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Coleção CLE V.

09
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Es CENTRO DE LÓGICA, EPISTEMOLOGIA
E HISTÓRIA DA CIÊNCIA - UNICAMP

' COLEÇÃO CLE


Riad

Coleção CLE V.09


Coleção CLE V.09
Coleção CLE V.09
Coleção CLE V.09
Coleção CLE V.09
COLEÇÃO CLE

Editor
Itala M. Loffredo D'Ottaviano

Conselho Editorial
Newton C.A. da Costa (USP) .

“tala M. Loffredo D'Ottaviano (UNICAMP).


Fátima R. R. Évora (UNICAMP)
Osmyr F. Gabbi Jr. (UNICAMP)
Michel O. Ghins (UNIV. LOUVAIN)
José A. D. Guerzoni (UNICAMP)
Zeljko Loparié (UNICAMP)

Oswaldo Porchat Pereira (USP)

71 CENTRO DE LÓGICA, EPISTEMOLOGIA


| E HISTÓRIA DA CIÊNCIA + UNICAMP
Coleção CLE V.09
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A INERCIA EO
ESPAÇO-TEMPO
“ABSOLUTO
Coleção CLE V.09
Coleção CLE V.09
À INÉRCIA E 0
ESPAÇO-TEMPO
ABSOLUTO
DE NEWTON A EINSTEIN
Coleção CLE V.09
Copyright €) by Michel Ghins, 1991.
“Nenhuma parte desta publicação pode ser gravada, armazenada
em sistemas eletrônicos, fotocopiada, reproduzida por meios
mecânicos ou outros quaisquer sem autorização prévia do editor.

ISSN: 0103-3147
Primeira Edição, 1991

Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca do CLE

Ghins, Michel
G344i A inércia e o espaço-tempo absoluto: de Newton
a Einstein / Michel Ghins. - Campinas : UNICAMP,
Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência,
1991.

(Coleção CLE; v.9)

Título original: L' inertie et I'espace-temps absolu


de Newton à Einstein: une analyse philosophique.

- 1. Espaço e tempo. I. Título: II. Série:

19. CDD 115

Índice para catálogo sistemático


1. Espaço e Tempo 115

Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência .


Cidade Universitária " Zeferino Vaz ”
a C.P. 6133 .
— 13081-970
- Campinas, SP.

IMPRESSO NO BRASIL
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Ameu pai e àaminha mãe.


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Sumário

Prefácio ....cciciiicis
reter KV

Prefácio à edição brasileira ............. AR xxili

CAPÍTULO 1: Os Significados dos Termos


| “Absoluto” e “Relativo” ....... ]
1.1 Os espaços-tempo .........ccccccceceerres 2.
1.1.1 O sentido lógico ....... sa is dr 2
1.1.2 O sentido físico ...... PDR EE PRE 3
1.1.3 O sentido empírico .........c.c.ccc... 5
1.1.4 O sentido ontológico ................. .6
1.1.5 O sentido matemático ........ ceereea 8
1.2 Os movimentos E Ds a aEse PR 16
1.2.1 O sentido lógico ..........c..o7
1.2.2 O sentido físico ................. ....18
1.2.3 O sentido empírico .................. 18
1.2.4 O sentido ontológico ................. 18
1.2.5 O sentido matemático ............... 19

CAPÍTULO 2: A Mecânica Clássica ...........2]


2.1 A mecânica de Newton: O texto dos o
Principia ......ccccc cicero ...2]
2.1.1 A força da inércia ............c...... 22
2.1.2 Os movimentos verdadeiros: suas pro-
priedades, causas e efeitos ........... 27
2.1.3 Resumo da argumentação a favor do
espaço absoluto ...........cc.cc.... 43
2.1.4 O espaço e o tempo absolutos ....... 44
22 À controvérsia Leibniz- Clarke e a defesa
de Newton por Euler ..................... 5]
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2.2.1 A crítica de Leibniz a Newton ....... 52
2.2.2 A mecânica de Leibniz .............. 58
2.2.3 As características do espaço e do mo-
vimento segundo Leibniz ............ 62
2.2.4 A crítica de Euler a Leibniz ......... 74
2.3 À mecânica clássica ............cccccece eo. 83
2.3.1 A formulação espaço-temporal da me-
cânica clássica .....icccsictrecereeeo 83
2.3.2 A rotação e as forças de inércia ...... 95
2.3.3 A explicação da experiência do balde 103
2.4 O espaço-tempo quase-newtoniano abso-
luto ......... cerco seersoo elo Em ejmaa
mio tes ia 108
2.5 Conclusão: O alcance das objeções dos
relacionalistas Leibniz e Mach ........... 117

CAPÍTULO 3:
O Eletromagnetismo e a Teoria
da Relatividade Restrita ..... 121
3.1 Oéter ...... MESESE raNNDa | Sina mma 121
3.2 As equações do eletromagnetismo ......... 129
3.3 O princípio de relatividade e o princípio de
invariância da velocidade da luz .......... 134
3.4 Os axiomas da mecânica de Einstein ...... 144
3.5 O espaço-tempo de Minkowski ............ 148
3.6 A rotação na relatividade restrita ......... 153
3.7 Em que sentido o espaço-tempo de Min-
kowski é absoluto ou relativo? ........... 154
3.8 À questão da circularidade da definição
do sistema inercial na relatividade res-
trita ecc 161

CAPÍTULO 4: A Teoria Geral da Relativi-


dade ..... Ss a errar 2... 169
4.1 A apresentação de Einstein ............... 169
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4.2 A apresentação de Weyl .................. 190
4.3 À apresentação de Weinberg .............. 205
4.4 As equações do campo .............ccc... 215
4.5 A problemática machiana ................ 219
4.5.1 A teoria de Mach e suas dificuldades 220
4.5.2 Relatividade cinemática e relatividade
dinâmica ..... inn ma mo pais a pe . 228
4.5.3 A distinção entre sistemas inerciais e
sistemas não-inerciais .............. 238
4.6 À rotação na relatividade geral ........... 247
4.6.1 Os sistemas em rotação do eixo ..... 248
4.6.2 A solucão de Schwarzschild ......... 264
4.6.3 As soluções aproximadas das equações
do campo .........cccccccec cce .275
4.7 Os espaços-tempo da teoria da gravitação
de Einstein são absolutos ou relativos? ...280
4.7.1 Os movimentos ...........ccccc.. 280
4.7.2 Os espaços-tempo .................. 286
4.7.3 À questão da definição do sistema
local de inércia ...........ccccc... 290

BIBLIOGRAFIA ...iiiiiiiii am 295


Coleção CLE V.09
Coleção CLE V.09
Prefácio

Este livro apresenta uma análise filosófica das con-


cepções de inércia e de espaço- tempo a partir de várias
teorias físicas, tais como as encontramos formuladas em
autores como Newton, Leibniz, Euler, Mach, Einstein,
Weyl e Weinberg. O ponto de partida é o problema
colocado por Newton sobre a explicação do apareci-
mento de fenômenos diferentes segundo o tipo de mo-
vimento: a água contida em balde toma uma forma
côncava quando está em rotação, ao passo que perma-
nece plana quando em movimento retilíneo uniforme.
Parece-me que esta abordagem esclarece melhor o esta-
tuto do espaço-tempo, e o papel que este desempenha
nas teorias físicas, que a abordagem inspirada pelos em-
piristas lógicos, como Carnap e Reichenbach. Interes-
sados, em primeiro lugar, na maneira como se podiam
iustificar as afirmações teóricas com base em enuncia-
dos de observação, eles estavam sobretudo preocupados
em fundar a estrutura métrica do espaço-tempo com
base no comportamento de barras e de relógios, isto é,
de instrumentos de medida. |

Sem negar o extremo interesse desta abordagem, é


preciso constatar que ela apresenta diversas dificulda-
des. Primeiramente, os autores aqui estudados pro-
curam, sobretudo, fornecer uma teoria satisfatória do
movimento e, em particular, da dualidade observada
entre os movimentos que denominamos inerciais e não-
inerciais. Sua preocupação não se limita a formular leis
que descrevam corretamente fenômenos bem relaciona-
“dos, mas a atribuir uma causa real aos efeitos inerci-
Coleção CLE V.09
xXvi Prefácio

ais, reais e não apenas aparentes, ou, de modo equi-


valente, a especificar adequadamente o sistema, ou os
sistemas, de referência relativamente aos quais os mo-
vimentos, quer acelerados, quer não, dão ou não lugar
a tais efeitos. Além disso, a determinação da estru-
tura métrica a partir das barras e dos relógios não é
independente do estado de movimento destes, ao me-
nos nas teorias da relatividade restrita e geral, e isto só
pode ser determinado quando já dispomos de um sis-
tema de referência cujo estado de movimento, inercial
ou não-inercial, conhecemos. Portanto, é a questão da
determinação do caráter inercial ou não de um movi-
mento ou de um sistema de referência que constitui o
problema fundamental. Por fim, as discussões a res-
peito do papel fundacional dos instrumentos métricos
e a questão correlata de saber se eles determinam uni-
vocamente a métrica e, por conseguinte, a curvatura
de espaço(-tempo) ubsisient desde que Poincaré de-
fendeu a tese do convencionalismo geométrico, isto é,
há cerca de um século. Tais discussões atingiram hoje
um grau de complexidade e tecnicidade tal que a di-
mensão filosófica se encontra frequentemente relegada
a segundo plano, mascarada por discussões bizantinas,
que são o índice mais seguro do esgotamento de uma
problemática. .
' Partiremos aqui das teorias físicas, sem nos deter-
mos muito à questão de sua justificação empírica. Des-
te modo, suporei que elas já se encontram verificadas,
ou confirmadas, ou corroboradas, etc., para me ater à
relação entre os fenômenos da inércia, de um lado, e,
de outro, ao estatuto empírico e ontológico do espa-
ço-tempo e de sua estrutura, articulada por cada uma
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Prefácio xvil

destas teorias. O espaço-tempo (ou os espaços-tempo,


no caso da teoria geral da relatividade) de uma teoria
deve ter propriedades e uma estrutura tais que os efei-
tos de inércia sejam corretamente explicados por esta
teoria. |
A teoria geral da relatividade, contrariamente a uma
opinião ainda largamente nindida. não permite aban-
donar completamente a concepção abRoliisia do espa-
ço-tempo e não satisfazà equivalência dinâmica dos
movimentos. Estes resultados não são novos: foram
destacados por Hermann Weyl e Lawrence Sklar, en-
tre outros. Mas seu impacto filosófico foi subestimado.
Eles mostram que mesmo na física, que é, sem dúvida,
ainda hoje, e apesar dos progressos notáveis de ou-
tras disciplinas, como a biologia, a mais elaborada. das
ciências empíricas, não é possível fazer economia de en-
tidades claramente metafísicas, como o espaço-tempo
absoluto. | Eres
Uma atenção particular foi dedicada à formulação
exata e à abrangência dos diferentes princípios: princí-
pios de relatividade, de covariância, de reciprocidade,
nas diferentes teorias analisadas,e às relações lógicas
entre eles. Se admitirmos, segundo Weyl, a realidade
das soluções das equações do campo, que são espaços-
tempo curvados pela presença das massas e da energia,
compreenderemos melhor a origem dos fenômenos iner-
ciais, como também a significação dos princípios utili-
zados, e evitaremos, por exemplo, confundir o princípio
de covariância com o princípio geral da relatividade.
Finalmente, a questão, mais epistemológica, da cir-
cularidade da definição dos sistemas inerciais foi longa-
mente examinada. Fica claro, a partir deste exame, que
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Xviil Prefácio

esta circularidade é inevitável, inclusive no âmbito da


teoria geral da relatividade. Não é possível determinar
por meios puramente cinemáticos, isto é, por medidas
espaço-temporais, se um sistema de referência é iner-
cial ou livre de toda força externa. É preciso recorrer
às forças, à dinâmica. Nestas condições, não é possível
distinguir a questão da geometria do espaço-tempo da-
quela sobre a inercialidade dos sistemas de inércia lo-
cais (esta e aquela se determinam reciprocamente, uma
vez que os sistemas de inércia locais são os espaços-
tempo tangenciais), o que torna difícil a redução da
estrutura do espaço-tempo ao comportamento de bar-.
ras e de relógios, mesmo mediante uma definição de
congruência, como tinha defendido Reichenbach.
Estes são problemas de filosofia, na medida em que,
de um ponto de vista negativo, não encontramos solu-
ção para eles nas obras de física, mas também, e de um
ponto de vista positivo desta vez, porque dizem res-
peito ao estatuto empírico e ontológico do espaço-tem-
po, à clarificação dos fundamentos das teorias físicas e
à aceitabilidade de uma concepção estritamente empi-
rista da ciência.

O primeiro capítulo é uma introdução à terminolo-


gia utilizada nesta obra. É indispensável, com efeito,
quando se faz filosofia, e sobretudo filosofia da ciência,
definir tão bem quanto possível os termos utilizados, e
construir o discurso de maneira rigorosa (se fosse pre-
ciso reter apenas uma lição de Carnap, seria esta). Os
capítulos seguintes são consagrados à mecânica clássica,
à relatividade restrita-e à teoria geral da relatividade.
Este livro se dirige a filósofos da ciência, a histo-
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Prefácio xix

riadores da ciência e a cientistas, que tenham um co-


nhecimento elementar de física clássica e relativista, de
álgebra linear e de geometria diferencial: dada a natu-
reza do tema, foi indispensável apresentar os aspectos
essenciais das teorias examinadas em sua forma ma-
temática. Todavia, a fim de facilitar a leitura, omiti
quase todas as demonstrações, para me concentrar nos
resultados, e indiquei o significado de todos os símbolos
utilizados, conservando as notações-padrão entre os fí-
sicos, isto é, as utilizadas por Weinberg (1972). As
datas entre parênteses após o nome de um autor fazem
referência à bibliografia, nem sempre correspondendo
ao ano da primeira edição. Meus comentários no inte-
rior das citações foram colocados entre colchetes.

Este trabalho se insere no prolongamento de minha


tese de doutorado intitulada Les conceptions absolu-
tistes et relationnelles de lespace-temps, defendida em
março de 1982 no Instituto Superior de Filosofia da
Universidade Católica de Louvain (UCL) (Louvain-la-
Neuve), cuja versão original foi premiada pela Acade-
mia Real de Ciências, Letras e Belas Artes da Bélgica,
em maio de 1987. Trata-se aqui de uma versão reela-
borada durante o ano de 1988, conservando o plano e
as idéias centrais da versão original, mas levando em
conta a literatura recente, do mesmo modo que críticas
e observações que meus professores, colegas, alunos e
amigos tiveram a gentileza de me comunicar.
Entre estes, gostaria, em primeiro lugar, de agrade-
cer de forma especial ao Professor Jean Ladriére, que
foi o orientador de minha tese. Sua capacidade de pe-
netrar o pensamento do interlocutor, de formular ob-
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XX | | Prefácio

servações claras e pertinentes, assim como seu estímulo


constante, constituíram um apoio intelectual poderoso
ao mesmo tempo que um suporte moral sem o que este
livro não existiria.
O Professor David Speiser, cuja amizade e cujo cons-
tante interesse por minhas pesquisas foram-me extre-
mamente preciosos merece especialmente minha gra-
tidão. Melhor que ninguém, ele me ensinou que a
crítica exigente e construtiva, e não os elogios vazios,
é a marca da verdadeira estima. Sua leitura atenta de
certas partes deste livro e suas críticas detalhadas fo-
ram uma fonte inesgot ável de reflexões e me permitiam
evitar numerosos Erros.
Gostaria igualmente de expressar meu reconheci-
mento a todos aqueles de cujo apoio e competência me
beneficiei, entre os quais gostaria de mencionar o Pro-
fessor Es Apostel, que aceitou. fazer parte da banca
examinadora de minha tese; os professores Paul Go-
chet e Marc Richir, que fizeram parte do júri do Con-
curso de Bolsas de Viagem da Fundação Universitária
da Bélgica; Jacques Demaret, Joel Doneux, Yves Els-
kens, Pierre Ernotte, Pierre: RererberE André Laus-
pres Marc Leclerc, André Nauts, Angelo Petroni,' Pa-
“tricia Radelet-de Grave, Michel Vandyck, Philippe Van
Parijs, Edmond Weber, que participaram dos Seminá-
rios do Centro de Filosofia da Ciência do Instituto Su-
perior de Filosofia, de 1978 a 1981; Caetano Plastino,
Harvey Brown, José Chiappin, Newton da Costa, Pir-
min Stelneker, Steven French e Vincent Buonomano,
meus colegas da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP) ou da Universidade de São Paulo (USP),
no Brasil; os professores Robert Debevere Etienne-Sadi
Coleção CLE V.09
Prefácio xxi

Kirschen, que foram os consultores da Academia Real |


da Bélgica; Bertrand Hespel, assistente do Centro de
Filosofia da Ciência (UCL).
Agradeço ao “Fonds de Développement Scientifi-
que” (FDS) da Universidade Católica de Louvain, à
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo (FAPESP), ao Centro de Lógica, Epistemologia
e História da Ciência (CLE), e ao Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
por seu apoio financeiro.
Por sua generosidade, a Academia Real da Bélgica
tornou possível a publicação deste livro; gostaria aqui
de agradecer a ela profundamente.
A Véronique, minha esposa, gostaria aqui de dizer
o quanto foi importante ela estar comigo todos os dias.

Bruxelas, 29 de dezembro de 1988.


“Michel Ghins
Coleção CLE V.09
Coleção CLE V.09
Prefácio à Edição Brasileira

Esta tradução portuguesa do livro “L'inertie et Ves-


pace-temps absolu de Newton à Einstein. Une analyse
philosophique” publicado em 1990 pela “Académie
Royale de Belgique” (Mémoires
de la Classe des Let-
tres, T. LXIX, Fascicule 2), corresponde quase integral-
mente ao texto original. Apenas foram reformuladas
algumas passagens, visando maior clareza. .
Quero agradecer, em primeiro lugar, aos traduto-
res Célia Gambini e, principalmente, Luiz Henrique de
Araújo Dutra, com quem conferi toda a tradução com
o texto original.
Os funcionários do Centro de Lógica, entre os quais
quero mencionar Marcos Munhoz e Nilza Galindo, me-
recem os meus agradecimentos por sua dedicação à pu-
blicação deste livro.
Sem o apoio da Diretora do Centro de Lógica, a
Profa. Ítala Maria Loffredo D' Ottaviano, assim como
da Fundação de Amparoà Pesquisa do Estado de São
Paulo (FAPESP) e do Conselho Nacional de Desen-
volvimento Científico e Tecnológico (CNPq), esta pu-
blicação teria sido simplesmente impossível: agradeço-
lhes sinceramente.
Minha gratidão dirige-se também à “Académie
Royale de Belgique” que gentilmente autorizou a pu-
blicação desta tradução.
Finalmente, quero dedicar este livro aos meus co-
legas do Centro de Lógica e do Departamento de Fi-
losofia da UNICAMP, com os quais tive o privilégio
Coleção CLE V.09
XxIv Prefácio à Edição Brasileira

de conviver desde 1983 e de apreciar a competência e,


principalmente, a amizade.

Campinas, 11 de novembro de 1991.


Michel Ghins
Coleção CLE V.09
Capítulo 1.

Os Significados dos Termos


“ “Absoluto” e “Relativo”

' Para compreender as diferentes explicações propos-


tas para os fenômenos de inércia, é necessário responder
à seguinte questão: em que medida os espaços-tempo e
os movimentos descritos pela mecânica clássica, o ele-
tromagnetismo, a relatividade restrita e a teoria ge-
ral da relatividade são absolutos ou relativos? Uma
resposta precisa para tal questão requer uma classi-
ficação dos diferentes significados independentes que
podem tomar as expressões “espaço-tempo absoluto”
e “espaço-tempo relativo”, assim como as expressões
“movimento absoluto” e “movimento relativo”. Esta
classificação constituirá uma grade conceitual que, em
seguida, poderá ser aplicada às diversas teorias físicas.
Buscando generalidade, adotaremos desde o início
a perspectiva espaço-temporal, a única que tem um
sentido físico, mesmo no quadro da mecânica clássica.
Todavia, nesta última, é possível efetuar uma divisão
do espaço-tempo segundo o eixo do tempo; tal divisão
é baseada na relação de simultaneidade e é a mesma
para todo observador. É por este motivo que vamos nos
“limitar a discutir o caráter absoluto ou relativo apenas
do espaço, no caso da mecânica clássica; podendo as
conclusões obtidas ser estendidas, mutatis mutandis,
ao tempo e, portanto, ao espaço-tempo.
Coleção CLE V.09
o. A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

1.1 Os Espaços-Tempo

1.1.1 O sentido lógico

Diremos que um espaço-tempo é absoluto, no sen-


tido lógico, se e somente se a expressão “espaço-tempo”
referir-se a um objeto individual, a um indíviduo e não
a um conjunto de relações (uma propriedade é uma
relação com uma posição de argumento, como, por
exemplo, “ser azul”). Neste caso, afirmaremos também
que o espaço-tempo é uma substância.
Diremos, ao contrário, que um espaço-tempo é re-
lativo, ou melhor, relacional, no sentido lógico, se e so-
mente se a expressão “espaço-tempo” designar, não um
indivíduo, mas um sistema de relações entre pontos-
acontecimento (lugares de acontecimentos quase-pon-
tuais possíveis).
Os termos colocados em relação são pontos-acon-
tecimento, isto é, lugares espaço-temporais para a o-
corrência possível de acontecimentos físicos quase-pon-
tuais, como a intersecção de dois raios luminosos. Os
pontos-acontecimento podem se encontrar em sistemas
de relação variados uns com respeito aos outros. Se, fi-
sicamente, só pode existir um único sistema de relações
entre estes termos, os outros sistemas de relações, estu-
dados na matemática, constituem espaços-tempo sim-
plesmente possíveis.
Quando falamos de um espaço-tempo enquanto sis-
tema de relações no sentido lógico, temos em vista um
sistema particular de relações entre pontos-aconteci-
mento, dentre outros. Veremos que esta definição coin-
Coleção CLE V.09
Os Termos “Absoluto” e “Relativo” 3

cide com a de Leibniz, exceto pelo fato de que este a


formulou para o espaço, e não para 0 espaço-tempo.
Embora “espaço-tempo” seja um nome de coisa, seu
“referente não possui necessariamente uma existência
física: a expressão “cavalo alado” não é desprovida
de significado mesmo que, como é provável, não exis-
tam cavalos alados. Note-se que o fato da expressão
“espaço-tempo” funcionar sintaticamente como sujeito
gramatical de uma proposição não implica que ela per-
tença à categoria dos nomes, que é uma categoria se-
mântica e não uma categoria sintática. Um espaço-
tempo é absoluto no sentido lógico se a expressão “es-
paço-tempo” pertence à categoria semântica dos no-
mes. |
Se a expressão “espaço-tempo”, ainda que figurando
como sujeito gramatical em proposições, designa, de
fato, um sistema de relações, não é necessário que es-
tas relações tenham uma existência independente, à
maneira de idéias platônicas, e tampouco que os lu-
gares de acontecimentos preenchendo o espaço-tempo
se encontrem efetivamente nas relações características
de um determinado espaço-tempo. Basta que os lu-
gares de certos acontecimentos reais se encontrem em
uma parte das relações que pertencem aos sistemas; o
restante das relações do sistema têm somente pontos-
acontecimento como termos.

1.1.2 O sentido físico

Um espaço-tempo é absoluto, no sentido físico, se e


somente se os acontecimentos físicos não têm influência
sobre ele (quanto a sua existência, suas propriedades
ou sua estrutura).
Coleção CLE V.09
4 — A Mércia e o Espaço-Tempo Absoluto

Um espaço-tempo é relativo, no sentido físico, se


e somente se os acontecimentos físicos têm influência
“sobre ele (quanto a sua existência, suas propriedades
ou sua estrutura). | |
“Suponhamos que um espaço-tempo seja absoluto no,
“sentido lógico. Eleé, então, um objeto individual que
possui propriedades e uma estrutura particulares. Se
“sua existência, suas propriedades e sua estrutura são
independentes do desenrolar de processos físicos, ele é
“absoluto no sentido físico. Notemos que um espaço-
tempo absoluto no sentido físico pode, ele próprio, ter
uma influência sobre os acontecimentos físicos. Vere-
“mos que o espaço de Newton, absoluto no sentido físico,
é a causa do aparecimento das forças de inércia.
Se um espaço-tempo é um sistema de relações, é
| possível que sua estrutura (métrica, por exemplo) seja
“inalterável, qualquer que seja o curso dos acontecimen-
tos físicos. Diremos, então, que este espaço-tempo,
ainda que relativo no sentido lógico, é absoluto no sen-
tido físico. | |
Um espaço- tempo nodé ser absoluto no sentido fi-
“sico apenas com respeito a uma parte de suas propri-
“edades ou das relações que constituem sua estrutura.
“Um espaço- tempo pode, por exemplo, possuir uma es-
trutura topológica absoluta, enquanto sua estrutura
“métrica. depende do comportamento dos corpos pesa-
dos e da energia (quando falarmos da “matéria” ou do
“conteúdo material”, sem maior precisão, tratar-se-á
sempre das massas e da energia: a luz será considerada
como parte da “matéria”).
Coleção CLE V.09
Os Termos “Absoluto” e “Relativo” õ

1.1.3 O sentido empírico

Um espaço-tempo é absoluto, no sentido empírico,


se e somente se suas propriedades ou sua estrutura não
são acessíveis à percepção sensível. . | |
Um espaço-tempo é relativo, no sentido empírico,
se e somente se suas propriedades ou sua estrutura são
acessíveis à percepção sensível!.
Se um espaço-tempo é absoluto no sentido lógico,
é impossível considerá-lo um objeto sensível dentre ou-
tros, sem torná-lo incapaz de desempenhar o papel que
lhe é destinado nas teorias físicas. Um espaço-tempo
absoluto no sentido lógico deve igualmente sê-lo no sen-
tido empírico. Esta é a única exceção à independência
dos diferentes significados que se podem atribuir às ex-
pressões “espaço-tempo absoluto” e “espaço-tempo re-
lativo”. |
Se um espaço-tempo é relativo ou relacional no sen-
tido lógico, uma parte de sua estrutura pode ser abso-
luta no sentido empírico. De fato, podemos imaginar
relações espaciais que, ao contrário da contiguidade,
por exemplo, não sejam acessíveis aos sentidos, como a
conexidade topológica de uma região muito extensa.
Se um espaço-tempoé absoluto no sentido empírico,
ele pode ser relativo no sentido físico. De fato, uma en-

"Evidentemente, é muito dificil definir com exatidão a noção


de acessibilidade à percepção sensível. Concordaremos aqui com
o sentido comum (dos físicos): estrelas ou galáxias distantes serão
consideradas acessíveis à percepção sensivel, apesar de só po-
dermos observá-las com a ajuda de telescópios (ou de radiote-
lescópios).
Coleção CLE V.09
6 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

tidade ou um sistema de relações inobserváveis podem


ser submetidas ou não à influência dos acontecimentos
físicos. Apesar de não serem acessíveis aos sentidos,
o elétron e certas relações (interações) em microfísica
estão sujeitos a modificações resultantes do compor-
tamento da matéria circundante. Por outro lado, o
espaço-tempo de Newton, absoluto no sentido empírico,
também o é no sentido físico.
de um espaço-tempo é relativo no sentido empírico
e, portanto, ipso facto, relacional no sentido lógico,
ele pode ser absoluto ou relativo no sentido físico. Se
considerarmos que a estrutura métrica (euclidiana, por
exemplo) é um dado sensível, esta estrutura poderá
ser dependente ou não do comportamento dos objetos
físicos.

1.1.4 O sentido ontológico

Diremos que um espaço-tempo é absoluto, no sen-


tido ontológico (ou ainda metafísico), see somente se
a existência de acontecimentos físicos não é necessária
para sua existência. |
Diremos que um espaço-tempo é relativo, no sentido
ontológico (ou metafísico), se e somente se a existência
de acontecimentos físicosé necessária para sua existên-
cia. | |
Suponhamos que um espaço-tempo seja absoluto
no sentido lógico. Poderíamos, então, imaginar que.
este objeto especial chamado espaço-tempo não pu-
desse existir na ausência de acontecimentos físicos; nes-.
ta eventualidade, o espaço-tempo seria absoluto no
Coleção CLE V.09
Os Termos “Absoluto” e “Relativo”. 7

“sentido lógico, sem sê-lo no sentido ontológico. Se, ao


contrário, sua existência é independente dos aconteci-
mentos físicos, ele é, igualmente, absoluto no sentido
“ontológico. | |
Suponhamos, agora, que um espaço-tempo seja re-
lacional em um sentido lógico. Se, de acordo com uma
tradição platônica, atribuirmos uma existência própria
às relações, sem nos preocuparmos com a existência
dos termos que poderiam se encontrar nestas relações,
poderemos dizer que este espaço-tempo é absoluto no
sentido ontológico, sem sê-lo no sentido lógico. Ao
contrário, se as relações não tiverem existência inde-
pendente daquela dos acontecimentos físicos que nelas
possam encontrar-se, este espaço-tempo será relativo
tanto no sentido lógico, quanto no sentido ontológico.
Um espaço-tempo pode ser absoluto no sentido on-
tológico, sem sê-lo no sentido físico, se suas proprie-
dades ou sua estrutura são modificadas pelos proces-
sos físicos: é o caso do espaço-tempo de Minkowski,
solução vazia das equações do campo em relatividade
geral. Por outro lado, a existência de um espaço-tempo
pode depender daquela dos acontecimentos físicos, sem
que suas propriedades ou sua estrutura sejam alteradas
em função do que se passa no mundo físico.
Por fim, o fato de um espaço-tempo ser absoluto ou
relativo no sentido metafísico não influi em seu caráter
absoluto ou relativo no sentido empírico: um espaço-
tempo pode existir independentemente dos processos
físicos mesmo sendo (ao menos parcialmente) acessível
aos sentidos, e pode ser observável mesmo não podendo
existir na ausência de objetos físicos.
Coleção CLE V.09
8 “A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

1.1.5 0 sentido matemático

A estes quatro sentidos, que poderíamos qualifi-


car de clássicos, acrescenta-se um quinto que, seguindo
Hermann Weyl (1963, p. 72), denominaremos sentido
matemático: ele corresponde à noção de invariância sob
“um grupo de tranformações. Uma quantidade ou uma
“relação é absoluta, no sentido matemático, em relação
a um grupo de transformações, se e somente se ela é
invariante sob este grupo de tranformações.
“Uma quantidade ou uma relação é relativa, no sen-
tido matemático, em relação a um grupo de transfor-
mações, se e somente se existir pelo menos uma trans-
formação do grupo que não a deixa invariante.
“Este sentido do termo “absoluto”, que coincide com
“a noção de invariância, é, pois, relativo ao grupo consi-
derado. Uma grandeza, uma propriedade, uma relação
será considerada tanto mais absoluta, quanto mais ex-
tenso for seu grupo de invariância, e obtemos, assim,
uma hierarquia de invariantes que apresenta, no topo,
aqueles do grupo mais geral de transformações, grupo
do qual todos os outros constituem um subgrupo.
Antes de prosseguirmos, é preciso recapitular as
noções de grupo e subgrupo. Um grupo abstrato é um
conjunto de elementos f, 9, h, ... munido de uma lei de
composição que obedece às seguintes regras?

2(f) lê-se: para todo f E designa que um elemento per-


tence a um conjunto. Os conjuntos são representados por le-
tras maiúsculas e seus elementos por minúsculas. — designa a
implicação material lógica. A título de exemplo, a primeira lei
deve ser lida: para todo elemento fe para todo elemento g, se eles
pertencem ao grupo, então sua composição também pertence ao
grupo.
Coleção CLE V.09
Os Termos “Absoluto” e “Relativo” 9

1. (NglfgeG > fegeG)


2 IADUMALGhEGEA(Seg)*h=f+(g*h)
(associatividade)
3. (de(SlefeG&fxe=exf=f) (existência do
elemento neutro)

s MALI EG fefri=fIaf=e)
(existência de um inverso).
Se, além disso, colocarmos:
5. (MglfgeG& feg=g*f) (comutatividade),
teremos um grupo abeliano.
Dizemos que H forma um subgrupo do grupo G se
e somente se:

1. HCG

2. Héum grupo.

Os grupos que nos vão interessar são aqueles cu-


Jos elementos (f,9,h,...) são transformações bijetivas
de um conjunto de pontos em um conjunto de pontos
que deixem inalteradas certas quantidades (por exem-
plo, a curvatura) e relações (por exemplo, a métrica)
definidas sobre conjuntos de pontos ou variedades. São
chamadas isomorjismos porque conservam a estrutura,
a forma. Quando o conjunto de chegada é idêntico ao
de partida, são chamados automorfismos. Aqui, a lei
de composição * é a lei de composição das aplicações.
Um espaço-tempo é, então, definido como um con-
junto de pontos munido de uma estrutura (um conjunto
de relações ou funções) invariante sob um dado grupo
Coleção CLE V.09
10 “A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

de automorfismos. Eleé, portanto, definido equivalen-


temente, seja pela especificação de um grupo. de auto-
morfismos, seja por aquela de seus invariantes. “Uma
propriedade de um espaço- tempo ou as relações que
determinam sua estrutura serão ditas absolutas, no
sentido matemático, sempre com respeito a um dado
grupo de automorfismos, se esta propriedade ou es-
tas relações forem invariantes sobo grupo considerado.
Caso contrário, diremos que, em relação ao grupo con-
siderado, esta propriedade ou esta estrutura são rela-
| tivas-no sentido: matemático. O número de dimensões,
por exemplo, que é uma propriedade topológica, é uma
característica invariante do grupo das transformações
bijetivas e bicontínuas. A estrutura métrica euclidi-
ana é, quanto a ela, invariante sob as transformações
do grupo das translações e das rotações (o grupo das
isomeríias): |
É possível construir uma hierarquia dos grupos de
automorfismos (para ter um bom resumo a este res-
peito; pode-se consultar o artigo de Souriau (1983)).
No topo, teremoso grupo mais vasto, o mais englo-
bante, aquele das transformações bijetivas e biconti-
nuas, cujos invariantes constituem. a estrutura topoló-
gica. do espaço. Dentre as propriedades topológicas,
mencionemos o número de dimensões, a conexidade, a
orientabilidade. Estas propriedades são consideradas
as mais fundamentais ou as mais objetivas, posto que
são invariantes para o grupo 1 mais Caueriso de automor-
fismos.. A
Em seguida, temos « o grupo dos difeomorfismos ou O
“grupo das transformações diferenciáveis n vezes (C”);
normalmente, as transformações diferenciáveis são to-.
Coleção CLE V.09
Os Termos “Absoluto” e “Relativo” 1

madas um número infinito de vezes (C”), deixando a


propriedade que um espaço tem de admitir em cada
um de seus pontos um espaço tangencial. Um espaço
(uma variedade) unidimensional diferenciável da forma
m pode ser transformado por um difeomorfismo em
uma variedade da forma -, mas não da forma A. Os
difeomorfismos deixam inalteradas todas as proprieda-
des topológicas de uma variedade”, mas existem trans-
formações contínuas que alteram o caráter diferenciável
de uma variedade. O grupo dos difeomorfismos é um
subgrupo do grupo das transformações bijetivas e bi-
contínuas. Este grupo dos difeomorfismos é o grupo de
invariância dos espaços-tempo rimannianos, que podem
ser de curvatura variável, da teoria geral da relativi-
dade: estes espaços-tempo admitem em cada ponto um
espaço-tempo (plano) tangencial. Não se deve confun-
dir a geometria riemanniana, neste seu sentido amplo,
com a geometria de Riemann, em sentido restrito, que
só diz respeito a variedades com curvatura constante
positiva” (ver abaixo). |
Após o grupo dos difeomorfismos, temos o das trans-
formações projetivas, ou projeções, cujos invariantes
são as retas e os planos, assim como a relação de in-
cidência. Felix Klein mostrou, em 1872, que as três
grandes geometrias de curvatura constante (euclidiana,

“Vamos nos limitar aqui aos espaços-tempo contínuos que


constituem os espaços-tempo da mecânica clássica, do eletro-
magnetismo e das teorias da relatividade restrita e geral.
“Evidentemente, uma esfera é também uma su perfiície rieman-
niana em sentido amplo; mas, além disso, ela permite construir
um modelo dos axiomas da geometria elíptica.
Coleção CLE V.09
12 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

lobatchevskiana e riemanniana) podem ser obtidas co-


mo casos particulares da geometria projetiva. O grupo
de invariância da geometria hiperbólica (Lobatchevski)
é constituído pelas transformações. projetivas que dei-
xam invariante uma determinada forma quadrática (ver
Bonola 1955, pp. 173-4). Isto significa que os teo-
remas da geometria de Lobatchevski são verdadeiros
para um espaço cuja estrutura seja definida por esta
forma quadrática. Isto se aplica, igualmente, mutatis
mutandis, à geometria elíptica (Riemann) e à geome-
tria plana (Euclides). Isto permitiu a Klein afirmar que
a geometria projetiva é o ponto de partida de toda a
“geometria (1974, pp. 2-3).
O subgrupo das projeções, característico da geome-
tria de Euclides, é composto pelas translações e pelas
rotações que deixam a métrica euclidiana invariante,
sendo seu grupo de isometrias. O grupo de isometrias
de Euclides está contido em um grupo mais amplo, o
das transformações lineares ou afins que preservam a
relação de paralelismo. As geometrias de Riemann (no
sentido restrito) e de Lobatchevski têm cada uma de-
las seu grupo de isometrias, que deixam sua estrutura
métrica inalterada. | |

Como situar, agora, o sentido matemático do termo


“absoluto” com respeito aos sentidos: lógico, físico,
empírico e ontológico? |
Do ponto de vista matemático, um espaço é um
conjunto de pontos munido de uma estrutura relacio-
nal. Esta perspectiva não é incompatível com uma con-
cepção substancialista no sentido lógico, contanto que
se considere o espaço como uma coisa, um indivíduo
Coleção CLE V.09
Os Termos “Absoluto” e “Relativo” 13

(Nerlich 1976, pp. 22 e 50), mais ou menos como a


superfície de uma mesa. Ee |
A questão do caráter absoluto, no sentido matemá-
tico, do espaço-tempo físico coloca-se, por sua vez, nos
seguintes termos: quais são as relações definidas entre
pontos físicos (a congruência ou igualdade de compri-
mentos, por exemplo) que são invariantes? Para que
esta questão tenha um sentido, é necessário haver um
consenso sobre o que se Eitido por “ponto físico”,
e representar estes pontos por símbolos manipuláveis,
suscetíveis de intervir como termos das relações e como
argumentos das transformações. Como ponto físico
podemos tomar a intersecção de dois raios luminosos
no espaço-tempo (não entraremos aqui na questão da
legitimidade de tal identificação, nem nos problemas
de idealização). Como o espaço-tempo não está com-
pletamente preenchido por raios luminosos (ou outros
acontecimentos físicos),se quisermos um espaço-tempo
contínuo (como é o caso nas teorias físicas que devemos
analisar), seremos obrigados a definir o espaço-tempo
físico como um conjunto de lugares de acontecimen-
tos físicos possíveis: os pontos-acontecimento. Às te-
orias que negavam a existência do vazio e postulavam
a existência de um plenum ou de um éter tinham ao
menos o mérito de evitar as dificuldades inerentesà in-
trodução de categorias modais (Quine 1960). Mas es-
tas dificuldades são em parte superadas pela atribuição
de um conjunto de números reais, suas coordenadas, a
cada lugar de acontecimento possível, mediante a in-
trodução de um sistema de referência, isto é, de um
observador munido de réguas e de relógios, aos quais
não colocamos, no momento, nenhuma restrição, a não
Coleção CLE V.09
14 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

ser que devem atribuir a cada ponto p do espaço-tempo


um conjunto único de coordenadas (x,y, 2,t) (abrevia-
damente, Z). |
As relações que determinam a estrutura são defi-
nidas sobre um conjunto de coordenadas: estas repre-
sentam os pontos de um sistema de referência e são
os argumentos das transformações. A questão da in-
variância de uma relação coloca-se, então, da seguinte
maneira: esta relação permanece inalterada quando
seus termos são enviados sobre outros pontos (represen-
tados por outras coordenadas) por um automorfismo,
e isto no mesmo sistema de referência? Esta questão
é logicamente equivalente à seguinte: esta relação per-
manece inalterada quando passamos de um sistema de
referência para um outro com ajuda de um automor-
fismo, isto é, quando modificamos as coordenadas dos
termos da relação sem transformar os pontos do espaço-
tempo em outros pontos do espaço-tempo? (Weyl 1963,
pp. 75-8). os dRno SE |
Para testar a invariância de uma relação sob um
grupo de automorfismos, podemos, ou observar se os
automorfismos deixam esta relação invariante, man-
tendo o mesmo sistema de referência, ou passar de um
sistema de referência para um outro por meio de um au-
tomorfismo e observar se esta relação permanece inal-
terada para as novas coordenadas.
Podemos dizer que o espaço-tempo físico é absoluto
no sentido matemático quanto à sua estrutura métrica
euclidiana, por exemplo, se e somente se a relação de
congruência (igualdade dos ângulos e dos comprimen-
tos) for invariante quando passamos de um referencial
para um outro, através de uma transformação do grupo
Coleção CLE V.09
Os Termos “Absoluto” e “Relativo” 15

de Galileu. Isto significa que dois segmentos iguais de


retas assim permanecem após uma transformação das
coordenadas que pertence a este grupo. |
Também será preciso interrogar-se a respeito da na-
tureza da relação entre a estrutura do espaço-tempo
físico, determinada por seus invariantes, e o curso dos
acontecimentos físicos, o assim chamado conteúdo ma-
terial do espaço-tempo. A curvatura (escalar) é um
invariante do grupo das transformações contínuas, mas
na teoria geral da relatividade ela não é independente
do conteúdo material. O problema do caráter abso-
luto ou relativo da estrutura de um espaço-tempo físico
colocar-se-á unicamente quanto às suas relações inva-
riantes, Já que são precisamente estas que definem sua
estrutura. | | | | -
Devemos: discutir ainda a incidência do ponto de
vista da teoria dos grupos sobre o modo pelo qual é
colocado o problema do caráter absoluto ou relativo do
espaço-tempo, nos sentidos empírico e ontológico.
Invariantes ou não, relações espaço-temporais po-
dem ser ou não acessíveis à percepção. Por outro lado,
adotando-se a via do realismo matemático, é possível
atribuir uma realidade ontológica às estrutras matemá-
ticas independentemente da realidade física. Como os
invariantes dos diferentes subgrupos do grupo dos auto-
morfismos constituem estruturas variadas e, em certos
casos, incompatíveis, seríamos levados, então, a postu-
lar a existência de uma pluralidade de espaços. En-
tretanto, posto que os espaços têm em comum o fato
de serem compostos de pontos, podemos afirmar que
um espaço-tempo é absoluto no sentido ontológico se
Coleção CLE V.09
16 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

seus pontos existem independentemente da existência


“de acontecimentos físicos quase-pontuais.
Sabemos que o espaço-tempo da relatividade res-
trita possui uma estrutura pseudo-euclidiana invariante
sob o grupo de Lorentz-Poincaré. Ora, as equações do
campo da teoria da relatividade geral admitem justa-
mente o espaço-tempo de Minkowski como solução va-
zia, na ausência de matéria. Tudo se passa como se
existisse um espaço-tempo pseudo-euclidiano, metafi-
sicamente independente, cuja estrutura é modificada
pelo comportamento da matéria-energia. Para a re-
latividade geral, o espaço-tempo é, ao mesmo tempo,
absoluto no sentido ontológico, já que ele é uma solução
“vazia das equações do campo, e relativo no sentido
físico, já que esta solução é modificada em presença
de matéria. O espaço-tempo de Minkowski não é, por-
tanto, absoluto no sentido platônico, já que para Platão
as Idéias eram absolutas tanto no sentido físico, quanto
no sentido ontológico. .

1.2 Os Movimentos

À questão do espaço-tempo absoluto é estreitamente


ligada à da relatividade do movimento. Um problema
crucial, no qual concentraremos toda nossa atenção,
será o de examinar em que sentido e medida a aceitação
do caráter absoluto ou relativo de um certo tipo de mo-
vimento leva à adoção de uma concepção absolutista
ou relacional do espaço-tempo, sob um certo ponto de
vista. Para tanto, será necessário retomar a grade con-
ceitual definida acima, aplicando-a não mais ao espaço-
tempo, mas aos movimentos.
Coleção CLE V.09
Os Termos “Absoluto” e “Relativo” 17

1.2.1 O sentido lógico

Um movimento é absoluto no sentido lógico se e so-


mente se “estar em movimento” constitui uma propri-
edade monádica (que tem uma posição de argumento,
como, por exemplo, “ ser azul”). =
Um movimento é relativo no sentido lógico se e so-
mente se “estar em movimento” é uma relação diádica:
(2)(Mz o (Ay)(zRmy)). O que deve ser lido: para
todo corpo físico material x, x está em movimento se
e somente se existe um ob jeto y (não necessariamente |
material) tal que x esteja em movimento em relação a
y, que chamamos ob jeto. de referência (normalmente,
teremos não um, mas vários (quatro) objetos de re-
ferência; neste caso, será. preciso substituir y por um
conjunto de variáveis 4,2, Woo). “Todas as três te-
orias físicas que-iremos examinar (mecânica clássica,
relatividade restrita e relatividade geral) incorporam
uma concepção do movimento que é relativa no sentido
lógico. Nestas condições, dizer simplesmente: que um
corpo está em movimento. constitui, na realidade, uma .
maneira incompleta. de expressão, maneira que eponde |
a estrutura profunda, real, da:proposição que enuncia
o estado de movimento do corpo, podendo conduzir a
erros lógicos. E | | |
Em contrapartida, na , teoria de Leibniz, que, ao
menos pelos critérios atuais, “mal poderia ser quali-
ficada de física, por fazer intervirem elementos não-
matematizados, “estar realmente em movimento” é u-
ma propriedade interna, monádica, de um corpo. Leib-
niz, que neste ponto é obviamente influenciado por
Aristóteles, mostra-se um relacionista menos radical,
Coleção CLE V.09
as. A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

contrariamente à opinião difundida pelos empiristas


lógicos qRicasnbaçh 1958b) e seus herdeiros.

1.2.2 O sentido físico

Um movimento é absoluto no sentido físico se e so-


mente se não possui uma causa física externa.
Um movimento é relativo no sentido físico se e so-
mente se possui uma causa física externa.
Por exemplo, na física de Newton, o movimento re-
tilíneo uniforme é absoluto no sentido físico, já que, ao
contrário do movimento acelerado, não necessita de ne-
nhuma causa externa. |

1.2.3 O sentido empírico

Um movimento é absoluto no sentido empírico se e


somente se o objeto de referência y escapa à percepção
sensível.
Um movimento é relativo no sentido empírico se e
somente se o objeto de referência y é acessívelà per-
cepção sensível. | |
Não cabe questionar aqui se um movimento abso-
luto no sentido lógico é absoluto ou relativo no sentido
empírico. Com efeito, o princípio, ou os princípios in-
ternos, que caracterizam este tipo de movimento, são,
por natureza, inacessíveis à observação.

1.2.4 O sentido ontológico

"Como um movimento é sempre o movimento de


um corpo, todo movimento depende ontologicamente
Coleção CLE V.09
Os Termos “Absoluto” e “Relativo” | 19

da existência do corpo em movimento. Um movimento


sempre é, pois, relativo no sentido ontológico.

1.2.5 O sentido matemático

Por fim, um movimento é absoluto


no sentido ma-
temático se e somente se é invariante sob um dado
grupo de invariância. Ele é relativo no caso contrário.
Por exemplo, a aceleraçãoé um absoluto matemá-
tico tanto para o grupo das transformações de Galileu,
quanto para o grupo de transformações de Lorentz.
Isto nos leva a definir o que entenderemos por um
“princípio de relatividade”. Um princípio de relati-
vidade em física afirma a equivalência ou indiscerni-
bilidade física de certos sistemas reais de referência.
Por exemplo, os sistemas em movimento retilíneo uni-
forme, uns em relação aos outros, são equivalentes no
que diz respeito aos fenômenos dinâmicos, na mecânica
clássica. Esta equivalência é estendida aos fenômenos
ópticos, na teoria da relatividade restrita. O princípio
geral de relatividade estende esta equivalência física aos
sistemas acelerados, por exemplo, aos sistemas em ro-
tação relativa. À teoria geral da relatividade não satis-
faz ao princípio geral de relatividade entendido neste
sentido (ver Capítulo 4).
Coleção CLE V.09
Coleção CLE V.09
E Capítulo 2 a

A Mecânica Clássica
Logo no princípio deste segundo capítulo, já nos
deparamos com um problema metodológico. Quem, na
verdade, deve ser interrogado sobrea inércia e o espaço
absoluto? O Newton histórico, aquele que escreveu De
Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, publi-
cados em 1687? Ou os autores contemporâneos de tra-
tados de mecânica clássica, como Resnick e Halliday
(1966) ou Feynman (1963), que David Speiser propôs
serem reunidos sob a etiqueta “Newton”?
Acreditamos que é preciso, em primeiro lugar, nos
atermos à letra do texto dos Principia e estudar as
objeções que um grande contestador de Newton, Leib-
niz, dirigiu-lhe. Mas, sempre que possível, será igual-
mente necessário empreender um esforço para refor-
mular os argumentos de Newton (e de seu porta-voz,
Clarke) na linguagem mais precisa e mais familiar da
física contemporânea e examinar se são ainda aplicáveis
as objeções de um “relacionalista” inspirado por Leib-
niz.

2.1 A Mecânica de Newton:


“O Texto dos Principia

Construídos a partir do modelo dos Elementos de


Euclides (Heath 1956), os Principia começam com oito
definições, seguidas dos três axiomas ou leis do movi-
Coleção CLE V.09
22 A Inércia e o Espaço- Tempo Absoluto

mento. Após ter definido a quantidade de matéria (o


produto da densidade e do volume) e a quantidade de
movimento (o produto da quantidade de matéria e da
velocidade), Newton define a força de inércia (vis in-
sita) e a força exercida ou imprimida (vis impressa).

2.1.1 A força de inércia


À vis insita, ou a força inata da matéria é um poder
de resistência através do qual todo corpo, na me-
dida em que ela [esta força] nele reside, persiste em
seu estado de repouso ou de movimento retilíneo
uniforme. |
Esta força é sempre proporcional ao corpo do qual
ela é a força, e não difere em nada da inércia da
massa, exceto na maneira de concebê-la. Devido
à natureza inerte da matéria, não é sem dificul-
dade que um corpo abandona seu estado de re-
pouso ou de movimento. Consequentemente, a vis
insita pode também ser chamada vis inertiae ou
força de inatividade. Mas o corpo só exerce esta
força quando uma outra força, exercida sobre ele,
se esforça para modificar seu estado!.

Antes de mais nada, Newton faz a distinção entre


massa inerte ou de inércia, de um lado, e de outro,
força de inatividade ou de inércia, para logo em se-
guida afirmar que a força em nada difere da inércia da.
massa, exceto pela maneira como as concebemos. Ora,
se é certo que a força de resistência a uma modificação
de estado é proporcional à massa, e que ela seria nula
se a massa fosse nula e vice-versa, também é certo que
esta força de resistência é proporcional à própria mo-
1 As citações foram traduzidas de suas versões em francês no
original (NT).
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 23

dificação do estado de movimento, isto é, à aceizração.


Ou seja, será necessária uma maior força exercida, para
uma dada massa (m), para comunicar uma aceleração
(a) maior. O que hoje em dia se escreve:

onde F denota a força de inércia. |


Por que, então, Newton afirma que a inércia da
massa e a força de inércia são idênticas? Importa, como
Newton também indica, considerar duas situações dis-
tintas: a primeira seria realizada por um corpo livre de
qualquer ação externa, em repouso ou em movimento
retilíneo uniforme, e a segunda, por um corpo subme-
tido a uma força externa. Na primeira situação, não
existe força atual, mas somente uma força potencial
de reação, uma capacidade, um poder (potentia). O
corpo possui este poder em virtude de sua massa, que
é uma quantidade intrínseca, característica do corpo.
Um corpo desprovido de massa inerte é, sem dúvida,
também totalmente desprovido de capacidade de re-
sistência, e vice-versa. É por isso que a inércia da massa
e a força, enquanto poder de resistir, são idênticas para
Newton. |
Na segunda situação, ao contrário, uma força ex-
terna age sobre o corpo e tenta modificar seu estado.
Neste caso, duas forças (no mínimo) estão presentes: a
força de resistência (a força de inércia) (Fr) e a força
externa (Fg). Escreve-se:

Fe=mã=-F;

É importante notar que a força de inércia - que


Newton também denomina força de inatividade - pode
Coleção CLE V.09
24 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

ser tomada como uma força ativa, se considerarmos a


mudança de estado do outro corpo, isto é, daquele que
tinha sido tomado, inicialmente, como a causa da mo-
dificação do estado de movimento do primeiro. Newton
prossegue: | Eu
Mas o corpo só exerce esta força quando uma outra
força, exercida sobre ele, se esforça para modificar
seu estado; e o exercício desta força pode ser con-
siderado, ao mesmo tempo, resistência e impulsão;
a força é de resistência quando o corpo, para con-
servar seu estado, se opõe à força imprimida; e é
de impulsão na medida em que o corpo, ao resistir
à força exercida pelo outro corpo, tenta modificar
o estado deste último.

O exercício da força de inércia, isto é, a força de


inércia efetivamente presente (na segunda situação) po-
de ser considerada tanto passiva (efeito), quanto ativa
(causa). |
Newton introduz o conceito de força exercida na
definição IV:
À vis impressa é a ação exercida sobre um corpo de
maneira a modificar seu estado, seja ele de repouso
ou de movimento uniforme em linha reta.

"* Existem, portanto, duas categorias de forças: as


forças de inércia (internas) e as forças exercidas ou
“imprimidas (externas), sendo que estas forças estão
presentes apenas no movimento acelerado (note-se que
Newton não utiliza o termo aceleração, mas sempre a
expressão: modificação do estado de repouso ou de mo-
vimento retilíneo uniforme). Considera-se que as forças
internas e externas estão em pé de igualdade. Particu-
larmente, a força de inércia é, para Newton, tão real
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica | 25

quanto a força exercida, e ambas são necessárias para


explicar o movimento acelerado: na ausência de força
de inércia, mesmo a menor força exercida poderia co-
municar a qualquer corpo uma aceleração infinita.
Mais adiante, após o Scholium que se segue às oito
definições, Newton enuncia, em seu Primeiro axioma, à
lei ou o princípio de iinércia: |

Todo corpo Peisstiiá cm seu estado de repouso


ou de movimento uniforme em linha reta se não
“for compelido a modificar este estado por; forças
exercidas sobre ele. |

Este axioma (já implicitamente presente nas de-


finições) estipula que é o desvio com relação ao movi-
mento retilineo uniforme, e não em relação ao repouso
ou ao movimento circular uniforme, que requer uma ex-
Plicação causal. O movimento retilíneo uniforme, assim
como o repouso, do qual eleé um caso Darticúlar não
necessita de explicação e nenhuma força (nem mesmo
de inércia) está presente neste tipo de movimento”. O

?Não podemos aderir aqui à interpretação de McMullin, que


introduz, ao lado da força de resistência e da força exercida, uma
terceira força que ele denomina vis conservans: “A vis conser-
vans é uma “força” de conservação, a causa (em um certo sentido)
do movimento contínuo uniforme de um corpo. Ela é medida
pela impulsão necessária para conferir a um corpo em repouso
sua velocidade atual, ou, equivalentemente pelo momento total
do corpo” (1978, p. 36). Mas a quantidade de movimento my
e a força de inércia (d/dt(mv)) são conceitualmente distintas, já
para Newton. Todavia, a quantidade mv pode servir para medir
a força interna, quando o corpo está inicialmente em repouso,
ou quando se trata de uma modificação apenas da direção com
Telação a uma direção inicial, já que, neste caso, a variação da
quantidade de movimento é precisamente igual a m7y, desde que
Coleção CLE V.09
26 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

movimento inercial (retilíneo uniforme) não pode, por-


tanto, ser interpretado: como um movimento natural,
no sentido em que Aristóteles o entendia, isto é, um mo-
vimento cuja causa é interna; para Newton, não existe
força interna que pudesse manter o corpo sobre uma
linha reta a uma velocidade uniforme.
No Scholium que se segue às oito definições, Newton
coloca a questão de saber em relação a que — diríamos,
hoje, um sistema de referência- os movimentos verda-
deiros são medidos e determinados. São o tempo e o
espaço absoluto,
O Rendo absoluto, verdadeiro e matemático, em
si mesmo e por sua própria natureza, flui de ma-
neira igual, sem relação com o que quer que seja de
externo. É também chamado de “duração”. (...)
O espaço absoluto, por sua própria natureza, sem
relação com o que quer que seja de externo, perma-
nece sempre semelhante e imóvel. O espaço rela-
tivo é uma dimensão móvel ou medida dos espaços
absolutos que nossos sentidos determinam por sua
posição em relação aos corpos (...)
Um lugar é uma parte do espaço ocupada por um
corpo, e é, em relação ao espaço, absoluto ou re-
ativo (.. ) Um movimento absolutoé um desloca-
mento de um corpo de um lugar absoluto para um
outro, e um movimento relativo, um deslocamento
de um lugar relativo para um outro.

as variações temporais possam ser desconsideradas. É o caso nos


exemplos mencionados por McMullin, a composição das forças
(Corolário I dos axiomas) e a lei das áreas (Livro I, Proposição 1),
onde se comparam variações de velocidade, supondo-se que es-
tas ocorram nos mesmos tempos. Ver, igualmente, Dijksterhuis
(1961) e Nicholas (1978), assim como Patricia Radelet-de Grave
(1988), John Herivel (1965, 1988) e Ghins (1988).
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 27

Newton reconhece que o movimento absoluto não


é observável, já que o espaço absoluto escapa a toda
percepção sensível. É preciso, pois, tentar demonstrar
o caráter absoluto do movimento à partir do próprio
movimento (suas propriedades), ou suas causas e efei-
tos. |

Mas podemos distinguir o repouso do movimento,


absoluto e relativo, com ajuda de suas proprieda-
des, causas e efeitos.

2.1.2 Os movimentos verdadeiros: suas pro-


priedades, causas e efeitos

É uma propriedade do repouso o fato dos corpos


realmente em repouso estarem em repouso uns em
relação aos outros. E uma propriedade do movi-
mento o fato das partes que conservam determina-
das posições em relação ao seu todo participarem
do movimento deste todo.

