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OLIVEIRA, Flávio Augusto Ferreira de. (2012).

O sentido pessoal da escola e o O vocábulo sempre se vincula estreitamente às emoções, embora tenda a mudar seu
sofrimento em adolescentes com dificuldades no processo de escolarização. Dissertação caráter de texto para texto, elucidando processos psicológicos a partir de três núcleos
(Mestrado em Psicologia). Universidade Estadual de Maringá. Maringá, p. 69-73. teóricos fundamentais: 1) a sua crítica e psicologia da arte; 2) a neuropsicologia
clínica; e 2) [sic] os textos pedológicos dos anos 1930 (em especial, as conferências
de psicologia infantil proferidas entre 1932 e 1934)1. (Toassa, 2009, p. 273).

Para a autora, de acordo com Vigotski, o termo vivência designa tanto a


VIVÊNCIAS experiência do sujeito em relação ao mundo externo, quanto ao seu próprio mundo interno,
sendo passível de tomada de consciência e simbolização, daí sua estreita relação com os
De acordo com o Dicionário Aurélio (1986), o termo vivência significa “processo aspectos afetivos. (Toassa, 2009, p 274). Ele também assume características singulares,
ou manifestação de estar vivo”, ou ainda, “experiência ou modo de vida”. Estes positivas ou negativas, de acordo com a maneira como cada indivíduo vivencia sua
significados, principalmente o de “experiência”, remetem a uma compreensão das experiência. Um exemplo prático para a questão das vivências está na própria obra
vivências na qual se percebe um indivíduo ativo, que atua no mundo ao seu redor e é Tragédia de Hamlet, Príncipe da Dinamarca, no trecho que se segue:
afetado ou transformado por ele, “experenciando”, vivendo e manifestando seu ser, tanto
exterior e quanto interiormente. A corte se retira. Hamlet está só. Ele já é um solitário. Já fala por monólogos [...] trata-
se apenas de signos da dor. Todos os seus monólogos [...] são de natureza
Já em Vigotski, conforme aponta Toassa (2009), o termo é incorporado pela estranha: nada parece ligá-los ao desenrolar da ação, são fragmentos de suas
vivências a sós consigo mesmo, que não constituem nem o princípio nem o fim
primeira vez em um estudo a respeito da arte, na obra Tragédia de Hamlet, Príncipe da
de suas reflexões mas, no conjunto, destacam e oferecem um quadro aproximado
Dinamarca, de 1916, onde aparece permeando toda a obra, como elemento chave para a de suas vivências e estão situadas no devido lugar. Não importa que não pareçam
relacionados com a ação, que pareçam meras reflexões genéricas que desvelam os
compreensão de como o homem percebe, experimenta e vivencia uma obra artística. estados d'alma e os pontos de vista do príncipe: interiormente são vivências de
Desse modo, por se tratar do conceito principal encontrado na obra “Tragédia de Hamlet, que guardam uma relação direta com a ação da tragédia, que a
explicam e a iluminam [...] Os monólogos são fragmentos; o véu que esconde sua
Hamlet”, o termo russo perejivânie, utilizado por Vigotski para se referir às vivências, dor, sua vida interior [...] (Vigotski, 1999, p.39-40, grifos do autor).
torna-se fundamental para entendermos as emoções e a afetividade humana, tendo em vista
Contextualizando a obra shakespeariana analisada por Vigotski (1999), Hamlet
que tais aspectos mantêm uma estreita relação entre si.
não consegue superar o luto pela morte de seu pai (o rei) e encontra-se, nesse momento,
Segundo menciona Toassa (2009), no original russo, a palavra imperfectiva
em um profundo estado de sofrimento. O novo rei, Claudius, assume o trono ao se casar
perejivânie, significa “estado espiritual suscitado por impressões e sensações fortes”.
com a rainha Gertrude, mãe de Hamlet. Rei e rainha não concordam com o desejo do
Entretanto, conforme ressalta a autora, para Vigotski, tal palavra não fica apenas em seu
príncipe de se retirar para uma escola em outra localidade, o que o faria abdicar de seus
significado dicionaresco na língua e na arte russa do início do século XX. Ela expande-se
direitos reais e da sua futura sucessão no trono. Esse sofrimento em relação ao pai leva
gradativamente para outras dimensões do debate da vida psíquica, repleta de
Hamlet a começar a falar por “monólogos”, isto é, a lamentar e a lamuriar a sua condição,
enriquecimentos e alterações, distanciando-se do significado inicial, mas ganhando
contornos cada vez mais particulares à obra vigotskiana. A autora ainda acrescenta que, 1
Essas duas conferências são: A imaginação e seu desenvolvimento na infância (Vigotski, 1998) e As
