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Dinis Abrantes Figueiredo

Direito Internacional Privado

Ano letivo de 2023/2024


1. O objeto do Direito Internacional Privado
O Direito Internacional Privado consiste no ramo do Direito que visa resolver adequadamente
os problemas emergentes das situações jurídico-privadas internacionais.1
Uma possível solução para resolver tais problemas é oferecida pelo princípio da
territorialidade das leis, segundo o qual se deve aplicar a lei do foro (forum significa
tribunal), i.e. a lei do Estado onde o problema é colocado. Ora, as soluções que resultam deste
princípio não são satisfatórias, essencialmente por três ordens de razões:
1) Instabilidade nas situações jurídico-privadas internacionais: Se o princípio da
territorialidade das leis valesse como critério de resolução dos problemas emergentes das
situações jurídico-privadas internacionais, tal geraria uma instabilidade nessas mesmas
situações, uma vez que o estatuto dos sujeitos variaria sempre que cruzassem fronteiras.2
2) Violação do princípio da não-transatividade: Se o princípio da territorialidade das leis
valesse como critério de resolução dos problemas emergentes das situações jurídico-privadas
internacionais, tal violaria o princípio da não-transatividade, segundo o qual se deve aplicar
uma lei com a qual as situações jurídico-privadas têm algum tipo de contacto.
3) Insegurança jurídica: Se o princípio da territorialidade das leis valesse como critério de
resolução dos problemas emergentes das situações jurídico-privadas internacionais, tal
geraria uma insegurança jurídica, uma vez que os sujeitos não poderiam prever qual a lei com
que contar, pois esta variaria sempre que cruzassem fronteiras.
→ Pelo exposto, conclui-se que o princípio da territorialidade das leis é imprestável para
resolver os problemas emergentes das situações jurídico-privadas internacionais.
Uma outra solução para resolver tais problemas é oferecida pelo princípio da não-
transatividade, segundo o qual se deve aplicar uma lei com a qual as situações jurídico-
privadas têm algum tipo de contacto. Tendo em consideração que as situações jurídico-
privadas internacionais podem ter algum tipo de contacto com várias leis, o legislador decidiu
emanar regras de conflitos que consistem em normas que indicam, dentre as leis com as
quais uma situação jurídico-privada internacional concreta tem algum tipo de contacto e que
estão em conflito de aplicação umas com as outras, aquela com a qual ela tem um contacto
mais forte e que, consequentemente, será a lei aplicável. É o chamado método clássico
(porque é o mais antigo), savigniano (porque foi criado por Savigny) ou conflitual (porque
lança mão de regras de conflitos para resolver os problemas emergentes das situações
jurídico-privadas internacionais).3 É por esta razão que o Direito Internacional Privado é
também designado por Direito de Conflitos.

1 O Senhor A, francês, 17 anos, residente em Berlim, pretende casar com a Senhora B, iraniana, 18 anos,
residente em Roma, em Portugal. Perante o conservador do registo civil, coloca -se a questão de saber se os
nubentes têm capacidade nupcial e à luz de que lei deve esta ser apreciada.
2 O Senhor A e a Senhora B, recém-casados em Portugal, decidem fixar a sua residência no Irão. Neste caso,

pode acontecer que, à luz da lei portuguesa, A e B sejam casados, mas, à luz da lei iraniana, se exija que os
nubentes tenham 21 anos para casar, considerando, consequentemente, o casamento celebrado entre A e B nulo.
3 No caso em concreto, as leis que estão em contacto com a situação jurídico -privada internacional e que estão

em conflito de aplicação umas com as outras são: a lei portuguesa (local da celebração do casamento), iraniana
(nacionalidade de B), francesa (nacionalidade de A), alemã (local de residência de A) e italiana (local de
residência de B). De acordo com os artigos 49º e 31º, n. 1 CC (regras de conflitos), a capacidade nupcial de A
será apreciada à luz da lei francesa e a de B à luz da lei iraniana.
2
No que diz respeito ao objeto do Direito Internacional Privado (situações jurídico-privadas
internacionais), importa ainda fazer referência a duas notas fundamentais:
1) Os problemas emergentes das situações jurídico-públicas internacionais não são resolvidos
pelo Direito Internacional Privado, não constituindo o seu objeto.4
- No âmbito do Direito Privado, o Estado está disposto a aceitar a aplicação de leis
estrangeiras no seu foro, por atenção aos interesses dos particulares. Por essa razão, o Estado
não delimita o âmbito de aplicação da sua própria lei.
- No âmbito do Direito Público, o Estado não está disposto a aceitar a aplicação de leis
estrangeiras no seu foro, por atenção ao interesse da comunidade. Por essa razão, o Estado
delimita o âmbito de aplicação da sua própria lei.
2) Os problemas emergentes das situações jurídico-privadas puramente internas e
relativamente internacionais não são resolvidos pelo Direito Internacional Privado, não
constituindo o seu objeto. Segundo a divisão tradicional, criada por Jitta, importa estabelecer
uma distinção entre três grupos de situações:
- Situações puramente internas: As situações puramente internas são aquelas que estão em
contacto apenas com uma única lei, nomeadamente a lei do foro (forum significa tribunal),
i.e. a lei do Estado onde o problema é colocado.5 Sendo assim, os problemas emergentes das
situações jurídico-privadas puramente internas são resolvidos pela lei do foro, em respeito
pelo princípio da não-transatividade.
- Situações relativamente internacionais: As situações relativamente internacionais são
aquelas que estão em contacto apenas com uma única lei, nomeadamente a lei do foro, mas
que são levadas para uma ordem jurídica diferente para aí serem apreciadas.6 Sendo assim, os
problemas emergentes das situações jurídico-privadas relativamente internacionais são
resolvidos pela lei do foro, em respeito pelo princípio da não-transatividade.
- Situações absolutamente internacionais ou plurilocalizadas: As situações absolutamente
internacionais ou plurilocalizadas são aquelas que estão em contacto com mais do que uma
ordem jurídica. Sendo assim, os problemas emergentes das situações jurídico-privadas
absolutamente internacionais ou plurilocalizadas são resolvidos pelo Direito Internacional
Privado, constituindo o seu objeto.

2. O âmbito do Direito Internacional Privado


Como foi mencionado, o Direito Internacional Privado consiste no ramo do Direito que visa
resolver adequadamente os problemas emergentes das situações jurídico-privadas
internacionais. Que problemas serão esses? A este respeito, importa distinguir três cor rentes:
- Corrente minimalista ou alemã: Segundo a corrente minimalista ou alemã, o Direito

4 O Senhor A, norueguês, decidiu fixar a sua residência em Portugal. Acontece que o Estado Norueguês
pretende tributar o seu rendimento. Neste caso, está-se perante uma situação jurídico-pública internacional cujo
problema suscitado não é resolvido pelo Direito Internacional Privado.
5 O Senhor A, residente em Portugal, morreu, tendo deixado descendentes e bens apenas e só em Portugal. Neste

caso, a sua sucessão será regulada pela lei portuguesa, pois só esta está em contacto com a situação jurídico -
privada, em respeito pelo princípio da não-transatividade.
6 O Senhor A, japonês residente em Tóquio, deu uma chapada ao Senhor B, japonês residente em Tóquio. B

decidiu recorrer a tribunal, pedindo uma indemnização de 5’000€. Acontece que, por alguma razão, a ação de
responsabilidade civil está a ser apreciada em Portugal. Neste caso, sob a lente portuguesa, trata-se de uma
situação internacional, enquanto que, sob a lente japonesa, se trata de uma situação puramente interna.
3
Internacional Privado visa resolver adequadamente um tipo de problemas emergentes das
situações jurídico-privadas internacionais: o conflito de leis (determinação da lei aplicável).
- Corrente maximalista ou francesa: Segundo a corrente maximalista ou francesa, o Direito
Internacional Privado visa resolver adequadamente cinco tipos de problemas emergentes das
situações jurídico-privadas internacionais: o conflito de leis (determinação da lei aplicável), o
conflito de jurisdições (competência judiciária internacional das autoridades do foro e
reconhecimento de sentenças estrangeiras), o Direito dos Estrangeiros (condição jurídica dos
estrangeiros) e o Direito da Nacionalidade (conflitos negativos e positivos de nacionalidades).

Nota fundamental:
Pillet autonomiza um sexto tipo de problemas que o Direito Internacional Privado visa
adequadamente resolver: o reconhecimento de direitos adquiridos em país estrangeiro. No
entanto, este tipo de problemas não é autónomo relativamente ao conflito de leis, uma vez
que, antes de se determinar se um determinado direito foi legitimamente adquirido, torna-
se necessário determinar se a lei que o atribuiu é a lei aplicável. Nessa medida, este tipo
de problemas pode ser incorporado no conflito de leis.

- Corrente intermédia ou anglo-saxónica: Segundo a corrente intermédia ou anglo-


saxónica, à qual o Curso adere7, o Direito Internacional Privado visa resolver adequadamente
três tipos de problemas emergentes das situações jurídico-privadas internacionais: o conflito
de leis (determinação da lei aplicável) e o conflito de jurisdições (competência judiciária
internacional das autoridades do foro e reconhecimento de sentenças estrangeiras). Ficam,
deste modo, excluídos do âmbito do Direito Internacional Privado o Direito dos Estrangeiros
e o Direito da Nacionalidade, essencialmente por duas razões:
-» Em primeiro lugar, porque o Direito dos Estrangeiros e o Direito da Nacionalidade
resolvem problemas eventuais.
-» Em segundo lugar, porque o Direito dos Estrangeiros e o Direito da Nacionalidade –
com exceção dos conflitos positivos de nacionalidades (ainda que as normas que os resolvem
indiquem, não a lei aplicável, mas a nacionalidade que, dentre as várias existentes na mesma
pessoa e que estão em conflito umas com as outras, deve considerar-se relevante) – resolvem
os problemas através de normas materiais (dão solução ao caso), enquanto que o Direito
Internacional Privado resolve os problemas através de regras de conflitos que são normas
formais (remetem para as normas materiais que dão solução ao caso).
→ Embora excluídas do âmbito do Direito Internacional Privado, acontece que vários
manuais tratam destas duas matérias, uma vez que, se não fossem estudadas pelo Direito
Internacional Privado, poderiam ficar por estudar.

7 O Curso irá tratar dos seguintes problemas:


- Conflito de leis (Parte Geral + Parte Especial relativa aos contratos)
- Conflito de jurisdições (Reconhecimento de sentenças estrangeiras). A competência judiciária internacional
das autoridades do foro é matéria que foi abordada em Direito Processual Civil, pelo que é pressuposta.
------------------------------------------ âmbito do Direito Internacional Privado ------------------------------------------
- Conflitos negativos e positivos de nacionalidades para determinação da “lei pessoal”
- Princípios fundamentais do Direito dos Estrangeiros

4
3. Os princípios fundamentais do Direito dos Estrangeiros
A condição jurídica dos estrangeiros em Portugal é regulada por dois princípios fundamentais
que estão consagrados no artigo 14º CC:
- O artigo 14º, n. 1 CC consagra o princípio da equiparação, segundo o qual os estrangeiros
gozam dos mesmos direitos e deveres que os portugueses.
- O princípio da equiparação conhece duas exceções:
1) A primeira exceção ao princípio da equiparação encontra-se prevista no artigo 14º, n. 2
CC que consagra o princípio da reciprocidade, segundo o qual não são reconhecidos aos
estrangeiros os direitos que, sendo atribuídos pelo respetivo Estado aos seus nacionais, o não
sejam aos portugueses em igualdade de circunstâncias.
2) O segundo grupo de exceções ao princípio da equiparação encontra-se previsto nos
artigos 15º, n. 2 e ss. CRP.

4. Os conflitos negativos e positivos de nacionalidades


Apesar de os conflitos negativos (relativos aos apátridas) e os conflitos positivos (relativos
aos plurinacionais) de nacionalidades estarem excluídos do âmbito do Direito Internacional
Privado, a verdade é que a resolução destes conflitos pode ser necessária para resolver
problemas emergentes das situações jurídico-privadas internacionais.8
4.1 Os conflitos negativos de nacionalidades
Sempre que uma regra de conflitos indique, dentre as leis com as quais uma situação jurídico-
privada internacional concreta que envolva um sujeito apátrida tem algum tipo de contacto e
que estão em conflito de aplicação umas com as outras, a “lei pessoal” enquanto lei com a
qual ela tem um contacto mais forte e que, consequentemente, será a lei aplicável, ter-se-á de
aplicar a lei do lugar onde o sujeito tiver a sua residência habitual, nos termos do artigo 32º,
n. 1 CC. No fundo, o legislador entende que, como não é possível aplicar a tais situações a lei
da nacionalidade, a lei da residência habitual é uma lei com a qual elas têm um contacto
suficientemente forte para lhes ser aplicável.
4.2 Os conflitos positivos de nacionalidades
Os conflitos positivos de nacionalidades são resolvidos, não através de regras de conflitos,
mas antes através de três critérios previstos nos artigos 27º e 28º da Lei da Nacionalidade:
1) Critério da preferência pela nacionalidade do foro: O artigo 27º da Lei da
Nacionalidade consagra o critério da preferência pela nacionalidade do foro, segundo o qual
se alguém tiver duas ou mais nacionalidades e uma delas for portuguesa, só esta releva face à
lei portuguesa. Este critério não resolve todos os conflitos positivos de nacionalidades.9

8 O Senhor A, português e francês, pretende casar com a Senhora B, apátrida, em França. Coloca-se a questão de
saber à luz de que lei deve ser apreciada a capacidade nupcial dos nubentes. Este problema é resolvido pelos
artigos 49º e 31º, n. 1 CC que mandam aplicar a lei pessoal, ou seja, a lei da nacionalidade dos nubentes. Ora, se
A tem duas nacionalidades e B não tem nenhuma, como dever-se-á resolver o problema?
9 O Senhor A, espanhol e argentino, pretende casar com a Senhora B em Portugal, suscitando -se a questão de

saber se o pode fazer. Neste caso, o critério da preferência pela nacionalidade do foro não funciona.
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2) Critério (subsidiário) da preferência pela nacionalidade da residência: O artigo 28º, 1ª
parte da Lei da Nacionalidade consagra o critério subsidiário (ou seja, só funciona se o
critério da preferência pela nacionalidade do foro falhar) da preferência pela nacionalidade da
residência, segundo o qual nos conflitos positivos de duas ou mais nacionalidades
estrangeiras releva apenas a nacionalidade do Estado em cujo território o plurinacional tenha
a sua residência habitual. Este critério não resolve todos os conflitos positivos de
nacionalidades.10

Nota fundamental:
Micheletti, odontologista italiano e argentino, pretendeu estabelecer-se em Espanha para
aí exercer a sua atividade profissional. Suscitou-se, então, a questão atinente à sua
capacidade para abrir um consultório de odontologia em Espanha. Tratando-se de um
problema emergente de uma situação jurídico-privada internacional, o órgão jurisdicional
espanhol, internacionalmente competente para conhecer da causa, procurou determinar à
luz de que lei deveria o problema emergente de tal situação ser adequadamente resolvido.
Tendo seguido, nesta matéria, o método conflitual, chegou à conclusão de que a
capacidade das pessoas é regulada pela lei pessoal. No entanto, Micheletti tinha duas
nacionalidades, tratando-se de um conflito positivo de nacionalidades. Tendo em
consideração que o critério da preferência pela nacionalidade do foro não funcionaria para
resolver o problema, pois Micheletti não tinha nacionalidade espanhola, ter-se-ia de
seguir o critério da preferência pela nacionalidade da residência. De acordo com este
critério, relevaria a nacionalidade da residência habitual. Sendo assim, uma vez que
Micheletti residia em Buenos Aires, relevaria a lei argentina que não lhe permitiria abrir o
dito consultório em Espanha, por não ser considerado cidadão europeu (cidadania
europeia que lhe conferiria liberdade de estabelecimento).
Ora, Micheletti não achou grande piada a esta solução, uma vez que, se o problema
tivesse sido colocado em Itália, tal problema não se colocaria, pois, pelo facto de ser
italiano, relevaria a nacionalidade do foro que lhe permitiria abrir o dito consultório, por
ser considerado cidadão europeu. Perante esta questão, o órgão jurisdicional espanhol
decidiu recorrer ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) através de um reenvio
prejudicial, perguntando-lhe se as normas espanholas que resolvem os conflitos positivos
de nacionalidades seriam compatíveis com as regras da cidadania europeia. O TJUE, no
acórdão Micheletti, decidiu que, quando um plurinacional de um Estado-Membro e de
um Estado terceiro queira exercer um direito que lhe é atribuído pela cidadania
europeia, releva a nacionalidade do Estado-Membro.
→ Isto significa que o acórdão Micheletti não permite que o critério da preferência pela
nacionalidade da residência funcione, uma vez verificados dois requisitos:
1) Plurinacional de um Estado-Membro e de um Estado terceiro
2) Exercício de um direito atribuído pela cidadania europeia
3) Consagração judicial do princípio da proximidade: De acordo com o artigo 28º, 2ª
parte da Lei da Nacionalidade, não funcionando os critérios da preferência pela
nacionalidade do foro e da preferência pela nacionalidade da residência, releva a
nacionalidade do Estado com o qual o plurinacional mantenha uma vinculação mais estreita.
É a chamada consagração judicial do princípio da proximidade: O legislador desiste de

10O Senhor A, espanhol e argentino, residente em França, pretende casar com a Senhora B em Portugal,
suscitando-se a questão de saber se o pode fazer. Neste caso, o critério da preferência pela nacionalidade da
residência não funciona.
6
oferecer outro critério para resolver tais conflitos (porque ambos falharam) e remete essa
responsabilidade para o julgador que, em concreto, estará em melhores condições para indicar
a nacionalidade do Estado com a qual o plurinacional mantém uma vinculação mais estreita.
→ Vantagem: A consagração judicial do princípio da proximidade tem a vantagem de
conseguir uma maior eficácia na determinação da lei do Estado com o qual o plurinacional
mantém uma vinculação mais estreita.
→ Desvantagem: A consagração judicial do princípio da proximidade tem a desvantagem de
os sujeitos não poderem prever qual a lei com que contar (insegurança jurídica).
Nota fundamental:
A consagração judicial do princípio da proximidade é uma open-ended rule, i.e. uma
regra de conflitos de fim aberto, uma vez que não tem um dos elementos nos quais as
regras de conflitos, em regra, se decompõem: o elemento de conexão.

5. Os interesses que o Direito Internacional Privado visa satisfazer


O interesse primordial que constitui o fundamento do Direito Internacional Privado e para o
qual todos os seus princípios tendem consiste em assegurar a estabilidade e a continuidade
das situações jurídico-privadas internacionais:
- Por um lado, o Direito Internacional Privado visa reduzir a instabilidade nas situações
jurídico-privadas internacionais, mantendo inalterado o estatuto dos sujeitos sempre que
cruzem fronteiras.
- Por outro lado, o Direito Internacional Privado visa reduzir a insegurança jurídica,
submetendo as situações jurídico-privadas internacionais à lei que menos frustre as
expetativas dos sujeitos.

Nota fundamental:
Estes dois fatores marcam uma diferença entre o Direito Internacional Privado e as
demais disciplinas de Direito Privado: Enquanto que a justiça do Direito Internacional
Privado é predominantemente de cunho formal (o legislador não visa indicar a lei mais
justa para resolver os problemas emergentes das situações jurídico-privadas
internacionais, mas antes aquela que tenha com tais situações um contacto mais forte), a
justiça das demais disciplinas de Direito Privado são de cunho material (o legislador visa
consagrar uma solução justa para resolver adequadamente um determinado problema).

Para assegurar a estabilidade e a continuidade das situações jurídico-privadas internacionais,


o Direito Internacional Privado socorre-se de vários princípios que são convocados tanto pelo
legislador, como pelo julgador para resolver os problemas emergentes das situações jurídico-
privadas internacionais:
- Princípio da harmonia jurídica internacional: O Direito Internacional Privado deve
procurar chegar a um consenso entre as várias ordens jurídicas quanto à lei aplicável. Este
consenso é necessário para resolver dois tipos de problemas:

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1) O Direito Internacional Privado deve evitar que as situações jurídico-privadas
internacionais sejam apreciadas em países diferentes, à luz de leis diferentes que, por sua vez,
consagram soluções diferentes.11
2) O Direito Internacional Privado deve evitar o forum shopping, i.e., que as partes
possam manipular o resultado a alcançar através da escolha do tribunal competente para
conhecer da causa.12

Nota fundamental:
Uma das formas possíveis para atingir a harmonia jurídica internacional consiste em
unificar as regras de conflitos, objetivo este que tem sido prosseguido principalmente por
duas Organizações Internacionais:
- Conferência da Haia de Direito Internacional Privado: A nível internacional, a
Conferência da Haia de Direito Internacional Privado tem procurado unificar as regras de
conflitos em determinadas matérias, ainda que o processo decorra lentamente em virtude
das diferenças que os países apresentam.
- União Europeia: A nível europeu, a União Europeia tem procurado unificar as regras
de conflitos em determinadas matérias através de regulamentos, assistindo-se a um
fenómeno de substituição de regras de conflitos de fonte interna por regras de conflitos de
fonte europeia:
- Quanto aos negócios unilaterais, vigoram os artigos 41º CC e 42º CC. Quanto aos
contratos celebrados após 17 de Dezembro de 2009, vigora o Regulamento Roma I.
- Quanto aos factos danosos ocorridos após 11 de Janeiro de 2019, o artigo 45º CC foi
substituído pelo Regulamento Roma II.
- Quanto à separação judicial de pessoas e bens e ao divórcio, o artigo 55º CC foi
substituído pelo Regulamento n. 1259/2010.
- Quanto à sucessão por morte das pessoas falecidas após 17 de Agosto de 2015, o
artigo 62º CC foi substituído pelo Regulamento n. 650/2012.
- Quanto ao regime matrimonial dos casamentos celebrados após 29 de Janeiro de
2019, o artigo 53º CC foi substituído pelo Regulamento n. 1103/2016.

11 O Senhor A, português, residente na Malásia, tem 15 anos de idade e casou na Malásia, coisa que é permitida
nos termos da lei malaia. Quando viajou para Portugal com a sua mulher, pôs -se em causa a validade do
casamento celebrado. Neste caso, tratando-se de um problema emergente de uma situação jurídico-privada
internacional, para o qual o órgão jurisdicional português é internacionalmente competente, dever -se-á
determinar à luz de que lei se deve apurar a capacidade nupcial de A. De acordo com o artigo 49 º CC, a
capacidade nupcial de A deveria ser apreciada à luz da lei pessoal, ou seja, da lei da nacionalidade do indivíduo
(lei portuguesa). Ora, à luz desta lei, A não seria casado. No entanto, acontece que na Malásia a capacidade
nupcial de A deveria ser apreciada à luz da lei da residência (lei malaia). Ora, à luz desta lei, A seria casado.
Pelo exposto, uma vez que na Malásia se utiliza uma regra de conflitos diferente daquela que é utilizada em
Portugal, não é possível resolver adequadamente o problema suscitado, pelo que seria necessário chegar a um
consenso entre as duas ordens jurídicas quanto ao Direito a aplicar.
12Se o Senhor A quiser declarar o casamento nulo, aconselhá-lo-íamos a propor uma ação em Portugal ou na
Malásia? Em Portugal, porque o órgão jurisdicional português iria escolher a lei da nacionalidade de A, segundo
a qual o casamento seria nulo. Já o órgão jurisdicional malaia iria escolher a lei da residência, segundo a qual o
casamento seria válido. Pelo exposto, uma vez que na Malásia se utiliza uma regra de conflitos diferente daquela
que é utilizada em Portugal, as partes podem manipular o resultado a alcançar através da escolha do tribunal
competente para conhecer da causa, pelo que seria necessário chegar a um consenso entre as duas ordens
jurídicas quanto ao Direito a aplicar.

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- Princípio da harmonia material: O Direito Internacional Privado deve, no momento da
emanação das regras de conflitos, evitar antinomias normativas através da aplicação de uma
única lei a cada situação jurídico-privada internacional.13
- Princípio da efetividade ou da melhor competência: O Direito Internacional Privado deve
aplicar a lei que estiver em melhores condições para garantir o acatamento dos seus
preceitos.14
- Princípio da paridade de tratamento das ordens jurídicas: O Direito Internacional Privado
deve colocar as diferentes ordens jurídicas em pé de igualdade, por forma a evitar que se
coloque um problema de desarmonia jurídica internacional.
- Princípio da boa administração da justiça: O Direito Internacional Privado deve favorecer
a aplicação da lei que o julgador melhor conheça, por forma a garantir o acerto das decisões
judiciais e a evitar erros judiciários.
Nota fundamental:
A lei que o julgador melhor conhece é a lei do foro. Uma vez que o Direito Internacional
Privado estaria a favorecer a aplicação de uma lei em detrimento das outras, conclui -se
que o princípio da boa administração da justiça está em contradição com o princípio da
paridade de tratamento entre as ordens jurídicas. Para compatibilizar estes dois princípios,
dever-se-á entender que o princípio da boa administração da justiça só pode ser invocado
quando os demais princípios do Direito Internacional Privado estejam satisfeitos.

- Princípio do favor negotii: O Direito Internacional Privado deve tutelar as expetativas que
os sujeitos legitimamente tenham depositado na aplicação de uma certa lei.

