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que marcaram e vão marcar

50+50 personalidades
o país e o mundo
O futuro foi ontem

5
NÚMERO

ESTA REVISTA FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO 2629 DO EXPRESSO E NÃO PODE SER VENDIDA SEPARADAMENTE
hyundai.pt Hyundai Portugal
Dino D’Santiago. Última
de cinco imagens de obras
de arte criadas pelo artista
Vhils a partir de edições
em papel do Expresso
(1,20x1,80 m)

Índice

4 Mário Soares | 8 Leonor Caldeira | 12 Francisco Sá Carneiro | 16 Carlos Moedas | 20 José Mariano Gago
24 Nuno Maulide | 28 António Damásio | 32 João Costa Ribeiro | 36 Mário Moniz Pereira
40 Francisca Veselko | 44 Luís Miguel Cintra | 48 Albano Jerónimo | 52 José Afonso | 56 MARO
60 Luiz Villas-Boas | 64 Salvador Sobral | 68 Álvaro Cunhal | 72 Alice Gato | 76 Marcello Caetano
80 João Maria Jonet | 88 Aníbal Cavaco Silva | 92 Fernando Medina | 96 Francisco Pinto Balsemão
100 Pedro Oliveira | 104 José Tolentino Mendonça | 108 Américo Aguiar | 112 António Lobo Antunes
116 Gonçalo M. Tavares | 120 Cristiano Ronaldo | 124 Kika Nazareth | 128 José Mourinho | 132 João Almeida
136 António Variações 140 Tamara Alves | 144 Fernando Lopes-Graça | 148 Ricardo Vieira
152 Orlando Ribeiro | 156 António Brito Guterres | 160 Gonçalo Ribeiro Telles | 164 Catarina Barreiros
172 Jorge Sampaio | 176 Graça Canto Moniz | 180 Maria de Lourdes Pintasilgo | 184 Luísa Salgueiro
188 Herman José | 192 Joana Marques | 196 Maria João Pires | 200 Hugo Canoilas | 204 Julião Sarmento
208 Fernão Cruz | 212 Álvaro Siza Vieira | 216 Inês Vieira da Silva e Miguel Vieira | 220 Manoel de Oliveira
224 Catarina Vasconcelos | 228 José Saramago | 232 Andreia C. Faria | 236 Jorge Nuno Pinto da Costa
240 Diogo Ribeiro | 244 Belmiro de Azevedo | 248 Ricardo Reis | 256 António Guterres
260 Clara Sousa-Silva | 264 Américo Amorim | 268 Miguel Faria-e-Castro
272 Alexandre Soares dos Santos | 276 Daniela Braga | 280 José Mattoso | 284 Paulo Pires do Vale
288 Paula Rego | 292 Sandro Resende | 296 Agustina Bessa-Luís | 300 Daniela Melchior
304 Diogo Freitas do Amaral | 308 Alba Baptista | 312 Otelo Saraiva de Carvalho | 316 Tiago Rodrigues
320 Ramalho Eanes | 324 Ana Luísa Correia | 328 Salgueiro Maia | 332 João Gonzalez
340 Pedro Passos Coelho | 344 Inês Laíns | 348 José Sócrates | 352 Edson Santos Oliveira 356 Rui Veloso
360 Anabela Carvalho | 364 Carlos do Carmo | 368 Dino D’Santiago | 372 Luís Figo | 376 Francisco Costa
380 Fernando Santos | 384 Tiago Guedes | 388 Alfredo César Torres | 392 Gustavo Ribeiro
396 Durão Barroso | 400 Mariana Mortágua | 404 António Costa | 408 Pedro Nuno Santos
412 Marcelo Rebelo de Sousa | 416 Joana Gonçalves de Sá

Ficha técnica
Diretor João Vieira Pereira | Diretor-adjunto Miguel Cadete | Diretor de arte Marco Grieco
Coordenador-geral de arte Mário Henriques | Editor de fotografia João Carlos Santos
Editor de fecho Rui Tentúgal | Capas Alexandre Farto aka Vhils | Produção gráfica João Paulo Batlle y Font

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Pedro
Passos Coelho
Político

O ajustador
de contas
LUÍS BARRA

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Nenhum primeiro-ministro gostaria de che- cas eram adjudicadas por um determinado
gar ao poder na situação em que Passos Co- valor que no decurso dos trabalhos seria
elho o fez em 2011, com as finanças públicas sucessivamente revisto (desvirtuando os
à beira da bancarrota e o país à espera da preços inicialmente fixados). E que os pra-
intervenção de uma troika (FMI, Comissão zos de execução eram meramente indica-
Europeia e Banco Central Europeu). Ao lon- tivos. Não admira, por isso, que em 2003,
go de quatro anos governou em condições quando fora inaugurada a primeira fase do
difíceis, condicionado pelo plano de resga- terminal de gás natural liquefeito em Sines,
te financeiro, apoiando-se num parceiro o facto de se ter cumprido o orçamento e se
de coligação inconstante (o CDS de Paulo ter acabado a horas tivesse sido celebrado
Portas) e tendo de fazer face a uma situa- como se de uma ida à Lua se tratasse…
ção social tensa. Depois, quando se tratou Contudo, a política alternativa àquilo que
de escolher novo Governo, gerou-se uma então se designava como “despesismo socia-
situação complexa. Por um lado, uma fatia lista” foi, muitas vezes, a do corte orçamental
significativa da opinião pública reconhecia com efeitos perversos. Um exemplo, entre
os esforços feitos para endireitar as finanças muitos. Até àquela altura, em Portugal, os
públicas, o que se traduziu numa votação de veículos ligeiros adaptados ao serviço de
38,5% para PSD e CDS coligados. Por outro, mercadorias — vulgo carros de rede — be-
um eleitorado ainda maior manifestava a neficiavam de uma forte redução do imposto
sua discordância relativamente ao rumo da automóvel. Como uma das diretrizes da troi-
governação anterior, com PS (32,3%), BE ka era o fim das isenções fiscais, entendeu-se
(10,2%) e PCP/PEV (8,3%) a somarem con- que aqueles veículos deviam passar a pagar
juntamente mais de metade dos votos. Uma imposto por inteiro. Resultado: a rede de
maioria aritmética que não tardou a trans- pequenas indústrias que fabricavam divi-
formar-se em convergência política — que sórias e estrados e transformavam os carros
ficaria conhecida como ‘geringonça’ — coisa desapareceu. E com isso, postos de trabalho
com a qual, um Presidente da República e empresas que pagavam impostos...
hostil a tal solução teve de se conformar. Em Se parar o comboio de alta velocida-
meados de novembro de 2015, Cavaco Silva de (TGV) significou pouco mais que parar
indigitava António Costa para formar novo projetos de engenharia em fase de gabinete,
Governo e o ciclo da governação de Passos interromper obras já em marcha como as
Coelho chegava ao fim. da A26 entre Sines e Beja ou do túnel do
A diretriz da ação política de Passos Marão, em vez de significar poupar dinheiro
Coelho quando chegou ao poder foi o re- acarretou mais custos. O túnel ainda veio a
equilíbrio das contas públicas. Desse por ser concluído posteriormente (2016) mas os
FILIPE FARINHA/STILLS

onde desse, como se haveria de ver. Isso viadutos e taludes da autoestrada do Alen-
significava voltar à postura do “Portugal tejo que representavam milhões de euros já
bom aluno europeu” dos primeiros tempos gastos lá ficaram no meio da campina até
da governação de Cavaco e não só aceitar hoje. Fora as indemnizações a pagar aos
todas as imposições da troika como, nalguns empreiteiros.
casos, levá-las mais longe que o pedido. O O Executivo de Passos e Portas tentou
substrato teórico desta política era dado cavalgar a crise para impor uma mudança
por Paulo Portas que, por mais de uma vez, de modelo económico, seguindo a visão
proclamaria que “Portugal tinha perdido a económica de Vítor Gaspar e António Bor- outubro de 2015: “Pedro Passos Coelho foi
sua autonomia e estava sob protetorado”. ges cuja expressão maior foi a tentativa de líder da JSD na esmagadora maioria do tem-
Manifesto exagero até porque Mário Dra- redução da taxa social única paga pelas po em que Cavaco liderou o PSD. As relações
ghi, na altura presidente do Banco Central entidades patronais, com o consequente au- entre os dois nunca foram especialmente
Europeu, era tudo menos um defensor da mento da paga pelos trabalhadores. Falhada boas e Cavaco nunca o levou muito a sério.
ortodoxia orçamental. esta, seguiu-se um enorme aumento de É verdade que nesse tempo, Passos não fazia
O corolário da teoria do protetorado era a impostos para suportar as contas públicas. grande esforço para ser levado a sério. A Jota
atribuição de culpas: porque se tinha perdi- E, nas ruas, as megamanifestações contra a era o que era, absolutamente fundamental
do (alegadamente, é claro) a soberania? Por troika (como a de 15 de setembro de 2012). ao partido e uma máquina de angariação
culpa das governações socialistas e do seu Não obstante tudo isto, nas eleições de de militantes, mas em que o trabalho e o
despesismo crónico. Logo, os verdadeiros 2015 Passos Coelho teve um resultado sur- divertimento contínuo se cruzavam dema-
culpados dos cortes nas políticas sociais, preendente, sobretudo para quem liderara siadas vezes e por demasiado tempo. Com as
das medidas de austeridade, etc., eram os um Governo de austeridade durante quatro maiorias absolutas, a bancada da Jota ficou
anteriores governantes e não quem os estava anos. Para perceber porquê temos de recuar enorme e com um peso muito importante
a pôr em prática. alguns anos, ao tempo em que Cavaco Silva no partido. Desses anos, o que fica de Passos
É verdade que Portugal tinha (e tem) governou, apoiado em duas maiorias abso- Coelho são características completamente
problemas crónicos de défice público. Que lutas sucessivas. Nada melhor que voltar à diferentes das que hoje perpassam: rebelde,
vivera durante décadas aceitando a regra leitura de um trabalho de Ricardo Costa incómodo, boémio, desobediente, desafia-
não escrita de que as empreitadas públi- publicado na Revista do Expresso a 10 de dor e progressista.”

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Ao longo de quatro anos em São Bento
Passos Coelho definiu um estilo, como assi-
nala Ricardo Costa. “Não vale a pena perder
muito tempo com exemplos do tipo de go-
vernante em que Passos Coelho se trans-
formou. Há exemplos para tudo, para quem
o odeia e para quem o idolatra, para quem
acha que vive num mundo à parte e para
quem defende que ele anda na rua como
qualquer português. Ele divide e sabe que
divide. E vive bem com isso. Transformou
a maior crise política do primeiro mandato
numa jogada de liderança à prova de bala.
Paulo Portas, o mais brilhante jornalista
político da sua geração e um dos mais talen-
tosos políticos que o Parlamento português
viu em décadas, parecia um brinquedo nas
mãos de Passos Coelho.”
A questão era se este Passos Coelho II, tão
diferente do Passos Coelho I, o irreverente
líder da Jota, podia dar lugar a um Passos
Coelho III, capaz de governar em minoria no
Parlamento, de fazer concessões e fabricar
consensos. Nunca o saberemos, pois tinha
chegado a hora da ‘geringonça’ e Passos
saía de cena. Para sempre? Um artigo que
foi capa de uma edição recente da revista
“Sábado” dava conta de uma nova imagem
do ex-primeiro-ministro, meticulosamen-
te construída: “Continuou a usar aliança
após a morte da mulher e dedica-se à filha
menor. Comprou um carro elétrico, recu-
sou empregos e ganha €2 mil por mês a
dar aulas. Nas ruas pedem-lhe selfies.” E,
a rematar este resgate do soldado Passos, o
toque final: “As sondagens mostram que é o
preferido para substituir Marcelo na Presi-
dência da República.” Lendo o citado artigo,
não havia ‘sondagens’ mas sondagem: nas
páginas interiores apenas era citado um
estudo feito pela Intercampus para CMTV e
“Jornal de Negócios” sem mais pormenores.
Pedro Passos Coelho na festa Consultando essa sondagem, datada de 17
do PSD no Pontal, em Quarteira, no mesmo texto. “Manuela Ferreira Leite de fevereiro passado, Passos surgia à frente
Algarve, em agosto de 2022 (…) não hesitou quando chegou a altura das preferências referentes a hipotéticos
de fazer as listas de deputados para as le- candidatos a Belém com 15,8%, seguin-
gislativas de 2009: deixou Relvas e Passos do-se António Guterres (13,5%), António
Passos vai andar longe da ribalta até fora das listas. Eles não gostaram, mas, no Costa (10,6%) e o almirante Gouveia e Melo
reaparecer em 2008, um homem comple- fundo, agradeceram. Depois de serem pos- (10,0%)…
tamente diferente que ousou enfrentar, em tos de lado, os dados estavam lançados: se Em 2011 Passos Coelho chegara ao poder
eleições internas, Manuela Ferreira Leite e Ferreira Leite ganhasse a Sócrates, perdiam para um duplo ajuste de contas: as propri-
Pedro Santana Lopes. “O jovem deputado em toda a linha, mas se ela perdesse as amente ditas, ou seja, as contas públicas e
que não usava gravata e que vivia do im- legislativas o partido era deles. Dito e feito. as contas a ajustar com a esquerda e a sua
proviso e do momento, tinha dado lugar a Passos esmagou Paulo Rangel e José Pedro governação. Apenas resolveu as primeiras.
alguém que estudava a matéria, certinho Aguiar Branco num congresso em Mafra Num novo contexto político, com maior
e ousado nas ideias. Naquela altura ficou (14 de março de 2010), para horror da elite fragmentação do Parlamento e o desapa-
relativamente claro que se Manuela Ferreira do partido, que chamava jocosamente a recimento de um dos partidos centrais do
Leite falhasse contra José Sócrates o partido Passos Coelho o ‘Obama de Massamá’, e arco governativo, o CDS, tudo volta a ficar
seria dele. O seu lado frio e perseverante que não percebia de onde vinha um líder em aberto para novo ajuste de contas. O
veio à tona.” sem pedigree social ou académico.” A cu- futuro dirá se ocorrerá e a favor de quem.
Era uma questão de esperar pelo desen- jos pés quase todos estariam cinco anos
rolar dos acontecimentos, como se refere depois… Rui Cardoso

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Inês
Laíns
Oftalmologista

De olhos postos
na cegueira

JOSÉ FERNANDES

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Tem olhos grandes, prenúncio do que viria Passaram nove anos desde a chegada a “No início senti-me muito insignificante,
a ser a sua vida. Inês Laíns é oftalmologista, Boston e o início do projeto de investigação, não era ninguém. Tinha a noção de que se
nascida e formada em Coimbra, e aos 36 agora também desenvolvido em Coimbra e não aparecesse, nem dariam conta. Duvi-
anos está entre os especialistas mais re- com financiamento americano e europeu, davam da minha formação em Portugal. A
conhecidos da atualidade, não apenas no por exemplo da Sociedade Europeia de Re- minha primeira amiga foi uma rapariga tur-
país, mas sobretudo no mundo. O seu nome tina. Ao todo, são 300 doentes portugueses ca, também médica, que como eu almoçava
é o único não americano na lista dos 40 — na AIBILI (Associação para Investigação sozinha. Um dia fui até ela e começámos a
oftalmologistas mais promissores dos EUA. Biomédica e Inovação em Luz e Imagem), almoçar juntas. Ainda hoje somos amigas.”
Receberam-na, em 2014, para um ano de sob a orientação do conceituado oftalmo- Mas o tempo acabou por passar a seu favor.
projeto para descobrir cura para a princi- logista José Cunha-Vaz — que estão a ser Inês ganhou o reconhecimento dos espe-
pal causa de cegueira acima dos 50 anos, avaliados a par com os doentes norte-ame- cialistas do melhor hospital de oftalmologia
a degenerescência macular da idade, e já ricanos, num estudo observacional e sem do mundo e, de certa maneira, mudou a
não a deixaram sair. Inês é agora médica, fim anunciado. No mês passado, o artigo visão norte-americana sobre os médicos
cirurgiã e investigadora no Massachusetts publicado sobre três anos do projeto deu- portugueses. Foi contratada pelo hospital
Eye and Ear Hospital, o melhor do mundo -lhe mais um prémio. ao fim de um ano como investigadora, ter-
na área, em Boston. “O meu objetivo é descobrir o mistério minou o doutoramento, que veio defender a
Foi um acaso, muito pequenino, que da degenerescência macular, mas a vida Portugal, e resolveu voltar atrás: fez de novo
colocou a jovem médica sob o olhar da é tão inesperada que não sei onde me vai o ano comum e a especialização. Atualmen-
oftalmologia mundial. No segundo ano da levar e as oportunidades que vão surgir”, te, está a fazer uma subespecialização em
especialidade, em Coimbra, e já a fazer dou- confessa. Inês não esquece como chegou, cirurgia de retina.
toramento pela Harvard Medical School, há nove anos, aos EUA. “Nunca tive a noção Mas não só, agora a presença de Inês é
Inês concorreu a uma bolsa da Faculdade de como o programa iria mudar a minha notada. “Sinto-me muito integrada, con-
de Ciências e Tecnologia (FCT), em Almada, vida para sempre. Na minha cabeça, era só siderada e investem em mim. Comentavam
e num pestanejar ganhou 100 mil euros e por um ano e fui ficando. Foi um processo a minha forma de vestir, europeia, e até me
um bilhete para desenvolver o projeto no natural.” E, no início, receber os 100 mil pedem opinião.” A elegância soma-se ao
hospital em Boston. euros da FCT até foi a parte mais fácil. temperamento latino: “Para eles é estranho
“O olho é pequenino e ninguém te vai “Fui com um colega que também tinha eu cumprimentar com um abraço e beiji-
dar a bolsa. Tem de ser uma coisa com im- ganho o prémio, em oncologia. Alugámos nho, mas os doentes americanos gostam
pacto, cardiologia ou oncologia, como os uma casa online e comprámos mobiliário que seja calorosa.”
vencedores anteriores”, disseram-lhe os no IKEA, mas chegou com duas semanas O hospital em Boston é acessível a toda a
colegas. Mas deram. Aliás, têm sido às de- de atraso e ficámos a dormir num colchão população e isso fez diferença para a médica
zenas os prémios e as distinções. Premeiam insuflável com saco-cama. A casa estava portuguesa. “Ninguém é discriminado, é
a visão única que teve para estudar a dege- completamente vazia. A renda era de 3 mil como em Portugal. Teria muita dificuldade
nerescência macular: aplicou, pela primeira dólares por mês e só o ordenado da FCT, em trabalhar num hospital que não fosse
vez, a técnica metabolómica para avaliar o cerca de 1200 euros, não chegava para pagar assim”, confessa. Mas esta é talvez a única
risco de doença, a probabilidade de evoluir a casa”, recorda. O pai, fisiatra, e a mãe, semelhança com os hospitais do Serviço
para cegueira e como travar a progressão. psicóloga, foram o suporte vital. Nacional de Saúde.
Dito de forma simples, chegar às respostas “Trabalho 30 horas por semana e tenho
a partir da análise das partículas mais pe- tempo para a investigação, que quero man-
quenas (metabólitos) no sangue e na urina. ter.” Se um contrato semelhante for possível
“Com o envelhecimento, também temos em Portugal, mesmo com a óbvia diferença
envelhecimento do olho, mas há algumas salarial, Inês regressará. “Sou muito ligada à
pessoas a quem isso acontece de forma mais família — sou filha única, falo sempre duas
patológica”, explica a oftalmologista. “Nes- vezes por dia com os meus pais e venho
ses casos, afeta a mácula, o centro do olho, três vezes por ano e eles vão lá — e o meu
com o desenvolvimento de depósitos de objetivo é voltar, com tempo estruturado
proteínas ou de colesterol... Há formação para fazer investigação” e, claro, contribuir
de vasos, que provocam sangramento, ou para desenvolver a oftalmologia nacional.
a morte da retina e a perda da visão. É uma
doença multifatorial e ambiental, mas não
O seu nome “A oftalmologia é muito gratificante. O
doente fica connosco até ao fim, conse-
sabemos porque acontece e porque algumas é o único não guimos resolver os problemas de muitos
pessoas cegam, 10%, e outras não. Julgamos doentes e isso é maravilhoso. Temos muito
que esteja associado a algum tipo de lípidos americano na para oferecer nos tratamentos e na cirurgia,
e pensa-se que a dieta mediterrânica é um
fator protetor.” lista dos 40 por exemplo na terapia génica para subs-
tituir um gene na retina. É uma área com
Inês explica ainda que “a doença progri-
de lentamente e as pessoas não notam até
oftalmologistas muita ciência, de vanguarda.” Certamente,
Inês Laíns vai continuar a dar nas vistas da
perderem a visão, vão ao médico só quan-
do começam a ver mal”. Mas mesmo indo
mais ciência nacional e mundial e quem sabe até
descobrir a cura que a medicina há muito
precocemente ao médico, não muda, ainda,
muita coisa. E é, precisamente, isso que
promissores procura.

a oftalmologista portuguesa quer mudar. dos EUA Vera Lúcia Arreigoso

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José
Sócrates
Político

Um tribuno
sem ideologia

RUI DUARTE SILVA

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José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa pas-
sou como um meteoro pela política portu-
guesa: apareceu, brilhou e consumiu-se nas
suas próprias chamas.
Em 1995 (era António Guterres primei-
ro-ministro) começa como secretário de
Estado do Ambiente e acaba como ministro
da mesma pasta (1999). Com o PS afastado
do poder em 2002, passa a comentador
político na RTP, fazendo dupla com Santana
Lopes. Em 2004, no XIV Congresso do PS,
é eleito secretário-geral e, um ano depois,
defrontará o seu antigo companheiro de
ecrã (Santana Lopes) numas eleições legis-
lativas que se saldam pela primeira maioria
absoluta socialista. Volta a disputar eleições
em 2009, onde o objetivo declarado de to-
dos os adversários, da direita à esquerda,
era tirar-lhe a maioria absoluta, coisa que
conseguem, embora o PS fosse, de longe,
o partido mais votado.
Em 2011, na sequência da crise europeia
das dívidas soberanas, é derrubado por uma
moção de censura, votada também por toda
a esquerda, que, desta forma, estende à
direita a passadeira vermelha para ganhar
as eleições seguintes, o que sucederá ainda
nesse ano, com Passos Coelho a ascender
a primeiro-ministro. Parecia seguir-se um
momento de acalmia na frenética carreira
política de Sócrates (que vai estudar para
França), mas não aconteceu. A 21 de no-
vembro de 2014 seria detido à chegada ao
aeroporto de Lisboa — era algo que nunca
sucedera a nenhum membro de um Gover-
no, muito menos a um primeiro-ministro.
Iniciava-se uma longa e intrincada bata-
ALBERTO FRIAS

lha jurídica sem fim à vista: a Operação


Marquês.
O primeiro Governo de Sócrates pro-
curou fazer reformas em diversas áreas,
desde a educação aos transportes e às no-
vas tecnologias. Esta última componen- António José Seguro, José Sócrates
te acabou por ter algum sucesso, como o novo aeroporto para Lisboa, que, ao sabor e Jorge Coelho durante o XII Congresso
Programa Simplex, visando permitir aos de sucessivos estudos, foi derivando da Ota do Partido Socialista, no Pavilhão
cidadãos tratar de assuntos administrativos para Alcochete. Atlântico, em Lisboa, em 2001
através da internet e com menores proce- As reformas no campo da educação ti-
dimentos burocráticos. São dessa altura veram algum sucesso no que diz respeito à
o Cartão de Cidadão, a Empresa na Hora aplicação das regras do Processo de Bolonha do banco Lehman Brothers nos EUA), em
ou o Documento Único Automóvel... Idem no ensino superior e à criação do Programa 2008, era claro que Portugal, com um peso
para a introdução das tecnologias de infor- Novas Oportunidades para cidadãos com muito alto da dívida pública no PIB e acu-
mação nos níveis mais básicos do ensino, baixos níveis de escolaridade. Já no ensi- mulação de défices orçamentais excessivos
o que passou pelo programa de aquisição no básico e secundário, novas regras de do Estado, caminhava para uma situação
e distribuição de minicomputadores bati- avaliação do desempenho dos professores complicada. Entre rumores de bancarrota
zados como Magalhães (mais tarde seriam levaram a uma vaga de greves e protestos e/ou intervenção do FMI, Sócrates leva ao
levantadas dúvidas acerca da regularidade nas ruas até então sem precedentes. No que Parlamento em 2011 uma série de planos de
da contratação pública desta operação). No respeita aos usos e costumes, foi legalizado estabilidade e crescimento (PEC) visando
caso dos transportes apostou-se na criação o casamento entre pessoas do mesmo sexo controlar a situação financeira. O chumbo
da rede ferroviária de alta velocidade (pro- e regulamentado de forma mais precisa o no Parlamento do último destes, o chama-
jetos de TGV para Badajoz, Porto e Vigo), direito ao aborto. do PEC IV, precipitaria a votação de uma
em novas autoestradas, como a transversal A partir do desencadear da crise do moção de censura e a consequente queda
do Alentejo entre Sines e Beja (A26), e num sistema financeiro internacional (falência do Governo. Sócrates foi posteriormente

