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Ficha Técnica

Título da edição portuguesa: Onde as Peras Caem


Título original:
Autor: Nana Ekvtimishvili
Editora: Maria do Rosário Pedreira
Traduzido para português por Maria do Carmo Figueira a partir da tradução inglesa de Elizabeth Heighway
(executada diretamente do georgiano e publicada pela Peirene Press Ltd em 2020)
Revisão: Madalena Escourido
Design da capa: © Maria Manuel Lacerda / LeYa
Imagem da capa: ©AkvarellDesign, ©wladimkea
ISBN: 9789722074391

Publicações Dom Quixote


uma editora do grupo Leya
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The book is published with the support of the Writers’ House of Georgia.
Este livro foi publicado com o apoio da Casa dos Escritores da Georgia.

Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990.


Índice

Capa

Ficha Técnica

9
ONDE AS PERAS CAEM

Traduzido do inglês
por Maria do Carmo Figueira
ONDE AS PERAS CAEM
1

A Rua Kerch fica nos arredores de Tbilisi, onde a maioria das ruas não
tem nome e onde bairros inteiros não têm nada além de prédios altos
soviéticos agrupados em blocos, agrupados, por sua vez, em micro-
distritos. Não há lá nada que valha a pena ver, nem edifícios históricos,
nem fontes, nem monumentos aos grandes feitos da sociedade, apenas
prédios altos indistintos de ambos os lados da rua e, de vez em quando,
um ou outro edifício que se distingue aninhado no meio deles: a
Faculdade de Indústria Ligeira, que fica num alto, rodeada de abetos; o
infantário; a escola secundária municipal; os escritórios do comité de
gestão da habitação; um pequeno centro comercial; e, no fim da rua, o
Colégio Interno para Crianças com Deficiência Intelectual ou, como os
habitantes locais lhe chamam, a Escola dos Idiotas.
Ninguém se lembra de quem teve a ideia de, em 1974, dar a uma rua na
Geórgia soviética o nome de uma cidade na península da Crimeia; uma
cidade onde, num dia soalheiro de outubro de 1942, quando a brisa quente
trazia para terra o calor das águas do mar Negro, o exército nazi invadiu a
pedreira local e fez vários milhares de prisioneiros. Nesta rua não há
navios. Não há brisa vinda do mar. Estamos no fim da primavera e o sol é
sufocante de tão quente, levantando vapor do alcatrão e fazendo murchar
os enormes plátanos. De vez em quando, passa um carro e um cão
refastelado na rua levanta-se e ladra até o carro desaparecer, mas depois o
cão não terá mais nada para fazer senão olhar na direção em que ele
seguiu, desconsolado, e tornar a deitar-se na poeira.
Na Rua Kerch não há heróis, ao contrário da cidade sua homónima.
Quando as forças nazis reuniram os cidadãos de Kerch, judeus e não
judeus, dez mil combatentes soviéticos sitiados montaram uma defesa
corajosa e altruísta. Acabaram por ser derrotados. Talvez tenha sido por
isso que, depois da guerra, as autoridades soviéticas optaram por não fazer
de Kerch uma «Cidade Heroica». Esta decisão implicava que a cidade não
receberia ajuda estatal; teria, em vez disso, de se reconstruir por conta
própria. Só em 1973 é que Kerch recebeu o título de «Cidade Heroica».
Um ano mais tarde, o primeiro troço da estrada de Tbilisi para Tianeti
recebeu o nome de Rua Kerch. Um a um, os habitantes locais que tinham
vivido a Grande Guerra Patriótica foram morrendo: eram homens que, nos
feriados, passeavam com as suas medalhas pregadas nos casacos; homens
vagarosos e dignos, a elevarem os seus dorsos magros, enquanto andavam
para cima e para baixo ao sol; homens que tinham a fotografia de Estaline
pendurada na parede das suas salas de estar. Quando chegou a sua hora,
confiaram a pátria aos filhos e aos netos, que ainda hoje vivem na Rua
Kerch, ou perto dela, indo e vindo das suas casas, infantários, escolas,
lojas e empregos, com a vida toda contida no bairro. Quando a União
Soviética se desfez, as suas vidas ruíram. Alguns residentes refugiaram-se
entre as quatro paredes das suas casas. Outros saíam para a rua e gastavam
o tempo nas esquinas, ou passavam horas a fio em comícios ou piquetes.
Alguns tiraram aquelas fotografias de Estaline da parede da sala. Outros
pura e simplesmente desistiram do fantasma.
*

Num dia soalheiro, no final da primavera, Lela está no bloco dos


lavabos da Escola dos Idiotas, com a cabeça curvada sob um jato de água
quente, a pensar.
Tenho de matar o Vano…
Lela, que fez dezoito anos há um mês, vive na escola.
Vou matar o Vano, e depois podem fazer comigo o que quiserem.
Lela fecha a torneira. Emana vapor do seu corpo magro e corado. Vê-se-
lhe claramente o desenho da coluna vertebral no meio das costas, como
uma corda torcida desde a cintura estreita até aos ombros.
Vou matá-lo, pensa, enfiando os braços nas mangas da blusa de cor
caqui e abotoando-a. A seu lado está uma cadeira de sala de aula, com a
madeira amarela estalada e amolecida pela humidade. No assento há
bocados de sabão e um pente só com metade dos dentes, e roupa
pendurada nas costas. Lela empurra as pernas para o interior das calças,
mete a blusa para dentro e aperta o cinto.
Não vão prender-me, pois não? Só vão dizer que sou maluca. Ou
atrasada… Na pior das hipóteses, vão mandar-me para o manicómio. Foi
o que fizeram com o miúdo do Tariel, e olhem para ele agora, a andar por
aí livre como um passarinho… Passa os dedos pelo cabelo a pingar e
sacode a cabeça como um cão molhado. Só então a porta dos lavabos se
abre com estrondo e Lela vê uma silhueta pequena e nebulosa a aparecer
por entre o vapor.
– Estás aqui? – chama Irakli, de pé junto à porta. Lela continua a vestir-
se, forçando os pés molhados a entrarem nas meias. – A Dali anda à tua
procura por todo o lado!
– O que é que ela quer? – Lela calça um dos ténis e aperta bem os
atacadores. A brisa que entrou pela porta aberta fez desaparecer o vapor e
agora já consegue ver Irakli, e até mesmo destrinçar as suas orelhas
pontiagudas e os olhos grandes. Ele suspira.
– Despacha-te, está bem? A Dali quer que vás ter com ela… Eles estão
outra vez nos trampolins e não saem de lá nem por nada.
Lela aperta o outro sapato e sai apressadamente atrás dele.
*

Lá fora, está sol e calor. Atravessam a correr o recreio deserto que liga o
bloco térreo dos lavabos ao dormitório.
Lela veste-se como um rapaz e, à primeira vista, parece mesmo um
rapaz, principalmente quando vai a correr. Mas, de perto, dá para ver as
sobrancelhas loiras e finas, os olhos escuros, a cara magra e os lábios
vermelhos e gretados e, sob a blusa, a ondulação dos seios.
– A Dali não consegue tirá-los de lá. Estão em cima dos colchões – diz
Irakli, ofegante.
Sobem de um salto os degraus largos da entrada e entram a correr.
O espaço do grande átrio de azulejos é fresco, como sempre. Há vitrinas
vazias nas paredes e, ao lado, um extintor de incêndio vermelho.
Lela sobe a correr até ao andar de cima e depois atravessa o longo
corredor. Consegue ouvir a voz lamurienta de Dali, vinda do quarto ao
fundo. Entra e vê um grande grupo de crianças a correr e a saltar em cima
das camas. O som das molas a ranger é ensurdecedor. No meio do quarto
está uma mulher baixa e rechonchuda que, à primeira vista, parece estar a
brincar à apanhada com as crianças, mas sem conseguir apanhar nenhuma.
É Dali, a responsável pela disciplina da escola, que hoje está também a
cumprir as funções de supervisora. Tem o cabelo pintado de ruivo tão ralo
que se consegue ver o couro cabeludo através dele. Está espetado em
todas as direções, enquadrando-lhe a cabeça como a auréola de um santo;
e, na verdade, com o sofrimento por que passa atrás daquelas crianças o
dia todo, podia muito bem ser a santa mártir e padroeira da escola.
Só passaram uns meses desde que o Ministério concedeu «ajuda
humanitária» à escola, sob a forma de novas camas de madeira. As velhas
e pesadas camas de ferro foram desmanchadas e levadas para um quarto
no último andar. Caía água dos tetos, mesmo quando as crianças lá
dormiam. O telhado foi arranjado, mas começou novamente a cair água.
Arranjaram-no mais uma vez, e outra… mas, sempre que chovia, a água
continuava a cair, até que toda a gente acabou por aceitar que as coisas
eram assim. Agora, sempre que chove, as crianças vão a correr para o
quarto para verem. Há baldes e outros recipientes espalhados pelo chão
para apanhar a água que depois é atirada pelas janelas. A divisão é
atualmente conhecida como quarto dos trampolins e, faça Dali o que fizer,
não consegue tirar as crianças dali: não há nada na escola que chegue
perto da alegria pura de saltar em cima das molas da cama, principalmente
à chuva.
Recentemente, o quarto ganhou mais uma atração: sem pré-aviso, a
pequena varanda desabou, levando com ela a grade de ferro e várias
placas de ardósia do telhado, que, juntamente com bocados de cimento,
formaram uma pilha no chão. Agora há apenas uma viga de suporte a sair
da parede. Ninguém se magoou, embora na altura o recreio estivesse cheio
de crianças a jogar futebol. Escusado será dizer que as autoridades
escolares ficaram tão aliviadas que nem tiveram tempo para se aborrecer
por a varanda se ter desmoronado. Mas, passados alguns dias, a porta para
a varanda também desapareceu, assim como a ombreira. Quem a tirou
achou provavelmente que, como a varanda já não existia, ninguém
precisava da porta que a ela conduzia. Assim, agora há um vazio do
tamanho de uma porta numa das paredes do quarto dos trampolins através
do qual, em dias como o de hoje, se pode ver um céu azul sem nuvens,
plátanos e o bloco de apartamentos do lado.
– Saiam! Fora, ou levam uma palmada no rabo! – grita Dali, enquanto
as crianças correm umas atrás das outras, às gargalhadas. Dali repara
então em Lela. – Estás a ver? Fechei as portas com um arame e, mesmo
assim, eles entraram, e agora olha-me para esta confusão!
Lela descobre Vaska de pé, a um canto. Vaska é um Lom, um cigano
arménio de quinze anos, baixo para a idade. Vive aqui há muito tempo.
Lela lembra-se de quando ele chegou. Tinha oito anos, e ela onze. Foi
trazido pelo tio, um homem de pele escura, olhos verdes, cabeludo e com
os braços tatuados, que fumava um cigarro. Esse homem nunca mais
voltou. A princípio, Vaska andava sempre perto de Lela, que o protegia e o
mantinha a salvo dos outros miúdos, para quem os recém-chegados pouco
mais eram do que uma nova presa. Depois, quando já eram relativamente
mais velhos, fizeram sexo. Nenhum deles percebeu o que ia acontecer. Foi
junto do bloco dos lavabos, debaixo das pereiras do pomar, à beira de um
campo alagado. Nessa noite, recorda Lela, o recreio ficou repentinamente
vazio. Dali estava a ver uma telenovela sul-americana sobre a relação
tempestuosa de uma mulher ainda nova com a sogra. Sem nunca ter
falhado um único episódio, tinha conseguido que a maioria das crianças
também ficasse agarrada ao programa. Naquela noite, tinham ido todos
para dentro, deixando Lela e Vaska sozinhos no recreio. Lela não
consegue lembrar-se exatamente de como aconteceu. Recorda-se de
estarem a andar em direção ao pomar das pereiras. Lembra-se de se
despirem. Não doeu como tinha doído antes. Na verdade, até foi terno e
cuidadoso. Ele foi terno e cuidadoso… A única coisa de que ela não
gostou foi de sentir os ossos da pélvis dele. Beijaram-se nos lábios. Vaska
já sabia como usar a língua. Não disseram uma única palavra. Nem da
primeira vez, nem mais tarde, de todas as outras vezes sob as pereiras.
Lela não consegue lembrar-se exatamente de quando é que as coisas
mudaram nem da razão por que deixou de gostar de Vaska e começou a
dizer mal dele. E Vaska nunca lhe fez frente. Ainda agora, continua a
aceitar calmamente tudo o que ela lhe diz. Até sorri. Lela odeia aquele
sorriso. Está mortinha por se atirar a ele, lhe espetar um murro na cara e
acabar com aquele sorriso de lábios rosados. Vaska está sempre a sorrir.
Era diferente quando chegou à escola. Nessa altura, era mais falador.
Nunca se afastava dos outros, nunca ficava ao longe a olhar, como faz
agora. Não tinha aquele sorriso sempre espetado na cara que apareceu não
se sabe de onde, um sorriso ambíguo, ligeiramente desdenhoso, que nos
deixa a pensar se está a sorrir para si mesmo, ou a troçar de nós, ou se
realmente está sequer a sorrir.
– Porque é que estás aí parado, idiota? – diz Lela com brusquidão. –
Não podes dar uma ajuda à Dali?
Vaska olha para Lela com os seus olhos verdes-claros e aquele sorriso
na cara e diz qualquer coisa entredentes.
Lela dirige-se para o espaço onde dantes estava a varanda. Estão duas
crianças mesmo em cima da soleira e uma outra, Pako, de seis anos, um
recém-chegado atrevido, de calções pretos e T-shirt do Rato Mickey,
avançou para a viga de ferro como se fosse um pequeno equilibrista
sorridente na corda bamba.
– O que é que eu te disse? – grita Lela, de repente. – Disse-te para não
ires para aí! Espera até eu te pôr as mãos em cima!
Os dois miúdos fogem. Pako cambaleia, mas consegue recuperar o
equilíbrio abrindo os braços, e recua cuidadosamente pela viga estreita em
direção à ombreira da porta. Lela agarra-o pela camisola junto à parte de
trás do pescoço ainda antes de ele estar dentro do quarto e deixa-o
pendurado a balançar. O rosto de Pako fica enrugado e perde a cor. Ele
agita as pernas no ar.
– Achas que te devo soltar? Solto-te?
Lela dá-lhe um abanão. Pako estende desesperadamente os braços para
ela.
– Queres que te deixe cair? É isso que queres? Espalhares-te no chão
com o pescoço partido?
Lela puxa-o para dentro e liberta-o. Pako vai-se embora a correr como
um boneco de corda.
– Esperem até eu vos pôr as mãos em cima! – grita novamente Lela.
Irakli leva as crianças para fora do quarto. Vaska desapareceu. A última
criança, Stella, corre com umas pernas fraquinhas, arqueadas, o rabo
espetado, vestida apenas com umas leggings de lã grossa e uma camisola
de gola alta metida para dentro na cintura. Lela, Irakli e Dali ficam para
trás. Com a cabeleira em desalinho, Dali senta-se numa das camas,
amolgando as molas com o peso do corpo e quase caindo para o chão, a
esbracejar. Irakli agarra-lhe nas mãos e ajuda-a a empoleirar-se na beira da
cama. Ela solta um suspiro profundo.
– Irakli, descobre a Tiniko e pergunta-lhe se será possível ela emprestar-
me o cadeado que anda a prometer-me sei lá há quanto tempo, para
podermos pô-lo na maldita porta antes que um deles caia, porque só assim
é que servirá para alguma coisa…
Irakli sai a correr. Dali molha as mãos num balde de água da chuva e
refresca a testa.
– Não aguento mais isto – resmunga, e depois grita para Irakli: – Se
vires algum dos outros, diz-lhes para irem imediatamente para o
refeitório!
Lela fica na ombreira da porta sem porta e olha para baixo. Imagina-se a
empurrá-lo: Vano, o velho professor de História e atual vice-diretor.
Apanha-o de surpresa e empurra-o. Ele tropeça para trás na ombreira,
sente o vazio em baixo… Olha para Lela, com os olhos esbugalhados atrás
dos óculos, e não vê na expressão dela o menor sinal de preocupação por
ele estar a cair do último andar. E o rosto dele enruga-se, como o de Pako,
e olha fixamente, enquanto ela lhe diz com desprezo: «Morre, sacana de
merda!» Espatifa-se em cima do monte de bocados de cimento lá em
baixo e dá um último suspiro arranhado.
– Está aqui o cadeado – ouve Irakli dizer. Ela volta-se. Dali foi-se
embora.
– A Tiniko disse que a Dali devia trancar o quarto e dar-lhe a chave. Mas
este não serve, ela tirou-o da caixa do correio…
Lela pega no pequeno cadeado que Irakli trouxe.
– Isto não vai impedir ninguém de entrar – diz.
Mas acabam por sair do quarto. Lela fecha a porta, põe o pequeno
cadeado e dá a chave a Irakli. Depois testa o cadeado, empurrando a porta
com a mesma força que acha que Stella tem.
Percorrem o corredor lado a lado. Irakli dá-lhe pelos ombros. Lela
acende um cigarro. Stella sai a correr de um dos quartos com ar assustado,
sem fazer a menor ideia de para onde ir.
– Para o refeitório, já! – ordena Irakli, e Stella corre para lá.
Descem as escadas.
– Levas-me ao telefone? – pergunta Irakli.
– És mesmo idiota, não és? Esquece isso! Para de fazer figura de parvo!
– Mas ela disse que era esta semana. Juro por Deus!
Saem para o pátio. À frente do edifício há uma ampla zona asfaltada
onde, como é habitual, Avto, o professor de Educação Física, estacionou a
sua carrinha azul-clara. O resto do pátio é de terra e está coberto de
agulhas de abeto.
Vão para o refeitório, atalhando pelo pequeno espaço aberto entre o
dormitório principal e o edifício administrativo, no qual decorrem as aulas
e onde fica o gabinete de Tiniko, a diretora da escola. É um edifício de
dois andares, relativamente bem conservado, com janelas no sítio das
janelas e varandas que ainda não caíram.
Sergo, de dez anos, vem a sair com uma coisa qualquer de lã cor-de-rosa
tricotada debaixo do braço. Kolya aparece atrás dele, arrastando os pés e
balançando a cabeça. É difícil para qualquer pessoa adivinhar a idade de
Kolya; tanto pode ter dez anos como quinze.
Percebe-se que o Kolya é atrasado, pensa Lela. Às vezes dá para
perceber, outras não. Com o Sergo ou o Irakli não se percebe.
– Já para o refeitório! – grita Irakli. – Foi a Dali que mandou! Sergo!
Kolya!
Sergo ignora Irakli, mas Kolya hesita e depois segue em direção ao
refeitório.
– Aonde é que vais? – pergunta Lela a Sergo.
Ele passa por ela e dirige-se ao portão principal.
– Ao quiosque! – grita, sem se voltar.
– O que é que vais lá fazer?
– A Tiniko mandou-me devolver este vestido.
Tira a peça em tricô cor-de-rosa de baixo do braço com o floreado de
um mágico e, depois, volta-se para a mostrar a Lela, que olha para ele,
desconfiada. Sergo dá uma gargalhada.
– Não acreditas em mim? – Põe o vestido à frente do corpo. – Fica-me
mesmo bem, não achas?
– Acho. Tem cuidado para ninguém te raptar! – diz Lela a rir. E continua
a andar em direção ao refeitório.
Sergo fica parado um minuto, a dobrar pacientemente o vestido, e
depois sai pelo portão e atravessa a rua para ir ao quiosque de Zaira. Não é
a primeira vez que Tiniko devolve peças de roupa como aquela. A cunhada
de Zaira traz roupa barata da Turquia, e Zaira vende-a juntamente com
outras quinquilharias.
O cheiro a batatas fritas e cebola, misturado com um cheiro rançoso
qualquer, chega a Irakli e a Lela, à medida que se vão aproximando do
refeitório. Lela puxa uma última fumaça do cigarro, atira a beata para o
chão e depois volta-se, ao ouvir um baque abafado e os travões de um
carro a guincharem na rua. Espreita por entre os abetos. Irakli já vai a
correr para o portão. Tariel, um homem de meia-idade coxo, que anda com
um blusão velho de pele de carneiro faça o tempo que fizer, sai a
cambalear da portaria, tenta correr e cai. Lela ouve gritos. Corre para a
rua.
Emergindo da sombra do pátio rodeado de abetos, Lela é atingida pelo
calor intenso da rua. O sol do meio-dia projeta sombras esguias e trémulas
nos pés dos poucos que se aventuraram a sair. Perto deles está um carro,
meio dentro, meio fora da faixa de rodagem. Dele sai um homem
atordoado, trôpego e à pressa, deixando a porta aberta. Tariel e Irakli
correm atrás dele, e Lela segue-os. Vê Sergo atirado para a beira do
passeio, imóvel. Um outro carro para, a porta bate e alguém caminha
rapidamente sobre o alcatrão. Será que Sergo acabou de se mexer? As
pessoas estão todas a falar ao mesmo tempo: «Eu ia a guiar… Ele
apareceu a correr à minha frente… Sou médico… Chamem uma
ambulância…»
Tariel e Irakli tocam suavemente em Sergo.
– Sergo! – grita Irakli. – Serozha!
Voltam Sergo de costas. Está cheio de sangue.
– Serozha! – Lela toca-lhe ao de leve no ombro.
Um homem que ela não reconhece empurra-a à bruta, ajoelha-se junto
de Sergo, faz pressão com dois dedos sujos sobre o seu pescoço macio e
delicado e olha ao longe, imóvel. O homem cheira mal; a sua camisa
semiaberta revela uma barriga dilatada e rosada, inchada de tanta vodca.
Lela imagina que ele está a pressionar um punhal contra o pescoço de
Sergo para o impedir de contar um segredo. Sergo não se mexe. Não tem
medo do punhal, nem das pessoas que se amontoam à sua volta. O segredo
do homem está seguro com Sergo.
Zaira sai a correr do quiosque, batendo com os punhos na cabeça. Todos
têm perguntas: «Quem é ele?… Quem é que deixou esta criança sair?…
Que aconteceu?»
Tiniko está junto do portão da escola. Bem vestida como sempre,
enverga uma saia preta curta, sapatos de salto alto pretos de verniz e uma
blusa verde com folhos. Vem tão depressa quanto as suas pernas pesadas
conseguem carregá-la, um fio com uma pedra preciosa preta balança em
compasso com os seus seios, enquanto ela corre. Está branca como a cal.
Lela apanha fragmentos isolados das conversas: «… uma ambulância… é
necessário proceder a manobras de reanimação… ele apareceu do nada…
eu ia a guiar, e ele saiu a correr…» Tiniko olha para Sergo e para o sangue
no alcatrão. A diretora está com um ar desvairado, com uma expressão
angustiada. O vestido cor-de-rosa está caído na estrada, amachucado,
preso no pé de alguém, coberto de sangue.
Os homens examinam Sergo. Um diz que ele está a respirar, e uma brisa
sopra de um jardim próximo e, de certa forma, acalma a multidão. Lela
ouve um homem a dar indicações ao condutor da ambulância pelo
telefone.
Pouco a pouco, o passeio enche-se de pessoas, como se estivessem
escondidas algures, em qualquer lado daquela rua esquecida e tórrida, à
espera de que acontecesse algo do género para as fazer sair de casa. De
repente, uma mulher magra repara que Zaira está a desmaiar e pede água.
Zaira deixa-se cair no passeio e depois senta-se, curvada, com as pernas
abertas sem pudor à sua frente. Avto, o professor de Educação Física,
apoia-lhe as costas no seu ombro. Um homem grita aos mirones para se
afastarem, para que se possa respirar. Deitam Sergo em cima do casaco de
uma pessoa qualquer.
– Já chamámos uma ambulância – diz Tariel a Tiniko.
– Ai, meu Deus… – exclama Tiniko, terrivelmente pálida. – Como é que
ele está? É grave?
– É muito grave – responde Tariel, e volta para junto dos homens.
– Não se preocupe, minha senhora – diz calmamente um homem careca,
sem pescoço e com as faces muito coradas. – Não vale a pena entrar em
pânico, estão a cuidar dele. Vamos afastar-nos e dar-lhes espaço para
fazerem o seu trabalho. Quer que cuidemos primeiro da criança ou dela? –
Aponta com a cabeça para Zaira, que está a começar a recuperar os
sentidos, mas que continua deitada no passeio como um bêbedo.
O rosto e o pescoço de Tiniko estão tão vermelhos e manchados que
parece ter sarampo. Ela dá alguns passos em frente, inclina-se para pegar
no vestido e dobra-o rapidamente, certificando-se de que não suja as mãos
de sangue. Repara que Lela está a observá-la e vai rapidamente ter com
ela.
– Toma – diz, agarrando o braço de Lela. – Fica com isto, mas tem
cuidado! Vai num instante ao meu gabinete e põe-no na gaveta da
secretária. E não digas nada a ninguém, independentemente do que te
perguntarem, está bem?
Lela olha para o rosto suado de Tiniko. Pega no vestido e vai-se embora
a correr, como se correr pudesse, de alguma forma, salvar Sergo. Avança
apressada por entre os abetos do pátio quando vê Dali a sair do refeitório,
seguida por um magote de crianças, todas a correr o mais depressa que
conseguem. Dali parece um padre a conduzir o seu rebanho, até que as
crianças passam à sua frente, fazendo-a desaparecer engolida pela
multidão.
Lela entra no bloco administrativo. Ao contrário das portas do bloco dos
dormitórios, a porta do escritório de Tiniko tem painéis acolchoados de
couro macio. Lá dentro, Lela abre a gaveta da secretária. Vê uma grande
tablete de chocolate meio comida. Enfia o vestido ensanguentado lá dentro
e fecha a gaveta. As únicas coisas que estão em cima da secretária de
Tiniko são um pequeno ícone plastificado de São Jorge encostado ao
porta-lápis, um bloco de notas e um rebento de uma planta dentro de um
copo. O tampo da secretária está coberto por um vidro grosso, por baixo
do qual se encontram um calendário, uma fotografia a preto e branco de
Gregory Peck e fotografias tipo passe dos dois filhos de Tiniko.
*

Lela volta para a rua. A ambulância já levou Sergo, deixando apenas um


grupo de pessoas ali paradas, a conversar. O inspetor da polícia distrital,
Piruz, que tem olhos profundos e tristes e um rosto demasiado gentil para
um polícia, está afastado, a falar com o condutor do carro. Tiniko, Dali,
Tariel e alguns outros também lá estão, juntamente com um pequeno
grupo de jovens rapazes. Entre eles está Koba, da torre de apartamentos
vizinha, que tem uma cara magra, um nariz comprido e uma expressão
irritada. Também vê Lela, mas não dizem nada um ao outro. Algumas das
crianças da escola também ali se encontram e, pela primeira vez na vida,
estão a fazer exatamente o que Dali lhes diz, porque ela está a chorar.
Atravessam a rua atrás dela e desaparecem no pátio.
Os vizinhos estão a especular que Sergo foi atropelado pelo carro
quando saiu da escola à socapa para ir ao quiosque de Zaira comprar um
gelado e não olhou antes de atravessar a rua. Vaska ouve Tiniko a chorar
enquanto fala com os transeuntes. O seu sorriso desapareceu.
– Dizemos-lhes que não venham para aqui, estamos sempre a dizer-lhes
a mesma coisa – desabafa Tiniko –, mas não temos pessoal, já dissemos ao
Ministério… Como é que a Dali pode estar permanentemente de olho
neles?… Precisamos de mais gente! Todos conhecem a nossa situação,
mas não querem saber! Pode ser que agora finalmente nos deem mais
pessoal…
Nessa noite chega a notícia de que Sergo morreu.
*

Na manhã seguinte, toda a escola está estranhamente silenciosa. As


aulas são canceladas.
O corpo de Sergo vem do hospital e põem-no no ginásio, uma sala com
grades de ferro nas janelas situada no rés do chão do bloco administrativo.
Está praticamente vazio, há apenas uns espaldares fixos às paredes e
alguns equipamentos de desporto obsoletos. Qualquer palavra dita no
ginásio espalha-se como fumo até aos cantos vazios. As crianças estão
sentadas em bancos compridos e baixos encostados às paredes,
murmurando quase em silêncio entre si e olhando fixamente para o corpo
tapado de Sergo, depositado em cima da secretária de Avto.
Lá fora, estão o condutor e outros quatro homens. Ele tem um pescoço
curto, que dá a sensação de ser ainda mais curto devido ao seu enorme
duplo queixo, e uma veia saliente na testa. Quase parece que um dia pode
começar a inchar e explodir, como um pobre sapo para a boca do qual uma
criança sopra com uma palhinha.
Um pequeno grupo de mulheres do prédio vizinho observa os homens,
tentando descortinar qual deles é o assassino. Uma delas descobre-o e
fixa-o com um olhar penetrante. As outras mulheres também olham para
ele, com um certo respeito pelo facto de, apesar de ter atropelado Sergo,
ter integridade suficiente, coragem suficiente, para estar ali à vista de
todos.
– Ouvi dizer que não foi propriamente culpa dele – diz uma delas. – E
parece ser um tipo decente. Iam comprar um caixão de zinco barato, mas
ele quis que comprassem um de madeira! Também vai encarregar-se da
sepultura. Iam enterrá-lo numa vala comum, sem lápide, nada. Outra
pessoa podia nem sequer querer saber como é que ele estava! Quer dizer,
não se trata propriamente de um caso em que a polícia ou os pais do
miúdo se interessem por ele para virem pedir contas.
Há uma certa confusão entre o pessoal da escola, que partiu do princípio
de que o corpo de Sergo seria levado diretamente do hospital para o
cemitério. Vano e Tiniko entram no ginásio. Tiniko ainda está muito
nervosa, metendo as mãos nos bolsos da saia e tirando-as depois para
gesticular enquanto está a falar com Vano. Olha de relance, angustiada,
para a secretária de Avto, como se lá estivesse uma bomba-relógio em vez
do corpo de Sergo.
Lela está sentada ao pé das crianças mais pequenas. Stella encosta a cara
encardida e assustada ao braço de Lela e diz-lhe em silêncio algumas
palavras mal mexendo a boca.
– O Sergo está morto? – pergunta, de olhos esbugalhados.
Lela dá-lhe carinhosamente a mão e murmura:
– Sim, está.
Irakli, Vaska, Kolya e mais alguns estão empoleirados no banco, a tentar
a todo o custo ouvir o que Vano e Tiniko estão a dizer do outro lado do
ginásio. Tiniko olha de relance para as crianças, murmura qualquer coisa a
Vano e sai de rompante da sala. Vano diz a Avto para levar dali as
crianças.
– O padre está a caminho. Quando ele chegar, vamos para o cemitério –
informa, dirigindo-se para a porta.
Agitado como está, Vano, sem saber como, fica com uma bola de
basquete meio vazia entre os pés. Tenta pontapeá-la, mas não consegue e
quase cai. Levan, de onze anos, desata a rir à gargalhada. Vano chuta a
bola com raiva, olha para as crianças com cara de mau e afasta-se, com ar
de importante.
*

O padre Yakob chega à escola envergando a sua batina preta. Tem uma
barba negra comprida e uns olhos escuros gélidos. As crianças começam a
perguntar se Sergo irá para o inferno, se irá arder no fogo e se os
demónios irão chicoteá-lo e bater-lhe com bengalas e ferros quentes. Dali
faz o seu melhor para os tranquilizar, dizendo-lhes que o padre Yakob irá
realizar os rituais necessários para enviar a alma de Sergo para o céu.
O padre percorre a escola com Tiniko e Vano, abençoando os edifícios
ao fazer uma cruz em óleo sagrado por cima de cada porta. As crianças
vão atrás dele. Quando chegam ao bloco dos lavabos, o padre circunda o
edifício, benzendo-o com a graça de Deus e catando rebentos de vegetação
rasteira da bainha da batina enquanto continua a andar, como se estivesse
a resgatar criaturas minúsculas e abatidas, desesperadas pela salvação.
Depois da consagração do bloco dos lavabos, as crianças reúnem-se no
pátio para serem batizadas. Há um silêncio profundo. Mesmo os mais
novos sabem que aquela cerimónia irá salvá-los do fogo do inferno. De
uma só vez, Dali torna-se madrinha de todas as crianças que lá se
encontram. Parece aliviada, reanimada, feliz por assumir esta nova
responsabilidade. O padre Yakob distribui cruzes de madeira pelas
crianças, e elas começam a procurar pedaços de cordel para poderem
pendurá-las ao pescoço.
Além deles e de um punhado de vizinhos, mais ninguém vem ver o
corpo de Sergo.
*

Chega um carro com um pequeno caixão de madeira. Abate-se sobre a


escola um silêncio ainda mais sombrio. As crianças aglomeram-se à volta
dos portões. Lá fora, o homem que atropelou Sergo dá instruções ao
motorista.
– Estas crianças podem ser atrasadas, mas sabem exatamente o que está
a acontecer, percebe? – diz Venera, de braço dado com o filho. Goderdzi
tem quarenta anos e ainda é solteiro. Olha fixamente para as crianças com
uma expressão vazia, depois liberta o braço e vai ter com os homens.
Todas as crianças estão ali para verem Sergo ser colocado no caixão e
levado dali. Querem todas estar à frente para o ver pela última vez. Koba
aparece com duas pequenas cadeiras de sala de aula para nelas se pousar o
caixão de Sergo, permitindo-lhe assim alguns minutos finais no pátio da
casa da sua infância. O silêncio é apenas entrecortado pelos soluços
abafados de Dali. Sergo está no caixão estreito, com um fato feito
especialmente para a ocasião, os braços cruzados sobre o peito, um lenço
enfiado debaixo da sua minúscula mão sem vida, como se de repente
pudesse querer limpar uma lágrima. Se Sergo estivesse vivo, Levan estaria
certamente a contar piadas sobre o seu fato ou a sua pose tão artificial,
mas naquele momento até ele está em silêncio.
O inspetor da polícia leva a única coroa de flores para o autocarro. Os
homens põem o caixão aos ombros, como se não pesasse nada. Koba dá
um pontapé numa cadeira e depois na outra e, por um momento, as
cadeiras no chão parecem animais sacrificiais, abatidos em expiação pela
morte de Sergo.
Os professores e outros adultos começam a entrar no autocarro.
Tiniko volta-se para Lela.
– Vens?
Irakli parece colado a Lela.
– Vou – responde Lela –, mas as crianças também querem ir…
Tiniko fica a pensar por um momento e, depois, fala com Dali. Dali
observa as crianças e retira do grupo algumas das mais novas e menos
capazes. Faz sinal às restantes para que vão para o autocarro.
– Vão andando, mas fiquem quietos e calados e portem-se bem.
As crianças afastam-se, mais parecem viajantes excitados do que
amigos de luto.
No autocarro, Lela olha pela janela traseira. Dali está junto aos portões
com um pequeno grupo de crianças: Kolya, Stella, Pako e mais algumas.
Várias estão a chorar e a agarrar-se às pernas dela. O autocarro afasta-se
lentamente, lançando fumo preto do tubo de escape, e posiciona-se atrás
do carro que leva Sergo na sua viagem final. O carro vai devagar, como se
ele próprio fosse transportado por um homem em cada um dos quatro
cantos.
*

O autocarro para em frente do cemitério de Avchala. O Sol está a pôr-se.


