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Nana Ekvtimishvili - Onde As Peras Caem (Oficial PT-PT) R&A
Nana Ekvtimishvili - Onde As Peras Caem (Oficial PT-PT) R&A
The book is published with the support of the Writers’ House of Georgia.
Este livro foi publicado com o apoio da Casa dos Escritores da Georgia.
Capa
Ficha Técnica
9
ONDE AS PERAS CAEM
Traduzido do inglês
por Maria do Carmo Figueira
ONDE AS PERAS CAEM
1
A Rua Kerch fica nos arredores de Tbilisi, onde a maioria das ruas não
tem nome e onde bairros inteiros não têm nada além de prédios altos
soviéticos agrupados em blocos, agrupados, por sua vez, em micro-
distritos. Não há lá nada que valha a pena ver, nem edifícios históricos,
nem fontes, nem monumentos aos grandes feitos da sociedade, apenas
prédios altos indistintos de ambos os lados da rua e, de vez em quando,
um ou outro edifício que se distingue aninhado no meio deles: a
Faculdade de Indústria Ligeira, que fica num alto, rodeada de abetos; o
infantário; a escola secundária municipal; os escritórios do comité de
gestão da habitação; um pequeno centro comercial; e, no fim da rua, o
Colégio Interno para Crianças com Deficiência Intelectual ou, como os
habitantes locais lhe chamam, a Escola dos Idiotas.
Ninguém se lembra de quem teve a ideia de, em 1974, dar a uma rua na
Geórgia soviética o nome de uma cidade na península da Crimeia; uma
cidade onde, num dia soalheiro de outubro de 1942, quando a brisa quente
trazia para terra o calor das águas do mar Negro, o exército nazi invadiu a
pedreira local e fez vários milhares de prisioneiros. Nesta rua não há
navios. Não há brisa vinda do mar. Estamos no fim da primavera e o sol é
sufocante de tão quente, levantando vapor do alcatrão e fazendo murchar
os enormes plátanos. De vez em quando, passa um carro e um cão
refastelado na rua levanta-se e ladra até o carro desaparecer, mas depois o
cão não terá mais nada para fazer senão olhar na direção em que ele
seguiu, desconsolado, e tornar a deitar-se na poeira.
Na Rua Kerch não há heróis, ao contrário da cidade sua homónima.
Quando as forças nazis reuniram os cidadãos de Kerch, judeus e não
judeus, dez mil combatentes soviéticos sitiados montaram uma defesa
corajosa e altruísta. Acabaram por ser derrotados. Talvez tenha sido por
isso que, depois da guerra, as autoridades soviéticas optaram por não fazer
de Kerch uma «Cidade Heroica». Esta decisão implicava que a cidade não
receberia ajuda estatal; teria, em vez disso, de se reconstruir por conta
própria. Só em 1973 é que Kerch recebeu o título de «Cidade Heroica».
Um ano mais tarde, o primeiro troço da estrada de Tbilisi para Tianeti
recebeu o nome de Rua Kerch. Um a um, os habitantes locais que tinham
vivido a Grande Guerra Patriótica foram morrendo: eram homens que, nos
feriados, passeavam com as suas medalhas pregadas nos casacos; homens
vagarosos e dignos, a elevarem os seus dorsos magros, enquanto andavam
para cima e para baixo ao sol; homens que tinham a fotografia de Estaline
pendurada na parede das suas salas de estar. Quando chegou a sua hora,
confiaram a pátria aos filhos e aos netos, que ainda hoje vivem na Rua
Kerch, ou perto dela, indo e vindo das suas casas, infantários, escolas,
lojas e empregos, com a vida toda contida no bairro. Quando a União
Soviética se desfez, as suas vidas ruíram. Alguns residentes refugiaram-se
entre as quatro paredes das suas casas. Outros saíam para a rua e gastavam
o tempo nas esquinas, ou passavam horas a fio em comícios ou piquetes.
Alguns tiraram aquelas fotografias de Estaline da parede da sala. Outros
pura e simplesmente desistiram do fantasma.
*
Lá fora, está sol e calor. Atravessam a correr o recreio deserto que liga o
bloco térreo dos lavabos ao dormitório.
Lela veste-se como um rapaz e, à primeira vista, parece mesmo um
rapaz, principalmente quando vai a correr. Mas, de perto, dá para ver as
sobrancelhas loiras e finas, os olhos escuros, a cara magra e os lábios
vermelhos e gretados e, sob a blusa, a ondulação dos seios.
– A Dali não consegue tirá-los de lá. Estão em cima dos colchões – diz
Irakli, ofegante.
Sobem de um salto os degraus largos da entrada e entram a correr.
O espaço do grande átrio de azulejos é fresco, como sempre. Há vitrinas
vazias nas paredes e, ao lado, um extintor de incêndio vermelho.
Lela sobe a correr até ao andar de cima e depois atravessa o longo
corredor. Consegue ouvir a voz lamurienta de Dali, vinda do quarto ao
fundo. Entra e vê um grande grupo de crianças a correr e a saltar em cima
das camas. O som das molas a ranger é ensurdecedor. No meio do quarto
está uma mulher baixa e rechonchuda que, à primeira vista, parece estar a
brincar à apanhada com as crianças, mas sem conseguir apanhar nenhuma.
É Dali, a responsável pela disciplina da escola, que hoje está também a
cumprir as funções de supervisora. Tem o cabelo pintado de ruivo tão ralo
que se consegue ver o couro cabeludo através dele. Está espetado em
todas as direções, enquadrando-lhe a cabeça como a auréola de um santo;
e, na verdade, com o sofrimento por que passa atrás daquelas crianças o
dia todo, podia muito bem ser a santa mártir e padroeira da escola.
Só passaram uns meses desde que o Ministério concedeu «ajuda
humanitária» à escola, sob a forma de novas camas de madeira. As velhas
e pesadas camas de ferro foram desmanchadas e levadas para um quarto
no último andar. Caía água dos tetos, mesmo quando as crianças lá
dormiam. O telhado foi arranjado, mas começou novamente a cair água.
Arranjaram-no mais uma vez, e outra… mas, sempre que chovia, a água
continuava a cair, até que toda a gente acabou por aceitar que as coisas
eram assim. Agora, sempre que chove, as crianças vão a correr para o
quarto para verem. Há baldes e outros recipientes espalhados pelo chão
para apanhar a água que depois é atirada pelas janelas. A divisão é
atualmente conhecida como quarto dos trampolins e, faça Dali o que fizer,
não consegue tirar as crianças dali: não há nada na escola que chegue
perto da alegria pura de saltar em cima das molas da cama, principalmente
à chuva.
Recentemente, o quarto ganhou mais uma atração: sem pré-aviso, a
pequena varanda desabou, levando com ela a grade de ferro e várias
placas de ardósia do telhado, que, juntamente com bocados de cimento,
formaram uma pilha no chão. Agora há apenas uma viga de suporte a sair
da parede. Ninguém se magoou, embora na altura o recreio estivesse cheio
de crianças a jogar futebol. Escusado será dizer que as autoridades
escolares ficaram tão aliviadas que nem tiveram tempo para se aborrecer
por a varanda se ter desmoronado. Mas, passados alguns dias, a porta para
a varanda também desapareceu, assim como a ombreira. Quem a tirou
achou provavelmente que, como a varanda já não existia, ninguém
precisava da porta que a ela conduzia. Assim, agora há um vazio do
tamanho de uma porta numa das paredes do quarto dos trampolins através
do qual, em dias como o de hoje, se pode ver um céu azul sem nuvens,
plátanos e o bloco de apartamentos do lado.
– Saiam! Fora, ou levam uma palmada no rabo! – grita Dali, enquanto
as crianças correm umas atrás das outras, às gargalhadas. Dali repara
então em Lela. – Estás a ver? Fechei as portas com um arame e, mesmo
assim, eles entraram, e agora olha-me para esta confusão!
Lela descobre Vaska de pé, a um canto. Vaska é um Lom, um cigano
arménio de quinze anos, baixo para a idade. Vive aqui há muito tempo.
Lela lembra-se de quando ele chegou. Tinha oito anos, e ela onze. Foi
trazido pelo tio, um homem de pele escura, olhos verdes, cabeludo e com
os braços tatuados, que fumava um cigarro. Esse homem nunca mais
voltou. A princípio, Vaska andava sempre perto de Lela, que o protegia e o
mantinha a salvo dos outros miúdos, para quem os recém-chegados pouco
mais eram do que uma nova presa. Depois, quando já eram relativamente
mais velhos, fizeram sexo. Nenhum deles percebeu o que ia acontecer. Foi
junto do bloco dos lavabos, debaixo das pereiras do pomar, à beira de um
campo alagado. Nessa noite, recorda Lela, o recreio ficou repentinamente
vazio. Dali estava a ver uma telenovela sul-americana sobre a relação
tempestuosa de uma mulher ainda nova com a sogra. Sem nunca ter
falhado um único episódio, tinha conseguido que a maioria das crianças
também ficasse agarrada ao programa. Naquela noite, tinham ido todos
para dentro, deixando Lela e Vaska sozinhos no recreio. Lela não
consegue lembrar-se exatamente de como aconteceu. Recorda-se de
estarem a andar em direção ao pomar das pereiras. Lembra-se de se
despirem. Não doeu como tinha doído antes. Na verdade, até foi terno e
cuidadoso. Ele foi terno e cuidadoso… A única coisa de que ela não
gostou foi de sentir os ossos da pélvis dele. Beijaram-se nos lábios. Vaska
já sabia como usar a língua. Não disseram uma única palavra. Nem da
primeira vez, nem mais tarde, de todas as outras vezes sob as pereiras.
Lela não consegue lembrar-se exatamente de quando é que as coisas
mudaram nem da razão por que deixou de gostar de Vaska e começou a
dizer mal dele. E Vaska nunca lhe fez frente. Ainda agora, continua a
aceitar calmamente tudo o que ela lhe diz. Até sorri. Lela odeia aquele
sorriso. Está mortinha por se atirar a ele, lhe espetar um murro na cara e
acabar com aquele sorriso de lábios rosados. Vaska está sempre a sorrir.
Era diferente quando chegou à escola. Nessa altura, era mais falador.
Nunca se afastava dos outros, nunca ficava ao longe a olhar, como faz
agora. Não tinha aquele sorriso sempre espetado na cara que apareceu não
se sabe de onde, um sorriso ambíguo, ligeiramente desdenhoso, que nos
deixa a pensar se está a sorrir para si mesmo, ou a troçar de nós, ou se
realmente está sequer a sorrir.
– Porque é que estás aí parado, idiota? – diz Lela com brusquidão. –
Não podes dar uma ajuda à Dali?
Vaska olha para Lela com os seus olhos verdes-claros e aquele sorriso
na cara e diz qualquer coisa entredentes.
Lela dirige-se para o espaço onde dantes estava a varanda. Estão duas
crianças mesmo em cima da soleira e uma outra, Pako, de seis anos, um
recém-chegado atrevido, de calções pretos e T-shirt do Rato Mickey,
avançou para a viga de ferro como se fosse um pequeno equilibrista
sorridente na corda bamba.
– O que é que eu te disse? – grita Lela, de repente. – Disse-te para não
ires para aí! Espera até eu te pôr as mãos em cima!
Os dois miúdos fogem. Pako cambaleia, mas consegue recuperar o
equilíbrio abrindo os braços, e recua cuidadosamente pela viga estreita em
direção à ombreira da porta. Lela agarra-o pela camisola junto à parte de
trás do pescoço ainda antes de ele estar dentro do quarto e deixa-o
pendurado a balançar. O rosto de Pako fica enrugado e perde a cor. Ele
agita as pernas no ar.
– Achas que te devo soltar? Solto-te?
Lela dá-lhe um abanão. Pako estende desesperadamente os braços para
ela.
– Queres que te deixe cair? É isso que queres? Espalhares-te no chão
com o pescoço partido?
Lela puxa-o para dentro e liberta-o. Pako vai-se embora a correr como
um boneco de corda.
– Esperem até eu vos pôr as mãos em cima! – grita novamente Lela.
Irakli leva as crianças para fora do quarto. Vaska desapareceu. A última
criança, Stella, corre com umas pernas fraquinhas, arqueadas, o rabo
espetado, vestida apenas com umas leggings de lã grossa e uma camisola
de gola alta metida para dentro na cintura. Lela, Irakli e Dali ficam para
trás. Com a cabeleira em desalinho, Dali senta-se numa das camas,
amolgando as molas com o peso do corpo e quase caindo para o chão, a
esbracejar. Irakli agarra-lhe nas mãos e ajuda-a a empoleirar-se na beira da
cama. Ela solta um suspiro profundo.
– Irakli, descobre a Tiniko e pergunta-lhe se será possível ela emprestar-
me o cadeado que anda a prometer-me sei lá há quanto tempo, para
podermos pô-lo na maldita porta antes que um deles caia, porque só assim
é que servirá para alguma coisa…
Irakli sai a correr. Dali molha as mãos num balde de água da chuva e
refresca a testa.
– Não aguento mais isto – resmunga, e depois grita para Irakli: – Se
vires algum dos outros, diz-lhes para irem imediatamente para o
refeitório!
Lela fica na ombreira da porta sem porta e olha para baixo. Imagina-se a
empurrá-lo: Vano, o velho professor de História e atual vice-diretor.
Apanha-o de surpresa e empurra-o. Ele tropeça para trás na ombreira,
sente o vazio em baixo… Olha para Lela, com os olhos esbugalhados atrás
dos óculos, e não vê na expressão dela o menor sinal de preocupação por
ele estar a cair do último andar. E o rosto dele enruga-se, como o de Pako,
e olha fixamente, enquanto ela lhe diz com desprezo: «Morre, sacana de
merda!» Espatifa-se em cima do monte de bocados de cimento lá em
baixo e dá um último suspiro arranhado.
