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Poética e Política da Exposição "Christus" no Museu da Irmandade dos Clérigos

Samara Duarte

Resumo
O artigo "Poética e Política da Exposição 'Christus' no Museu da Irmandade dos Clérigos" analisa
a exposição permanente "Christus" localizada no conjunto arquitetônico Clérigos na cidade do
Porto, Portugal. A exposição religiosa, situada entre a igreja e a Torre dos Clérigos, é investigada
em termos de sua narrativa, disposição espacial, desafios museográficos, aspectos políticos e
poéticos. O percurso obrigatório pelos espaços adjuntos à exposição principal, a disposição das
peças, iluminação inadequada, falta de clareza narrativa e valorização desigual são aspectos
abordados. O estudo enfatiza a necessidade de repensar a museografia para oferecer uma
experiência mais acessível e enriquecedora aos visitantes, equilibrando a preservação histórica e
religiosa com uma apresentação contemporânea.

Abstract

The article "Poetics and Politics of the 'Christus' Exhibition at the Brotherhood of Clerics
Museum" examines the permanent exhibition "Christus" located within the architectural complex
of Clérigos in Porto, Portugal. This religious exhibition, situated between the church and the
Clerics Tower, is investigated in terms of its narrative, spatial arrangement, museographic
challenges, and political and poetic aspects. The mandatory route through adjacent spaces to the
main exhibition, layout of artifacts, inadequate lighting, lack of narrative clarity, and uneven
valorization are addressed. The study emphasizes the need to rethink museography to offer a
more accessible and enriching experience to visitors, balancing historical and religious
preservation with a contemporary presentation.

Palavras-chave: Museologia, Narrativa Museográfica, Exposição Religiosa, Museu da


Irmandade dos Clérigos .
Introdução

A exposição Christus é uma exposição permanente localizada no conjunto arquitetónico


Clérigos na cidade de Porto, Portugal. A coleção tem origem em uma doação particular, e é
exemplo de uma curadoria voltada ao colecionismo, até onde pode se concluir a partir de
informações fornecidas pelo próprio museu.
Estamos falando de uma exposição religiosa no coração do Museu da Irmandade dos
Clérigos ou seja, entre a igreja dos Clérigos e a famosa Torre dos Clérigos. Entre esses dois
espaços, os visitantes têm acesso ao que antes foi área administrativa, enfermaria e áreas técnicas.
A exposição conta com peças doadas por Antônio Miranda1, provenientes de sua coleção
particular.
A exposição distribui-se por 3 salas distintas, denominadas Núcleo da Paixão, Viagem
das Formas e Imagens de Cristo.
O site da instituição explicita a importância do percurso por essas áreas. Em suas próprias
palavras: “O percurso pela Casa da Irmandade (1754-1758), onde se localiza o Museu propicia
um regresso ao passado, a experiência de percorrer espaços, que em tempos, foram privados e
destinados ao quotidiano da Irmandade dos Clérigos.” (Museu da Irmandade do clérigos, s.d)2.
Assim sendo, antes de chegarmos à exposição, que é localizada no terceiro andar do
edifício, é necessário passar por um percurso fechado por barreiras de delimitação e setas coladas
no chão que nos envia por salas que contam a história dos fundadores. Durante este caminho
temos a oportunidade de conhecer um pouco da história da instituição. Abaixo, fotos que
explicitam a impossibilidade de alcançar a exposição principal sem antes passarmos pelo Salão
Nobre, pelas Sala do Cofre e a Sala Nasoni, pelo Coro Alto para, por fim, chegar ao terceiro piso
e a Coleção Christus.

1
António Manuel Cipriano Miranda,Conceituado antiquário português, nasceu em Santa Cruz do Douro em 1933, e
desde muito novo se interessou pelo colecionismo. Estudou Direito, atividade profissional que exerceu no Ministério
do Trabalho, e o levou a fixar-se em Lisboa. Em 1979 abriu a sua primeira loja de antiguidades, e mais tarde, a
Galeria da Arcada, um local onde passava os seus dias.

