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Gostaria de poder dizer que eu superei a foto do tal Nicolas, mas não é
verdade. Nada disso. Como uma boa solteira levemente carente em plena TPM,
faço o que qualquer mulher no meu lugar faria:
Stalkeio o perfil dele no Instagram.
Nicolas é um cara bonito. Eu sei que é alto, pelo que reparei enquanto ele
andava pela empresa, embora ele não pareça nenhuma torre; deve ter no
máximo 1,80m, comparado aos meus 1,67m. Ele tem aquela aparência suja de
quem não corta o cabelo com frequência e faz a barba menos do que deveria, o
que não nego: é totalmente a minha vibe.
Pelo que analiso no Instagram, ele faz o arquétipo clássico de “homem que
gosta de viajar”. Quase todas as suas fotos são em alguma estrada, praia ou
montanha diferente. Tem mais fotos de paisagem do que dele, mas quando tem
uma foto dele, vale a pena. Me surpreendo quando vejo que ele não tem
nenhuma tatuagem — ele me parece o tipo de hétero que ia querer provar a
masculinidade tatuando alguma coisa horrível nos antebraços. Fico feliz de estar
errada.
Olho tanto para as fotos dele ao longo do fim de semana que, na segunda-
feira, já sei os lugares que ele visitou nos últimos seis meses. O que não
encontrei foi uma explicação de por que um cara de 31 anos (segundo uma foto
tirada em 13 de novembro) está trabalhando como estagiário. Algo que acho
que vou ter que perguntar a ele.
Chego ao trabalho, na segunda, bastante ansiosa. Suze não está na copa
pegando café, nem na mesa dela, e mando sete mensagens em sequência
requisitando apoio. Quando chego na minha mesa, a baia logo à minha frente,
onde o finado JP costumava se sentar, já está ocupada. Eu saberia quem é
mesmo que não tivesse investigado sua vida na internet de 2013 até os dias
atuais, mas vê-lo pessoalmente depois de dois dias encarando suas fotos de
alguma forma deixa tudo pior. Eu travo por um segundo, e demoro até sair do
lugar outra vez.
“Meu deus, Luana, qual é o seu problema? É só um cara”, tento me lembrar.
Então respiro fundo e vou até a minha mesa como se nada tivesse acontecido.
— Bom dia — digo, abrindo o meu melhor sorriso enquanto me sento. Ele
está mexendo no celular, e assim permanece, como se não tivesse me escutado.
Talvez ele não tenha me escutado? Será que falei muito baixo? Pigarreio, e
procuro o espaço entre os nossos computadores por onde ele pode me ver.
— Bom dia — repito. Ele ergue os olhos para mim. São da cor de caramelo
queimado.
— Eu ouvi da primeira vez — é tudo que ele fala antes de se voltar ao
celular. Tem a voz grossa e petulante. É um tapa no meu bom humor.
— A tradição é que se alguém te dá bom dia, você dá bom dia de volta —
comento, num tom ácido, sem dispensar o sorriso. Ele ergue os olhos do
aparelho outra vez.
— Que pena — fala. Em seguida arrasta a cadeira para sair do meu campo
de visão.
Encaro o ponto onde ele estava, em completo choque. Nem mesmo Oscar,
que deve ser a pessoa mais insuportável que eu conheço, recusa um bom dia. E
ele espera que eu treine esse cara?
O milagre vai ser não nos matarmos até o fim do dia.
— O H, LUANA, LARGA ESSAS CAMISINHAS E VEM AQUI UM
SEGUNDO.
Solto um suspiro pesado. Houve um tempo em que esse tipo de comentário
vindo do Oscar me mataria de vergonha, mas eu já estava acostumada demais
ao meu trabalho e a ele para ficar tímida por alguma coisa a essa altura do
campeonato. O estagiário, por outro lado, faz uma careta e olha para trás antes
de se virar para mim de novo, uma sobrancelha erguida, sem dizer nada. Dou de
ombros, num breve momento de camaradagem, mas ele me ignora. Então me
levanto e vou até a sala de Oscar.
— Fecha a porta — ele fala, e me contenho para não fingir fechar uma porta
imaginária só pelo prazer da provocação. Em vez disso, me sento. — Não te vi
sentar pra explicar o trabalho pro estagiário. Não te falei pra ensinar tudo pra
ele?
Tantas coisas que eu gostaria de ensinar para ele, penso. Balanço a cabeça,
tentando afastar os pensamentos. Colega de trabalho é problema, Luana. Se
controla.
— Ele não precisa de ajuda — digo. — Eu dei uma monitorada antes do
almoço e parece que ele sabe bem o que tá fazendo.
— A porra do outro moleque lá também sabia e fez merda, Luana! — Oscar
retruca, num brado alto. — Não tô te perguntando se você acha que ele precisa,
tô te mandando fazer a porra do trabalho.
Me mantenho impassível. Também houve uma época em que as explosões
de Oscar me deixariam chorando pelos cantos, mas o tempo me tornou uma
funcionária mais durona. Ele pode gritar o quanto quiser. É tão familiar quanto a
voz da minha própria mãe a essa altura.
— Tudo bem — digo, soltando um leve suspiro. — É só isso?
— Não. Amanhã cedo tem o briefing das escolas de samba. Me manda tudo
ainda hoje.
— Sim, senhor.
Saio da sala dele, voltando para a minha mesa. Vamos fazer uma campanha
publicitária linkando camisinhas a escolas de samba, e tenho todo um esboço de
campanha para montar junto com o resto do pessoal de design. Infelizmente,
Oscar não me perguntou se eu teria tempo para isso enquanto também ajudo o
novo estagiário. Parabéns para você, Luana, acaba de ganhar horas extras.
Como sei que Oscar está me observando, em vez de assumir meu próprio
computador, puxo uma cadeira e me sento ao lado do nosso novo assistente de
mídias sociais. É realmente impressionante como ele fica mais bonito visto de
perto; é tipo olhar para uma pintura de Van Gogh e perceber que ela é ainda
mais inacreditável vista pessoalmente. Fico olhando para ele por tanto tempo
em silêncio que ele finalmente cede e me lança um olhar enviesado.
— O que foi?
Uau. Por um segundo quase esqueci desse detalhe. Não apenas é
extraordinariamente bonito, como também inacreditavelmente grosseiro.
— Hm, oi, eu sou a Luana. Sou do departamento de Marketing — digo,
tentando permanecer simpática.
Ele leva quase um minuto inteiro para responder:
— Nicolas.
— Prazer. — Sorrio. — O chefe pediu pra eu te ajudar com alguns macetes
do trabalho, já que é seu primeiro dia.
— Não preciso, valeu. — Ele se vira de novo para o computador.
— Eu percebi que você já tem uma ideia geral do que fazer, mas mesmo
assim seria útil se...
— Não, tô falando sério, não preciso — Nicolas me interrompe, me
encarando como se eu fosse maluca. — Eu já fiz isso antes, tá legal? Pode
voltar aí pras suas camisinhas, não preciso de babá no trabalho.
Sinto o sangue subir. Sei que meus colegas estão observando a troca — Suze
com certeza está —, e preciso me esforçar muito para não ser mal-educada.
Quando falo, é num tom passivo-agressivo que é minha especialidade.
— Olha só, eu tenho certeza de que você é o MESTRE das mídias sociais,
com os seus mil e duzentos seguidores no Instagram, mas meu chefe quer que
eu te ensine a trabalhar, então eu vou te ensinar a trabalhar mesmo que isso
signifique falar sozinha pelas próximas duas horas, ok? — Respiro fundo,
esperando uma reação que não vem. — Então você me faça o favor de escutar
tudo e fingir que está prestando atenção.
Por um instante, Nicolas só me encara. Ele não esboça qualquer reação a
tudo que eu disse, e não sei se isso é melhor ou pior. Então se vira para o
computador.
— São 1.300 seguidores. Mas talvez tivesse menos quando você fuçou
minha vida — diz, num tom neutro. — Ensina logo o que você tem que ensinar
e depois me deixa trabalhar.
Isso sim me faz corar de vergonha. Mas não digo nada; não quero dar a ele a
satisfação de continuar essa discussão ridícula. Em vez disso, puxo o mouse
para mim, atravessando o braço na frente dele, e começo a falar.
Não falo com Nicolas mais do que o estritamente necessário durante o dia.
Oscar me passa trabalho atrás de trabalho, e antes do almoço já estou furiosa o
suficiente com os deadlines e as mil e quinhentas alterações que me são
solicitadas pra que ninguém fale comigo o resto do expediente.
Quando chego em casa, descubro que Nicolas começou a me seguir no
Instagram.
A operação Elsa demora alguns dias para surtir efeito. Não é até sexta-feira
que Nicolas dá sinais de ter percebido alguma coisa.
Não cruzo com ele até chegar à minha mesa. Cheguei mais cedo para poder
adiantar toda a carga absurda de trabalho que tenho para fazer e ainda sair a
tempo do happy hour, mas não tem motivo nenhum para Nicolas já estar aqui.
Passo por ele e jogo as coisas na minha mesa.
— Bom dia — digo. Neutra, simples, direta.
— Chegou cedo.
— Tenho coisa pra adiantar — digo.
Não pergunto de volta. Finjo que não me interessa. Finjo que não estou me
perguntando.
Ele espera um minuto, e então completa:
— Meu computador quebrou. Preciso terminar um trabalho da faculdade.
— Hm.
Espero o computador ligar e, no meio tempo, vou até a copa buscar água.
Volto e tomo um comprimido para dor de cabeça, porque é sexta e eu não sou
obrigada. Vou abrindo as coisas no computador, e já estamos no mais completo
silêncio há vários minutos quando Nicolas me chama.
— Luana?
— Hm — digo, sem sequer mover a cadeira.
— Você está chateada comigo? Pelo... — Ele pausa. — Pelo que te falei?
Uau, como você é perceptivo, penso, mas não falo. Não é essa a técnica. A
técnica é a indiferença.
— Não. Por quê?
— Por nada. Tô te achando diferente, só isso.
— Relaxa. Não é nada com você. Aquilo não foi nada.
Nicolas não responde, mas o ouço murmurando “não foi nada” várias vezes
até o resto do pessoal chegar.
Evidentemente, nós não beijamos nem metade de treze. Não beijamos nem
treze combinadas. Suze foi mais sortuda: beijou um rapaz e uma drag queen. Eu
não saí do zero a zero.
Voltei pra casa exausta, suada e queimada de sol. Passei horas no banho
tirando todo o glitter e deitei só depois de tomar um remédio pré-ressaca e dois
litros de água. Antes de dormir, abro o Instagram, na esperança de ver alguma
imagem de Nicolas sem camisa para me dar boa noite. Mas, só pra variar, não
há nada lá.
“Lua, deu ruim. Não paro de vomitar. Acho que a catuaba de ontem me
desceu mal.”
Suspiro ao ler a mensagem de Suze. Ela realmente bebeu além da conta no
bloco de ontem. Faço uma careta preocupada e respondo:
“Vish. Quer que eu vá até aí?”
Levanto enquanto espero ela responder. Minha geladeira está quase vazia,
mas encontro pães de queijo congelados no freezer. Tiro o saquinho e ponho
alguns pra assar.
“Tá tudo bem, minha mãe tá aqui. Mas miou o bloco de hoje. Desculpa.”
Leio a mensagem e faço um muxoxo.
“Não se preocupa. Se cuida.”
Bloqueio o celular e penso. O que vou fazer agora?
Na janta, pedimos sushi e temakis, que chegam uma hora mais tarde. Nicolas
desce para buscar o pedido e, no meio tempo, separo o dinheiro da minha parte.
Coloco meu top e minha calcinha, só para não ficar desfilando pelada pelo
apartamento para que todos os vizinhos dos prédios próximos consigam me ver,
e vou para a cozinha.
Os armários da cozinha não seguem nenhuma ordem específica ou
compreensível de arrumação. Tem panelas em cima dos pratos, copos nas
gavetas e toalhas e panos de prato junto com produtos de limpeza sob a pia,
como se, em vez de organizar as coisas, Nicolas simplesmente tivesse colocado
cada item no primeiro lugar disponível. Sinto uma necessidade gritante de tirar
tudo do lugar para rearrumar, mas me controlo. Pego dois pratos (cada um com
uma estampa, já que nenhum dos cinco que ele tem parecem ter vindo do
mesmo conjunto) e dois copos. Encontro um pacote de guardanapos dentro de
uma das gavetas, junto com um abridor de garrafas e uma espátula, e pego dois.
Quando ele volta, pus um projeto de mesa que deixaria minha mãe horrorizada.
— Ah, obrigado! — ele diz, ao ver que adiantei alguma coisa. Põe o saco da
entrega sobre a mesa e começa a desempacotar.
— Oh, a minha parte — digo, tirando o dinheiro amassado do decote.
Nicolas olha dos meus peitos para a minha mão e as notas entre os meus dedos.
— Ah, não, Luana, nem vem. Guarda isso.
— O quê? É minha parte!
— Eu já paguei. Fica por minha conta. A próxima você paga.
A próxima. Ele está pensando numa próxima.
Mesmo assim, não arrego. Talvez ele tenha razão e eu seja mesmo muito
orgulhosa.
— Nicolas, pelo amor de Deus, pega a merda do dinheiro antes que eu vá até
aí enfiar ele na sua goela — digo.
Ele para, olha para mim e então gargalha. Se aproxima e pega o dinheiro da
minha mão.
— Você é grossa assim com todos os caras que transam com você? —
pergunta.
— Não. Só com os que me irritam.
Ele solta uma nova risada, e dessa vez eu acompanho. Enquanto ele termina
de desembrulhar a comida, abro a geladeira, me sentindo estranhamente à
vontade. Geralmente sou o tipo de visita que espera as coisas serem servidas;
com exceção da casa da minha tia e da de Suze, não me sinto confortável
fuçando nas coisas dos outros. Mas somos só nós dois, e tem alguma coisa na
falta de personalidade daquele apartamento que faz eu sentir que não estou
invadindo nenhum espaço que não seja meu, então me deixo levar.
A geladeira dele está praticamente vazia. Não tem nada além de algumas
garrafas de água, meia dúzia de latinhas de cerveja, uma caixa de pizza,
condimentos e três maçãs em um saco plástico. É deprimente.
— Meu Deus, você vive de quê? — pergunto, voltando para a mesa com
duas latinhas de cerveja.
— Oi, mãe, tudo bem? — ele ironiza, revirando os olhos, e sinto meu rosto
corar. — Tem um monte de coisa congelada no freezer. Minha mãe cozinha e eu
deixo aí pra ir comendo.
— Sua mãe cozinha pra você? — repito, e não consigo esconder um tom de
escárnio. Nicolas parece ainda mais insatisfeito.
— Sim, Luana, minha mãe cozinha pra mim, porque até uns meses atrás eu
trabalhava dezoito horas por dia e não tinha tempo nem pra aprender a cozinhar,
tá legal?
Torço o nariz, arrependida de ter provocado. Não sei nada sobre ele, não o
bastante, e ele claramente não gosta de ter suas fraquezas sendo jogadas na sua
cara o tempo todo. Eu deveria estar tentando conquistá-lo, não afastá-lo mais
ainda.
Sento e abro a cerveja. Dou um gole demorado, então digo:
— Eu gasto um dinheiro absurdo pra mandar as minhas roupas pra lavar
toda semana.
— O quê? — ele diz, o hashi a meio caminho da porção de sushis. Suspiro.
— Faz tipo, um ano que a minha máquina de lavar quebrou, e eu poderia ter
comprado outra, sabe? — continuo, abrindo meus próprios hashis. — Eu tenho
dinheiro, tive tempo pra ver isso. Mas comecei a levar as roupas pra lavanderia,
e fiz de conta que era um investimento muito melhor do que comprar uma
máquina de lavar. E aí eu só fiquei superacomodada. Faço de conta que não
consegui ver isso, mas a verdade é que eu dou meus dois braços pra nunca mais
ter que lavar e passar minha própria roupa.
Nicolas mastiga um sushi, sem olhar para mim. Então ergue os olhos na
minha direção e assente devagar.
— Cara, eu odeio lavar roupa. Já perdi umas três camisetas porque lavei
errado, sabe? Encolheram ou manchei misturando cor. — Ele bufa, e eu abro
um sorriso solidário, de quem já fez isso muitas vezes, ainda que nunca tenha
acontecido comigo. Ele toma uma pausa, aí diz: — Tem comida pra mais uma
semana no freezer. Não sei o que eu vou fazer depois disso.
— Usar cupom do iFood? — sugiro, com uma risadinha. Ele revira os olhos.
— Você já foi estagiária, Luana. Acha que eu consigo pagar?
Rio, agora sim em solidariedade completa, me lembrando de como era tentar
fazer meu salário minúsculo de estágio caber em todas as coisas que eu
precisava pagar no mês. Então me surge a ideia, e eu digo, antes que consiga me
controlar:
— Posso te ensinar a cozinhar, se você quiser.
É uma ideia péssima. Eu não sou nenhuma chef de cozinha, para começar, e
estou praticamente me convidando para vir mais vezes com aquela desculpinha
idiota. Nicolas parece entender exatamente o que se passa na minha cabeça e só
sorri.
— Se quiser, eu te ajudo a comprar uma máquina de lavar nova — diz.
— E perder a mamata? Jamais!
Comemos nossos sushis e nossos temakis debatendo os percalços da vida
adulta. Nicolas me conta que o apartamento está do jeito que está pois, por
muito tempo, foi apenas uma espécie de hotel onde ele dormia, tomava banho, e
vira e mexe fazia alguma refeição. Fala das coisas que quer comprar com o
dinheiro que tem guardado, e de como quer que a casa seja no futuro. Nunca o
imaginei como sendo um cara que faz pastas no Pinterest, mas logo lá está ele,
compartilhando ideias de decoração como se fosse uma blogueira de 20 anos. É
engraçado, além de fofo, e trocar com ele ideias que não têm absolutamente
nada a ver com o nosso trabalho me deixa contente.
Quando termino de comer, decido que é hora de brincar um pouco com os
sentimentos dele. Levanto, deixo as coisas na pia, e então declaro:
— Acho que tá na hora de eu ir pra casa.
A expressão de Nicolas é impagável. Ele se esforça para não denunciar, mas
está com aquela cara clássica de cachorrinho que caiu da mudança. Primeiro,
franze a testa, e então os lábios se curvam para baixo. Ele pigarreia, e sei que
está fazendo um esforço para manter a carranca quando pergunta:
— Você já quer ir?
— Você disse que eu podia, né? Não é um sequestro — brinco, e Nicolas faz
aquela cara de poucos amigos para mim. Dou de ombros. — Eu tô com roupa
de carnaval e não trouxe nem uma escova de dentes. Acho que mereço um
pouquinho de dignidade.
— Claro, claro. — Ele olha o relógio do celular. Ainda é cedo, mas ele fala
como se já fosse tarde da noite. — Ainda dá tempo de pegar o metrô, mas se
você quiser eu te levo.
— Você que sabe.
— Eu que sei, não, Luana. Decide aí.
— Não, Nicolas, você que sabe. — Dou as costas e vou andando em direção
ao quarto, erguendo a voz para me fazer ouvir: — Eu acho que a gente chega
mais rápido de carro, mas dá pra ir de metrô também. Só tem que andar um
pouco. Você não falou que tava com dor nas costas?
Ele me alcança em questão de segundos. Chega no quarto com uma
expressão que é meio susto, meio deleite, e quando fala, está sem fôlego.
— A gente?
— É, ué. — Dou de ombros, fingindo não entender por que ele está tão
abalado. — Você vem?
Nicolas abre um sorriso capaz de matar pessoas e derrubar paredes. Se eu
não tomar cuidado, vou acabar me esquecendo dos meus próprios objetivos só
com aquele sorriso. Então ele assente.
— Deixa só eu pegar uma muda de roupa — diz.
— Nada muito chique. Acho que você vai acabar não usando nada —
respondo.
C hegamos em casa pouco depois das dez da noite. É estranho entrar
com Nicolas ali de novo, e me lembro que, da última vez que fizemos aquele
percurso, estávamos loucos de tesão, nos agarrando no elevador e pelo
corredor antes de chegar até a porta. Hoje, estamos bem mais comportados
— o que não significa que eu não esteja doida para tirar a roupa dele de
novo.
Entramos, e me dou conta do quão pequeno meu apartamento parece com
relação ao dele. Mas, para a minha alegria, meu espaço é muito mais
organizado e tem bem mais personalidade. Nicolas parece reparar nisso
também, e enquanto eu vou até o quarto deixar minhas coisas, ele fica na
sala, reparando nos objetos e na decoração que ignorou quando esteve ali
pela primeira vez.
— Qual é a dos globos de neve? — Ouço-o perguntar, quando já estou
voltando.
Vou até ele. Numa estante na sala, logo abaixo da TV, há uma coleção de
globos de neve. Tem pelo menos uns quinze, que vão desde temas natalinos
até alguns com miniaturas de pontos turísticos ao redor do mundo.
— Ah, eu coleciono.
— Isso deu pra notar —antagoniza, naquele tom de deboche que ele faz
tão bem —, mas por quê?
— Sei lá. Eu gostava de brincar com isso quando era criança, e aí fui
juntando alguns com o tempo, sabe, comprando ou ganhando de presente —
digo, pacientemente. Ele se abaixa diante da estante para ver melhor.
— De qual você mais gosta?
Nem preciso hesitar. Pego um com uma miniatura do Coliseu dentro e o
balanço, até que partículas brancas imitando neve caiam devagar sobre a
imagem.
— Roma! Já foi? — O rosto de Nicolas se ilumina. Gargalho alto e reviro
os olhos.
— Pff, não! Não tenho dinheiro pra isso.
— Ah. — Ele murcha um pouco, mas não se abala. — É um lugar bonito.
Faz um calor do inferno.
— Eu imagino! — Devolvo o globo ao seu lugar. — Você já viajou
bastante, né?
— Graças a Deus, aos meus privilégios e ao salário ridículo que eu
ganhava no meu antigo emprego, sim.
— Eu sei. Fucei seu Instagram.
— Ah, é? — Nicolas se aproxima, com um sorriso divertido. — E o que
você descobriu?
— Que você viaja muito e ama tirar foto de paisagens? — Roubo um
beijo rápido dele. — O seu feed é praticamente só as suas viagens. É como
se você vivesse fazendo isso.
— As redes sociais podem mentir. O que eu menos faço é viajar hoje em
dia.
— Ah, é? O que você faz quando não está viajando, então?
Ele finge pensar por um segundo, então passa as mãos pelas laterais do
meu rosto.
— Eu arranjei um emprego, tento não xingar meu chefe todo dia e estou
vivendo um romance proibido com a mulher mais gostosa do meu
departamento — responde baixinho.