– Está aqui o cadeado – ouve Irakli dizer. Ela volta-se. Dali foi-se
embora.
– A Tiniko disse que a Dali devia trancar o quarto e dar-lhe a chave. Mas
este não serve, ela tirou-o da caixa do correio…
Lela pega no pequeno cadeado que Irakli trouxe.
– Isto não vai impedir ninguém de entrar – diz.
Mas acabam por sair do quarto. Lela fecha a porta, põe o pequeno
cadeado e dá a chave a Irakli. Depois testa o cadeado, empurrando a porta
com a mesma força que acha que Stella tem.
Percorrem o corredor lado a lado. Irakli dá-lhe pelos ombros. Lela
acende um cigarro. Stella sai a correr de um dos quartos com ar assustado,
sem fazer a menor ideia de para onde ir.
– Para o refeitório, já! – ordena Irakli, e Stella corre para lá.
Descem as escadas.
– Levas-me ao telefone? – pergunta Irakli.
– És mesmo idiota, não és? Esquece isso! Para de fazer figura de parvo!
– Mas ela disse que era esta semana. Juro por Deus!
Saem para o pátio. À frente do edifício há uma ampla zona asfaltada
onde, como é habitual, Avto, o professor de Educação Física, estacionou a
sua carrinha azul-clara. O resto do pátio é de terra e está coberto de
agulhas de abeto.
Vão para o refeitório, atalhando pelo pequeno espaço aberto entre o
dormitório principal e o edifício administrativo, no qual decorrem as aulas
e onde fica o gabinete de Tiniko, a diretora da escola. É um edifício de
dois andares, relativamente bem conservado, com janelas no sítio das
janelas e varandas que ainda não caíram.
Sergo, de dez anos, vem a sair com uma coisa qualquer de lã cor-de-rosa
tricotada debaixo do braço. Kolya aparece atrás dele, arrastando os pés e
balançando a cabeça. É difícil para qualquer pessoa adivinhar a idade de
Kolya; tanto pode ter dez anos como quinze.
Percebe-se que o Kolya é atrasado, pensa Lela. Às vezes dá para
perceber, outras não. Com o Sergo ou o Irakli não se percebe.
– Já para o refeitório! – grita Irakli. – Foi a Dali que mandou! Sergo!
Kolya!
Sergo ignora Irakli, mas Kolya hesita e depois segue em direção ao
refeitório.
– Aonde é que vais? – pergunta Lela a Sergo.
Ele passa por ela e dirige-se ao portão principal.
– Ao quiosque! – grita, sem se voltar.
– O que é que vais lá fazer?
– A Tiniko mandou-me devolver este vestido.
Tira a peça em tricô cor-de-rosa de baixo do braço com o floreado de
um mágico e, depois, volta-se para a mostrar a Lela, que olha para ele,
desconfiada. Sergo dá uma gargalhada.
– Não acreditas em mim? – Põe o vestido à frente do corpo. – Fica-me
mesmo bem, não achas?
– Acho. Tem cuidado para ninguém te raptar! – diz Lela a rir. E continua
a andar em direção ao refeitório.
Sergo fica parado um minuto, a dobrar pacientemente o vestido, e
depois sai pelo portão e atravessa a rua para ir ao quiosque de Zaira. Não é
a primeira vez que Tiniko devolve peças de roupa como aquela. A cunhada
de Zaira traz roupa barata da Turquia, e Zaira vende-a juntamente com
outras quinquilharias.
O cheiro a batatas fritas e cebola, misturado com um cheiro rançoso
qualquer, chega a Irakli e a Lela, à medida que se vão aproximando do
refeitório. Lela puxa uma última fumaça do cigarro, atira a beata para o
chão e depois volta-se, ao ouvir um baque abafado e os travões de um
carro a guincharem na rua. Espreita por entre os abetos. Irakli já vai a
correr para o portão. Tariel, um homem de meia-idade coxo, que anda com
um blusão velho de pele de carneiro faça o tempo que fizer, sai a
cambalear da portaria, tenta correr e cai. Lela ouve gritos. Corre para a
rua.
Emergindo da sombra do pátio rodeado de abetos, Lela é atingida pelo
calor intenso da rua. O sol do meio-dia projeta sombras esguias e trémulas
nos pés dos poucos que se aventuraram a sair. Perto deles está um carro,
meio dentro, meio fora da faixa de rodagem. Dele sai um homem
atordoado, trôpego e à pressa, deixando a porta aberta. Tariel e Irakli
correm atrás dele, e Lela segue-os. Vê Sergo atirado para a beira do
passeio, imóvel. Um outro carro para, a porta bate e alguém caminha
rapidamente sobre o alcatrão. Será que Sergo acabou de se mexer? As
pessoas estão todas a falar ao mesmo tempo: «Eu ia a guiar… Ele
apareceu a correr à minha frente… Sou médico… Chamem uma
ambulância…»
Tariel e Irakli tocam suavemente em Sergo.
– Sergo! – grita Irakli. – Serozha!
Voltam Sergo de costas. Está cheio de sangue.
– Serozha! – Lela toca-lhe ao de leve no ombro.
Um homem que ela não reconhece empurra-a à bruta, ajoelha-se junto
de Sergo, faz pressão com dois dedos sujos sobre o seu pescoço macio e
delicado e olha ao longe, imóvel. O homem cheira mal; a sua camisa
semiaberta revela uma barriga dilatada e rosada, inchada de tanta vodca.
Lela imagina que ele está a pressionar um punhal contra o pescoço de
Sergo para o impedir de contar um segredo. Sergo não se mexe. Não tem
medo do punhal, nem das pessoas que se amontoam à sua volta. O segredo
do homem está seguro com Sergo.
Zaira sai a correr do quiosque, batendo com os punhos na cabeça. Todos
têm perguntas: «Quem é ele?… Quem é que deixou esta criança sair?…
Que aconteceu?»
Tiniko está junto do portão da escola. Bem vestida como sempre,
enverga uma saia preta curta, sapatos de salto alto pretos de verniz e uma
blusa verde com folhos. Vem tão depressa quanto as suas pernas pesadas
conseguem carregá-la, um fio com uma pedra preciosa preta balança em
compasso com os seus seios, enquanto ela corre. Está branca como a cal.
Lela apanha fragmentos isolados das conversas: «… uma ambulância… é
necessário proceder a manobras de reanimação… ele apareceu do nada…
eu ia a guiar, e ele saiu a correr…» Tiniko olha para Sergo e para o sangue
no alcatrão. A diretora está com um ar desvairado, com uma expressão
angustiada. O vestido cor-de-rosa está caído na estrada, amachucado,
preso no pé de alguém, coberto de sangue.
Os homens examinam Sergo. Um diz que ele está a respirar, e uma brisa
sopra de um jardim próximo e, de certa forma, acalma a multidão. Lela
ouve um homem a dar indicações ao condutor da ambulância pelo
telefone.
Pouco a pouco, o passeio enche-se de pessoas, como se estivessem
escondidas algures, em qualquer lado daquela rua esquecida e tórrida, à
espera de que acontecesse algo do género para as fazer sair de casa. De
repente, uma mulher magra repara que Zaira está a desmaiar e pede água.
Zaira deixa-se cair no passeio e depois senta-se, curvada, com as pernas
abertas sem pudor à sua frente. Avto, o professor de Educação Física,
apoia-lhe as costas no seu ombro. Um homem grita aos mirones para se
afastarem, para que se possa respirar. Deitam Sergo em cima do casaco de
uma pessoa qualquer.
– Já chamámos uma ambulância – diz Tariel a Tiniko.
– Ai, meu Deus… – exclama Tiniko, terrivelmente pálida. – Como é que
ele está? É grave?
– É muito grave – responde Tariel, e volta para junto dos homens.
– Não se preocupe, minha senhora – diz calmamente um homem careca,
sem pescoço e com as faces muito coradas. – Não vale a pena entrar em
pânico, estão a cuidar dele. Vamos afastar-nos e dar-lhes espaço para
fazerem o seu trabalho. Quer que cuidemos primeiro da criança ou dela? –
Aponta com a cabeça para Zaira, que está a começar a recuperar os
sentidos, mas que continua deitada no passeio como um bêbedo.
O rosto e o pescoço de Tiniko estão tão vermelhos e manchados que
parece ter sarampo. Ela dá alguns passos em frente, inclina-se para pegar
no vestido e dobra-o rapidamente, certificando-se de que não suja as mãos
de sangue. Repara que Lela está a observá-la e vai rapidamente ter com
ela.
– Toma – diz, agarrando o braço de Lela. – Fica com isto, mas tem
cuidado! Vai num instante ao meu gabinete e põe-no na gaveta da
secretária. E não digas nada a ninguém, independentemente do que te
perguntarem, está bem?
Lela olha para o rosto suado de Tiniko. Pega no vestido e vai-se embora
a correr, como se correr pudesse, de alguma forma, salvar Sergo. Avança
apressada por entre os abetos do pátio quando vê Dali a sair do refeitório,
seguida por um magote de crianças, todas a correr o mais depressa que
conseguem. Dali parece um padre a conduzir o seu rebanho, até que as
crianças passam à sua frente, fazendo-a desaparecer engolida pela
multidão.
Lela entra no bloco administrativo. Ao contrário das portas do bloco dos
dormitórios, a porta do escritório de Tiniko tem painéis acolchoados de
couro macio. Lá dentro, Lela abre a gaveta da secretária. Vê uma grande
tablete de chocolate meio comida. Enfia o vestido ensanguentado lá dentro
e fecha a gaveta. As únicas coisas que estão em cima da secretária de
Tiniko são um pequeno ícone plastificado de São Jorge encostado ao
porta-lápis, um bloco de notas e um rebento de uma planta dentro de um
copo. O tampo da secretária está coberto por um vidro grosso, por baixo
do qual se encontram um calendário, uma fotografia a preto e branco de
Gregory Peck e fotografias tipo passe dos dois filhos de Tiniko.
*
O padre Yakob chega à escola envergando a sua batina preta. Tem uma
barba negra comprida e uns olhos escuros gélidos. As crianças começam a
perguntar se Sergo irá para o inferno, se irá arder no fogo e se os
demónios irão chicoteá-lo e bater-lhe com bengalas e ferros quentes. Dali
faz o seu melhor para os tranquilizar, dizendo-lhes que o padre Yakob irá
realizar os rituais necessários para enviar a alma de Sergo para o céu.
O padre percorre a escola com Tiniko e Vano, abençoando os edifícios
ao fazer uma cruz em óleo sagrado por cima de cada porta. As crianças
vão atrás dele. Quando chegam ao bloco dos lavabos, o padre circunda o
edifício, benzendo-o com a graça de Deus e catando rebentos de vegetação
rasteira da bainha da batina enquanto continua a andar, como se estivesse
a resgatar criaturas minúsculas e abatidas, desesperadas pela salvação.
Depois da consagração do bloco dos lavabos, as crianças reúnem-se no
pátio para serem batizadas. Há um silêncio profundo. Mesmo os mais
novos sabem que aquela cerimónia irá salvá-los do fogo do inferno. De
uma só vez, Dali torna-se madrinha de todas as crianças que lá se
encontram. Parece aliviada, reanimada, feliz por assumir esta nova
responsabilidade. O padre Yakob distribui cruzes de madeira pelas
crianças, e elas começam a procurar pedaços de cordel para poderem
pendurá-las ao pescoço.
Além deles e de um punhado de vizinhos, mais ninguém vem ver o
corpo de Sergo.
*
Lela não se lembra do primeiro dia em que chegou àquela escola. Não
sabe onde nasceu ou quem a deu à luz, nem sequer quem a abandonou ou
quem a levou para a Rua Kerch. Tiniko também não sabe nada sobre o
passado de Lela. Nada há que ela possa contar a Lela sobre os pais para
lhe dar algum conforto. A diretora já deve ter pegado umas cem vezes no
processo de Lela; a única certeza que tem é que a rapariga vivia no
orfanato perto das antigas oficinas de locomotivas e que, quando chegou à
idade de ir para a escola, a trouxeram para aqui. A biografia de Lela
resume-se a isto.
Às vezes, Lela tenta recordar-se do orfanato. Só se lembra de uma
mulher sentada ao piano, uma festa de Ano Novo, na sua cabeça um
chapéu em forma de cone feito de papel às pintinhas, com enfeites colados
e preso com um elástico grosso por baixo do queixo. Por vezes, interroga-
se se a mulher ao piano e o chapéu às pintinhas alguma vez existiram.
Sempre que Lela passa os portões da escola sente um cheiro familiar.
Quanto mais se aproxima do bloco dos dormitórios, mais forte se torna. É
como se conseguisse sentir a escola a puxá-la para dentro.
Em todos os andares, há casas de banho ao fundo do corredor. O vento
que entra pelas vidraças partidas transporta o mau cheiro para o interior do
edifício, fazendo com que todo o corredor se assemelhe a uma casa de
banho de uma estação de comboios. Os quartos, a sala da televisão e as
zonas de brincar têm o seu cheiro próprio, e não há ar fresco que possa
afastá-lo. É um cheiro a crianças sujas ou, às vezes, a roupas lavadas com
sabão; um cheiro a lençóis bafientos e a cobertores doados; um cheiro a
candeeiros de petróleo e, no inverno, um cheiro de madeira a arder nas
salamandras; um cheiro a cadeirões velhos e à fita-cola que tapa as rachas
nas janelas e aos vasos de malvas alinhados nos parapeitos. Lela conhece
cada um desses cheiros, apesar de, por vezes, todos eles desaparecerem
sob o fedor corrosivo das casas de banho. Quando Lela passa os portões e
entra, este mesmo cheiro desperta nela uma profunda sensação de tristeza.