António Miranda era um colecionador apaixonado pela arte, à qual dedicou a sua vida.
https://torredosclerigos.pt/pt/noticias-e-eventos/noticias/o-antiquariato-esta-de-luto/
2
http://www.torredosclerigos.pt/pt/historia-e-arquitetura/torre-museu-da-irmandade-igreja/
Imagem 1- Salão Nobre Imagem 2- Salão Nobre
(barreira de limitação)

Todas essas salas citadas no parágrafo acima, não fazem parte da análise principal deste
trabalho, mas como fazem parte de um percurso fechado que nos leva até a exposição merecem
um breve apontamento. A primeira sala, denominada Salão Nobre, abriga uma mesa enorme com
mais de 10 lugares além de quadro de personalidades importantes do clero. O tamanho destes
quadros, entre 2 e 3 metros de altura, provocam uma sensação de pequenez aos visitantes. A Sala
do Cofre, a seguir no caminho de acesso a coleção principal, indicada por uma seta colada no
chão, expõe objetos de ourivesaria, além de um cofre que só pode ser aberto ou fechado mediante
a utilização de 3 chaves. Depois disso, as salas subsequentes expõem um pouco da história da
torre e de sua arquitetura, sendo compostas por vitrines com miniaturas da torre, em geral
confeccionadas por artistas locais e padres dos dias atuais que fazem parte da ordem.
Estas salas, percorridas em sequência, formam um percurso extremamente confuso: a
disposição do cofre logo à entrada, dando lugar a figuras importantes retratadas em quadros
enormes dispostos à volta de uma mesa e culminando em de peças onde predominam metais
preciosos. Apesar de estarmos visitando a parte administrativa de uma instituição, tornar esse
percurso inicial obrigatório quebra a poética da exposição Christus. Talvez por não haver uma
direção concisa sobre a exposição e os espaços não tenha sido notado que o discurso da
exposição acaba por apresentar-se como um discurso de poder iniciado no salão nobre, que passa
a aparentar ser sobre a prata e o ouro e a política interna, evoluindo para um comentário sobre a
arquitetura, para depois lançar foco a igreja enquanto instituição e, por fim, abordar Jesus,
representado na exposição Christus no terceiro andar.

Aspectos Políticos e Poéticos na Exposição "CHRISTUS"

A experiência imersiva na exposição "CHRISTUS" revela uma intrincada intersecção


entre elementos políticos e poéticos, entrelaçados por desafios que obscurecem a compreensão da
narrativa artística e histórica. O percurso obrigatório pelo Salão Nobre e pela Sala do Cofre, com
sua exposição de trabalhos em prata, antes de acessar o cerne da exposição, evidencia uma
estratégia curatorial intencional de guiar os visitantes por um trajeto predefinido. Essa abordagem
almeja contextualizar a exposição principal com elementos de valor histórico e religioso antes de
adentrar na narrativa sobre a vida de Cristo. Consegue, de fato, chamar atenção para fatores
históricos e arquitetônicos, porém não alcança clareza e consonância com o público no que tange
aos valores religiosos.

A disposição da exposição principal parece refletir a intenção de traçar um itinerário


cronológico pela história de Cristo, desde o episódio do beijo de Judas até a ressurreição,
apresentando peças que remontam desde o século XII até a contemporaneidade. Contudo, a
insuficiência de iluminação na sala do Núcleo da Paixão compromete a fruição das obras,
tornando a disposição das peças um desafio para os visitantes. Adicionalmente, as indicações
confusas no chão, direcionando para áreas desatualizadas da disposição das obras, contribuem
para a sensação de desorganização e desorientação na exposição. O próprio site anuncia que a
exposição destaca 5 momentos da vida de Cristo: “Presente no Museu da Irmandade, na antiga
enfermaria, está presente uma exposição permanente denominada por Coleção Christus, e que
desta forma dedicamos aos Passos da Paixão, tratando os cinco momento centrais da vida de
Jesus Cristo.” (Museu da Irmandade do clérigos, 2019)3. Em dezembro de 2023, no entanto,
podemos notar que agora 10 momentos são abordados na exposição, o que corrobora a percepção
de que houve um crescimento da narrativa dessa exposição ao longo dos anos; também indica que
o planejamento do crescimento pode ter sido insuficiente, tornando a sala proporcionalmente
pequena e o percurso confuso.