Gulnara, a professora de Trabalhos Manuais, diz a Lela para ficar de
olho nas crianças, que estão numa longa fila, a balançar os braços para trás
e para a frente como alunos de uma escola soviética a treinar a marcha.
Começam a subir pelo caminho íngreme. Lela pergunta-se se só irão para
ali pessoas normais ou também atrasados mentais.
Os homens pousam o caixão ao lado da cova aberta. O padre murmura
algumas orações junto ao corpo de Sergo. Os professores parecem
abatidos. O cemitério, coberto de poeira, parece estar a arder com o calor
do sol.
Um pouco antes do cemitério há uma longa torre de apartamentos de
nove andares. A metade direita está quase completamente destruída. Só
restam as paredes exteriores, fazendo lembrar conchas vazias e
escurecidas. Lela consegue vislumbrar também o outro lado do edifício. À
primeira vista parece abandonado, mas depois vê que ainda há pessoas a
morar na outra metade: vê roupa estendida nas varandas, résteas de
cebolas e de alhos e pés de açafrão pendurados, collants velhos cheios de
avelãs sem casca para depois serem armazenados. E parece que todo o
edifício está a inclinar-se, como se estivesse a afundar-se lentamente no
chão sob o peso dos moradores que ainda restam.
O padre Yakob continua a rezar. O coveiro retira cuidadosamente a
mortalha da metade superior do corpo de Sergo. Lá está ele, no caixão,
com o seu casaco cinzento, os braços cruzados sobre o peito, os olhos
fechados, o rosto distendido, a pele escura e manchada. As crianças olham
fixamente para ele.
O padre termina as orações. O coveiro faz uma pausa para deixar as
pessoas despedir-se, mas Gulnara faz apenas um rápido aceno com a
cabeça e depois emite um gemido visceral quando o rosto de Sergo é
novamente tapado.
Embora Lela saiba que Sergo está morto, há uma parte dela que ainda
espera que ele proteste. Mas ele nada diz, nem quando a tampa é
novamente colocada no caixão, nem mesmo quando os torrões secos de
terra batem no tampo de madeira. Os professores e as crianças descem a
encosta, deixando Sergo com dois funcionários e um coveiro,
desconhecidos que entregam aquele corpo à terra, algures numa colina em
Avchala.
*

– Não olhes para trás! – grita Gulnara, agarrando-se à cerca de um


túmulo para não se desequilibrar.
– Porquê? – pergunta Irakli.
– Tradição – responde Gulnara, desequilibrando-se e escorregando pela
encosta íngreme. Avto está mais abaixo, com um braço forte e peludo
estendido para Gulnara se agarrar.
– Ouviram? Não olhem para trás! – grita Lela para a fila de crianças que
serpenteiam por entre as lápides.
– Porquê, Lela? – pergunta Irakli mais uma vez.
– Não sei ao certo o motivo – diz Lela, descendo um pequeno declive.
– Sim, isso mesmo – confirma Levan –, não se deve olhar para trás.
Depois de serem enterrados, temos de deixá-los em paz. E também nada
de choradeira.
*

O condutor do autocarro senta-se à sombra do bloco de apartamentos


meio destruído, fumando calmamente um cigarro enquanto espera o
regresso dos enlutados.
2

Lela não se lembra do primeiro dia em que chegou àquela escola. Não
sabe onde nasceu ou quem a deu à luz, nem sequer quem a abandonou ou
quem a levou para a Rua Kerch. Tiniko também não sabe nada sobre o
passado de Lela. Nada há que ela possa contar a Lela sobre os pais para
lhe dar algum conforto. A diretora já deve ter pegado umas cem vezes no
processo de Lela; a única certeza que tem é que a rapariga vivia no
orfanato perto das antigas oficinas de locomotivas e que, quando chegou à
idade de ir para a escola, a trouxeram para aqui. A biografia de Lela
resume-se a isto.
Às vezes, Lela tenta recordar-se do orfanato. Só se lembra de uma
mulher sentada ao piano, uma festa de Ano Novo, na sua cabeça um
chapéu em forma de cone feito de papel às pintinhas, com enfeites colados
e preso com um elástico grosso por baixo do queixo. Por vezes, interroga-
se se a mulher ao piano e o chapéu às pintinhas alguma vez existiram.
Sempre que Lela passa os portões da escola sente um cheiro familiar.
Quanto mais se aproxima do bloco dos dormitórios, mais forte se torna. É
como se conseguisse sentir a escola a puxá-la para dentro.
Em todos os andares, há casas de banho ao fundo do corredor. O vento
que entra pelas vidraças partidas transporta o mau cheiro para o interior do
edifício, fazendo com que todo o corredor se assemelhe a uma casa de
banho de uma estação de comboios. Os quartos, a sala da televisão e as
zonas de brincar têm o seu cheiro próprio, e não há ar fresco que possa
afastá-lo. É um cheiro a crianças sujas ou, às vezes, a roupas lavadas com
sabão; um cheiro a lençóis bafientos e a cobertores doados; um cheiro a
candeeiros de petróleo e, no inverno, um cheiro de madeira a arder nas
salamandras; um cheiro a cadeirões velhos e à fita-cola que tapa as rachas
nas janelas e aos vasos de malvas alinhados nos parapeitos. Lela conhece
cada um desses cheiros, apesar de, por vezes, todos eles desaparecerem
sob o fedor corrosivo das casas de banho. Quando Lela passa os portões e
entra, este mesmo cheiro desperta nela uma profunda sensação de tristeza.
E isso lembra-a da porteira, a mãe de Tariel. Era conhecida em todo o
bairro. Tresandava a couro molhado. Uma mulher trabalhadora e
resiliente, quando era nova, que começou a ficar com o corpo e a mente
frágeis no dia em que enviuvou e se vestiu de luto. Com o tempo,
esqueceu-se da casa, do filho e dos netos, e passou o resto dos seus dias a
deambular sem destino ao longo da vedação da escola. Lela lembra-se
dela sempre que chega à escola; depois, aos poucos, vai-se habituando ao
cheiro, e o fantasma da mulher volta para um canto profundo da sua
mente.
Há no recinto da escola um sítio em particular de que Lela gosta,
precisamente por causa do cheiro. O bloco dos dormitórios tem uma
escada de incêndio, uma escada de ferro em espiral fixada à parede
exterior, de frente para o bloco dos lavabos. No verão, o sol aquece o
metal ferrugento e liberta um cheiro estranho e adocicado. Lela desde
pequena que adorava subir essa escada, apesar de a espiral a deixar tonta,
a subir e rodar, subir e rodar, até ao último andar.
Embora esteja no exterior, ao ar livre, a escada tem sempre o mesmo
cheiro. Lela passa a mão pelo corrimão enquanto sobe e, quando chega ao
cimo, encosta a palma da mão ao nariz e confirma que o cheiro continua
igual. A escada acaba num pequeno patamar do qual se vê todo o recreio.
Se Lela se debruçar na grade de proteção, quase consegue agarrar os
ramos dos abetos altos que crescem ali perto. Passou muitas horas ali,
naquela escada. Sempre que a sobe, finge que ela vai dar a outro lado
qualquer, só para a fantasia lhe ser atirada à cara quando dá com a parede
sem porta e sem saída lá no cimo.
Quando chove o suficiente para lavar a escada, as gotas de chuva
emitem um som distinto ao baterem no ferro queimado pelo sol antes de
fazerem ricochete. Quando Lela fica a ver a chuva a cair, imagina a mãe
de Tariel, parada junto à cerca, encharcada até aos ossos, à espera de que o
céu fique limpo para poder pôr a sua roupa de luto a secar.
O bloco dos lavabos cheira a sabão, detergente em pó e paredes
húmidas, cobertas de bolor; e, se alguém apanhar piolhos, cheira a DDT
em pó, que deixa os olhos a chorar. Lela toma o seu duche no princípio da
semana. Vai sozinha, depois de a roupa estar lavada e todas as crianças
terem tomado banho. Quando cobre o corpo acabado de lavar com a roupa
suja, tem a sensação de que está a meter-se numa pele velha, mas familiar.
O fedor a ranço dos enormes fogões a gás cobertos de gordura alastra
por todo o refeitório, um cheiro incessante que varia apenas de acordo
com a ementa desse dia: papas de aveia, sopa de beterraba, batata frita
com cebola, ou talvez aquilo a que eles chamam «costeletas falsas», feitas
de pão duro, batata e ervas aromáticas.
O bloco administrativo não cheira a nada, a não ser que se considere o
odor intenso a couro das portas forradas, o cheiro ocasional de uma
criança por lavar a caminho da sala de aula e a sugestão do perfume de
Tiniko. Em algumas das portas, os painéis de couro foram cortados,
deixando à mostra uma espuma amarela suave que as crianças foram
arrancando às mãos-cheias para as suas brincadeiras.
A portaria cheira a Tariel. A que mais podia cheirar aquele espaço
minúsculo? Está impregnado das suas roupas mofentas, de bolas de
naftalina, do fumo da papirosa que ele fuma e do seu jantar.
*

Entre o bloco dos lavabos e o dos dormitórios, há um enorme terreno


ocupado por um pomar onde predominam pequenas pereiras. Todas as
árvores, quer as mais velhas, quer as mais novas, estão bastante espaçadas
umas em relação às outras. Dão peras todos os anos, sem falhar, mas
ninguém se aproxima delas, pois aquele lindo campo verdejante está
sempre atolado de água. Se é água proveniente de um velho cano partido
ou de uma qualquer nascente subterrânea, ninguém sabe. À primeira vista,
essa água que ensopa o solo quase não se vê. O campo parece tão sedutor,
especialmente para os recém-chegados à escola, que correm para lá e
depois abrandam involuntariamente, sentindo-se ameaçados, à medida que
os seus pés se vão afundando no terreno encharcado. E as pereiras ali
permanecem, com os seus troncos nodosos e o emaranhado de ramos
baixos, sozinhas e abandonadas, e todas as primaveras dão peras verdes
grandes e lustrosas em que ninguém toca. As peras raramente amadurecem
antes de o tempo ficar frio e, por isso, são duras como pedras; as que
chegam a amadurecer nunca ficam doces, mas antes com o estranho sabor
das águas subterrâneas que se infiltra nos frutos. Se subir a escada em
caracol transporta Lela para um mundo de fantasia, correr pelo campo das
pereiras enche-a de terror pelo medo de não conseguir atravessá-lo,
imaginando os ramos a agarrarem-na, a atirarem-na ao chão, a
empurrarem o seu corpo contra o solo pantanoso macio, com as raízes a
serpentearem à sua volta e a engolirem-na para sempre.
*

No dia a seguir ao enterro de Sergo, Tiniko chama Lela ao seu gabinete.


Oferece-lhe um bocado de chocolate. Lela recusa. Tiniko agradece-lhe
calorosamente o seu apoio num momento tão difícil. E começa a falar
sobre um assunto qualquer, alongando-se e usando palavras como
«perspetivas», «futuro» e «aspirações».
A escola é oficialmente responsável pelos cuidados e educação das
crianças sem família em idade escolar. Passados nove anos, espera-se que
as crianças deixem a escola e iniciem uma nova vida. Na era comunista,
existiam escolas profissionais e técnicas e esquemas de emprego que eram
legalmente obrigados a aceitar estas crianças. Até lhes eram dados
apartamentos para viverem. Mas isso foi noutro tempo e, hoje em dia, toda
a gente precisa de uma casa: no topo da lista estão os refugiados da
Abecásia, aldeões que vieram para a cidade à procura de uma vida melhor,
famílias grandes amontoadas em uma ou duas divisões; até os ricos
querem apartamentos, para si próprios, para os seus filhos, para as suas
empresas…
Há três anos que Lela terminou a escola, mas não sabe para que sítio há
de ir. O pessoal da escola, honra lhe seja feita, não a pressiona a sair;
nunca ninguém é forçado a ir-se embora. Não há esperança de ela
conseguir um emprego. Pensando bem, como diz Tiniko, se as pessoas
normais não conseguem arranjar trabalho, que hipóteses tem uma rapariga
recém-saída de uma escola para crianças com deficiências intelectuais?
Lela é a única que preferiu ficar. Os seus pares partiram todos para
seguirem o seu próprio caminho no mundo. Alguns nem sequer esperaram
até acabarem a escola. Uns quantos foram para a cidade e começaram a
mendigar. Um ou dois arranjaram trabalho, talvez a transportar
mercadorias para a feira da ladra ou a carregar produtos para o mercado.
Alguns casaram-se. Outros simplesmente desapareceram.
Tiniko oferece a Lela um emprego de vigia dos carros dos vizinhos,
trabalhando junto aos portões. Alguns dos vizinhos deixam durante a noite
os carros no grande pátio em frente da escola. Tiniko cobra uma taxa
mensal modesta; para alguns, a despesa justifica-se se isso significar não
chegarem de manhã e darem pela falta dos espelhos ou dos pneus, o rádio
ter sido roubado ou, ainda pior, não terem lá o carro. Tiniko confia em
Lela e acha que ela vai fazer um trabalho melhor do que Tariel. Receberá
uma parte do dinheiro que cobrar aos vizinhos e dará o resto a Tiniko para
a alimentação e o alojamento.
Lela aceita. Tariel sai da portaria a coxear, com um ar amargo, levando
consigo os seus poucos pertences para que ela possa mudar-se para lá.
Com a ajuda de Irakli, Lela traz um divã do dormitório, juntamente com
um copo da cozinha, duas mudas de roupa e um punhado de outros artigos
que dispõe sobre a pequena mesa. Há um espelho na parede. Lela pega na
cruz que o padre Yakob lhe deu e prende-a à moldura.
Tariel não quer desistir do seu trabalho. Passou uns bons invernos na
portaria. A sua mulher, Narcissa, tinha de encolher as ancas para passar
pela porta estreita e lhe levar diariamente as refeições. De vez em quando,
o filho de Tariel, Gubaz, substituía-o. Com trinta anos de idade e ainda
solteiro, um filho único amado, Gubaz foi fazer o serviço militar e
enlouqueceu de imediato. Os pais internaram-no no hospital; os
psiquiatras «curaram-no» e mandaram-no para casa. Agora vagueia, com
um casaco preto comprido e o cabelo todo despenteado, falando sozinho.
Por vezes, se as pessoas ouvirem com atenção suficiente, diz coisas com
sentido. Anda para cima e para baixo, a discutir ao vento, que leva as suas
palavras mas não traz respostas. Tudo isto tem tido o seu peso em Tariel e
Narcissa. O seu único filho – que nunca roubou, sempre fez o que lhe
disseram, era excelente a matemática e sabia como falar com as raparigas
– sai para se alistar no exército e volta depois de passar pelo manicómio,
transformado, atormentado. Como não consegue suportar o seu próprio
reflexo, ele evita os espelhos. A sua mãe retirou o que estava na parede da
casa de banho e agora, quando Tariel quer fazer a barba, tem de tirar o
pedaço de vidro espelhado que está escondido debaixo da banheira,
encosta-o ao frasco de champô de Narcissa e é assim que faz a barba, ou
então leva a navalha e a taça para a portaria e faz a barba com o espelho
que lá está.
E, portanto, Tariel sai do recinto escolar a coxear, desconsolado mas
convencido de que não vale a pena protestar. Limita-se a abrir os portões,
sai e regressa a casa, onde Narcissa e Gubaz o esperam.
Entretanto, Lela despede-se do edifício de cinco andares dos
dormitórios e do quarto a que chamou casa nos últimos anos. O único
motivo que, a partir de agora, ela terá para ir ao edifício principal será usar
a casa de banho.
Entra na portaria, senta-se na cama e acende um cigarro. Tariel deixou
um grande cinzeiro de vidro lapidado sobre a mesa. Lela sacode nele a
cinza. É uma sensação estranhamente satisfatória. Irakli entra e senta-se na
cama ao seu lado. Lela dá-lhe o resto do cigarro.
Irakli tem nove anos e vive na escola há um. Não se lembra do pai. Foi a
mãe que o trouxe para cá. Primeiro, pô-lo num orfanato no centro da
Geórgia e ficou em Tbilisi a trabalhar. Manteve-se em contacto, embora de
forma irregular. Era difícil para ela conseguir faltar ao trabalho para o ir
visitar. Então, há um ano, trouxe-o para Tbilisi. Ele ficaria na escola de
segunda a sexta e passaria os fins de semana com ela. Mas os fins de
semana foram passando e Irakli nunca foi a casa. Quando ele chegou à
escola, Tiniko pediu a Lela que tomasse conta dele. Parecia bastante feliz,
seguindo-a enquanto ela lhe mostrava os cantos à casa, e Lela achou que
ele era esperto e tinha sempre a resposta na ponta da língua. Em geral,
Lela sentia-se mais próxima das crianças que eram mais ou menos
«normais». Também ajudava as crianças deficientes quando era preciso,
mas não se deixava envolver.
*

Quando Lela e Irakli saem da portaria, veem Vaska e Kolya sentados no


banco sob os abetos.
– Vou sair – diz Lela a Kolya. – Importas-te de abrir os portões, se
alguém precisar de entrar com o carro?
Kolya anui com a cabeça. Lela tem a sensação de ver o sorriso de Vaska
aumentar, sem dúvida porque ela decidiu pedir a Kolya, embora ele nem
sequer consiga andar como deve ser, e ambos saibam que Vaska tem muito
mais jeito para os portões.
Lela e Irakli vão até ao bloco de apartamentos ao lado. É quase igual ao
bloco do dormitório: um edifício branco de cinco andares, rodeado de
espaços verdes onde se encontram agora algumas garagens. Foram os
moradores deste prédio que puseram ao Colégio Interno para Crianças
com Deficiência Intelectual a alcunha de Escola dos Idiotas. Ambos os
edifícios foram construídos no tempo de Khrushchev: um foi destinado à
habitação, o outro foi designado como edifício de apoio, tendo sido
ocupado pela escola.
Vão até ao último andar e tocam à campainha de uma das portas. É
Mzia quem abre.
– Desculpe incomodá-la. Podemos usar o telefone só por um minuto? –
pergunta Lela.
– Entrem, entrem! – diz Mzia, apontando-lhes o hall de entrada.
O apartamento está imaculado e cheira a comida acabada de fazer. Mzia
vai buscar um pequeno banco para Irakli, e Lela empoleira-se no aparador
ao lado do telefone. Eles já ali estiveram antes. Mzia tem o cuidado de
fechar as portas que dão para o corredor para lhes dar alguma privacidade.
Irakli põe o indicador em cada um dos buracos e roda o disco com
firmeza. A filha de Mzia aparece no hall e fica a olhar fixamente para eles.
A menina, com uns sete ou oito anos, tem uma barriga gorducha, umas
maminhas de pré-adolescente e um sinal com pelos na cara que lembra a
Lela um besouro peludo, embora ela nunca tenha visto nenhum.
– A quem é que estás a telefonar? – pergunta a menina a Irakli.
– À minha mãe – responde Irakli, sem levantar os olhos, e marca
novamente o número.
A menina fica algum tempo no hall, até se fartar, e depois torna a meter-
se na cozinha. Irakli disca mais uma vez o número. Desta vez, consegue
que o atendam.
– Está lá?
– Sou eu, mamã.
– Irakli! Estás bom? – diz a mulher, que parece ter sido apanhada de
surpresa. – Ainda não consegui voltar para casa, Ika. Tem acontecido tanta
coisa… Arranjei um trabalho, mas… Bem, tenho de arranjar outro
qualquer. E tu, como é que estás?
– Estou bem. Quando é que voltas?
Irakli fala secamente, agarrando o auscultador com uma mão e apoiando
o outro cotovelo no joelho.
– Na semana que vem. Já te tinha dito, lembras-te?
– Na próxima semana, é isso?
– Sim, não te lembras de eu te ter dito?
Irakli hesita.
– Sim, lembro-me – diz. – Mas pensava que estavas a falar desta
semana.
– De onde é que estás a ligar?
– Estou em casa de uns vizinhos.
– Como é que tens passado? Continuas a ter dores de cabeça?
– Não. – Silêncio. – Lembras-te do Sergo?
– Que Sergo?
– Da escola. Morreu.
– Oh, meu Deus! O que é que aconteceu?
– Foi atropelado por um carro.
– Meu Deus, coitadinho. Que horror. Como é que isso aconteceu?
– Saiu lá para fora, e ia a andar na rua.
– Oh, pobrezinho…
Mais silêncio. Lela observa a pele pálida, quase transparente, de Irakli, a
sua testa franzida e o olhar desanimado.
– Tens prestado atenção aos teus professores e feito o que te mandam?
– Tenho.
– Muito bem… Ouve, Irakli, tenho de desligar. Tenho de ir trabalhar.
– Está bem.
– Porta-te bem. Obedece aos teus professores. E não vás para a rua,
ouviste?
– Está bem.
Lela ouve o estalido quando a mãe de Irakli pousa o auscultador. Irakli
faz o mesmo logo a seguir.
– Vamos? – diz Lela, e põe-se de pé.
– ‘Bora – diz Irakli.
Quando vão a sair, Mzia aparece e dá a cada um deles duas fatias de
lobiani1 embrulhadas em papel de jornal, para que o recheio quente de
feijão vermelho não lhes queime os dedos. Descem a escada em silêncio.
Perderam o apetite.
Lá fora, está um dia quente e soalheiro. O filho de Venera, Goderdzi,
está a lavar o carro à frente da entrada, enchendo o pátio de água.
– Então, ela disse nesta semana ou na próxima, ou não se lembra? –
pergunta Lela, saltando sobre o riacho de água com sabão.
Irakli salta a seguir a ela.
– Não sei.
*

No regresso, cruzam-se com Marika. Tem apenas mais alguns meses do


que Lela, embora a diferença de idades parecesse muito maior quando
eram pequenas. Por volta dos seis anos, Marika brincava com Lela. Havia
uma brincadeira em particular, em que Marika tirava as cuecas a Lela e, a
seguir, as suas próprias cuecas. Deitavam-se ao lado uma da outra. Marika
punha a mão entre as pernas de Lela e pedia a Lela para fazer o mesmo.
Lela gostava quando Marika lhe tocava assim. Não gostava de lhe fazer o
mesmo, mas fazia-o, apesar de ficar com um cheiro estranho na mão.
Marika dizia-lhe para fechar os olhos e dormir, e ficavam ali deitadas em
silêncio, bastante acordadas, até ela decidir que eram horas de se
levantarem outra vez. Marika não tinha pai e tinha um medo anormal da
mãe.
Quando já eram mais velhas, Marika alterou as regras. Um dia, levou
Lela para a cave e deixou-a olhar por entre as suas pernas. Lela viu lá uma
coisa estranha a crescer. Parecia a crista de um galo e a pele à volta dessa
coisa, dantes lisa e carnuda, estava agora coberta por pelos pretos grossos.
Lela pensou que tinha descoberto um terceiro sexo. Então, puxou também
as cuecas para baixo e tentaram juntar-se. Ficaram assim durante algum
tempo, sem conseguirem encaixar-se bem. Marika avisou Lela para não
contar a ninguém sobre o que tinham feito, apesar de não terem feito nada
de mal, e de as raparigas da sua turma jogarem ao mesmo jogo. Alguns
meses mais tarde, quando o seu próprio corpo começou a mudar, Lela
percebeu que afinal não havia um terceiro sexo.
Depois a brincadeira parou. Aliás, tudo parou. Marika deixou de brincar
com Lela e até de ir para o pátio. Lela pensou que Marika deve ter
finalmente percebido que não devia brincar com crianças atrasadas.
Agora, cruzam-se de vez em quando no pátio ou na rua e cumprimentam-
se sempre. Por vezes, quando Lela vê Marika por aí a passear como se
fosse uma mulher adulta, com o cabelo bem arranjado como as outras
raparigas que têm casas e pais, pergunta-se a si própria se aconteceu
realmente alguma coisa ou foi ela que inventou tudo na sua cabeça.
Marika está a dirigir-se para eles.
– Aonde vais? – pergunta Lela.
– Tenho uma aula de Inglês – diz Marika, com um sorriso caloroso.
Os seus cabelos ruivos dançam-lhe sobre os ombros enquanto caminha.
Segue rua abaixo.
*

Lela começa a comer o seu lobiani. Irakli também dá uma grande


dentada na sua fatia.
– Então, agora a sério: o que é que ela disse? – pergunta Lela.
– Diz que vem na próxima semana. E que já me tinha dito isso.
Lela sacode um pedaço de jornal do seu lobiani, como se fosse um
inseto, e continua a comer.
– Porque é que continuas a defendê-la? Sabes que ela não vai voltar,
mas continuas a telefonar-lhe e a fazer figura de parvo.
Irakli dá mais uma dentada.
– Quer dizer, é contigo – diz Lela. – Mas, se fosse eu, não ligaria mais
nenhuma vez.
Fazem um desvio para comprar tabaco. Zaira está doente e o seu
quiosque fechado, por isso dirigem-se aos quiosques que ficam mais
acima naquela rua.
O Sol está alto, iluminando tudo com uma luz branca e brilhante. Uma
brisa suave sopra através dos ramos, acariciando as folhas e projetando
sombras alongadas que dançam preguiçosamente no alcatrão. É como se
toda a gente tivesse feito as malas e partido. Tirando um ou outro carro ou
marshrutka2, que desce pela estrada levantando nuvens de pó, a rua está
deserta.
Param num quiosque degradado que apenas vende querosene, fósforos e
cigarros. Está aberto, mas não há sinal do proprietário. Um homem de
calças de fato de treino e chinelos de enfiar o dedo, que está sentado ali
perto, levanta-se e vagueia pelo pátio atrás do quiosque. Aparece
momentos mais tarde com uma mulher idosa, corcunda mas de aspeto
ágil, presumivelmente a mãe, que entra no minúsculo quiosque. Lela
pede-lhe alguns cigarros e paga.
*

Nessa noite, um carro para junto dos portões. Lela sai e vê Koba sentado
ao volante daquele carro impecavelmente limpo. Ele abre a janela e olha
para Lela, que já está ao pé dos portões. Parece diferente. Qualquer sinal
de timidez ou reserva que tenha mostrado quando Sergo foi atropelado
desapareceu.
Olha Lela de cima a baixo.
– Estás boa? – pergunta-lhe.
– Estou.
– Onde está o Tariel?
– Já não trabalha aqui. Agora sou eu.
– Ah sim? Ainda bem para ti.
Lela espera que ele entre para poder fechar os portões, mas ele não
parece ter pressa.
– Então, quando é que posso levar-te a dar uma volta?
– Não sei. Estou ocupada.
– Uau! Estás sempre ocupada?
Koba abana a cabeça e dá uma gargalhada forçada. Entra com o carro. O
pátio está vazio, à exceção de um cão escanzelado que dá um único latido
rouco e, a seguir, desfalece sobre a terra compacta por baixo de um abeto.
Lela volta para a portaria. Koba estaciona, apaga os faróis e desliga o
carro. Sai e atravessa o pátio banhado pelo luar em direção à saída. Vai até
à portaria, bate na janela e depois abre imediatamente a porta. Vê Lela
sentada na cama, a fumar um cigarro.
– Não estou a pedir-te que o faças de graça. Eu pago-te. Quanto é que
queres?
Lela não diz nada. Koba fica na ombreira da porta, numa pose de
cowboy, mas, com a sua estatura esquelética, uma camisa com palmeiras
vermelhas e umas calças de ganga, parece mais um turista de outra
república soviética que veio parar a Tbilisi por engano.
– Que foi? Não gostaste da última vez? – pergunta Koba, com aquele
seu sorriso estranho e torto que se habituou a fazer para esconder os
dentes podres da frente. Às vezes, é apanhado desprevenido e faz um
sorriso rasgado, e depois lembra-se e torna a apertar rapidamente os
lábios.
– Então, que achas? Levo-te a dar uma volta e depois trago-te. E pago-
te. Não estou à espera de que faças nada de graça. Não sou desses.
– Não? – reage Lela. – Então, és como?
Koba parece ligeiramente confuso. Muda de atitude e faz um sorriso
rígido.
– Pelo menos, pensa nisso – diz e vai-se embora.
Lela fecha a porta, puxa uma fumaça do cigarro e exala, vendo o fumo
espalhar-se e desaparecer, juntamente com o eco dos passos de Koba.
*

Passa-se uma semana e mais alguns dias, e continua a não haver sinal da
mãe de Irakli.
Lela leva novamente Irakli ao bloco de apartamentos ao lado da escola.
Veem Goderdzi deitado debaixo do carro a arranjar qualquer coisa,
rodeado por um grupo de jovens de pé, a observá-lo. Koba também lá está.
Ao virar-se no chão, Goderdzi parece uma espécie de animal peludo: a T-
shirt ficou puxada para cima, deixando à mostra uma barriga coberta de
grossos pelos encaracolados que crescem em todas as direções. Koba não
cumprimenta Lela. Aliás, finge que nem a vê.
Mzia abre a porta. Está, como sempre, a sorrir. Uma agradável brisa
primaveril entra pelas janelas abertas e faz o cortinado atrás da porta
esvoaçar desenfreadamente.
Sentam-se como da outra vez: Irakli no banco e Lela no aparador.
Irakli marca o número. Do outro lado, o telefone toca, mas ninguém
atende, e Irakli decide então telefonar a uma vizinha. É um homem que
atende.
– Posso falar com a Inga, por favor? – pergunta Irakli.
Há um longo silêncio, até que uma mulher vem ao telefone. Não parece
ser a mãe de Irakli.
– Quem fala?
– É o Irakli, o filho da Inga.
– Ah, olá, Irakli. Como é que estás, querido? Sou a Nana Ivlita.
Lembras-te de mim?
– Lembro.
– A tua mãe não está aqui, Irakli. Está na Grécia. Mas pediu-me que te
dissesse que vai voltar. Virá buscar-te para viveres lá com ela.
A mulher está a gritar tanto que Lela acha que ela se deve ter esquecido
de que tem ali o telefone e por isso está a tentar fazer-se ouvir sem ele.
Irakli fica um momento sem dizer nada.
– Quando é que ela volta?
– Disse que ainda não sabe. Primeiro, tem de arranjar trabalho,
percebes? Mas como é que estás, querido?
– Estou bem.
Irakli continua sentado, curvado, com uma mão a agarrar o auscultador
e a outra fechada sobre o joelho. Lela fita os olhos desanimados de Irakli e
fica impressionada – pela milionésima vez – pela curva com que as suas
compridas pestanas terminam.
– Que é que eu digo à Inga quando ela ligar, querido? Queres que lhe dê
algum recado?
Irakli fica a pensar por algum tempo.
– Pergunte-lhe quando é que ela vem.
– Está bem. Fica combinado.
– OK.
– Fica bem, Irakli, e tenta não te preocupares. Adeus.
Irakli pousa o auscultador.
– Estás despachado? – pergunta Lela.
– Sim.
Quando vão a sair, Mzia sorri para eles e mete-lhes uns rebuçados de
amora nos bolsos.
Caminham em silêncio, até Irakli perguntar, de repente:
– Achas que ela se foi mesmo embora?
Lela tira o papel a um dos rebuçados.
– Talvez – responde, extraindo o rebuçado pegajoso do papel com os
dentes. Oferece o outro a Irakli. – Prova um. São mesmo bons.
– Tenho os meus – contrapõe Irakli.
Continuam a andar. Irakli vai de olhos fixos no chão. As suas orelhas
pálidas parecem folhas diáfanas com nervuras vermelhas contra o brilho
do pôr do Sol.