6. A teoria das regras de conflitos


6.1 A noção de regras de conflitos
As regras de conflitos consistem em normas, emanadas pelo legislador do foro, que indicam,
dentre as leis com as quais uma situação jurídico-privada internacional concreta tem algum
tipo de contacto e que estão em conflito de aplicação umas com as outras, aquela com a qual
ela tem um contacto mais forte e que, consequentemente, será a lei aplicável.

13 A criança A tem nacionalidade alemã e reside na Grécia. A sua mãe B tem nacionalidade grega e reside na
Grécia. O seu pai C tem nacionalidade alemã e reside na Alemanha. Acontece que surge um litígio entre B e C
quanto ao direito de visita do filho: Enquanto que a lei alemã diz que o pai tem direito de visitar o filho, a lei
grega diz que a mãe tem direito de proibir as visitas do filho pelo pai. Neste caso, tratando-se de um problema
emergente de uma situação jurídico-privada internacional, para o qual o órgão jurisdicional alemão é
internacionalmente competente, dever-se-á determinar à luz de que lei se deve apurar as relações entre pais e
filhos. De acordo com a regra de conflitos alemã, as relações entre os progenitores e filhos são reguladas pela lei
da nacionalidade de cada progenitor. Isto significa que, enquanto que as relações entre a mãe e o filho deveriam
ser reguladas pela lei grega, as relações entre o pai e o filho deveriam ser reguladas pela lei alemã. Pelo exposto,
conclui-se que o problema emergente da situação jurídico-privada internacional concreta não pode ser resolvido,
uma vez que as leis aplicáveis são incompatíveis entre si.
14O Senhor A, português, residente em Coimbra, celebrou com o Senhor B, português, residente em Coimbra, a
constituição de um usufruto sobre um imóvel situado na Suíça. Neste caso, apesar de a lei portuguesa ter um
contacto mais próximo com a situação jurídico-privada internacional concreta, dever-se-á aplicar a lei suíça,
uma vez que as partes pretendem que a relação jurídica entre eles constituída produza efeitos nesse Estado.

9
6.2 A estrutura das regras de conflitos
As regras de conflitos decompõem-se em dois elementos:
- Conceito-quadro: O conceito-quadro consiste no conceito técnico-jurídico que é
determinado por cada legislador e que delimita o âmbito de aplicação da regra de conflitos
(ex. regime da posse, propriedade e demais direitos reais (46º CC); relações entre os cônjuges
(52º CC); obrigações provenientes de negócio jurídico e a sua substância (41º CC)).
Nota fundamental:
O conceito-quadro está para as regras de conflitos como a hipótese está para as normas
materiais: Tanto o conceito-quadro das regras de conflitos, como a hipótese das normas
materiais delimitam o respetivo âmbito de aplicação. No entanto, existe uma diferença
fundamental entre eles: Enquanto que a hipótese das normas materiais descreve uma
situação de facto que é igual em qualquer ordem jurídica, as regras de conflitos utilizam
conceitos técnico-jurídicos que variam de ordem jurídica para ordem jurídica. Tal suscita
o problema da qualificação (→ ver ponto 10.1).

- Elemento de conexão: O elemento de conexão consiste na circunstância que o legislador


elege como relevante para determinar a lei aplicável (ex. situação das coisas (46º CC);
nacionalidade comum dos cônjuges (52º CC); escolha das partes (41º CC)).
Os elementos de conexão podem ser agrupados em três classificações:
1) Primeira classificação: Os elementos de conexão podem ser:
-» Pessoais: Os elementos de conexão pessoais são aqueles que atendem às características
dos sujeitos da relação jurídica (ex. nacionalidade (62º CC), residência (42º CC), escolha das
partes (41º CC)).
-» Reais: Os elementos de conexão reais são aqueles que desconsideram as características
dos sujeitos da relação jurídica e atendem a outros elementos da relação jurídica (ex. local da
situação da coisa (46º CC), local da prática do facto danoso (45º CC), local da celebração do
contrato (50º CC)).
2) Segunda classificação: Os elementos de conexão podem ser:
-» Factuais: Os elementos de conexão factuais são aqueles que, para os concretizar (ou
seja, para determinar a concreta lei para a qual a regra de conflitos aponta), só se tem de olhar
a factos (ex. local da celebração do contrato (50º CC), residência (42º CC), escolha das
partes (41º CC)).
-» Jurídicos: Os elementos de conexão jurídicos são aqueles que, para os concretizar, se
tem de olhar a factos e a normas jurídicas (ex. nacionalidade (25º CC), domicílio (82º CC)).

Nota fundamental:
A utilização de elementos de conexão factuais apresenta vantagens em detrimento da
utilização de elementos de conexão jurídicos: Enquanto que os elementos de conexão
factuais são iguais em qualquer ordem jurídica (ex. residência), os elementos de conexão
jurídicos variam de ordem jurídica para ordem jurídica (ex. domicílio).

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3) Terceira classificação: Os elementos de conexão podem ser:
-» Móveis: Os elementos de conexão móveis são aqueles que podem alterar-se (ex.
nacionalidade (52º CC), residência (42º CC), escolha das partes (41º CC)).
-» Imóveis: Os elementos de conexão imóveis são aqueles que não podem alterar-se (ex.
local da celebração do contrato (50º CC)).

Nota fundamental:
A utilização de elementos de conexão móveis suscita o problema de saber se às relações
jurídicas duradouras deverá aplicar-se a lei para a qual a regra de conflitos apontava ao
tempo da constituição da relação jurídica (“lei antiga”) ou a lei para a qual a mesma regra
de conflitos aponta na atualidade (“lei nova”). É o chamado problema da sucessão de
estatutos ou conflito móvel.
-» Exemplo: O Senhor A e a Senhora B, brasileiros, casaram em 1993. Entretanto,
decidiram naturalizar-se portugueses. Em 2023, surge um litígio conjugal. De acordo com
o artigo 52º CC, as relações entre os cônjuges são reguladas pela lei nacional comum.
Coloca-se a questão de saber que nacionalidade deve relevar para resolver o problema
emergente da situação jurídico-privada internacional: a lei brasileira ou a lei portuguesa?
→ Por vezes, o legislador resolve o problema, imobilizando o elemento de conexão
móvel (ex. nacionalidade dos nubentes ao tempo da celebração do casamento (53º CC)).

Ainda no que diz respeito ao elemento de conexão, as regras de conflitos podem utilizar
vários sistemas de conexão:
- Sistema de conexão única: As regras de conflitos utilizam um sistema de conexão única
quando têm um elemento de conexão (ex. 46º CC).
- Sistema de conexão múltipla: As regras de conflitos utilizam um sistema de conexão
múltipla quando têm vários elementos de conexão. Estas regras de conflitos subdividem-se
em subsistemas em função do modo como se relacionam os vários elementos de conexão:
-» Sistema de conexão múltipla subsidiária (“na falta de”): As regras de conflitos utilizam
um sistema de conexão múltipla subsidiária quando têm vários elementos de conexão que são
colocados pelo legislador numa relação de hierarquia: Se o elemento de conexão principal
não for concretizável (ou seja, se não for possível determinar nenhuma concreta lei para a
qual a regra de conflitos aponta), o julgador concretizará o elemento de conexão subsidiário
(ex. 57º CC).15
-» Sistema de conexão múltipla alternativa (“ou”): As regras de conflitos utilizam um
sistema de conexão múltipla alternativa quando têm vários elementos de conexão que são
colocados pelo legislador numa relação de paridade: O julgador concretizará o elemento de
conexão (ou seja, determinará a concreta lei para a qual a regra de conflitos aponta) que

15 De acordo com o artigo 57º, n. 1, 1ª parte CC, as relações entre pais e filhos são reguladas pela lei nacional
comum dos pais (elemento de conexão principal) e, na falta desta, pela lei da sua residência habitual comum
(elemento de conexão subsidiário). Pergunta: O que aconteceria se tal regra de conflitos tivesse um único
elemento de conexão (o da nacionalidade comum dos pais)? Se os pais não tivessem uma nacionalidade comum,
não seria possível determinar a lei aplicável ao problema emergente da situação jurídico-privada internacional.
Nestes casos, teria de recorrer-se ao artigo 348º, n. 3 CC, segundo o qual na impossibilidade de determinar o
conteúdo do Direito aplicável, o tribunal recorrerá às regras do Direito comum português. Ou seja, aplicar -se-ia
a lei do foro com a qual a situação jurídico-privada internacional não teria qualquer tipo de contacto. Pelo
exposto, conclui-se que os sistemas de conexão múltipla subsidiária evitam que não seja possível determinar a
lei aplicável, em respeito pelo princípio da harmonia material.
11
(melhor) realize o objetivo enunciado pelo legislador (ex. 65º CC).16
-» Sistema de conexão múltipla cumulativa: As regras de conflitos utilizam um sistema de
conexão múltipla cumulativa quando têm vários elementos de conexão que apontam para a
aplicação de várias leis, ficando a produção de um determinado efeito jurídico subordinado à
sua concordância (ex. 60º, n. 1 e 4 CC).17
-» Sistema de conexão múltipla distributiva: As regras de conflitos utilizam um sistema de
conexão múltipla distributiva quando têm vários elementos de conexão que apontam para a
aplicação de várias leis, sendo que o julgador aplica uma lei diferente a cada parte da relação
jurídica (ex. 49º CC).18
Há quem indique um terceiro elemento das regras de conflitos:
- Consequência jurídica: A consequência jurídica consiste na aplicação da lei para a qual o
elemento de conexão aponta à questão jurídica delimitada pelo conceito-quadro (ex.
aplicação da lei do Estado em que as coisas estão situadas ao regime da posse, propriedade e
demais direitos reais (46º CC).

16 O Senhor A, português, residente em França, decidiu fazer um testamento, mas desconhece como fazê-lo. O
seu amigo B informou-o de que apenas teria de escrever a sua vontade num papel e guardá-lo num cofre. À luz
da lei francesa, o testamento considerar-se-ia válido. Acontece que, em Portugal, põe-se em causa a validade do
seu testamento por vício de forma. A regra de conflitos prevista no artigo 65º CC utiliza o sistema de conexão
múltipla alternativa, na medida em que tem quatro elementos de conexão que apontam para a aplicação da lei do
lugar onde o ato foi celebrado (lei francesa), da lei da nacionalidade do autor da herança no momento da
declaração (lei portuguesa), da lei da nacionalidade do autor da herança no momento da morte (lei portuguesa) e
da lei para que remete a regra de conflitos da lei local (lei francesa). Neste caso, o julgador concretizará o
elemento de conexão que (melhor) realize o objetivo enunciado pelo legislador – a validade do testamento.
Sendo assim, ter-se-á de aplicar a lei francesa. Pelo exposto, conclui-se que os sistemas de conexão múltipla
alternativa facilitam o reconhecimento de relações jurídicas, em respeito pelo princípio do favor negotii.
17 O Senhor A, português, pretende adotar uma criança cujos progenitores são vietnamitas. A regra de conflitos

prevista no artigo 60º, n. 1 CC aponta para a lei da nacionalidade do adotante, ou seja a lei portuguesa. À luz da
lei portuguesa, a adoção seria permitida. No entanto, diz o artigo 60º, n. 4 CC que se a lei competente para
regular as relações entre o adotando e os seus progenitores (o artigo 57º CC aponta para a lei vietnamita) não
conhecer o instituto da adoção – é o caso – ou não o admitir em relação a quem se encontre na situação familiar
do adotando, a adoção não é permitida. Neste caso, a regra de conflitos prevista no artigo 60º CC utiliza um
sistema de conexão múltipla cumulativa, na medida em que tem dois elementos de conexão que apontam para a
aplicação da lei portuguesa e da lei vietnamita. No entanto, tendo em consideração que, por um lado, a produção
do efeito jurídico pretendido – adoção – se encontra subordinado à concordância entre as duas leis e, por outro
lado, a lei vietnamita não conhece o instituto da adoção, ter-se-á de aplicar a lei vietnamita. Ora, o sistema de
conexão múltipla cumulativa “promete mais do que dá” – promete a aplicação cumulativa de várias leis, mas
acaba por aplicar apenas a mais restritiva. Pelo exposto, conclui-se que os sistemas de conexão múltipla
cumulativa dificultam o reconhecimento de relações jurídicas para evitar o surgimento de situações coxas ou
claudicantes (ou seja, situações em que uma determinada relação jurídica é incapaz de ser reconhecida pelos
Estados que com ela têm algum tipo de contacto), em respeito pelo princípio da harmonia jurídica
internacional.
18 O Senhor A, português, residente na Áustria, tem 16 anos. A Senhora B, austríaca, residente na Áustria, tem

18 anos. A e B decidem casar em Portugal, colocando a questão de saber se ambos têm capacidade para contrair
casamento. A regra de conflitos prevista no artigo 49º CC utiliza o sistema de conexão múltipla distributiva, na
medida em que tem dois elementos de conexão que apontam para a aplicação da lei portuguesa (que prevê que a
capacidade nupcial se adquire aos 18 anos) relativamente a A e da lei austríaca (que prevê que a capacidade
nupcial se adquire aos 16 anos) relativamente a B. Sendo assim, o casamento será válido. Pergunta: O que
aconteceria se tal regra de conflitos utilizasse um sistema de conexão múltipla cumulativa? A produção do efeito
jurídico pretendido – casamento – ficaria subordinado à concordância entre a lei portuguesa e a lei austríaca e,
por conseguinte, o casamento não seria válido, uma vez que, embora A tivesse capacidade nupcial à luz da lei
austríaca, B não a teria à luz da lei portuguesa. Pelo exposto, conclui-se que os sistemas de conexão múltipla
distributiva facilitam a constituição de relações jurídicas.
12
6.3 A função das regras de conflitos
As regras de conflitos consistem em normas, emanadas pelo legislador do foro, que indicam,
dentre as leis com as quais uma situação jurídico-privada internacional concreta tem algum
tipo de contacto e que estão em conflito de aplicação umas com as outras, aquela com a qual
ela tem um contacto mais forte e que, consequentemente, será a lei aplicável. São, nessa
medida, normas formais, ou seja normas que remetem para outras normas (materiais) que, por
sua vez, dão solução ao caso.
As regras de conflitos podem cumprir uma de duas funções:
- Regras de conflitos bilaterais: As regras de conflitos cumprem uma função bilateral
quando o legislador do foro determina a lei aplicável, que tanto pode ser a lei do foro, como
uma lei estrangeira, não se preocupando em saber se essa mesma lei se considera, à luz do
seu próprio sistema de DIP, aplicável (problema dos conflitos de sistemas de DIP).19
- Regras de conflitos unilaterais: As regras de conflitos cumprem uma função unilateral
quando o legislador do foro delimita os casos aos quais se aplica a lei do foro.20 Quanto aos
casos aos quais não se aplica a lei do foro, nada diz.
Nota fundamental:
Apesar de as regras de conflitos unilaterais se limitarem a delimitar os casos aos quais se
aplica a lei do foro, não é possível concluir que elas não permitem a aplicação de uma lei
estrangeira. Se não for aplicável a lei do foro, outra lei, nomeadamente uma estrangeira,
terá de ser aplicada para resolver o problema emergente da situação jurídico-privada
internacional concreta.
-» Exemplo: O Senhor A, brasileiro, residente em Portugal, pretende constituir uma
sociedade com sede na Austrália. Coloca-se a questão de saber à luz de que lei deve ser
apreciada a capacidade de A para constituir a dita sociedade. Imagine-se que, em vez da
regra de conflitos bilateral consagrada no artigo 25º CC, existia a seguinte regra de
conflitos unilateral: “A capacidade das pessoas de nacionalidade portuguesa é regulada
pela lei portuguesa.” Da sua leitura apenas se poderá concluir que a lei portuguesa não é
aplicável ao caso concreto, por A não ser português. Não é, portanto, possível chegar à
conclusão de que:
1) A regra de conflitos unilateral aponta para a aplicação de uma lei estrangeira. Não
aponta, na medida em que se limita a delimitar os casos aos quais se aplica a lei do foro.
2) A regra de conflitos unilateral não permite a aplicação de uma lei estrangeira. Permite,
na medida em que, se não lhe for aplicável a lei do foro, outra lei, nomeadamente uma
estrangeira, terá de lhe ser aplicada para dar solução ao caso concreto.

Importa agora analisar, à luz de um exemplo específico, por qual dos sistemas optar – o
sistema bilateral ou o sistema unilateral – comparando os respetivos defeitos:
1) Sistema bilateral: O Senhor A, brasileiro, residente em Portugal, pretende constituir uma
sociedade com sede na Austrália. Coloca-se a questão de saber à luz de que lei deve ser
apreciada a capacidade de A para constituir a dita sociedade.

19 A regra de conflitos consagrada no artigo 46º CC tanto pode apontar para a aplicação da lei portuguesa
(quando a coisa se situe em Portugal), como para a aplicação de uma lei estrangeira (quando a coisa se situe no
estrangeiro). Logo, é uma regra de conflitos bilateral.
20 Transformando a regra de conflitos bilateral consagrada no artigo 46º CC numa regra de conflitos unilateral,

poder-se-ia chegar à seguinte (possível) solução: O regime da posse, propriedade e demais direitos reais que
incidam sobre coisas situadas em Portugal é definido pela lei portuguesa.
13
1. Se este caso fosse colocado em Portugal, ter-se-ia de utilizar a regra de conflitos
bilateral portuguesa, segundo a qual a capacidade das pessoas é regulada pela lei pessoal, ou
seja, pela lei da sua nacionalidade. Sendo assim, seria de concluir que a regra de conflitos
portuguesa aponta para a aplicação da lei brasileira.
2. No entanto, se este mesmo caso fosse colocado no Brasil, ter-se-ia de utilizar a regra de
conflitos bilateral brasileira, segundo a qual a capacidade das pessoas é regulada pela lei da
sua residência. Sendo assim, seria de concluir que a regra de conflitos brasileira aponta para a
aplicação da lei portuguesa.
→ Conclusão: Quadri, o grande defensor do sistema unilateral, considera que não se poderia
optar pelo sistema bilateral, uma vez que o facto de o legislador do foro não se preocupar em
saber se a lei para a qual a regra de conflitos por ele emanada aponta se considera, à luz do
seu próprio sistema de DIP, aplicável geraria desarmonia jurídica internacional, pois
permitiria que uma mesma situação jurídico-privada internacional pudesse ser apreciada em
países diferentes, à luz de leis diferentes que, por sua vez, consagram soluções diferentes. Em
consequência da desarmonia jurídica internacional, o sistema bilateral acabaria por colocar
em causa a estabilidade e a continuidade das situações jurídico-privadas internacionais.
Sendo assim, o legislador do foro deveria limitar-se a delimitar os casos aos quais se aplica a
lei do foro e, quanto aos casos aos quais não se aplica a lei do foro, aplicar-lhes uma lei
estrangeira que tivesse “vontade de aplicação”. Esta “vontade de aplicação” teria de ser
apurada elencando as demais leis com as quais o caso concreto tem algum tipo de contacto e
consultando o elemento de conexão que as regras de conflitos dessas mesmas leis têm.
2) Sistema unilateral: O Senhor A, brasileiro, residente em Portugal, pretende constituir uma
sociedade com sede na Austrália. Coloca-se a questão de saber à luz de que lei deve ser
apreciada a capacidade de A para constituir a dita sociedade.
1. Imagine-se que, em vez de uma regra de conflitos bilateral, existia em Portugal uma
regra de conflitos unilateral, segundo a qual a capacidade das pessoas de nacionalidade
portuguesa é regulada pela lei portuguesa. Sendo assim, seria de concluir que a regra de
conflitos portuguesa não aponta para a aplicação da lei portuguesa.

Verifica-se que o resultado obtido é semelhante ao resultado a que se chegou


anteriormente: aplica-se uma lei estrangeira. A grande diferença reside no facto de as
regras de conflitos bilaterais escolherem a lei aplicável (“a lei do foro não é aplicável,
mas a lei estrangeira X é”), enquanto que as regras de conflitos unilaterais não o fazerem
(“a lei do foro não é aplicável, mas poderá ser uma lei estrangeira”).

Não se tratando de um caso ao qual a lei do foro é aplicável, ter-se-ia de aplicar uma lei
estrangeira que tivesse “vontade de aplicação”. Esta seria apurada elencando as demais leis
com as quais o caso concreto tem algum tipo de contacto (a lei brasileira e a lei australiana) e
consultando o elemento de conexão que as regras de conflitos dessas mesmas leis têm:
- Se a regra de conflitos brasileira fosse unilateral, diria que a capacidade das pessoas
residentes no Brasil é regulada pela lei brasileira. A lei brasileira não teria “vontade de
aplicação”.
- Se a regra de conflitos australiana fosse unilateral, diria que a capacidade das pessoas para
constituir uma sociedade na Austrália é regulada pela lei australiana. A lei australiana teria
“vontade de aplicação”.
14
Conclui-se que, em Portugal, ter-se-ia de aplicar a lei australiana.21
2. Se este mesmo caso fosse colocado no Brasil, ter-se-ia de utilizar a regra de conflitos
unilateral brasileira, segundo a qual a capacidade das pessoas residentes no Brasil é regulada
pela lei brasileira. Sendo assim, seria de concluir que a regra de conflitos brasileira não
aponta para a aplicação da lei brasileira. Não se tratando de um caso ao qual a lei do foro é
aplicável, ter-se-ia de aplicar uma lei estrangeira que tivesse “vontade de aplicação”. Esta
seria apurada elencando as demais leis com as quais o caso concreto tem algum tipo de
contacto (a lei brasileira e a lei australiana) e consultando o elemento de conexão que as
regras de conflitos dessas mesmas leis consagram:
- A lei portuguesa não teria “vontade de aplicação”.
- A lei australiana teria “vontade de aplicação”.
Conclui-se que, no Brasil, ter-se-ia de aplicar a lei australiana.
→ Conclusão: Constata-se que o sistema unilateral gera harmonia jurídica internacional e,
consequentemente, assegura a estabilidade e a continuidade das situações jurídico-privadas
internacionais. No entanto, embora não suscite os problemas que o sistema bilateral suscita, o
sistema unilateral levanta outros problemas. São dois:
1) Problema de vácuo jurídico (E se nenhuma lei estrangeira tiver “vontade de aplicação”?)
Embora Quadri não trate deste problema, de acordo com De Nova, seria necessário
determinar, dentre as leis que não têm “vontade de aplicação”, aquela com a qual a situação
jurídico-privada concreta tivesse um contacto mais forte. Ora, se se torna necessário
determinar uma lei, está-se a reconhecer a falência do sistema unilateral em proveito do
sistema bilateral!
2) Problema de cúmulo jurídico (E se mais do que uma lei estrangeira tiver “vontade de
aplicação”?) De acordo com Quadri, seria necessário aplicar, dentre as leis que têm “vontade
de aplicação”, aquela com a qual os sujeitos previssem contar.
Conclusão:
Pelo exposto, conclui-se que:
1) Apesar dos méritos que o sistema unilateral tem, a verdade é que eles não compensam
os defeitos que ele apresenta (problemas de vácuo e de cúmulo jurídicos).
2) Apesar dos defeitos que o sistema bilateral apresenta, a verdade é que eles são
compensados graças à introdução de certas correções.
→ O Direito Internacional Privado Português optou por um sistema essencialmente
bilateral, embora composto por regras de conflitos bilaterais e por regras de conflitos
unilaterais, corrigido pelos institutos do reenvio (conflitos negativos de sistemas de DIP)
e do reconhecimento de direitos adquiridos (conflitos positivos de sistemas de DIP).

7. As relações entre o Direito Internacional Privado e disciplinas próximas


7.1 Direito Internacional Privado e Direito Intertemporal ou Direito Transitório
Tanto o Direito Internacional Privado, como o Direito Intertemporal ou Direito Transitório
apresentam duas afinidades:

21 O sistema bilateral permite a aplicação de uma lei estrangeira, sendo que não são as regras de conflitos
emanadas pelo legislador do foro que para ela apontam (estas limitam-se a delimitar os casos aos quais se aplica
a lei do foro), mas antes as regras de conflitos consagradas pelo respetivo Estado !
15
- Primeiro, tanto o Direito Internacional Privado, como o Direito Intertemporal ou Direito
Transitório visam resolver conflitos de leis.
- Segundo, tanto o Direito Internacional Privado, como o Direito Intertemporal ou Direito
Transitório visam assegurar a estabilidade e a continuidade das situações jurídico-privadas
internacionais.
No entanto, existem duas diferenças entre eles:
- Primeiro, enquanto que o Direito Internacional Privado visa resolver conflitos de leis no
espaço, o Direito Intertemporal visa resolver conflitos de leis no tempo.
- Segundo, enquanto que no Direito Internacional Privado se admite o princípio da não-
transatividade, no Direito Intertemporal admite-se a retroatividade de uma lei nova.
7.2 Direito Internacional Privado e Direito Interlocal ou Interterritorial
Tanto o Direito Internacional Privado, como o Direito Interlocal ou Interterritorial
apresentam a afinidade de ambos visarem resolver conflitos de leis no espaço.
No entanto, existem três diferenças entre eles:
- Primeiro, enquanto que o Direito Internacional Privado visa resolver conflitos de leis que
surgem entre mais do que uma ordem jurídica, o Direito Interlocal ou Interterritorial visa
resolver conflitos de leis que surgem dentro de um ordenamento plurilegislativo de base
territorial, i.e. de uma ordem jurídica que tem várias leis e cada uma delas se aplica a uma
parte do território (ex. USA, Espanha, Reino Unido).
- Segundo, enquanto que no Direito Internacional Privado se pode confiar à lei pessoal dos
sujeitos a regulamentação do seu estatuto, no Direito Interlocal ou Interterritorial tal não é
possível.
- Terceiro, enquanto que no Direito Internacional Privado se pode invocar o expediente da
ordem pública internacional, no Direito Interlocal ou Interterritorial tal não é possível.
7.3 Direito Internacional Privado e Direito Interpessoal
Tanto o Direito Internacional Privado, como o Direito Interpessoal apresentam a afinidade
de ambos visarem resolver conflitos de leis no espaço.
No entanto, existe a diferença de que, enquanto que o Direito Internacional Privado visa
resolver conflitos de leis que surgem entre mais do que uma ordem jurídica, o Direito
Interpessoal visa resolver conflitos de leis que surgem dentro de uma ordenamento
plurilegislativo de base pessoal, i.e. de uma ordem jurídica que tem várias leis e cada uma
delas se aplica a uma certa e determinada categoria de sujeitos (ex. Síria, Israel).
7.4 Direito Internacional Privado e Direito Constitucional
A relação entre o Direito Internacional Privado e Direito Constitucional suscita três questões :
1. Poderá uma regra de conflitos ser inconstitucional?
Relativamente a esta questão, formaram-se duas correntes de opinião:
- Para a doutrina tradicional, as regras de conflitos não podem ser inconstitucionais, uma
vez que são normas formais (ou seja, remetem para outras normas (materiais) que, por sua
vez, dão solução ao caso).

