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Para Sarah

SUMÁRIO

Capa
Folha de Rosto

Karachi 1988
Verão
Inverno

Londres 2019
Primavera
Verão
Inverno

Primavera de 2020 Londres

Agradecimentos

Créditos
Karachi
1988
Verão
PRIMEIRO DIA DA VOLTA ÀS AULAS. O céu carregado de nuvens de monção, o
pátio da escola apinhado de alunos a poucos passos do abrigo: as árvores kikar
plantadas ao longo do muro fronteiriço ou a árvore de nim no caminho entre
o portão e o prédio da escola; as muitas portas, emolduradas por primaveras,
esculpidas na fachada de pedra amarela do prédio; a área do campo de
esportes sob as sacadas projetadas do primeiro e do segundo andar. Apenas
alguns garotos, com ousadia, perambulavam pelas áreas mais expostas do
pátio, mangas de camisa arregaçadas, mãos nos bolsos. Zahra, parada ao lado
do arco que alojava o sino de bronze, aproveitava-se de sua altura para olhar
por cima das cabeças de todas as garotas e da maioria dos garotos, procurando
algo.
As aulas do dia ainda não haviam começado oficialmente, mas os alunos
de uniforme cinza e branco já se reagrupavam em suas formações do
semestre anterior. As crianças legais. Os garotos de gangue. Os casais. As
garotas julgadoras. Os garotos invisíveis. Zahra tinha inventado essas
categorias depois de assistir, em vídeos piratas, a uma série de filmes de
Hollywood sobre adolescentes, mas pouco fez para ajustá-la à inadequação da
vida escolar de Karachi. Sem retenção, como poderia existir o Clube dos
cinco? Sem uma festa de formatura, como poderia existir Pretty in Pink? Sem a
liberdade necessária para possibilitar a fuga das aulas, como poderia haver um
Curtindo a vida adoidado? A única área, porém, em que o fracasso era dos
filmes, não de Karachi, era quando se tratava de amizade — quase sempre
mostrada como um subenredo do romance, nunca o centro de uma história.
Com exceção de Vidas sem rumo, mas esse era de garotos, o que significava
que na verdade tratava de como as garotas causavam problemas, levando a
brigas, prédios incendiados e morte.
De onde estava, Zahra tinha uma visão clara do portão da escola. Durante
a maior parte do dia, ônibus, riquixás, vans e outros veículos velhos lotavam
as ruas de Saddar, talvez indo para o Mercado da Imperatriz ou para as lojas
de eletrônicos que povoavam a região, mas, por duas vezes nos dias de
semana, os carros elegantes com ar-condicionado se juntavam ao caos para
transportar alunos que iam e vinham das escolas mais prestigiadas de Karachi.
Ali estava ela. A Mercedes, a mais elegante dos elegantes, seguiu direto
até o portão, onde Maryam desceu e entrou nas dependências da escola.
Uma Maryam diferente, um caminhar diferente. O peso que havia em seu
rosto parecia ter descido para outro lugar no decorrer do verão, embora fosse
difícil saber exatamente o que estava se passando sob o kameez cinza que ela
vestia. Maryam parou para falar algo a um dos garotos mais velhos e,
enquanto conversavam, puxou seu kameez com um gesto que claramente
pretendia ser um ar distraído. O tecido estirado sobre os novos seios, uma
nova cintura. O garoto mais velho continuou falando com ela como se nada
tivesse acontecido, mas, quando ela passou por ele, indo na direção de Zahra,
ele se virou para observá-la durante todo o trajeto.
Outras coisas também tinham mudado. O cabelo ondulado na altura dos
ombros estava engenhosamente despenteado, mas não indisciplinado; as
sobrancelhas desalinhadas foram remodeladas em duas linhas curvas. O
sorriso, porém, era o mesmo velho sorriso da Maryam que saudava Zahra
toda vez que Maryam voltava das viagens de verão com a família em
Londres. E sua mão estendida trazia uma fita cassete que era sempre seu
presente de aniversário atrasado para a melhor amiga, uma fita que ela havia
gravado do rádio, com o melhor das paradas de sucesso de Londres.
“Você viu o que aconteceu comigo?”, disse ela.
“É a sua mãe ou o seu alfaiate que está tendo dificuldade em aceitar
isso?”, perguntou Zahra, gesticulando para o kameez.
“Difícil dizer. O mestre Sahib costura o que acha que a minha mãe quer.
Mamãe diz que ele se ofende com facilidade, que não podemos voltar e dizer
que está tudo errado, senão ele vai parar de fazer as nossas roupas, e ele é o
único que acerta as minhas blusas de sári.”
“A idade adulta é tão complicada.”
Sorriram uma para a outra, confiantes no futuro diante delas, em que
nunca enfrentariam dilemas tão insignificantes. Mal haviam começado a
trocar observações sobre o verão passado quando Saba se aproximou, com
aquele sorriso que parecia estar segurando na boca algum prazer proibido
que ela não queria nem engolir nem revelar. Elas conheciam todos os
sorrisos umas das outras, as três garotas; aos quatorze anos, já viviam dez anos
do que poderia vagamente ser chamado de amizade, embora havia pouco
que Zahra tivesse consultado um dicionário para informar Maryam que
aquilo que as duas tinham uma com a outra era amizade, e o que tinham
com as outras seis garotas e vinte e dois garotos da classe era apenas
“propinquidade”, um relacionamento com base na proximidade física. “Se
você se mudasse para o Alasca amanhã, ainda seríamos melhores amigas pelo
resto da nossa vida”, ela disse para Maryam, que era a única pessoa do
mundo por quem Zahra demonstrava sentimentos extravagantes.
Agora Saba estava ali, parada na frente delas, permitindo que a
persuadissem a revelar o segredo que acabara de ouvir da sua tia, a sra. Hilal,
professora de biologia, para as demais. O alarme de bomba da escola seria
complementado com um alarme de tumulto. Haveria exercícios ao longo do
semestre para assegurar que os alunos não confundissem o primeiro com o
segundo. Ninguém ia gostar que setecentos alunos evacuassem o prédio
quando deveriam estar lá dentro com portas e janelas muito bem fechadas. A
escola nunca identificou bombas nem tumultos, mas Saba transmitiu a
notícia do desastre antecipado, e a possível confusão sobre os alarmes, com
satisfação.
Maryam fez um ruído de irritação. “Meus pais vão ficar ainda mais
histéricos se ouvirem isso”, disse ela. “No dia em que voltamos de Londres,
eles contrataram guardas armados para a nossa casa porque todos aqueles
expatriados de lá ficavam falando como Karachi é perigosa. Agora ninguém
pode entrar sem passar por um procedimento ridículo de guardas ligando
para casa a fim de saber se a pessoa é bem-vinda, e, se alguém estiver usando
o telefone e eles não conseguirem ligar, um dos guardas tem de correr até a
casa para avisar. Não que eles corram, é mais uma caminhada lenta. Não se
preocupe, Zahra. Deixei uma foto sua com eles e disse que, se alguém tentar
impedir você de entrar, vou demiti-los.”
“Lucky!”, Zahra disse, e Maryam sorriu. Nada a agradava mais do que ser
comparada a Lucky Santangelo, heroína do romance de Jackie Collins,
composto por partes iguais de coragem, crueldade e lealdade. Saba fez uma
careta e Zahra reconheceu essa expressão também: era aquela que dizia que
Saba não entendia por que Maryam continuava a ser a melhor amiga de
Zahra e a compartilhar brincadeiras entre elas, quando era Saba que, como
Maryam, pertencia àquele subgrupo de alunos cujos pais faziam parte do
“círculo social” e que iam para o exterior nas férias de verão e nadavam no
mesmo clube de sócios exclusivos.
“Talvez seja uma boa ideia a escola ter algum tipo de plano para o caso de
acontecer o pior”, disse Zahra, olhando na direção dos muros altos, com
cacos de vidro encravados na parte de cima para evitar que alguém os
escalasse. No último verão, carros-bomba haviam matado mais de setenta
pessoas em Saddar. Não muito longe ali da escola, uma das explosões
destruiu todas as vitrines da loja onde Zahra e a mãe estiveram comprando
uniformes novos uma semana antes. Nos dias que se seguiram, ela ficou
imaginando cacos de vidro perfurando sua garganta e seus olhos. Maryam
estava em Londres na época e ao voltar comentou: “Foi horrível. Ainda bem
que foi durante as férias da escola”, sugerindo que ninguém conhecido
poderia estar em qualquer lugar no entorno de Saddar naquela época do ano.
O sino da escola tocou, mandando-as para a quadra de esportes onde
fileiras desiguais de alunos começaram a se formar. O chão estava úmido da
chuva do dia anterior e havia uma grande poça no meio da quadra, na qual
alguns dos garotos mais arruaceiros do 9º ano pisoteavam forte para tentar
molhar alguma garota que passasse.
Maryam não era a única da classe a ter mudado durante o verão. Havia
garotos que ficaram mais altos e outras garotas que ganharam mais curvas;
aquele garoto finalmente raspou o ninho de lagartas acima do lábio, aquela
garota trocou os óculos por lentes de contato. A única mudança em Zahra
era um centímetro a mais na altura; fora isso, ainda era magra, com cabelos
cosmeticamente superlisos, que sua mãe cortava um pouco acima dos
ombros. Mas algo parecia diferente em cada um naquele ano letivo, embora
as aparências tenham permanecido as mesmas. Havia uma etapa a mais que
antes em suas etapas. Tinham consciência de que agora estavam no 10º ano,
com idade suficiente para que os alunos mais novos os respeitassem, e
também naquele estágio em que a familiaridade podia começar a substituir a
deferência em seus relacionamentos com os alunos do nível A.
A recepção no pátio havia sido cancelada com o intuito de colocar todos
para dentro o mais rápido possível, pois as nuvens se tornavam ainda mais
escuras; assim, foram direto para a nova sala de aula com suas paredes grossas
na cor verde alga marinha e carteiras de madeira recém-pintadas com um
marrom rosado revoltante. Maryam e Zahra encontraram duas carteiras
juntas, separadas das demais carteiras da fila por um corredor, e Zahra contou
a Maryam sobre o ponto alto do seu verão, que foi uma visão de todos os
integrantes da Vital Signs saindo de uma casa na Phase Five, perto daquele
cruzamento onde o homem com um ramo de primavera por trás das orelhas
costumava orientar o trânsito. O pai dela estava dirigindo e se recusou a
diminuir a velocidade ou muito menos parar para que ela pudesse observá-
los um pouco mais; “só porque uns garotos gravam uma música pop não
significa que você tem o direito de começar a tratá-los como animais de
zoológico”, disse ele.
“Mesmo assim. Você os viu. Isso é muito legal. Pode ser ainda mais legal
do que ver uma estrela popular em Londres”, disse Maryam, que vira Paul
Young caminhando pelo Hyde Park em um verão. Era um assunto bastante
sério, ao qual voltariam mais tarde, quando tivessem tempo de esmiuçá-lo
com a devida perícia — uma estrela popular famosa internacionalmente na
cidade onde você passou suas férias tinha mais valor que as sensações
nacionais domésticas que passeavam não muito longe da sua vizinhança?
“Aprendi uma palavra nova em italiano neste verão”, disse Maryam,
apoiando o cotovelo sobre a cadeira de Zahra para ensinar a amiga. “Zia.
Significa tia. Também é uma gíria para...”, ela baixou a voz, como devia ter
feito antes de fazer pouco caso do nome do ditador, “... homossexual. Você
consegue imaginar, toda vez que encontra o general Zia o embaixador
italiano deve ficar pensando…”
“Maryam!”
Zahra deu uma olhada ao redor para ver se alguém mostrava sinais de ter
escutado. Ela não achava que algum dos colegas de classe fosse de famílias
que apoiassem o presidente, mas esse era um assunto não comentado e as
suposições eram perigosas.
“Não seja paranoica”, disse Maryam. Ela baixou o rosto em direção ao
buraco que havia na mesa para servir de porta-canetas, como se estivesse
falando em um microfone. “Alô, QG, vocês querem saber o que todos nós
pensamos dos Narcisos de Wordsworth? Fora com suas mentes alegres!”
O garoto sentado atrás delas — Babar — caminhou até a frente da sala.
Pegando um pedaço de giz, ele rabiscou na lousa NÃO SE PREOCUPE É
APENAS TUD
A voz de uma professora cortou o “O” que ele estava prestes a escrever.
“Sr. Razzaq, é melhor voltar para a sua carteira e não ficar desfilando com
calças antiquadas, não acha?”
Babar ainda parou por um momento, depois estendeu a mão e passou os
dedos pelos cabelos grossos, endireitou os ombros e se virou com um sorriso
convencido. Se tivesse uma jaqueta de couro, ele teria levantado a gola.
Voltou para sua carteira e sentou.
“O uniforme de escola do meu irmão mais velho vai para os filhos da
nossa cozinheira”, disse Saba em voz alta.
Zahra virou-se para encarar Saba, que estava em uma carteira do outro
lado do corredor de Babar. “Saba, ele não vai gostar de você se você o
ofender mais do que ele se ofendeu quando você escreveu poemas de amor
para ele.”
Um Ohhhhhhh! crescente em volume circulou pela sala até que a
professora o interrompeu, retomando o controle. Saba chorava sobre o
caderno. Zahra pegou um lenço na mochila, reclinou-se na cadeira, bateu no
joelho de Babar e passou o lenço por debaixo da mesa.
“Acho que tem algo escrito aqui”, ele sussurrou alguns momentos
depois.
Zahra virou-se para trás. Ele desdobrava o lenço de papel e o segurava
como uma carta, um polegar e um indicador segurando de cada lado. “Ela
não devia ter dito aquilo, mas você pode ser o cara legal”, disse Zahra.
“Senhorita, você quer que eu tire as calças?”, gritou Babar, o que fez
todos os alunos rirem, inclusive Saba, tornando o lenço desnecessário.

NÃO SE PREOCUPE É APENAS TUD


Quando todos saíram da sala de aula, Zahra se aproximou das palavras
escritas na lousa. Havia uma marca de giz onde Babar tinha a intenção de
iniciar o “O” antes que a professora interrompesse. Até agora, todos haviam
estudado juntos, tendo as mesmas aulas, aprendendo ou deixando de
aprender as mesmas coisas, capazes de se recuperar com facilidade de uma
fase ruim de provas causada pelo surto de uma doença ou pelas partidas de
críquete que consumiam o tempo de revisar os estudos. Mas hoje era o
início do curso de nível O, e o resultado das provas que aconteceriam dali a
dois anos é que determinaria a mudança de vida em relação a qual
universidade americana ou britânica iria querer você depois de mais dois
outros anos. No caso de Zahra, não bastaria ser aceita; ela teria de ser aceita
o suficiente para se qualificar a uma bolsa de estudos na Grã-Bretanha ou a
uma ajuda financeira nos Estados Unidos. Ela se sentia atraída da mesma
forma pelos dois países — pelo esplendor de Oxbridge e pelo glamour da
Ivy League —, mas sabia que preferia a expressão “bolsa de estudos”
relacionada a ela mais do que “ajuda financeira”.
“Quanto as notas do nível O importam de verdade?”, Babar perguntara a
um professor jovem, recém-formado pela Columbia de Nova York, no fim
do ano anterior, e o professor respondeu: “Não se preocupe, é apenas tudo”.
Zahra encontrou um pedaço de giz e escreveu um “O”, tentando incliná-
lo para a frente à semelhança da letra de Babar para que não parecesse fora de
contexto. Ao ouvir uma risada atrás de si, ela se virou. Maryam, recostada no
batente da porta.
“Sempre pondo as coisas em ordem para todos”, disse Maryam.
“Pensei que você já estivesse no laboratório de informática.” Zahra jogou
o giz na mesa da professora e deixou que rolasse pela beirada de propósito.
“Vamos juntas até onde pudermos”, disse Maryam, enlaçando o braço de
Zahra enquanto saíam da sala de aula.
Maryam ia para as ciências da computação; Zahra, para química. Para o
início do nível O, todos tiveram de escolher quais matérias cursar, e assim a
separação dos caminhos começou. Zahra teria preferido ciências da
computação em vez de química, mas aquela era uma matéria introduzida
recentemente e cheirava a modismo; as universidades podem não encarar
com tanta seriedade quanto as disciplinas mais consagradas, avisara um dos
professores. Maryam não dava tanta importância para o que as universidades
levariam a sério, nem para o quanto se sairia bem nos exames do nível O,
porque sabia que o dinheiro dos pais abriria caminho para uma ou outra
universidade e não se importava muito com qual delas seria. Era essa postura
despreocupada com os acadêmicos que separava Maryam da maioria dos
colegas de classe, mais que o dinheiro e a posição social que ofuscava quase
todos eles, mesmo nessa escola conhecida por sua relação com a elite. Todos
os outros — Babar, Saba ou Zahra — podiam recitar estatísticas como no
críquete, segundo as quais os alunos, em anos anteriores, tinham ido para
Harvard, Princeton, Yale, e quais tinham sido seus resultados no nível O e as
classificações no SAT. Para Maryam, porém, a universidade era apenas uma
interrupção antes que ela pudesse assumir os negócios da família. O único
futuro que lhe interessava era o que se desenrolaria em Karachi, uma cidade
para a qual Zahra não tinha intenção de voltar depois que a deixasse. Mas
essa era uma separação de caminhos que ia além de qualquer coisa que Zahra
estivesse disposta a contemplar agora, enquanto caminhavam ainda de braços
dados, descendo as escadas e ao longo do corredor, encontrando outros
alunos que não tinham visto durante todo o verão.
“Então, agora as pessoas vão pensar que é você que gosta de Babar”, disse
Maryam.
“Você acha que Babar pensa assim?”
“Talvez. Você pôs a mão no joelho dele.”
“Tão ossudo.”
Um garoto do nível A caminhava em direção a elas dizendo: “Olha quem
cresceu neste verão”. Zahra estava acostumada a comentários sobre sua altura
e demorou um pouco para perceber onde os olhos do garoto de fato tinham
pousado. O nome dele era Hammad, um dos “garotos de gangue”,
conhecido por ter amigos fora dos muros da escola que eram criminosos ou
rumavam nessa direção. O boato é que havia uma arma no porta-luvas do
carro dele.
Zahra emitiu um som de repugnância e seguiu em frente, puxando
Maryam com ela, esperando ter feito aquilo de forma que qualquer
observador diria que ambas “passaram rapidamente por ele”. Mas ainda havia
alguns metros a percorrer antes de chegar à sala de química e se despedir de
Maryam. Enquanto caminhava em direção a uma mesa vazia, ignorando
Babar que acenava com a mão para indicar um lugar a seu lado, ela ouviu um
par de passos no corredor diminuir a velocidade e outro acelerar.

Vinha acontecendo desde o ano passado sem que ninguém prestasse


muita atenção, exceto Maryam e seu alfaiate, mas Londres tinha acelerado o
processo. Todos aqueles chocolates, sorvetes e fast-food se assentaram em
lugares inesperados e trouxeram consigo o desconforto de sutiãs com aro e
um corpo que parecia desconhecido. Por um tempo, em Londres, ela pensou
que tinha perdido a capacidade de julgar as próprias dimensões e que por isso
seus seios continuavam esbarrando em estranhos, até que percebeu que quase
nunca era com mulheres que se dava o contato inesperado. Tendo entendido,
ela não sabia como se sentia a respeito. Às vezes queria chorar, outras vezes
ficava triunfante.
Mas foi simplesmente humilhante ouvir o pai dizer que a mãe precisava ir
à Oxford Street e comprar um guarda-roupa totalmente novo para a filha,
porque todas as roupas dela pareciam “indecentes”. Assim, lá se foram suas
blusas preferidas, a da Madonna, a do tigre com olhos de diamante, a listrada
de marinheiro. As blusas novas eram mais folgadas e sem imagens ou enfeites
que pudessem atrair a atenção das pessoas para o peito. Faziam pouca
diferença para os homens que esbarravam nela no metrô, ou para aquele
amigo de seus pais que começava a apertar seus ombros de forma carinhosa e
puxá-la para perto do jeito que os “tios” sempre faziam, mas nunca ele.
No verão anterior em Londres, ela imaginara que era visibilidade o que
queria. Em Karachi, os homens a encaravam se você fosse uma garota; era
algo ao qual estava acostumada e que compartilhava com todas as outras
garotas da cidade. Em Londres, as pessoas olhavam através de você. O
contraste era inquietante. Repare em mim, repare em mim, repare em mim, ela
recitava por dentro ao caminhar pelas ruas. E agora, desejo concedido,
passara para uma nova categoria de pessoa, alterara seu relacionamento com o
mundo ao redor. Ao mesmo tempo, tudo parecia continuar como sempre
fora.
Não havia ninguém em Londres com quem ela pudesse conversar sobre
isso. Um número substancial dos amigos paternos de Karachi debandou para
apartamentos em Mayfair, Kensington e Knightsbridge durante o verão com
os filhos, dos quais nenhum tinha idade suficiente para Maryam querer passar
o tempo. Ela era encarregada de servir de babá quando os pais saíam para
jantar ou ir ao cinema e tinha usado a responsabilidade em ascensão para
argumentar a seu favor por uma independência maior. Durante as longas
horas do dia, tinha permissão para sair do apartamento de Mayfair com seu
walkman, seguindo na direção do Hyde Park ou rumo à loja de discos em
Piccadilly Circus. Às vezes, ia mais longe, até Trafalgar Square, onde
observava garotos e garotas de sua idade rindo juntos enquanto tentavam,
sem sucesso, subir nas costas dos leões de bronze que circundavam a Coluna
de Nelson.
À medida que o verão passava, ela desenvolveu cada vez mais a rotina de
caminhar até o Trocadero, na Leicester Square, onde aprendeu a ignorar o
aspecto deprimente de um lugar onde os adolescentes deveriam se divertir,
mas no qual ninguém se divertia, e a se concentrar nos expositores curvos
perto da entrada que exibiam cartões-postais de atores de Hollywood e
cantores das paradas de sucesso. Aqui, Tom Cruise de camiseta branca e jeans
fazendo o tipo triste que só precisava do sorriso de uma garota para sentir-se
feliz; ali, as mulheres do Bananarama encarando a câmera como se dissessem:
“Nos impressione se puder”. Depois, de volta à Piccadilly, onde o custo das
coisas não fazia sentido quando convertido em rúpias, mas não impedia que
seus pais e os amigos deles comprassem biscoitos da Fortnum & Mason e
livros decorativos sobre arquitetura islâmica e carros clássicos da Hatchards.
Maryam quase nunca entrava em alguma loja e quando entrava era apenas
por pouco tempo. No verão anterior, ela comentou com os pais como os
atendentes das lojas de Londres eram prestativos, perguntando repetidamente:
“Posso ajudá-la com alguma coisa?”. Os pais a informaram de que era a
maneira inglesa de dizer: “Compre algo ou caia fora”. Ela ficou
envergonhada por não ter percebido isso. Em Karachi, se orgulhava de sua
habilidade de ler entrelinhas.
Da Piccadilly, ela seguiu para o Green Park, onde se sentou sob a árvore
preferida e passou um bom tempo escrevendo um cartão-postal para Zahra,
pensando com cuidado em cada frase, de modo que tudo que tinha
acontecido de mais importante nas últimas vinte e quatro horas pudesse
caber no verso do cartão. Usou o espaço todo, inclusive as linhas reservadas
ao endereçamento, sabendo que o serviço postal do Paquistão inviabilizava a
postagem das cartas e que ela simplesmente as levaria para Karachi no fim do
verão e entregaria todas para Zahra de uma vez só.
No último dia em Londres, porém, ela pegou um dos cartões-postais e
leu as seguintes linhas: Estava usando uma camisa jeans e desabotoei os dois
primeiros botões quando vi um grupo de garotos, alguns deles muito atraentes. Pude
sentir que me olhavam depois que passei, mas não olhei para trás, porque quero que
olhem para mim, mas não sei o que quero depois disso. Ela colocou todos os
cartões-postais em um saco de lixo preto, tirou caixas de suco vazias e
embalagens de iscas de peixe da lixeira da cozinha e jogou por cima dos
cartões-postais, amarrou bem o saco plástico e o levou para as lixeiras
maiores que ficavam nas escadas do prédio.
Foi só naquele primeiro dia de aula, durante o intervalo, observando
Zahra esticar o braço por cima da cabeça dos alunos que estavam na frente
dela para pagar o homem da barraca de doces por duas Cocas e dois pacotes
de salgadinhos, que tudo fez sentido. Sempre havia uma piada interna na
amizade entre elas, uma brincadeira que aparecia primeiro no nível visual
antes de se revelar e percorrer muitas camadas. Agora havia Zahra toda em
linhas retas e Maryam toda em linhas curvas, acrescentando outro elemento
aos contrastes de seus estudos.
“Obrigada, Stanley”, disse ela, pegando a Coca e o pacote de salgadinhos
das mãos de Zahra.
“Por nada, Oliver.”
Ela se perguntou se Zahra compartilhava desse sentimento de completude
quando estavam juntas, que certamente só podia ser possível quando se era a
melhor amiga de alguém desde os quatro anos de idade e sua personagem
tinha sido definida pela outra. Mas suspeitava que não. Zahra queria coisas
do mundo que Maryam não entendia — coisas que Zahra encontrava em
livros e na própria mente, que às vezes vagava distante de Maryam, em
lugares sobre os quais raramente falava porque sabia que Maryam não
conseguiria acompanhá-la até lá. Quando Zahra dizia coisas como: “Você
acha que todo mundo tem um propósito na vida ou inventamos um
propósito para parar de nos sentir irrelevantes?”, Maryam nunca sabia o que
responder. Não sabia qual parte da pergunta lhe fazia menos sentido — se
“propósito” ou “irrelevante”. Ela tentou sugerir uma resposta, algo
relacionado a expandir os negócios da família para o mercado internacional,
mas Zahra franziu as sobrancelhas e disse: “Isso é ambição, não propósito”.
Elas passeavam pelo jardim da frente, reparando em como a saída dos
alunos do segundo ano do nível A no ano anterior havia alterado a
configuração das coisas. A área que circundava o mastro da bandeira, onde os
alunos mais fascinantes do segundo ano passavam o tempo do intervalo no
ano anterior, agora era ocupada por dois grupos menores de alunos do 11º
ano; o novo grupo de segundanistas fascinantes havia marcado o arco de
pedra debaixo do sino como seu território para aquele ano. Maryam ouviu
gritarem seu nome e pegou no cotovelo de Zahra para conduzi-la em
direção aos canteiros perto da entrada da sala de música, onde vários de seus
amigos reivindicavam um lugar, alguns sentados nas guias baixas e pintadas de
branco dos canteiros, enquanto outros estavam de pé, metade conversando
com os amigos sentados, metade provocando qualquer um que passasse. O
tempo estava úmido e fechado, as nuvens de chuva não eram mais uma
ameaça, e sim uma provocação.
Zahra sentada, Maryam de pé. Uma Zahra de pé ficava mais alta que
todos os outros; sentada, era meia cabeça mais alta que as garotas a seu lado,
embora alguns dos garotos finalmente a estivessem alcançando. Uma vez ela
disse para Maryam, com aquele seu jeito de sempre, que achava que sua
personalidade teria sido diferente se ela fosse alguns centímetros mais baixa,
pois simplesmente não se encaixava na roda de garotas que abaixavam a
cabeça para fofocar entre si. Mas na verdade não havia como não se encaixar;
todas elas eram amigas havia muito tempo. Após dois meses em Londres,
cercada por crianças e adultos, Maryam queria abraçar todos que a cercavam,
pela facilidade com que a conversa fluía, pelo quanto se provocavam sem
motivo, pelo quanto se sentia completamente em casa. Babar veio se juntar
ao grupo e Maryam disse: “Desfilando com calças antiquadas! Desfile!”.
Babar marchou de um lado para o outro, transformando a marcha em uma
dança que fazia voltas, as garotas aplaudindo e os garotos gritando: “Oi-ê, oi-
ê, oi-ê” no ritmo certo, de modo que a piada recaísse inteiramente na
escolha das palavras feita pela professora. Babar inclinou a cabeça na direção
de Maryam, agradecendo-lhe por encontrar uma saída entre a falta de jeito
em fingir que a interação em sala de aula não tinha acontecido e o
constrangimento de dizer algo empático. Ela não exigia nenhum
agradecimento, nem mesmo reconhecimento; estava plena de satisfação por
estar com um grupo de pessoas e conhecer as palavras e o tom que
produziriam exatamente o efeito que queria. Era isso que significava
“pertencer” e “casa”, palavras que ela entendia assim como Zahra entendia
“propósito” e “irrelevante”.
Hammad cruzou a linha de visão de Maryam e seus pensamentos se
voltaram para que outros efeitos ela poderia produzir.

Às quartas-feiras, Zahra voltava para casa com Maryam e suas duas irmãs
mais novas. Para Maryam, “casa” era uma construção térrea em Old Clifton,
assentada atrás de muros altos e agora com guardas armados junto ao portão.
Faltava-lhe todo o potencial de brincar com o cachorro dos vizinhos do
andar de baixo ou de dar uma escapada até a praia, o que existia no
apartamento de Zahra em Seaview, embora Zahra tenha aproveitado pouco
de um ou outro. Essa rotina começou quando o pai de Zahra assumiu o
papel de âncora na TV em um programa sobre críquete — ele precisava estar
no estúdio nas tardes de quarta-feira e não podia buscar Zahra, como vinha
fazendo desde que a mãe fora promovida, passando de professora na escola de
Zahra a diretora de uma escola recém-inaugurada.
Maryam ainda sentia falta da sra. Ali, como era chamada quando estava na
escola — fora dela, era tia Shehnaz. Sempre havia um esplendor naqueles
poucos segundos do dia em que a elegância sutil da sra. Ali cruzava o
caminho de Maryam e a cumprimentava com o sorriso de tia Shehnaz. Os
outros professores tinham Maryam como a meio inexplicável melhor amiga
da brilhante Zahra, como uma aluna mediana cujos pais compravam suéteres
de caxemira em Londres para o uniforme de inverno da filha, quando todos
os demais, inclusive os que dirigiam Pajeros, achavam ótimos os nacionais de
poliéster e algodão. Ela sabia que os professores a desprezavam por isso, pois
Saba tinha dito que a sua tia, a sra. Hilal, comentou que a sala dos professores
se perguntava se Maryam era alérgica a poliéster. Como qualquer aluno da
escola, Maryam deixava que a mãe escolhesse as roupas que ela usava na
escola sem pensar muito sobre isso, mas aquela conversa com Saba mostrava
que até a menor das decisões não deveria ser delegada a nenhum dos pais.
Naquela quarta-feira em particular, uma crise social tinha sido detonada
na casa de Maryam, e as meninas chegaram e encontraram a mãe de Maryam
ao telefone pedindo ao marido para voltar do escritório imediatamente
porque havia coisas a discutir.
Coisas a discutir queria dizer que eram delicadas demais para um
telefonema, não tanto porque todos sabiam que os serviços de inteligência
estavam sempre na escuta, mas porque linhas cruzadas significavam que
alguém conhecido podia acabar espreitando a ligação, embora a intenção
fosse apenas telefonar para pedir que a mãe o fizesse lembrar de como fulano
estava relacionado a sicrano. Desde que se viu em uma linha cruzada com o
marido de sua prima falando com a amante até então insuspeita, a mãe de
Maryam se recusava a dizer qualquer coisa ao telefone que não pudesse gritar
alegremente pelos corredores do Agha's Supermarket.
O pai de Maryam fingia que tinha trabalho que o mantinha no escritório,
mas na verdade era o avô de Maryam que administrava os negócios da
família, a empresa que fornecia produtos de couro luxuosos para os ricos do
Paquistão. O pai de Maryam simplesmente tinha uma sala com seu nome na
porta, onde passava os dias fazendo palavras cruzadas, aprovando produtos
que já atendiam aos padrões exigentes do pai e às vezes tendo reuniões com
alguém importante para a empresa que precisava se sentir valorizado. O pai
de Maryam fazia com que todos se sentissem valorizados, e saber da
onipresença dessa valorização não impedia ninguém — além dos familiares
de primeiro grau — de ser conquistado por sua habilidade nesse quesito.
Assim, o almoço foi protelado até que o pai de Maryam voltasse para casa.
Zahra e Maryam atravessaram o longo corredor repleto de pinturas, onde um
retrato tosco de uma vaca, desenhado pelo pai de Maryam ainda em Oxford,
estava pendurado entre Sadequain e Chughtai, Gulgee e Naqsh. As pinturas
se rendiam a uma aglomeração de fotografias dos ancestrais da mãe de
Maryam em toda a pompa aristocrática; a classe incontestável deles fazia com
que o desenho da vaca ficasse divertido, em vez de um símbolo grosseiro da
riqueza que tornava possível a coleção de arte. Maryam o achava
extremamente humilhante.
O corredor levava ao quarto de Maryam, de onde ela enxotou as irmãs e
fechou a porta. O ar-condicionado central fazia o mais fraco dos zunidos, o
piso de mármore era fresco sob as meias finas quando elas tiraram os sapatos.
Maryam disse a Zahra para escolher a música e ficou de joelhos em sua cama
de casal para cravar um beijo na boca de George Michael, que estava
pendurado na parede em sua encarnação de Last Christmas.
“Sua vez”, ela disse.
Zahra continuou onde estava, correndo os dedos pela coleção de CDs de
Maryam na prateleira branca com detalhes em azul. Logo abaixo ficava a
estante repleta de Judith Krantz, Sidney Sheldon, Jackie Collins — do lado
de dentro da contracapa de cada livro havia números, escritos em um código
só conhecido por Maryam e Zahra, listando quais páginas continham as
“partes boas”. E mais abaixo ficava uma mesa com o computador — o
computador de Maryam, o Apple IIGS, o orgulho e a alegria dela — que lhe
possibilitava começar o curso de ciências da computação do nível mais básico
quilômetros adiante dos demais em conhecimento de programação.
“Por que você fala com Hammad quando acha que eu não estou
olhando?”, perguntou Zahra, virando-se para Maryam. “Eu vi você hoje de
novo, quando saí da aula de história.”
“Você não gosta dele.”
“Que diferença isso faz? Contamos tudo uma pra outra.”
Ambas entendiam que tudo significava qualquer coisa que acontecia
dentro da escola. A vida da família delas era uma questão diferente. Assim,
Maryam, por exemplo, nunca discutia o quanto se envergonhava com a
indolência da vida dos pais, com a superficialidade de suas preocupações, tão
divergentes do tipo de comportamento adulto que ela via na casa de Zahra.
Até os nomes pelos quais seus pais eram conhecidos pelos amigos — Toufiq
e Zenobia, reduzidos para Toff e Zeno — eram caricaturas quando
comparados à solidez dos Ali, Habib e Shehnaz.
Na primeira semana do curso de economia no nível O, Maryam estudou
divisão do trabalho e entendeu que a versão familiar dessa matéria era o avô
administrar os negócios enquanto o pai procriava, de modo que haveria
alguém competente para quem os negócios pudessem ser passados adiante. O
pai tinha tido três filhas e nenhum filho, quando a mãe disse que bastava,
estavam no século 20, suas filhas assumiriam a empresa. Mas desde o início
era evidente que as duas mais novas tinham saído ao pai, trocando a
competência pelo charme, e assim ficou implícito que a responsabilidade
total e verdadeira precisava recair sobre Maryam. Às vezes, o avô a provocava
dizendo que talvez, tendo ido para a universidade na Inglaterra ou nos
Estados Unidos, ela nunca mais quisesse voltar. Ela simplesmente revirava os
olhos para isso. O avô sabia bem que os verões em Londres bastavam para
extirpar qualquer desejo de morar em outro lugar. Em outro lugar era onde
você não era ninguém. Para ser honesta, Maryam não tinha certeza absoluta
do porquê ir para a universidade, mas seu avô parecia achar necessário.
“Ok, mas primeiro é a sua vez.” Maryam apontava de novo para o pôster
e Zahra se aproximou da cama. Maryam viu quando ela recuou um pouco
ao reparar na mancha de saliva que a própria Maryam, sem perceber, tinha
deixado na boca de George Michael. Isso a fez enxugar os lábios e ter
consciência de seu corpo — a saliva na boca, o sangue da menstruação, o
peso dos seios. Zahra beijou apressadamente o canto da boca de George
Michael e foi sentar no pé da cama de Maryam em oposição à postura
habitual — ombro a ombro e recostada na cabeceira da cama.
“Ok, então, sim, ele vem falar comigo toda vez que me vê. O que eu
deveria fazer, fingir que não ouvi?”
“Você já falou com ele por telefone?”
“Ele pediu meu número, mas não dei. Feliz?”
Uma leve mudança no ar, a primeira mentira entre elas.
“Só de ser vista conversando com ele pode ser ruim para a sua reputação.”
Essa palavra — reputação — carregava um peso enorme na vida de
Zahra. Maryam sabia que tinha algo a ver com a incerteza de sua posição
social e rir disso seria cruel. “Ela é inteligente, bem-educada e ponderada,
qualquer família de bem a acolheria”, dissera certa vez a mãe de Maryam,
prevendo um futuro brilhante para Zahra, no qual o casamento a livraria do
jugo do passado dos pais, que eram “pessoas decentes e muito trabalhadoras”,
uma frase nítida da sua condescendência para com aqueles que não podiam
simplesmente assumir uma posição no mundo sem levar em consideração o
renome ou a influência. Maryam gesticulou indicando o espaço a seu lado e
Zahra ocupou o lugar indicado, deslizando e se apoiando um pouco em
Maryam, que se endireitou e nivelou a cabeça de ambas.
“Você nunca quer fazer algo que não deveria fazer, Za?”
“Claro que quero.”
“Como o quê?”
“Beijar um garoto.”
“Zahra Ali!”
“Cale a boca.”
“Estou brincando. Qual garoto?”
“Qualquer garoto. O que eu quero é o beijo.” Ela ficou bem vermelha
quando disse isso. “Mas teria de confiar no garoto para não contar nada. E
seria estúpido confiar em alguém desse jeito, a não ser em você.”
Maryam concordou. Essa última parte certamente era verdade. “Você
acha que seria muito diferente, se fechasse os olhos...”
“O quê?”
“Beijar uma garota.” Um novo tipo de possibilidade, sugerida por um
filme ao qual tinha assistido tarde da noite em Londres.
“Você quer dizer uma à outra?”
Maryam torceu o nariz para o equívoco profundo daquele pensamento.
“Nunca. Nem se fosse para treinar. Está bem. Está decidido. Vamos seguir
em frente com Babar para você e Hammad para mim.”
“Não sei qual parte dessa frase é pior. Ele chamou você?”
“Você acha que comecei a mentir para você sobre Hammad? Por favor.”
Ela ficou de pé na cama e tirou a meia. “Você pecou contra a amizade e
agora precisa enfrentar seu castigo.”
“Oh, Deus, não, isso não.”
“Isso, sim. Cheire a minha meia! Cheire!” Ela acenou com a meia na
direção do rosto da amiga e Zahra escapou rolando para fora da cama.
Segundos depois, Maryam estava perseguindo Zahra corredor afora,
chacoalhando uma meia, e em volta da mesa de jantar e entrando na saleta
onde a mãe de Maryam gritou com elas por serem uma dupla de desordeiras
que não se importavam com o dia terrível que os outros estavam tendo.
Zahra disse algumas palavras pedindo desculpas e saiu da sala. Maryam a
encontrou no quarto poucos minutos depois, alegre pelo dilema em que seus
pais foram postos.
Eles dariam uma grande festa no fim do mês e um dos convidados, um
velho amigo de faculdade de seu pai, tinha ligado para perguntar se poderia
levar o irmão, que estava passando por um momento difícil e precisava de
encorajamento. Era o tipo de pedido que ninguém jamais pensaria em
recusar, mas esse irmão tinha sido preso pouco tempo atrás por tráfico de
drogas e todos sabiam que sua soltura se devia a um juiz corrupto. “Por que
eu deveria ser o primeiro passo do programa de reabilitação dele?”, a mãe
disse para Maryam, referindo-se à reabilitação social. Então deu a desculpa de
que havia um problema grave na cozinha e que teria de desligar
imediatamente o telefonema do amigo de faculdade, mas ela ou o marido
retornariam com uma resposta em breve, mas ela não encontrava uma saída
possível para um “não”.
“Então vão cancelar a festa?”, perguntou Zahra.
“É o aniversário de quarenta anos do meu pai”, disse Maryam, juntando-
se a Zahra que mexia na coleção de CDs. “Não vão cancelar isso.”
“Mas não vão receber um traficante de drogas na casa deles, vão?” Zahra
tinha puxado a trilha sonora de Dirty Dancing da prateleira e estava lendo a
lista das músicas com grande concentração, como se já não a conhecesse de
cor.
“Ele se sai bem entre amigos”, disse Maryam, tendo encontrado o
homem várias vezes, mas sem nenhuma lembrança clara dele além da polidez
de falar em voz baixa. “A questão é que ele é irmão de um amigo que está
pedindo um favor, então o que fazer?”
“Não pensei por esse lado”, disse Zahra, finalmente olhando para
Maryam.
“Resposta bem diplomática.”
Zahra colocou o CD no aparelho e apertou o play. Ouviram o ruído de
um disco girando em falso por não ter sido colocado com firmeza suficiente
e Zahra balançou a cabeça, sempre impaciente com as próprias imperfeições,
antes de resolver o problema. Os compassos iniciais de “Time of My Life”
apagaram quaisquer opiniões divergentes que elas pudessem ter sobre o
mundo adulto enquanto cantavam I've neeeever felt this way before juntas.
“Se as suas irmãs se tornassem um fardo como criminosas e se você
perguntasse se podia levá-las à minha festa de quarenta anos, acho que eu
diria sim”, admitiu Zahra, no meio da música.
“Por favor. Eu nunca faria você convidar aquelas criaturas irritantes para
festa nenhuma. Quarenta anos! O que você acha que vamos fazer aos
quarenta?”
Era o tipo de conversa que elas adoravam ter, e abaixaram um pouco o
volume e voltaram a se sentar lado a lado na cama de Maryam para pensar
nisso.
“Imagino que estaremos casadas, com filhos”, disse Maryam. “É meio
inevitável, não é?”
“É?”, disse Zahra.
“Bem, vou precisar ter filhos, pois alguém deve herdar a Khan Leather”,
disse Maryam. “A parte difícil vai ser encontrar um marido que não se
incomode por eu administrar a minha empresa e não deixar que ele diga
qualquer coisa em hipótese nenhuma. Mas ele não pode ser fraco.”
“Acho que vamos querer essas coisas um dia”, disse Zahra, meio
melancólica. “Mas ainda seremos nós quando estivermos juntas, não é?”
“Sempre seremos nós”, respondeu Maryam com firmeza. “Mesmo se
você estiver morando no Alasca. Isso é amizade, não propanocuidade.”
“Propinquidade!”
“Eu lembrava que tinha algo a ver com química.”
“Nada a ver.”
Ouviram um som leve de pancada contra a janela. Um dos gatos do
jardim tinha saltado do sapotizeiro para o peitoril da janela. “Gatinho
movido a propano!”, gritaram juntas.
A risada se instalou, indo além da piada do momento para uma
gargalhada profunda de alegria pela amizade entre elas, pela certeza de que,
acontecesse o que fosse no mundo, sempre existirá essa pessoa, essa estrela
polar, essa rocha, esse alter ego que conhece cada átomo dos seus defeitos e
que mesmo assim, apesar de tudo, escolheu ficar com você e a seu lado em
tudo que o mundo ainda tinha para lhe jogar em cima, cada angústia, cada
decepção, cada momento de escuridão. Sempre essa amizade, sempre a sua
luz.

Quando a mãe de Zahra veio buscá-la no fim daquela tarde, o pai de


Maryam estava ao telefone dizendo para o amigo de faculdade que, é claro, o
irmão dele era bem-vindo à festa, o que significava que um dos guardas
armados do portão teve de caminhar até a porta da cozinha e chamar a
cozinheira porque não tinha permissão para entrar na casa; mas a cozinheira
estava lá dentro conversando com a mãe de Maryam sobre o jantar, e assim o
guarda foi ao alojamento dos empregados e gritou até que o motorista, Abu
Bakr, acordasse da sua soneca da tarde para ir bater em uma das janelas, o que
chamou a atenção de Ayah, uma das irmãs de Maryam, que não conseguia
entender o que Abu Bakr estava dizendo do outro lado do vidro, porque as
irmãs estavam tocando sua música alto demais, e assim ela saiu a passos lentos
para ver o que o motorista queria e depois voltou a passos lentos para dentro
e encontrou Zahra. A essa altura, a mãe de Zahra ficara sentada no carro por
uns bons minutos sob o calor opressivo de agosto.
“Sinto muito”, disse Maryam, saindo com Zahra para se desculpar.
“Ele faz você se sentir mais segura?”, perguntou a mãe de Zahra,
indicando o homem que tinha aberto o portão para Maryam e ficado ali,
observando-a, com o kalashnikov pendurado na altura da mão.
“Mãe!”, disse Zahra, correndo para o carro para evitar que a conversa se
prolongasse.
“Não, ele só me aborrece”, Maryam respondeu e se virou para o guarda.
“Esta é outra pessoa que sempre tem permissão para entrar, entendido?”
Zahra viu a desaprovação da fala da mãe no tom de voz de Maryam. O
primeiro grande constrangimento daquela amizade foi quando Zahra, aos
cinco anos, se dirigiu ao motorista como “Abu Bakr Bhai” e Maryam,
parecendo chocada, disse: “Ele não é nosso parente!”. Zahra logo descobriu
que quase todos com quem ia para a escola se referiam às pessoas que
dirigiam seus carros, cozinhavam suas refeições e arrumavam suas camas sem
acrescentar relações honoríficas ou familiares a seus nomes, que as posições
sociais sobrepujavam a deferência entre as gerações. Na casa de Zahra, o casal
que vinha limpar e cozinhar era “Zahoor Bhai” e “Shameema Apa” para ela
e os pais.
Um Pajero, grande e reluzente, fez a curva e parou bem atrás do carro da
mãe de Zahra.
“Primeiro eu não podia entrar e agora não posso sair”, disse a mãe de
Zahra.
A janela de trás do 4 x 4 abaixou e o avô de Maryam pôs a cabeça para
fora. “Esse carro está chegando ou saindo?”, ele disse.
“Saindo. É a Zahra com a mãe”, respondeu Maryam.
A porta do Pajero se abriu e surgiu uma bengala com castão de prata
seguida pelo avô de Maryam. O Patriarca, como era conhecido na família de
Zahra, estava impecavelmente vestido, como sempre, com um terno listrado
da Savile Row. Zahra não sabia o que era um terno da Savile Row, mas de
alguma forma, tempos atrás, já havia entrado em sua consciência que aquele
era o único tipo de terno que o Patriarca usava.
A mãe de Zahra suspirou com a dança desnecessária da etiqueta, mas
desligou o motor, fez sinal para Zahra sair do carro também e vir com ela.
“Não é um absurdo?”, disse o Patriarca. “Bloqueei sua saída e agora estou
atrasando você mais ainda para me desculpar.”
“Faz muito tempo que não o vejo”, disse a mãe de Zahra, que conseguiu
dar a entender que aquilo era um motivo de lamento sem que realmente
dissesse algo que não fosse sincero. Eles conversaram por alguns minutos — o
Patriarca mostrando um interesse profundo que talvez não fosse genuíno pela
nova escola da mãe de Zahra — até que a umidade do ar estendeu seu
controle sobre todos. Mas, por fim, a mãe de Zahra ligou o carro, o Pajero
deu ré e Zahra acenou para Maryam, enquanto o Patriarca sacudia o lenço
do bolso e enxugava o rosto todo.
“Deus, ele me causa arrepios”, disse a mãe de Zahra. Era o tipo de coisa
que seus pais costumavam falar do Patriarca, embora sempre se recusassem a
explicar o que queriam dizer com isso. “Bem, e como foi sua tarde?”
Zahra cometeu o erro de lhe contar sobre o traficante de drogas.
“Essas pessoas sempre protegem os seus”, disse a mãe.
Zahra desviou o olhar, sentindo mais o cheiro do talco que do perfume
da mãe. Era a única coisa que ela podia buscar com confiança quando
precisava de um motivo para justificar o que reconhecia como uma raiva
injustificada contra uma mulher adorada por todas as outras pessoas de
quatorze anos que a conheciam. Talco e o fato de que ela pensava no novo
cargo como uma ascensão, embora a escola que dirigia agora, chamada
Andaluzia, fosse conhecida na escola de Zahra como Anda-Vazia por seus
padrões acadêmicos comparativamente mais vagos.
Os adultos eram insuportáveis, ela pensou, olhando pela janela do carro.
Todos eles, todos. Esse era um sentimento que ia e voltava com frequência
naqueles dias, e quase sempre era acompanhado pelo pensamento de que a
única pessoa no mundo com quem ela queria passar o tempo todo era
Maryam. Mas havia algo diferente entre ela e Maryam agora, algo resumido
pela lembrança de Maryam puxando o tecido do seu kameez ao redor do
corpo e fingindo que não era intencional.
Zahra queria beijar um garoto, era verdade. E não parava apenas no beijo.
Ela queria entender melhor as coisas que estavam acontecendo em seu corpo
que a faziam enrolar as pernas no travesseiro da cama e direcionar a água do
chuveiro para os mamilos. Queria que outra pessoa a fizesse se sentir da
maneira que se sentia tarde da noite, quando sua mão deslizava entre as
pernas, e ela se imaginava caminhando mascarada por um quarto de garotos
mais velhos, permitindo-lhes fazer coisas com ela, fazendo coisas em
retribuição, sem que ninguém soubesse que era ela. Mas máscara alguma
poderia disfarçá-la; todos com quem crescera a reconheciam pelo tamanho
da sua sombra, de modo que não faria nada daquilo, não por um bom
tempo, talvez não até que fosse para a universidade, longe dos olhares
curiosos daquele mundo minúsculo em que viviam, dentro de uma cidade
de milhões. Não havia horror maior que pudesse imaginar do que as pessoas
cochichando sobre ela, dizendo que se comportara de maneira que nenhuma
garota de boa família devia se comportar. “Zahra é muito ajuizada e eu
confio nela”, ouvira recentemente seu pai dizer a um primo por telefone.
Ela não sabia ao certo do que se tratava aquele comentário, mas desconfiava
que tinha a ver com a desaprovação do primo a uma escola mista conhecida
pela fama de suas garotas “rápidas”. A resposta do pai a encheu de orgulho,
mas também a oprimiu com o peso terrível de cumprir as expectativas de
toda aquela confiança.
E então havia Maryam, que não entendia por que a opinião dos pais —
ou a opinião do mundo — tinha algo a ver com o que ela queria ou o que
fazia a respeito. Zahra não sabia se Hammad era o que Maryam queria.
Maryam disse que não era, mas às vezes ela mentia. Zahra a tinha visto fazer
isso com os pais, com professores, com outros alunos, mas nunca soubera
reconhecer — não havia rubor, desvio de olhar, fala excessiva ou mudança
no tom de voz que a denunciasse. Zahra sabia quando Maryam mentia
porque, até agora, sempre soubera as verdades da vida dela. Mas não podia
mais ter certeza disso. Uma deriva tinha começado, e só aumentaria com o
passar dos anos. No fundo, ambas sabiam que ninguém tinha aos quarenta
anos o tipo de amizade que as duas tinham aos quatorze.

Por fim a chuva veio, feroz. Galhos de árvores arrancados dos troncos,


ruas se transformaram em lagos, transformadores de energia soltando faíscas e
fumaça. O aguaceiro deixou a cidade no escuro. Ninguém sabia se a queda
de energia era um desligamento preventivo ou uma pane, já que a empresa
distribuidora de eletricidade não estava atendendo a linha das reclamações. A
escola certamente estaria fechada no dia seguinte; as ruas alagadas estariam
intransitáveis. Diante da previsibilidade das monções de agosto, era ridículo
que as férias escolares não começassem e terminassem mais tarde durante o
verão, mas a resposta da escola a essa sugestão — feita por mais de um pai —
foi que as rodovias é que precisavam ser arrumadas, não o ano letivo. “A
beleza do Paquistão é que sempre existe alguém a quem culpar por um
problema”, dissera o pai de Zahra.
O melhor lugar para se estar em Karachi naquela noite era exatamente
onde Zahra estava: na sacada de um dos apartamentos de Seaview com vista
para a praia de Clifton, com uma serpentina de repelente acesa a seus pés e
uma vela na mesa ao lado, a chama tremeluzindo com a brisa quente vinda
do mar. O som de palmadas se erguendo na escuridão era das ondas
carregadas de chuva que estouravam no quebra-mar. Uma explosão de som e
luzes vinha de um carro que cruzava a rua e estacionou bem em frente a
uma das tabuletas pintadas e fincadas no chão que anunciavam que a Seção
144 estava em vigor, proibindo atividades que representassem ameaça à
segurança e à ordem pública. Na aula de história, Zahra havia estudado sobre
o uso da Seção 144 no tempo do Raj para impedir reuniões de manifestantes
anticolonialistas; agora ela se sentia constrangida em nome de sua nação pela
Seção 144 ser usada para impedir que as pessoas nadassem no mar durante as
monções com sua ressaca assassina.
Como era tedioso viver agora, neste lugar, com um ditador repugnante, a
televisão censurada e a violência diária que havia reduzido todas as vidas a
espaços privados. Quando se mudaram para cá, seus pais deixaram claro que
ela jamais deveria ir à praia sem um adulto, mas Maryam viera uns dias
depois e a convenceu de que deviam dar uma escapada quando seus pais não
estivessem em casa. Juntas, elas caminharam pela areia cinza-prateada até um
dos vendedores em um quiosque de madeira, onde espigas de milho eram
assadas em carvão fumegante. Maryam perambulava, assobiando uma música
que Zahra não reconhecia, mas só Zahra se sentia vulnerável, sua mente indo
para as histórias de sequestros que circulavam no pátio da escola. Uma das
garotas do oitavo ano tinha perdido três dias de aula no ano anterior e,
embora tivesse voltado no fim da semana, alegando um problema no
estômago, correu o boato de que ela havia sido sequestrada e resgatada, mas
os pais não queriam que ninguém soubesse, porque as pessoas iriam se
perguntar o que tinha sido feito com a garota naqueles três dias entre os
criminosos. Zahra insistiu que levassem o milho para casa e comessem em
seu quarto, em vez de ficar mais tempo fora. E no fim disso tudo os grãos
saborizados com limão picante ficaram duros por assar demais.
Ela deu um tapa no mosquito que tinha chegado até seu braço apesar da
espiral e limpou o borrão nas páginas do livro de história. Fechou o livro,
pôs os fones de ouvido e apertou o play no walkman. Bruce Springsteen
parecia desolado por estar tão ruim na fita que Maryam gravara da Capital
Radio de Londres. A música acabou e entrou a voz do DJ — cheia de
possibilidades estimulantes de “em algum lugar que não aqui” — dizendo:
“E é isso que ele...”, antes que Maryam interrompesse a gravação para
recomeçar em algum lugar com os compassos de abertura de Tracy
Chapman cantando uma música feita para as noites de Karachi, nas quais
dirigir um carro veloz com os amigos, ouvindo uma fita gravada do rádio,
era tão bom quanto a vida podia ser — sobretudo se o irmão mais velho de
alguém estivesse ao volante.
Juntando o cabelo, ela o afastou do pescoço para permitir que a brisa
soprasse em sua pele. Mesmo quando não estava quente, ainda havia aquele
ar pegajoso incessante. Ela olhou para o céu, denso de estrelas agora que as
nuvens de chuva tinham sido esvaziadas e sopradas para longe, e se permitiu
deslizar para além de uma insatisfação satisfatória da qual sabia que se
relembraria em alguns anos, quando morasse em Nova York ou em Londres,
com uma ternura divertida por seu ego de jovem que acreditava apenas
parcialmente no futuro que a esperava. Os detalhes daquele futuro eram
nebulosos, porém brilhantes. A porta de correr se abriu e seu pai apareceu,
segurando o copo de uísque de todas as noites. Zahra tirou os fones de
ouvido e colocou na cabeça dele, criando uma depressão em seus cabelos
grisalhos e crespos, pressionou o botão de rebobinar pelo tempo que
calculou e apertou o play. Ouviu o suficiente da música para saber que tinha
calculado bem. “Essa Tracy tem voz, não é como aquelas outras que só têm
aparência”, ele disse na primeira vez que ouviu Fast Car.
“É legal, não é? Morar aqui?” Ele gesticulava de forma a englobar a brisa
do mar, o céu cheio de estrelas, a localização.
Zahra desejou não ser tão alta para apoiar a cabeça no ombro do pai. Em
vez disso, contentou-se em enlaçar o braço dele e se apoiar em sua
corpulência reconfortante. Uns anos atrás, irritado por ter de dirigir de KDA
até Clifton no meio de uma partida de críquete para deixar Zahra na casa de
Maryam, ele perguntou por que Maryam não podia ir visitá-la. “Por que
alguém viria até aqui quando mora lá?”, dissera Zahra, referindo-se tanto ao
andar superior da casa sombria que ela e os pais ocupavam quanto ao bairro
bem afastado de Defence e Clifton onde todos os amigos moravam. Ele
recebeu a informação com um silêncio que se estendeu pelo resto do dia.
No último ano, quando seu salário de correspondente de críquete para o
principal jornal do país em língua urdu foi aumentado enormemente em
função do papel de âncora em um programa de entrevistas sobre críquete, ele
levou Zahra e a esposa a um bloco de três andares de apartamentos à beira-
mar; após subirem dois lances de escada, abriu a porta principal com uma
chave que apresentou com um floreio e disse à filha: “Isto é bom o suficiente
para Maryam?”.
Os lábios dele se mexiam, não com a música, e Zahra sabia que ele estava
repetindo as falas que usou no episódio de Três Convidados e um Ali, que iria
ao ar em breve. O enorme sucesso do programa surpreendeu a todos,
transformando Habib Ali em uma celebridade. Ele não conseguiu atravessar
os portões da escola para pegar Zahra no dia seguinte ao que o episódio foi
apresentado sem que os alunos o rodeassem para discutir o assunto. Qualquer
estigma social que tenha sido associado ao fato de que escrevia para a
imprensa em urdu e não em inglês foi totalmente apagado por seu papel na
TV, o qual era condimentado com inglês suficiente de modo a deixar
qualquer pessoa saber que ele era fluente nos dois idiomas e optou por se
comunicar primeiramente naquele que mais espectadores conseguiriam
acompanhar. No pátio da escola só recentemente se tornou possível falar
urdu sem que um professor repreendesse por entrar em um idioma que
estava reservado para a meia hora da aula de línguas do dia.
“Sim”, disse Zahra, voltando os pensamentos para o céu, a brisa, o mar
do outro lado da rua. “É muito legal.”
Os tapetes ainda eram poucos sob os pés, a mobília arranhada e um toca-
CDs era uma fantasia distante. Mas no alto dessa sacada era possível ficar com
seu pai e observar a espinha dorsal dele se alongar enquanto contemplava
tudo o que havia conquistado para si e sua família e um momento como o
desta noite era ainda mais gratificante do que estar aqui com a melhor amiga,
observando-a respirar o ar marinho, entendendo que você, pelo menos dessa
vez, tinha algo que ela desejava que fosse dela.
O mundo resplandecia ao redor. Zahra protegeu os olhos do brilho da
lâmpada da sacada, a qual oscilou para um brilho assustador que
sobrecarregaria a fonte de energia e queimaria todos os aparelhos eletrônicos
se continuasse assim. Mas não desta vez. A luz diminui para a voltagem
normal e o pai de Zahra bate no mostrador do relógio, dizendo: “Bem na
hora”.
Zahra apagou a vela e acompanhou o pai para dentro de casa para
assistirem a Três Convidados e um Ali. A mãe de Zahra já estava sentada na
sala, lendo o novo romance de Bapsi Sidhwa, Ice Candy Man, e quando o
marido e a filha entraram ela voltou algumas páginas para reler um parágrafo
que a havia agradado em particular.
O pai emitiu um som de aprovação, e ele e Zahra encenaram uma
minidiscussão sobre quem leria o livro em seguida. “Você demora tanto para
ler alguma coisa”, disse Zahra. “Eu não sabia que você estava interessada em
livros sem letras douradas em relevo na capa”, disse ele, suas únicas palavras
de crítica sobre os romances de sucesso que Zahra recentemente começou a
devorar.
Então começou Três Convidados e um Ali e todos se aquietaram. Ainda era
estranho ver o pai na tela — tudo nele era tão familiar, mas era estranho
saber que em todo o país as pessoas o observavam. O episódio do dia era
basicamente sobre a recente vitória das Índias Ocidentais sobre a Inglaterra, o
que ele discutiu com o ar satisfeito de um homem que pensava no
colonialismo como uma lembrança e não como história, embora tivesse
apenas cinco anos de idade quando acabou. Enquanto seu ego televisivo era
expansivo e confiante, o caseiro continuava olhando de relance para a esposa,
conferindo sua expressão em busca de uma aprovação que nunca foi negada,
mas que ainda lhe importava mais que o críquete em si. Um trio de
convidados sempre o acompanhava na tela — apenas para justificar o
trocadilho no título do programa, disse a mãe de Zahra —, mas o segmento
final, chamado Howzzat, era Habib Ali sozinho, lembrando a audiência, com
a ajuda de imagens de TV ou comentários de rádio, de um momento
significativo na história do críquete no Paquistão. Em geral, ele voltava às
décadas passadas, mas naquele dia a vitória das Índias Ocidentais o impeliu a
reviver uma partida de uns meses atrás, Paquistão x Índias Ocidentais, em
Bridgetown, e certamente, seguramente, se os árbitros da casa não tivessem
tomado uma porção de decisões injustas, o Paquistão teria vencido a partida
e com ela a série. Habib Ali se sentia à vontade enquanto desenvolvia o
contexto e o significado, e embora Zahra — e todos que estavam assistindo
— soubesse exatamente como a partida se desenrolou, o pai ainda sabia
como fazer o público se inclinar com expectativa em direção à tela da TV na
medida em que conduzia aos momentos finais da partida. Quando terminou,
Zahra entendeu, de modo muito mais firme que antes, que o Paquistão havia
superado o mais digno de todos os rivais, mas não pôde superar os árbitros, e
assim a partida perdida foi uma injustiça e não uma derrota.
“Por que parece ainda pior?”, ela perguntou ao pai.
“Quando se vive em um mundo injusto, o que se quer é que o esporte
seja um refúgio, não um lembrete.”
Os olhos dele tinham aquele brilho que a combinação de críquete com
uísque podia causar. Falar e escrever sobre o jogo não era apenas uma
profissão, mas também sua vocação. Em um país de opressão e perdas, o
críquete era uma luz brilhante, uma arena onde se podia sentir orgulho da
pátria e união com os compatriotas. O críquete lhe dizia que talento, garra e
caráter venceriam, que gigantes poderiam ser derrubados, que a derrota de
hoje sempre poderia ser seguida pela vitória de amanhã. Sim, houve erros e
injustiças, crueldade até. Mas acima de tudo estava o jogo em si, brilhante e
impoluto. Zahra já tinha idade suficiente para saber que, quando falou disso
para os espectadores, seu pai estava tentando falar de algo maior sobre a
própria vida e como vivê-la, sempre com integridade, sempre com
esperança.
Embora não houvesse ninguém no mundo que ela amasse mais, às vezes
se pegava pensando nele como um homem tolo, mal preparado para o
mundo no qual se via vivendo.

