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Resumo
.j.
Objectivos
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.• 2.1 A noção de Bildung
I
2.1.1 Dificuldades na definição de Bildung
O termo alemão Bildung remete pois para uma noção que é específica da
língua e cultura alemãs.
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da vida familiar, do que propriamente para o sentido de «classe social»
que entretanto o termo adquiriu (cf. igualmente Beutin 1992: 136).
Em termos muito gerais, dir-se-ia pois que a noção de Bildung aponta para
um núcleo semântico que se adivinha complexo e que tem no seu centro a
educação: Bildung remete tanto para o processo de educação e formação (o
caso de Bildungsroman), como para o resultado desse processo (o caso de
Bildungsbürgertum ).
Sublinhe-se ainda que a palavra pode ser utilizada nestes dois sentidos
- enquanto processo e enquanto resultado - e aplicada, quer ao indivíduo,
quer à comunidade ou à colectividade dos indivíduos. Bildung implica pois
uma forma interior (de formação individual, psicológica, de desenvol vi-
mento pessoal) e uma forma exterior (de educação colectiva, social).
Muito embora seja durante o século XVIII que o conceito deBildung adquire
o seu significado actual e corrente, a verdade é que este termo surge bastante
mais cedo na língua alemã, num contexto bem determinado.
Und Gott spr:ich: Lasset uns den Menschen machen nach unserm Bild und
Gleichnis ( ... ). Und Gott schuf den Menschen zu seinem Bild; zum Bilde
Gottes schuf er ihn, als Mann und Weib schuf er sie.
Nun aber spiegelt sich in uns allen des Herm Herrlichkeit mit aufgedecktem
Angesicht, und wir werden verwandeltin dasselbige Bild, von einer Klarheit
zur andem, ais vom Geist des Herrn .
Não se trata já aqui de o homem ter sido criado por Deus à sua imagem e
semelhança, não se trata já aqui de o homem ser uma mera e passiva imita-
ção de Deus; trata-se, sim, de o homem (cópia) se poder activamente
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aproximar de Deus (original) através de um longo caminho de desenvolvi-
mento e aperfeiçoamento interiores. Isto é, se cada indivíduo foi criado à
imagem de Deus, então, um adequado e correcto aproveitamento das
potencialidades individuais tornará possível, através de um processo demeta-
mo,fose e transformação (verwandeln) interiores, a aproximação a Deus.
É evidente que todo o homem nasce apto para adquirir conhecimento das
coisas: primeiro, porque é imagem de Deus. Com efeito, a imagem, se é
perfeita, apresenta necessariamente os traços do seu arquétipo, ou então
não será uma imagem.( ... )
Não é necessário, portanto, introduzir nada no homem a partir do exterior,
mas apenas fazer germinar e desenvolver as coisas das quais ele contém o
gérmen em si mesmo e fazer-lhe ver qual a sua natureza.
Embora a obra acima referida de Coménio seja a vários títulos precursora' 1 Veja-se por exemplo o elogio
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que foi publicada em Magdeburg e Leipzig em 1738. Ao longo de toda a
tradução os termos to form,formation e inward f orm são sempre traduzidos
por bilden, Bildung e innere Bildung. Contudo, os termos já não se referem
aqui à esfera do religioso, mas sim à esfera do moral, do estético e do peda-
gógico. Assiste-se portanto a um crescimento, a um transbordar do conceito,
como Bollenbeck refere com razão ao mesmo tempo que salienta a
importância e influência de Shaftesbury em todo este processo (Bollenbeck
1994: 116):
Der Begriff der Bildung ( ... ) war wohl der groBte Gedanke des 18. Jahr-
hunderts, und eben dieser Begriff bezeichnet das Element, in dem die
Geisteswissenschaften des 19. Jahrhundert leben ( ... ).
