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Revisão: Graziela Reis e Letícia Gabriella

Diagramação e capa: Renato Klisman


Para todo mundo que nunca achou que merecia viver um clichê.
— M eu deus, você não vai acreditar no que o João aprontou! — Suze
me diz, assim que chego no trabalho naquela terça-feira.
— João? Qual João? — pergunto, confusa. Trabalhamos em uma
multinacional enorme, no departamento de marketing. Tem pelo menos três
Joãos só na nossa área.
— O JP, aquele estagiário da social media. — Ela se aproxima, como se
fosse cochichar, mas, sendo Suze, a fala sai com o volume delicado de um
trovão. — Ele foi pego fotografando a bunda de umas funcionárias na escada,
acredita?
— Eca! E aí, no que deu?
— No que sempre dá, né. As meninas reclamaram, o RH demitiu, e vai ficar
por isso mesmo.
Reviramos os olhos ao mesmo tempo, com um cansaço e uma normalidade
que só quem trabalha em uma grande empresa consegue entender. É horrível
que a gente tenha se acostumado a casos de assédio, mas aquele João não foi o
primeiro e nem será o último a sair com, no máximo, uma reprimenda. Por
menor que seja o cargo, o mundo corporativo é sempre bondoso demais com os
homens.
— Bom, isso significa que teremos um novo estagiário? Já posso começar o
bolão? — pergunto, enfim chegando à minha mesa. Mesmo não sentando perto
de mim, Suze me acompanha.
— Ih, já se adiantaram, viu. A Joyce lá do RH acha que ele não dura nem um
mês.
— Que exagero! O JP durou uns bons três meses, e a Luísa ficou quanto, 45
dias? — Ponho o celular em modo silencioso, deixando-o sobre a mesa, e
coloco minha bolsa aos meus pés, já ligando o computador. Faço tudo isso tão
no automático que quase não percebo o pequeno arranjo de flores ao lado do
mouse. — Quem deixou isso aqui?
— Não que eu tenha lido o cartão, mas acho que foi o Tim do financeiro. —
Minha amiga morde o lábio. Faço uma careta para o arranjo; é daqueles que a
gente encontra em supermercado, bem vagabundo. Tal qual o galanteador que
fez a entrega.
— Você quer? Senão vou colocar na mesa do Oscar. Ele bem que está
precisando de um colorido na vida. — Estendo o vasinho para Suze. Ela solta
uma gargalhada.
— Amiga, o único colorido que o Oscar quer ver é o do dinheiro entrando na
conta dele e o do nosso sangue lavando o chão dessa empresa. — Ela olha por
sobre o ombro e para. — Falando na fera...
Oscar vem marchando, sem dar bom dia. Chefe do departamento, ele é
provavelmente a pessoa mais desagradável que eu já tive o desprazer de
conhecer. Mesmo depois de quatro anos trabalhando juntos, a coisa mais gentil
que ele já me disse foi “Luana, fica aí, você está tapando o sol bem melhor que
essa peneira ridícula de apresentação que você tá tentando me vender”. E até
hoje eu não sei se isso foi um elogio.
— Vai sentar antes que ele te dê uma bronca — falei, empurrando Suze pelo
quadril. Ela acenou para mim e deu o fora rapidinho.

— LUANA, CADÊ AQUELE RELATÓRIO DA CAMPANHA DA


CAMISINHA LUMINOSA, PORRA? PEDI JÁ TEM MEIA HORA.
Não, pediu faz cinco minutos, corrijo em pensamento, mas não falo nada. É
sexta-feira, ainda não temos um estagiário novo para as mídias sociais, e Oscar
está fervilhando. Me levanto calmamente e vou até a sala dele, um aquário sem
portas e com a janela mirando a avenida que fica no meio do setor.
— Aqui, chefia — digo, jogando o relatório na mesa dele. Apesar de
estarmos no século 21 e o e-mail já ter sido inventado, Oscar gosta das coisas “à
moda antiga” e prefere ter os relatórios em papel para analisar e escrever
grosserias. Ele também parou no tempo no quesito tratamento de funcionários,
até onde sei. Provavelmente na década de 50.
— Tá indo aonde, Luana? Senta aí e fecha a porta — ele diz, gesticulando
pra cadeira bem na sua frente. Então olha irritado para o batente vazio. — Porra
de administração moderninha. Se desse pra bater a porta na cara de vocês de vez
em quando, não seriam tão inúteis.
— É. — Torço o nariz, mas não comento. — Mas diga aí, chefe.
— Acho que segunda já vamos ter o novo estagiário. Você vai treinar ele pra
mim.
Não é uma pergunta. Com Oscar, raramente é. Tento forçar um sorriso.
— Hm, mas você meio que me pediu o esboço da campanha de carnaval pra
terça-feira, como é que eu vou dar conta?
— Porra, Luana, é só colocar uns desenhos de pacote de camisinha numa
tela colorida, que dificuldade tem isso?
Faça design gráfico, eles disseram. Você é criativa, vai mandar superbem. Só
esqueceram de mencionar que nem mesmo as pessoas do seu ambiente de
trabalho vão entender como seu trabalho funciona.
— Olha só, vai chegar um pivete aí segunda-feira e você vai sentar com ele e
explicar como é que é o trabalho — Oscar continuou, pegando o maço de
cigarro, embora seja proibido fumar dentro do prédio. — Você trabalhou com
isso por quase um ano quando veio pra cá, sabe do que precisa. E é só postar
umas coisas duas vezes por dia, não deve ser tão difícil.
— Não é bem assim que funciona... — murmuro, mas quando ele me olha
feio e lança um:
— Como é que foi aí?
Respondo:
— Nada.
— Se você achar que tá muito ruim, eu deixo você entregar o esboço na
quarta — ele continua, em um raro momento de bondade, embora 24h não
façam tanta diferença assim. — Só, pelo amor de Deus, garanta que esse
estagiário não vai me dar problema.
— Tudo bem. — Me levanto, já pronta para sair correndo dali. Mas antes
que eu dê dois passos, Oscar me detém.
— E, Luana?
— Oi.
Ele me olha de cima abaixo.
— Que merda é essa que você tá usando? Troca de roupa, pelo amor de
Deus.

Eu descobri que gostava de moda quase ao mesmo tempo em que descobri


que gostava de editar imagens no computador. Eu mexia em fotos das minhas
celebridades preferidas nos seus melhores looks para postar no Tumblr, e me dei
conta de que, mais do que apreciar suas roupas, eu queria me vestir como elas.
Foi mais ou menos nessa época também que eu descobri que era gorda. Não
deveria ser novidade, depois de anos vivendo acima do peso. Mas, até então,
sendo só uma adolescente numa cidade do interior, aquilo nunca tinha me
ocorrido de fato. Foi só quando decidi começar a me vestir bem, a procurar um
estilo para chamar de meu, que percebi que o meu corpo não era o que
geralmente cabia em estilos — ele cabia, quando muito, em pedaços de pano.
Guardei a vontade até me mudar para São Paulo, no início da faculdade, e
fui investindo meus primeiros salários em roupas novas, em escolhas ousadas
pro guarda-roupa, e transformei minhas combinações em um Instagram de
moda. Mesmo longe de ser famosa, aquilo ajudou muito a me entender e a me
perceber como mulher. Das várias coisas em mim que eu gosto, meu senso de
moda é a maior delas.
Mas tentar explicar o conceito de moda para alguém como o Oscar, que
parou no tempo há aproximadamente um milhão de anos, é inútil. Eu estou
perfeitamente formal em uma saia lápis escura com uma camisa estampada em
padrões geométricos, mas aposto que tudo que ele vê é uma gorda em uma
roupa chamativa. Não preciso nem perguntar para saber; ele mesmo já me disse
isso uma centena de vezes.
Ignoro o comentário dele, colocando na caixinha de “motivos pelos quais eu
vou mandar o Oscar se foder quando conseguir um emprego melhor”, e volto ao
trabalho.
Apesar dos pesares, eu gosto do que faço. Se alguém me dissesse, quando
comecei a faculdade, que eu passaria os próximos quatro anos da minha vida
criando campanhas publicitárias pra camisinhas, eu provavelmente teria rido; eu
era pudica e tímida naquela época, e a ideia de olhar para uma camisinha já me
deixava envergonhada.
Vejam só o que quatro anos de mercado publicitário fazem com a gente.
Hoje em dia eu não só fazia as propagandas para as camisinhas — eu era uma
grande consumidora delas. Minha avó ficaria horrorizada.
— Lua! Ei, Lua! — Ouço Suze me chamando, num sussurro nada discreto,
três mesas à frente da minha.
Me ergo sobre os computadores para olhar. Ela está apontando para a frente,
na direção dos elevadores, e dizendo algo que não consigo escutar porque é
nessa hora que o Henrique, outro designer que senta bem ao meu lado, resolve
cair no gemidão do zap.
— O quê? — pergunto, com a mesma discrição, e me viro para Henrique —
Cacete, desliga esse negócio!
— Eu falei que acho que é ele! — minha amiga diz, tão discreta que é óbvio
que o departamento inteiro se vira pra olhar. — O estagiário.
Olho na direção que ela apontou e encontro a Joyce, do RH, acompanhada
de um rapaz. Ele é alto, corpulento, mas não do tipo bombado; faz mais o estilo
“comi McDonalds a semana toda e sobraram uns bacons em mim”. Mas não é
possível que ele seja o estagiário. A menos que estejam dando fermento para os
adolescentes nas faculdades, não tem a menor possibilidade de esse cara ter
menos do que a minha idade.
Joyce passa com ele, e eu finjo voltar ao trabalho. Tento ouvir o que eles
falam, mas Henrique é a criatura mais irritante que existe quando quer e, depois
da bronca que dei nele, faz questão de fazer bastante barulho pra me irritar.
Quando dou por mim, Joyce e o rapaz já se foram, e Suze está na minha mesa.
— É ele, certeza de que é ele.
— Não pode ser, aquele cara deve ter uns trinta anos. Não tem pique de
estagiário — digo, e Suze suspira.
— Eu sei. Tem pique de amor da minha vida. Olhou praquela cara?
— Achei que você gostasse deles sem barba, saindo do berço — brinco, mas
com um fundinho de verdade. Suze já passou dos trinta, mas prefere os mais
novos. Sua paixonite mais recente é um moço do departamento de TI que mal
saiu da faculdade.
— Eu só gosto de ensinar o bom caminho pra eles. — Ela dá de ombros, sem
se incomodar. — Bom, se ele não for o estagiário, precisamos descobrir qual o
setor dele. Se eu não pegar, você pega, já sabe, né?
Ao meu lado, Henrique faz algum comentário engraçadinho, mas eu o
ignoro. Em vez disso, olho com pesar para as flores no arranjo sobre a mesa.
— Olha, depois do Tim, acho que nunca mais faço isso — digo, e estou
sendo sincera. Tim foi um erro de happy hour que estava me custando o sono. O
que para mim tinha sido só uma noite divertida se transformou nele me
mandando mensagens às três da manhã e presentinhos em horário de trabalho.
— Que pena, porque o cara é gato. — Suze se adiantou e recolheu o vasinho
de flores. — Ah, dá isso aqui, vou levar pra minha mãe.
— Agradeço — digo, acenando e tentando voltar ao trabalho. Minha mente
invariavelmente volta para o tal suposto estagiário.
Não, não vou fazer nada a respeito. Não vou me aproximar. Mas Suze tem
razão sobre uma coisa: que ele é gato, isso é.
E u adorava os Happy Hours de sexta-feira. Era uma das poucas
oportunidades que a gente tinha de sair um pouco mais cedo do escritório e
aproveitar a vida, em vez de simplesmente trabalhar até morrer.
Tradicionalmente, o pessoal do escritório — ou, mais especificamente, o
pessoal do departamento de marketing — frequenta o mesmo bar toda sexta-
feira. Como trabalhamos na região da Faria Lima, não é exatamente das opções
mais baratas, mas tem cerveja boa e os petiscos me fazem ir às estrelas e voltar.
Pra mim, nada substitui um bom petisco. Exceto, talvez, sexo.
Saímos do trabalho mais cedo naquela sexta. Oscar estava particularmente
irritante durante o expediente. Me mandou refazer o mesmo design oito ou nove
vezes ao longo do dia, geralmente me fazendo ir e voltar entre as mesmas cores
de novo e de novo. Se não saísse daquele escritório logo, acabaria cometendo
um homicídio. E talvez um suicídio depois — seria mais fácil do que ter que
lidar com as consequências. Quando deu a hora de ir embora, tudo que eu
queria era afogar as minhas mágoas em litros de cerveja e quilos e quilos de
batata frita gordurosa.
Chegamos no bar e pegamos nossa mesa de sempre. Eu preferia muito mais
beber só com a Suze do que dividir mesa com todas as outras pessoas do
departamento, mas infelizmente trabalhar com marketing e ser antissocial
muitas vezes não combina. Então, me obrigo a sentar com o resto da galera, mas
limito minha conversa somente à minha melhor amiga.
— E aí, já descobrimos alguma coisa sobre o novo empregado misterioso?
— pergunto a ela, fingindo desinteresse. A verdade é que, nas últimas horas, só
consegui pensar em qual departamento o tal gato vai trabalhar.
Não que eu estivesse interessada. Não que eu quisesse arrumar mais um
problema pra minha cabeça. O Tim do financeiro já estava de bom tamanho.
E, por bom tamanho, entende-se: nem tão bom tamanho assim.
— Eu tenho certeza absoluta de que ele é o novo estagiário! — Suze me diz,
entre um gole de cerveja e outro.
— E eu tenho certeza absoluta de que você enlouqueceu. Me passa a cerveja.
— Não, olha, eu perguntei pra Joyce do RH, e ela me garantiu que já tinha
contratado um novo estagiário.
— Ok, mas daí aquele cara ser o novo estagiário? Ah, vai!
— Do que nós estamos falando? — olhei para o lado quando ouvi uma
terceira voz se intrometendo na conversa. Era Tim, do financeiro.
Quase soltei um “ah, não“ em voz alta. Eu era, afinal, conhecida por toda
empresa pela minha clássica falta de noção na hora de falar. Infelizmente, me
contive a tempo. A verdade era que a única coisa que eu queria menos do que os
presentes do Tim era ter que conversar com ele.
Eu poderia dizer que nunca vou entender como eu e o Tim sequer chegamos
a tentar ter alguma coisa, mas a verdade é que eu sei muito bem: o álcool me
levava fazer coisas que eu jamais faria se estivesse sóbria. Tinha sido numa
sexta-feira como aquela, com todo mundo reunido em mais um Happy Hour. Eu
estava comemorando um aumento de salário e SuzeSuze me sugeriu pagar uma
rodada de tequila pra quem ainda estava no bar no final da noite. Éramos
somente eu, ela, Tim, e mais alguns caras do financeiro cujos nomes eu sequer
lembrava. Então pensei: o que mais diz “aumento de salário” do que gastar o
dinheiro que você sequer ganhou ainda com alguma coisa absolutamente inútil,
tipo bebidas para pessoas que você não conhece?
Bom, foi uma péssima ideia. Acabei a noite na casa de Tim, e a manhã
seguinte vomitando em um banheiro desconhecido. Decidi que ficaria bem
longe de tequila e de homens que trabalhavam comigo. Uma pena que o próprio
Tim não entendesse o recado.
— Nada especial — respondo, com um sorriso amarelo. Não quero ter que
ser mal-educada, mas se ele não se tocar que não é bem-vindo na conversa,
serei obrigada a tomar medidas drásticas.
Mesmo sem ter sido convidado, Tim puxa uma cadeira e senta perto de nós.
— E aí, Luana, vai rolar aquela clássica dose de tequila hoje?
Eu realmente não sei como é possível que o bicho homem seja tão sem
noção. Em especial, não sei como ele consegue ser tão sem noção. Já conheci
homens ridículos, mas Tim definitivamente leva o troféu de maior babaca com
quem eu já tive o desprazer de transar.
— Não. — Pronto. Aquilo era o melhor que eu podia responder sem ser
completamente mal-educada. Minha mãe até teria orgulho de mim se me
ouvisse agora.
— Sim, haha, então tá — Tim finalmente começa a se levantar — Divirtam-
se aí, meninas.
Abro mais um sorriso amarelo, enquanto Suze assiste toda a cena parecendo
extremamente desconfortável. Não é até Tim estar fora de alcance que ela se
inclina sobre a mesa para cochichar pra mim:
— Você não acha que foi muito cruel com ele?
Reviro os olhos.
— Suze, cruel seria eu dar esperanças pra ele quando eu não tenho a menor
intenção de sair com ele de novo.
— Mas foi tão ruim assim?
— Ele me chupou por dois minutos, nem tirou minha roupa direito, e achou
que tava bom — digo, com um suspiro. Tomo um gole de cerveja antes de
completar: — Se fosse pra ser mal fodida, eu tinha feito hora extra no trabalho.
Pelo menos o Oscar nota a roupa que eu estou usando.
— Está vendo? Essa é a vantagem de só pegar os novinhos. — Suze ergue o
copo pra mim em um brinde silencioso — A maior parte deles tem energia pra
dar e vender e faz de tudo pra agradar.
— Aproveita agora, porque depois que eles envelhecerem e forem
contaminados pelo vírus do machismo da preguiça, acabou a mamata.
Falando assim, até parece que todas as minhas experiências foram horríveis.
Não é verdade, mas também não é de todo mentira. Já saí com muitos homens
maravilhosos, dispostos a tudo, e que faziam com que eu me sentisse uma
deusa. Mas, de uns tempos pra cá, parece que todos os caras legais estão ou
comprometidos, ou foragidos. Em tempos de Tinder, quem tem um homem
legal na cama é rainha. Ou rei.
Chego em casa morta e levemente alcoolizada, irritada com a tarifa dinâmica
da Uber e querendo um banho gelado e dormir pelo resto dos meus dias. Mas,
antes de pegar no sono, resolvo dar uma última olhada nas notificações. O
grupo da firma — gentilmente batizado de Vadias LTDA, que continha eu, a
Suze, a Joyce do RH e mais umas três meninas de outros departamentos — tem
duas mensagens não lidas, ambas da Joyce.
A primeira diz:
“Suze e Lua, só queria apresentar a vocês o novo estagiário”
A segunda é um print do Instagram. Nicolas Giacomo. É mesmo o cara que
vi desfilar pela empresa mais cedo.
Eu estava fodida.

Gostaria de poder dizer que eu superei a foto do tal Nicolas, mas não é
verdade. Nada disso. Como uma boa solteira levemente carente em plena TPM,
faço o que qualquer mulher no meu lugar faria:
Stalkeio o perfil dele no Instagram.
Nicolas é um cara bonito. Eu sei que é alto, pelo que reparei enquanto ele
andava pela empresa, embora ele não pareça nenhuma torre; deve ter no
máximo 1,80m, comparado aos meus 1,67m. Ele tem aquela aparência suja de
quem não corta o cabelo com frequência e faz a barba menos do que deveria, o
que não nego: é totalmente a minha vibe.
Pelo que analiso no Instagram, ele faz o arquétipo clássico de “homem que
gosta de viajar”. Quase todas as suas fotos são em alguma estrada, praia ou
montanha diferente. Tem mais fotos de paisagem do que dele, mas quando tem
uma foto dele, vale a pena. Me surpreendo quando vejo que ele não tem
nenhuma tatuagem — ele me parece o tipo de hétero que ia querer provar a
masculinidade tatuando alguma coisa horrível nos antebraços. Fico feliz de estar
errada.
Olho tanto para as fotos dele ao longo do fim de semana que, na segunda-
feira, já sei os lugares que ele visitou nos últimos seis meses. O que não
encontrei foi uma explicação de por que um cara de 31 anos (segundo uma foto
tirada em 13 de novembro) está trabalhando como estagiário. Algo que acho
que vou ter que perguntar a ele.
Chego ao trabalho, na segunda, bastante ansiosa. Suze não está na copa
pegando café, nem na mesa dela, e mando sete mensagens em sequência
requisitando apoio. Quando chego na minha mesa, a baia logo à minha frente,
onde o finado JP costumava se sentar, já está ocupada. Eu saberia quem é
mesmo que não tivesse investigado sua vida na internet de 2013 até os dias
atuais, mas vê-lo pessoalmente depois de dois dias encarando suas fotos de
alguma forma deixa tudo pior. Eu travo por um segundo, e demoro até sair do
lugar outra vez.
“Meu deus, Luana, qual é o seu problema? É só um cara”, tento me lembrar.
Então respiro fundo e vou até a minha mesa como se nada tivesse acontecido.
— Bom dia — digo, abrindo o meu melhor sorriso enquanto me sento. Ele
está mexendo no celular, e assim permanece, como se não tivesse me escutado.
Talvez ele não tenha me escutado? Será que falei muito baixo? Pigarreio, e
procuro o espaço entre os nossos computadores por onde ele pode me ver.
— Bom dia — repito. Ele ergue os olhos para mim. São da cor de caramelo
queimado.
— Eu ouvi da primeira vez — é tudo que ele fala antes de se voltar ao
celular. Tem a voz grossa e petulante. É um tapa no meu bom humor.
— A tradição é que se alguém te dá bom dia, você dá bom dia de volta —
comento, num tom ácido, sem dispensar o sorriso. Ele ergue os olhos do
aparelho outra vez.
— Que pena — fala. Em seguida arrasta a cadeira para sair do meu campo
de visão.
Encaro o ponto onde ele estava, em completo choque. Nem mesmo Oscar,
que deve ser a pessoa mais insuportável que eu conheço, recusa um bom dia. E
ele espera que eu treine esse cara?
O milagre vai ser não nos matarmos até o fim do dia.
— O H, LUANA, LARGA ESSAS CAMISINHAS E VEM AQUI UM
SEGUNDO.
Solto um suspiro pesado. Houve um tempo em que esse tipo de comentário
vindo do Oscar me mataria de vergonha, mas eu já estava acostumada demais
ao meu trabalho e a ele para ficar tímida por alguma coisa a essa altura do
campeonato. O estagiário, por outro lado, faz uma careta e olha para trás antes
de se virar para mim de novo, uma sobrancelha erguida, sem dizer nada. Dou de
ombros, num breve momento de camaradagem, mas ele me ignora. Então me
levanto e vou até a sala de Oscar.
— Fecha a porta — ele fala, e me contenho para não fingir fechar uma porta
imaginária só pelo prazer da provocação. Em vez disso, me sento. — Não te vi
sentar pra explicar o trabalho pro estagiário. Não te falei pra ensinar tudo pra
ele?
Tantas coisas que eu gostaria de ensinar para ele, penso. Balanço a cabeça,
tentando afastar os pensamentos. Colega de trabalho é problema, Luana. Se
controla.
— Ele não precisa de ajuda — digo. — Eu dei uma monitorada antes do
almoço e parece que ele sabe bem o que tá fazendo.
— A porra do outro moleque lá também sabia e fez merda, Luana! — Oscar
retruca, num brado alto. — Não tô te perguntando se você acha que ele precisa,
tô te mandando fazer a porra do trabalho.
Me mantenho impassível. Também houve uma época em que as explosões
de Oscar me deixariam chorando pelos cantos, mas o tempo me tornou uma
funcionária mais durona. Ele pode gritar o quanto quiser. É tão familiar quanto a
voz da minha própria mãe a essa altura.
— Tudo bem — digo, soltando um leve suspiro. — É só isso?
— Não. Amanhã cedo tem o briefing das escolas de samba. Me manda tudo
ainda hoje.
— Sim, senhor.
Saio da sala dele, voltando para a minha mesa. Vamos fazer uma campanha
publicitária linkando camisinhas a escolas de samba, e tenho todo um esboço de
campanha para montar junto com o resto do pessoal de design. Infelizmente,
Oscar não me perguntou se eu teria tempo para isso enquanto também ajudo o
novo estagiário. Parabéns para você, Luana, acaba de ganhar horas extras.
Como sei que Oscar está me observando, em vez de assumir meu próprio
computador, puxo uma cadeira e me sento ao lado do nosso novo assistente de
mídias sociais. É realmente impressionante como ele fica mais bonito visto de
perto; é tipo olhar para uma pintura de Van Gogh e perceber que ela é ainda
mais inacreditável vista pessoalmente. Fico olhando para ele por tanto tempo
em silêncio que ele finalmente cede e me lança um olhar enviesado.
— O que foi?
Uau. Por um segundo quase esqueci desse detalhe. Não apenas é
extraordinariamente bonito, como também inacreditavelmente grosseiro.
— Hm, oi, eu sou a Luana. Sou do departamento de Marketing — digo,
tentando permanecer simpática.
Ele leva quase um minuto inteiro para responder:
— Nicolas.
— Prazer. — Sorrio. — O chefe pediu pra eu te ajudar com alguns macetes
do trabalho, já que é seu primeiro dia.
— Não preciso, valeu. — Ele se vira de novo para o computador.
— Eu percebi que você já tem uma ideia geral do que fazer, mas mesmo
assim seria útil se...
— Não, tô falando sério, não preciso — Nicolas me interrompe, me
encarando como se eu fosse maluca. — Eu já fiz isso antes, tá legal? Pode
voltar aí pras suas camisinhas, não preciso de babá no trabalho.
Sinto o sangue subir. Sei que meus colegas estão observando a troca — Suze
com certeza está —, e preciso me esforçar muito para não ser mal-educada.
Quando falo, é num tom passivo-agressivo que é minha especialidade.
— Olha só, eu tenho certeza de que você é o MESTRE das mídias sociais,
com os seus mil e duzentos seguidores no Instagram, mas meu chefe quer que
eu te ensine a trabalhar, então eu vou te ensinar a trabalhar mesmo que isso
signifique falar sozinha pelas próximas duas horas, ok? — Respiro fundo,
esperando uma reação que não vem. — Então você me faça o favor de escutar
tudo e fingir que está prestando atenção.
Por um instante, Nicolas só me encara. Ele não esboça qualquer reação a
tudo que eu disse, e não sei se isso é melhor ou pior. Então se vira para o
computador.
— São 1.300 seguidores. Mas talvez tivesse menos quando você fuçou
minha vida — diz, num tom neutro. — Ensina logo o que você tem que ensinar
e depois me deixa trabalhar.
Isso sim me faz corar de vergonha. Mas não digo nada; não quero dar a ele a
satisfação de continuar essa discussão ridícula. Em vez disso, puxo o mouse
para mim, atravessando o braço na frente dele, e começo a falar.

Nicolas é o pior aluno do mundo.


Ele também é irritante e rude como um adolescente mal-humorado. Nas duas
horas que passo explicando processos, programas e conteúdos, ele faz questão
de agir como se fosse muito superior e mais inteligente, alguém que não precisa
de ajuda. Fico tão irritada que preciso de muito esforço para não socar a cara
dele no teclado.
Quando o expediente acaba e todo mundo vai embora, eu fico — assim
como o resto da equipe de design —, terminando os últimos retoques para a
reunião de amanhã cedo. Chego em casa tão tarde que quase não vale a pena
dormir para acordar no dia seguinte, mas, mesmo assim, desmaio na cama.
Na manhã seguinte, me arrumo com cuidado. Dias de reunião são sempre
dias em que gosto de aparentar o meu melhor, mesmo que não seja eu a falar
sobre a campanha. Visto uma camisa clara de seda, sem mangas, e uma calça
escura. Não sou particularmente fã de saltos, mas calço um par confortável.
Enfrento os quarenta minutos de trem e metrô até o trabalho, sentindo minha
dignidade se esvair entre os vagões superlotados. Antes de entrar no prédio,
resolvo parar e comprar um café para acordar. Já estou do lado de dentro,
apertando o botão do elevador, quando Nicolas aparece.
— Bom dia — digo por força do hábito. Dou bom dia para todo mundo no
prédio, das plantas aos funcionários da limpeza. Nicolas se limita a acenar com
a cabeça, e chego à conclusão de que isso é melhor do que nada, se tratando
dele.
O elevador chega e abre as portas. Só há eu e ele no corredor, os milagres de
se chegar cedo. Me adianto para entrar, e Nicolas faz o mesmo. Nossos ombros
se chocam, meu outro braço trombando no batente da porta.
E, com o choque, todo o conteúdo do meu copo de café voa direto para a
minha blusa.
— CACETE! — grito, sem saber se é porque está quente ou se é porque
TEM CAFÉ MANCHANDO A MINHA CAMISA DE SEDA!
Nicolas não percebe o que aconteceu até estarmos dentro do elevador. Olho
para baixo, sentindo o rosto esquentar e os olhos arderem de lágrimas e de
raiva. Quando olho para ele, ele finalmente esboçou alguma reação — está
boquiaberto, chocado e levemente assustado.
— Custava ter esperado eu entrar? É muito difícil ter um mínimo de
gentileza? — digo, quase em um grito. O elevador não se mexe, e Nicolas
pressiona a tecla para o décimo segundo andar.
— Eu sei, foi mal, desculpa, olha só... — Ele tateia os bolsos e tira um lenço,
daqueles de pano, que meu avô usava no bolso da camisa. Quem ainda usa essas
coisas? — Aqui, acho que dá pra...
Ele se adianta, e põe o lenço sobre o meu colo, pressionando para que o
tecido absorva o excesso de café.
Meus peitos. Ele está com a mão nos meus peitos.
A reação é automática. Dou um tapa na mão dele, fazendo o lenço cair. Ele
se abaixa para pegar, e estou arfando. Quando o imaginei com as mãos nos
meus peitos, definitivamente não era desse jeito.
Meu deus, Luana, qual é o seu problema? Foco!
— Olha só, eu tô tentando ajudar! — ele exclama, se levantando do chão.
— Podia ter ajudado não colocando a mão nos meus peitos! — digo, e foi
uma péssima ideia.
As portas do elevador se abrem no exato momento em que começo a falar, e
pelo menos três colegas de departamento param tudo que estão fazendo para
prestar atenção à discussão.
Marcho para fora do elevador, roxa de vergonha, e sigo para o banheiro. Já
estou do lado de dentro quando me viro e percebo que Nicolas me seguiu. Ele
não entra, mas mantém a porta aberta para que eu consiga vê-lo.
— Desculpa pela mão boba, tá legal? Não foi na maldade — diz, com um
suspiro resignado. — E desculpa pela camisa. Manda a conta da lavanderia
depois.
— Querido, eu vou mandar a conta de uma camisa nova pra você —
respondo, a voz aguda e levemente histérica. Nicolas revira os olhos.
— Que seja.
E sai, me deixando sozinha para lidar com o peso da vergonha e de uma
camisa manchada meia hora antes de a reunião começar.
E u odeio Nicolas com todas as forças. É o que decido, após menos de
uma semana de trabalho.
Gostaria de dizer que o auge das nossas desavenças se deu no episódio do
café-na-camisa-e-mão-no-peito, mas não é verdade. Embora aquele tenha
sido, provavelmente, o pior dos momentos, o resto da semana é apenas uma
reafirmação do quanto Nicolas é mimado, arrogante, rude e, sem dúvida, a
pior das contratações daquela empresa.
Depois de me fazer pagar o mico do século durante uma reunião
importante, incluindo, mas não somente, ter meu chefe comentando sobre
minha falta de cuidado e possível gula na frente de todos os meus colegas,
fiz questão de mandar para Nicolas um e-mail com o link para a compra de
uma camisa idêntica à que ele tinha estragado. Recebi a resposta depois de
cinco minutos com umas dezoito mil interrogações e a pergunta: "TUDO
ISSO POR UMA CAMISA?"
Sim, querido, tudo isso. Agradeça por eu não te fazer comprar outro café
para mim também.
Então, ele passou a usar o preço das minhas roupas contra mim, fazendo
comentários como "cuidado com a saia de 230 reais da Luana," ou "você
sabia que os sapatos da Luana custam metade do meu salário?" em alto e
bom tom toda vez que me via. Suze comprou a briga, e ele foi obviamente
grosseiro com ela também. E quando fui tirar satisfação com Oscar e exigir
reparações — ou que ele pelo menos colocasse aquele animal há umas vinte
mesas de distância de mim — tudo que recebi foi um sorriso
condescendente.
— Luana, olha só, eu tenho mais o que fazer. Não é quinta série aqui pra
ficar montando mapa de sala, tá sabendo? Se você tem um problema com o
estagiário, resolve com a porra do estagiário.
O problema é que, se eu resolver com o estagiário, eu vou matar o
estagiário.
Quando a sexta-feira chega e, com ela, o happy hour, quase vou para casa
em vez de ir para o bar. Já aguentei o suficiente de Nicolas no escritório, e
quando ele decide nos acompanhar para uma cerveja, sinto que vou explodir.
Mas Suze passa o braço no meu e me segura firme.
— Lua, nada nessa vida vale perder uma boa cerveja! — filosofa, com
seriedade. — E, além disso, o office boy bonitinho vai estar lá e eu preciso
me controlar!
— Suze, ele tem 20 anos! — exclamo, mesmo sabendo que isso não quer
dizer nada para ela.
— Exatamente! Você não pode me abandonar agora!
Sei que minha presença não vai fazer a menor diferença se Suze estiver
mesmo disposta a transar com o office boy, mas, mesmo assim, a
acompanho. Ela tem razão sobre uma coisa: ninguém, muito menos o
desagradável do Nicolas, vale o sacrifício da minha cerveja sagrada. Eu dei
duro durante a semana toda, tomei mil e uma broncas do Oscar, mereço
voltar para casa bêbada! E ele não vai me impedir!
Vamos para o bar num grupo menor do que de costume, quase todo
formado por pessoas do nosso departamento. Nicolas obviamente se
enturmou com todas as outras pessoas desagradáveis, e se senta perto deles.
Tomo a ponta da mesa, de frente para Suze, e pedimos dois chopes. Tento
não entreouvir a conversa que se desenrola ao lado, mas é claro que não
consigo evitar.
— ...eu decidi fazer faculdade de novo, e aí estou aqui. — Nicolas dizia,
respondendo à pergunta de alguém — Mas vou te falar, faculdade é um
porre, da primeira vez e da segunda. Puta bando de gente infantil, não tenho
paciência pra essas picuinhas de sala de aula.
Algo me diz que ele deve se dar muito bem com as picuinhas de sala de
aula, ele mesmo tendo doze anos de idade mental. Termino meu chope e
peço mais um, com um ouvido em Suze e outro na conversa de Nicolas.
— ...já tinha trabalhado com essas merdas aí antes, mas você sabe como é
esse mercado, né? Tem que começar...
— Ai meu deus, ele tá olhando pra cá! — Suze bate as mãos na mesa,
chamando minha atenção.
— Quem tá olhando pra cá?
— ...eu curto umas paradas ao ar livre, sabe? Adoro viajar. Esse negócio
de vida no escritório me...
— O office boy gatinho! — minha amiga exclama, movimentando a
cabeça na direção dele. — Será que eu vou? Ai meu deus, eu sou muito
pervertida se eu for?
— ...Jalapão? Eu fui lá já tem uns anos, o lugar é muito...
— Qual deles é ele mesmo? — pergunto, me esforçando para enxergar.
— Ali, do lado do seu estagiário.
Essa merda de bar é escuro e já tomei um chope e meio. Me inclino sobre
a mesa, sem nenhuma vergonha na cara.
— Que foi, Luana? Perdeu alguma coisa aqui?
É Nicolas quem fala, provavelmente achando que estou olhando para ele,
e não para o rapazote de vinte anos ao seu lado. Fico vermelha, mas a essa
altura da minha vida, é preciso mais do que uma chamada para me deixar
desconcertada.
— Sim, a sua noção.
Exatamente como na quinta série, alguns colegas emitem os ruidosos
"vish". Nicolas abre um sorriso que dura menos de um minuto, mas é o
suficiente para marcar a minha memória. Se ele soubesse o quão gato fica
quando sorri, não gastaria tanto tempo sendo um insuportável inconveniente.
Meu deus, Luana, para com isso!
Felizmente, ele não responde. Termino meu chope, peço outro. Sei que
estou bebendo meio rápido, mas a embriaguez é literalmente a única coisa
capaz de fazer com que eu me sinta um pouco melhor agora.
Não sei em que momento Suze entendeu que seria uma boa ideia ir
conversar com o office boy, mas quando dou por mim, estou bebendo
sozinha. Ela está ao lado dele, cheia de mãos e sorrisos, e Nicolas ainda
conversa com um dos outros caras do departamento. Ninguém me inclui em
conversa nenhuma, e decido que a única coisa mais humilhante que voltar
bêbada e sozinha para casa é beber sozinha e voltar bêbada e ainda mais
sozinha para casa. Para mim, já deu.
Me levanto e cambaleio.
— Opa, tudo bem aí? — alguém pergunta. Não presto atenção em quem.
— Tudo ótimo — digo.
Pego minha bolsa e levo minha comanda até o caixa. Pago minha parte
na conta e decido ir ao banheiro antes de sair. Enquanto faço xixi, dou uma
olhada no horário; ainda são dez horas, cedo suficiente para que eu volte de
metrô sem muitos riscos. Então saio do lavabo.
Nicolas está do lado de fora.
— O banheiro masculino é ali. — Aponto com o polegar.
— Estava te esperando. Vamos — diz, sem nenhum rodeio.
— Vamos aonde?
— Vou te deixar em casa.
Faço uma careta indignada.
— Primeiro, não. Segundo, não, obrigada.
Nicolas solta um suspiro que mais parece um rosnado, daqueles de quem
está muito puto, mas tentando se controlar.
— Luana, olha só, você bebeu uns cinco chopes e a Suze me falou que
você vai pegar o metrô sozinha daqui até a puta que o pariu onde você mora.
Por um acaso eu também moro na puta que o pariu, então você vai, por
favor, me deixar dar uma carona pra você.
— Eu tenho Uber, e você também bebeu. — Ergo o celular na cara dele,
apontando o aplicativo. Nicolas baixa a minha mão, com uma gentileza
surpreendente.
— Eu não bebo, e eu não confio em Uber.
— E eu não confio em você.
Silêncio. Estou tonta demais para decidir se ele parece magoado ou não
com o que eu disse, mas é verdade. A única diferença entre Nicolas e um
Uber qualquer é que eu tomo patadas do Nicolas todos os dias da semana no
escritório. Não inspira confiança nenhuma.
— Eu já avisei a Suze que vou te levar. Você compartilha a localização
com ela e fica com o telefone na mão no 190 se quiser, tá legal? — Ele pega
o celular da minha mão, digita o número da polícia e me devolve. — Eu não
vou ficar sossegado se não souber que você chegou viva em casa. Agora,
será que dá pra vir comigo?
Olho dele para o celular, e de volta para ele. Até para ser gentil ele
precisa ser escroto. Mas sua paranoia começa a resvalar em mim, e passo a
pensar em todas as coisas horríveis que podem acontecer a uma mulher
bêbada e sozinha na rua, mesmo que eu já tenha feito esse mesmo trajeto um
milhão de vezes. No final, acabo cedendo.
— Tá bom, vai.
Acompanho Nicolas pelo bar. Só restaram duas pessoas na mesa, e elas
são Suze e o office boy, tão perdidos em um amasso que não me veriam
mesmo se eu desfilasse por ali pelada. Saímos para a noite fresca, de volta ao
prédio onde trabalhamos. Vamos direto para o estacionamento, e Nicolas
segue na frente até um Peugeot antigo e meio acabado, com a lataria lascada
no para-choque. Ele destrava as portas com o alarme e eu entro. Por dentro,
o carro está bem mais limpo e conservado, alguma colônia masculina forte
impregnando os estofados e despertando o pior da minha personalidade:
A Luana bêbada e com tesão.
Não, nada disso. Não com ele. Nada disso.
Foi a minha ruína antes, me fazendo ficar com o Tim do financeiro, e eu
não ia repetir a dose. Não mesmo.
— Qual seu endereço? — Nicolas me pergunta, abrindo o GPS, e eu o
informo. Ele ajeita o aplicativo e prende o telefone no painel. Sigo tudo com
os olhos.
Meu deus do céu. As mãos dele são imensas. Olha só o tamanho desses
dedos! As pessoas falam tanto de pintos grandes, e esquecem o valor de bons
dedos. Só consigo imaginar o que eles fariam por mim.
Cacete, Luana, se controla.
Saímos do estacionamento para ruas já calmas do trânsito de mais cedo.
Nicolas pega a Marginal Pinheiros em direção a Interlagos, ou o fim do
mundo onde eu moro — na opinião dos outros, pois eu estou muito feliz
com as minhas escolhas. O estrago está feito e, juntando o perfume, a trilha
sonora de rock das antigas e minha obsessão com as mãos dele, sei que vou
acabar fazendo besteira se não me lembrar urgentemente do quanto ele é um
ser humano horroroso. Decido puxar conversa.
— Onde você mora?
— Tatuapé.
— Seu cretino! — exclamo, e, sem a sobriedade para me controlar, dou
um tapa no braço dele. — Você me falou que era perto da minha casa!
— Cacete, Luana, eu tô te dando uma carona e você ainda reclama? —
ele diz, mas não num tom puto da vida, e sim num de cansaço. — E, de
qualquer forma, eu não menti. Minha mãe mora na Chácara Flora, é ali pro
seu lado. Vou dormir na casa dela hoje. Satisfeita?
Presto atenção no rosto dele enquanto ele fala. Aquele nariz enorme é até
que bem charmoso. Compõe bem o rosto. E a boca... céus, que boca. Nem
muito fina, nem grossa demais. Nicolas tem uma dicção incrível, o tipo de
pessoa que te faz escutar todas as sílabas enquanto fala, e me pergunto se é
só pra isso que ele sabe usar bem a boca — falar, falar e falar. Não aguento
mais ouvi-lo falar. A menos que fosse para falar sacanagem. Aí, talvez eu
abrisse uma exceção.
Meu deus do céu, no que eu estava pensando quando aceitei aquela
carona?
O caminho até meu prédio é rápido, mesmo para o horário. Quando dou
por mim, já estamos na minha rua, e Nicolas para o carro.
— Entregue. E nem precisou ligar pro 190 — brincou.
Eu o encaro, confusa. Ele foi o maior babaca comigo a semana inteira, e
subitamente está agindo como se nós fôssemos amigos? Será que perdi
alguma coisa?
— O que foi? — ele pergunta.
— Você é um escroto comigo todos os dias no escritório. Pra que ser
legal agora?
— Eu sou escroto com todo mundo.
É verdade, mas ele sabe que não é disso que estou falando. Sustento seu
olhar, esperando uma resposta. Nicolas suspira.
— Uma grande amiga minha foi atacada voltando pra casa bêbada uma
noite — diz, enfim. — Então eu vi você saindo sozinha e fiquei apavorado.
Não quis ser invasivo, mas você é teimosa pra cacete.
Eu o encaro por um momento muito longo.
E então, sem mais nem menos, solto o cinto, me lanço sobre ele e o beijo.
Pego Nicolas tão de surpresa que ele nem tem tempo de reagir. Num
minuto estou no meu banco, no seguinte estou com as mãos no seu cabelo, a
boca na dele e o corpo inteiro em chamas. Apesar do choque inicial, ele não
me rejeita: uma mão encontra a curva do meu pescoço, me deixando
arrepiada, e não me deixa escapar. Nicolas tem gosto de suco de frutas e
chiclete de menta, e o perfume que domina o carro é ainda melhor sentido de
perto na sua pele.
Mas o beijo incendeia todas as partes de mim, e mesmo quando eu o
solto, não estou satisfeita. Deixando a embriaguez falar mais alto, preciso
perguntar:
— Quer subir?
Nicolas fecha os olhos e baixa a mão, e, sem olhar para mim, responde:
— Você tá bêbada, Luana. Boa noite.
Racionalmente, sei que ele tem razão. Sei que ele seria um merda se
tirasse proveito e subisse comigo, mesmo eu não estando 100% em controle
de mim mesma. Mesmo assim, me sinto rejeitada, e quando desço do carro,
ajo como uma adolescente revoltada, batendo a porta com força e pisando
fundo até a entrada do prédio, sentindo lágrimas de humilhação queimarem
meus olhos enquanto pego o elevador até o meu andar.
E u beijei o estagiário.
É a primeira coisa em que penso quando acordo na manhã seguinte, a
ressaca fazendo a minha cabeça explodir e a culpa me fazendo queimar de
vergonha.
Pra que, Luana? , eu me pergunto. Pra que você foi fazer isso?
Mas a única resposta que tenho para oferecer não é das mais satisfatórias: fiz
porque quis, e queria há muito tempo. E não beijei sozinha; Nicolas estava lá
também, e participou. E muito. Ele quis aquele beijo tanto quanto eu.
Mas não quis subir com você, diz o demoniozinho pendurado no meu
ombro. Balanço a cabeça, e aproveito o calor para tomar um merecido e
necessário banho frio. Ele não ter dormido comigo não tem nada a ver com nós
dois ou mesmo com o beijo. Ele só foi um cara legal. Teria sido muito pior se
tivéssemos mesmo transado quando eu estava claramente bêbada. Quando eu
dormir com ele, quero estar 100% consciente.
Quando! Meu deus, o que eu estou dizendo? Quero me convencer de que
não vai ter quando, mas sei que é mentira. É claro que vai ter quando. Eu não
posso sobreviver a um beijo daqueles e não querer que ele passe a língua em
absolutamente todos os outros cantos do meu corpo.
Saio do chuveiro pior do que quando entrei e procuro algo para acalmar a
dor de cabeça. Quando volto para o quarto e pego o celular, há uma mensagem
de Suze me esperando.
"Me lembre de nunca mais transar com novinhos."
A mensagem foi mandada às duas da manhã. A noite, pelo jeito, não tinha
sido nada boa.
"Ué, o que aconteceu com 'os novinhos são os melhores'?" digito de volta.
Ela fica online na mesma hora e começa a me responder.
"Meu deus, esse garoto não saberia fazer um oral nem se eu desse um pote
de Danoninho pra ele sem colher e deixasse ele se virar por uma hora!"
"Ué, achei que toda a diversão de pegar os novinhos fosse ensinar o caminho
do paraíso?"
Ela atrasa a resposta com uma sequência de emojis furiosos. Na vida real,
gargalho alto, mas decido não responder nada virtualmente pra que ela não
passe a me odiar.
"Acho que tô ficando velha pra essa coisa de ensinar. Mas, enfim, como
você foi embora ontem? Nem te vi sair."
Rio, porque Nicolas me disse que tinha avisado Suze antes de sairmos; logo,
ou ele mentiu, ou ela estava bêbada demais para se lembrar, o que é muito mais
provável. Seguro o celular, os polegares prontos para digitar tudo em caixa alta.
Mas no final, decido que quero manter Nicolas para mim, pelo menos por
enquanto.
"Peguei uma carona." digo, e, felizmente, Suze está perdida demais nos
próprios problemas para questionar.