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mas, em 1981, aderiria ao Partido Socialista, acusação na Operação Marquês. A forma
em cuja hierarquia distrital foi ascendendo. como foi detido, a 21 de novembro de 2014,
Nestes primeiros anos (1979) obtém o à chegada ao aeroporto e com equipas de
grau de engenheiro técnico pelo Instituto televisão presentes, levantou interroga-
Superior de Engenharia de Coimbra. Tra- ções sobre uma justiça-espetáculo e uma
balha nessa qualidade, fazendo projetos de campanha com fins políticos. Sem prejuízo
habitação (sobretudo moradias) na Covilhã disso, as acusações iniciais eram graves e
e na Guarda até 1990, altura em que passa tinham como pano de fundo relações tenta-
a ter dedicação exclusiva como deputa- culares e ainda hoje mal esclarecidas entre
do. Inscreve-se na Universidade Indepen- o poder político (Sócrates) e o poder eco-
dente, pela qual obtém a licenciatura em nómico, designadamente Ricardo Salgado,
Engenharia Civil, em 1996. Um processo homem forte do Grupo Espírito Santo. Em
controverso, pois diversas investigações termos concretos, passavam por alegadas
jornalísticas, incluindo do Expresso, põem cumplicidades financeiras e esquemas de
em dúvida a validade das habilitações, com fuga ao Fisco envolvendo Sócrates e alguns
o insólito caso de o diploma ter sido emitido amigos próximos, como Carlos Santos Silva.
a um fim de semana. Sem prejuízo desta Politicamente, o caso foi explorado pelos
polémica, a Ordem dos Engenheiros viria a partidos da coligação de direita no poder,
esclarecer que, não estando inscrito nesta, pretendendo associar o PS a tudo o que se
era-lhe vedado o título de engenheiro pelo tinha passado com Sócrates. O que obrigou
qual passara a ser conhecido. o partido e o seu novo líder, António Costa,
Quase desde o início, a sua atividade a uma laboriosa política de dissociação re-
governativa levantou polémicas. A mais lativamente ao antigo primeiro-ministro,
antiga foi o caso da central de tratamento que, pelo seu lado, se viria a queixar de
de lixo da Cova da Beira (licenciada quan- traição por parte dos ex-camaradas. Este
do era secretário de Estado do Ambiente, corte de amarras acabou por resultar, uma
em 1997), onde apareceriam envolvidos o vez que o PS conseguiu formar um Governo
seu amigo Carlos Santos Silva (mais tarde de coligação em 2015 e em 2022, nas legis-
investigado na Operação Marquês) e An- lativas seguintes, obter a maioria absoluta.
tónio Morais, o professor da Universidade Ouvido pelo superjuiz Carlos Alexandre
Independente com quem Sócrates obteria a seguir à detenção de novembro de 2014,
a licenciatura, que viriam a ser ilibados. José Sócrates ficará preso preventivamente
Depois foi o licenciamento do outlet Fre- em Évora durante nove meses, passando a
eport, em Alcochete, surgindo a partir de prisão domiciliária a 4 de setembro de 2015
2005 suspeitas de recebimento de luvas (en- e a termo de identidade e residência a 16 de
quanto secretário de Estado do Ambiente) outubro. A 28 de setembro, o juiz Ivo Rosa
para levantar restrições ambientais à cons- recebe por sorteio a instrução do processo.
trução da referida obra numa zona protegida Em abril de 2021, Ivo Rosa decide que
(antigas salinas e sapais). Nada se viria a Sócrates, inicialmente acusado de 31 cri-
provar judicialmente, mas durante meses mes, apenas seria pronunciado por seis: três
foi queimado em lume brando na imprensa. por falsificação de documentos e três por
Sócrates é acusado de ter feito pressões branqueamento de capitais. Dos 28 argui-
em 2009 para Manuela Moura Guedes ser dos, só cinco seriam levados a julgamento:
trucidado como gastador e impreviden- afastada do jornal das sextas-feiras na TVI. Sócrates, Carlos Santos Silva, João Perna,
te, sendo certo que durante a sua gestão Se Moura Guedes fazia do primeiro-minis- Armando Vara e Ricardo Salgado. De fora
seria atingido, em 2010, o défice mais alto tro o seu alvo preferido, Sócrates, com um ficaram figuras como Zeinal Bava ou Hen-
de sempre nas contas públicas. Contudo, feitio irascível, começa nessa altura a ver em rique Granadeiro (então gestores da PT).
sabe-se hoje que as medidas que preco- cada diretor de jornal ou repórter um poten- João Perna, ex-motorista de Sócrates, vai
nizava no PEC IV poderiam ter evitado a cial inimigo e reage muitas vezes aos gritos, a julgamento apenas pelo crime de posse
intervenção do FMI (junto com o Banco nomeadamente em conversas telefónicas. de arma proibida.
Central Europeu e a Comissão Europeia na Do lado oposto, e a partir do momento em Ivo Rosa deixou cair as acusações mais
chamada troika quando Portugal fica sob que começa a Operação Marquês, vai ha- complexas, retendo apenas as menos gra-
resgate) e, de resto, algumas delas seriam ver sectores da comunicação social que, ves mas mais fáceis de provar em tribunal
aplicadas pelo Governo seguinte liderado automaticamente, o darão como culpado (falsificação de documentos e branquea-
por Passos Coelho. de tudo o que for acusado. “Nem que ele mento de capitais), que, a serem provadas
Os primeiros anos da vida de José Só- descobrisse a cura para o cancro, haveri- integralmente, poderão implicar penas até
crates poderiam ser descritos como os do am de o crucificar, dizendo que só o tinha seis anos de prisão. O início da fase de jul-
bloco central. De facto, o seu pai, o arqui- feito para se encher de dinheiro”, dizia-se gamento está enredado em complicações
teto Fernando Pinto de Sousa, era filiado na altura no meio jornalístico, criticando legais, nomeadamente no que diz respeito
no PSD e seria vice-presidente da Câmara alguns excessos mediáticos. à nomeação dos juízes.
Municipal da Covilhã. Sócrates pertenceu à Contudo, o caso mais complexo foi o que
JSD (organização de juventude do PPD/PSD) levou à sua prisão preventiva e posterior Rui Cardoso

351
Edson
Santos Oliveira
Neurocirurgião

O médico
dos astronautas

“Sou casado, pai de gémeos e tenho um das primeiras memórias mais vivas e mais conhecia desde miúdo e que por isso lhe
cão.” É assim, entre risos, que Edson San- presentes que tenho da infância é a explosão disse: “Epá, ó Edson, eu acho que tu devias
tos Oliveira, neurocirurgião e especialista do Challenger, em 1986, quando eu tinha ser médico, tu tens um perfil que encaixa
em Medicina Aeroespacial, se apresenta apenas quatro anos”, recorda Edson Santos perfeitamente nessa área.” Edson seguiu o
ao Expresso. Edson nasceu há 40 anos nos Oliveira. Aos 16, quando já era um mem- conselho e, em 2001, entrou em Medicina,
arredores de Paris, no departamento de bro ativo da Associação Juvenil de Ciên- na Universidade de Lisboa. Chorou “baba
Seine-Saint-Denis, onde reside uma grande cia, começou a construir microfoguetes, e ranho por ter de sair de Coimbra”, mas
comunidade portuguesa. O pai tinha uma ao mesmo tempo que ia devorando livros atualmente não tem dúvidas de que foi a
empresa de construção civil e a mãe tra- de divulgação científica, como os de Carl melhor decisão que tomou na vida, aquela
balhava em casa, a cuidar dos dois filhos. Sagan ou a “Breve História do Tempo”, de que lhe abriu novos horizontes.
Quando tinha apenas seis anos, Edson veio Stephen Hawking. Ainda durante a licenciatura, Edson San-
com a família para Portugal, para perto das Na escola, era um aluno de excelência, tos Oliveira rapidamente ficou fascinado
raízes em Coimbra. “A mudança foi um com notas que lhe permitiam escolher o pelas neurociências e, enquanto aluno,
choque”, conta o neurocirurgião da CUF. curso que quisesse, mas “andava muito começou a acompanhar as cirurgias do
Durante a infância e a adolescência, indeciso e não sabia o que havia de fazer professor João Lobo Antunes, o “príncipe
“ser médico não era o primeiro pensa- à vida”. Ainda pensou seguir a carreira de da Medicina” que acabaria por se tornar
mento”. Era o fascínio pelo Espaço que o piloto de aviação, mas acabou por ingressar seu mestre. Apesar de ter percebido que
RUI DUARTE SILVA

fazia sonhar com voos mais altos e a área no curso de Bioquímica, na Faculdade de queria ser neurocirurgião, a paixão pelo
aeroespacial “sempre foi uma paixão”. Ciências da Universidade de Coimbra. Foi Espaço nunca ficou arrumada na gaveta e
Ainda pequenito, ficava estarrecido, com lá que teve uma conversa com o psiquiatra na faculdade era conhecido como “o tipo
os olhos colados à televisão, a assistir aos e professor Carlos Ramalheira, pai de um que gosta dos astronautas”. O sonho de
lançamentos dos vaivéns espaciais. “Uma dos seus melhores amigos, alguém que o Edson era simples: “Colocar a Medicina ao

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353
serviço da exploração espacial”, mas, na- objetivo descobrir por que motivo viajar no
quela altura, a Medicina Aeroespacial ainda Criou o Centro Espaço diminui significativamente a visão,
era uma área praticamente desconhecida
em Portugal. O jovem estudante começou a de Estudos o neurocirurgião português teve também
formações nas diversas áreas da Medicina
interessar-se pelas alterações anatómicas e
neurofisiológicas que os astronautas sofrem
de Medicina Aeroespacial.
Regressado a Portugal, cheio de novos
quando são colocados em microgravidade.
Foi já no terceiro ano do curso, quando
Aeroespacial, conhecimentos na bagagem, Edson Santos
Oliveira tinha um problema para resolver:
estava a estudar para Farmacologia, que re-
cebeu um telefonema de um amigo, para lhe
o primeiro “O que é que eu vou fazer com tudo isto
que aprendi?” No nosso país, existia apenas
falar de algo que seria do seu interesse: um do país e um uma formação na área de Medicina Aero-
workshop de Space Medicine, organizado náutica, dada pela Força Aérea Portuguesa,
pela ESA, que ia decorrer no Centro Europeu dos poucos na o que é muitíssimo diferente de Medicina
de Astronautas, em Colónia, na Alemanha.
Para poder participar, Edson Santos Oliveira Europa, focado Aeroespacial.
Pela sua ligação à Faculdade de Medi-
teria de apresentar um projeto a concur-
so e de ser selecionado entre centenas de
na investigação cina da Universidade de Lisboa (FMUL),
na qualidade de professor assistente, Ed-
candidatos. Foi então que Edson começou
a desenvolver o protótipo de um sistema
clínica son sentia o dever de pôr em prática e ao
serviço da faculdade todo o saber que a
hidráulico que permitisse aos astronautas passagem pela NASA lhe deu. Foi assim
fazer exercício físico, de forma a diminuir a que, após uma conversa com o diretor da
perda de densidade óssea, uma vez que no FMUL, o professor Fausto Pinto, nasceu
Espaço não há peso. “Mandei aquilo para dele”, “treinados como marines”. Den- a ideia para criar o Centro de Estudos de
a ESA e acabei por ser selecionado. Fiquei tro do hospital, “ninguém tocava na tribo Medicina Aeroespacial (CEMA), o primeiro
sem chão. Lá fui durante uma semana para dos meninos do professor Lobo Antunes”. do país e um dos poucos na Europa, focado
a ESA, rodeado de outros estudantes, muitos Numa das últimas conversas que tiveram, na investigação clínica e inaugurado em
deles com doutoramentos e eu ainda nem quando o aluno levou o mestre ao aeroporto, abril de 2022.
era licenciado”, lembra o neurocirurgião este despediu-se dele com as seguintes e Embora ainda esteja a dar os primeiros
que anda sempre com a cabeça na Lua — proféticas palavras: “Edson, eu não vou passos, o centro conta desde o início com o
e mais além. Durante o workshop, teve a estar aqui para ver, mas hás de ir longe!” apoio da Agência Espacial Portuguesa e está
oportunidade de conhecer astronautas e E assim foi. O dia em que Edson Santos já a colaborar com a ESA em alguns proje-
quem deles cuida, como Jeffrey Davis, que Oliveira se tornou neurocirurgião, em 27 de tos. “Temos vindo a crescer naturalmente
durante muitos anos foi diretor do depar- outubro de 2016, foi também o dia em que e a um nível internacional de uma forma
tamento médico da NASA. “Lembro-me João Lobo Antunes morreu. “O exame foi meteórica”, frisa Edson Santos Oliveira. O
de ele ter perguntado: ‘How the hell do interrompido a meio com a notícia da morte laboratório está equipado com vários simu-
we have a portuguese here?’ (Como diabos dele. Já não lhe pude telefonar para dizer, ladores, entre os quais um tapete rolante
temos aqui um português?)”. A estranheza cheio de orgulho, que tinha terminado com Alter G, que consegue retirar até 80% do
era natural, pois “nunca tinha havido um muito boa nota.” peso do nosso corpo, o que permite repro-
médico português naquelas lides” e Edson A vida de Edson Santos Oliveira está duzir os padrões de marcha adaptados à
“estava a aterrar ali de paraquedas”. cheia de acasos, encontros inusitados que gravidade da Lua ou de Marte.
Aquela experiência foi uma porta de en- lhe mudaram a vida. Um desses momentos Além disso, Edson Santos Oliveira está
trada, mas pouco depois houve uma que se ocorreu em 2018, quando participou no também ligado à Space Surgery Associa-
fechou. E isso doeu-lhe. Edson concorreu Congresso Americano de Neurocirurgia, tion, que congrega cirurgiões de todo o
a um estágio remunerado de um ano no realizado em Houston, onde assistiu a uma mundo, com o objetivo de pensar como é
departamento médico da Agência Espa- conferência de Smith Johnston, médico que se podem realizar atos cirúrgicos em
cial Europeia. Foi chamado para entrevista, da NASA e um dos líderes do processo de ambientes sem gravidade. “É preciso pen-
juntamente com dois canadianos, e acabou seleção de astronautas, com quem teve a sar nisso. Se vamos para o Espaço, vamos
por não ser escolhido. Decidiu “encerrar o oportunidade de falar. Johnston estava, na ter emergências médicas e temos de saber
capítulo da parte espacial” e concentrar-se altura, à procura de um neurocirurgião que como atuar”, salienta o especialista em
na carreira médica. Em 2010, iniciou a for- servisse de consultor para um projeto que Medicina Aeroespacial, para quem a vida
mação em Neurocirurgia e fez o internato no a NASA estava a desenvolver com o MIT, mudou a uma “velocidade louca” e até o
Hospital de Santa Maria, onde voltou a ser que tinha como intuito o estudo de uma levou a fazer parte do comité de seleção
aprendiz de João Lobo Antunes. “Foi uma síndrome neuro-ocular induzida pelos voos da nova equipa de astronautas da ESA, um
pessoa que me moldou. Ele achava muita espaciais. convite inesperado que se revelou uma “ex-
piada ao meu dinamismo, à minha verten- Edson encaixava exatamente no perfil periência fantástica”.
te mais interventiva e política, e ao meu pretendido e, em junho de 2019, lá esta- “Tem sido uma grande aventura”, mas
espírito de liderança. Deixou-me muitos va ele no Johnson Space Center, da NASA, a odisseia em terra deste neurocirurgião
ensinamentos e chamou-me muitas vezes onde “parecia uma criança num parque que trata da saúde de quem está no Espaço
ao gabinete dele para me dar conselhos de de diversões”, “completamente em êxta- promete ser dourada e duradoura. “Vamos
vida”, conta Edson Santos Oliveira. se” por poder ver de perto os treinos dos ver até onde é que isto vai.”
Como chefe, Lobo Antunes era “muito astronautas. Além do projeto de investi- 
exigente” e “muito protetor dos discípulos gação em que participou, que tinha como André Manuel Correia

354
Rui
Veloso
Músico

O pai
do rock
português
D.R.

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357
Quando, na década de 80, se começou a
falar num fenómeno que, à falta de melhor,
se designava como “rock português” houve
uma plêiade de grupos musicais e de intér-
pretes com as mais diversas características.
Contudo, a maior parte destes era aquilo a
que nos anos 60 se chamava “grupos de
um só êxito”, isto é, apareciam, gravavam,
alcançavam um efémero estrelato e depois
desapareciam para sempre.
Chamaram a Rui Veloso o pai do rock
português, título com o qual o músico
nunca se terá entusiasmado por aí além.
Mas uma coisa é certa: juntamente com
os GNR e os Xutos, é um dos poucos cuja
obra, iniciada nessa época, atravessou
décadas e gerações até aos nossos dias,
deixando uma marca indelével no plano
musical português. Bastaria evocar o seu
primeiro álbum “Ar de Rock” (que inclui,
por exemplo, ‘Chico Fininho’ ou ‘Rapa-
riguinha do Shopping’) editado em 1980,
ou “Rui Veloso” (com temas como ‘Porto
Sentido’ ou ‘Porto Covo’) lançado em 1986,
para se aferir do bem fundado desta ideia.
Que em boa parte assenta numa das mais
fecundas parcerias entre um músico e um
letrista: Rui Veloso e Carlos Tê.
Num trabalho sobre Rui Veloso e a sua
música, feito por Cristina Margato no Ex-
presso (18 de julho de 2020), Francisco
Vasconcelos, presidente da Valentim de
Carvalho, revivia a aventura do lançamento
do primeiro disco de Veloso, 40 anos antes.
“Foi o ‘Ar de Rock’ que nos fez acreditar
que era possível fazer música moderna em
português.” Não sendo o primeiro disco por-
tuguês de rock, foi, como escreve Cristina
Margato, “aquele que afirmou este género
em português, sinalizando o despertar de
uma nova geração e o início de um novo
período na história da música portuguesa.
‘Chico Fininho’, ‘Rapariguinha do Sho-
pping’, ‘Bairro do Oriente’ ou ‘Sei de Uma
Camponesa’ sobreviveram até hoje na rádio
ou nos concertos de Rui Veloso”.
Citando o historiador António Araújo, a
música de Veloso trazia consigo uma crítica
social de novo tipo. Até então, “as letras,
ou eram coisas de amor muito arrebata-
das, ou eram ideologicamente carregadas,
em defesa dos pobres humilhados e das
tragédias sociais. Neste disco não se falava
do consumo de droga com laivos trágicos
LUÍS VASCONCELOS

nem em termos desculpatórios. Usava-se


uma certa ironia não cáustica. Foi mesmo
uma lufada de ar fresco, porque as pessoas
não estavam habituadas a uma música rock
com letras tão criativas e inventivas”.
Nesta altura Rui Veloso não vinha colado Rui Veloso com Bruno Salgado, filho de um casal de amigos seus, durante
à imagem de um baladeiro de esquerda. a sessão de fotografias feita em 1980 por Luís Vasconcelos para o jornal
“Era uma pessoa muito transversal que “Rock Week” e que acabou na capa de “Ar de Rock”