2 Sobre a distinção entre Haverá porém que acrescentar que «secularização» não é sinónimo de
Kulm r, Bildung e Aufkldrung imediata «vulgarização» ou «divulgação» do conceito aqui em causa.
vejam-se também os capítulos
11.1 («Kultur e Zivilisation»)
e 111.2 ( «A ufkldrung e moder-
Na verdade, tal como Moses Mendelssohn nota logo no início do seu artigo
nidade ») deste Manual. Na intitulado «Über die Frage: was heiBt aufklaren?», publicado no número de
perspectiva de Mendelssohn
estas três noções estão intima-
Setembro de 1784 da revista Berlinische Monatsschrift (Mendelssohn 1986: 3),
mente ligadas, sendo contudo
Bildung o conceito central a Die Worte Aujkldrung, Kultur, Bildung sind in unsrer Sprache noch neue
partir do qual os outros dois Ankommlinge. Sie gehoren vor der Hand blo/3 zur Büchersprache. Der
derivam (Mendelssohn 1986:
4, sublinhados no original): gemeine Haufe versteht sie kaum. 2
«Je mehr der gesellige
Zustand eines Volks durch O que a frase de Mendelssohn deixa claramente transparecer é que aqueles
Kunst und FleiB mit der Be-
stimmung des Menschen in termos são apenas usados e entendidos no seu novo sentido específico por
Harmonie gebracht worden, uns quantos letrados, especialmente por aqueles que têm contacto com obras
desto mehr Bildung hat dieses
Volk. Bildung zerfallt in provenientes do estrangeiro. E estrangeiro significa, para a Alemanha da
Kultur und Aufkldrung». época, Inglaterra e França.
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Ora são precisamente estes dois países que mais contribuirão (e que
maior influência virão a ter) na fixação do conceito de Bildung. Essa fixa-
ção ocorre fundamentalmente na esfera das novas preocupações peda-
gógicas que começam a surgir em Inglaterra (com nomes como Bacon,
Locke e Shaftesbury) e posteriormente na França (com autores como
Rousseau) .
Dans les premieres opérations de l'esprit, que les sens soient toujours ses
guides [d'Émile]: point d' autre livre que lemonde, point d' autre instruction
que les faits.
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A recepção alemã destas três noções-chave de Rousseau - «p~rfectibili-
dade», «dicotomia natureza/cultura» e «experiência» - revelar-se,-á extra-
ordinariamente produtiva.
Por outro lado, uma vez que se trata de um processo patente em cada um dos
indivíduos da espécie humana (e que faz por conseguinte parte da natureza
de cada um deles), trata-se sem dúvida também de uma capacidade uni-
versal, naturalmente característica de toda a espécie humana, pelo que não
faz qualquer sentido falar de uma dicotomia natureza/cultura. Ao contrá-
rio, considera-se que a perfectibilidade não é a característica que distingue
4 Vejam-se também as passa-
(e por conseguinte separa) o homem «natural» do «civil», mas sim, precisa-
gens de Herder e BIumenbach
citadas por Voss kamp 1993: mente, a característica que, no homem, une natureza e cultura, e que se
197 ; Blumenbach refere- se constitui assim como a força centrípeta que proporciona unidade e uni-
mesmo a um Bildungstrieb
(Nisus formativus) inato e de versalidade a toda a espécie humana. Dito de outro modo: a capacidade
carácter universal. de aperfeiçoamento é uma das características específicas da natureza
5 Veja-se a de finição de humana e a cultura é tida justamente como o resultado ou produto dessa
Aufkliirung que abre o seu capacidade4 •
célebre ensaio «Beantwortung
de r Frage: Was ist Auf-
klarung ?» publicado no Ultrapassada esta cisão «natureza/cultura», tal como ela era entendida e
núm e ro de Dezembro de
defendida por Rousseau, também as dicotomias valorativas que lhe eram
1784 da revista Berlinische
Monatsschrift, a que já acima subsequentes (do tipo homem «natural», «bom» e «livre» versus homem
aludimos (Kant 1986: 9). O
«social», «mau» e «escravo» das regras sociais) deixam de fazer qualquer
facto de nos referirmos aqui a
uma definição de Aujkldrung sentido. O caminho fica assim aberto para Kant poder proclamar a autonomia
(e não de Bildung) não causa
de cada um dos indivíduos que constituem a espécie humana, e portanto
problemas de maior, sobre-
tudo face à complemen- também, a fundamental liberdade da espécie humana no que diz respeito à
taridade e contiguidade dos
auto-determinação do seu próprio destino 5•
conceitos já atrás mencio-
nada. No que diz respeito à
liberdade e autonomia que o Como se depreende, o conceito de Bildung assim reformulado é cada vez
homem tem para determinar o
seu próprio destino, deve no
mais entendido como processo e menos como resultado: trata-se de um
entanto sublinhar-se que essa processo, simultaneamente individual e universal, que se baseia nos
liberdade é, na perspectiva de
Kant, condicionada pelo uso
princípios da autonomia, da liberdade e da auto-determinação do sujeito,
regulador da Razão. e que tem por objectivo o desenvolvimento (leia-se aperfeiçoamento) da
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humanidade, já não para e em direcção a Deus, mas sim para e em direcção
à própria humanidade, em que as preocupações iniciais de ordem religiosa
são substituídas por outras de ordem, ética, estética e pedagógica.