É claro que se os corpos a, db, c, ... estão em repouso


absoluto, estão em repouso uns em relação aos outros.
Isto não é nada mais que um caso particular da pro-
priedade geral: corpos em repouso relativamente a um
objeto qualquer, observável ou não-observável, estão
em repouso mútuo. Mas a recíproca desta proposição
não se aplica. Corpos em repouso uns em relação aos
outros podem ser levados em um mesmo movimento
em relação ao espaço absoluto. |
degue-se que se os corpos a, b, c, ... não estão em
repouso mútuo, pelo menos um destes corpos está em
movimento verdadeiro. Mas a observação dos movi-
mentos relativos isolados não permite distinguir entre
Coleção CLE V.09
28 — A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

as diversas situações abaixo. Suponhamos que a esteja


em movimento com relação a d e c, e que estes estejam
em repouso mútuo. De um ponto de vista cinemático,
é impossível decidir se apenas a, ou se apenas be c, ou
ainda, se os três estão em movimento absoluto.
Entretanto, quando Newton discute as proprieda-
des do movimento e do repouso (que é um caso parti-
cular de movimento), ele não tem como objetivo provar
a existência do espaço absoluto. Este último, Newton
“está perfeitamente consciente disto, só poderá ser de-
monstrado recorrendo à dinâmica.

Para Newton, as causas e os efeitos dos movimentos


são as forças.
As causas pelas quais os movimentos verdadeiros e
relativos distinguem-se uns dos outros são as forças
imprimidas sobre os corpos para produzir os mo-
vimentos. O movimento verdadeiro não é produ-
zido, nem alterado, a não ser por uma força im-
primida sobre o corpo movido, mas o movimento
relativo pode ser produzido ou modificado sem que
se exerça nenhuma força sobre o corpo.

Newton definiu o movimento absoluto, verdadeiro,


ou ainda, matemático, como o deslocamento de um lu-
gar absoluto para um outro, enquanto que o movimento
“relativo, aparente ou usual (comum) é o deslocamento
de um lugar relativo para um outro. O movimento re-
lativo de um corpoa em relação a um corpo b pode
ser modificado sem que se exerça nenhuma força sobre
a: basta que se exerça uma força sobre b. Por ou-
tro lado, se é exercida a mesma força sobre a e sobre
b, o movimento relativo de a em relação a b perma-
necerá inalterado. É impossível, pois, estabelecer uma
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica | 29

conexão do tipo causal entre as forças exercidas e os


movimentos relativos. Ora, todo movimento é absoluto
ou relativo e o segundo axioma postula uma conexão do
tipo causal entre as forças e as modificações de estado
de movimento: ?
A alteração de movimento é proporcional à força
motriz imprimida e é produzida na direção da linha
reta segundo a qual esta força é exercida.

As forças são condições necessárias para a geração


(a partir do repouso) e para a alteração de um movi-
mento em relação ao espaço absoluto, mesmo que elas
não sejam condições necessárias do próprio movimento
absoluto, já que um corpo livre pode ser animado por
um movimento retilíneo uniforme é verdadeiro. As
forças são também condições suficientes para a modi-.
ficação do repouso ou do movimento absoluto? A res-
postaé não, uma vez que as forças exercidas sobre um '
corpo podem-se equilibrar (neste caso, sua resultante
é nula). Mas, para Newton, a presença de uma força
única é uma condição suficiente do movimento absoluto
(ainda que isto não seja completamente correto, visto
que um projétil lançado na vertical, no campo de gra-
vitação da Terra, suposta aqui em repouso absoluto,
possui uma velocidade instantânea nula no topo de sua
trajetória e, por conseguinte, não se desloca no espaço
absoluto).
A conexão postulada pelo segundo axioma só vale,
pois, para as forças exercidas e as modificações de mo-
vimento absoluto (que não são a totalidade dos movi-
mentos absolutos), e isto considerando-se as restrições
assinaladas acima. É possível, da detecção de uma ace-
leração absoluta, inferir a presença de ao menos uma
Coleção CLE V.09
30 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

força exercida, mas não o inverso. Ora, estas ace-


lerações absolutas são detectáveis empiricamente ape-
nas por seus efeitos. À existência do espaço absoluto
não pode, consequentemente, ser estabelecida pela sim-
ples consideração das causas (as forças exercidas), mas
requer a análise dos efeitos.

“Os efeitos de alguns movimentos absolutos também


são forças, no caso presente, as forças de inércia que
resultam de uma modificação do estado de repouso ou
de movimento retilíneo uniforme em relação ao espaço
absoluto. Estes efeitos de inércia permitem não so-
mente detectar uma aceleração absoluta, mas também |
medi-la.
Os efeitos que distinguem o movimento absoluto do
movimento relativo são as forças de distanciamento
do eixo do movimento circular. Pois não existem.
tais forças em um movimento circular puramente
relativo, mas elas serão maiores ou menores depen-
dendo da quantidade do movimento.

a) A experiência do balde

Segue-se, então, ainda no Scholium, a descrição da


célebre experiência do balde em rotação, que serve de
fundamento à argumentação newtoniana a favor do
espaço absoluto. | |
Suponha-se um recipiente, suspenso por uma corda,
que tenha girado um número suficiente de vezes em
torno de si mesmo, de maneira que a corda fique
suficientemente torcida, e que depois seja enchido
de água e mantido em repouso ao mesmo tempo
que a água; em seguida, pela ação súbita de uma
outra força, ele começa a girar em outro sentido e,
Coleção CLE V.09
- A Mecânica Clássica 31

enquanto a corda se distende, o recipiente persiste


durante algum tempo neste movimento; no começo,
a superfície da água será plana, como estava antes
que o recipiente, pela força pouco a pouco impri-
mida à água, tivesse feito com que esta última gi-
rasse de maneira sensível; a água irá se distanciar
pouco a pouco do centro e subirá ao longo das pa-
redes do recipiente, formando uma figura côncava
(como eu mesmo experimentei); e à incitação do
movimento, ela sobe cada vez mais alto, até que,
ao efetuar suas revoluções ao mesmo tempo que o
recipiente, ela fique em repouso em relação a ele.

Esta experiência se divide em quatro fases: .

I H
ag-s=0 ãg-s 0
ag-r=0 de-T =0

Hm
Te-
oO! Ol

a t
4H

Figura 2.1
Coleção CLE V.09
32 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

Na primeira fase, não existe movimento acelerado


da água em relação ao balde (Gg s = 0), do mesmo
modo que não há movimento acelerado da água em
relaçãoà Terra (ag-r = 0), e a superfície da água é
plana. | | |
Na segunda fase, a água ainda não foi arrastada pelo
movimento do balde: a aceleração da água em relação
à Terra continua nula, enquanto que sua aceleração em
relação ao recipiente é é máxima. À superfície da água
continua plana. |
Na terceira fase, aÀ água eo balde estão em repouso
um em relação ao outro e ambos estão em movimento
acelerado em relação à Terra. A superfície da água
apresenta uma forma côncava. À |
Finalmente, na quarta fase, paramos o balde, que
é mantido em repouso em relação à Terra, enquanto a
água persiste em seu movimento de rotação e em sua
forma côncava. |
Newton conclui que a concavidade da água, que
constitui o fenômeno a explicar, não resulta de um mo-
vimento da água em relação às paredes do balde. Com
efeito, nas fases Ile IV, a aceleração da água em relação
ao balde é a mesma, enquanto que a superfície da água
é plana na fase II e côncava na fase IV. Além disso, na
fase III, a superfície da água é côncava, enquanto que
a aceleração da água em relação ao balde é nula.
Esta subida da água indica sua tendência (cona-
tus) para distanciar-se do eixo do movimento; e
por esta tendência, o movimento circular verda-.
deiro e absoluto da água, que aqui é contrário,
em todos os pontos, ao movimento relativo, é tra-
zido ao nosso conhecimento e pode ser medido.
No início, quando o movimento relativo da água
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 33

e do recipiente era máximo, dé não produzia esta


tendência de distanciamento do eixo; a água não
manifestava nenhuma tendênciaà circunferência ao
subir ao longo das paredes do recipiente, mas con-
servava uma superfície plana, e, por conseguinte,
seu verdadeiro movimento Hrcular não tinha ainda
começado. Mas depois que o movimento relativo
da água diminuiu, sua ascensão ao longo das pa-
redes do recipiente indicava sua tendência para se
distanciar do eixo; e esta tendência manifestava o
aumento contínuo do verdadeiro movimento circu-
lar da água.

Nesta experiência, o dado de observação essencial


é a modificação da forma geométrica da superfície da
água. De acordo com os princípios da mecânica de
Newton, esta deformação é devida à ação de forças.
À ascensão da água ao longo das paredes manifesta
a tendência da água para se distanciar do eixo de ro-
tacão, isto é, a presença de forças centrífugas*. Estas
forças, que são, para Newton, efeitos reais do movi-
mento, devem ser explicadas por um movimento relaci-
onado a uma entidade também real ou existente. Trata-
se, agora, de demonstrar que nenhum corpo material
pode desempenhar o papel de sistema de referência em
relação ao qual a concavidade da água possa ser expli-
cada. |
O aparecimento das forças centrífugas não pode ser
atribuído ao movimento da água em relação às paredes
do recipiente e isto refuta a teoria cartesiana do mo-
vimento próprio!. Se é evidente que são as forças de
3A expressão vis centrifuga aparece várias vezes nos Prin-
cipia. Ver por exemplo no Livro Segundo: Proposição XXIII,
Teorema XVIII. |
“Para Descartes, um corpo está em movimento no sentido ver-
Coleção CLE V.09
34 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

atrito entre a água e o balde que, no início, imprimem


à água seu movimento de rotação, é evidente também
que estas forças, externas, são incapazes de explicar a
concavidade da água, já que elas são perpendiculares às
forças centrífugas, e desaparecem quando a água está
em repouso em relação ao balde, na fase III, por exem-
plo, ainda que a superfície da água seja côncava. O
aparecimento das forças centrífugas, que provocam esta
concavidade, não pode, pois, ser atribuído ao atrito
entre a água? e o balde. Falta demonstrar que não
somente o movimento relativo da água em relação ao
balde, mas todo movimento relativo em relação à Terra,
aos planetas ou às estrelas, é igualmente incapaz de ex-
plicar o aparecimento das forças centrifugas.
(...) esta tendência não depende de nenhum deslo-
camento da água em relação aos corpos ambientes,
e o verdadeiro movimento circular não pode ser de-
finido por um tal deslocamento. Há um único movi-
mento circular de um único corpo que gira, corres-
pondente a seu poder único de tender a se distan-
ciar de seu eixo e a seu efeito próprio e adequado;
mas os movimentos relativos para um único corpo
são inumeráveis, de acordo com as várias relações
que ele possui com respeito aos corpos exteriores,
e, como as outras relações, são completamente des-
providas de efeitos reais, exceto na medida em que
participam deste movimento único e verdadeiro.

' dadeiro e filosófico, quando está em movimento em relação a sua


vizinhança imediata, e apenas este movimento próprio pode pro-
duzir efeitos observáveis. Se o movimento da água em relação ao
balde, estando ambos em contato, não pode explicar a tendência
“da água para se distanciar do eixo, a teoria cartesiana do movi-
'* mento próprio não pode ser aceita. Ver Newton (1985b, p. 22),
Lacey (1970) e Ghins (1986).
“Para maiores detalhes, ver Sommerfeld (1964, pp. 36-8).
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 35

À argumentação de Newton pressupõe aqui um prin-


cípio de uniformidade segundo o qual não existe corpo
material privilegiado. Se admitimos isto, tampouco
existe privilégio entre os diferentes movimentos rela-
tivos de um corpo. Como causas diferentes devem pro-
duzir efeitos diferentes, um movimento de rotação da
água em relação à Terra ou a Saturno, ou ao Sol, ou às
estrelas, deveria provocar cada vez uma concavidade
diferente. O mesmo argumento já está presente no
De Gravitatione, desta vez aplicado à rotação anual
da Terra sobre sua órbita:

(...) a menos que se conceda que cada corpo tem


um movimento físico único e que as outras mu-
danças de relações e de posições entre outros cor-
pos sejam apenas denominações externas: segue-se
que a Terra, por exemplo, realiza um esforço para
distanciar-se do centro do Sol por causa de seu mo-
vimento relativo em relação às [estrelas] fixas; além
disso, seu movimento sendo menor em relação a Sa-
turno e à órbita etérea na qual este se move, a Terra
realiza um esforço menor para afastar-se do centro
do Sol e menor ainda em relação a Júpiter e ao éter
circundante do qual a órbita de Júpiter é formada
(...) (Newton 1985b, p. 26).

Na época em que Newton escrevia os Principia, ele


tinha abandonado as órbitas etéreas de Descartes (hy-
potheses non fingo). Mas o essencial do argumento
é preservado: relações materiais variadas não podem
explicar um efeito único. Por outro lado, Newton se
preocupava particularmente com a atribuição das mes-
mas causas aos mesmos efeitos (Principia, Livro Ter-
ceiro, Regra II). Isto permite eliminar a Terra como
sistema de referência para explicar a concavidade da
Coleção CLE V.09
36 A Inércia e o Espaço- Tempo Absoluto

água. Newton, de fato, explicava as diferenças entre


os períodos medidos por um pêndulo levado a latitudes
diferentes, invocando a força centrífuga que aumenta
quando se desloca dos pólos em direção ao Equador, e
tinha deduzido disto a figura elipsoidal da Terra (Li-
vro III, Proposição 19, Problema 3. Ver também o
comentário de M.-F. Biarnais: Newton 1985a, p. 233
e notas). O achatamento da Terra, que é um efeito
semelhanteà concavidade da água, deve ter uma ex-
plicação análoga a esta última: ambos devem poder
ser atribuídos a rotações em relação à mesma entidade.
E isto vale também para as tendências dos diferentes
planetas para se distanciarem do centro de suas órbitas.
Poderíamos fazer aqui a objeção de que o centro
de gravidade do sistema solar e as estrelas, considera-
das por Newton (acidentalmente) fixas, constituem de
facto um sistema de referência real com o qual todos
os efeitos de inércia podem ser relacionados. E Newton
não se dá ao trabalho de enunciar, nem a fortiori, de
justificar o princípio de uniformidade que, aplicado às
estrelas, permitiria responder a este argumento. Nes-
tas condições. só nos resta tentar reconstruir uma jus-
tificação deste princípio de uniformidade a partir do
conjunto de sua filosofia natural.
À teoria da gravitação universal aboliu definitiva-
mente a distinção aristotélica entre matéria sublunar e
matéria celeste. Galileu, ao observar em seu telescópio
montanhas na Luae a periodicidade das manchas sola-
res, fora levado a supor que a Terra, os outros pla-
netas e o Sol eram feitos da mesma matéria?. Isto
ºMencionemos, também, a estrela nova observada por Tycho-
Brahe.
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 3
representou um golpe suplementar para a física aris-
totélica, segundo a qual as propriedades do movimento
dos corpos eram fundadas em sua natureza intrínseca.
Newton vai mais longe, mostrando que, apesar das for-
mas geométricas diferentes de suas trajetórias, os cor-
pos terrestres e celestes obedecem à às mesmas leis. Por
indução, era legítimo supor que todos os corpos ob-
serváveis, inclusive as estrelas, são “compostos da mesma
matéria e obedecem às mesmas leis: nenhum objeto
material goza de um estatuto privilegiado.
Suponhamos que os efeitos i inerciais resultem de um
movimento acelerado em relação à às estrelas. Estas só
estão fixas por acidente; efeitos de inércia, semelhantes
ao achatamento da Terra nos pólos, poderiam ser obser-
vados em uma estrela particular. Estes efeitos deveriam
ser explicados por uma aceleração relativamente a ou-
tras estrelas; mas estas últimas poderiam, por sua vez,
manifestar deformações, e assim por diante. Seríamos
então levados a uma regressão ao infinito.
Um segundo argumento contra o recurso às estrelas
“fixas” poderia se basear na dificuldade de se conce-
ber uma ação eficaz das estrelas sobre a água (ou sobre
a Terra, ou sobre um corpo qualquer) em rotação em
relação a elas, no contexto da física de Newton. Primei-
ramente, o Eiitate é assimétrico: a observação mostra
que a rotação tem consequências observáveis no nível
local e não no nível das estrelas. Em segundo lugar, o
efeitoé instantâneo. Finalmente, os efeitos de inércia
não dependem das posições relativas, e sim das ace-
lerações. Conseguentemente, uma influência conjectu-
ral das estrelas não poderia ser atribuídaà gravitação.
Newton, que já estava consciente das dificuldades ine-
Coleção CLE V.09
38 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

rentes à idéia de ação gravitacional à distância, e que


evitava formular hipóteses metafísicas a respeito de sua
natureza (hypotheses non fingo), não tinha, a fortiori,
nenhuma razão para postular um novo tipo de interação
à distância, para a qual não dispunha nem
: mesmo de
uma fórmula matemática.
| Para N ewton, todas as forças devem ter uma fonte,
que ele chama ora Dêm de “causa”. No que diz res-
peito às forças externas são, por exemplo, o choque,
a pressão, a gravitação. O argumento do balde em
rotação tem precisamente como objetivo mostrar que
nenhuma fonte observável pode ser atribuída às forças
de inércia e que é necessário, então, afirmar a existência
de uma entidade, o espaço absoluto, que tem proprie-
dades tais que ele possa set a fonte ou a origem des-
tas forças. De fato, há um aspecto geométrico na ori-
gem das forças de inércia, já que o desvio em relação
à linha reta provoca sempre seu aparecimento. Se o
movimento inercial, livre de toda força, tivesse sido o
movimento uniforme circular, seria o desvio em relação
a estes círculos que provocaria efeitos inerciais. Desta
forma, as retas euclidianas são, dada a ausência de efei-
tos inerciais, distintas de todas as outras trajetórias”.
Para Newton, o aparecimento das forças de inércia
tem, pois, uma dupla origem. Primeiramente, como

TNotemos que a trajetória retilínea constitui uma condição


necessária, mas não suficiente, para a inercialidade do movi-
mento. De fato, um corpo pode ser acelerado ao longo de
uma trajetória retilínea. A teoria da relatividade restrita (li-
near), ao contrário, estabelece a equivalência no espaço-tempo
da trajetória retilínea (aspecto geométrico quadridimensional) e
da inercialidade (aspecto dinâmico) (ver seção 3.5).
Coleção CLE V.09
A Mecâni ca Clássica 39

vimos, ele provém da massá (inerte) do corpo, pois, na


ausência de massa, O corpo não ofereceria nenhuma re-
sistência a qualquer ação externa. Mas há igualmente
o espaço absoluto « que, como diríamos hoje, possui uma
estrutura afim, e que desempenha um papel causal no
aparecimento das forças de inércia. As forças de inércia
são os efeitos de um movimento de rotação em relação
ao espaço absoluto. Estas mesmas forças são, por sua
vez, a causa das deformações que podem ser observa-
das: a concavidade da superfície da água em rotação
ou O achatamento da Terra.

b) A experiência das duas esferas

Após ter descrito « a experiência do balde, Newton


prossegue:
Certamente, é muito difícil descobrir efetivamente
os verdadeiros movimentos de corpos particulares e.
distingui-los de seus movimentos aparentes; porque
as partes deste espaço absoluto, no qual estes ver-
dadeiros movimentos se efetuam, não são acessíveis
aos sentidos. Entretanto, há uma saída para esta
situação, pois podemos tomar como guias tanto
os movimentos aparentes, que são diferenças entre
movimentos verdadeiros, quanto as forças que são
as causas e os efeitos dos movimentos verdadeiros.
Por exemplo, se duas esferas, mantidas à mesma
“distância uma da outra por meio de uma corda que
as liga, girasseem torno de seu centro de gravidade
comum, poderiamos, pela tensão da corda, desco-
brir a tendência das esferas para se distanciarem do
eixo de seu movimento, e, daí, poderíamos calcular
a quantidade de seu movimento circular.
Coleção CLE V.09
40 A Inércia e é Eopaço: Puno Absoluto

Este texto mostra que Newton não tem aqui a in-


tenção de demonstrar a existência do espaço absoluto,
já estabelecida com a experiência do balde, mas, an-
tes, de conferir um significado empírico ao conceito
de movimento verdadeiro ou absoluto. No quadro da
física newtoniana, a experiência das duas esferas não
é indispensável para eliminar as estrelas como candi-
datas possíveis para explicar os efeitos de inércia (as
objeções baseadas em seu caráter imaginário não têm,
pois, razão de ser) e não podemos aderir às críticas de
muitos comentadores (Berkeley 1721, 859; Mach 1960,
p. 232; Sciama 1961, pp. 98-100; minor 1969; Sklar
1974, p. 183; Lacey 1970, pp. 330-1; van Fraassen
1985). Newton mostra que mesmo na ausência de cor-
pos de referência observáveis, podemos medir a gran-
deza e a direção de uma aceleração, observando as va-
riações da tensão da corda que liga duas esferas.
Além disso, se duas forças iguais em grandeza e
direção fossem exercidas ao mesmo tempo sobre as
faces opostas das esferas, para aumentar ou dimi-
nuir seus movimentos circulares, do aumento ou da
diminuição da tensão da corda, poderíamos inferir
o aumento ou a diminuição de seus movimentos;
e, com isto, encontraríamos as faces sobre as quais
as forças deveriam ser exercidas para que o mo-
vimento das esferas fosse aumentado ao máximo;
desta forma, poderiamos descobrir as faces situa-
das mais atrás, aquelas que, no movimento circu-
lar, se seguem. Áo conhecer as faces que se se-
guem e, consequentemente, aquelas, opostas, que
precedem, poderíamos conhecer a direção do movi-
mento. E, assim, poderíamos descobrir, ao mesmo
tempo, a quantidade e a direção deste movimento
circular, mesmo em um imenso vazio onde não hou-
Coleção CLE V.09
À Mecânica Clássica 41

vesse nada de externo ou sensível a que as esferas


pudessem ser comparadas.

Esta análise, que pressupõe a existência do espaço


absoluto, torna legítima a conclusão de que, no nosso
mundo, as estrelas estão em repouso absoluto.
Se, agora, colocássemos neste espaço vazio corpos
distánies que sempre conservam a mesma posição
uns em relação aos outros, como as estrelas fixas
se conservam no céu, não poderíamos determinar,
pelo deslocamento relativo das esferas em relação
a estes corpos, se este movimento pertence aos cor-
pos ou às esferas. Mas se observássemos a corda,
e se concluíssemos que sua tensão é exatamente
aquela requerida pelos movimentos das esferas, po-
deríamos concluir que o movimento pertence às es-
feras e que estes corpos estão em repouso; final-
mente, a partir do deslocamento das esferas en-
tre estes corpos, deveríamos poder determinar a
direção de seus movimentos. 7

À igualdade das Melntidades observadas dos plane-


tas em relação às estrelas e das velocidades calculadas
em função das distâncias do Sol para órbitas estáveis
é um fato experimental. Newton conclui disto que os
planetas são animados por um movimento verdadeiro,
ao passo que as estrelas estão realmente em repouso.
Se, ao contrário, as velocidades de rotação observadas
em relação às estrelas fossem diferentes das velocidades
calculadas a partir das leis da dinâmica, deduziríamos
que as estrelas são animadas por uma rotação abso-
luta, que deveria ter consequências observáveis, como
o aumento das distâncias entre as estrelas. Observamos
também a igualdade da rotação observada da Terra, so-
Coleção CLE V.09
42 Alnérciaeo Espaço- Tempo Absoluto

bre seu eixo, em relação às estrelas, e sua rotação cal-


culada a partir dos efeitos das forças centrífugas cons-
tatadas em sua superfície. Existe, pois, uma assimetria
dinâmica entre, de um lado, uma rotação absoluta das
estrelas em relação à Terra, suposta em repouso, e, de
outro, uma rotação verdadeira da Terra sobre seu eixo
“em relação às estrelas absolutamente i imóveis, ainda
que, do ponto de vista do movimento relativo, estas si-
tuações sejam equivalentes. Esta assimetria dinâmica
possui um sentido empírico que rompe a simetria ci-
nemática. A |
Notemos que a experiência imaginária das duas es-
feras não é um Gedanken Experiment no sentido em que
o entendem habitualmente os físicos, já que, segundo
eles, apenas dificuldades de ordem técnica impedem
sua realização no mundo atual. Ora, a realização da
experiência das duas esferas em um grande vazio impli-
caria o aniquilamento da totalidade da matéria (exceto
as duas esferas), o que é evidentemente proibido pelo
princípio da conservação da matéria, aceito por New-
ton. Trata-se, aqui, de uma inferência do mundo real a
um mundo logicamente possível, a respeito do qual não
é possível crer a priori que ele seja idêntico ao mundo
atual no que concerne às características pertinentes à
experiência em questão (ver Sklar 1974, p. 186). Este
ponto será destacado por Mach (ver seção 4.5). Mas,
como Newton não tem necessidade da experiência das
duas esferas para provar a existência do espaço abso-
luto, estas observações não afetam sua argumentação,
que permanece válida no quadro de sua mecânica.
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica | 43

2.1.3 Resumo da argumentação : a favor do espaço


absoluto

Retomemos, rapidamente, as etapas essenciais da


demonstração da existência do espaço absoluto, tal co-
mo é apresentada por Newton. |

1. Fato de observação: nas fases le Il da experiência


do balde, a superfície da água é plana, enquanto
| é côncava nas fases Ill e IV.

De acordo com os príncipios da mecânica de New-


ton, a concavidade da água nas fases III e IV in-
dica a presença de forças que são a causa desta
concavidade. Newton as denomina “forças de
afastamento do eixo” ou “lorças centriugos

As forças centrífugas não podem ser atribuídas


a uma causa externa, mas têm sua origem no
próprio movimento. São forças internas, ou ainda,
forças de inércia.

. Estas forças de inércia são reais. Elas devem,


pois, ter uma causa ou uma fonte real.

. As forças de inércia são os ; efeitos de uma mo-


dificação do estado de movimento retilíneo uni-
forme em relação a um sistema de referência real.

. Este sistema de referência não é o balde.

. Este sistema de referência não é nem a Terra,


nem qualquer dos planetas, nem as estrelas, nem
qualquer corpo material.
Coleção CLE V.09
44 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

8. Este sistema de referência é o espaço absoluto,


real e imaterial. |

9. Conclusão: a concavidade da superfície da água é


causada por forças internas que têm sua fonte em
um movimento de rotação em relação ao espaço
absoluto.

“Newton termina o Scholium, que se segue às de-


finições, pela descrição de uma experiência imaginária,
a experiência das duas esferas, que tem por objetivo
mostrar que a aceleração absoluta possui um signi-
ficado empírico independentemente da observação de
movimentos relativos.

2140 espaço e o tempo absolutos

“Newton, como vimos, nos apresenta uma demons-


tração da existência do espaço absoluto, mas não do
tempo absoluto. Ora, o tempo é tão importante quanto
o espaço para fundar a verdade dos Axiomas, já que
Newton está consciente de que não existe nenhum sis-
tema material completamente livre de forças: a gra-
vitação é, de fato, uma força universal para a qual não
existe obstáculo e cujo alcance é infinito. A própria
existência da matéria exclui, por princípio, que os a-
xi1omas do movimento e, em particular, o primeiro, O
axioma da inércia, sejam verificados no mundo físico.
Além disso, a presença de forças exclui a existência
de barras perfeitamente rígidas e de relógios isócronos.
Um relógio ideal seria realizado por um corpo em movi-
mento inercial: os tempos iguais seriam definidos pelos
intervalos iguais percorridos.
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 45

Entretanto, existem efeitos do tempo absoluto. A


demonstração da existência do espaço absoluto é base-
ada na análise dos desvios em relação às trajetórias
retilíneas, que são efeitos tridimensionais puramente
geométricos, sem considerar os desvios em relação à
uniformidade, que necessariamente fazem intervir
o tempo. Quando um recipiente cheio de água tem seu
movimento diminuído, sendo mantido sobre uma tra-
jetória retilínea, a água sobe ao longo da parede ante-
rior.

ãs-T =

Figura 2.2

Aqui, o aparecimento das forças de inércia pode ser


atribuído não a um desvio geométrico, mas apenas a
uma variação temporal de uma velocidade.que perma-
nece paralela a si própria. Isto poderia ter servido de
ponto de apoio para Newton estabelecer a existência
de um tempo-substância, que desempenharia o papel
causal no aparecimento de alguns efeitos de inércia, se-
gundo uma linha de raciocínio similar àquela utilizada
no caso do espaço. qo |
Coleção CLE V.09
46 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

| Devemos agora aplicar a grade conceitual, definida


no capítulo 1, às noções de espaço, de tempo e de mo-
vimento absolutos, que devem ter características que
os tornem capazes de desempenhar o papel explicativo
que Newton lhes atribui no quadro de sua teoria física.

a) O sentido lógico

O espaço absoluto é uma substância no sentido ló-


gico: o termo “espaço” designa um objeto, uma coisa e
não uma propriedade ou uma relação. A argumentação
de Newton mostra que ele busca um sistema de re-
ferência, e estes sistemas de referência são, para ele,
primeiramente, objetos materiais: o balde, a Terra, os
planetas, as estrelas. Sob pena de uma perafBaois eis
&Ao évos (transgressão para um outro gênero), o
espaço absoluto deve ser uma substância; isto é, deve
pertencer à categoria das coisas reais. Um sistema de
referência deve ser constituído de, no mínimo, quatro
pontos não-coplanares. Um corpo físico, que sempre
é tridimensional, pode constituir sempre um tal sis-
tema, prolongando idealmente eixos em três direções
não-coplanares. Um cubo, por exemplo, pode ser to-
mado como sistema de referência: é possível indicar
os movimentos em relação a suas arestas, prolongadas
indefinidamente.
O que acaba de ser dito para o espaço se aplica
igualmente ao tempo: o tempo newtoniano é uma subs-
tância. Em geral, as características do espaço absoluto
aplicar-se-ão, mutatis mutandis, ao tempo. Sendo o
espaço e o tempo substâncias no sentido lógico, eles
possuem um certo número de propriedades.
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 47

Quanto aos movimentos, absolutos ou relativos, no


sentido newtoniano, eles são sempre relativos nos sen-
tidos lógico e ontológico.

b) O sentido físico

No que concerne às propriedades, Newton insiste


particularmente na imobilidade e na inalterabilidade
do espaço absoluto: ele permanece sempre “semelhante
e imóvel”. Sua estrutura geométrica euclidiana não é
nem fundada, nem modificada, pelo comportamento da
matéria. O espaço absoluto deve fornecer um sistema
de referência no qual possamos explicar os fenômenos
resultantes do aparecimento de forças de inércia, de
acordo com as leis da mecânica. Se é imóvel e inal-
terável, ele constitui, de uma vez por todas, um “bom”
sistema de referência. Se ele escapa a toda influência
perturbadora dos corpos, isto é, se ele é absoluto no
sentido físico, pode constituir a rocha sólida sobre a
qual Newton pode fundar sua mecânica. Esta função
é garantida pelo caráter imaterial do espaço que lhe
assegura a independência do “que quer que seja de ex-
terno”.
Em princípio, um corpo material livre de toda in-
teração poderia cumprir este papel, e o próprio Newton
vislumbra a possibilidade de um tal corpo, “longe, para
além das estrelas” (um tal corpo faz pensar inevitavel-
mente no corpo a de C. Neumann (1870)). Mas, além
de que um tal corpo devesse estar infinitamente dis-
tante, apenas acidentalmente ele satisfaria às condições
de um bom referencial: poderia estar sempre sujeito a
Pertubações que nos obrigariam a mudar de sistema.
Coleção CLE V.09
48 “A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

Observemos que os argumentos dinâmicos de New-


ton são impotentes para provar a imobilidade do espaço
absoluto, já que qualquer sistema em movimento re-
“tilineo uniforme em relação ao espaço absoluto pode-
ria cumprir tal função (ver Corolário V dos Axiomas).
Para estabelecer este ponto, Newton recorreu a um ar-
gumento de inteligibilidade que encontramos em Clarke
(Carta II, 84. Robinet 1957, p. 48). É absurdo, diz ele,
imaginar o espaço deslocando-se, pois, o movimento
verdadeiro é precisamente o deslocamento, a passagem
de um lugar absoluto a um outro. Seria preciso ima-
ginar que o espaço absoluto se desloca no espaço ab-
soluto, que porções do espaço pudessem mudar de lu-
gar neste espaço. O mesmo argumento permite que
“Clarke conclua a indivisibilidade do espaço (Ibid. Ver
* também Broad 1946, p. 149). Este raciocínio se apoia,
' certamente, na definição do movimento verdadeiro, e
as conclusões alcançadas já estão analiticamente com-
preendidas nesta definição; assim isto não poderia ser
“um argumento a favor da existência de uma entidade
que teria estas propriedades de imobilidade e de indi-
visibilidade. Ao contrário, ele pressupõe tal existência.
Um movimento retilíneo uniforme em relação ao
espaço absoluto será considerado absoluto no sentido
físico, já que não pode ser atribuído a nenhuma causa
externa; ao passo que um movimento acelerado e ver-
dadeiro será relativo no sentido físico, já que resulta
“necessariamente de uma ação externa.

c) O sentido ontológico
Se o espaço (e também o tempo) absoluto é a causa
de efeitos reais de inércia, ele deve também ser real, pois
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 49

uma entidade ideal não possui tais efeitos. Esta enti-


dade real possui, para Newton, uma existência indepen-
dente dos objetos materiais, sendo, portanto, absoluta,
no sentido ontológico, em virtude de nossas definições.
O espaço absoluto é uma substância no sentido me-
tafísico, pois, para existir, necessita apenas de Deus.
Todavia, não é a esta conclusão que se chega no final da
demonstração da existência do espaço absoluto: conti-
nua sendo logicamente possível que o aniquilamento da
matéria provoque também o aniquilamento do espaço
absoluto. À experiência das duas esferas, caso fosse
realizável, permitiria estabelecer a independência on-
tológica do espaço com respeito à matéria; como não
o é, a posição newtoniana sobre esta questão não pode
ser fundamentada na experiência.

d) O sentido empírico

Como os objetos materiais e observáveis estão sujei-


tos à mobilidade e à alteração, o espaço absoluto deve,
necessariamente, para poder desempenhar o papel que
lhe é reservado, ser imaterial e, por conseguinte, inob-
servável de dicto: ele é absoluto no sentido empírico.
As demais propriedades que distinguem o espaço-
substância dos outros ob jetos físicos são a indivisibili-
dade, a infinidade e a onipresença, sendo todas propri-
'“edades metaempíricas. SE
-— Já tratamos
da indivisibilidade. Quanto à infini-
dade, ela se baseia na tese metafísica de queo espaço
é o Sensorium Dei, o meio sensorial através do qual
“Deus está imediatamente presente às coisas (Newton,
Principia, Scholium Generale; Clarke I, 83 (Robinet
Coleção CLE V.09
50 A Inércia e o Espaço-lempo Absoluto

1957, pp. 29-30)), e que, de acordo com a natureza di-


vina, deve ser infinito. Portanto, a infinidade do espaço
não é demonstrada e não poderia sê-lo a partir da ex-
periência no quadro da física newtoniana. Entretanto,
a verdade da geometria de Euclides, que Newton uti-
liza frequentemente, sem questioná-la, pressupõe um
espaço infinito. . Ra
Façamos aqui um breve comentário a respeito da
onipresença. O espaço absoluto, para Newton, é uma
espécie de plenum real, no qual é possível em princípio,
traçar eixos capazes de indicar o movimento. Newton
admitia, ao contrário de Leibniz, a existência do vácuo
material; mas este vácuo não deve ser concebido como
ausência de qualquer realidade. Esta concepção per-
mite resolver uma dificuldade: a da ação à distância.
Se, como Mach, recusamo-nos a atribuir qualquer reali-
dade causal a uma entidade inobservável, somos obriga-
dos a atribuir os efeitos locais de inércia à distribuição
da matéria no universo. Neste caso, devemos formular,
na linguagem da matemática, uma lei física que esta-
beleça uma conexão entre a distribuição de matéria,
de um lado, e os efeitos locais de inércia, de outro, o
que nem Leibniz, nem Mach, foram capazes de fazer.
Nestas condições, a onipresença do espaço absoluto que
penetra toda matéria oferece uma solução satisfatória
para o aparecimento das forças centrífugas e constitui
o que chamaríamos, hoje, um campo inercial. |
Como o espaço absoluto não é acessível à percepção
sensível, um movimento absoluto newtoniano é abso-
luto também no sentido empírico. Em contrapartida,
um movimento relativo newtoniano é relativo no sen-
tido empírico, e vice-versa. A distinção entre movi-
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 51

mento absoluto e movimento relativo no sentido empí-


rico, mesmo que não seja equivalente à distinção new-
toniana (já que um movimento absoluto no sentido
empírico pode ser um movimento em relação a uma en-
tidade inobservável, distinta do espaço absoluto, como
por exemplo, o corpo a de C. Neumann), é, não obs-
tante, uma consequência lógica desta distinção, o que
não é o caso para as outras distinções. É, pois, a di-
cotomia absoluto/ relativo, no sentido empírico, a que
melhor traduz a distinção newtoniana, e é sobre esta
última que recairão as maiores obj jecões dos relaciona-
listas. |

2.2 À Controvérsia Leibniz-Clarke


e a Defesa de Newton por Euler

À existência do espaço absoluto permite explicar


o aparecimento das forças de inércia em algumas ex-
periências. Mas se a aceleração, ou, para Newton, mais
exatamente, a modificação do estado de movimento re-
tilíneo uniforme em relação ao espaço absoluto produz
consequências observáveis, o mesmo não ocorre com os
movimentos absolutos retilíneos uniformes, dos quais
o repouso é um caso particular. Se a modificação ab-
soluta de estado de movimento possui um significado
empírico, ela é aceitável no sistema da física de New-
ton, desde que seja coerente com as outras noções deste
sistema. Nestas condições, a velocidade retilínea uni-
forme absoluta também deve ser admitida no sistema
teórico, já que, se esta não tivesse sentido, a modi-
ficação absoluta da velocidade também não teria. Este
é um argumento poderoso em favor da aceitabilidade
Coleção CLE V.09
52 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

em física da velocidade e da posição absolutas, mesmo


que estas últimas não tenham significado empírico, ex-
“ceto pela mediação da aceleração absoluta.
* Confrontamo-nos, então, com uma espécie de para-
doxo. De um lado, a modificação
de estado de movi-
mento (a aceleração) é dotada de um significado em-
pírico, parecendo assim legitimar o uso físico das ex-
pressões “velocidade absoluta” e “posição absoluta”.
De outro, os movimentos retilíneos uniformes e as po-
“sições em relação ao espaço absoluto não provocam ne-
nhum efeito observável e parecem dever ser eliminados
de uma ciência experimental como a física.

2.21 A crítica de Leibniz a Newton

As objeções de Leibniz à teoria do espaço abso-


luto estão expostas detalhadamente na célebre corres-
pondência com Clarke, em 1714 e 1715. Apoiando-se,
como sempte, no princípio da razão suficiente, Leib-
niz rejeita as noções de aceleração, de velocidade e de
posições absolutas e, consequentemente, o espaço ab-
soluto. Mas encontra dificuldades para explicar as as-
simetrias dinâmicas observadas: as forças centrífugas
aparecem no nível da água contida no balde e não no
nível das estrelas, ao passo que, de um ponto de vista ci-
nemático, os movimentos água/estrela e estrelas /água
são idênticos. | | |
Sabe-se que Leibniz distingue a necessidade abso-
luta, fundada no princípio de contradição, da necessi-
dade hipotética, fundada no princípio da razão sufici-
ente.
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 53

Pois é preciso distinguir entre uma necessidade ab- .


soluta e uma necessidade hipotética. - E preciso
distinguir também uma necessidade que tem lugar
porque o oposto implica contradição, dita lógica,
metafísica ou matemática; e uma necessidade que
é moral, que faz com que o sábio escolha o melhor,
e que todo espírito siga a maior inclinação. (Robi-
net 1957, pp. 122-4)

[o ptinefpidl de razão suficiente, em virtude do qual


consideramos que nenhum fato poderia ser verda-
deiro, ou existente, nenhuma enunciação verdadeira,
sem que houvesse uma razão suficiente, porque é
deste modo e não de outro. Ainda que, na maioria
das vezes, estas razões não possam ser conhecidas
por nós. (Boutroux 1920, p. 158)

Alexander (1956, p. XXII) propõe três versões do


princípio de razão suficiente. De acordo com à pri-
meira, que é sempre a de Clarke, este princípio é um
caso particular do princípio de causalidade: nada acon-
tece sem causa. Na segunda versão está restrita a um
motivo pelo qual Deus determina seu agir. À terceira,
a de Leibniz, e que é também a mais forte, especifica
que este motivo consiste na melhor das alternativas lo-
gicamente possíveis.
Leibniz certamente concorda com o princípio de
causalidade, mas não admite, ao contrário de Clarke,
que o puro querer (mere will ) de Deus possa constituir
uma causa da existência de um objeto ou de uma si-
tuação. Para Leibniz, uma causa deve ser uma razão
suficiente pela qual determinada situação existe e não
uma outra; sem isto, um elemento arbitrário, ininte-
ligível, seria introduzido na criação, e a causa deixaria
de ter um poder explicativo. Isto implica um “cálculo
Coleção CLE V.09
7 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

dos possíveis”, no interior do qual cada situação, cada


objeto candidato à existência possa ser comparado aos
outros e, portanto, uma diferenciação no mínimo lógica
entre as possibilidades. A ocorrência de uma situação,
de um objeto, só pode ser explicada se se perfilar sobre
um fundo de possíveis diante do qual possa destacar-se
a razão de sua existência em detrimento da existência
de outras. O puro querer de Deus, na medida em que
escapa a este cálculo dos possíveis, é ininteligível e não
pode desempenhar a função de razão suficiente.
Além disso, a-partir da primeira versão (ao contrário
da segunda e, q fortiori, da terceira) do princípio da
razão suficiente, não se pode deduzir o princípio da
identidade dos indiscerníveis, que desempenha um pa-
pel decisivo na argumentação de Leibniz contra New-
ton-Clarke. |
“Tomemos, pois, dois corpos a e b indiscerníveis,
isto é, que não se diferenciam por nenhuma qualidade
ou propriedade intrínseca. As relações espaciais (por
exemplo, métricas) do corpo a com um conjunto de
corpos vizinhos c, d, e, f escolhidos de tal maneira que.
constituam um sistema de referência (eles não. po-
cem ser coplanares), são descritas pela proposição
“a R(c,d,e,f)”, enquanto as do corpo b com estes
mesmos corpos são descritas pela proposição
“bR'(c,d,e,$)”. Estas proposições descrevem os fatos
aR(c, d,e,f) e DR'(c, d,e,f) (notar a ausência das as-
pas para designar os fatos), isto é, as posições de a e
b no referencial c,d,e,f. Se os corpos a e b são in-
discerníveis, podemos substituir um pelo outro, e não
existe nenhuma diferença entre os seguintes universos,
Ie II (compostos de seis objetos):
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 55

I taR(e, d,e, f) , R'(c, d, e,f))

IH (bR(c,d,e,f), aR'(e,d,e,1)
Se Deus não puder distinguir entre as situações L.e
II, não terá, motivo algum para criar o universo 1 ao
invés do universo II. Assim como o asno de Buridan,
ele será incapaz de agir. Já que o universo existe, Deus
o criou. Portanto, ele deve ter criado um mundo que
não contém objetos indiscerníveis. Isto é, objetos in-
discerníveis são idênticos.
Se duas coisas incompatíveis são igualmente boas e
se, tanto em si, quanto em sua combinação com as
outras coisas, uma não leva vantagem sobre a ou-
tra, Deus não produziria nenhuma das duas. (Ro-
binet 1957, p. 90)

(...) não existem dois seres absolutos indiscerníveis:


porque se existissem, Deus e a Natureza agiriam
sem razão ao tratar um diferentemente do outro;
e, assim, Deus não produz duas porções de matéria
perfeitamente iguais e semelhantes. (Jbid. p. 131)

“Um Deus racional não pode criar objetos ou confi-


gurações indiscerníveis. A segunda versão do princípio
da razão suficiente, e, a fortiori, a terceira, que es-
pecifica que Deus sempre escolhe a melhor situação
* possível, implica o princípio dos indiscerníveis.
Se além das razões empíricas, admitirmos que a
vontade divina possa ser determinada por razões me-
taempíricas, somos conduzidos a duas interpretações
do princípio leibniziano dos indiscerníveis. À primeira
interpretação, que rejeita os motivos metaempíricos,
aproxima Leibniz do positivismo lógico (Reichenbach
1958b) inicial que, como sabemos, apoiava-se em dois
Coleção CLE V.09
56 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

princípios: o princípio de verificabilidade e o princípio


de sinonímia (Reichenbach 1938, pp. 30-1). O princípio
“de verificabilidade afirma que uma proposição é signi-
ficativa se e somente se for possível? testar empirica-
mente sua verdade (ou sua falsidade). O princípio de si-
nonímia diz que duas proposições têm o mesmo sentido
se e somente se sua verdade (ou falsidade) for decidida
com base nos mesmos testes empíricos. A aplicação do
princípio de sinonímia permite rejeitar toda proposição
a respeito da posição ou do movimento do universo (que
pode ser considerado um objeto único) no espaço ab-
soluto. |
Seja u o objeto-universo que Newton e Clarke su-
punham finito (Leibniz, que sustenta que o universo é
infinito, coloca-se aqui no terreno de seus adversários
para dar maior ênfase ao absurdo de suas afirmações).
A posição de um objeto em relação ao espaço absoluto
é determinada por um sistema de relações com qua-
tro pontos não-coplanares c,d,e,f. O fato do objeto-
universo ocupar uma posição z no espaço absoluto se
exprime pela proposição “uRs(c,d,e,f)” e o fato de
ocupar a posição y, pela proposição “uR,(c, d, e, f)”.
Uma vez que o espaço é homogêneo, é impossível ima-
ginar uma experiência capaz de demonstrar que o uni-
verso ocupa a posição z ao invés da posição y. As
proposições “uR,;(c,d,e,f)” e “uR,cd,e,f)” são
sinônimas; portanto, as situações uR-(c,d,e,f) e
uR,(c,d,e, f) são empiricamente indiscerníveis, por-

STrata-se aqui da possibilidade física: uma experiência é fisi-


camente possível se não é proibida pelas leis da física, indepen-
dentemente das dificuldades técnicas que se possam encontrar.
Ver Reichenbach (1938, pp. 38-9).
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 57

tanto, idênticas. O mesmo argumento pode ser utili-


zado, mutatis mutandis, para descartar, como despro-
vida de sentido, a hipótese de um movimento do uni-
verso no espaço absoluto (Leibniz não distingue aqui
movimento retilíneo de movimento acelerado).
Para provar que o espaço sem os corpos é alguma
realidade absoluta, fizeram-me a objeção de que
o universo material finito poder-se-ia deslocar no
espaço: respondi que não parece razoável que o
universo material seja finito, e se assim o supomos,
não é razoável que ele tenha um movimento além
“daquele de suas partes mudando de situação en-
tre si; porque um tal movimento não produziria
nenhuma mudança observável e não teria objetivo
(...) o movimento-é independente da observação,
mas não é independente da observabilidade. Não
existe movimento quando não existe mudança ob-
servável. E mesmo quando não há mudança ob-
servável, não há mudança de nenhuma espécie. O
contrário é fundado na suposição de um espaço ab-
.soluto, que refutei demonstrativamente pela neces-
sidade de uma razão suficiente das coisas. (Robinet
1957, pp. 148-9)º

Todavia, Leibniz estava longe de ser um empiristalº, e


situações empiricamente indiscerníveis talvez não o se-
jam para Deus, como Clarke sugere (Robinet 1957, p.
189). Isto nos leva à segunda interpretação do princípio
dos indiscerníveis. Deus pode determinar sua vontade
em favor de uma situação empiricamente equivalente a

O argumento segundo o qual não se pode falar do movi-


mento de um corpo na ausência de outros corpos de referência
observáveis será retomado por Berkeley (1721), alguns anos de-
pois de Leibniz. Ver também Sciama (1961, p. 97).
10Ver Ghins (1985).
Coleção CLE V.09
58 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

uma outra, desde que exista entre elas pelo menos uma
“diferença lógica. Para nós, as razões divinas podem ser,
como diz Leibniz, “o mais frequentemente desconheci-
das”: não Sib omDs porque Deus julga uma situação
melhor, mas sabemos, em todo caso, que só existe pos-
sibilidade de escolha se existir pelo menos uma dife-
“rença lógica entre as situações. Em virtude da própria
definição do movimento dada por Leibniz, uma dife-
“rença lógica entre dois movimentos deve sempre ser
traduzida por uma diferença observável. Um raciocínio
idêntico se aplica à às posições espaciais.

2.2.2 A Hiecánica de Leibniz

Leibniz certamente tem razão em insistir que o re-


* pouso e o movimento retilíneo uniforme no espaço ab-
“soluto são destituídos de significado empírico. Mas a
respeito do movimento acelerado, a situação é mais de-
licada, pois ele deve explicar por que aparecem forças
no nível da água (na experiência do balde) e não no
nível de outros corpos (as estrelas) em relação às quais
a água está acelerada. Adversário resoluto da ação a |
distância, como testemunham suas críticasà gravitação
newtoniana, Leibniz. não podia conceber uma ação cau-
sal proveniente | das estrelas. Para ele, todas as forças
são internas e têm sua fonte no dinamismo interno das
substâncias.

| concordo que existe diferença entre um movi-


mento absoluto verdadeiro de um corpo e uma sim-
ples mudança relativa de sua situação em relação
a um outro corpo. Pois, quando a causa imediata
da mudança está dentro do corpo, ele está verda-
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 59

deiramente em movimento, e, consequentemente, a


situação dos outros em relação a ele será modifi-
cada, ainda que a causa desta mudança não esteja
neles. >. (Robinet 1957, pp. 149- -50)

A própria noção de movimento só tem sentido con-


tanto que se disponha de corpos materiais observáveis
aos quais o movimento possa ser referido. No interior
desta definição do movimento se introduz a distinção
entre movimento real e movimento aparente. O movi-
mento aparente de um corpo consiste somente em uma
modificação das relações de posição em relação aos cor-
pos de referência. O movimento real consiste em uma
modificação da situação de um corpo, havendo, além
disso, a condição de que a causa imediata do movi-
mento esteja no corpo. |
“Um objeto se move realmente quando altera sua
posição ao mesmo tempo que contém a razão desta
alteração. (Gerhardt 1962, Vol. VII p. 20)

Para Leibniz, não pode | haver movimento e, a forti-.


ori, movimento real, nem efeitos de um tal movimento,
como as forças centrifugas, no sentido de Newton, em
um universo vazio. E o que Clarke compreendeu muito
bem: o o ci
E não encontramos nenhuma maneira de evitar esta
" consegiiência absurda (...) que as partes de um
“corpo que gira (como o Sol) perdessem a vis centri-
fuga resultante de seu movimento circular se toda.
a matéria extrínseca em sua volta fosse aniquilada.
(Robinet op. cil. » PP. 191- 2). Ê

Esta. consequência parece absurda a Clarke porque


ele raciocina no interior da mecânica newtoniana. Para
Coleção CLE V.09
60 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

Leibniz, ela não é absurda, mas necessária. Não são


apenas duas concepções do espaço, mas duas teorias
físicas do movimento, duas mecânicas que se defron-
tam. Sem entrar nos detalhes!!, devemos fazer agora
uma exposição sumária da concepção leibniziana das
forças, que está fundada em sua doutrina metafísica do
dinamismo das substâncias. Cada substância possui
sua própria atividade, que caracteriza sua individuali-
dadee que está fundada em um princípio interno (Bou-
troux 1920, 814), a forma substancial ou enteléquia,
análoga à alma dos seres vivos. Este princípio interno
é a força ativa que se opõe à força passiva da massa
inerte e impenetrável (Dugas 1954, p. 469).
A força ativa se divide entre uma força primitiva e
uma força derivativa. A força primitiva “existe em cada .
substância individual considerada em si mesma” (“um
corpo totalmente em repouso é contrário à natureza
das coisas”). A força derivativa, a única que desempe-
nha um papel em física (Russell 1908, pp. 107-8), se
exerce de diferentes maneiras por uma espécie de “li-
mitação da força primitiva resultante do conflito dos
corpos entre si”. |
No Specimen Dynamicum (1695), Leibniz estabe-
lece a célebre relação entre a energia cinética e a força
morta!?. Estas forças são ambas forças derivativas,
já que têm efeitos físicos. A força morta (estática)

1 Para maiores informações, remetemos às obras de Dugas


(1954) e de Costabel (1960). |
““2Dugas op. cit., p. 492. A correlação entre a força viva e
a infinidade das impressões continuas da força morta se escreve -
atualmente assim: muy? = fras.
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 61

é uma solicitação, uma causa do movimento: é uma


força exercida, no sentido de Newton. Como exemplos
de forças mortas, Leibniz cita as forças gravitacionais,
centrípetas e centrifugas. Estas últimas têm um pa-
pel decisivo na teoria dos movimentos planetários de-
senvolvida no Tentamen de motuum coelestium causas,
publicado em 1689 (dois anos após e, parece, indepen-
dentemente dos Principia de Newton!'?), onde Leibniz
mostra que a força de atração deve ser inversamente
proporcional ao quadrado da distância se as órbitas
planetárias são elípticas (Dugas op. cit, p. 492).
Em suma, a força centrífugaé, para Leibniz, uma
força morta derivativa que tem sua fonte no dinamismo
interno da substância. Ela é é uma causa e não um efeito
do movimento.
Numerosos comentadores, como Hans Reichenbach
e Bertrand Russell, pensam que a aceitação de Leibniz
da distinção entre movimento aparente e movimento
real é contraditória com sua teoria do espaço absoluto:
Esta tentaviva de estabelecer o movimento abso-
luto é totalmente incompatível
com a teoria leib-
niziana do espaço. Newton, partindo de argumen-
tos bastante análogos, concluiu daí, com razão, a
necessidade da posição absoluta; Leibniz que, em
mais de uma questão matemática, mostra-se me-
nos filósofo que Newton, esforçou-se para eliminar
o movimento absoluto, negando energicamente a
posição absoluta. (Russell 1908, p. 97)!*

13% pelo menos o que afirma Dugas (op. cit., p. 492).


14Reichenbach (1958a, p. 57) também critica Leibniz a este
respeito..
Coleção CLE V.09
62 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

Leibniz, entretanto, não é de modo algum obri-


gado a admitiro movimento retilíneo uniforme abso-
luto, nem a posição absoluta, baseando-se em suas de-
finições. Um corpo está em movimento absoluto quando
a causa de seu movimento está nele e quando, con-
sequentemente, as relações espaciais com outros corpos
são modificadas. Não se segue que:

1) Em um universo composto de um só corpo, forças


centrífugas possam existir.

2) O movimento verdadeiro seja um movimento em


relação ao espaço absoluto.