16
- Para a doutrina moderna, as regras de conflitos podem ser inconstitucionais, uma vez que
o modo de determinação da lei aplicável pode ser contrário à Constituição. 22
2. Poderá o julgador recusar a aplicação de uma lei estrangeira com fundamento na sua
inconstitucionalidade perante a Constituição do foro?
Relativamente a esta questão, duas respostas são possíveis:
- Para alguns autores, a resposta deve ser negativa, uma vez que, se devesse ser positiva, se
estaria a favorecer a aplicação da lei do foro em detrimento da aplicação da lei estrangeira,
violando o princípio da paridade de tratamento das ordens jurídicas.
- Para outros autores, a resposta deve ser positiva, uma vez que, se devesse ser negativa, a
aplicação da lei estrangeira pode conduzir a um resultado chocante. Este inconveniente é,
todavia, resolvido através de duas maneiras:
1) Por um lado, estando reunidos os requisitos para o funcionamento do expediente da
ordem pública internacional (22º CC), entende-se que se deve recusar a aplicação da lei
estrangeira para a qual a regra de conflitos aponta.
2) Por outro lado, mesmo que não estejam reunidos os requisitos para o funcionamento do
expediente da ordem pública internacional, entende-se que se deve recusar a aplicação da lei
estrangeira para a qual a regra de conflitos aponta quando ponha em causa os direitos
fundamentais dos cidadãos enquanto Pessoa.
3. Poderá o julgador recusar a aplicação de uma lei estrangeira com fundamento na sua
inconstitucionalidade perante a respetiva Constituição?
De acordo com o artigo 23º, n. 1 CC, a lei estrangeira é interpretada e aplicada dentro do
sistema a que pertence e de acordo com as regras nele fixadas. Sendo assim, a resposta a esta
questão dependerá do sistema de fiscalização da constitucionalidade que vigorar na ordem
jurídica estrangeira:
- Se na ordem jurídica estrangeira vigorar um sistema de fiscalização da constitucionalidade
difuso, o poder de fiscalização da constitucionalidade é atribuído a todos os tribunais. Nessa
medida, o tribunal do foro pode recusar a aplicação da lei estrangeira, não pelo facto de ser
inconstitucional, mas antes pelo facto de não ser aplicada pelos tribunais da ordem jurídica a
que pertence. Vigora, a este propósito, o princípio da harmonia jurídica internacional, uma
vez que se procura chegar a um consenso entre as várias ordens jurídicas quanto à lei a
aplicar.
- Se na ordem jurídica estrangeira vigorar um sistema de fiscalização da constitucionalidade
concentrado, o poder de fiscalização da constitucionalidade é atribuído a um único tribunal.
Nessa medida, o tribunal do foro não pode recusar a aplicação da lei estrangeira, não pelo
facto de não ser inconstitucional, mas antes pelo facto de não ser desaplicada pelos tribunais
da ordem jurídica a que pertence. Vigora, a este propósito, o princípio da harmonia jurídica
internacional, uma vez que se procura chegar a um consenso entre as várias ordens jurídicas
quanto à lei a aplicar.

22De acordo com a redação originária do artigo 52º CC, não tendo os cônjuges a mesma nacionalidade, era
aplicável a lei da sua residência habitual comum e, na falta desta, a lei pessoal do marido. Ora,
independentemente dos benefícios que a mulher poderia vir a ter com a aplicação da lei pessoal do marido, a
verdade é que esta solução é discriminatória (dá-se preferência à proximidade do marido em detrimento da
mulher), violando o princípio jurídico-constitucional da igualdade.
17
7.5 Direito Internacional Privado e Direito Privado uniforme
Existem duas diferenças entre o Direito Internacional Privado e o Direito Privado uniforme:
- Primeiro, enquanto que o Direito Internacional Privado é composto por normas formais
(regras de conflitos), o Direito Privado uniforme é composto por normas materiais.
- Segundo, enquanto que o Direito Internacional Privado visa resolver conflitos de leis
através da determinação da lei aplicável ao problema emergente de uma situação jurídico-
privada internacional, o Direito Privado uniforme visa suprimir conflitos de leis através da
unificação de todo o Direito Privado material.
Notas fundamentais:
1) Apesar de a unificação de todo o Direito Privado material parecer utópica, a verdade é
que é bem possível unificar certas e determinadas áreas de Direito Privado material.
2) Mesmo nas áreas de Direito Privado material unificado, a verdade é que o Direito
Privado Internacional não perde a sua relevância, essencialmente por duas razões:
- Raramente a unificação do Direito Privado material será completa.
- Fora do âmbito de vigência das áreas de Direito Privado unificado ficam sempre
numerosos Estados.
7.6 Direito Internacional Privado e Direito da União Europeia
Existem três relações entre o Direito Internacional Privado e o Direito da União Europeia:
- As liberdades fundamentais da União Europeia (liberdade de circulação de pessoas,
mercadorias, serviços e capitais) são um limite ao funcionamento das regras de conflitos do
foro (ex. acórdão Micheletti).
- Os produtos legalmente comercializados num Estado-Membro podem ser legalmente
comercializados noutro Estado-Membro, em respeito pelo princípio do reconhecimento
mútuo (ex. acórdão Cassis de Dijon).
- A União Europeia tem procurado unificar as regras de conflitos em determinadas matérias
através de regulamentos para fazer com que, onde quer que o problema emergente de uma
situação jurídico-privada internacional se coloque, seja apreciado à luz da mesma lei, em
respeito pelo princípio da harmonia jurídica internacional. A harmonia jurídica internacional
é uma condição para a efetiva liberdade de circulação, ou seja, se não existir, não há
estabilidade, nem continuidade das situações jurídico-privadas internacionais.23

8. A influência do tempo no funcionamento das regras de conflitos


No que diz respeito à influência do tempo no funcionamento das regras de conflitos,
colocam-se três tipos de problemas diferentes para os quais existem soluções igualmente
diferentes:

23 O Senhor A é casado em Portugal e decide emigrar para Espanha. Se não houver harmonia jurídica
internacional, A correrá o risco de o seu casamento não ser reconhecido à luz da lei espanhola, não cumprindo o
Direito Internacional Privado o seu fundamento, nomeadamente assegurar a estabilidade e a continuidade das
situações jurídico-privadas internacionais.
18
8.1 A sucessão no tempo de regras de conflitos
O problema da sucessão no tempo de regras de conflitos prende-se com uma alteração das
regras de conflitos.24 A este propósito, existem três soluções possíveis:
1) O legislador pode resolver o problema da sucessão no tempo de regras de conflitos através
do Direito Transitório (ex. regulamentos da União Europeia).
2) Se o problema não for resolvido através do Direito Transitório, de acordo com a doutrina
tradicional, dever-se-á aplicar a lei para a qual apontava a regra de conflitos ao tempo da
constituição da relação jurídica, uma vez que a aplicação da lei para a qual aponta a regra de
conflitos na atualidade implicaria, por um lado, a frustração das legítimas expetativas dos
sujeitos (os sujeitos confiaram na aplicação da lei X quando, na realidade, é aplicada a lei Y)
e, por outro lado, a violação do princípio da não-retroatividade das leis.
3) Kahn posicionou-se contra a doutrina tradicional, argumentando que se deveria utilizar um
juízo de proximidade moderno e, consequentemente, aplicar a lei para a qual aponta a regra
de conflitos na atualidade. Esta sua tese sofre dos inconvenientes apontados pela doutrina
tradicional. No entanto, ambos os inconvenientes são resolvidos:
- Violação do princípio da não-retroatividade das leis: Por um lado, o princípio da não-
retroatividade das leis não poderia ser convocado, uma vez que apenas se refere às normas
materiais, e já não às regras de conflitos que são normas formais.
- Insegurança jurídica: Por outro lado, nem sempre se frustram as legítimas expetativas
dos sujeitos, devendo estabelecer-se uma distinção entre dois tipos de problemas:
-» Se a relação jurídica tinha algum tipo de contacto com a ordem jurídica do foro ao
tempo da sua constituição, presume-se que existem legítimas expetativas quanto à utilização
da regra de conflitos antiga e, portanto, dever-se-á aplicar a lei para qual apontava a regra de
conflitos ao tempo da sua constituição.25
-» Se a relação jurídica não tinha qualquer tipo de contacto com a ordem jurídica do
foro ao tempo da sua constituição, presume-se que não existem quaisquer legítimas
expetativas quanto à utilização da regra de conflitos antiga e, portanto, dever-se-á aplicar a lei
para a qual aponta a regra de conflitos na atualidade. 26
→ Pelo exposto, conclui-se que, de acordo com a tese proposta por Kahn, se deve aplicar a
lei para a qual aponta a regra de conflitos na atualidade, salvo se existirem legítimas
expetativas quanto à aplicação da lei para a qual apontava a regra de conflitos ao tempo da

24 Exemplo: O Senhor A, português, e a Senhora B, brasileira, casaram em Portugal no ano de 1965. Em 1966,
entrou em vigor o novo Código Civil. Em 2023, surge um litígio entre A e B quanto à lei aplicável às relações
entre os cônjuges. Neste caso, enquanto que ao tempo da celebração do casamento se utilizava a regra de
conflitos prevista no Código de Seabra, agora utiliza-se a regra de conflitos prevista no Código Civil de 1966,
diferente da regra de conflitos prevista naquele.
25 O Senhor A, português, e a Senhora B, brasileira, casaram em Portugal no ano de 1965. Em 1966, entrou em

vigor o novo Código Civil. Em 2023, surge um litígio entre A e B quanto à lei aplicável às relações entre os
cônjuges. Neste caso, como a relação jurídica constituída entre A e B (casamento) tinha um contacto com a
ordem jurídica do foro, dever-se-á aplicar a lei para a qual apontava a regra de conflitos ao tempo da sua
constituição, ou seja, a regra de conflitos prevista no Código de Seabra.
26 O Senhor A e a Senhora B, ambos brasileiros, casaram no Brasil no ano de 1965. Em 2023, decidiram emigrar

para Portugal. Entretanto, surge um litígio entre A e B quanto à lei aplicável às relações entre os cônjuges. Neste
caso, como a relação jurídica constituída entre A e B (casamento) não tinha qualquer tipo de contacto com a
ordem jurídica do foro, dever-se-á aplicar a lei para a qual aponta a regra de conflitos na atualidade, ou seja, a
regra de conflitos prevista no novo Código Civil.
19
constituição da relação jurídica. Para saber se existem ou não tais legítimas expetativas,
existe um critério doutrinalmente estabelecido, segundo o qual se presume que existem
legítimas expetativas quando a relação jurídica tinha algum tipo de contacto com a ordem
jurídica do foro ao tempo da sua constituição.
8.2 A sucessão de normas no quadro da lex causae
O problema da sucessão de normas no quadro da lex causae (lei para a qual a regra de
conflitos aponta) prende-se com uma alteração do Direito material da lei para a qual uma
mesma regra de conflitos aponta. 27 A este propósito, deve entender-se que tal problema
encontra-se fora do âmbito do Direito Internacional Privado: a regra de conflitos apontou
para a aplicação de uma determinada lei. Dentro dessa lei, todavia, existe um conflito de leis
no tempo. Este conflito terá de ser resolvido pelo Direito Transitório dessa mesma lei. Se o
problema não for resolvido pelo Direito Transitório, ter-se-á de recorrer às normas e aos
princípios jurídicos da lex causae com base nos quais se optará por uma ou pela outra lei.
8.3 A sucessão de estatutos ou conflito móvel
O problema da sucessão de estatutos ou conflito móvel prende-se com uma alteração na
concretização do elemento de conexão. 28 Este tipo de problema só se suscita quando a regra
de conflitos tem elementos de conexão móveis. A este propósito, existem quatro soluções
possíveis, sendo que, como existe unanimidade na doutrina e na jurisprudência, apenas se
fará referência a uma:
- Por vezes, o legislador resolve o problema, imobilizando o elemento de conexão móvel
(ex. nacionalidade dos nubentes ao tempo da celebração do casamento (53º CC)).
- Quando não o faz, a solução deverá ser orientada por dois princípios:
1) Se em causa está a validade de uma relação jurídica constituída no passado, dever-se-á
aplicar a “lei antiga”.29
2) Se em causa está a produção de efeitos jurídicos atuais de uma relação jurídica
constituída no passado, dever-se-á aplicar a “lei nova”.30

27 Exemplo: O Senhor A e a Senhora B, ambos brasileiros, decidiram emigrar para Portugal, onde casaram no
ano de 1995. Em 2023, surge um litígio entre A e B quanto à lei aplicável às relações entre os cônjuges. Neste
caso, o artigo 52º CC aponta para a aplicação da lei nacional comum dos cônjuges, ou seja a lei brasileira.
Apesar de a regra de conflitos não ter sido alterada, acontece que ao tempo da celebração do casamento vigorava
no Brasil o antigo Código Civil que consagra uma determinada solução, enquanto que agora vigora o novo
Código Civil que consagra uma solução diferente.
28 Exemplo: O Senhor A, português, e a Senhora B, brasileira, casaram no ano de 2000 no Brasil. Em 2015,

decidiram emigrar para Portugal. Entretanto, surge um litígio entre A e B quanto à lei aplicável às relações entre
os cônjuges. Neste caso, e tendo em conta que A e B não são nacionais do mesmo Estado, o artigo 52º CC
aponta para a aplicação da lei da sua residência habitual comum. Apesar de nem a regra de conflitos, nem o
Direito material da lex causae terem sido alterados, acontece que a lei para a qual a regra de conflitos apontava
ao tempo da constituição da relação jurídica era uma (lei brasileira), enquanto que agora é outra (lei portuguesa).
29 O Senhor A e a Senhora B, ambos romenos, casaram no ano de 1995. Em 2023, decidiram naturalizar -se

portugueses. Entretanto, discute-se a validade do seu casamento em Portugal, no que diz respeito à capacidade
nupcial. A regra de conflitos prevista no artigo 49º CC aponta para a lei da nacionalidade dos cônjuges. Uma
vez que está em causa a validade de uma relação jurídica constituída no passado (casamento), dever-se-á aplicar
a lei romena.
30 O Senhor A e a Senhora B, ambos romenos, casaram no ano de 1995. Em 2023, decidiram naturalizar -se

portugueses. Entretanto, discute-se a (in)existência de um dever de fidelidade entre os cônjuges. A regra de


conflitos prevista no artigo 52º CC aponta para a lei da nacionalidade comum dos cônjuges. Uma vez que está
20
9. O problema do método do Direito Internacional Privado
Como já foi mencionado, o interesse primordial que constitui o fundamento do Direito
Internacional Privado consiste em assegurar a estabilidade e a continuidade das situações
jurídico-privadas internacionais. Coloca-se, assim, a questão de saber como se consegue
atingir tal fim. É o chamado problema do método do Direito Internacional Privado.
Na sua maioria, as ordens jurídicas dos países europeus continuam a utilizar como método
principal de resolução dos problemas emergentes das situações jurídico-privadas
internacionais o método clássico (porque é o mais antigo), savigniano (porque foi criado por
Savigny) ou conflitual (porque lança mão de regras de conflitos para resolver os problemas
emergentes das situações jurídico-privadas internacionais), segundo o qual o legislador
emana regras de conflitos que consistem em normas que indicam, dentre as leis com as quais
a situação jurídico-privada internacional concreta tem algum tipo de contacto e que estão em
conflito de aplicação umas com as outras, aquela com a qual ela tem um contacto mais forte e
que, consequentemente, será a lei aplicável. No entanto, para além do método conflitual,
existem outros que importa analisar.
9.1 O método jurisdicional
No método conflitual, existe uma diferença entre as normas jurídicas que determinam a
competência judiciária internacional das autoridades do foro e as regras de conflitos. Esta
diferença, todavia, não existe no método jurisdicional que provém da Idade Média e que
continua em vigor, em algumas áreas, na Inglaterra. De acordo com o método jurisdicional,
existem regras que determinam, em simultâneo, a competência judiciária internacional das
autoridades do foro e a lei aplicável.
Apesar do seu mérito (preocupa-se com a aplicação da lei do foro, por forma a garantir o
acerto das decisões judiciais e a evitar erros judiciários, em respeito pelo princípio da boa
administração da justiça), o método jurisdicional foi objeto de algumas críticas:
1. Em primeiro lugar, o método jurisdicional não tem em consideração as diferentes
finalidades que as normas jurídicas que determinam a competência judiciária internacional
das autoridades do foro e as regras de conflitos prosseguem.
2. Em segundo lugar, o método jurisdicional gera desarmonia jurídica internacional.
9.2 A Revolução Americana do Direito Internacional Privado
O caso Babcock vs. Jackson gerou a dita Revolução Americana do Direito Internacional
Privado que se opôs ao método conflitual e à utilização de regras de conflitos, teve grandes
reflexos na remodelação do método conflitual vigente na Europa e decorreu em três grandes
momentos:
- Momento jurisdicional
- Momento doutrinal
- Momento legislativo

em causa a produção de efeitos jurídicos atuais de uma relação jurídica constituída no passado (casamento),
dever-se-á aplicar a lei portuguesa.
21
9.2.1 O momento jurisdicional
Como a Europa, também os EUA utilizaram, durante algum tempo, como método principal
para resolver os problemas emergentes das situações jurídico-privadas internacionais o
método clássico, savigniano ou conflitual. Foi neste contexto que, todavia, surgiu o caso
Babcock vs. Jackson, que acabou por gerar a Revolução Americana do Direito Internacional
Privado: Jackson tinha comprado um carro novo e convidou o seu amigo Babcock a fazer
uma viagem pelo Canadá, onde acabaram por sofrer um acidente, do qual resultaram danos
para Babcock. Este intentou uma ação no tribunal de New York, pedindo uma indemnização
pelos danos sofridos. Tratando-se de uma situação jurídico-privada internacional, uma vez
que tem contacto com duas ordens jurídicas diferentes (a do Canadá e a dos EUA), o tribunal
de New York, internacionalmente competente para conhecer da causa, seguiu o método
conflitual, que vigorava na altura nos EUA, para determinar à luz de que lei deveria ser
resolvido o problema emergente. A regra de conflitos prevista na ordem jurídica nova-
iorquina apontava para a aplicação da lei do local onde tinha ocorrido o facto danoso, ou seja
a lei do Canadá. Olhando para esta lei, o tribunal de New York constatou a existência de uma
norma material, segundo a qual, no caso de transporte gratuito, os passageiros não ti nham
qualquer direito a indemnização pelos danos que sofressem. Esta norma tinha como propósito
fomentar as boleias entre residentes canadienses. Sendo assim, se o tribunal de New York
aplicasse a lei do Canadá, o pedido deduzido em juízo deveria ser julgado improcedente. No
entanto, não foi isso que aconteceu. O tribunal de New York, considerando disparatada a
solução a que chegava através do método conflitual, decidiu não o seguir e não utilizar a
regra de conflitos, argumentando que:
- Em primeiro lugar, a regra de conflitos seria cega, uma vez que apontava para a aplicação
de uma lei que, em concreto, não tinha com a situação jurídico-privada internacional um
contacto mais forte do que aquele que tinha com a lei nova-iorquina.
- Em segundo lugar, a regra de conflitos seria injusta, uma vez que não se preocupava com a
justiça material, nem com as políticas legislativas que estiveram na base da elaboração da
norma material da lei do Canadá.
9.2.2 O momento doutrinal
Em sequência das críticas dirigidas às regras de conflitos, a doutrina encarregou-se de
apresentar propostas metódicas alternativas ao método conflitual, dentre as quais se destacam
as propostas de Cavers, Currie e Ehrenzweig:
1) O método da Better Law Approach de Cavers: De acordo com o método da Better Law
Approach apresentado por Cavers, o julgador deveria, não determinar, dentre as leis com as
quais a situação jurídico-privada internacional concreta tem algum tipo de contacto e que
estão em conflito de aplicação umas com as outras, aquela que tem com ela um contacto mais
forte – não se deveria preocupar em cumprir propósitos de justiça formal –, mas antes
escolher, dentre as normas materiais com as quais a situação jurídico-privada internacional
concreta tem algum tipo de contacto e que estão em conflito de aplicação umas com as

22
outras, aquela que consagrasse a solução mais justa para o caso concreto – deveria preocupar-
se em cumprir propósitos de justiça material. 31
Apesar do seu mérito (preocupou-se, pela primeira vez, com a justiça material), o método
da Better Law Approach foi objeto de algumas críticas:
1. Insegurança jurídica: O método da Better Law Approach gera uma insegurança jurídica,
uma vez que os sujeitos não podem prever qual a norma material com que contar, pois a sua
justeza depende das conceções de justiça do julgador.
2. Violação do princípio da paridade de tratamento das ordens jurídicas: O método da Better
Law Approach viola o princípio da paridade de tratamento das ordens jurídicas, uma vez que
o julgador tende a preferir aplicar a lei do foro, pois é nesta que, em princípio, as conceções
de justiça do julgador estão espelhadas.
3. Desarmonia jurídica internacional: O método da Better Law Approach gera desarmonia
jurídica internacional, uma vez que permite que uma mesma situação jurídico-privada
internacional possa ser apreciada em países diferentes, à luz de leis diferentes que, por sua
vez, consagram soluções diferentes.
Cavers, reconhecendo estas três críticas dirigidas ao método da Better Law Approach por ele
proposto, veio oferecer uma solução para as sanar: o legislador teria de elaborar critérios
(principles of preference) para cada uma das áreas do Direito que teriam como função
orientar o julgador na escolha da norma material que consagrasse a solução mais justa para o
caso concreto. Ele mesmo acabou por propor dois princípios de preferência: um em matéria
de contratos e o outro em matéria de responsabilidade civil extracontratual.32
Ainda assim, este segundo momento do método de Cavers suscita alguns problemas:
1. Em primeiro lugar, o segundo momento do método de Cavers gera desarmonia jurídica
internacional, uma vez que as conceções de justiça que estão na base da elaboração dos
principles of preference não são universais.
2. Em segundo lugar, constata-se que os principles of preference não passam de verdadeiras
regras de conflitos que, em vez de indicarem a lei com a qual uma situação jurídico-privada
internacional concreta tem um contacto mais forte, indicam a norma material que consagra a
solução mais justa para o caso concreto.
2) O método da Governmental Interest Analysis de Currie: De acordo com o método da
Governmental Interest Analysis apresentado por Currie, as regras de conflitos deveriam ser
integralmente revogadas e o julgador deveria começar por determinar as leis com as quais a
situação jurídico-privada internacional concreta tem algum tipo de contacto e que estão em
conflito de aplicação umas com as outras. Depois, o julgador deveria retirar das normas
materiais das leis por ele determinadas os interesses político-legislativos que nelas estão
implícitos. Por fim, o julgador deveria analisar qual dos Estados teria interesse na aplicação

31 No caso Babcock vs. Jackson, o julgador teria de escolher, dentre as normas materiais que tinham com a
situação jurídico-internacional concreta algum tipo de contacto e que estavam em conflito de aplicação umas
com as outras, aquela que consagrasse a solução mais justa para o caso concreto, ou seja a norma material da lei
nova-iorquina que conferia um direito a indemnização.
32 No caso Babcock vs. Jackson, o julgador teria de escolher, dentre as normas materiais que tinham com a

situação jurídico-internacional concreta algum tipo de contacto e que estavam em conflito de aplicação umas
com as outras, aquela que conferisse à parte uma maior indemnização, ou seja a norma material da lei nova-
iorquina.
23
da sua lei 33:
- Se ambos os Estados tivessem interesse na aplicação das suas leis, uma vez que os
interesses político-legislativos que estão nelas implícitos são realizáveis, dever-se-ia aplicar a
lei do foro.
- Se apenas um dos Estados tivesse interesse na aplicação da sua lei, uma vez que apenas o
interesse político-legislativo que está nela implícito é realizável, dever-se-á aplicar a lei desse
Estado.
- Se nenhum dos Estados tivesse interesse na aplicação das suas leis, uma vez que os
interesses político-legislativos que estão nelas implícitos não são realizáveis, dever-se-á
aplicar a lei do foro.
Apesar do seu mérito (preocupou-se, pela primeira vez, com as políticas legislativas), o
método da Governmental Interest Analysis foi objeto de algumas críticas:
1. Insegurança jurídica: O método da Governmental Interest Analysis gera uma insegurança
jurídica, uma vez que os sujeitos não podem prever qual a lei com que contar.
2. DIP enquanto Direito de Conflitos entre interesses político-legislativos: O método da
Governmental Interest Analysis reduz o Direito Internacional Privado a um Direito de
Conflitos entre interesses político-legislativos.
3. Dificuldade em se retirar um interesse político-legislativo concreto: Pode não ser possível
retirar de uma norma material um interesse político-legislativo concreto.
4. Resultados insatisfatórios: Mesmo quando seja possível retirar de uma norma material um
concreto interesse politico-legislativo, existem casos em que a utilização do método da
Governmental Interest Analysis conduziria a resultados insatisfatórios (ex. A exigência de
observância a uma determinada formalidade para certos negócios jurídicos prossegue dois
interesses político-legislativos distintos: por um lado, visa consciencializar as partes da
gravidade do ato que pretendem praticar; por outro lado, visa promover a certeza jurídica.
Ora, através da utilização do método da Governmental Interest Analysis, qualquer negócio
que tivesse algum tipo de contacto com a ordem jurídica portuguesa estaria sujeito à
aplicação da lei portuguesa, o que poderia conduzir a uma paralisação do comércio jurídico) .
5. Violação do princípio da paridade de tratamento das ordens jurídicas: O método da
Governmental Interest Analysis viola o princípio da paridade de tratamento das ordens
jurídicas, uma vez que o julgador tende a preferir aplicar a lei do foro, pois, sempre que
ambos os Estados tenham ou nenhum dos Estados tenha interesse na aplicação das suas leis,
dever-se-á aplicar a lei do foro.
6. Desarmonia jurídica internacional: O método da Governmental Interest Analysis gera
desarmonia jurídica internacional, uma vez que permite que uma mesma situação jurídico-
privada internacional possa ser apreciada em países diferentes, à luz de leis diferentes que,
por sua vez, consagram soluções diferentes.

