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Cap. II.

2, "Conceitos de Cultura: Bildung e Erfahrung -


pedagogia, cosmopolitismo, interculturalidade", pp.77-104.

Resumo
.j.

Face à especificidade do conceito de Bildung (que desempenhou, e desem-


penha ainda hoje, um papel fundamental na cultura alemã), proporciona-se
uma panorâmica histórica da noção de Bildung, das suas origens e fixação
durante o século XVIII, e do seu posterior desenvolvimento.

É ainda dado relevo às repercussões europeias deste conceito, nomeada-


mente as que têm a ver com o (re)nascimento de um pensamento pedagó-
gico e com o subsequente surgimento de um espaço europeu, cosmopolita e
intercultural.

Objectivos

• Identificar os diferentes usos da noção de Bildung, bem como o pro-


cesso de desenvolvimento e fixação do sentido do mesmo conceito.

• Relacionar a noção de Bildung com o surgimento e desenvolvimento


da pedagogia na Europa e, mais especificamente, nos espaços de
língua alemã.

• Compreender a importância que as noções de Bildung e Erfahrung


têm para a formação de um espaço (intercultural) europeu.

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[Página em branco]
.• 2.1 A noção de Bildung
I
2.1.1 Dificuldades na definição de Bildung

Uma das primeiras dificuldades que se nos deparam quando procuramos


entender ou explicar o termo alemão Bildung é exactamente a da sua tradu-
ção para a língua portuguesa.

Os dicionários de alemão-português referem normalmente como equivalen-


tes da palavra alemãBildung os termos portugueses «formação, constituição,
cultura, criação, forma, desenvolvimento, instrução, educação». Remete-se
assim para o contexto específico (textual e epocal) em que a palavra ocorre
a decisão de a traduzir por cada uma das variantes acima mencionadas .
O mesmo, de resto, acontece noutras línguas europeias, nomeadamente no
castelhano, no francês e no inglês.

Tal como acontece com a palavra portuguesa «saudade», se partirmos agora


da perspectiva inversa (isto é, do português para uma língua estrangeira), a
variedade da escolha que os dicionários nos proporcionam, juntamente com
a ambiguidade que é inerente a essa mesma escolha, são de novo um sintoma
claro, não tanto da intraduzibilidade do conceito em causa, mas sim da
especificidade desse conceito no âmbito da cultura em que ele se desenvolveu
e de onde ele é originário.

O termo alemão Bildung remete pois para uma noção que é específica da
língua e cultura alemãs.

A atestar essa especificidade e, simultaneamente, a importância e a riqueza


deste conceito no âmbito da história cultural alemã estão ainda as diversas
palavras compostas criadas a partir de Bildung. Refiram-se, a título de
exemplo, dois termos surgidos no século XVIII:

• Bildungsroman, que no português é habitualmente traduzido por


«romance de formação» e que corresponde a um tipo de romance
que acompanha e descreve a formação e a evolução de um indivídup
(normalmente do sexo masculino) até à sua maturidade, sendo
especialmente destacadas as vertentes social, psicológica e cultural
desse percurso evolutivo; Wilhelm Meisters Lehrjahre (1795) de
Goethe pode ser visto como o exemplo e modelo deste tipo de romance
alemão característico de finais do século XVIII (veja-se p. ex. Beutin
- 1992: 169esegs.).

• Bildungsbürgertum, palavra que no português é habitualmente tra-


duzida por «burguesia culta», «letrada» ou «esclarecida» e que, ao
contrário do que o termo «burguesia» aqui parece indiciar, remete
mais para uma esfera do privado, onde se sublinham as virtudes morais

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da vida familiar, do que propriamente para o sentido de «classe social»
que entretanto o termo adquiriu (cf. igualmente Beutin 1992: 136).

Em termos muito gerais, dir-se-ia pois que a noção de Bildung aponta para
um núcleo semântico que se adivinha complexo e que tem no seu centro a
educação: Bildung remete tanto para o processo de educação e formação (o
caso de Bildungsroman), como para o resultado desse processo (o caso de
Bildungsbürgertum ).