Nunca desejei tanto uma segunda-feira como aquela, e quando finalmente


chega, estou suando em bicas. Não só porque faz trinta graus já às oito da
manhã (sinceramente, eu odeio o verão!), mas porque estou morrendo de
nervoso com a perspectiva de cruzar com Nicolas de novo.
Não nos falamos o final de semana inteiro. Tenho a vaga impressão de que
alguém jogou o contato dele no grupo da firma no WhatsApp, mas não serei eu
a doida a puxar assunto no privado. Então faço o que qualquer pessoa normal
faria, espero a segunda-feira chegar.
Quando chego na empresa, respiro fundo tantas vezes no percurso de
elevador que tenho certeza de que as outras pessoas acham que sou asmática ou
claustrofóbica. Quando desço no meu andar, vários minutos adiantada, não tem
quase ninguém. Suze ainda não chegou, o irresponsável do Henrique também
não (ele sempre se atrasa às segundas), mas é óbvio que ele está lá. Sentado no
computador bem de frente pro meu, Nicolas já vasculha as redes sociais da
empresa, indo de aba em aba a esmo, de um jeito bem semelhante ao que eu
fazia quando queria procrastinar na minha época de estágio.
— Bom dia — digo, mas não paro. Vou direto pra minha baia, fingindo que
não estou nem um pouco interessada na resposta dele.
Para a minha completa decepção, ele não me responde. Aquela partezinha
irracional de mim quer pigarrear e tirar satisfações, mas, felizmente, uma parte
muito maior do meu cérebro me diz Luana, não vá se humilhar por causa de
homem . Me controlo e vou ligando a minha máquina.
Passados vários minutos, ouço-o comentar:
— Como foi de ressaca?
Seu tom é vago, quase desinteressado. Acho que ele nem estaria falando
comigo se mais alguém do departamento já tivesse chegado. Oculta pelo
computador, abro um meio sorriso, e respondo no mesmo tom displicente:
— A ressaca do corpo ou a ressaca moral?
— Por quê? Fez alguma coisa de que se arrependeu depois?
Touché. Preciso me controlar pra não rir.
— Jamais. Mas tem uma ou outra coisa que me arrependo de não ter
conseguido fazer.
Ouço passos no corredor, e três colegas se aproximam, conversando alto.
Quando baixo os olhos, pela fresta entre os computadores, vejo Nicolas olhando
para mim.
— Sei muito bem como você se sente.

Na quarta-feira de manhã há uma pilha de pacotes de camisinhas na minha


mesa quando chego no escritório. Normalmente elas não estariam ali — o Júlio
costumava cuidar da parte de fotografia, mas desde o último corte de
funcionários, aquela missão havia recaído sobre mim. Tínhamos um pequeno
estúdio dentro da empresa, o suficiente para algumas fotos simples para
divulgação, e se aquilo tudo estava me esperando àquela hora da manhã, o
recado era claro: eu tinha trabalho a fazer.
— Ih, alguém vai se dar bem hoje, hein, Luana? — Henrique piscou para
mim, do jeito mais heterossexual e nojento possível.
— Pena que sua mulher não pode dizer o mesmo, né, Henrique? —
retruquei, num tom ácido, arrancando o sorrisinho da cara dele na hora. Nicolas,
já na sua baia, conteve um riso.
— OH, LUANA, VEM AQUI UM SEGUNDO. — Ouço Oscar me chamar,
e só tenho tempo de deixar a minha bolsa na cadeira antes de seguir para a sala
dele.
Chego, e Oscar está batucando alguma coisa no teclado. Sempre acho
impressionante que ele trata o teclado do computador como se fosse uma
máquina de escrever das antigas, socando cada tecla até o talo. No último ano,
ele havia trocado de teclado três vezes por conta disso.
— Tem foto pra fazer — diz, sem nem olhar pra mim.
— Percebi. Você deixou as caixas na minha mesa.
— Chegaram aquelas lá que brilham no escuro, então pede pro almoxarifado
te arranjar uma luz negra.
— Não tem mais almoxarifado, Oscar. Demitiram o Gustavo ano passado,
lembra?
Oscar bufa, uma veia saltando no canto do pescoço.
— Porra, então vê lá se tem a merda da lâmpada, senão sai pra comprar,
cacete. Tenho que resolver tudo pra você? — Ele abana a mão na direção da
porta. — Leva o estagiário se precisar de ajuda.
Viro de costas para que ele não me veja sorrir. Levar o estagiário? Então tá.
Volto para a minha mesa e pego as camisinhas. Tento não pensar em todas as
camadas de segunda intenção que estão certamente encobrindo a minha voz
quando digo:
— Nicolas, vem comigo, tenho um trabalho pra você.
Ele hesita um instante, mas depois me segue. Passo por Suze, que me lança
um sorriso e uma piscadela nada discretos. No elevador, entrego os pacotes para
Nicolas enquanto aperto o botão para o 19º andar.
— Pra que tudo isso? — ele me pergunta, uma vez que as portas se fecham.
— Fotos pra campanha. O Oscar falou que eu podia te trazer se precisasse de
ajuda.
Ele não discute, mas também não olha na minha direção. Mantém a postura
firme, olhando para frente, e me pergunto se isso é nervosismo ou sua atitude
normal. Não o observei o suficiente para saber.
O pequeno estúdio de fotografia fica entre o arquivo e o finado
almoxarifado. O único motivo pelo qual a responsável pelo arquivo ainda
trabalha é porque ela é uma senhora que está na empresa há quase 30 anos e
ninguém deve ter dinheiro para pagar a rescisão dela; o mesmo não se pode
dizer do coitado do Gustavo, que rodou depois de um ano de contrato. Abro o
estúdio e acendo as luzes, indicando onde Nicolas pode deixar as camisinhas
antes de me ajudar a pegar as coisas no almoxarifado ao lado.
A sala está uma zona desde que o único funcionário responsável por ela se
foi. Tem de tudo lá dentro, desde o equipamento de fotografia até apetrechos
variados e uma espécie de achados e perdidos. As campanhas maiores da
empresa são terceirizadas, mas Oscar não acha que valha a pena gastar dinheiro
tirando fotos de camisinha quando ele tem uma funcionária que sabe manipular
uma câmera. Por algum milagre, acho uma lâmpada de luz negra entre as
milhares de coisas perdidas lá dentro. Encho os meus braços e os de Nicolas de
coisas e voltamos ao estúdio. Quase solto um "enfim sós" quando fecho a porta
e ligo o ar condicionado.
Opto por trabalhar em silêncio, fingindo que não sei que estamos sozinhos
ali e que não estou pensando em usar o pinto dele como modelo vivo para as
fotos. Na mesa de fundo infinito — um nome chique para um fundo branco e
curvado, onde posso fotografar os produtos e manipulá-los no Photoshop depois
— ajeito as camisinhas fechadas primeiro, e Nicolas me ajuda com as luzes e na
montagem dos tripés. Ele também não diz uma só palavra.
Faço mil e uma fotos de ângulos diferentes, mesmo sabendo que só vou usar
duas ou três imagens, e então resolvo trocar a lâmpada normal pela luz negra.
Desligo o refletor e espero a luz esfriar.
— Como você vai fazer isso? Vai vestir a camisinha num consolo? —
Nicolas pergunta, num tom bem humorado, quando pego a luz negra.
— Infelizmente não dá. A maioria das redes sociais bloqueia esse tipo de
conteúdo. — Troco as lâmpadas agilmente, e aponto para os pacotes sobre a
mesa. — Mas as embalagens também brilham no escuro, então isso deve ajudar.
Peço para Nicolas apagar as luzes da sala, e logo somos só eu, ele, a luz
arroxeada e um pacote de camisinhas esperando para ser usado. Meu corpo
inteiro treme. Ajeito os pacotes e ligo a câmera. Sinto ele se aproximar mesmo a
uma certa distância, a presença dele sendo o suficiente para me deixar um tanto
zonza. Não vou aguentar ficar nessa sala com ele e não fazer nada. Sei que é o
nosso ambiente de trabalho, mas simplesmente não dá.
Um clique, dois, dez. O som do ar condicionado é a única coisa que se faz
ouvir. Não o vejo pela minha visão periférica, mas por um instante, não me
movo. Mudo de ângulo, tiro mais fotos. Quando acho que já tenho o suficiente,
me viro, sem saber se para beijá-lo ou se para pedir que ele acenda a luz.
Nicolas está bem ali, atrás de mim, parado sei lá há quanto tempo, há uma
distância segura, mas grande demais. Olho para ele, sem dizer nada.
E então, ele está em mim, e sobre mim, suas mãos na minha cintura e sua
boca procurando a minha, me empurrando devagar na direção da parede. Vou de
encontro a ela com um baque surdo que torço para que a senhorinha dos
arquivos não resolva investigar, e passo os braços pelo pescoço dele como se
minha vida dependesse disso.
É muito diferente do beijo no carro, sem álcool atrapalhando meu
julgamento e sem toda a parafernália do carro no nosso caminho. Seu corpo está
tão presente e tão perto que eu o sinto em todos os lugares, e mais ainda quando
ele o pressiona contra o meu, espalmando uma mão na parede enquanto a outra
vem se entranhar no meu cabelo. Ele beija minha boca e suga meus lábios,
mordisca meu queixo e desce numa trilha de suspiros pela minha jugular. Solto
um suspiro baixo com a sua respiração na minha pele, cravando minhas unhas
quase que inconscientemente nas suas costas.
— Ai!
— Desculpa.
— Não tô reclamando.
— Ótimo.
Não sei por quanto tempo ficamos ali, entre beijos e mãos. Nicolas percorre
as curvas do meu corpo numa trilha quase pudica, sem se aventurar demais por
nenhuma delas e sem ousar levantar as bainhas, não importa o quanto eu
implore. Não posso dizer que tive a mesma preocupação; solto a camisa dele de
dentro da calça tão logo consigo, meus dedos explorando a pele macia e os
pelos sob o tecido. É quase demais para mim, e estou prestes a pedir para que a
gente teste rapidinho as tais camisinhas florescentes quando ouço uma porta
bater.
Nicolas se separa de mim tão rápido que praticamente pula para trás. Mas
não foi a nossa porta, e não há mais ninguém ali além da gente. Mesmo assim, o
momento já era, e nós dois fizemos muito mais do que deveríamos,
considerando o lugar. Respiro fundo.
— Me ajuda a guardar tudo? — pergunto, como se nada tivesse acontecido.
— Claro — ele responde no mesmo tom.
E, tão profissionalmente quanto é possível, nos colocamos a recolher os
materiais e a levá-los para o almoxarifado.
N a hora do almoço, sei que não posso guardar mais nada daquilo para
mim. Puxo Suze comigo e estamos saindo do prédio quando digo, aos
sussurros:
— Beijei o estagiário.
— VOCÊ BEIJOU QUEM? — ela grita, discreta como sempre.
— Dá pra calar a boca? Meu deus!
Suze desata a rir e, na caminhada curta até nosso self-service preferido,
conto sobre o beijo no carro depois do happy hour e dos amassos intensos no
estúdio naquela manhã. Quando termino, ela me dá um tapa no braço.
— Ai!
— Não acredito que você deu uns pegas nele naquele dia e não me contou!
— Desculpa! — Massageio o braço dolorido. — Eu realmente não achei que
fosse dar em alguma coisa? Sei lá, não estava esperando.
— Meu deus, ele tá muito na sua! — Suze bate as mãos, animada. — E
agora? Vocês vão sair? Que pergunta, é claro que vão sair.
— Sei lá. A gente não se falou ainda né.
Nem uma palavra. Nem um olhar. Nada desde que voltamos a trabalhar, cada
um na sua baia, encarando a tela do computador.
— Pelo amor de Deus, Luana! Bota esse boy contra a parede de uma vez.
Tecnicamente, foi ele quem me colocou contra a parede, penso, mas guardo
para mim.
— Vou ver o que eu faço — digo, meu código para tudo.
Mas o que realmente faço é essencialmente ignorar Nicolas pelo resto do dia
e sair correndo o mais rápido que posso quando o expediente acaba. Nunca me
senti tão desconfortável na presença de um peguete, e não faço ideia de como
lidar com a situação. Então, faço a única coisa que posso: fujo.
Já em casa, contemplo a ideia de pegar o telefone dele no grupo da firma e
mandar uma mensagem. Será que ele me acharia louca se eu fizesse isso? A
dúvida me corrói e acabo não fazendo nada. Sonho a noite inteira com cenários
absurdos em que Nicolas e eu transamos nas posições mais inusitadas e, quando
acordo, não tem um único pedaço do meu corpo que não esteja molhado.
Está um calor insuportável logo pela manhã, então coloco um vestido mais
soltinho para ir trabalhar. Faço meu caminho de sempre, enfrentando trem e
metrô lotados, e chego no trabalho mal-humorada e de cara feia. Mas quando o
elevador abre as portas, vindo diretamente da garagem no subsolo, dou de cara
com Nicolas lá dentro.
Ele não está sozinho, infelizmente; Tim do financeiro está lá também, ainda
que eles não se conheçam. Demoro tanto tempo pra processar a ideia de que vou
pegar um elevador por oito andares com meu ex e meu talvez atual que as
portas começam a se fechar. Nicolas as bloqueia com a mão.
— Bom dia, Luana — ele diz. Não no tom sarcástico e geralmente escroto
que ele usa com todo mundo, mas um mais leve, quase fofo.
— Bom dia. — Sorrio, sem conseguir evitar. Entro no elevador e lanço um
olhar breve a Tim. — Bom dia.
— Dia! — Tim faz um sinal com a cabeça. — Gostei do vestido.
— Obrigada.
— Bem revelador.
As portas se fecham.
— Como é que é?
As palavras poderiam ser minhas, mas são de Nicolas. Quando olho para o
lado, ele encara Tim com uma expressão enojada.
— Foi só um comentário! — Tim responde. — E quem é você?
Nicolas se prepara para responder, mas eu o seguro pelo braço.
— Fica fora disso — alerto, antes de me virar para Tim e completar: — Vai
se foder, Tim.
— Mas o que foi que eu...?
— Não ouviu? Vai se foder, cara — Nicolas emenda.
As portas se abrem no oitavo andar. Saio do elevador e puxo Nicolas
comigo.
— Eu te dei flores! — Tim grita, de dentro do elevador, e a cena é tão
ridícula que sinto vontade de rir.
— Eu sei. Eram horríveis — digo, acenando um adeus enquanto as portas
tornam a se fechar.
Nicolas se vira para mim.
— Por que ele te deu flores?
Coro e, por um momento, penso em mentir. Mas não devo nada a ele e, se
for sincera, talvez seja bom ele saber. Talvez seja bom ele lembrar que não é o
único.
— Porque tem uns homens que não conseguem superar uma transa — digo,
e vou calmamente pra minha mesa.

Durante o resto da semana, Nicolas e eu não conversamos, exceto sobre


assuntos de trabalho. Oscar nos passa mais um milhão de coisas pra fazer para a
campanha de carnaval, e somos soterrados com trabalhos que nos deixam no
escritório até mais tarde. Quando chega a sexta-feira, estou tão exausta que
quase dispenso o happy hour.
Isso é, até Nicolas olhar para mim e dizer:
— Você não vem?
E eu mudar de ideia na hora.
Vamos para o bar andando e, apesar de nos acompanhar, Nicolas quase não
fala. Vou conversando com Suze sobre assuntos aleatórios e quando chegamos
no bar, Nicolas e eu nos sentamos em pontas opostas. Suze pede uma caipirinha
e eu peço um suco.
— Ué, não vai beber? — ela me pergunta. Lanço um olhar na direção do
meu estagiário e dou de ombros.
— Não estou muito a fim — minto. A verdade é que tenho drogas mais
potentes em mente.
A mesa vai encolhendo enquanto nossos colegas vão embora. Logo estamos
eu, Suze, Nicolas e uma moça do RH cujo nome eu não lembro. Quando ela
também anuncia que está indo embora, Nicolas se vira para nós.
— Carona?
Esperei a semana toda por isso.
— Carona! — respondo. — Se não for atrapalhar.
— Tranquilo. — Ele olha para Suze, meio preocupado. — E ela?
— Eu moro aqui em Pinheiros! — ela responde, já se levantando. — Dez
minutos de Uber e eu estou em casa!
— Imagina, eu te levo — Nicolas insiste. Suze meneia com a cabeça.
— Bom, se você insiste...
E é assim que, instantes depois, estamos todos no carro de Nicolas. Suze
cochila quase que no instante em que se senta no banco traseiro, e cabe a mim
guiar Nicolas em direção à casa dela. Quando chegamos, eu a ajudo a descer e a
deixo em segurança no hall do prédio.
— Você é uma boa amiga — ele diz, quando entro de novo no carro.
— A Suze precisa de alguém pra cuidar dela de vez em quando — digo, com
um meio sorriso.
Seguimos em silêncio pela Marginal, quase sem trânsito àquela hora.
Contorço as mãos sobre o colo, querendo tocá-lo, mas sem ter coragem. Quando
finalmente paramos na frente do meu prédio, já estou suando.
— Você quer...
— Luana...
Paramos, surpresos com a sincronia, e rimos juntos.
— Vai você primeiro — ele diz. Mordo o lábio por reflexo, subitamente
tímida.
— Você quer subir? Tomar um café?
Ele me encara, parecendo genuinamente surpreso. Por um segundo, acho que
interpretei o clima entre nós completamente errado, que aquele beijo no
escritório não passou de uma miragem elaborada. Mas então Nicolas sorri, e
meus medos se esvaem.
— Acho que quero sim — ele diz.
Descemos do carro e o porteiro nos deixa entrar. Aceno boa noite e, não pela
primeira vez, fico pensando que o seu Josué deve me achar uma puta pelo entra
e sai de acompanhantes que já tive ao longo dos anos. Apesar de morar no
segundo andar, chamo o elevador, e esperamos.
— Luana...
— Shh. Não fala nada.
Então o elevador chega e eu o empurro para dentro, colando meu corpo no
seu e o beijando como sonhei a semana toda em fazer.
A s portas se fecham, mas o elevador não sai do lugar. Esqueço de
apertar o maldito botão, minhas mãos preocupadas em traçar os contornos do
corpo de Nicolas enquanto as dele se entranham no meu cabelo. Ele
desgruda a boca da minha para perguntar:
— Qual andar?
— Segundo.
— Tá.
Só então o elevador se mexe, e nem um segundo parece ter se
transcorrido quando o tranco familiar anuncia que chegamos à última
parada. Não quero soltá-lo, mas me lembro que em casa existe um sofá, uma
cama, e várias outras superfícies que podemos usar, e essa é toda a
motivação de que eu preciso.
Saímos ofegantes e me embanano para abrir a porta. Quando consigo
destrancá-la, puxo Nicolas para dentro e fecho a porta sem nem me
preocupar em tirar a chave do lado de fora. Agarro-o pela camisa e o ponho
no sofá, me sentando no colo dele tão rápido que ele mal tem tempo de
entender o que está acontecendo.
— E o café? — brinca, enquanto beijo seu pescoço.
— Foda-se o café.
Nicolas é muito mais bonito quando visto de cima, e um milhão de vezes
menos controlado agora que estamos efetivamente sozinhos. Suas mãos
sobem pelas minhas pernas, erguendo a barra do vestido e encontrando a
beirada da minha calcinha. Minha calcinha, penso. Estou usando uma
daquelas beges, de velha. É claro que no dia em que consigo trazer o
estagiário gato pra casa, eu estaria usando a calcinha mais feia do meu
arsenal.
Mas, se tudo der certo, ele nem vai ter tempo de olhar.
Me entretenho com os botões da sua camisa, minhas unhas traçando
contornos nada delicados pelo seu torso. Nicolas arfa, e sorrio para ele.
— Gosta?
— Muito.
— Ótimo.
Beijo-o de novo e arranho seu peito e seus ombros, ajudando-o a se livrar
da camisa e abrindo caminho para mim. Quando termino, é a vez dele de
abrir o zíper do meu vestido e me ajudar a tirá-lo. Minha calcinha pode ser
horrível, mas meu sutiã é lindo e novinho, e abro um sorriso quando pego
Nicolas me observando. Ele ergue os olhos para mim e ri.
— O que foi? — pergunto. Nicolas balança a cabeça, uma mão tirando o
cabelo do meu rosto com uma delicadeza surpreendente.
— Esse sorriso, Luana. Esse seu sorriso de safada. Acaba comigo toda
vez.
Quero responder, mas não consigo. A mesma mão delicada de antes
agora puxa meus cabelos sem cerimônia, e arqueio o corpo em resposta,
arrepios percorrendo a minha pele.
— Mas todo o resto acaba comigo também — ele diz.
Seus lábios encontram meu pescoço e descem para o meu colo, e, se
antes a noite já estava quente, então o clima agora é absolutamente
insuportável. Com a mão livre, Nicolas afasta as alças do meu sutiã para
expor meus ombros, e quando sinto sua barba roçar meus seios, não me
aguento. Abro o fecho do sutiã e o mando pelos ares.
Longe de se importar, Nicolas tira proveito, abocanhando meu mamilo. E
apesar de não ser uma das minhas regiões mais sensíveis, fico excitada só de
vê-lo se divertir. Aperto minhas pernas ao redor do quadril dele, o que é todo
o incentivo que ele precisa. Ele me segura pelas pernas e tenta me deitar.
Infelizmente, meu sofá de dois lugares não foi feito pra isso. Ele não foi
feito nem mesmo para que eu coubesse sozinha.
— Vamos pro quarto — digo, e ele concorda.
Puxo Nicolas pela mão até o outro cômodo, sem me dar o trabalho de
acender a luz. A janela ainda está aberta, e dela posso ver meu vizinho na
sacada, mas me recuso a fechar qualquer fonte de ventilação. Ele que assista
o pornô ao vivo, se quiser. Puxo Nicolas para a cama comigo, e ele cai de
um jeito desajeitado ao meu lado, soltando um bufo baixo.
— Machucou?
— Tá tudo bem.
Ele me encontra de novo, num beijo de tirar o fôlego, as mãos
percorrendo meu corpo de cima a baixo até pararem entre as minhas pernas.
Mesmo por cima da calcinha, o toque já é o suficiente para me fazer chorar
por todos os lados. Ofego e finco as unhas nas costas dele.
— Luana... — Nicolas diz, em tom de aviso.
— O quê?
— Assim não vou conseguir mais parar.
Abro o sorriso diabólico que ele tanto gosta.
— E quem foi que falou em parar?
Procuro o botão da sua calça e o ajudo a se livrar dos jeans. Sua ereção já
está visível, fazendo volume na cueca, mas antes que possa fazer mais
alguma coisa, Nicolas segura as minhas mãos para cima.
— Quietinha aí — diz, já puxando a barra da minha calcinha.
Ah, meu deus. Agora sim.
Enquanto com uma mão ele mantém meus braços presos, com a outra ele
passeia a dedos leves pela minha barriga, para cima e para baixo, pra cima e
pra baixo, cada vez mais baixo, e me debato quase que por reflexo.
— Shh, shh, quietinha — ele repete, me fazendo gargalhar.
— Você vai me matar! — digo, e Nicolas se abaixa até encostar o nariz
no meu.
— Estou só começando.
Ele me beija no mesmo instante em que seus dedos chegam exatamente
onde têm que chegar, no centro e para dentro, cada vez mais fundo em mim.
Arfo, e Nicolas arfa junto comigo. Afasto as pernas e tento soltar minhas
mãos para me agarrar a alguma coisa, qualquer coisa, enquanto ele
lentamente acaba comigo, um dedo de cada vez. Quando enfim me solta,
acho que é porque ele teve misericórdia, mas logo percebo que estava errada.
É uma questão puramente física: ele não consegue segurar meus braços
enquanto se ajoelha diante da cama e me puxa para si.
E ele tinha razão. Estava apenas começando. O que ele é capaz de fazer
com as mãos nem se compara ao que sabe fazer com a língua.
Se meu vizinho não estava vendo, então certamente está escutando agora.
O prédio inteiro está. Meus gemidos são tão altos que acho que sou capaz de
acordar a cidade toda.
Me agarro aos cabelos dele, aos lençóis e à minha própria sanidade. Meu
corpo inteiro arde num fogo que queima de dentro para fora, de baixo para
cima. E, quando termina, estou suada e sem ar, tão cheia de desejo que a
única coisa que consigo fazer é esticar o braço até a gaveta do criado mudo e
tatear por uma camisinha.
Mas não tem nada lá.
— Você tem... — começo a dizer, e ele capta meu pensamento.
— Tenho.
Nicolas se abaixa e resgata o jeans perdido no chão. Tateia os bolsos.
Abre a carteira.
— Não tenho.
— Ah, mas que merda!
Ele ri, e me pego rindo também. Penso em todos os pacotes de camisinha
que fotografei naquele dia no estúdio e me amaldiçoo por não ter roubado
pelo menos um pacote quando tive a chance. Mais do que tudo, quero
montar naquele homem e transar pelo resto da noite, mas não tem a menor
chance de isso acontecer sem proteção. Olho para Nicolas e ele está
claramente pensando a mesma coisa que eu. Até que seu rosto se ilumina
com um sorriso.
— Sabe, ainda tem muita coisa que a gente pode fazer sem camisinha.
Sorrio também.
— Ah, é?
Pego sua mão, levo os dedos até a boca e os chupo.
— Me mostra, então.
— Com muito prazer.
A bro os olhos devagar na manhã seguinte. A primeira coisa que vejo é um
nariz proeminente em um rosto maravilhosamente bem talhado, cercado por fios
escuros de cabelo.
Meu deus. Eu dormi com o meu estagiário.
Dormir talvez não seja a palavra adequada. Eu transei. Transei pra burro. Eu
nem sabia que era possível um cara me chupar por tanto tempo. O fato de eu
ainda estar viva para contar a história é verdadeiramente um milagre, porque,
várias vezes ao longo da noite, eu achei que fosse morrer.
E isso porque sequer houve penetração. Quando eu de fato conseguir sentar
nesse homem, provavelmente vou sofrer algum tipo de experiência de quase
morte.
Devagar, saio da cama e vou até o banheiro. Minha aparência está horrível,
de maquiagem borrada a bolsas sob os olhos. Mas nunca estive mais feliz. O
meu crush do trabalho está na minha cama, e foi a melhor noite que eu tive em
muito tempo. O que mais eu posso querer?
— Luana? — Ouço de repente, e tomo um susto quando encontro Nicolas
com os olhos quase fechados, de pé na porta do banheiro. — Você tem alguma
coisa pra dor de cabeça?
— Ah, eu... tenho.
Ele assente sem dizer mais nada e volta para a cama, apoiando os cotovelos
nas pernas e escondendo o rosto entre as mãos. Ele está com uma cara péssima.
Saio do banheiro e vou até a cozinha minúscula, procurando na caixinha de
remédios que fica no armário.
— Você toma dipirona?
— Tomo qualquer coisa, só traz dois e vai ficar tudo bem.
Levo dois comprimidos e um copo d’água. Ele toma tudo com uma
velocidade estonteante.
— Desculpa... enxaqueca...
— Tudo bem. — Pego o copo de volta e o deixo em um canto seguro no
chão. — Deita um pouco. Já vai passar.
Ele obedece, tornando a se deitar e colocando um travesseiro sobre a cabeça.
Definitivamente não é como eu imaginei que essa manhã seria. Achei que
iríamos acordar e continuar de onde havíamos parado. Em vez disso, ele está
imprestável e gemendo de dor na minha cama.
Fecho as cortinas para protegê-lo da claridade, pego meu celular e vou para
o sofá. São dez horas e tem umas setenta mil mensagens de Suze me esperando.
“Ei, a gente pegou carona com o estagiário ranzinza ontem?”
“Você sabe se eu peguei aquele menino do marketing?”
“Esquece, acho que não”
“Você tá legal? Chegou bem em casa? Meu deus, sou uma amiga horrível”
Leio tudo, rindo e reagindo com emojis. Só depois que respondi a maior
parte das mensagens aleatórias é que foco no que importa.
“Sim, pegamos carona com o Nicolas. Ele te deixou em casa e depois me
deixou em casa. Mas aí ele meio que ficou por aqui também...”
Um instante depois, Suze manda um emoji chocado. Não achei que ela
estaria acordada — ela é daquelas pessoas sem caráter que tiram o visualizado
dos aplicativos de mensagens, então, a menos que ela responda, nunca sei
quando está vendo ou não.
“VOCÊS TRANSARAM?”
“Kkkkk sim.”
“MEU DEUS E COMO FOI?”
Faço um relato completo, descritivo, mas não excessivamente vulgar para
ela, e rio enquanto ela reage com gritos desconexos. Quando falo que ele
amanheceu com enxaqueca, ela diz:
“Coitado, você judiou tanto do rapaz que ele ficou doente”
Se for esse mesmo o caso, não me arrependo de nada.
Nicolas só dá o ar da graça depois das onze. Cansei de esperar e tomei café
sem ele, e estava lendo no sofá quando o vejo sair do quarto, completamente
vestido.
— Oi! — Me coloco de pé. — Você está melhor?
— Um pouco. — Ele meneia com a cabeça. Ainda está meio pálido, mas os
olhos já se abrem completamente. — Preciso ir pra casa. Meus remédios mais
pesados estão lá.
— Claro. Você consegue dirigir?
— Consigo, sim. Você abre pra mim?
Faço que sim e vou até a porta. Destranco e a mantenho aberta. Não sei o
que fazer agora. Estava preparada para uma manhã romântica, mas dadas as
circunstâncias, não sei nem se devo tentar beijá-lo.
— Obrigado — ele diz, e está prestes a sair quando volta e se inclina. Acho
que ele vai me beijar, mas o que realmente faz é me envolver em um abraço e
plantar um beijo demorado no canto da minha boca, mais pra bochecha que pros
lábios.
E então vai embora, sem se preocupar em esperar o elevador, descendo
rápido pela escada de incêndio.

Nicolas não me manda uma única mensagem ao longo do fim de semana. Só


sei que ele está vivo e em casa porque posta um story no Instagram quatro horas
depois, mostrando uma janela fechada em um quarto escuro. Tenho que
presumir que ainda está se sentindo mal.
Mesmo assim, fico impaciente. A essa altura, Tim já tinha me mandado
umas dezoito mensagens me pedindo nudes. O cara com quem saí antes dele,
Marcos, também já tinha dado sinais de vida. Mas domingo chega e vai embora,
e eu e Nicolas não nos falamos.
Não sei se isso é melhor ou pior. Por um lado, é bom, porque trabalhamos de
frente um pro outro, no mesmo departamento. Por outro, é péssimo porque
trabalhamos de frente um pro outro. É muito difícil tentar ler a mente das
pessoas.
Então, na segunda de manhã, acordo mais cedo do que o necessário para ir
trabalhar. Estou ansiosa em revê-lo, disposta a não parecer que fiquei o fim de
semana todo olhando o celular e esperando que ele aparecesse. Vou fazer a
plena. Vou fazer de conta que não há nada errado. Porque não há.
Chego no escritório quando ainda está vazio, deixo minhas coisas e vou até a
copa encher minha garrafa de água e pegar um café. Não gosto do café daqui,
mas ainda não recebi meu salário e minha conta já está quase lisa. Quando estou
abastecida, faço meu caminho de volta. Nicolas está sentado à sua mesa,
girando a cadeira como uma criança hiperativa, parando quando me vê.
Faça a plena.
— Bom dia — digo, e como não tem mais ninguém do departamento em
volta, acrescento: — Melhorou?
— Bem melhor, obrigado — ele diz, com um meio sorriso, mas posso ver
que evita meu olhar.
Meu deus, ele está com vergonha?
— Luana, a gente pode...? — Ele faz um sinal sobre o ombro. Graças a
Deus.
— Podemos, claro.
Deixo a garrafa de água e o acompanho até um canto do escritório, ainda
segurando meu café. Beberico enquanto Nicolas esfrega as mãos, parecendo
ligeiramente ansioso. É uma gracinha. Não acredito que sou eu quem está
fazendo isso com ele.
— Sexta foi... incrível — ele começa, e sinto meu rosto corar.
— Foi mesmo. — Rio baixo, e ele passa a mão pelos cabelos, rindo também.
— Desculpa ter saído daquele jeito. Eu realmente estava mal, queria ter
falado sobre isso com você antes.
— Sobre o quê? — pergunto, confusa. A expressão no rosto de Nicolas fica
mais severa.
— Sobre... isso — ele aponta de mim para ele —, só queria deixar claro que
tá tudo legal entre a gente. Que você tá legal. Porque assim, foi divertido, mas a
gente trabalha junto, então meio que não devia ter acontecido.
Meu mundo para. Como é que é?
— Eu não me arrependo, ok? Foi ótimo — ele continua, cada vez mais
desconcertado. — Mas aquele dia no almoxarifado, e agora isso... É arriscado, e
meio pouco profissional. Não quero ser outro Tim na sua vida. O que estou
dizendo é que acho melhor a gente parar por aqui. Tudo bem?
Não. Não está tudo bem. Ele está me dando um pé na bunda depois de uma
transa?
— Claro — é o que digo. Não sei o que mais dizer. Bebo o café para me
ocupar e acabo queimando a língua.
— Tá bom. — Ele assente. Não sei dizer se está aliviado ou não. Todos os
seus sentimentos são um mistério.
Então, após mais uma hesitação que é puro constrangimento, ele se afasta e
volta para a mesa. Alguém lhe diz bom dia, mas o Nicolas mal-humorado está
de volta, e tudo que ele responde é “hoje é segunda-feira”.
Fico parada por mais um bom minuto antes de ter coragem de me mexer.
Quando retomo os sentidos, ouço Oscar gritar meu nome e sei que esse
pesadelo vai ter que esperar.
— V ocê tá com uma cara estranha — Suze diz na hora do almoço.
Olho para ela, sem entender.
— Estranha como?
— Sei lá, você parece meio puta da vida. Tá com uma careta, sabe? —
Ela imita a expressão, franzindo o cenho e forçando um bico.
— Não estou, não.
Ela pega o celular e vira a câmera frontal para mim. Sou encarada de
volta por mim mesma, fazendo a exata expressão que ela acaba de imitar.
— Vai me falar o que aconteceu? — Ela guarda o celular de novo. —
Achei que você ia estar nas nuvens depois de transar com o...
— Shhh! — Ergo uma mão e ela para de falar. — Sem nomes, pelo amor
de Deus.
— Não tá mais aqui quem falou! — Suze ergue as mãos. — Mas e aí? O
que foi?
Respiro fundo e solto os talheres. Estou tão mal-humorada que nem a
lasanha que pedi no almoço está me ajudando a relaxar. Queria voltar para a
minha cama e desaparecer.
— Ele meio que me deu um fora.
— Calma. Ele, ELE?
— É, Suze. Ele.
Minha amiga para, aparentemente chocada, mastigando devagar. Engole
e toma um gole de suco. Só então se pronuncia.
— Uau.
— Eu sei. — Reviro os olhos e corto um pedaço de lasanha com mais
força do que o necessário.
— Por essa eu não estava esperando — ela continua. — Geralmente é
você que...
— Eu sei — repito, e ela se cala.
Sim, normalmente sou eu quem distribuo foras. Não que eu seja uma
grande conquistadora ou que nunca tenha tomado um pé na bunda na vida,
mas via de regra sou eu quem preciso me livrar dos caras chatos, ou impor
os limites. Faz tanto tempo que não sou chutada que, agora que senti isso na
pele, estou quase com pena de Tim e dos outros caras cujas bundas já foram
chutadas por mim.
— O que ele disse? — Suze pergunta, e eu solto os talheres de novo com
um suspiro de frustração.
— Que foi ótimo, mas achava melhor que não se repetisse — digo, a
lembrança em si fazendo meu ego se inflamar de dor. — Que como a gente
trabalha juntos, isso ia complicar as coisas.
— Ah, pelo amor de Deus! Não é como se ninguém nessa empresa
tivesse um caso ou um relacionamento.
— Exato! Lembra da Priscila? Ela e o Oscar tiveram um caso por anos e
todo mundo sabia.
— Não sei se esse é o melhor exemplo, amiga. A Priscila processou o
Oscar por assédio quando eles terminaram.
— Verdade.
— O ponto é que isso é besteira. — Suze faz uma pausa para mastigar e
em seguida continua: — E outra, ele é só o estagiário. A média de
permanência de estagiários no nosso setor é de tipo, um mês. Ele vai ser
mandado embora já, já, pelo menos podia aproveitar e te dar uns pegas sem
compromisso no estúdio.
— Não é? — Reviro os olhos. — Que diferença um mês faz? Ninguém
nem precisa ficar sabendo.
Suze concorda em silêncio enquanto mastiga, e eu aproveito a brecha
para tentar voltar a comer. Mas minha mente começa a maquinar. Antes que
eu perceba, já tem um plano se formando na minha cabeça.
— Quer saber? É um mês só — digo, de repente. Suze ergue uma
sobrancelha, mas balança a cabeça de novo.
— Sim, um mês só. Esquece isso, daqui a pouco você nem vai precisar
mais ver ele por aqui.
— Não, não. Um mês. Eu posso deixar ele pianinho em um mês.
Suze hesita.
— Luana, do que você tá falando?
— Bom, ele acha que vai complicar as coisas, né? Então eu vou
complicar mais um pouco pra ele. — Bato uma mão na mesa para dar efeito,
mas só consigo machucar a palma da mão na beirada da bandeja.
— Você não tá fazendo sentido nenhum.
— Aposto que consigo fazer ele se apaixonar por mim em um mês —
digo, e isso sim chama totalmente a atenção dela.
— O quê?
— Ele não quer ficar comigo? Ótimo, a gente não precisa ficar —
continuo, como se ela não tivesse falado —, mas vou fazer ele rastejar atrás
de mim até implorar pra me comer de novo. Não que ele tenha me comido,
né. Nem pra isso serviu.
Estou sendo amarga sem necessidade e sei disso. A noite com Nicolas foi
maravilhosa mesmo sem o pacote completo de sexo. Mas eu não gosto de ser
rejeitada, e no momento a ideia de fazê-lo correr atrás de mim é tentadora
demais.
Olho para Suze, esperando sinais de repreensão.
— Você acha que eu pirei, né?
Nos encaramos e, após um longo minuto, minha amiga abre um sorriso
diabólico.
— Jamais. Se você tem um plano para fazer um macho sofrer, eu tô
dentro. Vamos elaborar essa aposta aí.
T oda mulher sabe chamar a atenção de um homem.
Minha mãe me disse isso quando eu tinha uns 15 anos e sérios problemas de
autoestima com os garotos. Na fase em que todo mundo estava beijando na boca
e começando a namorar, eu estava jogada para escanteio — era gorda, preterida,
e achava aquilo a pior combinação do universo.
Nunca soube se o que a minha mãe dizia era verdade ou não. Mas sei que foi
verdade para mim. Nos anos seguintes, passei por uma transformação interior.
Descobri que quanto menos me preocupava com os meninos e mais comigo,
mais eles queriam a minha atenção. Nunca falhou.
Não era agora que iria falhar.
Minha técnica é simples e se baseia em ciência pura: não vou dar nenhuma
atenção a Nicolas. Vou ignorar a existência dele. Ele é só meu estagiário, afinal.
Não é como se eu precisasse dele pra alguma coisa. Vou manter nossa relação
tão profissional que ele vai precisar de um casaco extra pra se proteger de todo
o gelo que vai receber de mim.
No dia seguinte, como obra do destino, cruzo com ele no hall esperando o
elevador. Ele está com um copo de café na mão, e olha na minha direção
quando chego. Ele não chega a sorrir, mas algo no seu rosto parece mudar.
Passo por ele sem encará-lo, aperto o botão do elevador mais algumas vezes e
me posiciono para esperar.
— Bom dia — digo, num tom neutro de educação.
— Bom dia — ele responde. Não me viro para olhar, mas sinto que ele está
me observando.
O elevador chega e abre as portas. Vou na frente e, pelo espelho que há na
parede oposta, flagro Nicolas olhando a minha bunda enquanto ando. Me
esforço pra não sorrir.
Nicolas entra. Aperto o botão para o nosso andar, mas antes que as portas se
fechem, Tim aparece, apressado. Ele entra, aperta o botão para o próprio andar,
e só então parece notar que sou eu.
— Luana. Bom dia.
— Bom dia — digo, e arrisco um sorriso. Tim não merece, mas não resisto à
provocação.
— Tá bonita hoje — ele diz. Nem parece o mesmo cara que me ofendeu
ainda outro dia. Reviro os olhos.
— Eu sei.
O elevador para, e eu desço. Queria olhar pra trás, mas não preciso — pelo
calor no meu pescoço, sei que sou observada até meu corpo sair de vista quando
sento na minha baia.