2.2.3 As características do espaço e do movi-


mento segundo Leibniz
a) O sentido lógico

O espaço, para Leibniz, é uma ordem, um sistema


de relações entre coisas existentes ou possíveis. O es-
paço não é uma substância: é relativo, no sentido lógi-
co.
Considero, como observei mais de uma vez, o espaço
como alguma coisa puramente relativa, assim como
o tempo; como uma ordem das coexistências, do
mesmo modo que o tempo é uma ordem das su-
cessões. Pois o espaço indica, em termos de pos-
sibilidade, uma ordem das coisas que existem ao
mesmo tempo, enquanto existem conjuntamente,
sem considerar sua maneira particular de existir:
e quando vemos várias coisas juntas, percebemos
esta ordem das coisas entre elas. (Robinet 1957, p.
53)
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 63

A teoria leibniziana parece antecipar as tentativas


de Hans Reichenbach (1958a) e Adolf Grúnbaum (1973)
de fundar a estrutura métrica do espaço(-tempo) com
base no comportamento das barras rígidas (relógios
isócronos). Não examinaremos aquia validade destas
tentativas: trata-se no momento de comparar Os Tes-
pectivos méritos das teorias leibniziana e newtoniana
no que concerne à fundação empírica da métrica.
Clarke lança a objeção de que uma teoria relacional
é incapaz de dar conta da estrutura métrica do espaço:

(...) o espaço e o tempo são quantidades; o que a


situação e a ordem não são. (Robinet 1957, p. 111)

Apesar de seus ataques a Leibniz, Clarke não nos


diz como o espaço pode estar munido de uma estrutura
euclidiana. Newton é um pouco mais explícito em uma
carta a Bentley em 1963 (ver Thayer 1953), na qual ele
retoma a doutrina medieval da compositio ex punctis,
segundo a qual o comprimento de um intervalo é pro-
porcional ao número de pontos que ele contém. Uma
vez que todo intervalo contém um número infinito de
pontos reais, somos levados a afirmar a existência de
uma hierarquia de infinidades de grandezas diferentes,
capaz de justificar a métrica euclidiana. Um dado in-
tervalo, por exemplo, é duas vezes mais longo que um
outro porque contém um número duas vezes maior de
pontos. Isto parece muito ser uma hipótese ad hoc,
introduzida com o único objetivo de justificar a geome-
tria de Euclides. Pois, mesmo admitindo que uma hi-
erarquia de infinidades possa fundar relações métricas,
nada permite afirmar a priori que estas últimas corres-
pondem exatamente à geometria de Euclides, e não à de
Coleção CLE V.09
64 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

Lobatchevski ou de Riemann. Como Newton, eviden-


temente, ignorava todas estas geometrias alternativas,
não teve necessidade alguma de justificar a verdade da
geometria euclidiana. Não podemos, pois, acusá-lo de
enunciar uma hipótese ad hoc neste contexto.
Em compensação, poderíamos censurá-lo por ten-
tar reduzir logicamente (isto é, definir) razões métricas,
que têm um sentido empírico (via as barras rígidas), a
razões de cardinalidades infinitas que são, estas sim,
totalmente desprovidas de significado empírico. Mas
isto seria impor novamente a Newton cânones empiris-
tas formulados mais tarde e que ele próprio, provavel-
mente, não assumiu. O procedimento de Newton se in-
terpreta, naturalmente, como uma tentativa de redução
lógica baseada na concepção de um intervalo composto
de um número infinito de pontos e no axioma: o todo
é maior que a parte. - |

A Aro Bº B
Lo | | E |
| | — |
Se o intervalo AB contém o intervalo A'B' e se
ambos contêm um número infinito de pontos, então
a infinidade de pontos contida em AB é maior que a
infinidade de pontos contida em A'B'. A existência
do espaço absoluto, já justificada, garante a existência
atual destes pontos. À tentativa newtoniana de redução
lógica leva, assim, a fundamentar ontologicamente, na
existência de infinidades atuais, as razões métricas. |
Infelizmente, já na Idade Média, tinham sido formu-
ladas objeções fatais à compositio ex punctis. Existe, de
fato, uma correspondência bi-unívoca entre os pontos
de círculos concêntricos.
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica | 65

Figura 2.8

Uma vez que estes círculos são, manifestamente, de


comprimentos diferentes, a doutrina da compositio deve
ser rejeitada)”.
Parece que Leibniz também recorre à doutrina da
compositio ex punctis nas seguintes passagens:

Alega-se aqui que o tempo não poderia ser uma


ordem das coisas sucessivas, porque a quantidade
do tempo pode tornar-se maior ou menor, e a or-
dem das sucessões permanecer a mesma. Eu res-
pondo que isto não é verdade. Pois, se o tempo
é maior, haverá mais estados sucessivos interpos-
tos, e se ele é menor, haverá menos; já que não há

ISGrinbaum (1977, pp. 105-315). A origem destas dificul-


dades (análogas àquelas colocadas em evidência por alguns dos
paradoxos de Zenon) provém do fato de que entidades inexten-
sas, como os pontos, não podem ser utilizadas para fundar razões
de extensão; será preciso esperar Cantor para que estas questões
sejam perfeitamente esclarecidas (Ver Grunbaum 1967, pp. 121-
46).
Coleção CLE V.09
66 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

vazio, nem condensação ou penetração, por assim


dizer, no tempo, tanto quanto nos lugares. (Robi-
net 1957, p. 171)

Segundo cada uma das duas ordens (temporal ou


espacial), os elementos são julgados mais próximos
ou mais distantes, na medida em que mais ou me-
nos [elementos] são necessários para compreender
[sublinhado por nós] a ordem que existe entre eles.
Portanto, dois pontos estão tanto mais próximos
quanto resultarem em alguma coisa mais simples
os elementos interpostos e maximamente determi-
nados a partir deles. Um tal conjunto interposto,
maximamente determinado, é o caminho mais sim-
ples de um ponto a outro, caminho mínimo e, ao
mesmo tempo, maximamente uniforme, isto é, a
reta, O caminho mais curto interposto entre pontos
vizinhos. (Gerhardt 1962, Vol. VII pp. 18-9)

Entretanto, e isto independentemente das objeções


dirigidas à compositio ez punctis (as quais seria estra-
nho Leibniz não ter conhecido), a teoria relacional é in-
compatível com esta doutrina. Para Leibniz, de fato, os
intervalos espaciais, ao contrário do que para Newton,
para quem o espaço é real e atual, não são compostos
de pontos!”, Estes últimos são entidades puramente
ideais. Além disso, a teoria de Newton conduz a afir-
mar a existência de números infinitos, inaceitáveis aos
olhos de Leibniz mesmo este acreditando no infinito
atual (Russell 1908, pp. 120ss).
À distância entre dois corpos, que Leibniz distingue
cuidadosamente da extensão material de um objeto,

16Ver a Lettre à Arnauld de 30 de abril de 1687 (Gerhardt 1960-


1961, Vol. Il p. 96), a Letire à Des Bosses de 14 de fevereiro de
1706 (Ibid., p. 300). Ver também Russell (1908, p. 28).
Coleção CLE V.09
Á Mecânica Clássica 67

extensão que encontra seu fundamento na repetição de


mônadas indivisíveis e inextensas na medida em que são
dotadas de resistência (Russell op. cit., p. 114), é um
relacionamento, uma relação entre estes corpos. Uma
tal relação não comporta partes, é indivisível, ainda
que possa haver distâncias maiores ou menores”.
Como se efetua, então, a comparação das relações
de distância? Ou, em outros termos, como estabelecer
uma hierarquia quantitativa entre diferentes relações?
Leibniz nos diz que a ordem, ou relação de situação,
entre corpos pode ser mais ou menos simples:
Eis como os homens chegaram a formar a noção do
espaço. Consideram que existem várias coisas ao
mesmo tempo, e encontram aí uma certa ordem de
coexistência, segundo a quala relação de umas com
as outras é mais ou menos simples. É sua situação
ou distância. (Robinet 1957, p. 142)

Se considerarmos dois corpos a e b, é possível ima-


ginar um sistema de relações que permita compreender
logicamente o relacionamento ou a relação de distância
entre a e b. O problema consiste em construir um con-
junto de relações mais simples entre outros corpos, que
não sejam a e b, ou mesmo entre situações ou lugares
possíveis de tais corpos, aos quais à relação de distância
entre a e b seja logicamente redutível. Lembremo-
nos que o espaço é uma entidade ideal, um conjunto
de relações que devem ser pensadas, compreendidas.
Sendo uma construção lógica .a partir de entidades re-
— Nf...) mesmo que os números ou as distâncias possam ser
' maiores ou menores, eles não têm partes. Para as frações ele
[Leibniz] o diz expressamente e é o que ele quer dizer em todos.
os casos análogos.” (Russell op. cit. pp. 124-5)
Coleção CLE V.09
68 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

ais, Os corpos existentes e observáveis, o espaço não é


“independente do mundo físico, mas, tal como é, não
tem realidade física, nem mesmo, em oposição a New-
ton, metafísica. Como conceber a construção de um tal
sistema de relações? É neste caso, que a analogia com
as frações, à qual Leibniz faz sempre referência, torna-
se preciosa.
(...) a ordem também tem sua quantidade, há o
que precede e o que segue, há distância e intervalo.
Às coisas relativas têm sua quantidade assim como
as absolutas: por exemplo, as razões ou proporções
na matemática têm sua quantidade, e se medem pe-
los logaritmos; e, entretanto, são relações. Assim,
embora o tempo e o espaço consistam em relações,
não deixam de ter sua quantidade. (Robinet 1957,
pp. 150-1)

Ás frações são relações entre números. Os números,


assim como as frações, não comportam partes, mas não
são concebíveis sem a unidade. Em contrapartida, a
medida de uma distância necessita de um padrão de
comprimento, cuja escolha é arbitrária, mas que é in-
divisível em relação à medida efetuada.
A quantidade ou a grandeza é aquilo que nas coisas
pode ser conhecido unicamente por sua presença
(ou percepção simultânea). Desta forma, não po-
demos saber o que é o pé ou a vara sem utilizar
alguma coisa como um padrão que possa, em se-
guida, ser aplicado a outros objetos. (Gerhardt
1960-1961, Vol. I p. 18)

A comparação das distâncias se efetua da seguinte


maneira. Escolhémos uma relação espacial entre dois
corpos dados como razão-unidade. Esta razão-unidade
é a relação mais simples. Para determinar a razão de
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 69

distância entre dois Corpos, observamos quantas razões-


unidade são necessárias para compreender a razão de
distância entre essés corpos. Obtemos, assim, um nú-
mero que mede, na unidade, a distância: O conjunto
de números obtidos desta maneira pode servir de base
a uma hierarquia quantitativa das distâncias.
É preciso mostrar ainda que este procedimento de-
termina uma distância sem ambiguidade. Leibniz es-
pecifica que o conjunto das relações simples necessárias
para compreender uma relação complexa de distância
deve ser “maximamente determinado” e constitui “a
reta, O caminho mais curto”. O caminho mais sim-
ples corresponde ao número mínimo de razões-unidade
e este determina unicamente (a determinação máxima
corresponde a uma possibilidade única) a distância ou
o caminho mais curto. Qualquer outro caminho faria
com que um número maior de razões-unidadé intervi-
esse e deixaria de ser único.
Leibniz não distingue (e como poderia?) entre as
noções de geodésica (caminho mais curto) e de reta
euclidiana (uma geodésica não é necessariamente uma
reta euclidiana). À noção de reta euclidiana não pode
ser utilizada para indicar a maneira pela qual deve ser
efetuada a justaposição das razões-unidade (os padrões
de comprimento), do contrário, a construção é conta- .
minada de circularidade (Reichenbach 1958b, p. 52).
O procedimento correto consiste em justapor as razões-
unidade (os padrões) e determinar, desta forma, o ca-
minho mais curto (a geodésica) que, por definição, cha-
mamos distância. Observamos, em seguida, se esta
geodésica é uma reta euclidiana (ou lobatchevskiana,
ou riemanniana com curvatura constante, ou de cur-
Coleção CLE V.09
TO A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

vatura variável). A construção leibniziana permanece


válida se substituímos, em todos os lugares, o termo
“reta (subentendida euclidiana)” por “geodésica”.
Dessa forma, a distância entre dois corpos é re-
duzida a um conjunto de relações entre corpos inter-
mediários, existentes ou simplesmente possíveis. À ra-
zão simples ou unidade é arbitrária. Nada se opõe à
diminuição de tamanho da razão-unidade, nem à in-
dicação de pontos intermediários que permitam visu-
alizar estas relações. Mas é preciso sublinhar que as
razões-unidade, mesmo que sejam, de alguma maneira,
atualizadas pelos padrões de comprimento (barras rígi-
das), só têm uma existência puramente ideal, acessível
apenas ao entendimento. Seria absurdo considerar uma
distância constituida de uma soma de barras rígidas
interpostas: uma distância é uma relação complexa re-
duzida logicamente a (isto é, definida a partir de) um
conjunto de relações simples.
"Esta construção, tal como Leibniz a formula, não
é mais satisfatória que a de Newton no que concerne
à justificação da estrutura euclidiana do espaço. Na
ausência de geometrias alternativas, podemos conside-
rar que esta questão era, afinal de contas, marginal
com relação à necessidade de explicar as assimetrias
dinâmicas observadas. |

b) O sentido físico

Se o espaço é, para Leibniz, um sistema de relações,


no entanto, a estrutura euclidiana deste sistema perma-
nece inalterada frente ao comportamento da matéria.
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 71

Podemos afirmar então que, para ele, o espaço euclidi-


ano é absoluto no sentido físico.
No que concerne ao movimento, a situação é menos
clara. Leibniz, como vimos, fez a distinção entre movi-
mento aparente e movimento real. Esta distinção não
corresponde semanticamente, nem mesmo extensional-
mente, à distinção newtoniana. Para Leibniz, um movi-
mento real é necessariamente aparente, enquanto que,
para Newton, um movimento em relação ao espaço ab-
soluto não se traduz inevitavelmente por modificações
de distância em relação aos corpos observáveis (um mo-
vimento absoluto real é possível em um espaço vazio).
Para Leibniz, um movimento real tem sua causa
no corpo que é a sede deste movimento. “Toda força
está fundada no dinamismo interno da-substância. Não
existem, portanto, forças externas. Neste caso, nenhum
movimento depende de uma força externa e todo movi-
mento é absoluto no sentido físico: quando a distância
entre dois corpos é modificada, há movimento, e isto
significa que pelo menos um dos dois corpos está em
movimento real. Mas do ponto de vista do corpo que
não está realmente em movimento, isto é, que está real-
mente em repouso, o movimento resulta de uma causa
externa a ele. | Ao
Leibniz, mesmo admitindo que o movimento reti-
líneo uniforme se mantém na ausência de obstáculo
(Russell op. cit., pp. 93-4), queria conservar a dis-
tinção aristotélica entre o repouso e o movimento. Todo
movimento implica a existência de uma causa interna,
uma força, em pelo menos um dos corpos em movi-
mento relativo, mesmo se este é retilíneo uniforme. Um
corpo pode, então, ser animado por um movimento real
Coleção CLE V.09
72 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

retilineo uniforme. Nisto Leibniz está de acordo com


Newton, exceto que para este último um movimento
retilíneo uniforme real se produz em relação ao espaço
absoluto. Mas, ao contrário de Newton, a distinção en-
tre movimento real e movimento aparente é, para Leib-
niz, dinâmica: são as forças que realizam a separação
“e não o sistema de referência. Para Leibniz, não im-
porta quais corpos podem ser escolhidos para indicar o
movimento e isto, qualquer que seja seu estado de movi-
mento: não existe referencial privilegiado de um ponto
de-vista cinemático. Em compensação, não existe equi-
“valência dinâmica entre os referenciais: existe uma dis-
tinção entre aqueles que estão realmente em repouso e
aqueles que estão realmente em movimento!ê.

c) O sentido ontológico

O espaço, para Leibniz, não existe como coisa in-


dividual; não pertence à nossa mobília ontológica. E.
uma idealidade que existe da mesma maneira que os
números e as idéias de nosso espírito. Por esta razão, o
princípio de identidade dos indiscerníveis não se aplica .
aos pontos do espaço.
As partes do tempo ou do lugar, tomadas em si
mesmas, são coisas ideais, parecendo-se assim per-
feitamente como duas unidades abstratas. (Robi-
net 1957, p. 134) . | Ee:

Independentemente da existência ou não dos ob-


jetos materiais, o espaço será sempre algo de pura-
I8Para uma discussão da equivalência cinemática e da não-
equivalência dinâmica dos sistemas de referência, 1 ver Stein
(1977).
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 13

mente ideal. Se objetos materiais existem, eles en-


carnam os termos que podem se encontrar neste sis-
tema de relações ideais que constitui o espaço e, por
sua existência, a noção de movimento adquire um sen-
tido físico. Em sua ausência, o espaço talvez possua
uma existência puramente ideal no entendimento di-
vino, do mesmo modo, aliás, que qualquer outro sis-
tema de relações ou teoria matemática, mas, em todo
caso, é desprovido de todo significado físico.
Os pontos do espaço não sendo reais, podem ser, ao
mesmo tempo, indiscerníveis e numericamente distin-
tos: o espaço é homogêneo.

d) O sentido empírico

Sendo ideal, como os números, o espaço não é per-


ceptível; do mesmo modo como o espaço de Newton,
o espaço leibniziano é absoluto no sentido empírico.
Entretanto, é possível constatar empiricamente que al- |
guns corpos estão em relações espaciais, já que os cor-
pos, ao contrário do espaço absoluto, são observáveis.
Podemos ver, por exemplo, que dois corpos se tocam,
sem, no entanto, percebermos a própria relação de con-
tiguidade, do mesmo modo que podemos constatar que
existem três livros, mesmo que não observemos o nú-
mero três. E |
O espaço é a ordem das situações possíveis. Se po-
demos perceber que alguns corpos estão em relação, é,
em todo caso, impossível perceber a possibilidade dos
objetos se manterem em certas relações. O espaço é,
pois, uma idealidade que só pode ser compreendida,
pensada pelo entendimento apenas, mesmo se admiti-
Coleção CLE V.09
14. A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

mos, como Leibniz, a existência de um plenum mate-


rial infinito no qual todas as relações espaciais possíveis
são realizadas (apenas os termos das relações mudam).
Por esta razão, o espaço não pode ser dotado de uma
eficácia causal no mundo físico: ele não é, como diz
Leibniz, uma vera causa. Apenas as forças, internas,
podem desempenhar este papel. Notemos, todavia, que
estas não são mais acessíveis à observação que o espaço
absoluto de Newton.
Todo movimento, e isto está bem claro para Leib-
niz, é necessariamente relativo no sentido empírico, já
que, por definição, um movimento é uma variação de
distância em relações a corpos observáveis.

2.2.4 A crítica de Euler a Leibniz

Euler ocupa, segundo muitos, uma posição crucial


na história da mecânica. Foi ele o primeiro a escrever
os Axiomas de Newton sob a forma vetorial. Mas se
ele se aproximou muito da noção de sistema inercial e
tinha plena consciência da importância do princípio de
relatividade, isto é, da equivalência dinâmica de siste-
mas em movimento retilíneo uniforme uns em relação
aos outros!º, ele não abandonou as teses newtonianas
sobre o espaço e o tempo absoluto. Ao contrário, ele de-
fendeu vigorosamente as concepções dos matemáticos
(isto é, dos newtonianos) contra as objeções dos me-
tafísicos (isto é, dos leibnizianos) em diversos escritos
que podem ser considerados como prolongamentos da
controvérsia entre Leibniz e Clarke.

1º Ver sobre este tema o artigo de D. Speiser (1983).


Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 75

Apoiar-nos-emos principalmente no artigo “Refle-


xões sobre o espaço e o tempo” (1748), sem, no entanto,
negligenciar outros textos, como a Theoria Motus Cor-
porum Solidorum seu Rigodorum (1765) e as Lettres à
une Princesse d 'Allemagne (772), aos quais faremos
referências ocasionais. - | = :
À argumentação de Euler em suas y reflexões sobre
o espaço e o tempo se articula da seguinte maneira.
Os princípios (os axiomas) da mecânica newtoniana,
ao contrário das mecânicas concorrentes (cartesiana e
leibniziana), estão firmemente estabelecidos por suas
consequências experimentais e sua verdade não pode
mais ser colocada em dúvida. o

(...)o maravilhoso acordo de todas as conclusões


que tiramos disto [os princípios], por meio do cál-.
culo, com todos os movimentos dos corpos, tanto '
“sólidos, quanto fluidos, sobre a Terra, e mesmo com
os movimentos dos corpos celestes, seria suficiente
- para colocar fora de dúvida sua verdade. (A. Spei-
ee (ed.) lo48; Pp. arspo

Conseqiientêmente, os: conceitos que intervêm nos


princípios devem referir-se a entidades e não a coisas
irreais é imaginárias. Para provar que o espaço e o
tempo absoluto são apenas ficções, seria preciso poder
reformular os princípios da mecânica de tal maneira

20Isto constitui, evidentemente, uma falha lógica (comum na


época): a verdade das consegiiências experimentais de uma te-
oria não implica que ela seja verdadeira. Euler, em todo caso,
não procedia totalmente a priorie estava preocupado com a jus-
tificação empírica da mecânica. Este ponto é negligenciado por
Cassirer em sua apresentação, aliás, extremamente interessante,
das idéias de Euler (1907, II, 7 83b).
Coleção CLE V.09
76 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

que os conceitos newtonianos de espaço e de tempo ab-


solutos fossem eliminados. Ora, uma tal reformulação
é impossível.
(...) se não fosse possivel conceber os dois alegados
princípios da Mecânica sem introduzir as idéias do
espaço e do tempo, seria uma evidência segura de
- que estas idéias não eram puramente imaginárias,
como os Metafísicos pretendem. Deveríiamos, an-
tes, daí concluir que tanto o espaço absoluto, quan-
to o tempo, tais como os Matemáticos os imagi-
nam, são coisas reais, que subsistem mesmo fora de
nossa imaginação: já que seria absurdo sustentar
que puras imaginações pudessem servir de funda-
mento aos princípios reais da mecânica. (A. a pelser o
(ed.) 1948, p. 378)
Euler examina, em seguida, se é possível enunciar
os dois princípios recorrendo às concepções relacionais.
O primeiro princípio diz que um corpo em repouso con-
tinuará assim amenos que forças externas modifiquem
este estado. E o segundo, que o movimento retilíneo
uniforme se mantém a menos que “obstáctilos se opo-
nham à conservação deste estado. Estes princípios cor-
respondemà primeira lei do movimento de Newton, que
tem a forma de uma disjunção?! Euler separa aqui,
nitidamente, os termos desta disjunção?, Comecemos
pelo primeiro princípio.

21Ver o AxiomaI da Theoria Motus. Ver igualmente Lettres à


une Princesse d'Allemagne. |
22Isto não significa, evidentemente, que Euler fazia uma dis-
tinção real entre o repouso e o movimento retilíneo uniforme. A
Theoria Motus (Cap. I, 7) não deixa nenhuma dúvida sobre isso.
(A. Speiser (ed.) 1948, Ser. II, Vols. IIL-IV, p. 24).
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 77

Na Mecânica vemos o espaço e o lugar como coi-


sas reais, e por este princípio sustentamos que um
corpo, que se encontra em algum lugar sem mo-
vimento, aí permanecerá perpetuamente, a menos
que seja expulso por alguma força estranha: neste
caso, este corpo permanecerá sempre no mesmo lu-
gar Em relação ao espaço absoluto. Estou disposto
a aceitar que as idéias do espaço e do lugar sejam
apenas noções imaginárias; mas que me indiquem
as realidades nas quais os corpos se regulamentam
obedecendo a esta lei; e em lugar das quais os Ma-
temáticos se contentam em utilizar as idéias i ima-
ginárias de espaço € de lugar. )
Primeiramente, dir-me-ão que o lugar não é outra
coisa senão a relação de um corpo com respeito
aos outros que o circundam. Substituamos, pois,
aquela idéia de lugar por esta, e seremos obrigados
a dizer que, em virtude deste princípio, um corpo
que se encontre uma vez em uma certa telação com
os outros que. o circundam, obstinar-se-á em per-
manecer sempre nesta mesma relação. Isto é, deve-
mos sustentar que um corpo A, estando sircnndado
pelos corpos B,C,D,E, etc., “tentará conservar-se
perpetuamente nesta vizinhança. (A. Speiser op.
cil., p. 376).

Euler a em ses ida: que estas duas maneiras


de se exprimir não são equivalentes. De fato, basta
substituir os corpos B, C,D, É, etc., para que À não
esteja mais em repouso, sem que seja necessário exer-
cer uma força sobre 4, o que é contrário ao primeiro
princípio da mecânica. Não podemos, pois, substituir
o conceito de lugar em um espaço absoluto imóvel por
uma noção de posição em relação a corpos circundan-
tes, que são sempre móveis. Euler conclui:
Coleção CLE V.09
78 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

A esta qualidade dos corpos em virtude da qual


eles tentam se conservar em seu estado, tanto de re-
pouso, quanto de movimento [Euler deveria acres-
centar: retilíneo uniforme], damos o nome de inér-
cia. Portanto, esta inércia, como acabamos de ver,
não se regula pelos corpos vizinhos; mas é certo
que ela se regula pela idéia de lugar, que os Ma-
temáticos vêem como real, e os Metafísicos como
imaginária. (Ibid., p. 381) Y |

Da realidade da inércia, isto é, da capacidade de


permanecer no estado de repouso ou de movimento re-
tilíneo uniforme, equivalente ao poder real de resistir
a forças externas, Euler conclui aqui a realidade dos
objetos pelos quais ela se regula. Ao contrário de Leib-
niz, que fazia da inércia uma propriedade interna dos
corpos, Euler, seguindo Newton, funda a inércia em
relações. Se a inércia é real, os termos das Telações
também devem sê-lo. Ora, os candidatos possíveis são
ou os corpos materiais, ou o espaço absoluto. Euler
segue os passos de Newton ao eliminar os corpos ma-
teriais, primeiro os vizinhos, e em seguida, as estrelas
fixas. | Co |
Se eles [os Metafísicos] dissessem que era em relação
às estrelas fixas que seria necessário explicar o prin-
cípio de inércia, seria muito difícil refutá-los, visto
que as estrelas fixas, estando elas próprias em re-
pouso, estão tão distantes de nós, que os corpos
que se encontram em repouso em relação ao espaço
absoluto, segundo forma de ver da Matemática,
também assim estariam em relação às estrelas fi-
xas. Mas além de ser uma proposição bastante
estranha e contrária a muitos outros dogmas da
Metafísica, dizer que as estrelas fixas dirigem os
corpos em sua inércia, esta regra seria igualmente
falsa, se nos fosse permitido aplicá-la aos corpos
Coleção CLE V.09
-A Mecânica Clássica 79

que estão próximos de alguma estrela fixa. Fei-


tas estas ressalvas, não restam mais idéias reais
que pudéssemos usar em substituição das preten-
sas idéias imaginárias do espaço e do lugar, na ex-
plicação da inércia. (Ibid., p. 381)

Para descartar as estrelas fixas, Euler recorre a dois


argumentos que são apenas esboçados aqui. O primeiro
consiste em dizer que uma influência das estrelas se-
ria “contrária a muitos outros dogmas da metafísica”,
sem especificar quais. Provavelmente, ele tem em vista
a ação a distância, que é rejeitada pelos leibnizianos,
e isto colocariaos metafísicos em contradição consigo
mesmos: não se pode defender ao mesmo tempo uma
teoria relacional do espaço e negar a ação a distância.
Esta crítica só é válida se estivermos situados, desde o
início, como Euler, no interior da mecânica de Newton.
Leibniz não diz que a inércia se regula pelas estrelas
fixas, já que ela tem suaà fonte, no dinamismo interno
“da substância.
O segundo argumento se remete às experiências
possíveis na vizinhança das estrelas fixas. Estas expe-
riências implicariam, sem dúvida, o deslocamento das
estrelas, por analogia à experiência discutida preceden-
temente e que consiste em deslocar os corpos de re-
ferência: B,C, D, E, etc. Euler não diz explicitamente
que a fixidez das estrelas é puramente contingente. Mas
na Theoria Motus indica que as estrelas fixas não go-
zam, de nenhum privilégio em relação aos outros cor-
pos materiais? * elas são, pois, em princípio, móveis.

23 “Sin autem cui videantur eq corpora absolute quiescere, quae


respectu stellarum fizarum eundem locum retineant, ei locus ab-
solutus erit certus ac determinatus situs respectu stellarum fi-
Coleção CLE V.09
80 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

Se alguns corpos constituem um referencial de inércia,


é preciso explicar este privilégio a partir das proprie-
dades destes corpos, propriedades que eles não podem
compartilhar com os outros corpos. É preciso, então,
descobrir estas propriedades e explicar por que alguns
corpos as possuem e outros não. Neste caso, é difícil
não atribuir uma natureza particular aos corpos ce-
lestes, como fazia Aristóteles, o que seria contrário à
gravitação universal e à abolição feita por Newton da
distinção entre o mundo sublunar e o mundo celeste.

Euler passa, em seguida, ao que ele chama aqui de


segundo princípio da mecânica.
A realidade do espaço poderá ser estabelecida tam-
bém pelo outro princípio da Mecânica, que com-
preende a conservação do movimento uniforme se-
gundo a mesma direção. Pois, se o espaço e o lugar
fossem apenas a relação dos corpos coexistentes, o
que seria a mesma direção? (...) Pois, indepen-
dentemente da maneira como os corpos se movem
e mudam de situação entre eles, é possivel conser-
var uma idéia bastante clara de uma direção fixa
que os corpos tentam seguir em seu movimento,
apesar de todas as mudanças sofridas pelos outros
corpos. Dai, é evidente que a identidade de direção
(...) não poderia absolutamente ser explicada pela
relação, ou a ordem dos corpos coexistentes. (Ibid.,
P. 382)
Encontramos aqui um argumento similar aquele uti-
lizado mais acima. Se o segundo princípio é verdadeiro,
zarum. Num autem relatio ad stellas fixas naturae rei magis sit
consentanea, quam relatio ad alia quaevis corpora, hic etiamnum
in dubio relinquere cogimur.” (A. Speiser (ed.) op. cit. Ser. II,
Vols. III-IV. Cap. 1, II. p. 2)
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 8

a noção de “mesma direção” deve ter um sentido. Ora,


os corpos materiais móveis não podem servir para de-
terminar uma direção imutável. É preciso, pois, recor-
ter ao espaço absoluto euclidiano. O mesmo tipo de
argumentoé proposto em favor da realidade do tempo
absoluto.
(...) este princípio nos fornece novas provas, não
somente para a realidade do espaço, mas também
para a do tempo. Pois, visto que o movimento uni-
forme descreve espaços iguais em tempos iguais,
pergunto primeiramente, o que são espaços iguais
seguindo o sentimento daqueles que negam a reali-
dade de espaço? (...) O mesmo vale para a igual-
dade do tempo: pois, se o tempo não é outra coisa,
como quer a Metafísica, que a ordem das sucessões,
de que maneira tornaríamos inteligível a igualdade
dos tempos? (Jbid., pp. 331-2)
Euler aborda aqui a questão do fundamento das
relações métricas. Não é o comportamento das bar-
ras rígidas ou dos relógios que permite fundar, pelo
menos aproximadamente, a estrutura métrica, mas, ao
contrário, é a verdade dos axiomas que impõe a estru-
“tura métrica do espaço e do tempo absolutos.
Os argumentos de Euler partem sempre do pressu-
posto, que podemos qualificar de realista, de que os
axiomas da mecânica são verdadeiros porque suas con-
sequências empíricas estão verificadas, e que as enti-
dades às quais os conceitos utilizados se referem são
necessariamente existentes. Cassirer diz:
o pressuposto evidente e não demonstrado de Eu-
ler é que o significado objetivo dos princípios deve
suscitar a exigência e a hipótese de um termo de
referência na realidade absoluta. (Cassirer 1907,
II, 7 $3b)
Coleção CLE V.09
82 A Inérciae o Espaço-Tempo Absoluto

Mais exatamente, o que-constitui o ponto de partida


indemonstrado de Euleré sua posição realista. Não se
segue que seja preciso postular realidades absolutas.
Mas, se os corpos materiais não podem desempenhar
o papel de referentes destes conceitos, somos obriga-
dos a postular a existência de RE idades metasensíveis,
sem cuja existência os axiomas (ou os princípios) não
poderiam ser verdadeiros. Nesta perspectiva, é impor-
tante distinguir duas questões. À primeira é aquela a
respeito do sistema de referência: quais são os “bons
sistemas de referência”? A segunda é aquela sobre a
explicação das forças dei inércia: qual a origem dessas
forças?
Euler parece preocupar-se mais com a primeira ques-
tão, que é seguramente a mais importante para o físico.
Como ele tinha uma consciência mais nítida do princípio
de relatividade que Newton, ele sabia que todo sistema
em repouso ou em movimento retilíneo uniforme em
relação ao espaço absoluto também é adequado. Um
tal sistema, se é material, pode sempre ser modificado,
em resposta à ação de forças, e, portanto, deixa de
ser inercial (Euler não diz que, em resposta à força de
gravitação, um tal sistema não pode existir no mundo
físico). Infelizmente, o espaço absoluto é inobservável
e não pode ser utilizado na prática para definir ex-
perimentalmente o repouso ou o movimento retilíineo:
para todas as aplicações práticas, as estrelas “fixas” são
adequadas; Euler está, aliás, perfeitamente consciente
disto. Esta linha de argumentação é, pois, vulnerável
às objeções dos relacionalistas: como o espaço absoluto
pode servir para indicar o repouso ou a mesma direção
se ele é inobservável?
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica: 83
A segunda questão também é abordada, ainda que
suscintamente, por Euler. Ela é o objeto, como vi-
mos, da discussão da experiência do balde que Euler
não menciona nas Réflexions**. Entretanto, é a partir
do problema da explicação da inércia que se constrói o
argumento mais forte a favor do espaço absoluto. Euler
define a inércia como “esta qualidade dos corpos, em
virtude da qual eles se esforçam para se conservar em
seu estado”, e é esta qualidade real que “se regula pela
idéia de lugar”, ou dito de outro modo, que tem sua
fonte no-espaço absoluto.

2.3 A Mecânica Clássica

2.3.1 A formulação espaço-temporal da mecâni-


ca clássica

Antes de expor os traços essenciais da mecânica


clássica, convém definir as noções de variedade, de sis-
tema de coordenadas e de sistema inercial.
Uma variedade, do ponto de vista da teoria dos gru-
pos, é um conjunto de pontos munido de uma estrutura,
isto é, munido de um conjunto de relações invariantes
sob um grupo particular de transformações desta vvari-
edade nela própria, de automorfismos.
Um sistema de coordenadasé definido sobre uma va-
riedade, uma vez que tenhamos escolhido uma origem

21E que não é estudado mais que isto por Cassirer, mesmo
em sua exposição dos conceitos newtonianos (1907, II, 7 83a).
Segundo Cassirer, Newton postula a priori a existência do espaço
e do tempo absolutos como “pressupostos certos e indiscutíveis,
dos quais depende toda determinação dos fenômenos”.
Coleção CLE V.09
84 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto |

e uma maneira de atribuir n-uplas (sendo n o número


de dimensões) de números reais ao conjunto dos pontos
da variedade. Como nos interessamos aqui pelas varie-
dades espaço- temporais quadridimensionais? , atribul-
remos quadras de números aos pontos, que chamamos
também pontos-acontecimento, já que estes são os lu-
gares de ocorrência possível de acontecimentos físicos.
Um sistema de referência é constituído fisicamente por
um observador, situado na origem, munido de réguas
e de relógios (ou de dispositivos equivalentes) que lhe
permitem associar a cada ponto uma quadra única de
números, isto é, definir um sistema de coordenadas. No
momento, a unicidadeé a única restrição imposta: as
réguas e os relógios não determinam necessariamente
intervalos i iguais.
Por fim, um sistema inercia?? (ou um referenciai
“de inércia)é um sistema de referência tal que as leis de
Newton, nas quais figuram as coordenadas espaciais e
temporais, são válidas sob a forma vetorial:

N; mi= ce
(vé a velocidade instantânea)

Ny Fe = ma
(a é a aceleração instantânea)

25Para a justificação da tridimensionalidade do espaço, pode-


se consultar Griunbaum (1973, pp. 330ss) e Weyl (1963,
p. 136).
26Esta noção de sistema inercial só foi rigorosamente definida
no fim do século XIX (Jammer 1957, pp. 140-1).
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 85

Nur Fa=-Fr.

Em coordenadas cartesianas, temos:

Nr ma =-2 (constante) (T=a!,2?,2º)


2= Do aus
Nir e =F (F=FE,F,Eº)

Nmr Fa=—Fr ide


O primeiro axioma é a lei “galileana”?” da inércia.
Õ segundo, a lei fundamental da dinâmica. E o terceiro,
o princípio de ação e reação: a toda. ação corresponde
uma reação que lhe é igual em grandeza, mas de sen-
tido oposto. É possível mostrar que estas equações são
invariantes sob o grupo das seguintes transformações
das coordenadas, que formam o grupo de Galileu?

U=ttto (234)
T=0T+U+T (235)

“Parece que Galileu tinha em vista a conservação do mo-


vimento uniforme sobre uma trajetória circular. Ver Clavelin
(1968, pp.246-8). |
2849,9, Fo são constantes. O é uma matriz constante ortogonal
(O= o+, onde Ot é a transposta da conjugada). É uma matriz
de rotação. Estas transformações garantem o caráter euclidi-
àno dos espaços instantâneos que são os cortes tridimensionais
de acontecimentos simultâneos. Entretanto, a invariância sob o
grupo de Galileu não requer que a velocidade e a posição abso-
lutas tenham um sentido físico, como acreditava Newton.
Coleção CLE V.09
86 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

Se partimos dos axiomas de Newton, isto é, se os su-


pomos verdadeiros em sua forma vetorial, como Euler
o fizera, constatamos que eles detertinan ao mesmo
tempo a estrutura do espaço-tempo e os sistemas iner-
ciais de referência.
“Comecemos pelo primeiro ponto. As transforma-
ções de Galileu contêm, como subgrupo, o grupo das
rotações e das translações espaciais que juntas formam
o grupo das isometrias, isto é, o grupo de invariância
da geometria de Euclides. As distâncias espaciais en-
tre dois pontos em um sub-espaço tridimensional “ins-
tantâneo” (obtido pela projeção do espaço-tempo sobre
o espaço, para um dado tempo), constituído de acon-
tecimentos simultâneos, são invariantes sob as trans-
formações deste grupo. É preciso, pois, tomar como
padrões de comprimento (por definição, um padrão de
comprimento não muda de comprimento quando o des-
locamos?) objetos físicos que se comportem, pelo me-
nos aproximadamente, como invariantes da geometria
de Euclides. As barras rígidas usuais satisfazem a esta
propriedade*º.

29Ver Eddington (1921, p. 5).


“Uma barra rígida é um corpo que não está submetido a
nenhuma perturbação externa que afeta diferentemente mate-
riais diversos (por exemplo, uma variação de temperatura), ou
um corpo para o qual estas perturbações foram eliminadas por
correções (Reichenbach 1958a, p. 22). Se decidirmos chamar
“padrão de comprimento” uma barra rígida, adotamos aquilo que
Reichenbach chamou uma definição normal de congruência. Se
tomarmos por “padrão de comprimento” não uma barra rígida,
mas um corpo cujo comprimento varia em relação à definição
normal, isto é, se estabelecermos, por definição, que o compri-
mento deste corpo não varia (o que constitui a definição de um
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 87

- A invariância sob o grupo de Galileu impõe igual-


mente certas restrições quanto aos relógios admissíveis.
Se tomarmos a Terra como relógio e se postularmos
a igualdade dos períodos entre as passagens sucessi-
vas do meridiano. de Greenwich diante de uma estrela
fixa, veremos surgir discordâncias em relação àsà leis de
Newton em sistemas a respeito dos quais temos razões
de acreditar serem suficientemente isolados. Ao invés
de colocar em questão as leis de Newton, atribuiremos
os desacordos ao relógio escolhido; poderemos mesmo
dar uma explicação da diminuição do movimento da
Terra em um sistema inercial, dizendo que ela se deve
às marés? | e
Passemos aoo segundo ponto. As leis de Newton,
na forma vetorial apresentada acima, são verdadeiras
para uma classe definida de sistemas de referência, os
sistemas inerciais. Estes sistemas devem estar livres de
qualquer força externa. Em um sistema inercial, o pri-
meiro axioma, em particular, é verdadeiro: um corpo
livre descreve uma trajetória reta a uma velocidade
constante. É preciso distinguir aqui duas questões. A

padrão de comprimento), devemos abandonar a geometria de


Euclides e reformular as leis da mecânica. Neste caso, o padrão
de comprimento não seria mais um invariante da geometria de
Euclides. Segundo o ponto de vista adotado nesta obra, não nos
interessamos muito pela maneira através da qual as teorias ci-
entíficas são confirmadas (o que para Reichenbach necessita de
uma determinação prévia da geometria, posto que uma força é
o que provoca uma deformação geométrica), mas nos interessam
as características dos espaços-tempo correspondentes a cada uma
das teorias examinadas.
ELA respeito deste ponto, remetemos a Grinbaum (1973, pp.
66ss).
Coleção CLE V.09
88 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

primeira consiste em perguntar se existe pelo menos


um sistema inercial material ou físico. A segunda é
a seguinte: se supusermos que existe pelo menos um
sistema inercial, quantos existem?
A resposta à primeira questãoé negativa, já que
não existe nenhum sistema que possa escapar à gra-
vitação. À segunda é dada pelo grupo de Galileu: to-
dos os sistemas obtidos a partir de um sistema inercial
por uma transformação de Galileu são igualmente iner-
ciais. São os sistemas em movimento retilíneo uniforme
em relação a tal sistema inercial. Se existe um sistema
inercial, existe uma infinidade deles que lhe são dinami-
camente equivalentes. Esteé exatamente o princípio de
relatividade da mecânica clássica que podemos enun-
ciar da seguinte maneira: as leis da mecânica clássica,
na forma vetorial simples apresentada acima, são in-
“variantes sob o grupo das transformações de Galileu.
Este princípio de relatividade afirma uma equivalência,
dinâmica, ou ainda uma indiscernibilidade, no sentido
leibniziano, entre os elementos de uma classe de refe-
renciais. (Observemos que esta equivalência vale igual-
mente para sistemas não-inerciais relacionados por uma
transformação do grupo de Galileu). |
É necessário distinguir cuidadosamente dois aspec-
tos. Um aspecto cinemático, que concerne a relações
espaço-temporais, e um aspecto dinâmico, que con-
cerne às forças. A estrutura do espaço-tempo, isto é,
o conjunto de seus invariantes sob o grupo de Galileu,
constitui o aspecto cinemático, e visto que o tempo é a
quarta dimensão, este aspecto cinemático é puramente
geométrico. A equivalência dos sistemas inerciais cons-
tituio aspecto dinâmico. Isto significa que é impossível
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 89
discernir através de experiências mecânicas um sistema
inercial de um outro também inercial. |
De um ponto de vista geométrico, o espaço-tempo
sobre o qual age o grupo de Galileu é uma variedade
quadridimensional diferenciável (que admite em cada
ponto um espaço plano tangencial único) e que, tendo
sido ele munido de um sistema de coordenadas, é re-
presentado pelo produto cartesiano T x E, onde T (o
tempo) é isomórfico a R,e E (o espaço), a R$. Há.
um tempo absoluto; a distância temporal entre dois
pontos(-acontecimento) quaisquer é invariante. Mas
a distância espacial entre dois pontos só é definida |
se eles pertencem a subespaços, “cortes” tridimensio-
nais simultâneos. Isto implica que não podemos fa-
lar de posição nem de velocidade absolutas (invari-
antes) neste espaço-tempo, contrariamente ao que o
próprio Newton pensava. Chamamos o espaço-tempo
da mecânica clássica galileano (Weyl 1922, pp. 116 ss),
quase-newtoniano (Earman 1970, p. 291) ou neoneuw-
toniano (Sklar 1974, pp. 202-5)%2. Seguiremos aqui
sobretudo a apresentação de Earman. |
O tensor métrico g; (2, k = 1,2,3), simétrico (gi =
gk:), define a estrutura métrica do espaço. Em virtude
da relação:

ds = (gudzida*)!/? (2.3.6)
32Ver também Stein (1967). Para uma exposição mais técnica,
pode-se consultar Havas (1964) e Friedman (1983, pp. 87-91). .
“Segundo a convenção de Einstein, a soma se efetua sobre
os índices que aparecem ao mesmo tempo em cima e em baixo.
O que resulta em: ds = (gudzldr! + goade? dx? + gasde? dr? +
2gr;de! de? + Qgoade? dr? + 2ga;drda!)!/2,
Coleção CLE V.09
90 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

podemos calcular a distância espacial d(A, B) entre


dois pontos A(x!, 2º, 7º)e B(x!,x?, xº) integrando:

d(A, B) = [ds E a
Para o espaço euclidiano, é possível encontrar um sis-
tema global de coordenadas (para o espaço em sua to-
“talidade) tal que gx = 6; (com dk = lsei=ke
ô»=0sei£k)emtodo ponto:

Este sistema é o sistema de coordenadas cartesia-


nas no qual temos o teorema de Pitágoras em sua forma
habitual. Em um sistema de coordenadas cartesianas,
“podemos calcular a distância entre dois pontos a partir
das diferenças dos valores de suas coordenadas, utili-
zando o teorema de Pitágoras. Esta forma diagonal da
métrica 6; é invariante sob o grupo de Galileu. Temos:

ds? = (dal? + (do? 4 (da?


Por razões de comodidade, podemos sempre esco-
lher um outro sistema de coordenadas: por exemplo,
um sistema de coordenadas polares, sem que a geome-
tria seja afetada por esta transformação. Um espaço-
tempo plano assim permanece, qualquer que seja o sis-
tema de coordenadas. Mas, em coordenadas polares, o
tensor métrico não se reduz mais a seus componentes
diagonais (ver seção 4.6.1). |
Coleção CLE V.09
A Mecânica a 91

Uma geodésica (o caminho : mais curto) é definida


pela equação: |

O que resulta no caso euclidiano em um sistema de co-


ordenadas cartesianas:

of(ndeidotr=0 (238)
Esta última equação admite como solução em duas di-
mensões:

da” —= a, de onde:
Zi pd =o az* +»,

o que define uma família de linhas retas euclidianas.


Para o tempo, é igualmente possível definir uma
métrica (Earman 1970, p. 290) com o auxílio da qual
calculamos a distância temporal entre dois aconteci-
mentos quaisquer. - Em um sistema de coordenadas
cartesianas, o intervalo temporal é simplesmente a di-
ferença das coordenadas temporais. Não existe métrica
quadridimensional não-singular?!
À conexão entre o tempo e o espaço é realizada no
espaço-tempo quase-newtonianc, não com uma métrica,
mas com o auxílio do que chamamos a conexão afim
[ uv?., que define uma noção menos forte que a relação
de congruência: a relação de paralelismo. Um caminho

34Uma métrica não-singular é tal que a distância entre dois


pontos se anula necessariamente se estes pontos coincidem. Ver
Earman op. cit., p. 290.
Coleção CLE V.09
92 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

mais reto, isto é, uma linha paralela a si mesma, obe-


dece à seguinte equação inteiramente geral (invariante
sob o grupo dos difeomorfismos)*

Pg"pa dat do”


“do =t
Duo dg das O O (An ,2,8) (2.8.8)
0,1a
escrita para um sistema de coordenadas quaisquer q"
(não necessariamente cartesianas) (u designa um parâ-
metro aroitrAno ao longo da linha). Se o espaço-tempo
é planoºé , existe um sistema de coordenadas globais
para o qual os componentes da conexão afim (os [2,)
se anulam em todo ponto. A equação (2.3.9), para os
componentes espaciais, e se tomarmos como parâmetro
o tempo, torna-se:

az |
Porténto, dE E A já que m é uma constante:


dz =mêe
| = Cc.

A introdução da massa nos leva à dinâmica. Se o


espaço-tempo ê munido de uma conexão afim TÁuv» Se
eleé plano e se acrescentarmos a condição de que as
trajetórias dos corpos livres são as linhas mais retas,

35Seguiremos aqui a convenção que consiste em designar os


índices espaciais (3 dimensões) por letras latinas i, j, k, ...
e os índices espaço-temporais (4 dimensões) por letras gregas
(A, 4, v,...)].
36 Isto é, se o tensor de Riemann se anula (ver seção 4.4).
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 93

um sistema inercial é realizado por um sistema de re-


ferência no qual os Na se anulam; de fato em um tal
sistema, a lei de inércia na forma simples, vetorial, é
válida. Como a constante € é arbitrária, não podemos
falar de velocidade nem de posição instantâneas: todo
sistema em movimento retilíneo uniforme (v = c) em
relação a um sistema inercial é igualmente inercial; o
mesmo ocorre se mudarmos a origem do sistema.
A estrutura inercial, que é uma noção dinâmica, é
constituída pelas trajetórias livres. A estrutura afim,
que é uma noção geométrica, é constituída pelos ca-
minhos mais retos. Estas duas estruturas, conceitu-
almente distintas, coincidem no espaço- tempo quadri-
dimensional quase- -newtoniano. Neste sentido, já te-
mos, portanto, uma geometrização dai inércia, mesmo
na ausência da métrica espaço-temporal?” Isto signi-
fica que um caminho espaço-temporal mais reto é igual-
mente a trajetória possível de uma partícula livre e vice
versa. op |
Com base em uma métrica espacial e em uma métri-
ca temporal, temos a seguinte situação. Uma trajetória
espacial reta (e euclidiana) não é necessariamente uma
trajetória inercial, já que um corpo pode estar acele-
rado ao longo de uma linha reta. Ao contrário, uma
trajetória circularé, ipso facto, não inercial: isto cons-
titui o ponto de partida do argumentó de Newton à
favor do espaço absoluto. Se uma trajetória não é uni-
forme, elaé igualmente, ipso facto, não-inercial: o que
pode servir para fundamentar a existência do tempo

37 Agradeço ao Professor Robert Debever por ter chamado mi-


nha atenção sobre este ponto, assim como sobre os trabalhos de
Élie Cartan (1924, 1925) e de A. Trautman (1964).
Coleção CLE V.09
94 - À Imérciae o Espaço-Tempo Absoluto

absoluto. Mas um movimento uniforme, como um mo-


vimento circular uniforme, pode ser não-inercial.
Se a conexão afim não permite definir uma posição
ou uma velocidade absoluta (invariante), ela permite,
entretanto, definir uma aceleração absoluta:

pio dv? | dq”


= Ta +17) pu” v! H=——o]. (2.3.10)

Esta equação, como a equação (2.3.9), é invariante para


o conjunto das transformações diferenciáveis: ela vale
também para sistemas não-inerciais assim como para
sistemas inerciais. Em um sistema inercial de coorde-
nadas cartesianas, temos, para os componentes espaci-
ais:
Rose é — AR
a
dt dt?
Vemos imediatamente que a aceleração é invariante
para o conjunto dos sistemas inerciais. A segunda lei
se escreve: É o |

| F'=ma'
| = nes
dt? .

À estrutura afim do espaço-tempo e as estruturas mé-


tricas separadas para o espaço e o tempo, de um lado,
e a equivalência dinâmica dos sistemas inerciais, de ou-
tro, são como as duas faces de uma mesma moeda: am-
bas decorrem da invariância dos axiomas sob o grupo de
Galileu. Na mecânica clássica, o espaço-tempo vazio,
no qual a conexão afim é em toda parte nula, constitui
um sistema inercial. Toda transformação deste espaço-
tempo por um elemento do grupo de Galileu resulta
igualmente em um sistema inercial.
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 95

2.3.2 A rotação e as forças de inércia

Retomemos, agora, a experiência, mecanicamente


mais simples que aquela do balde em rotação, dos dois
globos, ou mesmo de um único globo girando em torno
de um ponto fixo, por exemplo, um prego, ao qual a
corda estaria presa. Esta exerce sobre o globo uma
força Fa (ação) centrípeta que modifica constantemente
a direção, mas não a grandeza; da velocidade, e isto em
conformidade com a segunda lei:

Fa=mã

Esta ação suscita uma reação igual em grandeza e em


direção, mas em sentido oposto e de ponto de aplicação
distinto, segundo a terceira lei:

Fr = Fa =-ma . (2.3.11)

-—. e
—s A.
4 nicemf
RR: 2 E FR
E FA

Figura 2.4
Coleção CLE V.09
96 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

Vimos que, para Newton, a força de distanciamento do


centro (a força centrífuga) é uma força interna, uma
força de inércia (vis inertiae) que provém da reação
que o corpo opõe a toda solicitação externa que tenda
a desviá-lo de seu movimento inercial. À equação acima
(2.3.11) fornece, portanto, a expressão da força de inér-
cia F'j: | |
7 Fr=-maã. (2.3.12)
O globo exerce sobre a corda uma força centrífuga
Fa, igual e oposta à força centrípeta Fy exercida pela
corda sobre o globo. As duas forças não agem sobre o
mesmo corpo, por exemplo, o globo: do contrário elas
se anulariam e o globo não estaria mais acelerado. O
mesmo ocorre na origem: a corda exerce sobre o ponto
O (o prego) uma força F, p igual e oposta à força F,
exercida pelo prego sobre a corda.

Fa=-Fa
F=-F,
A ausência de velocidade radial (ao longo do raio
realizado fisicamente pela corda) resulta das condições:

F,=-Fa

Estas condições não são impostas pela lei de ação e


reação (que vale também para os sistemas não-estacio-
nários), mas caracterizam o estado de equilíbrio esta-
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 97

cionário do sistema: se FR > Fr 4» O Prego é arrancado.


Podemos concluir que:

Todas estas forças têm, pois, como grandeza (ou valor


mu 2
absoluto) a quantidade — (onde v designa a gran-
r
deza da velocidade tangencialà trajetória circular).

Gostaríamos, agora, de tentar dissipar uma con-


fusão frequente, tanto entre os físicos quanto entre os
filósofos, a respeito das forças fictícias (aparentes ou
ainda pseudoforças), das forças não-reais e das forças
de inércia.
Sigamos, no momento, Resnick e Halliday (1966, p.
121) e Feynman et al. (1968,I 812-4), que entendem
por força real uma força à qual se pode atribuir uma
origem entre os corpos observáveis. Uma força fictícia
aparece quando escrevemos as equações do movimento
em um sistema não-inercial; ela desaparece quando vol-
tamos ao sistema inercial. | |
"* "Tomemos, por exemplo, uma cabine presa a um
cabo e em rotação uniforme em um sistema inercial S.
Seja 9” um sistema de referência não-inercial solidário
à cabine. Suponhamos que em S' alguém, situado em
A (ver figura 2.5), segure na mão uma bola de massa
m.
Coleção CLE V.09
98 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

se
K
C

AN
S
NS .
BY

o!

R
| -

A /
en
S'

Figura 2.5

No sistema inercial S, a bola, mantida a uma dis-


tância R do centro, descreve uma trajetória circular
AB. A equação do movimento em S se escreve:

Fa=mã .

F' descreve a ação da mão sobre a bola, isto é, a


força que mantém a bola sobre a trajetória circular não-
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica - 99

inercial. Em S”, ao contrário, a bola está em repouso e


sua equação do movimento se escreve:
2
Fa+— Er =mãa=0.
r
Se soltarmos a bola em B, ela descreverá em S um
movimento retilíneo uniforme na direção da tangente
em B ao círculo de raio R. No sistema inercial S, a
equação do movimento da bola a partir de B se escreve:

ma=0.
Mas, em S” a bola é animada por um movimento
uniformemente acelerado do centro para a periferia.
Soltando a bola, suprimimos a força F4. Em S”, tudo
O ca
ocorre como se a bola sofresse a ação de uma força F,
que seria responsável pela aceleração:
Rise mu? - o
PF =- Cp=mã .
r
Quando o movimento é não-uniforme no sistema iner-
cial, eleé uniforme no sistema não-inercial e vice versa.
É preciso, pois, distinguir cuidadosamente dois movi-
mentos:

1. O movimento não-inercial (circular) da bola no


sistema inercial $, que é uniforme (repouso) no
sistema não inercial 9”. (Em um outro sistema
“não-inercial, a bola não está necessariamente em
repouso).
2. O movimento inercial da bola no sistema iner-
“cial, que deve ser não-uniforme no sistema não-
inercial (em virtude do grupo de Galileu) e que é
Coleção CLE V.09
100 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

interpretado no sistema não-inercial, em analogia.


com a formulação habitual da segunda lei, como
o resultado de uma força radial fictícia ou apa-
rente, dirigida para a periferia e cuja expressão
matemática é a mesma que aquela da força FR
(a força centrífuga). É por isso que chamamos
igualmente esta força fictícia de força centrífuga.

No segundo movimento (de B em C') é evidente que


a força centrifuga é inteiramente fictícia. Seu apareci-
mento deve-se simplesmente ao fato de considerarmos o
movimento em um sistema não-inercial e de querermos
conservar a forma da segunda lei. Decidimos, então,
mu?
chamar de força o termo — Er enquanto que, na
r
realidade, não existe força alguma.
Em contrapartida, no primeiro movimento (de 4 em
B), a força centrífuga, e mesmo que não pudéssemos
atribuir-lhe uma fonte observável, é bem real: ela é
a força de reação à ação exercida sobre a bola pela
mão do observador situado na cabine em rotação. Esta
força centrífuga, do mesmo modo que a ação da mão,
“existe tanto no sistema inercial quanto no sistema não-
inercial. |
Esta força centrífuga, que é uma força de inércia no
sentido de Newton, tem efeitos bem reais. O observa-
dor na cabine está perfeitamente consciente do esforço
que deve realizar para que a bola “não escape pela tan-
gente.” E um observador em S pode se dar conta da
presença da força centrífuga pela deformação que a bola
imprime à mão.
As deformações espaciais são invariantes quando
passamos de um sistema de referência inercial a um sis-
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 101

tema não-inercial. A extensão de uma corda, a conca-


vidade da água, o achatamento da Terra nos pólos, etc.,
são observáveis por todos os observadores, qualquer
que seja seu estado de movimento. As deformações
geométricas têm, pois, implicitamente, um valor obje-
tivo (no sentido de Weyl 1963, p. 123).
E é justamente porque a força centrífuga provoca
efeitos observáveis e reais (presentes no conjunto dos
sistemas de referência) que seu aparecimento pede uma
explicação diferente de um simples “passe de mágica”,
a saber, a passagem de um sistema de referência a
um outro. Newton, Leibniz e Euler não se enganaram
quanto a isto, não mais que Mach e Einstein. Citemos
aqui Adler, Bazin, Schiffer:
As forças aparentes eram, em última análise, bem
reais. Um rotor que explodisse causaria danos con-
sideráveis, mesmo que a força centrífuga que o ti-
vesse destruído fosse apenas aparente. (1975, p.
3)
Na realidade,
as forças centrífugas, que são a causa
de tais efeitos, não são forças aparentes. Se conside-
rarmos que as forças de inércia são forças fictícias, en-
quanto que a gravitação é uma força real?º, é impossível
compreender o princípio de equivalência, que se encon-
tra no fundamento da teoria da relatividade geral, como
veremos mais adiante (seção 4.1).
38Feynman, que faz da inércia uma pseudoforça, é perfeita-
mente coerente quando diz: “Uma característica muito impor-
tante das pseudoforças é que elas são sempre proporcionais às
massas; isto é igualmente verdadeiro para a gravidade. À possi-
bilidade existe portanto que a própria gravidade seja uma pseu-
doforça”. (1963, I 812-5)
Coleção CLE V.09
102 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

Para evitar tais confusões, propomos introduzir as


seguintes definições.

1. Uma força que tem efeitos geométricos observá-


veis em todos os sistemas de referência é real.

2. Uma força real tem sempre uma fonte. Quando


esta fonte é um (ou vários) corpos observáveis, a
força é externa.

3. Se nenhuma fonte externa pode ser atribuída como


a origem de uma força, a força é interna: ela tem
sua fonte no espaço absoluto.

4. A força de inércia é ao mesmo tempo real e in-


terna.

A força de inércia real está, na verdade, presente


nas equações do movimento, mesmo em um sistema
inercial. Podemos, de fato, reescrever o segundo axi-
oma: |
Fa=-Fj=mã .
Isto corresponde ao que chamamos algumas vezes de
redução da dinâmica à estática: a soma total das forças,
externas e intérnas, é nula. asi
A mecânica newtoniana continua Ends válida em
um sistema não-inercial. Neste caso, a força de inércia
adquire uma forma mais complicada. Podemos mos-
trar (Weinberg 1974) que em três dimensões obtemos
a forma geral:

dv'*
vio! (1,9,k = 1,2,3).(2.3.13)
Fa ="
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 103

Esta equação, como a equação 2.3.9, é geralmente co-


variante: ela conserva sua forma sob o grupo das trans-
formações diferenciáveis. Nesta equação, o termo à es-
querda é à força externa, o segundo termo do membro
à direita representa as forças fictícias, enquanto que a
força de inércia se escreve:

Fi= md +Ti, o) (2.3.14)

Quando uma bola rola sobre um carrossel, ela está sub-


metida, do ponto de vista deste sistema não-inercial, à
força externa (que, neste caso, é devida ao atrito), à
força centrífuga e a uma força que é sempre perpen-
dicular à velocidade da bola em relação ao carrossel:
a força de Coriolis. Do ponto de vista do observador
situado no solo, a bola está submetida apenas a uma
força externa, e a força de inércia se escreve:

Fr=-mã , (2.3.12)

onde q é exatamente a aceleração da bola no sistema


inercial.