1 Pão tradicional georgiano com recheio de feijão. [N. da T.]

2 Táxi partilhado, forma de transporte público. A Geórgia tem um sistema de marshrutka bem
desenvolvido, com carreiras e estações próprias. [N. da T.]
3

Não há «Heróis da Rua Kerch». Pelo menos, ainda não. Fora precisos
trinta e um anos para a cidade de Kerch receber o seu primeiro título.
Talvez um dia o título também seja dado a uma criança desta escola que
cheira mal e está a cair aos bocados. Se esse dia alguma vez chegar, não
há dúvidas sobre quem serão os primeiros heróis da escola: Kirile e Ira.
Eles foram-se embora há alguns anos – primeiro Kirile, e Ira cinco anos
depois – e, quanto mais tempo passa, mais difícil é acreditar que pessoas
tão dotadas e com tanto sucesso alguma vez tenham ali vivido. Lela e os
outros ficaram a saber tudo sobre eles através dos professores.
Kirile não cortou logo os laços com a escola. Lela ainda eram miúda
quando ele saiu, mas lembra-se de ele lá ir de visita. Era um rapaz russo,
alto, magro e desleixado, de cabelo loiro, com uma voz calma e um andar
vagaroso. Usava calças à boca de sino e, ao longe, lembrava a Lela um
dos Músicos da Cidade de Bremen dos antigos desenhos animados
soviéticos. Ela não conseguia tirar a imagem da cabeça: Kirile a andar
pela estrada, curvado, a balançar os braços, com um saco numa mão.
Parecia um velho cansado a regressar a casa do trabalho. As crianças
corriam ao seu encontro, quer o conhecessem, quer não. Kirile sorria,
dizia olá, tirava rebuçados do saco e distribuía-os. Dali olhava com
lágrimas nos olhos e um sorriso luminoso, transbordando de orgulho ao
ver o homem bom e íntegro em que ele se tinha transformado. O que
distinguia Kirile era o facto de ter acabado a escola com distinção, ter ido
para a universidade e depois ter arranjado um emprego. Embora vivesse
aquela escola, era tão bom aluno que o mandaram depois para uma escola
«normal», onde os resultados dos seus exames lhe valeram uma medalha
de ouro. Quando Kirile os visitava, nunca ficava mais de uma hora. Tinha
a expressão cansada e triste de um homem que carrega um fardo pesado
aos ombros. Era evidente que a sua vida estava cheia de preocupações e
angústias.
Depois, como muitos outros, Kirile desapareceu sem deixar rasto. Uns
diziam que tinha ido para a Rússia, outros que fora assassinado. Ninguém
sabia ao certo. Aos poucos, o mito de Kirile foi esquecido para sempre; ao
fim de pouco tempo, até Dali deixou de falar nele.
O segundo herói seria, sem dúvida, Ira, uma menina loira filha de pai
georgiano e mãe russa. O pai deixou a mãe, e a mãe, por sua vez, deixou
os filhos. Ira conseguia dizer de cor em que escola interna ou orfanato
cada um dos seus muitos irmãos e irmãs se encontrava. Era encantadora e
elegante, o tipo de rapariga que podia ir até ao pátio ao lado sem que
ninguém suspeitasse de que estava ligada à Escola dos Idiotas. Tal como
Kirile, acabou a escola com distinção e, mais tarde, foi para a universidade
estudar Direito. Mas o heroísmo de Ira foi mais longe. Pôs a própria mãe
em tribunal para privá-la dos seus direitos parentais e, milagrosamente,
ganhou o processo. Ficou com a custódia da irmã mais nova, com que a
mãe por alguma razão tinha decidido ficar, e criou-a ela. Dali adorava a
história de Ira. Sempre que se lembrava dela, os olhos enchiam-se-lhe de
lágrimas.
Lela lembra-se bem de Ira. A antiga aluna acabou por casar-se e cortou o
cabelo curto, mas, mesmo assim, ainda os visitava de vez em quando. E
vinha tão feliz e encantadora como sempre. Quando chegava, ia logo a
correr para o recreio para jogar futebol com as crianças, fazendo boas
defesas e correndo depois para a baliza com a sua saia curta de cabedal e o
seu top minúsculo, a rir às gargalhadas, sem nada no mundo que a
preocupasse.
Até agora, Kirile e Ira são os únicos futuros heróis que a escola
produziu. As crianças sempre acharam as suas histórias fascinantes. Como
é que Kirile e Ira tinham conseguido acabar a escola, perguntavam-se, se
eram atrasados como eles? Como é que tinham conseguido aprender? Os
professores diziam-lhes que algumas das crianças da escola – como Kolya
e Stella – não eram atrasadas, mas que viviam ali porque os orfanatos
estavam cheios ou por causa das excelentes instalações da escola, como o
seu grande pátio e o recreio, e a qualidade do pessoal docente.
Existem, porém, outros que talvez nunca sejam considerados heróis,
mas que ainda assim ficaram para a história da escola.
Lela lembra-se de Marcel, um rapaz negro de quinze anos originário da
cidade costeira de Batumi, um potro selvagem, indomável, com um
temperamento explosivo. Ninguém parecia saber como é que ele tinha
acabado em Tbilissi. Para os habitantes locais, que nunca tinham visto um
negro a não ser na televisão, Marcel era como um quadro exposto num
museu. Chegavam a vir de Gldani para olharem para ele através da
vedação da escola e gritavam: «Anda cá, ó escuro!» Marcel baixava-se,
apanhava uma mão-cheia de gravilha e atirava para eles, ou encostava-se à
vedação como um animal enjaulado, a arranhar, a uivar e a cuspir.
Marcel intrigava Lela. Não prestava atenção aos professores e fazia o
que queria. Só falou com Lela três vezes, mas em todas elas estava calmo
e explicava-se bem.
Da primeira vez, Marcel foi ter com ela ao refeitório e perguntou-lhe se
as cozinheiras punham moscas mortas na comida. Da segunda, estavam no
pátio e ele fez-lhe perguntas sobre carreiras de autocarros. A terceira vez
foi à noite. Lela não conseguia dormir e, então, desceu até ao pátio para
fumar. A princípio, por entre a escuridão, não reparou nele. Depois Marcel
assobiou, e ela viu-o sentado no banco sob os abetos. Acenou-lhe para que
fosse ter com ele e depois pediu-lhe um cigarro.
Ela sentou-se no banco ao seu lado. Fumaram em silêncio. Marcel
puxava fumaças longas e profundas. Quando acabou, Lela ofereceu-lhe
outro cigarro. Ele aceitou, levantou-se e foi-se embora, depois voltou atrás
para perguntar a Lela:
– O mar é perto daqui?
– Não – respondeu Lela.
Deu outra vez meia-volta e foi-se embora, e a conversa ficou por aí.
Passados alguns dias, levaram Marcel. Lela nunca soube para onde nem
porquê.
Houve também Aksana, uma rapariga bonita e sorridente de cabelo
louro e olhos azuis que, ao contrário das outras raparigas da escola, se
recusava a vestir-se como uma maria-rapaz. Em vez disso, usava saias
justas e vestidos leves. Desaparecia constantemente com jovens do bairro
e voltava com os bolsos cheios de doces e bugigangas. Se o nome de
Aksana fosse mencionado por alguém de fora da escola, geralmente era
por ela ter «fodido com metade de Gldani» ou ter feito um broche a
alguém «como se fosse estivesse a comer um Chupa Chups». Mas ela
estava sempre a sorrir. Lela só a viu chorar uma vez, quando estava a
andar na bicicleta de Marika e a viu a sair do pátio atrás da Faculdade de
Indústria Ligeira, ao fundo da rua da escola. Vinha a chorar. Quando Lela
lhe perguntou quem é que a tinha aborrecido, Aksana começou a soluçar
ainda mais e a repetir «O sacana, o sacana». Lela deu-lhe boleia para a
escola na bicicleta de Marika e, quando chegou e se misturou com as
outras crianças, o sorriso já tinha voltado ao seu rosto.
Então, um dia, Aksana foi-se embora sem avisar, sem sequer se
despedir, juntando-se às fileiras de muitos outros que tinham desaparecido
antes dela como se nunca tivessem sequer existido.
Depois houve Ilona, uma cigana da comunidade Lom, voluntariosa e de
espírito livre, que não obedecia a ninguém. Quando uma jornalista visitou
a escola, Ilona disse-lhe que Vano tinha tido relações com ela. Tiniko
ignorou-a, mas a jornalista passou algum tempo na escola, a tentar
investigar o que tinha acontecido e, como Tiniko não se opôs, a filmar as
crianças. Lela lembra-se de Tiniko ter falado de Aksana à jornalista,
dizendo-lhe que não tinha sido a única rapariga da escola a seguir esse
caminho. Não podiam impedi-la, explicou Tiniko: quando ela saía, não
faziam ideia do que ela ia fazer; já não eram crianças, eram adultas; era a
natureza delas; e também era essa a vontade delas, sobretudo se, em troca,
houvesse rebuçados e presentes. A jornalista ouviu-a atentamente. Falou
com as crianças, fez-lhes perguntas, escreveu as respostas e coligiu
páginas e páginas de notas. Depois, por alguma razão, também ela
desapareceu, levando consigo o que Tiniko e Ilona tinham dito.
Ilona foi-se embora e começou a pedir e a vender o corpo na estação;
pelo menos, foi o que disseram às crianças. Ouviram também dizer que ela
tinha voltado para casa dos pais, na Rua Lotkin. Ouviram ainda dizer que,
um dia, os pais tinham tido uma discussão, que a mãe e o irmão mais novo
de Ilona se esconderam no roupeiro e que o pai foi buscar a arma e
esvaziou o carregador na porta desse roupeiro, atingindo o filho. Depois
do incidente, o pai de Ilona levou-a para a Rússia, e nunca mais souberam
nada dela.
Houve uma outra rapariga chamada Yana. Lela lembra-se bem dela;
tinham a mesma idade. Yana era orgulhosa e segura de si própria. Estava
constantemente a falar dos pais e da avó, todos eles mortos, mas sobretudo
do tio, o seu único familiar vivo, que, tinha a certeza, cuidaria dela quando
saísse da escola. Segundo Yana, o apartamento dos pais estava à sua
espera, selado e mantido como parte da sua herança até ela fazer dezoito
anos. Ela era uma daquelas pessoas que saía bem de qualquer situação.
Não se metia em brigas, nunca dizia palavrões e nem se queixava nem se
ofendia, embora também nunca parecesse particularmente feliz.
Um dia, Yana pediu a Lela para irem ao prédio ao lado. Era Dia de Ano
Novo e estava um frio e rachar, as crianças estavam todas encolhidas
dentro de casa. As ruas estavam vazias, à exceção de alguns cães famintos.
Yana levou Lela até ao pátio, e esta arregaçou as mangas e começou a
vasculhar os caixotes do lixo. Lela fez o mesmo. Nesse momento, uma
mulher abriu uma janela no terceiro andar e chamou-as. Yana e Lela
aproximaram-se da porta do edifício. A mulher desapareceu dentro de
casa, e duas meninas pequenas meterem a cabeça de fora e gritaram a
Yana e Lela que esperassem. A mulher tornou a aparecer, equilibrou um
cesto no parapeito da janela e amarrou uma corda à asa. Depois, começou
a descê-lo cuidadosamente para fora da janela. Lela e Yana ficaram ali,
com o coração aos saltos, à espera de que o cesto chegasse até elas.
Quanto mais se aproximava, melhor conseguiam ver: estava cheio até
cima com doces, bolos, frutos secos, churchkhela3 e tangerinas.
– Agarrem-no! É para vocês! – gritou uma das meninas.
Yana pegou no cesto e desatou a corda, e voltaram as duas para a escola,
a correr o mais depressa que conseguiam.
Quando Lela e Yana entraram na escola a correr com o cesto, as outras
crianças mal podiam acreditar no que os seus olhos viam. Ao fim de
pouco tempo, não restava mais nada além das cascas das tangerinas. Lela
ainda se lembra de como o bolo sabia bem. Anos mais tarde, quando o
chocolate importado da Turquia começou a aparecer nos quiosques, ela
comprava de vez em quando um Mars ou um Snickers, mas chegava
sempre à conclusão de que nada saberia tão bem como aquele bolo.
Menos de uma hora depois, Yana disse a Lela que iam devolver o cesto.
Yana saiu da sala da televisão com algumas das outras crianças. Lela
não conseguiu perceber como as tinha escolhido; a maioria delas tinha
dificuldade em andar ou em falar. Yana levou então Lela e outras cinco
crianças até ao prédio ao lado.
A menina que abriu a porta pareceu bastante assustada quando viu tantas
crianças. Depois, veio à porta uma mulher, que convidou as crianças a
entrar.
Era a primeira vez na vida de Lela que era convidada para uma supra4.
A mesa tinha sido posta na loggia5. A mulher distribuiu pratos, talheres e
até guardanapos. Depois, trouxe mais comida do que Lela alguma vez
tinha visto: frango frito, molho de nozes, khachapuri6, folhas de videira
recheadas, bolo, gozinaqi7, pão, frutos secos, refrigerantes e marmelos
cozidos.
As crianças sentaram-se para comer. Na televisão, a um canto, estava a
dar um concerto de Ano Novo e, entretanto, as crianças estavam
aconchegadas à mulher e ela fazia-lhe perguntas sobre como tinha sido o
seu Ano Novo. Ela queria saber se a escola já tinha recebido a sua
primeira visita do ano e depois disse-lhes que a Yana tinha sido a primeira
pessoa a aparecer à sua porta. Tão cheia que quase não conseguia respirar,
Yana riu-se ao pensar no papel honrado que tinha desempenhado. As
filhas da mulher perguntaram-lhes se na escola havia uma árvore de Ano
Novo. No canto da sua loggia havia uma árvore artificial e tinham coberto
o chão e os ramos com tufos de algodão a imitar neve. A rapariga mais
nova carregou num botão na base da árvore, e ela começou a rodar
lentamente. As crianças aplaudiram e olharam, hipnotizadas, para os
brinquedos e ornamentos pendurados nos ramos, vendo-se refletidas na
sucessão de bolas brilhantes que passavam à sua frente quando a árvore
rodava.
Quando acabaram, a mulher pôs os restos no cesto vazio, para as
crianças levarem.
Aquela era Yana, a rapariga que podia sair para vasculhar os caixotes do
lixo mas conseguia voltar com um cesto cheio de guloseimas – e por duas
vezes.
Passado algum tempo, Yana adoeceu. Ninguém sabia o que tinha. Um
dia, chegou uma ambulância que a levou embora, pálida, fraca e incapaz
de comer ou falar. Mais tarde, ouviram dizer que Yana tinha ido viver com
o tio e não voltaria.
Tal como Lela, Yana teria agora dezoito anos. Mas Lela não sabe se
Yana estará agora a viver no apartamento dos pais, nem se ainda abotoa a
camisa até ao pescoço. Nem sequer se está viva.
*
Um a um, todos os alunos de que Lela se lembra deixaram a escola. Os
tempos mudaram. As crianças que dantes lá viviam pareciam mais
rebeldes, mais dispostas a lutar e a fugir. Hoje em dia, as coisas estão
muito mais calmas. Quase nunca entram crianças novas para a escola, e
Lela é a única antiga aluna que ainda lá vive.
Como tal, ela ocupa a posição mais poderosa da escola. Ninguém lhe
diz o que deve fazer e ninguém se mete com ela. Quando Lela era uma
menina que se escondia nas saias das professoras, jamais imaginou que
chegaria uma altura em que não teria medo de ninguém. No entanto, como
já não há ninguém a temer, a vida parece ter perdido o fulgor e o tempo
demora a passar.
A partida de certas crianças marcou o fim de uma tradição brutal, um
«jogo» que Lela nunca teve de jogar. O simples facto de a ele ter assistido
deixou-a aterrorizada. Lela presenciou-o no tempo de Marcel. As crianças
mais velhas agarravam uma rapariga nova ou uma adolescente,
arrastavam-na para o lugar das pereiras e entregavam-na a um rapaz
libidinoso, que a empurrava para o chão e depois a violava, enquanto os
outros, tanto rapazes como raparigas, a agarravam pelos braços e pelas
pernas. O som dos gritos da rapariga fazia o coração de Lela bater tanto
que parecia saltar-lhe do peito. As crianças tapavam a boca da rapariga
para silenciar os seus gritos. Ver aquela rapariga ali deitada horrorizou
Lela: as pernas abertas, os arranhões no rosto, o sangue… Quando o rapaz
acabava, levantava-se e as crianças voltavam para o recreio, para
continuarem as suas brincadeiras, deixando a rapariga ali, deitada no chão.
Depois também ela se levantava, ajeitava a roupa e passava alguns
minutos sozinha, antes de se juntar às outras e continuar a fazer a sua vida
como dantes. As vítimas deste jogo eram geralmente raparigas que
usavam saias e vestidos e tinham o cabelo comprido.
Após o colapso da União Soviética, tudo na escola começou a avariar-
se, começando pelas torneiras e acabando na varanda do dormitório. A
escola começou a receber ajuda humanitária e roupas em segunda mão, o
que nunca tinha acontecido antes, mas esta só raramente chegava às
crianças. Tiniko «redirecionava» a maioria das coisas para os seus
próprios armários, isto quando o funcionário encarregado de dividir os
bens pelas escolas não o tivesse já feito.
A escola também começou a perder professores. Da velha guarda,
apenas restam Tiniko, Dali, Vano e Gulnara. Hoje em dia, vêm professores
novos, dão algumas aulas, percebem que a escola não tem nada para lhes
oferecer e vão-se outra vez embora. Também deixaram de chegar novas
crianças. Talvez hoje em dia os pais estejam menos dispostos a abandonar
os seus filhos, ou talvez haja escolas melhores para os abandonarem.
Talvez tenham deixado de nascer idiotas.
É por isso que toda a gente fica tão surpreendida quando, um dia, os
portões se abrem e uma jovem bem vestida de trinta e tal anos entra com
uma menina com uns nove. A menina parece inteligente e bem cuidada,
mas também nervosa e à defesa. Lela acaricia-lhe o cabelo e depois leva-
as ao escritório de Tiniko. Tiniko já estava à espera delas. A mulher
explica que a menina é familiar do seu marido. Os pais morreram, e estava
a ser criada pela avó que, entretanto, também morreu, e os familiares da
criança resolveram pô-la naquela escola.
Tiniko mostra-lhes as instalações, com um grande grupo de crianças a
reboque.
– Gostas da escola, Nona? – pergunta a mulher com um sorriso forçado,
olhando para a menina. – Já viste que grande que é o pátio?
– As casas de banho e os duches são aqui – diz Tiniko –, e também é
aqui que lavam a roupa. Todo o terreno pertence à escola. As crianças
passam muito tempo ao ar livre. Ali é o refeitório…
– Não te vais aborrecer, pois não? Já viste?, tantas crianças simpáticas!
A mulher vira-se para as crianças e olha para elas com uma expressão
exagerada de surpresa, como se só agora estivesse a vê-las devidamente
pela primeira vez.
– Oh, olha! São tão queridas! – Aproxima-se de Stella, que está na
primeira fila, agarra-lhe nas bochechas e pergunta-lhe: – Como é que te
chamas?
– Stella! – responde-lhe alegremente.
– Oh, és uma delícia! – reage a mulher, fazendo uma festa na cara de
Stella, que cora de vergonha e esboça um sorriso rasgado.
Lela não consegue compreender porque é que aquela mulher tenciona
deixar uma menina tão bonita e aparentemente tão amada naquele lugar.
– Vimos visitar-te todos os fins de semana. E, se não pudermos vir, vais
tu ter connosco – diz a mulher, abraçando Nona.
A menina parece envergonhada e deixa-se envolver naquele abraço,
hesitante, como se não a conhecesse há muito tempo.
Nos dias seguintes, Irakli está impossível. Percebe que Nona lhe faz
concorrência. Lela coloca Nona sob sua proteção. Passa uma das meninas
mais pequenas para outro lado do dormitório das raparigas e põe a cama
de Nona num local privilegiado, ao pé das janelas. As outras crianças
estão ansiosas por ver o que Nona tem na sua pequena mala. Ela deixa-as
ver, sob o olhar atento de Lela, para garantir que ninguém lhe tira nada.
Stella está encantada com Nona, que lhe dá um dos seus vestidos. A partir
daquele momento, Stella deixa de andar apenas com leggings e passa a
andar com leggings e um vestido de malha cor-de-rosa com folhos.
*

É de tarde. As crianças já almoçaram. Hoje é Vano quem está


responsável por tomar conta delas, o que significa que deve correr tudo
bem.
Está um dia soalheiro mas ventoso, e as crianças estão a jogar futebol.
Algumas crianças do prédio ao lado vieram juntar-se à brincadeira, o que
aumenta consideravelmente a pressão. Irakli está tão empolgado e a
esforçar-se tanto que sua em bica. Até Kolya, normalmente tão calmo, se
transforma por completo quando está a jogar futebol: grita e abana os
braços e, se alguma criança da escola marcar um golo contra as crianças
«normais», atira-se ao chão e ruge de felicidade.
O jogo acaba com uma vitória das crianças «normais». E depois
dispersam. Lela, que está a fazer de árbitro, repara que Nona desapareceu.
– Vista a Nona, Irakli?
– Não – responde Irakli, e afasta-se a correr até ao bebedouro.
– O Vano chamou-a para ir lá dentro – diz um dos outros.
Lela dirige-se rapidamente para o edifício da escola e vê Vano a sair, e
Nona atrás dele. O professor traz na mão o livro de ponto e o que parece
ser um livro de estudo. Nona também traz um livro, que segura contra o
peito.
– Podes ficar com esse. Agora vai brincar – diz-lhe Vano e desce os
degraus. Nona fica parada, com um ar aturdido e desorientado, como se
não soubesse para onde ir a seguir.
Lela olha para Nona e vê que ela esteve a chorar. Tem vestígios na cara,
nos sítios onde as lágrimas caíram sobre as suas bochechas gorduchas.
Lela para de repente, asfixiada pela raiva, com a garganta a arder e o
coração acelerado, e olha fixamente para Vano, que já vai a meio do pátio,
a caminho do bebedouro.
Lela fica presa ao chão. Nona continua no cimo dos degraus, com o
livro agarrado ao peito; e ainda tem o vestido que trazia no dia em que
chegou, que agora está rasgado e sujo. O seu cabelo, dantes preso em duas
tranças, está solto e em desalinho.
– Já a viste? – diz Vaska, atrás de Lela. – Está ali a miúda nova.
Vaska senta-se junto ao bebedouro, onde Vano continua de pé, a beber
sequiosamente.
Nona começa a descer os degraus muito depressa. Lela olha para ela,
tentando interpretar a sua expressão, tentando descodificar o seu olhar.
Nona não está muito diferente de como estava antes, só que agora, à
semelhança do vestido, parece alterada, suja, manchada pelas lágrimas…
Vano acaba de beber e vai-se embora.
Vaska vê-o a afastar-se e depois senta-se no passeio. Limpa o suor da
cara com a parte de baixo da T-shirt e grita para Nona:
– Foi uma rapidinha, não foi? – Dá uma gargalhada.
Nona não percebe e continua a descer a escada.
Sem sequer pensar, Lela corre para Vaska, que ainda está sentado no
passeio, e dá-lhe um pontapé na cara. Apanhado desprevenido, Vaska cai
para trás. Lela dá-lhe mais um pontapé, e outro, e outro, e ele não pode
fazer nada para se defender.
As outras crianças começam a correr, vindas de todos os lados. Uma
delas grita, em pânico: «Ela está a bater no Vaska! Está a bater no Vaska!»
Vaska põe-se de gatas com dificuldade e depois consegue levantar-se.
– Que foi que disseste, meu sacana? – grita Lela, e dá-lhe um murro no
peito. – Que foi que disseste, meu merdas? Repete lá isso!
Vaska está a deitar sangue pelo nariz.
– Não disse nada! Que é que te deu?
– Que é que me deu? Eu mostro-te o que é que me deu, caralho! Repete
o que disseste!
Vaska tenta fugir.
– Que é que ele disse? Que é que ele disse? – perguntam as outras
crianças.
Lela atira-se outra vez a Vaska, que pensava que a luta já tinha acabado
e limpava o sangue do nariz com a T-shirt. Algumas das crianças tentam
segurar Lela. Ela sente alguém a agarrar-lhe o braço. Irakli, que só se lhe
dá pelos ombros, olha-a diretamente nos olhos e grita:
– Para com isso, Lela! Já!
Olha espantada para Irakli, embora não saiba bem porquê. E então para
e solta um suspiro profundo. Vaska vai até ao bebedouro e lava o sangue
da cara. As outras crianças vão com ele, deixando Lela e Irakli sozinhos.
*

Passada uma semana, uma familiar da aldeia vem buscar Nona. Ela é
ainda uma menina, mas o seu rosto está profundamente marcado e
abatido. Nona não conhece a mulher, mas vai à mesma com ela. A mulher
mostra alguns documentos a Tiniko, assina uns papéis e leva Nona, com o
seu vestido sujo e a sua pequena mala, para longe da escola para sempre.
Lela deixa-as sair pelos portões. Stella senta-se no banco debaixo dos
abetos a chorar.

3 Considerado o doce nacional da Geórgia, preparado com sumo de uva, nozes e farinha,
transformados em «colares», que depois se deixam a secar. [N. da T.]

4 Festim georgiano tradicional, que faz parte da cultura social do país. Existem dois tipos de supra:
um festivo e outro mais sombrio, realizado após os enterros. [N. da T.]

