiais nos instrumentos europeus que derrogam estes artigos. (Veja-se o Regulamento Roma I;
Regulamento Europeu das Sucessões).
Em alguns casos podemos falar de conexões que são por natureza anti reenviantes, ou seja,
que, quando existam, em princípio não devíamos aceitar o reenvio. Onde costumamos ver estas
conexões?
1)_Vontade das partes. Não há reenvio (mas sim mera referência material) se a lei
estrangeira tiver sido designada pelos interessados, quando essa designação for permitida. Existe
esta conexão em matéria obrigacional, sucessória, divórcio, extracontratual, alimentos, etc... Nestes
casos o que as partes querem é designar uma ordem jurídica material para reger o contrato, logo
deve entender-se que essa escolha é dirigida ao direito material. Em tese, seria possível que as
partes quisessem estar a remeter para o DIP dessa lei, mas isto não sucede na prática. E mais – em
rigor, não temos aqui um conflito de sistemas, uma vez que a vontade das partes é a de aplicar um
certo sistema de direito material. Em suma, deve aplicar-se a lei designada pelas partes, mesmo que
essa lei não se considere competente. Esta ideia está consagrada no art. 19º/2 CC.
80
Eduardo Figueiredo 2016/2017
Nota: Mas as partes, ao escolher a lei espanhola, podem estar a contar com o funcionamento
da regra de conflitos espanhola. Nestes casos o que temos é um problema de interpretação da
vontade das partes.
3) Princípio da conexão mais estreita. (P.e. 52º/2 e 60º/2 CC). Não teria muito sentido
mandar aplicar a lei que tem uma conexão mais estreita e depois aplicar-se outra lei para a qual esse
ordenamento remete. Deve aplicar-se o ordenamento jurídico indicado mesmo que ele não se
considere competente.
Surge para resolver os conflitos positivos de sistemas de DIP. Estes nascem da circunstância
de as regras de conflitos serem diferentes de Estado para Estado, traduzindo-se no facto de que
podem existir vários ordenamentos jurídicos que se consideram aplicáveis a uma mesma relação
privada internacional. Para resolver este conflito, volta a aparecer a ideia segundo a qual a questão
de sabermos se e quando devemos aplicar a regra de conflitos do foro ou a regra de conflitos
estrangeira, depende se aceitamos a possibilidade de afastar a aplicação da nossa regra de conflitos
para tutelar a justiça conflitual imanente ao nosso sistema de DIP.
Este é um princípio que foi formulado por Zittelmann, mas já tinha sido aplicado em Itália
(Turim). A sua formulação é a seguinte: sendo um conjunto de bens e direitos concebidos
unitariamente pela lei mais apropriada para o reger, há no entanto que distrair da universalidade
aqueles elementos que a ela não pertençam, segundo o estatuto próprio de cada um. Ou seja, a lei
do foro concebe determinado conjunto de bens e direitos (por ex., a herança) unitariamente e por
isso manda-o regular por uma única lei (a e lei pessoal do de cujus); porém, alguns dos elemento da
universalidade estão sujeitos a uma ordem jurídica que não perfilha a concepção unitária – nestes
casos, é necessário extrair esses elementos do conjunto e aplicar-lhes o estatuto próprio, ou seja, o
estatuto do todo cede perante o estatuto da parte. O princípio da maior proximidade impõe assim a
abdicação da competência por parte da lei normalmente competente para reger um conjunto de
bens ou direitos em favor da aplicação da lei da situação de alguns desses elementos.
Quando falamos deste princípio, há, desde logo, uma tendência para haver uma certa
confusão deste princípio com o princípio da proximidade ou da localização – este último é um
princípio geral do DIP que diz que cada situação jurídica deve ser regida pela lei que se encontra
mais próxima (art. 46º CC).
81
Eduardo Figueiredo 2016/2017
FERRER CORREIA pronuncia-se a favor da primeira acepção: nos casos que ela pretende
abranger, a competência da lex rei sitae impõe-se a todas as luzes – trata-se de patrimónios
destacados de um património geral, sendo-lhes aplicado um regime especial; e a afectação a um
regime especial justifica-se por razões ponderosas, de política social ou económica.
82
Eduardo Figueiredo 2016/2017
• Essa aplicação do direito do lugar da situação do bem nem sempre é exigida. Nem sempre
o reconhecimento de uma sentença estrangeira (hoje, cada vez menos) está dependente de ter sido
aplicado um determinado direito material (no caso, do lugar da situação do bem). Ou seja, em
muitas circunstâncias, este princípio não é uma condição necessária para a eficácia da decisão
judicial.
• Se o Estado do lugar da situação do bem for tão exigente quanto ao regime jurídico dos
bens nele situados, normalmente exigirá que sejam os seus tribunais a regerem esses bens. E, nessa
circunstância, qualquer sentença estrangeira não poderá produzir efeitos nesse país – ou seja, a
aplicação de DIP não é condição suficiente para que uma sentença estrangeira seja reconhecida.
Em suma, pode não ser nem necessário, nem suficiente – e foi por isso que FERRER
CORREIA propôs no anteprojecto do Código uma regra que consagrava o princípio da
proximidade nesta acepção ampla apenas se tal fosse necessário e suficiente para assegurar uma
sentença do juiz português. Este artigo não passou; porém, ficaram dois afloramentos deste
princípio no nosso Código, o art. 17.º/3 e o 47.º.
Em suma: a primeira acepção vale inteiramente entre nós; a segunda, apenas nos arts. 17.º/3
e 43.º.
Trata-se de um conflito positivo de sistemas de DIP em que está em causa saber qual é o
tratamento a dar a uma relação jurídica que foi constituída no estrangeiro, e que é válida à luz da lei
do lugar onde se constituiu, mas que não é válida à luz da lei indicada pela nossa regra de conflitos.
No que toca às situações internacionais constituídas no estrangeiro, não deverá aceitar-se uma ideia
de competência alternativa, de modo a que essas relações possam ser reconhecidas ou com base na
lei de primordial designação (a indicada pelo DIP do foro), ou com base naquela conforme a qual
foram criadas.