358
soava bem aos betos de Lisboa e do Porto. quarto disco, há muito que não seria ar- o ator John Malkovich. Recebo-o, apresen-
Rui Veloso também não estava acantonado tista”, disse na citada entrevista. O álbum to-me e ele diz-me: ‘I know who you are’.
ideologicamente. Não era um produto de inclui o celebrado tema ‘Porto Covo’, que Soube-me bem.”
um coletivo, de um partido. Não era o pro- pôs esta vilória da costa alentejana no mapa. Pelo meio, algumas derivações, como,
duto de uma clique política, de um grupo, “Antes de ter feito a música, nem sequer em 1990, o grupo Rio Grande (com Vitorino,
e isso foi muito importante. Dava ideia de sabia que havia praias alentejanas. Sempre Jorge Palma, João Gil e Tim), grupo que
uma certa autenticidade, surge fora de um pensei no Alentejo como interior. Foi o Tê voltaria a juntar-se, embora sem Vitorino,
movimento. Isolado. É um desbravador.” que me explicou que era uma terra junto ao para o projeto Cabeças no Ar, em 2002,
As letras de Carlos Tê gozavam com tipos mar, com a ilha do Pessegueiro à frente.” gravando um álbum que incluía ‘Primeiro
sociais, algo comum no humor que apa- Mais tarde foi lá, “num mês de janei- Beijo’ e ‘A Seita Tem Um Radar’.
rece na mesma década, como é o caso de ro, num dia de inverno terrível. Tinha-me Os anos que se seguem vão ser com-
Herman José, mas na opinião de António chateado com a namorada e decidi fugir. plicados, como contará ao Expresso num
Araújo, são já solares, ou seja, “já não se Fui para a pensão Abelha, na rua princi- trabalho elaborado por Jorge Pires (25 de
está a matar capitalistas...” pal, e o filho da dona recebeu-me como novembro de 1995). Primeiro foi o sucesso
No álbum “Ar de Rock”, como recor- se fosse da casa. Deu-me a suíte e não me de “Mingos & Os Samurais” (1990) que
da Cristina Margato, ‘Chico Fininho’ é a deixou pagar nada. Depois, comecei a ir inclui ‘Não há Estrelas no Céu’ ou ‘Baile da
peça fundamental. “A letra nasce de uma mais amiúde e assisti à transformação da- Paróquia’. Depois, a produção atribulada de
liberdade de Carlos Tê (de seu verdadeiro quilo. Uma vez, no Restaurante da Ilha, “Auto da Pimenta” (1991), uma encomenda
nome Carlos Alberto Gomes Monteiro), que encontrei o Banderas, o Jeremy Irons e a da Comissão dos Descobrimentos que, ten-
até então só escrevia letras em inglês, e Glenn Close. Estavam a rodar ‘A Casa dos do os seus entusiastas, é por muitos consi-
da convicção de que esta letra nunca se- Espíritos’. Ninguém me reconheceu, mas derado um disco falhado. Entre este e “Lado
ria gravada. Tê vem de ‘TM’, iniciais de tive o meu momento de glória mais tarde. Lunar” decorrerão quatro agitados anos.
‘Tarado por Música’, nome que os amigos Um dia, no meu restaurante, o Dom Tonho “Esse disco foi feito muito em cima do
lhe davam por causa da sua obsessão pela [fundado em 1992 na Ribeira portuense e ‘Mingos & Os Samurais’, que também era
música. Inspirou-se nas ruas e naquelas cuja gerência abandonaria em 2013], entrou duplo, numa época em que eu tinha dezenas
personagens com as quais se cruzava to- e dezenas de pedidos de espetáculos. Havia
dos os dias, no caminho que fazia de casa uma ideia, que se tinha discutido com a
dos pais, na Pasteleira, até à loja de artigos Comissão dos Descobrimentos, de se fazer
elétricos, na Baixa, onde trabalhava.” Carlos um disco mais ou menos pedagógico, com
Tê recorda em declarações ao Expresso: um espetáculo que fosse igual em todo o
“‘Chico Fininho’ foi um exercício. A canção país. Tinha de ser um espetáculo patroci-
oscila entre o universo mental de Frank nado, porque nós não tínhamos dinheiro
Zappa e de António Mafra. Escrevi o que me para o produzir. Para tocarmos o ‘Auto da
veio à cabeça a partir da atmosfera que se Pimenta’ não podíamos apresentar ao vivo o
respirava na rua, naquele pós-25 de Abril, ‘Mingos & Os Samurais’. No final de contas,
e tentei encaixar a letra, na qual usei pa- nunca toquei o ‘Auto da Pimenta’ ao vivo, e
lavras que nunca acreditei poderem estar fartei-me de gastar dinheiro com aquilo.”
numa canção, numa harmonia de três tons,
ritmo e blues típica. Não fazia a mínima
“Rui Veloso Pelo caminho, como conta Jorge Pires, Rui
Veloso acabou também por ficar sem banda,
ideia de que pudesse vir a escrever letras
em português.”
não estava uma vez que ninguém consegue manter
indefinidamente os seus músicos a ensaiar
Por volta de 1980 foi um nunca acabar acantonado um espetáculo que jamais se realiza. “Se eu
de grupos, uns que vingaram, outros qua- soubesse o que sei hoje, tinha feito um ál-
se esquecidos: Táxi, Heróis do Mar, Xutos, ideologicamente. bum de estúdio, esperava mais um ano para
Roquivários... Como dirá Rui Veloso ao Ex-
presso a 13 de dezembro de 2013 (entrevista
Não era produto fazer o ‘Auto da Pimenta’, e durante aquele
aninho tinha andado a tocar — o que me
conduzida por Filipa Moroso), não tem as
melhores recordações desse período. “A
de um coletivo, dava para ficar dois anos à vontade, sem ter
de me preocupar com o dinheiro para pagar
verdade é que não me importava de ter nas-
cido mais tarde e não passar por aquela
de um partido. as contas e podendo, assim, trabalhar em
casa, que é o que eu quero. E depois aquilo
porcaria toda. Andámos a abrir caminho, Dava ideia trouxe muitas complicações, inclusive na
tocávamos em sítios horríveis, ganhávamos minha relação com o Carlos Tê; taxaram-
pouco. O meu primeiro concerto foi em de uma certa -nos com aquela coisa da ‘encomenda’ e
Lagos, com uma merda de som. O segundo
foi no Dramático de Cascais, e repetiu-se a autenticidade. da ‘ligação ao poder’, e isso também nos
prejudicou bastante.”
cena. O terceiro estava marcado para Es-
pinho e antes que o mau som se repetisse
É um Dirá Veloso ao “Blitz” ter-se tratado de
“coisas de egos”. E Tê dirá ao Expresso:
ameacei os gajos de porrada. Estava na mi-
nha terra. Tudo tinha de correr bem.”
desbravador”, “Não existem relações felizes em lado ne-
nhum, não sei porque haveriam de existir
Até que surge, em 1986, um quarto e
decisivo disco, ao qual foi dado o nome do
diz António aqui...”

próprio cantor. “Se não fosse o sucesso do Araújo Rui Cardoso

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360
Anabela
Carvalho
Professora de Ciências
da Comunicação

Vamos falar
de alterações
climáticas?
RUI DUARTE SILVA

361
Talvez tenha sido a grande fome na Etió- alguns casos envolvendo até grandes quan- e estudar “algumas coisas que uma forma-
pia, em 1984, ou a influência da televisão tidades de dinheiro, por forma a distorcer ção mais linear não permite”. Desde en-
na jovem Anabela, quando a veemência o conhecimento científico e permitir que tão, tem-se dedicado a lecionar disciplinas
das imagens através do televisor ainda se continue com uma trajetória de ação?” como Comunicação, Ciência e Ambiente,
lhe provocava comichões, o elemento de- Na Águeda dos anos 80, a adolescente Comunicação Internacional e Comunicação
terminante para a verde ideia de salvar o Anabela queria ser detetive. Mais tarde, Política. E a sua investigação tem somado
mundo. Lembra-se da perturbação que foi o grande pedaço que desconhecia do conquistas. A par de vários prémios, Ana-
lhe causavam essas imagens. Do choque, mundo que lhe provocou inquietação. Só bela Carvalho é cofundadora da Secção de
contrastante com a calmaria da cidade de inquietação, inquietação, como por esses Comunicação de Ciência e Ambiente da
Águeda industrializada, capital das bicicle- anos se estreava a cantar José Mário Bran- European Communication Research and
tas e motorizadas, quando lá conseguiam co. Queria perceber os países, as pessoas e Education Association (ECREA), bem como
coabitar o ruído da indústria e a pacatez da os problemas globais. Ao ponto de, aos 14 cofundadora da International Environmen-
floresta. Por entre as “vagas e dispersas” anos, chegar a escrever para a Greenpeace tal Communication Association (IECA). É
memórias de si mesma antes da primeira Internacional, pedindo esclarecimentos autora e organizadora de vários livros, entre
década de vida, recorda a sirene das fábricas acerca de questões ambientais que também eles o “Climate Change Politics: Communi-
anunciando o começo do dia de trabalho e afetavam Portugal. Nessas cartinhas escritas cation and Public Engagement”, de 2012, e
as brincadeiras na floresta. E quando pensa à mão, em inglês, que depois rumavam a dirige o doutoramento FCT em Estudos de
na Anabela Carvalho de agora, talvez esteja Amesterdão, ia já uma muito particular Comunicação: Tecnologia, Cultura e So-
na ligação ao meio natural a resposta para sede de conhecimento que a aluna brilhante ciedade, um consórcio de seis centros de
compreender tudo o que se seguiu. não contava ficar por explorar. Por isso, investigação e quatro universidades.
Foi no cruzamento de temas e de geogra- na altura de largar o berço, em 1988, aos Hoje, anos depois de terem surgido no
fias que, no cume de uma carreira cheia, a 18 anos, escolheu Relações Internacionais debate público, para Anabela as altera-
professora e investigadora em Ciências da na Universidade do Minho, mesmo com ções climáticas representam uma “ques-
Comunicação da Universidade do Minho Braga a parecer-lhe, à época, uma cidade tão completamente em aberto”. O tema
encontrou lugar entre os 2% de cientistas “bastante recôndita, perdida no tempo, “de futuro” esperava menos futuro. Como
mais influentes do mundo. São contas da com muita chuva e muitas marcas do ca- se compreende que as decisões políticas e
Universidade de Stanford (EUA), baseadas tolicismo”. cidadãs continuem aquém das evidências
em parâmetros como o volume de publica- O caminho que Anabela havia inicia- científicas? E porque é que até agora o tema
ções e de citações dos trabalhos académi- do a perceber como se organiza o mundo, tem sido abraçado sobretudo pelas gerações
cos. O reconhecimento — este, entre outros continuou, a partir dali, por se estender a mais jovens?
— chega anos depois do encontro com o entender como comunica esse mundo. Logo A encabeçar uma investigação que re-
assunto em que viria a especializar-se, e que no fim da licenciatura, sem contar, surgiu à laciona jovens com alterações climáticas,
rapidamente se tornou o “mais agregador, aluna brilhante a oportunidade de ocupar Anabela Carvalho diz que está em causa
fascinante e complicado”, por conter dentro uma vaga no departamento de Ciências da uma questão de justiça intergeracional.
dele o tamanho do que a menina Anabela Comunicação e ali começar uma carreira “Todas estas pessoas recebem um legado
sonhou sem saber: “Todos os países, todas como professora e investigadora, que logo se do impacto humano sobre o mundo, para
as pessoas, impactos enormes e as vozes focou nas questões do ambiente. Mais tarde, o qual contribuíram pouco e, inevitavel-
todas, dos ativistas aos políticos.” no doutoramento, Anabela quis ver o seu mente, mesmo que num mundo imaginá-
As alterações climáticas irromperam no conhecimento esticado até à Geografia, com rio se suspendessem todas as emissões de
palco internacional pouco antes de a inves- o objetivo afincado de cruzar áreas, para ver gases com efeito de estufa, vão continuar
tigadora se atirar para um doutoramento, a sentir os efeitos das práticas, decisões e
na University College London, no Reino opções de outras gerações que, pelo me-
Unido. No avanço das negociações que con- nos desde os anos 90, sabem dos impactos
duziram ao Protocolo de Quioto, em 1997, o antropogénicos das alterações climáticas.
primeiro tratado internacional para reduzir
a emissão dos gases com efeito de estufa,
No cume de uma É muito injusto que quem nasce agora ou
quem nasceu há pouco tempo receba este
entendeu que residia ali o prólogo para um
dos grandes temas do futuro. E não se en-
carreira cheia, legado. É um direito inquestionável que os
jovens têm de se defender.” É preciso que se
ganou. “Lembro-me perfeitamente de ver
títulos no ‘The Guardian’ que diziam ‘temos
a professora e os oiça para lá do barulho que fazem na rua.
É nessa confluência de propostas que se
dez anos para salvar o mundo’. A noção investigadora da move a comunicação capaz de naturalizar
da urgência e da gravidade das alterações um certo tema de uma determinada manei-
climáticas, enquanto requerentes de uma Universidade do ra. E é na comunicação que reside o poder
ação determinada e urgente, era muito viva
já na altura”, recorda. E sendo esta evidên- Minho encontrou de democratizar os debates. Aos olhos da
menina persistente, autodisciplinada, com
cia científica a base para decisões políticas,
pressões económicas e ações de ativistas,
lugar entre os um quê de rebelde, é na comunicação, nos
seus mais variados vetores, que se encon-
como se move a mensagem de uns para
outros? Como se gera uma realidade en-
2% de cientistas trarão as respostas para perceber se esta
geração pode, no futuro, efetivar as mu-
tendida como verdade em todo o mundo? E
como é que ela se mantém verdade, mesmo
mais influentes danças que agora apregoa.

sujeita a “vários tipos de negacionismos, em do mundo Joana Ascensão

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Carlos
do Carmo
Fadista

A renovação
do fado
LUÍS BARRA

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Os mais de 50 anos de carreira de Carlos do Thilo Krasmann, Manuel Alegre, Carlos do
Carmo da Ascensão de Almeida, nascido Carmo e José Niza, vencedores do Festival da
em Lisboa em 1934, ilustram a evolução do RTP da Canção de 1976 com a canção ‘Uma Flor
fado, tanto no plano interno como externo e de Verde Pinho’, nos estúdios da RTP, em Lisboa
mostram como evoluiu, quer a perceção dos
portugueses relativamente à pretensa “can-
ção nacional”, como às novas vias que esse ‘Lisboa, Menina e Moça’ a ‘Um Homem na
tipo de música se revelou capaz de explorar. Cidade’, sem esquecer ‘O Amarelo da Car-
Há puristas que dizem que o verdadeiro fado ris’. A associação, fundamental para romper
morreu com Alfredo Marceneiro ou com com a ‘velha’ imagem do fado e dos fadistas,
Carlos Ramos. Outros que reduzem tudo era tanto artística como ideológica, uma vez
à identificação desta forma musical com a que um e outro eram, à época, próximos do
figura de Amália Rodrigues. E outros, ain- PCP. Daí nasceu uma alcunha maledicente
da, que sublinham a forma como o fado se que associava o penteado do artista às suas
transformou pelas vozes de Camané, Mariza, opções políticas: o capachinho vermelho.
António Zambujo ou Gisela João. Uma orientação da qual o fadista haveria
Porém, em todas estas análises falta um de se começar a demarcar no final da vida.
elemento fundamental: Carlos do Carmo, Foi mandatário de António Costa na cam-
o único fadista português a ter sido distin- panha de 2009 para a Câmara Municipal de
guido com um Grammy latino, prestigiado Lisboa e participou num almoço de campa-
prémio da indústria discográfica. Aconteceu nha do PS nas legislativas de 2015, em que
em 2014 e tratou-se de um prémio de car- se assumiu apenas como “um apoiante de
reira (Lifetime Achievement), consagrando, Costa”. Este recordá-lo-á, mais tarde, nos
portanto, o conjunto da obra e não um tema seguintes termos: “Deu-me a honra de ser
ou disco em especial. meu mandatário quando fui candidato à
Ainda que fosse filho de uma das mais Câmara de Lisboa e não se limitou a dar o
conhecidas fadistas portuguesas (Lucília nome, o prestígio e a acompanhar-me na
do Carmo) e crescesse no ambiente de uma campanha eleitoral”, vigiando, também, o
casa de fados — O Faia — não se pode dizer cumprimento das promessas eleitorais do
que tenha dedicado toda uma vida à can- candidato eleito.
ção. É só a partir de 1964, quando, após a Em 2014, altura em que, como atrás se
morte do pai, Alfredo de Almeida, começa referiu, recebeu o Grammy latino, esteve
a gerir O Faia que vai tornar-se fadista a patente na Cordoaria Nacional, em Lisboa,
tempo inteiro. Cantará até 2019, altura em a exposição “Carlos do Carmo 50 Anos”,
que decidiu pôr termo à sua carreira, data inaugurada depois do lançamento, em finais
assinalada por um espetáculo no Coliseu do ano anterior, do álbum “Fado É Amor”,
dos Recreios em Lisboa, a 2 de novembro gravado com fadistas das mais recentes
de 2019. Deixar-nos-ia em 2021, vítima de gerações, caso de Mariza, Ana Moura, Car-
um aneurisma. minho, Camané ou Aldina Duarte. Em en-
Embora tivesse gravado diversos dis- trevista à “Blitz” (1 de dezembro de 2013)
cos anteriormente, pode dizer-se que a sua diria sobre o significado dessa experiência:
carreira será definitivamente marcada pelo “Foi um disco de imensa aprendizagem.
25 de Abril. Numa época em que o fado Não há nenhum dos convidados que não
tinha deixado de ser visto como a “canção perceba de tecnologia e que não saiba o que
nacional” e aparecia associado à ditadura quer. Têm uma forma de funcionar em estú-
e aos seus valores (os três famosos efes, ti- dio que eu jamais tive — eu sou um sujeito lado comigo e com os guitarristas.” Na mesma
dos como sustentáculo da ditadura, ou seja completamente ignorante em matérias de ocasião referiu-se à razão de ser de o dueto
Fátima, Fado e Futebol), Carlos do Carmo tecnologia. Durante anos a fio gravei discos ser tão raro no fado: “Talvez nunca ninguém
vai ser um dos responsáveis por uma nova com o Luiz Villas-Boas, do jazz, a dizer ‘é se tenha lembrado... Desgarradas há muitas e
imagem deste tipo de expressão musical. pá, isso ficou uma merda, vocês têm que faz parte. E porquê? Porque a geração anterior
Isso passou, por exemplo, pela sua par- gravar outra vez’. A tecnologia era esta…” à minha era uma geração de improvisadores
ticipação no Festival da Canção de 1976 Tecnologia foi também o que lhe permitiu e repentistas. A genialidade do fado está toda
que, nesse ano, teve um formato totalmente fazer naquele disco uma gravação históri- ali. Agora o dueto é outra coisa, é a partilha do
diferente: um mesmo artista interpretando ca, interpretando um dueto com a sua mãe, fado. E foi essa a loucura em que me meti...”
todas as canções concorrentes. Do leque Lucília do Carmo, há muito falecida. Como Pontos altos da sua longa carreira foram
destas destacavam-se ‘No Teu Poema’ (mú- diria na citada entrevista: “A tecnologia per- digressões no estrangeiro que o levaram, por
sica de José Luís Tinoco), ‘Estrela da Tarde’ mitiu-o. O Hugo Ribeiro, que gravou o ‘Com exemplo, ao Olympia de Paris. Foi na sala
(Fernando Tordo/Ary dos Santos) e ‘Flor de Que Voz’, da Amália, e o meu ‘Um Homem parisiense, a 12 de outubro de 1980, que terá
Verde Pinho’ (José Niza/Manuel Alegre), na Cidade’ — um grande senhor dos discos tido um dos maiores triunfos da sua vida. Foi
vencendo esta última o festival. É a asso- portugueses — trabalhou muito bem as vo- aplaudido de pé quanto interpretou o tema
ciação com Ary dos Santos que vai deter- zes, de tal forma que a minha mãe parecia de Jacques Brel ‘La Valse à Mille Temps’.
minar alguns dos seus maiores sucessos, de estar ali naquele preciso momento, lado a Foi, justamente, durante uma atuação fora

366
ARQUIVO A CAPITAL

de Portugal que sofreria um grave acidente de Armandinho ou Marceneiro. Três anos Uma militância “que libertou o fado do
em 1990: uma queda do palco para a pri- depois, seria a vez de “Carlos do Carmo / estigma de símbolo da ditadura e o renovou
meira fila de uma sala de concertos na ci- Bernardo Sassetti”, neste caso com novas no Portugal de Abril. A militância que pros-
dade francesa de Bordéus afastou-o durante versões de temas de Fausto, José Afonso, segue, que mobiliza novos compositores
longos meses das atuações ao vivo, tendo de Sérgio Godinho ou Violeta Parra. e poetas, que encoraja e acarinha novos
empreender uma longa recuperação que só Em 2019, no final da carreira de Carlos intérpretes, que valoriza os instrumentistas,
terminaria em 1991. do Carmo, o primeiro-ministro António que conquista novos públicos. A militância
Antes disso (1983), “Um Homem no Costa publicou no Expresso um texto de ho- que levou a UNESCO a reconhecer o fado
País” corresponderia à sua primeira edição menagem ao fadista. “O mais notável con- como património imaterial da Humanidade.
em formato CD. Nos anos seguintes gravará tributo de Carlos do Carmo para a Cultura É com este espírito que sonhou o Museu
dois álbuns que marcam o ponto alto da portuguesa é a forma como militantemente do Fado como uma verdadeira escola para
sua carreira. Em 2007, escolheu o cenário renovou o fado e o preparou para novas o futuro, porque depois do tempo, tempo
do Museu do Fado em Lisboa para lançar colheitas.” Depois de recordar que cantava vem, e o fado também se há de continuar a
“À Noite” com poemas inéditos de Nuno muito mais do que fado e que disso eram renovar e para renovar é preciso aprender
Júdice, Fernando Pinto do Amaral, Maria exemplos as homenagens aos seus ídolos, o que de velho se faz novo”.
do Rosário Pedreira, Júlio Pomar ou José como Brel ou Sinatra, concluía: “Era mesmo
Luís Tinoco, adaptados a fados tradicionais um militante do fado.” Rui Cardoso

367
ANA BAIÃO

368
Dino
D’Santiago
Músico

Um mundu
nôbu

369
O mundo muda, evolui, transforma-se. E
nesse tumultuoso processo há países que
nascem e morrem, que mudam de nome,
tal como as cidades e as pessoas. Há estátuas
que se derrubam para outras serem ergui-
das. E há também hinos e até bandeiras que
se substituem, que se mudam para que toda
a gente neles se encontre. Dino D’Santiago é
português e quer um hino que o represente.
Nada mais natural.
Claudino de Jesus Borges Pereira não
acordou para estas questões hoje e a propos-
ta que fez após a sua apresentação na Gran-
de Conferência que assinalou o meio século
de vida do Expresso não é fruto da “agenda
woke” que tantos debates tem suscitado.
Em 2008, no primeiro registo daquela que
então se projetava como uma carreira muito
diferente, “Eu e os Meus”, Dino declara-
va-se ‘Filho do Ghetto’ num tema em que
tinha por convidado o rapper Valete e em
que manifestava a vontade de despir “um
outrora trocado por marfim”. Quando, dez
anos depois, Dino, já D’Santiago, nos apre-
sentou um “Mundu Nôbu”, já tinha em cima
dos ombros muitas vidas musicais, que são,
elas mesmas, simbolicamente representa-
tivas da sua procura de um lugar: começou
por se alinhar com a revolução hip hop em
curso no já mencionado álbum de estreia
em que contava com o apadrinhamento de
Sam The Kid, depois, fazendo uso pleno da
sua distinta voz, integrou a Nu Soul Family
ao lado de Virgul, então em busca de um
caminho pós-Da Weasel. Nos Expensive
Soul de New Max e Demo aceitou um papel
mais discreto e em 2013 partiu à descoberta
das suas raízes africanas com “Eva”, álbum
em que teve ao seu lado o mestre do semba
Paulo Flores e em que deu voz ao verdadeiro
standard das ilhas que é ‘Djonsinho Cabral’,
dos míticos Tubarões. Hip hop, soul e funk,
morna e funaná: Dino conhece muito bem
todos esses balanços e por todos se deixou
embalar até entender que não tinha que
procurar um lugar na música: bastava-lhe
inventar um novo. se insere com a sua música. Ele está a redes- cria. É com a música que ele quer guiar-nos
O álbum “Mundu Nôbu” contou com cobrir-se e penso que todas as conquistas para um lugar melhor”.
produção do londrino Seiji, que tem créditos que foi amealhando nestes últimos quatro A notoriedade de que Kalaf fala não tem
em trabalhos de artistas como Moodymann, anos lhe permitem estar mais seguro, ser sido desbaratada por Dino D’Santiago, que
Skream ou Roisín Murphy, e beneficiava mais corajoso nas suas abordagens estéticas sabe que é a sua arte que lhe abre portas, mas
da visão de Kalaf Epalanga, multifacetado ou até filosóficas. E se isso acontece na sua que entende igualmente que é a sua cons-
criador que o mundo aprendeu a conhecer música”, prossegue Kalaf, “também se vai ciência que o faz intervir: quando foi recebido
como membro dos Buraka Som Sistema. Ao manifestar na sua ação enquanto homem, pelo primeiro-ministro António Costa, Dino
Expresso, Kalaf começa por dizer que vai enquanto cidadão, enquanto pai, irmão, fez do corpo manifesto e usou uma t-shirt em
ser muito difícil perceber a importância de marido, homem de família. E todas essas que se podia ler “Preto estás na tua terra”; na
Dino D’Santiago, da sua música e mensa- ações resultam da sua música: não se pode já mencionada celebração do meio século de
gem, enquanto a história estiver a correr e olhar para o Dino ativista sem se ver o Dino vida do Expresso, outra mensagem impressa
a poeira não assentar. “O próprio Dino”, artista”. Kalaf Epalanga ressalva que “para em t-shirt declarava “Nossos corpos tam-
afiança-nos o escritor, “está a descobrir um entendermos todo o turbilhão que se gerou bém são pátria”. O que Dino nessa ocasião
novo lugar e a tentar perceber como pode em torno dele em tempos recentes, devemos propôs — e que tanta celeuma digital gerou
impactar as pessoas e a sociedade em que procurar as respostas na música que ele — não foi que se alterasse a parte que fala da

