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instrumentos não-temperados
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O projeto “Pérolas” e “Pepinos” do Contrabaixo tem sido apoiado pelo CNPq, FAPEMIG e
FUNDO FUNDEP/UFMG a partir de 1994.
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ECAPMUS: Ensino, Controle e Aprendizagem na Performance Musical (veja detalhes no Diretório
de Grupos de Pesquisa do CNPq).
Aqui são abordados alguns conceitos básicos do Controle Motor e algumas de
suas possíveis aplicações na música. É um pressuposto deste capítulo a
contribuição desses conceitos na reflexão científica sobre como algumas variáveis
da produção e controle de movimentos estão envolvidas no processo de tocar um
instrumento, cantar ou reger um grupo musical. Assim, são propostos alguns
exemplos com os quais os professores e performeres musicais se identifiquem.
Para facilitar sua localização no texto, os principais termos relacionados ao
assunto principal aparecem simultaneamente em caixa-alta e itálico, quando seu
destaque é necessário.
Eixo temporal
FIG.1 – Relação entre movimento e tempo dentro da perspectiva do continuum das sub-áreas do
Comportamento Motor (Controle Motor, Aprendizagem Motora e Desenvolvimento Motor)
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Para a questão do Mito do Talento Inato e sua relação com a Prática Deliberada, ver ainda LAGE,
BORÉM, BENDA e MORAES (2002); SLOBODA (1996); SALMELA (1996); MORAES, DURAND-
BUSH e SALMELA (1999); ERICSSON, KRAMPE e TESCH-RÖMER (1993).
denominada Propriocepção ou, embora com alguma variação, Percepção Háptica)
e a Audição (BORÉM; VIEIRA; LAGE, 2003).4 Essas duas fontes sensoriais têm
como uma de suas principais funções gerar informações de retorno (Feedback)
sobre o movimento gerado. Essas informações podem tanto ser utilizadas para
correções online do movimento (quando há disponibilidade de tempo, ou quando o
tempo de movimento é suficientemente dilatado para permitir a intervenção de
circuitos retroativos, caracterizando uma Programação em Circuito Fechado5) ou
utilizadas para otimizar o desempenho em futuras performances.
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Dentre os sentidos humanos de interesse para o Comportamento Motor, destacam-se os
Sentidos Interoceptivos (como a Cinestesia) responsáveis por gerar informações sobre as
características do movimento do corpo e do membro, tais como orientação, velocidade e ativação
muscular e os Sentidos Exteroceptivos (como a Audição, o Tato e a Visão) alimentados por
agentes externos ao corpo humano.
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Circuito Fechado é um tipo de controle que envolve o uso de Feedback para detecção e correção
de erros, a fim de manter a meta pré-definida; utilizada para controlar movimentos lentos.
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Circuito Aberto é um tipo de controle que envolve o uso de comandos motores previamente
programados e sem utilização de feedback, ou seja, sem correções durante o movimento, utilizada
para controlar movimentos rápidos.
De uma maneira geral, a utilização sistemática da visão no ensino da música
erudita é considerada uma prática não recomendada, muitas vezes tida como um
vício e por isso, condenada por muitos pedagogos. Por outro lado, entre os
profissionais da música popular, cujo ambiente se mostra mais receptivo e
pragmático quanto às inovações e mudanças proporcionadas pela tecnologia e
por novas maneiras de se abordar a Performance Musical, observa-se menos
preconceito na apropriação de outros recursos sensoriais que não a audição e a
cinestesia. Por exemplo, o contrabaixista norte-americano Edgar Meyer (WELZ,
2001), recebedor de destacados prêmios tanto na música erudita quanto popular,
como o Avery Fischer Prize (2000)7 e o Grammy Award (1999, 2000),
respectivamente, perguntado sobre porque utilizava, no espelho de seu
contrabaixo acústico, marcações semelhantes àquelas comuns nos contrabaixos
elétricos, respondeu que simplesmente porque gostava de tocar afinado
(ROBINSON, 2001).
