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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

CAMPUS UNIVERSITÁRIO DO ARAGUAIA


INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
CURSO DE LETRAS

MARIANA SENA DA MATA QUEIROZ

USOS MODAIS DO VERBO TER NO PORTUGUÊS BRASILEIRO: MUDANÇA


SEMÂNTICA E GRAMATICALIZAÇÃO

Barra do Garças – MT
2018
MARIANA SENA DA MATA QUEIROZ

USOS MODAIS DO VERBO TER NO PORTUGUÊS BRASILEIRO: MUDANÇA


SEMÂNTICA E GRAMATICALIZAÇÃO

Trabalho apresentado como exigência para


elaboração do Trabalho de Curso (TC) do curso de
Letras do Instituto de Ciências Humanas e Sociais
do Campus Universitário do Araguaia da
Universidade Federal de Mato Grosso.

Orientador: Prof.º Dr.º Maxwell Gomes Miranda

Barra do Garças – MT
2018
MARIANA SENA DA MATA QUEIROZ

USOS MODAIS DO VERBO TER NO PORTUGUÊS BRASILEIRO: MUDANÇA


SEMÂNTICA E GRAMATICALIZAÇÃO

Monografia de conclusão de Curso para obtenção parcial de título de Licenciada em Letras pelo
Instituto de Ciências Humanas e Sociais do Campus Universitário do Araguaia da Universidade
Federal de Mato Grosso - Banca Examinadora constituída pelos professores:

_________________________________________
Prof.º Dr.º Maxwell Gomes Miranda (Presidente e orientador)
Universidade Federal de Mato Grosso

__________________________________________
Prof.ª Dr.ª Lennie Aryete Dias Pereira Bertoque – Membro interno
Universidade Federal de Mato Grosso

___________________________________________
Prof.ª Dr.ª Águeda Aparecida da Cruz Borges – Membro interno
Universidade Federal de Mato Grosso

Barra do Garças, 16 de fevereiro de 2018.


3
AGRADECIMENTOS

À Deus, por ser um Pai amoroso e justo; por


segurar a minha mão quando eu fiquei assustada;
por enxugar minhas lágrimas quando eu estive
triste; por me carregar no colo quando eu não tive
forças para me manter de pé; por me dar
inteligência e capacidade para prosseguir e
crescer.
À minha mãe, por me ensinar que eu podia ser
tudo o que eu desejasse ser.
À Universidade, pela estrutura e pela qualidade
do ensino.
Ao meu orientador, Maxwell Miranda, por se
dispor em me auxiliar; por deixar seus afazeres em
razão dos meus; por sempre ter paciência e
demonstrar uma grande competência e vocação em
seu ofício.
À minha professora, Lennie Aryete Bertoque,
por me receber em seu grupo de pesquisa e no
programa de monitoria, contribuindo grandemente
com a minha formação.
A todos os meus professores, por compartilhar o
conhecimento.
À Miriele Martins, minha primeira chefe, por me
abrir as portas quando eu ainda era uma menina, e
me ajudar a descobrir a incrível arte de ensinar.
À minha família e amigos, por tornarem os meus
dias mais floridos.
A todos, o meu muito obrigada!

4
Ninguém se engane a si mesmo; se alguém dentre
vós se tem por sábio neste mundo, faça-se louco
para se tornar sábio. Porque a sabedoria deste
mundo é loucura diante de Deus; pois está
escrito: Ele apanha os sábios na sua própria
astúcia; e outra vez: O Senhor conhece as
cogitações dos sábios, que são vãs.

1 Coríntios, 3:18-20

5
QUEIROZ, M. S. M. Usos modais do verbo ‘ter’ no Português Brasileiro: mudança semântica e
gramaticalização. Barra do Garças, 2018, 36 p. Monografia de conclusão de Licenciatura em Letras
– Instituto de Ciências Humanas e Sociais do Campus Universitário do Araguaia da Universidade
Federal de Mato Grosso.

RESUMO

O objetivo deste trabalho é descrever e analisar as construções oracionais cujo núcleo é o verbo
ter, focalizando o seu uso modal na expressão de obrigação. Investigamos as mudanças
linguísticas pelas quais o verbo ter passou, de verbo pleno a auxiliar, exprimindo originalmente
o conceito de posse, e que ao longo da história do português adquiriu outros valores, como o de
modalidade deôntica. Este verbo, desde o latim, vem passando por processos de mudança
semântica, sobrepondo-se a outros verbos, como haver, poder e dever. Esta pesquisa
fundamenta-se nos pressupostos da teoria da gramaticalização, de acordo com a qual formas ou
construções gramaticais desenvolvem-se a partir de itens lexicais, ou formais gramaticais
tornam-se ainda mais gramaticais, conforme tem sido destacado por Heine (1991; 1993; 2007),
Bybee (1994; 2007; 2016), Casseb-Galvão et ali. (2013), etc. O corpus analisado é constituído
de quatro entrevistas coletadas em contexto informal de comunicação, e de quatro que foram
selecionadas do corpus de dados de fala do Grupo de Estudos em Linguística Funcional do
Araguaia (GELFA), coordenado pela professora Dr.ª Lennie Aryete Dias Pereira Bertoque.
Todas as entrevistas foram realizadas com moradores da cidade de Barra do Garças, Mato
Grosso (MT). Os resultados mostram que o verbo ter cada vez mais tem adquirido novas
funções gramaticais no português brasileiro, ao lado de outras já existentes, em virtude da
emergência de novos contextos discursivo-pragmáticos nos quais tem sido frequentemente
usado pelos falantes da língua.

Palavras-chave: ter; gramaticalização; modal deôntico.

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INTRODUÇÃO

É consensual entre as Ciências da Linguagem que a língua está em um constante estado


de variação e mudança, em virtude das novas necessidades sociocomunicativas que surgem ao
longo do tempo e do espaço entre os falantes de uma dada comunidade de fala. Para atender a
essas necessidades, os falantes têm a sua disposição vários elementos e construções linguísticas
que, quando combinados entre si, desempenham a função de representar o mundo e suas
experiências sociocognitivas por meio da linguagem. Neste trabalho, exploramos as
construções oracionais cujo núcleo é o verbo ter, focalizando os usos modais desse verbo que,
desde o latim, vem passando por processos de adaptação, variação e mudança linguísticas.
Viotti (1998), em seu artigo Uma História sobre “ter” e “haver”, discorre sobre a
origem diacrônica desses verbos, cujas formas provieram de tenere e habere, respectivamente,
do latim. Habere significa ‘habitar’ ou ‘ter a posse de’. Com o passar do tempo, foi perdendo
seu significado primitivo e passando a ter o significado de existência, tornando-se,
posteriormente, um verbo auxiliar. Já o verbo tenere exprimia o significado de ‘manter’ e
‘obter’, mas foi perdendo seu conteúdo semântico original, passando a adquirir novos
significados e funções gramaticais na língua. O resultado dessa mudança gradativa foi a
coexistência de dois verbos, habere e tenere, com significado de posse. Contudo, quando se
tratava de características inerentes aos seres, optava-se pelo uso de habere, enquanto a
referência a coisas possuídas pelos seres, optava-se por tenere.
Em face dessas considerações, questiona-se: o verbo ter, no português brasileiro, tem
experienciado novos processos de mudança linguística via gramaticalização? Quais seriam
outros valores semânticos e funções gramaticais que o verbo ter tem adquirido além de posse,
existência e verbo auxiliar? Qual o perfil morfossintático das construções oracionais que têm o
verbo ter como núcleo? Quais contextos discursivo-pragmáticos regem os novos usos do verbo
ter no português brasileiro, sobretudo, na modalidade coloquial da língua?
Considerando a multifuncionalidade que verbo ter apresenta no português brasileiro,
a maior parte dos estudos linguísticos sobre este verbo têm se concentrado em seu
desenvolvimento histórico de verbo pleno para verbo auxiliar de perífrases verbais que
exprimem tempo passado e aspecto perfectivo ou pretérito mais que perfeito como construções
alternativas àquelas descritas pela gramática normativa, ainda que elas sejam mais típicas da
modalidade coloquial da língua. Contudo, observa-se que este verbo pode ser usado também
em situações que envolvem modalidade epistêmica e deôntica, isto é, possibilidade e