370
e nas ‘Esquinas’ do mais recente “Badiu”
(2021) garante que “Terra não é só o lugar
onde se nasceu/ É também o chão que tra-
zemos na mente”.
Usar a matéria poética da música que
se dança como sementes que fazem cres-
cer pensamento não é, de facto, assim tão
comum. Mas a música — ou a arte — de
intervenção nunca foi só uma coisa. E ao
levantar estas questões, Dino não comunica
só com um público afrodescendente que
nas periferias das grandes cidades tenta
encontrar o seu próprio lugar. Ele também
inspira outros artistas. Nenny, fenómeno
da nossa mais efervescente cena musical
que já foi rosto gigante em Times Square
e que soma muitos milhões de plays nas
principais plataformas de streaming, sinal
inequívoco de que captou uma atenção ge-
racional, é uma das artistas que se move
neste “mundu nôbu” que Dino tem vindo
a ajudar a descobrir.
“Acho que nós, os artistas negros em
Portugal, acabamos sempre por carregar
essa luta independentemente da manei-
ra como nós a expressamos”, começa por
dizer Nenny ao Expresso. “Seja só fazendo
música, seja só dando entrevistas e mesmo
não sendo ativistas, a verdade é que temos
essa luta dentro de nós, que vem primeiro
da nossa identidade como pessoas”, ex-
plica-nos. “E não só artistas negros, mas
toda a pessoa negra tem essa luta diária. O
Dino D’Santiago está a dar seguimento à
representatividade, de modo a incentivar
a comunidade a ser vista. Seja Dino, seja
Nenny, seja qualquer pessoa negra em Por-
tugal — não estamos sós.”
Dino D’Santiago sente, de facto, que há
um futuro que se aproxima cada vez mais
rapidamente deste presente. É por isso que
RITA CARMO

convida toda a gente a sentir uma nova Lis-


boa, não aquela que parece agora tomada
por nómadas digitais, até porque ele diz
claramente que não é obrigatório “sair para
Dino D’Santiago durante um fazer acontecer” e por isso, como canta no
concerto no Coliseu de Lisboa E, quase de certeza, nem se trata real- tema ‘Kriolu’, em que conta com a colabo-
em abril de 2022 mente de querer “remisturar” o hino, antes ração de Julinho KSD, outra estrela deste
de levar as pessoas a debaterem ideias su- plural presente, “quem sabe o que o ama-
postamente fundacionais, mas que se calhar nhã reserva/ Se serei príncipe numa box/
busca do esplendor de outrora, nem sequer já não se adequam aos tempos presentes, e se, de surra, vou gritar beleza”. As noites
que se mencionassem igualmente as nossas de trazer para a conversa questões de que que Dino referencia nesta música, e que têm
heroínas ao lado dos já destacados heróis sempre nos desviámos enquanto sociedade, feito brancos e negros, homens e mulheres,
marítimos, antes que se apelasse à paz, ideia investindo antes num constante ziguezague portugueses e estrangeiros, dançar juntos
que não deveria merecer oposição nestes ideológico que já não faz sentido à luz de no Musicbox ou no B. Leza enquanto uma
dolorosos tempos de guerra cujas imagens todas as lições que a história nos depositou vanguarda musical afrodescendente agita as
televisivas nos assombram diariamente. “Já neste complexo presente. Em ‘Nova Lisboa’, entranhas da cidade podem ser prenúncio
é tempo de termos um hino menos bélico, Dino afirma que não devem contar com ele de um mundo novo, de facto. E, quem sabe,
que incentive menos às guerras, não gritemos para “vender a sodadi ou a morabeza” e se não nascerá daí o novo hino que Dino já
mais às armas, às armas, não lutemos mais mais além, no tema ‘Morabeza’, que abre o escuta nos seus sonhos.
contra canhões, não marchemos mais contra álbum “Kriola” de 2020, ele constata que “a 
canhões”, sugeriu o homem e o artista. Linha de Sintra/ Fala a língua de Cesária” Rui Miguel Abreu

371
Luís
Figo
Futebolista

O herói
da geração
perdida
JAMIE MCDONALD/GETTY IMAGES

372
373
Fez agora 34 anos o desporto português,
melhor dizendo o futebol, ganhava uma Entre sorte e
projeção mundial sem precedentes. Em
março de 1989, a seleção sub-20, treinada gestão inteligente
por Carlos Queirós, dava a Portugal o seu
primeiro título mundial, ao bater em Riade,
da sua carreira,
na Arábia Saudita, a Nigéria por 2-1. Joga-
dores? João Vieira Pinto, Fernando Couto,
Luís Figo vai ser,
Folha, Paulo Sousa, Jorge Couto, Paulo Ma- de longe, o mais
deira ou Fernando Brassard. Não era um
episódio fortuito. Dois meses depois, na bem-sucedido
Dinamarca e novamente sob a batuta de
Queirós, a seleção sub-16 sagrava-se cam- jogador
peã europeia. Mais nomes a reter: Peixe,
Figo, Abel Xavier… E em 1991, perante o
da sua geração
público luso, a renovação do título de sub-
20, agora também com Rui Costa na equipa.
Pareciam lançadas as bases para algo que
em Portugal é sempre exceção: trabalho
metódico e de base, sem olhar a resulta-
dos imediatos e pensando no longo prazo.
Contudo, parte dos jogadores da geração
de ouro perdeu-se no labirinto das divisões
inferiores, enquanto outros eram aliciados
pela promessa de jogar nos grandes (e às Costa (Fiorentina e AC Milan) a Fernando
vezes não tão grandes como isso) clubes Couto (Barcelona) ou Paulo Sousa (Juven-
europeus. tus e Borussia) mas nada comparável à
Passado 15 anos já só se encontravam carreira de Figo.
alguns na seleção treinada por Luiz Felipe Despontou no modesto Os Pastilhas,
Scolari na final do Euro 2004, perdida com de Almada, sua terra natal. Como contou
a Grécia: Figo e Fernando Couto, a que se numa entrevista ao Expresso conduzida
tinham juntado Rui Jorge, Rui Costa, Simão por Cândida Pinto (31 de maio de 2008),
Sabrosa ou Pauleta. Para além de um jovem “era demasiado jovem para ir para um
em ascensão chamado Cristiano Ronaldo… clube longe da minha casa. Em Os Pasti-
Tal como na canção nostálgica de Charles lhas (Cova da Piedade) podia jogar futebol
Trenet ‘Que reste-t-il de nos amours?’, o e estar com os amigos que viviam perto
que sucedeu à geração de ouro do futebol de mim. Tinha 11 anos. Hoje já se começa
português após conquistar os primeiros a jogar muito antes, mas naquela altura
títulos mundiais e europeus para o futebol não existiam escolas de formação. Em Os
português? Figo tornou-se uma figura in- Pastilhas não tinha de viajar para Lisboa,
ternacional, tal como Rui Costa. João Viei- passar o rio, andar de transportes, o que
ra Pinto está na Federação e Folha treina veio a acontecer no ano seguinte porque
o Portimonense. Outros forem relegados a coletividade fechou. Aí fui fazer treinos
para funções diversas na máquina de clu- no Sporting onde estive um mês à expe-
bes grandes ou pequenos e entre os atletas riência. Regressava muito tarde a casa e no
então medalhados não faltam angariadores dia seguinte tinha aulas cedo”.
de seguros ou fiéis de armazém. E Carlos Mas será nas escolas do Sporting que
Queirós só voltaria à celebridade como se- Luís Filipe Madeira Caeiro Figo se formará Até que chegou o momento da saída para
lecionador fora de Portugal. e despontará para a ribalta nas seleções de o estrangeiro. Como contou na referida en-
Entre sorte e gestão inteligente da sua Carlos Queiroz de sub-20. Vai representar o trevista ao Expresso, “foi o momento exato
carreira, Luís Figo vai ser, de longe, o mais Sporting entre 1989 e 1995. Nessa altura o em que eu soube que ia para outro patamar
bem-sucedido da sua geração. Não foi o clube de Alvalade atravessava um dos seus em que as coisas ou corriam bem ou então
primeiro português a jogar no estrangeiro grandes jejuns de títulos nacionais (entre tinha de regressar a casa. Tinha 22 anos.” Era
e a ter sucesso. Basta pensar, antes dele, na 1982 e 2000) e Figo apenas fica associado o momento certo para partir, uma vez que
ascensão meteórica de Paulo Futre, entre a à conquista de uma Taça de Portugal e de as portas da Europa se tinham começado a
formação no Sporting (1983), a conquista uma Supertaça (1994/95). Será um dos jo- abrir para a Geração de Ouro. “Nessa altura
de uma Taça dos Campeões Europeus pelo gadores no famoso 3-6 com o Benfica, (14 foi mais fácil emigrar, representar clubes no
Futebol Clube do Porto (1987) e a transfe- de maio de 1994) onde a equipa leonina, na estrangeiro, o que facilitou a aprendizagem e
rência milionária para o Atlético de Ma- altura treinada por Carlos Queirós, tinha, a experiência. O Futre foi pioneiro na altura,
drid, onde jogará cinco anos (até 1993). a juntar a Figo, valores como Emílio Peixe ao sair, ao abrir-se ao mercado.”
Outros, da sua geração, tiveram também ou Balakov. Ganharia a Bota de Ouro em A transferência de Figo em 1995 reve-
alguma projeção internacional, de Rui Portugal em 1994. la-se atribulada. Juventus e Parma dispu-

374
Em dezembro
de 2001, Figo
seria distinguido
como o melhor
do mundo. Aos
29 anos conquista
o Troféu FIFA,
que, anualmente,
consagra o melhor
futebolista

haveria de ser considerado o melhor fute-


bolista do planeta.
Em dezembro de 2001, Figo seria dis-
tinguido como o melhor do mundo na sua
profissão. Aos 29 anos, o jogador que, três
anos antes, partira a Espanha ao meio, ao
trocar o Barcelona pelo Real, conquista o
Troféu FIFA, que, anualmente, consagra o
melhor futebolista do ano. No conjunto das
votações de 130 selecionadores, Luís Figo
SANDRA BEHNE/BONGARTS/GETTY IMAGES

derrota o inglês David Beckham, o playboy


do Manchester United, tão celebrado como
ídolo dos relvados como uma espécie de
pop star.
Em 2015, a propósito da comparação
entre estes dois ídolos, Pedro Candeias
escreveu o seguinte no Expresso: “Carlos
Queiroz dizia que o que distinguia David
Beckham de Luís Figo era que o primeiro
não precisava da finta para jogar enquanto
o segundo conseguia fintar três ou quatro
jogadores dentro de uma cabina telefónica
No Europeu de 2000, frente à Inglaterra, e sair com a bola no pé…”
Luís Figo inicia a reviravolta no resultado coisa mais meiga que os catalães chamaram Nesse mesmo ano Figo, quase a retirar-se
durante uma partida que ficaria para ao jogador português foi “pesetero”, ou dos relvados (que só abandonaria de vez
a história. Portugal venceria por 3-2 seja mercenário sem escrúpulos. Em jogos em 2009, ao serviço do Inter) lançar-se-
no Campo Nou chegou a ser bombardeado -ia na alta roda da política futebolística,
com moedas de uma peseta e até uma ca- disputando a liderança da FIFA ao julga-
tam-no e gera-se uma guerra jurídica sem beça de porco… Uma vez mais se provava do eterno Joseph Blatter. Contando com o
solução à vista (pelo menos em Itália) que que no futebol, como na vida em geral, as apoio das federações portuguesa, polaca,
só será resolvida com a transferência para fronteiras entre amor e ódio são tão ténues dinamarquesa, luxemburguesa e macedónia
um país diferente, a Espanha, sendo con- como reversíveis. tentou opor-se ao poder blattiano. Com o
tratado pelo Barcelona e tornando-se numa Durante mais de uma década, Figo, en- que hoje sabemos acerca da preparação do
das estrelas do clube catalão durante cinco tretanto transferido para o Inter de Milão Mundial do Catar, foi uma oportunidade
temporadas. vestirá a lendária camisola 7 da seleção na- perdida para injetar alguma dignidade nas
Contudo, em 2000, há novo episódio cional como uma segunda pele, que viria a hierarquias do desporto-rei.
agitado, envolvendo nova transferência, ser herdada por Cristiano Ronaldo, então
neste caso para o arquirrival Real Madrid. A o miúdo-maravilha e que, tal como Figo, Rui Cardoso

375
Francisco
Costa
Andebolista

Um prodígio
com a bola
na mão

Imagine que alguém lhe dizia que estava em Hugo Valente, treinador que acompanhou grandes competições, conseguindo até uma
Portugal o maior prodígio dos 100 metros o percurso de “Kiko”, como é conhecido inédita participação nos Jogos Olímpicos
desde Usain Bolt. Com as devidas distân- Francisco Costa, desde os 11 anos até aos de Tóquio, mas ninguém nos preparou para
cias, é isto, mais coisa, menos coisa, que seniores. Rasmus Boysen, antigo jogador um fenómeno de nome próprio.
meia Europa anda a clamar sobre Francisco dinamarquês e agora comentador, não tem Filho dos antigos internacionais Ricardo
Costa, andebolista do Sporting de 17 anos. A dúvidas que ele é “o maior talento do an- Costa e Cândida Mota, Francisco passou os
comparação com o aparecimento de Nikola debol mundial” da atualidade, um rapaz primeiros anos de vida em Espanha, onde o
Karabatić, provavelmente o melhor jogador nascido em Vila Nova de Gaia e não numa pai jogou. Ricardo Costa, que o treina agora
DEFODI IMAGES

de andebol das duas últimas décadas, fê-la qualquer cidade ou vila nórdica, alemã ou no Sporting, é um dos melhores pontas da
recentemente o “Sportbladet”, jornal da francesa. Já nos fomos habituando aos feitos história do andebol português, membro da
Suécia, uma das potências da modalida- da seleção nacional, que nos últimos cinco primeira geração de ouro e que represen-
de. “Até me arrepio a ouvir isso”, confessa anos foi abocanhando bons resultados nas tou a seleção nacional em três Mundiais e

376
377
inteligente”, garante Hugo Valente. “Não é
só o jeito, a técnica e a qualidade individual.
A isso estão aliados fatores psicológicos”,
continua, lembrando o recente jogo de Por-
tugal frente à Suécia no Mundial frente a 12
mil almas nórdicas, onde Francisco foi um
dos melhores em campo, não se deixando
DIOGO CARDOSO/DEFODI IMAGES VIA GETTY IMAGES

amedrontar pelo ambiente. Boysen sublinha


também a “mentalidade” do jovem portu-
guês. “É um vencedor, dá tudo e não tem
medo de assumir o remate decisivo”, explica,
impressionado por Kiko conseguir elevar o
seu jogo nos derradeiros momentos, quando
a equipa mais precisa. Como todos aqueles
que veem mais à frente, Kiko é um curioso:
questiona, pergunta porque se fez assim e
não de outra maneira. Sempre foi assim,
lembra Hugo Valente.
Trabalhador e focado, mas também
consciente, Francisco Costa sabe o que
quer, não criando “grandes ilusões”. Mas
já não tem pejo em afirmar que quer ser um
Francisco Costa durante um jogo da seleção portuguesa contra Espanha dos melhores do mundo. “E tem potencial
para o Europeu de Andebol Sub-20, em Gondomar, em julho de 2022 para isso”, frisa Rasmus Boysen, “porque
já está a jogar como um andebolista de
topo, experiente” apesar da idade. “Acho
quatro Europeus entre 1997 e 2006. A Kiko noutro lado qualquer, defende o seu antigo que já ninguém tem dúvidas disso”, diz
Costa nunca lhe faltou, portanto, o andebol técnico. Os predestinados são assim. Meses Hugo Valente, com quem trabalhou tam-
em casa, nem a ele nem ao irmão Martim, depois de chegar a Alvalade, Kiko marcou bém no FC Gaia e na Artística de Avanca.
três anos mais velho e também ele uma dez golos na Liga Europeia aos alemães do Com apenas 17 anos, faltar-lhe-á dar o
das maiores esperanças da modalidade. Magdeburg, que no final da temporada se passo seguinte em termos físicos, para se
Foi ainda no país vizinho, nos treinos do tornaria campeão da Bundesliga, o mais tornar num melhor defensor, algo que já
pai, que se fascinaram com aquele objeto forte dos campeonatos da Europa. O Spor- faz bem, garante o treinador: “É um atleta
esférico e que lhes foram dadas as primeiras ting acabou eliminado, mas estava aqui o muito completo.” Um pouco à imagem do
colheradas no desporto. ponto de inflexão — Francisco nunca mais seu ídolo, o espanhol Alex Dujshebaev, que
Hugo Valente cruzou-se pela primeira seria um anónimo no panorama europeu. curiosamente também é treinado pelo pai,
vez com Francisco no Colégio dos Carvalhos Dias depois foram 12 golos ao Benfica e Talant Dujshebaev, e joga com o irmão Da-
e recorda-o, já de regresso a Portugal, como 19 ao FC Porto para o campeonato nacional. niel no Kielce da Polónia. Boysen acredita
um miúdo “diferente dos outros, muito No final da temporada, usou a sua versátil também que Kiko terá de ser “mais forte
perspicaz e talentoso”, a jogar sempre vá- e poderosa canhota para aterrar mais 13 fisicamente” e de desenvolver o seu jogo
rios escalões acima. “Só não tinha força, bolas na baliza da antiga equipa, dando ao defensivo. “E precisa de trabalhar o seu
era muito pequenino, mas vi logo que era Sporting a sua primeira Taça de Portugal temperamento”, aponta. O que não deve ser
diferente da maioria”, explica o técnico, em oito anos. No verão, já depois da estreia confundido com mau feitio. “É um miúdo
agora a trabalhar na formação do FC Gaia. na seleção principal de Portugal, liderou fabuloso”, garante o seu antigo treinador:
A partir daí foi tudo muito rápido: aos 15 os sub-20 no Europeu, marcando 11 golos “É muito bem-disposto. Muito extrovertido,
anos e sete meses, em outubro de 2020, numa final que a seleção nacional acaba- boa energia. E cozinha bem!”
estava a estrear-se pela equipa sénior do ria por perder nos últimos minutos para a Sim, cozinhar é um dos hobbies de Kiko
FC Porto. Na baliza brilhava ainda Alfredo Espanha. No início deste ano, ainda com 17 — já fez mesmo um curso — que, apesar
Quintana, com quem tantas vezes havia anos, jogou o seu primeiro Mundial sénior. de viver para o andebol, não deixa de ser
brincado em criança, quando Ricardo Costa É uma caminhada digna de prodígio e já um adolescente comum: gosta de cantar,
era treinador do FC Porto e o guarda-redes não há quem ouse chamá-lo de outra forma. de reggaeton e de dançar kizomba. E de
levava Francisco para o balneário da equi- “Ele é, de longe, o maior talento português jogar padel. Estudante do 12º ano, quer ser
pa após os jogos. As iniciais do malogrado deste milénio”, garante Rasmus Boysen, que fisioterapeuta quando a carreira terminar,
guarda-redes, falecido em 2021 aos 32 anos, vê em Francisco características únicas para uma vontade que lhe vem desde os tem-
estão gravadas no pulso da mão esquerda de um jogador da sua idade. “Ofensivamente pos de criança, quando acompanhava o pai
Kiko, a mesma com que remata “de todas tem tudo: é rápido, criativo e tem um braço nos tratamentos e dava por si ele próprio a
as maneiras”, seja “com os pés no chão” muito poderoso”, continua o antigo joga- enrolar ligaduras em torno dos seus peque-
ou em “salto”, explica Valente. dor dinamarquês. Hugo Valente fala de um nos pulsos, como se o andebol, para o bem
Na época 2021/22, o clã Costa, pai Ri- jogador muito bom no um para um, “com e para o mal, já lhe estivesse em todas as
cardo e os dois filhos, mudou-se para o boa finta”, de remate fácil. Mas a verdadeira mecânicas rotinas.
Sporting. É aqui que o jovem lateral direito fortaleza de Francisco Costa, concordam,
explode, mas se não fosse no Sporting seria não lhe está nas mãos ou no peito. “É muito Lídia Paralta Gomes

378
OEIRAS LIDERA
NA SUSTENTABILIDADE
MUNICÍPIO RECONHECIDO COM PRÉMIO
DO MELHOR CONJUNTO DE BOAS PRÁTICAS

VEJA AQUI
TODOS OS PRÉMIOS
Fernando
Santos
Treinador

O engenheiro
das obras sofridas

Se olharmos para Fernando Manuel Fernan- Ironia das ironias, Santos foi empur- Uma coisa é certa, como sublinhou Lídia
des da Costa Santos pelo lado do currículo, a rado para a porta depois de Portugal ter Paralta Gomes no Expresso a 16 de dezembro
vida desportiva não lhe poderia ter corrido conseguido a sua segunda maior vitória de do ano passado. “Aos 68 anos, Fernando San-
melhor: deu um inédito pentacampeonato sempre em fases finais de campeonatos, ao tos é o recordista de títulos (Euro 2016 e Liga
ao Futebol Clube do Porto (1988/2019), levou cilindrar o ano passado a Suíça por 6-1 nos das Nações) e de jogos pela seleção nacional.
a seleção nacional a conquistar o Euro 2016, oitavos de final. (a maior vitória continuam Frente a Marrocos fez o jogo nº 109 no banco
bem como a Liga das Nações em 2018. Após o a ser os 7-0 à Coreia do Norte no mundial de Portugal, deixando Scolari bem longe — o
Euro 2016, a Federação Internacional de His- da África do Sul em 2010). É verdade que, brasileiro é o segundo da lista, com 74 jogos”.
tória e Estatística do Futebol elegeu-o melhor logo depois, foi derrotado por Marrocos, a Nascido em Lisboa, a 10 de outubro de
selecionador do mundo, à frente do sueco equipa sensação do Mundial de Futebol do 1954, o seu pai, que era benfiquista dos
Lars Lagerbeck e do alemão Joachim Löw. No Catar que antes de nós tinha despachado a quatro costados, convenceu a mãe a levá-lo,
entanto, os adeptos nem sempre se identifi- Bélgica e a Espanha. Não haverá aqui algo 52 dias depois, ainda na alcofa, à inaugura-
cavam com ele enquanto selecionador, sendo de injustiça? Santos, católico praticante, ção do Estádio da Luz. Aos 17 anos pede à
recorrentes as críticas de que promovia um ter-se-á provavelmente lembrado das pa- família para jogar no Benfica, o que só lhe
futebol timorato, aproveitava mal um leque lavras de Cristo na cruz: “Perdoai-lhes Se- seria concedido se tivesse boas notas. Mais
de jogadores excecionais (Cancelo, Bernardo nhor porque não sabem o que fazem.” Uma alto que os outros miúdos, joga a defesa e
TIAGO MIRANDA

Silva, Bruno Fernandes, Ruben Dias, Vitinha, ressonância bíblica que, para os críticos do há de passar nos dois anos seguintes pelo
Diogo Jota, etc.) e subordinava a estratégia de selecionador, pode ser virada do avesso: e Marítimo e Estoril, abandonando os relva-
jogo aos desígnios em campo de um Cristiano com Santos aos comandos, os nossos joga- dos para continuar a estudar no Instituto
Ronaldo no ocaso da carreira. dores saberiam o que faziam (em campo)? Industrial (ISEL) onde se formará em 1977.