83
Eduardo Figueiredo 2016/2017
Este problema começou a sentir-se muito em 1920-1930, quando as ordens jurídicas eram
estritamente nacionais e fechadas sobre si mesmas - a regra de conflitos era um instrumento que
tinha carácter absoluto e formal, não conseguindo o DIP responder às necessidades de tutela das
expectativas individuais e promover uma boa coordenação das ordens jurídicas. Já vimos que hoje a
regra de conflitos não é vista dessa forma absoluta, mas sim de maneira relativa, podendo “cair” a
nossa regra de conflitos e aplicar-se consequentemente uma regra de conflitos estrangeira em prol
da prossecução das finalidades fundamentais do DIP e de justiça conflitual. (embora este método
não seja absoluto, existindo outros que visam a prossecução destas finalidades fundamentais do
DIP)
A noção de direito adquirido tem sido usada no DIP para diversos fins:
• Para conciliar a prática universal da aplicação de direito estrangeiro com o princípio da
territorialidade das leis e o dogma da soberania estatal – teoria dos vested rights, que assume hoje
um interesse meramente histórico.
• Para PILLET e seus continuadores (entre os quais, entre nós, MACHADO VILLELA), o
conflito de leis e o reconhecimento de direitos adquiridos são problemas distintos porque, na
hipótese de reconhecer, no Estado do foro, uma situação cujos factos constitutivos estavam todos
em contacto com um único ordenamento, nenhum conflito de leis se divisa.
• Para BAPTISTA MACHADO, o reconhecimento dos direitos adquiridos decorre do
princípio da não transactividade: uma lei é aplicável a todos e quaisquer factos que apenas estejam
em contacto com essa lei; e qualquer lei é potencialmente aplicável a quaisquer factos que estejam
conectados com ela. FERRER CORREIA critica esta formulação – apenas se pode retirar da natureza
da lei enquanto regula agendi que nenhum obstáculo deriva a que uma norma material se aplique a
determinadas situações factuais, desde que entre estas e a norma exista uma conexão susceptível de
relevância jurídica.
84
Eduardo Figueiredo 2016/2017
aplicação. De acordo com estes autores, a partir do momento que a lei do foro não tenha vontade de
aplicação, esse OJ reconheceria qualquer situação constituída à luz de uma ordem jurídica que
queira aplicar-se. Esta é uma solução que resulta do próprio funcionamento normal unilateralismo.
Ora, estes autores, por um lado, ao serem demasiado favoráveis ao reconhecimento, negligenciam o
título do reconhecimento, isto é, podem reconhecer situações jurídicas criadas a luz de uma lei que
tem poucas conexões com o caso; por outro lado, podem ser demasiado restritivos, porque em todas
as situações que a lei do foro se considerar competente, eles não vão reconhecer essas situações
criadas por outras ordens jurídicas que na altura possam ter conexão com o caso.
À partida, o sistema bilateralista é menos favorável ao reconhecimento de direitos
adquiridos que o sistema unilateralista. A regra de conflitos bilateral tanto delimita os casos de
aplicação da lei do foro, como da lei estrangeira, tanto nas situações a constituir como nas situações
a reconhecer. Reconhece-se, quanto a estes, três fases distintas:
1) Fase de esterilidade
Pensamos na obra de PILLET e MACHADO VILLELA. Esses autores deram um contributo
estéril para este problema, porque não abandonaram a rigidez bilateralista. Defendiam que se
deviam distinguir entre situações a constituir (conflito de leis) e situações a reconhecer (problema
cientificamente autónomo de reconhecimento), tendo sido esse o seu grande mérito.
Mas depois, defendiam que só se devem reconhecer as situações já constituídas que tenham
respeitado o direito competente de acordo com a regra de conflitos do foro, o que é totalmente
estéril.
2) Fase da abertura
A abertura começou a sentir-se a partir do momento em que a doutrina começou a
reconhecer limites de aplicação espacial às regras de conflitos – quando uma situação é criada sem
qualquer conexão com a OJ do foro, não se deve aplicar a regra de conflitos do foro. Inicialmente,
alguns autores começaram por defender que o reconhecimento de direitos adquiridos devia ser
feito sempre que a situação, embora constituída sem contacto com o foro no momento da sua
constituição, fosse válida face à unanimidade das OJ envolvidas – MERGERS e BATTIFOL.
Ora, exigindo a unanimidade das OJ, reconhecem poucas situações. Para mais, podemos
chegar ao mesmo resultado por outros institutos - se há unanimidade em todas as OJ, é possível o
reenvio porque há harmonia jurídica internacional (Ferrer Correia); Baptista Machado diz que se
todos estão de acordo, não há conflito de leis.
Na sequência desta construção, MAKAROV defende que, neste contexto, basta a maioria
preponderante. Aqui há mais situações de reconhecimento, embora se crie o problema de saber
como se densifica esse conceito de “maioria preponderante”
85
Eduardo Figueiredo 2016/2017
Nas situações a constituir, a lei aplicável era determinada pela regra de conflitos do foro,
assim como nas situações a reconhecer com contacto com o foro. Porém, quanto às situações a
reconhecer sem contacto com o foro, não deve fazer-se funcionar a regra de conflitos do foro, mas
sim a lei que presidiu à constituição da relação. Por conseguinte, nenhuma investigação terá de ser
feita acerca da competência dessa lei.
VALLADÃO partilhava desta posição, excluindo apenas os casos de ordem pública, fraude
à lei e competência exclusiva da lei do foro. Já GRAULICH prescinde destes critérios.
Ora, todas as teorias avançadas ao longo dos séculos permitem-nos perceber que a solução
está num equilíbrio entre os seguintes aspectos:
• Tutela da confiança das partes;
• Defesa da justiça conflitual – o nosso ponto de partida é sempre uma ideia de justiça
internacional privatística, com finalidades próprias - assegurar e promover a estabilidade e
continuidade da vida jurídica internacional.
