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A
Dom Paulo Evaristo Arns,
37:271.3 Piccolo, Agostinho Salvador, Fr. Nosso Irmão Cardeal,
P663f Francisco de Assis : por uma pedagogia Franciscano,
humanista / Fr. Agostinho Salvador Piccolo. - sempre Mestre.
Bragança Paulista : Editora Universitária São
Francisco : Instituto Franciscano de Antropologia,
2005.
184 p. (Estudos franciscanos) Aos Educadores Franciscanos
ISBN 85-86965-77-4 Frei Constantino Koser,
ex-Ministro-Geral da Ordem;
1. Franciscanismo na educação. 2. São Francisco.
Frei Tadeu Hoennighausen,
3. Educação. I. Título. II. Série.
Orientador emérito;
Ficha catalográfica elaborada pelas bibliotecárias do Setor de Frei Caetano Esser, Historiador
Processamento Técnico da Universidade São Francisco. e pesquisador.
SUMÁRIO
13
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista
14 15
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista
escrito corri empenho e paixão. Ele mostra para nós que ser
educador é um valor absoluto. Ele nos ensina a ler com serie
dade as Fontes Franciscanas porque elas sustentam gerações, e
mostra todos os argumentos franciscanos como um grande
princípio de Nova Humanidade. O autor nos desvela o modelo INTRODUÇÃO
vivo de Francisco de Assis como mestre Educador; provoca a
pós-modernidade para um caminho seguro na educação e pro
põe o perfil do Educador Franciscano.
Assim, Frei Agostinho retoma a nossa natureza, argila
fresca e natural a ser trabalhada com mãos de artista; e nós, en O fascínio de Francisco de Assis, desde o início, cativou os
cantados, lemos o seu texto para ver a vida mais presente em seus primeiros Companheiros, os seus contemporâneos, atra
nós, com mais arte, com mais intensidade, pedagogicamente vessou os séculos, marcou a História. "Parecia realmente um
franciscana. homem novo e um homem de outro mundo" - escreve Celano.
"Novus certe homo et alterius saeculi videbatur';2• São Boa
Frei Vitório Mazzuco, OFM
Ex-aluno e sempre discípulo de Agostinho
ventura repete os termos expressivos: "Aos que o olhavam ele
parecia homem de outro mundo"3•
Em nossos dias, o estudioso medievalista Jacques Le Goff
declara-se fascinado, duplamente fascinado pela personagem
de São Francisco de Assis, um dos personagens mais impres
sionantes no seu tempo e até hoje da história medieval:
Depuis le presque demi-siecle ou j'ai commencé à
m'intéresser au Moyen Âge, je suis doublement fasci
né par le personnage de saint François d'Assise. Fran
çois 1cété l'un des personnages les plus impression
nants en son temps et jusqu'aujourd'hui de l'histoire
4
médiévale •
Muitos franciscanólogos, por outro lado, referem-se aos tra
ços de Francisco "mestre, pai e mãe", à sua "pedagogia". Zaval
loni fala com freqüência e singular propriedade de Francisco
2. 1Cel 82, 1.
3. LM IV, 5,3.
4. Le Goff, J. Saint François d'Assise, Préface, p. 7.
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Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
"mestre, educador", de "rivisitare l' esperienza educativa de s. dagogos e pedagogistas contemporâneos de apoio: Antônio
Francesco", que, "com seus escritos e com o seu exemplo, propõe Nanni, Edgar Morin, Jacques Delors, Hugo Assmann e Paulo
um itinerário formativo altamente apreciável e sempre atual"5• Freire. De suas obras, busquei selecionar palavras-chave que
formassem um quadro de prospectivas educativas para hoje.
Motivado por essas razões, guiado pelo forte momento
São estas as palavras-chave extraídas, acompanhadas ora de
histórico da Igreja em seus constantes apelos a um redespertar
um adjunto adnominal próprio: Comunhão humana - Ética
humanista6, agradecido pelos anos que vivi na área da Educa
transparente- Essencialidade livre- Esperança idealista- Fir
ção, escolhi o tema que ora apresento aos nossos dedicados
meza realista - Religiosidade transcendente - Paz universal.
Educadores e Educadoras: Francisco de Assis: por uma peda
gogia humanista. O capítulo II procura revelar um vulto diferente, mas real,
de Francisco: mestre educador, capaz de inspirar valores peda
Divido-o em quatro capítulos:
gógicos e iluminar nova prática educativa neste período da
O capítulo I oferece-nos uma radiografia da paidéia na história.
pós-modernidade. Desdobra-se em dois âmbitos: o primeiro
Como fontes de inspiração e iluminação, sirvo-me direta
focaliza os macrocenários das mudanças nesse período da his
mente dos Escritos de Francisco, pois é neles que Francisco
tória; o segundo, os envolvimentos educativos.
em pessoa fala com suas próprias palavras - "ipse loquitur di
Os macrocenários de mudança são: a sociedade da globali recte et ipsissimis verbis"1•
zação, com os seus aspectos positivos (luzes) e os aspectos ne
Em cada parágrafo deste capítulo, visa-se revelar a vitalida
gativos (sombras); a sociedade cognitiva e multimedial (fala-se
de positiva do "método franciscano": propor valores, defini-los,
sempre mais freqüentemente de sociedade virtual, do homo vi
identificá-los e transformá-los em código comportamental.
dens, da criança-vídeo, do jovem multimedial); e a condição
pós-moderna, que seria a representação em uma imagem uni O capítulo III delineia, então, o perfil de um Educador,
tária de uma realidade mutável e polivalente. particularmente de um Educador Franciscano. Retoma, como
instrumento, o parecer de Pedagogos estudados, inclui uma
O segundo âmbito são os envolvimentos educativos. Para
sondagem ad hoc--realizada entre Estudantes de vários níveis, e
enfrentar os macrocenários das mudanças, a educação necessi
engloba com destaque os textos mesmos dos Escritos.
ta elaborar e pôr em prática um novo paradigma pedagógico,
um novo modelo educativo. Nesse sentido, estudo alguns pe- O capítulo IV mostra como diferentes instituições pro
põem projetos a realizar, e como Escolas Franciscanas já reali
zam projetos sociais, programas de formação e ação francisca
5. Zavalloni, R. Pedagogia franciscana - desenvolvimentos e prospecti na para seus Alunos, Professores e toda a comunidade educati
vas, p. 11. va, sempre em vista de uma nova Pedagogia Humanista.
6. Paulo VI, na alocução de encerramento do Concílio Vaticano II
(7/12/1965), declarava enfaticamente: "Nós, Padres Conciliares, nós, mais
do que todos, somos os cultores do homem, da pessoa humana. Eis o nosso
humanismo" (Insegnamenti di Paolo VI, p. 721). João Paulo II repete que a
Igreja precisa ter e ser mais coração. 7. Esser, K. Opuscula Sancti Patris Francisci Assisiensis, p. 16.
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Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista
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Francisco d� Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
"A Educação: um grande tesouro". Com tais exultantes pa Neste capítulo, estudaremos os dois pólos sistematicamente.
lavras, Jacques Delors, Presidente, e os membros da "Comissão Em primeiro lugar, focalizando o que se denomina de macroce
Internacional sobre a Educação para o século XXI" batizaram o nários de mudanças no mundo, na sociedade pós-moderna, com
Relatório final dos seus trabalhos entregue à Unesco 12 • os problemas que questionam. Em seguida, os envolvimentos
educativos, que pedagogistas e pedagogos de hoje indicam16 •
Trata-se, seguramente, de uma nova paidéia, de sonhos e
projetos educacionais para o século XXI, aurora deste novo Ora, proponho-me a apresentar um painel em que buscarei
milênio. destacar as várias iluminações de pedagogistas, pedagogos,
escolas, autoridades que, embora em diferentes dimensões de
Já em 1936, W. Jaeger brindava o mundo da Educação espaço e tempo, trataram de um ideal de vida e seus respecti
com os seus estudos sobre a Paidéia 13 • A alentada obra tor vos valores pedagógicos.
nou-se clássica à mesa de quem vive no quotidiano o universo
da história da Educação.
Desde o mundo helênico e ao longo da história, a ars arti 1.1 Macrocenários de mudanCjas na sociedade
um tem deveras lançado constantes desafios. Hoje, mais acen pós-moderna
tuadamente. "Talvez - pondera Assmann - pelos tantos novos
conceitos emergentes, que têm tudo a ver com uma visão reno Três macrocenários merecem consideração no que respei
vada da pedagogia" 14• E essa reflexão provoca a interrogação: ta a mudanças:
"Quem duvidaria que a Educação é hoje, mais do que nunca, a • a sociedade da globalização;
mais avançada tarefa social emancipatória?" 1 5
• a sociedade aprendente (do conhecimento) e da infor
Toda época histórica teve a "sua paidéia", isto é, um qua mação;
dro global de inteligibilidade do mundo, uma prospectiva con
dividida sobre realidade e tempo, e, ao mesmo tempo, uma • a condição da sociedade pós-moderna.
idéia de pessoa humana á formar e como formar.
A paidéia na pós-modernidade, a educação para o século 1. 1. 1 A sociedade da globalização
XXI, apresenta, de um lado, desafios inquietantes; doutro, es
peranças entusiasmantes. O fenômeno da globalização desafia o mundo da educação.
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Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
O pedagogista A. Nanni destaca que não se deve banalizar a Transnacionalização indica os fenômenos que se origi
globalização, considerando-a como um simples potenciamento nam a partir de certas realidades nacionais e depois se difun
do processo de internacionalização. Em verdade, não nos defron dem e tomam-se parte de outras realidades nacionais (moda, p.
tamos com um fenômeno quantitativo, mas qualitativo. Implica ex., vestes, músicas).
modalidades de pensamentos, formas com que representamos a
realidade e a ela nos referimos. Mais: não cabe também reduzir a A mundialização não significa nenhum dos três processos,
globalização à economia. Ela abrange a mundialização da econo mas compreende o conjunto dos três, com uma novidade subs
mia e a velocidade espantosa da circulação da informação17 • tancial. Nos processos de internacionalização, multinacionali
Globalização é, pois, um fenômeno de mundialização, ou zação e transnacionalização, o ponto de partida e de chegada é
seja, aquilo que é tomado ou computado em globo, no global, ainda o Estado nacional (a língua nacional, a cultura nacional,
por inteiro; ainda: integral, total, complexo; que interessa e pois a Weltanschauung é nacional, os parâmetros de referência
concerne a todo o globo terrestre. são nacionais). Na mundialização, ao invés, a referência ao es
paço nacional não conta mais, nem como partida, nem como
R. Petrella, docente de Economia na Universidade de Lo
vaina, distingue: a globalização, ou mundialização, diferen chegada. A impostação diferencia-se totalmente, desde o iní
cia-se da internacionalização, da multinacionalização - em cio: There is the global car, the world car, the world music, the
pregadas promiscuamente, mas erroneamente. E explicita: world market 19 •
Internacionalização usa-se para explicar os fluxos que Em outras palavras, trata-se de um fenômeno típico, e sé
existem, e a intensidade e a natureza desses fluxos, entre as vá rio, dos nossos dias. Poderíamos recordar a expressão planeta
rias entidades nacionais. rização das consciências. E um agravante: o bombardeio da
Multinacionalização, por sua vez, é o conjunto de proces globalização agride e avança maciçamente no planeta, com
sos que caracterizam um agente nacional (empresas, igrejas, uma ética questionável. Reproduzo, no momento, para poste
partido, sindicato, editora) que se multinacionalizam, isto é, rior avaliação pedagógica, uma súmula, que denomino luzes e
que vão operar em outros contextos nacionais 18 • sombras, da complexidade do fenômeno globalização.
1 . 1 . 1 . 1 Luzes
17. Nanni. A. Una nuovapaideia. Prospettive educative per il XXI secolo, p. 13.
18. Petrella, R. II bene comune. Elogio della solidarietà, Reggio Emília, • policentrismo, mediante intercâmbio generalizado de
1997, citado por Nanni, A. Una nuova paideia, p. 18. Em ótica distinta,
mas de forma atraente, Morin, E. Terra-Patria, p. 7-97, discorre sobre "A informações, de idéias, de produtos, um intercâmbio
era planetária", "O documento de identidade terrestre", até "A agonia pla tipo planetarizado;
netária". Refiro-me ainda a Robertson, R. Globalização: teoria social e • preocupação por uma espécie de governo mundial,
cultura global. Não cabe, no trabalho que desenvolvo, expansão maior do
tema. No entanto, vale ressaltar os "aspectos culturais da globalização" - sem fronteiras;
como escreve o autor na introdução à edição brasileira (p. 13), em vista da
transdisciplinaridade. Ver ad hoc: cap. 6 - "Teoria dos sistemas mundiais,
cultura e imagens da ordem mundial" (p. 91-121) e cap. 12 - "Globaliza
ção: tempo-espaço e homogeneidade-heterogeneidade" (p. 246-268). 19. Nanni, A. Una nuova paideia, p. 17-18.
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Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
• mobilidade humana de um continente a outro: encur lação consomem 80% dos recursos do planeta, enquanto os
tam-se distâncias, pessoas se encontram; restantes 20 devem lutar pela sobrevivência, melhor: pela sub
• redução do princípio de soberania dos Estados-nação, vivência.
em que se deve associar a noção de Gemeinschaft ("co Na sua Una nuova paideia, A. Nanni elenca ainda o que eu
munidade") e a Gesellschaft ("sociedade"); chamo de tentáculos da globalização, a megamáquina da eco
• recuperação da memória histórica e defesa da identida nomia ocidental, com o séquito de seu novo colonialismo: a
de cultural: (re)valoriza-se o que é da terra, o passado, o mercantilização do mundo, a monocultura da mente, a unifor
que é nativo. mização de culturas e comportamentos (o mundo à la McDo
nald 's - como escreve G. Ritzer), o despertar do "local", o re
tomo dos nacionalismos, a economia mais veloz que a políti
1 . 1 . 1 .2 Sombras ca, a globalização das biografias, o viver de modo global, na
• concentração do poder nas mãos de poucos, sufocando simbiose "glocal"21•
os muitos outros, oprimindo os tantos "sem": sem-ali Eis a globalização.
mento, sem-teto, sem-emprego, sem-saúde, sem-edu Eis os desafios para uma nova ação educativa.
cação, sem-tudo, sem-nada;
• tendência à uniformização cultural, com o risco do
pensamento único; 1. 1.2 A sociedade aprendente (do conhecimento) e da
informação
• monopólio dos sistemas de comunicação, e a arbitrária
manipulação da informação; Um segundo macrocenário que se abre, ao lado da globali
• desarraigamento cultural, com a perda da identidade e zação, é o da sociedade aprendente (do conhecimento) e da in
das origens; formação.
• idolatria do mercado, primado do homo oeconomicus; Figuram e ocupam espaços livres termos quais sociedade da
• aumento das patologias da insegurança (perda da cons informação (SI), sociedade do conhecimento (knowledge society),
ciência, estresse, o medo que deprime, fundamentalis sociedade aprendente (learning society). Documentação da
mos, New Age, etc.)2°. União Européia acentua:
A resenha é fortemente preocupante. As sombras (basta re A mundialização dos intercâmbios, a globalização da
ver os itens 1, 3, 5) revelam um sistema global injusto, uma su tecnologia, em particular o advento da sociedade da in
premacia imoral do hemisfério norte. Os números urram sinis formação, propiciaram aos indivíduos maiores chances
tramente. Vejamos: a renda das três pessoas mais ricas do de acesso à informação e ao saber. A sociedade do futu
mundo supera o PIB dos 48 países mais pobres; 20% da popu- ro será uma sociedade aprendente (do conhecimento).
20. Nanni, A. Una nuova paideia, p. 19-25. 21. Nanni, A. Una nuova paideia, p. 22-27.
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Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
Termos correlatos em uso: knowledge society - société Duas considerações cabem, ademais, antes de entrarmos
cognitive - società conoscitiva. "Sociedade do conhecimento é em perspectivas pedagógicas: a revolução da informática e o
terminologia mais rica" - observa por antecipação H. Assmann. desequilíbrio mundial da mesma informação.
"O conhecimento, e não os simples dados digitalizados - é e
será o recurso humano mais econômico e sociocultural mais de
1 . 1 .2. 1 A revolução informática
terminante na nova fase da história humana que já se iniciou"22•
Paralelamente, comenta: "Com a expressão sociedade No mundo virtual, no mercado telemático, "o vídeo está
aprendente pretende-se inculcar que a sociedade inteira deve transformando o homo sapiens, produto da cultura escrita, em
entrar em estado de aprendizagem e transformar-se numa homo videns, no qual a imagem substitui a palavra. Tudo se
imensa rede de ecologias cognitivas"23• toma visualizado". Afirmação simples e certeira de G. Sartori
no seu livro Homo videns25 •
Assmann toma emprestada de E. Morin e P. Lévy a expres-
são ecologia cognitiva. Expõe: O universo da criança,_aliás, foi literalmente invadido pela
TV. São os pequenos escravos da TV. Hoje, sabemos, entre
As interfaces dos agentes cognitivos (humanos e/ou
maquínicos) são tantas que o próprio agenciamento ou
crianças brasileiras de classe média, crianças americanas ou
a ambientação dos potenciais cognitivos se transfor européias, não há praticamente diferença. São de três a quatro
mou em tarefa fundamental nas tecnologias e, por de horas por dia diante do screen, com os cartoons japoneses, ba
24
corrência óbvia, dos contextos educacionais • ratos, ricos em violência e mediocridade. Cerca de 100 canais
só para crianças no mundo, mais de 50 nos últimos três anos.
De minha parte, acrescento: Na escola, a disponibilidade
Nos países ricos, ou até menos ricos, de classe média, TV no
de tecnoambientes (computadores, multimeios, Internet) está
quarto das crianças faz parte do mobiliário, é a baby-sitter de
sempre mais presente, e indispensável, mas não dispensará a
cada dia.
relação pedagógica, i. e, a presença do/a professor/a, com o
aprender humano. A revolução informática também se alastra vastamente.
Sondagem entre_meninas adolescentes inglesas, 8 a 15 anos,
revela-as campeãs no sms (short message systems). 70%
usam-no habitualmente, e 75% possuem seu celular. Mas mi
22.Assmann, H. Reencantar a educação, p. 19. - O autor alude a Docu
mentos da União Européia: Livro verde - Viver e trabalhar na SI: Priorida nimamente buscam um diálogo, uma comunicação ou confi
de à dimens\io humana (2317/96); Prioridade à dimensão humana-Etapas dência com os pais. Mediante a imagem, que atropela a pala
seguintes (julho de 1997); Construir a sociedade européia da informação vra, estabelece-se uma cultura juvenil, que experimentei amiú
para todos - Relatório final do grupo de peritos de alto nível (abril de de nos últimos anos de Educador no quotidiano dos Colégios e
1997). Livro branco sobre A educação e a formação: ensinar e aprender -
rumo à sociedade cognitiva (29/11/95). De Portugal: Livro verde para a so na Pastoral da Juventude. G. Sartori, descreve-o assim:
ciedade da informação em Portugal (maio de 1997) in "Sociedade apren
dente e sensibilidade solidária", 18, nota 1.
23. Assmann, H. Reencantar a educação, p. 19. 25. Sartori, G. Homo videns. Televisione e post-pensiero, citado por Nanni,
24. Assmann, H. Reencantar a educação, p. 151. A. Una nuova paideia, p. 44.
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Na escola, ouvem preguiçosamente lições que logo es Outrossim, a era das redes oferece características promis
quecem. Não lêem jornais. Enchem o próprio quarto soras de furar as seleções das agências que não primam pelas
com pôsters de seus heróis, assistem a seus próprios es informações a serviço e ao bem de todos. São os recursos dos
petáculos, andam na rua e por estradas mergulhados na multimeios da hipertextualidade - interatividade - e transver
própria música. Despertam apenas quando se encon salidades (hipertextuality- interactivity- e transversatility)21 •
tram em discotecas à noite. Quando, finalmente, sabo
reiam a embriaguez de se comprimirem um ao outro, a
beatitude de existir como um único corpo dançante... 1. 1. 3 A condição da sociedade pós-moderna
Conclui Sartori, a meu ver, pesarosamente: Não sabe
ria retratar melhor o garoto-vídeo. Non saprf:i raffigu O terceiro macrocenário: a condição da sociedade pós-mo
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rare meglio il video-bambino • derna, o pós-moderno, a pós-modernidade.
Eis, por outro lado, a abertura revolucionária, diria, de um
novo espaço do saber, do jovem multimedial, não só convi
1.1.3.1 Procurando entender a pós-modernidade
dando mas convocando intensamente Família e Escola a des
pertarem e, com criatividade, descobrirem valores da tecnolo O que é pós-modernidade?
gia da informação e da comunicação (TIC).
Refiro um texto de Paulo Freire. Impossibilitado de com
parecer, enviou-o à Coordenação da Conferência Communica
1.1.2.2 O desequilíbrio mundial da informação tion and Development in a Postmodern Era, promovida pela
Universidade da Malásia de 6 a 9 de dezembro de 1993:
Outro fator que merece atenção, no campo da informação,
é o desequilíbrio da mesma informação. A era das redes (net
work), chegando embora até à admirável rede de alcance mun
dial (worldwide web- www), peca pela exclusão. 27. Assmann explana concisamente: O hipertexto, texto eletrônico, como
os da Internet e CD-ROMs, admite subentradas, reenvios e múltiplas cone
Por quê? Sabemos que a informação sofre cortes não técni xões. O mais profundo respeito a um texto se demonstra quando ele é tão
cos mas políticos. Três ou quatro agências do ocidente coman "invadido" pela capacidade criativa do intérprete-leitor/a que seu conteúdo
dam cerca de 90% de notícias que circulam pelo mundo. Num passa a ser transcrito por múltiplas apropriações e complementações. A
transversalidade, termo proveniente da geometria, tomou-se uma das me
lugarejo perdido no interior do Brasil, nas megalópoles São táforas para não-linearidade. Trata-se de uma lógica do transitar/transmi
Paulo, Rio de Janeiro, Buenos Aires ou Tóquio, o caipira ou o grar; um modo de pensar e agir segundo uma mentalidade em trânsito. O
orgulhoso citadino engolem o mesmo menu que New York, conceito aparece em Reformas Educacionais (América Latina). No Brasil,
Londres ou Paris lhes preparam... Estamos longe de uma con ocorre a noção próxima, a transdisciplinaridade, enfoque científico e pe
dagógico que toma explícito o problema de que um diálogo entre diversas
junção globalização+comunicação na aldeia global. disciplinas e áreas científicas implica necessariamente uma questão episte
mológica. Admitindo que é importante que determinados conceitos fim
dantes possam transmigrar através (trans-) das fronteiras disciplinares. Cf.
