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LUIZ NAZARIO

PIER PAOLO PASOLINI:


UMA SEMIOLOGIA DA REALIDADE
Bolonha é uma bela cidade que, nos
tempos medievais, possuía torres
altíssimas, pelo que hoje os italianos
gostam de chamá-la de “a Nova York da
Idade Média”.
Bolonha medieval
Bolonha medieval
Algumas torres sobreviveram em meio ao
tráfego poluidor, reformadas e acomodadas no
emaranhado de fios elétricos e cabos de
ônibus. A mais alta é a Asinelli, com 97
metros de altura e 498 degraus. Ela é um dos
pontos turísticos da cidade e serve ao ritual
de formatura dos universitários bolonheses.
Bolonha é também a cidade dos pórticos, que cobrem
38 km dentro de seus muros. Num dia de chuva
podemos contornar a cidade sem guarda-chuva,
protegidos por estruturas cujas origens também
remontam à Idade Média, quando estudantes de toda
a Europa iam lá frequentar a primeira universidade
europeia e dormiam sob tapumes de madeira que, com
os séculos, incorporaram-se à arquitetura da cidade.
Os pórticos de Bolonha
No centro de Bolonha, em frente à
Tipografia Sordomuti, numa casa
comum, nasceu o futuro poeta, escritor
e cineasta Pier Paolo Pasolini.
A placa foi colocada em junho de 2004 pela
Prefeitura de Bolonha, 29 anos após a
morte de Pasolini. Passaram-se quase três
décadas antes que Bolonha decidisse
homenagear oficialmente com esta placa
um de seus filhos mais célebres.
A razão é que a celebridade de Pasolini,
nascida nos anos 50, sempre foi
acompanhada por agressões, censuras e
perseguições, que se intensificaram nas
décadas de 60-70 (33 processos judiciais ao
todo) e culminaram com seu brutal
assassinato. A vida e a obra de Pasolini
compõem tanto uma hagiografia pós-
moderna quanto uma crônica policial.
Pier Paolo era filho de um tenente da
infantaria fascista chamado Carlo Pasolini,
descendente de uma antiga família da
România; e de uma professora de
mentalidade liberal, proveniente de uma
família camponesa de Friuli, chamada
Susanna Colussi.
Carlo Pasolini
Susanna Colussi
Carlo e Susanna formariam um casal
perfeito se Susanna amasse Carlo. Mas ela
não o amava - o que fez da vida conjugal
deles um inferno. Durante as brigas
frequentes do casal, Pasolini tomava o
partido da mãe, discreta e doce, contra os
ataques de cólera do pai.
A homossexualidade de Pasolini manifestou-
se ainda na primeira infância. Mal sabendo
falar, ele sentiu uma estranha atração pela
parte de trás dos joelhos dos garotos.
Inventou uma palavra para exprimir o forte
desejo que experimentava à visão daquela
parte do corpo masculino: “Teta veleta”.
1925: Pasolini aos três anos de idade
Em função de sua carreira, Carlo obrigava a
família a sucessivos deslocamentos: a
infância e a adolescência de Pasolini
passaram-se em Bolonha, Belluno,
Conegliano, Sacile, Idria, de novo em Sacile,
Cremona, Reggio Emilia e, finalmente, de
novo em Bolonha.
1932: Pasolini aos 10 anos de idade
1939-1945

Durante a Segunda Guerra, o irmão de


Pasolini, Guido, engajado num grupo de
resistência nacionalista de Friuli, morreu
numa disputa regional com outro grupo de
resistência, de comunistas iugoslavos. E o
pai Carlo retornou da campanha fascista na
África ainda mais amargo, entregando-se à
bebida e à depressão. Pasolini refugiava-se
em Casarsa della Delizia, no Friuli, no norte
da Itália, no velho casarão dos Colussi.
Região do Friuli Casarsa della Delizia
Pós-guerra

