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SUMÁRIO
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Folha de Rosto
Karachi 1988
Verão
Inverno
Londres 2019
Primavera
Verão
Inverno
Agradecimentos
Créditos
Karachi
1988
Verão
PRIMEIRO DIA DA VOLTA ÀS AULAS. O céu carregado de nuvens de monção, o
pátio da escola apinhado de alunos a poucos passos do abrigo: as árvores kikar
plantadas ao longo do muro fronteiriço ou a árvore de nim no caminho entre
o portão e o prédio da escola; as muitas portas, emolduradas por primaveras,
esculpidas na fachada de pedra amarela do prédio; a área do campo de
esportes sob as sacadas projetadas do primeiro e do segundo andar. Apenas
alguns garotos, com ousadia, perambulavam pelas áreas mais expostas do
pátio, mangas de camisa arregaçadas, mãos nos bolsos. Zahra, parada ao lado
do arco que alojava o sino de bronze, aproveitava-se de sua altura para olhar
por cima das cabeças de todas as garotas e da maioria dos garotos, procurando
algo.
As aulas do dia ainda não haviam começado oficialmente, mas os alunos
de uniforme cinza e branco já se reagrupavam em suas formações do
semestre anterior. As crianças legais. Os garotos de gangue. Os casais. As
garotas julgadoras. Os garotos invisíveis. Zahra tinha inventado essas
categorias depois de assistir, em vídeos piratas, a uma série de filmes de
Hollywood sobre adolescentes, mas pouco fez para ajustá-la à inadequação da
vida escolar de Karachi. Sem retenção, como poderia existir o Clube dos
cinco? Sem uma festa de formatura, como poderia existir Pretty in Pink? Sem a
liberdade necessária para possibilitar a fuga das aulas, como poderia haver um
Curtindo a vida adoidado? A única área, porém, em que o fracasso era dos
filmes, não de Karachi, era quando se tratava de amizade — quase sempre
mostrada como um subenredo do romance, nunca o centro de uma história.
Com exceção de Vidas sem rumo, mas esse era de garotos, o que significava
que na verdade tratava de como as garotas causavam problemas, levando a
brigas, prédios incendiados e morte.
De onde estava, Zahra tinha uma visão clara do portão da escola. Durante
a maior parte do dia, ônibus, riquixás, vans e outros veículos velhos lotavam
as ruas de Saddar, talvez indo para o Mercado da Imperatriz ou para as lojas
de eletrônicos que povoavam a região, mas, por duas vezes nos dias de
semana, os carros elegantes com ar-condicionado se juntavam ao caos para
transportar alunos que iam e vinham das escolas mais prestigiadas de Karachi.
Ali estava ela. A Mercedes, a mais elegante dos elegantes, seguiu direto
até o portão, onde Maryam desceu e entrou nas dependências da escola.
Uma Maryam diferente, um caminhar diferente. O peso que havia em seu
rosto parecia ter descido para outro lugar no decorrer do verão, embora fosse
difícil saber exatamente o que estava se passando sob o kameez cinza que ela
vestia. Maryam parou para falar algo a um dos garotos mais velhos e,
enquanto conversavam, puxou seu kameez com um gesto que claramente
pretendia ser um ar distraído. O tecido estirado sobre os novos seios, uma
nova cintura. O garoto mais velho continuou falando com ela como se nada
tivesse acontecido, mas, quando ela passou por ele, indo na direção de Zahra,
ele se virou para observá-la durante todo o trajeto.
Outras coisas também tinham mudado. O cabelo ondulado na altura dos
ombros estava engenhosamente despenteado, mas não indisciplinado; as
sobrancelhas desalinhadas foram remodeladas em duas linhas curvas. O
sorriso, porém, era o mesmo velho sorriso da Maryam que saudava Zahra
toda vez que Maryam voltava das viagens de verão com a família em
Londres. E sua mão estendida trazia uma fita cassete que era sempre seu
presente de aniversário atrasado para a melhor amiga, uma fita que ela havia
gravado do rádio, com o melhor das paradas de sucesso de Londres.
“Você viu o que aconteceu comigo?”, disse ela.
“É a sua mãe ou o seu alfaiate que está tendo dificuldade em aceitar
isso?”, perguntou Zahra, gesticulando para o kameez.
“Difícil dizer. O mestre Sahib costura o que acha que a minha mãe quer.
Mamãe diz que ele se ofende com facilidade, que não podemos voltar e dizer
que está tudo errado, senão ele vai parar de fazer as nossas roupas, e ele é o
único que acerta as minhas blusas de sári.”
“A idade adulta é tão complicada.”
Sorriram uma para a outra, confiantes no futuro diante delas, em que
nunca enfrentariam dilemas tão insignificantes. Mal haviam começado a
trocar observações sobre o verão passado quando Saba se aproximou, com
aquele sorriso que parecia estar segurando na boca algum prazer proibido
que ela não queria nem engolir nem revelar. Elas conheciam todos os
sorrisos umas das outras, as três garotas; aos quatorze anos, já viviam dez anos
do que poderia vagamente ser chamado de amizade, embora havia pouco
que Zahra tivesse consultado um dicionário para informar Maryam que
aquilo que as duas tinham uma com a outra era amizade, e o que tinham
com as outras seis garotas e vinte e dois garotos da classe era apenas
“propinquidade”, um relacionamento com base na proximidade física. “Se
você se mudasse para o Alasca amanhã, ainda seríamos melhores amigas pelo
resto da nossa vida”, ela disse para Maryam, que era a única pessoa do
mundo por quem Zahra demonstrava sentimentos extravagantes.
Agora Saba estava ali, parada na frente delas, permitindo que a
persuadissem a revelar o segredo que acabara de ouvir da sua tia, a sra. Hilal,
professora de biologia, para as demais. O alarme de bomba da escola seria
complementado com um alarme de tumulto. Haveria exercícios ao longo do
semestre para assegurar que os alunos não confundissem o primeiro com o
segundo. Ninguém ia gostar que setecentos alunos evacuassem o prédio
quando deveriam estar lá dentro com portas e janelas muito bem fechadas. A
escola nunca identificou bombas nem tumultos, mas Saba transmitiu a
notícia do desastre antecipado, e a possível confusão sobre os alarmes, com
satisfação.
Maryam fez um ruído de irritação. “Meus pais vão ficar ainda mais
histéricos se ouvirem isso”, disse ela. “No dia em que voltamos de Londres,
eles contrataram guardas armados para a nossa casa porque todos aqueles
expatriados de lá ficavam falando como Karachi é perigosa. Agora ninguém
pode entrar sem passar por um procedimento ridículo de guardas ligando
para casa a fim de saber se a pessoa é bem-vinda, e, se alguém estiver usando
o telefone e eles não conseguirem ligar, um dos guardas tem de correr até a
casa para avisar. Não que eles corram, é mais uma caminhada lenta. Não se
preocupe, Zahra. Deixei uma foto sua com eles e disse que, se alguém tentar
impedir você de entrar, vou demiti-los.”
“Lucky!”, Zahra disse, e Maryam sorriu. Nada a agradava mais do que ser
comparada a Lucky Santangelo, heroína do romance de Jackie Collins,
composto por partes iguais de coragem, crueldade e lealdade. Saba fez uma
careta e Zahra reconheceu essa expressão também: era aquela que dizia que
Saba não entendia por que Maryam continuava a ser a melhor amiga de
Zahra e a compartilhar brincadeiras entre elas, quando era Saba que, como
Maryam, pertencia àquele subgrupo de alunos cujos pais faziam parte do
“círculo social” e que iam para o exterior nas férias de verão e nadavam no
mesmo clube de sócios exclusivos.
“Talvez seja uma boa ideia a escola ter algum tipo de plano para o caso de
acontecer o pior”, disse Zahra, olhando na direção dos muros altos, com
cacos de vidro encravados na parte de cima para evitar que alguém os
escalasse. No último verão, carros-bomba haviam matado mais de setenta
pessoas em Saddar. Não muito longe ali da escola, uma das explosões
destruiu todas as vitrines da loja onde Zahra e a mãe estiveram comprando
uniformes novos uma semana antes. Nos dias que se seguiram, ela ficou
imaginando cacos de vidro perfurando sua garganta e seus olhos. Maryam
estava em Londres na época e ao voltar comentou: “Foi horrível. Ainda bem
que foi durante as férias da escola”, sugerindo que ninguém conhecido
poderia estar em qualquer lugar no entorno de Saddar naquela época do ano.
O sino da escola tocou, mandando-as para a quadra de esportes onde
fileiras desiguais de alunos começaram a se formar. O chão estava úmido da
chuva do dia anterior e havia uma grande poça no meio da quadra, na qual
alguns dos garotos mais arruaceiros do 9º ano pisoteavam forte para tentar
molhar alguma garota que passasse.
Maryam não era a única da classe a ter mudado durante o verão. Havia
garotos que ficaram mais altos e outras garotas que ganharam mais curvas;
aquele garoto finalmente raspou o ninho de lagartas acima do lábio, aquela
garota trocou os óculos por lentes de contato. A única mudança em Zahra
era um centímetro a mais na altura; fora isso, ainda era magra, com cabelos
cosmeticamente superlisos, que sua mãe cortava um pouco acima dos
ombros. Mas algo parecia diferente em cada um naquele ano letivo, embora
as aparências tenham permanecido as mesmas. Havia uma etapa a mais que
antes em suas etapas. Tinham consciência de que agora estavam no 10º ano,
com idade suficiente para que os alunos mais novos os respeitassem, e
também naquele estágio em que a familiaridade podia começar a substituir a
deferência em seus relacionamentos com os alunos do nível A.
A recepção no pátio havia sido cancelada com o intuito de colocar todos
para dentro o mais rápido possível, pois as nuvens se tornavam ainda mais
escuras; assim, foram direto para a nova sala de aula com suas paredes grossas
na cor verde alga marinha e carteiras de madeira recém-pintadas com um
marrom rosado revoltante. Maryam e Zahra encontraram duas carteiras
juntas, separadas das demais carteiras da fila por um corredor, e Zahra contou
a Maryam sobre o ponto alto do seu verão, que foi uma visão de todos os
integrantes da Vital Signs saindo de uma casa na Phase Five, perto daquele
cruzamento onde o homem com um ramo de primavera por trás das orelhas
costumava orientar o trânsito. O pai dela estava dirigindo e se recusou a
diminuir a velocidade ou muito menos parar para que ela pudesse observá-
los um pouco mais; “só porque uns garotos gravam uma música pop não
significa que você tem o direito de começar a tratá-los como animais de
zoológico”, disse ele.
“Mesmo assim. Você os viu. Isso é muito legal. Pode ser ainda mais legal
do que ver uma estrela popular em Londres”, disse Maryam, que vira Paul
Young caminhando pelo Hyde Park em um verão. Era um assunto bastante
sério, ao qual voltariam mais tarde, quando tivessem tempo de esmiuçá-lo
com a devida perícia — uma estrela popular famosa internacionalmente na
cidade onde você passou suas férias tinha mais valor que as sensações
nacionais domésticas que passeavam não muito longe da sua vizinhança?
“Aprendi uma palavra nova em italiano neste verão”, disse Maryam,
apoiando o cotovelo sobre a cadeira de Zahra para ensinar a amiga. “Zia.
Significa tia. Também é uma gíria para...”, ela baixou a voz, como devia ter
feito antes de fazer pouco caso do nome do ditador, “... homossexual. Você
consegue imaginar, toda vez que encontra o general Zia o embaixador
italiano deve ficar pensando…”
“Maryam!”
Zahra deu uma olhada ao redor para ver se alguém mostrava sinais de ter
escutado. Ela não achava que algum dos colegas de classe fosse de famílias
que apoiassem o presidente, mas esse era um assunto não comentado e as
suposições eram perigosas.
“Não seja paranoica”, disse Maryam. Ela baixou o rosto em direção ao
buraco que havia na mesa para servir de porta-canetas, como se estivesse
falando em um microfone. “Alô, QG, vocês querem saber o que todos nós
pensamos dos Narcisos de Wordsworth? Fora com suas mentes alegres!”
O garoto sentado atrás delas — Babar — caminhou até a frente da sala.
Pegando um pedaço de giz, ele rabiscou na lousa NÃO SE PREOCUPE É
APENAS TUD
A voz de uma professora cortou o “O” que ele estava prestes a escrever.
“Sr. Razzaq, é melhor voltar para a sua carteira e não ficar desfilando com
calças antiquadas, não acha?”
Babar ainda parou por um momento, depois estendeu a mão e passou os
dedos pelos cabelos grossos, endireitou os ombros e se virou com um sorriso
convencido. Se tivesse uma jaqueta de couro, ele teria levantado a gola.
Voltou para sua carteira e sentou.
“O uniforme de escola do meu irmão mais velho vai para os filhos da
nossa cozinheira”, disse Saba em voz alta.
Zahra virou-se para encarar Saba, que estava em uma carteira do outro
lado do corredor de Babar. “Saba, ele não vai gostar de você se você o
ofender mais do que ele se ofendeu quando você escreveu poemas de amor
para ele.”
Um Ohhhhhhh! crescente em volume circulou pela sala até que a
professora o interrompeu, retomando o controle. Saba chorava sobre o
caderno. Zahra pegou um lenço na mochila, reclinou-se na cadeira, bateu no
joelho de Babar e passou o lenço por debaixo da mesa.
“Acho que tem algo escrito aqui”, ele sussurrou alguns momentos
depois.
Zahra virou-se para trás. Ele desdobrava o lenço de papel e o segurava
como uma carta, um polegar e um indicador segurando de cada lado. “Ela
não devia ter dito aquilo, mas você pode ser o cara legal”, disse Zahra.