380
381
Treina o Estoril a partir de 1986 e as-
segura a subida deste à primeira divisão.
Casa-se com Guilhermina Santos com quem
terá dois filhos. Contudo, será no Estrela da
Amadora que começará a dar nas vistas
como treinador (1994/98), embora trabalhe
paralelamente como diretor de manutenção
no Hotel Palácio no Estoril, coisa perfei-
tamente ao alcance de um licenciado em
engenharia. Contratado por Pinto da Costa

LAURENCE GRIFFITHS/GETTY IMAGES


em 1998 para o FCP, retribuirá com um
feito inédito no futebol português: cinco
campeonatos consecutivos.
Pinto da Costa adorava-o. Uma vez,
durante uma conversa no programa “Jogo
Falado” na RTP 2 disse aos presentes: “Ele
é melhor que vocês os quatro juntos”. Tra-
tava-se do jornalista Paulo Catarro e dos
comentadores residentes Fernando Seara,
Santana Lopes e Francisco José Viegas. É
nesta fase que ganha a alcunha de “en-
genheiro do penta”, a qual está na origem Os jogadores celebram com Fernando Santos a conquista do Euro 2016 de futebol
de um episódio hilariante. Carla, a sua se- após a vitória na final por 1-0 contra a França, a seleção da casa
cretária de sempre, ralhou com um jornal,
explicando que o patrão não era engenheiro
do hotel Penta mas do Hotel Palácio… el Fernandes, Rui Costa (por lesão), Ricardo oooo!!! Seguiram-se 13 minutos longos de
É também nesta fase, a do FCP, que Rocha (transferido), Nuno Assis (castigado sofrimento até ouvirmos o apito final do
treinou o goleador Mário Jardel. Em con- seis meses) e Luisão, que se magoou frente inglês Mark Clattenburg. Já ninguém nos
versa com Pedro Candeias (Expresso de ao PSG, no jogo em que se estreou o David tirava o título europeu e a primeira presen-
14/11/2015), caracterizá-lo-á assim: “um Luiz. Mas, pronto, o futebol é isto. O que ça na Taça das Confederações, o prelúdio
ponta de lança, ou, melhor, um ponta de é verdade é que não ganhei. Mas tanto no do Mundial 2018. A bola tinha sido trans-
mama, que está ali à espera da bola, ex- Benfica como no Sporting deram-me um vertida em poema e podia, enfim, circular
cecional, do melhor que já vi. Quem não contrato de dois anos com o compromisso livremente.”
gosta de ter um jogador que marca mui- de construir uma equipa campeã. Acabei Homem de fé, Fernando Santos não é um
tos golos?” Contudo, Jardel tinha as suas despedido nos dois casos…” fundamentalista como se depreende deste
peculiaridades. “Um dia, ele foi chamado A chamada à Seleção Nacional acon- trecho da conversa com Pedro Candeias:
à seleção brasileira, que ia, salvo erro, jo- tecerá em 2014, quando lhe é pedido que “Há uma coisa que sempre norteou a minha
gar ao Japão. O Jardel, que não ia à seleção substitua Paulo Bento. Invertendo uma vida: o respeito. E se eu quero que respeitem
muitas vezes, disse-me que queria ir, para sequência de maus resultados, seis vitórias a minha convicção religiosa, parto do prin-
ter lugar na Taça das Confederações, e que, seguidas levam a equipa a qualificar-se cípio que tenho de respeitar as convicções
por isso, não podia jogar contra o Marítimo, para o Euro 2016, onde o melhor estava dos outros. Não há religiões melhores ou pi-
por problemas no voo. ‘Eh, pá, não pode para vir. O grande momento em Paris, as- ores, apenas diferentes.” Também não é um
ser, temos um jogo importante, não pode sim descrito na edição do Expresso de 16 asceta ou um santo. Assume que continua a
ser.’ No dia seguinte, ele insistiu, e eu voltei de julho de 2006 por Rui Malheiro. Um jogar à sueca e bridge, a comer caracóis e a
a dizer-lhe que não. Depois, ele arranjou momento que vingou o livre de Platini ir à pesca. Até a fumar, ainda que raramen-
um voo qualquer que lhe permitia jogar em 1984 ou bola na mão de Abel Xavier te fume mais de um maço por dia, exceto
apenas a primeira parte contra o Marítimo. em 2000 contra o inimigo futebolístico quando bebe copos com os amigos. “Gosto
‘Esquece!’ ‘Então e se eu fizer dois golos?’ ancestral: a França. de fazer as coisas que sempre fiz, e faço-as,
‘Se fizeres dois golos, podes ir.’ Ele fez dois “Éder, tão bem definido pelo príncipe com a exceção de jogar ténis, porque já não
golos, e quando chegou o intervalo já não Rui Costa como o ‘tombador de defesas’, tenho idade para isso.”
o vi…” dada a quantidade de duelos que conquistou Pouco antes do Mundial do Catar foi
Seguir-se-á a fase grega (AEK e Pana- aos defesas centrais adversários, estava em notificado pelas Finanças para fazer um
thinaikos) e mais tarde a seleção helénica campo há 30 minutos quando desferiu o acerto de mais €4,5 milhões de IRS. O fisco
(2010). Entretanto, vai passar efemera- remate que nos garantiu um lugar na eter- entende que a forma como o selecionador
mente pelo Sporting (2003) e pelo Benfica nidade. Foi, ainda longe da baliza, com seis recebia da Federação — através de uma
(2006), tornando-se o primeiro treinador adversários à sua volta, que o ‘patinho feio’ empresa — era um artifício para fugir aos
português a ter andado pelos três grandes. que já tinha sido tratado por ‘pino’, após impostos. O processo corre e nas coisas
Não encontra a estrutura e as condições que somar 13 minutos inconsequentes como tributárias, ao contrário do futebol, não
tivera nas Antas e acaba por ser afastado referência ofensiva diante da Islândia e da há possibilidade de jogar para o empate ou
sem resultados desportivos dignos de nota. Áustria, mostrou que no futebol, como no com o relógio do juiz…
Como contará a Pedro Candeias na referida amor, o mais importante é nunca termos
entrevista, “no Benfica, perdi Simão, Manu- medo de disparar. Gooolooooooooooooo- Rui Cardoso

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Tiago
Guedes
Coreógrafo

Um caso
e uma casa
que dança

Oito anos depois de ter dado uma nova vida ra, tendo em conta que apresentou o seu Tiago Guedes é o novo diretor da Maison
ao Teatro Municipal do Porto, que gere o Ri- primeiro espetáculo no Teatro da Bastilha de la Danse, instituição exclusivamente
voli e o Campo Alegre, e de ter posto o Porto e que foi artista associado do Théâtre Le dedicada à dança, prepara a Bienal de Dan-
LUCÍLIA MONTEIRO

a respirar a dança de modo interdisciplinar Vivat, em Armentières. E era inevitável que ça, um dos eventos mais importantes da
e plural, Tiago Guedes conquistou um dos assim fosse, tendo em conta a importância dança contemporânea a nível mundial, e
lugares mais cobiçados da dança europeia. do lugar que passou a ocupar e o significa- desenvolve uma nova estrutura, os Ate-
Desde setembro de 2022 que França é a sua do que a cidade de Lyon tem no contexto liers de la Danse, centro de residências,
morada, tal como o foi no início da carrei- performativo europeu e mundial. pesquisa e criação e sala de espetáculos, a

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385
inaugurar em 2025, no qual haverá espaço capacidade de criar uma rede, cujos braços a estudar música no Conservatório Jaime
e tempo para pensar o futuro da dança. chegarão a lugares mais distantes, tornando Chavinha, do Centro de Artes e Ofícios Ro-
Muito poder concentrado numa só pessoa Lyon mais permeável e abrangente. que Gameiro, ao que acrescentou a dança,
e um orçamento proporcional, a que ele O papel político que o lugar de diretor na qual se iria especializar como aluno da
dará um cunho próprio. implica é assumido de um modo partilhado, Escola Superior de Dança. O seu percurso
O seu projeto — candidatura a que cha- colaborativo e horizontal: “Estamos num é marcado desde o início pela pluridisci-
mou “ONLY Danse — Um Futuro Partilhado período — por isso me interessou esta can- plinaridade e pela proximidade às artes
para a Dança em Lyon” —, apresentado em didatura a Lyon — em que é fundamental visuais, à arquitetura e ao design, áreas de
maio de 2022, conquistou por unanimida- pensar o papel das instituições.” Alguns que gosta muito. Iniciou-se na companhia
de o júri — composto por representantes destes conceitos orientadores já tinham RE.AL, de João Fiadeiro, em 2001, como
da autarquia de Lyon da região Auvergne- sido testados no Teatro Municipal do Porto, intérprete de “Em Caso de Acidente”. Em
-Rhône-Alpes, pelo Ministério da Cultura desde 2014, quando assumiu a direção, e 2002 criou “Um Solo”, com o qual venceu
francês e pelos presidentes da Maison de la no DDD — Festival Dias da Dança, criado a Bienal de Jovens Criadores da Europa e do
Danse e da Bienal de Lyon — e é diferen- em 2016; e começavam a ganhar forma no Mediterrâneo. Seguiu-se “Um Espetáculo
te dos modelos anteriores. Ou seja, Tiago Centro de Residências e Criação Artística com Estreia Marcada”, que apresentou, em
Guedes concebe a direção de forma mais Campus Paulo Cunha e Silva, que inaugurou 2004, integrado num programa orientado
informal e colaborativa, alinhada com um em junho de 2021: “É preciso encontrar uma por João Fiadeiro e Vera Mantero e realizado
entendimento mais abrangente, inclusivo relação mais cúmplice e complementar com no Teatro da Bastilha, em Paris, provando
e interdisciplinar e que pretende dar vi- quem programa e com quem faz e tornar mais uma vez querer desafiar a interpreta-
sibilidade a todas as danças e a todas as isto muito mais misturado”, afirmou na ção, ao mostrar, em silêncio total, as várias
latitudes, através de uma ação regional, citada entrevista a Claudia Galhós. fases de preparação de um espetáculo. Na
nacional e internacional. Lyon não é de todo um lugar estranho altura, o “Le Monde” disse que havia nesta
Convicto de que “a dança é um baró- para Tiago Guedes, na medida em que ele peça “conceito e ingenuidade”, “uma fé
metro do que está a acontecer ao corpo no visitava com alguma regularidade a Bienal palpável no teatro”, também uma certa
mundo”, como afirmou numa entrevista de Dança, evento que tinha como parceiro “doçura”. Com “Materiais Diversos”, que
a Claudia Galhós publicada no Expresso, o Teatro Municipal do Porto. levou a palco em Lille, Capital Europeia da
Tiago Guedes sucede a Dominique Hervieu Tiago Guedes nasceu em 1978, em Min- Cultura em 2003, venceu o concurso Jovens
(2011-2021), de quem herda uma Bienal de, e lá cresceu. Aos seis anos começou Criadores, do Clube Português de Artes e
com 50% da programação definida. Mas Ideias. Nesta peça construiu a cena a partir
a sua direção não se limitará a escolher de sacos do lixo, jornais, tintas e tesou-
os espetáculos que faltam para comple- ras: “Havia esta premissa de não ir buscar
tar os 100%. O ex-bailarino, coreógrafo nada que não estivesse já ao meu lado, uma
e programador procurará a diversidade, espécie de redução, de encontro comigo
um dos valores orientadores do seu per- próprio”, disse a Claudia Galhós. Como co-
curso — diversidade que se traduz, entre reógrafo, aos seus trabalhos mais relevantes
outras coisas, pela expansão do seu raio acrescenta-se “Trio”, “Matrioska”, “Ópera”
de ação no sentido de conquistar modos e “Coisas Maravilhosas”. Este último foi
de criação artística e criadores que possam apresentado, em 2008, no Théâtre Le Vivat,
estar nas margens. Um dos exemplos desse onde foi coreógrafo residente durante três
esforço está bem expresso no convite que
fez a artistas de diferentes origens no sen-
O seu projeto temporadas, e na Culturgest.
Em 2009, Tiago Guedes foi cofundador
tido de se tornarem associados — como a — candidatura da Associação Cultural Materiais Diver-
brasileira Lia Rodrigues, o francês François
Chaignaud, a britânica-ruandesa Dorothée a que chamou sos, que deu origem ao Festival Materiais
Diversos. Antes de assumir a direção do
Munyaneza e o português Marco da Silva
Ferreira —, sendo que a ação deles não se
“ONLY Danse Teatro Municipal do Porto, esteve à frente
do Cine-Teatro São Pedro, em Alcanena,
limita à criação, produção e apresentação
de espetáculos, incluindo também ações
— Um Futuro e do Teatro Virgínia, em Torres Novas. Na
sua passagem pelo Porto, onde chegou em
de curadoria e de formação.
A preocupação de tornar o olhar ainda
Partilhado 2014 por concurso público, não se livrou de
uma polémica: ao recusar a circulação de
mais plural, descentrando-o de si próprio, para a Dança uma folha de sala no Rivoli, do espetáculo
levou-o também a criar uma hierarquia “Turismo”, de Tiago Correia, assinada pela
piramidal, em que cinco curadores — Nayse em Lyon” —, poetisa, escritora e cineasta Regina Gui-
López, do Brasil, Quito Tembe, de Moçam-
bique, Fu Kuen Tang, de Taiwan, Angela apresentado em marães — por considerar que o texto dela
era ofensivo da memória de Paulo Cunha e
Mattox, dos EUA, e Angela Conquet, da
Austrália — terão de escolher outros cinco
maio de 2022, Silva —, o consenso que existia à sua volta
quebrou-se. Mais tarde reconheceu publi-
artistas “que tenham uma relação social
além da prática artística; que sejam ativistas
conquistou por camente o erro. Em maio de 2021 foi con-
decorado com o título francês de Cavaleiro
e tenham uma relação diferente com o tra-
balho, o tempo, o dinheiro”, disse ao jornal
unanimidade da Ordem das Artes e das Letras.

“Público”. Uma espécie de fórum, que terá a o júri Cristina Margato

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388
Alfredo
César Torres
Dirigente desportivo

Quando
os motores
rugiam em
português
RUI OCHOA

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Estamos em maio de 1974. Um entusiasta
do desporto automóvel chamado Manuel Torna-se
Romão (haveria de fazer carreira como na-
vegador nos ralis e acompanhar José Me- presidente
gre ao primeiro Paris-Dakar disputado por
pilotos portugueses, em 1982) aproveitava
delegado da FIA
as suas folgas no Instituto Superior Técni-
co para passar na Avenida da República e
para o desporto
trocar impressões com o seu amigo César
Torres, na altura diretor de vendas da Jaguar.
automóvel,
Num texto divulgado junto de um grupo de desempenhando
amigos, recordou o que se seguiu “para que
o tempo não apague a história”. a função mais alta
“Tocou o telefone e a secretária comu-
nicou-lhe: ‘É o dr. Mário Madeira [então na hierarquia do
presidente do ACP] que deseja falar consi-
go.’ Sentado em frente à secretária dele, fui
automobilismo
assistindo à conversa e vendo as expressões
de espanto do César, que ia respondendo
mundial
ao dr. Mário Madeira, ao mesmo tempo
que fazia caretas para mim e gesticulava
com o braço esquerdo. A conversa foi mais
ou menos nestes termos, pelas palavras
do dr. Mário Madeira: ‘A direção do ACP
está reunida em Lisboa e no Porto e em
face dos últimos acontecimentos [o 25 de
Abril] decidimos pedir todos a demissão e
entregar-lhe o clube a si. Você é um tipo
novo, já faz parte da casa e pode continuar
o trabalho que temos realizado com novas
ideias, neste tempos confusos que já não
são para a nossa idade’.”
Na verdade, a pessoa escolhida para a
sucessão acabaria por ser Francisco Pinto
Balsemão, ainda que César Torres fizesse
parte da lista B candidata à direção do clu-
be. E, num Portugal saído de uma ditadura,
as eleições de maio de 1974 no ACP foram
das primeiras a serem disputadas de acordo
com as regras democráticas. Concorreu uma
outra lista, a A, em que figuravam advoga-
dos conhecidos, alguns próximos do PS. A
outra lista, valha a verdade, também não
era bacteriologicamente pura, uma vez que havia) fora Campeão Nacional Absoluto a uma curva e a descobrirem ocupada por
Balsemão fora, a 6 de maio, um dos fun- (1965) e Campeão Nacional de Turismo centenas de espectadores (o que, como se
dadores de um novo partido, o PPD, mas (1967). E ganhou, em 1964, uma Volta a sabe, correspondia rigorosamente à ver-
apresentava-se como defensora da conti- Portugal (prova precursora do futuro rali, dade, quando não havia acantonamento
nuidade (e não da rutura) com o trabalho mas muito mais longa e dura, que os atuais do público em “zonas espetáculo” nem
feito pelo clube e essa imagem haveria de regulamentos nunca autorizariam). restrições de acessos, como hoje em dia).
prevalecer junto dos sócios votantes. A menina dos seus olhos era o Rali de Em 1980, quando Balsemão abandona o
César Torres passa a integrar a nova di- Portugal. De resto, César Torres era, desde ACP para assumir responsabilidades gover-
reção, fazendo, sobretudo, aquilo de que 1972, membro da Subcomissão Internacio- nativas, César Torres, torna-se presidente
mais gostava: tratar da parte desportiva, nal de Ralis da CSI, futura FIA. Criada em interino do clube, ascendendo a presidente
designadamente dos ralis. Ele próprio fora 1967, a prova portuguesa passa a contar nas eleições de 1980, cargo que manterá até
piloto durante 15 anos, distinguindo-se ao para o Europeu de Ralis três anos depois e, à data do seu falecimento. Sob a sua direção,
volante de diversos carros, nomeadamente sobretudo, para o Mundial, a partir de 1973. o clube ultrapassa a barreira psicológica
VW Carocha ou Alfa Romeo, sem esquecer Não tardará a ser considerado “o melhor dos cem mil sócios e diversifica atividades
o carro de sonho da época: o Mini Cooper rali do mundo”, com honras de inspirar um (viagens, serviços diversos, mediação de
S. Tinha-se estreado em 1955 no II Rali de álbum inteiro do desenhador Jean Graton seguros, etc.). Paralelamente e nas instân-
Sintra e até arrumar as luvas e o capacete que imaginou Michel Vaillant e Steve War- cias desportivas internas, será presidente da
(isto quando se usavam tais coisas em prova, son a disputarem a prova e a apanharem o Comissão Desportiva Nacional (1974/94) da
pois fatos à prova de fogo era coisa que não susto das suas vidas ao chegarem a fundo qual nascerá, em 1994, a Federação Nacional

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Torres, História do Rali de Portugal” (Estar
Editora, 1999) os seus choques de opinião
com César Torres. “A inexistência de um
regulamento standard permitia-lhe dar ao
rali um cunho muito pessoal. Ele defendia
aquilo de que gostava, particularmente a
volta de Sintra e as provas em torno da Pó-
voa de Varzim.” Era um tempo em que se
pensava que “os ralis deviam guardar a sua
especificidade, as suas particularidades,
adaptar o rali à geografia do país, dar largas
à imaginação”. Após o acidente na Lagoa
Azul (1986, quatro mortos e 30 feridos) o rali
esteve em risco mas “a supressão da volta de
Sintra e uma campanha de educação junto
do público permitiram que o rali de 1987 se
desenrolasse sem quaisquer problemas”.
Entretanto, a presença de César Torres
nas mais altas instâncias do desporto au-
tomóvel mundial ajudava a criar condições
favoráveis para Portugal se candidatar com
sucesso à disputa de provas de Fórmula 1, o
que virá a acontecer no circuito do Estoril
entre 1984 e 1996.
Paralelamente à atividade desportiva,
César Torres manter-se-á política e pes-
soalmente próximo de Pinto Balsemão.
Exercerá funções como presidente da Junta
de Turismo da Costa do Estoril (1982/90)
e secretário de Estado do Turismo no XI
Governo, presidido por Balsemão. Coube-
-lhe o lançamento da campanha de turismo
interno “Vá para fora cá dentro” e da ex-
pansão da rede de Pousadas (Enatur). Foi,
ainda, presidente da comissão instaladora
da agência noticiosa Lusa em 1986.
ARQUIVO A CAPITAL

No entanto este aparente alinhamento


político admitia alguma heterodoxia. Nas
eleições de 1986, enquanto o partido de que
fora até então próximo se batia por Freitas
do Amaral, vai apoiar Mário Soares. Coisa
que este não esquecerá, dedicando-lhe no
César Torres, diretor do citado livro as seguintes palavras: “Foi (…)
Rali de Portugal, durante a -geral da FIA em Paris, cerca de um mês um homem com convicções democráticas
apresentação da prova de 1985, antes de falecer em Londres. que se inscreveu desde a Revolução de Abril
em fevereiro desse ano Durante os anos de ouro do rali de Por- no Partido Social Democrático (então Par-
tugal, a prova atrairá multidões e passarão tido Popular Democrático). Por mim não
pelo nosso país as grandes lendas do des- esquecerei nunca que Alfredo César Torres,
de Automobilismo e Karting (FPAK) à qual porto automóvel, de Markku Alén a Hannu num período particularmente difícil me
presidirá até 1997. Mikkola, de Michele Mouton a Björn Wal- acompanhou politicamente e deu a cara,
A nível internacional César Torres vai degard, Carlos Sainz ou Colin McRae. Uma corajosamente, na minha primeira campa-
ascender na hierarquia das duas federa- conjugação de circunstâncias infelizes que nha para a Presidência da República. Não
ções (FISA e FIA) que se haveriam de fundir incluiu uma tempestade em plena prova faz foi fácil para ele, dado que a maioria dos
em 1993. Nessa altura torna-se presidente com que a vertente internacional do rali seus amigos militava no campo rival, mas
delegado da FIA para o desporto automó- pouco tempo sobrevivesse à morte do seu ele escolheu como lhe pareceu melhor, de
vel, assim se mantendo entre 1993 e 1997, maior impulsionador. Torres deixou-nos em forma em absoluto desinteressada. Desde
desempenhando a função mais alta na hie- 1997 e a edição de 2000 foi a última a contar então estreitaram-se as nossas relações (…)
rarquia do automobilismo mundial, sendo o para o Mundial (ao qual só regressaria em Senti a sua morte inesperada, ainda tão
primeiro português eleito para importantes 2007 no Algarve e em 2015 no norte e centro jovem, quando havia tanto a esperar do seu
responsabilidades desportivas à escala glo- de Portugal). talento e espírito de iniciativa.”
bal. É reeleito por aclamação para o mesmo Guy Goutard, que foi presidente da co-
cargo em outubro de 1997 na assembleia- missão de ralis da FIA, conta no livro “César Rui Cardoso