Não falo com Nicolas mais do que o estritamente necessário durante o dia.
Oscar me passa trabalho atrás de trabalho, e antes do almoço já estou furiosa o
suficiente com os deadlines e as mil e quinhentas alterações que me são
solicitadas pra que ninguém fale comigo o resto do expediente.
Quando chego em casa, descubro que Nicolas começou a me seguir no
Instagram.

A operação Elsa demora alguns dias para surtir efeito. Não é até sexta-feira
que Nicolas dá sinais de ter percebido alguma coisa.
Não cruzo com ele até chegar à minha mesa. Cheguei mais cedo para poder
adiantar toda a carga absurda de trabalho que tenho para fazer e ainda sair a
tempo do happy hour, mas não tem motivo nenhum para Nicolas já estar aqui.
Passo por ele e jogo as coisas na minha mesa.
— Bom dia — digo. Neutra, simples, direta.
— Chegou cedo.
— Tenho coisa pra adiantar — digo.
Não pergunto de volta. Finjo que não me interessa. Finjo que não estou me
perguntando.
Ele espera um minuto, e então completa:
— Meu computador quebrou. Preciso terminar um trabalho da faculdade.
— Hm.
Espero o computador ligar e, no meio tempo, vou até a copa buscar água.
Volto e tomo um comprimido para dor de cabeça, porque é sexta e eu não sou
obrigada. Vou abrindo as coisas no computador, e já estamos no mais completo
silêncio há vários minutos quando Nicolas me chama.
— Luana?
— Hm — digo, sem sequer mover a cadeira.
— Você está chateada comigo? Pelo... — Ele pausa. — Pelo que te falei?
Uau, como você é perceptivo, penso, mas não falo. Não é essa a técnica. A
técnica é a indiferença.
— Não. Por quê?
— Por nada. Tô te achando diferente, só isso.
— Relaxa. Não é nada com você. Aquilo não foi nada.
Nicolas não responde, mas o ouço murmurando “não foi nada” várias vezes
até o resto do pessoal chegar.

Passo o dia atarefada, e só falo com Nicolas quando é estritamente


necessário. Quando finalmente dá a hora de ir embora, o departamento todo
segue como zumbi até o bar, o ponto alto da semana.
Nicolas senta na ponta oposta, e finjo não reparar na distância, fazendo todo
o esforço do mundo para não olhar para ele. Suze, que não é boba nem nada,
repara.
— Então a sua técnica de sedução é dar um gelo nele?
— Sim — respondo, com um meio sorriso. Com a sutileza de um terremoto,
ela estica o pescoço para espiá-lo do outro lado.
— Parece que tá funcionando — diz. Não me viro para olhar.
— Ele queria profissionalismo, estou dando profissionalismo — digo, dando
de ombros.
— Queria era estar dando outra coisa, né? — ela rebate, e nós duas
gargalhamos.
O garçom vem retirar nossos pedidos, a começar da ponta da mesa. Quando
chega até nós, Suze me olha.
— Cerveja?
Paro, e só então olho para Nicolas. Ele me encara quase em expectativa.
Balanço a cabeça.
— Não, vou ficar no suco hoje.
— Como quiser. Então só uma long neck pra mim e uma porção de fritas pra
dividir.
O garçom se vai, e eu e Suze engatamos em um papo sobre os planos para o
carnaval. É sexta-feira, e os bloquinhos já estão a todo vapor, mas nem comecei
a me planejar para a folia, de tão atolada de trabalho que tenho estado. Suze
abre sua lista de blocos de carnaval no celular e sugere alguns, e outros colegas
se intrometem para dar opinião.
Uma a uma, as pessoas começam a ir embora. A mesa vai encolhendo, e as
pessoas se aproximam para preenchê-la. Logo, Nicolas está praticamente do
meu lado. Estou no terceiro copo de suco, enjoada de tanta fruta, mas não
arredo pé. Quando Suze dá o primeiro bocejo, digo:
— Bom, acho que já tá na hora, né? Senão daqui a pouco eu perco o metrô.
— Eu te dou uma carona. — Nicolas solta, apressado demais. Então faz uma
pausa e acrescenta: — Se você quiser.
— Não preciso que você me leve, obrigada — digo com um sorriso educado.
— Nem bebi hoje pra não te dar esse trabalho.
Ele não responde. Eu me levanto e levo Suze comigo.
— Bom carnaval — falo, com o mesmo tom neutro. — Te vejo no trabalho.
— Pra você também.
Andamos até o caixa, e o tempo todo quero olhar para trás pra saber se ele
está me encarando. Não me viro nem uma vez.
S empre amei o carnaval. Tudo, desde as cores até a música, me deixa
motivada nessa época do ano. Do que dependesse de mim, iria a todos os
bloquinhos de rua e a todas as festas possíveis; como não dá, esse ano me
contento em escolher alguns com Suze.
Faz um dia ensolarado quando eu a espero na saída estação Consolação.
Uma leva gigantesca de foliões já desce a Augusta, e eu fico parada do lado de
fora, calmamente bebendo uma latinha de cerveja. Suze está atrasada, para
variar, então não vi por que esperar por ela para o esquenta. Enquanto aguardo,
puxo o celular de seu lugar seguro, alojado entre os meus peitos, e abro o
Instagram.
Curto e comento as fotos de alguns amigos na folia, me divertindo com as
ideias de fantasias. Estou bem básica esse ano: coloquei um collant rosa choque,
uma saia de tule cheia de pontos brilhantes que comprei pela internet e passei
glitter o bastante na cara e no peito para me enxergarem do alto do Pico do
Jaraguá. Passei quilos de talco entre as pernas para evitar ficar com as coxas
assadas, e estou torcendo pelo melhor.
Passo por dezenas de fotos brilhantes, então chego a uma de Nicolas na
praia. Ele está de costas, no topo de algum morro, a paisagem belíssima abaixo.
Nem sabia que ele ia viajar. Não que eu tenha perguntado, é claro, mas não o
ouvi mencionar a viagem quando o pessoal falou dos planos para o feriado. Fico
imaginando se ele vai postar altas fotos sem camisa na praia, mas lembro que
ele não é esse tipo de cara nas redes sociais. Uma pena. Só me resta a
lembrança.
E que lembrança. Só de projetar a imagem na minha cabeça, já sinto o talco
derreter entre as minhas pernas. A pior parte em dar um gelo em Nicolas é que
ele é o Nicolas. Seria tão mais fácil se ele fosse algum cara esquisito e pouco
atraente, tipo o Tim do financeiro. Mas não. Ele tinha aquele... apelo. Uma
sensualidade ridícula de quem sequer está tentando. Não dá pra resistir.
— Alooouu, terra pra Luana! — Uma mão balança bem diante dos meus
olhos e eu desperto. Suze chegou.
— Desculpa, amiga! — Eu guardo o celular e a admiro. Suze não fez
qualquer esforço para parecer fantasiada, mas acertou na combinação de shorts,
blusinha e muito glitter. — Você está um arraso.
— Estamos! Qual é o número de hoje?
Eu gargalho. Todo carnaval desde que nos tornamos amigas, fazemos uma
competição ridícula de quantas bocas queremos beijar até o fim do dia.
Ninguém nunca chega nem remotamente perto, mas gostamos de manter a
tradição.
— Treze.
— Treze? Vai dar zebra!
— Vai dar é sucesso. Vamos!

Evidentemente, nós não beijamos nem metade de treze. Não beijamos nem
treze combinadas. Suze foi mais sortuda: beijou um rapaz e uma drag queen. Eu
não saí do zero a zero.
Voltei pra casa exausta, suada e queimada de sol. Passei horas no banho
tirando todo o glitter e deitei só depois de tomar um remédio pré-ressaca e dois
litros de água. Antes de dormir, abro o Instagram, na esperança de ver alguma
imagem de Nicolas sem camisa para me dar boa noite. Mas, só pra variar, não
há nada lá.

“Lua, deu ruim. Não paro de vomitar. Acho que a catuaba de ontem me
desceu mal.”
Suspiro ao ler a mensagem de Suze. Ela realmente bebeu além da conta no
bloco de ontem. Faço uma careta preocupada e respondo:
“Vish. Quer que eu vá até aí?”
Levanto enquanto espero ela responder. Minha geladeira está quase vazia,
mas encontro pães de queijo congelados no freezer. Tiro o saquinho e ponho
alguns pra assar.
“Tá tudo bem, minha mãe tá aqui. Mas miou o bloco de hoje. Desculpa.”
Leio a mensagem e faço um muxoxo.
“Não se preocupa. Se cuida.”
Bloqueio o celular e penso. O que vou fazer agora?

Duas horas depois, estou vestida e a caminho do bloco. O look do dia é um


vestido soltinho combinando com uma coroa de flores. O mundo inteiro parece
estar se dirigindo ao mesmo lugar no metrô.
Ir a um bloco de carnaval sozinha não me parece o melhor de todos os
passeios, mas eu realmente odeio cancelar meus compromissos só por falta de
companhia. Tentei todas as minhas amigas, mas aquelas que não estavam
viajando simplesmente não estavam dispostas, e decidi que pior do que ir pro
bloco sem companhia seria não ir e ficar remoendo a ideia em casa. Então, aqui
estou eu.
Desço na estação Vila Madalena e sigo com os foliões até a concentração. O
bloco de hoje foi escolha de Suze, que prefere os menores aos mais disputados,
então decidi honrá-la vindo até aqui. Apesar desse ser minúsculo se comparado
aos trios elétricos e a zona da Rua Augusta ontem, tem gente o suficiente para
interditar algumas ruas, e barulho o bastante para ensurdecer os vizinhos. Uma
bateria toca músicas agitadas, e eu procuro um espaço para ficar onde consiga
vê-los.
Sem companhia, a internet é tudo que me resta. Faço alguns stories e tiro
fotos, depois olho em volta e presto atenção no que todo mundo está vestindo.
Minha parte favorita do carnaval são as fantasias, especialmente as menos
elaboradas. Me divirto com crianças fofas e adultos vestidos de referências de
cultura pop. Lá pelas tantas, depois de já fotografar meio mundo e requebrar
muito ao ritmo da bateria, resolvo parar pra buscar uma cerveja.
Procuro algum ambulante e encontro uma moça parada ao lado de um
grande isopor cheio de gelo. Tiro a carteira minúscula de dentro do decote.
— Você passa cartão, moça? — pergunto. Antes que ela tenha tempo de
acenar que sim, uma voz diz:
— Luana?
Ergo os olhos. Parado, atrás da vendedora, está Nicolas.
Eu o encaro por tanto tempo com a boca aberta e a carteira ainda na mão que
a vendedora chama minha atenção para perguntar o que eu quero. Pego uma
cerveja e pago, a cabeça ainda girando. O que ele está fazendo aqui? Não era
pra ele estar aqui!
Nicolas espera eu terminar a transação, ainda me encarando. Ele está tão
carnavalesco quanto era de se esperar: usa só uma bermuda e uma camiseta
escura sem estampa, com um colar havaiano no pescoço que parece ter ido
parar ali por acidente. Quando pego minha cerveja, dou a volta no isopor para ir
até ele.
— Achei que você estivesse na praia? — digo, o tom de pergunta saindo
sem querer. Ele faz uma careta.
— Por quê?
— Seu Instagram.
— Ah. É foto antiga. O que você está fazendo aqui?
Abro os braços, olhando em volta de forma óbvia.
— Pulando carnaval.
— Sozinha? — Ele olha atrás de mim, como se esperasse que alguém fosse
surgir. Dou de ombros.
— Você também está — digo, gesticulando para ele. — Achei que não
gostasse dessas coisas.
— Eu detesto, mas a minha irmã adora, e alguém tinha que vir com ela. —
Nicolas aponta por sobre o ombro.
Só então vejo que ele não está desacompanhado. Uma garota de talvez 15 ou
16 anos pula animada, dançando sozinha enquanto segura uma garrafa d’água.
Ela é quase tão gorda quanto eu, mas se esconde muito mais: está de calça,
apesar da temperatura, e usando uma camiseta preta. O glitter nas bochechas e o
cabelo cor-de-rosa são os únicos traços de cor nela.
— Não sabia que você tinha irmã — digo, debilmente, voltando a olhar pra
ele. Nicolas dá de ombros.
— Meia-irmã, mas é isso aí. Sou babá por um dia.
Ele diz as palavras com tanto carinho que não consigo manter a fachada
escrota que usei a semana toda. Em vez disso, sorrio.
— Pelo menos ela tem você. Eu não tenho ninguém.
— E o seu grude? — pergunta, com um meio sorriso.
— Suze? Passou mal. O bloco de ontem foi demais pra ela.
— Sei. Baixo Augusta, né?
Ele parece arrependido de ter perguntado logo em seguida. Baixo os olhos e
tento não rir. Pelo menos não sou a única stalker.
— Bom, quer a companhia de uma adolescente animada e de um homem
ranzinza? — diz, então. Dou de ombros.
— Por que não?

A tarde com eles é divertida. Nicolas e eu conversamos sobre assuntos


seguros — carnaval, música, o clima — e eu me apresento à irmã dele. O nome
dela é Iris, ela tem 15 anos e é uma bola de energia. Mesmo quando já estou
exausta (e levemente bêbada) e Nicolas implora para irmos embora, ela ainda
não se cansou. Então sugiro pararmos em algum lugar pra comer.
E é assim que, às cinco da tarde, estou sentada num McDonald’s com o cara
em quem estou tentando dar um gelo e sua meia-irmã.
— Então vocês trabalham juntos? — Iris pergunta enquanto comemos. Eu e
Nicolas nos entreolhamos rapidamente antes de assentir.
— Seu irmão é meu estagiário — digo, e a escolha de palavras me faz corar.
— Digo, do meu departamento.
— Isso é tão esquisito — ela comenta, e Nicolas franze o cenho.
— O quê?
— Você fazendo estágio! Quando eu tiver trinta anos já vou ter meu próprio
negócio.
Mais uma vez, eu e ele trocamos um olhar, e dessa vez torcemos para não rir.
Ela vai ter sorte se, aos trinta anos, tiver um emprego. Mas isso levanta uma
outra questão.
— Por que você trabalha como estagiário? — pergunto a ele. — Você
trabalha período integral.
— É PJ né? Um verdadeiro Deus nos acuda. — Nicolas dá de ombros. —
Eles assinam a papelada de estágio e pra mim isso já resolve. Mas é tudo meio
irregular.
— O que que te deu pra querer começar de novo? — pergunto em seguida, a
curiosidade falando mais alto que o bom senso. — E o que você fazia antes,
aliás?
— Ele era analista de sistemas numa empresa enorme. Papai ficou puto —
Iris interrompe, e Nicolas dá um peteleco gentil no ombro dela.
— Sim, eu era analista de sistemas, e era muito bom, mas eu só... — Nicolas
faz uma pausa, respirando fundo. — Eu só não curtia, sabe? Trabalhava 12
horas por dia e odiava tudo. Virei chefe do meu departamento, ganhava bem,
mas não tinha tempo pra nada.
— Se você acha que vai ter tempo pra alguma coisa trabalhando com
marketing... — começo, mas ele abana uma mão na minha frente.
— Não é isso. Eu não tenho nenhuma ilusão de emprego dos sonhos, não.
Mas eu gosto do que a gente faz. Eu gosto do que eu vivo lá dentro.
Ele me lança um olhar que diz que não é bem ao trabalho que ele se refere.
Desvio rápido, antes que o clima fique intenso demais.
— Onde você compra suas roupas? — Iris pergunta, subitamente, e
engatamos em uma longa conversa sobre marcas Plus Size e onde encontrá-las.
Voltamos juntos de metrô, e me despeço deles na baldeação da linha
amarela. Estou esperando o trem quando recebo uma mensagem de Nicolas.
“Avisa quando chegar em casa.”
Sorrio, um frio na barriga tomando conta, e respondo:
“Pode deixar.”
“E se quiser companhia para o bloco de amanhã, já sabe.”
“Pode ser. 14h na Faria Lima?”
“Fechado.”
A cordo elétrica no dia seguinte, muitas horas antes do necessário. Suze
me mandou mensagem perguntando como foi o bloco, mas não tenho coragem
de responder. Tenho outras coisas na cabeça. Tenho Nicolas na cabeça.
Tomo banho, tento deitar mais um pouco, depois levanto de novo. Saio pra
comprar pão, volto, como e me arrependo logo em seguida, porque estou tão
nervosa que meu estômago está revirado. Nem sei por que estou tão nervosa.
Vou sair com ele e com a irmã dele de novo. Não deveria fazer diferença.
Mas faz. Faz toda a diferença.
Quando já esperei o suficiente, começo a me arrumar. Pego meu cropped
metalizado e uma saia preta. Prendo o cabelo com o adereço em formato de
chapéu que comprei no centro da cidade. Me maquio, num estilo meio gótica
cheia de brilho, e jogo o tão necessário glitter em todas as partes possíveis.
Parece que levo uma vida, mas quando saio de casa, na verdade estou
superadiantada. Provavelmente vou esperar horrores por ele no metrô, mas saio
de casa mesmo assim, só para não ficar parada, esperando o tempo passar. Só
por garantia, antes de sair, coloco um par de camisinhas na bolsa.
Afinal de contas, nunca se sabe.
Tem aproximadamente um milhão de pessoas no mesmo vagão que eu no
trem, e todas parecem ir ao mesmo lugar. Passo por pessoas fantasiadas
carregando bebidas, por pais levando os filhos, por gente fugindo da folia. Rio
ao pensar que Nicolas provavelmente estaria no último grupo, mas está se
arrastando na direção contrária. O pensamento me enche de uma súbita onda de
carinho. É fofo o que ele está fazendo pela irmã. Não consigo me imaginar
fazendo algo que não gosto pra agradar ninguém, e nunca imaginei que ele
fizesse o tipo. Prova real de que mal o conheço.
Chego na estação e o espero do lado de dentro das catracas. Puxo o celular,
mas está sem sinal, então me resta esperar, o que faço pela meia hora seguinte.
Sabia que ia chegar muito cedo. Não trouxe nem fones de ouvido, então fico
apenas encarando o vai e vem de pessoas na estação.
Então eu o avisto. Vestido tão à paisana quanto ontem, de bermuda jeans e
camiseta, ele se encaminha até às catracas, olhando em volta. Ao lado dele
está...
Ninguém. Ele veio sozinho.
Mas como?
Aceno, indo em direção a ele. Ele para, sem atravessar, e puxa o telefone do
bolso sem me ver. Quando o alcanço, ele está erguendo o celular em busca de
sinal, como um homem das cavernas.
— Ei, eu tô aqui! — digo, balançando a mão na frente do rosto dele. — Oi!
— Ah! Oi! — Ele sorri e guarda o telefone. Olho para os lados.
— E sua irmã?
— Cansou, eu acho? Decidiu que não queria vir.
— Ah.
Algo no tom dele me dá 99% de certeza que estou sendo enrolada, mas não
sei como me sentir sobre isso.
— Podia ter falado. Não precisava me acompanhar, eu sei que você ia vir só
por causa dela — digo, então. Nicolas ergue uma sobrancelha.
— E você ia vir sozinha?
— Não sei se você reparou, mas eu estava sozinha ontem até esbarrar em
vocês e tava tudo bem.
Ele revira os olhos pro meu deboche. Ficamos parados em silêncio, um
evitando o olhar do outro.
— Você prefere que eu vá embora? — Nicolas diz, fazendo um gesto na
direção das escadas rolantes. Dessa vez, sou eu quem reviro os olhos.
— Não. Mas não precisa fazer um rolê que você não gosta nem quer, só por
minha causa — respondo.
— Luana, eu não teria vindo se não estivesse a fim!
— Então você quer ir pro bloco?
— Não, eu quero ficar com você.
Ele faz uma pausa, se dando conta do que disse.
— Isso é, quero te fazer companhia.
Sinto meu rosto corar, e espero ter glitter o bastante na cara pra disfarçar o
rubor. Faço um muxoxo.
— Hm, e se a gente fizesse outra coisa? Tipo, não precisamos ir pro bloco.
Nicolas dá de ombros.
— Você quem manda. Quer ir pra algum lugar?
Todos os lugares. Com você eu iria até o inferno.
— Vamos até a Augusta e de lá a gente vê.
Ele concorda, e nós descemos as escadas de volta pro metrô. Debatemos o
melhor caminho e ele teima comigo quando digo que a linha amarela é a melhor
opção, até olharmos um mapa das linhas e ele se dar por vencido. Entramos no
metrô e, por algum milagre, encontramos um lugar pra sentar.
Sentar, eu penso, não é a melhor definição. O espaço é apertado e eu sou
larga. Nicolas senta do lado da janela e eu no corredor, e mesmo assim quase o
espremo. Ele é grande e está visivelmente desconfortável, sem ter onde colocar
o braço, as pernas meio tortas.
— Quer passar o braço... — começo, gesticulando pro meu ombro. Nicolas
torce o nariz.
— Eu posso...
— Claro.
Ele se mexe e passa um braço pelo meu ombro, se ajeitando. Queria dizer
que encaixei perfeitamente no seu abraço, mas a verdade é que a situação toda é
estranha e eu não consigo me mexer.
Aos poucos, vou relaxando. Me ajeito no banco quando chegamos na
estação Mackenzie. Movo as pernas para dar espaço ao moço que senta no
banco à frente. Então cometo o erro de olhar para Nicolas.
Ele está olhando pra mim também. Não pro meu decote, que, convenhamos,
é bem de chamar atenção, mas pra mim. Quando ergo os olhos, nossos rostos
estão tão perto que posso sentir a respiração dele na minha pele. Sinto o corpo
todo arrepiar. Ele molha os lábios com a língua. Meu deus do céu, como eu
queria que ele me beijasse.
— A gente pode... não sei... ir lá pra casa — ele diz, lentamente.
— Hm.
— Tem cerveja lá. Tem coisa pra comer.
— Hm.
— Isso é. Se você quiser.
Eu o encaro. Deveria dizer que não. Deveria dar um fora homérico nele pra
ele aprender a não brincar comigo.
Mas a quem estou querendo enganar? Eu iria até o inferno se ele me pedisse.
— Vamos.
Ele sorri. Chegamos na estação Paulista e trocamos de trem.

Nicolas mora no primeiro andar de um prédio alto, com cara de caro.


Quando entramos, a primeira coisa que ele diz é:
— Era do meu avô. Ele deixou pra mim. O preço do condomínio é pior do
que pagar aluguel, acredite.
Não discuto. Não dou a mínima se ele paga um real ou um milhão no
condomínio. Só quero entrar logo.
Ele destranca a porta do número 12 e me deixa entrar na frente. Por dentro, o
apartamento é simples, menor do que eu imaginava. Não tem nada na sala além
de uma TV, um videogame e um sofá. Posso ver três portas ao fundo, dos
quartos, imagino. A cozinha é a parte mais bem equipada, em um caos
organizado, todas as superfícies ocupadas por algum eletrodoméstico. Um cesto
cheio de roupa suja espera ao lado de uma máquina de lavar na área de serviço.
— Quer uma cerveja? — ele oferece, e afirmo que sim. Entro na cozinha
com ele, percebendo que tem uma mesa, mas não há nenhuma cadeira. Ele pega
duas latinhas na geladeira e me dá uma.
— Você come de pé? — pergunto, debilmente.
— Não. Como no sofá.
— E quando tem visita? — insisto. Meu deus, eu me tornei a minha mãe.
— Faz tempo que não trago ninguém aqui.
Fazemos silêncio, bebendo sem nos encarar. Estou quase arrependida de ter
vindo. Agora já não me parece mais uma ideia tão boa.
— Você tava diferente essa semana — ele diz, de repente. Quando o olho,
sua expressão está séria. — Eu te fiz alguma coisa?
Respiro fundo. Hora de mandar a real.
— Não estava estranha. Te tratei como trato qualquer colega de trabalho.
Não era isso que você queria?
Ele balança a cabeça, parecendo meio puto. Paciência. É a verdade.
— Porra, Luana, você sabe que não foi desse jeito — diz, pousando a
cerveja na pia e cruzando os braços —, mas a gente trabalha junto. Fica
esquisito. Eu só achei que seria melhor se a gente mantivesse tudo no
profissional, pra não acabar dando merda pra ninguém.
— Foi por isso que você me chamou pra sua casa? Por que quer manter tudo
no profissional? — pergunto.
Aquilo o desconcerta, e por um segundo, ele não reage. Então, sua seriedade
se dissolve em um sorriso.
— Não, não foi por isso. Não mesmo.
— Então por quê? — desafio. Meu coração bate tão forte que posso senti-lo
na boca.
Nicolas descruza os braços e hesita antes de dizer:
— Porque eu posso evitar você no trabalho, posso te evitar na rua, posso te
evitar na internet. Mas não consigo evitar te querer.
Não respondo. Ele cruza a distância entre nós em dois passos, até parar na
minha frente, praticamente me colando no batente da porta. Ele não me toca,
mas sinto suas mãos planando centímetros acima da minha pele.
— E você? Por que você veio? — me pergunta. Engulo em seco.
— Porque nós temos assuntos inacabados.
— Temos?
— Uhum. Muitos. Daquele dia, lá em casa.
Ele sorri.
— Acho que dá tempo de a gente resolver até o fim do carnaval.
— Acho que sim. Mas é melhor a gente começar agora.
É aí que ele me beija.
Não sei como aguentei tanto tempo sem isso. Um dia seria loucura o
suficiente. Quando nossas bocas se encontram, é como se eu não o beijasse há
anos. Ele põe as mãos na minha cintura, eu enlaço seu pescoço e ficamos ali por
uma vida inteira, agarrados, sem conseguirmos nos soltar.
Nicolas se desgruda de mim apenas por tempo suficiente pra me levar até o
sofá. Ele se abaixa para puxar os assentos, transformando o sofá de dois lugares
em uma mini cama. Então vem até mim e me beija de novo, mais tenro.
— Não é mais fácil a gente ir pro quarto? — pergunto, em tom de piada. Ele
ri.
— Meu quarto tá uma bagunça tão grande que a gente vai passar umas horas
só tentando encontrar a cama.
Eu gargalho, ele beija meu pescoço.
— Puta que pariu, Luana, pra que tanto glitter?
— É carnaval!
— Argh!
— Posso tirar, se você quiser. Só preciso de um banho.
O rosto dele se ilumina.
— Tem lugar pra dois no meu banheiro.
Rio de novo, e ele me puxa em direção ao corredor. Abre a porta do meio,
revelando um banheiro que deve ser do tamanho do meu quarto. Tem mesmo
espaço pra dois. Ele fecha a porta e me encara.
— Tira a roupa pra mim.
Mordo o lábio, meus olhos faiscando.
— Se você pedir direito.
— Ah, desculpe.
Ele se aproxima, colando o corpo no meu. Aproxima sua boca da minha,
mas em vez de me beijar, ele sussurra:
— Tira a roupa pra mim, por favor.
Seguro a urgência de beijá-lo, a vontade louca que estou de jogá-lo no chão
do banheiro e transar com ele ali mesmo, e faço o que me foi pedido.
Começo pelos sapatos, tirando um de cada vez, e depois as meias. Tiro a
saia, devagar, me virando de costas pra ele. Tiro o celular e a carteira de dentro
do decote, passando tudo para Nicolas enquanto tiro o cropped e depois o sutiã.
Tiro a calcinha por último. Quando me viro de volta pra ele, seus olhos ainda
estão grudados em mim.
— Sua vez.
Ele ri, mas me obedece. Nicolas consegue ser, ao mesmo tempo, esquisito e
extremamente sensual tirando a roupa, como um adolescente apressado que mal
pode esperar pela sua primeira vez. Ele tira a camiseta primeiro, então os tênis,
as meias e a bermuda. Põe a mão no cós da cueca para tirá-la, mas eu o impeço.
— Não. Deixa que eu faço.
Enrolo os dedos no elástico da cueca. Nada daquelas boxer bonitinhas — é a
boa e velha cueca branca comum. Não me importo. Me ajoelho no chão
enquanto o dispo, trocando o tecido pela minha boca, beijando sua barriga, suas
pernas e sua virilha, sem nunca terminar nenhuma promessa. Ele treme.
— Luana...
— Glitter primeiro — digo, me colocando de pé.
Entramos no box. Ele liga o chuveiro e testa a temperatura. O tempo está
quente, mas o chuveiro está pelando. Não reclamo. Ele põe a mão no meu
cabelo e me ajuda a soltar os fios. Sei que vou me arrepender disso no instante
em que olhar pro único tubo de xampu que ele tem, mas agora não consigo me
importar.
Entro debaixo da água. Provavelmente vou parecer um panda daqui dois
minutos, mas que se foda. Nicolas pega o sabonete e o encosta na minha pele,
ensaboando o meu colo. De repente, tenho uma crise de riso.
— O que foi?
— Vai ter glitter no seu banheiro todo.
— Vai mesmo — ele ri —, mas tudo bem por mim.
Ele me beija, se molhando também, e no instante seguinte somos uma massa
ambulante de risos e bocas, mãos e água. O lance todo de sexo no chuveiro
raramente funciona, mas os amassos... ah, os amassos são imperdíveis.
Nicolas me vira de costas e me ensaboa inteira. Ele é doce, completamente
ineficaz no que diz respeito ao glitter, mas me divirto mesmo assim.
Desperdiçamos toda a água do mundo naquele banho, só para descobrirmos,
quando acabamos, que Nicolas esqueceu de pegar uma toalha pra mim.
— Fica com a minha que vou pegar outra — diz, me estendendo uma toalha
preta. Aceito e me enrolo nela enquanto ele sai do banheiro, completamente
molhado.
Sem saber por que, eu o sigo.
Encontro Nicolas no quarto, revirando um armário. Ele não estava brincando
quando disse que o cômodo era uma zona. Tem roupas espalhadas por todos os
lados, revistas e capinhas de jogos de videogame perdidos, e parece inabitável.
Apesar de tudo, encontro a cama. Quando ele se vira pra mim, está
completamente chocado.
— Não era pra você entrar aqui.
— Foi mal. — Dou de ombros, e seguro o riso. — Essa é a sua versão do
Quarto Vermelho da Dor? O Quarto Branco da Bagunça?
— O quê?
— Deixa pra lá.
Vou até ele. Está pingando. Na minha casa, a bagunça já teria me feito passar
raiva, mas aqui eu não me importo. Jogo minha própria toalha no chão e tiro a
que está na mão dele antes de enlaçá-lo pela cintura.
— Pra que a gente vai se secar se daqui a pouco os dois vão estar molhados
de novo, né? — digo, sem dúvidas a pior safadeza que já disse em voz alta em
toda a minha vida. De alguma forma, funciona. Nicolas põe as mãos nas minhas
costas, e desce até a minha bunda.
— Pra que, né?
Eu o empurro sobre a cama, subindo no seu colo, abraçando-o com as
pernas. Sentir sua ereção roçando a minha pele é o bastante pra me fazer gemer
baixinho, e quando eu o beijo, nossas bocas têm gosto de cerveja e desejo. As
mãos dele exploram todo o meu corpo, e eu mexo o quadril de propósito, me
esfregando nele até que ele não aguenta mais e tenta nos virar. O movimento, é
claro, falha miseravelmente — sou pesada demais e isso aqui não é um filme
mega ensaiado. Ele acaba pondo peso demais sobre uma das minhas pernas, me
fazendo gritar — não de um jeito bom.
— Machuquei?
— Um pouco. O que você tá tentando fazer?
— Inverter, sabe? Tá machucando a minha perna.
— Ah. Claro. Espera.
Tento sair de cima dele com graça e sem parar de beijá-lo, o que mais uma
vez se prova uma missão impraticável. Os filmes realmente vendem uma versão
muito mais fluida do sexo do que ele realmente é, penso comigo mesma.
Passado o minuto de desespero, nos ajeitamos de novo, ele sobre mim, muito
mais confortáveis do que antes.
Nicolas me beija, seus dedos passeando preguiçosos pela minha barriga,
descendo até se alojarem entre as minhas pernas. Ainda que só tenhamos
passado uma noite juntos, ele de alguma forma memorizou todos os caminhos, e
em menos de um minuto já localizou o ponto exato que me faz gritar seu nome
de todas as melhores maneiras. Ele brinca comigo sem pressa, indo do mais
lento ao mais acelerado, até que eu fique completamente sem ar. Então ele
sussurra no meu ouvido:
— Sabe o que eu tenho aqui?
Faço que não, incapaz de falar. Ele me solta por um momento e alcança
alguma coisa num ponto ao lado da cama. Então balança um pacote de
camisinhas na minha frente, me fazendo gargalhar.
— Aprendi a lição — ele diz, caindo no riso também.
— E quem disse que a gente vai transar hoje? — eu provoco, e a cara dele é
absolutamente maravilhosa, de susto, confusão e insegurança.
— Eu achei... Quero dizer, a gente não precisa... — ele começa. Eu o
empurro gentilmente até que ele esteja de barriga pra cima, e silencio sua
gagueira e seu choque quando minha mão encontra o que estava procurando.
Ele pulsa entre os meus dedos.
— Meu amor... — eu digo para ele, com um sorriso safado enquanto subo e
desço devagar —, você vai ter que implorar pra me comer.
E, durante os próximos minutos, é exatamente o que acontece, de novo e de
novo, quando vou cada vez mais rápido, querendo ao mesmo tempo senti-lo
gozar na minha mão e que ele se segure pra mim. Vejo o rosto dele se contorcer
em deleite, numa expressão que eu gostaria de fotografar só pra poder usar em
todas as noites em que eu estiver sozinha, e quando ele finalmente me implora,
o faz aos sussurros, tão sem fôlego quanto eu:
— Luana, pelo amor de Deus...
Eu o solto, quase a contragosto. Pego o pacote de camisinhas e abro uma
unidade. Quando a visto nele, a expressão de Nicolas é quase de alívio.
Passo uma perna ao redor dele, e me inclino pra beijá-lo, me demorando de
propósito. Mas eu mesma não aguento mais; já esperei mais do que suficiente.
Abaixo o quadril, mas erro a mira e o encaixe na primeira tentativa. Nicolas me
ajuda na segunda, e só então acertamos.
E é glorioso.
— Porra, finalmente! — solto, baixinho.
E cavalgo nele até minhas coxas arderem, minhas pernas tremerem e nós
dois explodirmos em prazer e alívio, risos e gemidos, tudo de uma vez só.
Q ueria dizer que Nicolas e eu paramos só no dia seguinte, e que passamos
a tarde e a noite toda transando como coelhos, mas não é verdade. Como
pessoas normais, depois de uma sessão muito boa — que, admito, foi bastante
longa — de sexo, paramos para tomar água e respirar. Minhas coxas estão
doloridas e ele geme de dor nas costas. Coisa de quem já não é mais adolescente
há muito tempo.
— Quer comer alguma coisa? — ele pergunta. — Acho que tenho um
cupom no iFood.
— Bem romântico — brinco, soltando uma gargalhada.
— Desculpa não estar à sua altura — ele diz, mas num tom que me faz sentir
que pisei em algum calo. Então só fico quieta e deixo passar.
Navegamos pelo cardápio do aplicativo até pedirmos uma pizza, porque é o
que está na promoção. Então ficamos deitados em um silêncio esquisito, não
natural demais para ser confortável, nem estranho o bastante pra ser
constrangedor. Por fim, decido puxar papo.
— Sua irmã não ia pro bloco, né?
— O quê? — ele diz, parecendo distraído.
— Ontem, quando você me chamou pra sair. Deu a entender que a sua irmã
ia junto, mas ela não ia, né?
Nicolas solta um risinho baixo.
— Não. Nem fodendo que eu ia aguentar levar ela pra farra dois dias
seguidos.
Balanço a cabeça, exasperada.
— Por que você não me falou?
— Luana, se eu tivesse te chamado pra sair, você teria aceitado?
Sim, teria , penso, mas não quero admitir em voz alta que estou de quatro
por ele, então digo:
— Eu teria mandado você tomar no cu.
Dessa vez, é ele quem gargalha alto.
— Você é tão orgulhosa!
— Eu não sou orgulhosa! — digo, a mentira saindo tão esfarrapada que
minha voz até afina. — Você que é o senhor "vamos manter no profissional".
Nicolas sobe em cima de mim e me trava na cama.
— Será que a gente pode não falar disso pelo resto do fim de semana? —
fala.
É difícil manter a sanidade e o joguinho enquanto ele está em cima de mim.
Nicolas é um perigo pra minha saúde mental, gostoso daquele jeito. Meus olhos
passeiam do seu rosto para o seu torso, até os pelos da virilha e pro pau em que
eu mal posso esperar pra subir de novo.
— O fim de semana? Vai me manter trancada aqui? — digo, em um tom que
é metade desafio e metade condescendência. Ele sorri.
— Trancada não. Você pode sair quando quiser. Mas eu espero que não
queira.
— E como você vai me convencer a ficar? — digo, deixando as unhas de
uma mão passearem pelas suas costas enquanto, com a outra mão, tateio até
roçar suas bolas. Ele arfa.
— Tenho umas ideias.
— Ah, Nicolas. Eu acho que você não dá conta de me manter entretida por
tanto tempo.
Ele se inclina e chupa meu pescoço antes de murmurar ao meu ouvido:
— Vamos descobrir.