Fico totalmente sem palavras, e, por um instante, enquanto ele se inclina
e me beija, não consigo nem pensar o suficiente para reagir. Um romance
proibido . Isso é bom, certo? Se é assim que ele vê, significa que meu plano
está funcionando. Vou ganhar essa aposta.
Mas na hora, não me parece bom. Só me parece perigoso.
— Luana? Tá tudo bem? — ele pergunta, percebendo meu mal-estar
momentâneo.
Eu o solto e balanço a cabeça, fingindo que não foi nada demais.
— Tudo. Só achei que a gente não ia falar de trabalho até o fim do
feriado.
— Certo. Foi mal.
Assinto. Não quero pensar nisso. Não quero pensar em como estou me
sentindo. Só quero voltar a como estávamos antes.
— Então. Me fala dessas suas viagens — digo, e ele abre um sorriso mais
uma vez.
— Qual delas?
Vamos para a cama e nos despimos por causa do calor, mas não há nada
de sexual no momento. Deito com Nicolas debaixo do ventilador de teto,
sem tocá-lo exceto pelas mãos, brincando uma com a outra, enquanto ouço
ele me contar sobre a ida ao Jalapão, as férias na Itália, as praias do litoral
baiano, e, por que não, a ida à Disney.
— Fui quando a Íris completou 15 anos — ele disse, e então, mais baixo,
completou: — Não conta pra ninguém, mas eu chorei pra cacete durante o
show de luzes no castelo da Cinderela.
É divertido ouvi-lo falar sobre os perrengues de viagem e sobre as coisas
que haviam dado fantasticamente certo. Em vez de me mostrar fotos, como
10 em cada 10 pessoas teriam feito, ele prefere descrever os lugares à sua
própria maneira. Nicolas não pinta cenários lá muito visuais, mas ele se
lembra de detalhes que certamente fazem com que eu me sinta lá, como a
quantidade de lixeiras numa determinada cidade, a música que ouviu em
algum restaurante ou o cheiro do quarto de hotel. Ficamos conversando por
tanto tempo que, quando dou por mim, já é madrugada e eu estou faminta.
— Acho que vou pegar alguma coisa pra comer — falo, me sentando na
cama. — Tá com fome?
— Não, mas eu te acompanho.
Vamos até a cozinha, os dois pelados, e acendo a luz. Nicolas fica
encostado num dos armários, parecendo enorme em um ambiente tão
pequeno. Tento não me sentir consciente demais dele ou de mim mesma
enquanto vou de um lado a outro, fuçando na geladeira ou pegando talheres
na gaveta. É difícil, quando ele me olha daquele jeito.
Não estou me sentindo lá muito criativa, então só pego uma cumbuca e
abro uma lata de atum, misturando com cebola, tomate e um pouquinho de
ervilha. É provavelmente o prato menos afrodisíaco do planeta, mas estou
com fome e, se Nicolas ligar para o cheiro, então é azar dele. Tempero tudo e
pego uma colher para comer. Quando me viro, Nicolas ainda está com os
olhos vidrados em mim.
— O que foi? — pergunto. Ele parece acordar, e dá de ombros.
— Nada. Só tava aqui pensando que vai ser meio estranho te encarar na
quarta-feira como se nada tivesse acontecido.
Foi uma escolha sua , penso, mas não vou dar o gostinho de parecer me
importar. Em vez disso, digo apenas:
— Quinta, no seu caso. Estagiários não vão trabalhar na quarta de cinzas,
só os escravos normais mesmo.
— Olha só. Que bom!
Faço uma pausa, pensando em como provocá-lo melhor. Opto pelo óbvio
e digo, displicentemente:
— E eu não acho que vai ser estranho. Quero dizer, se eu consegui agir
de uma maneira normal com o Tim do financeiro, não vai ser com você que
eu vou ficar pisando em ovos.
O desgosto nele só é visível através de um movimento mínimo dos
lábios. Nicolas é teimoso e também não vai dar o braço a torcer. Mesmo
assim, contabilizo como uma vitória.
— Eu não acredito que você de fato transou com aquele cara — é tudo
que comenta. Mastigo lentamente e respiro fundo.
— Acredite, também não é um dos meus maiores orgulhos.
— Como foi que isso aconteceu?
— Ah, sei lá. Era festa da firma, eu tava meio carente. — E, sem
conseguir me controlar, adiciono: — E na real, ele nem é tão ruim de cama
quanto parece.
É uma mentira deslavada, é claro. Tim é tão ruim de cama quanto é
possível ser, mas se eu queria mexer no ego de Nicolas, consegui. Tem uma
perplexidade e uma emoção que não consigo descrever estampadas no rosto
dele, e preciso lutar contra o ímpeto de sair dançando por ter conseguido
atingi-lo.
— Ah, não? — A voz de Nicolas é neutra, seca.
— Não — respondo, lhe dando as costas para colocar a louça suja dentro
da pia. — Ele só é um pouco mais bruto que você.
Não olhe pra ele, não olhe pra ele, não olhe pra ele , repito a mim
mesma. Mas nem precisava. Não teria tempo de olhar, mesmo que pudesse.
Nicolas cruza a cozinha em duas passadas, e antes que eu me dê conta,
está atrás de mim, seus braços me cercando. Posso sentir seu corpo tocando
o meu, seu peito contra as minhas costas, a ponta do pênis roçando a minha
bunda. Ele se inclina sobre mim, me pressionando devagar contra o balcão.
— E você gosta da coisa um pouco mais bruta, Luana? — sussurra ao
meu ouvido. Meu corpo vira gelatina. Não sei de onde tiro forças para
continuar a provocação.
— Só de quem sabe fazer — digo.
Ele ri, a risada ecoando e arrepiando os cabelos da minha nuca. Então sua
mão sobe, firme e forte, pelas minhas costas, até seus dedos envolverem o
meu cabelo, puxando minha cabeça para trás.
— Ai! — faço, quando ele puxa com muita força.
— Desculpa! — ele diminui um pouco a pressão. — Melhor?
— Perfeito.
Então Nicolas me beija, mordendo meu lábio, deixando uma trilha de
chupões pelo meu pescoço, arranhando as minhas coxas. Ponho suas mãos
onde eu as quero, adorando aquela faceta menos delicada que despertei pelo
ciúme. Posso senti-lo ficando cada vez mais duro, e só não transamos ali
mesmo na cozinha porque não costumo guardar camisinhas na gaveta de
talheres.
Em vez disso, voltamos para o quarto e para o conforto da minha cama,
onde Nicolas me derruba sem cerimônia e me vira do avesso, fazendo coisas
comigo que alguém insosso como Tim do financeiro sequer consegue
imaginar.
— M as, sério. Por que o Tim?
Olho bem pra cara de Nicolas, parcialmente chocada por ele levantar a
questão de novo, ainda que no fundo eu esteja me divertindo bastante.
Estamos deitados na minha cama, janelas abertas e ventilador rodando para
espantar o calor.
— É sobre isso que você quer falar no pós-sexo? O Tim do financeiro?
— pergunto, embasbacada. Nicolas revira os olhos e se ajeita com o
travesseiro.
— Eu tenho 30 anos, Luana. Não preciso que você fique massageando o
meu ego.
Não, não precisa, e essa é uma das coisas que mais me atrai sobre ele.
Mas não vou dar o braço a torcer. Uso o momento para provocá-lo.
— Você tá com ciúmes do Tim, Nicolas? — digo, então, com um sorriso
travesso. Ele reage rápido, o rosto se avermelhando e quase cuspindo as
palavras quando responde:
— Claro que não, é só curiosidade.
Solto uma gargalhada.
— Tá bom. Vai, o que você quer saber?
Nicolas suspira, olhando para o teto com um pouco de interesse demais.
— Sei lá. Como diabos isso aconteceu, pra começar? O pessoal do
financeiro mal fala com a galera de baixo.
— Não durante o trabalho — dou de ombros —, mas nos happy hours da
vida? Toda sexta-feira. Inclusive quem começou com o negócio de ir pro bar
toda sexta foram eles. A gente acabou indo junto porque tinha uma época
que uma das meninas do nosso departamento namorava o chefão do
financeiro. Aí mesmo depois que eles terminaram e ela foi morar fora,
continuou acontecendo.
— Saquei.
— E o Tim... foi um momento de fraqueza — admiti. Nicolas me lançou
um olhar de soslaio, curioso.
— Fraqueza? Você? — diz, e algo no tom que ele usa faz meu ego inflar.
Como se a visão que ele tivesse de mim fosse tão invencível que a ideia de
que eu teria um momento de fraqueza era impensável.
Me empertigo quase sem querer, e então continuo.
— É. Eu não tava num dia bom, tinha bebido demais. Acho que eu
precisava me afirmar, sabe? — Olho para ele, mas não espero resposta. — E
aí, sei lá, o Tim tava lá, e ele me deu bola, então eu pensei, bom, por que
não?
— Eu consigo pensar em uns cem motivos do porque não — Nicolas
ironiza. — O cara é meio babaca.
— Ele é — admito —, mas acho que ele se apaixonou por mim. Por isso
ele tem agido de um jeito extra babaca — digo, mesmo me sentindo meio
idiota.
— É meio difícil não se apaixonar por você, Luana — Nicolas diz, e
então puxa o ar, como se surpreso consigo mesmo.
As palavras ficam no ar, penduradas no meu ouvido, grudadas na minha
pele, fazendo cócegas na minha garganta. Não olho para Nicolas e ele
também não se mexe. Preciso desviar o assunto urgentemente, mas não
consigo pensar em absolutamente nada. Felizmente, é ele quem nos salva.
— Eu sempre achei meio bizarro esse negócio de se envolver com gente
do trabalho.
Respiro aliviada. Tento me recompor e assumir uma carranca divertida
novamente.
— Vai dizer que você nunca pegou ninguém que trabalhasse com você?
— digo, num tom de provocação. Nicolas meneia a cabeça.
— Eu fiquei com um cara no meu primeiro emprego, mas foi só. Minha
ex-namorada trabalhava no mesmo prédio que eu, mas em outra empresa, e
eu já achava esquisito.
— Eu não vejo nada demais. Se todo mundo for adulto e souber se
comportar, então qual é o problema?
Nicolas se ajeita, apoiando-se num cotovelo para me encarar. Seus
cabelos balançam diante do rosto e ele os ajeita para me ver melhor.
— O problema é que as pessoas não sabem se comportar. Aí depois as
coisas terminam mal e você é obrigado a lidar com picuinha no ambiente de
trabalho — diz, inflamado demais para que seja por acaso.
— Foi isso que aconteceu com você?
Sinto que não deveria ter perguntado, mas agora já foi. Por um segundo,
Nicolas fica tão quieto que não consigo decifrar o que está pensando; ele não
parece puto, não exatamente, mas também não parece feliz por ter sido
confrontado. Então, devagar, ele se deita de novo e suspira.
— Sim e não — diz, por fim.
Quero perguntar mais, mas não pressiono. Aquilo é terreno desconhecido,
e já estou arrependida de tê-lo provocado até ali. Por isso mesmo, tomo um
susto quando ele volta a falar.
— Não rolou uma picuinha, não exatamente. — Ele faz uma pausa
cuidadosa, e então: — Mas foram 4 anos juntos, e depois ela passava por
mim todos os dias nos elevadores como se a gente não se conhecesse. Fui
obrigado a olhar pra cara dela por quase um ano todos os dias depois disso, e
as pessoas que conheciam a gente viviam perguntando se tinha acontecido
alguma coisa. Não foi legal pra ninguém.
Assinto, entendendo seu ponto, e me pergunto se é por isso que ele não
quer se envolver comigo em primeiro lugar, se o “vamos manter tudo no
profissional” é só uma desculpa para não ter que lidar com a possibilidade de
reviver o pós-término que o magoou tanto no passado. Então quero dizer a
ele que essa possibilidade não existe, porque nosso rolo tem prazo de
validade e ele muito provavelmente será demitido antes que consiga sequer
ter um relacionamento para terminar.
Mas, no fim, não digo nada disso. Só guardo as dúvidas para mim,
sentindo que chegamos num tópico do qual não posso sair fazendo piada,
como de costume. Posso ficar em silêncio, ou posso mergulhar nisso junto
com ele. Escolho a segunda saída.
— Eu nunca namorei sério.
— Mesmo? — Nicolas me encara, surpreso. Reviro os olhos, como se
não fosse nada demais, mas morro um pouco quando ele me pergunta: —
Por quê?
Abro a boca, mas não sei nem por onde começar. Há um milhão de
motivos que começam no isolamento de se ser uma mulher gorda que não
aceita migalhas e termina no meu próprio medo de me envolver com
alguém. Não quero fazer do meu feriado com ele uma sessão de terapia,
então só digo:
— Não sei. Ninguém nunca quis, e eu também nunca me apaixonei o
suficiente por ninguém.
Que é o mais perto da verdade total que dá pra chegar agora.
— Namorar é legal, se você tá com uma pessoa decente — Nicolas diz,
com uma indiferença que me soa forçada. — Tem gente que é melhor morrer
sozinha mesmo.
— Fora essa sua ex, você teve outras namoradas? Ou namorados? —
pergunto, girando para ficar de bruços e olhar para ele.
— Bom... — Nicolas coça o queixo. — Acho que teve só a Bruna, a
Fernanda... e o Gabriel, dependendo do que você considerar namoro.
Então ele me conta sobre suas experiências, da primeira namoradinha do
fundamental até os namoros mais sérios da vida adulta. Fala sobre apresentar
o primeiro e único namorado homem pra família, sobre sua bissexualidade
nunca sendo levada a sério por ninguém além da irmã mais nova. Nicolas
tem poucas, mas boas, histórias de paixões e romances que me deixam com
o coração quentinho, mas que ao mesmo tempo me deixam um tanto
invejosa de coisas que nunca consegui viver com ninguém.
E, em troca, eu falo a ele sobre os meus piores encontros com caras que
conheci em aplicativos, da única vez em que tentei beijar uma menina, só
para descobrir que eu sou mesmo hétero, e de algumas loucuras que já fiz
em lugares pouco propícios e apropriados. O papo o excita, e quando dou
por mim estamos outra vez entranhados nos lençóis, Nicolas em mim, sobre
mim e dentro de mim, enquanto eu deixo escapar, aos sussurros, as
promessas de todas as coisas que ainda vou fazer com ele.
Se tivermos tempo.
J á é noite de terça-feira quando Suze me liga , como uma neandertal.
Quase não acredito quando vejo o número dela no identificador de chamadas. O
que aconteceu com a boa e velha mensagem?
— Alô? — atendo, confusa. Na verdade, acho que meio que estou esperando
que a ligação tenha sido um acidente. Mas ela responde, toda animada, do outro
lado:
— Ele ainda tá aí?
Meu Deus, vamos mesmo fazer isso! Falar no telefone como duas
adolescentes. Então tá.
— Não. Ele foi embora tem uma meia hora.
Foi por muito pouco que não pedi a ele que ficasse. Passar aqueles dias com
Nicolas foi como ficar presa numa bolha em que tempo, mundo e trabalho não
existiam. Faz muito tempo que eu não fico tanto tempo com alguém — e mais
tempo ainda que não transo tanto com uma única pessoa. Mas quando
escureceu, percebi que não podia durar para sempre. Amanhã preciso voltar ao
trabalho, e o sonho, mais cedo ou mais tarde, tinha que acabar.
— E aí? Como foi? — ela pergunta, depois de uma pausa muito longa. Acho
que ficou esperando que eu começasse a falar logo de cara, mas nunca estive
menos disposta.
— Foi... foda — digo, por falta de expressão melhor. E então começo a
narrar, um a um, em detalhes dolorosamente minuciosos, cada lance do meu
feriado com Nicolas.
Quando termino, estou com calor, sem fôlego e com uma vontade enorme de
ligar para ele e pedir pra voltar pra minha casa. Suze suspira e solta um assobio
que a faz parecer um tiozão de meia idade.
— Bom, e agora? Tipo, como vai ser daqui pra frente? — pergunta.
Estou tentando não pensar nisso desde o começo do feriado. Mas não dá pra
evitar o assunto para sempre, o elefante branco na sala. Suspiro e me finjo de
forte.
— Agora o jogo continua, ué. — Dou de ombros, interpretando para mim
mesma. — Eu tenho mais o que, vinte dias segundo a nossa aposta?
— Mais ou menos. — Suze ri. — Você acha que tá chegando perto?
Um nó se forma na minha garganta.
— Acho sim.
— O que foi que você disse? Sua voz tá esquisita.
— Disse que tô sim. — Pigarreio. — Antes do prazo, ele vai estar caidinho
por mim, escreve o que eu tô dizendo.
— É disso que o povo gosta!
Conversamos mais uns minutos e desligamos. Passo um bom tempo sentada
na cama, encarando a janela aberta sem me mexer. Então, meu celular vibra.
Checo as notificações. É uma mensagem de Nicolas.
“Cheguei em casa. Tô na dúvida se roubei um frasco do seu perfume por
acidente porque teu cheiro tá pela casa toda. Te vejo na quinta.”
Meu coração erra algumas batidas, e me deito na cama, os olhos ainda
vidrados no celular. O cheiro dele também está nos meus lençóis, uma mistura
de desodorante masculino, suor e sexo. Preciso colocar a roupa de cama pra
lavar. Preciso colocar a minha cabeça no lugar. Preciso me controlar.
Mas a única coisa que eu faço é bloquear a tela do celular sem responder,
rolar pro lado e dormir.
Trabalho igual a uma camela o dia todo, e quando chego em casa, depois de
fazer quase duas horas a mais, estou podre de cansaço. Recolho as roupas secas,
como alguma coisa e caio na cama sem nem me preocupar em colocar o celular
para carregar.
Evidentemente, ele descarrega todinho durante a noite. Acordo atrasada, já
que o despertador não tocou, e preciso fazer tudo em tempo recorde — e mesmo
assim não saio a tempo.
Maravilhoso. Eu realmente preciso de motivos a mais para Oscar gritar
comigo. Não tive o suficiente.
Saio de casa com o mínimo de bateria possível, e chego na empresa
patinando de tanto correr, quarenta e cinco minutos atrasada. Não importa que
ontem trabalhei horas a mais: com certeza vou ouvir por esse atraso. Pego o
elevador, e enquanto o maldito não chega, checo as notificações do que perdi
desde que apaguei ontem à noite.
Tem três mensagens de Nicolas, além da que eu já tinha visualizado sem
responder.
“Oi. Espero que você não se mate de trabalhar aí. Pega leve, ainda é
carnaval.”
“Olha, eu sei que vai ser meio esquisito amanhã. Mas eu não quero que seja.
Esses dias foram ótimos e eu não quero que a gente se trate como estranhos.
Vamos só ficar numa boa? E ver o que acontece.”
E então, uma que havia sido enviada bem mais tarde, quando eu já estava no
vigésimo sono:
“Você claramente não precisa me responder. Até amanhã.”
Cacete. Ele provavelmente acha que eu estou dando um gelo nele, por ter
visto a primeira mensagem e não respondido, e nem visualizado as mais
recentes. Meu coração acelera, mesmo sabendo que é um medo bobo; não devo
nada a Nicolas, e se ele fizer drama por causa de três mensagens sem resposta,
isso é problema dele. Mesmo assim, me pego desejando que ele me perdoe pela
falta. E esse desejo me deixa puta comigo mesma, esperando perdão de um
homem por coisas que sequer são minha culpa.
Pego o elevador e saio no meu andar. Por obra de Deus, Oscar não está na
sua sala — se dei sorte, vai chegar mais tarde hoje e não vou sofrer com seus
berros pelo meu atraso, então passo direto, indo até a minha mesa. Nicolas já
está lá, na cadeira em frente à minha, olhos baixos no teclado.
Coloco minha bolsa sobre a mesa e me ajeito com um pouco mais de
afetação do que o comum. Então esboço um sorriso e digo:
— Bom dia!
Nicolas ergue os olhos. Me encara com aquele semblante neutro que nele
significa que hoje não é um bom dia . Sequer é dia . Aquela seriedade que
significa que ele está meio puto com o mundo.
Então baixa os olhos de novo e não responde.
Merda.
— P uta merda, o Nicolas tá com a macaca hoje. O que foi que você fez
pra ele?
Encaro Suze, meio chocada. De que lado ela está, afinal?
Estamos almoçando no nosso sujinho favorito, comendo cachorros-quentes
prensados com uma quantidade absurda de condimentos, e estou tentando não
pensar no que ela me disse, mas é impossível. Suze tem razão, Nicolas está
mesmo com a pá virada — e não consigo deixar de pensar que é por minha
culpa, mesmo que parte de mim ache aquela ideia absurda e inaceitável.
— Eu não fiz nada — respondo, na defensiva demais, e me distraio com o
meu cachorro-quente.
— Achei que depois de passar o feriado todo transando ele estaria mais
felizinho. — Suze dá de ombros e tenta manobrar seu lanche de uma forma que
ele não desmonte inteiro no colo dela. — Pelo que você falou, achei que tava
tudo às mil maravilhas.
— Ele é doido — respondo, enfática, e ela deixa estar.
Terminamos de comer e enrolamos por mais uns bons vinte minutos antes de
voltar, ainda que eu tenha me atrasado horrores e precise compensar o horário.
Quando voltamos para o escritório, descubro não somente que Nicolas já voltou
do almoço, como que está na sala de Oscar; e tomando uma bronca daquelas.
— ...VOCÊ TÁ ACHANDO QUE É A NETFLIX PRA FICAR
RESPONDENDO CLIENTE ASSIM? CARALHO, NICOLAS, NÃO É PRA
ISSO...
— Eita — Suze sussurra, e, como as duas velhas fofoqueiras que somos,
paramos pra escutar.
Péssima ideia. Estou bem no campo de visão da sala de Oscar, e é óbvio que
ele me vê. Num átimo de segundo, ele desvia sua atenção para mim.
— LUANA, PODE VIR PRA CÁ TAMBÉM QUE ISSO É CULPA SUA!
Ah, pronto!
— Boa sorte, amiga. — Suze dá duas batidinhas no meu ombro e foge antes
que sobre pra ela.
Respiro fundo. Nicolas, até então de costas pra mim, se vira para me olhar, o
rosto mal-humorado e lívido. Não vai ter jeito. Vou até a sala, caminhando
devagar, e paro ao lado de Nicolas, sem ousar olhar pra ele.
— O que foi, Oscar? — digo, tentando soar apenas cansada, e não com a
vontade de matar que, no fundo, é o que estou sentindo.
— O que foi? — ele repete, puto da vida, e aponta pra Nicolas. — Que porra
que você tá ensinando pra esse seu estagiário, Luana? Já viu a merda que ele
aprontou?
Olho para Nicolas de soslaio. O rosto dele está mais azedo do que nunca, o
maxilar travado de raiva.
— Não...?
— Ele tá respondendo cliente com PIADINHA. — Oscar bate na mesa e vira
a tela do computador para mim.
É um print de comentário. Algum cliente havia reclamado da luminosidade
das camisinhas neon no Facebook, dizendo que elas não brilhavam o suficiente.
