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A ternura não nos torna mais produtivos; ela não é orientada por tarefas, administrável

ou manipuladora; ela não nos torna mais eficientes e não funciona como uma
ferramenta de autoajuda para obtenção de o na esfera financeira e A ternura afeta
nosso modo o de amor próprio,conforme revelado no mandamento de Jesus ‘ame o seu
próximo como a si mesmo’ (Mateus 22.39), más é mais que isso. Ela inclui
autoaceitação, mas também é que isso. Ela é« sentimento de que, embora não tenha
que gostar de mim mesmo, eu gosto; e de que, embora não tenha que aceitar a mim
mesmo, eu aceito.”
Brennan Manning

A Sabedoria da Ternura
O que acontece quando compreendemos e aceitamos o amor de Deus que
transforma nossas vidas

ePub r1.0
Editor 23.10.14
Título original: The wisdom of tenderness
Brennan Manning, 2002
Tradução: Jorge Camargo
Sumário

Agradecimentos

Uma palavra antes...

A ternura de Deus

A chancela da verdade

Cristo em outros

O sonho impossível

Pecado: O inimigo da ternura

Dor e ternura

Misericórdia resoluta

Uma palavra depois...


Para pecadores notórios que têm abençoado minha vida com sua amizade:

John Peter, Paul, Butch, Mike, Fil, Ed, Lou, Alan, Mickey, Bob, John, Devlin,
Gene, e o outro Paul.
Agradecimentos
Quero expressar minha mais profunda admiração pelo pensamento seminal de Kevin
0’Shea e Walter Burghardt, cujas impressões contribuíram imensuravelmente ;para a
elaboração deste livro.
A Steve Hanselman, editor da HarperSanFrancisco, que encontra “sermões em
histórias, línguas em árvores, livros em riachos” e bem em tudo o que rabisco.
A Kathy Reigstad, cuja edição hábil tornou este livro mais convincente e coerente
que o rascunho desajeitado que entreguei.
A meu amigo Ed Moise, Chefe de Cozinha do Restaurante Toulose 8271/2 no
Quarteirão Francês e guru de computador cuja genialidade transformou a remota
possibilidade de cumprir o prazo final de entrega em realidade.
Prólogo

Uma palavra antes...

No ano passado, fiquei ainda mais incomodado com o estado da espiritualidade


contemporânea no mundo ocidental. Ela tem, falando de modo bem leve, sabor de
sorvete velho e o gosto insípido de uma salsicha sem graça.
Recentemente, vários líderes cristãos proeminentes opinaram que estamos no meio
de um grande avivamento espiritual, semelhante aos dos séculos XVIII e XIX. Quem
seria capaz de ter um otimismo assim tão empolgante? Ao menos este tanto pode ser
dito: quando os livros cristãos mais vendidos do ano passado celebraram a oração
autocentrada, a agitação dos fins dos tempos, e as conversas fictícias com Deus no
salão verde do Armagedom, podemos com certeza afirmar que um avivamento
espiritual não é iminente, que silencio e solidão são as primeiras consequências da
espiritualidade melodramática e que o excedente de tanta informação e conhecimento
inúteis tem recebido lugar de destaque, cm detrimento da sabedoria e da
autenticidade pessoal.
A sabedoria bíblica é assunto completamente diferente. Nas cartas do apóstolo
Paulo, a mais poderosa voz profética para a igreja de nossa era, a sabedoria é
personificada na pessoa de Jesus Cristo, que é “o poder de Deus e a sabedoria de
Deus” (1 Coríntios 1.24). Esta voz profética de liberdade ainda proclama à igreja
contemporânea, “ora, o Senhor é o Espírito e, onde está o Espírito do Senhor, ali há
liberdade” (2 Coríntios ,3-17). Estas palavras são puro eco do ensino de Jesus: j“se
vocês permanecerem firmes na minha palavra, verdadeiramente serão meus
discípulos. E conhecerão a verdade, e a verdade os libertará” (João 8.31,32). Por que
então há tanta falta de liberdade nos círculos religiosos atuais? A triste verdade é que
muitos cristãos temem a responsabilidade de ser livres. Quase sempre é mais fácil
deixar que outros tomem as decisões ou fiar-se exclusivamente na letra da lei. Alguns
homens e mulheres querem ser escravos.
A sabedoria ensina que o alvo de nossas vidas é vivermos com Deus para sempre.
Somos peregrinos que estão de passagem, e Jesus nos aconselha a contarmos os
poucos dias que temos a fim de alcançarmos corações sábios. Quando aceito no fundo
de meu ser que a conquista suprema de minha vida sou eu - a pessoa que me tornei e
quem outras pessoas são por causa de mim - então, viver na sabedoria que aceita a
ternura não é uma técnica, nem uma arte, nem a estratégia carnegiana[1] de como
ganhar amigos e influenciar pessoas, mas um modo de vida, uma presença distinta e
engajada de Deus, outros maltrapilhos, e eu.
Aceitando-me como alguém amado por Deus com infinita ternura, sou liberto das
manias e bobagens penduradas a uma combinação pitoresca de artefatos e atitudes: a
descendência, a nação, a igreja, dinheiro, ego, titulações, desempenho sexual,
segurança, violência e os deuses mesquinhos da vida moderna. E por isso que rejeito
a “prudência” de igrejas sábias de Nova Iorque à Califórnia que me dizem: “o amor de
Deus é um tema maravilhoso; não o force demais”, e me apego ao Deus de minha
experiência, cujo amor excede os limites da crença.
As distorções e caricaturas de Deus que emporcalham o cenário cristão da
atualidade - desde a deidade enfurecida que determina a matança de policiais e
bombeiros inocentes (11/09/2001) porque considera o aborto e a homossexualidade
intoleráveis; ao patriarca afável, permissivo, que faz vista grossa ao adultério, apoia a
intolerância e permanece insensível quando milhares de cristãos enganados
finalmente saem da igreja para preservar sua fé e sanidade - são obra de vendedores
bem-sucedidos posando de líderes espirituais.
Por outro lado, Jesus, “ao ver as multidões, teve compaixão delas” (Mateus 9.36). O
processo de mergulharmos nos comentários e léxicos, de habitarmos as profundezas
dos estudiosos e reverenciarmos os pregadores pode ter nos cegado para a
luminosidade desta passagem de Mateus. Ela fala da ternura essencial de Jesus, de
seu modo de olhar para o mundo, de seus mais profundos sentimentos para conosco,
maltrapilhos marcados pelo pecado.
Se nos sentirmos assediados pelo ativismo, desanimados com nossas necessidades
de afeto não atendidas, e preocupados de que nossas vidas sejam uma enorme
decepção para Deus, nossa dignidade própria poderá aumentar ou diminuir como
velas reagindo ao vento, conforme a aprovação ou desaprovação de outros. Se nos
apegarmos a determinada medida de respeito próprio, ela poderá ser que aquilo que
H. L. Mencken descreve como o sentimento seguro do qual ninguém ainda
desconfiou.
No imperfeito embora poderoso filme Apocalypse Now, o capitão Willard (Martin
Sheen) recebe ordens para “eliminar” o coronel Kurtz (Marlon Brando), um oficial
independente do exército norte-americano que lidera uma comunidade de renegados
no Camboja. Durante o primeiro encontro entre eles, Kurtz pergunta ao jovem
capitão, “você sabe o que é liberdade?”.
“A verdadeira liberdade é estar livre das opiniões dos outros”, responde Kurtz, com
seus olhos ardendo com intensidade. “Acima de tudo, estar livre de suas, próprias
opiniões sobre si mesmo”.
Todos aprendemos como é difícil dialogar com uma pessoa que considera
impensável estar errada acerca de qualquer assunto. Em algum ponto de nossa
jornada já nos deparamos com pessoas assim. Será que sou uma delas? Seriam
minhas opiniões sobre mim tão irredutivelmente corretas que não consigo considerar
com mente aberta uma percepção diferente de mim mesmo oferecida por um amigo
ou colega? Sim, às vezes sou intoleravelmente teimoso. Você é assim? Muito mais do
que já me dei conta, tenho escutado alguém com auto-baixa estima dizer algo como
“eu simplesmente não posso aceitar que os sentimentos de Jesus para comigo sejam
diferentes daqueles que nutro por mim”. Em outras palavras, a pessoa está dizendo,
“não permitirei que Jesus seja Jesus em minha vida”. Tamanha intransigência não
somente anula a possibilidade de se viver cada dia na sabedoria da ternura; ela
também condena quem a possui a uma existência solitária e sem amor, que impede
Jesus de ser o Salvador que nos liberta do medo do Pai e da aversão a nós mesmos.
Na experiência dos relacionamentos calorosos, acolhedores e afetuosos, o coração
vai amolecendo. A ternura não nos torna mais produtivos; ela não é orientada por
tarefas, administrável ou manipuladora; ela não nos torna mais eficientes e não
funciona como uma ferramenta de auto-ajuda para obtenção de sucesso na esfera
financeira e social. A ternura afeta nosso modo de ser e não o nosso modo de fazer no
mundo. Ela nos leva a uma presença meiga para nós mesmos, para os outros e para
Deus. Ela inclui um elemento de amor próprio, conforme revelado no mandamento de
Jesus “ame o seu próximo como a si mesmo” (Mateus 22.39), mas é mais que isso. Ela
inclui auto-aceitação, mas é mais que isso também. Ela é o sentimento de que, embora
não tenha que gostar de mim mesmo, eu gosto; e de que, embora não tenha que
aceitar a mim mesmo, eu aceito.
A Bíblia de Jerusalém é a única tradução dentre as cinco mais usadas nos Estados
Unidos que emprega consistentemente a palavra ternura (as outras são N VI, NAB,
NRSV e KJV). Em 1956, ela foi traduzida para o francês a partir de fontes hebraicas,
aramaicas e gregas; a tradução inglesa foi feita a partir do francês. O substantivo
francês la tendresse é mais rico em significado que o inglês tenderness que é
normalmente a sua tradução. Usado cm conjunto com les bras (“os braços”) o verbo a
ele relacionado, étendre, significa “estender os braços” num gesto de amor que
acolhe. Quando Jesus diz “Você está cansado? Esgotado? Decepcionado com religião?
Venha a mim, saiamos disso juntos e você recobrará a sua vida” (Mateus 11.28, The
Message), a imagem pungente de seus braços estendidos comunica anseio, desejo
intenso e uma compreensão profunda da condição humana. Jesus sabe que
enfrentaremos fadiga ao longo do Caminho e que seremos incompreendidos,
espancados, consumidos pela igreja, pelos relacionamentos, pelas muitas tarefas
como pais, ministério, pela carreira, pelos apetites, cios e por nossas neuroses
recorrentes.
A ternura de Jesus nos liberta do constrangimento conosco mesmos. Ele nos deixa
saber que podemos arriscar ser conhecidos, que nossas emoções, sexualidade e
fantasias são purificadas e restauradas por seu toque curador e que não temos que
temer nossos temores com relação a nós mesmos. A sabedoria que emana da ternura
é, como maltrapilhos comissionados por Deus, podermos confiar em nós mesmos e
com isso aprendermos a confiar nos outros. Quando a ternura que cura se apossa de
nossos corações, o falso eu, sempre vigilante em se proteger contra a dor e buscar
somente reconhecimento e admiração, se dissolve na terna presença do mistério.
Philip Yancey, que se autodescreve como uma “alma sobrevivente”, cuja fé
sobreviveu à igreja, escreve, “embora eu ouvisse que ‘Deus é amor’, a imagem que
obtinha a partir dos sermões mais se assemelhava à de um tirano raivoso e vingativo”.
E continua,

Cantávamos "vermelho e amarelo, preto e branco, eles são preciosos aos


olhos de Deus...”, mas ai de algum daqueles filhos vermelhos, amarelos ou
pretos se tentasse entrar em nossa igreja. Mestres da Bíblia insistiam, "vivemos
não debaixo da lei, mas debaixo da graça”, mas, a partir de minha própria vida,
eu não conseguia observar muita diferença entre os dois estados.

Um sacerdote casado amigo meu da Califórnia solicitou a exclusão de sua condição


sacerdotal da Igreja Católica Romana que permitiria a seus três filhos adotivos
frequentar uma escola católica. Ele se apresentou humildemente às pessoas sem
princípios dos escritórios romanos apenas para ser humilhado, e descreveu o processo
como “a experiência mais ultrajante de minha vida”. As humilhações premeditadas
das interrogações orais e escritas dirigidas a um homem que havia dado vinte anos de
serviço abnegado ao sacerdócio e que havia violado, não o evangelho de Jesus Cristo,
mas uma lei disciplinar da Igreja Católica, não poderiam e não abalariam a sua fé em
Cristo e seu compromisso com a comunidade eucarística.
Quando a resposta da carta chegou, trouxe consigo um sabor amargo de
desligamento desonroso. Ela comunicou a meu amigo que ele não pode ria mais ler
trechos das Escrituras na missa, dar a comunhão aos fiéis ou ensinar em uma
instituição católica de ensino superior. Além disso, tinha que se mudar
geograficamente do local onde havia exercido seu ministério para evitar
“escandalizar” os leigos (embora oitenta por cento dos católicos norte-americanos
apoiem um sacerdote casado).
Como escreve Eugene Kennedy, professor emérito de psicologia da Loyola
University, em Chicago, “o desrespeito ao outro... é, frequentemente, a agenda
invisível, quando um inquisidor denigre o sujeito da investigação por meio do próprio
processo investigativo... Isto é poder grotescamente mascarado de autoridade,
aviltando as pretensões desta última como sistematicamente avilta aqueles que o
questionam”.
Um clérigo proeminente que também havia sido rebaixado à condição de leigo
(com a suposição implícita de que o estado de celibatário é superior) observou:
“Católicos condenados ao corredor da morte têm mais direitos na igreja do que eu”.
Orientado por amigos no passado a enviar o mesmo tipo de carta, recusei-me a
fazê-lo. Simplesmente não posso, em sã consciência, me tornar um delator — um
conspirador silencioso — neste processo corrupto e corruptor. Como cristão, estou
decepcionado, enfurecido e entristecido diante desse disfarce de ternura. Esse é um
exemplo da razão pela qual a igreja institucional, que existe para servir ao povo de
Deus, não deve jamais ser confundida com a igreja enquanto mistério - a nuvem de
testemunhas centrada em Cristo, biblicamente fiel, terna e compassiva, que vive o
que prega.
E claro que o abuso da igreja não está limitado a uma denominação. Em horas
incontáveis de aconselhamento com cristãos de um amplo espectro de comunidades
de fé, tenho ouvido muitas histórias de pessoas despojadas de sua dignidade,
publicamente humilhadas, e até mesmo “ignoradas” por sua congregação. No entanto,
em quase todos os casos, sua lealdade a Jesus Cristo não diminuiu, mas se fortaleceu
no compartilhar de seu sofrimento. Esses cristãos não se alegraram com a dor, mas
foram enriquecidos por ela.
Em contraste com a brutalidade cotidiana da igreja institucional, Jesus sequer
perguntou à mulher adúltera trazida diante dele se ela se arrependera (João 8.1-11).
Sentindo sua vergonha extrema - vergonha que havia sido suscitada pelo
interrogatório impiedoso dos líderes religiosos - Jesus a perdoou antes mesmo que ela
lhe pedisse perdão!
Quando pregadores e pastores, querendo justificar sua própria fúria com a Nova
Era, os liberais, roupas provocativas, gays, Hollywood, homens que usam brincos e
rock pesado, invocam a ira de Jesus quando limpou o templo, e menosprezam o fato
de que a ira de Cristo é a reação impetuosa inicial de seu amor.
A imensa ternura do coração de Jesus é emocionadamente expressa quando ele
visita a cidade de Naim (Lucas 7.11-17). O filho único de uma viúva morrera e seu
corpo estava sendo carregado por parentes, passando pelo portão de entrada da
cidade, rumo ao cemitério. Vendo a face da mãe marcada pela dor, Jesus se entristece,
é movido de piedade e sente compaixão por ela; Seu coração se identifica com o dela.
Jesus toma seu rosto em suas mãos e sussurra, “shhh, eu sei”. Ele enxuga as lágrimas
dos olhos dela com seus dedos polegares, e então diz, “não chore”. Jesus é a face
humana de Deus e nesse momento (como em todos os outros), você e eu estamos
sendo observados pelo mesmo olhar de infinita ternura.
Ser formado e informado pela sabedoria da ternura tem conexão direta com nossos
relacionamentos interpessoais. Ilustração:
“Você é um tremendo ingrato!” A irritação na voz dela é palpável.
O que teria provocado esta reação abrupta e inesperada? Estou apenas
enxaguando seis tigelas de cereais que nunca tinham sido usadas. E esfrego com
força porque, como minha mãe costumava dizer, se vai fazer alguma coisa, faça
direito. Imediatamente tomei consciência de duas opções.
A primeira é dar uma resposta seca que cortará sua psique frágil em pedacinhos:
“Se, como dizem as grandes mentes, a limpeza está próxima da piedade, sua alma
rala, estúpida e insignificante está deslizando rumo ao Sheol [inferno].” A segunda é
dizer, "Deus me ajude, sou obsessivo/compulsivo em se tratando de limpeza. Um
neurótico! Preciso colocá-la sobre um pedestal. Você tem sido paciente demais
comigo, e há muito tempo”. Segurando meus dedos ensaboados atrás de minhas
costas, me inclino e a beijo no rosto, colocando minha cabeça sobre seu ombro.
O coração envolvido pela ternura de Deus passa essa ternura adiante
indiscriminadamente, sem distinção entre o que a merece e o que não a merece.
Em minhas viagens nos últimos vinte anos, tenho cruzado linhas denominacionais
por várias vezes, e tido o privilégio de compartilhar as Boas Novas com batistas do sul
e católicos, metodistas e morávios, episcopais e presbiterianos, evangélicos e
fundamentalistas, luteranos, quacres, anglicanos e assembleianos. Estou ansioso e
feliz por registrar que não somente encontrei incontáveis indivíduos que estão
preservando as Boas Novas do cristianismo das armadilhas da religião organizada e
das garras da piedade convencional, como também tenho visitado vários bastiões
evangélicos - comunidades de fé, grandes e pequenas - fazendo a mesma coisa.
Esses companheiros vivem absortos em oração e centrados em Jesus. Falhos como
todos nós, eles riem muito e com facilidade de si mesmos e de suas pretensões de
santidade. Voltam seus rostos na direção de nosso mundo quebrado com olhos para os
desamparados e uma preocupação preferencial pelos pobres. No culto de domingo,
não medem o sucesso pelo número de vozes erguidas em louvor ou dos ritmos
variados do ministério de música. A adoração é sincera e alegre, o louvor banhado em
gratidão. O ministro ou sacerdote pode não ter muita eloquência, um vocabulário
rebuscado ou uma personalidade carismática, mas o fogo silencioso cm suas
entranhas é inconfundível, e a pregação vem do coração.
Palavras sem poesia carecem de paixão; palavras sem paixão carecem de
persuasão; palavras sem persuasão carecem de poder. Quando a linguagem do
deveria ou do teria que predomina, a palavra pregada e escrita se transforma em
terra seca, vazia de paixão, persuasão e poder. No encerramento de muitos sermões, a
exortação, “agora façamos...” não carrega convicção nem poder. Sem o compartilhar
da experiência pessoal, a pregação profética é impossível. A Palavra de Deus deve
estar encarnada na vida do pregador.
A solidão é a fornalha da transformação, e acender o fogo interior é a sabedoria do
silêncio. Esta sabedoria torna o discurso pessoal; sem ela, o diálogo é impossível.
Palavras sobre Jesus que não vêm de dentro são inúteis, enquanto palavras nascidas
do silêncio comunicam conhecimento íntimo, afetuoso e amoroso do Senhor Jesus. No
profeta Oséias, Deus fala do modo como um jovem apaixonado poderia convencer sua
amada a casar-se com ele: “agora vou atraí-la; vou levá-la para o deserto e falar-lhe
com carinho” (2.14).
Rejeite o silêncio e a solidão como troféus reservados a monges e freiras
enclausurados, e as consequências para o discipulado serão previsíveis. O critério
único para admissão no “Reino que lhes foi preparado desde a criação do mundo”
(Mateus 25.34) é a confissão de Jesus como Senhor, não o modo como “algum dos
meus menores irmãos” foi alimentado, vestido, recepcionado e visitado. E, no entanto,
quando a discriminação contra mulheres continua sem ser combatida; quando as
minorias são consideradas cidadãos de segunda classe; quando a liderança é perita
nos princípios de mega-igrejas e não no culto humilde; quando os pobres e os párias
não são bem-vindos à mesa; quando a obediência ao Pai, o serviço amoroso pelos
outros e a simplicidade de vida são considerados esfera de ação exclusiva da elite dos
que crêem; quando a grandeza evangélica é medida pela conquista e não pela
pequenez; e quando a rejeição e o sofrimento inerentes ao testemunho ousado da
verdade são racionalizados, minimizados e finalmente pulverizados em estudos
bíblicos impertinentes, então Jesus é transformado em um anacronismo, seus ensinos
são transformados em algo irrelevante e seus seguidores transformados em uma
multidão anônima - entretanto, seus investimentos permanecem intactos, seus cartões
de crédito e suas quinquilharias assegurados; uma manada constrangida, se movendo
em passo de marcha com os bajuladores, absorvida em seus próprios interesses, que
se mantém ocupada “expandindo seus territórios para a glória de Deus”.
Se conhecessemos o Novo Testamento de cor, se ouvíssemos seus trovões soando
em nossos ouvidos, distinguindo-os dos sons tolos e das sirenes persuasivas do
mundo, se soubéssemos de cor ao menos uma sílaba de uma palavra dentro de uma
sentença do Sermão do Monte, se déssemos ouvidos à voz da águia de Patmos, se
cressemos que nos deixarmos ser amados por Deus é mais importante que amar a
Deus, nunca mais toleraríamos as maquinações de religiosos manipuladores que
distorcem a face de Deus. Nunca mais os que caíram seriam humilhados publicamente
diante da congregação. Nunca mais pregadores destemperados teriam autorização
para aterrorizar pessoas nos bancos das igrejas. Nunca mais nos colocaríamos ao lado
de celebridades clericais e nos curvaríamos aos ricos e poderosos. Nunca mais a
primazia de amar estaria subordinada a uma suposta ortodoxia. Nunca mais a barra
do salto com vara seria rebaixada. Nunca mais nenhuma igreja ousaria fazer mal a
outra, e nunca mais a voz profética de um Martin Luther King Jr. ou de um Daniel
Berrigan seria silenciada.
O cerne deste pequeno livro pode ser definido rápida e sucintamente. Em um
momento de honestidade extrema, pergunte a si mesmo, “eu confio de coração em
que Deus gosta de mim?” (não me ama, porque teologicamente Deus não pode agir de
outro modo). “E eu confio que Deus gosta de mim, neste momento, agora mesmo, com
todas as minhas falhas e fraquezas, antes de eu ter me purificado e eliminado todo e
qualquer vestígio de pecado, egoísmo, desonestidade e amor degradado; de
desenvolver uma vida de oração disciplinada e passar dez anos em Calcutá com as
missionárias de Madre Teresa?”. Se você responder, sem pestanejar, “Oh, sim, Deus
gosta; na verdade, é apaixonado por mim,” você está vivendo na sabedoria que aceita
a ternura.
Ofereço A sabedoria da ternura como uma bússola, mais que um manual; um farol,
mais que um livro de instruções; uma visão, mais que sessenta e seis passos para a
maturidade espiritual.

E assim, fazendo o melhor que posso com o que tenho, tentarei nestas páginas
compartilhar com você minha compreensão limitada do maravilhoso mistério que os
maltrapilhos chamam “Abba”.
Uma pequena palavra, mas que carrega a sabedoria transformadora que está além
de todo entendimento.

Brennan Manning
New Orleans

Leitura Recomendada:
Kennedy, Eugene. The Unhealed Wound: The Church and Human Sexuality. New
York: St. Martins Press, 2001.
Yancey, Philip. Alma sobrevivente: Sou cristão, apesar da Igreja. São Paulo, SP:
Mundo Cristão, 2004.
Capítulo I

A ternura de Deus

Toda mudança na qualidade da vida de uma pessoa deve ser resultado de uma
mudança em sua visão da realidade. O cristão aceita a Palavra de Jesus Cristo como a
visão original da realidade. A Pessoa e o ensino de Jesus moldam a nossa
compreensão de Deus, do mundo, das outras pessoas e de nós mesmos. Este molde
exerce uma influência decisiva no estilo de vida do cristão.
Um exemplo simples: se aceitarmos a revelação de Jesus de que Deus é Pai, que há
“um só Deus e Pai de todos, que é sobre todos, por meio de todos e em todos” (Efésios
4.6), então estamos fazendo uma declaração, não somente acerca de Deus, mas de
nós mesmos. Dizer, “Abba, Pai”, no Espírito é dizer que somos filhos. E reconhecer
que outras pessoas são nossos irmãos e irmãs na família humana. Esta compreensão
afeta nosso estilo de vida porque implica aceitação de outros e responsabilidade por
outros: fazermos o melhor para prover aos membros da família todas as coisas de que
necessitam. Este relacionamento familiar deve ser interpretado literalmente, pois é
coisa de carne e sangue, no vínculo do Espírito Santo. A verdadeira comunidade cristã
é a realização e a autenticação da oração, “Pai Nosso, que estás no céu”.
O autor clássico A. W. Tozer observa a ligação entre a nossa percepção de Deus e a
nossa compreensão da humanidade como crucial. Ele escreve,

O que vem à nossa mente quando pensamos sobre Deus é a coisa mais
importante a nosso respeito... se fôssemos capazes de extrair de algum homem
uma resposta completa à pergunta: “O que vem à sua mente quando você pensa
sobre Deus?”, poderíamos predizer com certeza o futuro espiritual desse
homem. Se soubéssemos exatamente aquilo que nossos líderes religiosos mais
influentes pensam de Deus hoje, seríamos capazes de, com a mesma precisão,
prever onde a igreja estará amanhã.