26. Sartori, G. Homo videns. ln: Nanni, A . Una nuova paideia. "La revolu Reencantar a Educação- glossário, 154, 183. E cap. 9: "Transdisciplinari
zione informatica", p. 45. dade - por uma racionalidade transversal", p. 94-104.
30 31
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Alinho cinco marcas reconhecíveis: Descrevo, mais sinteticamente, seu perfil e o modo próprio
de agir:
1. a reação à modernidade, particularmente o de que se
jactava: a mistificação da certeza, o caráter estrutural 1. não seguirprojetos globais, caminhos certos, pontos de
harmonioso das ideologias, a organização e finalidade; chegada seguros, mas aceitar viver lia complexidade,
2. a ausência de organicidade e finalidade, a fragmenta no labirinto, no pluriverso;
ção, o processo de demolição das verdades e dos funda 2. não afirmar que possui a verdade, princípios absolutos,
mentos; fundamentos, mas reconhecer o próprio nomadismo
3. o surgimento de uma espécie de nomadismo cultural ' existencial, a mentalidade do viajor;
com as variantes de ecletismo e sincretismo·' 3. não ter um estilo único, mas exibir uma cultura combi
natória;
28. Freire, P. Pedagogia dos sonhos possíveis, p. 157. 29. Nanni, A. Una nuova paideia, p. 67.
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4. não se identificar inflexivelmente com nenhuma reali 1.1.3.4.1 New Age e pós-modernidade
dade social ou movimento político;
5. não se apoiar na força da demonstração, na polêmica New Age, religião da pós-modernidade?
dialética, mas de preferência numa ética da fragilidade; A esta altura, do elemento religioso, cabe um aceno ao fe
6. não apreciar o que é árduo, rígido, unívoco, dogmáti nômeno New Age, com sua exuberante literatura. Seria a nova
co; ao contrário, prezar tudo o que é light, soft, como religião na pós-modernidade? A desafiante do Cristianismo?
dança, viagem, mestiçagem, vias de encruzilhada. Como aparece?
Do cúmulo de discursos, pinço alguns traços distintivos:
1.1.3.4 O elemento religioso 1. é uma forma de espiritualidade muito ambígua, um
tanto narcotizante, que se espalha por toda a parte, e
E o que dizer do elemento religioso? que representa insidioso desafio para o cristianismo;
Na compreensão da sociedade pós-moderna, não se pode 2. é uma religiosidade que aparece sempre repassada do ir
prescindir do elemento religioso. Neste campo, ocorre tam racional, de sensações mais que de idéias, vontade mais
bém a mudança: o declínio da secularização, o processo da res que convicções, visões e perspectivas deformantes;
sacralizacão do social, a chamada revanche de Deus. Enquanto 3. é de pluralismos indefinidos, soltos, sem ligação a tra
alguns se entregam ao consumismo, ao hedonismo, outros re
descobrem os valores transcendentes, embora às vezes estra dições ricas do passado;
nhos às religiões tradicionais. 4. é uma espécie de sensibilidade cultural, antes que reli
giosa, aberta a todos os produtos do espírito, da medici
Fenômenos religiosos pululam em toda parte e múltiplas
na à ciência, da religião à ecologia, da música à arte;
formas30 • Sh opp ing centers ou Supermarkets religiosos, diria,
exibem denominações cristãs e movimentos à escolha: desde a 5. esquiva-se de disposições dogmáticas, para seguir expe
justa, por vezes exagerada renovação carismática, o focolaris rimentações religiosas a seu talante e ao próprio gosto;
mo, o catecumenato, a pascoalização, o pentecostalismo (e 6. cada um toma-se seu próprio guia espiritual, rejeitando
neos), até candomblé, alquimias, religiões do bem-estar, Igreja normas morais, de religiões tradicionais, que valeriam
Universal do Reino de Deus (com seu money and power). E para todos;
mais: budismo/vejrayama, theravada, zen, com Hare Krishna, 7. é de mística natural e panteística; não há um deus pes
Perfect Liberty Kyodan, Seicho-No-Ie e companhia oriental soa e, sim, um deus que se experimenta por intuição,
ilimitada... Tudo o qual retomo ao sacro, de fantástico sincre
não por razão; com um mundo misterioso de ocultismo;
tismo exótico, ao lado de santo Ecumenismo, como os Encon
tros das Religiões em Assis, coração das inspiradas Jornadas de sensibilidade por recuperar a harmonia homem+na
de Oração pela Paz no Mundo. tureza, com o novo encanto diante da natureza, palavrea
do e movimentos ambientalistas transformando-se em
temática religiosa, de busca duma civilização da socie
dade feliz e da essencialidade.
30. Vale a pena folhear, ao menos de passagem, o Grande Dizionario delle
Religioni - dalla Preistoria ad oggi (2000).
34 35
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
New Age, no Mundo Novo, a Nova Era, é um pouco e/ou 1.1.3.4.2 Aspectos dos Fundamentalismos
muito disso tudo31 • Bem típica, a sentença de Chesterton: "Quan
Cabe, por oportuno, ou necessário, um toque no Funda
do as pessoas não crêem mais em Deus, não é que não creiam
mentalismo, muito presente e diverso.
mais em nada, antes crêem em tudo"32•
Nota predominante dos fundamentalismos é sempre o seu
Se o homem do século XXI for religioso - concluo com
Nanni - será um místico, envolto no mistério, porque totalitarismo. As variedades, clara e/ou disfarçadamente, figu
isso o gratifica e lhe dá segurança. É o retomo da místi ram nas áreas todas do quotidiano da vida.
ca no coração da civilização ocidental. Retorno que se Vejamos:
explica também pelo fato de o homem do nosso tempo
não ter mais o senso nem da verdade (verdadeiro/fal 1. política e governo: o autoritarismo, a ditadura desones
so), nem da ética (bem/mal), nem da prática (efi ta, sem chance para outros sistemas e idéias;
caz/ineficaz), mas só do estetismo (agradável/desagra 2. economia e comércio: a opressão, a imposição dos
3
dável) e do jogo3 • trustes dominantes;
Estamos, sem dúvida, num contexto plural intrincado para 3. meios de comunicação: manipulação da mídia,
a Educação. A passagem transitável será a de promover nos make-up da informação e dirigismo da opinião pública;
sujeitos a aquisição de uma identidade segura, mas não rígida, 4. educação e cultura: injunção do pensamento único, alie
uma via mais sapiencial. nante; ensino massificado, de nível baixo e desmotiva
dor, com exclusão de famílias pobres a escolas de me
lhor porte e qualidade;
5. esporte: esquecimento do fair-play, a marginalização
31. Curiosas respostas de 100 universitários italianos sobre New Age: uma dos menos afortunados e a promoção dos fora-de-série,
nova corrente musical (40% ); terapias de bem-estar psicofisico (15% ); dolarização e vergonhosos dopings;
uma experiência do divino em nós (11% ). Cerca de 60% simplesmente não
sabem do que se trata; 33% ouviram falar e 7% sabem direito o que é. A. . 6. religião: fanatismo, ludíbrio dos simples, simonia, o
Nanni refere-o na sua Una nuova paideia (p. 71). E fala da gradual substi cúmulo das lavagens cerebrais.
tuição de New Age pela Next Age (Next Stage ou Next Edge), substancial No tocante à religião, o Fundamentalismo aparece em pa
mente uma New Age sem grandes utopias de Idade de Ouro, mas também
de felicidade e bem-estar personalizado (p. 73).
navisão. O fanatismo conduz a gestos dramáticos e trágicos.
32. Fizzotti, E. Verso una psicologia de/la religione, II cammino della reli Exacerbam-se em nossos dias. Basta recordar o ataque às Tor
giosità, vol. 2, p. 149-162. Delineia "I nuovi Movimenti Religiosi e la reli res Gêmeas, do World Trade Center, NY, catástrofe de 11 de
gione del benessere" e cita farta literatura (p. 173-202). Comenta sobre setembro de 2001; as cenas de destruição e desespero nos trens
workshops, seminários, maratonas, encontros de grupos, em que as pessoas metropolitanos de Madri, 11 de março de 2004, as repetidas
procuram "fare esperienze per ottenere um sollievo ad ogni costo" (p.
160-161). Compagina os aderentes dos Novos Movimentos com os clien ameaças de camicazes e as constantes manifestações de terro
tes de psicoterapeutas, na tendência de final feliz, expresso significativa rismo, na matança de inocentes.
mente pelo hello-goodbye effect (p. 162). Sublinho tais aspectos porque en
trarão no capítulo dos "Envolvimentos Educativos".
No Brasil, o ludíbrio aos simples, por parte de algumas
33. Nanni, A. Una nuova paideia, p. 73. facções religiosas, com promessas de curas miraculosas, de
37
36
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
bem-estares e felicidade suma, chega a revoltar e clamar ao Baseado na ciência de pedagogistas, na prática de pedago
céu por vingança, como de sangue derramado (Gn 4,10), ou gos, na e:Xperiência+vivência pessoal de 35 anos no mundo da
por aplicar-lhes a lei do talião (Ex 21,23-25). educação, busco, nesta parte, perspectivas educativas, propos
Em resumo, o Fundamentalismo tend� a isolar-se e fi tas de atuação para os nossos dias.
xar-se, eliminando todas as relações e influências mútuas entre Denomino-as de envolvimentos educativos. Motivo a es
as culturas, gerando, ao mesmo tempo, o solipsismo das pessoas colha: o verbo de ação envolver, transitivo direto, significa: 1.
e a autofagia da sociedade. trazer em si, encerrar, conter; 2. abranger, abarcar; 3. implicar,
A Educação, mediante os valores da liberdade e dos sadios importar, enlear, comprometer35 •
pluralismos, deverá enfrentar valorosamente esse monstro a Vejamos, pois, seqüencialmente, os envolvimentos educa
mais da pós-modernidade.
tivos.
1. acionar uma cultura de resistência para superar o pen simplicidade, equilíbrio, essencialidade; modelada em dispo
samento único do dado só econômico, a dita lógica do nibilidade a condivisão de bens, sem egoísmo, cordial.
mercado; A sobriedade é também ver o mundo com o olhar dos po
2. motivar a participação responsável das pessoas na bres, dos simples. Na idéia de sobriedade, há um quid de sub
construção do bem comum, de uma ética de valores ali versivo e profético, que é, ao mesmo tempo, uma denúncia do
cerçados na liberdade democrática e na fraternidade; esbanjamento e uma antecipação do que outros viverão ama
3. partir de recursos simples, locais, e associá-los inteli
nhã. "A sobriedade de hoje é um investimento sobre o futuro
gentemente a uma rede de ajuda mútua e alianças estra
tégicas de comunidades conscientes, com vistas ao re de todos, sinal de respeito pelas gerações futuras e pela Terra".
verso, de globalizar a solidariedade; A Terra... Recordo as palavras inspiradas e emocionadas
4. reconstruir os valores do respeito à natureza, da solida do astronauta americano John Young, nas alvoradas da con
riedade humana em escala crescente, mundial, do direi quista da Lua:
to dos povos à vida e à autonomia de cultura;
5. estimular as populações a participarem na construção Lá embaixo, bem embaixo, está a Terra, um planeta
de alternativas, apoiando uma mundialização das resis branco-azul, belíssimo, resplendente, a nossa pátria
tências e lutas sociais, no próprio lugar sociaVgeográfi humana... Da Lua, tenho-a na palma da minha mão. E,
co, estabelecendo redes de coligação e criando conver desta perspectiva, não existem brancos ou negros, divi
gências na ação; são de Leste e Oeste, comunistas e capitalistas, Norte e
6. apoiar a resistência dos povos nativos e da sua cultura Sul. Formamos uma única terra (16 de abril de 1972).
local; recordar e encarecer aos Educadores das novas A mudança, mais que etiqueta, é uma ética, e deve partir da
gerações a informação sobre os povos nativos, capítulo
amiúde deletado na história nacionaVuniversal. consciência pessoal. Há de ser, acima de tudo, opção interior,
Mais particularmente, no âmbito educativo, vale ressaltar: dom, gramidade, de vontade livre, emancipatória, para, em se
educar ao pensamento ·autônomo, criativo, divergente, formar guida, visibilizar-se nos comportamentos, nos gestos, nos esti
nos sujeitos uma consciência cívico-política mediante práticas los de vida. Em suma, carregamos, aos olhos do coração, uma
de cidadania para transmitir confiança, luz, esperança. "Eu nova paidéia, humanista, humanizadora38.
queria deixar para vocês também uma alma de esperança" - Estamos diante de uma promissora perspectiva de valor
testemunha Paulo Freire. "Para mim, sem esperança não há pedagógico, um programa esperançoso de educação, um longo
como sequer começar uma educação..., as matrizes da espe
processo de formação, porque mudar é difícil, mas é possível.
rança são matrizes da própria educabilidade ao ser, do ser hu
mano"37_ Educar para uma cultura de sobriedade modelada em
37. Freire, P. Pedagogia dos sonhos possíveis, p. 171. Noutro livro seu, A 38. Cegolon, C. L 'occhio dei cuore, passim. O simples título do livro já se
educação na cidade (p. 144),já testemunhava: "Sou leal ao sonho... Conti mostra atraente e oportuno. Trabalha o valor da educação moral, para resti
nuem contando comigo na construção de uma política educacional, de uma tuir à pessoa, junto com a competência técnica, também a competência éti
escola com outra "cara", mais alegre, fraterna e democrática". Síntese de ca. Realço, entre outros textos: "A educação moral, problema do nosso
sua fala na despedida da Secretaria Municipal da Educação do Município tempo" (p. 250-258); "Por uma axiologia dos valores" (p. 277-285); "Edu
de São Paulo, em maio de 1991. car à gratuidade" (p. 353-372).
40 41
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
''Neste processo - observa o economista.:.pedagogo Marcos calor dos laços vitais, a proximidade do face a face e,
Arruda - a sociedade precisa superar a cultura da reivindicação portanto, relações interpessoais43 •
e da delegação por uma cultura do autodesenvolvimento, da
3. O sistema educativo deve visar à capacidade de argu
auto-ajuda e da complementaridade solidária". E acrescenta:
mentação, à racionalidade sapiente e dialógica, que es
Visualizamos para o século XXI este novo ator e sujei teja aberta também ao mistério, à admiração e à trans
to de poder e de construção da História e da evolução cendência.
da consciência humana: a sociedade civil e cada um Ademais, observa que, no enfoque sociológico (com refle
dos seus componentes, capazes de redefinir o papel do
41 xos na educação - acrescento), o pós-moderno é o tempo da in
Estado - a isso chamamos cidadania ativa •
determinação, da fragmentação, desconstrução e descanoniza
ção, da desmitificação, do vazio de si, da experiência das iden
1.2.3 Em relação à condição da sociedade tidades múltiplas que jogam e recorrem em mais cenas e em
pós-moderna42 mais planos, categonas, s1tuaçoes44.
• • • �
Com sua competente autoridade, o pedagogista A. Nanni No envolvimento desse pluriverso, hoje, nessa espécie de
sublinha três diretrizes que as instituições educativas devem caleidoscópio, pessoalmente colho as seguintes pistas pedagó
assumir. Acrescento, assumir hic et nunc. gicas:
1. aprender a ensinar, e ensinar a aprender a conviver
1. Vivificar um novo paradigma pedagógico, um modelo
com o diferente;
educativo menos árido, menos racionalístico, abstrato e
formalístico; ao invés, um paradigma narrativo, o que 2. cultivar sem medo um pensamento que alije parâme
significa: mais coenvolvente, mais , evocativo, mais tros já fora de prazo, para renovar, inovar;
simbólico e emotivo. 3. valorizar a valiosa liberdade, no respeito ao agir plural,
2. A escola precisa de uma alma, isto é, cumpre valorizar considerando mais as suas luzes que as sombras.
as biografias de quem participa na vida da escola. Os Apontando para luzes, Andrea Mercatalli acentua:
computadores, a informática, as novas tecnologias da A verdadeira educação, a que toca as mais íntimas fi
comunicação, por si sós não a fazem. Requerem-se o bras do coração humano, não negligencia em reavivar e
perpetuar o patrimônio de valores humanos, afetivos,
éticos e religiosos, que estão na base da própria cultura
45
sociai •
41. Arruda, M.; Boff, L. Globalização - desafios socioeconômicos, éticos
e educativos, 2001. Apresentam ''uma visão a partir do Sul". Destaco: 43. Valorizar as biografias. Os termos são próprios, precisos. Biografia é
"Educação e desenvolvimento na perspectiva da democracia integral" (I, ainda sugestivo: não é só a designação de pessoa ou vida, mas a própria
9-32) e "Globalização e sociedade civil- repensando o cooperativismo no descrição ou história da vida de uma pessoa.
contexto da cidadania ativa" (IV, 49-61; 69-84).
44. Narmi, A. Una nuova paideia, p. 74. As páginas 79-81, principalmente
42. Chamo a atenção sobre a valência do termo condição: é modo de ser, 81c, indica bibliografia correspondente.
estado, maneira de viver.
45. Mercatalli, A. Pedagogia- educare oggi, p. 197.
44
45
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
Edgar Morin acena a uma "grande confluência" ao crepús- 2. de valores e objetivos pedagógicos a cumprir o plura
culo de um milênio e à aurora de um novo. lismo como ponto de chegada, para que o itinerário de
Quase ao mesmo tempo - escreve - conseguiu-se al crescimento pessoal seja guiado pela educação ao plu
cançar a possibilidade de múltiplas tomadas de cons ralismo;
ciência complementares: da unidade da Terra (cons'" 3. de métodos e meio a utilizar para traduzir operacional
ciência telúrica) - da unidade/diversidade da biosfera mente, na busca e organização das seqüências didáticas,
(consciência ecológica) - da unidade/diversidade do o estabelecimento da proposta cultural, para que o currí
homem (consciência antropológica) - do nosso dasein, culo todo se realize como educação com o pluralismo47 •
o fato de "estar aqui", sem saber por quê - da perda do A Escola, como sujeito educativo, quem sabe, terá dificul
horizonte de nossas vidas, de cada vida, de éada plane
dade e/ou atuará limitadamente para mudar o mundo. Mas,
ta, de cada sol - do nosso destino terrestre.
meritíssima, ajudará em mudar o modo de conhecer o m}llldo,
Conclui: em formar a consciência dos novos cidadãos do mundo. E a es
E é através destas tomadas de consciência que já po piral da esperança.
dem convergir mensagens vindas de horizontes mais
E nenhuma instituição lhe dirá melhor sim que a própria
diversos, alguns da fé, outros da ética, outros do huma
nismo, outros do romanticismo, outros das ciências... Comissão Internacional de Educação para o século XXI. Sua
Com o tempo, todas essas mensagens, nas instituições, manifestação final revela esperança e idealismo:
foram alteradas, degradadas, às vezes até transforma Atribuímos à Unesco um papel fundamental no desen
das no contrário. Por isso, necessitam continuamente volvimento adequado das novas tecnologias da informa
de serem regeneradas46• ção, postas ao serviço de uma educação de qualidade.
Concernente ainda ao pluralismo, à intérculturalidade - · Fundamentalmente, a Unesco estará servindo a cons
truir a paz e a compreensão entre os homens, ao valori
comenta de novo com justeza A. Nanni-, devem tomar-se um
zar a educação como espírito de concórdia, de emer
valor pedagógico central nos projetos escolares. E o propõe gência de um querer viver juntos como militantes da
em três níveis: nossa-aldeia global que há de pensar e organizar, para
1. de premissas ético-filosóficas e de pressupostos antro bem das gerações futuras. Deste modo, e�tará contribu
48
pológicos do processo educativo: o pluralismo como indo para uma cultura da paz •
ponto de partida, para que a educação da escola seja Jacques Delors, presidente da Comissão, recorda que, pa.ra
uma educação no pluralismo; dar um título ao relatório à Unesco, inspirou-se em uma das fá
bulas de La Fontaine, O lavrador e seus filhos. Transcrevo-a:
46 47
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
Evitai (disse o lavrador) vender a herança, o ainda não sabido. É a que estimula a boniteza da pu
Que de nossos pais nos veio. reza como virtude e se bate contra o puritanismo en
s1
Esconde um tesouro em seu seio49• ~ da
quanto negaçao vrrtu
. d e .
Acrescenta Delors:
Jacques Delors -Aprender a ser
Modificando ligeiramente os versos finais do poeta,
que pretendia fazer o elogio do trabalho, e referindo-os J. Delors presidiu à Comissão Internacional de Educação
agora à educação, ou seja, a tudo aquilo que a humani para o século XXI, e com competência pode ensinar os quatro
dade aprendeu sobre si mesma, podemos pôr na sua pilares da educação:
boca estas palavras:
"Mas ao morrer o sábio pai Aprender a aprender ➔ priorizar as experiências da apren
Fez-lhes esta confissão: dizagem.
O tesouro está na educação"50•
Aprender a fazer ➔ ênfase nas competências e habilidades.
Reencantar a Educação...
Aprender a viver juntos ➔ juntar competência e solida
Ao fechar este painel, chamo à cena final uma trindade de
riedade.
Educadores, que expõem e testemunham, hoje, valores peda
gógicos de esperança e luz: Aprender a ser ➔ realizar-se como indivíduo e ser social.
Tarefa da educação - escreve - é ensinar, ao mesmo
Paulo Freire - Missão, compromisso educador-educando tempo, a diversidade da raça humana e a consciência
da semelhança e interdependência entre todos os seres
No seu estilo sempre humano, em Pedagogia dos sonhos
·humanos.
possíveis, Paulo Freire orienta:
A educação em nível familiar, comunitário ou escolar,
Para mim, a prática educativa progressivamente deve levar à descoberta do outro, cultivar a empatia, o
pós-moderna - é nela que sempre me inscrevi - é a que aprend�r a viver junto, viver com os outros, tender a
se funda no respeito democrático ao educador como objetivos comuns, no debate, no diálogo, em projetos
um dos sujeitos do processo, é a que tem no ato de ensi gratificantes, instrumentos necessários para a educa
nar-aprender um momento curioso e criador em que os ção do século XXI.
educadores reconhecem e refazem os conhecimentos
antes sabidos, e os educandos se apropriam, produzem Por outro lado, reafirmar com força o princípio funda
mental: a educação deve contribuir ao desenvolvimen
to total de cada indivíduo: espírito e corpo, inteligên-
49. "Gardez-vous (dit le laboureur) de vendre l'héritage,
Que nous ont laissé nos parents.
Un trésor est caché dedans."
50. "Mais le pere fut sage
De leur montrer avant sa mort 51. Freire, P. Pedagogia dos sonhos possíveis. "Discussões em tomo da
Que l'éducation est un trésor." pós-modernidade", p. 159.