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392
Gustavo
Ribeiro
Skater

No topo do mundo,
sobre rodas
ANTHONY ACOSTA

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Tem um irmão gémeo também skater, mas Gosta de ter pessoas ao lado nessa altura? o suporte de muitas pessoas, e contribuir
foi ele aos 21 anos quem se sagrou cam- Adoro ter pessoas que também percebam de para a sociedade ainda é mais. Sinto que o
peão mundial de uma modalidade cada skate ou até que nem percebam e que deem skate português sobe a cada ano que passa e,
vez menos vista como de vândalos e ar- a sua opinião. Sempre tive bastante pessoas neste momento, talvez consiga ser a pessoa
ruaceiros. Gustavo vai fazendo a sua parte em casa, tenho uma família grande e quanto que possa dar mais janelas à modalidade.
e quer construir uma escola de skate e um mais pessoas à minha volta... Sempre ouvi Adorava abrir um skate park indoor para o
parque indoor em Portugal, além de trazer dizer que duas cabeças pensam melhor do público, é uma das ideias que tenho, espero
uma medalha olímpica para o país. Adora que uma, se qualquer pessoa quiser vir a que em breve consiga e que isto realmente
cozinhar e acha que todos deviam ir ao minha casa, rever os campeonatos comi- aconteça. Não há nenhum park indoor, no
psicólogo para o seu bem. go e ajudar com alguma dica, será sempre inverno os skaters querem andar e é difícil.
bem-vinda. Também começar uma escola de skate, por-
Na final da Street League Skateboarding Agora que é campeão do mundo, a vida que é importante no início, sou adepto dis-
vai de auscultadores nos ouvidos quando mudou em algum aspeto? so. Andei em duas escolas quando era miú-
arranca para os últimos 45 segundos da Não muito, talvez a única que tenha mudado do, depois de alguns anos já não precisas
prova. O que ouvia? seja sentir um bocadinho mais de pressão e porque começas a aprender por ti próprio,
Hum, não sei se deveria dizer isto, é quase que esteja um pouco mais ocupado. Tenho mas no início é mesmo importante para
um segredo meu, não ouço música quando de fazer mais coisas que se calhar há um ou ganhares confiança em ti próprio. Quan-
estou a competir (risos). Ouço música o dois anos não fazia, tenho mais shootings, do és criança, às vezes isso é complicado,
tempo inteiro até ao ponto de começar a reuniões, atividades fora do skate, de pa- precisas de alguém para te agarrar, abrir a
competir. Quando começo, gosto de estar trocínios onde tenho de marcar presença... mente e mostrar que realmente consegues.
focado no que estou a fazer. Às vezes a mú- E entrevistas destas também. É um projeto para muito em breve.
sica pode distrair-me um bocadinho, mas Sim, mas isto é bom. Ao mesmo tempo, a Que eu saiba, não tem treinador. Porquê?
deixo os fones porque, no estádio, muitas minha vida não mudou muito, se comparar Isso é comum nos skaters?
pessoas chamam o meu nome e então é com há dois anos, está um bocadinho mais Por acaso tive uma conversa há pouco tempo
uma maneira de escapar, de não falar com séria, não há grande tempo para brincadei- com um amigo que me perguntou a razão
as pessoas no momento, estar um milhão ras e está a começar a chegar a um ponto para os skaters não precisarem de treina-
por cento focado no que estou a fazer. em que não posso dar muitos passos em dores se os surfistas ou os jogadores de té-
E a treinar? falso. É mais arriscado. nis têm. Sinceramente, não sei responder.
Ouço mais quando ando de skate sozinho, Gosta de ter a agenda mais preenchida? Chega-se a um ponto em que o skate é um
quando estou com amigos gosto de estar a Gosto, adoro ser uma pessoa produtiva e desporto único e, como já disse, cada skater
falar com eles e saber o que está a acontecer sentir que faço coisas o dia inteiro, não tem um estilo diferente, vê o skate de ma-
nesse preciso momento. gosto de ficar sentado o dia todo em casa, neira diferente. Ao início, quando ainda não
Consegue ter noção da energia do públi- odeio, é o pior feeling que posso ter. Pode sabes muito nem fazes muita coisa, é impor-
co, das reações das pessoas às manobras? ser chato ter muitas coisas para fazer, mas tante ter alguém que te consegue orientar.
Consigo ter uma pequena perceção, mas no final do dia vai sempre saber bem. A partir do momento em que começas a
nunca chegar ao ponto da realidade, estou Há um mês, antes de ser campeão mundial, ganhar experiência, a criar um estilo próprio,
tão focado que não ouço nada nem nin- disse que tinha de melhorar muito mais: é um desporto muito único e, às vezes, a
guém. Até porque, dependendo da minha “Sou bom, mas estou longe, longe do topo.” ajuda de profissionais pode ser um pouco
prestação, quando acaba um campeonato OK, eu concordo com essa frase, talvez confusa. O skate é tão pessoal que consigo
vou ver sempre o que fiz na televisão, como agora mudasse a parte do “longe do topo”. fazer a manobra que tu fazes de uma maneira
fiz as coisas, o ambiente à volta da prova. A Acho que estou a evoluir bastante, sou bas- completamente diferente. Às vezes seres
competir não consigo ter perceção do que tante novo, tenho muito que aprender, se ajudado por um treinador pode baralhar um
acontece à minha volta. calhar já me incluo mais no topo, mas sinto bocadinho, mas se tiveres um profissional
Nesses momentos é muito autocrítico? que ainda estou longe de ser o melhor do para ajudar noutros aspetos, como a saúde
Às vezes é horrível estar comigo quando mundo. Posso ter o título neste momento, mental ou no ginásio, é muito importante.
estou a rever isto, porque sou muito nega- mas tenho muito para aprender e mostrar. Podes ter profissionais a ajudarem em tantas
tivo comigo próprio. Mesmo que dê uma Só tem 21 anos. O que gostava de fazer no áreas que, no final, isso vai-te ajudar no ska-
manobra boa questiono sempre alguma skate de competição e em relação à per- te. Mas creio que ter um professor de skate
coisa, “devia ter dado assim, ah, devia ter ceção que quer que as pessoas tenham? no meu nível não me vai ajudar muito. Não
dado assado”. Mas isso é bom, sou uma É uma pergunta bastante complexa. Se me prejudica, mas não ajuda muito.
pessoa bastante perfeccionista e gosto de perguntasse isso há uns anos, não sabe- Imagino então que já trabalhe com um
ver as coisas bem feitas. Quando me vejo ria responder, nem sequer ia pensar que psicólogo.
a andar de skate e reparo em algo que não conseguiria ser a inspiração para muitos Não há muito tempo, mas trabalho aqui no
foi tão bom, gosto de apontar o dedo a mim miúdos. Hoje tenho esse trabalho. Não é Athlete Performance Center (APC) da Red
próprio. fácil, mas é incrível e inacreditável sentir Bull. Têm um ginásio muito grande com

“A competir não consigo ter perceção


do que acontece à minha volta”
394
Gustavo Ribeiro venceu o circuito mundial de skate (Street League Skateboarding) antes de ficar com a prata no Mundial de Skate

nutricionistas, psicólogos, mental coach, partiam as ruas. Passado esse tempo já so- foco. Temos no World Tour um skater de
tudo e mais alguma coisa. De há dois anos mos uma modalidade olímpica, estamos 36 anos e olhas para ele e parece que tem
para cá, quando vim para os EUA e a co- a caminho dos segundos Jogos Olímpicos 28, é o Ryan Decenzo, do Canadá, que só
mecei a frequentar o APC, tem-me vindo a e as pessoas começam a respeitar mais os come saudável, treina bastante e está cinco
ajudar bastante. Nunca pensei poder dizer skaters, a verem que realmente é um des- estrelas. Depende muito do teu querer, mas
isto, a minha mãe é psicóloga e pensava porto como os outros. diria que o skate não tem prazo. É a tua
que quando ias ao psicólogo era quando Também iria ajudar se, em 2024, regres- própria cabeça.
realmente não estavas bem, mas não tem sasse de Paris com uma medalha. Acha possível que o skate chegue um dia
nada a ver. Toda a gente deveria fazê-lo Ia ajudar bastante, é o meu objetivo, sinto a ser ensinado nas escolas em Portugal?
dia sim, dia não, para falar ou desabafar, é que também é o de muitos portugueses. Isso na China já acontece, há escolas de
muito importante. Neste momento, gosto de dizer que isto é um skate onde vais para lá de manhã, estudas
Ainda há margem no skate para se in- longo caminho, há várias aprendizagens e matemática, chinês ou whatever e, depois,
ventarem truque ou manobras? vários obstáculos, acho que ando a retirar o em vez de teres educação física, tens skate,
O skate está a começar a ter manobras ina- melhor de tudo. Com estas pequenas barrei- é algo inacreditável. Mas acho que não vai
creditáveis, até eu e outros skaters pensáva- ras sinto que estou a ficar uma pessoa mais acontecer em Portugal (risos). Penso que vai
mos que nunca iriam acontecer, manobras forte e crescida para nos Jogos Olímpicos começar a ser mais bem aceite, a haver mais
que, se calhar, há dois ou três anos só eram de 2024 ter mais maturidade, que há três escolas de skate, mas nunca haverá escolas
dadas na PlayStation e hoje em dia eu, como anos, em Tóquio, não tinha. complementadas pelo skate. Poderá haver
outros, ou miúdos pequeninos japoneses, já Um skater tem prazo de validade? Há uma cidade do skate como há a cidade do
conseguimos fazer. O skate está a começar uma idade a partir da qual se retira? futebol em Caxias, não vai passar muito
a tomar proporções gigantescas e sei que Nem por isso. Normalmente, quando chegas disso. Se o Estado português ler esta en-
vai ser um desporto gigante. aos 31, 32 anos se calhar começas a querer trevista e quiser ajudar o skate, nós, skaters
O que falta para chegar a esse estatuto? tirar o pé porque tens tantas novas gera- portugueses, estamos 100% abertos para
Tempo. Acho que nós não temos de fazer ções da minha idade a aparecerem, ou até ajudar! Acho que no futuro haverá mais
grande coisa, com o tempo, devagarinho, mais novos, com 16, 17 ou 18 anos. Quando oportunidades ou infraestruturas, centros
vamos conseguindo. Há três ou quatro anos a idade já pesa um bocadinho fica dife- de treino, mas isso não.
ainda éramos o desporto de delinquentes rente continuar a competir naquele nível, 
que eram uns drogados, uns bêbados que mas depende da tua mentalidade e do teu Diogo Pombo

395
Durão
Barroso
Político

A transitória glória
de mandar

TIAGO MIRANDA

396
397
No espaço de dois anos (2002/04) passou
de líder da oposição em Portugal a primei-
ro-ministro e, logo de seguida, a presidente
da Comissão Europeia, cargo que ocuparia
durante dois mandatos consecutivos (até
2014). Antes de Freitas do Amaral (pre-
sidente da Assembleia-Geral das Nações
Unidas, 1995/96), António Vitorino (di-
retor da Organização Internacional para
as Migrações, 2017) ou António Guterres
(secretário-geral da ONU, 2017), foi o
primeiro português a ascender a um car-
go internacional ao mais alto nível. Uma
ascensão tão meteórica como destituída
de continuidade: tirando a nomeação em
2021 para presidente da Aliança Global para
as Vacinas (Covax, iniciativa das Nações
Unidas para a vacinação anticovid-19) não
voltou a desempenhar funções públicas
de responsabilidade, tendo passado a ser
administrador não executivo do banco nor-
te-americano Goldman Sachs, em 2016, dois
anos depois de sair da Comissão Europeia.
De resto, nada mais surpreendente que a
carreira política de Durão Barroso. Deu que
falar em 1974/75 como ativista estudantil
na Faculdade de Direito de Lisboa, mili-
tando num partido da esquerda maoista,
o MRPP. Normalizada a situação política
RUI DUARTE SILVA

em Portugal (novembro de 1975), começa a


derivar para a direita do espectro político,
aproximando-se de antigos adversários da
faculdade como Pedro Santana Lopes que
lhe abrirá as portas do PSD. A relação entre
os dois políticos continuará a ser ao longo
dos tempos como tinha sido em Direito: tur- Durão Barroso em campanha
bulenta e feita de uma mistura de amor e de Almada. “Destes tempos agitados não pelo PSD para as eleições
ódio. Ambos disputarão, entre outras coisas, se conhece militância de Durão Barroso. legislativas de 2002, no Porto
a liderança do partido, primeiro em 1995 Uma ex-colega lembra-se de terem sido
(vitória de Fernando Nogueira), com Barroso envolvidos numa ação contras as faltas que
a levar a melhor em 1999. Caberá a Santana acabou na evacuação da escola e na inter- senão único. “Já para os que surgiram de-
Lopes ocupar o cargo deixado vago em São venção da polícia. Mas o recém-chegado pois e só conheceram a fase da luta contra
Bento por Barroso, de partida para Bruxelas. só ganharia protagonismo no pós-25 de o social-fascismo (nome dado pelo MRPP
Fá-lo-á em circunstâncias particularmente Abril. Aproxima-se dos radicais e torna o ao PCP), a deriva na direção do PSD não
ingratas e das quais a sua carreira política discurso do marxismo-leninismo-maois- aparece como contranatura”.
também nunca mais se recomporá. mo consumível pelos estudantes, almofa- Barroso chega a ministro dos Negócios
Voltando à passagem de Barroso pela dando a ortodoxia com a retórica. Tendo Estrangeiros no último Governo de Cava-
Faculdade de Direito de Lisboa, por oca- aderido ao ramo estudantil do MRPP, faz co Silva (1992/5) mas tinha sido enquanto
sião das eleições legislativas de 2002 que discursos inflamados de homenagem a secretário de Estado que averbara pontos,
opuseram o então líder do PSD a Ferro Ro- Estaline, chega a ter honras de orador num ao participar, em 1990, na negociação dos
drigues, sucessor de Guterres à frente do comício do partido no Pavilhão dos Des- acordos para a paz em Angola de Bicesse
PS, fiz na Revista do Expresso (15 de março portos e começa a ser visto como o favorito (1991). Uma paz temporária, pois devido a
daquele ano) um perfil comparado dos dois de Arnaldo Matos.” dinâmicas internas, a guerra civil prosse-
adversários enquanto jovens estudantes Muito mais tarde, passará a sustentar em guiria até 2002. Se é verdade que a situação
contestatários. público que só esteve no MRPP como forma internacional de então era desfavorável à
Nesse artigo se contava como, no meio de melhor combater o PCP. José Lamego diplomacia portuguesa, não consegue obter
de um ambiente opressivo, com ‘gorilas’ (hoje dirigente do PS) que com ele conviveu, resultados marcantes no dossiê de Timor-
(pseudocontínuos contratados para re- tanto no partido como na faculdade, subli- -Leste (que só se começará a resolver em
primir os estudantes) e polícia de choque, nhava no artigo que escrevi, que a geração 1999 com Clinton na Casa Branca, Guterres
quase ninguém deu pela chegada à facul- da resistência aos pides e aos ‘gorilas’ nunca em São Bento e Sampaio em Belém).
dade em 1973/74 de um jovem chamado digeriu muito bem a definição no pós-25 Quando, em 1999, se torna líder do
José Manuel Durão Barroso, vindo do Liceu de Abril do PCP como inimigo principal, PSD fica famoso por uma tirada de sabor

398
preparação da invasão do Iraque. Derrubados Algo que o ex-Presidente da República
o regime talibã do Afeganistão, protetor de Mário Soares haveria de causticar num artigo
Osama Bin Laden, os ideólogos neoconser- publicado a 20 de janeiro de 2005. “Parece-
vadores da Casa Branca passam a apresentar -me oportuno voltar dois anos atrás: à men-
o ditador iraquiano Saddam Hussein como tira da existência de armas de destruição em
o inimigo a abater, apresentando-o como massa nas mãos do ditador Saddam Hussein,
sustentáculo da Al-Qaeda, promotor do ter- o pretexto encontrado para justificar uma
rorismo internacional e possuidor de armas guerra ‘preventiva’ ilegal. A mentira foi ava-
de destruição em massa, pelo menos quími- lizada na Cimeira dos Açores, pelos amigos
cas e eventualmente atómicas. Nenhuma das europeus de Bush: Blair, Aznar (a que depois
duas coisas era verdade: Saddam era laico aderiu Berlusconi). Com o anfitrião — Durão
e não tinha laços com o fundamentalista Barroso — a declarar que as armas existiam
Bin Laden, mentor dos atentados das Torres porque lhe tinham mostrado em Londres,
Gémeas (2001); e as famosas armas, uma ‘provas irrefutáveis’. Sabemos hoje o valor
vez conquistado o Iraque, em 2003, nunca dessas ‘provas’... Ora, dois anos depois (...),
foram encontradas, nem pela CIA nem pelas a América põe oficialmente fim às buscas na
tropas especiais norte-americanas. Sabe- procura das celebradas armas ou dos seus
-se hoje que se tratava de uma campanha vestígios — que o presidente da Comissão de
encenada para justificar um redesenho do peritos da ONU, o sueco Hans Blix, sempre
Médio Oriente visando a criação de regimes negou existirem. Que vergonha para Bush
alinhados com os EUA, donde não voltassem e para os seus apaniguados europeus, que
a surgir novos grupos hostis à imagem da nele confiaram!”
Al-Qaeda. Apesar de Barroso e Jacques Chirac terem
Na Cimeira das Lajes que acolherá a 16 de tido posições diametralmente opostas no
março de 2003, além de George W. Bush e que respeita à invasão do Iraque, o pre-
de Tony Blair, o primeiro-ministro espanhol sidente francês haveria de ter um papel
Aznar, Barroso vai apoiar incondicional- decisivo em 2004 na escolha do nome de
mente a estratégia anglo-americana. Mais Durão Barroso para suceder a Romano Prodi
que isso, fará uma declaração fatal que, a como presidente da Comissão Europeia.
prazo, pode ter condicionado a sua carreira O primeiro mandato foi marcado pelos
política: declara terem-lhe sido apresenta- referendos em França e na Holanda que
das “provas irrefutáveis” da existência de inviabilizaram o projeto de uma constitui-
armas de destruição em massa na posse ção europeia. Apesar de tudo, na cimeira
de Saddam. de fevereiro de 2007, realizada na capital
portuguesa, seria aprovado o Tratado de
Lisboa: um novo funcionamento para as
maoista: “Sei que vou ser primeiro-minis- instituições europeias, reforçando o papel
tro. Só não sei é quando.” A demissão de do parlamento europeu e determinando
Guterres, desiludido com o “pântano” em que o presidente da Comissão passasse a
que ameaçava transformar-se a situação ser eleito pelos eurodeputados. Algo que
política, e as dificuldades daí decorrentes mereceu do então primeiro-ministro José
de recomposição do PS levam Barroso a Sócrates, o famoso comentário dirigido a
disputar as legislativas de março de 2002 Barroso: “Porreiro, pá!”
num contexto favorável, triunfando ainda O segundo mandato (2009/14) na Co-
que com maioria relativa e dependendo do
CDS para governar.
No espaço de dois missão é marcado pela crise económica,
à qual Barroso se referirá nos seguintes
É nessa altura que a sua mulher, Marga-
rida Sousa Uva (falecida em 2016), o com-
anos passou de termos: “Penso que é importante que os
europeus saibam que a crise não foi criada
para a um peixe de águas profundas como
o cherne, citando um poema que Alexan-
líder da oposição pela Europa. A crise foi criada pelo com-
portamento irresponsável nos mercados
dre O’Neill terá escrito depois de assistir em Portugal financeiros e também pelo comportamento
à projeção de “O Mundo do Silêncio”, de irresponsável de países que acumularam
Jacques-Yves Cousteau: “Sigamos o cherne, a primeiro- dívida excessiva.” E seriam países como
minha amiga!/ Desçamos ao fundo do de-
sejo/ Atrás de muito mais que a fantasia/ E -ministro e, Grécia, Irlanda ou Portugal os bodes ex-
piatórios dessa crise. Em 2003 a questão
aceitemos, até, do cherne um beijo/ Senão
já com amor, com alegria…” Uma forma de
logo de seguida, do Iraque custou a Tony Blair a sua sobre-
vivência política e o seu cargo de primei-
vender o peixe, politicamente falando, que
se colaria para sempre ao visado.
a presidente ro-ministro. E a Barroso? Só o saberemos
se um dia anunciar a intenção de voltar à
Um ano depois Barroso, vai fazer causa
comum com a política externa da Admi-
da Comissão política portuguesa.

nistração Bush, apoiando sem reservas a Europeia Rui Cardoso

399
TIAGO MIRANDA

400
Mariana
Mortágua
Política

De frente
para o poder

401
PAULO PETRONILHO

Mariana Mortágua no desfile


Está à beira de entrar numa vida nova, mas do 25 de Abril de 2015 na Avenida E talvez por isso Mariana tenha, como Ca-
Mariana Mortágua diz que, na verdade, há da Liberdade, em Lisboa tarina Martins, surgido fora das tendências
alturas em que se sente a viver os mesmos que marcaram a vida interna do partido.
dias de há uma década. “Encontro muitos “O Bloco tem neste momento uma dire-
paralelos [hoje] com o tempo da troika, o rejeição numa parte do eleitorado, isto se ção unificada, graças ao trabalho de todas as
medo e a desesperança em muitas pessoas.” se confirmar que é mesmo a nova líder (as partes” (leia-se, das diferentes fações), nota
Nascida em 1986, a sensação de déjà vu é, eleições internas são no fim de maio). O Mortágua, dando, porém, papel principal
aliás, uma marca geracional. “A minha ge- desafio é enorme num partido que vem do a uma dessas partes. “A Catarina foi uma
ração nunca soube o que é viver sem cri- pior resultado eleitoral em 20 anos, a res- porta-voz incrível, com muita clareza e com
se” — e essa é uma palavra que já não lhe posta tem quatro palavras: “Não pretendo a capacidade de unificar e unir o partido.”
serve. “Crises são momentos de exceção, mudar nada.” Antes disso, Mortágua ainda foi a tempo de
em que tudo é permitido e em que se vai Mariana Mortágua formou-se em Econo- experimentar o sabor amargo das disputas
liberalizando a economia e degradando a mia em 2008, em plena crise do subprime, internas — chegou ao Parlamento em 2013,
democracia.” O tom sobe. “A crise é uma que pouco depois faria Portugal ser inter- para substituir a dissidente Ana Drago, o
invenção, é um mecanismo económico e vencionado pela troika que junta Fundo Mo- que motivou um abaixo-assinado de cerca
é uma chantagem permanente, que tem netário Internacional, Comissão Europeia e de 100 camaradas, que se queixavam por
ganhadores.” Banco Central Europeu. Esse período e as Mariana ter sido escolhida em detrimento
É quase marca de água: Mariana Mor- grandes manifestações que o marcaram, dos nove elementos à sua frente na lista que
tágua nunca poupa uma palavra, sobretu- com o “Que se lixe a troika” à cabeça, é tinha concorrido por Lisboa nas legislativas
do quando fala sobre o tema que domina indissociável do aparecimento da então anteriores.
melhor, a economia, e se atira às “elites já mestre em Economia, que admite a im- Mas voltemos à questão de estilo. Adolfo
financeiras”. Desde que se percebeu que portância da primeira grande crise da vida Mesquita Nunes, que abandonou o CDS
seria candidata a suceder a Catarina Martins adulta para se decidir pela política parti- em 2021, debateu com Mortágua durante
na liderança do Bloco de Esquerda que se dária. A atividade no Bloco de Esquerda anos no programa da SIC Notícias “Linhas
levanta a dúvida sobre se vai precisar de começa assim “tarde” e mais pela ação na Vermelhas”. “Havia uma certa pressão, que
suavizar o estilo, para evitar o risco de criar rua do que pela formação teórico-política. as redes sociais alimentavam, no sentido