Imagem 3- Destaca um 8º momento Imagem 4- Placa da enfermaria na


da exposição. Exposição Christus.

3
http://www.torredosclerigos.pt/pt/noticias-e-eventos/eventos/exposicao-temporaria-semana-santa-2019/
Imagem 5- Visão da entrada da exposição Christus.

A sala dedicada a viagem das formas, reunindo uma gama de objetos litúrgicos e artísticos
referentes à vida de Cristo, não consegue reter a atenção dos visitantes, mas é a única que propõe
uma discussão mais atual onde os objetos foram, criados em países distantes como o Japão, no
entanto a disposição das vitrines e a necessidade do percurso faz com que os visitantes não se
atentem a essa sala. No entanto, destaca-se a Sala das Imagens de Cristo, com suas
representações artísticas reaproveitadas de crucifixos antigos. Devido à disposição peculiar dos
objetos, a sala transmite a sensação de flutuação e atrai a contemplação dos espectadores.

Imagem 6- Sala Viagem das Formas.


Imagem 6- Sala Imagens de Cristo.

A confusão e a sensação de desamparo na exposição refletem-se nas dificuldades dos


visitantes em absorver a narrativa histórica e artística, especialmente para aqueles sem
familiaridade prévia com a história de Cristo. A predominância do latim em algumas partes da
exposição presume um conhecimento universal do Cristianismo, deixando muitos visitantes
desorientados diante da narrativa apresentada. Pude perceber, quando da minha visita, uma
grande proporção de visitantes oriundos de culturas não ocidentais, demonstrando-se perdidos e
desestimulados. Embora parte da exposição contasse com citações bíblicas em inglês e português,
a poética que narra as peças, representada principalmente nas inscrições das 10 passagens
marcantes da vida de Cristo retratadas, estavam com o seu destaque em Latim.
Assim o conceito de formação discursiva de Foucault citado por Lidch (1997) destaca-se
bem quando a curadoria entende que o corpo de saber proveniente do cristianismo é algo
universal e que esses saberes são facilmente acessados por todos, também pressupondo que o seu
discurso é tão claro quanto o seu poder hegemônico.

Além disso, a percepção de que a exposição está defasada e negligenciada, em


comparação com a atenção direcionada à igreja e à torre, torna-se evidente pela falta de
informações atualizadas nos panfletos e pela ausência de souvenirs representativos da exposição
permanente do museu. A experiência na exposição "CHRISTUS" revela uma intersecção
complexa entre a política curatorial, que busca oferecer uma narrativa linear da história de Cristo,
e os desafios poéticos, como a disposição das obras e a iluminação inadequada, que
comprometem a apreciação e a compreensão da exposição para muitos visitantes, desviando o
foco central da exposição.

O acesso à exposição "CHRISTUS" se revela mediado por um percurso pré-determinado,


conforme proposto por Lidch (1997), onde o contexto expositivo, representado pelo Salão Nobre
e pela Sala do Cofre, molda a percepção inicial do visitante, influenciando sua experiência
subsequente na exposição central. No entanto, a obrigatoriedade de acesso a áreas adjacentes
pode suscitar questionamentos sobre a pertinência desse modelo direcional, especialmente quanto
à sua eficácia comunicativa.

A disposição dos objetos na Sala do Núcleo da Paixão apresentou desafios de


legibilidade, problemática discutida por Mason (2006) em relação à comunicação museográfica,
ressaltando a necessidade de uma articulação coerente entre o espaço expositivo e a interpretação
dos visitantes. A iluminação deficiente e as indicações confusas, remetendo a locais
desatualizados da disposição das peças, obscurecem a compreensão do público, destacando a
importância de uma museografia mais clara e informativa (Handler, 1992, p. 24).