em Vigotski: emoções e seu desenvolvimento na criança (Vigotsky, 1997). A esse respeito ver: Vigotsky, L. S. (1997)
Conscience, inconscient, émotions. Paris: La Dispute / Vigotski, L. S. (1998) O desenvolvimento
psicológico na infância. São Paulo: Martins Fontes.
tendo em vista que ele sabe que foi Claudius quem matou seu pai e vive o impasse entre Assim sendo, esteja o indivíduo vivenciando algo interno, de caráter emocional,
fugir ou vingar-se: como no sofrimento, ou esteja ele vivendo uma experiência externa, como em uma peça
teatral, as vivências constituem-se em fenômenos dotados de sentido, culturizados,
Oh, se esta carne, muito, muito poluída,
Pudesse derreter-se, transformar-se em água, marcados pela constante troca entre interno e externo e vice-versa. A isso, Toassa (2009,
Ah, se pudesse resolver-se num orvalho! p. 280), com base nos preceitos vigotskianos, classifica como núcleos internos e núcleos
Ou não tivesse o Eterno posto a sua lei contra o suicídio!...
Ó Deus, meu Deus, que fatigantes, insípidas, monótonas e sem proveito externos das vivências, algo bastante perceptível, por exemplo, no período da
As práticas do mundo, todas, me parecem! adolescência, em que ocorre a transição dos conflitos que se davam basicamente nas
Que nojo o mundo, este jardim de ervas daninhas. (Vigotski, 1999, p. 41).
vivências externas, para conflitos no interior do próprio indivíduo, em suas vivências
Conforme destacado pelo autor bielorrusso, os “monólogos” do príncipe parecem
internas, transformando as bases da estrutura de sua personalidade.
estranhos à ação, ou seja, suas palavras, se analisadas literalmente, dão a impressão de não
Por fim, no que se refere às vivências, cumpre destacar que pelo fato de o termo
ter absolutamente nada em comum com aquela situação específica pela qual ele atravessa.
ser muito genérico ele ainda necessita de maiores esclarecimentos, pois, segundo Toassa
Então, o que faz o leitor perceber que se trata de um problema que diz respeito à realeza e
(2009), não há uma psicologia que teça categorias de análise ou uma síntese do psiquismo
ao desejo de vingança de Hamlet? Como o leitor percebe que os lamentos e as reflexões
que contribua para facilitar a sua apreensão. No entanto, não há como negar que todas as
genéricas do príncipe se relacionam a uma questão externa, porém, traduzida interiormente
funções psicológicas superiores possuem uma face vivencial, afinal, todas elas se
na forma de dor e sofrimento?
desenvolvem a partir da atuação humana na transformação da natureza para si, num
Não restam dúvidas de que são pelas vivências, pela identificação com o
processo experimental contínuo e cada vez mais complexo. Para a autora:
personagem, pelo “mergulhar” na vida interior de Hamlet e por vivenciá-la como se fosse
a própria vida do leitor. Sintetizando, é como se o próprio leitor estivesse no lugar de A face vivencial é muito acentuada, por exemplo, no caso da emoção artística e pode
ser menos marcada na execução de um exercício físico. A vivência torna-se unidade
Hamlet, vivendo aquilo que o personagem vive, o que nos remete ao conceito de empatia, dinâmica da vida consciente, marcada pela referência ao corpo, às representações e
isto é, à capacidade ou habilidade de se colocar no outro, algo indispensável à Psicologia, idéias, ou ao mundo externo; com maior atividade desta ou daquela função psíquica.
A lógica empregada é dialética, pois observa o humano em permanente movimento,
à prática psicológica e às relações sociais. Essa experiência exclusivamente humana só é relações de parte-todo, síntese e mudança histórico-cultural [...] (Toassa, 2009, p.
278).
possível através das vivências.
Portanto, como visto, as vivências são retratadas por Vigotski em diferentes É exatamente essa face vivencial das funções psíquicas superiores que torna
momentos e de diferentes formas, todavia, coloridas por um mesmo tom, direcionadas para fundamental o conceito de vivência para a nossa discussão.
um mesmo caminho. Numa palavra, denotam um processo humanizado, que está para
além da percepção animal, pura e simples, ou de reações emocionais instintivas. (Toassa,
2009, p. 276-277). Disso, depreende-se que não obstante o fato de tornar-se sinônimo da
palavra “experiência”, o termo “vivência” não se refere a uma experiência qualquer, mas
sim à experiência de algo produzido no seio da sociedade humana, no decorrer do processo Dissertação completa em:
histórico, seja de caráter interno ou externo. http://www.ppi.uem.br/arquivos-para-links/teses-e-dissertacoes/2012/flavio

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