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ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS


2

Aline Prado Atassio

ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS


1ª edição

São Paulo
Platos Soluções Educacionais S.A
2022
3

© 2022 por Platos Soluções Educacionais S.A.


Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida ou
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Revisor
Warllon de Souza Barcellos

Editorial
Beatriz Meloni Montefusco
Carolina Yaly
Márcia Regina Silva
Paola Andressa Machado Leal

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


_____________________________________________________________________________
Atassio, Aline Prado
Estado e políticas públicas / Aline Prado Atassio. – São
A862e
Paulo: Platos Soluções Educacionais S.A., 2022.
32 p.

ISBN 978-65-5356-400-8

1. Conceitos. 2. Globalização. 3. Ética. I. Título.

3. Técnicas de speaking, listening e wrg. I. Título.


CDD 320.6
_____________________________________________________________________________
Evelyn Moraes – CRB: 010289/O

2022
Platos Soluções Educacionais S.A
Alameda Santos, n° 960 – Cerqueira César
CEP: 01418-002— São Paulo — SP
Homepage: https://www.platosedu.com.br/
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ESTADO E POLÍTICAS PÚBLICAS

SUMÁRIO

Apresentação da disciplina ___________________________________ 05

Estado, governo e as especificidades do caso brasileiro ______ 07

Globalização: conceito e prática na acentuação das


desigualdades sociais.________________________________________ 18

Democracia, estado-nação e globalização_____________________ 29

Multiculturalismo, ética igualitária e organizações políticas___ 39


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Apresentação da disciplina

A disciplina Estado e políticas públicas traz uma nova perspectiva do que


são as Políticas Públicas (PP). Elementos macro e microestruturais são
abordados com o objetivo de mostrar a relação entre as transformações
do mundo contemporâneo e as novas demandas para o Estado na
atuação pelas PP.

O curso está dividido em quatro blocos, e todos contemplam aspectos


teóricos, práticos e exemplos. As dicas de leitura, filmes ou séries
complementam o material, para você aprofundar seus estudos com
qualidade.

No primeiro tema você conhecerá autores clássicos que fundaram


o pensamento a respeito do Estado, identificará o papel do Estado e
reconhecerá a construção do indivíduo e sua relação com o Estado
enquanto estrutura organizacional e decisória, com implicações diretas
na vida individual. Por fim, será apresentada brevemente a história do
Estado brasileiro e suas consequências que perduram até a atualidade.

Em um segundo momento de estudos haverá um aprofundamento


nas questões modernas acerca das PP: o impacto da globalização será
tema deste tópico. Como começou a globalização? O processo inicial
assemelha-se ao que vivemos atualmente? Quais as responsabilidades
dessa globalização na Era Digital em relação às desigualdades sociais?
Isso impacta as decisões do Estado sobre PP? Essas perguntas nortearão
o seu estudo neste tema.

Já o terceiro tema será dedicado a pensarmos a democracia, algo


imprescindível tanto para o Estado quanto para sua atuação por meio de
6

PP. Trazendo um debate bastante atual, o tema 3 garantirá a você, leitor,


diversas perspectivas acerca da necessidade de um Estado atuante para
o sucesso das PP na busca por uma sociedade mais justa, igualitária e
democrática.

Por fim, no último bloco, o tema abordado é o atualíssimo


multiculturalismo. Você vai entender a perspectiva teórica clássica,
as críticas e a prática governamental que busca, com esse conceito
transformado em prática de Estado, garantir equidade, reparação
histórica e justiça social.

Ao final desta disciplina, você deverá ser capaz de compreender, analisar


e avaliar as PP existentes, bem como desenvolver ideias interessantes
para elaboração de políticas públicas.

Bons estudos!
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Estado, governo e as
especificidades do caso brasileiro
Autoria: Aline Prado Atassio
Leitura crítica: Warllon de Souza Barcellos

Objetivos
• Conhecer a formação do Estado Moderno por meio
das teorias clássicas.

• Compreender as implicações do fim do Antigo


Regime e a transição para o Estado Moderno.

• Analisar os problemas na formação do Estado


brasileiro.
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1. Formação dos Estados Modernos


O Estado é uma instituição estruturante da nossa vida em sociedade.
Muitas vezes não paramos para pensar o que seria a vida sem essa
instituição, nos moldes como conhecemos hoje, não é mesmo? Você
já imaginou a vida sem instâncias reguladoras das nossas práticas,
que nos digam o que é permitido e o que é proibido ou, ainda, sem os
órgãos que nos transformam em cidadãos, como as escolas, os centros
comunitários, a polícia, os cartórios, as Santas Casas? Já pensou uma
vida sem a regulamentação jurídica da nossa existência, uma vida
sem documentos de identificação, tal qual a certidão de nascimento, o
cadastro de pessoa física ou de pessoa jurídica?

A vida sem essas estruturas sociais e esses aparatos de identificação/


legitimação individual e coletivo nos parece bastante desorganizada. E é
mesmo! Nós nascemos e vivemos sob a Era dos Direitos, fruto do Estado
Moderno, e estamos habituados a essa organização.

Podemos afirmar que todas as situações hipotéticas colocadas


anteriormente só são hipotéticas porque o Estado Moderno foi
inventando e, com ele, todo e qualquer indivíduo que nasça tem seus
direitos e deveres regulamentados e amparados pelas Constituições dos
seus países.

No entanto, se o Estado é estruturante da nossa vida, ele também é


estruturado por nós. Isso significa dizer que nossas ações em sociedade
impactam a forma como essa instituição é guiada e conduz a sociedade.

Vamos neste bloco entender como o Estado Moderno surge,


quais são suas implicações, como os governos podem atuar como
transformadores das relações entre indivíduos e Estado e como o Estado
Brasileiro se insere nessa grande e interessante etapa da História da
Humanidade.
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1.1 Os teóricos do Estado e suas contribuições para o


pensamento político moderno

O Estado Moderno tem a Europa como berço intelectual e político. Isso


porque é apenas com a queda do Antigo Regime – também conhecido
como Regime Absolutista – que os ideais de uma sociedade pautada
em direitos escritos, igualdade dos cidadãos perante a lei e liberdade
(individual, mas também coletiva – no sentido comercial) puderam
prosperar.

As discussões acerca da instituição Estado, no entanto, são anteriores ao


surgimento do Estado como conhecemos hoje. Suas raízes e atribuições
remetem-nos aos autores clássico da filosofia política, como Hobbes,
Locke e Montesquieu.

Thomas Hobbes, matemático e filósofo inglês, entre os século XVI e


XVII, dedicou um livro completo para discutir a natureza do Estado. Em
O Leviatã, de 1651, o filósofo argumentava que o Estado era um mal
necessário, tendo em vista que a natureza humana, para este autor, é
nociva para a vida coletiva, e para apaziguar essa característica seria
necessária a existência de um Estado forte.

A premissa de Hobbes é a de que o homem é o lobo do homem, e não


importa quão forte ou inteligente ele seja a ameaça à sua vida é uma
constante, pois o estado natural dos homens é um estado de guerra de
uns contra outros. Assim, existiria uma real necessidade de um contrato
social entre os homens que implicasse colocá-los sob uma autoridade
forte que assegurasse a segurança de todos e a paz interna, além de não
permitir guerra (WEFFORT, 2006).

Neste cenário, o Estado proposto por Hobbes não seria um estado


democrático, no qual as leis valeriam para todos, inclusive para os
que compõem o Estado. O filósofo defende que o Estado deve estar
acima das leis, portanto, ser regido por um soberano – que pode ser
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um monarca ou uma assembleia – que tenha plenos poderes nas suas


decisões e não se submeta à legislação que ele mesmo cria.

Hobbes incita outros autores a pensarem acerca da temática. Seria


mesmo o Estado o mal necessário? Assim, pouco depois de O Leviatã ter
sido publicado, John Locke escreveu Dois tratados sobre o governo (1689).
O livro trabalha a questão da necessidade da liberdade como valor
intrínseco ao novo homem e ao Estado.