2.3.3 A explicação da experiência do balde

Retornemos,-agora, ao problema da explicação do


aparecimento das forças de inércia, ao mesmo tempo
internas e reais. Se tomarmos estas forças como forças
puramente fictícias, sua presença se explica pela pas-
sagem de um tipo de referencial (inercial) a um ou-
tro (não-inercial); afinal de contas, trata-se apenas de
Coleção CLE V.09
104 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

um simples efeito de perspectiva. Mas se estas forças


são reais, devemos atribuir-lhes uma origem real, pois
uma entidade puramente ideal não pode ter efeitos re-
ais. Sobre este ponto Newton e Mach estão de acordo.
Mas Mach recusa-se a considerar as forças de inércia
como forças internas e procura explicá-las a partir de
um movimento em relação ao conjunto das massas do
universo, como veremos mais adiante (seção 4.5.1), o
que requer a elaboração de uma nova mecânica. Se per-
manecermos no âmbito da mecânica clássica, abrem-se
três possibilidades:

1. As forças de inércia não são reais. São forças


puramente fictícias que aparecem quando passamos de
um sistema inercial a um sistema não-inercial. Mas vi-
mos que é difícil atribuir um caráter puramente fictício
às forças de inércia. Podemos, então, considerar que as
forças de inércia são reais, sem nos preocuparmos em
explicá-las, isto é, em encontrar uma entidade real que
seja sua causa. A maior parte dos físicos dedicados
à mecânica nos séculos XVIII e XIX (Clairaut, Pois-
son, Lagrange, Hamilton, Coriolis, etc.) buscavam a
resolução de problemas práticos no quadro da mecânica
clássica, sem se interessarem pelas questões fundamen-
tais do sistema de inércia e do espaço absoluto. Bastava
que um sistema de referência, cuja origem coincidisse
com o centro de massa do sistema solar, e cujos eixos
fossem fixos em relação às estrelas, realizasse aproxi-
madamente o ideal do sistema inercial.

2. As forças de inércia são reais e seu apareci-


mento se explica a partir de um movimento acelerado
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 105

em relação a um sistema inercial, ao mesmo tempo ma-


terial e livre de toda força, como o corpo « de C. Neu-
mann (1870). Isto significa considerar a força de inércia
como uma força externa, atribuindo-a a um movimento
acelerado em relação a um dado corpo externo, muito
particular, é verdade, já que ele deve estar infinita-
mente afastado de todas as massas do universo, sem o
que ele não estaria livre. É interessante observar que o
próprio Newton considera esta possibilidade.
(...) é possível que em regiões distantes das estre-
las fixas, ou talvez mais além, exista algum corpo
absolutamente em repouso?º.

Mas esta solução pressupõe a existência de uma in-


teração à distância entre o corpo a e os corpos em
movimento acelerado, uma interação que é completa-
mente incompreensível na mecânica clássica e necessi-
taria, como a proposta de Mach, da elaboração de uma
nova mecânica.
De fato,é preciso distinguir aqui duas questões. A
primeira é a da determinação de um sistema de re-
ferência inercial. O corpo a permite, em princípio (e
somente em princípio, porque na prática escapa tanto
à observação quanto o espaço absoluto de Newton), re-
solvê-la: um sistema de inércia está, por definição, em
movimento retilíneo uniforme em relação ao corpo a.
À segunda questão é a da origem das forças de inércia,
e o corpo a não permite responder a ela.

3. As forças de inércia são ao mesmo tempo reais


e internas. Para Newton, a entidade responsável por
39Ver Principia, Escólio das definições.
Coleção CLE V.09
106 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

seu aparecimento é o espaço absoluto. Se postularmos


a existência do espaço absoluto, respondemos não ape-
nas à primeira questão, posto que o espaço absoluto
constitui um sistema inercial, mas respondemos tam-
bém à segunda.

A explicação newtoniana suscita, todavia, uma séria


dificuldade. As forças de inércia resultam de um mo-
vimento acelerado em relação ao espaço absoluto; de-
tectá-las por meio de seus efeitos permite, então, di-
zer que um corpo está em movimento acelerado em
relação ao espaço absoluto, isto é, segundo as definições
de Newton, que ele se desloca de um lugar absoluto a
um outro”, A velocidade absoluta ainda que não di-
retamente observável, recebe um significado físico pela
mediação da aceleração.
Ainda que Newton seja co-inventor do cálculo infi-
nitesimal juntamente com Leibniz, parece que ele ne-
gligenciou, no contexto de sua discussão do espaço ab-
soluto, a distinção entre aceleração e velocidade ins-
tantâneas, de um lado, e aceleração e velocidade médias
de outro. É possível mostrar facilmente que um corpo
pode possuir ao mesmo tempo uma aceleração instan-
tânea diferente de zero e uma velocidade instantânea
nula. Uma pedra lançada na vertical possui, no topo
de sua trajetória, uma velocidade instantânea igual a
zero, mas sua aceleração é diferente de zero, visto que
em todo ponto da trajetória se exerce uma força de gra-

40Um corpo em rotação em torno de um eixo de simetria


esférica ou cilíndrica não muda globalmente de lugar no espaço
absoluto; apenas suas partes estão em movimento absoluto.
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica | 107

vitação'!. Supomos aqui que a região terrestre, onde


se realiza esta experiência, é aproximadamente um sis-
tema inercial. Suponhamos, além disso, que ela esteja
em repouso absoluto. Neste sistema, a pedra, no topo
de sua trajetória, está em repouso instantâneo abso-
luto. Mas, para Newton, como a aceleração não é nula,
efeitos inerciais estão presentes no nível da pedra“?
Não podemos, pois, explicar o aparecimento destes efei-
tos por um movimento absoluto, mesmo acelerado, por-
que um movimento é, para Newton, o deslocamento de
um lugar absoluto a um outro.

Va

Figura 2.6

41 Ver Resnick e Halliday (1966, p. 39).


“2 Isto não é totalmente exato, devido ao princípio de equi-
valência. Situamo-nos aqui no quadro da física newtoniana.
Coleção CLE V.09
108 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

A introdução do espaço-tempo quase-newtoniano


permite resolver esta dificuldade. Neste espaço-tempo,
a noção de velocidade absoluta é desprovida de signi-
ficado. Em compensação, é possível definir uma ace-
leração absoluta (2.3.10). Os efeitos inerciais são ex-
plicados por um desvio em relação às linhas mais re-
tas do espaço-tempo, definidas pela equação (2.3.9). À
exigência da explicação dos efeitos de inércia no qua-
dro da mecânica clássica leva a afirmar a existência de
um espaço-tempo absoluto munido de uma estrutura
afim. Este espaço-tempo difere do espaço-tempo de
Newton, no sentido de que este último supunha implici-
tamente que se podia definir uma velocidade absoluta,
o que pressupõe a possibilidade de medir distâncias en-
tre pontos de espaços tridimensionais não-simultâneos.
Ora, como vimos, isto não é exigido pela validade das
leis da mecânica e seu grupo de invariância, o grupo de
Galileu.

2.4 O Espaço-Tempo
Quase-Newtoniano Absoluto

a) O sentido matemático

As propriedades e estruturas absolutas do espaço-


tempo são aquelas que são invariantes sob as trans-
formações de Galileu (2.3.4 e 2.3.5). Uma rápida ob-
servação destas transformações permite constatar que
existe sempre uma transformação que possibilita passar
de um ponto do espaço-tempo a um outro, sem modi-
ficar as propriedades físicas. Não existe ponto privile-
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 109

giado, de um ponto de vista físico: o espaço-tempo é


homogêneo. O resultado de uma medida física não de-
pende da localização espaço-temporal. Depende ape-
nas do estado dinâmico do sistema de referência (iner-
cial ou não) no qual a medida é efetuada.
O espaço (3-dimensional) é isotrópico; os axiomas
de Newton conservam sua forma sob as transformações
T — Oz, que são um subgrupo do grupo de Galileu e
que são exatamente o grupo das rotações euclidianas.
Podemos mostrar que a homogeneidade do tempo, a
homogeneidade do espaço e a isotropia do espaço ga-
rantem a conservação da energia, do momento linear
(quantidade de movimento) e do momento angular, res-
pectivamente. Vemos ainda aqui que o espaço-tempo
quase-newtoniano serve de fundamento para as leis da
mecânica e garante sua validade. E
Convém aqui especificar, inspirando-se ém Hermann
Weyl, a relação entre a homogeneidade e a invariância
sob um grupo de transformações.
Podemos agora caracterizar em termos precisos o
que se entende pela igualdade objetiva ou a “in-
“discernibilidade” de todos os pontos no espaço eu-
clidiano. Isto quer dizer que, dados dois pontos
quaisquer po € p1, existe sempre um automorfismo
transportando po em pi. (1963, p. 73)

Se Newton tivesse tido razão ao atribuir ao espaço


um centro absoluto 0, o verdadeiro grupo T% de
automorfismos consistiria nestas transformações do
grupo euclidiano T dos automorfismos que deixam
0 fixo; o grupo To de Newton é um subgrupo do
grupo T de Euclides. (Ibid., p. 74)

Neste último caso, dois pontos quaisquer não estão


Coleção CLE V.09
110 - A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

necessariamente relacionados por uma transformação


de To, já que se um destes pontos é 0, este ponto não
pode ser enviado sobre um outro ponto. Existe uma
diferença ob jetiva entre o ponto O e os outros pontos
do espaço?*. Entretanto, esta invariância postulada por
Newton sob o grupo Iç não acrescenta nada, de um
ponto de vista físico ou dinâmico, à invariância sob o
grupo mais extenso T, visto que é impossível constatar
através de experiências físicas se estamos em 0.
Weyl amplia o sentido da homogeneidade quando
diz: | |

Um grupo T de transformações descreve, por as-


sim dizer, em que medida nosso campo pontual é
homogêneo. (1963, p. 73)

De fato, um grupo T defineo que é modificado e o


que não o é quando passamos de um ponto para ou-
tro através de uma transformação do grupo. O espaço
é homogêneo em relação a uma propriedade (ou uma
relação) se esta última é invariante quando passamos
de um ponto a outro através de um elemento do grupo.
Daqui em diante, entenderemos sempre por homoge-
neidade o que Weyl denomina igualdade objetiva ou
indiscernibilidade. |
“A coincidência espaço-temporal é uma relação inva-
riante sob o conjunto das transformações contínuas e,
a fortiori, das transformações diferenciáveis. O mesmo
ocorre no que diz respeito à contigúidade (coincidência

43Newton, entretanto, mesmo se afirma, a título de hipótese


(e segundo ele não-verificável), que o centro do mundo está em
repouso em relação ao espaço absoluto, estava consciente do
princípio de relatividade (Corolário V dos axiomas).
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 11

espacial) e a simultaneidade (coincidência temporal)


em um mesmo ponto. Em contrapartida, a simulta-
neidade em pontos espacialmente distintos não é um
invariante do grupo das transformações diferenciáveis;
mas é um invariante do grupo de Galileu. Isto permite
conferir um significado absoluto à separação do espaço
e do tempo. O conjunto dos pontos simultâneos forma
uma variedade tridimensional, um espaço instantâneo
atravessado por “fibras” unidimensionais que não se
cruzam e que atravessam os espaços sucessivos em um
único ponto. Esta divisão não é afetada pelo estado de
repouso ou de movimento retilíneo uniforme do sistema
de referência no qual ela se efetua: a divisãoé a mesma
para todos os observadores inerciais.
Às estruturas métricas do espaço e do tempo são
separadamente invariantes sob o grupo de Galileu mas
não existe métrica espaço-temporal. Não é, pois, possi-
vel identificar a estrutura métrica (as geodésicas) com
a estrutura inercial (os trajetos das partículas livres).
De fato, esta última é definida geometricamente pela
estrutura afim (os caminhos mais retos) e não é possível
no espaço-tempo quase-newtoniano definir os compo-
nentes da conexão afim com a ajuda do tensor métrico
(visto que este tensor não é definido sobre o espaço-
tempo).
É importante observar que a equação (2.3.9) é inva-
riante para o conjunto das transformações diferenciá-
veis; ela permanece válida em um espaço-tempo curvo.
Entretanto, se considerarmos verdadeiros os axiomas
de Newton, somos obrigados a postular a existência de
um espaço-tempo para o qual existe um conjunto de
sistemas de coordenadas para os quais os componen-
Coleção CLE V.09
112 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

tes da conexão afim se anulam. Isto é independente


da escolha de um sistema de coordenadas cartesianas,
polares, etc., escolha que está sendo guiada por razões
de comodidade e não por razões dinâmicas. Este con-
junto de sistemas “privilegiados” de um ponto de vista
dinâmico constitui a classe dos sistemas inerciais. À
existência
de um espaço-tempo plano, munido de uma
estrutura afim quadridimensional, de uma métrica es-
paéial euclidiana e de uma distância temporal invari-
anteé, pois, uma condição da possibilidade da validade
dos axiomas de Newton em sua forma vetorial.

Quanto aos movimentos absolutos no sentido mate-


mático, a situação é a seguinte. Um movimento iner-
cial, livre de toda força, permanece inercial, não impor-
tando em que sistema de referência. Em um sistema
inercial, eleé retilíneo uniforme e esta característica é
evidentemente invariante sob o grupo de Galileu. Do
mesmo modo, um movimento não-inercial, resultando
da presença de forças externas, conservará esta carac-
terística em todos os sistemas de referência. Em um sis-
tema inercial, ele terá necessariamente uma aceleração
diferente de zero, que será idêntica para todos os sis-
temas inerciais. Tudo isto resulta da invariância da
aceleração sob o grupo de Galileu. Em compensação,
a velocidade (exceto a velocidade infinita) não é inva-
riante sob as transformações deste grupo. Em resumo,
a aceleração é absoluta e a velocidade (assim como a
posição) são relativas no sentido matemático.
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 113

b) O sentido lógico

Earman afirma:
(...) temos a aceleração espacial absoluta no con-
texto do espaço-tempo quase-newtoniano; a ace-
leração não deve, pois, ser definida como uma ace-
leração em relação ao espaço absoluto. Acredito
que a razão pela qual tenha sido tão dificil no-
tar esta objeção decorre do fato de Newton e, ao
mesmo tempo, seus críticos, terem interpretado a
doutrina da relatividade do movimento de tai ma-
neira que os valores de Y, assim como os de X, na
fórmula “X está em movimento em relação a Y”,
tenham sido tomados entre os objetos!*. Logo, se
X está em aceleração absoluta, ele deve estar ace-
lerado em relação a um objeto — para Newton o
“objeto” é o espaço absoluto; mas se X está ace-
lerado em relação a um objeto Y, X deve ter uma
posição e uma velocidade em relação a Y. (1970,
p. 297)

Sklar sustenta que, do ponto de vista do espaço-


tempo neonewtoniano, um corpo absolutamente acele-
rado está acelerado em relação a uma entidade, mas
que esta entidade de referência não tem o estatuto de
uma coisa, como possui o espaço absoluto de New-
ton. Qual é esta entidade de referência da qual Sklar
fala? Só pode ser o sistema de relações, os na, que
definem a estrutura afim. À aceleração é apenas um
desvio em relação aos caminhos espaço-temporais mais
retos, soluções da equação (2.3.9). Sobre o que é de-
finido este sistema de relações? Sobre o conjunto dos
4Earman faz referência aqui a um manuscrito não publicado
de Sklar que depois publicou um livro importante (1974) sobre
o tema.
Coleção CLE V.09
114 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

pontos do espaço-tempo. Temos, pois, duas possibi-


lidades. Ou postular a existência da estrutura afim,
do sistema de relações; ou então a existência de um
espaço-tempo substancial, no sentido lógico, sobre o
qual estas relações são definidas. Tanto uma, quanto
a outra destas possibilidades, é legitima do ponto de
vista da física clássica. Em contrapartida, a exigência
(filosófica) da explicação das forças reais de inércia nos
obriga a supor ao menos a existência da estrutura iner-
cial, ou melhor, do campo inercial (os r,) constante.
Se nos recusarmos a aceitar a ie tência dos pontos
do espaço-tempo e do espaço-tempo como substância,
encontramo-nos na desconfortável posição que consiste
em afirmar a existência de relações, sem com isto afir-
mar a existência dos termos colocados em relação. De
fato, o campo inercial é definido em toda parte sobre o
espaço-tempo, independentemente da presença ou não
de acontecimentos nestes pontos.

c) O sentido ontológico (metafísico )

Vimos (no Capítulo 1) que a questão do caráter


absoluto ou relativo do espaço, no sentido lógico, era
independente desta questão no plano ontológico. Esta
última não consiste, de fato, em perguntar pela con-
veniência de atribuir uma existência a um espaço
(-tempo) substancial ou a um sistema de relações, mas
em saber se, ao se supor esta existência, elaé depen-
dente ou não da existência de acontecimentos físicos.
À mecânica clássica, enquanto tal, não implica a e-
xistência de um espaço-tempo absoluto. Se por certas
razões, fundadas em uma exigência de inteligibilidade,
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 115

somos levados a afirmar a existência de um espaço-


tempo absoluto, sua existência não dependerá de ma-
neira alguma da existência de acontecimentos físicos.
Se inferirmos a existência de um espaço-tempo abso-
luto, da existência dos efeitos da inércia, isto não nos
obriga a fazer depender a existência da causa daquela
dos efeitos. Mesmo se concebermos o espaço como um
sistema de relações, somos levados, em função de uma
exigência de explicação, a afirmar a existência destas
relações, e esta será independente dos acontecimentos
físicos. | |

Poderíamos tentar fundamentar a estrutura inercial


na existência dos acontecimentos físicos segundo uma
forma inspirada em Weyl (1922). Esta estrutura se-
ria definida a partir das trajetórias dos corpos livres.
Ora, a noção de trajetória livre só tem sentido empírico
se soubermos de antemão que não existe força agindo
sobre o sistema, e isto não pode ser estabelecido sem
pressupor a verdade dos axiomas da mecânica e a noção
de sistema inercial, como Einstein percebeu bem (ver
seção 3.1), e, portanto, a estrutura do espaço-tempo
galileano. Quanto à via métrica, por meio das bar-
ras rígidas e dos relógios, preconizada por Reichenbach
(1958a), ela deve ser logo de início descartada, visto
que, na mecânica newtoniana, a estrutura afim não é
redutível à métrica. Além disso, mesmo se este fosse
o caso, como as barras rígidas e os relógios estão sub-
metidos a tensões devidas às acelerações nos sistemas
não-inerciais, deveriamos saber de antemão se estamos
em um sistema livre: reencontramos, assim, a circula-
ridade acima mencionada.
Coleção CLE V.09
116 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

d) O sentido físico

Lembremos que o espaço é absoluto no sentido físico


se nem suas propriedades, nem sua estrutura, são mo-
dificadas pelo comportamento dos objetos físicos. Na
mecânica clássica, reformulada no espaço-tempo, a si-
tuação permanece inalterada em relação à mecânica
de Newton. Continuidade, tridimensionalidade, homo-
geneidade, isotropia, estrutura afim, estrutura espacial
euclidiana, métrica temporal, tudo isto permanece inal-
terado frente às vicissitudes dos processos físicos no
universo. |

e) O sentido empírico

O espaço absoluto de Newton violava o princípio de


Berkeley: Esse est percipi. Como a mecânica clássica
não implica a afirmação de um espaço-tempo absoluto
meta-sensível, ela escapa a esta crítica. Entretanto,
não é incompatível com a mecânica clássica afirmar a
existência de uma tal entidade. Se o fizermos, será
em virtude de razões que ultrapassam o quadro desta
mecânica. Mas um tal raciocínio não confere a esta
entidade o estatuto de uma coisa acessível à percepção
sensível; muito pelo contrário. O mesmo vale para a
estrutura afim.
Como não podemos falar de posição e velocidade em
relação ao espaço absoluto no espaço-tempo galileano,
não é necessário nos preocuparmos com seu significado
empírico. As objeções de Leibniz não têm mais efeito
sobre a mecânica clássica. As posições e as velocidades
são determinadas em relação aos sistemas de referência,
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 117

inerciais ou não, encarnados por corpos observáveis.


Em compensação, a aceleração absoluta possui um
significado empírico, por meio dos efeitos de inércia de-
tectáveis por suas consequências geométricas: os des-
vios em relação à estrutura afim. Estes últimos têm um
valor objetivo universal, visto quea equação (2.3.9) é
invariante sob o grupo das transformações diferenciáveis
e é, pois, verdadeira para todos os sistemas de coorde-
nadas.

2.5 Conclusão:
O Alcance das Objeções
dos Relacionalistas Leibniz e Mach

Leibniz, como sabemos, admitia a distinção entre


movimento real e movimento aparente sem, com isto,
afirmar a existência do espaço absoluto. A mecânica
clássica neonewtoniana conserva, é claro, esta distinção
fundamental sob a forma do movimento acelerado e do
movimento não acelerado, mas sem que possamos falar
de posição ou velocidade em relação ao espaço absoluto.
Parece, portanto, que, pelo menos neste ponto, Leibniz
não teria encontrado nada para censurar na mecânica
clássica.
Há, entretanto, uma grande diferença entre a me-
cânica clássica e a mecânica leibniziana. De fato, para
Leibniz todos os sistemas materiais, sem exceção, po-
dem ser utilizados para determinar o movimento; em
contrapartida, existe uma diferença real, dinâmica, en-
tre os sistemas em repouso e.os sistemas em movimento,
estes últimos possuindo em si mesmos a causa de seu
Coleção CLE V.09
118 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

movimento. Para a mecânica clássica, a distinção en-


tre movimento acelerado e movimento não-acelerado
implica a divisão dos sitemas de referência em duas
grandes classes: os sistemas inerciais e os sistemas não-
inerciais. | |
Do ponto de vista da física clássica, é inconsistente
afirmar ao mesmo tempo a distinção entre diferentes
tipos de movimentos e a equivalência mecânica de to-
dos os sistemas de referência. Vista sob este aspecto,
a física de Leibniz parece contraditória. Mas não é
legítimo projetar as definições da mecânica clássica so-
bre a física leibniziana, para declarar em seguida que
esta última é contraditória. Pois as definições leibni-
zianas do movimento são diferentes das da mecânica
clássica e é em relação à às primeiras que é preciso ava-
liar a coerência interna da mecânica de Leibniz.
Para Leibniz, um corpo está realmente em movi-
mento em virtude de um princípio de dinamismo in-
terno, fundado em sua forma substancial. Para Leib-
niz, não existem forças externas: as substâncias não
agem umas sobre as outras e não se comunicam ace-
lerações. A ação externa aparente é apenas uma ilusão;
na realidade, ela resulta da harmonia pré-estabelecida.
Quando corpos parecem interagir, isto ocorre em vir-
tude da lei de desenvolvimento inscrita na forma subs-
tancial de cada um. Mas, por outro lado, não há sen-
tido algum em falar do movimento de um corpo em um
universo que fosse vazio. O movimento é sempre de-
terminado em relação a corpos, escolhidos de maneira
arbitrária.
Para saber se o movimento de um corpo, em relação
a corpos dados, é real, é preciso observar se à causa do
Coleção CLE V.09
A Mecânica Clássica 119

movimento lheé interna. Se é, podemos dizer que o


corpo está em movimento real. Como, para Leibniz,
as forças centrífugas são causas e não efeitos do mo-
vimento, elas são, como as outras forças, fundadas na
forma. substancial ou enteléquia, que é, para Leibniz,
a característica mais real da substância. Leibniz quer
explicar a concavidade da água. na experiência do balde
sem recorrer ao espaço absoluto. Entretanto, a forma
substancial não tem, certamente, significado empírico
mais claro que o espaço absoluto; além disso, esta noção
não possui expressão matemática. . |
Os grandes sucessos da física newtoniana, como a
previsão do retorno do cometa Halley, venceram a re-
sistência dos partidários da física leibniziana. Deve-
se a Mach o mérito de ter tomado a chama relaci-
onista das mãos de Leibniz, apesar de seus pressu-
postos filosóficos, empiristas, serem radicalmente di-
ferentes. Se queremos eliminar todo elemento meta-
empírico, como o espaço absoluto ou o dinamismo in:
terno da substância, e, ao mesmo tempo, dar uma ex:
plicação satisfatória do fenômenos de inércia, é pre-
ciso elaborar uma nova teoria física na qual a estru-
tura afim, e portanto a conexão afim, seja completa:
mente determinada pela distribuição, em princípio ob-
servável, da matéria-energia. À estrutura afim reti-
raria, então, sua realidade daquela da matéria-energia.
Além disso, a conexão afim, que é, primeiramente, uma
noção puramente geométrica, permite, como vimos, de-
terminar sem ambiguidade os sistemas inerciais (um
sistema inercialé um sistema no qual o primeiro axi-
oma é válido e a conexão afim se anula), o que permi-
Coleção CLE V.09
120 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

tiria eliminar o problema da circularidade empírica da


determinação de um sistema inercial.
Sabemos que Mach não pôde elaborar esta nova te-
oria. Examinaremos na terceira parte deste livro em
que medida a teoria geral da relatividade satisfaz às
exigências machianas. Mas, antes disto, é preciso falar
do eletromagnetismo e da teoria da relatividade dita
restrita. | |
Coleção CLE V.09
Capitulo 3
O Eletromagnetismo e a Teoria
da Relatividade Restrita

31 O Éter

de o espaço absoluto é um conceito que pertence


à mecânica, o éter é um conceito primeiramente da
óptica e, em seguida, do eletromagnetismo. Newton ti-
nha elaborado uma teoria corpuscular da luz que per-
mitia dar conta dos fenômenos de reflexãoe refração.
Mas Huygens, um contemporâneo de Newton, tinha
proposto uma teoria alternativa, desta vez ondulatória,
capaz de dar conta dos mesmos fenômenos. Para Huy-
gens, as ondas luminosas, do mesmo modo que as ondas
aquáticas e sonoras, não têm uma existência própria,
independente da existência de um meio material que
lhes serve, de alguma maneira, de suporte; esta analo-
gia leva Huygens a pressupor a existência de um meio
material que preenche todo o universo, um plenum: o
éter luminífero. Para Newton, ao contrário, podiam
existir porções vazias de toda matéria no espaço abso-
luto, real e imaterial, e no qual os corpúsculos lumino-
sos se deslocam sem obstáculos! |
Durante o século XVIII, quando as experiências de
Fresnel e de Fizeau tinham falseado a teoria óptica de

INewton que, em princípio, não deveria recorrer ao éter,


utiliza-o em alguns casos (teoria dos acessos). Ver o artigo de
M.F. Tonnelat (1968) sobre o éter.
Coleção CLE V.09
122 Alérciaco Espaço-Tempo Absoluto

Newton, o éter luminifero de Huygens foi aceito como


um componente indissociável de uma teoria óptica.
No século XIX, Maxwell escreve as equações funda-
“mentais do eletromagnetismo. Em um procedimento
puramente teórico, ele deduz a existência de ondas ele-
tromagnéticas que, no vácuo , devem se propagar à ve-
locidade da luz. Hertz, em 1885, mostra que as ondas
eletromagnéticas de baixa frequência têm as mesmas
propriedades físicas que as ondas luminosas. Lebedew
mostra a recíproca: as ondas luminosas exercem sobre
os corpos uma pressão conforme às predições de Max-
well. As ondas luminosas e as ondas eletromagnéticas
têm as mesmas propriedades. A óptica era absorvida
pelo eletromagnetismo e o éter tornava-se o meio de
propagação não apenas das ondas luminosas, mas de
todas as ondas eletromagnéticas”.
Este éter possuía propriedades aparentemente con-
traditórias. Devia ser, ao mesmo tempo, muito sutil,
posto que não oferecia nenhuma resistência ao movi-
mento dos corpos, e muito rígido, posto que a veloci-
dade das ondas eletromagnéticas é muito elevada e que
a velocidade das ondas, sonoras, por exemplo, aumenta
com a rigidez do meio. Mas a luz, ao contrário das on-
das sonoras, é uma onda transversal. Ás variações tem-
porais dos campos elétrico e magnético são perpendi-
culares à direção de propagação. Esta particularidade
torna matematicamente muito difícil a elaboração de
uma teoria mecânica das vibrações de um éter tridi-
mensional. Todavia, estas dificuldades não pesavam
muito frente ao grande número de experiências que con-
2Para uma boa apresentação da história do conceito do' éter,
pode-se consultar d'Abro (1950).
Coleção CLE V.09
O Eletromagnetismo e a Relatividade Restrita 123

firmavam.a teoria de Maxwell, a existência das ondas


eletromagnéticas e, portanto, do éter, visto que a trans-
ferência de energia de um ponto a outro na ausência de
suporte material parecia inconcebível. (Hesse 1962, pp.
206ss) | - |
Além disso, o éter iria reacender as esperanças da-
queles que, completamente convencidos da existência
do espaço absoluto, eram incapazes de produzir a me-
nor evidência experimental de um movimento retilíineo
uniforme neste espaço. Pois o éter, apesar de ter sido
introduzido pela óptica e não pela mecânica, parece ser
um excelente candidato ao título de espaço absoluto.
Ele é, de fato, infinito, indivisível, contínuo, tridimen-
sional, penetrável e, sobretudo, era considerado como
um sistema inercial no sentido da mecânica clássica.
Einstein exprime de maneira muito clara a circula-
ridade inerente à definição do movimento inercial (ou,
de modo equivalente, do referencial de inércia) na me-
cânica clássica:

A fraqueza do princípio de inércia está no fato dele


girar em um círculo vicioso. Diz-se que uma massa
se move sem ser acelerada se ela está suficiente-
mente distante dos outros corpos, e só reconhe-
cemos que ela está suficientemente distante destes
corpos se ela se move sem sofrer aceleração. (1955,
p. 52) | :

A mecânica de Newton, ao contrário da mecânica


clássica, escapava, em princípio, senão na prática, desta
circularidade. De fato, Newton podia definir um sis-
tema inercial como um sistema em repouso ou em mo-
vimento retilineo em relação ao espaço absoluto. Um
tal sistema é, então, um sistema no qual as leis da
Coleção CLE V.09
124. A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

mecânica, em forma vetorial, são verificadas. No plano


conceitual, não existe aí nenhum círculo. Entretanto,
no plano experimental, é impossível detectar o repouso
ou o movimento retilíneo uniforme em relação ao espaço
absoluto com a ajuda de procedimentos puramente ci-
nemáticos, isto é, usando como recurso apenas os re-
lógios e as barras rígidas. Vimos que seria necessário |
recorrer às leis da dinâmica.
Se existisse um critério experimental não-dinâmico,
“por exemplo, óptico, para decidir sobre a inercialidade
de um sistema de referência, a mecânica poderia sair
de uma situação embaraçosa. Os físicos do século pas-
sado pensavam poder definir um sistema inercial como
um sistema em repouso ou em movimento retilíneo
uniforme em relação ao éter e, portanto, em relação
ao espaço absoluto. Isto pressupõe que saibamos se o
éter está em repouso em relação ao espaço absoluto, ou
ao menos se está em movimento retilíneo uniforme em
relação ao espaço absoluto, visto que este movimento
não tem incidência sobre sua inercialidade. Mas nada
nos assegura a priori que o éter é um sistema inercial,
e detectar seu caráter inercial é algo que se presta a
sérias dificuldades.
Primeiramente, o éter não é imutável, visto que é o
local de perturbações vibratórias. Estas perturbações
não afetam o que podemos chamar de seu estado fun-
damental, já que, uma vez tendo sido transmitida a
energia de um ponto a outro, o éter, perfeitamente
elástico, retoma seu estado anterior sem histerese, sem
dissipação de energia sob forma de calor, deformações,
etc.
Se o éter não estivesse globalmente em repouso ou
Coleção CLE V.09
O Eletromagnetismo e a Relatividade Restrita 125

em movimento retilíneo uniforme em relação ao espaço


absoluto, ele deveria ser o local de tensões mecânicas
que se traduziriam em diferenças observáveis nas fran-
jas de interferência dos raios luminosos que se propa-
gam em diferentes direções. Mas se o resultado de
tais experiências se revela negativo, podemos sempre
considerar que a rigidez do éter é muito grande e, em
consequência disto, nenhuma perturbação óptica de-
tectável poderia resultar.
Consequentemente, mesmo se as experiências do
tipo de Michelson e Morley tivessem dado um resul-
tado “positivo”, o problema do sistema inercial não te-
ria sido ainda assim resolvido, visto que não dispomos
de meio experimental para determinar o estado do mo-
vimento do éter. Como sabemos, nenhuma experiência
pôde pôr em evidência um movimento qualquer de um
corpo, a Terra, por exemplo, em relação ao éter. Mas
antes de discutir este ponto, é necessário especificar em
que sentido o éter é absoluto e em que medida ele po-
deria ter desempenhado o papel de suplente do espaço
absoluto. | |
-* Do mesmo modo como Newton tinha introduzido
o espaço absoluto com o objetivo de explicar certos
fenômenos, os fenômenos de inércia, Huygens recorreu
ao éter para dar conta dos fenômenos ópticos. À te-
oria ondulatória de Huygens, desenvolvida por Young
e Fresnel, permite fazer predições corretas para todos
os fenômenos (reflexão, refração) explicados pela teo-
“Tia corpuscular, mas também para certos fenômenos de
difração preditos por Poisson e observados por Fresnel,
como o aparecimento de um ponto brilhante no centro
da sombra projetada sobre uma tela por um disco de
Coleção CLE V.09
126 A Inércia eo Espaço-Tempo Absoluto

pequeno diâmetro. Por outro lado, Fizeau observa que


a luz se desloca nos meios refringentes a uma velocidade
mais baixa que no vácuo, contradizendo as previsões da
óptica corpuscular. | |
A teoria ondulatória concebia o éter como um meio
material, e, portanto, real, muito tênue, comparável a
um gás muito rarefeito, mas contínuo (esta comparação
pode dificilmente ser mantida se confrontada com a
teoria cinética dos gases). O éter é uma substância
no sentido lógico; o termo “éter”, assim como o termo
“espaço absoluto”, se refere a uma coisa individual e
não a um sistema de relações.
Em contrapartida, o éter não é absoluto no sentido
físico, visto que as ondas eletromagnéticas modificam
seu estado fundamental. Mesmo se o éter retomar em
seguida seu estado inicial, ele não é, stricto sensu, in-
dependente do comportamento da matéria. Além do
mais, sendo o próprio éter material, dificilmente pode-
ria ocorrer de outro modo. O éter é absoluto no sentido
ontológico (ou metafísico), uma vez que ele pode exis-
tir independentemente de outros objetos materiais. À
existência destes últimos não é necessária à do éter.
Por fim, o éter é igualmente absoluto no sentido
empírico, visto que, ainda que material, ele escapa,
como um gás muito rarefeito, à percepção sensível.
Excetuando-se a observação de fenômenos de interfe-
rência, a única maneira de conferir alguma plausibili-
dade à existência do éter seria colocar experimental-
mente em evidência um movimento em relação a ele.
À velocidade de propagação de uma onda depende
da natureza (água, ar, vidro) e do estado (tempera-
tura, pressão) do meio. Como se considera que
o éter se
Coleção CLE V.09
O Eletromagnetismo e a Relatividade Restrita 127

mantém no mesmo estado de temperatura e de pressão


(admitindo-se que possamos dar um sentido empírico a
estas noções quando se trata do éter), a velocidade da
luz em relação ao éter é uma constante6. O éter é ho-
mogêneo e isotrópico: a velocidade da luz não depende
do lugar nem da direção. |
Imaginemos um observador deslocando-se a uma ve-
locidade v em relação ao éter. Segundo a lei de com-
posição das velocidades da mecânica clássica, ele verá
a luz propagar-se em relação a si próprio a uma ve
locidade v' = €+v (soma vetorial). Considerando-se
que nenhum observador pode determinar se ele mesmo
está em repouso ou em movimento em relação ao éter,
não conhecemos & De fato, só podemos medir a ve-
locidade da luz nos sistemas materiais de referência.
Mas se a teoria do éter é correta, deveriamos medir ve-
locidades diferentes da luz em sistemas animados por
uma velocidade v, um em relação ao outro. Efetuando
uma série de medidas comparativas, poderíamos, em
seguida, tentar determinar o valor de €. Insistamos no
fato de que é da constância da velocidade da luz no éter
que o argumento acima tira sua validade. Se existissem
partículas que tivessem a propriedade de se deslocar no
espaço absoluto a uma velocidade constante, medidas
diferentes da velocidade destas partículas nos sistemas
de referência em movimento relativo constituiriam uma
evidência a favor do espaço absoluto. Além disso, a me-
dida da velocidade destas partículas hipotéticas permi-
“tiria determinar se o sistema no qual se efetua a medida
é inercial ou não. Newton definia o movimento verda-
deiro como uma mudança de lugar no espaço absoluto.
Na física (eletromagnetismo e mecânica) clássica, po-
Coleção CLE V.09
128 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

demos redefiniro movimento verdadeiro sem prejuízo


da mecânica, como um movimento em relação ao éter.
O movimento retilíneo uniforme em relação ao éter é
absoluto em um sentido físico, visto que, sendo um
movimento inercial, ele não tem necessidade de causa
física particular. Além disso, o movimento inercial em
relação ao éter é absoluto em um sentido empírico, uma
vez que o termo de referência, o éter, escapa à per-
cepção sensível.

“A constância da velocidade da luz no éter, jun-:


tamente com a lei de composição das velocidades da
mecânica clássica, deveria ter permitido determinar O
estado de movimento de um sistema de referência em
relação ao éter com a ajuda de experiências de óptica.
Nestas condições, disporíamos de um teste indepen-
dente das leis da mecânica, capaz de determinar se um
dado sistema estava em repouso ou em movimento re-
tilíneo uniforme em relação ao éter, e se era, portanto,
inercial, levando-se em conta que o éter era considerado
um sistema inercial. Poderíamos, desta forma, livrar a
física clássica do defeito de circularidade na definição
do sistema inercial.
"Se existe um referencial privilegiado, o éter, a e-
quivalência mecânica entre os sistemas de referência
em movimento retilíneo uniforme, uns em relação aos
outros, é mantida. Entretanto, não existe mais equi-
valência física (isto é, ao mesmo tempo mecânica e ele-
tromagnética) entre estes sistemas. Podemos, então,
definir uma classe de referenciais privilegiados, em re-
pouso em relação ao éter. Mas não podemos de modo
algum determinar um ponto privilegiado no éter.
Coleção CLE V.09
O Eletromagnetismo e a Relatividade Restrita 129

3.2 As Equações do
Eletromagnetismo

Como tais, as equações da mecânica clássica não nos


obrigavam de maneira alguma a pressupor a existência
de um espaço absoluto nos sentidos lógico e ontológico,
contrariamente ao que o próprio Newton pensava. O
exame das equações do eletromagnetismo leva a con-
clusões análogas, desta vez no que concerne ao éter, e
em oposição à opinião do próprio Maxwell.
“As quatro equações de Maxwell,
em sua forma ve-
torial, são escritas da seguinte maneira”:

div D=p div B=0

A primeira equação é a lei de Gauss: o fluxo do ve-


tor deslocamento através de uma superfície fechada é
igual à densidade das cargas compreendidas no interior
desta superfície. A segunda exprime a inexistência do
monopolo magnético:a soma das “cargas” magnéticas
é sempre igual a zero. À terceira torna-se a lei de
oD , |
Ampêre se — = 0, isto é, quando os campos elétricos
ot

3E: vetor campo elétrico. D: vetor deslocamento de cargas.


B: vetor do campo de indução magnética. H: vetor permeabili-
dade magnética. p: densidade de carga. J: vetor densidade de
corrente. | |
Coleção CLE V.09
130 À Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

são estacionários. O termo DE acrescentado por Max-


well por uma razão estética (simetria com a quarta
equação) lhe permitiu deduzir a priori a existência das
ondas eletromagnéticas. À lei de Ampére diz que ao
longo de uma linha fechada que circunda um condu-
tor percorrido por uma correrite, o trabalho da força
magnética é igual à corrente. |
"À quarta equação que, assim como a segunda, é
uma equação diferencial homogênea, exprime a lei de
Lenz. O trabalho efetuado por um campo elétrico não-
eletrostático ao longo de uma linha fechada é igual
à variação no tempo do fluxo do campo de indução
magnética através de uma superfície simplesmente co-
nexa da qual esta linha seria a borda.
O grupo de invariância destas equações, descoberto
por Lorentz (Poincaré acrescentou-lhe as translações
em um espaço de quatro dimensões) contém as trans-
formações do tipo*: *

ct] [chg Shgl[c


Lo] |sh ci5 | z

“Vemos imediatamente que o grupo de invariância


“4Chó e'Shg designam os
« cossenos e os senos hiperbólicos
respectivamente.
e* te? | 5
cus EEE po Am onde 8 =—

é eb
Shó = —— = By
v é a velocidade uniforme de um sistema de coordenadas em
relação a um outro. Ás transformações de Lorentz são as rotações
no espaço-tempo hiperbólico de quatro dimensões.
Coleção CLE V.09
O Eletromagnetismo e a Relatividade Restrita 131

das equações de Maxwell não é idêntico ao da mecânica


clássica. Entre os invariantes do grupo de Lorentz fi-
gura a velocidade da luz, c Isto significa que a ve
locidade da luz é a mesma em todos os referenciais
em movimento retilíneo uniforme uns em relação aos
outros, contanto que se passe de um referencial a ou-
tro através de uma transformação de Lorentz, e não
por uma transformação de Galileu. Mas, segundo a
mecânica clássica, se a velocidade da luz é constante no
éter, ela é necessariamente diferente para sistemas em
movimento relativo. Nestas condições, não existe mais
equivalência física entre referenciais em movimento re-
tilíneo uniforme, mas somente entre referenciais em re-
pouso relativo. O grupo de invariância da física (me-
cânica e eletromagnetismo) clássica é o subgrupo co-
mum aos grupos de Galileu e Lorentz, obtido simples-
mente ao colocar-se o parâmetro de velocidade igual a
zero. Para o espaço, este subgrupo é aquele das isome-
trias euclidianas; para o tempo, temos as translações
em uma dimensão.
Só pode haver equivalência física entre os sistemas
em movimento retilíneo uniforme se o conjunto das leis
da física é invariante sob o mesmo grupo de trans-
formações. O princípio de relatividade e da física clás-
sica é mais restritivo que o da mecânica clássica no
sentido de que pressupõe a equivalência apenas entre
os sistemas em repouso, e não entre sistemas em movi-
mento retilíneo uniforme.
As equações de Maxwell fazem referência ao campo
elétrico, ao campo magnético, às cargas, às correntes,
etc. Em nenhuma parte, a noção de éter intervém.
Estamos, portanto, livres para postular a realidade do
Coleção CLE V.09
132 “À Imércia e o Espaço-Tempo Absoluto

“campo ao invés da realidade do éter que seria o su-


porte material das vibrações eletromagméticas. Nada
nas equações de Maxwell impõe uma ontologia do éter,
da mesma forma que as equações da mecânica clássica,
como tais, não implicam a existência do espaço abso-
luto. | e
Em resumo, existem dois argumentos a favor de
uma ontologia do éter. O primeiró é um argumento fun-
dado nas experiências de óptica. Admitamos por ora
que as experiências de Michelson e Morleyº tenham de-
tectado uma diferença na disposição das franjas de in-
terferência produzidas por raios luminosos propagando-
se em direções perpendiculares. Estas observações po-
dem ser interpretadas como resultantes de um movi-
mento de translação do aparelho, e, portanto, da Terra,
em relação ao éter. Mas a realidade ou a existência do
éter só pode ser inferida se apoiada em um princípio
não físico, mas metafísico, que poderia enunciar-se as-
sim: tudo o que produz efeitos observáveis é real. Os
diferentes movimentos em relação ao éter são a causa
e, neste sentido, explicam as diferenças observadas no
nível das franjas de interferência. Encontramos aqui
um argumento análogo ao utilizado por Newton, que
ia dos fenômenos de inércia a sua causa: a aceleração
em relação ao espaço absoluto. . O fracasso de todas
as tentativas de encontrar evidência do movimento de
translação da Terra em relação ao éter destrói, eviden-
temente, esta argumentação. | |
Há um segundo argumento, analógico, desta vez,
que se baseia em uma semelhança entre os fenômenos
Para a descrição desta experiência, pode-se consultar, entre
outros, Taylor & Wheeler (1966, p. 14). =
Coleção CLE V.09
O Eletromagnetismo e a Relatividade Restrita 133

de transmissão da energia sob a forma de ondas elásticas


em meios materiais e os fenômenos luminosos. En-
tretanto, a analogia não é completa, uma vez que as
ondas luminosas, ao contrário das ondas sonoras, não
são longitudinais, mas transversais, como atestam os
fenômenos de polarização. Esta particularidade torna
muito difícil a elaboração de uma teoria matemática
das ondas luminosas, concebidas como vibrações de um
meio tridimensional e continuo.
Apesar de todos os obstáculos, mesmo após os re-
sultados “negativos” das experiências de Michelson e
Morley, e mesmo na ausência de uma teoria satisfatória
das vibrações do éter, ainda era possível conservar a
hipótese do éter, introduzindo um princípio de cor-
relação, como Lorentz fez: os ajustes na natureza são
tais que um deslocamento em relação ao éter não po-
derá ser jamais detectado, qualquer que seja o grau de
precisão que atingirmos em nossas experiências. (ver
d' Abro 1950, p. 185)
Frente aos resultados negativos da experiência de
Michelson-Morley e de experiências análogas, três vias
“permanecem abertas. À primeira é aquela tomada por
Lorentz que conserva o éter às custas de abandonar
a equivalência física dos sistemas em movimento rela-
tivo retilineo uniforme. À segunda, adotada por Hein-
rich Hertz, consiste em modificar as equações do ele-
tromagnetismo, para torná-las invariantes sob o grupo
de Galileu*. A terceira via, por fim, foi escolhida por
Einstein que reescreve as equações da mecânica de tal
maneira que sejam invariantes sob as transformações de
Para uma exposição sucinta do eletromagnetismo de Hertz,
pode-se consultar Born (1965, pp. 192-9).
Coleção CLE V.09
134 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

Lorentz (às quais é preciso acrescentar as translações


em quatro dimensões, para obter o grupo Lorentz-Poin-
caré). | |
Sublinhemos que estas três teorias alternativas, mes-
mo que pudessem dar conta dos fenômenos observados
em 1905, não são teorias equivalentes no sentido de
Reichenbach (1958a, p. 217). Cada uma conduz a no-
vas predições incompatíveis umas com as outras, e foi
a experiência que, finalmente, se pronunciou a favor de
Einstein, em detrimento de Lorentz e de Hertz”.

3.3 O Princípio de Relatividade


e o Princípio de Invariância
da Velocidade da Luz
Em seu famoso artigo “Sobre a eletrodinâmica
dos
corpos em. movimento” publicado em 1905, Einstein
lembra que a interação de um imã e de um condutor só
depende de seu movimento relativo, e que não é possível
distinguir experimentalmente entre a situação em que
o imã está em repouso daquela em que o condutor está
em repouso em relação ao éter. Ele conclui:

Exemplos do mesmo gênero, assim como experiên-


cias empreendidas para demonstrar o movimento
da Terra em relação ao “meio onde se propaga a
luz” e cujos resultados foram negativos, fizeram
surgir a conjectura de que não é apenas na mecânica
que nenhuma propriedade dos fenômenos corres-

?No que concerne à teoria de Lorentz, Grúnbaum mostrou que


a suposição da contração dos comprimentos não é uma hipótese.
“ad hoc”, já que ela conduz a novas consequências falseáveis.
(1959, p. 49) |
Coleção CLE V.09
O Eletromagnetismo e a Relatividade Restrita 135

-ponde à noção de movimento absoluto, mas também


na eletrodinâmica. Para todos os sistemas de co-
ordenadas, para os quais as equações da mecânica
permanecem válidas, as leis da eletrodinâmica e da
óptica guardam igualmente: seu valor; é o que foi
demonstrado para as grandezas da primeira ordem.
Gostaríamos de elevar esta conjectura (cujo conteú-
do será denominado, no que se segue, “princípio de
relatividade” ) ao nível de uma hipótese e introdu-
zir, além disso, a suposição, que só em aparência
é incompatível com este princípio, de que a luz se
propaga sempre no vácuo com uma certa veloci-
dade c independente do estado de movimento da
fonte luminosa. (1972, 1P. É)

Einstein faz alusão aqui


: às experiências da primeira
ordem em v/c. À experiência efetuada com o auxílio
de um interferômetro. por Michelson e Morley em 1887
mostra que não é possível. detectar um movimento ab-
soluto através de efeitos da segunda ordem, em v?/c?.
Nos textos acima, o termo “mecânica” é ambíguo.
Trata-se da mecânica newtoniana, mas que será modi-
ficada por Einstein, ou trata-se já da nova mecânica?
O contexto parece indicar que Einstein tinha em vista
a mecânica clássica. Os sistemas nos quais as leis da
física são corretas na forma vetorial são os sistemas
inerciais (livres de toda força), no sentido da mecânica
clássica. O princípio
de relatividade de Einstein diz
que: |

Pg: se as leis da física (mecânica e eletromagnetismo)


se escrevem sob forma vetorial em um sistema de
referência, elas se escrevem desta forma em todos
os sistemas em movimento retilíneo uniforme em
relação a este sistema de referência.
Coleção CLE V.09
136 A mércia e o Espaço-Tempo Absoluto

O princípio de relatividade restringe, assim, o grupo


de invariância da física às transformações lineares, sem
especificar se este grupoé o grupo de invariância da
“mecânica clássica (o grupo de Galileu) ou o grupo de
invariância do eletromagnetismo (o grupo de Lorentz--
Poincaré). O princípio de relatividade é o primeiro
princípio de Einstein (P E).
Uma vez que o princípio de relatividade de Eins-
tein estende a equivalência dos sistemas de coordena-
das aos fenômenos eletromagnéticos (o que mostra que
o qualificativo “restrita” foi mal escolhido e que seria
melhor, como sugeriu David Speiser, chamar a teoria
de Einstein “relatividade linear”), as leis da física de-
verão ser formuladas na forma vetorial, de tal maneira
que sejam invariantes sob um grupo único de trans-
formações. Suponhamos que, de fato, temos dois gru-
pos de transformações Gw e Gm característicos das teo-
rias de Newtone Maxwell, respectivamente. Seja 1 um
sistema inercial no qual as leis da mecânica clássica,
do mesmo modo que as do eletromagnetismo, são cor-
retas. Seja gy uma transformação tal que gy E Gm,
mas gx É Gu. O sistema I' = gyl será inercial, mas
visto que gy É Gm, as leis de Maxwell não são mais
corretas em 1". Os fenômenos eletromagnéticos e, em
particular, luminosos, permitiriam, então, estabelecer
uma distinção empírica entre o sistema [ e o sistema
r', o que é precisamente proibido pelo princípio de re-
latividade.

8As transformações lineares verificam a relação:


WERVLT(!,2)ER'VgEG:
((t,7) + Mt,2)) = 9(t,7) + Ag(t', 2º).
Coleção CLE V.09
O Eletromagnetismo e a Relatividade Restrita 137

Resta especificar este grupo de invariância das leis


vetoriais da física. Se acrescentarmos que este grupo
deve deixar invariantes as equações do eletromagne-
tismo em sua formulação vetorial (3.2.1), obteremos
o grupo descoberto antes de Einstein por Lorentz e
Poincaré. Einstein toma por base não o princípio da
invariância das leis de Maxwell, mas o da invariância
da velocidade da luz. É notável que a dedução das
transformações de Lorentz-Poincaré a partir dos dois
princípios de base enunciados por Einstein seja mate-
maticamente muito mais simples que o método utili
zado por Lorentz, que partia das equações de Maxwell.
“Para proceder à dedução das transformações de Lo-
rentz, escrevemos habitualmente a condição da inva-
riância da velocidade da luz da seguinte maneira:

P.: car? ciAt? — (Az? — (Az?) — (Ag)?


|

= CAS? — (Ag)? e (Ag?) e (Ag!) =0.

Na apresentação habitual”, restringimo-nos, logo de


início, às transformações lineares, apoiando-nos no prin-
cípio de relatividade. Mas a condição de invariância P,
enunciada acima, tomada individualmente, determina
somente o grupo conforme. Este grupo, que contém
igualmente transformações não-lineares, só conserva os
ângulos no espaço-tempo!º. A invariância da veloci-
dade da luz não implica o princípio de relatividade, já
que este último exclui as transformações não-lineares.
Reciprocamente, o princípio de relatividade não tem

Ver, por exemplo, Resnick (1968, pp. 35ss).


10Ver Reichenbach (1958a, pp. 171ss) e Weinberg (1972, pp.
27-8). 7 o
Coleção CLE V.09
138 — A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

como consequência o princípio da constância da veloci-


dade da luz, visto que as transformações de Galileu são
lineares, mas não deixam invariante a forma quadrática.
acimall. | o
Sendo que o grupo de invariância de AT = 0 contém
também transformações não-lineares, existem sistemas
não-inerciais (acelerados em relação a um sistema iner-
cial) nos quais a velocidade da luz é a mesma que nos
sistemas inerciais. Em geral, a forma quadrática dia-
gonal acima não é invariante sob uma transformação
não-linear: a ela se acrescentam termos “cruzados”.
Do princípio de relatividade, na formulação acima
(Pe) e do princípio da invariância da velocidade da
luz (P.), concluímos que o grupo de invariância das
leis da física (eletromagnetismo e mecânica) sob forma
vetorial é o grupo de Lorentz-Poincaré.
Existe uma outra maneira de chegar ao grupo de
Lorentz-Poincaré, partindo de um princípio único, que
é:

Prp:clAr? = cA-(As? (Av?) (Ar)?


— CAt? (Ag'l)2 cs (Az)? (Az)? .

lFriedman tem razão de destacar (1983, p. 142) que o


princípio da invariância da velocidade da luz e a condição de line-
aridade não bastam para deduzir as transformações de Lorentz.
Mas o princípio de relatividade determina que as transformações
que deixam invariantes as leis da física sob forma vetorial for-
mem um grupo. Pelo menos é esta formulação do princípio de
relatividade que utilizamos, inspirando-nos em Einstein. Quanto
à hipótese de “simetria” evocada por Friedman (Jbid.), que é, de
fato, a isotropia da velocidade da luz, ela é incorporada na for-
mulação de P., já que esta última é, evidentemente, indepen-
dente da direção.
Coleção CLE V.09
O Eletromagnetismo e a Relatividade Restrita 139

O grupo procurado deixa invariante a forma dia-


gonal, mesmo quando c?At? é diferente de zero. Isto
equivale a colocar a invariância da forma quadrática:

Nu bztha” (uv =0,1,2,3),

onde cAt = Azº, e

Nu» é Oo tensor métrico de Minkowski, que define


uma geometria plana. Sob uma transformação não-
linear das coordenadas, a métrica deixa de ser diago-
nal, mas a curvatura permanece nula.

Voltemos, agora, ao princípio da constância da ve-


locidade da luz de Einstein.

Poe: a luz se propaga sempre no vácuo a uma certa


velocidade c independente do estado de movi-
mento da fonte luminosa.

Einstein não especifica o tipo de sistema (inercial ou


não-inercial) no qual esta velocidade é medida. É in-
dispensável distinguir o estado de movimento da fonte
daquele do sistema de coordenadas no qual este movi-
mento é determinado.
Para poder interpretar corretamente a versão de
Einstein do princípio de constância da velocidade da
luz, é preciso considerar vários casos. Suponhamos,
Coleção CLE V.09
140 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

primeiro, que medimos c em um sistema inercial. Nes-


tas condições, a formulação de Einstein é exata. Pouco
importa o estado de movimento, acelerado ou não, da.
fonte luminosa: a velocidade da luz no vácuo será i-
sotrópica e terá um valor numérico, uma grandeza ou
ainda norma, constante. | |
Se medirmos a velocidade da luz em um sistema
não-inercial, ela permanecerá independente do estado
de movimento da fonte luminosa, mas poderá ser di-
ferente da velocidade medida em um sistema inercial.
Portanto, qualquer que seja a natureza (inercial ou não-
inercial) do sistema no qual medimos a velocidade da
luz, estaé sempre independente do movimento da fonte.
Mas, na física clássica, a velocidade da luz é igual-
mente independente do estado do movimento da fonte,
uma vez que esta última é constante em relação ao éter.
Se nos situarmos em um sistema fixo de coordenadas
no éter, encontraremos sempre o valor €, qualquer que
seja o movimento da fonte. Se, ao contrário, nos situar-
mos em um sistema em movimento retilíneo uniforme v
em relação ao éter, observaremos sempre a velocidade
c+v (soma vetorial), qualquer que seja o movimento
da fonte. Finalmente, se nos situarmos em um sis-
tema acelerado em relação ao éter, observaremos uma
velocidade instantânea da luz, variável com o tempo,
mas que permanecerá independente do movimento da.
fonte. O que na física clássica é decisivo para o va-
lor medido da velocidade da luz não é o movimento da
fonte em relação ao éter, mas a velocidade do sistema
de referência relativamente ao éter.
Michelson e Morley mostraram que a velocidade da
luz é isotrópica, qualquer que seja a velocidade (uni-.
Coleção CLE V.09
O Eletromagnetismo e a Relatividade Restrita 14]

forme) do sistema de referência em relação ao éter.


Uma outra experiência, a de Kennedy-Thorndike (ver
Taylor & Wheeler 1966, pp. 15-6), estabelece que o va-
lor numérico da velocidade da luz é o mesmo em todos
os sistemas inerciais. | |
Na experiência de Michelson-Morley,o sistema de
referência escolhido é.a Terra (que, nesta experiência,
pode ser aproximadamente considerada um sistema i-
nercial) e a fonte luminosa é fixa em relação à Terra.
Interessam-nos as diferenças eventuais para as veloci-
dades medidas no referencial terrestre, que é solidário à
fonte luminosa. O que importa é o movimento da Terra
e não o movimento da fonte. Observamos que a veloci-
dade da luz é a mesma para direções perpendiculares,
e isto em diferentes instantes do dia e em diferentes
períodos do ano. Em um sistema fixo em relação às
estrelas, a Terra é animada por um movimento diurno
de rotação sobre si própria, assim como por um movi-
mento anual em torno do Sol. Poderíamos, evidente-
mente, alegar que a Terra está em repouso em relação
ao éter ou que ela carrega consigo o éter em sua vizi-
nhança. Não nos interessa aqui a maneira pela qual po-
deríamos eventualmente salvaguardar a existência do
éter por meio de hipóteses suplementares, talvez ad hoc.
duporemos estabelecida a constância da velocidade da
luz para os sistemas inerciais. o
o preciso sublinhar que esta invariância da veloci-
dade da luz limita-se aos sistemas inerciais. Se pas-
“sarmos para um sistema acelerado, a velocidade da luz
pode variar segundo a direção. Por exemplo,a velo-
cidade de um raio luminoso que se propaga do leste
para o oeste (em sentido inverso da rotação da Terra)
Coleção CLE V.09
142 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

é maior, quando a medimos em relação à Terra, que


aquela de um raio que se propaga do oeste para o leste.
Mas aqui a Terra não pode mais ser considerada um
sistema inercial, enquanto que podia ser aproximada-
mente considerada como tal, no caso da experiência de
Michelson-Morley (ver d'Abro 1950, p. 154).
As experiências de Michelson-Morley e de Kenne-
dy-Thorndike confirmam a seguinte proposição:

Pm-m: a velocidade da luz é a mesma para to-


dos os sistemas inerciais.