Na terra natal de Susanna, Pasolini


escrevia poesias, pintava quadros e
convivia com os jovens camponeses que se
banhavam no rio e se masturbavam
coletivamente. Ele descreverá este seu
paraíso friulano nas novelas
autobiográficas Amado meu e Atos
impuros, publicadas postumamente.
No final de Amado meu, Pasolini descreve
extasiado uma sessão do filme Gilda (1946),
estrelado por Rita Hayworth, no cinema
local. Quando a diva canta e dança, quase
estática, a canção “Amado Mio”, a libido dos
rapazes explode na sala escura, num furor
erótico simultaneamente coletivo e íntimo.
https://www.youtube.com/watch?v=B9cKV63fa_8
Primeira edição italiana Edição brasileira
Sob o fascismo, a homossexualidade era
estigmatizada (Mussolini proibiu os apertos
de mãos entre os homens) e ler Rimbaud e
Gide poderia ser perigoso. Mas Pasolini lia de
tudo: Dante, Shakespeare, os romancistas do
século XIX (russos, ingleses, franceses); os
poetas simbolistas (Baudelaire, Mallarmé) e
herméticos (Montale, Ungaretti).
Em Bolonha, no Pórtico da Morte, onde se
vendiam livros usados, o jovem Pasolini
passava horas a escolhê-los. Assim ele
descobriu Foscolo, Petrarca, Strindberg,
Caldwell, os românticos alemães, os poetas
espanhóis contemporâneos.
O Pórtico da Morte em Bolonha em 1941
“O Pórtico da Morte” (2015), de Alex Queiroz de Souza
Pasolini cursava a Universidade de Bolonha,
que considerava medíocre e fascista,
preparando uma tese sobre a pintura
renascentista italiana. Mas ao esconder-se
em Casarsa para escapar do serviço militar,
perdeu os manuscritos no trem em que
viajava. Decidiu iniciar outro estudo, sobre a
poesia de Giovanni Pascoli (1855-1912).
Ao mesmo tempo, com jovens universitários
friulanos, Pasolini fundou a Academiuta de
lengua furlana, um centro de estudos
filológicos sobre a língua e a literatura
friulanas, em cujos cadernos, Stroligut de cá
da l'aga, publicou seus primeiros poemas.
Em 1942, Pasolini pagou a publicação de seu
primeiro livro, Poesie a Casarsa, que trata
do amor romanceado e fantástico que
dedicava à região natal de Susanna. O
pequeno livro foi bem recebido e reeditado,
mas sua crítica não pode ser publicada num
jornal italiano, porque o fascismo não
admitia particularismos locais.
O dialeto materno usado por Pasolini nesses
poemas documentava a existência objetiva
de camponeses miseráveis fora do controle
do Estado. Completando o seu gesto de
desobediência, Pasolini dedicou o livro a
Carlo, o pai fascista, que também
considerava o friulano um falar inferior.
No final da guerra, Pasolini leu Marx e se
encantou com Gramsci. Chegou a participar
das lutas camponesas no Friuli e se
inscreveu no Partido Comunista local,
embora dele divergisse em questões de
estética e moral.
Pasolini descreveria as lutas em prol de sua
utopia agrária no belíssimo romance A hora
depois do sonho (Il sogno di una cosa), escrito
em 1949-1950, publicado apenas em 1962, e
cujo título alude a uma frase de Karl Marx
escrita em Kreutznach em setembro de 1843
em carta ao hegeliano Arnold Ruge:
“O nosso dever será, portanto, reforma das
consciências, não por meio de dogmas, mas
através da análise das consciências místicas,
incapazes de criticar a si mesmas, quer se
apresentem sob a forma religiosa ou política.
Parecerá, então, que o mundo desde muito
alimenta o sonho de uma coisa...”.
Em 1949, um padre ouviu três adolescentes
se gabarem de ter dormido com Pasolini
numa festa em Ramuscello. Sem hesitar, o
padre espalhou o boato contra o jovem
comunista e, detido, Pasolini tentou fazer o
delegado entender que teria apenas realizado
uma experiência erótico-literária inspirada
em O imoralista (1902), de André Gide.
Invocando um autor que recebera o Prêmio
Nobel da Literatura há dois anos (em 1947),
Pasolini tentava ingenuamente escapar às
perseguições. Mas nem o P.C.I. hesitou em
expurgar de suas fileiras, por “indignidade
moral”, aquele jovem dissidente em
pensamentos e comportamentos, atraído
pelos miasmas da decadência burguesa.
Com o escândalo, Susanna quase
enlouqueceu; Carlo gemeu a noite inteira.
Pasolini assistiu a tudo com a morte na
alma. Ele sabia que agora não poderia mais
lecionar em nenhuma escola pública. No dia
seguinte, Pasolini fugiu para Roma com a
mãe, para tentar a sorte no livre mercado da
grande cidade, onde ninguém o conhecia.
Em Roma, Pasolini passou por grandes
dificuldades econômicas, até tornar-se
professor de um colégio particular. Ao tomar,
cada manhã, o ônibus para a periferia, onde
ensinava a filhos de subproletários, tinha a
impressão de que sua vida não lhe pertencia
mais, de que havia se alienado para sempre.
Mas algo o diferenciava da massa: enquanto
todos se conformavam, ele pensava. Teve
ainda que conviver com o pai fascista por
algum tempo. Mas Carlo acabou adoecendo,
ignorando as ordens do médico que o proibira