5 O equivalente um telheiro fechado. [N. da T.]

6 Pão recheado com queijo e ovo, considerado uma das iguarias nacionais da Geórgia. [N. da T.]

7 Doce tradicional da Geórgia, feito com nozes caramelizadas fritas em mel e servido
exclusivamente no Natal e na véspera de Ano Novo. [N. da T.]
4

Lela sonha que está a levar Sergo, e não Irakli, para usar o telefone.
Sergo tem o vestido cor-de-rosa de Tiniko entalado debaixo do braço.
Sobem as escadas e Lela pergunta-lhe a quem raio é que ele vai telefonar,
se não tem mãe nem ninguém. Sergo não diz nada. Vai até à porta e toca à
campainha.
Mzia convida-os a entrar. Não parece nada surpreendida por ver Lela
com Sergo em vez de Irakli. Deixa-os no hall. Sergo pega no auscultador e
marca o número, mas não é um número local. Em vez de seis dígitos, tem
sete, oito, nove ou mais. O disco roda pacientemente, e o número parece
nunca mais acabar… Lela pergunta-lhe para onde está a ligar, mas Sergo
não responde, apenas continua a marcar o número. A filha de Mzia está
deitada no chão, toda enrolada, desprezada como um pano de limpeza
esquecido. Todos fingem que ela não está ali. Ela geme suavemente,
espreitando com um ar infeliz, como uma criança fraca no seu leito de
morte. Lela repara que o sinal na cara da rapariga que faz lembrar um
escaravelho cresceu e lhe cobre agora metade do rosto. De repente Piruz, o
inspetor da polícia local, aparece vindo de outra divisão, perdido nos seus
pensamentos e seguido por Mzia. Vai até à porta da frente com um ar
cansado e transtornado. Mzia abre-lha. Piruz hesita e depois encolhe os
ombros.
– Não temos esse género de coisas aqui. Eles enlouqueceram ou quê? –
pergunta, saindo de seguida.
Mzia fecha a porta, e é nessa altura que Lela repara no sangue que lhe
escorre de um golpe enorme na parte de trás da cabeça. Lela fica
aterrorizada, mas não acorda e, de repente, está na rua com Sergo, e Irakli
também lá está. Estão atrasados; aceleram o passo e, quando se
aproximam dos portões, veem uma multidão formada por habitantes locais
e crianças da escola. Há um autocarro na berma da estrada. As pessoas
estão à espera. Parece um funeral. Depois Vano e Tiniko saem pelos
portões. Tiniko está a agarrar o braço de Vano. Parece fraca e indisposta,
mal conseguindo arrastar as pernas. Geme suavemente, e a brisa quente do
verão transporta esse som para junto da multidão, agora sombria e
silenciosa. Lela percebe de repente que é o funeral de Tiniko. Está com o
mesmo vestido cor-de-rosa que Sergo tinha debaixo do braço e tem o lado
direito coberto de sangue. Zaira, do quiosque, também lá está, tal como
Avto e Levan; e Vaska, com aquele sorriso estúpido. Levan aproxima-se.
– A Tiniko foi fodida tão à bruta que mal consegue andar!
Dá uma gargalhada.
– Vai para o inferno – diz-lhe Irakli.
Está na altura de partir para o cemitério. Vano e Tiniko continuam a
avançar em direção ao autocarro, devagar, como se levassem com um
caixão aos ombros.
Zaira vai ter com Tiniko.
– E pensar que disseste que esse vestido não te ficava bem! – diz-lhe
alegremente.
Tiniko não responde, entra no autocarro com um ar pesaroso.
O autocarro arranca. Lela vê Aksana, uma das antigas alunas, de pé na
janela de trás, a sorrir para ela. Sente alguém tocar-lhe no ombro. Vira-se e
vê Tiniko. Assustada, tenta dizer-lhe que ela devia estar no autocarro, mas
as palavras ficam presas na garganta, sufocando-a. Tiniko começa a
apertar-lhe o braço com mais força.
– Estás a ver? Agora estamos em apuros… E se a Direção decide
inspecionar-nos… – a diretora aperta-lhe ainda mais o braço e não a larga,
e Lela tenta gritar «larga-me!», mas o som não lhe sai da garganta…
Consegue então forçar as palavras a saírem, roucas devido à fricção,
seguidas de um rugido feroz que a faz acordar.
Levanta-se, encharcada em suor, tateia à procura da lâmpada no teto
baixo e fá-la girar. Ouve o guincho metálico do casquilho, e a portaria é
inundada por uma luz amarela bruxuleante.
Lela senta-se na cama durante alguns minutos. Está só de T-shirt e
cuecas. Passa os dedos pelo cabelo e respira fundo. O sonho passa-lhe de
rajada pela mente. Volta a sentir medo. Veste as calças, tateia com os pés à
procura dos sapatos e sai.
Senta-se no banco por baixo dos abetos. Fuma um cigarro, recompondo-
se pouco a pouco, e pensa se aquele sonho será um sinal de que é mesmo
louca. Olha para o banco, uma tábua em que cada extremidade está
cravada numa fenda profunda serrada no tronco de uma árvore. É o único
banco do pátio, e toda a gente se lembra de o ver ali desde sempre. Ambas
as árvores estão vivas, a crescer, tentando desesperadamente manter os
seus troncos meio serrados incólumes, para que os nutrientes do solo
possam chegar aos ramos mais altos; a tábua serve de âncora e elo entre
aqueles dois abetos, capturados pelo homem e mantidos um pelo outro em
cativeiro, destinados a viver para sempre com um corpo estranho fundido
nos seus troncos.
Lela levanta-se e começa a andar de um lado para o outro. A Lua está
tão brilhante que parece que é de dia no pátio. Os edifícios da escola estão
envoltos em escuridão. O silêncio é total; há alguns carros na parte da
frente do pátio; entre eles, o velho Lada, que está lá há anos, sem dono e
sem ninguém disposto a rebocá-lo, abandonado, coberto de cocó de
pássaro, a desfazer-se. Lela fica a olhar para ele durante algum tempo, até
que a sua atenção é desviada por uns faróis que se aproximam depressa na
rua. Pensa em Sergo. Ao longe, ouve o leve patinhar de um cão a andar no
asfalto e o som que um homem faz a regressar a casa a altas horas da
noite.
Atira a beata para o chão e volta para o quarto. Pega numa T-shirt que
está pendurada num prego na parede, acena para afastar uma nuvem de
mosquitos e desenrosca com cuidado a lâmpada a escaldar. A escuridão
envolve-a. Deita-se. Pouco a pouco, tudo o que a rodeia vai emergindo e
tomando forma: a porta, a janela e a mesa, o ramo do abeto lá fora, a
oscilar com a brisa, e a sombra que ele projeta, a oscilar a compasso.
Adormece.
*

Lela acorda na manhã seguinte com o barulho de uma criança a chorar


convulsivamente. Desorientada, levanta-se, veste uma coisa qualquer e sai
lá para fora. O Sol já vai alto. Deve ter chovido durante a noite; sente o ar
da manhã agradavelmente frio sobre a pele. Há um grande grupo de
crianças junto dos portões, a espreitarem para ver quem é que está a
chorar. Lela dirige-se apressadamente para lá, empurra uma delas para o
lado e vê uma jovem mulher do lado de fora com um menino com uns
cinco anos, que está a agarrar-lhe a mão e a soluçar muito alto.
– Queres que te deixe aqui? É isso que queres? – pergunta-lhe a mulher,
puxando a mão para tentar que ele a solte.
– Nãããooo – chora o menino, agarrando-se o melhor que pode à mãe.
Tem uns olhos escuros grandes e o cabelo curto e espetado. Moram no
bloco de apartamentos ao lado, e não é a primeira vez que ela leva o filho
naquele estado até ao portão.
– Olha bem! Estas crianças também não fizeram o que lhes mandaram, e
as mamãs e os papás trouxeram-nas para aqui! – diz, apontando para as
crianças que estão a espreitá-los através dos portões, de olhos
esbugalhados. – Então? Vais voltar a fazer o mesmo?
– Não – diz o menino, lavado em lágrimas.
– Não tenhas medo! Não te comemos! – grita Levan.
As crianças riem-se. Lela repara que Vaska está perto de Levan. Tem a
cara cheia de nódoas negras e marcas de um murro num olho.
O menino desata a chorar.
– Então? Deixo-te aqui ou levo-te? – Ela volta-se para as crianças e grita
teatralmente através da vedação: – Onde é que está o vosso professor,
meninos? Está aqui mais uma criança para a escola! – O menino chora
ainda mais alto e agarra-se às pernas da mãe. Esforçando-se por não se rir,
a mulher dá-lhe umas palmadinhas afetuosas. – Pronto, pronto, está bem.
Desta vez não te deixo cá. Mas só se fizeres o que te mando.
– Eu faço, eu faço – diz o menino, com a voz a tremer.
Vão-se embora para casa.
*

As crianças dispersam, correndo na sua maioria para o refeitório, onde


terá lugar o copo-d’água do casamento de Goderdzi no dia seguinte. Os
casamentos e os velórios da vizinhança são muitas vezes realizados na
escola. Pensando bem, quem tem espaço em casa para acolher, alimentar e
dar de beber a quinhentos convidados? As crianças foram todas
convidadas e estão radiantes; é raro terem a oportunidade de ser os
anfitriões.
As mulheres dos apartamentos ao lado estão muito atarefadas nas
cozinhas. Não são particularmente próximas de Venera ou de Goderdzi,
mas é tradição no prédio que, quando alguém morre, os vizinhos
organizem o velório e, quando alguém se casa, organizem o copo-d’água.
As mulheres estão a adiantar tudo o que podem com antecedência. Só
amanhã farão a comida quente. Há um vaivém constante entre os
apartamentos vizinhos e a escola, mas através dos pátios adjacentes, e não
pelo portão principal. Avto alargou o buraco da vedação para que as
mulheres possam passar com os pratos e tigelas sem ficarem com a roupa
presa no arame. Atravessam o recreio e percorrem o caminho contíguo ao
pomar das pereiras até chegarem ao refeitório, onde encontram um grande
grupo de crianças agitadas, desesperadas por lhes darem qualquer coisa
para fazer.
Lela está no refeitório, a tirar as panelas grandes das prateleiras.
Entretanto, Koba e os outros rapazes do prédio vizinho estão a trazer as
caixas com a louça alugada. À frente vem Irakli, a desimpedir o caminho.
– Podes vir lá fora um segundo, Lela? – pergunta-lhe Irakli.
Lela sai apressadamente e segue-o pelo caminho contíguo ao pomar.
– Despacha-te! – pede-lhe, e aponta para Mzia, ao longe, que está a ir a
casa buscar o triturador de nozes. – A Mzia vai a casa buscar uma coisa
qualquer – acrescenta, acelerando o passo. – Talvez ela nos deixe usar o
telefone…
– Tu bates bem da cabeça? – diz Lela, com brusquidão. – Não podes
telefonar-lhe. Ela foi para a Grécia, idiota!
– Vou ligar para a Ivlita. Talvez ela tenha o número da mamã. E, se não
tiver… bem, então não ligo.
Irakli passa pelo buraco da vedação. Olha para trás e vê Lela ainda no
recinto da escola, a olhar fixamente para ele.
– Então para que é que precisas de mim? Vá, liga-lhe!
Lela volta-se para regressar à cozinha.
– Por favor, Lela! – grita Irakli.
Ela olha para ele através do buraco da vedação. Ao longe, vê Mzia a
dirigir-se rapidamente para o bloco de apartamentos.
– Só mais esta vez, Lela. Nunca mais te peço, juro!
Lela olha para as orelhas grandes de Irakli e para a sua expressão
ansiosa e não consegue deixar de rir.
– Era melhor não – insiste Lela e passa pela vedação.
Encontram Mzia no patamar. Ela manda-os entrar, vai buscar o banco
pequeno e desaparece na cozinha.
*

Irakli liga para Ivlita e pede-lhe o número da mãe na Grécia. Lela pede a
Mzia papel e caneta e toma nota do número que Irakli vai dizendo em voz
alta.
Irakli despede-se, desliga e fica por momentos a olhar para o papel.
– Diz-mo – pede, determinado. Lela lê-lhe o número.
Irakli marca-o. Lela ouve o telefone a tocar do outro lado da linha e, a
seguir, uma voz familiar.
– Sou eu, mamã – diz Irakli, com a voz a fraquejar.
– Irakli! – exclama a mãe, parecendo satisfeita, mas surpreendida. –
Como é que estás? Ainda não consegui voltar para casa, não foi? Isto tem
sido uma loucura… Tenho andado tão ocupada, tenho tido tanto que
fazer… e não tinha dinheiro para voltar… Mas vou começar a trabalhar e
depois já vou ter o suficiente para regressar. Devia mandar-te umas
lembranças, não devia…?
– Quando é que voltas? – pergunta Irakli.
– Arranjei agora um trabalho novo. Preciso de poupar algum dinheiro e
depois volto… – Silêncio. – Irakli, sabes que te adoro, não sabes? Não
estejas zangado. É melhor assim…
Os olhos de Irakli enchem-se de lágrimas. Esfrega-os com força para
tentar para-las. Fica muito vermelho e contorce a cara, mas não sai som
nenhum. Permanece sentado no banco em silêncio.
Lela arranca-lhe o telefone da mão e grita para o auscultador:
– É melhor assim, não é? Minha cabra, despejas o teu filho e
desapareces! Que raio de mãe és tu? Que desperdício de espaço, porra!
Para de lhe prometer que vais voltar! Acaba com as promessas, minha
vaca miserável!
Irakli olha para Lela, incrédulo. Ela está inclinada para a frente, com o
auscultador numa mão, e a outra a fazer força no joelho, tal como Irakli.
Do auscultador sai uma voz: «Está lá? Está lá? Quem fala?»
– Não tens nada a ver com isso! Ouve bem, ou paras de lhe mentir, ou
eu vou à Grécia e obrigo-te eu própria a parar, minha puta!
Atira com o auscultador.
– Anda, vamos embora. Despacha-te! – diz a Irakli, como se estivesse à
espera de que a mãe dele fosse atrás deles. – Obrigada! – grita Lela,
quando vão a sair.
Regressam em silêncio. Irakli vai a chorar.
– Porque é que estás a chorar? Pareces um bebé grande! – diz Lela,
apressando o passo. – Não percebes? Ela não vem. Só não consegue dizer-
to! Eu disse-te que ela não vinha, e tu não quiseste ouvir! Também, para
que é que precisas de uma mãe? Sabes andar e falar, sabes comer! Já és
crescido, por amor de Deus!
*

Quando chegam ao pátio, todos os pensamentos sobre a mãe de Irakli


são imediatamente esquecidos. Há uma visita na escola: uma mulher
chamada Madonna, que está a tirar fotografias às crianças com uma
pequena máquina fotográfica prateada. Dali grita instruções: «Põe-te
direito! Sorri!» Lela repara que Madonna está a fotografar apenas três
crianças: Pako, uma rapariga chamada Jilda e um rapaz chamado Lasha.
Têm os três cerca de seis anos e foram lavados e bem vestidos. Cada um
por sua vez, vão-se encostando à parede que Madonna escolheu como
pano de fundo.
Madonna tem o cabelo louro oxigenado e um traseiro anormalmente
grande que carrega de um lado para o outro, como se fosse um corpo
estranho. Pako, de cabelo molhado penteado com risco ao lado, encosta-se
à parede e, quando Dali lhe diz para se desencostar, Pako empertiga-se
tanto que Lela pensa que ele ainda se pode partir ao meio. A seguir é
Lasha. Põe-se de pé junto à parede com os seus olhos grandes e tristes.
Dali vai ajeitar-lhe o cabelo e endireitar-lhe a camisa. Madonna tenta
chamar a atenção dele, estalando os dedos por cima da cabeça. Lasha
parece desorientado.
– Importas-te de sorrir, miúdo? – diz Dali, furiosa.
Lasha tenta sorrir e mostra os dentes mas, como continua com a testa
enrugada, parece ainda mais infeliz. As outras crianças começam a rir à
gargalhada.
– Meu Deus, quem é que o escolheu? Já olharam bem para ele? –
dispara Levan, divertidíssimo.
– Uffff – suspira Tiniko, de repente. – Tínhamos uma menina tão bonita,
a Nona. Mas a família veio buscá-la. Era muito melhor do que estes…
Bastava olharem para ela e levavam-na logo, tenho a certeza. Era tão
bonita, tão inteligente…
– Tens razão – confirma Dali, com tristeza. – Não é todos os dias que
aparecem cá crianças como a Nona.
É a vez de Jilda, mas Tiniko não está convencida. Jilda tem sete anos. É
uma menina pequena, com cabelo preto liso e estrábica de um olho, e é da
etnia Yazidi, o que na opinião de Tiniko a torna uma candidata imprópria
para adoção internacional.
Madonna senta-se para descansar um pouco. Acende um cigarro e mexe
na máquina fotográfica. A escola está ali em peso, a observar as três
crianças.
Ao que parece, Madonna passou vários anos a trabalhar para um casal
americano como cuidadora e agora está a ajudá-los a encontrar uma
criança para adotarem. A compaixão e o espírito de sacrifício que
demonstrou ao cuidar da mãe idosa da mulher levaram o casal a criar um
profundo respeito pelo país dela, a Geórgia. Tendo cuidado eles próprios
de um filho deficiente, que acabaram por perder, decidiram adotar uma
criança de um orfanato, e é por isso que Madonna anda a visitar escolas
em Tbilisi para fotografar crianças com cerca de seis anos. Há outras
crianças com essa idade naquela escola, mas Tiniko escolheu as três que
considera mais atraentes e cujos pais – expressamente – renunciaram
formalmente à sua responsabilidade parental, deixando o destino das
crianças inteiramente nas mãos da escola e do Ministério.
– Vão ter de me escrever os nomes completos deles e um pouco da sua
história – diz Madonna. – Eles vão querer ter uma ideia de quem vão levar
para o seio da sua família.
– Não vai tirar fotografias às outras crianças? – pergunta Lela,
dirigindo-se a eles.
Antes que Tiniko possa responder, Levan estica a cabeça de entre o
grupo que está a assistir e diz, em tom de troça:
– Eles querem miúdos pequenos, não querem matulões como nós!
– Oh, Levan, se ao menos a tua inteligência tivesse oportunidade de
brilhar noutro sítio qualquer, nem que fosse só por uma vez – diz Tiniko
com tristeza, consciente de que nunca aparecerá ninguém para o salvar da
dureza da vida na Geórgia.
Madonna diz que gostaria de tirar fotografias das crianças a brincarem.
Pako quer que joguem futebol, mas a bola está meio vazia. Jilda vai a
correr buscar uma corda, mas Pako e Lasha ficam onde estão, numa pose
rígida. Os cabelos tão penteadinhos e as caras lavadas parecem impedi-los
de brincar.
– Está bem, esqueçam. Então à macaca. Finjam que estão a jogar à
macaca.
Tiniko sente alguém pôr-lhe a mão no cotovelo. Volta-se e vê Lela junto
a si.
– Preciso muito de falar contigo, Tiniko.
Esta olha para Lela com desconfiança, pede desculpa a Madonna e
afasta-se com a jovem para o lado.
– Que foi?
– Podes pedir-lhe que também tire fotografias aos outros, Tiniko – diz
Lela. – Aos pequenos, quero eu dizer.
Tiniko suspira. Depois sussurra-lhe:
– Está bem. Diz-me a quais. Sabes que valorizo a tua opinião.
– Bem… a todos. Só aos mais pequenos, quero eu dizer. Mas diz-lhe
que não se limite a tirar fotografias. Tem também de mostrá-las aos
americanos. Nunca se sabe, podiam gostar da Stella. Ou até do Levan.
– Não, não. Mesmo que gostem do Levan, não podem levá-lo. A mãe
dele ainda é viva e, por isso, não podíamos mandá-lo. Mas tudo bem,
vamos fotografar a Stella e alguns dos outros… – Voltam para junto de
Madonna e Tiniko diz-lhe, em voz baixa: – É a papelada, sabes. Quando
eles ainda têm pais, não posso mandá-los para lado nenhum. Não quero ir
parar à prisão. Fotografamos as crianças que não tiverem família.
As outras crianças não estão bem vestidas, nem particularmente limpas,
mas alinham-se contra a parede e fazem o que Dali e Madonna lhes
mandam. Madonna tira fotografias a praticamente todas as crianças com
menos de dez anos que não têm família ou cujos familiares as
abandonaram. Stella molha as mãos no bebedouro, tenta alisar o cabelo e
fica como uma estátua, com um sorriso no rosto, à espera da sua vez de
ser fotografada.
– Onde é que está o Irakli? – pergunta Tiniko, olhando à sua volta.
Lela acha que deve ter ouvido mal. Mas não; pelos vistos, a mãe de
Irakli preferiu a Grécia ao filho e abandonou-o para sempre. Lela
recompõe-se e vai ao edifício da escola à procura de Irakli, decidida a
contar-lhe a verdade. Quem lhe dera ter dito coisas ainda piores à mãe
dele. Naquele momento, só consegue pensar que Irakli tem de saber. Tem
de saber que a puta da mãe o abandonou e ele não faz a menor ideia.
Encontra Irakli sozinho, deitado numa cama. Não está a chorar. Está
simplesmente deitado de costas, a esconder a cara com o braço. Assim que
o vê, Lela muda de ideias.
– Anda daí. A Tiniko anda à tua procura. Tens de ir tirar a fotografia. Até
pode ser que tenhas sorte.
– Não quero.
Lela afasta o braço de Irakli de cima da cara e faz-lhe cócegas.
– Anda, vai ser divertido. Eles não te vão mandar para a América.
Querem uma criança pequenina e bonitinha, e não um cepo como tu!
Vamos, mexe-me esse rabo!
Irakli não diz nada.
– Estás zangado por eu ter chamado nomes à tua mãe?
Irakli fecha os olhos e enrosca-se ainda mais.
– Estás com medo de que ela tenha ficado zangada e não volte, é isso? –
Lela fica a pensar por um momento. – Não tens de te preocupar. Podemos
telefonar-lhe e dizes-lhe que foi uma maluca qualquer que te tirou o
telefone da mão… Alguém que não bate bem da bola. Uma das outras
crianças. Diz-lhe que elas dizem aqueles palavrões a toda a gente.
Irakli começa a chorar.
– Vá lá, Ika. Ligamos-lhe e dizes-lhe que te tiraram o telefone da mão!
Dizes-lhe que por causa disso eles foram expulsos da escola ou, melhor
ainda, que morreram! Diz-lhe que foram atropelados!
Lela tenta fazer Irakli voltar-se para ela.
– Vá lá, não sejas bebé. Ela estava a merecê-las. Estava a mentir-te!
Deixa de ser pateta!
Lela agarra Irakli pelo braço e arranca-o da cama.
– Que é que queres que eu faça? Amanhã levo-te lá! – diz-lhe, zangada,
abanando-o pelos braços. – Se quiseres, até te levo lá agora mesmo, mas
vais dizer-lhe que foi um maluco qualquer quem falou com ela, porque
não vou pedir-lhe desculpa, entendido? E, se não acreditar em ti, que vá à
merda!
Lela segura Irakli pelo pulso e arrasta-o para o corredor.
Descem até ao pátio. Lela puxa Irakli até junto da parede, afasta para o
lado as crianças que estão em fila e depois empurra Irakli, que fica mesmo
em frente da máquina fotográfica de Madonna.
– Quem é que vai querê-lo? – comenta Levan, com um riso abafado. –
Quem é que vai querê-lo em casa, com a cabeça cheia de piolhos? Tens
piolhos, não tens, Ika?
Lela dá um calduço a Levan.
*

Chega o dia do casamento. Mzia e um dos seus vizinhos estão a segurar


um grande pano de veludo vermelho contra a parede, enquanto Avto o
prende com pregos nos cantos. A mulher que há anos tinha oferecido um
banquete de Ano Novo às crianças começa a prender ramos de minúsculas
rosas brancas ao veludo.
Uma mesa comprida é posta em frente ao veludo e, sobre ela, louça
decorada e copos finos. A mesa das crianças é colocada numa outra sala,
mais pequena, ao lado do salão principal.
Uma das mulheres sai da cozinha e, olhando para um lado e para o outro
da mesa das crianças, pergunta:
– Servimos-lhes de tudo?
A organizadora, uma mulher magra com a cara cheia de marcas de acne
e uma expressão dura, acena com a cabeça.
– Até o vinho?
A mulher hesita e, depois, olha para Avto.
– Um copo não vai matá-los – responde ele –, e assim podem participar
nos brindes. Mas ponham também refrigerantes. Sabem como são as
crianças.
*

Lela ouve o longo buzinão comemorativo vindo dos carros. Abre os


portões para os deixar entrar, torna a fechá-los e caminha atrás deles. Dali
afasta as crianças. Já vestiu o fato do casamento: uma blusa preta com
bolinhas verdes e renda verde à volta do decote. Goderdzi sai do carro dos
noivos com um fato impecável e dá a volta até ao outro lado para abrir a
porta à noiva, Manana. Ela sai, uma visão de beleza inigualável, com um
vestido branco comprido, o cabelo preto entrançado e um sorriso largo e
cativante. Os vizinhos olham-na de alto a baixo, espantados, enfeitiçados
pelo seu passo lento e elegante e pela forma como o vestido se retesa
contra o seu corpo quando respira.
– Ela já deve ter gozado bem a vida – Lela ouve uma das vizinhas
sussurrar. – Por que outro motivo se contentaria com um homem como o
Goderdzi?
– Sabes lá tu! – comenta outra mulher, sem conseguir tirar os olhos da
cinturinha torneada do vestido de Manana, com as fitas de renda e cetim
apertadas mesmo por cima do seu belo rabo.
– Sei, e pronto – diz a primeira mulher.
Manana está de costas para um grupo de raparigas com vestidos
cintilantes que esticam o pescoço como galinhas. Atira o buquê para elas.
Uma rapariga gorducha com as bochechas vermelhas e uma expressão de
que está pronta para a luta aparece agarrada ao buquê com uma respiração
ofegante. Os outros convidados batem palmas e dirigem-se todos para o
refeitório. A mesa está posta para um banquete e cheia de comida:
travessas com ervas aromáticas e pkhali8, pepinos e tomates inteiros
aninhados entre molhos de cebolinho e rabanetes e dezenas de outros
pratos frios. Avto faz sinal a um homem magro que está de pé ao lado de
um teclado Yamaha; alguns segundos mais tarde, os acordes nasalados da
versão para teclado da «Marcha Nupcial», de Mendelssohn, flutuam pelo
salão até serem substituídos pela melancolia diatónica de uma canção de
amor da Tuchétia.
As crianças sentam-se. Estão lá todas menos Irakli, que está com febre e
não consegue comer nada sem vomitar logo a seguir.
O responsável pelos brindes ergue a voz por cima do burburinho:
– Caros amigos, gostaria de fazer um brinde aos noivos! – Encosta uma
mão carnuda ao peito e com a outra ergue o copo no ar. Olha em redor
para os convidados e começa: – Meus amigos, Adão e Eva foram criados
para quê? Para amar! Para darem fruto e se multiplicarem! Como os filhos
de Adão e Eva, também nós devemos ser fecundos e multiplicar-nos,
desde que o façamos com amor! Ao Goderdzi e à Manana, gaumarjos! À
vossa união, gaumarjos! Abençoados sejais! Que o vosso amor um pelo
outro nunca se desvaneça enquanto viverem!
As crianças empilham comida nos pratos: khachapuri quente, frango
frito, fígado com nozes, pkhali de legumes, molho de nozes, shotis puri9
cozidos em forno de barro e tudo o mais que se encontra à sua disposição.
Dali está sentada ao pé das crianças, servindo-se de grandes pratadas de
mchadi10 e peixe. De vez em quando, lança um olhar de desaprovação a
uma criança, revirando os olhos e abrindo tanto os lábios cobertos de
gordura que a comida meio mastigada quase lhe cai da boca.
Dali escolhe algumas coisas para Lela levar a Irakli para comer:
comidas leves, cozidas, nada muito condimentado. Lela acorda-o, mas
Irakli diz que não tem vontade de comer. Lela palpa-lhe a testa, que
continua quente, aconchega-o, deixa o prato junto à cama e volta para o
supra, onde alguns dos convidados mais jovens já estão a dançar, e nas
mesas há agora também bolos e fruta.
Lela está a começar a sentir o efeito do vinho.
– Tiniko – chama por cima da música –, posso dar-te uma palavrinha?
Tiniko parece irritada. Deixa o bolo, levanta-se e encolhe-se para passar
entre os outros convidados e sair da mesa. Lela leva-a para um canto.
– Desculpa interromper a tua refeição – diz-lhe Lela. – Tenho andado a
pensar porque é que se tiraram fotografias ao Irakli. Disseste que só se
fotografava as crianças que não têm família… Por isso, gostava de saber o
que é que aconteceu à mãe dele.
– Isto não podia esperar até amanhã, miúda? Que é que te interessa se o
Irakli tem ou não mãe?
– Eu sei que ele tem mãe. Acabei de lhe dizer uma data de palavrões ao
telefone. Está na Grécia.
A expressão de Tiniko torna-se mais suave.
– Sim – diz Tiniko –, ela está na Grécia. Tinha uma vida muito difícil
aqui. Agora está na Grécia e não vai voltar. Pelo menos, durante muito
tempo. E, quando o Irakli chegar aos dezoito anos, pode fazer o que lhe
apetecer. – Tiniko está praticamente a gritar para se fazer ouvir. – Agora,
vou voltar para o meu lugar, e tu não bebes mais. E o que eu te disse não
passa daqui.
*

O copo-d’água continua ao rubro. Um dos primos de Goderdzi, um


polícia de folga, está tão entusiasmado com a música que salta primeiro
para uma cadeira e depois para cima da mesa, tira uma pistola do cinto e
dispara vários tiros para o teto.
Como se fosse uma deixa, o volume da música aumenta ainda mais e as
crianças começam a andar pelo chão, à procura dos cartuchos vazios.
Lela e Dali dão a cada criança uma fatia de bolo de mel antes de as
levarem do refeitório. Entretanto, Avto ajuda os empregados a arrastarem
a mesa, agora vazia, para junto da parede, deixando no seu lugar uma
grande pista de dança.

8 Prato tradicional georgiano de legumes picados, que pode ser feito com repolho, beringela,
espinafre, feijão, beterraba e combinado com nozes, vinagre, cebola, alho e ervas. É habitualmente
moldado em pequenas bolas. [N. da T.]

9 É o pão tradicional da Geórgia, tem a forma de uma meia-lua e é normalmente confecionado nas
paredes de um forno tandoor. [N. da T.]

10 Pão de milho georgiano, tradicionalmente consumido com feijões e queijo. [N. da T.]
5

Vano detesta faltar às aulas. Mesmo que todas as crianças da escola


adoecessem exceto uma, ele levaria essa criança para a sala e ensiná-la-ia.
Passa as aulas a andar de um lado para o outro à frente do quadro, de
braços cruzados atrás das costas, com uma bengala numa das mãos,
contando as vidas do Rei David, o Construtor, de Timur, da Rainha Tamar
e – a preferida das crianças – de Tsotne Dadiani, amarrado aos pés dos
seus senhores feudais mongóis, nu debaixo do sol escaldante, coberto de
mel, a implorar que o matassem…
Vano olha para o chão enquanto fala ou, por vezes, observa fixamente o
espaço, mas nunca dirige o olhar para as crianças. Os professores aqui são
menos rigorosos do que nas outras escolas. As crianças têm dificuldade
em concentrar-se e passam a maior parte do tempo durante as aulas a
conversar ou a discutir umas com as outras. Quando o barulho é tanto que
Vano não consegue fazer-se ouvir, levanta a bengala. Usava-a mais
antigamente, quando Marcel e Ira ainda estavam na escola. Agora, não
tem força nem disposição para ameaçar ninguém.
*

Lela entra na sala de aula.