Como vemos, esta proposição não é equivalente ao


segundo princípio Pp de Einstein. Este, tal como
Einstein o formula, já é verdadeiro na física clássica.
Ao contrário, Pum-m não é mais verdadeiro na física
clássica. Certamente, Einstein tinha consciência de es-
tar apresentando uma novidade essencial em relação à
física clássica. É por isso que não devemos nos ater de-
masiadamente a sua formulação do segundo princípio,
mas ao que ele faz em sua dedução das transformações
de Lorentz. É claro que, nesta dedução, Einstein en-
tende por seu segundo princípio a invariância da ve-
locidade da luz nos sistemas inerciais. Implicitamente,
Einstein supõe que as medidas são sempre efetuadas em
um sistema no qual a fonte luminosa está em repouso.
Primeiramente, ele se restringe às transformações line-
ares através do princípio de relatividade e escreve, em
seguida, o princípio da constância da velocidade da luz
sob uma forma matemática equivalente a P..
À experiência de Michelson-Morley confirma tam-
bém P., posto que Py.m é uma consequência de P..
Coleção CLE V.09
O Eletromagnetismo e a Relatividade Restrita 143

De fato, P. diz que a velocidade da luz é a mesma em


todos os sistemas relacionados por uma transformação
conforme, portanto, em particular, nos sistemas iner-
ciais que são relacionados por transformações linea-
res que constituem um subgrupo do grupo conforme.
Pym-m, entretanto, não implica P.. A experiência de
Michelson-Morley confirma igualmente o princípio de
relatividade P,x, porque Py-. m é uma consequência de
Pg. Se, de fato, a velocidade da luz tomasse valores
diferentes em diversos sistemas inerciais, não haveria
equivalência entre estes sistemas, para os fenômenos
eletromagnéticos, e o princípio de relatividade não se-
ria mais correto para a totalidade da física. O princípio
Ps tem, evidentemente, um alcance maior que Pym-m,
visto que o primeiro concerne ao mesmo tempo aos
fenômenos mecânicos e eletromagnéticos, enquanto que
o segundo concerne unicamente aos fenômenos eletro-
magnéticos.
Em resumo, a experiência de Michelson-Morley con-
firma tanto o princípio de relatividade Pig quanto o
princípio da constância da velocidade da luz P., por-
que esta experiência confirma Py-m que é uma con-
sequência ao mesmo tempo de P,g e de P,. Entretanto,
Pig e P, não são logicamente equivalentes, mesmo se
têm uma consequência comum Py.m.

Pe P.

Pu-m
Coleção CLE V.09
144 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

É preciso, pois, substituir Paz por P. como princípio


de base da física. A proposição Pig & P. é logicamente
equivalente à afirmação: o grupo de invariância das
leis da física em forma vetorial é o grupo de Lorentz-
Poincaré. Este grupo é aquele que deixa a forma dia-
gonal Ar? invariante, e isto tanto para as partículas de
massa nula (Ar? = 0) quanto para as outras (Ar? £ 0).

3.4 Os Axiomas da Mecânica


de Einstein
Suponhamos que Newton quisesse construir sua me-
cânica a partir de dois princípios:

Pin: se as leis da mecânica se escrevem em forma veto-


rial em um sistema de coordenadas, elas conser-
vam esta forma em todo sistema em movimento
retilíneo uniforme em relação a este sistema de co-
ordenadas. Esta forma vetorial é invariante sob
o grupo das transformações lineares (princípio de
relatividade da mecânica clássica).
Pon: as velocidades colineares se adicionam (princípio
da adição das velocidades).
É provável que estes princípios tivessem desempe-
nhado um papel essencial na descoberta dos axiomas
da mecânica se Newton tivesse podido apresentá-los de
modo explícito, antes de enunciar seus três famosos axi-
omas. Entretanto, estes princípios, mesmo que definam
o grupo de Galileu sem ambiguidade, não constituem
uma base suficiente para a dedução das leis do movi-
mento. É possível imaginar outras leis contendo even-
Coleção CLE V.09
O Eletromagnetismo e a Relatividade Restrita 145

tualmente outros conceitos fundamentais, e que seriam


invariantes sob o grupo de Galileu. o
Einstein já dispunha das leis de Newton que são
muito bem confirmadas para as velocidades que são
baixas em relação à velocidade da luz. Trata-se, então,
de mocificar as leis da mecânica clássica de tal maneira
que elas se tornem invariantes sob o grupo de Lorentz
e que esta modificação provoque efeitos empíricos, di-
ferentes daqueles previstos pela mecânica clássica, ape-
nas nas velocidades próximas daquela da luz.
Ao substituir oo parâmetro m (a massa) pela ex-
pressão:

onde mo designa a massa em repouso, isto é, a massa


do corpo medida em um referencial onde ela está em re-
pouso. Esta massa é idêntica à massa inerte no sentido
clássico. Com o objetivo de conservar uma forma ma-
temática semelhante às equações de Newton, e de poder
escrever as equações de Einstein em quatro dimensões,
introduzimos o parâmetro 7 do qual já falamos:

cdr =ey (CPI? — (da! — (do? — (day?


!2Na verdade, mal podemos falar de uma modificação da pri-
meira lei, já que a constante permanece a mesma; a diferença
em relação a Newton aparece quando observamos o componente
temporal da lei quadridimensional.
Coleção CLE V.09
146 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

ou, fixando c= 1:

dr= (dt? — dudzx' de)? = (muda da”)!?


Para um corpo em repouso em um sistema de referên-
cia, dr* = 0 para todo 1, e cdr? = cidt?. Se fixarmos
c = 1,o que leva a escolher a velocidade da luz como
velocidade unidade, Ar = [ dr representa, o tempo
medido por um relógio em repouso neste sistema. Este
tempo depende da curva C ao longo da qual eleé me-
dido. Quando um: relógio está em repouso, a curva é
uma reta do espaço-tempo e pode-se escrever:

Ar = (At? — (Axl)? — (Av?) — (As)? = At.


Chamamos Ar o tempo próprio do sistema. Da
invariância da velocidade da luz, segue-se, imediata-
mente, que a métrica n,, e o tempo próprio são in-
variantes do grupo de Lorentz-Poincaré. Isto signi-
fica que para um outro referencial (t',a') em movi-
mento retilíneo uniforme em relação a (t,x), e para
o qual dx” £ 0, devemos ter dr? = dt! ? — dy'? = dt?
(Trabalhamos aqui com uma dimensão espacial z =
z!). O tempo medido pelo relógio em repouso em
(t,z) não será igual a t'. Como dt” é maior que dt,
o tempo medido pelo relógio em repouso em (t,x) pa-
recerá maior para (t',x). Naturalmente, um relógio
em repouso em (t”, x”) medirá seu tempo próprio; este
tempo próprio será menor que o tempo medido pelo pri-
meiro relógio, em movimento em relação a (t',x'). E o
famoso fenômeno de dilatação do tempo. Observamos,
também uma contração dos comprimentos. Os inter-
valos temporais e espaciais, tomados separadamente,
Coleção CLE V.09
O Eleiromagnetismo e a Relatividade Restrita 147

não têm mais significado absoluto (invariante) quando


passamos de um referencial a um outro através de uma
transformação de Lorentz. Somente o quadricompri-
mento é invariante.

uv?
dT =1-5 dt.

À primeira lei de Newton se escreve agora, para os com-


ponentes espaciais K':

l dx* dx*
P* = To E == mo = const. ,

a
k =1,2,3.
dt
Formando o componente temporal Mac, obtemos um |
T
quadrimomento:

Pr =
( camedt cmdat =0,1,2,3.
o Mo Ç dr dr ) P "o

Podemos mostrar que mo cs representa a energia É;


é por isso que chamamos o vetor P” de vetor energia-
momento. À primeira lei de Einstein se escreve:

Er: P” = const.

E a segunda: o | (3.4.1)

En: drP"= pr
onde os F* correspondem aos três componentes das
Coleção CLE V.09
148 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

forças e Fº à potência. A justificativa destas leis re-


pousa, evidentemente, na ampla confirmação das con-
sequências experimentais que podem ser delas deduzi-
das.

3.5 O Espaço-Tempo de Minkowski


As idéias sobre o espaço e o tempo que eu gostaria
de apresentar-vos germinaram no solo da física ex-
perimental: e é nisto que reside sua força. Elas são:
radicais. Pois, o espaço em si mesmo e o tempo
em si mesmo são destinados a dissolverem-se em
simples sombras, e apenas um certo tipo de união
entre os dois preservará uma certa realidade inde-
pendente. (Minkowski 1952, p. 75)

Se os axiomas de Einstein são confirmados pela


experiência — e eles o são — o espaço-tempo deve ter
uma estrutura determinada pelo grupo de invariância
das leis (na forma simples apresentada acima). Ora,
o grupo de Lorentz-Poincaré deixa invariante a forma
quadrática (fixamos c = 1):
dr? = dt? — (dal)? — (da?)? — (de?) = mudaria”
Isto significa que os componentes da métrica conservam
a forma diagonal sob as transformações do grupo de
Lorentz-Poincaré. O elemento de linha dr”, como tal,
é, certamente, invariante sob o grupo de transformações
contínuas, posto que é uma grandeza sem dimensões,
um escalar. Mas sob uma transformação não-linear,
os componentes do tensor métrico n,, são modificados.
Esta forma desempenha, no espaço-tempo, o mesmo
papel que a distância euclidiana, no espaço. O qua-
“dricomprimento de Minkowski não é definido positivo
Coleção CLE V.09
O Eletromagnetismo ea Relatividade Restrita 149

em toda parte, o que leva a distinguir, em um ponto-


origem, três regiões do espaço-tempo, conforme o ele-
mento de linha dr? seja positivo, negativo ou nulo (para
completar, é preciso acrescentar a origem, que constitui
uma quarta região). |
A equação dr? = ( define, no espaço-tempo, um
cone duplo, que chamamos o cone de luz. Em duas
dimensões, temos: o |

dt? — de? = 0,
de onde
dz
di tl=+e.

Segue-se da seginda equação de Einstein que as


partículas de massa mo diferente de zero e positiva,
devem propagar-se a uma velocidade inferior à da luz.
A massa inerte mo(1—v?/c?)!/2 cresce ao mesmo tempo
que v e tende ao infinito quando v tende para c. Torna-
se cada vez mais difícil acelerar um corpo pesado à pro-
porção que ele se aproxima da velocidade da luz. Para |
comunicar a uma partícula de massa não-nula uma ve-
locidade igual à da luz, seria necessário acionar uma
energia infinita, o que é impossível de se realizar fisi-
camente. Os fótons devem, por conseguinte, ter uma
massa igual a zero. Quanto às partículas pesadas, elas
se deslocam ao longo de trajetórias correspondendo a
dr > 0; são chamadas trajetórias de gênero tempo, já
que, no elemento de linha, o valor do componente tem-
poral é sempre maior que o do componente espacial.
A terceira região, situada no exterior do cone de
luz, corresponde à dr < 0. Ela contém as trajetórias
Coleção CLE V.09
150 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

(de gênero espaço) de objetos que se deslocam a uma


velocidade superior à da luz e que devem ter uma massa
imaginária. Hoje, a existência de tais entidades (os
táquions), proposta algumas vezes, permanece objeto
de controvérsias. | |
Podemos representar o espaço-tempo de Minkowski,
em duas dimensões, pela figura abaixo (fixamos c = 1:
os trajetos dos raios luminosos são as bissetrizes dos
ângulos formados pelos eixos (x,t)):

AN

dt? s O

NY
V
x

Figura 8.1

Consideremos, agora, a equação das geodésicas, em


sua forma mais geral, invariante para o conjunto das
Coleção CLE V.09
O Eletromagnetismo e a Relatividade Restrita 151

transformações contínuas:

6 / dr =0.

Esta equação possui um significado puramente geomé-


trico ou cinemático; ela é desprovida de significado
dinâmico. Concentremo-nos, agora, na região situada
no interior do cone. Nesta região, a forma dr” é defi-
nida pos-siva. As linhas de comprimento extremo (as
mais curtas ou as mais longas: as geodésicas) são defi-
nidas Pela esequação:

sf (ru det de =0.

Isto dá como solução em duas dimensões: t = az + 5.


As geodésicas do espaço-tempo de Minkowski são, por-
tanto, retas. Mas, ao contrário do que se passa no
espaço-tempo euclidiano, onde as geodésicas correspon-
dem a comprimentos mínimos, as geodésicas do espaço-
tempo representam um intervalo Ar mázimo entre dois
pontos, por causa do sinal “menos” diante dos compo-
nentes espaciais (Taylor & Wheeler 1966, p. 33).
Lembramos que, na mecânica clássica, a trajetória
de um corpo livre é necessariamente retilínea. Mas um
corpo acelerado podia se movimentar ao longo de uma
geodésica que, neste caso, é uma reta, espacial. Na
mecânica de Einstein, um corpo está livre de toda força
se e somente se ele se move ao longo de uma geodésica
espaço-temporal que, como vimos, é uma reta na região
compreendida no interior do cone de luz. É “possível
demonstrar a equivalência lógica:
Coleção CLE V.09
152 — —Alnérciaeo Espaço-Tempo Absoluto

Pr” = const & mo 6 [dr =0

o que se pode ler: a trajetória de um ponto de massa é


uma reta se e somente se seu movimento é inercial (isto
é, se está livre de forças). Para Os corpos cuja massa é
diferente de zero, temos:
dat
=-0656 [dr=0
Uma linha ao longo da qual a quadrivelocidade é nula é
uma linha reta e vice versa. Da equivalência dinâmica,
que faz com que a massa intervenha, podemos deduzir
a equivalência cinemática. Reciprocamente, se multi-
plicarmos por uma quantidade diferente de zero (por
exemplo, a massa), o termo da esquerda e o termo da
direita na equivalência cinemática, reencontraremos a
equivalência dinâmica. Estes resultados exprimem a
coincidência física das estruturas inercial (definida pe-
las trajetórias das partículas livres) e métrica (definida
pelo comportamento das barras rígidas e dos relógios).
A geometrização (no sentido forte de metrização e não
mais somente com o auxílio da conexão afim) da inércia.
já está realizada na relatividade restrita e não é um re-
sultado próprio da relatividade geral.
A física de Einstein implica que as trajetórias das
partículas livres e o comportamento das barras rígidas!º

ISTrata-se aqui de barras rígidas no sentido de Reichen-


bach e Griúnbaum. Estas barras manifestam, evidente-
mente, o fenômeno, puramente cinemático, da contração dos
comprimentos.
Coleção CLE V.09
O Eletromagnetismo e a Relatividade Restrita 153

definam a mesma estrutura pseudo-euclidiana (min-


kowskiana); o comportamento das barras rígidas e
dos relógios possui, ipso facto, um significado inercial,
enquanto que para a física clássica tínhamos apenas a
implicação:

Pt= const. > mo ófas =0.


Isto quer dizer que as traje etórias espaciais das partículas
livres são necessariamente geodésicas (neste caso, as
geodésicas são retas), mas na mecânica clássica a recí-
proca não é verdadeira: um corpo animado por um mo-
vimento não-inercial (acelerado) pode percorrer uma
reta euclidiana. Temos aí um fato importante no qual
nos apoiaremos em discussões posteriores.

3.6 A Rotação na Relatividade Restrita

Em um sistema giratório sobre o qual há um campo


inercial não homogêneo, a formulação das leis deixa de
ser vetorial e a métrica não toma mais a forma diagonal
Tue Escrevemos:

dr? = gu dx! dy” .

Neste sistema em rotação, reescrevemos a primeira e-


quação de Einstein:

da) LIA da! da”


Mo = 0,
dr? » dr dr

onde os T dy são os símbolos de Christoffel ( áv).


Coleção CLE V.09
154 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

(o) =def 1/29" (gov + Iupv — Jump)


O campo inercial já é inteiramente exprimível com o
auxílio de uma métrica única no quadro da relativi-
dade restrita. Não é, portanto, um resultado específico
da relatividade geral. Em um sistema inercial de coor-
denadas, os componentes na da conexão afim se anu-
lam em todos os lugares. Mas isto não significa que
a métrica tome necessariamente a forma diagonal n,».
Em um sistema inercial de coordenadas polares, os na,
se anulam, mas a métrica não toma a forma diagonal.
Quando passamos de um sistema inercial a um sis-
tema não-inercial através de uma transformação qual-
quer, a curvatura do espaço-tempo permanece nula,
mesmo se a métrica não for diagonal e se a conexão afim
for diferente de zero, Neste sentido, o da invariância da
curvatura, a geometria não é alterada quando passamos
de um sistema inercial a um sistema não-inercial.

3.7 Em Que Sentido o Espaço-Tempo


de Minkowski é Absoluto ou Relativo?

Agora, estamos em condições de especificar em que


sentidos o espaço-tempo de Minkowski é absoluto ou
relativo.
No que concerne ao caráter absoluto do espaço-
tempo, nos sentidos lógico e ontológico, a situação per-
manece inalterada em relação ao que era para o espaço,
e também para o tempo, no quadro da mecânica clás-
sica. Como tal, a mecânica de Einstein não permite
pronunciar-se a favor ou contra uma concepção subs-
Coleção CLE V.09
O. Eletromagnetismo e a Relatividade Restrita 155

tancialista, que faria do espaço-tempo uma coisa ao


invés de um sistema de relações entre acontecimentos
existentes ou simplesmente possíveis. Como a mecânica
clássica, a mecânica de Einstein é é compatível com uma
concepção substancialista que faria do espaço-tempo
uma entidade composta de pontos-acontecimento com
uma existência atual, mas de um tipo diferente daquela
dos acontecimentos fisicos Poderíamos, em seguida,
definir as propriedades desta entidade e as relações en-
tre os pontos que a compõem. Esta concepção tem pelo
menos o mérito, como vimos, de evitar as dificuldades
inerentes à introdução de categorias modais.
A mecânica de Einstein, como tal, também não per-
mite decidir sobre uma existência do espaço-tempo in-
dependente da dos acontecimentos físicos, mesmo que,
na passagem citada acimã, Minkowski pareça inclinar-
se para uma concepção absolutista
no plano ontológico,
aproximando-se, desta forma, singularmente, do que
Newton pensava. Neste ponto, não há nada de novo
em relação à mecânica clássica. O argumento de in-
teligibilidade : a partir dos efeitos de inércia
i leva igual-
mente a postular a existência de uma estrutura afim ou
de um campo inercial, desta vez, espaço-temporal, res-
ponsável pelos fenômenos observados. Esta existência é
independente daquela dos acontecimentos físicos, por-
que a causa pode: existir perfeitamente sem os efeitos
(mas não o inverso). |
“Nada de novo também em relação à mecânica clás-
sica no que concerne ao caráter absoluto do espaço-
tempo no sentido empírico. O espaço-tempo de Min-
kowski não é mais acessível à percepção sensível do que
o eram o espaço e o tempo na mecânica clássica.
Coleção CLE V.09
156 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

O mesmo ocorre no plano físico: o espaço-tempo da


mecânica relativista possui propriedades e uma estru-
tura inalteráveis.
No plano matemático, em compensação, a situação
está sensivelmente modificada, já que o grupo de in-
variância do espaço-tempo não é mais o grupo de Ga-
lileu, mas o grupo de Lorentz-Poincaré. É impossível
separar o tempo e o espaço para todos os “observadores
inerciais. Isto é uma consequência da não-invariância
da simultaneidade sob o grupo de Lorentz. Eviden-
temente, em cada referencial inercialé sempre possível
efetuar uma divisão do espaço-tempo em um espaço tri-
dimensional, conjunto dos lugares possíveis de aconte-
cimentos simultâneos, e um feixe de “fibras” temporais
unidimensionais. Mas esta divisão não tem um valor
universal, como era o caso na mecânica clássica.
O espaço-tempo de Minkowski é isotrópico!! e ho-
mogêneo. O invariante métrico quadridimensional dr”,
que desempenha um papel análogo ao elemento eucli-
diano de linha ds”, é positivo no interior do cone de
luz. Mas pontos distintos podem ser separados -por
uma distância nula: é o que ocorre nos pontos situados
sobre o cone de luz. | |
A: conexão afim em quatro dimensões Dá , pode ser
expressa, desta vez, em função dos componentes da
métrica em um sistema de coordenadas quaisquer (en-
quanto que, na mecânica clássica, não existe métrica

140) espaço tridimensional é sempre isotrópico, visto que o


grupo das rotações euclidianas é um subgrupo do grupo de Lo-
rentz. Para uma definição rigorosa da isotropia para o espaço-
tempo, ver Weinberg (1972, p. 378).
Coleção CLE V.09
O Eletromagnetismo e a Relatividade Restrita 157

espaco-temporal única, em função da qual poderia ser


expressa uma conexão afim espaço-temporal).
À mecânica einsteiniana conserva a distinção abso-
luta, no sentido matemático, entre os movimentos iner-
ciais e os movimentos não-inerciais. O caráter inercial
(ou não-inercial) de um movimento permanece inalte-
rado sob as transformações de Lorentz, visto que estas
são lineares. O movimento inercial conserva seu caráter
absoluto no sentido físico, enquanto que o movimento
não-inercial resulta da ação de forças e não é, portanto,
absoluto no sentido físico.
O movimento das partículas luminosas, os fótons,
possui um estatuto particular. É o único movimento
para o qual a velocidade é invariante sob o grupo de
Lorentz-Poincaré!º, enquanto que, na mecânica clássica,
nenhuma velocidade é invariante, a não ser a velocidade
infinita. Em um sistema inercial no vácuo, a velocidade
da luz tem sempre o mesmo valor.
A coincidência das estruturas métrica e inercial,
fundada na equivalência

P” = const. emos fár=o

permite fornecer uma caracterização das trajetórias 1-


nerciais de uma maneira puramente geométrica, isto
é, em termos do comportamento das barras rígidas e
dos relógios. Observemos isto de perto, a partir da
exposição de Taylor e Wheeler:
Consideremos uma partícula que se desloca de 0
a B ao longo de uma linha curva [ver figura 3.2].

ISNa verdade, a velocidade da luz é invariante sob um grupo


mais vasto, o grupo conforme (ver seção 3.3).
Coleção CLE V.09
158. A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

Neste exemplo, a partícula se desloca ao longo do


eixo z com uma velocidade variável. Admitamos
que a partícula emite um sinal luminoso após cada
metro de tempo marcado por um relógio que se
desloca com ela. O tempo próprio Ar entre dois
sinais consecutivos (por exemplo marcados como 3
e 4 na figura) pode ser calculado utilizando-se a
diferença das coordenadas Az e At dos dois acon-
tecimentos medidos em um sistema particular de
referência. Considerando-se que o intervalo é in-.
variante, o tempo próprio entre estes dois acon-
tecimentos será o mesmo quando for calculado em
- qualquer sistema de referência!º, ainda que as coor-
- denadas espaciais e temporais tomem valores dife-
“rentes
p. 33) em sistemas de
7 referência
| diferentes. º (1966,

- O quadricomprimento Ar* entre 0 e B ao longo da.


“trajetória curva do relógio em movimento acelerado
é igual a 13 unidades de tempo; este comprimento
corresponde ao tempo medido pelo relógio em movi-
mento. À distância Ar entre O e B, ao longo do eixo
t no sistema inercial de referência é igual a 16 uni-
dades de tempo; esta distância corresponde ao tempo
medido por um relógio em repouso no sistema de re-
ferência. Este último tempo, que corresponde ao tempo
“próprio de um corpo em repouso no sistema de re-
ferência, é maior que o tempo próprio medido sobre
o corpo em movimento. Um movimento inercial (re-
tilíneo no espaço-tempo: não é mais necessário acres-

16 Seria preciso acrescentar, e isto não é sem importância: iner-


cial. Pois, é apenas nos sistemas inerciais que podemos utilizar
a métrica diagonal para calcular a distância, ou o caminho mais
longo entre dois pontos. Em sistemas não inerciais, é preciso
utilizar uma;métrica não-diagonal.
Coleção CLE V.09
O Eletromagnetismo e a Relatividade Restrita 159

centar uniforme) corresponde a um tempo próprio má-


ximo medido (no interior do cone de luz).
A distância Ar calculada pela fórmula:

(At? — (Aa “GI.


é, portanto, diferente do Ar*. O Ar depende da curva
ao longo da qual ele é medido ou calculado. Temos:

AT = [ár = (mu da! de”)1/? . (3.7.2)


Cc: C
4

mt
16413
15
ul
13
2h
nt
10
9+

7k

6t

4L
5 / / .
f o nr
5 E,
(1DS (402 — (4x2)?
1+ fp” ”
ememsnçaomenmendom [ E 1

O 1234
6 78910
5 x.
Figura 3.2 (Taylor e Wheeler 1966, p. 33)
Coleção CLE V.09
160 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

Ao longo da trajetória curva, entre O e B, o relógio


mede um A7* que corresponde ao comprimento desta
trajetória. Enquanto que a distância Ar, calculada
no sistema inercial, entre estes mesmos pontos-acon-
tecimento, corresponde ao comprimento da reta que
liga estes dois pontos, e, portanto, à sua distância no
espaço-tempo de Minkowski. No exemplo acima:

Ap" = (ar = (At? — Ag?

= At <Ar=(A?- Ad,
com: | |
dr = (qudz* de”)?
Quando estamos em um sistema inercial, podemos de-
terminar a trajetória inercial entre dois pontos, calcu-
lando a distância espaço-temporal Ar entre estes pon-
tos. À trajetória inercial corresponde ao tempo próprio
máximo. Ela é a linha reta que liga estes pontos.
Baseando-nos aqui na implicação:

mçô | dr = À > P* = const.

Desta maneira podemos obter uma caracterização pu-


ramente geométrica, com o auxílio de barras rígidas e
de relógios, fazendo intervir unicamente
as coordena-
das espaço-temporais, sem recorrer às forças, das tra-.
jetórias livres em um sistema inercial. Isto não era
possível na mecânica clássica, onde a implicação:

mos [ ds = 0» PÉ = const.
não era verdadeira.
Coleção CLE V.09
O Eletromagnetismo e a Relatividade Restrita 161

É importante aqui distinguir cuidadosamente dois


problemas. O primeiro, resolvido pelo método descrito
acima, consiste em determinar em um sistema inercial,
no qual a: geometria. de Minkowski é válida, as tra-
jetórias livres por meios geométricos (ou cinemáticos,
já que, no espaço- tempo, geometria e cinemática são
idênticas). Supomos que temos previamente um sis-
tema inercial, sem nos preocuparmos com os meios que
teriam permitido descobri-lo.
O segundo problema concerne à circularidade ine-i
rente à definição do sistema inercial, Esta circulari-
dade poderia ser resolvida, como propõe Jon Dorling,
especificando-se um meio empírico cinemático, distinto
da dinâmica, suscetível de decidir sobre o caráter iner-
cial de um conjunto de corpos de referência.

3.8 A Questão da Circularidade da


Definição do Sistema Inercial na -
Relatividade Restrita

Contrariamenteà opinião amplamente difundida en-


tre os físicos e os filósofos da ciência, Jon Dorling (1978)
pretende que seja possível determinar se um sistema é
inercial, por meios puramente geométricos, indepen-
dentemente da dinâmica, no quadro da mecânica de
Einstein, e que isto seja uma novidade essencial em
relaçãoà mecânica clássica. Dorling diz:
Se a trajetória de um corpo é um caminho corres-
pondente a um tempo próprio máximo, este corpo é
descrito movendo-se uniformemente; do contrário,
' seu movimentoé descrito como acelerado. Esta
distinção pode ser feita simplesmente com base em
Coleção CLE V.09
162 | A Inérciaeo Espaço-Tempo Absoluto

medidas ao longo de trajetórias vizinhas. Estas


medidas são absolutas e não dependem de maneira
alguma da escolha do sistema de referência. (1978,
p. 316)

Suponhamos que dispuséssemos de uma coleção de


relógios «, 2, Y ..., funcionando todos da mesma ma-
neira. Suponhamos que eles estivessem sincronizados
em um mesmo ponto espaço-temporal, na origem. Os
relógios se separariam em seguida, movendo-se arbi-.
trariamente no espaço-tempo. Cada um deles giraria,
aceleraria, Íreiaria, etc. Finalmente, cada um se encon-
traria no mesmo lugar espacial onde compararíamos
os tempos marcados pelos diferentes relógios. Cons-
tataríamos que o relógio a, por exemplo, marcaria o
maior tempo. o
Antes de examinar as consequências destes resulta-
dos, convém fazer duas observações. À primeira é que
as diferenças temporais At, marcadas pelos diversos
relógios no mesmo lugar espacial, constituem indubi-
tavelmente um fato objetivo, invariante para todas as
transformações contínuas. A segunda é que os tempos
At, medidos por todos estes relógios, correspondem a
comprimentos ou a Ar” somente se um sistema de co-
ordenadas e uma métrica forem escolhidos antecipada-
mente. Sem isto, os A7 não podem ser calculados. Este
sistema de coordenadas pode ser arbitrário.
Tomemos um sistema de referência
S(t,ã) (7 =0",27º, 2º),

isto é, um sistema de réguas e de relógios em repouso


mútuo, permitindo atribuir quadras de números aos
acontecimentos e às trajetórias. Não sabemos ainda se
Coleção CLE V.09
o Eletromagnetismo e a Relatividade Restrita 163

este sistema é inercial ou não. Mas suponhamos pri-


meiro que ele o sejae que a. métrica seja dada por nv.
Neste sistema, calculamos o AT e os Ar*, através das
fórmulas dadas acima (3. 71e3.7. 2), entre: os pontos
de partida e de chegada dos relógios 0,8... Os
pontos espaço-temporais de partida e de chégada são
os mesmos, mas as trajetórias C' diferem. Suponhamos
que Ar* para a trajetória de a seja o maior. Isto sig-
nifica que o movimento de a é o mais próximo de um
movimento retilíneo espaço- “temporal em S. Isto não
quer dizer que o movimento de a seja inercial e que
um sistema solidário a a seja inercial. Nós tínhamos
tomado relógios ao acaso e nada nos assegura que entre
estes relógios se encontre um cuja trajetória é a mais
longa possível entre os pontos de partida e de chegada.
Mas suponhamos que dispuséssemos de um estoque ili-
mitado de relógios que podemos fazer viajar entre dois
pontos do espaço-tempo. Neste caso, o relógio cuja
trajetória é a mais longa está muito próximo, ou tão
próximo quanto queremos do repouso no sistema S$.

e Figura 8.3
Coleção CLE V.09
164 Á Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

Tomemos agora um sistema de coordenadas arbi-


trário S'(t', x). Para reforçar estas idéias, suponhamos
que o relógio 5 esteja em repouso neste sistema $'. A
distância Ars: entre os pontos de partida e de chegada
será máxima neste sistema. Os outros Ar, dos outros
relógios, serão todos menores. Os Ar são calculados
pela fórmula 3.7.2.
Consideremos agora os tempos marcados pelos re-
lógios. Estes tempos marcados medem, em cada um
dos sistemas solidários de cada um dos relógios, uma
distância espaço-temporal máxima. Aliás, para o sis-
tema solidário, digamos, com o relógio 7, as trajetórias
calculadas dos outros relógios serão todas menores. Pa-
ra o sistema solidário a 8, as trajetórias calculadas dos
outros relógios serão igualmente menores, etc.
Suponhamos, novamente, que os ponteiros do reló-
gio a marcam o tempo maior entre todos os relógios.
Isto não nos autoriza a dizer que este tempo marcado
corresponde a uma distância máxima calculada em um
sistema inercial. E isto por duas razões. À primeira
é que não sabemos se este tempo máximo marcado
é verdadeiramente máximo, isto é, se ele é o maior
possível. Esta dificuldade, ignorada por Dorling, pode,
todavia, ser contornada recorrendo-se a um estoque,
em princípio, inesgotável, de relógios e a um processo
de convergência. À segunda razão repousa na não-
invariância universal de Ar, no sentido de que a métrica
diagonal-não é um invariante universal. Se utilizamos
uma métrica diagonal para calcular as distâncias em
qualquer sistema de referência, o que é tacitamente
pressuposto por Dorling, perdemos a invariância dos
valores escalares dos AT.
Coleção CLE V.09
O Eletromagnetismo e a Relatividade Restrita 165

Para ter a invariância dos Ar, é preciso mudar


de métrica quando passamos para um sistema não-
inercial:

Ar = ur da” de”)!= gu da” do”)?

Os Ar marcados por cada um dos relógios, e que cor-


respondem aos Ar em cada um dos sistemas solidários,
não têm significado por si próprios, independentemente
da especificação de um sistema de referência e da mé-
trica. O Ar sob a forma diagonal não é um invariante
universal. nn no
Para reforçar estas idéias, tomemos dois relógios a
e É que se encontrem em repouso nos sistemas Sa e
dp. Em Sa, Ata= Ary e em Sp, Ata= Arg. Mas
se os relógios estivessem em movimento relativo ace-
lerado, Ara não seria igual a Arg. Suponhamos que
Ata > Arg. Para poder concluir que o movimento de
a está mais próximo do repouso em um sistema iner-
cial, seria preciso poder calcular Ar, e Arg em um
sistema inercial, com a ajuda da métrica Nuv, € Ver se,
neste sistema, AT, é maior que Arg.
Examinemos agora a solução que Dorling pretende
dar ao problema da determinação do sistema inercial no
caso de dois sistemas em rotação relativa. Segundo ele,
poderíamos decidir com base nos tempos marcados por
relógios solidários às duas esferas em rotação relativa,
qual das duas está “em repouso” e constitui um sistema.
inercial (ou pelo menos “mais” inercial).
(...) segundo a relatividade restrita, as partículas
da esfera elipsoidal, e particulamente aquelas si-
tuadas sobre o equador, têm trajetórias espaço-.
temporais que não são linhas de tempo próprio
Coleção CLE V.09
166 — | A Inérciaãeo Espaço-Tempo Absoluto

máximo (...) O fato destas trajetórias de partículas


não serem-linhas de tempo próprio máximo pode
ser estabelecido empiricamente, comparando-se o
ritmo de um relógio fixado à esfera elipsoidal, em
seu equador, com o ritmo de um relógio previa-
mente contíguo à primeira e estacionário em relação
à outra esfera. À predição é de que o relógio fixado
à esfera elipsoidal se atrasará progressivamente em
relação ao outro relógio quando comparamos seus
tempos cada vez que eles passam um perto do ou-
tro. Predizemos exatamente o efeito oposto quando
comparamos um relógio fixado ao equador da ou-
tra esfera com um relógio estacionário em relação
à esfera elipsoidal. Estas duas predições podem
ser controladas empiricamente, e sem atribuir um
“estatuto particular a um sistema qualquer de re-
ferência. (1978, pp. 316-317)

Se o relógio fixado à “outra esfera” (51) marca um


tempo próprio máximo, ela está, segundo Dorling, em
movimento inercial, e constitui, pois, um sistema iner-
cial. A explicação causal do achatamento da esfera 5
funciona, então, perfeitamente, sem nenhuma circula-
ridade. À deformação da esfera S5 resulta de sua àce-
leração em relação a um sistema inercial (a esfera $1), e
é possível, segundo Dorling, determinar se um sistema
é inercial independentemente dos efeitos dinâmicos.
Mas se é verdade que o relógio de 55 se atrasa, isto
é, marca um tempo menor, em relação ao relógio 5,
quando eles coincidem espacialmente, isto não signi-
fica necessariamente, como vimos, que este tempo me-
dido pelo relógio de S, corresponde ao Ar mais elevado
possível, calculado em um sistema inercial (do qual não
dispomos antecipadamente) e que, portanto, S4 consti-
tui um sistema inercial. E
Coleção CLE V.09
O Eletromagnetismo e a Relatividade Restrita 167

As concepções de Dorling apresentam certas analo-


gias com as de Leibniz. Ambos admitem a cesura entre
movimento inerciale movimento não-inercial e tentam
articular esta distinção com a ajuda de propriedades
intrínsecas. Para Dorling, os movimentos inerciais são
caracterizados por um tempo próprio máximo. Para
Leibniz, os movimentos reais, que correspondem aos
movimentos não-inerciais, são aqueles cuja causa é in-
terna. Enquanto Leibniz tenta dar uma característica
intrínseca do movimento não-inercial, Dorling se es-
força para fazê-lo para o movimento inercial.
Se o tempo próprio máximo é relativo a um sistema
particular de referência, ele não pode mais ser idêntico
para todos os sistemas de referência; isto é uma con-
sequência inevitável das propriedades do grupo de in-
variância dos axiomas de Einstein em sua forma veto-
rial. À invariância universal do tempo próprio máximo,
em sua forma diagonal, condição indispensável para a
validade do raciocínio de Dorling, ao mesmo tempo que
a aceitação do grupo de Lorentz-Poincaré como grupo
de invariância da física, obriga-o a fazer do tempo pró-
prio máximo (e do movimento inercial) uma propri- -
edade do próprio corpo em movimento, independen-
temente de toda determinação em qualquer sistema
de referência. Mas um movimento inercial é exata-
mente um movimento retilíneo uniforme ou um tra-
Jeto espaço-temporal retilíneo em um sistema inercial.
Não podemos falar de distância Ar entre dois pontos
da trajetória de um movimento independentemente de
sua determinação em um sistema de referência e da
forma do tensor métrico válido neste sistema. Nes-
tas condições, os tempos medidos por relógios não re-
Coleção CLE V.09
168 | A Inérciaeo Espaço-Tempo Absoluto

presentam mais invariantes universais e o raciocínio de


Dorling desmorona.
Coleção CLE V.09
Capítulo 4

A Teoria Geral da
Relatividade

As apresentações tradicionais da teoria geral da re-


latividade ou teoria da gravitação de Einstein fazem-
na repousar em dois princípios, o princípio de equi-
valência e o princípio geral de covariância, aos quais
é preciso acrescentar o princípio geral de relatividade,
frequentemente identificado, incorretamente, com o
princípio de covariância. Para tentar esclarecer o sen-
tido destes princípios, cuja formulação varia segundo
os autores, examinaremos os fundamentos da teoria ge-
ral da relatividade através dos escritos de Einstein, de
Weyl e de Weinberg, para voltar em seguida à nossa
discussão sobre o espaço-tempo absoluto.

41 A Apresentação de Einstein

Einstein toma como ponto de partida de sua teo-


ria da gravitação a proporcionalidade! da massa gra-
vitacional m, e da massa inercial m;, que é um fato
experimental. A massa gravitacional aparece na lei de
gravitação de Newton onde desempenha o mesmo pa-

!Como Einstein fala de igualdade e não de proporcionalidade,


ele considera tacitamente o fator de proporcionalidade igual a
um, o que equivale a fixar a unidade de medida (1955, pp. 45 ss
e 1952, p. 114). |
Coleção CLE V.09
170 A Inércia e 9 Espaço-Tempo Absoluto

pel que a carga na. lei de Coulomb. Quanto à massa


inercial, ela. aparece nos axiomas da mecânica. Em
um campo de gravitação, criado por uma massa m, te-

Ainda que mi eem sejam conceitualmente distintas e


nada justifique a priori sua, proporcionalidade,
constatamos que todos os corpos sofrem a mesma
aceleração em um mesmo local do campo de gravita-
ção da Terra. Segundo a lenda?, Galileu teria jogado
simultaneamente dois corpos de massas diferentes do
alto da torre de Pisa para observar se eles atingiam o
solo ao mesmo tempo. À aceleração varia unicamente
em função da massa, que é a fonte do campo (aqui, a
Terra) e da posição (aqui, a altitude) do corpo con-
siderado neste campo de gravitação. Reescrevemos a
equação (4.1.1):

A experiência da torre de Pisa mostra que a aceleração


= a Mi ipa |
não depende da razão — que é uma constante. Isto
Mo

2G representa a constante de gravitação: G = 6,67 x 1078


erg cm/gr? e R a distância entre os centros de massa.
3Na realidade, Galileu nunca realizou esta experiência. Ver
Koyré (1966).
Coleção CLE V.09
AT coria Geral da Relatividade 17

é exatamente o princípio: de equivalência (PE) em sua


versão fraca, que se. escreve: |

mi=km, + (4.1.2)
A proporcionalidade entre a massa gravitacional ca.
massa inercial torna. impossível, para um observador
dentro de uma cabine : sem janela e “submetido a uma
força gravitacional externa, decidir através de expe-
riências mecânicas apenas (não ópticas) se esta força
resulta de uma aceleração em relação a um sistema
inercial ou da presença de um campo gravitacional uni-
forme (homogêneo e estático) no interior da cabine.
Istoé, os fenômenos da mecânica não permitem distin-
guir um campo inercial uniforme de um campo gravi-
tacional uniforme. o observador no interior da cabine
não pode decidir através de experiências mecânicas se
ele está em movimento uniformemente acelerado em
relação a um sistema inercial ou, ao contrário, se ele
está em repouso em um sistema inercial, mas subme-
tido à influência de um campo uniforme. As situações
1 e 2, esquematizadas abaixo, são indiscerníveis, ou di-
namicamente equivalentes. Na primeira situação, uma
força externa puxa o elevador para cima, tendo como
consequência o encurvamento da trajetória de um corpo
livre neste sistema. Na segunda situação, o elevador
permanece imóvel em relação a uma massa gravitaci-
onal situada abaixo dele, o que tem igualmente como
efeito o encurvamento da trajetória da bola.
Coleção CLE V.09
172. A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

Figura 4.1 o

O mesmo movimento, que não é nem retilíneo, nem


uniforme, na cabine, pode ser equivalentemente expli-
cado de duas maneiras diferentes. Vejamos o que diz
Einstein: et aÃ
“(...) o fato da igualdade da massa inercial e da
massa gravitacional, isto é, o fato da independência
da aceleração gravitacional da natureza da subs-
tância que cai, pode ser explicado da seguinte ma-
neira: em um campo de gravitação (de pequena ex-
tensão espacial), os objetos se comportam como em
um espaço livre de toda gravitação, se aí introdu-
zirmos, no lugar de um “sistema inercial”, um sis-
tema de referência que é acelerado em relação a um
sistema inercial. Se concebermos o comportamento
de um corpo em relação a este último sistema de
referência, como sendo causado por um campo de
gravitação “real” (não apenas aparente), é possível
tomar este sistema de referência como um “sistema
inercial” que se justifica tão bem quanto o sistema
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 173

de referência de origem. Desta forma, se conside-


rarmos possíveis campos de gravitação de extensão
arbitrária, (...) o conceito de “sistema inercial”
torna-se totalmente vazio. O conceito “aceleração
em relação ao espaço” perde todo significado, do
mesmo modo que o princípio de inércia e o para-
doxo de Mach. .
O fato da igualdade da massa inercial e da massa
gravitacional leva, naturalmente, ao reconhecimen-
to de que o requisito fundamental da teoria da rela-
tividade restrita (invariância das leis sob as trans-
formações de Lorentz) é muito estreito, isto é, que
uma invariância das leis deve também ser postulada
em relação a transformações não-lineares das co-
ordenadas no continuum quadridimensional. (1949,
pp. 65-7)

Neste texto, Einstein nos diz que o princípio de


equivalência “leva naturalmente” à invariância das leis
da natureza sob toda transformação diferenciável de
um sistema de coordenadas, isto é, ao princípio de co-
variância. Em outra parte, Einstein escreve:

O princípio de equivalência exige [grifo nosso), ao


examinarmos domínios galileanos, que é preciso
também admitir, como de igual dignidade, siste-
mas que não são sistemas de inércia, isto é, sis-
temas de coordenadas que, és felação aos siste-
mas de inércia, são suscetíveis de serem acelerados
ou de efetuarem um movimento de rotação. Se,
além disso, quisermos acabar radicalmente com a
polêmica questão sobre a razão objetiva da pre-
ferência dada a certos sistemas de coordenadas, se-
remos obrigados a admitir sistemas de coordena-
das que se movimentam de uma maneira qualquer.
Se procedermos de uma maneira radical, entrare- |
mos em conflito com a interpretação do espaço e do
Coleção CLE V.09
174 A Inércia eo Espaço-Tempo Absoluto

“tempo que, na teoria da relatividade restrita, nos


levou ao objetivo desejado. (1955, pp. 52- 3)

Quando Einstein fala de “invariância”, deveria an-


tes dizer “covariância”. Uma quantidade é invariante
quando é idêntica para todos os sistemas de coorde-
nadas: as grandezas escalares são invariantes. Uma
equação é covariante quando sua forma matemática não
se altera sob as transformações diferenciáveis, ainda
que os valores dos componentes das diversas entidades
matemáticas pudessem ser modificados (Ver Reichen-
bach 1958a, p. 236).
O princípio de equivalência, em sua forma fraca,
leva à indiscernibilidade dos campos de inércia e de
| gravitação, £, portanto, à equivalência dinâmica do sis-.
tema em repouso e do sistema acelerado, desde que os
campos sejam uniformes. Se passarmos para campos
não-uniformes, como o campo inercial presente sobre
o disco que gira, o princípio de equivalência não per-
mite estabelecer a indiscernibilidade global dos campos
de inércia e de gravitação É, portanto, a equivalência
dinâmica dos sistemas em repouso e dos sistemas em
rotação, isto é, o princípio geral da relatividade. Não
podemos considerar, apoiando-nos no princípio de equi-
valência, que um: disco que gira em relação às estre-
las é dinamicamente equivalente a estrelas que giram
em torno de um disco em repouso. E isto porque o
princípio de equivalência só tem um valor puramente
local nos campos não-uniformes, como é possível obser-
var a partir do seguinte exemplo.
deja uma cabine situada em um campo de gra-
vitação terrestre (não-uniforme), e que nela se encon-
tram duas bolas de bilhar. Se a cabine for puxada para
Coleção CLE V.09
“A Teoria Geral da Relatividade 175

cima, as bolas permanecerão nos cantos (situação 1).


Mas se a cabine cai em um campo de gravitação cen-
tral, as bolas aproximar-se-ão (situação 2).

Figura 4.2
Se colocarmos agora as bolas ao longo da mesma li-
nha de campo, a distância que as separa aumentará na
segunda situação, já que a força de gravitação é inver-
samente proporcional à distância, enquanto que per-
manecerá constante se a cabine for puxada para cima
(situação 1).

1. E o 2
Figura 4.3
Em um campo de gravitação espacialmente não-ho-
mogêneo, medidas suficientemente finas permitem dis-
Coleção CLE V.09
176 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

tinguir uma aceleração uniforme (quando a cabine é


puxada para cima) de uma aceleração não-uniforme
devida à presença de uma massa central. Veremos
que o princípio de equivalência implica que as forças
de gravitação, assim como as forças de inércia, sejam
representadas por grandezas matemáticas que podem
ser anuladas localmente por uma transformação não-
linear das coordenadas. Os componentes da conexão
afim Ds que representam as forças de inércia, po-
derão, pois, ser utilizados para representar as forças
de gravitação. Em todo caso, o caráter não-uniforme
do campo é um dado físico objetivo que não pode ser
anulado, qualquer que seja o sistema de coordenadas
escolhido, e será representado por um tensor de curva-
tura diferente de zero.
Como o princípio de equivalência só tem um va-
lor puramente local (como afirma Einstein, em uma
região de pequena extensão), ele não permite chegar
ao princípio geral de relatividade ou à equivalência di-
nâmica quando utilizamos campos de gravitação não-
uniformes. Trata-se aí de uma extrapolação que não é
de maneira alguma justificada pela experiência da torre
de Pisa. Esta extrapolação constitui precisamente o
princípio geral de relatividade: |

PGR: os fenômenos de gravitação e de inércia obede-


cem a leis que os tornam globalmente indiscer-
níveis.

O princípio geral de relatividade é exatamente a


afirmação da equivalência física e global dos campos
de inércia e de gravitação. Para que ele fosse satis-
Coleção CLE V.09
- A Teoria Geral da Relatividade | | 177

feito, seria preciso que o campo inercial que existe so-


bre um disco em rotação pudesse ser igualmente pro-
duzido por massas gravitacionais. Do princípio geral
de relatividade deduzimos imediatamente o. princípio
de covariância, isto é, deduzimos que as leis do campo
inercial-gravitacional se escrevem sob uma forma ten-.
sorial, covariante para. transformações contínuas, e não
necessariamente lineares, das coordenadas. Mas, con-
trariamente à opinião de Einstein, que parece identi-
ficar estes dois princípios, o princípio de relatividade
geral não é uma consequência lógica do princípio de
covariância.
As leis da natureza devem ser expressas por equa-
ções que valem para, todos os sistemas de coordena-
das, isto é, que são covariantes em relação a qual.
quer substituição [de. coordenadas transformadas]. |
E claro que uma teoria que satisfaz a este postu-
lado estará em conformidade com o postulado geral,
de relatividade. BR EP- MM

Mas a covariância, como exigência puramente for-


mal, pode ser satisfeita pela mecânica clássica +e pela
mecânica de Einstein (ver a seção 2. 3. 2), visto que é
possível conferir- lhe uma formulação que vale para o
conjunto dos sistemas de coordenadas. O que Einstein
quer dizer é que, ao contrário do que se passa nestas
mecânicas, não existe sistema global no qual os compo-
nentes da conexão afim sejam nulos em todos os lugares
(este sistema seria o sistema cartesiano). O princípio
geral de covariância enuncia-se então: Ê

PC: As leis da natureza se exprimem sob forma tenso-


rial em todos os sistemas de coordenadas; não
Coleção CLE V.09
I78 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

existe sistema de: coordenadas globais no qual


elas tomem a forma simples, vetorial.

A razão disto é que, na natureza, os campos de


gravitação não são uniformes; o que se traduz pela pre-
sença de uma curvatura (variável). Um espaço-tempo
curvo pode ser descrito em qualquer sistema de coor-
denadas: neste sentido, estes sistemas de coordenadas
são equivalentes.
Mas não se segue que as situações físicas de uma
Terra em rotação em relação às estrelas, e estrelas em
rotação em relação à Terra sejam dinamicamente equi-
valentes. Estas situações correspondem a uma curva-
tura diferente e, portanto, a uma realidade física dife-
rente (ver seção 4.5.2). O princípio de relatividade não
se segue, pois, de PC. |
" Até este momento só falamos de inércia e de gra-
vitação, sem entrar em considerações sobre a métrica.
Um sistema de coordenadas não é nada mais que uma
atribuição, arbitrária do ponto de vista métrico”, de
números a pontos do espaço-tempo, da qual não pode-
mos obter nenhuma informação sobre as distâncias que
separam estes pontos. Para mostrar que o princípio
geral de relatividade leva ao abandono da geometria
de Minkowski em campos de gravitação não-uniformes,
Einstein toma o exemplo do disco giratório, sobre o
qual reina um campo inercial estacionário, mas espaci-
almente não-uniforme. O argumento repousa, de modo
decisivo, sobre a equivalência física dos campos iner-
ciais e dos campos de gravitação, mesmo quando são
" “Basta que exista uma bijeção entre os pontos e os números
e que a pontos vizinhos correspondam coordenadas vizinhas.
Coleção CLE V.09
À Teoria Geral da Relatividade 179

não-uniformes,e, portanto, sobre o princípio geral de


relatividade.

Seja, de fato, K' um sistema de coordenadas cujo


eixo Z' coincide com o eixo Z de K e que gira
em torno deste eixo com uma velocidade angular
constante. Corpos rígidos, que estão em repouso
em relação a K”, podem estar dispostos de acordo
com as leis da geometria euclidiana? As leis de
posição dos corpos rígidos, como, aliás, as leis da
natureza, não nos são conhecidas diretamente em
relação a K”, considerando-se que este último não
é um sistema de inércia. Mas as conhecemos bem
em relação ao sistema de inércia K, e é por isso
que as julgamos em relação a este último. (1955,
p. 53) (Ver figura 44) |

No sistema de inércia K , barras rígidas em repouso


em relação ao sistema K”, em rotação em relação a
K, sofrem a contração de Lorentz. Segue-se daí que a
geometria euclidiana não é mais válida sobre o disco
giratório (desde que conserve o que Reichenbach de-
nomina definição normal de congruência*: as barras
rígidas comuns têm, por definição, o mesmo compri-
mento quando as transportamos em K'). Se decidirmos
modificar a definição de congruência de tal maneira
que o comprimento das barras rígidas varie em função
de sua posição ou orientação sobre K', em função dos
efeitos de contração puramente cinemáticos que elas
sofrem do ponto de vista de K, então, podemos con- .
servar a geometria euclidiana sobre K'. Um raciocínio
análogo vale para os relógios e o tempo. Se adotar-
mos a definição de congruência normal (esta condição
emma

“Ver, acima, a seção 2.3.1 (nota 6).


Coleção CLE V.09
180 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

é tacitamente pressuposta por Einstein), é possível con-


cluir que a geometria não é euclidiana nos campos de
gravitação não-uniformes a partir do princípio de rela-
tividade geral, mas não a partir do princípio de equi-
valência. | o
Não podemos definir o espaço e o tempo em relação
a K' da mesma maneira que o fizemos na teoria
da relatividade restrita em relação ao sistema de
inércia. Mas, segundo o princípio de equivalência
[aqui, Einstein deveria utilizar o princípio geral de
relatividade], K' pode também ser considerado co-
mo sistema “em repouso” em relação ao qual se ma-
nifesta um campo de gravitação (campos de forças
centrífugas e de Coriolis). Consequentemente, che-
gamos ao resultado de que o campo de gravitação
exerce uma influência sobre o continuum espaço-
temporal, ou que ele determina suas leis métricas.
Se a geometria tem por função exprimir as leis dos
corpos rígidos (considerados idealmente) ela não é
euclidiana no caso em que se manifestam campos
de gravitação. (1955, p. 53)
Ki
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 181

Por meio da definição normal de congruência, não


existe sistemas de coordenadas globais, isto é, para o
disco em seu conjunto, no qual seja satisfeita a geome-
tria plana de Minkowski.
Introduzimos na teoria geral da relatividade coor-
denadas quaisquer xo,Z1, 2, 23 que-permitem nu-
merar os pontos de uma maneira unívoca, de tal
modo que a acontecimentos espaço-temporais vizi-
nhos correspondam valores vizinhos das coordena-
das. A escolha destas últimas é, além disto, ar-
bitrária. Satisfazemos ao princípio de relatividade
no sentido mais amplo dando às leis uma forma
tal que elas permaneçam válidas para cada sistema
(quadridimensional) de coordenadas deste gênero,
isto é, que as equações que as exprimem são co-
variantes em relação a quaisquer transformações.
(1955, pp. 54-5) .

Este célebre raciocínio de Einstein leva a várias di-


ficuldades. | |
Em primeiro lugar, Einstein baseia seu argumento
em considerações unicamente espaciais. Em um pri-
meiro momento, através de um argumento que não ul-
trapassa o quadro da relatividade restrita, ele constata
que a geometria das barras rígidas, a geometria espa-
cial, não pode ser euclidiana sobre o disco giratório, por
causa da contração dos comprimentos. Em seguida, e
é aqui que o princípio geral de relatividade intervém,
ele conclui que, considerando-se que não podemos dis-
tinguir globalmente um campo inercial de um campo
de gravitação, é preciso abandonar a geometria eucli-
diana nos campos de gravitação. Ora, o que importa,
tanto na relatividade geral, quanto na relatividade res-
trita, não é o espaço, mas o espaço-tempo. E seria ne-
Coleção CLE V.09
182 Ea o A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto |

“cessário mostrar que nos campos não-uniformes, sejam


gravitacionais ou inerciais, não existe sistema global de
coordenadas espaço-temporais no qual a geometria de
Minkowski seja. válida. Certamente, poderíamos fazer
“o mesmo raciocínio a partir de relógios dispostos em
diversos lugares do disco giratório. Mas a combinação
dos dois, na maioria dos tratamentos do disco que gira,
“apresenta uma métrica espaço-temporal minkowskiana,
“mesmo que a parte espacial seja não-euclidiana (Ton-
nelat 1964, PP. 67ss. Ver também, mais adiante, a
| seção 4 6. Do |
Uma segunda. dificuldade já foi mencionada. Se
aceitarmos o raciocínio de Einstein, a geometria não-
euclidiana resulta da presença sobre o disco de um
| campo não-uniforme de acelerações. Para provar que
um campo de gravitação não-uniforme implica igual-
mente o abandono da geometria euclidiana, é preciso
“mostrar que os campos de gravitação são dinamica-
mente equivalentes a campos inerciais. É aqui que en-
tra em discussão o princípio de equivalência. Mas este
princípio só permite uma equivalência local da inércia
e da gravitação. Ora, para que o raciocínio de Eins-
tein seja válido, é preciso que os campos de gravitação
sejam globalmente equivalentes aos campos inerciais.
Isto quer dizer que o campo das forças observadas so-
bre o disco deve poder ser interpretado, seja como um
campo de inércia em um sistema de coordenadas no
qual o disco está em rotação (sistema K), seja como
um campo de gravitação em um sistema de coordena-
das no qual o disco está em repouso (sistema K'), seja
ainda como uma combinação dos dois em outros siste-
mas de coordenadas. Esta equivalência global, esta im-
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 183

possibilidade de discernir mecanicamente as situações


descritas acima, é precisamente o conteúdo do princípio
geral de relatividade (PGR), mas não do princípio de
equivalência. Reencontramos aqui as preocupações de
Mach, às quais teremos oportunidade de retornar.
Se aceitarmos que o raciocínio de Einstein pode ser
estendido ao espaço-tempo, vemos que em um campo
inercial não-uniforme, obtemos uma métrica variável
segundo a posição espaço-temporal. Se considerarmos
que os campos de inércia e de gravitação são global-
mente indiscerníveis (princípio geral de relatividade),
a geometria em campos de gravitação não-uniformes
deve igualmente ser descrita por uma métrica variável.
À presença dos campos de gravitação não-uniformes se
traduz por grandezas geométricas de quatro dimensões,
como a curvatura que pode variar de um ponto a ou-
tro e não pode nunca ser anulada, mesmo localmente,
qualquer que seja o sistema de coordenadas escolhido.
Por analogia com os exemplos espaciais tomados
por Einstein, compreendemos que a presença da curva-
tura espaço-temporal impede toda representação min-
kowskiana da variedade, da mesma maneira que não
podemos representar uma esfera por um plano. À in-
variância da curvatura explica as dificuldades encontra-
das pelos cartógrafos quando quiseram desenhar mapas
planos para representar a Terra. Este foi o problema
de Mercator. Não existe nenhuma transformação de
coordenadas globais da esfera que anule a curvatura
ou, de forma equivalente, não existe transformação di-
ferenciável que torne possível a passagem da esfera para
o plano preservando as relações métricas.
Observemos que tomando uma barra rígida, cujo
Coleção CLE V.09
184 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

comprimento varia segundo uma função adequada das


coordenadas (neste caso temos uma definição não-nor-
mal de congruência), é possível obter uma curvatura
“nula para uma região relativamente extensa da esfera
(não podemos fazê-lo para toda a esfera porque a to-
pologia da esfera é diferente daquela do plano). Uma
vez fixada a definição de congruência, todas as trans-
formações diferenciáveis das coordenadas preservarão
“a curvatura, nula neste caso. Do mesmo modo, no
plano, podemos escolher uma definição de congruência
não-normal de tal maneira que os coeficientes métricos
gi» medidos pelas barras rígidas comuns forneçam uma
curvatura não-nula. Novamente, toda alteração de co-
ordenadas no plano preservará esta curvatura não-nula.
Não existe geometria métrica intrínseca às variedades
contínuas, como já havia observado Riemann em 1854.
Uma vez escolhida a definição de congruência, a
passagem do plano para a esfera, ou o contrário, não
poderá ser efetuada de modo que as relações métricas
sejam preservadas. Do mesmo modo, a passagem do
sistema inercial K para o sistema em rotação K” não
pode conservar a curvatura quando mantemos a de-
finição de congruência normal (ou, na linguagem de
Reichenbach, quando decidimos considerar as forças
universais iguais a zero). Fisicamente, isto significa
“que está presente sobre o disco giratório K' um campo
inercial não-uniforme, presença que se manifesta pela
curvatura diferente daquela que existe no sistema K.
Seguindo a analogia com a esfera, constatamos que,
mediante uma definição de congruência, existe um sis-
tema global de coordenadas que goza de um privilégio
sobre todos os outros. Trata-se do sistema de coorde-
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 185

nadas definido pelas geodésicas. Este sistema possui


um significado métrico, como o sistema de coordena-
das cartesianas no plano, no qual as geodésicas são re-
tas euclidianas. As coordenadas atribuídas aos pontos
permitem deduzir as distâncias. Os sistemas cartesi-
anos locais sobre uma variedade curva (a esfera, por
exemplo) são, então, definidos pelos vetores tangentes
às geodésicas. o
Às mesmas observações são válidas para as varie-
dades quadridimensionais. Se quisermos que os instru-
mentos de medida, que geram localmente a geometria
de Minkowski, permaneçam congruentes depois de te-
rem sido transportadosº (congruência normal), pode-
mos definir um sistema de coordenadas geodésicas. Os
sistemas de referência construídos em cada ponto, com
ajuda dos vetores tangentes a estas geodésicas, são Os
sistemas locais de inércia.