E isso lembra-a da porteira, a mãe de Tariel. Era conhecida em todo o
bairro. Tresandava a couro molhado. Uma mulher trabalhadora e
resiliente, quando era nova, que começou a ficar com o corpo e a mente
frágeis no dia em que enviuvou e se vestiu de luto. Com o tempo,
esqueceu-se da casa, do filho e dos netos, e passou o resto dos seus dias a
deambular sem destino ao longo da vedação da escola. Lela lembra-se
dela sempre que chega à escola; depois, aos poucos, vai-se habituando ao
cheiro, e o fantasma da mulher volta para um canto profundo da sua
mente.
Há no recinto da escola um sítio em particular de que Lela gosta,
precisamente por causa do cheiro. O bloco dos dormitórios tem uma
escada de incêndio, uma escada de ferro em espiral fixada à parede
exterior, de frente para o bloco dos lavabos. No verão, o sol aquece o
metal ferrugento e liberta um cheiro estranho e adocicado. Lela desde
pequena que adorava subir essa escada, apesar de a espiral a deixar tonta,
a subir e rodar, subir e rodar, até ao último andar.
Embora esteja no exterior, ao ar livre, a escada tem sempre o mesmo
cheiro. Lela passa a mão pelo corrimão enquanto sobe e, quando chega ao
cimo, encosta a palma da mão ao nariz e confirma que o cheiro continua
igual. A escada acaba num pequeno patamar do qual se vê todo o recreio.
Se Lela se debruçar na grade de proteção, quase consegue agarrar os
ramos dos abetos altos que crescem ali perto. Passou muitas horas ali,
naquela escada. Sempre que a sobe, finge que ela vai dar a outro lado
qualquer, só para a fantasia lhe ser atirada à cara quando dá com a parede
sem porta e sem saída lá no cimo.
Quando chove o suficiente para lavar a escada, as gotas de chuva
emitem um som distinto ao baterem no ferro queimado pelo sol antes de
fazerem ricochete. Quando Lela fica a ver a chuva a cair, imagina a mãe
de Tariel, parada junto à cerca, encharcada até aos ossos, à espera de que o
céu fique limpo para poder pôr a sua roupa de luto a secar.
O bloco dos lavabos cheira a sabão, detergente em pó e paredes
húmidas, cobertas de bolor; e, se alguém apanhar piolhos, cheira a DDT
em pó, que deixa os olhos a chorar. Lela toma o seu duche no princípio da
semana. Vai sozinha, depois de a roupa estar lavada e todas as crianças
terem tomado banho. Quando cobre o corpo acabado de lavar com a roupa
suja, tem a sensação de que está a meter-se numa pele velha, mas familiar.
O fedor a ranço dos enormes fogões a gás cobertos de gordura alastra
por todo o refeitório, um cheiro incessante que varia apenas de acordo
com a ementa desse dia: papas de aveia, sopa de beterraba, batata frita
com cebola, ou talvez aquilo a que eles chamam «costeletas falsas», feitas
de pão duro, batata e ervas aromáticas.
O bloco administrativo não cheira a nada, a não ser que se considere o
odor intenso a couro das portas forradas, o cheiro ocasional de uma
criança por lavar a caminho da sala de aula e a sugestão do perfume de
Tiniko. Em algumas das portas, os painéis de couro foram cortados,
deixando à mostra uma espuma amarela suave que as crianças foram
arrancando às mãos-cheias para as suas brincadeiras.
A portaria cheira a Tariel. A que mais podia cheirar aquele espaço
minúsculo? Está impregnado das suas roupas mofentas, de bolas de
naftalina, do fumo da papirosa que ele fuma e do seu jantar.
*
Nessa noite, um carro para junto dos portões. Lela sai e vê Koba sentado
ao volante daquele carro impecavelmente limpo. Ele abre a janela e olha
para Lela, que já está ao pé dos portões. Parece diferente. Qualquer sinal
de timidez ou reserva que tenha mostrado quando Sergo foi atropelado
desapareceu.
Olha Lela de cima a baixo.
– Estás boa? – pergunta-lhe.
– Estou.
– Onde está o Tariel?
– Já não trabalha aqui. Agora sou eu.
– Ah sim? Ainda bem para ti.
Lela espera que ele entre para poder fechar os portões, mas ele não
parece ter pressa.
– Então, quando é que posso levar-te a dar uma volta?
– Não sei. Estou ocupada.
– Uau! Estás sempre ocupada?
Koba abana a cabeça e dá uma gargalhada forçada. Entra com o carro. O
pátio está vazio, à exceção de um cão escanzelado que dá um único latido
rouco e, a seguir, desfalece sobre a terra compacta por baixo de um abeto.
Lela volta para a portaria. Koba estaciona, apaga os faróis e desliga o
carro. Sai e atravessa o pátio banhado pelo luar em direção à saída. Vai até
à portaria, bate na janela e depois abre imediatamente a porta. Vê Lela
sentada na cama, a fumar um cigarro.
– Não estou a pedir-te que o faças de graça. Eu pago-te. Quanto é que
queres?
Lela não diz nada. Koba fica na ombreira da porta, numa pose de
cowboy, mas, com a sua estatura esquelética, uma camisa com palmeiras
vermelhas e umas calças de ganga, parece mais um turista de outra
república soviética que veio parar a Tbilisi por engano.
– Que foi? Não gostaste da última vez? – pergunta Koba, com aquele
seu sorriso estranho e torto que se habituou a fazer para esconder os
dentes podres da frente. Às vezes, é apanhado desprevenido e faz um
sorriso rasgado, e depois lembra-se e torna a apertar rapidamente os
lábios.
– Então, que achas? Levo-te a dar uma volta e depois trago-te. E pago-
te. Não estou à espera de que faças nada de graça. Não sou desses.
– Não? – reage Lela. – Então, és como?
Koba parece ligeiramente confuso. Muda de atitude e faz um sorriso
rígido.
– Pelo menos, pensa nisso – diz e vai-se embora.
Lela fecha a porta, puxa uma fumaça do cigarro e exala, vendo o fumo
espalhar-se e desaparecer, juntamente com o eco dos passos de Koba.
*
Passa-se uma semana e mais alguns dias, e continua a não haver sinal da
mãe de Irakli.
Lela leva novamente Irakli ao bloco de apartamentos ao lado da escola.
Veem Goderdzi deitado debaixo do carro a arranjar qualquer coisa,
rodeado por um grupo de jovens de pé, a observá-lo. Koba também lá está.
Ao virar-se no chão, Goderdzi parece uma espécie de animal peludo: a T-
shirt ficou puxada para cima, deixando à mostra uma barriga coberta de
grossos pelos encaracolados que crescem em todas as direções. Koba não
cumprimenta Lela. Aliás, finge que nem a vê.
Mzia abre a porta. Está, como sempre, a sorrir. Uma agradável brisa
primaveril entra pelas janelas abertas e faz o cortinado atrás da porta
esvoaçar desenfreadamente.
Sentam-se como da outra vez: Irakli no banco e Lela no aparador.
Irakli marca o número. Do outro lado, o telefone toca, mas ninguém
atende, e Irakli decide então telefonar a uma vizinha. É um homem que
atende.
– Posso falar com a Inga, por favor? – pergunta Irakli.
Há um longo silêncio, até que uma mulher vem ao telefone. Não parece
ser a mãe de Irakli.
– Quem fala?
– É o Irakli, o filho da Inga.
– Ah, olá, Irakli. Como é que estás, querido? Sou a Nana Ivlita.
Lembras-te de mim?
– Lembro.
– A tua mãe não está aqui, Irakli. Está na Grécia. Mas pediu-me que te
dissesse que vai voltar. Virá buscar-te para viveres lá com ela.
A mulher está a gritar tanto que Lela acha que ela se deve ter esquecido
de que tem ali o telefone e por isso está a tentar fazer-se ouvir sem ele.
Irakli fica um momento sem dizer nada.
– Quando é que ela volta?
– Disse que ainda não sabe. Primeiro, tem de arranjar trabalho,
percebes? Mas como é que estás, querido?
– Estou bem.
Irakli continua sentado, curvado, com uma mão a agarrar o auscultador
e a outra fechada sobre o joelho. Lela fita os olhos desanimados de Irakli e
fica impressionada – pela milionésima vez – pela curva com que as suas
compridas pestanas terminam.
– Que é que eu digo à Inga quando ela ligar, querido? Queres que lhe dê
algum recado?
Irakli fica a pensar por algum tempo.
– Pergunte-lhe quando é que ela vem.
– Está bem. Fica combinado.
– OK.
– Fica bem, Irakli, e tenta não te preocupares. Adeus.
Irakli pousa o auscultador.
– Estás despachado? – pergunta Lela.
– Sim.
Quando vão a sair, Mzia sorri para eles e mete-lhes uns rebuçados de
amora nos bolsos.
Caminham em silêncio, até Irakli perguntar, de repente:
– Achas que ela se foi mesmo embora?
Lela tira o papel a um dos rebuçados.
– Talvez – responde, extraindo o rebuçado pegajoso do papel com os
dentes. Oferece o outro a Irakli. – Prova um. São mesmo bons.
– Tenho os meus – contrapõe Irakli.
Continuam a andar. Irakli vai de olhos fixos no chão. As suas orelhas
pálidas parecem folhas diáfanas com nervuras vermelhas contra o brilho
do pôr do Sol.
2 Táxi partilhado, forma de transporte público. A Geórgia tem um sistema de marshrutka bem
desenvolvido, com carreiras e estações próprias. [N. da T.]
3
Não há «Heróis da Rua Kerch». Pelo menos, ainda não. Fora precisos
trinta e um anos para a cidade de Kerch receber o seu primeiro título.
Talvez um dia o título também seja dado a uma criança desta escola que
cheira mal e está a cair aos bocados. Se esse dia alguma vez chegar, não
há dúvidas sobre quem serão os primeiros heróis da escola: Kirile e Ira.
Eles foram-se embora há alguns anos – primeiro Kirile, e Ira cinco anos
depois – e, quanto mais tempo passa, mais difícil é acreditar que pessoas
tão dotadas e com tanto sucesso alguma vez tenham ali vivido. Lela e os
outros ficaram a saber tudo sobre eles através dos professores.
Kirile não cortou logo os laços com a escola. Lela ainda eram miúda
quando ele saiu, mas lembra-se de ele lá ir de visita. Era um rapaz russo,
alto, magro e desleixado, de cabelo loiro, com uma voz calma e um andar
vagaroso. Usava calças à boca de sino e, ao longe, lembrava a Lela um
dos Músicos da Cidade de Bremen dos antigos desenhos animados
soviéticos. Ela não conseguia tirar a imagem da cabeça: Kirile a andar
pela estrada, curvado, a balançar os braços, com um saco numa mão.
Parecia um velho cansado a regressar a casa do trabalho. As crianças
corriam ao seu encontro, quer o conhecessem, quer não. Kirile sorria,
dizia olá, tirava rebuçados do saco e distribuía-os. Dali olhava com
lágrimas nos olhos e um sorriso luminoso, transbordando de orgulho ao
ver o homem bom e íntegro em que ele se tinha transformado. O que
distinguia Kirile era o facto de ter acabado a escola com distinção, ter ido
para a universidade e depois ter arranjado um emprego. Embora vivesse
aquela escola, era tão bom aluno que o mandaram depois para uma escola
«normal», onde os resultados dos seus exames lhe valeram uma medalha
de ouro. Quando Kirile os visitava, nunca ficava mais de uma hora. Tinha
a expressão cansada e triste de um homem que carrega um fardo pesado
aos ombros. Era evidente que a sua vida estava cheia de preocupações e
angústias.
Depois, como muitos outros, Kirile desapareceu sem deixar rasto. Uns
diziam que tinha ido para a Rússia, outros que fora assassinado. Ninguém
sabia ao certo. Aos poucos, o mito de Kirile foi esquecido para sempre; ao
fim de pouco tempo, até Dali deixou de falar nele.
O segundo herói seria, sem dúvida, Ira, uma menina loira filha de pai
georgiano e mãe russa. O pai deixou a mãe, e a mãe, por sua vez, deixou
os filhos. Ira conseguia dizer de cor em que escola interna ou orfanato
cada um dos seus muitos irmãos e irmãs se encontrava. Era encantadora e
elegante, o tipo de rapariga que podia ir até ao pátio ao lado sem que
ninguém suspeitasse de que estava ligada à Escola dos Idiotas. Tal como
Kirile, acabou a escola com distinção e, mais tarde, foi para a universidade
estudar Direito. Mas o heroísmo de Ira foi mais longe. Pôs a própria mãe
em tribunal para privá-la dos seus direitos parentais e, milagrosamente,
ganhou o processo. Ficou com a custódia da irmã mais nova, com que a
mãe por alguma razão tinha decidido ficar, e criou-a ela. Dali adorava a
história de Ira. Sempre que se lembrava dela, os olhos enchiam-se-lhe de
lágrimas.
Lela lembra-se bem de Ira. A antiga aluna acabou por casar-se e cortou o
cabelo curto, mas, mesmo assim, ainda os visitava de vez em quando. E
vinha tão feliz e encantadora como sempre. Quando chegava, ia logo a
correr para o recreio para jogar futebol com as crianças, fazendo boas
defesas e correndo depois para a baliza com a sua saia curta de cabedal e o
seu top minúsculo, a rir às gargalhadas, sem nada no mundo que a
preocupasse.
