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Barra do Garças – MT
2018
MARIANA SENA DA MATA QUEIROZ
Barra do Garças – MT
2018
MARIANA SENA DA MATA QUEIROZ
Monografia de conclusão de Curso para obtenção parcial de título de Licenciada em Letras pelo
Instituto de Ciências Humanas e Sociais do Campus Universitário do Araguaia da Universidade
Federal de Mato Grosso - Banca Examinadora constituída pelos professores:
_________________________________________
Prof.º Dr.º Maxwell Gomes Miranda (Presidente e orientador)
Universidade Federal de Mato Grosso
__________________________________________
Prof.ª Dr.ª Lennie Aryete Dias Pereira Bertoque – Membro interno
Universidade Federal de Mato Grosso
___________________________________________
Prof.ª Dr.ª Águeda Aparecida da Cruz Borges – Membro interno
Universidade Federal de Mato Grosso
4
Ninguém se engane a si mesmo; se alguém dentre
vós se tem por sábio neste mundo, faça-se louco
para se tornar sábio. Porque a sabedoria deste
mundo é loucura diante de Deus; pois está
escrito: Ele apanha os sábios na sua própria
astúcia; e outra vez: O Senhor conhece as
cogitações dos sábios, que são vãs.
1 Coríntios, 3:18-20
5
QUEIROZ, M. S. M. Usos modais do verbo ‘ter’ no Português Brasileiro: mudança semântica e
gramaticalização. Barra do Garças, 2018, 36 p. Monografia de conclusão de Licenciatura em Letras
– Instituto de Ciências Humanas e Sociais do Campus Universitário do Araguaia da Universidade
Federal de Mato Grosso.
RESUMO
O objetivo deste trabalho é descrever e analisar as construções oracionais cujo núcleo é o verbo
ter, focalizando o seu uso modal na expressão de obrigação. Investigamos as mudanças
linguísticas pelas quais o verbo ter passou, de verbo pleno a auxiliar, exprimindo originalmente
o conceito de posse, e que ao longo da história do português adquiriu outros valores, como o de
modalidade deôntica. Este verbo, desde o latim, vem passando por processos de mudança
semântica, sobrepondo-se a outros verbos, como haver, poder e dever. Esta pesquisa
fundamenta-se nos pressupostos da teoria da gramaticalização, de acordo com a qual formas ou
construções gramaticais desenvolvem-se a partir de itens lexicais, ou formais gramaticais
tornam-se ainda mais gramaticais, conforme tem sido destacado por Heine (1991; 1993; 2007),
Bybee (1994; 2007; 2016), Casseb-Galvão et ali. (2013), etc. O corpus analisado é constituído
de quatro entrevistas coletadas em contexto informal de comunicação, e de quatro que foram
selecionadas do corpus de dados de fala do Grupo de Estudos em Linguística Funcional do
Araguaia (GELFA), coordenado pela professora Dr.ª Lennie Aryete Dias Pereira Bertoque.
Todas as entrevistas foram realizadas com moradores da cidade de Barra do Garças, Mato
Grosso (MT). Os resultados mostram que o verbo ter cada vez mais tem adquirido novas
funções gramaticais no português brasileiro, ao lado de outras já existentes, em virtude da
emergência de novos contextos discursivo-pragmáticos nos quais tem sido frequentemente
usado pelos falantes da língua.
6
INTRODUÇÃO
7
obrigatoriedade, semelhante à função desempenhada pelos verbos modais poder e dever,
respectivamente. Fatos deste tipo demonstram indícios não só de mudanças semânticas, mas
também de gramaticalização gradual, em que um elemento passa a adquirir novas funções ainda
mais gramaticais, além daquelas para as quais já desempenha. Nesse sentido, defendemos a
hipótese de que a variação observada quanto ao uso modal do verbo ter esteja ocorrendo como
consequência de uma mudança semântica, via extensão, em que se observa a perda de conteúdo
semântico (semantic bleaching), que o permite ser usado em outros contextos oracionais mais
gerais.
É fundamental pensarmos a língua como um sistema flexível e dinâmico, organizado
com o propósito de promover a interação entre os falantes de uma dada sociedade, representado
simbolicamente o mundo a sua volta. Os fatores externos, como a cultura, as relações sociais
estabelecidas entre os indivíduos, nos mais diversos eventos de fala, o contato com outras
línguas, etc. são imprescindíveis para a compreensão do funcionamento do sistema linguístico,
na medida que contribuem para (re)adaptá-lo frente às influências e pressões que esses fatores
exercem sobre a sua organização gramatical, desencadeando, consequentemente, mudanças
contínuas e graduais no decorrer do tempo e do espaço.
Por meio da análise dos usos modais do verbo ter, proposta neste trabalho, e suas
diversas ocorrências em diferentes fases históricas do português, será possível identificar e
compreender o percurso de mudança linguística, por meio do qual novas funções gramaticais
foram desenvolvidas diacronicamente, além daquelas já existentes. O valor modal que esse
verbo tem adquirido no português atual pode ser considerado uma extensão de outros usos,
visto que as construções oracionais com verbo ter têm se expandido e se tornado cada vez mais
gramaticalizadas. Assim, é relevante compreender em que medida os usuários adaptam e
inovam o sistema linguístico, considerando os contextos discursivo-pragmáticos de uso da
língua em que tais construções são empregadas e as funções que elas assumem, diferindo
gramatical e funcionalmente daquelas equivalentes com as quais coexistem.