Antes de estudarmos o procedimento de Weyl, é


preciso examinar a questão do grau de generalidade do
princípio de equivalência (Speiser 1979b). |
As experiências do tipo da torre de Pisa ou, mais
precisamente, aquelas de Dicke e Eôtvôs, estabelecem a
equivalência entre a massa inercial e a massa gravitaci-
onal apenas para os corpos com os quais foram feitas as
experiências. Podemos, então, nos perguntarmos quan-

SE preciso dizer, de fato, “depois de terem sido transpor-


tados”, e não “quando são transportados”, como encontramos
frequentemente na literatura. Pois a geometria espacial física
tem como objeto as relações de comprimento medidas por instru-
mentos que estão em repouso, e não em 1 movimento, no sistema
de coordenadas escolhido. '
Coleção CLE V.09
186 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

tas experiências são necessárias para nos assegurarmos


desta equivalência para todos os corpos. À tabela de
Mendeleiev nos mostra que 91 experiências são sufici-
entes. Mas como sabemos quea matéria é composta
de prótons, de nêutrons e de elétrons, poderíamos, em
princípio, reduzir o número de experiências a dois. En-
tretanto, não podemos fazer experiências com prótons
ou elétrons tomados separadamente, porque as forças
eletromagnéticas viciariam os resultados experimentais.
A equivalência da massa inercial e da energia, al-
cançada pela relatividade restrita, requer a verificação
do princípio de equivalência para as contribuições e-
nergéticas das quatro interações fundamentais. Ex-
periências realizadas sobre núcleos atômicos dão conta
automaticamente das diferenças de massa e, portanto,
das contribuições das interações fortes. Norvedt mos-
trou que o princípio de equivalência vale para a própria
interação gravitacional, isto é, a energia estocada no
campo gravitacional. Schiff mostrou o mesmo para as
forças eletromagnéticas. Graças aos trabalhos de Wein-
berg e Salam, que desenvolveram uma teoria unificada
dos campos eletromagnético e fraco, o princípio de equi-
valência pode ser estendido às interações fracas.
Segundo o princípio de equivalência em sua versão
fraca, é impossível distinguir o repouso da aceleração
para um sistema local com ajuda de experiências mecá-
nicas. Um físico “clássico” poderia contra-argumentar
que a distinção entre repouso e aceleração permanece
possível na base de experiências ópticas. Quando a ca-
bine é puxada para cima (situação 1, acima), a luz é
desviada de sua trajetória retilíinea. Quando a cabine
encontra-se em um campo de gravitação uniforme (si-
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 187

tuação 2), a luz não sofre desvio.

|
a

Figura 4.5

Ainda que isto não apareça nos textos citados a-


cima, Einstein baseia sua teoria da gravitação em um
princípio de equivalência mais amplo que a versão fraca.
À formulação das equações do campo não deixa ne-
nhuma dúvida quanto a isto. De fato, ele postula,
dando provas de uma audácia que não estava apoi-
ada na experiência naquela época, que nenhuma ex-
periência óptica poderá distinguir entre as situações 1
e 2. Isto está inteiramente de acordo com uma visão
epistemológica central na obra de Einstein. Do mesmo
modo que a relatividade restrita tinha postulado a equi-
valência física, e não somente mecânica, do repouso e
do movimento retilíneo uniforme, a teoria da gravitação
de Einstein estende esta equivalência, localmente, aos
sistemas acelerados. Esta mesma idéia motiva a tenta-
tiva de construir uma teoria unitária dos campos gra-
vitacional e eletromagnético. Considerando-se que não
Coleção CLE V.09
188 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

dispomos ainda de uma teoria unitária destes campos,


permanece possível, a partir da observação dos movi-
mentos de partículas carregadas em um campo eletro-
magnético, determinar se um sistema está em repouso
ou se está acelerado neste campo. Se tomarmos mais
uma vez uma cabine na qual se deslocam partículas
carregadas, estas últimas comportar-se-ão de maneira
diferente quando o elevador estiver em repouso ou em
movimento acelerado com relação ao campo.
Voltemos, agora, ao campo gravitacional. Da versão
fraca do princípio de equivalência, podemos deduzir,
como o faz Einstein, a forma covariante das leis da
teoria da gravitação, isto é, sua formulação tensorial,
idêntica, qualquer que seja o sistema de coordenadas
escolhido (PC). Mas esta versão fraca não exclui a
não- -equivalência dos referenciais locais em relação aos
fenômenos ópticos (como na teoria escalar: ver seção
4.4). Uma das originalidades mais notáveis da teoria
de Einsteiné o fato de postular a equivalência dos sis-
temas locais também para os fenômenos ópticos. À
situação 2, para Einstein, resulta em: |

Ea
2

Figura 4.6
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 189

Esta versão forte, que inclui os fenômenos ópticos,


do princípio de equivalência é uma condição necessária
à equivalência dos referenciais locais para a formulação
das leis da física. A indiscernibilidade das situações 1
e 2 para o conjunto dos processos físicos (colocando em
jogo todos os tipos de partículas e de interações) cons-
titui a versão hiperforte do princípio de equivalência e
é uma condição necessária e suficiente à equivalência
física dos sistemas locais em campos de gravitação.
Disto não se segue de modo algum que os campos
inerciais e gravitacionais não-uniformes sejam optica-
mente indiscerníveis. Trata-se aqui ainda de uma ex-
trapolação que deverá, ser justificada por experiências
ulteriores.
Podemos resumir as relações lógicas entre os três
princípios, o princípio de equivalência (PE), o princípio
geral de relatividade (PGR) e o princípio de covariância
(PC), com o seguinte quadro:

PE + PGR

PC

À discussão sobre o caráter fraco, forte ou hiper-


forte do princípio de equivalência não influi no esquema
acima. Ela só diz respeito ao tipo de fenômenos (Óptico,
etc.) observados na cabine e através dos quais é im-
possível discernir a situação 1 da situação 2. As relações
lógicas são preservadas, qualquer que seja o tipo de
fenômenos considerados.
Coleção CLE V.09
190 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

A forma forte implica, por exemplo, a covariância


geral não somente das leis da mecânica e do eletromag-
netismo, mas igualmente da óptica. Outro exemplo: a
relatividade geral dos sistemas de coordenadas para o
conjunto dos processos físicos implica a versão hiper-
forte do princípio de equivalência.
Vemos, também, a partir do esquema, que de um
ponto de vista lógico é o princípio de relatividade que
desempenha o papel fundamental, já que os dois outros
podem ser deduzidos dele. Do ponto de vista experi-
mental, ao contrário, é o princípio de equivalência que
tem prioridade. |

4.2 A Apresentação de Weyl

Se a idéia diretriz de Einstein era estender o princípio


de relatividade ao conjunto dos movimentos, tomando
por guia o princípio de equivalência, Weyl, em sua
obra Espaço, Tempo, Matéria (já um clássico da física),
parte do problema newtoniano da origem das forças de
inércia. E o requisito epistemológico que anima seu
procedimento não é mais um princípio de uniformidade,
mas um princípio de reciprocidade.

PRP: se uma entidade física provoca efeitos observá-


veis, ela mesma deve sofrer a reação dos objetos
sobre os quais age.

Onde se encontra a origem da força centrífuga e


das outras forças de inércia? Newton respondia:
no espaço absoluto. A resposta que a teoria da
relatividade restrita dá não é essencialmente dife-
Coleção CLE V.09
“A Teoria Geral da Relatividade | 191

rente daquela de Newton; ela torna responsável a


estrutura métrica do universo, que considera uma
de suas propriedades geométricas formais. Mas
aquilo mesmo que engendra a força deve possuir
uma realidade. Ora, a única realidade que pode-
mos admitir neste caso é a estrutura métrica; ela
própria deveria ser suscetível de variações e deve-
ria sofrer uma reação da parte da matéria. Nós só
podemos sair do dilema e é Einstein quem nos mos-
tra o caminho, retomando as idéias de Riemann e
aplicando-as não ao espaço tridimensional, mas ao
universo quadridimensional de Einstein-Minkowski.
(1922, pp. 191-2)
Não poderíamos exprimir mais claramente o pro-
blema jáj colocado por Newton da origem das forças Te-
ais de inércia, origem que ele situava em um movimento
acelerado em relação a uma entidade réal, o espaço
absoluto. Vimos, na primeira parte, que a mecânica.
clássica pós-newtoniana confere um sentido à noção
de aceleração absoluta sem conferi-lo, entretanto, à
noção de velocidade absoluta, nem a fortioriê à noção de
posição absoluta. Mas cabe perguntar, então, por que
uma aceleração em um. sistema inercial provoca efei-
tos de inércia, enquanto que um movimento retilíneo
uniforme não os produz, Por outro lado, um sistema
inercialé considerado pela mecânica clássica como uma
entidade. ideal, desprovida de qualquer realidade on-
tológica, e que dificilmente poderia ser a causa de efei-
tos reais. A solução deste problema passa, por um
lado, pela geometrização da inércia e, por outro, pela
ontologização da métrica. |
Para as forças centrífugas, a geometrização é ime-
diata: seu aparecimento deve-se a um desvio da tra-
jetória do móvel em relação à estrutura das geodésicas
Coleção CLE V.09
192 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

euclidianas em um sistema inercial. Considerando-se


que corpos podem ser acelerados ao longo de uma tra-
jetória retilínea, a mecânica clássica não oferece um
quadro simples para a geometrização, no sentido forte
de metrização, da totalidade dos fenômenos de inércia.
Como vimos na primeira parte, temos somente uma
geometrização em um sentido fraco, já que a estrutura
ihercialé idêntica à estrutura afim no espaço-tempo
galileano e que esta última não é redutível à métrica.
Em compensação, a mecânica de Einstein explica
os efeitos de inércia por um desvio em relação não
apenas aos caminhos mais retos (a estrutura afim),
mas também aos caminhos mais curtos (a estrutura
métrica), já que a conexão afim, dada pelos símbolos
de Christoffel, é redutível à métrica. Explicação sig-
nifica aqui dedução. Uma explicação geométrica da
inércia consiste em inferir a presença de forças iner-
ciais a partir das características geométricas da tra-
jetória seguida por um corpo em um sistema inercial.
Se a trajetória é retilíinea no espaço-tempo, não ob-
servamos efeitos inerciais. No caso contrário, observa-
mos tais efeitos. O princípio de causalidade determina
que efeitos reais tenham uma causa real. Os efeitos
de inércia devem, por conseguinte, encontrar sua ori-
gem em um desvio em relação a uma estrutura métrica
real. Esta já era a opinião de Newton. Mas alguns
de seus sucessores renunciaram a procurar uma ex-.
plicação das forças de inércia e consideraram o espaço
(e o espaço-tempo) como alguma coisa puramente ideal
ou, como diz Weyl, formal. Afirmar a realidade on-
tológica do espaço-tempo, ou pelo menos de sua estru-
tura métrica, responde à exigência filosófica ou mais
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 193

precisamente epistemológica, de explicação causal das


forças de inércia.
Se seguindo Newton, Leibniz, Mach” e Weyl admi-
timos que as forças de inércia são reais e que requerem
uma explicação, falta ainda chegar a um acordo sobre
o tipo de explicação admissível.
Newton acreditava que um espaço absoluto imutável
era necessário para a explicação das forças de inércia e,
ao mesmo tempo, como fundamento de sua mecânica.
Como às forças de gravitação estão presentes em toda
parte, o espaço absoluto deveria ser imaterial e inob-
servável. Leibniz rejeitao espaço absoluto porque,
sendo inobservável, não pode servir para determinar
o movimento; o movimento absoluto é desprovido de
todo significado empírico e não se pode recorrer a ele
para explicar os fenômenos inerciais. Mach, por sua
vez, descarta de imediato toda identidade inacessível
à percepção sensível. É preciso, então, ou renunciar a
uma explicação geométrica da inércia (Leibniz a fun-
damenta no dinamismo interno da substância), ou ad-
mitir que o espaço, ou mais exatamente sua estrutura
métrica, deixa de ser absoluto no sentido físico e so-
fre, do mesmo modo que as outras realidades físicas, a
influência da matéria e da energia. À segunda alter-
nativa parece, à primeira vista, satisfazer às exigências
empiristas. Se é, sem dúvida, um exagero pedir que
o campo métrico seja acessível à percepção sensível,
não é exagerado exigir quea estrutura métrica esteja
relacionada, de preferência de um modo unívoco e se-
"Ainda que tente eliminar a noção de força, para substituí-la
pela noção puramente cinemática de aceleração, Mach considera
real a aceleração (Bunge, 1966).
Coleção CLE V.09
194 A Inércia e o Espaço- Tempo Absoluto

gundo uma lei matemática precisa, com a distribuição


de matéria-energia, que, por sua vez, é observável, pelo
menos em princípio. Riemann já havia formulado esta
exigência: |

É preciso (...) ou que a realidade sobre a qual o


espaço é fundado forme uma variedade discreta, ou
que o fundamento das relações métricas seja procu-
rado fora dele, nas forças de ligação que agem nele.
(Riemann 1959)

Estas forças de ligação, ou de atração, podem ser, e


são segundo Einstein, as forças de gravitação, que têm
sua fonte (observável) na distribuição de matéria e de
energia.
Weyl se apoia na interpretação métrica da inércia
já alcançada pela relatividade restrita e afirma a rea-
lidade desta última e sua dependência em relação ao
conteúdo material do universo, isto em virtude de um
princípio de reciprocidade (PRP) segundo o qual toda
causa física deve, por sua vez, ser suscetível de ser afe-
tada por agentes físicos. Não existe lugar nas ciências
da natureza para entidades como o “primeiro motor
imóvel”? de Aristóteles ou o espaço absoluto de New-
ton: ou uma entidade ou estrutura é responsável pela
ocorrência de fenômenos físicos, e é igualmente sub-
metida à mudança, ou é imutável, mas não tem seu
lugar na física. O espaço-tempo não pode ser a causa
dos fenômenos inerciais sem ser também afetado pelos
acontecimentos físicos. É preciso, pois, exprimir sua
estrutura de maneira que ela possa variar em função
do conteúdo material* e, portanto, das coordenadas.

8Precisamente, a energia e o momento. Ver seção 4.4.


Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 195

Visto que a inércia é devida à estrutura métrica, é esta


última que necessita ser concebida de maneira dinâmica
e reescrita sob uma forma geral como Riemann j já havia
proposto.
Notemos que a abolição do caráter absoluto no sen-
tido físico do espaço-tempo só diz respeito aqui à sua
estrutura métrica. À continuidade, a quadridimensio-
nalidade, a existência de um plano tangencial em cada
ponto, etc. permanecem absolutos no sentido físico.
Isto é legítimo na medida em que estas propriedades
não desempenham um papel causal na explicação de
efeitos que variam em função das coordenadas, sem
o que o princípio de causalidade recíproca deveria ser
aplicado.
A forma quadrática riemanniana gu(q, t)dg"dg”
(onde q“ e q” representam coordenadas curvilíneas
quaisquer) é covariante, isto é, sua forma ou seu caráter
tensorial não é modificado sob uma transformação di-
ferenciável das coordenadas, ainda que os componentes
do tensor métrico possam mudar de valor. Weyl enun-
cia, sem nomeá-lo, o requisito da covariância:
As leis da física exprimem-se agora por meio de
relações entre tensores, que devem ser invariantes
para toda mudança de coordenadas q”; ao lado
das grandezas de estado físicas, os gyv da forma
quadrática entram na expressão destas leis. (1922,
p. 192)
Weyl prossegue:
A exigência que nos impõe o ponto de vista da
relatividade, é assim realizada, de acordo com a
experiência, se consideramos os gy» como grande-
zas de estado físico às quais corresponde uma reali-
dade: o campo métrico (...) Nestas circunstâncias,
Coleção CLE V.09
196 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

há uma invariância (...) frente a quaisquer trans-


formações (...) Se admitirmos transformações quais-
quer, percebemos bem que um sistema cartesiano
não se distingue de modo algum de um sistema de
coordenadas análogas quaisquer. A ezistência de
uma geometria independente da física está defini-
tivamente comprometida (...). (1922, p. 192)

Esta passagem mostra claramente que para Weyl


a covariância, como exigência puramente formal, po-
dendo ser satisfeita pelas mecânicas de Newton e de
Einstein, não é uma condição suficiente para o aban-
dono da geometria absoluta no sentido físico, mas so-
mente uma condição necessária. É preciso, além disso,
que o campo métrico corresponda a uma realidade física
(e isto é garantido pelo princípio de reciprocidade) para
que os valores dos componentes da métrica não sejam
um simples reflexo da escolha do sistema de coordena-
das, mas sejam determinados em parte pelo conteúdo
material. Nestas condições, não é mais possível anu-
lar globalmente os símbolos de Christoffel e o sistema
cartesiano perde seu privilégio físico. Todos os siste-
mas de coordenadas são equivalentes de um ponto de
vista físico: a mesma realidade física (um espaço-tempo
curvo) é descrita em todos os sistemas de coordenadas e
não existe sistema global no qual as leis do movimento
tomem a forma vetorial. Segundo Weyl, chegaríamos,
assim, ao princípio geral de relatividade (PGR).
Tendo introduzido a forma métrica fundamental,
podemos formular as leis da natureza de tal ma-
neira que elas sejam invariantes para quaisquer
transformações das coordenadas; é uma possibili-
dade de existência matemática e não um caráter
distintivo destas leis. Damos um novo passo quando
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade | 197

admitimos que a métrica do universo não é dada a |


priori, mas que a forma quadrática que à repre-
senta depende da matéria através de leis também
invariantes. Apenas quando este passo é dado al-
cançamos uma teoria da relatividade geral. Ela
permite, então, resolver o problema da telatividade
do movimento. (Weyl 1922, P. 198).
Mas se entendemos por “relatividade do movimen-
to”, como Weyl parece querer dizer na passagem acima,
a equivalência dinâmica dos movimentos eo princípio
geral de relatividade, não é exato dizer que o princípio
de reciprocidade permite obter à relatividade ou a equi-.
valência dinâmica. |
“Seo princípio de reciprocidade permitisse chegar ao
princípio geral de relatividade, ele levaria ao princípio
de equivalência, j já que PEé uma consequência de PGR,
como vimos na apresentação de Einstein; se os campos
de inércia e de gravitação | são globalmente equivalentes,
eles também o são localmente. Mas o princípio de reci-
procidade éé apenas uma condição necessária de PGR.
Não é porque PRP conduz ao abandono do sistema
cartesiano global que um campo inercial não-uniforme
é equivalente a um campo. de gravitação adequada-
mente escolhido; ora, é isto que é pedido por PGR.
Weyl deve récorrer, então, ao princípio de. equivalência |
o que de fato ele faz (1922, pp. 196-7), para estabelecer
a conexão entre a inércia é a gravitação. Entretanto,
o princípio de equivalência . só oferece uma indiscerni-
bilidade local, e não global, dos campos de inércia e
de gravitação, e é a equivalência global que é reque-
rida pelo princípio geral de relatividade. Portanto,
mesmo recorrendo ao princípio de equivalência, além
do princípio de reciprocidade, não chegamos ainda à
Coleção CLE V.09
198 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

equivalência dinâmica. As relações lógicas entre os di-


ferentes princípios estão resumidas no quadro seguinte:

PRP

Weg insisté no caráter puramente formal da co-


“variância em oposição ao que ele chama a relatividade
física do movimento. Esta última só pode ser satis-
feita se não existem mais sistemas globais distintos de
um ponto de vista dinâmico. Para tanto, é preciso
que a conexão afim e o tensor métrico possuam uma
realidade física suscetível de reagir à matéria-energia
(PRP). Esta realidade física é, definitivamente, como
veremos, a curvatura. O espaço-tempo curvo pode ser
equivalentemente descrito por qualquer sistema de co-
ordenadas: não existe sistema privilegiado global no
qual a conexão afim e, portanto, a curvatura (esta é
uma função das derivadas primeiras dos 1) anulem-
se. Isto exprime o princípio de covariância (PC) de
Einstein (e não somente a simples possibilidade de es-
crever as leis sob forma covariante) e esta é uma con-
sequência. de PRP, já que é em virtude deste princípio
que a métrica não está mais congelada e dá lugar a uma
curvatura variável.
Porém, mais uma vez, PC não é ainda o princípio
geral de relatividade. E sobre este ponto, falta clareza à
Coleção CLE V.09
Á Teoria Geral da Relatividade | — 199

exposição de Weyl. Para que PGR seja satisfeito, é pre-


ciso, mas não é suficiente, que possamos descrever um
campo inercial qualquer ou um campo de gravitação
qualquer em um sistema de coordenadas qualquer. É
preciso, além disso, para ter PGR, que um campo iner-
“cial não-homogêneo, sobre uma plataforma em rotação,
por exemplo, possa ser fisicamente realizado sobre uma.
plataforma
em repouso circundada por massas em mo-
vimento. Ora, isto não é uma consequência
de PRP.
O princípio de reciprocidade tem a vantagem de
enfatizar a realidade das forças de inércia. Para Weyl,
o campo métrico variável substitui o espaço absoluto na
explicação das forças de inércia que concebe, seguindo
Newton, como forças de. reação:

Se em um vagão restaurante, que se desloca sobre


uma curva de pequeno raio, os copos caem, ou se
em uma fábrica, um volante em rotação explode,
não podemos dar conta destes fenômenos pela ex-
plicação newtoniana da ação de uma “rotação ab-
soluta”, mas diríamos, antes, que estes fenômenos
resultam do “campo métrico ou, mais exatamente,
da conexão afim que deriva dele. O princípio de
inércia de Galileu mostra que no universo, há uma
“resistência” que dirige o movimento de um corpo
abandonado a ei próprio, de tal maneira que, para
desviá-lo desta trajetória necessária, é preciso apli-
“car forças exteriores aos corpos. Este “campo de
resistência” que é a realidade, é o que chama-
mos anteriormente a “conexão afim”. Se o corpo
se desvia graças a forças exteriores, a resistência se
manifesta por forças de reação [grifo nosso], a força
centrífuga, por exemplo. Se o estado do campo de
resistência varia, os aspectos sucessivos distinguem-
se pela influência das massas existentes no uni-
verso. (1922, pp. 193-4)
Coleção CLE V.09
200 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

É fundamental não confundir três elementos con-


ceitualmente distintos na física clássica, mas que são
identificados na teoria geral da relatividade, a saber: o
campo de inércia ou o campo afim, o campo métrico e
o campo de gravitação. |
Começando pelo campo inercial, este é represen-
tado pelos componentes da conexão afim TA“vs COMO Na
mecânica clássica. Sua lei de transformação é obtida
a partir do postulado de que a derivada covariante de
um vetor é um tensor. À derivada covariante é a ge-
neralização da derivada de um campo vetorial em um
sistema de coordenadas quaisquer.
Estes Da não são os componentes de um tensor.
Este ponto é importante, pois se os na fossem com-
ponentes de um tensor, não poderiam representar ade-
quadamente as forças de inércia. De fato, se os com-
ponentes de um tensor são todos idênticos a zero em
um sistema, eles também o serão em qualquer outro
sistema. Em virtude do princípio de equivalência, deve
existir um sistema de referência local no qual os ra, se
anulem. Em contrapartida, as forças de inércia não são
nulas em todos os referenciais.
Em um espaço-tempo onde q” designa os compo-
nentes de um vetor tangente à curva, temos o primeiro
axioma generalizado de Einstein:

ES É sds? dgt dg” =0.


[º dr dr w dr dr

Esta equação dos caminhos mais retos está escrita


em coordenadas curvilíneas q” quaisquer, eT é o tempo
próprio.
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 201

Generalizemos agora a segunda equação de Eins-


tein para coordenadas curvilíneas quaisquer de quatro
dimensões, da mesma maneira que tinhamos feito para
a segunda equação de Newton para três dimensões:
v

Er: Moo (SE +, =D


eq E) =".
dr ww dr dr) *

Na ausência de forças externas (Q? = 0), a equação


acima implica que a derivada covariante da velocidade
se anule ao longo da trajetória, contanto que tome por
parâmetro o tempo próprio 7º, para os corpos de massa
positiva. Uma trajetória livre ou inercial é tal que a
derivada covariante da velocidade se anula: o vetor de
velocidade instantânea, tangente à trajetória em um
ponto, permanece paralelo a si próprio quando passa-
mos para um ponto vizinho.
Podemos agora perguntar qual deve ser a estrutura
do espaço-tempo para que a equação dos caminhos mais
retos seja dedutível de um princípio variacional do tipo
ó Jdr = 0. Se a métrica é uma forma quadrática rie-
manniana, é possível definir a conexão afim com ajuda
da métrica:

Obtemos a tes

dd à 1 dat dg”

Podemos igualmente tomar um parâmetro À = ar + b.


Coleção CLE V.09
0 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

É um fato experimental notável que as barras rígidas


comuns e os relógios (segundo a definição normal de
congruência) definam uma métrica que permite formu-
lar os símbolos de Christoffel que, por sua vez, deter-
minam a estrutura inercial. À estrutura métrica ou
geodésica dos caminhos mais longos (já que correspon-
dem a um tempo próprio mázimo) corresponde à à estru-
tura afim ou inercial, aquela dos caminhos mais retos.
Este resultado, já obiido pela mecânica de Einstein,
vale para sistemas de coordenadas quaisquer.
“Quanto ao campo de gravitação, eleé uma entidade
física real relacionada com a distribuição. de matéria e
de energia. Ora, o princípio de equivalência exprime
justamente a identificação local da inércia e da gra-
vitação.. Como a inércia é formulável em função da
métrica, o campo de gravitação é representado pelos
Da. Uma partícula livre, submetida apenas à força de
gravitação, percorre uma geodésica do espaço-tempo
de Riemann. Todo desvio do. móvel em relação às
geodésicas, resultante, por exemplo, de uma interação
eletromagnética, leva ao aparecimento de forças de rea-
ção que podemos qualificar de i inerciais. Entretanto,
os móveis sobre os quais só se exercem forças de gra-
vitação não dão lugar: a uma força de Teação inercial
dirigida em sentido oposto. Por assim dizer, as forças
de inércia são integradas ao campo de gravitação: lo-
calmente, não sé pode mais distinguir os dois campos.
Quando uma cabine cai ou quando gira em torno da
Terra, ela percorre uma geodésica do espaço-tempo e
um observador situado nesta cabine tem a impressão
de não estar submetido a nenhuma força.
É interessante introduzir aqui a distinção entre um
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 203

princípio de equivalência no sentido ativo e um princípio


de equivalência no sentido passivo (ver por exemplo
Pietenpol e Speiser 1975, p. 156). O princípio de equi-
valência (versão fraca) passivo consiste simplesmente
em afirmar a proporcionalidade da massa gravitacional
c da massa inercial. O princípio de equivalência ativo
pede que a força que um corpo éxerce sobre um ou-
tro seja igualmente proporcional a sua, própria massa
inercial. Isto significa que os corpos, ao produzirem
o campo, submetem-se igualmente a ele. Daí resulta
uma extensão do princípio de ação e reação: existe uma
junção recíproca entre os campos e as fontes, Já que
os potenciais de gravitação são os componentes do ten-
sor métrico, estes não somente exercem uma influência
sobre a matéria, mas sofrem igualmente sua influência.
Vemos que esta extensão do princípio de equivalênciaé
igualmente uma consegiência do princípio de reciproci-
dade de Weyl. Como observa David dpeiser, podemos
dizer que, em um sentido generalizado, o princípio de
ação e reação vale também para as forças de inércia.
Há uma acoplagem reciproca entre o campo de inércia
e a matéria-energia.

A gravitação não é mais, como era para Newton,


uma força externa. Revela-se, por natureza, idênticaà
força de inércia reppesentáda pelos símbolos de
Christoffel. Já que estes últimos são função de deri-
vadas primeiras da métrica, a gravitação encontra sua
origem no próprio espaço-tempo e se torna uma força
incrcial e interna. A métrica, por sua vez, abandona
sua imutabilidade, e passa a depender do conteúdo ma-
terial. Assim, por intermédio da métrica, a inércia é,
Coleção CLE V.09
204 A Inércia e o Espaço-Tempo. Absoluto

de alguma forma, exteriorizada. Assistimos, pois, a um


duplo procedimento: uma metrificação da gravitação,
de um lado, e de outro, a dependência da inércia em
relação ao conteúdo material, ambas decorrendo do
princípio de equivalência. Desfaz-se, assim, a distinção
newtoniana entre forças externas, para as quais pode-
mos apontar uma causa observável, e forças internas,
para as quais não podemos atribuir outra causa que
um espaço-tempo, por natureza, inobservável. Certa-
mente a inércia continua a ter sua fonte no espaço-
tempo, no campo métrico, mas sua fusão com a gra-
vitação lhe confere, pela mediação da métrica, uma ori-
gem parcialmente!º observável, a saber: a distribuição
de energia e de matéria.
Resumamos, rapidamente, o procedimento de Weyl.
Os campos inerciais e métricos são identificados pela te-
oria da relatividade restrita. Ora, a inércia é uma força
real: a conexão afim e a métrica devem, portanto, ter
uma realidade ontológica. Em virtude de um princípio
de causalidade recíproca, o que é real, isto é, aquilo que
produz efeitos físicos, deve ele próprio sofrer a ação de
agentes físicos. À métrica, e suas derivadas segundas,
que permitem definir a curvatura (ver mais adiante), é
dependente do conteúdo material. Ela não está mais
congelada . e se escreve sob uma forma riemanniana co-
variante que garante a geometrização da inércia. Mas
apenas desta forma não chegamos ao campo de gra-
vitação:é preciso recorrer ao princípio de equivalência.
De fato, poderia ocorrer que os campos inerciais e gra-
vitacionais obedecessem a equações do campo diferen-
* TºJá que existem soluções vazias das equações do campo: ver
seção 4.7.
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade — 205

tes: o que não é proibido pelo princípio de reciproci-


dade. Como o princípio de equivalência só exprime a
identificação local da inércia e da gravitação, não te-
mos ainda a equivalência dinâmica dos campos inerci-
ais e dos campos de gravitação : não- “uniformes, isto é, O
princípio geral de relatividade. |

4.3 A Apresentação de Weinberg

Assim como Einstein, Weinberg toma como ponto


de partida o princípio de equivalência (PE). Mas vai.
abandoná-lo rapidamente em favor de um outro prin-
cípio que ele denomina. princípio de covariância geral
(PCW), distinto do princípio « de covariância de Einstein
(PC), enunciado acima, e que ele considera uma, for-
mulação “alternativa” ; mas mais manejável, do princi-
pio de equivalência. Weinberg dá a seguinte formulação
do princípio de equivalência:

(.. ) em cada ponto espaço-temporal, é possível


escolher um “sistema de coordenadas localmente
inercial” tal que, no interior de uma região sufici-
entemente pequena em torno deste ponto, as leis.
da natureza tomem a mesma forma que nos siste-
mas cartesianos na ausência de gravitação. (1972,
p. 68)
Notemos de imediato que Weinberg fala das leis da
natureza, isto é, do conjunto de leis físicas e não so-
mente da mecânica: trata-se da versão forte do prin-
cípio de equivalência. Supondo-se, que não é garan-
tido por PE, que a mecânica de Einstein é válida na
ausência de gravitação, o princípio de equivalência nos
diz que em um campo de gravitação não uniforme é
Coleção CLE V.09
206 — Alnérciaco Espaço-Tempo Absoluto

possível encontrar localmente um sistema de referência,


no qual a mecânica de Einstein é verdadeira e, por con-
seguinte, as estruturas inerciais e métricas são pseudo-
Eucnsianass, Localmente significa, matematicamente,
“em um ponto espaço- temporal”. É preciso não ape-
nas que a métrica possa tomar a forma diagonal “” de
Minkowski neste ponto, mas que as derivadas primeiras
dos coeficientes métricos (e, portanto, os símbolos de
Christoffel e a conexão afim) se anulem neste mesmo
ponto. Fisicamente, o sistema-pseudo-euclidiano local
pode variar em extensão segundo o campo, o problema
estudado e a precisão dos instrumentos de medida uti-
lizados. É isto que Weinberg entende por “uma região
suficientemente pequena”.
Se aceitarmos a mecânica de Einstein na ausência
de gravitação e a coincidência da estrutura inercial e
da estrutura métrica que faz parte dela, o princípio de
equivalência nos leva diretamenteà geometria de Ri-
emann. Existe, de fato, uma analogia estreita entre
o princípio de equivalência e o princípio do “euclidia-
nismo local” do qual partia Gauss em sua teoria geral
das variedades quaisquer.
Gauss supunha que em todo ponto. de uma su-
perfície curva poderíamos construir um sistema de
coordenadas localmente cartesiano no qual as dis-
tâncias obedecessem à lei de Pitágoras. Devidoa.
esta analogia profunda, deveríamos esperar que as
leis de gravitação manifestassem uma grande seme-
lhança com as fórmulas da geometria riemanniana.
Particularmente, a hipótese de Gauss implica que
todas as propriedades intrínsecas de uma superfície
curva possam ser descritas em função das deriva-
das 07º /0q" da função xº(q”), que define a trans-
formação q — z de um sistema geral de coordena-
Coleção CLE V.09
À Teoria Geral da Relatividade 207

das que cobre a superfície em direção ao sistema


localmente cartesiano xº, enquanto que o princípio
de equivalência nos diz que todos os efeitos de um
campo de gravitação podem ser descritos em ter-
mos de derivados 0xº/0q" da função zº(q), que
define a transformação das coordenadas do “labo-
ratório” q" em direção às coordenadas localmente
inerciais xº.. Além disso (...), as funções geome-
tricamente pertinentes destas coordenadas são as
quantidades Inv: (1972, PP. 8- 9)

O princípio de equivalência implica que a inércia


seja indiscernível da gravitação em um campo de gra-
vitação uniforme, isto é, estático e homogêneo, e lo-
calmente nos outros; portanto, queé possível compen-
sar a gravitação em um sistema local convenientemente
acelerado. Isto só implica a geometria de Riemann se.
a geometria é Plana na ausência de gravitação. Do
contrário, nãoé possível afirmar que existe um espaço
tangencial em todo ponto, e a geometria de Riemann é
inaplicável. Como se supõe verdadeira a mecânica de
Einstein na ausência de gravitação, a geometria pode
ser considerada localmente minkowskiana. O espaço-
tempo admite, em cada ponto, um espaço tangencial
pseudoeuclidiano: temos a geometria de Riemann (no
sentido geral e não no sentido restrito de geometria
elíptica). Sendo dado que a métrica de Minkowski é
uma forma quadrática, ela não pode se aproximar lo-
calmente de métricas não-quadráticas, não- riemannia-
nastl,
HExiste uma outra justificação do caráter minkowskiano da
métrica a partir da livre mobilidade das barras rígidas e dos
relógios (teorema generalizado de Helmholtz-Lie). Ver Weyl
(1952, pp. 119-28).
Coleção CLE V.09
208 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

Em seguida, Weinberg deduz as equações do movi-


mento para uma partícula livre, submetida unicamente
à força de gravitação. Em virtude do princípio de equi-
valência, existe um sistema local no qual a primeira lei
de Einstein é válida. Basta, então, reescrevê-la em um
sistema de coordenadas q“ quaisquer, e obtemos uma
equação familiar: |

é
er, pa dg dg” 9.

dr À E dr dr

com dr? = gu dytdo”.


Weinberg enuncia, depois disto, sua versão do prin-
cípio geral de covariância (PCW) que ele tomará como
base da teoria da gravitação. É importante ver que este
princípio difere do princípio geral de relatividade e não
se limita também a uma exigência puramente formal
quanto à expressão das leis da gravitação.
(...) uma versão alternativa do princípio de equi-
valência, conhecida sob o nome de princípio geral
de covariância. Estipula que uma equação física
e válida em um campo geral de gravitação [uni-
forme ou não-uniforme] se são preenchidas duas
condições:
1. A equação vale na ausência de gravitação. Isto
é [grifo nosso), ela se conforma às
à leis da relativi-
dade restrita quando o tensor métrico guy é igual |
ao tensor de Minkowski Ny € quando a conexão
afim ra, se anula. |
2. À equação é geralmente covariante. “Isto é, ela
preserva sua forma sob uma transformação geral
das coordenadas: z — q. (1972, p. 192)

À segunda condição acima é exatamente o requi-


sito da formulação covariante que, como vimos, impõe
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade | 209

apenas uma condição formal, desprovida de conteúdo


físico, à expressão das leis da natureza. O princípio de
covariância de Weinberg (PCW?)é evidentemente mais
forte que o simples requisito de covariância: do pri-
meiro deduzimos imediatamente o segundo, mas não o
inverso.
Segundo Weinberg, PCW é dedutível do princípio
de equivalência. PE. E preciso demonstrar, apoiando-
se em PE, que se uma equação satisfaz às condições
1 e 2 acima, ela é válida, então, em qualquer campo
de gravitação (uniforme ou não-uniforme). Tomamos |
aqui a primeira condição em um sentido não-restritivo
(contrariamente ao que diz Weyl na passagem acima,
“quando utiliza a expressão “isto é”) sem afirmar que
a mecânica de Einstein seja verdadeira na ausência de
gravitação. | o :
PE nos diz que em cada ponto do espaço-tempo,
com ou sem campo de gravitação, uniformé ou não-
uniforme, existe um sistema de referência lócal no qual
as leis da natureza são as mesmas -que na ausência de
gravitação (sem especificar que estas leis são aquelas
da mecânica de Einstein). PE implica as condições 1
e 2. Resta mostrar que uma equação que satisfaz a 1
e a 2 é verdadeira em qualquer campo de gravitação.
Isto se aplica imediatamente a um campo uniforme. Se
a equação vale na ausência de gravitação (condição 1),
ela vale localmente em um campo qualquer, em virtude
de PE, em um sistema inercial. A segunda condição
garante, então, que ela seja verdadeira em um sistema
curvilíneo qualquer.
Notemos que o princípio de equivalência não é a
mesma coisa que a condição 1 acima. De fato, se
Coleção CLE V.09
210 “A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

uma equação vale na ausência de gravitação, isto não


implica que ela valha localmente na presença de um
campo de gravitação não-uniforme. Em compensação,
se ela vale localmente em um campo de gravitação não-
uniforme, ela será verdadeira
na ausência de gravitação
ou em um campo uniforme (de curvatura nula). A
primeira condição é uma consequência do princípio de
equivalência, mas não o inverso. Podemos ver feto fa-
cilmente a partir das duas equações seguintes “

“e
ag x dg! dg “dg dg" cn
= qro tg ar +
a
- dr? + ww dr
| a dg” dg”
dr
(43.9)
Na ausência de gravitação, ou em um campo uni-
forme, a curvatura (o tensor de Riemann) R,,, é nula
e as duas equações acima podem se escrever em coor-
denadas cartesianas:
Px
= 0
dr?
“Mas apenas a segunda equação (4 3.2) satisfaz ao
princípio de equivalência, porque em um campo de gra-
vitação não-uniforme a curvatura não é nula em to-
dos os lugares. Se a curvatura é diferente de zero em
um ponto, ela o será para todos os sistemas de coor-
denadas. E impossível fazer desaparecer a curvatura
com uma simples mudança de coordenadas. Em com-
pensação, em virtude do princípio de equivalência, é
12Weinberg (1972, Pp. 133). sr representa o spin e f é um
escalar.
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 214

sempre possível encontrar um sistema de referência lo-


cal no qual os componentes da conexão afim se anulem.
Por outro lado, as duas equações acima satisfazem
ao princípio de covariância de Weinberg (PCW). Elas
se reduzem ao primeiro axioma de Einstein na ausência
de gravitação e são de forma covariante. Como a equa-
ção (4.3.1) não satisfaz ao princípio de equivalência,
PCW não pode, a rigor, constituir uma versão alter-
nativa de PE. Se uma equação “obedece ao princípio
de equivalência, ela satisfaz àsà condições 1le2. Mas
uma equação que preenche estas duas condições não
é necessariamente. válida, em um campo de gravitação
qualquer. De fato, a equação (4.3.1) não é correta para
um campo arbitrário, como acabamos de ver. .
Entretanto, já que a física, ao contrário da ma-
temática pura, é uma ciência empírica que pode permi-
tir-se negligenciar termos, contanto que sua influência
seja desprezível no que diz respeito à precisão dos apa-
relhos de medida, a equação (4.3.1)é fisicamente acei-
tável, desde que a curvatura seja pequenal3. Podemos
considerar, então, que na maior parte dos casos físicos
(com exceção dos buracos negros), PCW equivale a PE.
Mas PCW, mesmo decorrendo logicamente de PE (o
raciocínio de Weinberg é absolutamente correto neste
ponto), não pode constituir a rigor uma “alternativa”
para este último. Weinberg está perfeitamente consci-
ente disto quando escreve:

134 partícula deve ser muito menor que as dimensões carac-


terísticas do campo (por exemplo, o raio de curvatura espacial
de duas dimensões
em uma dada direção). Ver Weinberg (1972,
p. 133).
Coleção CLE V.09
212 “A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

O princípio generalizado de « covariância [cw] só


pode ser aplicado em uma escala que é pequena
em relação às distâncias espaço-temporais típicas
do campo de gravitação, pois é apenas sobre esta
escala fraca que o princípio de equivalência nos as-
segura sermos capazes de construir um sistema de
coordenadas do qual os efeitos da gravitação estão
ausentes (.. ). (1972, P. 93)

Para escalas pequenas, apenas os coeficientes mé-


tricos e suas derivadas primeiras, e não as derivadas
segundas das quais a curvatura depende, figurarão nas
equações. | | no
Em seguida, Weinberg insiste na diferença entre
PCW, que possui um conteúdo físico, j já que ele enun-
cia as condições suficientes às quais |uma equação deve
satisfazer para que seja válida em um campo de gra-
vitação real, e a covariância geral, uma simples exigência
formal. o
É preciso enfatizar que a covariância geral por si
própria é desprovida de conteúdo físico. Toda e-
quação pode ser geralmente transformada em equa-
ção covariante, se for escrita em qualquer sistema
de coordenadas, e se procurar depois como ela se
apresenta em. outros sistemas de coordenadas ar-
bitrárias. (1972, Pp: 92). '

“Além disto. o princípio de covariância geral (PCW)


não é um princípio de invariância, como o princípio
de relatividade galileano ou o princípio de relatividade
restrita. Estes últimos exigem, de fato, que certas
quantidades, como a velocidade relativa constante dos
sistemas de referência, não intervenham nas equações
transformadas. Em virtude de PCW, utilizamos as
quantidades que aparecem nas equações transformadas
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 213

(os componentes da conexão afim) para representar as


forças de gravitação.
(...) o princípio de covariância não é um princípio
de invariância, como o princípio de relatividade ga-
lileano ou o de relatividade restrita, mas, ao con-
trário, um enunciado sobre os efeitos da gravitação
e nada mais. Em particular, a covariância geral
“[PCW] não implica a invariância de Lorentz; exis-
tem teorias que permitem a construção de siste-
mas inerciais em todo ponto de um campo de gra-
vitação, mas que satisfazemà relatividade galileana
e não à relatividade restrita nestes sistemas. (1972,
p. EO
O princípiojo geral de covariância (PCW) não é, por-
tanto, o princípio geral de relatividade (PGR), que
Weinberg :não menciona (e que não é satisfeito, como
veremos, pela teoria da relatividade geral). PGR afirma,
a. equivalência. dinâmica dos campos de inércia e de gra-
vitação no nível global. PCW impõe condições sobre
as equações do movimento em um campo de gravitação
qualquer. | |
De PE, ea fortiori de PCW; não o podemos de-
duzir as equações do movimento na ausência de gra-
vitação. Não podemos concluir, em particular, que
na ausência de gravitação o espaço- tempo é plano e,
portanto, que possamos utilizar a geometria de Rie-
mann para descrever os campos de gravitação. Não
podemos deduzir também que o espaço-tempo é min-
kowskiano (ou lorentziano). É preciso acrescentar a
condição de que a mecânica de Einstein seja verdadeira
na ausência de gravitação. Obtemos, então, a equação
das geodésicas como equação do movimento onde os
Coleção CLE V.09
214. A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

componentes da conexão afim podem ser expressos em


função da métrica. Se o espaço-tempo fosse galileano
na ausência da gravitação, os componentes da conexão
afim não poderiam ser identificados com os símbolos de
Christoffel.
Parece existir uma contradição na exposição de
Weinberg. Em sua formulação de PCW, ele diz que
a condição 1 equivale a afirmar a verdade da relati-
vidade restrita na ausência de campo gravitacional; e
mais adiante ele diz que PCW não implica a invariância
de Lorentz para os espaços-tempo tangenciais. De fato,
as duas afirmações são, em um certo sentido, corretas.
Todos sabem que a mecânica de Einstein é verdadeira
na ausência de campo gravitacional e nos servimos dela
para descobrir as equações do movimento. Mas, do
ponto de vista lógico, a verdade da mecânica de Eins-
tein é uma condição suplementar. À rigor, temos, pois,
a seguinte situação:

“PCW | > PC

Para obter o pseudo-euclidianismo local e a equação


das geodésicas, é preciso acrescentar a PCW que é a
mecânica de Einstein, e não uma outra, que é verda-
deira quando não existe gravitação.
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 215

Até o momento, resolvemos dois dos três problemas


que uma teoria satisfatória
da gravitação deve resolver.
Sabemos quais grandezas representam o campo de gra-
vitação: são os símbolos de Christoffel (os g,, represen-
tam, de fato, potenciais de gravitação, mesmo se nos re-
ferimos frequentemente a eles falando do campo). Co-
nhecemos as equações do movimento: são as equações
das geodésicas. Resta determinar a dependência dos
potenciais de gravitação em relaçãoà distribuição de
matéria e de energia, isto é, formular
as equações do
campo. | | o o |

4.4 As Equações do Campo


Desde Newton, sabemos. que a gravitação é é uma
força. de longo alcance que depende da distribuição das
massas. Ora, o campo de gravitação é expresso agora
em função dos potenciais de gravitação, os coeficientes
métricos guy. À teoria da gravitação estará concluída
quando tivermos formulado as equações que ligam o
conteúdo espaço-temporal de matéria e de energia à
estrutura métrica, isto é, as-equações do campo. Se-
guiremos aqui o procedimento de Pietenpol e Speiser
(1975). | o
Quando formulamos as equações do movimento em
um campo de gravitação, partimos da formulação cova-
riante do segundo axioma de Einstein e interpretamos
os Da, com ajuda do princípio de equivalência, como
representação do campo inercial- gravitacional. Na au-.
sência de forças externas, as forças generalizadas Q? se
anulam e obtemos a equação das geodésicas.
O primeiro axioma de Einstein afirma a existência
Coleção CLE V.09
216. A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

de retas pseudoeuclidianas no espaço-tempo de Min-


kowski que são trajetórias das partículas livres. Isto
corresponde a um espaço-tempo de curvatura nula na
ausência de gravitação. O primeiro axioma implica,
portanto, que o tensor de Reimann anule-se em todo
ponto: o | |

O primeiro axioma (Ef) parece ser um caso parti-


cular do segundo axioma generalizado (Etr), isto é,
no caso de nenhuma força estar presente. Mas é de
fato muito mais que isto. E; é um enunciado físico
sobre o espaço-tempo. Ele diz que na ausência
de influência de um sistema éxterior observável, o
ponto de massa deslocar-se-á uniformemente em li-
nha reta. Isto implica que tais linhas retas existem
e que o observador pode reconhecê-las.. Em outros
termos, ele diz que o espaço-tempo é minkowski-
ano e que é possível introduzir um sistema de coor-
denadas cartesianas. Isto é, verdadeiramente, um
enunciado físico. Sua formulação matemática in-
variante, segundo Riemann,é a anulação do tensor
de curvatura em cada ponto. (Pietenpol & Speiser
1975, p. 156)

É preciso agora enfraquecer esta condição para per-


mitir uma influência do conteúdo material sobre a es-
trutura métrica, o que nos conduzirá às equações do
campo. O tensor Ri,« pode ser definido sem a métrica
a partir dos Das Se a métrica existe, pode-se escrever:

Iax Rar — a .

Supomos que, localmente, o grupo de Lorentz é bem


definido. Podemos, então, decompor o tensor Rayvs em
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade “921

suas partes irredutíveis, o tensor de Weyl Rauvr € O ten-


sor de Ricci R,,. Uma teoria da gravitação pode ser
construída com base em qualquer um destes tensores.
Podemos mostrar que só existem duas possibilidades:
a teoria de Einstein, que utiliza o tensor de Ricci, e
a de Nordstrôm, que utiliza o de Weyl. A teoria de
Nordstrôm (escalar) se escreve: |

Ss . 'Quvr
R= —3T

(R é o traço do tensor de Ricci, x é a constante de


Einstein! e T é o traço do tensor energia-momento, que
representa o conteúdo material do universo). Esta teo-
ria escalaré geralmente covariante e satisfaz ao princípio
de equivalência em sua versão fraca:

m; = km, E

Entretanto, ela não prevê a deflexão da luz nos campos


gravitacionais e é refutada pela experiência, visto que
Eddington observou (em 1919) o desvio da luz emitida
por uma estrela no campo de gravitação do Sol. Por
esta razão, a teoria escalar não satisfazà versão forte
do princípio de equivalência. Segundo a teoria escalar,
seria possível para um observador fechado em uma ca-
bine decidir através de experiências ópticas se ele está
em movimento acelerado (situação 1) ou, ao contrário,
se está em repouso em um campo de gravitação (si-
tuação 2) (ver figura 4. 5).
Coleção CLE V.09
218 * Almérciaeo Espaço-Tempo Absoluto

"Em relação às experiências de óptica, não existe


equivalência entre as situações 1 e 2.

“Para a teoria de Einstein (tensorial), obtemos:


Lo
T: Ryu — 3 uv + AgGuv = —8T uv =

A é a constante cosmológica que aparece como uma


constante de integração (Einstein 1952, p. 189). Esta
teoria incorpora o. princípio de equivalência em sua
versão forte. É impossível distinguir entre as situações
le 2na teoria da gravitação de Einstein. A experiência
decidiu a favor de Einstein, contra Nordstrôm. Mas a
teoria de Einstein era a priori mais satisfatória quea
teoria escalar, já que obedece a um princípio de equi-
valência mais vasto, a saber, a indiscernibilidade física
dos sistemas de copridenadas locais, não somente para
experiências mecânicas, mas também para as experiên-
cias de óptica. |
“Em resumo, a teoria de Einstein é obtida a par-
tirx do princípio de equivalência (em sua versão forte),
do princípio de covariância e da verdade da relativi-
dade restrita na ausência de gravitação. O princípio
geral de relatividade, assim como o princípio de reci-
procidade de Weyl, não foi utilizado nem por Weinberg,
nem por Pietenpol e Speiser. Estes princípios não são
indispensáveis para a dedução da teoria geral da re-
latividade. Esta teoria, todavia, está de acordo com
o princípio de reciprocidade, enquanto que não está,
como veremos, com o princípio geral da relatividade.
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 219

4.5 A Problemática Machiana

Mach propõe a construção de uma teoria da inércia


e da gravitação que atenda a três condições: ela deve
estar em conformidade com um fato empírico, um prin-
cípio epistemológico de tipo empirista e um princípio
epistemológico de uniformidade.
O fato empírico consiste na dualidade dos movi-
mentos. Observamos que os movimentos se dividem
em duas grandes classes: os que suscitam efeitos iner-
ciais (movimentos não-inerciais) e os outros (movimen-
tos inerciais).
Este fato requer uma explicação que esteja de acor-
do com as normas do empirismo. A cada termo (ou
relação) que figura em uma teoria física, devem cor-
responder objetos empíricos (ou fenômenos que reali-
zam empiricamente esta relação). A expressão “espaço-
absoluto” é inaceitável porque o espaço absoluto é inob-
servável e não possui significado empírico independente
dos efeitos de inércia que se espera que ele produza.
E, então, impossível verificar a existência da relação
de causalidade. Ela só pode existir entre entidades
ou acontecimentos separadamente identificados de uma
maneira empírica; sem isto a afirmação do nexo de cau-
salidade é destituída de significado empírico. Como é
impossível identificar empiricamente o movimento ab-
soluto independentemente dos efeitos que ele produz,
o movimento em relação ao espaço absoluto deve ser
eliminado de uma teoria física. Todo movimento se-
gundo uma teoria física ocorre em relação a corpos ob-
serváveis. Esta é a tese da relatividade empírica do
movimento.
Coleção CLE V.09
220 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

À terceira exigência, a da uniformidade, concerne


à equivalência empírica de sistemas físicos em movi-
mento. Trata-se do princípio geral de relatividade e não
da possibilidade de descrever pelas mesmas equações
uma dada situação física em qualquer sistema de co-
ordenadas. Este princípio implica a equivalência da-
nâmica das seguintes situações: de um lado, a Terra
em rotação em relação à às estrelas consideradas em re-
pouso e, de outro, as estrelas em rotação em relaçãoà
Terra considerada em repouso. Isto é, elas constituem
uma única situação física. Aqui, tratarémos, seguindo
Mach, da equivalência empírica em relação apenas aos
fenômenos mecânicos, O que chamaremos de relativi-
dade dinâmica. O princípio geral de relatividade es-
tende esta equivalência aos fenômenos ópticos. |
Vamos examinar agora se Mach consegue construir
uma teoria de acordo com cada uma destas três exi-
gências, ou se ao menos consegue especificar um pro-
grama para a elaboração desta teoria. Não pretende-
mos dar aqui uma interpretação fiel à letra dos escritos
de Mach, mas somente retomar a partir desses tex-
tos uma problemática epistemológica, que poderiamos
qualificar de machiana. É pelo menos duvidoso que
Mach tivesse consciência clara das três exigências men-
cionadas acima (em particular, da terceira) quando for-
mulou seu programa. Mas é certo que a articulação
destes três requisitos nos leva ao cerne da problemática
machiana da inércia e do espaço absoluto.

4.5.1 A teoria de Mach e suas dificuldades

De acordo com o princípio do empirismo, Mach de-


fine o movimento de um corpo como uma modificação
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 221

de distâncias em relação a outros corpos observáveis.


Todo movimento é relativo no sentido empírico e isto é
uma consequência imediata do princípio do empirismo.
Quando dizemos que um corpo preserva sua direção
e sua velocidade no espaço, nossa asserção é apenas
uma referência abreviada ao universo todo. (...)
Ao invés de determinar um corpo móvel em relação
ao espaço, isto é, em relação a um sistema de coor-
denadas, observamos diretamente sua relação com
os corpos do universo que são os únicos que podem
determinar um tal sistema de coordenadas. (1960,
p. 286).
Para determinar o movimento, não basta escolher
arbitrariamente algumas massas nas proximidades de
um córpo e erigi-las em um sistema de referência, como
era o caso em Leibniz. É preciso tomar um sistema de
coordenadas particular no qual as massas do universo
estão, na média, em repouso. É ilusório pensar que a
- definição de Mach satisfaz às exigências de um empi-
rismo radical que pediria que pudéssemos efetivamente,
e para cada movimento, observar a totalidade das mas-
sas do universo e as suas modificações de distâncias de-
las (cf. Bridgman 1964). Mesmo admitindo o universo
materialmente finito, não dispomos de meios técnicos
suficientes para determinar a distribuição e a densi-
dade das estrelas (ou das galáxias, das quais Mach
ainda não supunha a existência) em um dado instante.
Além disso, Mach sabia perfeitamente que as estrelas
não conservam suas posições relativas, ainda que es-
tas posições sejam, no conjunto, bastante estáveis para
a duração das experiências ordinárias. Para durações
maiores, calculamos pontos ideais com ajuda de médias
estatísticas sobre um grande número de estrelas cújos
Coleção CLE V.09
222 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

movimentos relativos não são muito rápidos e que con-


servam uma certa estabilidade global. É assim, por
exemplo, que determinamos o ponto em direção ao qual
o Sol se dirige: o ápice (Merleau-Ponty 1965, p. 19).
Para que este método seja aplicável, é preciso eviden-
temente que as estrelas tomadas como referencial se-
jam observáveis na prática. Devem ser, portanto, em
número finito, semo que seríarnos obrigados a recorrer
a hipóteses de convergência, cuja justificação empírica
sempre é problemática. Aliás, Mach está ciente das
dificuldades inerentes a sua definição quando diz:

Tentamos formular a lei da inércia de uma marieira


diferente daquela normalmente utilizada. Esta de-
finição preencherã as mesmas funções. que a de-
, finição habitual enquanto um número: suficiente
mente grande de corpos, permanecerem, aparen-
temente fixos no espaço!*. Ela é aplicada com a
mesma facilidade e encontra as mesmas dificulda-
des. Em um caso, somos incapazes de chegar ao
espaço absoluto, no outro, apenas um número li-
mitado de massas está ao alcance de nosso conhe-
cimento, e a soma indicada não pode ser levada a
seu termo. E impossível dizer se a nova expressão
representaria ainda a condição verdadeira das coi-
"sas se as estrelas estivessem em movimento rápido
umas em relação às outras. À experiência geral não
pode ser construída a partir do caso particular que
nos é dado. (1960, P. 298)

A lei da inércia proposta por Mach se escreve:

“180u ainda que pudéssemos fazér uma média estatística sobre


as flutuações das distâncias como no caso da determinação do
“ápice.
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 223

Amir;
m) = constante (:= 1,2,...,n) ,
nãdt L 35m;
onde | é a massa de um dado corpo, os m; são as massas
presentes no universo e os r; representam as distâncias
do centro de gravidade destas massas em relação ao da
massa 4. Notemos que a soma é finita. Como esta
soma, mesmo finita, não pode ser realizada na prática,
Mach se encontra em uma situação semelhante àquela
na qual se encontrava Newton: o conjunto das estre-
las e o espaço absoluto são igualmente inacessíveis à
observação efetiva, mesmo que a inobservabilidade das
estrelas seja somente de facto e a do espaço absoluto
de jure. Além disso, como Mach reconhece na citação
acima, esta nova lei de inércia é tão inverificável quanto
a de Newton. Não podemos na prática fazer variar
as condições (modificar a velocidade das estrelas, por
exemplo); do mesmo modo que não poderíamos ani-
quilar as estrelas, para ver se a lei de Newton seria
verdadeira no espaço absoluto.