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obrigatoriedade, semelhante à função desempenhada pelos verbos modais poder e dever,
respectivamente. Fatos deste tipo demonstram indícios não só de mudanças semânticas, mas
também de gramaticalização gradual, em que um elemento passa a adquirir novas funções ainda
mais gramaticais, além daquelas para as quais já desempenha. Nesse sentido, defendemos a
hipótese de que a variação observada quanto ao uso modal do verbo ter esteja ocorrendo como
consequência de uma mudança semântica, via extensão, em que se observa a perda de conteúdo
semântico (semantic bleaching), que o permite ser usado em outros contextos oracionais mais
gerais.
É fundamental pensarmos a língua como um sistema flexível e dinâmico, organizado
com o propósito de promover a interação entre os falantes de uma dada sociedade, representado
simbolicamente o mundo a sua volta. Os fatores externos, como a cultura, as relações sociais
estabelecidas entre os indivíduos, nos mais diversos eventos de fala, o contato com outras
línguas, etc. são imprescindíveis para a compreensão do funcionamento do sistema linguístico,
na medida que contribuem para (re)adaptá-lo frente às influências e pressões que esses fatores
exercem sobre a sua organização gramatical, desencadeando, consequentemente, mudanças
contínuas e graduais no decorrer do tempo e do espaço.
Por meio da análise dos usos modais do verbo ter, proposta neste trabalho, e suas
diversas ocorrências em diferentes fases históricas do português, será possível identificar e
compreender o percurso de mudança linguística, por meio do qual novas funções gramaticais
foram desenvolvidas diacronicamente, além daquelas já existentes. O valor modal que esse
verbo tem adquirido no português atual pode ser considerado uma extensão de outros usos,
visto que as construções oracionais com verbo ter têm se expandido e se tornado cada vez mais
gramaticalizadas. Assim, é relevante compreender em que medida os usuários adaptam e
inovam o sistema linguístico, considerando os contextos discursivo-pragmáticos de uso da
língua em que tais construções são empregadas e as funções que elas assumem, diferindo
gramatical e funcionalmente daquelas equivalentes com as quais coexistem.
Entendemos que a compreensão dos mecanismos de mudança linguística aos quais as
línguas são submetidas é de suma relevância para que se entenda a natureza da linguagem
humana como um todo. Além disso, determinar as fontes diacrônicas e seus efeitos na estrutura
gramatical da língua requer que sejam levados em consideração fatores não só linguísticos, mas
também socioculturais e cognitivos, visto que tais inovações na língua não ocorrem ao acaso
ou de modo aleatório, mas são regidas por certos princípios estruturais que subjazem o próprio
sistema linguístico.

8
Sendo assim, esta pesquisa tem como finalidade investigar o uso modal do verbo ter,
para exprimir obrigação, na variedade do português brasileiro falado em Barra do Garças – MT,
como resultado de gramaticalização, considerando outras funções que esse verbo desempenha
na língua, principalmente comparando-o com aquelas em que é usado como auxiliar de
perífrases verbais. Para tal, é necessário recorrer à história do verbo ter e seu(s) significado(s)
desde o latim; compreender como o processo de gramaticalização acontece e quais são os
mecanismos de mudança semântica que podem estar envolvidos neste processo; analisar as
ocorrências do verbo no corpus de pesquisa; descrever as propriedades sintáticas das
construções oracionais nas quais esse verbo ocorre, comparando sua organização interna, e os
contextos discursivo-pragmáticos em que seu emprego é mais frequente; e aferir a frequência
de uso do verbo ter, no corpus analisado, quanto aos seus usos modais em contraste com outras
funções gramaticais que ele frequentemente tem assumido no português brasileiro, qual seja,
posse e existência.
A análise desenvolvida fundamentou-se a partir dos pressupostos da teoria da
Gramaticalização, com base nos trabalhos de Heine (1991; 1993; 2007), Bybee (1994; 2007;
2016), Casseb-Galvão et ali. (2013). A metodologia adotada na presente pesquisa é de natureza
qualitativa e quantitativa. Os dados analisados foram coletados a partir de entrevistas informais
e serão usados dados da modalidade escrita relativos a fases históricas da língua, com o
propósito de compará-los quanto aos diferentes usos e empregos do verbo ter.
O corpus de dados de fala é constituído por oito entrevistas orais de 30 a 70 minutos
de duração cada. Dentre os entrevistados, quatro são do sexo masculino e quatro do feminino,
com idades diferentes, que vão desde os 13 aos 62 anos. As realidades socioeconômicas também
são diversas, pois o objetivo não é caracterizar a fala de um grupo específico de pessoas, mas
perceber as diversas ocorrências do verbo ter, principalmente, para exprimir modalidade
deôntica. Quatro destas entrevistas foram coletadas em contexto informal de comunicação, com
a autorização dos colaboradores e de seus responsáveis (em caso de pessoas menores de idade),
em que o colaborador respondia perguntas sobre a sua vida, a sua história, a sua cidade, o seu
trabalho etc. As demais entrevistas foram selecionadas do corpus de dados de fala do Grupo de
Estudos em Linguística Funcional do Araguaia (GELFA), da Universidade Federal de Mato
Grosso (UFMT/CUA), coordenado pela professora Dr.ª Lennie Aryete Dias Pereira Bertoque.
A presente monografia está organizada nos seguintes capítulos. O primeiro capítulo
discorre sobre mudança semântica e gramaticalização, cujos conceitos foram fundamentais para
a descrição e análise dos dados. O segundo capítulo, por sua vez, trata da morfossintaxe das

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construções oracionais que têm o verbo ter como núcleo e como elas podem diferir entre si do
ponto de vista de sua constituição formal. O terceiro capítulo é dedicado à análise quantitativa
dos dados coletados em que é aferida a frequência de uso das construções focalizadas nesse
estudo, em comparação com outras construções nas quais é recorrente o uso do verbo ter. Os
resultados alcançados com a presente pesquisa são apresentados nas considerações finais,
destacando as principais contribuições que este estudo pode trazer não só para a compreensão
de processos de gramaticalização atuantes no português brasileiro, mas também indicar e
subsidiar alternativas para o ensino da variedade padrão da língua em contraste com outras
variedades quanto à diversidade de usos gramaticais que um dado elemento adquire no
funcionamento da língua.