“Senhorita, você quer que eu tire as calças?”, gritou Babar, o que fez
todos os alunos rirem, inclusive Saba, tornando o lenço desnecessário.
Às quartas-feiras, Zahra voltava para casa com Maryam e suas duas irmãs
mais novas. Para Maryam, “casa” era uma construção térrea em Old Clifton,
assentada atrás de muros altos e agora com guardas armados junto ao portão.
Faltava-lhe todo o potencial de brincar com o cachorro dos vizinhos do
andar de baixo ou de dar uma escapada até a praia, o que existia no
apartamento de Zahra em Seaview, embora Zahra tenha aproveitado pouco
de um ou outro. Essa rotina começou quando o pai de Zahra assumiu o
papel de âncora na TV em um programa sobre críquete — ele precisava estar
no estúdio nas tardes de quarta-feira e não podia buscar Zahra, como vinha
fazendo desde que a mãe fora promovida, passando de professora na escola de
Zahra a diretora de uma escola recém-inaugurada.
Maryam ainda sentia falta da sra. Ali, como era chamada quando estava na
escola — fora dela, era tia Shehnaz. Sempre havia um esplendor naqueles
poucos segundos do dia em que a elegância sutil da sra. Ali cruzava o
caminho de Maryam e a cumprimentava com o sorriso de tia Shehnaz. Os
outros professores tinham Maryam como a meio inexplicável melhor amiga
da brilhante Zahra, como uma aluna mediana cujos pais compravam suéteres
de caxemira em Londres para o uniforme de inverno da filha, quando todos
os demais, inclusive os que dirigiam Pajeros, achavam ótimos os nacionais de
poliéster e algodão. Ela sabia que os professores a desprezavam por isso, pois
Saba tinha dito que a sua tia, a sra. Hilal, comentou que a sala dos professores
se perguntava se Maryam era alérgica a poliéster. Como qualquer aluno da
escola, Maryam deixava que a mãe escolhesse as roupas que ela usava na
escola sem pensar muito sobre isso, mas aquela conversa com Saba mostrava
que até a menor das decisões não deveria ser delegada a nenhum dos pais.
Naquela quarta-feira em particular, uma crise social tinha sido detonada
na casa de Maryam, e as meninas chegaram e encontraram a mãe de Maryam
ao telefone pedindo ao marido para voltar do escritório imediatamente
porque havia coisas a discutir.
Coisas a discutir queria dizer que eram delicadas demais para um
telefonema, não tanto porque todos sabiam que os serviços de inteligência
estavam sempre na escuta, mas porque linhas cruzadas significavam que
alguém conhecido podia acabar espreitando a ligação, embora a intenção
fosse apenas telefonar para pedir que a mãe o fizesse lembrar de como fulano
estava relacionado a sicrano. Desde que se viu em uma linha cruzada com o
marido de sua prima falando com a amante até então insuspeita, a mãe de
Maryam se recusava a dizer qualquer coisa ao telefone que não pudesse gritar
alegremente pelos corredores do Agha's Supermarket.
O pai de Maryam fingia que tinha trabalho que o mantinha no escritório,
mas na verdade era o avô de Maryam que administrava os negócios da
família, a empresa que fornecia produtos de couro luxuosos para os ricos do
Paquistão. O pai de Maryam simplesmente tinha uma sala com seu nome na
porta, onde passava os dias fazendo palavras cruzadas, aprovando produtos
que já atendiam aos padrões exigentes do pai e às vezes tendo reuniões com
alguém importante para a empresa que precisava se sentir valorizado. O pai
de Maryam fazia com que todos se sentissem valorizados, e saber da
onipresença dessa valorização não impedia ninguém — além dos familiares
de primeiro grau — de ser conquistado por sua habilidade nesse quesito.
Assim, o almoço foi protelado até que o pai de Maryam voltasse para casa.
Zahra e Maryam atravessaram o longo corredor repleto de pinturas, onde um
retrato tosco de uma vaca, desenhado pelo pai de Maryam ainda em Oxford,
estava pendurado entre Sadequain e Chughtai, Gulgee e Naqsh. As pinturas
se rendiam a uma aglomeração de fotografias dos ancestrais da mãe de
Maryam em toda a pompa aristocrática; a classe incontestável deles fazia com
que o desenho da vaca ficasse divertido, em vez de um símbolo grosseiro da
riqueza que tornava possível a coleção de arte. Maryam o achava
extremamente humilhante.
O corredor levava ao quarto de Maryam, de onde ela enxotou as irmãs e
fechou a porta. O ar-condicionado central fazia o mais fraco dos zunidos, o
piso de mármore era fresco sob as meias finas quando elas tiraram os sapatos.
Maryam disse a Zahra para escolher a música e ficou de joelhos em sua cama
de casal para cravar um beijo na boca de George Michael, que estava
pendurado na parede em sua encarnação de Last Christmas.
“Sua vez”, ela disse.
Zahra continuou onde estava, correndo os dedos pela coleção de CDs de
Maryam na prateleira branca com detalhes em azul. Logo abaixo ficava a
estante repleta de Judith Krantz, Sidney Sheldon, Jackie Collins — do lado
de dentro da contracapa de cada livro havia números, escritos em um código
só conhecido por Maryam e Zahra, listando quais páginas continham as
“partes boas”. E mais abaixo ficava uma mesa com o computador — o
computador de Maryam, o Apple IIGS, o orgulho e a alegria dela — que lhe
possibilitava começar o curso de ciências da computação do nível mais básico
quilômetros adiante dos demais em conhecimento de programação.
“Por que você fala com Hammad quando acha que eu não estou
olhando?”, perguntou Zahra, virando-se para Maryam. “Eu vi você hoje de
novo, quando saí da aula de história.”
“Você não gosta dele.”
“Que diferença isso faz? Contamos tudo uma pra outra.”
Ambas entendiam que tudo significava qualquer coisa que acontecia
dentro da escola. A vida da família delas era uma questão diferente. Assim,
Maryam, por exemplo, nunca discutia o quanto se envergonhava com a
indolência da vida dos pais, com a superficialidade de suas preocupações, tão
divergentes do tipo de comportamento adulto que ela via na casa de Zahra.
Até os nomes pelos quais seus pais eram conhecidos pelos amigos — Toufiq
e Zenobia, reduzidos para Toff e Zeno — eram caricaturas quando
comparados à solidez dos Ali, Habib e Shehnaz.
Na primeira semana do curso de economia no nível O, Maryam estudou
divisão do trabalho e entendeu que a versão familiar dessa matéria era o avô
administrar os negócios enquanto o pai procriava, de modo que haveria
alguém competente para quem os negócios pudessem ser passados adiante. O
pai tinha tido três filhas e nenhum filho, quando a mãe disse que bastava,
estavam no século 20, suas filhas assumiriam a empresa. Mas desde o início
era evidente que as duas mais novas tinham saído ao pai, trocando a
competência pelo charme, e assim ficou implícito que a responsabilidade
total e verdadeira precisava recair sobre Maryam. Às vezes, o avô a provocava
dizendo que talvez, tendo ido para a universidade na Inglaterra ou nos
Estados Unidos, ela nunca mais quisesse voltar. Ela simplesmente revirava os
olhos para isso. O avô sabia bem que os verões em Londres bastavam para
extirpar qualquer desejo de morar em outro lugar. Em outro lugar era onde
você não era ninguém. Para ser honesta, Maryam não tinha certeza absoluta
do porquê ir para a universidade, mas seu avô parecia achar necessário.
“Ok, mas primeiro é a sua vez.” Maryam apontava de novo para o pôster
e Zahra se aproximou da cama. Maryam viu quando ela recuou um pouco
ao reparar na mancha de saliva que a própria Maryam, sem perceber, tinha
deixado na boca de George Michael. Isso a fez enxugar os lábios e ter
consciência de seu corpo — a saliva na boca, o sangue da menstruação, o
peso dos seios. Zahra beijou apressadamente o canto da boca de George
Michael e foi sentar no pé da cama de Maryam em oposição à postura
habitual — ombro a ombro e recostada na cabeceira da cama.
“Ok, então, sim, ele vem falar comigo toda vez que me vê. O que eu
deveria fazer, fingir que não ouvi?”
“Você já falou com ele por telefone?”
“Ele pediu meu número, mas não dei. Feliz?”
Uma leve mudança no ar, a primeira mentira entre elas.
“Só de ser vista conversando com ele pode ser ruim para a sua reputação.”
Essa palavra — reputação — carregava um peso enorme na vida de
Zahra. Maryam sabia que tinha algo a ver com a incerteza de sua posição
social e rir disso seria cruel. “Ela é inteligente, bem-educada e ponderada,
qualquer família de bem a acolheria”, dissera certa vez a mãe de Maryam,
prevendo um futuro brilhante para Zahra, no qual o casamento a livraria do
jugo do passado dos pais, que eram “pessoas decentes e muito trabalhadoras”,
uma frase nítida da sua condescendência para com aqueles que não podiam
simplesmente assumir uma posição no mundo sem levar em consideração o
renome ou a influência. Maryam gesticulou indicando o espaço a seu lado e
Zahra ocupou o lugar indicado, deslizando e se apoiando um pouco em
Maryam, que se endireitou e nivelou a cabeça de ambas.
“Você nunca quer fazer algo que não deveria fazer, Za?”
“Claro que quero.”
“Como o quê?”
“Beijar um garoto.”
“Zahra Ali!”
“Cale a boca.”
“Estou brincando. Qual garoto?”
“Qualquer garoto. O que eu quero é o beijo.” Ela ficou bem vermelha
quando disse isso. “Mas teria de confiar no garoto para não contar nada. E
seria estúpido confiar em alguém desse jeito, a não ser em você.”
Maryam concordou. Essa última parte certamente era verdade. “Você
acha que seria muito diferente, se fechasse os olhos...”
“O quê?”
“Beijar uma garota.” Um novo tipo de possibilidade, sugerida por um
filme ao qual tinha assistido tarde da noite em Londres.
“Você quer dizer uma à outra?”
Maryam torceu o nariz para o equívoco profundo daquele pensamento.
“Nunca. Nem se fosse para treinar. Está bem. Está decidido. Vamos seguir
em frente com Babar para você e Hammad para mim.”
“Não sei qual parte dessa frase é pior. Ele chamou você?”
“Você acha que comecei a mentir para você sobre Hammad? Por favor.”
Ela ficou de pé na cama e tirou a meia. “Você pecou contra a amizade e
agora precisa enfrentar seu castigo.”
“Oh, Deus, não, isso não.”
“Isso, sim. Cheire a minha meia! Cheire!” Ela acenou com a meia na
direção do rosto da amiga e Zahra escapou rolando para fora da cama.
Segundos depois, Maryam estava perseguindo Zahra corredor afora,
chacoalhando uma meia, e em volta da mesa de jantar e entrando na saleta
onde a mãe de Maryam gritou com elas por serem uma dupla de desordeiras
que não se importavam com o dia terrível que os outros estavam tendo.
Zahra disse algumas palavras pedindo desculpas e saiu da sala. Maryam a
encontrou no quarto poucos minutos depois, alegre pelo dilema em que seus
pais foram postos.
Eles dariam uma grande festa no fim do mês e um dos convidados, um
velho amigo de faculdade de seu pai, tinha ligado para perguntar se poderia
levar o irmão, que estava passando por um momento difícil e precisava de
encorajamento. Era o tipo de pedido que ninguém jamais pensaria em
recusar, mas esse irmão tinha sido preso pouco tempo atrás por tráfico de
drogas e todos sabiam que sua soltura se devia a um juiz corrupto. “Por que
eu deveria ser o primeiro passo do programa de reabilitação dele?”, a mãe
disse para Maryam, referindo-se à reabilitação social. Então deu a desculpa de
que havia um problema grave na cozinha e que teria de desligar
imediatamente o telefonema do amigo de faculdade, mas ela ou o marido
retornariam com uma resposta em breve, mas ela não encontrava uma saída
possível para um “não”.
“Então vão cancelar a festa?”, perguntou Zahra.
“É o aniversário de quarenta anos do meu pai”, disse Maryam, juntando-
se a Zahra que mexia na coleção de CDs. “Não vão cancelar isso.”
“Mas não vão receber um traficante de drogas na casa deles, vão?” Zahra
tinha puxado a trilha sonora de Dirty Dancing da prateleira e estava lendo a
lista das músicas com grande concentração, como se já não a conhecesse de
cor.
“Ele se sai bem entre amigos”, disse Maryam, tendo encontrado o
homem várias vezes, mas sem nenhuma lembrança clara dele além da polidez
de falar em voz baixa. “A questão é que ele é irmão de um amigo que está
pedindo um favor, então o que fazer?”
“Não pensei por esse lado”, disse Zahra, finalmente olhando para
Maryam.
“Resposta bem diplomática.”
Zahra colocou o CD no aparelho e apertou o play. Ouviram o ruído de
um disco girando em falso por não ter sido colocado com firmeza suficiente
e Zahra balançou a cabeça, sempre impaciente com as próprias imperfeições,
antes de resolver o problema. Os compassos iniciais de “Time of My Life”
apagaram quaisquer opiniões divergentes que elas pudessem ter sobre o
mundo adulto enquanto cantavam I've neeeever felt this way before juntas.
“Se as suas irmãs se tornassem um fardo como criminosas e se você
perguntasse se podia levá-las à minha festa de quarenta anos, acho que eu
diria sim”, admitiu Zahra, no meio da música.
“Por favor. Eu nunca faria você convidar aquelas criaturas irritantes para
festa nenhuma. Quarenta anos! O que você acha que vamos fazer aos
quarenta?”