Mesmo que ignoremos estas dificuldades, fatais para


uma posição empirista radical, surgem outros incon-
venientes. Em primeiro lugar, a tese da relatividade
empírica do movimento não tem como consequência a
equivalência dinâmica dos sistemas físicos de referência.
de Mach está de acordo com Leibniz e contra Newton-.
Clarke ao recusar todo significado físico do: movimento
de um balde ou da Terra em um universo vazio, não se
segue daí que qualquer corpo possa servir de sistema
de referência de modo equivalente. Mach concede um
privilégio ao conjunto das massas do universo. Este
privilégio deve ser justificado por razões empíricas. É
Coleção CLE V.09
Mm o A Inércia co Espaço-Tempo Absoluto

claro que não » bastam considerações cinemáticas. De


um ponto de vista cinemático, todos os sistemas de
coordenadas são equivalentes: pode-se escolher arbi-
trariamente qualquer um dos corpos observáveis para
determinar os movimentos. Isto é uma consequência
da relatividade empírica. Chamemos este enunciado de
princípio de relatividade cinemática (ver Reichenbach
1958a, p. 210).
| Constatamos!8 que os movimentos nas proximida-
des da Terra se dividem em duas categorias, cada uma
sendo caracterizada por fenômenos diferentes, que de-
nominamos fenômenos inerciais. Por exemplo, um pri-
sioneiro que é transportado com os olhos vendados em
um carro sente perfeitamente quando este vira, freia,
acelera, etc., mesmo não podendo observar corpos de
referência no exterior do carro. Estes fenômenos iner-
ciais estão associados a movimentos relativosà Terra.
Sua ausência está associada, aproximadamente e para
distâncias curtas, aos movimentos retilíneos uniformes,
e sua presença aos movimentos acelerados em relação
à Terra.
Para explicar estes fenômenos inerciais, Newton ti-
nha introduzido o espaço absoluto. Deste modo, tinha
incorporado a sua mecânica dois elementos pertencen-
tes à mesma categoria lógica: os corpos materiais, que
servem para determinar o movimento, eo espaço ab-

16Podemos nos perguntar se se trata, de fato, de uma “cons-


tatação”. Em última análise, Aristóteles parte de “constatações”
bastante diferentes. Temos, prioritariamente, necessidade de
uma interpretação dos fenômenos do movimento no quadro da
mecânica clássica que faça distinção entre movimentos inerciais
e não-inerciais.
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 225

soluto, que tem por função explicar certos efeitos do


movimento. Mach supõe que, considerando-se que o
movimento é definido em relação a massas observáveis,
estas devem também permitir explicar os efeitos inerci-
ais. Ele tenta eliminar as forças internas, ligando-as a
fontes externas observáveis!”. Seu argumento se funda
no princípio do empirismo: não há lugar na física para
uma causa que não seja observável independentemente
de seus efeitos.
Resta explicar por que alguns movimentos, equiva-
lentes do ponto de vista da relatividade cinemática, não
o são do ponto de vista dinâmico. Esta diferença fun-
damenta empiricamente a distinção entre sistemas de
coordenadas inerciais e não-inerciais. Os sistemas iner-
ciais são construídos a partir de corpos no nível dos
quais não se observam efeitos de inércia, ou de modo
equivalente, são sistemas nos quais corpos livres de
toda força estão em repouso ou em movimento retilíneo
uniforme. O princípio de relatividade da mecânica
clássica. (e também da relatividade restrita) é mais res-
tritivo que o princípio de relatividade cinemática, já
que afirma a equivalência dinâmica apenas dos siste-
mas inerciais!?, enquanto que o princípio de relativi-
dade cinemática, que não exclui nenhum sistema ma-
terial para a determinação do movimento, conduziria
naturalmente a uma equivalência mais ampla.
Na realidade, o princípio de relatividade cinemática

1 Mach tentou, de modo mais geral, eliminar a noção de força


da mecânica, substituindo-a pelo produto da massa e da ace-
leração.
!8Na realidade, esta equivalência vale para todos os sistemas
em movimento relativo retilíneo uniforme.
Coleção CLE V.09
226 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

pode ser conservado na mecânica clássica, contanto que


não se recorra ao espaço absoluto, porque é inteira-
mente legítimo determinar os movimentos em relação
a qualquer corpo. Somente a descrição dos movimen-
tos far-se-á segundo equações que tomarão formas di-
ferentes, dependendo do tipo, inercial ou não-inercial,
do sistema de referência. O princípio de relatividade
cinemática não permite selecionar os sistemas de coor-
denadas nos quais os movimentos são descritos pelos
axiomas de Newton na forma vetorial simples. Este
princípio elimina apenas os sistemas não-observáveis,
como o espaço absoluto. .
O problema consiste em explicar por que os cor-
pos obedecem a leis diferentes segundo os sistemas, en-
quanto que a definição empírica do conceito de movi-
mento não indica nenhuma preferência quanto à esco-
lha de um sistema material que sirva para determiná-lo.
A definição do sistema inercial faz surgir um problema
de circularidade, já mencionado. Vimos que Newton
poderia definir um sistema de inércia como estando
em repouso ou em movimento retilínco uniforme no
espaço absoluto. Como isto não constitui um critério
empírico, só podemos assegurarmo-nos da inercialidade
verificando se o sistema está livre de toda força. Ora,
só podemos nos assegurar disto, ou pelo menos calcu-
laro desvio em relação à inercialidade, pressupondo a
verdade das leis de Newton. |
À primeira vista, a proposta de Mach parece apro-
priada para resolver este problema. Basta definir um
sistema de inércia, ao menos localmente, como um sis-
tema em repouso ou em movimento retilíneo uniforme
em relação ao conjunto de massas do universo. Depois
Coleção CLE V.09
“Á Teoria: Geral da Relatividade 227

disto, constatamos empiricamente a verdade das leis


de Newton neste sistema. Neste caso, a circularidade
da explicação causal dos efeitos de inércia desaparece,
já que podemos identificar empiricamente e separada-
mente o explanans, o movimento acelerado em relação
às massas do universo, e o explanandum, os efeitos iner-
ciais. | |
Infelizmente para Mach, esta definição do sistema
de inércia não é satisfatória, e isto independentemente
das dificuldades relativas à soma das massas que assi-
nalamos acima. De fato, constatamos que um sistema
material de dimensões espaciais reduzidas, em queda
livre em um campo de gravitação, o da Terra por exem-
plo, constitui um sistema de inércia local; entretanto,
este sistema está acelerado em relação às estrelas. Não
podemos mais fornecer a definição: um sistema de co-
ordenadas é inercial se e somente se está em repouso
ou em movimento retilíneo uniforme em relação às es-
trelas. | |
Mas podemos sempre dizer: se um sistema está
em repouso, ou em movimento retilíneo uniforme em
relação às estrelas, então ele é um sistema inercial.
Isto é suficiente para uma explicação causal dos efei-
tos de inércia? A resposta é não. Pois, para que a
explicação causal funcione, é preciso que todos os movi-
mentos acelerados em relação às estrelas sejam acompa-
nhados de efeitos inerciais. Ou, se preferirmos evitar as
denominações de causa e efeito o que, aliás, Mach que-
tia, diremos que todo movimento acelerado em relação
às estrelas está funcionalmente ligado a fenômenos de
inércia. O caso de uma cabine de pequenas dimensões
Coleção CLE V.09
228 “A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

espaciais em queda livre oferece um contra-exemplo a


esta afirmação. |
“Um newtoniano, ou um machiano, argumentaria,
provavelmente, que no caso de uma cabine em queda
livre, duas forças estão presentes, a força de inércia e
a força de gravitação, ambas anulando-se mutuamente.
Existe de fato uma força resultante de um movimento
acelerado com relação às estrelas. Mas não é possível
distinguir localmente entre uma força externa (a gra-
vitação)e uma força interna (a inércia). Uma teoria
satisfatória da inércia deve igualmente ser uma teoria
da gravitação, pois localmente as duas forças são ape-
nas uma. Ora, Mach tinha conservado a noção clássica
da inércia e não tinha, ao que parece, compreendido
todo o alcance da proporcionalidade entre a massa gra-
vitacional e a massa inercial. Podemos concluir que
a explicação de Mach da dualidade dos movimentos
não somente é insatisfatória, segundo seus próprios re-
quisitos epistemológicos de natureza empirista, como
também, mesmo que lhes satisfizesse, não poderia ser
aceita, por razões físicas.

4.5.2 Relatividade cinemática e relatividade di-


nâmica | |

Mach pretende explicar a concavidade da água, na


experiência do balde, por um movimento acelerado em
relação às estrelas. Vejamos, agora, se esta explicação
está de acordo com a exigência de uniformidade, a sa-
ber, a equivalência dinâmica de todos os movimen-
tos, ou seja, O princípio geral de relatividade. Esta
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 229

exigência vai além do princípio de relatividade cine-


mática que requeria somente a observabilidade dos sis-
temas de referênciae, portanto, a equivalência destes
últimos para a determinação do movimento, sem se
comprometer previamente « com sua » equivalência diná-
mica. es
A rotação relativa águaÀ (E) estrelas
he (P) éé a mesma
no sistema de coordenadas no qual a água está em
rotação (situação 1) e naquele em que está em repouso
(situação 2) (Ver figura 4.7).
Dado que apenas a rotação relativa pode ser invo-
cada como causa empírica da concavidade observada,
estes dois sistemas de coordenadas devem ser equi-
valentes de um ponto de vista físico. A relatividade
dinâmicaé uma consegiiência da causalidade empírica.
Para satisfazer ao princípio de relatividade dinâmica, é
preciso que estas situações constituam a mesma. reali-
dade física , portanto, que sejam apenas uma. É preciso,
pois, que as leis não façam distinção entre estas duas
situações; não basta
que elas sejam covariantes, pois a
covariância pode ser satisfeita mesmo que as situações.
le 2 sejam diferentes de um ponto de vista físico. A si-
tuação 1 pode ser descrita da mesma maneira em qual-
quer sistema de coordenadas, assim como a situação
2. Entretanto, as equações geralmente covariantes que
descrevem a situação 1 podem ser diferentes daquelas
que descrevem a situação 2. A relatividade dinâmica
Tequer que estas equações sejam idênticas. Mach não
as escreveu, mas podemos ao menos conceder-lhe o
mérito, juntamente com Reichenbach, de ter indicado
9 caminho: |
Coleção CLE V.09
230 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

Figura 4.1

O que há de novo na interpretação de Mach é a


idéia de que a força da inércia pode ser interpre-
tada, na concepção relativista, como um efeito di-.
nâmico de gravitação. A relatividade pode ser es-
tendida à dinâmica seas forças puderem ser in-
terpretadas de modo relativista. A mesma força
que afeta E; como o resultado da rotação de E,
segundo uma interpretação, afeta-o, segundo ou-
tra interpretação, como o resultado da rotação de
Es.(...) As forças não são mais grandezas abso-
lutas, mas dependem do sistema de coordenadas
(...) Com a solução de Mach para o problema da
rotação, o campo de gravitação perde seu caráter
absoluto [invariante no sentido matemático] e é re-
conhecido como grandeza covariante, que varia com
o estado de movimento do sistema de coordenadas.
Este resultado, que representa o aspecto mais signi-
ficativo das idéias de Mach, exprime pela primeira
vez a idéia do princípio de covariância generalizada.
(1958, p. 214)
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 231

Contudo, o que Mach tem em vista aproxima-se


mais do princípio geral de relatividade que do princípio
de covariância. Se os componentes do campo variam se-
gundo o sistema de coordenadas (os guy São covarian-
tes), a realidade física (a curvatura) deve permanecer a
mesma e as interpretações 1 e 2 são fisicamente equiva-
lentes. Se é verdade que, como sublinha Reichenbach,
as forças, que são as derivadas dos g,, ha teoria geral
da relatividade, não são invariantes, já que seus com-
ponentes variam; também é verdadeiro que a curvatura
escalar do espaço-tempo é invariante.
Vimos que a relatividade dinâmica é uma conse-
quência da exigência empirista, já que se apenas o mo-
vimento acelerado relativo pode ser considerado como
causa dos efeitos de inércia, não pode haver diferença
física entre a situação 1 e a situação 2. Por outro lado,
a existência do espaço absoluto é excluída pelos requi-
sitos empiristas.

É interessante perguntar agora se apenas a relativi-


dade dinâmica leva à rejeição do espaço absoluto. Para
Reichenbach, isto não é o caso.
A relatividade dinâmica (que ele chama de cova-
riância geral, mas que está, na realidade, próxima do
princípio geral de relatividade: a única diferença é que
o princípio geral de relatividade é mais amplo na me-
dida em que abrange os fenômenos ópticos, além dos
fenômenos dinâmicos) é, para ele, inteiramente com-
patível com a existência de um espaço ontologicamente
absoluto, inobservável e causa dos efeitos de inércia.
Ele considera um universo imaginário, composto de
dois sistemas, compreendendo cada um uma Terra (E;
Coleção CLE V.09
232 “A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

e E,) e uma esfera de estrelas (F, e F)), e suficiente


mente distantes para que a interação gravitacional seja
negligenciável (Ver figura 4.8). Segundo Mach, deve-
mos observar forças centrífugas ao mesmo tempo em
E, e E». Portanto, a interpretação 1, na qual E; está
em rotação, e a interpretação 2, na qual E, está em re-
pouso, são indiscerníveis: na realidade, elas descrevem
a mesma situação.

LA
|

O
| add
|
|
|
|
4 |
NLZ

I | o
| d
| |
|
“A l
Interpretação 1 Interpretação 2

Figura 4.8
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 233

E
I A
hn nm

E: | Ei

“ | . .

| .
| .
| .

Interpretação 1 Figura 4 9 Interpretação 2


Coleção CLE V.09
234. A Inérciae o Espaço-Tempo Absoluto

Suponhamos que observássemos forças centrífugas


no nível de E; (ou de E,), mas não ao mesmo tempo em
E, e E,. Isto nos obriga, segundo Newton, a admitir
a existência do espaço absoluto. Mas para Reichen-
bach, sua existência é inteiramente compatível com a
relatividade dinâmica (1958, pp. 215-7). Basta admitir
que, na interpretação 2, éa rotação de F4 em relação ao
espaço absoluto que é respônsável pelo aparecimento de
forças centrífugas no nível de É;, ainda que E, esteja
em repouso no espaço absoluto. Segundo Reichenbach,
as interpretações 1 e 2 são dinamicamente equivalentes,
apesar da existência do espaço absoluto. Entretanto
não é possível determinar quais são os sistemas para
os quais a aceleração é nula em relação ao espaço ab-
soluto (Reichenbach 1958a, pp. 215-7). Mesmo que as
interpretações 1 e 2 sejam indiscerníveis, elas são dife-
rentes na realidade, já que E; está em rotação absoluta
na primeira e em repouso absoluto na segunda. Além
disso, elas correspondem a concepções físicas distintas:
as forças centrífugas aparecem no nível dos corpos em
rotação na primeira situação e não na segunda. Para a
física newtoniana, é claro que a segunda interpretação,
mesmo que admita o espaço absoluto, é inaceitável.
Este raciocínio de Reichenbach foi criticado, em pri-
meiro lugar, por um argumento incorreto devido a Ho-
ward Stein (1967, pp. 195-6); e depois por um argu-
mento convincente, proposto por John Earman.
“Stein nos pede para imaginar um terceiro sistema
(Ea, F3) tal que E3 e F3 estejam em repouso um em
relação ao outro e em relação a Fj e Ea. À teoria de
Newton prediz que nenhuma força centrífuga será
observada em Es, já que E3 não gira em relação ao
espaço absoluto. Mas, segundo a interpretação de
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade . 235

Reichenbach [interpretação 2], já que F3 (...) está


em rotação, forças centrífugas deveriam ser obser-
vadas em Es. (...) esta dificuldade poderia ser
suplantada (...) de maneira que forças centrífugas
não aparecessem se Ee F estivessem ao mesmo
tempo em rotação em relação ao espaço absoluto
(...) A situação se agrava se imaginarmos (...) um.
sistema (Es, F4) no qual E4 e Fy estão em repouso
um em relação ao outro, mas em rotação em relação
a Es e F3. À teoria de Newton prediz que forças
centrífugas aparecerão em E4. Segundo a inter-
pretação alternativa de Reichenbach, E4 é Fg estão
ambos em repouso no espaço absoluto. Isto co-
loca Reichenbach em dificuldade, já que a grandeza
das forças centrífugas em Ey será, segundo Newton,
proporcional à velocidade angular de Es no espaço
absoluto. (1970, p. 306) (ver figura 4.9)

Situações suficientemente complexas permitem, as-


sim, quebrar a equivalência empírica e dinâmica de te-
orias que concebem de maneiras diferentes a eficácia
causal do espaço absoluto. Segue-se que a relatividade
dinâmica leva ao abandono do espaço absoluto, con-
forme as afirmações de Mach.
Notemos que a não-equivalência das situações não
leva, ipso facto, à existência do espaço absoluto. A
física de Leibniz não admite a relatividade dinâmica
sem, por isto, recorrer ao espaço absoluto. Por outro
lado, se a relatividade dinâmica exclui o espaço abso-
luto, ela é uma condição necessária, mas não suficiente,
para que uma teoria esteja de acordo com as exigências
empíricas. De fato, é possível imaginar que uma teo-
ria que satisfaça à relatividade dinâmica (veremos que
atualmente não existe uma tal teoria) contém ingre-
dientes meta-empíricos. Resumindo, temos o seguinte
Coleção CLE V.09
236 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto
t

esquema:

Exigência empirista
J
Causalidade empírica
1
Relatividade dinâmica
!
“Rejeição do espaço absoluto

É preciso agora retomar os argumentos de Mach


em uma perspectiva mais geral, que dê conta de todos
os movimentos relativos acelerados, e não somente das
rotações. Vimos que a exigência empirista implica duas
teses distintas: a relatividade empírica do movimento,
de onde se segue o princípio de relatividade cinemática,
e a causalidade empírica. A relatividade empírica por
si só não implica a relatividade dinâmica. Isto pode
ser visto a partir da teoria de Leibniz segundo a qual
não existe equivalência entre um corpo aparentemente
em movimento e um corpo animado por um movimento
cuja causa é interna. | .
Todavia, a exigência empirista, na medida em que
leva à causalidade empírica, permite rejeitar o dina-
mismo interno da substância como inaceitável. De fato,
não temos acesso a este dinamismo interno indepen-
dentemente dos seus efeitos. As mesmas razões que
levaram Mach a rejeitar o espaço absoluto levam-no,
contra Leibniz, a descartar todas as forças internas.
É isto mostra também que Leibniz foi indevidamente
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade “237

elogiado por alguns empiristas!º, entre os quais Hans


Reichenbach (1958b).
Vimos que a equivalência dinâmica implica, ao con-
trário do que pensava Reichenbach, a rejeição do espaço
absoluto e a relatividade empírica do movimento. Mas
esta relatividade dinâmica nos obriga a situar a causa
dos efeitos de inércia em uma aceleração relativa no
sentido empírico? Os efeitos de inércia não poderiam
ter uma causa distinta do movimento? Em princípio,
isto permanece possível mesmo que seja difícil imagi-
nar tal teoria. Esta possibilidade, em todo caso, não
é vislumbrada por Mach. Mesmo que a relatividade
dinâmica exclua o espaço absoluto, ela só garante a cau-
salidade empírica desde que se aceite que os fenômenos
inerciais têm como única causa um certo tipo de movi-
mentos. Isto é fortemente sugerido, mas não imposto,
pela observação da dualidade dos movimentos.
Se admitirmos que os efeitos de inércia têm sua
fonte em um movimento acelerado, o que parece ser
admitido por todos, a relatividade dinâmica, sendo in-
compatível com a existência de um espaço absoluto,
assegura-nos que a causalidade empírica seja respei-
tada. | o
Finalmente, a articulação dos diferentes princípios
no quadro de nossa reconstrução da problemática ma-
chiana apresenta-se da seguinte maneira:

ver Ghins (1985).


Coleção CLE V.09
238 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

| Exigência empirista

Relatividade empírica
“do movimento Causalidade empírica
(relatividade cinemática.) T
Relatividade Rejeição da
dinâmica teoria de Leibniz

Rejeição do espaço
absoluto

4.5.3 A distinção entre sistemas inerciais e não-


lnerciais

Ainda que Mach defenda a relatividade dinâmica


no que concerne aos sistemas globais de coordenadas,
ele conserva a distinção local clássica entre os siste-
mas inerciais e os sistemas não-inerciais. Sua nova lei
da inércia, diferente, por certo, daquela de Newton, já |
que ela faz intervir o conjunto das massas do universo,
dá conta da distinção local entre dois tipos de movi-
mentos. Existem, pois, sistemas de referência locais
inerciais (em movimento retilíneo uniforme ou em re-
pouso em relação às estrelas) e sistemas não-inerciais
(em movimento acelerado em relação às estrelas).
Esta distinção, mesmo local, não leva, da mesma
maneira que a distinção leibniziana entre movimento
real e movimento somente aparente, à não-equivalência
dinâmica dos movimentos? Parece que sim, porque so-.
mos obrigados a admitir o princípio de relatividade da
Coleção CLE V.09
A. Teoria Geral da Relatividade — 9289

mecânica clássica (ou einsteiniana), mais s restritivo que


o princípio geral de relatividade, e chegamos a uma
. contradição interna da teoria de Mach. Segundo o
princípio de relatividade da mecânica clássica, se um
sistema em repouso. ou em movimento retilíneo uni-
forme em relação às estrelas éé inercial, o sistema no qual
as estrelas estão, em média, em repouso. é também iner-
i
cial. Um sistema de referência acelerado em relação às
estrelasé não-inercial e não pode s ser equivalente aquele
das estrelas. E preciso, então, “abandonar o princípio
de relatividade da, mecânica clássica (e da relatividade
restrita), incompatível com a relatividade dinâmica; foi
“o que Einstein compreendeu muito bem. Masé possível
fazê-lo, continuando a admitir, como nos mostra a ex-
periência, ; a dualidade dos movimentos? |

N ão a em Mach, um privilégio conferido à es-.


fera das estrelas, que substituio espaço absoluto na
definição dos sistemas inercias? Entendamo-nos, pri-
meiro, a respeito da noção de “privilégio”. Na dinâmica
eldssid: (e na mecânica de Einstein), o privilégio dos
sistemas inerciais consiste no fato das equações do mo-
vimento tomarem aí uma forma particularmente sim-
Ples. É difícil definir de um modo geral a noção de sim-
plicidade. Mas aqui a situação é clara. Se escrevermos
as equações do movimento em um sistema não-inercial,
é preciso acrescentar um ou vários termos suplementa-
res. Neste contexto, a simplicidade. se refere ao número
mínimo de termos necessários para a descrição?º dos
20 Apenas à implicidade descritiva, e nãos simplicidade in-
dutiva, nos interessa aqui. Para esta distinção, ver Reichenbach
| (1938, PP. 374-6)..
Coleção CLE V.09
240 A Inérciae o Espaço-Tempo Absoluto
(

movimentos.
À simplicidade analítica não basta, entretanto, para
caracterizar sem ambiguidade os sistemas inerciais en-
tre o conjunto dos sistemas de coordenadas. De fato,
sabemos que é possível escrever as equações do mo-
vimento em um sistema de coordenadas cartesianas,
polares, cilíndricas, etc. Segundo a configuração do.
sistema físico estudado, será mais simples escolher co-
ordenadas polares ou cilíndricas, ao invés de coorde-
nadas cartesianas. Existem sistemas de coordenadas
privilegiados que refletem a simetria do sistema físico
pelo qual nos interessamos. e :
Admitamos que para uma dada configuração mate-
rial seja mais simples descrevê-la. em coordenadas po-
lares. Nestas “coordenadas, será sempre mais simples
escrever as equações em um sistema inercial. Mas nada
garante a priori que as equações que descrevem este sis-
tema físico será o mais simples em um sistema inercial
de coordenadas cartesianas que em um sistema não-
inercial de coordenadas polares. É preciso, pois, es-
pecificar « o privilégio dos sistemas inerciais da seguinte
maneira: para todo sistema. físico, a descrição de seu
movimento será sempre mais simples em um sistema
inercial que em um sistema não-inercial, contanto que
não se mude o tipo de coordenadas quando se passa de
um sistema para outro (é preciso conservar as coorde-
nadas polares, por exemplo). | Es
Porém, ainda há mais. Tomemos uma partícula
em repouso em um sistema não-inercial de referência.
Neste sistema de referência, suas equações tomarão uma
forma particularmente simples (0=0ea=õ0). Em
compensação, em um sistema de referência inercial,
Coleção CLE V.09
“A Teoria Geral da Heletividade o 24

será necessário introduzir uma orêa para explicar c o


movimento (não-inercial) da partícula. As equações do
movimento serão mais complicadas que no sistema de
referência não- “inercial, e parece que o raciocínio acima
desmorona.. De fato, ele se sustenta se se restringir às
parica e livres, isto é, não- -submetidas éa forças exter-.
nas. O privilégio dos. sistemas de referência. inerciais
será, então, caracterizado da seguinte maneira: para
toda configuração física livre, a descrição de seu mo-
vimento será sempre mais simples em um sistema de
referência inercial, em relação a um dado tipo de coor-
denadas.. e a, E ;
A título de exemplo, tomemos a transformação de
coordenadas: raio |
CE RS o
y=y o d=r,

que faz passar de um sistema inercial cartesiano z =


(7,y, z) para um sistema não-inercial 7º = (2',y',2) em.
movimento uniformemente acelerado segundo a direção
do eixo x em relação ao primeiro sistema. No sistema
Z, um ponto material livre se desloca uniformemente
em linha reta (imaginemos que ele esteja em repouso):
da

e e
x

“No sistema %”, o mesmo ponto livre possui uma ace-


leração constante —a,. Temos:
dig!
m =-—-ma, .
dt
Coleção CLE V.09
242 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

Se este ponto material for submetido a uma força,


por exemplo, uma força de gravitação na direção « cri-
ada por uma massa m” de coordenadas zo, yo; Zo, O com-
ponente da força na direção z se escreve:
mm !
Fr=G—— 3
| Le |

No sistema inercial Z:
dz? G mm
m-— = .
dt? |z — xo|?
Mas no sistema não-inercial T”:
mer CG mm dx Mm
=G—— ss =m—— Ar -
dt? ja! — 24)? dt? º
Vemos assim que o termo suplementar em a, apa-
rece também quando a partícula é submetida a uma
força. Se escolhermos o sistema não- -jnercial de maneira
dºx
que dy = ao? em um dado instante (Já que a força gra-
o o, dig!
vitacional não é constante), fexemos mp S 0. Por-
tanto, se a aceleração de um móvelé instantaneamente
nula em um sistema não-inercial, interpretá-la-emos di-
zendo que a resultante das forças (uma força externa
somada a uma força interna, dita fictícia) é nula?!
21E preciso evitar que se confunda isto com o princípio de
equivalência. Mesmo se este último não fosse verificado (m +
m*), poderíamos escrever em 7”:
“on! . 2 o
cp = m (GE -0)=0 .
Je — 2h dt?
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade . 243

A não-invariância das leis que descrevem o compor-


tamento mecânico de um sistema, quando passamos de
um referencial para um outro, leva imediatamente à
possibilidade de privilegiar uma ou outra classe de sis-
temas de referência sob uma certa relação. É preciso,
para que não apareça nenhum privilégio, que as leis
da mecânica tomem a mesma forma em todos os siste-
mas de coordenadas. Esta condição, mesmo sendo ne-
cessária, não é uma condição suficiente. Pois, como vi-
mos várias vezes, é possível escrever as leis da mecânica
em uma forma, dita covariante, que é a mesma para O
conjunto dos sistemas de coordenadas. Isto não impede
a existência de uma classe de sistemas privilegiados, li-
gados por transformações lineares, nos quais os compo-
nentes da conexão afim são nulos. Neste caso, temos a
covariância geral sem termos a relatividade dinâmica,
o que se exprime matematicamente pela invariância de
uma forma mais simples para uma classe mais restrita
de sistemas de referência.
Voltemos, agora, à questão do privilégio de um sis-
tema global de coordenadas no qual as estrelas estão
em repouso. À ausência de equivalência local dos refe-
renciais não confere uma espécie de privilégio às estre-
las, mesmo na eventualidade das leis da mecânica se-
rem tais que a equivalência dinâmica seja realizada no
nível global? Suponhamos, de fato, que escolhêssemos,
de modo arbitrário, como sistema de coordenadas glo-
bais, um sistema no qual as estrelas são animadas por
um movimento de rotação qualquer. ID sempre possível
definir os sistemas de inércia locais em relação a este
sistema, mas isto seria mais complicado.
Para esclarecer esta questão, tomemos primeiro o
Coleção CLE V.09
244 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

exemplo mais simples de um sistema global no qual os


sistemas de inércia locais possuem uma aceleração uni-
forme ão. Diremos que, por definição, um sistema é
localmente inercial se sua aceleração vale ão neste sis-
tema. Se no caso mais complicado do balde de Newton,
tomarmos um referencial global no qual o balde está em.
repouso, será preciso definir os sistemas de imércia lo-
cais dizendo que estão em rotação em relação a este
sistema global. Vemos que a definição dos sistemas lo-
cais faz intervir um valor não-nulo da aceleração; este
valor muda quando passamos de um sistema para um
outro. |
Poderemos dizer que a definição do sistema iner-
cial local que faz intervir um valor nulo da aceleração
é mais simples. A simplicidade neste caso difere da
simplicidade analítica mencionada acima. À vantagem
da definição do sistema inercial com ão igual a zero re-
side na divisão que ela opera localmente entre os siste-
mas aceleradose os não-acelerados; enquanto que uma
outra definição efetua uma divisão entre sistemas que
possuem diferentes valores da aceleração. Esta van-
tagem, entretanto, não parece decisiva e não quebra
a equivalência dinâmica dos sistemas globais de coor-
denadas. É preciso observar que, independentemente
da maneira pela qual a divisão local é realizada, os
fenômenos de inércia são sempre explicados com ajuda
da rotação relativa às estrelas.
À maior dificuldade deste procedimento de definição
dos referenciais locais é que nos faz recair na circu-
laridade já mencionada. Só podemos evitá-la pressu-
pondo que o conjunto das estrelas exemplifica um sis-
tema inercial. Mas nós o erigimos, então, em sistema
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 245
privilegiado, o que nos força a abandonar a relativi-
dade dinâmica. Pois, se partirmos de um referencial
qualquer, como a relatividade dinâmica exige, e se de-
finirmos o sistema inercial local dizendo que ele pos-
sui uma aceleração nula neste referencial, constatare-
mos na maior parte das vezes que as leis de Newton
(e de Einstein) não são verdadeiras nos sistemas iner-
ciais definidos desta maneira. Se quisermos que elas o
sejam, será preciso redefinir os sistemas inerciais, es-
pecificando que eles tem uma certa aceleração no sis-
tema global escolhido. Mas esta redefinição é coman-
dada pela vontade de obter sistemas nos quais as leis
de Newton (e de Einstein), em sua forma simples, se-
jam verificadas, e reencontramos, assim, a definição da
mecânica clássica ao mesmo tempo que as dificuldades
de circularidade que lhe são inerentes.
Encontramo-nos, pois, diante do seguinte dilema.
Ou mantemos a equivalência dinâmica dos sistemas glo-
bais de coordenadas solidários às estrelas ou à Terra,
mas não escapamos da circularidade para a definição
dos sistemas de inércia locais. Ou, queremos evitar a
circularidade, mas somos obrigados a afirmar a priori
a inercialidade da esfera das estrelas, do mesmo modo
como Newton tinha afirmado a do espaço absoluto.
Um empirista poderia tentar escapar deste dilema
dizendo que os sistemas locais em movimento retilíneo
em relação às estrelas são também aqueles nos quais um
ponto material livre se move ao longo de uma reta eu-
clidiana. Mas, justamente, não sabemos com certeza,
a priori, se uma partícula é livre. Precisamente, o que
procurávamos obter, definindo o sistema inercial em
relação às estrelas, é uma espécie de garantia de que
Coleção CLE V.09
246 “A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

este sistema não esteja submetido a nenhuma força.


Como a definição em relação às estrelas não nos dis-
pensa de recorrer às próprias leis da mecânica para nos
assegurarmos da ausência de forças, eis-nos de volta,
depois de um longo desvio, a nosso ponto de partida,
no mesmo lugar onde o problema tinha surgido.

Podemos concluir, pois, que o programa de Mach


tende a substituir o sistema no qual as estrelas estão
em repouso pelo espaço absoluto, tanto para o pro-
blema da explicitação dos fenômenos de inércia, quanto
para o problema, conexo, da definição do sistema iner-
cial. Se aceitarmos esta interpretação, o sistema das
coordenadas no qual as estrelas são fixas é fisicamente
distinto dentro do conjunto dos sistemas de coordena-
das. Se admitirmos que o conjunto dos pontos deste
sistema constitui o espaço, podemos imediatamente nos
dar conta de que o espaço é relativo no sentido lógico,
ontológico e empírico. Ainda que a estrutura euclidiana
seja, para Mach, preservada, os movimentos relativos
das estrelas poderiam obrigar-nosa mudar de sistema
global, de maneira que seu conjunto esteja, em média,
em repouso no novo sistema. Não se trata, evidente-.
mente, de reintroduzir subrepticiamente um espaço ab-
soluto ao qual os sistemas globais seriam comparados.
Passaríamos, por exemplo, de um referencial onde Vega
está em repouso para um outro no qual seria Aldebarã
que estaria em repouso. Neste sentido, o espaço, para
Mach, é relativo no sentido físico.
Coleção CLE V.09
“A Teoria Geral da Relatividade | 247

4.6 A Rotação na Relatividade Geral

Para satisfazer às exigências machianas, o trata-


mento dos sistemas em rotação (o disco giratório, o
movimento anual da Terra em torno do Sol, a rotação
diurna da Terra, etc.) deve estar de acordo com os
requisitos empiristas e, portanto, satisfazerà relativi-
dade empírica do movimento e à, causalidade empírica.
Esta última exigência implica que um campo não-ho-
mogêneo sobre uma plataforma giratória deve poder ser
explicado, isto é, deduzido, das equações do campo e do
movimento relativo às massas observadas. Como ape-
nas o movimento relativo pode ser aceito como causa do
campo inercial não-homogêneo, a situação na qual su-
pomos as estrelas em repouso, por exemplo, ou aquela
na qual supomos a Terra em repouso devem ser fisica-
mente indiscerníveis. Isto leva à equivalência dinâmica
e à rejeição de um espaço absoluto que teria efeitos
dinâmicos, permitindo privilegiar determinados siste-
mas de coordenadas.
Em um universo constituído
por uma única fonte,
não deveria ser possível distinguir dinamicamente um
sistema de coordenadas no qual esta fonte estivesse em
repouso de um sistema no qual ela estivesse em rotação
axial. Em um universo composto por camadas esféricas
concêntricas de matéria, 5; e 52, em rotação mútua, os
efeitos de inércia observados deveriam ser idênticos em
um sistema onde S;, estivesse em repouso, em um sis-
tema onde S, estivesse em movimento e em um sistema
onde S, e também S, estivessem em movimento, con-
tanto que o movimento relativo fosse sempre o mesmo.
Coleção CLE V.09
248 A Inércia e o Espaço- Tempo Absoluto

4.6.1 Os sistemas em rotação axial

Abordemos, agora, o tratamento matemático dos


sistemas em rotação como a Terra sobre seu eixo e
o disco giratório. Este problema, infelizmente, ainda
não foi completamente resolvido no quadro da rela-
tividade geral. Possuímos apenas soluções aproxima-
das cuja métrica é pseudo-euclidiana. É sobre estas
soluções aproximadas que se apóiam os desenvolvimen-
tos de de Sitter e de Reichenbach, que têm ao menos
o mérito de colocar claramente o problema levantado
pelas “condições de limite”.

a) de Sitter

Citaremos longamente este autor, que trouxe con-


tribuições notáveis à cosmologia, primeiramente por-
que ele é especialmente claro e também porque seu ar-
tigo sobre a relatividade da rotação na teoria de Eins-
tein (1917a) é bastante desconhecido. De Sitter consi-
dera a rotação da Terra sobre seu eixo.
Tomamos, inicialmente, um sistema de coordena-
das:
rt =ct, al=r,2"=0, 2 =2,
onde z é o eixo de rotação, r e É são coordenadas po-
lares em um plano perpendicular a este eixo. Deseja-
mos, agora, encontrar os gy, que descrevem o campo
gravitacional-inercial na superficie da Terra.
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 249

de a Terra não girasse, os g;, teriam como valor


(fixamos c = 1):

=1 ; | = (1)

—1J.

“Isto é exatamente a métrica de Minkowski em coor-


denadas. polares. De Sitter descreve, em seguida, a si-
tuação quando passamos para um sistema em rotação:
Se efetuamos a transformação em direção a eixos
em rotação considerando 9º = 8 — wt, encontrare- |.
mos como componentes dos g;,, no novo sistema: |

1 eme rw? —rw

—rºw e pt
4 o

Concluímos que o conjunto (1) não explica correta- |


mente os fenômenos observados sobre a superfície
da Terra, enquanto que (2) os explica se tomar-
mos o valor apropriado para w. Este valor de w
chamamos de velocidade de rotação da Terra. Em
relação aos eixos (2), a Terra não possui rotação,
e deveríamos esperar obter valores (1) dos gv. O
gia é o segundo termo de gap em (2) não pertencem
ao próprio campo da Terra e devem ser produzidos
por massas distantes. (1917, p. 528)??

22 De Sitter acrescenta em uma nota: “Evidentemente, ne-


nhuma massa produzirá o efeito desejado na teoria de Newton.
À hipótese implica uma modificação da lei newtoniana da gra-
vitação. Talvez fosse possível, na teoria de Einstein, imaginar
massas que produzissem o efeito desejado. As estrelas fixas não
o produzem.”
Coleção CLE V.09
250 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

O valor apropriado de w acima é obtido realizando-


se experiências (dinâmicas) no nível da Terra e não re-
quer a observação do movimento relativo Terra/estrelas.
Mas a presença destes efeitos dinâmicos nos conduzi-
ria a inferir a existência de massas distantes. De Sitter
apressa-se em criticar este tipo de procedimento que
atribui a Mach. |
Todavia, o raciocínio é errôneo (...) A equação ri-
gorosa [não-linear] é satisfeita por:

go2 = kr? o (3)

onde k é uma constante arbitrária. Veremos que


(1) e (2) são casos particulares da fórmula geral
(3). O erro no argumento utilizado acima era que
(1) era considerado como a solução no lugar de (3).
A teoria de Einstein requer, de fato, que goz seja
da forma (3), mas ela não prescreve a constante
de integração. A teoria de Newton a prescreve e
nisto residia seu caráter absoluto. Mas a teoria de
Einstein é relativa: nela a equação diferencial é a
equação fundamental e a escolha das constantes de
| integração permanece livre. o
As constantes de integração devem, em um 1 dado
sistema de referência, ser determinadas de tal ma-
neira que os movimentos relativos observados sejam
corretamente representados. Em uma verdadeira
teoria da relatividade, não apenas a solução geral
transformada deve satisfazer a equação diferencial
invariante, mas a solução particular, que está de
acordo com os fenômenos observados em um sis-
tema, deve pela transformação dar uma solução
particular que descreva os fenômenos observados
no novo sistema. Por conseguinte, as constantes
de integração devem ser também transformadas e
serão geralmente diferentes nos diferentes sistemas.
(1917a, p. 529)
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 251

É preciso distinguir cuidadosamente as equações di-


ferenciais (as equações do campo) e as soluções destas
equações. As equações diferenciais guardam a mesma
forma quando passamos de um sistema para um outro:
são geralmente covariantes (de Sitter, como Einstein e
Weyl, diz que elas são invariantes). Uma solução parti-
cular, isto é, um conjunto de valores particulares para
os componentes da métrica (os Buv) podem variar, e in-
clusive devem, em virtude do princípio de covariância.
O valor da constante de integração e, portanto, dos
guv, depende do sistema de referência: as soluções não
são invariantes. De Silter continua:
Suponhamos que tenhamos tomado no início um
sistema de coordenadas [K,,)] no qual a Terra tem
uma rotação w1. Esta w1 é, evidentemente, inteira-
mente arbitrária e, como nossos eixos de coordena-
“das não podem ser observados, ela deve, em uma
verdadeira teoria da relatividade, desaparecer das
fórmulas finais [soluções para o movimento dos cor-
pos em relação à Terra). Temos, agora, goz = kr”,
e para determinar k [no sistema K,,], efetuamos
a transformação em direção aos eixos nos quais a
Terra não possui rotação [Kur=o] servindo-se de
9º = 0 — wjt. Então, no novo sistema:

| 902 = (k war?
A observação [trata-se de uma observação de efeitos
dinâmicos] mostra que o valor correto de g99 neste
sistema é wr?. Temos, pois:

ota = (E wir? = cur? (4)


k=w-uw.

Se utilizamos este valor de k, as fórmulas finais para


o movimento dos corpos em relação à Terra con-
Coleção CLE V.09
252 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

“terão somente a quantidade observável w. (1917a,


p. 530)
A crença (errônea) que o “verdadeiro” valor de k é
igual a zero e, portanto, que existe um sistema privi-
legiado no qual k toma este valor, repousa no seguinte
fato:
Em relação ao sistema de coordenadas [K,,] que
acaba de ser considerado, uma estrela média pos-
sui uma rotação w; — w = wa. Se efetuarmos uma
transformação em direção aos eixos nos quais esta
estrela não possui rotação [Kug = 0], encontrare-
mos:
902 = (k — wa)r? “

“As observações das estrelas [trata-se aqui de uma


observação cinemática] requerem o valor (1) com
uma aproximação muito boa, isto é, g99 = 0. Su-
pomos que zero é o valor exato e por conseguinte:

k — Wa — 0.

(1917a, p. 530)
Já que no raciocínio acima k é uma constante que
vale w;—w, onde w representa a velocidade angular rela-
tiva Terra/estrelas (portanto, uma grandeza observável),
obtemos: w —w — wo, = 0. Ou ainda: w = w, — wo.
Se partirmos de novo da solução geral (goz = kr?)
considerando que k é uma variável cujo valor muda de
um sistema para outro, teremos em cada um dos siste-
mas:

Ka | g02=(w—-w)r? k=w-w(=w)
Kúwr=0 902 — —wr? =—W
!
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 253

Este valor nulo de k no sistema em que as estrelas


estão em repouso exprime a coincidência experimental,
já assinalada, entre o valor das forças de inércia ob-
servadas na, sipeitície da Terra e o valor destas forças
quando são calculadas a partir do movimento de rotação
observado da Terra em relação às estrelas.
Isto é certamente um fato notável e uma confirma-.
ção da teoria de Einstein (ou da teoria da inércia de
Newton que na aproximação [grifo nosso) utilizada
aqui é equivalente à teoria de Einstein). Agora, se
aceitarmos um espaço absoluto, e se supusermos
que o sistema das estrelas não possui rotação real,
isto é, não possui rotação em relação ao espaço ab-
soluto, então, o verdadeiro valor de wa será zero, e
k = 0. Mas a convicção de que este valor é o verda-
deiro valor, e que tem uma preferência sobre todos
os outros, está baseada na crença em um espaço ab-
soluto, e deve ser abandonada ao mesmo tempo que
esta própria crença. (...) Devemos, então, consi-
derar as equações diferenciais como fundamentais,
e estarmos preparados para termos diferentes cons-
tantes de integração nos diferentes sistemas de re-
ferência. (1917a, p. 530)

de as equações do campo de Einstein conservam


sua forma em todos os sistemas, a constante de in-
tegração varia de um sistema para outro. Poderíamos,
pois, pensar que o sistema de coordenadas no qual a
constante k toma um valor nulo goza de um privilégio
análogo ao dos sistemas inerciais, já que a métrica toma,
neste caso uma forma diagonal particularmente sim-
ples. Isto não é verdade. . O privilégio dos sistemas
inerciais se fundamenta na forma particularmente sim-
ples que as equações diferencias, as leis do movimento,
tomam neste contexto. No caso discutido por de Sitter,
Coleção CLE V.09
2954 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

as equações diferenciais (do campo) guardam a mesma


forma em todos os sistemas. Elas não são mais sim-
ples no sistema das estrelas; somente sua solução o é.
Isto não confere, de forma alguma, ao sistema das es-
trelas um estatuto privilegiado, do mesmo modo que
o fato da velocidade inicial de um corpo ser nula em
um dado sistema inercial não lhe confere um estatuto
privilegiado em relação aos sistemas inerciais nos quais
esta velocidade inicial seria diferente de zero. Preten-
der que o sistema no qual a velocidade inicial do corpo é
igual a zero seja privilegiado, seria atribuir a este corpo
um estatuto especial no conjunto dos corpos materiais.
Ora, não há razão para dar à Terra, ou às estrelas, um
estatuto privilegiado do ponto de vista da física.
Para de Sitter, a rotação na teoria de Einstein é
relativa: todos os sistemas de coordenadas são equi-
valentes no sentido em que a mesma situação física
pode ser descrita em qualquer sistema de coordena-
das. Para tanto, é necessário que os componentes do
tensor métrico variem de um sistema de referência para
um outro. Se supusermos que uma métrica particular
constitui a “verdadeira ” métrica, recairemos em uma
concepção absolutista. o

No espaço absoluto, temos 992 no infinito. Na te-


oria de Einstein, o valor de 992 no infinito é dife-
- rente nos diferentes sistemas de coordenadas. En-
tretanto, nenhuma observação jamais nos informou
o que quer que seja sobre o infinito e nenhuma
observação jamais o fará. A condição de que o
campo de gravitação deve ser igual a zero no infi-
nito faz parte da concepção de um espaço absoluto,
e não tem fundamento em uma teoria da relativi-
“dade. (1917a, p. 531) -
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 255

Acreditar que 902 = 0 para r = oco (ou que k tende


a 0, quando r tende ao infinito, é o “verdadeiro” valor
de go; no infinito) não é diferente de acreditar que o
verdadeiro valor de k é zero. |
A rotação é, portanto, relativa na teoria de Eins-
tein. Isto significa que ela é fisicamente equiva-
lente à translação, que é também relativa? Eviden-
“temente não; (...) podemos sempre encontrar um
sistema de referência em relação ao qual um dado
corpo não possui rotação, assim como podemos en-
contrar um sistema no qual a aceleração produzida
por um corpo em um dado ponto vale zero, mas não
podemos eliminar a rotação, assim como a massa.
Este é um fato independente de todas as teorias.
(1917a, p. 532)
Sabemos que a solução aqui proposta é apenas uma
solução aproximada (aliás, como o próprio de Sitter
reconhece). As métricas discutidas dão uma curva-
tura espaço-temporal nula. Entretanto, o componente
902 = kr* é para de Sitter uma solução da equação do
campo. Isto quer dizer que na solução rigorosa, deve
haver outros componentes não-nulos, variáveis segundo
o sistema, mas tais que a curvatura não é mais igual
a zero. À matriz (1) corresponde a um espaço-tempo
plano, e o mesmo vale para a matriz (2), obtida por
uma transformação contínua a partir da primeira, já
que a curvatura é um invariante.
O grande mérito de de Sitter é chamar atenção
sobre a pertinência da distinção entre as leis e suas
soluções, nas quais aparecem as condições iniciais, para
a problemática do espaço absoluto. Com o objetivo de
clarificar a sequência do debate, é interessante pergun-
tar se a solução de de Sitter, ainda que tendo, repeti-
Coleção CLE V.09
256. A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

mos, apenas um valor aproximado, satisfaz aos requi-


sitos empíricos machianos enunciados acima.

É preciso que ela satisfaça à causalidade empírica.


É preciso que o campo inercial-gravitacional seja uni-
vocamente determinado pelo movimento relativo das
massas em questão. Retomemos aqui a crítica dirigida
por de Sitter a Mach. Ele o reprova por supor tacita-
mente que a métrica (1) de Minkowski em coordenadas
polares é a verdadeira solução, e que todo desvio obser-
vado em relação a esta solução (a saber (2)) deve ser
explicado pela presença de massas circundantes: as es-
trelas. (Notemos que de Sitter atribui a Mach a opinião
de que o movimento relativo Terra/estrelas não deter-
mina a totalidade dos componentes da métrica, mas
somente os termos não-diagonais e o segundo termo
—r?w? em go; isto é, os termos nos quais a rotação
relativa w intervém). Para provar que a distribuição
e o movimento relativo das massas determina, ao me-
nos em parte, os componentes da métrica, é preciso,
em um sistema de coordenadas fixo, poder fazer variar
a distribuição e o movimento das massas do universo
neste sistema, o que é evidentemente impossível. (Fo-
ram realizadas experiências análogas, que apresenta-
ram resultados negativos) (ver a discussão dos efeitos
de Thirring, seção 4.6.3). |
Antes de voltarmos a esta questão, observemos se
o valor da constante k em um sistema de coordena-
das particular pode ser determinado a partir do mo-
vimento relativo Terra/estrelas, que é um invariante,
sem recorrermos a medidas de efeitos dinâmicos locais.
Recapitulemos o procedimento de de Sitter para desco-
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 257

brir o valor de k em cada um dos sistemas K,, KuT=o,


Kowg=o. Ele parte de um sistema de coordenadas no
qual a Terra tem uma velocidade arbitrária w,, e efe-
tua, em seguida, uma transformação de coordenadas
para um sistema no qual a Terra está em repouso.
Neste novo sistema, a observação permite determinar
o valor correto de gh,= —wr?. De Sitter não fala neste
momento de observações de estrelas: trata-se de ob-
servações dinâmicas. É apenas depois que o movimento
das estrelas intervém, a partir do qual ele interpreta o
valor w medido em Kate -9 como um movimento rela-
tivo Terra/estrelas. Apenas. a observação das estrelas,
independentemente das medidas dinâmicas, não per-
mite, de início, determinar o valor de k em um sis-
tema. Somente após ter constatado a coincidência do
valor de k = w, obtido dinamicamente no sistema em
que a Terra está em repouso, com o valor da rotação
das estrelas neste mesmo sistema, é que podemos deter-
minar o valor de k em qualquer outro sistema a partir
do movimento das estrelas (w>) observado neste último.
Este valor de k é idêntico àà velocidade angular das es-
trelas (w,). É preciso, de fato, observar que o valor
de k obtido não é dedutível apenas das equações do
campo e da observação das estrelas. Apenas retrospec-
tivamente, depois. de efetuadas medidas dinâmicas, é
que poderemos nos basear na observação das estrelas.
Inversamente, não é possível para um observador, que
efetuasse medidas dinâmicas sobre uma Terra perpe-
tuamente envolvida por nuvens, inferir a distribuição
e o movimento das massas em relação à Terra. Dizer,
como Mach, que poderíamos deduzir o valor de k, se
conhecêssemos a distribuição e o movimento das mas-
Coleção CLE V.09
258 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

sas do conjunto do universo, seria recair na enunciação


de um postulado desprovido de significado empírico.
Finalmente, os valores diferentes de k, segundo os
sistemas de coordenadas, constituem fatos brutos da
experiência, que não são suscetíveis de privilegiar um
sistema qualquer, e que, por isso, não requerem ex-
plicação. Pois, segundo de Sitter, é a crença em um
valor verdadeiro de k que distingue o sistema no qual
k toma este valor, e requer uma explicação para os va-
lores diferentes de k em outros sistemas.
E isto respondeà questão da causalidade empírica.
É a equivalência dinâmica dos sistemas globais de co-
ordenadas, no sentido que a mesma realidade física é
descrita nestes sistemas pelas mesmas equações cova-
riantes, que nos dispensa de procurar uma causa para
os desvios na diagonal da métrica. Os valores dife-
rentes de k se “explicam” simplesmente por um efeito
de perspectiva devido à escolha do sistema de coor-
denadas. Podemos concluir, então, que a solução de
de Sitter satisfaz à exigência imposta pela causalidade
empírica, não porque o valor de k pode ser deduzido
das massas observadas, mas porque ele não tem que
ser explicado. Do mesmo modo que o valor medido
(a velocidade inicial,
por exemplo) de uma constante
obtida pela integração de uma equação diferencial do
movimento não requer uma explicação. Não existe um
valor “verdadeiro” da velocidade inicial e sua variação
de um sistema de coordenadas para outro não requer
nenhuma explicação física.
de a solução de de Sitter satisfaz à exigência de rela-
tividade dinâmica, o requisito de causalidade empírica
é igualmente satisfeito, contanto que se situe a causa
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade o, 259

dos efeitos de inércia no movimento. Para de Sitter, há


apenas um movimento, o movimento relativo Terra /es-
trelas e os efeitos de inércia descritos pelas equações do
campo para esta situação. Em sistemas de coordenadas
diferentes, os valores dos componentes tomarão valores
diferentes, mas continuarão a descrever a mesma reali-
dade física. |
Todavia, esta discussão de de Sitter deixa aberta a
questão de se saber se a distribuição das massas e a
rotação relativa Terra/estrelas é o único fator consti-
tutivo da realidade, do campo. Visto que a solução é
uma solução aproximadamente plana, ela é a mesma,
se supusermos a Terra ou as estrelas em repouso. Mas,
devemos ter um desvio em relação ao campo plano,
na solução exata. Este desvio só dependeria do mo-
vimento relativo? Veremos que não. As condições de
limite, utilizadas para determinar as constantes de in-
tegração equivalem à exigência de que o espaço-tempo
seja plano ao infinito, mesmo se os componentes da
métrica variam segundo os sistemas de coordenadas.
Se tomarmos, no início, um sistema de coordenadas,
digamos polares, no qual as estrelas estejam em re-
pouso, a métrica tomará a forma (1) no infinito. Neste
sistema, a rotação da Terra apresentará uma métrica
diferente daquela produzida pela rotação das estrelas.
Por conseguinte, mesmo que a solução de de Sitter só
dependa da velocidade relativa, e satisfaça à relativi-
dade dinâmica, não se segue que a teoria de Einstein a
satisfaça. Nesta teoria, a rotação da Terra e das estre-
las correspondem a soluções diferentes.
Coleção CLE V.09
260 A Inércia co Espaço-Tempo Absoluto

b) Reichenbach e Tonnelat

O tratamento dado por Reichenbach (1969, pp. 172-


8) ao problema do disco giratório é análogo àquele uti-
lizado por de Sitter para a rotação da Terra. Acom-
panharemos aqui a exposição de Tonnelat (1964, pp.
68ss), mais clara e completa. |
O método utilizado por de Sitter e Reichenbach con-
siste em definir dois sistemas de coordenadas, um no
qual o disco está em movimento, o outro, solidário ao
disco e no qual este está em repouso. À métrica pseudo-
euclidiana em cada um destes sistemas é descrita pelas
matrizes de de Sitter (em Kúwg=0 € Kuy=0, respectiva-
mente). |
Se quisermos conhecer a geometria local sobre o
disco giratório, procederemos da seguinte maneira. De-
finimos localmente um referencial de inércia no qual a
métrica toma uma forma diagonal. Podemos, então,
separar o tempo do espaço (eles são ortogonais) e cons-
tatamos quea geometria espacial tridimensional não é
mais euclidiana, o que explicamos pela contração dos
comprimentos prevista pela relatividade restrita (ver
acima (seção 3.6) a discussão da plataforma de Eins-
tein). |
O elemento de linha não-diagonal se escreve com
auxílio dos componentes da matriz (2) acima. Por di-
agonalização obtemos:

wr? dO
2,,2 —2 TT
art = do? (1- TE)
c?
1— —& Tl
di | gy?
] c?
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade . 261

Com a parte espacial: .

| r2do?
do” = dr? + — rw?
+ dz” .
| — c?

Observando que wr = v, obtemos 1 — v?/c? no deno-


minador do coeficiente do tempo em df?, o que está de
acordo com a contração cinemática de Lorentz. O ele-
mento de comprimento espacial é não-euclidiano. Mas
o elemento de comprimento quadridimensional perma-
nece pseudo-euclidiano. A diagonalização não altera
em nada a geometria espaço-temporal que permanece
plana.
Podemos realizar esta diagonalização em diferentes
lugares do disco. Entretanto, os sistemas locais nos
quais a métrica é diagonalizada terão uma orientação
diferente: é impossível encontrar um sistema de re-
ferência global no qual a métrica tenha em todos os
lugares a forma diagonal. Este fato é uma: outra ma-
neira de exprimir a curvatura do espaço-tempo e a pre-
sença do campo inercial não-homogêneo. Temos pois,
uma solução-envelope. A solução rigorosa do disco gi-
ratório em relatividade geral consistiria em descobrir o
espaço-tempo não-euclidiano, solução das equações do
campo, tangencial a todos os espaços-tempo pseudo-
euclidianos locais. Até o momento, as soluções propos-
tas são incompletas??. A necessidade de uma solução
que se afaste da geometria plana para o disco giratório
repousa sobre as experiências de Harres, Pogany (1926;
1928) e Sagnac (1913)?4. Estas experiências consti-
*“Ver Kichenassamy (1961) e Kursunoglu (1961). Ver
também
Tonnelat (1964, pp. 78-81). |
“Ver Tonnelat (1964, pp: 21ss).
Coleção CLE V.09
262 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

tuem a contrapartida óptica das experiências do balde


de Newton e do pêndulo de Foucault. O dispositivo ex-
perimental apresenta-se da seguinte maneira. Um feixe
luminoso emitido pela fonte S (ver figura 4.10) é divi-
dido em dois por uma lâmina semi-refletora: uma parte
é refletida para a direita, enquanto a outra atravessa a
lâmina. Cada um dos feixes luminosos é refletido por
uma série de espelhos solidários a um disco transpa-
rente em rotação e volta ao ponto 0. O primeiro é em
parte refletido novamente pela lâmina, e uma parte do
segundo atravessa a lâmina de tal maneira que há um
fenômeno de interferência observado no interferômetro
I. A partir das posições das franjas da interferência, po-
demos calcular a diferença entre os tempos percorridos
pelos dois feixes.