Entendemos que a compreensão dos mecanismos de mudança linguística aos quais as
línguas são submetidas é de suma relevância para que se entenda a natureza da linguagem
humana como um todo. Além disso, determinar as fontes diacrônicas e seus efeitos na estrutura
gramatical da língua requer que sejam levados em consideração fatores não só linguísticos, mas
também socioculturais e cognitivos, visto que tais inovações na língua não ocorrem ao acaso
ou de modo aleatório, mas são regidas por certos princípios estruturais que subjazem o próprio
sistema linguístico.
8
Sendo assim, esta pesquisa tem como finalidade investigar o uso modal do verbo ter,
para exprimir obrigação, na variedade do português brasileiro falado em Barra do Garças – MT,
como resultado de gramaticalização, considerando outras funções que esse verbo desempenha
na língua, principalmente comparando-o com aquelas em que é usado como auxiliar de
perífrases verbais. Para tal, é necessário recorrer à história do verbo ter e seu(s) significado(s)
desde o latim; compreender como o processo de gramaticalização acontece e quais são os
mecanismos de mudança semântica que podem estar envolvidos neste processo; analisar as
ocorrências do verbo no corpus de pesquisa; descrever as propriedades sintáticas das
construções oracionais nas quais esse verbo ocorre, comparando sua organização interna, e os
contextos discursivo-pragmáticos em que seu emprego é mais frequente; e aferir a frequência
de uso do verbo ter, no corpus analisado, quanto aos seus usos modais em contraste com outras
funções gramaticais que ele frequentemente tem assumido no português brasileiro, qual seja,
posse e existência.
A análise desenvolvida fundamentou-se a partir dos pressupostos da teoria da
Gramaticalização, com base nos trabalhos de Heine (1991; 1993; 2007), Bybee (1994; 2007;
2016), Casseb-Galvão et ali. (2013). A metodologia adotada na presente pesquisa é de natureza
qualitativa e quantitativa. Os dados analisados foram coletados a partir de entrevistas informais
e serão usados dados da modalidade escrita relativos a fases históricas da língua, com o
propósito de compará-los quanto aos diferentes usos e empregos do verbo ter.
O corpus de dados de fala é constituído por oito entrevistas orais de 30 a 70 minutos
de duração cada. Dentre os entrevistados, quatro são do sexo masculino e quatro do feminino,
com idades diferentes, que vão desde os 13 aos 62 anos. As realidades socioeconômicas também
são diversas, pois o objetivo não é caracterizar a fala de um grupo específico de pessoas, mas
perceber as diversas ocorrências do verbo ter, principalmente, para exprimir modalidade
deôntica. Quatro destas entrevistas foram coletadas em contexto informal de comunicação, com
a autorização dos colaboradores e de seus responsáveis (em caso de pessoas menores de idade),
em que o colaborador respondia perguntas sobre a sua vida, a sua história, a sua cidade, o seu
trabalho etc. As demais entrevistas foram selecionadas do corpus de dados de fala do Grupo de
Estudos em Linguística Funcional do Araguaia (GELFA), da Universidade Federal de Mato
Grosso (UFMT/CUA), coordenado pela professora Dr.ª Lennie Aryete Dias Pereira Bertoque.
A presente monografia está organizada nos seguintes capítulos. O primeiro capítulo
discorre sobre mudança semântica e gramaticalização, cujos conceitos foram fundamentais para
a descrição e análise dos dados. O segundo capítulo, por sua vez, trata da morfossintaxe das
9
construções oracionais que têm o verbo ter como núcleo e como elas podem diferir entre si do
ponto de vista de sua constituição formal. O terceiro capítulo é dedicado à análise quantitativa
dos dados coletados em que é aferida a frequência de uso das construções focalizadas nesse
estudo, em comparação com outras construções nas quais é recorrente o uso do verbo ter. Os
resultados alcançados com a presente pesquisa são apresentados nas considerações finais,
destacando as principais contribuições que este estudo pode trazer não só para a compreensão
de processos de gramaticalização atuantes no português brasileiro, mas também indicar e
subsidiar alternativas para o ensino da variedade padrão da língua em contraste com outras
variedades quanto à diversidade de usos gramaticais que um dado elemento adquire no
funcionamento da língua.
10
MUDANÇA SEMÂNTICA E PROCESSO DE GRAMATICALIZAÇÃO
A mudança semântica
Bybee (1994) sugere que um significado gramatical é incorporado por meio de um
item, outrora lexical, que passou a desempenhar funções gramaticais como resultado de
11
mudanças diacrônicas. Nesse sentido, é o uso cada mais frequente de certas formas ou
construções linguísticas que provoca alterações no sistema e aponta para possíveis mudanças
na organização gramatical da língua.
A autora propõe cinco mecanismos de mudança semântica responsáveis pela criação
da gramática (BYBEE, 1994, p. 297), conforme é ilustrado no Quadro 1.