• Princípio da Favor Negotii
À luz destes princípios, entendemos que devemos assim aceitar situações jurídicas
constituídas à luz de leis estrangeiras, diferente da designada pela regra de conflitos. Para FERRER
CORREIA, a solução é que se adopte, com vista à hipótese da situação plurilocalizada criada em
país estrangeiro, um sistema de conexão múltipla alternativa, devendo a alternativa resolver-se a
favor da lei segundo a qual os factos constitutivos (ou extintivos) da mesma situação se realizaram
por modo juridicamente válido”.
86
Eduardo Figueiredo 2016/2017
87
Eduardo Figueiredo 2016/2017
porque é expressão de uma ideia mais ampla, para a doutrina justifica-se ir além da letra do art.
31.º. Isto é, ao mesmo tempo que se impõem certos requisitos, a doutrina propõe uma série de
interpretações extensivas e analógicas.
3) Negócios celebrados segundo uma lei que não se considera competente: podemos
dispensar o requisito de a lei se considerar competente, no caso de a lei do país da residência
habitual (ou da nacionalidade, por analogia, como veremos abaixo) considerar como competente a
lei do lugar da celebração.
4) Negócios celebrados por uma lei para a qual remete a lei da nacionalidade, e de acordo
com a qual o negócio é válido. Este ponto implica maiores desenvolvimentos. Com efeito, com esta
interpretação extensiva do art. 31.º/2, chegamos a uma dificuldade: poderíamos estar a dar mais
valor à residência habitual do que à nacionalidade. Assim, FERRER CORREIA faz uma
interpretação analógica com a nacionalidade. A lei da nacionalidade é a lei que consideramos
competente em matéria de estatuto pessoal.
Em matéria de estatuto pessoal, vimos que a lei é mais exigente (art. 17.º/2): nestes casos,
cessa o reenvio, ou seja, de acordo com as nossas regras a lei aplicável seria a lei da nacionalidade,
que considera o negócio inválido. Esta solução justifica-se no caso do reconhecimento de direitos
adquiridos? Se considerássemos que não se aplicava o art. 31.º/2, estaríamos a dar mais importância
à lei da residência (se fosse esta a remeter para a L3, já se validava o negócio). Porém, faz todo o
sentido, à luz do art. 31.º/2, aceitar também aqui o reconhecimento dos direitos adquiridos. Esta
88
Eduardo Figueiredo 2016/2017
solução justifica-se tecnicamente por duas vias: recorrendo simultaneamente a uma extensão
analógica do art. 31.º/2, e a uma interpretação extensiva do art. 17.º/2.10
Ao mesmo tempo que se comprova a necessidade de estender a regra do reconhecimento às
situações jurídicas criadas ao abrigo da lei para que remete a norma de conflitos da lex patriae,
verifica-se também a de restringir o preceito do art. 17.º/2 às relações constituídas ou a constituir no
Estado do foro.
E se a terceira lei, em vez de se considerar competente, fizer uma referência material para a
lei da nacionalidade? Mais uma vez, a analogia que vimos para a residência habitual justifica que
aceitemos que se aplique a L3, ainda que esta não se considere competente.
Concluindo, podemos dizer, com FERRER CORREIA, que o texto referido no Código
Português não é senão um caso particular de aplicação de uma directiva geral: a que nos leva a
adoptar soluções inspiradas por uma ideia de reconhecimento das situações jurídicas
multinacionais criadas ao abrigo de leis estrangeiras, mesmo que essas leis se não mostrem
aplicáveis, à luz dos critérios normais de atribuição de competência consagrados no direito de
conflitos do foro.
Neste caso verifica-se o 17º/1; mas também o 17º/2 que exclui o reenvio (a lei aplicável é a L2 ao
abrigo do art. 16º). Se fosse uma situação a constituir (celebração do casamento) aplica-se a L2 e o negócio era
inválido. Mas como se trata de uma situação de reconhecimento (o casamento já se celebrou), devemos aplicar
a L3 por interpretação analógica do art. 31º/2 CC. Esta interpretação do art. 31º/2 tem um efeito sobre as
regras do reenvio. De acordo com as regras do reenvio, não existia reenvio e aplicaríamos a L2; mas com a
aplicação analógica deste artigo, aplicamos a L3. Nestas situações o art 17º/2 fica restringido e limitado.
89
Eduardo Figueiredo 2016/2017
Se, no fim, não conseguirmos concretizar a lei da nacionalidade, temos de encontrar uma
conexão subsidiária – e a que o legislador português privilegia é a da residência habitual. No plano
do direito comparado e de jure condendo, esta é uma solução criticável: o que se deve procurar é a lei
que em concreto tenha uma relação mais estreita. Há OJ onde isso acontece (P.e. Em Itália), sendo
que era uma solução de esta índole que estava no ante projecto do CC português de 1966.
Por conseguinte, há aqui uma discussão doutrinária: FERRER CORREIA e BAPTISTA
MACHADO sempre entenderam que é aplicável, quer a residência seja num dos sistemas
legislativos locais do país da nacionalidade, quer seja num país diferente. Imaginemos que um
sujeito é cidadão de um Estado com sistema jurídico complexo (ex: EUA), e não conseguimos
através de nenhum destes critérios encontrar uma lei aplicável, e o sujeito vive num outro Estado,
por ex., França. Numa interpretação literal e segundo a opinião dos autores, aplica-se a lei francesa.
MAGALHÃES COLAÇO defende que só valeria a residência habitual se residisse num dos estados
locais; se vivesse fora, teríamos de partir para a conexão mais estreita.
- Conflitos interpessoais
O n.º 3 do art. 20.º trata dos conflitos interpessoais: dentro de um sistema jurídico complexo,
podem existir regras de direito material diferentes para categorias de pessoas diferentes, geralmente
em torno de questões como religião e etnia. Assim, o n.º 3 diz que devemos atender às regras de
conflitos interpessoais. Normalmente, quando o elemento de conexão é o da nacionalidade, pelo
contexto da vida daquele sujeito e da sua pertença a esta ou aquela comunidade, não será difícil de
encontrar qual das leis pessoais em que se insere. Se tal não for possível, devemos resolver o
problema com base na ideia de conexão mais estreita.