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MUDANÇA SEMÂNTICA E PROCESSO DE GRAMATICALIZAÇÃO

As línguas naturais estão em constante processo de variação sincrônica e mudança


diacrônica, em vista das infinitas possibilidades que elas têm de exprimir conceitos concretos e
abstratos relativos às inúmeras experiências dos falantes em situações reais de uso língua. De
acordo com Bybee (2016), a língua é “um sistema adaptativo complexo” (p.18), influenciado
por fatores internos e externos. A Linguística Cognitiva, área na qual a autora fundamenta a sua
pesquisa, é uma teoria da linguagem que compreende que a língua não existe por si mesma,
mas é o resultado de movimentos cognitivos e sociais capazes de criá-la e de adaptá-la. Diante
disto, assumimos uma concepção de gramática que é vista como “a organização cognitiva de
experiências com a língua” (ibdem, p. 28), ou seja, não é ela que dita a maneira como devemos
utilizar a língua, mas sim o uso que a organiza. É importante compreender também que, se a
língua muda à medida em que é usada, a sua gramática pode ser afetada por este uso.
Os estudos linguísticos baseados no uso propõem que certos padrões oracionais
espelham estruturas e categorias cognitivas mais gerais, expressando-se formal e
funcionalmente de distintos modos na gramática das línguas, considerando na mesma medida
a influência que fatores de natureza discursivo-pragmática exercem no processo de mudança
linguística.
Já na perspectiva sociolinguística, defendida por Labov (2008), as línguas sempre
passarão por um processo de variação que precede o status de mudança. Em outras palavras,
toda mudança linguística decorre de uma situação de variação de formas ou construções
linguísticas em competição dentro de uma determinada língua, mas nem toda situação de
variação leva a uma mudança linguística, visto que tal variação é o resultado da influência de
fatores como idade, sexo, profissão, escolaridade, etc., e está restrita a variações de estilo ou de
registro. Ainda de acordo com essa perspectiva teórica, a coexistência de duas ou mais
variantes, uma mais antiga e outra mais atual, é um fato natural no cenário de mudança
linguística e que apenas por meio da frequência de uso e da difusão de uma das variantes no
sistema linguístico a mudança poderá, de fato, acontecer.

A mudança semântica
Bybee (1994) sugere que um significado gramatical é incorporado por meio de um
item, outrora lexical, que passou a desempenhar funções gramaticais como resultado de

11
mudanças diacrônicas. Nesse sentido, é o uso cada mais frequente de certas formas ou
construções linguísticas que provoca alterações no sistema e aponta para possíveis mudanças
na organização gramatical da língua.
A autora propõe cinco mecanismos de mudança semântica responsáveis pela criação
da gramática (BYBEE, 1994, p. 297), conforme é ilustrado no Quadro 1.

Quadro 1: Estágios de mudança no processo de gramaticalização (BYBEE, 1994, p. 297).

O quadro acima demonstra o percurso do processo de mudança semântica, em que um


item ou construção lexical passa por estágios de variação e esvaziamento semântico, resultando
em uma nova forma com um novo significado que é convencionalizado gradualmente.
A metáfora compreende o estágio inicial da mudança, em que os usuários da língua
tendem a usar itens lexicais, que designam conceitos concretos, para exprimir conceitos
gramaticais mais abstratos (HEINE, 1993) como um processo natural, uma vez que no ato
comunicacional estes conceitos são difíceis de serem internalizados pelo sujeito e transmitidos
ao(s) interlocutor(es) (MARTELOTTA, 2011).
No processo de extensão metafórica, o corpo humano é visto como domínio conceitual
fundamental e funciona como referência para a criação das metáforas. Por exemplo, usamos as
expressões “atrás” (do lat. trans ‘além’, ‘sobre’, ‘atravessado sobre’) e “frente” (do lat. frons
‘testa’), que a princípio expressam valores espaciais para nos referir à posição de algo ou
alguém em relação à posição do corpo do sujeito no discurso.
A inferência e a generalização são estágios médios no processo de mudança semântica.
Na primeira, a mudança é condicionada ao falante que pressupõe as necessidades de seu
interlocutor. Quando a mudança se encontra neste estágio, o item lexical ou a construção já
passou do domínio concreto para o abstrato, mas ainda mantém certas propriedades linguísticas
do item de origem. O falante diz algo e espera que o ouvinte infira o significado do que ele quis
dizer.

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Na generalização, por sua vez, ocorre a perda de algumas características específicas
do item lexical, que passa a ser mais generalizado e passível de ser adotado em outros contextos
discursivos. Contudo, Bybee (1994) afirma que não se sabe com certeza se a generalização pode
ser considerada um mecanismo de mudança de fato ou se ela é apenas uma consequência de
algum outro mecanismo.
A harmonia e a absorção do contexto são descritas como mecanismos característicos
de um estágio avançado no processo de mudança semântica, em que o item lexical já perdeu
muito de seu conteúdo semântico original e, devido ao uso frequente, teve seu novo valor
gramatical convencionalizado. Desta forma, a autora sugere que, ao completar os cinco
estágios, o processo de mudança semântica foi “concluído”, resultando na criação de um novo
item ou de uma nova construção.

A gramaticalização

De acordo com Heine e Kuteva (2007), o fenômeno da gramaticalização é


caracterizado pelo desenvolvimento de formas gramaticais a partir de formas lexicais, ou
quando uma forma ou construção gramatical torna-se ainda mais gramaticalizada na língua.
Nesse sentido, o principal objetivo da teoria da gramaticalização é “descrever como formas
gramaticais e construções surgem e se desenvolvem através do espaço e do tempo, e explicar
porque elas são estruturadas do modo que são” (HEINE e KUTEVA, 2007, p. 16).1
Os autores propõem quatro princípios básicos que estão envolvidos no processo de
gramaticalização: (i) extensão, quando um item lexical adquire novos usos em outros
contextos; (ii) desemantização, quando há perda de conteúdo semântico, permanecendo apenas
alguns traços do significado lexical básico; (iii) decategorização, em que um certo item lexical
perde suas propriedades morfossintáticas em vista da nova função gramatical adquirida; e (iv)
erosão, quando há a perda de substância fonética-fonológica decorrente a integração da palavra
gramaticalizada à outra e passa a funcionar como um clítico ou afixo.
Apesar de esses critérios implicar perda de propriedades linguísticas do item lexical
fonte, o novo item ou construção gramatical representa também ganhos funcionais, uma vez
que ele passa a desempenhar outras funções na gramática da língua. Desse modo, o contexto

1
“to describe how grammatical forms and constructions arise and develop through space and time, and
to explain why they are structured the way they are” (HEINE e KUTEVA, 2007, p. 16).
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exerce uma função fundamental e decisiva, pois é por meio do uso e da frequência que o novo
significado da forma ou construção gramatical se regularizará e se estabilizará na língua.
O processo de transferência metafórica é uma das principais características do
processo de gramaticalização, apontado por Heine e Kuteva (2007), que explicaria a
reinterpretação induzida pelo uso e contexto de uma nova forma ou construção gramatical. Um
item lexical do domínio concreto é reinterpretado via transferência metafórica quando passa a
ser usado em um domínio mais abstrato, isto é, gramatical. Ao ter o seu uso estendido para
outro contexto, o item lexical começa a perder as características semânticas de sua forma mais
antiga, e por meio do aumento da frequência de uso pode levá-lo a adquirir novas funções dentro
da gramática, como parte do mecanismo de inovação e adaptação da língua para codificar e
exprimir novos conceitos emergidos de novas situações sociocomunicativas de uso da língua.
De acordo com Martelotta (2011), categorias lexicais, como verbos, substantivos e
adjetivos, perdem sua característica referencial e concreta, e passa a ser um elemento categorial
e abstrato, assumindo funções gramaticais, com a finalidade de expressar diferentes conteúdos
gramaticais que se relacionam com categorias cognitivas mais gerais, como posse, espaço,
tempo, agente, paciente, causa, qualidade, etc. Ainda conforme o autor propõe, ao assumirem
estas funções, os elementos gramaticais adquirem características específicas, se tornando mais
regulares, mais fixos e mais dependentes das estruturas morfológicas e sintáticas nas quais eles
ocorrem e são exigidos.
Como tem sido apontado por diversos autores, entre os estão quais Heine e Kuteva
(2007), a gramaticalização não acontece apenas com itens originalmente lexicais. O processo
pode ocorrer com itens já gramaticais que se tornam ainda mais gramaticalizados na língua,
como afixos de caso a partir de adposições (preposições e posposições), desenvolvimento de
voz passiva a partir de nominalizações (Givón 2001), entre outros.
Um dos princípios da teoria da gramaticalização é a unidirecionalidade como parte do
processo de desenvolvimento de formas gramaticais, como é ilustrado em (1). Isso significa
que o novo item ou construção gramaticalizada será sempre originada a partir de uma forma
mais lexical, e nunca o contrário. O princípio da unidirecionalidade, por sua vez, opera de modo
gradual na língua, abrangendo diferentes estágios diacrônicos de desenvolvimento e integração
de novas elementos gramaticais (CASSEB-GALVÃO ET AL., 2007; HEINE e KUTEVA,
2007; MARTELOTTA 2011).