Na janta, pedimos sushi e temakis, que chegam uma hora mais tarde. Nicolas
desce para buscar o pedido e, no meio tempo, separo o dinheiro da minha parte.
Coloco meu top e minha calcinha, só para não ficar desfilando pelada pelo
apartamento para que todos os vizinhos dos prédios próximos consigam me ver,
e vou para a cozinha.
Os armários da cozinha não seguem nenhuma ordem específica ou
compreensível de arrumação. Tem panelas em cima dos pratos, copos nas
gavetas e toalhas e panos de prato junto com produtos de limpeza sob a pia,
como se, em vez de organizar as coisas, Nicolas simplesmente tivesse colocado
cada item no primeiro lugar disponível. Sinto uma necessidade gritante de tirar
tudo do lugar para rearrumar, mas me controlo. Pego dois pratos (cada um com
uma estampa, já que nenhum dos cinco que ele tem parecem ter vindo do
mesmo conjunto) e dois copos. Encontro um pacote de guardanapos dentro de
uma das gavetas, junto com um abridor de garrafas e uma espátula, e pego dois.
Quando ele volta, pus um projeto de mesa que deixaria minha mãe horrorizada.
— Ah, obrigado! — ele diz, ao ver que adiantei alguma coisa. Põe o saco da
entrega sobre a mesa e começa a desempacotar.
— Oh, a minha parte — digo, tirando o dinheiro amassado do decote.
Nicolas olha dos meus peitos para a minha mão e as notas entre os meus dedos.
— Ah, não, Luana, nem vem. Guarda isso.
— O quê? É minha parte!
— Eu já paguei. Fica por minha conta. A próxima você paga.
A próxima. Ele está pensando numa próxima.
Mesmo assim, não arrego. Talvez ele tenha razão e eu seja mesmo muito
orgulhosa.
— Nicolas, pelo amor de Deus, pega a merda do dinheiro antes que eu vá até
aí enfiar ele na sua goela — digo.
Ele para, olha para mim e então gargalha. Se aproxima e pega o dinheiro da
minha mão.
— Você é grossa assim com todos os caras que transam com você? —
pergunta.
— Não. Só com os que me irritam.
Ele solta uma nova risada, e dessa vez eu acompanho. Enquanto ele termina
de desembrulhar a comida, abro a geladeira, me sentindo estranhamente à
vontade. Geralmente sou o tipo de visita que espera as coisas serem servidas;
com exceção da casa da minha tia e da de Suze, não me sinto confortável
fuçando nas coisas dos outros. Mas somos só nós dois, e tem alguma coisa na
falta de personalidade daquele apartamento que faz eu sentir que não estou
invadindo nenhum espaço que não seja meu, então me deixo levar.
A geladeira dele está praticamente vazia. Não tem nada além de algumas
garrafas de água, meia dúzia de latinhas de cerveja, uma caixa de pizza,
condimentos e três maçãs em um saco plástico. É deprimente.
— Meu Deus, você vive de quê? — pergunto, voltando para a mesa com
duas latinhas de cerveja.
— Oi, mãe, tudo bem? — ele ironiza, revirando os olhos, e sinto meu rosto
corar. — Tem um monte de coisa congelada no freezer. Minha mãe cozinha e eu
deixo aí pra ir comendo.
— Sua mãe cozinha pra você? — repito, e não consigo esconder um tom de
escárnio. Nicolas parece ainda mais insatisfeito.
— Sim, Luana, minha mãe cozinha pra mim, porque até uns meses atrás eu
trabalhava dezoito horas por dia e não tinha tempo nem pra aprender a cozinhar,
tá legal?
Torço o nariz, arrependida de ter provocado. Não sei nada sobre ele, não o
bastante, e ele claramente não gosta de ter suas fraquezas sendo jogadas na sua
cara o tempo todo. Eu deveria estar tentando conquistá-lo, não afastá-lo mais
ainda.
Sento e abro a cerveja. Dou um gole demorado, então digo:
— Eu gasto um dinheiro absurdo pra mandar as minhas roupas pra lavar
toda semana.
— O quê? — ele diz, o hashi a meio caminho da porção de sushis. Suspiro.
— Faz tipo, um ano que a minha máquina de lavar quebrou, e eu poderia ter
comprado outra, sabe? — continuo, abrindo meus próprios hashis. — Eu tenho
dinheiro, tive tempo pra ver isso. Mas comecei a levar as roupas pra lavanderia,
e fiz de conta que era um investimento muito melhor do que comprar uma
máquina de lavar. E aí eu só fiquei superacomodada. Faço de conta que não
consegui ver isso, mas a verdade é que eu dou meus dois braços pra nunca mais
ter que lavar e passar minha própria roupa.
Nicolas mastiga um sushi, sem olhar para mim. Então ergue os olhos na
minha direção e assente devagar.
— Cara, eu odeio lavar roupa. Já perdi umas três camisetas porque lavei
errado, sabe? Encolheram ou manchei misturando cor. — Ele bufa, e eu abro
um sorriso solidário, de quem já fez isso muitas vezes, ainda que nunca tenha
acontecido comigo. Ele toma uma pausa, aí diz: — Tem comida pra mais uma
semana no freezer. Não sei o que eu vou fazer depois disso.
— Usar cupom do iFood? — sugiro, com uma risadinha. Ele revira os olhos.
— Você já foi estagiária, Luana. Acha que eu consigo pagar?
Rio, agora sim em solidariedade completa, me lembrando de como era tentar
fazer meu salário minúsculo de estágio caber em todas as coisas que eu
precisava pagar no mês. Então me surge a ideia, e eu digo, antes que consiga me
controlar:
— Posso te ensinar a cozinhar, se você quiser.
É uma ideia péssima. Eu não sou nenhuma chef de cozinha, para começar, e
estou praticamente me convidando para vir mais vezes com aquela desculpinha
idiota. Nicolas parece entender exatamente o que se passa na minha cabeça e só
sorri.
— Se quiser, eu te ajudo a comprar uma máquina de lavar nova — diz.
— E perder a mamata? Jamais!
Comemos nossos sushis e nossos temakis debatendo os percalços da vida
adulta. Nicolas me conta que o apartamento está do jeito que está pois, por
muito tempo, foi apenas uma espécie de hotel onde ele dormia, tomava banho, e
vira e mexe fazia alguma refeição. Fala das coisas que quer comprar com o
dinheiro que tem guardado, e de como quer que a casa seja no futuro. Nunca o
imaginei como sendo um cara que faz pastas no Pinterest, mas logo lá está ele,
compartilhando ideias de decoração como se fosse uma blogueira de 20 anos. É
engraçado, além de fofo, e trocar com ele ideias que não têm absolutamente
nada a ver com o nosso trabalho me deixa contente.
Quando termino de comer, decido que é hora de brincar um pouco com os
sentimentos dele. Levanto, deixo as coisas na pia, e então declaro:
— Acho que tá na hora de eu ir pra casa.
A expressão de Nicolas é impagável. Ele se esforça para não denunciar, mas
está com aquela cara clássica de cachorrinho que caiu da mudança. Primeiro,
franze a testa, e então os lábios se curvam para baixo. Ele pigarreia, e sei que
está fazendo um esforço para manter a carranca quando pergunta:
— Você já quer ir?
— Você disse que eu podia, né? Não é um sequestro — brinco, e Nicolas faz
aquela cara de poucos amigos para mim. Dou de ombros. — Eu tô com roupa
de carnaval e não trouxe nem uma escova de dentes. Acho que mereço um
pouquinho de dignidade.
— Claro, claro. — Ele olha o relógio do celular. Ainda é cedo, mas ele fala
como se já fosse tarde da noite. — Ainda dá tempo de pegar o metrô, mas se
você quiser eu te levo.
— Você que sabe.
— Eu que sei, não, Luana. Decide aí.
— Não, Nicolas, você que sabe. — Dou as costas e vou andando em direção
ao quarto, erguendo a voz para me fazer ouvir: — Eu acho que a gente chega
mais rápido de carro, mas dá pra ir de metrô também. Só tem que andar um
pouco. Você não falou que tava com dor nas costas?
Ele me alcança em questão de segundos. Chega no quarto com uma
expressão que é meio susto, meio deleite, e quando fala, está sem fôlego.
— A gente?
— É, ué. — Dou de ombros, fingindo não entender por que ele está tão
abalado. — Você vem?
Nicolas abre um sorriso capaz de matar pessoas e derrubar paredes. Se eu
não tomar cuidado, vou acabar me esquecendo dos meus próprios objetivos só
com aquele sorriso. Então ele assente.
— Deixa só eu pegar uma muda de roupa — diz.
— Nada muito chique. Acho que você vai acabar não usando nada —
respondo.
C hegamos em casa pouco depois das dez da noite. É estranho entrar
com Nicolas ali de novo, e me lembro que, da última vez que fizemos aquele
percurso, estávamos loucos de tesão, nos agarrando no elevador e pelo
corredor antes de chegar até a porta. Hoje, estamos bem mais comportados
— o que não significa que eu não esteja doida para tirar a roupa dele de
novo.
Entramos, e me dou conta do quão pequeno meu apartamento parece com
relação ao dele. Mas, para a minha alegria, meu espaço é muito mais
organizado e tem bem mais personalidade. Nicolas parece reparar nisso
também, e enquanto eu vou até o quarto deixar minhas coisas, ele fica na
sala, reparando nos objetos e na decoração que ignorou quando esteve ali
pela primeira vez.
— Qual é a dos globos de neve? — Ouço-o perguntar, quando já estou
voltando.
Vou até ele. Numa estante na sala, logo abaixo da TV, há uma coleção de
globos de neve. Tem pelo menos uns quinze, que vão desde temas natalinos
até alguns com miniaturas de pontos turísticos ao redor do mundo.
— Ah, eu coleciono.
— Isso deu pra notar —antagoniza, naquele tom de deboche que ele faz
tão bem —, mas por quê?
— Sei lá. Eu gostava de brincar com isso quando era criança, e aí fui
juntando alguns com o tempo, sabe, comprando ou ganhando de presente —
digo, pacientemente. Ele se abaixa diante da estante para ver melhor.
— De qual você mais gosta?
Nem preciso hesitar. Pego um com uma miniatura do Coliseu dentro e o
balanço, até que partículas brancas imitando neve caiam devagar sobre a
imagem.
— Roma! Já foi? — O rosto de Nicolas se ilumina. Gargalho alto e reviro
os olhos.
— Pff, não! Não tenho dinheiro pra isso.
— Ah. — Ele murcha um pouco, mas não se abala. — É um lugar bonito.
Faz um calor do inferno.
— Eu imagino! — Devolvo o globo ao seu lugar. — Você já viajou
bastante, né?
— Graças a Deus, aos meus privilégios e ao salário ridículo que eu
ganhava no meu antigo emprego, sim.
— Eu sei. Fucei seu Instagram.
— Ah, é? — Nicolas se aproxima, com um sorriso divertido. — E o que
você descobriu?
— Que você viaja muito e ama tirar foto de paisagens? — Roubo um
beijo rápido dele. — O seu feed é praticamente só as suas viagens. É como
se você vivesse fazendo isso.
— As redes sociais podem mentir. O que eu menos faço é viajar hoje em
dia.
— Ah, é? O que você faz quando não está viajando, então?
Ele finge pensar por um segundo, então passa as mãos pelas laterais do
meu rosto.
— Eu arranjei um emprego, tento não xingar meu chefe todo dia e estou
vivendo um romance proibido com a mulher mais gostosa do meu
departamento — responde baixinho.
Fico totalmente sem palavras, e, por um instante, enquanto ele se inclina
e me beija, não consigo nem pensar o suficiente para reagir. Um romance
proibido . Isso é bom, certo? Se é assim que ele vê, significa que meu plano
está funcionando. Vou ganhar essa aposta.
Mas na hora, não me parece bom. Só me parece perigoso.
— Luana? Tá tudo bem? — ele pergunta, percebendo meu mal-estar
momentâneo.
Eu o solto e balanço a cabeça, fingindo que não foi nada demais.
— Tudo. Só achei que a gente não ia falar de trabalho até o fim do
feriado.
— Certo. Foi mal.
Assinto. Não quero pensar nisso. Não quero pensar em como estou me
sentindo. Só quero voltar a como estávamos antes.
— Então. Me fala dessas suas viagens — digo, e ele abre um sorriso mais
uma vez.
— Qual delas?
Vamos para a cama e nos despimos por causa do calor, mas não há nada
de sexual no momento. Deito com Nicolas debaixo do ventilador de teto,
sem tocá-lo exceto pelas mãos, brincando uma com a outra, enquanto ouço
ele me contar sobre a ida ao Jalapão, as férias na Itália, as praias do litoral
baiano, e, por que não, a ida à Disney.
— Fui quando a Íris completou 15 anos — ele disse, e então, mais baixo,
completou: — Não conta pra ninguém, mas eu chorei pra cacete durante o
show de luzes no castelo da Cinderela.
É divertido ouvi-lo falar sobre os perrengues de viagem e sobre as coisas
que haviam dado fantasticamente certo. Em vez de me mostrar fotos, como
10 em cada 10 pessoas teriam feito, ele prefere descrever os lugares à sua
própria maneira. Nicolas não pinta cenários lá muito visuais, mas ele se
lembra de detalhes que certamente fazem com que eu me sinta lá, como a
quantidade de lixeiras numa determinada cidade, a música que ouviu em
algum restaurante ou o cheiro do quarto de hotel. Ficamos conversando por
tanto tempo que, quando dou por mim, já é madrugada e eu estou faminta.
— Acho que vou pegar alguma coisa pra comer — falo, me sentando na
cama. — Tá com fome?
— Não, mas eu te acompanho.
Vamos até a cozinha, os dois pelados, e acendo a luz. Nicolas fica
encostado num dos armários, parecendo enorme em um ambiente tão
pequeno. Tento não me sentir consciente demais dele ou de mim mesma
enquanto vou de um lado a outro, fuçando na geladeira ou pegando talheres
na gaveta. É difícil, quando ele me olha daquele jeito.
Não estou me sentindo lá muito criativa, então só pego uma cumbuca e
abro uma lata de atum, misturando com cebola, tomate e um pouquinho de
ervilha. É provavelmente o prato menos afrodisíaco do planeta, mas estou
com fome e, se Nicolas ligar para o cheiro, então é azar dele. Tempero tudo e
pego uma colher para comer. Quando me viro, Nicolas ainda está com os
olhos vidrados em mim.
— O que foi? — pergunto. Ele parece acordar, e dá de ombros.
— Nada. Só tava aqui pensando que vai ser meio estranho te encarar na
quarta-feira como se nada tivesse acontecido.
Foi uma escolha sua , penso, mas não vou dar o gostinho de parecer me
importar. Em vez disso, digo apenas:
— Quinta, no seu caso. Estagiários não vão trabalhar na quarta de cinzas,
só os escravos normais mesmo.
— Olha só. Que bom!
Faço uma pausa, pensando em como provocá-lo melhor. Opto pelo óbvio
e digo, displicentemente:
— E eu não acho que vai ser estranho. Quero dizer, se eu consegui agir
de uma maneira normal com o Tim do financeiro, não vai ser com você que
eu vou ficar pisando em ovos.
O desgosto nele só é visível através de um movimento mínimo dos
lábios. Nicolas é teimoso e também não vai dar o braço a torcer. Mesmo
assim, contabilizo como uma vitória.
— Eu não acredito que você de fato transou com aquele cara — é tudo
que comenta. Mastigo lentamente e respiro fundo.
— Acredite, também não é um dos meus maiores orgulhos.
— Como foi que isso aconteceu?
— Ah, sei lá. Era festa da firma, eu tava meio carente. — E, sem
conseguir me controlar, adiciono: — E na real, ele nem é tão ruim de cama
quanto parece.
É uma mentira deslavada, é claro. Tim é tão ruim de cama quanto é
possível ser, mas se eu queria mexer no ego de Nicolas, consegui. Tem uma
perplexidade e uma emoção que não consigo descrever estampadas no rosto
dele, e preciso lutar contra o ímpeto de sair dançando por ter conseguido
atingi-lo.
— Ah, não? — A voz de Nicolas é neutra, seca.
— Não — respondo, lhe dando as costas para colocar a louça suja dentro
da pia. — Ele só é um pouco mais bruto que você.
Não olhe pra ele, não olhe pra ele, não olhe pra ele , repito a mim
mesma. Mas nem precisava. Não teria tempo de olhar, mesmo que pudesse.
Nicolas cruza a cozinha em duas passadas, e antes que eu me dê conta,
está atrás de mim, seus braços me cercando. Posso sentir seu corpo tocando
o meu, seu peito contra as minhas costas, a ponta do pênis roçando a minha
bunda. Ele se inclina sobre mim, me pressionando devagar contra o balcão.
— E você gosta da coisa um pouco mais bruta, Luana? — sussurra ao
meu ouvido. Meu corpo vira gelatina. Não sei de onde tiro forças para
continuar a provocação.
— Só de quem sabe fazer — digo.
Ele ri, a risada ecoando e arrepiando os cabelos da minha nuca. Então sua
mão sobe, firme e forte, pelas minhas costas, até seus dedos envolverem o
meu cabelo, puxando minha cabeça para trás.
— Ai! — faço, quando ele puxa com muita força.
— Desculpa! — ele diminui um pouco a pressão. — Melhor?
— Perfeito.
Então Nicolas me beija, mordendo meu lábio, deixando uma trilha de
chupões pelo meu pescoço, arranhando as minhas coxas. Ponho suas mãos
onde eu as quero, adorando aquela faceta menos delicada que despertei pelo
ciúme. Posso senti-lo ficando cada vez mais duro, e só não transamos ali
mesmo na cozinha porque não costumo guardar camisinhas na gaveta de
talheres.
Em vez disso, voltamos para o quarto e para o conforto da minha cama,
onde Nicolas me derruba sem cerimônia e me vira do avesso, fazendo coisas
comigo que alguém insosso como Tim do financeiro sequer consegue
imaginar.
— M as, sério. Por que o Tim?
Olho bem pra cara de Nicolas, parcialmente chocada por ele levantar a
questão de novo, ainda que no fundo eu esteja me divertindo bastante.
Estamos deitados na minha cama, janelas abertas e ventilador rodando para
espantar o calor.
— É sobre isso que você quer falar no pós-sexo? O Tim do financeiro?
— pergunto, embasbacada. Nicolas revira os olhos e se ajeita com o
travesseiro.
— Eu tenho 30 anos, Luana. Não preciso que você fique massageando o
meu ego.
Não, não precisa, e essa é uma das coisas que mais me atrai sobre ele.
Mas não vou dar o braço a torcer. Uso o momento para provocá-lo.
— Você tá com ciúmes do Tim, Nicolas? — digo, então, com um sorriso
travesso. Ele reage rápido, o rosto se avermelhando e quase cuspindo as
palavras quando responde:
— Claro que não, é só curiosidade.
Solto uma gargalhada.
— Tá bom. Vai, o que você quer saber?
Nicolas suspira, olhando para o teto com um pouco de interesse demais.
— Sei lá. Como diabos isso aconteceu, pra começar? O pessoal do
financeiro mal fala com a galera de baixo.
— Não durante o trabalho — dou de ombros —, mas nos happy hours da
vida? Toda sexta-feira. Inclusive quem começou com o negócio de ir pro bar
toda sexta foram eles. A gente acabou indo junto porque tinha uma época
que uma das meninas do nosso departamento namorava o chefão do
financeiro. Aí mesmo depois que eles terminaram e ela foi morar fora,
continuou acontecendo.
— Saquei.
— E o Tim... foi um momento de fraqueza — admiti. Nicolas me lançou
um olhar de soslaio, curioso.
— Fraqueza? Você? — diz, e algo no tom que ele usa faz meu ego inflar.
Como se a visão que ele tivesse de mim fosse tão invencível que a ideia de
que eu teria um momento de fraqueza era impensável.
Me empertigo quase sem querer, e então continuo.
— É. Eu não tava num dia bom, tinha bebido demais. Acho que eu
precisava me afirmar, sabe? — Olho para ele, mas não espero resposta. — E
aí, sei lá, o Tim tava lá, e ele me deu bola, então eu pensei, bom, por que
não?
— Eu consigo pensar em uns cem motivos do porque não — Nicolas
ironiza. — O cara é meio babaca.
— Ele é — admito —, mas acho que ele se apaixonou por mim. Por isso
ele tem agido de um jeito extra babaca — digo, mesmo me sentindo meio
idiota.
— É meio difícil não se apaixonar por você, Luana — Nicolas diz, e
então puxa o ar, como se surpreso consigo mesmo.
As palavras ficam no ar, penduradas no meu ouvido, grudadas na minha
pele, fazendo cócegas na minha garganta. Não olho para Nicolas e ele
também não se mexe. Preciso desviar o assunto urgentemente, mas não
consigo pensar em absolutamente nada. Felizmente, é ele quem nos salva.
— Eu sempre achei meio bizarro esse negócio de se envolver com gente
do trabalho.
Respiro aliviada. Tento me recompor e assumir uma carranca divertida
novamente.
— Vai dizer que você nunca pegou ninguém que trabalhasse com você?
— digo, num tom de provocação. Nicolas meneia a cabeça.
— Eu fiquei com um cara no meu primeiro emprego, mas foi só. Minha
ex-namorada trabalhava no mesmo prédio que eu, mas em outra empresa, e
eu já achava esquisito.
— Eu não vejo nada demais. Se todo mundo for adulto e souber se
comportar, então qual é o problema?
Nicolas se ajeita, apoiando-se num cotovelo para me encarar. Seus
cabelos balançam diante do rosto e ele os ajeita para me ver melhor.
— O problema é que as pessoas não sabem se comportar. Aí depois as
coisas terminam mal e você é obrigado a lidar com picuinha no ambiente de
trabalho — diz, inflamado demais para que seja por acaso.
— Foi isso que aconteceu com você?
Sinto que não deveria ter perguntado, mas agora já foi. Por um segundo,
Nicolas fica tão quieto que não consigo decifrar o que está pensando; ele não
parece puto, não exatamente, mas também não parece feliz por ter sido
confrontado. Então, devagar, ele se deita de novo e suspira.
— Sim e não — diz, por fim.
Quero perguntar mais, mas não pressiono. Aquilo é terreno desconhecido,
e já estou arrependida de tê-lo provocado até ali. Por isso mesmo, tomo um
susto quando ele volta a falar.
— Não rolou uma picuinha, não exatamente. — Ele faz uma pausa
cuidadosa, e então: — Mas foram 4 anos juntos, e depois ela passava por
mim todos os dias nos elevadores como se a gente não se conhecesse. Fui
obrigado a olhar pra cara dela por quase um ano todos os dias depois disso, e
as pessoas que conheciam a gente viviam perguntando se tinha acontecido
alguma coisa. Não foi legal pra ninguém.
Assinto, entendendo seu ponto, e me pergunto se é por isso que ele não
quer se envolver comigo em primeiro lugar, se o “vamos manter tudo no
profissional” é só uma desculpa para não ter que lidar com a possibilidade de
reviver o pós-término que o magoou tanto no passado. Então quero dizer a
ele que essa possibilidade não existe, porque nosso rolo tem prazo de
validade e ele muito provavelmente será demitido antes que consiga sequer
ter um relacionamento para terminar.
Mas, no fim, não digo nada disso. Só guardo as dúvidas para mim,
sentindo que chegamos num tópico do qual não posso sair fazendo piada,
como de costume. Posso ficar em silêncio, ou posso mergulhar nisso junto
com ele. Escolho a segunda saída.
— Eu nunca namorei sério.
— Mesmo? — Nicolas me encara, surpreso. Reviro os olhos, como se
não fosse nada demais, mas morro um pouco quando ele me pergunta: —
Por quê?
Abro a boca, mas não sei nem por onde começar. Há um milhão de
motivos que começam no isolamento de se ser uma mulher gorda que não
aceita migalhas e termina no meu próprio medo de me envolver com
alguém. Não quero fazer do meu feriado com ele uma sessão de terapia,
então só digo:
— Não sei. Ninguém nunca quis, e eu também nunca me apaixonei o
suficiente por ninguém.
Que é o mais perto da verdade total que dá pra chegar agora.
— Namorar é legal, se você tá com uma pessoa decente — Nicolas diz,
com uma indiferença que me soa forçada. — Tem gente que é melhor morrer
sozinha mesmo.
— Fora essa sua ex, você teve outras namoradas? Ou namorados? —
pergunto, girando para ficar de bruços e olhar para ele.
— Bom... — Nicolas coça o queixo. — Acho que teve só a Bruna, a
Fernanda... e o Gabriel, dependendo do que você considerar namoro.
Então ele me conta sobre suas experiências, da primeira namoradinha do
fundamental até os namoros mais sérios da vida adulta. Fala sobre apresentar
o primeiro e único namorado homem pra família, sobre sua bissexualidade
nunca sendo levada a sério por ninguém além da irmã mais nova. Nicolas
tem poucas, mas boas, histórias de paixões e romances que me deixam com
o coração quentinho, mas que ao mesmo tempo me deixam um tanto
invejosa de coisas que nunca consegui viver com ninguém.
E, em troca, eu falo a ele sobre os meus piores encontros com caras que
conheci em aplicativos, da única vez em que tentei beijar uma menina, só
para descobrir que eu sou mesmo hétero, e de algumas loucuras que já fiz
em lugares pouco propícios e apropriados. O papo o excita, e quando dou
por mim estamos outra vez entranhados nos lençóis, Nicolas em mim, sobre
mim e dentro de mim, enquanto eu deixo escapar, aos sussurros, as
promessas de todas as coisas que ainda vou fazer com ele.
Se tivermos tempo.
J á é noite de terça-feira quando Suze me liga , como uma neandertal.
Quase não acredito quando vejo o número dela no identificador de chamadas. O
que aconteceu com a boa e velha mensagem?
— Alô? — atendo, confusa. Na verdade, acho que meio que estou esperando
que a ligação tenha sido um acidente. Mas ela responde, toda animada, do outro
lado:
— Ele ainda tá aí?
Meu Deus, vamos mesmo fazer isso! Falar no telefone como duas
adolescentes. Então tá.
— Não. Ele foi embora tem uma meia hora.
Foi por muito pouco que não pedi a ele que ficasse. Passar aqueles dias com
Nicolas foi como ficar presa numa bolha em que tempo, mundo e trabalho não
existiam. Faz muito tempo que eu não fico tanto tempo com alguém — e mais
tempo ainda que não transo tanto com uma única pessoa. Mas quando
escureceu, percebi que não podia durar para sempre. Amanhã preciso voltar ao
trabalho, e o sonho, mais cedo ou mais tarde, tinha que acabar.
— E aí? Como foi? — ela pergunta, depois de uma pausa muito longa. Acho
que ficou esperando que eu começasse a falar logo de cara, mas nunca estive
menos disposta.
— Foi... foda — digo, por falta de expressão melhor. E então começo a
narrar, um a um, em detalhes dolorosamente minuciosos, cada lance do meu
feriado com Nicolas.
Quando termino, estou com calor, sem fôlego e com uma vontade enorme de
ligar para ele e pedir pra voltar pra minha casa. Suze suspira e solta um assobio
que a faz parecer um tiozão de meia idade.
— Bom, e agora? Tipo, como vai ser daqui pra frente? — pergunta.
Estou tentando não pensar nisso desde o começo do feriado. Mas não dá pra
evitar o assunto para sempre, o elefante branco na sala. Suspiro e me finjo de
forte.
— Agora o jogo continua, ué. — Dou de ombros, interpretando para mim
mesma. — Eu tenho mais o que, vinte dias segundo a nossa aposta?
— Mais ou menos. — Suze ri. — Você acha que tá chegando perto?
Um nó se forma na minha garganta.
— Acho sim.
— O que foi que você disse? Sua voz tá esquisita.
— Disse que tô sim. — Pigarreio. — Antes do prazo, ele vai estar caidinho
por mim, escreve o que eu tô dizendo.
— É disso que o povo gosta!
Conversamos mais uns minutos e desligamos. Passo um bom tempo sentada
na cama, encarando a janela aberta sem me mexer. Então, meu celular vibra.
Checo as notificações. É uma mensagem de Nicolas.
“Cheguei em casa. Tô na dúvida se roubei um frasco do seu perfume por
acidente porque teu cheiro tá pela casa toda. Te vejo na quinta.”
Meu coração erra algumas batidas, e me deito na cama, os olhos ainda
vidrados no celular. O cheiro dele também está nos meus lençóis, uma mistura
de desodorante masculino, suor e sexo. Preciso colocar a roupa de cama pra
lavar. Preciso colocar a minha cabeça no lugar. Preciso me controlar.
Mas a única coisa que eu faço é bloquear a tela do celular sem responder,
rolar pro lado e dormir.

Nicolas não manda mais nenhuma mensagem e eu também não respondo.


Quando acordo na quarta-feira, meus dedos coçam de vontade de falar com ele,
mas consigo me manter firme na decisão de não dar o braço a torcer. Levanto
relativamente cedo, boto a roupa de cama, as toalhas e mais algumas roupas
para lavar, e me arrumo para chegar ao trabalho cedo, na fé de que Oscar não vá
começar a volta do feriado aos berros.
Nem sei por que tive esperanças. Eu mal botei a bunda na cadeira e ele já
está me enchendo o saco.
— LUANA, VEM AQUI — grita, lá da sala dele.
Troco um olhar com Suze, do outro lado da sala, que revira os olhos e finge
uma oração. Meus olhos procuram Nicolas automaticamente, mas ele
obviamente não está ali. Suspiro e vou até meu chefe.
— Fecha a porta — ele diz, ignorando, como sempre, o fato de que não há
uma porta.
Oscar está com cara de poucos amigos, o que quer dizer que não há nada de
diferente entre seu estado atual e todos os outros dias no ano. Não sei de onde
sempre tiro essa expectativa de que um feriado vá amansar seu gênio: ele é um
babaca, afinal, e é um babaca todo dia, independente de datas comemorativas.
Ele está digitando alguma coisa furiosamente no computador, e eu espero, de
pé.
De repente, Oscar me encara, parecendo aborrecido.
— Tá esperando o que aí de pé, Luana? Cadê? — diz, num brado.
— Cadê o quê? — pergunto, tentando não soar sarcástica ou naquele famoso
tom de “vai gritar com a sua mãe”.
— Os rascunhos pra campanha pós-carnaval, cacete!
— Oscar, eu acabei de chegar — respondo, respirando fundo para manter a
calma. — Eu liguei o computador tem tipo cinco minutos.
— Porra, Luana, eu te mandei essa merda na segunda-feira!
— Sim, quando estávamos todos em recesso porque era feriado .
O rosto dele se avermelha, e não sei se é a pressão alta, o ódio generalizado,
ou o fato de que falei com ele como se ele tivesse cinco anos de idade.
— E você passou o feriado TODO sem abrir a porra do e-mail, Luana? —
Ele ameaça bater na mesa, mas nunca chega a encostar nela. — Ficou fazendo o
que esses quatro dias? Enchendo a cara e dando pro moleque do financeiro?
Puta que pariu, eu te pago pra trabalhar!
Dessa vez, sou eu quem ruborizo, e estou há dois segundos de mandar ele
pro quinto dos infernos, mas tem aquela vozinha que me diz você precisa desse
emprego, você tem contas a pagar . A realidade é que, se eu gritar de volta,
serei demitida por justa-causa, e quando eu sair dessa empresa, pretendo fazê-lo
do meu jeito, ganhando 3 vezes o meu salário atual.
— Eu vou abrir o e-mail e esboçar alguma coisa — respondo entredentes. E,
sem me segurar, adiciono: — E você, vê se toma um calmante. Se tiver um
enfarto aqui dentro, ninguém vai sair correndo pra te socorrer.
Dou as costas e saio, sem parar pra olhar o estrago que as minhas palavras
podem ter causado.

Trabalho igual a uma camela o dia todo, e quando chego em casa, depois de
fazer quase duas horas a mais, estou podre de cansaço. Recolho as roupas secas,
como alguma coisa e caio na cama sem nem me preocupar em colocar o celular
para carregar.
Evidentemente, ele descarrega todinho durante a noite. Acordo atrasada, já
que o despertador não tocou, e preciso fazer tudo em tempo recorde — e mesmo
assim não saio a tempo.
Maravilhoso. Eu realmente preciso de motivos a mais para Oscar gritar
comigo. Não tive o suficiente.
Saio de casa com o mínimo de bateria possível, e chego na empresa
patinando de tanto correr, quarenta e cinco minutos atrasada. Não importa que
ontem trabalhei horas a mais: com certeza vou ouvir por esse atraso. Pego o
elevador, e enquanto o maldito não chega, checo as notificações do que perdi
desde que apaguei ontem à noite.
Tem três mensagens de Nicolas, além da que eu já tinha visualizado sem
responder.
“Oi. Espero que você não se mate de trabalhar aí. Pega leve, ainda é
carnaval.”
“Olha, eu sei que vai ser meio esquisito amanhã. Mas eu não quero que seja.
Esses dias foram ótimos e eu não quero que a gente se trate como estranhos.
Vamos só ficar numa boa? E ver o que acontece.”
E então, uma que havia sido enviada bem mais tarde, quando eu já estava no
vigésimo sono:
“Você claramente não precisa me responder. Até amanhã.”
Cacete. Ele provavelmente acha que eu estou dando um gelo nele, por ter
visto a primeira mensagem e não respondido, e nem visualizado as mais
recentes. Meu coração acelera, mesmo sabendo que é um medo bobo; não devo
nada a Nicolas, e se ele fizer drama por causa de três mensagens sem resposta,
isso é problema dele. Mesmo assim, me pego desejando que ele me perdoe pela
falta. E esse desejo me deixa puta comigo mesma, esperando perdão de um
homem por coisas que sequer são minha culpa.
Pego o elevador e saio no meu andar. Por obra de Deus, Oscar não está na
sua sala — se dei sorte, vai chegar mais tarde hoje e não vou sofrer com seus
berros pelo meu atraso, então passo direto, indo até a minha mesa. Nicolas já
está lá, na cadeira em frente à minha, olhos baixos no teclado.
Coloco minha bolsa sobre a mesa e me ajeito com um pouco mais de
afetação do que o comum. Então esboço um sorriso e digo:
— Bom dia!
Nicolas ergue os olhos. Me encara com aquele semblante neutro que nele
significa que hoje não é um bom dia . Sequer é dia . Aquela seriedade que
significa que ele está meio puto com o mundo.
Então baixa os olhos de novo e não responde.
Merda.
— P uta merda, o Nicolas tá com a macaca hoje. O que foi que você fez
pra ele?
Encaro Suze, meio chocada. De que lado ela está, afinal?
Estamos almoçando no nosso sujinho favorito, comendo cachorros-quentes
prensados com uma quantidade absurda de condimentos, e estou tentando não
pensar no que ela me disse, mas é impossível. Suze tem razão, Nicolas está
mesmo com a pá virada — e não consigo deixar de pensar que é por minha
culpa, mesmo que parte de mim ache aquela ideia absurda e inaceitável.
— Eu não fiz nada — respondo, na defensiva demais, e me distraio com o
meu cachorro-quente.
— Achei que depois de passar o feriado todo transando ele estaria mais
felizinho. — Suze dá de ombros e tenta manobrar seu lanche de uma forma que
ele não desmonte inteiro no colo dela. — Pelo que você falou, achei que tava
tudo às mil maravilhas.
— Ele é doido — respondo, enfática, e ela deixa estar.
Terminamos de comer e enrolamos por mais uns bons vinte minutos antes de
voltar, ainda que eu tenha me atrasado horrores e precise compensar o horário.
Quando voltamos para o escritório, descubro não somente que Nicolas já voltou
do almoço, como que está na sala de Oscar; e tomando uma bronca daquelas.
— ...VOCÊ TÁ ACHANDO QUE É A NETFLIX PRA FICAR
RESPONDENDO CLIENTE ASSIM? CARALHO, NICOLAS, NÃO É PRA
ISSO...
— Eita — Suze sussurra, e, como as duas velhas fofoqueiras que somos,
paramos pra escutar.
Péssima ideia. Estou bem no campo de visão da sala de Oscar, e é óbvio que
ele me vê. Num átimo de segundo, ele desvia sua atenção para mim.
— LUANA, PODE VIR PRA CÁ TAMBÉM QUE ISSO É CULPA SUA!
Ah, pronto!
— Boa sorte, amiga. — Suze dá duas batidinhas no meu ombro e foge antes
que sobre pra ela.
Respiro fundo. Nicolas, até então de costas pra mim, se vira para me olhar, o
rosto mal-humorado e lívido. Não vai ter jeito. Vou até a sala, caminhando
devagar, e paro ao lado de Nicolas, sem ousar olhar pra ele.
— O que foi, Oscar? — digo, tentando soar apenas cansada, e não com a
vontade de matar que, no fundo, é o que estou sentindo.
— O que foi? — ele repete, puto da vida, e aponta pra Nicolas. — Que porra
que você tá ensinando pra esse seu estagiário, Luana? Já viu a merda que ele
aprontou?
Olho para Nicolas de soslaio. O rosto dele está mais azedo do que nunca, o
maxilar travado de raiva.
— Não...?
— Ele tá respondendo cliente com PIADINHA. — Oscar bate na mesa e vira
a tela do computador para mim.
É um print de comentário. Algum cliente havia reclamado da luminosidade
das camisinhas neon no Facebook, dizendo que elas não brilhavam o suficiente.
Nicolas respondera “pelo menos nesse caso, o que os olhos não veem o corpo
ainda sente”.
É difícil segurar a risada, e sinto meu tronco chacoalhar enquanto os cantos
da minha boca se contorcem pra que eu não dê bandeira. Me controlo para não
olhar para Nicolas, e respondo apenas:
— Achei espirituoso .
— Espirituoso é o caralho, Luana! — Oscar levanta, e, por um nano
segundo, acho que vai partir pra cima de nós dois. Dou um passo instintivo para
trás, e Nicolas repara, torcendo o nariz. — Quer fazer piada, vai pro circo,
porra! Isso aqui é uma empresa séria!
— Oscar, o relacionamento com os clientes hoje em dia é assim! — rebato.
— As pessoas gostam que as nossas mídias sociais tenham personalidade.
— Então você treinou esse moleque pra fazer merda, é isso que você tá me
falando?
— A Luana me passou as instruções corretas. A piada foi ideia minha —
Nicolas intervém, rápido demais.
O olhar de Oscar pra ele é fulminante. Queria que ele tivesse ficado quieto.
Nicolas chegou agora e já está batendo boca com o chefe. Ele não sabe que a
melhor escolha quando se trata de Oscar é ficar quietinho e trabalhar como se
ele estivesse certo.
— A ideia foi sua, mas quem é responsável por você nesse departamento é
ela — Oscar diz, e sei que ele está no limite do ódio porque parou de gritar e
está falando baixo. — Então das duas uma. Ou você agiu com o aval dela, ou
ela não controla o próprio funcionário, o que é pior ainda.
— Eu não sou funcionário dela. O chefe aqui é você.
Ah, Nicolas, puta que pariu! Que bela oportunidade de não falar nada !
— Oscar, foi um mal-entendido, o Nicolas achou que não teria problema,
não vai acontecer de novo. — Instintivamente, coloco a mão no braço do meu
estagiário e começo a puxá-lo para trás. — Eu e ele vamos ter uma conversinha
sobre diretrizes da empresa e vai ficar tudo nos conformes, pode deixar.
— Melhor mesmo. Agora saiam da minha sala.
Com algum esforço, puxo Nicolas para fora, e continuo arrastando ele até
estarmos de volta às nossas baias, longe o bastante para que Oscar não consiga
nos ouvir. Só então me viro para ele e digo:
— Que merda você acha que tá fazendo?
— Por que sou eu quem tá fazendo merda nessa história? — ele pergunta,
exaltado.
— Nicolas, deixa eu te explicar uma coisa: — puxo a cadeira mais próxima
e me sento — você não grita de volta com o Oscar. Você não retorque as coisas
que ele diz. Você não compra uma briga desse tamanho, cê tá me entendendo?
O Oscar conhece todo mundo da publicidade. Se você sair daqui em maus
lençóis com ele, você nunca mais vai trabalhar nessa área.
— O fato de ninguém aqui rebater os absurdos que esse cara fala é
exatamente o motivo pelo qual ele continua falando! — Nicolas exclama.
Hesito, e respiro fundo. Ele tem razão, é claro que tem razão. Mas entre
ouvir berros e manter o emprego que eu amo e do qual preciso, ou responder e
nunca mais trabalhar, eu escolho os gritos.
— Só deleta o comentário, Nicolas. — Levanto e devolvo a cadeira para o
lugar. — Deleta e não faz de novo. Se não for por respeito ao seu emprego, pelo
menos que seja por respeito ao meu.
Então me afasto e volto para a minha mesa.