90
Eduardo Figueiredo 2016/2017
O Regulamento 650/2012, relativo a sucessões, tem uma regra aplicável aos conflitos interlocais
(art. 36.º) e aplicável aos conflitos interpessoais (art. 37.º).
O n.º 3 não faz uma distinção quanto ao elemento de conexão em causa, aplica-se a todos;
enquanto que o n.º 1 fala apenas no elemento da nacionalidade. E se o problema for causado por
outro elemento? Normalmente, a regra de conflitos já resolve o problema: por ex., se for competente
a lei da residência habitual, o sujeito terá residência num dos estados. Ou seja, normalmente as
outras conexões trazem em sia resolução do problema.
O juiz português pode ser chamado a aplicar lei estrangeira, e podem surgir problemas quanto à
interpretação deste direito. Mais – além da questão da interpretação, podem surgir problemas de
cognição do direito estrangeiro.
O primeiro aspecto a reter é o de que o direito estrangeiro tem um carácter de verdadeiro
direito. Existe uma grande discussão em torno da questão de saber qual o estatuto do direito
estrangeiro: se é um verdadeiro direito ou antes um facto. Em certos Estados (ex: Reino Unido e
França – Caso Bisbal), considera-se que o direito estrangeiro é facto, isto é, a existência e conteúdo
do direito estrangeiro têm de ser provados pelo interessado na sua aplicação, nomeadamente com a
intervenção de peritos.
Em face do nosso direito, podemos dizer que o direito estrangeiro é verdadeiro direito, sendo
aplicado como tal. Temos aqui uma base legal dupla:
• Art. 348.º do CC: refere-se a direito consuetudinário, local ou estrangeiro e estabelece que,
apesar de as partes deverem provar o conteúdo e existência do direito estrangeiro, o juiz deve
procurar ex officio averiguar o seu conteúdo. Devemos interpretar a primeira parte do artigo como
um mero dever de colaboração dos particulares com o juiz. Ao nível do direito europeu, temos a
rede judiciária europeia, em matéria civil e comercial – em Portugal, há um juiz que serve de ponto
de contacto. Outro meio é recorrer ao chamado GGDDC, que funciona junto da Procuradoria Geral
e tem uma base de dados de direito estrangeiro.
• Art. 674.º do CPC: temos de conjugar o n.º 1, al. a) e o n.º 2. Este artigo refere-se aos
fundamentos do recurso de revista, sendo um deles a violação de lei substantiva – mas poderá esta
lei ser estrangeira? O n.º 2 resolve esta questão, dizendo que as normas emanadas de órgãos de
soberania estrangeiros consubstanciam lei substantiva, susceptível de justificar recurso de revista.
Neste momento, há um dado legal que indicia uma concepção diferente - art. 43º-A do
Código Registo Predial. Junto dos serviços de registo predial, sempre que se queira registar um
direito relativo a um bem imóvel, fundado na aplicação da lei estrangeira, as conservatórias do
registo exigem que seja o interessado a comprovar o conteúdo da lei estrangeira.
Note-se que o direito estrangeiro é tomado em consideração tal como existe na ordem
jurídica própria, logo devemos atender às fontes desse direito. Se, porventura, o juiz português tiver
dúvidas quanto à compatibilidade da norma com a ordem constitucional desse Estado, deve
decalcar os seus poderes dos do juiz local. Assim, sendo o tribunal português deve fazer um
controlo da constitucionalidade da lei estrangeira face a lei estrangeira se os tribunais do estado da
lei competente também puderem fazer esse controlo. Se se remeter para um OJ com controlo difuso
da constitucionalidade, o juiz português também o pode fazer. Se a regra de conflitos reconhecer a
91
Eduardo Figueiredo 2016/2017
Sendo assim:
1) Quando digo que a lei competente é a francesa, aplica-se todo o direito material de origem
estadual, como todas as normas de DIPúblico ou DUE vigentes na França.
2) Este chamamento vale inclusivamente para as normas que tenham sido postas em vigor por uma
autoridade de ocupação num Estado e independentemente de esse ocupação ter sido ou não
reconhecida de acordo com o DIPúblico. O mesmo vale para situações de governos exilados que
mantêm em vigor as suas normas para os súbditos desse governo.
3) Não têm de ser normas de origem legislativa. Podem aplicar-se normas de direito
consuetudinário ou de origem jurisprudencial se estiverem em vigor nesse Estado.
O juiz tem mecanismos que facilitam esta actividade como a Internet e outros mecanismos
institucionais que facilitam a determinação do conteúdo da lei estrangeira - P.e. Convenção de
Londres de 1968 e Convenção de Brasília de 1972. Para além disto, isto também vem previsto nas
convenções bilaterais de cooperação jurídica e judiciária, designadamente com os países de língua
oficial portuguesa.
Pode acontecer que, mesmo existindo estas convenções, podem colocar-se problemas na
averiguação do conteúdo da lei estrangeira. O que se há-de fazer? À partida, existiriam várias
soluções possíveis:
1) Poderíamos pensar numa denegação de justiça – recusa-se dada a proibição do non liquet.
2) Determinar ou decidir contra a parte que invoca a aplicação da lei estrangeira - não é aceitável
porque estaríamos a tratar o direito estrangeiro como matéria de facto e ele é tratado como
matéria de direito. O interessado não tem o ónus da prova do conteúdo da lei estrangeira.
92
Eduardo Figueiredo 2016/2017
3) Recurso a presunções. Sempre que não consigamos determinar o conteúdo da lei estrangeira,
deveríamos recorrer a presunções de modo a determinar o direito provavelmente em vigor num
estado, recorrendo-se às famílias de direito e princípios gerais vigentes.
4) Aplicação da lei do foro. À primeira vista poderia parecer a solução que decorre do art. 348º/3
CC, que deve ser lido em conjunto com o art. 23º/2 CC:
1) O art. 23.º/2 diz-nos que, na impossibilidade de conhecer o direito estrangeiro, se
recorre à lei que for subsidiariamente competente – ou seja, recorre-se a uma conexão
subsidiária. Esta deve ser a solução seguida pelo juiz português: depois de tentar
conhecer a lei primariamente competente, se não o consegue, deverá procurar uma
conexão subsidiária.