402
em que um e outro representavam campos vistos por uma parte da esquerda como didas. “Podemos especular muito, mas o
diferentes, para que nos destruíssemos em uma medalha. PS tem uma maioria absoluta, para fazer
direto. Sempre recusámos esse caminho.” Há menos de um ano, os papéis inverte- o que bem entende. E o que entendeu fa-
Foi como um pacto de não agressão, que ram-se e foi a própria Mortágua a ter de se zer foi uma política de promoção ativa das
para o ex-secretário de Estado, precisamen- justificar no Parlamento. Em causa estava desigualdades e a maior transferência de
te desse Governo PSD/CDS, explica uma o facto de ser remunerada pelo programa rendimento do trabalho para o capital. É
“certa química” que deu força ao progra- na SIC Notícias, quando as regras já tinham isto que temos à frente.”
ma. “Havia uma capacidade de argumentar sido alteradas e os deputados em exclusivi- A própria tem por isso à frente duas ta-
de forma sustentada, dura, mas a permitir dade (como é o caso de todos os bloquistas) refas para os próximos anos, que sinalizou
que o outro falasse, e com respeito mútuo.” estavam impedidos de receber pelas pre- na apresentação da candidatura à liderança.
Mesmo que um estivesse, e estava várias senças televisivas. Devolveu ao Parlamento “Criar soluções legislativas para resolver os
vezes, nos antípodas do outro. o dinheiro dos cinco meses em que esteve problemas das pessoas”, as microssoluções,
A chegar aos 37 anos, a bloquista reco- em situação irregular e foi ilibada pelas ou- e uma macro: “Afirmar uma alternativa à
nhece que é nos assuntos económicos que tras bancadas, com exceção do Chega, que esquerda” que não deixe ao país “a escolha
conquistou o capital político para ser rosto se absteve. Mantendo a exclusividade, pediu entre o mau e o pior”. Isto é, entre a maioria
de um partido, mas diz que “ter muitas para deixar de ser remunerada pela SIC. absoluta e “um projeto de direita com a ex-
pessoas que sabem de muitas coisas é a Sobre o futuro, Mariana Mortágua re- trema-direita”. Sobre essa sombra, refuta as
vantagem de fazer parte de um projeto co- siste a responder sobre o longo prazo. Por tentativas de estabelecer uma equivalência
letivo”. Diz também que o leque de temas exemplo, sobre se vê com bons olhos uma entre o Bloco e o Chega: “A solidariedade
sobre os quais foi obrigada a estudar “foi nova aliança à esquerda, num futuro pós- e a tolerância não são o radical oposto à
aumentando, porque houve reivindicações -António Costa no PS, que dê ao Bloco a violência e à discriminação. Tem de ser o
que entraram no nosso dia a dia”, como o centralidade e a influência entretanto per- normal, o sensato.”
combate contra as alterações climáticas. A certa altura, Mariana distrai-se. “Gosto
Mas recusa ter sido obrigada a uma prepa- muito desta música”, conta, sentada na
ração especial para assumir a candidatura a esplanada da Casa do Alentejo, em Lisboa.
líder do Bloco. “Não me arrogo a capacidade É de um grupo coral alentejano e serve de
nem o dever de saber tudo sobre tudo. Acho referência ao Alvito, no concelho de Beja,
que o meu dever é aprender.” onde Mariana viveu até aos 18 anos e aonde
Ao contrário do que aconteceu com regressa com frequência.
Mesquita Nunes, Mariana Mortágua tam- Ao ouvi-la falar de “crise”, “empobre-
bém sabe que para alguns é, mais do que cimento”, de uma “distorção do poder,
adversária, inimiga número um. É um que protege as elites”, de uma “economia
papel que tende a escalar com a chegada montada para ocultar e proteger os grandes
à coordenação do Bloco e que não pensa beneficiários”, de “uma sociedade cada
abandonar, mesmo num tempo politica- vez mais desigual”, é natural que se lhe
mente mais violento, como admite que este pergunte onde esteve, e onde está hoje, o
é, em comparação com o que encontrou na espaço para a alegria. Há um ano, Francisco
altura das famosas comissões de inquérito Louçã, figura central da história do Bloco e
à gestão do BES, em que o seu caminho se do pensamento político do partido, um dos
cruzou com figuras como Ricardo Salgado que mais elogia as competências técnicas
e Zeinal Bava. e políticas de Mortágua, dizia ao Expresso
A conversa era sobre o estilo da candida- que “o otimismo é um luxo a que não nos
ta a líder, mas salta logo para os casos prá-
ticos. “Como é que se tolerou que os bancos Refuta tentativas podemos dar”. Que horizonte de esperança
tem a esquerda para oferecer hoje, em par-
angolanos se instalassem em Portugal a
lavar dinheiro da elite angolana durante
de criar uma ticular às gerações mais novas?
“É preciso mostrar às pessoas que é pos-
anos? Todos sabiam que a clique de Isabel
dos Santos estava a lavar dinheiro e todos
equivalência sível ter uma economia diferente, que a
justiça da distribuição de riqueza e salários
olhavam para o lado.” E a economista insiste
que é preciso olhar para cima: “A política do
entre Bloco não só permite uma vida boa a toda a gente
como cria uma economia mais robusta.”
medo e do ressentimento põe as pessoas a e Chega: “A Mariana recua ao pós-guerra para lembrar
olhar para baixo e para o lado, para a outra os anos dourados do capitalismo, entre o
pessoa que é igualmente explorada e que solidariedade fim do conflito em 1945 e o início dos anos
ganha mal, mas tem um subsídio. Ninguém
olha para cima.” e a tolerância 70, e ironizar. “Curiosamente, os anos mais
prósperos foram numa altura em que havia
Virá de cima, mas sobretudo da direita,
a oposição mais vocal a Mortágua, que é
não são o controlo bancário.” Diz que a esquerda tem
de ser capaz de unir uma maioria em torno
para alguns sectores uma espécie de pa-
pão da esquerda, versão mais inflexível
radical oposto da ideia de criar novos direitos sociais e,
claro, de controlar o mercado. “Eu não estou
do que a de Catarina Martins. Embora
Mariana seja, no partido, a promessa de
à violência e à a lutar por uma utopia.”

continuidade e os seus principais inimigos discriminação” João Diogo Correia

403
António
Costa
Político

O mestre
da tática

LUÍS BARRA

404
405
Enquanto primeiro-ministro, António Costa
conseguiu atravessar o fogo de Pedrógão Mesmo com
sem se chamuscar. A pandemia da covid-19
sem perder o controlo da situação, mesmo maioria absoluta,
tendo de ir buscar um almirante para pôr
no rumo certo uma campanha de vacina-
faltam ideias
ção que andava à deriva. Repôs alguns dos
direitos, pensões e salários cortados pela
claras e propostas
troika sem por isso ficar a reboque do PCP
e do BE. E, já na atual legislatura, enfren-
práticas para
tou uma catadupa de entradas e saídas no dar resposta
Governo na sequência de revelações emba-
raçosas sobre o passado de alguns membros aos problemas
do Executivo. Isto com a guerra na Ucrânia
e uma inflação daí decorrente como não se de fundo, sejam
via desde a década de 80.
É um dos políticos do nosso tempo com
na Saúde,
maior capacidade de manobra e de adapta-
ção a circunstâncias adversas, mantendo o
na Educação,
barco à tona de água onde outros o teriam
deixado afundar. Consegue ler os momen-
na Justiça ou
tos políticos e atuar em conformidade. Foi na Economia
assim que se manteve longe da disputa pela
liderança do PS a seguir à queda de Sócrates
(2011) mas tirou o tapete a António José
Seguro quando se começou a aproximar
novo ciclo eleitoral, dizendo que o PS não
se podia contentar com “vitórias pouco
expressivas” como as obtidas nas europeias
de 2014 (31,4% do PS contra 27,7%). Nem
ficar condicionado pela agenda do Governo
de Passos Coelho, como, do seu ponto de
vista, sucedera quando o PS se abstivera
relativamente ao primeiro Orçamento do na Saúde, na Educação, na Justiça ou na
RUI OCHOA

Estado de Passos Coelho. Economia. A crise pandémica evidenciou a


Em setembro de 2014, Costa saiu da Câ- que ponto os países europeus e Portugal em
mara de Lisboa (onde ia no terceiro manda- particular estavam dependente de cadeias
to) e forçou a realização de primárias no PS, planetárias de abastecimento (leia-se da
que lhe seriam favoráveis, afastando Seguro China) e perdera capacidade de produção
que estivera ao leme do partido durante três de coisas tão simples como máscaras ou públicas onde os resultados são mais do
difíceis anos. Não tendo conseguido romper luvas cirúrgicas. Onde estão propostas de que meritórios e o da vida quotidiana, onde
a narrativa da campanha de Passos, cen- reindustrialização? O país tem um aeropor- os rendimentos das classes populares evo-
trada no acerto das contas e nas responsa- to de primeira categoria em Beja mas não luem muito mais devagar do que os lucros
bilidades passadas dos socialistas (Sócrates é aproveitado como alternativa ou solução das empresas e da banca e há indicadores
incluído) ele, que queimara Seguro em lume complementar ao de Lisboa. Enuncia-se a dramáticos de empobrecimento, como seja
brando por causa das “vitoriazinhas”, teve aposta na ferrovia mas não há capacidade de o aumento dos roubos de bens de primeira
em 2015 uma “derrotazinha” nas legisla- atrair para Portugal uma “Autoeuropa dos necessidade nos supermercados.
tivas que, com habilidade política, soube comboios”. Há uma crise da habitação mas Algo que tem chamado a atenção da im-
transformar em vitória, garantindo uma não se vislumbram ideias para relançar pro- prensa internacional, como, por exemplo, o
maioria parlamentar à custa de um acor- gramas de construção a preços acessíveis, diário francês “Le Monde” que, num trabalho
do informal com o PCP e o BE, a famosa na linha dos que em tempos existiram, fosse de Sandrine Morel datado de 25 de fevereiro,
‘geringonça’. Nessa altura o então líder do no sector público, fosse no cooperativo. sublinha que “há, claramente em Portugal
PCP tinha sido claro. Dissera Jerónimo de A ironia da atual situação é Costa (que, um problema de distribuição da riqueza”. E
Sousa: “O PS só não forma Governo se não juntamente com o seu vizinho ibérico Pedro citava a propósito declarações de José Reis,
quiser.” Para bom entendedor... Sánchez, é apontado em França ou em Itália docente de Economia da Universidade de
Se a tática é o lado forte de António Cos- como exemplo “da esquerda que funciona”) Coimbra: “O que as pessoas esperam de um
ta, o seu lado fraco é a estratégia, sobretudo estar nos últimos meses a braços com mo- Governo socialista é que tenha capacidade
quando se trata de planear e de pensar a vimentos sociais sem precedentes desde o para conciliar o controlo orçamental com
longo prazo. Mesmo governando com maio- tempo da troika, envolvendo professores, as necessidades de justiça social.”
ria absoluta, como o faz desde 2022, faltam enfermeiros ou ferroviários. Isto no momen- Não obstante tudo isto, aos 61 anos,
ideias claras e propostas práticas para dar to em que parece haver em Portugal dois Costa fica na história por diversas razões.
resposta aos problemas de fundo, sejam países: o da macroeconomia e das contas Consegue regressar ao poder no quadro de

406
Embora tivesse sido apoiante, primeiro de
Vítor Constâncio e depois de Jorge Sampaio,
neste caso contra António Guterres em 1992,
é convidado por este para integrar o Governo
em 1995, o que fará na qualidade de secre-
tário de Estado dos Assuntos Parlamentares,
passando dois anos depois a ter essa pasta
ministerial. No entanto, a proximidade po-
lítica com Sampaio manter-se-á e será seu
diretor de campanha nas presidenciais de
1996, onde será derrotado Cavaco Silva. Será
ministro da Justiça no segundo Governo de
Guterres até à queda deste em 2002. Virá a
apoiar Sócrates em 2004, após este vencer as
legislativas com maioria absoluta, sendo no-
meado ministro da Administração Interna.
Em 2007 há uma crise política na Câma-
ra de Lisboa, quando a vereação do PSD,
seguindo as instruções do então líder do
partido Marques Mendes, tira o tapete a
Carmona Rodrigues que, primeiro substi-
tuíra Santana Lopes à frente do município
e depois ganhara as eleições de 2005. Em
causa, o negócio de permuta de terrenos
da antiga Feira Popular com a empresa
Bragaparques. Perante a queda do execu-
tivo municipal e a convocação de eleições
antecipadas, António Costa candidata-se
e vai beneficiar da divisão de votos entre o
candidato oficial do PSD, o antigo ministro
Fernando Negrão, e os fiéis a Carmona Ro-
drigues. Mal andarão os que confundirem
política e aritmética, mas para a história
fica que a soma de Carmona com Negrão
dava ligeiramente mais do que a votação
obtida por Costa… Quanto a este, teve que
urdir uma ‘pré-geringonça’ para tornar a
Câmara governável, aproximando-se de
Maria de Belém e António Costa no XIII Helena Roseta e de José Sá Fernandes.
Congresso do Partido Socialista, no Coliseu nosso sistema político, o Presidente eleito A partir daí, o novo presidente do mu-
dos Recreios, em Lisboa, em 2002 diretamente pelos cidadãos tem a missão nicípio lisboeta vai enraizar-se junto do
de garantir a unidade nacional e de ser uma eleitorado. Em 2009 vencerá com 40,2%
voz de alerta.” dos votos e em 2013 com 50,1% ou seja, ao
uma aliança informal com as formações Embora tenha estado ligado desde cedo contrário de Sampaio, dez anos antes, con-
à sua esquerda. Efetua o corte com a he- ao PS, nomeadamente nas organizações seguiu vitórias folgadas sobre a direita sem
rança de Sócrates, dissociando o partido de juventude, Costa só começa a dar que necessidade de se aliar com o PCP. Uma vez
das acusações que pesam sobre o antigo falar na década de 90. Antes disso estagiara mais se viria a confirmar que a Câmara da
primeiro-ministro. E, tal como o antigo como advogado no escritório de Vera Jar- capital tem muitas vezes funcionado como
primeiro-ministro, conseguiu em 2022 uma dim. Ao fim de dois anos como deputado, um viveiro de primeiros-ministros quan-
maioria absoluta no Parlamento. Confiança é escolhido pelo partido para concorrer do não de presidentes: primeiro Sampaio,
não lhe falta. Uma vez disse ao Expresso às eleições na Câmara de Loures. Anima a depois Santana Lopes e finalmente Costa.
(num trabalho de Cristina Figueiredo, de campanha autárquica de 1993, promovendo Quanto a Costa, vê-se chegado a um
24 de novembro de 2015) a propósito do seu uma corrida simbólica entre um burro e dos muitos problemas de trânsito com que
percurso enquanto ministro: “Deve haver um Ferrari na Calçada de Carriche, ponto deve ter lidado enquanto autarca: chegou a
problemas impossíveis. Tenho tido a sorte de ligação entre a capital portuguesa e o uma rotunda e esta apresenta várias saídas,
de nunca ter encontrado nenhum...” chamado “corredor de Loures” por onde desde as instâncias europeias onde é bem
Ao podcast no Expresso “Deixar o Mundo diariamente passam mais de 200 mil pes- aceite, à manutenção em funções gover-
Melhor” de Francisco Pinto Balsemão disse soas utilizando o transporte individual. namentais ou à candidatura a Presidente
ter com Marcelo uma relação diferente da Moral da história o burro venceu e Costa da República. Nova corrida de velocidade
que teve com Cavaco: “Fui aluno dele, so- ganhou notoriedade, ainda que não tenha e desta vez quem ganhará? O Ferrari?
licitei-lhe pareceres quando era advogado, vencido essas autárquicas por uma dife-
tínhamos convivido…” E acrescentou: “No rença de menos de 1%. Rui Cardoso

407
Pedro
Nuno Santos
Político

O paradoxo
de um sucessor

TIAGO MIRANDA

408
409
As pernas de João Leão, ministro das Fi- é dono da Tecmacal, um importante grupo vamos à JS nacional.” Assim foi. Da lide-
nanças, abanavam, nervosas. O Conselho industrial do sector do calçado no qual Pe- rança da JS à Assembleia da República, em
de Ministros estava reunido para finalizar dro Nuno e a irmã detêm uma participação 2005, foi um salto. Costuma dizer que nunca
a proposta de lei do Orçamento do Estado de 0,5% cada um — o que recentemente teve mentores nem padrinhos e quem o co-
para 2022 e, por aquela altura, a tensão já deixou o então ministro a braços com um nhece garante que se “orgulha” de ter feito
era grande: o PCP não estava seguro, o barco caso de alegadas incompatibilidades. Além carreira no PS. Seja isso uma vantagem para
podia mesmo virar. Marta Temido batia-se de empresário de sucesso, Américo Santos dentro do aparelho, ou uma desvantagem
pela aprovação do novo estatuto do SNS, é também amante de carros de luxo e uma para fora dele. “Escolheu envolver-se na
Ana Mendes Godinho queria aprovar uma personalidade conotada com a esquerda sociedade através da vida partidária e or-
medida no âmbito da Segurança Social que radical, tendo chegado a ser dirigente da gulha-se disso”, diz um dos socialistas que
custava alguns milhões e Graça Fonseca Organização Comunista Marxista-Leninista há mais tempo o acompanha, não deixando
apelava à aprovação do novo estatuto dos Portuguesa, nos idos da revolução. O filho passar em branco o mapa das federações
profissionais da Cultura. João Leão fazia ficou-lhe não só com a política nas veias socialistas: todas são costistas, por agora,
contas. Não podia avançar com aquilo tudo, — filiou-se na JS logo aos 14 anos, quando mas praticamente todas serão pedronu-
as medidas da Cultura teriam de cair. “Por Jorge Sampaio perdeu as legislativas para nistas se, ceteris paribus, todas as peças se
incrível que pareça, no Conselho de Mi- Cavaco Silva —, como também com o gosto mantiveram inalteradas até lá. “Ele já foi
nistros não há assim tanta gente que fale por carros. E é aí que entra o paradoxo: já tudo no PS, já esteve em todos os órgãos,
sobre outras áreas que não a sua”, comenta como secretário de Estado, no início da só lhe falta uma coisa”, continua a mesma
ao Expresso um ex-ministro. Mas Pedro ‘geringonça’, vendeu um Porsche 997S dois fonte. Ser secretário-geral.
Nuno Santos, naquela vez como noutras, meses depois de o ter comprado, e depois Mas, primeiro: pausa. Por estes dias, tem
não ficaria calado — era preciso abrir os de já ter sido fotografado em Espinho a es- andado discreto. Por Lisboa, onde mora,
cordões à bolsa: “Isto é ou não é um órgão tacionar o Maserati do pai avaliado em €100 não é difícil ser visto em almoços e jantares
colegial?” mil. “Ele prefere não ter o Porsche do que com socialistas ou pelo bairro de Campo de
O ideário sempre foi esse. Em 1996, Pedro perder algum capital político de ser um Ourique, ora a ir buscar o filho à escola, ora
Nuno Santos entrava no Instituto Superior político de esquerda”, nota o ex-deputado a acompanhá-lo nos treinos de hóquei em
de Economia e Gestão (ISEG) para estudar do CDS João Almeida, também natural de patins. Depois de sete anos como governan-
Economia. A Associação de Estudantes era São João da Madeira, cuja família tem uma te, demitiu-se do governo mais de três anos
liderada por uma lista da JSD, mas um novo fábrica ao lado da fábrica da família Santos. antes de a legislatura terminar, quando o
projeto político começava a emergir. Era Dos dois, Pedro Nuno Santos foi o que fez dossiê TAP explodiu nas suas mãos. Não por
preciso envolver os alunos, aproximá-los, mais vida em Aveiro nos tempos de estu- causa da famigerada nacionalização, mas
pô-los a debater. E isso começava na for- dante, mas “sempre foi mais virado para a por causa da indemnização de meio milhão
ma “aberta” como o Projeto E o fazia, no política nacional do que local”. de euros paga a Alexandra Reis, que Pedro
jardim junto ao parque de estacionamento. O plano começou logo a ser traçado Nuno levou para outra empresa pública, a
“As pessoas perguntavam o que era aquilo quando, ainda no ISEG, o jota Pedro Nuno NAV, e que acabaria por ir parar à secretaria
e entravam na reunião. Um dia foi ele que Santos conhece o também jota Duarte Cor- de Estado do Tesouro de Fernando Medina.
passou, conhecia alguém do grupo e juntou- deiro, tornam-se inseparáveis, e profetizam “Ele iria sempre sair do Governo antes de
-se”, conta José Gusmão, o eurodeputado o futuro: “Tu conquistas a concelhia de 2026, mas queria sair pelo próprio pé e acre-
bloquista que estudou Economia com Pedro Lisboa, eu vou à federação de Aveiro, depois dito que queria resolver o dossiê da TAP”,
Nuno e de quem é amigo desde então. diz um ex-ministro. Outro socialista nota
O grupo de jovens de esquerda, mas não como a única coisa boa da saída precoce
só, divulgava um jornal interno para envolver de cena foi o facto de “não ficar ele como
os alunos. O nome do jornal era “Ceteris o nome que reprivatizou a TAP”. Saiu antes
Paribus”, termo da economia usado para
analisar a influência de um fator sobre outro, “Só há três disso, numa altura em que a relação com
o primeiro-ministro já estava mais do que
sem que as demais variáveis sofram altera-
ções. A expressão pode ser traduzida para
líderes do PS que azeda e a posição política de peso que tinha
conquistado no Conselho de Ministros e
algo como “mantido tudo o resto constante”,
e, naquela altura, representava a mudança
estava escrito no núcleo duro da coordenação tinha sido
substituída por uma sensação de “corpo
sem quererem uma revolução. O Projeto E
fez campanha contra a JSD e ganhou. Com
nas estrelas estranho” num Governo que girava cada
vez mais em torno do eixo Costa-Mariana-
uma particularidade: não tinha presidente. que chegariam -Medina-Adão e Silva. Mas nem sempre foi
“Éramos uma lista sem presidente, as de- assim. Depois de ter sido o primeiro presi-
cisões eram colegiais e as pessoas estavam lá: António dente de federação a apoiar António Costa
organizadas por secções, eu e o Pedro fica-
mos na parte da intervenção académica”, Guterres, numa candidatura à liderança do PS, foi
Pedro Nuno quem Costa escolheu para, em
continua Gusmão, que se lembra como, já
na década de 90, o agora ex-ministro tinha
António José 2015, ser o pivô das reuniões iniciais com
vários dirigentes do PCP e do BE, à vez, para
uma “maturidade política muito vincada
em comparação com os outros”.
Seguro e Pedro partir pedra e chegar às posições conjuntas
que viriam a dar forma à ‘geringonça’. Nessa
Nascido em São João da Madeira, Aveiro,
Pedro Nuno cresceu numa espécie de pa-
Nuno Santos”, altura, depois de terem tido um papel ativo
na candidatura contra Seguro e na campa-
radoxo ideológico: o pai, Américo Santos, diz um socialista nha das legislativas, os irreverentes “jovens

