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No Brasil, no dia
seguinte ao massacre, o
jornal satírico O
Pasquim celebrou a
morte de Pasolini com
uma bizarra fotonovela
com chamada de capa.
“Noites de Sodoma”, Pasquim, 3 nov. 1975, p. 7.
“Noites de Sodoma”, Pasquim, 3 nov. 1975, p. 7.
“Noites de Sodoma”, Pasquim, 3 nov. 1975, p.7.
“Noites de Sodoma”, Pasquim, 3 nov. 1975, p.7.
Nas mídias de consumo, a morte de Pasolini
foi tratada como mais um “crime
homossexual” entre tantos outros. O juiz
condenou Pelosi, menor de idade, a nove
anos de prisão. Todos queriam encerrar logo
o assunto. O primo Nico Naldini em Pasolini;
e o amigo Dario Belezza em A morte de
Pasolini, reforçaram a hipótese de crime
sexual sem conotação política.
Outro amigo de Pasolini, o pintor Giuseppe
Zigaina – autor dos quadros horrorosos do
jovem pintor de Teorema – elaborou a
bizarra teoria segundo a qual Pasolini
planejara minuciosamente seu assassinato,
desde a escolha do executor, o “pasoliniano”
Pelosi, até o dia, 2 de novembro, Dia dos
Mortos, a fim de ser eternamente lembrado
como o Cristo de uma nova religião.
Para Zigaina, Pasolini, obcecado pelo Sagrado,
teria estudado os mitos até descobrir sua
gênese. Se a morte “dava sentido à vida” como
a montagem ao filme, segundo sua teoria do
“cinema como língua escrita da ação”, ele teria
“desenhado” seu fim para transformar-se em
mito, deixando pistas codificadas desse
segredo em toda sua obra, entregando a chave
ao amigo Zigaina, que as decifrou...
Com amigos assim, quem precisaria de
inimigos? Mas logo surgiram hipóteses mais
racionais para tentar elucidar o crime
inexplicável. Jean-Paul Sartre, que se
encontrava em Roma na ocasião, publicou
um belo artigo no Corriere della Sera
descrevendo a psicologia existencial de Pelosi,
“homossexual por dinheiro” em seu confronto
com Pasolini, “homossexual por desejo”.
A explosão homicida do jovem prostituto se
enraizava na cultura patriarcal que induzia os
jovens “machos” de pouca cultura à homofobia.
Enfurecido pela culpa de ter gozado, o
reprimido projetava o horror do lado oculto de
si no “monstro” que o pervertia: como São Jorge
contra o Dragão, ao executar Pasolini, o único
desviado, Pelosi sentia restaurar sua “honra
masculina”. Ele se fazia de puro instrumento
da sociedade que odiava Pasolini e se reatava à
Norma que lhe inculcaram desde a infância.
Uma hipótese interessante foi desenvolvida
na investigação particular levada a cabo por
Sergio Citti, que filmou o local do crime,
pesquisou o submundo e encontrou uma
suposta testemunha do massacre. Para Citti,
Pasolini teria sido atraído até a praia de Ostia
por Pelosi com a promessa do resgate das
latas de Salò, cujos sequestradores seriam
conhecidos do jovem marginal.
Pasolini teria caído numa armadilha. Pelosi
teria sido uma isca erótica. Pasolini foi
atraído a uma emboscada pelo jovem por
quem sentira desejo na semana anterior.
Tendo marcado um novo encontro com Pelosi,
este lhe teria dito conhecer os ladrões das
latas de Salò. Eles respeitavam muito
Pasolini e queriam devolver-lhe as pizzas.
Pelosi propôs-se intermediar o encontro.
Pasolini teria então levado Pelosi para jantar
num restaurante e o jovem teria simulado
telefonar aos rapazes marcando com eles o
encontro na praia de Ostia à meia-noite. À
espera do encontro, Pasolini fez sexo oral em
Pelosi até que os rapazes chegaram, sem as
latas, apenas para espancá-lo até a morte.
Menor de idade, podendo se ver livre com
nove anos de prisão, Pelosi teria encoberto
os verdadeiros assassinos, que poderiam
ainda ter agido, numa conspiração mais
ampla, a mando de autoridades do governo
democrata-cristão, da indústria do petróleo,
do movimento neofascista – todos
incomodados com a existência de Pasolini.
Pasolini estava, de fato, no olho do furacão,
lançando Salò, escrevendo Petróleo,
denunciando o “novo fascismo” em artigos
sulfurosos publicados pelo Corriere della
Sera, lidos por todo o país, e nos quais
colocava em prática a semiologia da realidade
que havia desenvolvido com profundidade em
Empirismo herético. Nos ensaios reunidos
neste livro...
... Pasolini arrastava a sociedade para o
debate das grandes questões nacionais a
partir da análise de fenômenos cotidianos que
passavam desapercebidos: a destruição das
crianças e dos jovens promovida pela TV, a
missão da Apollo 11 de consumir a Lua, o
inquietante desaparecimento dos vagalumes,
o discurso dos cabelos compridos, o horror
anunciado pelo jeans da marca Jesus...
