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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ - CERES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DOS SERTÕES
DISCIPLINA: TÓPICOS ESPECIAIS EM HISTÓRIA SOCIAL
DOCENTE: ANTÔNIO JOSÉ DE OLIVEIRA
DISCENTE: JOSÉ GERALDO FAUSTINO DE OLIVEIRA

NOTA DE LEITURA
MACÊDO, Muirakytan Kennedy de. “Sob(re) o mesmo teto: casa de vivenda e cultura
material”. In: RÚSTICOS CABEDAIS: Patrimônio e cotidiano familiar nos sertões do
Seridó (Séc. XVIII). (Tese-PPCS-UFRN). Natal, 2007. p. 146-190.

Muirakytan Kennedy de Macedo, historiador formado pela Universidade Federal


do Rio Grande do Norte, mestre e doutor em Ciências Sociais pela mesma universidade,
Pós-Doutorado em Educação (UFRN). Atuou como professor do Departamento de
História do Ceres (UFRN). Foi Editor da Mneme - Revista de Humanidades. Publicou os
seguintes livros: Rústicos Cabedais: patrimônio e cotidiano familiar nos sertões da
pecuária (Seridó-Séc. XVIII); A Penúltima Versão do Seridó - espaço e história no
regionalismo seridoense; Caicó - uma viagem pela memória seridoense; organizou os
livros: Tronco, ramos e raízes: história e patrimônio cultural do Seridó negro; Acari;
Mestres do Seridó - Memória; Colégio Diocesano Seridoense: imagens do tempo e do
espaço escolares. Com ênfase em História do Brasil Colônia e Império, atuou
principalmente nos seguintes temas: História do Rio Grande do Norte, História da
Escravidão, História da Família, História da Cultura Material, História do Corpo,
Educação Patrimonial, Seridó, Caicó.
4.1 – Cultura Material, processo civilizatório, cotidiano e privacidade
“Experimentar objetos, construí-los e adaptá-los são ações que podem denotar atitudes e
comportamentos específicos a uma determinada sociedade. Tanto a ocultação e
distanciamento dos corpos e as regras de seus usos quanto a repartição dos espaços de
moradia e o uso de mobiliários expõem, possivelmente, por exemplo, a emergência da
privacidade”. (p. 146)
“Como sabemos, eram frágeis as tenazes da administração civil e religiosa colonial, em
particular, de regiões afastadas dos núcleos urbanos da América portuguesa, e no nosso
caso, os sertões pastoris, verdadeiro arquipélago de fazendas de criar. Tal conjuntura
forçava a que muitos litígios fossem resolvidos pelo poder personificado nos grandes
proprietários de terras”. (p. 147)
“Evidentemente que fazer esta espécie de etnografia já revela uma escolha denunciada
pela documentação. Afinal, os inventários tratam de bens de pessoas que possuíam
cabedais significativos. Contudo, curiosos eruditos, os viajantes europeus nos ajudaram
na empreitada, pois em seus relatos de viagem não escapava o assombro com a pobreza
que inúmeras vezes não podia ser posta fora do enquadramento do retrato escrito, sob
pena de não registrar o precioso exótico”. (p. 148)
4.2 – Casas de moradia
“Região de desenvolvimento urbano muito lento, dado o predomínio imperativo das
atividades rurais, a Ribeira do Seridó sofria com a rarefação populacional,
pronunciadamente maior em períodos de catástrofes climáticas, tornando os núcleos
citadinos em uma reunião de algumas casas arruadas orbitando uma tosca capela que
gerações subseqüentes iriam reformar”. (p. 148)
“As casas variavam de tamanho, conforme as posses e prole do proprietário da fazenda,
segundo os haveres dos agregados e número de escravos que com ele coabitavam. Tantos
condicionantes multiplicavam a funcionalidade do domicílio. Na documentação colonial
da América portuguesa, e particularmente na Ribeira do Seridó, é muito comum
depararmo-nos com a declaração de construções habitacionais no plural, são as “casas de
morada” e “casas de vivendas”. (p. 149)
“Daí, ser citada como “vivenda”, que etimologicamente advém do latim para significar
subsistência, portanto trabalho, ou ser descrita como “morada”, local onde se colocavam
sob o mesmo teto, mas em cômodos separados, filhos casados, agregados e escravos”. (p.