Nicolas respondera “pelo menos nesse caso, o que os olhos não veem o corpo
ainda sente”.
É difícil segurar a risada, e sinto meu tronco chacoalhar enquanto os cantos
da minha boca se contorcem pra que eu não dê bandeira. Me controlo para não
olhar para Nicolas, e respondo apenas:
— Achei espirituoso .
— Espirituoso é o caralho, Luana! — Oscar levanta, e, por um nano
segundo, acho que vai partir pra cima de nós dois. Dou um passo instintivo para
trás, e Nicolas repara, torcendo o nariz. — Quer fazer piada, vai pro circo,
porra! Isso aqui é uma empresa séria!
— Oscar, o relacionamento com os clientes hoje em dia é assim! — rebato.
— As pessoas gostam que as nossas mídias sociais tenham personalidade.
— Então você treinou esse moleque pra fazer merda, é isso que você tá me
falando?
— A Luana me passou as instruções corretas. A piada foi ideia minha —
Nicolas intervém, rápido demais.
O olhar de Oscar pra ele é fulminante. Queria que ele tivesse ficado quieto.
Nicolas chegou agora e já está batendo boca com o chefe. Ele não sabe que a
melhor escolha quando se trata de Oscar é ficar quietinho e trabalhar como se
ele estivesse certo.
— A ideia foi sua, mas quem é responsável por você nesse departamento é
ela — Oscar diz, e sei que ele está no limite do ódio porque parou de gritar e
está falando baixo. — Então das duas uma. Ou você agiu com o aval dela, ou
ela não controla o próprio funcionário, o que é pior ainda.
— Eu não sou funcionário dela. O chefe aqui é você.
Ah, Nicolas, puta que pariu! Que bela oportunidade de não falar nada !
— Oscar, foi um mal-entendido, o Nicolas achou que não teria problema,
não vai acontecer de novo. — Instintivamente, coloco a mão no braço do meu
estagiário e começo a puxá-lo para trás. — Eu e ele vamos ter uma conversinha
sobre diretrizes da empresa e vai ficar tudo nos conformes, pode deixar.
— Melhor mesmo. Agora saiam da minha sala.
Com algum esforço, puxo Nicolas para fora, e continuo arrastando ele até
estarmos de volta às nossas baias, longe o bastante para que Oscar não consiga
nos ouvir. Só então me viro para ele e digo:
— Que merda você acha que tá fazendo?
— Por que sou eu quem tá fazendo merda nessa história? — ele pergunta,
exaltado.
— Nicolas, deixa eu te explicar uma coisa: — puxo a cadeira mais próxima
e me sento — você não grita de volta com o Oscar. Você não retorque as coisas
que ele diz. Você não compra uma briga desse tamanho, cê tá me entendendo?
O Oscar conhece todo mundo da publicidade. Se você sair daqui em maus
lençóis com ele, você nunca mais vai trabalhar nessa área.
— O fato de ninguém aqui rebater os absurdos que esse cara fala é
exatamente o motivo pelo qual ele continua falando! — Nicolas exclama.
Hesito, e respiro fundo. Ele tem razão, é claro que tem razão. Mas entre
ouvir berros e manter o emprego que eu amo e do qual preciso, ou responder e
nunca mais trabalhar, eu escolho os gritos.
— Só deleta o comentário, Nicolas. — Levanto e devolvo a cadeira para o
lugar. — Deleta e não faz de novo. Se não for por respeito ao seu emprego, pelo
menos que seja por respeito ao meu.
Então me afasto e volto para a minha mesa.
Fico trabalhando até tarde, compensando o tanto que cheguei atrasada e mais
um pouco. Quando chego em casa, estou moída mental e fisicamente. Tiro os
sapatos e a roupa, e entro num banho tão longo que acho que vou gastar a água
toda do prédio antes de sair. Quando volto pro quarto e pego o celular, tem uma
mensagem de Nicolas.
“Acho que você não vai responder, mas queria te pedir desculpas. Não
pensei em como as minhas ações afetam o seu trabalho. Ainda acho que estão
fazendo tudo errado naquela empresa, mas não vou me intrometer e piorar as
coisas. Sinto muito.”
Penso muito e, após vários minutos, consigo responder:
“Tá tudo bem. Obrigada por me dizer isso. E, se servir de alguma coisa, eu
achei sua resposta genial. A gente venderia muito mais se nosso modelo de
mídias sociais não fosse tão engessado.”
Não se passa nem um minuto inteiro antes que a resposta dele chegue.
“Você tá me respondendo agora? Que novidade!”
“Não que eu precise te explicar alguma coisa, mas meu telefone tinha
descarregado ontem. Por isso não respondi nenhuma das mensagens. Era por
isso que você estava tão de mau humor hoje?”
“Não que eu precise te explicar alguma coisa, mas o mundo não gira em
torno de você, Luana. Meu carro quebrou e tive que enfrentar ônibus lotado, só
isso.”
Fico dividida entre me ofender e achar graça, mas acabo optando pelo
último. No fundo, gosto das nossas provocações mútuas. É o que mantém o
relacionamento interessante.
O celular vibra de novo.
“Mas confesso que fiquei com um pouco de raiva sim. Só não durou. É
impossível ficar bravo com você, Luana.”
“Por quê?”
“Você já se viu sorrindo? Desmonta qualquer um.”
Sinto meu rosto corar, e estou feliz pra cacete que ele não consegue me ver.
Digito rapidamente a resposta.
“Até amanhã, Nicolas. E chega de gracinhas nas redes sociais!”
Leva um tempo, mas ele finalmente me responde:
“Pode deixar. Comentários safados, de agora em diante, eu faço só pra
você.”
A sexta-feira após o carnaval é o dia da festa anual de carnaval no
escritório. Os happy hours foram uma invenção antiga de alguma
administração que queria unir os funcionários e nos deixar felizes podendo
beber do lado de dentro do prédio, mas acabaram se tornando uma obrigação
chata que todo mundo tem que cumprir, onde ninguém nunca se diverte de
verdade.
Ah, e Oscar julga todas as fantasias. E briga com quem não vai
fantasiado.
Por isso, quando Nicolas chega na sexta-feira à tarde, aparentando um
completo descaso tanto com o horário quanto com a regra mais básica de
vestimenta, eu me levanto prontamente da mesa. Estou com um vestido
branco, e tem um jaleco e um estetoscópio de brinquedo na minha bolsa,
esperando para serem usados. Nicolas está claramente vestido só de Nicolas.
— Primeiramente, onde é que você estava ? — pergunto, já circulando as
baias para ir até ele. — Número 2, cadê a sua fantasia?
— Boa tarde pra você também — ele diz, deixando as coisas em cima da
mesa.
— Nicolas, são duas da tarde e eu só vou sair dessa merda desse lugar
hoje às onze horas, não brinca comigo! — sibilo para ele. Nicolas revira os
olhos.
— Eu tinha que fazer uma prova na faculdade de manhã. Avisei o Oscar e
ele me liberou.
Ergo uma sobrancelha. Nem Oscar, nem Nicolas haviam me avisado,
como eu duvidava, que ele tivesse sido “liberado”. Nicolas suspira.
— Tá, vou ter que cumprir hora extra por uma semana, mas eu fui fazer a
merda da prova.
— E a fantasia? — indago então. — Ou vai me dizer que você não estava
sabendo da festa de carnaval da empresa?
— Luana, eu tenho 30 anos! Não vou me fantasiar pra tomar cerveja com
gente que eu não gosto.
Ele se senta, no seu típico mau humor que já não me impressiona mais, e
começa a abrir as coisas para trabalhar. Sinto uma veia pulsando no meu
pescoço.
— Nicolas, qual parte da nossa conversa de ontem sobre você não
complicar a porra do meu trabalho você não entendeu? — me abaixo ao lado
dele, puxando a saia do vestido um tanto justo demais para baixo. — Não é
com você que o Oscar vai brigar se você aparecer nessa merda dessa festa
sem uma fantasia.
Nicolas suspira, parecendo exausto. Pela expressão no rosto dele, acho
que ele vai me mandar pro inferno, mas o que ele realmente diz é:
— Tá, arranja alguma coisa que eu visto depois do expediente.
— Você é um anjo! — digo, e, embora não devesse, me inclino e beijo
seu rosto.
Nicolas não reage. Fica travado na cadeira, imóvel, mas percebo um
rubor se espalhando pelo seu pescoço, exatamente igual ao que toma a
minha cara. Volto pra minha mesa e me sento rapidamente, antes que eu faça
mais alguma cagada.
Trabalho o resto do dia com atenção dividida entre as coisas que preciso
fazer e perguntar para todo mundo se alguém tem alguma coisa que eu possa
usar para fantasiar meu estagiário. Suze, que veio hoje de terno e gravata e
carregando uma imitação do Troféu Imprensa, oferece uma segunda
estatueta para que ela e Nicolas formem um par. Uma outra garota do nosso
departamento diz que tem uma tiara com orelhas de gato sobrando, e rio
sozinha ao pensar em Nicolas com elas. Cato milho por todo o
departamento, até descobrir alguém que tem sangue falso.
É isso. Quando termino o que tenho pra fazer, encontro com ela nos
elevadores para pegar a garrafinha minúscula. Pego meu kit de maquiagem
na bolsa e, quando nosso horário de trabalho acaba, vou até Nicolas e digo:
— Vem comigo.
É uma ordem, não um pedido, e ele reconhece a diferença, me
acompanhando sem pestanejar. Enquanto andamos, passamos por Oscar, em
uma fantasia muito pobre de pirata, gritando com dois funcionários sobre as
bebidas da festa. Passamos pelo hall dos elevadores e vamos até os fundos,
onde um corredor leva aos banheiros e à copa.
Abro a porta do banheiro acessível unissex e puxo Nicolas para dentro. A
luz automática se acende quando entramos.
— Eu tenho quase certeza de que obstruir o banheiro acessível é ilegal —
ele diz. Tento deixar a porta aberta, só por precaução, caso alguém tenha
visto e feito perguntas, mas não consigo, então só a deixo fechada, sem
trancar.
— Não tem uma única pessoa com deficiência nesse andar, e nós não
vamos demorar — justifico, e vou separando minhas coisas de maneira
eficiente.
— O que você vai fazer comigo? — Nicolas pergunta, e a frase manda
um arrepio pela minha espinha. Tento ignorar.
— Vou te transformar num zumbi. Mais ou menos. Senta ali.
Aponto para a privada, e Nicolas me obedece, soltando um longo suspiro.
Ele abaixa a tampa, se senta e espera, parecendo ao mesmo tempo divertido
e entediado. Cara de Nicolas.
Dou minha bolsinha de maquiagem para que ele segure, de modo a me
poupar esforço. Separo meus pincéis e o jogo de sombras, que não tem
exatamente os tons de verde e roxo que eu precisaria, mas já dá pro gasto.
Ergo a cabeça dele em silêncio e começo a pintar olheiras. Talvez eu devesse
traçar os olhos dele com um lápis. Vou trabalhando, tentando tratá-lo como
um boneco de cera em vez de uma pessoa, mas sinto os olhos de Nicolas em
mim e de repente meu corpo está todo quente.
A luz automática se apaga, e ergo o braço, mexendo-o impacientemente
até que o detector de movimento a acenda de novo. Quando a luz volta, o
olhar de Nicolas está vidrado no meu.
— Acho que eu nunca fui maquiado por ninguém — ele diz, num tom
ameno e raro, só pra puxar papo.
Nunca me acostumo com essa versão de Nicolas, que tenta ser normal e
agradável quando está comigo. Dou um meio sorriso.
— Você tem um rosto bonito, não precisa de maquiagem.
— Você também, mas se maquia todo dia — ele provoca, e eu rio.
— Touché! — devolvo os pincéis e a sombra para a bolsinha e pego o
lápis de olho — Mas é meio o que se espera das mulheres, ainda mais de
mim.
— Como assim? — pergunta, genuinamente interessado. Eu suspiro.
— Acho que as pessoas aceitam uma mulher gorda com mais facilidade
se ela for feminina. Tipo, tudo bem ser gorda, desde que você não pareça
desleixada.
Nicolas pensa nisso por um segundo enquanto eu contorno seus olhos
com o lápis. Era para ele parecer um zumbi, mas está parecendo um garoto
emo que dorme muito pouco. Eu devia ter avisado que era péssima nisso.
— É uma pena — ele diz, por fim. — As pessoas perdem a chance de te
ver quando você fica mais bonita.
Perco o rebolado por um segundo, mas me recupero a tempo de
perguntar, num tom quase indiferente:
— E quando é isso?
— Quando você não está tentando. — Ele pausa enquanto termino seu
olho direito, e então, tendo a minha completa atenção, continua: — Tipo
quando você acorda e seu cabelo tá uma zona, e o resto da sua maquiagem
fica meio borrado. Ou quando você sai do banho e tá de cara limpa, e não
tem nada em você além de você mesma.
— Isso é piegas pra caralho — murmuro, mas não nego que tem seu
efeito. O papinho de “você fica tão mais bonita sem maquiagem” nunca
deixa de funcionar comigo.
A luz automática se apaga. Por um instante, ninguém se move. Então
Nicolas joga minha bolsinha de maquiagem no chão e me puxa, me fazendo
sentar no colo dele, minhas pernas ao redor das suas. Dez por cento do meu
cérebro está meio puto, se perguntando se alguma das minhas maquiagens
quebrou no processo, mas os outros noventa por cento estão com o modo
tesão ativado. Ele não está duro, mas só a sugestão do volume que consigo
sentir debaixo de mim e suas mãos espalmadas na minha bunda para me
segurar no lugar são o suficiente para acender meu corpo todo.
— Achei que era pra gente manter tudo no profissional — provoco, e
Nicolas não se abala.
— Tecnicamente já acabou o expediente.
Preciso me controlar para não gargalhar alto. Se formos pegos ali, já era.
— Eu não tranquei a porta — digo, e sinto a mão de Nicolas subir pelas
minhas costas, vindo parar na minha nuca, onde me puxa na direção dele.
— Então melhor a gente fazer isso rápido.
Sua boca encontra a minha, e apesar da sua implicação, não há pressa
nenhuma no beijo que trocamos. Nicolas é dolorosamente lento, me beijando
com a precisão de quem sabe exatamente o que está fazendo, o que quer de
mim e como conseguir. Enquanto me beija, uma mão puxa suavemente os
cabelos da minha nuca, e a outra passeia pela minha bunda, pernas e costas.
Me encaixo mais nele, pressionando meu corpo no seu, sentindo a
temperatura e outras coisas subirem enquanto a gente se beija. A posição é
incômoda, e em questão de instantes minhas pernas estão doloridas, mas não
tem Cristo que me faça parar a essa altura do campeonato. A boca de
Nicolas desce para o meu pescoço, traçando o contorno da minha garganta,
descendo lentamente para o meu colo, seu nariz desenhando o meu decote.
Sua mão encontra o zíper do meu vestido, e eu estou prestes a pedir a ele que
por favor tire minha roupa e transe comigo ali dentro quando a luz
automática subitamente se acende e a porta se abre.
Pulo do colo de Nicolas com um grito, mas já é tarde demais.
Fomos pegos.
— A h — é tudo que Tim diz ao abrir a porta.
Puta que pariu, puta que pariu, puta que pariu. Eu estou fodida.
Completamente fodida.
— Não sabia que tava ocupado — ele diz, então.
— Tim, olha só... — eu me adianto, mas não dá tempo. Antes que eu
termine a frase, ele vira as costas e sai.
Fico um segundo imóvel, olhando para a porta em silêncio, e então faço a
única coisa possível: bato o pé e destilo todos os palavrões que eu conheço
em uma sequência.
— Luana, fica... — Nicolas começa, e sinto sua mão no meu cotovelo.
— NEM PENSE em me dizer pra ficar calma! — Puxo meu braço para
longe e me afasto. — Puta que pariu, Nicolas, nós fomos pegos !
— E daí, Luana? O que ele viu, um beijo? — ele diz, calmo demais.
— Um beijo se fosse você sozinho, né? Você tem ideia do que isso vai
virar quando a fofoca começar a se espalhar? — Solto um riso de puro
desespero. — Isso vai chegar no ouvido do Oscar como se a gente estivesse
trepando no banheiro.
— Calma, tá? Eu vou falar com ele. Ninguém vai espalhar fofoca
nenhuma.
— Não! — Ergo a mão, embora ele nem tenha se mexido. — Você já fez
demais. Recolhe as minhas coisas que eu vou dar um jeito nisso.
— Já fiz demais? Que porra isso quer dizer? — ele rebate, o tom subindo
para um de pura irritação.
— Tecnicamente já acabou o expediente — repito as palavras dele em
um tom afetado, como se eu fosse uma criança imitando o irmão mais velho.
Nicolas parece ainda mais irritado. — Você fica em cima da porra do muro
sem saber se quer ou não quer, e quando decide que quer, o que você faz?
Fode com o meu trabalho.
— Eu não me lembro de você ter tentado me impedir em momento
algum. Se eu te fodi, não foi sozinho.
Não consigo retrucar, porque sei que ele está certo. Foi irresponsabilidade
dos dois, e agora estou pagando o preço por ter deixado que Nicolas e minha
obsessão idiota por ele e pela maldita aposta que fiz com Suze subissem à
minha cabeça.
— Só recolhe as coisas e eu vou tentar remediar — digo, por fim, e saio
às pressas do banheiro.
Parece que na última meia hora a empresa inteira se reuniu no nosso
andar. Tem música tocando, gente conversando, cervejas sendo passadas de
mão em mão. Todo o meu departamento está fantasiado, provavelmente para
evitar bater de frente com Oscar, mas a maior parte das pessoas dos outros
departamentos não está nem aí se é carnaval ou não, todas vestidas com
roupas normais e usando, no máximo, alguns adereços na cabeça.
Ando entre as pessoas tentando disfarçar minha ansiedade e saio
perguntando descaradamente por Tim para todo mundo. Ninguém sabe
exatamente onde ele está, e a resposta mais clara que eu obtenho é a de que
ele tinha ido até o banheiro — nenhuma surpresa até aí. Por fim, acabo
trombando com Suze, que segura duas latas de cerveja e me entrega uma
assim que me vê.
— Caramba, você demorou! — ela diz, num ótimo humor, e então me
lança um olhar malicioso. — Ficaram fazendo o que no banheiro até agora?
— Suze, eu preciso achar o Tim. — Seguro a mão dela, pegando a lata de
cerveja extra e apoiando em uma mesa próxima.
— O Tim? Pra que você quer achar o Tim? — Ela pega a latinha de volta
e dá um gole.
— Porque ele me pegou dando uns pegas no Nicolas no banheiro
acessível!
— Puta que pariu, precisamos achar o Tim!
Suze se junta a mim na busca, mas não vejo o rosto genérico de Tim em
lugar nenhum. Ele não está perto do som, nem perto das bebidas e dos
petiscos, nem perto das mesas, onde um monte de gente cansada puxou
cadeiras para se sentar. Então olho para o lado e vejo Suze fazendo um sinal.
Ela o encontrou!
Vou na direção dela, o coração batendo forte, e ele quase salta pela boca
quando a alcanço só para descobrir Tim tomando uma cerveja e batendo
papo com Oscar.
Puta que pariu.
Suze faz uma careta e me lança um olhar de piedade quando passo por
ela. Estou tremendo dos pés à cabeça quando me aproximo dos dois. Oscar,
que está com uma espécie de fantasia havaiana que inclui camisa florida e
um daqueles colares ridículos de flores de plástico, está em um de seus raros
momentos de leveza, rindo de algo que Tim disse. Eles nem me veem
chegar. Quando paro diante dos dois, Tim parece assustado.
— Tim, você por aqui! — digo, na esperança de não parecer tão histérica
quanto me sinto. — Preciso falar com você!
— Luana, que porra que é a sua fantasia? Tela de cinema? — Oscar
pergunta, dando uma gargalhada alta.
Olho para baixo. Estou de branco, com o estetoscópio pendurado no
pescoço. Tela de cinema. Certo.
Tim dá uma risadinha desconfortável, mas eu não digo nada. Ignoro meu
chefe e me viro de novo para Tim.
— Será que a gente pode conversar?
— Porra, Luana, não viu que eu tô conversando com o cara? Que falta de
educação!
Tenho algumas palavras para Oscar sobre o que se configura como falta
de educação , mas engulo todas elas. Forço um sorriso.
— Você não vai morrer se eu roubar ele de você por dois minutinhos,
vai? — Passo um braço pelo braço de Tim e meu chefe não responde. —
Achei que não.
Puxo Tim comigo pelo acúmulo de pessoas até chegarmos nos
elevadores. Não avisto Nicolas em lugar nenhum, e parte de mim está feliz
por ele ter sumido, enquanto outra parte se ressente por ele nem ter tentado
ajudar.
Chegamos aos elevadores e aperto o botão. A porta de um deles se abre
automaticamente e puxo Tim para dentro, pressionando todos os andares no
painel para que tenhamos uma viagem bem lenta.
— Você comentou alguma coisa com o Oscar? — pergunto, na lata,
enquanto o elevador sobe.
— Alguma coisa sobre o quê? — ele diz. As portas se abrem para um
andar vazio, e fuzilo Tim com o olhar.
— Olha pra minha cara e vê se eu tô de brincadeira.
Ele encolhe os ombros de leve, mas finge não se afetar.
— Não, não comentei nada sobre as coisas que você anda ensinando pro
seu estagiário dentro do escritório — diz, então. Meu estômago se revira.
— Tim, olha só, sobre eu e o Nicolas...
— Luana, você não tem que me explicar nada.
Ele faz uma pausa, e eu prendo a respiração.
— Só acho engraçado que comigo você não queria ser vista no escritório.
Preciso me segurar para não rir. Mas aparentemente ele não terminou,
porque prossegue:
— Mas isso explica bastante coisa, eu acho. Por isso que você me deu o
fora? Pra ficar com o novato?
É demais para mim. O elevador abre e fecha as portas no último andar, e
percebo que se o que eu queria era apaziguar as coisas e minimizar os danos,
não vou ter sangue de barata a ponto de fazer com ele o que faço com Oscar,
sorrindo amarelo e fingindo que está tudo bem. Não com ele. Eu não me
dignei a gastar vinte minutos da minha vida transando com esse cara e dias
fugindo dele para depois fingir que está tudo bem. Já chega.
— Isso não é sobre você! — falo, enquanto o elevador começa a descer,
passando direto pelo nosso andar e parando só no sexto. — Eu não te dei o
fora por causa dele.
— Por que foi, então? — Ele se vira para mim, parecendo ao mesmo
tempo ansioso pela resposta e indignado com antecedência.
— Eu não te dei o fora, ponto . Não tinha fora pra dar! A gente transou
uma vez depois de um happy hour e foi isso. Eu não tinha e não tenho
obrigação nenhuma com você, assim como você não tinha comigo!