John Locke, filósofo inglês do fim do século XVII, inspirou alguns ideais da
Revolução Francesa de 1789, tendo em vista que defendia o liberalismo
econômico, cujo preceito básico fundamental é a garantia da liberdade
intelectual e a tolerância entre os homens. Segundo Locke, a teoria
da soberania do Estado feria os preceitos de uma sociedade racional
empirista, afinal, para ele, a soberania advinha do povo e não do Estado.
O autor foi um grande crítico da teoria do direito divino, que entendia
que a dominação exercida pelos reis absolutos era uma herança divina
ou uma escolha de Deus (WEFFORT, 2006).

Locke é também um autor contratualista, tal qual Hobbes e, portanto,


acreditava que os homens instituíam contratos sociais tácitos para
viverem em sociedade de forma pacífica. Porém, ao contrário de
Hobbes, Locke defendia que a existência do Estado de direito deveria
ser uma prerrogativa básica para a sociedade moderna, tendo, portanto,
a população que eleger seus representantes legais para promulgar
leis, que seriam cumpridas por reis ou pelo Estado na figura de seu
governante. O Estado não deveria ser soberano absoluto, pois o poder
absoluto residiria no povo, na força desse da população (BOBBIO, 2017).

O pensamento de Locke pregava, ainda, a divisão do poder. Segundo


esse autor, o rei não deveria ser soberano, e precisaria equilibrar seu
poder com o parlamento.
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A perspectiva lockeana de Estado aproxima-se fortemente do modelo de


Estado que chamamos de Moderno. Neste Estado, as liberdades devem
ser garantidas e preservadas e o poder deve emanar do povo, sendo os
governantes entendidos como “funcionários do povo”, ou seja, aqueles
que ocupam um cargo para atender aos interesses coletivos, e não
individuais.

Locke afirmava em Segundo tratado sobre o governo civil que a divisão de


poderes deveria ocorrer entre o executivo, o legislativo e o federativo.
É importante lembrar que o tema já havia sido tratado pelos gregos
antigos – Platão e Aristóteles –, que afirmavam a necessidade da
existência de três instâncias de poder para o bom funcionamento de um
governo.

O pensamento de Locke era voltado para o liberalismo econômico,


e sua teoria da divisão dos poderes prezará pela manutenção das
liberdades de comércio e de posse de terras. De acordo com Locke, o
Legislativo seria o poder supremo, porém, limitado aos Direitos Naturais
e, sendo assim, sua função primordial seria escrever e publicar leis
que preservem a vida, a liberdade e a propriedade. Essas leis deveriam
sempre ser pensadas na coletividade, jamais em benefício próprio.

Os outros órgãos teriam funções administrativas, por meio da execução


das leis positivas – leis escritas – que foram incorporadas às leis naturais.
Todavia, muitas questões e situações que surgiam com a efervescência
política dos séculos XVII e XVIII não foram consideradas na teoria da
separação dos poderes de Locke.

Esse modelo ainda não era um modelo de divisão de poderes tal qual o
adotado no nosso Estado.

Assim, ressurge a Teoria dos três poderes de Montesquieu. Bebendo


na fonte dos clássicos da filosofia, tal qual Locke, Montesquieu, filósofo
parisiense, escreveu no início do século XVIII a respeito da necessidade
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da partilha do poder entre executivo, legislativo e judiciário, com o


objetivo de impedir a acumulação de poder em apenas uma pessoa ou
assembleia, evitando, assim, o retorno da tirania.

Em O Espírito das Leis (1748), Montesquieu analisa três tipos de governo


– a república, a monarquia e o despotismo. Cada um desses governos
está fundado em um princípio norteador, que definirá seu caráter e sua
relação com o povo: a república é fundada na virtude cívica, a monarquia
na honra, e o despotismo no medo. Se o Estado moderno advém com
a ideia de liberdade e igualdade – ainda que essa igualdade seja menos
entre os homens e mais comercial – é necessário que o governo olhe
e atue para e com o povo. Assim, a república figura como o modelo de
governo que teria mais condições de atender aos ensejos desse novo
modelo social, que tem demandas particulares bastante diferentes do
Antigo Regime.

Porém, o ponto mais relevante da teoria de Montesquieu para nossos


estudos é a divisão tripartite de poder. O autor supera as teorizações de
Locke e propõe que o Estado deve ser regido por um poder igualmente
dividido entre três esferas: executiva, legislativa e judiciária. Isso significa
que o Estado pensado por Montesquieu não deve ter uma concentração
de poder, e a moderação deve vir do equilíbrio entre essas esferas.
Isso nos remete à atual divisão dos poderes no Estado brasileiro. Mas
nem sempre o Brasil foi assim: começamos como colônia dependente
do governo monárquico português, tornamo-nos independentes e
mantivemos o poder concentrado da monarquia, e apenas em 1888
viramos uma república.

Sem dúvida, os autores supracitados contribuíram para que o modelo


de Estado adotado pela maioria dos países buscasse o equilíbrio dos
poderes e pensasse na utilização do Estado em prol do povo. O Estado
é, hoje em dia, o órgão que preza pela manutenção da estrutura social,
da liberdade e igualdade, assistindo os que mais precisam e organizando
burocraticamente as relações entre os homens.
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Figura 1 – A Revolução Francesa

Fonte: Shutterstock.com.

1.2 Relação indivíduo versus Estado no Estado Moderno

Neste momento, é necessário retomarmos o conceito de Estado Moderno


como aquele que regulamenta as relações comerciais entre as nações
e grupos sociais e não mais com a perspectiva bélica anterior, em que a
disputa era basicamente por territórios e dominação de populações.

Esse Estado que chamamos de moderno precisa de centralização política,


porém com liberdade comercial. Precisa ainda de um aparato jurídico claro,
de modelo de administração e, portanto, está concentrado no projeto de
nação. O indivíduo ganha um peso importante neste momento histórico e
jamais perderá esse protagonismo. De acordo com Sampaio-Silva (2019, [s.
14

p.]), “Tal projeto coloca o indivíduo como centro da participação política por
meio da separação das esferas pública e privada, Estado e Sociedade Civil”.

Um dos maiores trunfos do Estado Moderno é a instituição das leis


positivas – leis escritas. Pensar em uma sociedade sem leis escritas e
com leis que valem para um grupo social apenas por terem nascido em
uma determinada classe social, mas que não valem para o restante da
população – leis que excluem – é algo bastante confuso, não é?

Imagine uma sociedade em que os camponeses tenham diversas


obrigações e nenhum direito, e as classes dominantes – política e
economicamente – tenham diversos direitos e praticamente nenhum dever
para com o povo. Imagine ainda que a possibilidade de mobilidade social
seja mínima. Se você se sentiu confuso, incomodado ou indignado, pode ter
uma ideia de como sentiam os povos que viviam sem as leis escritas e sem
as garantias de um Estado com governo moderado e descentralização de
poder.

O Estado Moderno tem, dentre seus objetivos, minimizar esse sistema de


privilégios e exclusão que vigorou na Idade Média. A liberdade torna-se um
valor importante para a sociedade do século XVIII em diante, especialmente.
A democracia surge como valor a ser alcançado e para isso o Estado torna-
se uma peça importante no tabuleiro da política.

Assim, autores como Max Weber (1999) e Karl Marx (1993) debruçaram-
se para pensar o Estado, seu papel e seu futuro. Enquanto para Marx o
Estado Moderno representa uma classe social específica e trabalha em
função desta – a burguesia –, Weber entende o Estado como um órgão
administrativo-burocrático. Essas duas perspectivas são bastante distintas
e nos levam a pensar profundamente a respeito das funções do Estado
moderno.

Marx nos alerta para o papel repressor do Estado, por meio das leis
positivas, que visam coibir as rebeliões dos oprimidos e a transformação
15

do status quo na sociedade capitalista. Por outro lado, Weber é bastante


prático e entende o Estado moderno como produto de uma sociedade
baseada na racionalidade. O Estado tem legitimidade para o exercício
da dominação racional-legal, sendo, portanto, o detentor do monopólio
legítimo do uso da força, podendo exercer de maneira coercitiva seu poder
e até utilizar a força para que a manutenção da organização social seja
mantida.