Sublinhe-se ainda que a palavra pode ser utilizada nestes dois sentidos
- enquanto processo e enquanto resultado - e aplicada, quer ao indivíduo,
quer à comunidade ou à colectividade dos indivíduos. Bildung implica pois
uma forma interior (de formação individual, psicológica, de desenvol vi-
mento pessoal) e uma forma exterior (de educação colectiva, social).

2.1.2 Origens e usos da noção de Bildung

Muito embora seja durante o século XVIII que o conceito deBildung adquire
o seu significado actual e corrente, a verdade é que este termo surge bastante
mais cedo na língua alemã, num contexto bem determinado.

Durante a Idade Média, e no âmbito do pensamento religioso, palavras como


Bild, bilden e Bildung remetem para um significado específico que está
directamente ligado ao passo do Génesis (1, 26-27) em que se afirma que
Deus criou o homem «à sua imagem e semelhança»:

Und Gott spr:ich: Lasset uns den Menschen machen nach unserm Bild und
Gleichnis ( ... ). Und Gott schuf den Menschen zu seinem Bild; zum Bilde
Gottes schuf er ihn, als Mann und Weib schuf er sie.

Nesta acepção inicial o termo é utilizado quer como sinónimo de «imagem»


- Bild, Abbild, Ebenbild (imago)-, quer como sinónimo de «cópia» ou
«imitação» - Nachbildung, Nachahmung (imitatio).

Possivelmente mais importante (e determinante para o sentido actual do


termo) do que este passo do Génesis é, porém, o eco que dele faz Paulo no
Novo Testamento (2.ª Epístola aos Coríntios, 3, 18, sublinhados nossos):

Nun aber spiegelt sich in uns allen des Herm Herrlichkeit mit aufgedecktem
Angesicht, und wir werden verwandeltin dasselbige Bild, von einer Klarheit
zur andem, ais vom Geist des Herrn .

Não se trata já aqui de o homem ter sido criado por Deus à sua imagem e
semelhança, não se trata já aqui de o homem ser uma mera e passiva imita-
ção de Deus; trata-se, sim, de o homem (cópia) se poder activamente

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aproximar de Deus (original) através de um longo caminho de desenvolvi-
mento e aperfeiçoamento interiores. Isto é, se cada indivíduo foi criado à
imagem de Deus, então, um adequado e correcto aproveitamento das
potencialidades individuais tornará possível, através de um processo demeta-
mo,fose e transformação (verwandeln) interiores, a aproximação a Deus.

O termo Bildung (e naturalmente também bilden/sich bilden) é então aqui


utilizado quer no sentido de Gestalt (forma), quer, principalmente, no sentido
de Gestaltung (formatio, formação, transformação) .

Ora é precisamente esta última vertente do conceito, uma vertente clara-


mente mais dinâmica e activa, que a mística religiosa medieval alemã
desenvolve e que se prolonga até aos círculos pietistas do século XVIII
(cf. Rauhut 1953: 88 e Vierhaus 1972: 509 e segs.).

Coménio (1592-1670), o humanista pedagogo nascido na Morávia que


ficou conhecido como o «Bacon da pedagogia» ou o «Galileu da educação»,
ilustra de uma forma exemplar esta nova perspectiva na suaDidáctica Magna,
publicada em 1657 (Coménio 1996: 102-104; vejam-se também as pp. 32-
-33 da tradução alemã da obra indicada na bibliografia):

É evidente que todo o homem nasce apto para adquirir conhecimento das
coisas: primeiro, porque é imagem de Deus. Com efeito, a imagem, se é
perfeita, apresenta necessariamente os traços do seu arquétipo, ou então
não será uma imagem.( ... )
Não é necessário, portanto, introduzir nada no homem a partir do exterior,
mas apenas fazer germinar e desenvolver as coisas das quais ele contém o
gérmen em si mesmo e fazer-lhe ver qual a sua natureza.

Esta noção de desenvolvimento interior e pessoal de cada indivíduo para e


em direcção a Deus tornar-se-á pois determinante no que diz respeito à
especificidade da noção de Bildung no espaço de língua alemã, repercu-
tindo-se, posteriormente, durante o processo de secularização do conceito:
termos como «indivíduo», «desenvolvimento e aperfeiçoamento pessoal»
ou «transformação interior» fazem agora parte das palavras-chave sem as
quais não seria possível definir Bildung.