Na maioria das manhãs de sábado, Maryam podia ser encontrada no


campo de críquete que ficava atrás do prédio dos escritórios da Khan
Leather, arremessando seu off spin ou abrindo as rebatidas. Os outros
jogadores se revezavam quando acabavam os turnos no depósito ou no
prédio do artesão, embora às vezes, se um jogador estivesse fazendo um jogo
particularmente bom, ela enviasse uma mensagem ao avô para perguntar se
Haris, Lamboo ou Kashif podiam ficar no campo um pouco mais.
Desde pequena, Maryam gostava de pegar um bastão de críquete e se
juntar aos operários no campo — no começo, os lançadores jogavam bolas
lentas e baixas em sua direção e os defensores deixavam cair as bolas que
vinham de seu bastão com gritos exagerados de desapontamento. Mas, logo
que suas habilidades ficaram evidentes, o avô a enviou para ser treinada por
um ex-jogador internacional, e agora não havia por que alguém tratá-la
como a neta do sahib em vez de a melhor jogadora polivalente em campo.
Em qualquer outro lugar da fábrica ela era a Maryam Bibi, mas aqui era a
“Capitã”. O avô nunca dissera que o campo de críquete era onde ela
eliminaria a desvantagem de sua feminilidade e ensinaria os homens a vê-la
como líder, mas ela sabia que era por isso que ele insistira tanto no
treinamento.
Naquele sábado, ansiosa para voltar a jogar depois do verão em Londres,
Maryam pediu para Abu Bakr a levar até a fábrica no Território Federal da
Área “B” mais cedo que de costume. Quando deixaram para trás os locais da
cidade onde pudessem ser vistos por pessoas que os conheciam, Abu Bakr
parou no acostamento da rodovia e passou para o banco do passageiro.
Dez anos antes, Maryam, então com quatro anos de idade, voltando do
jardim de infância para casa, mandou o motorista da família parar ao lado de
uma casa grande com um pé de phalsa crescendo no jardim e fez com que a
erguesse até o muro para que pudesse colher os frutos preto-arroxeados dos
galhos. A família que morava na casa chegava de carro bem a tempo de ver
aquele ato de roubo e violação. Os pais de Maryam ficaram chocados; o avô,
encantado. Foi culpa do motorista, disse ele; ela precisa de alguém enérgico e
de confiança para levá-la aos lugares. O avô ofereceu o próprio motorista,
Abu Bakr, para o trabalho, o primeiro sinal da sua preferência para com
Maryam. Com o passar dos anos, Maryam e Abu Bakr tinham encontrado
um meio-termo entre a natureza dela e o dever dele; ele estava disposto a ser
seu cúmplice na quebra de certas regras, mas não se achasse que isso a poria
em risco.
Agora, ela assumiu o volante e dirigiu com confiança em meio à
balbúrdia de ônibus enfeitados com cores brilhantes, micro-ônibus amarelos,
vans, motocicletas e o pedestre eventual que atravessava a rodovia correndo.
Os prédios de apartamentos e escritórios dos dois lados da rodovia eram
todos acinzentados por causa da fumaça dos escapamentos. Em determinado
momento, um motociclista emparelhou com a janela do carro por um tempo
meio longo demais e Abu Bakr baixou o vidro e ergueu o kameez para
mostrar ao homem o coldre com a arma na cintura. A moto deu uma
guinada e se afastou e Maryam prosseguiu, só permitindo que Abu Bakr
voltasse ao volante quando estavam a poucos minutos da Khan Leather.
O guarda ao portão a cumprimentou com um punho fechado e
especialmente incisivo que reconhecia quantas semanas ela estivera fora, em
Londres, e como seu retorno era bem-vindo. Abu Bakr estacionou em frente
ao prédio dos escritórios e Maryam desceu, consciente do solo em que seu
pé pisava, consciente de que aquele enorme território fabril era sua herança,
seu feudo.
Sua pele ia se tornando pegajosa conforme caminhava em direção aos
jardins sombreados por árvores atrás do prédio de escritórios, onde esperaria
os jogadores de críquete se reunirem. As folhas costumavam estar cobertas de
poeira, mas as chuvas do começo da semana deixaram tudo brilhante e
fresco. Ela parou sob uma árvore, comendo uma goiaba quase madura
daqueles galhos, observando a luz do sol filtrada pelas folhas, ouvindo o
ritmo das máquinas de corte e de costura. O cheiro das peças de couro
recém-saídas da fábrica era uma mera sugestão, talvez obra da memória, já
que nunca havia entregas tão cedo. Lamboo e Haris caminhavam no campo,
jogando uma bola vermelha um para o outro. Tudo no mundo estava
exatamente como deveria estar, os dias anônimos e intermináveis de Londres
eram uma lembrança distante.
No treino antes do jogo, porém, as coisas começaram a dar errado.
Maryam correu para fazer o primeiro arremesso e a cada movimento de
propulsão das pernas seus seios se mexiam para cima e para baixo. Sacudindo,
essa era a única palavra. Ela diminuiu o ritmo, mas isso a atrapalhou no lance;
então, teve de voltar e começar de novo. Os demais jogadores não mostraram
sinais de ter reparado, mas o que mais podiam fazer? De novo, ela correu, e
tudo dava errado. O corpo não se movimentava mais como ela queria —
rápido, discreto. Ela jogou a bola para Lamboo e disse que ia bater.
Ali, as coisas saíram melhores. O som da bola batendo no meio do seu
bastão era um dos prazeres intensos da vida. Encerrado o aquecimento, a
partida começou com Maryam e Kashif abrindo as batidas. Ela conseguia
encurvar um pouco os ombros ao correr entre as metas, o que tornava
menos ridículos aqueles seios balançando. Mas, alguns overs depois, ela olhou
para a camiseta. O suor grudava o tecido na pele e ali, de maneira
inequívoca, o contorno de seus mamilos se estendia contra o algodão.
“Está muito quente”, disse ela, enfiando o bastão debaixo do braço. “Já
chega por hoje.”
Normalmente os jogadores a teriam provocado com a informalidade que
só existia no campo — “acostumada demais com a vida no ar-condicionado,
Capitã” —, mas hoje não disseram nada. Kashif pareceu aliviado. Ela puxou
a camiseta para afastá-la da pele e a segurou assim enquanto caminhava para o
prédio dos escritórios.
Subindo as escadas, ela foi à sala do avô e abriu a porta. O avô estava
sentado atrás da mesa, em sua imponente poltrona com braços, entregando
algo para o homem diante dele. Os dois olharam para a porta aberta — de
relance, Maryam notou o rosto de nariz quebrado quando o estranho se
virou — e o avô gritou “Saia daqui!” em um tom que nunca usara com ela.
Ela fechou a porta apressadamente e foi até a porta seguinte, à sala do pai,
que sempre estava desocupada aos sábados. Ignorando os sofás de couro e a
poltrona que compunham um arranjo de assentos em uma parte da sala,
caminhou até a mesa e sentou-se atrás dela. A mesa tinha sido do seu bisavô.
O porta-canetas, a bandeja de documentos, o risque-rabisque e o porta-
lenços de papel eram todos produtos da Khan Leather. Ela apoiou a cabeça
na mesa, aninhada pelos braços, incapaz de dar um nome àquela sensação de
horror.
Por fim, o avô veio encontrá-la.
“Por que você não está no campo?”, disse ele.
Ela deu de ombros, fez uma cara de indiferença.
“Não, não se comporte dessa maneira insolente comigo”, disse ele,
aproximando-se e batendo nas costas da cadeira para indicar que ela devia
deixar aquela posição nobre para ele e encontrar outro assento. Ela se
levantou, sem olhar para o avô.
“Você sabe que devia bater na porta antes de entrar”, disse ele. “Mas me
desculpe por ter falado com você em tom tão ríspido.”
“O senhor não acha que devia me apresentar para ele? No fim, ele terá de
lidar comigo.”
O avô se reclinou na cadeira, tamborilando os dedos na beira da mesa.
“Você sabe quem ele é?”
“O senhor paga pela proteção dele todo mês. Mas, na verdade, as pessoas
de quem está comprando proteção são aquelas para as quais ele trabalha.”
Maryam soube disso por Abu Bakr. O restante estava começando a se formar
em sua mente. “E também lhe paga por algo a mais, uma atividade paralela.
Ele é o homem do telefonema, não é?”
Quando as pessoas do círculo de relacionamento de seus pais queriam
que algo fosse feito, chamavam o avô dela. Fossem talvez malas cheias de
bebidas alcoólicas para passar pela alfândega do país, fosse talvez um assento
na classe executiva em um voo lotado da PIA, fosse um passe oficial para
permitir que seus convidados estrangeiros entrassem em áreas restritas. Para
qualquer coisa que quisessem, o avô dizia “vou dar um telefonema” e então
arranjava as coisas.
“O ‘telefonema' não é uma única pessoa”, disse o avô. “Sempre
diversifique seus recursos. Mas, sim, Billoo é uma das pessoas que está
disposta a ser útil por um preço.”
“Como ele se sentirá ao lidar com uma garota um dia?”, ela perguntou.
“Como a garota se sente em relação a isso?”
Maryam caminhou até o frigobar no canto da sala e pegou uma caixinha
de suco de frutas. Furou a caixa com a ponta do canudo e simulou pensar
naquilo por um momento, embora conhecesse claramente as próprias
opiniões. “Não me importo de pagar para ele ser útil a nós e nossos amigos”,
disse ela. “Mas detesto que o senhor o pague para que o verdadeiro chefe
dele não mande bandidos incendiar o escritório.”
“Claro que você detesta isso. Mas sempre respeite onde repousa o poder,
e então planeje como pode usá-lo a seu favor.” Ele estendeu a mão e ela lhe
passou o suco de frutas. “Seu pai não vê nada disso. O jovem pequeno
príncipe quer uma coroa na cabeça e que suas mãos sejam brancas como o
lírio. Ele não pode ter os dois. Por que você tem de ser tão jovem?”
“Tenho quatorze anos.”
“E eu setenta e um.” Bebericou pelo canudo ruidosamente. “Se você
quer que eu a apresente a pessoas que um dia terão de levá-la a sério, não
entre na minha sala parecendo que esteve em um daqueles filmes indianos
em que a chuva encharca a mulher de sári branco.”
Maryam cruzou os braços na frente do peito; sentiu outra vez aquela nova
e estranha sensação de horror.

No banco de trás do carro, os lábios de Zahra estavam ardendo e


formigando com os gol guppas do Silver Spoon. O pai adorava lhe dar o
prazer de uma ida ao Silver Spoon, como fizera naquele entardecer, mas
sempre depois de saber que não haveria uma prova no dia seguinte que
obrigaria Zahra a fazer a escolha intolerável entre uma rodada de revisão da
matéria e os melhores gol guppas do mundo. Agora os Ali estavam parados no
trânsito do horário de pico da Shahrah-e-Faisal e não conseguiriam chegar
em casa antes de — pelo menos — meia hora, significando que perderiam o
Neelam Ghar — o que na verdade era bom, pois de qualquer maneira ela
passaria a maior parte do programa de perguntas com a cara enfiada num
livro; era o pai que adorava ver Tariq Aziz apresentando o programa, embora
de quando em quando o insultasse por ter traído suas opiniões políticas e se
curvado ao general Zia para permanecer no ar. Mas pense em todas as
pessoas a quem seriam negados os prêmios da Rahbar Water Cooler se o
programa terminasse, era a provocação que a mãe de Zahra fazia ao marido
em contrapartida, e às vezes Zahra gostava da conversa familiar, mas outras
ficava muito entediada com a reciclagem interminável dos bate-papos que
pareciam refletir a vida de casados.
Um carro parou no semáforo ao lado do carro dos Ali. Zahra tinha
reparado nele antes, um Suzuki FX vermelho, um modelo que sua mãe
dirigia até pouco tempo atrás, mas os vidros escuros lhe davam um ar de
mistério, sugerindo ser do tipo que tinha o para-brisa traseiro adesivado com
o decalque de Sylvester Stallone no papel de Rambo, ou com o logotipo da
Ferrari, ou um par de olhos femininos exageradamente maquiados. Às vezes,
havia aquela excitação momentânea quando os garotos que dirigiam ao lado
abaixavam os vidros escuros e lhe enviavam um olhar que dizia se seus pais
não estivessem aqui... Zahra sabia que era necessário desviar o olhar
imediatamente quando eles fizessem isso, mas às vezes ela não desviava, na
certeza de que a presença do pai no banco da frente impediria os garotos de
começarem a persegui-la.
O FX recuou um pouco, de modo que a janela do motorista se
emparelhou à dela. Nos bancos da frente, os pais estavam ocupados em
discutir o que pedir ao novo açougueiro do mercado de Defence, que lhes
recomendaram experimentar. O motorista abaixou o vidro e franziu os
lábios para Zahra. Os lábios eram vermelhos e carnudos sob o bigode, como
os de Tom Selleck em Magnum. Ele era mais velho que a maioria dos rapazes
que gostavam de dirigir emparelhados a garotas ou de segui-las no trânsito,
mas não velho o suficiente para parecer nojento. Primeiro Zahra olhou para
os pais e depois para o homem. Ela tocou o lugar onde a gola da camiseta
repousava sobre sua clavícula e arrastou os dedos alguns centímetros. A
camiseta ficou esticada, revelando a maior parte do ombro e o branco da alça
do sutiã.
O homem tirou uma das mãos do volante e a deixou cair no colo. Nos
romances, palavras como “furtivamente” se referiam ao que ela entendia que
o homem estava fazendo, mas ele queria que ela soubesse o que estava
acontecendo, seu braço se movimentando como um pistão, os olhos intensos
no rosto dela. De novo, ela olhou para a frente. Os pais ainda estavam
conversando, distraídos. O semáforo deu amarelo. Ela passou o dedo sob a
alça do sutiã e a deslizou para baixo da curvatura do ombro. O homem
articulou a palavra Rundi para ela. O pai acelerou e partiu. O homem,
concentrado em algum outro lugar, foi deixado para trás.
Zahra voltou o sutiã e a camiseta para a posição normal, o coração aos
pulos. Reconheceu de imediato o sentimento de vergonha que se abateu
sobre ela no momento em que o homem a chamou de prostituta, mas sob
aquilo, para além daquilo, romper aquilo era outra coisa, algo grandioso que
movia o formigamento de seus lábios para todo o seu ser interior, mais
profundo do que ela mesma jamais foi. Tinha levado um livro consigo para o
carro, como sempre fazia, e agora o colocava no colo, a mão debaixo do
livro, as pernas ligeiramente entreabertas, os dedos pressionando. Fechou os
olhos, mas virou o rosto, permitindo que o cabelo encobrisse sua expressão.
Se os pais olhassem para trás, tudo que veriam era a mesma Zahra que estava
sentada no carro cinco minutos atrás e isso, a insuspeição deles, fazia parte do
deleite do anoitecer. Ela poderia ser tão desejada quanto qualquer outra
garota, poderia responder ao desejo e ninguém precisava saber. O prazer do
pensamento reverberou em seu ser, a mão pressionando mais firmemente o
próprio corpo.

Domingo à tarde e um homem de porte alto e ereto tocou a campainha.


Foi Zahra quem o atendeu do outro lado da porta de tela trancada com um
“Olá” interrogador. Ele respondeu com um “Salaam-aleikum” incisivo que a
fez recuar e se desculpar com um “Alaikum as-salaam”. A essa altura, seu pai
vinha caminhando pelo corredor e o homem olhou pela tela e gritou:
“Haboo!”, que era um apelido usado apenas pelos velhos amigos de escola.
O pai também gritou com bastante entusiasmo e abraçou o homem quando
Zahra destrancou a porta de tela e o deixou entrar, mas então disse, mais alto
que o necessário: “Da última que o vi, você era coronel. A que posto
chegou agora?”. Zahra entendeu que era um aviso para que ela e a mãe
soubessem o que não deveria ser dito, o que não poderia ser presumido, na
presença daquele homem.
O homem era um general de brigada. A mãe de Zahra tinha um primo
na marinha e o pai tinha um sobrinho na força aérea, mas um general do
exército era algo completamente diferente. “Por que ele está aqui?”,
perguntou Zahra, acompanhando a mãe até a cozinha. Shameema Apa estava
de folga naquela tarde, por isso Zahra arrumou o carrinho de chá enquanto a
mãe punha óleo no karhai para preparar as pakoras.
“Você ouviu o que ele disse”, respondeu a mãe. O homem dissera que
estava passando por ali e pensou por que não devia parar para visitar seu
velho amigo Habib, a quem assistia na TV toda semana, mas pessoalmente
não encontrava havia muito tempo. Mas não dissera como sabia onde o
velho amigo morava, depois de tantos anos sem contato.
“Como você se sente tendo um marido famoso?”, perguntou o general
quando a mãe de Zahra voltou para a sala, seguida por Zahra, que empurrava
o carrinho. “Todo mundo assiste ao programa dele, todo mundo. Você sabe
que até o presidente em pessoa é um admirador.”
“Não sabia disso”, respondeu a mãe de Zahra, e o pai disse: “É mesmo?”.
Os pais de Zahra sorriram e pareceram agradecidos, mas indiferentes; o
pai gesticulou para Zahra passar um prato com algumas pakoras ao general, a
mãe perguntou como ele gostava do chá.
“Bem, você sabe que o general Zia é um grande fã do críquete”, disse o
general, pegando o prato, sem dar sinais de reparar que Zahra estendia o
braço o máximo que podia para não ter de ficar mais perto dele que o
necessário. O pai lhe enviou um olhar de advertência e ela deu mais um
passo. “Foi ele quem convenceu Imran Khan a largar a aposentadoria e levar
o time às Índias Ocidentais. Você sabe disso, não sabe, Haboo?”
“Sim, claro”, disse o pai.
O general deu uma mordida na pakora. “Baita, tem ketchup?”, pediu a
Zahra.
Uma imagem veio à mente de Zahra: o frasco de ketchup vazio na
cozinha que deveria ter sido reposto no início da semana. Ela tinha ido ao
supermercado Delton para comprar algumas coisas enquanto seu pai
comprava legumes e verduras do outro lado da rua, mas quando colocou o
cesto de compras na esteira o caixa lhe falou rispidamente que não deveria
deixar os absorventes por cima de tudo. Essas coisas devem sempre ficar fora
das vistas, ele disse, enquanto embrulhava depressa os absorventes em um
saco de papel pardo que colocou em uma sacola plástica, cujas alças amarrou
com um nó firme que não deixava abertura para ninguém olhar por
curiosidade. Ela saiu desconsertada, esquecendo de pegar a segunda sacola
plástica em que o caixa colocara o resto das compras, e então se sentiu muito
constrangida para explicar aos pais o que havia acontecido e disse que
simplesmente havia esquecido de comprar o ketchup e o suco de laranja
concentrado. Ontem, ela virou o frasco de ketchup vazio de cabeça para
baixo para aproveitar o que havia sobrado e comer com as batatas fritas, e
agora não havia mais nada no frasco e o general ia ter de comer suas pakoras a
seco.
“Tem chutney”, disse a mãe, estendendo uma tigela.
“Bem melhor”, respondeu o general e Zahra sentiu certo alívio no peito
contrito.
“Eu me perguntei”, disse o general, mergulhando a pakora, “eu me
perguntei se de algum modo, Haboo, você era a única pessoa do país que
não sabia que a intervenção do presidente foi o motivo para que Imran
conduzisse o time tão espetacularmente nas Índias Ocidentais — é claro que
teríamos vencido a série se não fossem os árbitros. Estão todos tão furiosos
com aqueles árbitros, até mesmo você outro dia na TV, mas eu digo que eles
são patriotas, não queriam que seus jogadores perdessem para um time
estrangeiro. Eu posso entender. Posso até valorizar isso.”
Zahra estava de pé, o prato de pakoras na mão. A mãe tinha servido o chá
nas xícaras, mas não as estava passando. O sorriso do pai se tornou amplo e
leve.
“Todos nós reconhecemos o papel do presidente”, disse o pai. Houve
uma longa pausa durante a qual o general estendeu a mão e a mãe de Zahra
se desculpou e lhe entregou uma xícara de chá.
“E somos gratos”, disse o pai, com a voz muito baixa.
“Fico satisfeito de ouvir você dizer isso”, disse o general. “Essas pakoras
estão mesmo excelentes e o chutney tem o tanto certo de hortelã. Porque,
sabe, ontem à noite eu estive pensando que, mesmo quando a série estava em
andamento e você costumava falar sobre ela toda semana e então ontem à
noite novamente, você nunca mencionou o general Zia. Como eu disse, ele
é fã do programa, então estaria assistindo. Ele não é um homem que pede
elogios ou agradecimentos, mas, mesmo assim, é um ser humano. Meu
palpite — e só estou dando um palpite aqui — é que ele está um pouco
magoado.”
A mãe de Zahra veio ficar ao lado do marido servindo-lhe uma xícara de
chá. Ele olhou para ela e depois para Zahra antes de se virar para o general
com aquele sorriso de um estranho.
“Na próxima vez que eu mencionar a série, vou me lembrar de dar
crédito a ele.”
“Talvez no episódio da próxima semana”, disse o general. “Algumas
palavras de gratidão em nome da nação.”
“Ah, não adianta tentar fazer meu marido revelar o que vai dizer no
episódio da próxima semana”, disse a mãe de Zahra gentilmente. “Ele trata
isso como um segredo de estado.”
O general riu, uma risada profunda, vinda da barriga. “Ele nunca gostou
de revelar nada, nem na escola. Ele contou sobre aquela vez que pregou uma
peça com a bicicleta do professor? Quantos anos tínhamos? Dez?”
Ele não demorou muito depois disso. Umas piadas, algumas
reminiscências, perguntas corteses sobre a escola da mãe de Zahra e sobre a
educação da própria Zahra. Ele sabia onde Zahra estudava e sabia onde a
mãe era diretora. Quando se levantou para sair, abraçou o pai de Zahra mais
uma vez e disse: “Somos amigos, Haboo, apesar de todos esses anos”.
“Fico muito agradecido por isso”, respondeu o pai de Zahra, e pela
primeira vez ela pensou em outras maneiras pelas quais essa mensagem
poderia ter sido transmitida e lhe ocorreu não odiar aquele homem de costas
eretas, mas querer beijar suas mãos.
O general saiu e a mãe de Zahra trancou a porta de tela e as duas
fechaduras da porta principal. O pai caminhou até a sacada e ficou ali por
um tempo; quando finalmente se virou e acenou para a mãe dela, Zahra
entendeu que o homem tinha ido embora.
“O que vai acontecer?”, perguntou Zahra.
Seus pais se sentaram no sofá, juntos, e o pai deu um tapinha na almofada
a seu lado. Mas Zahra ficou onde estava, erguendo uma perna do chão,
como um flamingo, sem motivo algum, a não ser que o ato de se equilibrar
lhe dava algo em que se concentrar além daquela sensação de
desmoronamento na boca do estômago.
“Você podia falar algo factual”, disse a mãe.
“O sucesso da série não teria sido possível sem o comando de Imran, que,
como todos nós sabemos, largou a aposentadoria a pedido do presidente”,
disse o pai.
“Isso é meio... contundente?”, disse a mãe, pegando as pakoras, nas quais
não havia tocado enquanto o general esteve lá. “Todos nós sabemos. Isso está
dizendo: por que você está me fazendo declarar o óbvio?”
“Eles querem que você agradeça o presidente”, disse Zahra. “Você precisa
agradecê-lo.”
“Não vou agradecer esse homem, jaani. Tenho de ser capaz de olhar nos
olhos de Iqbal.”
Iqbal, amigo e uma vez colega de seu pai, foi um dos jornalistas a fazer
greve de fome para protestar contra a censura à imprensa decretada nos
primeiros anos do regime militar. Junto a outros três jornalistas, ele foi preso
e chicoteado. Dez chicotadas em cada um. Zahra tinha quatro anos na época.
Ela se lembrava de entrar no quarto do pai e vê-lo deitado na cama, olhando
para o teto, uma textura estranha em seu rosto, que acabou se revelando
como lágrimas. Era uma de suas memórias mais antigas, embora só anos
depois é que os pais lhe deram a informação para entender do que se tratava
aquela lembrança.
“Por favor, Aba, por favor”, disse Zahra.
“O que é isso?”, disse o pai, aproximando-se dela, os braços puxando-a
para perto. “O que são essas lágrimas?”
“Eles vão machucar você”, disse ela. Eles amarraram as mãos e os pés de
Iqbal em uma estrutura de madeira e usaram uma correia para manter seu
tronco no lugar.
“Oh-oh”, disse o pai, beijando o cabelo da filha. “Para esse tipo de coisa
eles não fazem esse tipo de coisa. Na pior das hipóteses, vão me banir das
transmissões de rádio e TV, como fizeram com Iqbal Bano por cantar um
poema de Faiz. Tudo bem. Ainda terei a coluna do jornal.”
“Eles terão de mudar o nome do programa ou encontrar outro
especialista em críquete chamado Ali”, disse a mãe.
“É muito mais fácil encontrar outro Ali”, disse o pai.
Estavam tendo uma conversa amena pelo bem de Zahra, mas ela podia
ver o medo neles. Desde que conseguia se lembrar, havia esse sentimento de
ameaça que a perseguia, por toda a parte. Dizer a coisa errada, virar na rua
errada, permitir-se a mais leve transgressão e uma criatura terrível e
desconhecida pularia sobre você, com as garras rasgando a sua carne. E agora
a criatura estava ali, no meio deles, e tinha entrado disfarçada de um velho
amigo só para que entendessem que nada, ninguém, lugar algum era seguro.
Ela agarrou-se ao pai, sentindo a maciez de sua carne e a fragilidade de seus
ossos.
“Vai ficar tudo bem”, ele lhe disse, mais tolo agora do que jamais fora.

Outra quarta-feira e lá estavam Zahra e Maryam deitadas no chão do


quarto de Maryam, onde o mármore era mais frio que qualquer outra
superfície, enquanto transcorria a terceira hora de um corte de energia. Elas
concordaram, minutos antes, que todos os efeitos do ar-condicionado central
tinham se dissipado e que era hora de abrir as janelas para deixar entrar a
brisa que havia, mas nenhuma delas podia suportar o esforço de se levantar.
Maryam estava de bruços olhando a cópia impressa de possíveis novos
logotipos para a Khan Leather que ela havia desenhado usando o MacPaint.
O K e o L maiúsculos, ornamentados e maciços do logotipo atual pareciam
antiquados em vez de clássicos, mas ela suspeitava que o avô não se
convenceria pelas letras minúsculas que propunha como alternativa, com as
hastes do k e do l espelhando-se entre si em volteios idênticos. Zahra estava
usando as costas de Maryam como travesseiro, lendo um artigo de revista
sobre Nelson Mandela, ou fingindo ler, pois fazia um bom tempo que
Maryam não a ouvia virar a página e sua velocidade de leitura habitual era
extremamente rápida.
“Você está chateada comigo?”, disse Maryam por fim. Ela sabia que
Zahra tinha ouvido Hammad dizer ligarei à noite quando eles se cruzaram no
pátio da escola no horário de saída e esperava um interrogatório em seguida.
Mas Zahra não comentou nada. Na verdade, quase não disse nada o dia todo.
“Não”, respondeu Zahra, com uma voz estranha.
“O que é então?”
“Nada”, disse Zahra. E então, após uma pausa: “Assuntos de família”.
“Ah. Ok. Bom, se você tiver vontade de discutir alguma coisa...”
“Eu sei. Obrigada.”
A porta se abriu e o pai de Maryam apareceu. “Tem gelo”, ele disse. “Lá
fora.”
As garotas se desprenderam do chão e seguiram o pai de Maryam até o
jardim, onde um dos guardas estava usando a coronha do seu kalashnikov para
martelar uma placa de gelo em pedaços menores, as lascas brilhando no ar.
Era gelo do bazaar, o que significava que não podia ser consumido, mas
podia ser colocado em grandes bacias plásticas, com a água da mangueira do
jardim correndo por cima.
“Ahhhh”, disseram Maryam e Zahra, sentadas lado a lado na grama, os
pés dividindo uma única bacia de água gelada. Os pais de Maryam estavam
sentados em cadeiras de vime com uma bacia cada um. Os flamboaiãs, com
suas flores vermelho-fogo, ofereciam a sombra essencial. As duas mais novas
da família pegaram uma bacia e caminharam até o outro lado do jardim,
onde poderiam rir juntas de um segredo qualquer que estivessem
compartilhando naqueles dias.
O pai de Maryam tinha trazido um pêssego da casa e o cortara ao meio, o
aroma perfumando o ar. O guarda caminhou de volta para o portão da
garagem, passando a mão na coronha do kalashnikov e espirrando a água fria
no pescoço.
“O que você acha?”, perguntou Maryam, segurando o papel que trouxera
consigo. “Um desenho novo para logotipo.”
O pai se inclinou para a frente. “Isso é para a sua aula de computador?”
“Não, é para a empresa”, disse ela.
O pai fez um ruído, ao mesmo tempo indulgente e desprezível, enquanto
arrancava o caroço enrugado da polpa amarelo-dourada do pêssego.
“Você gosta mesmo de fazer coisas com computadores, não é?”, disse a
mãe de Maryam. “Você acha que pode haver futuro nisso?”
“Se eu acho que há futuro para os computadores?”
“Não, para você fazer coisas com computadores.”
“Na Khan Leather? Sim, claro. Em breve estaremos usando computadores
para tudo.”
“Não. Quero dizer, se você tivesse de imaginar algum outro tipo de
futuro, em outro lugar.”
“Por que eu faria isso?”
“Zahra, você está planejando ir para a universidade no exterior, não é?”,
perguntou o pai de Maryam. “Você acha que pode ficar por lá?”
“Não tenho um negócio de família aqui.” Zahra apertou os dedos da
amiga para dizer que, seja lá o que seus pais estivessem tentando fazer, ela
estava do lado de Maryam.
“Existem tantas oportunidades lá fora”, disse a mãe, vindo sentar-se perto
da filha. Mas, conforme ela se abaixou, a palma de sua mão tocou o solo
úmido onde a água tinha escorrido da bacia e ela acabou pairando
desajeitadamente de cócoras para evitar que suas roupas tocassem o chão.
“Muitas oportunidades e sem alarme de bombas na escola nem guardas no
portão.”
“Vocês não precisam dos guardas. Eles são só um símbolo de status porque
todos os seus amigos têm”, disse Maryam.
“Você sabe quantos dos nossos amigos foram mantidos sob a mira de
armas na própria casa?”, disse a mãe.
O que Maryam sabia era que todas as histórias de assaltos à mão armada
no meio da noite tinham levado Zeno a insistir que suas filhas dormissem
com roupas “recatadas” em vez das camisetas compridas a que estavam
acostumadas e que todos os assaltados saíram ilesos, com histórias cada vez
mais competitivas para contar nas festas das semanas seguintes.
“De qualquer forma, Dada e eu já decidimos”, disse Maryam. “Vou para
a universidade no exterior e depois volto e começo a trabalhar na empresa.”
“Nós somos os seus pais”, disse a mãe, levantando-se. “Mesmo que você
e seu avô pareçam ter se esquecido.”
“Zeno!”, disse o pai em tom de advertência.
A mãe de Maryam ergueu as mãos para o alto. “Até quando isso vai
durar?”, ela disse.
“Já chega”, disse o pai, passando uma fatia de pêssego para a esposa e
oferecendo o prato com outras fatias para a filha e Zahra.
Maryam estendeu a mão para receber a oferta de paz, feliz, porque,
qualquer que fosse o motivo daquela conversa desnecessária, invocar a
autoridade de seu avô a havia encerrado.

Após a conversa inicial que se seguiu à visita do general, os pais de Zahra


se recusaram a discutir o assunto na presença dela. Zahra sabia que o pai
tinha ido visitar os amigos em busca de aconselhamento — amigos de escola
que conheciam o general, amigos jornalistas que passaram anos navegando
pela senda entre consciência e consequência. Tudo que ele dissera a Zahra
foi: “Pare de se preocupar, vai ficar tudo bem”. Se ele estava tão seguro de
que tudo ficaria bem, por que tinha levado a família inteira ao restaurante
favorito, Yuan Tung, em uma noite que Zahra precisava estudar? Por que
tinha insistido tanto para que ela deixasse os trabalhos escolares de lado e
desse uma longa caminhada com ele pelo quebra-mar, durante a qual lhe
contou histórias de sua infância? Por que segurava a mão da esposa enquanto
assistiam aos filmes da locadora à noite?
“O que ele disse?”, Zahra perguntou quando a mãe foi buscá-la na casa
de Maryam, enquanto o pai ainda estava no estúdio de TV gravando o
programa que iria ao ar naquela noite.
“Não sei”, respondeu a mãe. “Hoje de manhã ele ainda não tinha
decidido.”
Era costume Zahra se recolher em seu quarto com o aparelho de som
portátil quando chegava da casa de Maryam, mas naquela tarde sentou-se na
sala de estar para encontrar o pai assim que ele abrisse a porta da frente. A
mãe veio sentar-se com ela no sofá, segurando um maço de baralho nas
mãos. Jogaram Snap várias vezes, abrindo as cartas rapidamente na almofada
entre elas. No meio de uma jogada, Zahra sentiu toda a força ir embora de
seus braços e pernas. Ela baixou as cartas, olhando para o Rei de Paus que a
encarava, uma espada em cada mão, uma cara de indiferença. Por que o que
ia acontecer simplesmente não acontecia? Ela não suportaria mais um dia de
vida normal em que nada era normal. Os atos mais corriqueiros — passar o
saleiro para o pai — de repente podiam parecer carregados de significado. E
se o levassem e Zahra nunca mais passasse um saleiro para ele? E tudo ficou
ainda mais estranho porque os pais disseram que ela não podia contar a
ninguém o que havia acontecido, o que significava que Maryam não sabia e
não podia tornar tudo melhor só por saber.
Zahra pôde ouvir o pai cantando enquanto subia as escadas. “Ah, não”,
disse Zahra. Ele estava cantando “Hum Daikhain Gay”, o poema proibido de
Faiz que Iqbal Bano havia apresentado no Alhambra, em Lahore, dois anos
antes, levando a plateia a um frenesi que culminou em gritos pela revolução.
Uma das cantoras mais amadas do país, ela nunca mais se apresentaria na TV
nem em cerimônias oficiais.
“Esse homem”, disse a mãe de Zahra, balançando a cabeça, mas sorrindo.
O pai entrou e abriu os braços. “Meus amores”, disse ele, todo o peso
dos últimos dias tinha sumido.
“O que você disse?”, falou Zahra se levantando.
“Nada”, respondeu ele, balançando a mão no ar em diagonais como se
fosse um florete. “Nenhuma menção ao presidente, como tem sido o caso a
cada semana, como será o caso a cada semana. Deixe que venham e me
prendam por não dizer nada. Deixe que revelem seu desespero trêmulo.”
“Tudo bem, tudo bem, herói”, disse a mãe. “Ninguém vai prender
ninguém. Pare de assustar sua filha.”
“O que há de errado com vocês dois?”, gritou Zahra e correu para o
quarto.
O pai entrou atrás dela. Ele não estava sendo tolo, tentou explicar. Tinha
conversado com muitas pessoas, seguido bons conselhos. Os governos não
queriam parecer fracos e o que seria, senão fraqueza, prender um homem ou
enxotá-lo da TV por não dizer “obrigado”. Iriam ignorá-lo, isso era tudo
que aconteceria.
“Você está supondo”, disse ela. “Ou tem esperança. E para quê? Não vai
ganhar nada com isso, nem uma única coisa.”
“Era a única coisa que eu podia fazer”, respondeu ele se levantando. “Um
dia você entenderá, espero.”
Ele saiu do quarto e Zahra trancou a porta, girando a chave duas vezes
para ter certeza de que ele ouviu. Tocou Bruce Springsteen o mais alto que
o aparelho de som aguentava antes que os alto-falantes começassem a
assobiar. Começou a dançar, rápida, furiosa, tentando se livrar de tudo,
menos da música. Ainda estava dançando quando o telefone tocou, e ela
baixou o volume. Era o general, ela sabia. Agora eles saberiam; agora as
consequências tinham chegado. É um, é um, é um pecado, cantavam os Pet
Shop Boys.
A mãe gritou para o pai. Zahra saiu correndo do quarto a tempo de
ouvir “Ele está morto! Ele está morto!”, a voz da mãe eufórica. “Alguém
finalmente o matou.”
“O quê?”, disse o pai, e a mãe falou: “O avião dele explodiu”. O pai:
“Um boato?”. A mãe: “Não, está confirmado”.
Não tinham dito o nome dele, mas só havia uma pessoa de quem podiam
estar falando, segurando as mãos um do outro. Zahra disse: “Ele não pode
estar morto”. Os pais se viraram para ela, soltando as mãos e estendendo os
braços em sua direção para que pudessem se abraçar.
“Meu Deus”, disse o pai. “Hoje é o melhor de todos os dias. Obrigado,
Alá, eu creio novamente.”
“Mas o que vai acontecer agora?” Ela não sabia por que os pais não
pareciam assustados. Sem o ditador que governou quase toda a vida dela,
quem podia saber o que aconteceria?
“Agora você vai ver”, disse o pai. “Agora você vai ver o que pode ser este
país.”
A mãe falava palavras inimagináveis: “Eleições. Benazir”.
O pai começou a chorar de um jeito que lhe dizia que todas as lágrimas
que ele chorou quando o Paquistão venceu a Inglaterra eram apenas um
treino para este momento, para esta virada da história para a luz. Zahra
abraçou os pais, não querendo ser a única a lhes dizer que estavam errados.
Nada disso aconteceria, como poderia? Haveria outro ditador e ele poderia
ser pior.
O pai ligou a televisão. A tela estava tomada por uma mensagem dizendo
que a transmissão normal retornaria em breve. Zahra e os pais se levantaram
e olharam para ela, e então o pai abriu uma gaveta do armário, tirou uma
câmera e bateu uma foto.
“Vão transmitir Três Convidados e um Ali?”, perguntou Zahra.
“Duvido, jaani. Podemos ficar olhando para essa tela por um bom
tempo.”
“Graças a Deus”, disse Zahra.
O pai sorriu para ela. “Acho que você pode estar se fixando nos detalhes
errados aqui.”
O telefone tocou outra vez, era Maryam.
“Você ouviu?”
“Sim, nesse minuto.”
Falar sobre isso com Maryam fez parecer verdade. E o acordo tácito de
discutir o assunto ao telefone sem citar nomes fez com que ela soubesse que
Maryam, como ela, entendia que as regras do mundo não haviam mudado, e
provavelmente não mudariam.
“Fico triste pela família dele”, disse Maryam.
“Hummm, sim.” O tom de voz tentando sugerir que também estivera
pensando nisso.
“Espero que as coisas não fiquem instáveis demais.”
“É isso que seus pais estão dizendo?”
“Meu pai e meu avô. Minha mãe... ela está pensando na amiga de escola.
Mas ninguém realmente acredita que isso vai acontecer.”
A mãe de Maryam conheceu Benazir Bhutto na escola, mas Zahra nunca
tinha ouvido o termo “amiga” aplicado a ela antes.
“Meu pai está chateado porque pode ter de cancelar a festa de quarenta
anos.”
“Isso é ruim. Mas pelo menos não terão de receber o senhor das drogas
em casa.”
O pai de Zahra abriu a porta de vidro que dava para a varanda e o som
que veio de súbito era uma música de casamento tocando ruidosamente pelo
alto-falante do carro — não, dois alto-falantes, três, a sincronização
ligeiramente fora. O pai bateu palmas e estalou os dedos, a mãe respondeu na
mesma moeda, e assim eles ficaram dançando, rindo juntos.
“Que barulho é esse?”, perguntou Maryam.
“Não é barulho. É música.”

Não havia como contar as centenas de milhares de pessoas nas ruas de


Islamabad no dia em que o presidente foi enterrado. Homens, todos eles
vestidos de branco, surgiram na tela da televisão seguindo na direção do
edifício de mármore branco da mesquita Shah Faisal. O calor tremulava na
tela, fazendo tudo parecer ilusório. E talvez fosse. Qual realidade
correspondia a todos esses enlutados, ou ao locutor, cujo discurso exaltado
prosseguiu até que ele começou a chorar, convencido pela própria dor,
mesmo que ninguém mais estivesse? Em Karachi, as tropas estavam em alerta
máximo, mas isso era apenas uma forma de propaganda ou talvez uma
demonstração de respeito das forças armadas pelo comandante-chefe, com o
pretexto de que havia uma possibilidade de a cidade ficar agitada por uma
dor que se transformaria em violência.
“Diga o que disser sobre o homem, e eu já disse o suficiente ao longo dos
anos, mas você tem que dar a ele o que lhe é devido”, falou o avô,
descascando um amendoim com uma mão enquanto segurava o telefone no
ouvido com a outra. Ele tinha mandado que Maryam e seus pais fossem
assistir ao funeral com ele, mas, quando a cobertura entrou na segunda hora
com o corpo ainda longe do local do enterro, ele voltou a atenção para os
telefonemas com amigos, enquanto o pai de Maryam continuava nas palavras
cruzadas do jornal da tarde. A mãe já saíra da sala havia muito tempo e
provavelmente estava conversando com uma das amigas na segunda linha
telefônica.
Todos os líderes do chamado mundo livre tinham vindo pessoalmente ou
enviado emissários para o funeral do ditador que desempenhou um papel
fundamental na expulsão dos soviéticos do Afeganistão. “Ele colocou este
país no mapa geopolítico”, o avô estava dizendo agora, enquanto o locutor
identificava George Schulz, dos Estados Unidos, e Geoffrey Howe, da Grã-
Bretanha, entre os dignitários no funeral. “As pessoas estão ficando muito
animadas com toda essa democracia. O poder respeita o poder, seja ele vindo
das urnas ou das balas.”
Maryam se levantou e saiu do escritório, entediada com tudo aquilo. A
casa do avô em Bath Island era uma estrutura de dois andares da década de
1930, com paredes de pedra, tetos altos e piso de ladrilhos preto e branco
feitos à mão; quando a avó era viva, a casa era famosa pela frequência e
glamour de suas festas. “Convidada ou não, a pessoa sempre era bem-vinda”,
disse certa vez uma das amigas da avó. Agora as festas tinham sido reduzidas a
duas por ano: o aniversário da avó, embora ela estivesse morta há quase uma
década, e a véspera de Ano Novo. O aniversário da avó era quando o avô
convidava as pessoas de quem gostava; a festa de Ano-Novo era muito maior
e tinha convidados que eram “úteis de conhecer”. Quando vir a chance de
aumentar sua proximidade com o poder, aproveite-a, o avô disse a Maryam e
acenou com a mão em sinal de desprezo quando ela perguntou se não era
melhor ser o poder do que ter a proximidade.
No jardim, ela assobiou para Dash, o pastor alemão do avô, que veio
correndo em sua direção, quase a derrubando de alegria. Brincaram juntos
por um tempo, com Maryam jogando um objeto para Dash pegar, e então
ele a seguiu até o quarto em que o pai havia crescido, muito maior que os
quartos das duas irmãs mais velhas. Ela afundou no pufe bean-bag, a cabeça de
Dash apoiada em seus pés, e começou a ler a pilha de quadrinhos da Archie
que ela guardava ali para esses intervalos de tempo tediosos. Ela ouviu
alguém chamando Abu Bakr, imaginando do que se tratava, mas apenas
vagamente.
Por fim, Shah Nawaz, o criado de seu avô, veio dizer que ela estava sendo
chamada no escritório. Com tristeza, despediu-se de Dash — banido do
escritório desde que seu exuberante abanar de cauda derrubou dois vasos da
coleção Gardener do avô — e voltou à presença dos adultos.
Quando entrou no escritório, ficou claro que estavam esperando por ela.
“Feche a porta, não precisamos que os criados ouçam isso”, disse o avô.
Alguém — ele não disse quem — vira Maryam dirigindo a Mercedes em
Shahrah-e-Faisal.
“Muitas garotas da minha idade dirigem”, disse ela. “O irmão de Saba
nos leva para casa depois das festas e dos jogos da escola desde que ele tinha
quatorze anos e ninguém nunca se importou.” Ela gesticulou para os pais.
“Eles sabem.”
“Sim, nós sabemos”, disse a mãe de Maryam. “E os pais dele sabem. Mas
você anda às escondidas por aí e fazendo Abu Bakr lhe dar cobertura.”
“Não é culpa dele”, disse ela.
“Não, a culpa é sua”, disse o avô. “Mas foi Abu Bakr que perdeu o
emprego por causa disso.”
“Não pode mandá-lo embora.”
“Você acha que alguém queria isso?”, disse o pai, zangado, como
raramente ficava. “Mas que escolha você nos deixou? Todos os empregados
deviam achar que podem ser perdoados por ajudar nossos filhos a quebrar as
nossas regras?”
“E infringir a lei”, disse a mãe, com tão pouca convicção que ninguém
teve de responder.
“Shahrah-e-Faisal”, falou seu avô. “Foi burrice. Você achou que não
seria vista por alguém que nos conhece? É a única Mercedes desse modelo
em toda Karachi.”
“Só costumo dirigir quando está mais perto do escritório”, disse ela,
magoada pela acusação de burrice. “Dada, por favor, não mande Abu Bakr
embora.”
“Você é muito mimada”, disse ele, com o nariz se enrugando como se ela
fosse uma fruta podre posta na frente dele. “Quero que seja destemida, mas
não como uma garota qualquer, boba e fútil. Só que, em vez disso, você está
ficando mimada e imprudente.”
O gesto de espanto da mãe de Maryam foi uma surpresa, mas constataram
que não era em resposta às acusações feitas contra a filha. Na tela da TV, algo
envolto em verde estava sendo baixado ao chão. O avô aumentou o volume.
“Meu Deus”, disse a mãe. “Meu Deus. Ele está morto mesmo.”
A vergonha de Maryam foi empurrada para um canto minúsculo do
mundo. Um homem que tinha feito o país se curvar à sua vontade estava
sendo enterrado, e até o avô se inclinou para a frente na cadeira como se
quisesse ficar mais perto de um evento que parecia tão irreal quanto qualquer
coisa que já tinham visto na televisão, incluindo vulcanos e klingons.
Maryam correu para fora, chamando Abu Bakr, mas ele não estava lá com
os motoristas, a cozinheira e o criado, sentados em volta de um rádio,
ouvindo o som das pás.
“Ele se foi”, disse Shah Nawaz, olhando para cima.
“O general Zia se foi”, disse a cozinheira, e todos riram e voltaram a
atenção para o rádio.
Dash roçou as pernas dela, sentindo sua inquietação, e ela se agachou e
pousou a cabeça no pescoço quente do animal. Ela reconheceu, mas não
podia mudar, o espanto de estar menos chateada com o destino de Abu Bakr
do que com o tom de desgosto na voz do avô quando disse que ela havia
deixado de ser excepcional.

Todas as locadoras de vídeo em Clifton e Defence ofereciam a mesma


combinação de filmes indianos, filmes de Hollywood e programas de TV
americanos, mas mesmo assim transferir a lealdade de uma para a outra era
um assunto sério, não experimentado sem motivo. Maryam frequentou a
Star Vídeo por anos, mas na semana passada, quando pediu Sorte no amor, o
mesmo homem que alugou todos os filmes que ela desejou sem fazer
comentários durante anos disse que não era apropriado, havia muitas partes
“sujas”; embora ela tivesse ignorado o conselho, esse foi o fim do
relacionamento. Zahra falou que ela deveria ir à Crystal Palace, Saba falou
que a Everest era a melhor opção e Babar falou que a Vídeo Tech era
imbatível.
Agora ela estava na Ocean Vídeo, em Boat Basin, olhando de cima a
baixo as altas prateleiras como se pudesse se interessar por algum vídeo,
mesmo sabendo que todas as locadoras guardavam os lançamentos mais
recentes debaixo do balcão para os clientes prediletos e ela não tinha
nenhuma intenção de se contentar com nada menos que A montanha dos
gorilas, que acabara de chegar a Karachi em cópia original depois de várias
semanas sem outra opção além da versão tremida com pessoas falando ao
fundo. Ela ouviu a porta se abrir e alguém entrou cantando “Telephone
Pyar”, de Nazia e Zohaib. Ele caminhou até a prateleira dos vídeos e parou
perto o suficiente para que pudessem conversar aos sussurros, mas não tão
perto para que quem entrasse pensasse que estavam juntos.
“Nosso primeiro encontro”, disse Hammad.
Ela deu uma olhada nele. Nunca o vira sem o uniforme da escola. Jeans
azul, uma camiseta polo branca e uma corrente de ouro ao estilo de Andre
Agassi. Ela sabia que o único jogo que ele estava praticando eram os video
games em Sagar, onde passava todas as tardes com os amigos que não eram da
escola antes de voltar para casa e telefonar para ela. As ligações eram
entediantes; a participação dele na conversa consistia em grande parte em
“Que mais? Me conte outra coisa”, mas ele tinha boa aparência e era mais
velho, e, embora só parecesse ridículo quando baixava a voz para sussurrar
coisas como “Quero tocar seus seios”, ela estava curiosa para saber se iria
gostar quando isso de fato acontecesse ou se iria gostar de alguma das outras
coisas que ele disse que queria. Porém, como seria capaz de descobrir, ela
não sabia. Os guardas ao pé do portão significavam que ela não poderia
escapar de casa sem ser vista e entrar no carro dele na hora marcada, e Zahra
se tornaria puritana e desaprovaria se ela sugerisse usar seu apartamento
como ponto de encontro. Então, ela teve de se contentar em seguir as
instruções dele sobre qual locadora o novo motorista deveria levá-la e a que
horas, de modo que ele pudesse vir de Sagar para encontrá-la.
Ele pôs uma fita cassete da Offbeat na prateleira das séries americanas —
Dinastia, Dallas, Falcon Crest. “Fiz esta para você”, disse ele. Ela pegou a fita e
olhou a lista de músicas datilografada, visível através do invólucro. “Get
Outta My Dreams Get Into My Car” era a primeira música do lado A.
“Obrigada. Você pode dizer a ele que eu quero A montanha dos gorilas em
cópia original?” Ela indicou o homem atrás do balcão, o qual ela sentia que a
observava.
“Chefe!”, disse Hammad, afastando-se da prateleira e caminhando até o
balcão. Ela gostava mais dele agora enquanto estava falando com autoridade,
dizendo ao atendente para mostrar a ela todos os filmes mais recentes, mas
apenas as cópias originais, e então ficou irritada pela forma como ele estava
de pé — pernas afastadas, mãos na cintura, peito estufado — uma postura
que lhe era permitida por ser um garoto, mas que ela não podia imitar em
nenhum lugar, nem no campo de críquete.
O atendente se inclinou para pegar uma pilha de videocassetes embaixo
do balcão e disse que o limite costumava ser um vídeo por dia do estoque
cobiçado, mas que ela podia levar dois. Maryam levou A montanha dos gorilas
e Três mulheres, três amores. Hammad perguntou se havia algo novo no WWF
para ele. Ele lhe contara numa noite ao telefone que aquele era um código
para filmes pornôs.
“Preciso ir”, disse ela. “O motorista virá me procurar se eu demorar
mais.”
E assim terminou o primeiro encontro de Maryam.
Inverno
NO COMEÇO, A ESPERANÇA se aproximou titubeante, ora tangível, ora uma
miragem. Haveria eleições democráticas partidárias genuínas; não haveria;
haveria, sim. As eleições seriam marcadas de forma a garantir que a grávida
Benazir Bhutto estivesse dando à luz, impedida de fazer campanha; não,
Benazir passou a perna neles usando roupas largas, que tornavam impossível
determinar se ela estava no segundo ou no terceiro trimestre, e depois teve
seu bebê em setembro, bem a tempo de participar ativamente das eleições de
novembro. Haveria uma violência orquestrada que exigiria a ação dos
militares pelo bem público; não, em vez disso houve uma festa gigantesca,
transformando Karachi em uma cidade de esperança galopante e vida
noturna frenética.
O frenesi começava no fim da tarde, ao longo do quebra-mar em frente
ao apartamento de Zahra, e continuava até as primeiras horas da manhã. A
trilha sonora era composta de canções eleitorais, buzinas de carros e vozes —
aprendendo o próprio poder pela primeira vez — gritando: “Jeeay, Bhutto”,
“Jeeay, Altaf ”. Naquele momento, não parecia importar tanto qual partido as
pessoas apoiavam. Zahra e Maryam foram apanhadas em dois comícios
públicos enquanto estavam no carro com o pai de Zahra — um do PPP, de
Benazir, outro do MQM, de Altaf Hussain — e nas duas vezes foram
arrastadas pela música e pelo júbilo de tudo aquilo, segurando bandeiras
partidárias que jovens radiantes em motocicletas lhes entregavam pelos vidros
abaixados do carro, cantando juntas a música de campanha e gritando os
slogans como se nunca tivessem acreditado em algo de modo mais profundo e
inabalável. E o pai de Zahra, que em qualquer outra circunstância teria
lançado um olhar de advertência aos jovens de motocicletas que se
aproximavam das adolescentes, acrescentou o próprio grito: “Pakistan
Zindabad”, que foi encampado pelos garotos radiantes e correu pelos
comícios.
Nas festas, a supremacia de Madonna em atrair as pessoas para a pista de
dança foi substituída por Shabana Noshi, a cantora de uma parte de Karachi
que nem Zahra, nem Maryam, nem nenhum dos amigos delas jamais se
aventuraram a ir, que cantava a alegre e cativante música de campanha de
Benazir: “Dila Teer Bija”. Em uma dessas festas, ouviram um jovem inglês
dizendo: “Não consigo imaginar os adolescentes de Londres enlouquecendo
ao som de uma música ‘Vida longa a Maggie Thatcher'” e isso confirmou o
que todos já sabiam: onde quer que fosse, era uma pena não estar no
Paquistão no inverno de 1988.
Na noite de novembro em que todos esperavam pelos resultados das
eleições que diriam se estavam vivendo inteiramente em um estado de
sonho, Maryam fora dormir na casa de Zahra. A casa de Maryam, escondida
em uma rua tranquila, não podia ouvir as emoções da cidade como o
apartamento de Zahra à beira-mar. Além disso, uma vez que se mostrou
infrutífera a tentativa de sua mãe de reacender uma amizade de escola que
nunca existiu com Benazir, o entusiasmo pela democracia tinha diminuído
na casa de Maryam para todos, exceto para a própria Maryam, que via em
Benazir um ídolo pelo qual nunca soube que estivera esperando. Até suas
irmãs mais novas, de oito e dez anos, tendiam a dizer coisas como: “Como
essa moça espera governar?”, que ouviram do pai. Maryam entendia que a
palavra “moça” não tinha nada a ver com a idade de Benazir, que, com trinta
e cinco, era apenas cinco anos mais nova que seu pai.
“É isso que você vai dizer quando chegar a hora de eu assumir a
empresa?”, disse Maryam, e o pai abriu os braços de uma forma que dizia
que a situação estava longe de ser a ideal. O avô, que entrava naquele
momento, disse: “Você não é uma moça, você é uma força da natureza”, o
que era tanto um elogio quanto uma repreensão pela estupidez de dirigir
onde seria pega, que ele estava demorando para perdoar completamente. Seu
avô tinha pouco tempo para a democracia, o que colocava muitas variáveis
em jogo, mas tinha certeza de que as pessoas para quem Billoo, o
“telefonema”, trabalhava desempenhariam um papel significativo na nova
estrutura democrática e se mostraria ainda mais valioso ter Billoo na folha de
pagamento não oficial.
Quando começou a cobertura sem intervalos da noite da eleição,
Maryam e Zahra estavam juntas na sala de Zahra, com as pernas dobradas na
altura do peito, segurando os joelhos uma da outra. Os pais de Zahra estavam
do outro lado do andar, vendo as notícias com os vizinhos, de modo que as
duas amigas tinham o apartamento só para elas. Prepararam um cartão de
pontuação eleitoral com um esquema complicado de codificação por cores;
jogaram Snap nos trechos monótonos da cobertura; cantaram “Dila Teer
Bija” quando foi anunciada a primeira vitória do PPP.
Quando a noite se estendeu, passando do ponto em que cartas ou sorvete
poderiam mantê-las em ação, elas se revezaram para dormir e acordar no sofá
diante da TV, de modo que não houvesse um momento da história que pelo
menos uma delas não testemunhasse. De madrugada, os pais de Zahra
voltaram para casa e disseram que os resultados eram claros e que era hora de
todos dormirem. Maryam e Zahra disseram que não, havia algo importante
pelo qual ainda precisavam ficar acordadas. Os adultos, sorridentes e
indulgentes de um jeito que era novo, não discutiram. Ao amanhecer, as duas
garotas saíram na varanda para ver o sol nascer em um Paquistão democrático
que em breve teria Benazir como sua primeira-ministra.
“Como você pode pensar em morar em outro lugar?”, disse Maryam. “É
a este lugar que pertencemos.”
O mundo tinha novos modelos agora, tornando irrelevantes os de alguns
meses atrás: agora havia a própria Benazir, Shabana Noshi e todos que
enfrentaram gás lacrimogêneo, cassetetes, sentenças de prisão e exílio por
causa de um futuro democrático que Zahra não acreditava ser possível. Era a
eles que este dia pertencia de fato, aos que não tinham desistido quando o
mundo lhes disse que lutavam uma batalha perdida, quando suas filhas lhes
disseram que não havia nada a ganhar com a coragem. Da próxima vez,
prometeu a si mesma, ela estaria entre eles.

*
Maryam sabia que não era culpa do novo motorista não ser Abu Bakr,
mas mesmo assim se referia a ele apenas como “Motorista” para que seus pais
e avô soubessem que ela não os havia perdoado por tratar como substituível
alguém que tinha sido tão leal a ela. Ninguém notou — todos os vários
motoristas da Khan Leather eram conhecidos simplesmente como
“Motorista” —, mas quando reparou nisso, ela se sentiu estranha em mudar
para o primeiro nome dele, caso ele imaginasse o que havia causado tal
familiaridade.
O Motorista a levava para a Khan Leather naquele sábado, duas semanas
após as eleições, quando a euforia já havia começado a ser temperada por
questões que envolviam acordos da divisão de poder que seriam elaborados e
o que isso poderia significar para a população fraturada de Karachi. Em
outubro, houve sangue, uma violência retaliatória por um massacre em
Hyderabad em torno de etnias. O toque de recolher fora baixado, o exército
foi chamado às ruas. Seu avô lhe disse que a democracia só pioraria esse tipo
de coisa conforme os partidos políticos formados em torno de etnias
tentassem reafirmar seu poder nas ruas — ela ficou grata quando ele disse
isso porque falar com ela sobre como o mundo funcionava era sua maneira
de dizer que ela estava sendo restaurada como sua preferida. E naquele
sábado outro sinal de restauração: quando o Motorista passou pelos portões
da frente, o guarda parou o carro para dizer que o avô queria que ela
conhecesse alguém e pedia que ela fosse direto à sua sala em vez de ir ao
campo de críquete.
Ela subiu as escadas, olhando para o próprio peito mais de uma vez, grata
pelo item que a mãe havia deixado em sua cama logo depois do comentário
que o avô fez sobre o sári branco na chuva, embora ainda não soubesse
quem dentre a rede de contatos da mãe tinha falado sobre esse milagre
chamado sutiã esportivo. Não era exatamente confortável, mas permitia que
ela corresse e suasse no campo de críquete sem obrigar os homens a manter
os olhos fixos no rosto ou nos pés dela.
Quando entrou na sala, Billoo de nariz quebrado estava lá. Ele se
levantou, colocou a mão sobre o coração e inclinou a cabeça ligeiramente.
“Eu estava dizendo ao nosso convidado que você vai tocar a empresa
depois que eu partir”, disse o avô. Ele nunca dissera isso a ninguém além da
própria Maryam. Ela não estava preparada para o quanto a consagração
pública seria significativa, como isso endireitaria a sua coluna, empurraria os
ombros para trás, permitiria que uma sensação se instalasse nela, sensação à
qual ela não podia dar nome, mas conseguia visualizar muito claramente —
um manto de couro forrado de seda, pesado e bonito. “E ele estava prestes a
me fazer uma pergunta sobre isso quando você entrou.”
Billoo abriu os braços filosoficamente. “Garotas no controle é a nova
moda”, disse ele, e ela entendeu que a pergunta que ele agora decidiu não
fazer dizia respeito ao pai dela.
“Você conheceu meu filho”, foi tudo que o avô disse, ou precisou dizer.
Nunca havia ficado claro para Maryam que conversa seu avô teve com o
filho sobre a coisa toda, talvez nenhuma. Toff sabia, todos sabiam, que
Maryam viria trabalhar na Khan Leather depois da universidade e, quando o
avô morresse, ela estaria pronta para ocupar seu lugar e nada mudaria no
papel ornamental de Toff. Ela não se importava muito com títulos. Seu pai
poderia ter um que suplantasse o dela; ela não desejava envergonhá-lo.
Billoo desviou os olhos do avô para ela e depois para o avô novamente.
“Ela vai ficar?”
“Nós dois ficaremos aqui”, disse o avô, gesticulando por algum motivo
para uma das janelas da sala.
Não havia lugar para dúvidas na surpresa de Billoo, mas ele apenas
perguntou: “Devo sair agora?”, e o avô respondeu que sim.
Quando ele saiu, seu avô pediu que ela se sentasse na cadeira que Billoo
havia desocupado, a ampla mesa de jacarandá entre eles. Ela sentou e
rapidamente se levantou outra vez, assim que sentiu o calor do traseiro de
Billoo no assento. O avô riu e se levantou também, caminhando até a janela
que havia indicado antes e pedindo que ela se juntasse a ele.
“O que estamos olhando?”, ela perguntou. O jardim que seu bisavô havia
plantado nos meses logo após a Partição havia se espalhado abaixo deles,
árvores robustas que produziam frutos e sombras entrecortadas por um
caminho ladeado de vasos de flores que mudavam com as estações. A
chegada do inverno trazia consigo a falta de opções, de modo que os vasos
exibiam apenas marias-sem-vergonha em tons rosáceos escuros e claros,
pervincas, como seu pai insistia em chamá-las, com a mesma arrogância que
o fazia referir-se às especiarias por seus nomes ingleses. Até a polidez
impecável de Zahra em relação aos pais de Maryam se quebrou no dia em
que ela ouviu Toff falar de methi como fenugreek.
“Você sabia que alguém andou roubando o estoque do armazém?”, disse
o avô, esfregando o lenço na vidraça suja, embora devesse saber que o
acúmulo de sujeira estava do lado de fora; sua sala por dentro estava
brilhando todas as manhãs antes de ele chegar. “Seu pai mencionou isso?”
“Alguém que trabalha aqui?”
Ele aquiesceu com a cabeça, parecendo tão sério como ela nunca o vira.
“Sabemos quem é. Então, se você estivesse tocando a empresa, o que faria a
respeito?”
“A polícia não”, ela respondeu automaticamente. Houve um roubo na
casa de Saba certa vez, um crime interno, e seus pais deram o passo raro de
chamar a polícia. Eles prenderam todos os criados e algumas horas depois
disseram aos pais de Saba que tinham certeza de que a aia que havia criado
Saba era inocente, porque puseram camundongos dentro de seu salwar, várias
vezes, e embora ela tenha desmaiado em algum momento, quando a
reanimaram, e o fizeram de novo, ela ainda jurou que não sabia nada sobre o
crime. A aia voltou ao trabalho no dia seguinte e ninguém nunca mencionou
a prisão ou os camundongos em sua presença. Saba havia contado tudo isso a
Maryam, com um tom de escândalo penetrando em sua voz quando
sussurrou que as pessoas “daquela classe” não usavam roupas íntimas.
Maryam ainda não conseguia olhar para a aia sem imaginar roedores
frenéticos descendo pelas coxas dela, subindo pelas coxas dela, atraídos pelo
calor e pelo cheiro.
“Esse é o primeiro passo correto”, disse ele, seu elogio sutil era mais
significativo que qualquer coisa que qualquer outra pessoa pudesse dizer a
ela.
“Fazer com que devolva o estoque ou o dinheiro que ganhou por isso?”,
disse Maryam.
O avô franziu a testa. “Ele vai dizer que o dinheiro foi para o dote da
irmã ou para pagar a conta do médico da mãe ou para cobrir o custo de um
telhado que estava ruindo.”
“Não é possível que seja verdade?”
“Os homens sabem que podem me procurar quando houver uma
necessidade real. Coloquei crianças em universidades, reconstruí casas
desmoronadas, paguei tantas despesas médicas que poderia ter usado o
dinheiro para construir um hospital nestas dependências. Fazemos o que
podemos, e o que é certo, por aqueles que são da nossa responsabilidade. No
entanto, sem dotes. Prática incivilizada. Assim, sem polícia, sem reembolso. E
então?”
Ela passou a língua ao redor da boca, pensando. “Demiti-lo?”
“Bem, demiti-lo, é claro. E só? É essa a mensagem que você está
enviando para o resto dos trabalhadores? Roube-nos e tudo o que você
arrisca é seu emprego no futuro?”
“Então...” Houve algum tipo de comoção no andar de baixo, gritos
vindos da direção do armazém. “Então, chamar a polícia depois de tudo?”
“Não se pode confiar que eles respondam com a proporcionalidade
devida.” Os gritos se tornaram uma única voz chamando, chamando por seu
avô, lhe pedindo perdão. Ele suspirou. “Não é nada terrível que você não
consiga pensar na resposta correta.”
Billoo percorria o caminho, um bastão de críquete na mão, a pá apoiada
vistosamente no ombro. Atrás dele, Kashif e Lamboo arrastavam um homem
— graças a Deus, graças a Deus não era um dos seus jogadores de críquete
— que estava de costas, berrando. Havia uma mancha úmida em seu salwar,
perto da virilha, estendendo-se como um riacho pela perna direita. Um
grupo de trabalhadores do armazém os acompanhava, em silêncio. Do outro
lado, artesãos da oficina seguiam pelo caminho. Kashif olhou para a janela
acima e ela recuou.
“Eu preciso assistir a isso?”
O avô pôs a palma da mão em cima da cabeça dela. “Não. Vá para a sala
do seu pai. Você não vai ouvir nada lá.”
Ela foi direto até o banheiro anexo à sala do pai e vomitou.
Quando o avô veio encontrá-la, poucos minutos depois, ela estava
sentada na cadeira da escrivaninha, rabiscando personagens de desenhos
animados — Snoopy, Garfield, o Mágico de Id. O rádio estava tocando
Noor Jehan por causa dos sons que vinham de fora. Ele abriu os braços, um
gesto raro, e ela correu para eles.
“Desculpe”, disse ela.
Os braços do avô a enlaçaram. “Nunca se deve ficar à vontade ao ver isso.
Estou feliz que você não quis assistir.”
Quando ela se afastou do abraço, ele a segurou pelos ombros. “Billoo
sabe como infligir dor sem causar danos permanentes. A polícia não seria tão
cuidadosa. Não quero privar uma família de seu ganha-pão. Você entende?”
Ela fez que sim com a cabeça.
“Você pode me perguntar qualquer coisa”, disse ele.
“Meu pai sabe?”
“Ele não tenta impedir, mas não quer estar aqui quando acontece. Esse é
o seu pai, e a maior parte do mundo é assim. A justiça não é gentil, mas é
necessária. Também foi por isso que Abu Bakr teve que ir embora, era
necessário para você aprender que não pode escapar impune de certos
comportamentos. Você vê isso?”
Mais uma vez ela concordou. Ele a beijou na testa.
“Minha intenção é que haja muito tempo antes de você ter de assumir
esse tipo de responsabilidade.”
Quem sabe a polícia seja diferente até lá, ela quase disse, mas sabia que o
decepcionaria com a recusa de olhar o mundo nos olhos. Em vez disso, disse:
“Acho que vou pular o críquete hoje.”
“Claro”, disse ele. “Por que você não me ajuda com a decisão que estou
tentando tomar sobre um produto? Tantas pessoas têm cidadania estrangeira
hoje em dia, precisamos de um porta-passaporte que caiba dois ao mesmo
tempo. Selecionei dois projetos que são os meus favoritos e o que você
escolher entrará na nossa coleção de primavera.”
Ela sorriu, embora isso parecesse impossível poucos segundos atrás.
Enquanto caminhava com o avô até a sala dele, quase pôde ouvir o farfalhar
e o ranger do próprio manto de couro e seda.
*

