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Revista do Instituto Arqueológico, Histórico, Geográfico de Pernambuco; número 68 – 2015.

ISSN 0103-1945

A Recife de Josué: Rese haàdoàLiv oà áà idadeàdoàRe ife:àE saioàdeàGeog afiaàU a a

Mariana Zerbone Alves de Albuquerque


Doutora em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo,
Professora do Departamento de História da Universidade Federal Rural de Pernambuco

Resumo

OàLiv oà áà idadeàdoàRe ife:àE saioàdeàGeog afiaàU a a ,àpu li adoàe à ,àéàu aào aàdeà
Josué de Castro de relevante valor tanto para a Geografia e História da cidade do Recife,
quanto metodologicamente para a Geografia enquanto ciência. Apesar de suas obras mais
conhecidas estarem mais relacionadas com as questões sobre alimentação e fome, como
Geografia da Fome (1952) e Geopolítica da Fome (1952-1953), Josué busca nessa obra, como
recifense, segundo ele, associar à tarefa profissional de geógrafo o prazer de reviver num
t a alhoàdeà iaçãoàaàpaisage àhu a aàdaà idadeào deà as e os. à p. , e é isso que ele faz,
e o st ói àaàpaisage àdoàRe ifeàa alisa doàdesdeàoàsítioà atu al,àpassa doàpelaàa liseàdeà
diversas influências no processo de ocupação da cidade do Recife.

Palavras Chave: Recife; Geografia Humana; Paisagem

Abstract

The book "A cidade do Recife: Ensaio de Geografia Urbana", published in 1954 , is a work of
Josué de Castro of great value for both the geography and history of the city of Recife, and
methodologically for Geography as a science . Although his best known works are more
related to issues about food and hunger , as Geografia da Fome (1952) and Geopolítica da
Fome (1952 to 1953 ), Josué, native of Recife, search in this work to associate "the professional
task geographer pleased to revive job creation in the human landscape of the city where we
were born." ( p.8 ) , and that's what he does, "reconstructs" the landscape of Recife analyzing
from the natural site, through the analysis of several influences in the process of occupation
of the city of Recife.

Keywords: Recife; Human Geography; Landscape

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Em um primeiro mome to,à oàliv oà áà idadeàdoàRe ife:àe saioàdeàgeog afiaàu a a , Josué


de Castro apresenta a importância de se estudar a cidade na perspectiva geográfica e o
método para analisá-la. Não basta analisar apenas a cidade como obra, mas as relações que
se estabelecem entre o sítio original e as transformações provenientes da ação humana. Ele
afi aà ueà Ne hu àestudoàpode ia,àpois,ài te essa à aisàaàu aàdis ipli aà o oàaàGeog afiaà
Humana, cujo objetivo central é o estudo da humanização da paisagem, do que o estudo de
uma cidade dentro de um ponto de vista geográfico procurando destacar a ação dos fatores
naturais e dos fatores culturais que determinaram sua fundação, a sua evolução e sua
exp essãoà si gula . à p. à Josué de Castro, neste sentido, propõe uma análise crítica e
investigativa da origem da cidade do Recife, identificando os fatores e as inter-relações entre
os que compõem a cidade, se esquivando de uma análise descritiva e monográfica do Recife.

Apesar de muitas terminologias apontarem para uma geografia determinista, Josué se


apresenta de vanguarda, com uma proposta avançada de estudo da geografia urbana, para a
geografia da década de 1950. Co oà eleà es oà afi a,à éà u à e saioà uitoà aisà
i te p etativoà doà ueà des itivo p. . Ele se baseia na geografia urbana que passa a ser
desenvolvida na França, Inglaterra e Estados Unidos, na perspectiva da moderna Geografia
Regio al,à poisà eleà afi aà ueà oà ueà do i aà oà estudoà geog fi oà deà u aà idadeà éà u aà
análise das correlações entre o elemento humano que cria e entretêm esse organismo
artificial e os fundamentos naturais que possibilitaram a sua existência. (p.16).