Percebemos assim que, independentemente da forma como os autores


entendem o poder do Estado, ele é compreendido como uma instituição
que organiza a sociedade e estrutura as relações sociais. O Estado é, assim,
estruturante da nossa vida social e – por que não – pessoal, já que age
também determinando limites e obrigações legais de relações privadas.

1.3 A formação do Estado Brasileiro

O Estado brasileiro surge como uma cópia do Estado Português. Isso


significa que a administração era feita por uma monarquia imperial,
centralizada em Portugal e posteriormente transferida para o Brasil. A
democracia não era um conceito em vigor. Além disso, instalou-se um
formato de colonização cuja base econômica era a monocultura com mão
de obra escravizada.

A escravidão marca profundamente a história do Brasil e tem


consequências até os dias de hoje. Dentre tantas questões que podemos
levantar sobre o tema, chamamos atenção para o fato de que um indivíduo
escravizado não é um cidadão. Assim, a maioria dos brasileiros que viviam
na colônia não faziam parte do chamado “povo brasileiro”. Os escravizados
não tinham direitos, não estavam inseridos na vida política nem na vida
econômica ou pública da colônia.

Após a abolição, nada foi feito para a integração do escravizado à sociedade


brasileira (FRANCO, 1997). Dessa maneira, os negros libertos ingressaram
em uma sociedade com capitalismo nascente, analfabetos, sem instrução
16

para os trabalhos que o novo mundo impunha, sem capital e sem


amparo do Estado, que não pensou em políticas públicas reparadoras
e integradoras para amparar essa massa de novos cidadãos. O Estado
brasileiro foi profundamente omisso.

Já na República o imaginário social brasileiro foi pautado no poder que “vem


de cima”, ou seja, a atividade política como privilégio de uma classe social
abastada, letrada e com acesso às instâncias de poder e que, portanto,
toma as decisões que impactam todo o restante da sociedade.

Entre os maiores problemas enfrentados pelo país para a gestão do Estado


brasileiro está a crença de que a política não é pauta para discussão e faz
parte daquele grupo de temas proibidos. Além disso, a constituição de um
Estado necessita de cidadãos capacitados para exercer as funções públicas,
desvinculados do personalismo que caracterizada o Estado anterior. De
acordo com Maria Sylvia de Carvalho Franco (1997, p. 166):

A espinha dorsal na formação do Estado moderno (a separação dos fundos


públicos dos recursos privados, mais o exercício despersonalizado das
funções públicas e sua definição por normas gerais) não encontrava condições
para se completar… A escassez de funcionários qualificados, a desnecessidade
imediata de racionalização em seus procedimentos, a fidelidade aos valores
próximos ao grupo retardou a separação entre autoridade oficial e influência
pessoal. (FRANCO, 1997, p. 166)

As consequências dessa falta de cidadãos, de cidadania e de um


pensamento inclusivo, autônomo e com consciência de classe favoreceu a
reprodução das classes dirigentes no poder que por anos e anos ocuparam
e ainda ocupam as mesmas cadeiras em postos decisórios chave da
República. Além disso, contribui para que essa classe dirigente seja sempre
composta por membros das elites econômicas e retira do cidadão comum
– que compõe a ampla maioria da população – a possibilidade de participar
da vida política e, portanto, de pensar e propor soluções para os problemas
sociais que impactam diretamente a vida dessa parcela da população.
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Devemos sempre ter em mente que o Estado como conhecemos é um


produto da sociedade moderna, que advém principalmente da necessidade
de organização de um novo modelo de dominação – o capital. Esse Estado
organiza a vida coletiva, determina as relações e é responsável por garantir
segurança, saúde, educação e justiça, por exemplo.

Por fim, o Estado não é um ente fantasmagórico que paira sobre todos
nós: na realidade, somos parte do Estado e podemos auxiliar para sua
transformação, por meio das nossas ações cidadãs. Todavia, não podemos
confundir Estado com governo. O Estado é uma instituição permanente,
cujo objetivo é organizar jurídica, administrativa, econômica e politicamente
a sociedade; já os governos mudam de tempos em tempos e sua função é
atuar dentro dessa estrutura estatal em prol dos interesses públicos, e por
isso a relação que nós, cidadãos, travados com um ou outro é de natureza
distinta.

Referências
BOBBIO, Norbert. Estado, Governo e Sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2017.
FRANCO, Maria S. de C. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Editora
da Unesp, 1997.
MALMESBURY, Thomas H. de. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado
eclesiástico e civil. São Paulo: Nova Cultural, 2004.
MARX, Karl. A ideologia alemã. 9. ed. São Paulo: Hucitec, 1993.
SAMPAIO-SILVA, Roniel. Conceito de Estado: Entenda o que é Estado na
visão da sociologia. Café com Sociologia, 11 jun. 2019. Disponível em https://
cafecomsociologia.com/conceito-estado-sociologia/. Acesso em: 30 ago. 2022.
WEBER, Marx. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. v.
2. Brasília: UnB, 1999.
WEFFORT, Francisco. Os Clássicos da Política – Volume 1. São Paulo: Ática, 2006.
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Globalização: conceito e prática


na acentuação das
desigualdades sociais
Autoria: Aline Prado Atassio
Leitura crítica: Warllon de Souza Barcellos

Objetivos
• Entender como começou o processo de
globalização.

• Conhecer as características da globalização atual e


seus impactos.

• Reconhecer a globalização como catalisador de


desigualdades.

• Identificar o papel do Estado na realidade


globalizada.
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1. A globalização: diversos faces de um


processo secular

Ouvimos com certa frequência que a globalização diminuiu distâncias,


superou a barreira do tempo, uniu os diversos povos, derrubou
barreiras econômicas e culturais. A globalização é apresentada como um
fenômeno transformador e positivo. Será mesmo?

É verdade que o mundo globalizado é “menor”, ainda mais na Era


digital: podemos conversar com pessoas ao redor do mundo sem sair
de nossas casas, tendo apenas um celular conectado na internet. Pela
internet também é possível comprar produtos de qualquer outro país
que esteja vendendo. É possível frequentar museus virtuais, aprender
línguas diversas com nativos ou ler livros que não estão disponíveis nas
bibliotecas da sua cidade.

Porém, a globalização apresenta um lado perverso. Ela impõe


afastamentos, aumenta as desigualdades sociais e favorece a
concentração de renda, exigindo a atuação do Estado por meio de
políticas públicas para minimizar os seus danos (CASTELLS, 1999).

Vamos entender o que é esse processo, como ele começou e quais são
seus impactos para a vida das mais diversas sociedades e culturas.

1.1 A união que divide

“A globalização tanto divide como une; divide enquanto une”, afirma


Zygmunt Bauman (1999, p. 8). Sendo um processo que se impõe ao
indivíduo e às sociedades, a globalização faz-se presente em todas as
esferas de nossas vidas.

Mas o que é globalização? Algumas categorias precisam ser mobilizadas


para tratarmos desse conceito. A primeiro é a categoria tempo/espaço,
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seguida dos conceitos de estado-nação, mercado mundial e lugar.


A globalização é um movimento que reduz distâncias e tempo, pela
expansão do mercado global e das comunicações. Apesar de unir os
povos e países pelo comércio e pela partilha cultural e de informações,
exige um estado-nação mais forte e protecionista, dado o aumento
da concorrência – algo que é diametralmente oposto ao conceito de
demanda livre e global que o discurso globalizante apregoa.

O objetivo principal da globalização é eliminar as barreiras econômicas e


exercer o mercado livre entre países, todavia, as implicações para outras
esferas da vida humana (política, social e cultural) tornam-se inevitáveis.

Assim, o conceito pode ser entendido em algumas acepções distintas:


globalização do capital, globalização cultural, política ou, ainda,
globalização social (CASTELLS, 1999).

Nós passamos por algumas etapas da globalização. Os fenômenos não


são exclusivos do século XX: você deve se lembrar das disputas entre
Portugal e Espanha pelo fim do monopólio italiano das navegações no
mar Mediterrâneo rumo à Índia, em busca de especiarias que eram
usadas para temperos, conservação de alimentos e como cosméticos.

Portanto, o primeiro momento deste fenômeno que hoje denominamos


globalização foi marcado pelas Grandes Navegações, no século XVI. Ali,
verificamos a expansão do mercantilismo (a fase inicial do capitalismo),
a busca por mercados e colônias, a transformação cultural na vida dos
colonizados e o fim dos monopólios comerciais.