12
Na generalização, por sua vez, ocorre a perda de algumas características específicas
do item lexical, que passa a ser mais generalizado e passível de ser adotado em outros contextos
discursivos. Contudo, Bybee (1994) afirma que não se sabe com certeza se a generalização pode
ser considerada um mecanismo de mudança de fato ou se ela é apenas uma consequência de
algum outro mecanismo.
A harmonia e a absorção do contexto são descritas como mecanismos característicos
de um estágio avançado no processo de mudança semântica, em que o item lexical já perdeu
muito de seu conteúdo semântico original e, devido ao uso frequente, teve seu novo valor
gramatical convencionalizado. Desta forma, a autora sugere que, ao completar os cinco
estágios, o processo de mudança semântica foi “concluído”, resultando na criação de um novo
item ou de uma nova construção.
A gramaticalização
1
“to describe how grammatical forms and constructions arise and develop through space and time, and
to explain why they are structured the way they are” (HEINE e KUTEVA, 2007, p. 16).
13
exerce uma função fundamental e decisiva, pois é por meio do uso e da frequência que o novo
significado da forma ou construção gramatical se regularizará e se estabilizará na língua.
O processo de transferência metafórica é uma das principais características do
processo de gramaticalização, apontado por Heine e Kuteva (2007), que explicaria a
reinterpretação induzida pelo uso e contexto de uma nova forma ou construção gramatical. Um
item lexical do domínio concreto é reinterpretado via transferência metafórica quando passa a
ser usado em um domínio mais abstrato, isto é, gramatical. Ao ter o seu uso estendido para
outro contexto, o item lexical começa a perder as características semânticas de sua forma mais
antiga, e por meio do aumento da frequência de uso pode levá-lo a adquirir novas funções dentro
da gramática, como parte do mecanismo de inovação e adaptação da língua para codificar e
exprimir novos conceitos emergidos de novas situações sociocomunicativas de uso da língua.
De acordo com Martelotta (2011), categorias lexicais, como verbos, substantivos e
adjetivos, perdem sua característica referencial e concreta, e passa a ser um elemento categorial
e abstrato, assumindo funções gramaticais, com a finalidade de expressar diferentes conteúdos
gramaticais que se relacionam com categorias cognitivas mais gerais, como posse, espaço,
tempo, agente, paciente, causa, qualidade, etc. Ainda conforme o autor propõe, ao assumirem
estas funções, os elementos gramaticais adquirem características específicas, se tornando mais
regulares, mais fixos e mais dependentes das estruturas morfológicas e sintáticas nas quais eles
ocorrem e são exigidos.
Como tem sido apontado por diversos autores, entre os estão quais Heine e Kuteva
(2007), a gramaticalização não acontece apenas com itens originalmente lexicais. O processo
pode ocorrer com itens já gramaticais que se tornam ainda mais gramaticalizados na língua,
como afixos de caso a partir de adposições (preposições e posposições), desenvolvimento de
voz passiva a partir de nominalizações (Givón 2001), entre outros.
Um dos princípios da teoria da gramaticalização é a unidirecionalidade como parte do
processo de desenvolvimento de formas gramaticais, como é ilustrado em (1). Isso significa
que o novo item ou construção gramaticalizada será sempre originada a partir de uma forma
mais lexical, e nunca o contrário. O princípio da unidirecionalidade, por sua vez, opera de modo
gradual na língua, abrangendo diferentes estágios diacrônicos de desenvolvimento e integração
de novas elementos gramaticais (CASSEB-GALVÃO ET AL., 2007; HEINE e KUTEVA,
2007; MARTELOTTA 2011).
14
Bybee (2007) concorda que, pelo processo de gramaticalização, formas gramaticais
são comumente desenvolvidas de morfemas lexicais e se tornam mais recorrentes com o uso.
A autora afirma que não seria possível estudar as novas formas desconsiderando os contextos
nos quais elas ocorrem, pois são eles que contribuem para a criação e estabilização delas na
língua. Contudo, a autora afirma que o conceito de gramaticalização não se limita a apenas um
item mais lexical que se tornou mais gramatical. Segundo ela, a gramaticalização ocorre quando
“uma construção com itens lexicais particulares em si se torna gramaticalizada” (BYBEE, 2007,
p. 337)2. Um exemplo típico de gramaticalização é a construção be going to3 do inglês que,
inicialmente, indicava movimento espacial em contextos específicos do verbo go, ‘ir’, mas se
gramaticalizou, passando a desempenhar a função de auxiliar de futuro, expandindo os seus
contextos de uso, como mostra as sentenças em (2).
(3) PERSON > OBJECT > ACTIVITY > SPACE > TIME > QUALITY6
2
“a construction with particular lexical items in it becomes grammaticized” (BYBEE, 2007, p. 337).
3
estar indo para; auxiliar do futuro.
4
Maria está indo para casa.
5
Maria irá viajar no próximo final de semana.
6
(HEINE et al., 1991, p. 48)
15
Dessa forma, a construção be going to do inglês teria sido estendida do domínio de
espaço (mais concreto) para o domínio de tempo (mais abstrato).