– Levan, está aqui a tua mãe – anuncia.
Levan parece confuso. Vai à porta, com o cuidado de não parecer
demasiado ansioso, correndo para a mãe como se fosse pequenino. Lela
está prestes a sair também quando Vano a chama.
– Podes levar uma coisa à Gulnara?
Lela segue Vano até à sua secretária. Assim que ele se vira de costas, as
crianças correm para as janelas para verem a mãe de Levan. Algumas vão
até às casas de banho, de onde veem melhor, e outras correm atrás de
Levan para assistir ao encontro de perto.
Vano abre uma gaveta da secretária. Lela olha-lhe para a mão comprida
e magra e para os finos pêlos brancos do pulso. Observa-lhe os dedos
pousados no puxador e depois, num clarão, vê-se a si própria alguns anos
antes, ali parada na sala de História, com as cuecas para baixo, o vestido e
a camisola afastados do caminho, e Vano a mover os seus dedos magros
para baixo, para a sua púbis sem pêlos, e depois a metê-los cada vez mais
fundo dentro dela, rapidamente, desajeitadamente, como se houvesse
alguma coisa dentro dela que ele precisasse de puxar mas que continuava
a escapar-lhe. E, então, de repente, Lela sente dor, ardor, e faz uma careta,
mas não chora, ainda não… Vano abre as calças.
– Toca aqui. Não tenhas medo.
Ela olha para aquela coisa ereta, a balançar de um lado para o outro e a
apontar para o céu. Faz-lhe lembrar um animal esfolado. Vano puxa-a
mais para junto de si.
– A seguir, vamos à cidade e compro-te um gelado… És uma boa
menina, não és? Anda, vais gostar. Tenho a certeza…
Lela estende a mão para lhe tocar. Sente uma coisa grossa na mão, como
um cabo de vassoura. Não se lembra do que aconteceu a seguir, só de
Vano atrás dela, e ela voltada para a parede. O banco pequeno debaixo dos
seus pés. E da dor, que percorre todo o seu corpo, uma dor tão intensa que
lhe queima a garganta. Grita, mas Vano fica furioso, tapa-lhe a boca com a
mão pegajosa, ralha-lhe por ela estar a chorar, e então ela para,
abruptamente, e tenta fazer o que ele manda. Não digas nada a ninguém,
diz-lhe ele, enquanto torna a pôr as pequenas mãos de Lela à volta do cabo
da sua vassoura…
Vano tira o livro de ponto da gaveta e entrega-o a Lela. Ela olha para a
cara dele, velha, ressequida, para os papos à volta dos olhos e para a boca
descaída e flácida, e não consegue acreditar que o velho que está à sua
frente e o homem com o cabo de vassoura são o mesmo.
– Leva isto à Gulnara – diz a Lela e volta para a secretária.
Enquanto Lela caminha ao longo do corredor, lembra-se do bloco dos
lavabos, do sangue a correr-lhe pelas pernas e do medo que sentiu quando
pensou que ia morrer.
Gulnara está no primeiro andar, a dar uma aula de Trabalhos Manuais
aos mais novos. Lela dá-lhe o livro de ponto. Há um caderno de bordados
aberto em cima da secretária, e Lela fica tão admirada pela semelhança
entre os padrões geométricos e o nariz anguloso de Gulnara que começa a
pensar se foi nele que Gulnara se inspirou para o desenho do bordado.
Quando chega ao pátio, Lela sente-se maldisposta. Senta-se no banco à
sombra dos abetos e acende um cigarro.
Lembra-se de uma outra vez, no corredor ao lado do ginásio, quando
Vano a barrou e lhe agarrou na mão, levando-a para o ginásio e obrigando-
a a despir-se. Quando era pequena, isso acontecia muitas vezes: Vano
descobria-a, agarrava-lhe na mão e levava-a para um sítio qualquer. Ela
não gostava, mas ia na mesma. Ainda agora não suporta que lhe deem a
mão, nem sequer Stella, Pako ou Nona. Lela lembra-se de como os
vestiários eram húmidos. Lembra-se de Vano a despir-lhe as calças, depois
as meias, depois as cuecas, e de a obrigar a ficar descalça no chão frio de
azulejos. Também se lembra de Vaska ter entrado e os ter apanhado. De
ver Lela ali de pé, no vestiário, sem cuecas. E Vano sentado numa cadeira,
sem calças… Vano não o viu. Vaska e Lela olharam um para o outro em
silêncio e depois Vaska virou-se e saiu.
Quando Lela começou a ficar mais crescida, Vano deixou de a levar
para a sala de aula ou para os balneários. Agora, quando Lela olha para
ele, às vezes pensa que talvez nunca tenha acontecido, que talvez aquele
Vano só tenha existido nos seus pesadelos. Mas, quando vê Vaska e olha
para o sorriso subtil do seu rosto, a realidade de tudo aquilo fá-la
estremecer de novo e a vergonha daquele passado enche-a de náuseas.
Lela vê Levan e a mãe no banco do pátio, a falarem em voz baixa. A
mãe de Levan é uma mulher atraente com longos cabelos ruivos e seios
grandes que veste uma saia justa e um top decotado. Lela imagina que a
vida dela deve estar tão cheia de homens que não tem espaço para o filho.
Mas nem mesmo a sua maquilhagem pesada lhe consegue esconder o
sofrimento que traz no rosto. É ao mesmo tempo uma mulher bonita, mas
destroçada. Põe-se de pé e abraça Levan, que também a abraça, mas com
vergonha, apoiando os braços nos seus ombros. Acompanha a mãe até aos
portões, e ela vai-se embora. Ele fecha depois os portões e regressa a
correr ao bloco dos dormitórios, sem olhar à sua volta, agarrando com
força o saco cheio de doces que ela lhe trouxe, pensando apenas em como
irá comê-los depressa. Lela fica a ver a mulher descer a rua devagar e
fazer sinal ao condutor de um autocarro que vai a passar. Ele para, abre as
portas e fica à espera, enquanto o autocarro vacilante vai crepitando
pacientemente. A mãe de Levan entra e regressa a uma vida em desordem.
*

Maio acaba com uma sucessão de dias chuvosos. Quando começa a


chover no quarto dos trampolins, Dali fica de guarda para impedir as
crianças de entrarem à socapa. Anda de um lado para o outro, a bufar e a
resmungar, distribuindo vários recipientes para tentar vencer a água.
Lela está no último andar, a olhar para a rua com algumas crianças,
todas a assistirem ao dilúvio que ameaça inundar o recinto da escola. A
água vem a jorrar pela rua, entrando pelos portões para o pátio e
espalhando-se para a esquerda e para a direita à volta dos edifícios, como
se estivesse a sitiar a escola. Felizmente para Lela, Tariel passou muitos
dias chuvosos de maio na portaria e o seu quarto foi mantido a salvo e
seco por um telhado bem conservado e uma entrada ligeiramente elevada.
Uma tarde a chuva corre em cascata pela Rua Kerch e inunda tão
depressa o recinto da escola que parece que a torrente vai levar de uma só
vez os anos e anos de sujidade e lixo acumulados. Todos se abrigam na
sala da televisão, embaciando as janelas por serem tantos. Para as
crianças, isto é o mais parecido que têm com uma experiência de convívio
e de vida em família. A certa altura, Tiniko entra com Madonna, que
anuncia que a família americana decidiu adoptar Irakli.
Sentado à janela com Lela, Irakli fica vermelho que nem um tomate.
Tiniko e Madonna apanharam com a chuvada. Os seus cabelos
ensopados estão agora completamente lisos, dando a sensação de que as
suas cabeças encolheram, e o contraste entre isso e os seus traseiros
amplos fá-las parecer galinhas molhadas. Sentam-se nos cadeirões,
enquanto Dali, de pé, chora de felicidade ou, talvez, de desgosto. As
crianças juntam-se. Lela empurra Irakli para que saia do parapeito da
janela e se junte às outras crianças.
– Vem cá, Irakli! – diz Tiniko.
Irakli enfia-se a custo no meio deles. Levan dá-lhe uma palmadinha no
ombro e começa a cantar.
– I just called… to sa-a-a-a-y… I love you…
Os outros desatam a rir, mas sem tirar os olhos de Irakli, como se ele
tivesse acabado de se materializar à frente deles. Lela olha para Irakli e
descobre que o seu rosto está completamente transformado. Já não está
corado. E empoleira-se cuidadosamente no braço de um cadeirão.
– Parabéns! – diz Madonna entusiasticamente, como se ela própria não
conseguisse acreditar naquele milagre. – Que vida maravilhosa vais ter,
que futuro! Parece um conto de fadas! A Providência sorriu-te, meu
querido!
Volta-se para Tiniko.
– Sabes o que os levou a decidirem por ele?
Tiniko faz um sorriso beatífico, como se nunca tivesse imaginado que as
coisas pudessem correr de maneira diferente.
– Que é que me disseste, Tiniko? – pergunta Madonna, de forma algo
teatral. – Disseste: «Vamos tirar-lhes fotografias! Mal não faz!» Muito
bem, Tiniko! Imagina só! Se não tivéssemos mandado aquela fotografia,
podiam ter escolhido um da Jugoslávia! Conhecem uma mulher em
Sarajevo, sabes, e ela prometeu-lhes uma criança que tivesse ficado
deficiente na guerra! Imagina bem… quer dizer… quantos anos tens? –
pergunta, voltando-se para Irakli.
– Nove – responde ele.
– Estás a ver? – Madonna roda no cadeirão para se voltar outra vez para
Dali. – Estás a ver a rapidez com que eles mudaram de ideias?
Dali fita Irakli.
– Os americanos gostaram da tua cara, meu amor – diz-lhe, com
sinceridade.
Tiniko abre a janela de par em par para deixar entrar um pouco de ar
fresco. O som da chuva e da torrente de água enche a sala.
– Lela – diz Tiniko –, bom trabalho, minha querida.
Madonna tira um papel da mala e anuncia a todos os presentes:
– Vá, temos muito que fazer! Precisamos de um atestado médico, de
uma certidão de nascimento, de todos os documentos – começa a contar
pelos dedos, não pelo indicador, como os georgianos fazem, mas pelo
polegar, como os americanos – impressos, assinados e tudo o mais… Isso
são coisas de que eu e a Tiniko tratamos, mas o miúdo tem de escrever
uma pequena biografia e dizer o que espera encontrar nesta nova família
americana…
– Eu não falo americano – diz Irakli.
– Para já, não é americano, é inglês. Na América falam inglês. E não te
preocupes. Nós traduzimos para ti.
– Miss, ele mal sabe escrever georgiano – atiça Levan. – Mas tenho a
certeza de que há qualquer coisa que ele consegue dizer em inglês, não é,
Ika? – Levan dá uma cotovelada afetuosa a Irakli. – I just called to say I
love you: esse tipo de coisas…
Irakli torna a corar até às orelhas.
– O miúdo tem de estar pronto para viajar em setembro – continua
Madonna. – Eles vêm por quatro dias. Não conseguem ficar mais tempo e,
nessa altura, levam-no com eles. Está tudo aqui, olhem – Madonna acena
com o papel. – Quer dizer, está em inglês mas eu vou traduzir: Queridas
Madonna e Tiniko. Muito obrigada pelas coisas que nos enviaram.
Provavelmente a Madonna contou-lhes tudo sobre nós, mas queríamos
também ser nós próprios a dizer-vos que somos uma família acolhedora e
afetuosa. – Quer dizer, dá para ver, não dá? – Juntamos toda a nossa
papelada e mais algumas informações sobre nós.
Madonna salta uma parte à frente e continua a ler, mas desta vez
bastante emocionada:
– É muito difícil escolher um filho. Não queríamos ir à Geórgia
escolher. Pensámos que poderia não ser bom para as crianças e também
sabíamos como seria emocionalmente desgastante para nós. A princípio,
achámos que seria melhor escolher uma criança que não tivesse mais de
seis anos, porque as crianças mais novas têm mais facilidade em integrar-
se e adaptar-se, mas, quando vimos a fotografia do rosto doce e amoroso
do Irakli, nós…
O queixo de Madonna começa a tremer, treme, mas ela consegue
recompor-se e acaba de ler a carta.
– Basicamente, vê-lo foi o suficiente para os fazer mudar de ideias.
– Uau, Ika! Eles gostaram dessa carantonha feia! – Levan faz uma
careta. Mas as lágrimas de Dali já estão a correr-lhe pelo rosto.
Afinal, parece que os heróis de Kerch Street não acabaram, pois Irakli
está destinado a ser um deles.
Quando finalmente para de chover, Lela e Irakli voltam para a portaria.
– Que é que eu te disse, hã? – diz Lela, dando uma palmadinha num dos
lados da cabeça de Irakli. – Leva-me contigo, está bem? Não me
abandones, agora que és americano.
Lela dá uma gargalhada e Irakli responde com um sorriso.
Acendem um cigarro, e o espaço enche-se de fumo. Lela levanta-se para
abrir a minúscula janela.
– Lela? – diz Irakli.
– Lela-Lela-Lela, que foi agora? Não vais ter a tua Lela na América,
sabes disso, não sabes? Mas não tens de te preocupar. Vou dar-te o número
do Schwarzenegger. Podes dizer-lhe que vais da minha parte. – Desata à
gargalhada.
– Podes levar-me para eu telefonar? – Lela para. Olha para Irakli por
entre os tufos de fumo. – Só mais uma vez, está bem? – pede Irakli à
cautela.
– Mas qual é o teu problema? Porque é que não a esqueces? – Lela
senta-se na mesa junto à janela. – Ela tem-te mesmo nas palminhas, não
tem? De que vai servir telefonar-lhe? Nem sabes para onde hás de ligar!
– Mesmo assim… Ela pode voltar – insiste Irakli, calmamente.
– Ela nunca mais vai voltar! Porque é que não consegues meter isso
nessa cabeça dura? – contrapõe Lela. Apetece-lhe dizer mais, mas para.
Irakli continua sentado, em silêncio. A sua cara parece particularmente
magra e pálida, e Lela lembra-se do que os americanos disseram sobre o
seu rosto doce e amoroso.
*

A filha de Mzia abre a porta, e Lela fica mais uma vez surpreendida ao
ver quão parecido com um pequeno besouro é o sinal que a rapariga tem
na cara. Assim que a rapariga vê quem é, o seu rosto fica transtornado e
fecha a porta sem dizer uma palavra. Lela e Irakli olham um para o outro,
sem perceber. Lela torna a tocar à campainha. Desta vez é Mzia quem abre
a porta. O seu sorriso desapareceu. Fita os dois com um olhar frio e
penetrante.
– Olá – diz Lela. – Desculpe incomodá-la, mas podemos usar o seu
telefone?
A mulher olha para eles com as lágrimas a aflorarem-lhe os olhos.
– Bravo! – exclama, de repente. – Bravo! Muito obrigada por me
deixarem fazer isto por vocês! – Tem a voz a tremer. – Recebo-vos na
minha casa sem pedir nada em troca, e vocês usam o meu telefone sempre
que querem… Mas agradeço-vos muito por telefonarem para o estrangeiro
e também vos agradeço por ligarem às horas em que as tarifas são mais
altas, e por terem feito com que nos cortassem o telefone. Sabem o que o
meu marido teve de fazer para resolver isto? O pobrezinho acabou de
chegar do trabalho. Porque é que fizeram isso? Porque é que se
aproveitaram desta maneira, quando tudo o que eu queria era tentar
ajudar-vos?
Mzia está quase a chorar. Lela vê a menina-besouro a esconder-se atrás
das pernas da mãe, a fazer-lhe festas no quadril e a espreitar Lela só com
um olho.
Lela e Irakli ficam em estado de choque. Mzia fecha a porta. Irakli
dirige-se para as escadas cabisbaixo, mas Lela continua à porta,
estupefacta.
A porta torna a abrir-se, só uma nesga, e a menina-besouro põe a cabeça
de fora e olha para eles. Lela ouve a voz de Mzia a vir de dentro de casa.
– Fecha a porta e volta para dentro!
– Eles ainda aqui estão, mamã…
– Já te disse para fechares a porta e vires para dentro! Já!
Lela fica a pensar por um momento e depois, para surpresa de Irakli, vai
até ao apartamento em frente, para onde se mudou uma família nova há
pouco tempo. Toca à campainha. Uma rapariga com uns doze anos abre a
porta.
– Desculpa – diz Lela –, será que podemos usar o vosso telefone só por
um minuto? Somos do colégio interno. É muito importante.
A rapariga faz uma cara exageradamente carrancuda.
– Ainda não está ligado – explica-lhes.
– Ah, está bem… Desculpa – diz Lela. A rapariga fecha a porta.
Irakli começa a descer a escada, mas Lela torna a tocar à campainha e,
quando a rapariga aparece novamente à porta, ela diz-lhe:
– O homem da companhia dos telefones esteve cá agora. Estava a mexer
na caixa lá em baixo. Vai ver, talvez ele tenha ligado o vosso!
A rapariga volta para dentro, deixando a porta aberta, avança pelo
corredor até junto de uma pequena prateleira sobre a qual está um telefone
e encosta o auscultador ao ouvido.
– Ah, já está a funcionar – exclama, hesitante, como se não conseguisse
perceber quem é que saiu por cima.
Lela e Irakli entram. A rapariga desaparece para dentro de uma das
divisões.
– Quem era? – Lela ouve uma mulher perguntar.
– Uns miúdos da escola especial a pedirem para se servir do telefone.
Em comparação com o apartamento de Mzia, aquele está desarrumado,
desorganizado e é escuro. Não há cheiro a comida vindo da cozinha. Nem
sequer há uma cadeira para se sentarem. Irakli desdobra um pequeno
pedaço de papel com um número de telefone escrito por Lela. Marca o
número. Uma senhora idosa atende, falando em grego. Depois de alguns
minutos sem conseguir fazer-se entender, grita ao telefone: «No Inga! No
Inga! Inga no live here any more!»
Irakli liga para Ivlita. Ivlita não sabe de nada, Inga não lhe telefonou. A
antiga vizinha presume que ela mudou de casa.
Irakli regressa à escola, caminhando de cabeça baixa ao lado de Lela,
também ela desalentada. A expressão de traição no rosto de Mzia deixou-
lhe um gosto amargo na boca.
– Vai andando – diz Lela, de repente. – Eu já volto.
– Aonde é que vais? Posso ir contigo?
– Não. Vai andando, que eu já te apanho.
– Está bem.
Irakli encolhe os ombros e continua a andar em direção à escola, com as
mãos nos bolsos.
Lela volta ao bloco de apartamentos mas, desta vez, vai a outro andar.
Toca a uma campainha, e é Marika quem vem à porta. Sorri, surpreendida
ao ver Lela.
– Olá. Estás boa?
– Tens um minuto para eu falar contigo?
– Sim, que queres?
Lela tira o mesmo pedaço de papel do bolso e lê uma coisa escrita com a
sua letra.
– Inga no live here any more. O que é que isto quer dizer? – Marika fica
a olhar para Lela por um momento e, depois, olha para o papel e explica-
lhe. – Conheces o Irakli? Vai ser adotado por um casal americano. Vêm
buscá-lo em setembro. O que eu queria perguntar-te era se podias ensinar-
lhe um bocadinho de inglês. Sabes inglês, não sabes?
– Bem, ando a ter umas lições, mas não sou lá muito boa. Era melhor
para ele ter um professor como deve ser.
– Podes ser professora dele? Eu pago. Quanto é que pagas pelas tuas
aulas?
– Hum, pago uma mensalidade e tenho aulas duas vezes por semana…
– Também te pago ao mês, e vimos duas vezes por semana. Ou podes ir
tu lá à escola duas vezes por semana. Tenho um quarto só para mim, e isso
é bom, e podes ensinar-lhe só umas coisas básicas, para ele não estar
completamente às cegas quando for para lá.
– Não sei… Vou ter exames e tenho imensa coisa para fazer. Vou
candidatar-me à universidade daqui a pouco tempo…
– Nós pagamos. Quanto é que pagas por mês?
Marika não responde.
– Nós temos dinheiro – insiste Lela. – Eu tenho um emprego, sou
responsável pelos carros. Não é muito, mas deve chegar.
– Bom, está bem. Eu pago quarenta lari. Ela é uma amiga da família…
Se for metade disso?
– Vinte lari? – pergunta Lela.
Ficam as duas em silêncio. Marika olha fixamente para Lela, e Lela olha
fixamente para ela e pensa como é estranho um dia terem enfiado as mãos
nas cuecas uma da outra. Ainda se lembra do cheiro que lhe ficou nos
dedos.
Marika respira fundo, como se já estivesse farta de regatear, e pergunta:
– Está bem para ti?
– Está, vinte está bem.
– Ótimo. Eu vou lá duas vezes por semana, mas tem de ser ao princípio
da tarde, porque tenho explicações todas as tardes.
– Então, quanto é por aula? Para nós irmos pagando.
– Vinte a dividir por dois, dá dez lari por cada duas semanas, por isso
uma semana são cinco. Olha, vamos combinar só uma vez por semana.
Dá-me mais jeito – diz Marika.
– És a maior! Quando é que podes ir?
– Amanhã às duas?
– Combinado – diz Lela, começando a descer as escadas.
– Espera! – grita-lhe Marika. Está lá em cima, no patamar, a olhar para
Lela, abaixo dela. – Ele vai fazer os trabalhos?
Lela pensa por um momento e depois responde-lhe, também a gritar:
– Vai fazer, sim!
*

No dia seguinte, Lela e Irakli recebem Marika na portaria. Irakli está


sentado à mesa, com um caderno com poucas folhas e uma caneta
pousados à sua frente. Marika senta-se diante dele.
– Hello – diz Marika e olha, expectante, para Irakli.
Irakli olha para Lela. Lela encolhe os ombros.
– Hello é o mesmo que gamarjoba, olá. É o que se diz para
cumprimentar alguém. Vamos treinar. Eu cumprimento-te, e tu
cumprimentas-me.
Irakli acena com a cabeça.
– Hello – diz Marika.
– Hello – papagueia Irakli.
– Perfect – diz Marika e traduz também.
Lela fica a assistir à aula. Irakli aprende algumas palavras em inglês e
depois escreve-as no caderno. Rapidamente se torna evidente que Irakli já
não se lembra, não sabe escrever ou simplesmente nunca aprendeu várias
letras do alfabeto georgiano. Marika muda de tática, decidindo que Irakli
precisa de treinar isso primeiro. Lela não concorda, mas Marika convence-
a de que ele nunca conseguirá aprender outro idioma se não souber
escrever na sua própria língua.
– Se ele tentar aprender tudo de cor, vai ser um pesadelo ensiná-lo –
desabafa Marika, coçando o nariz. – Como é que ele pode escrever, se não
sabe as letras?
Com a ajuda de Lela, Irakli escreve as trinta e três letras do alfabeto
georgiano no seu caderno. Quando chega à última letra, uma que é tão
raramente utilizada que Marika tem de orientar a mãozinha dele para o
ajudar, Irakli está exausto. A aula acaba. Irakli diz que está com dores de
cabeça, e Lela dá cinco lari à professora improvisada.
Marika sai da portaria e depara-se com uma multidão de crianças.
– I just called to say I love you – grita Levan.
Marika não consegue deixar de sorrir.
– Sabes ao menos o que é que isso significa? – pergunta-lhe.
Levan cora.
– Amo-te – diz Marika. – Miqvarkhar.
As palavras de Marika provocam uma algazarra. As crianças começam a
gritar de tanto rir, e Levan faz uma careta, como se estivesse a chupar um
limão.
Lela sai da portaria.
– Desaparece, Levan. Deixa a rapariga em paz, ouviste?
– Oh, deixa-o estar. Não faz mal – serena-a Marika.
– Porque é que eu hei de ir-me embora agora? Ela acabou de dizer que
me ama – desafia Levan, e as crianças desatam a rir outra vez.
A campainha toca, e toda a gente corre para o refeitório. Enquanto vai
andando, Irakli vai murmurando para si próprio, «Perfect! Perfect!»
*

Lela olha para o que está em cima da mesa: batatas cozidas e costeletas.
Não costeletas de carne mas as costeletas falsas, feitas de vários tipos de
pão duro, cebola e ervas aromáticas, passadas por farinha e depois fritas.
Perto delas está uma garrafa de três litros de molho de fruta amarga e uma
pasta de tomate aguada, com pedaços de cebola a flutuar. As crianças
atiram-se ao molho, deitando-o diretamente da garrafa para os pratos. Lela
serve-se de uma única costeletinha, põe tudo na boca de uma só vez,
mastiga e engole. Levanta-se e vai para o pátio.
Acende um cigarro e avança pelo caminho contíguo ao lugar das
pereiras. Deambula pela lateral do edifício e para junto aos degraus do
bloco dos dormitórios. Ainda estão todos no refeitório. Lela atira a beata
para um canto e entra. Dirige-se ao último andar e encaminha-se para o
quarto dos trampolins. Ainda se encontra a alguma distância quando
repara que a porta está aberta. Entra e vê Vaska de costas para ela, na
ombreira da porta onde dantes estava a varanda, a olhar para o chão. Ele
não se apercebe de que Lela entra. Ela vai em bicos de pés, agarra-lhe a
camisola interior com as duas mãos e dá-lhe um forte abanão.
– Buuu!
Aterrorizado, Vaska estende os braços instintivamente, como uma ave
prestes a voar. Consegue recuperar o equilíbrio e vira-se para Lela. Caem
um em cima do outro, de braços no ar, como dois carneiros a trancar os
chifres, e lutam durante muito tempo e a sério. Vaska faz uma careta,
vermelho pelo esforço. Parece estar prestes a chorar. Lela está exausta. De
repente, ao mesmo tempo, largam-se um ao outro. Ofegantes, deixam-se
cair em cima das camas.
– Qual é o problema, assustei-te? – pergunta Lela, quase sem conseguir
recuperar o fôlego.
Vaska endireita a roupa.
– Que estavas a ver lá em baixo, hã? A vista é muito melhor, se caíres e
esmagares a cabeça no cimento. Mas, afinal, que é que estás aqui a fazer?
Porque é que abriste a porta?
Vaska levanta-se e dirige-se para a porta.
– Já estava aberta – diz ele, olhando fixamente para Lela. Ela aguenta o
olhar dele; o seu rosto já parece mais calmo, e o sorriso, que esteve
ausente durante a luta, está de volta.
– Estava aberta, não estava? – Lela parece duvidar. – Não te armes em
inocente comigo.
– Estava aberta – repete Vaska.
– E o cadeado?
– Nicles.
Lela olha para ele. Aquele sorriso está a começar a enervá-la.
– Porquê esse sorriso dengoso?
– Sorriso dengoso? Eu?
– Não, eu. És um idiota, sabias? – Lela suspira. – Não vais jantar?
Despacha-te, se não queres chegar demasiado tarde.
– Não tenho fome – diz Vaska.
– Sabes, não consigo perceber-te – continua Lela. – Que fazes tu numa
escola especial? És mesmo estúpido, ou finges que és?
– Quem, eu?
– Não, eu.
Vaska não diz nada. Limita-se a dar meia-volta e a ir-se embora. Lela
fica a vê-lo afastar-se, ainda à espera de uma resposta.
– Eu que não te apanhe aqui outra vez, Vaska, ou então parto-te as
pernas.
Ele desaparece pelo corredor.
6

Vou matar o Vano antes do inverno, pensa Lela para si própria. Agora é
verão. Ainda tenho muito tempo. O Irakly vai-se embora em setembro e,
depois de ele ir, mato o Vano. No fim do inverno. Depois disso, pode já ser
tarde demais. É tão velho que pode até vir a morrer sozinho…
Lela não suporta essa ideia. Jura a si própria que Vano não terá uma
morte natural.
*

Está sol e sopra uma brisa agradável lá fora. Lela está sentada no
patamar que fica no cimo da escada de incêndio, a pensar no inverno em
que ela, Irakli, Levan e Vaska foram roubar lenha ao barracão do vizinho.
O dono apanhou-os lá. Fechou a porta do barracão e ameaçou chamar a
polícia. Também lhes deu uns safanões. Irakli começou a chorar. Levan
estava demasiado assustado para falar. Mas Vaska puxou de toda a sua
coragem e disse: «Tínhamos tanto frio que pusemos os nossos sapatos na
lareira e agora já não temos mais nada para queimar! Foi por isso que
viemos roubar-lhe lenha!»
O vizinho era um homem carrancudo e trabalhador que nunca olhava
ninguém nos olhos e tinha pouco interesse em falar com as outras pessoas,
mas as palavras de Vaska pareceram chegar-lhe ao coração. Abriu a porta
do barracão de par em par e olhou fixa e longamente para as crianças ali
de pé, ao luar, dando-lhes depois a maior quantidade de lenha seca que
elas conseguiram carregar e deixando-as ir embora. Viu-as sair, abanando
a cabeça. As crianças rastejaram de volta para o pátio, encolheram-se para
passar pela vedação, pousaram a lenha no chão e suspiraram de alívio.
Encontraram Stella sentada junto à vedação, a chorar, à espera de que eles
regressassem sãos e salvos.
Nessa noite, puderam aquecer-se. Lela também sentiu um pouco mais de
calor em relação a Vaska. Não que ela lhe tivesse dito fosse o que fosse.
Nem sequer sorriu para ele. Apenas deixou que se sentasse junto à lareira
e falasse.
Este inverno vou-me embora, pensa Lela, a desfrutar do sol. Assim que
matar Vano, pegará nas suas coisas e abandona a escola. Talvez vá para
um sítio mais central. Tem alguns antigos colegas da escola na Rua
Lotkin. Pode ser que fique com eles uns tempos. Ou que vá à procura de
Yana. Ou que, como último recurso, apanhe um comboio para ocidente.
Para Batumi, talvez. Podia ir à procura de Marcel. Tem a certeza de que
toda a gente conhecerá Marcel. Provavelmente, têm todos medo dele.
Primeiro, vai tentar descobrir Marcel; e, depois, vai para a praia. Só a
ideia de ver o mar deixa-a entusiasmada. Não sabe nadar, mas há de
aprender.
*

Em todos os meses de junho, a cerejeira no jardim de Tariel dá uns


enormes frutos vermelhos, e todos os anos Tariel espera pacientemente
que eles amadureçam. Leva algumas cerejas maduras para casa, para
comer na altura, e outras para guardar em conserva, e vai vender o resto
para a rua. Arrasta uma velha mesa de madeira para fora do pátio e põe os
baldes de cerejas em cima dela. Se estiver muito calor, espeta três postes
no chão e faz um toldo com um lençol velho. Cobra um bom preço pelas
suas cerejas e não gosta de pessoas que vêm regatear.
Esta cerejeira tem causado um sem-fim de problemas ao longo dos anos.
Desde o primeiro dia, Tariel tem feito tudo para manter as crianças longe
dela. Comprou um cão pastor. Depois uma das crianças escondeu uma
agulha na comida do cão, e ele morreu ali mesmo no pátio, à frente dos
olhos do dono. Numa outra ocasião, o antigo porteiro apareceu a correr
com a espingarda da caça para assustar algumas crianças que tinham
subido à árvore. Disparou um tiro para o ar e uma das crianças caiu e
partiu as duas pernas. Desde então, a mulher tem-lhe implorado para
acabar com aquilo, mas Tariel nem quer ouvir falar disso. Vai observando
pacientemente enquanto os cachos de cerejas rebentam entre as folhas
ovais, crescem e finalmente amadurecem. Lela costumava roubar fruta da
árvore de Tariel, mas uma vez ele apanhou-a e deu-lhe uma valente
descasca. Desde então, ela tem-se mantido longe.
*
Lela e Irakli vão a caminho do quiosque para comprarem cigarros.
Passam pela vedação de Tariel.
– As cerejas já estão maduras, Lela – diz Irakli.
– Se estão maduras, o Tariel há de encarregar-se delas. Não vão ficar por
comer – responde Lela.
Irakli espreita pela vedação e vê os ramos a murmurarem na brisa e as
folhas a dançarem, mostrando sedutores cachos de frutos vermelhos.
De vez em quando, aparecem mulheres idosas para esvaziar os baldes
de água que puseram à frente dos seus portões, como se, de alguma forma,
isso fizesse arrefecer o ar, deixando os transeuntes maravilhados com o
quão limpas e arrumadas devem estar as suas casas, se até têm tempo para
varrer e enxaguar a terra da rua.
Irakli suspira.
– Como é que eu posso ir para a América sem provar as cerejas do
Tariel?
*