48
49
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
eia, sensibilidade, senso estético, responsabilidade Assinalo, então, sete palavras-chave, de primeira grande
pessoal, e valores espirituais - o aprender a ser52• za. Foram extraídas dos pedagogos e pedagogistas estudados
ao longo do trabalho. Acrescento-lhes um adjetivo adnorninal
Hugo Assmann - Formar seres humanos com urna qualificação específica. E agrupo termos afins for
Educar não é, então, a mais avançada tarefa social li
mando constelações. Usá-las-ernos com o objetivo de aplica
bertadora, emancipatória? ção prática devida, para o envolvimento educativo hoje.
Parece-me inegável que o fato maior do mundo atual São as seguintes as palavras: comunhão humana - ética
são as lógicas da exclusão e do alastramento da insensi transparente - essencialidade livre- esperança idealista- fir
bilidade que as acompanha. Como fazer frente a isso? meza realista- religiosidade transformadora - paz universal.
Imaginemos cruamente algo bastante previsível: no As palavras-chave formam as seguintes constelações:
plano mundial e nacional, não há no horizonte do pró
ximo futuro políticas econômicas e sociais orientadas a
salvar todas as vidas humanas existentes. E isso quan 1. Comunhão Humana
do as condições científicas e técnicas para fazê-lo já es coração sensibilidade cortesia interpessoal
tão dadas. Nas condições atuais de produtividade, a
alma sinceridade cordialidade aberta
fome se tornou um absurdo inaceitável. Mas não exis
tem os consensos políticos para eliminá-la de vez. A
ser afeto intercultural
benevolência
educação terá um papel determinante na criação da ser com ternura generosidadeinterdepen-
sensibilidade social necessária para reorientar a huma dente
nidade53 . ser para simpatia fraternidade convivial/
viver com
Urna sociedade onde caibam todos só será possível num solidariedade empatia amorosidade global
mundo no qual caibam muitos mundos. A educação se con serviço compaixão exemplos sem egoísmo
fronta com esta apaixonante tarefa: e exclusão
Formar seres humanos para os quais a criatividade e a ter alteridade minoridade biografias acolhedora
nura sejam necessidades vivenciais e elementos definidores altruísmo confiança antropológico responsável
dos sonhos de felicidade individual e social. gratuidade encontro humano atuante-
participativa
Reencantar a Educação. À aurora do século XXI, eis o de
safio na busca e, agora, na atuação das novas e renovadas pers
pectivas da Educação.
55
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
55. Lortz, J. Der unvergleichliche Heilige. Franziskus von Assisi, p. 19. Para o presente estudo, selecionamos algumas partes dos
Francisco é um mistério. Já o era para seus conterrâneos. E é ainda hoje Escritos e bem assim tipos variados de textos, a saber: a Regra
"Franziskus ist ein Geheimnis. Er was es schon für seine Zeitgenossen. Er
ist es noch heute."
56. Esser, K. Opuscula Sancti Patris Francisci Assisiensis, p. 17. 59. Manselli, R. San Francesco, p. 290-292.
57. Com relação a datas, sigo em geral a alentada obra de F. Uribe, OFM, 60. Armstrong, R. (OFMCap.)--f'rancis ofAssisi: Early documents, p.
Introdución a las hagiografias de San Francisco y Santa Clara de Asís (si 13 e 35.
glos XIII e XIV), 1991. 61. Esser, K, Gli Scritti di Slln Francesco d'Assisi, p. 123-137 e 586. FF
58.Paolazzi, C. Lettura degli "Scritti", p. 5-6. Cf. Écrits, p. 9. "Cómbien sa 25-36 e 235.
vent que François nous a transmis son esprit et son idéal dans des écrits dig 62. Esser, K. Opuscula Sancti Patris FrancisciAssisiensis, p. 19: "S. Francisco
nes de figurer à côté des oeuvres des plus grands spirituels?" pleno iure attribuenda enumerare possumus". Ver ainda: p. 19-21 e p. 23-25.
56 57
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
Bulada (inteira), a Regra não Bulada (parcial), e o Testamen plicidade (Test 19,39), e contém a medula do Evangelho68,
to; as Cartas: a Frei Leão, a Frei Antônio, a um Ministro, aos ''fonte limpidíssima de vida espirituaf'69•
Governantes dos Povos; Orações e Louvor: Diante do Crucifi
A Regra não Bulada não é propriamente a primeira, a que
xo, a oração "Onipotente Deus", o Cântico do Irmão Sol. Francisco fez escrever com poucas palavras - conforme anota
no Testamento7°. A Prato-Regra, aprovou-a o Papa Inocêncio
2.1.1.1 Regras III oralmente, em 1209, mais certo 1210.
O texto da Regra não Bulada é bem mais longo. Prescri
As Regras mostram Francisco que orienta, quando dá normas. ções, nela contidas, supõem uma experiência de vida de mais
A Regra Bulada (completa, 12 capítulos) é o documento anos, até 122171• Conserva o fascínio e a densidade de uma ex
normativo que o Papa Honório aprovou oficialmente pela Bula traordinária experiência evangélica que Francisco e a Fraterni
Solet annuere, de 29 de novembro de 122363 • Trata-se da mag dade cultivaram de coração72 • Dela, focalizaremos somente os
na carta da vida dos Frades Menores. capítulos XXIII,7-11 e XXIV,1-4.
Ela é de fato a Regra Franciscana, pois o compromisso que O Testamento de Francisco data de 1226, das últimas se
os Frades Menores assumem na Profissão é feito formalmente manas ou mesmo dos últimos dias de sua vida. É o texto de
sobre o texto que a Igreja sancionou com a sua autoridade64• É despedida, em que recorda a sua experiência de vida, desde a
gesta dos primeiros passos de conversão, entre os leprosos, até
sobre esta Regra, reconhecida como uma das quatro grandes
ao momento em que faz escrever as palavras finais, sempre por
Regras Religiosas, junto com a de Santo Agostinho, São Basí
revelação do Senhor.
lio e São Bento, que a vida franciscana, a Ordem dos Frades
Menores se encaminhou desde 1223, através dos séculos65 • A É muito mais, porém. Trata-se de um mandatum, que ex
Bula de aprovação Solet annuerre vem publicada junto com a prime muito bem o traço característico do documento. Nele,
Regra de 122366• Francisco exorta firmemente os seus seguidores, companhei
ros e discípulos, a observarem fielmente e com perseverança o
Francisco é o seu autor no que concerne aos itens estrutura, que com simplicidade e transparência de coração escreveu73 •
locução e argumentos67• Ele declara havê-la escrito com sim-
2.1.1.3. Orações e Louvor querer, fazer, seguir a vontade de Deus, iluminado e abrasado
pelo fogo do Espírito Santo (Ord 50-52).
Francisco foi um homem de oração, um homem transfor
mado mesmo em oração. Vir oratio factus82 • Nas Orações, ele
ensina, quando busca interiorização e quando busca inspiração 2.1.1.3.3 O Cântico do Irmão Sol
para a ação. posto,
O Cântico do Sol ou Louvores das Criaturas, com
antigo, é con
como a Oração diante do crucifixo, em italiano
a popular.
2.1.1.3.1 Oração diante do Crucifixo siderado importante documento literário da língu
, de mea
O códice 338 da Biblioteca Comum de Assis (As)
Esta oração, conforme quase todos os manuscritos, Fran os louvores
dos do século XIII, relata sua origem: "Começam
cisco a recitou diante da imagem do Crucifixo na capela de compôs, para
das Criaturas, que o bem-aventurado Francisco
São Damião, ao receber a missão: "Francisco, vai e restaura a Dam ião". Ocor
louvor e honra de Deus quando estava em São
minha casa, que, como vês, está toda destruída"83• s estigmas
reu nos primeiros meses de 1225. Enfraquecido pelo
de palha, da
Segundo os códices, o jovem Francisco rezou a oração em e enfermidades, quase cego, sozinho numa cabana
ou este canto
língua popular, e assim foi passada adiante, principalmente na alma de Francisco, para toda a humanidade, brot
ico dos três
Itália. Em outras partes, foi traduzida para o Latim. Data pro de amor ao Pai de toda a criação. É um novo cânt
para Tomás
vável de 1206. jovens na fornalha ardente (Dn 3,51s), como com
85
A oração oferece traço bem nítido da vida espiritual do jo de Celano •
o ação
vem Francisco: busca discernimento, pede luz para conhecer e O Cântico é, pois, uma oração de louvor, uma com
a humani
fazer a vontade de Deus84• litúrgica, um ato de culto solene e universal, no qual
dade e toda a criação são. conv idadas a participar com a pala
86
vra, com o ser e coma v1da .
2.1.1.3.2 Oração "Onipotente Deus"
a expres
Vale destacar alguns traços: em primeiro lugar,
nove vezes.
Data provável: 1220. Encontra-se ao fim da Carta a toda a são muito pessoal, íntima: mi Signore. Repete-se
r as criaturas a
Ordem. A linguagem da oração é de tom elevado. O conteúdo Em seguida, o senso de fraternidade. Convida
revela o perfil espiritual de Francisco, sua piedade, e a alter
nância pedagógica de ternura e vigor. Apresenta quatro atribu
tos de Deus: onipotente, eterno, justo e misericordioso. E as
disposições da pessoa, mediante quatro verbos de ação: saber, 85. Cf. 1Cel 80.
86. Paolazzi, C. Lettura degli Scritti di Francesco_
r
d 'Assisi, 9 �. Le_clerc,
Franç01s d Ass1se,_ p.
E. Le Cantique des créatures - une lecture de Samt a
82. Cf. 2Cel 95. ncia de Deus domm
57 escreve: "Esta profunda aceitação da transcendê
cami nho das criatu ras para o louvor:
83. 2Cel 10; LM II,l. todo O Cântico do Sol. É ela que abre o Filho Deus".
à imitação do altíss imo
84. Esser, K. Opuscula Sancti Patris Francisci Assisiensis, p. 224. caminho de humildade e encarnação,
63
62
Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista
louvar o Criador é comum nos Salmos87 • O original de Francis 2.2 Palavras-chave à Luz dos Escritos
co: chamá-las de irmãs. Mais: a presença de Cristo. Todo o
As palavras-chave são termos de primeira grandeza colhi
Cântico é um vibrar de gratidão. A grandeza, porém, dessa
dos de obras de pedagogos e pedagogistas citados no cap. I.
�atidão não resulta só dos beneficios que as criaturas propor Passamos, ora, a estudá-las especialmente sob o foco das pala
c10nam ao homem, mas do fato de sobre elas se projetar o ful
vras e obras do próprio Homem de Assis.
gor do Dom maior que Deus nos fez: o Dom do seu próprio Fi
lho. Outra nota ainda: o realismo otimista que ilumina todas as
criaturas. Estas são preciosas e belas, não em virtude de qual 2.2.1 A Comunhão Humana
quer simbolismo misterioso, mas simplesmente de serem o
que são: sol, estrelas, água, terra, fogo, etc. Finalménte, o per A comunhão humana é a primeira palavra-chave a receber
dão é um Dom por excelência, é forma de amor indispensável. as luzes dos Escritos. Por duas razões principais: sua amplitude,
que abrange constelação de 40 termos afins; e pela profundida
O� Louvores das Criaturas não foram só um eflúvio de poe
. de, porque toca nas raízes da nova impostação educativa, de
sia. Tiveram tam bém uma missão ap�tólica, evangelizadora.
acordo com pedagogos e pedagogistas contemporâneos. Seus
Foram o sermão que Francisco mandou seus frades pregarem
termos nucleares são coração, alma, ser, ser com, ser para.
pelo mundo inteiro, a conquistar esse mundo para o amor de
Deus, construir a paz88 • Escreve Merino:
El Cántico del poeta de Asís brota de una personalidad 2.2.1.1 Regra Bulada
equilibrada psicológicamente, reconciliada ontológi
camente, liberada existencialmente, alegre espiritual Francisco escreve e orienta:
mente y poética afectivamente. Entre el Cántico pro 111,11: "Consulo vero, moneo, exhortor Jratres meos ...,
clamado y el comportamiento vivido de Francisco no quando vão pelo mundo, não discutam nem alterquem com pa
· se da oposición o contradicción, sino que reina armo
lavras, nem julguem os outros".
nía, coherencia y transparencia, como expresión clara
89
de la sinceridad de su autor • Francisco usa-três verbos, que são propriamente sinôni
mos, qual figura retórica de repetição, e de ordem crescente:
aconselhar = indicar a vantagem ou conveniência, recomen
87.Por exemplo: SI 9, 33, 64, 91, 99, 104, 112, 134, 145, 148, 150. dar; admoestar = repreender com brandura, concitar; exortar =
88. Fontes Franciscanas I, 1994, 50-51. encorajar, persuadir.
89. Merino, J. A. Humanismo.franciscano -franciscanismo y mundo actual, Destaca uma atitude convivia! harmônica: não entrar em
p. 208. -A título de ilustração da vasta literatura do Cântico do Irmão Sol
refiro Leclerc, E. no apreciado Le cantique des créatures -une lecture d�
briga com palavras, acusações e condenações.
Saint François d'Assise. Bajetto, F. in Selecciones de franciscanismo, 111,12: Mais: as pessoas deverão ser muito cordiais no re
1976, 13/14, p. 173-220, publica rico artigo intitulado Treinta afíos de estu
dios sobre el Cántico dei Hermano Sol, num total de 101 estudos e varia
lacionamento com os outros: "Sejam. mansos, pacíficos e mo
ções, com ci�ção de autores e bibliografia. Mérito, sem dúvida, pelo reali destos, brandos e humildes".
zado, e convite para continuação e atualização.
65
64
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
E concretamente o expressem ainda no modo de falar a to "Se a mãe nutre e ama a seu filho carnal, quanto mais diligen
dos com respeito e dignidade, como convém, sicut decet. temente não deve cada um amar e nutrir a seu irmão espiritual?"
Interpreto: Francisco mostra bem (aconselha, admoesta e O amor de mãe aparece com :freqüência e pureza na litera
exorta) que essa atitude faz parte da educação, é jeito de gente tura universal.
de boas maneiras, de uma pessoa humana educada, sinal de
sua grandeza de alma e nobreza. Com sensibilidade escreve Drummond de Andrade ( t
19 8 7), príncipe da poesia brasileira contemporânea, nos ver
sos de Canção amiga:
IV,3: Cuidem diligentemente Eu preparo uma canção
Francisco escreve e orienta: em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
Os Ministros e Custódios exerçam diligente cuidado, e que fale como dois olhos.
através de amigos espirituais, para com as necessida
Eu preparo uma canção
des dos enfermos e para vestir os demais Irmãos de
que faça acordar os homens
acordo com os lugares, tempos e regiões frias, como vi
e adormecer as crianças.
rem que seja conveniente às necessidades.
Destaca-se a sensibilidade de Francisco: sollicitam curam A Sagrada Escritura mesma ressalta o papel da mãe (cf. Dt
gerant�Os Superiores hão de ser sensíveis, hão de se tocar e agir 6,20s; lSm 1,11; 2,1 8 -20; Dn 13 ,3 ; Tt 2,3 -5; 2Jo 4).
em relação aos que mais precisam, enfermos e outros, necessita O próprio Francisco repete a imagem do agir com ternura
dos de apoio material. Sublinho dois toques: o recurso a amigos de mãe: cf. RnB 9,13 -14; RE 1,4,6-7; Le 2; cf. ainda: lCel 9 8 ;
capazes de ajudar, superando a austeridade da pobreza (nullo 2 Cel 16-1-'7; 1 8 0; LM VIII,1.
modo denarios vel pecuniam recipiant), e a cordialidade de cri Francisco evoca, ademais, regra áurea de convivência: ser
térios na avaliação da carência: como virem que seja convenien
vir como gostaria de ser servido: "Tudo o que desejais qu� as
te à necessidade (sicut necessitati viderint expedire). pessoas vos façarri, fazei vós a elas" - na sentença do Cnsto
Mestre e do Apóstolo Paulo (Mt 7,12; 22,40; Rm 1 8 , 8 -10).
VI,8-9: "Os Irmãos mostrem-se mutuamente familiares
entre si . . . assim como a mãe ama ".
VIl,3-4: Com misericórdia... não se perturbar
Francisco escreve e orienta sobre a afabilidade, o afeto no
Francisco escreve e orienta:
trato mútuo, em que se manifeste a confiança. Para que seja
concreta essa cordialidade, invoca a figura da mãe, o amor, o Diante do erro de alguém, jamais perder o autocontrole, a
coração de mãe. A comparação é mais do que poética, é pro serenidade. A atitude de acolhimento é fundamental, a miseri
funda de sentimento humano: córdia é ponte para restabelecer a comunhão, a harmonia: Cum
misericordia... porque a ira e a perturbação com a falha ou erro
de alguém impedem a caridade em si e nos outros.
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Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
VIII, 1 -2.5: Devem ter um ministro e servo da.fraternidade "Os Irmãos que são ministros e servos dos demais Irmãos
Francisco escreve e orienta: visitem e admoestem a seus Irmãos e corrijam-nos com humil
dade e caridade".
Numa comunidade, é importante que haja um responsável
pela ordem e bem-estar, um coordenador, um superior. Deno No início deste capítulo, Francisco oferece três verbos de
mina-o ministro e servo da fraternidade. Em outras passagens, ação educativa:
escreve pormenorizadamente o que entende por ministe-r9º, seu 1. visitar - na educação é preciso estar presente, ser pre
papel correspondente91 , como devem agir92 • Neste, salienta o sença; importante caminhar junto; cumpre agir com co
estilo democrático, participativo: comparecer ao "capítulo"(= nhecimento de causa; não basta tomar medidas só por
assembléia); opinar, eleger; e mais, a co-responsabilidade em, "ouvir dizer";
eventualmente, depor até o ministro, se não dá mais conta do 2. admoestar - o verbo admoestar, o substantivo admoes
serviço e da comum utilidade dos Irmãos"(= o bem comum), e tação ocorrem freqüentemente nos Escritos. Existe até
eleger outro.em seu lugar93 • um bloco de ensinamentos de Francisco com 28 Admo
Trata-se de proposição de descortínio e determinação, pois estações. É· uma espécie de coletânea sapiencial, de
diretamente está em jogo a comunhão fraterna. data e circunstâncias incertas, oportunamente reunidas
e coordenadas segundo determinados temas, e consig
Anoto outros ensinamentos no mesmo contexto: quando
nados em numerosos manuscritos. Representam uma
Francisco sugere aos ministros e custódios convocarem capítulo
espécie de espelho de perfeição (speculum perfectio
(assembléia) em suas jurisdições, se lhes parecer conveniente94•
nis), onde Francisco retraça muitos aspectos particula
Revela organização e dinâmica inteligente e de novo parti res do conceito que forma do cristão ideal95;
cipativa, para acompanhar e avaliar a vida e as atividades dos 3. corrigir - Francisco menciona a correção, a punição.
membros. Não se deve omiti-la, pois o erro rompe a comunhão,
gera desordem, desarmonia na comunidade, afronta a
"tranquillitas ordinis". Ao mesmo tempo, porém, Fran
X, 1 -2: Admoestação e correção dos Irmãos
cisco indica o estilo pedagógico, como fazê-la: humili
Francisco escreve e orienta: ter et caritative, isto é, sem arrogância, mas com man
sidão, com caridade96 •
Por outro lado, quem recebe admoestação, receba-a sem e injustos". E remata: "Amai os vossos próprios adversários e
constrangimento, serenamente, com abertura de coração,puro orai pelos que procuram prejudicar-vos" (Mt 5,44-45).
carde (v. 10). Francisco assume-o exemplarmente e exorta: Não desani
mem. Tenham coragem até o fim - usque infinem (Mt 10,22).
X,5-6: Confiança em recorrer e cordialidade em acolher
Francisco, em seguida, escreve e orienta sobre o diálogo, o XIl,1-2: Francisco escreve e orienta sobre missão e vo
encontro entre súdito e superior. luntariado
O Irmão súdito que não se sentir bem na sua posição, com "Se alguns dos Irmãos por divina inspiração quiserem ir
problemas existenciais, pode e deve recorrer ao superior. O Ir para o meio dos sarracenos e outros infiéis, peçam licença a
mão ministro, por sua vez, há de acolhê-lo com cordialidade
' seus ministros provinciais." É o capítulo conclusivo da Regra
com ternura - caritative et benigne. Dessa forma se estabelece Bulada.
a necessária empatia, o diálogo, sem prepotência, sem inveja e
Trata-se de um gesto de solidariedade a cumprir com liber
egoísmo, com simpatia e fraternidade.
dade. O ensinamento frisa um altruísmo de serviço, partir para
uma missão longínqua e árdua, atravessar o mar e seguir a r
e
X,8.10-12: Generosidade convivia! giões estrangeiras e gente estranha, que já havia recebido,� re
ceberia ainda certamente com violência e morte. Francisco
Quase no final da Regra Bulada, sobressai uma qualidade mesmo, numa ocasião, aventurou-se intrepidamente a uma
muito atual da comunhão. Francisco escreve e orienta: missão de paz junto ao Miramolim de Marrocos (1211) e ao
"Admoesto, no entanto, e exorto a que os Irmãos tenham hu Sultão da Síria (outono de 1219)- como atestam os biógrafos
mildade e paciência na perseguição e na enfermidade, e perse (cf. lCel 56; 2Cel 30, 152; LM IX,6). Não logrou, pelas cir
verem com amor até o fim". cunstâncias, estabelecer um tratado de paz, mas chegou a sen
É a generosidade convivia!. A amorosidade atuante leva a sibilizar o coração do Sultão da Babilônia, convertido em
extremos de renúncia pessoal para criar abertura interpessoal. "grandíssima alegria". Veja-se o episódio pitoresco em 1 Fio-
Mediante uma atitude de minoridade, de solidariedade, de pa retti, cap. 24.
70 71
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
Ambos falam do universo das pessoas, em comunhão sem Universal de todos e cada um, Criador, Senhor da vida, de
distinção, formando um só coração, cor unum, uma só alma Bondade e Misericórdia.
(cf. At 4,32). É, em síntese, a comunhão em plenitude, a comunhão do
amor pleno de afeto e ardor, de idealismo e paixão, amor que
estreita, une e reúne.
XXIII,7-8: Universalidade
Francisco escreve e orienta: "Todos os que querem servir
ao Senhor (na santa Igreja católica e apostólica)..." Nesse "to XXIII,9-10: Fortaleza Mística
dos",ele inclui
'
todos os povos,em toda a face da terra' em todo Por fim, num arroubo de mística e encarnação, Francisco
o tempo. E notável a globalidade do seu elenco: todas as ordens exorta a aderir a esse Senhor mediante quatro verbos de ação:
eclesiásticas e todos os Religiosos e Religiosas - todas as pes desejar, querer, agradar, alegrar(-se).
soas, homens e mulheres - todas as faixas etárias, de crianças,
adolescentes,jovens,adultos a anciãos - todas as classes,de reis Qualifica este Senhor. mediante 18 diferentes atributos:
e príncipes a operários e agricultores, ricos e pobres, emprega único,verdadeiro,o bem pleno,todo o bem,o bem total,o ver
dos e patrões, os pequenos e os grandes, sãos e enfermos. dadeiro e sumo bem,o unicamente bom,piedoso, manso, sua
ve e doce,o unicamente santo,justo,verdadeiro,santo e reto,o
Insiste enfaticamente: Todos os povos, gentes, tribos e lín unicamente benigno,inocente,puro. Acrescenta que dele e por
guas,todas as nações e todos os homens em toda a face da ter ele provém toda a graça,o dom por excelência do perdão. Que
ra, os que existem e que existirão. nada nos impeça, nos separe, nada se interponha entre nós.