Na Sala das Formas, a diversidade de objetos litúrgicos e artísticos de distintas origens


culturais reforça a polifonia da narrativa de Cristo, conforme defendido por Mason (2006), que
propõe os museus como espaços de comunicação e construção de significados diversos.
Entretanto, a disposição desordenada e as indicações direcionais equivocadas comprometem a
clareza narrativa, afetando a compreensão e a apreciação das peças expostas (Baxandall, 1991, p.
37).

Na Sala das Imagens de Cristo, a disposição peculiar dos objetos, especialmente os


Cristos reaproveitados, parece desafiar a percepção do seu valor intrínseco, capturando a atenção
dos visitantes em meio à confusão das demais salas. Essa abordagem expositiva ressoa com as
teorias de Lidch (1997), enfatizando que o contexto da exposição é crucial na atribuição de
significados, sugerindo que a maneira como os itens são apresentados afeta diretamente a
interpretação do público.

A falta de clareza narrativa e informativa durante a exposição "CHRISTUS" denota a


necessidade premente de uma museografia mais acessível e didática, evidenciando a relevância
das reflexões de Hall (1997) sobre o processo de representação como uma construção social
mediada por sistemas comunicativos explícitos e eficazes.

O contraste evidente entre a visibilidade e a valorização da Torre dos Clérigos e a escassa


atenção dada à exposição principal do museu ressalta a negligência na promoção da coleção
central. Esse cenário de destaque seletivo alinha-se à discussão de Macdonald (1998) sobre a
política de exibição e visibilidade dentro dos museus, onde diferentes partes do espaço
museológico recebem atenção desigual. É fundamental realizar uma análise crítica das políticas
de exposição e do contexto museográfico para proporcionar uma experiência mais enriquecedora
e inclusiva aos visitantes, enfatizando a importância da atualização, clareza narrativa e
valorização da exposição "CHRISTUS" como peça central do acervo do Museu da Irmandade
dos Clérigos.

Conclusão:
Em síntese, a exposição "CHRISTUS" no Museu da Irmandade dos Clérigos revela uma
interseção intrigante entre a narrativa histórica e os desafios museográficos contemporâneos.
Enquanto a disposição espacial e a iluminação inadequada obscurecem a compreensão e a
apreciação das obras, a ênfase na contextualização histórica e a diversidade de objetos expostos
destacam a riqueza da narrativa sobre a vida de Cristo. Contudo, é imperativo repensar a
museografia, priorizando a clareza narrativa, a atualização das informações e a equalização da
atenção concedida à exposição central, para garantir uma experiência mais acessível e
enriquecedora aos visitantes.
Diante desses aspectos, a exposição "CHRISTUS" ressalta a necessidade de uma
abordagem museológica que equilibre a preservação do patrimônio histórico e religioso com uma
apresentação contemporânea acessível ao público. A reflexão sobre as políticas de exposição, a
clareza narrativa e a valorização da coleção central emerge como pilares fundamentais para
garantir que a narrativa histórica seja não apenas preservada, mas também transmitida de forma
impactante e esclarecedora, oferecendo aos visitantes uma imersão significativa na trajetória e na
mensagem de Cristo dentro de um contexto museal moderno e inclusivo.

Referências:

Baxandall, M. (1991). Exhibiting intention: Some preconditions of the visual display of culturally
purposeful objects. In Exhibiting cultures: The poetics and politics of museum display (pp.
33-41).
Hall, S., & Hall, S. (1997). Other. Representation: Cultural Representations and Signifying
Practices, 2, 223.
Lidchi, H. (1997). The poetics and the politics of exhibiting other cultures. Representation:
Cultural representations and practices.
Macdonald, S. (Ed.). (1998). The politics of display: Museums, science, culture. Psychology
Press.
Mason, R. (2006). Cultural theory and museum studies. A companion to museum studies, 17-32.

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