A hipótese de Citti não foi considerada pela
Justiça, até que, em 2005, Pelosi veio a
público declarar sua inocência na morte de
Pasolini. O carro em que os dois estavam
teria sido seguido por outro, do qual saltaram
três elementos que, gritando com sotaque
siciliano ou calabrês “Comunista porco! Bicha
nojenta!”, espancaram Pasolini até a morte.
Os espancamentos deram-se após Pasolini
ter feito sexo oral em Pelosi, que teria ido
então urinar na cerca. Dois dos elementos
arrancaram Pasolini do carro enquanto o
terceiro imobilizava Pelosi. O jovem teria
tentado defender Pasolini e recebido
pancadas com a ameaça de que se metesse
seria morto e ainda iriam atrás de seus pais.
Aterrorizado, Pelosi deixou para trás um
Pasolini “meio morto”, como pode constatar, e
fugiu com seu carro, passando então sem
querer, pois nada via na escuridão do local,
por cima do corpo do poeta afundado na
lama, terminando de matá-lo. Assumira o
crime por temer as ameaças da gangue, mas
isso não importava mais, seus pais estavam
mortos e os criminosos teriam setenta anos.
Embora confirmando parcialmente a
hipótese de Sergio Citti, a nova confissão
de Pelosi não cobriu todos os buracos da
história. Criminoso desde criança, “A Rã”
sempre foi um mentiroso. O mais
provável é que tenha planejado, por
dinheiro, o assassinato de Pasolini com a
quadrilha, sabendo exatamente o que
fazer durante a longa noite do massacre.
No local do massacre, a Prefeitura de Ostia ergueu um
monumento pobre, feio e triste, desolador como seus arredores.
Numa ficha autobiográfica, Pasolini escreveu
que amava a vida ferozmente, tão
desesperadamente que não poderia advir daí
nenhum bem. Referia-se aos dados físicos da
vida - ao sol, à erva, à juventude: “É um vício
mais tremendo que o da cocaína, pois não me
custa nada e existe com uma abundância
desmedida, sem limites: e eu devoro...
devoro... Como irá acabar não faço idéia.”
Através da imprensa, todos ficaram então
sabendo como acabava a vida de um poeta
inconformista na sociedade de consumo. A
razão dessa violência inaudita, que
permanece até hoje ignorada, conferiu e
ainda confere à morte misteriosa de Pasolini,
o mesmo sentido trágico, mítico e sagrado
que ele imprimia em sua obra.
Eduardo Santos - Uma solitária voz (2005)
Luiz Nazario - Azzurro (2007)
Referências bibliográficas
BIONDILLO, Gianni. Pasolini: il corpo della città. Presentazione di Vincenzo Consolo. Milano: Edizioni
Unicopli, 2001.
DUFLOT, Jean; PASOLINI, Pier Paolo. As últimas palavras do herege. Tradução de Luiz Nazario. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1983.
GRIECO, David. La macchinazione. Pasolini. La verità sulla morte. Milano: Rizzoli, 2015.
LIVRO: LO BIANO, Giuseppe; RIZZA, Sandra. Profondo nero. Roma: Chiarelettere, 2009.
NAZARIO, Luiz. “Sodomia e Facismo segundo Pasolini”, in CARDOSO, Joel; MARTINS, Bene (orgs.). Dos
palcos às telas do cinema. Belém, 2015, pp. 353-395.
PASOLINI, Pier Paolo. A hora depois do sonho. Rio de Janeiro: Ed. Bloch, 1968.
PASOLINI, Pier Paolo. Amado meu. Tradução de Elizabeth Braz e Luiz Nazario. São Paulo: Brasiliense, 1984.
PASOLINI, Pier Paolo. Empirismo herege. Lisboa: Assírio Alvim, 1982.
PASOLINI, Pier Paolo. Meninos da vida. Tradução de Rosa Petraitis e Luiz Nazario. São Paulo: Brasiliense,
1985; Círculo do Livro, 1987.
PASOLINI, Pier Paolo. Teorema. Tradução de Fernando Travassos. Revisão técnica de Luiz Nazario e Rachel
Holzhacker. São Paulo: Brasiliense. 1991; Círculo do Livro, 1991.
PEDRIALI, Dino. Pier Paolo Pasolini: testamento del corpo. Venezia: Arturist, 1989.
TREVI, Emanuele. Quelque chose d’écrit. Traduit de l’italien par Marguerite Pozzoli. Paris: Actes Sud, 2013.
VISCA, Lucia. Pier Paolo Pasolini: una morte violenta. Roma: Castelvecchi, 2010.
ZIGAINA, Giuseppe. Pasolini e la morte: un giallo puramente intellettuale. Venezia: Marsílio, 2005.
FIM