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Durante seus 26 anos de existência, o Avery Fischer Prize, considerado um dos mais importantes
prêmios da música erudita nos Estados Unidos, foi concedido somente a 16 instrumentistas, entre
ele Yo-Yo Ma e Nadja Salerno-Sonnenmberg.
Por outro lado, ainda em relação à audição, a sua função como Feedback é de
natureza terminal e só ocorre após a primeira tentativa de alcance da freqüência
desejada, a qual é percebida com base em um referencial anterior, que pode ser
uma nota de freqüência diferente ou, ainda, a percepção por meio do ouvido
absoluto (no caso daqueles que o possuem). A realização musical de algumas
obras em que o portamento ou o vibrato mais amplo tornaram-se parte do estilo ou
prerrogativa do intérprete, como é comum em obras do período romântico, o
recurso de ajustar a afinação após um erro na precisão do movimento pode
passar mais desapercebido, mas o músico experiente quase sempre saberá
distinguir entre expressividade e a ocorrência de problemas técnicos. Também em
diversos gêneros da música popular observa-se a utilização da estratégia de
dissimulação do erro da afinação não-temperada e sua correção após o Feedback
Auditivo, especialmente em estilos que incluem os diversos efeitos de alteração ou
distorção das freqüências-alvo (como o slide, o slide vibrato, o bend, o scoop, o
doit, as blue notes etc.)8. Entretanto, trata-se um problema que, pelo menos na
Performance Musical de alto nível, pode ser “remediado”, mas não resolvido na
sua origem, o que significaria necessariamente em percorrer uma distância correta
até a nota-alvo, nem mais, nem menos. Numa situação ideal de execução musical
com freqüências “corretas” apenas, as correções por Feedback Auditivo não
ocorreriam, o que obrigaria o sistema a operar em modo puramente antecipativo-
prescritivo. Na prática, mesmo entre os instrumentistas não-temperados de alto
nível, há uma combinação do Feedback Cinestésico, que pode intervir durante o
curso do movimento, com algumas intervenções do Feedback Auditivo. Pode-se
pensar ainda em situações onde a informação auditiva exercesse uma função de
Feedback Concomitante, ou seja, no percurso entre duas notas a audição
detectaria informações sobre as tendências de trajetória errônea (devidos a erros
na amplitude ou na velocidade do movimento) de maneira a permitir um constante
redirecionamento até que a nota-alvo fosse atingida. Novamente, trata-se de uma
prática limitante, em que o tempo de latência referente à circulação de informação
não se daria em tempos inferiores aos limites de correção dos Movimentos
Balísticos (movimentos realizados com grande velocidade ou aceleração e
teoricamente sem possibilidades de ajustes durante a própria ação), de tal
maneira que sua aplicação excluiria a maior parte das situações musicais, onde,
de fato, são esperadas ações de duração regular do músico. Uma desaceleração
do movimento nas proximidades da nota-alvo para corrigir sua freqüência teria
óbvias interferências no resultado musical.
8
Para uma descrição destes efeitos de alteração ou distorção da freqüência de notas musicais,
veja GRIDLEY (1987)
utilizadas no processamento. Quando o Feedback visual é disponibilizado e há
tempo suficiente para o seu processamento, os movimentos apresentam um
primeiro momento em que, a partir de Dicas Visuais, um rápido impulso (parte
balística do movimento) move o membro para próximo do alvo, e um segundo
momento direcionado visualmente no qual os erros associados ao impulso inicial
podem ser corrigidos, levando a uma maior precisão final (HELSEN, ELLIOTT,
STARKES e RICKER, 1998). Trata-se de um modelo de correção de movimento
baseado em encadeamentos corretivos de amplitude cada vez menor,
coincidentes com o número de ações para atingir o alvo em aproximações
sucessivas. Primeiro percorre-se uma trajetória e depois uma segunda, delimitada
pela dimensão do erro da trajetória inicial. Em trajetórias iniciais muito bem
direcionadas para o alvo, teremos um erro reduzido, e o número de correções
subseqüentes será menor. Contudo, o erro final de precisão espacial pode
permanecer constante. A avaliação destes modelos demanda a utilização de
Electromiografia (EMG) para detecção de impulsos sucessivos de ativação
muscular e de suas de rotinas. Contudo, o número de seqüências identificadas
dentro de uma ação por padrões de ativação eletromiográficos, aponta para um
número reduzido destas subunidades na ação total. Isto significa que este
mecanismo não será relevante no caso de existirem muitas correções sucessivas
porque o número de subunidades é relativamente pequeno. Por exemplo, em
movimentos de precisão e posicionamento pode predominar um Padrão Trifásico -
Pico Agonista de Ativação Inicial (ativação do principal músculo a movimentar o
membro), Pico Antagonista de Frenagem (ativação da musculatura que se opõe
ao agonista) e novo Pico Agonista. Os movimentos manuais realizados na
Performance Musical são de natureza similar aos utilizados nos experimentos em
comportamento motor, o que aponta para a possibilidade de inferências sobre
como a visão pode ser importante na Performance Musical.