Nessa noite, Lela reúne Irakli, Levan, Vaska e Stella na portaria e diz-
lhes que mais tarde, ainda naquela noite, vão roubar as cerejas de Tariel.
Agora, o antigo porteiro tem um enorme cão de raça mista chamado
Bandido, um animal peludo com um grande corpanzil, uma cabeça
quadrada, um focinho descomunal, uns olhos bondosos e umas patas
enormes. No que diz respeito a Tariel, o cão não lhe serve para nada. O
Bandido conhece toda a gente na rua e todas as crianças da escola. Não
ataca nada nem ninguém. As únicas coisas que ele faz são saltar e deitar-se
ao sol. Os gatos da vizinhança passam tão perto dele que lhe tocam no
focinho com as caudas, e ele limita-se a continuar deitado, imperturbável.
Às três da manhã, Lela levanta-se para ir acordar Stella. Ela salta
imediatamente da cama, ainda com a roupa do dia anterior, meio
adormecida, mas pronta para a tarefa que tem em mãos. Descem as
escadas em bicos de pés. Irakli, Levan e Vaska estão à espera na portaria,
às escuras.
Saem juntos do pátio, com as suas sombras a rastejarem atrás deles,
corpos negros alongados que se deslocam ligeiramente para um lado,
como se estivessem a tentar libertar-se, mas que são obrigados pelo luar a
seguir os seus donos para onde quer que vão. A noite está quente, a brisa
que sopra por entre os ramos das árvores é quase impercetível. Param
junto ao portão de Tariel e Narcissa. Lela trepa pela vedação e chama
baixinho para o pátio:
– Bandido!
O parvo do cão vai até junto da vedação, a abanar a cauda. Lela volta a
descer, mete a mão por dentro do portão e desaperta um arame torcido
para o abrir. O Bandido enfia o focinho pela abertura. Enquanto Lela lhe
faz festas, Stella agarra-o pela coleira e puxa-o para fora.
– Aqui, Bandido. Anda, rapaz – diz-lhe afetuosamente.
Irakli ajuda-a a atar uma corda à coleira.
– Tariel chama a este pateta Bandido, mas a bruxa com quem é casado
tem o nome de uma flor? Que justiça é esta? – exclama Levan.
– Leva-o para bem longe daqui, e não passes perto do Suliko, para os
cães dele não começarem a ladrar. Combinado, Stella?
– Eu sei – sussurra Stella, e atravessa, confiante, a rua iluminada pelo
luar, segurando o Bandido pela coleira. Está com o vestido de folhos cor-
de-rosa que era de Nona, e este esvoaça quando ela corre. O Bandido
geme de felicidade, deliciado com aquele passeio noturno.
Lela entra no jardim e faz sinal aos rapazes para a seguirem.
– Quando atirarem as pedras, vejam se não acertam na garagem – diz-
lhes em surdina. – E, se eu assobiar, fujam, OK? – acrescenta, metendo a
T-shirt para dentro das calças. Aperta mais o cinto. Os rapazes fazem o
mesmo.
– Devíamos apanhar primeiro algumas para a Stella, não? – sugere
Irakli.
– Se todos lhe dermos cerejas, vai apanhar uma caganeira – diz Levan, e
os outros rapazes riem à socapa.
– Cala-te, idiota – repreende-o Lela.
Ela fecha o portão por dentro. Agora que os seus olhos já se habituaram
ao escuro, conseguem ver com nitidez o pátio da frente de Tariel,
impecável, e uma casa simples de tijolo com uma porta de vidro, coberta
por uma cortina do lado de dentro. Lela avança em direção à cerejeira de
Tariel.
Decide então mandar primeiro o mais pequeno. Ela e Vaska dão uma
ajuda a Irakli; ele sobe para a árvore e desaparece no escuro. Depois Lela
faz sinal a Levan, e ele sobe com cuidado para os dedos entrelaçados
deles. A seguir Levan salta, abraça o tronco com firmeza e vai subindo
pelos ramos até, à semelhança de Irakli, ser engolido pela escuridão.
Só Lela e Vaska ficam no chão.
– Sobe também – sussurra Vaska, e baixa-se para ela poder subir para as
suas costas.
Lela faz balanço com um pé e trepa para cima da árvore. Encosta a cara
ao tronco rugoso e fecha os olhos. Abraça o tronco como se fosse um
amante, e a árvore fica imóvel, como que enfeitiçada, abanando apenas
muito ligeiramente quando o vento perpassa pelos seus ramos. Por fim,
também Vaska põe os braços e as pernas à volta do tronco e começa a
subir devagar. Agarra um ramo com uma mão, balança o corpo e fica ali
pendurado, como um macaco esguio e magro.
A cerejeira balança um pouco sob o peso dos seus saqueadores
noturnos, mas aguenta firme; como uma mãe que acolhe os filhos
famintos, os acaricia e sussurra invocações que os protejam do mau-
olhado. Há um restolhar súbito das folhas e o estalido de um ramo que se
parte debaixo do pé de um deles. Param todos, mas o único som que
conseguem ouvir é o cantar dos grilos debaixo da vedação.
Enchem as T-shirts de cerejas, que apanham aos cachos, com folhas e
tudo, e depois metem entre o tecido e a própria pele. Também comem uma
ou outra. Um deles cospe um caroço, que faz ricochete no telhado de
ardósia, emitindo um tinido. Mais uma vez, ficam todos imóveis, mas
novamente nada acontece.
Lela estica-se num dos ramos para tentar alcançar um outro que está
carregado de cerejas, mas vê depois que Vaska já está de volta dele.
Olham um para o outro. Lela estuda a cara sorridente de Vaska ao luar. Ele
inclina-se para trás com todo o seu peso para tentar puxar o ramo para
mais perto, para que Lela consiga alcançá-lo. Ela agarra-o com uma mão,
mas o ramo é grosso e forte. Vaska agarra-o com as duas mãos, dando a
Lela todo o tempo de que ela precisa. Lela não tem pressa; arranca os
cachos de cerejas, prova-as e cospe os caroços para muito longe, para lá
do telhado da garagem. Atira algumas a Vaska, fazendo pontaria à cara
dele. Ele desvia ligeiramente a cara para o lado e, por um momento, Lela
deixa de o ver no meio das folhas, até que volta a encontrar aqueles olhos
cor de avelã a olharem para ela. Lela apanha as cerejas uma a uma, como
se estivesse a testar quanto tempo Vaska consegue aguentar, até que
finalmente solta aquele e muda para outro ramo. Puxa um galho fino e
flexível para si e solta-o. O ramo chicoteia a cara de Vaska, que o afasta.
Saem em silêncio pelo portão, com as T-shirts tufadas, a abarrotar de
cerejas. Stella está do outro lado da rua, a passear o Bandido para cima e
para baixo. Corre para os amigos. A Lua está tão brilhante que quase podia
ser de dia. Stella desata a corda da coleira do cão, faz-lhe uma festa e
empurra-o pelo portão aberto.
Lela fecha o portão.
Alguns minutos mais tarde já estão de volta ao recinto da escola. Sobem
a escada de incêndio e sentam-se lá no alto, três no patamar, dois no
último degrau. Stella abre a saia do seu vestido cor-de-rosa e Lela enche-a
de cerejas que vai tirando de dentro da sua T-shirt. Os olhos de Stella
brilham de alegria.
– O Bandido portou-se tão bem. Não fez nem um barulhinho – diz,
orgulhosa, e cospe o caroço de uma cereja na direção dos abetos.
– Ele é esperto, ao contrário do Vaska. Primeiro partiu um ramo, depois
atirou o caroço mesmo para cima do telhado da garagem – diz Lela, e
todos se riem. – Levá-lo connosco foi mesmo estar a pedir que houvesse
problemas – acrescenta, à laia de provocação.
Vaska não diz nada.
– Vais pensar em nós quando estiveres na América, Ika? – desembucha
Stella, repentinamente.
– Claro que vai – diz Levan –, porque vai estar tão infeliz que vai
adormecer a chorar todas as noites: Stella, quero a Stellaaaaaa…
Stella dá uma risadinha, toda excitada.
– Não consigo imaginar-me na América. Estou sempre a pensar que
nada disto é real – confessa Irakli, pensativo.
– Estás sempre a pensar nisso, homem. Mas pensar nisso não faz com
que seja realidade – contrapõe Levan.
– Nunca te cansas? – pergunta Lela, divertida.
– Podes ter a certeza de que não! Leva-me a essas aulas de inglês e vais
ver como eu sou esforçado!
Dá uma cotovelada a Stella.
– Ouve lá, Stella, diz-lhes para onde é que vais trabalhar quando fores
crescida!
– Não quero – responde Stella, envergonhada.
– Coitadinha dela, contou isso uma vez e ainda continuas a gozar? –
comenta Vaska.
– Vá lá, Stella, conta à Lela! – insiste Levan.
Stella solta um suspiro profundo.
– Vou trabalhar na Faculdade de Indústria Ligeira.
Os rapazes desatam a rir histericamente. Stella fica ofendida.
– Aonde é que foste buscar essa ideia, Stella? – pergunta-lhe Lela.
Stella limita-se a dar outro suspiro.
– A Dali estava a falar daquela rapariga sem família que começou a
trabalhar na Faculdade de Indústria Ligeira, e como a Stella parece um
papagaio…
– Ouve lá, não sou nenhum papagaio – grita Stella, e Lela lança-lhe um
olhar furioso. – Ele é que é um papagaio! Diz-lhe, Lela!
– Está bem, está bem, mas falem baixo – pede Lela com gentileza.
– Sabes uma coisa, Stella? – continua Levan. – Sabes o que é que dizem
das raparigas que trabalham lá? «Se queres uma verdadeira profissional»,
dizem eles, «arranja uma rapariga da Faculdade de Indústria Ligeira.» São
as que trabalham melhor em toda a cidade!
Nem sequer Lela consegue deixar de rir.
– Porque é para lá que vão as putas, não é? Verdadeiras profissionais, o
melhor trabalho da cidade, estás a perceber?
Stella está desesperada.
– Cala-te! – diz, quase a chorar. – Diz-lhe que não é verdade, Lela!
– Pronto, pronto, não é verdade – confirma Lela para a tranquilizar.
– Stella, meu amor – diz Levan, entre risadinhas –, não nos
envergonhes! Não vás trabalhar para lá, porque senão o Irakli nunca vai
conseguir olhar os americanos nos olhos!
– Oh, por amor de Deus, Levan! – ralha Stella. – Cala-te, OK?
Semicerra os olhos, preparada para o próximo insulto de Levan, mas ele
não chega a vir. Apenas bate as palmas, com um ar triunfante, e dá uma
gargalhada.
*

Stella acaba por adormecer lá em cima, no último degrau. Irakli abana-


a, mas não consegue acordá-la.
Lela pega em Stella ao colo. Descem devagar a escada de incêndio e
regressam ao bloco dos dormitórios. O luar goteja no pátio através dos
abetos; parece que o chão está coberto por uma leve camada de neve.
Os rapazes seguem Lela até ao dormitório das raparigas. Ela põe Stella
na cama, tapa-a e olha para a folha de cerejeira que a pequena está a
agarrar.
Depois volta para junto de Levan, Vaska e Irakli, que ficaram à espera
no corredor, passando um cigarro entre eles. Deixaram as últimas passas
para Lela.
Quando chegam ao andar de baixo, despedem-se, e os rapazes vão para
o seu dormitório. Lela continua a descer e vai para a portaria. Atira-se para
cima da cama vestida e tudo.
*

No dia seguinte, o sabor doce das cerejas de Tariel azeda rapidamente


quando ficam a saber que o dono matou o Bandido com a espingarda de
caça. Stella começa a chorar. Tariel aparece com uma pá e o cadáver do
Bandido num carrinho de mão. Lela interceta-o e oferece-se para enterrar
o cão. Tariel, que parece ter envelhecido durante a noite, olha para Lela
com desconfiança, depois pousa o carrinho de mão e diz:
– Tragam depois o carrinho de volta. E não percam a pá.
Os companheiros noturnos do Bandido cavam-lhe uma sepultura no
pequeno monte entre o bloco dos lavabos e o recreio. As outras crianças
ficam por perto, a vê-lo ser enterrado. Enquanto os rapazes pisam a terra
sobre a sepultura do pobre Bandido, Stella vai apanhar dentes-de-leão e
ranúnculos e deita-os sobre a terra. De olhos lacrimejantes e consternada,
também ela parece subitamente mais sábia, como alguém com quem foi
partilhada uma nova e terrível verdade.
Lela vai devolver o carrinho de mão a Tariel, como prometido. Leva
Stella consigo. Quando chegam à rua, pega em Stella e senta-a no carrinho
de mão, dá-lhe a pá para que a segure e arranca rapidamente, como se
Stella tivesse acabado de pôr prego a fundo no acelerador. A velocidade
inclina Stella para trás, mas ela lá consegue endireitar-se e ri
euforicamente. Sentada no carrinho de mão e empunhando a pá, é como
uma canoísta a remar em rápidos. Mergulha a pá nas ondas, com uma
expressão em que se misturam medo e alegria.
É mais difícil subir pela corrente. Quando chegam à Rua Kerch, Stella
salta do seu barco e lutam as duas contra a força da corrente. O ar parece
espesso e pesado, como se o céu e as nuvens estivessem a fazer pressão,
expulsando os pássaros do céu.
– Vai chover – diz Lela, vendo os pardais a voar perto do asfalto,
circulando como se estivessem a conspirar, descansando depois
brevemente e a seguir, sentindo o perigo, elevando-se todos ao mesmo
tempo no ar, voando rapidamente até desaparecerem.
Narcissa vai ter com eles ao portão. Recebe o barco e o remo sem dizer
nada e oferece a Lela uma moeda de dois lari.
– Não queremos dinheiro, mas obrigada – diz Lela.
– Não queremos dinheiro – ecoa Stella.
Quando vão a regressar à escola, o céu desaba. Desatam a correr. Stella
dá instintivamente a mão a Lela, mas Lela afasta-a, preferindo que corram
lado a lado, sem se tocarem, como pardais a voar no seu murmúrio.
Correm para a escola, encharcadas até aos ossos. Não veem as outras
crianças em lado nenhum.
– Aposto que estão nos trampolins! – exclama Stella, furiosa.
Correm escada acima. Stella, ofegante mas determinada, tem de se
esforçar para não ficar para trás. Está toda orgulhosa por estar a ajudar
Lela.
Chegam ao quarto dos trampolins. A porta está destrancada. Não está
ninguém no corredor, mas ouvem as camas a chiar lá dentro. Stella ergue
as sobrancelhas e olha para Lela com um ar muito sério, como se não
conseguisse acreditar que alguém tivesse tido semelhante ousadia. Lela
põe o dedo nos lábios e espreita lá para dentro: está a pingar muita água
do teto e, no meio do quarto, a saltar para cima e para baixo numa das
camas, ofegante, a suar, ignorando tudo à sua volta, está Irakli. Lela
apanha breves trechos de inglês, frases das suas lições com Marika: I am
fine! My name is Irakli! Escondidas na ombreira da porta, Lela e Stella
olham fixamente para ele. Do outro lado da inexistente porta da varanda, a
chuva cai, quase formando uma cortina.
– I am fine! – grita Irakli outra vez.
Lela fecha a porta devagar. Abana a cabeça para dizer a Stella que fique
calada. Tornam a descer as escadas.
– Lá por eu não ter dito nada ao Irakli, não quer dizer que tu possas ir lá
para cima. Entendido, Stella? – diz Lela.
– Eu sei, eu sei – responde Stella, e vai a correr até ao dormitório para
mudar de roupa. – Ele não vai poder saltar assim na América, pois não?
– Não – corrobora Lela. – Não vai.
*

Irakli não tem aula de inglês no dia seguinte. Marika manda os filhos de
uma vizinha dizerem a Lela que ela está com muitas dores de barriga.
Irakli fica encantado.
– Deve estar naquela altura do mês – comenta.
Lela dá-lhe um puxão de orelhas.
– Não tens de repetir tudo o que ouves, percebeste?
*

Depois do jantar, Irakli e Lela vão até ao campo das pereiras. O ar tem
um cheiro fresco e limpo, depois da chuvada da noite. Tirando a tagarelice
dos pássaros nas árvores, não se ouve um único som. A relva é de um
verde exuberante e vibrante. Lela avança pelo caminho contíguo ao
pomar, a fumar. Irakli caminha ao seu lado.
– Lela – diz Irakli, de repente –, acho que o Vaska gosta de ti.
– Cala-te, está bem?
– Não estou a dizer isto para te enervar.
– Sabes uma coisa? – diz Lela em voz baixa, puxando uma última
fumaça –, acho que o Vaska gosta é de ti, não de mim; e, se não tiveres
cuidado, caso-te com ele. Podes ficar com a Stella como dote. Pensando
melhor, não, é demasiado boa para ti. Em vez dela, podes ficar com a Dali
ou a Tiniko.
Irakli suspira.
– Às vezes, é impossível falar contigo. – Lela deita fora a beata do
cigarro e olha para as pereiras do pomar. Os seus ramos nodosos,
retorcidos, estão descaídos por causa da chuva intensa. – Está bem, não
acreditas em mim. Mas já viste a quantidade de merdas que ele aguenta de
ti sem dizer nada? Eu cá não admitiria isso, podes ter a certeza.
– Ele aguenta porque tem medo de mim, não achas?, o cagarolas do
ciganito.
– Ele não tem medo de ti, Lela. O Vaska não tem medo de ninguém.
Lembras-te de quando aquele rapaz veio cá jogar futebol, aquele matulão,
e nos chamou atrasados mentais e mandou o Vaska para o caralho…?
Lembras-te do que o Vaska lhe fez?
Lela fica a pensar por um momento.
– Vais buscar-me uma pera?
– Posso trazer-te uma, mas não vais comê-la, pois não?
– Mas vai lá buscá-la na mesma.
Irakli descalça os sapatos e as peúgas e enrola as pernas das calças.
Quando chega ao meio do terreno onde as peras caem, pergunta a Lela:
– De que árvore é que queres que a tire? Se eu cair e me afogar aqui, a
culpa é tua.
– Não te preocupes, não te vais afogar.
– O que é que achas destas? – Aponta para um ramo carregado de peras.
– Pode ser.
Irakli olha para as peras grandes, redondas e verdes. Agarra uma e puxa-
a. Com os braços levantados, torna a atravessar o terreno até chegar à terra
seca, trazendo a pera de Lela. Tem as pernas cobertas de lama até aos
joelhos. Irakli atira então a pera a Lela. Ela apanha-a, limpa-a nas calças e
enterra-lhe os dentes.
– Não, não é boa – diz, e devolve-a a Irakli.
– Se fossem boas, já não havia nenhuma na árvore! – comenta Irakli,
dando de qualquer forma uma pequena dentada. Arrepia-se, inclina-se
para trás e, com a sua máxima força, atira a pera outra vez para o pomar,
onde ela acaba por cair.
7

Em meados de julho, o calor é tão sufocante que leva os moradores a


ficarem dentro de casa para se esconderem do sol. Os constantes boatos do
bairro ameaçam parar. No entanto, dos apartamentos ao lado da escola
chega o rumor de que Manana deixou Goderdzi. Cada um tem a sua
própria teoria. Alguns afirmam que, de facto, ele pô-la fora de casa
quando lhe chegaram aos ouvidos certos boatos. Alguns duvidam de que
Manana fosse virgem quando se casaram. Outros têm a certeza de que é
por Goderdzi ser impotente. Seja qual for a razão, a adorável Manana faz
as suas duas malas e prepara-se para deixar a Rua Kerch para sempre.
O pai dela chega para a vir buscar. Encaixa as malas da filha na
bagageira do seu Lada e fecha-a. O cabelo preto ondulado de Manana está
solto e o sorriso orgulhoso que ostentava no dia do seu casamento
desapareceu sem deixar rasto. Está pálida mas, mesmo assim, os vizinhos
não conseguem deixar de reparar como é bonita. Goderdzi está escondido
dentro de casa. Venera põe a cabeça de fora de uma janela do rés do chão
e passa a Manana o casaco de pele que ela deixou no guarda-roupa. Pelos
vistos, não há qualquer hipótese de ela voltar no inverno. As coisas
parecem amigáveis: o pai de Manana e Venera estão a comportar-se de
uma maneira tão cordial, tão afável, que qualquer pessoa que por ali passe
assumirá que a jovem está apenas a partir para uma curta viagem.
Manana entra no carro sem se despedir da sogra. O pai dela vai até à
janela.
– Então adeus, Venera. Fique bem – diz em voz baixa.
Venera não responde. Olha tristemente para o homem que lhe leva a sua
bela Manana para sempre. Ninguém melhor do que Venera sabe que não
se deixa uma rapariga como Manana sair da sua vida, mas que pode ela
fazer? Manana abre a janela para apanhar ar, no momento em que o carro
sai do pátio. Não olha para Venera, que fica ali, à janela, desamparada.
Passado um mês, Venera torna a contratar o refeitório. Goderdzi vai
voltar a casar-se, desta vez por intermédio de uma casamenteira, com uma
refugiada da Abcásia.
Escusado será dizer que a escola inteira faz o que pode para ajudar
Venera, que parece querer esquecer o primeiro casamento do filho o mais
depressa possível e, mais importante ainda, garantir que os vizinhos
também o esquecem.
*

No dia seguinte, no pátio, enquanto Goderdzi está deitado de costas


debaixo do carro, rodeado por outros jovens, Lela passa por Koba e – em
surdina, para que ninguém possa ouvir – diz-lhe:
– Preciso de falar contigo.
Encontram-se ao fundo da Rua Kerch. Lela abre a porta do carro e entra.
Koba parece satisfeito; põe o carro a trabalhar e começa a andar em
direção à autoestrada de Tianeti. Lela olha pela janela para a estrada, as
casas, os cães mortos na faixa de rodagem, as pessoas que vão a passear,
estranhos que não fazem ideia de que, nesse preciso momento, Koba está a
levar Lela para a floresta. Essa ideia fá-la feliz.
Koba sai da estrada principal e envereda por um estreito caminho de
terra batida. Há campos de milho à esquerda e à direita, tudo é verde até
onde a vista alcança e, à frente, há um caminho que contorna um monte
baixo, onde uma vaca castanho-avermelhada está a pastar, depois o
caminho sobe e desaparece na floresta.
Koba começa a despir-se. Hoje não está com a camisa das palmeiras
mas com uma camisa aos quadrados azuis e pretos, com uma T-shirt
branca por baixo. É magro e ossudo. Tira as calças de ganga e atira-as para
o banco de trás.
– Despe-te – diz a Lela. Ela apaga o cigarro com cuidado, guarda o resto
das coisas que tem no bolso da frente da blusa e começa a despir-se.
Nesse momento, Koba está sentado apenas de bóxeres e peúgas. Os
bóxeres ficaram esticados no centro, como se estivessem por cima de um
cone. Koba tira um preservativo da carteira. Lela está meio despida,
apenas com a T-shirt e as cuecas. Baixa o encosto do assento. Koba puxa-
lhe as cuecas para baixo e resmunga para ela as tirar. Ele baixa os bóxeres
e põe o preservativo. O animal esfolado, pensa Lela. Ela ainda tem um pé
preso nas cuecas quando Koba enfia a picha com o seu pequeno
revestimento de látex dentro dela e geme. Começa a mexer-se e depois
puxa a T-shirt de Lela para cima e atira-se ao seu seio esquerdo como se
estivesse a amassar farinha. Está a começar a suar. Lela tenta acompanhar
o ritmo dele para que ele se venha depressa, mas Koba não gosta. Quer ser
ele a controlar o vai-e-vem, vai-e-vem. Lela tem as pernas no ar, com as
plantas dos pés pressionadas contra o tecido do tejadilho, e é apanhada de
surpresa quando Koba põe os lábios em cima dos dela e pressiona a sua
enorme boca contra a dela. Lela sente os lábios frios dele e a língua
molhada às voltas na sua boca como um peixe a morrer. Está com uma
sensação estranha, com um nó no estômago e, pondo as pernas à volta das
costas suadas de Koba, começa a balançar as ancas. Koba fica ainda mais
excitado, mas continua a não deixar Lela mexer-se. Tira os lábios dos dela
e agarra um pé com cada mão. Os seus movimentos tornam-se mais
frenéticos. Lela não resiste. Qualquer desejo que pudesse ter de se mexer
desaparece; o nó no estômago desfaz-se. Com dois impulsos do seu rabo
escanzelado, Koba vem-se, dá um rugido e deixa-se cair em cima de Lela
como um peso morto.
Passados alguns minutos, já estão outra vez vestidos e no carro em
movimento, a dirigirem-se de novo a Tbilisi. A luz do dia está a
desvanecer-se. Lá fora, há algumas pessoas de pé com as suas malas, à
espera de um autocarro e, nesse momento, Lela pensa que provavelmente
seria assim que um marido e uma mulher iriam sentados num carro, ao
crepúsculo, a caminho de casa, onde os filhos os aguardariam.
Koba para a alguma distância da escola e dá cinco lari a Lela.
Lela vai-se embora, a fumar um cigarro. Entra na portaria, deita-se e, ao
fim de poucos minutos, adormece.
*

Irakli tem mais uma aula na portaria. Lela parece abatida, esparramada
na cama, sem se mexer e a olhar para o teto.
Irakli tem os olhos raiados de sangue. Nos últimos tempos, tem-se
queixado de dores de cabeça em todas as aulas.
– Então, diz-me lá outra vez o que dirias se quisesses comer.
– Dizia, I’m hungry ou I’m starvy.
– Starving.
– Pois – responde Irakli.
– Boa. Agora vamos treinar algum vocabulário – informa Marika.
Irakli suspira profundamente e olha para Lela como que a dizer que já
não aguenta muito mais.
– Estava aqui a pensar – Lela senta-se de repente na cama. – Podes
ensinar-lhe vocabulário a sério?
– Que queres dizer com «vocabulário a sério»? – pergunta Marika.
Irakli fica mais animado e sugere:
– Palavrões.
– Tu sabes… Aquelas palavras mesmo úteis. Como, por exemplo…
Qual é a palavra inglesa para, hum… masculinidade? – Lela tosse
intencionalmente.
Irakli resmunga. Lela ignora. Marika cora.
– É dick – diz Marika, divertida.
– O quê?! – exclama Lela, que não estava à espera de uma resposta tão
rápida.
– Sim, é dick – confirma Marika, confiante.
– Também se pode chamar isso a alguém? – pergunta Lela, a rir. –
Como, Shut up, dick?
– Porque iria ele querer fazer isso? – questiona Marika.
– Pode querer, não é? Se não precisar, não precisa; mas, se precisar, é
difícil telefonar-nos dos Estados Unidos para perguntar como é, não
achas? Vamos ensinar-lhe agora!
– Não tenho bem a certeza… – Marika pondera. – Piss off, you dick…11
Acho que pode servir. Não sei. Nunca aprendi palavrões, nunca precisei.
Só sei essa porque um tipo da minha aula estava sempre a perguntar-me se
eu queria ver o dick-cionário dele… Se quiseres saber mais, posso
perguntar. Conheço as pessoas certas.
– Queremos saber. Ele pode aprender as outras coisas, como cat e dog,
quando lá estiver. Temos é de lhe ensinar o que deve dizer para ninguém o
chatear!
– Pronto, está bem. E que mais? – pergunta Marika, arrancando uma
folha do caderno de Irakli e mantendo a caneta pronta para anotar.
Irakli está todo animado. Finalmente, está a acontecer qualquer coisa
que faz com que tudo aquilo valha a pena.
– Ora bem – diz Lela, sentada de pernas cruzadas em cima da cama, a
olhar pela janela. – Já anotaste Piss off, you dick?
– Já.
– Então, qualquer coisa como: «Tira as mãos de cima de mim,
vagabundo de merda.»
– Oh, meu Deus – exclama Marika, dando uma gargalhada. – Achas
mesmo que há vagabundos na América? Vou ter de ver o que consigo fazer
em relação a essa.
– E descobre como é que ameaças que vais foder alguém, se não te
deixar em paz.
Irakli dá uma risadinha. Marika toma nota.
– Ah, e se… – diz Irakli, desesperado por contribuir com qualquer coisa
para o seu livro de frases de emergência, mas sem conseguir lembrar-se de
uma asneira suficientemente forte. – Como é que eu podia pedir a alguém
que não me raptasse ou, hum…
– Espera – interrompe Lela. – Arranja qualquer coisa sobre partir-lhe os
ossos todos do corpo, um a um.
Marika toma nota.
– Mas eu acho que não vou andar pela América a dizer essas coisas. Lá,
é tudo diferente. Não é como na Geórgia.
– Mesmo assim, continua a escrever. Se ele precisar, pode usá-las.
Alguma vez o ouviste dizer um palavrão?
– Não…
– E achas que isso significa que ele não sabe nenhum palavrão? Ele é
tão asneirento como um soldado, e ainda bem para ele! Ou queres que as
pessoas abusem dele?
– Pronto, está bem – diz Marika, e continua a escrever. – Partir os ossos
todos… um a um…
– Isso mesmo! – anui Lela. – Por agora, chega. Depois pensamos em
mais.
Marika levanta-se para se ir embora. Lela dá-lhe cinco lari. Ainda está a
dever-lhe dez das duas últimas semanas, mas promete pagar-lhe em breve.
*

Madonna vem visitá-los. As crianças juntam-se em redor dela como


abelhas à volta de uma colmeia ambulante.
Dali corre à procura de Lela e Irakli. Chega à portaria completamente
sem fôlego, abre a porta e exclama:
– Está cá a Madonna!
Parada na ombreira da porta, com o cabelo em desalinho em silhueta
contra o sol, Dali parece uma estranha fada em forma de pera.
– Anda lá – insiste. – Os americanos mandaram fotografias! – Depois,
dá meia-volta e torna a sair à pressa. Por um momento, Dali parece uma
das crianças, a correr a toda a velocidade para desfrutar de um momento
de alegria no meio da monotonia da sua existência quotidiana.
Lela calça os sapatos, e ela e Irakli correm atrás de Dali.
No gabinete de Tiniko estão a diretora, Madonna, Dali e um grande
grupo de crianças a tentar ver as fotografias, que Madonna dispôs sobre o
seu amplo colo.
– Olha, Irakli, são os teus novos pais! A tua mãe, ali, e o teu pai – diz
Madonna.
Dali começa a chorar. A fotografia mostra um casal de pé à frente de um
relvado meticulosamente cuidado: um homem alto, com cabelo grisalho,
um bigode grande e um sorriso sincero, envergando umas calças de ganga
e uma T-shirt branca, e uma mulher de ancas largas, com um sorriso
rasgado e o cabelo liso, grisalho, pelos ombros, vestindo uma saia
comprida e colorida e uma blusa branca.
– São eles! O John e a Deborah – diz Madonna, radiante. – São tão boas
pessoas, não podes imaginar! Falei com alguns jornalistas, e eles hão de
vir falar contigo; estiveram sempre tão interessados! E as pessoas do
Ministério estão pura e simplesmente fora de si! Têm sido tão
prestáveis…
– Então, Irakli? Gostas do aspeto da Deborah e do John, querido? –
pergunta Dali.
– Acho que sim.
Lela olha fixamente para John e Deborah, para os seus rostos, as suas
roupas e o seu relvado. Mesmo no canto da fotografia, vê a parte da frente
de um carro.
– É o carro deles? – pergunta.
– Não sei – diz Madonna desinteressada, e pega noutra fotografia. Esta
mostra o resto da família de John e Deborah, jovens adultos que, segundo
Madonna, já têm as suas próprias casas. As fotos seguintes são de outras
crianças que John e Deborah criaram e que não se parecem nem com os
seus pais nem umas com as outras. As primeiras são brancas e louras, mas
depois vem uma fotografia de um jovem negro com uma capa preta e um
chapéu estranho, a olhar diretamente para a máquina fotográfica e a
mostrar os dentes todos num sorriso largo. As crianças desatam a rir.
– Meu Deus! – exclama Levan.
As crianças estão à beira da histeria. Madonna tenta explicar o que está
a acontecer na fotografia, mas com tanto barulho ninguém consegue ouvi-
la. Lela apanha o suficiente para perceber que aquele é o filho adotivo de
John e Deborah no dia da sua formatura no liceu.
Aposto que ele também recebeu uma medalha de ouro, pensa Lela,
lembrando-se de Kirile.
*