— Ah! — ele solta, no mesmíssimo tom que usou ao abrir a porta do
banheiro.
— Eu não quis sair com você de novo, e você foi insistente e grosseiro
comigo porque você é o típico homem que acha que uma mulher deve coisas
a você só porque eu encostei no seu pau uma única vez — continuo, cada
vez mais inflamada. O rosto de Tim está lívido. — Mas adivinha só? Não
devo. Nem se tivesse sido a foda mais espetacular da minha vida, o que, a
propósito, não foi.
Você não devia ter dito isso , diz uma vozinha na minha cabeça, mas não
quero e nem consigo escutá-la agora. As portas se abrem e se fecham no
primeiro andar, e então começamos a descer para o térreo. Respiro fundo.
— A única coisa que eu espero é que você tenha a decência de não falar
do que você acha que sabe pra ninguém — digo, mais baixo e mais centrada.
— Primeiro porque não é da conta de ninguém, e segundo porque se isso
chegar até o Oscar eu posso perder meu emprego. E você pode até ter raiva
de mim por ter te dado o fora, mas espero que não seja a ponto de ferrar com
a minha carreira.
O elevador chega no térreo e abre as portas. Sem saber bem o que estou
fazendo, aperto o botão do décimo andar, mas saio para o átrio sem olhar
para trás e sem esperar uma resposta.
Ouço o elevador fechando as portas, e então outro chegando. Quando
olho para trás, Nicolas está saindo dele, com a minha bolsa e sua mochila
nas mãos, como se soubesse exatamente do que preciso.
— Vamos embora? — ele diz, olhando para mim com o rosto meio
maquiado, perfeitamente neutro.
Quero gritar que não, espernear que tudo aquilo é culpa dele, que não tem
nada que ele possa fazer que vá me deixar menos puta, menos ansiosa ou
menos amedrontada. Mas, por mais que a raiva ainda borbulhe na minha
garganta, eu só consigo dizer:
— Pra minha casa ou pra sua?
Nicolas passa sua mochila por um braço e minha bolsa por outro.
— A gente decide no caminho.
— V ocê não vai falar nada?
Olho para Nicolas de soslaio enquanto ele avança pela rua, deixando a
empresa para trás. Estou calada desde que desci com ele até a garagem do
prédio, minha mente maquinando rápido tudo que acabou de acontecer e
tudo que calculo que ainda acontecerá.
— O que você quer que eu diga? Que eu tô fodida?
— Não só você — ele replica, e meu humor só azeda mais.
— Nicolas, você não tá nem remotamente tão fodido quanto eu — digo,
minha voz subindo até que estou gritando sem nem me dar conta. — No
melhor dos casos, você vai tomar um come do Oscar, mas vai ser
parabenizado por todo mundo pela ousadia. Sabe o que vai acontecer
comigo? Eu vou virar chacota naquela merda daquela empresa pra sempre,
isso se eu não for demitida .
— Mas não faz sentido! Nós dois estávamos naquele banheiro! —
Nicolas contrapõe, ao que solto uma risada alta.
— Bem-vindo ao mundo corporativo, Nicolas. Ele é machista, você vai
adorar.
Ele não responde, e percebo que está pegando o caminho até a minha
casa. Puxo o celular para me distrair, mas acabo me torturando abrindo o
grupo de funcionários no WhatsApp para ver se há qualquer menção ao meu
nome ou ao de Nicolas. Felizmente, nada. Vejo fotos da festa, áudios que
não me dou o trabalho de escutar, e imagino quanto tempo vai demorar até
que Tim resolva se vingar de mim.
Suze manda uma mensagem enquanto ainda estou com o telefone na
mão:
“Onde você foi parar? Tá tudo bem?”
Bufo e percebo Nicolas me olhando de canto de olho enquanto dirige.
Digito uma resposta:
“Tá tudo ok, acho. Longa história. Fui pra casa, depois te conto.”
Bloqueio o telefone e olho para frente. Não consigo nem começar a
entender tudo que estou sentindo, um arco-íris de sentimentos que vai desde
a raiva até o medo, passando pela vontade de rir histericamente. Nem eu
nem Nicolas falamos nada durante todo o trajeto, até ele estacionar na frente
do meu prédio e desligar o carro.
— Você quer que eu suba com você? — ele pergunta, afinal.
Eu o encaro, e pelo que deve ser a primeira vez na curta história do que
quer que estejamos vivendo, Nicolas parece na defensiva. Isso adiciona um
sentimento sem nome à minha lista, uma vontade intensa de beijá-lo
enquanto esmurro sua cara. Respiro fundo.
— Anda logo — digo, saindo do carro.
Ele me segue prédio adentro sem questionar, e não me toca mesmo
quando dividimos o minúsculo elevador. Descemos no meu andar e
entramos no apartamento sem trocar uma única palavra. Largo minhas coisas
em cima do sofá e vou pro banheiro, voltando com um lenço umedecido que
estendo para Nicolas.
— Tira isso da cara, você tá ridículo — digo, antes de lhe dar as costas e
ir pro quarto, tirando metade da roupa no caminho.
Jogo o maldito estetoscópio de brinquedo longe e arranco o jaleco e o
vestido. Me embanano quando vou tirar a meia-calça e acabo tropeçando nas
minhas próprias pernas, soltando um urro de frustração enquanto tento me
livrar dela, rolando na cama. É assim que Nicolas me encontra, em uma luta
corporal com as meias, lágrimas de raiva escorrendo dos meus olhos
enquanto eu desconto absolutamente todos os meus sentimentos conflitantes
em uma peça de roupa.
Contenho um soluço quando o vejo parado na porta, já com a cara limpa.
Nicolas não fala nada. Se aproxima cautelosamente e, com jeitinho e
delicadeza, me livra da meia-calça, fazendo um bolinho com ela e a atirando
no cesto de roupa suja ao lado da porta. Então se senta do meu lado na cama
e põe uma mão suavemente sobre o meu joelho.
— Luana... me desculpa.
Fungo para ele, mas não respondo.
— Eu esqueço às vezes que ser homem é ter privilégios — ele continua,
sem desviar os olhos de mim. — Você tem razão de estar com medo. Se a
bomba estourar, vai ser muito pior pra você. Eu sinto muito por ter te
colocado nessa situação.
Me sento na cama, devagar, e Nicolas se ajeita para me dar espaço. Bufo
novamente, abraçando meu próprio corpo exposto. Percebo que é a primeira
vez que fico seminua na frente de algum cara sem ter a intenção de transar
com ele. A sensação é... diferente. Vulnerável. Sinto vontade de me cobrir,
mas me controlo.
— Eu passei a vida toda lutando contra esses estigmas — falo, sem
conseguir olhar pra ele. — O de que eu não podia fazer tal coisa por ser
gorda, que não podia fazer tal coisa por ser mulher, que eu não posso isso,
não posso aquilo. E eu aguento muita porrada no meu trabalho, você sabe.
— Eu sei — ele murmura.
— Mas isso é só porque eu sei o quão difícil foi chegar nessa porcaria
desse cargo — continuo, me exaltando. — A quantidade de homem que eu
vi sendo promovido na minha frente, a quantidade de mulher padrão que eu
vi sendo contratada pra todas as vagas a que eu me candidatava, mesmo não
tendo nenhuma qualificação a mais. Caralho, Nicolas, eu sou uma boa
profissional, não sou?
— Você é boa pra cacete.
— Exato. Mas isso não tem valor nenhum. — Caio deitada de novo,
dramaticamente. — Quando o Tim abrir a boca, é tudo que eles vão ver.
Foda-se se eu trabalho bem, foda-se o quanto foi difícil. Eu vou ser pro resto
da vida a mulher que deu uns pegas no estagiário no banheiro acessível. Puta
que pariu.
Silêncio. Cubro o rosto com as mãos, lutando para não chorar mais.
Odeio estar fazendo esse papelão na frente dele. Não sou uma pessoa que
chora com facilidade, e Nicolas é a última pessoa que eu gostaria que me
visse desse jeito. Me sinto fraca, pequena e inútil.
Então, ouço Nicolas murmurar:
— Me desculpa.
— Você já disse isso — falo, num tom neutro, sem ironia nem raiva.
Nicolas se vira para mim.
— Não, Luana, não só por isso. — Ele hesita, fecha os olhos, e então diz:
— Sinto muito por ter me envolvido com você, e por ter deixado que
continuasse. Não queria ser um problema pra você. Eu tinha razão quando
falei que a gente devia separar as coisas.
Isso me inflama com uma nova onda de raiva. Me levanto num salto, tão
rápido que o mundo gira diante dos meus olhos. Me coloco na frente dele, já
respirando fundo de raiva.
— Então pra que você veio aqui, Nicolas? — disparo. Ele franze o cenho.
— Você me mandou subir!
— Se você veio até aqui só pra dizer que isso tudo foi um erro e que,
além de eu ter me fodido por sua causa, você ainda vai me dar um pé na
bunda de novo , você tá muito enganado! — continuo, como se não o tivesse
ouvido. — Decide logo o que você quer ou sai de uma vez da minha vida.
— Decidir o que eu quero? — ele também se exalta, mas não se levanta.
— E que tal o que você quer, Luana? Primeiro dá em cima de mim, depois
me dá um gelo, depois dá em cima de mim, depois me dá um gelo...
— Ah, isso, muito bem, senhor vamos manter tudo no profissional , joga
mesmo a culpa pra cima de mim!
— Você nunca vai parar de jogar isso na minha cara? — Ele ri com
escárnio. Só me deixa mais fula da vida.
— Vou parar no dia que você conseguir sair de cima da porra do muro!
— digo, e cada palavra é um cutucão no ombro dele. — Eu não sou sua
marionete, Nicolas. Se você me quer, então fala. Eu não vou passar a vida
sendo um brinquedinho pra você usar e jogar fora no final do dia.
Nicolas reage muito rápido. Num segundo, estou de pé, praticamente
gritando na cara dele, e no outro ele me tomou pela cintura e me jogou na
cama, travando meu corpo sob o dele. Seu rosto está corado, e ele respira
rápido quando me diz:
— Eu quero você, porra.
O efeito é imediato. Todos os nós que apertavam meu peito parecem se
desfazer de uma vez, minha raiva se dissipando.
— Eu quis você desde o primeiro bom-dia animado que você me deu
naquele escritório, e eu quero você todos os dias desde então — ele
continua, olhos fixos nos meus. — E eu não quero brincar com você, Luana.
Eu não sei o que isso é, o que nós somos, mas quando eu digo que quero
você, eu não tô pra brincadeira.
Respiro rápido, absorvendo cada palavra. Minha garganta trava e
qualquer pensamento racional evapora. Tudo que consigo dizer é:
— Eu te odeio às vezes.
Nicolas parece pego de surpresa, mas então ri, me fazendo gargalhar
também.
— Sua filha da puta teimosa!
Dou um beliscão na barriga dele, e Nicolas solta um gemido abafado de
dor.
— Essa boca aí só serve pra xingar ou ela também faz outras coisas? —
pergunto, então.
Ele entende a deixa e me beija, com a fúria que só uma briga pode
desencadear. Tento me desvencilhar dele para tocá-lo, mas Nicolas segura
meus braços no alto da cabeça, me prendendo sob ele enquanto a boca
desvia dos meus lábios pro meu pescoço.
— Tô te machucando? — pergunta, e faço que não.
— Só... não para — murmuro, entre uma respiração e outra.
E ele me obedece, segurando meus braços com uma mão enquanto a
outra tenta abrir meu sutiã. Quando ele fracassa, me liberta apenas por tempo
suficiente para que eu possa ajudá-lo. Os beijos de Nicolas são ferozes e
famintos, percorrendo meu corpo enquanto a mão livre me faz ameaças
sobre a calcinha. Quando já não aguento mais, solto um alto e claro:
— Pelo amor de Deus, só me come de uma vez!
Que faz com que ele morda meu pescoço e diga:
— Me obrigue.
Seu aperto nos meus braços se afrouxa, e é tudo que eu preciso. Eu o
empurro para o lado e me arrasto de maneira nada sensual até a mesa de
cabeceira, procurando na última gaveta até encontrar o que procuro.
— Você que pediu — respondo, e os olhos dele faíscam com grata
surpresa quando pego seus braços sem cerimônia até atá-los na cabeceira da
cama com um par de algemas felpudas.
— Você tinha uma dessas o tempo todo?
— São pra quando eu tô me sentindo criativa. — Testo as algemas e elas
não se soltam. — Tá apertado?
— Não, tá ótimo.
— Maravilha. — Me inclino sobre ele e o beijo, a suavidade dos meus
lábios contrastando com a violência com que minhas unhas arranham seu
torso. — Não se mexa.
Ele sorri, mas não responde. Termino de me despir e tiro suas roupas,
indo buscar com as mãos, a boca e o corpo exatamente o que quero dele.
Q uando acordo na manhã de sábado, Nicolas está tão encaixado em mim
que quase não consigo me mexer. Seu braço está na minha cintura, sua perna
está entre as minhas coxas e sua cabeça descansa contra a minha nuca. É uma
daquelas posições absolutamente desconfortáveis, mas que a gente aceita
porque não tem um único pedaço nosso que não toca a outra pessoa. Mas,
mesmo com o desconforto, e ainda que eu esteja morta de fome e de vontade de
ir ao banheiro, não me mexo por uns bons minutos, respirando e ouvindo-o
dormir, pensando em como aquilo tudo parece... natural.
Nós brigamos. Nós fizemos as pazes. Nós fizemos as pazes transando . Ele
está dormindo comigo pelo segundo fim de semana seguido, e parece tão...
normal.
Não, não, não. Não pode parecer normal. Não é para parecer normal.
Então me forço a acordar do transe e saio da cama, um pouco menos
delicadamente do que poderia. Nicolas abre os olhos por um instante, e depois
torna a fechá-los, ainda sonolento demais para registrar que me levantei.
Entro no banheiro e tranco a porta. Minha cara está horrível e meu cabelo
está todo emaranhado. Estou tentando não pensar no que me espera na segunda-
feira, mas é difícil. Minha mente logo assume a tarefa de imaginar um milhão
de cenários em que sou demitida e ridicularizada, e a saga para encontrar um
emprego depois disso. Poderia ser demitida por justa-causa, se todos ficassem
sabendo do episódio. Tudo vai depender de Tim e do que ele vai falar por aí.
É isso. Minha integridade moral e meu futuro profissional estão nas mãos de
um homem em quem dei um pé na bunda. Perfeito. O que pode dar errado?
Abro o chuveiro e entro no banho sem nem esperar a água esquentar. Fico
tanto tempo imóvel deixando a água cair que, vários minutos depois, ouço uma
batida na porta.
— Luana, tá tudo bem? — Nicolas pergunta do outro lado.
— Tá sim. Só um segundo — digo, mas não me mexo por pelo menos outros
cinco minutos. Quando saio do banheiro, ele ainda está de pé ao lado da porta,
recostado na parede.
Ele me abraça, mesmo eu estando enrolada na toalha e com o cabelo
pingando, e beija minha testa.
— Dormiu bem? — pergunta, e tem alguma coisa no seu tom de voz, tão
suave e carinhoso, que automaticamente alivia e pesa meu peito. Mordo o lábio.
— Uhum — murmuro. — E você?
— Também. — Ele se afasta um pouquinho e aponta pro banheiro com o
polegar. — Vou escovar os dentes, e daí pensei da gente sair e tomar café da
manhã em algum lugar gostoso. O que você acha?
— Hm. Pode ser.
— Ótimo. Se troca e a gente já sai.
Ele me deixa parada ali e entra no banheiro, fechando a porta atrás de si. De
novo, não consigo me mexer. Minha cabeça está agora repassando as coisas que
ele me disse na noite passada.
Eu quero você, porra. Eu não sei o que isso é, o que nós somos, mas quando
eu digo que quero você, eu não tô pra brincadeira.
Devia me trazer algum consolo, algum senso de vitória. Era o que eu queria,
não era? Fazer Nicolas se apaixonar por mim, pagar na língua por ter me
rejeitado. Eu estou no caminho. Ele tinha admitido que havia alguma coisa ali.
Eu estou ganhando.
Mas não me sinto nem um pouco vitoriosa. Na verdade, estou com medo.
Com medo das coisas que eu mesma não tinha sido capaz de admitir, com medo
das verdades que borbulham no meu estômago e gritam no meu coração.
Com medo de que, em vez de fazê-lo se apaixonar por mim, seja eu quem
está se apaixonando por ele.
O barulho da descarga me acorda do transe. Entro no quarto e me troco,
penteio o cabelo e fico mais ou menos apresentável. Quando Nicolas retorna e
começa a pegar as roupas espalhadas pelo chão, fico tentando não pensar no
quão doméstica é aquela cena, no quão comum ele parece no meu quarto, suas
coisas misturadas com as minhas, seu cheiro ainda impregnado no meu
travesseiro.
Não quero que seja normal. Não quero que a gente seja um casal. Não
deveria querer. Não foi por isso que me envolvi com ele.
Mas não consigo me desvencilhar de nada disso. E quando ele me diz um:
— Vamos?
Num tom animado e convidativo, não consigo impor um limite, dizer que
não, agir com a indiferença calculada do jogo que achei que estava jogando. Em
vez disso, pego minha bolsa e meu celular, e digo:
— Vamos.
Tomo a mão dele e saio da minha própria casa, como se aquele fosse mais
um sábado qualquer em que eu durmo acompanhada e saio para um encontro
improvisado com o homem por quem estou tentando não me apaixonar.
Acabamos andando pelo bairro até achar uma padaria a que eu nunca fui,
três ruas pra cima da minha casa. Como alguém que mora sozinha e preza pelo
mínimo esforço, me acostumei a comprar pão de forma no mercado para comer
no dia a dia. Nem me lembro quando foi a última vez que comi um pãozinho
fresco. Enfim é hora de matar a saudade.
Nos sentamos numa mesa, a situação toda parecendo muito incomum.
Nicolas ainda está com a roupa com que foi trabalhar ontem, eu estou muito
mais casual que de costume, e estamos cercados por famílias com crianças
pequenas e alguns velhos beberrões tomando cerveja às 10 da manhã. Não tem
garçom, então Nicolas me pergunta o que quero e vai ao balcão fazer nossos
pedidos — café preto e pão na chapa para mim, iogurte batido com leite e pão
de queijo para ele. Quando se senta de novo, sua mão busca a minha por cima
da mesa.
Não pense nisso, não pense nisso, não pense nisso . Mas quanto menos tento
pensar, mais apavorada fico com o que isso tudo quer dizer.
— Ei — Nicolas me chama para a realidade de novo —, eu sei que você tá
com medo, mas vai ficar tudo bem.
Ele sabe que eu estou com medo? Então ele sabe que eu estou sentindo... o
que quer que seja que eu estou sentindo por ele. Como ele pode saber? Está tão
claro assim na minha cara?
— Eu não acho que vai chegar a isso, mas se a história se espalhar mesmo e
acabar sobrando pra você, a gente vai dar um jeito — ele continua, e percebo
que está falando sobre o escândalo na empresa, não sobre mim. — Eu vou fazer
tudo que eu puder, Luana. Prometo. Mesmo que seja só te ajudar a segurar a
barra, na pior das hipóteses.
Meu Deus, Nicolas, por que você tem que ser assim? , tenho vontade de
gritar. Que inferno de homem. Não basta ser bonito e bom de cama, esse filho
da puta ainda precisa ser compreensivo ? Companheiro? Por que ele não podia
ser só um cafajeste qualquer igual a literalmente todos os outros homens que eu
já peguei?
Por que, de todos os caras, eu fui escolher apostar com os sentimentos de
alguém que realmente tinha sentimentos?
— Obrigada — falo, por fim, a voz seca com o medo. Então pigarreio e olho
para o lado, onde vejo nosso pedido pronto no balcão. — Vou pegar... —
Aponto com o polegar e deixo a frase morrer enquanto me levanto. Levo muito
mais tempo do que preciso, fazendo duas viagens para levar primeiro as bebidas
e depois os pães. O tempo todo, tento me acalmar.
Eu preciso resolver isso. Eu preciso parar com isso.
Mas não sei como. Não sei como me afastar de Nicolas agora, e não sei
como ir até o fim. Não sei o que fazer. Não sei o que estou fazendo.
Meu Deus, no que foi que eu me meti?
Quando volto, Nicolas está adoçando o iogurte. Não ponho nada no café,
torcendo para que o amargo traga de volta a sanidade que perdi pelo caminho.
Então ele solta:
— Ok, uma curiosidade inútil. Você sabia que, quando eu fui pra Alemanha,
sobrevivi quatro dias inteiros só com iogurte?
Respiro aliviada pela mudança de assunto. Viagens. Posso lidar com
histórias de viagens. Solto uma risadinha.
— Seu intestino deve ter adorado.
— Ah, foi horrível. — Ele solta uma risada gostosa, que me faz querer rir
também. — Mas eu tinha, sei lá, 19 anos, tinha 50 euros pra passar a semana e
não sabia nem falar Big Mac em alemão. Mas eu sabia reconhecer iogurte.
Então vivi de iogurte.
— Eu não sei se conseguiria viajar do jeito que você viaja — digo, tomando
um gole do café. Amargo como a vida.
— Por que não?
— Sei lá, acho que sou madame demais pra passar perrengue. Sempre que
eu penso em viajar, eu penso em fazer as coisas com conforto. Não consigo me
imaginar saindo do Brasil pra sofrer em outro país.
— É um jeito de ver as coisas. — Ele dá de ombros — Eu às vezes acho que
não tenho mais idade pra algumas coisas. Era bem mais fácil quando eu era
novo, tinha menos consciência da vida e menos dor nas costas quando dormia
mal. Hoje em dia é outra história. Nem dinheiro pra viajar desse jeito eu tenho.
— Estágio paga mal, né? — brinco, e ele sorri para mim.
— É, mas tem outros benefícios.
Não respondo, meu corpo confuso entre se apavorar e pegar fogo pela
sugestão. Então pigarreio de novo.
— E a sua irmã? Ela é maluca que nem você?
— A Iris? — Ele dá uma mordida no pão de queijo e mastiga
pensativamente antes de engolir e continuar: — Não, ela é mais como você.
— Jura? Eu achei ela tão... sei lá, destrambelhada no carnaval. Achei que
fosse ser mais que nem você, dada a umas loucuras.
— Ela tem seus momentos. Mas no geral acho que eu peguei todo o tesão de
aventura da família. Ela só quer ir pra Disney viver uns dias de princesa, ou pra
Paris tirar foto na Torre Eiffel. Quando brinquei que a gente podia ir acampar no
Atacama, ela só faltou me exorcizar.
— Acampar no Atacama? — pergunto, tentando imaginar por que diabos
alguém iria querer acampar no deserto. O rosto de Nicolas se acende.
— É meu sonho de viagem.
— E por que você ainda não foi?