2) Mas e se o juiz também não conseguir conhecer o direito da conexão subsidiária? É
neste contexto que deve recorrer-se (ou também quando não existe conexão
subsidiária, por ex., se a conexão primária for a do lugar da situação dos bens) ao art.
348.º/3. Na impossibilidade de conhecer o direito estrangeiro (leia-se, da conexão
subsidiária, se houver), o tribunal recorrerá às regras de direito português.
Qual a solução defendida por FERRER CORREIA? Na falta de conhecimento directo da lei
estrangeira, devemos recorrer às presunções - famílias de direito, princípios inspiradores de uma
reforma legislativa - porque a presunção também é um modo de prova; sempre que isso não seja
possível, então, de acordo com o art. 23º/2, devemos abandonar o campo das presunções e recorrer
à lei subsidiariamente aplicável (Em matéria de estatuto pessoal, é a lei da residência habitual);
pode ainda acontecer que não consiga determinar o conteúdo desta lei aplicável directa ou
indirectamente ou que não exista lei subsidiária - só para estes casos se justifica a aplicação da lei do
foro.
Estas são soluções um pouco difíceis de aceitar hoje em dia, e assim MOURA RAMOS já veio
defender que é hoje dificilmente aceitável que tenhamos de recorrer a estas presunções de base tão
movediça. Devemos rejeitar esta solução.
Este tipo de soluções vale também para os casos em que não conseguimos determinar o
elemento de conexão usado pela regra de conflitos. Aqui o art. 23.º/2, última parte, vem resolver
um problema diferente: diz que se recorre a uma conexão subsidiária quando não seja possível
determinar os elementos de facto ou de direito que preenchem a conexão primária. Por ex., não
conseguimos determinar com segurança de que país o sujeito nacional, por falta de documentos.
A norma estrangeira deve ainda ser interpretada como a interpretam no OJ competente, de
acordo com os seus cânones interpretativos.
Pode acontecer ainda que não seja o tribunal a entidade chamada a aplicar o direito
estrangeiro. Nestes casos a entidade que exerça funções públicas deverá estar sujeito, em princípio
às mesmas regras. (excepções: art. 85º/2 Código do Notariado e art. 43º-A CRPredial).
Na correcção do sistema de DIP, que é eminentemente formal, não deixa de haver no final
necessidade de atentar ao resultado da aplicação da lei estrangeira, pois o juiz pode ser confrontado
com um resultado manifestamente contrário aos valores éticos fundantes da nossa comunidade.
93
Eduardo Figueiredo 2016/2017
Nestes casos, o juiz deverá afastar a aplicação desta norma estrangeira, com base na reserva de
ordem pública internacional (art. 21.º).
É necessário distinguir a ordem pública interna da de ordem pública internacional.
• Ordem pública interna: é o conjunto de todas as normas que, num sistema jurídico dado
revestem natureza imperativa (art. 280.º). Afirma-se como limite à liberdade individual.
• Ordem pública internacional: se a ordem pública interna restringe a liberdade individual, a
ordem pública internacional ou externa limita a aplicabilidade das leis estrangeiras. A ordem
pública internacional é constituída pelos valores jurídicos fundamentais de um Estado, que reputa
essenciais e lhe incumbe proteger. A ordem pública internacional do Estado português, que pode
ser diferente das dos outros Estados, é um limite à aplicabilidade de uma norma estrangeira,
independentemente de essa lei ser designada pela regra de conflitos.
94
Eduardo Figueiredo 2016/2017
pública – se se trata de defender valores do direito nacional, não se compreenderia que o juiz
pudesse contestar a justiça conflitual do DIP em nome de concepções já abandonadas.
Carácter Nacional - visa-se a protecção de valores fundamentais da ordem jurídica do foro,
neste caso, da ordem portuguesa. É por apelo a essa concepção jurídica fundante que o juiz
terá desfazer esta ponderação, o que significa que algo que é contrário à ordem pública
internacional do Estado português poderá não o ser para outro Estado (ex: a aceitação de um
casamento poligâmico é contrário à ordem pública internacional portuguesa, mas não
noutros Estados que consagram a sua admissibilidade).
Carácter Excepcional - a concepção em vigor da ordem pública é, e deve ser, relativamente
minimalista. É uma excepção; a regra é a da determinação, pela regra de conflitos, da lei
aplicável. Apenas em circunstâncias excepcionais, ditadas pela contrariedade com os valores
fundamentais, é que se aplica; pois caso contrário estaríamos a colocar em causa os próprios
fins do DIP, principalmente a harmonia jurídica internacional, a paridade de tratamento e,
no final, a estabilidade das relações jurídicas.
Há três critérios que, só per si, não chegam para a mobilização deste instrumento:
1) Imperatividade – Segundo este critério fazem parte da OPI todos os valores consagrados em
normas públicas imperativas. Mas nem todas as normas imperativas integram a OPI. Também
não deve ser confundida esta com o catálogo constitucional - nem todas as normas
constitucionais constituem o catálogo da OPI portuguesa.
2) Recurso à natureza dos interesses - põe-se em causa a OPI sempre que se coloquem em questão
interesses fundamentais da organização do Estado. Não sabemos, porém, que interesses são estes
nem os casos em que podem levar a aplicação da excepção.
3) Critério do grau de divergência - viola a OPI uma lei estrangeira, sempre que exista entre ela e o
OJ do foro uma divergência essencial. Também aqui não há grande avanço.
Notemos que não conseguimos estabelecer um elenco/catálogo dos valores que integram a
OPI, desde logo porque estes valores que compõem a ordem jurídica internacional têm um carácter
evolutivo.
Há, no entanto, alguns arrimos que funcionam como pressupostos para o funcionamento da
excepção de OPI.