Formados e informados pela Palavra de Deus, santos e místicos, através dos


séculos, têm entoado o mesmo refrão: Deus não consegue não nos amar. Sem a
geração eterna e interior do amor, Deus deixaria de ser Deus. Embora repletos de
egoísmo, indiferentes aos pobres, atormentados pela luxúria, enredados em
autocomiseração e paralisados pela depressão, o amor de Deus continua a nos
carregar. Segundo João, a essência de nossa fé repousa na confiança que temos no
amor de Deus (1 João 4.16). A salvação acontece no momento em que aceitamos sem
reservas aquilo que G. K. Chesterton chamou de amor “furioso” de Deus. A vida de
pregação, ensino e cura de Jesus e sua morte e ressurreição são as supremas
manifestações de um amor que desafia a compreensão humana.
Quer sua infância tenha sido tranquila quer sofrida, o desafio permanece: você se
aceita como alguém extremamente amado por Deus? O amor humano, experimentado
em um lar feliz, embora rico e recompensador, não se compara nem de longe ao amor
divino, e a absoluta privação de afeto não é nenhum impedimento insuperável ao “ser
tomado pelo poder de uma grande afeição”. Tanto os que foram bem amados quanto
os que não conheceram outra coisa senão desrespeito no lar necessitam da graça
obstinada para dar um salto de fé, na direção dos braços do amor. Assim, ninguém
está isento.
Mas e a justiça de Deus? As Escrituras declaram de maneira inequívoca que Deus é
amor e justiça. Os dois conceitos não estariam em posições diametralmente opostas?
Um não deveria obrigatoriamente ter prioridade sobre o outro? Teresa de Lisieux,
reconhecida como doutora da igreja por causa da veracidade e da profundidade de
sua análise da vida espiritual, registrou as seguintes palavras: “Espero da justiça de
Deus o mesmo que de sua misericórdia. E é por ser justo que Ele é compassivo e
misericordioso". E ela continua, “pois ele conhece as nossas fraquezas e se lembra de
que somos pó. Como um pai tem ternura por seus filhos, assim o Senhor tem
compaixão de nós. Não compreendo almas que têm medo de um Amigo assim tão
terno... que alegria pensar que Deus é justo, que leva em conta as nossas fraquezas,
que conhece perfeitamente a fragilidade de nossa natureza”.
A origem deste livro pode ser atribuída a um longo período de silêncio e solidão
que passei nas montanhas Allegheny, no oeste da Pensilvânia. Meu retiro começou
irregularmente, com vários dias de fadiga física, sequidão espiritual, enfado e
sentimentos vagos de culpa existencial sob a perspectiva de que eu pudesse estar
usando o ministério para saciar meu apetite por aprovação e reconhecimento. No fim
da tarde do quinto dia, me arrastei até a capela para suportar mais uma hora de
Grande Contemplação: meditação. Ao me ajeitar em uma cadeira de costado reto, os
sinos badalaram quatro vezes.
Treze horas depois, levantei-me da cadeira e saí da capela com urna frase soando
em minha mente e pulsando em meu coração: “viva na sabedoria da aceitação da
ternura!”.
Mais uma vez, toda mudança na qualidade da vida de um cristão deve ser
resultado de uma mudança em sua visão da realidade. Treze horas de silêncio e
solidão alteraram radicalmente minha percepção de tudo.
Se receber a graça de compreender com minha mente e de aceitar com meu
coração que a essência da natureza divina é a compaixão, Deus então será mais bem
definido como o coração de ternura. A igreja diariamente clama no louvor matinal,
“na terna compaixão do nosso Deus, a aurora do alto irromperá sobre nós para brilhar
sobre aqueles que habitam na escuridão e para guiar nossos pés no caminho da paz”
(Lucas 1.78-79, itálicos meus).
Identificar Deus como o coração da ternura é identificar o Espírito Santo como o
vínculo da ternura entre o Pai e o Filho. Assim, o doce Espírito habitando em nós é a
mais profunda expressão da ternura - de fato, o cristão cheio do Espírito é aquele cujo
coração está transbordante de ternura - que representa a cura plena de nossa dor
através de sua vinda a nós.
Qual é o verdadeiro significado de ternura? É preciso ter cuidado aqui:
corrompemos nosso senso de realidade ao sentimentalizar o conceito. Quando esse
tipo de excesso se manifesta, a alma é envenenada por emoções românticas e a
ternura degenera em melodrama.
Noah Webster define ternura como sensibilidade às emoções, aos sentimentos de
outros. Kahlil Gibran, em Sua obra Jesus: o Filho do Homem, diz: “a tristeza [de Jesus]
foi ternura para aqueles que estavam feridos e solidariedade para com os solitários.”
Biblicamente, ternura é o sentimento que vem quando alguém lhe revela a sua beleza
interior, quando você descobre sua capacidade de amar, quando experimenta o fato de
que é profunda e sinceramente querido por alguém. Se você me comunica que real
mente gosta de mim, não me ama apenas como um irmão em Cristo, que tem prazer
em mim (e teria, mesmo que eu não tivesse escrito uma linha sequer), então você me
abre a possibilidade de que eu goste de mim mesmo. O olhar de respeito amigável em
seus olhos lança fora meus temores, e meus mecanismos de defesa (tais como o
isolamento, o contar vantagem e o dar a impressão de que os tenho todos juntos)
desaparecem no vazio de minha desatenção para com eles. Sua receptividade
enfraquece meu desprezo próprio e permite a possibilidade da auto-estima. Deixo cair
minha máscara de pretensa piedade, paro de me personificar como um “santo”, de
dar tom de espiritualidade à minha voz, começo a sorrir diante de minha própria
fragilidade, e ouso me tornar mais aberto, sincero, vulnerável e carinhoso com você
do que jamais sonharia ser se pensasse que você não gosta de mim. Em resumo, o que
acontece é que me torno cada vez mais terno.
Anos atrás, Edward Farrell, de Detroit, aproveitou suas férias de duas semanas na
Irlanda para comemorar o aniversário de oitenta anos de seu tio predileto. Na manhã
do grande dia, Ed e seu tio levantaram antes do amanhecer, se vestiram
silenciosamente e foram caminhar às margens do Lago Killarney. Quando o sol
nasceu, seu tio se virou e olhou fixamente para o horizonte já iluminado pela luz solar.
Ed ficou ao seu lado por vinte minutos sem que trocassem nenhuma palavra. O tio
idoso então começou a caminhar adiante, ao longo da praia, com um sorriso radiante
em seu rosto.
Depois de alcançá-lo, Ed comentou, “Tio Seamus, você aparenta estar muito feliz.
Quer me contar por quê?”

“Sim, meu jovem”, disse o velho homem, com lágrimas rolando em seu rosto. “Veja
bem, o Pai é apaixonado por mim. Ah, meu Pai é muito apaixonado por mim.[2]
Seamus respondeu afirmativamente e de maneira clara a pergunta feita na
introdução. “Será que confio inteiramente no fato de que Deus gosta de mim?” (Não
me ama, porque, como você deve se lembrar, Deus ama porque isto é parte de sua
natureza). Se você também pode responder com honestidade corajosa, “Oh, sim, o Pai
é muito apaixonado por mim,” segue-se à resposta uma tranquilidade e uma
serenidade, uma atitude compassiva para consigo mesmo em seu quebrantamento,
que esclarece o significado de ternura.
Isto então descreveria aquilo que aconteceu a Jesus no início de seu ministério?
Como Lucas nos conta, “Quando todo o povo estava sendo batizado, também Jesus o
foi. E, enquanto ele estava orando, o céu se abriu e o Espírito Santo desceu sobre ele
em forma corpórea, como pomba. Então veio do céu uma voz: ‘Tu és o meu Filho
amado; em ti me agrado’” (Lucas 3.21,22).
Em um dos mais dramáticos momentos na história da salvação, Abba confirmou a
condição única de seu Filho unigênito como o Amado. Para Jesus, a voz do céu
ratificou trinta anos de crescimento e busca em Nazaré. Proporcionou uma
experiência clara de identidade central: Filho, Servo e Amado. Com aquelas palavras,
o favor de Abba repousou sobre Jesus como cm nenhum outro, delineando de modo
irrevogável sua pessoa e missão. Seriamos ousados em dizer que Jesus experimentou
na profundidade de sua alma humana o quanto o Pai gostava dele? Que Abba revelou
sua beleza interior a ele? Teria o Homem que foi semelhante a nós em todas as coisas,
exceto a ingratidão, descoberto sua própria verdade à luz do olhar amoroso que
repousou sobre ele? Por ter Jesus crescido em sabedoria, idade e graça, seu batismo
no rio Jordão marcou um momento decisivo em sua autocompreensão.
E não desconsideremos a origem étnica de Jesus. Jesus de Nazaré foi um judeu:
criado e educado na cultura judaica. Suas raízes foram davídicas. Como todo judeu
devoto, ele orava o Shema Israel de manhã e ao fim do dia: “Ouça, ó Israel: O Senhor,
o nosso Deus, é o único Senhor. Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de
toda a sua alma e de todas as suas forças” (Deuteronômio 6.4,5). A Torá, o templo e a
sinagoga moldaram a vida interior de Jesus, juntamente com as grandes festas
litúrgicas - a Páscoa, a das Semanas, a dos tabernáculos, o Rosh Hashanah, o Yom
Kippur - e a plena atmosfera da oração judaica.
Chegou, no entanto, um ponto na evolução do desenvolvimento religioso de Jesus
quando ele não mais se dirigiu a Deus por meio das invocações hebraicas tradicionais
- Adonai, Elohim, El Shaddai, Iaweh - mas teve de chamá-lo Abba, o nome verdadeiro
que implica ternura. Daquele momento em diante, para Jesus e para seus seguidores,
naquela época e através dos séculos, Deus tinha um novo nome. Ele seria chamado de
Abba porque protege, cuida, compreende, perdoa e faz festa para seus filhos. A
adoração não mais consistiria de olhos e rosto cobertos com as mãos, mas da auto-
entrega, em confiança ilimitada, nas mãos poderosas e ternas daquele que é para
sempre “Papai”.
Em sua obra de referência, Por que ainda ser cristão hoje?, Hans Küng escreve:

Abba - como o nosso “Papai” - é originariamente uma palavra de criança,


usada, no entanto, no tempo de Jesus, também como uma forma dos filhos e
filhos crescidos se dirigirem a seu pai e como uma expressão de educação,
geralmente para com uma pessoa mais velha e digna de respeito. (Mas, para
usar esta expressão de ternura [itálicos meus], este termo genérico de educação
retirado do vocabulário infantil, que não é particularmente predominante, e usá-
lo como uma forma de dirigir-se a Deus, deve ter soado, para os
contemporâneos de Jesus, algo irreverente e ofensivamente familiar, do mesmo
modo como se nós nos dirigíssemos a Deus hoje como “Papai”.

Para Jesus, este termo não é desrespeitoso quando usado na forma familiar com
que uma criança se dirige ao seu papai. A familiaridade não exclui o respeito. A
reverência permanece a base da compreensão de Jesus sobre Deus, embora não seja
de todo suficiente. Segundo Jesus, devemos nos dirigir ao nosso Pai celestial assim
como uma criança se dirige ao seu pai terreno: com reverência, obediência, mas
acima de tudo com segurança e confiança. Dirigir-se a Deus como Pai é a expressão
mais corajosa e simples dessa confiança absoluta com a qual dependemos dele para
todo o bem, e com a qual nos entregamos a ele.
Viver na sabedoria da aceitação da ternura é reconhecer humildemente as
limitações da mente racional, científica e finita e abraçar livremente o mistério. Na
pérola das parábolas, Jesus menciona indiretamente a ternura do pai pródigo em sua
resposta ao filho esbanjador. “Estando ainda longe, seu pai o viu e, cheio de
compaixão, correu para seu filho, e o abraçou e beijou” (Lucas 15.20). Na tradução
soberba do estudioso bíblico Frank Montalbano, encontramos uma leve nuance: “Ele
correu até ele, encaixou-o com força em seus braços e não conseguia parar de beijá-
lo; ele simplesmente não conseguia parar de beijá-lo”.
Seja qual for a tradução da Bíblia utilizada, nenhuma palavra pode expressar e
nenhum pensamento pode conter a realidade da compaixão do Pai. Quando os
cientistas falam em tons realistas de 100 trilhões de galáxias enchendo o espaço
sideral a velocidades incríveis, e sobre a estrela Upsilon Andromeda alegremente
posicionada a 246 trilhões de milhas do planeta terra, não nos surpreendemos com o
fato de que a ternura do Abba/Criador não pode ser quantificada.
Viver na ternura nos conduz para fora da casa do medo. Desde a carnificina e dor
do 11 de setembro de 2001, nos tornamos um povo cada vez mais temeroso. Sem nos
darmos conta, a agenda do mundo - as questões e pontos preenchendo os noticiários e
os jornais - se tornou a agenda cristã. Perguntas envolvendo o temor pela
sobrevivência dominam nossas consciências de modo jamais conhecido. A reticência
quanto a voos comerciais, investimento no mercado de capitais, a compra de uma
casa ou de um carro, e a fazer compromissos sociais de longo prazo transformou um
povo peregrino e alegre em uma tropa nômade e desencantada de Hamlets
pessimistas e videntes trementes.
Em face do temor e da incerteza, os remanescentes fiéis - anawin em hebraico,
“maltrapilhos” na linguagem popular - permanecem agentes de esperança, naquilo
que o teólogo Oscar Cullman chama de “existência do será”. O piscar de seus olhos
sugere que eles possuem uma visão mais elevada.
Tal visão é vista no conto de Peter Van Breeman, do jornalista que queria escrever
uma estória sobre um determinado guru. Ele foi ver o guru e perguntou, “você é um
gênio como algumas pessoas dizem?”
“Você poderia dizer que sim,” respondeu o guru com um sorriso.
“E o que o torna um gênio?” perguntou o intrépido repórter.
“A habilidade de ver”.
O jornalista ficou confuso. Coçando seu cabelo com uma mão e apertando sua
barriga com a outra, ele murmurou, “ver o quê?”
O guru respondeu silenciosamente: “A borboleta em um casulo, a águia em um ovo,
o santo em uma pessoa egoísta, vida na morte, unidade na separação, Deus no
humano e o humano em Deus, e sofrimento como forma na qual a
incompreensibilidade do próprio Deus aparece”.[3]
A sabedoria para enxergar a ternura de Deus atuando na tribulação e na
consolação liberta o maltrapilho da casa do medo, das preocupações, tensões e
pressões do nosso mundo confuso e fragmentado e faz das palavras de Jesus seu grito
de libertação: “Não tenham medo, pequeno rebanho, pois foi do agrado do Pai dar-
lhes o Reino” (Lucas 12.32).
Viver na sabedoria da ternura é abrir mão de cuidados e preocupações, parar de
organizar meios para os fins, e simplesmente ser em cada momento de consciência
como um fim em si mesmo. E ouvir com o coração a palavra de Paulo a Tito: “A
ternura e o amor de Deus nosso Salvador se manifestou em nossas vidas; ele nos
salvou não por causa de atos de justiça por nós praticados, mas devido à sua
misericórdia” (Tito 3.4,5 - tradução livre).
A sabedoria da ternura nos permite amar nossa história de vida como um todo e
saber que temos sido agraciados e embelezados pela providência de nosso passado.
“Mesmo de meus pecados”, escreveu Agostinho de Hipona, “Deus retirou algum
bem”. Todas as conversões erradas no passado, os desvios, os enganos, os lapsos
morais - tudo que é irrevogavelmente feio ou doloroso derrete e se dissolve à luz da
aceitação da ternura. Como destaca o teólogo australiano Kevin 0’Shea: “Alegre-se
por não sentir medo de estar aberto à presença que cura, não importa aquilo que você
possa ser ou possa ter feito”.
Talvez não estejamos totalmente excluídos da experiência de Paulo: “Esquecendo o
que ficou para trás e avançando para o que está adiante...” (Filipenses 3.13 - tradução
livre). Se Paulo se detivesse na gravidade dei sua culpa por causa das perseguições
que fez aos cristãos e pelo apedrejamento de Estevão (durante o qual Paulo
aparentemente segurou os mantos dos assassinos - Atos 8.58), teria morrido
enfeitiçado. Se Paulo não tivesse passado pela experiência humilhante porém
renovadora da ternura divina, poderia muito bem ter se tornado um ser patológico. As
catorze epístolas jamais teriam sido escritas, o reino de Deus não teria se estendido
ao mundo gentílico (ao menos por meio dele), e crentes incontáveis não teriam acesso
ao conhecimento que ele nos deu acerca do mistério da salvação. Paulo teria morrido
um homem profundamente entristecido e culpado. Mas, nas profundezas de sua
melancolia, o Jesus ressurreto o guiou ternamente à paz banhada em graça.
O ódio a si mesmo devido a fracassos verdadeiros ou imaginários gera uma culpa
enfraquecedora e é produzido pelo pai da mentira. Ele compromete o plano de Deus
para a nossa existência, a nossa reputação pessoal no mundo. Quando ridicularizamos
a nós mesmos e dizemos “eu nasci perdedor, uma fraude, um hipócrita”, então
ridicularizamos o plano divino - ridicularizamos todos os sonhos que Deus realizaria
através de nós, toda a alegria que Ele antevê em nós e toda a esperança que ele
plantou em nós.
A compreensão do Espírito de Deus como sendo a ternura entre o Pai e o Filho
sugere uma espiritualidade descomplicada, afinada com o momento presente na total
simplicidade do aqui e do agora (“não penso no que virá a seguir...”). Abrir mão dos
cuidados com o ontem e desdenhar das preocupações do amanhã é um forte
imperativo evangélico. “Portanto, não se preocupem com o amanhã, pois o amanhã
trará as suas próprias preocupações. Basta a cada dia o seu próprio mal” (Mateus
6.34).
O significado do aqui e agora é ilustrado de maneira muito bela por uma estória,
sobre um monge perseguido por um tigre feroz. Ao aproximar-se de um precipício, o
monge olhou para trás e viu o tigre preparado para o bote. No último instante,
localizou uma corda pendurada na extremidade do abismo e começou a curvar-se
tentando alcançá-la, e ficar fora do alcance do tigre. Ops! Ele olhou pra baixo e viu o
buraco, enorme, cheio de pedras afiadas ao fundo. Não foi um bom sinal. Recuar,
talvez? Não, o tigre estava posicionado com as garras à mostra. Enquanto pensava em
suas opções, dois ratinhos começaram a roer a corda.
O que fazer? O monge viu um morango ao alcance de sua mão brotando à beira do
abismo. Ele o apanhou, comeu e declarou que aquele havia sido o melhor morango
que comera na vida. Se estivesse preocupado com as rochas abaixo (o futuro) ou com
o tigre acima (o passado), poderia ter perdido o morango que Deus estava lhe dando
no momento presente.[4]
Embora estivesse a poucos instantes de morrer, o monge celebrou o aqui e agora.
A vida no Espírito continuamente nos envia tigres, rochas pontiagudas - e morangos.
Será que nos permitimos desfrutar dos morangos? Ou será que desperdiçamos nossa
consciência difusa, preocupando-nos com os perigos do passado e do futuro?
Viver na sabedoria da aceitação da ternura significa receber cada momento como
um fim em si mesmo.
Este modo de vida não requer que tentemos ter a memória sempre ativa a despeito
das distrações no trabalho e na vida. O esforço extenuante para permanecer centrado
tem sido em vão na minha experiência pessoal: meu trabalho tem sido descuidado e
tenho me esgotado. Ele tampouco justifica o empenho na obtenção de um estado
especial de consciência que poderia ser chamado de “contemplativo”. Em meu caso,
isso tem levado à sonolência e eventual torpor. Ele não tenta se concentrar cm Deus
“lá no alto e lá fora”, independente de nosso contato com Ele, ou distanciar-nos do
ambiente normal e saudável das amizades, projetos e relacionamentos. Ele
simplesmente permite que vivamos em confiança, transparência e compaixão.
Vislumbrei a experiência do Espírito de Deus como ternura de modo bem
imperceptível durante uma festa de aniversário de quarenta e cinco anos de
casamento. O marido e a esposa haviam se retirado por algum tempo da festa, e eu os
encontrei casualmente. Eu não estava olhando para eles enquanto passava por uma
varanda coberta, nem escutando sem ser notado - mas fiquei hipnotizado com o que
vi. Ali estavam eles, sentados sobre um banco romântico, com uma luz difusa
brilhando indiretamente sobre o rosto do homem. Ele olhava com intensidade para
sua companheira - aquela mulher sobre quem ele sabia tudo que havia para saber:
suas qualidades e fraquezas, suas eventuais alterações de humor, seu temperamento e
reações infantis, seu senso de amor e sua insegurança, as ocasiões em que
discretamente recusou favores sexuais, os momentos em que os aceitou, suas chatices
e sua magnanimidade. Nada permaneceu oculto.
A expressão nos olhos do homem comunicava afeto, ternura, e a mesma compaixão
que ela lhe havia demonstrado durante suas lutas com John Barleycorn. Nenhuma
palavra foi trocada. Ela suspirava, enquanto lágrimas rolavam pela sua face. Eles se
abraçaram.
A espiritualidade da aceitação da ternura produz uma percepção acumulada do
olhar amoroso do Abba de Jesus com todas as qualidades acima mencionadas
infinitamente amplificadas, e nos capacita assim a estarmos a sós com Deus em meio
às mais diversas atividades. Permite uma presença despretensiosa no presente
momento sem manuais ou espelhos, alvos ou planos de jogo, tensão ou angústia. Ela
simplesmente se alegra no dom. E esta espiritualidade é toda a obra do Espírito
definida como “ternura concedida”.
Essa ternura também inclui uma certeza não verbal de que Jesus suprirá a graça
para o próximo passo na jornada espiritual. Charles de Foucauld, um ermitão do
deserto e uma inspiração para uma comunidade conhecida como Irmãozinhos de
Jesus, escreveu: “A única coisa que absolutamente devemos a Deus é jamais ter medo
de coisa alguma”. Sua confiança destemida no amor de Deus transformou-se em
confiança humilde de que a graça para o próximo passo na dança da vida já estava ali,
concedida. Sem ansiedade, os filhos de Abba seguem adiante, sabendo que o próximo,
o próximo e o próximo passos cuidarão de si mesmos. Os filhos de Abba não se
preocupam com o amanhã ou mesmo com o fim desta tarde.
Fico impressionado com o tempo que foi necessário para que eu aprendesse isso e
chocado com a rapidez (e a frequência) com que o esqueço. Na tenra idade de vinte e
um anos, me apaixonei por uma garota do Brooklyn. Eu ia à missa todos os domingos,
resistia ao sexto mandamento (pura bravura) e entrei em rota de colisão com um Deus
desconhecido. Sc alguém tivesse ousado prever que seis meses depois eu estaria em
um monastério franciscano estudando para ser padre, eu teria me tornado catatônico,
me escondido debaixo da cama ou apanhado um táxi para Timbuktu.
Durante aqueles anos de transição, eu não compreendia que a graça de Deus
sempre precede o seu chamado. Anos mais tarde, olhei pra trás e fiquei maravilhado
com a relativa facilidade com que Bárbara e eu havíamos terminado o
relacionamento, e o entusiasmo com o qual eu havia me encaminhado a um
monastério longínquo, encravado no sopé das Montanhas Allegheny. Viver na
sabedoria da aceitação da ternura é uma aventura interminável de confiança e
dependência.
O evangelista Robert Frost, falando em uma conferência nacional em Notre Dame,
Indiana, relatou o desenvolvimento de sua vocação. Aos vinte e poucos anos ele se
sentiu chamado por Deus para o ministério. No entanto, por causa do temor de ser
enviado à África como missionário (algo que o enchia de pavor), resistiu bravamente
ao chamado. Por fim, a exaustão espiritual, o tédio e a frustração o conduziram ao
seminário. Anos depois da ordenação, ele se permitiu relaxar. Havia agora sido
efetivado como pastor. Por certo a nova safra de jovens clérigos poderia muito bem
evangelizar a África.
Certa noite, ele assistia a um especial na TV sobre o terceiro mundo. Ficou
cativado. No dia seguinte, apanhou quatro livros na biblioteca pública sobre a África e
os devorou. Se o seu bispo o tivesse chamado semanas depois e dito “gostaríamos que
você fosse um missionário africano”, ele teria respondido: “minhas malas estão
prontas”.
Qual é a mensagem? Deus não o envia à África sem primeiro plantar o amor pela
África em seu coração. A graça sempre precede o chamado.
“Não tema, pequeno rebanho”.
Assim como no relacionamento humano, a ternura envolve uma dependência
contínua e cada vez mais profunda de Deus. Se o reconhecimento da contingência
humana for meramente teórico, minha ilusão de controle permanecerá; se ele, no
entanto, for operante, não tenho de me preocupar mais com os meios para o
crescimento espiritual. Tudo o que tenho de fazer é expor minha fragilidade, minha
pobreza e minha inutilidade àquilo que G. K. Chesterton chamou de “o furioso amor
de Deus”. A ternura é o senso impecável de se sentir a salvo: ele vem com a
consciência de que sou totalmente querido e completamente amado. Se um amigo
dissesse, “eu o amo, mas não gosto de você”, você não sentiria um forte sentimento de
rejeição? Deus, no entanto, não faz tais distinções; Ele declarou sobre si, sem
reservas: “haverá mãe que possa esquecer seu bebê que ainda mama e não ter
compaixão do filho que gerou? Embora ela possa esquecê-lo, eu não me esquecerei de
você!” (Isaías 49.15, itálicos meus).
Paradoxalmente, o senso de segurança que a aceitação da ternura gera é
acompanhado por uma crescente perda de controle. Quanto mais nos tornamos
confortáveis na ternura de , mais sentimos as rédeas de nossa vida se soltando e o
controle rígido de nossa autonomia pessoal escapando. O complexo napoleônico
(melhor Santa Helena que o segundo lugar) não ruge mais tão ferozmente, clamando
pela satisfação de suas exigências absurdas de perfeição. Há menos necessidade de
proclamar nossas verdades estabelecidas ou de impô-las sobre outros como absolutas.
Nosso apego extremo ao guidão de nossa moto Yamaha não é mais o mesmo. Não é
mais importante dotar pessoas de quem gostamos, possessões que acumulamos e
instituições que valorizamos de qualidades superlativas; não precisamos glorificar
nem o passado nem o futuro. No doce controle da ternura não nos envolvemos em
nenhuma dessas coisas mais que o necessário e o apropriado ao nosso modo de ser.
Podemos até mesmo nos dar uma boa nota de aprovação ocasionalmente. Este é o
sinal de que a auto-aceitação está lentamente amadurecendo na sabedoria da
aceitação da ternura.
Além disso, uma pergunta sutil, mas persistente, invade nossas consciências: Sou
eu na verdade o principal agente de minhas próprias obras? Uma mudança
significativa na identidade funcional se agita lentamente dentro de nós. Somos menos
o professor, o programador de computador, a enfermeira, o médico - e mais o
celebrante da ternura. Ao invés de reagir às pessoas e às coisas ao nosso redor,
respondemos à terna Presença que as sustenta, como sustenta a nós.
Em seu clássico eterno Celebração da disciplina, Richard Foster nota: “Louvai ao
Senhor! É o grito que reverbera de uma extremidade à outra do Saltério. Canto,
brado, dança, regozijo, adoração - todas são linguagens do louvor”. A coisa natural a
fazer quando admiramos ou apreciamos algo é elogiar. “Que pôr-do-sol mais lindo!”
“Uau! Foi um jantar delicioso!” “Que dançarino dinâmico!”“A música de Mozart não é
celestial?” “Encantamento, surpresa, deleite, admiração, reverência, apreciação - tudo
isso se traduz em louvor”.
O louvor é um brado festivo de uma reunião de oração empolgante desenvolvido
através de um estilo de vida. Viver na sabedoria da aceitação da ternura é aceitar a
mim mesmo e a tudo que acontece comigo como uma dádiva que é boa; é entender
que a minha verdadeira existência é uma expressão de louvor e gratidão a Deus. A
vida se torna um roteiro divinamente escrito de gratidão. “Falando entre si com
salmos, hinos e cânticos espirituais, cantando e louvando de coração ao Senhor, dando
graças constantemente a Deus Pai por todas as coisas, em nome de nosso Senhor
Jesus Cristo” (Efésios 5.19,20). Ação de graças e louvor se tornam um modo de vida
quando aceitamos a ternura de Deus. Então é no viver que damos graças, e nenhum
outro agradecimento é mais adequado.
Louvor como uma resposta à vida é maravilhosamente expresso por Francisco de
Assis em seu luminoso “Cântico do Irmão Sol”:

Altíssimo, onipotente, bom Senhor,


A Ti somente pertencem o louvor e a glória,
A honra e a bênção.
Homem algum é digno de mencionar Teu nome.
Louvado sejas, meu Senhor, por todas as Tuas criaturas.
Em primeiro lugar pela bênção do Irmão Sol,
Que nos dá o dia e nos alumia através de Ti.
Ele é belo e radiante com seu grande esplendor, dando testemunho a Ti,
Deus onipotente.
Louvado sejas, meu Senhor, pela Irmã Lua e pelas estrelas formadas por ti,
tão brilhantes, preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo Irmão Vento
E pelos ares, tão cheios de nuvens e serenos;
por todas as condições climáticas, sejas louvado, pois elas são
doadoras de vida.
Louvado sejas, meu Senhor, pela Irmã Agua,
Tão necessária e, no entanto, tão humilde, preciosa e casta. Louvado sejas,
meu Senhor, pelo Irmão Fogo,
Que ilumina a noite.
Ele é belo e despreocupado, robusto e poderoso.
Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã, Mãe Terra, Que nos sustenta e
governa Produzindo abundância de frutos, com flores coloridas e ervas.
Louvado sejas, meu Senhor, por aqueles que perdoam por teu amor
E suportam fraquezas e provas.
Benditos são a queles que sofrem em paz,
Pois serão coroados por Ti, Altíssimo.
Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã, Morte Física, da qual nenhum
homem vivo pode escapar.
Ai daqueles que morrem, em pecado.
Benditos são os que conhecem Tua santa vontade.
A segunda morte não lhes fará nenhum mal.
Louvem e bendigam ao meu Senhor.
Rendam -Lhe graças.
Sirvam-no com grande humildade.
Amém.