33 No caso Babcock vs. Jackson, uma vez que apenas o Estado de New York tem interesse na aplicação da sua
lei, uma vez que apenas o interesse político-legislativo que está nela implícito é realizável (ressarcimento dos
danos causados por acidente de viação, em contraponto com o fomento de boleias), o julgador teria de aplicar a
lei desse Estado.
24
3) O método de Ehrenzweig: De acordo com o método apresentado por Ehrenzweig, todos
os casos podem ser divididos em dois grupos de casos:
- Casos de lex certa: Os casos de lex certa são aqueles em que se aplica sempre a lei do foro.
- Casos de lex incerta: Os casos de lex incerta são aqueles em que se aplica a lei para a qual
as regras de conflitos da lei do foro apontam. Na falta de regras de conflitos ou quando elas
conduzem a um resultado insatisfatório, o julgador deveria retirar da lei do foro o interesse
político-legislativo que nela está implícito. Depois, o julgador deveria determinar as normas
materiais com as quais a situação jurídico-privada internacional concreta tem algum tipo de
contacto e que estão em conflito de aplicação umas com as outras. Por fim, o julgador deveria
escolher aquela que (melhor) realizasse o interesse político-legislativo da lei do foro.34
Nota fundamental:
Existem duas diferenças entre os métodos apresentados por Currie e por Ehrenzweig:
1) Enquanto que Currie defende a revogação integral das regras de conflitos, Ehrenzweig
tolera a existência de regras de conflitos.
2) Enquanto que Currie faz depender a aplicação de uma norma material estrangeira do
interesse político-legislativo que está nela implícito, Ehrenzweig faz depender a aplicação
de uma norma material estrangeira do interesse político-legislativo da lei do foro.

Apesar do seu mérito (preocupou-se com a justiça material e com as políticas legislativas),
o método de Ehrenzweig foi objeto de algumas críticas:
1. Violação do princípio da paridade de tratamento entre ordens jurídicas: O método de
Ehrenzweig viola o princípio da paridade de tratamento das ordens jurídicas, uma vez que o
julgador tende a preferir aplicar a lei do foro.
2. Desarmonia jurídica internacional: O método de Ehrenzweig gera desarmonia jurídica
internacional, uma vez que permite que uma mesma situação jurídico-privada internacional
possa ser apreciada em países diferentes, à luz de leis diferentes que, por sua vez, consagram
soluções diferentes.
3. DIP enquanto expediente para a realização de interesses político-legislativos do foro
através de normas materiais estrangeiras: O método de Ehrenzweig permite a aplicação de
uma norma material estrangeira, sempre que esta realize o interesse político-legislativo da lei
do foro melhor do que as normas materiais internas, algo que se considera inaceitável, uma
vez que nenhuma norma jurídica é separável da unidade em que se insere.
4. Dificuldade em se retirar o interesse político-legislativo da lei do foro: Pode não ser
possível retirar da lei do foro um interesse político-legislativo.
9.2.3 O momento legislativo
As críticas dirigidas às regras de conflitos e os contributos que as propostas metódicas
alternativas ao método conflitual apresentadas por Cavers, Currie e Ehrenzweig forneceram
implicaram a revogação integral das regras de conflitos nos EUA e a aprovação do 2º
Restatement que permite a utilização daqueles três métodos por parte do julgador.

34No caso Babcock vs. Jackson, uma vez identificado o interesse político -legislativo da lei nova-iorquina, o
julgador teria de escolher, dentre as normas materiais que tinham com a situação jurídico-internacional concreta
algum tipo de contacto e que estavam em conflito de aplicação umas com as outras, aquela que (melhor)
realizasse esse mesmo interesse político-legislativo, ou seja a norma material da lei nova-iorquina.
25
9.3 Os reflexos da Revolução Americana do Direito Internacional Privado na
remodelação do método conflitual vigente na Europa
Analisados o método da Better Law Approach de Cavers, o método da Governmental Interest
Analysis de Currie e o método de Ehrenzweig, chega-se à conclusão de que, apesar dos seus
méritos, todos eles têm defeitos que não permitem substituir o método conflitual como
método principal para resolver os problemas emergentes das situações jurídico-privadas
internacionais. No entanto, a Revolução Americana do Direito Internacional Privado teve
grandes reflexos na remodelação do método conflitual vigente na Europa que Ferrer Correia
divide em quatro vetores de análise:
1) Flexibilização do DIP: O método conflitual passou a ser flexível, na medida em que se
conferiu ao julgador um papel mais significativo na determinação da lei aplicável através dos
seguintes expedientes de flexibilização:
- Open-ended rules (ou consagração judicial do princípio da proximidade): As open-ended
rules são regras de conflitos que não têm elemento de conexão, sendo este concretizado pelo
julgador em concreto (ex. 28º, 2ª parte LN; 3º, n. 1 RI que remete para o artigo 4º, n. 1 RI –
4º, n. 2 RI que remete para o artigo 4º, n. 4 RI). Apesar de as open-ended rules terem a
vantagem de conseguir uma maior eficácia na determinação da lei aplicável, elas apresentam
a desvantagem de os sujeitos não poderem prever qual a lei com que contar (insegurança
jurídica).
- Cláusulas de exceção: As cláusulas de exceção são regras que estão integradas em regras
de conflitos e que excecionam a aplicação da lei para a qual elas apontam, permitindo que o
julgador aplique uma lei diferente daquela que o legislador indicou na regra de conflitos.

Nota fundamental:
As open-ended rules não se confundem com as cláusulas de exceção, uma vez que,
enquanto que aquelas não têm elemento de conexão, estas estão integradas em regras de
conflitos que têm elemento de conexão.
As cláusulas de exceção classificam-se em várias categorias:
1. Especiais ou gerais: A cláusula de exceção é especial quando funciona apenas para a regra
de conflitos na qual está integrada (ex. Imagine-se uma regra de conflitos, segundo a qual a
capacidade é regulada pela lei da residência habitual, salvo se o julgador entender que existe
uma mais próxima. Esta cláusula de exceção vale apenas para a regra de conflitos na qual
está integrada; é, assim, especial). A cláusula de exceção é geral quando funciona para todas
as regras de conflitos (ex. Imagine-se uma regra de conflitos, segundo a qual sempre que o
julgador entenda que existe uma lei mais próxima, pode aplicá-la. Esta cláusula de exceção
vale para todas as regras de conflitos; é, assim, geral).35
2. Formais ou materiais: A cláusula de exceção é formal quando permite ao julgador aplicar
uma lei mais próxima do que aquela que o legislador indicou na regra de conflitos (ex.
Imagine-se uma regra de conflitos, segundo a qual a responsabilidade extracontratual é
regulada pela lei do lugar da ocorrência do facto danoso, salvo se o juiz entender que existe
uma mais próxima. Esta cláusula de exceção permite ao julgador aplicar uma lei mais

35 As cláusulas de exceção gerais excecionam todas as regras de conflitos!


26
próxima daquela que o legislador indicou; é, assim, formal (8º, n. 1 RI que remete para o
artigo 8º, n. 4 RI)). A cláusula de exceção é material quando permite ao julgador aplicar
uma lei que atinja um determinado resultado em detrimento da aplicação da lei indicada pelo
legislador na regra de conflitos (ex. Imagine-se uma regra de conflitos, segundo a qual a
responsabilidade extracontratual é regulada pela lei do lugar da ocorrência do facto danoso,
salvo se o juiz entender que a lei do lugar do dano oferece uma maior proteção ao lesado.
Esta cláusula de exceção permite ao julgador aplicar uma lei que atinja um determinado
resultado em vez daquela que o legislador indicou; é, assim, material).
3. Abertas ou fechadas: A cláusula de exceção é aberta quando permite que o julgador
escolha a lei que será aplicada em detrimento da aplicação daquela que o legislador indicou
na regra de conflitos (ex. A sucessão por morte é regulada pela lei da nacionalidade do autor
da sucessão, salvo se existir uma lei mais próxima). A cláusula de exceção é fechada quando
não permite que o legislador escolha a lei que será aplicada em detrimento da aplicação
daquela que o legislador indicou na regra de conflitos (ex. A sucessão morte é regulada pela
lei da nacionalidade do autor da sucessão, salvo se a lei da sua residência for mais próxima).
2) Materialização do DIP: O método conflitual passou a preocupar-se com a justiça
material. Ao lado das regras de conflitos puramente localizadoras (indicam, dentre as leis
com as quais uma situação jurídico-privada internacional concreta tem algum tipo de contacto
e que estão em conflito de aplicação umas com as outras, aquela com a qual ela tem um
contacto mais forte), apareceram regras de conflitos de conexão material (indicam, dentre
as leis com as quais uma situação jurídico-privada internacional concreta tem algum tipo de
contacto e que estão em conflito de aplicação umas com as outras, aquela que atinge um
determinado resultado). São exemplos:
- Regras de conflitos de conexão material que utilizam o sistema de conexão múltipla
alternativa
- Regras de conflitos de conexão material que utilizam o sistema de conexão única36
3) Politização do DIP: O método conflitual passou a preocupar-se com os interesses político-
legislativos dos Estados através dos seguintes expedientes de politização:
1. Qualificação: → ver ponto 10.1
2. Adaptação: A adaptação é o expediente através do qual o julgador é autorizado a
modificar o sistema conflitual por forma a realizar os interesses político-legislativos do
Estado em concreto.37

36 O Senhor A e a Senhora B, ambos portugueses e residentes em Portugal, namoram há 20 anos e decidem ir


casar em Las Vegas. A sua capacidade é regulada à luz da lei portuguesa (49º CC) – regra de conflitos
puramente localizadora. As relações entre os cônjuges é regulada à luz da lei portuguesa (52º CC) – regra de
conflitos puramente localizadora. A forma do casamento é regulada pela lei do Estado em que o ato é celebrado,
ou seja a lei de Las Vegas (50º CC) – o legislador português não escolhe a lei de Las Vegas porque tem com a
situação jurídico-privada internacional concreta um contacto mais forte, mas antes porque visa preservar a
validade do casamento. Trata-se, portanto, de uma regra de conflitos de conexão material que utiliza o sistema
de conexão única.
37 O filho A quer saber que direitos sucessórios tem face à herança de B, seu pai biológico, português, residente
em Portugal, e de C, seu pai adotivo, marroquino, residente em Marrocos. De acordo com a regra de conflitos
consagrada no artigo 21º do Regulamento Europeu n. 650/2012, […] a lei aplicável ao conjunto da sucessão é a
lei do Estado onde o falecido tinha residência habitual no momento do óbito . Sendo assim:
27
3. Normas espacialmente autolimitadas: As normas espacialmente autolimitadas são
normas materiais que prescindem do recurso a regras de conflitos porque delimitam o seu
próprio âmbito de aplicação espacial por forma a realizar um interesse político-legislativo
fundamental. Dividem-se em duas categorias:
- Normas de aplicação necessária e imediata: As normas de aplicação necessária e
imediata (NANI) são normas materiais que prescindem do recurso a regras de conflitos
porque delimitam o seu próprio âmbito de aplicação espacial por forma a realizar um
interesse político-legislativo fundamental, de modo necessário (ou seja, aplicam-se
independentemente da regra de conflitos) e imediato (ou seja, aplicam-se antes do
funcionamento da regra de conflitos).
Nota fundamental:
As NANI aplicam-se a mais casos do que aqueles aos quais se aplica a lei para a qual a
regra de conflitos aponta, uma vez que as NANI delimitam o seu âmbito de aplicação
espacial além do âmbito de aplicação daquela lei. Por isso, as NANI também se designam
normas internacionalmente imperativas, porque delimitam o seu âmbito de aplicação de
modo imperativo (ou seja, sem se preocupar com o âmbito de aplicação da lei para a qual
a regra de conflitos aponta).

As NANI subdividem-se em:


-» Explícitas: As normas de aplicação necessária e imediata explícitas são NANI que se
autodeclaram como tais (ex. O artigo 23º do DL n. 446/85, de 25 de Outubro é uma NANI
explícita, uma vez que se traduz numa norma material que delimita o seu próprio âmbito de
aplicação espacial [aplica-se a todos os contratos que apresentem uma conexão estreita com
o território português] por forma a realizar um interesse político-legislativo fundamental
[proteção da parte mais vulnerável], de modo necessário [aplica-se independentemente da
regra de conflitos consagrada no artigo 3º, n. 1 RI] e imediato [aplica-se antes do
funcionamento da regra de conflitos consagrada no artigo 3º, n. 1 RI], e que se autodeclara
como uma NANI).
-» Implícitas: As normas de aplicação necessária e imediata implícitas são NANI que
não se autodeclaram como tais, mas a jurisprudência e a doutrina entendem que o interesse
político-legislativo fundamental que visam realizar só é realizável através da sua aplicação a
mais casos do que aqueles aos quais se aplica a lei para a qual a regra de conflitos aponta (ex.

- Quanto a B, teria de aplicar-se a lei portuguesa. À luz desta lei, A não tem direitos sucessórios face à herança
de B, uma vez que, estabelecido o vínculo adotivo entre A e C, quebra-se o vínculo de parentesco entre A e B.
Ou seja, A não tem direitos sucessórios face à herança de B, mas tê-los-ia face à herança de C.
- Quanto a C, teria de aplicar-se a lei marroquina. À luz desta lei, A não tem direitos sucessórios face à herança
de C, uma vez que o estabelecimento do vínculo adotivo não constitui direitos sucessórios. Ou seja, A não tem
direitos sucessórios face à herança de C, mas tê-los-ia face à herança de B.
→ Pelo exposto, seria de concluir que A não teria nenhuns direitos sucessórios. Através da aplicação parcial de
duas leis diferentes a duas relações jurídicas diferentes chegou-se a um resultado que não era pretendido por
nenhuma daquelas leis. Para a resolução deste tipo de casos, ter-se-ia de lançar mão do expediente da adaptação
(proposta de resolução: às duas relações jurídico-sucessórias aplicar-se-ia a lei portuguesa ou a lei marroquina).

28
O artigo 53º CRP38 e o artigo 1682º-A, n. 2 CC39 são NANI implícitas, uma vez que se
traduzem em normas materiais que delimitam o seu próprio âmbito de aplicação espacial por
forma a realizar um interesse político-legislativo fundamental, de modo necessário e
imediato, que, de acordo com a jurisprudência e a doutrina, só é realizável através da sua
aplicação a mais casos do que aqueles aos quais se aplica a lei para a qual a regra de conflitos
aponta).
Se as NANI forem do foro, o julgador do foro terá de as aplicar, uma vez que deve
obediência ao interesse político-legislativo que elas visam realizar. Se as NANI forem do
estrangeiro, coloca-se a questão de saber se o julgador do foro as poderá ou não aplicar.
Quanto a esta matéria, existem várias teses, sendo de destacar as seguintes:
- Tese do estatuto obrigacional: De acordo com a tese do estatuto obrigacional, o julgador
do foro tem de aplicar as NANI do foro e ainda as NANI estrangeiras que sejam da lex
causae (lei para a qual a regra de conflitos aponta).40

38O Senhor A, português, residente em Portugal foi trabalhar para a empresa X, com sede em New York. A e X
escolheram a lei nova-iorquina para regular o contrato de trabalho em causa. Meses mais tarde, A recebeu uma
mensagem da empresa X a informá-lo que estava despedido, coisa que é permitida à luz da lei nova-iorquina,
mas proibida à luz da lei portuguesa (53º CRP). De acordo com a regra de conflitos consagrada no artigo 8º, n.
1 RI, o contrato de trabalho é regulado pela lei escolhida pelas partes, ou seja pela lei nova -iorquina. No entanto,
de acordo com a jurisprudência e a doutrina, o artigo 53º CRP terá de ser ap licado ao caso concreto e, portanto,
a mais casos do que aqueles aos quais se aplica a lei para a qual a regra de conflitos aponta, visto que o interesse
político-legislativo fundamental que lhe subjaz só é realizável através da sua aplicação. Sendo assim, conclui-se
que o artigo 53º CRP é uma NANI implícita, uma vez que se traduz numa norma material que delimita o seu
próprio âmbito de aplicação espacial [aplica-se aos trabalhadores portugueses que residam em Portugal ou no
estrangeiro e aos trabalhadores não-portugueses que residam em Portugal] por forma a realizar um interesse
político-legislativo fundamental [proteção dos trabalhadores], de modo necessário [aplica-se
independentemente da regra de conflitos consagrada no artigo 8º, n. 1 RI] e imediato [aplica-se antes do
funcionamento da regra de conflitos consagrada no artigo 8º, n. 1 RI], que, de acordo com a jurisprudência e a
doutrina, só é realizável através da sua aplicação a mais casos do que àqueles aos quais se aplica a lei aplicável.
39 O Senhor A e a Senhora B, ambos suecos, vivem em Portugal numa casa que pertence àquele. A certa altura,
A decidiu vender a sua casa, sem informar B, coisa que é permitida à luz da lei sueca, mas proibida à luz da lei
portuguesa (1682º-A, n. 2 CC). De acordo com a regra de conflitos consagrada no artigo 52º CC, as relações
entre os cônjuges são reguladas pela lei nacional comum, ou seja pela lei sueca. No entanto, de acordo com a
jurisprudência e a doutrina, o artigo 1682º-A, n. 2 CC terá de ser aplicado ao caso concreto e, portanto, a mais
casos do que aqueles aos quais se aplica a lei para a qual a regra de conflitos aponta, visto que o interesse
político-legislativo fundamental que lhe subjaz só é realizável através da sua aplicação. Sendo assim, conclui-se
que o artigo 1682º-A, n. 2 CC é uma NANI implícita, uma vez que se traduz numa norma material que delimita
o seu próprio âmbito de aplicação espacial [aplica-se às casas de morada de família situadas em Portugal] por
forma a realizar um interesse político-legislativo fundamental [proteção das casas de morada de família], de
modo necessário [aplica-se independentemente da regra de conflitos consagrada no artigo 52º CC] e imediato
[aplica-se antes do funcionamento da regra de conflitos consagrada no artigo 52º CC], que, de acordo com a
jurisprudência e a doutrina, só é realizável através da sua aplicação a mais casos do que àqueles aos quais se
aplica a lei aplicável.
40 O Senhor A, residente na Portugal, e o Senhor B, residente em Espanha, celebraram um contrato, nos termos
do qual A se obrigou a esfolar 10 focas na Noruega para entregar a B. A e B escolheram a lei francesa para
regular o contrato entre eles celebrado. A certa altura, em Portugal, colocou-se em causa a validade deste
contrato. De acordo com a regra de conflitos consagrada no artigo 3º, n. 1 RI, o contrato é regulado pela lei
escolhida pelas partes, ou seja pela lei francesa. Sendo assim, à luz da lei franc esa, o contrato seria válido.
Acontece que na lei norueguesa, ao contrário da lei francesa, existe uma norma material que delimita o seu
próprio âmbito de aplicação espacial [aplica-se a todos os contratos que apresentem uma conexão estreita com o
território norueguês] por forma a realizar um interesse político-legislativo fundamental [proteção das focas], de
modo necessário [aplica-se independentemente da regra de conflitos consagrada no artigo 3º, n. 1 RI] e imediato
[aplica-se antes do funcionamento da regra de conflitos consagrada no artigo 3º, n. 1 RI]. Sendo assim, à luz da
29
Nota fundamental:
De acordo com a tese do estatuto obrigacional, o julgador do foro não poderá aplicar as
NANI estrangeiras que não sejam lex causae, uma vez que a sua aplicação poderia gerar
uma insegurança jurídica, pois permite que se aplique uma lei com a qual os sujeitos não
podem contar. No entanto, a tese do estatuto obrigacional apresenta o defeito de não tratar
as NANI estrangeiras como verdadeiras NANI, pois não se aplicam de modo necessário e
imediato.