Esse processo foi sendo expandido com o passar dos anos. O segundo
grande movimento de globalização ocorreu no início do século XX, com
a fragmentação dos Estados. Conhecido como o século das revoluções,
esse período é marcado pelo desmonte do Estado de bem-estar social e
a expansão do consumo.
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Com a Terceira Revolução Industrial, a globalização foi acelerada e


ganhou novas características. Se os primeiros produtos da globalização
iniciada no século XVI foram o desenvolvimento da cartografia, o uso de
pólvora, das caravelas e da bússola, bem como a invenção da imprensa,
as marcas dessa nova etapa da globalização são o aumento exponencial
da concorrência entre os mercados, o mercado financeiro global, as
empresas transnacionais e a criação de blocos econômicos (CASTELLS,
1999).

A globalização nos une, mas nos divide. O impacto dessas políticas


econômicas e do surgimento de blocos econômicos segregam por
diversos fatores, como classe social, gênero, raça, localização geográfica,
acesso à política e às políticas públicas, entre outros. A globalização não
é igual para todos.

Figura 1 – Réplica da caravela de Pedro Álvares Cabral,


no Rio de Janeiro (RJ)

Fonte: Shutterstock.com.

1.2 Efeitos culturais da globalização

Quando os portugueses e os espanhóis chegaram ao território imenso


que chamamos hoje de América Latina, no primeiro movimento
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chamado de globalização, havia por volta de 80 milhões de nativos


vivendo neste espaço. Em apenas um século, entre 1500 e 1600, 70
milhões de pessoas tinham sido exterminadas (SANTOS, 2006).

Além da morte física, mais de mil línguas desapareceram neste


genocídio. Os territórios foram arbitrariamente demarcados. Povos e
culturas, assim como religiões, foram engolidos pelo novo povo, que
desejava apenas o lucro, a acumulação de poder e capital.

A aculturação dos povos foi uma prática violenta neste início do


processo de globalização. Ela ocorria por motivos diversos, como
exploração da mão de obra, escravização, usurpação da terra dos
nativos, imposição religiosa, linguística e de outras expressões culturais.

Neste cenário, a imposição da cultura europeia – movimento conhecido


como eurocentrismo – ganhou força, e a Europa tornou-se o modelo
a ser alcançado por todas as outras sociedades, não apenas a latino-
americana. As implicações dessa imposição cultural são muitas, e
sentidas até os dias de hoje: a ideia de superioridade do homem branco,
o sentimento de inferioridade como nação, a negação das culturas
nativas e africana, o padrão estético que favorece o biotipo europeu,
entre outras.

Na atualidade, encontramos uma cultura global em que poucas


características marcam as distinções entre sociedades que, no fundo,
são tão diversificadas. Após o fim da Guerra Fria, nos anos 1980, com a
entrada maciça dos Estados Unidos no mercado mundial e a dominação
dos mercados por produtos norte-americanos, e mais recentemente,
chineses e coreanos, transformou a indústria cultural. Consumimos
de tudo um pouco e, nesse movimento, a valorização da cultura local,
regional ou nacional torna-se necessária, para que não se perca em
meio ao caldeirão cultural imposto/proposto pela globalização da cultura
por meio principalmente dos meios digitais.
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Você deve estar se perguntando: qual a ligação da globalização com os


Estados e as políticas públicas? Em primeiro lugar, devemos lembrar que
o Estado moderno impôs a centralização do poder, antes fragmentado
entre diversos reinos e reis. O Estado também assume funções para
manutenção da vida e da liberdade e, com o passar dos anos, tais
valores foram se materializando em responsabilidades de fato, não
apenas com conceitos abstratos: assim, o Estado tornou-se responsável
pela educação, segurança pública, segurança nacional, garantia mínima
de saúde e saneamento básico, acesso igualitário à justiça, infraestrutura
para as cidades e regulamentação de mercado interno e externo, entre
outras necessidades (SANTOS, 2006).

O Estado tem, portanto, responsabilidades com os indivíduos que são


seus cidadãos, e deve utilizar as políticas públicas para exercer suas
funções. Quando pensamos nos impactos da globalização, desde o
seu início no século XV, pensamos também em exclusão, aculturação,
imposições realizadas pelo próprio Estado. As reparações devem vir,
dessa forma, pelo próprio Estado. Para tanto, é preciso conhecer e
reconhecer como a globalização atualmente impacta a vida de cada um
de nós, em especial daqueles que estão em países situados na periferia
do capital. Precisamos, portanto, falar da assimetria da globalização.

1.3 Globalização assimétrica

Que a globalização é um sistema do qual não podemos fugir é inegável.


Também sabemos que ela é capaz de aprofundar as desigualdades
sociais, especialmente causadas pela disparidade econômica e
tecnológica entre os países e, dentro de um país, entre as pessoas.

Quando falamos em aumento da desigualdade, estamos dizendo


que o fosso que separa os muito ricos do restante da população vem
aumentando. Um número ínfimo de pessoas, atualmente, detém a
maior parte da riqueza mundial.
24

Figura 2 – A pobreza extrema voltou a crescer no Brasil e a


desigualdade social disparou nos últimos cinco anos

Fonte: Shutterstock.com.

Segundo dados da World Inequality Lab publicados em dezembro de 2021,


os 10% mais ricos da população mundial detêm 76% do patrimônio do
planeta. Isso significa dizer que os 10% mais poderosos possuem ¾ de toda
a riqueza do mundo. De acordo com reportagem publicada pela El País
(PELICCER; GRASSO, 2021):

Os 517 milhões de cidadãos que estão entre os 10% mais ricos captam 52%
dos 550 trilhões de reais repartidos em renda e 76% do enorme bolo de
3,27 quatrilhões de reais que constitui o patrimônio mundial. Metade da
população, por sua vez, continua lidando com a escassez. E boa parte dela,
com a pobreza. Somada, a metade mais pobre dos habitantes adultos do
planeta (2,5 bilhões) consegue reunir apenas 8% da renda e 2% da riqueza.
(PELICCER; GRASSO, 2021, [s.p.])

Ainda de acordo com a matéria citada, o Brasil é um dos países mais


desiguais do mundo e isso vem se agravando nos últimos anos. O relatório
aponta que “Enquanto a base de 50% ganha 8.800 reais por ano, os
10% mais ricos ganham quase 30 vezes mais (255.760 reais)” (PELICCER;
GRASSO, 2021, [s. p.]).
25

Mas será a globalização a variável que incita esse aumento da desigualdade


social?

Manuel Castells (1999) afirma que é a maneira como a globalização


encontra-se estruturada que facilita a criação e ampliação das
desigualdades – sejam elas sociais, econômicas ou tecnológicas. Para
Castells, a articulação da globalização ocorre na esfera econômica, com
mercados interligados, capital flutuante e redes interconectando todo o
mercado financeiro global. Mas a rede não permeia todas as esferas sociais.
Enquanto mercado financeiro, ciência e tecnologia e comércio encontram-
se inseridos nessa sociedade em rede, a produção, o mundo do trabalho e
o meio ambiente encontram-se fora desse sistema.

O autor afirma que a produção não é interconectada em redes – ou seja,


está fora da rede global, pois as empresas multinacionais são poucas e
geram número insuficiente de empregos ao redor do globo.

Mesmo em países considerados bastante liberais, as proteções de


empresas consideradas de base ou de funções primordiais para o bom
andamento da daquele país, como petróleo, gás e siderurgia, seguem
sendo estatais e são protegidas pelos governos dos países do centro
do capital. Citando Castells, “são 75 mil empresas multinacionais que
empregam apenas 2,5 milhões dos 3,5 bilhões de trabalhadores existentes
no mundo” (CASTELLS, [s.d.] apud DENNY, 2017, [s. p.]).