Até agora, Kirile e Ira são os únicos futuros heróis que a escola
produziu. As crianças sempre acharam as suas histórias fascinantes. Como
é que Kirile e Ira tinham conseguido acabar a escola, perguntavam-se, se
eram atrasados como eles? Como é que tinham conseguido aprender? Os
professores diziam-lhes que algumas das crianças da escola – como Kolya
e Stella – não eram atrasadas, mas que viviam ali porque os orfanatos
estavam cheios ou por causa das excelentes instalações da escola, como o
seu grande pátio e o recreio, e a qualidade do pessoal docente.
Existem, porém, outros que talvez nunca sejam considerados heróis,
mas que ainda assim ficaram para a história da escola.
Lela lembra-se de Marcel, um rapaz negro de quinze anos originário da
cidade costeira de Batumi, um potro selvagem, indomável, com um
temperamento explosivo. Ninguém parecia saber como é que ele tinha
acabado em Tbilissi. Para os habitantes locais, que nunca tinham visto um
negro a não ser na televisão, Marcel era como um quadro exposto num
museu. Chegavam a vir de Gldani para olharem para ele através da
vedação da escola e gritavam: «Anda cá, ó escuro!» Marcel baixava-se,
apanhava uma mão-cheia de gravilha e atirava para eles, ou encostava-se à
vedação como um animal enjaulado, a arranhar, a uivar e a cuspir.
Marcel intrigava Lela. Não prestava atenção aos professores e fazia o
que queria. Só falou com Lela três vezes, mas em todas elas estava calmo
e explicava-se bem.
Da primeira vez, Marcel foi ter com ela ao refeitório e perguntou-lhe se
as cozinheiras punham moscas mortas na comida. Da segunda, estavam no
pátio e ele fez-lhe perguntas sobre carreiras de autocarros. A terceira vez
foi à noite. Lela não conseguia dormir e, então, desceu até ao pátio para
fumar. A princípio, por entre a escuridão, não reparou nele. Depois Marcel
assobiou, e ela viu-o sentado no banco sob os abetos. Acenou-lhe para que
fosse ter com ele e depois pediu-lhe um cigarro.
Ela sentou-se no banco ao seu lado. Fumaram em silêncio. Marcel
puxava fumaças longas e profundas. Quando acabou, Lela ofereceu-lhe
outro cigarro. Ele aceitou, levantou-se e foi-se embora, depois voltou atrás
para perguntar a Lela:
– O mar é perto daqui?
– Não – respondeu Lela.
Deu outra vez meia-volta e foi-se embora, e a conversa ficou por aí.
Passados alguns dias, levaram Marcel. Lela nunca soube para onde nem
porquê.
Houve também Aksana, uma rapariga bonita e sorridente de cabelo
louro e olhos azuis que, ao contrário das outras raparigas da escola, se
recusava a vestir-se como uma maria-rapaz. Em vez disso, usava saias
justas e vestidos leves. Desaparecia constantemente com jovens do bairro
e voltava com os bolsos cheios de doces e bugigangas. Se o nome de
Aksana fosse mencionado por alguém de fora da escola, geralmente era
por ela ter «fodido com metade de Gldani» ou ter feito um broche a
alguém «como se fosse estivesse a comer um Chupa Chups». Mas ela
estava sempre a sorrir. Lela só a viu chorar uma vez, quando estava a
andar na bicicleta de Marika e a viu a sair do pátio atrás da Faculdade de
Indústria Ligeira, ao fundo da rua da escola. Vinha a chorar. Quando Lela
lhe perguntou quem é que a tinha aborrecido, Aksana começou a soluçar
ainda mais e a repetir «O sacana, o sacana». Lela deu-lhe boleia para a
escola na bicicleta de Marika e, quando chegou e se misturou com as
outras crianças, o sorriso já tinha voltado ao seu rosto.
Então, um dia, Aksana foi-se embora sem avisar, sem sequer se
despedir, juntando-se às fileiras de muitos outros que tinham desaparecido
antes dela como se nunca tivessem sequer existido.
Depois houve Ilona, uma cigana da comunidade Lom, voluntariosa e de
espírito livre, que não obedecia a ninguém. Quando uma jornalista visitou
a escola, Ilona disse-lhe que Vano tinha tido relações com ela. Tiniko
ignorou-a, mas a jornalista passou algum tempo na escola, a tentar
investigar o que tinha acontecido e, como Tiniko não se opôs, a filmar as
crianças. Lela lembra-se de Tiniko ter falado de Aksana à jornalista,
dizendo-lhe que não tinha sido a única rapariga da escola a seguir esse
caminho. Não podiam impedi-la, explicou Tiniko: quando ela saía, não
faziam ideia do que ela ia fazer; já não eram crianças, eram adultas; era a
natureza delas; e também era essa a vontade delas, sobretudo se, em troca,
houvesse rebuçados e presentes. A jornalista ouviu-a atentamente. Falou
com as crianças, fez-lhes perguntas, escreveu as respostas e coligiu
páginas e páginas de notas. Depois, por alguma razão, também ela
desapareceu, levando consigo o que Tiniko e Ilona tinham dito.
Ilona foi-se embora e começou a pedir e a vender o corpo na estação;
pelo menos, foi o que disseram às crianças. Ouviram também dizer que ela
tinha voltado para casa dos pais, na Rua Lotkin. Ouviram ainda dizer que,
um dia, os pais tinham tido uma discussão, que a mãe e o irmão mais novo
de Ilona se esconderam no roupeiro e que o pai foi buscar a arma e
esvaziou o carregador na porta desse roupeiro, atingindo o filho. Depois
do incidente, o pai de Ilona levou-a para a Rússia, e nunca mais souberam
nada dela.
Houve uma outra rapariga chamada Yana. Lela lembra-se bem dela;
tinham a mesma idade. Yana era orgulhosa e segura de si própria. Estava
constantemente a falar dos pais e da avó, todos eles mortos, mas sobretudo
do tio, o seu único familiar vivo, que, tinha a certeza, cuidaria dela quando
saísse da escola. Segundo Yana, o apartamento dos pais estava à sua
espera, selado e mantido como parte da sua herança até ela fazer dezoito
anos. Ela era uma daquelas pessoas que saía bem de qualquer situação.
Não se metia em brigas, nunca dizia palavrões e nem se queixava nem se
ofendia, embora também nunca parecesse particularmente feliz.
Um dia, Yana pediu a Lela para irem ao prédio ao lado. Era Dia de Ano
Novo e estava um frio e rachar, as crianças estavam todas encolhidas
dentro de casa. As ruas estavam vazias, à exceção de alguns cães famintos.
Yana levou Lela até ao pátio, e esta arregaçou as mangas e começou a
vasculhar os caixotes do lixo. Lela fez o mesmo. Nesse momento, uma
mulher abriu uma janela no terceiro andar e chamou-as. Yana e Lela
aproximaram-se da porta do edifício. A mulher desapareceu dentro de
casa, e duas meninas pequenas meterem a cabeça de fora e gritaram a
Yana e Lela que esperassem. A mulher tornou a aparecer, equilibrou um
cesto no parapeito da janela e amarrou uma corda à asa. Depois, começou
a descê-lo cuidadosamente para fora da janela. Lela e Yana ficaram ali,
com o coração aos saltos, à espera de que o cesto chegasse até elas.
Quanto mais se aproximava, melhor conseguiam ver: estava cheio até
cima com doces, bolos, frutos secos, churchkhela3 e tangerinas.
– Agarrem-no! É para vocês! – gritou uma das meninas.
Yana pegou no cesto e desatou a corda, e voltaram as duas para a escola,
a correr o mais depressa que conseguiam.
Quando Lela e Yana entraram na escola a correr com o cesto, as outras
crianças mal podiam acreditar no que os seus olhos viam. Ao fim de
pouco tempo, não restava mais nada além das cascas das tangerinas. Lela
ainda se lembra de como o bolo sabia bem. Anos mais tarde, quando o
chocolate importado da Turquia começou a aparecer nos quiosques, ela
comprava de vez em quando um Mars ou um Snickers, mas chegava
sempre à conclusão de que nada saberia tão bem como aquele bolo.
Menos de uma hora depois, Yana disse a Lela que iam devolver o cesto.
Yana saiu da sala da televisão com algumas das outras crianças. Lela
não conseguiu perceber como as tinha escolhido; a maioria delas tinha
dificuldade em andar ou em falar. Yana levou então Lela e outras cinco
crianças até ao prédio ao lado.
A menina que abriu a porta pareceu bastante assustada quando viu tantas
crianças. Depois, veio à porta uma mulher, que convidou as crianças a
entrar.
Era a primeira vez na vida de Lela que era convidada para uma supra4.
A mesa tinha sido posta na loggia5. A mulher distribuiu pratos, talheres e
até guardanapos. Depois, trouxe mais comida do que Lela alguma vez
tinha visto: frango frito, molho de nozes, khachapuri6, folhas de videira
recheadas, bolo, gozinaqi7, pão, frutos secos, refrigerantes e marmelos
cozidos.
As crianças sentaram-se para comer. Na televisão, a um canto, estava a
dar um concerto de Ano Novo e, entretanto, as crianças estavam
aconchegadas à mulher e ela fazia-lhe perguntas sobre como tinha sido o
seu Ano Novo. Ela queria saber se a escola já tinha recebido a sua
primeira visita do ano e depois disse-lhes que a Yana tinha sido a primeira
pessoa a aparecer à sua porta. Tão cheia que quase não conseguia respirar,
Yana riu-se ao pensar no papel honrado que tinha desempenhado. As
filhas da mulher perguntaram-lhes se na escola havia uma árvore de Ano
Novo. No canto da sua loggia havia uma árvore artificial e tinham coberto
o chão e os ramos com tufos de algodão a imitar neve. A rapariga mais
nova carregou num botão na base da árvore, e ela começou a rodar
lentamente. As crianças aplaudiram e olharam, hipnotizadas, para os
brinquedos e ornamentos pendurados nos ramos, vendo-se refletidas na
sucessão de bolas brilhantes que passavam à sua frente quando a árvore
rodava.
Quando acabaram, a mulher pôs os restos no cesto vazio, para as
crianças levarem.
Aquela era Yana, a rapariga que podia sair para vasculhar os caixotes do
lixo mas conseguia voltar com um cesto cheio de guloseimas – e por duas
vezes.
Passado algum tempo, Yana adoeceu. Ninguém sabia o que tinha. Um
dia, chegou uma ambulância que a levou embora, pálida, fraca e incapaz
de comer ou falar. Mais tarde, ouviram dizer que Yana tinha ido viver com
o tio e não voltaria.
Tal como Lela, Yana teria agora dezoito anos. Mas Lela não sabe se
Yana estará agora a viver no apartamento dos pais, nem se ainda abotoa a
camisa até ao pescoço. Nem sequer se está viva.
*
Um a um, todos os alunos de que Lela se lembra deixaram a escola. Os
tempos mudaram. As crianças que dantes lá viviam pareciam mais
rebeldes, mais dispostas a lutar e a fugir. Hoje em dia, as coisas estão
muito mais calmas. Quase nunca entram crianças novas para a escola, e
Lela é a única antiga aluna que ainda lá vive.
Como tal, ela ocupa a posição mais poderosa da escola. Ninguém lhe
diz o que deve fazer e ninguém se mete com ela. Quando Lela era uma
menina que se escondia nas saias das professoras, jamais imaginou que
chegaria uma altura em que não teria medo de ninguém. No entanto, como
já não há ninguém a temer, a vida parece ter perdido o fulgor e o tempo
demora a passar.
A partida de certas crianças marcou o fim de uma tradição brutal, um
«jogo» que Lela nunca teve de jogar. O simples facto de a ele ter assistido
deixou-a aterrorizada. Lela presenciou-o no tempo de Marcel. As crianças
mais velhas agarravam uma rapariga nova ou uma adolescente,
arrastavam-na para o lugar das pereiras e entregavam-na a um rapaz
libidinoso, que a empurrava para o chão e depois a violava, enquanto os
outros, tanto rapazes como raparigas, a agarravam pelos braços e pelas
pernas. O som dos gritos da rapariga fazia o coração de Lela bater tanto
que parecia saltar-lhe do peito. As crianças tapavam a boca da rapariga
para silenciar os seus gritos. Ver aquela rapariga ali deitada horrorizou
Lela: as pernas abertas, os arranhões no rosto, o sangue… Quando o rapaz
acabava, levantava-se e as crianças voltavam para o recreio, para
continuarem as suas brincadeiras, deixando a rapariga ali, deitada no chão.
Depois também ela se levantava, ajeitava a roupa e passava alguns
minutos sozinha, antes de se juntar às outras e continuar a fazer a sua vida
como dantes. As vítimas deste jogo eram geralmente raparigas que
usavam saias e vestidos e tinham o cabelo comprido.
Após o colapso da União Soviética, tudo na escola começou a avariar-
se, começando pelas torneiras e acabando na varanda do dormitório. A
escola começou a receber ajuda humanitária e roupas em segunda mão, o
que nunca tinha acontecido antes, mas esta só raramente chegava às
crianças. Tiniko «redirecionava» a maioria das coisas para os seus
próprios armários, isto quando o funcionário encarregado de dividir os
bens pelas escolas não o tivesse já feito.
A escola também começou a perder professores. Da velha guarda,
apenas restam Tiniko, Dali, Vano e Gulnara. Hoje em dia, vêm professores
novos, dão algumas aulas, percebem que a escola não tem nada para lhes
oferecer e vão-se outra vez embora. Também deixaram de chegar novas
crianças. Talvez hoje em dia os pais estejam menos dispostos a abandonar
os seus filhos, ou talvez haja escolas melhores para os abandonarem.
Talvez tenham deixado de nascer idiotas.