Embora a obra acima referida de Coménio seja a vários títulos precursora' 1 Veja-se por exemplo o elogio

que Herder lhe faz nas suas


- nomeadamente no que diz respeito à progressiva deslocação do conceito Briefe zu Beforderung der
de Bildung do plano do religioso para o plano do pedagógico - , a secula- Humanitiit ( «57. Brief» in:
Herder 1991: 294-301 ).
rização do conceito (e portanto o seu alargamento e aplicação a outras
esferas que não as exclusivamente religiosas) ocorre fundamentalmente
durante o século XVIII.

Papel decisivo, terá tido a este respeito a tradução alemã da obra de


Shaftesbury (1671-1713) , Soliloquy or Advice to an Author, tradução essa

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que foi publicada em Magdeburg e Leipzig em 1738. Ao longo de toda a
tradução os termos to form,formation e inward f orm são sempre traduzidos
por bilden, Bildung e innere Bildung. Contudo, os termos já não se referem
aqui à esfera do religioso, mas sim à esfera do moral, do estético e do peda-
gógico. Assiste-se portanto a um crescimento, a um transbordar do conceito,
como Bollenbeck refere com razão ao mesmo tempo que salienta a
importância e influência de Shaftesbury em todo este processo (Bollenbeck
1994: 116):

Entscheidend ist Shaftesburys Beitrag zum Bedeutungszuwachs des


Bildungsbegriffs. Mit der groBen Wirkung seines Denkens erhalt die
mystisch-pietistische Vorstellung von «bilden» bzw. «Bildung» eine
moralisch-asthetische Bedeutung. «Bildung» wird so sakularisiert und in
eine verweltliche Frõmmigkeit eingeweiht.

2.1.3 A secularização do conceito de Bildung no século XVIII

O processo de secularização do conceito de Bildung ou, talvez melhor e


mais exactamente, o conceito resultante desse longo processo é de tal modo
importante para a história da cultura alemã que o filósofo Hans-Georg
Gadamer não hesita mesmo em ver na noção deBildung «o maior pensamento
do século XVIII», que está na origem das ciências sociais e humanas, e
cujos efeitos e repercussões se prolongam, assim, muito para além do século
XVIII (Gadamer 1986: 15):

Der Begriff der Bildung ( ... ) war wohl der groBte Gedanke des 18. Jahr-
hunderts, und eben dieser Begriff bezeichnet das Element, in dem die
Geisteswissenschaften des 19. Jahrhundert leben ( ... ).

2 Sobre a distinção entre Haverá porém que acrescentar que «secularização» não é sinónimo de
Kulm r, Bildung e Aufkldrung imediata «vulgarização» ou «divulgação» do conceito aqui em causa.
vejam-se também os capítulos
11.1 («Kultur e Zivilisation»)
e 111.2 ( «A ufkldrung e moder-
Na verdade, tal como Moses Mendelssohn nota logo no início do seu artigo
nidade ») deste Manual. Na intitulado «Über die Frage: was heiBt aufklaren?», publicado no número de
perspectiva de Mendelssohn
estas três noções estão intima-
Setembro de 1784 da revista Berlinische Monatsschrift (Mendelssohn 1986: 3),
mente ligadas, sendo contudo
Bildung o conceito central a Die Worte Aujkldrung, Kultur, Bildung sind in unsrer Sprache noch neue
partir do qual os outros dois Ankommlinge. Sie gehoren vor der Hand blo/3 zur Büchersprache. Der
derivam (Mendelssohn 1986:
4, sublinhados no original): gemeine Haufe versteht sie kaum. 2
«Je mehr der gesellige
Zustand eines Volks durch O que a frase de Mendelssohn deixa claramente transparecer é que aqueles
Kunst und FleiB mit der Be-
stimmung des Menschen in termos são apenas usados e entendidos no seu novo sentido específico por
Harmonie gebracht worden, uns quantos letrados, especialmente por aqueles que têm contacto com obras
desto mehr Bildung hat dieses
Volk. Bildung zerfallt in provenientes do estrangeiro. E estrangeiro significa, para a Alemanha da
Kultur und Aufkldrung». época, Inglaterra e França.