(1) ITEM LEXICAL > CLÍTICO > AFIXO > PERDA/ZERO

14
Bybee (2007) concorda que, pelo processo de gramaticalização, formas gramaticais
são comumente desenvolvidas de morfemas lexicais e se tornam mais recorrentes com o uso.
A autora afirma que não seria possível estudar as novas formas desconsiderando os contextos
nos quais elas ocorrem, pois são eles que contribuem para a criação e estabilização delas na
língua. Contudo, a autora afirma que o conceito de gramaticalização não se limita a apenas um
item mais lexical que se tornou mais gramatical. Segundo ela, a gramaticalização ocorre quando
“uma construção com itens lexicais particulares em si se torna gramaticalizada” (BYBEE, 2007,
p. 337)2. Um exemplo típico de gramaticalização é a construção be going to3 do inglês que,
inicialmente, indicava movimento espacial em contextos específicos do verbo go, ‘ir’, mas se
gramaticalizou, passando a desempenhar a função de auxiliar de futuro, expandindo os seus
contextos de uso, como mostra as sentenças em (2).

(2) a. Maria is going to school4


b. Maria is going to travel next weekend5

No primeiro exemplo, go é o verbo principal da oração e implica movimento de


deslocamento espacial. No segundo, go funciona como um verbo auxiliar que indica futuro.
Grande parte de seu conteúdo semântico foi perdida na segunda oração, e o seu contexto
expandido.
Como já foi ressaltado anteriormente, a metáfora é um dos principais mecanismos de
mudança semântica que contribuem para o processo de gramaticalização. Segundo Heine
(2003), o processo de extensão metafórica ocorre de maneira unidirecional e contínua, assim
como a gramaticalização, por meio da extensão de domínios mais concretos para domínios mais
abstratos, como em (3).

(3) PERSON > OBJECT > ACTIVITY > SPACE > TIME > QUALITY6

(concreto) .......................................................... (abstrato)

2
“a construction with particular lexical items in it becomes grammaticized” (BYBEE, 2007, p. 337).
3
estar indo para; auxiliar do futuro.
4
Maria está indo para casa.
5
Maria irá viajar no próximo final de semana.
6
(HEINE et al., 1991, p. 48)
15
Dessa forma, a construção be going to do inglês teria sido estendida do domínio de
espaço (mais concreto) para o domínio de tempo (mais abstrato).

Quadro 2: Correlação entre categorias metafóricas, classes de palavras e tipos de constituintes


(HEINE ET. AL, 1991, p.53, apud CASSEB-GALVÃO ET AL., 2007, p.45).

Estas categorias semânticas são manifestadas na língua por meio de diferentes


constituintes sintáticos. Ao ocorrer uma mudança de categoria, é comum que também ocorra
mudanças morfossintáticas em relação ao constituinte do qual faziam parte, como demonstrado
no quadro 2.
Outro fator fundamental para o processo de gramaticalização de uma construção,
segundo Bybee (2007), seria a repetição. Segundo a autora, a repetição é “o processo pelo qual
uma sequência de palavras ou morfemas frequentemente utilizados se tornam automatizados
como uma única unidade de processamento” (BYBEE, 2007, p. 337)7. Isto é, ainda tomando
como exemplo a construção be going to, percebemos que, após o processo de gramaticalização,
não podemos mais separar os itens que a constituem, pois isto poderia prejudicar o seu efeito
de futuridade.
O processo de repetição desempenha funções essenciais para a consolidação da
gramaticalização, da regularização e da estabilização de padrões oracionais na língua, uma vez
que a frequência do novo uso promove: (i) o enfraquecimento semântico e mudanças sintáticas,
morfológicas, fonéticas e fonológicas; (ii) o aumento da possibilidade de uso em novos e
diferentes contextos; (iii) e a preservação de características morfossintáticas de estruturas
antigas (BYBEE, 2007, p. 338). Martelotta (2011), por sua vez, afirma que é comum para os
usuários da língua recuperar estruturas já existentes e disponíveis para expressar novos

7
“the process by which a frequently used sequence of words or morphemes becomes automated as a
single processing unit” (BYBEE, 2007, p. 337).
16
conceitos e ideias, a medida em que as necessidades sociais vão se modificando e novas
necessidades sociocomunicativas surgindo.
Neste capítulo, buscamos mostrar como a mudança semântica pode atuar no processo
gramaticalização, embora processos distintos de mudança linguística incidam sobre
componentes específicos da gramática, como morfologia e fonética e fonologia. No processo
de gramaticalização, a metáfora ou transferência metafórica, como um dos principais
mecanismos de mudança semântica (BYBEE 1994), torna possível exprimir conceitos mais
abstratos por meio de itens lexicais que designam entidades concretas, levando
consequentemente à generalização gradativa e ao desbotamento semântico (bleaching
semantic) em diferentes estágios. Destacamos o papel da frequência e repetição no uso de
determinadas construções gramaticais como partes do processo de gramaticalização, à medida
que contribuem para a inovação e adaptação do sistema linguístico para atender às novas
necessidades sociocomunicativas dos falantes.

17
MODO E MODALIDADE

Segundo Bybee (1994), modo e modalidade não podem ser definidos de modo
semelhante a outras categorias gramaticais como tempo e aspecto. A autora afirma que seria
quase impossível criar uma definição concisa para o domínio da modalidade. Contudo, uma
caracterização aceita por ela é a que diz que a “modalidade é a gramaticização das atitudes e
opiniões (subjetivas) dos falantes”8 e o modo é o “conjunto de funções diacronicamente
relacionadas [...] e um real entendimento da modalidade emergiria de um estudo destas relações
diacrônicas”9 (BYBEE, 1994, p.176). Em outras palavras, a modalidade refere-se às diferentes
perspectivas e atitudes do falante perante o evento denotado pelo verbo, caracterizando o
domínio conceitual, enquanto modo envolve os meios formais pelos quais essa categoria
gramatical é codificada na língua, tornando sua expressão e marcação obrigatória (idem, p.
181). Ainda em termos formais, a modalidade dispõe de vários mecanismos linguísticos, entre
os quais lexicais, como verbos modais e advérbios de modo, e gramaticais, como construções
e expressões modais, ao passo que a categoria de modo, quanto gramaticalizada na língua,
envolve um conjunto limitado de morfemas para essa função.
Considerando a fluidez e a capacidade de adaptação do sistema linguístico diante de
novas necessidades sociocomunicativas de seus falantes, compreendemos que as mudanças
diacrônicas são resultados do surgimento e renovação do próprio sistema linguístico, a fim de
manter contrastes estruturais responsáveis pela estabilidade e regularidade de padrões
gramaticais que emergem dos usos linguísticos a partir de contextos discursivo-pragmáticos
específicos. Desse modo, novas categorias gramaticais podem surgir e desencadear mudanças
linguísticas progressivas e graduais no sistema linguístico, como é o caso de modo e
modalidade. Bybee (1994) propõe quatro tipos de modalidades existentes: (i) modalidade
orientada para o agente (agent-oriented); (ii) modalidade orientada para o falante (speaker-
oriented); (iii) epistêmica, e (iv) e subordinante.

8
“modality is the gramaticization of speakers’ (subjective) attitudes and opinions” (BYBEE, 1994,
p.176).
9
“set of diachronically related functions [...] and a real understanding of modality would emerge from
a study of these diachronic relations” (BYBEE, 1994, p.176).
18
Quadro 3: Paths of development for modalities (BYBEE, 1994, p.241).