Figura 4.10

“Se o disco está em repouso no laboratório, não ob-


servamos diferença entre os tempos de percurso. Em
compensação, se o disco é animado por um movimento
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 263

de rotação w, existe uma diferença entre os tempos de


percurso que é dada pela fórmula experimental:

| 4w
M=SS (4.6.1)
onde $ é a superficie circunscrita pelo trajeto dos raios
luminosos. As diferenças de tempo são independentes
das posições da fonte e do interferômetro. Além disso,
elas não mudam se o interferômetro ou a fonte esti-
verem ligados ao laboratório ou ao disco em rotação.
O disco é constituído de vidro, água ou de ar nas ex-
periências de Harres, Pogany ou Sagnac, respectiva-
mente. O At não depende do índice de refração.

Ora, podemos mostrar que a solução pseudo-eucli-


diana entendida globalmente, isto é, no conjunto do
disco giratório, fornece:

Ate —fes (46.9)

Vemos que para velocidades de rotação pequenas


(wr << c), a solução plana (4.6.2) tende ao valor ob-
servado (4.6.1); esta solução plana só possui, portanto,
um valor aproximado no nível global, ainda mais pelo
fato da velocidade tangencial (perpendicular à veloci-
dade radial) ser pequena em relação à velocidade da
luz. A observação nos obriga a abandonar a solução
pseudo-euclidiana: sabemos que a solução exata é uma
geometria de Riemann sobre o disco em rotação.
Coleção CLE V.09
264 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

4.6.2 A solução de Schwarzschild

Existe uma solução exata, bem conhecida, das e-


quações do campo, frequentemente comentada pelos
autores filosóficos em suas discussões da problemática
machiana. Trata-se da solução de Schwarzschild, válida
para os campos centrais (isotrópicos vistos de um cen-
tro) e estáticos (ver Weinberg (1972, p. 180)). Esta
solução descreveo campo criado pelo Sol. No caso ex-
terno, isto é, fora das fontes (fora do Sol), ela permite
explicar o movimento dos planetas. O elemento de li-
nha dr? de Schwarzschild em coordenadas esféricas se
escreve: | o

dr? = Ê — 2MY | de? — 1 - = ) dr? — r2dg? — r2sin20dg?,

onde M representa a massa da fonte e G a constante


da lei de gravitação newtoniana.
Esta solução permite descrever a precessão do pe-
riélio de Mercúrio e a deflexão da luz no campo de gra-
vitação do Sol. As confirmações, já pouco numerosas,
da teoria da gravitação de Einstein só confirmam dire-
tamente a solução de Schwarzschild, e indiretamente,
as equações do campo*. Esta solução, ainda que seja
uma solução exata das equações do campo, só é fisi-

25Se as ondas gravitacionais tivessem sido observadas, uma ou-


tra solução seria confirmada, a da aproximação do campo fraco.
Quanto à observação da precessão do giroscópio e dos efeitos de
arrastamento à Thirring, ela confirmaria uma outra solução, a
aproximação dita pós-newtoniana (que permite igualmente de-
duzir a precessão do periélio). Ver Weinberg (1972).
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 265

camente aceitável para os campos de simetria esférica


e estáticos (cuja fonte não varia). Campos como es-
tes nunca são. perfeitamente realizados na natureza. O
Sol, de fato, não é a única fonte de gravitação no sis-
ama solar (é preciso levar em conta os outros plane-
: Júpiter, Saturno, etc.). Além disso, a forma do
Sob não é exatamente uma esfera, mas um elipsóide (o
campo não é inteiramente isotrópico) e o Sol gira so-
bre si mesmo (o campo não é perfeitamente estático).
Esta situação é, certamente, característica da física,
e da ciência em geral, onde as soluções matemáticas
são confirmadas apenas de uma maneira aproximada.
Mas aqui a situação se complica porque as equações do
campo não são lineares. 'A solução resultante do con-
junto das fontes do sistema solar não é necessariamente
a soma das soluções individuais. Não temos a aditivi-
dade.

As críticas geralmente dirigidasà solução de Sch-


warzschild, por filósofos que gostariam de ver as exi-
gências máchiands satisfeitas pela teoria da gravitação,
baseiam-se na “condição, imposta para obter a solução,
de que a métrica seja minkowskiana no infinito?
Em um universo composto por um Sol esférico e por
uma partícula-teste de massa negligenciável, a métrica
do espaço-tempo, e, portanto, os sistemas de inércia
locais (os espaços-tempo tangenciais), não são deter-
minados de modo unívoco pela distribuição da massa-
energia, isto é, por quantidades empiricamente men-
suráveis, mas dependem igualmente desta condição de
limite, que aparece mais ou menos como um deus ez
26yer Grinbaum (1973, p. 420), Sklar (1974, PP. 215- 7), Ear-
man (1970, pp. 301-2).
Coleção CLE V.09
266 — A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

machina não-suscetível de justificação empírica. Estes


filósofos julgam, pois, que nenhuma razão, a não ser
razões a priori, que consideram inadmissíveis, possa
fundar uma preferência pela solução plana, diagona-
lizável sob a forma minkowskiana, no infinito. Ao con-
trário, eles julgam que, de acordo com os requisitos
empíricos machianos, seria preciso exigir que os compo-
nentes do tensor métrico, Os 9,v, fossem identicamente
nulos no infinito, em todos os sistemas de coordena-
das. Esta exigência constitui uma formulação precisa
do “princípio de Mach”, a saber, que a inércia (a co-
nexão afim) seja completamente e univocamente deter-
minada pelo conteúdo de matéria-energia. Na ausência
deste conteúdo, no vácuo, o campo métrico deve de-
saparecer. (Ocorre que a condição de que a métrica
se anule no infinito não fornece valores corretos da
métrica, aqueles que descrevem os« movimentos obser va-
dos dos planetas no campo de gravitação do Sol. Estes
filósofos concluem, então, que a relatividade geral con-
serva um resíduo de espaço absoluto, e isto no sentido
ontológico, já que tudo se passa como se existisse um
espaço-tempo plano, independentemente da existência
das fontes do campo. Este espaço-tempo de Minkowski
não é, evidentemente, absoluto no sentido físico: a in-
trodução de uma fonte modifica sua geometria.
A título de exemplo, analisaremos a posição de
Grunbaum, que diz:
(...) primeiramente, as condições de limite, no in-
finito, assumem, então, o papel do espaço absoluto
de Newton, já que não é a influência da matéria que
determina quais sistemas no infinito são os sistemas
galileanos da relatividade restrita; e em segundo
lugar, ao invés de ser a fonte da estrutura total do
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 267

espaço-tempo, a matéria apenas modifica sua es-


trutura, de outro modo plana de maneira autôno-
ma. (1973, p. 420)

Nesta passagem, Griúnbaum distingue cuidadosa-


mente dois pontos. Comecemos pelo primeiro que con-
cerne à definição dos sistemas inerciais no infinito. Es-
tes não podem ser definidos a partir das fontes, já que
no infinito a influência das fontes é nula. Mas podem
ser definidos se supusermos que o espaço-tempo é min-
kowskiano no infinito; aproximamo-nos desta forma, da
definição newtoniana: um sistema inercial está em re-
pouso ou em movimento retilíneo uniforme em relação
ao espaço absoluto.
Notemos primeiramente que a condição de limite
utilizada para obter a solução de Schwarzschild é indis-
pensável, contrariamente ao que pensa Grúunbaum na
segunda edição de sua obra (1973, p. 840). O teorema
de Birkhoff mostra somente que, no vácuo, um campo
de simetria espacial esférica é necessariamente estático.
À simetria esférica impõe uma restrição à relação entre
os componentes espaciais e temporais da métrica, mas
não permite abrir mão da exigência de que os g,, ten-
dam para n,, no infinito. Entretanto, o valor de go no
infinito, seja 1, pode ser deduzido das propriedades de
simetria (se efetuarmos uma transformação adequada
da coordenada temporal) (Weinberg 1972, p. 337).
Como de Sitter tinha salientado (seção 4.6.1) os va-
“Jores das constantes de integração variam de um sis-
tema de coordenadas para outro. Em um sistema de
“coordenadas que não reflete a simetria do sistema físico
estudado, a métrica obtida no infinito não tomará mais
a forma diagonal minkowskiana. A simplicidade ana-
Coleção CLE V.09
268 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

lítica relativa da métrica obtida no infinito no sistema


de coordenadas esféricas repousa na simetria particu-
lar da situação física e não pode ser atribuída a razões
dinâmicas. Os argumentos formulados por de Sitter
conservam todo seu valor ainda que tenham sido elabo-
rados a partir de uma solução não-rigorosa. Não existe
valor “verdadeiro” dos gy, no infinito. Os g,, tomam
valores diferentes segundo as coordenadas. Em contra-
partida, a curvatura é um invariante. Na ausência de
matéria, não há curvatura, e é possível encontrar um
sistema global de coordenadas no qual a métrica seja
pseudo-euclidiana. Mas todos estes sistemas de coor-
denadas são dinamicamente equivalentes (contanto que
permaneçam matemáticos e não recebam encarnação
física); todos permitem descrever a mesma realidade
física. |
Para um universo que fosse vazio, em um sistema de
coordenadas em rotação em relação ao sistema de co-
ordenadas inicialmente escolhido, a curvatura perma-
necerá nula no infinito. E perto da fonte a curvatura
permanecerá diferente de zero para todos os sistemas
de coordenadas. Em todos os sistemas, partículas-teste
descrevem as mesmas geodésicas, mesmo que sua ex-
pressão analítica varie segundo as coordenadas.
-— Em contrapartida, isto não permite afirmar a equi-
valência dinâmica ou o princípio geral da relatividade.
Para tanto, seria preciso que a solução do Sol imóvel
pudesse ser aplicada ao Sol em rotação sobre seu eixo
(supondo-se um universo que fosse vazio). Recaímos,
então, no problema da rotação sobre o eixo, discutido
antes. Mas, já que parece existir um espaço-tempo
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 269

plano independente, estas situações são fisicamente e


dinamicamente distintas (ver seção 4.7).

“Localmente, a distinção entre sistemas inerciais e


não-inerciais é evidentemente conservada. Mas ela re-
cebe um significado diferente daquele que Newton lhe
atribuía. Esta diferença pode ser compreendida recor-
rendo ao exemplo da superfície de uma esfera. Em cada
ponto da esfera, existe um plano tangencial. À geome-
tria é, certamente, euclidiana neste plano. Se não nos
distanciarmos excessivamente do ponto de tangência,
poderemos considerar que a geometria é euclidiana nas
imediações deste ponto. A possibilidade de aproxi-
mar a geometria não-euclidiana sobre a superfície da
esfera através de uma variedade euclidiana tangencial
não modifica, evidentemente, em nada esta geometria.
No feixe de planos que se interseccionam em um ponto,
existe um que é privilegiado. É precisamente o plano
tangencial, e sua orientação é fixada pela configuração
da esfera neste ponto. O conjunto de superfícies que
admitem em todo ponto um plano tangencial forma,
um sub- -conjunto das superfícies possíveis: são as su-
perfícies riemannianas. |
Estas considerações bodém ser estendidas, mutatis
mutandis, às variedades quadridimensionais da relati-
vidade geral. A variedade metricamente estruturada a
partir da distribuição das fontes constitui a realidade
física, solução das equações do campo. Os Juv São do-
tados de uma realidade, no sentido de que são a causa
de efeitos reais, observáveis, quanto ao movimento das
partículas-teste, na totalidade dos sistemas de coorde-
nadas, já que com auxílio de suas derivadas segundas,
Coleção CLE V.09
270 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

determinamos a curvatura, que é um invariante univer-


sal. |
Na ausência de espaço de cinco dimensões, só po-
demos caracterizar uma variedade espaço-temporal por
suas propriedades intrínsecas, entre as quais a curva-
tura. Ás variedades planas, pseudo-euclidianas, tan-
genciais em cada ponto, são interpretadas fisicamente
como sendo os sistemas de inércia locais. Estes últimos
só recebem significado físico através da existência dó
campo métrico, da mesma maneira que o plano tangen-
cial a uma esfera só tem existência através da existência
da esfera que constitui a realidade fundamental. Va-
riedade tangencial e variedade riemanniana são indis-
sociáveis; de um ponto de vista físico, são OS 9, que
definem a estrutura da variedade e suas propriedades:
são eles que são fundamentais. |
Lembremo-nos aqui que a utilização da geomeria de
Riemann para descrever os campos de gravitação re-
pousa no princípio de equivalência, de um lado, e na
verdade local da relatividade restrita, de outro. Se-
gundo o princípio de equivalência, existem localmente
referenciais nos quais a inércia e a gravitação se com-
pensam exatamente: as leis do movimento têm, então,
a forma simples vetorial que Einstein lhes deu. As vari-
edades espaço-temporais utilizadas pela teoria da gra-
vitação devem admitir em todo ponto variedades tan-
genciais planas de Minkowski. Portanto, é na verdade
das equações da relatividade restrita e no princípio de
equivalência que repousa o “pseudo- euclidianismo lo-
cal”, isto é, a geometria de Riemann?”,

“Existem outras justificações do “pseudo-euclidianismo lo-


Coleção CLE V.09
A Téoria Geral da Relatividade 21

Se os componentes da métrica fossem determinados


de modo unívoco, via as equações do campo, pela dis-
tribuição das fontes, esta última fixaria a orientação dos
sistemas inerciais em cada ponto. No caso da solução
de Schwarzschild, os sistemas de inércia são determi-
nados em todo ponto a partir da massa da fonte, da
simetria esférica da fonte (em princípio, observável),
da condição de que a grandes distâncias nos aproxima-

cal”, mas sua conexão com a experiência não é mais imediata que
a utilizada ao se recorrer à relatividade restrita e e ao princípio de
equivalência.
Uma primeira justificação repousa sobre a generalização das
idéias de Helmholtz, que tinha enunciado uma série de axiomas
(entre os quais a livre mobilidade das barras rígidas), da qual
pode-se deduzir. uma métrica espacial tridimensional, particu-
larizável para as três geometrias de curvatura constante (Eu-
clides, Riemann, Lobatchevski) (Cohen 1977). Lie retomou,
em seguida, esta idéia, 'generalizando-a para regiões infinita-
mente pequenas do espaço-tempo. Dos axiomas generalizados de
Helmholtz, ele consegue deduzir a forma quadrática fundamental
guvda"da” (ver Weyl 1963, p. 137). Este teorema de Helmholtz-
Lie resolve o que Weyl chama de probléma do espaço(-tempo) e
que ele define da seguinte maneira: quais são as condições (axio-
mas) a priori dos quais podemos deduzir a métrica. Em seguida,
trata-se de fundamentar estes axiomas na experiência. Ora, as
barras rígidas infinitesimais são desprovidas de sentido empírico
imediato, como observou Reichenbach (1969).
Uma segunda justificação da métrica quadrática de Riemann
foi proposta por Weyl (1963, p. 137). Somente ma força
quadrática permile exprimir as forças de inércia em função dos
símbolos de Christoffel. E, sem isto, seria impossível ligar as tra-
Jetórias inerciais à distribuição, em princípio observável, das fon-
tes. Mas, como vimos, este programa só é realizado em parte, já
que a inércia não é determinada de modo univoco pelo conteúdo
material.
Coleção CLE V.09
272 — A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

mos da solução newtoniana:


2GM
Jo = 1 — ,
r

e da condição de que a parte espacial da métrica ten-


de para a métrica euclidiana ó;, quando r tende ao
infinito. Existe, pois, um resíduo de espaço absoluto
na solução de Schwarzschild. Entretanto, o sistema no
qual os g,; tomam a forma n,, no infinito não goza
de nenhum privilégio dinâmico. Certamente os valores
dos gs tomam, no sistema de coordenadas esféricas,
uma formã particularmente simples. Mas a estrutura
geodésica permanece invariante e os sistemas de inércia
locais são sempre gerados pelos vetores tangentes a es-
tas geodésicas. Retomemos rapidamente o exemplo
da esfera. Em todos os sistemas de coordenadas que
podemos definir sobre a superfície de uma esfera, as
geodésicas permanecerão sempre arcos de grandes cir-
culos, mesmo que a expressão analítica destes arcos va-
rie de um sistema para outro. E os planos tangenciais
em um ponto serão sempre engendrados por dois ve-
tores tangentes a estas geodésicas que se cruzam neste
ponto. Os sistemas de inércia locais são, como os pla-
nos tangenciais, caracterizados de um modo puramente
geométrico. | |

Tratemos, agora, do segundo ponto da crítica de


Grúnbaum, que concerne ao estatuto ontológico da es-
trutura do espaço-tempo. Grúnbaum afirma que a teo-
ria da gravitação de Einstein implica a existência autô-
noma de um espaço-tempo pseudo-euclidiano cuja es-
trutura é modificada pelo conteúdo de matéria-energia.
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade | 273:

Ainda que relativo no sentido físico, o espaço-tempo


plano é absoluto no sentido ontológico, já que existe
independentemente da matéria-energia; ele continuaria
existindo mesmo se toda matéria-energia fosse aniqui-
lada, isto é, em um universo vazio.
A existência de um espaço-tempo plano absoluto
no sentido ontológico está baseada não apenas na e-
xigência de que a métrica seja pseudo- euclidiana no
infinito, mas igualmente no fato de que as equações
do campo admitem o tensor uv como solução vazia
(isto é, quando o T,, = 0) em um sistema de coor-
denadas cuidadosamente escolhido. Sabemos que esta
situação tinha preocupado Einstein consideravelmente:
foi para remediá-la que ele introduziu sua famosa cons-
tante cosmológica A. Ele pensava que as equações
com constante cosmológica admitiam como solução va-
zia apenas Ga identicamente nulos. Mas essa espe-
rança foi frustrada, pois. de Sitter mostrou que as novas
equações tinham outras soluções, além da solução nula,
e, em particular, a solução plana (de Sitter 1917b).
Este resultado, do mesmo modo que a rejeição do uni-
verso estático (chamado universo cilíndrico), solução
das equações com constante cosmológica, sucedendo a
descoberta de Hubble da expansão do universo, ia con-
duzir Einstein ao abandono da constante cosmológica.
O fato das equações do campo (com ou sem cons-
tante cosmológica) admitirem como solução vazia
Nu» constitui um argumento poderoso a favor de um
espaço-tempo plano. De fato,a estrutura métrica, que
determina através de suas derivadas primeiras a estru-
tura inercial, é bem real, no sentido de queé a causa
de efeitos reais. Reencontramos aqui a problemática
Coleção CLE V.09
274 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

newtoniana. Todo desvio em relação a uma geodésica


de uma partícula-teste, devido à ação de uma força ex-
terna (eletromagnética, por exemplo, se se trata de uma
partícula carregada), suscita o aparecimento de forças
de inércia. O movimento inercial, no quadro da relati-
vidade geral, corresponde a uma geodésica de uma va-
riedade espaço-temporal riemanniana. Todo desvio da
trajetória de uma partícula em relação a esta geodésica,
assim como todo desvio com relação às retas na relativi-
dade restrita, é explicado pela ação de forças externas.
Estas forças externas não podem ser atribuidas à gra-
vitação, já que esta é geometrizada. Sobram as forças
eletromagnéticas, fracas e fortes (e talvez a força hiper-
fraca também). A ação destas forças externas produz
o aparecimento, por reação, de efeitos inerciais. A es-
trutura métrica desempenha, assim, o papel atribuído
por Newton ao espaço absoluto: ela é a causa real de
efeitos reais.
Aliás, é este caráter real da métrica que pôde tornar
plausível, pelo menos no início, a tentativa hiperabso-
lutista de Wheeler de construir uma teoria física, a ge-
ometrodinâmica, na qual as únicas entidades reais são
OS Guv, € na qual as partículas materiais são definidas
com ajuda da métrica. O próprio Wheeler reconheceu
mais tarde o fracasso de sua tentativa neocartesiana
(Descartes tinha tentado reduzir a matéria à extensão
geométrica) (Ver Grúnbaum (1973, pp. 728ss.)).

A existência independente de um espaço-tempo


pseudo-euclidiano levanta duas questões. Em primeiro
lugar, sabemos que existem soluções vazias de curva-
tura diferente de zero. Taub (1951) demonstrou isto
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade . 275

para as equações do campo sem constante cosmológica.


Porque, então, supor antes a existência independente
de um espaço-tempo pseudo- euclidiano e não a exis-
tência de um espaço-tempo de curvatura constante?
- Uma segunda dificuldade é a seguinte. Mesmo se
um espaço-tempo pseudo-euclidiano existir independen-
temente da matéria, ele não é certamente absoluto no
sentido físico. Tudo ocorre na relatividade geral como
se o conteúdo material modificasse uma estrutura mé-
trica plana. Isto é é, 0 conteúdo material não é a causa
da totalidade do campo métrico, mas somente do des-
vio em relaçãoà geometria plana. N estas condições, a
exigência machiana da causalidade empírica não é mais
satisfeita pela teoria geral da relatividade. Podemos,
então, afirmar que a teoria. da gravitação de Einstein
satisfaz à relatividade dinâmica «ou o princípio geral de
relatividade? sir
Voltaremos «a estas questões “depois de dizer uma
| pala àsobre as soluções aproximadas das equações do
| campo? à sonia La

4.6. 3 As soluções aproximadas das equações do


campo |

“Considerando- se que o sistema. solar não é nem está-


tico nem de simetria esférica, não é possível descrevê-lo

28Existe uma outra solução exata das equações do campo no


exterior de uma esfera em rotação, chamada solução de Kerr,
mas ela repousa igualmente
na condição de limite que a métrica |
tome a forma minkowskiana no infinito. Ela é utilizada no estudo
teórico de desmoronamentos Bravitacionais: Ver Weinberg Lda,
p. 240).
Coleção CLE V.09
276 A Inérciae o Espaço-Tempo Absoluto

completamente e com exatidão com à auxílio da solução


de Schwarzschild. É preciso, então, tentar encontrar
equações do campo que não recorram a propriedades
de simetria. Como as equações do campo são não-
lineares, não é possível fornecer-lhes uma solução geral
(não existe forma integral das equações do campo)e
devemos utilizar métodos de aproximação. Todos estes
métodos supõem, no início, que a métrica desviar-se-á
muito pouco do tensor de Minkowski n,, em um sis-
tema de coordenadas convenientemente escolhido.
* Dois métodos de aproximação têm uma importância
particular. O primeiro, a aproximação dita pós-new-
toniana, é aplicável aos corpos que se deslocam com
velocidades baixas em relação à velocidade da luz: os
corpos que compõem o sistema solar, por exemplo. O
“segundo, à aproximação do campo fraco, não introduz
esta restrição, mas se detém em uma ordem menos ele-
vada na aproximação. Deduziremos a partir daí as
leis que descrevem as ondas gravitacionais, mas cuja
existência não recebeu até hoje confirmação experimen-
tal decisiva?
A aproximação pós- -newtoniana permite calcular al-
guns efeitos machianos no interior (efeito de Thirring)
e no exterior de uma esfera em rotação (efeito de Lense-
Thirring). Já em 1894, Friedlânder tinha tentado me-
dir, sem sucesso, efeitos inerciais, como as forças cen-
trífugas ou de Coriolis, no centro de um cilindro em
rotação rápida. Thirring (1918) utiliza a relatividade
geral para calcular estes efeitos no centro de uma ca-
mada esférica infinitamente fina em rotação. No mesmo
- 29Para a exposição detalhada destas soluções, indicamos as
obras de física. Por exemplo, Weinberg (1972, pp. 251ss.).
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade. CC QU:

ano Lense e Thirring (1918) calculam o efeito de Corio-


lis no exterior de uma esfera em rotação. Como à Terra.
está em rotação, um sistema inercial situado perto de
sua superfície não é um sistema cujos eixos estão fixos
em relação às estrelas, mas um sistema que é parcial-
mente arrastado pela rotação da Terra em torno de seu.
eixo. O plano do pêndulo de Foucault não está mais
completamente fixo em relação às estrelas, mas sofre
um ligeiro arrastamento de Coriolis em consegiiência
da rotação da Terra. Um sistema inercial “procura
chegar a uma espécie de acordo entre seguir a Terra
ou seguir as estrelas; tenta girar na mesma direção da
rotação da Terra, mas arrasta-se, longe, atrás dela; as
estrelas distantes ganhando sempre 0 combate” (Wein-
berg 1972, p. 239). Até o momento nenhum efeito
desse tipo foi detectado.
Sklar observa, com razão, que ass soluções pós-new-
tonianas dadas a este tipo de problema à Thirring, não
satisfazemà relatividade dinâmica. Consideremos um
disco central rodeado por duas esferas concêntricas $,
€ Sa:

vo Figura 4.11
Coleção CLE V.09
278 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

Na teoria geral da relatividade, com as suposições


sobre as condições de limite habituais, as duas ei-
tuações dão lugar a “forças inerciais” diferentes so-
bre o disco. Segundo a relatividade geral, fazer gi-
rar o sistema do laboratório e fazer girar o mundo
da matéria em torno do sistema do laboratório não
são situações fisicamente equivalentes, conforme o
que Mach nos levaria a esperar. (1974, p. 219)

Para que a equivalência dinâmica ou o princípio


geral de relatividade seja satisfeito, é preciso que as
soluções das equações do campo, que descrevem as si-
tuações 1 e 2, sejam idênticas em um dado sistema
de coordenadas. Este sistema é arbitrário, mas es-
colhemos, evidentemente, um sistema de coordenadas
esféricas no qual o disco central está em repouso. Ora,
constatamos que as soluções são diferentes (ver Dicke
1972). |
Cada solução particular é geralmente covariante e
os valores dos componentes da métrica para cada so-
lução variam segundo o sistema de coordenadas. Não
existe valor “verdadeiro” da métrica no infinito e as ob-
servações de de Sitter conservam toda sua força. Mas
a realidade física, o campo, é diferente nas situações 1
e 2. Podemos, então, como Sklar, afirmar que a teoria
da relatividade geral não satisfaz ao requisito machi-
ano da relatividade dinâmica, nem, aliás, à causalidade
empírica. ê
Como explicar, de fato, que as situações 1 e 2 sejam
fisicamente distintas, enquanto que os movimentos re-
lativos das esferas são os mesmos, a não ser recorrendo
novamente ao movimento em relação ao espaço abso-
luto? Na primeira situação, a rotação da esfera $; em
relação ao espaço absoluto produz um campo diferente
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 279

daquele da rotação absoluta de 5; no espaço-tempo


plano no infinito. Causas diferentes produzem diferen-
tes efeitos, como tem que ser. E o fato dos componen-
tes da métrica variarem segundo os sistemas não altera
esta situação. O que é decisivo. é .a existência indepen-
dente de um espaço-tempo'plano, e não a existência de
um “verdadeiro” valor, por exemplo, a forma diagonal
da métrica, no infinito.

Para terminar esta seção, façamos ainda um rápido


comentário a respeito da solução denominada a apro-
ximação do campo fraco (Weinberg 1972, pp. 251ss.).
A teoria da relatividade geral abre a possibilidade de
existência de ondas gravitacionais que seriam emitidas
por fontes não-estáticas, como estrelas muito densas em
rotação rápida (os pulsares), ou galáxias em
« colisão. Se
a existência de tais ondas viesse a ser confirmada, assis-
tiríamos provavelmente a um retorno com grande força
do conceito de éter em física. O campo métrico não
foi considerado por numerosos físicos, entre os quais O
próprio Einstein, como o herdeiro do éter? Citemos,
novamente, Hermann Weyl:

O campo de guia [o campo inercial] é (muito li-


geiramente) perturbado pela matéria, da mesma
maneira que a superfície de um lago é perturbada.
pelos barcos; ele retorna ao estado não-perturbado
descrito pela teoria da relatividade restrita quando |
toda matéria desaparece, assim como a superfície .
do lago se torna uma superfície plana homogênea
quando os barcos retornam ao porto (...) é im-
possível eliminar o campo de inércia, ou o “éter”,
enquanto potência independente dos fenômenos na-
turais. (Weyl 1963, p. 106)
Coleção CLE V.09
280 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

“A fortiori, a descoberta das ondas gravitacionais


constituiria um argumento de peso a favor da existência
independente de um espaço-tempo pseudo-euclidiano
que desempenharia o papel de um suporte, não mate-
Tial, mas apesar disto real, no qual estas ondas seriam
apenas perturbações periódicas.

4.7 Os Espaços-Tempo da Teoria da.


Gravitação de Einstein são
“Absolutos ou Relativos?

'“Resta-nos, para concluir, situar os movimentos e


os espaços-tempo da relatividade geral no interior da
grade conceitual exposta no Capítulo 1. Se supuser-
mos verdadeira a teoria da relatividade geral, em que
medida e sentido os movimentos e os éspaços-tempo
descritos por esta teoria serão absolutos ou relativos?

. 4.7 .1 Os movimentos.

À teoria da gravitação de Einstein conserva, tanto


local, quanto globalmente, a distinção entre os movi-
mentos inerciais, absolutos no sentido físico, e os movi-
mentos não-inerciais, relativos no sentido físico, já que
resultam de forças externas.
Em um ponto, existe sempre um espaço-tempo pla-
no tangencial no qual as leis da relatividade restrita,
sob forma vetorial, são aplicáveis; fisicamente, este sis-
tema permanece inercial nas imediações mais ou menos
extensas deste ponto, segundo a precisão das medidas
e a grandeza da curvatura neste ponto. De qualquer
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade | 281

maneira, existe sempre uma vizinhança do ponto (ex-


cetuando as singularidades), talvez muito pequena, na
qual temos um sistema inercial, independentemente da
curvatura do espaço-tempo e do grau de precisão dos
instrumentos de medida. Neste sistema de inércia lo-
cal, a geometria é plana, e as trajetórias inerciais se
distinguem das outras, do mesmo o modo que no espaço-
tempo de Minkowski.
Globalmente, as geodésicas constituem uma classe
de trajetórias espaço-temporais fisicamente distintas.
dão as trajetórias das partículas livres, isto é, partículas
de massa e fótons, quando são submetidos apenas à
força de gravitação, ou ainda as trajetórias inerciais.
Curiosamente, podemos traçar aqui um paralelo com a
distinção aristotélica entre movimentos naturais e mo-
vimentos forçados. Para Aristóteles, o movimento de
um corpo que cai em direção ao centro da Terra é um
movimento natural. Para Newton, não se trata de um
movimento natural, já que, para ele, a gravitação é
uma força externa, mas é natural para Einstein. Este
movimento natural, segundo Aristóteles, é um movi-
mento livre no sentido de Einstein. Em compensação,
a trajetória de um corpo em repouso na superfície da
Terra não é uma geodésica no espaço-tempo. Este
corpo está, na verdade, impedido de seguir seu mo-
vimento em direção ao centro da Terra devido à re-
sistência dos materiais terrestres, isto é, devido a forças
eletromagnéticas. Para Aristóteles, este corpo se en-
contra em repouso forçado: ele só está em repouso na-
tural no centro do mundo | |
A estrutura geodésica, o conjunto dos caminhos
mais curtos, permanece a mesma para todos os siste-
Coleção CLE V.09
282 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

mas globais de coordenadas. Uma transformação di-


ferenciável das coordenadas globais pode, certamente,
afetar a expressão matemática das geodésicas, mas não
modifica a rede dos trajetos seguidos pelas partículas
livres, em relação aos outros corpos. Isto é uma con-
sequência da covariância das equações do campo: os
componentes da curvatura variam de um sistema para
outro, mas uma geodésica permanece uma geodésica.
A geometria não varia: um espaço-tempo curvo per-
manece um espaço-tempo curvo, indepedentemente das
transformações das coordenadas. Se a curvatura esca-
lar é diferente de zero em um ponto, ela permanecerá
assim, evidentemente, em todos os sistemas de coor-
denadas. As geodésicas são, portanto, trajetórias de
movimentos absolutos no sentido físico, e isto em to-
dos os sistemas de coordenadas. |

À questão da relatividade empírica do movimento é


mais delicada. Vimos que as equações do campo admi-
tem soluções vazias diferentes de zero. Se supusermos
que a relatividade restrita é verdadeira na ausência de
matéria, somos levados a afirmar a existência, inde-
pendente da máteria, de um espaço-tempo plano, cuja
métrica toma em todos lugares a forma minkowskiana
em um sistema de coordenadas convenientemente es-
colhido. Neste espaço-tempo haveria, na ausência de
qualquer indicação observável, uma distinção entre as
trajetórias inerciais e as outras. Em um universo que
fosse vazio, uma partícula-teste de massa infinitamente
pequena, que não perturbaria a estrutura do espaço-
tempo plano, seguiria uma reta. E se “ligássemos” uma
força não gravitacional, eletromagnética, por exemplo,
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 283

a trajetória de uma partícula carregada não seria mais


uma reta, e veríamos aparecerem efeitos inerciais: por
exemplo, uma partícula carregada emite fótons quando
é acelerada.
Retomemos, agora, a experiência imaginária de
Newton de dois globos em rotação em um universo va-
zio. A relatividade geral prevê que haverá uma dife-
rença entre o repouso ea rotação em um tal sistema,
mesmo na ausência de corpos de referência. Pode-
mos constatar isto a partir de algumas soluções glo-
bais ou cosmológicas das equações do campo propostas
por Gôdel (1949). Nestas soluções, o universo está em
rotação global em relação a uma estrutura minkowski-
ana e diferentes velocidades de rotação correspondem a,
estruturas diferentes do sistema das geodésicas. O uni-
verso todo (finito) desempenha o papel dos dois globos,
e o espaço-tempo minkowskiano, o papel do espaço ab-
soluto de Newton. Vemos, assim, que à relatividade
empírica ou cinemática do movimento não é satisfeita
pela teoria da gravitação de Einstein, já que é possível
falar de rotação em relação : a um espaço-tempo Plano
inobservável.

A causalidade empírica também não é satisfeita.


Para que fosse, seria preciso que os movimentos re-
lativos pudessem explicar os efeitos de inércia ou, de
modo equivalente, que a métrica fosse unívoca e com-
pletamente fixada pelo conteúdo material. Vimos que
nos sistemas estudados por Thirring, a relatividade ge-
ral prediz resultados diferentes, mesmo se as rotações
relativas das esferas concêntricas são as mesmas. É que
existe um terceiro fator que é de novo o espaço-tempo
Coleção CLE V.09
284 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

pseudo-euclidiano e este não pode ser substituído pela


distribuição média das massas, como Mach pedia. Se
isto pudesse acontecer, a diferença entre as duas si-
tuações descritas acima seria explicada por movimentos
relativos diferentes em relação ao conjunto das massas
do universo. |
Uma maneira de satisfazer à causalidade empírica
seria dar um sentido empírico preciso para as condições
de limite. Para tanto, é preciso dar condições a distância
finita, acessíveis em princípio à observação, e que con-
duzam a soluções empiricamente aceitáveis. Esta via
foi adotada, especialmente por Wheeler (1964), im-
pondo que os espaços-tempo sejam espacialmente fi-
nitos. Entretanto, tais abordagens necessitam recorrer
a hipóteses adicionais cujo significado empírico perma-
nece problemático (ver Sklar 1974, p. 221).
Uma outra maneira de satisfazer à causalidade em-
pírica, seria dispor de um modelo de universo, isto é,
do conhecimento da métrica global, a partir de ob-
servações, como a densidade média de energia, etc. As
condições de limite seriam, então, fornecidas pela geo-
metria global do universo, que é modificada em certos
lugares pela presença de sistemas físicos (o Sol, por
exemplo), responsáveis pelas inomogeneidades locais.
Mas os dados experimentais permanecem atualmente
insuficientes para determinar a geometria global do uni-
verso. Além disso, a observação da densidade média es-
barra em dificuldades semelhantes às encontradas por
Mach, quando se tratava de fixar o sistema de coor-
denadas no qual as estrelas estariam, na média, em
repouso (seção 4.5.1). |
Podemos concluir, portanto, que, no estado atual
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 285

das pesquisas teóricas e dos resultados experimentais,


o campo métrico, que permite distinguir as trajetórias
geodésicas das outras, não pode estar completamente li-
gadoà experiência. A melhor justificação da condição
de que a métrica seja minkowskiana no infinito (em um
sistema de coordenadas cuidadosamente escolhido), é
pelo fato da mecânica de Einstein ser considerada ver-
dadeira na ausência de gravitação. Além do fato desta
justificação ser externa à teoria da relatividade geral,
seu estatuto empírico está longe de ser claro (as forças
gravitacionais têm um alcance infinito e não existe uma
proteção contra elas; além disso, é impossível “desati-
var” suas fontes...) e só poderia ser esclarecido através
“de uma análise da problemática da confirmação ou cor-
roboração das teorias, que não será realizada aqui.
Se tivéssemos a causalidade empírica, o que seria o
caso se o campo métrico fosse completa
e univocamente
determinado pelo conteúdo energético, os sistemas lo-
cais de inércia seriam determinados a partir deste con-
teúdo, já que estes são fixados quando a métrica o
O sistema de inércia local é definido pelos veto-
res tangentes às geodésicas que se cruzam neste ponto.
Localmente, os movimentos inerciais são retas espaço-
temporais em um sistema de inércia local. Estes movi-
mentos são absolutos no sentido físico, mas igualmente
no sentido empírico, uma vez que a determinação dos
sistemas locais de inércia não pode ser totalmente fun-
damentada
no conteúdo material.
Resumindo, tanto no nível local, quanto no nível
não-local, os movimentos inerciais são absolutos nos
sentidos empírico e físico. No sentido matemático, as
geodésicas não são invariantes, mas covariantes, consi-
Coleção CLE V.09
286 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

'derando-se que um corpo que segue uma geodésica em


um sistema, seguirá uma geodésica em qualquer sis-
tema global de coordenadas.

4.7.2 Os espaços-tempo

Possuímos, agora, todos os elementos para nos pro-


nunciarmos sobre o caráter absoluto ou relativo dos
espaços-tempo da teoria da gravitação de Einstein. Di-
zemos espaços-tempo, pois estes constituem soluções
dependentes das configurações dos sistemas físicos es-
tudados: as variedades riemannianas da solução de
Schwarzschild não têm a mesma estrutura que as da
solução de Thirring, etc.

Matematicamente uma variedade riemanniana se a-


presenta como um conjunto de pontos espaço-temporais,
etiquetados em um sistema global de coordenadas ar-
bitrariamente escolhido. Uma variedade deste tipo é
continua e quadridimensional: estas características to-
pológicas são invariantes sob o conjunto de transfor-
mações contínuas. Uma variante riemanniana é dife-
renciável, isto é, em todo ponto, ela admite um espaço
tangencial. Podemos definir, então, uma forma qua-
drática dr? = gulq)da"dg”, que permite calcular as
distâncias. Em cada ponto da variedade, a derivada
covariante e a conexão afim Ti, são bem definidas. Te-
mos a noção de transporte paralelo e a noção solidária
de caminho mais reto: o caminho mais reto é aquele ao
longo do qual um vetor tangente, em cada ponto deste
caminho, permanece paralelo a si próprio.
"Em uma variedade riemanniana, a conexão afim é 1-
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 287

dêntica aos símbolos de Christoffel, que são uma função


das derivadas primeiras da métrica. Os caminhos mais
retos são identicamente os caminhos mais curtos, ou as
geodésicas.
Podemos definir em todo ponto um tensor de curva-
tura Rruv«, O tensor de Riemann, cujos componentes,
covariantes, são definidos a partir das derivadas segun-
das da métrica. Se o princípio de equivalência nos ga-
rante que possamos sempre encontrar um sistema local
tal que os na, se anulem em um ponto, nunca é possível
anular uma curvatura não-nula, mesmo localmente.
O fato do tensor de curvatura poder variar de um
ponto para outro do espaço-tempo parece, à primeira
vista, comprometer sua homogeneidade e transformar
a física não apenas em uma geografia, mas, já que o
tempo é a quarta coordenada, em uma história. Isto
não é correto (Speiser 1979b). De fato, em cada ponto,
a conexão afim é definida a partir da métrica. Isto per-
mite determinar, de uma maneira universal, isto é, em
qualquer ponto, como uma partícula livre passa de um
ponto a outro. Além disso, em cada ponto, o grupo de
Lorentz e seus invariantes são bem definidos. Em todo
ponto temos, portanto, as translações (os transportes
paralelos) e as rotações quadridimensionais (o grupo de
Lorentz).
Como o grupo de invariância da teoria da gravitação
de Einstein é o grupo das transformações diferenciáveis,
os únicos invariantes são as grandezas escalares, entre
as quais a curvatura escalar R. Ás outras, entre as
quais a métrica, a conexão afim e o tensor de curva-
tura, não são invariantes, mas covariantes.
Coleção CLE V.09
288 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

Isto é tudo, do ponto de vista matemático. Qual é


agora a situação de um ponto de vista lógico?
Neste ponto, a situação na relatividade geral não é
diferente da situação na mecânica clássica. Se aceitar-
mos que o sistema das relações que definem o campo
métrico é real, já que os desvios com relação às geo-
désicas são acompanhados de efeitos observáveis no
conjunto dos sistemas de coordenadas (deformações ou
emissão de fótons no caso das partículas carregadas) é
natural admitir a existência dos pontos sobre os quais
essas relações são definidas.

No que concerne à existência de um espaço-tempo


absoluto no sentido ontológico (ou metafísico), inde-
pendente do conteúdo material ela provém da existência
de soluções vazias para as equações do campo. Como
existem soluções vazias de estruturas diferentes, a ques-
tão que se coloca é a de saber qual é a estrutura deste
espaço ontologicamente absoluto.
As equações do campo sem constante cosmológica
admitem como solução não-nula o espaço-tempo plano
de Minkowski e a solução de Taub (1951) com cur-
vatura constante. O primeiro argumento a favor do
espaço-tempo plano é extrínseco à relatividade geral, já
que repousa na afirmação de que as leis da relatividade
restrita são verdadeiras na ausência de gravitação. Mas
há um segundo argumento, desta vez interno, a favor
do espaço-tempo pseudo-euclidiano.
Vimos que as soluções das equações do campo são
obtidas supondo-se que a curvatura seja nula no in-
finito. Como algumas destas soluções receberam uma
confirmação experimental (por exemplo, através da ob-
Coleção CLE V.09
“A Teoria Geral da Relatividade | 289

servação do avanço do periélio de Mercúrio) podemos


pensar que as condições de limite são igualmente be-
neficiadas por esta confirmação, mesmo se não forem
separadamente acessíveis à experiência. Estas soluções,
na medida em que são confirmadas pela experiência, le-
vam a postular a existência independente de um espaço-
tempo plano cuja estrutura é modificada pela matéria-
energia. |

Os espaços-tempo da relatividade geral não são, evi-


dentemente, absolutos no sentido físico. As soluções
particulares das equações do campo satisfazem ao prin-
cípio de reciprocidade de Weyl. O campo e as fon-
tes, ambos reais, estão em acoplagem recíproca perma-
nente. À interpretação mais correta das equações do
campo consiste em considerá-las como uma restrição
imposta à interação dos campos e das fontes, sem atri-
buir qualquer prioridade causal a uma ou a outra. As
fontes agem sobre o campo do mesmo modo que o
campo regula o comportamento das fontes, já que estas
seguem geodésicas. |

Quanto ao sentido empírico, a situação é quase a


mesma no que diz respeito à relatividade restrita. O
campo métrico só é acessível à percepção sensível por
intermédio dos dispositivos métricos, como as barras
rígidas e os relógios isócronos ou ainda, como propôs
Weyl, pelo comportamento de partículas-teste (parti-
culas de massa e de fótons): ao conhecer as geodésicas
e as trajetórias dos raios luminosos que seguem tra-
Jetórias nulas, podemos deduzir a métrica (Weyl 1922,
Coleção CLE V.09
290 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

pp. 199-200)%º. Como era o caso na relatividade res-


trita, as geodésicas definidas com ajuda das barras rí-
gidas e dos relógios coincidem com aquelas descritas
pelas trajetórias das partículas livres. Estes fenômenos
revelam de alguma maneira uma espécie de realidade
subjacente, o campo métrico, cuja existência é indepen-
dente dos dispositivos métricos e das partículas-teste.
Além disso, como o campo métrico não é completa-
mente determinado pela distribuição, em princípio, ob-
servável, da matéria-energia, podemos dizer que, neste
sentido, ele é, pelo menos Parcialmente, absoluto no
sentido empírico.

4.7. 3 A questão da definição do sistema local de


inércia

“Na teoria da gravitaçãode Einstein, os sistemas lo-


cais de inércia são definidos a partir da métrica. Sua
orientação pode variar, pois, de um ponto para outro
das variedades espaço-temporais com curvatura variá-
vel, e está função do conteúdo material. Esta definição
escapa da objeção de circularidade levantada por Eins-
tein (ver seção 3.1), segundo a qual para poder definir
fisicamente o sistema de inércia, seria preciso pressu-
por a verdade das leis da mecânica, e só poderíamos
nos assegurar desta verdade supondo que já estamos
situados em um sistema inercial, livre de toda força?
À primeira vista, parece que sim, já que uma vez
que conhecemos uma solução particular das equações

30Para uma apresentação destes métodos e suas dificuldades,


ver Grinbaum (1973, pp. 730-50).
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral fe Reletêvidade “291

do campo, os: sistemas de ;inércia locais são os espaços- |


tempo tangenciais que são, então, fixados sem que se
recorra às leis da mecânica de Einstein. Entretanto,
a afirmação de que os espaços-tempo da. relatividade
geral admitem em todo ponto um espaço. tangencial
repousa no princípio de equivalência e na suposição de
que os axiomas de Einstein são verdadeiros na ausência
de gravitação. Recaímos, então;. na + circularidade que
pensávamos poder. evitar. o
Mas não. tínhamos visto que a confirmação de al-
gumas. soluções das equações do campo conferia. igual- o
mente uma confirmação da. condição de' que o espaço-.
tempo seja plano na ausência de gravitação? | É ver
dade, mas esta confirmação 1 não éé independente daquela
dos outros ingredientes da teoria da gravitação, entre
os quais O pseudoeuclidianismo local que está em jogo
na questão da circularidade examinada. aqui. A ge
ometria de. Riemann já está: incorporada ààs equações.
do campo. Estas só admitem como solução varieda-
des dotadas de uma forma quadrática e que podem
ser aproximadas. localmente por variedades dotadas de
uma forma igualmente quadrática, definindo uma. geo-
metria plana. A confirmação de algumas soluções das
equações do campo não fornece, pois, uma confirmação
do pseudo-euclidianismo local independentemente da
relatividade restrita, já que é justamente esta última
que nos tinha permitido, com ajuda do princípio de
equivalência, formular, logo de i início, as equações, do
campo. | no z
“À circularidade, iierénite à definição do sibteiha de
inércia local, "não desaparece, portanto, da teoria da
gravitação de Einstein.
Coleção CLE V.09
292 - A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

Se a única solução vazia das equações do campo


fosse a solução nula, o campo métrico e os sistemas
locais de inércia seriam completa e univocamente de-
terminados pelo conteúdo material. Todavia, mesmo
nesta situação, particularmente favorável, o problema
da circularidade da definição. do sistema inercial não
seria inteiramente resolvido. É verdade que neste caso
os espaços-tempo tangenciais seriam definidos a partir
da distribuição, em princípio observável, da matéria-
energia. E em decorrência. disto, estes espaços- tempo ?
tangenciais seriam sistemas i inerciais, isto é, sistemas li-
vres de toda força? Nãão necessariamente, porque exis-
tem outras forças na natureza além da gravitação, e
estas não foram geometrizadas pela relatividade geral.
Como nos assegurarmos, de fato, que não há campo
eletromagnético a não ser observando a trajetória de
uma partícula. carregada, e constatando que
« localmente.
sua trajetória é uma reta? Isto pressupõe que a tra-
jetória de uma partícula livreé localmente (isto é, na
vizinhança tão estreita. quanto. queríamos de um dado
ponto) uma reta, e, portanto, a verdade local do pri-
meiro axioma. de Einstein.
Objetar-se-á talvez que, se tomarmos de saída um
corpo não- carregado, poderemos observar se sua tra-
jetória em um espaço-tempo tangencial é localmente
uma reta. “Se assim for, temos uma verificação da.
mecânica de Einstein em sistemas definidos a partir da
distribuição de matéria-energia e a circularidade pa-
rece ter sido evitada. Mas como podemos estar certos
de que um corpo é neutro a não ser observando se sua.
trajetória é localmente uma reta e se ele obedece aos
Coleção CLE V.09
A Teoria Geral da Relatividade 293

axiomas s de Einstein? Recaímos, então, na circulari-


dade da qual quiséramos escapar.

Para evitar a circularidade na definição do sistema


inercial, uma via permanece aberta, aquela da cons-
trução de uma nova teoria na qual a distinção local en-
tre sistemas inerciais e sistemas não-inerciais seria abo-
lida. Para tanto, seria necessário que todas as forças
fossem geometrizadas, recorrendo-se, talvez, a espaços
de dimensão superior a quatro. [Em uma tal teoria, um
sistema material não teria outra possibilidade senão se-
guir uma geodésica (ou sua generalização) de uma va-
riedade dotada de uma estrutura geométrica conveni-
ente, e um trajeto não inercial seria impossível. Todas
as trajetórias físicas seriam trajetórias livres em rela-
ção às quais nenhum desvio seria possível. Os siste-
mas inerciais locais seriam definidos geometricamente
a partir da estrutura da variedade e, como todas as
forças seriam geometrizadas, teriamos uma garantia de
que nenhuma força externa estaria em ação: todas as
forças seriam internas. Poderíamos observar, em se-
guida, se a mecânica de Einstein é verificada nestes
sistemas e a circularidade seria evitada. É em direção
a uma teoria deste gênero que se orientaram Einstein
e Weyl, tentanto desenvolver uma teoria unitária dos
campos gravitacional e eletromagnético*!. Mas o saldo
da tentativa deles foi um fracasso. |

SIE videntemente, seria preciso estender esta teoria a outras


interações (fraca e forte). Existe uma teoria da unificação dos
campos eletromagnético e fraco (a teoria de Weinberg-Salam) e
teorias ditas de- “grande unificação”, mas que deixam de lado a
força de gravitação (ver Hawking 1988).
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306 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

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WHEELER, J.A. (1964), “Mach's Principle as Bound-
ary Condition for Einstein's Equation” in Chiu &
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Coleção CLE V.09
ÍNDICE ONOMÁSTICO

Adler, R. 101
Alexander, G. 53
Ampére, A.M. 130
Aristóteles 17, 26, 80, 194, 224n, 280.
Arnaud, À. 66n
Bazin, M. 101
Bentley, R. 63
Berkeley, G. 40, 57n, 116
Biarnais, M. F. 36
Birkhoff, G. D. 267
Bonola, R. 12
Born, M. 133n
Boutroux, É. 53, 60
Bridgman, P. W. 221
Broad, C. D. 48
Bunge, M. 193n
Buridan, J. 55
Cantor, G. 65n
Carnap, R. xv, xvili
Cartan, E. 93n
Cassirer, E. 75n, 81, 83n
Christoffel, E. B. 153, 192, 196, 202, 203, 206, 214, 215, eim,
287
Clairaut, A.C. 104
Clarke, 5. 21, 48, 49, 51-59, 63, 223
Clavelin, M. 85n
Cohen, R.S. 27Iin
Coriolis, G.G. 103, 104, 180, 276
“Costabel, P. 60n
Coulomb, €. A. 170
d'Abro, À. 122n, 130-133, 136, 137
Coleção CLE V.09
308 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

Debever, R. 93n
Descartes, R. 33n, 35, 274
de Sitter, W. 248-260, 267, 273, 277
Dicke, R. 185, 278
Dijksterhuis, E. J. 26n
Dorling, J. 161, 164-168
Dugas, R. 60, 60n
Earman, J.S. 89, 91, 91n, 113, 234, 264n
Eddington, A. S. 86n, 217
Einstein, A. xv, 89n, 100, 114, 133-137, 138n, 139, 149, 144,
145, 148, 152-155, 167, 169, 172-218, 239, 245, “o
249-253, 270-274, 280-286, 290-293
Eotvos, R. 185
Euclides 12, 21, 50, 63, 87n, 109, 271n
Euler, L. xv, 51, 74-82, 101
Feynman, R. 21, 97, 10ln
Fizeau, H. 121, 126
Foucault, L. 262, 275, 277
Fresnel, A. 121, 125
Friedlander 276
Friedman, M. 89n, 138n
Galileu 15, 19, 36, 84n, 85-90, 94, 108, 112, 131, 133, 136,
-— 138, 144, 170n, 199
Gauss, C. F. 206
Gerhardt, C. I. 59, 66, 68
Ghins, M. 26n, 34n, 57n, 236n
Gódel, K. 283 |
Grúnbaum, A. 63, 65n, 84n, 87n, 134n, 152n, 265, 266,:
267, 272, 274, 290n |
Halley, E. 119
Halliday, D. 21, 97, 107n
Hamilton, W. R. 104
Harres 261, 263
Coleção CLE V.09
Indíce Onomástico 309

Havas, P. 89n
Hawking, 5. 293n
Heath, T.L. 21
Herivel, J. 26n
Hertz, H. 122, 133, 134
Hesse, M. 123
Hubble, E. 273
Huygens, C. 121, 125
Jammer, M. 40, 84n
Kennedy, R.J. 141, 142
Kerr, R. 2759n |
Kichenassamy, S. 26In
Klein, F. 11, 12
Koyré, A. 170n
Kursunoglu, B. 26In
Lacey, H. 34n, 40
Lagrange, J. L. 104
Lebedew, P. 122
Leibniz, G.W.F. xv, 3, 17, 21, 50-62, 65-74, 77, 78, 100,
106, 116-118, 167, 192, 193, 220, 223, 235, 236
Lense, J. 276, 277
Lenz, H. 130
Lie, S. 207n, 269n
Lobatchevski, N. 11, 12, 64, 27In
Lorentz, H.A. 16, 19, 130-138, 142- 148, 156, 157, 167, 172,
179, 212, 216, 287
Mach, E. xv, 40, 42, 50, 101, 104, 105, 117-120, 172, 183,
193, 219-239, 246, 248, 256, 257, 266, 278, 282, 284
Maxwell, J. C. 122, 129-132, 136, 197 o
Mc Mullin, E. 25n, 26n
Mendeleiev, D. 186
Mercator, G. 183
Merleau-Ponty, J. 222
Coleção CLE V.09
310 A Inércia e o Espaço-Tempo Absoluto

Michelson, A. - Morley, E. 125, 132, 133, 135, 140-143


Minkowski, H. 7, 15, 16, 139, 148-151, 154-156, 161, 181-185,
- 191, 205-208, 216, 249, 256, 266, 270, 276, 279, 281, 288.
Nerlich, G. 13
Neumann, €. 47, 51, 105
Newton, I. xv, 6, 18-79, 82n, 86-89, 96, 101, 104-116, 121-
129, 136, 144-147, 155, 169, 190-194, 198, 203, 204, 223-
226, 233, 238, 244, 248n, 251, 260, 267, 274, 280-282
Nicholas, J. M. 26n
Nordstrôm, G. 217, 218
Norvedt 185
Pietenpol, J. L. 203, 215, 216, 218
Platão 16
Pitágoras 89, 90, 206
Pogany, B. 261, 263
Poincaré, H. 15, 130, 134, 136-138, 144, 146, 148, 156, or,
167.
Poisson, D. 104, 125
Quine, W.V. O. 13
Radelet-de Grave, P. 26n
Reichenbach, H. xv, xviii, 18, 55, 61, 63, 69, 86n, 115, 134,
137n, 152n, 174, 179, 224, 229-237, 238n, 248, 260, 271n
Resnick, R. 21, 97, 107n, 137n
Ricci, C. 217
Riemann, B. 11, 12, 64, 92n, 184, 194, 195, 202, 206, 207,
210, 216, 262, 269, 271n, 287, 291
Robinet, R. 48, 49, 57-59, 62, 63, 66, 67, 68, 72
Russell, B. 60, 61, 66, 71
Sagnac, G. 261, 263
Salam, A. 186, 293n
Schiff, L.I. 186
Schiffer, M. 101
Schwarzschild, K. 262, 264, 265, 267, 271, 272, 276, 286
Coleção CLE V.09
Indíce Onomástico 3H

Sciama: DW. 40, 57n |


Sklar, L. xvii, 40, 42, 89, 113, 114, 265n, 276, om, 284
Sommerfeld, A. 34n
Souriau, J. M. 10
Speiser, À. 79-77, 80n |
Speiser, D. 21, 74m, 136, 185, 202, 203, 215, 216, 218, 287
Stein, H. 72n, 89n, 234
Taub, A. 274, 288
Taylor, E. F. 132n, 141, lôl, 157, 159
Thayer,H. S. 63 |
Thirring, H. 256, 263n, 264n, 275- 277, 283, 286
Thorndike, E. M. 141, 142
Tonnelat, M. A. 121in, 181, 258, 261n
Trautman, A. 93n
Tycho-Brahe 36n
van Fraassen, B. 40 .
von Helmholtz, H. 207n, 271n
Weinberg, S. xv, xvii, 137n, 156n, 169, 186, 205- 214, 218,
262, 264n, 267, 275n, 276n, 277, 279, 293n
Weyl, H. xv, xvii, 8, 14, 84n, 89, 109, 110, 115, 169, 185,
“190, 192-199, 203, 204, 207n, 208, 217, 218, 251, 269n,
97 im, 279, 287, 289, 298 -
Wheeler, J. A. 132n, 141, 151, 157, 159, 274, 284
Young, T. 125
Zenão 65n
Coleção CLE V.09
IMPRESSO
GRÁFICA CENTRAL
Área de Serviços Especializados
UNICAMP
Coleção CLE V.09
Coleção CLE V.09
Coleção CLE V.09

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