1) O que conduz a que não seja possível aplicar uma lei estrangeira nestes casos é a ofensa à
ordem pública internacional, não por uma regra material estrangeira, mas pela aplicação da
regra material estrangeira ao caso. Não fazemos um juízo sobre a norma material
estrangeira, mas pelo resultado da aplicação dessa norma ao caso concreto.
2) Por outro lado, exige-se que entre a relação ou situação jurídica e o ordenamento do foro
exista um nexo suficientemente forte para justificar a não aplicação da norma estrangeira
em princípio aplicável. Esta última ideia é muito importante: se uma relação jurídica tem
uma ligação menos forte a Portugal, a ordem pública deve ter um carácter minimalista; se
tiver uma ligação forte, podemos ser menos exigentes quanto à gravidade. Claro que há
casos gritantes em que é gritante a contrariedade com valores fundamentais de uma nação
civilizada, e em que por vezes se fala de ordem pública verdadeiramente internacional (por
95
Eduardo Figueiredo 2016/2017
6.3. Consequências.
96
Eduardo Figueiredo 2016/2017
para o direito material português: em primeira linha, devemos procurar dentro da lei estrangeira
aplicável as normas que possam resolver o problema.
Temos aqui uma ideia de menor dano à lei estrangeira: se esta é a lei aplicável, mas tem uma
norma incompatível, devemos afastar essa norma e continuar a aplicá-la.
7. A fraude à lei no DIP.
A fraude à lei em DIP integra dois elementos, um elemento subjectivo e outro objectivo:
• Elemento subjectivo: consiste em alguém iludir a competência da lei de aplicação normal, a
fim de afastar um preceito material dessa lei (preceito rigorosamente imperativo), substituindo-lhe
outra lei onde tal preceito, que não convém às partes ou a uma delas, não existe.
• Elemento objectivo: a intenção fraudulenta é levada a cabo através de uma adequada
manipulação da regra de conflitos, normalmente do elemento de conexão.
Caso Clássico de fraude à lei quanto ao elemento de conexão: Caso Beauffremont. (Séc. XIX)
Caso Clássico de fraude à lei quanto ao conceito-quadro: Caso Caron.
Para que tenhamos fraude à lei, é necessário que seja possível uma manipulação, e por isso os
elementos de conexão móveis prestam-se mais facilmente a este tipo de manipulação. Mas não é
somente perante regras de conflito com conexões móveis que podemos ter um caso de fraude à lei.
Este trata-se de um instituto que sofreu largas objecções que levavam a concluir-se que a
fraude à lei em DIP era dogmaticamente ilógica, desvantajosa e inconveniente, porque se entendia
que não se podia transpor o instituto da fraude à lei para o DIP, porque verdadeiramente, se se
altera a situação de facto ou de direito, isto quer dizer que a lei potencialmente aplicável nunca
chega a ser a lei competente. É ainda praticamente inconveniente porque este seria um instituto que
geraria insegurança quanto aos efeitos a derivar da fraude e provocaria grande incerteza a aplicação
no direito de conflitos de uma clausula geral repressiva da fraude à lei. Estas objecções culminaram
numa posição segundo a qual as únicas situações de abuso deveriam ser aquelas em que houvesse
um verdadeiro abuso de direito ou uma situação destinada a prejudicar ou pôr em causa interesses
de terceiros. (NIEDERER)
Outros autores, como BARTIN, viram a fraude à lei como uma variante da OPI. Este autor
dizia que tanto na OPI como na fraude à lei produzem-se os mesmos resultados: a perturbação
social. No caso da OPI, essa perturbação social deve-se ao facto de a OJ estrangeira pôr em causa
valores fundamentais do foro; na fraude à lei deriva da manipulação de um elemento de conexão
pelas partes para chegar a aplicação de uma determinada lei.
BAPTISTA MACHADO aponta as diferenças entre a fraude à lei e a ordem pública
internacional:
• A excepção da ordem pública limita-se a proteger o meio jurídico interno contra os efeitos
nocivos que poderiam resultar da aplicação de uma lei estrangeira normalmente competente;
enquanto que o recurso à fraude não é utilizado porque a aplicação da lei estrangeira seja
inconciliável com as concepções jurídicas do foro, ou por qualquer razão que se ligue com o
conteúdo do direito estrangeiro.
• Através da excepção da ordem pública, a justiça privada material do foro sobrepõe-se à
justiça própria do DIP; ao passo que a questão da relevância da fraude à lei é apenas uma questão
97
Eduardo Figueiredo 2016/2017
de justiça de DIP. O problema da ordem pública só pode pôr-se depois de resolvido o problema da
fraude à lei.
• Por último, como já vimos, a excepção da ordem pública só protege os interesses da lei do
foro; ao passo que a fraude à lei serve ainda para reprimir a fraude à lei estrangeira.
98
Eduardo Figueiredo 2016/2017
Em que consiste a sanção da fraude à lei? Com efeito, a fraude à lei é inadmissível – caso
contrário, estaríamos a admitir que, através de uma manipulação dos elementos de facto, se
afastasse a autoridade de um sistema jurídico que, na ausência desta actividade, seria o competente.
A sanção da fraude à lei consiste no regresso ao estado de coisas a que fraudante pretendeu evitar,
sendo ineficazes os actos jurídicos realizados e os direitos adquiridos em fraude à lei do foro neste
ordenamento jurídico.
Mas a sanção não vai para além disto, ou seja, não origina a ineficácia absoluta dos actos ou
situações constituídas – assim, se por ex. alguém se naturaliza no estrangeiro com o fim de se
subtrair a uma disposição da lei nacional, não há qualquer motivo para negar a eficácia em termos
gerais à cidadania estrangeira, esta será apenas ignorada na medida em que redunde em prejuízo
da norma fraudada.
Coloca-se ainda a questão de saber se é admitida a fraude à lei estrangeira: a orientação clássica
pronunciava-se no sentido negativo; porém, hoje admite-se a sua relevância, pelo menos quando a
fraude tenha consistido no afastamento da lei estrangeira competente a favor doutra também
estrangeira.