149)
4.3 – Casas de tijolo e pedra
“Modestas instalações que representavam por si o ambiente de instabilidade e pobreza do
povoamento colonial, visto que a maioria eram casas de taipa. E estes acessórios poderiam
ser simplesmente portas, janelas e telhas que incrementavam o valor da casa, posto que
além de possibilitarem conforto à família eram itens que poderiam sobreviver às precárias
construções e serem reaproveitados em outras novas habitações, ou simplesmente
vendidos a terceiros”. (p. 149)
“Somente três construções de pedra e cal ficaram registradas nos documentos da Ribeira
do Seridó especialmente no território da Vila do Príncipe. Duas delas eram casas fortes
construídas como bastiões para o avanço das tropas coloniais contra os índios tapuias
inimigos dos portugueses. A terceira delas é uma construção que até os dias atuais é
utilizada como residência”. (p. 150)
“A “Casa de Pedra”, como é hoje conhecida, é edificação colonial erguida às margens do
Rio Seridó, em Caicó, mas que representa uma exceção na forma de moradia dos sertões
do Rio Grande do Norte. Segundo a memória local, sua construção foi iniciada no ano de
1730, perdendo-se no tempo o nome de seu primeiro proprietário. Possivelmente foi uma
construção da época da Guerra dos Bárbaros, dado seu estilo peculiar de residência
fortificada: construção sólida de duas águas, beirais para a frente e a parte de trás e
empenas para as laterais”. (p. 151)
“Há um fato que dá a medida da introdução nos sertões de novos hábitos da Corte. Quando
senador do Império brasileiro, o padre Brito Guerra, retornando à Vila do Príncipe,
convidou dois amigos para o almoço que promovia, ocasião em que repassaria as notícias
do Rio de Janeiro e se informaria das novidades do lugar”. (p. 152)
“Sobrados como o do Padre Guerra foram exceções à regra; nas vilas sertanejas, as ruas
eram somente esboços muito vagos. Casas coladas uma a outra, onde os segredos
poderiam ser escutados por ouvidos curiosos e observados pelas frestas das taipas por
excitados olhos”. (p. 154)
4.3 – Casas de taipa
“Mais comum na documentação eram as “casas de vivenda” ou “morada” construídas
com a técnica de taipa. De edificação razoavelmente rápida, a casa de taipa necessita
somente de uma trama de varas na medida do possível retilíneas, que, trançadas, são
amarradas com cipós ou cordões de sola, a madeira de lei sendo utilizada para esteios,
vigas e traves (LIMA, 2001, p. 54). Formada a grade da casa, o fabricante da moradia
com as mãos barreia as paredes, rebocando-a, aos sopapos (daí ser também chamada de
“taipa de sopapo”, de argila molhada)”. (p. 155)
“No geral, descrevem-se apressadamente a moradia, mesmo porque seus equipamentos
são em sua maioria muito raros e no montante da riqueza quase que inexpressivos, salvo
pela qualidade e localização do material empregado. Assim, “uma casa de telha e taipa
nesta vila” (do Príncipe) foi anotada no inventário de Antônio Luiz de Souza, no valor
considerável de 120$000” (p. 156)
“As casas de taipa, em sua maior parte, eram térreas, não suportavam com segurança
pavimentos superiores, pois suas paredes eram erguidas com materiais menos resistentes
cujas vigas eram troncos e galhos da caatinga. As casas de taipa mais encorpadas, que
tinham inclusive um pequeno sótão, chegaram aos nossos dias através de famílias que
devotaram raro zelo, fazendo reparos periódicos a cada chuvarada”. (p. 156)
4.5 Uso social e cultura material do espaço doméstico
“Descrever a distribuição dos compartimentos de uma “casa de morada”, no século
XVIII, a partir das séries de documentos cartoriais, é lidar principalmente com largas
lacunas e silêncios infindos. Vieira Jr. (2004), dando-se conta das limitações das fontes
para tal análise da relação entre cotidiano familiar e domicílio, recorreu a um exercício
interessante “entre a generalização e a imaginação”, para reconstruir uma imagem das
habitações dos cearenses no período colonial” (p. 158)
“À frente da vivenda, voltada sempre para o poente, montava-se uma espécie de varanda
que ficava ao nível do solo. Era o copiar ou cupiá. Dona Adriana de Holanda e
Vasconcelos teve em seu inventário a referência a “um copiar que de novo se erigiu” em
casa de sua fazenda no Totoró de Cima, Currais Novos”. (p. 160)
“Na parte mais exterior da casa, recebiam-se os viandantes que raramente adentram em
casa, lugar por excelência da família. Quem conseguia pousada arranchava-se ou em
cômodo anexo à morada, ou mesmo em redes que eram armadas nos copiares. Somente
os mais eminentes tinham a possibilidade de dormirem na sala da frente, costume que
denotava distinção e sentimento de familiaridade”. (p. 162)
“As mulheres experimentavam os ambientes internos mais ligados aos cuidados para com
esposos, prole e parentes mais próximos. Neste particular, os quartos e o lugar onde
faziam refeições eram os espaços por excelência dessa interioridade feminina, ao passo
que a cozinha exterior, chiqueiros de galinha e pequenas hortas representavam os espaços
de maior sociabilidade das mulheres com pessoas do círculo mais exterior à família
nuclear”. (p. 162)
“Passava-se desse espaço para a sala-da-frente através de uma porta cujo batente ficava
ao nível do restante da casa, de piso geralmente de terra batida. Nesta sala, ficava o
oratório, pequeno altar de madeira, sendo a mais valiosa a de cedro, que reunia uma
pequena variedade de santos chamados de “imagens” ou “vultos”. A presença do oratório
era uma compensação para o altar das igrejas e capelas”. (p. 162)
“Na documentação compulsada, um oratório e mais o conjunto de santos era um artefato
de adoração que não podiam ser adquiridos por qualquer pessoa, devido seu valor.