Era o tipo de conversa que elas adoravam ter, e abaixaram um pouco o
volume e voltaram a se sentar lado a lado na cama de Maryam para pensar
nisso.
“Imagino que estaremos casadas, com filhos”, disse Maryam. “É meio
inevitável, não é?”
“É?”, disse Zahra.
“Bem, vou precisar ter filhos, pois alguém deve herdar a Khan Leather”,
disse Maryam. “A parte difícil vai ser encontrar um marido que não se
incomode por eu administrar a minha empresa e não deixar que ele diga
qualquer coisa em hipótese nenhuma. Mas ele não pode ser fraco.”
“Acho que vamos querer essas coisas um dia”, disse Zahra, meio
melancólica. “Mas ainda seremos nós quando estivermos juntas, não é?”
“Sempre seremos nós”, respondeu Maryam com firmeza. “Mesmo se
você estiver morando no Alasca. Isso é amizade, não propanocuidade.”
“Propinquidade!”
“Eu lembrava que tinha algo a ver com química.”
“Nada a ver.”
Ouviram um som leve de pancada contra a janela. Um dos gatos do
jardim tinha saltado do sapotizeiro para o peitoril da janela. “Gatinho
movido a propano!”, gritaram juntas.
A risada se instalou, indo além da piada do momento para uma
gargalhada profunda de alegria pela amizade entre elas, pela certeza de que,
acontecesse o que fosse no mundo, sempre existirá essa pessoa, essa estrela
polar, essa rocha, esse alter ego que conhece cada átomo dos seus defeitos e
que mesmo assim, apesar de tudo, escolheu ficar com você e a seu lado em
tudo que o mundo ainda tinha para lhe jogar em cima, cada angústia, cada
decepção, cada momento de escuridão. Sempre essa amizade, sempre a sua
luz.
*
Maryam sabia que não era culpa do novo motorista não ser Abu Bakr,
mas mesmo assim se referia a ele apenas como “Motorista” para que seus pais
e avô soubessem que ela não os havia perdoado por tratar como substituível
alguém que tinha sido tão leal a ela. Ninguém notou — todos os vários
motoristas da Khan Leather eram conhecidos simplesmente como
“Motorista” —, mas quando reparou nisso, ela se sentiu estranha em mudar
para o primeiro nome dele, caso ele imaginasse o que havia causado tal
familiaridade.
O Motorista a levava para a Khan Leather naquele sábado, duas semanas
após as eleições, quando a euforia já havia começado a ser temperada por
questões que envolviam acordos da divisão de poder que seriam elaborados e
o que isso poderia significar para a população fraturada de Karachi. Em
outubro, houve sangue, uma violência retaliatória por um massacre em
Hyderabad em torno de etnias. O toque de recolher fora baixado, o exército
foi chamado às ruas. Seu avô lhe disse que a democracia só pioraria esse tipo
de coisa conforme os partidos políticos formados em torno de etnias
tentassem reafirmar seu poder nas ruas — ela ficou grata quando ele disse
isso porque falar com ela sobre como o mundo funcionava era sua maneira
de dizer que ela estava sendo restaurada como sua preferida. E naquele
sábado outro sinal de restauração: quando o Motorista passou pelos portões
da frente, o guarda parou o carro para dizer que o avô queria que ela
conhecesse alguém e pedia que ela fosse direto à sua sala em vez de ir ao
campo de críquete.
Ela subiu as escadas, olhando para o próprio peito mais de uma vez, grata
pelo item que a mãe havia deixado em sua cama logo depois do comentário
que o avô fez sobre o sári branco na chuva, embora ainda não soubesse
quem dentre a rede de contatos da mãe tinha falado sobre esse milagre
chamado sutiã esportivo. Não era exatamente confortável, mas permitia que
ela corresse e suasse no campo de críquete sem obrigar os homens a manter
os olhos fixos no rosto ou nos pés dela.
Quando entrou na sala, Billoo de nariz quebrado estava lá. Ele se
levantou, colocou a mão sobre o coração e inclinou a cabeça ligeiramente.
“Eu estava dizendo ao nosso convidado que você vai tocar a empresa
depois que eu partir”, disse o avô. Ele nunca dissera isso a ninguém além da
própria Maryam. Ela não estava preparada para o quanto a consagração
pública seria significativa, como isso endireitaria a sua coluna, empurraria os
ombros para trás, permitiria que uma sensação se instalasse nela, sensação à
qual ela não podia dar nome, mas conseguia visualizar muito claramente —
um manto de couro forrado de seda, pesado e bonito. “E ele estava prestes a
me fazer uma pergunta sobre isso quando você entrou.”
Billoo abriu os braços filosoficamente. “Garotas no controle é a nova
moda”, disse ele, e ela entendeu que a pergunta que ele agora decidiu não
fazer dizia respeito ao pai dela.
“Você conheceu meu filho”, foi tudo que o avô disse, ou precisou dizer.
Nunca havia ficado claro para Maryam que conversa seu avô teve com o
filho sobre a coisa toda, talvez nenhuma. Toff sabia, todos sabiam, que
Maryam viria trabalhar na Khan Leather depois da universidade e, quando o
avô morresse, ela estaria pronta para ocupar seu lugar e nada mudaria no
papel ornamental de Toff. Ela não se importava muito com títulos. Seu pai
poderia ter um que suplantasse o dela; ela não desejava envergonhá-lo.
Billoo desviou os olhos do avô para ela e depois para o avô novamente.
“Ela vai ficar?”
“Nós dois ficaremos aqui”, disse o avô, gesticulando por algum motivo
para uma das janelas da sala.
Não havia lugar para dúvidas na surpresa de Billoo, mas ele apenas
perguntou: “Devo sair agora?”, e o avô respondeu que sim.
Quando ele saiu, seu avô pediu que ela se sentasse na cadeira que Billoo
havia desocupado, a ampla mesa de jacarandá entre eles. Ela sentou e
rapidamente se levantou outra vez, assim que sentiu o calor do traseiro de
Billoo no assento. O avô riu e se levantou também, caminhando até a janela
que havia indicado antes e pedindo que ela se juntasse a ele.
“O que estamos olhando?”, ela perguntou. O jardim que seu bisavô havia
plantado nos meses logo após a Partição havia se espalhado abaixo deles,
árvores robustas que produziam frutos e sombras entrecortadas por um
caminho ladeado de vasos de flores que mudavam com as estações. A
chegada do inverno trazia consigo a falta de opções, de modo que os vasos
exibiam apenas marias-sem-vergonha em tons rosáceos escuros e claros,
pervincas, como seu pai insistia em chamá-las, com a mesma arrogância que
o fazia referir-se às especiarias por seus nomes ingleses. Até a polidez
impecável de Zahra em relação aos pais de Maryam se quebrou no dia em
que ela ouviu Toff falar de methi como fenugreek.
“Você sabia que alguém andou roubando o estoque do armazém?”, disse
o avô, esfregando o lenço na vidraça suja, embora devesse saber que o
acúmulo de sujeira estava do lado de fora; sua sala por dentro estava
brilhando todas as manhãs antes de ele chegar. “Seu pai mencionou isso?”
“Alguém que trabalha aqui?”
Ele aquiesceu com a cabeça, parecendo tão sério como ela nunca o vira.
“Sabemos quem é. Então, se você estivesse tocando a empresa, o que faria a
respeito?”
“A polícia não”, ela respondeu automaticamente. Houve um roubo na
casa de Saba certa vez, um crime interno, e seus pais deram o passo raro de
chamar a polícia. Eles prenderam todos os criados e algumas horas depois
disseram aos pais de Saba que tinham certeza de que a aia que havia criado
Saba era inocente, porque puseram camundongos dentro de seu salwar, várias
vezes, e embora ela tenha desmaiado em algum momento, quando a
reanimaram, e o fizeram de novo, ela ainda jurou que não sabia nada sobre o
crime. A aia voltou ao trabalho no dia seguinte e ninguém nunca mencionou
a prisão ou os camundongos em sua presença. Saba havia contado tudo isso a
Maryam, com um tom de escândalo penetrando em sua voz quando
sussurrou que as pessoas “daquela classe” não usavam roupas íntimas.
Maryam ainda não conseguia olhar para a aia sem imaginar roedores
frenéticos descendo pelas coxas dela, subindo pelas coxas dela, atraídos pelo
calor e pelo cheiro.
“Esse é o primeiro passo correto”, disse ele, seu elogio sutil era mais
significativo que qualquer coisa que qualquer outra pessoa pudesse dizer a
ela.
“Fazer com que devolva o estoque ou o dinheiro que ganhou por isso?”,
disse Maryam.
O avô franziu a testa. “Ele vai dizer que o dinheiro foi para o dote da
irmã ou para pagar a conta do médico da mãe ou para cobrir o custo de um
telhado que estava ruindo.”
“Não é possível que seja verdade?”
“Os homens sabem que podem me procurar quando houver uma
necessidade real. Coloquei crianças em universidades, reconstruí casas
desmoronadas, paguei tantas despesas médicas que poderia ter usado o
dinheiro para construir um hospital nestas dependências. Fazemos o que
podemos, e o que é certo, por aqueles que são da nossa responsabilidade. No
entanto, sem dotes. Prática incivilizada. Assim, sem polícia, sem reembolso. E
então?”
Ela passou a língua ao redor da boca, pensando. “Demiti-lo?”
“Bem, demiti-lo, é claro. E só? É essa a mensagem que você está
enviando para o resto dos trabalhadores? Roube-nos e tudo o que você
arrisca é seu emprego no futuro?”
“Então...” Houve algum tipo de comoção no andar de baixo, gritos
vindos da direção do armazém. “Então, chamar a polícia depois de tudo?”
“Não se pode confiar que eles respondam com a proporcionalidade
devida.” Os gritos se tornaram uma única voz chamando, chamando por seu
avô, lhe pedindo perdão. Ele suspirou. “Não é nada terrível que você não
consiga pensar na resposta correta.”
Billoo percorria o caminho, um bastão de críquete na mão, a pá apoiada
vistosamente no ombro. Atrás dele, Kashif e Lamboo arrastavam um homem
— graças a Deus, graças a Deus não era um dos seus jogadores de críquete
— que estava de costas, berrando. Havia uma mancha úmida em seu salwar,
perto da virilha, estendendo-se como um riacho pela perna direita. Um
grupo de trabalhadores do armazém os acompanhava, em silêncio. Do outro
lado, artesãos da oficina seguiam pelo caminho. Kashif olhou para a janela
acima e ela recuou.
“Eu preciso assistir a isso?”
O avô pôs a palma da mão em cima da cabeça dela. “Não. Vá para a sala
do seu pai. Você não vai ouvir nada lá.”
Ela foi direto até o banheiro anexo à sala do pai e vomitou.
Quando o avô veio encontrá-la, poucos minutos depois, ela estava
sentada na cadeira da escrivaninha, rabiscando personagens de desenhos
animados — Snoopy, Garfield, o Mágico de Id. O rádio estava tocando
Noor Jehan por causa dos sons que vinham de fora. Ele abriu os braços, um
gesto raro, e ela correu para eles.
“Desculpe”, disse ela.
Os braços do avô a enlaçaram. “Nunca se deve ficar à vontade ao ver isso.
Estou feliz que você não quis assistir.”
Quando ela se afastou do abraço, ele a segurou pelos ombros. “Billoo
sabe como infligir dor sem causar danos permanentes. A polícia não seria tão
cuidadosa. Não quero privar uma família de seu ganha-pão. Você entende?”
Ela fez que sim com a cabeça.
“Você pode me perguntar qualquer coisa”, disse ele.
“Meu pai sabe?”
“Ele não tenta impedir, mas não quer estar aqui quando acontece. Esse é
o seu pai, e a maior parte do mundo é assim. A justiça não é gentil, mas é
necessária. Também foi por isso que Abu Bakr teve que ir embora, era
necessário para você aprender que não pode escapar impune de certos
comportamentos. Você vê isso?”
Mais uma vez ela concordou. Ele a beijou na testa.
“Minha intenção é que haja muito tempo antes de você ter de assumir
esse tipo de responsabilidade.”
Quem sabe a polícia seja diferente até lá, ela quase disse, mas sabia que o
decepcionaria com a recusa de olhar o mundo nos olhos. Em vez disso, disse:
“Acho que vou pular o críquete hoje.”
“Claro”, disse ele. “Por que você não me ajuda com a decisão que estou
tentando tomar sobre um produto? Tantas pessoas têm cidadania estrangeira
hoje em dia, precisamos de um porta-passaporte que caiba dois ao mesmo
tempo. Selecionei dois projetos que são os meus favoritos e o que você
escolher entrará na nossa coleção de primavera.”
Ela sorriu, embora isso parecesse impossível poucos segundos atrás.
Enquanto caminhava com o avô até a sala dele, quase pôde ouvir o farfalhar
e o ranger do próprio manto de couro e seda.
*
É difícil não pensar em uma pantera quando Zahra Ali entra na sala de
reuniões do Centro de Liberdades Civis (CLC) vestida de preto, do blazer às
botas de cano alto, cabelos lisos e escuros, braços e pernas longas movendo-se
de maneira decidida. Felizmente, não sou sua presa; ela se fartou na noite
anterior com o secretário de Estado da Segurança durante um bloco do
Newsnight que gritava eu, eu, eu antes de o programa terminar. Ela diz que
desconhece a atenção que recebeu nas redes sociais, para as quais nunca olha
— “muito barulho”, diz ela, de uma maneira caracteristicamente contida de
falar sobre as ameaças de morte e trollagens, que de modo inevitável, e
deprimente, se vinculam a uma migrante muçulmana que se tornou a voz da
consciência britânica desde que assumiu, há dez anos, o cargo de diretora da
mais antiga organização de liberdades civis da Grã-Bretanha.