7
“the process by which a frequently used sequence of words or morphemes becomes automated as a
single processing unit” (BYBEE, 2007, p. 337).
16
conceitos e ideias, a medida em que as necessidades sociais vão se modificando e novas
necessidades sociocomunicativas surgindo.
Neste capítulo, buscamos mostrar como a mudança semântica pode atuar no processo
gramaticalização, embora processos distintos de mudança linguística incidam sobre
componentes específicos da gramática, como morfologia e fonética e fonologia. No processo
de gramaticalização, a metáfora ou transferência metafórica, como um dos principais
mecanismos de mudança semântica (BYBEE 1994), torna possível exprimir conceitos mais
abstratos por meio de itens lexicais que designam entidades concretas, levando
consequentemente à generalização gradativa e ao desbotamento semântico (bleaching
semantic) em diferentes estágios. Destacamos o papel da frequência e repetição no uso de
determinadas construções gramaticais como partes do processo de gramaticalização, à medida
que contribuem para a inovação e adaptação do sistema linguístico para atender às novas
necessidades sociocomunicativas dos falantes.
17
MODO E MODALIDADE
Segundo Bybee (1994), modo e modalidade não podem ser definidos de modo
semelhante a outras categorias gramaticais como tempo e aspecto. A autora afirma que seria
quase impossível criar uma definição concisa para o domínio da modalidade. Contudo, uma
caracterização aceita por ela é a que diz que a “modalidade é a gramaticização das atitudes e
opiniões (subjetivas) dos falantes”8 e o modo é o “conjunto de funções diacronicamente
relacionadas [...] e um real entendimento da modalidade emergiria de um estudo destas relações
diacrônicas”9 (BYBEE, 1994, p.176). Em outras palavras, a modalidade refere-se às diferentes
perspectivas e atitudes do falante perante o evento denotado pelo verbo, caracterizando o
domínio conceitual, enquanto modo envolve os meios formais pelos quais essa categoria
gramatical é codificada na língua, tornando sua expressão e marcação obrigatória (idem, p.
181). Ainda em termos formais, a modalidade dispõe de vários mecanismos linguísticos, entre
os quais lexicais, como verbos modais e advérbios de modo, e gramaticais, como construções
e expressões modais, ao passo que a categoria de modo, quanto gramaticalizada na língua,
envolve um conjunto limitado de morfemas para essa função.
Considerando a fluidez e a capacidade de adaptação do sistema linguístico diante de
novas necessidades sociocomunicativas de seus falantes, compreendemos que as mudanças
diacrônicas são resultados do surgimento e renovação do próprio sistema linguístico, a fim de
manter contrastes estruturais responsáveis pela estabilidade e regularidade de padrões
gramaticais que emergem dos usos linguísticos a partir de contextos discursivo-pragmáticos
específicos. Desse modo, novas categorias gramaticais podem surgir e desencadear mudanças
linguísticas progressivas e graduais no sistema linguístico, como é o caso de modo e
modalidade. Bybee (1994) propõe quatro tipos de modalidades existentes: (i) modalidade
orientada para o agente (agent-oriented); (ii) modalidade orientada para o falante (speaker-
oriented); (iii) epistêmica, e (iv) e subordinante.
8
“modality is the gramaticization of speakers’ (subjective) attitudes and opinions” (BYBEE, 1994,
p.176).
9
“set of diachronically related functions [...] and a real understanding of modality would emerge from
a study of these diachronic relations” (BYBEE, 1994, p.176).
18
Quadro 3: Paths of development for modalities (BYBEE, 1994, p.241).
A modalidade orientada para o agente (agent-oriented) recebe este nome devido a ideia
de haver condições externas e internas, impostas ao agente, em relação a execução da ação
descrita pelo verbo. De acordo com a autora, esta modalidade envolve, para o cumprimento da
ação predicada, as noções de: (a) obrigatoriedade, em que condições externas, regidas,
sobretudo por normas sociais, são impostas ao falante, e que podem expressar uma ideia de
obrigação forte (strong obligation), ou fraca (weak obligation); (b) necessidade, quando
condições físicas, muitas vezes não controladas, são manifestadas; (c) habilidade, quando há
aptidão interna para a realização de determinada tarefa, o que pode acionar um sentido de
possibilidade profunda (root possibility); e (d) desejo, quando há condição interna e volitiva.
Esse tipo de modalidade também é denominado de deôntico.
A modalidade orientada para o falante (speaker-oriented) faz referência as condições
que o falante impõe ao seu interlocutor para o cumprimento da ação verbal. A ação é
direcionada por uma ordem (imperative); uma negação (prohibitive); um desejo (optative); uma
exortação ou incentivo (hortative); um conselho ou alerta (admonitive); ou uma permissão
(permissive). A modalidade epistêmica, por sua vez, abrange os diferentes graus de
comprometimento e conhecimento do falante com respeito à veracidade da proposição. As
ideias expressas por esta modalidade envolvem possibilidade, probabilidade e certeza por
inferência. Conforme a autora afirma, as formas usadas nas modalidades orientada para o
falante (speaker-oriented) e epistêmica também são usadas para marcar algumas orações
subordinadas, caracterizando a última modalidade, a subordinante, ainda que esse tipo de
modalidade possa ser restrito a certas orações dependentes, como as orações condicionais e
consecutivas, revelando na mesma medida graus variados de subordinação, principalmente,
relacionado com o status finito/não finito do respectivo núcleo oracional.