A modalidade orientada para o agente (agent-oriented) recebe este nome devido a ideia
de haver condições externas e internas, impostas ao agente, em relação a execução da ação
descrita pelo verbo. De acordo com a autora, esta modalidade envolve, para o cumprimento da
ação predicada, as noções de: (a) obrigatoriedade, em que condições externas, regidas,
sobretudo por normas sociais, são impostas ao falante, e que podem expressar uma ideia de
obrigação forte (strong obligation), ou fraca (weak obligation); (b) necessidade, quando
condições físicas, muitas vezes não controladas, são manifestadas; (c) habilidade, quando há
aptidão interna para a realização de determinada tarefa, o que pode acionar um sentido de
possibilidade profunda (root possibility); e (d) desejo, quando há condição interna e volitiva.
Esse tipo de modalidade também é denominado de deôntico.
A modalidade orientada para o falante (speaker-oriented) faz referência as condições
que o falante impõe ao seu interlocutor para o cumprimento da ação verbal. A ação é
direcionada por uma ordem (imperative); uma negação (prohibitive); um desejo (optative); uma
exortação ou incentivo (hortative); um conselho ou alerta (admonitive); ou uma permissão
(permissive). A modalidade epistêmica, por sua vez, abrange os diferentes graus de
comprometimento e conhecimento do falante com respeito à veracidade da proposição. As
ideias expressas por esta modalidade envolvem possibilidade, probabilidade e certeza por
inferência. Conforme a autora afirma, as formas usadas nas modalidades orientada para o
falante (speaker-oriented) e epistêmica também são usadas para marcar algumas orações
subordinadas, caracterizando a última modalidade, a subordinante, ainda que esse tipo de
modalidade possa ser restrito a certas orações dependentes, como as orações condicionais e
consecutivas, revelando na mesma medida graus variados de subordinação, principalmente,
relacionado com o status finito/não finito do respectivo núcleo oracional.
A partir do estudo das modalidades, Bybee (1994) sugere que as outras três
modalidades tenham surgido da primeira (agente-oriented), como expresso no quadro 4. A

19
autora afirma haver indícios de que, conforme a modalidade orientada para o agente se
gramaticaliza, ela pode desenvolver-se em outros tipos (idem, p.181).

Valor de obrigatoriedade

Como o foco deste trabalho é a modalidade deôntica ou orientada para o agente (Bybee
1994), exploraremos o valor de obrigação que construções perifrásticas com o verbo ter têm
cada vez mais adquirido no português brasileiro, desencadeando, inclusive, outros processos de
mudança linguística, em virtude da difusão dessas construções na língua, sobretudo na
modalidade coloquial.
Bybee et ali. (1994) relatam que obrigação foi a noção mais frequentemente expressa
em seus dados na modalidade agent-oriented. O fato é explicado devido à possibilidade de
ocorrência do sentido de obrigatoriedade tanto em verbos mais lexicais (como deber, em
espanhol), quanto em verbos gramaticalizados (como should, em inglês). Contudo, a maioria
dos verbos indicando obrigação são auxiliares que se desenvolveram de verbos plenos, como
be, become, ou have10.
Ao discorrer sobre obrigação, a autora nos apresenta os tipos de obrigação que, na
língua inglesa, são mais notados, em vista da existência de vários auxiliares utilizados para
expressar esse conceito semântico e que demonstram “gradações na força da obrigação”11
(BYBEE et ali., 1994, p.186).

(5) a. You must go now.


b. You have to go now.
c. You should go now.

Em (5) a. e em (5) b., must e have to indicam uma obrigação forte (strong obligation):
Você tem que ir agora. Em (5) c., a obrigação é leve, e soa ao interlocutor como um conselho
ou aviso (weak obligation): Você deveria ir agora.
No quadro 5, mostramos o processo de desenvolvimento de outros valores semânticos
a partir de obrigatoriedade e que são, portanto, relacionados com ele.

10
ser / estar, se tornar, ou ter.
11
“gradations of strength of the obligation” (BYBEE, 1994, p.186).
20
Quadro 4: Percurso de desenvolvimento a partir de obrigação (BYBEE, 1994, p.240).

Primeiramente, este valor pode ser associado a uma intenção. Se há intenção em se


fazer algo, logo, esta tarefa ainda não foi concluída, o que indica a ideia de futuro, como um
propósito de fazer algo, possivelmente imposto por alguma circunstância externa. Depois
encontramos a obrigação como uma ordem imposta, levando ao desenvolvimento do modo
imperativo. E, por fim, a obrigação pode não ser muito forte, chegando a se tornar uma
probabilidade, que pode ser pensada e concedida.
Esses fatos mostram como certas construções oracionais marcadas por meio de certos
elementos gramaticais podem difundir-se no sistema linguístico, levando a sua generalização,
cuja ocorrência outrora restringia-se a contextos oracionais e estruturais específicos. Como foi
discutido, a generalização caracteriza-se pela perda de propriedades semânticas e
morfossintáticas do item lexical que deu origem a um elemento gramatical, cujo uso pode
tornar-se cada vez mais gramaticalizado na língua, como é o caso do verbo ter no português
brasileiro.
Um efeito da generalização de construções com o verbo ter, entre as quais se incluem
aquelas com valor deôntico, é a regularização de padrões oracionais por força da analogia.
Embora as gramáticas tradicionais afirmem que, nessas construções, o verbo ter deve ser regido
pela preposição de, como por exemplo, Eu tenho de estudar para prova amanhã, na modalidade
coloquial é recorrente o uso da variante Eu tenho que estudar para prova amanhã, em que o
elemento regente é a conjunção que similar ao padrão encontrado em orações cujo
complemento do núcleo verbal é preenchido por uma oração subordinada desenvolvida, como
é o caso de orações subordinadas completivas, por exemplo, Eu vi que ele chegou.
Neste capítulo, mostramos como as noções de modo e modalidade são distintas e são
expressas na língua. Em relação à modalidade, destacamos as diferentes tipos e valores que essa
21
categoria pode abranger na língua, com base na proposta de Bybee et ali. (1994),
principalmente, a noção de obrigatoriedade e outros valores relacionados com ela, que é o foco
deste trabalho. O capítulo seguinte trata das propriedades morfossintáticas das construções com
verbo ter com uso deôntico, diferindo substancialmente de outras construções que têm esse
verbo como núcleo, como são as orações existenciais, possessivas e perífrases verbais que
denotam pretérito mais que perfeito.

22
MORFOSSINTAXE DE CONSTRUÇÕES COM O VERBO TER

Para que possamos compreender o processo de mudança semântica e de


gramaticalização pelos quais o verbo ter passou e tem passado em português, é preciso conhecer
a sua história na língua ancestral, isto é, o latim, na qual corresponde ao verbo tenere. No latim
clássico, o verbo tenere coexistia com o verbo habere, em que ambos desempenhavam a função
de exprimir posse, fazendo referência à posse material no sentido de ‘possuir’.
Contudo, por meio da literatura, Sampaio (2000) encontrou passagens em que ambos
os verbos se referenciavam a coisas não-materiais, como sentimentos. Ainda no latim clássico,
percebeu-se a presença de habere em algumas perífrases verbais, indicando um “leve” sentido
de obrigação. Seu uso nestas perífrases se intensificou quando o latim passou a reunir a noção
de aspecto e tempo em uma forma verbal. Desde então, habere passou a indicar, não só o sentido
de posse da ação concluída, mas o sentido de continuidade desta ação no presente. Já no latim
vulgar, Sampaio (2000) encontrou, nos documentos analisados, recorrências do verbo com
sentido impessoal, de existência.
Seguindo o estudo de Sampaio (2000), os verbos tenere e habere mantiveram o
primeiro significado de posse durante a época do português arcaico. Contudo, no início do
século XIII, época em o português começou a se desenvolver, é possível notar uma preferência
de haver sobre ter. Durante o século XIII, os usos se mantiveram, e assim como no latim, haver
e ter eram usados em perífrases verbais (haver / ter + particípio), indicando a posse de ações
concluídas.
Neste período, devido ao esvaziamento semântico do sentido de posse, haver e ter
passaram a ocorrer em contextos perifrásticos indicando tempo passado, o pretérito mais que
perfeito composto, que se trata de uma ação que começou no passado, mas tem seu uso
estendido para o presente. Entretanto, este fenômeno, característico do português arcaico não
se estendeu ao português moderno, e o lugar de haver foi preenchido por ter. Desde então,
haver passou a ocorrer apenas em contextos do pretérito mais que perfeito simples.