E a que exorta Francisco? E remata, enfaticamente, através de outros 12 verbos: que,
Que perseverem todos,sem exclusão, na busca da verdade sempre e em todo lugar, se deverá crer sinceramente e ter no
e do bem (7). coração, amar, homar, adorar, servir, louvar e bendizer, glori
ficar e superexaltar, magnificar e render graças a esse altíssi
E qual o sonho, qual a esperança? Simplesmente, o amor mo e sumo Deus,_ que é imutável, inefável, louvável, glorioso,
universal,total,global,o amor em cada coração humano. Suas sublime, excelso, suave, amável, deleitável e totalmente dese
palavras o exprimem com maior alma, pureza e vigor: jável acima de todas as coisas.
Amemos todos, de todo o coração, com toda a alma,
Um Deus Tudo e Todos. Tatus super omnia desiderabilis
com todo o pensamento, com todo o vigor e fortale
za, com todo o entendimento, com todas as forças, in saecula.
com todo o empenho, todo o afeto, com todas as entra
nhas, com todos os desejos e vontades, no Senhor nos
so Deus (8). XXIV,1-4: Comunhão humana
Francisco fraterniza a humanidade unida no coração de um Na conclusão da Regra não Bulada, Francisco volta a falar
ser superior,transcendente,o seu Deus,que poderia ser o Deus da comunhão humana: "Rogo a todos os Irmãos que aprendam
72 73
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
bem o teor e sentido destas coisas que foram escritas nesta for Vejamos ao longo do texto.
ma de vida"...(l).
Como mestre inteligente, emprega 5 verbos de caráter di
dático: ensinar-aprender-conservar-recordar-praticar (2). 2: Feci misericordiam.
Como mestre paternal, recorre a outros 5 verbos exortativos: Francisco escreve e ensina:
beijando os pés, suplico que amem, protejam e guardem esta "O Senhor mesmo me conduziu para o meio dos leprosos e
Regra de vida (3). E, como mestre autoridade, prescreve: eu tive misericórdia com eles". "Feci misericordiam cum illis ".
Ordeno firmemente e imponho -firmiter praecipio et iniungo O tradutor das novas Fontes Franciscanas e Clarianas mantém
-que ninguém diminua nada destas coisas que foram escritas a força da literalidade: "fiz misericórdia com eles" (2).
nesta forma de vida, nem lhe acrescente qualquer escrito (4).
A palavra misericórdia é familiar nos Escritos, 23 vezes99•
Assim Francisco, nas duas Regras que escreveu para seus Francisco a coloca como atributo divino: "O Senhor nosso
Companheiros, de ontem e de hoje, revela aspectos importan Deus nos criou e nos reuniu e só por sua misericórdia nos sal
tes da sua índole de guia e mestre, e ilumina o cenário pedagó vará" (RnB 23,8). Neste tópico do Testamento, fala da sua pró
gico atual. pria misericórdia, da conversão do seu coração para o necessi
tado, o excluído, o mísero: cor misero. E esse gesto o transfor
2.2.1.3 Testamento ma. O que antes o repugnava, a simples vista do leproso, que
lhe parecia sobremaneira amargo, converte-se-lhe em doçura
"O Testamento de Francisco mostra com destaque o seu da alma e do corpo - "conversum fuit mihi in dulcedinem ani
idealismo e o seu ânimo elevado, perseverante até o fim" -es mi et corporis" (3).
creve Esser. "Testamentum... insigniter denotai, ut patrimonium A misericórdia em Francisco - escreve M. A. Lavilla -
afratribus magni est aestimandum"97• Por isso, o Testamento é uma experiência centro-frontal em sua conversão,
deve ser estimado privilegiadamente como patrimônio pelos uma maneira de ser e atuar proposta por ele a todo ser
seus Irmãos. humano, é a sua pedagogia. Apresenta-se como uma
virtuãe, um valor e uma atitude, válida para a mulher e
Estudá-lo-emos agora como foco iluminador da constela , 100
o hornem de hoJe .
ção pedagógica que intitulamos "Comunhão humana", cunha
da de textos pedagógicos de hoje. "A educação do futuro -ob
serva E. Morin-deverá ser o ensino primeiro e universal, cen
trado na condição humana"9 8•
99. Corpus des sources franciscaines apresenta todos os textos de Francis
Francisco, há oito séculos, já o inspira. co onde ela ocorre. Lavilla, M. A- (OFM). La misericordia en San Fran
cisco de Asis, in Selecciones de Franciscanismo. 1997, v. 26, p. 263-283,
desenvolve valioso artigo sobre essa virtude e sentimento do coração de
Francisco.
97. Esser, K. Opuscula Sancti Patris Francisci Assisiensis, p. 305.
100. Lavilla, M. A. (OFM). La misericordia en San Francisco de Asis, in
98. Morin, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro, p. 47. Selecciones de Franciscanismo. 1997, v. 26, p. 263.
74 75
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
O apaixonado jovem Francisco mesmo o confessa: dia como "forma de vida para toda pessoa, em suas relações
"Era-me de fato insuportável olhar para leprosos..." (Test 1). autênticas e justas com os demais" 102•
Supera-se, porém, e dá testemunho de seu afeto, ternura, sensi
bilidade, compaixão, sua comunhão humana. "Aquilo que me Por fim, também como
parecia amargo se me converteu em imensa doçura" (3). Lavil proposta pedagógica, através de uma paciente humani
la realça a antítese de "antes" e "depois" do "ter misericórdia" dade e intensa misericórdia, que busca o crescimento
para com o leproso como marco diferencial na vida de Francis da pessoa, com acolhimento de gratuidade, respeitando
co, não só de tempos diferentes como também de maneiras sua liberdade e responsabilidade, corrigindo fraternal
opostas de ser e atuar (p. 264). mente (p. 281 ).
O leproso entrou profundamente na vida de Francisco. O Acrescento, ao estilo e no espírito evangélico - como bem
beijo do leproso é um marco excepcional, verdadeiramente avulta na Carta a um Ministro (Mn 4-5.9.a.11) 103 •
dramático; Os primeiros biógrafos o realçam. (cf. 1Cel 17; e
2Cel 9; LM 1,5; LTC 11).
20-21: Et ego manibus meis laborabam, et valo laborare
O serviço aos leprosos significou ainda um noviciado ge
neroso, vivenciado por Francisco e seus primeiros Compa Francisco escreve e orienta:
nheiros: (cf. lCel 103; LM 1,6; 11,6; XIV,1; CA 9; 2EP 44). E eu trabalhava com as minhas mãos e quero trabalhar.
E quero firmemente que todos os outros Irmãos traba
"Servia-os com dedicação e humanidade" - comenta São
lhem num oficio que convenha à honestidade. Os que
Boaventura (LM 1,6,2). Francisco, aliás, chamava os leprosos de não sabem trabalhar aprendam, não pelo desejo de re
"meus irmãos em Cristo", ou "meus irmãos cristãos" (2EP 58). ceber o salário do trabalho, mas por causa do exemplo
Francisco teve misericórdia, fez misericórdia para com es e para afastar a ociosidade.
tas pessoas enfermas e marginalizadas. "Servia-os com benéfi Neste trecho, delineia-se um quadro do sentido e valor do
ca piedade e cuidava de suas necessidades, visitando-os fre trabalho, para o indivíduo e para a sociedade. Francisco colo
qüentemente" - comenta São Boaventura (LM 1,6,2-3). Era ser ca-se, em primeiro lugar, como protótipo: "Eu trabalhava e
viço gratuito, generoso, de doação solidária - de comunhão hu quero trabalhar". Jovem, trabalhara na loja com seu pai, balco
mana - que supera a simples atenção assistencial e temporal. nista atraente e simpático vendedor (cf. 1Cel 2) - razão tam
Para Francisco, em suma, Deus é misericordioso, isto é, de bém porque o pai não queria perdê-lo. Depois, já noutro estil_o
coração compassivo, de sentimentos de misericórdia. Explana de vida, nos primeiros passos, trabalhou com suas mãos, ded1-
Lavilla significativamente: "Francisco adquire esta viva cons
ciência da misericórdia de Deus através da escuta e leitura da 102. Lavilla, M. A. (OFM). La misericordia en San Francisco de Asis, in
Palavra e da celebração da Liturgia, e também por havê-la ex Selecciones de Franciscanismo, 1997, v. 26, p. 273-275.
perimentado em sua própria pessoa" 1º 1• E propõe a misericór- 103. Bazarra, C. (OFMCap). Francisco Pedagogo, in Cuadernos Francis
canos. 1991, v. 99, p. 130, introduz sua reflexão enfaticamente: "Es lamen
table que en tareas formativasJa misericordia es considerada la cenicienta
de las virtudes, una debilidad de los formadores y la ruina de la pedagogía.
101. Lavilla, M. A. (OFM). La misericordia en San Francisco de Asis, in Todos prefieren el autoritarismo y la inflexibilidad, olvidando el evangelio
Selecciones de Franciscanismo, 1997, v. 26, p. 268. y dando prioridad al jurisdicismo sobre la vida fraterna".
76 77
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
cou-se à restauração de igrejas: São Damião, São Pedro e da pecto dá ao trabalho a conotação de vocação: cada um perma
Porciúncula "Seria longo e difícil narrar o quanto trabalham na
neça na arte e oficio em que estava quando "foi chamado"
citada obra" - nota a Legenda dos Três Companheiros
(7,21,11). Ao redigir o Testamento, quase rio fim da vida, in (ICor 7,24).
sistia: "Eu trabalhava e quero trabalhar" (2 0). No que toca à retribuição pelo trabalho realizado, não se
Por que trabalhar? fala de exigir, por direito, e sim poder receber as coisas neces
sárias, exceto retribuição em dinheiro. De novo entra o critério
Em três passagens dos Escritos, Frei Fernando Uribe ex da pobreza.
põe o pensamento fundamental de Francisco a respeito do tra
O texto da Regra Bulada (5,1 -4) enuncia outro ângulo:
balho e a sua função na forma de vida dos Irmãos 104.-Os textos,
na ordem de aparição cronológica, são: Regra não Bulada Os Irmãos, aos quais o Senhor deu a graça de trabalhar,
7,1-12; Regra Bulada 5,1-4; Testamento 2 0-22. trabalhem fiel e devotamente, de modo que afastado o
ócio que é inimigo da alma, não extingam o espírito da
Na Regra não Bulada, Francisco orienta: "Todos os oração e devoção, ao qual devem servir as demais coi
Irmãos, em quaisquer lugares que estiverem para servir ou tra sas temporais (1�2).
balhar em casa de outros..." (1 ). Destaca, o autor, que o verbo Fernando Uribe ressalta a conotação teológica do trabalho,
"servir" associado ao verbo "trabalhar" dá ao tema do trabalho que é uma "graça".
uma conotação de sabor evangélico. Explicita o tipo de traba À luz dos advérbiosfideliter e devote- escreve - não se
lho: P�E de administrador, nem de diretor, isto é, cargo de su pode considerar o trabalho como atividade profana e
perior, de mando, de poder, em relação aos demais trabalhado indiferente. Ele entra na categoria da fé, comprometen
res. Da mesma forma, nem aceitem algum ofício que provoque do a interioridade da pessoa e fomentando o espírito de
escândalo ou que cause dano à sua alma (2). Comenta Uribe contemplação em meio à ação.
que toda a exortação está dominada pela idéia de minoridade E remata: "Desta maneira, o trabalho integra-se na concep
assim como pela honestidade e o bom nome dos Irmãos: "To ção unitária da pessoa humana" (p. 1 81).
dos sejam menores" e "estejam sujeitos" -na contraposição de No trecho do Testamento (20-22), Uribe destaca a expe
domínio ou superioridade. Ademais, o binômio "servir" e "tra riência pessoal de- Francisco no trabalho: "Eu trabalhava com
balhar" reforça a idéia dominante da minoridade, e lhe acres as minhas mãos"; e a insistência em relação aos Irmãos: "E
centa ao mesmo tempo a tônica do espírito de fraternidade quero firmemente que todos os outros Irmãos trabalhem num
para fora, por tratar-se de um serviço "em casa de outros", ou ofício que convenha à honestidade; os que não sabem traba
seja, não limitado aos Irmãos da mesma Fraternidade. lhar aprendam..." Trata-se do bom exemplo a ser dado aos de
Em seguida, sublinha dois aspectos do trabalho: a inspira mais -como o destacariam os biógrafos. Anotam ainda como
ção bíblica: "comerás do fruto de teus trabalhos" (SI 127,2), e Francisco estigmatizava a preguiça, os ociosos, a .quem cha
mava de "Irmão Mosca", "zangão ocioso e estéril, que nada
"quem não quer trabalhar, não coma" (2Ts 3,1 0). O outro as-
produz porque não trabalha" (cf. LM V,6,3; CA 62,8 e 97,2 9).
Quanto, de novo, ao salário pelo trabalho, o Irmão Menor não
104. Uribe, F. Significado del trabajo eri las primitivas fuentes francisca o exige como os demais trabalhadores. E quando não o recebe,
nas. Selecciones de Franciscanismo. v. 27, p. 172-194, 1998. entra o recurso à mendicidade como meio auxiliar de subsis-
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Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
tência- "a mesa do Senhor", pedindo esmola de porta em por da fraternalmente. O súdito, por sua vez, responderia por um
ta- onde se manifesta a gratuidade do amor que o Pai tem por seguimento dócil, pronto, humilde, desprendido, também fra
seus filhos. ternalmente. É a vera obedientia, a caritativa obedientia (Ad
III,5-6) - como a chamou Francisco, que agrada a Deus e re
Numa leitura atual, além dessas considerações (da humil
verte a bem do outro.
dade, para o Frade), talvez se possa acenar a uma comunhão de
solidariedade de quem ofereça, num gesto de benevolência e Como se transforma, nesse senso, nessa ótica, o rapport, o
generosidade. As palavras do próprio Francisco: "Se porven entrelaçamento no dar e observar uma norma, uma orientação,
tura não nos pagarem pelo trabalho, recorramos à mesa do Se uma lei!
nhor- ad mensam Domini, pedindo esmola de porta em porta"
- ostiatim (solicitando ajuda de uma forma ou outra) (Test 22;
cf. RB 6 ,3-4; RnB 9,3-4). 30: O texto completa-se com referência abrangente:
"E todos os outros Irmãos sejam obrigados do mesmo
modo a obedecer aos seus guardiães". Portanto, de um lado,
27: Obediência, gratuidade universalidade na obrigação e, doutro, gratuidade de vontade
Francisco escreve e orienta: na aceitação.
"Quero firmemente obedecer ao Ministro Geral desta fra
ternidade e a qualquer outro Guardião que lhe aprouver 34: Aderir, envolver-se
dar-me". "Et firmiter valo obedire ".
Francisco remata enfaticamente o Testamento.
Eis mais um novo estilo de relacionamento no tocante a
mandar (governar) e obedecer (seguir). A Ordem dos Frades Já no exórdio, salienta "O Senhor me concedeu" (1,4,6).
Menores, com suas características singulares desde o início, Depois, "o Senhor me revelou" (23). Acrescenta: "Mando fir
constituiu umaforma vitae completamente nova para o direito memente" (25), "quero firmemente" (27). Por fim, declara que
canônico da época. Francisco negava-se a acomodar a organi o Testamento é a sua recordação, admoestação, exortação, o
zação de sua recente comunidade a formas anteriores das meum testamentUin, para que possam seus Irmãos observar
Ordens monásticas. As comunidades religiosas antigas, a aba mais catolicamente o que prometeram. Inclui-se como exem
dia, o priorado ou a prepositura constituíam o núcleo de toda a plo: "Para que observemos mais catolicamente a regra que
vida religiosa. A nova organização dos Frades Menores prefe prometemos ao Senhor" (34).
riu congregar-se territorialmente em "províncias". Distin Parece-me significativo apelo de envolvimento educativo.
guia-se, ainda, por grande mobilidade e desconhecia a perten Trata-se de um ideal que lhe é inspirado. Não basta, pois, só
ça vitalícia ao mesmo mosteiro. Quanto aos cargos, inovou prometer, é preciso segui-lo, é preciso cumpri-lo. E cumprir
igualmente pelo estilo fraterno de relacionamento: os superio
com totalidade (melius catholice), vale dizer, aderir plenamen
res mesmos foram sendo denominados de ministro geral, mi
te, envolver-se de coração.
nistro provincial, custódio e guardião. Pelo sentido do próprio
termo, portanto, aquele que acolhe, que serve, aquele que cui-
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Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
Acolhimento humano
l. assumir com idealismo
Francisco escreve e orienta:
"Aquelas coisas que te impedem de amar o Senhor Deus,
1. a saudação clássica da paz: Frei Leão, teu irmão Fran bem como aqueles que te opuserem obstáculo, Irmãos ou ou
cisco, deseja-te saúde e paz (1); tros, tudo deves ter como graça". "Omnia debes habere pro
2. mostra também sua familiaridade: "Teu Irmão" (1); grafia" (v. 2).
3. prossegue em tom confidencial: "Assim te digo, meu fi
lho, como mãe", sicut mater (2). Francisco designa-se
agora mãe, e parece querer despertar a confiança do dis
cípulo. Concede liberdade de acesso e de consulta a Frei 106. Esser, K. Gli Scritti di San Francesco d'Assisi, p. 279-282.
Leão, a quem atormentavam inquietações e incertezas. 107. Esser, K. Gli Scritti di SauFrancesco d'Assisi, p. 282-283 e Opuscula
Sancti Pratis Francisci Assisiensis, p. 131.
108.Esser, K. Gli Scritti di San Francesco d'Assisi, p. 274-275. Cf. ainda
105. Olgiati, F. Gli Scritti di Francesco e Chiara d'Assisi, p. 114. Silveira, I. Escritos e biografias de São Francisco de Assis, p. 90-91, nota 30.
82 83
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
Em outras palavras, enfrentar e procurar superar proble teiro" 109• Admite ser mais longa a formulação, talvez porém
mas com altruísmo, com elevado idealismo (v. 3); mais exata.
2. dar de si, dar do seu tempo No conteúdo, como tal, revela o coração, a alma de Fran
"Ama aqueles que te fazem estas coisas. Não queiras dá cisco. Embora sejulgue ele e se diga "pequenino e desprezível
parte deles outra coisa, a não ser o quanto o Senhor te conce servo no Senhor", quer comunicar-se com todas as autoridades
der" (v. 5-6). no mundo inteiro, ubique terrarum, e com todos os outros nos
quais chegar a carta (v. 1).
Essa disponibilidade plena é que Francisco inculca. E ori
enta: "Considera isto mais que um eremitério" (v. 8); Pode-se estranhar a ousadia. Como ele se permite, não
obstante o "com todo o respeito" (v. 3), chamar a atenção das
3. ser.misericordioso, saber perdoar autoridades leigas, aconselhar, propor e advertir em assuntos
Num terceiro momento, Francisco atinge um clímax de de ordem religiosa?
sensibilidade, ternura, de benevolência e gratuidade. Francisco escreve e orienta:
Escreve e orienta: 1. não se esquecer do Senhor nem se afastar dos seus man
Não haja no mundo Irmão que pecar, o quanto puder damentos, mesmo em meio aos cuidados e preocupa
pecar, que, após ver teus olhos, nunca se afaste sem a ções no século (v. 3);
tua misericórdia, caso busca misericórdia. E se não 2. receber com amor o santíssimo corpo e sangue do Se
buscar misericórdia, pergunta-lhe se quer obter miseri
córdia (9-1 O); nhor Jesus Cristo na celebração eucarística, "em sua
santa memória" (v. 6);
4. acolher sempre com amorosidade
3. anunciar por um pregoeiro ou por outro sinal, para que
Francisco encerra como guia e mestre a lição de comunhão todo o povo a eles confiado renda louvor e graças ao
humana: Senhor Deus onipotente (v. 7);
"E se depois ele pecar mil vezes diante de teus olhos 4. se não o fizerem, deverão prestar contas perante o Se
ama-o mais do que a mim para trazê-lo ao Senhor, e tenhas nhor (8); se guardarem consigo o escrito e o observa
sempre misericórdia desses Irmãos" (11). rem, serão pelo Senhor Deus abençoados (9).
Pode-se entender a carta como um exemplo de senso reli
gioso e visão global de Francisco, de sentir-se co-responsável
2.2.1.4.3 Carta aos Governantes dos Povos pela sociedade, pelo bem comum, que o leva a atuar participa
tivamente, ousando pedir e advertir, aconselhar e animar todos
Na análise inicial desta carta, Esser observa que o título pro
os Governantes dos Povos. ---
vém de Wadding. Através das edições de Lemmens e Boehmer,
passou à maior parte das traduções, e pode-se mantê-lo. Co
menta, por outro lado, que Cambell propõe intitulá-la "Car 109. Cambell, J. Les écrits de saint François d' Assise devant la critique, in
Franziskanische Studien, Münster/Werl. 1954, v. 36, p. 254. ln: Esser, K.
ta aospodestàs, cônsules,juízes e governantes no mundo in- Gli Scritti di San Francesco d 'Assisi, p. 324.