Assim, os trabalhadores são os mais afetados por essa estruturação do


capital, do mercado e da produção, bem como o meio ambiente. O trabalho
continua sendo local – não global ou regional – e as barreiras impostas
pelas leis de migração não permitem a circulação livre de trabalhadores.
Portanto, a liberdade não é ilimitada. Além disso, as leis trabalhistas
são cada vez mais flexibilizadas para atender às exigências do capital
global e das empresas multi e transnacionais, minando os direitos dos
trabalhadores e a soberania dos Estados (especialmente os periféricos
nesta estrutura de dinheiro/poder), e enriquecendo uma parcela muito
26

pequena da população pelo empobrecimento da maioria: concentrando,


portanto, a renda e as riquezas.

O meio ambiente sofre diretamente com as demandas globais. O processo


de expansão das indústrias, ainda durante a Revolução Industrial, impõe o
avanço das cidades e a redução das áreas verdes. Na atualidade, o uso de
agrotóxicos e de insumos químicos produzem lixo tóxico que interferem
negativamente na saúde do planeta e dos que habitam a Terra.

A industrialização impõe um ritmo intenso no uso de recursos naturais –


renováveis ou não. A poluição também é um produto desse modelo de
produção e consumo imposto pelo capitalismo global. Não é à toa que um
dos temas em pauta nos debates políticos internacionais é o aquecimento
global e seus efeitos (CORTEZ; ORTIGOZA, 2009).

No campo, impactos são sentidos tanto na produção quanto na utilização


de mão de obra. O consumo nunca foi tão alto tanto quanto a produção. No
entanto, isso não se traduz em melhores condições de vida do trabalhador
do campo. A substituição da mão de obra humana por máquinas tem uma
influência na vida do trabalhador do campo, este em número cada vez
menor, com pouquíssimas garantias legais trabalhistas e remuneração
baixa.

É preciso lembrar, todavia, que essa produção alta não significa redução
real da fome no mundo. Considerando o caso específico do Brasil, veremos
que os dados nos mostram que apesar de o agronegócio ter crescido,
mantendo uma produção recorde ano a ano, as produções não são para
o mercado interno e se concentram em produtos que não fazem parte da
cesta básica, como soja, cana e milho. De acordo com reportagem do G1 de
agosto de 2021:

A fome em um país que é grande produtor de alimentos como o Brasil não é


considerada um paradoxo para o agrônomo e pesquisador Paulo Petersen,
integrante do Núcleo Executivo da Articulação Nacional de Agroecologia
(ANA). Ele explica que a forma com a qual o Brasil produz não é voltada
27

para a alimentação, mas sim para commodities, principalmente o cultivo de


grãos usados em ração para animais. “Basicamente tanto um como o outro
é voltado para a exportação. Então, a produção interna é muito voltada para
a indústria e não diretamente para o consumo humano, isso que explica a
aparente contradição”, afirma. (SOUZA, 2021, [s.p.])

A agricultura familiar é responsável, em 2020, por aproximadamente 70%


dos alimentos consumidos no Brasil, segundo dados de Salgado, Dias e
Souza (2020), assim, é preciso repensar o modelo de investimentos dos
Estados na agricultura, priorizando a demanda vinda da agricultura familiar
que atende ao mercado interno como maneira de fortalecer a produção
local e a distribuição de alimentos dentro do país e mitigar a fome.

Assim, o que percebemos até este momento é que o Estado tem papel
de destaque para essa sociedade que, paradoxalmente, vive em meio a
discursos políticos que pregam o Estado mínimo. Daremos destaque a um
papel: o de elaborar políticas públicas para sanar o fosso das desigualdades
gerado pela globalização. O Estado deve atuar com programas de geração
de emprego e renda, programas de distribuição de renda, programas de
crédito fácil e com juros baixos para agricultura familiar, além, é claro, de
criar, implementar e manter diversas políticas de inclusão social para sua
população.

O papel do Estado não pode ser minimizado. A presença deste deve ser
sentida na sociedade, especialmente naquelas que vivem à margem das
riquezas geradas pelo capitalismo global.

Referências
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1999.
CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
CORTEZ, Ana Tereza C.; ORTIGOZA, Silvia Aparecida G. (org.). Da produção ao
consumo: impactos socioambientais no espaço urbano [online]. São Paulo: Editora
UNESP, 2009.
28

DENNY, Danielle. Globalização é assimétrica. Ambiente Legal, [s.l.], 11 de abril de


2017. Disponível em: https://www.ambientelegal.com.br/globalizacao-e-assimetrica-
diz-manuel-castells/. Acesso em: 7 set. 2022.
PELICCER, Luís; GRASSO, Daniele. Os 10% mais ricos com 76% do patrimônio do
planeta, o retrato da desigualdade na pandemia. El País, São Paulo, 7 de dezembro
de 2021. Disponível em: https://brasil.elpais.com/economia/2021-12-07/os-10-mais-
ricos-com-76-do-patrimonio-do-planeta-o-retrato-da-desigualdade-na-pandemia.
html#?prm=copy_link. Acesso em: 4 nov. 2022.
SALGADO, Rafael J. dos S. F.; DIAS, Marcelo M.; SOUZA, Washington J. de. Agricultura
Familiar, Extensão Rural e Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional:
delimitando categorias analíticas à luz da implementação do Programa de Aquisição
de Alimentos no Brasil. Mundo agrar., La Plata, v. 21, n. 46, p. 137, jun. 2020.
Disponível em: http://www.scielo.org.ar/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1515-
59942020000100137&lng=es&nrm=iso. Acesso em: 7 set. 2022.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização – do pensamento único à consciência
universal. Rio de Janeiro: Record, 2006.
SOUZA, Vivian. Recordes no agronegócio e aumento da fome no Brasil: como
isso pode acontecer ao mesmo tempo? G1, Rio de Janeiro, 11 de agosto de 2021.
Disponível em: https://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2021/08/11/
recordes-no-agronegocio-e-aumento-da-fome-no-brasil-como-isso-pode-acontecer-
ao-mesmo-tempo.ghtml. Acesso em: 7 set. 2022.
29

Democracia, estado-nação
e globalização
Autoria: Aline Prado Atassio
Leitura crítica: Warllon de Souza Barcellos

Objetivos
• Compreender o papel do Estado na sociedade atual.

• Estabelecer os impactos da globalização nos países


periféricos do capital.

• Repensar o conceito de democracia à luz de teorias


contemporâneas.
30

1. Políticas públicas: o Estado em ação

O surgimento do Estado Moderno deu-se em um momento de agitação


na nossa história, com a crise do sistema feudal e o surgimento do
capitalismo como sistema produtivo dominante. O objetivo do Estado,
neste início da sua história moderna, era emancipar os homens de
governos centralizados e autoritários, além de buscar colocar um código
de conduta e ética geral, algo que hoje conhecemos como o Direito.

A principal função do Estado neste período era a garantia da segurança


pública e a defesa de conflitos externos, ou seja, ações ligadas à garantia
da soberania física dos seus cidadãos – e se buscarmos compreensão da
palavra soberania no sentido literal, pensamos na dimensão territorial
(LOPES; AMARAL, 2008).

As intensas transformações desta ocasião levam ainda a


questionamentos acerca de formas de governo e escolha de
representantes do povo. Devagar, o conceito de democracia
vai ganhando espaço e um processo lento, porém gradual de
democratização das sociedades tem início.

O advento da democracia, ainda que em sua fase inicial, gerou diversas


mudanças nas relações sociais, nas relações do povo com o poder, das
elites com o povo e com o poder e, claro, no próprio Estado.

Perceba que as relações de força entre os atores sociais envolvidos


nesse processo não são correlatas: sendo uma elite a ocupar o poder
institucional e econômico, é essa elite que será a maior beneficiária das
transformações do Estado Liberal (MOUFFE, 2005).

No entanto, as demandas sociais populares para com o Estado foram se


transformando e tornaram-se mais complexas. Atualmente, entendemos
que a função do Estado é aprimorar a democracia e garantir o bem-estar
dos seus cidadãos. Parece pouco e simples, porém, a elaboração de
31

projetos, planos e a execução destes para atender tais demandas é de


uma grande sofisticação política. O Estado deve, assim, atuar por meio
das políticas públicas.

Concluímos, portanto, que as políticas públicas são formas de atender


projetos elaborados para tornar real um modelo de sociedade.