de beber. Certa noite, Pasolini voltou para
casa apenas em tempo de vê-lo morrer.
Susanna e Pasolini fizeram então uma festa:
estavam finalmente livres do tirano.
Pasolini começou a escrever romances de
ambiente romano, onde os heróis eram os
jovens subproletários das borgate (favelas
criadas pelos fascistas e consagradas pelos
democratas cristãos). Nesses romances, ele
recuperava, em discursos indiretos livres, o
dialeto romanesco do subproletariado, que
aprendera na convivência íntima com jovens
marginais, ladrões, prostitutas e prostitutos.
Integrando as contradições entre a sua
sexualidade e o seu marxismo num sistema
coerente de ideias que o binômio “paixão e
ideologia” resumia, Pasolini transformou-se
num monstro inassimilável tanto para a
burguesia democrata-cristã, herdeira
corrupta do fascismo, quanto para a oposição
comunista, que ainda seguia as diretrizes
stalinistas de Palmiro Togliatti (1893-1964).
Para publicar Meninos da vida (Ragazzi di
Vitak,, 1955), que abordava a prostituição
masculina, a editora Garzanti suprimiu 50
páginas do manuscrito original, apenas
recentemente restaurado. Mesmo assim, o
primeiro-ministro da Itália processou o
editor e o autor por obscenidade, enquanto os
críticos aclamavam o livro e o premiavam.
Em 1957, Pasolini fez-se fotografar diante do
túmulo de Antonio Gramsci, como uma última
homenagem, criando para as mídias uma
imagem simbólica de sua desilusão com a
“revolução nacional-popular” teorizada pelo
filósofo fundador do P.C.I. Pasolini anunciava,
assim, de forma poética e estratégica, seu novo
livro de poemas: As cinzas de Gramsci.
Os comunistas leram o melhor romance de
Pasolini, Uma vida violenta (Una vita
violenta, 1959), como uma sucessão tediosa de
fatos, só lhes interessando o engajamento
final do subproletário Tommaso no P.C.I. Mas
esse personagem pasoliniano permanecia um
alienado depois de abraçar sucessivamente os
partidos neofascista, democrata-cristão e, por
fim, comunista, por mero oportunismo.
Provocando a cada êxito artístico um
escândalo social, Pasolini foi transformado
no bode expiatório da sociedade italiana do
“milagre econômico”. A imprensa e o
judiciário uniram suas forças para
desacreditar esse homossexual assumido e
crítico da cultura que o crescente prestígio
midiático tornava cada vez mais incômodo.
Pasolini foi acusado das coisas mais
absurdas: de cumplicidade no crime por ter
levado em seu carro um prostituto que havia
roubado uma correntinha de ouro; um
bombeiro declarou ter. sido agredido pelo
escritor com um revólver de ouro com balas
de ouro; um rapaz que se “reconheceu” num
de seus romances processou-o por difamação.
Inabalável, Pasolini continuava a produzir
em ritmo acelerado. Publicou volumes de
poesia e antologias sobre a poesia dialetal, o
cancioneiro italiano e a poesia popular
italiana. Recolhia poemas de detentos, com
os quais se correspondia. Na Cinecittà,
escrevia roteiros para Soldati, Trenker,
Fellini, Mangini, Bolognini, Rossi, Vancini,
Emmer, Puccini, Heusch e Rondi.
Foi ator em O corcunda de Roma (Il Gobbo,
1962) e Réquiem para matar (Requiescant,
1967), de Carlo Lizzani. Finalmente, realizou
seus próprios filmes a fim de viver ao nível
da realidade sem a interrupção mágico-
simbólica do sistema de signos linguísticos.
Nenhum outro meio parecia-lhe melhor para
expressar-se, uma vez que o cinema dava a
realidade através da realidade.
Os primeiros filmes de Pasolini ainda
lembram a estética do neorrealismo, mas já
são contos morais carregados de símbolos.
Como em sonhos, suas imagens flutuam e
parecem independer do todo. Os elementos
ficam soltos, descosturados, como se a
montagem fosse desprezada, assim como a
linearidade da narrativa, em função da beleza
das imagens ou do sabor das histórias.
Pasolini escrevia com a câmera, de forma
singela, histórias aberrantes. Mesclando vida
e obra, fazia seus amigos e amantes das
borgate (Franco e Sergio Citti, Mario Cipriani,
Ninetto Davoli); seus amigos intelectuais; sua
mãe; o atleta Giuseppe Gentile contracenarem
com monstros sagrados do teatro, da ópera e
do cinema (Julian Beck, Maria Callas, Ana
Magnani, Orson Welles, Totó).
Pasolini detestava o naturalismo e não
considerava nem a natureza natural. Como
Fellini, dublava seus atores, escolhidos pelo
tipo físico, para compor personagens
amalgamadas. Em Medeia (Medea, 1969),
único filme da cantora Maria Callas como
atriz, sua voz só foi ouvida em raros diálogos
nas versões francesa e inglesa. Na italiana, a
diva foi dublada por Rita Savagnone...
Sendo a metáfora a diferença maior entre o
cinema e a literatura - impossível
praticamente no cinema, enquanto a
literatura é quase toda metáfora - , Pasolini
compensava essa ausência com analogias:
Matera, no sul da Itália, forneceu-lhe uma
imagem da Palestina de Cristo, e a Turquia,
os contornos da Grécia antiga.