Encontramos ambas situações: oratórios sem santos, e santos sem oratório. Arriscamos a
dizer que o esvaziamento dos oratórios derivava-se da doação dos vultos aos filhos.
Oragos sem seus templos-caixas era efeito da falta de condições financeiras das famílias
que lhes improvisavam altares em estantes de canto de parede ou nichos cavados nela, ou
mesmo sobre móveis da fazenda”. (p. 164)
“A tão decantada rusticidade dos móveis sertanejos tinha seu contraponto nos adereços
de pregarias nos baús, na arte de imprimir marcas padronizadas no couro das selas e
tamboretes, estética eminentemente praticada por grossos dedos de homens. As mulheres,
inúmeras delas, também de mãos calejadas pelas tarefas domésticas que estavam longe
de ser atividades leves, contribuíram para imprimir sua arte de grafismos, principalmente,
em tecidos”. (p. 165)
“As rendas e bordados eram aplicados como guarnição de vestidos, alfaias, paramentos,
redes, toalhas e guardanapos. É bem verdade que o maior consumo de tais peças, como
conjuntos de cama e mesa, intensificava-se no círculo das classes mais abastadas que
chegavam da Europa ainda eivadas pelas normas de etiquetas produzidas na corte ou
daqueles adventícios que especularmente reproduziam os usos dos artefatos denotadores
de civilidade”. (p. 166)
“Muitos imaginam um mobiliário à altura das posses dos senhores de casa, árvores e
homens. Todavia, os inventários mostram interiores domésticos de perturbador
despojamento ascético: bancos, tamboretes, mesas e baús. Uma ou outra cama e só.
Lembremos que é uma sociedade que tenta se firmar em lugares na maioria das vezes
inóspitos. Os próprios artefatos para guardar roupas e demais alfaias dos mais remediados
já denotavam transitoriedade e mobilidade da população colonial”. (p. 172)
“As arcas eram carregadas em comboios para as feiras ou nas retiradas populacionais
impingidas pelas secas. A figura acima, embora seja uma foto do início do século XX,
demonstra como tais arcas e baús eram transportados com os pertences e mercadorias dos
sertanejos. Ficava assim impressa a natureza do mobiliário sertanejo, um verdadeiro
conjunto de móveis de arribação que nos primeiros momentos do povoamento colonial
atendiam a uma lógica da fuga”. (p. 174)
“Outro caso notável é o espólio de Francisco Alvares do Nascimento, solteiro, cujo irmão
inventariante, em 1801, listou, dentre outros bens36, um rico repertório, para a época, de
meias de seda: “par de meias de seda brancas velhas” ($300), “par de meias de seda pretas
velhas” ($320), “par de meias de seda já velhas” ($640), “toalha”, “pescoçinho37 de
bretanha de bom uso” ($200). A presença das meias talvez fosse alusão ao luxo a que um
homem solteiro e de posses se permitia”. (p. 176)
“Outro detalhe percebamos no uso cotidiano da indumentária masculina. As casas eram
o lugar da permanência, do descanso e domínio da figura masculina. Quando os homens
estavam em seu interior seu vestuário refletia esta domesticidade. Percebamos que as
ceroulas junto com camisas que quase cobrem os joelhos, serão usadas dentro de casa
como uma peça de uso perfeitamente aceitável. Não eram ceroulas curtas, mas em forma
de calça geralmente de algodão, que desciam até os tornozelos”. (p. 179)
“Tais tecidos eram notadamente caros, pois o alvará de 5 de janeiro de 1785 proibia a
manufatura de têxtil na colônia, abrindo exceção somente para a fabricação de tecidos
grosseiros de algodão. Daí, tecidos como as lãs, linhos e as sedas serem consumidos pela
faixa da população mais aquinhoada. A tecelagem doméstica respondia pela demanda das
roupas cotidianas dos pobres e escravos, com tecidos de algodão ou consumiam-se os