“Nunca pensei que faria isso por tanto tempo, mas, honestamente, não
consigo pensar em um lugar melhor para trabalhar. Então, enquanto me
aceitarem, estarei aqui”, diz ela, bebericando uma xícara de chá extraforte —
“estilo paquistanês” —, com muito leite e uma colher de açúcar. Ali
abandonou uma carreira de sucesso como advogada especializada em direitos
humanos e imigração para ingressar no CLC em 2009. “Houve uma
mudança na minha vida pessoal que me fez pensar em que outro tipo de
mudanças eu poderia fazer, de forma clichê.” A mudança pessoal foi o fim de
um casamento de seis anos. “Meu marido recebeu uma oferta de emprego
em Nova York e sentiu que não poderia recusar. Quando eu decidi ficar em
Londres, o casamento acabou.” O que parece uma maneira muito curiosa e
desapaixonada de falar sobre assuntos do coração talvez seja um indicativo do
cuidado com que ela preserva sua vida privada.
Quando coloco dessa forma, porém, ela faz objeções. “Estou preservando
a vida privada do meu ex, não a minha. Ninguém deveria comentar sobre o
casamento de duas pessoas.” Um pouco depois, acrescenta: “O engraçado,
claro, é que muitas mulheres da minha idade dependem muito mais dos
amigos que dos parceiros para tudo, desde o apoio emocional até as
gargalhadas. Mas quando falamos sobre a vida privada das pessoas, isso nunca
é o que temos em mente”.
Ah, os amigos! Dentre as críticas feitas a Ali está a acusação de que ela
passa muito tempo com celebridades. “É mais provável que seja vista nas
páginas da Tatler que nas cortes da justiça”, como o The Sun afirmou
recentemente. Embora o comentário revele uma falta de entendimento sobre
o papel de Ali no CLC — como diretora, ela supervisiona uma equipe
jurídica, mas não atua nos casos —, não há como negar a rede de amizades
estreladas que ela cultiva. Ela apareceu no palco com Annie Lennox, fez uma
breve aparição em um filme de Riz Ahmed e assiste a partidas de críquete
com Malala no Lord's. “Se as pessoas que trabalharam tanto para chegar ao
topo da profissão querem usar sua notoriedade para aumentar a
conscientização sobre a obra que o CLC realiza, não sou eu que vou dizer
não a isso — e às vezes você constrói relacionamentos particulares com o
apoio das pessoas para a sua organização.” Ela ri quando as próprias palavras
reverberam em seus ouvidos e abandona a linha de defesa previamente
estabelecida. “Ah, convenhamos, quem vai se negar a subir em um palco
com Annie Lennox?” Sua personalidade pública é formidável, a ponto de ser
ameaçadora, mas cara a cara ela é amigável: ironicamente engraçada, feliz por
rir de si mesma.
Ali viveu no Reino Unido toda a sua vida adulta, desde que foi agraciada
com uma bolsa de estudos em Cambridge, mas cresceu em Karachi, no
Paquistão, durante um período particularmente sombrio da história daquele
país. Tinha três anos de idade quando o general Mohammad Zia ul Haq
tomou o poder com um golpe militar e, embora sua vida na terra natal fosse
feliz, sempre esteve ciente do clima de paranoia e medo que a ditadura
engendrava. Ela se preocupava em tornar conhecidas as opiniões anti-Zia de
sua família em sala de aula e sabia que nunca deveria dizer nada
comprometedor ao telefone porque os serviços de inteligência poderiam
estar ouvindo. Quando Ali tinha quatorze anos, seu pai, um conhecido
escritor e locutor de críquete, recebeu uma mensagem dos militares
orientando-o a dirigir algumas palavras elogiosas ao general Zia em seu
programa de televisão. O pai optou por não fazer isso. Ali se lembra de ter
ficado zangada com ele. “Achei que ele estava se pondo em risco e sem
pensar na família. E naquele mesmo dia — o dia em que ele gravou o
programa e eu tive um ataque de raiva adolescente por causa disso — o
general Zia foi morto.” Alguns meses depois, a jovem Benazir Bhutto,
educada no Ocidente, foi eleita para o cargo. “Aprendi então a nunca
acreditar que uma luta está perdida, não importa quantos anos passem sem
uma luz de esperança.”
É fácil ver por que a infância de Ali fez dela uma defensora dos direitos
humanos e das liberdades civis; menos claro é o porquê de ela ter declarado
recentemente que o Reino Unido estava no caminho para a ditadura. É
impossível imaginar Jonathan Agnew sendo abordado por figuras sombrias
para elogiar o primeiro-ministro durante o Test Match Special e ainda mais
impossível imaginar a família dele sendo aterrorizada por sua recusa em fazê-
lo.
Provocada, ela muda para um tom ligeiramente frio. “Eu nunca disse
nada sobre um caminho para a ditadura. Essa é a versão para a manchete de
tabloide de uma resposta muito longa a uma pergunta que me fizeram na
Cambridge Union. Afirmei que sei por experiência própria como
funcionam os regimes autoritários. Reconheço suas táticas para oprimir a
dissidência e manter o poder. É por isso que esse governo me preocupa
tanto. Não porque eu ache que o Reino Unido corra o risco de se tornar
uma ditadura, mas porque os britânicos são complacentes por sua democracia
ser tão robusta que não pode ser enfraquecida — coisas que disparariam
alarmes em países com histórias de governo autoritário são permitidas a
passar com pouco barulho por aqui.” Ela fala detalhadamente sobre a
progressiva retórica do governo em relação aos poderes “excessivos” dos
tribunais, o projeto de lei que limitará o direito de protesto, a introdução
planejada de cartões de identidade e as instruções ao Ministério do Interior
para que seus funcionários façam uso mais amplo dos poderes arbitrários de
rejeição “se algo não parecer certo” em um pedido de cidadania ou
conciliação. Tudo isso com poucas semanas do governo no poder.
Ela cria um caso de preocupação convincente, mas ainda me pergunto se
sua visão das coisas poderia ser desvirtuada por sua aversão muito clara ao
novo governo, o que causa uma mordacidade em sua voz que nunca ouvi
durante os dez anos em que ela está levando os poderosos a prestar contas.
“Estou manifestando uma preocupação totalmente profissional com um
ataque sem precedentes ao nosso modo de vida democrático”, diz ela.
Pergunto quão claros são os limites entre as preocupações pessoais e
profissionais de Zahra Ali e ela diz “claros para mim” com um sorriso tenso
que me conta que nada será alcançado por essa linha de questionamento.
Se ela levar o governo para o lado pessoal, isso pode ser uma via de mão
dupla. No início desta semana, o CLC venceu um processo histórico no
Tribunal de Apelação contra o uso de câmeras de reconhecimento facial pela
polícia. A secretária do Interior respondeu ao acusar não o CLC, mas Zahra
Ali diretamente, de pôr em perigo a segurança da Grã-Bretanha e de apoiar
criminosos. Fontes de Westminster afirmam que o governo vê Ali como a
verdadeira líder da oposição, tendo afugentado a oposição parlamentar com
uma vitória retumbante nas eleições do mês passado. Ela pensa em um papel
político mais direto? Ali parece horrorizada com a ideia. “Nunca conheci
uma linha partidária que eu quisesse acompanhar”, diz e eu acredito nela.
Uma última pergunta e essa é a que revela a resposta mais surpreendente.
Por que ela não quis trocar Londres por Nova York?
“Amor”, ela diz, simplesmente. “Eu amo isso aqui. Amo até o clima.” E,
com isso, ela sai para um jantar do próximo primeiro-ministro que surgir em
seu caminho, ou talvez para um evento social com Emma Watson e George
Clooney.
Tech Capital News
23 de março de 2019
*
Um portão alto de aço em uma rua pouco promissora da King's Cross
conduzia a um pátio de paralelepípedos dominado por uma estrutura que
pareciam dois contêineres de navio feitos basicamente de vidros empilhados
uns sobre os outros. Essas eram as instalações da Venture Further — uma sala
de conferências e salas de reunião menores no contêiner de baixo, escritórios
dos três sócios e de sete outros funcionários no andar de cima. No pátio, um
bicicletário, uma mesa de pingue-pongue e mesinhas de madeira rústica para
tomar café e bater papo davam a impressão de uma empresa jovem, festiva e
aberta a ideias.
Às vezes era exatamente isso, mesmo se houvesse tempo para um simples
bate-papo no pátio. A empresa financiava startups, e Maryam amava mais que
tudo o otimismo e a energia que surgiam no início do processo, as ideias
cintilando, esperando para ser orientadas na direção do potencial delas. Em
outros dias, e hoje foi um deles, era possível começar o dia não conseguindo
convencer seus coinvestidores a entrar em outra rodada de financiamento
para algo com falhas, mas corrigíveis, e então passar a expulsar um jovem
CEO fundador da própria empresa, embora não fosse só dele, como ela teve
de mostrar em uma reunião feia e cheia de lágrimas, pois pertencia aos
investidores, e se o CEO fundador sistematicamente fracassasse em ouvir
alguma opinião que lhe teria permitido fazer da empresa um sucesso,
Maryam e os demais do conselho poderiam removê-lo da equação e ver que
lucro ainda poderia ser salvo do naufrágio de seus sonhos. Ele a chamou de
puta ao sair.
Pelo menos o sol surgira, finalmente, e ela poderia fazer a próxima
reunião em uma mesa no pátio, tomando café da cafeteira de nível PhD que
ninguém além do gerente do escritório sabia operar.
Gordinhas não ocupam as primeiras páginas, tinha dito o Garoto de
Ouro, mas ele não contava com o pai da garota de “pele caramelo e cílios
longos”, como um colunista arrebatou, e aquele ar de decência de Habib
Ali. Os murmúrios ocasionais de todos os meios de comunicação sobre a
influência corruptora das redes sociais nas crianças encontraram um rosto e
uma voz sob a aparência de um psiquiatra britânico-paquistanês, tão
eloquente sobre o dano causado à sua filha, a raiva que permitiu que aquilo
acontecesse e o medo por todas as meninas e meninos com os quais a mesma
situação estava acontecendo agora. Ele parecia estar em toda parte, no
Guardian, no Good Morning Britain, no Daily Mail, no Mumsnet, no Gal-Dem.
Amanhã de manhã ele devia ser entrevistado no Today e havia rumores de
que mudaria o foco, passaria de uma exigência generalizada para que as
empresas de redes sociais “fizessem o melhor” a um apelo para que o
governo incluísse um discurso no futuro projeto de lei sobre segurança na
internet que responsabilizasse os chefes da tecnologia pelo ódio e pelo
bullying que eram permitidos e proliferavam em seus aplicativos. A expressão
“acusações criminais” emergiu. Uma petição já tinha sido redigida em nome
de sua filha exigindo a ação do governo, mas as petições não incomodavam
Maryam. Homens de fala macia com ar de decência que eram defendidos
tanto pelas alas de esquerda quanto de direita da mídia, sim. O tabloide Metro
o chamou de o Pai Favorito da Nação.
“Tire-o do comando”, disse o possível comprador do Imij, e os
capitalistas de risco com participações em outras empresas de redes sociais,
incluindo seus coparceiros, disseram a mesma coisa.
Onze minutos depois do horário, o homem que ela estava esperando
entrou no pátio, com sua aparência peculiar de Garoto de Ouro, um
bronzeado recente.
“Essa irritação toda está revirando meu estômago”, disse ele, erguendo
uma garrafa de vidro como cumprimento. “Kefir”, acrescentou, e lhe
ofereceu depois de beber diretamente da boca da garrafa.
“Não tenho muito tempo”, disse Maryam, mantendo um tom ameno de
modo que ele pensasse que ela era indiferente a seus jogos de poder.
“Desculpe, desculpe”, disse ele, com a contrição de um garoto de escola
pública. Maryam fora sua primeira investidora, a primeira a acreditar em sua
visão do que era possível para o Imij, e ele a tratava com uma cortesia, às
vezes até uma deferência, que não oferecia a mais ninguém.
“Você tentou mais uma vez marcar um encontro com ele?”, ela
perguntou.
“Ele ainda insiste que só terá uma conversa quando lhe enviarmos
propostas para mudar não só as nossas políticas sobre bullying, mas também os
nossos algoritmos.”
Os algoritmos eram o tubarão sob as águas daquilo tudo. A filha do
homem — Tahera era o nome dela — começou a ver postagens de
automutilação depois que a imagem da garota-porca viralizou e muito
rapidamente, afirmou o pai, seu feed foi inundado com conteúdo
relacionado, levando-a ao limite. Por sorte, pouquíssimo pôde ser provado
sobre os algoritmos do Imij e a maior parte da revolta da mídia continuou
centrada no bullying. Por ora, pelo menos.
“O que ele quer que a gente faça, que subverta todo o etos da internet
para dar às pessoas mais do que elas querem? É antidemocrático, isso é que é.”
Ele não estava olhando para ela enquanto falava, deslizando os dedos pela tela
do celular.
“Espero que não seja essa a proposta de estratégia sobre a qual você veio
conversar comigo.” Ela acenou com a xícara de café para o gerente do
escritório que estava batendo na janela do andar de cima para avisar que
tinha uma teleconferência começando em poucos minutos, esperando que
isso indicasse a ela para subir logo, e ela, que precisava de outra xícara cheia.
Ele sorriu ao passar o celular para Maryam e ela viu algo de Saba na
expressão dele — o prazer de saber um segredo desagradável — antes de
olhar para a tela.