84 85
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
. fecta, senno et cognoscemento, signore, che faça lo tuo são próprias do Seráfico Pai: "Le sécretaire eut ici un rôle à
santo e verace commandamento. Amen. rernplir. Les idées sont bien du séraphique Pere"116•
Neste conjunto, ao final da carta, avulta a oração "Onipo
A oração em português tente, eterno, justo e misericordioso Deus", "pérola preciosa
Altíssimo, glorioso Deus, iluminai as trevas do meu no verdadeiro sentido da palavra" - na expressão do historia
coração. Dai-me uma fé reta, uma esperança certa e ca dor franciscano Frei Ildefonso Silveira117 • A oração encon
ridade perfeita, sensibilidade e conhecimento, ó Se tra-se no fim da carta, a ela unida. Não significa que seja corno
nhor, a fim de que eu cumpra o vosso santo e veraz conclusão, porém reassume muito bem as idéias fundamentais
mandamento. da carta. Anos após a Oração diante do crucifixo (c. 1206),
Francisco aperfeiçoa agora seu exemplo de comunhão, de
Vejamos, então, dois tons pedagógicos desta oração:
alma generosa (c. 1220). Assim reza:
1. sensibilidade e abertura de coração. Francisco pede:
Texto latino
"Iluminai as trevas do meu coração, concedei-me urna fé
Omnipotens, aeteme, iuste et misericors Deus, da no
reta, urna esperança certa e caridade perfeita, sensibilidade e bis miseris propter temetipsum facere, quod scimus te
conhecimento"; velle, et semper velle, quod tibi placeat, et interius
2. disponibilidade e generosidade em servir: mundati, interius illuminati et igne Sancti Spiritus ac
censi segui possimus vestigia dilecti Filii tui, Domini
"A fim de que eu cumpra o vosso santo e veraz mandamento". nostri Jesu Christi, et ad te, Altissime, sola tua gratia
Pode-se inferir, de ambos, o modo de ser e a amorosidade pervenire, qui in Trinitate perfecta et Unitate simplici
atuante que Francisco desejava viver. vivis et regnas et gloriaris Deus omnipotens per omnia
saecula saeculorum. Amen.
para que, interiormente purificados, interiormente ilu O Cântico do Irmão Sol - interpreta o humanista Eduardo
minados e abrasados pelo fogo do Santo Espírito, pos Fumagalli - apresenta duas características já apontadas por
samos seguir os passos de vosso dileto Filho, Nosso Celano em termos de leitura: uma, por assim dizer, ingênua,
Senhor Jesus Cristo, e, unicamente por vossa graça, isto é, de compreensão direta; outra, mais complexa, que leva a
chegar a vós, ó Altíssimo, que em Trindade perfeita e
investigações particulares e mesmo mais importantes sobre o
unidade simples viveis e reinais e sois glorificado
como Deus onipotente por todos os séculos dos sécu
sentido do texto119•
los. Amém. O Professor Lehmann, OFMCap., comenta o fato de filó
Quatro verbos de ação demonstram seu sonho amadureci- sofos, teólogos, psicólogos, poetas já terem se ocupado com
do: este texto da literatura universal. E refere, a propósito, Rénan,
que o considera "o mais belo trecho de poesia religiosa depois
1. conhecer a vontade de Deus - quod scimus te velle; do Evangelho" 120•
2. fazer esta vontade - propter temetipsum facere;
Leclerc, por sua vez, na releitura própria do Cântico, es-
3. querer sempre o que agrada ao Senhor - semper velle,
creve:
quod tibi placeat;
4. seguir os passos de Jesus Cristo - sequi vestigia Domini Fraternizar com todas as criaturas, como o fez Francisco
nostri Iesu Christi. de Assis, é definitivamente optar por uma visão do mun
do em que a conciliação prevalece à ruptura; é abrir-se,
Remata com aspiração de confiança: chegar ao Altíssimo para além de todas as separações e todas as solitudes, a
unicamente, por sua graça - pervenire ad te, Altissime, sola um universo de comunhão onde "o mistério da terra al
tua grafia. cança o mistério das estrelas", num sopro imenso de per
dão e reconciliação. Experiência espiritual como esta é
certamente indizível na sua substância. Não pode expri
2.2.1.5.3 Cântico do Irmão Sol ou Louvores das mir-se senão em símbolos: numa celebração do mundo
Criaturas onde a alma, fraternalmente, unida a todas as coisas,
121
toma da mesma a cor brilhante do sol •
K. Esser, na introdução do Canticum Fratris Solis vel Lau
des Creaturarum, em sua edição crítica dos Escritos de São
Cântico do Irmão Sol
Francisco de Assis, escreve:
Altíssimo, onipotente, bom Senhor,
Quem examinar atentamente a imensa bibliografia dos teus são o louvor, a glória e a honra e toda a bênção.
últimos trinta anos sobre o Cântico do Irmão Sol de
São Francisco, poderá facilmente constatar como não
existe problema relativo a este escrito que não tenha 119. Fumagalli, E. San Francesco� il Cantico, il Pater noster, p. 72. A pas
118
sido já exaustivamente discutido • sagem do Celanense ocorre em 2Cel 107.
120. Lehmann, L. Francisco_,_ mestre de oração, p. 212. Título original:
Franziskus, Meister des Gebets, Werl, 1989.
118. Esser, K. Gli Scritti di San Francesco d'Assisi, p. 150. Note-se que o 121. Leclerc, E. Le cantique des créatures - une lecture de Saint François
autor escrevia em 1976. d'Assise, p. 235.
90 91
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
Somente a ti, ó Altíssimo, eles convêm, Canticumfratris Solis vel Laudes Creaturarum [Cnt]
122
ka la morte secunda nol farrà male. Com coração cheio de admiração, Francisco introduz os
Laudate et benedicete mi signore, elementos no cenário do Cântico, declara a beleza de cada um
et rengratiate et serviateli cun grande humilitate. e a sua ação na natureza;
No trabalho ora em tela apresento, particularmente nestas 4. a amorosidade e confiança
Laudes Creaturarum, aspectos que sirvam à educação hoje,
valores de um novo humanismo. Inserindo esses valores já a Francisco escreve e ensina:
partir da primeira constelação de palavras-chave, colhidas no "Louvado sejas pela Irmã nossa, a Mãe Terra..."
estudo de pedagogistas e pedagogos atuais.
Revela, na expressão, afeto e ternura pela Terra. A terra
Sublinhamos, em análise pessoal do texto, os seguintes va- não é só irmã, é mais, chama-a de mãe, é mãe "que nos susten
lores: ta e governa". E é respeitoso e grato, porque ela "produz diver
Francisco escreve e ensina: sos frutos com coloridas flores e ervas".
1. a universalidade Eis uma visão humana, que se liga a um passado histórico
e se entrelaça com um sentimento de presente. O universo é
"Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas".
- como uma grande mãe, a Mater Mundi, a Magna Mater 123 •
_Note-se a ênfase: com todas as tuas criaturas. Uma abran-
Pode-se afirmar que o ser humano manteve sempre relação
gência plena, pleonástica, que sempre de novo encanta os ecó
de veneração, temor e respeito face à "Mãe Terra", sentimento
logos hoje;
que nunca se perdeu totalmente na humanidade. Hoje, por feli
2. a simpatia e fraternidade cidade, esse sentimento ressurge a partir das assim chamadas
Francisco escreve e ensina: ciências da Terra. Elas tendem a ver mais e mais a Terra como
Gaia, um -superorganismo vivo, altamente organizado e com
"Louvado sejas pelo Irmão Sol, pela Irmã Lua, pela Irmã um equilíbrio sutil, sempre frágil e sempre por refazer.
Água"...
Tal é a teoria de Gaia, proposta pelo cientista da Nasa, Ja
O simpático tratamento de irmão, irmã realça a ligação com mes Lovelock, como uma nova forma de ver a Terra, qual orga
o universo criado, confere dignidade a cada criatura. Dessa for nismo vivo. A partir de dados científicos e empíricos, ele e ou
ma, estabelece uma como convivialidade de fraternidade; tros querem expressar o mesmo que os mitos originários ex
3. a cordialidade e o respeito pressaram por via da intuição e da comunhão: a Terra é viva e
produz todas as formas de vida 124 .
Francisco escreve e ensina:
O Irmão Sol é belo e radiante, clareia o dia, com sua luz
123. Brandão, P. S. Dicionário mítico etimológico da mitologia grega, p.
nos ilumina. 271,490, 556-557. Cf. ainda: Brandão,P. S. Dicionário mítico etimológico
A Irmã Lua e as Estrelas são claras, preciosas e belas. da mitologia e da religião romana, passim.
A Irmã Água é muito útil e humilde e preciosa e casta. 124. Boff, L. Saber cuidar. Ética do humano - compaixão pela Terra, p.
O Irmão Fogo ilumina a noite, é belo e radiante e vigo 63-64. Cf. ainda: Moreira, A. 2000 anos do nàscimento de Cristo na terra:
roso e forte. Jesus Cristo - a Terra, p. 15-25.
94 95
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
Sem pretender forçar, mas com sensibilidade e intuição Eu os admoesto e exorto [os Irmãos] a que não despre
franciscana, não soa como de hoje, sereno e belo, o verso de zem nem julguem as pessoas que virem vestir roupas
comunhão humana de Francisco de Assis? macias e coloridas (cf. Mt 11,8), e usar comidas e bebi
das finas, mas cada qual julgue e despreze antes a si
Laudato si, mi signore, per sora nostra madre terra, mesmo.
la quale ne sustenta et governa,
Observação judiciosa de Francisco, que destaca a transpa
et produce diversi fructi com coloriti flori et herba!
rência do coração. Ninguém se ponha a fazer pouco de alguém
Louvado sejas, meu Senhor, e/ou condená-lo se age diferentemente de nossos critérios e
Pela Irmã nossa, a Mãe Terra, padrões. Ninguém pretenda impor normas a outrem, mas agir
Que nos sustenta e governa,
com lisura de consciência, o que poderá acarretar maior equilí
E produz diversos frutos
Com coloridas flores e ervas.
brio social.
96 97
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, ÓFM
Em tom de rninoridade, simplesmente declara: "Recebam para XII,5: Submissão devida e firmeza de compromisso
si e para seus Irmãos as coisas necessárias". Francisco escreve e orienta:
Sempre súditos e submissos aos pés da mesma Santa
X,4: Devem e podem recorrer a seus Ministros Igreja e estáveis na fé católica, observemos a pobreza e
a humildade e o Santo Evangelho de Nosso Senhor Je
Em várias passagens da Regra, Francisco orienta seus sus Cristo que firmemente prometemos. - "Semper
Irmãos com firmeza: "Sejam recebidos à obediência, prome subditi et subiecti pedibus eiusdem sanctae Ecclesiae
tendo observar sempre esta vida e Regra" (11,12). "Ordeno fir stabiles in fide catholica evangelium observemus...".
memente a todos os Irmãos..." (IV,1). "Ordeno-lhes firme Na constelação da ética transparente, de que estamos tra
mente que obedeçam aos seus Ministros em todas as coisas tando, estes últimos versos do capítulo final da Regra Bulada,
que prometeram ao Senhor observar" (X,4). poderiam sugerir:
Por outro lado, mostra um coração compreensivo e magnâni 1. a consciência de pertença a urna entidade, a urna organi
mo, e aponta alternativa quando os Irmãos encontram dificuldade zação, a urna causa, à Igreja (ecclesia);
na observância da Regra: "Onde quer que estejam os Irmãos que 2. a firmeza no ideal (stabiles in fide). A perseverança em
souberem e reconhecerem não podem observar espiritualmente a relação a compromissos é valor de alto apreço. O pró
Regra, devem e podem recorrer a seus Ministros". prio Francisco adverte em tom evangélico: "Ninguém
que coloca mão no arado e olha para trás é apto para o
XI,2: Relacionamento ético e idoneidade para funções Reino de Deus" 121;
Francisco escreve e orienta: 3. o empenho pessoal, moral e social de realizar esse ideal e
programa evangélico (sanctum evangelium observemus).
Ordeno firmemente a todos os Irmãos que não mante
nham relacionamentos suspeitos ou conselhos com
mulheres, e que não entrem em mosteiros de monjas, 2.2.2.2 Testamento
exceção feita para aqueles aos quais foi concedida li
cença especial pela Santa Sé Apostólica. 8-10: Julgamento justo e judicioso
"Praecipiofirmiter" - volta a expressão categórica. Parece No Testamento, Francisco ensina atitude ética muito judi
indicar fortemente a postura ética de limpidez no trato. Para ciosa e justa. Escreve a respeito de sacerdotes (mesmo paupe
não dar margem a interpretações dúbias e, positivamente, ele res,pauperculos): "A eles e a todos os outros quero respeitar,
var a dignidade respeitosa de relacionamento. No caso, refere amar e honrar corno a meus senhores". Sublinha que não quer
-se aos frades. Por extensão, ajustar-se-ia a todas as pessoas. considerar neles o pecado, os defeitos, por causa da dignidade
de seu oficio. E procede dessa forma com transparência, sem
Quanto ao "entrar em mosteiros de monjas", para eventuais
se perturbar com um "ouvir dizer" 128•
serviços religiosos, poder-se-ia inferir, no geral, a idoneidade
moral da pessoa para funções próprias e delicadas a se lhe atri
buírem. Só a elas compete. 127. RB 2,14. Lc 9,62.
128. Cf. Is 7,10-14; 8,10.
98 99
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
20-22: Trabalhar, aprender um oficio e exercê-lo como A exortação é clara e revela sentimento muito humano e
exemplo íntegro.
Mais uma vez Francisco orienta sobre o trabalho. Escreve:
Eu trabalhava e quero trabalhar, e quero firmemente 2.2.2.3.2 Carta aos Governantes dos Povos
que todos os outros Irmãos trabalhem num ofício que
convenha à honestidade. Os que não sabem trabalhar Francisco mostra senso ético no seu modo de dirigir-se aos
aprendam, por causa do exemplo. Governantes, em dois momentos:
A lição pode ser cifrada nos seguintes pontos: 1. "Rogo-vos, com reverência, como posso, que não vos
1. importância e necessidade de todos trabalharem (firmi esqueçais o Senhor por causa dos cuidados que tendes e das
ter volo); preocupações deste mundo, e não vos afasteis de seus manda
2. seja um oficio que convenha à honestidade, isto é, dig mentos" (3). Note-se sua consciência de posição diante dos so
no, ético; beranos. Fala-lhes claro, mas com o devido respeito.
3. aprenda-se um oficio para ser exemplo - não se trata de 2. "Aconselho-vos firmemente, meus senhores, que deixeis
mero ganho de salário, mas transparência de exemplo de lado todo o cuidado e preocupação e recebais benignamen
pessoal, social, a pessoa toma-se tipo referencial, te, em sua santa memória, o santíssimo corpo e sangue de Nos
exemplo, uma "biografia". so Senhor Jesus Cristo" (6).
Note-se mais uma vez a forma respeitosa de tratamento,
2.2.2.3 Cartas sem perder a força da exortação: "Aconselho-vos firmemente
e que recebais benignamente..."
Nas Cartas em estudo, o tema da Ética aparece de forma
muito sensível e delicada. 2.2.3 Essencialidade livre
car, igualmente, nos Escritos, o número de ocorrência das pa V,4: Salário de trabalho
lavras que formam esta nova constelação: simplex, oito vezes; Em nova referência ao pagamento de trabalho, sublinha-se
simplicitas, quatro vezes; simpliciter, seis vezes130; humilis, a sobriedade: o que for necessário para si e seus Irmãos.
treze; humilitas, trinta e dois; humiliter, quinze131 ; liber, oito;
libere, dois132•
VI,2-3: Não ser proprietário
Focalizemos agora passagens próprias nos Escritos pro
postos. O capítulo VI acentua com força o desprendimento: "Os
Irmãos não se apropriem de casa, nem de lugar, nem de coisa
alguma". E indica o modo de ser livre com mais radicalidade:
2.2.3.1 Regra Bulada "Como peregrinos e forasteiros neste mundo, sirvam ao Se
nhor em pobreza e humildade".
11,5-6: Despojar-se e condividir
Francisco ensina e orienta:
Xll,2: Liberdade de escolha e missão
"Aos que quiserem assumir esta vida, digam-lhes os Mi
nistros a palavra do santo Evangelho, que vão e vendam todos A liberdade serena de ação alcança até a escolha de missão
os seus bens e procurem distribuí-los aos pobres" (Mt 19,21). mais de ponta: partir para longe "para o meio dos sarracenos e
outros infiéis". Francisco orienta como agir, quais são passos:
1) por inspiração divina; 2) quem quiser; 3) com permissão
11,8: Dispor com liberdade dos Ministros Provinciais.
Francisco prossegue: "Cuidem os Innãos e seus Ministros para
não se preocupar com as coisas temporais deles, de modo que eles 2.2.3.2 Testamento
livremente façam de suas coisas o que o Senhor lhes inspira".
Em ambas as passagens, acentua-se o tom do despreendi No Testamento, pode-se alinhar as seguintes passagens
mento, do despojamento, com liberdade - ut libere faciant. próprias:
16: Despojamento, desprendimento
11,15-18; 111,13: A mesma simplicidade e sobriedade ori "Aqueles que vinham para assumir esta vida davam aos
enta Francisco no tocante a vestes, alimentos, meios de trans pobres tudo o que podiam ter. E estavam contentes com uma
porte, sempre com opção livre. só túnica, remendada por dentro e por fora".
130. Cf. Corpus des sources franciscaines V, 40. 17: Sobriedade, liberdade
131. Cf. Corpus des sourcesfranciscaines V, 26. "E mais não queríamos ter."
132. Cf. Corpus des sourcesfranciscaines V, 29.
102 103
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
Esperança de renovação
2.2.3.3 Cartas
VIII,5:
Na Carta a Frei Leão, Francisco como que dá espaço à li Se em algum tempo parecer à totalidade dos Ministros
berdade na busca do essencial. Escreve e orienta: "Qualquer Provinciais e Custódios que o mencionado Ministro
que seja o modo que te pareça melhor agradar ao Senhor Deus não dá conta do serviço e da comum utilidade dos
e seguir suas pegadas e sua pobreza, faze-o com a bênção do Irmãos, estejam obrigados os ditos Irmãos, aos quais
Senhor Deus e com minha obediência" (3). E ainda: "E se te compete a eleição, a eleger para si em nome do Senhor,
for necessária outra consolação para tua alma e se quiseres vir um outro como Custódio.
a mim, Frei Leão, vem" (4).
104 105
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
O quinto termo, extraído de pedagogos atuais a receber ilu "Ordeno firmemente - praecipio firmiter - a todos os
minação dos Escritos de Francisco, é Firmeza. Acresce-lhe o Irmãos que de modo algum recebam dinheiro ou moedas, nem
adjunto "realista", para qualificar uma firmeza de ação calcada por si nem por pessoa intermediária".
no concreto, no real. Compõem ainda a constelação as pala
vras: fortaleza, coragem, vigor, perseverança, superação,
equilíbrio. VIII,2.5: Dever de participar e ser ativo
Prosseguimos segundo o método adotado, isto é, de buscar "Todos os Irmãos devem sempre comparecer às reuniões,
sua inspiração nos próprios textos de Francisco. onde quer que for estabelecido pelo Ministro Geral".
E se, em algum tempo, parecer à totalidade dos minis
tros provinciais e custódias que o mencionado ministro
2.2.5.1 Regra Bulada não dá conta do serviço e da comum utilidade dos
Irmãos, estejam obrigados os ditos Irmãos a eleger para
Destacamos os seguintes passos em que Francisco escreve si um outro como Custódio.
e orienta:
11,12-13: Firmeza e perseverança no compromisso
IX,3: Determinação sobre ação
Terminado o ano de provação, sejam recebidos à obe
diência, prometendo observar sempre esta vida e Re Absolutamente nenhum dos Irmãos ouse pregar ao
gra. E, segundo a prescrição do Senhor Papa, não lhes povo, se não tiver sido examinado e aprovado pelo Mi
será permitido de modo algum sair desta Religião. nistro Geral desta fraternidade e se não lhe tiver sido
concedido pelo mesmo o oficio da pregação.
Francisco orienta sobre a observância de normas e hierar
11,18: Admoestação de não julgar quia para o exercício da pregação, de alguma função e a res
"Eu os admoesto e exorto a que não desprezem nem jul pectiva idoneidade da pessoa.
guem as pessoas que virem usar roupas macias e coloridas, e
usar comidas e bebidas finas".
108 - 109
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
V,5: Como servos de Deus Pode-se entender que Francisco, aqui, escreve de coração.
O vocábulo servo, servus, ocorre sessenta e uma vezes nos Sublinha com ardor a necessidade, o valor educativo de uma
Escritos de Francisco 133 • Neste tópico, acena a um relaciona transcendência-a mística do coração, que transforma a reali
mento superior, uma abertura de coração da pessoa a um Se dade em elevação da alma, uma quotidiana sursumactio.
nhor, a Deus, a fim de pautar seu comportamento com a devida
reverência: "Façam isso humildemente, como convém a ser 2.2.6.2 Regra não Bulada
vos de Deus".
Da Regra não Bulada, avulta o capítulo XXIII,9-11. Há
uma exuberância de espiritualidade, de sapiência, de ardor
X,10: Rezar sempre com coração puro místico.
Cor é outro termo muito presente nas Escritos, cinqüenta e Francisco escreve com inspiração. Analiso a pericope com
. . · atenção. Ocorrem:
cmco
• vezes 134. purus, dezesse1s vezes 135. 1nun
�"' dus, ad�etivo,
· � ·
como smommo de purus, nove vezes 136. As expressões puro 9:
carde, mundo carde são clássicas. Citamos apenas alguns
-4 verbos de sentimento: Nada mais desejemos, nada mais
exemplos: "Servir, amar, honrar e adorar o Senhor Deus de co
queiramos, nada mais nos agrade ou deleite a não ser o nosso
ração puro (sincero) e mente pura" 137; Criador e Redentor e Salvador;
Bem-aventurados os puros de coração, porque verão
- 18 atributos de Deus: único, verdadeiro, o bem pleno,
a Deus. Em verdade têm o coração puro os que, des
prezando as coisas terrenas, buscam as celestes e todo o bem, o bem total, o verdadeiro e sumo bem, o unica
nunca desistem de adorar e de procurar o Deus vivo e mente bom, piedoso, manso, suave e doce, o unicamente san
verdadeiro com o coração e a mente puros 138 ; to, justo, verdadeiro, santo e reto, o unicamente benigno, ino
cente, puro;
"[O Pai] quer que recebamos o Corpo de Cristo com o coração
puro -puro corde" 139•
10:
- 3 outros verbos que, em forma negativa, reforçam a
133. Cf. Corpus des sourcesfranciscaines, V, 40 e 209-210. união: nada portanto nos impeça, nada nos separe, nada se in
134. Cf. Corpus des sourcesfranciscaines, V, 20 e 78-79. terponha entre nós;
135. Cf. Corpus des sourcesfranciscaines, V, 37 e 190.
136. Cf. Corpus des sourcesfranciscaines, V, 31 e 160.
11:
137. RnB 22,26.
138. Ad XVI, 1-2. - 6 adjuntos adverbiais: em qualquer parte, em todo lugar,
139. 2Fi 14.19. Cf. ainda: RB 10,10; Ord 22.42. a toda hora, em todo tempo, diária e continuamente;
114 115
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
- 12 novos verbos, no modo imperativo, 1ª pessoa do plu lou que eu devia viver segundo a forma do santo Evangelho" -
ral, convocando a uma enlevação ao altíssimo e sumo Deus secundum formam sancti Evangelii.