(4) a. Lucas havia acordado mais cedo.


b. Lucas tem acordado mais cedo.

23
Em (4a), a construção perifrástica indica uma ação acabada, podendo ter o elemento
havia substituído por tinha. Em (4b). isto não acontece. Não podemos substituir tem por haver,
uma vez que se trata de uma ação que se estende para o presente.
Do ponto de vista morfossintático, uma primeira mudança pode ser observada no
estatuto lexical do verbo ter, isto é, de verbo pleno ele passou a ser usado como verbo auxiliar.
O desenvolvimento diacrônico de verbos auxiliares a partir de verbos lexicais plenos é atestado
em diversas línguas, como mostra Heine (1993). Esses verbos exprimem, em sua maioria,
conceitos semânticos relacionados com movimento, ação, posição, posse, estado, etc., e são
usados para expressar diferentes contrastes aspectuais e temporais.
Em perífrases verbais, outra característica formal observada no uso de verbos
auxiliares diz respeito às informações gramaticais que, geralmente, são marcadas no núcleo do
predicado, como número, pessoa, tempo, modo, etc., por meio de concordância entre o verbo e
o seu argumento (externo ou interno). Em português, a concordância é entre o verbo e o sujeito,
enquanto outras línguas a concorrência ocorre entre o verbo e seu objeto direto. Nesses termos,
é o verbo auxiliar que reúne e carrega consigo traços morfossintáticos, enquanto que o verbo
principal é o que veicula o conteúdo lexical e que, na maioria das vezes, vem expresso em uma
forma nominal ou não finita (infinitivo/gerúndio/particípio), como é o caso do português.
Ao observarmos as construções perifrásticas com o verbo ter, em português, que
exprimem modalidade deôntica, o verbo lexical ocorre na sua forma nominal, isto é, no
infinitivo, como em (5a), ao passo que em outras perífrases que denotam tempo passado e
aspecto perfectivo, a o verbo lexical é usado no particípio, exemplo (5b).

(5) a. Você temAUX que chegarINFIN cedo


b. Você tinhaAUX chegado.PART cedo

No século XIV, o sentido de posse de haver e de ter ainda era forte. Haver implicava
obter algo, e ter implicava manter algo. Neste mesmo século, haver passou a indicar
necessidade, quando usado em perífrases juntamente com o particípio, e também podia ser
interpretado como um compromisso com uma ação futura. Já no século XV, há uma
predominância de ter em relação a haver quando se tratava de posse e nas perífrases com
particípio.
Originalmente, as perífrases verbais formadas por haver / ter + particípio, conforme
Sampaio (2000), indicavam a posse de uma ação concluída, ou de um ponto atingido. No século

24
XIX, o uso de haver seguido do infinito marcava um certo compromisso com uma futura ação,
como em Há de chover. Por outro lado, o uso de ter seguido do infinitivo indicava uma
necessidade que independia da vontade de quem a praticou ou a praticaria, se tornando uma
obrigação, como em Tenho de trabalhar. Mas, foi apenas durante o século XX que seu uso se
consolidou na literatura. Neste mesmo século, já eram raras as ocorrências de haver como
auxiliar do passado mais que perfeito na língua falada.
Atualmente, o verbo ter tem expandido seu uso para outros domínios conceituais,
como o de modalidade, caracterizando o que tem sido chamado em teoria da gramaticalização
como dessemantização, isto é, a perda de propriedades conceituais do item lexical de origem,
levando ao desbotamento semântico (bleaching semantic) gradual, tendo como consequência o
uso generalizado desse item na língua, sem levar em consideração as restrições impostas pelo
contexto estrutural e as especificidades do conteúdo proposicional determinadas pelo uso
discursivo-pragmático. Um exemplo desse processo é o verbo auxiliar estar, em português, que
se originou do verbo stāre em latim e significava a posição ‘estar.em.pé’12. Contudo, nos dias
atuais, os falantes não são capazes de inferir ou identificar algum traço semântico relativo à
posição vertical a partir do forma lexical estar em virtude do processo de desbotamento
semântico que esse verbo passou no decorrer de sua história e pelo uso generalizado em
diversos tipos de predicados.
Em síntese, Barros (2012), em sua dissertação sobre o verbo ter, com base no estudo de
Sampaio (2000), afirma que houve uma “invasão de ter em contextos antes reservados a
(h)aver” (p. 64) no decorrer da história, e ressalta, conforme defendido por Almeida (2006),
que a trajetória de ter é resultado de um processo gradual de gramaticalização, em que o verbo
partiu de principal, passando pelo estágio de “(semi)auxiliar”, e alcançou o estágio de
“verdadeiro auxiliar” (p. 65).

12
https://pt.glosbe.com/pt/la/estar (Acessado em 20/
25
ANÁLISE E DESCRIÇÃO DOS DADOS

Descrição do corpus de pesquisa

O corpus de análise desta pesquisa é formado por oito entrevistas orais feitas com
moradores do município de Barra do Garças, Mato Grosso (MT). No total, quatro pessoas foram
entrevistadas, e todas concordaram, via documento escrito, em colaborar com a pesquisa e em
ter suas respostas divulgadas. As outras quatro entrevistas foram selecionadas do corpus do
Grupo de Estudos em Linguística Funcional do Araguaia (GELFA), do Campus Universitário
do Araguaia (CUA), da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), coordenado pela
professora Dr.ª Lennie Aryete Dias Pereira Bertoque. Os dados estão disponíveis para acesso
dos acadêmicos e pesquisadores integrantes do grupo, mas ainda não estão disponíveis à
comunidade em geral.
Entre os entrevistados, quatro são do sexo feminino e quatro são do sexo masculino.
As realidades socioeconômicas são diversas, bem como as idades, que variam entre 13 e 62
anos. Para realização deste trabalho, o único critério sociolinguístico adotado foi o de
entrevistar pessoas que morassem em Barra do Garças há, no mínimo, dez anos, para
compreender como o fenômeno em análise acontece nesta cidade. Não optamos por estabelecer
outras variáveis sociolinguísticas, como idade e escolaridade, por exemplo, pois o foco não era
perceber e padronizar a fala de um determinado grupo social, mas compreender as ocorrências
do verbo ter na comunidade de fala, em geral.
As entrevistas têm cerca de quarenta e cinco minutos cada, – algumas mais, outras
menos – formando um corpus de dados de fala com média de 368 minutos.