O estudante espanhol antifranquista Enrique Irazoqui
(Cristo) com Pasolini na cidade de Matera, a Jerusalém
de O evangelho segundo S. Mateus (1964). Foto de
Domenico Notarangelo.
Como um pintor, Pasolini fixava-se diante
dos diversos aspectos da realidade (rosto,
paisagem, gesto, objeto) como se estivessem
imóveis e isolados no tempo. E para evitar o
naturalismo do plano-sequência e sacralizar
cada coisa com maior ou menor intensidade,
recorria à trilha sonora e à montagem, o
verdadeiro lugar da estilização.
Pasolini na mesa de edição de A raiva (La rabbia, 1960).
O gosto cinematográfico de Pasolini não era
de origem cinematográfica, mas pictural.
Poucos cineastas o influenciaram: Murnau,
Chaplin, Dreyer, Mizoguchi, Rossellini. As
imagens e os campos visuais que imaginava
eram afrescos de Masaccio, Masolino, Giotto,
Piero della Francesca, Caravaggio, Rosso
Fiorentino, Bellini, Andrea Mantegna e
Pontormo - seus pintores prediletos.
Andrea Mantegna - O Cristo morto (Il Cristo morto) X
Mamma Roma (Mamma Roma, 1962).
A descida da cruz (La Deposizione) por Pontormo (1528) e
Fiorentino (1521) X A ricota (La ricotta, 1963).
Paraíso e Inferno, de Giotto X «O Juízo Final» em
Decameron (Il Decameron, 1970).
Afresco do Inferno (1401), de Giovanni da Modena, na
Basilica di San Petronio em Bolonha X Os contos de
Canterbury (I racconti di Canterbury (1972).
Afresco medieval do Inferno com demônios coloridos
tentando Santo Antônio X Os contos de Canterbury (I
racconti di Canterbury (1972).
Alegoria lésbica do século XVII no manuscrito Koka
Shastra, Mughal, Índia X As mil e uma noites de
Pasolini (Il Fiore delle Mille e una Notte, 1974).
Na mesma medida em que era odiado e
desprezado, Pasolini era amado e
prestigiado. Seus filmes eram censurados e
atacados, mas também celebrados e
premiados. Com exceção de Pocilga e Medeia,
todos deram lucro aos produtores. Com o
sucesso, ele pode sair do bairro pobre onde
morava e estabelecer-se no EUR, com sua
arquitetura fascista quase sobrenatural.
A arquitetura fascista do bairro EUR em Roma
Com a pequena fortuna que ganhou no
cinema, Pasolini também adquiriu uma torre
medieval, a Torre de Chia, realizando um
sonho de infância, filho que era da cidade
das torres. Ali, afastado do mundo moderno
do consumo, que detestava, Pasolini pintava,
compunha poemas e escrevia um romance
subversivo interminável: Petróleo.
O fotógrafo Dino Pedriali fez um ousado
ensaio fotográfico registrando o poeta lendo
em seu quarto na Torre de Chia, inteiramente
nu, em dois momentos, de dia e de noite. O
fotógrafo seria um voyeur ou um paparazzo.
A certa altura, Pasolini “sentia-se” observado
e olhava através da janela pela qual era visto,
num jogo de espelhos. Pretendia inserir essa
série no “romance total” Petróleo.
Se todos os filmes de Pasolini fizeram
escândalo, nenhum outro causou mais ira e
revolta que Salò, ou os 120 dias de Sodoma
(Salò, 1975). O diretor associava sodomia e
fascismo para denunciar o poder consumista
e a anarquia do poder. Com um banquete de
fezes, Pasolini aludia ao fast-food, à junk-
food. Com estupros generalizados, mirava a
propaganda consumista do sexo obrigatório.
Durante as filmagens, em agosto de 1975,
latas com cenas não editadas de Salò foram
sequestradas do laboratório Technicolor junto
com latas das três primeiras semanas de
filmagens do Casanova, de Felllini, e outras
com a matriz de Trinity e seus companheiros,
de Damiani. Pasolini editou Salò com copiões
de qualidade fotográfica inferior daquelas
cenas, recorrendo a um truque: como eram
cenas de tortura, os Senhores as veriam das
janelas da mansão através de um binóculo.
Pasolini sincronizou Salò em Paris para sua
estreia durante o Festival do Filme em
novembro naquela cidade. Em 30 de outubro,
voou para Estocolmo, onde participou de um
colóquio com críticos suecos. Em 1˚ de
novembro, retornou a Roma e se encontrou
com o jornalista Furio Colombo, encerrando
a conversa com uma profecia: “Estamos todos
em perigo.” Foi sua última entrevista.
Na madrugada de 2 de novembro de 1975,
Pasolini foi morto pelo jovem marginal Pino
Pelosi, conhecido no submundo como “A Rã”
devido aos seus olhos saltados. Tomando a
madeira de uma cerca, ele teria golpeado
Pasolini quando esse teria tentado penetrá-
lo à força com um pedaço de pau. Fugindo
com o carro na escuridão, teria esmagado,
sem querer, o corpo do violento agressor.
A narrativa esdrúxula de Pelosi, colocando-se
como a vítima do crime que havia cometido,
foi aceita sem questionamentos pela Polícia,
apesar de sua total incoerência. Foram
ignorados todos os indícios encontrados no
local do crime (marcas de luta corporal,
pegadas diferentes) e no carro de Pasolini
(uma blusa e uma palmilha n˚ 41 que não
pertenciam nem a Pelosi, nem a Pasolini).
A celebração brasileira da morte do poeta