Paulo escreve: “pois desde a criação do mundo os atributos invisíveis de Deus, seu
eterno poder e sua natureza divina, têm sido vistos claramente, sendo compreendidos
por meio das coisas criadas” (Romanos 1.20). Assim como São Francisco, Paulo fala
da consagração de toda a vida através do louvor cristão, e da invasão do mundo dos
reconciliados pelo Espírito de Abba, a ternura de Deus, fluindo, de coração aberto, a
partir do Filho ressurreto.
Um efeito adicional da compreensão de Deus como sendo o cerne da ternura é a
reconciliação. Vista de uma perspectiva bíblica, a reconciliação não é primariamente
fazer as pazes com outra pessoa, mas nos apaziguarmos conosco mesmos naquela
dimensão de nossas vidas onde anteriormente não fomos capazes de encontrar paz.
A reconciliação é a cura interior de nossos corações pela ternura de Jesus. Como
experiência, ela é raramente uma catarse repentina, obtida pelo toque de dedos na
testa; não é uma liberação imediata da dor, nem é simplesmente aprender a nos
resignarmos com aquilo que sabemos que jamais pode ser mudado. Ela, na verdade, é
um crescimento suave numa unidade que não é obra nossa. E uma alegria serena que
flui de um encontro engajado e participativo com o Filho da compaixão, o único que
pode curar no novo Israel de Deus.
Certa ocasião, tarde da noite, quando eu dirigia um retiro espiritual, uma freira de
setenta e oito anos bateu em minha porta. Convidei-a para entrar e perguntei: “Como
posso ajudá-la?”
Ela começou a chorar. Pequenina e frágil, ela tremia ao soluçar. Quando as
lágrimas cessaram, ela disse: “Nunca falei com ninguém sobre isto. Tudo começou
quando eu tinha cinco anos. Meu pai subia rastejando a minha cama, sem roupa.
Tocava em minhas partes íntimas e pedia para que eu tocasse nas suas [os dedos dela,
estendidos, não deixavam dúvidas]. Ele dizia que o médico de nossa família havia
sugerido o toque, para que pudéssemos conhecer melhor um ao outro. Quando tinha
nove anos, meu pai me desvirginou, e, aos doze, conhecia todo tipo de perversão
sexual descrita nos piores livros sobre o assunto”.
“Não tenho palavras para dizer o quanto me sinto imunda. Tenho vivido com tanto
ódio de meu pai e de mim mesma que só participo da mesa da comunhão quando
minha ausência ali fica evidente”.
Orei com ela por alguns minutos, pedindo por sua cura interior. Perguntei-lhe,
então: “Irmã, você estaria disposta a procurar um lugar silencioso todas as manhãs
durante o próximo mês, sentar-se em uma cadeira, fechar seus olhos, virar as palmas
de suas mãos para cima, e orar esta frase repetidas vezes: Abba, eu pertenço a Ti’?”
Ela me olhou com um olhar cético, e eu então me expliquei melhor: “E uma frase
com sete sílabas poéticas, e sete sílabas correspondem perfeitamente ao ritmo de
nossa respiração. Inspire em Abba, expire em eu pertenço a Ti"
“No princípio, você a pronunciará somente com seus lábios, mas quando sua mente
ficar consciente de seu significado, você irá começar a empurrar sua mente para
dentro de seu coração de modo figurativo, para que Abba, eu pertenço ti’ se torne
aquilo que, em francês, é un cri de coeur, um clamor de coração do profundo do seu
ser, estabelecendo quem você é, por que você está aqui e para onde está indo.”
“E uma oração que você pode fazer enquanto trabalha no jardim, ouve música,
dirige o carro, atravessa a rua, assiste TV, lê um livro, prepara um bolo, deita na
cama. Quando você a fizer dezenas e dezenas de vezes ao dia e ela se harmonizar ao
ritmo da batida de seu coração, você poderá, como disse Jesus em Lucas 18, orar por
todo o dia e nunca desanimar”.
Eu perguntei à freira: “Você tentará?”
Ela respondeu: “Sim”.
Duas semanas depois, recebi a carta mais emocionante e poética que me foi
escrita. Aquela velha senhora descreveu a cura interior de seu coração, o perdão
completo de seu pai, uma paz interior que ela nunca havia experimentado antes. Ela
terminou sua carta deste modo: “Um ano antes, eu teria assinado esta carta com meu
nome religioso, irmã Mary Genevieve, mas, de agora em diante, sou apenas a filhinha
do Papai”.
O suave crescimento na unidade, a reconciliação com aquela dolorosa dimensão de
seu passado, na qual não conseguia encontrar paz, aconteceu por causa do afago
meigo à sua memória e do massagear de seu coração pelo Espírito de Abba,
derramado do coração de Jesus Cristo. Como o exemplo dela nos mostra, a aceitação
da ternura nos livra de sermos tiranos com nós próprios, darmos vazão à vingança e
escravizarmos a nós mesmos, dentro das barreiras de nossos temores. Os cristãos que
têm interiorizado a ternura de Deus se tornam menos defensivos, mais simples e
diretos, mais aptos a se comprometerem, mais cientes, porém menos temerosos das
forças que neles habitam, que os cercam e insistem em impor sobre eles
mediocridade e insignificância.

Um dos maiores paradoxos da vida é que é na dor e no sofrimento da provação que


somos enternecidos. E certo que isso não se aplica a toda dor e sofrimento. Se esse
fosse o caso, o mundo inteiro estaria enternecido, uma vez que ninguém escapa da
dor e do sofrimento. A esses elementos acrescente-se o luto, a compreensão, a
paciência, o amor e a disposição de se permanecer vulnerável. Juntos eles conduzem à
sabedoria e à ternura.
Instintivamente, o coração entende que aquele que cura tem de ter conhecimento
de causa em relação à dor que cura. Este instinto é confirmado por Francis Mac-Nutt,
um doutor em teologia, preeminente no ministério de cura. Dirigindo-se aos
envolvidos nesse tipo de ministério, ele escreve: “A experiência indica que certas
pessoas têm um poder especial de orar por certas enfermidades, mas que são apenas
de razoáveis a regulares em se tratando da oração por outras doenças”. Ele cita o
caso de Michael Gaydos, que, depois de ter sido curado de sua visão deteriorada, tem
sido eficaz na oração de cura por aqueles que possuem uma aflição semelhante. “Sua
experiência nos leva a outra conclusão interessante: pessoas que foram curadas de
uma enfermidade específica parecem ter um dom especial, a partir do momento em
que foram curadas, de ministrar a pessoas com o mesmo problema. Talvez isto se dê
porque elas agora têm uma fé maior na área na qual elas mesmas experimentaram
diretamente o poder de Deus”.
Uma explicação mais detalhada pode ser a de que o grau de compaixão pela pessoa
que sofre se aprofunda. Ao orar por alcoólicos crônicos, sou coberto por uma onda de
compaixão que normalmente não experimento na oração pelos enfermos, talvez por
causa de minha própria luta contra o alcoolismo (que foi mais bem descrita em outro
livro). O aprisionamento amaldiçoador de não conseguir parar, a obsessão da mente e
a compulsão do corpo que paralisam a liberdade de escolher, o terror do cativeiro
humano, o recorrente sentimento de hipocrisia, culpa, vergonha, solidão e o temor
angustiante de que perdi Deus para sempre são rapidamente revividos quando oro
por um alcoólico. Através do sofrimento vicário, uma profunda conexão é
estabelecida, e a verdade inescapável, “eu sou o outro”, põe por terra qualquer
sentimento de separação. O ministério de cura é uma atividade desconcertante, e eu
não me atrevo a afirmar que entendo por que alguns são curados e outros não. Com
minha experiência limitada nessa área, arrisco uma conjectura: quanto maior a nossa
empatia, quanto mais proximamente nos identificamos através da compaixão com a
pessoa por quem oramos, mais perfeita é a comunhão com a terna misericórdia do
Cristo que cura.

Em sua obra definitiva Wounded Healer [Médico ferido], Henri Nouwen indica que
a graça e a cura são comunicadas através da vulnerabilidade de homens e mulheres
que têm sido partidos pela engrenagem da vida. O anjo na peça de um ato de
Thornton Wilder, The Angel That Troubled the Waters [O anjo que agitava as águas],
tem uma mensagem semelhante, ao dizer ao médico ferido: “Sem suas feridas, onde
estaria o seu poder?... No serviço do Amor, somente soldados feridos podem servir”.
Se seguirmos o instinto de que um agente de cura tem de conhecer por experiência
própria a dor que cura, é melhor entendermos por que só há um capaz de curar no
novo Israel de Deus - Jesus, o Senhor. Somente alguém que tenha conhecido nossa
agonia e sofrimento poderia, por meio de sua vinda, transformar essa agonia em paz.
Aquele que vem para curar se fez presente e partilhou de cada mágoa conhecida pela
humanidade.
Intuitivamente, na fé, compreendemos o símbolo do amor terno, redentor, curador
e integrador de Deus conforme corporificado no Salvador crucificado. “Deus tornou
pecado por nós aquele que não tinha pecado, para que nele nos tornássemos justiça
de Deus” (2 Coríntios 5.21). Toda forma de pecado e suas consequências,
enfermidades e doenças de todo tipo, vícios, relacionamentos rompidos, inseguranças,
sensualidade distorcida, ódio, cobiça, orgulho, inveja, ciúmes - tudo isso, e muito
mais, foi experimentado e carregado por “(alguém) desprezado e rejeitado pelos
homens” (Isaías 53.3) que conheceu aquele ponto mais baixo de uma agonia que
homem algum jamais sonhou conhecer. Cristo na cruz: é inconcebível o que ele
passou enquanto pendurado nu e pregado ao madeiro.
Ninguém jamais morreu como Jesus, porque ele era a própria vida; ninguém jamais
foi punido pelo pecado como ele foi - aquele que não tinha pecado. Ninguém jamais
experimentou o mergulho no vácuo do mal como Jesus de Nazaré. A ser humano
algum será dado conhecer a dor por trás das palavras “Meu Pai, porque me
abandonaste?” ou a agonia daquela morte, não apenas aceita com paciência, mas
suportada com gritos a Deus. E, no entanto, “ele tomou sobre si as nossas
enfermidades e sobre si levou as nossas doenças” (Isaías 53.4).
Não pode haver outro agente curador na confusão e na loucura do nosso mundo
pós-moderno, porque nenhum outro tem estado presente. Somente Jesus Cristo, “um
homem de dores e experimentado no sofrimento”, carregou a dor na paz da graça. Ele
promoveu a paz através do sangue da Sua cruz.
Mas o Pai livrou Jesus do pecado e da morte, ressuscitando-o, exaltando-o “e
dando-lhe um nome que está acima de todo nome” (Filipenses 2.9). Para Jesus, a
experiência da ternura que cura foi uma experiência de Abba. E assim é conosco.
Através do Espírito Santo da ternura concedida nos identificamos com o Cristo
humano e passamos a conhecer o Deus de Jesus como nosso Abba. Cada libertação da
escuridão e cada cura interior e física deveria evocar o grito ‘Abba, Pai”. Localizamos
a origem do dom da ternura que cura e que vem a nós, e nossa fé se torna aquilo que
o escritor espiritual francês Blaise Arminjon chama de “estremecedora certeza do
amor”.
Depois de haver compartilhado minha experiência de trinta e uma horas de oração
com meu diretor espiritual, ele fechou seus olhos e permaneceu mudo por alguns
minutos. Depois, disse: “Agora está muito claro em minha mente por que nada
realmente acontece na vida de uma pessoa até que ela tenha experimentado e aceito
a ternura de Deus. Somente então ela pode ser terna com os filhos de Deus”.

Leitura Recomendada:
Farrell, Edward. The Father Is Fond of Me. Starruga, PA: Dimension Books, 1978.
Foster, Richard. Celebração da disciplina. São Paulo, SP: Editora Vida, 1983.
Keyes, Ken, Handbook of Higher Consciousness. Berkeley, CA: Living Love Center,
1972.
Küng, Hans. Porque ainda ser cristão hoje?. Campinas, SP: Verus Editora, 2004.
Nelson, John. The Little Way of Thérèse of Lisieux. St Louis, MO: Liguori Press,
2000.
Tozer, A. W. The Knowledge of the Holy. San Francisco, CA: HarperSanFrancisco,
1961.
Van Breemen, Peter. The God Who WontLet Go. Notre Dame, IN: Ave Maria Press,
2001.
Capítulo II

A chancela da verdade

O perdão irreversível de Deus, sua paciência infinita e seu terno amor nos embelezam
e enchem de graça. O doce Espírito que habita em nós nos cura e nos torna íntegros.
Somos capacitados a viver vidas de alegria e admiração, cativados pela promessa
imerecida do Reino. Tudo que temos e somos como humanos e cristãos deriva da
bondade e generosidade de Deus.
Que resposta o Pai busca como retorno à sua ternura incansável? A experiência
pessoal nos tem ensinado que a ilusão e o auto-engano não são incomuns na vida
espiritual. O que dá chancela à verdade e o selo de autenticidade à resposta do
cristão ao amor de Abba, a firme certeza de que não está enganando a si mesmo?
A resposta não é vaga, nem ambígua. Falando primeiro através da voz de seu Filho
amado, Abba diz:

“Venham, benditos de meu Pai"! Recebam como herança o Reino que Lhes foi
preparado desde a criação do mundo”. Por que os declaro benditos c
beneficiários do Reino? Porque o único Filho que tive teve fome, e vocês lhe
deram de comer; teve sede, c vocês lhe deram de beber; foi estrangeiro, e vocês
o acolheram; necessitou de roupas, e vocês o vestiram; esteve enfermo, e vocês
cuidaram dele; esteve preso, e vocês o visitaram. Então os justos lhe
responderão; “Abba, quando vimos teu Filho amado com fome e lhe demos de
comer, ou com sede e lhe demos de beber? Quando o vimos como estrangeiro e
o acolhemos, ou necessitado de roupas e o vestimos? Quando o visitamos,
quando ele estava enfermo ou preso?” Eu responderei: “Digo-lhes a verdade:
O que vocês fizeram a algum dos meus menores irmãos, fizeram a meu Filho
único” [Tomei as palavras de Jesus em Mateus 25.34-40 e as adaptei como se
tivessem sido ditas pelo Pai. O significado essencial da passagem permanece o
mesmo].

Orar Abba no Espírito é fazer nossa vida interior refletir a de Jesus e se tomar um
filho ou filha no Filho (filii in Filio). “Porque vocês são filhos, Deus enviou o Espírito
de seu Filho ao coração de vocês, e ele clama: ‘Abba, Pai’ (Gálatas 4.6). Com o Espírito
em nossos corações, temos uma experiência de fé viva; e a fé viva, de acordo com
Paulo, “se expressa em amor” (Gálatas 5.6 - tradução livre).
Exagero e supervalorização, aqui, não são os perigos. O amor é o eixo da revolução
moral cristã e o único sinal por meio do qual o discípulo deve ser reconhecido (João
13.35). O perigo espreita nossas tentativas sutis de minimizar, racionalizar ou
justificar nossa moderação a respeito deste assunto.
A resposta que o Pai busca à sua singular generosidade, e o sinal de que estamos
vivendo na sabedoria da ternura, é que amemos, honremos, sirvamos e reverenciemos
Seu único Filho quando ele se manifesta no menor dos irmãos. “Estas palavras que
vocês estão ouvindo não são minhas; são de meu Pai que me enviou”, disse Jesus (João
14.24). A disposição para viver em prol dos outros é uma medida mais exata de nosso
amor por Jesus do que o êxtase em oração. Como afirma Thomas Merton: “Sem amor
e compaixão pelos outros, nosso aparente amor por Cristo é uma ficção”.
Quando não vivo mais para mim mesmo, posso abrir-me para Deus e para o meu
próximo, a quem Deus aceita, como aceita a mim.
A questão sobre quem é meu próximo é tratada por Jesus na parábola do Bom
Samaritano (Lucas 10.29-37). É interessante notar que a percepção consciente da
presença de Jesus “no menor dos irmãos” não é esperada nem exigida. O Samaritano
auxilia o homem atacado sem se deter em preocupações religiosas. Ele se concentra
na necessidade do homem sem questionar a situação de sua vida de oração.
“Senhor, quando te vimos com fome e te demos de comer?” Os declarados benditos
no Juízo Final não se lembrarão de ter encontrado Jesus naqueles que alimentaram,
abrigaram e consolaram. Não se lembrarão porque, naqueles momentos, quando a
necessidade urgente se manifestou, eles se esqueceram de si mesmos. Em liberdade
consciente, reagiram à necessidade humana sem buscar serem notados, sem a
preocupação de impressionar ninguém nem de obterem condecorações por seu
comportamento. No Juízo Final, ficarão confusos ao saber que o velho homem
desorientado, sem papas na língua, movimentando-se de um lado para o outro de seu
apartamento mal conservado, resmungando da receita que precisava da farmácia, era
o Mestre. É libertador saber que não temos que reconhecer Jesus no menor dos
irmãos ou irmãs ou conceder alguma qualidade atribuída a Cristo a um mendigo à
porta. Isso, no entanto, requer muito tempo, atenção e energia. Os horizontes do
interesse cristão se ampliam para além da retidão moral, do convertido em potencial e
daquele que é grosseiro, mas tem boa índole.
A resposta à pergunta quem é meu próximo nos faz mergulhar no escândalo de
Jesus. O caminho da ternura não é o da bondade crônica, da sentimentalidade
descuidada ou de uma espiritualidade enfadonha para idiotas. A vida espiritual não é
uma teoria. Vivê-la, trilhando o caminho da ternura, demanda uma conversão radical,
a renúncia a um código moral limitado e uma vida de serviço humilde.
Este, no entanto, não é um retrato típico da vida espiritual. Em seu livro de
referência Por que ainda ser um cristão hoje?, Hans Küng escreve:

A coisa absolutamente imperdoável [em Jesus] não era a preocupação com os


enfermos, os aleijados, os leprosos, os possessos... nem mesmo sua opção pelas
pessoas pobres e humildes. O verdadeiro problema é que ele se envolveu com
fracassados morais, com pessoas obviamente incrédulas e imorais: pessoas
moral e politicamente suspeitas, muitas delas tipos dúbios, obscuros,
abandonados, sem esperança, à margem de toda a sociedade. Este era o
verdadeiro escândalo. Será que ele tinha mesmo de ir tão longe? Esta atitude,
na prática, é notadamente distinta do comportamento geral das pessoas
religiosas.

Os fundamentos da religião tradicional foram claramente abalados. Traidores,


estelionatários e adúlteros entram no Reino adiante dos religiosamente respeitáveis.
O filho depravado é amado tanto quanto seu irmão que trabalhou duro e que nunca
frequentou a noite. O samaritano herético é apresentado como um modelo ao
sacerdócio Levítico. Ao fim, ambos recebem a mesma recompensa. A justiça parece
ter virado de cabeça para baixo.
" Que tipo de justiça lunática é esta que abole todos os padrões sagrados e reverte
todas as ordens de pontuação, tornando os últimos primeiros, e os primeiros últimos?
Que tipo de amor ingênuo é este que não faz nenhuma distinção entre profissões
honrosas e não-honrosas?
Ensino perigoso, que reduz o evangelho a fragmentos de verdade em um mar de
delírio! Se a suposição básica do cristianismo é a de que Deus é um ser estranho,
então, como escreveu E. E. Cummings: “Dane-se tudo, menos o circo!” Se o Deus de
Jesus escolhe comportar-se de maneira tão tola, quem pode levá-lo a sério? Se Jesus
perdoa tão indiscriminadamente, e nos encarrega de fazer o mesmo, a vida é uma
fábula contada por um idiota e qualquer um pode acreditar nela. Se o Reino é
acessível a todos, a justiça então está falida, a retidão humana está enfraquecida, e as
verdadeiras raízes da religião estão arrancadas.
Estes eram alguns dos protestos dirigidos de forma violenta a Jesus de Nazaré por
muitos judeus palestinos. Gritando acusações de “herético” e “blasfemo”, os cínicos,
céticos e pessimistas - sensíveis todos eles - prevaleceram (Quão benditos são os
sensíveis, ontem e agora: eles verão bem a ponta de seus narizes).
Contra todas as regras da prudência e da discrição, Jesus anunciou a aurora de
uma nova era, o início de uma justiça mais elevada, o manifesto convincente de que
havia vindo chamar pecadores. Ainda mais alarmante era afirmar que o pecador seria
aceito antes de qualquer declaração de arrependimento. Primeiro vem a graça,
(ternura concedida); e, então, vem a decisão de seguir uma nova direção.
A poderosa misericórdia de Jesus está em ação, protegendo fracassados morais da
humilhação intensa e da desvalorização moral dos burocratas religiosos que
separaram a espiritualidade da religião, o coração da cabeça e a graça da natureza.
Verdadeiros pecadores que merecem real punição são graciosamente perdoados;
necessitam tão somente aceitar a ternura já presente. O perdão foi concedido; eles
precisam somente da sabedoria para aceitá-lo e se arrepender. Estes são os
maltrapilhos, os pobres de espírito que Jesus declarou benditos. Eles sabem como
aceitar um presente. “Venham a mim todos os que estão esgotados, confusos,
transtornados, perdidos, abatidos, marcados, assustados, ameaçados e deprimidos, e
eu aliviarei suas mentes com sabedoria e encherei seus corações com a ternura que
tenho recebido do Pai”. Trata-se de um perdão incondicional. O pecador necessita
apenas viver confiadamente, na sabedoria da ternura.
“A graça, portanto, vem antes da lei”, escreve Küng, “ou melhor, a lei da graça é o
que realmente vale. Somente deste modo é uma justiça nova e a mais elevada
possível. E ela começa com perdão incondicional: a única condição é a confiança
inspirada pela fé ou fé que confia; a única consequência a ser observada é a
concessão generosa do perdão a outros. Qualquer um que se permita viver perdoado
de grandes coisas, não deve recusar o perdão nas pequenas coisas”.
A razão principal pela qual devemos perdoar ao invés de condenar é a de que o
próprio Deus não condena, mas perdoa. Por ele ter livremente escolhido colocar a
ternura adiante da lei, somos autorizados a fazer o mesmo. No imaginário das
parábolas, Deus é apresentado como o pai que corre para encontrar seu filho, o
fazendeiro absurdamente generoso que dá aos que chegam atrasados a mesma paga
dos que trabalharam o dia todo, o juiz que ouve a oração insistente da viúva. No
homem Jesus, o Deus invisível se toma visível e audível, e é visto como um Deus de
"ternas misericórdias pelas quais do alto nos visitará o sol nascente, para brilhar
sobre aqueles que estão vivendo nas trevas e na sombra da morte, e guiar nossos pés
no caminho da paz” (Lucas 1.78,79). O profeta Jesus ensinou, no poder do Espírito,
que o perdão e a doação do cristão devem imitar o perdão e a doação de Deus. A
aceitação é absoluta - sem questionar o passado, sem condições especiais - para que o
pecador libertado possa viver novamente, aceitar, perdoar e amar a si próprio.
Como cristãos, vivendo no Espírito, somos chamados a compartilhar a ternura de
Deus. Os parâmetros de nossa compaixão se estendem para além daqueles que optam
pelo nosso estilo de vida, favorecem a nossa existência, ou nos dão sensação de bem-
estar. Acusações de elitismo são retiradas por falta de provas. Paz e reconciliação
para todos, sem exceção - até mesmo para os fracassados moralmente - é o estilo de
vida radical dos cristãos que vivem na sabedoria que aceita a ternura. Podemos ser
chamados de amigos de cobradores de impostos e pecadores - mas somente por que
somos (ou deveríamos ser). Compreendemos que estamos na companhia de pessoas
bem honradas, esses pecadores; na verdade, estamos na companhia do próprio Jesus.
De acordo com o evangelho, é a ternura irrestrita e a compaixão ilimitada que
chancelam nosso relacionamento com o Pai de Jesus, como pertencentes à ordem do
Verdadeiramente Real.
Essa afirmação tem a chancela da verdade. Como Jesus, ela nos leva a uma
experiência mais profunda com Abba.
Capítulo III

Cristo em outros

Que mudança de frase estranha no capítulo treze do evangelho de João: Jesus disse,
“como eu os amei, vocês devem amar-se uns aos outros” (13.34). Por certo, teria sido
mais razoável dizer “amem a mim como eu tenho amado vocês.” Mas ele não disse
isso.
Novamente, na primeira carta de João, lemos: “Visto que Deus assim nos amou,
nós também devemos amar uns aos outros” (4.11). Teria sido muito mais lógico para
devemos amá-lo”. Mas ele também não disse isso.
Ainda assim, aquilo que não foi dito teria uma lógica humana, boa e sã, e seria a
que seguiríamos, se o Novo Testamento não insistisse tanto em ter a sua própria
lógica, que funciona do seguinte modo: na ordem prática do Reino, o amor a Deus e o
amor ao próximo são inseparáveis. “Se alguém afirmar: ‘Eu amo a Deus’, mas odiar
seu irmão, é mentiroso, pois quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a
Deus, a quem não vê” (1 João 4.20).
No inverno de 1947, o Padre Pierre, conhecido como o apóstolo moderno da
misericórdia aos pobres de Paris, encontrou uma jovem família quase morta de frio
nas ruas. Ele a retirou de onde estava e levou-a até a sua própria habitação, também
pobre e já repleta de desabrigados. Onde ele conseguiria alojá-la? Depois de pensar
por um tempo, foi à capela, removeu o Santíssimo Sacramento e o colocou no andar
de cima, em um sótão sem aquecimento e instalou a família na capela para passar a
noite. Quando seus confrades dominicanos mostraram-se chocados diante de tamanha
irreverência ao Santíssimo Sacramento, o Padre Pierre respondeu: “Jesus Cristo não
está com frio na Eucaristia, mas está com frio no corpo de uma criancinha”.
Nós, cristãos, professamos com ousadia que Jesus Cristo está presente dentro de
nós e citamos João 15.4 como um texto que comprova essa afirmação. Mas Jesus
também disse que está presente naqueles que estão ao nosso redor (Mateus 25.40).
Por que não cremos nisso?
Temos a mesma razão para aceitar ou rejeitar ambas as presenças - a Palavra do
Senhor Jesus Cristo.
A visão do evangelho é precisa neste ponto: não podemos adorar a alguma deidade
vaga acima das nuvens; não podemos reconhecer Jesus Cristo vivendo dentro de nós e
ignorá-lo naqueles que estão ao nosso redor. Dois fatos centrais do cristianismo
emergem - Cristo está em você e Cristo está em mim - e, no final, como disse Santo
Agostinho, “haverá o Cristo uno amando a si mesmo”.
O Senhor está nas pessoas com quem encontramos e gastamos tempo todos os
dias, as pessoas a quem pensamos poder ler como um livro aberto. Algumas vezes ele
está escondido, outras vezes tem as mãos e os pés amarrados, mas, de qualquer
modo, está ali. Recebemos o dom da fé para detectar sua presença, e o Espírito Santo
foi derramado em nossos corações para que possamos amá-lo ali, nas pessoas, pois o
significado de nossa religião é o amor. A essência do cristianismo é o amor, e nós o
recebemos assim, ou o rejeitamos. Ele não tem a ver com adoração e moralidade, a
menos que essas coisas sejam expressões do amor, que faz com que elas existam. “E
típico de Jesus”, nota Küng, “que o amor assim se tome o critério de piedade e a
conduta, como um todo, de uma pessoa”.
Uma vez que o chamado Grande Mandamento combina o amor a Deus e o amor ao
próximo - “Ame o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e de
todo o seu entendimento. Este é o primeiro e maior mandamento. E o segundo é
semelhante a ele: Ame o seu próximo como a si mesmo. Destes dois mandamentos
dependem toda a Lei e os Profetas” (Mateus 22.37-40) - em uma unidade indissolúvel,
é impossível colocar Deus e o homem um contra o outro. Antes de nos aproximarmos
da mesa do Senhor, dizem as Escrituras, deveríamos primeiro nos reconciliar com
nosso irmão ou irmã e então voltarmos e fazermos a nossa oferta (Mateus 5.23,24). A
causa de Deus não é o culto, mas a humanidade.
Por causa da misteriosa substituição de Cristo pelo cristão, cada encontro com um
irmão ou irmã é um encontro real com o Senhor ressurreto, uma oportunidade para
responder criativamente ao evangelho e amadurecer na sabedoria da ternura. A nós
tem sido dado tempo para fazer o amor crescer e o sucesso de nossas vidas será
medido por quão delicada e sensivelmente temos amado. Não há como escapar da
lógica do evangelho de que todos os nossos pensamentos, palavras e ações
endereçados a outros estão de modo inquestionável endereçados ao próprio Cristo.
Não é verdade que cada um de nós vive em um mundo todo seu - o mundo de nossa
mente? Que mundo mais populoso ele pode ser! E quão cruel! Quão frequentemente
somos intransigentes, frios, superiores, incapazes de perdoar e julgadores. Quão
prontamente empurramos Jesus Cristo de seu trono de juízo e nos sentamos nele para
julgarmos os outros (embora não tenhamos nem conhecimento, nem autoridade para
julgar ninguém).
Nenhum de nós jamais tem visto um motivo. Portanto, não sabemos, não podemos
fazer nada além de suspeitar daquilo que inspira a ação do outro. Por esta boa e
válida razão, somos exortados a não julgar. “Não julguem, para que vocês não sejam
julgados” (Mateus 7.1). Se, no entanto, somos imprudentes o suficiente para
julgarmos os outros, fazemos bem em lembrar a ordem de que “da mesma forma que
julgarem, vocês serão julgados; e a medida que usarem, também será usada para
medir vocês” (Mateus 7.2).
No entanto, julgar não é a nossa segunda natureza? Talvez seja. Mas não há nada
que pareça mais com a verdade que a falsidade. É por isso que acreditamos tão
prontamente nas aparências, nas fofocas e nas mentiras. Assim, embora tenhamos o
impulso natural de julgar, não estamos preparados para fazê-lo de modo justo.