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Ora são precisamente estes dois países que mais contribuirão (e que
maior influência virão a ter) na fixação do conceito de Bildung. Essa fixa-
ção ocorre fundamentalmente na esfera das novas preocupações peda-
gógicas que começam a surgir em Inglaterra (com nomes como Bacon,
Locke e Shaftesbury) e posteriormente na França (com autores como
Rousseau) .

No caso de Rousseau, que possivelmente será dos autores mencionados aquele


que mais directamente influenciou o pensamento alemão da época, convirá
distinguir três noções-chave da sua filosofia que se revelam importantes para
a discussão e formação do conceito que aqui nos ocupa.

Trata-se, em primeiro lugar, da ideia de que a capacidade ou faculdade de


aperfeiçoamento - a perfectibilidade (perfectibilité) - é característica
específica do género humano; esta faculdade é de resto, no entender de
Rousseau, a característica que melhor permite diferenciar o homem do animal
(Rousseau 1984: 102-103 ; 298 e segs.). Ora, como facilmente se constata,
esta ideia de perfectibilidade é análoga e complementar da noção de
aperfeiçoamento pessoal e desenvolvimento interior que se verificava já nos
círculos religiosos pietistas alemães.

Trata-se, em segundo lugar, de uma ideia que é, de alguma forma, conse-


quência da anterior: ao eleger a perfectibilidade como a característica que
permite distinguir o homem do animal, Rousseau instala também uma cisão
(que considera inultrapassável) no próprio homem - entre natureza, por
um lado, e cultura, por outro. O homem «natural» (leia-se: o homem na
natureza) é um homem livre, o homem «civil» (leia-se: o homem na socie-
dade e na cultura, submetido portanto às regras da vida com outros homens)
é um escravo. Não surpreende pois que logo a iniciar o seu ensaio Émile ou
de l 'Éducation (publicado em 1765) Rousseau advirta (1966: 38) «( ... ) il
faut opter entre faire un homme ou un citoyen: car on ne peut faire à la fois
l' un et l'autre», já que natureza e cultura não são, do seu ponto de vista,
conciliáveis na espécie humana 3 • 3 Veja-se Rousseau 1984: 264

e segs. e 304 e segs. sobre a


dicotomia natureza/cultura,
E trata-se, em terceiro e último lugar, da importância que Rousseau atribui e especialmente sobre as
diferenças entre o homem
àquilo a que hoje poderíamos chamar experiência pessoal e ao papel de «natural» e o homem «civil »
relevo que essa mesma experiência desempenha durante os processos de (ou «homme policé» como
Rousseau também lhe chama).
assimilação (educação) e produção do conhecimento. Num argumento que é
profusamente repetido ao longo do seu Émile, Rousseau recomenda (1966:
215, sublinhados nossos):

Dans les premieres opérations de l'esprit, que les sens soient toujours ses
guides [d'Émile]: point d' autre livre que lemonde, point d' autre instruction
que les faits.

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A recepção alemã destas três noções-chave de Rousseau - «p~rfectibili-
dade», «dicotomia natureza/cultura» e «experiência» - revelar-se,-á extra-
ordinariamente produtiva.

Em termos muito gerais dir-se-ia que aAlemanha do século XVIII considera


este conceito de perfectibilidade de Rousseau pertinente e válido, mas
transforma-o, adapta-o, reformula-o.

Em primeiro lugar, acentua-se o carácter individual e interior da noção de


perfectibilidade: a perfectibilidade poderá ser uma característica específica
universal da espécie humana, mas a verdade é que se entende agora (por
influência dos círculos religiosos pietistas) dever sublinhar que ela é essen-
cialmente uma característica específica individual, de cada um dos indiví-
duos da espécie humana. Paralelamente destaca-se no mesmo conceito de
perfectibilidade o que ele tem de processo, de devir, de aperfeiçoamento
interior e pessoal.

