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A dispensa de licitação e a pandemia COVID-19

Com o início da pandemia COVID-19 no Brasil, diversas legislações e


medidas provisórias foram editadas objetivando agilizar a aquisição de insumos e
contratação de serviços para enfrentamento da pandemia. Apesar dessa legislação
ter facilitado a caracterização de emergência nos casos que envolviam gastos
públicos relacionados à COVID-19, é inegável que tais disposições, determinadas
pela presidência da república e, após, aprovadas no congresso nacional, trouxeram
diversas possibilidades de “assalto” aos cofres públicos por parte de gestores e
empresários criminosos.
Na primeira unidade de estudos do presente módulo a professora Marinês
Restelatto Dotti analisou a exigência de licitação determinada pela Constituição
Federal e também as exceções previstas na legislação nacional, entre elas a
dispensa de licitação.
Entre as possibilidades de dispensa de licitação previstas no art. 24 da Lei
Federal nº 8.6661, o inciso IV prevê que é dispensável a licitação “nos casos de
emergência ou de calamidade pública, quando caracterizada urgência de
atendimento de situação que possa ocasionar prejuízo ou comprometer a segurança
de pessoas [...]”, sendo, claramente, a situação enfrentada pelos órgãos públicos no
enfrentamento da COVID19.
É importante destacar que a doutrina especializada e a jurisprudência
reiterada no tema sempre consideraram que para a caracterização da situação do
inciso IV do art. 24 da Lei de Licitações era necessária a comprovação da
“previsibilidade de concretização de um dano e a aferição de que a contratação é
apta a evitar evitá-lo2” e a evidência, no procedimento da dispensa, de que a
“contratação imediata é a via adequada e efetiva para eliminar iminente risco de
dano ou de comprometimento da segurança de pessoas3”.

1
BRASIL. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição
Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8666cons.htm>. Acesso em: 8 dezembro
2020.
2
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 17. ed. São
Paulo: RT, 2016, art. 24, item 9.2.
3
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 1.162/2014, Plenário, rel. Min. José Jorge.
2

A Lei Federal nº 13.9794, alterada pela Medida Provisória nº 926


(posteriormente convertida na Lei nº 14.035) facilitou, a partir de 20 de março de
2020, nas contratações relacionadas ao enfrentamento da COVID-19, a
caracterização da emergência, da previsibilidade de dano e do nexo causal da
contratação ao determinar, no art. 4-B, que, nas dispensas de licitação decorrentes
desta Lei, presumem-se atendidas as condições determinadas pela Lei de Licitações
para aquisições dispensadas por emergência.
Apesar de tal disposição ser louvável por diminuir a burocracia na
contratação de insumos e serviços destinados ao enfrentamento da pandemia, é
imprescindível destacar que a legislação surgida para o enfrentamento da pandemia
também trouxe disposições que, infelizmente, possibilitam o desvio de recursos
públicos.
A Medida Provisória nº 961, de 6 de maio de 2020 (posteriormente
convertida na Lei nº 14.0655), ao permitir, em seu art. 1º, inciso II, o pagamento
antecipado durante o estado de calamidade pública, possibilitou que empresários
mal intencionados prometessem o fornecimento de bens e insumos destinados ao
enfrentamento da COVID-19 e, mesmo que jamais tenham tido acesso a esses
bens, receberam o pagamento pelos bens antecipadamente. Também não se pode
negar que possivelmente agentes públicos também tenham aproveitado essa
situação e obtiveram vantagens financeiras às custas da fazenda pública.
Além disso, o aumento do limite de dispensa para quaisquer contratações
durante o estado de calamidade pública, nem necessitando a relação com o
enfrentamento da COVID-19, a possibilidade de contratação de empresas com
sanções de impedimento ou suspensão de contratar com o poder público e a
dispensa de estimativa de preços nessas contratações também são disposições que
pouco aceleram as contratações necessárias e muito afetam a transparência e o
gasto público eficiente.

4
BRASIL. Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da
emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável
pelo surto de 2019. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-
2022/2020/lei/L13979compilado.htm>. Acesso em: 8 dezembro 2020.
5
BRASIL. Lei nº 14.065, de 30 de setembro de 2020. Autoriza pagamentos antecipados nas licitações
e nos contratos realizados no âmbito da administração pública; adequa os limites de dispensa de
licitação; amplia o uso do Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC) durante o estado de
calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020; e altera a Lei
nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-
2022/2020/Lei/L14065.htm>. Acesso em: 8 dezembro 2020.
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Não foram poucos os casos de contratações por valores acima do


mercado, pagamento antecipado e ausência de entrega de equipamentos durante os
primeiros meses de enfrentamento à pandemia 67, demonstrando que as novas
disposições legais não atingiram o objetivo inicialmente determinado.
Tais casos demonstram que qualquer disposição legal que diminua os
requisitos e a segurança da administração nas contratações deve ocorrer apenas
quando houver total relação com a agilidade do processo, sem que isso possibilite
uma facilitação no desvio de recursos públicos, afinal, o pagamento antecipado e a
ausência de pesquisa de preços em processos licitatórios não diminui
substancialmente o tempo despendido na contratação e possibilita o criminoso uso

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Jovem de 19 anos ganha contrato milionário de respiradores e não entrega. Disponível em:
<https://veja.abril.com.br/brasil/jovem-de-19-anos-ganha-contrato-milionario-de-respiradores-para-o-
rio/>. Acesso em: 8 dezembro 2020.
7
Governo de SC diz "estranhar" pagamento antecipado de R$ 33 milhões por respiradores.
Disponível em: <https://www.nsctotal.com.br/noticias/governo-de-sc-diz-estranhar-pagamento-
antecipado-de-r-33-milhoes-por-respiradores.>. Acesso em: 8 dezembro 2020.

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