A partir do estudo das modalidades, Bybee (1994) sugere que as outras três
modalidades tenham surgido da primeira (agente-oriented), como expresso no quadro 4. A
19
autora afirma haver indícios de que, conforme a modalidade orientada para o agente se
gramaticaliza, ela pode desenvolver-se em outros tipos (idem, p.181).
Valor de obrigatoriedade
Como o foco deste trabalho é a modalidade deôntica ou orientada para o agente (Bybee
1994), exploraremos o valor de obrigação que construções perifrásticas com o verbo ter têm
cada vez mais adquirido no português brasileiro, desencadeando, inclusive, outros processos de
mudança linguística, em virtude da difusão dessas construções na língua, sobretudo na
modalidade coloquial.
Bybee et ali. (1994) relatam que obrigação foi a noção mais frequentemente expressa
em seus dados na modalidade agent-oriented. O fato é explicado devido à possibilidade de
ocorrência do sentido de obrigatoriedade tanto em verbos mais lexicais (como deber, em
espanhol), quanto em verbos gramaticalizados (como should, em inglês). Contudo, a maioria
dos verbos indicando obrigação são auxiliares que se desenvolveram de verbos plenos, como
be, become, ou have10.
Ao discorrer sobre obrigação, a autora nos apresenta os tipos de obrigação que, na
língua inglesa, são mais notados, em vista da existência de vários auxiliares utilizados para
expressar esse conceito semântico e que demonstram “gradações na força da obrigação”11
(BYBEE et ali., 1994, p.186).
Em (5) a. e em (5) b., must e have to indicam uma obrigação forte (strong obligation):
Você tem que ir agora. Em (5) c., a obrigação é leve, e soa ao interlocutor como um conselho
ou aviso (weak obligation): Você deveria ir agora.
No quadro 5, mostramos o processo de desenvolvimento de outros valores semânticos
a partir de obrigatoriedade e que são, portanto, relacionados com ele.
10
ser / estar, se tornar, ou ter.
11
“gradations of strength of the obligation” (BYBEE, 1994, p.186).
20
Quadro 4: Percurso de desenvolvimento a partir de obrigação (BYBEE, 1994, p.240).
22
MORFOSSINTAXE DE CONSTRUÇÕES COM O VERBO TER
23
Em (4a), a construção perifrástica indica uma ação acabada, podendo ter o elemento
havia substituído por tinha. Em (4b). isto não acontece. Não podemos substituir tem por haver,
uma vez que se trata de uma ação que se estende para o presente.
Do ponto de vista morfossintático, uma primeira mudança pode ser observada no
estatuto lexical do verbo ter, isto é, de verbo pleno ele passou a ser usado como verbo auxiliar.
O desenvolvimento diacrônico de verbos auxiliares a partir de verbos lexicais plenos é atestado
em diversas línguas, como mostra Heine (1993). Esses verbos exprimem, em sua maioria,
conceitos semânticos relacionados com movimento, ação, posição, posse, estado, etc., e são
usados para expressar diferentes contrastes aspectuais e temporais.
Em perífrases verbais, outra característica formal observada no uso de verbos
auxiliares diz respeito às informações gramaticais que, geralmente, são marcadas no núcleo do
predicado, como número, pessoa, tempo, modo, etc., por meio de concordância entre o verbo e
o seu argumento (externo ou interno). Em português, a concordância é entre o verbo e o sujeito,
enquanto outras línguas a concorrência ocorre entre o verbo e seu objeto direto. Nesses termos,
é o verbo auxiliar que reúne e carrega consigo traços morfossintáticos, enquanto que o verbo
principal é o que veicula o conteúdo lexical e que, na maioria das vezes, vem expresso em uma
forma nominal ou não finita (infinitivo/gerúndio/particípio), como é o caso do português.
Ao observarmos as construções perifrásticas com o verbo ter, em português, que
exprimem modalidade deôntica, o verbo lexical ocorre na sua forma nominal, isto é, no
infinitivo, como em (5a), ao passo que em outras perífrases que denotam tempo passado e
aspecto perfectivo, a o verbo lexical é usado no particípio, exemplo (5b).
No século XIV, o sentido de posse de haver e de ter ainda era forte. Haver implicava
obter algo, e ter implicava manter algo. Neste mesmo século, haver passou a indicar
necessidade, quando usado em perífrases juntamente com o particípio, e também podia ser
interpretado como um compromisso com uma ação futura. Já no século XV, há uma
predominância de ter em relação a haver quando se tratava de posse e nas perífrases com
particípio.