Lá estava ele, o Pai Favorito da Nação, sentado atrás de uma mesa de
madeira muito parecida com as do pátio, reclinado na direção de uma
mulher de cabelos cor de cobre que não era a esposa da primeira página dos
jornais. A mão dela segurava o rosto dele, a boca dele pressionada contra a
palma da mão dela.
“Isso foi no dia seguinte à alta da filha do hospital”, disse o Garoto de
Ouro, muito satisfeito consigo mesmo. “Imagine, ela em casa com os pulsos
enfaixados e ele lá fora fazendo isso.”
“Isso é autêntico?”
“Deus, claro que é. Não sou um idiota.”
“É do Imij?”
O Garoto de Ouro fez um movimento vago de cabeça que terminou
com uma afirmativa.
“E como você achou? Não creio que ele tenha colocado isso em sua
página de perfil.” O Pai Favorito da Nação tinha uma conta no Imij, mas
havia apagado todas as fotos que postara antes — a maioria de flores — e as
substituiu por uma tela que dizia #JustiçaparaTahera #MudançaJá sobre um
fundo preto.
“A cavalo dado não se olha os dentes.”
“Às vezes, o presente é um cavalo de Troia e se você olhar os dentes verá
os soldados escondidos lá dentro, prontos para cortar sua garganta enquanto
você dorme à noite.”
“Ninguém jamais saberá.”
Quase uma verdade. Qualquer pessoa com uma conta do Imij — ou até
um usuário anônimo — pode encontrar uma fotografia em uma conta
pública e optar por chamar a atenção para ela. Não havia nada que vinculasse
isso ao recurso de marcação facial do Imij, que supostamente dava aos
usuários controle sobre quem poderia marcá-los; só era ativado para aqueles
que haviam optado pela função de marcação e não dava poder nenhum ao
CEO do Imij para marcações faciais além da própria conta.
“Garoto esperto”, disse ela ao Garoto de Ouro, que se aprumou na
cadeira com o elogio. Era possível que ele sentisse atração por ela. O
oferecimento da garrafa de kefir da boca dele para a dela assumiu um tom
diferente de significado. “Me mostre. Será nosso segredo.”
Ele sorriu, satisfeito. Homens como ele sempre queriam mostrar os
brinquedos que fabricaram.
Ele abriu o aplicativo do Imij, digitou o nome da conta @KoffeeKraave
na barra de busca e rolou a tela até a foto de um homem — mais velho,
japonês — sorrindo com formalidade para uma câmera. Estava em um café,
cujo menu era escrito com giz na parede acima da cabeça dele. As marcações
o identificavam como o avô de @KoffeeKraave. O Garoto de Ouro se
recostou, observando-a enquanto ela olhava a fotografia. Ela ampliou um
canto da imagem. Atrás do ombro do homem, um casal estava sentado na
mesa do fundo do café, pegos em um momento de intimidade.
“Os recursos de identificação facial são excepcionais”, disse ela,
dispensando o gerente do escritório que se aproximava com uma xícara de
café.
O Garoto de Ouro sorriu e fez um gesto sobre a boca, como um zíper se
fechando, sinalizando que era tudo o que ele ia dizer.
“Então, quais são os próximos passos?”, perguntou.
Ela enviou a foto do telefone dele para o dela. “Vou cuidar disso”, disse,
levantando-se. Indicou o mostrador do relógio e ele disse claro, desculpe
novamente pelo atraso. Quando ela olhou para trás, na porta do escritório da
Venture Further, ele estava perto da mesa de pingue-pongue, bebendo sua
garrafa de kefir, pernas abertas, o céu azul de abril como fundo. O Mestre do
Universo. Seu rosto nunca conheceu, nem nunca conheceria, nada parecido
com a expressão do casal na foto do café. Abertos, descuidados, dada a ilusão
de segurança por uma força de sentimentos um pelo outro que fez todo o
resto desaparecer.
O mundo era exatamente como seu avô sempre lhe ensinara. Terrível e
brutal, implacável. Mas ela também sabia a verdade que se seguia àquela que
ele não conseguira entender: mantenha por perto os que você ama, proteja-
os. Não há outra fonte de luz.
Zahra disse que estava bem, não havia necessidade de Maryam cancelar
nenhuma reunião para vir segurar sua mão.
“Como você pôde deixá-lo escapar impune?”, Maryam perguntou,
enquanto mandava uma mensagem de texto para Layla pedindo para tirar
Zahra do escritório cheio de merda em que ela parecia insistir em ficar.
“Preciso desligar”, disse Zahra. “Layla está ligando.”
Depois de duas reuniões de apresentação, o grupo de bate-papo “Colegas
de Karachi” tinha cento e sessenta e oito novas mensagens, todas sobre os
acontecimentos no escritório de Zahra. Todos os colegas de escola que se
estabeleceram nos Estados Unidos e na Inglaterra ficaram indignados; os
americanos em particular tendiam a usar a palavra “trauma”. Os que ficaram
em Karachi, para quem o racismo só era relevante quando pediam vistos para
viajar para a Europa ou aos Estados Unidos, trataram o assunto basicamente
como uma questão de limpeza. Caiu no carpete ou no piso frio?, disse um. A
ventilação é boa?, perguntou outro.
A sorte de viver em um país onde mandam excrementos em vez de mãos
decepadas ou bombas, disse um jornalista em Karachi que sobreviveu a uma
tentativa de assassinato. Zahra estava digitando uma resposta que veio alguns
segundos depois: Sim, uma sacola cheia de merda é o nível elevado de civilização
que temos aqui. Uma mão decepada teria sido mais fácil de limpar (não no carpete,
graças a Deus). Maryam riu, enquanto começou a escrever uma mensagem
privada para Zahra. Alguém pode fazer uma captura de tela e pôr você em apuros,
idiota. Antes que ela tivesse a chance de enviá-la, Zahra apagou a mensagem,
terminando com um Ok. Quem daqui você achou que vazaria isso?, mensagem
de Babar. Maryam escreveu Saba! no grupo que mantinha com Zahra e
Babar no exato instante em que Zahra escreveu Saba, certeza.
É claro que oficialmente Zahra adotou outro tom com o repórter da
BBC — amigo de um amigo de Zahra — que em minutos entrou no ar.
“Um ataque às liberdades civis”, “um sintoma de um mal-estar muito mais
amplo”, “o dedo da culpa deve apontar para aqueles que, no poder, usam a
política como quem usa apito para cães e depois alegam estar chocados
quando coisas como essa acontecem.”
Era evidente que Zahra amava aquilo tudo. Não o ataque ao escritório,
claro, mas a persona que habitava nela como diretora do CLC — segura de si,
corajosa, cheia de certeza moral. Engraçado lembrar como ela era tímida
quando garota, sempre com medo de que algo terrível estivesse para
acontecer. Maryam amoleceu, lembrando o quanto estava orgulhosa da
melhor amiga, mesmo quando não concordava com ela. Zahra tinha se
tornado exatamente o que sempre quis ser: alguém.
Maryam pôs o telefone de lado em sua mesa, que era de aço inoxidável
com madeira nobre e tinha um nome próprio como modelo — a Zieg 2000,
aparentemente uma sucessora muito esperada da Zieg 1500. Na Zieg 2000
os cabos dos monitores passavam através da estrutura ficando invisíveis, que
era o mais próximo que ela chegaria de comprar móveis com “atrações”. Ela
não aprovava a tecnologia exibicionista e mal conseguia olhar sem se arrepiar
para a mesa de seu parceiro Connor, com uma tela de toque integrada.
“E chamam você de guru da tecnologia”, ele a provocou um dia e ela se
espantou ao lembrar que até alguém como Connor, que trabalhava a seu lado
desde os primeiros dias em venture capital, não sabia que havia gerações de
design clássico em seu sangue, o que trazia certo desdém pela “moda
passageira”.
A mobília do escritório era toda de linhas limpas, nas paredes em tom
verde-sálvia estavam penduradas reproduções em aquarela de anúncios
antigos do Paquistão que ela havia encomendado de um artista de Karachi
recém-formado no National College of Arts que agora estava expondo no
Tate e no MoMA. Dentre as aquarelas, um anúncio da Khan Leather da
década de 1950, quando a empresa diversificou suas atividades com malas.
VIVA UM ESTILO DE VIDA KHAN LEATHER SEM SAIR DE CASA!
Ela pôs os fones de ouvido e fez uma chamada para atualizações com um
fundador da Venture Further cuja empresa de biotecnologia usava IA para o
diagnóstico precoce de câncer de mama. Enquanto ele falava, ela clicou no
link que Babar tinha postado no grupo dos colegas. A filmagem de um
circuito interno de TV chegou à internet a partir de uma câmera na rua
onde Zahra tinha o escritório. Mostrava o homem abrindo a porta do CLC
e jogando uma sacola para dentro, o braço tomando impulso e arremessando.
Antes que a porta se fechasse, um segundo homem com avental de padeiro
saiu correndo e se atracou com o primeiro homem, derrubando-o na
calçada. Aí a filmagem terminou.
Ela perguntou ao fundador Quanto dinheiro você está gastando com isso? e
rolou a tela para ver os comentários. Alguém tinha identificado o homem,
trabalhava numa loja de ferragens não muito longe do escritório do CLC.
Havia uma pilha de comentários direcionados a seus empregadores
perguntando como podiam ter alguém assim na equipe. Outras pessoas o
chamavam de herói, alguém se ofereceu para montar uma página no
GoFundMe se a brigada em vigília conseguisse demiti-lo. Era isso que
acontecia quando se tentava controlar uma narrativa nas redes sociais.
Ela se levantou e esticou os braços acima da cabeça. Se não funcionar, você
vai ter de vender os dados de usuários. E depois Então, garanta que ninguém
descubra.
Ela encerrou a ligação e fez mais alguns alongamentos. O Garoto de
Ouro queria que as fotos do Pai Favorito da Nação se tornassem públicas,
mas ela sabia que era perigoso. As pessoas iam querer saber de onde veio a
imagem e, mesmo que nada pudesse ser provado, o suficiente podia ser
adivinhado. Então, ela deu um telefonema. Não para um Billoo, ela não
precisava de ninguém assim, mas para um escritório de investigadores que
muitas vezes lhe deu informações a respeito de pessoas sobre as quais era
necessário saber mais antes de tomar decisões prudentes relativas ao uso do
dinheiro dos investidores. Eles a valorizavam como cliente a ponto de se
encarregar do que era uma tarefa quase amadora: ficar do lado de fora da
sede da BBC, esperando que o Pai Favorito da Nação aparecesse para a
entrevista no Today e entregar a ele um envelope contendo uma fotografia.
A entrevista nunca aconteceu. Uma conta de rede social vinculada à
campanha #JustiçaParaTahera disse que a família estava pedindo privacidade
e que o pai de Tahera não faria mais aparições na mídia; seu primeiro dever
era ficar em casa e cuidar da filha. Sem seu rosto de decência com pele
caramelo e cílios longos, a campanha naufragou e saiu das primeiras páginas.
Maryam ficou feliz por ter permitido que ele se retirasse em silêncio. Nunca
houve nenhuma possibilidade de deixá-lo vencer, mas ela não queria que ele
fosse destruído, apenas derrotado. Seu avô teria ficado orgulhoso dela.
*
“Como você está?”
Pronto. Zahra imaginava por quanto tempo Layla conseguiria não dizer
aquilo. Não era esse tom de comoção que ela usava para começar uma
conversa. “Você não pode ficar naquele escritório fedido. Mande todo
mundo para casa e vamos comprar sapatos novos para você”, Layla tinha dito.
Mas fora antes. Agora estavam sentadas em uma mesa na calçada de um
restaurante de peixe com fritas em Marylebone Lane, diante de uma travessa
de batatas fritas temperadas com vinagre. Zahra usava as novas botas cinza; as
velhas botas cinza estavam em uma lixeira do lado de fora do escritório do
CLC.
“Estou bem”, disse Zahra.
Estava mesmo. Tinha sido um choque, sim, que foi rapidamente superado
pela preocupação com Azam, mas ela ainda estava enlevada pela certeza de
que ele ficara bem. As vitórias eram difíceis de obter naqueles dias.
As duas questões foram tratadas por deliberação da comunidade, sem
registro de ocorrência de nenhum dos ataques. “Tem certeza de que é isso
que você quer?”, dissera o policial — asiático — para Zahra, diante da
sugestão dela. O homem de nariz ensanguentado assumiu sua culpa, Azam
também. Ambos foram obrigados a se desculpar, o que cada um fez sem
deixar claro pelo que se desculpava. O policial não se opôs nem protelou o
assunto; ela ouviu a entonação de Azam, viu seu terror, ela conhecia o país
em que vivia.
“Você não está bem. Não precisa dizer que está bem.”
Certo, e o que se deveria dizer para uma pergunta dessas?
Ela não disse nada, apenas se concentrou em seguir um rastilho de sal ao
redor da travessa com uma batata frita pela metade. Layla recostou-se na
cadeira, de braços cruzados, esperando que Zahra admitisse algum
sentimento de... — do quê? — violação, terror, ódio? Difícil sentir isso em
relação a um homem alto e magro com toda aquela raiva e nenhuma outra
forma de expressá-la a não ser com um saco repleto do próprio excremento.
Ele tinha a aparência de alguém a quem o mundo nunca fizera um único
favor e ela teve a impressão de que ver esse homem algemado no banco de
trás de um carro de polícia poderia fazê-la sentir-se parte de um sistema
cruel.
“Quem foi limpar?”, disse Layla, agora mais branda.
“Ah, Deus”, disse Zahra. “Isso foi estranho. Uma boa parte do escritório
se uniu na opinião de que Ray, eu e Goldie, do Departamento Jurídico, não
poderíamos nem chegar perto dele porque, você sabe...”