Por outro lado, uma vez que se trata de um processo patente em cada um dos
indivíduos da espécie humana (e que faz por conseguinte parte da natureza
de cada um deles), trata-se sem dúvida também de uma capacidade uni-
versal, naturalmente característica de toda a espécie humana, pelo que não
faz qualquer sentido falar de uma dicotomia natureza/cultura. Ao contrá-
rio, considera-se que a perfectibilidade não é a característica que distingue
4 Vejam-se também as passa-
(e por conseguinte separa) o homem «natural» do «civil», mas sim, precisa-
gens de Herder e BIumenbach
citadas por Voss kamp 1993: mente, a característica que, no homem, une natureza e cultura, e que se
197 ; Blumenbach refere- se constitui assim como a força centrípeta que proporciona unidade e uni-
mesmo a um Bildungstrieb
(Nisus formativus) inato e de versalidade a toda a espécie humana. Dito de outro modo: a capacidade
carácter universal. de aperfeiçoamento é uma das características específicas da natureza
5 Veja-se a de finição de humana e a cultura é tida justamente como o resultado ou produto dessa
Aufkliirung que abre o seu capacidade4 •
célebre ensaio «Beantwortung
de r Frage: Was ist Auf-
klarung ?» publicado no Ultrapassada esta cisão «natureza/cultura», tal como ela era entendida e
núm e ro de Dezembro de
defendida por Rousseau, também as dicotomias valorativas que lhe eram
1784 da revista Berlinische
Monatsschrift, a que já acima subsequentes (do tipo homem «natural», «bom» e «livre» versus homem
aludimos (Kant 1986: 9). O
«social», «mau» e «escravo» das regras sociais) deixam de fazer qualquer
facto de nos referirmos aqui a
uma definição de Aujkldrung sentido. O caminho fica assim aberto para Kant poder proclamar a autonomia
(e não de Bildung) não causa
de cada um dos indivíduos que constituem a espécie humana, e portanto
problemas de maior, sobre-
tudo face à complemen- também, a fundamental liberdade da espécie humana no que diz respeito à
taridade e contiguidade dos
auto-determinação do seu próprio destino 5•
conceitos já atrás mencio-
nada. No que diz respeito à
liberdade e autonomia que o Como se depreende, o conceito de Bildung assim reformulado é cada vez
homem tem para determinar o
seu próprio destino, deve no
mais entendido como processo e menos como resultado: trata-se de um
entanto sublinhar-se que essa processo, simultaneamente individual e universal, que se baseia nos
liberdade é, na perspectiva de
Kant, condicionada pelo uso
princípios da autonomia, da liberdade e da auto-determinação do sujeito,
regulador da Razão. e que tem por objectivo o desenvolvimento (leia-se aperfeiçoamento) da

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humanidade, já não para e em direcção a Deus, mas sim para e em direcção
à própria humanidade, em que as preocupações iniciais de ordem religiosa
são substituídas por outras de ordem, ética, estética e pedagógica.

Para o caso alemão, os dois nomes que se revelam sem dúvida importantes
na fixação do sentido actual da palavra são Johann Gottfried Herder e Wilhelm
von Humboldt.

Não deixa de ser interessante notar que tanto Herder como Humboldt pla-
neiam, cada um, uma obra que se lhes afigura simultaneamente grandiosa e
necessária - uma história universal da formação da humanidade.

Herder refere-se-lhe como projecto já em 1769, no diário da sua viagem a


França (Herder 1976: 17):

Welch ein Werk über das Menschliche Geschlecht! den Menschlichen Geist!
die Cultur der Erde! aller Raume! Zeiten ! Volker! (... ) Universalgeschichte
der Bildung der Welt!

O projecto, porém, nunca seria cumprido, ou melhor, foi sendo parcial e


fragmentariamente realizado ao longo de toda a vida de Herder, com a
publicação de diversas obras, de entre as quais é justo destacar as ldeen zur
Philosophie der Geschichte der Menschheit (1784), Briefe zu Beforderung
der Humanitat (1793) e Auch eine Philosophie der Geschichte zur Bildung
der Menschheit, esta última publicada em 1774 e a que adiante nos referi-
remos com mais detalhe 6 • 6 Veja-se o posfácio de J. M.
Justo ( 1995) à tradução por-
O mesmo entusiasmo, a mesma grandiosidade de projecto se pressente tuguesa de sta obra, espe-
cialmente as pp. 155 e segs .
também em Humboldt, num manuscrito que data possivelmente de 1795 e
que tem precisamente o título de «Theorie der Bildung des Menschen»
(Humboldt 1980a: 234):

Es ware ein grosses und trefliches Werk zu liefem, wenn jemand die eigen-
thümlichen Fahigkeiten zu schildern untemahme, welche die verschiedenen
Facher der menschlichen Erkenntniss zu ihrer glücklichen Erweiterung
voraussetzen; den achten Geist, in dem sie einzeln bearbeitet, und die
Verbindung, in die sie alle mit einander gesetzt werden müssen, um die
Ausbildung der Menschheit, ais ein Ganzes, zu vollenden.