Fico trabalhando até tarde, compensando o tanto que cheguei atrasada e mais
um pouco. Quando chego em casa, estou moída mental e fisicamente. Tiro os
sapatos e a roupa, e entro num banho tão longo que acho que vou gastar a água
toda do prédio antes de sair. Quando volto pro quarto e pego o celular, tem uma
mensagem de Nicolas.
“Acho que você não vai responder, mas queria te pedir desculpas. Não
pensei em como as minhas ações afetam o seu trabalho. Ainda acho que estão
fazendo tudo errado naquela empresa, mas não vou me intrometer e piorar as
coisas. Sinto muito.”
Penso muito e, após vários minutos, consigo responder:
“Tá tudo bem. Obrigada por me dizer isso. E, se servir de alguma coisa, eu
achei sua resposta genial. A gente venderia muito mais se nosso modelo de
mídias sociais não fosse tão engessado.”
Não se passa nem um minuto inteiro antes que a resposta dele chegue.
“Você tá me respondendo agora? Que novidade!”
“Não que eu precise te explicar alguma coisa, mas meu telefone tinha
descarregado ontem. Por isso não respondi nenhuma das mensagens. Era por
isso que você estava tão de mau humor hoje?”
“Não que eu precise te explicar alguma coisa, mas o mundo não gira em
torno de você, Luana. Meu carro quebrou e tive que enfrentar ônibus lotado, só
isso.”
Fico dividida entre me ofender e achar graça, mas acabo optando pelo
último. No fundo, gosto das nossas provocações mútuas. É o que mantém o
relacionamento interessante.
O celular vibra de novo.
“Mas confesso que fiquei com um pouco de raiva sim. Só não durou. É
impossível ficar bravo com você, Luana.”
“Por quê?”
“Você já se viu sorrindo? Desmonta qualquer um.”
Sinto meu rosto corar, e estou feliz pra cacete que ele não consegue me ver.
Digito rapidamente a resposta.
“Até amanhã, Nicolas. E chega de gracinhas nas redes sociais!”
Leva um tempo, mas ele finalmente me responde:
“Pode deixar. Comentários safados, de agora em diante, eu faço só pra
você.”
A sexta-feira após o carnaval é o dia da festa anual de carnaval no
escritório. Os happy hours foram uma invenção antiga de alguma
administração que queria unir os funcionários e nos deixar felizes podendo
beber do lado de dentro do prédio, mas acabaram se tornando uma obrigação
chata que todo mundo tem que cumprir, onde ninguém nunca se diverte de
verdade.
Ah, e Oscar julga todas as fantasias. E briga com quem não vai
fantasiado.
Por isso, quando Nicolas chega na sexta-feira à tarde, aparentando um
completo descaso tanto com o horário quanto com a regra mais básica de
vestimenta, eu me levanto prontamente da mesa. Estou com um vestido
branco, e tem um jaleco e um estetoscópio de brinquedo na minha bolsa,
esperando para serem usados. Nicolas está claramente vestido só de Nicolas.
— Primeiramente, onde é que você estava ? — pergunto, já circulando as
baias para ir até ele. — Número 2, cadê a sua fantasia?
— Boa tarde pra você também — ele diz, deixando as coisas em cima da
mesa.
— Nicolas, são duas da tarde e eu só vou sair dessa merda desse lugar
hoje às onze horas, não brinca comigo! — sibilo para ele. Nicolas revira os
olhos.
— Eu tinha que fazer uma prova na faculdade de manhã. Avisei o Oscar e
ele me liberou.
Ergo uma sobrancelha. Nem Oscar, nem Nicolas haviam me avisado,
como eu duvidava, que ele tivesse sido “liberado”. Nicolas suspira.
— Tá, vou ter que cumprir hora extra por uma semana, mas eu fui fazer a
merda da prova.
— E a fantasia? — indago então. — Ou vai me dizer que você não estava
sabendo da festa de carnaval da empresa?
— Luana, eu tenho 30 anos! Não vou me fantasiar pra tomar cerveja com
gente que eu não gosto.
Ele se senta, no seu típico mau humor que já não me impressiona mais, e
começa a abrir as coisas para trabalhar. Sinto uma veia pulsando no meu
pescoço.
— Nicolas, qual parte da nossa conversa de ontem sobre você não
complicar a porra do meu trabalho você não entendeu? — me abaixo ao lado
dele, puxando a saia do vestido um tanto justo demais para baixo. — Não é
com você que o Oscar vai brigar se você aparecer nessa merda dessa festa
sem uma fantasia.
Nicolas suspira, parecendo exausto. Pela expressão no rosto dele, acho
que ele vai me mandar pro inferno, mas o que ele realmente diz é:
— Tá, arranja alguma coisa que eu visto depois do expediente.
— Você é um anjo! — digo, e, embora não devesse, me inclino e beijo
seu rosto.
Nicolas não reage. Fica travado na cadeira, imóvel, mas percebo um
rubor se espalhando pelo seu pescoço, exatamente igual ao que toma a
minha cara. Volto pra minha mesa e me sento rapidamente, antes que eu faça
mais alguma cagada.
Trabalho o resto do dia com atenção dividida entre as coisas que preciso
fazer e perguntar para todo mundo se alguém tem alguma coisa que eu possa
usar para fantasiar meu estagiário. Suze, que veio hoje de terno e gravata e
carregando uma imitação do Troféu Imprensa, oferece uma segunda
estatueta para que ela e Nicolas formem um par. Uma outra garota do nosso
departamento diz que tem uma tiara com orelhas de gato sobrando, e rio
sozinha ao pensar em Nicolas com elas. Cato milho por todo o
departamento, até descobrir alguém que tem sangue falso.
É isso. Quando termino o que tenho pra fazer, encontro com ela nos
elevadores para pegar a garrafinha minúscula. Pego meu kit de maquiagem
na bolsa e, quando nosso horário de trabalho acaba, vou até Nicolas e digo:
— Vem comigo.
É uma ordem, não um pedido, e ele reconhece a diferença, me
acompanhando sem pestanejar. Enquanto andamos, passamos por Oscar, em
uma fantasia muito pobre de pirata, gritando com dois funcionários sobre as
bebidas da festa. Passamos pelo hall dos elevadores e vamos até os fundos,
onde um corredor leva aos banheiros e à copa.
Abro a porta do banheiro acessível unissex e puxo Nicolas para dentro. A
luz automática se acende quando entramos.
— Eu tenho quase certeza de que obstruir o banheiro acessível é ilegal —
ele diz. Tento deixar a porta aberta, só por precaução, caso alguém tenha
visto e feito perguntas, mas não consigo, então só a deixo fechada, sem
trancar.
— Não tem uma única pessoa com deficiência nesse andar, e nós não
vamos demorar — justifico, e vou separando minhas coisas de maneira
eficiente.
— O que você vai fazer comigo? — Nicolas pergunta, e a frase manda
um arrepio pela minha espinha. Tento ignorar.
— Vou te transformar num zumbi. Mais ou menos. Senta ali.
Aponto para a privada, e Nicolas me obedece, soltando um longo suspiro.
Ele abaixa a tampa, se senta e espera, parecendo ao mesmo tempo divertido
e entediado. Cara de Nicolas.
Dou minha bolsinha de maquiagem para que ele segure, de modo a me
poupar esforço. Separo meus pincéis e o jogo de sombras, que não tem
exatamente os tons de verde e roxo que eu precisaria, mas já dá pro gasto.
Ergo a cabeça dele em silêncio e começo a pintar olheiras. Talvez eu devesse
traçar os olhos dele com um lápis. Vou trabalhando, tentando tratá-lo como
um boneco de cera em vez de uma pessoa, mas sinto os olhos de Nicolas em
mim e de repente meu corpo está todo quente.
A luz automática se apaga, e ergo o braço, mexendo-o impacientemente
até que o detector de movimento a acenda de novo. Quando a luz volta, o
olhar de Nicolas está vidrado no meu.
— Acho que eu nunca fui maquiado por ninguém — ele diz, num tom
ameno e raro, só pra puxar papo.
Nunca me acostumo com essa versão de Nicolas, que tenta ser normal e
agradável quando está comigo. Dou um meio sorriso.
— Você tem um rosto bonito, não precisa de maquiagem.
— Você também, mas se maquia todo dia — ele provoca, e eu rio.
— Touché! — devolvo os pincéis e a sombra para a bolsinha e pego o
lápis de olho — Mas é meio o que se espera das mulheres, ainda mais de
mim.
— Como assim? — pergunta, genuinamente interessado. Eu suspiro.
— Acho que as pessoas aceitam uma mulher gorda com mais facilidade
se ela for feminina. Tipo, tudo bem ser gorda, desde que você não pareça
desleixada.
Nicolas pensa nisso por um segundo enquanto eu contorno seus olhos
com o lápis. Era para ele parecer um zumbi, mas está parecendo um garoto
emo que dorme muito pouco. Eu devia ter avisado que era péssima nisso.
— É uma pena — ele diz, por fim. — As pessoas perdem a chance de te
ver quando você fica mais bonita.
Perco o rebolado por um segundo, mas me recupero a tempo de
perguntar, num tom quase indiferente:
— E quando é isso?
— Quando você não está tentando. — Ele pausa enquanto termino seu
olho direito, e então, tendo a minha completa atenção, continua: — Tipo
quando você acorda e seu cabelo tá uma zona, e o resto da sua maquiagem
fica meio borrado. Ou quando você sai do banho e tá de cara limpa, e não
tem nada em você além de você mesma.
— Isso é piegas pra caralho — murmuro, mas não nego que tem seu
efeito. O papinho de “você fica tão mais bonita sem maquiagem” nunca
deixa de funcionar comigo.
A luz automática se apaga. Por um instante, ninguém se move. Então
Nicolas joga minha bolsinha de maquiagem no chão e me puxa, me fazendo
sentar no colo dele, minhas pernas ao redor das suas. Dez por cento do meu
cérebro está meio puto, se perguntando se alguma das minhas maquiagens
quebrou no processo, mas os outros noventa por cento estão com o modo
tesão ativado. Ele não está duro, mas só a sugestão do volume que consigo
sentir debaixo de mim e suas mãos espalmadas na minha bunda para me
segurar no lugar são o suficiente para acender meu corpo todo.
— Achei que era pra gente manter tudo no profissional — provoco, e
Nicolas não se abala.
— Tecnicamente já acabou o expediente.
Preciso me controlar para não gargalhar alto. Se formos pegos ali, já era.
— Eu não tranquei a porta — digo, e sinto a mão de Nicolas subir pelas
minhas costas, vindo parar na minha nuca, onde me puxa na direção dele.
— Então melhor a gente fazer isso rápido.
Sua boca encontra a minha, e apesar da sua implicação, não há pressa
nenhuma no beijo que trocamos. Nicolas é dolorosamente lento, me beijando
com a precisão de quem sabe exatamente o que está fazendo, o que quer de
mim e como conseguir. Enquanto me beija, uma mão puxa suavemente os
cabelos da minha nuca, e a outra passeia pela minha bunda, pernas e costas.
Me encaixo mais nele, pressionando meu corpo no seu, sentindo a
temperatura e outras coisas subirem enquanto a gente se beija. A posição é
incômoda, e em questão de instantes minhas pernas estão doloridas, mas não
tem Cristo que me faça parar a essa altura do campeonato. A boca de
Nicolas desce para o meu pescoço, traçando o contorno da minha garganta,
descendo lentamente para o meu colo, seu nariz desenhando o meu decote.
Sua mão encontra o zíper do meu vestido, e eu estou prestes a pedir a ele que
por favor tire minha roupa e transe comigo ali dentro quando a luz
automática subitamente se acende e a porta se abre.
Pulo do colo de Nicolas com um grito, mas já é tarde demais.
Fomos pegos.
— A h — é tudo que Tim diz ao abrir a porta.
Puta que pariu, puta que pariu, puta que pariu. Eu estou fodida.
Completamente fodida.
— Não sabia que tava ocupado — ele diz, então.
— Tim, olha só... — eu me adianto, mas não dá tempo. Antes que eu
termine a frase, ele vira as costas e sai.
Fico um segundo imóvel, olhando para a porta em silêncio, e então faço a
única coisa possível: bato o pé e destilo todos os palavrões que eu conheço
em uma sequência.
— Luana, fica... — Nicolas começa, e sinto sua mão no meu cotovelo.
— NEM PENSE em me dizer pra ficar calma! — Puxo meu braço para
longe e me afasto. — Puta que pariu, Nicolas, nós fomos pegos !
— E daí, Luana? O que ele viu, um beijo? — ele diz, calmo demais.
— Um beijo se fosse você sozinho, né? Você tem ideia do que isso vai
virar quando a fofoca começar a se espalhar? — Solto um riso de puro
desespero. — Isso vai chegar no ouvido do Oscar como se a gente estivesse
trepando no banheiro.
— Calma, tá? Eu vou falar com ele. Ninguém vai espalhar fofoca
nenhuma.
— Não! — Ergo a mão, embora ele nem tenha se mexido. — Você já fez
demais. Recolhe as minhas coisas que eu vou dar um jeito nisso.
— Já fiz demais? Que porra isso quer dizer? — ele rebate, o tom subindo
para um de pura irritação.
— Tecnicamente já acabou o expediente — repito as palavras dele em
um tom afetado, como se eu fosse uma criança imitando o irmão mais velho.
Nicolas parece ainda mais irritado. — Você fica em cima da porra do muro
sem saber se quer ou não quer, e quando decide que quer, o que você faz?
Fode com o meu trabalho.
— Eu não me lembro de você ter tentado me impedir em momento
algum. Se eu te fodi, não foi sozinho.
Não consigo retrucar, porque sei que ele está certo. Foi irresponsabilidade
dos dois, e agora estou pagando o preço por ter deixado que Nicolas e minha
obsessão idiota por ele e pela maldita aposta que fiz com Suze subissem à
minha cabeça.
— Só recolhe as coisas e eu vou tentar remediar — digo, por fim, e saio
às pressas do banheiro.
Parece que na última meia hora a empresa inteira se reuniu no nosso
andar. Tem música tocando, gente conversando, cervejas sendo passadas de
mão em mão. Todo o meu departamento está fantasiado, provavelmente para
evitar bater de frente com Oscar, mas a maior parte das pessoas dos outros
departamentos não está nem aí se é carnaval ou não, todas vestidas com
roupas normais e usando, no máximo, alguns adereços na cabeça.
Ando entre as pessoas tentando disfarçar minha ansiedade e saio
perguntando descaradamente por Tim para todo mundo. Ninguém sabe
exatamente onde ele está, e a resposta mais clara que eu obtenho é a de que
ele tinha ido até o banheiro — nenhuma surpresa até aí. Por fim, acabo
trombando com Suze, que segura duas latas de cerveja e me entrega uma
assim que me vê.
— Caramba, você demorou! — ela diz, num ótimo humor, e então me
lança um olhar malicioso. — Ficaram fazendo o que no banheiro até agora?
— Suze, eu preciso achar o Tim. — Seguro a mão dela, pegando a lata de
cerveja extra e apoiando em uma mesa próxima.
— O Tim? Pra que você quer achar o Tim? — Ela pega a latinha de volta
e dá um gole.
— Porque ele me pegou dando uns pegas no Nicolas no banheiro
acessível!
— Puta que pariu, precisamos achar o Tim!
Suze se junta a mim na busca, mas não vejo o rosto genérico de Tim em
lugar nenhum. Ele não está perto do som, nem perto das bebidas e dos
petiscos, nem perto das mesas, onde um monte de gente cansada puxou
cadeiras para se sentar. Então olho para o lado e vejo Suze fazendo um sinal.
Ela o encontrou!
Vou na direção dela, o coração batendo forte, e ele quase salta pela boca
quando a alcanço só para descobrir Tim tomando uma cerveja e batendo
papo com Oscar.
Puta que pariu.
Suze faz uma careta e me lança um olhar de piedade quando passo por
ela. Estou tremendo dos pés à cabeça quando me aproximo dos dois. Oscar,
que está com uma espécie de fantasia havaiana que inclui camisa florida e
um daqueles colares ridículos de flores de plástico, está em um de seus raros
momentos de leveza, rindo de algo que Tim disse. Eles nem me veem
chegar. Quando paro diante dos dois, Tim parece assustado.
— Tim, você por aqui! — digo, na esperança de não parecer tão histérica
quanto me sinto. — Preciso falar com você!
— Luana, que porra que é a sua fantasia? Tela de cinema? — Oscar
pergunta, dando uma gargalhada alta.
Olho para baixo. Estou de branco, com o estetoscópio pendurado no
pescoço. Tela de cinema. Certo.
Tim dá uma risadinha desconfortável, mas eu não digo nada. Ignoro meu
chefe e me viro de novo para Tim.
— Será que a gente pode conversar?
— Porra, Luana, não viu que eu tô conversando com o cara? Que falta de
educação!
Tenho algumas palavras para Oscar sobre o que se configura como falta
de educação , mas engulo todas elas. Forço um sorriso.
— Você não vai morrer se eu roubar ele de você por dois minutinhos,
vai? — Passo um braço pelo braço de Tim e meu chefe não responde. —
Achei que não.
Puxo Tim comigo pelo acúmulo de pessoas até chegarmos nos
elevadores. Não avisto Nicolas em lugar nenhum, e parte de mim está feliz
por ele ter sumido, enquanto outra parte se ressente por ele nem ter tentado
ajudar.
Chegamos aos elevadores e aperto o botão. A porta de um deles se abre
automaticamente e puxo Tim para dentro, pressionando todos os andares no
painel para que tenhamos uma viagem bem lenta.
— Você comentou alguma coisa com o Oscar? — pergunto, na lata,
enquanto o elevador sobe.
— Alguma coisa sobre o quê? — ele diz. As portas se abrem para um
andar vazio, e fuzilo Tim com o olhar.
— Olha pra minha cara e vê se eu tô de brincadeira.
Ele encolhe os ombros de leve, mas finge não se afetar.
— Não, não comentei nada sobre as coisas que você anda ensinando pro
seu estagiário dentro do escritório — diz, então. Meu estômago se revira.
— Tim, olha só, sobre eu e o Nicolas...
— Luana, você não tem que me explicar nada.
Ele faz uma pausa, e eu prendo a respiração.
— Só acho engraçado que comigo você não queria ser vista no escritório.
Preciso me segurar para não rir. Mas aparentemente ele não terminou,
porque prossegue:
— Mas isso explica bastante coisa, eu acho. Por isso que você me deu o
fora? Pra ficar com o novato?
É demais para mim. O elevador abre e fecha as portas no último andar, e
percebo que se o que eu queria era apaziguar as coisas e minimizar os danos,
não vou ter sangue de barata a ponto de fazer com ele o que faço com Oscar,
sorrindo amarelo e fingindo que está tudo bem. Não com ele. Eu não me
dignei a gastar vinte minutos da minha vida transando com esse cara e dias
fugindo dele para depois fingir que está tudo bem. Já chega.
— Isso não é sobre você! — falo, enquanto o elevador começa a descer,
passando direto pelo nosso andar e parando só no sexto. — Eu não te dei o
fora por causa dele.
— Por que foi, então? — Ele se vira para mim, parecendo ao mesmo
tempo ansioso pela resposta e indignado com antecedência.
— Eu não te dei o fora, ponto . Não tinha fora pra dar! A gente transou
uma vez depois de um happy hour e foi isso. Eu não tinha e não tenho
obrigação nenhuma com você, assim como você não tinha comigo!
— Ah! — ele solta, no mesmíssimo tom que usou ao abrir a porta do
banheiro.
— Eu não quis sair com você de novo, e você foi insistente e grosseiro
comigo porque você é o típico homem que acha que uma mulher deve coisas
a você só porque eu encostei no seu pau uma única vez — continuo, cada
vez mais inflamada. O rosto de Tim está lívido. — Mas adivinha só? Não
devo. Nem se tivesse sido a foda mais espetacular da minha vida, o que, a
propósito, não foi.
Você não devia ter dito isso , diz uma vozinha na minha cabeça, mas não
quero e nem consigo escutá-la agora. As portas se abrem e se fecham no
primeiro andar, e então começamos a descer para o térreo. Respiro fundo.
— A única coisa que eu espero é que você tenha a decência de não falar
do que você acha que sabe pra ninguém — digo, mais baixo e mais centrada.
— Primeiro porque não é da conta de ninguém, e segundo porque se isso
chegar até o Oscar eu posso perder meu emprego. E você pode até ter raiva
de mim por ter te dado o fora, mas espero que não seja a ponto de ferrar com
a minha carreira.
O elevador chega no térreo e abre as portas. Sem saber bem o que estou
fazendo, aperto o botão do décimo andar, mas saio para o átrio sem olhar
para trás e sem esperar uma resposta.
Ouço o elevador fechando as portas, e então outro chegando. Quando
olho para trás, Nicolas está saindo dele, com a minha bolsa e sua mochila
nas mãos, como se soubesse exatamente do que preciso.
— Vamos embora? — ele diz, olhando para mim com o rosto meio
maquiado, perfeitamente neutro.
Quero gritar que não, espernear que tudo aquilo é culpa dele, que não tem
nada que ele possa fazer que vá me deixar menos puta, menos ansiosa ou
menos amedrontada. Mas, por mais que a raiva ainda borbulhe na minha
garganta, eu só consigo dizer:
— Pra minha casa ou pra sua?
Nicolas passa sua mochila por um braço e minha bolsa por outro.
— A gente decide no caminho.
— V ocê não vai falar nada?
Olho para Nicolas de soslaio enquanto ele avança pela rua, deixando a
empresa para trás. Estou calada desde que desci com ele até a garagem do
prédio, minha mente maquinando rápido tudo que acabou de acontecer e
tudo que calculo que ainda acontecerá.
— O que você quer que eu diga? Que eu tô fodida?
— Não só você — ele replica, e meu humor só azeda mais.
— Nicolas, você não tá nem remotamente tão fodido quanto eu — digo,
minha voz subindo até que estou gritando sem nem me dar conta. — No
melhor dos casos, você vai tomar um come do Oscar, mas vai ser
parabenizado por todo mundo pela ousadia. Sabe o que vai acontecer
comigo? Eu vou virar chacota naquela merda daquela empresa pra sempre,
isso se eu não for demitida .
— Mas não faz sentido! Nós dois estávamos naquele banheiro! —
Nicolas contrapõe, ao que solto uma risada alta.
— Bem-vindo ao mundo corporativo, Nicolas. Ele é machista, você vai
adorar.
Ele não responde, e percebo que está pegando o caminho até a minha
casa. Puxo o celular para me distrair, mas acabo me torturando abrindo o
grupo de funcionários no WhatsApp para ver se há qualquer menção ao meu
nome ou ao de Nicolas. Felizmente, nada. Vejo fotos da festa, áudios que
não me dou o trabalho de escutar, e imagino quanto tempo vai demorar até
que Tim resolva se vingar de mim.
Suze manda uma mensagem enquanto ainda estou com o telefone na
mão:
“Onde você foi parar? Tá tudo bem?”
Bufo e percebo Nicolas me olhando de canto de olho enquanto dirige.
Digito uma resposta:
“Tá tudo ok, acho. Longa história. Fui pra casa, depois te conto.”
Bloqueio o telefone e olho para frente. Não consigo nem começar a
entender tudo que estou sentindo, um arco-íris de sentimentos que vai desde
a raiva até o medo, passando pela vontade de rir histericamente. Nem eu
nem Nicolas falamos nada durante todo o trajeto, até ele estacionar na frente
do meu prédio e desligar o carro.
— Você quer que eu suba com você? — ele pergunta, afinal.
Eu o encaro, e pelo que deve ser a primeira vez na curta história do que
quer que estejamos vivendo, Nicolas parece na defensiva. Isso adiciona um
sentimento sem nome à minha lista, uma vontade intensa de beijá-lo
enquanto esmurro sua cara. Respiro fundo.
— Anda logo — digo, saindo do carro.
Ele me segue prédio adentro sem questionar, e não me toca mesmo
quando dividimos o minúsculo elevador. Descemos no meu andar e
entramos no apartamento sem trocar uma única palavra. Largo minhas coisas
em cima do sofá e vou pro banheiro, voltando com um lenço umedecido que
estendo para Nicolas.
— Tira isso da cara, você tá ridículo — digo, antes de lhe dar as costas e
ir pro quarto, tirando metade da roupa no caminho.
Jogo o maldito estetoscópio de brinquedo longe e arranco o jaleco e o
vestido. Me embanano quando vou tirar a meia-calça e acabo tropeçando nas
minhas próprias pernas, soltando um urro de frustração enquanto tento me
livrar dela, rolando na cama. É assim que Nicolas me encontra, em uma luta
corporal com as meias, lágrimas de raiva escorrendo dos meus olhos
enquanto eu desconto absolutamente todos os meus sentimentos conflitantes
em uma peça de roupa.
Contenho um soluço quando o vejo parado na porta, já com a cara limpa.
Nicolas não fala nada. Se aproxima cautelosamente e, com jeitinho e
delicadeza, me livra da meia-calça, fazendo um bolinho com ela e a atirando
no cesto de roupa suja ao lado da porta. Então se senta do meu lado na cama
e põe uma mão suavemente sobre o meu joelho.
— Luana... me desculpa.
Fungo para ele, mas não respondo.
— Eu esqueço às vezes que ser homem é ter privilégios — ele continua,
sem desviar os olhos de mim. — Você tem razão de estar com medo. Se a
bomba estourar, vai ser muito pior pra você. Eu sinto muito por ter te
colocado nessa situação.
Me sento na cama, devagar, e Nicolas se ajeita para me dar espaço. Bufo
novamente, abraçando meu próprio corpo exposto. Percebo que é a primeira
vez que fico seminua na frente de algum cara sem ter a intenção de transar
com ele. A sensação é... diferente. Vulnerável. Sinto vontade de me cobrir,
mas me controlo.
— Eu passei a vida toda lutando contra esses estigmas — falo, sem
conseguir olhar pra ele. — O de que eu não podia fazer tal coisa por ser
gorda, que não podia fazer tal coisa por ser mulher, que eu não posso isso,
não posso aquilo. E eu aguento muita porrada no meu trabalho, você sabe.
— Eu sei — ele murmura.
— Mas isso é só porque eu sei o quão difícil foi chegar nessa porcaria
desse cargo — continuo, me exaltando. — A quantidade de homem que eu
vi sendo promovido na minha frente, a quantidade de mulher padrão que eu
vi sendo contratada pra todas as vagas a que eu me candidatava, mesmo não
tendo nenhuma qualificação a mais. Caralho, Nicolas, eu sou uma boa
profissional, não sou?
— Você é boa pra cacete.
— Exato. Mas isso não tem valor nenhum. — Caio deitada de novo,
dramaticamente. — Quando o Tim abrir a boca, é tudo que eles vão ver.
Foda-se se eu trabalho bem, foda-se o quanto foi difícil. Eu vou ser pro resto
da vida a mulher que deu uns pegas no estagiário no banheiro acessível. Puta
que pariu.
Silêncio. Cubro o rosto com as mãos, lutando para não chorar mais.
Odeio estar fazendo esse papelão na frente dele. Não sou uma pessoa que
chora com facilidade, e Nicolas é a última pessoa que eu gostaria que me
visse desse jeito. Me sinto fraca, pequena e inútil.
Então, ouço Nicolas murmurar:
— Me desculpa.
— Você já disse isso — falo, num tom neutro, sem ironia nem raiva.
Nicolas se vira para mim.
— Não, Luana, não só por isso. — Ele hesita, fecha os olhos, e então diz:
— Sinto muito por ter me envolvido com você, e por ter deixado que
continuasse. Não queria ser um problema pra você. Eu tinha razão quando
falei que a gente devia separar as coisas.
Isso me inflama com uma nova onda de raiva. Me levanto num salto, tão
rápido que o mundo gira diante dos meus olhos. Me coloco na frente dele, já
respirando fundo de raiva.
— Então pra que você veio aqui, Nicolas? — disparo. Ele franze o cenho.
— Você me mandou subir!
— Se você veio até aqui só pra dizer que isso tudo foi um erro e que,
além de eu ter me fodido por sua causa, você ainda vai me dar um pé na
bunda de novo , você tá muito enganado! — continuo, como se não o tivesse
ouvido. — Decide logo o que você quer ou sai de uma vez da minha vida.
— Decidir o que eu quero? — ele também se exalta, mas não se levanta.
— E que tal o que você quer, Luana? Primeiro dá em cima de mim, depois
me dá um gelo, depois dá em cima de mim, depois me dá um gelo...
— Ah, isso, muito bem, senhor vamos manter tudo no profissional , joga
mesmo a culpa pra cima de mim!
— Você nunca vai parar de jogar isso na minha cara? — Ele ri com
escárnio. Só me deixa mais fula da vida.
— Vou parar no dia que você conseguir sair de cima da porra do muro!
— digo, e cada palavra é um cutucão no ombro dele. — Eu não sou sua
marionete, Nicolas. Se você me quer, então fala. Eu não vou passar a vida
sendo um brinquedinho pra você usar e jogar fora no final do dia.
Nicolas reage muito rápido. Num segundo, estou de pé, praticamente
gritando na cara dele, e no outro ele me tomou pela cintura e me jogou na
cama, travando meu corpo sob o dele. Seu rosto está corado, e ele respira
rápido quando me diz:
— Eu quero você, porra.
O efeito é imediato. Todos os nós que apertavam meu peito parecem se
desfazer de uma vez, minha raiva se dissipando.
— Eu quis você desde o primeiro bom-dia animado que você me deu
naquele escritório, e eu quero você todos os dias desde então — ele
continua, olhos fixos nos meus. — E eu não quero brincar com você, Luana.
Eu não sei o que isso é, o que nós somos, mas quando eu digo que quero
você, eu não tô pra brincadeira.
Respiro rápido, absorvendo cada palavra. Minha garganta trava e
qualquer pensamento racional evapora. Tudo que consigo dizer é:
— Eu te odeio às vezes.
Nicolas parece pego de surpresa, mas então ri, me fazendo gargalhar
também.
— Sua filha da puta teimosa!
Dou um beliscão na barriga dele, e Nicolas solta um gemido abafado de
dor.
— Essa boca aí só serve pra xingar ou ela também faz outras coisas? —
pergunto, então.
Ele entende a deixa e me beija, com a fúria que só uma briga pode
desencadear. Tento me desvencilhar dele para tocá-lo, mas Nicolas segura
meus braços no alto da cabeça, me prendendo sob ele enquanto a boca
desvia dos meus lábios pro meu pescoço.
— Tô te machucando? — pergunta, e faço que não.
— Só... não para — murmuro, entre uma respiração e outra.
E ele me obedece, segurando meus braços com uma mão enquanto a
outra tenta abrir meu sutiã. Quando ele fracassa, me liberta apenas por tempo
suficiente para que eu possa ajudá-lo. Os beijos de Nicolas são ferozes e
famintos, percorrendo meu corpo enquanto a mão livre me faz ameaças
sobre a calcinha. Quando já não aguento mais, solto um alto e claro:
— Pelo amor de Deus, só me come de uma vez!
Que faz com que ele morda meu pescoço e diga:
— Me obrigue.
Seu aperto nos meus braços se afrouxa, e é tudo que eu preciso. Eu o
empurro para o lado e me arrasto de maneira nada sensual até a mesa de
cabeceira, procurando na última gaveta até encontrar o que procuro.
— Você que pediu — respondo, e os olhos dele faíscam com grata
surpresa quando pego seus braços sem cerimônia até atá-los na cabeceira da
cama com um par de algemas felpudas.
— Você tinha uma dessas o tempo todo?
— São pra quando eu tô me sentindo criativa. — Testo as algemas e elas
não se soltam. — Tá apertado?
— Não, tá ótimo.
— Maravilha. — Me inclino sobre ele e o beijo, a suavidade dos meus
lábios contrastando com a violência com que minhas unhas arranham seu
torso. — Não se mexa.
Ele sorri, mas não responde. Termino de me despir e tiro suas roupas,
indo buscar com as mãos, a boca e o corpo exatamente o que quero dele.
Q uando acordo na manhã de sábado, Nicolas está tão encaixado em mim
que quase não consigo me mexer. Seu braço está na minha cintura, sua perna
está entre as minhas coxas e sua cabeça descansa contra a minha nuca. É uma
daquelas posições absolutamente desconfortáveis, mas que a gente aceita
porque não tem um único pedaço nosso que não toca a outra pessoa. Mas,
mesmo com o desconforto, e ainda que eu esteja morta de fome e de vontade de
ir ao banheiro, não me mexo por uns bons minutos, respirando e ouvindo-o
dormir, pensando em como aquilo tudo parece... natural.
Nós brigamos. Nós fizemos as pazes. Nós fizemos as pazes transando . Ele
está dormindo comigo pelo segundo fim de semana seguido, e parece tão...
normal.
Não, não, não. Não pode parecer normal. Não é para parecer normal.
Então me forço a acordar do transe e saio da cama, um pouco menos
delicadamente do que poderia. Nicolas abre os olhos por um instante, e depois
torna a fechá-los, ainda sonolento demais para registrar que me levantei.
Entro no banheiro e tranco a porta. Minha cara está horrível e meu cabelo
está todo emaranhado. Estou tentando não pensar no que me espera na segunda-
feira, mas é difícil. Minha mente logo assume a tarefa de imaginar um milhão
de cenários em que sou demitida e ridicularizada, e a saga para encontrar um
emprego depois disso. Poderia ser demitida por justa-causa, se todos ficassem
sabendo do episódio. Tudo vai depender de Tim e do que ele vai falar por aí.
É isso. Minha integridade moral e meu futuro profissional estão nas mãos de
um homem em quem dei um pé na bunda. Perfeito. O que pode dar errado?
Abro o chuveiro e entro no banho sem nem esperar a água esquentar. Fico
tanto tempo imóvel deixando a água cair que, vários minutos depois, ouço uma
batida na porta.
— Luana, tá tudo bem? — Nicolas pergunta do outro lado.
— Tá sim. Só um segundo — digo, mas não me mexo por pelo menos outros
cinco minutos. Quando saio do banheiro, ele ainda está de pé ao lado da porta,
recostado na parede.
Ele me abraça, mesmo eu estando enrolada na toalha e com o cabelo
pingando, e beija minha testa.
— Dormiu bem? — pergunta, e tem alguma coisa no seu tom de voz, tão
suave e carinhoso, que automaticamente alivia e pesa meu peito. Mordo o lábio.
— Uhum — murmuro. — E você?
— Também. — Ele se afasta um pouquinho e aponta pro banheiro com o
polegar. — Vou escovar os dentes, e daí pensei da gente sair e tomar café da
manhã em algum lugar gostoso. O que você acha?
— Hm. Pode ser.
— Ótimo. Se troca e a gente já sai.
Ele me deixa parada ali e entra no banheiro, fechando a porta atrás de si. De
novo, não consigo me mexer. Minha cabeça está agora repassando as coisas que
ele me disse na noite passada.
Eu quero você, porra. Eu não sei o que isso é, o que nós somos, mas quando
eu digo que quero você, eu não tô pra brincadeira.
Devia me trazer algum consolo, algum senso de vitória. Era o que eu queria,
não era? Fazer Nicolas se apaixonar por mim, pagar na língua por ter me
rejeitado. Eu estou no caminho. Ele tinha admitido que havia alguma coisa ali.
Eu estou ganhando.
Mas não me sinto nem um pouco vitoriosa. Na verdade, estou com medo.
Com medo das coisas que eu mesma não tinha sido capaz de admitir, com medo
das verdades que borbulham no meu estômago e gritam no meu coração.
Com medo de que, em vez de fazê-lo se apaixonar por mim, seja eu quem
está se apaixonando por ele.
O barulho da descarga me acorda do transe. Entro no quarto e me troco,
penteio o cabelo e fico mais ou menos apresentável. Quando Nicolas retorna e
começa a pegar as roupas espalhadas pelo chão, fico tentando não pensar no
quão doméstica é aquela cena, no quão comum ele parece no meu quarto, suas
coisas misturadas com as minhas, seu cheiro ainda impregnado no meu
travesseiro.
Não quero que seja normal. Não quero que a gente seja um casal. Não
deveria querer. Não foi por isso que me envolvi com ele.
Mas não consigo me desvencilhar de nada disso. E quando ele me diz um:
— Vamos?
Num tom animado e convidativo, não consigo impor um limite, dizer que
não, agir com a indiferença calculada do jogo que achei que estava jogando. Em
vez disso, pego minha bolsa e meu celular, e digo:
— Vamos.
Tomo a mão dele e saio da minha própria casa, como se aquele fosse mais
um sábado qualquer em que eu durmo acompanhada e saio para um encontro
improvisado com o homem por quem estou tentando não me apaixonar.

Acabamos andando pelo bairro até achar uma padaria a que eu nunca fui,
três ruas pra cima da minha casa. Como alguém que mora sozinha e preza pelo
mínimo esforço, me acostumei a comprar pão de forma no mercado para comer
no dia a dia. Nem me lembro quando foi a última vez que comi um pãozinho
fresco. Enfim é hora de matar a saudade.
Nos sentamos numa mesa, a situação toda parecendo muito incomum.
Nicolas ainda está com a roupa com que foi trabalhar ontem, eu estou muito
mais casual que de costume, e estamos cercados por famílias com crianças
pequenas e alguns velhos beberrões tomando cerveja às 10 da manhã. Não tem
garçom, então Nicolas me pergunta o que quero e vai ao balcão fazer nossos
pedidos — café preto e pão na chapa para mim, iogurte batido com leite e pão
de queijo para ele. Quando se senta de novo, sua mão busca a minha por cima
da mesa.
Não pense nisso, não pense nisso, não pense nisso . Mas quanto menos tento
pensar, mais apavorada fico com o que isso tudo quer dizer.
— Ei — Nicolas me chama para a realidade de novo —, eu sei que você tá
com medo, mas vai ficar tudo bem.
Ele sabe que eu estou com medo? Então ele sabe que eu estou sentindo... o
que quer que seja que eu estou sentindo por ele. Como ele pode saber? Está tão
claro assim na minha cara?
— Eu não acho que vai chegar a isso, mas se a história se espalhar mesmo e
acabar sobrando pra você, a gente vai dar um jeito — ele continua, e percebo
que está falando sobre o escândalo na empresa, não sobre mim. — Eu vou fazer
tudo que eu puder, Luana. Prometo. Mesmo que seja só te ajudar a segurar a
barra, na pior das hipóteses.
Meu Deus, Nicolas, por que você tem que ser assim? , tenho vontade de
gritar. Que inferno de homem. Não basta ser bonito e bom de cama, esse filho
da puta ainda precisa ser compreensivo ? Companheiro? Por que ele não podia
ser só um cafajeste qualquer igual a literalmente todos os outros homens que eu
já peguei?
Por que, de todos os caras, eu fui escolher apostar com os sentimentos de
alguém que realmente tinha sentimentos?
— Obrigada — falo, por fim, a voz seca com o medo. Então pigarreio e olho
para o lado, onde vejo nosso pedido pronto no balcão. — Vou pegar... —
Aponto com o polegar e deixo a frase morrer enquanto me levanto. Levo muito
mais tempo do que preciso, fazendo duas viagens para levar primeiro as bebidas
e depois os pães. O tempo todo, tento me acalmar.
Eu preciso resolver isso. Eu preciso parar com isso.
Mas não sei como. Não sei como me afastar de Nicolas agora, e não sei
como ir até o fim. Não sei o que fazer. Não sei o que estou fazendo.
Meu Deus, no que foi que eu me meti?
Quando volto, Nicolas está adoçando o iogurte. Não ponho nada no café,
torcendo para que o amargo traga de volta a sanidade que perdi pelo caminho.
Então ele solta:
— Ok, uma curiosidade inútil. Você sabia que, quando eu fui pra Alemanha,
sobrevivi quatro dias inteiros só com iogurte?
Respiro aliviada pela mudança de assunto. Viagens. Posso lidar com
histórias de viagens. Solto uma risadinha.
— Seu intestino deve ter adorado.
— Ah, foi horrível. — Ele solta uma risada gostosa, que me faz querer rir
também. — Mas eu tinha, sei lá, 19 anos, tinha 50 euros pra passar a semana e
não sabia nem falar Big Mac em alemão. Mas eu sabia reconhecer iogurte.
Então vivi de iogurte.
— Eu não sei se conseguiria viajar do jeito que você viaja — digo, tomando
um gole do café. Amargo como a vida.
— Por que não?
— Sei lá, acho que sou madame demais pra passar perrengue. Sempre que
eu penso em viajar, eu penso em fazer as coisas com conforto. Não consigo me
imaginar saindo do Brasil pra sofrer em outro país.
— É um jeito de ver as coisas. — Ele dá de ombros — Eu às vezes acho que
não tenho mais idade pra algumas coisas. Era bem mais fácil quando eu era
novo, tinha menos consciência da vida e menos dor nas costas quando dormia
mal. Hoje em dia é outra história. Nem dinheiro pra viajar desse jeito eu tenho.
— Estágio paga mal, né? — brinco, e ele sorri para mim.
— É, mas tem outros benefícios.
Não respondo, meu corpo confuso entre se apavorar e pegar fogo pela
sugestão. Então pigarreio de novo.
— E a sua irmã? Ela é maluca que nem você?
— A Iris? — Ele dá uma mordida no pão de queijo e mastiga
pensativamente antes de engolir e continuar: — Não, ela é mais como você.
— Jura? Eu achei ela tão... sei lá, destrambelhada no carnaval. Achei que
fosse ser mais que nem você, dada a umas loucuras.
— Ela tem seus momentos. Mas no geral acho que eu peguei todo o tesão de
aventura da família. Ela só quer ir pra Disney viver uns dias de princesa, ou pra
Paris tirar foto na Torre Eiffel. Quando brinquei que a gente podia ir acampar no
Atacama, ela só faltou me exorcizar.
— Acampar no Atacama? — pergunto, tentando imaginar por que diabos
alguém iria querer acampar no deserto. O rosto de Nicolas se acende.
— É meu sonho de viagem.
— E por que você ainda não foi?
O rosto dele se apaga subitamente e ele dá um longo gole no iogurte.
— Eu ia com a Fernanda. Mas a gente terminou um mês antes da viagem e
acabou não rolando.
Não suporto olhar pra decepção nos olhos dele. Se algum dia eu conhecer
essa Fernanda, preciso me lembrar de quebrar a cara dela. Então respiro fundo e
mudo de assunto.
— O que tem de legal no Atacama?
Nicolas se ilumina de novo, me contando sobre as coisas maravilhosas que
tem no Chile, e sobre a visão inigualável do céu no deserto. Ele se empolga e
me mostra fotos, me falando de todos os outros lugares que gostaria de visitar
só para presenciar fenômenos naturais. Continua falando enquanto voltamos
para casa, e o caminho todo só consigo pensar em como ele fica maravilhoso
quando está animado com alguma coisa, em como parece outra pessoa falando
sobre as suas paixões. O Nicolas de agora é o Nicolas que eu gostaria de
guardar num potinho e proteger do mundo.
Então chegamos em casa e deitamos na cama, mas em vez de sexo, só
ligamos a TV e procuramos alguma coisa para assistir. Tem um documentário
sobre um serial killer passando e é aí mesmo que eu paro, tentando não pensar
em como é estranho e natural que eu esteja deitada na cama com ele, vendo meu
tipo preferido de programa sem ter que explicar meu fascínio por criminologia e
psicopatas. Tento não pensar em como gostaria de congelar o momento em que
ele me abraça e faz cafuné no meu cabelo, em como gostaria de morrer na
simplicidade de só estar dividindo um espaço com ele. Tento não pensar em
sentimentos.
Pego meu celular para checar as mensagens, só para me torturar de novo. A
primeiríssima delas é de Suze, uma sequência que começou na noite anterior e
foi até a madrugada.
“Putz, amiga, espero que tenha dado tudo certo. Acabei de ver o Tim
voltando do elevador. Vou ficar de olho.”
“Meu deus, como tem gente nessa empresa, já perdi ele de vista umas dez
vezes.”
“Luana, checa o grupo da empresa tipo, agora.”
“Cacete, Luana, pega a droga do celular e olha o grupo! O Tim pediu
demissão!”
— O QUÊ? — eu grito tão alto que Nicolas dá um tranco do meu lado,
quase caindo da cama. Me sento, o celular na mão trêmula, e vou até o grupo da
empresa.
— O que aconteceu? — ele pergunta, sentando do meu lado.
Não respondo. Ele insiste.
— Luana, o que foi?
— Calma aí, cacete!
Abro o grupo da empresa e volto até as mensagens da noite anterior. Já tinha
visto algumas delas, a maioria fotos da festa de carnaval, mas tinha ignorado os
áudios. Tem muitos, e quando ouço os primeiros, não tem nada de relevante;
gritaria, música, recados para as pessoas que não estavam na festa. Até
aproximadamente dez da noite, quando já estava ocupada demais com Nicolas
para me dar o trabalho de checar as mensagens.
Então começava uma chuva delas. Fotos com Tim. Recados pra ele.
“Boa sorte, mano, cê vai se dar muito bem!”
“Voa alto, Tim, tu é foda, cara!”
“Adorei trabalhar com você, Tim! Sucesso no trabalho novo!”
Não estou entendendo porcaria nenhuma, e ouço Nicolas, lendo sobre meu
ombro, emitir um ruído de surpresa também. Então faço a única coisa que posso
e mando mensagem para Suze:
“O que eu perdi? O que é que está acontecendo????????”
Ela visualiza na hora, e passo o minuto seguinte olhando a tela enquanto o
“gravando um áudio” aparece sob seu nome. Quando finalmente chega o áudio,
não consigo nem apertar play rápido o suficiente.
— Menina, nem eu tô acreditando? — ela fala e, pela respiração e barulho
em volta, dá pra perceber que está andando. — Desculpa o áudio, eu tô indo até
o metrô. Mas então. Eu não tava entendendo nada, porque ele voltou, e vocês
sumiram, e aí ele começou a falar com todo mundo e a abraçar um monte de
gente, e eu fiquei preocupada achando que ele estava falando de você, né? Fui
tentar entender, e eis que no meio da festa as pessoas desligam o som e ele faz
um discurso sobre como foi ótimo trabalhar ali, que ele aprendeu muito,
agradecendo outros funcionários, e desejando sorte pra quem ia ficar.
O áudio acaba subitamente. Isso não responde a nenhuma das minhas
perguntas.
— Tá, mas ele pediu demissão? Por quê? — mando em mensagem de voz, e
aguardo de novo.
Não foi por minha causa. Não pode ter sido por minha causa, não é?
Dois minutos depois, chega a resposta:
— Desculpa, nem terminei de contar e enviei sem querer. Então.
Aparentemente ele pediu demissão antes do carnaval, mas estava cumprindo
aviso prévio. Ele vai trabalhar numa start-up lá em Porto Alegre, um negócio de
aplicativo que faz não sei o quê? Sei lá. Mas ele tá de mudança. E eu chequei,
amiga, eu fiquei de olho, ele não falou nada pra ninguém sobre vocês, sobre o
que ele viu, sobre nada. Nem uma palavra! Então pode ficar tranquila que o cara
lá de cima deve gostar muito de você e cuidou dos seus problemas sozinho.
Ela termina o áudio com uma risada, e eu fico uns dois segundos segurando
o telefone, chocada demais pra falar. Então Nicolas solta um suspiro aliviado,
caindo de costas na cama enquanto ri.
— Ah, puta que pariu, obrigado, meu Deus!
Eu rio também. Estou salva. Meu emprego está salvo. Minha carreira está
salva. Minha reputação, seja ela qual for, está salva. O problema se resolveu
sozinho em menos de 24h. O alívio se espalha pelo meu corpo, me fazendo
relaxar todos os músculos que eu sequer notara que estavam tensos.
— Ouviu só? Vai ficar tudo bem! — Nicolas se senta de novo e planta um
beijo no meu rosto, depois outro no meu queixo, nos meus ombros, e vai me
dando beijos animados e carinhosos enquanto fala — Você vai ficar bem! A
gente vai ficar bem!
Bom. Talvez nem todos os problemas tenham se resolvido em menos de 24h.
Em algum momento, Nicolas repara que não estou respondendo e para. Ele
segura meu rosto suavemente, me fazendo olhar para ele, o semblante
preocupado. É tão mais difícil olhando para ele, aquela droga daquele rosto
perfeito, o nariz reto, a boca que quero beijar só de olhar. Ele me encara por
alguns segundos antes de perguntar:
— O que foi?
Muita coisa passa pela minha cabeça antes de eu responder.
Começa com uma avaliação rápida do que estou sentindo. E só de olhar pra
ele, eu sei que estou sentindo alguma coisa . Era uma aposta, uma questão de
orgulho ferido, uma tentativa de provar alguma coisa, mas já faz tempo que isso
deixou de ser prioridade; se eu for muito sincera, talvez nunca tenha sido. Não
consigo tratar Nicolas com indiferença porque não sou indiferente a ele. Muito
pelo contrário.
Então olho para ele, para a cama com lençóis amarrotados, as coisas dele
espalhadas pelo chão. Tem uma intimidade e uma proximidade muito grandes
nisso. E essa proximidade me sufoca de repente. Porque tudo em que consigo
pensar é que ela é provisória. Que Nicolas está aqui, mas está aqui por enquanto
, e que vai ser só até a próxima briga, até a próxima discussão, e que ele vai
fazer alguma coisa idiota que vai me decepcionar, ou que eu vou fazer alguma
coisa idiota que vai afastá-lo de mim. E esse medo me paralisa. A única coisa
pior do que ser rejeitada por ele de primeira seria saber como era ter essa
intimidade e então não tê-la mais. Ter tudo para perder tudo.
De repente, não consigo mais olhar para ele. Não consigo mais fazer isso.
Não consigo deixar que ele fique, que ele deixe as coisas espalhadas, que ele
ocupe os meus espaços, que ele se abrigue na minha cama. Se eu baixar a
guarda agora, vai ser pior mais tarde.
Isso não devia nem ter começado.
— Luana. O que foi? — ele pergunta de novo.
Quero dizer alguma coisa, alguma coisa destrutiva e definitiva, mas nem isso
consigo fazer. Em vez disso, só respiro fundo e digo.
— Eu só tô cansada. Acho que preciso ficar um pouco sozinha.
Ele baixa a mão. Mesmo sem olhar para ele, sei que de alguma forma ele
entendeu.
— Tá bom — diz, mais baixo.
Então ele se levanta e se veste de novo, ainda as roupas da noite passada,
mais amassadas que nunca. Pega tudo que é dele e se inclina para me dar um
beijo. Não consigo deixar. Quando ele se aproxima, viro levemente o rosto, e
ele beija o canto da minha boca.
Nicolas hesita antes de se afastar. Ele vai até a porta do quarto, mas não sai
de imediato. Em vez disso, para e se vira de novo para mim. Sou covarde
demais para erguer os olhos para além de observar seus pés.
— Pra alguém que queria tanto que eu saísse de cima do muro, você pode
ser bem indecisa — fala, e a verdade me quebra por dentro. — Eu tô disposto a
tentar, Luana. Fazer do jeito certo. Mas eu não vou ficar dando murro em ponta
de faca. Acho que nós dois merecemos mais do que isso.
E então se vai, batendo a porta da frente. Levo quase meia hora para ter
coragem de me levantar e trancá-la.