O verbo ter

Ao estudar a história do verbo ter, percebemos que ele se trata de um verbo


extremamente produtivo na língua portuguesa. A recorrência de uso ao longo da história fez
com que o seu significado primitivo fosse expandido a outros contextos linguísticos. Em
consulta ao dicionário, são encontradas as seguintes definições:

1. Ter a posse de; possuir. 2. Poder dispor de: ter férias. 3. Segurar nas mãos. 4. Trazer
consigo. 5. Manter; ocupar: ter um cargo. 6. Conter. 7. Ser composto ou formado. 8.
26
Apresentar, trazer: ter cabelos brancos. 9. Apresentar algo semelhante a: Tem os olhos
da mãe. 10. Ser dotado de: ter boa-fé. 11. Gozar, desfrutar: ter saúde. 12. Sofrer de.
13. Experimentar (sensação, sentimento, etc.) 14. Elaborar mentalmente: ter uma
ideia. 15. Proceder com: ter cautela. 16. Dar a luz. 17. Receber: ter muitos
convidados. 18. Tomar (12): ter aula de francês. 19. Receber (castigo, prêmio,
remuneração, etc.). * Impess. 20. Pop. Haver, existir. T.i. 21. Ter necessidade ou
obrigação de; dever, precisar: Tenho de viajar. [Nesta acepç., tb. se usa seguido de
que: Tenho que viajar.] T.d.i. 22. Trazer consigo ou em si (lit. ou fig.). 23. Guardar,
conservar. 24. Apresentar: Tinha o rosto pálido. 25. Considerar; julgar: Sempre o tive
por tolo. T.c. 26. Contar (anos). Int.27. Ser possuidor de bens, recursos financeiros,
etc. P. 28. Segurar-se; manter-se: ter-se de pé. 29. Considerar-se (FERREIRA, 2008,
p. 772).

Assumindo que ter poderá aparecer nos contextos comunicativos com os diversos
valores semânticos, conforme indicados pela sua definição no dicionário, nós focalizamos
quatro conceitos principais: (a) posse (concreta ou abstrata); (b) existência impessoal; (c)
auxiliar em perífrases verbais, exprimindo aspecto perfectivo, e (d) obrigatoriedade
(modalidade deôntica). Esse recorte metodológico quanto aos usos do verbo ter no corpus
analisado foi necessário a fim de que pudéssemos aferir a frequência com a qual ele ocorre na
língua falada com diferentes valores semânticos e que mostramos a sua distribuição em
gráficos. No total, foram contabilizadas 770 ocorrências do verbo, em 368’ de conversa, ou
seja, a cada minuto, ele surgia na conversa pelo menos duas vezes.

Gráfico 1: Valores assumidos por ter.


O gráfico 1 representa a porcentagem de ocorrências do verbo de acordo com o valor
semântico que ele assumiu. A maior recorrência de ter foi com sentido de posse. No entanto, é
necessário afirmar que esta posse nem sempre se trata de uma posse literal e concreta, como em
(6). Em (7), por exemplo, encontramos ter com valor equivalente a dar à luz; parir. Em (8),
podemos substituir o verbo por viver; experienciar, e, em (9), por sentir ou desejar.

(6) [...] ele tinha uma chácara [...]


27
(7) [...]eu ia ter mais filho...
(8) [...]adolescência a gente quase não teve mesmo...
(9) [...]eu tenho vontade de estudar...

Em todos esses casos, observamos que os usuários se apropriam do sentido de ter por
meio de associação metafórica e o utilizam em contextos julgados por eles semelhantes: o filho
lhe “pertence” de alguma forma, uma vez que ele está sob a sua responsabilidade e sob os seus
cuidados; a adolescência é um período da vida pelo qual as pessoas passam, mas que é pessoal,
e por isso lhes pertence; e, por fim, os desejos, as vontades e os sentimentos, que também são
únicos e pessoais, podendo ser encaixados no status de posse. Em teoria da gramaticalização,
conforme postula Heine (2003), a metáfora é concebida como um dos principais mecanismos
atuantes no processo de extensão e a subsequente generalização de itens gramaticais oriundos
de itens lexicais, permitindo com que conceitos gramaticais abstratos, como é a posse, sejam
expressos por meio de itens lexicais que designam conceitos concretos.
A segunda maior ocorrência de ter abrande o conceito de impessoalidade, com
significado de existência. Retomando a discussão do segundo capítulo, realizada por Sampaio
(2000), a mudança de posse para o sentido de existência impessoal é justificada pela mudança
do sujeito, isto é, a ausência de um argumento formal. Se analisarmos a estrutura argumental
do ver ter, em seu valor possessivo, encontramos a seguinte estrutural predicativa:

(10) alguém – TER – algo

(SUJEITO) (OBJETO DIRETO)

Teoricamente, o usuário da língua, ao ouvir o verbo ter referente a posse, espera


encontrar um ser vivo na função de sujeito. As orações (10) e (11), extraídas do corpus de
pesquisa, demonstram exatamente a mudança ocorrida em relação ao sujeito.

(10) [...]cada fazenda tinha uma escolinha que a gente estudava...


(11) [...]a nossa cidade aqui hoje aqui era pra ter uma saúde de exemplo e não tem...
Colocar exemplos que não há sujeito, por exemplo, Tinha muita gente esperando lá

28
Em (10), encontramos cada fazenda ocupando a posição de sujeito. Em (11), a nossa
cidade exerce esta função. Portanto, devido a este rompimento com a estrutura argumental
original do verbo, houve uma adaptação na organização sintática das orações, em que ter
assumiu o valor impessoal de existência. Ou seja, ao dizer que cada fazenda tinha, criou-se a
construção tinha em cada fazenda, recuperando, desta forma, o valor existencial anteriormente
atribuído a haver.
Em terceiro lugar, encontramos o verbo ter com significado de obrigação. Neste
estágio, o verbo ter passou a adquirir outros valores semânticos, como o de modalidade
deôntica, decorrente do contínuo e gradual processo de gramaticalização, em que ele tem se
tornado cada vez mais gramaticalizado no português brasileiro. Contudo, como mostrado n
Capítulo 3, a estrutura morfossintática desse tipo de oração difere substancialmente daquelas
que exprimem posse e impessoalidade/existência, em que o complemento do verbo auxiliar ter
ocorre na forma de uma oração dependente e o seu núcleo é expresso pela forma nominal
infinitiva, exemplos (12) e (13), em contraste com as perífrases verbais que denotam tempo-
aspecto, nas quais o verbo lexical é expresso no particípio.

(12) [...]acho que (a cidade) tinha de crescer mais...


(13) [...]você tem que explicar...

Uma das hipóteses que poderia explicar uma mudança semântica como a de ter
possessivo para ter deôntico se relaciona com a ideia de alguém possui alguma necessidade,
uma vez que a obrigação é impulsionada por necessidades (externas), impostas pelas normas e
convenções da sociedade. Construções oracionais em que ter aparece com valor de modalidade
deôntica poderiam, assim, ser parafraseadas como em (14), o que explicaria o percurso de
extensão semântica desse verbo.
(14) alguém – TER – necessidade

Eu tenho a necessidade de trabalhar.

Eu tenho ø de/que trabalhar.

Como foi discutido no Capítulo 2, as construções com verbo ter expressando


modalidade deôntica podem variar do ponto de vista estrutural, em que o núcleo da oração

29
principal pode ser regido pela preposição de ou que. Segundo as gramáticas normativas do
português, o núcleo dessas orações deve ser regido pela preposição de, ao passo que padrão
mais frequente é aquele em que é usada a preposição que. Esse mero contraste, na verdade,
mostra a atuação de outro processo de mudança linguística que é a analogia, visto que sua
função é regularizar padrões distintos em relação com o que é mais frequente e menos marcado.
Nesse caso, a regularização ocorreu por semelhança estrutural com orações dependentes que
funcionam como complemento de outro verbo que são introduzidas pela conjunção
subordinativa que13, como afirmam Paiva e Silva (2014).

Acreditamos, ainda, que uma explicação possível para a soberania da construção ter
que + infinitivo na modalidade falada envolva a produtividade do elemento que na
constituição de diferentes perífrases de modalização no PB, como exemplificam
parecer que, dizer que, querer que. Por analogia com construções desse tipo, os
falantes tenderiam a privilegiar a construção ter que + infinitivo e reduzir,
gradativamente, o uso da sua concorrente ter de + infinitivo (BARROS e PAIVA,
2014, p. 100).