1) Pessoas colectivas e internacionalização fictícia das pessoas colectivas - art 3º CSC - Exclui a
possibilidade de existir fraude, graças à conexão sede real e efectiva da administração. Esta
matéria tem perdido importância por causa das liberdades fundamentais, nomeadamente com o
reconhecimento do direito de estabelecimento.
2) Contractos e designadamente no caso de internacionalização fictícia dos contractos - Hoje em
dia não se fala muito de fraude à lei porque no domínio dos contractos ou o contrato é interno ou
é internacional. No primeiro caso não é necessário recorrer a fraude à lei porque se o contrato é
interno não há escolha de lei; se for internacional, pode haver escolha de lei e não há limites ao
leque das leis que podem ser escolhidas. (Ver, porém, art. 3º/3/4 RROMA I)
3) Conexão nacionalidade, no âmbito das pessoas singulares. Aqui também se chegou a acordo -
só devemos recorrer a fraude à lei quando há alteração da conexão da lei pessoal, sempre que a
alteração da nacionalidade não se traduza numa integração efectiva na nova comunidade
nacional.
99
Eduardo Figueiredo 2016/2017
1. Considerações Gerais.
Vimos que o âmbito do DIP integra o problema do conflito de leis e o conflito de jurisdições, que
se subdivide em outros dois: o problema da competência internacional dos tribunais portugueses; e
o do reconhecimento de sentenças estrangeiras. O problema do reconhecimento das sentenças
estrangeiras coloca-se quando um juiz estrangeiro, confrontado com uma dada relação jurídica,
aplicou o direito competente e ditou uma sentença – importando agora saber se essa sentença vale
ou não em Portugal como um verdadeiro acto jurisdicional.
O reconhecimento de sentenças estrangeiras consiste na atribuição, no Estado do foro, dos
efeitos que lhe competem segundo a lei do Estado em que foi proferida (ou, pelo menos, alguns
desses efeitos). Os efeitos próprios da sentença são normalmente o efeito de caso julgado (após,
naturalmente, o trânsito em julgado); e o efeito executivo. Também se fala de um efeito constitutivo,
por ex., numa sentença que reconheça o direito de reivindicação – mas isto decorre, em rigor, do
direito material.
Iremos ver apenas o problema da eficácia no país requerido das sentenças que recaiam sobre
direitos privados; e proferidas, não apenas por tribunais judiciais, mas por quaisquer autoridades
que as devam proferir. Interessam-nos todas as decisões que, recaindo sobre matéria do âmbito do
direito privado, tenham carácter jurisdicional e sejam pronunciadas em nome de uma soberania
estrangeira.
Qual é o fundamento das regras do reconhecimento das sentenças estrangeiras? É um
fundamento de índole prática: houve um juiz estrangeiro que emitiu uma sentença, e deste acto
geraram-se expectativas legítimas dos envolvidos. Assim, está em causa assegurar a continuidade e
estabilidade das situações da vida jurídica internacional, a fim de que os direitos adquiridos e as
expectativas dos interessados não sejam ofendidos, i.e., tutelar as expectativas dos particulares. Se,
ao olharmos para a lei aplicável, os particulares podem ter alguma expectativa, com a intervenção
do tribunal que emita um acto jurisdicional sobre o assunto, estão exponencialmente aumentadas
estas expectativas. Por outro lado, a propositura de um novo processo poderia dar azo a decisões
contraditórias, ferindo assim a harmonia jurídica material.
Temos assim um fundamento de defesa das expectativas dos particulares, aliado ainda à ideia
de harmonia jurídica material.
No entanto, se aceitássemos sem qualquer espécie de controlo a eficácia das decisões provenientes
de uma decisão estrangeira, isto poderia ofender princípios fundamentais da ordem pública
internacional do Estado do foro, quer material, quer processual. Assim, podemos aceitar que o
Estado coloque certas exigências quanto ao reconhecimento de um acto jurisdicional que lhe é
alheio, ou seja, pode justificar-se que o juiz queira fazer algum tipo de controlo.
100
Eduardo Figueiredo 2016/2017
2) Sistema de controlo prévio, ou de verificação prévia: o Estado do foro não atribui efeitos
jurisdicionais automaticamente à sentença estrangeira, arrogando-se um controlo prévio. Há dois
tipos de controlo prévio:
• Revisão de mérito: faz-se uma revisão da própria decisão material do juiz, o que no fundo
equivale a um novo juízo.
• Revisão formal: por influência italiana, chama-se um sistema de delibação. Não se vai ao
mérito da própria decisão estrangeira, mas é feito um controlo do modo como foi tomada a decisão
estrangeira. O sistema de delibação é o seguido em Portugal, no Brasil e na Suíça. O sistema de
revisão de mérito está hoje “em franco declínio”, tendência que se iniciou um o arrêt Munzer da
Cassação francesa.
101
Eduardo Figueiredo 2016/2017
produção de efeitos como acto jurisdicional, outra a execução da sentença. Há vários regulamentos
europeus em que estes aspectos são separados.
Em relação ao reconhecimento, o art. 33.º/1 do Regulamento Bruxelas I diz que
não há necessidade de recurso a processo; e o actual artigo diz o mesmo – consagram o
reconhecimento automático.
Já no que toca à execução, houve uma evolução: o art. 38.º de Bruxelas I diz que,
depois do reconhecimento, é necessária uma declaração de executoriedade; já no novo
regulamento, no art. 39.º diz-se que uma decisão proferida num EM, que aí tenha força
executória, pode ser executada noutro EM sem necessidade de declaração de
executoriedade, i.e., aboliu-se o exequato. Porém, nos outros regulamentos mantém-se: ver
art. 28.º de Bruxelas II bis e 43.º do Regulamento de sucessões.