Você não acha que a Virgem Maria foi julgada? Não é provável que o povo do
vilarejo de Nazaré pensasse saber a verdadeira natureza do relacionamento entre
José e Maria? Uma garota de quinze anos namorando um homem mais velho, solteira
e grávida: não seria algo muito óbvio? Alguém poderia ver o propósito misterioso de
Deus? Alguém poderia reconhecer como Maria havia consentido em trazer Jesus
Cristo ao mundo por meio da cobertura do Espírito Santo?
Há muitas evidências no evangelho de Lucas de que a mulher penitente que lavou
os pés de Jesus na casa de Simão, o fariseu, foi julgada. Os homens à mesa disseram:
“Se este homem fosse profeta, saberia quem nele está tocando e que tipo de mulher
ela é: uma ‘pecadora’” (Lucas 7.39). Por aquilo que ouviram falar ou por experiência
própria, eles a conheciam como uma mulher de reputação questionável. Como a
língua solta dos religiosos a condenou! Mas será que alguém foi capaz de enxergar o
seu vazio interior - um vazio esperando ser preenchido pelo amor de Jesus Cristo? As
pessoas que julgaram essa mulher impenitente estavam julgando uma das amigas
mais queridas que o Senhor teve.
Na tradição franciscana, a história de Margaret de Cortona se assemelha à da
mulher penitente das Escrituras. Margaret corresponde à mulher da atualidade. Por
anos, viveu com um homem sem estar casada com ele e teve um filho ilegítimo. As
mulheres de Cortona cuspiram na rua quando Margaret se mudou para a cidade. No
entanto, quando encontrou o amor misericordioso do Senhor que redime, ela se
tornou o que nunca irei me tomar - uma santa reconhecida por todos, uma das
mulheres mais apaixonadas e extravagantes em seu amor por Deus na história do
cristianismo.
O argumento é bem simples: na maioria das vezes (porque não conseguimos
enxergar as razões), estamos bem errados em nossos julgamentos com relação aos
outros. A tragédia é que a nossa atenção se concentra naquilo que as pessoas não são,
e não naquilo que elas são e em que podem se tornar. Como observa Peter van
Breemen em The God Who Worit Let Go [O Deus que não irá abrir mão], “Precisamos
de enorme disciplina para abrir mão de nossos estereótipos, nossas vantagens
próprias e nossas expectativas para contemplar o outro como ele realmente é”. O
julgamento precipitado é inimigo da ternura e da compaixão e foi veementemente
denunciado pelo Senhor Jesus como prejudicial ao estilo de vida do Reino.
Deus deu a seus filhos um extraordinário poder através do dom da palavra. Que
poder possuímos com nossas palavras para abençoar ou amaldiçoar, para acolher ou
rejeitar, para reverenciar ou blasfemar contra Deus!
A conhecida história de Zacharias Werner, que encontrei na obra de Dorothy Gies
McGuigan, Metternich and the Duchess [Metternich e a duquesa], oferece uma vivida
ilustração do tremendo poder da palavra falada. Poeta romântico que se tornou
sacerdote, Werner lotava as igrejas de Viena em 1809 com seus sermões inflamados
sobre o pecado carnal. Certo domingo, ele pregou a uma enorme congregação um
sermão sobre “aquele pequeno pedaço de carne, o mais perigoso apetrecho do corpo
do homem”. Cavalheiros empalideceram e damas ficaram vermelhas, enquanto ele
descrevia as horrendas consequências de seu uso indevido. Seus olhos penetrantes
disparavam fagulhas enquanto continuava ilustrando seus argumentos graficamente.
Perto do fim do sermão, Werner inclinou-se sobre o púlpito para gritar com seus
ouvintes: “Devo dizer o nome desse pequeno pedaço de carne?” Houve um silêncio
paralisante. Sais aromatizantes exalavam seu cheiro das sacolas das senhoras. Ele
inclinou-se ainda mais e sua voz se ergueu até tornar-se num grito rouco: “devo
mostrar a vocês esse pequeno pedaço de carne?” Silêncio assustador! Nenhum
sussurro ou ruído de livros de oração sendo manuseados podia ser ouvido. A voz de
Werner baixou de volume, e um sorriso se estampou em seu rosto. “Senhoras e
senhores, eis a fonte de nossos pecados!” E mostrou a sua língua.[5]
Talvez Jesus, habitando no menor dos irmãos, seja cortado por nossas palavras
mais dolorosamente do que foi pelos soldados romanos no Gólgota. Como fazemos
com que ele ande atordoado de um lado a outro com as coisas que dizemos, usando-o
como alvo de nossas piadas e agindo mal, com nossas palavras e ações, para com
aqueles a quem ele ama.
Quando Jesus disse que estava com fome, com sede e nu naqueles que nos cercam,
estava se referindo a mais que meras necessidades físicas. Estamos cercados por
pessoas que estão com fome, sede e nuas em suas almas, e elas se dirigem a nós
famintas por compreensão, sedentas por afirmação, nuas com sua solidão, querendo
ser cobertas pelo manto de nossa genuína ternura. Eu tremo diante das vezes,
numerosas demais para contar, em que recusei prestar-lhes auxílio. Entretido por
minha auto-absorção, quase sempre estou indisponível às suas esperanças, temores,
sonhos, alegrias, aspirações e decepções.
Com o passar dos anos, me vejo cada vez mais impaciente e me movimentando
num ritmo cada vez mais apressado. O impostor, o sinistro despersonalizador do meu
verdadeiro eu, reapareceu disfarçado de uma personalidade importante que tem uma
missão urgente para realizar e um império a construir. Outros podem ter tempo livre
para conversas irrelevantes à boca pequena. Entretanto, estou organizando
estrategicamente o time principal com o único propósito de atingir o objetivo tão
eficazmente quanto possível. A intolerância para com os erros dos outros é não
somente justa como salutar. “Por quê?”, você pode perguntar. Porque a incompetência
dos outros reflete minha própria credibilidade!
Embora não tenha nenhuma realidade ontológica, o impostor quase sempre tem
sucesso em fazer morada em minha consciência. Ele é apaixonado por seu doutorado,
obtido com louvor, ele personifica a admiração das pessoas que pensam bem de mim;
ele é o resumo de todas as conquistas ministeriais que me dão identidade. Quando
apresento este falso eu em oração, Deus não abençoa aquilo que não existe. Se tiver a
coragem de me aquietar, meu verdadeiro eu sussurra: “Tudo que importa hoje é
paciência, bondade, ternura e compaixão”.
Dietrich Bonhoeffer, escrevendo em Life Together [Vida em comunhão] sobre a
vida comunitária durante os anos de nazismo, não poupou palavras:

Ninguém é bom demais para o melhor dos serviços. Alguém que se preocupe
com a perda de tempo que atos insignificantes e externos de ajuda envolvem
está, normalmente, levando muito a sério a importância de sua própria carreira.
Devemos estar prontos para permitir-nos ser interrompidos por Deus... é
estranho que cristãos e até mesmo ministros frequentemente considerem seu
trabalho tão importante e urgente que não permitem que nada os perturbe.
Eles pensam que estão prestando um serviço a Deus com isto, mas, na
verdade, estão desdenhando “os passos tortuosos, porém retos” de Deus
(Gottfried Arnold). É parte da disciplina da humildade não pouparmos nossas
mãos de executar um serviço, não supormos que nossa agenda seja nossa para
administrar, mas permitirmos que ela seja arranjada por Deus.

Humildade e amor fraternal são nossos aliados espirituais. Quando somos sensíveis
ao nosso próprio quebrantamento e ministramos às nossas feridas com ternura e
compaixão, o “outro” não é mais um intruso, mas um sofredor amigo.
É virtualmente impossível não perceber a intensidade na voz de Jesus quando Ele
diz: “Nem todo aquele que me diz: 'Senhor, Senhor’, entrará no Reino dos céus, mas
apenas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus” (Mateus 7.21). Uma
vez que temos poucas evidências de que Jesus gastou muito tempo na igreja e muitas
de que ele andou por toda parte fazendo o bem, e, uma vez que a compaixão não tem
a ver com sentir pena das pessoas ou acenar com a cabeça “sim, sim” por detrás das
folhas do jornal diário enquanto alguém fica bem à nossa frente tentando ter seu
coração “ouvido” (para usar o exemplo da freira beneditina e autora Joan Chittister),
parece ser seguro dizer que a vontade do Pai é passar todos os dias amando de fato,
como Jesus amou.
Eu gasto meus dias amando? Fiz esta difícil pergunta a mim mesmo durante um
recente e solitário retiro. Viajar por todo o país pregando o evangelho e escrever
livros sobre vida espiritual é um ministério de destaque, com seus riscos inerentes.
Há acolhimento em um gesto de reconhecimento, uma onda de aplausos. E, no
entanto, enquanto encarava esta questão durante meu retiro, tive de perguntar a mim
mesmo - ou, como meus parentes irlandeses diriam, a si mesmo - a retórica que
emprego para descrever a vida no Espírito combina com a realidade de meu
discipulado diário? Tenho sido cada vez mais complacente com aquilo que dou porque
ele oculta aquilo que retenho? Tenho me enganado ao pensar que escrever sobre
ternura automaticamente transforma meu coração cm um coração valoroso? Sendo
honesto comigo mesmo, eu gasto os meus dias amando?
Depois de alguma busca de alma e de um tempo honesto com meu diretor
espiritual, conclui que a resposta é ‘sim’. Eu passo todos os meus dias amando.
No entanto, existe um problema de proporções bíblicas épicas: eu dividi a
comunidade humana em certas categorias. Há algumas poucas pessoas que amo,
certo número de pessoas de quem gosto e uma multidão cm quem raramente penso, a
quem me dirijo de maneira proativa ou por quem não manifesto qualquer interesse.
No entanto, o testemunho evangélico descrito em Mateus e Lucas invalida a
discriminação de qualquer tipo. “Se tudo o que vocês fazem é amar os que são
amáveis, esperam um bônus?”, pergunta Jesus, “Qualquer um pode fazer isso. Se
vocês simplesmente dizem ‘olá’ a quem os cumprimenta, esperam receber uma
medalha? Qualquer pecador básico pode fazer isso” (Mateus 5:46,47, The Message).
Qualquer um de nós pode amar alguém com os mesmos interesses ou atrações. Acho
tranquilo voltar-me para pessoas que favorecem minha existência e me fazem sentir
bem. Assim faziam os cobradores de impostos desrespeitosos, traidores da causa
judaica.
Certa noite de Natal, eu estava trabalhando com um grupo de resgate nos
subúrbios de Nova Iorque, recolhendo bêbados das ruas. Diante de uma porta
imunda, o cheiro de um alcoólico em particular era tão ruim que perguntei ao meu
companheiro, um assistente social agnóstico, se ele o conseguira pegar. “Sem
problema”, ele respondeu. Sussurrando palavras de ternura e consolo, ele
delicadamente ergueu o bêbado e o colocou na van. Decidi esperar um tempo antes
de falar ao meu parceiro sobre o poder do Espírito Santo em minha vida, sobre ver
Cristo nos menores e mais insignificantes.
O assunto de que estamos tratando aqui não é irrelevante. O amor ao semelhante é
o cerne da revolução moral cristã. A contraprova do nosso amor por Deus é o nosso
amor pelo próximo. Em A conspiração divina, um livro que Richard Foster disse haver
procurado por toda a sua vida, Dallas Willard escreve: “A caracterização positiva da
atitude do reino é o amor ágape... Jesus não nos chama para fazer aquilo que ele fez,
mas para sermos quem ele foi, permeados por amor. A prática daquilo que ele disse e
fez, portanto, se torna a expressão natural de quem somos nele".
Durante seu último discurso no Livro da Glória, Jesus diz: “Eu lhes dou um novo
mandamento: amem uns aos outros. Da mesma maneira que eu amei vocês, amem uns
aos outros. E assim que todos reconhecerão que vocês são meus discípulos - quando
virem o amor que vocês têm um pelo outro” (João 13.34,35, The Message).
O teste mais verdadeiro de nossa fé é o modo como agimos uns com os outros
todos os dias. Quando a supremacia do amor está subordinada à correção doutrinária
e à exegese ortodoxa, a cordialidade fria e a indiferença polida mascaram-se de amor
entre teólogos, estudiosos bíblicos e professores por todo o país. Quando o controle
absoluto e a obediência rígida se fazem passar por amor dentro da família e da
comunidade local da fé, produzimos covardes treinados em lugar de pessoas cristãs.
Durante a Segunda Guerra Mundial, um fuzileiro naval norte-americano,
gravemente ferido na ilha de Saipan, estava estendido no chão, sangrando. Outro
membro da corporação correu em seu auxílio. Arriscando sua própria vida, ele fez o
papel de bom samaritano, passando óleo e vinho nas feridas de seu irmão que
sangrava.
Seria pouco registrar que o soldado não foi nem grato, nem gracioso. Ele exigiu
saber o que fizera com que o companheiro demorasse tanto para chegar. Quando a
batalha cessou, o comandante do regimento, que havia assistido à cena de um lugar
seguro, aproximou-se do soldado que socorrera o colega e disse: “Garoto, eu não teria
feito isso nem por um milhão de dólares!”.
A resposta gloriosa do soldado foi: “Nem eu”.
Ele havia aprendido bem sua lição. Talvez ele não soubesse que aquilo que estava
fazendo pelo companheiro anônimo estava na verdade fazendo por Jesus Cristo. O
importante é que ele agiu. A obra foi realizada. “De que adianta, meus irmãos, alguém
dizer que tem fé, se não tem obras?”, pergunta Tiago. “Acaso a fé pode salvá-lo? Se
um irmão ou irmã estiver necessitando de roupas e do alimento de cada dia e um de
vocês lhe disser: ‘Vá em paz, aqueça-se e alimente-se até satisfazer-se’, sem porém lhe
dar nada, de que adianta isso? Assim também a fé, por si só, se não for acompanhada
de obras, está morta” (Tiago 2.14-17).
Se fôssemos tão sérios como Francisco de Assis sobre crescermos na sabedoria da
ternura, faríamos bem em tirar sua oração de paz da parede e pendurá-la em nosso
coração, tornando-a em sabedoria pela qual vivessemos:

Senhor, faze de mim um instrumento de tua paz. Onde


houver injustiça, que eu leve o perdão;
Onde houver ódio, amor;
Onde houver dúvida, fé,
Onde houver desespero, esperança,
Onde houver trevas, luz,
Onde houver tristeza, alegria.
0 Mestre Divino, faze com que eu não busque mais
ser consolado do que consolar,
ser compreendido do que compreender,
ser amado do que amar;
pois é dando que recebemos,
é perdoando que somos perdoados,
e é morrendo que nascemos para a vida eterna.

Leitura Recomendada:
Bonhoeffer, Dietrich. Vida em comunhão. São Leopoldo, RS: Editora Sinodal, 1982.
McGuigan, Dorothy Gies. Metternich and Duch-ess. New York: Doubleday, 1966.
Willard, Dallas. A conspiração divina. São Paulo, SP: Mundo Cristão, 2001.
Capítulo IV

O sonho impossível

Quando teólogos falam da Trindade, eles normalmente atribuem a obra da criação ao


Pai, a obra da redenção ao Filho e a obra de santificação, que é a obra de formar
Cristo em nós, ao Espírito Santo.
O papel criativo do Pai como fonte da vida, autor de tudo o que há, é enfatizado na
oração litúrgica com invocações como “Pai, tu és verdadeiramente santo, a fonte de
toda a santidade” e “Abba, tu és a plenitude da compaixão, e toda a criação te louva.
Toda vida e santidade vêm de ti através de teu Filho, Jesus Cristo”. Tanto o Credo
Apostólico quanto o Credo Niceno começam com uma referência ao poder criativo do
Pai. Neste ultimo, os adoradores dizem: “Cremos em um só Deus, o Pai, Todo-
poderoso, criador dos céus e da terra, de tudo o que neles há, as coisas visíveis e
invisíveis...”. Não há necessidade de multiplicar exemplos daquilo que é, de forma
patente, parte integral de nossa fé cristã: o Abba de Jesus é o Criador do universo e a
fonte de toda vida e santidade no mundo.
A fonte de toda vida: toda vez que enxergamos uma planta pequena e delicada
brotando na primavera ou testemunhamos o milagre do nascimento de uma nova vida,
vemos a mão amorosa do Pai em ação. E relativamente fácil para os cristãos cheios de
fé reconhecer a presença e a atividade do Pai celestial quando o assunto é a vida
física e visível. Quando o assunto e a vida espiritual e invisível, o assunto é mais sutil,
mas não menos verdadeiro. Voltemos nossa atenção para o exemplo dramático e
poderoso da atividade geradora de vida do Pai no mundo invisível do espírito humano.
Quando vi pela primeira vez a peça O Homem de La Mancha, baseada na obra Don
Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes, fiquei impressionado. Nesta linda
história, Don Quixote conhece Aldonza, uma garota maltrapilha, menina da vida, cheia
de vergonha e desgosto por causa de seu passado promíscuo. Depois de ter perdido
todos os traços de dignidade e todos os vestígios de respeito próprio, Aldonza é
consumida pela vergonha e pelo remorso. Don Quixote entra em sua vida e, por
razões extremamente nobres, tenta ganhar sua amizade e despertar nela um senso de
dignidade, valor e propósito. Todos os seus esforços, no entanto, são inúteis. Ela
rejeita cada uma de suas tentativas.
Don Quixote cria um apelido carinhoso para Aldonza, chamando-a de “Dulcinéia” -
sua pequenina e doce donzela. Outras vezes ele a chama de “minha senhora”, a fim de
lhe dar um sentimento de que faz parte de um ambiente aristocrático. Um dia ele
menciona ambos os nomes com um gesto espalhafatoso.
Quando Aldonza o escuta, entra com muita raiva no quarto e lhe diz, com todas as
letras, como está longe de ser uma senhora. Ao descrever um passado que inclui uma
mãe que a abandonou, um pai cuja identidade é desconhecida e homens que lhe
pagaram por um contato breve, ela revela o quanto seu pensamento é pequeno sobre
si mesma.
Ela então repreende Don Quixote por seus esforços em tentar melhorá-la. Afinal,
não seriam os sonhos bons demais para serem verdade em se tratando de alguém sem
esperanças de alcançá-los? Ela se enxerga indigna de ser qualquer coisa, a não ser o
nada que é.
Mas não é assim que o Pai vê esta criatura ferida e assustada que é sua própria
criação, e não é assim que ele quer que ela se veja. O poder vital que nasce do Pai,
criativo e gerador de vida em Don Quixote, a ele concedido através de Jesus Cristo,
por meio da ação do Espírito Santo, é que faz Aldonza reviver, restaura seu senso de
dignidade pessoal e a faz ressuscitar em novidade de vida.
Mas, em uma daquelas trágicas ironias da vida, Don Quixote adoece mortalmente -
com sua mente cansada por causa de seus muitos pensamentos, e seu corpo ferido
por ter lutado demais, seu coração partido por ter amado demais.
Aldonza corre até seu leito de enfermidade a fim de oferecer-lhe consolo (Será que
ela teria se lembrado das palavras de Jesus no Cenáculo? “Se alguém me ama,
obedecerá à minha palavra. Meu Pai o amará, nós viremos a ele e faremos morada
nele” - João 14.23). O Abba/Criador, habitando na alma agraciada de Aldonza (e ali
transformando-a indiscutivelmente em Dulcinéia) está com ela, ajudando-a a reanimar
Don Quixote.
Ela se ajoelha e implora a Don Quixote que se lembre de seu sonho em relação a
ela, seu sonho para Dulcinéia. Na expectativa de que se puder reacender esse sonho
nele seu calor irá trazê-lo de volta à vida, ela o relembra repetidamente da graça e da
glória que ele viu e que tentou suscitar nela.
Don Quixote se agita ao lembrar. Então, recebendo suas palavras e gestos, ele ousa
esperar que aquilo que anteviu em relação a ela tenha sido mais que um sonho.
Aldonza o estimula a ir além, lembrando-o da busca sobre a qual ele muitas vezes
falou - uma busca de bravura, honra e aventura. Finalmente, o sonho é reacendido em
Don Quixote e ele fala mais uma vez da busca gloriosa. Mais forte agora, e pronto
para novas aventuras, chama seu fiel escudeiro Sancho e solicita sua espada e sua
armadura. Ele então se ergue, renascido.
O poder criativo do amor do Pai que habita em Aldonza através do Espírito de Jesus
Cristo reacendeu a chama quase extinta no coração do Homem de La Mancha, e ele
reinicia sua busca. Até a morte, ele perseguirá seu sonho impossível.
No evangelho de João, Jesus diz: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém
vem ao Pai, a não ser por mim” (João 14.6). Jesus é o caminho para o Pai; Ele é a
verdade do Pai, pois, como disse: “Estas palavras que vocês estão ouvindo não são
minhas; são de meu Pai que me enviou” (João 14.24). Jesus é a vida do Pai porque
toda a vida e toda a santidade vêm da mão criativa de Abba. Jesus veio para
compartilhar sua vida conosco. “Eu vim para que tenham vida, e a tenham
plenamente” (João 10.10).
Jesus viveu, morreu e ressuscitou a fim de que pudéssemos ser cheios do Espírito
da vida - sua própria vida - a vida de seu Abba. Paulo escreve em 1 Co-ríntios: “Assim
está escrito: O primeiro homem, Adão, tornou-se um ser vivente; o último Adão,
espírito vivificante” (15.45). O Espírito é a própria vida. Quando Paulo escreve, em 1
Tessalonicenses, “não apaguem o Espírito” (5.19), está dizendo, “não apaguem a
vida”. A reverência à vida é sinônimo de reverência ao Pai, a fonte da vida. A vida
humana é incomparavelmente sagrada porque espelha a vida divina como nenhuma
outra forma de vida é capaz de refletir.
O dom da vida é um compartilhar nele, que é a Vida, com Deus, cuja deidade é
resumida na frase “Ele é”. Vivemos porque ele vive. Assim, toda a criação de Deus
clama: “Cuidem de mim com reverência”. Por esta razão, os cristãos que vivem na
sabedoria da ternura são particularmente sensíveis à vida em seu alvorecer e em seu
entardecer, nos direitos dos não-nascidos e na dignidade dos idosos. Porque são
sensíveis ao Espírito doador da vida (a ternura de Deus), porque reverenciam o Abba
de Jesus, estão cheios de sensibilidade e de reverência a toda vida. Eu sugiro que esta
visão seja fundamental para uma definição apropriada do cristão cheio do Espírito.
Dada esta definição, o que devemos fazer em relação ao problema sério da pena
pró-vida em oposição à pena pró-morte? O que devemos pensar quando, por exemplo,
a prisão perpétua sem direito a condicional é oferecida como uma alternativa à
injeção letal, e a última é preferida por cristãos que assumem a posição pró-vida em
se tratando dos não-nascidos? Fica muito claro que a postura pró-vida da comunidade
cristã é, com muita frequência, seletiva, inconsistente e vulnerável à crítica
tendenciosa. O estudioso de ética, Richard B. Hays escreve: “Uma razão pela qual o
mundo acha o Novo Testamento dos pacificadores e dos que amam seus inimigos
impossível de crer é que a igreja é massivamente infiel. Sobre a questão da violência,
a igreja está profundamente comprometida e compromissada com o nacionalismo, a
violência e a idolatria”. Citando a carta de Paulo aos Romanos, Hays comenta:
“aqueles que são membros do corpo de Cristo (12.5) nunca devem se vingar (12.19)...
Não há sequer uma sílaba nas cartas paulinas que possa ser citada em apoio ao uso
da violência por parte de cristãos”.
A postura antiaborto da comunidade cristã flui de uma reverência cheia do Espírito
pelo Pai de Jesus. Nenhum homem ou mulher pode reclamar para si o direito de
determinar a duração da vida de uma criança não nascida ou de um pai em idade
avançada. A decisão de reaver o dom da vida repousa no domínio soberano do Pai. No
entanto, é ingênuo e simplista ao extremo igualar uma reverência cheia do Espírito
pela vida a uma postura antiaborto. A oposição ao aborto é, certamente, um aspecto
integral da reverência pela vida, mas os dois termos não são nem sinônimos, nem
complementares. Aquilo que torna a postura pró-vida de muitos cristãos inacreditável
aos olhos de milhões é que ela é assustadoramente seletiva. Quando dizemos que
consideramos a vida sagrada, que a reverenciamos, que somos pró-vida, que nos
colocamos ao lado do Pai, o mundo em grande parte questiona a nossa credibilidade.
Por quê? Porque a nossa consciência cristã não é católica, no sentido original de ser
apropriadamente universal. A vida embrionária, fetal, ah sim: trate com cuidado, não
toque e defenda com todas as armas do arsenal cristão! Outra vida? Bem, depende.
Há três áreas onde a nossa reverência pela vida não é convincente. Equivalentes
cristãos do Watergate, essas áreas desfiguram a nossa imagem como filhos e filhas do
Pai e desautorizam nossos protestos pró-vida. E é precisamente nessas três áreas que
a espiritualidade da ternura conclama os cristãos a testemunhar indiscriminadamente
no debate pró-vida.