- Tese da conexão especial: De acordo com a tese da conexão especial, o julgador do foro
tem de aplicar as NANI do foro, as NANI estrangeiras que sejam da lex causae e ainda as
NANI estrangeiras que sejam de leis que tenham uma conexão especial com o caso.41

Nota fundamental:
De acordo com a tese da conexão especial, o julgador do foro poderá aplicar as NANI
estrangeiras que tenham uma conexão especial com o caso, uma vez que a sua aplicação
gera harmonia jurídica internacional, pois o julgador do foro aplica a mesma lei que o
julgador do país que tem uma conexão especial com o caso aplicaria se o caso tivesse sido
colocado no respetivo foro. No entanto, a tese da conexão especial apresenta o defeito de
gerar insegurança jurídica, pois permite que se aplique uma lei com a qual os sujeitos não
podem contam.
→ Que tese seguir? Qualquer uma, exceto no domínio do Regulamento Roma I (artigo 9º):
- O n. 1 apresenta uma noção de NANI para efeitos de aplicação do Regulamento Roma I.
- Quanto às NANI do foro, o n. 2 permite que o julgador do foro as aplique sempre.
- Quanto às NANI estrangeiras, o n. 3 segue a tese da conexão especial, ainda que limitada
a uma só lei (“lei do país do cumprimento do contrato que o considere ilegal”) e com
discricionaridade do julgador do foro (“pode”).
- Normas espacialmente autolimitadas em sentido restritivo: As normas espacialmente
autolimitadas em sentido restritivo são normas materiais que prescindem do recurso a regras
de conflitos porque delimitam o seu próprio âmbito de aplicação espacial por forma a realizar
um interesse político-legislativo fundamental, mas aplicam-se a menos casos do que aqueles
aos quais se aplica a lei para a qual a regra de conflitos aponta, uma vez que as normas
espacialmente autolimitadas em sentido restritivo delimitam o seu âmbito de aplicação
espacial aquém do âmbito de aplicação daquela lei (ex. 23º EIRL).

lei norueguesa, o contrato seria inválido. Porém, uma vez que esta NANI não é do foro (portuguesa), mas antes
do estrangeiro (norueguesa), coloca-se a questão de saber se o julgador do foro a poderá ou não aplicar. De
acordo com a tese do estatuto obrigacional, a NANI norueguesa só poderá ser aplicada se for da lex causae, ou
seja da lei para a qual a regra de conflitos aponta. A regra de conflitos consagrada no artigo 3º, n. 1 RI aponta
para a aplicação da lei francesa. Logo, seguindo a tese do estatuto obrigacional, o julgador do foro não poder á
aplicar a NANI norueguesa e, portanto, o contrato seria válido.
41 Tendo em consideração o caso concreto acima descrito: De acordo com a tese da conexão especial, embora a

NANI norueguesa não seja da lex causae, ela poderá ser aplicada, uma vez que se trata de uma NANI de uma lei
que tem uma conexão especial com o caso, pois o território norueguês é o local de cumprimento do contrato.
Logo, seguindo a tese da conexão especial, o julgador do foro poderá aplicar a NANI norueguesa e, portanto, o
contrato seria inválido.
30
4) Jurisdicionalização do DIP: O método conflitual passou a ser constituído por regras que
determinam, em simultâneo, a capacidade judiciária internacional das autoridades do foro e a
lei aplicável, por forma a não ser necessário aplicar leis estrangeiras. 42
Para além dos grandes reflexos que a Revolução Americana do Direito Internacional Privado
e o método jurisdicional tiveram na remodelação do método conflitual vigente na Europa,
assistiu-se ao fenómeno da especialização da justiça conflitual que tornou as regras de
conflitos mais especializadas, permitindo um juízo mais certeiro no que diz respeito à
determinação da lei aplicável. 43
9.4 O método do Direito Internacional Privado Material
De acordo com o método do Direito Internacional Privado Material, cada Estado, em vez das
suas próprias regras de conflitos emanadas pelo respetivo legislador, deveria ter um corpo
normativo geral composto por normas materiais que regulariam as situações internas e um
corpo normativo especial composto por normas materiais que regulariam as situações
internacionais. A ideia que está na base deste método reside nos diferentes problemas que as
situações internas e as situações internacionais levantam – resolvê-los através de um único
corpo normativo, interno, seria correr o risco de chegar a soluções desadequadas. Não
obstante, constata-se que o método do Direito Internacional Privado Material não serve para
substituir o método conflitual como método principal de resolução dos problemas emergentes
das situações jurídico-privadas internacionais 44, devendo antes servir-lhe de método
complementar (ex. O artigo 2223º CC é uma norma material (dá solução ao caso) especial
(regula uma única situação jurídico-privada internacional)).
9.5 O método do Direito Internacional Privado português
Em Portugal, vigora um pluralismo metódico, ou seja utilizam-se, em simultâneo, vários
métodos de Direito Internacional Privado:
1) Método principal:
Método conflitual remodelado pelos reflexos da Revolução Americana do Direito
Internacional Privado, pelo método jurisdicional e pelo fenómeno de especialização da justiça
conflitual
2) Métodos complementares:
- Método das normas espacialmente autolimitadas
- Método do Direito Privado uniforme (→ ver ponto 7.5)
- Método do Direito Internacional Privado Material

42 A jurisdicionalização do DIP não é um reflexo da Revolução Americana do Direito Internacional Privado,


mas reflete antes uma aproximação do método conflitual ao método jurisdicional !
43 Comparando o Código Civil com o Regulamento Roma I, constata-se que, enquanto que naquele as regras de

conflitos consagradas nos artigos 41º e 42º CC funcionam para a generalidade dos contratos, neste existem
várias regras de conflitos e cada uma delas funciona para uma categoria específica de contratos.
44 O Senhor A, português, casou com a Senhora B, brasileira, em Portugal. À luz de que corpo normativo

deveriam ser reguladas as relações entre os cônjuges se o Direito Internacional Privado português utilizasse
como método principal de resolução do conflito de leis o método do Direito Internacional Privado Material?
31
10. Problemas específicos que o método conflitual remodelado suscita
10.1 O problema da qualificação
O problema da qualificação desdobra-se em dois subproblemas:
- O problema da interpretação do conceito-quadro: O problema da interpretação do conceito-
quadro reside no facto de as regras de conflitos utilizarem conceitos técnico-jurídicos, que
variam de ordem jurídica para ordem jurídica, para delimitar o respetivo âmbito de aplicação.
Coloca-se a questão de saber como interpretar o conceito-quadro da regra de conflitos.45
- O problema da qualificação em sentido estrito: O problema da qualificação em sentido
estrito reside no facto de as regras de conflitos apontarem para a aplicação de uma
determinada lei (lex causae) cujas normas materiais poderão não ser subsumíveis no
respetivo conceito-quadro. Coloca-se a questão de saber que normas materiais da lex causae
devem ser chamadas para dar solução ao caso.46
10.1.1 O método de qualificação lege fori e o método de qualificação lege causae
Tradicionalmente, o problema da qualificação foi sendo resolvido através de dois métodos:
- Qualificação lege fori: De acordo com o método de qualificação à luz da lei do foro,
originária de Bartin, mas modernizada ao longo do século XX por Ago e Robertson, é a lei do
foro que deve resolver o problema da qualificação, resolução esta que se divide em dois
momentos:
1. Momento da qualificação primária: Primeiro, a lei do foro deve apreciar a situação
jurídico-privada internacional concreta como se de uma situação puramente interna se
tratasse, qualificar os factos – ou seja, determinar que tipo de problema suscitam – à luz da lei
material do foro (lex materialis fori) e determinar a regra de conflitos a utilizar que aponta
para a aplicação da lex causae.
2. Momento da qualificação secundária: Segundo, a lei do foro deve qualificar as normas
materiais da lex causae – ou seja, determinar que normas materiais devem ser chamadas para
dar solução ao caso. A este respeito, existe uma divergência na doutrina:
- Ago posiciona-se a favor de um chamamento indiscriminado, i.e. deve aplicar-se a
totalidade da ordem jurídica da lex causae.
- Robertson posiciona-se a favor de um chamamento circunscrito, i.e. deve aplicar-se
apenas as normas materiais da lex causae que sejam subsumíveis no conceito-quadro da regra
de conflitos do foro.
O método de qualificação lege fori apresenta uma vantagem e quatro desvantagens:
1. Respeito pelas opções conflituais do legislador do foro: O método de qualificação lege fori
favorece a interpretação do conceito-quadro das regras de conflitos emanadas pelo legislador
do foro de acordo com a própria lei do foro e, consequentemente, respeita as opções
conflituais do legislador do foro.

45 Exemplo: O Senhor A e a Senhora B, ambos portugueses, residentes em Israel, dissolveram o seu casamento
através da celebração de um contrato, sem intervenção de qualquer autoridade pública. Em Portugal, coloca-se
em causa a validade do contrato que dissolveu o seu casamento. Poderá ser utilizada a regra de conflitos
consagrada no artigo 55º CC?
46 Exemplo: O Senhor A e o Senhor B, ambos portugueses, residentes em Portugal, celebraram um contrato de

compra e venda sobre um prédio situado nos Países-Baixos e escolheram a lei portuguesa para regular tal
contrato. Surgiram-lhes duas questões: transmissão do direito real (408º CC e § Xº BW) e despesas do contrato
(878º CC e § Yº BW). Que normas materiais da lex causae deverão ser chamadas para dar solução ao caso?
32
1. Desarmonia jurídica internacional: O método de qualificação lege fori gera desarmonia
jurídica internacional, uma vez que as várias ordens jurídicas com as quais a situação
jurídico-privada internacional concreta tem algum tipo de contacto qualificam os factos de
maneira diferente e as suas normas materiais consagram soluções diferentes.
2. Violação do princípio da paridade de tratamento das ordens jurídicas: O método de
qualificação lege fori viola o princípio da paridade de tratamento das ordens jurídicas, uma
vez que, embora existam várias ordens jurídicas com as quais a situação jurídico-privada
internacional concreta tem algum tipo de contacto, só toma em consideração a lei do foro.
3. Imprestabilidade em caso de instituto desconhecido: O método de qualificação lege fori
mostra-se imprestável para resolver o problema da qualificação quando a lei do foro se
confronta com um instituto que lhe é desconhecido.47
4. Desnecessidade da qualificação primária: O primeiro momento do método de qualificação
lege fori é desnecessário, uma vez que as regras de conflitos do foro indicam a lex causae.
- Qualificação lege causae: De acordo com o método de qualificação à luz da lex causae, é a
lex causae (lei para a qual a regra de conflitos do foro aponta) que deve resolver o problema
da qualificação. Portanto, é a lex causae que deve qualificar, por um lado, os factos – ou seja,
determinar que tipo de problema suscitam – e, por outro lado, as normas materiais – ou seja,
determinar que normas materiais devem ser chamadas para dar solução ao caso.
O método de qualificação lege causae apresenta três desvantagens:
1. Conflitos de qualificações: O método de qualificação lege causae pode gerar conflitos
positivos e negativos de qualificações.48
2. Desrespeito pelas opções conflituais do legislador do foro: O método de qualificação lege
causae favorece a interpretação do conceito-quadro das regras de conflitos emanadas pelo
legislador do foro de acordo com a lex causae e, consequentemente, desrespeita as opções
conflituais do legislador do foro.
3. Incoerência: O método de qualificação da lege causae determina a lex causae através da
lex causae.
10.1.2 O método português de qualificação
Pelo exposto, conclui-se que tanto o método de qualificação lege fori, como o método de
qualificação lege causae apresentam vários defeitos. Apesar disso, tendo em consideração
que o problema da qualificação é tido como um problema metodológico, cabe ao julgador
optar pelo método que mais lhe aprouver para resolver o problema em questão. Em Portugal,
todavia, existe um método de qualificação próprio, desenhado por Ferrer Correia, que reúne
consenso doutrinal e que, por isso, o legislador decidiu consagrá-lo no artigo 15º CC: o
método português de qualificação, que divide a qualificação em dois subproblemas:

47 O Senhor A, inglês, residente em Portugal, constitui um trust sobre um imóvel situado em Portugal. Coloca-se
a questão de saber à luz de que lei deve ser apreciado o trust. De acordo com o método de qualificação lege fori,
não seria possível resolver o problema emergente desta situação jurídico-privada internacional, uma vez que a
lei do foro (lei portuguesa) desconhece o instituto do trust.
48 Esta desvantagem não se coloca no método da qualificação lege fori, uma vez que este método, ao contrário

do método de qualificação lege causae, recorre à utilização de uma única regra de conflitos!
33
Nota fundamental:
O método português de qualificação que consta do artigo 15º CC é obrigatório quando o
julgador português recorre à utilização de regras de conflitos de fonte interna e
facultativo quando recorre à utilização de regras de conflitos de fonte europeia ou
internacional. Nestes dois últimos casos, o julgador português poderá utilizar o método de
qualificação lege fori ou o método de qualificação lege causae, sendo que aquele método
é proibido quando se recorre à utilização de regras de conflitos de fonte europeia!

- Problema do critério da qualificação ou interpretação do conceito-quadro: O problema do


critério da qualificação ou da interpretação do conceito-quadro reside no facto de as regras de
conflitos utilizarem conceitos técnico-jurídicos, que variam de ordem jurídica para ordem
jurídica, para delimitar o respetivo âmbito de aplicação. Coloca-se a questão de saber como
interpretar o conceito-quadro da regra de conflitos. De acordo com o método português de
qualificação, deve interpretar-se o conceito-quadro à luz da lex formalis fori, i.e. à luz do
Direito Internacional Privado, de forma teleológica (ou seja, tendo em consideração as
finalidades que o legislador do foro teve em vista aquando da emanação da regra de conflitos)
e autónoma (ou seja, independentemente da lex materialis fori).49
- Problema do objeto da qualificação ou da qualificação em sentido estrito: O problema do
objeto da qualificação ou da qualificação em sentido estrito reside no facto de as regras de
conflitos apontarem para a aplicação de uma determinada lei (lex causae) cujas normas
materiais poderão não ser subsumíveis no respetivo conceito-quadro. Coloca-se a questão de
saber que normas materiais da lex causae deverão ser chamadas para dar solução ao caso. De
acordo com o método português de aplicação, deve aplicar-se apenas as normas materiais da
lex causae que, pelo seu conteúdo e pela função que têm nessa lei, sejam subsumíveis no
conceito-quadro da regra de conflitos que aponta para a sua aplicação (chamamento
circunscrito).50
Nota fundamental:
A qualificação é um expediente de politização, uma vez que se preocupa com o interesse
político-legislativo que está subjacente às normas materiais da lex causae.

49 O Senhor A e a Senhora B, portugueses, residentes em Israel, dissolveram o seu casamento através da


celebração de um contrato, sem intervenção de qualquer autoridade pública. Em Portugal, coloca -se em causa a
validade desse contrato. Tratando-se de um problema emergente de uma situação jurídico-privada internacional,
para o qual o órgão jurisdicional português é internacionalmente competente, dever -se-á determinar à luz de que
lei se deve apurar a validade do contrato que dissolveu o seu casamento. Na lei portuguesa, não existe nenhuma
regra de conflitos cujo conceito-quadro seja “divórcio através da celebração de contrato”. Poderá ser utilizada a
regra de conflitos consagrada no artigo 55º CC? De acordo com o método português de qualificação, ter-se-á de
interpretar “divórcio” à luz da lex formalis fori, de forma teleológica e autónoma: Quando o legislador do foro
emanou a regra de conflitos consagrada no artigo 55º CC teve em vista a resolução de problemas emergentes das
situações jurídico-privadas internacionais que envolvessem uma dissolução do casamento entre cônjuges vivos,
fosse por via do divórcio, fosse por via de outro instituto que lhe seja afim. Sendo assim, verifica-se que o
conceito de “divórcio” para o Direito Internacional Privado é mais abrangente do que o conceito de “divórcio”
para o Direito Privado material, uma vez que, enquanto que à luz da lex materialis fori, o conceito de “divórcio”
circunscreve-se apenas aos divórcios à luz da lei portuguesa, à luz da lex formalis fori, o conceito de “divórcio”
abrange os divórcios à luz da lei portuguesa e todos os institutos que lhe são afins.
→ Pelo exposto, poder-se-á utilizar a regra de conflitos consagrada no artigo 55º CC que aponta para a
aplicação da lei nacional comum dos cônjuges, ou seja a lei portuguesa ( lex causae).
50 O Senhor A e o Senhor B, ambos portugueses, residentes em Portugal, celebraram um contrato de compra e

venda sobre um prédio situado nos Países-Baixos e escolheram a lei portuguesa para regular tal contrato.
34
10.1.3 Os conflitos positivos e negativos de qualificações
Apesar de o método português de qualificação sanar alguns dos defeitos que tanto o método
de qualificação lege fori, como o método de qualificação lege causae apresentam, a verdade é
que, pelo facto de o julgador português recorrer à utilização de várias regras de conflitos que
apontam para a aplicação parcial de normas materiais de leis diferentes a questões jurídicas
diferentes51, podem surgir conflitos positivos e negativos de qualificações:
- Conflito positivo de qualificações: O conflito positivo de qualificações caracteriza-se pela
utilização de várias regras de conflitos que apontam para a aplicação parcial de normas
materiais de leis diferentes a questões jurídicas diferentes, normas materiais essas que
consagram soluções incompatíveis entre si.
- Conflito negativo de qualificações: O conflito negativo de qualificações caracteriza-se
pela utilização de várias regras de conflitos que apontam para a aplicação parcial de normas
materiais de leis diferentes a questões jurídicas diferentes, normas materiais essas que não
consagram soluções atinentes à natureza da questão jurídica pela qual são chamadas.
Ao contrário daquilo que acontece no que diz respeito ao método de qualificação, o legislador
não consagra nenhuma solução para resolver os conflitos de qualificações, uma vez que não
existe consenso doutrinal. Sendo assim, ter-se-á de recorrer à doutrina e à jurisprudência:
Para os conflitos positivos de qualificações, a jurisprudência segue a proposta de Ferrer
Correia, segundo a qual o julgador deve começar por tentar compatibilizar as normas

Surgiram-lhes duas questões: uma atinente à transmissão do direito real (408º CC e § Xº BW), a outra atinente
às despesas do contrato (878º CC e § Yº BW). Que normas materiais deverão ser chamadas para dar solução ao
caso? Foram mobilizadas duas regras de conflitos:
1) 3º RI (obrigações contratuais | escolha das partes) → lei portuguesa (408º CC e 878º CC)
2) 46º CC (regime da posse, propriedade e demais direitos reais | local) → lei neerlandesa (§ Xº BW e § Yº BW)
De acordo com o método português de qualificação, ter-se-á de aplicar as normas materiais das lex causae que,
pelo seu conteúdo e pela função que têm nessa lei, integram o regime do instituto visado na respetiva regra de
conflitos. Sendo assim:
- 408º CC: Uma vez que este artigo consagra o princípio da consensualidade (conteúdo) e tem em vista a
facilidade do comércio jurídico (função), é subsumível no conceito-quadro da regra de conflitos 2). Em matéria
de regime da posse, propriedade e demais direitos reais, a regra de conflitos 2) aponta para a aplicação da lei
neerlandesa. Sendo assim, como o artigo 408º CC não é uma norma material neerlandesa, não se aplica.
- § Xº BW: Uma vez que este artigo estabelece o regime de transmissão dos direitos reais sobre imóveis
(conteúdo) e tem em vista a segurança jurídica (função), é subsumível no conceito-quadro da regra de conflitos
2) Em matéria de regime da posse, propriedade e demais direitos reais, a regra de conflitos 2) aponta para a
aplicação da lei neerlandesa. Sendo assim, como o § Xº BW é uma norma material neerlandesa, aplica-se.
- 878º CC: Uma vez que este artigo estabelece o regime das despesas dos contratos de compra e venda
(conteúdo) e tem em vista a perfeição do negócio (função), é subsumível no conceito -quadro da regra de
conflitos 1). Em matéria de obrigações contratuais, a regra de conflitos 1) aponta para a aplicação da lei
portuguesa. Sendo assim, como o artigo 878º CC é uma norma material portuguesa, aplica-se.
- § Yº BW: Uma vez que este artigo estabelece o regime das despesas dos contratos de compra e venda
(conteúdo) e tem em vista a equidade (função), é subsumível no conceito -quadro da regra de conflitos 1). Em
matéria de obrigações contratuais, a regra de conflitos 1) aponta para a aplicação da lei portuguesa. Sendo
assim, como o § Yº BW é uma norma material neerlandesa, não se aplica.
→ Pelo exposto, poder-se-á concluir que o problema emergente da situação jurídico-privada internacional
concreta será resolvido recorrendo à utilização de várias regras de conflitos que apontam para a aplicação
parcial de normas materiais de leis diferentes a questões jurídicas diferentes: a questão atinente à transmissão do
direito real deverá ser regulada pela lei neerlandesa (§ Xº BW), enquanto que a questão atinente às despesas do
contrato de compra e venda deverá ser regulada pela lei portuguesa (878º CC).
51 Esta desvantagem coloca-se igualmente no método de qualificação lege causae, mas não se coloca no método

de qualificação lege fori!


35
materiais de modo a que elas não conflituem. Não sendo tal possível, terá de estabelecer uma
relação de hierarquia entre regras de conflitos. A este respeito, Ferrer Correia propõe três
critérios de hierarquização:
1) Nos conflitos entre uma qualificação “substância” e uma qualificação “forma”,
prevalece aquela. Entende-se que assim o seja, uma vez que, por um lado, a lei para a qual a
regra de conflitos cujo conceito-quadro é “substância” aponta tem com a situação jurídico-
privada internacional concreta um contacto mais forte do que a lei para a qual a regra de
conflitos cujo conceito-quadro é “forma” aponta e, por outro lado, existem dados normativos
que revelam ter sido esta a opção do legislador conflitual (ex. De acordo com o artigo 65º, n.
2 CC, se a lei pessoal do autor da sucessão […] exigir, sob pena de nulidade ou ineficácia, a
observância de determinada forma, […] será a exigência respeitada).52
2) Nos conflitos entre uma qualificação “real” (46º CC) e uma qualificação “pessoal” (25º
CC), prevalece aquela, uma vez que a lei para a qual a regra de conflitos cujo conceito-
quadro é “real” aponta está em melhores condições para garantir o acatamento dos seus
preceitos, em respeito pelo princípio da efetividade ou da melhor competência.53

52 O Senhor A e a Senhora B, ambos alemães, casaram na Grécia. Na Alemanha, surgiram-lhes várias questões
atinentes à substância e à forma do casamento. Foram mobilizadas duas regras de conflitos:
1) § Xº BGB (substância do casamento | nacionalidade de cada nubente) → lei alemã. Na lei alemã, existe uma
norma material, segundo a qual o consentimento só é válido se prestado perante uma autoridade pública.
2) § Yº BGB (forma do casamento | lei do Estado em que o casamento foi celebrado) → lei grega. Na lei grega,
existe uma norma material, segundo a qual o casamento deve ser celebrado perante um sacerdote.
De acordo com o método português de qualificação, ter-se-á de aplicar as normas materiais das lex causae que,
pelo seu conteúdo e pela função que têm nessa lei, integram o regime do instituto visado na respetiva regra de
conflitos. Sendo assim:
- A norma alemã é, pelo seu conteúdo (regime relativo ao consentimento) e pela função (liberdade de decisão)
que tem na lei alemã, subsumível no conceito-quadro da regra de conflitos 1) que aponta para a aplicação da lei
alemã. Sendo assim, como se trata de uma norma material alemã, aplica-se.
- A norma grega é, pelo seu conteúdo (regime relativo à forma) e pela função (solenidade do ato) que tem na lei
grega, subsumível no conceito-quadro da regra de conflitos 2) que aponta para a aplicação da lei grega. Sendo
assim, como se trata de uma norma material grega, aplica-se.
→ Tratando-se de um conflito positivo de qualificações, uma vez que se recorre à utilização de várias regras de
conflitos que apontam para a aplicação parcial de normas materiais de leis diferentes a questões jurídicas
diferentes e que consagram soluções incompatíveis, de acordo com Ferrer Correia, o julgador deve tentar
compatibilizar as normas materiais de modo a que não conflituem. Não sendo tal possível, terá de estabelecer
uma relação de hierarquização entre as regras de conflitos com base nos critérios por ele propostos. Neste caso,
dado que a qualificação “substância” prevalece sobre a qualificação “forma”, dever -se-á utilizar a regra de
conflitos consagrada no § Xº BGB que aponta para a aplicação da lei alemã.
53 O Senhor A, português, residente em Portugal, morreu sem sucessores, nem testamento. No entanto, deixou
um prédio situado na Inglaterra. Foram mobilizadas duas regras de conflitos:
1) 62º CC (sucessão por morte | nacionalidade do autor da sucessão) → lei portuguesa. Na lei portuguesa, existe
uma norma material, segundo a qual o Estado pode ser chamado para a sucessão.
2) 46º CC (regime da posse, propriedade e demais direitos reais | local da situação da coisa) → lei britânica. Na
lei britânica, existe uma norma material, segundo a qual existe um direito real de ocupação pela Coroa.
De acordo com o método português de qualificação, ter-se-á de aplicar as normas materiais das lex causae que,
pelo seu conteúdo e pela função que têm nessa lei, integram o regime do instituto visado na respetiva regra de
conflitos. Sendo assim:
- A norma portuguesa é, pelo seu conteúdo e pela função que tem na lei portuguesa, subsumível no conceito-
quadro da regra de conflitos 1) que aponta para a aplicação da lei portuguesa. Sendo assim, como se trata de
uma norma material portuguesa, aplica-se.
- A norma britânica é, pelo seu conteúdo e pela função que tem na lei britânica, subsumível no conceito-quadro
da regra de conflitos 2) que aponta para a aplicação da lei britânica. Sendo assim, como se trata de uma norma
material britânica, aplica-se.
→ Tratando-se de um conflito positivo de qualificações, uma vez que se recorre à utilização de várias regras de
36
3) Em matéria de proteção do cônjuge sobrevivo, os conflitos entre uma qualificação
“regime matrimonial” e uma qualificação “regime sucessório” levantam um problema
distinto daquele que até aqui se suscitou. Trata-se de saber se as leis para as quais as regras de
conflitos cujos conceitos-quadro são “regime matrimonial” e “regime sucessório” apontam
podem ou não ser aplicadas cumulativamente. Ferrer Correia, na esteira de Kahn, entende
que, uma vez que a aplicação cumulativa das duas leis não conduziria a um resultado
razoável, pois a aplicação de qualquer uma das normas materiais realiza o fim a que ambas se
destinam (proteção do cônjuge sobrevivo), só se deve aplicar uma lei, nomeadamente aquela
para a qual a regra de conflitos que funcionar cronologicamente primeiro aponta e que, em
regra, será a lei para a qual a regra de conflitos cujo conceito-quadro é “regime matrimonial”
aponta.54

conflitos que apontam para a aplicação parcial de normas materiais de leis diferentes a questões jurídicas
diferentes e que consagram soluções incompatíveis, de acordo com Ferrer Correia , o julgador deve tentar
compatibilizar as normas materiais de modo a que não conflituem. Não sendo tal possível, terá de estabelecer
uma relação de hierarquização entre as regras de conflitos com base nos critérios por ele propostos. Neste caso,
dado que a qualificação “real” prevalece sobre a qualificação “pessoal”, dever-se-á utilizar a regra de conflitos
consagrada no artigo 46º CC que aponta para a aplicação da lei britânica.
54 O Senhor A e a Senhora B, ambos suecos, casaram na Suécia e adquiriram, anos mais tarde, a nacionalidade

britânica. A morreu. Coloca-se a questão de saber que direitos poderá B fazer valer. Foram mobilizadas duas
regras de conflitos:
1) 53º CC (substância e efeitos das convenções antenupciais e regime de bens | nacionalidade comum) → lei
sueca. Na lei sueca, existe uma norma material, segundo a qual, enquanto que na constância do matrimónio
vigora o regime de separação de bens, no momento da morte de um dos cônjuges os bens próprios do casal
constituem-se em património comum e metade fica para o cônjuge sobrevivo. Sendo assim, o cônjuge sobrevivo
não é herdeiro.
2) 62º CC (sucessão por morte | nacionalidade do autor da sucessão) → lei britânica. Na lei britânica, existe uma
norma material, segundo a qual, embora vigore na constância do matrimónio o regime de separação de bens, no
momento da morte de um dos cônjuges o cônjuge sobrevivo herda 75% d a herança do ex-cônjuge.
De acordo com o método português de qualificação, ter-se-á de aplicar as normas materiais das lex causae que,
pelo seu conteúdo e pela função que têm nessa lei, integram o regime do instituto visado na respetiva regra de
conflitos. Sendo assim:
- A norma sueca é, pelo seu conteúdo e pela função que tem na lei sueca, subsumível no conceito -quadro da
regra de conflitos 1) que aponta para a aplicação da lei sueca. Sendo assim, como se trata de uma norma
material sueca, aplica-se.
- A norma britânica é, pelo seu conteúdo e pela função que tem na lei britânica, subsumível no conceito -quadro
da regra de conflitos 2) que aponta para a aplicação da lei britânica. Sendo assim, como se trata de uma norma
material britânica, aplica-se.
→ Pelo exposto, poder-se-á concluir que o problema emergente da situação jurídico-privada internacional
concreta será resolvido recorrendo à utilização de várias regras de conflitos que apontam para a aplicação
parcial de normas materiais de leis diferentes a questões jurídicas diferentes: a questão atinente à substância e
aos efeitos das convenções antenupciais e ao regime de bens deverá ser regulada pela lei sueca (1/2 do
património comum), enquanto que a questão atinente à sucessão por morte deverá ser regulada pela lei britânica
(75% dos bens do ex-cônjuge). Coloca-se, então, a questão de saber se B poderá cumular as duas pretensões.
Tratando-se de um conflito positivo de qualificações, uma vez que se recorre à utilização de várias regras de
conflitos que apontam para a aplicação parcial de normas materiais de leis diferentes a questões jurídicas
diferentes e que consagram soluções incompatíveis, de acordo com Ferrer Correia, o julgador deve tentar
compatibilizar as normas materiais de modo a que não conflituem. Não sendo tal possível, terá de escolher entre
regras de conflitos com base nos critérios por ele propostos. Neste caso, Ferrer Correia, na esteira de Kahn,
entende que, uma vez que a cumulação das duas leis não conduziria a um resultado razoável, pois a aplicação de
qualquer uma das normas materiais realiza o fim a que ambas se destinam – a proteção do cônjuge sobrevivo –,
só se deve aplicar uma lei, nomeadamente aquela que funcionar cronologicamente primeiro . Neste caso, dado
que a qualificação “regime sucessório” funcionou cronologicamente primeiro (pois A morreu e só depois mudou
o regime de bens do casal), dever-se-á utilizar a regra de conflitos consagrada no artigo 62º CC que aponta para
a aplicação da lei britânica.

