Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Eu ri.
— Você vai ficar fora por um mês e meio. É muito
tempo. — Meus irmãos se matariam e ateariam fogo na
casa em metade desse tempo. — Te vejo em algumas
semanas, no jogo. — Peguei minha bolsa que estava
sobre a escrivaninha e a joguei sobre o ombro.
A carta que eu carregava nas últimas sete semanas fez
a bolsa parecer mais pesada. Eu queria jogá-la para Addie
e sair correndo. O problema era que, ao mesmo tempo,
não queria. Addie havia escrito aquela carta para si
mesma depois da Investigação. Eu tinha visto seu olhar
perturbado quando voltara daquela Investigação, antes
que eu Apagasse suas lembranças. Ela parecia infeliz. Eu
não fazia ideia do que o papel dizia, mas não queria trazer
aquele olhar de volta, independentemente do quanto me
sentisse culpada guardando aquilo. Talvez ela se sentisse
melhor quando voltasse da casa do pai.
— Não vá embora amanhã sem se despedir.
— Nem sonharia em fazer isso.
Dei um abraço nela e saí.
Quando estava na minha picape, peguei o envelope,
como havia feito muitas vezes nas últimas semanas. Os
cantos do papel até já estavam rasgados. Na frente, com
a letra de Addie, estava escrito: “Abrir no dia 14 de
novembro”. Já era dia 21 de novembro e o envelope
ainda estava lacrado. A data específica me incomodava
um pouco. Esperava que não houvesse nada lá dentro
que precisasse ser revelado em um momento específico.
Mas, considerando que a data era o dia seguinte às
revelações na casa de Bobby, imaginei que ela estivesse
esperando aquele evento passar para garantir que nada
mudaria. A vida de nós duas tinha ficado por um fio
naquele dia, e fazia sentido que ela não quisesse que nada
piorasse a situação — incluindo a carta. Guardei-a de
volta na bolsa e liguei o carro.
Respondi a mensagem:
— Você sabia que ele ia estar aqui? — Não sei por que
me dei ao trabalho de perguntar. Devia ter acusado logo
de uma vez, porque já sabia que a resposta era “sim”.
— Talvez. — Ela tomou um gole da bebida que
segurava e ficou observando Trevor de onde estávamos,
perto de uma fonte no meio do shopping. — O time o
convenceu a participar de uma ação para arrecadar
dinheiro. Estão vendendo calendários ou algo do tipo
para levantar fundos para uniformes novos.
Ele estava em uma mesa montada em frente a uma loja
de artigos esportivos, com mais uns oito caras, pegando
dinheiro e guardando em uma caixa de metal quando as
pessoas compravam calendários.
— Como você sabe que o time o convenceu? Tem
falado com ele?
Ela sorriu como se tivesse sido pega fazendo algo que
não devia.
— Talvez eu tenha falado com ele ontem à noite. Sei
que você me disse que a gente devia se afastar, mas não
consegui. Sinto saudade dele.
Senti uma pontada de ciúmes ao tentar adivinhar quem
havia ligado para quem. Repreendi a mim mesma pelo
pensamento. Eu não tinha nada com Trevor e nenhum
direito de ter ciúmes. Talvez eu o tivesse interpretado
mal na festa. Se ele continuava falando com Stephanie
pelo celular, talvez ainda gostasse dela.
— Você pode fazer o que quiser, Steph. Aquilo foi só
uma sugestão.
Ela deu um grito de animação.
— E o que vamos fazer agora? Será que devíamos ir
lá falar com ele? Comprar um calendário ou algo assim?
Eu ri.
— Não, acho melhor a gente ficar aqui, olhando
fixamente para ele do outro lado do shopping, como se
estivesse espionando sua vida.
— Você acha que tem fotos dos jogadores sem camisa
nos calendários?
Dei uma olhada nos jogadores da mesa, vários dos
quais eram branquelos e estavam muitos quilos acima do
peso.
— Ai. Espero que não.
Ela riu.
— É mesmo! — Stephanie levantou, aparentemente
decidindo que era hora de parar de olhar e começar a
agir. — Vamos. — Ela estendeu a mão para mim, e
permiti que me ajudasse a levantar. Depois ela enganchou
o braço no meu. — Isso é tão divertido! Obrigada por
ter vindo comigo.
— De nada.
— Ainda acho que você devia comprar aquele vestido
azul. Ficou incrível em você!
— Bom, depois de te ver com aquele preto — apontei
para a sacola que ela segurava —, acho que nunca mais
vou usar nenhum vestido.
— Até parece!
Chegamos à mesa e esperamos numa fila de várias
pessoas até finalmente ficarmos diante de Trevor. Ele
olhou como se não estivesse surpreso em nos ver. Devia
ter percebido que o encaramos à distância por meia hora.