A primeira área é a da vida judaica. Devemos ser honestos e sensíveis aqui. A


comunidade judaica hoje ainda lembra que nos primeiros três séculos de nossa era
cristã, houve uma convicção generalizada de que os judeus haviam matado Cristo, e
que por terem os judeus rejeitado o Messias, foram eles mesmos rejeitados por Deus,
tornando-se um povo amaldiçoado. O povo judeu lembra a tradição de hostilidade e
desrespeito cristão expressa nas homilias de um dos mais extraordinários pregadores
e santos, João Crisóstomo. No ano 387 d.C., ele esbravejou de um púlpito em
Antioquia:

Sei que um grande número de fiéis tem pelos judeus certo respeito e guarda
suas cerimônias com reverência. Isto me instiga a erradicar por completo
opinião tão desastrosa. Já explicitei que a sinagoga não passa de um teatro;...
ela é um lugar de prostituição. E um covil de ladrões e um abrigo de animais
selvagens;... não simplesmente de animais, mas de feras impuras... Deus os
abandonou. Que esperança de salvação lhes resta?
Eles dizem que também adoram a Deus, mas isto não é verdade. Nenhum dos
judeus, nenhum deles, é um adorador de Deus... Uma vez que desonraram o Pai,
crucificaram o Filho e rejeitaram o auxílio do Espírito, quem ousaria afirmar
que a sinagoga não seja um lar de demônios? Deus não é adorado ali. Ela é
simplesmente uma casa de idolatria. Os judeus vivem para satisfazer seus
apetites, anseiam pelos bens deste mundo. Em ausência de vergonha e avareza,
superam até mesmo porcos e bodes... Os judeus são possuídos por demônios,
estão entregues a espíritos malignos... Ao invés de cumprimentá-los, e de
dirigir-lhes uma só palavra, vocês deveriam afastar-se deles como se fossem
uma peste e uma praga da raça humana.

O judeu sensível se lembra da Idade Média, de cada gueto judaico montado por
cristãos, cada batismo forçado, cada cruzada para libertar os Lugares Sagrados, cada
ato público de violência nas Sextas-feiras Santas, cada êxodo forçado (como o de
1492), cada retrato de Shylock* especificando sua porção de carne, cada acusação de
deicídio, cada vestido, chapéu ou tarja de identificação, cada morte em nome da
consciência, cada dar de costas ou de ombros em sinal de desdém, cada careta de
desrespeito, insulto ou maldição. E o judeu sensível
* NT: Shylock é o personagem central da obra de Shakespeare, O mercador de
Veneza. Trata-se de um judeu da cidade que enriqueceu emprestando dinheiro a juros,
lembra aquilo que o brilhante estudioso rabino Marc Tannembaum declarou tão
vigorosamente:

E preciso que se confronte até as últimas consequências como foi possível


que um país, ao exaltar exageradamente seus grandes valores e suas grandes
tradições morais e falar acerca de si mesmo como uma cultura cristã antiga,
que foi de fato o centro do Santo Império Romano por quase todo um milênio
iniciado com Carlos Magno, tivesse milhões de cristãos sentados como
expectadores, enquanto milhões de seres humanos que eram seus irmãos e
irmãs, filhos de Abraão conforme a carne, eram arrastados para a morte do
modo mais brutal, desumano e selvagem.
E preciso que se encare como um dos mais terríveis fatos da história deste
período a conversa que ocorreu entre Adolph Hitler e dois bispos em abril de
1933, quando estes começaram a levantar questões sobre a política alemã em
relação aos judeus e Hitler lhes disse, conforme relatado no livro Hitler's Table
Talk [A mesa de conversa de Hitler], que estava apenas e tão-somente
completando aquilo que o ensino e a pregação cristãos haviam dito sobre os
judeus durante boa parte de 1.900 anos. “Vocês deveriam afastar-se deles como
se fossem uma peste e uma praga da raça humana”, disse João Crisóstomo, e
1.500 anos depois, milhares de seus discípulos implementaram literalmente seu
ensino.

Com esta história trágica como pano de fundo, você fica surpreso que números
incontáveis de judeus não se impressionem com a nossa postura antiaborto, com
nossos argumentos em prol da santidade e da sacralidade da vida humana? Você
poderia culpá-los por sugerirem certa hipocrisia - ainda mais desanimadora porque
não é ainda percebida nem sentida? Alguém estaria escutando? Alguém se importa?
Os judeus estão de fato escutando, mas ouvem mais que a nossa retórica
contemporânea. Eles ouvem os gritos de “assassino de Cristo”, sentem as chicotadas
em suas costas, vêem sabão feito de gente, provam da fome, cheiram gás. Os judeus
se importam - sua história inteira é uma história de cuidado - mas eles não estão
mesmo certos de que nós nos importamos, ou que nos importamos com eles.
O que fazer? A resposta a esta pergunta não é simples. O teólogo Walter
Burghardt[6],* certa vez descrito como “o grande senhor da homilética norte-
americana”, tem sugerido que a comunidade cristã necessita de uma teologia arejada
do judaísmo e seu destino; precisamos de um profundo senso de tristeza por nosso
passado anticristão; precisamos de muito mais contato, mais diálogo com os judeus do
que os que já estabelecemos; precisamos compreender que o antissemitismo é como
cuspirmos no rosto de nosso Salvador Judeu; mas, talvez, acima de tudo, precisamos
viver aquilo que William Shakespeare disse de modo tão realista em O mercador de
Veneza:

Um judeu não tem olhos? Um judeu não tem mãos, órgãos, dimensões,
sentidos, afeições, paixões? Um judeu não é alimentado com a mesma comida,
ferido com as mesmas armas, sujeito às mesmas enfermidades, curado pelos
mesmos instrumentos, aquecido e resfriado pelo mesmo inverno e o mesmo
verão, como um cristão? Se você o perfura, ele não sangra? Se você faz cócegas
nele ele não ri? Se você o envenena, ele não morre?

A segunda área na qual nossa reverência cristã pela vida não é nada convincente é
em nossas relações com “o inimigo”. Aqui de novo a história nos chama a uma análise
que não temos encarado com a honestidade suficiente. Não quero chutar cachorro
morto ao ressuscitar a questão da moralidade da guerra no Vietnã ou do envolvimento
dos Estados Unidos no Camboja. Estou mais preocupado com a imagem estranha que
temos projetado nos últimos quarenta anos - uma imagem antivida. Nem todos os
cristãos, é claro. Uma acusação como esta seria calúnia. Afinal, ouvimos o grito
emocionado nas Nações Unidas: “Chega de guerra! Guerra, nunca mais!” Cristãos por
todo o mundo têm condenado o massacre impiedoso de inocentes. E a população
cristã como um todo tem erguido seus braços incessantemente aos céus em oração
intensa pela paz. No entanto, a despeito de nossas orações por paz, temos feito muito
pouco para alcançá-la.
Oh, é certo, temos há muito sido convencidos de que guerra é inferno. Sentimos
que há algo de tragicamente errado quando governos do mundo gastam centenas de
bilhões de dólares por ano para matar a vida dada pelo Pai, ameaçar, deter, manter a
paz; quando muçulmanos palestinos dançam de alegria nas ruas depois de um ataque
terrorista devastador; quando norte-americanos inocentes, seguidores do islamismo,
são abatidos de maneira selvagem por cidadãos enlouquecidos em busca de vingança;
quando três milhões de refugiados lavam as ruas e os campos de arroz com suas
lágrimas; quando seres humanos são torturados por outros seres humanos. Choramos
quando ouvimos que uma em cada cinco crianças norte-americanas vai para sua cama
faminta.
Onde então falhamos? Simplesmente ao limitar a nossa compaixão. A compaixão é
um dom que oferecemos a nossos amigos. A sabedoria da ternura é dispensada como
inapropriada ou irrelevante quando o inimigo está no portão. Quando a guerra se
avizinha, o filho de Abba se sente compelido a abandonar a infância, desprezar
qualquer senso de dependência radical na providência divina, e assumir o controle.
Ele está convencido de que nada de bom irá acontecer, a menos que ele mesmo faça
com que aconteça. Como afirma o poeta e pacifista Daniel Berrigan:

Deixamos a infância para entrar na guerra. Deixamos o Deus da infância para


prestarmos tributo aos deuses da guerra. Os deuses de nossa maturidade são
diplomáticos, o que significa dizer egoístas, falsos, insípidos, cheios de tédio,
covardes. Ou são belicosos - truculentos, presunçosos, desagradáveis, infiéis,
cruéis, ferozes. Quer de um tipo, quer de outro, esses deuses nos levam na
direção da insensibilidade moral.

Nesta confusão ética, o papel do cristianismo é visto como o de meramente


abençoar e encorajar a vontade nacional. A insensibilidade moral gerada pelo ajuste
ao mundo e sua linguagem desonesta de “resposta premeditada e ação sensível” mal
pode ser percebida em meio ao burburinho do patriotismo tumultuado. Durante a
Guerra da Coréia, meu treinamento na marinha foi dedicado a alcançar a glória
matando “gooks”[7] - e nem a tarefa, nem o rótulo eram repugnantes para mim ou
para meus companheiros de farda.
Certa manhã, não faz muito tempo, passei por um momento ruim, muito ruim.
Perguntei a mim mesmo com que frequência, entre 1950 e 1999, eu havia chorado
pelos norte-coreanos ou norte-vietnamitas, por um cabeça raspada neonazista ou por
um fanático religioso em um condomínio fortificado. Não consegui me lembrar de um
único momento. Foi então que chorei, não por eles, mas por mim.
Quando exaltamos a vida, quando fazemos severas críticas ao aborto, será que
alguém ouve, alguém se importa? Não entre aquelas pessoas sobre quem nosso poder
repousa mais pesadamente que a nossa compaixão, não em Nagasaki ou Hiroshima.
Para elas, nós somos uma contradição. Por um lado, proclamamos o amor e a
angústia, a dor e a alegria que envolve a concepção de uma única criança;
proclamamos quão preciosa cada vida é para Deus e deve ser para nós. Por outro
lado, quando os soldados do inimigo clamam a Alá com sua carne em chamas, não
choramos nem ficamos envergonhados; ao contrário, pedimos mais.
A terceira área na qual nós, cristãos, fracassamos é em nossos esforços para
melhorar a qualidade da vida. Aqui, de novo, nosso evangelho, nossas Boas Novas
soam em ouvidos surdos porque a imagem do cristão é pobre. Cada vez mais, nos
últimos cinco anos, quando discussões sobre o aborto têm degenerado em conflitos
cheios de ódio sem fronteiras, meus amigos não-cristãos - especialmente aqueles que
trabalham com os pobres, aleijados e viciados - têm lançado em minha cara o tema
recorrente:

Vocês, cristãos, continuam falando da imoralidade do aborto, mas quantos de


vocês estão envolvidos com as consequências de seus absolutos morais? A
garota de treze anos estuprada no beco, os adolescentes totalmente
despreparados para educar filhos, as milhares de crianças indesejadas, as
crianças espancadas com cintos e queimadas em fornos, as crianças
cujas barrigas estão para sempre inchadas por causa da fome. Vocês jogam
conversa fora sobre renovar os recursos do mundo, enquanto a Índia acrescenta
trinta milhões de novos seres humanos por ano à sua população e 139 de suas
crianças morrem a cada mil nascimentos. Vocês estão escutando? Vocês se
importam?
Se se importam, por que tantos de vocês continuam se afastando do
problema, para fora da cidade e em direção aos subúrbios, para fora das escolas
públicas e rumo às particulares, para fora da arena onde a mortalidade é tão
produtiva? Para muitos de nós, a ternura se tornou um clichê e a misericórdia
uma abstração. Para citar um de nossos heróis, Mohandas Gandhi: “Nós
gostamos do seu Cristo, mas não de seus cristãos, porque eles são muito
diferentes do Cristo deles”.

E óbvio que esta retórica obscurece o fato de que a igreja está intimamente
envolvida em todas estas questões. Insistimos em que uma criança nasça dignamente
e então, deliberadamente, permitimos que ela cresça ou morra desumanamente. O
testemunho multiforme dos cristãos norte-americanos nos bolsões de pobreza da
cidade, a dedicação anônima aos física e mentalmente desabilitados, a ajuda oferecida
às mães solteiras e às crianças ilegítimas, a compaixão sem paralelo demonstrada às
viúvas e aos filhos dos bombeiros e policiais de Nova York - todos estes e outros
inúmeros gestos compassivos revelam o coração cristão. No entanto, nosso
retrospecto impressionante realça o fato trágico e difícil de ser negado: nós, cristãos,
não temos dado à qualidade da vida, nem de perto, a mesma atenção, a prioridade,
que temos dado à vida nua e crua.
Estou convencido de que esta deficiência se explica através dos limites que temos
colocado ao nosso amor e à nossa reverência à vida. Jesus nos disse que nosso amor
pelos seres humanos seria o sacramento, o sinal visível de que ele está em nosso
meio. E assim que o mundo o reconhecerá. E o mundo não pode vê-lo porque não vê o
nosso amor. Cidades inteiras poderiam viver do lixo que geramos, das roupas que
vestimos e logo descartamos, dos luxos que transformamos em necessidades. Negros
e brancos coexistem graças a tréguas desconfortáveis porque nós, cristãos, temos
sido tão preconceituosos em relação à cor quanto nossos vizinhos incrédulos. Para
muitos de nós, uma corte de justiça é mais eficaz que o Sermão do Monte. Não há
evidência de que nós, cristãos, comamos menos, bebamos menos, cobicemos menos,
odiemos menos que os homens e as mulheres que não têm compromisso com Jesus e
seu radical modo de vida. E gritamos de modo mais estridente quando uma lei pró-
aborto é apreciada pelo congresso do que quando, como aconteceu num fim de
semana no Arkansas, uma família de negros foi assassinada a tiros em um bairro de
brancos.
Aqui, de novo, nossas reuniões de oração são comprometidas pelo contexto cristão
mais abrangente. A ênfase inevitável, a valorização da vida no Espírito, que é tão
palpável em nossos encontros, se torna menos factível no minuto em que saímos
deles. Não estou preparado para exigir uma nova prioridade: nenhuma vida sem
qualidade pode ter sua sobrevivência assegurada por antecipação. Mas peço, e creio
que o Espírito de Jesus pede o mesmo, um compromisso renovado com a qualidade da
vida. Devemos verdadeiramente continuar a erguer nossas vozes em protesto contra
aquilo que enxergamos como destruição injustificada de crianças não nascidas; mas
se o protesto dos cristãos convictos parar aí, se esses forem o resumo e a substância
de nossa reverência pelo Pai e por seu dom da vida, então a nossa consciência deve
nos importunar para sempre.
Duas sugestões poderosas, mas não-práticas: primeira, reflita o tempo todo sobre
quão perto de Deus está a vida do homem que sofre - tão perto que o rabino Abraham
Heschel pôde dizer, pouco antes de sua morte, “Há uma velha ideia no judaísmo de
que Deus sofre quando o homem sofre. Há um texto famoso que diz que, mesmo
quando um criminoso é pendurado no cadafalso, Deus chora. Deus se identifica com a
miséria do homem”. O Pai se importa com a vida que criou. Podemos ajudar Deus
reduzindo o sofrimento, a angústia e a miséria do homem.
Permita-me compartilhar rapidamente a história de um homem que não apenas
diminuiu meus sofrimentos, como salvou minha vida. Eu o chamo de meu Homem de
La Mancha.
Em abril de 1975, eu estava deitado, doente e desenganado no chão de um
apartamento em Fort Lauderdale, Florida. Mais tarde eu soube que em poucas horas,
se não tivesse sido socorrido, eu teria tido convulsões alcoólicas e poderia ter
morrido. Por incrível que possa parecer, até aquela altura eu não havia percebido que
era um alcoólico. Eu supunha que todos os alcoólicos eram baderneiros, falavam com
eles mesmos em diálogos desconexos e carregavam uma garrafa de vinho barato
embrulhada em uma sacola de papel (Somente tempos depois fiquei sabendo que
companheiros assim constituíam míseros três por cento dos alcoólicos ativos).
Rastejei até o telefone, mas estava tremendo tão violentamente que não conseguia
digitar os números no aparelho telefônico. Finalmente, disquei apenas uma tecla e
falei com a operadora. “Por favor, me ajude”, implorei. “Ligue para os Alcoólicos
Anônimos”. Ela anotou meu nome e endereço e prometeu fazer conforme eu havia lhe
pedido.
Em vinte minutos, um homem entrou pela porta. Eu nunca o havia visto antes, e ele
não tinha ideia de quem eu era. Mas tinha a expressão do Pai em sua face e uma
enorme reverência pela minha vida. Ele me ergueu com seus braços e correu comigo
para o centro de desintoxicação de um hospital próximo. Ali se iniciaram os longos
dias de internação médica supervisionada. O alcoólico crônico que tenta parar de
beber de uma vez está altamente susceptível a um ataque do coração ou um derrame.
Quem quer que tenha estado em ambos os lados da rua lhe dirá que a internação não-
supervisionada por causa do álcool não é menos severa que a internação não-
supervisionada por causa da heroína.
Pouparei o leitor dos detalhes daquela odisseia de vergonha e dor, de culpa
insuportável, remorso e humilhação. Aquele estranho, no entanto, devolveu-me a vida.
Suas palavras podem soar monótonas aos não-iniciados, mas elas foram palavras de
vida para mim.
Aquele cristão afastado, que já não ia à igreja há muito, muito tempo, me disse que
o Pai me amava, que ele não me havia abandonado, que com aquilo que acontecerá
ele faria algo de bom. Ele me disse que a palavra mais importante daquele momento
em diante não seria culpa, medo ou vergonha, mas sobrevivência e me pediu que
esquecesse aquilo que havia perdido e me concentrasse naquilo que havia deixado.
Ele me deu um artigo do Journal of the American Medicai Association [Boletim da
Associação Médica Norte-Americana], de junho de 1957, que explicava que o
alcoolismo é uma doença biopsicológica e que alcoólicos são biologicamente
diferentes de outras pessoas. Quando tomam o primeiro gole, o fenômeno do desejo
incontrolável se desenvolve e eles se tornam impotentes para parar. Aquele sensível
desconhecido me disse que eu não deveria sentir-me culpado, assim como não me
sentiria se estivesse me recuperando de qualquer outra doença como o câncer ou o
diabetes. Acima de tudo o mais, ele me apoiou em meu vazio, me amou em minha
solidão e me ensinou - um bêbado alquebrado - a sabedoria da ternura.
Repetidamente ele me falou do amor do Pai - que quando seus filhos tropeçam e
caem, ele não os repreende, mas os ergue e consola. Mais tarde, fiquei sabendo que
meu benfeitor era um trabalhador itinerante que aparava gramados para sobreviver.
Quase sem condição de se manter, ele colocava papelão em seus sapatos de trabalho
para tapar os buracos. No entanto, quando fui capaz de comer novamente, ele pagou
meu primeiro jantar no McDonald’s. Por cinco dias e cinco noites ele promoveu vida
em mim física e espiritualmente sem nada pedir em troca.
Aquele homem que me deu tanto havia perdido sua família e sua fortuna por causa
da bebida. Anos depois de ter saído do poço, ele ainda estava só, como atesta sua
rotina noturna: ligava a TV em busca de companhia, conversando com John Wayne na
esperança de que ele lhe respondesse. Antes de se deitar, passava quinze minutos
lendo um livro de meditações, louvava a Deus por sua misericórdia, agradecia por
aquilo que havia abandonado e pedia pelos alcoólicos. Como ato final de seu dia, ele ia
até a janela, levantava o vidro e abençoava o mundo.
Dois anos mais tarde, depois do tratamento no Centro de Reabilitação de
Alcoólicos e Drogados Hazel-den, em Minnesota, no Centro de Reabilitação de Álcool
e Drogas, fui para Clearwater Beach, Flórida, para trabalhar em meu segundo livro,
The Gentle Revolutionaries [Os revolucionários gentis]. Alguns amigos haviam me
oferecido uma casa em uma parte remota da praia onde eu poderia ficar sozinho para
escrever. De volta à vida, tentei fazer contato com meu Homem de La Mancha.
Através de meus amigos dos Alcoólicos Anônimos, fiquei sabendo que esse
companheiro salvador de vidas, a quem chamarei de Mefisto, havia se mudado do sul
para o centro da Flórida, mas eu não tinha seu endereço, nem seu telefone. Liguei
para o escritório central dos AAs em Clearwater e consegui localizá-lo. Fui informado
de que, numa dessas tristes ironias da vida, Mefisto estava a uns quarenta e poucos
quilômetros de mim, em Skid Row, Tampa. A voz no escritório central explicou que
Mefisto havia percorrido muitas vezes o caminho dos doze passos - um termo baseado
no programa dos AAs que envolve levar a mensagem de recuperação aos alcoólicos
ativos; em outras palavras, Mefisto havia se importado tanto com os outros que
esquecera de cuidar de si mesmo. Há uma palavra que faz sucesso na comunidade dos
AAs: ALTO. Trata-se de um lembrete para que você não fique por demais faminto,
irado, solitário ou cansado, pois ficará especialmente vulnerável àquele primeiro gole.
Meu amigo havia se esgotado no auxílio a outros e retornado ao velho vício.
Fui até Tampa e estacionei meu carro na área suja onde esperava encontrar
Mefisto. Ao caminhar em Skid Row, deparei-me com um homem do outro lado da rua
que parecia Mefisto - o mesmo porte físico, os mesmos cabelos brancos, uns dez anos
mais velho que eu. Corri no meio das pessoas para cumprimentá-lo. Não era ele, no
entanto; pude perceber quando me aproximei. Um outro homem de ma - nem sóbrio,
nem bêbado, apenas “seco”. Não havia bebido por vinte e quatro horas, e suas mãos
se moviam desordenadamente e tremiam (sintomas que, por experiência própria, eu
chamava de arrepios e rastejos). Ele agarrou meu braço e implorou: “Senhor, pode me
dar um dólar? Eu tenho que comprar um vinho”.
Ajoelhei-me diante dele e peguei em suas mãos. Olhei dentro de seus olhos, que se
encheram de lágrimas por causa do contato humano inesperado. Inclinei-me então em
sua direção e beijei-as. Ele começou a chorar. Ele não queria vinho, na verdade;
queria aquilo que eu quisera dois anos antes deitado no chão - ser aceito em seu
quebrantamento, ser encorajado em sua indignidade, ser amado em sua solidão.
Queria ser aliviado daquele que Madre Teresa de Calcutá, com sua vasta experiência
com a miséria humana, disse ser o pior de todos os sofrimentos: o sentimento de não
ser aceito ou desejado. Eu não encontrei Mefisto naquele dia, mas fui o instrumento
que Deus usou para levar aquele homem de rua a um centro de desintoxicação.
Duas semanas depois, eu liderava um encontro em meu lar provisório para um
grupo de alcoólicos em recuperação no décimo primeiro passo, que diz: “Busquemos
através da oração e da meditação melhorar nosso contato consciente com Deus como
o compreendemos, orando apenas pelo entendimento de Sua vontade e pelo poder
para cumpri-la". Ao descobrirmos que seis de nós eram episcopais ou católicos,
decidimos celebrar a eucaristia. No meio da reunião, Mefisto subiu as escadas da
casa. Sabe quando seu coração salta de prazer ao ver alguém de quem você
realmente gosta? Meu coração desandou a bater descompassado. Ele sinalizou para
que não parássemos e continuássemos a adoração, e nós assim fizemos, com um
sorriso de boas vindas. Poucos minutos mais tarde, ao dar minhas costas a ele durante
a eucaristia, ouvi a porta debaixo fechar suavemente. Mefisto se fora. Meu coração
quase parou.
Na manhã seguinte, encontrei uma carta dele, colocada debaixo da porta. Parte
dela dizia o seguinte:
Ontem à noite, com meu jeito estabanado, vim à sua casa e pedi a Deus pelo
direito de estar entre vocês, gente boa.... Você nunca saberá o quanto fez por
mim duas semanas atrás em Tampa. Você não me viu, mas eu vi você. Eu estava
ali, a alguns metros, escondido atrás de um poste.
Brennan, quando vi você se ajoelhar e beijar as mãos daquele homem, você
varreu de meus olhos o olhar fixo e frio dos mortos que ainda respiram. Quando
vi que você realmente se importou, meu coração começou a criar asas -
pequenas, frágeis, mas asas. Eu tinha uma garrafa de vinho nas mãos, e a joguei
na lata de lixo. Você suscitou vida em mim, e quero que saiba disso. Você me
libertou do meu mundo sombrio de pânico, medo e ódio de mim mesmo.
Se você alguma vez se perguntar quem é Mefisto, lembre-se de que sou
alguém que você conhece muito bem: sou cada homem e cada mulher que você
encontra...
Será que sou também você?

Ele então concluiu sua carta com uma frase que nunca havia usado antes em nossa
amizade, “Aonde quer que eu vá, sóbrio por meio da graça de Deus, um dia por vez,
irei agradecer-lhe por você, Dulcinéia”.
E assim que, novamente, faço esta primeira sugestão: dedique tempo a ponderar o
quanto esses filhos sofridos estão perto do Pai e são queridos por ele.
Minha segunda sugestão é mais específica: um exame de consciência. Meu
respeito pessoal pela vida faz jus à minha reverência ao Pai? Reajo aos hábitos
estranhos e aos fracassos de outros, ou respondo à terna Presença que os sustenta
como sustenta a mim? Costumávamos falar, sem misericórdia, mas com exatidão, de
certo monge que “na rua era um anjo; em casa, um demônio". Ele era maravilhoso
fora do monastério com os outros, mas em casa era o capeta. E possível se consagrar
completamente a uma causa pró-vida em um encontro e então ser antivida a partir do
encontro; orar no Espírito doador de vida de Jesus durante a liturgia e agir no espírito
que lida com a morte, da Besta, com o judeu que mora ao lado.
Como trato um irmão no cotidiano, como reajo com o homem de rua marcado pelo
pecado, como respondo às interrupções de pessoas de quem não gosto, como lido com
pessoas normais em sua descrença normal em um dia normal - tudo isso pode revelar
de modo mais contundente minha reverência ou irreverência ao Abba de Jesus do que
o adesivo antiaborto no vidro do meu carro.
Não somos favoráveis à vida simplesmente porque estamos evitando a morte.
Somos a favor da vida porque estamos com Abba, a essência da vida. E
amadurecemos na sabedoria que aceita a ternura a ponto de nos posicionarmos ao
lado dos menos afortunados; a ponto de nenhum ser humano nos ser estranho; a
ponto de podermos tocar a mão do outro com amor; a ponto de, para nós,
verdadeiramente, não haver “outros”.

E isso que o mundo espera de nossa retórica. E isso que o mundo anseia ver:
homens e mulheres que honrem o Pai através de sua reverência à vida, profetas e
amantes resplandecendo com a ternura concedida do próprio Espírito de Jesus,
pessoas que vivem somente para amar e para revelar amor a outras. O mundo anseia
pela evidência de que o sonho impossível é possível, que o amor existe, que ele tem
um nome, que ele é a única opção de felicidade neste mundo e de eterna alegria no
mundo por vir.
Se você tem um sonho, ele é apenas um sonho; se eu tenho um sonho, ele
permanece somente um sonho. Mas se nós todos temos o mesmo sonho, mesmo se for
um sonho impossível, ele se tornará realidade.
Esse sonho compartilhado é a realização da vida, morte e ressurreição de Jesus - o
brilho flamejante de um novo Pentecostes tomando o mundo de assalto por causa da
ternura cheia do Espírito das Dulcinéias e dos Homens de La Mancha que sonham o
sonho impossível e correm onde os valentes não ousam correr.