Novembro chegou ao fim. Por um lado, a iminência da posse de Benazir


tornava tudo extraordinário; por outro, nada em relação a ter quatorze anos
ficava mais fácil por causa disso. Zahra havia passado a noite anterior
andando de um lado para o outro da sala de estar com um sári para garantir
que conseguiria lidar com a roupa de adulta sem tropeçar na bainha ou
parecer uma criança experimentando as roupas da mãe. Sua primeira saída
era naquela noite, um casamento no jardim ladeado de palmeiras do hotel
Beach Luxury, em que ela acompanhava o pai no lugar de sua mãe, que
precisava comparecer a um evento na escola. Dificilmente encontraria
alguém da escola — era um dos colegas de jornal do pai que estava se
casando —, então, mesmo que parecesse menos confiante do que deveria,
não haveria ninguém que importasse para presenciar isso.
Ou assim Zahra pensava, caminhando ao lado do pai. Ela ficou tão
ressentida por ter de vir que esqueceu que, embora pudesse pensar no colega
do pai apenas como mais um tio tagarela, ele também era um jornalista que
havia testado os limites da censura à imprensa ao longo de todos os anos de
ditadura, ganhando prêmios internacionais por coragem nesse tempo. E
então Zahra deveria saber que dentre as centenas de convidados do
casamento haveria políticos que passaram os anos de ditadura no exílio,
correspondentes estrangeiros que usaram o “tio” como fonte para arquivar
relatórios que diziam coisas que ninguém no Paquistão poderia dizer e
defensores dos direitos humanos, como um advogado pequeníssimo com o
coração de um leão e a presença de um Colossus.
Zahra pegou o pai pelo braço e apontou para Fehmida Dawood. A risada
da mulher atravessou o jardim, sua mundanidade lembrando a Zahra que,
quando certa vez perguntara ao pai sobre seus encontros com essa
personificação da justiça — uma ardorosa fã do críquete que usava os
privilégios da fama para se sentar no setor de imprensa durante as partidas de
teste e fofocar sobre os jogadores —, ele respondera inesperadamente: “Ela
conta as piadas mais obscenas; não posso repeti-las”.
“Você quer conhecê-la?”, disse o pai agora, e ela fez que sim, tímida de
repente.
“Venha”, disse ele, atravessando o jardim, passando por árvores decoradas
com luzes de Natal e garçons carregando garrafas geladas de Coca-Cola e
Mirinda para os convidados que estavam de pé, mulheres conversando com
mulheres, homens conversando com homens — ninguém muito interessado
no palco no extremo do jardim, onde os noivos posavam para uma sessão
interminável de fotos com amigos, familiares e pessoas importantes, que
tiveram de ser chamadas para se juntar a eles, de modo que soubessem que
sua presença era devidamente valorizada para ser imortalizada no álbum de
casamento.
Conforme se aproximaram de Fehmida Dawood, Zahra imaginou como
seu pai iria romper a legião de admiradores, homens e mulheres, que a
cercava, mas para sua surpresa foi a advogada que ergueu a mão e o chamou
com uma expressão de ofensa carinhosa.
“Outro crente verdadeiro”, ela chamou, enquanto ele se aproximava.
“Ouvi dizer que você feriu os sentimentos do general Zia nos últimos dias
de vida dele, Habib. Devia ser uma prioridade o governo de Benazir Bhutto
lhe dar uma medalha por isso. E quem você trouxe?”
Zahra mal teve tempo de entender o brilho de ser a filha de seus pais, a
filha de um herói, antes que seu pai a empurrasse levemente pelo ombro,
encorajando-a a seguir em frente. “Esta é minha filha, Zahra.”
“Zahra. Como é ter a sua idade e ver o mundo mudar?”
Zahra sentiu que poderia desmaiar ou vomitar. Mas Fehmida Dawood
estava olhando para ela, assim como todas as outras pessoas, como se de fato
se importassem com o que ela tinha a dizer e não estivessem sendo apenas
educadas por causa do pai. De repente, se deu conta de que os sapatos de
salto-gatinha eram desconfortáveis, com todo o peso recaindo nas pontas dos
pés, e isso era tão perturbador que ela não conseguia pensar em mais nada a
não ser em aliviar aquela dor. Ela mudou de posição, mas os saltos dos
sapatos afundaram na grama, desequilibrando-a, e quando abriu os braços
por instinto o sári escorregou de seu ombro.
Como se fosse a coisa mais natural do mundo, Fehmida Dawood pegou a
mão dela e a segurou, e com a outra colocou o sári de volta sobre o ombro.
“Eu realmente quero saber como lhe parece”, disse a advogada, ainda
segurando sua mão.
“É incrível”, disse Zahra. Ela tinha consciência de que estava sendo
segurada por uma grandeza e deveria dizer algo que a diferenciasse de uma
adolescente boba qualquer. “E parece que mais coisas são possíveis no
mundo do que as que eu acreditava.” Isso soou errado. Pareceu a rainha de
Alice no País das Maravilhas dizendo: “Às vezes, eu acredito em seis coisas
impossíveis antes do café da manhã”.
Mas Fehmida Dawood deu um passo atrás e sorriu para ela, um sorriso
caloroso e radiante, como se Zahra tivesse resumido tudo o que havia de
maravilhoso no mundo. “Não é uma coisa extraordinária para aprender?
Lembre-se sempre disso. Quantos anos você tem? Dezesseis?”
“Quatorze”, respondeu Zahra.
“Um sári e uma resposta inteligente aos quatorze anos. Meu Deus. O que
você vai ser quando crescer? Uma jornalista como seu pai?”
“Não. Uma advogada como você.”
“Isso é novidade para mim”, ela ouviu o pai dizer.
“Imagino que toda a sua geração queira ir para uma universidade nos
Estados Unidos.”
“Não, Inglaterra. Quero ir para Cambridge”, disse ela.
“A minha antiga faculdade”, disse Fehmida Dawood, como se não
soubesse o motivo de Zahra ter dito aquilo. “Entre em contato comigo
quando estiver se candidatando e vou trocar algumas palavras com algumas
pessoas.”
E então acabou, seu momento no centro do universo passou. A conversa
voltou para os adultos, e a filha adolescente de alguém apareceu e Zahra foi
obrigada a conversar com ela, uma daquelas conversas em que ninguém
queria entrar, mas das quais também ninguém sabia como sair, de modo que
continuou se arrastando até alguém se aproximar, possibilitando um
salvamento. Naquela altura, o pai de Zahra estava em meio a uma névoa de
jornalistas fumando cigarros, então Zahra se afastou do jardim e foi para a
passarela junto ao riacho; as lâmpadas na beira do jardim refletiam-se na água
como bolas de luz submersas e lançavam claridade suficiente para tornar
visível a forma amontoada das árvores do outro lado do riacho. Ela ergueu a
bainha do sári e bateu os saltos no chão para desprender a terra em que
afundaram.
“Olha quem se transformou depois que foi para casa esta tarde.”
Zahra olhou ao redor. “Hammad.”
“Como as coisas seriam diferentes se o uniforme da escola fosse um sári”,
disse ele, olhando-a de um jeito que ela sabia que não devia gostar. Ele trazia
o paletó pendurado no ombro, pendurado em um dedo por dentro da lapela.
Ela se pegou pensando na palavra “teso” em relação ao tronco sob a camisa
preta de botões colada ao corpo, uma palavra que associava às páginas de
livros marcadas com código secreto na estante de Maryam.
“Seriam?”, ela respondeu, tentando parecer indiferente. Aquela sensação
de transformação que recaiu sobre ela quando tirou a alça do sutiã do ombro
e fez um homem estremecer de desejo voltou, acentuada. Aqui estava ela,
uma versão adulta da Zahra que passava pelo mundo, admirada não só por
alunos e professores, mas por mulheres como Fehmida Dawood e por rapazes
cujos olhares tinham tremulado por ela antes.
Hammad riu, esticou a mão e passou a ponta dos dedos na pele nua de
sua barriga. Ela se afastou, ligeira, não querendo que ninguém no jardim
visse. Mas ninguém parecia estar olhando naquela direção. O bufê do jantar
havia sido servido na outra ponta do jardim e os convidados formaram
rapidamente uma fila irregular por entre as mesas cobertas de branco que
ofereciam seekh kababs, pulao, korma e camarões fritos em seus pratos. Zahra
podia sentir o toque quente dos dedos dele e uma sensação de arrepio que
vinha disso. Ela nunca tinha sido tocada assim, nunca pensou que isso
pudesse acontecer tão facilmente e sem a necessidade de fazer nada além de
ficar parada.
Ele deu um passo adiante, mais perto do riacho. Um barco de madeira
era o único movimento na água, seus remos fazendo pouco barulho. Um
lampião de querosene revelava que o remador era um menino, quase um
adolescente, fumando um cigarro. Hammad assobiou baixo e o menino
remou para mais perto. “Sutta?”, ele disse, e o menino lhe jogou um
embrulho. Ele o pegou de primeira e abriu. Dentro, tinha um único cigarro
e uma caixa de fósforos. “Precisamos lhe dar algo em troca”, disse Hammad.
Ele estendeu a mão até o pulso de Zahra, mas desta vez não tocou sua pele,
apenas segurou o bracelete de flores de jasmim. Como se estivessem num
drama da PTV em que a intimidade física era apenas sugerida. Deslizou o
bracelete pelo braço, o jasmim frio roçando o pulso e as mãos dela, ergueu-o
na altura do nariz em um momento de suspense e então atirou na direção do
barco. O menino o pegou com habilidade na pá do remo e bateu de leve no
remo para lançar o bracelete no ar e de volta para a palma da mão estendida
de Hammad. Zahra observava os dois, admirando sua destreza.
Hammad acendeu o cigarro, ofereceu-lhe uma tragada, que ela recusou, e
puxou a fumaça por um bom tempo. Transformara-se, de herói de dramas da
PTV, em um cara mundano daqueles anúncios que passavam nos intervalos
comerciais das partidas de críquete.
“Então”, disse ele. “O que ela fala sobre mim?”
“Quem?” Ela ouvia a rabugice da própria voz, se perguntando se
Hammad conseguia ouvir também.
“Vamos, não seja irritante. Ela é a sua melhor amiga. Sei que conta tudo
para você.”
Zahra deu de ombros. “Por que eu deveria te contar o que ela me fala?”
Agora já se acostumara com Hammad levando Maryam até o portão no fim
do dia na escola e com suas ligações ocasionais — “quem sabe como ele
conseguiu meu número”, dissera Maryam sem muita convicção — e era
óbvio que, embora gostasse que ele andasse atrás dela, Maryam não gostava
dele, então Zahra havia parado de se incomodar com isso. Por quanto tempo
um garoto de dezessete anos continuaria interessado em uma garota de
quatorze anos que lhe dava apenas as migalhas da sua atenção? Mas agora, o
almíscar da colônia que ele usava era uma presença leve que a fazia querer
encostar o rosto no pescoço dele para alcançar a fonte daquilo, ela não
conseguia acreditar que passeios castos e telefonemas eram tudo que Maryam
queria de Hammad.
“O que há com ela?”, disse ele. “Quero dizer, tem coisas óbvias. Mas tem
algo mais. Ela é tão... É como se ela pudesse dominar o mundo um dia e isso
nem a surpreendesse. Você acha que Benazir era assim quando tinha quatorze
anos?”
“Não”, respondeu Zahra secamente.
“Você vai falar bem de mim? Ou me diga como fazer as coisas
acontecerem além dos encontros na Ocean Vídeo. Você é a única pessoa que
ela ouve.”
Agora Zahra entendia por que Maryam havia recusado seu convite para
conhecer a Crystal Palace e apresentá-la ao atendente que lhe daria os filmes
mais recentes nas melhores gravações.
“A menos que...”, disse Hammad, prolongando sua fala lentamente.
“A menos que o quê?”
Ele sorriu, e isso a percorreu inteiramente, fazendo com que suas pernas
parecessem instáveis. “Quer dar uma volta?”, disse ele, jogando o cigarro na
direção contrária às luzes e aos convidados do casamento. Ele estendeu a mão
à frente e acariciou sua pele nua outra vez e tudo parou na mente de Zahra,
exceto a palavra “sim”.
Mas de seu coração veio outra palavra. “Maryam.” Ela deu um passo para
trás, afastando-se da intoxicação de seu cheiro, da sua proximidade.
“Você não é nada legal”, ela disse, e ele sorriu de novo aquele sorriso que
dizia: não, ele não era nada legal. Então, ela teve de se afastar dele
rapidamente, quase tropeçando na bainha do sári enquanto caminhava de
volta para o jardim, em direção ao mundo no qual era digna de estar, com as
pessoas mais corajosas e mais sábias, sem mácula, sem desejos obscuros.

Na noite seguinte à que Benazir prestou juramento como primeira-


ministra, Zahra e Maryam chegaram a uma festa em Gizri organizada pelo
irmão mais velho de Saba, o atleta-estrela da escola. Saba convidara vários
colegas de classe, dentre eles Zahra e Maryam, mas seu irmão aproximou-se
de Maryam no pátio da escola e deixou claro que ela também estava na lista
de convidados dele e esperava de verdade que ela estivesse planejando estar
lá. Ele mal olhara para Zahra até que Maryam disse: “Eu vou se Zahra for”, e
então ele disse: “Zahra, não seja desmancha-prazeres”.
O novo motorista de Maryam as levara para a festa. “Você sabe que não
precisa esperar, certo?”, disse Maryam quando saíram do carro.
“Haverá muitas pessoas aqui para nos levar”, disse Maryam, erguendo a
voz acima da música que vinha da pista de dança.
Não havia necessidade de Zahra perguntar se Maryam mentira, dizendo
aos pais que o pai de Zahra iria buscá-las na festa e as levaria de volta à casa
de Zahra, embora tivesse dito a Zahra que seu pai não precisava se
incomodar, pois diria ao motorista para trabalhar até mais tarde. Quando
Maryam sugeriu passarem a noite fora de casa, Zahra ficou muito contente
para querer saber os motivos dela. No carro, ela esteve estranhamente
distraída. Zahra aproveitou que estavam sozinhas para finalmente contar
sobre a visita do general — enfim parecia seguro admitir que os militares
estavam fora do poder — e tudo que Maryam dissera foi um momento de sorte
e fez um som de explosão, como se o ato de consciência de Habib Ali fosse
algo que ela nem sequer percebeu. Agora Zahra observava com uma
desaprovação silenciosa enquanto Maryam tirava a enorme camisa turquesa e
a colocava numa sacola plástica que estava enfiada no bolso de trás da sua
calça jeans. Por baixo da camisa que estava vestindo havia uma regata branca,
claramente inspirada em Whitney Houston na capa do álbum Whitney. Ela
colocou a sacola plástica atrás de uma fileira de vasos de flores, passou os
dedos pelo cabelo, que ganhou uma franja e uma vivacidade leves em um
salão na manhã daquele dia, e disse “vamos” sem olhar para Zahra, que
estava se sentindo moderna com sua camisa jeans desabotoada e mangas
arregaçadas por cima de uma camiseta listrada, mas que agora se dava conta
de que as sapatilhas vermelhas estavam arranhadas na ponta e suas pernas
eram longas demais para a calça jeans lavada com ácido.
Um grupo de alunos do nível A chamou Maryam, mas quando Zahra
continuou andando em direção à mesa na ponta do jardim com o balde de
bebidas geladas, Maryam a seguiu. Elas ficaram lado a lado no jardim, sem
conversar, bebendo Pakola na garrafa com canudos plásticos que se
comprimiam se o líquido fosse sugado com muito vigor. As flores que
desabrochavam à noite enchiam o ar com um perfume pesado. As árvores
estavam envoltas em luzes de Natal e a varanda fora transformada em uma
pista de dança, onde uma linha de demarcação invisível separava os alunos da
Classe 10 dos alunos do nível A. Havia uma friagem no ar que deixava a
regata de Maryam ainda mais exasperadora. Hammad se aproximou, de
jaqueta de couro, cabelo com gel e aquela colônia de novo.
“Vamos dançar?”, disse ele, sem notar a presença de Zahra e, pegando a
mão de Maryam como se fosse a coisa mais natural do mundo, a conduziu
até a pista de dança, onde ela passou pelos colegas de classe sem olhar.
Zahra ficou sozinha no jardim. Ela não podia ir para junto dos colegas de
classe enquanto todos observavam Maryam e fofocavam entre si e seria
desesperador tentar se intrometer em qualquer um dos grupos de alunos mais
velhos. Mas o pior era passar a noite ali sozinha enquanto Maryam dançava
mais perto do que deveria com Hammad. O frio começava a causar arrepios
em sua pele e ela se perguntou se estaria fatalmente fora de moda
desdobrando as mangas da camisa.
Certamente o mundo não deveria ser assim. Benazir era primeira-
ministra; ela havia feito o juramento de posse em um salwar verde-claro com
uma dupatta branca, as cores da bandeira do Paquistão, e fazia os homens ao
redor parecerem pigmeus. Militares e burocratas, a velha guarda, e agora ali
estavam eles: administrando o juramento do cargo a ela, saudando-a. Oficiais
militares saudando Benazir. Você poderia chorar lembrando disso, e talvez,
não importa quanto tempo viveu nesta terra, você sempre choraria
lembrando disso. Eles enforcaram o pai dela, a puseram na prisão, jogaram-na
no exílio. E agora a saudavam, essa mulher de apenas trinta e cinco anos,
porque milhões e milhões de pessoas foram às urnas e disseram o que
deveriam dizer. Zahra passou a mão pelos olhos. O que importava tudo isso
— as panelinhas da escola, o espanto de Maryam, a desatenção de Hammad,
as pontas arranhadas de suas sapatilhas. Por que isso deveria importar quando
o mundo estava transformado?
“Qual é a sensação de se desgrudar?” Babar vinha caminhando pelo
jardim direto até ela. Sua camisa azul de botão tinha um remendo tosco
perto do coração, onde ele tinha descosturado o logotipo da grife. Os
garotos que iam para o exterior e compravam camisas caras podiam, sem
nenhuma vergonha, usar as falsificadas vendidas no país, mas, se usasse a
pirata sem poder comprar a coisa verdadeira, você pareceria um impostor, ele
lhe explicou umas semanas antes, quando ela perguntou sobre as marcas
avermelhadas no dedo, onde ele, sem jeito, espetara a agulha. Ela se sentira
atraída e repelida ao mesmo tempo pela maneira como ele disse isso, como se
confirmasse uma compreensão compartilhada sobre a vida deles dois.
“Eu e Maryam não somos grudadas”, ela disse. “Achei que você tinha
dito que não viria.”
“Eu não vinha, mas daí você disse que viria.”
Ela viu seu sorriso cheio de esperança, a forma como seus ombros
preenchiam a camisa, a linha reta perfeita de seu nariz. Muito mais bonito do
que Hammad, ela pensou e tentou fazer com que isso fosse importante.
Bebendo sua Pakola, ela olhou para a pista de dança; Maryam e Hammad
haviam desaparecido em algum lugar na massa de corpos, mas então ela viu o
olhar furioso de Saba.
“Vá dançar com o pessoal”, disse ela a Babar.
“Você vai ter de vir comigo ou vou continuar aqui fazendo você se sentir
esquisita.”
Ele facilitou a reunião com os colegas de classe, que haviam parado de
fofocar, embora fosse claro que continuassem atentos a Maryam e Hammad.
Saba estava tão feliz por Babar estar dançando na mesma massa de corpos
junto dela que seu sorriso envolveu a todos, até Zahra. Logo tudo
desapareceu, exceto o ritmo da música batendo dentro do coração de Zahra
e o ocasional, mas não acidental, roçar do braço de Babar no braço dela. Ela
fechou os olhos enquanto dançava. Não era o braço de Babar, era de outra
pessoa, desconhecida. A agitação familiar por dentro. Eles dançaram e
dançaram. Maryam saiu da pista e sentou no colo de Hammad em uma das
cadeiras de plástico do jardim, com a jaqueta dele sobre os ombros. Saba
lançou um olhar para Zahra que dizia que ela deveria arrastar sua melhor
amiga para longe daquele escândalo, que a seguiria até o pátio da escola
amanhã. Mas Zahra só fechou os olhos e deixou a música movimentar seu
corpo e apagar todo o resto.
As pessoas entravam e saíam da pista de dança. Babar perguntou se Zahra
queria pegar algo gelado para beber, mas ela disse que não e ele ficou. O
irmão de Saba começou a dançar atrás de Zahra — seus movimentos
desajeitados eram mais do que compensados pela beleza do físico de atleta —
e por três vezes ela se inclinou para trás e seu ombro tocou o bíceps dele. Na
terceira vez ele pediu desculpa e se afastou. Começou a tocar “Fast Car” e
todos que não formavam um casal fizeram um protesto ruidoso. A pista de
dança ficou meio vazia, mas Saba permaneceu onde estava, dançando mais
devagar, agora ao lado de Babar, que dançava mais devagar ao lado de Zahra.
Hammad e Maryam voltaram para a pista; Hammad passou os braços ao
redor da cintura de Maryam e ela abraçou as costas dele, seus corpos
balançando juntos. A voz de Tracy Chapman penetrou em Zahra, abriu seu
coração e lhe mostrou quanta ânsia havia ali. Babar chegou mais perto e ela
fechou os olhos mais uma vez. Um braço tocando seu braço, as costas de
uma mão tocando as costas da mão dela, dedos a um passo de se entrelaçar
com os seus. Saba segurou-a pelo cotovelo, fingindo ser amigável, e a puxou
para perto, passando o braço pelo ombro de Zahra para que pudessem se
mexer juntas no ritmo da música, diante de Babar, que parecia arrasado,
ainda que dançasse corajosamente. Zahra virou o rosto para o jardim para
não ter de ver os casais dançando lentos — não eram só Hammad e Maryam,
cada garoto segurando uma garota pela cintura a fazia sentir o mesmo. Sob o
pé de frangipana, um grupo de garotos se reunia, um brilho prateado que
vinha de um cantil de bolso colocando algo nas garrafas de Coca. Todos
queriam algo a mais do que permitiam as regras da escola, não era só ela.
Eram os casais da dança lenta, os garotos do cantil de bolso, era Saba, era
Babar, todos, todos eles, por que tinham de ser tão restringidos, tornados
banais em seus uniformes escolares, obrigados a caminhar do lado direito da
escada ao subir no início de cada dia, por que não lhes era permitido se
libertar, o mundo era novo e diferente agora, como qualquer um deles podia
continuar sendo igual?
“Aonde Maryam está indo?”, perguntou Saba num sussurro alto bem
perto do ouvido de Zahra.
Lá estava ela, de mãos dadas com Hammad, caminhando em direção ao
portão da frente. Olhe para mim, desejou Zahra, e Maryam virou a cabeça e
soltou a mão de Hammad. Zahra saiu da pista de dança e Maryam veio em
direção a ela.
“Você está se divertindo e devia ficar mais um pouco”, disse Maryam,
com uma mão no bolso, quadril saliente, como se estivesse posando para
câmeras. “Vou dar uma volta com Hammad e depois voltamos para ficar com
você.”
“Você vai entrar naquele carro e amanhã a escola toda vai falar que você
fez com ele.”
“Está bem, então você vem com a gente, Madame Cinto de Castidade.”
Era Hammad, que se aproximara sem que Zahra percebesse. A boca de
Maryam se abriu de surpresa.
“Vamos”, disse ele. “Quem vier, que venha. Estamos de saída.” Ele se
virou e caminhou pela grama. Maryam o seguiu.
“Meu irmão vem me buscar daqui a pouco. Podemos deixá-las em casa,
uma ou as duas.” A voz de Babar era reconfortante, mas Zahra olhou para a
pista de dança, viu todos os pares de olhos observando Maryam e seguiu a
melhor amiga até a saída.
Hammad continuou a passos rápidos, saiu pelo portão e desceu a rua,
passando pela fila de carros estacionados e pelo grupo de motoristas
empoleirados nas margens de um longo canteiro de flores, fumando e se
amontoando em busca de calor. Alguns motoristas ergueram os olhos para
Maryam e Zahra antes de desviar o olhar outra vez, e Maryam olhou para
trás, na direção da casa — acabara de se lembrar, como Zahra também, da
sacola plástica com a camisa turquesa. Na rua, um pouco mais adiante, os
faróis de um carro acenderam e apagaram. Hammad ergueu a mão e apertou
o passo.
“Por que o motorista dele estacionou tão longe?”, perguntou Zahra.
Maryam balançou a cabeça, olhando de verdade para Zahra pela primeira vez
naquela noite.
Era estranho estar ali, na rua, de noite. Zahra não sentia mais frio, não
depois de dançar, mas parecia certo abaixar as mangas e abotoá-las no punho.
Do outro lado do portão havia um mundo de luz e som, onde garotas e
garotos podiam dançar juntos e tudo era familiar, desde a música até os
próprios frequentadores da casa de Saba, que Zahra e Maryam conheciam
desde a idade das festas de aniversário com animação de macacos
performáticos e balões em forma de animais. Mas a rua em si era escuridão e
sombras, uma sensação de desabrigo intensificada pelo vento que entrava em
sua camisa, batendo na pele. Subitamente ela entendeu que o mundo além
das regras da escola estava ali, do lado errado do portão. Sentia-se drogada ou
bêbeda, embora nunca tivesse ficado drogada ou bêbeda, desejando poder
afastar o sutiã do corpo de modo que o vento pudesse entrar e soprar.
“Vamos voltar para dentro”, disse Maryam.
Voltar para fechar os olhos e imaginar que outra pessoa, além de Babar,
quisesse dançar com você, voltar para Maryam sentada no colo de Hammad,
voltar para esperar que algo emocionante acontecesse.
“Você não quer esperar para falar com Hammad?”
Ele tinha entrado no carro, que agora vinha na direção delas. Era um
Suzuki FX branco, com vidros escuros. Hammad desceu e falou: “Senhoras,
sua carruagem as espera”.
Ele sorriu para Maryam e Zahra sentiu, como tinha sentido no riacho, o
poder de ser a pessoa em quem a atenção dele recaía. Babar era apenas um
garoto, mas no sorriso de Hammad, na força de seu pulso enquanto estendia
a mão para Maryam, havia alguma outra coisa — algo inebriante que
estremecia Zahra. Ela pôs a mão naquele lugar em sua barriga que os dedos
dele haviam tocado. Maryam disse: “Não, estamos indo. Venha, Zahra”.
Zahra fingiu tirar algo do sapato para dar tempo de Hammad tentar fazer
Maryam mudar de ideia.
“Bibi, posso deixar vocês duas em casa”, disse uma voz próxima ao
portão, que ela reconheceu como sendo a do motorista de Saba, Manzoor.
A janela do Suzuki ao lado do motorista baixou e um homem se inclinou
para fora e disse “Challo”, tanto em tom de ordem quanto para chamar
atenção. Ele era alguns anos mais velho que Hammad, vestia uma camisa
brilhante e usava uma colônia marcante, mas não desagradável. Seu cabelo
era cortado como o de Wasim Akram, tão grosso e cheio no topo que se
podia perder uma bola de críquete ali, o que fazia o rosto com cicatrizes de
acnes cair bem, porque também tinha isso em comum com o lançador veloz.
Hammad falou: “Vamos, vamos embora, não faça uma cena na frente dos
motoristas”. Ele gesticulou para Zahra ocupar o banco do passageiro e ela
foi, passando por trás do veículo, onde viu adesivos de um par de luvas de
boxe e as palavras GOOD 4 U, que podiam representar orgulho ou louvor;
ela se perguntou qual deles era a intenção do motorista daquele carro.
Quando estava prestes a abrir a porta do carro, ela ouviu um “Za!” de
Maryam, que apontava o polegar para o portão. O homem no banco do
motorista se inclinou e abriu a porta. Zahra entrou no carro. Um momento
depois, Maryam entrou no banco de trás, seguida por Hammad.
O homem — era realmente um homem, não um garoto — olhou para
Zahra sem muito interesse, depois virou o espelho retrovisor e olhou para
Maryam, demorando-se o suficiente para fazer uma avaliação.
“Bem-vindas ao FX do Jimmy”, disse ele, dando vida ao motor. Seu
assento estava afastado para trás no limite máximo, de modo que parecia estar
praticamente reclinado. Isso significava que Hammad tinha uma desculpa —
como se precisasse — para se apertar bem ao lado de Maryam.
“Maryam, Zahra, Jimmy”, disse Hammad, enquanto Jimmy acelerava
deixando a festa para trás. “Qualquer coisa que queiram fazer em Karachi,
este é o homem que fará por vocês.”
“Nesse caso... Jimmy, você poderia nos levar para a casa de Zahra. É em
Seaview.” Maryam falou como se estivesse falando com o Motorista. Zahra a
odiou mais do que em qualquer outro momento da noite. Jimmy deu uma
olhada para trás. “Ela já quer fugir de você, gatinho”, disse, falando em urdu,
menos a última palavra, e aumentou o som do carro, abafando qualquer
resposta com “Beat It”. Ele virou no Sunset Boulevard em vez de virar na
Phase Five. Zahra se sentiu satisfeita com o fato de que, pela primeira vez, a
autoridade de Maryam tivesse surtido tão pouco efeito.
Chegando à vastidão do Sunset Boulevard, Jimmy passou a dirigir a uma
velocidade indefinidamente mais rápida. Era como estar em uma das atrações
da Funland, mas sentada ao lado de um universitário em vez dos colegas de
classe. Zahra baixou o vidro para sentir a fúria da velocidade, o choque do
vento frio estranhamente prazeroso. Michael Jackson a fazia bater as mãos
contra as coxas e mexer a parte inferior do corpo no ritmo da música. As
luzes da cidade cegavam, cartazes de Benazir pendurados por toda parte.
Jimmy ultrapassava carros e motos com uma música alta e triunfante
retumbando. A música eleitoral do MQM, a música da campanha eleitoral
de Benazir, Michael Jackson se entrelaçava com elas como se fosse mixado
por um DJ. Mais música se espalhava pelos quiosques à beira da estrada, onde
os homens compravam cigarros e paan e podiam perambular à toa; na ponte
Clifton aconteciam corridas de carroças de burros — bom humor em toda
parte. E além disso tudo, o sentimento de liberdade, de enfim escolher
abraçar a vida para além do mesmo circuito de lares e famílias a que estava
habituada por tanto tempo. Ela deslizou a mão sob o colarinho da camiseta,
sentiu sua pele, a interrupção do sutiã, a pele de novo. Aqui estava, a própria
vida, finalmente ela estava nela, não apenas observando-a do carro ao lado,
mas de fato dentro do carro.
Ela percebia corpos se mexendo no banco de trás, mas a música abafava
todo o som. Zahra mordeu a ponta do polegar para poder se concentrar, em
vez de imaginar a mão de Hammad debaixo da camisa de Maryam. Olhou
para Jimmy e tentou chamar a atenção dele, e não a de Hammad. Ela não
gostou muito do rosto, então olhou para as mãos no volante, pelos escuros
em seus dedos que deveriam ser nojentos, mas não eram. Como sentiria essas
mãos em cima dela? Ele estava dirigindo na direção do Pearl Continental
Hotel, onde ela sabia que os alunos mais velhos iam tarde da noite, no
restaurante do térreo, onde se podia comer bolo e tomar café sob lustres de
cristal. Isso era tudo que aconteceria nesta noite?
A mão de Jimmy veio em direção à perna dela, mas ele só estava
pressionando o isqueiro. Do banco de trás, Hammad lhe passou um cigarro e
Jimmy o colocou entre os lábios. O isqueiro pulou e Jimmy estalou os dedos
para Zahra. Ela o puxou, com sua extremidade circular incandescente, e
tentou passá-lo para Jimmy, mas ele manteve as mãos no volante e inclinou a
cabeça para ela enquanto mantinha os olhos na estrada, o pé pressionando o
acelerador. Ela nunca vivera um momento tão devastadoramente legal. Ela
levou o isqueiro incandescente até a ponta do cigarro de Jimmy, os dedos a
centímetros dos lábios dele, e esperava que Hammad estivesse observando.
Jimmy segurou o cigarro aceso entre os dedos indicador e médio e o tirou da
boca. Sua língua emergiu para lamber os lábios rachados e depois deslizou,
molhada, para dentro.
Bastou aquele instante de repulsa para dissolver a sensação de potencial e
possibilidade e vê-lo como um homem velho demais para se comportar dessa
maneira com garotas de quatorze anos. Um asqueroso.
Zahra se virou para olhar para Maryam, sentada bem atrás dela, mas
Maryam estava com a cabeça inclinada para trás, olhos fechados, braços
cruzados sobre o corpo; a expressão de quem estava irritada, talvez meio
entediada. Hammad parecia um menino a quem fora negado um presente de
aniversário. Jimmy tirou a mão do volante para tocar as pontas dos dedos na
bochecha de Zahra e fazê-la olhar para a frente outra vez. Era a mão que
segurava o cigarro, ela podia sentir o calor no rosto. O toque era suave, mas
não gentil, como se Jimmy soubesse que ela obedeceria à mais leve pressão.
Como se ele a estivesse ensinando a aceitar todas as ordens expressadas
suavemente se quisesse que a delicadeza continuasse a ser o tom de comando.
Um terror serpenteante percorreu o corpo de Zahra, do estômago à
garganta. Ela respirou fundo pela boca aberta, tentando superar a pressão em
seu peito. O vento a golpeava, chicoteando o cabelo contra o rosto,
entorpecendo os lábios e o nariz com o frio, mas ela não sabia se tinha
permissão para fechar a janela.
Jimmy passou pelo Pearl Continental. Maryam estava dizendo alguma
coisa no banco de trás, mas a música estava tão alta que Zahra não conseguia
ouvi-la e não ousou se virar de novo. Ele dobrou na Bunder Road, a artéria
central da cidade, e uma confusão no trânsito o fez pisar no freio, como não
pisara em nenhum farol vermelho antes. Havia homens sentados em mesas
na calçada de um lugar chamado Café VIP, a poucos metros dela. Um
cutucou o outro, sacudiu a cabeça em sua direção. Jimmy ergueu as
sobrancelhas para ela, desafiando-a a abrir a porta e sair. Havia homens, só
homens, nas mesas dos cafés, nos carros e nas motocicletas que os cercavam.
O prédio do jornal de seu pai ficava perto, ela o visitara muitas vezes lá, mas
durante o dia — as noites de Karachi não eram para garotas ou mulheres.
Mesmo sem se virar, ela sabia dos braços nus de Maryam no banco de
trás, da nitidez da camiseta branca justa no peito. Jimmy atirou o cigarro fora
e fechou a janela, gesticulando para que ela fizesse o mesmo. Ela não sabia o
que era pior: ser observada pelos homens que estavam na calçada ou ficar
fechada ali com ele, mas sabia que tinha de obedecer. Sua mão era inábil
com a manivela, mas ela subiu a janela e tudo ficou ainda mais escuro lá
dentro. A colônia doce e marcante de Jimmy misturou-se desagradavelmente
com o cheiro persistente do cigarro, a música ecoando pelos alto-falantes
estridentes com muito grave. O trânsito melhorou e o carro passou pelos
homens na calçada.
Maryam estava tão perto e tão fora de alcance. Zahra pensou em enfiar a
mão no espaço entre o banco do passageiro e o painel de vinil da porta para
encontrar a mão dela, sentir sua força, mas isso podia irritar Jimmy.
Jimmy ejetou a fita, virou e aumentou o volume outra vez para “The Girl
Is Mine”. Ele passou pela sede do Port Trust e virou na estrada que levava às
praias — Hawkesbay e Sandspit — nos limites extremos da cidade. O
trânsito diminuiu e depois desapareceu. Caminhões se moviam pesadamente
nos acostamentos da estrada, estacionados de ponta a ponta; sacos plásticos e
outros entulhos preenchiam trechos de terra vazios. Cães de rua
perambulavam; um uivo penetrante invadiu o carro tão alto que o corpo
todo de Zahra se ergueu do banco por um momento. Era a abertura de
“Thriller” — o uivo, o ranger de porta, os passos, ela ouvira mil vezes.
Jimmy riu. Deixaram para trás todas as moradias, apenas pequenas barracas se
alinhavam na estrada — durante o dia vendiam bebidas geladas, frutas e
bastões de críquete para os banhistas, mas agora todas estavam com as janelas
abaixadas. A estrada adiante estava vazia, levando todos para fora de Karachi e
em direção às colinas distantes. Era assim que os sequestros aconteciam? Duas
garotas num carro numa estrada deserta, mantidas reféns sem saber. A família
de Maryam podia pagar qualquer resgate, mas não a dela. Talvez ele soubesse
disso. Talvez ele pegasse Maryam e deixasse Zahra na beira da estrada, no
meio do nada — mas havia vilarejos de pescadores por toda a costa, ela podia
ir até lá e pedir ajuda. Uma luzinha de esperança, horrível de reconhecer.
Maryam estava naquele carro por causa dela.
Jimmy pisou no freio com força e a cabeça de Zahra quase bateu no para-
brisa antes que ela fosse jogada para trás novamente. Não havia obstáculos
nem nenhum animal correndo na frente do carro. Jimmy desligou o motor e
os faróis. A música foi engolida por um silêncio absoluto. Não havia postes
de luz e a escuridão era intensa.
“Às vezes, os caminhões aparecem naquela curva”, disse ele, apontando
para algo que Zahra não conseguia ver bem à frente. “Os motoristas têm
turnos tão longos que apagam os cigarros nas mãos para ficarem acordados.”
“Jimmy, vamos lá, cara”, falou Hammad. “Leve a gente para casa.”
“Chega de ser gatinho.” Jimmy acendeu a luz interna e se virou para
olhar para Maryam. “Você quer que eu te leve para casa? Peça com gentileza
e talvez eu leve.”
“Quero que você morra.” A voz de Maryam era fria, precisa.
“Talvez”, disse ele, apagando a luz. “Mas então todos nós morreremos.”
Hammad fez uns ruídos de protesto, mas a mão de Jimmy, erguida em
reprimenda, o silenciou.
Estavam sentados olhando para a estrada à frente, esperando que um
caminhão gigante viesse na direção deles. Depois de algum tempo, Zahra
pôde vagamente ouvir as ondas.
Jimmy olhou para o relógio. Depois, ligou a ignição e acendeu os faróis
altos. Virou o carro com um rangido estridente e dirigiu para a cidade, com
suas belas luzes à medida que se aproximavam. Zahra nunca ficou tão feliz
em ver o trânsito noturno de Karachi — luzes traseiras vermelhas em uma
direção, luzes dianteiras brancas em outra.
Eles estavam atrás de um caminhão que se movia devagar, carregado com
sacos de juta muito cheios, mantidos no lugar por uma corda grossa. Jimmy
invadiu a pista contrária da estrada, um ônibus se aproximando deles. Ele
acelerou — buzina de ônibus, faróis, o rosto do motorista gritando. No
último momento possível, voltou para sua pista à frente do caminhão.
Hammad estava berrando, Zahra mordendo a mão fechada, Maryam em
silêncio. Cruzaram a ponte Netty Jetty em direção à entrada do porto, pela
qual Zahra passara inúmeras vezes com os pais, a caminho de uma noite em
um barco de pesca. Quase podia sentir o cheiro dos lampiões a querosene,
das almofadas úmidas e do caranguejo temperado. A lembrança de seus pais,
a segurança da presença deles, a fez querer chorar. Ele as colocaria em um
barco e as levaria para algum lugar onde ninguém jamais as encontraria. No
barco, os caranguejos arranhavam um caixote de madeira, tentando subir uns
nos outros para escapar, como se soubessem que logo seriam retirados dali e
despedaçados. Ela ia ficar enjoada. Não podia ficar enjoada no carro de
Jimmy. Então, recitou Narcisos em sua mente, mas não funcionou; depois
tentou A Carga da Brigada Ligeira até chegar ao “vale da morte” e então
chorou em silêncio.
Estavam quase na entrada do porto quando Jimmy parou no acostamento.
Um homem que estava agachado ao lado de uma lombada, observando o
trânsito, levantou-se, tirou algo das sombras atrás dele e caminhou até o
carro, carregando uma sacola de lona no ombro. O conteúdo da sacola se
mexeu, um contra o outro, algo duro, talvez metálico. Armas por toda parte
em Karachi, a frase “cultura do kalashnikov” participava da vida cotidiana
deles. Jimmy saiu do carro, levando as chaves consigo.
Ele mal havia fechado a porta quando se ouviu um grito agudo de dor no
banco de trás. Com Jimmy fora do carro, Zahra virou-se para olhar. Maryam
tinha agarrado o dedo mindinho de Hammad e o torcera. “Leve a gente para
casa agora”, ela disse calmamente, “ou vou fazer você ser expulso da escola.”
“Juro que não sabia que isso ia acontecer.” Hammad se encolheu de
medo, embora fosse difícil saber se ele se apavorava mais com Maryam ou
com Jimmy.
Maryam olhou para Zahra. “Eu devia ter ouvido o que você falou sobre
ele.” Nada em sua voz ou expressão sugeria alguma emoção além da
irritação. Foi só quando ela olhou para Zahra mais de perto que sua
expressão mudou e sua voz se ergueu. “Você está chorando?”
“Troque de lugar com ela”, Maryam ordenou a Hammad.
Mas assim que Hammad abriu a porta, Jimmy disse: “Fique onde está” e
rapidamente a fechou.
“Não cause nenhum problema”, Zahra disse para Maryam e se virou para
a frente antes que Jimmy lhe desse essa ordem.
Jimmy abriu o porta-malas e colocou ali a sacola de lona — o som
metálico de armas, agora inconfundível, separadas de Hammad e Maryam
por pouco mais que os assentos finos de vinil. Quando voltou para o carro,
ele estava sorrindo.
“Por favor, você pode nos levar para casa?”, Zahra conseguiu dizer.
“Para casa?”, disse Jimmy, ligando o motor do carro. “Não vou levar você
para casa. Se quiser sair, saia, mas sua amiga vai ficar.” Só naquele momento
Zahra percebeu que ele não havia arrumado o espelho retrovisor desde que
Maryam entrara no carro e deve tê-la observado durante todo o tempo.

Algumas horas antes, Maryam ficara nua em frente ao espelho do


banheiro, apreciando a própria visão. Sentia-se diferente desde a posse de
Benazir. Uma mulher estava no poder. Maryam passava boa parte de seus dias
imaginando um encontro com Benazir. Ela contava que assumiria os
negócios da família e Benazir colocava um braço em volta de seu ombro e
dizia “Bem-vinda ao clube”. Sentiu um peso percorrendo seu corpo ao
pensar na mão de Benazir sobre ela de um jeito que nunca sentira ao pensar
no toque de Hammad. Mas, mesmo assim, algo tinha de mudar na vida.
Como tudo poderia ser como era antes de Benazir colocar uma das mãos no
Alcorão e erguer a outra e fazer o juramento de posse com uma voz de
autoridade total, como se soubesse desde sempre que esse momento
chegaria? E então disse sim a Hammad, e esperou que sua prima mais velha
estivesse certa quando disse que o ato de beijar podia transformar sapos em
príncipes (ela dissera também, com uma língua tremulante e sinistra, que
poderia transformar príncipes em sapos, mas Maryam tentou não pensar a
respeito).
No entanto, quando viu o FX, Maryam soube que não deveriam entrar
no carro. Mas Hammad levara Zahra até o carro e Jimmy abrira a porta e por
algum motivo Zahra fez o que os rapazes queriam que ela fizesse. Quando se
sentou ao lado de Maryam, Hammad tentou colocar o braço na coxa dela e
ela o empurrou. Por que tinha convidado Zahra para ir junto e quem era
aquele homem de colônia barata e roupas baratas, e pelamordedeus “Beat
It”, ele estava vivendo em 1982?
E o que havia de errado com Zahra, cantando junto, balançando o corpo,
a janela totalmente abaixada. Em qual videoclipe ela achava que estava?
Hammad esticou o braço por cima do encosto a apenas alguns centímetros
dos ombros de Maryam. Maryam virou-se para olhar pela janela. Segundos
depois, o braço dele caiu sobre os ombros dela. Maryam o empurrou para
longe e olhou para o teto do carro, que era a única direção que lhe permitia
evitar a visão de Hammad e Jimmy e seus reflexos. Quanto mais Jimmy
dirigia, mais ela se dava conta de um ódio profundo. Ódio pelo garoto que
não conseguia fazer algo tão simples quanto encontrar uma forma de ficarem
juntos sozinhos; ódio pelo homem que quase instantaneamente se revelou
um daqueles caras mortos de fome cuja direção rápida e colônia opressiva
eram tentativas de compensação por ser um zé-ninguém. Ela sabia que ele a
observava, mas não queria que pensasse que ela tinha notado ou se
importado.
E assim, com os olhos no teto, ela não percebeu quando a Zahra que
cantava e dançava desapareceu e uma Zahra assustada tomou seu lugar. Ela a
deixara sozinha no banco da frente e agora Zahra estava chorando; aquele
bastardo tinha feito Zahra chorar e teria de aprender que isso não era
permitido.
Ele bateu a tampa do porta-malas. O que havia na sacola de lona? Se
tivesse de adivinhar pelo som do conteúdo que escorregava, ela diria que
eram fitas de vídeo — vídeos piratas, tudo que havia de mais recente no
WWF, sem dúvida.
Mas por que Zahra tinha de falar com ele naquele tom de voz suplicante,
permitindo que ele — aquele zé-ninguém — falasse com ela como se fosse
descartável? “Se quiser sair, saia, mas sua amiga vai ficar”, disse ele.
Maryam se inclinou entre os bancos da frente, uma mão no ombro de
Zahra. “Então, a situação é a seguinte”, disse ela, em um tom de voz mais
sociável, enquanto seu polegar se movia em círculos reconfortantes na camisa
jeans de Zahra. “Cerca de meia hora atrás, esperavam por nós na casa de
Zahra. A essa altura, os pais dela já devem ter ligado para os donos da festa,
que falarão com o motorista e conseguirão uma descrição sua e do seu carro;
depois, os pais dela ligarão para os meus pais, e os meus pais ligarão para o
IGA da Polícia, que é um velho amigo deles, e em breve ele fará todos os
seus homens procurarem por nós, se é que já não estão procurando.” Na
verdade, o inspetor geral adjunto anterior é que era amigo do avô de
Maryam, mas ele caiu em algum tipo de desgraça profissional e foi
substituído por alguém a quem o avô ainda não havia cultivado. “Então, por
que você não começa a nos levar para casa agora, e talvez o IGA da Polícia
receba uma ligação dos meus pais dizendo que estamos seguras em casa antes
que uma van da polícia pare você e dê uma olhada no porta-malas do seu
carro?”
Havia um silêncio de satisfação quando ela terminou de falar. Hammad se
afastou ainda mais dela. Jimmy ligou o motor e dirigiu sem dizer uma
palavra, não tão rápido nem violento agora. Maryam deixou a mão no
ombro de Zahra, desejando que os músculos da amiga começassem a relaxar
agora que Maryam tinha assumido o controle. Estavam numa avenida larga e
movimentada, a Bunder Road, as mãos de Hammad cruzadas no colo,
Jimmy ainda em silêncio.
Jimmy virou em uma das ruas que saíam da Bunder Road. “Você acha
que a polícia virá procurar vocês aqui?”, disse ele, seu tom tão sociável
quanto o de Maryam. Ele diminuiu quase até parar e engatou a primeira
marcha, avançando centímetro por centímetro.
“Onde estamos?”, perguntou Zahra.
Os prédios ali eram um misto de antigos e novos, mas eram os antigos,
com sua triste dilapidação, que atraíram os olhares. Feitos de arenito amarelo
de Gizri, como a casa do avô de Maryam, com sacadas de madeira esculpida
proeminentes, algumas fechadas, outras não. Era possível pensar em Romeu e
Julieta se o desejo fosse colocar uma névoa sobre o que realmente se passou
ali. A rua era entrecruzada por fios de eletricidade, uma abóboda de cobras,
algumas penduradas, quase tocando o teto do carro. Uma figueira-sagrada
crescia na calçada.
Zahra saberia qual era essa rua se alguém tivesse falado seu nome mal
afamado, mas não havia placa para identificá-la. Maryam sabia onde estavam
porque uma noite, quando permitiu que ela dirigisse na parte antiga da
cidade, Abu Bakr se recusou a deixá-la entrar nessa rua. Não é um lugar para
você, ele disse, o que indicava que só podia ser a Napier Road. Ela tentou
insistir, disse que estava interessada na arquitetura dos antigos teatros e casas
de entretenimento, mas ele a conhecia bastante bem para saber por que ela
queria dirigir pela rua onde a miséria da prostituição se misturava com a
promessa de estrelato para os poucos que abriam caminho das casas de
entretenimento para o mundo do cinema. Ela queria olhar para as sacadas e
ver se conseguia avistar uma das mulheres cuja vida era tão inimaginável para
ela. Mas Abu Bakr foi firme. Além disso, havia uma parte dela que não
queria ver coisas em que poderia ter de pensar mais tarde e então ela cedeu e
passou pela rua da luz vermelha, que dava fácil ao porto, ao distrito
comercial, às universidades e aos tribunais de justiça. Agora, na escuridão,
um homem atravessava a rua com uma bandeja de algo que acabou se
revelando ser laddus quando a luz da porta pela qual ele entrava brilhou
acima, iluminando as bolinhas douradas. Depois a porta se fechou atrás dele,
cortando a música que havia rolado por um lance de escada brevemente
vislumbrado e que dava para a rua.
“Vamos, yaar”, disse Hammad. “Vamos levá-las para casa. Ninguém está
se divertindo.”
“Ou podíamos começar a diversão”, disse Jimmy. O carro ainda avançava
devagar, Jimmy olhando através do para-brisa para as varandas e janelas
fechadas com tábuas dos dois lados da rua, como se tentasse reconhecer algo
ou esperasse ver alguém. Não havia mulheres visíveis; deviam estar lá dentro,
esperando seus cafetões trazerem os homens até elas. Ou então já estavam
todas ocupadas. A palavra “ocupadas” fez Maryam se sentir estranha. Benazir
Bhutto fazendo o juramento de posse parecia bem distante agora. Era
possível fazer qualquer coisa com uma mulher naquela rua sem que ninguém
impedisse.
Conforme avançavam, a rua ia se estreitando. Jimmy olhou novamente
pelo retrovisor. “Por que você não pede gentilmente para levá-las para casa?
Duas vezes você pediu da maneira mais rude. Peça com gentileza e talvez eu
leve.”
Ela olhou para os olhos dele no espelho. Eram frios, duros, havia algo feio
neles que ela nunca tinha visto nos olhos de ninguém.
E talvez eu não leve, aqueles olhos diziam a ela, e o nó apertado do ódio
que estava dentro dela durante todo esse tempo se projetou em medo. Todos
esses meses ela não quis Hammad, mas quis ser desejada por ele. Os olhos de
Jimmy no retrovisor, porém, lhe diziam que os desejos dela eram
irrelevantes. Ele poderia fazer qualquer coisa que quisesse, ele faria, estava
pensando agora em como se sentiria, um sorriso frio e duro para combinar
com aqueles olhos.
Você poderia fazer qualquer coisa com uma garota aqui e ninguém o
impediria; você poderia fazer qualquer coisa com uma garota em qualquer
lugar e ninguém o impediria se você tivesse um carro com vidros escuros e
um som estéreo que abafasse todos os gritos.
“Maryam, por favor”, disse Zahra.
“Você podia, por favor, nos levar para casa?”, pediu Maryam.
“Claro”, Jimmy respondeu, dando ré para sair da Napier Road e voltando
à familiaridade da Bunder Road. Maryam baixou a janela até o fim,
respirando fundo o ar fresco.

Passaram apenas alguns minutos até que voltassem à parte da cidade em


que circulavam no dia a dia e outros poucos minutos até que passassem pelas
casas de pessoas que conheciam. Quando finalmente se aproximaram dos
blocos idênticos de apartamentos à beira-mar, Jimmy perguntou: “Quer
parar mais longe, onde está escuro?”, e Hammad respondeu: “Jimmy, vamos,
até eu vou estar encrencado por chegar tarde em casa”.
A luz fraca na frente do bloco de Zahra mostrava apenas a silhueta dos
dois homens do lado de fora, um fumando, o outro andando de um lado
para o outro. Assim que os faróis de Jimmy se viraram e os iluminaram, eles
correram na direção do carro.
Jimmy praguejou, aos berros, e deu ré para voltar para a rua, longe dos
homens que esperavam as filhas voltarem para casa. “Fora, caiam fora”, ele
gritou enquanto pisava no freio. “Vamos, Zahra”, disse Maryam, mas Zahra
não precisou de incentivo para abrir a porta e saltar do carro. Jimmy se
afastou rápido e Zahra correu direto para os braços do pai. Ela percebeu que
o pai de Maryam se aproximava mais devagar, balançando a cabeça
negativamente para a filha.
“Como você pôde?”, ele disse.
“Vamos subir”, disse o pai de Zahra, calmamente.
Lá em cima estava a mãe de Zahra e, em vez da repreensão esperada, o
mais apertado dos abraços.
“Zeno?”, disse o pai de Maryam.
A mãe de Maryam estava no sofá, curvada, cotovelos nos joelhos, as mãos
cobrindo o rosto. Quando ela afastou as mãos, a maquiagem estava borrada e
pela primeira vez Zahra viu que Zenobia Khan não era mais bonita que
Shehnaz Ali, era só mais produzida e arrumada.
Zeno se levantou e caminhou até a filha. “Você vai dizer alguma coisa?”
“Desculpem por chegarmos tão tarde”, disse Maryam aos pais de Zahra.
“Tarde?”, disse a mãe de Maryam. “Não pense que não sabemos o que
aconteceu. Saba nos contou. O que ela não viu os motoristas viram. Você
sabe o quanto tem sorte por ter uma amiga como Zahra? Você pensou na
situação em que a colocou?”
Em sua mente, Zahra formulou a frase que diria que Maryam quis voltar
para a festa e que ela, Zahra, entrou no carro quando ambas poderiam ter
entrado pelos portões em segurança. Mas lhe perguntariam por quê. E como
ela poderia dizer que fora por causa do pulso de Hammad, por causa dos
vidros escuros e do homem desconhecido no banco do motorista?
“Vocês duas estão bem?”, perguntou o pai de Zahra.
Zahra e Maryam assentiram, ambas sorrindo de maneira tranquilizadora,
como se já tivessem discutido o assunto e concordado que não fazia sentido
deixar os pais mais preocupados contando sobre atravessar faróis vermelhos,
carros parados no escuro no meio da estrada e transações que certamente
tinham sido criminosas. Eles viviam muito próximos de situações violentas
todos os dias e Zahra sabia dos rumos que a mente de seus pais teria tomado
— rumos que a própria mente de Zahra corria enquanto Jimmy dirigia
rápido pelas ruas vazias, uma mão no volante, outra na própria coxa. Mas no
fim nada de terrível acontecera. Na verdade, nada havia acontecido. Foram
dar uma volta de carro, ele parou para pegar alguma coisa no caminho e
voltaram. Ela já estivera num carro com uma direção mais louca — uma vez
o irmão de Saba voltou da praia pelo lado errado da estrada para evitar um
engarrafamento, com caminhões e ônibus os desafiando com faróis altos por
um período de tempo interminável. Agora era só uma história de ousadia
que Saba contava a quem não tinha estado lá.
“Elas estão bem!”, disse a mãe de Maryam. “Olhe para elas. Tiveram uma
grande aventura. Somos nós que estamos sentados aqui cheios de angústia.
Habib, Shehnaz... Peço desculpas pela minha filha.”
“Todos nós já fizemos coisas estúpidas nessa idade”, disse a mãe de Zahra.
“Maryam é uma boa menina.”
“É muita gentileza sua, mas não é verdade”, disse a mãe de Maryam.
“Vamos, Maryam. Estamos indo para casa.”
Ao sair, Maryam se aproximou e apertou a mão de Zahra. Zahra
pressionou os dedos da amiga.

Maryam acordou com um sentimento que não reconhecia, mas que se


transformou em raiva assim que teve alguém em quem recair — seus pais,
que a cumprimentaram no café da manhã como se nada tivesse acontecido
na noite anterior; suas irmãs mais novas, cuja persistência em querer saber o
que havia acontecido acentuava o contraste com os pais que não queriam
saber; Hammad, que evidentemente era a pessoa que ficava ligando e
desligando quando outra pessoa além de Maryam atendia o telefone; Saba,
que deve ter contado para a tia, a sra. Hilal, professora de biologia, que duas
colegas suas tinham saído de carro com Hammad e um homem estranho,
que era o motivo para a diretora ter ligado dizendo que precisava ver
Maryam e os pais em sua sala no primeiro horário da manhã de segunda-
feira.
“O que vamos fazer se ela quiser expulsá-la?”, disse a mãe de Maryam,
abrindo a porta do quarto com força, mas permanecendo na porta, como se
só pudesse ir até ali para expressar sua autoridade sobre a primogênita.
Maryam ergueu os olhos do bloco de artes em que estava desenhando.
“Vou largar os estudos e ir trabalhar na Khan Leather.”
A mãe chacoalhou a cabeça negativamente e recuou pelo corredor.
Maryam olhou para o rascunho: havia desenhado um espelho retrovisor, um
par de olhos refletido nele. Arrancou a folha, dobrou algumas vezes até virar
um pequeno quadrado duro de papel e colocou-o entre os dentes,
mordendo com força.
O que é isso? O que é isso? O que é isso?, ela sussurrava para o quarto vazio.
Que sentimento era esse que fazia tudo parecer errado, sem caminho de
volta para o certo?
O medo que ela sentiu na noite passada fora ativado por um
conhecimento de dentro de seu corpo, um conhecimento que era sobre o seu
corpo. Ela sabia que o terror de Zahra estava relacionado ao dela, embora
aquele homem — Jimmy — não olhasse para Zahra do jeito que olhava para
ela. Sabia também que Hammad não sentia nenhum vestígio disso; ele podia
temer que Jimmy batesse com um carro na direção contrária, ou que a
polícia os parasse em um posto de controle, ou que chegasse em casa tão
tarde que o pai lhe agarrasse pela orelha, mas não podia conhecer essa
sensação de — ela sentia agora — inescapabilidade. Desde que seu corpo se
tornara uma nova casa estranha na qual teve de aprender a viver, isso é o que
ela vislumbrava com o canto do olho, isso é o que estava presente nos
homens que se esfregavam nela no metrô, no tio que a puxava mais perto
para um abraço, até em Hammad que pousava os olhos nos seios dela
conforme caminhava pelo corredor da escola em sua direção. Ela era um alvo
agora, seu corpo era um alvo. Ela colocou as mãos nos seios, sentiu seu peso.
Ela estava começando a entender por que homens e mulheres andavam de
maneira tão diferente, paravam de maneira tão diferente. Os homens
andavam a passos largos, se apossando do mundo. As mulheres andavam com
passos menores, vigiadas e vigilantes. Sua raiva se intensificou em fúria, e ela
sentiu a força disso, a força da própria vontade. Não ela. Ela sempre andaria a
passos largos, mesmo na presença de um Jimmy, sobretudo na presença de
um Jimmy. Ela tirou o papel da boca; estava empapado, com marcas de
dentes. Com o polegar e o indicador, atirou-o para o outro lado do quarto,
um arco ascendente perfeito, dentro do cesto de lixo.
“Bela pontaria”, disse a única voz do mundo que ela realmente queria
ouvir. Zahra entrou no quarto, Maryam se arrastou para fora da cama e elas
se abraçaram, braços apertados ao redor de uma e outra, e ficaram assim por
um longo tempo. Maryam sentiu que o mundo começava a pender de volta
para o certo.
“Você recebeu a convocação? Para segunda-feira?”, disse Zahra quando
finalmente se separaram e assumiram as posições de ficar lado a lado na cama.
“Sim. Por que isso também é da conta da escola?”, disse Maryam.
“Esperamos que nossos alunos sempre mantenham certos padrões”, disse
Zahra, numa imitação perfeita da voz da diretora. Ela pegou um livro da
mesinha de cabeceira, Lucky, que Maryam tinha lido na noite anterior para
se animar. Com a outra mão, apoiou o pescoço, como fazia quando se sentia
insegura com alguma coisa. “Vou dizer a ela que fui eu quem entrou no
carro quando você quis — tentou — voltar para a festa.”
Zahra olhava para o livro, tentando manter um tom alegre. Maryam
observou a amiga. Entendia o pedido que lhe estava sendo feito, um pedido
que não podia ser vocalizado. A reputação bem resguardada de Zahra seria
manchada se ela trocasse o papel de amiga preocupada que foi junto para
proteger Maryam por aquele de alguém que insistiu em entrar no carro.
Talvez ela não chegasse a monitora-chefe, talvez um professor fosse mais
comedido em seus elogios na carta de recomendação para uma universidade.
Havia uma parte dela que queria gritar: Por que você fez isso? Foi um
comportamento de Zahra não sendo Zahra, a primeira coisa completamente
inexplicável que ela fez em todos aqueles anos de amizade. Ou talvez não tão
inexplicável. Fazia algum tempo que Maryam suspeitava que Zahra poderia
ser muito tola em relação ao mundo, apesar de toda sua inteligência livresca.
E, não obstante a todo o resto, ela se sentiu triunfante por confirmar isso,
mas então, na mesma hora, não gostou de si mesma por tal pensamento e
desejou que Zahra nunca soubesse que ela o teve. Com certeza, ela jamais
diria. Zahra não estava expressando uma palavra de culpa por qualquer dos
acontecimentos da noite, e talvez — ela se sentiu adulta pensando assim —,
talvez as amizades não se baseassem apenas no que se dizia uma à outra, mas
também no que não se dizia.
“Não seja boba”, disse Maryam. “Você não vai falar nada disso. Entramos
no carro ao mesmo tempo e fui eu que organizei tudo com Hammad. Você
acha que Saba encontrou a minha camisa no vaso de flor?”
“Aposto que ela vai guardar e usar na próxima festa que você estará.”
E sua voz estava cheia tanto de alívio quanto de gratidão quando Zahra
pegou a mão de Maryam, apertando-a com força.