Mas há diferenças nesta noção de Bildung. Essas diferenças não resultam


tanto da introdução de elementos novos no núcleo central de significados
que compõem a noção de Bildung, mas sim de uma re-combinação dos
elementos já existentes, ou seja, de umafundamental mudança de perspectiva,
que a partir de agora se consolidará como constitutiva do conceito aqui em
questão (Humboldt 1980a: 235, sublinhados nossos):

Im Mittelpunkt aller besonderen Arten der Thatigkeit nemlich steht der


Mensch, der( ...) nur die Krafte seiner Natur starken und erhohen, seinem

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Wesen Werth und Dauer verschaffen will. Da jedoch die blosse Kraft einen
Gegenstand braucht ( ... ), und die blosse Form, der reine Gedanke, einen
Stoff, in dem sie, sich darin auspragend, fortdauem kõnne, so bedarf der
Mensch einer Welt ausser sich.

De alguma forma poderá parecer que se retomam aqui os argumentos de


Rousseau, que apontavam no sentido de dar à experiência pessoal (mais do
que aos livros, quer dizer, à alegada experiência de terceiros) um papel rele-
vante durante o processo de educação e formação do indivíduo. Contudo
deve sublinhar-se que já não há qualquer dicotomia do tipo natureza/cultura,
homem «natural»/homem «civil», sujeito/mundo.

Ao contrário, a importância que Humboldt aqui atribui ao mundo exterior é


a importância da experiência do sujeito no mundo, de modo que o que
está implícito na noção de Bildung - a evolução, o desenvolvimento e a
transformação do indivíduo - é um processo que se vai realizando ao longo
de um eixo homem/mundo, processo esse cujos resultados são tanto melhores
quanto maior for a diversidade da experiência proporcionada pela interacção
indivíduo(s )-mundo.

A dicotomia natureza/cultura transforma-se portanto em Humboldt numa


complexa relação de complementaridade, de interdependência e de interacção
homem/mundo/humanidade, em que se conciliam e se combinam harmonica-
mente o particular (constituído pela liberdade e auto-determinação do indi-
'Veja-seVosskamp 1993: 199 víduo) e o universal (constituído pelo inexorável destino da humanidade)7.
quando cita Humboldt.
Bildung impõe-se pois, no século XVIII alemão, como o conceito genérico
( Oberbegriff) que abarca e simultaneamente transcende as noções de cultura
e civilização (Humboldt 1988: 401):

Die Civilisation ist die Vermenschlichung der Võlker in ihren ausseren


Einrichtungen und Gebrauchen und der darauf Bezug habenden innren
Gesinnung. Die Cultur fügt dieser Veredlung des gesellschaftlichen
Zustandes Wissenschaft und Kunst hinzu. Wenn wir aber in unsrer Sprache
Bildung sagen, so meinen wir damit etwas zugleich Hõheres und mehr
lnnerliches, nemlich die Sinnesart, die sich aus der Erkenntnis und dem
Gefühle des gesamten geistigen und sittlichen Strebens harmonisch auf
die Empfindung und den Charakter ergiesst.

Em suma, o que fica da noção de Bildung, tal como ainda hoje é entendida
no espaço de língua alemã, são quatro núcleos de significado que se afigu-
ram fundamentais, na medida em que se constituem como os elementos
estáveis de um conceito que apresenta inúmeras variações ao longo dos tempos
(cf. Vosskamp 1993: 190 e Pleines 1989: 7 e segs.):

1. Individualidade: o princípio basilar em que assenta a definição de


Bildung é o de que cada sujeito é único e tem o potencial (e por

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, conseguinte também a liberdade e a autonomia) para se desenvolver
em função da sua própria individualidade, isto é, em função das
capacidades que lhe são específicas; esta será porventura a componen-
te mais intraduzível do conceito (cf. Bollenbeck 1994: 112).