Para o caso alemão, os dois nomes que se revelam sem dúvida importantes
na fixação do sentido actual da palavra são Johann Gottfried Herder e Wilhelm
von Humboldt.
Não deixa de ser interessante notar que tanto Herder como Humboldt pla-
neiam, cada um, uma obra que se lhes afigura simultaneamente grandiosa e
necessária - uma história universal da formação da humanidade.
Welch ein Werk über das Menschliche Geschlecht! den Menschlichen Geist!
die Cultur der Erde! aller Raume! Zeiten ! Volker! (... ) Universalgeschichte
der Bildung der Welt!
Es ware ein grosses und trefliches Werk zu liefem, wenn jemand die eigen-
thümlichen Fahigkeiten zu schildern untemahme, welche die verschiedenen
Facher der menschlichen Erkenntniss zu ihrer glücklichen Erweiterung
voraussetzen; den achten Geist, in dem sie einzeln bearbeitet, und die
Verbindung, in die sie alle mit einander gesetzt werden müssen, um die
Ausbildung der Menschheit, ais ein Ganzes, zu vollenden.
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Wesen Werth und Dauer verschaffen will. Da jedoch die blosse Kraft einen
Gegenstand braucht ( ... ), und die blosse Form, der reine Gedanke, einen
Stoff, in dem sie, sich darin auspragend, fortdauem kõnne, so bedarf der
Mensch einer Welt ausser sich.
Em suma, o que fica da noção de Bildung, tal como ainda hoje é entendida
no espaço de língua alemã, são quatro núcleos de significado que se afigu-
ram fundamentais, na medida em que se constituem como os elementos
estáveis de um conceito que apresenta inúmeras variações ao longo dos tempos
(cf. Vosskamp 1993: 190 e Pleines 1989: 7 e segs.):
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, conseguinte também a liberdade e a autonomia) para se desenvolver
em função da sua própria individualidade, isto é, em função das
capacidades que lhe são específicas; esta será porventura a componen-
te mais intraduzível do conceito (cf. Bollenbeck 1994: 112).
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Muito embora não se pretenda fazer aqui uma história da educação, a ver-
dade é que se afigura necessário recordar alguns traços característicos e
princípios (muito gerais) da educação dos clássicos - gregos e romanos
- , uma vez que são os próprios autores alemães que para eles directamente
remetem. Aliás, ao longo da reflexão e discussão em torno do conceito de
Bildung muitas vezes se recorre à noção grega de «paideia» (educação,
formação, cultura), justamente para iluminar (e diferenciar) o conceito alemão
a que temos vindo a aludir.
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-
t
( ... ) griff auf die Werte der Antike (Kunst, Literatur, Philosophie, Lebens-
gefühl) ( ... ) zurück. Dadurch wurde überall in Europa das Bedürfnis nach
einer nicht mehr theologisch überformten, sondem rein weltlichen Bildung
gefõrdert.
Ficava assim aberto o caminho para uma futura secularização da área edu-
cacional, secularização essa que só viria efectivamente a concretizar-se nas
últimas décadas do século XVIII.
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