Leitura Recomendada:
Berrigan, Daniel. Isaiah: Spirit of Courage, Gift of Tears. Philadelphia: Fortress
Press, 1996.
Burghardt, Walter. Tell the Next Generation, Still Procaiming Your Wonders, Grace
on Crutches, Lovely in Eyes Not His, When Christ Meets Christ. New York: Paulist
Press, 1980, 1984, 1986, 1988, 1993. O falecido David H. C. Read, pastor da Igreja
Presbiteriana da Madison Avenue, em Nova York, certa vez ofereceu este endosso:
“Em minha opinião, ninguém hoje se iguala a Walter Burghardt, da Georgetown
University, na exposição do Evangelho com clareza, perspicácia e rigor acadêmico
cuidadosamente escondidos”.
Cervantes, Miguel. Don Quixote de La Mancha. Edições Múltiplas.
Hays, Richard B. The Moral Vision of the New Testament. San Francisco:
HarperSanFrancisco, 1996.
Shakeaspeare, William. O mercador de Veneza. Edições Múltiplas.
Capítulo V

Pecado: O inimigo da ternura

“O traço fundamental da personalidade madura em relação aos outros”, escreve


Adrian Van Kaam, “é a abertura”. A abertura serve como uma ponte para o mundo dos
outros. Ela nos capacita a nos envolver com os outros, a compreender seus
pensamentos, a sentir o que estão sentindo. Em outras palavras, se estamos abertos,
somos capazes de entrar no mundo existencial dos outros, mesmo se algumas vezes
não conseguimos nos identificar com o mundo particular de alguém. A abertura nos
torna sensíveis a qualquer parte do mundo dos outros que podemos aceitar e
assimilar em nosso universo pessoal de fé e pensamento. A personalidade madura,
portanto, se expande nessa comunicação aberta com uma variedade de pessoas e seus
diferentes pensamentos, sentimentos e atitudes.
Um filme antigo de Federico Fellini, La Dolce Vita, explorou a incapacidade de
pecadores endurecidos se abrirem para os outros, sua impossibilidade de se
comunicar enquanto pessoas e sua crescente crueldade em meio ao desaparecimento
da ternura.
O tema do filme é a decadência da sociedade romana, a prevalência do pecado, e o
tédio e a destruição extrema que ele produz. Esse tema é encarnado na deterioração
progressiva de Marcello, o talentoso e influente repórter social que vive distante das
pessoas que despreza e que, ao final, se torna uma delas.
Os membros da alta sociedade de Roma que encontramos no filme tentam se
comunicar, mas, para muitos deles, a comunicação nunca consegue penetrar abaixo
do nível corpo-sexo. Uma pessoa não se revela a outra pessoa. Perto do fim do filme, o
espectador sente que a tela está povoada não por pessoas, mas por conchas falantes
dentro das quais personalidades um dia viveram. O fracasso na comunicação despoja
os caracteres de tudo, exceto de seus últimos vestígios de humanidade.
A primeira cena do filme é a do encontro, em uma casa noturna, entre Marcello e
Maddalena, uma herdeira bela, misteriosa e intrigante. No Cadillac conversível dela,
eles passeiam pelas ruas escuras de Roma, e, por um momento, é como se Maddalena
estivesse verdadeiramente tentando entender o homem atraente ao seu lado - aquela
que tem muito dinheiro encorajando aquele que não tem dinheiro suficiente. Será que
ela consegue enxergar o que está por detrás de seu exterior frio e desconectado?
Estaria ela finalmente penetrando em seu verdadeiro eu? A intimidade nova e
inexperiente de mentes é repentinamente interrompida quando ela o leva para uma
cama no porão.
Sylvia, uma estrela de Hollywood em visita à cidade que ilumina o filme, repete
fielmente à imprensa as frases orientadas por seu agente publicitário. Ela, no entanto,
parece ser mais que apenas uma voz e um corpo. Impulsiva, alegre, cheia de um
espírito impetuoso, ela adora subir e descer correndo as escadas que circundam a
cúpula de São Pedro, deixando para trás delicada e facilmente os fotógrafos sem
fôlego. Quando chega ao topo e contempla a piazza, ela se dá conta de algo em seu
interior que responde à experiência. “Não posso acreditar, não posso acreditar,” ela
diz, voltando-se ao seu acompanhante. Este, no entanto, não tem olhos para a
magnificência; está olhando para ela, um símbolo sexual internacional.
Se alguém pudesse ter estado ali para receber e compreender esta comunicação
do eu interior de Sylvia, alguém que pudesse entrar em seu mundo único de
pensamento e de sentimento e compartilhar sua visão de Roma - e por meio desse
gesto estimular as emoções de seu eu mais profundo. Mas não; espiritualmente, ela
está só.
A cena final do filme é poderosa. Uma jovem, personificação da pureza, (que
parece, como disse um crítico, um dos anjos de Giotto), acena do lado oposto de
Marcello que havia acabado de retornar da orgia da doce vida em uma casa de praia.
É possível ver os lábios dela se movendo: “ Vieni qua, vieni qua" - Venha cá, venha cá.
Ele não consegue entender muito bem por causa do ruído das ondas, do ruído interior
produzido por sua enxaqueca. Ele faz uma tentativa tímida de ouvir e então dá de
ombros - “Non posso sentire” - não consigo ouvir (e mais ainda, não consigo sentir). E,
com isso, retorna à sua doce vida como um prisioneiro retorna à sua cela.
Fellini não sugere nenhum antídoto à degeneração na qual vivem seus
personagens. Nas palavras de um dos críticos, "não há saída para o inferno em que se
encontram”. Pessoas isoladas de seus semelhantes não conseguem sobreviver. Um
homem cercado por não-amigos, se toma um não-homem.

Pecar, diz Fellini, é se destruir. O pecado se toma a sua própria punição. Pelo fato
de a natureza humana ser espiritual e livre, o homem se realiza em ações através das
quais emerge do egoísmo para se abrir ao outro. O ego, no entanto, luta para quebrar
a ponte, trancafiando o homem, ao invés de abri-lo. Assim, o pecado sempre envolve
alguma forma de autodestruição, pois sufoca o homem dentro de seu próprio egoísmo
e solidão.
A vontade não mais guia as ações do pecador por meio da ternura; o egoísmo
enche e obscurece seu coração. O pecado separa o homem e o isola. Em sua
comunicação com outros, ele não tem mais qualquer interesse além de seu próprio
benefício ou prazer.
Ao perceber que estou insistindo no uso exclusivo do pronome masculino neste
capítulo, sei intuitivamente que isso se deve ao fato de estar descrevendo a mim
mesmo. O sofrimento causado pelo pecado através dos anos, o limitado crescimento
emocional gerado pelas constantes recaídas no álcool, a insensibilidade aos
sentimentos dos outros, os padrões de comportamento antiéticos e imorais de
desonestidade e engano, o enfraquecimento dos relacionamentos mais próximos, os
anos de indiferença espiritual e descontrole da vontade - tudo isso moldou uma alma
que o ateu existencialista Jean-Paul Sartre descreveu como “en soi et pour soi - em
mim mesma e por mim mesma.
Nesta altura da jornada, tudo se desenvolve a partir da graça. Não posso livrar-me
da autodestruição. Tenho de ser liberto. Somente a misericórdia poderosa de Jesus
Cristo, que doma os lobos da dúvida, da vergonha e do desespero, pode produzir a
minha liberação.
Ironicamente, a liberdade traz consigo um apreço pelas lições do cativeiro: como
observou o mestre espiritual Anthony de Mello com impressionante clareza, o
arrependimento atinge sua plenitude quando somos levados a agradecer por nossos
pecados (falo mais sobre isso no capítulo 7).
O pecado é o ponto de partida de todo conflito social. Cada pecado, mesmo cada
pecado de pensamento, deixa sua marca na estrutura psíquica da alma humana. Todo
pecado sem arrependimento tem um efeito sinistro e maléfico sobre a verdadeira
abertura.
“Homem algum é uma ilha”. Precisamos dos outros, todos nós. A existência
humana é relativa; ela é aquilo que o filósofo Martin Heidegger chamou de “mit-sein”,
um ser/estar com. Somos seres sociais por natureza. O pecado, no entanto, é
antissocial; ele nos tranca na prisão do nosso próprio egoísmo, e esse aprisionamento
gera graves consequências: ao estarmos fechados e incomunicáveis, nossa própria
personalidade empobrece; quando não conseguimos alcançar os outros num gesto
significativo de amor, nossa própria humanidade é diminuída. A crueldade seduz a
ternura, e a insensibilidade se torna um estilo de vida.
Depois de cada pecado grave, uma parte do poder para o bem é enfraquecida em
nós. Após vários atos subsequentes de maldade, uma parte de nossa verdadeira
liberdade é destruída. A liberdade de nos doarmos aos outros generosa e
bondosamente e a prontidão para receber são diminuídas. A concentração diária no
próprio eu paralisa nossas trocas interpessoais e se constitui num tipo de ruptura na
evolução da personalidade autêntica. O pecado é um circuito fechado. A despeito dos
diferentes tipos, todo pecado lembra (ao menos em caráter) o pecado original de Adão
e Eva, que foi um fechar-se para Deus e para o outro.
Da próxima vez que você parar para rever sua vida e examinar a sua consciência,
talvez possa achar benéfico para o seu crescimento espiritual ir além dos Dez
Mandamentos e fazer as seguintes perguntas:

• Tenho fracassado em tomar a iniciativa de aliviar o medo, a ansiedade e a


tristeza em meu lar, minha vizinhança e na comunidade local?
• Tenho tido desprezo por outros: os menos educados, talvez, ou pessoas étnica
ou economicamente diferentes, ou grupos religiosos?
• Tenho dispensado cidadãos mais idosos, considerando-os ultrapassados, sem
tentar fazê-los sentir seu valor e dignidade?
• Tenho de algum modo impedido o desenvolvimento pessoal de outra pessoa?
• Tenho buscado ser respeitado, sem respeitar os outros?
• Tenho com frequência deixado os outros me esperando?
• Tenho esquecido com desleixo (ou simplesmente não tenho mantido) um
compromisso ou um encontro com alguém?
• Tenho sido de difícil acesso para os outros, me sentido ocupado demais para
colocar-me à disposição deles?
• Não tenho prestado atenção quando alguém está falando comigo?
• Tenho ficado em silêncio quando deveria ter falado?
• Tenho respondido apenas àqueles cuja amizade se mostra proveitosa para
mim?
• Tenho denegrido o caráter de alguém por meio de observações danosas, falsas
ou verdadeiras?
• Tenho traído a confiança, violado o segredo, ou me envolvido na vida dos
outros através de palavras ou ações indiscretas?
• Tenho me concentrado naquilo que me beneficia ao invés de concentrar-me
em como posso beneficiar outros?
• Tenho deixado de apreciar as coisas como são por causa de expressões como
“teria sido”, “deveria ter sido” e “poderia ter sido”?

Depois de tratar dessas questões com franqueza, faça a si mesmo esta última e
crucial indagação:

• Tendo dado uma resposta desanimadora a estas perguntas, será que serei
dócil comigo mesmo, como o Mestre é, e reconhecerei humildemente que a
Palavra não tomou posse soberana de minha vida, aceitarei minha própria
necessidade de uma conversão complementar, me arrependerei rapidamente,
pedirei perdão, não perderei tempo com auto-recriminação e sorrirei de minha
própria fragilidade?

A tendência progressiva do pecado é suprimir, cegar e endurecer. As palavras a


seguir, da obra de Robert Traver, Anatomia of a Murder (Anatomia de um
assassinato), descrevem de maneira vivida aquilo que estou tentando comunicar
acerca dos efeitos do pecado na personalidade. Elas são proferidas por um velho
advogado, próximo do fim de sua vida:

A falta de conhecimento das pessoas, nossa falta de interesse humano uns


para com os outros, talvez seja o grande problema deste mundo. Por falta disso,
nosso mundo parece estar se desfazendo e morrendo. Parecemos estar
fatalmente inclinados a nos comunicar uns com os outros através de mísseis
inteligentes carregados de ódio e de ruína, ao invés de corações humanos com
sua carga inexprimível de amor. E agora é como se Deus tivesse finalmente
desafiado a humanidade a abrir seu coração ou perecer.

Uma palavra final sobre um assunto tão importante, que a carta de Tiago elogia:
“Confessem os seus pecados uns aos outros e orem uns pelos outros para serem
curados” (5.16). Se situarmos o pecado em sua perspectiva essencialmente social,
entenderemos melhor o carisma específico dessa experiência. A confissão se torna
mais que uma “lavagem rápida”, mais que um suspiro de alívio por se ter reunido a
coragem e a humildade necessárias para uma auto exposição honesta, mais que a
mera satisfação de ter dado ouvidos ao conselho de Tiago. Ela se torna um alegre
retorno à casa do Pai, uma reconciliação com a comunidade cristã em um espírito de
reparação e gratidão, uma reconstrução do relacionamento de amor com Deus e com
nossos companheiros humanos atacados pelo pecado, uma reabertura do coração
humano e uma possibilidade renovada de florescimento da plena e definitiva
personalidade cristã na sabedoria da ternura.

Leitura Recomendada:
Lewis, C. S. Cristianismo puro e simples. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2005.
Lewis, C. S. Cartas de um diabo ao seu aprendiz. São Paulo SP: Martins Fontes,
2005.
Manning, Brennan. Lion and Lamb. Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1986.
Monden, Louis. Sin, Liberty and Lavo. St. Louis, MO: Herder and Herder, 1962.
Nouwen, Henri J. M. Compaixão: Reflexões sobre a vida cristã. São Paulo, SP:
Paulus, 1998.
Wallis, Jim. The Call to Conversion. San Francisco: HarperSanFrancisco, 1981.
Capítulo VI

Dor e ternura

Naquela noite Jacó levantou-se, tomou suas duas mulheres, suas duas servas e seus
onze fihos para atravessar o lugar de passagem do Jaboque. Depois de havê-los feito
atravessar o ribeiro, fez passar também tudo o que possuía. E Jacó ficou sozinho.
Então veio um homem que se pôs a lutar com ele até o amanhecer. Quando o homem
viu que não poderia dominá-lo, tocou na articulação da coxa de Jacó, de forma que lhe
deslocou a coxa, enquanto lutavam. Então o homem disse: “Deixe-me ir, pois o dia já
desponta”. Mas Jacó lhe respondeu: “Não te deixarei ir, a não ser que me abençoes”.
O homem lhe perguntou: “Qual é o seu nome?” “Jacó”, respondeu ele. Então disse o
homem:

“Seu nome não será mais Jacó, mas sim Israel, porque você lutou com Deus e
com homens e venceu”. Prosseguiu Jacó: “Peço-te que digas o teu nome”. Mas
ele respondeu: “Por que pergunta o meu nome?” E o abençoou ali. Jacó chamou
àquele lugar Peniel, pois disse: “Vi a Deus face a face e, todavia, minha vida foi
poupada”.
Gênesis 32.22-30

Não há caminho suave para a ternura, como sugere esta passagem. Aprende-se a
ternura em um local de provas, onde o homem que ousa lutar com o Absoluto sai da
luta manco e recebe uma bênção. A dor é o caldeirão onde somos amolecidos. E
possível que aquilo que é verdade para o homem seja verdade para Deus? A passagem
do rabino Heschel, citada no capítulo 4, sugere isso: “Há uma velha ideia no judaísmo
de que Deus sofre quando o homem sofre. Há um texto famoso que diz que, quando
um criminoso é pendurado no cadafalso, Deus chora. Deus se identifica com a miséria
do homem”.
O próprio Deus amaria verdadeiramente assim? Ele entra em nossa miséria e a
experimenta, a ponto de chegar à terna paz? Ou será que se distancia da angústia e
da agonia, do quebrantamento e da dor da condição humana?
Betty Fusco, uma dona de casa de Hollywood, Flórida, escreveu-me o seguinte em
uma carta:

Certa noite, uma mãe jovem que havia recentemente perdido seu filho de
sete anos veio à nossa reunião de oração. Sua dor era enorme. Sua mágoa e sua
ira eram imensas.
Pergunto-me acerca dessa grande mágoa. Poderia ter sido meu filho. Não
seria ele também meu filho? Se não, por que estou chorando?
Por que, Deus? Será que você é capaz de sentir a nossa dor? Será que sabe
mesmo o quanto estamos feridos?
Quando José morreu, o que Maria e Jesus fizeram? Não teria sido a dor deles
tão grande que cobriram seus rostos com cinzas, clamaram bem alto, chorando
e lamentando, rasgaram suas vestes e contrataram carpideiras para seguir o
cortejo do corpo conforme o costume hebreu de prantear os mortos?
E não foi deste mesmo modo hebreu que, na Sexta-feira Santa, o Pai cobriu
seu rosto com cinzas: daí a escuridão do meio-dia, o eclipse do sol?
Sua terra gritou e gemeu na agonia do terremoto inesperado, tremeu e
chacoalhou - rochas se fenderam e montanhas desabaram - e ele clamou em alta
voz.
Ele chorou - fontes brotaram das fendas na terra; rios jorraram
descontroladamente porque seus cursos naturais foram alterados.
Ele rasgou suas vestes: a cortina do santuário
- o Santo dos Santos, o lugar onde ninguém entrava, a habitação de Deus
segundo a tradição hebraica - rasgou-se de alto a baixo.
Ele enviou carpideiras para acompanhar o corpo. “Os sepulcros se abriram, e
os corpos de muitos santos que tinham morrido foram ressuscitados.
E, saindo dos sepulcros, depois da ressurreição de Jesus, entraram na cidade
santa e apareceram a muitos” (Mateus 27.52,53).

O consolo chegou e chega na manhã da Páscoa. Se você um dia visitar a catedral


de Fribourg, na Suíça, note o terceiro vitral à direita, ao entrar na igreja. Ele descreve
o Abba de Jesus de pé no Calvário, aos pés da cruz, com o corpo de seu Filho coberto
de saliva e com o sangue ressecado embalado em seus braços.
O olhar na face do Pai parece dizer: “Se eu soubesse o quanto isto custaria, nunca
teria permitido que acontecesse”.
Teologia ruim? Sim. Exegese pobre? Com certeza. Mas o artista não estava ali para
fazer teologia ou exegese. Seu propósito foi o de descrever de forma dramática o
amor no coração de Abba, enquanto seu Filho amado era executado naquele monte
fora dos muros da velha Jerusalém. Podemos encontrar verdade na poesia, na música,
no afresco de Betty Fusco e em milhares de outras formas de arte, sem nos determos
na metafísica da divindade.
Agostinho declarou: “Deus é mais íntimo de mim do que eu mesmo”. Se Deus é o
Chão pessoal do Ser, engenhosamente conectado com tudo que há, e se está tanto
além quanto dentro de nossa experiência de vida, amor, alegria e dor, como sabemos
que está, ousamos então fazer a pergunta: onde estava Deus no genocídio de Ruanda,
no holocausto na Alemanha Nazista e no sofrimento horrível do 11 Setembro de 2001?
A teologia tradicional tem defendido a imutabilidade de Deus, sustentando que o
sofrimento demanda mudança. E, uma vez que a mudança implica progresso em
relação a um bem maior, qualquer mutação na natureza divina indicaria uma
imperfeição anterior, e assim, tornaria impossível a noção de um Deus sofredor.
Conquanto uma teologia com base filosófica possa endossar tal especulação, um Deus
sofredor está implícito em uma teologia baseada biblicamente. Nas palavras
contundentes de Bonhoeffer, “somente um Deus sofredor pode salvar".
Kevin 0’Shea escreve:

Há um profundo instinto humano de que Deus tem um coração, de que seu


amor restaurador exigiu que ele encarnasse, “passasse a ter coração”, como
nós. Talvez a verdadeira “dimensão-coração” de nossa existência, se podemos
chamá-la assim, não seja algo que chamemos propriamente nossa em um
sentido independente. Talvez seja uma parte de seu coração, uma comunhão em
Sua habilidade de sofrer [itálicos adicionados]. Talvez seja esta uma razão pela
qual o símbolo de amor do Deus terno, redentor, restaurador e integrador,
gratuitamente dado na graça, tenha de ser o Crucificado. Ele promoveu a paz
por meio do sangue de sua cruz. O coração aberto no Calvário é o símbolo do
pathos [paixão] de um Deus restaurador. Carregarmos em nosso coração a
abertura desse coração é desabrochar como pessoa na ternura da graça que nos
é concedida.

Na carta aos Filipenses, Paulo declara enfaticamente: “Quero conhecer Cristo, o


poder da sua ressurreição e a participação em seus sofrimentos, tornando-me como
ele em sua morte” (3.10). O sofrimento físico em nossas vidas, junto com várias
formas de angústia mental - solidão, tensão, crítica injusta, medo, contradição e
confusão, a inabilidade de relacionar-se amigavelmente com outros - estão entre as
circunstâncias da vida real através das quais somos formados à semelhança da morte
de Cristo. Do mesmo modo, a frustração, em suas variadas formas, como por exemplo
nos homens e mulheres que anseiam pela vida de casados, mas nunca a viveram;
naqueles que têm um profundo desejo de se tornar isso ou aquilo, realizar isso ou
aquilo, mas que no fim têm de admitir que carecem dos dons necessários; naqueles
que anseiam por amigos e companhia, mas estão condenados à solidão; naqueles que
nunca parecem ser capazes de fazer sucesso nas coisas sobre as quais colocam as
mãos. Nestas e em outras incontáveis situações de vida, nossa semelhança com a
ternura de Deus é percebida.
Em que sentido podemos dizer isso? Todos têm uma vocação para alguma forma de
trabalho para a vida. No entanto, por trás desse chamado (e mais profundo que
qualquer outro), todos têm a vocação de ser uma pessoa, ser plena e profundamente
humano em Cristo Jesus. E a segunda é mais importante que a primeira.
É mais importante ser um cristão maduro que um grande açougueiro, padeiro ou
artesão; e se a única chance de realizarmos a primeira for fracassarmos em relação à
segunda, o fracasso terá se mostrado inútil. Será que o fracasso não valeria a pena se
nos ensinasse a ser pacientes e condescendentes com o fracasso dos outros, viver na
sabedoria que aceita a ternura e passar adiante essa ternura a outros? Se formos
sempre bem-sucedidos, poderemos ficar tão dependentes de nossas vitórias que nos
tornaremos insensíveis à angústia de outros; poderemos fracassar em compreender
(ou mesmo tentar compreender) o coração humano; poderemos pensar no sucesso
como algo que nos é devido. Mais adiante, portanto, se o nosso pequeno mundo entrar
em colapso por conta de uma morte ou de um desastre, não teremos nenhum recurso
interior.
É importante e útil lembrar que o valor do sofrimento de Jesus repousa não na dor
em si mesma (pois, em si mesma, a dor não tem nenhum valor), mas no amor que o
inspirou, como Cirilo, de Jerusalém, destacou muitos séculos atrás. Ele escreveu:
“Nunca esqueça que aquilo que dá valor a um sacrifício não é a renúncia que exige,
mas a qualidade do amor que inspirou a renúncia”. E exatamente assim que devemos
nos aproximar do Calvário. A alma humana de Jesus alegrou o coração de seu Pai
celestial com a generosidade incontrolável e a obediência inabalável de seu amor.
Felizmente, a cruz não foi a palavra final de Deus a seu povo. Nossa vida cristã
contempla, além do Calvário, a ressurreição. E a natureza humana do Cristo
ressuscitado, filtrada por inteiro pelo brilho da divindade, que mostra como um
espelho reflete tudo aquilo para que somos convocados. O destino de nosso irmão
Cristo é o nosso próprio destino. Se sofrermos com ele, com ele seremos glorificados.
O padrão é sempre o mesmo. Todos os caminhos levam ao Calvário. Só alcançamos
a vida através da morte; só aprendemos a ternura através da dor; só chegamos à luz
através da escuridão; Jonas deve ser sepultado no ventre da baleia; o grão de trigo
deve morrer; devemos ser formados à semelhança de Sua morte se queremos nos
tornar homens e mulheres da Páscoa.

Leitura Recomendada:
Bonhoeffer, Dietrich. Discipulado. São Leopoldo, RS: Editora Sinodal
0’Shea, Kevin. The Way of Tenderness. New York: Paulist Press, 1978.
Stella, Tom. The God Instinct. Notre Dame, IN: Sorin Books, 2001.
Capítulo VII

Misericórdia resoluta

As três parábolas da misericórdia divina em Lucas 15, chamadas de “o Evangelho


dentro do Evangelho", carregam a mensagem central de Jesus Cristo. As histórias da
ovelha perdida, da moeda perdida e do filho perdido encurralam a nossa consciência,
induzindo-a à submissão à verdade de que Deus é amor (1 João 4.16). O estudioso da
Bíblia William Shannon argumenta que esse trecho da Bíblia é hermeneuticamente
decisivo, sugerindo que ele é a chave para a compreensão de toda a Escritura.
Meditemos na primeira dessas três parábolas e peçamos ao Espírito que nos guie
no mistério da misericórdia divina.
Impulsivamente, o pastor deixa noventa e nove ovelhas de seu rebanho no deserto,
onde o perigo está à espreita e bestas feras rugem, para buscar nossa pequena
ovelhinha perdida. Quando a encontra, ele a coloca sobre os ombros e volta para casa
alegre. O escritor Eddie Ensley, em seu livro Prayer That Heals Our Emotions [A
oração que cura nossas emoções] nos encoraja a visualizar esta cena:

Imagine que você é o pastor. Você deixa o rebanho para buscar o cordeiro
solitário e assustado que perdeu seu caminho e está agora sobre um penhasco
no alto de um monte, com medo de descer sozinho. O cordeiro grita como se
estivesse gritando para a sua mãe. Você pode ouvir o desespero em seu grito.
Você o acalma e o afaga. Fala palavras doces e sente seus músculos relaxarem e
a calma retornar. O cordeiro o acaricia com seu focinho. Você o apanha e põe
em seus ombros. O que você sente? Uma cena como esta sugere ternura,
amizade, compaixão e alegria. Permita-se sentir a ternura do cordeiro sobre seu
pescoço, enquanto a traz de volta.