2. Educação: o termo Bildung remete naturalmente para educação e for-


mação (Ausbildung), muito embora não possa ser definido exclusiva-
mente por estas duas palavras; Bildung não significa apenas o desen-
volvimento do sujeito no mundo,face ao mundo ou para o mundo,
mas sim, também, o desenvolvimento pessoal do sujeito por si e para
si, ou seja, no âmbito da sua própria individualidade; trata-se neste
sentido de um permanente processo de formação (leia-se: «que dá
forma») simultaneamente interior (indivíduo) e exterior (mundo);
o termo remete, por outro lado, tanto para o processo de educação e
formação em si, como para o resultado desse mesmo processo.

3. Desenvolvimento: como vimos, inerente à noção de Bildung está


sempre a noção de processo, desenvolvimento, evolução e/ou pro-
gresso; os objectivos desse percurso evolutivo, de resto um percurso
sempre inacabado e inacabável, são de ordem ética, estética e peda-
gógica, e não (como sucedia inicialmente nos círculos pietistas) de
ordem religiosa.

4. Universalidade: tendo embora a componente individual um peso


significativo e determinante na definição do conceito, a verdade é
que a noção de Bildung é também, simultaneamente, uma noção
universal; o desenvolvimento educacional e formativo de cada um
dos indivíduos, quer se trate de um desenvolvimento exterior (no
mundo), quer se trate de um desenvolvimento interior (aperfei-
çoamento e formação individual), é característica universal de toda a
espécie humana; assim como o indivíduo determina a comunidade
em que vive ao mesmo tempo que é determinado por ela, também a
Bildung individual determina e é determinada pelaBildung universal.

2.2 O (Re)Nascimento da Pedagogia

2.2. I A educação na Europa em meados do século XVIII

Naturalmente que num contexto histórico e de mentalidades como o que


acima fica delineado, em que as noções de Bildung, Kultur e Aufklarung
desempenham um papel primordial, a educação e, de uma forma geral, os
temas de âmbito pedagógico não poderiam deixar de estar no centro das
atenções.

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Muito embora não se pretenda fazer aqui uma história da educação, a ver-
dade é que se afigura necessário recordar alguns traços característicos e
princípios (muito gerais) da educação dos clássicos - gregos e romanos
- , uma vez que são os próprios autores alemães que para eles directamente
remetem. Aliás, ao longo da reflexão e discussão em torno do conceito de
Bildung muitas vezes se recorre à noção grega de «paideia» (educação,
formação, cultura), justamente para iluminar (e diferenciar) o conceito alemão
a que temos vindo a aludir.

As culturas clássicas - especialmente a cultura grega - têm por conse-


guinte um peso e uma influência determinantes naAlemanha do século XVIII.
Humboldt dá bem conta desse peso e dessa influência quando escreve ( 1986:
65): «Die Griechen sind uns nicht bloss ein nützlich historisch zu kennen
8 De resto , o termo «pe da- Volk, sondem ein Ideal.( ... ) Sie sind für uns, was ihre Gõtter für sie waren» 8 .
gogia» ( Péidago gik) é um
neo logi smo arcaico, prove -
ni e nte do grego antigo - No que diz respeito à educação, convirá em primeiro lugar referir que a
onde o termo «pedagogo » se instituição «Escola», tal como a conhecemos hoje (isto é, enquanto sistema
referia ao escravo que
acompanhava a criança nobre público de educação), é uma instituição relativamente recente, que só
à escola - e que se fi xa defi- começa a existir em meados do século XVIII.
niti va mente nas línguas
ocidentais precisamente no
sécul o XV III . É certo que na Grécia Antiga existiam escolas, mas tratava-se essen-
cialmente de escolas privadas, frequentadas exclusivamente por jovens
do sexo masculino pertencentes às classes superiores. As escolas fundadas
pelos filósofos - a Academia de Platão, ou o Liceu de Aristóteles - são
exemplos do tipo de centros de educação e formação frequentados pelos
jovens gregos. Esparta constituía uma excepção, já que o Estado se encar-
regava da educação de todas as crianças.