A segunda-feira os encontrou na sala da diretora: Zahra e Maryam, os


dois pais e as duas mães. A sala era grande, dominada por uma mesa imensa,
atrás da qual a diretora estava sentada com uma túnica preta por cima de um
salwar kameez bege. As paredes eram cobertas de fotografias de funcionários
da escola ao longo dos anos, a própria diretora passando de recém-formada
com brilho nos olhos para uma mulher de autoridade no decurso de algumas
décadas.
Ela ergueu os olhos sem sorrir quando os Ali e os Khan entraram, apesar
da mãe de Zahra estar ao lado dela em muitas das fotografias na parede. As
relações pessoais eram secundárias à questão da reputação da escola e a
reputação da escola era indissociável da reputação dos alunos.
Ela pediu que Zahra e Maryam dessem um passo à frente, o que
significava que estavam uma ao lado da outra, embora nem perto de viverem
o mesmo momento. Desde que a diretora ligou para convocar a família Ali
para aquela reunião, Zahra imaginou seu futuro desaparecendo em um vazio
escuro, apesar de seus pais dizerem que estava sendo dramática, apesar das
garantias de Maryam de que não deixaria Zahra levar a culpa por nada. Uma
garota podia ser expulsa da escola por sair com um homem estranho e, se isso
acontecesse, ela carregaria essa mácula consigo para sempre. As meninas que
foram expulsas não conseguiram bolsas de estudo para Oxbridge, não se
formaram com summa cum laude nas faculdades da Ivy League, não
continuaram a brilhar no mundo como líderes nos campos escolhidos.
Desgraça e fracasso: as palavras se esfregavam nela, leves como pena e
horríveis como o toque de Jimmy em sua bochecha. Em contrapartida, o
que quer que acontecesse com Maryam naquele dia não teria tanta
importância. Ela ainda herdaria um negócio e um lugar na sociedade. Os
ricos viviam em um universo diferente.
O problema, disse a diretora sem preâmbulos, era que, ao que parece, as
duas garotas haviam feito a mesma coisa — saído para se divertir tarde da
noite em um carro dirigido por um rapaz que não conheciam, o tipo de
rapaz que andava por aí com vidros escuros, os quais levavam a todo tipo de
especulação sobre o que teria se passado dentro do carro.
Maryam olhou de relance para Zahra quando a diretora disse “se
divertir”, como se aquele fosse um momento para discutir vocabulário.
A diretora continuou. A punição que aguardava uma garota devia recair
sobre a outra, ela disse. Vários professores eram a favor de suspendê-las pelo
pouco que restava do semestre; claro, esse prazo significava que perderiam as
provas finais e isso apareceria nos registros escolares e poderia afetar a
admissão delas na universidade. E agora a mão de Maryam se esticava,
protegida das vistas da diretora pela mesa, e agarrava a mão de Zahra, dando-
lhe força.
A expressão da diretora se abrandou. Ninguém da sala dos professores
queria que Zahra sofresse pelo que todos entendiam ser um ato de amizade
franco e gentil, embora mal orientado. Ela era uma das estrelas mais
brilhantes da escola, uma aluna responsável, diligente e admirada que tinha
potencial para um dia ser monitora-chefe, mas, para que isso se concretizasse
à luz de novos acontecimentos, ela teria de se ater ao que era apropriado e
correto, sem exceção. Era louvável que Maryam — e seu tom de voz deixava
claro que essa era a única coisa a favor de Maryam — a tivesse escolhido
como melhor amiga e esperavam que essa aventura a fizesse refletir e
aprender com Zahra.
Felizmente, disse a diretora, havia outra maneira de ver os acontecimentos
daquela noite. As garotas concordaram em ser deixadas em casa por um
colega. Não tinha nada de errado nisso. A escola devia ser responsável por
garantir que nenhum aluno fosse um garoto com o qual uma garota não se
sentiria segura em ir para casa. Elas não sabiam — você sabia, Zahra? — que
algum outro rapaz, de alguma outra escola, se alguma vez já frequentou a
escola, estava dirigindo e tinha planos próprios. Os motoristas — foi muito
lamentável que os motoristas tivessem de testemunhar tudo aquilo —
disseram que as garotas se preparavam para voltar para casa, mas o amigo de
Hammad veio dirigindo ao encontro delas e, segundo alguns relatos — ela
enfatizou alguns —, Hammad praticamente as sequestrou. Hammad, é claro,
tinha sido expulso. Era uma pena que não tivessem encontrado um modo de
fazer isso antes. Uma semente ruim desde muito cedo.
A túnica preta, estava claro agora, servia para evocar os trajes de um juiz.
E assim, disse a diretora, apoiando as mãos espalmadas sobre a mesa, não
haveria punição para as garotas por parte da escola. Ela deixaria que os pais
decidissem as próprias maneiras de reagir.
E só então ela se levantou de modo que pudesse estender a mão por cima
da mesa para tomar as mãos da mãe de Zahra nas suas. “Minha querida,
sentimos muito a sua falta”, ela disse.
Ficou implícito que os pais de Zahra permaneceriam e chá com biscoitos
logo apareceriam. Eles e a filha foram absolvidos; toda a culpa recaiu sobre
Maryam e os pais que não souberam criá-la adequadamente. Zahra olhou
para Maryam, querendo comunicar seu constrangimento pela injustiça
daquele julgamento, mas parecia que Maryam não tinha reparado ou não se
importava.
“Que alívio”, disse a mãe de Maryam quando se viram de volta ao pátio
da escola. Não havia ninguém por perto, nem na quadra de esportes, mas
Zahra olhou para cima, para as janelas de treliça recortadas no prédio da
escola, e se perguntou se alguém estava observando e passando informações
para o resto da sala sobre as garotas desacreditadas e seus pais.
A mãe de Maryam passou a mão no ombro da filha e lhe sorriu de uma
maneira que era quase enjoativa. Ela queria muito que a filha gostasse dela.
“Mantenham a cabeça erguida”, disse o pai de Maryam, usando pela
primeira vez um tom de O Patriarca. “Não deixem ninguém farejar
fraqueza.”
Não fazia sentido voltar para a sala de aula quando os pais de Maryam
foram embora. O intervalo seria dali a alguns minutos e também as pernas de
Zahra pareciam não poder carregá-la escada acima. Elas seguiram até o sino
da escola e desmoronaram no chão, encostando-se nos tijolos sólidos do arco.
“Graças a Deus acabou.”
“Acabou?”, disse Maryam.
“Ah, Deus. Esqueci de Hammad.”
“Por favor. Estou feliz por ele ter sido expulso. E quanto ao Jimmy?”
“O que tem ele?”
“Ele sai impune disso? Isso está certo?” Maryam franziu um pouco a testa
e sua voz estava pensativa como nunca quando falou: “Não há justiça neste
mundo para as garotas, não é?”.
Zahra queria não ter de pensar em Jimmy outra vez. Agora, ele estava
desaparecendo na forma de um pesadelo. “Bem, no fim não houve danos,
certo?”
Maryam ficou em silêncio. Zahra tamborilou os dedos no braço da
amiga. “Naquela noite toda, fiquei desejando ser mais parecida com você.
Você não ficou com medo nenhum. Nunca vi você com medo de nada.”
“Fiquei com medo”, disse Maryam em voz baixa. Olhava para a palma da
mão como se ela pudesse lhe dizer que futuro havia além daquele momento.
Quando voltou a olhar para cima, estava sorrindo. “Fiquei com medo de
você ser suspensa. E eu não sabia se a nossa amizade sobreviveria.”
“Idiota”, disse Zahra, batendo o ombro afetuosamente no ombro de
Maryam. Mas ela sabia: era possível que a amizade não tivesse sobrevivido,
mesmo que, em grande parte, a culpa tivesse sido dela .
Em breve o sinal tocaria e os alunos sairiam correndo para saber se
Maryam Khan e Zahra Ali tinham sido suspensas ou expulsas; Saba estaria
mais importante que nunca, já que recontou a história do próprio ponto de
vista; alunos tão jovens quanto os do 7º ano se cutucariam ao passar pelas
garotas para dizer: são elas; Babar ia querer se sentar com elas para lhes dar
apoio e talvez continuar o que tinha tentado começar na pista de dança, mas
ele era tão inoportuno em sala de aula, que Zahra estaria ignorando a regra
do “apropriado e correto” até se considerasse a opção; alguns alunos seriam
gentis, o que seria vergonhoso; os amigos de Hammad estariam ressentidos
por ele ter de suportar a punição toda quando era Maryam que tinha
aparecido com uma regata branca e sentado no colo dele; alguns iriam
sussurrar que Zahra não estava nem perto de relutar como todos diziam; e
todos ficariam pensando no que de fato aconteceu naquelas horas perdidas da
vida delas. Tudo isso aconteceria e em breve. Mas por enquanto Zahra podia
se apoiar no ombro da melhor amiga, os sons da cidade chegando até elas
vindos do outro lado do muro alto, e saber como tiveram sorte por tudo dar
certo quando havia tantas maneiras de ter dado errado.

O avô de Maryam estava na Malásia, discutindo a linha nova com os


designers da Khan Leather, uma viagem de uma semana que pareceu
interminável enquanto Maryam esperava que ele voltasse. Estaria de volta no
sábado, mas na sexta-feira à noite ela foi chamada para vê-lo na sala de
visitas, que era onde ele sempre gostava de ser recebido. No verão, as cortinas
de seda bloqueavam o sol, mas agora estavam afastadas das portas francesas
que emolduravam o jardim com os arbustos de hibisco e o pé de frangipana
em flor. Ele estava em sua poltrona, uma das mãos apoiada na bengala; os
pais de Maryam no sofá ao lado dele.
Maryam caminhou a passos rápidos na direção dele, mas ele ergueu o
punho. A bengala, paralela ao chão, media a distância que ela deveria manter
dele. Ela parou no meio do caminho, sobre um tapete persa que retratava
uma cena de caça. Seu primeiro pensamento foi que ele havia se machucado
e ela podia agravar a ferida ao abraçá-lo.
“Pensei que demitir Abu Bakr tivesse lhe ensinado uma lição sobre
mentir, ser conivente e implicar outras pessoas em seus crimes”, disse ele.
“Estou surpreso pelos pais de Zahra não terem expulsado você da vida dela.”
Ela olhou para os pais, cheia de desprezo. É claro que contaram uma
versão própria do que aconteceu, com base em exatamente zero perguntas à
filha sobre os acontecimentos daquela noite.
“Eu disse a ele para nos levar direto para casa assim que entramos no
carro.”
“Você passou por todo aquele problema só para pegar uma carona direto
para casa?”
“Eu não sabia que outra pessoa — Jimmy — estaria envolvida. Hammad
nunca mencionou isso.”
“Entendo. Quem teria imaginado que você diria a um rapaz de dezessete
anos que sairia de uma festa com ele e tudo que aconteceu depois não sairia
exatamente como você queria que fosse?”
“Eu sei a placa do carro de Jimmy. Memorizei quando ele estava indo
embora naquela noite.” Ela ergueu o queixo, esperando que o avô a
elogiasse. Do lado de fora, suas irmãs estavam rastejando de cotovelos sobre a
grama, tentando chegar despercebidas às portas francesas de modo que
pudessem colocar as orelhas no vidro e ouvir.
“Para qual finalidade?”, perguntou o avô.
“O senhor conseguiria encontrar uma pessoa pelo número da placa”,
disse ela, esperando que isso fosse verdade em Karachi e não só nos seriados
policiais americanos.
“Você quer que eu chame a polícia? Eu deveria pedir que fossem atrás
dele, mas por qual crime exatamente? E o que acontece quando me
perguntarem o que uma garota de boa família estava fazendo naquele carro?
Devo dizer que ela mentiu para os pais sobre onde estava indo, que tirou as
roupas e entrou no carro de um estranho seminua? Poderiam dar uma
medalha para esse Jimmy por levá-las para casa em segurança, quando a
maioria dos homens teria feito algo muito diferente.”
“Ninguém vai me perguntar o que aconteceu?” Sua voz era infantil,
chorosa.
Ela viu o avô olhar para o filho e a nora. “Supus que isso já tivesse
acontecido.”
O pai de Maryam mordiscou a unha do polegar e olhou para o nada, a
mãe fez cara de que reconhecia o processo como inadequado, mas parou
pouco antes de reivindicar a responsabilidade. Maryam sentiu o poder voltar
para si conforme contava ao avô tudo que tinha acontecido quando elas
estavam no carro — não fazia sentido arrastar Zahra naquilo, e também o
avô valorizava a lealdade, contaria contra ela se tentasse jogar a culpa na
melhor amiga. Ela falou da colônia barata e da camisa brilhante de Jimmy, de
sua forma imprudente de dirigir, como ele apagou os faróis em uma estrada
deserta e a provocou, sobre a parada no porto para pegar algo, provavelmente
fitas de vídeo.
“Como você sabe que eram fitas de vídeo?”, perguntou a mãe. Maryam
estivera olhando para o avô enquanto falava e agora era uma surpresa
perceber o horror genuíno da mãe. “Pode ter sido qualquer coisa. Drogas ou
armas, é o que acontece no porto.”
Maryam deu de ombros. “Não parecia o som de drogas. Armas talvez,
imagino.”
“Armas talvez, você imagina?” A mãe levou as mãos às têmporas,
balançando a cabeça.
“E depois?”, perguntou o avô.
“E depois eu disse que conhecemos muito bem o IGA da Polícia, e que
ele devia nos levar para casa se não quisesse que a polícia o procurasse.” Ela
esperou um pouco para ver se essa parte de pensar rápido faria o avô parecer
mais favorável a ela, mas ele continuou a encará-la com a mesma expressão
imóvel que apresentava quando seus empregados estavam na sua frente para
confessar algum erro ou falha. Assim, não havia nada a fazer a não ser admitir
que, em vez de fazer o que ela dizia, ele seguiu para a Napier Road.
A mãe emitiu um som baixo e sufocante.
“O que ele fez lá?”, o avô se inclinou para a frente.
“Ele...” Como dizer isso? “Ele parou o carro e me olhou. Não era a
maneira como os garotos deviam olhar para as garotas.” Ela estava ciente de
como era fraca, inadequada, essa descrição. “E ele me fez pedir por favor. Ele
podia nos levar para casa, por favor?”
“E depois?”
“Depois ele nos levou para a casa de Zahra.”
A mãe levantou-se e abraçou Maryam, tentando puxar a filha para junto
de si, mas Maryam endureceu, resistiu, e a mãe voltou a sentar.
O avô bateu a bengala no tapete, irritado com a interrupção. “Então,
quando resumimos o assunto, o único crime dele que conhecemos foram as
infrações de trânsito, que não são tão graves quanto dirigir sem carteira, aos
quatorze anos. Na sacola de lona, poderiam ter sido fitas de vídeo, poderiam
ter sido armas, poderiam ter sido...”, ele gesticulou para fora da janela, na
direção do jardineiro que inclinava um recipiente de aço sobre os pequenos
vasos de flores afixados na parte externa da casa, “regadores.”
“Ele queria nos assustar. Ele gostou de termos ficado com medo.”
“Você ficou com medo?”
“Não no começo, mas no fim.” Uma coisa terrível de admitir, sobretudo
porque fez com que a mãe a olhasse com tamanha preocupação, mas como
fazer o avô entender a gravidade do que Jimmy fizera?
O avô pegou o copo de água a seu lado e tomou um longo gole. “Se eu
estivesse lá quando ele deixou vocês na casa de Zahra, teria ido atrás dele e o
espancado com a minha bengala”, ele disse, dando uma olhada na direção do
filho para enfatizar seu fracasso por não fazer o mesmo. “Mas não é crime
assustar alguém.”
“Se chamarmos a polícia e isso vazar, todos pensarão que algo realmente
terrível aconteceu com você”, disse a mãe, em tom defensivo.
“Já haverá comentários suficientes, de qualquer forma”, disse o pai.
“Podemos falar a sós?”, disse ela ao avô.
“Não”, ele respondeu logo. “Diga o que você tem a dizer.”
“Sei que o senhor não pode chamar a polícia. Mas pode dar um
telefonema.”
Ele esperou que ela lhe dissesse para quem deveria ligar, e ela repetiu dar
um telefonema.
“Você quer que eu ligue para Billoo?”
“Quem é Billoo?”, a mãe perguntou ao mesmo tempo que o pai disse:
“Por que ela sabe sobre Billoo?”
“Você sabe o que está pedindo?”, perguntou o avô.
“Não é certo que ele simplesmente saia impune.”
“Então, o que você quer que eu diga para Billoo fazer?”
Maryam deu de ombros. Ele era o adulto, devia tomar decisões desse tipo.
Ela só sabia que Jimmy precisava aprender uma lição.
“Espancá-lo? Quebrar os joelhos dele? Torturá-lo com uma furadeira
elétrica?”
Ela se lembrou do homem no jardim, berrando, com a virilha molhada.
Uma lembrança terrível até agora, mas imaginou Jimmy no lugar do homem
e o sentimento que lhe recaiu foi de satisfação. Ela entendeu, pela primeira
vez, no nível mais profundo, o que significava justiça.
“Ele nos deixou com medo. Quero que ele sinta medo, só isso.” Não
havia razão para tocar nele, já que ele não havia tocado nela nem em Zahra.
Mas, por favor, faça com que ele saiba o que é medo.
“Deus nos ajude”, disse a mãe.
“Que tipo de pessoa você é?”, disse o avô, com um tom de
desconhecimento bem distinto do seu tom habitual de questionar, o que
sugeria um examinador que sabe todas as respostas e estava apenas testando a
qualidade do conhecimento do seu interlocutor.
“O tipo de pessoa que o senhor me ensinou a ser.”
O som de descontentamento da mãe foi abafado pelo avô batendo com a
bengala no chão. “Você acha que pode comparar suas exigências infames
com as decisões terríveis que tenho de tomar para o bem da empresa e desta
família?”
“Que decisões?”, ela ouviu a mãe perguntar ao pai, que não tinha
emitido som algum nem dito uma palavra, e ainda não o fazia.
O avô estava olhando para ela como olhava para amostras de produtos
insatisfatórios. “Pensei que poderia fazer de você o que você precisa ser. Mas
é só uma garota, não é? Você sempre será uma garota. E sempre haverá
Jimmys lá fora que verão tudo e saberão disso. Talvez eu devesse ser grato a
ele por deixar isso tão claro.”
“Uma garota está governando este país”, disse ela.
“Ela nunca vai governar coisa alguma. Já estamos ouvindo mais sobre o
marido dela do que sobre ela. E Deus sabe que tipo de decisão você tomará
em situações como essa quando chegar a hora. Esse Hammad... disseram que
a diretora falou que ele sempre foi ruim.”
Ela não pôde deixar de revirar os olhos, embora soubesse que ele odiaria
isso. “Eu não estava planejando me casar com ele.”
Ele se levantou, colocando o peso do corpo na bengala, e virou-se para a
mãe dela. “Faça o que quiser. Eu não vou impedir.”
Os olhares assustados dos pais lhe disseram que algo dramático havia
acontecido. Seu avô levantou a mão da bengala, ela balançou e a mão dele
desceu novamente para pegá-la antes que caísse de lado. Um tique familiar,
mas conforme ele levantou o braço a frase “sob sua asa” passou por sua
mente. Aquele era o lugar dela e os recuos temporários da preferência dele
eram apenas um sinal disso. Sua família era de fato cega o suficiente para não
ver isso?
“Sinto muito”, ela disse ao avô. “Sei que ainda tenho muito a aprender
com o senhor.”
Ele estava balançando a cabeça. “Você está aprendendo todas as coisas
erradas. Egocêntrica e voluntariosa. Sem um centro moral. Você nunca será
quem eu preciso que seja.”
Do outro lado das portas francesas, a irmã do meio fazia uma careta
grotesca para ela, cheia de triunfo e maldade. A irmã caçula envolveu o
próprio corpo com os braços. “O senhor vai tentar fazer uma delas a sua
herdeira?” Ela sacudiu os dedos na direção delas, sentida por jogar sua carta-
trunfo pela primeira vez.
O pai sentou. “Eu sou o herdeiro dele”, falou rispidamente.
“Ninguém acha que você tenha qualquer intenção de administrar a
empresa”, disse ela, com raiva incontrolável. “E nem conseguiria, mesmo se
tentasse.”
“Ele quer vendê-la quando eu morrer”, disse o avô. “Ah, você pensou
que eu não sabia?” Isso era para o pai dela, que se espremia entre as
almofadas do sofá.
Uma vez, caminhando pela beirada de um veleiro de madeira, ela
escorregou em uma mancha de óleo. Houve o momento interminável entre
perder o equilíbrio, tentar agarrar algo no ar e as frias águas escuras para as
quais todos os anos de natação no mar não a tinham preparado. O choque
imobilizador absoluto. Apenas a algumas braçadas de distância do barco, duas
vezes campeã-júnior da gala da natação, ela teve de ser resgatada por um dos
tripulantes.
“Ele não pode vendê-la. É o negócio da nossa família.” Ela se dirigia
apenas ao avô; ninguém mais importava naquela conversa.
“Esse sempre foi o meu pensamento, o meu sonho. Mas Alá só me deu
um filho inútil e nenhum neto.”
“Eu posso administrá-la.” Agarrando algo no ar. “Dada, por favor, é a
nossa empresa, a minha empresa. O senhor sempre disse.”
“Meu Deus, que ideias o senhor tem colocado na cabeça dela?”, disse a
mãe. “Ela é uma criança. E Toff é seu filho. Ele é o seu filho.”
“Sim”, disse o avô. “Essa parece ser a minha sina.” Ele ergueu o dedo na
direção de Toff. “Você vai deixar de conversar com outras pessoas sobre
vender a empresa enquanto restar um único sopro de vida em mim,
entendeu?”
Ele estava olhando por cima da cabeça de Maryam, falando com o filho
como se aquela conversa não tivesse nada a ver com ela.
“Ele não pode vendê-la, nunca, você disse que é minha. Por favor, dada.”
Ela se agarrou na manga do avô e começou a chorar, não mais do que a
garota indefesa que Jimmy tinha visto e revelado.
Ele soltou os dedos dela, constrangido por tudo aquilo. E então saiu. O
pai de Maryam se levantou e saiu da sala, dizendo que não queria falar sobre
nada daquilo, nunca mais.
Então restaram Maryam e Zeno. Maryam repeliu as tentativas da mãe em
consolá-la. “O que ele quis dizer com ‘Faça o que quiser. Eu não vou
impedir'?”
Um som lá fora. As irmãs tinham posto a mão na boca como se já
soubessem o que a mãe planejava para Maryam e era algo muito pior do que
teriam desejado para a irmã da qual nem gostavam. Eles não entenderam? O
futuro tinha sido arrancado dela pelas mãos do avô. Qualquer outro
acontecimento não importava, como poderia? Sob os pés de Maryam, um
tremor de flechas certeiras em seu coração.
*

O trânsito matinal naquele fim de semana estava tranquilo e a maioria das


portas de correr ainda fechada ao longo do trecho da Bunder Road para
onde Maryam tinha dirigido, mas o local com luminoso de néon para o qual
ela e Zahra tinham vindo estava aberto. Ela parou a Mercedes em uma zona
de estacionamento proibido e se virou para Abu Bakr, que do banco traseiro
concordou com a cabeça para dizer que ficaria no carro caso um guarda de
trânsito aparecesse. Ele desceu e encostou na porta do carro, informando que
estava de olho em tudo para os homens no Café VIP que observavam a
aproximação das garotas.
Todas as mesas dentro do cubículo de ladrilhos brancos estavam
disponíveis, mas as mesas na calçada eram ocupadas por jovens cujos jalecos
os identificavam como estudantes da faculdade de medicina perto dali. Havia
um rádio colocado no balcão que ocupava parte da passagem transmitindo de
Hobart a partida de um dia entre Índias Ocidentais x Paquistão. Zahra olhou
o interior do cubículo e disse outra vez para Maryam que aquilo era
realmente desnecessário. Maryam foi até o balcão, pediu chai e paratha para
ela e a amiga e a mesma coisa para o motorista lá atrás e uma mesa do lado
de fora. Não, ela não queria sentar ali dentro, disse, em voz mais alta. Dois
estudantes universitários se levantaram, afastaram um pouco suas cadeiras da
mesa e disseram ao dono para trazer cadeiras para Maryam e Zahra. Maryam
olhou para os quatro homens agora amontoados ao redor de uma mesa para
duas pessoas, os cotovelos batendo um no outro, o que requeria um ato de
coreografia para levar as xícaras de chá à boca sem derramar, e disse que se
juntassem as duas mesas haveria espaço para todos. Com o plano
devidamente executado, Maryam e Zahra sentaram-se em uma extremidade
das mesas juntadas e os homens todos na outra ponta, o que garantiu ao
mesmo tempo que os joelhos deles não tocassem os das garotas e permitiu
que continuassem sua conversa sobre a partida de críquete sem interrupção.
Um corvo pulou no guidão de uma motocicleta que fora estacionada na
calçada para burlar as regras de estacionamento proibido e inclinou a cabeça
para Zahra. Ela tinha dito a Maryam que ficara com medo quando os
homens na calçada do Café VIP olharam para dentro do carro, e Maryam
disse que aquele fora o momento mais seguro do passeio, ela precisava parar
de ter medo da vida cotidiana. Zahra sabia que Maryam estava certa; queria
ser mais parecida com a melhor amiga e não ter de viver com o medo como
um companheiro constante.
Não é simplesmente medo, é um medo feminino, Maryam dissera com sua
certeza característica. Os garotos não sentem da mesma maneira.
“Eles deviam jogar com Saeed Anwar”, Maryam estava dizendo agora,
interrompendo a conversa dos homens sobre o início desastroso da série de
críquete, que provavelmente não melhoraria, dada a maneira como Desmond
Haynes estava rebatendo, impiedoso, contra um ataque de lançamento que
incluía Imran, Wasim e Qadir.
Os homens se viraram e olharam para ela. Ela soprou a superfície do chá
quente, sua respiração franzindo a cobertura de creme. “Seu pai diz que ele é
um dos melhores jogadores jovens que ele já viu, não é, Zahra?” Para os
homens, ela acrescentou: “O pai dela é Habib Ali”.
Os estudantes de medicina ficaram maravilhados. Queriam saber o que o
pai dela dissera sobre Saeed Anwar, um garoto de Karachi, um deles. Um dos
alunos tinha visto Saeed Anwar jogar na Universidade NED. Ele contou dos
destaques das entradas, interrompendo para aplaudir a centúria de Haynes.
Algumas bolas depois, Imran finalmente derrubou o wicket de Haynes e
houve mais aplausos — tanto para o batedor quanto para o lançador que
finalmente o pegou. Viv Richards veio para bater, de frente para Imran, e
um dos homens murmurou os nomes de ambos da maneira como as pessoas
em outra época teriam dito “Hércules Aquiles” ou talvez “Nargis Raj
Kapoor”. O pai dela dissera uma vez que o que diferenciava esses dois
jogadores de críquete — e, acrescentou de má vontade, Botham — de todos
os outros era o brilho da vitória que os envolvia mesmo em meio ao
massacre. Maryam tem isso, pensou Zahra, vendo a amiga limpar bem os
dedos em um quadrado de papel-jornal, como se não estivesse acostumada
com os artigos de mesa mais finos em casa. De qualquer espaço que entrasse,
Maryam se apropriava.
Os homens descobriram que Maryam jogava críquete. Começaram a falar
sobre a partida entre uma equipe feminina e uma masculina que deveria
acontecer em Karachi no fim do mês, mas que fora cancelada depois que os
partidos religiosos organizaram protestos.
“Eles não podem impedir uma mulher de governar o país e então
interferem nas partidas de críquete”, disse um dos alunos, os lábios brilhando
com a gordura da paratha.
“Ele só está dizendo isso para impressionar vocês duas”, disse outro aluno,
que tinha o cabelo comprido como um lançador rápido. “Ele não vai deixar
nenhum de nós nem olhar para as irmãs dele.” Agarrou o amigo com uma
gravata e os demais gritaram para que tomassem cuidado, que não
derrubassem o chá.
“As irmãs se parecem com ele?”, perguntou Zahra. Por um momento ela
ficou horrorizada consigo mesma ao presumir que lhe dariam o direito de
provocar e insultar, mas então o estudante de lábios brilhantes ergueu as
mãos dizendo: “Não tenho defesa, não me ataque”, e os demais caíram na
gargalhada.
“Boa!”, disse o lançador rápido, erguendo sua mão, palma para cima, em
direção a Zahra. Ela retribuiu o cumprimento.
Naquele momento, ela deixou de ficar de fora do círculo dos homens,
consciente de que não deveria estar ali, e entrou em cena. Tinha caminhado
para os braços da cidade e esta a abraçara — uma interação tão direta, por
que ela não entendeu isso antes? Plantou os cotovelos no tampo da mesa de
madeira compensada. Se chegasse um carro com duas garotas, elas olhariam
para ela e Maryam e saberiam que as mulheres poderiam reivindicar esse
espaço, essa vida ao ar livre, essa cidade.
Os turnos terminaram pouco tempo depois e os alunos foram embora,
agradecendo às garotas por dividirem a mesa e conversarem com eles.
Maryam pediu mais chá e outra paratha. “Amo esta rua, e você?”, disse a
Zahra.
Zahra não sabia o que havia para amar. Eram na maioria lojas de
eletrônicos. Os prédios mais antigos de pedra amarela tinham andares
superiores que já foram casas de comerciantes abastados, mas agora estavam
caindo aos pedaços, o tipo de coisa que só os ricos poderiam achar
fascinante.
“Na Inglaterra, tudo cabe em uma caixinha com seu propósito específico.
O café é para comer e beber, a calçada é para caminhar, a rua é para dirigir.”
As mãos de Maryam descreviam pequenas faixas de atividade, uma distinta da
outra. “E aqui tem isso...” — o movimento da mão incluía o Café VIP com
as cadeiras se espalhando pela calçada, a motocicleta estacionada ao lado das
mesas de madeira, os galhos de árvore sob os quais um sapateiro havia
instalado sua loja na calçada, o vendedor ambulante com seu carrinho de
cana-de-açúcar estacionado na rua e mais adiante uma viela onde os meninos
jogavam críquete. “Sabe que se você for a um supermercado em Londres e
lhe pedirem uma libra e você só tiver noventa e nove centavos, eles não vão
lhe vender o que você foi comprar. Desculpe, amor, eles dirão. Íntimos o
suficiente para chamá-la de amor, mas não para relevar um centavo. Quem ia
querer morar lá?”
Zahra tinha certeza de que o comentário do supermercado podia não ser
verdadeiro, mas será que não jogavam críquete nas ruas de Londres?
“Como é que Abu Bakr está de volta?”, disse ela, mergulhando o dedo na
superfície da segunda xícara de chá e puxando-o com a camada de creme
grudada nele. Limpou com o quadrado de papel-jornal, pensou em voltar à
Mercedes para pegar a caixa de lenços que sempre havia lá. “E ainda
deixando você dirigir?” Ainda magoava o fato de Maryam não ter lhe
contado que dirigia às vezes até que Abu Bakr fosse demitido por isso.
“Ah, todos estão sendo muito, muito legais comigo”, disse Maryam,
rasgando uma tira da paratha. “O que eu quero para o jantar, se quero ir à
praia, aqui estão algumas tortas de limão da padaria do clube. A única coisa
boa que resultou disso foi o retorno de Abu Bakr.”
“Por que estão sendo legais com você?”
“Você já sentiu que algo não é realmente verdadeiro até que contemos
uma para a outra?”, perguntou Maryam.
“Sim. O tempo todo.”
“É por isso que não quero lhe contar. Mas não posso não contar. Meus
pais estão me mandando para um internato. Na Inglaterra.”
“Não”, disse Zahra, de forma automática. “Não podem. Seu avô não vai
permitir.”
Maryam cravou uma unha nas costas da mão. “Ele mudou. A maneira
como ele pensa sobre mim mudou.” Ela esfregou a marca que afundou em
sua pele, cruel. “Sou só uma garota.”
“O que você quer dizer?”
“Foi o Jimmy. Ele fez meu avô me enxergar de um modo diferente. Bem,
eu também o vejo de modo diferente. Achei que ele acreditasse em lealdade
e justiça, mas ele não acredita, ele não vai me ajudar a conseguir essas coisas.”
Ela nunca tinha visto Maryam assim, tão magoada. “Como ele não vai
ajudar você?”
Maryam ficou quieta por um bom tempo e quando finalmente falou sua
voz estava incerta. “Se eu contar, talvez você veja como meus pais e meu avô
viram. Como se eu fosse uma criança pedindo coisas de adulto, quando sou
jovem demais para tê-las.”
“Eu nunca a veria assim.”
“Pedi ao meu avô para mandar alguém que ele conhece encontrar Jimmy.
Para assustá-lo. Para que ele sentisse como era. E ele se recusou.”
O choque daquilo deixou Zahra incapaz de responder. Ela sabia o que
significava em Karachi quando os poderosos mandavam alguém “assustar”
seus inimigos. Fazia parte da característica da cidade, esse outro mundo de
justiça pessoal — mensagens comunicadas por punhos, balas e furadeiras.
Agora, a maneira como seus pais falavam sobre O Patriarca fazia sentido,
sempre uma entrelinha ali que ela nunca havia entendido.
Quero que você morra. Zahra se lembrou da voz de Maryam dizendo
aquelas palavras para Jimmy. Ela soube imediatamente que Maryam havia
dito isso em seu nome, porque Jimmy a havia aterrorizado. E foi pelo menos
em parte pelo bem de Zahra que ela pediu ao avô para enviar um homem
para “assustar” Jimmy. De repente, ela teve medo de Maryam. Mas então,
olhando para a amiga, tão deprimida, tão derrotada, ela se perguntou se
aquela era a resposta errada e se deveria ficar envergonhada por nunca ser
capaz de igualar a extensão infinita, o amor inquestionável da amizade de
Maryam.
“Você não pode ir.” Era isso que importava, aquela era a única coisa que
importava agora.
Maryam trouxe a cadeira mais para perto da de Zahra e ficaram sentadas
ombro a ombro, olhando para a Bunder Road, de repente imensa em sua
beleza.
“Quando?”
“Em breve. Serão novas matérias, livros didáticos novos. Vou passar o
semestre inteiro tentando recuperar o atraso. E sem o seu cérebro para me
ajudar.”
“Você fará novos amigos rapidamente.”
“Qual é o sentido de fazer novos amigos? Quero os velhos amigos.”
Inclinaram as cabeças, encostadas uma na outra, uma tristeza profunda
passando entre as duas.
“Quando vou ver você de novo? Só nas férias de verão?”
Maryam endireitou-se na cadeira e esfregou os olhos com raiva. “Meus
pais querem que a família toda se mude. Estão me mandando na frente, mas
todos chegarão no verão.”
“Mas e a Khan Leather?”
Maryam rasgou o que restava da paratha. “Meu pai não quer administrá-
la. Meu avô não acha mais que eu possa administrá-la. Então, quando ele
morrer, será vendida. A menos que eu consiga mudar a opinião do meu avô,
mas como fazer isso estando na Inglaterra?” Ela jogou os restos da paratha na
calçada e um gato correu de debaixo da mesa, o corvo no guidão deu um
mergulho. O gato venceu. “Eles estão tirando tudo de mim.”
Maryam na Inglaterra. Sem nunca voltar. O que Zahra faria sem essa
amiga ao seu lado?
“Ainda não entendo. Por que seus pais estão mandando você embora?”
“Eles acham que sou muito ousada, muito imprudente. Acham que é só
uma questão de tempo para eu me colocar em encrencas das quais não serei
capaz de me recuperar. Então vou para uma cidadezinha da Inglaterra, onde
a pior coisa que pode acontecer é eu ficar bêbeda e vagar por um pasto cheio
de vacas. O que é uma situação com a qual sou muito menos capaz de lidar
do que entrar num carro com um Jimmy.”
“Vou contar para eles que você não queria entrar no carro. Eu já devia ter
contado.”
“Ninguém vai acreditar em você. Não é sua culpa. É culpa do Jimmy.
Nem do Hammad, não mesmo. Foi o Jimmy. Isso pode ser o pior de tudo.
Ele está por aí com seu FX, pensando que é um grande homem por assustar
duas garotas. Eu odeio ele, Zahra, odeio mais do que jamais odiarei alguém
em toda a minha vida.” Ela soltou o ar, uma respiração longa e pesada.
“Neste momento, essa é a única coisa que sei com certeza sobre o resto da
minha vida.”
Foram três momentos — três! — em que Maryam tentou voltar para a
festa e Zahra a impediu. Não é sua culpa. O reconhecimento e o perdão em
uma única frase. Zahra contemplava a expressão não familiar no mais familiar
dos rostos, enquanto Maryam observava a rua, a normalidade do cotidiano
tido como certo. Abu Bakr polindo a Mercedes com um pedaço de pano, o
vendedor de caldo de cana enfiando os caules compridos em uma prensa
para extrair o suco verde, as portas ainda fechadas em quase todos os lugares
porque dez da manhã era cedo demais para a vida de uma cidade noturna
começar. Cercada por um mundo que ela conhecia desde sempre, Maryam
estava perdida. Zahra sentiu a dor da amiga penetrar no próprio coração,
aguda e surpreendente. Então isso é amor, pensou.
Ela inclinou a cabeça para trás, observando as pipas de garras afiadas
deslizarem pelo pálido céu de inverno. Estivera esperando há tanto tempo
que o desastre se abatesse sobre ela e o tempo todo o desastre estivera
enrodilhado, esperando, dentro de seu coração minúsculo, avarento e
covarde.
Londres
2019
Primavera
The Guardian
23 de março de 2019

Zahra Ali: “Sei por experiência própria como funcionam os regimes


autoritários. É por isso que este governo tem me preocupado tanto.”

A líder do Centro de Liberdades Civis fala sobre a luta pelas


liberdades no Reino Unido, seus amigos famosos e seu amor por
Londres

É difícil não pensar em uma pantera quando Zahra Ali entra na sala de
reuniões do Centro de Liberdades Civis (CLC) vestida de preto, do blazer às
botas de cano alto, cabelos lisos e escuros, braços e pernas longas movendo-se
de maneira decidida. Felizmente, não sou sua presa; ela se fartou na noite
anterior com o secretário de Estado da Segurança durante um bloco do
Newsnight que gritava eu, eu, eu antes de o programa terminar. Ela diz que
desconhece a atenção que recebeu nas redes sociais, para as quais nunca olha
— “muito barulho”, diz ela, de uma maneira caracteristicamente contida de
falar sobre as ameaças de morte e trollagens, que de modo inevitável, e
deprimente, se vinculam a uma migrante muçulmana que se tornou a voz da
consciência britânica desde que assumiu, há dez anos, o cargo de diretora da
mais antiga organização de liberdades civis da Grã-Bretanha.
“Nunca pensei que faria isso por tanto tempo, mas, honestamente, não
consigo pensar em um lugar melhor para trabalhar. Então, enquanto me
aceitarem, estarei aqui”, diz ela, bebericando uma xícara de chá extraforte —
“estilo paquistanês” —, com muito leite e uma colher de açúcar. Ali
abandonou uma carreira de sucesso como advogada especializada em direitos
humanos e imigração para ingressar no CLC em 2009. “Houve uma
mudança na minha vida pessoal que me fez pensar em que outro tipo de
mudanças eu poderia fazer, de forma clichê.” A mudança pessoal foi o fim de
um casamento de seis anos. “Meu marido recebeu uma oferta de emprego
em Nova York e sentiu que não poderia recusar. Quando eu decidi ficar em
Londres, o casamento acabou.” O que parece uma maneira muito curiosa e
desapaixonada de falar sobre assuntos do coração talvez seja um indicativo do
cuidado com que ela preserva sua vida privada.
Quando coloco dessa forma, porém, ela faz objeções. “Estou preservando
a vida privada do meu ex, não a minha. Ninguém deveria comentar sobre o
casamento de duas pessoas.” Um pouco depois, acrescenta: “O engraçado,
claro, é que muitas mulheres da minha idade dependem muito mais dos
amigos que dos parceiros para tudo, desde o apoio emocional até as
gargalhadas. Mas quando falamos sobre a vida privada das pessoas, isso nunca
é o que temos em mente”.
Ah, os amigos! Dentre as críticas feitas a Ali está a acusação de que ela
passa muito tempo com celebridades. “É mais provável que seja vista nas
páginas da Tatler que nas cortes da justiça”, como o The Sun afirmou
recentemente. Embora o comentário revele uma falta de entendimento sobre
o papel de Ali no CLC — como diretora, ela supervisiona uma equipe
jurídica, mas não atua nos casos —, não há como negar a rede de amizades
estreladas que ela cultiva. Ela apareceu no palco com Annie Lennox, fez uma
breve aparição em um filme de Riz Ahmed e assiste a partidas de críquete
com Malala no Lord's. “Se as pessoas que trabalharam tanto para chegar ao
topo da profissão querem usar sua notoriedade para aumentar a
conscientização sobre a obra que o CLC realiza, não sou eu que vou dizer
não a isso — e às vezes você constrói relacionamentos particulares com o
apoio das pessoas para a sua organização.” Ela ri quando as próprias palavras
reverberam em seus ouvidos e abandona a linha de defesa previamente
estabelecida. “Ah, convenhamos, quem vai se negar a subir em um palco
com Annie Lennox?” Sua personalidade pública é formidável, a ponto de ser
ameaçadora, mas cara a cara ela é amigável: ironicamente engraçada, feliz por
rir de si mesma.
Ali viveu no Reino Unido toda a sua vida adulta, desde que foi agraciada
com uma bolsa de estudos em Cambridge, mas cresceu em Karachi, no
Paquistão, durante um período particularmente sombrio da história daquele
país. Tinha três anos de idade quando o general Mohammad Zia ul Haq
tomou o poder com um golpe militar e, embora sua vida na terra natal fosse
feliz, sempre esteve ciente do clima de paranoia e medo que a ditadura
engendrava. Ela se preocupava em tornar conhecidas as opiniões anti-Zia de
sua família em sala de aula e sabia que nunca deveria dizer nada
comprometedor ao telefone porque os serviços de inteligência poderiam
estar ouvindo. Quando Ali tinha quatorze anos, seu pai, um conhecido
escritor e locutor de críquete, recebeu uma mensagem dos militares
orientando-o a dirigir algumas palavras elogiosas ao general Zia em seu
programa de televisão. O pai optou por não fazer isso. Ali se lembra de ter
ficado zangada com ele. “Achei que ele estava se pondo em risco e sem
pensar na família. E naquele mesmo dia — o dia em que ele gravou o
programa e eu tive um ataque de raiva adolescente por causa disso — o
general Zia foi morto.” Alguns meses depois, a jovem Benazir Bhutto,
educada no Ocidente, foi eleita para o cargo. “Aprendi então a nunca
acreditar que uma luta está perdida, não importa quantos anos passem sem
uma luz de esperança.”
É fácil ver por que a infância de Ali fez dela uma defensora dos direitos
humanos e das liberdades civis; menos claro é o porquê de ela ter declarado
recentemente que o Reino Unido estava no caminho para a ditadura. É
impossível imaginar Jonathan Agnew sendo abordado por figuras sombrias
para elogiar o primeiro-ministro durante o Test Match Special e ainda mais
impossível imaginar a família dele sendo aterrorizada por sua recusa em fazê-
lo.
Provocada, ela muda para um tom ligeiramente frio. “Eu nunca disse
nada sobre um caminho para a ditadura. Essa é a versão para a manchete de
tabloide de uma resposta muito longa a uma pergunta que me fizeram na
Cambridge Union. Afirmei que sei por experiência própria como
funcionam os regimes autoritários. Reconheço suas táticas para oprimir a
dissidência e manter o poder. É por isso que esse governo me preocupa
tanto. Não porque eu ache que o Reino Unido corra o risco de se tornar
uma ditadura, mas porque os britânicos são complacentes por sua democracia
ser tão robusta que não pode ser enfraquecida — coisas que disparariam
alarmes em países com histórias de governo autoritário são permitidas a
passar com pouco barulho por aqui.” Ela fala detalhadamente sobre a
progressiva retórica do governo em relação aos poderes “excessivos” dos
tribunais, o projeto de lei que limitará o direito de protesto, a introdução
planejada de cartões de identidade e as instruções ao Ministério do Interior
para que seus funcionários façam uso mais amplo dos poderes arbitrários de
rejeição “se algo não parecer certo” em um pedido de cidadania ou
conciliação. Tudo isso com poucas semanas do governo no poder.
Ela cria um caso de preocupação convincente, mas ainda me pergunto se
sua visão das coisas poderia ser desvirtuada por sua aversão muito clara ao
novo governo, o que causa uma mordacidade em sua voz que nunca ouvi
durante os dez anos em que ela está levando os poderosos a prestar contas.
“Estou manifestando uma preocupação totalmente profissional com um
ataque sem precedentes ao nosso modo de vida democrático”, diz ela.
Pergunto quão claros são os limites entre as preocupações pessoais e
profissionais de Zahra Ali e ela diz “claros para mim” com um sorriso tenso
que me conta que nada será alcançado por essa linha de questionamento.
Se ela levar o governo para o lado pessoal, isso pode ser uma via de mão
dupla. No início desta semana, o CLC venceu um processo histórico no
Tribunal de Apelação contra o uso de câmeras de reconhecimento facial pela
polícia. A secretária do Interior respondeu ao acusar não o CLC, mas Zahra
Ali diretamente, de pôr em perigo a segurança da Grã-Bretanha e de apoiar
criminosos. Fontes de Westminster afirmam que o governo vê Ali como a
verdadeira líder da oposição, tendo afugentado a oposição parlamentar com
uma vitória retumbante nas eleições do mês passado. Ela pensa em um papel
político mais direto? Ali parece horrorizada com a ideia. “Nunca conheci
uma linha partidária que eu quisesse acompanhar”, diz e eu acredito nela.
Uma última pergunta e essa é a que revela a resposta mais surpreendente.
Por que ela não quis trocar Londres por Nova York?
“Amor”, ela diz, simplesmente. “Eu amo isso aqui. Amo até o clima.” E,
com isso, ela sai para um jantar do próximo primeiro-ministro que surgir em
seu caminho, ou talvez para um evento social com Emma Watson e George
Clooney.
Tech Capital News
23 de março de 2019

A top em venture capital Maryam Khan fala sobre sua carreira,


mulheres na tecnologia e como transformar fracasso em sucesso

Maryam Khan é uma das principais figuras no cenário tecnológico do Reino


Unido. Ela é sócia-fundadora da Venture Further, líder em investimentos de
risco para empresas de tecnologia e internet em seus estágios iniciais em
Londres, que foi classificada como a 13ª na lista Wired UK Tech 100 em
2017/18. Sua gama de investimentos inclui o aplicativo de
compartilhamento de fotos e vídeos Imij, cujo conselho ela preside. Falando
no canal de vídeo premium do Yahoo! Finance Reino Unido, Global Change
Agents, Khan discutiu sua carreira e o papel do fracasso em sua vida. Também
falou com otimismo sobre o investimento do novo governo do Reino Unido
em tecnologia.

Khan sobre reimaginar o sucesso


Khan vem de uma dinastia de artigos de couro em Karachi e cresceu
entendendo que herdaria os negócios da família. Mas quando estava com
quinze anos seu avô morreu e os pais decidiram vender a empresa e mudar
para o Reino Unido. “O Paquistão não era estável politicamente e eles
decidiram que estaríamos melhor em outro lugar. Foi um golpe ter de
repensar meu futuro, mas, felizmente, eu já estava fascinada pelo mundo da
tecnologia graças ao Apple IIGS que meus pais me compraram quando eu
tinha treze anos.” Ela estudou engenharia de software no Imperial e se formou
bem a tempo de se envolver no crescimento súbito das ponto-com. “Eu era
milionária aos vinte e seis anos e morava no apartamento dos meus pais
porque não podia pagar o aluguel aos vinte e sete.” Depois de algumas
semanas “sentindo pena de mim mesma e comendo muito sorvete”, foi até o
escritório da Wright Capital, uma das principais empresas do venture capital
do Reino Unido na época, e convenceu a lendária guru da tecnologia,
Margaret Wright, de que a combinação de sua experiência prática com
startups e suas previsões inteligentes de quais empresas de internet
prosperariam além do momento presente faziam dela a candidata perfeita
para o venture capital, uma vez que o setor sofreu perdas de investidores após o
estouro da bolha das ponto-com.
“Nossa alta taxa de fracasso é o segredo sórdido do mundo do VC”, diz
Khan. “O setor alega que cerca de 25% das novas startups fracassam, mas o
número real está mais próximo de 75%. Na Venture Further reduzimos
substancialmente esse percentual, mas nunca afirmo para as empresas nas
quais invisto que há um caminho garantido para o sucesso. Algumas pessoas
dizem que sou cruel em pedir tempo para investimentos que não estão
dando certo; mas ninguém passa mais tempo do que eu acompanhando os
CEOs fundadores que não tiveram sucesso na primeira saída. Apresento a
minha experiência de como o que parece ser o fim de um sonho pode ser
um trampolim para o sucesso.”

Khan sobre as mulheres na tecnologia


Khan acredita que o setor de tecnologia está tendendo para a direção certa
quando se trata de uma inclusão maior de mulheres, embora reconheça que
ainda há um longo caminho a percorrer. “As mulheres precisam estar
dispostas a fazer exigências e ocupar mais espaço. É claro que existem forças
culturais que as impedem de fazê-lo e é por isso que é importante ter
modelos. Eu tive Margaret Wright, que continua sendo uma conselheira
confiável mesmo depois de ter se aposentado, e espero ter desempenhado e
continuar a desempenhar um papel semelhante ao das mulheres jovens na
tecnologia. Quando olho para minha filha e os amigos dela, ouço o som de
telhados de vidro não só se quebrando, mas sendo explodidos em mil
pedaços.”
Ela também tem um conselho para os homens que entram em seu
escritório para reuniões de apresentação. “Não testem suas posturas de poder
e seus apertos de mão esmagadores em mim.”

Khan sobre a busca de espaço em mercados lotados


Khan foi a primeira a investir no Imij, vendo possibilidades no aplicativo de
compartilhamento de vídeos e fotos quando outros investidores achavam
impossível crescer com sucesso em um mercado de redes sociais lotado.
“Todos os demais viram onde ele replicou os recursos existentes, mas o Imij
oferece muito mais a seus usuários que os concorrentes. As ferramentas de
edição recebem a maior parte da atenção, mas para mim a verdadeira estrela é
a sofisticação de sua marcação facial.”

Khan sobre o novo governo do Reino Unido


Khan está otimista com o novo governo. “São os primeiros dias, mas eles
estão soltando os balões de ensaio certos sobre o investimento em tecnologia.
E fiquei muito feliz ao ouvir o primeiro-ministro falar sobre a necessidade de
impulsionar a migração qualificada. Sei que existe uma grande preocupação
com os números da migração, mas pouco foi ganho ao colocar todo tipo de
migrante no mesmo barco. Para o bem da nossa economia e da nossa posição
global, precisamos atrair empreendedores de todo o mundo e precisamos
conservar os melhores alunos que vêm aqui para tirar proveito do sistema
educacional do Reino Unido.”
Poucas pessoas sintetizam os benefícios de atrair e reter talentos
estrangeiros melhor que Maryam Khan.
ZAHRA ESTAVA SENTADA em um banco em Primrose Hill, tomando seu café e
observando dois spaniels passarem saltitando na grama, as orelhas erguidas
parecendo asas. Março em Londres sempre trazia consigo uma sensação de
renovação. “Essa parte de Londres desabrocha lindamente”, alguém de quem
se lembrava apenas pela elegância das vogais lhe dissera anos atrás, quando ela
se mudou para o bairro; na época, achou a afirmação ridícula, mas hoje pela
manhã, como acontecia todo ano, se pegou pensando, sim, desabrocha!,
enquanto percorria o trecho do Hampstead Theatre até a Swiss Cottage
Library, onde os galhos pesados com as primeiras flores da estação lembravam
leques de plumas, como aqueles que poderiam ter balançado ao lado de
Cleópatra em uma barcaça descendo o Nilo.
Duas moças passaram, numa conversa animada. “Não sei. Como posso
saber?”, uma delas estava dizendo, com aquele jeito carregado de quem
sentia o resto de sua vida dependendo das decisões que a confrontavam.
Zahra cruzou uma perna sobre a outra, ambas com botas, sentindo a
tranquilidade de ser uma mulher na casa dos quarenta.
Ela resistia à compulsão de olhar o telefone, que tocava para anunciar uma
nova mensagem a cada poucos segundos; a nova estagiária gostava de
esquadrinhar os jornais do fim de semana em busca de reportagens sobre
abusos relacionados às liberdades civis e enviá-las a Zahra em uma cascata de
links, com comentários furiosos ou emojis anexados. Zahra ainda não tinha
tido coragem de lhe dizer para parar, ou ao menos esperar até segunda-feira.
Não era possível dizer esse tipo de coisa para uma jovem de vinte e um anos
em sua viagem de estreia às profundezas das injustiças do mundo. Ou era,
mas com o entendimento de que a bajulação dela seria golpeada por sua
insistência em permitir-se um fim de semana.
#OFascismoNãoParaNaNoiteDeSexta
Algum tempo depois, um homem veio caminhando lentamente com seu
pointer. Ele avistou Zahra, baixou a cabeça de um jeito que reconhecia quem
ela era, mas não queria incomodá-la, tornando o reconhecimento tão
evidente que ela se sentiria obrigada a responder. Eles aprenderam essa forma
de polidez juvenil no norte de Londres — ela recebeu exatamente o mesmo
aceno de cabeça de uma estudante no outro dia. Maryam alegava que não era
tanto polidez, mas mais uma necessidade inglesa de informá-la de que não
ficariam animados só porque sabiam quem você era.
“Lindo cachorro”, disse Zahra.
“Obrigado”, disse o homem, com uma gravidade que se estendia além da
posse de um animal de estimação.
Ele seguiu em frente, ela tomou outro gole de café. Era um triunfo, se
você fosse uma mulher, mover-se entre visibilidade e invisibilidade da
maneira que lhe conviesse, em vez de ser examinada e ignorada em medida
igual e irritante. Ela ergueu o rosto na direção do sol, plena demais de bem-
estar para se lembrar de que estava sendo obrigada a esperar mais uma vez,
como acontecia todo domingo, embora tivesse que caminhar quase um
quilômetro e meio para chegar aqui, enquanto Maryam ainda estava a
caminho. O telefone tocou novamente e desta vez ela o tirou do bolso, para
o caso de ser algo que não deveria ignorar. Como esperado, as notificações
eram quase todas da nova estagiária, mas dentre elas havia uma mensagem de
um código de área de Cingapura.

Ei — vi o perfil no Guardian. Só queria dizer uau!* Muito


impressionante tudo que você está fazendo. Talvez você não tenha as
melhores lembranças de mim, mas adoraria lhe pagar uma bebida (halal
ou haram, o que preferir) na próxima vez que eu estiver em Londres
para tentar compensar as coisas e para que possamos chegar a conhecer a
versão adulta um do outro. É possível? Hammad (Riaz, da escola).

* tanto pro artigo quanto pra foto


Zahra clicou na foto em miniatura do perfil e a tela se encheu com uma
versão totalmente reconhecível de Hammad, sem sinal da papada ou da
barriga flácida que tinha começado a deixar indistintos tantos dos garotos
com quem convivera na escola, enquanto as colegas de turma se tornaram
mais nítidas em suas silhuetas quando chegaram aos quarenta e poucos anos.
Ela se lembrava da palavra “teso”.
Houve um movimento na distribuição do peso ao longo do banco. Era
Maryam que se sentava. “É difícil não pensar em uma pantera”, ela disse,
com um tom de revelação.
“Ah, Deus”, disse Zahra, enfiando o telefone no bolso. “Desde quando
você lê o Guardian?”
“Desde que o alerta que configurei para você me avisa que você está no
jornal.”
“Você tem um alerta configurado para mim? Achei que você fosse
indiferente à minha vida profissional.”
“Você não tem um alerta para mim?”
“Qualquer tentativa de descobrir o que você anda fazendo é frustrada
pela Maryam Khan modelo, representada pela Venture Modeling Agency,
que é mais conhecida em seu Canadá natal por uma foto notória em calças
de couro e nada mais depois de anos de campanha pelos direitos dos
animais.”
“Gosto da minha xará, parece sensata. Todos deveriam ser honestos em
relação a abrir exceções aos princípios se o preço for justo.”
“Vamos caminhar ou só ficar sentadas aqui?” Zahra jogou o copo de café
vazio na lixeira mais próxima e o viu ricochetear na borda. Rapidamente se
levantou para resgatá-lo antes que alguém de câmera em punho a pegasse
jogando lixo no chão.
Juntas, se dirigiram para a saída leste. Quando queriam uma caminhada
mais curta, cortavam o parque em direção ao zoológico de Londres, parando
no recinto das girafas para se maravilhar com a improbabilidade dos animais,
e depois seguiam para o jardim das rosas no Regent's Park. Em outros dias,
quando estavam com vontade de algo mais urbano, o caminho do canal as
chamaria, levando-as pelo Camden Market até King's Cross. Mas hoje foi o
Hampstead Heath, uma decisão com base na escolha dos calçados — botas
de caça verdes-oliva já bem gastas para Maryam, que não via necessidade de
se desfazer de nada em seu guarda-roupa, tendo chegado a uma relação de
conforto com ele, e botas escandinavas justas pretas-brilhante para Zahra,
que não gostava do esnobismo associado a nenhuma das sofisticadas botas de
chuva, de modo que encontrou um par que custava tanto quanto, mas tinha
um logotipo irreconhecível para quase todos em Londres. Ela esperava uma
zombaria de Maryam em relação a isso e ficou desconcertada ao receber um
comentário de aprovação — “bem pensado, você não quer prejudicar sua
marca”.
Seus passos largos se encurtaram, o passo de Maryam acelerou. Quantos
quilômetros caminharam juntas ao longo da vida — das perambulações no
pátio da escola a essas caminhadas de domingo, qualquer que fosse o clima.
Falando sem parar sobre nada ou sobre as mesmas coisas repetidas vezes, com
a ocasional guinada para as conversas que mais penetravam a alma, conversas
que reviviam a intensidade da adolescência delas. Foram as caminhadas de
domingo que levaram Zahra a comprar “equipamentos” que nunca
imaginou ter — botas de borracha de cano alto, jaquetas de chuva, chapéus e
calças impermeáveis. Maryam recusou as calças impermeáveis, mas ficava
perfeitamente divertida com o tecido encharcado grudado em sua pele
naquele espaço entre a parte inferior da capa de chuva e a parte superior das
botas. “Vocês parecem duas senhoras brancas de meia-idade”, Zola dissera
num domingo, abrindo a porta para elas, que vinham de uma chuva
torrencial, vermelhas de frio, pingando tanto que tiveram de desvestir as
camadas externas antes de entrar.
“E ela acha que ‘brancas' é o que dói”, Maryam respondeu, erguendo
Zola nos braços e gritando para Layla que sua filha estava ficando grande
demais para carregar no colo, será que poderiam trocá-la por uma menor?
Hoje havia sol. As botas pareciam ridículas enquanto caminhavam pela
England's Lane e pelo Belsize Park, mas logo seriam necessárias para
enfrentar a lama das áreas específicas e conhecidas do Heath, onde a chuva
deixava sua marca muito tempo depois de o solo ter secado e endurecido em
todos os outros lugares. Era a primeira vez em meses que andavam sem as
volumosas jaquetas de inverno e a atenção incomum de Maryam à postura
dizia a Zahra que ela estava mais satisfeita que o normal com a figura que
talhara. Era verdade que o regime alimentar e de condicionamento físico que
Layla havia lhe imposto no ano anterior em função dos níveis de colesterol
elevados significava que a Maryam que caminhava ao lado de Zahra era tão
tonificada e entusiasmada quanto a Maryam que existiu há muito tempo,
mas, ao perder a leve obesidade que se insinuara em seu rosto aos trinta e
poucos anos, ela também perdera toda a suavidade. Chegou um momento na
vida em que seu rosto se tornou mais notável pelo caráter do que pelas
feições; não estavam nem perto desse ponto ainda, mas tinha começado.
“O que você quis dizer quando falou que sou indiferente à sua vida
profissional?”, perguntou Maryam ao se aproximarem de South End Green,
quando Zahra parou na barraca de frutas e verduras ao lado da estação
Hampstead Heath para avaliar o que compraria na volta. “Estou inscrita na
lista de e-mails do CLC há anos.”
“Alguma vez assinou uma das nossas petições?”
“Já conseguiu alguma coisa com uma de suas petições?”
A Zahra de alguns anos atrás teria mordido a isca e feito um discurso no
sentido de transmitir a Maryam o significado do papel do CLC no Reino
Unido. A Zahra de agora simplesmente disse: “Ai!”.
“Eu disse isso em voz alta? Pare de olhar o ruibarbo. Só serve para
apodrecer na sua geladeira.”
“Sim, e também disse em voz alta: ‘Não se pode colocar todos os
migrantes em um único barco'.” Zahra desviou a atenção do ruibarbo para os
aspargos do início da temporada.
“Não disse isso. Quando?”
No Global Change Agents. Babar me enviou o link.”
“Bem, foi uma escolha de palavras infeliz.”
“Hummmm.”
“É melhor eu me certificar de que Layla não assista isso.”
Maryam a puxou pela manga e elas voltaram a caminhar.
“Ah, já encaminhei o link para ela durante o ritual de esperar por você no
banco do parque. Sugeri que ela suprimisse o sexo como punição.”
“Não vai acontecer.”
“Bastarda presunçosa.”
Quando chegaram ao Heath, viram que estava mais cheio que no Ano-
Novo e o caminho que levava do tanque de banho misto ao Parliament Hill
parecia particularmente intolerável. Zahra e Maryam tomaram uma trilha
mais rústica e menos percorrida. As árvores brilhantes com as folhas novas
pareciam irreais em seu verdor após a desfolha dos meses de inverno. Em
seguida veio a lama, uma visão bem-vinda, afastando aqueles que não a
imaginaram ou não souberam se preparar para isso. Eles chapinhavam pelo
caminho de volta e Maryam fazia uma pausa para acariciar qualquer cachorro
que passasse. “Talvez um border collie”, ela disse, quando um cachorro preto e
branco, molhado de alguma lagoa, apareceu, farejando-a. Sua cachorra —
uma wolfhound irlandesa chamada Woolf com um ar meio filosófico — estava
muito velha e fraca agora para os passeios de domingo, e Maryam começou a
falar sobre o próximo filhote que teria, como se isso pudesse mitigar a
tristeza que em breve lhe recairia.
Elas pararam em uma lagoa com lírios flutuando na superfície, uma ponte
arqueada vermelha como cenário, nuvens brancas e céu azul por cima.
Maryam se agachou e mergulhou as mãos na água para limpar os vestígios do
afago feito no cachorro molhado. “Você quis dizer o que disse na entrevista
ou faz parte da coisa toda de personagem pública?”
Zahra pegou dois seixos e tentou deslizar um deles pela superfície da
lagoa, que afundou em contato com a água. “Costumo dizer o que eu digo.”
“Não se ofenda”, disse Maryam, pegando o outro seixo. “Fiquei surpresa,
só isso. Toda essa coisa sobre a opressão de crescer sob o regime militar,
preocupando-se com os serviços de inteligência ouvindo cada telefonema.
Quer dizer, ah, por favor, a única coisa que realmente preocupava eram as
linhas cruzadas com alguém do seu grupo social.”
O seixo de Maryam pulou — uma, duas, três vezes — na superfície da
água. “Reparei que você não mencionou que o pior e mais assustador
ocorrido da sua infância se deu no dia seguinte à posse de Benazir, e foi
assim que começou a nossa experiência de democracia. Com a sensação de
que alguma coisa horrível ainda podia acontecer.”
“Que pior e mais assustador ocorrido?”
Maryam se virou para ela, enfiando as mãos nos bolsos da jaqueta.
“Jimmy.”
Zahra levou um tempo para pensar na direção em que Maryam teria
caminhado até o banco do parque, na possibilidade de ela ter visto Zahra
olhando para a foto de perfil de Hammad. “O que fez você pensar nele?”
“Muitas vezes penso nele.”
“Ainda? Foi mesmo no dia seguinte à posse de Benazir?” Ao recordar, o
que lhe veio mais fortemente sobre aquela noite foi a lembrança de estar
sozinha e deslocada no jardim de Saba, sentindo o frio penetrar na pele, mas
incapaz de desdobrar as mangas da camisa jeans porque não ficaria legal. Toda
aquela inadequação surgindo de ver Maryam dançando perto de Hammad, a
mão dele na cintura dela.
“Claro que foi. Mas imagino que mencionar isso teria interrompido o
elegante arco narrativo do sofrimento pela ditadura opressiva à diretoria do
Centro de Liberdades Civis.”
“Bem, todos nós criamos os nossos arcos narrativos, não é?”
“E significa que...”
“Você, com vinte e sete anos, morando com seus pais porque era incapaz
de pagar aluguel. E então entrando corajosamente em um escritório famoso
de capital de risco e usando audácia e inteligência para conseguir um
emprego.”
Na sequência da quebra das ponto-com, Layla expulsou Maryam do
apartamento de Notting Hill, para o qual haviam se mudado juntas
recentemente, porque estava cansada de ver a namorada infeliz comendo
sorvete em vez de continuar procurando emprego. Maryam tinha ido passar
uns dias com os pais, que trouxeram de Karachi tudo que pudesse ajudá-la a
se sentir em casa em Londres, desde a coleção de arte até suas relações
sociais. Foi por insistência deles que Maryam foi ao encontro de Margaret
Wright, que era irmã de um amigo de Toff de Oxford.
“Ah, isso”, disse Maryam, reconhecendo que Zahra poderia facilmente
ter mencionado que havia outra parte de sua história que se desviara ainda
mais da verdade: a morte do avô, a venda de Khan Leather. Como ela falou
sobre isso calmamente na entrevista, o quão tolerante pareceu sobre a decisão
dos pais de mudar o comando da família para alguém mais “estável”. O
Patriarca morreu de um ataque cardíaco durante o primeiro semestre de
Maryam no exterior e quando ela voltou para o funeral Toff já estava em
negociações para vender a Khan Leather. Maryam era toda tristeza e raiva,
mais animal que humana. Morou na casa de Zahra durante o breve retorno
para casa, recusando-se a ficar perto dos pais, exceto durante os rituais de
funeral.
Um grupo de mulheres aproximou-se da lagoa e saudou Maryam com
cumprimentos entusiasmados; ela as cumprimentou com aquele jeito
agradável, mas contido, com que sempre lidava com as mães das amigas de
Zola, de modo que não se sentissem animadas a lhe convidar para jogos de
pôquer ou idas ao SPA. A Maryam sociável da adolescência havia sido
substituída por uma mulher que respeitava demais o tempo em família para
ser atraída a novas amizades.
“Ah, Deus, por que sou tão ruim com nomes?”, murmurou Maryam,
pegando o telefone e fingindo ler algo enquanto usava a câmera para tirar
uma foto das mulheres que se aproximavam. Um único clique e os rostos das
mulheres foram marcados, seus nomes surgindo na tela.
“Obrigada por pegá-la na sexta-feira, Louise”, disse Maryam polidamente
para uma das mulheres, que sorriu e disse que era sempre um prazer receber
Zola.
As mulheres tinham vindo para tirar fotos com a ponte vermelha no
fundo — “é o nosso lugar”, disse uma delas — e houve um ligeiro
constrangimento quando fingiram achar que “a mãe de Zola” devia estar na
foto também, mas Maryam escapou ao se oferecer para tirar a foto, alegando
que Zahra era inútil para segurar firme a câmera do telefone. Zahra
concordou com um pesaroso reconhecimento desse fato. As mães da escola
ficaram cheias de gratidão e todas entenderam que se tratava da habilidade de
Maryam para lidar com a situação. Enquanto se afastavam, Zahra ouviu uma
das mulheres dizer: “Ela é legal”, como se confirmasse algo que todas já
sabiam, mas que ainda causasse certa perplexidade.
“Elas pareciam quase eufóricas por estar perto de você, você reparou?”,
disse Maryam.
“Não seja boba.”
“Mas estavam! Quando eu disse que você não conseguia tirar uma foto,
elas ficaram com aqueles sorrisos que diziam: ‘Por que Zahra Ali deveria ter
habilidade com fotografia? Ela é a consciência da Grã-Bretanha. Deixem que
outras pessoas tirem as fotos. Deixem a mãe de Zola fazer isso.” O tom de
Maryam era carinhosamente provocador, um pedido de desculpas por sua
rispidez de antes.
“Agora você vai e arruína a minha reputação como fotógrafa”, disse
Zahra, batendo na bota de Maryam com um galho seco. “Que aplicativo
você estava usando lá? Imij?”
“Sim. Devemos começar a comercializá-lo para usuários mais velhos
como um auxiliar de memória para cérebros idosos.” Passou o braço pelo
braço de Zahra. “Eu falei que tem alguma coisa com peixe para o almoço? A
pedidos, você vai fazer aqueles feijões verdes com sementes de mostarda.”
O telefone de Zahra tocou outra vez. Ela usou a mão livre para tirar o
telefone do bolso e olhou para a tela, afastando-se das vistas de Maryam.
Cingapura novamente.