No Brasil, no dia
seguinte ao massacre, o
jornal satírico O
Pasquim celebrou a
morte de Pasolini com
uma bizarra fotonovela
com chamada de capa.
“Noites de Sodoma”, Pasquim, 3 nov. 1975, p. 7.
“Noites de Sodoma”, Pasquim, 3 nov. 1975, p. 7.
“Noites de Sodoma”, Pasquim, 3 nov. 1975, p.7.
“Noites de Sodoma”, Pasquim, 3 nov. 1975, p.7.
Nas mídias de consumo, a morte de Pasolini
foi tratada como mais um “crime
homossexual” entre tantos outros. O juiz
condenou Pelosi, menor de idade, a nove
anos de prisão. Todos queriam encerrar logo
o assunto. O primo Nico Naldini em Pasolini;
e o amigo Dario Belezza em A morte de
Pasolini, reforçaram a hipótese de crime
sexual sem conotação política.
Outro amigo de Pasolini, o pintor Giuseppe
Zigaina – autor dos quadros horrorosos do
jovem pintor de Teorema – elaborou a
bizarra teoria segundo a qual Pasolini
planejara minuciosamente seu assassinato,
desde a escolha do executor, o “pasoliniano”
Pelosi, até o dia, 2 de novembro, Dia dos
Mortos, a fim de ser eternamente lembrado
como o Cristo de uma nova religião.
Para Zigaina, Pasolini, obcecado pelo Sagrado,
teria estudado os mitos até descobrir sua
gênese. Se a morte “dava sentido à vida” como
a montagem ao filme, segundo sua teoria do
“cinema como língua escrita da ação”, ele teria
“desenhado” seu fim para transformar-se em
mito, deixando pistas codificadas desse
segredo em toda sua obra, entregando a chave
ao amigo Zigaina, que as decifrou...
Com amigos assim, quem precisaria de
inimigos? Mas logo surgiram hipóteses mais
racionais para tentar elucidar o crime
inexplicável. Jean-Paul Sartre, que se
encontrava em Roma na ocasião, publicou
um belo artigo no Corriere della Sera
descrevendo a psicologia existencial de Pelosi,
“homossexual por dinheiro” em seu confronto
com Pasolini, “homossexual por desejo”.
A explosão homicida do jovem prostituto se
enraizava na cultura patriarcal que induzia os
jovens “machos” de pouca cultura à homofobia.
Enfurecido pela culpa de ter gozado, o
reprimido projetava o horror do lado oculto de
si no “monstro” que o pervertia: como São Jorge
contra o Dragão, ao executar Pasolini, o único
desviado, Pelosi sentia restaurar sua “honra
masculina”. Ele se fazia de puro instrumento
da sociedade que odiava Pasolini e se reatava à
Norma que lhe inculcaram desde a infância.
Uma hipótese interessante foi desenvolvida
na investigação particular levada a cabo por
Sergio Citti, que filmou o local do crime,
pesquisou o submundo e encontrou uma
suposta testemunha do massacre. Para Citti,
Pasolini teria sido atraído até a praia de Ostia
por Pelosi com a promessa do resgate das
latas de Salò, cujos sequestradores seriam
conhecidos do jovem marginal.
Pasolini teria caído numa armadilha. Pelosi
teria sido uma isca erótica. Pasolini foi
atraído a uma emboscada pelo jovem por
quem sentira desejo na semana anterior.
Tendo marcado um novo encontro com Pelosi,
este lhe teria dito conhecer os ladrões das
latas de Salò. Eles respeitavam muito
Pasolini e queriam devolver-lhe as pizzas.
Pelosi propôs-se intermediar o encontro.
Pasolini teria então levado Pelosi para jantar
num restaurante e o jovem teria simulado
telefonar aos rapazes marcando com eles o
encontro na praia de Ostia à meia-noite. À
espera do encontro, Pasolini fez sexo oral em
Pelosi até que os rapazes chegaram, sem as
latas, apenas para espancá-lo até a morte.