Koba e Lela encontram-se ao fundo da Rua Kerch. Koba não quer que
ninguém o veja com uma rapariga da Escola dos Idiotas. Vai sempre por
estradas secundárias e diz-lhe para se baixar quando veem alguém que ele
conhece.
Tem estado calor todo o dia mas, quando Koba sai da cidade, começa a
soprar uma brisa fresca que torna a temperatura do carro menos intensa.
Deitada, de pernas abertas, Lela ouve o chilrear dos grilos e pensa que
talvez esteja a aproximar-se alguém. Ela apoia-se nos cotovelos para
espeitar, enquanto Koba olha à sua volta até ter a certeza de que não está
lá ninguém. Lela torna a deitar-se, põe as pernas à volta de Koba e
acompanha o ritmo dele. Koba tenta assumir o controlo. Quase
instintivamente; Lela agarra-lhe uma das nádegas magras e puxa-o para
dentro dela com mais força e sente aquele nó no estômago e um calor em
todo o corpo, como se fosse só um feixe de fibras, um balão cheio de água
a deslizar suavemente para trás e para a frente, para trás e para a frente, até
o nó se desatar no seu estômago e o calor fluir por todo o corpo; e então
agarra a nádega de Koba com força e solta um grito repentino.
Profundamente excitado, Koba olha para ela, com uma gota de suor
pendurada na ponta do nariz, e depois rende-se ao êxtase e vem-se.
Lela sai do carro e vai fazer chichi ao campo. Não tem pressa de voltar.
Quando regressa, depara com Koba já vestido, de pé junto à porta do
condutor, a fumar. Lela pede-lhe um cigarro.
Sentam-se no carro em silêncio. Koba tira uma nota de cinco lari do
bolso das calças e dá-lha.
– Não quero – diz Lela, muito depressa.
Koba olha para ela, surpreendido.
– Não quero – repete Lela.
Está muito corada, e o cabelo, molhado com o suor, está caído sobre a
testa. Koba tem a sensação de ver a sugestão de um sorriso no rosto dela.
– Também me vim, ou não?
Koba dá-lhe uma bofetada com as costas da mão e rebenta-lhe o lábio.
Lela solta um grito de dor e tapa a cara com a mão.
– Não estás boa da cabeça, pois não? Sai já do carro!
Lela abre a porta com uma mão, a outra ainda a pressionar a boca, e sai.
Koba atira-lhe a nota de cinco lari e bate com a porta. Sai do campo de
marcha-atrás, deixando Lela ali especada, no caminho de terra batida,
rodeada de milho.
O som do carro desvanece-se algures ao longe. Lela pega na nota de
cinco lari e mete-a no bolso. Os grilos estão agora a chilrear mais alto.
Está a anoitecer e toda a paisagem tem um tom azulado. Uma brisa leve
dança pelo campo, e Lela ouve o som do mar no milho a restolhar.
Recompõe-se. De volta à estrada principal, fica à espera para pedir boleia.
Passado pouco tempo, um Lada 4x4 branco para junto dela. O condutor
tem uma expressão cansada no rosto e mãos de operário. Olha para a boca
manchada de sangue de Lela.
– Que aconteceu? Alguém te fez isso?
Apesar de não querer, Lela começa a chorar. Passa as mãos sujas pelas
faces para limpar as lágrimas, esfrega os olhos e contrai a cara. Sente uma
coisa qualquer presa na garganta, a asfixiá-la.
O homem para o carro. Dá-lhe uma garrafa de água.
– Estende as mãos para poderes lavar a cara.
Lela sai do carro e põe as mãos em concha. Depois, molha a cara com
água.
– Uma rapariga como tu não devia andar aqui sozinha – diz o homem,
quando já estão outra vez dentro do carro, a caminho de Tbilisi. – Há por
aí todo o género de pessoas más… Os teus pais ainda são vivos?
– São – responde Lela.
– Quantos anos tens?
– Dezoito.
– Onde é que moras? Eu levo-te a casa.
– Continue a guiar, e eu vou-lhe dizendo o caminho.
– Mas, afinal, o que é que andavas a fazer aqui? – pergunta o homem.
Passa por eles um camião enorme com um rugido ensurdecedor, a cuspir
um fumo negro espesso.
– Um amigo levou-me a passear – diz Lela. – E depois foi-se embora e
deixou-me aqui.
– E também foi o teu amigo que te fez isso? – pergunta o homem, sem
desviar o olhar para ela. Lela olha de relance para o homem e fica
admirada por ver umas rugas profundas desde o canto do olho até à
têmpora.
Ele abana a cabeça.
Lela olha pela janela. As perguntas do homem estão a deixá-la tensa.
Quando entram na cidade, a luz está a desaparecer depressa. Lela
reconhece a sua rua, mas manda o condutor seguir um caminho diferente e
pede-lhe que pare à frente de um bloco de apartamentos.
– Pode ser aqui em qualquer lado. Obrigada.
O homem espreita para o pátio. Há crianças a brincar e alguns rapazes a
andar por ali. É um pátio perfeitamente normal, iluminado pelo pôr do
Sol, com sombras frondosas que embelezam as paredes da torre de
apartamentos e uma mãe a chamar o seu filho de uma janela de um piso
superior.
– Deixa de andar com pessoas dessas. Há demasiados malucos à solta –
diz-lhe o homem.
Lela sai do carro e corre para o edifício que, na verdade, não é o seu.
*

Mais tarde nessa noite, quando Lela está no bloco dos lavabos, de
repente fica nervosa com o som de água a jorrar que ecoa através do
edifício escuro e deserto.
Vai para a portaria. Por entre a escuridão, consegue distinguir Irakli
deitado na cama, a dormir profundamente. Fixa o olhar nele. O luar está a
iluminar-lhe o rosto. Os americanos tinham razão. O seu rosto é suave, a
pele pálida, quase translúcida. Está a respirar profundamente. Lela senta-
se na cama e tira os sapatos. Com as costas empurra Irakli para a parede.
Ele agita-se, mas torna a dormir. Lela sente a respiração dele nas suas
costas. Lembra-se de Koba, da nota de cinco lari que tem no bolso das
calças e do homem com as rugas profundas à volta dos olhos. Tenta
pensar, mas os pensamentos não conseguem ganhar forma na sua cabeça
e, ao fim de pouco tempo, também ela adormece.
*

No dia seguinte, Lela vai ao bloco de apartamentos ao lado da escola.


Normalmente o pátio está vazio nesta altura do ano: são as férias de verão.
As poucas crianças que ali permanecem estão sentadas nas mesas, à
sombra, a jogar às cartas com um ar infeliz. Um grupo de homens que
inclui Koba e Goderdzi, que está a preparar-se para o seu segundo
casamento, anda por ali. Desta vez, Goderdzi não está debaixo do seu
carro; hoje estão a ver Gocha a lavar o carro com uma mangueira. Lela vai
ter com eles e põe-se à frente de Koba, este é apanhado de surpresa. Os
outros homens olham espantados. Lela tira a nota de cinco lari do bolso e
estende-a a Koba, que fica vermelho que nem um tomate.
– Toma, podes ficar com os teus cinco lari. Não quero isto para nada! –
diz-lhe.
– Desaparece! – lança Koba, ameaçador, levantando a mão com raiva e
voltando-se de costas, mas depois torna a virar-se para ela e murmura: –
Vai-te lixar!
Os homens riem à gargalhada.
– Que aconteceu? Que é que ela quer? – pergunta Gocha.
– Se não queres, dá-me isso a mim, amor – troça um deles.
– Dá-a antes à tua avó e vai fodê-la a ela – diz Lela, e atira o dinheiro
para os pés de Koba.
Os outros desatam a rir. Um deles começa a bater palmas. Um homem
com uma barbicha funga e diz:
– Boa!
– Não contaste nada à malta, Koba! – diz um homem com um colete de
ganga. – Porra, devias estar desesperado!
– Vem cá, minha puta! Vou dar cabo de ti! – grita Koba e atira-se a Lela.
Os outros homens agarram-no, e ela vai-se embora.
– Puta de merda! – grita Koba.
Lela volta-se.
– Não te atrevas a entrar nunca mais com esse monte de ferrugem no
meu pátio ou então conto à Tiniko a história dos teus cinco lari e também
ao inspetor Piruz, e depois é que ficas mesmo fodido, não é? Bem fodido
por um maluco, como querias! Guarda os teus cinco lari e compra
qualquer coisa bonita para ti – cospe – como a tua mãe!
– Tem calma, querida – diz um homem com uma voz profunda e suave.
Os outros estão a agarrar Koba. Gocha tenta apontar a mangueira para
Lela, mas o jato não a atinge. O tipo do colete pega numa pedra e atira-a
com força aos tornozelos de Lela.
– É pá, deixa-a em paz, é uma rapariga! – diz o homem da voz
profunda.
Um velho está a assistir à cena de uma das janelas. Depois, uma mulher
põe a cabeça de fora de outra e pergunta o que é que está a acontecer.
– Nada, mãe. Vá para dentro – diz o da barbicha.
*

Uma noite, quando já quase não há luz, Koba choca com Lela ao fundo
da Rua Kerch e dá-lhe um murro na cara. Lela cai ao chão e Koba
pontapeia-a repetidamente na barriga e nas costas. Depois, vai-se embora
e desaparece para sempre da vida dela.

11 Vai para o caralho, filho da puta! [N. da T.]


8

Chega o mês de agosto. O tempo passa sempre devagar na escola, mas


agora parece ter parado completamente. As ruas estão vazias; o ar parece
imóvel; até os cães fazem o mínimo possível, mexendo-se apenas para
seguir a sombra rastejante. Não há qualquer perspetiva de chuva. Não há
nem pequenos intervalos mais frescos ao longo do dia. É quase impossível
sair de casa. O sol queima desde que nasce, uma enorme brasa brilhante
que caustica impiedosamente este lado do mundo. O chão está seco como
ossos, rachado como a parte de cima de um bolo, e até as formigas cor de
ferrugem parecem desesperadas, correndo freneticamente sobre a terra
escaldante, à procura de uma fenda para se abrigarem e arrefecerem as
suas minúsculas patas queimadas.
Ao fim da tarde, quando o Sol se põe, o ar continua pesado. A Lua
projeta sombras que transformam a paisagem. Finalmente, sopra uma
brisa hesitante, e os ramos começam a sua discreta oscilação. Ouve-se, por
fim, o canto dos grilos.
As crianças desfalecem com o calor. Não querem jogar futebol. Não
querem comer. Por alguma razão que ninguém consegue perceber, Dali
impede-as de brincarem com água para se refrescarem. Quando ninguém
está a olhar, algumas dessas crianças ainda conseguem encher garrafas de
água e despejá-la sobre as cabeças.
*

Uma tarde, quando Dali e as crianças estão a esconder-se do calor na


sombra do pátio, chega o padre Yakob com a sua batina preta. O filho de
Tariel, Gubaz, está a piorar.
– Pensava que ele geralmente adoecia na primavera – diz Dali,
pensativa.
– Fizemos tudo o que pudemos. O médico também já se foi embora.
Agora, está nas mãos de Deus – informa o padre Yakob, com um ar grave.
– Até chamaram o inspetor Piruz, mas que pode ele fazer? Não se pode
prender uma pessoa por ser um doente mental.
Piruz aparece, está cansado e angustiado. Diz que Gubaz andou a correr
atrás dos pais à volta da horta, com um machado na mão.
– Graças a Deus que o Kukura cá estava. Acabou por conseguir apanhá-
lo e amarrá-lo – conta Piruz. – Ainda levou uns socos na cabeça… O
Gubaz tem cá uma direita, uffff… – O inspetor abana a cabeça. – Ele não
pode continuar assim. O rapaz precisa de medicação! Num minuto está
muito bem, e logo a seguir fica neste estado… Desta vez, os pais tiveram a
sorte de conseguir escapar.
– Tem razão – concorda Dali. – Ele já teve fases más, mas nada como
isto. Uma vez, começou a dizer a toda a gente que era Deus e a andar com
ovos nos bolsos. Uns dias depois… tão certo como a chuva…
– Nunca se sabe quando é que acontece. Se ao menos ele fosse apenas
débil mental, como as crianças aqui da escola – diz Piruz, limpando a testa
com um lenço amarrotado.
– Há aqui ainda outra coisa em jogo – diz o padre Yakob. – O Maligno
descobriu a fraqueza dele. Basta o mais pequeno sussurro a convidá-lo. O
mal bate à porta e, se a abrirem nem que seja um centímetro, ele entra e
apodera-se!
– O Diabo, padre? – pergunta Piruz, empalidecendo.
– Não deixes o nome dele chegar aos teus lábios! Deus tenha
misericórdia! – diz o padre, fazendo o sinal da cruz. Os outros também se
benzem, três vezes.
– Qual é a cura, padre? – pergunta Dali, ansiosa.
– Oração. Jejum. Vigilância. A Igreja e a ajuda de Deus – proclama o
padre.
– Santo Deus – diz Dali, como se achasse tudo aquilo praticamente
impossível.
– Se fosse assim tão simples curar a loucura, não haveria por aí tantos
malucos – comenta Avto, que acabou de chegar. Depois cumprimenta o
inspetor Piruz e Vano com apertos de mão rápidos e, a seguir, também o
padre Yakob. Esperando claramente um beijo na mão, o padre semicerra
os olhos para demonstrar o seu desprezo, enquanto Avto se dirige à sua
carrinha azul.
Lela vai abrir os portões. Piruz acaba o cigarro e também se vai embora.
De repente, o padre Yakob franze a testa e olha para Dali.
– Estas crianças sabem rezar? – pergunta-lhe.
Apanhada de surpresa, Dali parece não saber bem como responder. As
crianças olham para os pés, acanhadas e envergonhadas por serem
apanhadas em falta por um servidor de Deus.
– Ensine-lhes as orações – diz o padre Yakob com dureza. Mete a mão
num dos bolsos do enorme colete de lona que traz por cima da batina e tira
um par de opúsculos. Dá um a Dali. – Orações para rezar ao deitar. Veja se
lhas ensina. Afinal de contas, é a madrinha deles.
Dali, muito corada, faz humildemente uma vénia, beija a mão do padre
Yakob e pega no opúsculo.
*

Uma noite, Lela começa a pensar se as orações antes de dormir poderão


servir para alguma coisa, se poderão afugentar os seus sonhos estranhos e
terríveis. Vai ter com Dali, que está a ver televisão com as crianças.
– Dali, o que fizeste ao livro que o padre te deu?
Dali arrasta-se do cadeirão, vai a uma prateleira velha e tira de lá o
opúsculo.
– Para dizer a verdade, eu não consigo ler isto – diz, folheando as
páginas. – Não consigo perceber o sentido de orações formais como esta.
Torna a sentar-se no cadeirão. Lela chama as crianças. Dali empurra os
óculos para o nariz, fica a olhar para a página durante algum tempo e
depois fecha o opúsculo e põe-no de parte. Olha para Pako e Stella, que
estão sentados mesmo ao seu lado.
– Eu tinha a vossa idade quando a minha mãe morreu – começa a contar.
– Também cresceste numa escola para crianças lentas? – pergunta
Levan, muito animado. As crianças riem-se, mas Dali continua.
– Não, fui criada pela minha avó, Deus tenha a sua alma em descanso. –
Olha para o teto coberto de teias de aranha e benze-se. As crianças
também se benzem, compenetradas. Algumas beijam as cruzes que têm ao
pescoço, como já viram outros fazerem. – Eu não sabia nada sobre rezar
ou ir à igreja. Cresci numa aldeia. Tínhamos uma igreja, se é que lhe
podemos chamar assim, no cimo da colina, mas era tão velha… O telhado
tinha caído e havia árvores a crescer lá dentro. A bem dizer, era só paredes
e uns ícones. A minha mãe era tão nova quando me teve. E tinha apenas
vinte e um anos quando morreu. Elas costumavam levar-me à igreja para
acender velas junto dos ícones. E à noite, ao deitar-me, rezava comigo
uma pequena oração. Mas era uma oração de crianças, uma rima. Quando
ela morreu, era eu que a rezava à minha avó. Ainda hoje, antes de fechar
os olhos, rezo esta oração e não tenho medo de nada, porque Deus está
comigo.
As crianças não perdem uma palavra de Dali. Ela respira fundo e,
depois, começa a recitar:
*

– Agora que me vou deitar, peço a Deus para a minha alma


guardar…
Quando acaba, limpa uma lágrima. Vaska está a observar da ombreira da
porta, com um ligeiro sorriso de desprezo no rosto.
De repente, entra pela janela uma forte brisa, e começa a chover. As
crianças, radiantes, correm para a janela e põem as mãos de fora, sob a
chuva refrescante que se espalha como um bálsamo pela terra queimada
pelo calor. O cheiro do asfalto húmido enche o ar.
– Ika, na América também têm chuva? – pergunta Stella, tentando
enfiar-se por baixo do braço de Irakli, encostado ao parapeito da janela.
– Têm, pois, chuva e granizo. E tempestades. Nunca viste as
tempestades deles na televisão? Têm tornados tão fortes que levam casas
inteiras!
– Oh, Ika! – diz Stella, tapando a boca com a mão. – Se é assim, não
vás!
*

Nessa noite, Lela sonha que está outra vez junto do campo das pereiras.
As crianças estão a jogar futebol atrás dela. Lela corre para o terreno para
ir buscar a bola, mas, depois de alguns passos, começa a afundar-se na
terra macia e encharcada. De repente, a terra suga-a até à cintura. Estende
a mão para se agarrar aos ramos nodosos. Tenta gritar para as crianças,
mas não as vê em lado nenhum. Afunda-se cada vez mais na terra.
*

Na manhã seguinte, Lela levanta-se cedo para deixar sair alguns carros
e, depois, vai para o refeitório.
Não gosta de ver o refeitório sem crianças. A luz da manhã entra pelas
janelas e, nos sítios onde raios de sol poeirentos incidem, Lela consegue
ver restos de pão em mesas que ainda não foram limpas da noite anterior,
e copos cobertos de dedadas.
Vai ao armário e encontra um pedaço de pão, espalha sobre ele compota
de ameixa e vai a comê-lo ao sair para o pátio. Nenhum dos professores
chegou entretanto e as crianças ainda estão todas a dormir. Um cão
esfomeado vagueia entre os abetos.
Tiniko chega ao trabalho. Lela abre os portões e a diretora atravessa o
pátio algo insegura, com os saltos de cunha a martelarem no chão. Lela
fecha os portões atrás dela.
– Tiniko – diz, despreocupadamente –, não posso dar-te o dinheiro do
estacionamento este mês.
Tiniko senta-se na tábua por baixo das árvores e descalça o sapato para
tirar uma pedra lá de dentro. Franze a testa e olha para Lela.
– Porquê? Gastaste-o?
– Tive de pagar imensas coisas. Do Irakli. Pago-te no mês que vem.
Tiniko não diz nada. Enfia outra vez o pé inchado no sapato e levanta-
se.
– Pelo menos, diz-me que ele anda a aprender alguma coisa.
– Sim, está a aprender – responde Lela, encolhendo os ombros.
– Não vale a pena teres muito trabalho com isso, pois não? Ninguém
está à espera de que ele seja fluente. Tens de cuidar das coisas aqui. Ele
está quase a ir-se embora, mas tu vais continuar aqui, e estes carros são da
tua responsabilidade. Percebes o que é ter responsabilidade, não percebes?
Sabes bem que estou a contar contigo.
– Eu sei, Tiniko.
*

Depois de almoço, Marika chega com mais um punhado de palavrões.


Irakli fica particularmente satisfeito com You bastard!12 e I‘ll kill you!13
Lela não consegue dar a Marika os vinte lari que lhe tinha prometido, nem
sequer os cinco lari daquela semana. Marika não a pressiona; como o mês
de agosto está quase a chegar ao fim, aceita que Lela lhe pague com o
dinheiro que receber do parque de estacionamento em setembro e, assim,
ficam com as contas certas.
*

Com a chegada do outono, toda a escola ganha vida. Limpam o pátio e


arranjam a vedação nos sítios em que está estragada, e Tiniko até traz um
pouco de tinta de casa para Avto pintar os portões de verde e a porta da rua
de castanho.
Limpam também o interior do edifício. Dali põe-se de joelhos a esfregar
o chão com detergente da roupa em pó e uma velha escova de sapatos e,
depois, as crianças espalham uma camada de cera.
Na sala da televisão, fazem o melhor que podem. Algumas professoras
trazem de casa vasos com aloés e rosas. Avto e Vano arrastam o sofá para
o pátio e Tiniko manda as crianças baterem nele com paus para tirarem o
pó todo, depois manda pô-lo no seu gabinete e cobre-o com uma colcha
velha com o desenho sinistro de um tigre.
O casamento de Goderdzi vai ser em setembro e, por isso, a entrada do
refeitório também leva uma nova camada de tinta. É Venera quem paga
isto do seu próprio bolso, bem como alguns pequenos arranjos dentro do
refeitório. Os buracos dos pregos que, ao longo dos anos, seguraram um
sem-fim de bandeiras e gravuras, são tapados com gesso e alisados, e as
paredes e os parapeitos das janelas são pintados de branco. Todos os
vestígios do passado são assim apagados. Avto insiste em que a tinta velha
tem de ser raspada, antes de a nova ser aplicada, mas Venera quer que tudo
seja feito o mais rapidamente possível e como for mais barato. Tem
esperança de que seja o último casamento de Goderdzi e que nunca mais
tenha de se preocupar com o estado do refeitório.
Tanto os professores como as crianças encaram com muito orgulho os
melhoramentos, porque também eles vão receber dois convidados
extremamente importantes da América: os novos pais de Irakli: Deborah e
John.
*

Quando chega o grande dia, Lela abre os portões verdes da escola,


dando entrada a um carro de luxo, um Volga creme, onde vêm Madonna,
Deborah, John e Shalva, o condutor, que tem uma ligação qualquer a
Madonna.
Embora o entusiasmo causado pela comitiva americana não seja tão
grande como o de outrora aquando das visitas de Marcel, estão todos
muito empolgados, porque aquela visita é a confirmação de que existe um
mundo para lá da Geórgia, de Tbilisi e da Rua Kerch.
A cerimónia de boas-vindas tem lugar no ginásio. O auditório está fora
de serviço há anos. De lá foram retirados os cortinados de veludo e
pendurados nos espaldares do ginásio para os tapar. Os bancos foram
dispostos em três lados de um palco improvisado.
As crianças entram no ginásio de forma tímida. Todas elas ainda
guardam na memória a imagem do seu amigo e irmão Sergo no caixão
sobre a secretária, colocada no meio do espaço.
Deborah e John são conduzidos ao ginásio por Tiniko e Madonna. Dali
entra a seguir às crianças. O cheiro estranho e acre do detergente em pó é
quase insuportável.
No momento em que os americanos aparecem, as crianças ficam em
silêncio.
– Hello, everybody! – grita John, levantando a mão para as
cumprimentar. Tem uma voz doce e melodiosa. As crianças ficam
petrificadas.
Veem um homem alto, de estatura média, cujo corpo parece flácido e
com umas banhas abaixo da cintura. Tem um sorriso tão puro e sincero
que é difícil imaginar que alguma vez se tenha sentido mais feliz do que
naquele momento. Todos os olhos estão sobre ele enquanto sobe para o
palco.
– Hello, everybody! How’s everyone doing today? – brada alegremente.
Sem saber bem porquê, Gulnara começa a bater palmas. As crianças
fazem o mesmo.
– Parem de bater palmas, vão assustá-los – diz Madonna, num tom
sibilante. – Quero dizer, eles sabem onde estão mas, mesmo assim, vamos
tentar controlar-nos um pouco, está bem?
Volta-se para as crianças.
– O John está a perguntar-vos como estão. Quer saber se estão todos
bem.
– Esta-a-a-mos bem – dizem timidamente algumas crianças.
Deborah está de pé ao lado de John, com um sorriso rasgado. Com as
suas ancas largas e o tronco esguio, parece uma planta bem-humorada
num vaso. Começa a falar, e Madonna vai traduzindo em georgiano:
– Embora tenhamos vindo cá buscar o Irakli, consideramo-vos a todos
membros da nossa família e desejamos que se tornem adultos fortes e
capazes. Infelizmente, só podemos adotar uma criança, mas queremos que
saibam que estão todos no nosso coração. São todos irmãos e irmãs do
Irakli!
– Pff, irmão dele? Obrigadinho, mas não! – exclama Levan, em voz alta.
As crianças desatam a rir. Deborah fica confusa, mas tenta organizar as
ideias e acabar o que estava a dizer. Tiniko segreda a Lela, que se volta
para Levan, sentado atrás dela, e lhe diz que saia com Tiniko. Enquanto
Deborah continua o seu discurso, a diretora sai bruscamente do ginásio
com Levan cabisbaixo e de ombros caídos atrás dela, como um prisioneiro
prestes a enfrentar um pelotão de fuzilamento – só que Levan já enfrentou
outras vezes esse pelotão.
Levan ainda mal saiu quando Tiniko fecha a porta e o agarra por uma
orelha.
– Porque é que não consegues portar-te bem? – sussurra-lhe, para que
ninguém ouça no ginásio convertido em salão. Levan faz uma careta e
geme. Tiniko enterra as unhas pintadas ainda com mais força na orelha
dele e torce-a, como se estivesse a abrir uma torneira. – Calado! Não
quero ouvir-te dar nem mais um pio!
Levan solta um gemido de meter dó. Tiniko larga-o. Ele tenta então
fugir a correr, mas a diretora agarra-o como um animal esfomeado.
Quando levanta a mão, o anel de fantasia que não lhe está justo roda-lhe
no dedo e, quando puxa a mão atrás para dar uma palmada no rabo a
Levan, acerta-lhe na coluna com a pedra falsa. Levan grita e dá um salto
para a frente como um veado atingido por um tiro.
– Vou acabar contigo, ouviste? – ameaça Tiniko, furiosa. – Da próxima
vez que a tua mãe vier visitar-te, vais estar na cova!
Levan não ouve. Já vai a meio do pátio vazio. Tem a cara vermelha e o
ouvido ainda a latejar. Queria chorar, mas as lágrimas não saem. Sente a
dor aguda da orelha a diminuir aos poucos. Um cão atravessa o pátio a
coxear e, na rua, passa um autocarro que liberta um fumo escuro e
espesso.
Quando Tiniko torna a entrar, Shalva está a levar uns sacos grandes para
o palco. Deborah abre-os e explica que são presentes – roupas, sapatos e
brinquedos – que os seus vizinhos mandaram para as crianças. Tiniko
manda Dali e Avto guardarem os sacos para mais tarde e leva Deborah e
John para fora da sala, juntamente com Madonna, Irakli e Lela.
Reúnem-se no gabinete da diretora. Dali traz café instantâneo e
biscoitos de mel.
Assim que entram, Deborah abre os braços e diz:
– Agora, que estamos sozinhos, já posso abraçar o Irakli!14
Deborah e John dão-lhe abraços apertados. Dali vê-os pelo canto do
olho enquanto serve o café, e os seus olhos enchem-se novamente de
lágrimas. Irakli está a corar furiosamente. Não faz a mínima ideia do que
leva Deborah a olhar para ele e a falar inglês, como se ele já fosse um
americano. Se calhar, eles pensam que ele percebe o que estão a dizer.
Provavelmente, vão ficar aborrecidos quando descobrirem a verdade.
Então Madonna começa a traduzir:
– Ela está dizer que esperaram muito tempo por este dia. Estão muito
felizes por ires viver com eles. Os filhos deles já são adultos e moram nas
suas próprias casas e, por isso, vais ser agora o seu único filho. Ela espera
que não seja muito aborrecido para ti. Mas diz que têm uma grande
família toda perto e que também têm dois netos. – Deborah dá uma
gargalhada e diz outra coisa qualquer. Irakli está de pé, tão direito como se
tivesse engolido um garfo e a suar nervosamente, enquanto Madonna
traduz: – Basicamente, ela está a dizer que têm todo o tempo do mundo
para se conhecerem como deve ser.
John faz um sorriso caloroso para Irakli e pergunta:
– Que achas? Queres vir conhecer a América?
Irakli anui com a cabeça.
Deborah e John querem ver a escola de alto a baixo; vai ajudá-los a
compreender melhor Irakli. Tiniko e Madonna guiam-nos na visita. Irakli
e Lela vão para o pátio e são imediatamente rodeados por um grande
grupo de crianças, desesperadas por ouvir todos os detalhes.
No dia seguinte, Madonna leva Deborah e John a visitarem Tbilisi.
Irakli vai com eles, para se conhecerem melhor. O rapaz parece
desorientado. Quer que Lela vá também, mas ninguém a convida.
*

Ao fim da tarde, Lela vai para o recreio deserto. Irakli ainda não voltou.
Ela sobe a escada de ferro em caracol até ao cimo. Senta-se no último
degrau e acende um cigarro. Deborah e John aparecem-lhe à frente dos
olhos, depois Irakli, vermelho que nem um tomate e, a seguir, Vano, que
ela atrai para o quarto dos trampolins, até à beira da varanda caída, e
empurra…
Tens coragem para fazer isso?, pergunta uma voz na sua cabeça. Tens?
Então, de que estás à espera?
Vou matá-lo antes do fim do inverno. Quando o Irakli se for embora,
mato-o, responde Lela.
*

Ainda está a anoitecer quando Lela, de volta à portaria, adormece


profundamente.
A porta abre-se e Irakli entra. Lela acorda. Ele avança até à beira da
cama e empoleira-se, leve como uma pena.
– Então, conta lá o que andaste a fazer – diz ela.
Irakli não responde. Lela observa o rosto dele sob o luar que entra pela
janela da portaria. Há qualquer coisa diferente no seu aspeto e está
estranhamente silencioso.
– O que tens?
Irakli não diz nada.
– Que é que aconteceu? – Lela dá-lhe um abanão.
Irakli faz uma careta e tenta libertar-se.
– É a minha barriga – murmura.
Lela solta-o e levanta-se. Enrosca a lâmpada e o quarto é inundado por
uma luz amarela. Irakli está curvado por cima da cama, a gemer.
– Que aconteceu? Que é que comeste?
– Khinkali15 – diz, num gemido. – Comi demais.
Lela pensa por um momento.
– E eles, estão a sentir-se bem?
– E shashlik16… e lobiani…
– E estava alguma coisa estragada?
– Não, estava tudo bom… – Torna a gemer.
– Comeste demais?
– Comi – responde Irakli, e começa a chorar. – Sinto-me tão doente…
– Anda, levanta-te. Se não te sentes bem, precisas de vomitar – diz Lela,
ajudando-o a levantar-se.
Lela leva-o até às casas de banho do edifício principal. Cheira tão mal
que Irakli vomita assim que entra, mandando um vasto leque de
especialidades georgianas pelo esgoto abaixo. Debruça-se no lavatório,
com as lágrimas a correrem-lhe pela cara e a garganta a arder. Lela abre a
torneira, e a água sai tão depressa que lhes pinga para a cima. Ainda a
tremer, Irakli lava a cara.
– Não ajudou – diz Irakli, quando saem.
– Ouve, vais para a América daqui a dois dias. Para de chorar por causa
de umas guloseimas!
Khatuna, uma jovem estagiária oriunda de Rustavi, sai do refeitório com
uma chávena de chá para Irakli.
– Não quero isso – diz ele, abanando as mãos e falando como se não
conseguisse mexer a língua como deve ser.
– Onde é que te queres deitar, na minha cama ou lá em cima? – pergunta
Lela.
– Na tua – responde Irakli, seguindo-a até à portaria.
Entram. Khatuna pousa a chávena de chá e põe a mão na testa de Irakli
quando ele já está deitado, a gemer.
– Dorme. Vais sentir-te melhor quando acordares – diz Khatuna,
acrescentando: – Achas que chame a Tiniko ou a Dali?
– Não, ele vai ficar bom – diz Lela. – Comeu demais. O estômago dele
não está habituado à boa vida.
Riem-se. Irakli enrola-se numa bola na cama.
– Onde vais dormir? – pergunta Khatuna.
– Vou deitar-me à beira da cama. São só dois dias e depois ele vai para a
América! – diz Lela, tentando encontrar os braços de Irakli e dando-lhe
um abanão. Ele geme.
Khatuna vai-se embora. Lela apaga a luz e deita-se junto a Irakli, com a
cabeça para os pés da cama.
Ficam em silêncio durante algum tempo. Os olhos de Lela adaptam-se à
escuridão. Aos poucos, vê o quarto a ganhar forma: o cinzeiro de vidro
lapidado que era de Tariel reluz ao luar, depois aparecem os contornos do
espelho, e a cruz que Lela prendeu na moldura projeta uma sombra
sinistra na parede. A respiração de Irakli é irregular, e Lela sabe que ele
não está a dormir.
– Ouve lá! – diz-lhe, dando-lhe um pontapé. – Conta-me aonde foste.
Irakli contorce-se, vira-se de costas, mas o único som que faz é um
gemido de mal-estar.
– Então, também vomitaste a voz? – insiste, procurando a cara de Irakli
com os pés.
– Não me chateies! – murmura ele.
– Quero saber aonde foste!
– Fomos ver coisas…
– Foste a um restaurante?
– Fui.
– Que é que comeste?
– Oh meu Deus, podemos não falar de comida?
– Está bem. Então, pelo menos, conta-me o que viste.
– Andámos por Tbilisi e depois fomos até Mtskheta.
– É longe daqui?
– É.
– E que mais? Falaste inglês?
– Falei. Disse OK e no.
Durante algum tempo, nenhum deles diz nada.
– Em Mtskheta havia uma igreja e uns padres. E umas estátuas… Vimos
um homem a cavalo com uma espada…
– Uma estátua, queres tu dizer?
– Isso. Estava montado num cavalo enorme e, se nos puséssemos
mesmo debaixo dele, víamos uns tomates gigantescos.
– Do homem ou do cavalo? – pergunta Lela, com uma gargalhada.
– Do cavalo.
– E a pila?
– Não consegui ver – responde Irakli.
– Como é Mtskheta?
– Bonita.
– Quantos khinkali comeste?
– Não, Lela… Ainda estou maldisposto.
Lela tira os cigarros da gaveta.
– Que é que os americanos disseram?
– Não sei. Nada de especial.
Lela levanta-se e sai da portaria para fumar. Quando volta para dentro,
Irakli já está a dormir.
*

As mulheres da vizinhança não conseguem disfarçar a sua desilusão. A


nova noiva de Goderdzi não é nada parecida com Manana. Irma não sorri
como Manana, nem abana as ancas como Manana, nem, para dizer a
verdade, faz nada que dê a entender que é de moral duvidosa. Esforçam-se
por descobrir qualquer coisa na vida de Irma que lhes permita criticá-la,
mas a sua respeitabilidade é dececionante.
Goderdzi parece suficientemente feliz, embora tenha feito a barba com
tanto entusiasmo que ficou com a cara vermelha e inchada.
Aparentemente, desta vez ninguém conhece o responsável pelos
brindes. É um homem pequenino, medíocre, com uma ligeira expressão de
irritação. Consegue gozar consigo próprio nos brindes que faz – «Meus
senhores, por favor levantem-se, mas eu vou ficar sentado porque é-vos
completamente indiferente…» –, o que os convidados entendem como um
sinal de verdadeira grandeza de alma.
Mais uma vez, o primo de Goderdzi vai ao casamento com o revólver
metido no cinto. Parece mal-humorado. Aliás, sente-se que há um certo
desânimo em todo o copo-d’água, como se todos sentissem a falta de
Manana, a mulher que, para se ser justo, nunca se devia ter casado como
um homem como Goderdzi, mas que, ainda assim, o fez.
Irma tem um vestido simples de cetim e está sentada ao lado de
Goderdzi, com um sorriso tímido. Parece mais envergonhada do que feliz.
A mãe dela não está sentada à mesa; em vez disso, está a ajudar as pessoas
que andam a servir a comida. Parece razoável pensar que, no momento em
que Irma entrar em casa de Venera e Goderdzi, vai despir o vestido de
noiva branco, encarregar-se dos deveres domésticos e trabalhar que nem
uma mula até dar o último suspiro.
A mesa das crianças é posta a um canto do refeitório. Como convidados
de honra, são oferecidos a John e Deborah os melhores lugares na mesa
principal, mas eles preferem ficar na das crianças. Dali, que estava a
preparar-se para começar a comer um bocado de peixe com os dedos, fica
confusa ao ver uns convidados tão distintos sentarem-se de repente à sua
frente. Perde o apetite. Dali fica maravilhada com a capacidade de
Madonna comer à frente dos americanos, tão concentrada neles e ao
mesmo tempo a falar numa língua estrangeira.
Os tocadores de duduki17 vão para a pista de dança, e os tambores rufam
agora a um ritmo constante. Algumas jovens com roupas tradicionais
começam a dançar. Passados uns minutos, um jovem salta para a pista, de
braços abertos, e dança em grandes círculos à volta das raparigas; depois
vai para o meio delas, fazendo-as afastarem-se como um bando de
galinhas assustadas. Deborah e John olham fixamente, como que
enfeitiçados. John está à beira das lágrimas. A sua felicidade só é
perturbada por um leve constrangimento, uma sensação de
arrependimento por levarem Irakli, o seu filho eleito, daquele país que tem
a magia de um conto de fadas para um sítio onde ninguém, nem mesmo
num casamento, alguma vez dançaria com tamanha paixão.