Josué traz uma perspectiva muito interessante da análise, não distinguindo o estudo de uma
área urbana de uma área rural, pois ele se baseia na Geografia Regional, isso fica claro quando
eleà afi aà ueà Co stitui,àpois,à oà estudoà geog fi oà deà u aà idade,à u àexe ploà típi oà deà
Geografia Regional, em muitos pontos idênticos a um estudo geográfico de uma região rural. à
(p.25) E nesse sentido, sua ideia deà idadeàéà ueàelaà éàse p eàu produto das possibilidades
geográficas e da capacidade de utilização das mesmas pelo grupo humano local e nela se
refletem sempre as influências do meio natural e as influencias do grupo cultural. (...) a mais
completa e grandiosa expressão material da ação do homem como fator geográfico à p. .
De certa forma, Josué de Castro aponta para a centralidade da cidade em uma dinâmica
egio al,à ua doàeleàafi aà ueàaà idadeàéà p odutoàdeàu aàtalàfo çaàexp essiva,à ueàalo gaà
sempre sua influência além dos seus limites materiais, mudando os fáceis regionais em seus

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mais profundos recônditos, impregnando a região inteira dessa realidade sutil mas tenaz, a
alma da cidade. à p.

Ao analisar os fundamentos fisiográficos do Recife, ou seja, sua base natural com seus
elementos primários, Josué destaca a necessidade de se analisar o sítio onde a cidade será
assentada, exercício esse não muito simples, pois exige a necessidade de uma abstração ao
desconstruir os elementos, segundo ele, artificiais que lhe dão expressão cultural. (p. 31)
Entretanto, ele não se propõe a uma análise exaustiva da forma, mas sim expõe a relevância
de,àe àsuasàpalav as,à por em destaque as conexões estabelecidas entre o organismo urbano
e os fundamentos geográficos da região, dentro da qual a cidade se encontra enquadrada,
assi à o oàaà o exãoàdessaà egiãoà o àoà estoàdoà u do. p. . Deste modo, fica evidente
a preocupação de Josué de articulação entre as escalas no processo de produção do espaço,
que não apenas os fatores locais são responsáveis pela construção de uma cidade,
principalmente de uma metrópole. Nesse sentido, para a análise da produção de um espaço
urbano, Josué se aporta na ideia de localização relativa, baseada em Landon White e George
Renner, quando afirmam que uma cidade depende por tal forma de localização. A primeira
vista, aparenta ser uma teoria determinista, em que o sítio determinaria a sua ocupação, mas
de fato a dialética se apresenta quando se percebe que não se trata de uma determinação,
mas sim de uma inter-relação de fatores naturais, econômicos, sociais, políticos e culturais, e
suas contradições, caracterizando uma singularidade no contexto da totalidade. Ainda nesse
capítulo Josué vai mais além, se utilizando da geologia para compreender o sítio do Recife, sua
formação físico natural, composta por sua planície flúvio-marinha, os arrecifes de arenito e
cinta sedimentar de colinas.

A cidade assenta nas baixas terras de extensa planície aluvionar que se


estende desde as cotas marinhas frisadas, em quase toda sua extensão por
uma linha de arrecifes de pedra, até uma cadeia irregular de outeiros
terciários, que a envolvendo em semi-círculo, a separa das terras mais
onduladas do interior. É essa planície constituída de ilhas, penínsulas,
alagados, mangues e pauis, envolvidos pelos brações dágua dos rios que,
rompendo passagem através da cinta sedimentar de colinas, se espraiam
remansosos pela planície inundável. Foi nesses bancos de solo ainda mal
consolidado - mistura ainda incerta de terra e água – que cresceu a cidade
anfíbia, como Amesterdão e Veneza, porque assenta as massas de sua
construção quase dentro da água, aparecendo numa perspectiva aérea, com
seus diferentes bairros flutuando esquecidos à flor das águas. (CASTRO,
1954, p.33)

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E é no que Josué chama de Baía Entulhada que se estabeleceu a cidade do Recife, sendo esta
planície, até hoje a parte mais valorizada da cidade, espaço de conflito de classes, e de
valorização e desvalorização baseado no valor atribuído aos elementos naturais, ficando para
o colar de colinas sedimentares, como ele denomina, uma área desvalorizada se comparada
à planície, que se configura até mesmo como uma barreira para a expansão do Recife como
município, como se percebe nos dias atuais.
Nos demais capítulos, Josué de Castro aponta as influências e as escolhas no processo de
ocupação e expansão do Recife urbano, a partir de condições técnicas, culturais e interesses
específicos e povos distintos no processo povoação do Recife em quase 400 anos. Para Josué
de Castro, a influência para ocupação da planície foi holandesa, visto que os portugueses
tinham aversão a este sítio alagado e preferiram ocupar as colinas de Olinda. Contudo, mesmo
com a expulsão dos holandeses, a povoação urbana continuou a se concentrar em Recife (Ilha
do Recife, Santo Antônio e São José) e se expandir para as povoações dos arrabaldes, onde se
localizavam os engenhos, hoje bairros do Recife (Madalena, Torre, Casa Forte, Apipucos,
Jiquiá, Caxangá, Monteiro, Cordeiro, entre outros), isso em um intervalo de aproximadamente
300 anos. Na verdade Recife não surge para ser cidade, mas sim como porto de Olinda,
contudo os aspectos históricos que se deram nesse território modificaram a intenções iniciais
de ocupação do território, gerando uma dinâmica que se estende espacial e temporalmente
na configuração desse espaço urbano.