O rosto dele se apaga subitamente e ele dá um longo gole no iogurte.
— Eu ia com a Fernanda. Mas a gente terminou um mês antes da viagem e
acabou não rolando.
Não suporto olhar pra decepção nos olhos dele. Se algum dia eu conhecer
essa Fernanda, preciso me lembrar de quebrar a cara dela. Então respiro fundo e
mudo de assunto.
— O que tem de legal no Atacama?
Nicolas se ilumina de novo, me contando sobre as coisas maravilhosas que
tem no Chile, e sobre a visão inigualável do céu no deserto. Ele se empolga e
me mostra fotos, me falando de todos os outros lugares que gostaria de visitar
só para presenciar fenômenos naturais. Continua falando enquanto voltamos
para casa, e o caminho todo só consigo pensar em como ele fica maravilhoso
quando está animado com alguma coisa, em como parece outra pessoa falando
sobre as suas paixões. O Nicolas de agora é o Nicolas que eu gostaria de
guardar num potinho e proteger do mundo.
Então chegamos em casa e deitamos na cama, mas em vez de sexo, só
ligamos a TV e procuramos alguma coisa para assistir. Tem um documentário
sobre um serial killer passando e é aí mesmo que eu paro, tentando não pensar
em como é estranho e natural que eu esteja deitada na cama com ele, vendo meu
tipo preferido de programa sem ter que explicar meu fascínio por criminologia e
psicopatas. Tento não pensar em como gostaria de congelar o momento em que
ele me abraça e faz cafuné no meu cabelo, em como gostaria de morrer na
simplicidade de só estar dividindo um espaço com ele. Tento não pensar em
sentimentos.
Pego meu celular para checar as mensagens, só para me torturar de novo. A
primeiríssima delas é de Suze, uma sequência que começou na noite anterior e
foi até a madrugada.
“Putz, amiga, espero que tenha dado tudo certo. Acabei de ver o Tim
voltando do elevador. Vou ficar de olho.”
“Meu deus, como tem gente nessa empresa, já perdi ele de vista umas dez
vezes.”
“Luana, checa o grupo da empresa tipo, agora.”
“Cacete, Luana, pega a droga do celular e olha o grupo! O Tim pediu
demissão!”
— O QUÊ? — eu grito tão alto que Nicolas dá um tranco do meu lado,
quase caindo da cama. Me sento, o celular na mão trêmula, e vou até o grupo da
empresa.
— O que aconteceu? — ele pergunta, sentando do meu lado.
Não respondo. Ele insiste.
— Luana, o que foi?
— Calma aí, cacete!
Abro o grupo da empresa e volto até as mensagens da noite anterior. Já tinha
visto algumas delas, a maioria fotos da festa de carnaval, mas tinha ignorado os
áudios. Tem muitos, e quando ouço os primeiros, não tem nada de relevante;
gritaria, música, recados para as pessoas que não estavam na festa. Até
aproximadamente dez da noite, quando já estava ocupada demais com Nicolas
para me dar o trabalho de checar as mensagens.
Então começava uma chuva delas. Fotos com Tim. Recados pra ele.
“Boa sorte, mano, cê vai se dar muito bem!”
“Voa alto, Tim, tu é foda, cara!”
“Adorei trabalhar com você, Tim! Sucesso no trabalho novo!”
Não estou entendendo porcaria nenhuma, e ouço Nicolas, lendo sobre meu
ombro, emitir um ruído de surpresa também. Então faço a única coisa que posso
e mando mensagem para Suze:
“O que eu perdi? O que é que está acontecendo????????”
Ela visualiza na hora, e passo o minuto seguinte olhando a tela enquanto o
“gravando um áudio” aparece sob seu nome. Quando finalmente chega o áudio,
não consigo nem apertar play rápido o suficiente.
— Menina, nem eu tô acreditando? — ela fala e, pela respiração e barulho
em volta, dá pra perceber que está andando. — Desculpa o áudio, eu tô indo até
o metrô. Mas então. Eu não tava entendendo nada, porque ele voltou, e vocês
sumiram, e aí ele começou a falar com todo mundo e a abraçar um monte de
gente, e eu fiquei preocupada achando que ele estava falando de você, né? Fui
tentar entender, e eis que no meio da festa as pessoas desligam o som e ele faz
um discurso sobre como foi ótimo trabalhar ali, que ele aprendeu muito,
agradecendo outros funcionários, e desejando sorte pra quem ia ficar.
O áudio acaba subitamente. Isso não responde a nenhuma das minhas
perguntas.
— Tá, mas ele pediu demissão? Por quê? — mando em mensagem de voz, e
aguardo de novo.
Não foi por minha causa. Não pode ter sido por minha causa, não é?
Dois minutos depois, chega a resposta:
— Desculpa, nem terminei de contar e enviei sem querer. Então.
Aparentemente ele pediu demissão antes do carnaval, mas estava cumprindo
aviso prévio. Ele vai trabalhar numa start-up lá em Porto Alegre, um negócio de
aplicativo que faz não sei o quê? Sei lá. Mas ele tá de mudança. E eu chequei,
amiga, eu fiquei de olho, ele não falou nada pra ninguém sobre vocês, sobre o
que ele viu, sobre nada. Nem uma palavra! Então pode ficar tranquila que o cara
lá de cima deve gostar muito de você e cuidou dos seus problemas sozinho.
Ela termina o áudio com uma risada, e eu fico uns dois segundos segurando
o telefone, chocada demais pra falar. Então Nicolas solta um suspiro aliviado,
caindo de costas na cama enquanto ri.
— Ah, puta que pariu, obrigado, meu Deus!
Eu rio também. Estou salva. Meu emprego está salvo. Minha carreira está
salva. Minha reputação, seja ela qual for, está salva. O problema se resolveu
sozinho em menos de 24h. O alívio se espalha pelo meu corpo, me fazendo
relaxar todos os músculos que eu sequer notara que estavam tensos.
— Ouviu só? Vai ficar tudo bem! — Nicolas se senta de novo e planta um
beijo no meu rosto, depois outro no meu queixo, nos meus ombros, e vai me
dando beijos animados e carinhosos enquanto fala — Você vai ficar bem! A
gente vai ficar bem!
Bom. Talvez nem todos os problemas tenham se resolvido em menos de 24h.
Em algum momento, Nicolas repara que não estou respondendo e para. Ele
segura meu rosto suavemente, me fazendo olhar para ele, o semblante
preocupado. É tão mais difícil olhando para ele, aquela droga daquele rosto
perfeito, o nariz reto, a boca que quero beijar só de olhar. Ele me encara por
alguns segundos antes de perguntar:
— O que foi?
Muita coisa passa pela minha cabeça antes de eu responder.
Começa com uma avaliação rápida do que estou sentindo. E só de olhar pra
ele, eu sei que estou sentindo alguma coisa . Era uma aposta, uma questão de
orgulho ferido, uma tentativa de provar alguma coisa, mas já faz tempo que isso
deixou de ser prioridade; se eu for muito sincera, talvez nunca tenha sido. Não
consigo tratar Nicolas com indiferença porque não sou indiferente a ele. Muito
pelo contrário.
Então olho para ele, para a cama com lençóis amarrotados, as coisas dele
espalhadas pelo chão. Tem uma intimidade e uma proximidade muito grandes
nisso. E essa proximidade me sufoca de repente. Porque tudo em que consigo
pensar é que ela é provisória. Que Nicolas está aqui, mas está aqui por enquanto
, e que vai ser só até a próxima briga, até a próxima discussão, e que ele vai
fazer alguma coisa idiota que vai me decepcionar, ou que eu vou fazer alguma
coisa idiota que vai afastá-lo de mim. E esse medo me paralisa. A única coisa
pior do que ser rejeitada por ele de primeira seria saber como era ter essa
intimidade e então não tê-la mais. Ter tudo para perder tudo.
De repente, não consigo mais olhar para ele. Não consigo mais fazer isso.
Não consigo deixar que ele fique, que ele deixe as coisas espalhadas, que ele
ocupe os meus espaços, que ele se abrigue na minha cama. Se eu baixar a
guarda agora, vai ser pior mais tarde.
Isso não devia nem ter começado.
— Luana. O que foi? — ele pergunta de novo.
Quero dizer alguma coisa, alguma coisa destrutiva e definitiva, mas nem isso
consigo fazer. Em vez disso, só respiro fundo e digo.
— Eu só tô cansada. Acho que preciso ficar um pouco sozinha.
Ele baixa a mão. Mesmo sem olhar para ele, sei que de alguma forma ele
entendeu.
— Tá bom — diz, mais baixo.
Então ele se levanta e se veste de novo, ainda as roupas da noite passada,
mais amassadas que nunca. Pega tudo que é dele e se inclina para me dar um
beijo. Não consigo deixar. Quando ele se aproxima, viro levemente o rosto, e
ele beija o canto da minha boca.
Nicolas hesita antes de se afastar. Ele vai até a porta do quarto, mas não sai
de imediato. Em vez disso, para e se vira de novo para mim. Sou covarde
demais para erguer os olhos para além de observar seus pés.
— Pra alguém que queria tanto que eu saísse de cima do muro, você pode
ser bem indecisa — fala, e a verdade me quebra por dentro. — Eu tô disposto a
tentar, Luana. Fazer do jeito certo. Mas eu não vou ficar dando murro em ponta
de faca. Acho que nós dois merecemos mais do que isso.
E então se vai, batendo a porta da frente. Levo quase meia hora para ter
coragem de me levantar e trancá-la.
“Bom dia, Luana. Acho que esqueci meu carregador reserva aí. Pode trazer
pra mim?
Até daqui a pouco. Já estou com saudades.”
Leio a mensagem assim que acordo, e é como se mil nós fossem atados e
desatados no meu estômago. Fico tentando pensar em algo fofo ou mesmo
inteligente pra responder, mas não tenho prática no que diz respeito a
contatinhos fixos, então acabo só mandando um “pode deixar” seguido de um
emoji de coração.
Passo uma eternidade escolhendo o que vestir. Se tem uma coisa que detesto
é me vestir para os outros — seja para evitar ou atrair o olhar —, mas me pego
tentando escolher peças que tenham a menor probabilidade possível de gerar
piadinhas sem graça do meu chefe. É uma missão quase impossível, visto que
ele já ofendeu pelo menos uma vez quase todas as minhas roupas, mas vale a
tentativa. Acabo optando por um vestido preto de corte reto que foi o único que
Oscar elogiou na vida (“te deixa mais magra”, se é que isso conta como elogio)
e complemento o look com um cinto vermelho. Me maquio o mais rápido
possível e saio de casa a um passo de estar atrasada.
Compenso o atraso indo na velocidade da luz no metrô, fazendo jus à fama
paulistana de sermos apressados e mal-educados. Consigo chegar no trabalho
dez minutos adiantada, com tempo o suficiente para ficar no hall do prédio
esperando por Suze ou por Nicolas — qualquer um que possa segurar minha
mão e me garantir que eu vou sobreviver a essa apresentação.
No fim, os dois aparecem ao mesmo tempo.
— Bom dia! — Suze me cumprimenta com um abraço apertado. — Trouxe
um chocolate pra você, quer antes ou depois?
— Antes? Não, depois — me corrijo rapidamente. Então me viro para
Nicolas. — Oi.
— Oi. Bom dia.
Ele me encara, mas não fazemos qualquer movimento em direção um ao
outro. Nicolas não sorri com o rosto, mas tem uma leveza, uma delicadeza no
seu olhar que acho que só eu consigo perceber. Estou nervosa demais para
sorrir, então só o encaro de volta até que Suze pigarreia e diz:
— Olha, vocês são muito fofos e tal, mas será que dá pra gente subir, ou
vocês vão ficar o dia todo olhando um pra cara do outro?
Solto um riso nervoso e Nicolas revira os olhos, então chamamos o elevador.
Enquanto esperamos, sua mão roça na minha e ele entrelaça nossos dedos
mindinhos. É o bastante para fazer meu coração pular dentro do peito.
Tudo o que eu queria era subir silenciosamente, mas Suze também está
ansiosa, então ela me faz passar pela tortura de viajar 10 andares debatendo a
apresentação e repassando nossa proposta. Quando chegamos ao nosso andar, já
estou em pânico, suando frio e com a certeza de que há marcas horrorosas de
suor no meu vestido. Oscar já está na sala dele quando passamos, e a primeira
coisa que ele faz quando me vê é gritar:
— LUANA. VEM AQUI.
Engulo seco e desvio o caminho. Suze segue viagem, mas Nicolas acha uma
boa ideia vir atrás de mim. Paro na frente da mesa de Oscar e ele olha para nós
dois como se fôssemos uma sujeira no carpete dele.
— Tem cão de guarda agora, Luana? — Ele ri com desdém para Nicolas,
antes de se virar para mim. — Imagino que sua apresentação esteja pronta.
— Está, sim, senhor.
— Ótimo. Então depois do almoço nos vemos na sala de reuniões.
— Tudo bem. — Já começo a dar meia volta para sair, quando ele fala:
— E Luana.
Me viro.
— Quando o seu projeto for rejeitado, eu espero que você aprenda quem é o
chefe e quem é a empregada nessa empresa.
Olho de soslaio para Nicolas. Tem uma veia saltada no pescoço dele, mas ele
se esforça ao máximo para ficar quieto. Não respondo e nos arrasto para fora
dali.
Não consigo comer no almoço. Todo mundo sai para comer, inclusive Suze,
mas eu só consigo ficar onde estou e beliscar algumas bolachinhas. Nicolas me
faz companhia, sentado do meu lado rolando a timeline do Instagram e
segurando minha mão, já que não tem ninguém para ver.
— Tem alguma coisa que eu possa fazer por você? — ele pergunta,
apertando levemente meus dedos. — Alguma coisa pra te acalmar?
— Você pode me prometer que eu não vou perder o emprego e que todo
mundo vai amar a minha proposta? — disparo. — Desculpa, nossa proposta.
— É sua proposta, Luana. Eu e a Suze te ajudamos, mas a ideia foi sua. —
Ele me puxa, me forçando a olhar para ele. Está mais sério do que nunca. — E
não, não posso te garantir que todo mundo vai amar, nem que o Oscar não vai te
despedir, mas posso te garantir que é uma ideia muito boa e infinitamente
melhor do que a porcaria que ele propôs. E posso te prometer uma cerveja hoje
no final do expediente, independente do resultado.
— Parece ótimo. — Sorrio, e então suspiro. — Caralho, queria muito te
beijar agora.
— Posso te prometer isso também. Trouxe até uma muda de roupa na
mochila.
— Gosto de como você pensa.
Deixamos o assunto morrer, e passamos o restante da hora em silêncio. Não
é até o departamento estar cheio de novo que Oscar sai da sala e me chama. Me
levanto e sigo com Suze e Nicolas no meu encalço.
Seguimos nosso chefe até a sala de reuniões, mas ao contrário do que eu
esperava, não tem mais ninguém vindo me assistir. Seremos só nós e Oscar. Ele
faz cara feia quando vê que estou acompanhada, mas não emite qualquer tipo de
protesto. Em vez disso, apenas se senta com aquele ar irritante de superioridade
machista, põe as mãos atrás da cabeça e diz:
— Vamos lá, tô esperando.
— E o resto das pessoas? — é Suze quem pergunta. Oscar ri.
— Você acha que vou dispensar pessoal pra ver essa palhaçada? Já basta eu
perdendo meu tempo.
Nós três nos entreolhamos, mas não dizemos nada. Nicolas se encarrega de
abrir tudo e assumir a frente do computador e da projeção e, enquanto me
preparo para falar, Suze acompanha tudo por um tablet. O primeiro slide é
mostrado no telão, e respiro fundo.
Posso fazer isso. Me preparei pra isso. Minha ideia é boa. Eu sou boa. Posso
fazer isso.
— Nossa proposta pro dia dos namorados... — começo, mas mal falei meia
dúzia de palavras e Oscar me interrompe.
— Fala pra fora, Luana. Só tem eu na sala e não consigo te escutar, cacete.
Pigarreio. Estou mais nervosa do que nunca.
— Nossa proposta pro dia dos namorados — recomeço, mais alto e claro
dessa vez — é falar sobre educação sexual.
A expressão de Oscar daria um meme. Ele parece mais do que desgostoso.
Parece ofendido.
— Mas que porra que tem a ver uma coisa com a outra? — fala, quase se
levantando.
— Se o senhor nos der um minuto, já vai entender — garanto, apelando pro
tratamento cortês para tentar controlá-lo.
Funciona e, pelos quinze minutos seguintes, apresento todo o plano de
marketing, completo com novas propostas de produtos e ações coletivas que
podem ser feitas para além de só vender camisinhas. Nicolas não abre a boca
uma única vez, e Suze só o faz quando precisa acrescentar alguma coisa que
esqueci, um detalhe bobo aqui e ali. Falo e falo e falo, e quando paro, estou com
sede e sem fôlego.
Oscar me encara quando termino, o rosto paralisado numa carranca que não
consigo decifrar. Acho que nunca vi meu chefe com nenhuma expressão melhor
do que com cara de poucos amigos, e definitivamente nunca o vi elogiando
alguma coisa, então provavelmente nem saberia reconhecer um semblante de
aprovação nele. Depois de mais de um minuto inteiro de silêncio, ele finalmente
declara:
— Muito bem.
Devo estar sonhando. Não tem outra explicação. Ele não pode estar falando
muito bem pra mim.
— “Muito bem” do tipo “projeto aprovado”? — Suze é quem se pronuncia.
Ela parece tão chocada quanto eu.
— “Muito bem” do tipo “não foi uma completa perda de tempo”. — Oscar
se levanta, soando mais como ele mesmo agora. — Mande tudo isso pro meu e-
mail. Vou analisar.
E então sai da sala, sem dar mais nenhum tipo de feedback.
Olho para Suze e Nicolas, sem saber como reagir. Ele parece confuso, mas
minha amiga está aliviada.
— Bom, podia ser bem pior! — é tudo que ela diz. — A gente ainda tem um
emprego!
— É — respondo, sem saber o que mais dizer.
— Cerveja de comemoração mais tarde? — Nicolas sugere, tentando manter
o tom leve, enquanto vai fechando e desligando as coisas.
— Pode ser.
Saímos da sala como entramos, juntos e completamente perdidos, e voltamos
aos nossos postos. É difícil me concentrar depois disso, mas tento repetir pra
mim mesma que Suze tem razão: foi melhor do que o esperado. E, conhecendo
Oscar como acho que conheço, se ele tivesse odiado tudo, teria nos destruído na
hora. Talvez o fato de ele ter pedido para analisar com mais cuidado seja um
bom sinal. Pode ser que ele não aprove, pode ser que não se torne a campanha
de fato, mas pelo menos não fui demitida.
Trabalho no automático, fazendo sem fazer. Quando o expediente termina,
quase me afogo em alívio. Eu e Nicolas nos levantamos ao mesmo tempo para
ir embora, e nos juntamos a Suze na fila do elevador, mas quando mencionamos
o bar, ela só diz:
— Ih, gente, tô de boa, divirtam-se.
Então descemos num elevador lotado e nos despedimos no hall.
— Vamos pro bar de sempre? — Nicolas pergunta. Solto um suspiro,
cansada.
— E se a gente só fosse pra casa e pedisse um delivery de cerveja? — digo,
e ele solta a primeira risada do dia.
— Claro. O que você quiser.
— Nicolas?
Nós dois nos viramos ao mesmo tempo. Tem uma mulher vindo na nossa
direção, um exemplar perfeito da loira odonto , completa do corpo magro ao
cabelo platinado, liso como se alisado a ferro. Ela está com um crachá idêntico
ao nosso, mas não lembro de já tê-la visto em algum lugar.
— Meu deus, o que você tá fazendo aqui? — Ela para diante de nós, mas
mal me olha. Puxa Nicolas para um abraço, que ele corresponde parecendo
completamente em choque.
— Eu trabalho aqui. O que você tá fazendo aqui? — diz.
— Eu também trabalho aqui. Comecei hoje, inclusive! — Ela ri, como se
fosse a coincidência mais adorável do mundo. Só então olha para mim. — Oi,
tudo bem?
Nicolas me olha assustado, como se ele também tivesse se dado conta só
agora de que estou parada ao lado dele. Sua expressão se agrava, mas ele não
titubeia quando diz:
— Fernanda, essa é a Luana, que trabalha comigo. Luana, essa é a Fernanda,
minha... amiga?
Fernanda gargalha.
— Tá tudo bem, Nicolas. Você pode me chamar de sua ex.
N ão sinta ciúmes, eu digo a mim mesma, mas é claro que estou com
ciúmes. Eu estava com ciúmes no momento em que eles se abraçaram, estou
com mais ciúmes agora que sei quem ela é, e quero morrer cada vez mais
enquanto olho para ela. O que é ridículo, porque não apenas Fernanda é muito
simpática e não está me tratando como uma ameaça em potencial, como
também sei que toda a estrutura social do sentir ciúmes não faz sentido nenhum.
É claro que não consigo aplicar lógica alguma para o que estou sentindo. Só
consigo fazer um check-in mental de como ela é maravilhosa e tentar me
lembrar de toda e qualquer informação que Nicolas possa ter me dado sobre sua
ex.
— Não acredito que você tá trabalhando aqui agora! — Nicolas desconversa,
me olhando de canto de olho do jeito que 9 entre 10 caras fazem quando sua
atual e sua ex se encontram.
Fernanda abre um sorriso perfeito e joga o cabelo perfeito para o lado em
uma onda perfeita.
— Eu comecei hoje, na verdade. Tô trabalhando no departamento financeiro.
Parece que o cara mudou pra outra cidade, e aí abriu uma vaga — ela conta.
É claro. É claro que Tim ia dar no pé e me deixar com um problema 8 vezes
pior do que ele. É claro.
— Uau — é a única reação de Nicolas.
— Pois é. Eu não fazia ideia de que você tava trabalhando aqui. Seu pai
tinha comentado que você tinha mudado de área, mas não tinha me dado
nenhum detalhe. — Ela dá de ombros, e eu não consigo controlar minha boca.
Simplesmente não dá. Quando dou por mim, já falei:
— Você é ex dele, mas ainda fala com a família?
Não consigo dizer se meu tom é debochado ou só meio em choque. Fernanda
me olha com o que imagino ser curiosidade, e fico me perguntando se ela está
nesse mesmo segundo avaliando a possibilidade de eu e Nicolas termos alguma
coisa. Ou se só acha que eu sou completamente doida.
Então abre mais um sorriso perfeito. Sério, ela podia ser modelo para
propagandas de pasta de dente.
— Eu trabalhei com os pais do Nico por muito tempo, até antes de eu e ele
namorarmos. Aí de vez em quando a gente ainda se fala — explica, toda
simpática. Então se vira para Nico: — Mas não com você, né, seu cachorro?
Nem no meu aniversário você mandou uma mísera mensagem!