Mais um domingo e o almoço terminou com o frango assado de Maryam


reduzido a um resto de ossos. “Ainda surpreendente depois de todos esses
anos”, disse Layla. Era uma brincadeira de longa data, relacionada ao
momento em que Layla percebeu que de fato havia sido aceita na família
Khan, quando os pais de Maryam foram capazes de roer os ossos e as
cartilagens na presença dela sem se preocupar em mostrar seu lado mais “não
refinado”.
A mãe de Maryam esticou a mão na direção do prato de Zola, onde os
ossos das asas foram reduzidos a nós. “Às vezes essa daqui é toda Khan”, disse
ela. Zeno nunca deixou passar uma oportunidade de comentar sobre
qualquer semelhança que pudesse encontrar entre Zola e algum familiar no
alto da árvore genealógica de Maryam, mesmo que a conexão fosse tão frágil
quanto o interesse de Zola por ginástica e algum tio-avô que divertiu várias
gerações com sua habilidade de dar cambalhotas de todas as maneiras até os
oitenta anos, e seus comentários eram feitos em um tom que sugeria que a
conexão provava algo que necessitava de legitimação a respeito dessa sua neta
que não era constituída por nenhum DNA dos Khan.
Zahra olhou para Maryam do outro lado da mesa, um “deixa pra lá” não
dito no leve movimento de sua cabeça. Depois de tantos anos, Maryam ainda
conseguia ficar furiosa quando um de seus pais revelava uma pequena parte
de seu coração que ainda colocava Zola em uma categoria separada dos
outros netos; naquela revelação, ela via muito claramente o desejo contínuo
de que a filha mais velha deles tivesse seguido outro roteiro na vida, o qual
tinham certeza de que ela conseguiria se estivesse só um pouco mais
preocupada com o quão estranho, às vezes impossível, seria para eles
revelarem aos amigos que tinham uma filha lésbica, com uma companheira
negra e uma criança nascida de algum doador de esperma de histórico
familiar desconhecido que elas encontraram em um arquivo de fichas. Quase
sempre Layla achava que Maryam estava sendo muito dura com os pais, ainda
os recriminando pela resistência inicial à união (“O que as pessoas vão
falar?”, sua mãe dissera, como era esperado), mas dava graças a Deus por
Zahra, que teve uma vida inteira com Zeno para aprender todas as suas
entrelinhas.
Talvez essa fosse a chave para a longevidade das amizades de infância —
todas aquelas entrelinhas compartilhadas que ninguém mais poderia
entender. E talvez entrelinhas compartilhadas fossem ainda mais necessárias
quando as duas moravam longe da cidade da infância, que era, de fato, a
entrelinha da vida delas. A amizade de infância realmente era o mais
misterioso de todos os relacionamentos, ela pensava, enquanto sinalizava para
Zola se levantar e recolher os pratos dos adultos; era construída em torno de
regras que não se estendiam a nenhuma outra parceria da vida. Elas não eram
unidas por laços de sangue, pela profissão, por arranjos domésticos, nem
mesmo por interesses em comum, como era o caso das amizades construídas
mais tarde.
Em breve, Zahra seria a única pessoa em Londres que fora uma parte
integral da sua infância. Os pais de Maryam estavam voltando para Karachi
depois de três décadas em Londres, levando todas as suas entrelinhas consigo;
um acontecimento mais inquietante do que Maryam imaginara. A filha do
meio voltou quando se casou, logo depois da universidade, e vivia uma vida
que reproduzia à risca aquela que tinham deixado para trás havia trinta anos.
No entanto, tudo na vida de Maryam era uma marca do seu distanciamento
dos pais: a ética de trabalho, sua companheira, sua filha. Até a casa com um
andar térreo estendido sem divisões entre sala de jantar, cozinha e sala de
estar, toda de cimento, carvalho e aço inoxidável, avivada por móveis
coloridos e janelas enormes — tudo nela era um mundo distante do enxerto
de Karachi que os pais fizeram, com tapetes persas, caligrafia nas paredes,
cinzeiros de vidro lapidado, objetos de prata e com a porta da cozinha muito
bem fechada, atrás da qual uma ajudante contratada cozinhava e limpava.
“Você acha que um dia poderia fazer a mesma coisa?”, sua mãe
perguntou a Zahra, conforme a conversa derivou para O Retorno.
“Voltar para Karachi?”, disse Maryam. “Algumas pessoas partem para ir
embora, não porque pretendem causar uma ruptura na vida de todas as
outras e depois voltar para onde começaram.”
“Mãe”, disse Zola. “Sem uma ruptura você não teria a mamãe e eu.”
“Exatamente”, disse Zeno, como se todo o seu propósito ao atirar
Maryam aos lobos de um internato inglês fosse libertá-la das convenções
sobre sexualidade.
“Ah, mesmo que eu não tivesse sido despachada para Londres com
quatorze anos, ainda assim teria conhecido sua mãe por intermédio de Zahra
Khala e teria me apaixonado loucamente por ela. Qualquer caminho teria
me levado até você e ela.” Zola fez uma cara de aversão pela conversa de se
apaixonar loucamente, mas não tinha como esconder seu prazer com a
confirmação de que não havia uma vida melhor que Maryam tivesse sonhado
que não a envolvesse. O pé de Layla se esticou por baixo da mesa para roçar
o tornozelo de Maryam, que se concentrou nisso em vez de no olhar cético
que o pai lhe enviava.
O Retorno era algo discutido tão longamente que parecia inevitável
nunca ter passado de conversa-fiada, mas agora havia passagens de avião só de
ida, convites para jantares de despedida e contêineres embarcados com
destino a um apartamento em Karachi onde seus pais poderiam morar
sozinhos, porém perto o suficiente de uma filha não problemática e netos de
pele clara. Eles voltariam com muita facilidade para a vida em Karachi, a mãe
retornando às rodadas de chá e reuniões beneficentes com as senhoras e o pai
continuando a vida com palavras cruzadas, atividades ao ar livre (no começo
tênis, agora golfe) e socialização, como tinha sido em toda a sua existência
adulta — em Londres, os engenhosos investimentos da esposa no mercado
imobiliário aliados aos rendimentos da venda da Khan Leather haviam
permitido que ele permanecesse tão ocioso quanto fora em Karachi. O lar
sempre foi um lugar que esperava por eles, polindo o próprio encanto com
seus empreendimentos de luxo, o cenário de restaurantes em franca expansão
e a redução dramática da criminalidade devido a “operações” das forças
policiais e paramilitares — tudo isso, quando comparado à taxa de conversão
da libra para a rúpia e aos salários dos empregados domésticos, tornava aquele
o único destino possível para uma velhice confortável.
Zeno retomou a conversa com Zahra como se nenhuma interrupção
houvesse ocorrido. “Pensei que com seus pais envelhecendo, Zahra, e com
tanto a ser feito pelos direitos humanos por lá...” E sem uma família para
segurar você por aqui, dizia a entrelinha de Zeno. “Claro, entendo por que
você talvez prefira ficar.” É mais fácil ser uma mulher solteira em Londres,
prosseguia a entrelinha de Zeno.
Zahra colocou a mão no queixo e lançou para a mãe de Maryam aquele
olhar levemente provocador que se infiltrou nesse relacionamento ao longo
dos anos em que Zahra cursou a universidade, quando os membros mais
velhos da família Khan deixaram claro que o apartamento deles em Londres
era a casa de Zahra. A reciprocidade implícita valia para as férias escolares,
quando Maryam voltava para Karachi e morava com Zahra e os pais dela,
enquanto o resto da família passava o verão na Europa se recusando a
enfrentar o calor.
“Admita, tia Zeno. Você só está partindo porque finalmente desistiu de
me arrumar um belo rapaz de uma boa família.”
“Antes de partir, ainda há tempo para tirar uma carta da manga”, disse
Zeno. “Os rapazes de Oxford e Wharton são como funcionários de hotéis.
Não são os mais bonitos, mas têm uma educação perfeita e nada das neuroses
habituais dos asiático-britânicos.”
“O que são as neuroses habituais dos asiático-britânicos?”, perguntou
Zola.
“Quando você não entender o que a sua avó quis dizer, pode ter certeza
de que ela está falando sobre classes sociais”, disse Maryam.
“Ah”, disse Zola, colocando a mão ao lado do rosto para revirar os olhos
sem que os avós vissem. “Também, Nani, não importa. Zahra Khala é
assexual.”
“Meu Deus”, falou o pai de Maryam.
“A sua Zahra Khala é solteira por opção, Zola. Não é a mesma coisa”,
Layla disse com o tom de conversa que usava quando Zola deixava escapar
um termo novo que Maryam não via motivos para alguém daquela idade
saber. “As pessoas podem ter diferentes parceiros sexuais com
responsabilidade, sem…”
“Podemos não falar sobre isso na frente dos meus pais?”, pediu Maryam
enquanto Zahra emitia um prolongado som de agonia.
“Você acha que o problema são seus pais e não uma criança de dez
anos?”, perguntou Zeno.
“Sim”, disseram Maryam e Zahra ao mesmo tempo.
“Quantos parceiros sexuais você tem no momento, Zahra Khala?” Agora
Zola estava sendo malvada e não deixaria de reparar nesse raro momento de
tanto desconforto para sua mãe e sua avó.
O que era aquilo no rosto de Zahra? Uma estranha dissimulação de sua
expressão?
“Não está lindo lá fora?”, disse Layla, olhando para as portas de vidro que
davam para o jardim. A tarde estava ensolarada, evidenciando as glicínias que
subiam no ateliê de Layla no fundo do jardim e os canteiros de flores,
suntuosamente coloridos. “Que tal se todos saíssem para eu dar uma
arrumada em tudo aqui? Não, sério! É mais rápido assim.” Os adultos saíram
para o deque, Zola e Woolf logo atrás, e todos se ajeitaram nos sofás de vime:
os pais de Maryam no de dois lugares, Maryam e Zahra nas poltronas com
Woolf aos pés de Maryam; Zola empoleirou-se no braço da poltrona de
Zahra.
Logo, estando todos bem alimentados e um pouco sonolentos, a conversa
parou. Não incomodava a nenhum dos adultos, felizes em ver o jardim
florido, sentir o calor da tarde, ouvir os grunhidos sonolentos de Woolf. Mas
Zola, impedida de usar seu tablet quando os avós a vinham visitar, precisava
de alguma forma de entretenimento e tentou convencer Zahra a brincar de
“Você prefere” com ela.
“Mais tarde, querida”, disse Zahra.
“Por que os adultos são tão chatos?”, perguntou Zola. Havia algo novo
em seu tom de voz quando ficava desapontada, um tom de rebeldia que
prenunciava a adolescência para a qual Maryam não estava nem perto de estar
preparada. Aos dez anos, Zola ainda tinha corpo de criança, mas suas axilas
tinham uma nova marca de pelos escuros e ela se tornara insegura com blusas
sem mangas agora que os dias mais quentes haviam chegado. Ultimamente,
ela não usava nada além das leggings pretas e um moletom enorme da Bille
Eilish, os quais tinham de ser roubados de seu quarto à noite, enquanto ela
dormia, para que Maryam pudesse lavá-los.
“Eu ia convidar você para ir aos bastidores no concerto de verão no Hyde
Park comigo, mas você não vai querer ir com alguém tão chata”, disse Zahra.
Zola soltou um gritinho e se enroscou em Zahra.
“A Annie vai tocar?”, perguntou Zeno, com uma pretensa familiaridade
ao mencionar apenas o primeiro nome de Annie Lennox, baseada no
conceito de que qualquer pessoa conhecida de Zahra se tornava um
conhecido também da família Khan.
“Não”, e Zahra citou o nome de uma das maiores bandas do mundo para
deixar claro que não queria se gabar de seu fã-clube de estrelas e só estava
falando no assunto porque Zeno havia perguntado. Zola gritou; Zeno fingiu
saber de quem Zahra estava falando, mesmo digitando o nome errado na
barra de pesquisa de seu celular. Toff pareceu desapontado e disse que
gostaria que fosse Barbra Streisand, o único espetáculo de verão que havia
lhe interessado.
Maryam curvou-se para acariciar Woolf e ergueu os olhos para o pai. Ele
piscou para ela, que não pôde evitar o ar de conspiração no sorriso que
devolveu, feliz com a recusa dele em se impressionar com a menção daqueles
nomes famosos por Zahra, que era ainda mais espalhafatosa quando estava na
companhia dos Khan, como se eles a vissem de uma forma que tornava
particularmente importante enfatizar quão vasta era a sua marca no mundo,
quão cobiçada era a sua presença em jantares no norte de Londres. A
piscadela e o sorriso encerraram a batalha silenciosa em que Toff e Maryam
se envolveram durante a maior parte da tarde, que surgiu das reclamações de
Layla sobre uma organização artística local que a convidou para seu conselho
de administração em nome da “mudança” e depois deixou claro que a
presença dela ali era a única mudança que pretendiam provocar. Como,
obviamente, Maryam havia dito. Ninguém abre mão do poder, mesmo que
seja incompetente para manipulá-lo; as pessoas o acumulam ou o vendem.
Seu pai então começou uma história engraçada sobre um rei e seus filhos; a
velocidade com que mudou de assunto para encantar a mesa deixou claro
que ele sabia exatamente a qual incompetente Maryam se referia.
“Não era para alguém estar ajudando Layla?”, disse Toff, olhando
incisivamente para Zola, que ainda estava dando gritinhos. A chegada dos
seus setenta anos lhe caiu muito bem; a indolência da juventude fora
reformulada como o repouso merecido da terceira idade. Maryam não o
havia perdoado de fato nem pela venda da Khan Leather nem pela morte de
seu avô, que ela tinha certeza se devia ao estresse de viver todos os dias
sabendo que a empresa amada passaria para as mãos de estranhos, mas, três
décadas depois, aqueles sentimentos tendiam a se revelar como comentários
contundentes em vez de raiva.
Maryam olhou de relance para dentro de casa. Layla estava caminhando
em direção à porta de correr com sua típica postura ereta que por vezes se
curvava na companhia de Toff e Zeno, mas não hoje. Ela emergia do
entreato silencioso na cozinha envolta em nobreza, carregando o jogo de
xícaras de prata que fora um presente dos pais de Maryam e que nunca era
usado, exceto quando as visitavam — uma cortesia de Layla; Maryam dissera
que aquilo só incentivava a compra de presentes que demonstravam o
narcisismo de quem presenteava ao refletir o bom gosto próprio e não o do
presenteado. Maryam se levantou, abriu a porta e, com um beijo de
desculpas no rosto de Layla, aproveitou a oportunidade para entrar
furtivamente em casa e pegar o celular, que estava carregando na mesa do
café da manhã. Zola não era a única banida dos dispositivos eletrônicos
quando Zeno e Toff vinham almoçar. Havia uma série de mensagens com a
palavra Imij no campo de assunto vindas de investidores e membros do
conselho do Imij, que era presidido por Maryam.
Maryam clicou no link do primeiro dos e-mails. O IMIJ QUASE
MATOU MINHA FILHA, dizia a manchete sobre a foto de uma garota em
um quarto de hospital com ataduras em volta do pulso. Maryam levou a mão
ao estômago. Uma estudante de treze anos tentara suicídio por causa de
ataques de bullying, muitos deles acontecidos no Imij. A estudante em questão
era muçulmana e obesa. Várias contas, obviamente coordenadas, usaram as
ferramentas de edição de fotos do aplicativo para aproximar um olho do
outro e dilatar suas narinas — uma grande quantidade de comentários cruéis
surgiu dessas postagens de pessoas que não pareciam conhecer a menina, mas
tinham muito a dizer sobre uma garota que parecia uma porquinha de hijab.
Ao lado das notícias havia uma coluna. “O governo precisa intervir para
evitar que as redes sociais causem danos às nossas crianças”, declarava o
colunista, que costumava guardar suas críticas para políticos de esquerda e
ativistas climáticos.
O CEO fundador do Imij atendeu no primeiro toque da chamada. “Eu
sei”, disse ele, parecendo animado como sempre. O Garoto de Ouro, era
assim que Maryam e o resto do conselho o chamavam pelas costas, por conta
da cor do cabelo, do sucesso juvenil e da luminosidade em suas maneiras.
Apelido dado sem nenhum carinho. “O governo não vai fazer nada, não é?”
As conversas para a compra do Imij estavam em andamento com uma gigante
do ramo de softwares que planejava expandir seus negócios para as redes
sociais, quatorze bilhões de dólares e múltiplas implicações em jogo. O
dinheiro em si não tinha importância para Maryam, que mantinha o mesmo
estilo de vida de uma década atrás, mas uma importância enorme por se
tratar do maior negócio de tecnologia de que o Reino Unido já havia
tomado conhecimento. Isso catapultaria a Venture Further para o topo das
empresas globais de capital de risco, abrindo caminho para a inauguração do
escritório em San Francisco.
“Dizem que as imagens foram denunciadas logo depois de postadas e
nada foi feito trinta e seis horas após o ocorrido.”
“É, que mancada.” Ainda animado. “O moderador pensou que essa
história de porquinha se referia ao peso da garota, e não à sua religião, o que
fez parecer que as diretrizes contra discriminação não haviam sido violadas.
Nós o demitimos e estamos preparando uma declaração. Medidas mais duras,
blá, blá, blá. Chocados e horrorizados. Uma minoria de usuários que fazem
mau uso de nossa plataforma etc. Vamos mencionar que ela tem treze anos e
os termos de uso dizem que precisa ter pelo menos quinze?”.
“Não, a menos que você queira começar a discutir sobre verificação de
identidade. Que seja breve. A história logo será esquecida.”
“Verdade. Gordinhas não ocupam as primeiras páginas.” Soltou uma
gargalhada com um grunhido ao dizer isso, o que a fez pensar com relativa
satisfação quem é o porco agora?
Ela desligou, olhou novamente para a foto dos pais da garota mais abaixo
no artigo. Paquistaneses. Sua idade, talvez um pouco mais jovens. O pai tinha
algo na expressão que a lembrava de Habib Ali. Uma certa bondade.
Quando voltou para fora, encontrou Zola pulando de um pé para o outro
no jardim e dizendo: “Por favor, mãe, por favor, eu tenho dez anos!”, o que
não era animador. Layla tinha acabado de ver uma mensagem, enviada há
mais de uma hora, convidando Zola para passear no parque com o melhor
amigo, Mark, os pais dele e seu novo cãozinho. Agora o filhote e os
humanos já estariam no parque e planejando ficar um tempo, mas Layla não
estava disposta a levar Zola enquanto recebiam visitas para o almoço. Zola se
propôs a ir caminhando sozinha até o parque. Era uma caminhada curta,
todo o percurso estava repleto de casas de amigos e ela levaria o celular
reserva para que pudessem rastreá-la. Esse celular reserva, usado por hóspedes
que vinham de fora, estava na mira de Zola havia algum tempo.
“De forma nenhuma”, disse Maryam ao mesmo tempo que Layla disse
“Está bem”.
Zola correu para Layla, fingindo que não tinha ouvido mais nada, e a
abraçou pela cintura. “Obrigada, obrigada, obrigada.”
O olhar de Layla para Maryam era de desculpas e não de quem voltaria
atrás. Maryam sabia o que Layla lhe diria mais tarde, quando estivessem a sós,
sobre ter se oposto. É perfeitamente comum que as crianças de Londres
comecem a sair sozinhas pela vizinhança nessa idade — crescer no oeste de
Londres, ao contrário da infância de Maryam em Karachi com motorista, era
uma carta na manga que ela sempre gostou de jogar, apesar de ter passado
parte da infância sendo levada por motoristas em Lagos. Layla conseguia
mover-se entre sua metade nigeriana e sua metade inglesa com absoluta
facilidade, dependendo da vantagem de bancar a imigrante ou a nativa,
membro da elite ou minoria maltratada. Ela afirmava que suas mudanças
entre um jeito e outro eram muito mais comuns que a atitude imutável de
privilégio e pertencimento de Maryam, não importando a empresa nem o
país em que se encontrasse.
“Você pode ir caminhando até o parque”, disse Maryam. “Mas algum
adulto tem de vir encontrar você na entrada.”
“Posso acompanhá-la”, disse Zahra. “Preciso chegar cedo em casa de
qualquer forma.”
“Não!”
Em geral, Zola dava tudo para passear com sua amada Zahra Khala, sem
outros adultos por perto para distraí-las. Mas alguma outra necessidade se
apoderou dela e a fez ir até Maryam para implorar. Ela tinha o andar de
Layla, com passadas largas, combinando com o jeito de Layla. Apenas os
olhos, que remetiam a uma miniatura mogol, insinuavam que o doador de
esperma era paquistanês.
“Quero sair para o mundo sozinha”, ela disse, uma frase grandiosa que
era tão comovente quanto ridícula. E não era exatamente isso que Maryam
queria na idade de Zola? Talvez fosse ainda mais jovem que Zola quando
Abu Bakr começou a ceder a seus pedidos para desviar o caminho na volta
da escola — a única loja que vendia Coca-Cola em lata em vez de garrafa, o
vendedor ambulante que cobria maçãs fatiadas em um molho de tamarindo e
pimenta de uma jarra cheia de moscas. Ela abria a porta do carro, dizendo a
Abu Bakr e suas irmãs para esperar por ela, e uma sensação se instalava nela
— tão deliciosa —, a de sair de uma infância mimada e se tornar uma
participante do burburinho da cidade.
Maryam pôs a mão sobre a testa de Zola, que se inclinou em sua direção.
Como se algo — algum conhecimento, alguma força — pudesse passar entre
elas. “Por favor, mamãe.”
Ela nunca estaria pronta para esse momento. Como aplaudir a filha por
reivindicar destemidamente seu direito ao mundo e ao mesmo tempo alertá-
la sobre as atrocidades das pessoas? Os racistas, os homofóbicos, os Jimmys —
tantos caminhos para o medo feminino. Sabia que era quase um milagre ter
chegado aos quatorze anos sem ter passado por isso. Zahra achava que o
motivo era Abu Bakr carregar uma arma na cintura onde quer que a levasse,
mas ela sabia que era por causa da sombra que seu avô lançava no mundo,
uma certa proteção.
“Se Zahra diz que pode acompanhá-la, qual é o sentido de ela sair
sozinha?”, questionou Zeno. “Maryam nunca saiu desacompanhada até ir
para a universidade.”
Zola sorriu para Maryam, sabendo que não havia nenhuma possibilidade
de que isso fosse verdade.
“Só até a entrada do parque”, disse Maryam, destruída pela intervenção
da mãe. “Vou pedir para a mãe do Mark esperar lá. E se algo de errado
acontecer no caminho, me ligue imediatamente. Vou colocar meu número
na discagem rápida.”
Quando Zola saiu, segurando o telefone reserva de uma maneira que
dava a entender que não estava preparada para abrir mão dele ao voltar,
Zahra ficou com Maryam na calçada da casa, observando a curva onde Zola
havia desaparecido de vista. O celular na mão de Maryam mostrava um
ponto azul que se movia rapidamente em direção ao parque.
A rua estava silenciosa, familiar de maneira tranquilizadora. Era uma rua
comprida, mas elas moravam numa parte que parecia separada do resto.
Muitas das casas naquele trecho tinham a mesma fachada vitoriana da casa de
Maryam e Layla, ainda que nenhuma outra tivesse a mesma transição para a
arquitetura moderna do século XXI ao subir os degraus da entrada e chegar
à soleira. Maryam, Layla e Zola haviam entrado por quase todas as soleiras na
Bend, uma cordialidade entre as famílias que não chegava a se transformar
em amizade, pelo menos não para Maryam. Havia pouco tempo ela
aprendera, por meio de um aplicativo no qual investiu, a identificar todas as
árvores e plantas nos jardins das entradas — o bordo japonês duas portas
adiante; a sorveira do outro lado da rua; a hera persa espalhada ao longo de
sua mureta na entrada do jardim que ela nunca pensaria em descrever como
outra coisa além de hera.
“Por que só até a entrada do parque?”, Zahra perguntou.
“Não há câmeras de segurança dentro do parque.”
“A Maryam de dez anos não teria acreditado na mãe preocupada que
você se tornaria. Ninguém vai sequestrá-la.”
“Alguém pode falar alguma coisa pra ela. Caminhar perto demais. Fazê-la
se sentir desconfortável.”
“E o que o sistema de câmeras de segurança faria por ela?”
“Ajudaria a encontrar o responsável e a garantir que nunca mais tentasse
fazer isso.”
A risada com ar de superioridade de Zahra surgiu, aquela que dizia que
ela entendia o mundo melhor que Maryam. “Garanto a você que a polícia
não vai vasculhar as imagens do sistema de câmeras para encontrar alguém
que faz uma garota negra se sentir desconfortável nas ruas de Londres.”
“Eu os convenceria”, disse Maryam, não tão segura quanto gostaria.
Neste país, ela era Maryam Khan, 13ª na lista dos 100 maiores nomes da
tecnologia do Reino Unido da revista Wired; ainda assim, uma
desconhecida. Ela manteve os olhos no ponto azul que se movia em direção
ao parque. As únicas coisas que passariam pela cabeça de Zola seriam as patas
aveludadas de um cãozinho, sombras líquidas para seus olhos e a liberdade de
poder ir até ambos por conta própria — animada, com certeza. “O que
precisamos de verdade é que cada câmera de segurança seja uma câmera de
reconhecimento facial, mas você não vai deixar isso acontecer, não é?”
“Você acha que sou muito poderosa.”
“Bela confissão.”
“Você sabia que o tribunal concluiu que a tecnologia de reconhecimento
facial era tendenciosa em relação às etnias e usada de forma desigual pela
polícia? Então, o governo mudou a redação dos termos para dizer que a
polícia fará uso ‘justo e igualitário' da tecnologia e está expandindo seu uso.
Não é engraçado?”
Era uma das coisas mais engraçadas que Maryam tinha ouvido em um
bom tempo, mas Zahra estava claramente encarando aquilo como uma
afronta pessoal.
“São racistas”, disse Zahra.
“O governo?”
“Também, mas eu me referia às câmeras. Não diferenciam um negro do
outro. É assim que você quer o mundo para manter sua filha segura?”
Você acha que parece mais indolente do que a hera inglesa? Zahra teria dito
quando Maryam identificou a hera persa em seu jardim e seria difícil saber se
era uma piada ou a determinação de Zahra de enxergar racismo em tudo na
Inglaterra, até mesmo na nomenclatura das plantas.
O ponto azul parou. Maryam segurou o telefone com mais força. O
ponto azul se mexeu. Era aquele período de abril em que as magnólias e as
cerejeiras estavam completamente floridas e Zola se detinha hipnotizada
pelos tons de branco e rosa que praticamente se atiravam em você quando
caminhava por certas casas.
“A tecnologia, ao contrário das pessoas, pode ser melhorada. O recurso
de marcação facial do Imij não discrimina por raça. Pelo menos não tanto
quanto os outros softwares de reconhecimento facial discriminam.”
“Sem mencionar o impacto da fiscalização constante em uma sociedade.”
“Isso já existe, só que com outro nome.” Ela sacudiu o telefone para
Zahra. “Quer saber qual a porcentagem de usuários do Imij que aceitam a
marcação facial?”
“Eles aceitam ser marcados pelos amigos. Isso é diferente de ter a polícia
vigiando o tempo todo porque você é um ativista climático ou um cara que
frequenta mesquitas.”
“Você realmente não está em nenhuma plataforma de rede social há uns
dez anos, não é? Faz tempo que as pessoas desistiram de ter amigos e
preferem ter seguidores.”
“Bem, ter amigos pode ser superestimado.”
Maryam riu, feliz por ver a diretora do CLC desaparecendo e se tornando
sua Za outra vez. “Então, o que foi aquilo mais cedo? Aquele olhar quando
Zola perguntou sobre parceiros sexuais. Tem alguém?”
“Não”, disse Zahra. Logo depois: “Tenho alguém na mira. Nada
importante.”
“E desde quando só conversamos sobre coisas importantes?”
Mas Zahra não se abriria. Não era nada, ela insistiu. Houve um flerte há
algumas semanas, só isso.
“Daqueles que você gosta?”, perguntou Maryam. Zahra deu de ombros.
Maryam disse: “Zahra!” e Zahra respondeu: “Maryam”.
Quarenta anos de amizade resumiram uma conversa inteira nessas poucas
palavras.

O apartamento de Zahra dava para um grande salgueiro-chorão, o que


permitia que ela deitasse na cama ou lesse na chaise-longue da sala imaginando
um jardim ou até mesmo um riacho lá fora. Na verdade, o salgueiro-chorão
estava isolado em uma rotatória onde convergiam seis ruas, em um dos
trechos menos encantadores do noroeste de Londres. Era seu lar havia mais
de uma década e ela o havia escolhido, em vez de opções mais bonitas,
justamente pelo salgueiro. Tendo crescido à beira-mar, aprendeu sobre os
prazeres de viver em uma cidade movimentada ao mesmo tempo em que ter
uma bela vista nas janelas permitia que os olhos descansassem.
Ela se acomodou na chaise-longue verde e dourada e acendeu a luminária
de chão. Este era o seu local de leitura, de frente para a janela em vez de para
a TV, uma estante de livros ao alcance, embora lesse com mais frequência em
uma tela do que gostaria de admitir. Uma nova mensagem vibrava em seu
telefone — a sra. Dass, do terceiro andar, convidando-a para jantar, como
sempre fazia nas raras noites em que ouvia Zahra andando no apartamento
de cima, quando se aproximava do horário de jantar dos Dass, às 19h30. Ela
sabia que os Dass a imaginavam muito sozinha e, embora essa atitude
geralmente a irritasse pelas suposições sobre sua vida de solteira, ela via no
casal uma semelhança com a devoção de seus pais um pelo outro e sabia que
eles estavam apenas refletindo sobre quão solitários seriam um sem o outro.
Na maioria das vezes ela aceitava o convite, mas esta era uma daquelas noites
em que nada no mundo parecia mais atraente que colocar os pés para cima
em seu doce lar, com uma playlist de R&B fluindo pelos alto-falantes,
enquanto um molho de tomate fervia no fogão. Ela agradeceu a sra. Dass e
disse que já havia comido — qualquer outra desculpa, como cansaço ou
trabalho, faria com que o sr. Dass subisse com um prato de comida —, e
agora que havia aberto o aplicativo de mensagens rolava a tela para baixo,
sem ter de pensar no que estava fazendo ou por quê, até uma conversa de
várias semanas atrás.

Isso foi uau* inapropriado?


Sim
Me desculpe. Vamos tentar de novo: Respeitada madame, saudações.
Madame faz parecer que sou dona de um bordel
Deusa respeitada
<emoji revirando os olhos>
Então, agora que mora em Londres, você ainda usa sáris vermelhos?
Não
Isso é um crime contra a humanidade. Vestidos vermelhos? Biquínis?
Inapropriado de novo?
Hmmm. Talvez você realmente tenha se tornado uma adulta muito
comportada.
Pena.

Agora era um movimento automático da mensagem para a foto do perfil


e depois, via VPN que estava sempre ligado, para o site do Imij, no qual ela
recusou a sugestão de baixar o aplicativo e continuou como usuário
anônimo. Ele era casado, ela sabia disso desde a primeira vez que encontrou
o perfil numa busca que foi de Saba até o irmão dela e até Hammad. A
mulher de Hammad era muito mais jovem, toda maquiada e com o cabelo
produzido em salão, e sempre posava com o mesmo sorriso, as bochechas
encolhidas para dentro e o queixo erguido, a cabeça bem inclinada. Nas fotos
dos dois juntos, a mão dele descansava no quadril dela, possessivo, e ela se
inclinava para ele. Em todas as fotos, a mesma mão no quadril, a mesma
inclinação. Sua página era praticamente igual à de vários homens que ela
conhecia da escola — a vida expatriada de alguém que trabalhava no setor
financeiro, socializando praticamente só com paquistaneses, viajando para
outros países para assistir partidas de críquete, quase sempre com um copo de
vinho ou de uísque na mão, às vezes um charuto. Hammad em um resort de
praia, Hammad em um bar numa cobertura, Hammad em Versalhes. Havia
dois filhos também, adultos, que apareciam às vezes e claramente não eram
os filhos da atual sra. Hammad. Desde sua última visita à página — ontem
mesmo — ele havia feito uma nova postagem. Era um gif de Hammad
dançando — braços erguidos, quadril girando. Parecia se mover de forma
independente do resto do corpo, aquele quadril. Ele vestia uma camisa preta
de botão e calça jeans que era praticamente um uniforme de alguns homens
de Karachi, nada atraente. O gif repetiu várias vezes. Ela tomava um gole de
vinho e assistia. Marvin Gaye cantava.
Tomate, pimenta e manjericão perfumavam o ambiente. Ela se levantou,
foi até a cozinha e pôs o macarrão na água fervente.
Ela havia chegado à idade em que não se preocupava mais com a
pergunta “por quê?” em relação à própria personagem. Contudo, muitos de
seus anos na universidade e o começo dos vinte e poucos anos foram
desperdiçados tentando pensar ou falar para escapar dos próprios desejos.
Layla, sua amiga mais próxima em Oxford, já havia percebido o problema
desde o início. Eram duas Zahras em relação aos homens: a Zahra
comportada e a Zahra aventureira. A Zahra comportada namorava o
matemático do Sri Lanka que fazia ovos especiais para ela no café da manhã;
a Zahra aventureira o traía com o professor de direito. A Zahra comportada
encontrava amigos de amigos em piqueniques e saía para jantares e cinema
antes de decidir se levaria o relacionamento adiante; a Zahra aventureira fazia
sexo no banheiro da boate com homens cujo nome ela nunca perguntava.
Ela tirou os cubos de berinjela caramelizados do forno e acrescentou ao
molho. Não conseguia se imaginar fazendo isso agora, sexo em banheiros de
boate; não era o anonimato, mas a indignidade do ambiente que a impediria.
É assim que você sabe que não é mais jovem: começa a se preocupar mais
com a contagem dos threads do que com a gratificação imediata. Restou
alguma vida nesta crosta de parmesão?
Tom Lennox apareceu quando ela estava com vinte e quatro anos, no
começo um aventureiro, um homem de quarenta anos que morava com a
namorada de longa data. Mas, depois que deixou a namorada — o que ele
fez muito rapidamente — e que todos se acostumaram com a diferença de
idade, ficou claro que ele era totalmente comportado. “O Tom que preenche
todos os requisitos”, era como Maryam se referia a ele. Até seu pai aprovou.
Ela o amou muito por vários anos, era bom de lembrar. As coisas
funcionaram entre eles por um tempo, mas depois não funcionaram mais. Ela
ainda pensava nele com carinho, se falavam todos os anos no que teria sido o
aniversário deles e o bom sentimento entre eles a deixava feliz por ter
desistido duas vezes logo antes de ter casos só para ver se isso aliviaria a
sensação de aprisionamento de um casamento. Muito melhor que ela
percebeu que não queria se casar — com ninguém. E com esse
entendimento a Zahra comportada desapareceu.
Faltavam ainda oito minutos para o macarrão ficar cozido. Ela voltou para
a sala de estar, onde o telefone estava sobre a mesinha de apoio feita de um
tronco de árvore. Tocou a tela e Hammad e seu quadril apareceram outra
vez.
Fazia um bom tempo que ela havia parado de perguntar “por quê?”, pois
não permitia mais que o mundo lhe dissesse o que era ou não aceitável que
uma mulher desejasse. A pergunta se desviou para a segurança — segurança
física, segurança de sua reputação. Isso a mantinha longe dos aplicativos —
imagine se os tabloides encontrassem seu perfil? Ou se um dos homens lhe
enviasse ameaças de estupro e de morte? Ela podia pensar nas ameaças de
forma razoavelmente imparcial, pois se treinara para ficar longe dos lugares
onde elas se anunciavam. A necessidade de digitar seu nome em uma barra
de pesquisa fora superada havia muito tempo. Sem serem vistas, as ameaças
não pesavam dentro dela; ao contrário, apenas formavam uma cicatriz do
medo costurado nela, o que a marcava como mulher e à qual estava agora tão
acostumada que na maioria dos dias nem pensava nisso. Medo feminino,
Maryam tinha dito uma vez.
Ela fechou o gif e voltou para as fotos. Mudou a playlist para ouvir Chris
Isaak cantando “Wicked Game”, uma música que sempre a remetia para a
praia de Karachi à noite, a lua cheia e baixa, a areia fresca sob os pés e os
lábios quentes de Babar enquanto a beijava longe das vistas do resto da festa;
ela mantinha os olhos fechados, imaginando alguém menos prudente que
um garoto a quem seus pais a confiaram. Agora, com os olhos bem abertos,
rolou a tela, clicou e ampliou. Ela conhecia homens como Hammad, tinha
crescido com muitos deles, continuou a conhecê-los por intermédio de
Maryam, que mantinha firmemente as relações da infância. Ele era superficial
e vaidoso, estava escrito na cara dele. Talvez cruel, talvez corrupto, por que
fingir vaidade devia ser a sua pior característica? Mas aquela mão no quadril
da esposa, o jeito que ela se inclinava para ele, a perfeição daquelas poses
todas — ele mantinha seus casos em discrição, começando as coisas com
mulheres em países distantes que poderia visitar a trabalho por alguns dias no
ano, e ela fazia vista grossa quando ele escorregava. Zahra lembrou-se da mão
dele em sua barriga, o primeiro toque sexual de sua vida, e estremeceu — a
lembrança se transformando em expectativa.
O nome “Maryam” lhe veio à mente e ela o empurrou para fora. De
qualquer forma, trinta anos se passaram e ela não precisava saber.
Só para constar, sempre fui completamente apropriada, escreveu no aplicativo de
mensagens.
Era madrugada em Cingapura. Ela jantou, assistiu a dois episódios de Line
of Duty, passou um bom tempo escrevendo em um grupo chamado Keeping
It Real, composto por quatro amigas que não se conheciam dez anos atrás,
mas que agora conversavam todos os dias sobre seus triunfos e irritações,
sobre programas que estavam vendo na TV, pessoas nas redes sociais que elas
desprezavam pelo comportamento de chamar a atenção envolto no disfarce
de boas ações políticas (elas eram seus filtros das redes sociais, essas amigas,
mandando capturas de tela de qualquer coisa que parecesse divertida ou
irritante ou da qual precisava estar ciente). Ela contou sobre a troca de
mensagens com um homem de muito tempo atrás e elas comemoraram o
retorno do frisson à sua vida. Uma disse que admirava a capacidade de Zahra
de isolar as relações sexuais em um cantinho e prosseguir com todo o resto;
outra deu graças a Deus pelos rolos clandestinos de Zahra, pois, não fosse por
isso, ela seria impecável demais para suportar. A terceira, Rose, que trabalhou
com Zahra, disse essas mensagens estão em um aplicativo criptografado, certo?
Ela estava lendo na cama quando a tela acendeu.

Tenho te visto on-line


Sinistro
Me aperfeiçoei
Aprendi muito sobre os males dos cartões de ID

Ela sorriu. Recentemente fora a oradora principal em uma conferência


de direitos humanos em Belfast, onde falou sobre as implicações de liberdade
civil nos planos do governo de introduzir cartões de identidade. Ela usava um
terninho, bem escondida atrás da tribuna. Enquanto ele assistia àquilo, ela
estava olhando para ele em uma praia com a camisa desabotoada.

Um prazer oferecer conhecimento cívico


O que posso te oferecer?
Não consigo pensar em nada
Você tem pensado nisso

Me conta o que pensou


Boa noite, Hammad.
Boa noite, Deusa.

*
Um portão alto de aço em uma rua pouco promissora da King's Cross
conduzia a um pátio de paralelepípedos dominado por uma estrutura que
pareciam dois contêineres de navio feitos basicamente de vidros empilhados
uns sobre os outros. Essas eram as instalações da Venture Further — uma sala
de conferências e salas de reunião menores no contêiner de baixo, escritórios
dos três sócios e de sete outros funcionários no andar de cima. No pátio, um
bicicletário, uma mesa de pingue-pongue e mesinhas de madeira rústica para
tomar café e bater papo davam a impressão de uma empresa jovem, festiva e
aberta a ideias.
Às vezes era exatamente isso, mesmo se houvesse tempo para um simples
bate-papo no pátio. A empresa financiava startups, e Maryam amava mais que
tudo o otimismo e a energia que surgiam no início do processo, as ideias
cintilando, esperando para ser orientadas na direção do potencial delas. Em
outros dias, e hoje foi um deles, era possível começar o dia não conseguindo
convencer seus coinvestidores a entrar em outra rodada de financiamento
para algo com falhas, mas corrigíveis, e então passar a expulsar um jovem
CEO fundador da própria empresa, embora não fosse só dele, como ela teve
de mostrar em uma reunião feia e cheia de lágrimas, pois pertencia aos
investidores, e se o CEO fundador sistematicamente fracassasse em ouvir
alguma opinião que lhe teria permitido fazer da empresa um sucesso,
Maryam e os demais do conselho poderiam removê-lo da equação e ver que
lucro ainda poderia ser salvo do naufrágio de seus sonhos. Ele a chamou de
puta ao sair.
Pelo menos o sol surgira, finalmente, e ela poderia fazer a próxima
reunião em uma mesa no pátio, tomando café da cafeteira de nível PhD que
ninguém além do gerente do escritório sabia operar.
Gordinhas não ocupam as primeiras páginas, tinha dito o Garoto de
Ouro, mas ele não contava com o pai da garota de “pele caramelo e cílios
longos”, como um colunista arrebatou, e aquele ar de decência de Habib
Ali. Os murmúrios ocasionais de todos os meios de comunicação sobre a
influência corruptora das redes sociais nas crianças encontraram um rosto e
uma voz sob a aparência de um psiquiatra britânico-paquistanês, tão
eloquente sobre o dano causado à sua filha, a raiva que permitiu que aquilo
acontecesse e o medo por todas as meninas e meninos com os quais a mesma
situação estava acontecendo agora. Ele parecia estar em toda parte, no
Guardian, no Good Morning Britain, no Daily Mail, no Mumsnet, no Gal-Dem.
Amanhã de manhã ele devia ser entrevistado no Today e havia rumores de
que mudaria o foco, passaria de uma exigência generalizada para que as
empresas de redes sociais “fizessem o melhor” a um apelo para que o
governo incluísse um discurso no futuro projeto de lei sobre segurança na
internet que responsabilizasse os chefes da tecnologia pelo ódio e pelo
bullying que eram permitidos e proliferavam em seus aplicativos. A expressão
“acusações criminais” emergiu. Uma petição já tinha sido redigida em nome
de sua filha exigindo a ação do governo, mas as petições não incomodavam
Maryam. Homens de fala macia com ar de decência que eram defendidos
tanto pelas alas de esquerda quanto de direita da mídia, sim. O tabloide Metro
o chamou de o Pai Favorito da Nação.
“Tire-o do comando”, disse o possível comprador do Imij, e os
capitalistas de risco com participações em outras empresas de redes sociais,
incluindo seus coparceiros, disseram a mesma coisa.
Onze minutos depois do horário, o homem que ela estava esperando
entrou no pátio, com sua aparência peculiar de Garoto de Ouro, um
bronzeado recente.
“Essa irritação toda está revirando meu estômago”, disse ele, erguendo
uma garrafa de vidro como cumprimento. “Kefir”, acrescentou, e lhe
ofereceu depois de beber diretamente da boca da garrafa.
“Não tenho muito tempo”, disse Maryam, mantendo um tom ameno de
modo que ele pensasse que ela era indiferente a seus jogos de poder.
“Desculpe, desculpe”, disse ele, com a contrição de um garoto de escola
pública. Maryam fora sua primeira investidora, a primeira a acreditar em sua
visão do que era possível para o Imij, e ele a tratava com uma cortesia, às
vezes até uma deferência, que não oferecia a mais ninguém.
“Você tentou mais uma vez marcar um encontro com ele?”, ela
perguntou.
“Ele ainda insiste que só terá uma conversa quando lhe enviarmos
propostas para mudar não só as nossas políticas sobre bullying, mas também os
nossos algoritmos.”
Os algoritmos eram o tubarão sob as águas daquilo tudo. A filha do
homem — Tahera era o nome dela — começou a ver postagens de
automutilação depois que a imagem da garota-porca viralizou e muito
rapidamente, afirmou o pai, seu feed foi inundado com conteúdo
relacionado, levando-a ao limite. Por sorte, pouquíssimo pôde ser provado
sobre os algoritmos do Imij e a maior parte da revolta da mídia continuou
centrada no bullying. Por ora, pelo menos.
“O que ele quer que a gente faça, que subverta todo o etos da internet
para dar às pessoas mais do que elas querem? É antidemocrático, isso é que é.”
Ele não estava olhando para ela enquanto falava, deslizando os dedos pela tela
do celular.
“Espero que não seja essa a proposta de estratégia sobre a qual você veio
conversar comigo.” Ela acenou com a xícara de café para o gerente do
escritório que estava batendo na janela do andar de cima para avisar que
tinha uma teleconferência começando em poucos minutos, esperando que
isso indicasse a ela para subir logo, e ela, que precisava de outra xícara cheia.
Ele sorriu ao passar o celular para Maryam e ela viu algo de Saba na
expressão dele — o prazer de saber um segredo desagradável — antes de
olhar para a tela.
Lá estava ele, o Pai Favorito da Nação, sentado atrás de uma mesa de
madeira muito parecida com as do pátio, reclinado na direção de uma
mulher de cabelos cor de cobre que não era a esposa da primeira página dos
jornais. A mão dela segurava o rosto dele, a boca dele pressionada contra a
palma da mão dela.
“Isso foi no dia seguinte à alta da filha do hospital”, disse o Garoto de
Ouro, muito satisfeito consigo mesmo. “Imagine, ela em casa com os pulsos
enfaixados e ele lá fora fazendo isso.”
“Isso é autêntico?”
“Deus, claro que é. Não sou um idiota.”
“É do Imij?”
O Garoto de Ouro fez um movimento vago de cabeça que terminou
com uma afirmativa.
“E como você achou? Não creio que ele tenha colocado isso em sua
página de perfil.” O Pai Favorito da Nação tinha uma conta no Imij, mas
havia apagado todas as fotos que postara antes — a maioria de flores — e as
substituiu por uma tela que dizia #JustiçaparaTahera #MudançaJá sobre um
fundo preto.
“A cavalo dado não se olha os dentes.”
“Às vezes, o presente é um cavalo de Troia e se você olhar os dentes verá
os soldados escondidos lá dentro, prontos para cortar sua garganta enquanto
você dorme à noite.”
“Ninguém jamais saberá.”
Quase uma verdade. Qualquer pessoa com uma conta do Imij — ou até
um usuário anônimo — pode encontrar uma fotografia em uma conta
pública e optar por chamar a atenção para ela. Não havia nada que vinculasse
isso ao recurso de marcação facial do Imij, que supostamente dava aos
usuários controle sobre quem poderia marcá-los; só era ativado para aqueles
que haviam optado pela função de marcação e não dava poder nenhum ao
CEO do Imij para marcações faciais além da própria conta.
“Garoto esperto”, disse ela ao Garoto de Ouro, que se aprumou na
cadeira com o elogio. Era possível que ele sentisse atração por ela. O
oferecimento da garrafa de kefir da boca dele para a dela assumiu um tom
diferente de significado. “Me mostre. Será nosso segredo.”
Ele sorriu, satisfeito. Homens como ele sempre queriam mostrar os
brinquedos que fabricaram.
Ele abriu o aplicativo do Imij, digitou o nome da conta @KoffeeKraave
na barra de busca e rolou a tela até a foto de um homem — mais velho,
japonês — sorrindo com formalidade para uma câmera. Estava em um café,
cujo menu era escrito com giz na parede acima da cabeça dele. As marcações
o identificavam como o avô de @KoffeeKraave. O Garoto de Ouro se
recostou, observando-a enquanto ela olhava a fotografia. Ela ampliou um
canto da imagem. Atrás do ombro do homem, um casal estava sentado na
mesa do fundo do café, pegos em um momento de intimidade.
“Os recursos de identificação facial são excepcionais”, disse ela,
dispensando o gerente do escritório que se aproximava com uma xícara de
café.
O Garoto de Ouro sorriu e fez um gesto sobre a boca, como um zíper se
fechando, sinalizando que era tudo o que ele ia dizer.
“Então, quais são os próximos passos?”, perguntou.
Ela enviou a foto do telefone dele para o dela. “Vou cuidar disso”, disse,
levantando-se. Indicou o mostrador do relógio e ele disse claro, desculpe
novamente pelo atraso. Quando ela olhou para trás, na porta do escritório da
Venture Further, ele estava perto da mesa de pingue-pongue, bebendo sua
garrafa de kefir, pernas abertas, o céu azul de abril como fundo. O Mestre do
Universo. Seu rosto nunca conheceu, nem nunca conheceria, nada parecido
com a expressão do casal na foto do café. Abertos, descuidados, dada a ilusão
de segurança por uma força de sentimentos um pelo outro que fez todo o
resto desaparecer.
O mundo era exatamente como seu avô sempre lhe ensinara. Terrível e
brutal, implacável. Mas ela também sabia a verdade que se seguia àquela que
ele não conseguira entender: mantenha por perto os que você ama, proteja-
os. Não há outra fonte de luz.

Inesperadamente, no ano passado, a meia-idade anunciou sua chegada na


forma de palavras borradas na página e uma dor nas costas que se entocou
fundo e não queria ir embora até um osteopata realizar um exorcismo.
Então, agora o escritório de Zahra tinha sido equipado com óculos de
leitura, uma bola de exercícios e uma cadeira ortopédica ridícula de cara. Ela
tirou os óculos, levantou-se da cadeira, pegou a bola debaixo da mesa e
esticou-se sobre ela, alongando a coluna e trabalhando a musculatura. A
escultura de cerâmica de Layla olhava para ela de uma estante perto da porta:
uma mulher velha e pesada cujo corpo nu havia perdido a batalha contra a
gravidade, sentada com as mãos nos joelhos, a cabeça atirada para trás de
tanto rir. “Você está certa, é um absurdo”, disse Zahra, largando o exercício
na metade. Ela puxou a tela de privacidade sobre o quadro branco que
ocupava uma longa parede da sala e fechou as persianas das janelas do teto ao
chão que davam para um mercado de rua, barulhento com a clientela do
almoço em Victoria.
Os funcionários dos escritórios faziam fila ao lado dos quiosques com
toldos azuis, a presença deles alterando a característica da rua por algumas
horas todas as tardes. Os pratos com curry e as paellas estavam fazendo sucesso,
mas, uma vez que o verão chegasse, os wraps — gregos, mexicanos, libaneses
— dominariam. Se o verão chegasse. Em certos anos, ele parecia pular
Londres inteiramente. E mesmo assim, era verdade, ela amava o clima de
Londres, sua mutabilidade. Era surpreendente o quanto essa cidade tinha
roubado seu coração. Certos dias, uma qualidade em particular da luz a fazia
recuperar o fôlego e pensar em “abril” ou “julho” ou “outubro” ou em
qualquer mês em que a luz parecesse como em nenhum outro mês, em
nenhum outro lugar no mundo. Agora, a luz da tarde estava caindo
suavemente. Ela costumava ler sobre essa luz nos livros da infância, mas não
entendia de verdade o que significava até vir para a Inglaterra. “Suavemente”
não era uma palavra que se pensaria em usar para a luz da tarde em Karachi,
que percorria toda a escala de radiante a cruel.
“Você já ouviu falar da Mesa Principal?”, disse Rose, entrando na sala
com sua maneira enérgica de costume. Rose era a chefe do departamento
jurídico e a pessoa para quem Zahra ligava quando algo terrível acontecia no
mundo e era essencial falar com alguém que respondesse na exata sincronia
com suas emoções. A educação que Rose recebeu em Bognor Regis era o
mais distante possível da infância de Zahra em Karachi e mesmo assim era
uma daquelas amizades totalmente explicáveis para o mundo exterior.
“Você está falando do meu passado na Oxford?”
“Não. Acabei de almoçar com Clare.” Clare era uma amiga em comum,
uma jornalista investigativa do Open Democracy. “É um novo clube de
doadores de elite para o Partido Cada Vez Mais Desavergonhado. Pague
duzentas mil libras aos cofres deles e ganhe níveis de acesso ao governo sem
precedentes.”
“Eles são mesmo desavergonhados”, disse Zahra, chutando a bola de
exercícios para Rose, que a chutou por baixo da mesa com uma destreza que
vinha dos fins de semana passados no jogo de futebol com mulheres de
metade da sua idade. “Que babacas estão dando duzentas mil libras para
eles?”
Rose ergueu as mãos para o teto. “É revoltante, eles parecem não estar
nem aí sobre a declaração de suas doações.”
“Deus, é desesperador.” Ela vira quatro primeiros-ministros irem e virem
em seu tempo no CLC, e com cada mudança de administração ela e sua
equipe tinham feito um lobby efetivo por mudanças na legislação — mesmo
quando o partido governista tinha a maioria parlamentar, sempre havia
deputados rebeldes ou irrequietos ou aqueles que colocavam as liberdades
civis acima da lealdade partidária. O retrocesso das leis antiterror, as emendas
ao projeto de lei sobre crimes de ódio, o fim do ato de poderes
investigatórios, conhecido como Snoopers' Charter, foram todos, em parte,
vitórias do CLC. A Grã-Bretanha era um lugar diferente, um lugar melhor,
por causa deste escritório. Ela deixava seu pai muito orgulhoso.
Mas havia um novo personagem em Westminster agora — todos os
rebeldes tinham sido expulsos do partido e os que restaram estavam ao lado
do novo governo e sua popularidade nas urnas. Era difícil ver quando ou
como viria alguma vitória parlamentar outra vez. Quanto às vitórias legais,
era claro que o governo planejava se esquivar das decisões judiciais sempre
que pudesse, enquanto trabalhava na legislação para restringir o poder dos
juízes.
“Pare de ser indulgente consigo mesma”, disse Rose com a impaciência
enérgica de alguém que já estivera em guerras suficientes, pessoais e
profissionais, para saber como o desespero era uma posição confortável. Ela
caminhou até a mesa de Zahra, tirou um McVitie's com cobertura de
chocolate de uma gaveta e voltou para sua sala no fim do corredor.
Zahra voltou a olhar pela janela. Achou que merecia ter alguns minutos
de autoindulgência. Em uma conferência na noite passada, a secretária do
Interior ampliou sua fala sobre Zahra “ficar do lado de criminosos”, que
passou a ser “ficar do lado de criminosos e terroristas”. Isso em referência à
campanha do CLC contra o projeto de lei antiprotesto, como ficou
conhecido, embora o governo tivesse um nome muito mais eufemístico para
ele: projeto de lei de segurança e condenação. Zahra sabia, por comentários
ouvidos no escritório, que o abuso on-line chegara ao pico novamente.
Havia um corredor estreito entre um quiosque azul e o seguinte do qual
Azam, o ajudante de padeiro, tinha uma visão de sua janela na Scrummy, a
padaria do outro lado da rua. Ela observava enquanto ele caminhou até a
calçada, apontou para si mesmo e depois para ela e bateu no relógio,
levantando o dedo indicador. Ela concordou com a cabeça, sim, claro que
ele podia vir vê-la por um minuto. Era comum Azam entrar no escritório do
CLC no meio da tarde com barras de limão e brownies da fornada matinal
que não haviam sido vendidos e que, ele insistia, seriam desperdiçados se o
seu povo inglês favorito não os comesse — todos com um passaporte
britânico eram o “povo inglês” para Azam, incluindo sua esposa, que nascera
em Cabul como ele, mas viera para Londres quando criança. Ele mal podia
esperar para fazer parte do povo inglês.
Ela o ouviu conversando com o recepcionista, Ray, antes de entrar em
sua sala com sua usual calça jeans, camiseta, suspensórios e avental de padeiro.
Era um daqueles jovens de vinte e oito anos cheios de vigor e otimismo, que
fazem relembrar os melhores momentos de ter vinte e oito anos.
“Obrigado”, disse ele, estendendo os braços sobre a mesa de Zahra e
abrindo as mãos para revelar uma pequena oferta, lindamente embrulhada.
“Pelo quê?”, ela perguntou.
“Sua ajuda com o meu formulário.” Havia pouco tempo Azam solicitara
ao Ministério do Interior uma licença de permanência por tempo
indeterminado, o penúltimo passo no caminho para a sua nacionalidade
inglesa. Todas as checagens complicadas aconteceram quando sua esposa
solicitou um visto de casamento, de modo que foi um pedido bastante
direto. Mas ela sabia por Ray o quanto Azam estava nervoso com o pedido,
tendo em vista todas as notícias sobre candidatos rejeitados por um
Ministério do Interior cada vez mais hostil aos imigrantes, e acabou se
oferecendo para examinar a papelada.
“Não precisava”, disse ela. O formulário dele tinha sido montado com
tanta perfeição que ela brincou que suas habilidades de padeiro ficavam
evidentes — a precisão, a atenção aos detalhes. Ele disse que não se devia às
suas habilidades de padeiro, mas à exatidão clínica de sua esposa
farmacêutica. Agora ele fazia um som para dizer que a afirmação dela era tão
absurda que ele não conseguia pensar nas palavras para refutá-la. O presente
era uma pulseira com um pingente de anjo, de prata, não apenas prateado.
Havia visto seus demonstrativos financeiros e sabia que ele não tinha
condições de bancar presentes como este, mas ela não podia envergonhá-lo
fazendo outra coisa que não fosse aceitar.
Ele não permaneceu além do minuto que havia pedido e Zahra voltou ao
trabalho, lendo um documento com informações básicas sobre o projeto de
lei antiprotesto que sua equipe havia reunido para os membros da Câmara
dos Lordes — a câmara não eleita era a único lugar em que havia alguma
esperança de que a vontade governista fosse abrandada, se não derrubada,
uma ironia quase intolerável de se pensar.
Isso me lembrava de você
Ela descartou a notificação da tela sem nem olhar a imagem anexada que
Hammad havia enviado. Ele sabia que não devia esperar uma resposta
durante o expediente. Ele era a última coisa dela à noite, ela era a primeira
coisa dele pela manhã. Era provável que a esposa não mencionada dormisse
na cama o tempo todo.
Foco da campanha?, ela escreveu perto de um parágrafo sobre o alvo do
projeto de lei para ativistas climáticos. O anjo pendurado em seu pulso
lançava uma sombra na página. Ela o segurou entre o polegar e o indicador;
parecia inesperadamente pesado.
Houve um grito no setor da recepção, as vozes de Ray e Azam
justapostas. Zahra se levantou e caminhou até a porta da sua sala, mas agora
os gritos vinham de fora. Ela se virou para a janela bem a tempo de ver
Azam com o joelho no peito de um homem deitado na calçada, o punho na
direção do rosto do homem.
E depois Ray puxando Azam para trás, braços apertados ao redor dele,
imobilizando-o.
Zahra correu para a recepção, sentindo o cheiro do que tinha acontecido
antes de ver a sacola de excremento que havia caído e se aberto no chão
entre a mesa de Ray e a porta de entrada. Uma sensação e um cheiro
desagradáveis quando o salto de seu sapato pousou no que havia respingado.
Ela seguiu até a porta da rua, Rose e Alex, o estagiário, alguns passos à frente
dela.
Lá fora, Ray soltara Azam, que estava de pé, a mão cobrindo os nós dos
dedos, a mão de Rose em seu ombro. O outro homem também estava de pé,
com o nariz sangrando, os braços atrás das costas, um pulso agarrado por
Ray, o outro pelo cozinheiro de Bangladesh do quiosque tailandês. Uma
fileira de homens — o padeiro que empregou Azam, o homem trans da loja
beneficente, vários chefs e caixas dos quiosques — ficou assistindo com os
braços cruzados, ombro a ombro, deixando o homem com o nariz
ensanguentado saber que eles o queriam livre e correndo para que tivessem o
prazer de derrubá-lo outra vez.
“Você cheira a merda”, disse o homem com o nariz ainda sangrando
quando Zahra se aproximou. Ele estava inclinando a cabeça para a frente para
que o sangue caísse na calçada em vez de pingar na boca e na camisa dele.
Ray imprimiu força para fazer o homem gritar de dor.
O som das sirenes da polícia se aproximava. “É para você”, disse Alex.
“Pra mim?”, disse o homem. “Eu derrubei uma sacola sem querer. Seu
amigo aí, é ele que vai ser acusado por agressão. Ei, talibã, você está
legalizado?”
Azam se virou para olhar para ela. Ele não podia ter uma acusação judicial
com um pedido pendente no Ministério do Interior.
“Vai ficar tudo bem”, ela disse. “Prometo.”
Ela viu o olhar que Rose lhe lançou: não prometa, nunca prometa. Mas o
medo desapareceu aos poucos do rosto de Azam, sendo substituído pela
confiança. Ela seguiu em direção a ele, e Rose e Alex deram um passo para
se afastar dela; o mau cheiro de seu sapato era nojento.

Zahra disse que estava bem, não havia necessidade de Maryam cancelar
nenhuma reunião para vir segurar sua mão.
“Como você pôde deixá-lo escapar impune?”, Maryam perguntou,
enquanto mandava uma mensagem de texto para Layla pedindo para tirar
Zahra do escritório cheio de merda em que ela parecia insistir em ficar.
“Preciso desligar”, disse Zahra. “Layla está ligando.”
Depois de duas reuniões de apresentação, o grupo de bate-papo “Colegas
de Karachi” tinha cento e sessenta e oito novas mensagens, todas sobre os
acontecimentos no escritório de Zahra. Todos os colegas de escola que se
estabeleceram nos Estados Unidos e na Inglaterra ficaram indignados; os
americanos em particular tendiam a usar a palavra “trauma”. Os que ficaram
em Karachi, para quem o racismo só era relevante quando pediam vistos para
viajar para a Europa ou aos Estados Unidos, trataram o assunto basicamente
como uma questão de limpeza. Caiu no carpete ou no piso frio?, disse um. A
ventilação é boa?, perguntou outro.
A sorte de viver em um país onde mandam excrementos em vez de mãos
decepadas ou bombas, disse um jornalista em Karachi que sobreviveu a uma
tentativa de assassinato. Zahra estava digitando uma resposta que veio alguns
segundos depois: Sim, uma sacola cheia de merda é o nível elevado de civilização
que temos aqui. Uma mão decepada teria sido mais fácil de limpar (não no carpete,
graças a Deus). Maryam riu, enquanto começou a escrever uma mensagem
privada para Zahra. Alguém pode fazer uma captura de tela e pôr você em apuros,
idiota. Antes que ela tivesse a chance de enviá-la, Zahra apagou a mensagem,
terminando com um Ok. Quem daqui você achou que vazaria isso?, mensagem
de Babar. Maryam escreveu Saba! no grupo que mantinha com Zahra e
Babar no exato instante em que Zahra escreveu Saba, certeza.
É claro que oficialmente Zahra adotou outro tom com o repórter da
BBC — amigo de um amigo de Zahra — que em minutos entrou no ar.
“Um ataque às liberdades civis”, “um sintoma de um mal-estar muito mais
amplo”, “o dedo da culpa deve apontar para aqueles que, no poder, usam a
política como quem usa apito para cães e depois alegam estar chocados
quando coisas como essa acontecem.”
Era evidente que Zahra amava aquilo tudo. Não o ataque ao escritório,
claro, mas a persona que habitava nela como diretora do CLC — segura de si,
corajosa, cheia de certeza moral. Engraçado lembrar como ela era tímida
quando garota, sempre com medo de que algo terrível estivesse para
acontecer. Maryam amoleceu, lembrando o quanto estava orgulhosa da
melhor amiga, mesmo quando não concordava com ela. Zahra tinha se
tornado exatamente o que sempre quis ser: alguém.
Maryam pôs o telefone de lado em sua mesa, que era de aço inoxidável
com madeira nobre e tinha um nome próprio como modelo — a Zieg 2000,
aparentemente uma sucessora muito esperada da Zieg 1500. Na Zieg 2000
os cabos dos monitores passavam através da estrutura ficando invisíveis, que
era o mais próximo que ela chegaria de comprar móveis com “atrações”. Ela
não aprovava a tecnologia exibicionista e mal conseguia olhar sem se arrepiar
para a mesa de seu parceiro Connor, com uma tela de toque integrada.
“E chamam você de guru da tecnologia”, ele a provocou um dia e ela se
espantou ao lembrar que até alguém como Connor, que trabalhava a seu lado
desde os primeiros dias em venture capital, não sabia que havia gerações de
design clássico em seu sangue, o que trazia certo desdém pela “moda
passageira”.
A mobília do escritório era toda de linhas limpas, nas paredes em tom
verde-sálvia estavam penduradas reproduções em aquarela de anúncios
antigos do Paquistão que ela havia encomendado de um artista de Karachi
recém-formado no National College of Arts que agora estava expondo no
Tate e no MoMA. Dentre as aquarelas, um anúncio da Khan Leather da
década de 1950, quando a empresa diversificou suas atividades com malas.
VIVA UM ESTILO DE VIDA KHAN LEATHER SEM SAIR DE CASA!
Ela pôs os fones de ouvido e fez uma chamada para atualizações com um
fundador da Venture Further cuja empresa de biotecnologia usava IA para o
diagnóstico precoce de câncer de mama. Enquanto ele falava, ela clicou no
link que Babar tinha postado no grupo dos colegas. A filmagem de um
circuito interno de TV chegou à internet a partir de uma câmera na rua
onde Zahra tinha o escritório. Mostrava o homem abrindo a porta do CLC
e jogando uma sacola para dentro, o braço tomando impulso e arremessando.
Antes que a porta se fechasse, um segundo homem com avental de padeiro
saiu correndo e se atracou com o primeiro homem, derrubando-o na
calçada. Aí a filmagem terminou.
Ela perguntou ao fundador Quanto dinheiro você está gastando com isso? e
rolou a tela para ver os comentários. Alguém tinha identificado o homem,
trabalhava numa loja de ferragens não muito longe do escritório do CLC.
Havia uma pilha de comentários direcionados a seus empregadores
perguntando como podiam ter alguém assim na equipe. Outras pessoas o
chamavam de herói, alguém se ofereceu para montar uma página no
GoFundMe se a brigada em vigília conseguisse demiti-lo. Era isso que
acontecia quando se tentava controlar uma narrativa nas redes sociais.
Ela se levantou e esticou os braços acima da cabeça. Se não funcionar, você
vai ter de vender os dados de usuários. E depois Então, garanta que ninguém
descubra.
Ela encerrou a ligação e fez mais alguns alongamentos. O Garoto de
Ouro queria que as fotos do Pai Favorito da Nação se tornassem públicas,
mas ela sabia que era perigoso. As pessoas iam querer saber de onde veio a
imagem e, mesmo que nada pudesse ser provado, o suficiente podia ser
adivinhado. Então, ela deu um telefonema. Não para um Billoo, ela não
precisava de ninguém assim, mas para um escritório de investigadores que
muitas vezes lhe deu informações a respeito de pessoas sobre as quais era
necessário saber mais antes de tomar decisões prudentes relativas ao uso do
dinheiro dos investidores. Eles a valorizavam como cliente a ponto de se
encarregar do que era uma tarefa quase amadora: ficar do lado de fora da
sede da BBC, esperando que o Pai Favorito da Nação aparecesse para a
entrevista no Today e entregar a ele um envelope contendo uma fotografia.
A entrevista nunca aconteceu. Uma conta de rede social vinculada à
campanha #JustiçaParaTahera disse que a família estava pedindo privacidade
e que o pai de Tahera não faria mais aparições na mídia; seu primeiro dever
era ficar em casa e cuidar da filha. Sem seu rosto de decência com pele
caramelo e cílios longos, a campanha naufragou e saiu das primeiras páginas.
Maryam ficou feliz por ter permitido que ele se retirasse em silêncio. Nunca
houve nenhuma possibilidade de deixá-lo vencer, mas ela não queria que ele
fosse destruído, apenas derrotado. Seu avô teria ficado orgulhoso dela.