A fim de explicar a localização e o crescimento da cidade do Recife na sua atualidade, 1950,


Josué de Castro faz um resgate da ocupação humana inicial e a fundação da cidade do Recife,
em uma perspectiva Geográfica, descrevendo e a alisando a transformação da paisagem
levantando os fatores expressivos para as transformações, relacionando os aspectos naturais
e os construídos, ou seja, como ele mesmo menciona, a transformação da paisagem natural
em paisagem humanizada . Segundo Josué de Castro

A evolução da cidade será encarada em nosso estudo apenas em sua


realidade total, como o processo da dinâmica geográfica, através do qual foi
tomando corpo e expressão a atual fisionomia da cidade. Não vamos
apresentar aqui essa sequência, sempre tão sugestiva, de perfis temporários
da cidade, de sucessivos retratos ou cortes de sua anatomia urbana,

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indispensáveis a um estudo propriamente da evolução urbana – mas tão


somente, analisar quais os fatores que agiram nesse processo evolutivo,
determinando finalmente a atual expressão da cidade em suas correlações
i ediatasà o àoà eioà atu al. à CASTRO, 1954, p. 130)

Josué destaca a importância dos bairros iniciais na caracterização do Recife e sua influência
na reprodução do espaço e sua expansão, mesmo com as mudanças políticas de gestão do
território. “egu doàJosuéà C es e doàso àaàp essãoàdeài ú e osàfato esàdeàp og essãoà ... ,àj à
fora da influência direta dos holandeses, a cidade nunca se livrou de sua pressão modeladora
inicial e três séculos depois ainda lembra muito o seu modelo de imitação – Ameste dão. à p.à
128). E ele parte da ideia da cidade com uma criação da vontade humana, que segundo ele
essaàvo tadeàsóàseà o etizaà ua doà o espo deà àsatisfaçãoàdasà e essidadesà ate iaisà
ouà psi ológi as,à deà a te à oletivo. p. à áàpa ti à dessaà pe spe tiva,àoà ueàdi iaà Josuéà deà
Castro hoje sobre a cidade do Recife? Talvez ele dissesse que a ideia de cidade mudou, ou
Recife não é mais uma cidade, visto que o caráter coletivo tem se tornado uma utopia, tendo
em vista as ações hegemônicas que têm definido a dinâmica da produção e reprodução da
cidade do Recife.

Ainda nesse sentido, será que Josué de Castro conseguiria desconstruir Recife de seus
elementos construídos para chegar à paisagem natural, ou menos ainda, será que é possível
contar a história do Recife a partir dos elementos espaciais dispostos na atualidade? Será que
a metodologia de análise urbana de Josué de Castro daria conta de compreender a realidade
atual do Recife? Diante de todas as estratégias e articulações que têm se estabelecido para a
produção atual do espaço do Recife, a abordagem de Josué seria importante, porém ingênua,
vistoà ueà ele e tosà ueà o ta à aà histó iaàdoà Re ifeà estãoà adaà vezà aisà a osà e à u aà
cidade com tendência de homegeinização da paisagem com elementos que não revelam a
memória e a história da cidade. É preciso compreender os novos processos de valorização,
desvalorização e revalorização dos espaços da cidade, dos elementos naturais e culturais que
compõem o Recife, visto que não tem sido mais estabelecido pelo caráter coletivo, mas sim
por interesses específicos e hegemônicos, não articulando as novas obras humanas ao que foi
produzido historicamente, anulando a cultura, a diversidade e as possibilidades, visto que um
paredão de vidro vale mais do que anos de história, como se tem percebido em discursos
superficiais, porém introjetados como se fosse verdade absoluta em grande parte das

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população recifense, porém o que se observa são projetos elaborados não na perspectiva de
cidade nem de totalidade, mas apenas para satisfazer o lucro momentâneo de um grupo, que
se autodestrói ao destruir as especificidades de uma cidade como Recife, transformando uma
cidade com tanta história, como conta Josué de Castro, em um lugar comum.

Referência

CASTRO, Josué. A cidade do Recife: ensaio de geografia urbana. São Paulo: Gráfica Carioca,
1954. 167 p.

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