— É, é, foi mal. — Ele abre um sorriso desconfortável e olha pra mim como
se pedisse socorro. — Bom, a gente tem que...
— É, a gente tem que ir andando — falo, fazendo gestos para um relógio
inexistente no meu pulso. Fernanda parece muito compreensiva.
— Claro, claro! A gente vai se esbarrar muito ainda!
Ela se inclina e dá um beijo no rosto de Nicolas. Para mim, reserva só um
adeus à distância. Então ela sai na frente e desaparece porta afora.
Nicolas me manda uma mensagem mais tarde naquele dia dizendo que a
festa começa 12h, e que ele virá me buscar por volta das 11h30. Assim sendo,
acordo no sábado completamente elétrica, e antes das 9h já comecei a me
arrumar e a entrar em pânico simultaneamente. Afinal, não é todo dia que se
conhece a família do namorado.
Namorado . Enquanto tomo banho e escolho o que vestir, fico me
perguntando se vai ser assim que ele vai me tratar. Nosso status de
relacionamento nunca ficou particularmente claro, mesmo com todas as
declarações de amor. Não tinha me dado conta até aquele momento do quanto
isso fazia diferença pra mim. Não porque eu achava que garantisse alguma
coisa, mas pura e simplesmente porque eu nunca o tivera. Eu já tinha sido o rolo
de alguns caras, a ficante de alguns, o sexo casual de outros. Mas nunca,
nunquinha, tinha sido a namorada de alguém.
Será que hoje eu seria?
Tento em vão dispersar esses pensamentos. Nem sei como estará o clima
entre Nicolas e eu, com todas as coisas que estão acontecendo no trabalho. E
tem ainda o fator Fernanda. Eu e ela não nos encontramos de novo desde aquele
dia horroroso a caminho da estação de metrô, e agora eu preciso cruzar com ela
no mesmo dia e no mesmo ambiente em que vou conhecer toda a família de
Nicolas. Vai ser ótimo. Pelo menos eu já conheço Íris, e tenho mais ou menos
certeza de que ela gosta de mim.
Mas também gosta de Fernanda, segundo o próprio Nicolas. Não tenho
certeza se posso competir com isso.
O clima está esquisito lá fora, um dia nublado, mas não exatamente frio,
então acabo fazendo uma combinação de jeans, blusa e colete. Faço uma nota
mental de ir na costureira na semana que vem para pedir um reforço no tecido
das pernas daquela calça, já gastas pelo atrito das minhas coxas. Me maquio e,
quando Nicolas me avisa que está na minha rua, já estou pronta há mais de meia
hora, esperando impacientemente. Passo um perfume, pego minha bolsa e saio.
Ele está me esperando estacionado do outro lado da rua quando saio do
prédio. Me parece um desperdício de gasolina ter ido até ali pra me buscar,
quando nem sei onde o avô dele mora, mas não sei se eu teria coragem o
suficiente para ir sozinha e encontrá-lo lá, então não reclamo. Quando entro no
carro, ainda estou incerta sobre como vamos nos tratar, como será seu
comportamento. Mas, pra minha surpresa, ele sorri e me beija.
— Você tá linda — diz, e sorrio também.
— Obrigada. Você também — digo. Ele se parece mais com o Nicolas das
fotos que vi quando fucei sua vida na internet, com um jeans meio desbotado e
uma camiseta vermelho-escura com uma estampa abstrata. Mais casual e
relaxado do que o vejo na empresa, definitivamente mais relaxado do que
nesses últimos dias.
Ele sai com o carro e segura minha mão enquanto dirige, ocasionalmente a
soltando para trocar de marcha. O silêncio me incomoda, porque me faz pensar
em coisas nas quais não quero pensar agora, então pigarreio e puxo assunto.
— Onde seu avô mora?
— Ah, lá na zona norte. Minha família mora cada uma num canto — ele
responde, tranquilamente. — Minha mãe queria fazer a festa lá no meu prédio,
porque a rua é melhor pra estacionar, mas meu avô tá com 85 anos, não vale a
pena tirar o velho de casa pra isso.
— Ele mora sozinho?
— Desde que a minha avó morreu, sim. Com uma cuidadora, na verdade. —
Nicolas me olha de esguelha. — Você tá nervosa?
Solto uma risadinha abafada e meneio a cabeça.
— Um pouco. — Faço uma pausa, e então: — Eles sabem? Sobre mim?
— Sabem que você existe, sim — ele responde, e aperta minha mão —, mas
não contei muita coisa pra eles. Só se a Íris falou alguma coisa.
— Vai ser na base da surpresa, então.
— É, mais ou menos isso.
Ficamos em silêncio alguns instantes, mas a quietude ainda me incomoda.
Não quero, mas acabo tocando no assunto.
— Você tá bem com... tudo? — digo. Não acredito que eu, e logo eu, me
tornei essa pessoa de meias palavras, mas o medo faz coisas surpreendentes
com a gente.
Nicolas respira fundo, e já sei que não vou gostar da resposta antes mesmo
que ele abra a boca.
— Não, na verdade. — Paramos num semáforo e ele me olha antes de
continuar. — Não tô chateado com você, Luana. Eu só sei que tem alguma
coisa errada, e que você não quer me falar o que é, e isso me deixa meio puto e
meio frustrado porque eu não gosto de segredos, muito menos num
relacionamento.
Assinto devagar, porque sei que ele tem razão. Mas também sei dos meus
motivos, e sei o que vai acontecer se eu abrir a boca. Simplesmente não posso
deixar de me proteger — e a ele e Suze também, consequentemente — numa
situação como aquela.
— Mas eu não quero que hoje seja sobre isso — Nicolas diz, por fim. — Eu
sei que a gente trabalha junto, mas eu realmente não quero deixar o profissional
interferir em tudo que a gente faz. Então vamos dar um tempo hoje, pode ser?
Foda-se a empresa. Hoje somos só eu e você.
Sorrio, o coração mais leve. Era exatamente o que eu precisava escutar.
— Foda-se a empresa — concordo, e Nicolas ri.
O caminho até a festa parece levar uma vida inteira. Nicolas cumpre a
promessa de deixar o trabalho de lado, e vamos o resto do trajeto trocando
histórias constrangedoras de família. Sei que chegamos ao destino quando ele
fica quieto e abaixa o rádio, procurando por um lugar para estacionar. Não
conheço a mãe de Nicolas ainda, mas preciso dar razão pra ela: a rua é horrível.
Uma ladeira, tão inclinada que poderia ser percurso de montanha russa, tem
carros estacionados dos dois lados, e quem quiser que lute para passar no meio.
Nicolas acaba estacionando numa rua adjacente, e quando descemos a ladeira
para o nosso destino, já estou pensando no sofrimento de subir na volta.
Mas, por ora, um sofrimento de cada vez. Vamos para um portão branco,
limpo como se tivesse acabado de ser pintado, e ele nem mesmo toca a
campainha — simplesmente abre e entra. Eu o sigo, com o coração batendo
forte, mais nervosa a cada segundo.
Do outro lado do portão, está um sobrado com cara de casa antiga, mas
cuidado como se fosse novo. Tem um jardim no lugar da garagem, com plantas
e flores, e as paredes externas são de tijolinhos. Já tem um monte de gente ali,
embora bem menos do que eu imaginava, e mesmo que todo mundo esteja bem
arrumado, me sinto extremamente bem-vestida para uma ocasião simples
demais.
Então Nicolas segura minha mão e me puxa. Vamos direto para um grupo de
pessoas formados por duas gêmeas idênticas, na casa dos 50, um homem
grisalho e Íris. Ela sorri quando me vê.
— Ah, falando no diabo! — diz uma das gêmeas. Ela é alta, tão alta quanto
Nicolas, e tem cabelos curtos num tom chocante de vermelho, os fios espetados
em um corte moderno. Estou imaginando que seja alguma tia ou talvez a
cuidadora de quem Nicolas falou antes, quando ele se inclina para abraçá-la,
sem soltar a minha mão, e diz:
— Oi, mãe. — Então a solta e olha para mim. — Essa aqui é a Luana, minha
namorada.
É tão súbito, tão inesperado, que demoro um segundo a mais do que o
necessário para reagir. Nicolas nos apresenta, e fico olhando para a cara da
mãe dele feito uma idiota, com o queixo caído e uma vontade imensa de me
enterrar viva ali mesmo por uma série de razões. Começando pelo principal.
Minha namorada .
— Oi, querida! — Ela é, felizmente, mais articulada que eu e se inclina
para me dar um beijo. Então dá um passo para trás, como quem admira uma
obra de arte. — Meu Deus, eu amei o seu colete!
— Obrigada. — Sorrio, meio tímida, olhando minhas próprias roupas,
muito mais consciente delas agora do que estava há um minuto. Não estou
nem malvestida, nem arrumada demais, mas minha cabeça já está pensando
se a mãe de Nicolas disse isso só por educação ou se de fato gostou do que
estou vestindo.
— Eu falei, mãe, ela que posta aqueles looks legais no Instagram! — Íris
diz, já sacando o celular.
— Você me segue no Instagram? — pergunto, meio chocada.
— Desde o carnaval! — Íris responde, como se fosse óbvio.
— Bom, a minha irmã você já conhece... — Nicolas interrompe, e tenho
a sensação de que tem mais aí do que eles estão revelando, mas não vou
insistir agora. — Então minha mãe, Cláudia, que eu já apresentei, e essa aqui
é minha tia Cássia, a inconfundível...
Cássia e Cláudia riem. Provavelmente já ouviram essa piada várias vezes.
Elas são iguaizinhas, altas e despojadas, a única diferença sendo a cor dos
cabelos. Cássia usa os dela um tantinho mais longos, em tom de castanho.
— E esse aqui é o Fernando. Pai da Fernanda — Nicolas finaliza,
desviando o olhar de mim de maneira muito estratégica.
Sorrio no automático e cumprimento Fernando. Ele não se parece muito
com ela, mas também parece bem mais velho do que eu esperava, talvez já
beirando os 70. Ele é muito receptivo e simpático, e depois de me
cumprimentar, diz:
— Você e a Nanda se conhecem?
— Ah, sim, eu... — eu odeio sua filha mesmo ela tendo sido
supersimpática comigo, só porque ela é ex do meu atual. — A gente trabalha
na mesma empresa.
— Ah, sim, sim... você é estagiária lá, que nem o Nico?
Olho de canto de olho para Nicolas, que esboça um sorriso, mas parece
desconfortável. Não tem nada de jocoso no tom de Fernando, mas uma
olhada para os presentes já me faz perceber que esse assunto é frequente e
bastante mal resolvido. Pigarreio antes de responder.
— Não, mas eu e ele trabalhamos no mesmo departamento.
— Ela é minha chefe — Nicolas me corrige, sorrindo para mim de um
jeito que me faz ficar vermelha. — E é uma chefe das chatas. Pega no meu
pé o tempo todo.
— Não tenho culpa se você não trabalha direito — digo, e ele ri.
Então, como se percebesse que estamos sendo observados, volta a fechar
a cara.
— E o vovô?
— Tá lá dentro com a Lúcia — Cássia responde. — Vão entrando. Tem
salgadinhos na cozinha!
Sigo Nicolas para dentro, observando a casa, que parece enfeitada para
uma festa infantil, e não para o aniversário de um idoso. Tem balões nas
paredes e uma faixa de “feliz aniversário” do Corinthians. Sentado numa
poltrona, arrumado com camisa, colete e gravata, está o senhorzinho mais
fofo e mais idoso que eu já vi. Suas mãos se mexem num tremelique
incontrolável em seu colo. Ao lado dele, uma moça jovem, de vinte e poucos
anos, com os cabelos escuros trançados às costas, prepara uma agulha num
pequeno kit medidor de glicemia.
— Oi, Lúcia. Oi, vô — Nicolas diz, se abaixando para cumprimentá-lo.
— Feliz aniversário.
— Nico, Nico, obrigado! — O velhinho dá tapinhas nas costas do neto. A
cena é toda tão fofa que tenho vontade de gravá-la. Nicolas não se levanta de
novo. Em vez disso, se ajoelha ao lado da poltrona, ficando na mesma altura
que o avô.
— Vô, não vai me dizer que você já atacou os docinhos.
— Foram dois brigadeiros! — ele se defende, mas Lúcia lança um olhar
chocado na direção dele.
— Foram seis brigadeiros e o senhor sabe que não pode. — Ela se
aproxima dele, mas apesar do tom, quando toma sua mão para medir a
glicemia, o faz com muito cuidado e suavidade. Ele sequer pisca quando a
agulha pica o dedo, e mal se mexe, salvo os tremores da mão.
— E quem é essa moça bonita? — ele diz, e Nicolas sorri para mim, me
convidando a me aproximar.
— Essa é a Luana, vô. Minha namorada.
Estremeço de novo ao ouvir a palavra, mas dessa vez, disfarço bem
melhor. Me inclino e dou um abraço no aniversariante.
— Muito prazer. Feliz aniversário.
— Muito prazer! Sinto muito pelo meu neto, ele puxou ao velho aqui.
— Então o senhor deve ser um cara maravilhoso.
Dessa vez, é Nicolas quem fica vermelho. Eu enrubesço por tabela.
— Quer beber alguma coisa? — ele me pergunta, e faço que sim. Então
deixamos seu avô aos cuidados de Lúcia, seguindo para a cozinha.
Apesar da sala enfeitada, não tem nenhuma arrumação no cômodo
seguinte. Tem salgadinhos dispostos em bandejas sobre a mesa, dividindo
espaço com copos descartáveis e guardanapos de papel. Nicolas me pergunta
o que quero beber, e me arranja uma cerveja da geladeira enquanto ele
mesmo pega só um copo de Coca-Cola. Então se aproxima e passa a mão
pela minha cintura.
— Então... — digo, com o coração a mil e um sorriso brincando na boca
— Namorada, é?
— Pois é — ele diz, e embora não sorria, dá para ver que está lutando
para continuar sério.
— Não recebi o memorando — brinco. Ele me puxa mais para perto, o
nariz roçando minha pele.
— Deve ter ficado perdido na ata da reunião.
— Acho que a gente devia ter outra reunião pra discutir o assunto. Sabe,
só pra ter certeza de que os sócios estão de acordo.
— Claro, a gente...
— Ah, desculpa!
Olhamos para o lado ao mesmo tempo, e me sinto como quando fomos
surpreendidos no banheiro da empresa, pensando “fodeu”, como se alguém
ali pudesse me prejudicar, ou mesmo me julgar por estar abraçada com ele
na cozinha. Mas não é ninguém com esse poder dessa vez. Agora, quem nos
encara é Fernanda.
Ela não parece aborrecida, apenas chocada por nos encontrar ali. Segura
um copo vazio, e cobre o rosto bem maquiado parcialmente com as mãos em
uma expressão de surpresa. Está tão bonita quanto todos os dias no trabalho,
só mais despojada, de jeans, sapatilhas e uma blusa sem estampa com decote
em V. Ela ri quando nos encaramos.
— Desculpa, gente, não sabia que vocês estavam aqui. Só vim pegar um
refrigerante.
— Claro. — Nicolas ri baixinho e o aperto em torno de mim se afrouxa,
mas ele não me solta até que Fernanda se aproxima para nos cumprimentar.
— Oi, Luana. Tudo bem? — ela diz, simpática, mas meio hesitante.
Trocamos um beijo que é mais um encostar de bochechas, e ela se dirige
aos refrigerantes ao mesmo tempo em que Lúcia aparece na porta da
cozinha.
— Nico, me ajuda aqui um segundo? — ela diz.
Nicolas olha de mim para Fernanda muito rapidamente antes de dizer:
— Claro.
Então aperta meu braço e some porta afora.
Não sei o que fazer, então pego uma coxinha para pelo menos ocupar a
boca. Fernanda serve seu copo, então pega um guardanapo para pegar alguns
salgadinhos. Ela deve perceber que estou tentando com afinco não ficar
encarando, ou só se cansou do silêncio desconfortável, porque diz:
— Então, já conheceu todo mundo? A Íris não para de falar de você.
— Quase todo mundo. Acho que só não conheci o pai dele ainda —
respondo, cautelosamente, lutando contra o meu impulso de ser
gratuitamente grosseira. Lembro da cena no metrô, e do quanto ela pareceu
genuinamente ofendida pelo meu comportamento.
— Ah, ele e a minha mãe às vezes vão lá pros fundos fumar, não gostam
que a Íris veja. — Ela dá de ombros, e então gira nos calcanhares para me
encarar. É um olhar sincero, sério. — Espero que isso não seja muito
esquisito pra você, me encontrar aqui.
— É um pouco — confesso com um suspiro —, mas vocês têm uma
história, e ela vai além de vocês dois. Eu posso respeitar isso.
— Que bom.
— Eu não quero ser sua inimiga, Fernanda.
Eu só estou com ciúmes , penso, mas nem preciso completar. Acho que
ela entende.
— Que bom, porque eu também não. Só quero que o Nico seja feliz.
— Pronto. — Nicolas reaparece, vindo na nossa direção pela cozinha. Ele
olha de uma para a outra, parecendo desconfiado. — O que eu perdi?
Fernanda sorri e revira os olhos. Por um segundo, não consigo encontrar
nada nela que eu queira odiar.
— Nada. Só estávamos falando mal de você.
O resto da festa é infinitamente mais fácil do que o começo dela.
Depois de encontrar com Fernanda e erguer a bandeirinha da trégua, é
como se um peso fosse retirado dos meus ombros. Nem mesmo estremeço
quando Nicolas me apresenta ao pai, logo em seguida, e consigo aproveitar o
dia conversando um pouco com todo mundo e ficando grudada a Nicolas
sem culpa.
Contudo, quem realmente cola em mim a festa toda é Íris. Mesmo que só
tenha me visto uma vez, durante o carnaval, acho que me seguir no
Instagram criou nela uma certa sensação de proximidade. Ela me segue pela
casa, puxando assunto sempre que possível, perguntando sobre lugares,
sobre roupas, sobre gostos, e sendo tão específica às vezes que começo a
ficar assustada com as capacidades de investigação de uma adolescente
munida de um celular. Mas no todo, é bastante bonitinho; ela claramente vai
com a minha cara, e é quem mais me mantém participando de conversas ao
longo do dia, muito mais até do que Nicolas.
— Ela não foi com a sua cara — Nicolas me corrige, mais tarde, quando
estamos no carro, indo embora. — Minha irmã está apaixonada por você.
— Que exagero! — Rio, e ele me acompanha.
— Não, tô falando sério. Você viu como ela te acompanhou pela casa?
Acho que você é o novo ídolo da Íris!
— Que bizarro — digo, o riso aos poucos sendo substituído por ares mais
sérios. — Não sou exemplo nem pra mim, imagina pra ela.
— Ah, isso é relativo. A Íris tá numa idade em que precisa se espelhar em
alguma coisa, né? Melhor que seja você.
— Por quê?
— Porque você entende como é ser ela de formas que eu nunca vou
conseguir entender.
Assinto, sabendo exatamente o que ele quer dizer. A jornada de alguém
como eu, ou como Íris — uma mulher gorda que não pede desculpas por ser
quem é — pode ser muito solitária às vezes. A gente se agarra aos nossos
exemplos. Não consigo me enxergar como sendo modelo para ninguém, mas
a gente nunca sabe do que o outro precisa. Se eu puder dar um tiquinho de
esperança para ela, já me dou por satisfeita.
Acabamos decidindo ir para a casa de Nicolas porque ele mora mais
perto e já estamos cansados. Quando entramos no apartamento, tiro os
sapatos, atiro a bolsa num canto e me jogo no sofá. Estou exausta, e são só
sete horas. Mas essa coisa de interagir com a família é tensa. Não sabia que
só uma tarde sendo simpática com pessoas que não conheço podia me causar
tanto cansaço.
— Abre um espacinho aí, vai. — Nicolas se aproxima, dando dois
tapinhas gentis nas minhas pernas.
Encolho as pernas apenas o suficiente para que ele se sente, depois me
estico em cima dele. Nicolas chuta os próprios sapatos para longe, então usa
aquelas malditas mãos maravilhosas para massagear minhas panturrilhas.
Solto um suspiro de alívio, e me ajeito no sofá.
— E aí, o que você achou da minha família? — ele me pergunta.
Penso nisso por um instante. Tive muitos pensamentos enquanto a gente
estava lá, mas não tive tempo de organizá-los de um jeito que fizesse
sentido.
— Eles são legais — digo, por fim. — Bem diferentes da minha família.
— Diferentes como?
— Bom, pra começar é uma família tradicional , sabe? Avô, mãe, pai,
tios. Eu nunca tive nada disso. Foi minha tia quem me criou, e ela é tudo que
eu tenho, tudo que eu conheço.
— Isso parece meio solitário.
Dou de ombros. Foi solitário, sim, por um tempo; quando eu era mais
nova, queria uma família igual à dos meus colegas, e achava que se eu não
tinha uma estrutura igual à de todo mundo era porque eu não merecia. Mas a
vida adulta tem o poder de descomplicar algumas coisas na cabeça da gente.
Hoje, já não me dói tanto.
— Mas é todo mundo muito legal — continuo, e Nicolas abre um
sorrisinho de satisfação. — Sua mãe é toda descolada, né? Não era bem o
que eu imaginava. Ela não tem muito cara de mãe.
— E o que é uma “cara de mãe”? — ele provoca, apertando meus pés.
Rio e chuto ele de brincadeira.
— Sei lá, Nicolas. Cara de mãe.
Ele ri, e me provoca com cosquinhas e apertões nos pés mais um
pouquinho só para me fazer gargalhar, então para. Solta um longo suspiro e
apoia a cabeça no encosto do sofá, parecendo completamente em paz e feliz
consigo mesmo.
— Foi um dia ótimo. Obrigado por ter vindo comigo — ele diz, esticando
a mão para encontrar a minha.
— Obrigada por ter me convidado. — Seguro sua mão entre as minhas,
massageando-a como ele fazia há apenas um minuto com os meus pés e
panturrilhas. Nicolas fecha os olhos e quase ronrona, de tão satisfeito.
— Agora só falta você me apresentar pra sua família — diz.
Não sei se é uma brincadeira ou não, mas somos nós dois, e eu não
consigo resistir a uma oportunidade de alfinetá-lo. Então, muito séria, eu
respondo:
— A gente leva os namorados para conhecerem a família, e até onde eu
sei, a gente não namora.
O efeito é imediato. Nicolas abre os olhos e se vira para mim, parecendo
chocado.
— Você tá falando sério?
É muito difícil segurar o riso, e vejo o flash de compreensão brilhando
nos olhos dele quando vacilo por meio segundo antes de me controlar de
novo. Eu poderia deixar essa passar, mas por que perderia a chance de
provocá-lo? Essa é a melhor parte do nosso relacionamento.
— Lógico. Ou você acha que é só sair falando “minha namorada” e
pronto? — digo, em um tom de falsa indignação.