— Calma, você fez o quê?


É segunda-feira, e encontro Suze mais cedo para pegarmos café antes do
expediente. Estou exausta, embora praticamente não tenha saído da cama
durante todo o sábado, e não tenha feito nada além de limpar o banheiro no
domingo. Minha cabeça está girando.
— Eu mandei ele embora — repito. Logo que nos encontramos, ela
perguntou como tinha sido o fim de semana, e contei tudo para ela. Suze,
contudo, se apegou a um único detalhe.
— Por que você fez isso? — ela pergunta, então, parecendo chocada e
ultrajada, como se eu tivesse mandado ela embora. Suspiro.
— Porque vai dar merda, Suze. — Abro um saquinho de açúcar e adoço meu
café. — É uma merda esperando pra acontecer, e eu não tô com pique pra lidar
com mais problema.
— Mas e a aposta?
— Pro inferno com a aposta, Suze. Nem estava valendo nada, só meu ego.
Fazemos silêncio enquanto ela adoça o próprio café e eu tomo um gole do
meu. Não consigo deixar de pensar na voz de Nicolas enquanto ele ia embora,
nas palavras que ele me disse.
Eu tô disposto a tentar. Mas não vou ficar dando murro em ponta de faca.
Bom, nem eu. Porque vai dar errado, como sempre dá, e eu já tenho
problemas demais pra acrescentar um coração partido a essa lista. Não vou
insistir no que nem era pra ser, pra começo de conversa.
— Olha, longe de mim querer ficar te analisando, não sou sua terapeuta nem
nada... — Suze começa, e me viro para ela, que está mexendo incessantemente
seu café. — Mas acho que você tá com medo.
— Jura? — digo, e ela faz uma careta para o meu sarcasmo.
— Ai, Luana, é sério!
— Eu só não quero que dê merda, Suze. E ia dar. Ou ele ia descobrir a
aposta e ficar magoado, ou ele ia se apaixonar mesmo e ficar magoado...
— Ou você ia se apaixonar por ele e ficar magoada? — ela completa por
mim.
Fico quieta, bebendo meu café. Suze olha no relógio e suspira.
— Bom, você é adulta e sabe o que faz da vida, mas vê se não arranja um
sofrimento pra poupar outro, tá? — diz, e fico grata por ela não insistir no
assunto. Suze me conhece muito bem.
— Eu tô é me livrando de um problema. Problema homem — brinco, e ela
ri.
— Pelo menos não tem mais o Tim pra encher o saco.
— Graças a Deus.
Andamos até o trabalho tagarelando, enquanto ela me conta fofocas da festa
que não faço questão alguma de escutar. Quando chegamos no escritório,
Nicolas já está na sua mesa, ligando as coisas e se ajeitando pra trabalhar.
Meu coração quase para quando eu o vejo, mas não digo bom dia. Não digo
nada. Dou a volta e sento na minha própria baia, de frente para ele, bebendo
meu café e gritando mentalmente pro meu peito parar de doer.
Ele não ergue os olhos, não me dirige a palavra e não se aproxima de mim
durante o resto do dia, nem dos dias que vêm a seguir.
É domingo à tarde quando o meu telefone toca. Estou tão
desacostumada a ouvir esse som que, a princípio, nem ao menos o
reconheço; o celular fica emitindo sua musiquinha chata, vibrando
loucamente sobre a mesa de cabeceira enquanto estou deitada lendo uma
graphic novel . Demoro pelo menos dois minutos para entender de onde vem
o barulho.
Largo a leitura e pego o aparelho. O nome MARLI aparece em letras
garrafais na tela.
— Alô — atendo, já com um meio sorriso. Já sei o que ela vai falar. Ela
sempre fala exatamente a mesma coisa.
— Esqueceu que tem mãe, sua desnaturada? — ela diz, e murmuro as
palavras junto com ela antes de dar uma gargalhada.
— Não esqueci, não. Fui deixar flores lá no cemitério no dia de finados e
tudo.
Tia Marli desata a rir, uma gargalhada mais alta e escandalosa do que a
minha.
— Você é uma filha da puta debochada, hein, Luana? — solta, me
fazendo rir também — O que cê tá fazendo?
— Lendo.
— CDF dos infernos. Levanta essa bunda da cama e vem pra cá que o
Horta tá fazendo churrasco.
Olho no relógio do celular.
— São quatro da tarde — digo, num tom meio chocado.
— Tsc. E tem hora pra churrasco?
— Ai, tia, vocês moram na puta que pariu, vou chegar supertarde! —
reclamo. Precisaria atravessar a cidade para ir da zona sul, onde eu moro, até
o Tucuruvi, no extremo norte, onde eles estão. Mas minha tia, como sempre,
não vai ouvir reclamações.
— Luana, se ficar muito tarde e você estiver muito bêbada, eu pago a
porra do Uber pra você voltar pra casa. Agora vem logo.
E é assim que, duas horas mais tarde, estou descendo uma ladeira para
chegar à casa dela. Conheço tia Marli a vida toda, e sei que discutir com ela
é quase tão ruim quanto discutir comigo mesma — mais vale fazer sua
vontade do que enfrentar um debate infinito.
Quando chego, é Horta quem me recebe. Eles são casados há cinco anos,
embora estejam juntos há mais de vinte. Minha tia sempre disse que nenhum
tempo é o suficiente quando se trata de conhecer e confiar em homem. Horta
tem dez anos a mais do que ela, e a idade o deixou com os cabelos
completamente brancos e os dentes completamente tortos. Mesmo assim, ele
tem um dos meus sorrisos preferidos no mundo, e quando grita:
— Ave, Luana!
Como faz todas as vezes que eu apareço para visitá-los, já me sinto mais
feliz de ter perdido a discussão e ido até lá.
Minha tia mora numa casinha simples, térrea, de dois quartos, que ela
insiste em dizer que são: um dela e um do marido. No fundo, acho que ela só
se recusa a acreditar que está casada. Além de Horta, ela vive com quatro
cachorros, todos vira-latas que ela recolheu da rua magros e machucados e
cuidou até se tornarem pequenos bois muito animados que me cercam e
pulam ao meu redor assim que piso para dentro da casa. Horta me leva até os
fundos, onde fica a churrasqueira, e concluo que o churrasco é, como
sempre, um evento para no máximo três pessoas. Eles fazem isso quase todo
final de semana desde que me entendo por gente.
Tia Marli está pilotando a churrasqueira com um copo gigantesco de
uísque quando me aproximo. Ela é o protótipo da idosa perua, com os
cabelos tingidos num tom agressivo de ruivo, um cigarro pendurado na boca
e bijuterias o suficiente para decorar um desfile de moda. E, ao contrário do
marido, a primeira coisa que grita ao me ver é:
— Porra, Luana, finalmente!
E vem me dar um abraço apertado de colônia e nicotina.
— Oi, tia. — Eu a abraço de volta, e ali ficamos, num concurso de quem
aperta mais o laço, durante longos segundos.
— Eu ia te dar uísque, mas só porque você é uma safada desnaturada, vai
ter que beber cerveja quente junto com o Horta — ela diz ao me soltar. Faço
uma careta.
— Tô de boa de beber, tia. Tenho que trabalhar amanhã.
— E desde quando isso te impede? — ela dá um gole no uísque e me
olha, desconfiada. — Tá ficando velha e careta, hein, Luana?
— A idade nos torna sábios, tia.
— Deus me livre. Quer linguiça?
Ela me serve de vários pedaços e um pouco de farofa pronta de
supermercado. Horta reaparece com uma garrafa de cachaça e limões, e
mesmo contra todos os meus protestos, começa a fazer uma caipirinha.
Finais de semana são sempre assim naquela casa: ninguém sai de lá sóbrio se
puder evitar.
— Você foi mesmo levar flores no dia de finados? — minha tia pergunta,
enquanto estou comendo, num tom subitamente sério. Dou de ombros.
— Eu vou de vez em quando — digo, e ela faz uma careta. — Não
sempre , que mórbido. Mas sei lá. Eu já pago por aquele negócio, posso
muito bem ir levar umas florezinhas de vez em quando.
— Você que não ouse me enterrar e depois ficar levando lembrança
quando eu morrer, tá me escutando? — Ela balança o dedo na minha cara.
— É pra eu ser cremada...
— E depois misturada numa garrafa de Velho Barreiro, eu lembro.
— Ótimo. Se der pra alguém beber, tanto melhor.
— Que nojo, tia.
Ela gargalha daquele jeito escandaloso, e eu a acompanho. Toda vez que
estamos juntas, eu percebo como me tornei a pessoa que eu sou hoje, meio
destrambelhada e sem papas na língua. Tia Marli praticamente me criou,
tendo morado comigo e minha mãe desde sempre. Ela e minha mãe não
eram irmãs, e sim amigas de infância com perdas em comum. Minha mãe
tinha sido abandonada pelo meu pai assim que ficou grávida, e Marli não
tinha mais ninguém no mundo além das amigas e de uma avó senil, que
morreu em um asilo. Quando minha mãe morreu, ainda na minha
adolescência, ficamos só nós duas dividindo um teto e farpas amorosas, até
que eu tivesse idade e condições de sair de casa e começar uma vida sozinha.
Em todo aquele tempo, ela tinha sido uma presença muito mais constante
que a minha mãe. O acordo entre elas sempre foi uma coisa que me deixava
confusa. Minha mãe trabalhava fora, professora concursada de ensino
básico, e praticamente sustentava a casa sozinha. Minha tia vivia de bicos e
cuidava da casa — e de mim. Elas não tinham absolutamente nada em
comum. Enquanto minha mãe me ensinou a ler e a desenhar, minha tia foi
quem me ensinou como beber sem passar mal e quem trouxe um baseado
para dentro de casa pra que eu não tivesse curiosidade de fumar na rua.
Minha mãe me preparou pra vida prática, mas foi tia Marli quem me ensinou
a viver , com todas as nuances e possibilidades que aquilo implicava. E as
duas juntas tinham me criado para ser uma mulher livre.
— Tô pensando em adotar mais um cachorro — ela disse, então, dando
um gole no uísque.
— Mais um? Achei que você tinha dito que quatro era um bom número.
— Não gosto de números pares. E tem um filhote sem coleira que tá
rondando a rua atrás de comida. Acho que qualquer dia desses ele vai pedir
pra entrar.
Pedir pra entrar. Marli acreditava muito na liberdade de escolha de todo
mundo, até dos cachorros. Ela nunca tinha deliberadamente forçado um
bichinho a entrar na casa dela; simplesmente deixava comida e água até eles
se acostumarem, e depois deixava o portão aberto, convidando. Se eles
entrassem, tudo bem. Se não entrassem, tudo bem também. Ela não podia
forçar ninguém a ficar.
— Eu queria um gato — comentei, mastigando devagar —, mas tenho
dó. Eu nunca tô em casa. Não quero que ele se sinta abandonado.
— Bicho é que nem gente, Luana. Tem que dar mais amor do que comida
pra eles quererem ficar — diz, mais uma de suas pérolas aleatórias de
sabedoria. — Se você não trabalhasse tanto, dava pra ter um gato.
— Se eu não trabalhasse tanto, não dava pra ter uma casa —
contraponho. Marli solta um bufar irônico.
—Tem mais na vida do que pagar contas, menina. Achei que tinha te
ensinado isso.
— Ensinou. Mas a vida adulta faz questão de me ensinar exatamente o
contrário — admito, derrotada.
— E é por isso que a gente bebe.
Concordo, e passamos a meia hora seguinte enchendo a cara e comendo
churrasco. Horta conta umas histórias absurdas da sua adolescência, muitas
eu já escutei milhares de vezes, e tia Marli grita nas partes que tem certeza
de que são inventadas. Dou mais risada do que tenho dado em semanas, me
divertindo só de assistir o pingue-pongue entre eles. Marli e Horta estão
juntos desde que eu sou criança, e a essa altura se conhecem tão bem que são
capazes de completar as falas um do outro. Não consigo imaginar como deve
ser estar com alguém há tanto tempo que você conhece a pessoa tão bem
quanto a si mesmo.
Será que eu e Nicolas seríamos assim, depois de um tempo? Nos
tornaríamos versões alternativas de Marli e Horta, uma velha escandalosa e
um idoso exagerado, gritando de sacanagem um com o outro enquanto
compartilhávamos histórias que sabíamos de cor? Será que um dia
poderíamos nos conhecer tão bem a ponto de sabermos tudo um do outro?
Balanço a cabeça, afastando os pensamentos. Não existe eu e Nicolas.
Não existe futuro de nós dois. Marli e Horta não têm nada a ver com a gente.
No que diabos eu estou pensando?
— Ih, não gosto dessa cara — tia Marli comenta, e percebo que ela e o
marido pararam de falar e estão me encarando.
— Quer mais caipirinha? — Horta sugere, e toma meu copo sem precisar
de autorização. — Eu vou buscar mais caipirinha.
Ele entra, e minha tia senta na minha frente, daquele jeito meio largado,
meio caminhoneira que só ela sabe fazer. Eu conheço aquela expressão. É a
cara de quem vai me obrigar a falar nem que precise me torturar para isso.
— Anda. Desembucha.
— Não tem nada pra falar! — digo, a voz afinando com a mentira
deslavada. Marli revira os olhos.
— Luana, tá achando que eu nasci ontem? — Ela bate na perna. — Com
essa cara de sonsa, só pode ser homem. Que que foi que eu te ensinei?
— O único homem que pode me fazer de trouxa é Deus, e só porque eu
não posso encontrar ele pra dar umas porradas — repito a fala que ela diz
pra mim desde que tenho doze anos e tive minha primeira paixonite. Ela
assente.
— É isso mesmo. Agora fala.
Suspiro. De todas as pessoas com quem não quero ter aquela conversa,
tia Marli é provavelmente a número um da lista. Não porque não confie nela
ou no seu julgamento, mas porque ela tem uma visão pragmática das coisas
que dispensa opiniões: ela está sempre certa, e sinto muito se você não
seguir o conselho dela. É cansativo.
— Não é nada, tia. É um cara do trabalho que eu peguei e deu merda. Só
isso — digo, na torcida para que esse tanto de informações baste.
Claro que estou errada. Com ela, o mínimo nunca basta.
— Um cara do trabalho, é?
— É. Meu estagiário.
Meu . A palavra fica entalada na minha garganta.
Minha tia desata a rir.
— Tá pegando novinho agora, Luana?
— Não! — exclamo, me apressando em corrigir. — Ele é mais velho que
eu. É uma longa história.
— Eu tenho tempo. — Ela sorri amarelo. Consulto o relógio no celular.
— Tia, são quase oito, já, já eu preciso ir embora.
— Cê vai narrar a Ilíada ou contar a história de uma transa, Luana? Fala
logo!
— Meu Deus do céu, você é insuportável! — digo, o que só a faz rir
mais. Então suspiro e admito derrota. — O nome dele é Nicolas, e eu fiz
uma aposta.
Conto por cima os fatos principais, mas é claro que tia Marli não vai se
contentar com o básico. Ela é, afinal de contas, a pessoa que me perguntou
da minha primeira vez lance a lance, com comentários tipo “mas ele não te
chupou?” ou “você devia ter ficado por cima, é muito melhor”. Os limites de
intimidade no nosso relacionamento eram inexistentes.
Então ela me faz contar tudo, tim-tim por tim-tim, tecendo comentários e
fazendo perguntas aqui e ali. Quando termino, ela já pegou uma cerveja,
Horta voltou com a caipirinha e eu estou bebendo, agradecida por não ter
que pensar sobre nada disso enquanto estou sóbria.
— Mas que bela merda que você foi fazer, hein? — é tudo que ela diz,
após alguns momentos de silêncio.
— Obrigada, foi feita com carinho. — Ergo o copo num brinde
imaginário, e ela ri.
— Mas esse menino aí, como é mesmo o nome dele? Ele parece legal.
— Nicolas. E ele é legal.
— E você terminou com ele porque ele é legal?
— Não, tia. Eu terminei com ele porque já tinha começado tudo errado.
Era merda esperando pra acontecer.
Repetir o mesmo que eu tinha dito para Suze e que me dizia todos os dias
na última semana não estava me ajudando em absolutamente nada. Não
importava o quanto eu tentasse me convencer de que tinha feito a coisa certa,
não conseguia de fato acreditar que tinha sido a melhor decisão. Era um
esforço consciente que nunca chegava nos níveis mais profundos do meu
cérebro.
— Não existe isso aí de começo certo ou começo errado, Luana. Cê tá é
arranjando desculpa.
— E aquela história de “o único homem que pode me fazer sofrer é
Deus”?
— Não é ele que tá te fazendo sofrer. Cê tá causando isso a você mesma.
O tapa da realidade dói, mas não falo nada. Sou orgulhosa demais pra dar
o braço a torcer. Minha tia suspira e dá um gole na cerveja.
— Olha só, cê sabe por que eu demorei quase vinte anos pra casar com
esse traste? — Ela aponta para Horta por sobre o ombro.
— Porque você é teimosa feito uma mula — responde o marido, mas ela
o ignora.
— Porque eu queria ter certeza absoluta, mesmo que já tivesse certeza
desde a hora em que ele me chamou pra sair pela primeira vez — ela mesma
responde. — E sabe por que eu não larguei dele mesmo quando achava que
não tinha certeza?
— Porque eu sou muito bom de cama!
— Cala a boca que cê nem sabia o que era sexo antes de me conhecer! —
Marli grita pra ele. Meu Deus, os vizinhos devem adorar esses dois.
Ela se volta para mim de novo.
— Porque eu sabia que se eu deixasse ele ir embora por nada, então eu
estaria errada, e você sabe como eu odeio estar errada.
Assinto, ainda em silêncio, tentando em vão não deixar que as palavras
dela me atinjam. Minha tia levanta e me dá um cascudo na cabeça, como
fazia quando eu era adolescente.
— Ai!
— Então enfia nessa cabeça que ninguém vai te obrigar a ser feliz se cê
não se esforçar — conclui. — Para de inventar moda e vai fazer o que cê
tem que fazer.
— Eu te odeio.
— Entra na fila, pivete.
Ela termina a cerveja, e eu seco o copo de caipirinha com um suspiro
pensativo. Então ela olha o relógio.
— Uber pra casa? — sugere, e eu dou e ombros.
— Só se você pagar.
— Encostada do caralho. Só dessa vez.
Faço que sim, mas sabemos que não é verdade. Também sabemos que,
com Uber de graça ou sem, sempre vou voltar para casa.
F iquei dias ensaiando uma forma de voltar a conversar com Nicolas.
Aquela semana toda, na verdade. Mas tudo que consegui foi um bom dia não
retribuído na segunda e responder meia dúzia de perguntas sobre o trabalho
na terça antes que ele se fechasse de novo. Ele não apareceu na quarta —
dispensado por ter doado sangue de manhã, segundo Oscar me informou aos
gritos — e, na quinta, não nos falamos o dia todo.
Eu me sentia estúpida. A maior das idiotas. Não fazia uma puta ideia do
que estava fazendo.
Na sexta de manhã, fui chamada para uma reunião de campanha.
Passadas as ações do carnaval, precisávamos focar nos próximos feriados e
datas comemorativas, o que, em se tratando de camisinhas, se resumia
basicamente ao dia dos namorados.
Eu amava e odiava aquelas reuniões na mesma medida. Por um lado,
adorava o espírito criativo, que tinha sido exatamente o que me levara ao
marketing. Eu gostava de pensar coletivamente, de gastar ideias, de planejar
algo que poderia ser tão passageiro quanto um panfleto e tão permanente
quanto um jingle que poderia ser cantado e relembrado por anos.
Mas também odiava todas aquelas reuniões profundamente porque
significava passar pelo menos uma hora e meia com Oscar rebatendo
absolutamente todas as ideias inovadoras e insistindo em produzir um
marketing pensado para a década de 70, enquanto cobrava todo mundo por
resultados que jamais conseguiríamos atingir.
Fiquei surpresa quando encontrei Nicolas na sala de reunião. Os
estagiários normalmente não precisavam fazer parte dessas coisas, mas foi
só eu olhar em volta para entender: ele estava encarregado do café. Nicolas,
o menino do café. Precisei de muita força de vontade para não dar risada e
me sentar, como se nada tivesse acontecido.
Suze chegou, sentou do meu lado, caderninho na mão, e ergueu as
sobrancelhas quando viu o mesmo que eu.
— Gente, desde quando a gente tem copeiro bonito assim? — cochichou
pra mim.
Dei uma boa espiada na bunda de Nicolas, perfeitamente redonda sob a
calça jeans. A onda de tesão que me bateu foi tão forte que deve ter sido
audível, porque, na mesma hora, Nicolas se virou e me encarou de volta.
— Bonito e carrancudo — cochichei de volta pra minha amiga, que deu
uma risadinha.
— Não se fazem mais criados como antigamente. — Ela folheou a
caderneta até achar uma página em branco e deixou tudo aberto, com uma
caneta para marcar a página. — Você trouxe alguma ideia pra apresentar?
— Nem me dou mais esse trabalho, amiga, sinceramente.
— Nem sei pra que a gente tem essas reuniões. Acho que é só pro Oscar
gritar com todo mundo de uma vez.
Dito e feito. Meio segundo depois, nosso chefe limpa a garganta para
gritar:
— VAMOS COMEÇAR NA HORA OU VOCÊS VÃO ME FAZER
ESPERAR ATÉ O FIM DO DIA?
Eu e Suze trocamos um olhar de puro ranço. Oscar se senta e batuca as
mãos na mesa, como faz no início de todas as reuniões. Não sei se ele se
acha descolado, ou se sente que está num episódio de Mad Men , mas tudo
que vejo é um homem ridículo com medo de opiniões alheias.
— Muito bem. Nicolau. Café. — Ele acena para Nicolas, como se ele
fosse um garçom.
Vejo uma veia pulsar na têmpora de Nicolas, e ele trava a mandíbula com
tanta força que tenho certeza absoluta de que vai responder alguma coisa
muito mal-educada para Oscar. A última coisa que a gente precisa é um
banho de sangue naquela reunião. Pigarreio alto, para chamar a atenção dele.
Infelizmente, é meu chefe quem percebe.
— Tudo bem com a garganta aí, Luana? Quer uma pastilha? — Oscar
diz, e quase acredito que está sendo fofo, até ele acrescentar: — Sem açúcar,
pra você não engordar mais.
Ele gargalha, e duas ou três pessoas soltam risinhos nervosos que me
esforço para não levar para o lado pessoal. Meu rosto está pegando fogo,
mas sorrio amarelo e alcanço a água e um copo plástico no centro da mesa.
— Só coceira na garganta — replico, e me sento de novo, bebericando a
água.
Oscar declara aberta a reunião, falando sobre o dia dos namorados e a
campanha que está por vir. Ele apresenta o plano de ação para os produtos,
começando por algumas linhas menores, como os lubrificantes, géis e as
camisinhas femininas — nosso produto de menor saída, infelizmente — até
chegar no carro chefe.
E é aí que eu sinto vontade de abrir um buraco e me enterrar.
A ideia de Oscar para a campanha de dia dos namorados é, no mínimo,
cafona. Mas não é o tipo de cafona como das camisinhas que brilham no
escuro. Ah, não. É cafona como enviar um carro do Loucuras de Amor pra
porta da casa do seu ficante depois de uma semana saindo com ele. É cafona
como pedidos de casamento com aliança escondida na comida. Cafona como
qualquer música da Celine Dion.
O que ele propõe é uma linha especial de camisinhas vermelhas, onde
pode se ver corações desenhados no látex, e o pior de todos os slogans que
eu já vi na minha vida:
Para fazer com amor.
Ele apresenta as ideias com a mesma energia e animação que usa para
assediar moralmente seus funcionários, passando os slides no telão e se
empolgando com cada um. Tem até um modelo 3D de um pinto usando uma
das ditas camisinhas, e fico me perguntando qual dos infelizes do nosso
departamento teve que cuidar disso. A sala está no mais absoluto silêncio, e
só o que eu consigo fazer é encarar aquele pobre pênis digital, pensando que
nenhum pau no mundo subiria se estivesse encapado com aquela merda.
Fazia qualquer cara parecer doente. Parecia...
— Parece que o pinto tá com sarampo.
De repente, todo mundo se vira para mim, e me dou conta de que pensei
alto. Alto demais, pelo visto. Não acredito que tive coragem de falar isso.
Não acredito que não consegui me controlar .
Olho em volta. Suze está com uma mão sobre a boca, e embora ela tente
parecer chocada, sei que está tentando ao máximo não gargalhar. Meus
colegas estão divididos entre o choque e o riso. Nicolas está parado à minha
esquerda, com a bandeja do café, me olhando com uma expressão esquisita.
E Oscar...
Oscar está com aquele olhar assassino de quem manda pessoas embora e
destrói carreiras. Estou fodida.
— Ah, é, Luana? — Oscar se levanta quase em câmera lenta, e se não
estivéssemos em uma sala com outras dez pessoas, teria medo que ele fosse
me bater. — E por um acaso você tem alguma ideia pra apresentar? Você
claramente acha que pensa muito melhor do que eu.
Abro e fecho a boca como um peixe múltiplas vezes. Meu coração
dispara, e sei que qualquer resposta agora será a resposta errada. Merda,
merda, merda. Estou muito fodida.
— Eu não tenho nada — respondo, baixo demais, indefesa demais.
— Ela não tem nada ainda — Nicolas intervém, e quando olho pro lado,
ele pousou o café na mesa e encara Oscar de um jeito que o faz parecer ter
mil metros de altura. — Mas pode apresentar uma contraproposta. Uma ideia
nova. Não é pra isso que servem as reuniões, pra todo mundo apresentar
ideias?
Meu Deus, eu vou matar o Nicolas.
Olho dele para Oscar, e não sei dizer se preferia a expressão de antes,
assassina e emputecida, ou essa agora, de desafio e sangue nos olhos.
— Ótimo — ele declara, batendo as mãos. — Então na segunda-feira a
gente vai se reunir de novo pra ouvir as ideias da Luana. Já tô ansioso pra
saber o que ela tem pra nos mostrar. Dispensados.
As pessoas começam a se levantar e sair rapidamente, doidos para se
verem livres daquela situação constrangedora. Fico colada na cadeira até
Suze me içar para fora, e Nicolas vem no nosso encalço. Eles praticamente
me arrastam até a copa, onde nos esprememos no espaço minúsculo com
cheiro de café. Quando Nicolas fecha a porta, começo a hiperventilar.
— Por que CARALHOS você fez isso? — grito, e Nicolas parece
exasperado.
— Luana, a campanha dele é uma bosta!
— EU SEI! MAS POR QUE VOCÊ ME COLOCOU NA LINHA DE
TIRO?
— Eu não pretendia...
— Nicolas, numa boa, cala a boquinha — Suze toma a dianteira, e ele se
cala imediatamente. Então minha amiga se vira para mim: — Lua, seguinte.
Você não precisa fazer isso sozinha, tá? Vou te ajudar a pensar e planejar e
fazer tudo que precisa ser feito.
— Eu também — Nicolas se prontifica, e Suze lhe lança um olhar azedo.
— É o mínimo, né? — Minha amiga revira os olhos antes de se voltar
para mim de novo. — Não existe a menor possibilidade de a gente fazer uma
coisa pior do que a que já foi feita porque o Nicolas tem razão, a campanha
que ele propôs é um lixo. Então a gente vai criar uma campanha foda que
não vai poder ser recusada.
— Em dois dias?
— Sim, em dois dias! Quem precisa de sono de beleza?
Escondo o rosto nas mãos e respiro fundo. Estou fodida, estou fodida,
estou fodida.
— Luana, me desculpa. — Nicolas pousa a mão no meu ombro. — Eu fiz
merda. Parece que eu tô sempre fazendo merda com você. Desculpa te
colocar nessa situação.
Dois dias. Tenho dois dias pra salvar meu emprego. Dois dias para tentar
fazer algo bom o bastante que nem Oscar possa recusar, se é que isso é
possível.
— Eu dispenso as suas desculpas, mas é bom você colocar essa cabeça
pra funcionar — falo, enfim erguendo o rosto. Ele parece desolado, o que
acho bom; quero mais é que sofra todo o arrependimento do mundo por ter
me ferrado desse jeito. — Você me colocou nessa e você vai me ajudar a
sair.
— Tudo que você precisar.
— Ótimo. Então vamos começar a pensar porque temos uma campanha
pra criar esse fim de semana.
— L uana! Luana!
São 6:40 da tarde e meu expediente finalmente terminou. Estou doida pra
sair dessa merda de empresa, mas mal dei três passos para fora e já estou sendo
chamada aos berros. Se alguém me cobrar alguma coisa a essa hora, acho que
mato a pessoa.
Mas quando olho para trás, é só Nicolas, correndo atrás de mim como se eu
tivesse me afastado quilômetros, e não só alguns metros.
— Espera aí, Luana. — Ele chega, esbaforido, e para ao meu lado. Quase
toca meu ombro, mas parece pensar melhor e recolhe a mão.
— O que foi? Esqueci alguma coisa? — falo.
A pergunta sai atravessada, como uma acusação, e não uma possibilidade.
Estou puta, e passei o dia todo puta, sem falar com ninguém e lançando olhares
tortos a qualquer um que chegasse perto.
E era tudo culpa dele .
— Esqueceu de avisar que hora você quer que eu chegue amanhã — ele diz,
com um meio sorriso amedrontado. Uma oferta de paz.
Infelizmente, não estou disposta a ceder.
— Você podia ter mandado uma mensagem. Não precisava vir berrando meu
nome na rua. Ou você quer me humilhar em todos os lugares por onde eu
passo?
Nicolas se encolhe como se eu o tivesse agredido fisicamente, mas dura
apenas um segundo. No instante seguinte, ele veste a carcaça de novo, aquela
armadura feita de caras feias e atitude que eu amo e odeio na mesma medida.
— Luana, eu sei que você tá puta comigo, mas...
— Ah, sabe? Ufa, que bom.
— ...acredite quando eu digo que eu não fiz nada pensando em te ferrar, tá
legal? — Nicolas continua, como se não tivesse sido interrompido. — Eu agi
por impulso, e fiz merda, mas nunca tive a intenção de te colocar na linha de
tiro.
— O problema, Nicolas, é que você tá o tempo todo fazendo merda —
replico, tão alto que as pessoas na rua estão começando a reparar. Não acredito
que estou fazendo barraco no meio da Faria Lima, mas quero que se foda. —
Você nunca tem a intenção de me ferrar, mas é isso que você faz o tempo todo.
Você fica no seu vai ou não vai, e quando decide ir, você passa por cima das
minhas decisões.
Ele não responde, e ainda bem, porque acho que se ele abrir a boca agora,
sou capaz de empurrá-lo na frente dos carros. Mas a raiva não dura muito.
Quanto mais eu falo, mais as palavras abrem espaço para um tipo diferente,
mais forte, de sentimento — uma espécie de pesar, de dor, que não consigo
explicar.
— Você não consegue parar por dois minutos pra pensar em mim e no que as
merdas que você faz vão fazer comigo, e sabe por quê? — continuo,
empurrando o peito dele com o meu indicador. — Porque você é um filho da
puta egoísta do caralho que acha que sabe o que é melhor pra todo mundo. E é
exatamente por isso que eu não saio de cima do muro com relação a você.
Porque você é incapaz de olhar pra mim e me enxergar. Você faz o que você
quer fazer e que se foda a Luana. E eu tô de saco cheio de ter que lidar com as
merdas que você joga pra cima de mim, tá legal? De saco cheio .
Se eu o tivesse jogado na frente dos carros, talvez tivesse sido mais gentil.
Nicolas está parado, com uma expressão tão devastada que só me deixa ainda
mais brava e triste. Mas não consigo me importar com ele agora — ele
certamente não se importou comigo.
— Então aparece a hora que você quiser amanhã, ou não aparece. Pra mim
não faz diferença — digo, por fim, minha voz se perdendo no barulho dos
carros. — Faz o que você quiser com a sua vida, Nicolas. Só para de interferir
na minha.
Cruzo os braços para me impedir de fazer mais alguma coisa; se é bater nele
ou abraçá-lo, eu não sei dizer. Então tomo fôlego, viro as costas e vou embora.
Não durmo quase nada naquela noite, tendo pesadelos sobre demissões e
humilhações públicas nas mãos do meu chefe. Quando o dia amanhece, já estou
acordada passando um café e ligando meu laptop. Vai ser um dia longo.
Tomo um banho e parto para a segunda xícara de café antes das sete horas.
Às oito, já tomei quatro, e ainda nem comecei a pensar no que fazer. Estou
cansada, catatônica, e elétrica pelo excesso de cafeína.
É quando o interfone toca.
— Dona Luana, tô com a Suzana aqui na portaria — diz o porteiro.
— Pode mandar subir.
Deixo a porta destrancada para não ter trabalho e sento no sofá, balançando
as pernas no ritmo da ansiedade. Tenho a sensação de que vou explodir antes de
conseguir dar conta do que quer que seja que preciso fazer. Ergo a cabeça
quando tocam a campainha.
— Tá aberta! — grito.
A porta se abre, e por ela passam Suze e Nicolas.
Vê-lo é me lembrar da tarde anterior, dos gritos na calçada e da vontade que
tive de morrer e de matá-lo por um instante. Uma parte de mim está feliz que
ele veio, aliviada; significa que não consegui afastá-lo, por mais que tivesse
tentado. Me dá quase um orgulho, como se Nicolas tivesse sobrevivido a algum
tipo de teste que eu tivesse imposto a ele.
Mas outra parte de mim, a que está ansiosa de um jeito irracional após
quatro xícaras de café, gostaria que ele fosse embora. Ter que lidar com ele é a
única coisa pior do que ter que lidar comigo mesma.
— Bom dia! — Suze parece plena e descansada, e ergue sacolinhas de
mercado. — Trouxemos café da manhã.
— Ótimo. — Me levanto para ir com eles até a cozinha minúscula. Enquanto
vou desempacotando as coisas, Suze encara a cafeteira.
— Quantos cafés você já tomou?
— Quatro.
— Ooook, então cancela o café. — Ela tira a cafeteira do meu alcance e vira
o resto do conteúdo na pia. — Vamos comer alguma coisa e tentar começar a
trabalhar?
— Parece ótimo.
Ela me ajuda a colocar a mesa, e vai comandando Nicolas no processo. Ele
não fala nem interage diretamente comigo exceto para sair do meu caminho, e
não sei dizer se isso é bom ou ruim. É estranho estar no mesmo ambiente que
ele sem nos falarmos, mas não sei se consigo lidar com isso agora.
Enquanto comemos, Suze preenche o silêncio falando sobre a vida e fofocas
aleatórias do escritório. Fala que a Joyce do RH contratou uma moça nova para
a vaga que costumava ser de Tim e que ela começa na segunda-feira, e que,
aparentemente, um dos diretores da empresa foi pro happy hour com o pessoal
na sexta. Deixo que ela fale, respondendo uma coisa ou outra ao acaso aqui e
ali, mas no geral só me entupo de comida e evito olhar para Nicolas enquanto
ele me encara deliberadamente.
Começamos de fato a trabalhar às 10h. Eles trouxeram os próprios
computadores, e ligamos todos na mesa, como numa estação de trabalho
improvisada. A missão é minha, mas é Suze quem abre os trabalhos.
— Então, vamos lá. Qual vai ser o tema da nossa campanha?
— A ideia é não ser algo cafona, né? Irmos contra o que o Oscar tá tentando
forçar — Nicolas diz, e é como um fósforo para a minha raiva, me fazendo
acender imediatamente.
— Não é ir contra . A prioridade não é só fazer pirraça contra ele — digo,
talvez mais agressivamente do que deveria. — Tem que ser algo que equilibre
as duas coisas. Precisa ser cafona o suficiente pra ele comprar a ideia sem
chilique, mas diferente o bastante pra ser melhor.
— Ok. Então vamos de ideias — Suze intervém.
Passamos as horas seguintes jogando ideias no ar — mais eu e ela do que
nós três. Nicolas assume a posição de secretário, anotando toda e qualquer ideia
num documento separado, ora dando palpites, ora se limitando ao silêncio.
Paramos para almoçar, e pedimos marmitas pelo celular. Quando o pedido
chega, Suze se prontifica a ir buscar. Acho que estava desesperada para se ver
livre de nós dois por uns minutos.
A porta bate, e nem eu nem ele falamos nada por alguns segundos. Encaro a
tela do meu computador, ainda vazia, e o relógio indicando 12:56 no cantinho.
Nunca vai dar certo. Não tem a menor possibilidade de a gente conseguir
produzir uma campanha desse tamanho em tão pouco tempo.
— Vai dar certo, Luana — Nicolas diz, suavemente, como se tivesse lido
meus pensamentos. — Nós temos boas ideias. Vai dar certo. A gente vai
conseguir.
— Me poupa dos discursos motivacionais, Nicolas. — Suspiro, cobrindo o
rosto com as mãos. — A menos que você tenha alguma coisa prática pra me
oferecer, pode ficar de boa.
Ele solta uma risadinha baixa, e, de canto de olho, vejo-o balançar a cabeça.
— Achei que estava te protegendo do Oscar, mas só te afundei mais — fala,
quase num murmúrio. — Você tem toda razão. Eu sou um filho da puta egoísta.
Devia mesmo era te proteger de mim.
Sou eu quem balanço a cabeça, cansada demais para rebater, para comprar a
briga. Não sei nem como começar a explicar a Nicolas que não preciso da
proteção dele, não daquele tipo. Não sou uma donzela indefesa. Mas há uma
parcela do meu cérebro que fica lisonjeada pela ideia primitiva de proteção.
Porque se ele quer me proteger, por mais torta que seja a ideia e por pior que
seja a execução, é porque ele se importa. É porque ele sente algo por mim.
— Quem ama, protege — digo, um pensamento em voz alta.
— É, acho que sim — Nicolas concorda, no exato momento em que Suze
abre a porta.
— Meu deus, o peso dessas marmitas! — ela comenta, logo que entra em
casa.
— Não, não. — Me viro para Nicolas, a ideia se formando na minha cabeça
tão rápido que é como uma descarga elétrica. — “Quem ama, protege”. Esse é o
tema da nossa campanha.
Eles não respondem. Nicolas apenas me encara, enquanto Suze deixa a
sacola das marmitas sobre a mesa.
— É brega o suficiente, mas não vamos apelar pro brega — continuo, me
levantando da cadeira. — Vai ser uma campanha de conscientização. De pais
protegendo os filhos ensinando sobre o uso de preservativos. De parceiros
protegendo uns aos outros usando camisinha. De conscientização sobre DST. A
gente vai criar uma campanha de dia dos namorados que é sobre amor e
educação.
— Caralho, isso é... — Nicolas começa, mas é Suze quem termina:
— Maravilhoso!
Pisco algumas vezes, saindo do transe, e sorrio.
— Vocês acham mesmo? — pergunto.
— Demais! — Suze confirma, com um sorriso enorme.
Já Nicolas me olha de um jeito diferente. É um brilho de admiração, de
orgulho, que infla meu ego e me dá vontade de gritar. Ele sorri de volta.
— É uma ideia foda. Você é foda. Vamos nessa.
Então abrimos nossas marmitas e, enquanto comemos, começamos a
trabalhar.
A cordo assustada, o coração disparado, e me sento respirando rápido.
Sonhei que estava caindo. Mas não estou. Estou deitada. Deitada na minha
cama.
Meu Deus, que horas são?
Tateio, mas não acho meu celular. Está escuro lá fora, e estou usando as
mesmas roupas que vestia de dia. Não faço a menor ideia de como vim parar
aqui. Até as seis da tarde eu estava no computador na sala, correndo pra dar
conta das artes pra campanha. Tentando resolver tudo em um único dia. Como
foi que vim parar na minha cama?
Levanto, meio zonza, e saio do quarto. A sala está acesa, e encontro Nicolas
mexendo no próprio laptop. Ele abandonou a camiseta e os sapatos, e com
razão: a sala parece uma fornalha, mesmo com a janela aberta. Tem pratos sujos
e uma lata de coca na mesa ao lado dele. Meu laptop descansa, desligado, sem
ninguém para incomodá-lo.
— Que horas são? — pergunto, e Nicolas toma um susto. Ele pula na cadeira
e põe a mão no peito como uma velhinha apavorada. — Desculpa.
— Tudo bem. Só tava concentrado. — Ele respira fundo e checa as horas no
celular. — São onze e quinze.
Me aproximo, quase arrastando o corpo. Estou sonolenta e me sentindo
pesada, tonta. Quando chego perto, ouço uma música baixinha vinda do
computador dele. Harry Styles, se não estou enganada. É tão baixo que quase
não dá pra escutar.
— Pode aumentar o volume, se quiser — falo, caindo na cadeira ao lado
dele. Minha mão vai inconscientemente parar na perna de Nicolas, e ele não a
afasta, apenas a cobre com a sua.
— Eu esqueci os fones e não queria te acordar — responde, os olhos baixos,
encarando nossas mãos. — Na real, eu achei que você fosse dormir até amanhã.
Tava tão cansada.
— Eu nem lembro de ter ido dormir.
— Você cochilou algumas vezes em cima do computador e eu acabei te
convencendo a ir pra cama.
— E a Suze?
— Foi embora tem umas duas horas. Falou que volta amanhã se precisar,
mas acho que não precisa. A gente adiantou bastante coisa e, o que sobrou, ela
pode fazer de casa. Eu só queria terminar essa peça antes.
Assinto, mas só tem um terço do meu cérebro prestando atenção.
— Acho que é melhor a gente descansar mesmo. — Bocejo. Nicolas faz que
sim.
— Tudo bem. Vou desligar as coisas aqui e ir pra casa.
— Você não precisa ir pra casa.
Nicolas não responde. Ele tira sua mão da minha e a passa pelos cabelos, e
estou cansada demais pra conseguir decifrar o que aquele olhar significa.
Minhas pálpebras estão pesadas, e a única coisa que eu quero é voltar pra cama
e sentir o peso dos braços dele na minha cintura, me colocando pra dormir.
— Luana... acho melhor não — ele diz, por fim, parecendo triste e
incomodado, e evitando me encarar. — A gente já tentou, e parece que tudo que
a gente faz só dá errado. Eu não quero mais te magoar, e não quero mais me
magoar no processo. Eu nem sei mais o que a gente tá fazendo. Talvez seja
melhor só... deixar pra lá.
Olho para ele, pensando no quanto isso tudo vai me doer pela manhã. Mas
por agora, no meu estado de exaustão mental e física, não tenho tempo pra
sentir nada. Então me inclino e lhe dou um beijo. Nossos lábios se tocam, leves
e sutis, e parece rápido, mas também dura uma vida inteira.
— Eu tô te esperando, tá bom? — é só o que eu digo.
Volto para o quarto e me deito. Não sei quanto tempo se passa, mas ainda
estou acordada quando ouço a porta abrir e sinto Nicolas se deitando ao meu
lado. É só quando ele passa o braço pela minha cintura e me puxa para perto,
passando uma perna entre as minhas, que finalmente consigo dormir.