1.1 Democracia, hiperdemocracia e Estados


Plurinacionais

A democracia também entra no rol de valores que sofreram alterações


positivas com o processo de complexificação das sociedades. Se por
muito tempo a democracia foi compreendida como consenso entre
cidadãos e tinha em sua expressão máxima a escolha do governante
pelo voto, hoje entendemos a democracia como um valor que pressupõe
o fim da ilusão do consenso (MOUFFE, 2005), e a plena compreensão
– e aceitação – da diversidade, do diferente e até mesmo do conflito,
entendendo conflito como divergências que geram debates e propõem
ações salutares para a sociedade.

Desses debates entre divergentes dentro de uma sociedade é necessário


que haja como produto projetos plausíveis de resolução de problemas
sociais, isto é, projetos de ação do Estado. Dentre essas ações estão
as políticas públicas. De acordo com Lopes e Amaral (2008, p. 5), “as
Políticas Públicas são a totalidade de ações, metas e planos que os
governos (nacionais, estaduais ou municipais) traçam para alcançar o
bem-estar da sociedade e o interesse público”.

Pensando conforme nos orienta Chantal Mouffe (2005), o Estado atual


segue tendo como propósito atuar por meio destas políticas. A grande
transformação imposta pelas novas demandas atuam em duas esferas
que se entrecruzam: 1. pensar o atual papel do Estado; 2. pensar a
democracia neste Estado.
32

Devemos partir da reflexão acerca da democracia para que, tendo claro


o que desejamos como sociedade, possamos então refletir a respeito
de qual seria o Estado adequado para o modelo de sociedade que
queremos na sociedade contemporânea.

Sabemos que a antiga definição de democracia, entendida como um


sistema de governo em que a soberania emana do povo e é expressa
pelas eleições periódicas de representantes diretos – no caso das
democracias representativas, como a brasileira (BOBBIO, 1998) – é
desatualizada para os anseios sociais contemporâneos.

Quando pensamos em democracia, pensamos em uma série de


princípios organizadores que balizarão a conduta dos representantes
eleitos. Dentre esses princípios, além de conceitos totais e universais
como manutenção das liberdades individuais, dos direitos humanos, a
liberdade religiosa e proteções legais, pensamos em alguns conceitos
menos gerais, que mostram as especificidades de cada uma dessas
sociedades e seus anseios.

A defesa de políticas públicas inclusivas, o reparo de injustiças do


passado histórico, a garantia constitucional de saúde, trabalho
e moradia, por exemplo, apontam para um modelo de Estado
democrático inclusivo e mais humanizado, que preza pelo bem-estar da
sua população. Ainda assim, não é suficiente.

Os Estados contemporâneos são regidos por valores neoliberais,


eurocentristas, muitas vezes machistas e individualistas (MOUFFE, 1996).
Se queremos falar de inclusão, não podemos considerar tais valores
supracitados como naturais. É preciso ampliar nosso entendimento
acerca do conceito de democracia.

Passamos, assim, a considerar que a democracia como se apresenta


hoje não é capaz de entender, aceitar e conviver com a diversidade
tão ampla da sociedade. Mouffe (2005) defende que os países e seus
33

governos não compreendem o caráter político da democracia, e que


esse caráter significa antagonismo e conflito, algo não apenas natural
como desejável na práxis democrática, pois é a existência do outro, do
diverso, do conflituoso e do diferente que nos coloca para pensar nas
práticas correntes e reformular tanto os discursos como a efetividade
prática desses discursos.

A autora nos esclarece que é impossível a existência de consenso


inteligente entre todos no mundo. Logo, o desafio atual é pensarmos
não em termos de inimigos, e sim de adversários, com quem podemos
debater, dialogar e então chegar em alguma consonância. Ou seja, é
preciso reconhecer que o conflito faz parte da democracia e isso não
significa violência, ao contrário, significa gestão de conflitos de maneira
racional.

Para essa nova maneira de enxergar a democracia, que Mouffe (2005)


denomina democracia radical, é preciso aceitar o múltiplo:

A democracia radical exige que reconheçamos a diferença – o particular,


o múltiplo, o heterogêneo –, tudo o que, na realidade, tenha sido excluído
pelo conceito abstrato de homem. O universalismo não é rejeitado, mas
particularizado; o que é necessário é um novo tipo de articulação entre o
universal e o particular. (MOUFFE, 1996, p. 27)

Há que se considerar que esse conceito de democracia radical visa


atender às demandas geradas pela sociedade contemporânea, digital,
dinâmica, interconectada e cada vez menos diferenciada entre si. A
sociedade da globalização digital.

1.2 Globalização e justiça social

A sociedade globalizada pressupõe a interligação entre países, estados


e nações. Diversos acordos e tratados internacionais vigoram nesse
ambiente e parte deles trata de normatizações jurídicas globais, isto é,
os valores morais que incidem sobre as sociedades dependem menos de
34

questões regionais e da cultura local e mais de consensos internacionais.


Esse é um ponto bastante positivo nessa nova ordem social global,
tendo em vista que deslegitima práticas arbitrárias e desumanas até
então realizadas sob a justificativa de seguir culturas seculares (FRASER,
2007).

Figura 1 – A globalização precisa ser inclusiva e justa para que


haja uma sociedade democrática

Fonte: Shutterstock.com.

Por outro lado, essa globalização reduz a soberania nacional. A


soberania nacional é o conceito utilizado para definir a autonomia de
um Estado em relação às decisões que dizem respeito ao bem-estar,
segurança e demandas internas de um país (FRASER, 2007).
35

A soberania é diminuída, mas não deixa de existir. Na verdade, o Estado


Nacional segue soberano.

O que ocorre na transição do século XX para o XXI é a crise do Estado


Liberal, que perdurou soberano por 500 anos na história humana. As
tradicionais formas de poder entraram em crise e são substituídas
por um caos que se ordena entre os países, por meio de um consenso
contraído por vias diplomáticas – pelas relações internacionais.

Há uma evidente redução da capacidade dos governos nacionais


governarem por si só, sem supervisão ou aval de outros estados
internacionais. O próprio direito, como dito anteriormente, ganha um
complemento no pós-guerra que define aquilo que é comum a todos os
povos que assinam coletivamente as resoluções – surge então o Direito
Internacional.

Os países que não se inserem nessa nova ordem mundial acabam como
párias políticos, jurídicos e até mesmo econômicos.

De acordo com Nancy Fraser (2007), o fim do embate entre capitalismo


e socialismo permitiu que novas pautas fossem impostas aos Estados.
As novas demandas impostas pela globalização expandem a ideia
de igualdade e equidade para esferas antes submetidas ao capital.
A redistribuição (de riquezas) será sobreposta pela demanda do
reconhecimento, e entramos assim na Era das Pautas Identitárias.

Raça e gênero passam a ser temas que se sobrepõem à questão de


classe. No entanto, alerta Fraser (2007), é preciso que as pautas andem
juntas: raça, classe e gênero compõem uma tríade que, na realidade, são
faces de uma mesma questão. O Estado contemporâneo precisa travar
um embate contra as injustiças sociais e econômicas deixadas pelo
modelo de Estado mercantilista e, depois, liberal.

A busca pela justiça social impõe a associação entre redistribuição e


reconhecimento. Para tanto, os sujeitos sociais precisam interagir entre
36

si como pares que não se sobrepõem. O reconhecimento faz-se cada


vez mais importante para a participação na vida pública, política, socia e
econômica. Sem reconhecimento, mais do que uma depreciação, o que
ocorre é exclusão dos que não compõem a maioria social da própria
vida social.

Segundo Fraser (2007, p. 1), “[…] o não reconhecimento,


consequentemente, não significa depreciação e deformação da
identidade de grupo. Ao contrário, ele significa subordinação social no
sentido de ser privado de participar como igual na vida social”. Como
será possível, então, alcançar esse reconhecimento com redistribuição?
A única via é pela ação do Estado. Portanto, ao contrário do que apregoa
o senso comum, especialmente após o advento da Escola de Chicago
nos anos 1970 (MAGALHÃES, 2016), o estado neoliberal não é capaz de
atender às necessidades da sociedade contemporânea. É preciso mais
presença do Estado-nação.