É por isso que toda a gente fica tão surpreendida quando, um dia, os
portões se abrem e uma jovem bem vestida de trinta e tal anos entra com
uma menina com uns nove. A menina parece inteligente e bem cuidada,
mas também nervosa e à defesa. Lela acaricia-lhe o cabelo e depois leva-
as ao escritório de Tiniko. Tiniko já estava à espera delas. A mulher
explica que a menina é familiar do seu marido. Os pais morreram, e estava
a ser criada pela avó que, entretanto, também morreu, e os familiares da
criança resolveram pô-la naquela escola.
Tiniko mostra-lhes as instalações, com um grande grupo de crianças a
reboque.
– Gostas da escola, Nona? – pergunta a mulher com um sorriso forçado,
olhando para a menina. – Já viste que grande que é o pátio?
– As casas de banho e os duches são aqui – diz Tiniko –, e também é
aqui que lavam a roupa. Todo o terreno pertence à escola. As crianças
passam muito tempo ao ar livre. Ali é o refeitório…
– Não te vais aborrecer, pois não? Já viste?, tantas crianças simpáticas!
A mulher vira-se para as crianças e olha para elas com uma expressão
exagerada de surpresa, como se só agora estivesse a vê-las devidamente
pela primeira vez.
– Oh, olha! São tão queridas! – Aproxima-se de Stella, que está na
primeira fila, agarra-lhe nas bochechas e pergunta-lhe: – Como é que te
chamas?
– Stella! – responde-lhe alegremente.
– Oh, és uma delícia! – reage a mulher, fazendo uma festa na cara de
Stella, que cora de vergonha e esboça um sorriso rasgado.
Lela não consegue compreender porque é que aquela mulher tenciona
deixar uma menina tão bonita e aparentemente tão amada naquele lugar.
– Vimos visitar-te todos os fins de semana. E, se não pudermos vir, vais
tu ter connosco – diz a mulher, abraçando Nona.
A menina parece envergonhada e deixa-se envolver naquele abraço,
hesitante, como se não a conhecesse há muito tempo.
Nos dias seguintes, Irakli está impossível. Percebe que Nona lhe faz
concorrência. Lela coloca Nona sob sua proteção. Passa uma das meninas
mais pequenas para outro lado do dormitório das raparigas e põe a cama
de Nona num local privilegiado, ao pé das janelas. As outras crianças
estão ansiosas por ver o que Nona tem na sua pequena mala. Ela deixa-as
ver, sob o olhar atento de Lela, para garantir que ninguém lhe tira nada.
Stella está encantada com Nona, que lhe dá um dos seus vestidos. A partir
daquele momento, Stella deixa de andar apenas com leggings e passa a
andar com leggings e um vestido de malha cor-de-rosa com folhos.
*
Passada uma semana, uma familiar da aldeia vem buscar Nona. Ela é
ainda uma menina, mas o seu rosto está profundamente marcado e
abatido. Nona não conhece a mulher, mas vai à mesma com ela. A mulher
mostra alguns documentos a Tiniko, assina uns papéis e leva Nona, com o
seu vestido sujo e a sua pequena mala, para longe da escola para sempre.
Lela deixa-as sair pelos portões. Stella senta-se no banco debaixo dos
abetos a chorar.
3 Considerado o doce nacional da Geórgia, preparado com sumo de uva, nozes e farinha,
transformados em «colares», que depois se deixam a secar. [N. da T.]
4 Festim georgiano tradicional, que faz parte da cultura social do país. Existem dois tipos de supra:
um festivo e outro mais sombrio, realizado após os enterros. [N. da T.]
6 Pão recheado com queijo e ovo, considerado uma das iguarias nacionais da Geórgia. [N. da T.]
7 Doce tradicional da Geórgia, feito com nozes caramelizadas fritas em mel e servido
exclusivamente no Natal e na véspera de Ano Novo. [N. da T.]
4
Lela sonha que está a levar Sergo, e não Irakli, para usar o telefone.
Sergo tem o vestido cor-de-rosa de Tiniko entalado debaixo do braço.
Sobem as escadas e Lela pergunta-lhe a quem raio é que ele vai telefonar,
se não tem mãe nem ninguém. Sergo não diz nada. Vai até à porta e toca à
campainha.
Mzia convida-os a entrar. Não parece nada surpreendida por ver Lela
com Sergo em vez de Irakli. Deixa-os no hall. Sergo pega no auscultador e
marca o número, mas não é um número local. Em vez de seis dígitos, tem
sete, oito, nove ou mais. O disco roda pacientemente, e o número parece
nunca mais acabar… Lela pergunta-lhe para onde está a ligar, mas Sergo
não responde, apenas continua a marcar o número. A filha de Mzia está
deitada no chão, toda enrolada, desprezada como um pano de limpeza
esquecido. Todos fingem que ela não está ali. Ela geme suavemente,
espreitando com um ar infeliz, como uma criança fraca no seu leito de
morte. Lela repara que o sinal na cara da rapariga que faz lembrar um
escaravelho cresceu e lhe cobre agora metade do rosto. De repente Piruz, o
inspetor da polícia local, aparece vindo de outra divisão, perdido nos seus
pensamentos e seguido por Mzia. Vai até à porta da frente com um ar
cansado e transtornado. Mzia abre-lha. Piruz hesita e depois encolhe os
ombros.
– Não temos esse género de coisas aqui. Eles enlouqueceram ou quê? –
pergunta, saindo de seguida.
Mzia fecha a porta, e é nessa altura que Lela repara no sangue que lhe
escorre de um golpe enorme na parte de trás da cabeça. Lela fica
aterrorizada, mas não acorda e, de repente, está na rua com Sergo, e Irakli
também lá está. Estão atrasados; aceleram o passo e, quando se
aproximam dos portões, veem uma multidão formada por habitantes locais
e crianças da escola. Há um autocarro na berma da estrada. As pessoas
estão à espera. Parece um funeral. Depois Vano e Tiniko saem pelos
portões. Tiniko está a agarrar o braço de Vano. Parece fraca e indisposta,
mal conseguindo arrastar as pernas. Geme suavemente, e a brisa quente do
verão transporta esse som para junto da multidão, agora sombria e
silenciosa. Lela percebe de repente que é o funeral de Tiniko. Está com o
mesmo vestido cor-de-rosa que Sergo tinha debaixo do braço e tem o lado
direito coberto de sangue. Zaira, do quiosque, também lá está, tal como
Avto e Levan; e Vaska, com aquele sorriso estúpido. Levan aproxima-se.
– A Tiniko foi fodida tão à bruta que mal consegue andar!
Dá uma gargalhada.
– Vai para o inferno – diz-lhe Irakli.
Está na altura de partir para o cemitério. Vano e Tiniko continuam a
avançar em direção ao autocarro, devagar, como se levassem com um
caixão aos ombros.
Zaira vai ter com Tiniko.
– E pensar que disseste que esse vestido não te ficava bem! – diz-lhe
alegremente.
Tiniko não responde, entra no autocarro com um ar pesaroso.
O autocarro arranca. Lela vê Aksana, uma das antigas alunas, de pé na
janela de trás, a sorrir para ela. Sente alguém tocar-lhe no ombro. Vira-se e
vê Tiniko. Assustada, tenta dizer-lhe que ela devia estar no autocarro, mas
as palavras ficam presas na garganta, sufocando-a. Tiniko começa a
apertar-lhe o braço com mais força.
– Estás a ver? Agora estamos em apuros… E se a Direção decide
inspecionar-nos… – a diretora aperta-lhe ainda mais o braço e não a larga,
e Lela tenta gritar «larga-me!», mas o som não lhe sai da garganta…
Consegue então forçar as palavras a saírem, roucas devido à fricção,
seguidas de um rugido feroz que a faz acordar.
Levanta-se, encharcada em suor, tateia à procura da lâmpada no teto
baixo e fá-la girar. Ouve o guincho metálico do casquilho, e a portaria é
inundada por uma luz amarela bruxuleante.
Lela senta-se na cama durante alguns minutos. Está só de T-shirt e
cuecas. Passa os dedos pelo cabelo e respira fundo. O sonho passa-lhe de
rajada pela mente. Volta a sentir medo. Veste as calças, tateia com os pés à
procura dos sapatos e sai.
Senta-se no banco por baixo dos abetos. Fuma um cigarro, recompondo-
se pouco a pouco, e pensa se aquele sonho será um sinal de que é mesmo
louca. Olha para o banco, uma tábua em que cada extremidade está
cravada numa fenda profunda serrada no tronco de uma árvore. É o único
banco do pátio, e toda a gente se lembra de o ver ali desde sempre. Ambas
as árvores estão vivas, a crescer, tentando desesperadamente manter os
seus troncos meio serrados incólumes, para que os nutrientes do solo
possam chegar aos ramos mais altos; a tábua serve de âncora e elo entre
aqueles dois abetos, capturados pelo homem e mantidos um pelo outro em
cativeiro, destinados a viver para sempre com um corpo estranho fundido
nos seus troncos.
Lela levanta-se e começa a andar de um lado para o outro. A Lua está
tão brilhante que parece que é de dia no pátio. Os edifícios da escola estão
envoltos em escuridão. O silêncio é total; há alguns carros na parte da
frente do pátio; entre eles, o velho Lada, que está lá há anos, sem dono e
sem ninguém disposto a rebocá-lo, abandonado, coberto de cocó de
pássaro, a desfazer-se. Lela fica a olhar para ele durante algum tempo, até
que a sua atenção é desviada por uns faróis que se aproximam depressa na
rua. Pensa em Sergo. Ao longe, ouve o leve patinhar de um cão a andar no
asfalto e o som que um homem faz a regressar a casa a altas horas da
noite.
Atira a beata para o chão e volta para o quarto. Pega numa T-shirt que
está pendurada num prego na parede, acena para afastar uma nuvem de
mosquitos e desenrosca com cuidado a lâmpada a escaldar. A escuridão
envolve-a. Deita-se. Pouco a pouco, tudo o que a rodeia vai emergindo e
tomando forma: a porta, a janela e a mesa, o ramo do abeto lá fora, a
oscilar com a brisa, e a sombra que ele projeta, a oscilar a compasso.
Adormece.
*
Irakli liga para Ivlita e pede-lhe o número da mãe na Grécia. Lela pede a
Mzia papel e caneta e toma nota do número que Irakli vai dizendo em voz
alta.
Irakli despede-se, desliga e fica por momentos a olhar para o papel.
– Diz-mo – pede, determinado. Lela lê-lhe o número.
Irakli marca-o. Lela ouve o telefone a tocar do outro lado da linha e, a
seguir, uma voz familiar.
– Sou eu, mamã – diz Irakli, com a voz a fraquejar.
– Irakli! – exclama a mãe, parecendo satisfeita, mas surpreendida. –
Como é que estás? Ainda não consegui voltar para casa, não foi? Isto tem
sido uma loucura… Tenho andado tão ocupada, tenho tido tanto que
fazer… e não tinha dinheiro para voltar… Mas vou começar a trabalhar e
depois já vou ter o suficiente para regressar. Devia mandar-te umas
lembranças, não devia…?
– Quando é que voltas? – pergunta Irakli.
– Arranjei agora um trabalho novo. Preciso de poupar algum dinheiro e
depois volto… – Silêncio. – Irakli, sabes que te adoro, não sabes? Não
estejas zangado. É melhor assim…
Os olhos de Irakli enchem-se de lágrimas. Esfrega-os com força para
tentar para-las. Fica muito vermelho e contorce a cara, mas não sai som
nenhum. Permanece sentado no banco em silêncio.
Lela arranca-lhe o telefone da mão e grita para o auscultador:
– É melhor assim, não é? Minha cabra, despejas o teu filho e
desapareces! Que raio de mãe és tu? Que desperdício de espaço, porra!
Para de lhe prometer que vais voltar! Acaba com as promessas, minha
vaca miserável!
Irakli olha para Lela, incrédulo. Ela está inclinada para a frente, com o
auscultador numa mão, e a outra a fazer força no joelho, tal como Irakli.
Do auscultador sai uma voz: «Está lá? Está lá? Quem fala?»
– Não tens nada a ver com isso! Ouve bem, ou paras de lhe mentir, ou
eu vou à Grécia e obrigo-te eu própria a parar, minha puta!
Atira com o auscultador.
– Anda, vamos embora. Despacha-te! – diz a Irakli, como se estivesse à
espera de que a mãe dele fosse atrás deles. – Obrigada! – grita Lela,
quando vão a sair.
Regressam em silêncio. Irakli vai a chorar.
– Porque é que estás a chorar? Pareces um bebé grande! – diz Lela,
apressando o passo. – Não percebes? Ela não vem. Só não consegue dizer-
to! Eu disse-te que ela não vinha, e tu não quiseste ouvir! Também, para
que é que precisas de uma mãe? Sabes andar e falar, sabes comer! Já és
crescido, por amor de Deus!
*
8 Prato tradicional georgiano de legumes picados, que pode ser feito com repolho, beringela,
espinafre, feijão, beterraba e combinado com nozes, vinagre, cebola, alho e ervas. É habitualmente
moldado em pequenas bolas. [N. da T.]
9 É o pão tradicional da Geórgia, tem a forma de uma meia-lua e é normalmente confecionado nas
paredes de um forno tandoor. [N. da T.]
10 Pão de milho georgiano, tradicionalmente consumido com feijões e queijo. [N. da T.]
5
A filha de Mzia abre a porta, e Lela fica mais uma vez surpreendida ao
ver quão parecido com um pequeno besouro é o sinal que a rapariga tem
na cara. Assim que a rapariga vê quem é, o seu rosto fica transtornado e
fecha a porta sem dizer uma palavra. Lela e Irakli olham um para o outro,
sem perceber. Lela torna a tocar à campainha. Desta vez é Mzia quem abre
a porta. O seu sorriso desapareceu. Fita os dois com um olhar frio e
penetrante.
– Olá – diz Lela. – Desculpe incomodá-la, mas podemos usar o seu
telefone?