Acordo ridiculamente cedo no domingo, e quando abro os olhos, dou de cara


com as costas de Nicolas. Como invariavelmente acontece quando você dorme
junto com alguém, sustentar qualquer posição muito abraçadinha é impossível,
ainda mais no calor que está fazendo.
Fico alguns minutos encarando as sardas nas costas dele, me lembrando do
que ele me disse ontem à noite. A gente já tentou, e parece que tudo que a gente
faz só dá errado . Conforme previsto, lembrar faz meu coração doer muito mais
do que doeu na hora. Eu já tinha desistido de Nicolas, mas perceber que ele
talvez esteja desistindo de mim fere muito mais.
Talvez seja só meu ego, penso. Eu posso abrir mão dele, sendo algo que não
está me fazendo bem, mas não quero perder a atenção que ele me dá. Quero que
ele continue tentando, que ele continue insistindo, para que eu me sinta desejada
e validada.
Mas não, não acho que seja só isso. A verdade é que a ideia de Nicolas
desistir de mim, a ideia de desistirmos completamente um do outro, me magoa
porque é como admitir que nós jamais daremos certo. E eu quero que a gente dê
certo. Quero mais do que quis alguma coisa a vida inteira.
Dou um beijo entre as omoplatas dele antes de me levantar. Ele tem o gosto
salgado de suor, mas também tem gosto de Nicolas. Vou ao banheiro, onde
encontro meu celular perdido, e escovo os dentes, então passo pela sala
limpando todo o lixo que ficou da noite anterior. Jogo tudo fora e começo a
passar o café.
Ainda são sete e quinze, então bebo uma xícara na paz de Deus enquanto me
atualizo nas redes sociais. Suze me deixou algumas mensagens ontem, avisando
exatamente o mesmo que Nicolas; que ela havia ido embora, mas ia continuar
trabalhando no projeto, e podia voltar hoje se eu quisesse. Então abro meu e-
mail, e tem um convite para editar uma pasta compartilhada. Clico para abrir.
Dizer que Nicolas e Suze fizeram tudo seria um pouco de exagero, mas
preciso admitir que está muito mais adiantado do que achei que estaria. Tem
pelo menos 70% do que precisamos pronto, e eu não fui responsável por nem
20% desse total. Os textos, algumas peças, os slides, tudo está encaminhado.
Faço um check-list mental do que ainda precisa ser resolvido, e percebo que,
contra todas as possibilidades, vai dar tempo. Não vai ser um trabalho perfeito,
como teria sido se tivéssemos um prazo maior, mas vai ficar apresentável. Se
mesmo assim minha proposta for negada, pelo menos terá sido uma boa
proposta.
Quando termino meu café, volto para a sala e ligo o computador. Abro a
janela para refrescar o ambiente, e quando sento para trabalhar, tem uma brisa
gostosa entrando. Acho meus fones, perdidos no hack da sala, e coloco música
para escutar enquanto trabalho. Vou abrindo os arquivos e me atualizando,
muito menos estressada ou cansada do que estava ontem, e boto a mão na
massa.
Nicolas acorda depois das nove, mas ao contrário dele, não me assusto
quando o vejo. Ele está só de cueca, e sai do quarto se espreguiçando, alto o
bastante pra quase alcançar o teto quando se estica. A visão me faz perder o
fôlego e o foco por um momento, tirando os fones de ouvido, como se isso de
alguma forma me fizesse apreciar melhor.
— Bom dia — ele diz, daquele jeito meio bocejando que faz as palavras se
perderem no meio do caminho. É a coisa mais fofa do mundo.
— Bom dia. — Sorrio. — Tem café na cozinha. Deve estar quente ainda.
— Ok.
Ele passa por mim, deixa um beijo na minha testa e vai ao banheiro.
Continuo trabalhando, mandando mensagens para Suze para distribuir as
tarefas e acertar o que precisa ser feito. De canto de olho, vejo Nicolas sair do
banheiro e sumir cozinha adentro, e tem uma vozinha no fundo da minha cabeça
me dizendo que aquilo é íntimo demais, é pessoal demais, é doméstico demais,
e que a verdade é que Nicolas quer terminar tudo, então pra que abrir esse
espaço?
Ignoro a vozinha. Estou ocupada demais pra dar atenção a ela.
— Quer mais café? — ele pergunta, da cozinha.
— Quero.
Ele reaparece alguns minutos depois com uma xícara nova para mim, que
beberico após murmurar um obrigada. Ele se senta com a própria xícara e liga
seu laptop sem dizer uma palavra.
Passamos a manhã inteira assim, eu de pijama, ele de cueca, cada um em seu
próprio computador, falando só quando precisávamos trocar ideias ou dar
sugestões sobre o projeto. Quando a hora do almoço chega, peço comida de
novo sem sequer perguntar o que Nicolas quer, e ele vai buscar quando a
portaria interfona. Não paro para arrumar a mesa, nem faço nada de especial;
comemos debruçados sobre o projeto, cada um no seu ritmo, sem conversar
nem fazer corpo mole.
Já é fim de tarde quando, com a minha parte quase finalizada, me espreguiço
e anuncio:
— Vou tomar banho.
Nicolas mal pisca.
— Tudo bem. Eu já tô quase acabando aqui.
— Ok.
Me pergunto se devo dizer “quer tomar banho comigo?”, mas a verdade é
que meu box é minúsculo e não seria confortável mesmo se ele aceitasse. Se é
que aceitaria. A vozinha está ali de novo, e estou tentando ao máximo ignorá-la,
então entro no banho gelado e fico lá por pelo menos 15 minutos antes de ter
coragem de sair. Quando saio, Nicolas não está mais na sala. Em vez disso, eu o
encontro no quarto, terminando de se vestir.
— Você já vai? — pergunto, parada na porta do quarto.
Ele abotoa a calça e me olha, e pode ser que esteja desistindo de mim, mas
dá pra ver naquele olhar que ele não parou de me desejar nem por um segundo.
Quase solto a tolha que estou segurando em torno do corpo só pra ver o que vai
acontecer, mas me controlo.
— Acho que vou. — Nicolas limpa a garganta e desvia o olhar. — Posso
fazer o resto de casa. Eu nem tomei banho ainda.
Abro a boca, palavras vindo e se perdendo, até que consigo dizer:
— Será que a gente pode conversar? Sobre... tudo?
Ele me encara, sério.
— Você não quer se vestir primeiro?
— Por quê? Te incomoda me ver só de toalha? — não resisto à provocação.
Nicolas abre um meio sorriso que parece quase triste.
— Não. Eu só não quero que nenhuma decisão que a gente tome seja
baseada no desejo. Acho que não é justo com a gente.
Assinto, e passo por ele em direção ao armário. Visto uma calcinha limpa e
um vestido velho, que deixo separado para usar em casa, de tão puído que está.
Então me sento na cama, e Nicolas se senta ao meu lado, perto o bastante pra
tocar, mas longe o suficiente para que eu precise me esticar se quiser algum tipo
de contato físico.
— Luana... você quer mesmo isso? — Nicolas é quem começa, e a pergunta
me pega de surpresa. Tão direta, tão sem rodeios. Engulo em seco.
— Você quer? — devolvo, e a verdade é que só o faço porque não sei se
tenho uma resposta pra dar. Quero. Quero muito. Mas também tenho um medo
absurdo de querer.
Nicolas hesita, e já sei que não vem coisa boa. Dessa vez, sou eu quem
desvia os olhos, me preparando pro baque.
— Eu não sei — ele diz, e meu coração afunda a cada palavra. — Eu quero,
mas ao mesmo tempo parece que eu nunca consigo acertar. Que a gente nunca
consegue acertar. E eu já arrastei um relacionamento que só serviu pra magoar
todos os envolvidos, Luana. Eu não vou fazer isso de novo. Não com você.
Ele tem razão, por um lado. A gente nunca consegue fazer certo, e talvez não
seja porque eu sou incapaz de me comprometer, ou porque ele é uma péssima
pessoa. Talvez a gente só não seja bom um pro outro. Talvez seja o jeito do
destino dizer que está na hora de abrirmos mão, pararmos de tentar.
Então por que dói tanto ?
— Fala alguma coisa. — ele pede, e eu tento sorrir. Não tenho certeza, mas
acho que o que sai de mim parece mais um riso de desespero.
— Eu apostei com a Suze, sabia? — digo, e Nicolas franze a testa.
— Apostou o quê?
— Que conseguiria fazer você se apaixonar por mim. — Dou uma risadinha
baixa, e Nicolas fica lívido. — Foi por isso que te provoquei tanto, que fui atrás
de você, que te fiz vir atrás de mim. Mas eu fui idiota. Uma puta duma
egocêntrica. Queria provar um ponto, me vingar de você por ter me dado um
fora, mas acabei me apaixonando por você e tomando um fora de novo .
Falo tudo de uma vez, num vômito sincero e necessário de palavras, e não
percebo o que disse até olhar pra cara de Nicolas e ele estar sorrindo.
— Então quer dizer que você tá apaixonada por mim? — diz, e a expressão
no rosto dele me dá vontade de matá-lo ali mesmo; se de amor ou de socos, não
consigo decidir.
Fico imóvel olhando pra ele, percebendo que, em quase trinta anos de vida, é
a primeira vez que eu digo essas palavras em voz alta, e é a primeira vez que
sinto isso de verdade por alguém. Não as paixonites de adolescência, não as
obsessões taradas da vida adulta, mas esse sentimento ridiculamente irritante de
querer estar com alguém o tempo todo, de querer conversar, de querer dividir
uma cama sem ser para sexo.
Era desejo. Virou vingança. E em algum momento, sem que eu percebesse,
se tornou amor.
Que se foda , eu decido, aqui e agora. Já tinha aberto mão de muita coisa.
Meu orgulho era um bom item pra se deixar de lado.
— Pra caralho — respondo, e Nicolas ri. Me arrasto na cama até estar mais
perto dele, até minha mão poder tocar as covinhas no rosto e sentir a barba
pinicando na palma. — Eu tô apaixonada por esse seu sorriso, pelas suas
histórias, pela sua marra de filho da puta mal-humorado. Eu tô apaixonada pelo
Nicolas estagiário, que fez merda tentando fazer certo, e que ficou o fim de
semana inteiro trabalhando comigo pra se redimir, e eu tô apaixonada pelo
Nicolas de fora do escritório, que já foi pra um monte de lugares no mundo, mas
que acha o máximo tomar café da manhã na padaria.
Ele não responde. Seus olhos estão fixos nos meus, e o sorriso deu lugar a
uma expressão embasbacada. Eu tomo fôlego.
— Aquele dia aqui em casa você me perguntou o que eu queria, e é isso que
eu quero. Eu quero ficar com você. Foda-se o trabalho, fodam-se os meus
medos, foda-se tudo. Eu. Quero. Você. Então me diz, o que você quer?
Nicolas assente, a respiração entrecortada como se ele tivesse corrido uma
maratona, e põe uma mão na minha nuca.
— Eu acho que a gente não precisa decidir nada agora — ele diz, me
puxando mais pra perto —, mas se vale de alguma coisa, Luana... eu também tô
apaixonado por você.
— Ótimo — digo, num sussurro, só para ter a palavra final.
— Ótimo — diz ele, e então me beija.
N icolas vai embora eventualmente, me deixando para trás com o corpo
dolorido de tanto transar e com o coração quente do jeito que só bons
sentimentos conseguem fazer. Quase peço a ele pra ficar, mas sei que ele não
tem nenhuma roupa limpa e que precisamos estar na nossa melhor forma
amanhã para impressionar Oscar. Fantasio, por um minuto, como seria mais
fácil se ele tivesse algumas coisas na minha casa, mas me contenho; não preciso
ir de completamente desapegada a casamento forçado em apenas uma noite.
Estou me preparando para ir dormir quando recebo uma mensagem de Suze.
“Amiga, não tive tempo de revisar todas as coisas pra amanhã.
Ficou faltando alguma coisa pra eu fazer?”
Digito rapidamente a resposta com uma mão enquanto a outra vai
recolhendo parte da bagunça que se formou no meu quarto.
“Não. Eu e o Nicolas terminamos tudo. Acho que tá bem engatilhado.
Só precisamos ARRASAR na apresentação.”
Deixo o celular de lado e resolvo trocar a roupa de cama. Além do suor pelas
noites quentes, está todo manchado de outros fluídos corporais. Ponho os
lençóis sujos na lavanderia e separo outros no armário. Quando a cama está
arrumada e já estou deitada nela, volto a pegar o telefone. Há uma nova
mensagem de Suze.
“Vamos arrasar, relaxa.
Mas viu... e você e o Nicolas? Não se mataram sem mim, né?”
“Não, amiga haha
Na verdade, acho que a gente se acertou”.
“Calma, vocês O QUÊ?
Acho que vou mandar rezar uma missa pra agradecer esse milagre!!!”
“Hahahahaha a gente conversou. Falei tudo pra ele, inclusive da aposta.
Sei lá. Acho que minha tia tinha razão. Você tinha razão. Todo mundo tinha
razão.”
“Eu normalmente tenho razão.”
“É. Vamos ver.
Só vou saber se tentar, né?”
“ É isso aí.
Fico feliz por você, Lua! Espero que assim vocês dois parem de fazer
merda.”
“Deus te ouça.”

“Bom dia, Luana. Acho que esqueci meu carregador reserva aí. Pode trazer
pra mim?
Até daqui a pouco. Já estou com saudades.”
Leio a mensagem assim que acordo, e é como se mil nós fossem atados e
desatados no meu estômago. Fico tentando pensar em algo fofo ou mesmo
inteligente pra responder, mas não tenho prática no que diz respeito a
contatinhos fixos, então acabo só mandando um “pode deixar” seguido de um
emoji de coração.
Passo uma eternidade escolhendo o que vestir. Se tem uma coisa que detesto
é me vestir para os outros — seja para evitar ou atrair o olhar —, mas me pego
tentando escolher peças que tenham a menor probabilidade possível de gerar
piadinhas sem graça do meu chefe. É uma missão quase impossível, visto que
ele já ofendeu pelo menos uma vez quase todas as minhas roupas, mas vale a
tentativa. Acabo optando por um vestido preto de corte reto que foi o único que
Oscar elogiou na vida (“te deixa mais magra”, se é que isso conta como elogio)
e complemento o look com um cinto vermelho. Me maquio o mais rápido
possível e saio de casa a um passo de estar atrasada.
Compenso o atraso indo na velocidade da luz no metrô, fazendo jus à fama
paulistana de sermos apressados e mal-educados. Consigo chegar no trabalho
dez minutos adiantada, com tempo o suficiente para ficar no hall do prédio
esperando por Suze ou por Nicolas — qualquer um que possa segurar minha
mão e me garantir que eu vou sobreviver a essa apresentação.
No fim, os dois aparecem ao mesmo tempo.
— Bom dia! — Suze me cumprimenta com um abraço apertado. — Trouxe
um chocolate pra você, quer antes ou depois?
— Antes? Não, depois — me corrijo rapidamente. Então me viro para
Nicolas. — Oi.
— Oi. Bom dia.
Ele me encara, mas não fazemos qualquer movimento em direção um ao
outro. Nicolas não sorri com o rosto, mas tem uma leveza, uma delicadeza no
seu olhar que acho que só eu consigo perceber. Estou nervosa demais para
sorrir, então só o encaro de volta até que Suze pigarreia e diz:
— Olha, vocês são muito fofos e tal, mas será que dá pra gente subir, ou
vocês vão ficar o dia todo olhando um pra cara do outro?
Solto um riso nervoso e Nicolas revira os olhos, então chamamos o elevador.
Enquanto esperamos, sua mão roça na minha e ele entrelaça nossos dedos
mindinhos. É o bastante para fazer meu coração pular dentro do peito.
Tudo o que eu queria era subir silenciosamente, mas Suze também está
ansiosa, então ela me faz passar pela tortura de viajar 10 andares debatendo a
apresentação e repassando nossa proposta. Quando chegamos ao nosso andar, já
estou em pânico, suando frio e com a certeza de que há marcas horrorosas de
suor no meu vestido. Oscar já está na sala dele quando passamos, e a primeira
coisa que ele faz quando me vê é gritar:
— LUANA. VEM AQUI.
Engulo seco e desvio o caminho. Suze segue viagem, mas Nicolas acha uma
boa ideia vir atrás de mim. Paro na frente da mesa de Oscar e ele olha para nós
dois como se fôssemos uma sujeira no carpete dele.
— Tem cão de guarda agora, Luana? — Ele ri com desdém para Nicolas,
antes de se virar para mim. — Imagino que sua apresentação esteja pronta.
— Está, sim, senhor.
— Ótimo. Então depois do almoço nos vemos na sala de reuniões.
— Tudo bem. — Já começo a dar meia volta para sair, quando ele fala:
— E Luana.
Me viro.
— Quando o seu projeto for rejeitado, eu espero que você aprenda quem é o
chefe e quem é a empregada nessa empresa.
Olho de soslaio para Nicolas. Tem uma veia saltada no pescoço dele, mas ele
se esforça ao máximo para ficar quieto. Não respondo e nos arrasto para fora
dali.

Não consigo comer no almoço. Todo mundo sai para comer, inclusive Suze,
mas eu só consigo ficar onde estou e beliscar algumas bolachinhas. Nicolas me
faz companhia, sentado do meu lado rolando a timeline do Instagram e
segurando minha mão, já que não tem ninguém para ver.
— Tem alguma coisa que eu possa fazer por você? — ele pergunta,
apertando levemente meus dedos. — Alguma coisa pra te acalmar?
— Você pode me prometer que eu não vou perder o emprego e que todo
mundo vai amar a minha proposta? — disparo. — Desculpa, nossa proposta.
— É sua proposta, Luana. Eu e a Suze te ajudamos, mas a ideia foi sua. —
Ele me puxa, me forçando a olhar para ele. Está mais sério do que nunca. — E
não, não posso te garantir que todo mundo vai amar, nem que o Oscar não vai te
despedir, mas posso te garantir que é uma ideia muito boa e infinitamente
melhor do que a porcaria que ele propôs. E posso te prometer uma cerveja hoje
no final do expediente, independente do resultado.
— Parece ótimo. — Sorrio, e então suspiro. — Caralho, queria muito te
beijar agora.
— Posso te prometer isso também. Trouxe até uma muda de roupa na
mochila.
— Gosto de como você pensa.
Deixamos o assunto morrer, e passamos o restante da hora em silêncio. Não
é até o departamento estar cheio de novo que Oscar sai da sala e me chama. Me
levanto e sigo com Suze e Nicolas no meu encalço.
Seguimos nosso chefe até a sala de reuniões, mas ao contrário do que eu
esperava, não tem mais ninguém vindo me assistir. Seremos só nós e Oscar. Ele
faz cara feia quando vê que estou acompanhada, mas não emite qualquer tipo de
protesto. Em vez disso, apenas se senta com aquele ar irritante de superioridade
machista, põe as mãos atrás da cabeça e diz:
— Vamos lá, tô esperando.
— E o resto das pessoas? — é Suze quem pergunta. Oscar ri.
— Você acha que vou dispensar pessoal pra ver essa palhaçada? Já basta eu
perdendo meu tempo.
Nós três nos entreolhamos, mas não dizemos nada. Nicolas se encarrega de
abrir tudo e assumir a frente do computador e da projeção e, enquanto me
preparo para falar, Suze acompanha tudo por um tablet. O primeiro slide é
mostrado no telão, e respiro fundo.
Posso fazer isso. Me preparei pra isso. Minha ideia é boa. Eu sou boa. Posso
fazer isso.
— Nossa proposta pro dia dos namorados... — começo, mas mal falei meia
dúzia de palavras e Oscar me interrompe.
— Fala pra fora, Luana. Só tem eu na sala e não consigo te escutar, cacete.
Pigarreio. Estou mais nervosa do que nunca.
— Nossa proposta pro dia dos namorados — recomeço, mais alto e claro
dessa vez — é falar sobre educação sexual.
A expressão de Oscar daria um meme. Ele parece mais do que desgostoso.
Parece ofendido.
— Mas que porra que tem a ver uma coisa com a outra? — fala, quase se
levantando.
— Se o senhor nos der um minuto, já vai entender — garanto, apelando pro
tratamento cortês para tentar controlá-lo.
Funciona e, pelos quinze minutos seguintes, apresento todo o plano de
marketing, completo com novas propostas de produtos e ações coletivas que
podem ser feitas para além de só vender camisinhas. Nicolas não abre a boca
uma única vez, e Suze só o faz quando precisa acrescentar alguma coisa que
esqueci, um detalhe bobo aqui e ali. Falo e falo e falo, e quando paro, estou com
sede e sem fôlego.
Oscar me encara quando termino, o rosto paralisado numa carranca que não
consigo decifrar. Acho que nunca vi meu chefe com nenhuma expressão melhor
do que com cara de poucos amigos, e definitivamente nunca o vi elogiando
alguma coisa, então provavelmente nem saberia reconhecer um semblante de
aprovação nele. Depois de mais de um minuto inteiro de silêncio, ele finalmente
declara:
— Muito bem.
Devo estar sonhando. Não tem outra explicação. Ele não pode estar falando
muito bem pra mim.
— “Muito bem” do tipo “projeto aprovado”? — Suze é quem se pronuncia.
Ela parece tão chocada quanto eu.
— “Muito bem” do tipo “não foi uma completa perda de tempo”. — Oscar
se levanta, soando mais como ele mesmo agora. — Mande tudo isso pro meu e-
mail. Vou analisar.
E então sai da sala, sem dar mais nenhum tipo de feedback.
Olho para Suze e Nicolas, sem saber como reagir. Ele parece confuso, mas
minha amiga está aliviada.
— Bom, podia ser bem pior! — é tudo que ela diz. — A gente ainda tem um
emprego!
— É — respondo, sem saber o que mais dizer.
— Cerveja de comemoração mais tarde? — Nicolas sugere, tentando manter
o tom leve, enquanto vai fechando e desligando as coisas.
— Pode ser.
Saímos da sala como entramos, juntos e completamente perdidos, e voltamos
aos nossos postos. É difícil me concentrar depois disso, mas tento repetir pra
mim mesma que Suze tem razão: foi melhor do que o esperado. E, conhecendo
Oscar como acho que conheço, se ele tivesse odiado tudo, teria nos destruído na
hora. Talvez o fato de ele ter pedido para analisar com mais cuidado seja um
bom sinal. Pode ser que ele não aprove, pode ser que não se torne a campanha
de fato, mas pelo menos não fui demitida.
Trabalho no automático, fazendo sem fazer. Quando o expediente termina,
quase me afogo em alívio. Eu e Nicolas nos levantamos ao mesmo tempo para
ir embora, e nos juntamos a Suze na fila do elevador, mas quando mencionamos
o bar, ela só diz:
— Ih, gente, tô de boa, divirtam-se.
Então descemos num elevador lotado e nos despedimos no hall.
— Vamos pro bar de sempre? — Nicolas pergunta. Solto um suspiro,
cansada.
— E se a gente só fosse pra casa e pedisse um delivery de cerveja? — digo,
e ele solta a primeira risada do dia.
— Claro. O que você quiser.
— Nicolas?
Nós dois nos viramos ao mesmo tempo. Tem uma mulher vindo na nossa
direção, um exemplar perfeito da loira odonto , completa do corpo magro ao
cabelo platinado, liso como se alisado a ferro. Ela está com um crachá idêntico
ao nosso, mas não lembro de já tê-la visto em algum lugar.
— Meu deus, o que você tá fazendo aqui? — Ela para diante de nós, mas
mal me olha. Puxa Nicolas para um abraço, que ele corresponde parecendo
completamente em choque.
— Eu trabalho aqui. O que você tá fazendo aqui? — diz.
— Eu também trabalho aqui. Comecei hoje, inclusive! — Ela ri, como se
fosse a coincidência mais adorável do mundo. Só então olha para mim. — Oi,
tudo bem?
Nicolas me olha assustado, como se ele também tivesse se dado conta só
agora de que estou parada ao lado dele. Sua expressão se agrava, mas ele não
titubeia quando diz:
— Fernanda, essa é a Luana, que trabalha comigo. Luana, essa é a Fernanda,
minha... amiga?
Fernanda gargalha.
— Tá tudo bem, Nicolas. Você pode me chamar de sua ex.
N ão sinta ciúmes, eu digo a mim mesma, mas é claro que estou com
ciúmes. Eu estava com ciúmes no momento em que eles se abraçaram, estou
com mais ciúmes agora que sei quem ela é, e quero morrer cada vez mais
enquanto olho para ela. O que é ridículo, porque não apenas Fernanda é muito
simpática e não está me tratando como uma ameaça em potencial, como
também sei que toda a estrutura social do sentir ciúmes não faz sentido nenhum.
É claro que não consigo aplicar lógica alguma para o que estou sentindo. Só
consigo fazer um check-in mental de como ela é maravilhosa e tentar me
lembrar de toda e qualquer informação que Nicolas possa ter me dado sobre sua
ex.
— Não acredito que você tá trabalhando aqui agora! — Nicolas desconversa,
me olhando de canto de olho do jeito que 9 entre 10 caras fazem quando sua
atual e sua ex se encontram.
Fernanda abre um sorriso perfeito e joga o cabelo perfeito para o lado em
uma onda perfeita.
— Eu comecei hoje, na verdade. Tô trabalhando no departamento financeiro.
Parece que o cara mudou pra outra cidade, e aí abriu uma vaga — ela conta.
É claro. É claro que Tim ia dar no pé e me deixar com um problema 8 vezes
pior do que ele. É claro.
— Uau — é a única reação de Nicolas.
— Pois é. Eu não fazia ideia de que você tava trabalhando aqui. Seu pai
tinha comentado que você tinha mudado de área, mas não tinha me dado
nenhum detalhe. — Ela dá de ombros, e eu não consigo controlar minha boca.
Simplesmente não dá. Quando dou por mim, já falei:
— Você é ex dele, mas ainda fala com a família?
Não consigo dizer se meu tom é debochado ou só meio em choque. Fernanda
me olha com o que imagino ser curiosidade, e fico me perguntando se ela está
nesse mesmo segundo avaliando a possibilidade de eu e Nicolas termos alguma
coisa. Ou se só acha que eu sou completamente doida.
Então abre mais um sorriso perfeito. Sério, ela podia ser modelo para
propagandas de pasta de dente.
— Eu trabalhei com os pais do Nico por muito tempo, até antes de eu e ele
namorarmos. Aí de vez em quando a gente ainda se fala — explica, toda
simpática. Então se vira para Nico: — Mas não com você, né, seu cachorro?
Nem no meu aniversário você mandou uma mísera mensagem!
— É, é, foi mal. — Ele abre um sorriso desconfortável e olha pra mim como
se pedisse socorro. — Bom, a gente tem que...
— É, a gente tem que ir andando — falo, fazendo gestos para um relógio
inexistente no meu pulso. Fernanda parece muito compreensiva.
— Claro, claro! A gente vai se esbarrar muito ainda!
Ela se inclina e dá um beijo no rosto de Nicolas. Para mim, reserva só um
adeus à distância. Então ela sai na frente e desaparece porta afora.