*
“Como você está?”
Pronto. Zahra imaginava por quanto tempo Layla conseguiria não dizer
aquilo. Não era esse tom de comoção que ela usava para começar uma
conversa. “Você não pode ficar naquele escritório fedido. Mande todo
mundo para casa e vamos comprar sapatos novos para você”, Layla tinha dito.
Mas fora antes. Agora estavam sentadas em uma mesa na calçada de um
restaurante de peixe com fritas em Marylebone Lane, diante de uma travessa
de batatas fritas temperadas com vinagre. Zahra usava as novas botas cinza; as
velhas botas cinza estavam em uma lixeira do lado de fora do escritório do
CLC.
“Estou bem”, disse Zahra.
Estava mesmo. Tinha sido um choque, sim, que foi rapidamente superado
pela preocupação com Azam, mas ela ainda estava enlevada pela certeza de
que ele ficara bem. As vitórias eram difíceis de obter naqueles dias.
As duas questões foram tratadas por deliberação da comunidade, sem
registro de ocorrência de nenhum dos ataques. “Tem certeza de que é isso
que você quer?”, dissera o policial — asiático — para Zahra, diante da
sugestão dela. O homem de nariz ensanguentado assumiu sua culpa, Azam
também. Ambos foram obrigados a se desculpar, o que cada um fez sem
deixar claro pelo que se desculpava. O policial não se opôs nem protelou o
assunto; ela ouviu a entonação de Azam, viu seu terror, ela conhecia o país
em que vivia.
“Você não está bem. Não precisa dizer que está bem.”
Certo, e o que se deveria dizer para uma pergunta dessas?
Ela não disse nada, apenas se concentrou em seguir um rastilho de sal ao
redor da travessa com uma batata frita pela metade. Layla recostou-se na
cadeira, de braços cruzados, esperando que Zahra admitisse algum
sentimento de... — do quê? — violação, terror, ódio? Difícil sentir isso em
relação a um homem alto e magro com toda aquela raiva e nenhuma outra
forma de expressá-la a não ser com um saco repleto do próprio excremento.
Ele tinha a aparência de alguém a quem o mundo nunca fizera um único
favor e ela teve a impressão de que ver esse homem algemado no banco de
trás de um carro de polícia poderia fazê-la sentir-se parte de um sistema
cruel.
“Quem foi limpar?”, disse Layla, agora mais branda.
“Ah, Deus”, disse Zahra. “Isso foi estranho. Uma boa parte do escritório
se uniu na opinião de que Ray, eu e Goldie, do Departamento Jurídico, não
poderíamos nem chegar perto dele porque, você sabe...”
“Só os três não brancos do escritório?”
“Não tenho certeza se pensaram que a perspectiva pareceria ruim ou que
seria um gatilho para os nossos supostos traumas de infância.” Ela pisou com
o salto da bota que mal fazia barulho contra a calçada — com o antigo par
era possível ouvi-la caminhando pelo escritório. “Com você nunca
aconteceu nada parecido, não é?”
“Quando você é da classe média, a merda racista da sua infância é
basicamente uma metáfora.”
Layla rasgou o saquinho de papel com os dentes e jogou mais sal nas
batatas fritas. Quando se conheceram aos dezenove anos de idade — ambas
pegando ao mesmo tempo um livro de bolso em um sebo na Cambridge
Market Square — Zahra soube, imediatamente, que aquela mulher
impressionante de macacão azul vivo era alguém que ela queria como amiga,
e foi só por esse motivo que ela sugeriu dividir o preço do livro (custava 50
pence) e cada uma o lesse em sua vez. E quem sabe encontrar um tempo para
discuti-lo? Layla havia desistido de segurar o livro. “Eu queria comprar para
uma amiga. A minha sabedoria vem de Nina Simone, The Clash e Linton
Kwesi Johnson. Que tal umas batatas fritas?” Zahra já tinha encontrado sua
tribo em Cambridge, mas estava começando a se cansar de ficar acordada até
a manhã para discutir se a Comissão da Verdade e Reconciliação era um
pretexto ou uma forma elevada de justiça com pessoas para quem as questões
de transições democráticas ou até de injustiça básica eram puramente
abstratas. Em Layla, ela encontrou uma amiga com quem podia comer
batatas fritas supersalgadas, que a levava a galerias para apresentá-la à arte
contemporânea e a criticava pelas limitações de suas preferências musicais.
(“Bryan Adams? Podemos culpar a ditadura por isso também?”) Zahra não
sabia que alguém podia não se impressionar com seu paladar e pontos de
referência de uma forma tão enriquecedora.
Layla olhou para o telefone e disse alto. “Eles acham que está tudo
acabado; é de agora.”
A loja onde o agressor trabalhava publicou um comunicado para dizer
que praticava uma política de tolerância zero com o racismo e demitiu o
funcionário com efeito imediato.
“Como vemos o julgamento das redes sociais?”, perguntou Zahra.
Câmeras observando, pessoas julgando, formas de punição sendo exigidas
que não acrescentavam absolutamente nada. A secretária do Interior estava
muito segura de sua posição, como sempre, levantando-se no Parlamento
para dizer o quanto estava chocada com o ataque ao CLC, enquanto a
oposição ouvia em um silêncio de colegiais em vez de gritar hipócrita.
Layla jogou uma batata frita nela, que ricocheteou em seu nariz, e ela a
pegou enquanto caía. “É uma coisa horrível, a não ser que seja uma coisa
maravilhosa. Admita que você está contente.”
“Você parece a Maryam.” Era típico de Maryam deixar de lado qualquer
coisa que parecesse um valor e perguntar o que, no fundo, nos lugares mais
selvagens do seu coração, você sentia. Como se as emoções mais básicas
prevalecessem sobre todo o resto; como se só elas fossem verdade e todo o
resto fosse apenas uma postura. Às vezes, Zahra queria dizer que esse era o
tipo de pensamento que levou a Maryam adolescente a querer mandar um
bandido bater em Jimmy, mas isso as levaria a uma conversa sobre aquela
noite no carro de Jimmy que ela não estava interessada em ter. Ela se
perguntava como Maryam pensaria agora nas exigências que fez ao avô.
Ficaria horrorizada consigo mesma? Ou ainda se sentiria justificada? O
problema da amizade de infância era que às vezes você não conseguia ver a
adulta à sua frente porque tinha uma ideia permanente da adolescente que
ela foi um dia e outras vezes era incapaz de ver a adolescente ainda cheia de
vigor dentro da adulta.
“Depois de vinte anos, as pessoas se contagiam”, disse Layla cordialmente,
limpando os dedos em um guardanapo e pegando outra batata. “Mas você
está contente.”
Sim, ela estava contente. Mas e daí? Odiava a atenção exagerada para com
os sentimentos de cada indivíduo, que não passavam de um sinal do
momento presente. Seja maior que você mesma — esse era um dos discursos de
seu pai.
“Por falar em se contagiar, você sabia que ela tem uma empresa de
refugiados para entrega de comida na carteira de investimentos? Ela me
contou na semana passada, como se tivesse feito isso como um presente para
mim.”
“De entrega de comida para refugiados?”
“Claro que não. Pegando refugiados para cozinhar e entregar comida em
Londres. Ela já teve de conversar com os fundadores para concentrar a
propaganda nos cozinheiros e não no fato de que os entregadores também
são refugiados. Disse que antes os britânicos acolhiam bem os refugiados,
mas não se importavam muito com a culinária mundial. Agora vão comer
coisas do mundo todo, mas serão poupados de saber que os que buscam asilo
estão em sua porta.”
As duas riram, o riso captando a capacidade de Maryam de fazer uma
crítica que podia ser considerada de esquerda se ela não estivesse tão
interessada em como lucrar com aquilo.
Tanto as batatas fritas quanto o cair da noite estavam frios demais para
serem aprovados, de modo que elas partiram juntas em direção ao Regent's
Park. Mas quando saíram do parque já estava muito escuro e fazer uma
caminhada por Primrose Hill não pareceria agradável — Zahra registrou uma
pontinha de inveja do homem com roupas de corrida que avançava sem
pensar duas vezes na luz que caía rapidamente. Ela e Layla se despediram e
seguiram por ruas bem iluminadas em direções diferentes: Zahra indo pegar
o ônibus para Swiss Cottage e Layla indo buscar Zola na casa de Mark.
Zahra só dera alguns passos quando ouviu Layla a chamar de volta,
segurando o telefone. Enquanto estiveram caminhando, um tabloide postou
uma nova filmagem na página inicial. Azam socando a cara do homem alto e
magro, com uma expressão horrível. Ao lado da filmagem que se repetia,
uma foto estática: o homem alto e magro, caído para a frente, o rosto
coberto de sangue, segurado em cada braço por um homem de pele escura.
Algo havia sido feito com a foto, de modo que o cabelo loiro do homem
brilhava tanto que a pele de Ray e a do cozinheiro de Bangladesh
escureceram como carvão. Os braços do homem loiro estavam ligeiramente
afastados, enquanto seu corpo se inclinava para a frente, o que era o
suficiente para explicar a repercussão da foto em toda as redes sociais com a
hashtag “crucificação”.

Td bem?
Bem, a não ser por ter jogado fora o meu sapato favorito
Por que?
Vai acabar com o clima se eu te contar
Nunca mais vou perguntar. Espero que o afegão tenha ganhado uma
medalha
Ele foi burro de fazer aquilo. O que leva os homens à violência?
Pode dar satisfação. Você nunca quis me dar um soco na cara?

Era uma surpresa. Ambos tinham evitado — cuidadosamente, ela pensou


— qualquer menção àquela noite que levou à expulsão dele da escola.

Ah, vc está chegando lá


Devia voltar atrás?
Você nunca socou a cara do Jimmy?
Pelo quê?
Vc também ficou aterrorizado naquele passeio de carro

Ela esperava que ele entendesse aquilo como provocação, não como
perdão. Com Hammad, ela podia ser cruel.

Ninguém estava “aterrorizado”


Que palavra vc usaria?
Bonjour
?
Preciso estar em Paris para trabalhar neste verão
Mudando de assunto?
Não finja que não sabe o que estou pedindo

Ela foi até a janela do quarto, observar a vida na rua. Dois homens
estavam parados na porta de um café do outro lado da rua, os cigarros
brilhando em suas mãos. Pela primeira vez em anos ela desejou ainda fumar,
como fez da universidade até os vinte e poucos anos. Ela se imaginou à
distância, uma mulher levantando da cama amarrotada vestindo apenas um
roupão, fumando um cigarro, pensando se se permitiria o que desejava.
Libertando os lugares selvagens de seu coração. Ela soltou o ar e, em vez de
anéis de fumaça, deixou uma névoa na janela. Desenhou um SIM nela.

Maryam pensou na palavra “casa” com prazer, como tantas vezes fazia,
voltando da caminhada noturna com Woolf, o frio fechado do lado de fora
quando ela bateu a porta atrás de si. A cachorra passou por ela quando
entraram na casa e seguiu seu caminho com as patas enrijecidas. Lá em cima,
a luz do quarto de Zola estava apagada.
Na cozinha, os pratos do jantar ainda não tinham sido tirados, como ela
havia prometido a Layla. Em vez de fazer isso, ela caiu na armadilha dos e-
mails de trabalho — não havia uma hora do dia em que os investidores ou os
CEOs não estivessem acordados em algum lugar do mundo. Ela pôs a
chaleira para ferver, abriu quatro vagens de cardamomo entre os dentes e
colocou as sementes em duas canecas. De volta, escreveu na mensagem,
olhando na direção do estúdio no jardim onde Layla havia desaparecido logo
após o jantar.
Enquanto esperava a água ferver, ela deu uma olhada em seu e-mail
novamente, enviou algumas respostas e então caminhou até a vitrine móvel
onde havia três esculturas: a deusa Hariti, de Gandara, em xisto cinza,
Oxum, a divindade ioruba, em bronze, e ao lado uma mulher em argila que
Maryam ergueu da prateleira, olhando-a com atenção pela primeira vez em
anos. Era um modelo em pequena escala de uma escultura bem maior em
mármore branco que fora a contribuição de Layla para uma exposição
coletiva na Whitechapel Gallery, nos primeiros dias de sua vida juntas. Layla
chamou a peça de Pós-Fídias — foi uma resposta à ausência de órgãos
genitais femininos na arte grega e atraiu uma atenção considerável na época.
A imagem de argila reclinada, nua, as coxas abertas com indolência,
revelando tudo. Uma briga feia começou quando Maryam reconheceu —
com atraso, porque não era algo que ela já tivesse olhado por muito tempo
— a reprodução de partes de sua anatomia na escultura. É uma homenagem,
dissera Layla. E ninguém, além de nós duas, sabe que é você. Ou melhor, nenhum
dos seus ex-namorados é do tipo que frequenta exposições de arte no East End, não é?
Ela estava no início de um relacionamento com um dos ex-namorados
quando conheceu Layla. Um dia do outono de 1993 que colocou a palavra
“ruivo” no primeiro plano de seus pensamentos. Maryam tinha ido até a casa
de Cambridge que Zahra tomava conta e lá encontrou uma mulher
equilibrando uma xícara de chá em um dos joelhos da calça jeans dobrado
contra o peito, demonstrando uma maleabilidade impressionante das pernas.
Ela estava preparada para não gostar dessa Layla-pronunciada-da-forma-
inglesa de quem Zahra falava com tanta adoração, mas Layla rapidamente
tornou isso impossível. Layla não se demorou muito, mas, antes de sair,
abraçou Maryam. Os músculos de seus braços, a finura do tecido de sua
camiseta. No trem de volta para Londres naquela noite, Maryam percebeu
uma mudança dentro de si. Uma verdade, já conhecida, plenamente
reconhecida. Mas parecia ser apenas uma verdade parcial na época — ela
gostava bastante do namorado —, então decidiu ignorar a inconveniência
daquilo. Vários anos depois, ela encontrou Layla outra vez, no jardim de um
pub, no aniversário de vinte e cinco anos de Zahra, e tudo o que se seguiu
foi inevitável.
Maryam reparou, com certo divertimento, que havia poeira acumulada
entre as pernas da imagem de argila. Nadya, a faxineira, costumava ser atenta
em manter tudo impecável, mas claramente havia lugares onde ela não queria
ir. Maryam levou a escultura até o balcão da cozinha e a esfregou com um
pano úmido. Quanto tempo elas gastavam com arte e guerra. Horas sem fim
em galerias, dos armazéns em Bethnal Green ao Tate Modern, que visitaram
pela primeira vez no dia em que o museu abriu suas portas enormes ao
público — quando o século era novo e ainda cheio de otimismo. Tinham
concordado amplamente sobre arte, discordado furiosamente sobre a relação
entre capitalismo e arte e muitas vezes acabavam se afastando uma da outra
ou se beijando em algum canto, sem se dar conta de uma aranha gigante ou
uma mulher cheia de brilhos feita de estrume de elefante. Uma atividade
muito mais perigosa na época que agora, mas “não beijar” não parecia de
fato uma opção.
Depois do pano úmido, Maryam usou um pano seco e terminou com um
beijo apaixonado na ampla abertura, objeto do seu desejo.
Quando foi a última vez que Layla tinha conversado com ela de uma
forma mais profunda que apressada sobre alguma exposição que visitara?
Aliás, quando foi a última vez que Maryam foi ver uma exposição com ela?
As conversas agora eram quase todas domésticas, na maior parte sobre Zola,
mas também sobre compras de supermercado, melhorias na casa, planos para
as férias de verão, se era hora de convidar um ou outro grupo de familiares
para almoçar. Já não brigavam tanto — a atitude de Layla em relação às
diferenças entre elas passou a ser de “aceitação”, com a ajuda de muita ioga e
meditação. De vez em quando, parecia um apequenamento. De vez em
quando também a própria Layla parecia diminuída em relação à mulher por
quem Maryam se apaixonara. Não de uma forma surpreendente, apenas da
maneira comum com que as jovens cheias de energia e promessas se
assentaram no contentamento da meia-idade, em paz com o cargo de
professora de artes e inglês em uma escola estadual quando ela já fora uma
das mais promissoras em um grupo cujos demais membros agora faziam
exposições individuais na Royal Academy e recebiam encomendas da
Artangel. “Você a transformou em uma esposa”, disse o ex de Layla certa
vez. Maryam ficou um tanto magoada com aquilo, embora Layla tenha rido
quando ela repetiu a fala e dito: “Com o tempo, as exposições individuais
pareciam ao meu alcance, mas nunca nem sonhei que esta vida fosse
possível”. E fez um gesto apontando para o quarto que dividia com Maryam,
a bebê querendo escalar suas pernas. Mais tarde, Maryam a ouviu gritar ao
telefone com o ex em relação a “paradigmas heterossexuais”.
A luz do estúdio se apagou e alguns momentos depois Layla entrou pela
porta de correr e riu ao ver Maryam com a mulher de argila.
“Querida, você não mudou nada”, ela disse, dando um beijo no pescoço
de Maryam e pegando sua mão para puxá-la até o sofá. “Você fez chá para
nós?”
Maryam apontou para o balcão da cozinha, onde as canecas estavam ao
lado da chaleira. “Eu poderia pegar, mas isso significa ter de me levantar.”
Layla virou-se, enrolou as pernas em volta da cintura de Maryam e a
prendeu no lugar. Maryam descansou a cabeça no peito de Layla, sentindo o
ritmo reconfortante de seu coração, cinquenta e oito batimentos por minuto
em repouso. Alguns dos momentos favoritos da vida de Maryam aconteciam
ao fim de um dia agitado, quando tudo que se passara antes desaparecia e só
restava a respiração barulhenta de Woolf, a qualidade particular da atmosfera
decorrente de saber que Zola estava segura em casa e que talvez não
precisasse de mais nada naquele dia, Layla em silêncio com ela, da maneira
que sempre foram capazes de ficar uma com a outra.
“Falei com a minha tia hoje”, disse Layla depois de alguns minutos.
“Parece que ela já começou a redecorar a casa toda prevendo a nossa
chegada.”
Maryam pegou a mão de Layla e a levou aos lábios. Logo depois que
Zola nasceu, Layla sentou-se com Maryam e conversou sobre os dois anos
que ela e o irmão passaram com os pais em Lagos, quando tinham nove e
onze anos. Tinha sido transformador não ver sua negritude como um
contraste, disse Layla. Ela gostaria que Zola tivesse essa experiência algum
dia, além da experiência de viver em uma família grande. Maryam
concordou, como era a resposta civilizada a qualquer exigência do amor da
sua vida, naquele momento lactante e privado de sono. Nos anos
subsequentes, ela reduziu a experiência de dois anos para seis meses, com as
leis homofóbicas da Nigéria concorrendo em seu auxílio. Layla podia tirar
um período de licença do trabalho, Zola podia ir para a mesma escola que os
primos de Lagos, Maryam pegaria um voo para visitá-las sempre que
pudesse. Deveriam partir depois do Natal.
“A vida vai ser bem ruim sem vocês duas aqui.” Maryam tentou dizer isso
de uma forma leve, mas Layla apertou a mão dela como um pedido de
desculpas.
“Pedi para Zahra se livrar dos compromissos sociais na primavera. Ela
prometeu que estará aqui pelo menos uma vez na semana e também aos
domingos, como de costume.”
“Não preciso de babá”, Maryam disse, mas ficou contente.
Um pouco depois, Layla alcançou um tablet da mesa de centro. Maryam o
pegou das mãos dela e o apoiou nos joelhos de modo que ambas pudessem
ver Zahra no Question Time.
“Ah, olá”, disse Layla, conforme a câmera focalizava Zahra, sentada ao
lado do moderador em torno da mesa no formato de meia-lua. Ela sempre
usava uma jaqueta em tons apagados com uma camiseta preta por baixo para
suas aparições na TV, mas hoje a camiseta era vermelha e o decote em “V”
em vez de canoa. Todos os quatro homens e a outra mulher que
participavam da mesa vestiam diferentes tons de preto e branco, com cabelos
grisalhos ou loiros. Você olharia para Zahra e pensaria: “Tem uma coisa
destoando das outras coisas”, mesmo sem considerar a camiseta vermelha.
Mas a cor vibrante acrescentava um ar de pompa, um distanciamento
deliberado, o qual agora ela devia saber que não vale a pena tentar se também
fosse dizer coisas do tipo que sempre dizia.
“Você acha que ela está fazendo isso pelo homem misterioso?”, disse
Layla.
“Ela lhe disse mais alguma coisa sobre ele?”
“Disse que ele está em um fuso horário diferente, que o conheceu há
alguns anos, ele pode vir a Londres a qualquer momento neste verão. Além
disso, que ela não tem um orgasmo que não seja autoinduzido há muito
tempo.”
“Esse é o tipo de coisa que não consigo imaginar Zahra dizendo.”
“É porque você cresceu com a Zahra Vertical. Eu conheci a Horizontal
primeiro, com a tutora Zahra.”
“Acho que ele está onde tudo começou.”
“Tudo” se referia ao gosto de Zahra por homens, que pendia para o
clandestino. Zahra gostava de chamar de tendência, mas na verdade era uma
barreira. Não se espera ir muito longe quando se caminha por uma rua sem
saída e um casamento fracassado foi toda a reviravolta emocional que Zahra
estava disposta a arriscar na vida. Layla disse que ela estava começando com a
concepção patriarcal de que o casal tinha de ser o centro emocional da vida
de toda mulher e não havia evidências de que Zahra quisesse algo mais do
que recebia de seus relacionamentos íntimos. Mas dentro de Maryam ainda
havia uma adolescente, feroz com a melhor amiga, que queria gritar: “Você
não é bom o suficiente para ela” a todos os homens de segunda categoria
que não chegavam a amar Zahra Ali, mesmo que o amor não fosse o que
Zahra queria deles.
“É a primeira vez que ela enfrenta a Valquíria desde que ela disse aquela
coisa sobre criminosos e terroristas?”, Layla perguntou.
A outra mulher da mesa era a secretária do Interior, que tinha cabelos
loiros na forma de um capacete e o ar lânguido de privilégios seculares.
Zahra a culpava pelo ataque ao CLC, embora estivesse perfeitamente claro
que eram as palavras da própria Zahra, não as de qualquer outra pessoa, que
faziam com que certo tipo de gente a odiasse.
As perguntas da plateia começaram. Zahra fez o que sempre fazia, com
suas frases perfeitamente formuladas, apartes espirituosos e anedotas muito
humanas que deixavam claro que ela entendia o custo humano das decisões
políticas e eleitoreiras: ela fazia todos parecerem insinceros, mal informados e
de segunda categoria. O interesse de Maryam desviou-se para as mãos de
Layla se mexendo sob sua camisa e depois mais para baixo, por isso perdeu as
perguntas seguintes e só voltou a se concentrar quando uma mulher de hijab
com sotaque de Birmingham se levantou para dizer que estava angustiada há
semanas com aquela estudante, Tahera, cuja tentativa de suicídio resultara dos
ataques de bullying, muitos dos quais aconteceram no Imij.
A mão de Layla sossegou, ciente da transferência de atenção de Maryam.
Por que todos pararam de falar sobre isso tão rápido?, dizia a mulher. O
governo não deveria ter se posicionado e tomado medidas contra a
islamofobia e o racismo desenfreados, que podiam circular
descontroladamente?
O moderador se virou para Zahra em primeiro lugar. Ela apoiava a ação
do governo?, ele perguntou.
“Absolutamente não”, disse Zahra. “Sem dúvida, penso que o governo
devia tomar medidas contra a islamofobia e o racismo desenfreados. Um
bom começo seria um inquérito interno no próprio partido, começando
com o uso da linguagem da liderança e estendendo-se às políticas
governamentais.” Layla assobiou em reconhecimento, a plateia aplaudiu.
Maryam observou a Valquíria, viu o rubor em seu rosto.
“Este governo se opõe inequivocamente a todas as formas de
discriminação”, disse ela. “Então, sim, tomaremos medidas contra o Imij. O
primeiro-ministro deixou bem claro que não há lugar na Grã-Bretanha para
empresas que fecham os olhos ao racismo em nome dos lucros.”
Isso provocou a salva de palmas mais estrondosa da noite.
Maryam beijou a mão de Layla como um pedido de desculpas por afastá-
la e se levantou quando o celular começou a vibrar e tocar ao mesmo tempo.
“Ponha a louça na máquina de lavar e me traga um pouco de chá”, gritou
Layla enquanto Maryam corria até o telefone no balcão da cozinha,
alcançando-o antes do segundo toque, sandálias com asas nos pés agora que a
batalha que ela pensava ter evitado estava em curso.

Desculpe, estava em teleconferência quando você apareceu na TV.

Em que lugar do mundo ele andava? O Question Time ia ao ar antes das 6


da manhã em Cingapura.

Td bem. Não foi nada de especial.


Discordo
Baseado em?
Não consegui ouvir, mas estava assistindo no celular. Você de vermelho.
Fantasias

Talvez ele estivesse em alguma cidade onde mantinha um caso em


andamento. Ela nunca se imaginou a única e havia algo um tanto reciclado
em muitas de suas falas.

Me deixar no mudo também é fantasia?


Não, quero ouvir cada som que você faz.
Qual era a cor do sutiã?

Reciclado, e mesmo assim mandava uma investida, fazendo-a sentir o tipo


certo de obscenidade.

Que sutiã?
Tá me matando

Maryam caminhava pela silenciosa rua Kensington, com as mãos nos


bolsos do casaco de camurça com cinto. Uma bolsa da Khan Leather de
estilo retrô dos anos 1980 pendia transversalmente ao corpo e batia contra
seu quadril a cada passo. Por hábito, ela olhava na direção de cada janela que
passava para ver que parte da vida poderia encontrar à mostra nas salas que
davam para a rua e nos porões. Aqui havia uma sala que era toda televisão; ali
outra que mais parecia um museu com suas paredes vermelhas e quadros
emoldurados, mas que chamava bem menos a atenção que a que estava em
desordem total — um pó denso nas pilhas de livros que estavam a um passo
de desabar, os anéis castanhos de xícaras de chá no carpete e nos móveis;
aquilo invocava uma imagem de ocupantes que andavam arrastando os pés
com roupas manchadas, roídas por traças e cheirando a naftalina. Quando
criança, certa vez seus pais a levaram a uma casa parecida e ela deduziu que o
casal que morava lá — os guardiões do pai em seus dias de internato — devia
ser muito pobre para comprar roupas novas ou até uma lata de spray de Mr.
Brilho; ela foi agraciada com a primeira incredulidade e depois desprezou a
informação de que o exato contrário era a verdade, mas, se você é inglesa e
elegante, jamais quer ser vista como alguém que julga. Anos depois, quando
entrou no mundo inebriante das ponto-com e sua promessa de novos jeitos
de fazer as coisas, ela entendeu que a Grã-Bretanha era um lugar que
inventava regras sem sentido para forasteiros driblarem em momentos nos
quais ser nativo o colocava no coração absoluto do poder global; no fim do
século XX, essas regras se mostravam desgastadas e tolas, os rituais
misteriosos de um clube que ninguém levava a sério quando o próprio clube
estava à venda.
Mas ela havia subestimado os membros do clube, como ficou evidenciado
por sua necessidade de assistência hoje por parte da baronesa Margaret
Wright, dama da Ordem do Império Britânico, descendente de um dos
vice-rei menos conhecidos da Índia, pessoa de influência política, filantropa,
e não apenas a ex-chefe de Maryam que agora, aposentada, valorizava o
investidor em fundos promovidos pela Venture Further. O clube podia estar
quase totalmente vendido, mas os títulos de sócio continuavam restritos
àqueles que cresceram brincando em seu solo. Você não se importa com a
exclusividade, só se importa que eu não faça parte dela, disse Layla uma vez, como
se essa fosse uma atitude específica de Maryam, em vez de uma objeção
absoluta de todos à exclusividade.
Subindo os degraus da casa de Margaret, ela segurou a aldrava em forma
de lagarto com a aversão habitual — uma das poucas coisas das quais nunca
sentira saudades de Karachi era de suas lagartixas. Pouco depois, estava sendo
conduzida pela governanta pela casa cheia de candelabros, os ancestrais
brocados de Margaret observando das paredes, e descendo as escadas até o
pátio.
Ela sorriu ao ver Margaret sentada em uma cadeira de braços, poucas
evidências em seu bíceps tonificado do 70º aniversário que ela comemorou
no ano passado no Museu Britânico, o qual ela administrava. Tinha um
cigarro na mão e colunas de fumaça deslizavam de sua boca.
“Ainda é uma senhora dragoa de sangue frio”, disse Maryam,
cumprimentando-a. Mais cedo naquela tarde tinha sido verão, mas agora as
nuvens haviam chegado e trazido o frio cortante da primavera.
Margaret recebeu aquilo como o elogio que pretendia ser, erguendo o
rosto para um beijo, o sorriso mostrando dentes descoloridos de vinho e
nicotina. A atenção aos cuidados com a aparência nunca chegou à sua boca.
“Vi que o secretário para Infância e Famílias apoiou os comentários da
secretária do Interior sobre o Imij nesta tarde”, disse Margaret, quando
Maryam sentou. “Quem sabia da existência de um secretário para uma coisa
dessas?”
“Imagino que ele disse aquilo só para sabermos que existe um ministro
para isso”, disse Maryam.
“É um momento terrível para esse barulho todo, dadas as conversas para a
aquisição, não é?” Margaret deu outra tragada no cigarro, a boca se curvou
em um sorriso de saber um segredo.
“Você já sabe disso?” Ela tinha vindo preparada para revelar essa
informação altamente privilegiada a Margaret, mas só se fosse necessário para
recrutar sua ajuda. Ainda agora, ela continuava a subestimar os membros do
clube.
“Eu podia ter ajudado a fazer essa bola rolar.”
A governanta de Margaret reapareceu com uma garrafa e dois copos de
cristal. A garrafa tinha letras douradas e um ícone dourado de um cavalo
alado. Desde que virou abstêmia, Margaret se tornou uma entendedora de
águas de qualidade.
“Oito mil anos”, disse Margaret, segurando um copo. “Põe todos aqueles
vinhos famosos no chinelo. Segundo a lenda, Pégaso bateu com o casco no
chão e essa fonte brotou. É maravilhosa com ostras.”
“Agora você só está me enrolando”, disse Maryam. Tomou um gole e
desejou poder visitar Margaret e pedir uma xícara de chá. “Em relação a esse
barulho todo em torno do Imij. Você poderia fazer algo a respeito?”
“Estou fazendo a minha parte em outras direções no momento. Mas
queria falar com você sobre a Mesa Principal.”
“A o quê?”
Margaret explicou. Ela sempre disse que os clubes de doadores políticos
não ofereciam um retorno significativo sobre o investimento, mas com a
Mesa Principal era diferente, faziam reuniões mensais com o chanceler para
discutir assuntos econômicos do país, além de jantares e recepções de
costume com o primeiro-ministro e outros membros do gabinete. Una-se à
Mesa Principal e suas ligações para o número 10 da Downing Street nunca
ficarão sem resposta, disse Margaret.
“Você sabe que eu nem voto neles.” Maryam não se impressionava com
nenhum partido político, mas votou no Verde nas últimas eleições porque
Zola lhe pediu. Seu distrito eleitoral era um dos lugares mais seguros; seu
voto não podia mudar os resultados no mundo, mas podia muito bem
influenciar os relacionamentos em casa.
“Ninguém está lhe pedindo para votar neles. Esse é um assunto para a sua
consciência; o outro é um assunto para a empresa.”
Quando ela conheceu Margaret e ouviu coisas como essa, foi difícil
acreditar que alguém tão parecido com o seu avô pudesse surgir disfarçado
de mulher inglesa.
Era desnecessário perguntar se Margaret era membro da Mesa Principal.
Ela não precisava comprar influência. Maryam sentiu um tiquinho do termo
nouveau riche se vinculando a si mesma, mas deu de ombros da mesma forma
que dava de ombros para palavras como migrante, com seu vestígio de má
sorte. A Inglaterra lhe ensinava as sutilezas da linguagem: Quando você chegou
aqui era algo que você nunca queria ouvir; quando você se mudou para cá, tudo
bem. Os que se mudavam tinham opções, os que chegavam simplesmente
seguiram a trajetória de sair de um fim de mundo e ser trazido para alguma
praia melhor. Ela era alguém que se mudou e, portanto, não era migrante,
mas uma expatriada ou mesmo uma emigrada. Às vezes ela gostava de se
achar conquistadora.
“Jogue certo e não há limite para o que você pode ganhar com isso”,
disse Margaret. “Entre o Brexit e a última rodada de derramamento de
sangue no partido, eles perderam muitos doadores. Há um desespero sedutor
em seus esforços para arrecadar fundos.”
Havia uma nova sensação de calor. O sol tinha baixado, libertando-se das
nuvens. Maryam inclinou o rosto na direção dele e fechou os olhos. O
aroma do lilás-anão do pátio se misturava com o cheiro de cigarro para
evocar as festas de muito tempo atrás no jardim de seu avô — os jasmins
floridos e os perfumes florais das mulheres, todos fumando e o constante ar
de intriga: alianças matrimoniais intermediadas, pedidos de favores,
apresentações feitas, informações trocadas. Ela encostou a ponta do dedo na
língua, saboreando a familiaridade de tudo aquilo.

As duas primeiras frases estavam em negrito, uma letra maior que o


restante da carta. Seu pedido de permanência foi recusado. Agora
você precisa deixar o Reino Unido.
Zahra lia com os olhos, mas, como sempre, as frases ficaram registradas no
fundo do seu estômago. Ela teve o visto de estudante rejeitado quando o
solicitou pela primeira vez em Karachi, aos dezoito anos. Um erro
administrativo, rapidamente corrigido, mas quando ela leu a carta de rejeição
teve a sensação de ser derrubada, a frase “tapete puxado debaixo de seus pés”
se revelava pela primeira vez não como um clichê, mas como a verdadeira
descrição da sensação de se descontrolar e cair. E a vida da qual ela se sentia
cerceada quando leu aquela carta nem era uma vida ainda, apenas uma
expectativa daquela que estava por vir. Desde então, sentia um eco da
sensação de ser derrubada toda vez que precisava pedir uma prorrogação de
visto, uma nova categoria de visto, a Licença de Permanência Indefinida e,
por fim, a cidadania em si.
Sua experiência nem começava a se comparar, é claro, com o que alguém
como Azam devia sentir, mas esse era precisamente o ponto. Parecia uma
extinção, mas nem sequer começava a se comparar.
Ela ergueu os olhos da carta e olhou para Azam. Já havia aquele olhar de
assustado nos olhos dele, ela vira isso em muitos de seus clientes quando era
advogada. Ray tinha lhe mandado uma mensagem pela manhã para contar da
carta e dizer que sabia que era fim de semana, mas Azam estava desesperado,
ela podia falar com ele? E assim eles se encontraram perto da estação de
metrô da Finchley Road, em um café novo que, com seu interior elegante
de madeira e baristas jovens e atraentes, tentava desbaratar a característica
sombria da rua lá fora, mas na realidade só podia almejar ser o lugar menos
horrível para se tomar um café na Finchley Road.
Ela voltou à carta. O pedido de Azam tinha sido recusado porque a
“agressão” dele ao homem na calçada do escritório do CLC tornou
indesejável que ele permanecesse no Reino Unido, com base em seu caráter
e conduta.
“Você disse...”, falou Azam e se deteve.
Mas ela disse. Ela disse que ficaria tudo bem. Ela não contava que a
filmagem das câmeras viralizasse nem que o Ministério do Interior usasse essa
filmagem como razão para recusar a permanência de um homem com base
em uma frase de suas diretrizes que era tão vaga que lhes permitia rejeitar
qualquer pedido que quisessem.
Azam bateu com o dedo em um parágrafo no meio da página. Pouco peso
deveria ser dado à vida privada estabelecida por uma pessoa que está no Reino Unido
com situação de imigração precária. Qualquer vida privada no Reino Unido ou
quaisquer laços com o Reino Unido foram desenvolvidos com o pleno conhecimento de
que você não tinha permissão para ficar aqui permanentemente.
“Como podem escrever isso? Eu vim para cá com visto de cônjuge.”
Era a frase padrão negar um pedido de residência com base em laços
familiares, mas parecia grotesco usar as palavras “frase padrão”.
“E isso”, disse ele, apontando outra frase. Não há razão para que sua esposa
não possa morar com você no Afeganistão, sobretudo devido aos laços dela com aquele
país.
“A família da minha esposa veio para cá como refugiada. Eles
reconheceram seus direitos de refugiada. Agora estão dizendo que não há
motivo para ela não poder morar no Afeganistão?”
Uma barista se aproximou com os cafés e ficou esperando, indecisa. Azam
ergueu os olhos e se desculpou, levantando-se para pegar as canecas dela e
depois se sentando novamente.
“Mas eu posso apelar. Aqui diz que posso apelar”, disse ele um pouco
depois. “Eu vou ganhar?”
“Há uma boa chance”, disse ela, escolhendo as palavras com cuidado. Ela
pôs o dedo no cacto em miniatura do vaso em cima da mesa, sentiu seus
espinhos minúsculos como alfinetadas. “Muitas pessoas escreverão cartas de
apoio sobre o seu bom caráter. Seu excelente caráter.”
“Quanto tempo vai levar?” Levou as mãos às têmporas para indicar o caos
que a carta já tinha causado em sua cabeça.
Ela precisava dizer a verdade a ele, ou pelo menos parte da verdade. Pode
levar de seis a doze meses para conseguir uma data no tribunal. Ela não disse
que, mesmo quando conseguir uma data no tribunal, é possível ser colocado
na lista de espera, o que significa que o caso podia não ser ouvido e haveria
uma espera de mais seis a doze meses. Ela não disse que, se a decisão fosse
favorável, o Ministério do Interior podia contestá-la e isso seriam outros seis
a doze meses. Os anos podiam passar no limbo, tudo era possível acontecer.
O estado de ânimo sofrerá, o casamento será colocado sob uma tensão
imensa, a capacidade de planejar ou até de imaginar o amanhã desaparecerá.
Há a possibilidade de pegar um avião e voltar para o Afeganistão, o que
talvez seja o objetivo — ou pelo menos um corolário bem-vindo — dessa
tortura prolongada, mas ao fazer isso será impedido de voltar ao Reino
Unido, até para uma visita, por pelo menos dez anos.
“De seis a doze meses?” Ele a olhou como se não tivesse certeza de que
ela realmente sabia como funcionava a lei na Inglaterra. “E o que acontece
enquanto isso? Posso ir trabalhar, voltar para casa e encontrar minha esposa,
encontrar meus colegas e viver a vida como se tudo estivesse normal?”
“Você não pode trabalhar, Azam. Você não tem mais permissão para
trabalhar.”
Ele se reclinou na cadeira, as mãos sobre o rosto. Sua esposa não
conseguiria arcar com as prestações da hipoteca sem a ajuda dele; seu irmão
teria de abandonar a faculdade de medicina em Cabul.
Ela desviou o olhar. Dois ônibus da linha 13 quase vazios passaram lá fora.
O dia já estava quente e muito mais quente naquela rua sem sombra do que
na Fitzjohns Avenue ali perto, arborizada e cheia de tijolos vermelhos.
Londres e todas as suas linhas divergentes.
Ele fizera o pedido havia poucas semanas. O tempo de espera médio para
um pedido de LPI era de seis meses. O número de vezes que ela ouviu falar
de alguém com um registro impecável tendo a permanência recusada por
causa de um único soco após um ataque racista era zero. Alguém no
Ministério do Interior andava muito ansioso para desferir esse golpe. Ela se
perguntou se era Azam ou ela o alvo a ser atingido.
Zahra tirou os óculos de leitura e os pôs de lado. Conseguiria para ele o
melhor advogado de apelação, é claro. Além disso, falaria com o membro
parlamentar do distrito de Azam, um dos bons, que levaria o assunto ao
Ministério do Interior. Talvez uma manifestação fora do Parlamento em seu
nome. Todos o conheciam como o homem que atacou o racista. Dezenas de
milhares, ou mais, compareceriam à manifestação. Ergueriam cartazes,
entoariam seus cânticos. As pessoas a aplaudiam quando ela subia para falar
em um palco improvisado na Praça do Parlamento, observada pelas estátuas
de Disraeli, Churchill e, desde o ano anterior, Millicent Fawcett, sua
presença ali costumava ser uma lembrança animadora de que tudo podia ser
conquistado através de luta. Mas — Zahra olhou para a xícara de café, não
tinha vontade de levá-la aos lábios — ela não estava segura de que ainda sabia
como vencer. As dezenas de milhares, talvez mais, que compareciam às
manifestações tinham cada vez menos o ar de pessoas determinadas a dirigir
o arco da história na direção da justiça nos dias de hoje e cada vez mais na
direção de quem precisa de um grupo de apoio. Os perdedores da história,
para o futuro imediato.
Ela olhou para a carta novamente. As palavras borradas na página, exceto
as duas primeiras frases. Seu pedido de permanência foi recusado.
Agora você precisa deixar o Reino Unido.

Maryam subiu a trilha de cascalhos de uma mansão em Chelsea usando


um vestido preto de gola canoa e um bolero preto e justo com gola de
pedraria. A porta se abriu quando ela se aproximou e uma criada de avental
ofereceu uma bandeja com taças de champanhe. Ela pegou uma taça e
acompanhou o movimento da mão do mordomo até a sala seguinte, onde
outro mordomo estava esperando para lhe mostrar a porta que dava para o
jardim. No caminho, ela viu um Matisse, um Miró e um esboço que poderia
ser de Van Gogh.
Ela saiu para o jardim, para o barulho de homens tendo prazer em ser
cães alfa no meio de cães alfa. Homens brancos de gravatas pretas em um
entardecer de Londres, suas sombras eram longas. Podia ser uma cena de
filme de qualquer época — exceto desta, podia-se pensar, mas estaria errado.
Estavam presentes outras duas mulheres. Uma era a dona da casa, cujo
marido era o executivo principal de uma empresa de petróleo e gás; era a
única acompanhante permitida naquela reunião. A outra mulher era casada
com um oligarca russo com laços tão estreitos com o Kremlin que seu nome
não ficaria bem em uma lista dos principais doadores do partido, embora seu
sobrenome fosse tão distinto que a esposa que também o usava não era muito
de camuflagens. As pessoas se preocupavam cada vez menos com os vernizes
hoje em dia.
Ah, havia ainda uma terceira mulher. A Valquíria. Ela sorriu para Maryam
como quem dizia “Olá” para a irmandade. Maryam respondeu com um
olhar vago como se acreditasse que o sorriso fosse para outra pessoa. Havia
regras de pátio de escola sobre os inimigos de seus amigos. Ela caminhou até
o recém-nomeado chanceler, que conheceu em um almoço com Margaret
no Atheneum dois governos atrás, quando ele era secretário de Negócios; na
época havia rumores sobre um projeto de lei antimonopólio voltado ao
venture capital. Ele garantiu que estava do lado delas, mas tanto ela quanto
Margaret repararam que ele insistia em pedir vinho na taça e depois bebeu o
suficiente para encher uma garrafa e meia — aquilo dizia tudo que
precisavam saber sobre sua confiabilidade. Mais tarde Layla disse: Eu podia ter
contado tudo que você precisava saber sobre ele, daquele jeito dela de reivindicar
autoridade sobre alguém de descendência nigeriana. Ao reconhecê-la agora,
ele gritou “Olé” e ela levou um tempo para fazer a associação com o bolero
que usava.
“Todos nós ficamos felizes em vê-la na lista de convidados”, ele disse.
“Estamos tentando engordar os bois no nosso envolvimento com a
comunidade. Pensei que você gostaria de participar.”
“Então só preciso lhe dizer que seria melhor evitar a expressão ‘engordar
os bois' ao lidar com hindus e budistas.”
“Isso é muito engraçado”, disse ele. Ela se lembrou de ter reparado que
ele dizia que algo era engraçado em vez de rir. Ele olhou para outra pessoa
atrás dela, seu rosto fazendo expressões exageradas de contentamento. No
momento seguinte, ele começou a falar com essa pessoa, literalmente por
cima da cabeça dela. Ela se afastou com toda a graça possível e foi na direção
de um homem que não reconhecia, mas que estava acenando para ela.
Foi no tempo da Wharton, com Babar. Ela o conheceu quando estava
com Babar em Nova York no 21 Club — ele lhe recomendara pedir o
hambúrguer. Ela se lembrava do hambúrguer, não do homem, mas logo se
envolveu em uma conversa sobre escolas para garotas em Londres. Ele estava
se mudando para Londres com a família durante o verão — para cuidar da
divisão europeia do império familiar das construções — e tinha vindo de
Nova York para a festa; tornara-se membro da Mesa Principal antes mesmo
de encontrar um lugar para morar ou uma escola para as filhas.
Ela terminou o champanhe rapidamente, de modo que pudesse olhar ao
redor e reclamar do mau serviço, deixando-o sem opção a não ser lhe
oferecer outra taça. Quando ele saiu, ela pôde inspecionar o jardim. Havia
um grande agrupamento de homens perto das tulipas; devia ser o primeiro-
ministro. Ela não o conhecia, mas sua impressão foi confirmada quando se
aproximou e viu que ele parecia ouvir atentamente o que lhe diziam, braços
cruzados sobre o corpo, cabeça curvada — mas a cabeça curvada era só para
que os homens ao redor não pudessem ver que seus olhos mapeavam o
jardim em busca de novos participantes. Os olhos chegaram aos seios,
pararam, olharam para cima.
“Foda-se”, ela murmurou para si mesma e ergueu a taça de champanhe
vazia na direção dele.
Em questão de segundos ele estava ao seu lado. “Maryam Khan”, disse
ele, inesperadamente. “Estava esperando você.” Lá estavam o sorriso
galanteador e a mão em seu braço. Não me diga que se vestir tão hétero não é
uma escolha deliberada, Layla dizia quando ela reclamava desse tipo de coisa, o
que era muito comum.
“Vamos falar sobre o envolvimento com a comunidade?”, ela disse,
inclinando-se para o lado para apoiar a taça de champanhe vazia em uma
mesa, o que lhe permitiu se afastar sem parecer que queria se afastar.
Não, não iam falar disso. O primeiro-ministro tinha ideias mais grandiosas
sobre como uma mulher com o sobrenome Khan poderia ser usada para
consertar a imagem internacional do partido, tão carcomida pelas bordas. Ele
estava lançando uma campanha, “Grã-Bretanha Aberta aos Negócios”, para
enviar uma mensagem ao mundo de que o Reino Unido era um lugar
maravilhoso para investimentos e ideias serem trazidos, as portas estavam
abertas, não importando de onde vinham. Havia muito alarmismo em
relação a um futuro desatrelado da Europa, ele disse; era hora de exibir o
potencial diverso da nação. Alguém como Maryam seria perfeito como um
dos rostos da campanha.
“Pele escura por fora, feita de cédulas por dentro?”
“Não pensei que disséssemos coisas desse tipo.”
“Prefiro dizer coisas desse tipo do que ouvir a palavra-código ‘diverso'.”
Ele riu, um riso de verdade. Muitas vezes ela acabava se empolgando com
os caras horríveis em reuniões de trabalho travestidas de relações sociais. E
eles gostavam dela. Se todos fossem iguais a você era uma frase que lhe era tão
familiar quanto e qual homem de sorte a trouxe nesta noite? Podia usar isso contra
eles, ou podia encontrar o bobo da corte, o cheio de charme, o pai de
família, o garoto perdido por dentro. Ajudava. Era preciso fazer qualquer
coisa que ajudasse a passar por noites como essas.
“Então, você fará isso?”, ele perguntou.
“Talvez não possa”, disse ela. “Sou a presidente do Imij e parece que seu
governo pretende tomar medidas contra ele. Como seria se eu estivesse
representando seu governo e sendo punida por ele ao mesmo tempo?”
“Ah, uma charada.”
“Eis mais uma... Estamos conversando na minha empresa. Meus sócios
querem sair da Grã-Bretanha por causa da incerteza econômica aqui. Sou a
única a defender a permanência, mas essa exibição de força contra o Imij não
está me ajudando a ganhar a discussão. Por falar nisso, acabamos de fechar o
nosso fundo mais recente, levantamos seiscentos milhões de libras para
startups britânicas. Mas não posso ser o rosto de uma campanha ‘Grã-
Bretanha Aberta aos Negócios' se também estou mudando a minha empresa
para fora do país, posso?”
Ele enfiou as mãos nos bolsos e se curvou um pouco, de modo que seu
rosto ficasse mais perto do dela. “Você é magnificente, não é? Tudo bem,
não estou chamando de blefe de sua parte. Vamos enterrar essa coisa do
Imij.”
“Ou podia dizer algo lisonjeiro sobre como a empresa rapidamente se
propôs a melhorar os termos e as penalidades em relação aos abusos,
tornando desnecessária qualquer intervenção governamental. Já pensou em
se cadastrar? Você está em outras plataformas de mídia social, mas temos um
grupo demográfico mais amplo, e na verdade você quer trabalhar com os
eleitores mais jovens, não é?”
“Acho que este é o começo de uma bela amizade”, disse o primeiro-
ministro, com a mão nela mais uma vez. Seu polegar acariciava a parte
inferior do braço dela. “Talvez devêssemos marcar uma reunião privada para
discutir áreas de interesse mútuo.”
“Margaret Wright avisou-me que iríamos nos dar bem”, disse ela.
“Margaret sempre tem razão em tudo.” Ele sorriu e recolheu a mão.
Margaret tinha amizade com a sogra dele. “Agora, se me der licença, talvez
eu não possa passar muito tempo conversando com quem de fato quero
conversar. Isso não está na descrição de funções.” Uma piscadela e ele se foi.
“Impressionante.” O amigo de Babar estava parado ali perto, com duas
taças de champanhe nas mãos. Entregou uma para ela e brindaram juntos.
Ela já se sentia bêbada. Como tudo era fácil quando se estava nesse círculo,
como tudo podia ser resolvido com leveza. Negócios bilionários salvos em
tom de desafio. A elegância clássica de um jogo imutável acima de nações e
séculos. Ela tomou um longo gole. Novas possibilidades deslizando por suas
veias, como ouro, gota a gota.
*

A luz do fim da tarde incidia sobre a oliveira da varanda e se inclinava


para a sala, marcando o piso de madeira com o formato das folhas. Maryam
ainda podia ver a família Khan como antes, espalhada pela sala: o pai na
poltrona, resolvendo as palavras cruzadas do Times; a mãe de joelhos ao lado
da mesa de centro, em madeira de teca, examinando amostras de tecido para
redecorar um dos imóveis dilapidados que ela venderia com um lucro
enorme; as irmãs reclinadas em lados opostos do sofá, folheando revistas,
depois concentradas em telas de laptops e smartphones com o passar dos anos.
Maryam ficou parada na porta, observando como conseguiam compartilhar
um espaço e ao mesmo tempo estar separados. Em um momento ela entraria
e uma onda de disrupção a acompanharia.
“Sentindo-se nostálgica?”, disse Zahra; Maryam chacoalhou a cabeça e
entrou na sala, agora vazia, a poltrona e o sofá há tempos doados para a
caridade durante uma das reformas de sua mãe, a mesa de centro reivindicada
pela irmã mais nova para sua casa em Dubai. Só restou a oliveira; os novos
proprietários disseram que gostariam de mantê-la, assim como o armário que
já exibiu a coleção Gardener, agora empacotada e a caminho de Karachi.
“Nunca gostei deste apartamento”, disse Maryam. “Já lhe falei isso?”
“Porque não era a casa de Old Clifton”, respondeu Zahra, querendo
dizer que nunca houve necessidade de lhe falar.
Este nunca fora um lar. Apenas Zahra chegou perto de entender que se
mudar para Londres tantos anos antes era como deixar a si mesma para trás.
Maryam rapidamente conquistou a simpatia das garotas mais amadas da
escola nova, se saiu bem nos estudos, não ficou infeliz de forma alguma que
fosse perceptível, até mesmo para ela. Mas sempre houve esse entendimento
de que ela não poderia ser conhecida, não de verdade. Todas as suas
entrelinhas e sombras deixadas para trás; todo verão ela voltava para Karachi,
voltava para voltar para elas, para si mesma.
Tudo isso foi há muito tempo, antes de Layla aparecer e lhe mostrar como
uma pessoa podia entrar na sua vida e vê-la mais profundamente do que
jamais acreditou ser possível. Mas ainda persistia esse entendimento da
fragilidade de suas relações com este país. “Lar” já foi uma cidade de milhões
e depois encolheu até o tamanho de uma casa em Primrose Hill. Mas nas
últimas semanas ela se sentia mais expansiva em relação à Inglaterra,
ocupando novos tipos de espaços nela. Ela pensou na expressão “de volta ao
lar” enquanto estava naquele jardim em Chelsea.
“É tão estranho sem eles. Layla acha que me sinto abandonada.”
“Você nunca foi deles para que pudessem abandoná-la.”
“Foi o que eu disse. Layla só está preocupada que eu me sinta abandonada
quando ela for embora.”
“Convença-a de que você vai se sentir abandonada e ela vai ficar.”
“Vade-retro, Lúcifer.” Layla ficaria por amor a ela, e então, por amor a
Layla, ela precisava fazer com que a partida fosse uma coisa boa. E Zola
estava muito animada para ir à escola com os primos mais velhos.
“Então, não foi abandono, mas...?” Zahra esfregou o polegar em uma
reentrância no batente da porta da sacada e Maryam se lembrou que foi a
quina de um armário de bebidas que a havia causado.
“Acontece que, mesmo que seus pais sejam inúteis, você ainda sente falta
deles quando vão embora.”
Maryam abriu a porta da sacada e saiu. Aquela era uma rua mais
movimentada de Kensington do que a que Margaret morava, conjuntos de
mansões de tijolos vermelhos idênticos dos dois lados da rua. Ela se apoiou
no guarda-corpo da sacada, olhando para a rua lá embaixo. Duas senhoras
caminhavam pela calçada, uma de cabelos grisalhos e casaco amarelo, a outra
mais alta, de cabelos brancos, uma das mãos no bolso da calça vermelha de
veludo cotelê. Quando ela pisou em falso e se aprumou em seguida, a mão
escorregou do bolso, mas não havia mão, só uma manga vazia. A mulher de
casaco amarelo pegou a manga vazia, colocou de volta no bolso da calça
vermelha e a arrumou de um modo elegante. As duas mulheres continuaram
andando.
Zahra e Maryam ficaram mais perto uma da outra.
“Como a vida teria sido diferente se eu tivesse ouvido o que você dizia
sobre Hammad”, falou Maryam.
“Que coisa estranha de dizer.”
“Bem, esse foi o começo de tudo que levou a Londres.”
“Londres trouxe Layla e Zola, então você ainda está mesmo se queixando
disso?”
“Quem está dizendo coisas estranhas agora? Desde quando você decidiu
que uma injustiça deixa de ser injustiça no momento em que você consegue
endireitar sua vida outra vez?”
“Desculpe.”
“Lembra das correntes de ouro e toda aquela postura de macho? Os
telefonemas chatos e intermináveis. Meu Deus, tão desagradável. As coisas
que ele costumava me dizer naquelas ligações que eu nunca lhe contei. Ele
tinha quase dezoito anos, eu tinha quatorze. E sabe sobre o que nunca
conversamos?”
“Vou ao banheiro”, disse Zahra e foi para dentro.
As duas senhoras estavam quase fora de visão, no fim da rua, e pareciam
estar em uma conversa bem animada — talvez a leve corcunda da mais velha
se originasse de uma vida inteira curvada para ouvir os segredos sussurrados
da amiga.
“Sobre o que nunca conversamos?”, perguntou Zahra, voltando para a
varanda no exato momento em que Maryam começava a imaginar por que
ela estava demorando tanto.
“Por que ele queria tanto que você fosse no passeio? Você era um
presente para o Jimmy?”
Zahra esticou os dedos e pegou uma azeitona de casca coriácea que se
agarrara ao galho nos meses de inverno e não dava sinais de se soltar. As
folhas faiscavam em tons prateados enquanto se moviam pela leve brisa. “O
que você faria se visse Hammad de novo?”, ela perguntou.
“Nunca pensei nisso. Costumava pensar muito no que faria se visse
Jimmy — e o vi. Com o canto dos olhos, o tempo todo naqueles anos
seguintes. Mas Hammad? Patético demais para pensar nele. Todo chapéu e
nada de gado, como dizem no Texas.”
“Como você sabe o que dizem no Texas?”
“Dos episódios de Dallas, suponho. De onde mais vem todo o nosso
profundo conhecimento do Texas?” Ela apontou para a grade do outro lado
da rua, onde havia uma placa que não conseguia decifrar daquela distância,
mas que conhecia bem. O AVISO EDUCADO dizia, antes de passar a dar
um aviso grave, que as bicicletas podiam ser recolhidas caso estivessem
acorrentadas ali. “Identifico o meu profundo conhecimento de Londres
como começando no dia em que percebi como são agressivas as palavras
‘aviso educado'.”
Zahra passou a mão pela grade de ferro forjado do guarda-corpo da
sacada. “A Inglaterra me pareceu um lar quase de imediato. Não por causa
da Inglaterra, mas porque você estava aqui. E não só você, mas este
apartamento, com os quadros e os móveis da casa de Old Clifton. Entrei aqui
pela primeira vez e era como as tardes de quarta-feira depois da escola,
quando meu pai estava no estúdio da TV.”
“Meus pais queriam levá-la para jantar em um restaurante chique na sua
primeira noite em Londres, lembra? E tudo que você queria era um
McDonald's, mas achava que seria falta de educação dizer isso.”
“Então você me levou à rua principal para comer um quarteirão com
queijo e depois caminhamos muito rápido por todo o Hyde Park para abrir
o apetite e conseguir jantar pela segunda vez. Foi a noite mais emocionante
de toda a minha vida.” Ela tocou a parede de tijolos atrás de si e Maryam
percebeu que durante a tarde toda ela havia passado a mão nas diferentes
superfícies do apartamento. “De qualquer forma, uma de nós está muito
triste por se despedir deste lugar.”
Estava na hora de ir. Conferiram todos os armários e gavetas procurando
qualquer coisa deixada para trás, mas não encontraram nenhum vestígio da
vida dos Khan. Em poucos segundos iriam embora, Maryam trancaria as
portas e colocaria as chaves na caixa de cartas, para nunca mais entrar.
Ficaram de costas para a rua, para uma última olhada na sala de estar, tão
reduzida depois que todos os móveis foram retirados. As sombras delas se
estendiam pelo chão, iguais em comprimento, com as folhas de oliveira
tremulando ao redor.

*
Por onde vc andou?
Acho que está na hora de pôr um fim nisso
O que quer dizer?
Não compre a passagem de trem de Paris
Vai me dar alguma explicação?
Não quero ver vc
Só vamos falar por mensagem?
Nem isso eu quero
Vc vai mudar de ideia
Vc não me conhece mesmo
O tempo dirá

A troca de mensagens trouxe apenas um pouco de decepção, mais nada.