— Oi — Stephanie disse.
— Oi. Como vocês estão?
— Comprando vestidos para o baile de inverno. — Ela
levantou um pouco a sacola. Eu sabia o que ela esperava
que ele fizesse. Que perguntasse com quem ela iria ao
baile. Era óbvio.
Ele não mordeu a isca, e não consegui perceber se
tinha sido intencional ou não.
— Legal.
— Vocês estão indo bem? Arrecadando muito
dinheiro?
— Está bem movimentado. Acho que o time vai se dar
bem. — Ele ficou girando uma caneta entre os dedos.
Não era um bom sinal para Stephanie: ele nem a olhava
diretamente. No entanto, também não era um bom sinal
para mim: ele olhava para uma caneta. Pare de analisá-
lo, disse a mim mesma. Não era da minha conta.
— Bom, quero comprar um. — Stephanie pôs o copo
de bebida que segurava sobre a mesa e começou a
vasculhar a bolsa.
Ele tirou um calendário de uma caixa no chão ao seu
lado, e o deixou sobre a mesa.
— Você descobriu por que o túmulo da sua avó está
na Pioneer Plaza? — Trevor perguntou, olhando para
mim.
Aquele único olhar fez meu coração bater um milhão
de vezes por minuto. Stephanie lançou um olhar para
mim. Droga! Sabia que devia ter contado a ela, mas não
quis causar alvoroço à toa.
— Aparentemente, ela sempre esteve enterrada lá. Só
não me dei conta de que era tão perto. — Não dava para
contar a verdade sem explicar mais, considerando que a
maioria das pessoas não era transferida de um túmulo
para outro.
A carteira de Stephanie era um pouco grande demais
para a abertura estreita da bolsa e, quando ela finalmente
conseguiu tirá-la, derrubou sua bebida. Enquanto o copo
caía, Trevor tentou salvar o calendário que estava logo
embaixo e acabou acertando a caixa de metal cheia de
dinheiro sobre a mesa.
A caixa voou para o chão, e o dinheiro começou a
flutuar devagar, porque o tempo tinha desacelerado. Eu
não devia ter feito aquilo, mas minha reação imediata foi
pegar a caixa, fechar a tampa e colocá-la de volta sobre
a mesa. Apenas algumas moedas perdidas caíram no
chão. Tirei as mãos da caixa rapidamente, mas já era
tarde demais. Vi o olhar espantado de Trevor.
Stephanie estava muito ocupada para notar, jogando o
gelo de volta no copo tombado.
— Sinto muito. O calendário ficou todo molhado. Vou
pagar por ele.
Mas Trevor ainda me encarava.
— Foi por um triz — eu disse.
Ele franziu a testa e em seguida olhou para as moedas
no chão, perto do meu pé. Abaixei para pegá-las e as
deixei em cima da caixa de dinheiro.
— Como você fez isso?
— Fiz o quê? — perguntei. — Vi que seu cotovelo ia
bater na caixa. Só impedi que ela caísse. — Minha
cabeça latejava e me esforcei para não ter que me apoiar
na mesa.
— Não. Eu derrubei a caixa com o cotovelo.
Stephanie pegou uma nota de dez dólares.
— Aqui está. Pelo calendário.
— Você não precisa comprar um calendário
estragado, Stephanie. Não tem problema. — Ele
entregou a ela um que não estava molhado e pegou o
dinheiro, retirando com cuidado as duas moedas de cima
da caixa e levantando a tampa. Lá dentro, o dinheiro
estava todo bagunçado e fora de ordem. Ele ajeitou
algumas pilhas. Logo depois, olhou novamente para o
chão e para mim.
— Bom, é melhor a gente ir. — Puxei Stephanie pelo
braço, mas ela me olhou como se quisesse ficar para
conversar e eu não estivesse ajudando. — Tem gente
esperando para comprar os calendários. — Havia outros
sete caras sentados à mesa, prontos para vender, mas,
ainda assim, eu só queria ir embora. Não acreditava que
não tinha deixado a porcaria da caixa cair no chão. Que
bom que tinha usado minha habilidade para salvar uma
caixa de metal da destruição.
— É, acho melhor a gente ir — Stephanie concordou.
Quando saímos, ela mordeu o lábio. — Tem alguma
coisa entre vocês dois?
— O quê? Não! Pedi ajuda para o Rowan e o Trevor
foi junto. Não foi nada de mais.
Ela passou a mão sobre uma parte da camiseta
molhada pela bebida.
— Eu devia ter ficado e conversado mais com ele.
Tinha esperança de que me convidasse para ir ao baile.