Originalmente, as perífrases verbais formadas por haver / ter + particípio, conforme
Sampaio (2000), indicavam a posse de uma ação concluída, ou de um ponto atingido. No século
24
XIX, o uso de haver seguido do infinito marcava um certo compromisso com uma futura ação,
como em Há de chover. Por outro lado, o uso de ter seguido do infinitivo indicava uma
necessidade que independia da vontade de quem a praticou ou a praticaria, se tornando uma
obrigação, como em Tenho de trabalhar. Mas, foi apenas durante o século XX que seu uso se
consolidou na literatura. Neste mesmo século, já eram raras as ocorrências de haver como
auxiliar do passado mais que perfeito na língua falada.
Atualmente, o verbo ter tem expandido seu uso para outros domínios conceituais,
como o de modalidade, caracterizando o que tem sido chamado em teoria da gramaticalização
como dessemantização, isto é, a perda de propriedades conceituais do item lexical de origem,
levando ao desbotamento semântico (bleaching semantic) gradual, tendo como consequência o
uso generalizado desse item na língua, sem levar em consideração as restrições impostas pelo
contexto estrutural e as especificidades do conteúdo proposicional determinadas pelo uso
discursivo-pragmático. Um exemplo desse processo é o verbo auxiliar estar, em português, que
se originou do verbo stāre em latim e significava a posição ‘estar.em.pé’12. Contudo, nos dias
atuais, os falantes não são capazes de inferir ou identificar algum traço semântico relativo à
posição vertical a partir do forma lexical estar em virtude do processo de desbotamento
semântico que esse verbo passou no decorrer de sua história e pelo uso generalizado em
diversos tipos de predicados.
Em síntese, Barros (2012), em sua dissertação sobre o verbo ter, com base no estudo de
Sampaio (2000), afirma que houve uma “invasão de ter em contextos antes reservados a
(h)aver” (p. 64) no decorrer da história, e ressalta, conforme defendido por Almeida (2006),
que a trajetória de ter é resultado de um processo gradual de gramaticalização, em que o verbo
partiu de principal, passando pelo estágio de “(semi)auxiliar”, e alcançou o estágio de
“verdadeiro auxiliar” (p. 65).
12
https://pt.glosbe.com/pt/la/estar (Acessado em 20/
25
ANÁLISE E DESCRIÇÃO DOS DADOS
O corpus de análise desta pesquisa é formado por oito entrevistas orais feitas com
moradores do município de Barra do Garças, Mato Grosso (MT). No total, quatro pessoas foram
entrevistadas, e todas concordaram, via documento escrito, em colaborar com a pesquisa e em
ter suas respostas divulgadas. As outras quatro entrevistas foram selecionadas do corpus do
Grupo de Estudos em Linguística Funcional do Araguaia (GELFA), do Campus Universitário
do Araguaia (CUA), da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), coordenado pela
professora Dr.ª Lennie Aryete Dias Pereira Bertoque. Os dados estão disponíveis para acesso
dos acadêmicos e pesquisadores integrantes do grupo, mas ainda não estão disponíveis à
comunidade em geral.
Entre os entrevistados, quatro são do sexo feminino e quatro são do sexo masculino.
As realidades socioeconômicas são diversas, bem como as idades, que variam entre 13 e 62
anos. Para realização deste trabalho, o único critério sociolinguístico adotado foi o de
entrevistar pessoas que morassem em Barra do Garças há, no mínimo, dez anos, para
compreender como o fenômeno em análise acontece nesta cidade. Não optamos por estabelecer
outras variáveis sociolinguísticas, como idade e escolaridade, por exemplo, pois o foco não era
perceber e padronizar a fala de um determinado grupo social, mas compreender as ocorrências
do verbo ter na comunidade de fala, em geral.
As entrevistas têm cerca de quarenta e cinco minutos cada, – algumas mais, outras
menos – formando um corpus de dados de fala com média de 368 minutos.
O verbo ter
1. Ter a posse de; possuir. 2. Poder dispor de: ter férias. 3. Segurar nas mãos. 4. Trazer
consigo. 5. Manter; ocupar: ter um cargo. 6. Conter. 7. Ser composto ou formado. 8.
26
Apresentar, trazer: ter cabelos brancos. 9. Apresentar algo semelhante a: Tem os olhos
da mãe. 10. Ser dotado de: ter boa-fé. 11. Gozar, desfrutar: ter saúde. 12. Sofrer de.
13. Experimentar (sensação, sentimento, etc.) 14. Elaborar mentalmente: ter uma
ideia. 15. Proceder com: ter cautela. 16. Dar a luz. 17. Receber: ter muitos
convidados. 18. Tomar (12): ter aula de francês. 19. Receber (castigo, prêmio,
remuneração, etc.). * Impess. 20. Pop. Haver, existir. T.i. 21. Ter necessidade ou
obrigação de; dever, precisar: Tenho de viajar. [Nesta acepç., tb. se usa seguido de
que: Tenho que viajar.] T.d.i. 22. Trazer consigo ou em si (lit. ou fig.). 23. Guardar,
conservar. 24. Apresentar: Tinha o rosto pálido. 25. Considerar; julgar: Sempre o tive
por tolo. T.c. 26. Contar (anos). Int.27. Ser possuidor de bens, recursos financeiros,
etc. P. 28. Segurar-se; manter-se: ter-se de pé. 29. Considerar-se (FERREIRA, 2008,
p. 772).