• Possibilidade de impugnação das sentenças estrangeiras: apesar de, dentro dos vários
EM, o efeito ser o do reconhecimento automático, mesmo assim é possível impugnar o
reconhecimento da sentença estrangeira. Existem fundamentos de recusa do reconhecimento, que
são essencialmente formais. O art. 45.º de Bruxelas I bis permite a recusa com fundamento em
incompetência internacional; violação de regras de competência que protegem a parte mais fraca
(ex: seguros) e das regras de competência exclusiva previstas no regulamento. A ordem pública
internacional também é um fundamento admissível, logo existe não só ao nível da lei aplicável, mas
também ao nível do reconhecimento da sentença estrangeira. Note-se que a sentença estrangeira
pode ter aplicado lei estrangeira.
2) Concordata: existe um regime previsto na Concordata de 2004, cujo art. 16.º consagra um
sistema de controlo prévio quanto às sentenças estrangeiras de declaração de nulidade do
casamento rato e não consumado. Este controlo é um controlo meramente formal, sem revisão de
mérito, sendo um dos requisitos avaliados o respeito pela ordem pública internacional. Claro que
podemos sempre dizer que o controlo da ordem pública internacional introduz uma dimensão
material, mas na matriz deste tipo de controlo é uma revisão formal.
3) Código de Processo Civil: o art. 980.º do CPC estabelece as condições de conformação das
sentenças estrangeiras exigidas entre nós (apesar de falar em revisão e confirmação, isto é a mesma
coisa que reconhecimento). O reconhecimento é competência entre nós dos tribunais da relação. O
n.º 1 estabelece a necessidade de revisão e confirmação, o n.º 2 fala da hipótese de entrar em
Portugal como meio de prova.
Como é que se faz esta revisão e confirmação? O art. 980.º estabelece os vários requisitos:
• Al. a): não pode haver dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a
sentença, nem sobre a inteligência da decisão. É necessário um documento autêntico da própria
sentença, obtida por uma certidão do tribunal estrangeiro; e ainda a inteligência do documento,
aqui no sentido de compreensibilidade, inteligibilidade.
• Al. b): a sentença tem de ter transitado em julgado no país da origem. No sistema europeu,
no regulamento de Bruxelas I não se faz esta exigência: é possível em Portugal reconhecer uma
sentença espanhola ainda não transitada em julgado, uma vez que se quer favorecer a circulação as
sentenças.
102
Eduardo Figueiredo 2016/2017
• Al. c): exige a competência do tribunal estrangeiro, não podendo esta ter sido provocada
em fraude à lei; nem podendo a sentença versar sobre matéria da exclusiva competência dos
tribunais portugueses. Há dois sistemas de controlo da competência:
O primeiro, que vigorou em Portugal até 1997, é um sistema de bilateralidade: o
controlo da competência de um tribunal estrangeiro é feito verificando se esse tribunal
estrangeiro é internacionalmente competente de acordo com as nossas regras de
competência internacional. Porém, esta solução está em desacordo quer com o princípio da
necessária cooperação entre as autoridades dos diferentes Estados, quer com as exigências
da vida internacional, que reclamam um sistema o mais possível favorável à circulação das
decisões. Além disso, nenhum Estado pode razoavelmente pretender que só as regras por
ele aprovadas estão de acordo com o sistema ideal nesta matéria.
Assim, em 1997, passámos a ter um sistema de unilateralidade: aceitamos a
competência se o tribunal estrangeiro, de acordo com as suas próprias regras de
competência, era competente. As regras de conflitos de jurisdições tornam-se unilaterais: as
nossas regras dizem quando os nossos tribunais são competentes; e as estrangeiras dizem
quando os tribunais estrangeiros são competentes.
Mas temos uma unilateralidade atenuada, com dois desvios: a competência não pode ter
sido provocado em fraude à lei (muito difícil de determinar); e não pode tratar-se de matéria de
competência exclusiva de tribunais portugueses.
• Al. d): não pode haver litispendência ou caso julgado. A litispendência não impede o
reconhecimento se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição (ou seja, se a acção tiver sido
proposta em primeiro lugar no tribunal estrangeiro). Se tal sucedeu, não podemos, para recusar o
reconhecimento em Portugal, propor aqui uma acção para termos uma litispendência. A mesma
doutrina vale para o caso julgado.
• Al. e): consagra aquilo a que podemos chamar ordem pública processual – regularidade da
citação e observação dos princípios de contraditório e igualdade das partes.
• Al. f): exige o respeito pela ordem pública internacional (aqui material). O reconhecimento
não pode conduzir a um resultado manifestamente incompatível com os valores fundamentais do
Estado português.
Note-se que só o primeiro e o último requisito são de reconhecimento oficioso (art. 984.º). O
que daqui resulta é um controlo formal, com concessões à revisão material. Podemos identificar
duas, visíveis no art. 983.º:
• Art. 983.º/1: o pedido de reconhecimento só pode ser impugnado pela falta dos requisitos
ou se se verificar um dos casos do art. 696.º, interessando-nos a remissão para a alínea c) – se a parte
vencida traz um documento novo, que só por si implica uma nova decisão, este é um fundamento
que permite a impugnação. Isto implica uma revisão da decisão.
• Art. 983.º/2: se a sentença tiver sido proferida contra pessoa singular ou colectiva de
nacionalidade portuguesa, a impugnação do reconhecimento pode ainda fundar-se no facto de que
o resultado da acção teria sido mais favorável se tivesse aplicado normas de direito português. Um
tribunal estrangeiro decide contra uma parte portuguesa, e o direito aplicável não foi o direito
português; porém, de acordo com as nossas regras, a lei aplicável deveria ter sido portuguesa. Neste
caso, se o litígio tivesse sido resolvido de forma mais favorável, a parte interessada pode impugnar
o reconhecimento. Há uma certa interpretação desta regra que pode ser incompatível com o
princípio da não discriminação em favor da nacionalidade: imaginemos que aparte contrária é uma
103
Eduardo Figueiredo 2016/2017
parte europeia, que beneficia das regras do tratado, nomeadamente o princípio da não
discriminação: como poderíamos aplicar esta regra sem violar este princípio? Note-se que esta
hipótese só é quando a sentença vem de um tribunal estrangeiro, ainda que entre uma parte
portuguesa e europeia – caso contrário, aplicar-se-ia o regulamento.
104