— Você precisa deixá-lo querendo mais — eu disse,
lembrando que Laila tinha me dado esse conselho no
passado. — Sempre fique um pouco menos do que ele
gostaria.
— O que isso significa?
Eu ri.
— Não faço ideia. — Quando estávamos prestes a
entrar em outro corredor, ouvi meu nome.
— Addison!
Eu me virei e vi Trevor vindo em nossa direção.
— Posso falar com você a sós por um instante? — ele
perguntou ao nos alcançar.
— Sim, é claro — Stephanie respondeu, cheia de
esperança.
— Hum. — Ele olhou para ela, e dava para ver que
não queria magoá-la quando disse em voz baixa: — Na
verdade, a pergunta era para a Addison.
Foi um daqueles momentos dramáticos dos livros em
que a personagem principal deveria dizer: “Tudo que
tiver para me dizer, pode dizer na frente da minha
amiga”. Mas esse era o problema. Eu sabia o que ele
queria dizer, e não dava para dizer na frente da minha
amiga. Então, em vez disso, tentei dissuadi-lo para não
deixar Stephanie mais chateada do que já estava.
— Estamos com um pouco de pressa.
Mas Trevor aproveitou a deixa.
— Só vai levar um minuto, mas posso perguntar aqui
mesmo. O que você…
— Não! — Ótimo. Agora eu ia parecer a maior
babaca do mundo. — Desculpe, Stephanie, já volto. —
Passei por ele e fui até o corredor vazio que levava aos
banheiros. Olhei para ele.
Ele se preparou para falar, sério.
— O que você é?
— Como?
— Me diga que estou louco. — Ele me encarou, e a
intensidade daquele olhar, a posição de sua boca, a testa
franzida… tudo parecia muito familiar. Como se eu já
tivesse estado ali antes, com ele me encarando daquele
jeito. Fiquei sem reação, com a determinação abalada, e
hesitei. Tinha que desviar o olhar. Sabia o que meu pai
dizia sobre mentir, que um dos indicadores era quando
alguém não conseguia encarar você nos olhos.
— Você está louco — disse olhando para a parede
atrás dele.
— Diga olhando para mim.
Ele devia conhecer a regra da mentira também.
— Tenho que ir. Stephanie está esperando. Por sinal,
você devia convidá-la para ir ao baile de inverno. Ela
ganharia o dia.
— Addison. — Por que ele me chamava assim? E por
que eu gostava?
Ele apoiou a mão sobre meu ombro. Encarei os olhos
dele, com o coração na boca. Sua aparência amigável de
sempre tinha desaparecido, substituída por uma
vulnerabilidade que me fazia querer contar tudo a ele.
— Você está louco — sussurrei e me afastei.
18
Laila: Nunca dê a ninguém o benefício da dúvida.
Passei dois dias observando meu pai toda vez que ele
pegava o celular, até finalmente descobrir sua senha.
Então, em uma noite, depois de esperar bastante tempo
para que ele caísse no sono, peguei seu celular de novo e
levei o aparelho para o meu quarto. Sentei de pernas
cruzadas sobre a cama e digitei o código. A imagem de
fundo da tela era uma foto minha mostrando a língua.
Quase senti remorso por ter roubado o celular para
conseguir informações. Quase.
Cliquei em “contatos” e respirei fundo. Meu nome era
o primeiro da lista, seguido por vários nomes que não
reconheci. Deviam ser colegas de trabalho. Mas, só para
garantir, anotei nome e endereço de todas as pessoas que
eu não conhecia. Depois apareceram alguns nomes
conhecidos, de amigos dos meus pais do Complexo. O
nome da minha mãe estava lá, o que não devia parecer
estranho, mas era. Quando cheguei ao fim da lista, tinha
anotado cinco nomes. Eu podia lidar com a investigação
de cinco pessoas.
Fazia três dias que meu pai tinha roubado meu dinheiro.
Três dias que eu tinha encontrado Connor e passado por
aquela humilhação. Nesses últimos três dias, tentei
convencer a mim mesma de que não teria que olhar para
ele novamente. Porém, eu tinha uma teoria: talvez não
precisasse aprender a desenvolver minha habilidade.
Connor era Curador. Talvez ele pudesse Curar os
caminhos bloqueados de Addie e reabrir a mente dela
para suas memórias. Talvez ela não precisasse de mim
para isso, afinal.
Concluí que eu devia ser uma fã de autoflagelação.
Especialmente porque a última coisa que eu gostaria de
fazer na vida era pedir um favor a Connor. Se não fosse
pela Addie, eu já teria caído fora.
Só que ele não estava em casa nem na garagem.
Mandei uma mensagem de texto:
ISBN 978-85-438-0592-4