12 És um sacana! [N. da T.]

13 Vou dar cabo de ti! [N. da T.]

14 Em inglês no original, mas optou-se por traduzir para não criar ruído na história. [N. da T.]

15 Pastel georgiano muito popular, feito de massa torcida recheada com carne e especiarias, que
depois é cozinhado em água a ferver. [N. da T.]

16 Pequeno espeto de carne, mas a que podem também acrescentar-se legumes. [N. da T.]

17 Oboé arménio, é um instrumento tradicional de sopro de palheta dupla, popular entre os povos
do Cáucaso, do Médio Oriente e do Leste Europeu. [N. da T.]
9

Chega o dia da partida de Irakli.


Lela benze-se à frente do espelho antes de sair da portaria.
Irakli está junto aos portões com uma pequena mala de viagem azul que
Deborah e John lhe deram. À volta do pescoço tem uma pequena carteira
de pano com o logótipo de uma companhia aérea e o seu passaporte lá
dentro.
A escola em peso está ao portão.
Irakli folheia o seu passaporte novinho em folha, sob o olhar dos outros.
Observa cuidadosamente cada uma das páginas em branco. Por fim, chega
às páginas com o seu visto americano e a sua fotografia. Irakli deixa Stella
pegar no passaporte para o ver melhor. Ela olha fixamente para o visto e
depois para a página com a fotografia de Irakli. De repente, Levan agarra
no passaporte. Stella, segurando-o com força, leva a mão para trás e uiva,
olhando para Levan tão furiosamente que até as veias do pescoço lhe
incham.
– Vais rasgá-lo! – grita, com a cara a ficar muito vermelha. Levanta o
braço muito alto, ao mesmo tempo que procura Irakli no meio deles.
– Dá-lho – diz Irakli, tranquilizando-a.
Ainda zangada, Stella dá o passaporte bordô a Levan. Ele abre-o com
todo o cuidado, como se fosse uma carta de amor, e fica a olhar para ele.
– Bem, então cuida bem de ti, Irakli – diz Dali, caminhando em direção
às crianças, acompanhada de Tiniko, Madonna, Deborah e John. Levan
devolve o passaporte e pede a Irakli que lhe mande uma pistola da
América.
Stella dá um abraço muito apertado a Irakli. Vaska aproxima-se e dá-lhe
um vigoroso aperto de mão. A seguir, é Dali que o abraça. Está a chorar.
– Nunca mandámos ninguém para tão longe – diz, a soluçar.
– Mandámos pois, Dali! – interrompe Levan. – Mandámos o Sergo para
o céu, Deus tenha a sua alma em descanso…
– Eu trato-te da saúde mais logo – avisa Tiniko.
John tira uma fotografia de grupo às crianças com Irakli no meio. Todos
querem ficar ao lado dele.
Marika chega ao pátio, bronzeada e sardenta depois das férias. Está com
um vestido amarelo curto e o cabelo solto. Ao ver Marika sorridente, com
um vestido tão curto, Levan fica pregado ao chão.
Marika trouxe um presente a Irakli, um pequeno dicionário de inglês.
– Dick-cionário! – diz Irakli, a sorrir.
Shalva põe o carro a trabalhar. Zaira aparece a correr com um saco de
rebuçados do quiosque. Dá-os às crianças e depois dá um abraço apertado
a Irakli.
– Não te esqueças de nós, Irakli!
O marido de Tiniko chega ao volante de um carro estrangeiro. É um
homem magro e careca, com um nariz achatado e um sorriso sincero. A
sua pele tem a palidez de um fumador compulsivo e, com intervalos de
poucos segundos, leva o punho à frente da boca e tosse violentamente.
Tiniko manda que todos entrem nos respetivos carros.
Está um calor abrasador. Tiniko abre a janela e abana a cara com as
mãos. Os carros afastam-se, deixando Dali junto aos portões da escola,
rodeada pelas suas crianças, todas a dizerem adeus.
Irakli abre a janela e expõe a cara ao vento. Tiniko e Temur estão a
conversar lá à frente, mas Lela não consegue ouvir o que dizem por causa
do barulho do motor. Olha pela janela. Imagina que é ela quem vai para a
América de vez, que vai deixar para sempre a escola, Dali, as crianças e
todos os professores, Zaira e o seu quiosque, os vizinhos do prédio ao
lado, Marika, Koba, Goderdzi e a sua nova mulher, Irma. O carro sai da
Rua Kerch, e Lela despede-se para sempre da sua antiga vida.
Irakli está com uma camisa azul-escura impecável, abotoada até ao
pescoço, umas calças de ganga com um cinto de elástico vermelho e umas
botas que vinham no saco que Deborah e John trouxeram para as crianças.
Está em silêncio, com um ar calmo e satisfeito, e parece a Lela mais
velho. Aponta para ruas e edifícios que lhe são familiares.
– Já vi aquele…
Lela olha pela janela, distraidamente.
Quando voltar do aeropoto, vou matar o Vano, pensa. Depois, vou-me
embora daqui, como fizeram os outros.
Imagina que encontra Yana e que vai com ela para o seu apartamento só
com um quarto. Mesmo que me prendam, vão soltar-me ao fim de pouco
tempo, ou se calhar mandam-me para o manicómio… Lela torna a pensar
em Yana, mas agora quando era mais nova, na altura em que se foi embora
da escola, com aquela camisa aos quadrados abotoada até ao pescoço.
Yana sorri ao vê-la. O seu apartamento é igual ao de Mzia, com cheiro a
comida acabada de fazer e um aparador na entrada, e Yana tem um avental
que também é igual ao de Mzia. «Vem comigo», diz Yana. Saem do
apartamento para irem trabalhar. Lela está tão feliz que os seus pés quase
não tocam no passeio…
Depois lembra-se de que Irakli vai para a América, e todos os
pensamentos sobre Yana se desvanecem.
Chegam ao aeroporto. Quando vão a sair do carro, Irakli diz a Lela que
está com dores de cabeça e vontade de vomitar, mas ambos sabem que não
há tempo para ele adoecer.
Quando estão na fila do check-in, Irakli vira-se para Lela.
– Continuo com vontade de vomitar.
– Daqui a nada já te sentes melhor – diz-lhe Lela.
Madonna ouve-os e avisa John.
John desaparece com Irakli. Passados alguns minutos, voltam com um
grande pacote de pastilhas elásticas. Irakli abre-o e oferece pastilhas a
todos. As mulheres tiram uma pastilha cada uma.
Depois de fazerem o check-in, John convida-os a todos para irem ao
único café que existe no aeroporto. Temur vê um familiar seu e afasta-se
para dar dois dedos de conversa. Shalva agradece, mas também recusa.
O empregado junta duas mesas e põe umas quantas ementas à frente
deles. John pede cafés, um sumo e vários bolos e sanduíches.
– Não pareces lá muito feliz – diz Lela a Irakli, que debica sem qualquer
entusiasmo um bolo com chantilly.
– Não estou – responde Irakli, em voz baixa.
– Como se eu acreditasse – diz Lela com uma gargalhada e empurra-lhe
a cabeça, fazendo com que ele espete o nariz no chantilly. Madonna e
Tiniko riem alto, mas John lança um olhar de desaprovação a Lela, como
um pai cujo filho está a portar-se mal.
Depois de saírem do café, dirigem-se para as escadas rolantes para se
despedirem de Irakli. John e Deborah abraçam Tiniko e Lela, e apertam a
mão a Temur e a Shalva. Tiniko põe os braços à volta de Irakli, contendo
as lágrimas e tentando prolongar o mais possível o seu último abraço. A
seguir, é Madonna que o abraça. Temur põe a mão no ombro de Irakli e
lança-lhe um sorriso afável.
Irakli e Lela dão um abraço rápido, sem lágrimas e em silêncio.
John põe a pequena mala de Irakli na escada rolante e vira-se para dizer
adeus a todos. Irakli e Deborah sobem a seguir a ele, afastando-se
lentamente.
Quando já estão quase a chegar ao cimo, Irakli solta de repente a mão de
Deborah e começa a descer apressadamente a escada rolante.
– Irakli! Irakli! – chama Deborah, ansiosamente. – John, faz qualquer
coisa!
Deborah fica lá em cima, impotente, a ver Irakli serpentear por entre os
outros passageiros, atirando a mala de mão de um deles ao chão. Quando
chega ao fundo da escada, Irakli dá um salto, foge de Tiniko e dos outros e
corre o mais depressa que consegue pelo terminal.
– Acho que ele está com vontade de vomitar – diz Lela, e vai atrás dele.
Os americanos descem na outra escada até ao andar de baixo. Tiniko,
Madonna e Temur vão ter com eles. John está muito vermelho e parece
ofendido. Deborah está terrivelmente pálida e nervosa.
– Acho que ele foi à casa de banho para vomitar – diz Tiniko, e
Madonna traduz. – Se calhar, são os nervos.
– Vamos sair daqui. Estamos a empatar as pessoas – sugere Temur.
Shalva aparece e fala pela primeira vez naquele dia: chegou o seu
momento de cavalheirismo.
– Eu vou à procura deles – anuncia, puxando as calças mais para cima e
desaparecendo no meio das pessoas.
Lela descobre Irakli junto à entrada das casas de banho, com um olhar
vazio.
– Estás doido?
Irakli não diz nada.
– Vomitaste?
– Não – diz ele.
– Então, porque é que fugiste? Iam tendo um ataque cardíaco! Não
comeces agora a comportar-te como um idiota.
Lela empurra-o contra a parede e olha-o bem nos olhos.
– Volta já para lá e esforça-te por dizer o teu melhor I am sorry aos
teus… pais, estás a ouvir? – Irakli não diz nada. – Ouviste o que eu te
disse? Ou entras e vomitas ou mexes já esse cu daqui para fora!
– Não quero ir para a América – implora Irakli. Esfrega a cara, mas as
lágrimas estão presas na garganta e transformam-se em bílis.
Lela levanta a mão e dá uma bofetada a Irakli. Ele tomba contra a
parede, deixa-se ajoelhar e começa a chorar. John aparece não se sabe de
onde, agarra Lela por um braço e afasta-a. Parece um homem diferente. O
rosto simpático e o sorriso afável desapareceram. Sacode Lela e grita-lhe
em inglês.
– Que é que ele quer de mim? – pergunta Lela a Madonna, que está a
tentar por todos os meios acalmar John.
John solta o braço de Lela e explica que ela deu uma bofetada a Irakli;
depois volta-se para Tiniko e espeta-lhe o dedo na cara, como se estivesse
a culpá-la.
Tiniko fica muito vermelha. De repente, perde a paciência. Atira o
queixo para a frente e grita para John, em georgiano:
– Eu disse que era má ideia levarem uma criança já tão crescida como o
Irakli, mas ninguém me deu ouvidos!
Deborah aproxima-se de Irakli, que está sentado no chão, com a cabeça
entre os joelhos.
– Irakli – diz, pondo suavamente a mão no braço dele e ajoelhando-se
de um modo desajeitado.
Deborah faz sinal a Madonna para que se aproxime. Sem conseguir
ajoelhar-se, devido ao seu tamanho, Madonna fica de pé a traduzir.
– Ela está a perguntar o que é que tens, Irakli. Não tenhas vergonha, se
tiveres vontade de vomitar. Ela diz que não faz mal. Vai à casa de banho e
faz o que precisares. Depois volta para aqui e descansa um bocadinho…
Se quiseres, ela diz que a Lela pode levar-te lá fora para apanhares ar. Diz
que têm muito tempo.
Irakli levanta a cabeça. Tem os olhos vermelhos e a cara marcada pelas
lágrimas. Olha para Deborah e grita:
– Não quero ir para a América! Não quero ir!
Madonna nem quer acreditar no que está a ouvir. Deborah olha para
cima, com o queixo a tremer, à espera de que ela traduza.
– Que é que ele disse? Que é que ele disse da América?
– Nothing! – diz Madonna, com firmeza, e depois grita para Irakli: –
Não me faças perder a cabeça, miúdo! Não me faças passar uma vergonha
à frente destas pessoas. Cala-te, levanta-te e vai com esta senhora. É só
isso que estamos a pedir-te! Mete-te no avião e, quando a viagem acabar,
vais ter uma vida nova à tua espera, uma vida boa… Tudo o que tu podias
querer. Mas, se continuares a fazer uma fita destas, eles não vão levar-te…
Irakli levanta-se, abre a carteira que tem ao pescoço e atira o passaporte
para o chão, como se estivesse a lançar um ás para uma mesa de jogo. Vai-
se embora sem dizer nada.
– Que é que ele disse? Não quer vir connosco? – pergunta Deborah
outra vez.
Temur ajuda Deborah a levantar-se. Tiniko repara que o marido está a
acariciar a mão pálida e suave de Deborah. Vai ter com eles, empurra
Deborah e lança um olhar fulminante a Temur.
– Nós vamos resolver isto, Deborah – diz Tiniko em georgiano. – Não
se preocupe, ele é um estúpido. Que raio sabe ele da América?
Range os dentes, cerra o punho à frente da cara dela e olha furiosamente
para o marido. Temur encolhe os ombros e afasta-se para o lado,
constrangido.
Irakli continua a andar a passos largos pelo terminal. Lela, Madonna,
Tiniko e Deborah começam a correr atrás dele, mas John bloqueia-lhes o
caminho.
– Deixem-me ir a mim – pede, num tom sério.
– Irakli – chama, alcançando-o e agarrando-o com gentileza pelo
cotovelo. Irakli afasta-o.
– Irakli, faremos o que quiseres. Não faz mal se não quiseres vir
connosco. Não vamos ficar zangados. Tu é que decides.
Madonna segue-os numa corrida difícil por entre as pessoas, ao mesmo
tempo que vai traduzindo.
John torna a pôr a mão no cotovelo de Irakli e fá-lo voltar-se. Olha para
ele com carinho e esboça um sorriso calmo e afável.
Irakli solta o braço e grita:
– Fuck you, bastard! I kill you! I kill you! 18
O sorriso desaparece do rosto de John. A princípio, não tem a certeza se
ouviu bem. Os outros juntam-se finalmente a eles. Irakli mantém alguma
distância do grupo, como se estivesse a enfrentar uma matilha de cães
raivosos.
– Fuck you, old bastard! I kill you! I kill you! Don’t touch me! 19– Irakli
grita novamente a John e, de repente, Lela lembra-se do rapazinho a saltar
nas camas sob a chuva de verão.
Inesperadamente, Deborah desmaia. Temur segura-a quando vai a cair e
acaba por cair ao chão com ela. John corre para a mulher.
– Deborah! Deborah! – grita, branco como a cal.
Shalva e Madonna tentam levantar Deborah, enquanto Temur esbraceja
debaixo dela. Uma mulher aproxima-se a correr com uma garrafa de água,
ajoelha-se ao lado de Deborah e esfrega-lhe a testa e as têmporas com
umas mãos calejadas. Deborah começa a abrir os olhos.
– Ela é estrangeira? – pergunta a mulher, com uma cadência lenta e
provinciana.
– Oh, meu Deus! – geme Madonna. – Os meus nervos não aguentam…
Sim, é estrangeira.
– Se calhar, é exaustão. Levem-na lá para fora para ela apanhar ar fresco
nos pulmões – diz a mulher.
– Onde raio é que ela vai apanhar ar fresco aqui? Não estamos na
montanha! – diz um homem, presumivelmente o marido. – O mais certo é
terem-lhe dado demasiada bebida e ela não ter aguentado…
Ajudam Deborah a sentar-se. John dá a mão à mulher e sussurra-lhe
qualquer coisa ao ouvido.
Lela afasta-se para o lado, mas observa tudo atentamente. Embora os
cães raivosos se tenham dispersado, Irakli parece preso ao chão.
Uma voz anuncia pelo altifalante que John e Deborah Sheriff e Irakli
Tskhadadze devem dirigir-se imediatamente à porta de embarque. John
ajuda Deborah a levantar-se e a andar até à escada rolante. Os outros
adultos seguem-nos, com Madonna a pedir desculpa em inglês e Tiniko
em georgiano. Temur, por via das dúvidas, pede desculpa em russo e vê
com tristeza Deborah a preparar-se para partir.
John para no cimo das escadas para acenar pela última vez aos seus
anfitriões. Desta vez, não há apertos de mão nem abraços. John agradece a
Tiniko e a Madonna. Diz que talvez devessem ter ficado mais tempo na
Geórgia para conhecerem melhor Irakli, mas que, se calhar, assim era
melhor para todos.
Tiniko sente alguém a puxar-lhe o braço. É Lela.
– Nós vamo-nos embora. Arranjamos maneira de voltar sozinhos. –
Olha para Deborah e John, parados em silêncio junto à escada. Com uma
sinceridade inesperada, diz: – Goodbye, John. Goodbye, Deborah.
*

Lela e Irakli saem do aeroporto e apanham um táxi.


– Não têm bagagem?
– Não – diz Lela. – Pode levar-nos à Rua Kerch?
– São quinze lari.
– Eu sei. Temos dinheiro para pagar.
Lela e Irakli sentam-se no banco de trás, em silêncio. Lela percebe que
ele está a chorar. O motorista vai a ouvir canções românticas em
georgiano na rádio e, aos poucos, eles deixam-se levar pelas melodias
inebriantes.
Irakli encosta-se a Lela para lhe dizer qualquer coisa. A música está tão
alta que ele tem de gritar.
– Achas que puseram a minha mala no avião?
De repente, Lela fica furiosa.
– Sabes que mais? Vai-te foder mais a tua mala!
Irakli não diz mais nada. Encosta o rosto pálido à janela e olha para as
árvores que ladeiam a estrada, com vontade de lhes devolver tudo, as
asneiras, a raiva, a estúpida da mala e a América que nunca conhecerá, e
depois vê-os passar, a pisgarem-se e a levarem tudo com eles para bem
longe.
Lela pede ao motorista que pare perto de um quiosque à beira da
estrada, a uma certa distância da Rua Kerch.
– Importa-se de esperar aqui um minuto, enquanto eu vou comprar
pastilhas elásticas para o meu amigo? Ele está a ficar um bocado
maldisposto.
O homem para.
– Espera que eu volto já – diz Lela a Irakli.
Irakli sabe o que vai acontecer.
O motorista desliga o carro, pega num pano e começa a limpar o para-
brisas por dentro, enquanto espera.
Irakli sente o coração acelerado. Põe uma mão no puxador da porta e
olha para a nuca do motorista, para os seus ombros largos, para as suas
mãos fortes e rudes, para as suas unhas negras das horas infindáveis a
arranjar o carro. O motorista dobra o pano e inclina-se para o guardar no
sítio de onde o tirou, e é nesse preciso momento que Irakli abre a porta.
Correm o mais depressa que conseguem, sem nunca olharem para trás.
Só param quando já estão muito longe. Não há sinal do motorista do
táxi. Nem sequer sabem se ele se deu ao trabalho de os perseguir.
Avistam uma fila de quiosques. Lela compra uma Coca-Cola e
continuam a andar.
– A Tiniko vai bater-me? – pergunta Irakli.
– Não pode – diz Lela.
– E tu? Vais bater-me?
Lela passa-lhe a garrafa de Coca-Cola.
– Era o que tu merecias. Mas não ia servir de nada. Não ia conseguir
meter juízo nessa cabeça.
Irakli guarda a garrafa vazia no bolso.
– Essa não tem depósito – diz ela.
Então Irakli tira a garrafa do bolso e atira-a para a berma poeirenta e
cheia de ervas.
Lela para no cruzamento.
– Estamos perto do cemitério.
– Qual? Aquele onde o Sergo foi enterrado?
– Não, o da minha tia Shushana. Sim, onde o Sergo foi enterrado! Anda,
vamos visitar a campa dele.
*

Compram um pequeno ramo de flores silvestres, já um pouco murchas,


a uma velhota por vinte tetri. Ela é parecida com as suas flores: o rosto
pequeno e delicado está coberto de rugas, e à volta da cabeça tem um
lenço amarelo às flores.
Quanto mais se aproximam do cemitério, mais difícil é descobrirem
qual a entrada por onde têm de ir. Mais de uma vez, são obrigados a
regressar à porta por onde entraram, por ser impossível chegar à sepultura
de Sergo por aquele lado do cemitério.
Irakli arrasta-se, exausto, ao lado de Lela. As flores fazem-lhe suar a
palma da mão.
– Podemos entrar no cemitério por aqui? – pergunta Lela.
– No cemitério? Sim, podem. Se seguirem por aquele caminho.
– Não, não – interrompe Lela. – Ainda agora fomos por aí. Andamos à
procura de uma das outras entradas, entrámos por lá há uns meses. É perto
de um bloco de apartamentos que está meio destruído, mas que tem
pessoas a morar na outra metade. Está tudo a desabar.
– Ah, estás a falar do Titanic! Têm de ir por aquele lado. Passam por
dois blocos de apartamentos e vão ver que, de repente, a estrada começa a
ter um piso muito mau. Assim que chegarem a esse sítio, têm de subir pela
colina até chegarem a uma zona cheia de lama. Contornam a lama e vão
dar ao pátio em frente do Titanic!
*

Ao caminharem pelo cemitério, Lela vai olhando para as lápides.


– Ele não tem uma lápide – diz ela –, mas lembro-me de que o
enterraram ao lado de uma Neli Aivazova, ou coisa do género. Vê se a
encontras.
É quase noite, e as últimas pessoas enlutadas já vão a sair. Lela e Irakli
continuam lá dentro, às voltas, sem conseguirem encontrar Sergo ou Neli
Aivazova.
– Ela tinha uma lápide preta com uma fotografia embutida. Estava a
sorrir e era um bocado parecida com a Dali – diz Lela.
Sentam-se a descansar junto de uma sepultura há muito abandonada,
com uma vedação de ferro ferrugenta e toda coberta de ervas daninhas.
Lela olha para a torre de apartamentos à beira do cemitério, onde já se
veem luzes acesas pelas janelas.
– Lela – diz Irakli –, a minha mãe não vai voltar, pois não? Era por isso
que a Tiniko queria mandar-me para a América.
Lela pensa na mãe de Irakli, Inga, e nas palavras que a mulher grega lhe
disse, Inga no live here any more! E tudo isso parece ter acontecido há
muito tempo.
– Nunca se sabe – responde Lela. – Tudo é possível.
– Achas mesmo? – pergunta ele, muito admirado.
– Vou-me embora – diz Lela, de repente. – Vou-me embora da escola,
quero eu dizer. Mas não digas a ninguém. Há uma coisa de que tenho de
tratar mas, quando resolver isso, vou-me embora.
– Para onde é que vais? – pergunta Irakli, ressentido.
– Ainda não sei. Para um sítio qualquer. – Irakli levanta-se e olha para
Lela como se tivesse sido abandonado pela segunda vez. – Se não disseres
nada a ninguém e me ajudares, levo-te comigo – diz Lela, com
indiferença. – Não mereces, mas que é que eu posso fazer? – Depois,
lembrando-se da razão por que ali estão, ordena a Irakli: – Vai pelo outro
lado da colina, para ver se ela lá está enterrada. Se a descobrires,
descobrimos o Sergo.
Irakli olha para as flores murchas, com vergonha de estar a levar a Sergo
uma lembrança tão miserável.
– Lela – diz Irakli –, se calhar, não fixaste bem. Tenta lá pensar. Se
calhar, não era Neli Aivazova…
– Pois, não sei. Era uma mulher, estava a rir na foto e a lápide era preta.
E era um bocado parecida com a Dali.
Irakli olha para o cemitério, mas não vê nada que lhe pareça familiar.
Um cão aparece a serpentear por entre as lápides, cabisbaixo, a abanar
os quadris esqueléticos. Olham para ele, surpreendidos por verem um ser
vivo a movimentar-se com tanta indiferença por um sítio tão lúgubre.
– Vamos voltar para a escola – diz Lela. Vira-se, fixa o Titanic e traça o
caminho para saírem do cemitério.
Irakli olha para as lápides. Deixa as flores na campa de Izabela
Gegechkori, cuja sepultura não tem retrato, nem uma vela, nem outras
lembranças.
– Não encontrámos o Sergo – diz tristemente.
– Pois não – admite Lela.
*

Ao fundo da Rua Kerch, encontram Vaska sentado num cano de cimento


aberto ao lado da paragem do autocarro, a fumar.
– Dá-me um cigarro – pede Lela.
Vaska tira um maço inteiro do bolso e estende-lho.
– Uau, olha só para ele! – exclama Lela.
– Tira uns quantos – diz Vaska e olha para Irakli. – Então, não foste para
a América?
– Não – admite Irakli. – Quem foi que te disse?
– A Tiniko já voltou. E disse à Dali. A Dali quer dar-te uma tareia.
– Será que também quer dar uma tareia à mãe dele? – diz Lela. O
sorriso de Vaska aumenta.
Lela e Irakli afastam-se e continuam a andar em direção à escola.
– Viste o saco dele? – pergunta Irakli.
Lela não se lembra de ver nenhum saco.
– E então?
– Acho que ele vai pisgar-se.
– Pisgar-se para onde?
– Sei lá. Pisgar-se.
Lela faz um riso de desdém e cospe para o lado.
– Deixa-o ir à vontade.
– Lela, não vais deixar que me batam, pois não?
– Se alguém te bater, serei eu. Os outros podem meter-se na sua vida.
Irakli dá uma fumaça no cigarro e sente a cabeça agradavelmente tonta.
Quando estão a aproximar-se dos portões da escola, Lela imagina-os a
entrarem no pátio, as crianças e os professores a rodearem-nos, e toda a
comoção que se seguirá.
Irakli sente o coração quase a sair-lhe pela boca. Lela sente um gosto
amargo na garganta.
– Fica ao meu lado – diz em surdina a Irakli.
Quando chegam aos portões, veem Kolya e mais algumas crianças a
atravessarem o pátio a correr. As crianças reparam em Lela e Irakli, mas
ignoram-nos por completo e estranhamente continuam a correr.
Entram no pátio e veem Levan. Ele também os vê, mas continua a
correr.
Veem Pako e Stella a virem a correr do lado do recreio. Pako vem à
frente, com Stella atrás dele, a correr o mais depressa que consegue com
umas chinelas de enfiar no dedo. Correm em direção ao refeitório mas,
quando veem as crianças a dirigirem-se para eles e, logo a seguir, Dali,
dão meia-volta e correm para o recreio.
Pako grita a Lela e a Irakli:
– O Vano estava no quarto dos trampolins e caiu lá de cima!
Os olhos de Pako estão tão abertos como os do Rato Mickey na T-shirt
que tem vestida.
Irakli abandona todos os pensamentos sobre a América e começa a
correr atrás dos outros.
Por um momento, Lela fica parada, sem conseguir sequer mexer-se. De
repente, o seu corpo perde todo o peso. Senta-se no banco entre os abetos.
Apoia a cabeça no tronco. Fecha os olhos. E, nessa escuridão, vê o rosto
de Vaska, que, claro, está a sorrir.

18 Em inglês, no original: Vai-te lixar, sacana! Eu mato-te! Eu mato-te!

19 Em inglês, no original: Vai-te lixar, sacana! Eu mato-te! Eu mato-te! Não me toques!

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