“Só os três não brancos do escritório?”
“Não tenho certeza se pensaram que a perspectiva pareceria ruim ou que
seria um gatilho para os nossos supostos traumas de infância.” Ela pisou com
o salto da bota que mal fazia barulho contra a calçada — com o antigo par
era possível ouvi-la caminhando pelo escritório. “Com você nunca
aconteceu nada parecido, não é?”
“Quando você é da classe média, a merda racista da sua infância é
basicamente uma metáfora.”
Layla rasgou o saquinho de papel com os dentes e jogou mais sal nas
batatas fritas. Quando se conheceram aos dezenove anos de idade — ambas
pegando ao mesmo tempo um livro de bolso em um sebo na Cambridge
Market Square — Zahra soube, imediatamente, que aquela mulher
impressionante de macacão azul vivo era alguém que ela queria como amiga,
e foi só por esse motivo que ela sugeriu dividir o preço do livro (custava 50
pence) e cada uma o lesse em sua vez. E quem sabe encontrar um tempo para
discuti-lo? Layla havia desistido de segurar o livro. “Eu queria comprar para
uma amiga. A minha sabedoria vem de Nina Simone, The Clash e Linton
Kwesi Johnson. Que tal umas batatas fritas?” Zahra já tinha encontrado sua
tribo em Cambridge, mas estava começando a se cansar de ficar acordada até
a manhã para discutir se a Comissão da Verdade e Reconciliação era um
pretexto ou uma forma elevada de justiça com pessoas para quem as questões
de transições democráticas ou até de injustiça básica eram puramente
abstratas. Em Layla, ela encontrou uma amiga com quem podia comer
batatas fritas supersalgadas, que a levava a galerias para apresentá-la à arte
contemporânea e a criticava pelas limitações de suas preferências musicais.
(“Bryan Adams? Podemos culpar a ditadura por isso também?”) Zahra não
sabia que alguém podia não se impressionar com seu paladar e pontos de
referência de uma forma tão enriquecedora.
Layla olhou para o telefone e disse alto. “Eles acham que está tudo
acabado; é de agora.”
A loja onde o agressor trabalhava publicou um comunicado para dizer
que praticava uma política de tolerância zero com o racismo e demitiu o
funcionário com efeito imediato.
“Como vemos o julgamento das redes sociais?”, perguntou Zahra.
Câmeras observando, pessoas julgando, formas de punição sendo exigidas
que não acrescentavam absolutamente nada. A secretária do Interior estava
muito segura de sua posição, como sempre, levantando-se no Parlamento
para dizer o quanto estava chocada com o ataque ao CLC, enquanto a
oposição ouvia em um silêncio de colegiais em vez de gritar hipócrita.
Layla jogou uma batata frita nela, que ricocheteou em seu nariz, e ela a
pegou enquanto caía. “É uma coisa horrível, a não ser que seja uma coisa
maravilhosa. Admita que você está contente.”
“Você parece a Maryam.” Era típico de Maryam deixar de lado qualquer
coisa que parecesse um valor e perguntar o que, no fundo, nos lugares mais
selvagens do seu coração, você sentia. Como se as emoções mais básicas
prevalecessem sobre todo o resto; como se só elas fossem verdade e todo o
resto fosse apenas uma postura. Às vezes, Zahra queria dizer que esse era o
tipo de pensamento que levou a Maryam adolescente a querer mandar um
bandido bater em Jimmy, mas isso as levaria a uma conversa sobre aquela
noite no carro de Jimmy que ela não estava interessada em ter. Ela se
perguntava como Maryam pensaria agora nas exigências que fez ao avô.
Ficaria horrorizada consigo mesma? Ou ainda se sentiria justificada? O
problema da amizade de infância era que às vezes você não conseguia ver a
adulta à sua frente porque tinha uma ideia permanente da adolescente que
ela foi um dia e outras vezes era incapaz de ver a adolescente ainda cheia de
vigor dentro da adulta.
“Depois de vinte anos, as pessoas se contagiam”, disse Layla cordialmente,
limpando os dedos em um guardanapo e pegando outra batata. “Mas você
está contente.”
Sim, ela estava contente. Mas e daí? Odiava a atenção exagerada para com
os sentimentos de cada indivíduo, que não passavam de um sinal do
momento presente. Seja maior que você mesma — esse era um dos discursos de
seu pai.
“Por falar em se contagiar, você sabia que ela tem uma empresa de
refugiados para entrega de comida na carteira de investimentos? Ela me
contou na semana passada, como se tivesse feito isso como um presente para
mim.”
“De entrega de comida para refugiados?”
“Claro que não. Pegando refugiados para cozinhar e entregar comida em
Londres. Ela já teve de conversar com os fundadores para concentrar a
propaganda nos cozinheiros e não no fato de que os entregadores também
são refugiados. Disse que antes os britânicos acolhiam bem os refugiados,
mas não se importavam muito com a culinária mundial. Agora vão comer
coisas do mundo todo, mas serão poupados de saber que os que buscam asilo
estão em sua porta.”
As duas riram, o riso captando a capacidade de Maryam de fazer uma
crítica que podia ser considerada de esquerda se ela não estivesse tão
interessada em como lucrar com aquilo.
Tanto as batatas fritas quanto o cair da noite estavam frios demais para
serem aprovados, de modo que elas partiram juntas em direção ao Regent's
Park. Mas quando saíram do parque já estava muito escuro e fazer uma
caminhada por Primrose Hill não pareceria agradável — Zahra registrou uma
pontinha de inveja do homem com roupas de corrida que avançava sem
pensar duas vezes na luz que caía rapidamente. Ela e Layla se despediram e
seguiram por ruas bem iluminadas em direções diferentes: Zahra indo pegar
o ônibus para Swiss Cottage e Layla indo buscar Zola na casa de Mark.
Zahra só dera alguns passos quando ouviu Layla a chamar de volta,
segurando o telefone. Enquanto estiveram caminhando, um tabloide postou
uma nova filmagem na página inicial. Azam socando a cara do homem alto e
magro, com uma expressão horrível. Ao lado da filmagem que se repetia,
uma foto estática: o homem alto e magro, caído para a frente, o rosto
coberto de sangue, segurado em cada braço por um homem de pele escura.
Algo havia sido feito com a foto, de modo que o cabelo loiro do homem
brilhava tanto que a pele de Ray e a do cozinheiro de Bangladesh
escureceram como carvão. Os braços do homem loiro estavam ligeiramente
afastados, enquanto seu corpo se inclinava para a frente, o que era o
suficiente para explicar a repercussão da foto em toda as redes sociais com a
hashtag “crucificação”.
Td bem?
Bem, a não ser por ter jogado fora o meu sapato favorito
Por que?
Vai acabar com o clima se eu te contar
Nunca mais vou perguntar. Espero que o afegão tenha ganhado uma
medalha
Ele foi burro de fazer aquilo. O que leva os homens à violência?
Pode dar satisfação. Você nunca quis me dar um soco na cara?
Ela esperava que ele entendesse aquilo como provocação, não como
perdão. Com Hammad, ela podia ser cruel.
Ela foi até a janela do quarto, observar a vida na rua. Dois homens
estavam parados na porta de um café do outro lado da rua, os cigarros
brilhando em suas mãos. Pela primeira vez em anos ela desejou ainda fumar,
como fez da universidade até os vinte e poucos anos. Ela se imaginou à
distância, uma mulher levantando da cama amarrotada vestindo apenas um
roupão, fumando um cigarro, pensando se se permitiria o que desejava.
Libertando os lugares selvagens de seu coração. Ela soltou o ar e, em vez de
anéis de fumaça, deixou uma névoa na janela. Desenhou um SIM nela.
Maryam pensou na palavra “casa” com prazer, como tantas vezes fazia,
voltando da caminhada noturna com Woolf, o frio fechado do lado de fora
quando ela bateu a porta atrás de si. A cachorra passou por ela quando
entraram na casa e seguiu seu caminho com as patas enrijecidas. Lá em cima,
a luz do quarto de Zola estava apagada.
Na cozinha, os pratos do jantar ainda não tinham sido tirados, como ela
havia prometido a Layla. Em vez de fazer isso, ela caiu na armadilha dos e-
mails de trabalho — não havia uma hora do dia em que os investidores ou os
CEOs não estivessem acordados em algum lugar do mundo. Ela pôs a
chaleira para ferver, abriu quatro vagens de cardamomo entre os dentes e
colocou as sementes em duas canecas. De volta, escreveu na mensagem,
olhando na direção do estúdio no jardim onde Layla havia desaparecido logo
após o jantar.
Enquanto esperava a água ferver, ela deu uma olhada em seu e-mail
novamente, enviou algumas respostas e então caminhou até a vitrine móvel
onde havia três esculturas: a deusa Hariti, de Gandara, em xisto cinza,
Oxum, a divindade ioruba, em bronze, e ao lado uma mulher em argila que
Maryam ergueu da prateleira, olhando-a com atenção pela primeira vez em
anos. Era um modelo em pequena escala de uma escultura bem maior em
mármore branco que fora a contribuição de Layla para uma exposição
coletiva na Whitechapel Gallery, nos primeiros dias de sua vida juntas. Layla
chamou a peça de Pós-Fídias — foi uma resposta à ausência de órgãos
genitais femininos na arte grega e atraiu uma atenção considerável na época.
A imagem de argila reclinada, nua, as coxas abertas com indolência,
revelando tudo. Uma briga feia começou quando Maryam reconheceu —
com atraso, porque não era algo que ela já tivesse olhado por muito tempo
— a reprodução de partes de sua anatomia na escultura. É uma homenagem,
dissera Layla. E ninguém, além de nós duas, sabe que é você. Ou melhor, nenhum
dos seus ex-namorados é do tipo que frequenta exposições de arte no East End, não é?
Ela estava no início de um relacionamento com um dos ex-namorados
quando conheceu Layla. Um dia do outono de 1993 que colocou a palavra
“ruivo” no primeiro plano de seus pensamentos. Maryam tinha ido até a casa
de Cambridge que Zahra tomava conta e lá encontrou uma mulher
equilibrando uma xícara de chá em um dos joelhos da calça jeans dobrado
contra o peito, demonstrando uma maleabilidade impressionante das pernas.
Ela estava preparada para não gostar dessa Layla-pronunciada-da-forma-
inglesa de quem Zahra falava com tanta adoração, mas Layla rapidamente
tornou isso impossível. Layla não se demorou muito, mas, antes de sair,
abraçou Maryam. Os músculos de seus braços, a finura do tecido de sua
camiseta. No trem de volta para Londres naquela noite, Maryam percebeu
uma mudança dentro de si. Uma verdade, já conhecida, plenamente
reconhecida. Mas parecia ser apenas uma verdade parcial na época — ela
gostava bastante do namorado —, então decidiu ignorar a inconveniência
daquilo. Vários anos depois, ela encontrou Layla outra vez, no jardim de um
pub, no aniversário de vinte e cinco anos de Zahra, e tudo o que se seguiu
foi inevitável.
Maryam reparou, com certo divertimento, que havia poeira acumulada
entre as pernas da imagem de argila. Nadya, a faxineira, costumava ser atenta
em manter tudo impecável, mas claramente havia lugares onde ela não queria
ir. Maryam levou a escultura até o balcão da cozinha e a esfregou com um
pano úmido. Quanto tempo elas gastavam com arte e guerra. Horas sem fim
em galerias, dos armazéns em Bethnal Green ao Tate Modern, que visitaram
pela primeira vez no dia em que o museu abriu suas portas enormes ao
público — quando o século era novo e ainda cheio de otimismo. Tinham
concordado amplamente sobre arte, discordado furiosamente sobre a relação
entre capitalismo e arte e muitas vezes acabavam se afastando uma da outra
ou se beijando em algum canto, sem se dar conta de uma aranha gigante ou
uma mulher cheia de brilhos feita de estrume de elefante. Uma atividade
muito mais perigosa na época que agora, mas “não beijar” não parecia de
fato uma opção.
Depois do pano úmido, Maryam usou um pano seco e terminou com um
beijo apaixonado na ampla abertura, objeto do seu desejo.
Quando foi a última vez que Layla tinha conversado com ela de uma
forma mais profunda que apressada sobre alguma exposição que visitara?
Aliás, quando foi a última vez que Maryam foi ver uma exposição com ela?
As conversas agora eram quase todas domésticas, na maior parte sobre Zola,
mas também sobre compras de supermercado, melhorias na casa, planos para
as férias de verão, se era hora de convidar um ou outro grupo de familiares
para almoçar. Já não brigavam tanto — a atitude de Layla em relação às
diferenças entre elas passou a ser de “aceitação”, com a ajuda de muita ioga e
meditação. De vez em quando, parecia um apequenamento. De vez em
quando também a própria Layla parecia diminuída em relação à mulher por
quem Maryam se apaixonara. Não de uma forma surpreendente, apenas da
maneira comum com que as jovens cheias de energia e promessas se
assentaram no contentamento da meia-idade, em paz com o cargo de
professora de artes e inglês em uma escola estadual quando ela já fora uma
das mais promissoras em um grupo cujos demais membros agora faziam
exposições individuais na Royal Academy e recebiam encomendas da
Artangel. “Você a transformou em uma esposa”, disse o ex de Layla certa
vez. Maryam ficou um tanto magoada com aquilo, embora Layla tenha rido
quando ela repetiu a fala e dito: “Com o tempo, as exposições individuais
pareciam ao meu alcance, mas nunca nem sonhei que esta vida fosse
possível”. E fez um gesto apontando para o quarto que dividia com Maryam,
a bebê querendo escalar suas pernas. Mais tarde, Maryam a ouviu gritar ao
telefone com o ex em relação a “paradigmas heterossexuais”.