Nicolas compra a minha imediatamente, e quando rebate, o faz no mesmo
estilo forçadamente exasperado.
— Você quer o quê, Luana? Flores e um pedido formal? Quer que eu me
ajoelhe pra te pedir em namoro?
— Olha, ajoelhar seria um ótimo começo — digo, revirando os olhos.
Eu esperava que ele fosse começar a rir, mas o que Nicolas realmente faz
é jogar minhas pernas para o lado, sair do sofá e se ajoelhar na minha frente.
Fico tão chocada que não consigo nem dar risada. Ele bate as mãos na lateral
do corpo e fala:
— Pronto, estou de joelhos. Namora comigo, Luana?
Levo um bom segundo para processar a informação. Então sorrio. Não
tão fácil.
— Acho que você está usando muita roupa para fazer um pedido desses.
O mínimo que eu mereço é um pouquinho mais de esforço — brinco.
Nicolas ri, torcendo o nariz, como se o fizesse a contragosto. Então tira a
camiseta, em uma lentidão calculada, que faz eu me contorcer em mim
mesma com cada trecho de pele que consigo ver.
— E agora? Namora comigo, Luana?
— Hm-hm. Ainda não. Acho que você precisa se esforçar um pouco
mais.
— Luana... — ele diz, naquele tom de aviso que me arrepia o corpo
inteiro. Sorrio, e estico o pé na direção do seu torço, roçando-o com a ponta
do dedão só para provocar.
Nicolas captura meu pé e o beija. Então, me puxa pelas pernas até que eu
esteja de frente para ele. Ele se inclina sobre mim e desabotoa meu jeans, e
ergo o quadril para ajudá-lo a me livrar da peça. Nicolas passa as mãos
demoradamente pelas minhas coxas, ora com firmeza, ora com dedos leves.
Mordo o lábio, contendo um suspiro.
— Namora comigo, Luana? — pergunta, em uma voz mais baixa, quase
rouca.
— Vai ter que se esforçar mais do que isso.
Ele sorri, claramente curtindo o desafio, e bota a cabeça entre as minhas
pernas. Sinto os dentes de Nicolas mordiscando a parte interna das minhas
coxas, e seu nariz se esfregando dolorosamente contra a minha calcinha.
Como estou levando esse jogo até o final, é impossível dizer. Se ele não me
chupar imediatamente, talvez eu morra. Isso é pior do que tortura.
— Namora comigo, Luana?
— Ainda... não...
Suas mãos percorrem demoradamente os contornos do meu quadril, até
puxar lentamente minha calcinha. É criminoso demorar tanto assim para
satisfazer alguém. Nicolas joga a peça longe, e afasta minhas pernas um
pouco mais. Deslizo mais para frente no sofá, para facilitar a vida dele, mas,
longe de me dar exatamente o que eu quero, ele decide me atiçar ainda mais.
Com a ponta do indicador, roça a parte externa dos lábios, indo mais e mais
para dentro, até inserir cuidadosamente um dedo. Gemo alto, uma súplica,
quando ele se movimenta dentro de mim.
— E agora? Ainda preciso me esforçar mais? — ele provoca.
Minha resposta é uma série de urros e gemidos desconexos, que só
pioram quando ele se inclina e finalmente me dá o que eu quero. Me seguro
ao sofá e aos seus cabelos, cada suspiro mais alto que o anterior, me
perguntando que idioma é esse que a língua de Nicolas fala com o meu
corpo que é capaz de produzir esses ruídos em mim.
Perco o ar e a noção do tempo — pode ter passado só um segundo ou
uma hora inteira quando gozo, minhas pernas estremecendo ao redor dele,
todo o cansaço me deixando. Em vez de exausta, estou acesa e sedenta por
mais. Nicolas abraça minhas pernas e descansa o rosto contra as minhas
coxas.
— E aí? Vai namorar comigo ou não? — pergunta, e desato a rir.
— É claro que sim. Sim, pelo amor de Deus, sim!
— Ótimo! — Ele ri também, e tenta se erguer. Quando o faz, é com uma
careta de dor nas costas. — Agora, será que a gente pode ir pra cama? Não
tenho mais coluna pra isso.
— Vamos. Eu te faço uma massagem — digo, mas não me mexo de
imediato. Minhas pernas ainda estão moles.
— Espero que seja uma massagem tântrica — Nicolas brinca, e me dá a
mão para me ajudar a levantar. Aceito, e, uma vez de pé, o abraço
rapidamente para um beijo.
— Você é meu namorado. Você merece.
V oltar ao trabalho na segunda-feira é tipo sonhar a noite inteira que
você era milionária e estava transando com o Ryan Reynolds em uma praia
paradisíaca, para acordar e descobrir que você é pobre, não tira férias há
séculos, não sabe mais o que é praia e é casada com um homem hétero sem
noções de higiene básica.
Por sorte, acordo ao lado de Nicolas, então só 3 dessas coisas são
verdade.
Nicolas precisa ir até o polo da faculdade resolver umas pendências,
então só vai entrar no trabalho mais tarde. Como vamos em direções opostas,
eu pego o metrô enquanto ele segue de carro até lá. Quanto mais me
aproximo do escritório, mais a sensação de estar acordando no mundo
invertido aumenta. Não acredito que até ontem eu estava feliz, vendo filme,
conversando e comendo besteira com o meu novo namorado, e agora estou
indo trabalhar. Mais do que isso, não acredito que preciso ir até lá e dar de
cara com Oscar.
Parece que uma vida inteira já se passou desde que ele roubou
descaradamente a minha ideia e a apresentou como sendo sua na quinta. O
timing parece quase irônico, agora que paro para pensar. Tive o fim de
semana todo para pensar nisso, para decidir o que falar para ele, mas, salvo
minha discussão com Nicolas na sexta à noite, não dediquei um só segundo a
isso. Fiquei distraída na minha bolha de amor com ele, e foi fácil fingir que
nada mais existia.
Mas a vida sempre dá um jeito de nos lembrar do quanto estamos
fodidos. Então, cá estou eu, fodida, entrando na empresa, apertando o botão
do elevador e tremendo dos pés à cabeça enquanto me pergunto quanto
tempo será que tenho de vantagem antes de Oscar chegar.
A resposta, é claro, é zero . No momento em que eu saio do elevador e
boto os pés no escritório, ainda bastante vazio por causa do horário, dou de
cara com Oscar na porta da sala dele, como se estivesse me esperando. Não
duvido nada de que estivesse.
— Luana! Ainda bem que chegou. Podemos? — ele diz, tão polido que
sequer parece Oscar, me convidando a entrar.
Fico um bom minuto parada, congelando, e olho em volta. Suze ainda
não chegou, e Nicolas não vem, então talvez eu esteja segura. Engulo em
seco, então o sigo para dentro da sala.
— Gostei da saia, Luana. Que tecido é esse? — ele pergunta, enquanto se
senta e aponta para a cadeira livre para que eu me sente também.
— Jeans. — Franzo a testa, ainda de pé. Agarro a alça da minha bolsa só
para ter algo para ocupar as mãos.
— Certo. Tem... caimento. — Oscar pigarreia, e então, parecendo mais
ele mesmo, diz: — E aí, pensou na minha proposta?
— Eu não... tive tempo — respondo, devagar. Ele balança a cabeça como
se fosse um pai muito decepcionado.
— Luana, Luana, nós não temos o ano todo. Essa semana vou ter uma
reunião com os diretores, e quero ter algo pra falar quando discutirmos a
minha promoção. Se vou falar seu nome ou não, só depende de você.
Emudeço, completamente enojada. Essa arrogância masculina, essa
certeza do mundo. Quem é que sequer garante que vão falar alguma coisa
sobre promoção? Quem é que, em sã consciência, promoveria alguém
babaca como esse cara?
— Mas, até lá, muita coisa pode acontecer — ele continua, se recostando
na cadeira. — Por exemplo, seu namoradinho vai matar meio dia de trabalho
pela... quarta vez nos últimos 30 dias? Talvez até mais. Junte isso às
denúncias de comportamento impróprio entre vocês dois dentro da empresa,
e já tenho justificativa mais do que o suficiente para contratar um estagiário
novo.
Não respondo. Me odeio por não responder, mas não sei o que fazer. Não
sei como reagir. E ele sabe, então se alimenta do meu medo.
— Pense bem, Luana. Eu não acho que meia dúzia de slides num power
point mixuruca valham mais do que três carreiras, você acha?
— Não — murmuro. Ele sorri.
— Ótimo. Você tem até quinta-feira para me comunicar sua decisão final.
Oscar abana a mão, e sei que estou dispensada, então dou meia volta e
saio. Boto minha bolsa na minha mesa, sentindo as lágrimas me travando a
garganta, e percebo que vou começar a chorar a qualquer instante. Então
seguro firme, e, a passos rápidos, vou me esconder na copa.
Acendo a luz quando entro, mas pelo cheiro de café, alguém já tratou de
estrear a copa muito antes de mim. Sento e pego um copinho de plástico, que
encho e esvazio duas vezes antes de me ligar que cafeína é provavelmente
minha maior inimiga no meu estado atual. Não importa. Foco no calor do
café, me agarrando ao copinho como se ele fosse meu melhor amigo, e
respiro fundo várias vezes.
Estou tentando não ter uma crise de choro no trabalho, porque não apenas
seria ridículo, como só pioraria minha situação, quando, de repente, a porta
se abre de novo.
E, para a minha surpresa, é Fernanda quem entra.
Ela está sorrindo, com o telefone na mão, e só nota que estou ali quando
tira os olhos da tela ao quase tropeçar em mim no ambiente pequeno da
copa. Então, ainda sorrindo, estende a mão para afagar meu braço e diz:
— Bom dia, Luana!
E eu não sei por quê, mas é o bom dia dela que me quebra no meio. Num
instante, estou prestes a pegar o terceiro copo de café em dez minutos; no
outro, estou cobrindo o rosto com as mãos e soluçando bem na frente dela.
Não sei se pego Fernanda desprevenida, mas ela parece ser o tipo de
pessoa que sabe lidar com qualquer situação, e age comigo como se todos os
dias visse colegas de trabalho chorando enquanto tomam café. Ela pega
guardanapos para que eu use como lenço e diz “calma” e “vai ficar tudo
bem” várias vezes enquanto afaga meus ombros. Quando outras pessoas
tentam acessar a copa, ela faz o inimaginável e tranca a porta.
Demoro vários minutos para parar de chorar. Nesse meio tempo, ela
arranja um copo d’água e o adoça com açúcar, me oferecendo para tomar.
Sempre achei que esse negócio de água com açúcar como calmante fosse
uma bobagem tremenda, mas seja pelo efeito placebo, seja porque é
realmente eficaz, acaba funcionando. Paro de chorar e fungo várias vezes,
aceitando mais guardanapos para assoar o nariz.
— Você tá melhor? — ela pergunta, parecendo genuinamente
preocupada.
— Tô. Acho. — Fungo de novo. — Mas minha cara deve estar horrível.
— Só um pouco de rímel escorrido. Vamos até o banheiro dar um jeito
nisso.
Com calma e delicadeza, Fernanda me tira da copa e me conduz até o
banheiro feminino. Ando o tempo todo de cabeça baixa, cobrindo o rosto
como uma criminosa, e quase começo a chorar de novo de tão aliviada que
fico quando entramos no banheiro e ele está vazio.
O que Fernanda descreveu como “um pouco de rímel” é, na verdade, uma
situação calamitosa. Estou inchada, e minha maquiagem inteira se desfez.
Tento corrigir como posso com papel e água, mas qualquer um que olhar
para mim vai saber que eu estive chorando. Com sorte, consigo pegar minha
bolsinha de maquiagem e me ajeitar sem que ninguém — especialmente
Suze — perceba.
Fernanda me lança olhares preocupados pelo espelho, então resolvo
puxar assunto só para desviar a atenção.
— O que você tava fazendo aqui embaixo?
— O café daqui é melhor — ela explica. — O cara que faz o café na copa
do nosso andar faz uma água suja que nem dá pra beber. Aí às vezes eu corro
aqui pra pegar um pouco.
— Entendi.
Ficamos um instante caladas, enquanto tento dar um jeito na minha cara,
e então ela toma fôlego e diz:
— Você quer conversar?
Me viro para ela, e demoro um segundo para me decidir. A resposta
esperada muito provavelmente seria não . Mas não posso conversar com
Suze, nem com Nicolas, e definitivamente preciso falar com alguém . Não
consigo acreditar no que estou fazendo, mas finalmente digo:
— Meu chefe tá me chantageando.
E passo os minutos seguintes contando a história completa para ela.
Fernanda ouve com atenção e choque enquanto falo, me interrompendo
só para soltar algumas exclamações exasperadas. Paro algumas vezes
quando outras funcionárias entram para usar o banheiro, e sigo falando
baixo, morta de medo de que nos escutem.
Quando termino, ela está com as costas apoiadas na pia e a mão sobre o
rosto, completamente embasbacada. Ambas estamos atrasadas para o
expediente, mas não me mexo, e Fernanda também não. Se alguém me
perguntasse há um mês se eu teria coragem de contar meu segredo mais sujo
para ela, a ex do meu atual, a quem eu detestei à primeira vista, eu diria que
era impossível. Mas agora, sinto um alívio enorme por ter contado a alguém,
mesmo que seja ela. Além do mais, mais do que nunca, sei que a julguei
mal. Fernanda nem tinha por que ter me escutado, mas o fez mesmo assim.
— Luana, isso é muito grave — ela diz, por fim. — Você precisa contar
para o Nico.
— Se eu contar pra ele, ele vai chegar no Oscar botando banca, vamos
todos ser demitidos e nenhum de nós vai conseguir outro emprego na vida.
— E você vai fazer o quê? Deixar que esse cara te chantageie e controle a
sua carreira, o seu futuro? O seu e o deles?
É um tapa bem dado, que eu merecia receber. Quase rio imaginando que
Suze faria coro se pudesse ouvi-la. Fernanda balança a cabeça, indignada.
— Não, a gente tem que dar um jeito nisso.
— Fernanda, não, relaxa — eu a interrompo, logo de cara. — Você nem
tem nada a ver com isso. Pode deixar que eu vou resolver.
— Não me leve a mal, Luana, mas você não parece muito disposta a
resolver. E nem tem que resolver nada disso sozinha.
A porta do banheiro se abre e mais uma funcionária entra, nos lança um
olhar desconfiado, e então se tranca em um box. Eu e Fernanda trocamos um
olhar, e ela suspira.
— Eu sei que a gente não se conhece muito bem, e longe de mim querer
decidir por você o que fazer. Mas se você aceita um conselho de alguém que
tá vendo essa confusão de fora...
— Por favor! — digo, e ela sorri.
— Conta pro Nico, e pra sua amiga. E não deixa isso barato. Vai atrás dos
seus direitos. Eu posso ajudar também, se você quiser.
— Eu não sei como — confesso, mordendo o lábio. — Tenho medo de
eles me odiarem por não ter falado nada.
Ela balança a cabeça e cruza os braços.
— Não sei sobre a sua amiga, mas o Nicolas é o cara mais bacana do
universo, e tá na cara que ele é doido por você. Ele não vai te julgar, não se
você escolher ser sincera.
Finalmente, Fernanda olha o relógio no celular e se espanta com a hora.
— Eu preciso ir. Mas, sério — ela põe a mão no meu braço e aperta de
leve antes de me soltar de novo —, posso ajudar no que você precisar. Eu
não sou advogada, mas já vi o suficiente de assédio e machismo em
ambiente de trabalho pra saber uma coisa ou outra. Não é fácil ser mulher no
mundo, e menos ainda no mundo corporativo. A gente precisa se ajudar.
Conta comigo, tá bom?
— Tudo bem — digo, surpresa e um tanto emocionada.
— Até mais tarde — diz, e se vai.
Me viro de novo para o espelho e encaro meu reflexo. Minha maquiagem
está um pouco menos destruída e meu rosto, um tanto menos inchado. Mas
não é o lado de fora que mudou. É por dentro que me sinto diferente.
Fernanda está certa. Não posso deixar que um homem — pior ainda, que
Oscar — decida meu futuro. Não posso nem vou permitir que ele controle
minha carreira.
Se esse barco afundar, então vou levá-lo comigo. Custe o que custar.
Q uando eu enfio uma coisa na cabeça, não tem Cristo que tire ela de lá,
então é claro que, no momento em que me recupero o suficiente para ir
trabalhar, quero resolver as coisas imediatamente . A ideia de deixar para depois
estava me matando, especialmente quando atravessei as baias em direção à
minha mesa, propositalmente ignorando Suze só para encontrar várias
mensagens dela no meu celular.
“Onde você está, doida? Suas coisas estão aqui e você não?”
“Amiga, tô preocupada, cadê você?”
“Alguém comentou que te viu chorando no banheiro.”
“Luana, pelo amor de Deus, que cara é essa que você entrou aqui, o que
aconteceu?”
Olho por cima do ombro, e vejo Oscar ao telefone, mas me encarando com
olhos de falcão. Sustento o olhar na base do ódio, então respondo rapidamente
para Suze:
“É uma longa história. A gente conversa na hora do almoço.”
Viro para o outro lado da sala, onde o alívio de Suze ao encarar a tela do
celular é visível. Logo, meu telefone vibra em resposta.
“Beleza.”
Agora, é só esperar.
Oscar faz uma aparição rápida no escritório aquela manhã, mas não fica nem
meia hora. Pelo que ouço, parece que ele tem uma reunião que vai durar o dia
todo. Não consigo decidir se isso é algo a ser celebrado ou temido, então
escolho não pensar em nada disso e me dedico a trabalhar e manter minhas
paranoias mais ou menos no lugar.
Parece que vivo uns cem anos até a hora do almoço. Quando enfim podemos
sair, Oscar ainda não voltou, e saio com Nicolas e Suze sem me preocupar em
estar sendo vigiada. Descemos juntos até o térreo, onde esperamos por
Fernanda, que se atrasa alguns minutos e chega pedindo mil desculpas. Como
estamos todos duros, voltamos ao mesmo sujinho onde eu e Suze fomos ontem.
Cada um pede sua marmita — até Fernanda, que, por um instante, acho que
parece sofisticada demais para um lugar tão simples, mas não tece nenhum
comentário a respeito — e então, é hora de colocar as cartas na mesa.
— Bom, então, a gente precisa decidir o que fazer com relação ao Oscar —
digo.
Os três me olham. Suze respira fundo e toma a dianteira.
— Amiga, acho que na verdade é você quem precisa decidir. É você quem
ele está ameaçando.
Assinto devagar, e olho para cada um deles. Formamos um time estranho,
inesperado: minha melhor amiga, o cara que apostei que poderia conquistar e
que acabou se tornando meu namorado, e a ex dele. Nós não temos nada a ver
um com o outro, e talvez seja por isso que vai funcionar. Equipes são feitas
somando diferenças. Vai dar certo. Tem que dar.
— Eu quero acabar com ele — respondo, então. — Quero arrastar a cara
dele na lama. Quero devolver cada um dos absurdos que ele disse pra mim,
quero detonar a carreira dele. Quero que ele saiba com quem ele está mexendo.
Quanto mais falo, mais inflamada fico, e sinto meu rosto arder de raiva,
minha respiração ficando cada vez mais pesada. Engulo em seco.
— Mas não sei como fazer isso. Eu não sei se tenho poder suficiente pra
isso.
Ninguém responde nada, mas posso ver que Nicolas está se mordendo para
falar. Fico feliz que ele se contém. Nada do que ele possa me dizer agora vai ser
mais verdadeiro ou vai me ajudar mais do que a escolha que ele faz de ficar
quieto sobre coisas que não sabe. Às vezes, o melhor que a gente pode pedir de
um homem é o silêncio.
— Olha, vai ser complicado — Fernanda concorda por fim, com uma careta.
— Não vou mentir, pode ser que você não saia ilesa. O mercado é cruel.
— Eu sei — murmuro, e ela toca minha mão brevemente.
— Mas não quer dizer que não dê pra ser feito — apressa-se em dizer. — Se
a gente agir com cuidado, não vai sobrar Oscar, eu te garanto.
— Você tem alguma ideia? — é Nicolas quem pergunta, tirando os braços da
mesa quando o garçom chega com os nossos pratos.
— Bom, primeiro você precisa concordar com os termos do Oscar —
Fernanda diz para mim.
A reação de todo mundo é imediata.
— O quê?
— Você tá doida?
— Mas por quê?
— Calma, gente, olha só... — Fernanda ergue as mãos, pedindo calma, e
espera todo mundo se calar para continuar. — A gente não tem como provar o
roubo intelectual se as ideias não forem mesmo roubadas, entende? Se você
acusar ele de ter pego as suas ideias, o seu projeto, mas não existir uma
documentação provando que ele usou algo que é seu...
— Faz sentido — Nicolas concorda.
— Mas ainda assim vai ser a palavra da Luana contra a dele — Suze
contrapõe, e agito a cabeça em concordância, porque era exatamente no que eu
estava pensando. — Ele pode alegar que foi acordado, que a Luana cedeu
voluntariamente. Como a gente vai provar que foi roubo?
— É, e não é como se ele fosse documentar a chantagem, né? — adiciono.
— Ninguém além de nós dois presenciou aquela conversa. Eu não tenho prova
nenhuma de que ele tá me coagindo.
Fernanda torce o nariz, e fazemos um segundo de silêncio. Então, o olhar de
Nicolas se ilumina.
— Mas temos testemunhas, e provas , de que a ideia original era sua, e que
não foi apresentada para a equipe — ele diz.
Nos voltamos para ele, e Nicolas segura minha mão sobre a mesa.
— Luana, eu e a Suze, nós estávamos lá. Nós temos todos os rascunhos
originais do projeto, com datas, com marcações. Nós podemos testemunhar a
seu favor — continua, mais empolgado agora. — Não é só a sua palavra contra
a dele. Se você topar, e ele apresentar a ideia como sendo dele e sem creditar
você, então a gente pode provar o roubo intelectual sim.
— Pode dar certo! — Suze também se anima, arriscando um sorriso.
Olho deles para Fernanda, que também sorri. Eu já não tenho tanta certeza.
Parece um tiro no escuro, algo tão incerto que beira o inacreditável. Nicolas
aperta minha mão para capturar minha atenção de novo.
— Amor, vai dar certo! — ele garante. — É como a Nanda falou, talvez
sobre pra gente, mas ileso ele não sai.
— Eu não sei — digo, e passo a mão livre pelo rosto. — Tô tão preocupada.
Parece tão impossível que alguém acredite em mim, sabe? Mesmo com tudo
isso. Ele é meu chefe, é homem, tá nessa empresa há vinte anos, tem um mundo
de credibilidade, e eu sou só...
Não completo a frase, porque acho que cada um naquela mesa o fez como
achou que devia. Fernanda cutuca a comida e suspira.