Assim, é vultuosa a necessidade da discussão da presença do


Estado como um dos principais componentes para que haja então
redistribuição, reconhecimento, paridade de participação e, portanto,
uma real justiça social.

1.3 Um Estado para o século XXI

Atualmente, o Estado brasileiro, assim como a maioria dos países que


ocupam posição central no sistema-mundo, é considerado democrático.
Temos eleições, liberdades e justiça. Porém, se olharmos para o
significado de democracia de fato, veremos que outros valores que
estão amplamente atrelados aos Estado nacionais, como protecionismo
e mesmo nacionalismo, impedem que a democracia seja mais do que
um conceito que indica a forma de escolha de um governo.

Para Wendy Brown (2019), o conceito de democracia apresenta-se como


um grande vazio de significante. As consequências disso podem ser
37

apropriação indevida ou manipulação do conceito com fins diversos,


inclusive para fins pouco democráticos.

Democracia não pode ser confundida com simples existência de


mercados livres, abertos e desregulados e a presença de eleições.
É preciso que a ressignificação feita pela sociedade, por meio de
demandas específicas, seja incorporada ao conceito e à prática do
Estado. Dentre as principais transformações devemos entender que a
luta é pela soberania popular.

O discurso neoliberal atual afeta a democracia e a própria percepção


social do que é e para que serve o Estado. Perde-se de vista que as
políticas públicas são para o bem-estar social geral e não apenas de
parcela da população.

A percepção de que o Estado não deve fornecer itens básicos para a


garantia de elementos fundamentais dos Direitos Humanos, como a
garantia da própria vida, prejudica a qualidade dos serviços prestados à
sociedade em campos como saúde, segurança, educação.

A privatização de setores como o energético, as indústrias de base, os


serviços básicos (água, luz, saneamento, correio), hospitais, escolas e
universidades, impactam diretamente a qualidade de vida de um país
inteiro. Pontos nevrálgicos como esses são mantidos sob domínio
estatal em todos os países que compõem o centro do sistema-mundo
contemporâneo, e não devem ser privatizados em países periféricos, sob
risco de colapso do sistema e certo descumprimento da Constituição
Federal de 1988, no caso específico do Brasil.

É preciso pensar o Estado como algo extremamente importante e


essencial na solução de nossos problemas sociais. Uma sociedade sem
Estado não atende aos anseios de sua população, não objetiva cuidar
de seu povo e não preza pelo bem-estar dos cidadãos. Para que haja
democracia e justiça social, é preciso um Estado em ação.
38

Referências
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de
Política. v. 1. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.
BROWN, Wendy. Nas Ruinas do Neoliberalismo – A ascensão da política
antidemocrática no Ocidente. São Paulo: Politeia, 2019.
FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética? Lua Nova: Revista de Cultura e
Política, São Paulo, n. 70, p. 101-138, 2007. Disponível em: https://www.scielo.br/j/
ln/a/JwvFBqdKJnvndHhSH6C5ngr/?lang=pt. Acesso em: 15 set. 2022.
LOPES, Brenner; AMARAL, Jefferson N. Políticas Públicas: conceitos e práticas. Belo
Horizonte: Sebrae/MG, 2008.
MAGALHÃES, Felipe N. C. O Espaço do Estado no neoliberalismo: elementos para
uma redefinição crítica. GEOgraphia, ano 18, nº 37, 2016.
MOUFFE, Chantal. Por um modelo agnóstico da democracia. Revista Sociologia e
Política, Curitiba, 25, p. 11-23, nov./2005.
MOUFFE, Chantal. O regresso do político. Lisboa: Gradiva, 1996.
39

Multiculturalismo, ética
igualitária e organizações
políticas
Autoria: Aline Prado Atassio
Leitura crítica: Warllon de Souza Barcellos

Objetivos
• Conhecer as várias facetas do multiculturalismo.

• Compreender o conceito de identidade e sua


transformação com a presença do multiculturalismo.

• Observar na prática dos Estados a presença do


multiculturalismo.
40

1. Multiculturalismo: as várias facetas

O processo de globalização determinou diversas transformações ao


mundo no fim do século XX e início do século XXI. Com a expansão das
fronteiras, o avanço do capitalismo, das redes sociais e da tecnologia, foi
intensa a interconectividade entre as culturas.

A convivência com o novo, com o diferente, com o diverso tornou-se


habitual, necessária e desejável. Durante esse processo as culturas
entram em contato umas com as outras, sem se misturarem de fato,
mas podendo passar por um movimento de agregação de elementos
externos ou ainda “exportar” para outras culturas características
particulares de diversos mundos. O multiculturalismo – ou pluralismo
cultural – foi o nome dado pelos estudiosos, em especial da Sociologia
e Antropologia, para esse fenômeno social típico de sociedades pós-
modernas e globalizadas, em que as fronteiras entre culturas locais,
regionais, nacionais ou mundiais não são delimitadas.

Canclini (2012 p. 14) define “[…] o mundo multicultural como a


justaposição de etnias ou grupos em uma cidade ou nação”. O
movimento multicultural nasceu nos Estados Unidos da América, e tem
como expoente o antropólogo britânico-jamaicano Stuart Hall, cujo livro
A identidade cultural na pós-modernidade, lançado em 1992, tornou-se
um marco para pensar a concepção de indivíduo e sujeito na sociedade
contemporânea.

Em cada cultura distinções ficam isoladas, propiciando que o


pensamento se desenvolva na lógica do Um, do uno, ou seja, de que há
uma forma a se pensar o mundo corretamente. As implicações da lógica
do um é um pensamento binário, pelo qual há um certo e o restante
errado, não há espaço para argumentações, e as ideias não podem
aceitar contraposições.
41

Como fenômeno social, o multiculturalismo precisa ser compreendido


na sua complexidade, com suas várias facetas.

O conceito de multiculturalismo pressupõe a existência de muitas


culturas e, também, de uma cultura hegemônica. Dentre as tantas
culturas existentes, há uma que se impõe e sobressai, especialmente
pelo movimento colonizador que busca apagar as outras culturas, isto
é, o colonizador tenta eliminar a influência da cultura do colonizado.
Os conceitos culturas são generalizados e universalizados para que
as culturas diferentes sejam sobrepostas pela cultura dominante,
colonizadora.

Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant (2000) afirmam que:

[…] a nova vulgata planetária que se apoia numa série de oposições


e equivalências, que se sustentam e contrapõem, para descrever
as transformações contemporâneas das sociedades avançadas:
desengajamento econômico do Estado e ênfase em seus componentes
policiais e penais, desregulação dos fluxos financeiros e desorganização
do mercado de trabalho, redução das proteções sociais e celebração
moralizadora da “responsabilidade individual. (WACQUANT, 2000, [s.p.])

No entender desses autores, o multiculturalismo está associado a uma


política norte-americana de dominação que, adjunto à globalização,
pretende redefinir as outras culturas, impondo o olhar norte-americano
capitalista, consumista e individualista. Há, nessa prática colonizadora,
uma tentativa dos EUA em anular as particularidades culturais e sociais,
impondo o multiculturalismo. Conforme Bourdieu e Wacquant afirmam,
essa forma de ver o mundo seria conduzida por:

[…] instâncias supostamente neutras do pensamento neutro que são


os grandes organismos internacionais. Além do efeito automático da
circulação internacional de ideias que, por sua própria lógica, tenta ocultar
as condições e os significados originais […] tende a ocultar as raízes
históricas de todo um conjunto de questões e de noções: a “eficácia” do
42

mercado (livre), a necessidade de reconhecimentos das “identidades”


(culturais), ou ainda a reafirmação-celebração da “responsabilidade”
(individual). (BOURDIEU; WACQUANT, 2000, [s.p.]).

Portanto, para esses autores e grande parte da sociologia que se


desenvolve para além dos EUA, os tentáculos da dominação econômica
dos grandes mercados financeiros não são sentidos, pois aparecem
transmutados sob a roupagem do multiculturalismo.

1.2 Identidade e multiculturalidade

Identidade é um dos conceitos mais fluidos da Antropologia. Ela


adquire uma perspectiva prática e outra de análise. A perspectiva
prática é focada no indivíduo e muitas vezes facilmente confundida
com essencialismo de cada um, perdendo a objetividade e o objetivo
para uma análise social – podendo significar nada, para os estudos de
ciências humanas, ou muito, se utilizada como categoria.