A mulher olha para eles com as lágrimas a aflorarem-lhe os olhos.
– Bravo! – exclama, de repente. – Bravo! Muito obrigada por me
deixarem fazer isto por vocês! – Tem a voz a tremer. – Recebo-vos na
minha casa sem pedir nada em troca, e vocês usam o meu telefone sempre
que querem… Mas agradeço-vos muito por telefonarem para o estrangeiro
e também vos agradeço por ligarem às horas em que as tarifas são mais
altas, e por terem feito com que nos cortassem o telefone. Sabem o que o
meu marido teve de fazer para resolver isto? O pobrezinho acabou de
chegar do trabalho. Porque é que fizeram isso? Porque é que se
aproveitaram desta maneira, quando tudo o que eu queria era tentar
ajudar-vos?
Mzia está quase a chorar. Lela vê a menina-besouro a esconder-se atrás
das pernas da mãe, a fazer-lhe festas no quadril e a espreitar Lela só com
um olho.
Lela e Irakli ficam em estado de choque. Mzia fecha a porta. Irakli
dirige-se para as escadas cabisbaixo, mas Lela continua à porta,
estupefacta.
A porta torna a abrir-se, só uma nesga, e a menina-besouro põe a cabeça
de fora e olha para eles. Lela ouve a voz de Mzia a vir de dentro de casa.
– Fecha a porta e volta para dentro!
– Eles ainda aqui estão, mamã…
– Já te disse para fechares a porta e vires para dentro! Já!
Lela fica a pensar por um momento e depois, para surpresa de Irakli, vai
até ao apartamento em frente, para onde se mudou uma família nova há
pouco tempo. Toca à campainha. Uma rapariga com uns doze anos abre a
porta.
– Desculpa – diz Lela –, será que podemos usar o vosso telefone só por
um minuto? Somos do colégio interno. É muito importante.
A rapariga faz uma cara exageradamente carrancuda.
– Ainda não está ligado – explica-lhes.
– Ah, está bem… Desculpa – diz Lela. A rapariga fecha a porta.
Irakli começa a descer a escada, mas Lela torna a tocar à campainha e,
quando a rapariga aparece novamente à porta, ela diz-lhe:
– O homem da companhia dos telefones esteve cá agora. Estava a mexer
na caixa lá em baixo. Vai ver, talvez ele tenha ligado o vosso!
A rapariga volta para dentro, deixando a porta aberta, avança pelo
corredor até junto de uma pequena prateleira sobre a qual está um telefone
e encosta o auscultador ao ouvido.
– Ah, já está a funcionar – exclama, hesitante, como se não conseguisse
perceber quem é que saiu por cima.
Lela e Irakli entram. A rapariga desaparece para dentro de uma das
divisões.
– Quem era? – Lela ouve uma mulher perguntar.
– Uns miúdos da escola especial a pedirem para se servir do telefone.
Em comparação com o apartamento de Mzia, aquele está desarrumado,
desorganizado e é escuro. Não há cheiro a comida vindo da cozinha. Nem
sequer há uma cadeira para se sentarem. Irakli desdobra um pequeno
pedaço de papel com um número de telefone escrito por Lela. Marca o
número. Uma senhora idosa atende, falando em grego. Depois de alguns
minutos sem conseguir fazer-se entender, grita ao telefone: «No Inga! No
Inga! Inga no live here any more!»
Irakli liga para Ivlita. Ivlita não sabe de nada, Inga não lhe telefonou. A
antiga vizinha presume que ela mudou de casa.
Irakli regressa à escola, caminhando de cabeça baixa ao lado de Lela,
também ela desalentada. A expressão de traição no rosto de Mzia deixou-
lhe um gosto amargo na boca.
– Vai andando – diz Lela, de repente. – Eu já volto.
– Aonde é que vais? Posso ir contigo?
– Não. Vai andando, que eu já te apanho.
– Está bem.
Irakli encolhe os ombros e continua a andar em direção à escola, com as
mãos nos bolsos.
Lela volta ao bloco de apartamentos mas, desta vez, vai a outro andar.
Toca a uma campainha, e é Marika quem vem à porta. Sorri, surpreendida
ao ver Lela.
– Olá. Estás boa?
– Tens um minuto para eu falar contigo?
– Sim, que queres?
Lela tira o mesmo pedaço de papel do bolso e lê uma coisa escrita com a
sua letra.
– Inga no live here any more. O que é que isto quer dizer? – Marika fica
a olhar para Lela por um momento e, depois, olha para o papel e explica-
lhe. – Conheces o Irakli? Vai ser adotado por um casal americano. Vêm
buscá-lo em setembro. O que eu queria perguntar-te era se podias ensinar-
lhe um bocadinho de inglês. Sabes inglês, não sabes?
– Bem, ando a ter umas lições, mas não sou lá muito boa. Era melhor
para ele ter um professor como deve ser.
– Podes ser professora dele? Eu pago. Quanto é que pagas pelas tuas
aulas?
– Hum, pago uma mensalidade e tenho aulas duas vezes por semana…
– Também te pago ao mês, e vimos duas vezes por semana. Ou podes ir
tu lá à escola duas vezes por semana. Tenho um quarto só para mim, e isso
é bom, e podes ensinar-lhe só umas coisas básicas, para ele não estar
completamente às cegas quando for para lá.
– Não sei… Vou ter exames e tenho imensa coisa para fazer. Vou
candidatar-me à universidade daqui a pouco tempo…
– Nós pagamos. Quanto é que pagas por mês?
Marika não responde.
– Nós temos dinheiro – insiste Lela. – Eu tenho um emprego, sou
responsável pelos carros. Não é muito, mas deve chegar.
– Bom, está bem. Eu pago quarenta lari. Ela é uma amiga da família…
Se for metade disso?
– Vinte lari? – pergunta Lela.
Ficam as duas em silêncio. Marika olha fixamente para Lela, e Lela olha
fixamente para ela e pensa como é estranho um dia terem enfiado as mãos
nas cuecas uma da outra. Ainda se lembra do cheiro que lhe ficou nos
dedos.
Marika respira fundo, como se já estivesse farta de regatear, e pergunta:
– Está bem para ti?
– Está, vinte está bem.
– Ótimo. Eu vou lá duas vezes por semana, mas tem de ser ao princípio
da tarde, porque tenho explicações todas as tardes.
– Então, quanto é por aula? Para nós irmos pagando.
– Vinte a dividir por dois, dá dez lari por cada duas semanas, por isso
uma semana são cinco. Olha, vamos combinar só uma vez por semana.
Dá-me mais jeito – diz Marika.
– És a maior! Quando é que podes ir?
– Amanhã às duas?
– Combinado – diz Lela, começando a descer as escadas.
– Espera! – grita-lhe Marika. Está lá em cima, no patamar, a olhar para
Lela, abaixo dela. – Ele vai fazer os trabalhos?
Lela pensa por um momento e depois responde-lhe, também a gritar:
– Vai fazer, sim!
*
Lela olha para o que está em cima da mesa: batatas cozidas e costeletas.
Não costeletas de carne mas as costeletas falsas, feitas de vários tipos de
pão duro, cebola e ervas aromáticas, passadas por farinha e depois fritas.
Perto delas está uma garrafa de três litros de molho de fruta amarga e uma
pasta de tomate aguada, com pedaços de cebola a flutuar. As crianças
atiram-se ao molho, deitando-o diretamente da garrafa para os pratos. Lela
serve-se de uma única costeletinha, põe tudo na boca de uma só vez,
mastiga e engole. Levanta-se e vai para o pátio.
Acende um cigarro e avança pelo caminho contíguo ao lugar das
pereiras. Deambula pela lateral do edifício e para junto aos degraus do
bloco dos dormitórios. Ainda estão todos no refeitório. Lela atira a beata
para um canto e entra. Dirige-se ao último andar e encaminha-se para o
quarto dos trampolins. Ainda se encontra a alguma distância quando
repara que a porta está aberta. Entra e vê Vaska de costas para ela, na
ombreira da porta onde dantes estava a varanda, a olhar para o chão. Ele
não se apercebe de que Lela entra. Ela vai em bicos de pés, agarra-lhe a
camisola interior com as duas mãos e dá-lhe um forte abanão.
– Buuu!
Aterrorizado, Vaska estende os braços instintivamente, como uma ave
prestes a voar. Consegue recuperar o equilíbrio e vira-se para Lela. Caem
um em cima do outro, de braços no ar, como dois carneiros a trancar os
chifres, e lutam durante muito tempo e a sério. Vaska faz uma careta,
vermelho pelo esforço. Parece estar prestes a chorar. Lela está exausta. De
repente, ao mesmo tempo, largam-se um ao outro. Ofegantes, deixam-se
cair em cima das camas.
– Qual é o problema, assustei-te? – pergunta Lela, quase sem conseguir
recuperar o fôlego.
Vaska endireita a roupa.
– Que estavas a ver lá em baixo, hã? A vista é muito melhor, se caíres e
esmagares a cabeça no cimento. Mas, afinal, que é que estás aqui a fazer?
Porque é que abriste a porta?
Vaska levanta-se e dirige-se para a porta.
– Já estava aberta – diz ele, olhando fixamente para Lela. Ela aguenta o
olhar dele; o seu rosto já parece mais calmo, e o sorriso, que esteve
ausente durante a luta, está de volta.
– Estava aberta, não estava? – Lela parece duvidar. – Não te armes em
inocente comigo.
– Estava aberta – repete Vaska.
– E o cadeado?
– Nicles.
Lela olha para ele. Aquele sorriso está a começar a enervá-la.
– Porquê esse sorriso dengoso?
– Sorriso dengoso? Eu?
– Não, eu. És um idiota, sabias? – Lela suspira. – Não vais jantar?
Despacha-te, se não queres chegar demasiado tarde.
– Não tenho fome – diz Vaska.
– Sabes, não consigo perceber-te – continua Lela. – Que fazes tu numa
escola especial? És mesmo estúpido, ou finges que és?
– Quem, eu?
– Não, eu.
Vaska não diz nada. Limita-se a dar meia-volta e a ir-se embora. Lela
fica a vê-lo afastar-se, ainda à espera de uma resposta.
– Eu que não te apanhe aqui outra vez, Vaska, ou então parto-te as
pernas.
Ele desaparece pelo corredor.
6
Vou matar o Vano antes do inverno, pensa Lela para si própria. Agora é
verão. Ainda tenho muito tempo. O Irakly vai-se embora em setembro e,
depois de ele ir, mato o Vano. No fim do inverno. Depois disso, pode já ser
tarde demais. É tão velho que pode até vir a morrer sozinho…
Lela não suporta essa ideia. Jura a si própria que Vano não terá uma
morte natural.
*
Está sol e sopra uma brisa agradável lá fora. Lela está sentada no
patamar que fica no cimo da escada de incêndio, a pensar no inverno em
que ela, Irakli, Levan e Vaska foram roubar lenha ao barracão do vizinho.
O dono apanhou-os lá. Fechou a porta do barracão e ameaçou chamar a
polícia. Também lhes deu uns safanões. Irakli começou a chorar. Levan
estava demasiado assustado para falar. Mas Vaska puxou de toda a sua
coragem e disse: «Tínhamos tanto frio que pusemos os nossos sapatos na
lareira e agora já não temos mais nada para queimar! Foi por isso que
viemos roubar-lhe lenha!»
O vizinho era um homem carrancudo e trabalhador que nunca olhava
ninguém nos olhos e tinha pouco interesse em falar com as outras pessoas,
mas as palavras de Vaska pareceram chegar-lhe ao coração. Abriu a porta
do barracão de par em par e olhou fixa e longamente para as crianças ali
de pé, ao luar, dando-lhes depois a maior quantidade de lenha seca que
elas conseguiram carregar e deixando-as ir embora. Viu-as sair, abanando
a cabeça. As crianças rastejaram de volta para o pátio, encolheram-se para
passar pela vedação, pousaram a lenha no chão e suspiraram de alívio.
Encontraram Stella sentada junto à vedação, a chorar, à espera de que eles
regressassem sãos e salvos.
Nessa noite, puderam aquecer-se. Lela também sentiu um pouco mais de
calor em relação a Vaska. Não que ela lhe tivesse dito fosse o que fosse.
Nem sequer sorriu para ele. Apenas deixou que se sentasse junto à lareira
e falasse.
Este inverno vou-me embora, pensa Lela, a desfrutar do sol. Assim que
matar Vano, pegará nas suas coisas e abandona a escola. Talvez vá para
um sítio mais central. Tem alguns antigos colegas da escola na Rua
Lotkin. Pode ser que fique com eles uns tempos. Ou que vá à procura de
Yana. Ou que, como último recurso, apanhe um comboio para ocidente.
Para Batumi, talvez. Podia ir à procura de Marcel. Tem a certeza de que
toda a gente conhecerá Marcel. Provavelmente, têm todos medo dele.
Primeiro, vai tentar descobrir Marcel; e, depois, vai para a praia. Só a
ideia de ver o mar deixa-a entusiasmada. Não sabe nadar, mas há de
aprender.
*
Nessa noite, Lela reúne Irakli, Levan, Vaska e Stella na portaria e diz-
lhes que mais tarde, ainda naquela noite, vão roubar as cerejas de Tariel.
Agora, o antigo porteiro tem um enorme cão de raça mista chamado
Bandido, um animal peludo com um grande corpanzil, uma cabeça
quadrada, um focinho descomunal, uns olhos bondosos e umas patas
enormes. No que diz respeito a Tariel, o cão não lhe serve para nada. O
Bandido conhece toda a gente na rua e todas as crianças da escola. Não
ataca nada nem ninguém. As únicas coisas que ele faz são saltar e deitar-se
ao sol. Os gatos da vizinhança passam tão perto dele que lhe tocam no
focinho com as caudas, e ele limita-se a continuar deitado, imperturbável.