Assumindo que ter poderá aparecer nos contextos comunicativos com os diversos
valores semânticos, conforme indicados pela sua definição no dicionário, nós focalizamos
quatro conceitos principais: (a) posse (concreta ou abstrata); (b) existência impessoal; (c)
auxiliar em perífrases verbais, exprimindo aspecto perfectivo, e (d) obrigatoriedade
(modalidade deôntica). Esse recorte metodológico quanto aos usos do verbo ter no corpus
analisado foi necessário a fim de que pudéssemos aferir a frequência com a qual ele ocorre na
língua falada com diferentes valores semânticos e que mostramos a sua distribuição em
gráficos. No total, foram contabilizadas 770 ocorrências do verbo, em 368’ de conversa, ou
seja, a cada minuto, ele surgia na conversa pelo menos duas vezes.
Em todos esses casos, observamos que os usuários se apropriam do sentido de ter por
meio de associação metafórica e o utilizam em contextos julgados por eles semelhantes: o filho
lhe “pertence” de alguma forma, uma vez que ele está sob a sua responsabilidade e sob os seus
cuidados; a adolescência é um período da vida pelo qual as pessoas passam, mas que é pessoal,
e por isso lhes pertence; e, por fim, os desejos, as vontades e os sentimentos, que também são
únicos e pessoais, podendo ser encaixados no status de posse. Em teoria da gramaticalização,
conforme postula Heine (2003), a metáfora é concebida como um dos principais mecanismos
atuantes no processo de extensão e a subsequente generalização de itens gramaticais oriundos
de itens lexicais, permitindo com que conceitos gramaticais abstratos, como é a posse, sejam
expressos por meio de itens lexicais que designam conceitos concretos.
A segunda maior ocorrência de ter abrande o conceito de impessoalidade, com
significado de existência. Retomando a discussão do segundo capítulo, realizada por Sampaio
(2000), a mudança de posse para o sentido de existência impessoal é justificada pela mudança
do sujeito, isto é, a ausência de um argumento formal. Se analisarmos a estrutura argumental
do ver ter, em seu valor possessivo, encontramos a seguinte estrutural predicativa:
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Em (10), encontramos cada fazenda ocupando a posição de sujeito. Em (11), a nossa
cidade exerce esta função. Portanto, devido a este rompimento com a estrutura argumental
original do verbo, houve uma adaptação na organização sintática das orações, em que ter
assumiu o valor impessoal de existência. Ou seja, ao dizer que cada fazenda tinha, criou-se a
construção tinha em cada fazenda, recuperando, desta forma, o valor existencial anteriormente
atribuído a haver.
Em terceiro lugar, encontramos o verbo ter com significado de obrigação. Neste
estágio, o verbo ter passou a adquirir outros valores semânticos, como o de modalidade
deôntica, decorrente do contínuo e gradual processo de gramaticalização, em que ele tem se
tornado cada vez mais gramaticalizado no português brasileiro. Contudo, como mostrado n
Capítulo 3, a estrutura morfossintática desse tipo de oração difere substancialmente daquelas
que exprimem posse e impessoalidade/existência, em que o complemento do verbo auxiliar ter
ocorre na forma de uma oração dependente e o seu núcleo é expresso pela forma nominal
infinitiva, exemplos (12) e (13), em contraste com as perífrases verbais que denotam tempo-
aspecto, nas quais o verbo lexical é expresso no particípio.
Uma das hipóteses que poderia explicar uma mudança semântica como a de ter
possessivo para ter deôntico se relaciona com a ideia de alguém possui alguma necessidade,
uma vez que a obrigação é impulsionada por necessidades (externas), impostas pelas normas e
convenções da sociedade. Construções oracionais em que ter aparece com valor de modalidade
deôntica poderiam, assim, ser parafraseadas como em (14), o que explicaria o percurso de
extensão semântica desse verbo.
(14) alguém – TER – necessidade
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principal pode ser regido pela preposição de ou que. Segundo as gramáticas normativas do
português, o núcleo dessas orações deve ser regido pela preposição de, ao passo que padrão
mais frequente é aquele em que é usada a preposição que. Esse mero contraste, na verdade,
mostra a atuação de outro processo de mudança linguística que é a analogia, visto que sua
função é regularizar padrões distintos em relação com o que é mais frequente e menos marcado.
Nesse caso, a regularização ocorreu por semelhança estrutural com orações dependentes que
funcionam como complemento de outro verbo que são introduzidas pela conjunção
subordinativa que13, como afirmam Paiva e Silva (2014).
Acreditamos, ainda, que uma explicação possível para a soberania da construção ter
que + infinitivo na modalidade falada envolva a produtividade do elemento que na
constituição de diferentes perífrases de modalização no PB, como exemplificam
parecer que, dizer que, querer que. Por analogia com construções desse tipo, os
falantes tenderiam a privilegiar a construção ter que + infinitivo e reduzir,
gradativamente, o uso da sua concorrente ter de + infinitivo (BARROS e PAIVA,
2014, p. 100).