Ternura, amizade, compaixão. Com elementos assim, esta e as outras duas


parábolas são decididamente “não-americanas”. Como consequência trágica disto,
estão praticamente ignoradas pela psique cristã contemporânea. Como sei disso?
Durante quase quarenta anos de experiência pastoral, tenho observado discípulos de
Jesus que insistem em persistir, intimidar e coagir a si mesmos para merecer a
misericórdia de Deus. As memórias perturbadoras de relacionamentos fracassados, o
desrespeito cruel de crianças, os pecados sexuais de estimação, as imprudências
financeiras, as palavras de amor não proferidas, o apoio não oferecido, a compaixão
não estendida e a indiferença abissal à necessidade humana que reaparece de
repente, às vezes décadas depois. Essas reminiscências indesejadas paralisam a fé,
atropelam a mensagem de Jesus e quase sempre levam a estados de consciência
induzidos por drogas que fornecem escape temporário da vergonha e
responsabilidade.
Uma tendência virulenta de teologia pelagiana tem se disseminado na consciência
espiritual dos Estados Unidos. Pelágio ensinava que as pessoas são basicamente boas
- incontaminadas pelo pecado original e no controle de seu próprio destino. Hoje, essa
teologia corrompida é alimentada pelos esforços enlouquecidos e diligentes no
mercado de trabalho, que é programado para colher as recompensas prescritas pela
força avassaladora do poder tecnológico. Recentemente, durante um jantar num
sábado à noite em Kirkland, Washington, uma pequena cidade perto do escritório
central da Microsoft, seis jovens casais, depois de devorarem sua comida, saíram
abruptamente do restaurante às nove horas. Eu disse ao meu convidado: “Que
estranho! E sábado à noite”. Ele respondeu: “Na verdade, isso é bem comum aqui.
Eles provavelmente estão voltando para o trabalho no Mundo Gates. Todos estarão
bilionários antes de completar trinta anos”.
Uma cultura que premia o esforço e a recompensa simplesmente transfere a lenda
do homem vencedor, de Horatio Alger, da esfera econômica para o nosso
relacionamento com Deus. A noção de misericórdia imerecida é curiosa, porém
ininteligível para a maioria de nós, uma vez que não possui precedentes em nossa
experiência humana. A surpresa dramática gerada por histórias como a do pastor, da
mulher e do pai que buscam é a de que ser encontrado por um Deus que busca é mais
importante que qualquer coisa que façamos. Se a mensagem não consegue ressoar
em nós, não podemos culpar o mensageiro.
Em minha própria vida, a transição da ternura para a misericórdia se desenvolveu
através de um implacável exame de consciência - ou, como dizem alcoólicos em
recuperação, através de um inventário minucioso e destemido de mim mesmo. Os
resultados não foram encorajadores.
Todos os sucessos ministeriais de anos anteriores foram pesados e deixaram a
desejar. Motivações basilares, mas bem disfarçadas, contaminaram quase todos os
atos de bondade que pratiquei. À luz dessa descoberta desagradável, o sentimento de
estar confortavelmente junto do Abba de Jesus desapareceu, como o sonho da noite
anterior. Não mais abrigado na percepção amorosa da presença de Deus, senti um
vasto abismo se abrir de repente, separando-me, em minha desonestidade calculada,
da pura verdade de Deus. Um sentimento vago e penetrante de culpa existencial se
instalou em minha alma.
O remorso acerca do passado se apossou de meu ser com tamanha crueldade que
temi por mim mesmo. Fiquei na cama até o meio-dia, caminhei tropegamente até o
escritório e não abri suas venezianas de jeito nenhum. A luz me era insuportável. Em
uma visão extremamente perturbadora, vi minhas supostas virtudes como vícios
espirituais encantadores, tudo contaminado pelo egoísmo. Eu havia brincado com a
emoção das pessoas, me entregue ao sarcasmo quando poderia ter encorajado a um
irmão ou irmã, deixado cicatrizes quando poderia ter curado através de uma palavra
de consolo, batido quando poderia ter beijado. Minha vida inteira parecia uma
mentira. Eu havia usado meus dons dados por Deus para construir uma carreira fora
da religião, forjar um império, conquistar a lealdade das multidões. As palavras
mortais engano, fraude e hipócrita soaram e ressoaram em meu coração oco, seguidas
por momentos de náusea diante de minha vaidade e falsidade. A autenticidade do
projeto de minha vida como um todo parecia condenada.
Um ex-professor que tive na Universidade de Columbia, Quentin Anderson, certa
vez disse: “Devemos nos reunir ao redor do fogo sagrado da vida comunitária”. Essas
palavras agora me atingiam como um cruel machado. A comunidade não tinha nada a
me oferecer, ninguém tinha nenhuma palavra que pudesse preencher o meu vazio.
Seria fútil buscar desenfreadamente uma chave, uma fórmula, um conjunto de coisas
a fazer a fim de encontrar meu caminho de volta ao paraíso perdido da proximidade
com Deus. Na fragilidade dessa minha situação, eu estava longe de qualquer
possibilidade de cura. Ninguém poderia me apresentar um remédio. A ternura se fora.
Naquela hora de perda, me senti tão longe de Deus que duvidei se uma vida inteira
seria longa o suficiente para encontrá-lo. Suspeitei que minha vida havia sido uma
grande decepção para Deus, uma decepção que não tinha forças para reverter. Eu
havia perdido o Senhor em meio ao orgulho que me cegara e a uma rispidez que havia
endurecido meu coração. Completamente desesperado, me convenci de que a
repreensão de juízo no Livro do Apocalipse havia sido endereçada a mim: “Você está
ultrapassado. Está estagnado. Você me faz querer vomitar. Você se gaba, ‘sou rico,
venci na vida, não preciso de nada de ninguém’, sem notar que de fato é digno de
pena, um mendigo cego, esgotado e desabrigado” (Apocalipse 3.16,17, The Message).
No passado vividamente relembrado, minha vida e ministério haviam inspirado
hinos de louvor. Eu tinha deixado minha marca; havia produzido um bom trabalho;
havia sido respeitado e estimado por meus pares. Parecia que a minha integridade
havia me dado um direito duradouro a uma segurança medíocre. Agora, no entanto, o
sucesso dos primeiros anos estava comprometido pela ambiguidade e arrogância. As
amizades e a popularidade estavam em declínio, do mesmo modo que as recaídas com
o álcool eram apagadas e ignoradas. Histórias pessoais que me colocavam em
destaque eram exageradas de maneira deslavada. Percebi a desconfiança por parte de
outros e as diferenças radicais de opinião acerca de liturgia, renovação espiritual e
vida comunitária. Doença, esgotamento e inatividade aumentavam a vergonha de
memórias enterradas, e que se recusavam a permanecer em silêncio.
Em um estado emocional deplorável, tomei consciência também de uma crescente
hostilidade para comigo mesmo. Olhando no espelho, eu via apenas a casca dentro da
qual alguém de carne e ossos viveu e cresceu. Eis que, então, tenho uma imagem
recuperada do passado: anos antes, eu havia sido convidado para trabalhar como
ministro no campus de uma renomada universidade. Sem nenhuma hesitação,
respondi: “Isso não será possível. O ministério de evangelização é minha prioridade e
exige um compromisso de tempo integral”. Quem disse isso? Quem foi o eu leviano
que decidiu que meu dom da palavra inspirada era tão indispensável à vida da igreja?
Em que momento, do qual não me lembro, eu teria começado a me levar assim tão a
sério?
Kevin 0’Shea, citado na obra The Thorn and the Rose [O espinho e a rosa]
compilada por Anthony Williams, descreve com tristeza profunda a insensibilidade
induzida pelo hostilidade ao eu:

Não é um inferno, é apenas um limbo eterno... Condenado a uma espera


eterna no chão estrangeiro do eu que ninguém consegue reconhecer nem pisar,
a não ser o eu nele capturado. Ele é o ponto impossível entre qualquer
esperança e todo o desespero, intocável por não se tratar de nenhum dos dois. E
um torpor instalado nas raízes do ser. Um verdadeiro dizer: “Eu não sou”... O
sentimento é amargo, mas o senso de amargura morreu... E a existência é
conhecida em algo que nunca se poderia chamar de uma “experiência”.

A ansiedade acompanhada de tremor esvaziou meu coração de qualquer desejo de


uma experiência na presença de Deus. Sua santidade era insuportável. O mero pensar
em Cristo era doloroso e assustador; Ele era o oposto de meu próprio ser, o inimigo de
minha infidelidade. Solitário, incomunicável, perdido, eu vi Deus como o mysterium
tremendum - frase de Rudolph Otto para aquele sentimento de tremendo mistério que
é o elemento mais profundo e fundamental em toda experiência espiritual. Deus era
totalmente Outro, majestoso, que inspirava medo, tudo que eu não era. Eu sabia que a
passagem, “terrível coisa é cair nas mãos do Deus vivo”, apontava diretamente para
mim; a perspectiva do juízo divino me enchia de terror. O contraste entre minha
pecaminosidade e a santidade de Deus permitia apenas a oração desesperada do
publicano, “O Deus, tem misericórdia de mim, pecador”. Repeti essas palavras em
oração por vezes incontáveis.
A aceitação da misericórdia não era mais somente uma opção entre muitas outras.
A exaustão espiritual extrema havia comprometido todo o meu mecanismo de defesa,
assim como a depressão clínica exaure cada unidade de energia na pessoa por ela
abatida. Nas profundezas de minha dor, eu sabia que teria de haver um momento
quando eu simplesmente abriria mão de tudo. Meu coração sangrava, e eu não
conseguia deter a hemorragia.
Quando a misericórdia se instalou silenciosamente em minha alma, o tremor
cessou e as lágrimas, que em minha hostilidade para comigo mesmo haviam secado,
começaram a rolar novamente. O toque de bondade infinita no nada em que eu me
tornara não foi mera ternura; ele se espalhou com uma doçura que transcendeu a
ternura. E embora a experiência fosse muito sutil, essa misericórdia entrou
despercebidamente em meu coração.
As ruas surradas de minha alma ainda estavam sujas com os destroços da vaidade,
da desonestidade e do amor corrompido. Não foi como se um lixeiro tivesse
repentinamente aparecido para limpar a vizinhança de cada monte de lixo que não
estava à vista. Quando a misericórdia chegou à minha porta dos fundos, meus defeitos
de caráter não foram jogados pela porta da frente; eles foram para o subsolo, porém
não saíram (e ainda não se foram). O que aconteceu é virtualmente impossível
explicar - e é melhor que seja assim. Aquilo que intuitivamente apreendo agora, em
retrospecto, é que a misericórdia beijou meu quebrantamento, Amor-Excedente (João
3.16) embalou uma criança ferida, e por uma razão biblicamente válida, porém
inexplicável, não houve problema algum em inclinar-me para ser beijado.
Mais tarde e muito chão de estrada depois, o primeiro ato de amor misericordioso
de Deus em mim foi o de acabar com as ilusões e desilusões que me haviam levado a
negar minha própria dignidade e tentar eliminar a vida do Espírito de Deus dentro de
mim. Minha mente errática havia liberado uma série de símbolos e imagens interiores
em tempos irracionais e incontroláveis, que alimentavam uma culpa irremediável que
eu não tinha poder para expiar. Foi somente quando o pensamento terrível de que a fé
ruim iria inevitavelmente tornar a desfigurar minha vida de novo, que a misericórdia
resoluta invadiu minha consciência com um senso selvagem de proteção: “Você me
pertence, e ninguém jamais irá arrebatá-lo de minha mão. Eu mudei seu nome. Você
não mais será chamado de envergonhado, ou se sentirá culpado, solitário e temeroso.
Seu novo nome é ‘filho meu, quebrantado e amado, que está sempre brincando e é a
alegria do meu coração’.
Quando a misericórdia resoluta transforma nossas vidas, as palavras perturbadoras
de Julian de Norwich, “o pecado não será vergonha, mas honra”, se tornam claras
como a luz do dia, assim como a observação desconcertante do mestre espiritual
Anthony de Mello, “o arrependimento alcança sua plenitude quando você é levado a
agradecer por seus pecados”.
A glória de Deus é perdoar. Como exclama o profeta Miquéias a Javé: “Quem é
comparável a ti, ó Deus, que perdoas o pecado e esqueces a transgressão do
remanescente da sua herança? Tu, que não permaneces irado para sempre, mas tens
prazer em mostrar amor” (7.18). E fácil para Deus perdoar. Deus se alegra em
perdoar porque o seu perdão gera nova vida em nós. A alegria incomparável do pai do
pródigo na “pérola das parábolas” teria sido negada se seu filho mais novo tivesse
sempre sido um hipócrita.
Nossos pecados são condutores da graça quando levam ao arrependimento e à
contrição autêntica. Assim como o filho pródigo, passamos a conhecer uma intimidade
com o Pai que o irmão sem pecado, cheio de justiça própria, nunca conheceu. Para os
pecados que nos levaram a esta intimidade sagrada, somos de fato gratos. Eles
oferecem a Deus a oportunidade de mostrar misericórdia, que as Escrituras hebraicas
e cristãs testificam ser Seu maior prazer. O teólogo alemão Werner Bergengruen
declara isso precisamente: “O amor prova a sua autenticidade na fidelidade, mas
alcança a sua plenitude no perdão”. Não é de admirar que o Amor-Excedente
encontre imensa alegria na misericórdia.
Em resposta à pergunta frívola “então por que não continuar pecando?”, pergunte
ao filho pródigo, depois dele haver experimentado as profundezas do amor de seu pai:
“Você planeja outro safári à depravação?”. Pergunte ao marido cuja esposa lhe disse:
“Eu te amo tanto que nada, absolutamente nada, poderia destruir o amor que tenho
por você; nada poderia jamais me fazer parar de te amar”, se ele se sente à vontade
para embarcar em um caso. Amor suscita amor!
A tentação onipresente da alma superficial é fingir que somos pecadores e que
somos perdoados - ela é de todo pretensiosa porque os pecados que reconhecemos
não são aqueles que nos matam, e o perdão que reivindicamos é falso por causa de
nossa desonestidade flagrante para com Deus e com os outros. A vida espiritual se
torna um pequeno carnaval de pseudo-arrependimento e pseudo-paz. No entanto,
quando o flagelo do pecado rasga nossa vida ao meio e a ferida aberta em nosso
espírito anseia pelo doce unguento do alívio, podemos ficar paralisados entre a
escolha de sofrer a vergonha ou confiar na misericórdia e internalizar as palavras de
Julian, “Nosso Senhor gentil não quer que Seus servos se desesperem porque caíram
séria e tristemente; porque a nossa queda não o impede de nos amar”. A graça para a
segunda escolha não é negada a ninguém que “clama a ele dia e noite”, mesmo
quando ele demora em ajudar (Lucas 18.7).
A Palavra que pode nos salvar não é a nossa própria palavra; a salvação não
depende de nenhuma capacidade em nós para praticar o bem. O que nos salva é a
Palavra viva da Misericórdia-Excessiva (Lucas 1.77,78), que tira vida da morte,
perfeição do desastre e perdão a si mesmo de autocondenação.
“Bem-aventurados os misericordiosos, pois obterão misericórdia”, promete Jesus
(Mateus 5.7). Se atentarmos com perseverança à nossa triste história, não somente
seremos desencorajados de julgar outros peremptoriamente como também ficaremos
mais dispostos a demonstrar, sem acepção, misericórdia a vagabundos e maltrapilhos
que Deus coloca em nosso caminho. Note a observação severa de Simon Tugwell: “Só
podemos receber misericórdia se estivermos preparados para aceitar a companhia
que a Misericórdia nos oferece. Não é bom querer ser alvo de misericórdia e ao
mesmo tempo reservar-se o direito de olhar com desaprovação para todos os outros
companheiros”.
Uma vez que receber misericórdia é inseparável de mostrar misericórdia, a oração
incessante deve incluir o clamor para transformar meu coração de pedra em um
coração de carne. Todos nós nos encontramos urgentemente necessitados da mesma
misericórdia, mas mostrá-la ao outros não é uma opção fácil, especialmente quando
ela representa benevolência abundante para com ingratos que não têm qualquer
intenção de mudar. No entanto, é isso que Abba faz. “Ele é bondoso para com os
ingratos e maus” (Lucas 6.35). Além disso, minha própria cumplicidade em relação ao
mal é manifesta em minha resistência autojustificadora para expressar qualquer
amizade genuína a alguém que tenha me magoado; estou preso à mesma rede
deplorável em que o transgressor está. O coração terno, claramente, não é feito de
betume.

Todas as grandes experiências da vida - a liberdade para ser, nossos encontros com
a verdade, amar e ser amado, diariamente morrer para o eu, e assim por diante - são
exercitadas na turbulência silenciosa de um espírito empobrecido. Uma doçura que
transcende a ternura nos envolve quando confrontamos momentos decisivos
relacionados a essas experiências e somos silenciosa mas profundamente tocados por
esse indescritível encontro com a misericórdia. Ao sermos tomados pela força
envolvente do mistério, de repente nos tornamos pequenos. Não podemos mais
chegar até Deus com o nosso profissionalismo injustificado ou com a nossa
familiaridade ofensiva, e sabemos disso. Não ficaríamos surpresos nem chocados se
Deus entrasse e desse um fim a toda a nossa meditação superficial.
Ao nos achegarmos à nossa fonte, nossos pensamentos vão se concentrando, nosso
entendimento se suaviza, nossas palavras se intensificam, nosso julgamento se torna
reservado e a nossa objetividade ganha reverência. Como lidamos com essa colisão
indizível, vazia, mas despedaçadora com o Chão do Ser - do nosso ser? Por que esse
afastamento conveniente da lareira dos colóquios amenos e das liturgias animadas
por aplausos cm direção à pobreza de uma calma profunda e fria que invade o
santuário interior do nosso ser?
De acordo com Rudolph Otto, a razão é o mysteriurn tremendum, aquele
sentimento de tremendo mistério que cerca todo o nosso pensamento acerca de Deus,
toda a nossa oração a Ele dirigida. Além de fé, confiança, amor, paz e alegria,
sentimos um elemento de força desorientador - uma força tão grande que seria
humanamente impossível para nós criarmos, inventarmos ou fabricarmos uma
experiência assim. Para determinada pessoa, ela pode vir larga como uma suave,
porém implacável maré, saturando a mente e o coração, em um auto-abandonado
espírito de profunda adoração. Para outra, ela pode perdurar e estabelecer-se num
ritmo constante que ressoe com encantamento e espanto, até que, por fim, se
desvaneça e o crente retorne à rotina normal, da existência diária. Como disse um
místico contemplativo de maneira bem-humorada, “Após o êxtase, o tanque!”.
Em outras ocasiões, a força do mysterium tremendum pode surgir como um vulcão,
brotando das profundezas da alma em espasmos e convulsões. Ela pode levar ao
frenesi inebriante, tal como aquele experimentado pelo místico do século XVI Philip
Neri, que pressionava as mãos com todas as suas forças contra a parede para impedir
embriaguez espiritual, levitação ou êxtase. Ainda em outras ocasiões, a força do
mysterium tremendum pode manifestar-se através do tremor silencioso e da
humilhação sem palavras de C. S. Lewis, que foi “surpreendido pela alegria”.
Qualquer que seja a natureza da experiência, nos encontramos na presença do
mistério inexprimível, acima de todas as criaturas e além de toda descrição.
Ela é a entrada decisiva de Deus em nossa história pessoal, o momento
transformador quando a ternura não mais corresponde à nossa percepção da
realidade; a intimidade experimentada por uma fé passada é inapropriada para os
parâmetros presentes de experiência espiritual; “Abba”, “Pai amado”, “irmão Jesus”, e
“doce Espírito” se tomaram palavras secas, imagens vagas que não mais ressoam no
santuário interior do coração. Essas palavras e imagens serviram ao seu propósito de
indicadores antropomórficos da realidade do Amor-Excedente que está além de nós, e
a ternura é redefinida como misericórdia.
Quando essa hora da verdade chega, não temos mais recursos para resistir à
convocação imperiosa do mistério, sem credenciais de independência para agir. O
momento da verdade chegou.
Como escreve o teólogo alemão Johannes Metz: “Ao adorarmos em espírito e em
verdade (João 4.23), não mais nos sustentamos com a pose do executivo que sabe o
que se passa e tem tudo sob controle... Estamos enganados, no entanto, se esperamos
encontrar na oração um abrigo para a força avassaladora do mistério”.
Embora a oração seja a nossa resposta natural a qualquer encontro com o mistério
supremo, James Mulholland nos lembra que nem toda oração serve a esse propósito.
Se esquecermos a quem estamos nos dirigindo em oração - esquecermos o poder com
o qual estamos lidando - nos aproximaremos daquele que é Santo como se fosse Papai
Noel, oferecendo-lhe uma lista de coisas a fazer, sepultando o encantamento e o
espanto sob uma lufada de petições, e obtendo de nossos dízimos, do nosso jejum e da
vida devocional um sentido de autorização para receber uma resposta divina
imediata. O mais curioso é que Jesus está claramente ausente da oração pré-cristã de
Jabes e de invocações semelhantes.
Quando negamos nossa pobreza espiritual intrínseca, quando ficamos por demais
envolvidos com nós mesmos, o perigo está à espreita. Podemos começar a fazer
exigências a Deus por coisas que pensamos merecer, e que, na maioria das vezes, nos
levam à ira e à frustração. Um caso típico: o homem no restaurante pede uma salada
de caranguejo e o garçom traz salada de camarão. Lívido, o homem irado ruge: “Onde
diabos está o meu caranguejo?”. Se presumirmos que a vida nos deve o melhor - e
nada menos que o melhor - a realidade, então, raramente corresponderá às nossas
expectativas.
Como consequência lógica disso, nós alegremente desconsideramos tudo que cruza
o nosso caminho. O espiritualmente pobre - assim como o pobre economicamente -
experimenta a genuína gratidão e aprecia o presente mais simples. Ironicamente,
quanto mais crescemos no Espírito de Jesus Cristo, mais pobres nos tornamos. Quanto
mais percebemos que tudo é dom, mais o curso contínuo de nossa vida se torna uma
ação de graças humilde e alegre.
Os ricos de espírito dedicam um tempo considerável para pensar sobre aquilo que
não têm; os pobres desfrutam de imediato e celebram aquilo que têm. No século XIX,
o filósofo ateu Friedrich Nietzsche repreendeu um grupo de cristãos: “Vocês me dão
enjoo!” foi o resumo de sua reclamação. Quando seus interlocutores perguntaram por
quê, Nietzsche respondeu, “Porque vocês, redimidos, não parecem que são
redimidos!”.
Os ricos de espírito estão, na maioria das vezes, abatidos, sentindo-se culpados,
ansiosos, e insatisfeitos como seus semelhantes incrédulos, enquanto os pobres de
espírito clamam: “Convém dar a Deus gratidão e louvor!”.
Assim, como migrarmos da pobreza da riqueza espiritual para a riqueza da pobreza
espiritual? A oração do silêncio respeitoso, da liberação do egoísmo sem limites e a
atenção à sensibilidade de Jesus revelam as profundezas ilimitadas de nossa pobreza.
Na percepção de nossa dependência radical, a ilusão da auto-suficiência se dissipa
como a névoa da manhã.
Somos tão pobres que nem mesmo a nossa pobreza nos pertence; ela pertence ao
mysterium tremendum de Deus. Em oração, bebemos as porções menos desejadas de
nossa pobreza, professando a plenitude e a majestade de Outro Alguém. A máxima do
pobre de espírito é: “Não eu, não Tu, não um, e não dois”, mas o cantor e a canção, a
chama e o fogo. O maltrapilho empobrecido bebe todo o cálice, quando desaparece
naquilo que Thomas Merton chamou de “a enorme pobreza que é a adoração a Deus”.
Ele se apresenta diante de Deus de mãos abertas, sem se agarrar a coisa alguma.
Não mais escravo da tirania das experiências religiosas arrebatadoras do passado,
o pobre de espírito abandona a procura desesperada por recapturar a intimidade
piedosa e inspiradora da ternura. Tom Stella conta a história de uma de suas visitas à
Abadia Genesee, no lado norte de Nova York. Ele perguntou a um monge que estava
ali há trinta anos se ele experimentara mais o sentimento da proximidade de Deus
naquele momento do que quando chegou ao monastério. “Esperando uma resposta
afirmativa”, disse Stella, “fiquei ao mesmo tempo surpreso e confortado quando ele
disse: ‘Não, mas agora isso não importa”. Graças à misericórdia divina, a certeza da
fé na Presença que em nós habita não depende da instabilidade de nossos
sentimentos volúveis.
Deus é Deus. Aquele que é Santo não se deixa comandar, controlar, manipular,
explorar.
O apóstolo Paulo pergunta: “Mas quem é você, ó homem, para questionar a Deus?
Acaso aquilo que é formado pode dizer ao que o formou: ‘Por que me fizeste assim?’”
(Romanos 9.20). Quando aceitamos essa verdade, percebemos que tempos de
adoração não podem mais ser avaliados pelos efeitos emocionais que produzem em
nós; a qualidade da refeição eucarística não pode ser medida pelo número de cadeiras
à mesa, pela natureza dos aperitivos ou pelos resultados tangíveis e visíveis na psique
de um comensal. Os pobres se impressionam de que a misericórdia tenha sequer se
incomodado em aparecer, isso sem falar que Deus e o homem estão sentados à mesa.
Quando somos levados a estar face a face com a inevitável pobreza da morte, o
movimento gradual de viver na sabedoria da ternura para viver na presença da
misericórdia se torna decisivo e completo, A perturbadora realidade do mysterium
tremendum estabelece sua afirmação soberana. “Neste ponto”, nota Johannes Metz,
“a pobreza alcança seu ápice. A submissão às forças de uma natureza vinculada à
morte se torna entrega total e obediente ao Pai”.
Vinte cinco anos atrás, uma amiga minha na Flórida soube que estava morrendo.
Como último desejo e testamento, Edith Dinan escreveu o seguinte:

Quando este meu corpo terreno silenciar e não mais respirar, celebrem com
júbilo ao Senhor, meus amigos. Não chorem, a menos que chorem por vocês
mesmos; não chorem por mim. Ao contrário, dancem, cantem e gritem as Boas
Novas - outra filha partiu para o lar do Pai, Abba.
Entoem canções de alegria até tarde da noite e, se houver um valente entre
vocês, cantem, louvem, toquem e riam até o amanhecer; e então deixem que o
culto seja uma celebração de verdadeira felicidade e alegria. Louvem a Deus,
pois ele é misericórdia! Ele me chamou para o lar.
Não se entristeçam, queridos amigos, com minha partida, mas se alegrem.
Pensem com carinho em mim e muito, se assim o desejarem, mas somente com
prazer e alegria.
Não permitam que a celebração de meu verdadeiro nascimento no Senhor
seja uma coisa monótona, mas que nos salões ressoem alegria e divertimento!
Louvado seja nosso Senhor, pois ele é bom! Ele me chamou para o lar e eu vou
com amor, expectativa e louvor em meus lábios, e alegria em meu coração... Na
plena certeza de que sou uma Amada do Pai, uma noiva de Cristo e um templo
do Espírito Santo. Escrevo isto como meu último desejo e testamento. Se vocês
me amam, por favor, encham-se de alegria e façam o que estou pedindo.

Edith já está no Reino, é claro, pois, como escreve Leon Bloy, “você não entra no
paraíso amanhã ou dez anos a partir de amanhã; você entra no paraíso hoje, quando
está pobre e crucificado”.
A morte é o último ato de entrega do eu, o repúdio final ao eu, o ato supremo de
maltrapilhos empobrecidos diante da misericórdia resoluta de Deus. Em confiança
inabalável, esperança resoluta e em pura doação de amor, entregamos nosso próprio
reino ao Pai. E o Abba de Jesus, postado nas margens eternas com braços abertos e
estendidos, docemente nos convida a entrar em casa, dizendo:
Levante-se, minha querida, minha bela, e venha comigo.

Veja! O inverno passou; acabaram-se as chuvas e já se foram.


Aparecem flores na terra,
e chegou o tempo de cantar
já se ouve em nossa terra o arrulhar dos pombos...
Levante-se, venha, minha querida; minha bela, venha
comigo...
mostre-me seu rosto, deixe-me ouvir sua voz; pois a sua voz é suave e o seu
rosto é lindo.
Levante-se, minha querida, minha bela, e venha comigo.
Cântico dos Cânticos 2.10-14

Leitura Recomendada:
Bergengruen, Werner. Citado em The God Who WontLet Go. Cincinnati, OH: Ave
Maria Press, 2001.
Ensley, Eddie. Prayer That Heals Our Emotions. San Francisco:
HarperSanFrancisco, 1988.
Julian of Norwich. Showings. New York: Paulist Press, 1980.

Metz, Johannes. Poverty of Spirit. New York: Paulist Press, 1968.


Mulholland James. Praying Like Jesus. San Francisco: HarperSanFrancisco, 2001.
0'Shea, Kevin. The Thorn and the Rose. New York: Paulist Press, 1978.
Otto, Rudolph. The Idea of the Holy. New York: Scribner, 1927.
Shannon, William. Silence on Fire. New York: Crossroad, 1991.
Tugwell, Simon. The Beatitudes: Soundings in Christian Tradition. Springfield, IL:
Templegate, 1980.
Epílogo

Uma palavra depois...