Trino e Uno: creiamos, tenhamos no coração e amemos, hon
remos, adoremos, sirvamos, louvemos e bendigamos, glorifi
quemos, superexaltemos, magnifiquemos e rendamos graças; 39: Inspiração na comunicação e redação
- 16 diferentes adjetivos qualificativos deste Deus Trino e "Como o Senhor me concedeu dizer e escrever de modo sim
Uno, Criador e Salvador: sem início e sem fim, imutável, invi ples e claro a Regra e estas palavras, igualmente de modo simples
sível, inenarrável, inefável, incompreensível, insondável, ben e sem glosa, as entendais e com santa operação as observeis até o
dito, louvável, glorioso, superexaltado, sublime, excelso, sua fim" - cum sancta operatione observetis usque in finem.
ve, amável, deleitável e totalmente desejável.
Esta passagem da Regra não Bulada tem merecido apreço 40: A mística da proteção divina
por sua forma literária e seu âmago teológico. Permito-me
E todo aquele que estas coisas observar [a Regra e as
enaltecê-la, ainda, por seu valor educativo de religiosidade palavras do Testamento] seja repleto no céu da bênção
transcendente, de patentear o rosto de um Deus amabilis, de do altíssimo Pai, e na terra seja repleto de bênção do
lectabilis et tatus super omnia desiderabilis. seu dileto Filho em unidade com o Santíssimo Espírito
Paráclito.
2.2.6.3 Testamento A Religiosidade verdadeira faz ponte entre terra e céu, en
trelaça e transforma.
O Testamento, embora de modo mais simples e direto, é
lúcido na dimensão de espiritualidade, transcendência e de en 2.2.6.4 Cartas
carnação na vida. Arrolo alguns versos exemplares:
12: Reverência ao sagrado 2.2.6.4.1 Carta a Frei Leão
Os santíssimos nomes e palavras dele [do Filho de Por causa da tua alma
Deus] escritos, se por acaso eu os encontrar em lugares
inconvenientes, quero recolhê-los e rogo que sejam re A palavra anima aparece 77 vezes nos Escritos de Fran
colhidos e colocados em lugar honesto, decente. cisco, e ocupa o 51 º lugar no ranking do Corpus des sources
franciscaines de Lovaina 140 • São várias as acepções de anima
nos textos. Em Língua Portuguesa, a meu ver, poder-se-ia
14: A revelação do Senhor
"Depois que o Senhor me deu Irmãos, ninguém me mos
trou o que eu deveria fazer, mas o Altíssimo mesmo me reve-
140. Cf. Corpus des sourcesfranciscaines, V, 16 e 55-56.
116 117
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
traduzir por alma141, mente (espírito) 142, consciência143, cora sules, juízes e governantes do mundo inteiro, e a todos os ou
ção144 e principalmente, vida145 . tros aos quais chegar a carta:
Na Carta a Frei Leão, Francisco se dispõe a acolhê-lo di 1. "Aconselho-vos firmemente, meus senhores, que rece
retamente, em vista do bem espiritual e consolação do Irmão e bais benignamente o santíssimo Corpo e Sangue de
para "melhor agradares ao Senhor Deus e seguires suas pega Nosso Senhor Jesus Cristo" (6).
das" (3-4). 2. "Aconselho-vos que presteis tanta honra ao Senhor no
meio do povo a vós confiado que, todas as tardes, seja
anunciado por um pregoeiro ou por outro sinal, para
2.2.6.4.2 Carta a um Ministro que todo o povo renda louvores e graças ao Senhor
Deus onipotente" (7).
Conquistar para o Senhor
3. "Aqueles que gardarem consigo este escrito e o observa
Francisco mais uma vez orienta no sentido de, com perseve rem saibam que são abençoados pelo Senhor Deus" (9).
rança, servir e amar a pessoa e estabelecer a ponte para o alto.
Escreve: "E se depois [o irmão] pecar mil vezes diante de teus
olhos, ama-o mais do que a mim para trazê-lo ao Senhor" (v. 11). 2.2.6.5 Orações
118 119
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
Dai-nos fazer o que sabemos que quereis e sempre querer 2.2. 7 Paz Universal
o que vos agrada, para que possamos seguir os passos de
vosso dileto Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo, e, unica A última palavra-chave de estudo é Paz. O adjunto adequa
mente por vossa graça, chegar a vós, ó Altíssimo (50-52). do: "universal". Formam a constelação os seguintes vocábulos
correlatos: compreensão mútua, reciprocidade, colabora
2.2.6.5.3 Cântico do Irmão Sol ção/participar, atuação, atuar junto/convivência, viver junto,
cidadania ativa/respeito, pluralismo, diversidade, misericór
O Cântico do Irmão Sol ou Louvores das Criaturas é como dia, perdão, universalidade.
uma nova escada de Jacó, subindo, descendo, entrelaçando Os Escritos são brilhantes na iluminação desta constela
céu e terra. ção, sempre na ótica de valores pedagógicos.
É um concerto da criatura ao Criador sob a regência do maes-
tro Francisco:
2.2.7.1 Regro Bulada
"Altíssimo, onipotente, bom Senhor,
teus são o louvor, a glória e a honra e toda benção" (1). 111,11-12: Sejam mansos, pacíficos
Vale assinalar, ainda que de passagem, os quatro movi- No tópico de "quando os Irmãos vão pelo mundo", Fran
mentos de tal sinfonia: cisco escreve e orienta em estilo pessoal e com experiência de
mestre. Introduz o programa com os três verbos consagrados:
aconselho, admoesto, exorto.
1. "Senhor" - repete-se 1O vezes
(versos 1, 3, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 12, 14). E expõe:
2. "Altíssimo" - ocorre 4 vezes 1. o que não fazer quando vão pelo mundo: não discutam,
(versos 1, 2, 4, 11). nem alterquem com palavras, nem julguem os outros;
2. o que fazer, afirmativamente: sejam mansos, pacíficos e
3. "Louvado" - entra 8 vezes modestos, brandos e humildes;
(versos 3, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 12) 3. sem distinção de pessoas: falando a todos honestamen
e ainda "Louvor" (v. 1) e "Louvai" (v. 14). te, como convém.
4. O movimento final do Cântico do Irmão Sol, hino da re A paz é tema freqüente nos Escritos: 13 vezes, como ainda
ligiosidade, uma de suas obras-primas, Francisco o compõe in seguirá. Os hagiógrafos, por sua vez - refiro-os apenas de pas-
tegrando mais uma vez o valor educativo da contempla · ~ 146.
sagem -, expandem-se nas c1taçoes
ção-ação ou da mística encarnada no real:
"Louvai e bendizei ao meu Senhor, 146. Ver, p. ex.: Francisco, o-pacificador lCel 23, 36, 101; 2Cel 4, 52, 89;
e rendei-lhe graças e servi-o com grande humildade" (v. 14). LMProl. 1; III,2; XI,6,7; LTC 4,26. - Uma das missões da Ordem: anunci
ar a paz lCel 24, 29; 2Cel 59; LM III,2,7. - Saudação e desejo: lCel 23, na
expressão emblemática Pax et Bonum: LTC 26.
120 121
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
111,14: Paz a esta casa rar, rezar sempre a Deus com o coração puro... e amar a
Francisco ensina o voto de Jesus Mestre no evangelho: todos sem distinção.
"Ao entrarem em qualquer casa, digam antes: Paz a esta casa!"
(Mt 10,12; Lc 10,5). 2.2.7.2 Testamento
122 123
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
126 127
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
1. um operador qualificado e competente, com identidade Menciona novas correntes do século XXI, ou as "contra
profissional bem definida; correntes", de que-o Professor Educador seria protagonista, a
saber:
2. uma figura de rede, capaz de trabalhar em equipe e de
administrar relações (ausculta,respeito...) com todas as
pessoas (alunos,colegas,autoridades,família,interme
150. Machado, N. Epistemologia e didática - as concepções de conheci
diários culturais) e as interfaces do sistema escola; mento e inteligência e a prática docente, p. 306. Ver, principalmente, os ar
3. um operador multimedial que sabe utilizar a globaliza tigos componentes "Educação, valores, ilusão", p. 70-76, e "Educação: cri
ção das mensagens; se, avaliação, valores", p. 284-305.
151. A palavra "ilusão" deriva-se do Latim illusio, substantivo procedente
do verbo illudere, forma simples ludere, do nome ludus = jogo. Ilusão rela
ciona-se com o lúdico, e a analogia entre vida e jogo toma natural a associa
ção entre a vida e a ilusão. Ter ilusão, pois, é estar no jogo, estar desiludido
149. Nanni, A. Una nuova paideia, p. 176. é não ter mais vontade de jogar.
128 129
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
1. a contracorrente ecológica que, com o crescimento das busca de novas perspectivas"-, podem-se anotar as seguintes
degradações e o surgimento de catástrofes técnicas/in qualidades:
dustriais, só tende a aumentar;
1. forte relação pessoal com o aluno· como cerne do pro
2. a contracorrente qualitativa que, em relação à invasão cesso pedagógico;
do quantitativo e da uniformização generalizada, se
2. dedicação à missão educativa e abertura ao diálogo para
apega à qualidade em todos os campos, a começar pela
ajudar a desenvolver o senso crítico do aluno;
qualidade de vida;
3. inteligência e habilidade em contribuir para a formação
3. a contracorrente de resistência à vida prosaica puramen
da capacidade de discernimento e do sentido das res
te utilitária, que se manifesta pela busca da vida poéti
ponsabilidades individuais dos alunos, para que pos
ca, dedicada ao amor, à admiração, à paixão, à festa;
sam prever mudanças e adaptar-se a elas, continuando
4. a contracorrente de resistência à primazia do consumo pa a aprender ao longo da vida;
dronizado, que se manifesta de duas maneiras opostas:
4. autoridade e competência para responder a questões e
uma, pela busca da intensidade vivida ("consumismo"); a
desafios que o aluno coloca sobre o mundo, e situá-los
outra, pela busca da frugalidade e da temperança;
num contexto e perspectiva, de modo que o aluno possa
5. a contracorrente, ainda tímida, de emancipação à tirania do estabelecer a ligação entre a sua solução e outras inter
dinheiro, que se busca contrabalançar por relações huma rogações mais abrangentes;
nas e solidárias, fazendo retroceder o reino do lucro;
5. exemplo transparente por sua formação permanente,
6. ; contracorrente, também tímida, que, em reação ao de suas qualidades humanas e transparência de vida 154•
sencadeamento da violência, nutre éticas de pacifica
Paulo Freire, ao longo de suas obras e no seu estilo bem o
ção das almas e das mentes 152 •
riginal, assinala as exigências para um educador verdadeira
mente Educador 155•
"A importância do papel do Professor enquanto agente de 1. corporificação das palavras pelo "exemp1o";
mudança, favorecendo a compreensão mística e a tolerância,
2. competência profissional e generosidade de comprome
nunca foi tão patente como hoje, e será ainda mais decisivo no
timento por e pró-humanização;
século XXI"- escreve J. Delors153•
Quem pode vir a ser bom Professor? Como descobrir uma
pessoa dessas?
154.Delors, J. Educação: um tesouro a descobrir, p. 157-159.
Examinando o capítulo 7 do Relatório para a Unesco da 155. Os conceitos expressos, eu os selecionei e colecionei dos seus livros:
Comissão Internacional sobre Educação - "Os Professores em l. Conscientização: teoria e prática da libertação, p. 80-83.
2. Pedagogia do oprimido, p. 72-73, 79-93, 184.
3. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa, p. 38,
65, 108, 159.
152. Morin, E. Os sete saberes necessários à educação dofuturo, p. 72-73. 4. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos, p. 111,
153. Delors, J. Educação: um tesouro a descobrir, p. 152-153. 117-125.
130 131
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
3. querer bem aos educandos com amor profundo, funda O firmeza na disciplina/ético e justo
mento do diálogo; O idealista/pessoa de sonho e esperança
4. fautor de urna educação crítica, revolucionária e proféti O animador/aberto ao diálogo
ca, portadora de esperança e alegria; O acolhedor/capacidade de trabalhar em equipe
5. apaixonado pelo sonho e utopia, a denúncia da realidade O competente na matéria/atualizado metodologica
e o anúncio de um mundo melhor; mente
6. fé no ser humano e na criação de um mundo em que seja
menos dificil amar.
As respostas indicam os seguintes resultados:
Alunos adolescentes de Escola particular franciscana,
3.2 A palavra de Alunos e Alunas
cursofundamental, bairro fabril-comercial, de classe média e
Na busca do perfil do/a Educador/a, procedi a urna sonda média baixa 156 :
gem em Escolas particulares de direção e orientação francis 1. Professor amigo, que quer bem ao educando/relaciona
cana em São Paulo, mas de nível escolar e socioeconôrnico mento humano.
diferente:
2. Firme na disciplina/ético.
-Alunos adolescentes do curso fundamental (5ª-8ª séries)
em escola de bairro fabril e comercial, de classe média e média Alunos adolescentes de Escola particular franciscana,
baixa. cursofundamental, bairro residencial de classe média alta 157:
-Adolescentes do curso fundamental (Y-8ª séries) em es 1. Professor acolhedor/capacidade de trabalhar em equipe.
cola de bairro residencial de classe média alta. 2. Competente na matéria/atualizado.
-Estudantes de curso médio, pré-universitários, proceden Estudantes de curso médio, pré-universitários, proceden
tes de variados bairros da Capital e escolas públicas, jovens, e tes de variados bairros da Capital e escolas públicas,jovens, e
jovens adultos, em geral afrodescendentes e carentes. jovens adultos, etn geral afrodescendentes e carentes 158:
A pesquisa, realizada em agosto e setembro de 2002, ver
sou sobre a seguinte indicação:
Indique, na sua opinião, por ordem de importância (13, 2ª),
2 (duas) qualidades necessárias a um Professor Educador/urna 156. Colégio Bom Jesus- Santo Antônio do Pari, São Paulo, SP, da Ordem
dos Frades Menores.
Professora Educadora:
157. Colégio Nossa Senhora Aparecida, São Paulo, SP, da Congregação
O amigo, que quer bem ao educando/relacionamento das Irmãs Franciscanas de Ingolstadt.
humano 158. Educafro - Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes,
São Paulo (Rio de Janeiro, Salvador - BA). Os núcleos 1, 2 e 3 são de São
O exemplo de testemunho pessoal/religioso de convic Paulo, Capital, sob a orientação de Frades Franciscanos e Voluntários Lei
ção e respeito a outras crenças gos, Professores e Coordenadores.
132 133
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
Núcleo 1 luz dos que crêem, a fim de que preparasse para o Senhor a via
1. Professor competente na matéria/atualizado. da luz e da paz [que conduz] aos corações dos fiéis" - corno
declara São Boaventura 160 •
2. Acolhedor/capacidade de trabalhar em equipe.
Embora "pai, mestre e guia" 16 1, "pai e rnestre" 162, com seu
Núcleo 2 cor nobile- como gostava de repetir Gemelli 163 - não compôs
1. Acolhedor/capacidade de trabalhar em equipe. Francisco nenhum tratado de formação, nenhuma ratio studio
rum, nenhum programa de prática educativa. No entanto, nos
2. Competente na matéria/atualizado. seus Escritos descobrimos um tesouro escondido, genuínos
Núcleo 3 valores pedagógicos.
1. Competente na matéria/atualizado. Assim corno descreveu o "Frade Perfeito" (2EP 85), Fran
2. Acolhedor/capacidade de trabalhar em equipe. cisco poderia agora dizer: Seria um bom Educador Francisca
no o que reunisse em si, na sua vida, as seguintes qualidades:
É notável como, apesar da diferença entre os Estudantes
consultados na pesquisa, as respostas se aproximam sensivel
mente em tom humanista. 3.3.1 Uma pessoa bem humana, de afeto, de
testemunho por seu exemplo de vida
3.3 A palavra de Francisco de Assis De Francisco se escreveu que era tão humano que parecia
divino, e tão divino que parecia humano. Desse senso humano,
Na Carta de Greccio, datada de 11 de agosto de 1246, os afetuoso, e espelho de vida, o próprio Francisco escreve e pode
Irmãos Leão, Rufino e Ângelo, outrora éornpanheiros do orientar o Educador:
bem-aventurado Francisco, escrevem ao novo Ministro-Geral,
Frei Crescêncio de Iesi: Onde estão e onde quer que se encontrarem os Irmãos,
mostrem-se mutuamente familiares entre si. E um ma
Pareceu-nos bem a nós que, embora indignos, havía nifest€ ao outro a sua necessidade. (RB 6,8-9)
mos convivido mais prolongadamente com ele, comu
nicar à Vossa Santidade, tendo a verdade como guia, Cada qual ame e nutra a seu irmão, como a mãe ama e
um pouco dos muitos feitos que vimos com os nossos nutre a seu filho. (RnB 9,11)
[próprios] olhos ou que pudemos saber por outros san
159
tos irmãos, [...] do bem-aventurado Francisco.
Por longo tempo eu também convivi com ele, com a figura
e os escritos de Francisco, a quem "o Deus excelso olhou com 160. Cf. LM, Prólogo 1,2.
tão benigna condescendência que, tendo-o tomado verdadeiro 161. Zavalloni, R. (OFM). Pedagogia franciscana, p. 84s.
professor, guia e arauto da perfeição evangélica, deu-o como 162. Mercatalli, A. San Franc_esco, padre e maestro: orientamenti pedago
gici di san Francesco, in Antonianum, 1982, v. 57, p. 230-258.
163. Gemelli, A. San Francesco d 'Assisi e sua gente poverella, p. 93. A ex
159. Cf. LTC, Carta 1,3-5. pressão "coração franco e nobre", ele a toma de lCel 120.
134 135
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
Quero que todos aprendam um oficio por causa do Os Irmãos acolham as pessoas benignamente. O Minis
165
exemplo pessoal (Test 21). tro acolha-as benignamente (RnB 2,1-3) •
A letra mata, o espírito, porém, vivifica (2Cor 3,6). São Nenhum Irmão se afaste de tua presença sem a tua mi
vivificados pelo espírito da divina escritura aqueles. sericórdia e perdão (Mn 9-11).
que, pela palavra e pelo exemplo, atribuem e restituem
ao altíssimo Senhor Deus os dons que recebem (Ad
VII,1.4) 164 • 3.3.3 Uma pessoa de coração solidário e fraterno
165. LTC 35, 1-2: "Decorridos poucos dias, vieram procurá-los outros três
164. l Cel 2,4: "Francisco era muito rico, não avarento, mas pródigo; era homens de Assis, a saber, Sabatino, Mórico e João de Capella, suplicando
homem que agia muito humanamente, habilidoso e muito afável". LM ao bem-aventurado Francisco que os acolhesse como Irmãos. E ele os rece
VIII,5, 1-2: "Condescendendo também com admirável ternura e compaixão beu humilde e benignamente."
para com os afligidos por doença corporal, quando via alguma penúria ou 166. LM V,8,3: Francisco chamava de "irmão" a todo homem. E o retrato
necessidade em alguém, com a doçura do piedoso coração a remetia a Cris que faz de um líder e orientador é o de uma pessoa que tenha no coração
to. Na verdade, tinha uma clemência congênita que a piedade de Cristo, co amizade sem distinção, e que se coloque à disposição de todos inteira e ge
piosamente infusa nele, duplicava". nerosamente (cf. 2Cel 185,1-2).
136 137
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
permanente. O estudo deve abrir-lhe a inteligência, o coração, 3.3.6 Uma pessoa de idealismo, sonho e esperança
o afeto que ilumina e unge o saber.
Na sadia educação, o olhar do presente descortina-se a ho
Francisco escreve com sabedoria: "Os Irmãos, aos quais o
rizontes novos. O sonho-sorriso de jovens anos deve acompa
Senhor deu a graça de trabalhar, trabalhem fiel e devotamente"
nhar o Educador maduro.
-jideliter et devote (RB 5,2). Orienta os ministros, os respon
sáveis, a admitirem para encargos relevantes apenas os que fo Francisco o expressa pedagogicamente nos Louvores a
rem reconhecidamente idôneos (RnB 16,3-4; RB 12,2-3). E Deus, na Bênção a Frei Leão e na R egra Bulada:
recomenda que estejam todos possuídos da "rainha santa sabe Vós sois a nossa esperança,
doria" e da "pura e santa simplicidade, que confundem o erro e Vós sois a nossa Vida (LD 6).
a falsidade" (cf. SV 1.9-1O). O Senhor te mostre a sua face,
o Senhor volte para ti o seu olhar
e te dê a paz (BnL 1-2) 168•
3.3.5 Uma pessoa de espírito comunitário, de cortesia
Aconselho, admoesto e exorto a meus Irmãos no Se
No mundo de hoje, saber viver juntos, com espírito comu nhor Jesus Cristo que, quando vão pelo mundo, sejam
nitário, cria relacionamento mais humano. E a cortesia apro mansos, pacíficos e modestos, brandos e humildes (RB
funda a empatia. 3,11-12).
ca se afaste sem a tua misericórdia, caso buscar miseri ra esperança de uma sociedade justa e solidária; que se consa
córdia (Mn 9). gra com amor alegre à construção de uma ecologia transfor
Todos os Irmãos sejam obrigados a obedecer aos seus madora, de um novo céu e uma nova terra, um mundo transfor
guardiães... Ordeno firmemente por obediência a todos mado, humano-divino.
os meus Irmãos que não introduzam glosas na Regra Quem melhor do que Francisco o ensina?
nem nestas palavras (Test 30 e 38).
Perseveremos todos na verdadeira fé... e amemos to
dos, de todo o coração, com toda a alma, com todo o
3.3.8 Uma pessoa de paz pensamento, com todo o vigor e fortaleza, com todo o
entendimento, com todas as forças, com todo o empe
A falta de paz avassala a humanidade. A paz se perde pela nho, com todo o afeto, com todas as entranhas, com to
falta de ligação espiritual com o Bem, com o Divino. dos os desejos e vontades ao Senhor Deus da vida. Por
tanto, nada mais desejemos, nada mais queiramos,
Francisco, porém, vive a tranquillitas ordinis, a concórdia, nada mais nos agrade ou deleite a não ser o nosso Cria
a cordialidade; ensina a paz que se constrói na justiça e que se dor, Redentor e Salvador, único Deus verdadeiro, que é
irradia no perdão e no amor: o bem pleno, todo o bem, bem total, verdadeiro e sumo
Quando os Irmãos vão pelo mundo, não discutam, nem bem, o unicamente bom (RnB 8-9).
alterquem com palavras, mas sejam mansos, pacíficos
e modestos, brandos e humildes (RB 3,11-12).
Vós sois santo, Senhor Deus único, que fazeis maravi
Como saudação, o Senhor me revelou que dissésse lhas.
mos: o Senhor te dê a paz! (Test 23) 169
Vós sois forte, vós sois grande, vós sois altíssimo, vós
sois o rei onipotente, vós, ó Pai santo, [sois] o rei do céu
3.3. 9 Uma pessoa de vida interior e da terra.
Vós sois Amor, Caridade (LD 1-2.4).