tecidos de ganga, originários da Índia, que, mesmo importados, eram baratos e de baixa
qualidade”. (p. 179)
“Em muitas casas-grande existia um espaço chamado de sala-de-trás, ou de janta, que
ficava ao final do corredor e era utilizado para refeições e trabalhos domésticos. Era uma
transição entre o corpo do domicílio da família nuclear e a parte da casa onde se misturava
o trabalho dos escravos domésticos com os dos agregados e mulheres da casa. Abria-se a
tacaniça, alpendre localizado na parte posterior da casa. Neste espaço sem paredes, ficou,
a princípio, a cozinha que funcionava em trempes quase rentes ao chão, sobre uma
cobertura de palha ou telha”. (p. 182)
“Os pratos mais comuns talvez tenham sido de cerâmica ou mesmo cabaças para os mais
pobres. Outros talheres e pratos são mencionados, sendo os mais comuns e baratos os
pratos de estanho e garfos e colheres de latão. Nos documentos das famílias mais
abonadas do Seridó, o número de talheres era ou inferior ou um pouco superior ao número
de habitantes por fogo, dominando as colheres e garfos”. (p. 184)
“Os alimentos em grãos e mais pastosos poderiam ser sorvidos com o auxílio das colheres.
Arremata, estiloso, Luis da Câmara Cascudo: “Na hierarquia do talher o garfo possui a
prestigiosa popularidade da colher. A faca é uma presença agressiva. A colher, para o
povo, é a mão com os dedos unidos, assegurando a concavidade receptora e natural”
(2004, p. 36)”. (p. 185)
“Os aparelhos como as sopeiras, talheres e pratos ainda não eram usados para ostentação
diária em armários envidraçados. Eram guardados na maior parte do ano em arcas para
virem a lume em ocasiões festivas ou na recepção de visitantes ilustres. A sociedade que
ainda não tinha se firmado com maior perenidade no meio ecológico e econômico eivado
de incertezas, teria de esperar até a segunda metade do século XIX, quando móveis mais
elaborados foram adquiridos não só para abrigar os objetos caros da família, mas dar
visibilidade à sua prodigalidade, em estantes fechadas com lâminas de vidro, chamadas
de cristaleiras”. (p. 187)
“Aqui o processo civilizacional engatinha pela persistência da culinária indígena que
muito ensinou aos portugueses e adventícios a sobreviver com pouca ração e refeições
feitas em movimento. Os coloniais adotaram determinados costumes nutricionais dos
trópicos que, nos longos deslocamentos, abraçavam as estratégias alimentares indígenas
como a moqueação e maceração no pilão da carne e farinha. Bocados que poderiam ser
comidos enchendo-se a mão no bisaco que conduzia a paçoca, sem necessariamente parar
a marcha a cavalo”. (p. 188)
“Deixemos a cozinha e procuremos por um ambiente afastado dali e que ainda não existia,
embora esteja presente no imaginário dos que pensam a escravidão homogeneizando-a
no espaço e no tempo. Não encontramos nenhuma referência às senzalas na
documentação a que tivemos acesso. Deparamo-nos sim com a sistemática invisibilidade
das senzalas nos róis de avaliação dos inventários. Sheila de Castro Faria (1998, p. 368),
estudando o Campo de Goitacases, também ficou surpresa com idêntica constatação em
mesmo tipo de fontes”. (p. 189)
“Julgamos que, no caso do Seridó, a pouca freqüência da senzala devia-se ao reduzido
números de escravos por proprietário. E por outro lado, lembremos que até os dias de
hoje encontramos compartimentos anexos à casa grande, onde dormem trabalhadores
solteiros junto a instrumentos de trabalho e produtos da terra armazenados nesses quartos-
galpões. Casais escravos certamente construíam seus fogos a sua própria custa, não
figurando nos bens de seus amos. Um único caso tem-se por certo”. (p. 190)

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