Pastores leais e bondosos correspondem à terna Presença que sustém seus irmãos e
irmãs na família humana. No entanto, quando a dignidade de outros é ultrajada por
maquinações de líderes políticos ou religiosos, eles não temem tomar posição em prol
da verdade e sustentar sua desaprovação aos poderosos. Eles são incapazes de
permanecer em silêncio em face da flagrante injustiça. Eles dão ouvidos às palavras
inscritas no tabernáculo de uma igreja em uma pequena vila, “a maior de todas as
coisas sobre a terra é o respeito, porque ele é o cerne do amor”. Se falar e agir em
favor dos marginalizados for a única alternativa, cristãos sensíveis se tornam
confrontadores, irados e inquietos; se as circunstâncias exigirem, eles serão
adversários ferozes e resistentes.
Estas observações servem como um curto prefácio a esta última palavra.
Se a imaginação cristã, há muito mumificada pelos legalismos e barbaridades de
uma igreja sem alma, de repente despertasse, como o estalo de um canivete ao se
abrir, poderia criar uma imagem do inimaginável: uma comunidade cristã unificada na
América!
A imaginação concentrada em Jesus e ancorada em sua Palavra nos liberta da
tirania dos arranjos existentes; nos descola da prisão do status que abre portas
trancadas para que possamos olhar com novos olhos a Torá, Cristo, a igreja e o
cosmos; significa que posso ser mais do que sou a qualquer momento; e promete que
o epitáfio em meu túmulo será mais que, “ele balbuciou suas orações, cortou sua
grama e perdeu mil bolas de golfe”.
Um exercício: imaginemos que o apóstolo Paulo, que viveu as palavras que
escreveu na Segunda Carta aos Coríntios, “ora, o Senhor é o Espírito e, onde está o
Espírito do Senhor, ali há liberdade” (3.17), fez um curso intensivo de inglês e foi
transportado numa máquina do tempo até o presente. E tarde de domingo em Nova
Orleans, e Paulo está com fome. Ele compra um lanche de camarão de um vendedor
da Chartres Street e, dando ouvidos ao seu conselho a Timóteo, bebe um refrigerante,
passa pela Moonwalk em direção à Decatur Street, chega ao alto e tem sua primeira
visão do Rio Mississipi. Senta-se, então, em um banco de madeira, ao lado de um
cavalheiro de cabelos brancos.
“Bom dia, senhor,” Paulo diz, tirando o lanche da sacola. “Talvez o senhor pudesse
compartilhar comigo sua perspectiva acerca da situação espiritual da comunidade
cristã na América hoje”.
O homem se vira e, friamente, observa o estranho. Ele vê um homem de baixa
estatura com um nariz grande, escassos cabelos ruivos, uma bochecha redonda, olhos
acinzentados sob sobrancelhas grossas e unidas, e uma barba densa. Quem é esse
sujeito? O homem se pergunta. Um espião da imprensa em busca de sujeira, um
diletante divagando sobre coisas espirituais, o inimigo disfarçado de anjo de luz?
“Por que o senhor pergunta?” ele diz com ceticismo.
Paulo toma um gole de sua bebida, pensando em uma resposta, e então diz, “um
discípulo de sua época escreveu: ‘muitos cristãos se juntaram como corvos ao redor
da carcaça da graça barata e beberam o veneno que matou o discipulado de Cristo’.
Se aqueles que buscam quiserem encontrar Jesus hoje, devem encontrá-lo em seu
corpo, a comunidade cristã. Eu faço esta pergunta, senhor, porque quero encontrar
Jesus em sua área”.
O homem mais velho, trajando jeans, blusa com gola alta e tênis de marca, ouve
com atenção. Seus olhos se fixam no rosto de Paulo. Ele nota que daquele pequeno
companheiro imperceptível emana uma força espiritual inquestionável. Sua
aparência, gestos e voz, no entanto, não combinam com o estereótipo convencional de
piedade. Ele não parece mundano nem místico. Ele não tem o olhar fascinante,
inflexível da multidão dos ‘nascidos de novo” - um olhar que quase sempre sugere
uma condição neurótica disfarçada de sinceridade. E ele não me abordou citando um
texto da Bíblia após outro. E óbvio, contudo, que leu Bo-nhoeffer, pois o citou.
E a honestidade em seus olhos é inconfundível. Já ouvi muitos pregadores, o
homem do tênis de marca pensou, que me hipnotizaram com uma oratória cativante
entremeada por um humor autodepreciativo usado para dar a impressão de que são
humildes, mas algo em seus olhos os denuncia. Um movimento quase imperceptível
da íris me diz que muitos pregadores habitam uma parte vaga de suas mentes. Eles
têm, com o passar dos anos, aprimorado e revisto seus estilos, mas esqueceram a
essência de sua mensagem, sacrificando-a em prol da pregação. Paixão preconcebida,
fogo artificial. Os olhos traem a retórica. Eu me lembro de ter conhecido um
fazendeiro que ficou tão empolgado com sua plantação de batatas que era mais crente
que o pregador típico. Estava tudo em seus olhos! O mesmo é verdade com relação a
este estranho sentado ao meu lado. Sou forçado a levá-lo a sério por causa do seu
olhar.
O homem do tênis de marca decide permanecer ali e estende sua mão. “Meu nome
é Daniel”, ele diz, “vamos dar uma volta”.
Paulo aperta sua mão calorosamente e diz seu primeiro nome em resposta à
apresentação do amigo. Coloca sua garrafa vazia dentro da sacola, junto com o
lanche, e joga tudo na lata de lixo próxima. Os dois então começam a andar.
“Meu irmão”, Daniel começa, “não posso me lembrar de um tempo em que o nome
de Jesus Cristo tivesse sido mais invocado e com mais frequência do que hoje, ou que
o conteúdo de seu ensino tenha mais sistematicamente sido ignorado. Suas palavras
têm sido distorcidas, expandidas e mutiladas para que signifiquem algo, tudo ou nada.
A sedução da graça barata criou o mercado de massas, o discipulado a custo zero. Em
sua grande maioria, os americanos estão mais que alimentados no pasto da religião
popular”.
“Academicamente, muitos professores de religião transformaram o cristianismo em
uma religião de professores. Eles falam uns com os outros, usando linguagem
pedante, sobre o valor soteriológico do sofrimento e da morte de Jesus, escrevem
artigos sofisticados em prosa pesada, exegeses detalhadas de passagens bíblicas,
dividem opiniões sobre princípios hermenêuticos, anunciam com autoridade que
‘Jesus disse isso, mas não disse aquilo’ e raramente relacionam a Palavra de Deus às
necessidades da comunidade cristã. A linguagem esotérica de muitos estudiosos da
religião torna sua obra inacessível ao leigo. No entanto, comentários bíblicos
proliferam, na maioria das vezes à custa da conduta cristã autêntica.”
“Aquilo que Martinho Lutero e outros reformadores aprenderam com o apóstolo
Paulo, que nos aconselhou a ‘não conhecer nada, senão a Cristo e este crucificado’,
tem sido usurpado pelos dons do Espírito Santo, incluindo a oração em línguas e as
revelações particulares de autenticidade questionável. O ponto principal do típico
sermão dominical tem pesadas cores moralistas, de apelo emocional grosseiro, que
lançam culpa sobre as pessoas e geram medo, vergonha e imagens distorcidas de
Deus. Para muitas pessoas dedicadas, que ouvem sermões assim, as Boas Novas não
são novas, nem boas.”
“Paulo, outro assunto que hipnotiza o povo de Deus na atualidade é a tendência a
dar o monopólio do mal a uma única pessoa (como Osama bin Laden), uma única
nação (como o Afeganistão) ou uma única instituição (seja ela o islamismo, o
judaísmo, a igreja Mórmon, ou a igreja Católica)."
“Quando uma pessoa, nação ou instituição é declarada de Satanás, a lógica
predomina: elimine esta fonte de todo o mal e tudo ficará bem; quando Satanás está
localizado em uma realidade finita, o fim da maldade está próximo.”
“E, no entanto, como você sabe, irmão, uma lição que a história da humanidade
civilizada nos ensina é que, quando matamos nosso ‘Satanás’ particular, o mal não
desaparece da face da terra. Na verdade, ele pode reaparecer no lugar de que menos
suspeitamos: em nós mesmos. Lembra-se do filme Ben Hur? Quando Judá finalmente
mata Massala, seu ‘Satanás’, sua amante se volta para ele e diz, ‘é como se você
tivesse se tornado Massala’.
“Rotular alguém de Satanás isenta o rotulador de qualquer responsabilidade. A
fonte do mal tem uma face e forma específicas (e por certo não sou eu!).”
“Eis o problema, Paulo. Muitos cristãos hoje enxergam o cisco no olho do outro, e
pensam que não precisam olhar mais adiante. Todo o mundo tem uma fonte de
irritação, um alvo preferido, um discurso personalizado que explica ‘o que está errado
no mundo’.
Os vilões podem ser os tele evangelistas, o racismo, o sistema de saúde, o sistema
de imigração, o comprometimento da igreja com o mundo - qualquer coisa. Nenhum
de nós está imune a espalhar o mal, incluindo-se os que falam sem ter autoridade
sobre qual é o verdadeiro problema.”
“Irmão Paulo, os cristãos americanos têm prazer nesse tipo de discurso. A tragédia
é que as palavras pesadas de Jesus em Mateus 23, ai de vocês, mestres da lei e
fariseus, hipócritas!’, estão agora dirigidas a outras igrejas, autoridades tais como o
papa, o arcebispo, políticos da oposição e assim por diante. Você e eu sabemos que
desvalorizamos por completo a mensagem de Jesus quando usamos suas palavras
contundentes contra qualquer outra pessoa que não nós mesmos. Essas palavras
devem ser entendidas como dirigidas ao eu; caso contrário, estarão pervertidas.”
“E essa, Paulo, é a forma, o molde e a essência do farisaísmo cristão hoje. A
hipocrisia não é prerrogativa das pessoas em altas posições. Ela é a expressão natural
daquilo que é mais mesquinho em todos nós”.
Daniel olha para Paulo e nota a intensidade com que ele está ouvindo. Não se trata
da concentração resultante de interesse demonstrada nas sobrancelhas unidas, mas
do silêncio fruto de pura atenção. “O assunto está ficando pesado, irmão,” ele diz,
“continuo, ou você gostaria de fazer um intervalo?”
“Continue, por favor”, Paulo diz em tom encorajador, “mas vamos nos sentar”.
Eles se sentam confortavelmente sobre a grama, e vinte minutos de silêncio se
passam. Daniel tem mais a dizer, mas não tem certeza sobre como proceder, e Paulo
está imerso em seus pensamentos.
Finalmente, Paulo diz, “a fé vem pelo ouvir. As pessoas não estão ouvindo a Palavra
de Deus hoje?”
“Bem, sim e não”, Daniel responde. “Como você pode se lembrar, eu disse
anteriormente que professores da religião transformaram o cristianismo numa
religião de professores. A suprema ironia é que ministros do evangelho têm torcido a
Palavra para que ela se torne o evangelho dos ministros. Nem todos os ministros é
claro, ou todos os professores. Há muitos que pregam aquilo que Jesus pregou e
ensinam o que ele ensinou. Seus sermões estão repletos de pureza e poder.
Infelizmente, no entanto, a maioria deles ignora o Grande Mandamento e liberam sua
ira sobre aqueles que desafiam sua doutrina ou falham em interpretar as Escrituras
como eles as interpretam.”
“Um caso clássico é o seguinte: o ensino de Jesus sobre a indissolubilidade do
casamento é inegociável e inatacável. No entanto, o apóstolo Paulo, que
inquestionavelmente compreendia a mente de Cristo melhor que qualquer um de seu
tempo, não hesitou em interferir no casamento infeliz de um cristão com um
incrédulo. Invocando sua própria autoridade apostólica, Paulo ampliou o ensino de
Jesus e autorizou a dissolução desse casamento em especial, (1 Coríntios 7.15-17)
porque ‘Deus nos chamou para vivermos em paz’ (v. 15). E em outro lugar disse, ‘nós,
porém, temos a mente de Cristo’ (1 Coríntios 2.16).” “Paulo, o único fundamento
eficaz para a renovação cristã nacional se encontra na obtenção da consciência de
Cristo, no ir além da letra da Bíblia, em direção à consciência de Deus que
encontramos em Jesus. A grande causa das divisões e da irrelevância da igreja na
América é o nosso fracasso em alcançarmos a mente de Cristo. A rigidez dita normas,
e a liberdade em Cristo tem sido obscurecida. A ternura tem desaparecido. Um código
moral escrupuloso substitui um encontro engajado e participativo com o Mestre. O
resultado disso é uma religião sobre Jesus e não uma religião de Jesus.” “A violência
com a qual alguns cristãos expõem suas convicções me faz pensar que eles estão
tentando convencer a si mesmos. O espectro de sua incredulidade oculta com
habilidade me assusta à medida que eles se tornam mais militantes e barulhentos.
Quando esse mesmo medo passa a controlar as igrejas, elas se desintegram,
tornando-se propagadoras de rituais formais ou agentes intolerantes de repressão.
Sem um conhecimento íntimo e sincero de Jesus, os pregadores que lideram essas
igrejas se assemelham a agentes de viagem distribuindo panfletos de lugares que
nunca visitaram.”
“As consequências dessa ignorância têm sido desastrosas, Paulo. O legalismo
crescente tem exercido controle sobre uma parte significativa da ala evangélica da
igreja americana. O medo tem obtido tamanha influência que, presume-se, seja parte
integrante da vida cristã”.
Daniel dá um suspiro intenso e emocionado. “Você já ouviu falar de um grupo
chamado Associação Nacional de Terapeutas Cristãos?”, pergunta.
“Não”, diz Paulo, movendo a cabeça. “Meu foco tem sido em outro lugar. Eles são
confiáveis?”
“Mais que isso, eles têm ótima reputação e são comprometidos. Em seu último
relatório, eles narram o fenômeno recorrente de clientes atormentados por fortes
sentimentos de culpa, vergonha, remorso e autopunição. Concluíram que essas coisas
são sintomas dominantes de uma doença psicoespiritual que aflige os cristãos norte-
americanos na atualidade: os frutos amargos do legalismo, do perfeccionismo e da
viagem da culpa não dão em árvore. Muitos clérigos e leigos andam em círculos ao
tentar consertar a si mesmos, melhorar sua vida de oração, tornarem-se aceitáveis a
Deus e louváveis aos demais. Mais cedo do que nunca, ficam chocados com a sua
própria inconsistência, decepcionados com sua mediocridade e deprimidos porque
não corresponderam às suas próprias e elevadas expectativas. No pântano da auto-
ajuda espiritual, não há sobreviventes.”
“Uma última observação, se puder me aguardar, Paulo. A maior necessidade da
igreja hoje é conhecer Jesus Cristo através de um encontro engajado e participativo.
Quando a religião substitui a experiência do Jesus vivo, quando perdemos a
autoridade do relacionamento pessoal e nos apoiamos na autoridade de livros,
instituições e líderes, quando permitimos que a religião se interponha entre nós e a
experiência elementar de Jesus como o Cristo, perdemos a realidade que a própria
religião descreve como suprema. Nisso reside a origem de todas as guerras santas,
dos preconceitos, da intolerância e das divisões no corpo de Cristo.”
“Irmão Paulo, falei demais. Ore para que eu tenha coragem de ficar firme e de
amar os irmãos em seu quebrantamento”.
Paulo se levanta rapidamente. “Daniel, a extensão e a profundidade de sua
percepção da igreja contemporânea é extraordinária”, ele diz. “Como você consegue
estar tão atualizado?”
“Eu sou um bispo”, diz Daniel, também se colocando em pé. “Dois anos atrás fui
indicado pelos presbíteros da Assembleia Nacional de Igrejas Americanas para
prestar um serviço em todo o país como pastor/ teólogo independente. Esta semana
devo entregar minhas observações e fazer recomendações de renovação e reforma.
Francamente, me sinto perdido. A tarefa é grande demais”.
Paulo coloca a mão sobre o ombro do ancião. “Seria possível para você convocar
um encontro de emergência dos presbíteros para amanhã à noite?” pergunta. “Eu
gostaria de dar-lhes uma palavra”.
Daniel o encara com incredulidade. “Você o quê?”
“Eu gostaria de dar uma palavra profética à Assembleia Nacional”.
“Quem é você?”
“Como disse antes, meu nome é Paulo. Estas são as minhas credenciais”. Paulo tira
sua camisa. “As marcas em meu corpo são as de Jesus. Eu sou um apóstolo que não
deve sua autoridade ou seu compromisso a homem nenhum. Eu fui indicado pelo Pai,
que ergueu Jesus dentre os mortos. Só me glorio na cruz de Cristo, que me libertou da
tirania de ter de agradar os outros e de me conformar aos padrões ditados por eles.
Como você pode ver, carrego em meu corpo a assinatura de Jesus. Você vai organizar
o encontro?”
Daniel acena positivamente com a cabeça. “Amanhã à noite no grande salão do
Hotel Corinto,” diz.
Os dois se despedem em silêncio.
Na noite seguinte, mil e quinhentos líderes se reúnem, de todas as partes do país -
pastores, evangelistas, superintendentes, bispos, cardeais, primazes, prelados,
provincianos e pastores não-titulados. Alguns vêm paramentados e barbados, outros
engravatados, muitos com seus colares clericais e uma minoria com camiseta e jeans.
Saudações são trocadas, e então um silêncio extremo enche o salão.
Daniel sobe na plataforma, volta-se para a plateia e começa a falar pausadamente e
em tom grave.
“Meus irmãos e irmãs, algo extraordinário aconteceu comigo ontem. Por três horas
estive com um homem cujo nome é Paulo - o mesmo Paulo cujas cartas inspiradas
estão em nossa Bíblia. Vi com meus olhos as marcas de Jesus encravadas em seu
corpo. Não há dúvida em minha mente de que ele seja quem diz ser. Em sua sabedoria
soberana e para cumprir seus propósitos amorosos, Deus escolheu visitar esta nação
e nos falar hoje através de seu servo, Paulo de Tarso.

Meus amigos em Cristo, eu lhes apresento o Apóstolo às Nações”.

Não houve aplauso. Nenhum sussurro. O grupo trafega da incredulidade crescente


à descrença total. Quando o apóstolo sobe a plataforma, seus olhos se fixam em um
pastor de quarenta e cinco anos sentado em uma cadeira de rodas na primeira fileira.
Um ferimento na espinha causado por um acidente automobilístico ocorrido há mais
de dez anos o deixou paraplégico. Ele não dera um passo sequer nos últimos doze
anos.
Paulo desce da escada, se dirige diretamente ao homem paralítico e coloca a mão
em seu rosto. “Em nome de Jesus Cristo de Nazaré”, ordena Paulo, “levante e ande!”.
Embasbacado, o pastor apoia as palmas de ambas as mãos nos braços de sua
cadeira e, com um esforço enorme, se coloca em pé. Quase casualmente, tenta um
primeiro passo e então um segundo - e então outro e outro. Começa a se movimentar,
de repente corre pelo corredor central, circula por todo o auditório, volta ao centro,
aperta a mão de sua esposa em êxtase e pergunta “Vamos dançar?”
Em meio a suspiros emocionados e gritos contidos de “ó meu Deus!”, Paulo retorna
à plataforma. “Eu sou Paulo”, ele anuncia, “um escravo de Jesus Cristo
enviado com uma missão especial para compartilhar a Palavra do Deus vivo com
vocês.”
Ontem, Daniel repartiu comigo um relatório incisivo da situação espiritual entre os
cristãos norte-americanos. Nesta manhã, parei no McDonalds e à tarde fui ao Burger
King. A cultura fast-food deste país é uma ótima metáfora do estado da igreja. Vocês
estão alimentados demais e malnutridos, tanto física quanto espiritualmente.
“No entanto, não há tempo a ser desperdiçado com lamentações e profecias
catastróficas. Nem é apropriado criticar publicamente pastores que, assim como
vocês, são vasos terrenos, com pés de barro. Vocês devem esquecer falhas passadas e
prosseguir para o alvo que está diante de vocês em Cristo Jesus. Vocês estão vivendo
a ‘imponderabilidade do que será’ e neste ínterim da história da salvação, há muito a
ser feito.”
“Primeiro, o amor apaixonado e insistente de Deus deve ser proclamado a tempo e
fora de tempo. E uma grande ênfase deve ser dada à ternura e a misericórdia de
Deus, que nos amou primeiro. Ao invés de uma leve rajada de luz do amor divino,
seguida de uma artilharia pesada de obediência a regras, o amor de Jesus pelos que
não são amáveis deve penetrar o coração de cada cristão. A cognição intelectual e a
percepção vivencial de Deus são inseparáveis. Portanto, a tarefa pastoral prioritária é
a de dar qualidade à fé na comunidade. Cada discípulo pode e virá a conhecer Jesus
através do batismo de fogo. Nenhuma outra prioridade é mais importante; nada mais
importa. A maior parte do tempo, energia, talento e recursos financeiros de cada
igreja local deverá ser investida nesta iniciativa. Outros ministérios e projetos
surgirão como consequência.”
“Além disso, o amor fraternal será o sinal por excelência de que os cristãos de fato
experimentaram o amor de Deus. Descansando em segurança na terna compaixão do
Senhor, os cristãos não sentirão necessidade de ceder a fim de obter aprovação e
aceitação de outros. O amor cordial, cheio de respeito pela sacralidade da vida
humana deve ser nossa marca de discipulado. Discussões, disputas e retaliações
sinalizam a perda do contato consciente com Jesus. Todos vocês devem se arrepender
rápido, pedir perdão e não perder tempo com a auto-recriminação.”
“A religião autêntica requer moderação em todas as coisas, exceto no amor. O
evangelho não tolera um amor moderado entre cristãos , assim como não tolera um
amor moderado entre Deus e vocês. Como escrevi aos Romanos, aquele que ama seu
semelhante tem cumprido toda a lei de Cristo e também dos profetas.”
“Terceiro e último, quero que a igreja americana se torne contracultura nas
próximas décadas. Especificamente, rogo que retornem à prática antiga da igreja
apostólica - a disciplina do secreto. Mantenham um silêncio cuidadoso na presença
dos incrédulos. O condicionamento cultural tem tornado o linguajar cristão da igreja
em algo despropositado. Quando o perfume do momento tiver o nome de Graça -
bem... Vocês estão me entendendo, irmãos e irmãs.”
“Ao assumir sua discrição, que a igreja local erga a barreira da inclusão. Todo
discípulo, não importa quão maduro seja, deve ter um mentor. Um cristão está sempre
no processo de se tornar um. Pequenos grupos semanais não são uma opção apenas
para os comprometidos; são uma necessidade universal. Aqueles que andam no
Caminho não podem sobreviver sem apoio. O solitário é um mentiroso. O incrédulo
Tomé não encontrou o Jesus ressurreto na floresta, mas quando retornou à
comunidade da fé.”
“No início do século XXI ficou fácil demais ser um cristão. Numericamente, suas
igrejas irão encolher se vocês seguirem minhas recomendações, porque quando os
que buscam, antigos e novos, avaliarem o custo do discipulado, descobrirão que é
muito alto. Não fiquem alarmados: o crescimento acontecerá lentamente, de dentro
para fora, à medida que os corações dos que buscam forem tocados por atos ocultos
de misericórdia despretensiosa. A sua fidelidade será medida por sua disposição de ir
onde há quebrantamento, solidão e necessidade humana. O que você pode aprender
com a vida do Mestre? O conhecimento de que o amor e a misericórdia são as forças
mais poderosas na terra.”
“A disciplina do secreto desamarrará a igreja de todas os acréscimos culturais,
desvios devocionais e bagagens religiosas do passado. A lealdade ferrenha a Jesus
Cristo e o testemunho da misericórdia furiosa a pecadores restaurarão a credibilidade
da proposta cristã. Somente aquele que crê é obediente, e somente aquela que é
obediente crê. Sucesso ministerial, juntamente com o conhecimento das Escrituras e
o controle sobre os princípios bíblicos, não deve ser confundido com discipulado
verdadeiro. Esses sinais superficiais de fé podem se tornar a corrupção do
discipulado, se a sua vida não estiver oculta com Cristo em Deus.”
“Queridos irmãos e irmãs, revivifiquem os espíritos humildes de seu povo. Deixem
de lado toda ansiedade e medo. Lembrem aos santos que o Crucificado, reinando em
glória, prevaleceu sobre todo principado, potestade e domínio. Ele os desarmou, os
expôs ao ridículo, os descartou como vestes e os levou cativos em seu desfile
vitorioso.”
“Com a assinatura de Jesus em meu corpo, eu, Paulo, servo do Messias, me ponho
de joelhos diante do Pai, e oro para que, de sua infinita glória, ele lhes dê o poder
para ajudar seu eu oculto a se fortalecer, para que Cristo possa viver em seus
corações através da fé. E peço a ele que, com ambos os pés firmados sobre o amor,
vocês possam conhecer com todos os cristãos as dimensões extravagantes do amor de
Cristo. Estendam as mãos e experimentem a largura! Provem a sua extensão!
Mergulhem em suas profundezas! Ergam-se até as alturas! Vivam vidas plenas -
plenas da plenitude de Deus!”

Prezado Leitor
Talvez você descarte este exercício de imaginação cristã por considerá-lo como a
conversa confusa e perigosa de um profeta por conta própria, ou talvez conclua que
de tenha representado imagens exatas de você mesmo ou da igreja de sua
experiência. No caso da primeira possibilidade, deixe pra lá. No caso da segunda, que
seja assim!

Leitura Recomendada:
Kelly, Geoffrey. Liberating Faith. Minneapolis: Augsburg, 1984. Este livro oferece
um desenvolvimento mais abrangente da disciplina do secreto.
Manning, Brennan. A assinatura de Jesus. São Paulo, SP: Mundo Cristão, 2006.
Richard Francis Xavier, o escritor Brennan Manning, nasceu e cresceu no Brooklyn,
um bairro do subúrbio de Nova Iorque, EUA. Pensador brilhante, especialista em
Escrituras e Liturgia, Filósofo, Teólogo e sacerdote Franciscano construiu uma
curiosa trajetória ministerial permeada pelo trânsito entre a academia e as favelas, a
universidade e as vilas, povoados e cortiços; e pela prática do tipo de cristianismo
com o qual se comprometera desde o início de sua vocação: o da compaixão e serviço
abnegado.

Autor de mais de vinte livros, entre eles o sucesso O evangelho maltrapilho, ficou
conhecido por sua autenticidade ao abordar os dilemas do homem em contraste ao
amor e à graça de Deus. Sua luta contra o alcoolismo, a saída do sacerdócio,
casamento e divórcio fazem de sua biografia um eloquente testemunho de
restauração e esperança. Durante sua vida, Brennan conduziu retiros espirituais para
pessoas de todas as idades e empreendeu viagens pelos Estados Unidos e pelo
exterior com o objetivo de compartilhar a Boa Nova do Evangelho e comunicar o amor
incondicional de Deus por cada um de seus filhos. Faleceu em 12 de abril de 2013.
Notas
[1]
NT: O termo carnegiana diz respeito à Dale Carnegie, autor do célebre best-seller
Como fazer amigos e influenciar pessoas, publicado no Brasil pela Companhia Editora
Nacional. <<
[2]
Farrell, Edward. The Father is Fond of Me. Starruga, PA: Dimension Books, 1978..
<<
[3] Stella, Tom. The God Instinct. Notre Dame, IN: Sorin Books, 2001 <<
[4]
Keyes, Ken. Handbook of Higher Consciousness. Berkeley, CA: Living Love Center,
1972. <<
[5]
McGuigan, Dorothy Gies. Metternich and the Duchess. New York: Doubleday, 1966.
<<
[6]Em sua seção sobre a vida judaica, a vida inimiga, e a qualidade da vida, estou
citando as palavras de Burghardt exatamente como foram escritas, ou quase
exatamente. Li seis de seus livros inteiros e não consigo encontrar a fonte. Caso
tivesse encontrado, reconheceria de bom grado que esse homem maravilhoso na
verdade escreveu a maioria das palavras nesta seção. Por favor, me perdoe, Walter.
Não tive a intenção de plagiá-lo. <<
[7]NT: Termo pejorativo que descreve pessoas nascidas na Ásia Oriental ou seus
descendentes. <<

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