No seu âmago, o ser humano é religioso.
O Educador, na vida pessoal e profissional, há de reli
gar-se espiritualmente ao Transcendente, a Deus. Há de ser Ó santíssimo Pai nosso: criador, redentor, consolador e
salvador nosso.
necessariamente uma pessoa de fé, fiel, que interioriza, que
reza, que silencia, que medita, que mergulha no divino e respi- Venha o vosso Reino: para que reineis em nós pela gra
ça e nos façais chegar ao vosso reino, onde a visão de
vós é manifesta, a dileção a vós é perfeita, a comunhão
169. lCel 23: "Em toda pregação sua, antes de propor a palavra de Deus convosco é bem-aventurada e a fruição de vós é eterna
aos que estavam reunidos, invocava a paz, dizendo: 'O Senhor vos dê a (PN 1.4).
paz!'" Dizia também Francisco aos seus Irmãos: "Assim como proclamais
a paz com a boca, assim em maior medida a tenhais em vossos corações"
(LTC 58,4).
140 141
CAPÍTULO IV
PROJETOS DE AÇÃO
143
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
ção - um tesouro a descobrir", coordenado por Jacques De Sobre a Educação Cristã173. "É maravilhosa e certamente im
lors171. O documento aponta as tensões reinantes hoje e pistas portante - expõe o documento -a vocação de quantos, colabo
de superação. Entre as tensões, lembra o problema entre o glo rando com os pais no cumprimento de sua tarefa e fazendo as
bal e o local: as pessoas devem tomar-se gradualmente cidadãs vezes da comunidade humana, assumem o dever de educar nas
do mundo e, ao mesmo tempo, não perder as raízes locais; escolas" (5,b). Essa vocação - continua a GE -"exige especiais
lembra também a tensão entre o espiritual e o material, de cuja dotes de mente e coração, uma preparação de alta qualidade,
solução dependerá a sobrevivência da humanidade. O docu capacidade disposta e constante em termos de renovação e
mento frisa, depois, os quatro pilares da educação: aprender a adaptação" (5,b).
conhecer -aprender a fazer - aprender a viver juntos, a viver O Papa João Paulo II, por seu turno, no discurso proferido
com os outros - aprender a ser172 • aos 5 de outubro de 1995, por ocasião do 50º aniversário de
Entre iniciativas da Unesco na área educativa, vale salien fundação da ONU, ressalta que o mundo deve aprender a con
tar o "Ano Internacional para a Cultura da Paz" (2000), e o viver com a diversidade: "A realidade da diferença e a peculia
"Decênio Internacional para uma Cultura de Paz e Não-violên ridade do outro podem tornar-se não uma ameaça e sim, atra
cia para as Crianças do Mundo" (2001-2009). Trata-se, pois, vés de respeitoso diálogo, a fonte de mais profunda compreen
de um movimento universal pela promoção da paz, sempre tão são do mistério da existência humana"114.
sonhada e sempre tão ameaçada. E a Escola marcará presença,
porquanto forma uma rede de 6.000 associadas à Unesco, em
150 países do mundo. 4.2 No Brasil
As seis vias de paz traçadas pelo Programa da Unesco me A LDB -Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
recem ser aplaudidas e percorridas pelos Educadores Francis (Lei nº 939-4/96) menciona especificamente, nos Artigos 2º e
canos, isto é: assumir o respeito pela vida; praticar ativamente 3º, aspectos relativos à cidadania e à solidariedade:
a não-violência; condividir o tempo e os recursos para elimi Artigo 2º - A educação, dever da família e do Estado,
nar a injustiça; defender e promover a liberdade de expressão e inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de so
as diversidades culturais; promover o respeito pela natureza; lidariedade humana, tem por finalidade o pleno desen
contribuir para o desenvolvimento da própria comunidade. volvimento do educando, seu preparo para o exercício
da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Documentos da Igreja em âmbito universal marcam pon
tos essenciais de uma pedagogia humanista. Basta recordar, do
Concílio Vaticano II, a Declaração Gravissimum Educationis,
173. Cf. Tutti i Documenti dei Concilio, p. 496-512. Cf. Compêndio do Va
ticano II, p. 579-596.
174. "It is a way ofgiving expression to the transcendent dimension ofhu
171. Delors, J. Educação - um tesouro a descobrir, p. 9-10. Veja-se a man life. The heart of every Gtdture is its approach to the greatest of all
"Apresentação da Edição Brasileira" por Paulo Renato Souza, Ministro de mysteries: the mystery of God" (cf. Enchiridion Vaticanum 14, "It is a ho
Estado da Educação e do Desporto, Unesco Brasil, Brasília-DF. nour for me", 50th Anniversary of the founding of United Nations, p.
172. Delors, J. Educação: um tesouro a descobrir, p. 89-102. 3247-3248).
144 145
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
O Artigo 3 º expõe que o ensino será ministrado com base ciências, etc.), dois são essenciais no tocante à cidadania e à
em vários princípios: solidariedade.
I. igualdade de condições para o acesso e permanência O primeiro Tema Transversal é Ética, que apresenta os se-
na escola; guintes objetivos:
II. liberdade de aprender, ensinar e divulgar a cultura, o • Reconhecer a presença dos princípios que fundamen
pensamento, a arte e o saber; tam normas e leis no contexto social.
III. pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas; • Refletir criticamente sobre as normas morais, buscan
IV. respeito à liberdade e apreço à tolerância; do sua legitimidade na realização do bem comum.
V. coexistência de instituições públicas e privadas de • Compreender a vida escolar como participação no es
ensino; paço público, utilizando os conhecimentos adquiridos
na construção de uma sociedade justa e democrática.
VI. gratuidade do ensino público em estabelecimentos
oficiais; • Assumir posições segundo seu próprio juízo de valor,
considerando diferentes pontos de vista e aspectos de
VII. valorização do profissional da educação escolar; cada situação.
VIII. gestão democrática do ensino público, na forma • Construir uma imagem positiva de si, de respeito pró
desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino; prio e reconhecimento de sua capacidade de escolher e
IX. garantia de padrão de qualidade; de realizar seu projeto de vida.
X. valorização da experiência extra-escolar; • Compreender o conceito de justiça baseado na eqüi
dade, e empenhar-se em ações solidárias e sem discri
XI. vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as
minações.
práticas sociais.
• Valorizar e empregar o diálogo como forma de escla
Apesar de a presença do tema cidadania e solidariedade es 175
recer conflitos e tomar decisões coletivas •
tar claramente explicitada no texto legal, são os Parâmetros
Curriculares Nacionais, textos subsidiários para o trabalho es Além desses objetivos, são apresentados quatro blocos de
colar, que vão garantir sua entrada nas atividades didáticas conteúdos que deverão ser incorporados nas atividades didáti
propriamente ditas. Os Parâmetros Curriculares Nacionais cas dos professores: Respeito Mútuo - Justiça - Solidariedade
apresentam um conjunto de seis temas, cujo compromisso -Diálogo.
maior é com a construção da cidadania e tem como eixo norte O segundo Tema Transversal é Pluralidade Cultural, que
ador a ética. São chamados Temas Transversais. Sua inclusão
apresenta os seguintes objetivos:
no currículo, assim como o tratamento didático adequado ao
grupo de alunos, depende dos conhecimentos, habilidades e
iniciativas dos pedagogos e professores das escolas. Dentre os
temas que devem ser trabalhados e integrados às disciplinas 175. BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria de Educação
Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília: MEC/SEF,
convencionais do currículo (língua portuguesa, matemática, 1998. p. 91.
146 147
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
• Conhecer a diversidade do patrimônio tecnocultural cas dos professores: Pluralidade Cultural e a vida dos adoles
brasileiro, cultivando atitude de respeito para com as centes no Brasil - Pluralidade Cultural na formação do Brasil
pessoas e grupos que a compõem, reconhecendo a di -O ser humano como agente social e produtor cultural -Direi
versidade cultural como um direito dos povos e dos in tos humanos, direitos.de cidadania e pluralidade.
divíduos e elemento de fortalecimento da democracia.
• Compreender a memória como construção conjunta,
elaborada como tarefa de cada um e de todos, que con 4.3 Esfera Franciscana
tribui para a percepção do campo de possibilidades in
dividuais, coletivas, comunitárias e nacionais. 4.3. 1 Universidad San Buenaventura
• Valorizar as diversas culturas presentes na consituição Na esfera franciscana propriamente dita, referimos uma pri
do Brasil como nação, reconhecendo sua contribuição meira pista de ação pedagógica que apresenta o "Proyecto Edu
no processo de constituição da identidade brasileira. cativo" da Universidad San Buenaventura, da Colômbia. Nos
• Reconhecer as qualidades da própria cultura, valoran seus quatro câmpus, Bogotá, Medellín, Cartagena e Cali, desen
do-as criticamente, enriquecendo a vivência da cidadania. volve programa coerente, de instituição inspirada por valores
• Desenvolver uma atitude de empatia e solidariedade pedagógicos bonaventurianos, vale dizer, franciscanos 177 •
para com aqueles que sofrem discriminação.
O Proyecto assim se define:
• Repudiar toda discriminação baseada em diferenças El Proyecto Educativo Bonaventuriano es el instru
de raça/etnia, classe social, crença religiosa, sexo e ou mento que disefia la Universidad San Buenaventura
tras características individuais ou sociais. como estrategia para que toda su comunidad universi
• Exigir respeito para si e para o outro, denunciando taria se identifique con sus princípios y con ellos cons
qualquer atitude de discriminação que sofra, ou qual truya y desarolle acciones que hagan factible el espiritu
quer violação dos direitos de criança e cidadão. de vida y formación bonaventuriano a través de sus tres
• Valorizar o convívio pacífico e criativo dos diferentes dimensiones: como Universidad, como Universidad
componentes da diversidade cultural. Católica, como Universidad Franciscana.
• Compreender a desigualdade social como um problema Falando de seus elementos gerais, expõe o Proyecto:
de todos e como uma realidade passível de mudanças. Los lineamentos generales se orientan al objetivo de
• Analisar com discernimento as atitudes e situações crear una cultura universitaria alternativa, en donde
fomentadoras de todo tipo de discriminação e injustiça con claros conceptos de calidad personal, se potenciali
social 176• cen las capacidades de cada uno de los miembros de la
comunidad universitaria y se promuevan, desde la
Além desses objetivos, são apresentados quatro blocos de perspectiva del Franciscanismo, los valores fundamen-
conteúdos que deverão ser incorporados nas atividades didáti-
176.Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1998, p. 143). 177. Cf. Proyecto educativo, p. 18.
148 149
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
· tales del respeto, la tolerancia, la corresponsabilidad, la nas Escolas da Família Franciscana do Brasil (FFB), Regio
178
solidariedad, el amor per la vida y el saber • nal Sul 1, Estado de São Paulo. No momento, sob a coordena
Sublinho expressões do texto: da perspectiva franciscana, ção do Colégio Pio XII e do Colégio Bom Jesus Santo Antônio
promover valores fundamentais de respeito, solidariedade, o . do Pari, agrupam-se 19 Escolas de diferentes bairros da Capi
amor pela vida e o saber. tal paulista, com cursos desde a Educação Infantil até Univer
sitária e de Terceira Idade ou Melhor Idade.
Na se�ão d�� "Processos Operativos", destaca a "Pedago
. O "Projeto Educativo m81 , que se tem como uma "obra
gia Franciscana , com a tarefa de estabelecer o diálogo entre fé
e cultura, entre humanismo, ciência e tecnologia, onde as ciên aberta, para ser re-vista, re-pensadà, re-dimensionada no
_ dia-a-dia, aos sinais dos tempos", aplica-se nos vários níveis:
cias humanas respondam, a partir das diferentes disciplinas do
saber, às interrogações que a sociedade e o homem de hoje se do Professor, do Aluno, da Comunidade Educativa.
colocam. Como eixos da Pedagogia Franciscana, o Proyecto A formação do Professor começa no ato de sua contrata
realça a pessoa concreta na sua singularidade, na sua forma ção. Os novos docentes recebem um exemplar do projeto edu
ção e interação humana. Prestigia o quotidiano, no resgate de
cativo da escola, inspirado no carisma de São Francisco, e que
seu sentido e no cultivo da esperança. Salienta a relação dialó
passa a ser seu livro de texto número um. Antes do início das
gica fraterna, com a conotação significativa de propiciar o res
aulas regulamentares, em local próprio (centro de formação,
peito, a participação, o reconhecimento e a aceitação, em sín
casa de encontro, seminário), participam de uma semana de
tese: a pedagogia dafraternidade179 •
planejamento e treinamento denominada Interfran - Interação
No item "concepto de calidad", valoriza o Professor subs Franciscana. Consta de temas didático-pedagógicos e de estu
tancial no processo educativo; o Estudante, sujeito ativo na dos e reflexões sobre aspectos da vida e espiritualidade de
miss�o ?ªinstituiç�o, no seu modo de vida, na sua formação Francisco; de convivência em jogos, recreações, diálogos, re
academ1ca, profiss10nal e humana (p. 93); os Funcionários, de
feições e celebrações litúrgicas. Durante o ano, semanalmente,
gestões acadêmica e administrativa; as Famílias, os Amigos e
Benfeitores, "todos empenh�dos em participar dignamente na em alguns colégios, realizam-se reuniões pedagógicas, gerais
construção de níveis de excelência, de educação integral e de ou por grupos especiais ou interdisciplinares, onde são incluí
uma sociedade justa e solidária" 18º. dos temas de Franciscanismo. Em ocasiões próprias, da Esco
la, das Famílias, civis ou religiosas, programa-se comemora
ção de integração festiva e culto celebrativo.
4.3.2 Escolas Franciscanas de São Paulo
Na formação permanente, duas vezes ao ano, oferece-se
Outra experiência de esmero, na formação inicial e perma oportunidade de Retiro de três dias, grupo de 36 pessoas, em
nente de Professores ao espírito franciscano, desenvolve-se local apropriado, com temário franciscano. Após o segundo
Retiro, introduziu-se um curso mensal, em manhãs de forma-
178.Cf. Proyecto educativo, p. 25.
179. Cf. Proyecto educativo, p. 111-113
180. Cf. Proyecto educativo, p. 117, 124, 129. 181. Projeto educativo, p. 2.
150 151
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
ção, aos sábados, para voluntários, com texto base da Legenda 4.3.3 Projetos Sociais do Colégio Bom Jesus e da FAE
dos Três Companheiros.
No que toca aos projetos sociais, o Colégio Bom Jesus
Vale observar· que tais iniciativas e programas são bem (com sua rede de Colégios orientados, administrados, conve
acolhidos e apreciados. Os resultados aparecem no quotidiano niados e adotados) e a Faculdade Católica de Administração e
da vida escolar. Economia (FAE-Business School), ora credenciada a Centro
Para os Estudantes, as modulações se apresentam de Universitário, dos Franciscanos, com sede em Curitiba-PR, e a
acordo com a faixa etária e o nível de curso. Desde a abertura
. .
Universidade São Francisco (nos seus câmpus de Bragança
do ano escolar ou acadêmico, os Alunos do curso médio ou Paulista, Itatiba, São Paulo e Campinas) oferecem ideal e pro
do diretório acadêmico, mais os Frades, os Irmãos; Orienta gramas de fortes cores humano-franciscanas. Apresenta
dores e Professores, aplicam dinâmicas e estratégias para mo-los para conhecimento oportuno e incentivo mútuo.
propiciar um ambiente de acolhimento no Colégio e na Uni O documento Bom Jesus Social expõe:
versidade. No tocante à formação, há empenho de permear o
Por meio do NAC- Núcleo de Ação Comunitária- são
paradigma do Ensino Religioso integrado e com motivação desenvolvidos diversos programas de ação comunitá
franciscana. Para o grau infantil e fundamental, assumem pa ria e de extensão que buscam construir as bases para o
pel relevante o teatro, música e dança, passeios, excursões, exercício de uma cidadania consciente e participativa.
para contacto com a natureza, e camping, com eventual uso Seguindo a inspiração franciscana para a arte de edu
do sadio-método scout. No 3 º ano do curso médio, já figurou car, os agentes comunitários, professores, funcionários
no programa a disciplina e alunos trabalham diariamente para transmitir valores
e partilhar experiências capazes de promover a trans
"Cosmovisão Franciscana". No 2º ano do curso superior, formação das pessoas e do mundo. Desse modo, o Bom
para todas as Faculdades, leciona-se a matéria "Estudo do Ho Jesus Social trabalha com aproximadamente 30 proje
mem Contemporâneo" ou "Ciências Religiosas", com capítu tos de ação social-comunitária, divididos em 7 princi
los especiais de Franciscanis�o. Em geral, principalmente pais eixos temáticos, assim denominados: Pastoral
pela competente atuação do Professor, são de agrado dos Estu Escolar, Projetos Socioeducativos, Ação Comunitária,
dantes, superando certa reserva inicial ou preconceito. Cele Projetos de Extensão, Projetos Especiais e, Voluntaria
brações, culto da Palavra e Eucaristia, são oferecidas ao longo do e Parcerias e Convênios. 182
da semana, com participação livre, no horário antes das aulas. A ação pastoral da Associação Bom Jesus compreende
Nas solenidades litúrgicas ou da Escola, realizam-se junto à dois diferentes horizontes de atuação: a pastoral escolar e a
comunidade paroquial. Cumpre enfatizar ainda, em relação pastoral universitária.
aos alunos e alunas das Escolas Franciscanas, a realização de Explicita o documento:
dias de formação em locais próprios, retiros, e a dinâmica
ocorrência dos Jogos Franciscanos, instrumento apreciado de
interações, sadias competições e fomento de amizade.
182. Bom Jesus Social, p. 2.
152 153
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
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Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista
princípios de São Francisco como: sentimento de parti • Educação Ambiental. Também denominado de "Somos
lha, solidariedade, fraternidade e o cuidado com a eco Todos Responsáveis", trata-se de um projeto socioedu
logia. Várias atividades acontecem então durante o pe cativo, que tem como objetivo geral proporcionar aos
ríodo: produção de material e divulgação sobre a vida alunos do Bom Jesus/FAE a reflexão acerca das condi
de São Francisco (literário e artístico), campanha de re ções atuais do ambiente, buscando novas orientações
ciclagem de lixo, apresentações artísticas como balé, que auxiliem a estabelecer uma relação de fraternidade
teatro e música, bênção dos animais, celebrações e en e sustentabilidade com a natureza. No decorrer do pro
contros litúrgicos e encontros reflexivos sobre temas jeto, os jovens são despertados para a consciência am
franciscanos. biental e a cultura do reaproveitamento e reciclagem de
• Projeto Valores. O "Projeto Valores" é uma iniciativa do garrafas PET (polietileno tereftalato), que é um mate
Colégio Bom Jesus em parceria com o jornal Gazeta do rial utilizado como embalagem. para refrigerantes e
Povo, do Paraná, que tem por objetivo resgatar e desen água mineral. Os alunos e professores são também le
volver a pesquisa, o estudo e a prática de valores funda vados a articular e viabilizar trabalhos e pesquisas de
mentais para a convivência humana na sociedade. Este inovação, estimulando o interesse pelo tema da recicla
projeto conta com a participação de jornalistas, profes gem, educação e preservação do meio ambiente. O pro
sores, pais e alunos do ensino fundamental do Colégio jeto "Educação Ambiental" é realizado em parceria
Bom Jesus, da Aldeia Franciscana. Os trabalhos "Valo com empresas do Paraná. As garrafas recolhidas pelas
res" se referem aos temas da solidariedade ' tolerância ' unidades são destinadas à Escola Ecológica Bom Jesus
honestidade, justiça, humildade, responsabilidade, res- da Aldeia, subsidiando outro projeto, o "Trabalho
peito e amizade. Construindo Dignidade", uma empresa formada por
portadores de necessidades especiais 183 •
Através de várias atividades (mutirões, limpeza de monu
mentos públicos, acampamentos, entre outras), os participan
tes são levados à reflexão dos valores fundamentais do ho 4.3.3.3 Projetos de Ação Comunitária
mem. O resultado deste estudo e é apresentado à comunidade
na forma de edições impressas de oito fascículos que com Os projetos de ação comunitária têm como objetivo princi
põem uma coleção denominada "Valores Fundamentais do pal educar jovens e adultos de baixa renda em parceria com enti
Homem", encartada no referido jornal, de ampla circulação. dades governamentais e não-governamentais. São, entre outros:
• Bom Natal. O Projeto "Bom Jesus, Bom Natal" marca o • Proalfa - Projeto Voluntário de Alfabetização de Jovens
fechamento dos estudos em tomo do tema da solidarie e Adultos. O público beneficiado é constituído por pes
dade. Os alunos são motivados a participar da arrecada soas de baixíssima renda, coletores de materiais reci-
ção de brinquedos e a tomar parte dos festejos de Natal
que reúnem moradores de quatro comunidades caren
tes da Cidade de Curitiba. O projeto também mobiliza o
trabalho voluntário de professores e funcionários. 183. Cf. Bom Jesus Social, p. 5-9.
157
156
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
cláveis; as turmas compõem-se de pessoas de todas as les que não têm acesso a estas oportunidades, seja por
idades. carência financeira, seja pelo grau de enfermidade.
• Projem - Projeto do Ensino Médio. Este projeto benefi • Aldeia Kuruguá. O Projeto Aldeia Kuruguá é desenvol
cia, com bolsa integral, o estudo em nível de ensino vido pelos alunos da FAE Business School em conjun
médio dos filhos de funcionários de baixa renda da Pre to com toda a comunidade acadêmica da F AE e do Co
feitura, desde que os pais se comprometam com o pro légio Bom Jesus, incluindo professores, funcionários e
cesso de educação de seus filhos. entidades parceiras da comunidade. Consiste no apoio
• Bolsista FAE. O projeto beneficia alunos de baixa renda ' à comunidade indígena da Aldeia Kuruguá, localizada
proporcionando-lhes o acesso ao ensino superior, a for- numa área de proteção ambiental do Município de Pira
mação acadêmica e profissional, o desenvolvimento da quara, PR. O objetivo principal do projeto é o de acom
solidariedade e a promoção da cidadania. O projeto panhar a vida dos índios, envidando esforços para a so
promove, desse modo, a formação de futuros profissio lução dos diversos problemas sociais enfrentados pela
nais e líderes com consciência e responsabilidade so aldeia, tais como: a preservação da cultura guarani, as
cial, além de contribuir para a mudança do quadro de dificuldades sanitárias do ambiente, a hostilidade de
acesso do jovem ao ensino superior no Brasil. grupos políticos locais, problemas de saúde da popula
ção, entre outros. Os indígenas participam dos eventos
culturais do calendário escolar do Bom Jesus, apoiando
4.3.3.4 Projetos de Extensão Comunitária a formação dos alunos.
• Lideranças Comunitárias. Professores e alunos da FAE
O objetivo geral destes projetos é o de produzir e socializar
têm a oportunidade de pesquisar e difundir para a so
conhecimentos, combinando qualidade acadêmica com o má
ciedade os conhecimentos que vêm produzindo para
ximo de compromisso social, permitindo aos alunos de admi
contribuir com a autonomia e a gestão da comunidades.
nistração, ciências contábeis e economia, em nível de gradua
Projeto em parceria com a Prefeitura da Cidade de Cu
ção e pós-graduação, transformar, com sabedoria, a aprendiza
ritiba e a Eederação das Associações de Moradores da
gem teórica em resultados de alcance social.