Com a expansão do império helénico, porém, a civilização grega passou a


viver cada vez mais do comércio e a depender assim em grande parte da
alfabetização da população, de modo que a partir do ano 300 a. C. quase
todos os filhos e (agora também) filhas dos cidadãos livres recebiam uma
educação básica, que lhes permitisse ler e escrever.

A alfabetização era também a preocupação fundamental para Roma, onde a


educação continuava a ser um privilégio, não apenas dos cidadãos livres,
mas também das classes mais altas.

Durante a Idade Média a (in)formação recolhe aos conventos ou às uni-


versidades (que dependiam directamente da Igreja). No entanto a educação
baseava-se agora numa estrutura disciplinar mais complexa e rígida. Para
além da Teologia (matéria a que, por motivos óbvios, cabia um papel central
nas instituições de ensino da época), o estudante tinha um curriculum a
cumprir que era composto pelas sete artes liberais: numa primeira fase
(Trivium) deveriam ser assimiladas a Gramática, a Retórica e a Dialéctica; e

90

-
t

numa segunda fase (Quadrivium) a Aritmética, a Geometria, a Música e a


Astronomia (cf. Gudjons 1995: 75 e segs.).

Na Renascença dá-se uma viragem fundamental. Como refere Blankertz, o


Humanismo renascentista (Blankertz 1982: 18-19)

( ... ) griff auf die Werte der Antike (Kunst, Literatur, Philosophie, Lebens-
gefühl) ( ... ) zurück. Dadurch wurde überall in Europa das Bedürfnis nach
einer nicht mehr theologisch überformten, sondem rein weltlichen Bildung
gefõrdert.

Ficava assim aberto o caminho para uma futura secularização da área edu-
cacional, secularização essa que só viria efectivamente a concretizar-se nas
últimas décadas do século XVIII.

Como desta panorâmica muito geral sobre a educação se depreende, a Escola


- e o termo só pode ser usado aqui metafórica e eufemisticamente -parece
ser o local onde se preserva (mais do que se distribui) informação e conhe-
cimento. A Igreja e a Universidade da Idade Média são aliás paradigmáticas
no que respeita a esta fundamental função de guardiãs da informação e do
conhecimento.

Ora esta dupla limitação das instituições de ensino - o facto de ( 1) a escola


estar apenas ao alcance das camadas sociais mais elevadas e (2) ser o local
de preservação (mais do que de distribuição) do conhecimento - é pro-
fundamente contrária às ideias iluministas do século XVIII. Mais: esta dupla
limitação é evidentemente incompatível com as teses emancipatórias e 9 No caso da Alemanha a
universalistas que decorrem dos próprios conceitos de Bildung, Kultur e implementação da escolari-
dade obrigatória(Schulpjlicht)
Aufklarung. começa já no século XVII.
Em 1619 é introduzida em
Weimar, em 1642 em Sachsen-
Assim, as transformações e reformas que se verificam na área da educação Coburg-Gotha, em 1649 em
na Alemanha de finais do século XVIII e inícios do século XIX (reformas Württemberg, em 1662 em
Brandenburg e em 1717 e
essas que adiante analisaremos com mais detalhe), poder-se-iam resumir em 1763 na Prússia. As decisões
duas palavras: secularização e distribuição. de introduzir por decreto a
escolaridade obrigatória não
têm no entanto consequências
Em termos genéricos dir-se-ia que se passa de um paradigma educacional práticas imediatas, de modo
que vê na escola o local de preservação do conhecimento para um para- que estas datas não devem
portanto ser lidas como os
digma educacional que olha para a escola como o local onde se procede à momentos a partir dos quais é
distribuição do conhecimento. efectivamente introduzida a
escolaridade obrigatória. Na
realidade , o processo de
Assiste-se então à criação das primeiras escolas públicas (o Estado implementação de um sistema
público e universal de ensino
substitui-se portanto à Igreja), a educação, lenta mas progressivamente, foi um processo moroso , que
torna-se obrigatória para todas as camadas populacionais 9 e são publi- se foi concretizando pro-
gressiva e lentamente ao
cados os primeiros manuais totalmente custeados e financiados pelo longo dos séculos XIX e XX
Estado. (cf. Blankertz 1982: 59).

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