Menor de idade, podendo se ver livre com
nove anos de prisão, Pelosi teria encoberto
os verdadeiros assassinos, que poderiam
ainda ter agido, numa conspiração mais
ampla, a mando de autoridades do governo
democrata-cristão, da indústria do petróleo,
do movimento neofascista – todos
incomodados com a existência de Pasolini.
Pasolini estava, de fato, no olho do furacão,
lançando Salò, escrevendo Petróleo,
denunciando o “novo fascismo” em artigos
sulfurosos publicados pelo Corriere della
Sera, lidos por todo o país, e nos quais
colocava em prática a semiologia da realidade
que havia desenvolvido com profundidade em
Empirismo herético. Nos ensaios reunidos
neste livro...
... Pasolini arrastava a sociedade para o
debate das grandes questões nacionais a
partir da análise de fenômenos cotidianos que
passavam desapercebidos: a destruição das
crianças e dos jovens promovida pela TV, a
missão da Apollo 11 de consumir a Lua, o
inquietante desaparecimento dos vagalumes,
o discurso dos cabelos compridos, o horror
anunciado pelo jeans da marca Jesus...
A hipótese de Citti não foi considerada pela
Justiça, até que, em 2005, Pelosi veio a
público declarar sua inocência na morte de
Pasolini. O carro em que os dois estavam
teria sido seguido por outro, do qual saltaram
três elementos que, gritando com sotaque
siciliano ou calabrês “Comunista porco! Bicha
nojenta!”, espancaram Pasolini até a morte.
Os espancamentos deram-se após Pasolini
ter feito sexo oral em Pelosi, que teria ido
então urinar na cerca. Dois dos elementos
arrancaram Pasolini do carro enquanto o
terceiro imobilizava Pelosi. O jovem teria
tentado defender Pasolini e recebido
pancadas com a ameaça de que se metesse
seria morto e ainda iriam atrás de seus pais.
Aterrorizado, Pelosi deixou para trás um
Pasolini “meio morto”, como pode constatar, e
fugiu com seu carro, passando então sem
querer, pois nada via na escuridão do local,
por cima do corpo do poeta afundado na
lama, terminando de matá-lo. Assumira o
crime por temer as ameaças da gangue, mas
isso não importava mais, seus pais estavam
mortos e os criminosos teriam setenta anos.
Embora confirmando parcialmente a
hipótese de Sergio Citti, a nova confissão
de Pelosi não cobriu todos os buracos da
história. Criminoso desde criança, “A Rã”
sempre foi um mentiroso. O mais
provável é que tenha planejado, por
dinheiro, o assassinato de Pasolini com a
quadrilha, sabendo exatamente o que
fazer durante a longa noite do massacre.
No local do massacre, a Prefeitura de Ostia ergueu um
monumento pobre, feio e triste, desolador como seus arredores.
Numa ficha autobiográfica, Pasolini escreveu
que amava a vida ferozmente, tão
desesperadamente que não poderia advir daí
nenhum bem. Referia-se aos dados físicos da
vida - ao sol, à erva, à juventude: “É um vício
mais tremendo que o da cocaína, pois não me
custa nada e existe com uma abundância
desmedida, sem limites: e eu devoro...
devoro... Como irá acabar não faço idéia.”
Através da imprensa, todos ficaram então
sabendo como acabava a vida de um poeta
inconformista na sociedade de consumo. A
razão dessa violência inaudita, que
permanece até hoje ignorada, conferiu e
ainda confere à morte misteriosa de Pasolini,
o mesmo sentido trágico, mítico e sagrado
que ele imprimia em sua obra.
Eduardo Santos - Uma solitária voz (2005)
Luiz Nazario - Azzurro (2007)
Referências bibliográficas