A identidade individual difere da coletiva. Hall (2006) acredita que a


identidade individual e coletiva na sociedade pós-moderna é fluida e
fragmentada. Essa identidade é formada pelas intensas trocas, vivências
e relações que o sujeito trava com as culturas que o rodeia. Dito isso,
concluímos que as identidades são produtos culturais e não biológicos

Mas o que é realmente identidade nacional, essa que tanto diz de um


povo e que sofre influência direta do multiculturalismo? Segundo Turner
(1977):

[…] as nações, por exemplo, não se constituem da união entre


indivíduos. São cultural, social e historicamente impostas aos indivíduos
pela socialização e pelo consenso que satisfaz ou não as necessidades
individuais. (TURNER, 1977, p. 520, grifo nosso)

Esse processo de socialização na sociedade contemporânea pós-


moderna, é realizado por diversas instituições, como a família, a escola, a
43

igreja, o clube, os times de futebol, o próprio Estado, o passado cultural


desse país e as intervenções culturais advindas de países exteriores.

A globalização intensificou a entrada de cultura massificada de países


como os EUA, e reduziu as especificidades culturais tradicionais desses
países. Além disso, o acesso à internet e às redes sociais torna a
circulação de cultura praticamente instantânea. Os resultados disso nas
identidades nacionais ou sociais são grandes. De acordo com Hall (2006):

[…] o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos,


identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro
de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções,
de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente
deslocadas […]. A identidade plenamente unificada, completa, segura e
coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida que os sistemas de
significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados
por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades
possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos
temporariamente. (HALL, 2006, p. 13)

Dessa forma, nossa identidade cultural é formada durante toda a vida,


por meio das diversas trocas que realizamos com outras culturas. É,
como dito, uma troca amplificada pela globalização, pelo acesso à
internet e pelas redes sociais. O multiculturalismo se faz, então, presente
em todos nós.

O problema se apresenta por ser o multiculturalismo entendido


pelos governos, indústrias e entidades não governamentais como
um programa que indica as cotas para garantir representatividades
culturais em diversos espaços sociais, como universidades, escolas e
museus, exaltando sem reflexão crítica os acertos e erros das culturas
compartilhadas. É preciso problematizar a inserção que se realiza dessas
culturas em outras unidades sociais.
44

Figura 1 – Grupo religioso multicultural

Fonte: Shutterstock.com.

1.3 Multiculturalismo na prática estatal

Países com muitas diferenças étnicas, raciais e culturais adotaram o


multiculturalismo como uma forma para lidar com essas diferenças,
instituindo medidas governamentais com o objetivo de promover a
igualdade e a equidade. O multiculturalismo foi adotado por países
como Brasil, EUA, Alemanha, França, Holanda, Inglaterra e Bélgica.
Engana-se quem pensa que políticas públicas são focadas apenas em
países pobres ou em desenvolvimento: as políticas públicas são fortes
em países desenvolvidos – e contribuem para esse desenvolvimento.
Neste tópico, olharemos atentamente para casos europeus e
buscaremos pensar no caso do Brasil.

Um ponto nevrálgico para o desenvolvimento adequado de políticas


públicas é a existência de interesse do governo e da elite de um país
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em reduzir as desigualdades, reparar o passado e realizar políticas


públicas.

Assim, em países como o Brasil, é importante que ricos e classe média


olhem para os pobres e entendam que essa classe precisa de ajuda
estatal, aceitem que essa ajuda deve partir do Estado e compreendam
que para um país ser realmente democrático e desenvolver-se,
é preciso que todos os cidadãos estejam amparados e atendidos
pelo Estado, que tenham vida digna, condições justas de emprego,
educação, saúde e salários, entre outras questões.

A sociologia chama esse acordo entre elites e governo de pacto social,


e coloca esse pacto como o primeiro ponto para se pensar políticas
públicas em qualquer país. De acordo com Sansone (2005), um
exemplo de política pública é o seguro-desemprego:

Na Holanda, o primeiro seguro-desemprego foi instituído em 1522 e logo


foi preciso definir quem era digno de recebê-lo. Para isso, instituíram-se
direitos especiais, mesmo dentro do contexto da legislação universalista.
O objetivo substancial era – e ainda é – prevenir ou, pelo menos,
administrar o conflito. (SANSONE, 2005, p. 4)

Outro ponto de extrema importância a ser considerado quando o tema


é adoção de políticas públicas e multiculturalismo é o passado colonial.
Os diferentes tipos de colonização impõem diferentes formas de tratar
a diversidade cultural e étnica.

Nesse sentido, pode-se falar de diferentes estilos de colonialismo: a)


o sistema britânico do governo indireto; b) o sistema das sociedades
plurais como, por exemplo, a do Império holandês, que se baseia na
existência de um direito étnico. Assim, no Suriname, até os anos 1930, o
direito civil e, em alguns casos, o penal variavam segundo o grupo étnico.
Um sistema não muito diferente valia na África do Sul sob o regime do
apartheid – não por acaso, uma palavra holandesa; e c) no extremo
oposto, existia a versão do colonialismo do Império francês, que era
baseada na noção de francité, de universalismo na “boca do fuzil” e na
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atratividade de uma ocidentalização possível, embora a altos custos (ou


duras penas), para uma parcela da população “nativa”. (SANSONE, 2005,
p. 5)

De toda sorte, independentemente do sistema colonial, os reflexos da


colonização na maneira como um país trata suas diferenças étnicas e
culturais são sentidos no presente.

Uma terceira maneira de enxergar a relação entre Estado e


multiculturalismo é pela perspectiva regional. Alguns países adotam
políticas que pretendem manter as diferenças internas do país,
redistribuindo recursos e bens para as minorias. Chamadas de
“colônias internas” (SANSONE, 2005), essas regiões buscam não a
integração, mas a manutenção das diferenças. Em alguns casos, como
na Espanha com a região da Catalunha, os conflitos podem se acirrar e
tornar as regiões separatistas, por não se compreenderem como parte
de uma nação sob a perspectiva cultural e étnica.

Essa perspectiva analítica traz importantes reflexões acerca da adoção


de políticas públicas para promoção da multiculturalidade, e entre elas
podemos citar: a necessidade de conhecer a cultura original, incentivá-
la e valorizá-la, a adoção de políticas públicas com pautas identitárias,
o incentivo às atividades educativas e culturais com a perspectiva de
promoção da aceitação do diferente, da tolerância e da paz entre as
culturas.

Dessa forma, entendemos que o multiculturalismo, como conceito e


prática de Estado, pode ser entendido como uma forma de promoção
da equidade sem exigir a igualdade, de valorização do diferente e de
troca positiva de culturas.

Para tanto, é preciso conscientização das elites e dos governos,


demanda popular e investimentos. Empresas privadas também podem
– e devem – atuar para a promoção do multiculturalismo.
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Referências
BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loïc. Um mundo norte-americano. A nova bíblia de
Tio Sam. Jornal Le Monde, 1 de maio de 2000. Disponível em: https://diplomatique.
org.br/a-nova-biblia-de-tio-sam/.‎ Acesso em: 26 set. 2022.
CANCLINI, Néstor G. Culturas Híbridas. Estrategias para entrar y salir de la
modernidad. Buenos Aires: Paidós, 2012.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed. Rio de Janeiro:
PD&A, 2006.
SANSONE, Lívio. O Estado e o multiculturalismo. Ciência e Cultura, São Paulo, v.
57, n. 3, p. 4-5, jul.-set. 2005. Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.
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em: 2 out. 2022.
SANTOS, Raiane Kelly et al. Orçamento participativo como ferramenta de
participação popular: a experiência do município de Aracoiaba – CE. I Encontro de
Ensino e Pesquisa do Campo de Públicas, 2018.
TURNER, J. C. Social identification and psychological group formation. In: TAFJEL,
Henri (org.). The social dimension: European developments in social psychology. v.
2. Cambridge: Cambridge University, 1977.
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BONS ESTUDOS!

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