4. Delineamento da pesquisa
Os experimentos já conduzidos no grupo ECAPMUS investigaram o papel
orientação tátil e visual e de sua integração sensorial no controle da afinação não-
temperada. Devido ao escopo deste capítulo, a sua apresentação não será aqui
pormenorizada, mas sumariamente informar sobre seus princípios básicos, coleta
de dados, análise de dados e discussão dos resultados. Oito músicos de
diferentes instrumentos (temperados e não-temperados), que participaram como
voluntários em três tentativas, tocaram uma seqüência melódica atonal em um
quadro à sua frente, composta por 16 notas, dispersas nos diferentes registros do
contrabaixo (FIG.2). Na primeira tentativa (Tentativa Livre), sem nenhum tipo de
orientação por parte dos pesquisadores, os participantes puderam utilizar, à sua
vontade e sem restrições, todas as suas fontes sensoriais, o que equivaleu a uma
livre utilização de seus sistemas percepto-motores de acordo com suas
experiências prévias.
FIG.2 - Notas da seqüência atonal, sua localização nos registros contrabaixo, Pontos de Busca
Tátil e Pontos de Busca Visual.
8
7
Erro Relativo (%)
6
5
4
3
2
1
0
TL TRM TI
Tentativas
FIG.4 - Desempenho dos participantes na Tentativa Livre (TL), na Tentativa com Restrição Máxima
TRM) e na Tentativa Integrada (TI).
6. Perspectivas
Dentro do próprio delineamento experimental discutido acima, há a perspectiva de
se estudar o controle da afinação não-temperada como uma variável dependente
de diversas outras variáveis. Por exemplo, (1) quanto aos registros dos
instrumentos (grave, médio, agudo e super-agudo, no caso do contrabaixo); (2)
quanto aos graus de expertise do instrumentista (iniciante, intermediário e
avançado); (3) quanto ao tipo de afinação em que o participante é treinado
(temperado e não-temperado); (4) quanto à direção do movimento (do grave para
o agudo; do agudo para o grave); (5) em movimentos grossos (envolvendo
mudanças de posição da mão esquerda) e em movimentos finos (mão esquerda
fixa, mas com movimentos entre os dedos); (6) quanto ao tipo de percepção
exteroceptiva analisada isoladamente (apenas visão, apenas tato, apenas
audição); (7) quanto ao tamanho do instrumento (piccolo, 3/4, 4/4 etc.).
Embora ainda não existam estudos conclusivos sobre a tendência dos músicos de
instrumentos não-temperados de preferirem antes desafinar “para aquém”
(Undershoot) do que “para além” (Overshoot) das freqüêncis-alvo, pode-se
especular (BORÉM, LAGE, VIEIRA e BARREIROS, 2005) sobre o acirramento
desta percepção quando a correção da afinação demanda um movimento
contrário ao movimento inicial, o que pode explicar a sensação psico-acústica de
uma maior desafinação (FIG.5).
overshoot
posição inicial
movimento ideal (sem correções)
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