37
Se, ainda assim, não for possível estabelecer uma relação de hierarquia entre regras de
conflitos, ter-se-á de resolver o conflito positivo de qualificações como se de uma antinomia
dentro de um mesmo sistema jurídico se tratasse e mobilizar as normas materiais que a
resolvem, com uma exceção: o princípio segundo o qual a lei mais recente deve afastar a lei
mais antiga não deve ser utilizado, uma vez que, trabalhando-se com leis diferentes, não se
pode presumir que a mais recente seja melhor do que a mais antiga.55
Para os conflitos negativos de qualificações, a jurisprudência convoca o instituto da
adaptação (expediente através do qual o julgador é autorizado a modificar o sistema
conflitual), existindo, todavia, uma divergência na doutrina quanto ao objeto da adaptação:
- Doutrina de Coimbra: De acordo com a doutrina de Coimbra, o julgador deve estabelecer
uma relação de hierarquia entre regras de conflitos, socorrendo-se dos critérios de
hierarquização propostos por Ferrer Correia. A regra de conflitos hierarquicamente superior
apontará para a aplicação de uma determinada lei cujas normas materiais não consagram
soluções atinentes à natureza da questão jurídica pela qual são chamadas e, por essa razão,
devem ser adaptadas, ficcionando-se que tais normas materiais consagram soluções atinentes
à natureza da questão jurídica pela qual são chamadas.
- Doutrina de Lisboa: De acordo com a doutrina de Lisboa, o julgador deve estabelecer uma
relação de hierarquia entre regras de conflitos, socorrendo-se dos critérios de hierarquização
propostos por Ferrer Correia. A regra de conflitos hierarquicamente superior apontará para a
aplicação de uma determinada lei cujas normas materiais não consagram soluções atinentes à
natureza da questão jurídica pela qual são chamadas e, por essa razão, deve tal regra de
conflitos ser adaptada, ficcionando-se que aponta para uma lei cujas normas materiais
consagram soluções atinentes à natureza da questão jurídica pela qual são chamadas.
10.2 O problema dos conflitos de sistemas de DIP
Como foi mencionado, no Direito Internacional Português, as regras de conflitos cumprem
uma função bilateral, determinando o legislador do foro a lei aplicável, que tanto pode ser a
lei do foro, como uma lei estrangeira, sem se preocupar em saber se essa mesma lei se
considera, à luz do seu próprio sistema de DIP, aplicável. Tal levanta dois tipos de

55 O Senhor A e a Senhora B, ambos alemães, prometeram-se mutuamente em casamento. Algum tempo depois,
A quebrou a promessa de casamento em França. Em Portugal, suscita-se a questão de saber que direitos poderá
B fazer valer. Foram mobilizadas duas regras de conflitos:
- 55º CC (relações entre os cônjuges | nacionalidade comum dos cônjuges) → lei alemã. Na lei alemã, existe
uma norma material, segundo a qual não há qualquer indemnização em caso de ruptura da promessa de
casamento.
- 45º CC (responsabilidade extracontratual | lugar da ocorrência do facto danoso) → lei francesa. Na lei
francesa, apesar de não existir nenhuma norma material que verse sobre a ruptura da promessa de casamento,
existe um regime geral de responsabilidade civil extracontratual aplicável a esses casos e que segundo o qual há
direito a indemnização.
→ Tratando-se de um conflito positivo de qualificações, uma vez que se recorre à utilização de várias regras de
conflitos que apontam para a aplicação parcial de normas materiais de leis diferentes a questões jurídicas
diferentes e que consagram soluções incompatíveis, de acordo com Ferrer Correia, o julgador deve tentar
compatibilizar as normas materiais de modo a que não conflituem. Não sendo tal possível, terá de escolher entre
regras de conflitos com base nos critérios por ele propostos. Também não sendo tal possível, terá de resolver o
conflito como se de uma antinomia dentro de um mesmo sistema jurídico se tratasse e mobilizar as normas
materiais que a resolvem. Sendo assim, uma vez que a norma material alemã é especial face à norma material
francesa que é geral (a lei especial derroga a lei geral – 7º, n. 3 CC), deve prevalecer aquela.

38
problemas:
- Conflito negativo de sistemas: O conflito negativo de sistemas ocorre quando a regra de
conflitos da lei do foro aponta para a aplicação de uma determinada lei estrangeira que, à luz
do seu próprio sistema de DIP, não é aplicável para resolver o problema emergente de uma
situação jurídico-privada internacional concreta, apontando para a aplicação de outra lei. 56
- Conflito positivo de sistemas: O conflito positivo de sistemas ocorre quando as regras de
conflitos de leis diferentes apontam para a aplicação de leis diferentes que, à luz do respetivo
sistema de DIP, são aplicáveis para resolver o problema emergente de uma situação jurídico-
privada internacional concreta.57
Nota fundamental:
Os conflitos negativos e positivos de sistemas são alvo das mesmas três críticas:
- Instabilidade das situações jurídico-privadas internacionais: Ambos fazem com que o
estatuto dos sujeitos varie sempre que estes cruzam fronteiras.
- Insegurança jurídica: Ambos permitem que se aplique uma lei com a qual os sujeitos
não podem contar.
- Desarmonia jurídica internacional: Ambos permitem que uma mesma situação jurídico-
privada internacional possa ser apreciada em países diferentes, à luz de leis diferentes
que, por sua vez, consagram soluções diferentes.

10.2.1 Os conflitos negativos de sistemas


O conflito negativo de sistemas, que ocorre quando a regra de conflitos da lei do foro aponta
para a aplicação de uma determinada lei estrangeira que, à luz do seu próprio sistema de DIP,
não é aplicável para resolver o problema emergente de uma situação jurídico-privada
internacional concreta, apontando a sua regra de conflitos para a aplicação de outra lei, coloca
a questão de saber se deve aplicar-se as normas materiais da lex causae ou as normas
materiais da lei para a qual a regra de conflitos da lex causae aponta. É o chamado problema
do reenvio.
A este propósito, importa estabelecer uma distinção entre quatro tipos de conflitos negativos
de sistemas:
- Retorno simples: O retorno simples ocorre quando a regra de conflitos da lei do foro (L1)
aponta para a aplicação de uma determinada lei estrangeira (L2) que, à luz do seu próprio
sistema de DIP, não é aplicável para resolver o problema emergente de uma situação jurídico-
privada internacional concreta, apontando a sua regra de conflitos para a aplicação da lei do
foro (L1).58
- Retorno indireto: O retorno indireto ocorre quando a regra de conflitos da lei do foro (L1)
aponta para a aplicação de uma determinada lei estrangeira (L2) que, à luz do seu próprio

56 Exemplo: O Senhor A, brasileiro, residente em Portugal, celebrou um determinado negócio. Tanto em


Portugal, como no Brasil, colocou-se a questão de saber se A tinha capacidade para celebrar o dito negócio. A
regra de conflitos brasileira aponta para a aplicação da lei portuguesa cuja regra de conflitos aponta, todavia,
para a aplicação da lei brasileira.
57 Exemplo: O Senhor B, português, residente no Brasil, celebrou um testamento no Brasil. No Brasil, colocou -

se a questão de saber se B tinha capacidade para celebrar o dito testamento. A regra de conflitos brasileira
aponta para a aplicação da lei brasileira, à luz da qual B é capaz. Acontece que B foi passar férias a Portugal,
onde se colocou novamente a questão de saber se B tinha capacidade para celebrar o dito testamento. A regra de
conflitos portuguesa aponta para a aplicação da lei portuguesa, à luz da qual B é incapaz.
58 L1 → L2 | L2 → L1

39
sistema de DIP, não é aplicável para resolver o problema emergente de uma situação jurídico-
privada internacional concreta, sendo que a sua regra de conflitos aponta para a aplicação de
uma outra lei (L3) que, à luz do seu próprio sistema de DIP, não se considera aplicável,
apontando a sua regra de conflitos para a aplicação da lei do foro (L1). 59
- Transmissão de competência simples: A transmissão de competência simples ocorre
quando a regra de conflitos da lei do foro (L1) aponta para a aplicação de uma determinada
lei estrangeira (L2) que, à luz do seu próprio sistema de DIP, não é aplicável para resolver o
problema emergente de uma situação jurídico-privada internacional concreta, sendo que a sua
regra de conflitos aponta para a aplicação de uma outra lei (L3) que se considera apl icável.60
- Transmissão de competência em cadeia: A transmissão de competência em cadeia ocorre
quando a regra de conflitos da lei do foro (L1) aponta para a aplicação de uma determinada
lei estrangeira (L2) que, à luz do seu próprio sistema de DIP, não é aplicável para resolver o
problema emergente de uma situação jurídico-privada internacional concreta, sendo que a sua
regra de conflitos aponta para a aplicação de uma outra lei (L3) que, à luz do seu próprio
sistema de DIP, não se considera aplicável, apontando a sua regra de conflitos para a
aplicação de uma outra lei (L4) que se considera aplicável. 61
Em matéria de reenvio, existem três posições dogmáticas que versam sobre a referência da
regra de conflitos da lei do foro a uma determinada lei estrangeira e que, portanto, refletem
posições diferentes no que diz respeito à aceitação do reenvio:
- Teoria da referência material: De acordo com a teoria da referência material, a referência
da regra de conflitos da lei do foro a uma determinada lei estrangeira circunscreve-se à
aplicação das suas normas materiais, desconsiderando as suas regras de conflitos. 62
- Teoria da referência global: A teoria da referência global subdivide-se em três teses:
1. Tese da devolução simples: De acordo com a tese da devolução simples, a referência da
regra de conflitos da lei do foro a uma determinada lei estrangeira abrange, quer as suas
normas materiais, quer as suas regras de conflitos. Sendo assim, o julgador do foro terá de
aplicar a lei para a qual a regra de conflitos da lei para a qual aponta a regra de conflitos da
lei do foro aponta.63

59 L1 → L2 → L3 | L3 → L1
60 L1 → L2 → L3
61 L1 → L2 → L3 → L4

62 Argumentos a favor da teoria da referência material: A teoria da referência material favorece a aplicação da lei

que o legislador do foro entendeu como a que tem com uma situação jurídico-privada internacional concreta um
contacto mais forte.
Argumentos contra a teoria da referência material: A teoria da referência material gera desarmonia jurídica
internacional, uma vez que permite que uma mesma situação jurídico-privada internacional possa ser apreciada
em países diferentes, à luz de leis diferentes que, por sua vez, consagram soluções diferentes (ex. Imagine-se
que, estando perante um retorno indireto, a L1, adotando RM, aponta para a aplicação da L2 que, adotando RM,
aponta para a aplicação da L3 que, adotando RM, aponta para a aplicação da L1. Neste caso, o julgador de 3
aplicaria a L1; o julgador de 2 aplicaria a L3; o julgador de 1 aplicaria a L2).
63 Argumentos a favor da tese da devolução simples: A tese da devolução simples, por um lado, gera harmonia

jurídica internacional, uma vez que não permite que uma mesma situação jurídico -privada internacional possa
ser apreciada em países diferentes, à luz de leis diferentes que, por sua vez, consagram s oluções diferentes (ex.
Imagine-se que, estando perante uma transmissão de competência simples, a L1, adotando DS, aponta para a
aplicação da L2 que, adotando DS, aponta para a aplicação da L3 que se considera aplicável. Neste caso, o
julgador de 3 aplicaria a L3; o julgador de 2 aplicaria a L3; o julgador de 1 aplicaria L3) e, por outro lado,
preocupa-se em saber se a lei para a qual a regra de conflitos da lei do foro aponta se considera, ela própria,
40
2. Tese da dupla-devolução ou foreign court theory: De acordo com a tese da dupla-
devolução, a referência da regra de conflitos da lei do foro a uma determinada lei estrangeira
abrange, quer as suas normas materiais, quer as suas regras de conflitos, quer a sua posição
em matéria de reenvio. Sendo assim, o julgador do foro terá de aplicar a lei que o julgador da
lei para a qual a regra de conflitos da lei do foro aponta aplicaria. 64
3. Tese da regulamentação subsidiária: -
Notas fundamentais:
1) Enquanto que a teoria da referência material é uma teoria anti-devolucionista, pois
recusa o reenvio, a teoria da referência global (teses da devolução simples e da dupla-
devolução) é uma teoria pró-devolucionista, pois aceita o reenvio.
2) Apesar dos seus méritos, todas as posições dogmáticas apresentam defeitos, pelo que
cada Estado decide que posição adotar em matéria de reenvio.
3) O instituto do reenvio tem uma importância cada vez menor, uma vez que, tanto a nível
internacional, como a nível europeu, se tem procurado unificar as regras de conflitos.

A posição em matéria de reenvio seguida pelo Direito Português não é uma das posições
dogmáticas anteriormente analisadas (que têm uma posição de tudo ou de nada no que diz
respeito à aceitação do reenvio), mas antes uma posição pragmática: o reenvio não é
admissível enquanto princípio geral, mas antes enquanto expediente técnico que deve ser
utilizado sempre que contribua para promover a harmonia jurídica internacional. É o
chamado sistema de reenvio-coordenação.
As normas jurídicas que versam sobre o reenvio estão entre os artigos 16º e 19º CC:
1) O artigo 16º CC consagra como princípio geral de resolução de conflitos negativos de
sistemas a teoria da referência material que favorece a aplicação da lei que o legislador do
foro entendeu como a que tem com uma situação jurídico-privada internacional concreta um
contacto mais forte: A referência das regras de conflitos da lei do foro a qualquer lei
estrangeira determina apenas, na falta de preceito em contrário (remissão para os artigos 17º,
n. 1 e 18º, n. 1 CC) a aplicação das normas materiais dessa lei.
2) O artigo 17º, n. 1 CC, que diz respeito às transmissões de competência simples e em
cadeia, e o artigo 18º, n. 1 CC, que diz respeito aos retornos simples e indireto, consagram

aplicável.
Argumentos contra a tese da devolução simples: A tese da devolução simples, por um lado, não permite a
aplicação da lei que o legislador do foro entendeu como a que tem com uma situação jurídico -privada
internacional concreta um contacto mais forte e, por outro lado, nem sempre gera harmonia jurídica
internacional (ex. Imagine-se que, estando perante um retorno indireto, a L1, adotando DS, aponta para a
aplicação da L2 que, adotando DS, aponta para a aplicação da L3 que, adotando RM, aponta para a aplicação da
L1. Neste caso, o julgador de 3 aplicaria a L1; o julgador de 2 aplicaria a L1; o julgador de 1 aplicaria a L3).
64 Argumentos a favor a tese da dupla-devolução: A tese da dupla-devolução gera sempre harmonia jurídica

internacional (ex. Imagine-se que, estando perante um retorno indireto, a L1, adotando DD, aponta para a
aplicação da L2 que, adotando DS, aponta para a aplicação da L3 que, adotando RM, aponta para a aplicação da
L4 que se considera aplicável. Neste caso, o julgador de 4 aplicaria a L4; o julgador de 3 aplicaria a L4; o
julgador de 2 aplicaria a L4; o julgador de 1 aplicaria a lei que o julgador de 4 aplicaria: L4).
Argumentos contra a tese da dupla-devolução: A tese da dupla-devolução, por um lado, não permite a
aplicação da lei que o legislador do foro entendeu como a que tem com uma situação jurídico -privada
internacional concreta um contacto mais forte e, por outro lado, conduziria a um círculo vicioso se todos os
Estados a adotassem (ex. Imagine-se que, estando perante um retorno simples, a L1, adotando DD, aponta para a
aplicação da L2 que, adotando DD, aponta para a aplicação de L1. Neste caso, o julgador de 1 aplicaria a lei que
o julgador de 2 aplicaria; o tribunal de 2 aplicaria a lei que o julgador de 1 aplicaria , etc.).
41
exceções ao artigo 16º CC, admitindo o reenvio sempre que contribua para promover a
harmonia jurídica internacional que não é assegurada pela teoria da referência material. Isto
significa que o princípio da harmonia jurídica internacional funciona como fundamento do
reenvio! Importa, desta forma, analisar em pormenor os casos em que o reenvio pode
efetivamente contribuir para promover a harmonia jurídica internacional 65:
Retorno simples
L1 → L2 → L1 T2: L1 | T1: L2 18º, n. 1 CC (66) – diret.
L1 → L2 → L1 T2: L2 | T1: L2 16º CC (L2)
L1 → L2 → L1 T2: L2 | T1: L2 16º CC (L2)
→ Para que, à luz do artigo 18º, n. 1 CC, o reenvio seja admitido no retorno simples, é
necessário que as regras de conflitos da lei do foro apontem diretamente para a lei que aponta
para a aplicação da lei do foro (1).
Retorno indireto
L1 → L2 → L3 → L1 T3: L1 | T2: L3 | T1: L2 16º CC (L2)
L1 → L2 → L3 → L1 T3: L2 | T2: L3 | T1: L2 16º CC (L2)
L1 → L2 → L3 → L1 T3: L1 | T2: L1 | T1: L2 18º, n. 1 CC (L1) – indiret.
L1 → L2 → L3 → L1 T3: L2 | T2: L2 | T1: L2 16º CC (L2)
→ Para que, à luz do artigo 18º, n. 1 CC, o reenvio seja admitido no retorno indireto, é
necessário que as regras de conflitos da lei do foro apontem indiretamente para a lei que
aponta para a aplicação da lei do foro (1), que a referência da L2 à L3 tenha caráter global (2)
que a referência da L3 à L1 tenha caráter material (3) e que o reenvio contribua para
promover a harmonia jurídica internacional (4).
Transmissão de competência simples
L1 → L2 → L3 T3: L3 | T2: L3 | T1: L2 17º, n. 1 CC (L3) – diret.
L1 → L2 → L3 T3: L3 | T2: L3 | T1: L2 17º, n. 1 CC (L3) – diret.
L1 → L2 → L3 T3: L3 | T2: L3 | T1: L2 17º, n. 1 CC (L3) – diret.
L1 → L2 → L3 → L2 T3: L3 | T2: L3 | T1: L2 17º, n. 1 CC (L3) – indiret.
L1 → L2 → L3 → L2 T3: L2 | T2: L3 | T1: L2 16º CC (L2)
→ Para que, à luz do artigo 17º, n. 1 CC, o reenvio seja admitido na transmissão de
competência simples, é necessário que a lei para a qual a regra de conflitos da lex causae
aponta seja direta ou indiretamente aplicável (1) e que o reenvio contribua para promover a
harmonia jurídica internacional (2).

65 → Referência Material → Devolução Simples → Dupla-Devolução


66 Imagine-se que, estando perante um retorno simples, a L1 aponta para a aplicação da L2 que, adotando RM,
aponta para a aplicação de L1. Neste caso, o julgador de 2 aplicaria a L1; o julgador de 1 aplicaria a L2. Tendo
em consideração que se atinge a harmonia jurídica internacional, quer através da aplicação da L2 (não sendo
necessário o reenvio), quer através da aplicação da L1 (sendo necessário o reenvio), coloca-se a questão de saber
que lei deve ser aplicada – a L2 (e não se aceita o reenvio) ou a L1 (e aceita-se o reenvio)? A este propósito,
existe uma divergência na doutrina:
- Ferrer Correia e Lima Pinheiro: Sendo o reenvio desnecessário para promover a harmonia jurídica
internacional (uma vez que esta é assegurada pela aplicação das normas materiais da lex causae), dever-se-á
aplicar a L2, favorecendo-se a aplicação da lei que o legislador do foro entendeu como a que tem com a situação
jurídico-privada internacional concreta um contacto mais forte.
- Baptista Machado: Em respeito pelo princípio da boa administração da justiça, dever-se-á aplicar a L1,
favorecendo-se a aplicação da lei que o julgador do foro conhece melhor, por forma a garantir o acerto das
decisões judiciais e a evitar erros judiciários.

42
Transmissão de competência em cadeia
L1 → L2 → L3 → L4 T4: L4 | T3: L4 | T2: L3 | 16º CC (L2)
T1: L2
L1 → L2 → L3 → L4 T4: L4 | T3: L4 | T2: L4 | 17º, n. 1 CC (L4) – diret.
T1: L2
L1 → L2 → L3 → L4 → L3 T4: L3 | T3: L4 | T2: L3 | 16º CC (L2)
T1: L2
L1 → L2 → L3 → L4 → L3 T4: L4 | T3: L4 | T2: L4 | 17º, n. 1 CC (L4) – indiret.
T1: L2
→ Para que, à luz do artigo 17º, n. 1 CC, o reenvio seja admitido na transmissão de
competência em cadeia, é necessário fazer uma extensão teleológica do artigo em questão
(uma vez que a transmissão de competência em cadeia não se encontra expressamente nele
prevista), que a última lei seja direta ou indiretamente aplicável (1), que a referência da L2 à
L3 tenha caráter global (2) e que o reenvio contribua para promover a harmonia jurídica
internacional (3).
Conclusão:
- 16º CC: Em regra, o julgador do foro deve aplicar as normas materiais da lex causae.
- 17º, n. 1 CC: Excecionalmente, se as regras de conflitos da lex causae apontarem para a
aplicação de outra lei e esta seja direta ou indiretamente aplicável (nos casos de
transmissão de competência simples) ou se as regras de conflitos da lex causae apontarem
para a aplicação de uma lei cujas regras de conflitos apontam para a aplicação de outra
lei, esta seja direta ou indiretamente aplicável e a referência da segunda lei à terceira lei
tenha caráter global (nos casos de transmissão de competência em cadeia), são as normas
materiais da última lei que devem ser aplicadas.
- 18º, n. 1 CC: Excecionalmente, se as regras de conflitos da lei para a qual as regras de
conflitos da lei do foro direta (nos casos de retorno simples) ou indiretamente (nos casos
de retorno indireto) apontam apontarem para a aplicação da lei do foro, são as normas
materiais desta lei que devem ser aplicadas.