Às três da manhã, Lela levanta-se para ir acordar Stella. Ela salta
imediatamente da cama, ainda com a roupa do dia anterior, meio
adormecida, mas pronta para a tarefa que tem em mãos. Descem as
escadas em bicos de pés. Irakli, Levan e Vaska estão à espera na portaria,
às escuras.
Saem juntos do pátio, com as suas sombras a rastejarem atrás deles,
corpos negros alongados que se deslocam ligeiramente para um lado,
como se estivessem a tentar libertar-se, mas que são obrigados pelo luar a
seguir os seus donos para onde quer que vão. A noite está quente, a brisa
que sopra por entre os ramos das árvores é quase impercetível. Param
junto ao portão de Tariel e Narcissa. Lela trepa pela vedação e chama
baixinho para o pátio:
– Bandido!
O parvo do cão vai até junto da vedação, a abanar a cauda. Lela volta a
descer, mete a mão por dentro do portão e desaperta um arame torcido
para o abrir. O Bandido enfia o focinho pela abertura. Enquanto Lela lhe
faz festas, Stella agarra-o pela coleira e puxa-o para fora.
– Aqui, Bandido. Anda, rapaz – diz-lhe afetuosamente.
Irakli ajuda-a a atar uma corda à coleira.
– Tariel chama a este pateta Bandido, mas a bruxa com quem é casado
tem o nome de uma flor? Que justiça é esta? – exclama Levan.
– Leva-o para bem longe daqui, e não passes perto do Suliko, para os
cães dele não começarem a ladrar. Combinado, Stella?
– Eu sei – sussurra Stella, e atravessa, confiante, a rua iluminada pelo
luar, segurando o Bandido pela coleira. Está com o vestido de folhos cor-
de-rosa que era de Nona, e este esvoaça quando ela corre. O Bandido
geme de felicidade, deliciado com aquele passeio noturno.
Lela entra no jardim e faz sinal aos rapazes para a seguirem.
– Quando atirarem as pedras, vejam se não acertam na garagem – diz-
lhes em surdina. – E, se eu assobiar, fujam, OK? – acrescenta, metendo a
T-shirt para dentro das calças. Aperta mais o cinto. Os rapazes fazem o
mesmo.
– Devíamos apanhar primeiro algumas para a Stella, não? – sugere
Irakli.
– Se todos lhe dermos cerejas, vai apanhar uma caganeira – diz Levan, e
os outros rapazes riem à socapa.
– Cala-te, idiota – repreende-o Lela.
Ela fecha o portão por dentro. Agora que os seus olhos já se habituaram
ao escuro, conseguem ver com nitidez o pátio da frente de Tariel,
impecável, e uma casa simples de tijolo com uma porta de vidro, coberta
por uma cortina do lado de dentro. Lela avança em direção à cerejeira de
Tariel.
Decide então mandar primeiro o mais pequeno. Ela e Vaska dão uma
ajuda a Irakli; ele sobe para a árvore e desaparece no escuro. Depois Lela
faz sinal a Levan, e ele sobe com cuidado para os dedos entrelaçados
deles. A seguir Levan salta, abraça o tronco com firmeza e vai subindo
pelos ramos até, à semelhança de Irakli, ser engolido pela escuridão.
Só Lela e Vaska ficam no chão.
– Sobe também – sussurra Vaska, e baixa-se para ela poder subir para as
suas costas.
Lela faz balanço com um pé e trepa para cima da árvore. Encosta a cara
ao tronco rugoso e fecha os olhos. Abraça o tronco como se fosse um
amante, e a árvore fica imóvel, como que enfeitiçada, abanando apenas
muito ligeiramente quando o vento perpassa pelos seus ramos. Por fim,
também Vaska põe os braços e as pernas à volta do tronco e começa a
subir devagar. Agarra um ramo com uma mão, balança o corpo e fica ali
pendurado, como um macaco esguio e magro.
A cerejeira balança um pouco sob o peso dos seus saqueadores
noturnos, mas aguenta firme; como uma mãe que acolhe os filhos
famintos, os acaricia e sussurra invocações que os protejam do mau-
olhado. Há um restolhar súbito das folhas e o estalido de um ramo que se
parte debaixo do pé de um deles. Param todos, mas o único som que
conseguem ouvir é o cantar dos grilos debaixo da vedação.
Enchem as T-shirts de cerejas, que apanham aos cachos, com folhas e
tudo, e depois metem entre o tecido e a própria pele. Também comem uma
ou outra. Um deles cospe um caroço, que faz ricochete no telhado de
ardósia, emitindo um tinido. Mais uma vez, ficam todos imóveis, mas
novamente nada acontece.
Lela estica-se num dos ramos para tentar alcançar um outro que está
carregado de cerejas, mas vê depois que Vaska já está de volta dele.
Olham um para o outro. Lela estuda a cara sorridente de Vaska ao luar. Ele
inclina-se para trás com todo o seu peso para tentar puxar o ramo para
mais perto, para que Lela consiga alcançá-lo. Ela agarra-o com uma mão,
mas o ramo é grosso e forte. Vaska agarra-o com as duas mãos, dando a
Lela todo o tempo de que ela precisa. Lela não tem pressa; arranca os
cachos de cerejas, prova-as e cospe os caroços para muito longe, para lá
do telhado da garagem. Atira algumas a Vaska, fazendo pontaria à cara
dele. Ele desvia ligeiramente a cara para o lado e, por um momento, Lela
deixa de o ver no meio das folhas, até que volta a encontrar aqueles olhos
cor de avelã a olharem para ela. Lela apanha as cerejas uma a uma, como
se estivesse a testar quanto tempo Vaska consegue aguentar, até que
finalmente solta aquele e muda para outro ramo. Puxa um galho fino e
flexível para si e solta-o. O ramo chicoteia a cara de Vaska, que o afasta.
Saem em silêncio pelo portão, com as T-shirts tufadas, a abarrotar de
cerejas. Stella está do outro lado da rua, a passear o Bandido para cima e
para baixo. Corre para os amigos. A Lua está tão brilhante que quase podia
ser de dia. Stella desata a corda da coleira do cão, faz-lhe uma festa e
empurra-o pelo portão aberto.
Lela fecha o portão.
Alguns minutos mais tarde já estão de volta ao recinto da escola. Sobem
a escada de incêndio e sentam-se lá no alto, três no patamar, dois no
último degrau. Stella abre a saia do seu vestido cor-de-rosa e Lela enche-a
de cerejas que vai tirando de dentro da sua T-shirt. Os olhos de Stella
brilham de alegria.
– O Bandido portou-se tão bem. Não fez nem um barulhinho – diz,
orgulhosa, e cospe o caroço de uma cereja na direção dos abetos.
– Ele é esperto, ao contrário do Vaska. Primeiro partiu um ramo, depois
atirou o caroço mesmo para cima do telhado da garagem – diz Lela, e
todos se riem. – Levá-lo connosco foi mesmo estar a pedir que houvesse
problemas – acrescenta, à laia de provocação.
Vaska não diz nada.
– Vais pensar em nós quando estiveres na América, Ika? – desembucha
Stella, repentinamente.
– Claro que vai – diz Levan –, porque vai estar tão infeliz que vai
adormecer a chorar todas as noites: Stella, quero a Stellaaaaaa…
Stella dá uma risadinha, toda excitada.
– Não consigo imaginar-me na América. Estou sempre a pensar que
nada disto é real – confessa Irakli, pensativo.
– Estás sempre a pensar nisso, homem. Mas pensar nisso não faz com
que seja realidade – contrapõe Levan.
– Nunca te cansas? – pergunta Lela, divertida.
– Podes ter a certeza de que não! Leva-me a essas aulas de inglês e vais
ver como eu sou esforçado!
Dá uma cotovelada a Stella.
– Ouve lá, Stella, diz-lhes para onde é que vais trabalhar quando fores
crescida!
– Não quero – responde Stella, envergonhada.
– Coitadinha dela, contou isso uma vez e ainda continuas a gozar? –
comenta Vaska.
– Vá lá, Stella, conta à Lela! – insiste Levan.
Stella solta um suspiro profundo.
– Vou trabalhar na Faculdade de Indústria Ligeira.
Os rapazes desatam a rir histericamente. Stella fica ofendida.
– Aonde é que foste buscar essa ideia, Stella? – pergunta-lhe Lela.
Stella limita-se a dar outro suspiro.
– A Dali estava a falar daquela rapariga sem família que começou a
trabalhar na Faculdade de Indústria Ligeira, e como a Stella parece um
papagaio…
– Ouve lá, não sou nenhum papagaio – grita Stella, e Lela lança-lhe um
olhar furioso. – Ele é que é um papagaio! Diz-lhe, Lela!
– Está bem, está bem, mas falem baixo – pede Lela com gentileza.
– Sabes uma coisa, Stella? – continua Levan. – Sabes o que é que dizem
das raparigas que trabalham lá? «Se queres uma verdadeira profissional»,
dizem eles, «arranja uma rapariga da Faculdade de Indústria Ligeira.» São
as que trabalham melhor em toda a cidade!
Nem sequer Lela consegue deixar de rir.
– Porque é para lá que vão as putas, não é? Verdadeiras profissionais, o
melhor trabalho da cidade, estás a perceber?
Stella está desesperada.
– Cala-te! – diz, quase a chorar. – Diz-lhe que não é verdade, Lela!
– Pronto, pronto, não é verdade – confirma Lela para a tranquilizar.
– Stella, meu amor – diz Levan, entre risadinhas –, não nos
envergonhes! Não vás trabalhar para lá, porque senão o Irakli nunca vai
conseguir olhar os americanos nos olhos!
– Oh, por amor de Deus, Levan! – ralha Stella. – Cala-te, OK?
Semicerra os olhos, preparada para o próximo insulto de Levan, mas ele
não chega a vir. Apenas bate as palmas, com um ar triunfante, e dá uma
gargalhada.
*
Irakli não tem aula de inglês no dia seguinte. Marika manda os filhos de
uma vizinha dizerem a Lela que ela está com muitas dores de barriga.
Irakli fica encantado.
– Deve estar naquela altura do mês – comenta.
Lela dá-lhe um puxão de orelhas.
– Não tens de repetir tudo o que ouves, percebeste?
*
Depois do jantar, Irakli e Lela vão até ao campo das pereiras. O ar tem
um cheiro fresco e limpo, depois da chuvada da noite. Tirando a tagarelice
dos pássaros nas árvores, não se ouve um único som. A relva é de um
verde exuberante e vibrante. Lela avança pelo caminho contíguo ao
pomar, a fumar. Irakli caminha ao seu lado.
– Lela – diz Irakli, de repente –, acho que o Vaska gosta de ti.
– Cala-te, está bem?
– Não estou a dizer isto para te enervar.
– Sabes uma coisa? – diz Lela em voz baixa, puxando uma última
fumaça –, acho que o Vaska gosta é de ti, não de mim; e, se não tiveres
cuidado, caso-te com ele. Podes ficar com a Stella como dote. Pensando
melhor, não, é demasiado boa para ti. Em vez dela, podes ficar com a Dali
ou a Tiniko.
Irakli suspira.
– Às vezes, é impossível falar contigo. – Lela deita fora a beata do
cigarro e olha para as pereiras do pomar. Os seus ramos nodosos,
retorcidos, estão descaídos por causa da chuva intensa. – Está bem, não
acreditas em mim. Mas já viste a quantidade de merdas que ele aguenta de
ti sem dizer nada? Eu cá não admitiria isso, podes ter a certeza.
– Ele aguenta porque tem medo de mim, não achas?, o cagarolas do
ciganito.
– Ele não tem medo de ti, Lela. O Vaska não tem medo de ninguém.
Lembras-te de quando aquele rapaz veio cá jogar futebol, aquele matulão,
e nos chamou atrasados mentais e mandou o Vaska para o caralho…?
Lembras-te do que o Vaska lhe fez?
Lela fica a pensar por um momento.
– Vais buscar-me uma pera?
– Posso trazer-te uma, mas não vais comê-la, pois não?
– Mas vai lá buscá-la na mesma.
Irakli descalça os sapatos e as peúgas e enrola as pernas das calças.
Quando chega ao meio do terreno onde as peras caem, pergunta a Lela:
– De que árvore é que queres que a tire? Se eu cair e me afogar aqui, a
culpa é tua.
– Não te preocupes, não te vais afogar.
– O que é que achas destas? – Aponta para um ramo carregado de peras.
– Pode ser.
Irakli olha para as peras grandes, redondas e verdes. Agarra uma e puxa-
a. Com os braços levantados, torna a atravessar o terreno até chegar à terra
seca, trazendo a pera de Lela. Tem as pernas cobertas de lama até aos
joelhos. Irakli atira então a pera a Lela. Ela apanha-a, limpa-a nas calças e
enterra-lhe os dentes.
– Não, não é boa – diz, e devolve-a a Irakli.
– Se fossem boas, já não havia nenhuma na árvore! – comenta Irakli,
dando de qualquer forma uma pequena dentada. Arrepia-se, inclina-se
para trás e, com a sua máxima força, atira a pera outra vez para o pomar,
onde ela acaba por cair.
7
Irakli tem mais uma aula na portaria. Lela parece abatida, esparramada
na cama, sem se mexer e a olhar para o teto.
Irakli tem os olhos raiados de sangue. Nos últimos tempos, tem-se
queixado de dores de cabeça em todas as aulas.
– Então, diz-me lá outra vez o que dirias se quisesses comer.
– Dizia, I’m hungry ou I’m starvy.
– Starving.
– Pois – responde Irakli.
– Boa. Agora vamos treinar algum vocabulário – informa Marika.