Verão
VERÃO EM LONDRES, uma partida Teste entre Paquistão e Inglaterra em
andamento, e todos os tempos de escola de Zahra pareciam estar aqui, no
Lord's, alguns deles apinhados no camarote corporativo da Venture Further,
bebendo vinho rosé e Pimm's, os homens vestidos de linho e às vezes com
chapéus de palha também, refletindo seu primeiro encontro com um certo
tipo de britanismo através da adaptação da BBC de Retorno a Brideshead, que
percorreu a sociedade de Karachi por meio de vídeos piratas no início dos
anos 1980. Alguns se portavam despreocupados com a imitação burlesca, a
maioria parecia vestida para um papel enquanto lia o roteiro de outro. As
mulheres estavam mais variadas em seus trajes — Zahra usava um vestido de
gola alta e frente única que ia até o tornozelo e Maryam vestia a calça verde
com camisa branca que sempre usava no primeiro dia do Teste, sua única
superstição. Fazia tempo que ela era o esteio da atividade social para os
velhos amigos de escola que vinham de Karachi, Dubai e Nova York,
marcando suas férias com a partida Teste do Lord's toda vez que o Paquistão
estava em turnê. Zahra nunca deixou de se admirar com a quantidade de
tempo que Maryam dedicava até às pessoas mais grosseiras que não faziam
parte de sua vida desde os quatorze anos. Ela oferecia uma generosidade sem
fim a qualquer um dos tempos dourados de sua infância que — nas palavras
de Maryam, que lembravam muito Zeno — “fazia um esforço”, mesmo que
esse esforço fosse só uma mensagem dizendo que alguém estaria em Londres
nessas datas e mal podia esperar para ver Maryam e, ah, a propósito, ela sabia
como conseguir ingressos para a partida Teste lotada do Lord's?
Layla era surpreendentemente tolerante com tudo aquilo, mas se limitava
a vir para assistir a uma partida de críquete, de modo que Zahra não tinha
nela uma proteção para amortecer aquele sentimento de estar à margem que
nunca desaparecia em meio a essa multidão em particular, cujos pais, e às
vezes avós, eram todos conhecidos e fluentes em desvendar como a prima de
segundo grau de uma pessoa era cunhada da tia de outra. Ela se inclinou para
a frente em sua cadeira no balcão, olhando para o campo verde e os homens
de branco ali posicionados. As arquibancadas estavam cheias, mais rostos
brancos que morenos, o que não se encontraria em nenhuma outra partida
de uma série Inglaterra-Paquistão, mas o Lord's, com suas regras de
associação e ingressos com preços ridículos, continuava sendo um lugar
diferente de todos os outros. Era uma daquelas passagens mais lentas do jogo:
os lançadores rápidos, sem volta na meta, o par de batedores era firme,
embora jogassem com cautela, atentos às metas que haviam caído no início
do dia. Sem proteção contra o sol do meio-dia, fazia um calor abrasador ali
fora — no campo, a camisa dos jogadores grudava nas costas com o suor — e
a maioria dos convidados de Maryam estava dentro do camarote com ar-
condicionado, em parte assistindo ao jogo em um telão montado e em parte
se informando sobre as novidades de um e outro. Zahra tinha estado
ensimesmada até alguns minutos antes, quando a conversa passou das batatas,
se eram ou não um acréscimo desejável ao biryani, para o incrível
desempenho no mercado de ações de alguma empresa na qual quase todos os
presentes pareciam ter investido segundo a recomendação de Maryam. Zahra
tinha um interesse limitado por conversas nas quais a vitória e a derrota eram
medidas pelo índice FTSE.
Babar veio sentar ao lado dela e estendeu a mão para pegar o binóculo
que ela usava ao observar a pegada do lançador, como seu pai lhe ensinara.
Ela lhe passou sem dizer uma palavra, desfrutando daquele sentimento de
familiaridade que colocava as interações entre eles aquém da polidez, sem
necessidade de dizer “por favor” ou “claro!”; o joelho dele encostou no dela
quando ele girou um pouco o corpo para olhar a arquibancada dos jogadores
no Pavilhão, e isso aconteceu sem qualquer resistência ou estremecimento.
Babar era banqueiro de investimentos em Nova York, casado e com duas
filhas, e, embora tivessem se visto raramente nos últimos vinte e cinco anos,
havia uma doce intimidade nostálgica entre eles, um lembrete das paixões
fugazes da adolescência e dos primeiros beijos. Seu primeiro beijo, no
mínimo, na praia naquela noite de lua cheia. Foi um verão antes da
universidade. Ela não queria chegar em Cambridge sem experiência
nenhuma e Babar estava pronto para um romance de verão que não
significava nada e tudo ao mesmo tempo.
“Não aguentou mais as histórias de como o avô de um ensinou o avô de
outro a engatinhar?”, ela perguntou.
Babar deu de ombros como quem reivindica a serenidade sobre todas
aquelas coisas que uma vez o incomodaram. “Vim ver se você está bem.
Parece um tanto perdida hoje.”
“É possível que seja um choque cultural alternar entre a minha vida
profissional e este bando.” Ela fez um gesto apontando para trás.
“Hum. Acho que sou ‘este bando'. Kutti!” Babar fechou a mão e
estendeu o dedo mindinho, reproduzindo o gesto do pátio da escola para
“amizade terminada”, uma expressão de abandono no rosto.
“Dosti.” Zahra empurrou o dedo de volta para a mão fechada e puxou o
indicador e o dedo médio, estendendo-os no gesto de “amizade restaurada”.
“Ufa”, disse Babar. E em seguida: “Você não pode deixar a política
interferir nas amizades”.
“A vida das outras pessoas não é política. E, seja como for, estou sentada
no camarote corporativo da Venture Further — dificilmente sou incapaz de
navegar entre as diferenças.”
“Vejam vocês dois, tão fofos juntos.” Saba apareceu e se recostou na grade
do balcão, o telefone apontado para o nível superior da Mound Stand.
“De quem você está tirando fotos?”, perguntou Babar.
“De todo mundo”, disse ela, girando o corpo, em uma direção e depois
na outra, um som antiquado de obturador de câmera cada vez que tirava uma
fotografia. “O Imij é tão maravilhoso. Zahra, você está se escondendo com
qual nome de usuário? Não consigo encontrar você. Ah! Sete.”
“Não estou me escondendo. Só não estou lá. Sete o quê?”
“Ela marcou sete pessoas da arquibancada”, disse Babar. “Você não precisa
ser tão contrária às novas tecnologias só porque esse é o departamento da
Maryam.”
“Para sua informação, Maryam está entre o coro de vozes que me orienta
a ficar longe das redes sociais. Você não acha essa coisa de marcar rostos meio
assustadora?”
“Nunca usei.” Depois sussurrou: “Não quero que Saba me encontre em
um lugar lotado.”
Saba fez um som irritante da Saba que queria chamar a atenção. Babar e
Zahra a ignoraram. Ela fez o som novamente. Babar chutou o pé de Zahra
de forma conspiratória. Continuaram a ignorá-la e ela voltou para dentro.
“Deus, como está quente.” Zahra estava usando a revista souvenir da
partida como leque, agora a abriu na página central, lombada para cima, e a
colocou sobre a cabeça como um chapéu improvisado.
Babar pegou as pontas das páginas de capa e contracapa da revista e as
virou para cima. “O tradicional chapéu holandês está atrasado para um
renascimento na moda”, disse ele, e ela afastou sua mão, feliz por ser tão
indiferente a parecer ridícula. A voz de Maryam se elevou acima de todas as
outras e Babar sorriu de modo carinhoso. “Ela é impossível de parar, não é?”
“Sempre foi.”
“Sim. Mas, exceto você, todos nós somos imbecis movidos pelos lucros
na nossa vida profissional. Mesmo assim acho que a maioria poria limites ao
ingressar na... como é que se chama? Mesa Primordial? Mesa Essencial?”
“Mesa Principal”, disse Zahra, após uma ligeira pausa na qual uma pedra
amarrada a seu coração despencou, puxando com força.
Uma respiração em suspenso no estádio todo quando o batedor acertou
uma bola no ar, mas que caiu bem fora do alcance de todos os defensores.
Isso deu um tempo para Zahra virar e olhar para Maryam, imutável, a mesma
Maryam de sempre.
“Como você sabe da Mesa Principal?”, perguntou Zahra.
“Um cara que conheci na Wharton a encontrou em uma dessas reuniões.
Não nos falamos faz uns dez anos, mas ele me ligou para dizer que precisava
ter o telefone dela. Diz que definitivamente é alguém que ele precisa
conhecer quando se mudar para Londres. Parece que ela tirou o Imij das
encrencas, conseguiu um posto incrível de embaixadora de negócios e se
defendeu de uma investida do primeiro-ministro, tudo em questão de uns
trinta segundos.” Babar se inclinou adiante para observar o jogo mais de
perto. Era palpável o movimento que dizia que algo estava prestes a mudar;
um equilíbrio entre batedores e lançadores havia sido alcançado e agora
alguém faria algo brilhante ou tolo. Essa era uma das coisas que o críquete
ensinava: o equilíbrio era sempre uma estação de passagem, nunca um local
de chegada.
“Na verdade, quem estou querendo enganar? Nenhum de nós poria
limites ao ingressar em algo assim se pudéssemos ter retornos tão altos com
isso.” Ele cutucou o ombro dela com o seu, um gesto íntimo para que ela
soubesse que podia lhe contar as verdades que em outros contextos não
admitiria. “Se pudesse preencher um cheque para o governo e em troca eles
voltassem atrás — qual campanha você está fazendo agora?, vigilância do
estado? —, você não faria isso?”
“Não.” Ela participou dos aplausos quando um lançador rápido voltou
para o campo e seu primeiro arremesso, embora voluntarioso, mostrou
veneno.
Babar a beijou no rosto. “Nenhum de nós mudou desde os quinze anos,
não é? Não sei se isso é deprimente ou tranquilizador.”
“Quinze? Talvez desde os oito.” Era uma verdade e não era ao mesmo
tempo. Encontrar amigos de escola — Babar, Saba — depois de uma lacuna
de tantos anos era uma interação constante entre a familiaridade e a
estranheza.
“Você sabe que tenho inveja da sua amizade com Maryam. Sempre tive.”
Ele se virou para olhar na direção de Maryam, o que fez Zahra se virar
também. Ela estava na divisa entre o lado de dentro e o de fora, com uma das
mãos no bolso e a outra gesticulando conforme contava a história de levar
Zola à embaixada do Paquistão para obter um visto para uma viagem a
Karachi — todos que a ouviam quase morreram de rir com o relato da
recusa do funcionário em conceder o visto até que Maryam arranjasse um
pai para Zola e uma certidão de casamento para si; por fim, é claro, o pai
dela teve de fazer uma ligação e o alto-comissário interveio para resolver a
questão enquanto fingia não ter conhecimento algum da situação doméstica
que estava por trás do contratempo. Não havia falta de homofobia nem de
racismo naquele grupo, Zahra tinha certeza, mas isso não atingia Maryam,
que via a própria generosidade como uma espécie de obrigação aristocrata
que não se preocupava com pensamentos ou opiniões daqueles sobre os quais
ela a concedia. Era muito fácil imaginá-la em uma reunião da Mesa
Principal, seduzindo os poderosos com sua certeza absoluta de que pertencia
ao meio deles.
Então deixar que aquele outro bastardo ande livre por aí para proteger esse foi em
vão, Maryam disse quando Zahra lhe contou sobre Azam. E O que você acha?
quando Zahra disse que não conseguia se livrar da sensação de que o
Ministério do Interior fizera aquilo de propósito, direcionado a ela. Mesmo
assim, Zahra não havia parado para considerar que podia ver Maryam do
outro lado do campo de batalha se olhasse com bastante atenção. Acreditava
que a amizade delas era uma linha que Maryam jamais cruzaria.
A porta do camarote abriu e Saba entrou, dizendo: “Vejam quem
encontrei!”, seu tom triunfante.
No gramado, o batedor atingiu um limite — o primeiro em muito
tempo — e o campo explodiu de satisfação no mesmo instante que Hammad
entrava. Zahra tirou a revista da cabeça. Hammad ergueu os dois braços
como um vencedor, meio constrangido, meio desajeitado, tentando não
parecer nem um nem outro. Alguém no camarote — o irmão de Saba —
deu um passo à frente com palavras entusiásticas de cumprimentos e Zahra
olhou para Maryam, observando as boas maneiras subindo como fel em sua
garganta, arrancando as palavras: “Hammad, o que você gostaria de beber?”.
“Saba disse que eu devia vir e dizer olá”, disse Hammad. “Achei que
devia lhe dar uma chance de ter o prazer de me expulsar.”
“Uma expulsão foi o suficiente”, disse Maryam, tão fria que só para
Zahra era possível ver a fúria queimando por dentro.
O urro da multidão sinalizava a derrubada do wicket da Inglaterra e a
atenção de todos se voltou para a TV a fim de ver a repetição. Babar correu
para dentro de modo que pudesse ver também. Zahra ficou sozinha no
balcão por apenas um momento antes de Hammad vê-la ali e sair. Ela
registrou o físico característico dele, não apenas com os olhos.
Ele estava olhando para ela muito diretamente, mesmo enquanto apoiava
a mão no encosto de uma cadeira para se movimentar com dificuldade, em
vez de dar uns passos para o lado e caminhar pelo corredor que dividia as
fileiras de assentos.
“Olá”, ela disse, para romper a incrível tensão de esperar que ele chegasse
ainda mais perto.
“Olá.” Ele pulou as fileiras dos assentos seguintes, de modo que apenas
um assento os separava. Hammad não usava linho nem chapéu de palha;
estava de jeans preto e uma camiseta do time de críquete do Paquistão, a do
Troféu dos Campeões de 2017. “No fim, não cancelei aquela passagem de
trem.”
“Zahra!”, Maryam a chamava. “Venha ver o replay.”
“Parece que você precisa ser resgatada de mim”, disse Hammad. Ele
estava segurando uma taça de rosé gelado na mão e esticou o braço até o
pescoço dela. O frio de um prazer lancinante contra sua pele superaquecida.
Ele sorriu para ela, absorvendo tudo que o vestido de frente única revelava,
sem se desculpar pela clareza de sua intenção. Ela sentiu o prazer se
aprofundando, um lembrete e uma prelibação do desejo de dar e receber, por
muito tempo mantido à distância em sua vida.

Na urgência de pular para a cama, Zahra não havia fechado as lâminas das
persianas, e isso significava que havia frestas através das quais ela podia
observar o salgueiro, os padrões alternados da luz do sol nas folhas e nos
galhos, enquanto Hammad fazia o que estava demorando muito para fazer.
As preliminares foram divertidas, mas muito breves, e agora havia isso.
“Você está perto?”, perguntou ele.
Ah, Deus.
Ela havia dito que parecia uma eternidade desde que sentira como aquilo
era bom, mas não era o ângulo certo para levá-la aonde precisava ir. E ele
havia dito: “Todos os meus ângulos são certos”, o que ela entendeu ser assim
que ele gostava de fazer e para ela tudo bem, o que significava que as
preferências de ambos não estavam totalmente alinhadas, mas ele podia fazer
outras coisas por ela depois. Agora estava lhe ocorrendo que “Todos os meus
ângulos são certos” era uma crença profundamente arraigada.
“Muito perto”, disse ela, a resposta extraída de uma parte dela qualquer
que nunca poderia abandonar um teatro durante o intervalo, não
importando o quanto a peça fosse horrível.
“E é assim que se faz”, disse Hammad um pouco mais tarde, apoiando-se
em um cotovelo, um braço ao redor dela, uma perna jogada por cima dela.
O ventilador de chão no canto animava diferentes partes do quarto enquanto
girava — um estremecer nas faixas de luz solar fluindo pelas lâminas, uma
pequena dança de tulipas na penteadeira, um movimento nos lençóis.
O telefone dela tocou, não pela primeira vez naquela tarde, com o tom
personalizado que Zola colocara para que ela sempre pudesse saber quando
era Maryam. Hammad não ficou muito tempo no camarote da Venture
Further e Zahra escapuliu um pouco depois, no intervalo do almoço,
quando Maryam estava ocupada passando os pratos. Ela dissera a Babar que
precisava cuidar de algum assunto de trabalho e que ele podia avisar Maryam.
O que quer que ela decidisse dizer a Maryam — sobre Hammad, sobre a
Mesa Principal — ficaria para depois.
Hammad se curvou para beijar seus seios e ela pensou que talvez o
próximo ato fosse melhor. Mas então ele se endireitou e ficou claro que o
beijo significava um ponto-final, não uma vírgula.
“Devia ter levado você no banco de trás comigo”, ele disse.
Aquilo não fazia sentido. No banco de trás do táxi a caminho de casa, ele
acariciou a perna dela, sua mão eletrizante passando pelo tecido fino do
vestido.
Ele tocou o ponto acima do quadril dela que descobriu — mais por
acidente que por intuição — ser uma zona erógena. “Eu devia ter entendido
Maryam naquele dia. O que ela é...”
“O que ela é?”, disse Zahra, percebendo a que banco traseiro ele se
referia de fato, suspeitando que ela sabia do que mais ele estava falando.
“É”, disse ele, sem entender o tom que ela usava. “Diga a verdade: ela já
deu em cima de você?”
Ela sentou, puxando o lençol, segurando logo acima dos seios. “Afinal,
por que eu estava lá? No carro do Jimmy. Por que você me pediu para ir
junto?”
“Vi como você olhava para mim. Sabia que havia mais coisas
acontecendo com a srta. Zahra Ali do que você queria mostrar. Então,
pensei, vamos lhe dar uma chance de revelar a pantera que existe dentro
dela.” Ele riu, extremamente satisfeito consigo mesmo.
“Então eu era um presente para o Jimmy? Quantos anos ele tinha?”
“Não há necessidade de falar desse jeito.” Sua mão fazia pequenos círculos
na coxa dela, mas o corpo dela o havia bloqueado agora. “Vocês, garotas,
tiveram sorte por sermos tão bons rapazes. Os últimos cavalheiros de
Karachi.”
“Como?”, disse ela, enfiando a mão sob o lençol e tirando a mão dele de
cima dela. “Em que universo?”
“Ah, por favor!” Foi ele quem sentou agora, parecendo afrontado. “Se
alguém devia guardar rancor daquele dia, esse alguém sou eu. Fui expulso, e
isso impediu de me candidatar para a universidade. Ainda hoje existem
pessoas em Karachi que me olham de um jeito estranho porque acham que
eu sequestrei duas alunas e fiz todo tipo de coisa com elas contra a vontade
delas. Quando, de fato, a verdade é...”
“A verdade é que você estava apavorado. Não sei quem te assustava mais,
se Jimmy ou Maryam.” Ela viu que atingiu o alvo, pressionou mais. Se ele
não fosse lhe dar um tipo de prazer, ela buscaria outro. “Eu devia ter
entendido você naquele dia. O que você é.”
Ele não pôde evitar. “E o que eu sou?”
“Uma perda de tempo total.”
“Foda-se você.” Era claro que ele estava tentando uma saída dramática da
cama, mas seus pés estavam enroscados nos lençóis, e por um momento
satisfatoriamente longo ele parecia muito tolo ao tentar se livrar.
“Ah, por favor, nunca mais.”
Ele bateu não só a porta do quarto, como também a da frente quando
saiu. Ela se levantou, amarrou o roupão, ergueu as persianas e abriu a janela
para deixar sair o cheiro dele, deles, impressionada com a própria capacidade
para a idiotice. Um nível ainda mais baixo, este. Suas aventuras sempre
envolveram algum tipo de subterfúgio, mas nunca foram tão sórdidas. Uma
juíza em seus dias de advogada. Um ativista tradicional dos direitos dos
homossexuais que achava que sua reputação estaria arruinada se ele fosse
desmascarado como bissexual. Um deputado com um histórico de votação
péssimo no Parlamento. Sim, havia — ou costumava haver — encontros
aleatórios, aqueles nos banheiros de boates, mas nunca era preciso saber nada
um do outro além da urgência do sexo semidespido. Ela não conseguia parar
de pensar no sorriso dele, a maneira convencida com que dissera últimos
cavalheiros de Karachi. Aquilo tinha fervilhado bem debaixo da sua pele, ainda
estava agindo dentro dela. Quantas vezes disse a si mesma que elas tiveram
sorte naquela noite, mas ouvir isso dele!
O telefone assobiou. Ela o pegou e leu todas as mensagens da tarde.

Os domingos não são para ficar na mesa de trabalho, até eu (quase) sei
disso. Você vai voltar?
Argh, Hammad. Graças a Deus ele não ficou muito tempo. Sobre o
que ele conversou com você?
Está uma carnificina fantástica aqui. Não perca os detalhes.
Babar disse que falou com você sobre a Mesa Principal. Foi por isso que
você foi embora?

Zahra pôs o telefone no mudo, tirou os lençóis da cama e levou para a


máquina de lavar. Fechando a porta da cozinha para afastar o barulho da
máquina, foi até a sala com uma caneca grande de chá e ligou para o único
número de telefone no mundo que ainda sabia de cor.
“Que dia!”, seu pai disse quando atendeu. Às vezes, ela assistia aos trechos
antigos de Três Convidados e um Ali na internet e sempre era um pouco
doloroso falar com ele mais tarde e ouvir as fissuras da idade em sua voz. “E
você estava lá!”
“Saí na hora do almoço”, disse ela. Em geral seus pais estavam em
Londres na hora da partida Teste no Lord's, o pai tendo um prazer especial
ao ser bem recebido no setor de imprensa, apesar de ter se aposentado das
transmissões em 2010, quando o escândalo de manipulação de resultados
partiu seu coração. Mas este ano eles atrasaram a viagem de modo que sua
mãe pudesse se recuperar melhor de uma lesão no tornozelo.
“Na hora do almoço?”, disse o pai. “Mas o jogo tinha acabado de virar.
Por que você iria embora?”
“Quero ouvir o barulho lá fora”, disse ela.
Fazia tempo que os pais se mudaram de Seaview para um prédio de
apartamentos mais novo e sofisticado, a cerca de um quilômetro de Clifton
Beach. Ela pôde ouvir o som da janela se abrindo, precisava de lubrificação,
e então o pai segurou o telefone virado para fora. As ondas estourando
furiosamente na praia; as gaivotas guinchando, noturnas como o restante de
Karachi; uma motocicleta passou acelerando, sem dúvida deixando marcas na
areia cinzenta, por entre o plástico e outras sucatas que haviam sido
arrastados pelas redes dos pescadores. Os sons da adolescência de Zahra.
“Fiquei zangada com Maryam e fui embora”, ela disse, quando o pai
voltou ao telefone.
Ele fez um som de desaprovação. Ela quase conseguia vê-lo, na poltrona
favorita perto da janela, o telefone fixo de vinte anos atrás com um fio
interminável descansando em sua barriga. “Depois que você e Tom se
divorciaram, eu e sua mãe tivemos uma conversa com Maryam. Dissemos a
ela que, quando um de nós morrer, o primeiro telefonema que o outro fizer
será para ela. Sabe por quê?”
“Porque não há mais ninguém que vocês iam querer que me desse essa
notícia. O que Maryam falou?”
“Ela falou que largaria tudo e compraria duas passagens de avião porque
não deixaria você fazer a viagem de volta sozinha. Ela também disse que se
sentia insultada por ter custado um divórcio para chegarmos a essa conclusão
— por que pensamos que Tom devia ter prioridade, e não ela, em uma
situação dessa?”
Ela estava de pé na frente da estante, olhando para uma fotografia
emoldurada dela e Maryam quando crianças, debaixo do flamboaiã no jardim
dos Khan. As origens exatas da amizade delas ficaram perdidas em um
passado que se estendia para além da memória. Sentaram-se lado a lado
naquelas primeiras semanas do jardim de infância? Uma deixou cair um
emblema da escola na casa da amarelinha e convidou a outra para brincar? A
recordação mais antiga que tinha era de Maryam ajoelhada para amarrar seus
cadarços no pátio da escola, antes que Zahra tivesse aprendido, com os dedos
ou com a mente, as lançadas complicadas do processo.
“Ninguém está morrendo ainda”, disse o pai, interpretando mal o
silêncio dela.
“Você quer saber por que fiquei zangada com ela?”
“Não, claro que não. Eu amo aquela garota. Então, me poupe de saber o
pior da neta do Patriarca.”
Depois que a ligação terminou, Zahra olhou ao redor do apartamento: a
mesa lateral de um tronco de árvore ao lado da chaise-longue verde e dourada,
a pintura adolescente de Maryam de uma paisagem marítima de Karachi ao
lado de um desenho a giz e carvão dado a Zahra por um artista admirável
cujo trabalho ela não podia bancar, os livros enfileirados por toda a extensão
de uma parede. A solidão não era algo que fizesse parte da sua experiência de
vida — ela era uma mulher que pensava nas palavras santuário e refúgio
quando entrava na quietude daquele apartamento no fim de um dia ocupado
com trabalho e amigos. Mesmo assim, naquele momento, ela se via
imaginando um dia — não já, mas com o tempo — em que a solidão
espreitaria do lado de dentro e se recusaria a ser despejada.
Essa brisa fria em particular já havia passado por ela algumas vezes antes,
mas sempre telefonava para Maryam assim que a sentia. “O que você vai
fazer hoje?”, ela dizia, e havia algo em sua voz que fazia com que Maryam a
chamasse. Ela caminhava ou pegava o ônibus C11 para Primrose Hill,
digitava o código de segurança para entrar sem ser anunciada na casa de
Maryam e Layla. Às vezes parava por um momento na área da recepção que
tinha vista para o andar térreo. Daquela posição vantajosa, podia sentir o
cheiro do que estava cozinhando no fogão, ver Maryam enrolada em um sofá
com o tablet, lendo algo divertido ou informativo para Layla, que andava pela
cozinha, cortando e mexendo algo, enquanto Zola descia as escadas como
um trovão para se atirar nos braços da madrinha — o quarto membro da
família, como ela teimava desde que teve idade suficiente para desenhar
bonecos que pareciam palitos em uma casa formada por um quadrado e um
triângulo.
Ela nem precisava ligar para Maryam. Podia ligar para Layla. Podia
simplesmente aparecer sem ser chamada. Sem dizer nada sobre sua tarde.
Gritar com Maryam sobre a Mesa Principal como se fosse só a discórdia mais
recente de uma série interminável de divergências, que em algum momento
desapareciam ou eram levadas a um fim pela intervenção de Layla. Nos
momentos piores, iam embora ainda zangadas e, no fim, uma ou outra
mandava um clipe de George Michael cantando, um ato de reconciliação
que não podia ser recusado.
O telefone vibrou com uma nova mensagem de um número
desconhecido. Aqui é Shaz, a esposa de Azam. Ele foi preso por trabalhar
ilegalmente. Por favor, nos ajude.
Ela descansou a cabeça contra a parede por um bom tempo.

Era bem frequente haver aquele batedor que parecia estar jogando em
uma partida diferente, em um dia diferente, para um grupo diferente de
lançadores. Majestoso, no comando, antecipando cada giro da bola. Fazia
muito tempo que Maryam não jogava críquete, mas ainda conseguia se
lembrar daquela sensação de quietude perfeita nas passagens do jogo, quando
para você o tempo passava de forma diferente que para o resto do mundo.
Mas não importa o quanto os deuses o favoreçam, quando você não tem
mais parceiros para quem rebater, é hora de sair de campo. Algum outro
esporte permitia a glória do indivíduo e a necessidade de parceria como o
críquete?
“Quando você se tornou tão filosófica?”, disse Babar, caminhando com
Maryam pelo Nursery Ground do Lord's. A partida tinha terminado um
tempo atrás, mas as bebidas comemorativas continuavam a ser servidas no
camarote Venture Further. Maryam, porém, estava pronta para ir para casa e
Babar estava indo com ela. A filha mais nova de Babar e Zola eram amigas
apaixonadas, embora tivessem passado apenas algumas semanas na companhia
uma da outra. A amizade delas existia em grande parte nas telas, o que fazia
de Babar uma presença regular na casa de Maryam como uma imagem de
fundo acenando ou comentando sobre alguma conversa ouvida entre as duas
garotas. Às vezes, ele e Maryam trocavam mensagens de texto enquanto as
ouviam. Babar: Éramos tão sem noção na idade delas! Maryam: Elas também são
sem noção, só que há muito mais coisas para não ter noção.
“Bom jogo”, disse um homem com o rosto vermelho de sol e álcool,
levantando-se cambaleante de uma toalha de piquenique no Nursery
Ground para estender a mão na direção de Babar. No Lord's, Maryam estava
acostumada a ser tratada como se fosse apenas a companhia de algum homem
e disposta a aceitar o momento pela graciosidade dele.
“Foi sorte no lance”, disse Babar, apertando a mão do homem.
“Anderson teria nos destruído se estivéssemos rebatendo hoje.”
“Quando você se tornou um homem de comportamento tão perfeito?”,
disse Maryam, passando o braço pelo de Babar enquanto vagavam em
direção ao Portão Norte. “De garoto você era um hooligan total.”
“Mas no fundo sempre fui legal.”
“Isso é verdade. Durante anos, esperei que você e Zahra voltassem a ficar
juntos.”
“Acho que eu não teria lidado melhor com a genialidade de Zahra do
que o coitado do Tom lidou.”
“Pobre Tom.” Ela podia pensar nele com carinho agora que sua
inadequação havia se removido da vida de Zahra. Maryam vira desde o início
o quanto daquele relacionamento estava baseado na quase adoração de
alguém com vinte e quatro anos por um homem de quarenta, culto e bem-
sucedido. Logo nos primeiros dias, raramente saía da boca de Zahra uma
frase que não começasse com “Tom disse”, mas sempre foi uma questão de
tempo até que ela o superasse em todos os sentidos. Na verdade, o
relacionamento só durou quanto durou por um excesso de polidez que
substituiu a paixão precoce; ninguém queria ser o primeiro a ir embora,
então tiveram de esperar até que Tom recebesse uma oferta de emprego em
Nova York, a qual ele aceitou, de modo que Zahra pudesse dizer: “Acho
que ficar aqui faz mais sentido para mim” e ambas as partes foram, então,
igualmente responsabilizadas.
“Desculpe por ter mencionado a Mesa Principal. Não me ocorreu que eu
pudesse saber algo sobre a sua vida que Zahra não soubesse.”
“Pare de se desculpar”, disse Maryam. “Vai ficar tudo bem. Ela e Layla
vão se unir contra mim na próxima vez que estivermos juntas, e eu vou
aceitar toda a culpa, que é a maneira mais fácil de encerrar uma discussão.
Sim, você está certo, sou uma pessoa moralmente falida. O que elas dizem
então? São elas que escolhem amar uma pessoa moralmente falida.”
Pelo menos sou adulta, ela queria dizer a Zahra. Era um absurdo que sua
melhor amiga fosse embora porque não gostava do que Maryam fazia com o
próprio dinheiro. E no dia em que Hammad voltou para a vida delas. Zahra
era a única pessoa com quem ela queria conversar sobre como era irritante
vê-lo no camarote de sua empresa, pavoneando-se com a mesma arrogância
que impressionara um pouco seu eu de quatorze anos, antes que ela o tivesse
visto como realmente era.
“Diga para Zahra que você está indo jantar comigo”, disse ela, saindo do
Lord's. “Peça que ela venha também. Você pode testemunhar a formação da
gangue.”
Havia uma pequena brecha no trânsito intenso da Wellington Road.
“Corra!”, gritou Maryam, e eles correram por entre os carros, uma dupla de
hooligans novamente, acenando para os motoristas que buzinavam ou
gritavam algo grosseiro pelas janelas.
Mas, quando estavam do outro lado, Zahra respondeu à mensagem para
dizer que já estava a caminho de Chinatown para encontrar Rose. Rose, a
quem ela via cinco dias por semana no trabalho. Qual era a necessidade de
encontrar Rose em um domingo?
Babar riu. “Nós não mudamos mesmo desde os oito anos de idade.”
Quando tinham oito anos, a melhor amizade ocupava grande parte da
vida deles. Agora, quanto mais espaço Zahra ocupava no mundo, um pouco
a cada ano, menos espaço sobrava na vida dela para os velhos amigos. Houve
uma época em que Zahra passava várias noites por semana e a maior parte do
fim de semana com Maryam e, depois, com Maryam e Layla. Atualmente, as
caminhadas de domingo — que tiveram de pular hoje — eram um ritual que
elas estabeleceram para que não passassem semanas sem se encontrar. Foi a
vida agitada de Zahra que criou os intervalos longos. Uma conferência em
Bruxelas, um discurso de abertura, uma festa de gala, uma recepção, um
jantar com pessoas que tinham registros muito longos na Wikipédia. Aqueles
lugares em sua mente a que a Zahra muito jovem costumava ir, aos quais
Maryam nunca poderia acompanhar, tornaram-se lugares reais, habitados por
pessoas reais. Isso nunca incomodou muito Maryam, tendo a própria vida tão
cheia. A melhor amizade não era mais uma grande parte do tempo; era estar
lá quando importava.
Mas Hammad havia voltado para a vida delas e Zahra foi embora e ia
jantar com Rose. Como ela entenderia isso?

Alguns tipos de dor desaparecem com o tempo, outros se alojam. A


morte de George Michael pertencia à segunda categoria, como ficava cada
vez mais claro quando a playlist dos anos 1980 enviava a voz dele pelos alto-
falantes do quarto com uma nitidez que o toca-CDs da adolescência de
Maryam nunca teve. Não era só “Careless Whisper” com seus tons de
lamento, mas até a frivolidade de “Club Tropicana” podia deixá-la em
tristeza profunda.
Maryam suspirou, apoiada nos travesseiros. Todos os outros cômodos da
casa transbordavam de cores e obras de arte, mas o quarto era em tons de
cinza e branco, sem enfeites. Iluminado agora pelo brilho suave de duas
lâmpadas laterais. O refúgio sagrado.
“Faça um favor à memória do homem e ouça a música que vem depois”,
disse Layla, a voz abafada pela camisa que ela estava tirando, a barriga
emergindo com a cintura ligeiramente aumentada. Uma das surpresas do
amor foi a forma como ele se moldou em torno de todos os sinais de
envelhecimento; a Maryam de vinte anos atrás, arrebatada pela beleza física
de Layla, esperaria sentir certo desapontamento com a obra do tempo e da
gravidade. Mas ali estava Layla, nua e caminhando em direção ao chuveiro,
não tão perfeita quanto já fora, mas mais encantadora que nunca.
Ela abriu o aplicativo de mensagens, segurou o telefone perto do alto-
falante e enviou alguns segundos de “Club Tropicana” para Zahra, embora
achasse que Zahra é quem devia se desculpar por ter desaparecido. Depois,
voltou a se dedicar aos e-mails do dia.
“Então”, disse Layla, saindo do banheiro, ainda nua, trazendo consigo um
aroma cítrico. “Zahra descobriu?”
Layla nunca dizia Eu avisei. Ela só relatava os fatos que nunca teriam
acontecido se Maryam a tivesse ouvido.
“Se eu dissesse a ela, seria dizer que é um fato. Não acho que seja um
fato. Conner colocou isso lindamente. Não complique os assuntos pensando neles
como o governo. Eles fazem parte do nosso portfólio de investimentos. Investimos
neles, obtemos retorno sobre o investimento.”
Os retornos tinham sido magníficos até agora. Estou muito satisfeito com a
rapidez e a eficácia do Imij ao reagir aos eventos recentes com uma reformulação de
suas políticas em relação ao abuso. Esse é o espírito da democracia. Os usuários
reclamaram, a empresa mudou. Não há necessidade de o governo entrar na água como
uma babá determinada a amarrar os coletes salva-vidas em nadadores olímpicos. Essa
declaração em vídeo tinha sido a primeira postagem do primeiro-ministro na
sua conta do Imij. A garota, Tahera, e seu pai tinham desaparecido
completamente dos noticiários. A papelada para a aquisição tinha acabado de
ser aprovada pelos advogados de ambas as partes.
Ela afastou o lençol para que Layla pudesse entrar debaixo dele, mas Layla
continuou de pé ao lado da cama, com as mãos na cintura, parecendo
desconcertante como quando sabia que Zola tinha feito algo errado e
esperava que Zola percebesse que ela sabia.
“Você ficou com medo de contar para ela.”
“Não seja ridícula. Você me expulsou deste quarto por três noites
seguidas quando eu lhe contei. O que Zahra poderia fazer de pior?”
Layla foi para a cama, mas deitou na beirada, com tanta distância entre
elas quanto era possível em um colchão queen size. “Você sabe que vou
expulsá-la para sentir que estou adotando uma postura, e depois vou deixá-la
voltar. Mas você também precisa saber que isso não é a sua discussão usual
com Zahra, de lucros antes da ética. Esse governo é tudo contra o que ela
passou a vida profissional lutando.” Ela pegou o frasco de vitamina D da mesa
de cabeceira, derrubou dois comprimidos na palma da mão e entregou um
para Maryam. “Coisas como justiça e democracia realmente importam para
ela. É estranho como você entende tudo o que diz respeito a ela, menos
isso.”
“Isso se chama complexo paterno. Veja, entendo melhor do que você.”
Maryam pegou o copo vazio ao lado da cama e o pousou, o comprimido
ainda na palma da mão. “Mas não se trata disso. Ela age como se eles em
pessoa, lá no Número Dez, apontassem um míssil de merda para o escritório
dela.”
“Não sem razão.”
“Ela os chama de ditadores e fica chateada quando eles notam. Eu devia
deixar escapar quatorze bilhões de dólares só porque Zahra decidiu levar o
governo para o lado pessoal? Uma de nós é profissional. Você não vai me dar
mesmo um pouco da sua água?”
“Parece que você está muito na defensiva.” Por fim, Layla lhe passou seu
copo. “Contenha-se. Babar também disse a ela que logo você estará
representando o governo com essa coisa de ‘Grã-Bretanha Aberta aos
Negócios'?”
“Vou ser representante da nação.”
Maryam chegou mais perto de Layla, cutucou-a com o quadril.
“Você vai me empurrar da cama.”
“Eu seguro se você cair. Sempre.”
“Eu sei. Você acha que isso é tudo o que importa para as pessoas que a
amam, mas não é.”
“Posso fazer outras coisas que importam também”, disse Maryam, com a
mão na pele quente do banho de Layla.
“Não abuse da sorte, parceira.” Layla virou-se para um lado e apagou a
lâmpada.
Maryam fez um bico, mas voltou para o seu lado na cama. Pegou o
telefone. Zahra tinha visto a mensagem do George Michael, mas não
respondeu.
Logo Layla dormiu, respiração profunda e serena. Maryam escreveu mais
alguns e-mails e verificou suas mensagens mais uma vez. Zahra estava on-line.
Ainda sem resposta.
“Sinceramente”, ela disse em voz alta antes de apagar a luz de cabeceira e
se enrolar em Layla. Com quem mais ela iria conversar sobre o horror com
Hammad? Por que Zahra estava sendo tão irritante?

Segunda-feira de manhã e o ventilador de chão no escritório de Zahra


estava na velocidade mais alta. O farfalhar das folhas erguendo-se em torno
dos pesos de papel improvisados formava uma trilha sonora, não exatamente
um barulho de fundo, mas algo totalmente não invasivo para alguém que
cresceu com o zumbido dos ventiladores. Zahra passou o dedo por uma pilha
de cartões de agradecimento, contando. Os cartões estavam em sua mesa
desde o dia anterior, esperando que Zahra acrescentasse sua assinatura e, em
muitos casos, uma nota pessoal às palavras já impressas para aqueles que
compareceram ao evento anual de arrecadação de fundos do CLC. Essa
atribuição costumava ser do presidente do conselho, mas alguns anos atrás ele
disse que as pessoas queriam receber notícias de Zahra, não de um velho e
rabugento conselheiro real.
Ela pegou o cartão de cima da pilha. Era endereçado a um dos doadores
mais generosos da organização — uma mulher com uma grande fortuna
herdada que deixava claro que contava com a presença de Zahra em suas
festas de verão e de Natal todos os anos em retribuição à sua benesse. Anos
atrás, quando era nova na Inglaterra, Zahra tinha aprendido sobre mulheres
como essa com um pós-doutorando extremamente sofisticado de Srinagar:
“Há um certo tipo de inglesas que gostam de convidar pessoas como eu e
você para suas festas porque conseguimos segurar uma taça de vinho e uma
conversa ao mesmo tempo e então elas podem se sentir eruditas na frente dos
amigos sem nenhum risco para o bom andamento da noite”. Zahra não
bebia vinho, mas tomou seu primeiro gole de Merlot naquele mesmo dia.
Foi encantador ver você, como sempre, Zahra escreveu. Estou ansiosa pela festa
de verão
Ela considerou seu manuscrito resoluto por um momento e então
acrescentou um ponto de exclamação, apenas para que pudesse dizer a si
mesma que estava sendo irônica em vez de insincera.
Isso era o máximo que ela conseguia fazer no momento. Colocou o
cartão na nova posição, no fundo da pilha, erguendo o peso de papel para
ajudar no processo. O peso de papel era uma fotografia emoldurada que a
acompanhara de mesa em mesa durante toda a vida profissional. Era no
antigo formato de 8 x 12 centímetros, com cores desbotadas, exibindo um
aparelho de televisão Hitachi, todo volumoso, com um letreiro manuscrito
na tela garantindo aos telespectadores que a transmissão normal retornaria
em breve. Seu talismã, um contra-argumento para todos que se preocupam
com a derrota.
Ela puxou o teclado para mais perto e foi procurar informações sobre a
Mesa Principal. Havia bem pouco lá fora. Ela ampliou a busca para todos os
clubes de doadores ligados ao partido governista, o que produziu uma
profusão de artigos de notícias — dinheiro para acesso, dinheiro para
honrarias, negociantes de armas, o setor financeiro, oligarcas russos, contratos
com o governo, isenção fiscal, sigilo, lobby nos bastidores. “Nenhuma ligação
pode ser provada entre as doações e qualquer política do governo” —
naturalmente, esse era o ponto principal.
Nenhuma ligação pode ser provada entre a ligação do migrante com
Zahra Ali e a negação de seu pedido de permanência. Agora que Azam havia
sido detido por trabalhar ilegalmente, o máximo que Zahra podia fazer era
ajudá-lo a voltar para casa com sua esposa pelo tempo que lhes restava em
Londres. Era quase certo que ele perderia o recurso contra o Ministério do
Interior.
Zahra buscou por “clubes de doadores, capitalistas de risco”. Ela sabia
que estava tentando montar um caso, mas seu cérebro se recusava a deslizar
como um tubarão pelo material da maneira de costume; em vez disso, um
zumbido na cabeça, vespas, tudo era barulho e picada. Uma contusão em seu
ombro direito, onde ele a segurou quando ela estava deitada embaixo dele,
ela podia sentir quando se recostou na cadeira.
Ela ficou grata pela interrupção quando Ray ligou da recepção para dizer
que havia dois homens ali para vê-la, o sr. Najam Hussain e um amigo, eles
disseram que a conhecem de Karachi. Ela não tinha ideia de quem eram, mas
em geral, quando as pessoas que vinham de Karachi dizendo que a
conheciam, era alguém precisando de ajuda legal que tinha alguma ligação
com um de seus pais, mesmo que a ligação fosse tão efêmera quanto um
primo de segundo grau que um dia trabalhou na escola da mãe dela.
Geralmente, tinham um problema de imigração que exigia advogado, mas,
uma vez que o nome de seus pais era invocado, ela não tinha opção a não ser
oferecer chá, conversar por um tempo e enviar um e-mail ou uma mensagem
de texto para o advogado que estava recomendando, dizendo que o sr. ou a
sra. (geralmente o sr.) Fulano era conhecido de sua família. No início, ela se
ressentia dessas obrigações sociais em seus dias como advogada para assuntos
de imigração, mas, quanto mais trabalhava com migrantes, mais apreciava as
redes informais.
“Mande-os entrar e pergunte como preferem o chá”, disse ela.
Mais tarde, lhe ocorreu que a batida em sua porta deveria tê-la prevenido,
presunçosa no volume e na duração. Entrou Hammad, com seu sorriso
satisfeito, seguido por um segundo homem, de maneiras notoriamente
diferentes.
“Oi”, disse Hammad, sentando sem esperar que pedissem.
A porta ficou entreaberta e ela viu Rose passar, olhando para dentro
enquanto seguia. Quando jantaram juntas na noite anterior, Zahra não
mencionou nenhum dos eventos do dia. Ela ficou muito envergonhada pelo
próprio julgamento ruim — o pensamento incluía tanto Hammad quanto
Maryam.
“Tenho uma reunião em cinco minutos.”
Hammad estendeu a mão na direção do outro homem, ainda de pé. “Eu
estava jantando com meu amigo aqui ontem à noite e ele mencionou
algumas preocupações legais. Eu disse, tenho alguém que vai ajudar você.”
“Acho que você pode estar me confundindo com uma advogada”, disse
ela, determinada a não morder a isca do tenho alguém. “Este é o Centro de
Liberdades Civis. Eu sou a diretora aqui.”
“Hammad, vamos embora”, disse o outro homem. “Desculpe, madame,
pela confusão.”
Ele apertava uma pasta no peito, os braços junto ao corpo. Vestia uma
jaqueta quente demais para o clima de Londres e havia manchas de suor em
suas axilas. Ele tinha cinquenta e poucos anos, ela presumiu, com cabelos
grossos e grisalhos e um bigode bem aparado em um rosto magro. A cara de
Karachi. A maneira como ele segurava a pasta lhe dizia que tinha
documentos importantes ali e que seu futuro todo dependia da proteção
deles.
Ela o convidou a sentar, usando seu urdu mais formal. Tashreef Laeeay —
não era uma frase que saía de sua boca havia algum tempo, mas parecia
necessário falar em um tom elevado de respeito para perdoar e esquecer o
fato de ele ter trazido o cheiro de suor para o escritório, eles dois sabiam
disso.
“Sei que é muito estressante lidar com questões legais”, disse ela,
querendo que ele soubesse que ela não opunha a ele, podia reconhecer um
homem com uma necessidade genuína.
“Obrigado”, disse o homem. “É, sim.”
Hammad recostou-se na cadeira, sorriso largo. “Não é uma reunião
maravilhosa?”
Zahra e o homem olharam um para o outro, então olharam para
Hammad e depois um para o outro, como desenhos animados em
movimentos sincronizados.
“Jimmy?”, ela disse.
O homem se virou para Hammad, um dedo apontando para Zahra. “É
esta?”, disse ele. Naquele momento, seu dedo ossudo apontado para ela, ela o
viu. O homem que encostou os dedos em sua bochecha, suavemente,
porque sabia que era tudo o que precisava fazer para que ela obedecesse.
Hammad bateu palmas, um empresário teatral encantado com o que
havia coreografado. “Vocês dois! A cara de vocês agora.”
“Você me trouxe aqui como um tipo de brincadeira?”, disse o homem —
Jimmy, era Jimmy — para Hammad.
Hammad deu de ombros. “Não parece tão legal quando você é o único
que não tem controle da situação, não é?”
“Você precisa sair da minha sala”, disse Zahra. Por baixo da mesa, ela
segurava a própria perna.
“Você me recebeu tão bem ontem.”
“Ficaria feliz, encantada, se o Ray, da recepção, jogasse você para fora.
Ele já foi boxeador profissional.”
“Seja como for, tenho de pegar um trem”, disse Hammad, levantando-se.
“Vamos fazer isso de novo da próxima vez que eu voltar.”
Ele saiu sem nem olhar para Jimmy, que continuou sentado na cadeira, a
pasta ainda apertada contra o peito.
“Eu não sabia. Encontrei ele ontem pela primeira vez desde aquela noite.
Também devo...?”, disse ele apontando para a porta.
“Vou pegar um chá para nós.” Zahra se levantou, sob protestos dele, e
saiu da sala, fechando a porta atrás de si. Ela não tinha a intenção de se apoiar
na parede, respirando fundo, mas lá estava ela agora, fazendo isso, e parecia a
única coisa que ela conseguia fazer naquele momento.
“Alguma coisa errada?” Alex, não mais uma estagiária, caminhava pelo
corredor com três canecas de chá na mão.
Zahra se endireitou. Rose estava no fim do corredor, Ray na recepção,
Alex de pé aqui olhando para ela com uma expressão que dizia que se
houvesse algum problema ela em pessoa enfiaria uma estaca no coração.
Zahra pegou duas canecas de chá, sorriu para Alex de forma tranquilizadora
e voltou para a sala, deixando a porta aberta.
Jimmy estava de pé. “Pensei que você estivesse mandando o recepcionista
dar um jeito em mim”, disse ele, fechando a mão em punho e dando um
soquinho no ar. “Não a culparia.”
Ela pôs o chá na mesa após limpar as laterais e o fundo das canecas e
voltou para sua cadeira.
“Trinta anos se passaram e ele ainda está zangado comigo”, disse Jimmy,
com um tom de espanto. “Quando ele fez contato, fiquei muito feliz. Pensei,
estamos finalmente velhos o bastante para só lembrar os bons tempos juntos.”
Seu sorriso lisonjeador, como se ela fizesse parte dos bons tempos e ele lhe
fosse grato por isso.
“Do que você precisava?”
“Você é filha de Habib Ali”, ele disse. “Eu devia ter pensado nisso antes.
Vejo você na TV, sabe, mas nunca liguei as coisas. Tantos Ali no mundo.” Ela
não conseguia definir seu comportamento — o tom era educado, mas havia
algo desagradável, uma familiaridade excessiva. Ele havia colocado a pasta no
chão e estava ocupando mais espaço na cadeira. “Eu era muito fã do seu pai.
Quando o vi lá fora no seu prédio naquela noite, quando deixei vocês em
casa, me senti tão mal por ter tratado a filha de Habib Ali daquele jeito.
Pensei que você fosse só, sabe, uma daquelas garotas ricas. Como aquela sua
amiga.”
Ele disse isso como se compartilhassem certa compreensão sobre Maryam,
sobre o tipo de garota que ela era.
“O que tinha naquela sacola de lona? Aquela que você pegou com o
homem perto do porto.”
Ele franziu a testa e fez um gesto — mãos para cima, pulsos virados,
dedos incertos. O gesto de “quem sabe?” dizendo que foi só mais uma noite
na vida dele, não se lembraria dos detalhes. “Nunca me comportaria daquela
maneira hoje. Quero que saiba disso. Naquela época, não sabia como ficar
com garotas.” Uma entrelinha, ela podia ter imaginado, que era para
informá-la de que agora ele sabia muito bem como ficar com garotas. “Eu
não sabia como dizer: Olá, meu nome é Jimmy, posso levá-la para dar uma
volta?”.
Ela empurrou uma caneca de chá mais perto dele. “Se você tivesse dito
isso, eu teria respondido ‘não'.”
“Era um direito seu”, disse ele, um pouco rápido demais, como se fosse
uma fala que tivesse preparado quando ela saiu da sala e esperasse encontrar
espaço na conversa para dizê-la. Ele tomou um gole do chá, ela também.
Goles elegantes e sem ruído, dos dois. Aquelas juntas de dedos peludos
segurando a alça da caneca, os lábios não mais rachados.
No decorrer dos anos, quando algum comentário de Maryam a obrigava
a pensar em Jimmy, ela via a camisa brilhante, os dedos finos tocando sua
bochecha e o corte de cabelo mullet que na época ela não sabia descrever
como mullet. O rosto dele ficou perdido para ela, pensara, mas não, o tempo
todo esteve agachado em alguma cavidade obscura de seu cérebro, e agora ela
conseguia ver os vinte e poucos anos tão claramente neste homem de meia-
idade.
“Conheço meus direitos.” Ela fez um gesto que englobava o escritório.
“Está na descrição de funções.”
Ele se levantou com a pasta na mão. “Desculpe por tomar seu tempo. É
óbvio que quer que eu vá para outro lugar.”
Ele estava quase saindo do prédio quando ela o chamou de volta. “Você
devia me falar do que precisa e eu lhe direi se somos as pessoas certas para
conversar.”
Eles estavam na recepção, Ray na mesa entre Zahra e Jimmy.
“Estou pedindo uma licença de permanência indefinida”, disse Jimmy,
virando-se para ela. “Sei que muitas pessoas estão sendo rejeitadas hoje em
dia. Hammad disse que você devia ter ligações com o Ministério do Interior,
uma pessoa na sua posição. Talvez possa ajudar um amigo dele falando bem.”
Hammad, aquele bastardo completo.
Ela pegou um panfleto da mesa e o ofereceu a Jimmy. “Se está
preocupado com seu pedido, você devia procurar um advogado de
imigração. Aqui está uma lista.”
Ele segurou o folheto com o polegar e o indicador. Uma pequena
corrente de energia percorreu o papel antes que ela o soltasse.
“E se não puder pagar um advogado...”, ela disse, mudando para o inglês.
A expressão dele carregava a ofensa de um homem que tinha aberto seu
caminho no mundo e agora via como ela o insultava de modo proposital em
uma língua entendível para o recepcionista. “Posso pagar dez advogados.”
“É?”, ela disse, olhando para as manchas de suor sob os braços dele,
conhecendo o suficiente das categorias de flechadas para entender
exatamente como aquela cairia.
Ele apertou os braços contra o corpo. “Hammad disse que você ficaria
feliz em ajudar um amigo dele. Sabe, como eu disse, vi você na TV tantas
vezes, então...” Ele endireitou as costas e moldou as feições para uma
expressão de autoridade fria que deixava claro que a detestava, não só nos
últimos minutos, mas que a detestava toda vez que a via na televisão, por
causa de sua aparência, de como falava e do espaço que ocupava no mundo.
“E então, ontem no jantar, Hammad disse que a conhecia, que estava com
você mais cedo. Meu Deus, não pude acreditar no que ele estava me
dizendo.” Falava mais devagar aquelas últimas palavras, como se recapitulasse,
muito claramente e com grandes detalhes, todas as coisas que Hammad havia
contado. Ela sentiu uma vergonha antiga percorrê-la.
“Quem é você para me humilhar?”, Jimmy disse, e a palavra “você” foi
enfatizada. “Eu já pedi desculpas pelo que aconteceu antes.”
“Na verdade, você não pediu.”
Ela e Jimmy falavam em inglês agora e ela estava ciente de que havia Ray
entre os dois, curioso sobre o que estava acontecendo, sem saber o que fazer
com sua chefe que se comportava de maneira tão atípica.
“Eu vim aqui porque preciso de ajuda. Tenho advogado. Ele viu meus
papéis e disse que estão certos. Como alguém pode dizer isso hoje em dia?
Por toda parte, as pessoas que conheço estão sendo informadas de que devem
ir embora por causa de algum errinho, de um pequeno deslize. Alguém com
uma multa por excesso de velocidade, rejeitado. Alguém cujo contador
cometeu um erro fiscal que rapidamente foi corrigido, rejeitado. Esses
advogados não estão nem aí. Eles pegam o dinheiro e nem olham direito
para o seu arquivo. Vim porque Hammad disse que você me ajudaria.”
“Tudo certo?”, Rose, do corredor.
“Rose, você tem uns minutos? Sei que normalmente não fazemos isso,
mas você podia dar uma boa olhada no arquivo de imigração do sr. Hussain
para ver se há alguma bandeira vermelha? Como um favor pessoal para
mim.”
Por um momento ela pensou que Jimmy iria embora, mas ele deixou os
ombros caírem, incapaz de rejeitar a humilhação máxima de sua benesse. E
então seguiu Rose pelo corredor sem nem olhar para Zahra.
Ela voltou à sua sala e deixou a porta aberta, para deixar o mau cheiro
dele sair. Depois tirou um lenço de papel da gaveta da mesa, ergueu a caneca
que ele havia usado e levou para a cozinha, onde despejou o conteúdo na
pia. Espremeu uma quantidade excessiva de detergente na esponja e esfregou
bem a caneca. Depois de enxaguar a caneca, jogou a esponja no lixo e lavou
bem as mãos. Todo cheiro que podia sentir agora era do detergente de pinho
com limão.
Ela caminhou rapidamente pelo corredor até a sala de Rose e abriu a
porta. Rose ergueu os olhos dos papéis em sua mesa; Jimmy virou-se para a
porta, ansioso, atento ao que ela poderia dizer.
“Tudo certo?”
“Sim”, disse Rose. “Parece tudo certo até aqui.”
Ela voltou para sua sala. Durante dias após o ataque de merda, a área da
recepção pareceu estranha, como se a antiga atmosfera de acolhimento tivesse
se quebrado. As pessoas torciam o nariz ao passar, apesar dos difusores de
eucalipto na mesa de Ray. Agora o refúgio da sua sala havia sido jimmificado.
No carro, quando ele fechou a janela, aquele cheiro de colônia. Ela
recordava como era estar em seu corpo naquela noite, o coração violento.
Anos mais tarde, fez Tom jogar fora um frasco novo de pós-barba, embora na
época não soubesse exatamente por quê.
Ela pegou o telefone e enviou uma mensagem:
Quanto tempo mais cedo você consegue sair do trabalho hoje?

O único vestígio de Tom era o gosto de Zahra por móveis inesperados.


Maryam ergueu um copo de nimbu pani do tronco de árvore e se acomodou
na chaise-longue. Finalmente ela passou a gostar desse apartamento, a casa de
Zahra, embora por muitos anos tenha sido difícil se livrar da associação de
ideias com a mudança de Zahra, aquele dia logo depois do Natal de 2007.
Elas estavam desempacotando as caixas juntas quando Layla ligou de um café
onde tinha ido comprar sanduíches para o almoço, dizendo que tinham de
ligar a televisão, ela sentia muito, muito mesmo. Benazir tinha sido
assassinada.
Maryam fez um gesto na direção da janela aberta, por onde o calor retido
do dia escapava, como se pudesse expelir a lembrança. Quando Zahra
mandou a mensagem pedindo que ela saísse mais cedo do trabalho — um
pedido sem precedente — ela receou de que fosse o tipo de notícia terrível
que exigia que ficassem juntas em uma sala. Algum conhecido das duas que
caiu morto, um exame médico de rotina que revelava algo que não deveria
— eram eventos desse tipo que tinham entrado na vida delas, uma
antecipação das próximas décadas. Mas agora que ela estava aqui, Zahra foi
tomar um banho, abandonando-a com a nimbu pani e a própria curiosidade.
Primeiro, a partida abrupta do Lord's e a recusa em responder às suas
mensagens, e agora isso.
“Desculpe”, disse Zahra, surgindo em um caftan que a altura dela
conseguia transformar em um traje elegante. “Precisava lavar esse dia.” Ela
sentou aos pés da chaise-longue, os braços trazendo os joelhos para perto do
peito. “Preciso contar uma coisa que aconteceu ontem. Saí com Hammad.”
“Por quê?”
Zahra puxou um fio solto onde o tecido da chaise-longue se juntava à
estrutura. Quando olhou para cima, havia manchas vermelhas dos dois lados
de seu rosto. Ela ergueu o queixo e levou um tempo para concluir que estava
indicando a porta do quarto.
Maryam se levantou. “Preciso de uísque.”
“Dá ressaca. Experimente tequila.”
Maryam foi até a cozinha, olhou em volta, viu um suporte para vinho
cheio só de vinho e voltou. Zahra apontou para uma mala de viagem retrô
em um canto da sala — era nova! — que Maryam abriu para encontrar uma
variedade de garrafas, uma das quais reconheceu como o Calvados que havia
trazido para flambar algo havia pelo menos cinco anos. Fazia mais tempo.
Zola ainda era pequena, agarrada aos braços de Layla enquanto Maryam
preparava o... — o que era? — flambado. Ela de fato não precisava de uísque,
nem particularmente queria, mas não sabia como reagir à revelação
inesperada — e, conforme caía em si, grotesca — de Zahra, imitando tanto
o tipo de comportamento que as pessoas nos filmes apresentavam em tais
momentos. Ergueu o uísque, colocou de volta na mala e, com um olhar que
desafiava Zahra a dizer alguma coisa, pegou a tequila. Em seguida, foi à
cozinha e voltou trazendo dois porta-ovos no formato de patinhos
escalpelados.
“Tenho copos de shot”, disse Zahra.
Maryam passou sua tequila em um porta-ovos e encheu o dela. Zahra
virou a tequila de um gole só, o que Maryam não a via fazer desde o
primeiro ano em Cambridge, quando resolveu experimentar tudo que nunca
experimentara em Karachi.
“Dão arrepios”, disse Maryam, olhando mais de perto para o patinho que
esperava um ovo ser colocado onde deveria haver um cérebro, só para ser
quebrado e aberto. Zahra olhou para ela, esperando que ela decidisse o que
dizer. Maryam continuava de pé. “Foi no Lord's. Você tinha a vantagem de
vinte homens para cada mulher. Precisava escolher o mais sórdido do grupo?
E como, quando? Você falou com ele por dois minutos, talvez, antes de ele ir
embora.”
Zahra colocou o porta-ovos no chão, a base cobrindo precisamente um
nó da madeira do piso. “Ele é o cara com quem eu estava trocando
mensagens na primavera.”
“O quê?”
“Parei porque sabia como você se sentiria traída. Mas ontem, bem, eu me
senti traída por você, então...” Ela fez um gesto com as palmas das mãos na
forma de pratos de balança se equilibrando.
“Vou levar uma lição de moral por causa da Mesa Principal?” A voz de
Maryam nunca tinha sido tão brusca com Zahra, mas a possibilidade de estar
prestes a pular de um terreno tão instável para montar um cavalo alto da
moral era enlouquecedora.
Zahra sacudiu a cabeça, sua expressão estranha. Havia vergonha ali, mas
havia algo mais que fez Maryam dizer “O que ele fez com você?”, com toda
a sua raiva se voltando para Hammad.
“Nada. Nada disso.” Um breve sorriso. “Ele de fato fala muito e faz
pouco. E não gosta que lhe apontem isso.”
Havia certa satisfação naquilo. “Bem, não posso dizer que estou surpresa
nem que sinto muito.” Ela olhou para a porta do quarto e desviou o olhar.
“Por favor, diga que você terminou com ele.”
Zahra ainda mantinha aquela expressão estranha. “Não quero vê-lo nunca
mais. Ele foi ao meu escritório hoje. Com Jimmy.”
“Jimmy... Jimmy? O quê? Em Londres?” Ela se sentiu um pouco
estúpida, um pouco lenta, enquanto sentava na chaise-longue. “O que ele
queria? Por que você ainda deixou os dois entrarem em seu escritório?”
“Eu não sabia que eram eles. Um tal de Najam Hussain, de Karachi,
apareceu com um amigo, dizendo que me conhecia. Então entraram aqueles
dois.” Ela fez uma careta para expressar a incredulidade daquilo tudo. “Jimmy
não sabia quem eu era no começo, assim como eu não sabia que era ele.
Hammad... Não sei. Ele pareceu achar engraçado.”
“Homens pequenos gostam de achar que são grandes homens. Não é
complicado.”
“O coreógrafo de todas as coisas. Sim.”
“E depois?”
“Depois ele foi embora e ficamos eu e Jimmy. E foi horrível. Não sei se
fui eu quem foi horrível primeiro ou se foi ele.”
“Mas o que ele queria?”
“Ele está pedindo a LPI e Hammad lhe disse que tinha uma amiga que
podia falar bem dele para o Ministério do Interior.” Ela concordou com o
olhar de desgosto de Maryam e então mudou para um de seus rostos de
Zahra. “Entendo o pavor dele de ser rejeitado. Todo mundo tem hoje em
dia, a menos que esteja ganhando seis dígitos. Mas, ao que parece, é um
futuro cidadão-modelo, nosso Jimmy.”
“Perguntei a Rose, que fuçou na papelada dele procurando algum nó. Ele
é uma espécie de engenheiro. Mudou-se do Golfo para cá com a esposa e
duas filhas. Estão divorciados agora, mas ele paga a pensão alimentícia em
dia. Nunca teve uma multa de estacionamento sequer. Faz doações para a
caridade, mas não através de nenhuma dessas organizações islâmicas que o
governo poderia questionar.”
“Espere, como é que é? Ele chega, aquele homem, depois do que fez, e
você o manda para a chefe do jurídico ajudar? Por que não ofereceu a ele
uma xícara de chá com biscoitos enquanto fazia isso?”
“Não pensei nos biscoitos.”
“Ah, por favor!” Maryam se levantou, rápida, seu pé batendo em Zahra.
Zahra gritou, agarrou o tornozelo e retribuiu o olhar feroz e zangado que
Maryam lhe lançava. “Por que você deu chá para ele?”
“É o que faço quando alguém vem ao meu escritório. O que devia ter
feito?”
“Não sei. Mas sem chá. Atirá-lo para fora? Chamar a polícia?”
“Não é crime entrar no escritório de alguém.”
“E o que ele fez tantos anos atrás? Não foi crime aquilo?” Ela franziu a
testa. “Não foi? Se tivesse sido agora, se tivesse acontecido com Zola, do que
você poderia acusá-lo?”
Zahra sentou-se um pouco mais reta, pensando de modo abstrato no
terreno em que se sentia mais à vontade. “Poderia tentar cárcere privado.
Talvez sequestro. Sem dúvida direção perigosa.” Então ergueu os ombros e
abriu as mãos. “Sinceramente, é como se aquela noite pertencesse a uma
categoria para a qual não tenho vocabulário.”
“Ele nos aterrorizou. Ele queria que soubéssemos o que os homens
podem fazer com as mulheres. É tão difícil ter vocabulário para isso? Se o seu
amado sistema jurídico não tem palavras, há algo errado com ele.”
Zahra colocou as mãos em concha contra o pescoço. Fazia muito tempo
que Maryam não via aquele gesto de vulnerabilidade.
“Quer saber por que dei uma xícara de chá para ele? Era para que ele não
soubesse que ainda me assusta. Aqui.” Ela apontou para o estômago. “Senti
aqui. Aquele terror, quando você não sabe se vai voltar para casa.”
“Ah, Za.” Maryam sentou e abraçou sua amiga mais antiga e mais
querida.
Zahra se curvou para ela, a testa apoiada no ombro de Maryam. “Eu
odeio isso, odeio. Como ele fez eu me sentir. E depois olhou para mim
daquele jeito, foi horrível, como quem diz que Hammad havia lhe contado o
que fizemos juntos, não apenas a versão de uma linha, mas todos os detalhes,
tudo.”
“Bastardo”, disse Maryam, apertando-a mais.
“Mas eu nem sei se ele fez mesmo isso ou se foi tudo coisa da minha
cabeça. Igual àquela noite no carro dele, não sei se era ele ou se era eu. Toda
aquela vergonha e aquele medo que carregamos desde a adolescência. Você
acha que alguém como Jimmy entende alguma coisa disso?”
“Por que você está tentando se persuadir a dizer que ele não fez nada de
errado?”
“Fui horrível com ele, Maryam, fui má, o tratei com ar de superioridade
e quis humilhá-lo. Eu o humilhei.”
“Bom.”
“Não é bom. Ele veio ao meu escritório. Eu não tinha direito de me
comportar daquela maneira.”
Por um raro instante, Maryam não sabia o que dizer. Dois homens
colocam Zahra no inferno aos quatorze anos. Um ela traz um para casa e
transa com ele; pro outro ela oferece assistência jurídica. Às vezes, Zahra se
sentia tão distante dela que era como se os quarenta anos de amizade entre
elas fossem apenas uma lição sobre a incapacidade de conhecer outras
pessoas.
“Por que você não o expulsou?”
“Porque ele veio ao meu local de trabalho precisando de ajuda. Não
expulsamos ninguém, a menos que seja abusivo ou violento, e ele não foi
nem um nem outro.”
Maryam pressionou a língua contra o céu da boca e a segurou ali até ter
certeza de que conseguiria falar sem gritar. “Seu trabalho não permite
mesmo que você tenha respostas humanas?”
“Nessa instância, não.”
Maryam nunca tinha ouvido Zahra falar com tanta naturalidade. Maryam
girou de modo que suas costas ficassem contra a parede e Zahra fez a mesma
coisa. Ficaram lado a lado, ombros encostados, cabeças inclinadas uma para a
outra. “Conte-me tudo, desde o começo.”
Zahra lhe contou, não da maneira habitual, que começava no começo e
seguia até o fim, mas de uma forma circular, dando voltas na história em si,
acrescentando detalhes, aquele cheiro de casaco suado, que entranhou na sala
mesmo depois que ele saiu, e Maryam se lembrava do cheiro no carro de
Jimmy, aquela colônia dele, ela havia esquecido até hoje, ela havia esquecido
tantas coisas que agora voltaram, Zahra se despindo do presente para o
assunto sobre o qual quase nunca conversaram — aquela noite, como ela se
sentiu, o horror absoluto daquilo, a certeza de que algo terrível aconteceria,
para o qual não conseguia dar um nome, não queria dar um nome. Sim,
disse Maryam, sim.
Por fim, chegaram ao silêncio. Maryam pôs a mão no joelho de Zahra.
Zahra pôs sua mão em cima da mão dela. Ficaram sentadas assim por um
tempo, e então Maryam encheu os porta-ovos com tequila e disse: “Quero
ver como ele é”.
Foi bem fácil com o Imij. Maryam seguia Saba, que seguia Hammad, que
só recentemente começou a seguir um JimmyHussain, cuja foto do perfil era
um homem encostado em uma Ferrari. Como ele parecia comum, só um
homem de meia-idade, meio ridículo com a pose de polegar para cima ao
lado de um carro que não era dele, era claro. Ela navegou até a página dele.
Foto após foto, posando com carros: Jimmy com um Porsche, Jimmy com
um Lamborghini, Jimmy com um Tesla. Zahra clicou em uma foto em
miniatura na parte inferior da tela. Uma foto mais granulada, Jimmy com
cabelo mullet, pele cheia de espinhas, encostado em um Suzuki FX.
Parecia irreal, depois de todos aqueles anos. O Jimmy no FX era diferente
de como Maryam se lembrava dele: mais baixo, tão jovem, um sorriso
amigável. Ela esfregou o polegar nas pontas dos dedos, lembrando-se da
graxa no banco do carro, ficou preocupada que pudesse grudar na sua calça
jeans favorita.
Ela navegou até o fim da página dele. Não havia nada além das fotos de
carro.
“Bem, ele gosta de carros e melhorou o corte de cabelo”, disse Zahra.
“Você não vai conseguir mais do que isso.”
“Posso conseguir mais.”
“Não”, disse Zahra. E depois: “Não me diga”.
Ela se levantou para ir até a cozinha, como se não houvesse nada naquela
frase que precisasse ser explicado.
“Tudo bem”, disse Maryam, certa de que Zahra entendeu.