A luz do estúdio se apagou e alguns momentos depois Layla entrou pela
porta de correr e riu ao ver Maryam com a mulher de argila.
“Querida, você não mudou nada”, ela disse, dando um beijo no pescoço
de Maryam e pegando sua mão para puxá-la até o sofá. “Você fez chá para
nós?”
Maryam apontou para o balcão da cozinha, onde as canecas estavam ao
lado da chaleira. “Eu poderia pegar, mas isso significa ter de me levantar.”
Layla virou-se, enrolou as pernas em volta da cintura de Maryam e a
prendeu no lugar. Maryam descansou a cabeça no peito de Layla, sentindo o
ritmo reconfortante de seu coração, cinquenta e oito batimentos por minuto
em repouso. Alguns dos momentos favoritos da vida de Maryam aconteciam
ao fim de um dia agitado, quando tudo que se passara antes desaparecia e só
restava a respiração barulhenta de Woolf, a qualidade particular da atmosfera
decorrente de saber que Zola estava segura em casa e que talvez não
precisasse de mais nada naquele dia, Layla em silêncio com ela, da maneira
que sempre foram capazes de ficar uma com a outra.
“Falei com a minha tia hoje”, disse Layla depois de alguns minutos.
“Parece que ela já começou a redecorar a casa toda prevendo a nossa
chegada.”
Maryam pegou a mão de Layla e a levou aos lábios. Logo depois que
Zola nasceu, Layla sentou-se com Maryam e conversou sobre os dois anos
que ela e o irmão passaram com os pais em Lagos, quando tinham nove e
onze anos. Tinha sido transformador não ver sua negritude como um
contraste, disse Layla. Ela gostaria que Zola tivesse essa experiência algum
dia, além da experiência de viver em uma família grande. Maryam
concordou, como era a resposta civilizada a qualquer exigência do amor da
sua vida, naquele momento lactante e privado de sono. Nos anos
subsequentes, ela reduziu a experiência de dois anos para seis meses, com as
leis homofóbicas da Nigéria concorrendo em seu auxílio. Layla podia tirar
um período de licença do trabalho, Zola podia ir para a mesma escola que os
primos de Lagos, Maryam pegaria um voo para visitá-las sempre que
pudesse. Deveriam partir depois do Natal.
“A vida vai ser bem ruim sem vocês duas aqui.” Maryam tentou dizer isso
de uma forma leve, mas Layla apertou a mão dela como um pedido de
desculpas.
“Pedi para Zahra se livrar dos compromissos sociais na primavera. Ela
prometeu que estará aqui pelo menos uma vez na semana e também aos
domingos, como de costume.”
“Não preciso de babá”, Maryam disse, mas ficou contente.
Um pouco depois, Layla alcançou um tablet da mesa de centro. Maryam o
pegou das mãos dela e o apoiou nos joelhos de modo que ambas pudessem
ver Zahra no Question Time.
“Ah, olá”, disse Layla, conforme a câmera focalizava Zahra, sentada ao
lado do moderador em torno da mesa no formato de meia-lua. Ela sempre
usava uma jaqueta em tons apagados com uma camiseta preta por baixo para
suas aparições na TV, mas hoje a camiseta era vermelha e o decote em “V”
em vez de canoa. Todos os quatro homens e a outra mulher que
participavam da mesa vestiam diferentes tons de preto e branco, com cabelos
grisalhos ou loiros. Você olharia para Zahra e pensaria: “Tem uma coisa
destoando das outras coisas”, mesmo sem considerar a camiseta vermelha.
Mas a cor vibrante acrescentava um ar de pompa, um distanciamento
deliberado, o qual agora ela devia saber que não vale a pena tentar se também
fosse dizer coisas do tipo que sempre dizia.
“Você acha que ela está fazendo isso pelo homem misterioso?”, disse
Layla.
“Ela lhe disse mais alguma coisa sobre ele?”
“Disse que ele está em um fuso horário diferente, que o conheceu há
alguns anos, ele pode vir a Londres a qualquer momento neste verão. Além
disso, que ela não tem um orgasmo que não seja autoinduzido há muito
tempo.”
“Esse é o tipo de coisa que não consigo imaginar Zahra dizendo.”
“É porque você cresceu com a Zahra Vertical. Eu conheci a Horizontal
primeiro, com a tutora Zahra.”
“Acho que ele está onde tudo começou.”
“Tudo” se referia ao gosto de Zahra por homens, que pendia para o
clandestino. Zahra gostava de chamar de tendência, mas na verdade era uma
barreira. Não se espera ir muito longe quando se caminha por uma rua sem
saída e um casamento fracassado foi toda a reviravolta emocional que Zahra
estava disposta a arriscar na vida. Layla disse que ela estava começando com a
concepção patriarcal de que o casal tinha de ser o centro emocional da vida
de toda mulher e não havia evidências de que Zahra quisesse algo mais do
que recebia de seus relacionamentos íntimos. Mas dentro de Maryam ainda
havia uma adolescente, feroz com a melhor amiga, que queria gritar: “Você
não é bom o suficiente para ela” a todos os homens de segunda categoria
que não chegavam a amar Zahra Ali, mesmo que o amor não fosse o que
Zahra queria deles.
“É a primeira vez que ela enfrenta a Valquíria desde que ela disse aquela
coisa sobre criminosos e terroristas?”, Layla perguntou.
A outra mulher da mesa era a secretária do Interior, que tinha cabelos
loiros na forma de um capacete e o ar lânguido de privilégios seculares.
Zahra a culpava pelo ataque ao CLC, embora estivesse perfeitamente claro
que eram as palavras da própria Zahra, não as de qualquer outra pessoa, que
faziam com que certo tipo de gente a odiasse.
As perguntas da plateia começaram. Zahra fez o que sempre fazia, com
suas frases perfeitamente formuladas, apartes espirituosos e anedotas muito
humanas que deixavam claro que ela entendia o custo humano das decisões
políticas e eleitoreiras: ela fazia todos parecerem insinceros, mal informados e
de segunda categoria. O interesse de Maryam desviou-se para as mãos de
Layla se mexendo sob sua camisa e depois mais para baixo, por isso perdeu as
perguntas seguintes e só voltou a se concentrar quando uma mulher de hijab
com sotaque de Birmingham se levantou para dizer que estava angustiada há
semanas com aquela estudante, Tahera, cuja tentativa de suicídio resultara dos
ataques de bullying, muitos dos quais aconteceram no Imij.
A mão de Layla sossegou, ciente da transferência de atenção de Maryam.
Por que todos pararam de falar sobre isso tão rápido?, dizia a mulher. O
governo não deveria ter se posicionado e tomado medidas contra a
islamofobia e o racismo desenfreados, que podiam circular
descontroladamente?
O moderador se virou para Zahra em primeiro lugar. Ela apoiava a ação
do governo?, ele perguntou.
“Absolutamente não”, disse Zahra. “Sem dúvida, penso que o governo
devia tomar medidas contra a islamofobia e o racismo desenfreados. Um
bom começo seria um inquérito interno no próprio partido, começando
com o uso da linguagem da liderança e estendendo-se às políticas
governamentais.” Layla assobiou em reconhecimento, a plateia aplaudiu.
Maryam observou a Valquíria, viu o rubor em seu rosto.
“Este governo se opõe inequivocamente a todas as formas de
discriminação”, disse ela. “Então, sim, tomaremos medidas contra o Imij. O
primeiro-ministro deixou bem claro que não há lugar na Grã-Bretanha para
empresas que fecham os olhos ao racismo em nome dos lucros.”
Isso provocou a salva de palmas mais estrondosa da noite.
Maryam beijou a mão de Layla como um pedido de desculpas por afastá-
la e se levantou quando o celular começou a vibrar e tocar ao mesmo tempo.
“Ponha a louça na máquina de lavar e me traga um pouco de chá”, gritou
Layla enquanto Maryam corria até o telefone no balcão da cozinha,
alcançando-o antes do segundo toque, sandálias com asas nos pés agora que a
batalha que ela pensava ter evitado estava em curso.
Que sutiã?
Tá me matando
*
Por onde vc andou?
Acho que está na hora de pôr um fim nisso
O que quer dizer?
Não compre a passagem de trem de Paris
Vai me dar alguma explicação?
Não quero ver vc
Só vamos falar por mensagem?
Nem isso eu quero
Vc vai mudar de ideia
Vc não me conhece mesmo
O tempo dirá
Na urgência de pular para a cama, Zahra não havia fechado as lâminas das
persianas, e isso significava que havia frestas através das quais ela podia
observar o salgueiro, os padrões alternados da luz do sol nas folhas e nos
galhos, enquanto Hammad fazia o que estava demorando muito para fazer.
As preliminares foram divertidas, mas muito breves, e agora havia isso.
“Você está perto?”, perguntou ele.
Ah, Deus.
Ela havia dito que parecia uma eternidade desde que sentira como aquilo
era bom, mas não era o ângulo certo para levá-la aonde precisava ir. E ele
havia dito: “Todos os meus ângulos são certos”, o que ela entendeu ser assim
que ele gostava de fazer e para ela tudo bem, o que significava que as
preferências de ambos não estavam totalmente alinhadas, mas ele podia fazer
outras coisas por ela depois. Agora estava lhe ocorrendo que “Todos os meus
ângulos são certos” era uma crença profundamente arraigada.
“Muito perto”, disse ela, a resposta extraída de uma parte dela qualquer
que nunca poderia abandonar um teatro durante o intervalo, não
importando o quanto a peça fosse horrível.
“E é assim que se faz”, disse Hammad um pouco mais tarde, apoiando-se
em um cotovelo, um braço ao redor dela, uma perna jogada por cima dela.
O ventilador de chão no canto animava diferentes partes do quarto enquanto
girava — um estremecer nas faixas de luz solar fluindo pelas lâminas, uma
pequena dança de tulipas na penteadeira, um movimento nos lençóis.
O telefone dela tocou, não pela primeira vez naquela tarde, com o tom
personalizado que Zola colocara para que ela sempre pudesse saber quando
era Maryam. Hammad não ficou muito tempo no camarote da Venture
Further e Zahra escapuliu um pouco depois, no intervalo do almoço,
quando Maryam estava ocupada passando os pratos. Ela dissera a Babar que
precisava cuidar de algum assunto de trabalho e que ele podia avisar Maryam.
O que quer que ela decidisse dizer a Maryam — sobre Hammad, sobre a
Mesa Principal — ficaria para depois.
Hammad se curvou para beijar seus seios e ela pensou que talvez o
próximo ato fosse melhor. Mas então ele se endireitou e ficou claro que o
beijo significava um ponto-final, não uma vírgula.
“Devia ter levado você no banco de trás comigo”, ele disse.
Aquilo não fazia sentido. No banco de trás do táxi a caminho de casa, ele
acariciou a perna dela, sua mão eletrizante passando pelo tecido fino do
vestido.
Ele tocou o ponto acima do quadril dela que descobriu — mais por
acidente que por intuição — ser uma zona erógena. “Eu devia ter entendido
Maryam naquele dia. O que ela é...”
“O que ela é?”, disse Zahra, percebendo a que banco traseiro ele se
referia de fato, suspeitando que ela sabia do que mais ele estava falando.
“É”, disse ele, sem entender o tom que ela usava. “Diga a verdade: ela já
deu em cima de você?”
Ela sentou, puxando o lençol, segurando logo acima dos seios. “Afinal,
por que eu estava lá? No carro do Jimmy. Por que você me pediu para ir
junto?”
“Vi como você olhava para mim. Sabia que havia mais coisas
acontecendo com a srta. Zahra Ali do que você queria mostrar. Então,
pensei, vamos lhe dar uma chance de revelar a pantera que existe dentro
dela.” Ele riu, extremamente satisfeito consigo mesmo.
“Então eu era um presente para o Jimmy? Quantos anos ele tinha?”
“Não há necessidade de falar desse jeito.” Sua mão fazia pequenos círculos
na coxa dela, mas o corpo dela o havia bloqueado agora. “Vocês, garotas,
tiveram sorte por sermos tão bons rapazes. Os últimos cavalheiros de
Karachi.”
“Como?”, disse ela, enfiando a mão sob o lençol e tirando a mão dele de
cima dela. “Em que universo?”
“Ah, por favor!” Foi ele quem sentou agora, parecendo afrontado. “Se
alguém devia guardar rancor daquele dia, esse alguém sou eu. Fui expulso, e
isso impediu de me candidatar para a universidade. Ainda hoje existem
pessoas em Karachi que me olham de um jeito estranho porque acham que
eu sequestrei duas alunas e fiz todo tipo de coisa com elas contra a vontade
delas. Quando, de fato, a verdade é...”
“A verdade é que você estava apavorado. Não sei quem te assustava mais,
se Jimmy ou Maryam.” Ela viu que atingiu o alvo, pressionou mais. Se ele
não fosse lhe dar um tipo de prazer, ela buscaria outro. “Eu devia ter
entendido você naquele dia. O que você é.”
Ele não pôde evitar. “E o que eu sou?”
“Uma perda de tempo total.”
“Foda-se você.” Era claro que ele estava tentando uma saída dramática da
cama, mas seus pés estavam enroscados nos lençóis, e por um momento
satisfatoriamente longo ele parecia muito tolo ao tentar se livrar.
“Ah, por favor, nunca mais.”