Cidade e Região.
• Cultura Solidária. Desenvolvido pelos alunos da FAE
Business School e pelos alunos do ensino médio do Co
légio Bom Jesus, o objetivo do projeto é desenvolver nos 4.3.3.5 Projetos Especiais
adolescentes e jovens, diferentes expressões do agir pes
São projetos de cunho especial porque se constituem em
soal em função da ação social através da arte e da cultu
iniciativas preferenciais de amplo alcance social, desenvolvi
ra. Isso se realiza por meio de peças teatrais dos grupos
dos e cultivados no Bom Jesus.
estudantis, que são apresentadas em instituições assis
tenciais, levando, assim, com a ajuda dos espetáculos, • Escola Especial Bom Jesus. A Escola Especial faz parte
mensagens educacionais, motivacionais e culturais àque- do complexo Bom Jesus da Aldeia, Município de Cam
po Largo, PR, oferecendo atendimento educacional
158 159
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
para crianças e jovens com necessidades especiais. O habilidades que hoje são vitais na integração com o
programa da Escola é estruturado através de pequenos mundo como a comunicação, a criatividade, a capaci
grupos de alunos, distribuídos segundo a a faixa etária dade de alocar recursos e de trabalhar em equipe. Poder
ou de acordo com a programação didático-pedagógica. contribuir para com a sociedade resulta em realização
Todo o planejamento curricular é individualizado, res pessoal e motivação verdadeira para o trabalho. O Pro
peitando a necessidade de cada aluno. jeto Voluntariado Paz e Bem adota como princípio a
• Projeto Formação Humana. O Projeto Formação Huma responsabilidade social, mediante parcerias com orga
na pretende redescobrir no educando a cultura do amor nizações governamentais e não-governamentais.
e da solidariedade, chamando a atenção para estes valo • Voluntariado Juvenil Paz e Bem. Este projeto tem por
res humanos, de certo modo esquecidos pela sociedade. objetivo trabalhar o protagonismo juvenil com os alu
Seus trabalhos buscam promover a formação integral nos de 7ª e 8ª séries. Durante o ano, várias ações educa
do ser humano e a construção da cidadania de acordo tivas fazem com que os jovens alunos sejam capacita
com os princípios cristãos e franciscanos. O projeto dos para o desenvolvimento da cultura do voluntariado
consiste da participação dos educandos em encontros em todas as dimensões: afetiva, material, espiritual e
de grupos, realizados três vezes ao ano, assim como ati ambiental, como multiplicadores sociais. O voluntaria
vidades afins: oficinas e dinâmicas de grupo voltadas do juvenil visa a sustentabilidade dos projetos socioedu
para a interiorização, a reflexão e a ação comunitária. cativos desenvolvidos ao longo do ano.
Essa última se desenvolve através das visitas dos alu
nos a uma comunidade, cuja realidade nem sempre lhes
é comum. As instituições que integram o projeto são 4.3.3.7 Parcerias e Convênios
creches, asilos, orfanatos, casas de apoio e escolas de Buscam, através de parcerias com entidades do terceiro se
educação especial. tor, estabelecer ou ampliar redes de apoio comunitário, benefi
ciando pessoas e comunidades menos favorecidas.
4.3.3.6 Projetos do Voluntariado • Centro Social Franciscano. Desenvolve, em parceria
com a Paróquia Bom Jesus, em Curitiba, projetos de
Buscam promover a cultura do voluntariado em geral entre cursos gratuitos de corte e costura e informática volta
os professores, funcionários e alunos. De modo específico, de dos para a população menos favorecida. O NAC - Nú
senvolvem ações concretas de voluntariado junto aos partici cleo de Ação Comunitária do Bom Jesus/FAE também
pantes adultos e a conscientização para o tema entre os jovens. atua nas atividades do Centro ministrando palestras nas
• Voluntariado Paz e Bem. O Projeto Voluntariado Paz e áreas de formação humana e cidadania, as quais inclu
Bem visa incentivar professores, alunos e funcionários em temas variados como os da formação para a cidada
a doarem competências, tempo e conhecimento às pes nia, para o empreendedorismo e para a cultura da paz.
soas mais necessitadas e às instituições assistenciais. • E�colas Municipais de Balsa Nova. As escolas da rede
As pessoas envolvidas em ações sociais desenvolvem municipal de Balsa Nova, PR, estão sendo adotadas
160 161
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
pelo Bom Jesus. Dessa forma, passam a contar com as bem como aponta para o caminho da formação ética e cidadã
sessorias em várias áreas, beneficiando alunos, profes de seus alunos. 184
sores e a comunidade em geral. O convênio de coopera Os Projetos são realizados por meio da Pró-Reitoria Co
ção, firmado com a Prefeitura Municipal de Balsa munitária (PRC) e das coordenações dos cursos de graduação
Nova, foi iniciado com o fornecimento de uma propos nos vários câmpus, e aparecem divididos em quatro principais
ta pedagógica e de mobiliário para as escolas. O acordo eixos de ação, assim denominados: a pastoral, a extensão uni
beneficia 1.250 crianças cursando entre educação in versitária, a cultura e o esporte.
fantil e 4ª série do ensino fundamental. Estão sendo en
volvidos ainda 88 professores, 9 diretoras e equipe da
Secretaria Municipal de Educação de Balsa Nova. 4.3.4.1 A Pastoral
• As Instalações a serviço da Comunidade. A Associação
Bom Jesus disponibiliza gratuitamente algumas de Na Universidade, o termo "Pastoral" designa o trabalho
suas instalações para a realização de eventos de cunho daqueles que se acham empenhados em encher o ambiente
comunitário, social e pastoral, como diversas ativida universitário com o espírito do Evangelho, de forma a anun
des com escolas da periferia, retiros, encontros de ter ciar e transformar em boa-nova a vida universitária, colocando
ceira idade, reuniões de Pastoral da Saúde, eventos da a produção e transmissão do saber científico a serviço da pes
Pastoral Vocacional e encontros de Clero e Religiosas. soa humana (Estudos da CNBB, n. 56, § 224 e 320). Designa
também a busca da transformação da universidade e de seus
agentes em instrumento de justiça e fraternidade no mundo
4.3.4 Projetos Sociais da Universidade São Francisco concreto em que vivemos (Estudos da CNBB, n. 56, §228). As
Ações Pastorais desenvolvem-se nas seguintes linhas:
No que se refere aos Projetos Sociais da Universidade São
• Grupos de Reflexão - Consistem na reunião periódica de
Francisco, expõe Frei Vitório Mazzuco, quando Vice-Reitor e
grupos formados por alunos, funcionários e profesores,
Pró-Reitor Comunitário:
com vistas ao estudo e à partilha de reflexões sobre te
A Universidade São Francisco (USF) promove a formação mas cristãos. Desenvolvem-se nos diferentes câmpus
do ser humano e a construção de sua cidadania de acordo com universitários e são compreendidos como oportunida
os princípios cristãos, sob a inspiração de Francisco de Assis, des para uma vivência da fé. Os encontros de reflexão
sistematizando e socializando o saber científico, tecnológico e são semanais.
filosófico. Inspirada nesses princípios, a USF exerce a sua ex • Celebrações litúrgicas - São momentos de encontros
tensão universitária, educativa e transformadora, com uma com Deus, de expressão e fortalecimento da fé, assim
constante presença na comunidade. Nesse contexto, a exten como um anúncio de esperança cristã. Realizadas se-
são comunitária permite compreender a realidade social e aju
da a atualizar as práticas de ensino e pesquisa na Universidade,
184. Mazzuco, V. (OFM). Projetos Sociais, p. 5.
162 163
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
manalmente em cada câmpus e em solenidades especi o saber à prática, permitindo à comunidade acadêmica ampliar
ais da Liturgia. as formas de transmissão e aplicar seu potencial humano, ma
• Cultos de Formaturas - Em ação de graças pelos dons terial e cultural, a fim de elevar o bem-estar da sociedade. O
recebidos e por todos que se empenham no processo da programa de extensão da USF inclui o nível comunitário e o
educação. nível acadêmico, mediante projetos extensionais aos cursos de
• Pastoral da Saúde - Desenvolvida por alunos voluntários gradução e de pós-graduação.
e pessoas da comunidade junto ao hospital universitário.
• Ação Solidária da Doação de Sangue - Consiste em 4.3.4.2.1 Projetos Extensionais Comunitários
campanhas de conscientização para a doação de san
gue, que acontecem durante a semana dos calouros e • No Caminhar se faz o Caminho - Desenvolvido em par
em outras ocasiões do ano letivo. ceria com a Prefeitura Municipal e com associações de
• Trote Solidário - Busca-se, por meio do trote no calouro, moradores de populações de baixa renda, o objetivo ge
despertar o alunado para sua missão solidária no mundo. ral é promover a refação universidade-sociedade, colo
A espiritualidade franciscana alimenta o princípio desta cando o saber a serviço da promoção social, visando o
ação. Os alunos são convidados a atuar nos diversos tra estabelecimento do exercício da cidadania e a promo
balhos comunitários realizados na Universidade, a inte ção do ser humano 185 •
grar a ação pastoral da Universidade e a desenvolver a • Sorriso Feliz- Desenvolvido em pareceria com o curso
convivência acadêmica segundo a mística franciscana. de Odontologia, está voltado para formar consciência
• Grupos de Pastoral - São grupos ecumênicos de ação educativa sobre a saúde bucal entre crianças e adoles
pastoral formados por alunos. Congregam-se periodi centes das escolas públicas da região.
camente à luz de um texto de inspiração, e procuram • Caminhada Interpretativa e Percepção Ambiental - Diri
desenvolver ações concretas, no ambiente universitá gido ao grupo da Terceira ou Melhor Idade, promove o
rio, que visam despertar a atenção dos colegas para as contato e a conscientização dos participantes em relação
questões mais urgentes da sociedade. Promovem dife à preserva-ção do meio ambiente. Deste projeto partici
rentes encontros, retiros, manifestações e atividades de pam os cursos de Hotelaria e de Turismo da USF.
lazer no âmbito universitário. • Encontro de Educação Ambiental - Em parceria com o
curso de Hotelaria e Turismo, o projeto volta-se para a
reflexão sobre o sentido de meio ambiente ecologica
4.3.4.2 A Extensão Universitária
mente equilibrado, de modo que se possa criar condi
A USF, fundada sobre o tripé do ensino, pesquisa e exten ções para a formação continuada e o desenvolvimento
são, procura justamente na sua ação extensional a promoção de ações que priorizem a qualidade de vida na região.
da socialização das conquistas acadêmicas e dos beneficios re
sultantes da criação cultural gerada na Universidade. Assim, a
ação extensional da Universidade São Francisco procura aliar 185. Mazzuco, V. (OFM). Projetos Sociais, p. 12.
164 165
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
• Alfabetização de Adultos - Em pareceria com o governo dadania, se integrem e colaborem com as ações exten
local e governo federal (que oferece material didático), sionais desenvolvidas na Universidade.
objetiva o processo contínuo de aprendizagem e de alfa Além dessas ações, figuram nos projetos: Cursos de
betização dos funcionários da USF e comunidades de Extensão em Teologia para Leigos, Informática Básica, Ter
baixa renda situadas no entorno da Universidade. A alfa ceira Idade. Acrescentam-se, ainda, os Projetos Extensionais
betização de adultos, realizada em todos os câmpus, res Acadêmicos.
ponde à proposta do Ministério de Educação. A Univer
sidade também está inserida no "Programa de Alfabeti 4.3.4.2.2 Projetos Extensionais Acadêmicos
zação e Inclusão", do Governo do Estado de São Paulo.
• Ação Pluridisciplinar - Em parceria com a Pastoral da Os vários projetos extensionais acadêmicos desenvol
Criança e diversas paróquias locais, consiste no atendi vem-se nas diferentes áreas. Vale a pena mencioná-los em face
mento da criança e do adolescente de bairros. As ações dos beneficios que prestam:
são múltiplas e divididas em três áreas fundamentais:
• Saúde - Hospital Universitário São Francisco (HUSF),
saúde, educação e direito. Nesses trabalhos, participam
que presta atendimento a toda a população de Bragança
os cursos das áreas respectivas.
Paulista e cerca de 28 municípios regionais, recomen
• Fome Zero - É a inserção da Universidade São Francisco dando o nome da Universidade; Curso de Enfermagem
no programa federal "Fome Zero", favorecendo a parti em parceria com as Unidades Básicas de Saúde
cipação de alunos voluntários em projetos de transfor (UBSs); Fisioterapia com atuação na Universidade
mação social. Aberta da Terceira Idade; Fisioterapia aplicada às dis
• Capacitação de Lideranças Comunitár_ias - O objetivo funções relativas à criança e ao adolescente; Núcleo de
geral do projeto é capacitar dirigentes de associações Apoio à população ribeirinha do Amazonas, um traba
de moradores e lideranças comunitárias para que pos lho voluntário sob a responsabilidade dos cursos de
sam melhor gerenciar suas associações, bem como im Medicina, Odontologia, Fisioterapia, Enfermagem e
plementar ações comunitárias por eles desenvolvidas. Farmácia,-em parceria com outras instituições educa
Esse trabalho já vem sendo desenvolvido por outras cionais como USP, Unip, Puccamp e Unicamp, e uma
Escolas Franciscanas. ONG já em formação.
• Educafro-Trata-se da parceria com o conhecido projeto • Direito - Em parceria com a Ordem dos Advogados do
Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes Brasil (OAB), visa ao atendimento dos que se encon
(Educafro), o qual foi implementado em todos os câm tram em situação de pobreza e não dispõem de recursos
pus da Universidade. Além de colaborar em relação aos para assistência de advogado particular. Ocorre nos
objetivos fundamentais do próprio projeto Educafro, a câmpus de Bragança Paulista e São Paulo.
USF pretende colaborar no sentido de que os alunos • Psicologia - A Clínica-Escola do câmpus de Itatiba,
bolsistas do projeto, amadurecidos para o sentido da ci- além de desenvolver os estágios dos alunos da área, dá
à população da região atendimento qualificado do pon-
166 167
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
to de vista técnico e humano nas áreas de abordagem, cer oportunidades para a prática esportiva, sobretudo a coleti
psicologia escolar, ludoterapia, psicomotricidade, téc va, significa educar o indivíduo para o exercício de valores éti
nica comportamental, terapia familiar e triagem. cos universais da convivência humana: respeito mútuo, amiza
de, trabalho em equipe, disciplina e companheirismo. Assim
4.3.4.2.3 A Arte e a Cultura se expressa pedagogicamente o documento Projetos Sociais
da USF187 • E lista os projetos desenvolvidos:
O racionalismo presente na nossa civilização e reforçado
• Atividades Esportivas Regulares- São projetos diversos
no ambiente universitário, não raro, toma relevante apen
as voltados a atividades nos câmpus universitários que
aquilo que é concebido logicamente, a partir de conceitos
já procuram integrar os alunos dos diferentes cursos, fim
"prontos", "objetivos", sem levar em conta as característ
icas cionários e professores.
pessoais de cada um. A arte tem o potencial de propiciar o
de • Tai-chi-chuan - Procura-se desenvolver a educação cor
senvolvimento da criatividade e de despertar a atenção para
a poral através da experiência da filosofia oriental.
maneira de sentir, sobre o qual se elaboram todos os outro
s • Oficinas Esportivas e Desafios - Proporcionando aos
processos racionais. A arte possibilita o acesso ao mund
o dos alunos uma experiência de conhecimento e participa
sentimentos, e ainda os desenvolve e educa 186 •
ção em diferentes modalidades esportivas, o projeto
Projetos desenvolvidos: promove oficinas semestrais e envolve 50 pessoas por
• Coral da USF, integrado por alunos, ex-alunos, funcio turma. Entre outras: dança de salão, capoeira e judô.
nários e professores do Câmpus de São Paulo, promo Com o mesmo objetivo são propostos desafios esporti
vendo o exercício da integração, da cidadania e da con vos como os de xadrez e tênis de mesa.
vivência harmônica através da músiéa e da expressão • Torneios-Além de constituírem mais uma opção para a
corporal. participação em atividades fisicas de sua preferência,
• Festivais de Teatro (adulto e infantil); Curso de Teatro; os torneios possibilitam momentos prazerosos de con
Festival Universitário de Música. vívio entre professores, alunos e funcionários. Esten
dem-se à comunidade, envolvendo em fair play estu
dantes de ensino médio da região e torneios especiais
4.3.4.2.4 O Esporte entre Escolas Franciscanas.
E quais são os resultados desses projetos sociais e de tantas
O esporte é atividade educativa formadora do todo do ser experiências e tantos desafios que se colocam ao longo da for
humano, que favorece seu equilíbrio, integrando corpo e alma, mação?
raciocínio e sentimento, inteligência e emoção, de modo a fa
vorecer a plenitude de vida humana sadia e mais feliz. Ofere- O amadurecimento em dimensão humana, sobretudo, dos par
ticipantes, é sentido e comentado por eles mesmos. Abre-se-lhes
na et sanctitate ", inspirar inteligentemente e viver de coração mostrar o sabor de todas as verdadeiras essências imor
uma nova Pedagogia Humanista. tais, a luz, o fogo, a água, o ar, o som, a palavra. No
meio de uma sociedade áspera no ganho, veio mostrar
Por ocasião do 8 º Centenário de Nascimento de São Fran a delícia de não possuir. No meio do furor de todas as
cisco, o professor, escritor, filósofo, educador, o franciscanó violências, veio mostrar o milagre da paz e da fraterni
filo Alceu de Amoroso Lima (pseudônimo: Tristão de Athay dade. No meio de uma era complicada, racionadora,
de), estampou maravilhoso artigo intitulado "O Segredo de cheia de hierarquias e preconceitos, veio mostrar a ori
São Francisco". Apraz-me transcrever o texto, verdadeiro ginalidade das coisas simples. Contra os raciocínios in
projeto de pedagogia do coração: termináveis, mostrou a eloqüência das soluções intuiti
vas. Contra as rígidas hierarquias, a igualdade no bem e
Num mundo que se cristalizava em lutas, em abusos de na pureza da alma. Contra os preconceitos, a coragem
toda espécie, em indolência e ceticismo, Francisco não de agir desassombradamente, por uma causa mais alta
vinha trazer-nos nada de inédito, como originalidade que todos os mesquinhos interesses terrenos. Esse, tal
de pensamento, como fórmula de restauração, como vez, o maior segredo de São Francisco de Assis.
remédio aos males do tempo.
Onde outros deram ou dariam o seu saber, a sua astúcia,
São acordes seus biógrafos em dizer que os seus dis a sua coragem, ele deu apenas isso: o seu coração.
cursos nada tinham de original. Procurando os seus
discípulos reproduzi-los, sentiam sempre a falta de Esse isso revolucionou a História191 •
qualquer coisa... mas que era tudo. Nesse mundo, em Encerrando todo este itinerário de reflexão pedagógica, re
que a fama das universidades começava a espalhar-se, corro a outro grande Educador Franciscano, o Cardeal e Con
e Bolonha, ali perto, já irradiava o seu saber de juristas frade Dom Paulo Evaristo Ams, OFM, que nos mostra o seu e
e teólogos, não vinha discutir teologia ou combater in nosso "São Francisco hoje":
fiéis. Vinha ap�nas, no meio das lutás em que se debati
am as cidades e as famílias, em meio da grande deca Ser Franciscano não é apenas conteúdo. É espírito, ma
dência de costumes e dos abusos dos grandes contra os neira de �er as coisas, de vivê-las, de assumi-las e de
pequenos, vinha apenas trazer essa dádiva simplíssi equacionar os grandes conflitos de vida e de morte.
ma: uma vida humana a serviço dos homens. Vinha vi Isto Francisco fez em sua época e o faria hoje, aqui e
ver, no meio dos homens, como se viera de um mundo agora. Por isso ele é grande e universal. Fascinará
superior a eles. qualquer pessoa em qualquer época, pelo seu jeito de
Quando todos se debatiam entre mil e um laços que os ser: pobre, serviçal, gratuito, fraterno e por conse
prendiam a toda sorte de pequenos senhores na terra, guinte Menor.
veio esse filho fugido de casa dos pais, para entregar-se
ao Pai supremo, sem nome e sem instrução, mostrar
que a suprema felicidade estava em sacudir o peso de
todos esses pequenos barões terrenos, para se submeter 191. Lima, A. A. Recomeçar com Clara e Francisco. Coleção "Centenário
a um só Príncipe invisível. No meio de uma vida em de Santa Clara-1", p. 23-26. Originalmente publicado no Jornal do Brasil,
Rio de Janeiro, dia 4 de outubro de 1981. Cf., ainda, Piccolo, A. S. (Frei).
que se perdera a memória das coisas simples, veio
Perfil do educador franciscano, p. 89-91.
172 173
Francisco de Assis: por uma pedagogia humanista Frei Agostinho Salvador Piccolo, OFM
Francisco não teve nenhuma pretensão, a não ser Nunca se ouviu dizer que Francisco condenasse a socie
dar-se. Quis estar junto do outro. Ser Menor, pequeno, dade de seu tempo, mas nunca se soube que ele deixasse
para entender a grandeza do outro, não o atropelando de melhorar o que estava errado. Para construir uma so
em sua dignidade. ciedade fraterna, reformou sua própria vida, soube con
fiar mais em Deus que em si e nos outros. "Meu Deus é
Viveria certamente hoje na América Larina uma busca meu tudo!" - foi de inspiração bíblica e exprimiu o mais
contínua de comunhão com Deus, através de tudo e de profundo de todos os seus anseios.
todos os seres criados. Tomaria o Evangelho vivo e en
carnado, comprometido com o oprimido e o marginali Dele podemos ouvir: "O mundo está em suas mãos. Ou
zado de nosso tempo. você se salva com ele ou ele se perderá com você".
Daria sem dúvida sua adesão total às linhas de ação as Portanto, reler nossa realidade com os olhos de Fran
sumidas pela Igreja. Incumbir-se-ia da tarefa de re cisco é perceber que a ação transformadora de Deus
constituição original da Igreja cristã. Cultivaria pro passa pelo coração dos homens.
fundo respeito para a pessoa humana, construindo a Sua mensagemcontinua vigorosa e irresistível!
192
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