 BELLEZZA, Dario. Morte di Pasolini. Milano: Mondadori, 1981.

 BIONDILLO, Gianni. Pasolini: il corpo della città. Presentazione di Vincenzo Consolo. Milano: Edizioni
Unicopli, 2001.

 DUFLOT, Jean; PASOLINI, Pier Paolo. As últimas palavras do herege. Tradução de Luiz Nazario. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1983.

 GRIECO, David. La macchinazione. Pasolini. La verità sulla morte. Milano: Rizzoli, 2015.

 LIVRO: LO BIANO, Giuseppe; RIZZA, Sandra. Profondo nero. Roma: Chiarelettere, 2009.

 NAZARIO, Luiz. “Sodomia e Facismo segundo Pasolini”, in CARDOSO, Joel; MARTINS, Bene (orgs.). Dos
palcos às telas do cinema. Belém, 2015, pp. 353-395.

 NAZARIO, Luiz. Todos os corpos de Pasolini. São Paulo: Perspectiva, 2007.

 PASOLINI, Pier Paolo. A hora depois do sonho. Rio de Janeiro: Ed. Bloch, 1968.

 PASOLINI, Pier Paolo. Amado meu. Tradução de Elizabeth Braz e Luiz Nazario. São Paulo: Brasiliense, 1984.
 PASOLINI, Pier Paolo. Empirismo herege. Lisboa: Assírio Alvim, 1982.

 PASOLINI, Pier Paolo. Meninos da vida. Tradução de Rosa Petraitis e Luiz Nazario. São Paulo: Brasiliense,
1985; Círculo do Livro, 1987.

 PASOLINI, Pier Paolo. Petróleo. Lisboa: Editorial Notícias, 1996.

 PASOLINI, Pier Paolo. Petrolio. Torino: Einaudi, 1992.

 PASOLINI, Pier Paolo. Teorema. Tradução de Fernando Travassos. Revisão técnica de Luiz Nazario e Rachel
Holzhacker. São Paulo: Brasiliense. 1991; Círculo do Livro, 1991.

 PEDRIALI, Dino. Pier Paolo Pasolini: testamento del corpo. Venezia: Arturist, 1989.

 TREVI, Emanuele. Quelque chose d’écrit. Traduit de l’italien par Marguerite Pozzoli. Paris: Actes Sud, 2013.

 VISCA, Lucia. Pier Paolo Pasolini: una morte violenta. Roma: Castelvecchi, 2010.

 ZIGAINA, Giuseppe. Pasolini e la morte: un giallo puramente intellettuale. Venezia: Marsílio, 2005.

FIM

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