Ele bateu não só a porta do quarto, como também a da frente quando
saiu. Ela se levantou, amarrou o roupão, ergueu as persianas e abriu a janela
para deixar sair o cheiro dele, deles, impressionada com a própria capacidade
para a idiotice. Um nível ainda mais baixo, este. Suas aventuras sempre
envolveram algum tipo de subterfúgio, mas nunca foram tão sórdidas. Uma
juíza em seus dias de advogada. Um ativista tradicional dos direitos dos
homossexuais que achava que sua reputação estaria arruinada se ele fosse
desmascarado como bissexual. Um deputado com um histórico de votação
péssimo no Parlamento. Sim, havia — ou costumava haver — encontros
aleatórios, aqueles nos banheiros de boates, mas nunca era preciso saber nada
um do outro além da urgência do sexo semidespido. Ela não conseguia parar
de pensar no sorriso dele, a maneira convencida com que dissera últimos
cavalheiros de Karachi. Aquilo tinha fervilhado bem debaixo da sua pele, ainda
estava agindo dentro dela. Quantas vezes disse a si mesma que elas tiveram
sorte naquela noite, mas ouvir isso dele!
O telefone assobiou. Ela o pegou e leu todas as mensagens da tarde.
Os domingos não são para ficar na mesa de trabalho, até eu (quase) sei
disso. Você vai voltar?
Argh, Hammad. Graças a Deus ele não ficou muito tempo. Sobre o
que ele conversou com você?
Está uma carnificina fantástica aqui. Não perca os detalhes.
Babar disse que falou com você sobre a Mesa Principal. Foi por isso que
você foi embora?
Era bem frequente haver aquele batedor que parecia estar jogando em
uma partida diferente, em um dia diferente, para um grupo diferente de
lançadores. Majestoso, no comando, antecipando cada giro da bola. Fazia
muito tempo que Maryam não jogava críquete, mas ainda conseguia se
lembrar daquela sensação de quietude perfeita nas passagens do jogo, quando
para você o tempo passava de forma diferente que para o resto do mundo.
Mas não importa o quanto os deuses o favoreçam, quando você não tem
mais parceiros para quem rebater, é hora de sair de campo. Algum outro
esporte permitia a glória do indivíduo e a necessidade de parceria como o
críquete?
“Quando você se tornou tão filosófica?”, disse Babar, caminhando com
Maryam pelo Nursery Ground do Lord's. A partida tinha terminado um
tempo atrás, mas as bebidas comemorativas continuavam a ser servidas no
camarote Venture Further. Maryam, porém, estava pronta para ir para casa e
Babar estava indo com ela. A filha mais nova de Babar e Zola eram amigas
apaixonadas, embora tivessem passado apenas algumas semanas na companhia
uma da outra. A amizade delas existia em grande parte nas telas, o que fazia
de Babar uma presença regular na casa de Maryam como uma imagem de
fundo acenando ou comentando sobre alguma conversa ouvida entre as duas
garotas. Às vezes, ele e Maryam trocavam mensagens de texto enquanto as
ouviam. Babar: Éramos tão sem noção na idade delas! Maryam: Elas também são
sem noção, só que há muito mais coisas para não ter noção.
“Bom jogo”, disse um homem com o rosto vermelho de sol e álcool,
levantando-se cambaleante de uma toalha de piquenique no Nursery
Ground para estender a mão na direção de Babar. No Lord's, Maryam estava
acostumada a ser tratada como se fosse apenas a companhia de algum homem
e disposta a aceitar o momento pela graciosidade dele.
“Foi sorte no lance”, disse Babar, apertando a mão do homem.
“Anderson teria nos destruído se estivéssemos rebatendo hoje.”
“Quando você se tornou um homem de comportamento tão perfeito?”,
disse Maryam, passando o braço pelo de Babar enquanto vagavam em
direção ao Portão Norte. “De garoto você era um hooligan total.”
“Mas no fundo sempre fui legal.”
“Isso é verdade. Durante anos, esperei que você e Zahra voltassem a ficar
juntos.”
“Acho que eu não teria lidado melhor com a genialidade de Zahra do
que o coitado do Tom lidou.”
“Pobre Tom.” Ela podia pensar nele com carinho agora que sua
inadequação havia se removido da vida de Zahra. Maryam vira desde o início
o quanto daquele relacionamento estava baseado na quase adoração de
alguém com vinte e quatro anos por um homem de quarenta, culto e bem-
sucedido. Logo nos primeiros dias, raramente saía da boca de Zahra uma
frase que não começasse com “Tom disse”, mas sempre foi uma questão de
tempo até que ela o superasse em todos os sentidos. Na verdade, o
relacionamento só durou quanto durou por um excesso de polidez que
substituiu a paixão precoce; ninguém queria ser o primeiro a ir embora,
então tiveram de esperar até que Tom recebesse uma oferta de emprego em
Nova York, a qual ele aceitou, de modo que Zahra pudesse dizer: “Acho
que ficar aqui faz mais sentido para mim” e ambas as partes foram, então,
igualmente responsabilizadas.
“Desculpe por ter mencionado a Mesa Principal. Não me ocorreu que eu
pudesse saber algo sobre a sua vida que Zahra não soubesse.”
“Pare de se desculpar”, disse Maryam. “Vai ficar tudo bem. Ela e Layla
vão se unir contra mim na próxima vez que estivermos juntas, e eu vou
aceitar toda a culpa, que é a maneira mais fácil de encerrar uma discussão.
Sim, você está certo, sou uma pessoa moralmente falida. O que elas dizem
então? São elas que escolhem amar uma pessoa moralmente falida.”
Pelo menos sou adulta, ela queria dizer a Zahra. Era um absurdo que sua
melhor amiga fosse embora porque não gostava do que Maryam fazia com o
próprio dinheiro. E no dia em que Hammad voltou para a vida delas. Zahra
era a única pessoa com quem ela queria conversar sobre como era irritante
vê-lo no camarote de sua empresa, pavoneando-se com a mesma arrogância
que impressionara um pouco seu eu de quatorze anos, antes que ela o tivesse
visto como realmente era.
“Diga para Zahra que você está indo jantar comigo”, disse ela, saindo do
Lord's. “Peça que ela venha também. Você pode testemunhar a formação da
gangue.”
Havia uma pequena brecha no trânsito intenso da Wellington Road.
“Corra!”, gritou Maryam, e eles correram por entre os carros, uma dupla de
hooligans novamente, acenando para os motoristas que buzinavam ou
gritavam algo grosseiro pelas janelas.
Mas, quando estavam do outro lado, Zahra respondeu à mensagem para
dizer que já estava a caminho de Chinatown para encontrar Rose. Rose, a
quem ela via cinco dias por semana no trabalho. Qual era a necessidade de
encontrar Rose em um domingo?
Babar riu. “Nós não mudamos mesmo desde os oito anos de idade.”
Quando tinham oito anos, a melhor amizade ocupava grande parte da
vida deles. Agora, quanto mais espaço Zahra ocupava no mundo, um pouco
a cada ano, menos espaço sobrava na vida dela para os velhos amigos. Houve
uma época em que Zahra passava várias noites por semana e a maior parte do
fim de semana com Maryam e, depois, com Maryam e Layla. Atualmente, as
caminhadas de domingo — que tiveram de pular hoje — eram um ritual que
elas estabeleceram para que não passassem semanas sem se encontrar. Foi a
vida agitada de Zahra que criou os intervalos longos. Uma conferência em
Bruxelas, um discurso de abertura, uma festa de gala, uma recepção, um
jantar com pessoas que tinham registros muito longos na Wikipédia. Aqueles
lugares em sua mente a que a Zahra muito jovem costumava ir, aos quais
Maryam nunca poderia acompanhar, tornaram-se lugares reais, habitados por
pessoas reais. Isso nunca incomodou muito Maryam, tendo a própria vida tão
cheia. A melhor amizade não era mais uma grande parte do tempo; era estar
lá quando importava.
Mas Hammad havia voltado para a vida delas e Zahra foi embora e ia
jantar com Rose. Como ela entenderia isso?
“Ele poderia ser um homem muito diferente hoje”, disse Layla, quando
ela voltou para casa e contou sobre os visitantes de Zahra. “Hammad parece
ser o verdadeiro idiota da situação.”
Layla acreditava na capacidade de melhoraria do caráter humano, o que a
tornava a única idealista de verdade que Maryam conhecia. Zahra não se
enquadrava nessa categoria porque não acreditava que as pessoas pudessem
melhorar; ela só achava que podia mudar o mundo pela força dos próprios
argumentos.
Maryam fez a ligação ao lado da janela de seu escritório no último andar
da casa, enquanto Layla e Zola jogavam futebol no jardim no crepúsculo do
fim de junho. Algumas partes de sua vida tinham de acontecer longe dos
ouvidos de Layla. O Garoto de Ouro atendeu no primeiro toque, gritando o
nome de Maryam com um entusiasmo talvez regado a drogas. Ele estava em
uma ilha no Caribe que planejava comprar com o dinheiro do negócio que
Maryam havia conduzido até a conclusão.
“Mas como isso pode ser um adeus entre nós?”, disse ele. Maryam
presidiu recentemente a última reunião do conselho do Imij e estava feliz por
ter encerrado os laços. Haveria mais problemas adiante, mais garotas como
Tahera, mais pressão sobre os governos para impor multas e acusações
criminais.
Ela virou as costas para a janela de modo que ficou de frente para a
parede oposta com um quadro-espelho de Pistoletto que ia do chão ao teto,
duas mulheres nuas dançando juntas, seios quase se roçando, a folhagem de
um vaso de fícus próximo à mesa de Maryam refletindo nelas. Ela desviou o
olhar, em direção à porta branca e vazia. “Estive pensando, você gostaria de
me fazer um favor?”, disse ela, sua voz diminuindo um pouco.
“Eu te dou esta ilha se você quiser”, disse ele. “Mas só se me deixar vir
visitá-la aqui sem ninguém além das gaivotas para nos ver.”
Ela riu, fez uma piada sobre todo o pessoal de que ele precisaria para
limpar a sujeira das gaivotas e lhe disse o que de fato queria.
“Estou enlouquecido tentando planejar um presente de despedida para
você”, ele gritava ao telefone. Drogas, com certeza.
“E aí está”, ela disse, tentando igualar seu tom de espanto ao ver como o
universo estava mostrando seus favores, dando exatamente o que ele estivera
procurando. Ele ficou tão encantado com tudo aquilo que nem perguntou
por que JimmyHussain era do interesse dela.
Depois que desligou, ela abriu a janela, apoiou os braços cruzados no
batente e observou as duas brincando lá embaixo. A bola de futebol rolou do
pé de Layla para o canteiro de rosas, Zola deu um mergulho e parou a
poucos centímetros dos caules cheios de espinho. Layla se jogou em cima de
Zola e os gritos de alegria que se seguiram disseram a ela exatamente o que
Layla estava fazendo para tentar ganhar a posse da bola. “Não vale fazer
cócega!”, gritou Maryam; elas acenaram para ela e lhe disseram para parar de
ser uma chata que só trabalha e vir brincar também.
Um link para download chegou à sua caixa de entrada. Ela jogou um beijo
e fechou a janela antes de se sentar à mesa diante da tela de vinte e sete
polegadas. Cento e setenta e oito imagens, dezessete vídeos. O campo de
assunto dizia: Não muito popular! Não publica muito!
Ela sabia que Layla estava errada sobre as pessoas mudarem, mas mesmo
assim ficou surpresa com a rapidez com que encontrou provas disso. O vídeo
era da noite passada. Uma garota, uma adolescente talvez, olhando para a
câmera de um telefone e dizendo: “Olhe esses pervertidos”. Ela virou a
câmera para uma pista de dança — parecia ser uma boate — e fez uma
panorâmica de dois homens parados de um lado, observando um grupo de
mulheres bem jovens em vestidos minúsculos se contorcendo umas contra as
outras.
Elas não falavam nada, os dois homens, Hammad e Jimmy, apenas
observando. Observando com aqueles olhos de Jimmy que a observaram
pelo espelho retrovisor durante todo o passeio de carro. A garota da câmera
se aproximou deles. “Ei, pervertidos”, ela gritou. Jimmy virou de costas para
a câmera, o mesmo pescoço magro que ela tinha visto do banco de trás, e se
afastou rapidamente. Hammad jogou um beijo para a garota antes de
acompanhá-lo. Ela não desistiu. Uma garota destemida, essa, protegida pela
câmera e registrando tudo o que os homens faziam. Ela mergulhou na
multidão gritando “pervertido, pervertido”, até que Hammad apertou o
passo e acompanhou Jimmy em direção à saída. Na porta, Jimmy virou e
olhou para a garota como se a estivesse observando do banco da frente de um
FX de vidros escuros na Napier Road.
Ela deu um zoom nele e ele foi se aproximando até se confundir com o
nada que sempre foi. Ele era a moeda de um centavo em torno da qual a
vida dela havia girado. Nem era uma moeda de ouro, apenas um centavo.
Esse presunçoso, esse impostor. Ele havia custado tanto a ela: Karachi, a
Khan Leather, o avô. Não haveria justiça para isso, em nenhum tribunal. Mas
havia formas de justiça mais antigas. Olho por olho. Ela diminuiu o zoom,
voltando com precisão para seu olhar frio e inflexível.
Preparação
Thaís Totino Richter
Capa
Pintura Mais poético que geométrico
de Sandra Martinelli
Versão digital
Antonio Hermida
www.grualivros.com.br
grua@grualivros.com.br
Instagram: grua_livros
S54M
Shamsie, Kamila, 1973- Melhores amigas / Kamila Shamsie ; tradução Lilian Jenkino. - 1.
ed. - São Paulo: Grua, 2023.
Tradução de: The best of friends
ISBN 9786588410479
1. Romance urdu. I. Jenkino, Lilian. II. Título.
23-86500
CDD-891.4393
CDU: 82-31(549.1)