Encontramos ainda o verbo ter como auxiliar do passado mais que perfeito, ou
auxiliar do perfectivo. Em construções desse tipo, Bybee (1994) afirma que o falante, ao
concluir uma ação, entende que ele possui esta ação concluída. Este pensamento pode ser
percebido por meio das expressões comuns do inglês, have/get something done14. A pessoa
entende que ele possui a ação que foi concluída (15). Com o aumento da frequência de uso,
ocorre, novamente, uma adaptação na estrutura morfossintática do verbo.

(15) alguém – TER – ação concluída ou em andamento

Lucas teve o seu almoço feito.

Lucas tinha feito o seu almoço.

Por fim, encontramos algumas ocorrências de ter com outros significados, (16) e (17),
e que podem ser substituídas por verbos como fazer (impessoal) e poder, mas que não foram
exploradas neste trabalho por não ser o foco principal.

13
Dentre as 126 ocorrências de ter deôntico, no corpus analisado, a construção ter de ocorre apenas uma vez.
Todas as outras ocorrências são acompanhadas por que.
14
ter alguma coisa feita (pelo falante ou por outra pessoa).
30
(16) [...] só que eu vivi com ele tem dezessete (anos)...
(17) [...] coisas de rua aí que ninguém tem como controlar...

Em síntese, retomamos o quadro 2, citado no Capítulo 1, em que a correlação entre


categorias gramaticais e conceituais foi demonstrada, podemos estabelecer o percurso gradual
de mudança pelo qual o verbo ter tem passado. É importante destacar que o fato de adquirir
novos valores semânticos não implica necessariamente na perda ou eliminação de um valor
mais antigo, visto que diferentes conceitos semânticos reunidos num mesmo item e/ou
construção gramatical podem coexistir, mas apenas mostra a ampliação e difusão de novos usos.

SIGNIFICADOS DE TER CATEGORIA CONCEITUAL EXEMPLO

Possessivo OBJETO “[...] o pessoal tinha muito


dinheiro...”
Existencial ESPAÇO “[...] na sala de aula agora tem
nove alunos...”
Obrigação ATIVIDADE “[...] eu tinha que ensinar pra
ele...”
Auxiliar do perfectivo TEMPO “[...] ele já tinha almoçado...”
Quadro 5: Esquema de transferência metafórica do verbo ter.

Seguindo a hierarquia conceitual (18) e o princípio da unidirecionalidade do processo


de gramaticalização, conforme foi proposto por Heine et. al (1991), uma categoria poderia ser
transferida para a categoria seguinte, e nunca para a anterior.
(18) PESSOA > OBJETO > ATIVIDADE > ESPAÇO > TEMPO > QUALIDADE

(concreto) .......................................................... (abstrato)

Dessa forma, ter com sentido de posse teria sempre o sentido transferido para a
próxima categoria: OBJETO – ESPAÇO; OBJETO – ATIVIDADE; OBJETO – TEMPO.

Ocorrências de ter e dever com usos modais deônticos

O português apresenta como protótipo para exprimir modalidade deôntica o verbo


dever. Entretanto, com a emergência de construções com verbo ter em português, sobretudo na

31
modalidade coloquial da língua, percebemos a partir da amostra de dados coletada um
decréscimo quanto à frequência de seu uso, revelando uma substituição gradativa do verbo
dever pelo verbo ter, como ilustra o Gráfico 2.

Gráfico 2: Ocorrências do ver dever como modal deôntico em relação ao verbo ter.

O gráfico 2 demonstra a recorrência de ter em comparação com dever, em contextos


que indicam algum tipo de obrigação. Em 98% das situações que expressam obrigação, o falante
optou pelo uso de ter. O verbo dever, na maioria das suas ocorrências, foi utilizado com valor
epistêmico, como demonstrado em (18) e (19).

(18) [...]deve ter uns cinco anos por aí...


(19) [...]deveria ter uns três metros de altura cada lado...
O valor epistêmico, assumido por dever, e o valor deôntico, assumido por ter,
demonstra o nível comprometimento do falante com o Estado de Coisas (EsCo). Em (18) e em
(19), o falante não se compromete com a realidade dos fatos. Talvez eles sejam verdadeiros,
talvez não sejam. O uso de dever, nestes casos, independe da veracidade da informação. Em
(20), ter exerce a função que originalmente pertencia a dever, indicando uma obrigação. Neste
caso, o verbo está comprometido com EsCo, uma vez que a ação se trata de um fato que é, na
maioria das vezes, orientada para o agente.

(20) [...]você tem que tomar muito cuidado...

32
Assim, conforme os dados sugerem, em face da frequência de construções com verbo
ter com valor de modalidade deôntica, tem havido gradativamente o deslocamento do verbo
dever para o domínio da modalidade epistêmica. Uma análise mais acurada sobre esses usos
revelaria se há implicações quanto ao grau de comprometimento do falante com veracidade da
proposição.

33
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio desta pesquisa, foi possível perceber os diversos usos do verbo ter no
português brasileiro, principalmente na variedade falada em Barra do Garças, MT. A sua
produtividade na língua indica que ele tem se tornado uma espécie de ‘curinga’, assim como o
verbo get, no inglês, uma vez que seus usos podem ser aplicados em diferentes contextos
discursivo-pragmáticos que determinam a configuração de padrões oracionais na língua.
Desse modo, a trajetória diacrônica do verbo ter na língua é resultado de um processo
contínuo e gradual de gramaticalização, em que dentro dos princípios dessa teoria, demonstrou-
se que seu uso foi expandido e adaptado para as mais diversas situações sociocomunicativas.
Ainda que haja evidências de mudanças diacrônicas substanciais, em português,
principalmente na variedade falada no Brasil, quanto à emergência de diferentes padrões
oracionais que se desenvolveram a partir do verbo ter, observamos que ele tem coexistido com
o dever, apontando para uma possível mudança semântica em que este verbo pode deixar de ser
usado em contextos deônticos, deslocando-se para contextos de modalidade epistêmica. Além
do verbo dever, é possível também que construções com o verbo ter expressem modalidade
epistêmica, como em [...] coisas de rua aí que ninguém tem como (pode, consegue) controlar.
Com base no corpus analisado, observamos que o verbo ter tem se tornado cada vez
mais gramaticalizado em português e as construções em que ele é núcleo têm sido submetidas
a outros processos de mudança linguística por meio da analogia, considerando que o uso dessas
construções tem sido frequentes e se regularizado na língua de modo similar a outros tipos e
estruturas oracionais.
Do ponto de vista do ensino da língua portuguesa na educação básica, é importante
ressaltar que estudos desse tipo podem auxiliar o professor a mostrar as diversas alternativas
que a língua dispõe aos falantes ao lado daquelas privilegiadas pela norma padrão escrita.
Assim, os resultados dessa pesquisa, além de mostrar o caráter dinâmico e adaptativo do sistema
linguístico diante do surgimento das novas necessidades sociocomunicativas, destacou também
como o processo de mudança linguística pode ser explicado a partir da teoria da
gramaticalização.

34
REFERÊNCIAS

BARROS, Elzimar de Castro Monteiro de; PAIVA, Maria da Conceição de. Construção ter
que + infinitivo: modalidade e propriedades gramaticais do verbo ter. ESTUDOS
LINGUÍSTICOS, São Paulo: 43 (1): p. 91-102, jan-abr 2014.

BYBEE, Joan. Frequency of use and organization of language. Oxford: Oxford University
Press Inc, 2007.

________. Língua, uso e cognição. São Paulo: Cortez, 2016.

________; PERKINS, Revery; PAGLIUCA, William. The evolution of grammar: tense,


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