Irakli suspira profundamente e olha para Lela como que a dizer que já
não aguenta muito mais.
– Estava aqui a pensar – Lela senta-se de repente na cama. – Podes
ensinar-lhe vocabulário a sério?
– Que queres dizer com «vocabulário a sério»? – pergunta Marika.
Irakli fica mais animado e sugere:
– Palavrões.
– Tu sabes… Aquelas palavras mesmo úteis. Como, por exemplo…
Qual é a palavra inglesa para, hum… masculinidade? – Lela tosse
intencionalmente.
Irakli resmunga. Lela ignora. Marika cora.
– É dick – diz Marika, divertida.
– O quê?! – exclama Lela, que não estava à espera de uma resposta tão
rápida.
– Sim, é dick – confirma Marika, confiante.
– Também se pode chamar isso a alguém? – pergunta Lela, a rir. –
Como, Shut up, dick?
– Porque iria ele querer fazer isso? – questiona Marika.
– Pode querer, não é? Se não precisar, não precisa; mas, se precisar, é
difícil telefonar-nos dos Estados Unidos para perguntar como é, não
achas? Vamos ensinar-lhe agora!
– Não tenho bem a certeza… – Marika pondera. – Piss off, you dick…11
Acho que pode servir. Não sei. Nunca aprendi palavrões, nunca precisei.
Só sei essa porque um tipo da minha aula estava sempre a perguntar-me se
eu queria ver o dick-cionário dele… Se quiseres saber mais, posso
perguntar. Conheço as pessoas certas.
– Queremos saber. Ele pode aprender as outras coisas, como cat e dog,
quando lá estiver. Temos é de lhe ensinar o que deve dizer para ninguém o
chatear!
– Pronto, está bem. E que mais? – pergunta Marika, arrancando uma
folha do caderno de Irakli e mantendo a caneta pronta para anotar.
Irakli está todo animado. Finalmente, está a acontecer qualquer coisa
que faz com que tudo aquilo valha a pena.
– Ora bem – diz Lela, sentada de pernas cruzadas em cima da cama, a
olhar pela janela. – Já anotaste Piss off, you dick?
– Já.
– Então, qualquer coisa como: «Tira as mãos de cima de mim,
vagabundo de merda.»
– Oh, meu Deus – exclama Marika, dando uma gargalhada. – Achas
mesmo que há vagabundos na América? Vou ter de ver o que consigo fazer
em relação a essa.
– E descobre como é que ameaças que vais foder alguém, se não te
deixar em paz.
Irakli dá uma risadinha. Marika toma nota.
– Ah, e se… – diz Irakli, desesperado por contribuir com qualquer coisa
para o seu livro de frases de emergência, mas sem conseguir lembrar-se de
uma asneira suficientemente forte. – Como é que eu podia pedir a alguém
que não me raptasse ou, hum…
– Espera – interrompe Lela. – Arranja qualquer coisa sobre partir-lhe os
ossos todos do corpo, um a um.
Marika toma nota.
– Mas eu acho que não vou andar pela América a dizer essas coisas. Lá,
é tudo diferente. Não é como na Geórgia.
– Mesmo assim, continua a escrever. Se ele precisar, pode usá-las.
Alguma vez o ouviste dizer um palavrão?
– Não…
– E achas que isso significa que ele não sabe nenhum palavrão? Ele é
tão asneirento como um soldado, e ainda bem para ele! Ou queres que as
pessoas abusem dele?
– Pronto, está bem – diz Marika, e continua a escrever. – Partir os ossos
todos… um a um…
– Isso mesmo! – anui Lela. – Por agora, chega. Depois pensamos em
mais.
Marika levanta-se para se ir embora. Lela dá-lhe cinco lari. Ainda está a
dever-lhe dez das duas últimas semanas, mas promete pagar-lhe em breve.
*
Koba e Lela encontram-se ao fundo da Rua Kerch. Koba não quer que
ninguém o veja com uma rapariga da Escola dos Idiotas. Vai sempre por
estradas secundárias e diz-lhe para se baixar quando veem alguém que ele
conhece.
Tem estado calor todo o dia mas, quando Koba sai da cidade, começa a
soprar uma brisa fresca que torna a temperatura do carro menos intensa.
Deitada, de pernas abertas, Lela ouve o chilrear dos grilos e pensa que
talvez esteja a aproximar-se alguém. Ela apoia-se nos cotovelos para
espeitar, enquanto Koba olha à sua volta até ter a certeza de que não está
lá ninguém. Lela torna a deitar-se, põe as pernas à volta de Koba e
acompanha o ritmo dele. Koba tenta assumir o controlo. Quase
instintivamente; Lela agarra-lhe uma das nádegas magras e puxa-o para
dentro dela com mais força e sente aquele nó no estômago e um calor em
todo o corpo, como se fosse só um feixe de fibras, um balão cheio de água
a deslizar suavemente para trás e para a frente, para trás e para a frente, até
o nó se desatar no seu estômago e o calor fluir por todo o corpo; e então
agarra a nádega de Koba com força e solta um grito repentino.
Profundamente excitado, Koba olha para ela, com uma gota de suor
pendurada na ponta do nariz, e depois rende-se ao êxtase e vem-se.
Lela sai do carro e vai fazer chichi ao campo. Não tem pressa de voltar.
Quando regressa, depara com Koba já vestido, de pé junto à porta do
condutor, a fumar. Lela pede-lhe um cigarro.
Sentam-se no carro em silêncio. Koba tira uma nota de cinco lari do
bolso das calças e dá-lha.
– Não quero – diz Lela, muito depressa.
Koba olha para ela, surpreendido.
– Não quero – repete Lela.
Está muito corada, e o cabelo, molhado com o suor, está caído sobre a
testa. Koba tem a sensação de ver a sugestão de um sorriso no rosto dela.
– Também me vim, ou não?
Koba dá-lhe uma bofetada com as costas da mão e rebenta-lhe o lábio.
Lela solta um grito de dor e tapa a cara com a mão.
– Não estás boa da cabeça, pois não? Sai já do carro!
Lela abre a porta com uma mão, a outra ainda a pressionar a boca, e sai.
Koba atira-lhe a nota de cinco lari e bate com a porta. Sai do campo de
marcha-atrás, deixando Lela ali especada, no caminho de terra batida,
rodeada de milho.
O som do carro desvanece-se algures ao longe. Lela pega na nota de
cinco lari e mete-a no bolso. Os grilos estão agora a chilrear mais alto.
Está a anoitecer e toda a paisagem tem um tom azulado. Uma brisa leve
dança pelo campo, e Lela ouve o som do mar no milho a restolhar.
Recompõe-se. De volta à estrada principal, fica à espera para pedir boleia.
Passado pouco tempo, um Lada 4x4 branco para junto dela. O condutor
tem uma expressão cansada no rosto e mãos de operário. Olha para a boca
manchada de sangue de Lela.
– Que aconteceu? Alguém te fez isso?
Apesar de não querer, Lela começa a chorar. Passa as mãos sujas pelas
faces para limpar as lágrimas, esfrega os olhos e contrai a cara. Sente uma
coisa qualquer presa na garganta, a asfixiá-la.
O homem para o carro. Dá-lhe uma garrafa de água.
– Estende as mãos para poderes lavar a cara.
Lela sai do carro e põe as mãos em concha. Depois, molha a cara com
água.
– Uma rapariga como tu não devia andar aqui sozinha – diz o homem,
quando já estão outra vez dentro do carro, a caminho de Tbilisi. – Há por
aí todo o género de pessoas más… Os teus pais ainda são vivos?
– São – responde Lela.
– Quantos anos tens?
– Dezoito.
– Onde é que moras? Eu levo-te a casa.
– Continue a guiar, e eu vou-lhe dizendo o caminho.
– Mas, afinal, o que é que andavas a fazer aqui? – pergunta o homem.
Passa por eles um camião enorme com um rugido ensurdecedor, a cuspir
um fumo negro espesso.
– Um amigo levou-me a passear – diz Lela. – E depois foi-se embora e
deixou-me aqui.
– E também foi o teu amigo que te fez isso? – pergunta o homem, sem
desviar o olhar para ela. Lela olha de relance para o homem e fica
admirada por ver umas rugas profundas desde o canto do olho até à
têmpora.
Ele abana a cabeça.
Lela olha pela janela. As perguntas do homem estão a deixá-la tensa.
Quando entram na cidade, a luz está a desaparecer depressa. Lela
reconhece a sua rua, mas manda o condutor seguir um caminho diferente e
pede-lhe que pare à frente de um bloco de apartamentos.
– Pode ser aqui em qualquer lado. Obrigada.
O homem espreita para o pátio. Há crianças a brincar e alguns rapazes a
andar por ali. É um pátio perfeitamente normal, iluminado pelo pôr do
Sol, com sombras frondosas que embelezam as paredes da torre de
apartamentos e uma mãe a chamar o seu filho de uma janela de um piso
superior.
– Deixa de andar com pessoas dessas. Há demasiados malucos à solta –
diz-lhe o homem.
Lela sai do carro e corre para o edifício que, na verdade, não é o seu.
*
Mais tarde nessa noite, quando Lela está no bloco dos lavabos, de
repente fica nervosa com o som de água a jorrar que ecoa através do
edifício escuro e deserto.
Vai para a portaria. Por entre a escuridão, consegue distinguir Irakli
deitado na cama, a dormir profundamente. Fixa o olhar nele. O luar está a
iluminar-lhe o rosto. Os americanos tinham razão. O seu rosto é suave, a
pele pálida, quase translúcida. Está a respirar profundamente. Lela senta-
se na cama e tira os sapatos. Com as costas empurra Irakli para a parede.
Ele agita-se, mas torna a dormir. Lela sente a respiração dele nas suas
costas. Lembra-se de Koba, da nota de cinco lari que tem no bolso das
calças e do homem com as rugas profundas à volta dos olhos. Tenta
pensar, mas os pensamentos não conseguem ganhar forma na sua cabeça
e, ao fim de pouco tempo, também ela adormece.
*
Uma noite, quando já quase não há luz, Koba choca com Lela ao fundo
da Rua Kerch e dá-lhe um murro na cara. Lela cai ao chão e Koba
pontapeia-a repetidamente na barriga e nas costas. Depois, vai-se embora
e desaparece para sempre da vida dela.
Nessa noite, Lela sonha que está outra vez junto do campo das pereiras.
As crianças estão a jogar futebol atrás dela. Lela corre para o terreno para
ir buscar a bola, mas, depois de alguns passos, começa a afundar-se na
terra macia e encharcada. De repente, a terra suga-a até à cintura. Estende
a mão para se agarrar aos ramos nodosos. Tenta gritar para as crianças,
mas não as vê em lado nenhum. Afunda-se cada vez mais na terra.
*
Na manhã seguinte, Lela levanta-se cedo para deixar sair alguns carros
e, depois, vai para o refeitório.
Não gosta de ver o refeitório sem crianças. A luz da manhã entra pelas
janelas e, nos sítios onde raios de sol poeirentos incidem, Lela consegue
ver restos de pão em mesas que ainda não foram limpas da noite anterior,
e copos cobertos de dedadas.
Vai ao armário e encontra um pedaço de pão, espalha sobre ele compota
de ameixa e vai a comê-lo ao sair para o pátio. Nenhum dos professores
chegou entretanto e as crianças ainda estão todas a dormir. Um cão
esfomeado vagueia entre os abetos.
Tiniko chega ao trabalho. Lela abre os portões e a diretora atravessa o
pátio algo insegura, com os saltos de cunha a martelarem no chão. Lela
fecha os portões atrás dela.
– Tiniko – diz, despreocupadamente –, não posso dar-te o dinheiro do
estacionamento este mês.
Tiniko senta-se na tábua por baixo das árvores e descalça o sapato para
tirar uma pedra lá de dentro. Franze a testa e olha para Lela.
– Porquê? Gastaste-o?
– Tive de pagar imensas coisas. Do Irakli. Pago-te no mês que vem.
Tiniko não diz nada. Enfia outra vez o pé inchado no sapato e levanta-
se.
– Pelo menos, diz-me que ele anda a aprender alguma coisa.
– Sim, está a aprender – responde Lela, encolhendo os ombros.
– Não vale a pena teres muito trabalho com isso, pois não? Ninguém
está à espera de que ele seja fluente. Tens de cuidar das coisas aqui. Ele
está quase a ir-se embora, mas tu vais continuar aqui, e estes carros são da
tua responsabilidade. Percebes o que é ter responsabilidade, não percebes?
Sabes bem que estou a contar contigo.
– Eu sei, Tiniko.
*
Ao fim da tarde, Lela vai para o recreio deserto. Irakli ainda não voltou.
Ela sobe a escada de ferro em caracol até ao cimo. Senta-se no último
degrau e acende um cigarro. Deborah e John aparecem-lhe à frente dos
olhos, depois Irakli, vermelho que nem um tomate e, a seguir, Vano, que
ela atrai para o quarto dos trampolins, até à beira da varanda caída, e
empurra…
Tens coragem para fazer isso?, pergunta uma voz na sua cabeça. Tens?
Então, de que estás à espera?
Vou matá-lo antes do fim do inverno. Quando o Irakli se for embora,
mato-o, responde Lela.
*
14 Em inglês no original, mas optou-se por traduzir para não criar ruído na história. [N. da T.]
15 Pastel georgiano muito popular, feito de massa torcida recheada com carne e especiarias, que
depois é cozinhado em água a ferver. [N. da T.]
16 Pequeno espeto de carne, mas a que podem também acrescentar-se legumes. [N. da T.]
17 Oboé arménio, é um instrumento tradicional de sopro de palheta dupla, popular entre os povos
do Cáucaso, do Médio Oriente e do Leste Europeu. [N. da T.]
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