— Bom, se de repente houvesse uma segunda acusação, sabe, alguma outra
atitude imprópria que você pudesse denunciar e também usar como prova de
caráter... — ela diz, pensativa. — É meio ridículo, ter que provar que você é
honesta, quando você é a vítima aqui, mas o mundo é o que é, né? Estamos
tentando formular o plano que te dê a melhor chance possível. Claro que não é
pra você mentir nem inventar nada, porque senão isso pode se voltar contra
você...
Fernanda segue falando, mas parei de escutar. Uma segunda acusação. Uma
atitude imprópria.
Olho para Nicolas, e depois para Suze. Acho que os dois pensaram na
mesma coisa que eu. E, dessa vez, nem vou precisar me esforçar muito para
conseguir provas.
— Ele me assedia moralmente desde o primeiro dia — digo, e a voz de
Fernanda morre no meio da frase. Ela me encara, boquiaberta. — Já me chamou
de gorda, de baleia, fala coisas horríveis das minhas roupas quase todos os dias
desde que comecei a trabalhar aqui.
— Meu Deus, Luana! — Fernanda cobre a boca com as mãos. — Você
tem... quero dizer, alguém já viu...
— Todo mundo já viu — Suze a interrompe, e balanço a cabeça.
— Sim, mas não quero que tudo dependa da palavra dos outros — digo, e
então solto um longo suspiro. Toda aquela conversa está me deixando com dor
de cabeça. — Vou conseguir provas. Não deve ser muito difícil. Ele só precisa
estar no mesmo ambiente que eu por dois segundos.
Ela assente, e ninguém responde. Acabo encerrando o assunto com um
simples “bom, é isso” e todos tentamos almoçar como se não houvesse uma
nuvem pesada de preocupação pairando sobre as nossas cabeças.
Quando chega a hora de voltar, Fernanda e Suze seguem na frente. Eu e
Nicolas andamos mais devagar, de mãos dadas. Sigo por vários metros de
cabeça baixa, até que ele para no meio da calçada, me puxa mais para o canto e
ergue meu rosto com as pontas dos dedos.
— Ei. Respira, tá? — ele me diz, e tento sorrir. — Você tá sendo corajosa
pra caralho, e vai passar por essa. Eu sei que não posso fazer muito, mas eu tô
aqui com você, a Suze também, e a Fernanda também. Você vai conseguir. E vai
se orgulhar muito por ter feito isso.
— Eu sei. Só queria que fosse mais fácil.
— Também queria. Mas vai passar. Você vai passar por isso.
— Eu sei.
Ele me abraça e beija minha testa, então seguimos de volta para a empresa.
De alguma forma, ter um plano mudou tudo, mas não ajudou em nada.
— O scar, eu preciso falar com você — digo, no dia seguinte.
Não acredito que estou fazendo isso. Não acredito que estou fazendo isso.
Não acredito que estou fazendo isso.
Repito mentalmente as palavras que ensaiei em casa de forma cuidadosa
enquanto espero ele gesticular para que eu entre. É o fim do expediente, e quase
todo mundo já saiu ou está saindo. Nicolas me espera lá embaixo, e Suze está se
demorando de propósito para me esperar sair, embora tente não chamar atenção.
Achei que seria o horário ideal para colocar nosso plano em ação porque não
tem quase ninguém perto o bastante para nos escutar, e já que o escritório dele
não tem porta, é o mais perto que podemos chegar de privacidade.
Oscar me encara, com a feição azeda de todos os dias. É impressionante
como nem mesmo para chantagear alguém ele faz um esforço. Então, acena
para que eu entre.
— Diz aí, Luana, o que você quer? — ele fala.
Engulo em seco. Nem preciso parecer assustada, porque estou apavorada, e
tenho certeza de que dá para ver em cada centímetro do meu rosto. Isso pode
dar errado de tantas formas. Não acredito que estou fazendo isso.
— Só vim te dizer que eu topo — digo, com a voz tremendo. — A proposta
que você me fez, eu topo.
O semblante dele muda automaticamente. Oscar se levanta e abre os braços,
e, por um segundo horroroso, acho que vai me abraçar. Felizmente, ele não dá
nem mais um passo na minha direção, e só bate as mãos, parecendo satisfeito.
— Ah, perfeito, perfeito! Sabia que você ia acabar ficando do lado certo,
Luana! De boba você não tem nada!
Sorrio amarelo, mas logo fecho a cara de novo.
— Como eu já sabia que você ia topar, tomei a liberdade de já apresentar a
campanha nova pra diretoria — ele continua, fazendo meu sangue ferver. — E
eles adoraram o nosso trabalho.
Nosso . Eu mal posso esperar para destruir esse homem.
— Ah, é?
— Oh, sim. Começamos a trabalhar nela ainda essa semana. Acredito que
seja a minha última campanha à frente da nossa equipe.
Ah, mas vai ser mesmo .
— Então já tá tudo certo? — pergunto, porque simplesmente não consigo me
controlar. Oscar abre um sorriso ferino.
— Tudo encaminhado. Muito em breve, vamos todos trabalhar em setores
diferentes.
Sorrio forçadamente, e me pego imaginando Oscar no seu futuro emprego
como desempregado. Vai ser divertido olhar para a cara dele enquanto ele
recolhe as coisas e some dali. Eu mal posso esperar.
De alguma forma, naquela noite, vou parar na casa de Suze com ela,
Nicolas, Fernanda e três pizzas gigantescas.
Estou comendo e bebendo uma cerveja, mas ainda não parei completamente
de tremer. Todo mundo está tratando essa situação como se fosse natural, mas,
enquanto vejo Suze e Nicolas recontarem a cena para Fernanda, não consigo ver
nada de normal naquilo; nem no que aconteceu, nem nesse jantar estranhamente
comemorativo com um grupo que jamais esperei formar. O mundo parece estar
inteiro virado do avesso.
Dou uma mordida atrás da outra no meu pedaço de pizza e fico em silêncio.
Suze está chorando de rir lembrando da cara de Oscar quando o atingi, e
Fernanda está rindo, mas com as mãos sobre a boca, como se sentisse culpa por
ver graça naquilo tudo. Só Nicolas é que me olha e vê que não estou nada bem.
— Ei. Respira — ele diz, pondo a mão sobre a minha perna. — Você só fez
o que todo mundo aqui queria ter feito muito antes.
— Eu bati nele, Nicolas. Eu apelei pra violência. Isso nunca é certo — digo,
interrompendo as risadas da mesa. Suze suspira e baixa o rosto.
— Amiga, eu sei que você tem razão, mas ao mesmo tempo... você chegou
no seu limite. E foi justificado. Tem um monte de testemunhas.
— É, mas...
Sou interrompida quando o meu celular toca. Não reconheço o número, mas
quando atendo, meu coração está acelerado.
— Alô?
— Alô, Luana? — diz uma voz feminina do outro lado.
— É ela.
— Oi, boa noite. Aqui é a Joyce, do RH do Grupo Inter, tudo bem? Desculpa
ligar tão tarde.
Merda, merda, merda, merda, merda.
— Oi, Joyce. Tudo bem, e você? — digo e, imediatamente, os três à minha
volta fazem expressões idênticas de pânico.
— Tudo sim. Viu, dados os acontecimentos dessa tarde, o departamento
queria marcar uma reunião com você amanhã de manhã. Você tem
disponibilidade?
Quero rir, porque estão me perguntando se estou disponível em um dia de
semana, quando tecnicamente vou para a empresa trabalhar de qualquer jeito. Já
entendi o recado, e quero chorar.
— Tenho sim — respondo.
— Ótimo. Pode ser umas... oito e meia?
— Pode, pode sim.
— Combinado, então, estaremos te esperando. Boa noite.
Desligo sem responder e encaro o telefone até a tela se bloquear sozinha.
Não preciso nem repassar o que foi dito para que todo mundo entenda. Nicolas
aperta a mão na minha perna, mas nada é capaz de me dar segurança agora.
— Eu vou ser demitida — digo, não sei por quê. Acho que preciso falar em
voz alta para admitir que é verdade. — Eu vou ser demitida, e o Oscar vai ficar
e vai ficar com a minha ideia, porque agora eu perdi completamente a razão.
— Não! Nós ainda podemos provar que ele roubou o que a gente criou —
Nicolas garante, mas balanço a cabeça, em total negação.
— Ninguém vai acreditar em mim agora. Eu agredi meu chefe. Não tenho
mais moral nenhuma.
— Você pode até ter agredido ele, mas tem moral, sim — Suze diz, e então
pega o próprio celular e dá alguns cliques. — Porque você tem como provar que
pelo menos foi provocada.
Ela abre uma gravação de áudio, que reconheço na hora como sendo da
reunião. Então avança até escutarmos a voz horrorosa de Oscar gargalhando
enquanto me compara a uma tela, mas tem o bom senso de parar antes que
possamos ouvir o momento exato em que eu o atinjo nas bolas.
— Eu vou com você amanhã pra testemunhar — Suze continua.
— Eu também — Nicolas já se prontifica.
— E sério, Luana, qualquer pessoa que estivesse naquela sala de reuniões é
testemunha. Vou falar com as pessoas, ver se alguém pode falar. Isso ajuda, não
ajuda, Fernanda?
Todos olhamos para ela, que torce o nariz. Mal a conheço, mas já sei que
posso confiar nela para sempre ser honesta. Ela suspira.
— Não vou mentir, a situação se agravou muito com a agressão. Não sei
quais são as chances reais de reverter alguma coisa, mas todo testemunho ajuda.
— Acho que não dá pra reverter mais nada — digo baixinho —, mas se for
pra cair...
— A gente cai atirando — Nicolas completa. Rio sem vontade e concordo.
É melhor do que nada.
Q uando eu tinha catorze anos, fui para a diretoria da escola pela
primeira vez. Digo primeira porque foi uma sequência de visitas àquela
mesma sala nos anos que se seguiram. Mas nenhuma foi tão desconfortável
quanto a primeira. Eu tinha sido pega matando aula em um dos banheiros,
ouvindo música no meu discman nem um pouco escondida em um dos
boxes, e lembro até hoje do pânico que senti enquanto esperava tia Marli
chegar para a reunião. No fim, tomei só uma advertência, a primeira de
muitas, e tia Marli me ensinou jeitos melhores de matar aula.
Agora, enquanto espero minha reunião no RH, me sinto exatamente da
mesma forma. Meu corpo todinho está travado de pânico, e eu me mexo
constantemente nas cadeiras desconfortáveis, tentando achar uma posição.
Suze está adiantando o trabalho dela antes da hora da reunião, quando vai
descer para me ajudar, mas Nicolas está do meu lado, segurando minha mão.
O andar do RH é bem diferente do nosso. Tem uma recepção central, bem
iluminada, logo ao lado do elevador, com umas cadeiras encostadas na
parede. Dali, não se abre para as baias, como no nosso andar, mas sim para
um corredor de várias portas de salas de reunião diferentes, e só então para
as baias, mais ao fundo. Foi tudo reformado desde que fui contratada, e o
piso antigo de carpete foi substituído por algum piso frio num tom pálido de
bege, que faz tec tec tec toda vez que bato meu pé no chão para aliviar a
ansiedade.
Desamasso minha camisa e minha saia um milhão de vezes. Estava tão
nervosa que acordei às cinco para me preparar para vir para cá. Sempre achei
que o que a gente veste, e como a gente se veste, passa uma primeira
impressão poderosa. Espero que minha combinação de hoje passe essa
mensagem de “sou extremamente profissional, isso foi um erro que jamais se
repetirá”.
Mas a quem estou querendo enganar? Não tenho a menor chance.
São 8:25 quando ouço passos e uma porta se abrindo. Não me levanto,
mas me inclino para espiar. Me arrependo na hora, pois, vindo do corredor,
vem Oscar, com Joyce logo atrás.
Ele parece bem, do jeito como sempre está — alto, embromado, e com
cara de quem vai passar por cima de você com um trator. Fico ainda mais
tensa, e me agarro à mão de Nicolas com tanta força que sinto dor nos nós
dos dedos. Meu coração acelera tanto que o sinto bater na garganta. Espero
por uma provocação, por um eu te avisei , por alguma coisa.
Mas nada acontece. Oscar passa por nós e, salvo o olhar mortal que lança
na minha direção, ele finge que não estamos ali. Aperta o botão do elevador,
que se abre instantaneamente, e desaparece de vista.
— Bom dia, Luana — Joyce me diz. — Vamos lá?
Olho para Nicolas uma última vez para buscar forças, e ele tenta sorrir.
Beija minha mão, e então me solta. Me levanto, alisando minhas roupas de
novo, e sigo Joyce corredor adentro até entrarmos em uma das salinhas.
Não tem nada lá dentro exceto uma mesa redonda com algumas cadeiras.
Me sento de um lado, e ela de outro. Joyce é uma garota muito bonita, alta,
com cabelos curtos e escuros e os olhos amendoados. Ela me dá um sorriso
prático, daquele que diz que ser simpática com você é basicamente a
descrição do trabalho dela. Entre nós, sobre a mesa, está uma pilha de papéis
que tento não espiar. Joyce cruza as mãos sobre eles.
— Bom, Luana, imagino que saiba por que está aqui — ela diz. Até seu
tom de voz me faz lembrar da diretoria da minha antiga escola.
— Sei, sei sim — digo, engolindo seco as lágrimas que sobem. Pare com
isso, Luana , quero gritar para mim mesma. Você é adulta, você cometeu um
erro, você vai lidar com tudo isso como gente grande.
Mas a verdade é que nenhuma palavra tem efeito. Gente grande também
sente medo. Não adianta tentar me convencer do contrário.
— Como você deve imaginar, já conversamos com o Oscar e ele deu a
versão dele da história... — ela diz, e me controlo muito para não perguntar
o que aquele filho da puta falou sobre mim. — Mas gostaríamos de ter a sua
versão dos fatos. Poderia me contar o que aconteceu?
Eu a encaro um segundo, pensando por onde começar. Poderia dizer que
fui provocada, que Oscar mereceu ter apanhado, começar pelo roubo
intelectual e pela chantagem. Mas a verdade é que é muito anterior a isso.
Não começou ontem.
— O Oscar me assedia moralmente desde que entrei na empresa —
começo, primeiro evitando seu olhar, mas depois erguendo o rosto para
encará-la. — Desde o meu primeiro dia como estagiária, ele é gordofóbico e
machista. Posso dar alguns exemplos de coisas que ele já me disse, se você
quiser.
Joyce ergue as sobrancelhas, surpresa, e então busca uma caneta e um
papel livre.
— Por favor.
Respiro fundo, e começo a falar.
Não faço ideia de quanto tempo fico ali. Falo sobre tudo, dos gritos às
ofensas, das “brincadeiras” sem graça à chantagem. Mostro todo o projeto
original da campanha, salvo no meu celular, e cito Suze e Nicolas como
minhas testemunhas. Quando chego nos acontecimentos de ontem, já falei
tanto que Joyce preencheu uma página inteira.
— Eu perdi o controle ontem — admito, a boca já seca de tanto falar. —
Mas depois de tudo, cheguei no meu limite, sabe? Simplesmente reagi.
— Mas Luana, se era algo tão recorrente, por que você não procurou o
RH? Por que não falou comigo? — ela me interrompe. A pergunta de um
milhão de dólares.
Crispo os lábios e balanço a cabeça.
— No começo do ano, um dos nossos estagiários foi demitido por
assediar sexualmente um monte de funcionárias. Ele não foi preso, não
prestaram queixa contra ele, não fizeram nada na empresa para garantir a
segurança das mulheres que trabalham aqui. E ele era só um estagiário —
digo, e vejo a cor sumir de seu rosto enquanto olho para ela. — Você acha
mesmo que denunciar as agressões que o Oscar, o meu chefe , fez contra
mim, teria tido algum efeito? Quando a maior parte das pessoas acharia
graça nos comentários que ele fez só porque eu sou gorda?
— Entendo... — ela anota algumas coisas rapidamente no papel.
— Eu posso não poder provar tudo, mas tenho uma gravação da reunião
de ontem, e tenho várias testemunhas. Não sei se vai resolver alguma coisa,
mas...
— Olha, Luana, aqui entre nós, às vezes é muito difícil chegar a algum
lugar com essas denúncias — Joyce diz, se inclinando na minha direção e
falando baixo, como se temesse ser ouvida. — Mas da minha parte, posso
garantir que vou fazer tudo que eu puder pra que você não seja a única
prejudicada nessa história.
Congelo.
— A única?
Joyce corrige a postura e suspira, buscando entre a pilha de papéis até
encontrar o que procura.
— O Oscar decidiu não abrir um processo contra você, mas infelizmente
uma agressão física não pode ser tomada levianamente — ela diz, torcendo o
rosto rapidamente em uma careta de desculpas. — Infelizmente
precisaremos desligar você da empresa.
Mundo injusto do caralho. É claro que eu estou demitida. Mesmo assim,
sinto um nó se formando na garganta.
— Claro — digo.
— Mas é claro que isso não acaba aqui. — Joyce insiste. — Vamos ouvir
as testemunhas de todos os lados, e tomaremos todas as medidas cabíveis.
— Eu também — digo, com uma certeza que não tinha dois segundos
atrás. Mas naquele segundo, sei que, se a empresa não fizer nada por mim,
eu mesma vou fazer. — Vou tomar todas as medidas cabíveis.
Joyce não responde, mas pelo micro sorriso que abre, acho que entende e
apoia.
Então seguem-se as praticidades, os papéis a serem assinados, a
formalização da demissão e os próximos passos. Justa causa. Nem mesmo
vou ter direito a um seguro desemprego, ou a receber qualquer coisa, agora
que estou no olho da rua. Enquanto isso, Oscar segue trabalhando. Segue
empregado. Segue protegido.
Maldito mundo injusto do caralho.
— L uana, cheguei.
— Hmmmmmmmm...
— Você ainda tá na cama?
— Hmmmmmmmm...
Abro os olhos a tempo de ver Nicolas chegando. Estou na casa dele, na cama
dele, de onde não saí nas últimas quatro horas, depois de uma maratona de
séries e um pacote de pipoca de micro-ondas.
— Amor. Você falou que ia levantar — ele diz, sentando na beirada da cama.
— Eu tô deprimida. Me deixa ficar deprimida.
— Deixo. Mas me preocupo mesmo assim.
Nicolas põe a mão no meu rosto, e beijo a palma. Ele tem sido o melhor de
todos os suportes emocionais nas últimas duas semanas. Desde a minha
demissão, alternamos entre a minha casa e a dele, e ele não me deixou sozinha
nem um único dia, exceto quando vai trabalhar. Porque ele ainda tem um
emprego. Eu não. Nem emprego, nem reputação. Sou a doida que chutou o saco
do chefe.
— Como foi hoje? — pergunto, sem saber bem se estou perguntando para
saber mesmo, ou se para me punir com inveja porque não estou mais
empregada. Nicolas suspira.
— Foi... interessante — ele diz — A Joyce me chamou pra conversar.
— Ela o quê?
Me sento, subitamente mais interessada. Desde aquele fatídico dia, nada
mais tinha acontecido. Suze enviou o áudio da reunião para o pessoal do RH,
mas nem ela, nem Nicolas, tinham sido chamados. Pirei muitas vezes me
perguntando se tudo havia sido em vão, se aquela história de que Joyce não ia
deixar que eu fosse a única prejudicada era balela, mas parece que ela só se
atrasou um pouquinho.
— Ela me chamou pra conversar — Nicolas repete. — E pelo que parece, eu
não fui o único. Suze também foi.
— Ela não comentou nada comigo! — exclamo, indignada. Mas, quando
pego meu celular, vejo que desligou por falta de bateria. Se ela me mandou
alguma coisa, não teria nem como ver.
Nicolas ri baixinho, e então continua.
— Bom, a Joyce basicamente queria saber sobre o dia da reunião, sobre o
nosso relacionamento, e se eu presenciei alguma outra cena de assédio moral
que ela devesse saber. Contei tudo pra ela, tudo que eu sei, pelo menos.
— Ela perguntou do dia da festa? Da gente no banheiro? — pergunto. Nem
sei por que estou preocupada. Não tem como isso ser pior do que tudo, a essa
altura do campeonato.
— Não, ela não disse nada. Acho que nem ficou sabendo — Nicolas me
tranquiliza. — Mesmo que soubesse, não existe prova física de nada. A única
testemunha nem tá mais na empresa, então não importa.
— É. — Assinto, um tanto mais calma. Meus dias têm sido assim, uma
bagunça entre o pânico completo e me convencer de que na verdade não é tão
ruim. Não estou nem cá, nem lá.
— E não é só isso — Nicolas diz, puxando o próprio celular do bolso. —
Você não tá mais no grupo da empresa, né?
— Não. Me removeram no dia seguinte que eu fui demitida. O que tá
rolando?
— Bom, obviamente, todo mundo ficou sabendo do que rolou. E se alguém
não sabia, a Suze contou — ele diz, meu coração acelerando a cada palavra. —
E as pessoas começaram a responder.
— Responder como?
Ele me estende o celular em resposta. Pego e passo os olhos pelas
mensagens.
O Oscar me disse que eu fedia a podre no amigo secreto da empresa. Me
deu um kit de sabonetes pra ser menos “encardido”.
Ele me chamou de vaca leiteira quando meus seios cresceram depois da
gestação.
Na festa da empresa ano passado, ele disse que eu podia “prestar um favor”
pra ele se quisesse ser promovida mais rápido.
Aquele cara é nojento, ele tem um monte de revista de mulher pelada
escondida no escritório dele. Eu já vi.
— O que é isso? — pergunto, mais chocada a cada mensagem.
— Isso é a prova de que não é só você. E tem mais. — Ele pega o celular e
roda a tela. — Tá vendo aqui? A Ana Lúcia, o Tadeu, a Cristina, a Bárbara, a
própria Suze... são pessoas que foram ofendidas e assediadas por aquele cara, e
que foram até o RH denunciar essa semana. Por sua causa.
— Por... minha causa?
— É. Porque você teve coragem de fazer o que todo mundo queria, mas
ninguém fez — Nicolas continua. — Tem tanta denúncia, tanta testemunha que
o RH não vai poder ignorar. Eu não dou nem mais uma semana pro Oscar rodar.
Eu o encaro, sem responder. Sinto vontade de chorar, mas não é de
desespero dessa vez. O alívio é tamanho que parece relaxar partes do meu corpo
que eu sequer percebia que ainda estavam tensas. Nicolas sorri.
— A Fernanda tem uma amiga que é advogada trabalhista que pode ajudar a
gente. Se juntar todo mundo, mover um processo contra ele vai ser mais fácil —
ele diz. — Mas depende de você. Se você falar “bora”, todo mundo vai encarar.
O que você acha? Vamos lutar, ou vamos deitar nessa cama e ver The Fosters
até morrer?
— Eu tava assistindo Drop dead diva , na verdade — brinco, mas logo em
seguida rio. — Bora.
— Essa é a minha garota!