Analisados os casos em que o reenvio pode efetivamente contribuir para promover a


harmonia jurídica internacional, importa agora analisar alguns casos especiais:
O princípio da harmonia jurídica qualificada enquanto limite ao reenvio:
Apesar de a aceitação do reenvio contribuir para promover a harmonia jurídica internacional,
ela envolve o risco de, em certos casos, em vez de se aplicar as normas materiais da lei que o
legislador do foro entendeu como a que tem com a situação jurídico-privada internacional
concreta um contacto mais forte, se aplicar as normas materiais de uma lei que não tenha com
a situação jurídico-privada internacional concreta qualquer tipo de contacto ou um contacto
menos forte. É precisamente por essa razão que o legislador português dificulta a aceitação
do reenvio quando estejam em causa matérias que revistam uma natureza eminentemente
pessoal (25º CC), matérias estas que deveriam ser reguladas por uma lei com a qual a pessoa
tem um contacto mais forte: a lei da nacionalidade ou a lei da residência. 67

67Os países mais antigos tendem a apontar para a aplicação da lei da nacionalidade para regular as matérias do
estatuto pessoal. Entende-se que assim o seja, uma vez que, sendo os países mais antigos países de emigração,
se pretende que o estatuto pessoal dos seus cidadãos seja regulado pela sua lei, independentemente do sítio em
que estejam. Os países mais recentes tendem a apontar para a aplicação da lei da residência para regular as
matérias do estatuto pessoal. Entende-se que assim o seja, uma vez que, sendo os países mais recentes países de
43
Sendo assim, quando em causa estejam matérias que revistam uma natureza eminentemente
pessoal, o artigo 17º, n. 2 CC, que diz respeito às transmissões de competência simples e em
cadeia, e o artigo 18º, n. 2 CC, que diz respeito aos retornos simples e indireto, só aceitam o
reenvio se este contribuir para promover a harmonia jurídica internacional (1) e atingir a
harmonia jurídica qualificada (2), i.e. o legislador do foro só aceita o reenvio, abdicando da
aplicação das normas materiais da lei da nacionalidade ou da lei da residência, se existir um
consenso quanto à lei aplicável entre estas mesmas leis. Isto significa que o princípio da
harmonia jurídica qualificada funciona como um limite ao reenvio quando em causa
estejam matérias que revistam uma natureza eminentemente pessoal!
- Para que, à luz do artigo 17º, n. 2 CC, o reenvio seja admitido na transmissão de
competência simples e na transmissão de competência em cadeia, é necessário que o reenvio
atinja a harmonia jurídica qualificada (1) e que não se verifique nenhuma das causas de
cessação do reenvio previstas no artigo em questão (2).68
- Para que, à luz do artigo 18º, n. 2 CC, o reenvio seja admitido no retorno simples e no
retorno indireto, é necessário que o reenvio atinja a harmonia jurídica qualificada (1) e que se
verifique um dos pressupostos adicionais previstos no artigo em questão (2).69

imigração, se pretende que a sua lei regule o estatuto pessoal de todas as pessoas que se situem no seu território.
→ Sendo Portugal um dos países mais antigos do mundo, a regra de conflitos que versa sobre o estatuto pessoal
das pessoas aponta para a aplicação da lei da sua nacionalidade (25º CC, conjugado com o artigo 31º, n. 1 CC).
68 O Senhor A, brasileiro, residente em Itália, celebra um contrato em Portugal. Coloca -se a questão de saber se
A tinha capacidade para celebrar o dito contrato. Imagine-se que, estando perante uma transmissão de
competência em cadeia, a L1 aponta para a aplicação da L2 (nacionalidade) que, adotando DD, aponta para a
aplicação da L3 (residência) que, adotando DS, aponta para a aplicação de L4 que, adotando RM, aponta para a
aplicação da L3. Neste caso, o julgador de 4 aplicaria a L3; o julgador de 3 aplicaria a L3; o julgador de 2
aplicaria a L3; o julgador de 1 aplicaria a L2. Tendo em consideração que o reenvio contribui para promover a
harmonia jurídica internacional e que estão preenchidos os pressupostos previstos pelo artigo 17º, n. 1 CC, faria
sentido aceitar-se o reenvio. No entanto, uma vez que está em causa uma matéria que reveste uma natureza
eminentemente pessoal, não basta que o reenvio contribua para promover a harmonia jurídica internacional,
sendo ainda necessário que atinja a harmonia jurídica qualificada e que não se verifique nenhuma das causas de
cessação do reenvio previstas no artigo 17º, n. 2 CC:
- Existe harmonia jurídica qualificada? Sim, uma vez que entre a lei da nacionalidade (brasileira) e a lei da
residência (italiana) existe um consenso quanto à lei aplicável: L3.
- Reside A habitualmente em território português? Não.
- Reside A habitualmente em país cujas regras de conflitos apontam para a aplicação das normas materiais da lei
da sua nacionalidade? Não.
→ Não estando preenchidos todos os requisitos, cessa o reenvio e aplica-se a L2, a favor da harmonia jurídica
internacional (16º CC).
69 O Senhor A, brasileiro, residente em Itália, celebra um contrato em Portugal. Coloca -se a questão de saber se

A tinha capacidade para celebrar o dito contrato. Imagine-se que, estando perante um retorno indireto, a L1
aponta para a aplicação da L2 (nacionalidade) que, adotando DS, aponta para a aplicação da L3 (residência) que,
adotando RM, aponta para a aplicação da L1. Neste caso, o julgador de 3 aplicaria a L1; o julgador de 2
aplicaria a L1; o julgador de 1 aplicaria a L2. Tendo em consideração que o reenvio contribui para promover a
harmonia jurídica internacional e que estão preenchidos os pressupostos previstos pelo artigo 18º, n. 1 CC, faria
sentido aceitar-se o reenvio. No entanto, uma vez que está em causa uma matéria que reveste uma natureza
eminentemente pessoal, não basta que o reenvio contribua para promover a harmonia jurídica internacional,
sendo ainda necessário que atinja a harmonia jurídica qualificada e que se verifique um dos pressupostos
adicionais previstos pelo artigo 18º, n. 2 CC:
- Existe harmonia jurídica qualificada? Sim, uma vez que entre a lei da nacionalidade (brasileira) e a lei da
residência (italiana) existe um consenso quanto à lei aplicável: L1.
- Tem A residência em território português? Não.
- Aponta a lei da sua residência para a aplicação das normas materiais da lei portuguesa? Sim.
44
O princípio da harmonia jurídica qualificada como fundamento do reenvio:
Imagine-se que, estando perante uma transmissão de competência em cadeia, a L1 aponta
para a aplicação da L2 (nacionalidade) que, adotando RM, aponta para a aplicação da L3
(local da celebração do negócio) que, adotando RM, aponta para a aplicação da L4
(residência) que, adotando RM, aponta para a aplicação da L3. Neste caso, o julgador de 4
aplicaria a L3; o julgador de 3 aplicaria a L4; o julgador de 2 aplicaria a L3; o julgador de 1
aplicaria a L2. Tendo em consideração que o reenvio não contribui para promover a
harmonia jurídica internacional e que não estão preenchidos os pressupostos previstos no
artigo 17º, n. 1 CC, não faria sentido aceitar-se o reenvio e aplicar-se-ia a L2. No entanto,
apesar de se ter recusado o reenvio por não contribuir para promover a harmonia jurídica
internacional, constata-se que se atinge a harmonia jurídica qualificada, pois existe um
consenso quanto à lei aplicável entre a lei da nacionalidade (L2) e a lei da residência (L4):
L3. Tal coloca a questão de saber se deve aplicar-se a L2 ou a L3. Por outras palavras:
Quando em causa esteja uma matéria pertencente ao âmbito do estatuto pessoal e o reenvio
não contribua para promover a harmonia jurídica internacional, será ou não ainda possível
aceitar o reenvio quando se atinge a harmonia jurídica qualificada?
A este propósito, existe uma divergência na doutrina:
- Ferrer Correia e Baptista Machado: Tendo em consideração que dos artigos 17º, n. 2 CC e
18º, n. 2 CC é possível retirar o princípio segundo o qual, quando em causa estejam matérias
que revistam uma natureza eminentemente pessoal, o legislador do foro pretende que o
julgador do foro aplique a mesma lei para a qual a lei da nacionalidade e a lei da residência
apontam, é possível aceitar o reenvio com fundamento na harmonia jurídica qualificada e,
portanto, poder-se-á aplicar a L3, embora tal solução não se encontre positivada.
- Lima Pinheiro: Tendo em consideração que a solução defendida por Ferrer Correia e
Baptista Machado não se encontra positivada, não é possível aceitar o reenvio com
fundamento na harmonia jurídica qualificada e, portanto, ter-se-á de aplicar a L2.
O princípio da maior proximidade:
Imagine-se que o Senhor A, brasileiro, morreu, deixando vários bens imóveis espalhados um
pouco por todo o mundo. De acordo com a regra de conflitos consagrada no artigo 62º CC, a
sucessão por morte desses bens é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do
falecimento deste, ou seja a lei brasileira. Isto significa que a regra de conflitos da lei do foro
indica uma lei para regular a universalidade de bens do Senhor A, independentemente da sua
situação. No entanto, Zitelmann veio colocar a questão de saber se, quando em causa estejam
bens imóveis, não se deveria abdicar da aplicação da lei para a qual a regra de conflitos da lei
do foro aponta e submetê-los à aplicação da lei com a qual eles tivessem um contacto mais
próximo e que estivesse em melhores condições para garantir o acatamento dos seus
preceitos, em respeito pelo princípio da efetividade ou da melhor competência – a lei da sua
situação. É o chamado princípio da maior proximidade.

→ Estando preenchidos todos os requisitos, mantém-se o reenvio e aplica-se a L1, a favor da harmonia jurídica
qualificada.
45
Nota fundamental:
O princípio da maior proximidade vigora em matéria de tutela e curatela, relações
patrimoniais entre os cônjuges, poder paternal, relações entre adotante e adotado e
sucessão por morte. Sendo assim, o princípio da maior proximidade não vigora em
matéria de direitos reais (46º CC)!
O princípio da maior proximidade é suscetível de duas aceções:
- Aceção ampla ou conflitual: De acordo com a sua aceção ampla ou conflitual, o princípio da
maior proximidade só vigora, i.e. só se abdica da aplicação da lei para a qual a regra de
conflitos da lei do foro aponta e se submete os bens imóveis à aplicação da lei com a qual
eles tenham um contacto mais próximo e que esteja em melhores condições para garantir o
acatamento dos seus preceitos, se a lei da situação desses mesmos bens se considerar, à luz
das suas regras de conflitos, aplicável.
- Aceção restrita ou material: De acordo com a sua aceção restrita ou material, o princípio da
maior proximidade só vigora, i.e. só se abdica da aplicação da lei para a qual a regra de
conflitos da lei do foro aponta e se submete os bens imóveis à aplicação da lei que tenha com
eles um contacto mais próximo e que esteja em melhores condições para garantir o
acatamento dos seus preceitos, se a lei da situação desses mesmos bens contiver um regime
material que regule de forma especial o tipo de bens imóveis em questão.
Qual a posição seguida pelo Direito Português a propósito do princípio da maior proximidade
e, caso positiva, em qual das suas duas aceções?
1) Princípio da maior proximidade na sua aceção restrita ou material:
O princípio da maior proximidade, na sua aceção restrita ou material, não vigora, de forma
expressa (exceção: 30º R n. 650/2012), no Direito Português, mas acaba por vigorar quando
o regime material que regula de forma especial o tipo de bens imóveis em questão contido na
lei da sua situação seja uma NANI.70
2) Princípio da maior proximidade na sua aceção ampla ou conflitual:
O princípio da maior proximidade, na sua aceção ampla ou conflitual, não vigora como
princípio geral, uma vez que se entende que não é condição necessária (1), nem suficiente (2)
para garantir o cumprimento do princípio da efetividade ou da melhor competência.71

70 O Senhor A e a Senhora B, nubentes suecos, pretendem saber qual o regime de administração dos bens do
casamento. A regra de conflitos consagrada no artigo 52º CC indica a lei da nacionalidade comum dos cônjuges
(ou seja, lei sueca) para regular a universalidade de bens do casamento, bens estes que se situam um pouco por
todo o mundo (Brasil, Portugal, Inglaterra, Alemanha, etc.). Acontece que um dos cônjuges pretende vender a
casa de morada de família que se situa em Portugal sem consentimento do outro cônjuge. Ora, enquanto que de
acordo com a lei portuguesa a alienação da casa de morada de família carece do consentimento de ambos os
cônjuges (1682º-A, n. 2 CC), segundo a lei sueca, tal alienação é permitida sem aquela exigência. Neste caso,
embora a lei sueca seja a lei indicada pela regra de conflitos para regular a universalidade de bens do casamento,
abdica-se da sua aplicação e submete-se a casa de morada de família à aplicação da lei que tem com ela um
contacto mais próximo e que está em melhores condições para garantir o acatamento dos seus preceitos, ou seja
a lei portuguesa. Tendo em conta que a lei portuguesa contém um regime material que regula de forma especial
a alienação da casa de morada de família (1682º-A, n. 2 CC), o princípio da maior proximidade, na sua aceção
restrita ou material, acaba por vigorar, não de forma expressa, mas pelo facto de o regime material que regula de
forma especial o tipo de bem imóvel em questão ser uma NANI.
71O Senhor A, português, morreu, deixando vários bens imóveis espalhados um pouco por todo o mundo
(Brasil, Portugal, Inglaterra, Alemanha, etc.). A regra de conflitos consagrada no artigo 62º CC indica a lei da
nacionalidade do autor da sucessão ao tempo do falecimento deste (ou seja, a lei portuguesa) para regular a
46
1. Por um lado, o princípio da maior proximidade não é condição necessária para garantir
o cumprimento do princípio da efetividade, uma vez que pode acontecer que, apesar de a lei
da situação dos bens imóveis se considere, à luz das suas regras de conflitos, aplicável, o
Estado dessa mesma lei tenha reconhecimento de direitos adquiridos.
2. Por outro lado, o princípio da maior proximidade não é condição suficiente para
garantir o cumprimento do princípio da efetividade, uma vez que pode acontecer que, ainda
que a lei da situação dos bens imóveis se considere, à luz das suas regras de conflitos,
aplicável, seja ainda necessário que o Estado dessa mesma lei reserve de modo exclusivo para
os seus tribunais a competência jurisdicional nesta matéria.
Apesar de o princípio da maior proximidade, na sua aceção ampla ou conflitual, não vigorar
como principio geral, existem dois seus afloramentos:
- Afloramento direto: A regra de conflitos prevista no artigo 47º CC consagra o princípio da
maior proximidade, na sua aceção ampla ou conflitual, uma vez que a capacidade para
constituir direitos reais sobre coisas imóveis ou para dispor deles é regulada, não pela lei para
a qual a regra de conflitos prevista no artigo 25º CC aponta (lei pessoal), mas antes pela lei
da sua situação, desde que essa lei se considere, à luz das suas regras de conflitos, aplicável.
Nota fundamental:
O artigo 47º CC é um afloramento direto do princípio da maior proximidade, na sua
aceção ampla ou conflitual, pois é o legislador do foro que o consagra.
- Afloramento indireto: Quando em causa estejam matérias que revistam uma natureza
eminentemente pessoal, a restrição ao reenvio prevista no artigo 17º, n. 2 CC deixa de valer,
desde que estejam preenchidos os pressupostos previstos no artigo 17º, n. 3 CC.72
Nota fundamental:
O artigo 17º, n. 3 CC é um afloramento indireto do princípio da maior proximidade, na
sua aceção ampla ou conflitual, pois é a lei da nacionalidade que o consagra.

universalidade dos seus bens, independentemente da sua situação. Neste caso, embora a lei portuguesa seja a lei
indicada pela regra de conflitos para regular a universalidade de bens do casamento, abdica -se da sua aplicação
e submete-se cada bem imóvel à aplicação da lei que tem com eles um contacto mais próximo e que está em
melhores condições para garantir o acatamento dos seus preceitos; aos bens imóveis situados no Brasil, a lei
brasileira; aos bens imóveis situados em Portugal, a lei portuguesa; etc.
72 O Senhor A, inglês, morreu em Itália, deixando vários bens imóveis espalhados um pouco por todo o mundo

(Brasil, Portugal, Inglaterra, Alemanha, etc.). Imagine-se que, estando perante uma transmissão de competência
simples, a regra de conflitos consagrada no artigo 62º CC aponta para a aplicação da lei da nacionalidade do
autor da sucessão ao tempo do falecimento deste (ou seja, a lei inglesa) que, adotan do DD, aponta para a
aplicação da lei da situação dos bens imóveis (ou seja, a lei brasileira) que se considera aplicável. Neste caso, o
julgador brasileiro aplicaria a lei brasileira; o julgador inglês aplicaria a lei brasileira; o julgador português
aplicaria a lei inglesa. Tendo em consideração que o reenvio contribui para promover a harmonia jurídica
internacional e que estão preenchidos os pressupostos previstos pelo artigo 1 7º, n. 1 CC, faria sentido aceitar-se
o reenvio. No entanto, uma vez que está em causa uma matéria que reveste uma natureza eminentemente
pessoal, não basta que o reenvio contribua para promover a harmonia jurídica internacional, sendo ainda
necessário que atinja a harmonia jurídica qualificada e que não se verifique nenhuma das causas de cessação do
reenvio previstas no artigo 17º, n. 2 CC:
- Existe harmonia jurídica qualificada? Uma vez que a lei da sua última residência (ou seja, a lei italiana),
adotando RM, aponta para a aplicação da lei da nacionalidade (ou seja, a lei inglesa), enquanto que esta lei
aponta para a aplicação da lei da situação dos bens imóveis (ou seja, a lei b rasileira), não existe um consenso
quanto à lei aplicável.
- Reside A habitualmente em território português? Não.
- Reside A habitualmente em país cujas regras de conflitos apontam para a aplicação das normas materiais da lei
47
O princípio do favor negotii enquanto limite ao reenvio:
Coloca-se, ainda, a questão de saber se o princípio do favor negotii, segundo o qual o Direito
Internacional Privado deve tutelar as expetativas que os sujeitos tenham legitimamente
depositado na aplicação de uma certa lei, pode ou não funcionar como limite ao reenvio:
1) De acordo com o artigo 19º, n. 1 CC, não se aceita o reenvio quando da sua aceitação
resulte a invalidade ou ineficácia de um negócio jurídico que seria válido ou eficaz à luz da
lei para a qual a regra de conflitos da lei do foro aponta, ou a ilegitimidade de um estado que
de outro modo seria ilegítimo.73 Entende-se que assim o seja, uma vez que se os sujeitos
celebraram um negócio jurídico à luz da lei para a qual as regras de conflitos da lei do foro
apontam, a aceitação do reenvio acabaria por frustrar as expetativas que legitimamente
depositaram na sua validade. Assim sendo, em respeito pelo princípio do favor negotii, não
se aceita o reenvio e aplica-se a lei para a qual as regras de conflitos da lei do foro apontam.

da sua nacionalidade? Sim.


Não estando preenchidos todos os requisitos, cessa o reenvio e aplica-se a lei inglesa (16º CC). Sem embargo, o
artigo 17º, n. 3 CC prevê uma causa de reativação do reenvio, desde que se verifiquem os pressupostos por ele
exigidos a título cumulativo:
- Está em causa um dos casos previstos no artigo? Sim.
- A lei da nacionalidade aponta para a aplicação da lei da situação dos bens imóveis? Sim.
- A lei da situação dos bens imóveis considera-se aplicável? Sim.
→ Preenchidos os requisitos, reativa-se o reenvio e aplica-se a lei brasileira, a favor do princípio da maior
proximidade, na sua aceção ampla ou conflitual.
73 O Senhor A, brasileiro e residente em Portugal, perfilhou uma criança no Brasil. Em Portugal, põe -se em
causa a validade da perfilhação. Imagine-se que, estando perante um retorno simples, a regra de conflitos
consagrada no artigo 56º CC aponta para a aplicação da lei da nacionalidade do progenitor à data do
estabelecimento da relação (ou seja, a lei brasileira) que, adotando RM, aponta para a aplicação da lei da
residência (ou seja, a lei portuguesa). Neste caso, o julgador brasileiro aplicaria a lei portuguesa; o julgador
português aplicaria a lei brasileira. Tendo em consideração que o reenvio contribui para promover a harmonia
jurídica internacional e que estão preenchidos os pressupostos previstos no artigo 18º, n. 1 CC, faria sentido
aceitar-se o reenvio. No entanto, uma vez que está em causa uma matéria que reveste uma natureza
eminentemente pessoal, não basta que o reenvio contribua para promover a harmonia jurídica internacional,
sendo ainda necessário que atinja a harmonia jurídica qualificada e que se verifique um dos pressupostos
adicionais previstos no artigo 18º, n. 2 CC:
- Existe harmonia jurídica qualificada? Sim, uma vez que entre a lei da nacionalidade (brasileira) e a lei da
residência (portuguesa) existe um consenso quanto à lei aplicável: L1.
- Tem A residência em território português? Sim.
-…
Estando preenchidos todos os requisitos, mantém-se o reenvio e aplica-se a lei portuguesa, segundo a qual a
perfilhação é inválida. Porém, este resultado seria diferente se não se tivesse aceitado o reenvio e se se tivesse
aplicado a lei brasileira, segundo a qual a perfilhação seria válida. A este propósito, coloca -se a questão de saber
se o princípio do favor negotii constitui um limite ao reenvio. Uma vez que este princípio prejudica os princípios
de ordem pública, seguindo a doutrina de Coimbra, a sua vigência depende da verificação cumulativa dos três
pressupostos previstos no artigo 19º, n. 1 CC:
- A perfilhação é inválida à luz da lei portuguesa (com reenvio) e válida à luz da lei brasileira (sem reenvio).
- A perfilhação foi constituída antes de se ter posto em causa a sua validade.
-» Se, no momento da constituição da perfilhação, houve algum tipo de contacto com a lei do foro (o Senhor
A olhou para as regras de conflitos da lei portuguesa e concluiu que seria aplicada a lei brasileira), há legítimas
expetativas na aplicabilidade da lei brasileira.
-» Se, no momento da constituição da perfilhação, não houve qualquer tipo de contacto com a lei do foro (o
Senhor A não olhou para as regras de conflitos da lei portuguesa, não concluiu que seria aplicada a lei
brasileira), não há legítimas expetativas na aplicabilidade da lei brasileira.
→ Estando preenchidos os três requisitos, vigora o princípio do favor negotii, não se aceita o reenvio para a lei
portuguesa e aplica-se a lei brasileira, segundo a qual a perfilhação é válida.

48
A este propósito, existe uma divergência na doutrina:
- Doutrina de Lisboa: Para vigorar o princípio do favor negotii, basta que o negócio jurídico
seja inválido com o reenvio e válido sem o reenvio.
- Doutrina de Coimbra: Uma vez que a vigência do princípio do favor negotii prejudica a
vigência dos princípios de ordem pública – harmonia jurídica internacional e harmonia
jurídica qualificada –, para vigorar é necessário que se verifiquem três requisitos a título
cumulativo:
1. É necessário que o negócio jurídico seja inválido com o reenvio e válido sem o reenvio.
2. É necessário que esteja em causa um negócio jurídico que já tenha sido celebrado, pois
só quanto a estes podem existir legítimas expetativas quanto à sua validade.
3. É necessário que os sujeitos tenham legitimamente depositado expetativas na
aplicabilidade da lei para a qual a regra de conflitos da lei do foro aponta. De acordo com
Ferrer Correia, se o negócio jurídico teve algum tipo de contacto com a ordem jurídica do
foro no momento da sua celebração, presume-se que existem legítimas expetativas quanto à
aplicabilidade da lei para a qual a regra de conflitos da lei do foro aponta.
2) De acordo com o artigo 19º, n. 2 CC, não se aceita o reenvio para a lei para a qual a regra
de conflitos da lei designada pelos sujeitos aponta. Entende que assim o seja, uma vez que o
legislador presume que, quando os interessados designaram uma determinada lei,
depositaram legitimamente expetativas na aplicação das suas normas materiais. Assim sendo,
em respeito pelo princípio do favor negotii, não se aceita o reenvio e aplica-se a lei designada
pelos interessados.74
O princípio do favor negotii enquanto fundamento do reenvio:
Coloca-se, ainda, a questão de saber se o princípio do favor negotii, segundo o qual o Direito
Internacional Privado deve tutelar as expetativas que os sujeitos tenham legitimamente
depositado na aplicação de uma certa lei, pode ou não funcionar como fundamento do
reenvio, i.e. será ou não possível aceitar o reenvio quando assegure a validade ou eficácia de
determinado negócio jurídico, independentemente de contribuir ou não para promover a
harmonia jurídica internacional ou de atingir ou não a harmonia jurídica qualificada?
A posição do Direito Português a este respeito é afirmativa em duas situações concretas:
- 36º, n. 2 CC: A declaração negocial é formalmente válida se, em vez da forma prescrita na
lei local, tiver sido observada a forma prescrita pela lei do Estado para que remete a regra de
conflitos daquela lei.
- 65º, n. 1 CC: As disposições por morte, bem como a sua revogação ou modificação, serão
válidas, quanto à forma, se corresponderem às prescrições da lei do lugar onde o ato for
celebrado, ou às da lei pessoal do autor da herança, quer no momento da declaração, quer no
momento da morte, ou ainda às prescrições da lei para que remeta a regra de conflitos da lei
local.