410
MARCOS BORGA

Pedro Nuno Santos, então secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, ao lado de António Costa na bancada do Governo, em 2016

turcos” viriam a ser importantes a Costa outro, que deixou o candidato a sucessor na sendo certo que “sempre teve noção de que,
para fazer o que nunca tinha sido feito. No posição mais frágil do seu percurso. “Engo- entrando a seguir a um longo período de
final de cada reunião, Pedro Nuno ia ao liu o sapo, ainda não era hora de sair.” A gota governação, entraria em contraciclo”.
Rato dar conta do resultado. Quando Paulo de água foi a autorização para o processo de António Costa tem alimentado o tabu
Raimundo chega à liderança do PCP, por rescisão de Alexandra Reis do Conselho de da recandidatura mas, no inner circle, vai
exemplo, Costa não se lembrava de algum Administração da TAP. Hoje, Pedro Nuno dizendo que não tem receio de uma luta
dia ter cruzado com ele, Pedro Nuno sim. sabe que foi mal gerido e que uma morte a fratricida dos seus delfins. “Desde Guter-
“A tensão entre os dois começou a sen- dois tempos é ainda pior do que uma morte res que aprendemos a lição: avança o que
tir-se no segundo Governo; é aí que se nota, de uma só vez. Não será fácil recuperar. Mas estiver melhor preparado”, ouve-se por
tanto no Secretariado (do PS) como nos tal como no episódio da venda do Porsche, estes dias em São Bento. Será mesmo assim?
Conselhos de Ministros, que ele começa a Pedro Nuno “preferiu assumir o descuido Pedronunistas admitem que Medina tem
faltar mais”, diz uma fonte governamental. do que parecer que tinha sido cúmplice sido “levado pela mão” de Costa, ora para a
Um dos primeiros sinais foi quando Pedro ou conivente. Isso, para ele, representa o câmara, ora para as Finanças, mas, no final,
Nuno quis levar o programa de reestrutu- Medina”. E Pedro Nuno quer ser, e parecer, “não é ele que decide”. Mesmo depois do
ração da TAP ao Parlamento e, na sequên- o oposto. revés político que sofreu, só há um cená-
cia disso, o primeiro-ministro convoca um Em silêncio até julho, altura em que vai rio no qual Pedro Nuno Santos trabalha: a
Conselho de Ministros noturno, na Ajuda. assumir o lugar de deputado, depois de legislatura vai até ao fim e António Costa
Na altura, todos os ministros se pronuncia- terminada a comissão de inquérito da TAP, não se recandidata; o congresso socialista
ram sobre os €3,2 mil milhões que iriam ser tem três anos para reconstruir a imagem. de 2023 não terá história, mas o de 2025
injetados na companhia aérea, ninguém se Para isso, terá um programa de comentá- sim. “Nesse, ele vai lá estar de certeza.” Há
opôs, e, quem lá estava, diz que a sensa- rio semanal na SIC a partir de setembro. A uns meses, um deputado socialista dizia
ção que ficou foi a de que o encontro tinha gestão da palavra vai ser criteriosa. “Não vai ao Expresso: “Só há três líderes do PS que
servido apenas para Costa mostrar que era ser oposição ao Governo”, até porque “tem estava escrito nas estrelas que chegariam
ali que as decisões tinham de ser tomadas. muito respeito pelo PS: não é um militante lá: António Guterres, António José Segu-
Seguiu-se o polémico episódio do despacho qualquer sem história no partido”. Leia-se: ro e Pedro Nuno Santos.” Ceteris paribus.
da nova localização do aeroporto, assinado não quer ser visto internamente como trai- Mantidas todas as variáveis constantes.
pelo gabinete de Pedro Nuno num dia e dor. Primeiro, não pode perder o partido, 
mandado revogar por António Costa no depois, tem de conquistar os portugueses, Rita Dinis

411
Marcelo
Rebelo de Sousa
Político

O Presidente
que não resiste
a comentar
TIAGO MIRANDA

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413
Marcelo Nuno Duarte Rebelo de Sousa,
nascido em Lisboa, em 1948, escreveu
nos jornais, fundou e afastou-se de alguns
(Expresso ou “Semanário”), tornou-se
conhecido como comentador televisivo e
liderou transitoriamente (1996/99) o PSD,
partido onde se filiara logo em 1974. Perdeu
batalhas políticas como a candidatura à
Câmara Municipal de Lisboa (derrotado
por Jorge Sampaio em 1989) mas preparou
meticulosamente um objetivo de vida — a
eleição como Presidente da República —
cumprindo dois mandatos sucessivos entre
2016 e a atualidade.
Em 1973, Marcelo vai aparecer ligado ao
projeto de um novo semanário, o Expres-
so, lançado por Francisco Pinto Balsemão.
Como conta José Pedro Castanheira no Ex-
presso (edição de 5 de maio de 2013), Mar-
celo, que inicialmente fora convidado para
gestor, “vai sendo desligado dessas funções,
para as quais não revela grande talento;
desviado para a área dos conteúdos, é igual-
mente destacado para gerir as complexas
relações com a censura, que desde 1971 se
chama Exame Prévio. Mário Bento Soares é
o respetivo diretor. Provocador, Marcelo faz
gala em lhe chamar Mário Soares, em vez
de Mário Bento... O ex-chefe da censura re-
corda que o Expresso era uma dor de cabeça
(…). No final de maio de 1973, durante uma
deslocação de Balsemão a Espanha, Rebelo
de Sousa decide desrespeitar três dezenas
de cortes impostos à edição de 2 de junho
(…). Furioso, o diretor-geral de Informação,
Geraldes Cardoso, retalia, impondo uma
dupla censura: não apenas aos textos, mas
às próprias provas de página. O castigo re-
pete-se em janeiro de 1974 (…) com efeitos
desastrosos. Os atrasos na feitura são em
catadupa. O jornal passa a sair da rotativa
tarde e a más horas, perdendo o correio e os
comboios. As vendas caem, a publicidade
retrai-se. (…) Balsemão não duvida: ‘Se o 25
de Abril não tivesse acontecido, o Expresso
ARQUIVO EXPRESSO

teria acabado!’”
Para Balsemão, fundador de um dos
principais partidos portugueses e depois
primeiro-ministro (1980/83), o Expres-
so foi sempre um projeto jornalístico, em
cujo conteúdo fez questão de não interferir,
enquanto político ou patrão, dizendo mais Marcelo Rebelo de Sousa conduz um táxi durante a campanha
tarde numa entrevista a Henrique Montei- para as eleições autárquicas de 1989, em Lisboa
ro que arranjou mais chatices no PSD por
causa do Expresso que o inverso. Marcelo,
que tinha as suas próprias ambições po- como “lelé da cuca”, algo que mais tarde o ram-se atritos entre os dois homens, que o
líticas, quer dentro, quer fora do jornal, então diretor explicaria como uma tentativa chefe do Governo tenta resolver, levando-o
assumirá a direção do Expresso durante a de ver se a revisão estava atenta aos origi- para mais perto de si, no Executivo (onde
ida de Balsemão para o Governo (1979/81). nais… Num quadro de afirmação forte da chegará a ministro dos Assuntos Parlamen-
É desta época o episódio delirante de ser independência do jornal relativamente ao tares em 1982).
publicada uma nota na secção Gente (cria- seu ex-diretor (com o seu quê de freudiano As relações entre os dois degradam-se
da por Marcelo) onde se referia Balsemão como Balsemão mais tarde comentará), ge- e assim ficarão durante décadas, até ao

414
50º aniversário do Expresso, quando, ao por a vontade de opinar em tempo real ao dente. Nomeadamente quando este se des-
participar na conferência promovida pelo rigor factual. Um exemplo entre muitos: em multiplica em declarações e comentários,
jornal, Marcelo recordou a sua turbulenta 2003, o então diretor da Tapada de Mafra, por vezes sobre assuntos triviais, até o fute-
passagem pela Rua Duque de Palmela e, na Ricardo Paiva, disse numa improvisada bol jogado pela Seleção… Nalguns casos pisa
qualidade de Presidente, entregou a Ordem conferência de imprensa a que assisti: “Se o risco, como quando disse que se justifica-
da Liberdade ao Expresso, sanando feridas me pedissem para comentar Direito Consti- va “esquecer por momentos (isto é durante
antigas. Uns anos antes, num texto escrito tucional, eu teria a humildade de dizer que o Mundial de Futebol) a questão dos direitos
para a edição comemorativa dos 25 anos não percebia nada do assunto.” Era a reação humanos no Catar”. Ou quando, perante
do jornal, Marcelo fora claro quanto às suas deste engenheiro florestal às declarações a revelação da existência de 400 casos de
intenções. “Saído do Governo de Balsemão, de Marcelo Rebelo de Sousa, na véspera abusos de menores na Igreja, opinou não
lancei-me no ‘Semanário’, um jornal mais à noite na TVI, que perguntara como era se tratar de um número “particularmente
alinhado do que o Expresso, criado para possível deixar arder uma área murada, elevado”. Palavras que o obrigaram a um
destruir o Bloco Central (Governo PS/PSD propriedade do Estado. inédito ato de contrição, primeiro através
em 1983/85) e para levar a área defendida Ao contrário da Câmara de Lisboa, em de uma nota oficial, depois em declarações
ao Governo e, se possível, a Belém”. E re- 2016 (como depois em 2021) Marcelo não à RTP nessa mesma noite e, por fim, com
matava, “com a vitória do PSD em 1985 e encontrará nenhum peso pesado da polí- um pedido de desculpas público.
a maioria absoluta em 1987, o ‘Semanário’ tica pela frente e chegará tranquilamente A 31 de dezembro o Presidente da Repú-
esgotava o seu objetivo essencial (…). Dele ao Palácio de Belém e à primeira volta. De blica dizia na RTP que Lula da Silva viria a
saí no outono de 1987”. E, acrescente-se, resto, o único picante das eleições presi- Portugal a seu convite, numa visita oficial
ao Expresso também não voltaria. denciais de 2021 era saber quem tinha mais “que culminaria com a participação nas
Num ambiente político ultrafavorável votos: Ana Gomes (como sucedeu) ou An- comemorações oficiais do 25 de Abril”. A
(primeira maioria absoluta de Cavaco Silva dré Ventura. Em 2016, a mudança de um 25 de fevereiro, especificaria à SIC Notícias
em 1987 e PS órfão de Mário Soares) em sorumbático e distante Cavaco Silva para que não sabia da possibilidade de Lula po-
1989 Marcelo aceita ser candidato por uma um caloroso Marcelo que percorre o país e der discursar no Parlamento português a 25
coligação PSD/CDS/PPM à Câmara de Lis- parece estar em todo o lado, cumprimenta de Abril, “assunto da competência” deste
boa. Contudo, vai defrontar um adversário as pessoas na rua e tira fotografias com elas, órgão de soberania.
inesperado, o secretário-geral do PS que é acolhida com aplauso geral. Atravessa Nada disto parece incomodar a opinião
tira da cartola uma nunca vista coligação com sagacidade momentos críticos como o pública lusa. Numa sondagem realizada
com o PCP. Jorge Sampaio faz o que pare- fogo de Pedrógão (2017) ou a pandemia da pelo ICS/ISCTE para a SIC e para o Expresso,
cia impossível, dados os dotes de oratória covid-19 e gere habilmente a relação com divulgada na edição de 23 de dezembro do
de Marcelo, e leva a melhor num debate o primeiro-ministro António Costa. ano passado, 53% dos inquiridos considera-
televisivo. O candidato do centro-direita Contudo, o demónio do comentário pa- ram a frequência das intervenções do chefe
ainda faz uma campanha de tons populares, rece ocasionalmente conseguir esgueirar-se do Estado como “adequada”. No fundo,
mergulhando nas águas do Tejo e guiando dos infernos e ter artes de possuir o Presi- a confirmação estatística de algo que os
um táxi pelas ruas de Lisboa, Cavaco Sil- analistas políticos sempre disseram sobre
va tenta ajudar, demonizando a presença Marcelo: “Passa mal nas elites mas muito
dos comunistas ao lado do PS, mas nada bem junto do povo em geral.” E este é que
disso evita um revés eleitoral completo: a elege Presidentes… Ainda assim, a sonda-
coligação Por Lisboa vencerá com maioria gem mais recente (RTP/Universidade Ca-
absoluta. No 50º tólica, 23 de fevereiro) dá conta de alguma
Após dois anos como líder do PSD (na se- erosão da popularidade de Marcelo: numa
quência da vitória de Guterres em 1995 que aniversário escala de zero a 20, a avaliação maioritária
assinalara o fim do ciclo político cavaquista) baixou dos 15,7 do início deste segundo
Marcelo, além de continuar a dar aulas de do Expresso, mandato para 12,2.
Direito Constitucional, volta ao que mais
gosta e àquilo para que indiscutivelmente
Marcelo recordou Resta falar de um último domínio, a
política externa, que talvez não decida
tem um talento natural: a crónica política,
a que só por distração se pode chamar co-
a sua turbulenta eleições mas tem importância política. E
onde Marcelo parece menos à vontade que
mentário, já que não se trata de uma análise
dos acontecimentos mas de uma leitura
passagem pela na vertente interna. Em 2018, ao visitar o
Egito, não disse um monossílabo sobre as
do presente e do futuro ao serviço de uma Rua Duque violações de direitos humanos naquele país,
estratégia pessoal. Assim será, primeiro na coisa que Macron, também chefe de Estado
rádio (TSF) e depois na televisão (TVI em de Palmela e com interesses económicos do seu país em
2000/04, RTP em 2005/10 e novamente na
TVI durante o quinquénio seguinte). e entregou jogo, apesar de tudo, fez quando lá foi. Ou,
em 2019, na posse de Bolsonaro, quando
Esta presença regular no ecrã torna-o co-
nhecido do grande público e desbrava-lhe
a Ordem da se absteve de referências, nem que fossem
homeopáticas, ao respeito pela diferença,
o caminho para uma futura candidatura
presidencial. Algumas dessas intervenções
Liberdade ao coexistência política ou Estado de direito no
Brasil. Que diria se, em vez de ir à Ucrânia,
tinham já o germe do que faria enquanto
Presidente: reação a quente, em cima dos
jornal, sanando como aventou, fosse à Rússia?

acontecimentos, correndo o risco de sobre- feridas antigas Rui Cardoso

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416
Joana
Gonçalves de Sá
Cientista

Uma doença infecciosa


chamada fake news

Esteve indecisa até ao último minuto quan- para analisar gigantescas quantidades de melhor resposta possível. Fazer Ciência,
do teve de escolher a área profissional no dados, de forma a compreender o que de diz, é perceber o porquê. Uma das suas
Secundário. Gostava tanto de Humanidades mais complexo e subjetivo pode existir: o perguntas mais recentes também fascinou
como de Matemática. Deu um passo em di- próprio comportamento humano. o Conselho Europeu de Investigação (ERC),
reção às ciências, sem imaginar que 30 anos A forma como define a Ciência é simples: que decidiu em 2019 dar-lhe uma bolsa de
depois estaria a receber mais de um milhão tudo começa com uma pergunta. E foi assim 1,5 milhões de euros para que fosse à procu-
de euros da União Europeia e a coordenar que nasceram os grandes projetos de inves- ra da resposta. O desafio? Perceber porque
projetos de investigação que combinariam tigação que tem agora em mãos. Se ao fim de é que acreditamos em fake news e em que
quase todas as áreas que em tempos a dei- três ou quatro semanas uma pergunta ainda circunstâncias algumas pessoas se tornam
TIAGO MIRANDA

xaram tão indecisa. Joana Gonçalves de Sá, a fascina tanto quanto no primeiro dia em mais suscetíveis do que outras para serem
de 44 anos, é uma das maiores cientistas que a fez, e se ainda não encontrou ninguém enganadas e partilharem desinformação.
portuguesas da sua geração. Usa a física, que tenha descoberto a solução, então é “É como estudar uma doença infecciosa:
a biologia, a matemática e a computação sinal de que terá mesmo de ir à procura da existe um agente, que é a desinformação;

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hospedeiros mais ou menos suscetíveis, que formação em campos tão diversos permi- A pandemia de covid-19 pôs Joana Gon-
são as pessoas; e um contexto, que neste te-me hoje ser uma espécie de tradutora de çalves de Sá a ajudar a Direção-Geral da
caso são as redes sociais ou os motores de linguagens científicas. É assim que me vejo.” Saúde (DGS) na organização do processo de
busca”, descreve. “Sabemos que há pessoas Quando voltou dos Estados Unidos para vacinação. André Peralta Santos era diretor
com maior tendência para acreditar em fake Lisboa, em 2012, foi convidada para ser de estatísticas da DGS nessa altura e contou
news e queremos perceber que circunstân- investigadora no IGC e criar um grupo de com o apoio da cientista. “Mostrou-me
cias contribuem para que isso aconteça. Por investigação. O instituto era presidido pelo visões diferentes sobre temas em que eu
exemplo, alguém que acorde às quatro da médico e imunologista António Coutinho, tinha opinião formada, como no caso dos
manhã, tenha três empregos e chegue a casa que acompanhou o caminho de centenas certificados de vacinação para a covid-19”,
exausta, a única coisa que quer quando pega de alunos ao longo da sua vida. Joana está lembra. “Impressionou-me pela paixão
no telemóvel ao fim do dia é não pensar em entre as cientistas da sua geração que mais com que fala sobre os temas da Ciência e
nada e desligar o cérebro. Isso pode tornar o impressionaram, admite. “É alguém que do seu impacto na sociedade. Tem parâme-
alguém mais suscetível.” No seguimento pensa bem, rápido e leve. E pensar leve é tros éticos muito claros, uma visão muito
dessa pergunta, lançou outra que lhe va- típico de pessoas que deixam os outros ver o baseada em princípios de equidade social,
leu um novo financiamento europeu em rumo do seu pensamento. É nela que tenho e ajudou-me a pensar em alguns temas crí-
2022: estarão os algoritmos dos motores mais esperança em relação ao que venha a ticos, como a comunicação de dados sobre
de busca a aumentar a probabilidade de fazer pelo país. Mais do que esperança, é a vacinação.”
as pessoas acreditarem em desinformação, uma confiança quase ilimitada no que de A Epidemiologia Digital é, além das fake
contribuindo para alimentar a bolha onde bom irá fazer.” news, outra das áreas em que está atual-
depois vivem? Foi no Instituto Gulbenkian de Ciência mente a coordenar um grande projeto de
Joana Gonçalves de Sá é, desde 2020, que Joana fez o que mais orgulho lhe dá até investigação, para estudar doenças de saúde
investigadora-principal no Laboratório de hoje: criar um programa doutoral dirigido pública a partir de dados digitais, que teve
Instrumentação e Física Experimental de aos estudantes dos PALOP, que permitiu financiamento da Fundação para a Ciência
Partículas (LIP), em Lisboa, e responsável dar a 40 alunos o mesmo privilégio que e a Tecnologia (FCT). “Quando as pessoas
pelo grupo de investigação em Física So- sentira uns anos antes, quando fez o seu começam a ter sintomas de gripe ou de ou-
cial e Complexidade. Em cada um dos seus doutoramento. Sara Baptista, nascida em tra doença respiratória, a primeira coisa que
projetos coordena uma equipa de investi- Portugal e com origem em Cabo Verde, foi fazem é ir ao Google pesquisar os sintomas
gadores de áreas muito distintas, do Direito uma dessas estudantes, e a oportunidade que têm. Muitas vezes, as curvas dessas
à Informática, da Biomédica à Psicologia, marcou-a. “Mudou-me a vida. E foi algo pesquisas acompanham as dos próprios
Programação, Física ou Matemática. Con- que surgiu numa altura em que ainda não se casos”, explica a investigadora.
jugar essa diversidade de áreas científicas discutia a representatividade das minorias, Nas redes sociais também são divulgados
sempre fez parte da sua natureza, embora a discriminação e a importância da equida- publicamente muitos dados que podem ser
tenha levado tempo até o perceber. de no acesso ao ensino. Admiro a Joana pela úteis. “Quando alguém põe no Instagram
Quando saiu do Porto, onde nasceu, foi iniciativa que teve e pela forma racional e uma fotografia da caixa do medicamento
estudar Engenharia Física Tecnológica no justa com que pensa e resolve problemas.” que está a tomar ou então diz que está de-
Instituto Superior Técnico, em Lisboa, em primida e não dorme há seis meses, está
1997. Percebeu que, apesar de ser boa aluna, a dar informação sobre a sua saúde men-
não tinha a inteligência específica, abstra- tal, que pode ser útil do ponto de vista da
ta e obsessiva, reconhecida aos grandes Epidemiologia Digital.” O maior desafio,
génios da Ciência. “A perceção que tinha reconhece, é o lado ético do uso de dados
sobre mim era de que não era tão capaz e o risco de invasão de privacidade. “É um
quanto os meus colegas. Sei hoje que sou assunto que me preocupa muito e, portanto,
abrangente, multidisciplinar, sinto-me à
vontade a falar de uma série de campos, Além do estudo temos imensas linhas vermelhas. Abando-
namos tudo o que possa ser problemático
mas sou pouco especialista. Levei muito
tempo a valorizar a minha inteligência e a
sobre fake do ponto de vista ético.”
Ainda durante este ano deverão ser co-
perceber que é muito útil para um tipo de
Ciência que não necessariamente a que iria
news, coordena nhecidos os primeiros resultados dos proje-
tos de investigação que Joana Gonçalves de
fazer em Física Teórica.”
A sua grande fase de descoberta começa
uma grande Sá está a coordenar. Poder lançar perguntas
e procurar as respostas — sem urgência,
a partir do momento em que entra no pro- investigação em com qualidade e bom financiamento — é
grama doutoral em Biomedicina do Institu- um “enorme privilégio”, reconhece. “So-
to Gulbenkian de Ciência (IGC), em 2003, Epidemiologia bretudo porque a Ciência em Portugal está
tendo depois feito a tese de doutoramento
em Biologia de Sistemas na Universidade de Digital, para terrível. É feita sem dinheiro, sempre com
urgência e sem perspetivas de longo prazo.
Harvard, nos Estados Unidos, onde chegou
a dar aulas. O salto para a Biologia mos-
estudar doenças Essa visão a curto prazo faz com que este-
jamos sempre a responder aos problemas
trou-lhe, pela primeira vez, que era boa a
fazer pontes entre ciências: ia buscar coisas
de saúde pública de ontem. E limita os horizontes do que a
Ciência em Portugal poderia ser e do imenso
à matemática, à física ou à computação e
começou a pensar mais em problemas da
a partir de dados potencial humano que temos.”

economia e das ciências sociais. “A minha digitais Raquel Albuquerque

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