Encontramos ainda o verbo ter como auxiliar do passado mais que perfeito, ou
auxiliar do perfectivo. Em construções desse tipo, Bybee (1994) afirma que o falante, ao
concluir uma ação, entende que ele possui esta ação concluída. Este pensamento pode ser
percebido por meio das expressões comuns do inglês, have/get something done14. A pessoa
entende que ele possui a ação que foi concluída (15). Com o aumento da frequência de uso,
ocorre, novamente, uma adaptação na estrutura morfossintática do verbo.
Por fim, encontramos algumas ocorrências de ter com outros significados, (16) e (17),
e que podem ser substituídas por verbos como fazer (impessoal) e poder, mas que não foram
exploradas neste trabalho por não ser o foco principal.
13
Dentre as 126 ocorrências de ter deôntico, no corpus analisado, a construção ter de ocorre apenas uma vez.
Todas as outras ocorrências são acompanhadas por que.
14
ter alguma coisa feita (pelo falante ou por outra pessoa).
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(16) [...] só que eu vivi com ele tem dezessete (anos)...
(17) [...] coisas de rua aí que ninguém tem como controlar...
Dessa forma, ter com sentido de posse teria sempre o sentido transferido para a
próxima categoria: OBJETO – ESPAÇO; OBJETO – ATIVIDADE; OBJETO – TEMPO.
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modalidade coloquial da língua, percebemos a partir da amostra de dados coletada um
decréscimo quanto à frequência de seu uso, revelando uma substituição gradativa do verbo
dever pelo verbo ter, como ilustra o Gráfico 2.
Gráfico 2: Ocorrências do ver dever como modal deôntico em relação ao verbo ter.
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Assim, conforme os dados sugerem, em face da frequência de construções com verbo
ter com valor de modalidade deôntica, tem havido gradativamente o deslocamento do verbo
dever para o domínio da modalidade epistêmica. Uma análise mais acurada sobre esses usos
revelaria se há implicações quanto ao grau de comprometimento do falante com veracidade da
proposição.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio desta pesquisa, foi possível perceber os diversos usos do verbo ter no
português brasileiro, principalmente na variedade falada em Barra do Garças, MT. A sua
produtividade na língua indica que ele tem se tornado uma espécie de ‘curinga’, assim como o
verbo get, no inglês, uma vez que seus usos podem ser aplicados em diferentes contextos
discursivo-pragmáticos que determinam a configuração de padrões oracionais na língua.
Desse modo, a trajetória diacrônica do verbo ter na língua é resultado de um processo
contínuo e gradual de gramaticalização, em que dentro dos princípios dessa teoria, demonstrou-
se que seu uso foi expandido e adaptado para as mais diversas situações sociocomunicativas.
Ainda que haja evidências de mudanças diacrônicas substanciais, em português,
principalmente na variedade falada no Brasil, quanto à emergência de diferentes padrões
oracionais que se desenvolveram a partir do verbo ter, observamos que ele tem coexistido com
o dever, apontando para uma possível mudança semântica em que este verbo pode deixar de ser
usado em contextos deônticos, deslocando-se para contextos de modalidade epistêmica. Além
do verbo dever, é possível também que construções com o verbo ter expressem modalidade
epistêmica, como em [...] coisas de rua aí que ninguém tem como (pode, consegue) controlar.
Com base no corpus analisado, observamos que o verbo ter tem se tornado cada vez
mais gramaticalizado em português e as construções em que ele é núcleo têm sido submetidas
a outros processos de mudança linguística por meio da analogia, considerando que o uso dessas
construções tem sido frequentes e se regularizado na língua de modo similar a outros tipos e
estruturas oracionais.
Do ponto de vista do ensino da língua portuguesa na educação básica, é importante
ressaltar que estudos desse tipo podem auxiliar o professor a mostrar as diversas alternativas
que a língua dispõe aos falantes ao lado daquelas privilegiadas pela norma padrão escrita.
Assim, os resultados dessa pesquisa, além de mostrar o caráter dinâmico e adaptativo do sistema
linguístico diante do surgimento das novas necessidades sociocomunicativas, destacou também
como o processo de mudança linguística pode ser explicado a partir da teoria da
gramaticalização.
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REFERÊNCIAS
BARROS, Elzimar de Castro Monteiro de; PAIVA, Maria da Conceição de. Construção ter
que + infinitivo: modalidade e propriedades gramaticais do verbo ter. ESTUDOS
LINGUÍSTICOS, São Paulo: 43 (1): p. 91-102, jan-abr 2014.
BYBEE, Joan. Frequency of use and organization of language. Oxford: Oxford University
Press Inc, 2007.
BARROS, Elzimar de Castro Monteiro de. Construções modais com ter: gramaticalização e
variação. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, 2012.
GIVÓN, Talmy. Syntax – An introduction. Vol. II. Amsterdan: John Benjamins, 2001.
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of Chicago Press, 1991.
HEINE, Bernd. Auxiliaries, cognitive forces, and grammaticalization. New York: Oxford
University Press, 1993.
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Paulo: CORTEZ, 2011.
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formas em concorrência. CopyMarket.com, 2000.
VIOTTI, Evani. Uma história sobre ter e haver. Caderno de Estudos Linguísticos, vol. 34,
1998.
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