74O Senhor A designou a lei argentina para regular uma determinada questão jurídica, sendo que essa lei, não se
considerando aplicável, aponta para a aplicação de outra lei. Neste caso, em respeito pelo princípio do favor
negotii, não se aceita o reenvio, uma vez que o legislador presume que, quando o Senhor A designou a lei
argentina, depositou legitimamente expetativas na aplicação das normas materiais dessa lei.
49
10.2.3 Os conflitos positivos de sistemas
O conflito positivo de sistemas, que ocorre quando as regras de conflitos de leis diferentes
apontam para a aplicação de leis diferentes que, à luz do respetivo sistema de DIP, são
aplicáveis para resolver o problema emergente de uma situação jurídico-privada internacional
concreta, coloca a questão de saber qual delas deve aplicar-se. É o chamado problema do
reconhecimento de direitos adquiridos.
Em regra, a validade das situações jurídico-privadas internacionais é apreciada à luz da lei
para a qual a regra de conflitos da lei do foro aponta. Sendo assim, se uma regra de conflitos
da lei do foro aponta para a aplicação da “lei pessoal”, ou seja a lei da nacionalidade ( 31º, n.
1 CC), à luz da qual a situação jurídico-privada internacional é válida, não se levantam
quaisquer problemas. O problema coloca-se quando a situação jurídico-privada internacional
é inválida à luz da lei da nacionalidade, mas válida à luz da lei da residência habitual. Nestes
casos, o legislador do foro está disposto a reconhecer a validade dessa situação jurídico-
privada internacional, desde que estejam preenchidos quatro requisitos literais (31º, n. 2 CC)
e três requisitos doutrinais e jurisprudenciais 75:
Os requisitos literais:
1. É necessário que a regra de conflitos da lei do foro aponte para a aplicação da lei pessoal.
2. É necessário que esteja em causa uma situação jurídico-privada internacional constituída
por negócio jurídico já celebrado, uma vez que só quanto a estes podem existir expetativas
quanto à validade de tal situação, em nome do princípio do favor negotii.
3. É necessário que esteja em causa um negócio jurídico celebrado no país da residência
habitual do declarante.76

75 O Senhor B, português, residente no Brasil, celebrou um testamento no Brasil. No Brasil, colocou -se a
questão de saber se B tinha capacidade para celebrar o dito testamento. A regra de conflitos brasileira aponta
para a aplicação da lei da residência (lei brasileira), à luz da qual B é capaz. Acontece que B foi passar férias a
Portugal, onde se colocou novamente a questão de saber se B tinha capacidade para celebrar o dito testamento.
A regra de conflitos portuguesa aponta para a aplicação da lei da nacionalidade (lei portuguesa), à luz da qual B
é incapaz. Para que vigore o reconhecimento de direitos adquiridos, exige-se a verificação cumulativa de quatro
requisitos literais e três requisitos doutrinais e jurisprudenciais:
- A regra de conflitos da lei portuguesa aponta para a aplicação da lei pessoal (ou seja, a lei portuguesa).
- A situação jurídico-privada internacional foi constituída por negócio jurídico (interpretado à luz da lex
formalis fori, de forma teleológica e autónoma) já constituído.
- O testamento foi celebrado no país da residência habitual de A (ou seja, no Brasil).
- Por um lado, o negócio jurídico é válido à luz da lei brasileira e, por outro lado, a lei brasileira considera -se
aplicável.
- A situação jurídico-privada internacional consolidou-se.
- Não existe sentença estrangeira sobre o assunto.
- O reconhecimento da validade do testamento é pedido a título principal.
→ Cumpridos todos os requisitos, o testamento, ainda que inválido à luz da lei pessoal (lei portuguesa), será
reconhecido como válido, porque válido à luz da lei da residência habitual (lei brasileira).
76 O Senhor A, cubano, residente no Brasil, celebrou um testamento na Argentina, testamento esse que é

inválido tanto à luz da lei portuguesa, como da lei cubana, mas válido tanto à luz da lei argentina, como da lei
brasileira. Coloca-se em causa a validade do testamento. Tratando-se de uma situação jurídico-privada já
constituída, a sua validade terá de ser apreciada à luz da lei aplicável que, de acordo com a regra de conflitos
consagrada no artigo 62º CC, é a “lei pessoal” (ou seja, a lei cubana) à luz da qual o testamento é inválido. No
entanto, tendo em conta que o testamento é válido à luz da lei da residência habitual (ou seja, a lei brasileira), o
legislador está disposto a reconhecer essa validade, exigindo-se a verificação cumulativa de quatro requisitos
literais e três requisitos doutrinais e jurisprudenciais:
- A regra de conflitos da lei do foro aponta para a aplicação da lei pessoal (ou seja, a lei cubana).
50
Nota fundamental:
No que diz respeito ao terceiro requisito, a doutrina e a jurisprudência têm feito uma
flexibilização teleológica do artigo 31º, n. 2 CC, dispensando a verificação necessária
do terceiro requisito, uma vez que o que verdadeiramente importa é que o negócio
jurídico seja válido à luz da lei da residência habitual, sendo irrelevante que o negócio
jurídico tenha sido celebrado no país da residência habitual.
4. É necessário que:
- Por um lado, o negócio jurídico seja válido à luz da lei da residência habitual do
declarante (dimensão material).
- Por outro lado, a lei da residência habitual do declarante se considere aplicável
(dimensão conflitual).77 78

- A situação jurídico-privada internacional foi constituída por negócio jurídico já celebrado.


- O testamento não foi celebrado no país da residência habitual de A (ou seja, a lei brasileira) → flexibilização
teleológica do artigo 31º, n. 2 CC!
77 O Senhor A, dinamarquês, casou com a Senhora B, dinamarquesa, em Portugal, ainda que ambos sejam
residentes no Canadá. Coloca-se em causa a validade do casamento com fundamento em incapacidade nupcial.
A lei dinamarquesa aponta para a aplicação da lei da nacionalidade (lei dinamarquesa), à luz da qual o
casamento é nulo. A lei canadiana, que considera o casamento nulo, aponta para a aplicação da lei do local da
celebração (lei portuguesa), à luz da qual o casamento é válido. Tratando-se de uma situação jurídico-privada já
constituída, a sua validade terá de ser apreciada à luz da lei aplicável que, de acordo com a regra de conflitos
consagrada no artigo 49º CC, é a “lei pessoal” (ou seja, a lei dinamarquesa) à luz da qual o casamento é nulo.
No entanto, tendo em conta que o casamento é válido à luz da lei do local da celebração (ou seja, a lei
portuguesa), o legislador está disposto a reconhecer essa validade, exigindo -se a verificação cumulativa de
quatro requisitos literais e três requisitos doutrinais e jurisprudenciais:
- A regra de conflitos da lei do foro aponta para a aplicação da lei pessoal (ou seja, a lei dinamarquesa).
- A situação jurídico-privada internacional foi constituída por negócio jurídico já celebrado.
- O casamento foi celebrado no país da residência habitual de A (flexibilização teleológica).
- Por um lado, o casamento é válido à luz da lei canadiana e, por outro lado, a lei canadiana considera -se
aplicável. → interpretação extensiva do artigo 31º, n. 2 CC!
78 Coloca-se em causa a validade de uma convenção antenupcial. A regra de conflitos consagrada no artigo 53º

CC aponta para a aplicação da lei da nacionalidade (L2, à luz da qual é inválida). A lei da nacionalidade, que
adota DS, aponta para a aplicação da lei do local da celebração (L3, à luz da qual é válida). A lei do local da
celebração considera-se aplicável. A lei da residência habitual (L4, à luz da qual é válida), que adota RM,
aponta para a aplicação da lei da nacionalidade. Tratando-se de uma situação jurídico-privada já constituída, a
sua validade terá de ser apreciada à luz da lei aplicável que, de acordo com a regra de conflitos consagrada no
artigo 53º CC, é a lei da nacionalidade. Está-se perante um conflito negativo de sistemas, para cuja resolução o
Direito Português segue uma posição pragmática, devendo-se aceitar o reenvio sempre que ele contribua para
promover a harmonia jurídica internacional. É o caso, através da aplicação da L3, à luz da qual a convenção
antenupcial é válida. No estando, estando em causa uma matéria que reveste uma natureza eminentemente
pessoal (25º CC), o legislador dificulta a aceitação do reenvio (17º, n. 2 CC), fazendo cessar o reenvio e
aplicando-se a L2 (16º CC), à luz da qual a convenção antenupcial é inválida. O princípio da maior proximidade
(17º, n. 3 CC) e o princípio do favor negotii (19º CC) não podem ser invocados. Ainda assim, os sujeitos haviam
legitimamente depositado expetativas na validade da convenção antenupcial. Poderá a validade da situação
jurídico-privada internacional ser reconhecida?
- A regra de conflitos da lei do foro aponta para a aplicação da lei pessoal.
- A situação jurídico-privada internacional foi constituída por negócio jurídico já celebrado.
- A convenção antenupcial foi celebrada no país da residência habitual (flexibilização teleológica).
- Por um lado, a convenção antenupcial é válida à luz da L4 e, por outro lado, a L4 considera-se aplicável
(interpretação extensiva). Para as autoridade do país da residência, a convenção antenupcial é válida →
interpretação analógica do artigo 31º, n. 2 CC!
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Nota fundamental:
No que diz respeito ao quarto requisito, a doutrina e a jurisprudência têm feito, em nome
do princípio do favor negotii, uma interpretação extensiva do artigo 31º, n. 2 CC,
exigindo-se, em vez da verificação necessária do quarto requisito, que, para as
autoridades do país da residência habitual do declarante, o negócio jurídico seja válido.
Sempre que a interpretação extensiva do artigo 31º, n. 2 CC não permita reconhecer a
validade da convenção antenupcial, poder-se-á fazer uma interpretação analógica do
artigo 31º, n. 2 CC, entendendo-se que, se se admite o reconhecimento de uma situação
jurídico-privada internacional se ela for válida para as autoridades do país da residência
habitual do declarante, por maioria de razão, deve admitir-se o reconhecimento dessa
situação jurídico-privada internacional se ela for válida para as autoridades do país da
nacionalidade. A este respeito, existe uma divergência na doutrina no que diz respeito à
admissibilidade da interpretação analógica:
- Ferrer Correia e Baptista Machado: Para estes autores, a interpretação analógica do
artigo 31º, n. 2 CC é admissível, uma vez que, por um lado, se não fosse admissível, se
estaria a frustrar as expetativas que os sujeitos legitimamente hajam depositado na
validade de determinado negócio jurídico e, por outro lado, existem dados normativos que
demonstram que o legislador prefere o princípio do favor negotii aos princípios da ordem
pública.
- Magalhães Collaço e Lima Pinheiro: Para estes autores, a interpretação analógica do
artigo 31º, n. 2 CC é inadmissível, uma vez que, se fosse admissível, se estaria a aceitar o
reenvio quando ele não foi aceite pelos princípios de ordem pública, colocando interesses
particulares à frente de interesses da comunidade.
Os requisitos doutrinais e jurisprudenciais:
1. É necessário que tenha passado um lapso de tempo suficiente para que a situação jurídico-
privada internacional se tenha consolidado.
2. É necessário que inexista uma sentença estrangeira sobre o assunto.
3. É necessário que esteja em causa uma situação jurídico-privada internacional cujo
reconhecimento é pedido a título principal, e não a título meramente incidental.
10.3 Os ordenamentos plurilegislativos
Quando uma regra de conflitos do foro aponte para a aplicação da lei de um ordenamento
plurilegislativo, coloca-se o problema de saber qual a lei que deve ser aplicável ao problema
emergente da situação jurídico-privada internacional. A este propósito, importa estabelecer a
seguinte distinção:
1) Ordenamentos plurilegislativos de base territorial: Os ordenamentos plurilegislativos
de base territorial têm várias leis e cada uma delas aplica-se a uma parte do território (ex.
USA, Espanha, Reino Unido). Quanto a eles, dever-se-á aplicar o artigo 20º, n. 1 e 2 CC,
segundo o qual se deverá observar o Direito Interlocal ou Interterritorial desse ordenamento.
Na falta de Direito Interlocal ou Interterritorial, dever-se-á observar o Direito Internacional
Privado desse ordenamento. Na falta de Direito Internacional Privado, dever-se-á considerar
como lei pessoal a lei da residência habitual. Neste último caso, coloca-se a questão de saber
se a solução a dar ao problema emergente da situação jurídico-privada internacional deve ser
procurada no âmbito do concreto ordenamento plurilegislativo de base territorial ou se se
pode desistir de a procurar no âmbito desse concreto ordenamento plurilegislativo de base
territorial e passar a procurá-la na lei da residência habitual do sujeito.

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A este propósito, existe uma divergência na doutrina.
- Ferrer Correia e Baptista Machado: Para estes autores, dever-se-á desistir de procurar a
solução para o problema emergente da situação jurídico-privada internacional no
ordenamento plurilegislativo e passar a procurar essa solução na lei da residência habitual.
- Magalhães Collaço e Lima Pinheiro: Para estes autores, a solução ao problema emergente
da situação jurídico-privada internacional deve ser procurado no âmbito do concreto
ordenamento plurilegislativo de base territorial. No entanto, esta posição levanta, por sua vez,
a questão de saber que lei dever-se-á aplicar nos casos em que o sujeito não reside
habitualmente no ordenamento plurilegislativo de base territorial. Nestes casos, para estes
autores, o julgador deverá determinar, em concreto, a lei com a qual o sujeito mantém uma
vinculação mais estreita (consagração judicial do princípio da proximidade).
2) Ordenamentos plurilegislativos de base pessoal: Os ordenamentos plurilegislativos de
base pessoal têm várias leis e cada uma delas aplica-se a uma certa e determinada categoria
de pessoas (ex. Síria, Israel). Quanto a eles, dever-se-á aplicar o artigo 20º, n. 3 CC, segundo
o qual se deverá observar o Direito Interpessoal desse ordenamento.
10.4 A aplicação do Direito Estrangeiro
Quando uma regra de conflitos emanada pelo legislador do foro aponta para a aplicação de
uma lei estrangeira, o julgador terá de aplicar as normas materiais dessa mesma lei. Coloca -
se, então, a questão de saber quem deve fazer a prova do Direito Estrangeiro – entre nós, o
Direito Estrangeiro é tido como uma questão de direito (e, neste caso, é o tribunal que,
oficiosamente, terá de fazer a prova do Direito Estrangeiro) ou como uma questão de facto
(e, neste caso, são as partes que terão de fazer a prova do Direito Estrangeiro)?
Entre nós, o Direito Estrangeiro é tido como uma questão de direito:
- Sempre que o tribunal tiver de decidir com base no Direito Estrangeiro e alguma das partes
o tenha invocado, compete a essa parte fazer a prova da sua existência e conteúdo, devendo o
tribunal procurar, oficiosamente, obter o respetivo conhecimento (348º, n. 1 CC).
- Sempre que o tribunal tiver de decidir com base no Direito Estrangeiro e nenhuma das
partes o tenha invocado, ou a parte contrária tenha reconhecido a sua existência e conteúdo
ou não haja deduzido oposição, compete ao tribunal procurar, oficiosamente, obter o
respetivo conhecimento (348º, n. 2 CC).79
Se o tribunal não conseguir provar a existência e averiguar o conteúdo do Direito Estrangeiro,
e tendo em consideração que não pode abster-se de julgar, o julgador pode:
1. Recorrer a presunções, aplicando, não o Direito Estrangeiro realmente vigente, mas antes o
Direito Estrangeiro provavelmente vigente. 80

79 Para auxiliar o tribunal na prova da existência e na averiguação do conteúdo do Direito Estrangeiro, foi criado
o Gabinete de Documentação e Direito Comparado.
80 A doutrina oferece duas presunções:

1. Se o tribunal não conseguir provar a existência e averiguar o conteúdo do Direito Estrangeiro, mas este
pertencer a uma família jurídica, presume-se que o Direito Estrangeiro consagra as mesmas soluções que
vigoram nos sistemas jurídicos que pertencem à sua família jurídica.
2. Se o tribunal não conseguir provar a existência e averiguar o conteúdo do Direito Estrangeiro novo
(estando, portanto, em causa uma alteração de regime), presume-se que a solução consagrada no Direito
Estrangeiro antigo continua a ser válida.
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2. Concretizar o elemento de conexão subsidiário, uma vez que o elemento de conexão
principal não é concretizável (estando, portanto, em causa uma regra de conflitos que utiliza
um sistema de conexão múltipla subsidiária) – 23º, n. 2 CC.
3. Recorrer às regras do Direito Comum Português – 348º, n. 3 CC.
10.5 O reconhecimento de sentenças estrangeiras
Quando uma situação jurídico-privada internacional é objeto de uma sentença proferida por
um tribunal estrangeiro, pode colocar-se a questão de saber se essa mesma sentença pode ser
reconhecida no Estado do foro e nele produzir os seus efeitos.
10.5.1 O fundamento do instituto do reconhecimento de sentenças estrangeiras
Existem boas razões para reconhecer e para não reconhecer sentenças estrangeiras:
- Por um lado, o reconhecimento de sentenças estrangeiras assegura a estabilidade e a
continuidade das situações jurídico-privadas internacionais, uma vez que, por se entender que
o tribunal estrangeiro é internacionalmente competente para conhecer da causa e proferir
sobre ele uma sentença, a produção dos seus efeitos garante que as expetativas que os sujeitos
legitimamente depositaram na validade da situação jurídico-privada internacional constituída
no estrangeiro não se frustrem e que os direitos adquiridos no estrangeiro se consolidem.
- Por outro lado, o reconhecimento de sentenças estrangeiras pode ofender princípios
fundamentais da ordem pública internacional do Estado do foro.
Pelo exposto, é de concluir que o reconhecimento de sentenças estrangeiras, ainda que
admitido no Direito Português, deve ter em consideração algumas cautelas.
10.5.2 Os sistemas de reconhecimento de sentenças estrangeiras
Os sistemas de reconhecimento de sentenças estrangeiras são agrupados em duas categorias:
- Quanto ao momento do reconhecimento, importa estabelecer uma distinção entre:
1. Sistema do não-reconhecimento: O Estado do foro não reconhece a sentença
estrangeira, pelo que os sujeitos terão de intentar uma ação em tribunal do foro tendente ao
reconhecimento não da sentença estrangeira, mas da situação constituída no estrangeiro.
2. Sistema do reconhecimento individualizado: O Estado do foro reconhece a sentença
estrangeira, devendo ser efetuado um seu controlo prévio.
3. Sistema do reconhecimento automático: O Estado do foro reconhece a sentença
estrangeira, sem necessidade de qualquer controlo prévio. Isto não significa, todavia, que não
existam quaisquer condições para o reconhecimento da sentença estrangeira.
- Quanto aos requisitos de reconhecimento, importa estabelecer uma distinção entre:
1. Sistema de controlo formal ou de delibação: O Estado do foro controla se o julgador
estrangeiro atuou justamente quando proferiu a sentença.
2. Sistema de controlo de mérito: O Estado do foro controla se o julgador estrangeiro
proferiu uma sentença justa. A este propósito, importa estabelecer uma subdivisão entre:
-» …de grau fraco: O Estado do foro controla se o julgador estrangeiro aplicou a mesma
lei que o julgador do foro aplicaria se o problema emergente da situação jurídico-privada
internacional tivesse sido nele colocado.
-» …de grau forte: O Estado do foro controla se o julgador estrangeiro aplicou a mesma
lei que o julgador do foro aplicaria se o problema emergente da situação jurídico-privada
internacional tivesse sido nele colocado e ainda se a sentença proferida é justa.
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Quanto ao momento do controlo, o sistema de reconhecimento de sentenças estrangeiras
português é um sistema do reconhecimento individualizado, pois não reconhece nenhuma
sentença sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, sem estar revista e
confirmada, sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos
da União Europeia e leis especiais (978º, n. 1 CPC). Nessa medida, o sistema de
reconhecimento de sentenças estrangeiras, no que diz respeito ao momento do controlo, é
subsidiário em relação ao sistema de reconhecimento de sentenças estrangeiras que aqueles
instrumentos normativos preveem.
Quanto aos requisitos do reconhecimento, o sistema de reconhecimento de sentenças
estrangeiras português é um sistema de controlo essencialmente formal ou de delibação,
pois, para que a sentença estrangeira seja confirmada, é necessário que (980º CC):
al. a): Não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença, nem
sobre a inteligibilidade da decisão.
al. b): Tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida.
al. c): Provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude
à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses.
al. d): Não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento
em causa afeta a tribunal português.
al. e): O réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do tribunal
de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da
igualdade das partes.
al. f): Não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente
incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

Nota fundamental:
As alíneas a) a e) são relativas à forma, com exceção da alínea f) e do artigo 983º, n. 2
CPC, que consagra do privilégio da nacionalidade, que dizem respeito ao mérito.
10.6 A ordem pública internacional
10.6.1 A ordem pública internacional
A ordem pública interna consiste no conjunto de normas jurídicas que, num determinado
sistema jurídico, revestem natureza imperativa, limitando a liberdade individual. A ordem
pública internacional é o expediente que deve ser invocado sempre que a aplicação das
normas materiais de uma lei estrangeira para a qual a regra de conflitos da lei do foro aponta
conduza a um resultado chocante sob o ponto de vista dos valores jurídicos e dos interesses
fundamentais da lei do foro. Tal decorre do artigo 22º, n. 1 CC.
10.6.2 As conceções da ordem pública internacional
A ordem pública internacional é suscetível de duas conceções:
- Conceção apriorística: Numa conceção apriorística, a ordem pública internacional atua antes
da aplicação da lex causae.
- Conceção aposteriorística: Numa conceção aposteriorística, a ordem pública internacional
atua depois da aplicação da lex causae estrangeira, nos casos em que essa aplicação conduza
a um resultado chocante sob o ponto de vista dos valores jurídicos e dos interesses
fundamentais da lei do foro.

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10.6.3 A necessidade de balizar o campo de atuação da ordem pública internacional
A ordem pública internacional é um conceito indeterminado. Por este motivo, importa
delimitar o seu campo de atuação:
1) A ordem pública internacional deve ser invocada sempre que a aplicação das normas
materiais da lex causae estrangeira conduza a um resultado chocante sob o ponto de vista dos
valores jurídicos e dos interesses fundamentais da lei do foro. É, portanto, uma censura ao
resultado chocante decorrente da aplicação da lex causae estrangeira, e não uma censura à lex
causae estrangeira propriamente dita.
2) A ordem pública internacional só poder ser invocada quando a situação jurídico-privada
internacional tenha um contacto suficientemente forte com o ordenamento do foro (doutrina
alemã da Inlandsbeziehung). Existem, contudo, casos em que o resultado decorrente da
aplicação da lex causae estrangeira entra em conflito com princípios essenciais de toda a
comunidade humana, não se exigindo que haja um nexo de ligação relevante entre a situação
jurídico-privada internacional e o ordenamento do foro (ex. denegação da personalidade
humana, recusa de direitos fundamentais da pessoa humana, poligamia, etc.).
10.6.4 As características da ordem pública internacional
A ordem pública internacional apresenta algumas características:
1. Excecionalidade: A ordem pública internacional, por um lado, só atua após todo o sistema
de DIP ter atuado e, por outro lado, só atua nos casos em que a aplicação das normas
materiais da lex causae estrangeira conduza a um resultado chocante sob o ponto de vista dos
valores jurídicos e dos interesses fundamentais da lei do foro.
2. Imprecisão: A ordem pública internacional é um expediente de concretização judicial que
atende às circunstâncias do caso concreto para se chegar à conclusão de que o resultado
decorrente da aplicação da lex causae estrangeira é ou não chocante sob o ponto de vista dos
valores jurídicos e dos interesses fundamentais da lei do foro.
3. Atualidade: A ordem pública internacional atua com base nas conceções vigentes no
momento em que o problema emergente da situação jurídico-privada internacional se
encontra em julgamento.
4. Nacionalidade: A ordem pública internacional atua com base nas conceções vigentes na
lei do foro.
5. Relatividade: Tendo em consideração que a atuação da ordem pública internacional
depende de uma avaliação subjetiva por parte do julgador, a doutrina e a jurisprudência
oferecem determinados critérios para o auxiliar nessa avaliação:
- Quanto mais forte for o contacto entre a situação jurídico-privada internacional e o
ordenamento do foro, mais facilmente se pode invocar a ordem pública internacional.
- Quanto maiores forem as expetativas dos sujeitos na aplicabilidade da lex causae
estrangeira (por exemplo, quando estejam em causa situações já-constituídas), mais
dificilmente se pode invocar a ordem pública internacional.
- Quanto mais consolidada estiver a situação jurídico-privada internacional, mais
dificilmente se pode invocar a ordem pública internacional.
- A ordem pública internacional pode atuar para, por um lado, permitir a produção de
efeitos patrimoniais do casamento e, por outro lado, proibir a produção de efeitos pessoais do
casamento (teoria do efeito atenuado da ordem pública internacional).

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10.6.5 As funções da ordem pública internacional
A ordem pública internacional afasta a aplicação das normas materiais da lex causae
estrangeira, sendo que este afastamento pode implicar dois tipos de efeitos que correspondem
às funções que este expediente pode cumprir:
- Função proibitiva: Quando a ordem pública internacional afasta a aplicação das normas
materiais da lex causae estrangeira, proíbe a produção de um determinado efeito jurídico que
seria permitida à luz da lex causae estrangeira.
- Função permissiva: Quando a ordem pública internacional afasta a aplicação das normas
materiais da lex causae estrangeira, permite a produção de um determinado efeito jurídico
que seria proibida à luz da lex causae estrangeira.
10.6.6 As consequências da atuação da ordem pública internacional
O afastamento da aplicação das normas materiais da lex causae estrangeira, por força da
atuação da ordem pública internacional, pode conduzir a uma lacuna. Coloca-se, então, a
questão de saber como colmatar essa lacuna. De acordo com o artigo 22º, n. 2 CC, na
hipótese de lacuna, só se recorre à lei do foro se na lex causae estrangeira não se encontrarem
normas materiais adequadas ao caso concreto.

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