“Ele poderia ser um homem muito diferente hoje”, disse Layla, quando
ela voltou para casa e contou sobre os visitantes de Zahra. “Hammad parece
ser o verdadeiro idiota da situação.”
Layla acreditava na capacidade de melhoraria do caráter humano, o que a
tornava a única idealista de verdade que Maryam conhecia. Zahra não se
enquadrava nessa categoria porque não acreditava que as pessoas pudessem
melhorar; ela só achava que podia mudar o mundo pela força dos próprios
argumentos.
Maryam fez a ligação ao lado da janela de seu escritório no último andar
da casa, enquanto Layla e Zola jogavam futebol no jardim no crepúsculo do
fim de junho. Algumas partes de sua vida tinham de acontecer longe dos
ouvidos de Layla. O Garoto de Ouro atendeu no primeiro toque, gritando o
nome de Maryam com um entusiasmo talvez regado a drogas. Ele estava em
uma ilha no Caribe que planejava comprar com o dinheiro do negócio que
Maryam havia conduzido até a conclusão.
“Mas como isso pode ser um adeus entre nós?”, disse ele. Maryam
presidiu recentemente a última reunião do conselho do Imij e estava feliz por
ter encerrado os laços. Haveria mais problemas adiante, mais garotas como
Tahera, mais pressão sobre os governos para impor multas e acusações
criminais.
Ela virou as costas para a janela de modo que ficou de frente para a
parede oposta com um quadro-espelho de Pistoletto que ia do chão ao teto,
duas mulheres nuas dançando juntas, seios quase se roçando, a folhagem de
um vaso de fícus próximo à mesa de Maryam refletindo nelas. Ela desviou o
olhar, em direção à porta branca e vazia. “Estive pensando, você gostaria de
me fazer um favor?”, disse ela, sua voz diminuindo um pouco.
“Eu te dou esta ilha se você quiser”, disse ele. “Mas só se me deixar vir
visitá-la aqui sem ninguém além das gaivotas para nos ver.”
Ela riu, fez uma piada sobre todo o pessoal de que ele precisaria para
limpar a sujeira das gaivotas e lhe disse o que de fato queria.
“Estou enlouquecido tentando planejar um presente de despedida para
você”, ele gritava ao telefone. Drogas, com certeza.
“E aí está”, ela disse, tentando igualar seu tom de espanto ao ver como o
universo estava mostrando seus favores, dando exatamente o que ele estivera
procurando. Ele ficou tão encantado com tudo aquilo que nem perguntou
por que JimmyHussain era do interesse dela.
Depois que desligou, ela abriu a janela, apoiou os braços cruzados no
batente e observou as duas brincando lá embaixo. A bola de futebol rolou do
pé de Layla para o canteiro de rosas, Zola deu um mergulho e parou a
poucos centímetros dos caules cheios de espinho. Layla se jogou em cima de
Zola e os gritos de alegria que se seguiram disseram a ela exatamente o que
Layla estava fazendo para tentar ganhar a posse da bola. “Não vale fazer
cócega!”, gritou Maryam; elas acenaram para ela e lhe disseram para parar de
ser uma chata que só trabalha e vir brincar também.
Um link para download chegou à sua caixa de entrada. Ela jogou um beijo
e fechou a janela antes de se sentar à mesa diante da tela de vinte e sete
polegadas. Cento e setenta e oito imagens, dezessete vídeos. O campo de
assunto dizia: Não muito popular! Não publica muito!
Ela sabia que Layla estava errada sobre as pessoas mudarem, mas mesmo
assim ficou surpresa com a rapidez com que encontrou provas disso. O vídeo
era da noite passada. Uma garota, uma adolescente talvez, olhando para a
câmera de um telefone e dizendo: “Olhe esses pervertidos”. Ela virou a
câmera para uma pista de dança — parecia ser uma boate — e fez uma
panorâmica de dois homens parados de um lado, observando um grupo de
mulheres bem jovens em vestidos minúsculos se contorcendo umas contra as
outras.
Elas não falavam nada, os dois homens, Hammad e Jimmy, apenas
observando. Observando com aqueles olhos de Jimmy que a observaram
pelo espelho retrovisor durante todo o passeio de carro. A garota da câmera
se aproximou deles. “Ei, pervertidos”, ela gritou. Jimmy virou de costas para
a câmera, o mesmo pescoço magro que ela tinha visto do banco de trás, e se
afastou rapidamente. Hammad jogou um beijo para a garota antes de
acompanhá-lo. Ela não desistiu. Uma garota destemida, essa, protegida pela
câmera e registrando tudo o que os homens faziam. Ela mergulhou na
multidão gritando “pervertido, pervertido”, até que Hammad apertou o
passo e acompanhou Jimmy em direção à saída. Na porta, Jimmy virou e
olhou para a garota como se a estivesse observando do banco da frente de um
FX de vidros escuros na Napier Road.
Ela deu um zoom nele e ele foi se aproximando até se confundir com o
nada que sempre foi. Ele era a moeda de um centavo em torno da qual a
vida dela havia girado. Nem era uma moeda de ouro, apenas um centavo.
Esse presunçoso, esse impostor. Ele havia custado tanto a ela: Karachi, a
Khan Leather, o avô. Não haveria justiça para isso, em nenhum tribunal. Mas
havia formas de justiça mais antigas. Olho por olho. Ela diminuiu o zoom,
voltando com precisão para seu olhar frio e inflexível.

Meados de agosto e Londres se sentia como ela mesma outra vez, o


bombardeio implacável dos raios solares desgastado após uma marcha de
quase três meses. Foram intermináveis churrascos em jardins, piqueniques
em parques, jantares ao ar livre e até, finalmente para Maryam, um mergulho
com a filha no lago feminino de Hampstead, em algum momento do fim de
julho, que chegou a uma temperatura em que um corpo paquistanês podia
submergir sem se sentir arrancado de seu ambiente natural. Não um corpo
nigeriano, dissera Layla, mas no fim até ela cedeu. Todos precisavam dizer
sem parar como tudo aquilo era glorioso. Finalmente! Um verão de verdade!
Mas cada fim de semana se aproximava com uma pergunta pairando sobre
uma exigência crescente: o que você vai fazer para aproveitar ao máximo o
clima? Os pais de Zahra vieram de Karachi para uma visita e o pai dela
queria saber o que podiam fazer para, no mínimo, aproveitar o clima. E
agora, graças a Deus, tinha acabado, embora Shehnaz e Habib Ali tivessem
voltado para casa antes que o tempo piorasse.
Caíram uns pingos de chuva durante a caminhada dominical de Zahra e
Maryam e o almoço foi dentro de casa, com as portas de vidro fechadas para
se protegerem da brisa mais fria. Mas agora era o meio da tarde e quente o
suficiente para que todas fossem tomar o café no deque; Zola insistiu que já
tinha idade para tomar café também, embora fosse jovem a ponto de só
querer derramá-lo por cima de uma bola de sorvete de baunilha. Ela ficou
ofendida quando Maryam disse que essa era uma sobremesa de verdade,
chamada affogato, e Zola disse que não queria mais, uma vez que foram os
italianos que tinham inventado. Alguns minutos depois, porém, ela estava
tomando o sorvete derretido regado a café enquanto se empoleirava no braço
da poltrona de Zahra, contando sobre a descoberta devastadora de que seu
melhor amigo, Mark, que durante a vida toda morava a uma rua de distância,
estava se mudando para Highgate. Quando ela disse que ele não podia ir
embora, ele respondeu que ela estava se mudando para Lagos para passar seis
meses e provavelmente encontraria um novo melhor amigo por lá.
“Vou apresentar a você a diferença de significado entre as palavras
‘amizade' e ‘propinquidade'”, disse Zahra.
Maryam sorriu e se esticou no sofá, com os pés no colo de Layla, que
apertou o polegar contra um ponto de pressão da sola de um pé. Zola havia
passado a noite na casa de Mark e nesta manhã Maryam acordou com a boca
de Layla descendo por sua coluna vertebral em vez da cantoria habitual de
Zola anunciando que era hora do café da manhã.
A pressão na sola se tornou mais insistente, um sinal.
Maryam ergueu-se nos cotovelos e tomou um gole de café, ignorando o
olhar melancólico de Woolf. Uma vez, a cachorra lambeu um café
derramado e desde então não parou de esperar por outra degustação. “Então,
há algo que está se preparando para ser anunciado em breve.”
“Uso preocupante da voz passiva”, disse Zahra para Zola, que riu, tendo
acabado de ser apresentada a esse conceito por sua madrinha.
“Há uma campanha para conseguir mais investimentos para a Grã-
Bretanha. A Grã-Bretanha Aberta aos Negócios. Ou Ganha-Ganha, como
Layla gosta de chamar. E eu sou uma das pessoas escolhidas para estar à frente
dela. Serei uma enviada mundial de negócios.”
“Essa é uma campanha do governo?” O tom de Zahra era neutro,
esperando a resposta antes de se posicionar.
Mas foi Zola quem explodiu quando Maryam fez que sim com a cabeça.
O primeiro-ministro era um idiota sádico, um cabeça de espinhas cheias de
pus. Aqui estava Zahra Khala, que passou a vida inteira tentando impedi-lo
de afogar pessoas que escapavam das zonas de guerra. O que a mamãe estava
fazendo ao se envolver com uma das campanhas dele? Essa pergunta não foi
dirigida a Maryam, mas a Zahra.
Zahra olhou para Maryam. Depois daquele dia em seu apartamento,
Zahra não voltou a falar da Mesa Principal e Maryam não voltou a falar de
Hammad. Nenhuma delas tocou no assunto Jimmy. Zahra fez um pequeno
gesto sacudindo a cabeça e Maryam estendeu a palma da mão para Zola
como quem diz: Vá em frente, então, me destrua.
“Muita gente de bem é nomeada para cargos no governo”, disse Zahra,
passando o braço pela cintura de Zola. “Bem-estar infantil, crise climática,
refugiados. Existem cargos governamentais para todas essas coisas.” Ela olhou
para Maryam quando disse: “O que devemos ter em mente aqui é que sua
mãe foi convidada a fazer isso porque ninguém faz melhor o que ela faz.”
Só Zahra podia fazer com que ela se sentisse tão grata por um elogio, tão
grata quanto ficou décadas atrás, quando Zahra disse que era sua única amiga
de verdade e que todas as outras pessoas estavam em sua vida por causa da
propinquidade.
“Você sabia que chamam sua mãe de czarina da tecnologia?”, disse Layla.
“Será que ela vai ter de ser legal com o primeiro-ministro?” Lançou Zola,
a impiedosa.
Zahra ergueu as mãos para dizer: Fiz tudo que pude.
“Você sabe como está sempre reclamando sobre como Christobel se
exibe com o MBE de sua mãe”, disse Layla. “Bem, isso é algo muito maior.”
Aquilo superava todas as outras preocupações. Zola se levantou e imitou
o andar de galo que era a comemoração de cada gol que ela marcava.
“Você acha que as pessoas que chamam a mamãe de czarina da tecnologia
sabem que ela ainda não consegue colocar as coisas no saco de reciclagem
corretamente?”
“Reciclar é quase tão útil quanto espremer um limão no mar na
esperança de transformá-lo em limonada”, disse Maryam, aliviada pela a
conversa estar se encaminhando para um terreno mais familiar. “Enquanto
vocês lavam as latas e colocam em saco azuis, eu estou fazendo duas coisas.
Primeira, investindo em tecnologia verde que pode salvar o planeta de
verdade. Segunda, comprando uma propriedade na Nova Zelândia, de modo
que, se a tecnologia fracassar e o mundo entrar em colapso com uma
enchente ou uma seca, todas nós possamos ir morar onde temos mais
chances de sobreviver.”
“Tenho receio de estar muito ocupada cuidando dos refugiados do
clima”, disse Zahra. Zola disse que faria a mesma coisa e Zahra disse que a
geração dela podia se apressar, por favor, e assumir o comando do mundo.
“Não se preocupem, vou usar clorofórmio em vocês duas e arrastá-las
para dentro do avião”, disse Maryam. Zola pareceu aliviada.
“Ela vai fazer isso mesmo”, disse Layla. “Com todas nós, se precisar. E
com a Woolf também.”
A cachorra de caça se levantou ao ouvir seu nome, subiu com graça na
espreguiçadeira vazia e se enrolou como uma bola.
“Que foi?”, disse Zola.
“Acho que ela decidiu que chegou a um estágio da vida em que não
devia mais dormir no chão”, disse Maryam. Todas riram do ar de autoridade
com que Woolf fizera algo que desde filhote tinha sido adestrada a não fazer.
A sensação de ser uma família se instalou nas quatro ao compartilhar o
humor daquele momento, compartilhamento construído de tantos
momentos que vieram antes, que remontavam a anos.
A conversa desviou para a descontinuação da linha do ônibus número 10,
de Hammersmith para King's Cross, algo que fizera parte da vida delas aos
vinte anos. Zola foi andar no jardim, sem interesse na conversa, além de
informar que começaria a pegar ônibus sozinha para visitar Mark em
Highgate. Ela seguiu em piruetas até o estúdio de Layla e foi para trás dele.
Seu lugar secreto entre os arbustos de amora silvestre; ela gostava de se
esconder lá com seus ursinhos de pelúcia quando criança.
Maryam fechou os olhos, recostando-se mais uma vez. Layla e Zahra
estavam conversando sobre o quanto uma amiga em comum de Cambridge
havia mudado. Era uma chata agora, uma coisa horrível de dizer sobre
alguém sem outros defeitos. Mas isso as fazia não querer encontrá-la, embora
morasse tão perto. E, como sempre acontecia quando discutiam sobre essa
amiga e sua terrível monotonia (não era nada novo, Maryam já tinha
percebido isso vinte anos atrás), resolveram que precisavam encontrá-la para
jantar em breve, porque já fazia muito tempo, e não queriam que ela
pensasse que a estavam evitando, embora, oh Deus, quisessem muito evitá-la.
Maryam sorriu, não interrompeu. Como ela adorava ouvi-las juntas, essas
duas, cada timbre de voz tão conhecido que ela conseguia ver as expressões
exatas nos rostos sem nem abrir os olhos para olhá-las.
“Mamãe”, ela ouviu e abriu os olhos para ver a filha parada de pé com as
palmas das mãos em concha, o conteúdo escondido. Ela sentou, colocou as
próprias mãos debaixo das mãos de Zola, a palma da mão — a linha da vida,
a linha do coração — contra a pele da filha. Ela viu Layla se virar, ouviu
Zahra parar de falar no meio da frase. Zola sorriu para ela com gravidade.
Era como se todas sentissem a mesma linha puxando, trazendo-as para mais
perto, embora ninguém se mexesse.
Zola ergueu as mãos e as abriu com um floreado. As amoras silvestres
caíram nas mãos que Maryam erguia como se rezasse — maduras, escuras,
lustrosas, agridoces como o fim do verão.
Inverno
MARYAM SE PERGUNTAVA se sua doação de duzentas mil libras lhe daria o
direito de tocar “White Man in Hammersmith Palais” em Chequers, no
piano de cauda que Winston Churchill adorava. De vez em quando, um
pensamento de Layla invadia sua mente, e este parecia particularmente
satisfatório, embora ela nunca o colocasse em prática, não por decoro, mas
porque era Layla, não Maryam, quem conseguia tocar The Clash no piano.
Layla que, dali a duas semanas, estaria em Lagos com Zola.
O chanceler foi até ela, com uma postura mais tranquila, uma vez que o
café da manhã de negócios que ele ofereceu a líderes de tecnologia de Nova
York convenceu o CEO de uma proeminente empresa de internet a manter
o centro de operações europeu em Londres após o Brexit. Na verdade, o
CEO nunca pensou seriamente em sair de Londres, mas conhecia Maryam
havia muito tempo, devia parte de seu sucesso inicial ao investimento dela, e
ficou feliz em exagerar o significado do café da manhã para o chanceler.
“Primeira vez em Chequers?”, perguntou o chanceler.
“O que Churchill concluiria de nós dois no Grande Salão?”
Ele não gostou disso, nem da sugestão de que ela era sua igual, tampouco
do lembrete de que ambos eram anomalias ali, e fez o que costumava fazer,
um contato visual por cima da cabeça dela com outra pessoa da sala. Maryam
se afastou, em direção à esposa do oligarca russo, com quem fizera amizade
no decorrer de vários eventos da Mesa Principal. Elas descobriram o prazer
de transformar os homens mais influentes do país em estudantes
envergonhados toda vez que se afastavam dos demais nas reuniões pomposas
com a explicação de que eram “assuntos de mulher”, que cobria uma série
de problemas possíveis, desde absorventes saturados a presilhas que não
ficavam no lugar ou a uma relutância em caminhar por longos corredores até
um banheiro a sós. Agora, ela esperava que invocar “assuntos de mulher”
lhes permitiria sair do Grande Salão com painéis de madeira e pinturas
opressivas que abarrotavam as paredes para passear pelo restante da casa de
campo do primeiro-ministro. Mas o primeiro-ministro a interceptou no
caminho.
“Permita que lhe diga como detectar quando um homem nesta sala pode
não ser confiável”, disse ele, pegando-a pelo cotovelo e a conduzindo a um
canto do aposento distante das demais pessoas. Havia um quadro no nível dos
olhos fixado diretamente no painel de madeira. Um homem presunçoso
parecia olhar para eles.
É notável como a classe dominante na Inglaterra mudou tão pouco ao
longo dos séculos. Ou talvez o poder carregasse sua estampa particular —
não havia nada na expressão do homem que fosse desconhecido para ela, que
não fizesse parte de sua formação. “Esse quadro foi pintado por uma artista e
todo homem que quer convencer uma mulher de sua sensibilidade às
conquistas do sexo dela a traz aqui e fala sobre ele.”
Ele sorriu; ela sorriu em retribuição, para mostrar que entendeu a graça
daquilo e o achou inteligente e charmoso.
“Eu devia saber mais sobre arte depois de todos esses anos que passei com
Layla. Ela é a minha companheira e é uma artista.”
No mínimo, o aperto dele em seu cotovelo se intensificou. “O que eu
realmente quero saber é como você fez isso.”
“Isso?”
“Encontrou exatamente o que precisava para usar contra aquele homem.
Claro que também quero saber por quê.”
“Encontrei da maneira mais antiquada”, disse ela. “Contratei detetives
particulares. De que outra forma teria feito isso?”
“De que outra forma?” Ele baixou a mão. “Você deve ter detetives
particulares extraordinários para encontrar essa agulha no palheiro que você
possuía até recentemente.”
“Sim, essa não foi uma coincidência engraçada?”
A esposa do oligarca russo aproximou-se deles com seu vestido de seda
barulhento de mangas enormes, alertada pelo sinal de tocar no lóbulo da
orelha que Maryam enviara em sua direção.
“O chanceler estava me contando sobre esse colega descorado”, disse ela,
sorrindo para o primeiro-ministro. O verniz dele caiu para revelar a fealdade
de um homem que não suporta qualquer tipo de insulto. “Ao que tudo
indica, quem pintou isso foi uma mulher.”
“Oh, ah, sim”, disse o primeiro-ministro. Deu uma piscada para Maryam,
de conspiração.
“Isso aqui é fascinante”, disse Maryam, seguindo em direção à janela que
dava para o vasto jardim bem cuidado. Estava muito frio, o aquecimento fora
regulado para os homens de paletó e gravata, não para as mulheres de
vestidos de festa. “Mas estou certa de que você vai querer fugir para o sol em
algum momento deste inverno.” Ele era conhecido pela predileção por férias
à beira-mar. Ela disse que um amigo seu tinha uma casa de ilha
deslumbrante, o que significava que era dono da ilha inteira. E sabia que o
amigo adoraria que o primeiro-ministro ficasse lá. Ela lhe mostrou algumas
fotos no celular. O primeiro-ministro disse Deus, parece o paraíso. A conversa
prosseguiu, amena.

“Sorria”, disse o homem, e Zahra mexeu a boca com uma contração de


músculos que ninguém podia confundir com felicidade.
“Chama isso de sorriso?”, disse ele, mas ela continuou a olhar para a
câmera com aquele sorriso congelado e olhar deliberadamente sem vida.
Você tomou todas as formas de subversão que pôde num lugar como este.
Ela ouvira falar desse guarda por um colega do Departamento Jurídico que
recentemente tinha visitado o centro de detenção: “Você o reconhecerá pela
tatuagem no braço, um Van Gogh cercado de girassóis”, dissera o colega. Ele
fazia todo mundo sorrir para as fotos que colocava em crachás para fins de
identificação, até as pessoas que vinham se despedir de entes queridos que
talvez nunca mais vissem outra vez.
Ele lhe entregou o crachá, a veia do bíceps cortando caminho pelo rosto
de Van Gogh, e colocou uma pulseira que dizia VISITANTE no braço dela.
Ela deu alguns passos até a mesa onde deveria entregar o livro que tinha
trazido. A guarda no balcão estava vestida como todas as outras — botinas
pretas pesadas, calças pretas e camisa preta com o logotipo da empresa de
segurança privada que administrava o centro de detenção — e seu sorriso era
amigável, mas se transformou em genuinamente pesaroso quando pesou o
livro e disse que estava acima do limite.
Quando escolheu o livro, Zahra não considerou o limite de peso dos
itens pessoais que cada detento podia receber. O melhor da confeitaria britânica
fez a balança de Azam passar do limite.
“Mas só por 70 gramas”, disse a mulher. Claro que era um pequeno
excesso e podia ser perdoado, mas não, a mulher enfiou a mão na gaveta do
balcão e tirou uma tesoura. Zahra e a guarda examinaram o sumário,
tentando descobrir o que era dispensável. Bolinhos? Pão de passas? Biscoitos
decorados? No fim, Zahra cortou a introdução e os capítulos de suflês e
bolos de frutas; a mulher ensacou o livro e disse que o detento o pegaria
depois de ter sido inspecionado, para garantir que não estava escondendo
nenhum contrabando.
O frio de dezembro a atravessou quando ela saiu daquele prédio,
deixando para trás os murais da Disney, a árvore de Natal e a sinalização
perversa de CHECK-IN acima do balcão, como se esse centro de detenção
fosse apenas outro terminal do aeroporto, ao lado do qual havia sido
construído. Ao atravessar o estacionamento, Zahra pôde ver a pista pela cerca
de arame, um avião da British Airways taxiando, levando pessoas para férias,
viagens de negócios ou reuniões há muito esperadas. Ela sentiu a vergonha
de fazer parte daquele mundo, tão desatenta ao luxo de ir e vir.
Ela caminhou até o prédio semelhante a um armazém para o qual havia
sido direcionada e usou o ombro para abrir a porta pesada com a placa
VISITAS. Devia ter sido um alívio sair do vento cortante, mas lá dentro
parecia mais opressivo do que fora. Havia salas e mais salas, um guarda depois
do outro, conferindo seu número de visitante, verificando seu crachá,
mandando passar por um scanner que não apitava, mas ainda era
acompanhado de uma revista completa. Sua boca inspecionada, a pele atrás
das orelhas inspecionada, o cabelo erguido do pescoço, embora mal cobrisse
o pescoço. Era possível sentir-se um criminoso simplesmente por estar ali.
Outra porta para atravessar, mais uma, uma sala de espera, outra porta e no
fim o bloco de detenção. A porta do bloco se abriu com um grito agudo,
como se o prédio fosse um animal com medo ou raiva, e então a porta se
fechou e o silêncio lá dentro era absoluto. Nenhum canto de pássaro,
nenhum barulho de avião, nada de vida além daquele espaço. Mais portas,
escadas, guardas, verificações e finalmente ela estava na sala de visitantes com
seu teto baixo e um vaso de planta desanimado. O guarda do outro lado da
sala a orientou a sentar naquela mesa ali, perto da janela, embora não
houvesse mais ninguém nem motivo nenhum para que ela não pudesse
escolher onde sentar.
A janela dava para um pátio. Era para onde as vans traziam os detidos que
haviam recolhido; e era aqui onde enchiam as vans para levá-los aos voos
fretados em que voltariam aos países de onde saíram, muitas vezes fugidos. A
porta pela qual os detidos iam e vinham dessas vans tinha uma placa dizendo:
“Somos uma família feliz, não importa quem sejamos”. Que tipo de mente
pensaria em colocar uma placa dessa? A crueldade desse lugar fez com que
ela deixasse de lado todas as palavras costumeiras — imoral, insensível, fazer
política com a vida das pessoas — e, em vez delas, se lembrasse de mal.
“Obrigado por vir”, ela ouviu, e ergueu os olhos para ver um homem de
agasalho de ginástica e chinelo. Azam, tão mudado. Ele perdera muito peso,
os olhos escurecidos de exaustão e o sorriso que lhe deu era fraco, como se
estivesse muito sem prática em sorrir para saber como fazer isso
corretamente.
Ela lhe entregou um copo de café que havia comprado na máquina
automática que ficava fora daquela sala, usando as cinco libras que lhe
permitiram trazer para esse propósito — todos os outros pertences estavam
trancados em um armário no CHECK-IN.
Ele abriu a tampa e cheirou o café como se fosse um luxo. “Quem
precisa de um macchiato duplo com leite de aveia?”, ele disse e logo era o
Azam de sempre.
“Comprei o livro que você pediu”, disse ela. “Mas era muito pesado,
então tive de cortar fora os suflês e os bolos de frutas e... alguma outra coisa,
o que era?”
“Não os éclairs, espero.”
“Azam, não sou um animal.”
“Você é um anjo.” Ela viu o olhar que ele lançou a seu pulso, para a
pulseira que havia lhe dado.
“Vou abrir uma padaria”, ele disse. “Em Cabul. As pessoas lá nunca
comeram essas coisas. Torta de chocolate com limão cristalizado. Fondants
recheados com caramelo salgado. Ficarei milionário. A BBC irá me
entrevistar. E eu vou dizer: seu país mandou vans de mudança para me pegar,
como se eu fosse uma mobília velha.” Ele se recostou e fechou os olhos
como se aquele arroubo de otimismo tivesse tirado tudo dele.
A juíza que ouviu sua apelação disse que teria determinado que ele podia
ficar se aquele soco tivesse sido o único motivo para a rejeição. Mas então ele
foi trabalhar ilegalmente, deixando-a sem escolha a não ser apoiar a decisão
do Ministério do Interior. O advogado estava tentando todas as vias
superiores de apelação, mas Zahra tinha falado com ele e sabia que não havia
nenhuma esperança real de suspensão da sentença.
“Sinto muito”, Azam disse para ela. “Sei que a decepcionei.”
Ela balançou a cabeça, incapaz de dizer alguma coisa.
“Tudo porque fui trabalhar numa cozinha por seis libras a hora. Se não
tivesse ido, estaria na padaria agora, esperando o sr. Bose entrar para tomar
seu café da tarde com bolo de limão. Mandando mensagem para Ray do
outro lado da rua sobre futebol. Pensando no que eu e a patroa íamos fazer
para o jantar.” Ele balançou a cabeça diante da impossibilidade de tudo
aquilo agora, os detalhes comuns de sua vida eram um milagre que nunca
mais experimentaria. Zahra se lembrou dos jantares na adolescência,
passando um saleiro para o pai e se perguntando se seria a última vez, se
amanhã alguém viria buscá-lo.
“Quanto tempo vão me manter aqui? Estou ficando louco.”
“Eu também queria saber”, disse Zahra. Não havia limite de tempo para
a detenção. Podiam ser dias, semanas ou meses. Ela ouvira falar de casos que
foram anos. Havia tempos que o CLC vinha tentando mudar as leis. “As
condições sob as quais estão mantendo você são muito ruins?”
“Seis presos em uma cela. Com uma privada. E sem privacidade. Por que
não podem pôr uma cortina separando a privada, por que não podem fazer
isso? Querem que a gente saiba que somos animais para eles, nada além de
animais.”
Ele olhava para o pátio enquanto falava, na direção das duas bolas de
futebol presas no arame farpado em cima do muro. Zahra pensava que sabia
o que se passava em lugares como aquele, mas ninguém jamais mencionou as
privadas sem privacidade. Talvez fosse uma nova indignidade, talvez houvesse
tantas indignidades acontecendo ali que ninguém suportaria listar todas elas.
“Ela vai ficar aqui, não vai?”
Ele se referia à esposa, Shaz. Ela conhecia Cabul apenas como o lugar
onde seus pais tinham arriscado tudo para fugir. A família dela estava em
Londres — pais, irmãos, sobrinhos e sobrinhas. Todos os amigos, todas as
coisas conhecidas no mundo estavam aqui. Tudo menos Azam.
“Ela acha que eu não sei. Ela não vai me contar enquanto eu estiver aqui.
As pessoas continuam tentando se matar, às vezes conseguem.” Azam sentou
e esfregou os olhos com a palma da mão. “Desculpe, não foi por isso que
pedi para você vir. Havia um homem aqui. Ele disse que conhecia você. Ele
disse coisas sobre você que eu não gostei. Quase bati nele, mas aí pensei que
você não queria que eu batesse em outra pessoa. Você conhece alguém
chamado Jimmy?”
“Jimmy está aqui?”, ela olhou para a porta, meio que esperando que ele
entrasse por ela.
“Não está mais. Eles o colocaram em um avião de volta ao Paquistão.
Mas ele estava dizendo coisas ridículas sobre você. Que você trabalha com o
Ministério do Interior para deportar pessoas da Inglaterra. Ele me disse que
você deve ter dito a eles para rejeitar o meu pedido porque a rejeição dele foi
exatamente pelo mesmo motivo, má reputação e má conduta, e ele sabia que
você estava por trás daquilo.”
“Isso é absurdo”, ela disse automaticamente. “Deve ter havido um motivo
específico para a rejeição dele.”
“Sim, ele disse que foi algo que fez anos atrás.”
Ela ergueu os saltos das botas do chão e pressionou as solas dos pés com
força contra o carpete para absorver a energia que corria rápida através dela.
“Quantos anos?”, sua voz um pouco ofegante.
“Quando esteve aqui pela primeira vez. Cinco, seis anos? Ele não pagou
uma conta. Menos de dez libras, e por isso o expulsaram do país.”
O alívio que ela sentiu foi enorme.
“Não trabalho com o Ministério do Interior, Azam.”
“Eu sei. Mas achei que você devia saber. Ele disse que sabe quem é seu
pai e vai contar a ele o que você fez.”
Vou contar para o seu pai. Isso era tudo o que ele tinha no arsenal, como
um garoto de escola que sabe que não há como se defender do soco que vem
em sua direção. Ela quase achou que no fundo sentia pena dele. Uma conta
de dez libras!
Azam não tinha gostado de Jimmy. Jimmy disse que toda e qualquer
pessoa que tentasse apelar de seus casos era uma chutiya — Azam se
desculpou por usar o termo abusivo, mas foi o que Jimmy disse. Ele disse que
o sistema de apelação era manipulado e que se arrastaria por anos, obrigando
você a cometer algum tipo de crime como Azam havia cometido e enquanto
isso todas as suas economias iam para os advogados. Ele disse que Azam era
um chutiya duplo por ficar sentado ali pensando que seu advogado iria
encontrar uma maneira de ele sair antes que o governo conseguisse encontrar
um voo fretado para colocá-lo. Jimmy não tinha apelado de seu caso, mas
também não tinha comprado uma passagem de volta para Karachi quando
sua licença de permanência foi negada. Suas filhas estavam em Londres,
morando com a ex-mulher dele. Ele sabia que ela não mandaria as filhas para
visitá-lo no Paquistão.
Então Jimmy ignorou os avisos que diziam para ele deixar o país, até que
homens armados derrubaram sua porta no meio da noite e o trouxeram para
cá. Todo fim de semana as filhas vinham visitá-lo no centro de detenção.
Funcionários da imigração também vieram vê-lo. Sabiam que ele tinha
dinheiro para comprar uma passagem de avião; se ele fizesse isso, eles o
deixariam entrar em um voo da PIA e partir de forma respeitosa. Mas não,
ele queria aquelas visitas de fim de semana com as filhas, tantas quantas
pudesse ter.
Zahra olhou para o outro lado da sala. Mais uma mesa estava ocupada
agora. Um homem vestido como Azam estava sentado de um lado, outro
homem em um terno de três peças, muito elegante, sentado diante dele.
Ambos estavam na casa dos sessenta, talvez até setenta. O primeiro homem
tinha os braços em volta do corpo, o segundo estava sentado sobre as
próprias mãos. Ambos estavam em silêncio, olhando um para o outro de uma
forma que qualquer pessoa que já se apaixonou reconheceria. O peito do
primeiro homem subiu e soltou um longo suspiro. O segundo homem
abaixou a cabeça. O primeiro homem estendeu a palma da mão, pegou a
lágrima do amante e a levou aos lábios.
“Sete semanas”, disse Azam. “Jimmy ficou aqui sete semanas. Você
conseguiria fazer isso?”
Ela suportaria sete semanas em um lugar como aquele por causa de uma
visita por semana de alguém? Quem seria esse alguém?
“Eu não gostei dele”, Azam disse outra vez. “Mas ele não merecia isso.
Nenhum de nós merece isso.” Fazia onze dias e ele já estava destruído. Sete
semanas.
Ela virou o rosto para olhar as bolas de futebol empaladas na cerca de
arame e depois o céu azul acima; um avião cortou os céus, sua cauda
desconhecida. Ela imaginou homens e mulheres sentados nas janelas vendo a
Inglaterra pela última vez, e então imaginou aqueles que mantinham os
olhos fixos adiante, não querendo olhar as vidas perdidas para eles, para
sempre.

A árvore de Natal estava começando a definhar, espalhando as agulhas de


pinheiro pelo chão perto da porta de correr que dava para o jardim. Maryam
tirou os enfeites de Natal dos galhos, jogou os mais resistentes em uma
mochila com estampa de urso polar e passou os frágeis para Zahra embalar.
Nusrat Fateh Ali cantava algo sobre intoxicação nos alto-falantes tão
pequenos, mas de capacidade surpreendente, o que era algo que ninguém
jamais disse sobre aquela grande montanha de cantor que ele era. Era a
última noite do ano. Zola e Layla estavam fora fazia três longos dias. Maryam
pegou um enfeite de cão de caça e olhou para Woolf na sala de estar,
roncando na caminha.
“Ela vai se sentir sozinha quando você estiver no escritório”, disse Zahra,
seguindo a direção do olhar dela.
“Ela já está recebendo muito amor dos vizinhos. Eles têm um grupo de
bate-papo e vão coordenar quem a visitará toda tarde, como estava
acostumada com Zola e Layla voltando da escola. Minha cachorra é mais
querida que eu.”
“Ah, filhota. Eu gosto de você.” Zahra deu um tapinha na cabeça de
Maryam.
Fazia anos que não passavam a véspera de Ano Novo juntas. Zahra
geralmente saía com Rose e a turma, Maryam passava em casa com Layla,
Zola, Mark e a família dele. Mas neste ano Zahra começou a falar sobre o
que fariam juntas para a ceia de ano novo, como se já tivesse decidido que
seriam apenas as duas. Agora o aroma de biryani de cordeiro estava
começando a permear a sala, uma nota sutil por baixo das velas de jasmim
dispostas no ambiente, em aparadores, mesas e até no chão, tornando
desnecessário acender qualquer luz, menos as da árvore de Natal.
Zahra colocou um enfeite de vidro embrulhado de volta na caixa, pegou
a taça de vinho tinto e cheirou o conteúdo. Ela ergueu as sobrancelhas para
Maryam — não era preciso ser um conhecedor de vinhos para saber que este
não era o Cotes du Rhone de doze libras de sempre, que era o vinho da casa
de Maryam e Layla. Talvez custasse perto de mil libras, embora Maryam nem
ousasse mencionar isso. Um presente de Natal de Margaret Wright,
extraordinariamente pródigo, em reconhecimento à sorte inesperada da
venda do Imij. Layla tinha se recusado a beber — a pressão de fazer justiça
com sua apreciação era muito alta, disse ela.
“A permanência de Jimmy foi recusada”, disse Zahra, caminhando até a
porta de correr de vidro e parando onde Maryam não conseguisse vê-la.
“Oh!” Maryam estava desamarrando o laço de um enfeite de fita cassete
que estava emaranhado nas agulhas do pinheiro.
“Ele acabou no mesmo centro de detenção de Azam, antes que o
mandassem embora. Estava reclamando que eu fiz o Ministério de Interior
rejeitá-lo.”
Maryam olhou para Zahra por cima do ombro. Zahra estava olhando algo
no céu. A meia-noite ainda demoraria, mas os londrinos de todos os bairros
vizinhos já deviam estar se reunindo em Primrose Hill para chegar à posição
privilegiada no topo da colina e ver os fogos de artifício sobre o Tâmisa.
Talvez alguém tivesse começado a soltar balões no céu, vermelhos sobre
preto, flutuando para o alto.
“Não sei o que está acontecendo aqui”, disse Maryam, batendo no
celular para diminuir o volume da música.
“Acontecendo onde?”
“Você está me dizendo alguma coisa ou me perguntando alguma coisa?”
“O que eu estaria perguntando a você?”
“Está bem”, disse Maryam, voltando para a árvore.
Alguns momentos depois: “E se eu estivesse perguntando alguma coisa?”.
“Então eu diria para você não se preocupar. Deixei seu nome totalmente
de fora.”
Maryam jogou a fita cassete de madeira dentro da mochila e olhou
cansada para os tantos enfeites que ainda faltavam. Ela e Layla sempre tiveram
o cuidado de não mimar Zola, sua vida já era bem ridícula comparada com a
das amigas da escola pública — por insistência de Layla, a escola pública —,
mas a árvore de Natal era uma exceção. Mais de três metros de altura, com
galhos carregados de enfeites; precisariam de uma escada para chegar ao
topo. Por que Zahra não estava ajudando?
“Ele foi rejeitado por uma conta não paga. Uma conta de dez libras.”
Zahra virou para Maryam agora, franzindo um pouco a testa, como se
estivesse irritada por algo que ela achava que devia ser capaz de resolver, mas
não conseguia.
“Dizendo ou perguntando?”
“Perguntando.”
Ela abriu o aplicativo do Imij, digitou Hentucky Fried Chicken na barra de
pesquisa, clicou na opção “histórico” e moveu os indicadores de data para a
posição desejada. Zahra continuava de pé onde estava antes, então Maryam
foi até ela e ergueu o telefone de modo que ambas pudessem assistir ao vídeo
do circuito interno que havia sido postado cinco anos atrás. Tinha sido o
último vídeo na pasta que o Garoto de Ouro mandou para ela, e ela clicou
nele já sem esperança de encontrar alguma coisa que pudesse usar. Um
homem olhando com malícia para as garotas de uma boate não seria
suficiente, ela sabia.
E então ela viu isto: um homem com uma camisa da Hentucky Fried
Chicken pôs um retângulo de papel em cima de uma mesa de fórmica,
conversando amigavelmente com dois clientes. Ele se afastou e alguns
segundos depois um dos homens — Jimmy — fez um sinal com a cabeça
indicando a porta e os dois homens se levantaram e saíram correndo.
UMA BELA REFEIÇÃO GRÁTIS NO HFC PARA QUEM
IDENTIFICAR ESTES HOMENS, dizia a postagem.
“Salário de engenheiro e ele não paga pelo frango frito”, disse Maryam.
“Um perdedor tão colossal.”
Zahra apertou o play e a cena se repetiu. Ela esfregou a mão no rosto,
claramente se esquecendo do delineador que havia usado para a noite parecer
festiva.
“Como você encontrou isso?”
“Talvez não possa dizer.”
“E aí? Você escreve para o Ministério do Interior e diz que há um
homem que parece estar saindo correndo de um restaurante sem pagar pelo
frango frito...”
“Parece estar?”
“Não aparece comida na filmagem. Talvez estivesse cru? Ele tem o direito
de sair sem pagar se a comida não estiver no padrão.”
“Sério?”
“Não posso acreditar que nem mesmo esse Ministério do Interior
pensaria que esse vídeo é prova de alguma coisa.”
A voz de Zahra parecia um pouco irritada, como se pensasse que era ela
que sabia tudo sobre como funcionava o Ministério do Interior, e como
Maryam ousava mudar suas expectativas. Zahra tomou outro gole e olhou
para fora outra vez. Maryam olhou com ela. Um balão parecia preso nos
galhos da árvore do vizinho, mas era só uma ilusão da perspectiva. Ele
começava a descer, o momento em que o que era bonito se revelava
perigoso, uma chama aberta no interior dele.
“Você passou pela Mesa Principal.” A voz de Zahra era baixa, quase
como se falasse consigo mesma.
“Posso ter pedido para algumas pessoas garantirem que isso fosse
direcionado aos funcionários certos do Ministério do Interior.” É muito bom
da sua parte transmitir essa informação importante sobre alguém que busca se
estabelecer aqui, disse o conselheiro especial do primeiro-ministro. Claro que
não podemos influenciar as decisões. O primeiro-ministro, por trás do
conselheiro especial, piscou para Maryam.
“E você não estava planejando me contar nada disso?”
“Você disse para não contar.”
“Eu disse o quê?”
“Você disse, não me conte. No seu apartamento. No dia em que Jimmy
foi ao seu escritório.”
“Eu disse para não me contar o que você descobriu sobre ele.” Ela deu
um passo para trás. “Maryam, pelo amor de Deus. Não queria ter de pensar
mais nele. Mais, eu não queria informações que nenhuma de nós tinha o
direito de saber.”
Maryam revirou os olhos e caminhou até a despensa para pegar a escada.
“Somos eu e você. Não há necessidade de fingimento”, ela gritou no
caminho. Depois encaixou a escada no ombro e carregou até a árvore.
“Que fingimento?”
Foi só então que ela entendeu que Zahra não ia lhe agradecer, nem
reconhecer o que ela havia feito pelas duas, mas acusá-la. Aquela cara dela,
cheia de hipocrisia e indignação.
Ela apoiou a escada na parede e voltou até Zahra. “Você não mudou,
mudou? Quer que algo aconteça, mas não quer assumir nenhuma
responsabilidade por acontecer, então tudo volta para mim. Essa era a Zahra
de então e é a Zahra de agora.”
“Um homem foi expulso deste país”, disse Zahra. “Sete semanas em um
centro de detenção e depois posto em um avião e obrigado a abandonar as
filhas.”
Como se Maryam nem tivesse falado. Como se o que ela disse fosse nada.
“Fui expulsa de um país. E foram bem mais que sete semanas naquela
prisão de um internato.”
“Não posso acreditar que você faz essa comparação.”
“Você só ficou lá, primeiro com nossos pais e depois com a diretora —
duas vezes — ouvindo todo mundo dizer que amiga maravilhosa você é,
como eu era sortuda por ter você cuidando de mim, como eu era estúpida,
egoísta e irresponsável.” Aquilo a atingiu, Maryam podia sentir a contorção
interna. “E o fato é que não me importei. Eu realmente não me importei.
Sabia o quanto era importante para você ser vista como a responsável. A boa.
Se você não tivesse se tornado monitora-chefe, seu mundo teria acabado. Eu
nunca quis o que você queria, nunca entendi por que todas aquelas coisas
estúpidas eram tão importantes, mas queria que tivesse tudo que era
importante para você.” Uma pergunta antiga voltou à tona. “Por que você
insistiu em entrar naquele carro?”
Zahra desviou o olhar, para o mundo lá fora, para o próprio reflexo à luz
de velas. “Não sei.”
“Você deve saber. Continuei tentando voltar para dentro. Eu podia dizer
que Jimmy era todo errado. Você não tinha a menor ideia.” Um movimento
nos músculos do rosto de Zahra. “Ou você? Ah, Deus. Por favor, não me
diga que suas aventuras começaram com Jimmy.”
“Não com Jimmy.” Ela levou a mão ao cabelo, puxou-o para trás e
prendeu algumas mechas atrás da orelha. “Com Hammad.”
A princípio, Maryam achou que por algum motivo Zahra estava falando
sobre os últimos meses, o relacionamento recente. Mas a expressão de
vergonha no rosto de Zahra de repente deixou tudo muito claro. “Foi por
isso que você entrou no carro? Foi por isso que tudo aconteceu? Porque
você tinha fantasias com meu namorado?”
“Ele não era seu namorado de fato.”
“Você ficava me alertando a respeito dele. Achei que era amizade. Era o
oposto de amizade.”
Os dedos de Zahra estavam brancos no corpo da taça de vinho.
Quebraria com a pressão, se ela não afrouxasse. “Não. Eu sabia que ele era
uma coisa ruim. Estava tentando proteger você.”
Agora veio a raiva. “Me proteger? Eu joguei tudo em cima do Jimmy.
Tudo o que eu perdi. Culpa do Jimmy. Jimmy fez meu avô se virar contra
mim; Jimmy fez meus pais me mandarem embora. Mas foi você que abriu a
porta do carro. Foi você que entrou. Eu podia dizer não a Hammad, podia
dizer não a Jimmy. Mas não poderia dizer não para você, não quando dizer
isso significaria deixar você sozinha com eles. Você é o motivo. Foi por você
que eu perdi tudo.” Ela fez um gesto com a mão para incluir tudo e derrubou
a taça da mão de Zahra, um arco de vinho voando pelo ar, a taça se
estilhaçando no chão, Woolf levantando a cabeça para latir.
Maryam foi acalmar a cachorra, enquanto Zahra caminhou rapidamente
na direção da cozinha, para procurar os apetrechos de limpeza e acender as
luzes do teto de modo que pudesse enxergar todos os cacos no chão.
Maryam foi de vela em vela, apagando todas elas, dando-se um tempo antes
de ter de olhar para Zahra outra vez. Quando Maryam voltou para a cena do
crime, havia pedaços de papel encharcados de vermelho no chão e a mão de
Zahra a orientava a ficar longe da área onde minúsculos cacos de cristal ainda
brilhavam; depois, apontou para o teto, onde um pouco do vinho espirrou.
Maryam abriu a escada, subiu até o degrau mais alto e borrifou o frasco que
Zahra lhe passara. Limpou as manchas. A pá de lixo brilhava como se
estivesse empilhada de diamantes.
Deu um pouco mais de trabalho embrulhar os cacos de cristal em três
sacos, recolher os papéis-toalha, amarrar o saco de lixo com tudo dentro e
colocá-lo perto dos degraus lá fora, de modo que ela se lembrasse de levar
para a lixeira pela manhã. Tudo isso feito em silêncio. Então, Maryam serviu
vinho em um copo e o deslizou pelo balcão da cozinha para Zahra.
Caminhou em direção à árvore de Natal e pegou sua taça do chão. Elas
beberam, olhando uma para a outra pela primeira vez desde que a taça
espatifara, uma distância de vários metros entre elas.
“Você realmente não sabe, não é?”, disse Zahra. “Só há uma pessoa que
fez seus pais a mandarem embora. É você, Maryam. Você queria que algum
bandido fizesse não sei o que com Jimmy. Quebrasse as pernas dele? Ou
pior?”
“Não! Eu não queria que Billoo encostasse nele. Como ele não encostou
em nós. Eu queria que ele ficasse com medo. Queria que ele imaginasse
todas as coisas que Billoo podia fazer com ele.”
“Que tipo de coisas? Tortura? Assassinato? Rapto? Só um monstro ia
querer que alguém imaginasse tudo isso. Seus pais devem ter visto que você
era um monstro. Foi por isso que tiveram de afastá-la de um lugar onde você
pudesse apelar para um Billoo.”
Maryam pressionou a mão contra o estômago. “Todos esses anos, você
carregou isso por aí. Essa crença de que sou um monstro.”
“Layla alguma vez lhe disse, nos primeiros dias que estavam juntas,
quando ela reconheceu um lado seu que pode destruir um sonho e chamá-lo
de lucro, ela veio até mim e disse: vou me perder completamente se permitir
que isso continue?”
“Deixe Layla fora desta conversa.”
Estava claro na sala com todas as luzes acesas, muito claro. Com o salto do
sapato, ela apertou um botão e a árvore de Natal escureceu.
“Havia uma parte de mim que queria dizer sim. Essa parte era amiga de
Layla. Mas aí eu disse não. Era a sua amiga falando. Achei que ela podia
manter o monstro quieto, talvez até mandá-lo embora.”
“Não tente me dizer que se arrepende disso. Eu e ela somos felizes de
uma maneira que você nunca será.” Era tão fácil, muito fácil, para cada uma
delas arrancar sangue; conheciam todos os locais expostos, as fendas das
armaduras e a fragilidade da barriga que havia embaixo.
“A que preço?” Zahra foi até a estante, pegou a escultura nua e a segurou
com as duas mãos. “O que aconteceu com a mulher que fez isto? Ela era
uma chama de luz quando a conheci.” Colocou a estátua de volta e a girou,
de modo que tudo o que revelava ficasse escondido da visão, só o cabelo
longo amarrado, as costas e os braços visíveis. “Ela capitulou. Isso é o que
você a fez fazer. Foi isso que você fez com ela.” Gesticulou para a árvore de
Natal. “Você apagou a luz dela.”
É guerra, então. “Se eu sou um monstro, o que isso faz de você? A deusa
imaculada que deixa seu monstro escapar para atacar aqueles que cruzam o
caminho dela.”
“Ah, por favor. Ainda estamos fingindo que eu queria que você
perseguisse o Jimmy?”
“Por que mais você me ligaria para me contar todas essas coisas — Najam
Hussain, solicitando uma LPI. Um engenheiro que chegou do Golfo. Cada
detalhe da identificação. Você já havia me contado sobre Azam, como ele
estava sendo mandado embora por causa de ‘caráter e conduta'. O Ministério
do Interior vai se livrar de qualquer pessoa com a desculpa mais esfarrapada,
você disse.”
Zahra riu, um riso falso, como se contassem outra piada. “Quem mais eu
chamaria? Você era a única que esteve lá. A única que sabia.”
“A única que conhece você. A única que conhece suas entrelinhas. Eu
conheço todos os lugares obscuros que você tanto tenta esconder de todos,
talvez até de si mesma, talvez sobretudo de si mesma. Você se esforça tanto
para ser uma boa pessoa, Za, nunca vi ninguém se esforçar tanto.”
“O que é melhor de tentar do que isso?” Mesmo agora, tão fodidamente
superior.
“Não devia ser tão difícil. Olhe para Layla, ela tenta? Não, apenas
acontece com ela. É quem ela é: gentil, generosa, amorosa. Você olha para
isso e chama de capitulação porque está a tantas galáxias de distância de quem
você é que nem consegue ver.”
“Pare com isso.”
Ela chegou mais perto de Zahra, avançando sobre ela.
“Você tenta ser boa e fracassa. Existe sempre aquela outra Zahra à
espreita. Aquela que não gostava de nenhum garoto até que um deles gostou
de mim. A que me fez entrar naquele carro e depois ficou lá inocente
enquanto todos diziam que eu tinha muita sorte por ter uma amiga como
ela. A que nunca quis o amor de um homem quando podia receber mentiras,
decepções e segredos. A que põe uma auréola na própria cabeça para que
todos possamos ver seu brilho intenso e...” Ela parou, incapaz de saber para
onde levar aquela frase e viu Zahra reconhecer sua hesitação, viu Zahra
pensar presunçosamente que ela mesma nunca havia começado uma frase
que não sabia como terminar. “E não perceber toda a escuridão que há em
você. Bem, eu vejo você.”
“Você vê uma parte de mim.” Parecia uma concessão, o que significava
que era uma corda para um ataque. “Existem outras partes que você não vê
porque — há uma frase boa que ouvi recentemente — está a tantas galáxias
de distância que você simplesmente não consegue.”
“Vamos falar sobre sua crença inabalável na justiça, na democracia e no
caráter moral de um país? A Zahra Boa quer ser reconhecida?”
Zahra deu um passo adiante. Agora havia bem pouca distância entre elas.
“Não muito tempo atrás, você disse que a coisa mais assustadora que
aconteceu em nossa vida foi o Jimmy. Essa nem foi a coisa mais assustadora
que aconteceu naquele ano. Achei que alguém fosse levar meu pai embora e
jogá-lo na prisão ou chicoteá-lo em um poste. Eu lhe contei sobre a visita do
general, mas não contei como foi. Isso não é estranho? Contávamos tantas
coisas uma para a outra, mas mesmo assim eu devia saber que você não
entenderia. Em seu mundo, um homem ser preso por tráfico de drogas era
um dilema social. Você vivia como se o mundo em que estávamos não
encostasse em você. Você não tinha ideia do terror absoluto da falta de
poder.” Ela ergueu a mão. Um novo pensamento lhe ocorreu. “Só o Jimmy
fez você sentir isso, e é por isso que você odiou o Jimmy. Mas aqui está a
diferença entre nós: sentir aquela falta de poder me fez pensar: não quero isso
no mundo. Não quero. Ninguém deveria conhecer esse tipo de terror. E isso
fez você pensar: serei a terrorista, não a aterrorizada.”
Maryam pôs o copo no chão para poder aplaudir. A música tinha parado
e o som ecoava, o que fez Woolf sair de sua cama e vir ver o que estava
acontecendo. “Eu reconheço. Senhora advogada, esse foi um excelente
argumento final, tenho certeza de que o júri ficará convencido.” Ela se
inclinou para a frente e abaixou a voz. “Porque o júri não conhece você.
Lembra como você se sentiu quando Jimmy sentou em sua sala? Lembra
como você se sentiu naquele carro? Foi isso que você trouxe para mim, o seu
monstro leal da Mesa Principal, quando disse ‘Najam Hussain, engenheiro,
solicitando a LPI'.” Uma nova expressão no rosto de Zahra: incerteza. E
então ela ficou muito pálida.
Uma de nós vai bater na outra, pensou Maryam. Uma de nós ou as duas.
Vamos fazer com que doa. E então terei de explicar para Layla.
“Vou sair com a Woolf ”, disse ela, reclinando-se nos calcanhares,
aumentando a distância entre elas. Ela bateu com a mão na coxa e Woolf a
seguiu pela sala de estar até as escadas.
A noite estava cortando de frio, clara o suficiente para haver estrelas. Ela
podia ouvir o som do Heath, o burburinho das conversas e o canto de
multidões de pessoas se mantendo aquecidas com álcool. Sua cabeça estava
cheia de barulho, acusações e contra-acusações ecoando. Fodidamente superior,
ela gritou, e as mulheres na frente dela atravessaram para o outro lado da rua.
Ela e Woolf caminharam até a entrada mais próxima do parque, longe o
suficiente do topo da colina para que as únicas pessoas ali fossem as que
entrassem para subir até o ponto privilegiado que lhes mostraria o horizonte
repleto de luzes de Londres ao lado da escura serpente do rio. Antes, Woolf
adorava correr pelo parque e precisava ficar na coleira para essas caminhadas
noturnas. Mas agora ela mal colocava as quatro patas na grama, curvava as
patas traseiras para esvaziar a bexiga e virava para sair.
“Por que Layla não está aqui?”, disse Maryam, uma das mãos esfregando
o pelo das costas do animal enquanto caminhavam para casa. “Não sou um
monstro, Woolf, sou?” A cachorra ergueu os olhos ao ouvir seu nome e
emitiu um som reconfortante. A curta distância para casa parecia longa
demais. Maryam estava com frio e exausta, cada músculo dolorosamente
tenso. Não conseguiria fazer outra rodada daquele — sentiu um calafrio —
horror. Deus, tinha sido horrível. Ambas tinham sido horríveis.
Quando ela voltou para a sala, Zahra não estava lá. Ela não sabia se se
sentia aliviada ou triste com isso. Então, viu uma sombra se mexendo do lado
de fora, Zahra no jardim falando ao telefone. Ela havia desligado o forno —
claro, nenhum drama permitiria que Zahra deixasse o biryani cozinhar
demais. Isso levou Maryam a sorrir. Haveria um caminho de volta, devia
haver. Elas o encontrariam. Ela tirou o biryani do forno e ergueu o papel-
alumínio. Perfeito.
A porta se abriu, o frio de fora entrou, seguido de Zahra com uma
expressão indecifrável.
“Com quem você estava conversando?”
“Com o presidente do CLC.”
‘A esta hora, na véspera do Ano Novo? Para quê?” Ela carregou o biryani
para a mesa, já posta, a raita preparada em sua tigela de barro.
Zahra caminhou até o balcão do café da manhã, atravessando metade da
sala de estar, que tinha a mesa de jantar de um lado e a porta de correr do
outro. Ela passou o dedo em um ponto vermelho de vinho que haviam
deixado para trás na limpeza antes e o esfregou distraidamente com a manga
de seda branca. “Um homem foi ao CLC para pedir ajuda com o seu caso de
imigração e eu passei a informação dele para alguém que o pôs para fora do
país. Ele era alguém de quem eu tinha um rancor antigo. E eu passei a
informação para uma pessoa que compartilhava os meus sentimentos ruins
por ele e que tem ligações poderosas com o governo e nenhuma moral.
Parece que existe a possibilidade de eu ter agido como agi sabendo
exatamente o que essa pessoa faria. De qualquer modo, um homem foi
afastado de sua família e de sua vida porque eu traí a confidencialidade do
cliente. Não estou apta para ser a diretora do CLC.”
“Não seja ridícula. Ninguém além de nós sabe o que aconteceu,
ninguém jamais saberá.”
“Jimmy sabe. Não com detalhes, mas ele sabe que começou comigo e
acabou com o Ministério do Interior. Uma conversa com Hammad será
suficiente para encontrar a peça que faltava — Maryam Khan, a enviada
mundial de negócios do primeiro-ministro.”
“Pare de imaginar coisas malucas. Não há nenhuma sombra de prova.
Quem neste mundo vai se importar com as teorias da conspiração de Jimmy
e Hammad?
“Você acredita que o importante é se safar das coisas, nada mais.”
“Ah, sei, você quer provar que é muito diferente.” Ela manteve o tom
leve, determinada a não ser arrastada para uma briga de lama outra vez.
“Você não está provando isso porque de fato não disse nada disso. Não para o
presidente. Se fosse se confessar, você procuraria um padre — tenho certeza
de que os católicos a aceitariam, qualquer um a aceitaria; afinal, você é um
tesouro nacional. Agora venha e coma. O vinho com o estômago vazio não
vai ajudar em nada.”
“Eu não estava confessando. Estava me demitindo.”
Tinha sido uma noite cheia de pequenas detonações, mas Maryam não
imaginava que houvesse um botão de autodestruição.
“Não vão aceitar sua demissão.”
“Pus a reputação da organização em um risco intolerável. Minha
demissão foi aceita. Acabou.” Zahra franziu a testa e disse, no mesmo tom
com o qual perguntou mais cedo quantas vagens de cardamomo preto e
quantas do verde colocar no biryani: “O que vou fazer agora?”.
“Zahra.”
Zahra se apoiou no balcão, muito pálida. “Ah, Deus”, ela disse.
Maryam se aproximou depressa e agarrou o punho de Zahra. “Nós vamos
fazer com que fique tudo bem. Vamos consertar isso.”
Zahra se inclinou para a frente, seu rosto encostado no de Maryam.
Maryam pôs os braços em volta de Zahra, sentiu o conforto de estarem
juntas, a verdade imutável da amizade delas apesar de tudo que o mundo
pudesse jogar contra elas, apesar de tudo que pudessem jogar uma contra a
outra.
Zahra sussurrou no ouvido de Maryam: “Uma parte de mim sempre
odiou você”.
Ela se afastou e atravessou a sala de estar. Perto das escadas ela parou,
ajoelhou-se e pegou o rosto de Woolf nas mãos. Acariciou suas orelhas e
Woolf soltou um gemido, cheio de tristeza.
Então Zahra se levantou e subiu as escadas, com as costas retas. Quando
chegou ao topo, pegou o casaco pendurado no cabideiro e Maryam viu seus
ombros caírem. Tudo estava naquela queda: a desgraça que viria adiante, os
dias vazios, as noites cheias de vergonha, o fim de uma vida inteira que ela
havia planejado com tanto cuidado para si mesma.
“Za!”, ela gritou, mas Zahra não olhou para trás. Abriu a porta e saiu, ao
som da celebração.
O telefone tocou uma melodia alegre. Era Layla, ligando para saber como
estava indo a noite. Ela estaria ouvindo o telefone tocar, imaginando Zahra e
Maryam bebendo vinho, rindo, dividindo histórias de infância, o jantar que
prepararam juntas esperando para ser devorado, os enfeites guardados até
serem trazidos de volta no ano seguinte para outro Natal juntas, muito
parecido com o anterior e com o anterior ao anterior. Maryam deixou o
telefone tocar e tocar, os cotovelos apoiados no balcão do café da manhã, a
cabeça entre as mãos. Um monstro.
Primavera de 2020
Londres
AS ÁRVORES ESTAVAM cheias de folhas mais uma vez, os cachorros brincavam
como se fosse qualquer outra primavera. As pessoas caminhavam, resolutas,
afastando-se umas das outras e acenando com a cabeça para agradecer por
esse novo ato de cortesia. Os cachorros eram considerados seguros para
alguns, então várias mãos se estendiam quando eles passavam brincando,
esperando o carinho no pelo sedoso. A raridade do contato. Uma mulher
alta caminhava rapidamente pela trilha que cortava de norte a sul; uma
mulher mais baixa fazia um progresso mais lento pela trilha de leste a oeste.
Chegaram ao mesmo tempo onde as duas trilhas se encontravam.
Fazia meses desde que se viram pela última vez, mas uma não reconheceu
a outra. A trilha de leste para oeste havia chegado ao fim, então só fazia
sentido para a segunda mulher virar para a trilha de norte a sul. Primeiro
uma, depois a outra saiu da trilha para a grama. Agora era possível andar uma
ao lado da outra estando ainda separadas. E assim elas caminharam. Pelo
parque, atravessando a rua, ao longo do recinto do zoológico onde a casa das
girafas estava fechada e descendo pelo Regent's Park.
As ambulâncias soavam as sirenes, as nuvens passavam pelo sol, os campos
de críquete estavam desertos. Uma criança caiu e sangrou no joelho; a mãe
pediu aos que passavam que não parassem para ajudar. Elas caminharam e
continuaram a caminhar. Fora do parque, ao longo do Park Crescent,
descendo o vazio sinistro da Regent's Street e passando pela estátua de Eros,
onde dois amantes se beijavam a despeito de tudo, em celebração a tudo, e
mais adiante elas foram em direção aos leões de bronze da Trafalgar Square e
depois deles continuariam seguindo, além do próprio Tâmisa, e talvez então
voltassem; talvez não. O tempo todo elas olhavam para a frente e não
falavam. Não havia nada a dizer e nenhum outro lugar para estar.
AGRADECIMENTOS:

Alexandra Pringle, pela mágica dos últimos vinte e oito anos.


Victoria Hobbs, Faiza S. Khan, Rebecca Saletan e todos da Bloomsbury,
Riverhead e AM Heath que desempenharam um papel na vida deste livro.
Lynn Akashi, Tahmima Anam, Therese Chehade, Asad Haider, Suzy
Hansen, Maha Khan-Phillips, Zain Mustafa, Dermot O'Flynn, Anna Pincus,
Elizabeth Porto, Gillian Slovo, Pam Thompson e Twitter de Karachi.
E a todos os meus amigos de infância.
Copyright ©Kamila Shamsie 2022

Preparação
Thaís Totino Richter

Capa
Pintura Mais poético que geométrico
de Sandra Martinelli

Versão digital
Antonio Hermida

www.grualivros.com.br
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Instagram: grua_livros

Rua Cláudio Soares, 72 cj 1605


Pinheiros
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Tel: (011) 4314-1500

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

S54M
Shamsie, Kamila, 1973- Melhores amigas / Kamila Shamsie ; tradução Lilian Jenkino. - 1.
ed. - São Paulo: Grua, 2023.
Tradução de: The best of friends
ISBN 9786588410479
1. Romance urdu. I. Jenkino, Lilian. II. Título.

23-86500
CDD-891.4393
CDU: 82-31(549.1)

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