Lentamente, vamos até o estacionamento e pegamos o carro. Nicolas não me


pergunta se vamos pra minha casa ou pra dele, mas acaba seguindo pra minha, o
que é ótimo, porque nem sonhei em trazer uma muda de roupa. Passamos os
primeiros cinco minutos em silêncio, e então Nicolas pigarreia.
— Bom, a apresentação hoje foi boa, né? — diz, as mãos segurando o
volante com tanta firmeza que fica na cara que está só tentando desviar o
assunto. — O Oscar não demitiu nós três, então acho um avanço.
— É, acho que sim — respondo, sentindo a garganta um pouco seca.
— Não entendi por que ele não chamou mais ninguém pra ver a proposta se
ele acreditava tanto que ia ser um fiasco, mas ok. Pelo menos não foi um fiasco
— ele desata a falar, e então para quando paramos num semáforo e se vira para
mim. — Você quer falar sobre isso?
— Sobre o quê?
— Sobre a Fernanda, Luana.
— Não tem nada pra falar — respondo, e é uma mentira tão deslavada que
minha voz até afina. Ele suspira.
— Tudo bem.
Ele dirige em silêncio, e eu encaro as ruas sem falar nada. Minha cabeça está
uma bagunça, e me odeio muito por deixar que meus sentimentos tomem conta
de mim dessa maneira. É por isso que tentei terminar com ele — por isso que
devia ter terminado. Porque coisas assim são difíceis e complexas, e
eventualmente desgastam as pessoas até destruir tudo que elas podem ter de
bonito.
Não, Luana, para . Faço o enorme esforço de não colocar o carro na frente
dos bois. Nós encontramos com a ex dele, e daí? E daí que ela é linda e perfeita
e ele pareceu abalado? Ele pareceu abalado? Não, não, não assuma nada. E daí
que ela trabalha no mesmo lugar que vocês e que agora vocês provavelmente
vão se encontrar com frequência? E daí que ela parece muito melhor do que
você em todos os aspectos?
E daí?
Finalmente chegamos em casa, e estou quase sufocando quando abro a porta
para descer do carro. Nicolas me para, segurando meu braço.
— Você ainda quer que eu desça? — pergunta, e tenho vontade de chorar, de
abraçá-lo e de bater nele, tudo ao mesmo tempo.
— Claro — respondo.
Então descemos, e fazemos o percurso pelo hall até o elevador, e do elevador
para dentro do meu apartamento em silêncio. Nicolas trouxe uma mochila com
ele, que joga sobre o sofá assim que entramos. Vou para a cozinha e pego um
copo d’água. Ele me segue.
— Lua, você tem certeza de que não quer falar sobre isso? — pergunta, e de
repente estou tão brava que a vontade é de jogar a água e o copo direto na
cabeça dele.
— Não, Nico , não quero! — respondo.
E, é claro, ele começa a rir.
— Puta que pariu, eu sabia.
— Sabia o que, Nicolas?
— Que você tava com ciúmes! Puta que pariu, dá pra ver na sua cara.
Preciso de toda a minha força de vontade para não quebrar o copo na pia.
Coloco-o com cuidado, e então passo por Nicolas como um furacão.
— Vai se foder.
— Ah, é, muito maduro da sua parte. — Ele me segue de volta pra sala e
tenta pegar minha mão. Eu desvio.
— Foda-se se é maduro ou não. Não vou aturar você fazendo pouco caso da
minha cara por ter sentimentos.
— Você acha que eu tô te zoando? Acha que eu nunca senti ciúme de você?
Chegamos ao quarto e eu arranco os sapatos com raiva, atirando-os pelo
quarto para não jogá-los na cabeça de Nicolas.
— Ciúme de quem? Do Tim?
— Sim! De saber que você já tinha dormido com ele. De achar que queria de
novo. De imaginar aquele cara escroto encostando em você!
É impressionante, mas de alguma forma suas palavras inflam meu ego e me
derrubam de vez. Porque para ele, se resume a sexo. A ciúme de toque. À
possessividade de me imaginar fisicamente com outra pessoa. Já para mim...
— Mas eu nunca fui apaixonada pelo Tim. Nunca senti nada por ele. Você e
a Fernanda tiveram um relacionamento. Vocês se amaram .
Ninguém nunca me amou, tenho vontade de dizer, mas é humilhante demais
para ser dito em voz alta, então me limito a sentar na cama e insistir para mim
mesma que chorar não é uma opção. Estar com alguém, gostar e se permitir ser
gostado, é um inferno. Cada dia mais eu amaldiçoo essa ideia de
vulnerabilidade. Não serve para nada além de nos deixar indefesos.
Nicolas vem e se ajoelha na minha frente. Mesmo de joelhos no chão
enquanto estou sentada na cama, ele fica quase da minha altura. Ele põe as
mãos nas minhas coxas, encaixando o corpo entre elas.
— E agora eu sou apaixonado por você. Caralho, Luana, eu não sei nem
como começar a explicar o quanto não faz sentido você se preocupar com outra
pessoa quando eu tô aos seus pés. Literalmente, agora, inclusive.
A piadinha me desarma, e eu rio. Nicolas me puxa para ele e nos beijamos,
do jeito singelo que só duas pessoas apaixonadas conseguem se beijar. Então,
solto um suspiro.
— Desculpa. Não sei o que me deu. Nem é sobre ela, ela foi superlegal
comigo — digo, e ele assente.
— A Fê é uma pessoa legal. Se você conseguir passar por essa baboseira de
ciúme, tenho certeza de que vai adorar conversar com ela.
— Uhum. — Eu duvidava.
— Mas mais importante: a Fernanda é passado. — Ele me puxa e planta
mais um beijo nos meus lábios. — Você é meu futuro, se você deixar.
É derretimento automático. Seguro suas mãos contra o meu rosto e o beijo.
— Isso vai depender do que você vai me dar no presente — brinco.
Uma chama se acende nos olhos de Nicolas. Suas mãos passeiam pelo meu
pescoço, cobrindo meus seios e deslizando pela minha cintura, até virem se
aventurar pelas minhas coxas e por baixo da saia.
— Vamos ver o que eu consigo fazer por você.
— V ocê não tá achando um pouco estranho esse negócio do Oscar
não ter comentado nada sobre a proposta ainda? — Suze me pergunta,
durante o almoço.
Nicolas não veio hoje; provas a fazer na faculdade, para as quais tenho
99% de certeza que ele não estudou, já que tem dormido na minha casa
quase todos os dias. Suze e eu estamos fazendo algo que não fazemos há
muitos meses, devorando hambúrgueres na hora do almoço. O meu, uma
combinação de carne malpassada, gorgonzola e rúcula, pinga sangue e
condimentos, mas o dela, de shimeji, queijo e maionese de hortelã, parece
muito melhor. Estou quase arrependida da minha escolha.
— Estranho por quê? — pergunto de volta, e então digo: — Posso dar
uma mordida no seu?
— Claro.
Trocamos lanches, só para comprovar que a escolha dela foi muito
melhor. Eu devia deixar que Suze sempre escolhesse pra mim. O que tem de
péssimo gosto pra homem, tem de bom gosto pra comida.
— E não sei, Luana. Já faz duas semanas que a gente apresentou, daqui a
pouco estamos em abril e ele não falou mais nada sobre isso. Campanhas
assim levam tempo. Mesmo que ele tivesse recusado, já era pra gente ter
começado a trabalhar na campanha nova.
Ela tem razão, e não nego que o pensamento me ocorreu. Mas entre meu
relacionamento com Nicolas aflorando e eu tentando me permitir viver
coisas boas sem surtar, não tenho tido nem cabeça pra pensar sobre Oscar e
suas intenções ocultas. Nem quero pensar sobre isso, inclusive. Minha ideia
é boa, sei que é, mas conheço meu chefe há tempo o bastante para saber
quando uma causa é perdida.
— Putz, Suze, sei lá. — Dou um suspiro cansado e mastigo uma mordida
do meu hambúrguer. — Acho que era de se esperar que ele não aceitasse,
né? Foi uma ideia ousada demais pro que ele tá acostumado a fazer. Eu não
tava com muita esperança, sendo muito sincera.
— Então, mas ele rejeitou alguma coisa? Ele especificamente falou que
não aprovava? — Ela insiste, com uma careta desconfiada.
— Não. Mas você tava naquela sala comigo. Ele pareceu ter aprovado
alguma coisa? — rebato.
Suze dá de ombros e mastiga, pensativa. Depois, solta um suspiro.
— Sei lá, vai ver tô sendo paranoica. Mas acho esquisito. Ele sempre faz
questão de jogar na nossa cara quando a gente faz algo errado, né? — Toma
um gole de coca. — Inclusive...
Ela faz suspense, e eu mordo a isca.
— Inclusive...?
— Tô pensando em sair.
— Sair? — Demoro um instante pra entender, e quando entendo, quase
engasgo. — Da empresa?
— É. — Ela torce o rosto em um sorriso que é quase de desculpas. — Vai
falar que você não pensa nisso? O mercado de publicidade é gigantesco.
— Eu sei, mas... sair pra onde? Você tem alguma coisa em vista?
Queria não soar desesperada, mas talvez esteja um pouco. Suze tem
razão, o mercado é enorme, e ela é uma boa profissional. Poderia conseguir
qualquer emprego em vez de ficar onde está e aguentar abusos do chefe. Mas
ela é parte do motivo pelo qual sobrevivi nesse emprego por tanto tempo. O
que vou fazer se ela for embora?
— Eu tô mandando uns currículos — Suze responde, tranquilamente. —
Não vou sair desse emprego sem ter alguma coisa garantida. Mas pensei em
algumas outras coisas também. De repente tentar um intercâmbio. Eu tenho
um dinheirinho guardado, acho que dá pra passar um mês estudando em
algum lugar pra melhorar meu inglês.
— Com o dólar do jeito que tá, não dá pra chegar nem na esquina, né? —
brinco, e rimos de nervoso, porque provavelmente é verdade. Então baixo
meu lanche e olho pra ela. — Se você arranjar um emprego novo, promete
que me leva junto?
— Você acha que vou te largar sozinha com o Oscar? Jamais! Você vem
comigo!
— Obrigada.
— Se bem que não vai estar sozinha, sozinha, né. Tem o Nicolas agora.
Sorrio, apesar de não querer. Tem sido muito mais fácil ultimamente, esse
negócio de sorrir por causa dele. É melhor agora que não preciso fazer de
conta que não me importo.
— Ele é só um estagiário, vai ser demitido daqui a pouco. — Dou de
ombros, fingindo fazer pouco caso, mas Suze me conhece bem demais.
— A gente falou isso lá atrás, mas já faz o quê? Quase três meses? — Ela
me lança um olhar que me faz pensar que talvez não esteja falando só sobre
o estágio. — Acho que esse aí não vai embora tão cedo.
Terminamos de comer, e então voltamos para a empresa. Oscar não está
lá, mas quando reaparece, está surpreendentemente manso. Não grita
nenhuma vez o dia todo, nem faz nenhum comentário de mau gosto. É o que
faz acender meu alerta. Suze tem razão, isso tudo me cheira demais a uma
história mal contada. Tem alguma coisa muito suspeita na forma como ele
tem agido.
Não consigo parar muito para pensar sobre isso porque, sem Nicolas ali,
preciso fazer o meu trabalho e o dele. As redes me ocupam tanto que passo
um tempo gigantesco sem fazer o que realmente preciso fazer, e acabo
esticando quase uma hora além do meu horário normal para dar conta do que
precisava entregar. Longe de estar vazio, o prédio ainda está bem
movimentado quando vou até o hall chamar o elevador, dezenas de
funcionários estendendo o expediente para produzirem tudo que precisam.
Mas mesmo assim, só tem uma pessoa no elevador quando ele para no
meu andar. E, tendo a sorte que eu tenho, é claro que essa pessoa é Fernanda,
a ex perfeita do meu atual.
Achei que ela não fosse me reconhecer, tendo me avistado uma única vez
há quase quinze dias, mas ela sorri com familiaridade quando entro no
elevador e pressiono o botão do térreo sem a menor necessidade. Estou sem
vontade nenhuma de puxar assunto com ela, mas Fernanda deve ser daquelas
pessoas simpáticas além do limite do bom senso, então ela se vira para mim
e diz:
— Oi. É Luana, né?
Não tem ensinamento feminista nenhum que me impeça de pensar
“garota falsa do caralho”, mas me forço a sorrir de volta. Ela não me fez
absolutamente nada. Estou sendo ridícula.
— É, isso mesmo — respondo. — Você é a... Fernanda?
Como se eu não soubesse. Como se não tivesse repetido o nome dela mil
vezes desde que a gente se esbarrou.
— Isso! Não tinha certeza se era você. Tudo bem? — diz, toda sorrisos.
Percebo, com alguma satisfação, que ela tem três dentes meio tortos. Contar
seus defeitos e me assegurar de que ela é humana faz com que eu me sinta
um pouquinho menos insegura.
— Tudo, e você? — replico de forma mecânica. Ela nem parece notar.
— Tudo. Fim de expediente, né?
Concordo, mas não digo nada. Caímos num silêncio desconfortável até o
elevador abrir as portas no térreo. Então ela pergunta:
— Vai pro metrô também?
Puta merda.
Quase respondo que não, mas não quero desviar meu caminho só pra
evitar uma caminhada do lado de uma garota que não conheço. Me forço a
ser simpática e respondo só com um:
— Uhum.
— Que ótimo! Tudo bem se eu for com você?
— Uhum.
Seguimos juntas para fora do prédio e pelo primeiro quarteirão sem abrir
a boca. Não ouso nem olhar pra ela, porque não quero incentivar uma
conversa ou uma tentativa de aproximação que não quero ter. Mas,
novamente, isso não basta para que Fernanda fique na dela. Ela
simplesmente precisa falar. Então ouço-a respirar fundo e quase não me
choco quando ela pergunta:
— Há quanto tempo você e o Nico estão juntos?
Mordo o lábio, um “não te interessa” pedindo pra sair. Mas vamos lá.
Vamos entrar na dela.
— É complicado. Uns dois meses, dependendo de como você encarar —
digo, embora nem saiba se estou falando a verdade. Nunca parei para
contabilizar as coisas desse jeito.
— Ele é um cara legal. Você parece bacana também. Espero que dê certo
— diz, e não consigo acreditar na cara de pau. Como assim, espero que dê
certo ?
Alcançamos o metrô, e com a graça de Deus, quando passamos da
catraca, ela aponta na direção contrária, se despedindo de mim ali. Quero
muito deixar isso quieto e não tocar mais no assunto, mas sei que não vou
conseguir dormir com a quantidade de raiva acumulada no meu peito se não
falar nada. Então, quando vamos nos despedir, eu mantenho uma distância
segura e digo:
— Olha, você não precisa fingir ser minha amiga nem fingir que tá tudo
bem, ok? — desembucho, falando rápido a ponto de perder o fôlego. —
Você e ele namoraram, foi meio traumático, talvez você ainda tenha
sentimentos mal resolvidos, beleza. Você não precisa ficar me sondando, tá?
A gente não tá mais no ensino médio.
Fernanda me encara com tamanha surpresa que não é possível que esteja
fingindo. Não é aquele choque exagerado, com expressões faciais forçadas e
uma mão no peito para aumentar o drama. Ela pisca várias vezes, a boca
entreaberta, e quando balança a cabeça, dando uma risadinha fraca, parece
confusa de verdade.
— Uau. Traumático? Meu fim com o Nicolas não foi nada traumático —
repete, quase que para si mesma, e então balança a cabeça outra vez. —
Olha, talvez tenha sido pra ele. Eu não sei. Mas eu realmente desejo o
melhor pra ele. E não tô tentando forçar uma amizade com você. Pode ficar
tranquila.
— Então o que foi isso? — pergunto, apontando de mim para ela.
Fernanda move o peso de uma perna para a outra, meio desconfortável.
— Isso foi eu encontrando uma colega de trabalho, uma das poucas
pessoas que eu conheço na empresa, e vindo até o metrô — comenta, e então
baixa a cabeça. — Mas tudo bem. Se você se sente desconfortável, não vai
acontecer de novo. Só achei que não teria problema, porque o Nico é legal, e
ele geralmente se cerca de pessoas legais. Mas talvez eu esteja errada.
Ela ajeita a bolsa no ombro, e respira fundo. Parece que tem algo mais a
dizer, mas só fala:
— Boa volta pra casa.
E então desaparece estação adentro.
— B om dia — Nicolas diz para mim, quando nos encontramos no
hall dos elevadores na manhã seguinte.
— Bom dia — respondo, com um sorriso resguardado.
— Bom dia — dizem as outras pessoas que estão em volta, mas Nicolas
as ignora. Ele só tem olhos para mim.
— Tudo bem? — pergunta, como se não tivéssemos nos falado há uma
hora, trocando mensagens desde a hora que acordei. Não acredito que me
tornei esse tipo de pessoa.
— Tudo, e você?
— Melhor agora.
Sorrimos um pro outro, porque uma resposta clichê daquelas é ao mesmo
tempo a coisa mais e menos Nicolas que consigo imaginar. Mas tudo tem
sido assim desde que decidimos ficar juntos. Tenho descoberto cada vez
mais que Nicolas não é nada como eu havia imaginado, e ainda assim, é
totalmente o cara que eu sempre quis.
Entramos no elevador lotado, e aproveito a oportunidade para me
espremer junto a Nicolas. Ele não se mexe, mas sua mão roça meu braço em
um carinho desajeitado, que faz meu corpo estremecer. É tão adolescente
isso, mas já faz três dias que Nicolas e eu não nos encontramos fora do
trabalho, e eu estou ardendo por dentro. Se já não estivesse na TPM, poderia
culpar o meu período fértil.
Mas estamos no trabalho, e não há nada que nenhum de nós possa fazer.
Depois dos incidentes do carnaval, estamos tentando ser mais cuidadosos.
Sentamos, cada um na sua mesa, e só conversamos o estritamente
necessário. Como quando recebemos uma notificação de reunião para o
período da tarde.
— Viu isso? — ele me pergunta, na mesma hora em que abro o e-mail.
— Lendo agora.
Faço silêncio enquanto leio as breves linhas que convocam todo mundo
para uma reunião às 17h (o que significa que, além de tudo, não vamos sair
no horário de sempre) para discutir a campanha de dia dos namorados. Um
arrepio percorre a minha espinha.
— Será que... — Nicolas começa a formular a pergunta, mas eu o
interrompo.
— Não sei. Vamos descobrir lá, né?
Na mesma hora, recebo um e-mail de Suze. Do outro lado da sala, ela não
pode surtar em voz alta, então o faz todo em maiúsculas via internet:
AH MEU DEUS SERÁ QUE ELE APROVOU O PROJETO E É ISSO
QUE QUER FALAR NA REUNIÃO? SE FOR O OUTRO PROJETO EU
VOU MORRER.
Rio, mas na verdade estou em pânico. Oscar não nos falou nada desde
que fizemos a apresentação para ele. Não sei o que esperar.
Prepara a cova porque nunca se sabe, respondo para ela, e mesmo sobre
o burburinho de telefones e funcionários, consigo ouvi-la gargalhar.
Na hora do almoço, eu e Nicolas saímos juntos da empresa. Não é até
termos atravessado a rua que seguro sua mão, e um sentimento de calma
parece invadir meu corpo inteiro. É diferente e bom estar andando de mãos
dadas com ele na rua, tão perto do trabalho. É uma declaração. Qualquer
pessoa da empresa pode nos ver, mas como estamos do lado de fora, isso não
diz respeito a ninguém. Me sinto ousada e corajosa, mesmo sendo algo
pequeno.
Sentamos num sujinho para almoçar, o buffet mais barato da região da
Faria Lima. Faço meu prato na certeza de que tudo que escolhi vai estar frio
ou sem tempero, se não as duas coisas. Mas é comível o bastante quando dou
a primeira garfada, e Nicolas come como se não visse alimento há meses. Lá
pela metade do prato, quando começa a se acalmar, ele me olha.
— Viu... queria te fazer um convite — diz, todo enigmático.
Ergo as sobrancelhas, convidando-o a continuar. Ele pigarreia.
— É aniversário do meu avô no sábado, e vai ter uma festa, e bom...
queria saber se você quer ir comigo.
Paro com o garfo a meio caminho da boca, encarando-o em completo
choque.
— Uma festa de família? — pergunto, e meu tom é tão chocado que
parece quase ofendido. — Você quer me levar numa festa de família?
— Não precisa ir se não quiser. Foi só um convite. — Nicolas franze o
cenho, e não sei se o deixei confuso ou puto com a minha reação. Balanço a
cabeça, respirando fundo.
— Não, não, eu quero. É só... — Não completo a frase, mas acho que
Nicolas entende, porque sua expressão se suaviza. É só que ninguém nunca
me apresentou pra família antes . Não sei como reagir a isso.
Ele segura minha mão sobre a mesa e sorri. Dura apenas um minuto,
porque depois sua expressão assume um tom mais cauteloso.
— Só tem uma coisinha...
— Lá vem — murmuro, mas num tom bem-humorado dessa vez. Nicolas
sorri com o canto da boca, mas quando desvia o olhar, sei que o que ele tem
a me dizer não vai ser nada muito engraçado.
— Acho que a Fernanda vai. Ela e os pais dela, digo.
Nada engraçado mesmo . A informação é um balde de água fria, e eu
preciso lutar muito contra mim mesma para não recolher minha mão, fazer
cara feia ou sair correndo como uma criança mimada. Me forço a
permanecer indiferente, mas Nicolas parece ser capaz de ler as emoções
estampadas na minha cara, pois continua:
— Minha família ainda é muito amiga da família dela, e eu sei que meu
avô vai convidá-los porque ele convida todo ano e eles vão todo ano. E eu
sei que você não gosta dela, mas eu espero que isso não te impeça de ir
comigo.
— Eu nunca disse que não gostava dela — replico, rápido demais.
Nicolas me lança um olhar condescendente, e então diz:
— Luana, ela me falou sobre o dia em que vocês foram juntas pro trem.
Eu o encaro, boquiaberta, por vários segundos, até processar a
informação. Sei que os dois ainda se falam, mas não imaginei que fosse
tanto. Não a ponto de terem conversas sobre mim. A ponto de fazerem
fofoca a meu respeito.
— Não foi fofoca — ele rebate, e percebo que pensei alto. Não me
arrependo nem um pouco.
— Ah, não? Então por que diabos vocês estavam falando de mim? —
digo, atraindo olhares que fazem com que eu me sinta a namorada louca em
plena crise de ciúmes. O que, preciso admitir, talvez eu seja. Meu deus, qual
é o meu problema?
— A gente não estava falando de você! — Nicolas solta um risinho
baixo. — Ela perguntou de mim, e de você, e caímos no assunto, e ela
comentou por cima...
— Que eu fui escrota com ela no metrô? Que eu sou ciumenta pra
caralho, completamente surtada? — sugiro, e Nicolas para e cruza os braços,
me olhando por vários segundos enquanto eu respiro rápido, a garganta seca
e as bochechas vermelhas.
— Não. Que você entendeu tudo errado, mas que tudo bem, porque você
parece uma pessoa legal.
Quero abrir um buraco e me enterrar nele. Baixo os olhos, sentindo todo
o peso do ridículo me pressionando os ombros. Não tem nenhuma
justificativa para o que estou fazendo. Nenhum motivo pra eu surtar desse
jeito, para agir como se fosse o fim do mundo. Mas tenho sentimentos
demais, conflitos demais, e tem tantas camadas antes e depois daquele ciúme
que nem sei como começar a explicar, ou a pedir desculpas.
Nicolas estende o braço sobre a mesa e pega minha mão, me
surpreendendo. Quando ergo os olhos, não vejo julgamento nele, e sim um
tipo de entendimento, de compaixão, que faz com que eu me sinta um tanto
pior.
— Tá tudo bem, tá? — ele garante, apertando meus dedos de leve. — Eu
não quero nem preciso que você e a Fernanda se gostem, ou sejam amigas.
Mas é importante pra mim que você respeite a mim e ao meu passado.
Porque é só o que é, Luana. Passado.
— É passado, mas ela tá em todos os lugares. — Me ouço dizendo, e
fecho os olhos. — E eu fico tentando arranjar motivos pra não gostar dela,
mas não consigo porque ela é tão perfeita...
— Ela tá longe de ser perfeita. Ei, olha aqui. — Ele balança minha mão
até que eu abra os olhos e o encare. — A Fernanda é uma pessoa ótima. Mas
ela foi uma péssima namorada.
— Ao contrário de mim, que sou uma pessoa péssima, mas uma ótima
namorada? — provoco, automaticamente.
Congelo ao perceber que usei a palavra com N, mas Nicolas não me
corrige, e aquilo fica no ar entre nós, uma ideia não concluída, uma
pseudoverdade não admitida. Ele puxa minha mão e se inclina para beijá-la.
— Eu tenho muito carinho por ela, mas se você soubesse de metade do
que foi o nosso namoro, ia perceber que não tem motivo nenhum pra ter
ciúme. Ela não é essa Coca-Cola toda — diz, quando me solta.
— Foi ruim assim? — pergunto, a despeito de mim mesma. Lembro de
Fernanda dizendo que não tinha sido nada traumático, mas Nicolas finge um
estremecer antes de me responder. Toda história tem duas versões; até as
trágicas.
— Foi ótimo até ser uma bosta. E quando foi uma bosta, foi uma bosta
por muito tempo.
Dou uma garfada lenta na comida já gelada e intragável, e mastigo
devagar. Não sei ao certo se quero ouvir a história completa ou não, mas
percebo que preciso dela. Enquanto eu não souber o que houve, o que houve
de verdade, vou construir uma história mítica sobre os dois na minha cabeça,
e isso criará espaço para crises de ciúme. Preciso saber que a relação deles
foi normal, que houveram erros, que está morta e enterrada. Preciso me
livrar dessa sensação de perda iminente.
— Me conta — peço. Nicolas meneia com a cabeça e respira fundo.
— Bom. Começou em 2012. Eu devia ter ouvido quando falaram que
aquele seria o ano em que o mundo ia acabar.
N icolas e Fernanda eram colegas de faculdade — de campus, não de
curso. Ela era de ciências contábeis, e conhecia algumas pessoas da turma de
Nicolas por causa de festas e chopadas. Quando se conheceram, Nicolas se
apaixonou por ela. Mas ela era namorada de um dos seus melhores amigos.
— Quando ela e o Toró terminaram, a gente ainda tentou dar um tempo
antes de começar a sair — ele me conta, mordiscando o próprio almoço —, mas
a Fernanda ficou muito em cima e eu era muito bunda mole pra dizer não pra
ela, então a gente acabou ficando duas semanas depois.
— O Toró deve ter ficado puto — comento, e Nicolas gargalha.
— Pior que não, somos amigos até hoje. — Ele suspira. — Enfim, o começo
do namoro foi ótimo. A gente não se via muito, cursos diferentes, trabalhos
diferentes. A gente se formou e ela foi morar sozinha. Foi mais ou menos aí que
as coisas começaram a dar errado.
— Por quê?
Nicolas coça a barba, pensativo, antes de responder.
— A gente queria coisas diferentes da vida, sabe? — ele diz, e percebo que
está escolhendo muito bem as palavras, talvez para não me magoar. — Quando
ela foi morar sozinha, eu fiquei muito ofendido porque já fazia um ano que a
gente tava junto e eu achei que ela fosse me chamar pra gente morar juntos.
Mas ela não queria isso. Achava que não era hora.
Não respondo, tentando pensar em Nicolas e ela dividindo um teto, casando,
tendo filhos, a família ideal. E quanto mais olho para ele e penso na pessoa que
ele é, menos entendo como é possível que Fernanda não quisesse isso. Mas
deixo que ele continue.
— Ela queria trabalhar e ser alguém na vida, e não via necessidade de mexer
em time que tava ganhando. Depois de um tempo acabei concordando com ela.
Mas antes disso, veio o emprego novo dela e o ano em que começamos a
trabalhar na mesma empresa. Foi aí que o bicho pegou.
— Mas não era nem no mesmo departamento — falo, e Nicolas meneia com
a cabeça.
— Não, mas a Fernanda era meio que minha chefe nessa empresa, entende?
— ele diz, e engulo em seco porque é, de certa forma, exatamente a minha
posição com relação a ele no nosso trabalho. — Eu lidava com ela diretamente
em um monte de coisas. E o problema era que ela não sabia separar o pessoal do
profissional. Eu descobri um lado dela que não sabia que existia antes, e ela
começou a me tratar fora da empresa como me tratava lá dentro. E vou falar:
não era nada bom.
— Deve ter sido péssimo — é tudo que consigo dizer, porque agora estou
revendo absolutamente todo o nosso relacionamento e a forma como eu posso
ou não tê-lo tratado enquanto estagiário. Mas Nicolas nem parece perceber.
— Foi bem ruim. — Ele ri. — Mas acho que a pior parte é que ela se
recusava a ver que o trabalho tinha mudado a nossa relação, e quando eu
terminei, ela disse que era porque eu não sabia lidar com o fato de que era mais
bem-sucedida que eu. O que é verdade, mas nunca me incomodou. Eu achava o
máximo que ela fosse tão nova e estivesse tão bem de vida e de carreira.
— Que vaca! — digo, optando pelo caminho de menor sororidade possível
para apoiá-lo. Ele abre um sorriso amarelo.
— Enfim. Quando a gente terminou, continuamos trabalhando na mesma
empresa e ela não olhava pra minha cara. E depois veio a fase em que ela me
tratava como se nada tivesse acontecido. E hoje em dia a gente tá nessas em que
tenta ser amigável, mas é meio esquisito.
— E vocês ainda se veem muito, pelo visto? Por causa dos negócios da sua
família com a dela e tal.
— É, ela aparece em alguns eventos de família. E a Íris ainda fala muito com
ela. E agora ela tá no meu trabalho de novo. Mas eu já superei.
Olho pra ele, tentando decidir se está sendo sincero ou se está falando isso
pra me tranquilizar e a si próprio. Não chego à conclusão nenhuma, mas fico
feliz que ele tenha compartilhado a história comigo. Ajuda, de certa forma,
saber que eles tiveram desavenças, porque aí consigo me convencer de que não
tem motivo pra ele sentir falta dela. Não tem motivo pra eu sentir ciúmes. E eu
não quero sentir ciúmes.
Nicolas olha o relógio no celular e ergue as sobrancelhas.
— Melhor a gente ir.
Concordo, e pagamos a conta antes de sair e caminhar como se tivéssemos
todo o tempo do mundo para voltar ao trabalho. Quando alcançamos os
elevadores, junto com aquele burburinho de gente voltando do almoço, tem uma
coisa ainda me engasgando a garganta, e não consigo evitar perguntar:
— Te incomoda que eu seja sua chefe, que nem a Fernanda? Tipo, mesma
coisa de novo.
Nicolas me olha, mas as portas do elevador se abrem e ele só tem a chance
de me responder quando chegamos no nosso andar. Ele toca minha mão
rapidamente e diz:
— Você não é nada como ela.
E eu nem preciso perguntar se isso é bom ou ruim. Dá pra entender no olhar.

Às cinco da tarde, eu estou tremendo na cadeira quando Oscar sai da sala


dele e grita:
— SALA DE REUNIÕES, AGORA.
Olho para Nicolas, do outro lado da baia, e para Suze, que já está se
levantando para ir, e mordo a boca. É agora. É agora que vou descobrir o
tamanho da vitória, ou o tamanho da humilhação.
— Fica calma — Nicolas me diz, com um sorriso, e gostaria de dizer que
surte algum efeito, mas não é verdade.
Suze nos espera, e passa o braço pelo meu quando a alcançamos.
— Olha, venha o que vier, a gente fez um negócio ótimo — ela garante, toda
otimismos. — E se o Oscar é quadrado demais pra ver, problema dele.
— Uhum — é tudo que eu respondo, e tento respirar o mais calmamente
possível enquanto andamos até a sala, mas está difícil.
Já está todo mundo lá quando chegamos, e Oscar nos lança um olhar
enviesado, recheado de comentários ácidos. Para minha surpresa, no entanto,
ele não comenta nada. Assumimos nossos lugares — eu e Suze em cadeiras
opostas, Nicolas indo buscar o café — e Oscar apaga a luz e acende o projetor
em uma tela neutra com o tema da reunião.
— Muito bem. Hoje vamos começar a preparar a próxima grande campanha,
que é a campanha de dia dos namorados — ele diz, e sinto todos os meus pelos
do corpo se eriçarem em expectativa.
Por favor, não seja a camisinha com corações. Por favor, não seja a
camisinha com corações.
— Graças ao feedback de vocês, resolvi repensar a campanha — Oscar diz,
após uma pausa, e o alívio no rosto de todo mundo é óbvio; não era só eu quem
odiava aquela ideia. — E depois de muito pensar e esquematizar, eu decidi que
o tema da nossa campanha de dia dos namorados vai ser...
Eu prendo a respiração. Ele passa um slide.
— Educação sexual.
E está ali. Para todo mundo ver. Todo o meu conteúdo, toda a minha ideia,
está tudo ali, no telão.
Oscar aprovou nossa campanha. Nossa campanha será produzida.
Olho para Suze, e ela está radiante. Mas quando procuro o olhar de Nicolas,
ele está parado, encarando a tela, parecendo confuso.
— ...slogan será quem ama protege — Oscar continua, passando os slides.
— A ideia não é fazermos produtos novos, mas focar em uma ação mais
abrangente, que vai de famílias a escolas, de modo que...
Ele continua apresentando a ideia, usando algumas coisas que eu, Nicolas e
Suze fizemos, e outras coisas que, imagino, sejam inteiramente de sua autoria,
mas não estão ruins nem fora de tom. Por toda a sala, dá para sentir a
aprovação, o quanto o time ficou empolgado com a ideia. A minha ideia. As
pessoas aprovaram algo que eu fiz.
A reunião dura cerca de meia hora, com a pauta geral sendo a nova
campanha e a distribuição geral de tarefas. Fico esperando a hora em que Oscar
vai apontar para mim e dizer “essa mudança só existe por causa da ideia e da
iniciativa da Luana”, mas isso nunca acontece. E não é até a reunião ter
terminado que eu percebo que não vai acontecer.
As pessoas estão saindo e parabenizando Oscar pela ideia incrível e ele não
apenas não as está corrigindo, como está aceitando 100% dos louros sem um
pingo de humildade. Ele não me repassa nenhum crédito, ele sequer aponta
minha presença exceto quando fala sobre o “time de redes sociais”. Não existe
nenhuma referência ao trabalho todo que eu, Nicolas e Suze tivemos.
Espero todo mundo sair. Suze me lança um olhar meio apavorado, mas eu
balanço a cabeça na direção dela, e ela sai com o resto do pessoal. Nicolas se
prolonga mais, fazendo hora e me lançando olhares significativos, mas no final,
entende que preciso fazer isso sozinha. Ele também sai, e restamos só eu e meu
chefe. Ele está recolhendo as próprias coisas e desconectando seu laptop dos
cabos da sala, e quando me nota, nem mesmo desvia o olhar.
— O que cê tá fazendo aqui ainda, Luana? Não tem trabalho pra fazer, não?
— Você roubou minha ideia — respondo, sem rodeios.
Oscar para o que está fazendo e me encara. Nunca fui tão direta com ele.
Nunca joguei na cara dele as humilhações, o assédio moral, e todas as merdas
que já aturei dentro daquela empresa, assim como nunca fiz uma única
denúncia. Mas aquilo... aquilo era demais. Eu tinha um ego fortalecido o
suficiente para aguentar ataques pessoais. Mas roubar o meu trabalho?
— Não roubei porra nenhuma, Luana — ele faz pouco, cuspindo as palavras.
— Você trabalha no meu departamento. Deu uma ideia, eu apliquei a ideia. Não
é roubo de nada.
— Não, Oscar, isso aqui não foi fruto de um brainstorming — retruco, a voz
alta e vacilante. — Eu, o Nicolas e a Suze passamos dois dias trabalhando nesse
projeto, e você não deu um único reconhecimento. Você agiu como se fosse
tudo seu.
— E daí? Você não queria provar que podia fazer melhor? Toma aí, Luana, a
sua ideia vai ser implementada.
— Não é esse o ponto! — Eu rio, descrente, e ele me lança um olhar azedo,
o que só me deixa mais puta. — Oscar, o mínimo que você pode fazer é nos dar
os créditos. É só reconhecer o nosso trabalho. É só isso que eu quero. Nós
temos todos os rascunhos originais. Se eu precisar expor você na internet por
roubo intelectual, eu vou expor.
Ele pega o laptop e o segura ao lado do corpo, o rosto tenso. Nunca achei
que diria isso, mas parece que Oscar está com medo de mim. Tenho algo contra
ele, algo grande, que pode destruir sua carreira.
Mas então ele sorri, e quem fica com medo sou eu, antes mesmo que ele abra
a boca.
— Vamos colocar desse jeito, Luana: eu e você podemos nos ajudar muito
durante essa campanha — fala, a voz suave como nunca. — Se você deixar eu
levar os créditos, eu posso ajudar muito você e os seus colegas. Eu vou ser
promovido em breve e posso indicar alguém pro meu cargo. Poderia muito bem
ser você.
Abro a boca, descrente, mas minha boca já está seca só de imaginar. Não
apenas eu não seria mais subalterna de Oscar, como teria todo um departamento
para tocar. Quantas coisas poderiam ser melhores sob uma direção melhor. E
Nicolas poderia ficar com o meu trabalho, e Suze poderia ser promovida
também.
— Agora, se você escolher não ficar do meu lado, eu posso tornar a sua
carreira muito difícil — ele continua, um passo mais perto. — Eu tenho amigos
em todas as empresas de publicidade desse país. Você acha que alguém vai
querer te contratar se eu falar contra você? Eu também posso não recomendar a
sua amiga papa anjo. Isso sem falar no que você anda fazendo com esse seu
estagiário aqui mesmo, dentro da empresa...
Travo por completo. Agora tenho certeza de que ele sabe, sabe muito mais
do que deixou entender até agora. Talvez Tim tenha contado. Talvez ele tenha
visto alguma coisa. Não interessa como. Só sei que estou fodida, e ele pode
acabar com a minha carreira e com a das únicas duas pessoas com quem eu me
importo.
— Então pensa com carinho na minha proposta, tá certo? — Ele se afasta e
dá dois tapinhas no meu ombro — Tenho certeza de que vai fazer a escolha
certa.
E vai embora, me deixando sozinha para tremer incontrolavelmente até a
vontade de chorar passar.
V AMOS PROCESSAR O CHEFE?
Suze:
Gente, desculpa criar grupo no WhatsApp, mas não dá pra gente
simplesmente falar sobre isso na empresa, e vocês dois saíram correndo
quando acabou o expediente, enfim.
Eu estou chocada que o Oscar não deu nenhum crédito pra gente.
Deveríamos processar ele. Temos todas as provas. É isso.
Nicolas:
É o que tô tentando falar pra Luana faz mais de uma hora.
Suze:
Oi? Como assim?
Luana:
Gente, foi mal, eu preciso pensar, tá?
Suze:
Pensar no que exatamente?
O trabalho que a gente teve, Luana! O final de semana! O estresse!
Isso é roubo intelectual! Na cara dura!
Luana:
Nós trabalhamos na mesma equipe. E daí se ele vai usar a ideia sem dar
créditos?
Nicolas:
Suze, olha só, vê se você consegue colocar alguma noção na cabeça dela
porque eu já desisti.
Suze:
Luana, eu não tô te reconhecendo.
Luana:
Desculpa, gente.
Mas acho que um processo é um passo muito grande.
Pode acabar com a nossa carreira.
Nicolas:
Essa porra desse trabalho também é nosso.
Isso não é decisão só sua.
Suze:
Amiga, eu sei que é muito grande, tá? E eu não estaria sugerindo se visse
outra opção.
A gente pode tentar conversar com o Oscar?
Aliás, você conversou com ele depois da reunião, né? Eu vi que você
ficou pra trás.
O que ele te disse?
Luana:
Nada de mais.
Só parabenizou pelo projeto, disse que seria um sucesso.
Suze:
A cara de pau!!!!!!!!!
Suze continua tentando me convencer a pelo menos irmos todos juntos
falar com Oscar. É impensável, para ela, que não façamos alguma coisa. E
ela tem razão. Em situações normais, estaria tão indignada quanto ela.
Mas essa não é uma situação normal. E nunca houve tanto em jogo.
Nicolas, parado bem na minha frente, já deu umas dez voltas na minha
sala. Desde que saímos da empresa ele está me pressionando a tomar uma
atitude sobre o roubo da campanha. Desde que chegamos na minha casa, não
paramos de brigar. Ele não entende. Não consegue entender. Nem ele, nem
Suze.
— Luana, puta que pariu, eu não te entendo! — ele exclama, batendo as
mãos ao lado do corpo num gesto exasperado. — Você é moralmente
assediada naquela empresa todo dia, e agora é literalmente roubada e nem
assim você quer prestar queixa? O que exatamente você tá defendendo? Para
de proteger o Oscar!
— Você acha que é o Oscar que eu estou protegendo? — grito de volta.
Estava sentada no sofá, mas logo me coloco de pé, enfrentando Nicolas com
ferocidade. Ele vasculha meus olhos um instante antes de dizer, mais baixo:
— O que você não tá me contando?
Emudeço. Está ali, na ponta da língua, todas as coisas que Oscar me
disse, todos os meus medos, tudo que ele pode usar contra a gente. Uma
queixa de abuso de poder ou mesmo de assédio no currículo extenso de
Oscar não vai ter nem um décimo do mesmo peso que uma palavra dele a
meu respeito para todas as pessoas que ele conhece. Suze talvez entendesse,
mas nem ela tem tanto em jogo. Quem tem mais a perder nessa história sou
eu.
Então não falo. Fico quieta, e Nicolas solta um suspiro cansado, passando
as mãos pelo rosto. Me sinto uma decepção, um peso e uma grandessíssima
idiota. Quando ele torna a falar, a voz é mais suave, exausta.
— Só não esquece que você não foi a única que trabalhou nessa ideia. Ele
nem mesmo se deu o trabalho de fazer os próprios slides, e eu e a Suze
trabalhamos feito dois camelos pra produzir aquele material. Não é uma
decisão só sua. E me desculpa, Luana, mas eu vou passar por cima de você
nisso se eu precisar. Eu não vou deixar essa merda impune.
— Você faria isso? — pergunto, num tom que é tanto súplica quanto
desafio, tanto choque quanto dor — Você me atravessaria, mesmo sabendo
que isso pode foder a minha carreira pra sempre?
Estou jogando baixo e sei disso. Mas não sei mais o que fazer. Me sinto
uma covarde por não ir atrás dos meus direitos nisso, mas minha carreira é
uma das coisas que eu mais amo sobre mim. Nunca duvidei da escolha de
ser publicitária. E o pânico de perder isso, o pânico do que pode acontecer se
agirmos contra Oscar, me cega mais do que qualquer coisa.
Dessa vez, é Nicolas quem não fala nada. E percebo que nós voltamos ao
mesmo ponto de antes, onde ele não consegue considerar o dano colateral
mesmo de algo com tão boas intenções. E mesmo o odiando por isso, eu
também o amo um pouco mais.
Ele também parece perceber, porque titubeia. Engole seco, torce o nariz,
e após mais um suspiro de pura exaustão, diz:
— Não, eu não iria contra você. E sei que a Suze também não.
Respiro aliviada. Ele inspira fundo.
— Mas só... pensa no que você tá fazendo, tá? — Nicolas balança a
cabeça, e o flash de decepção que vejo nos olhos dele me quebra inteira por
dentro. — O sistema continua uma merda quando quem se fode não faz nada
a respeito. Você é uma grande profissional, e o Oscar não vale o holerite
dele. Chega de passar pano. Só chega.
Então ele passa por mim e pega a mochila no sofá. Acompanho seus
movimentos, confusa. Nós acabamos de chegar.
— Onde você vai? — pergunto.
Nicolas passa a alça da mochila pelo ombro e se inclina para me dar um
selinho.
— Acho que é melhor a gente ficar um pouco sozinho pra pensar hoje.
E, de novo, não respondo. Só vejo ele abrir a porta e sair, fechando-a
atrás de si.
Posso manter meu emprego e minha carreira, mas não sei se vou
conseguir manter Nicolas e Suze. Para proteger nós três, talvez eu precise
perdê-los.
E a pior parte é que nem mesmo acho uma escolha tão difícil.
É esquisito voltar ao trabalho na manhã seguinte.
Nicolas praticamente não falou comigo depois de ir embora da minha casa.
Me mandou uma mensagem pra avisar que tinha chegado, depois outra me
desejando uma boa noite. Suze também acabou desistindo de fazer campanha
no grupo do WhatsApp quando passei muitas horas sem responder, e meu
celular descansou calado no carregador a noite toda enquanto eu me revirava na
cama, sem conseguir pegar no sono.
Suze me intercepta assim que ponho os pés no nosso andar. Como não
dormi, acabei levantando, me aprontando e saindo muito mais cedo do que de
costume, e ainda falta uma boa meia hora para o expediente começar. Achei que
estaria sozinha ali, mas ela aparece vinda do além quando me aproximo da
minha mesa.
— Bom dia! — diz, numa voz ansiosa. Quando reconhece minha confusão,
explica: — Vim de carro e hoje é o meu rodízio.
— Ah — respondo, sem conseguir articular mais do que isso. Então me
sento.
Suze puxa uma cadeira e senta do meu lado. Eu finjo não prestar atenção, e
vou ligando meu computador, me ajeitando na mesa, colocando minha vida em
ordem como se houvesse uma vida para organizar. Porque há, por enquanto.
Enquanto eu concordar em manter a boca fechada sobre Oscar. Enquanto
mantivermos nossos empregos.
— Luana — ela me chama. Engulo em seco.
— O quê?
— Olha pra mim, pelo amor de Deus.
Hesito, mas acabo olhando. Não tem decepção nem tristeza nos olhos da
minha amiga. Só preocupação. Não consigo decidir se isso faz eu me sentir
melhor ou pior.
— Você pode, por favor, me explicar o que tá acontecendo? — Suze para e
estuda meus olhos, torcendo levemente o nariz. — Porque a Luana que eu
conheço não estaria sentada aqui numa boa depois de uma puxada de tapete
como essas.
Por um longo minuto, eu apenas a encaro. Se eu contar a verdade, aí sim ela
vai querer me obrigar a ir ao RH, a denunciar Oscar nas redes, a fazer todo o
escarcéu que aquilo merece. E talvez me convença. E, se me convencer,
estaremos afundados. Eu estarei afundada.
Penso na proposta dele, por mais nojenta e absurda que pareça. Se Oscar for
promovido, vai continuar em um cargo de chefia, mas vai sair do nosso
departamento e deixar de lidar diretamente com os produtos que a gente
representa. Ele vai ter outros peixes maiores e mais importantes para pescar,
outros funcionários para incomodar, e, muito provavelmente, não terei que lidar
com ele diretamente. E eu serei chefe do nosso setor. Vou poder fazer o que
quiser. Vou poder construir um nome bom o bastante para sair daquela empresa,
e garantir que o mesmo aconteça com Suze e com Nicolas.
Me sinto suja e egoísta, mas é uma escolha que não consigo pensar duas
vezes em fazer. Não ter mais uma carreira versus subir de posto e mudar a vida
das duas únicas pessoas com quem me importo ali dentro. Não tem muito o que
escolher.
— Eu não posso te explicar, mas eu preciso que você confie em mim nisso
— digo, no que espero ser um último apelo. — Vamos deixar esse vespeiro
quieto. Eu sei o que eu tô fazendo.
Suze não parece acreditar em mim nem por um segundo. Mesmo assim, ela
assente.
— Espero mesmo que você saiba.
Então se levanta e vai pra própria mesa. Quando a hora do início do
expediente se aproxima, vejo Oscar entrando na própria sala. Ele se vira na
minha direção, e, através de uma fileira de baias vazias, me avista.
Como se guardasse um segredo, ele sorri para mim.
Nicolas e eu mantemos a distância profissional ao longo da manhã toda no
trabalho, mas não saímos para almoçar juntos. Quando dá a hora, ele recolhe as
próprias coisas e anuncia que precisa sair mais cedo para resolver algo no polo
da faculdade. Antes de sair, ele pausa e me olha.
— Te vejo amanhã?
Franzo o cenho. Amanhã é sábado. Mas Nicolas antecipa minha pergunta.
— A festa do meu avô. Eu te busco, se você quiser.
— Claro — concordo, em parte feliz que o compromisso ainda está de pé. —
Te vejo amanhã.
Ele dá um meio sorriso e sai sem dizer mais nada.

Nicolas me manda uma mensagem mais tarde naquele dia dizendo que a
festa começa 12h, e que ele virá me buscar por volta das 11h30. Assim sendo,
acordo no sábado completamente elétrica, e antes das 9h já comecei a me
arrumar e a entrar em pânico simultaneamente. Afinal, não é todo dia que se
conhece a família do namorado.
Namorado . Enquanto tomo banho e escolho o que vestir, fico me
perguntando se vai ser assim que ele vai me tratar. Nosso status de
relacionamento nunca ficou particularmente claro, mesmo com todas as
declarações de amor. Não tinha me dado conta até aquele momento do quanto
isso fazia diferença pra mim. Não porque eu achava que garantisse alguma
coisa, mas pura e simplesmente porque eu nunca o tivera. Eu já tinha sido o rolo
de alguns caras, a ficante de alguns, o sexo casual de outros. Mas nunca,
nunquinha, tinha sido a namorada de alguém.
Será que hoje eu seria?
Tento em vão dispersar esses pensamentos. Nem sei como estará o clima
entre Nicolas e eu, com todas as coisas que estão acontecendo no trabalho. E
tem ainda o fator Fernanda. Eu e ela não nos encontramos de novo desde aquele
dia horroroso a caminho da estação de metrô, e agora eu preciso cruzar com ela
no mesmo dia e no mesmo ambiente em que vou conhecer toda a família de
Nicolas. Vai ser ótimo. Pelo menos eu já conheço Íris, e tenho mais ou menos
certeza de que ela gosta de mim.
Mas também gosta de Fernanda, segundo o próprio Nicolas. Não tenho
certeza se posso competir com isso.
O clima está esquisito lá fora, um dia nublado, mas não exatamente frio,
então acabo fazendo uma combinação de jeans, blusa e colete. Faço uma nota
mental de ir na costureira na semana que vem para pedir um reforço no tecido
das pernas daquela calça, já gastas pelo atrito das minhas coxas. Me maquio e,
quando Nicolas me avisa que está na minha rua, já estou pronta há mais de meia
hora, esperando impacientemente. Passo um perfume, pego minha bolsa e saio.
Ele está me esperando estacionado do outro lado da rua quando saio do
prédio. Me parece um desperdício de gasolina ter ido até ali pra me buscar,
quando nem sei onde o avô dele mora, mas não sei se eu teria coragem o
suficiente para ir sozinha e encontrá-lo lá, então não reclamo. Quando entro no
carro, ainda estou incerta sobre como vamos nos tratar, como será seu
comportamento. Mas, pra minha surpresa, ele sorri e me beija.
— Você tá linda — diz, e sorrio também.
— Obrigada. Você também — digo. Ele se parece mais com o Nicolas das
fotos que vi quando fucei sua vida na internet, com um jeans meio desbotado e
uma camiseta vermelho-escura com uma estampa abstrata. Mais casual e
relaxado do que o vejo na empresa, definitivamente mais relaxado do que
nesses últimos dias.
Ele sai com o carro e segura minha mão enquanto dirige, ocasionalmente a
soltando para trocar de marcha. O silêncio me incomoda, porque me faz pensar
em coisas nas quais não quero pensar agora, então pigarreio e puxo assunto.
— Onde seu avô mora?
— Ah, lá na zona norte. Minha família mora cada uma num canto — ele
responde, tranquilamente. — Minha mãe queria fazer a festa lá no meu prédio,
porque a rua é melhor pra estacionar, mas meu avô tá com 85 anos, não vale a
pena tirar o velho de casa pra isso.
— Ele mora sozinho?
— Desde que a minha avó morreu, sim. Com uma cuidadora, na verdade. —
Nicolas me olha de esguelha. — Você tá nervosa?
Solto uma risadinha abafada e meneio a cabeça.
— Um pouco. — Faço uma pausa, e então: — Eles sabem? Sobre mim?
— Sabem que você existe, sim — ele responde, e aperta minha mão —, mas
não contei muita coisa pra eles. Só se a Íris falou alguma coisa.
— Vai ser na base da surpresa, então.
— É, mais ou menos isso.
Ficamos em silêncio alguns instantes, mas a quietude ainda me incomoda.
Não quero, mas acabo tocando no assunto.
— Você tá bem com... tudo? — digo. Não acredito que eu, e logo eu, me
tornei essa pessoa de meias palavras, mas o medo faz coisas surpreendentes
com a gente.
Nicolas respira fundo, e já sei que não vou gostar da resposta antes mesmo
que ele abra a boca.
— Não, na verdade. — Paramos num semáforo e ele me olha antes de
continuar. — Não tô chateado com você, Luana. Eu só sei que tem alguma
coisa errada, e que você não quer me falar o que é, e isso me deixa meio puto e
meio frustrado porque eu não gosto de segredos, muito menos num
relacionamento.
Assinto devagar, porque sei que ele tem razão. Mas também sei dos meus
motivos, e sei o que vai acontecer se eu abrir a boca. Simplesmente não posso
deixar de me proteger — e a ele e Suze também, consequentemente — numa
situação como aquela.
— Mas eu não quero que hoje seja sobre isso — Nicolas diz, por fim. — Eu
sei que a gente trabalha junto, mas eu realmente não quero deixar o profissional
interferir em tudo que a gente faz. Então vamos dar um tempo hoje, pode ser?
Foda-se a empresa. Hoje somos só eu e você.
Sorrio, o coração mais leve. Era exatamente o que eu precisava escutar.
— Foda-se a empresa — concordo, e Nicolas ri.
O caminho até a festa parece levar uma vida inteira. Nicolas cumpre a
promessa de deixar o trabalho de lado, e vamos o resto do trajeto trocando
histórias constrangedoras de família. Sei que chegamos ao destino quando ele
fica quieto e abaixa o rádio, procurando por um lugar para estacionar. Não
conheço a mãe de Nicolas ainda, mas preciso dar razão pra ela: a rua é horrível.
Uma ladeira, tão inclinada que poderia ser percurso de montanha russa, tem
carros estacionados dos dois lados, e quem quiser que lute para passar no meio.
Nicolas acaba estacionando numa rua adjacente, e quando descemos a ladeira
para o nosso destino, já estou pensando no sofrimento de subir na volta.
Mas, por ora, um sofrimento de cada vez. Vamos para um portão branco,
limpo como se tivesse acabado de ser pintado, e ele nem mesmo toca a
campainha — simplesmente abre e entra. Eu o sigo, com o coração batendo
forte, mais nervosa a cada segundo.
Do outro lado do portão, está um sobrado com cara de casa antiga, mas
cuidado como se fosse novo. Tem um jardim no lugar da garagem, com plantas
e flores, e as paredes externas são de tijolinhos. Já tem um monte de gente ali,
embora bem menos do que eu imaginava, e mesmo que todo mundo esteja bem
arrumado, me sinto extremamente bem-vestida para uma ocasião simples
demais.
Então Nicolas segura minha mão e me puxa. Vamos direto para um grupo de
pessoas formados por duas gêmeas idênticas, na casa dos 50, um homem
grisalho e Íris. Ela sorri quando me vê.
— Ah, falando no diabo! — diz uma das gêmeas. Ela é alta, tão alta quanto
Nicolas, e tem cabelos curtos num tom chocante de vermelho, os fios espetados
em um corte moderno. Estou imaginando que seja alguma tia ou talvez a
cuidadora de quem Nicolas falou antes, quando ele se inclina para abraçá-la,
sem soltar a minha mão, e diz:
— Oi, mãe. — Então a solta e olha para mim. — Essa aqui é a Luana, minha
namorada.
É tão súbito, tão inesperado, que demoro um segundo a mais do que o
necessário para reagir. Nicolas nos apresenta, e fico olhando para a cara da
mãe dele feito uma idiota, com o queixo caído e uma vontade imensa de me
enterrar viva ali mesmo por uma série de razões. Começando pelo principal.
Minha namorada .
— Oi, querida! — Ela é, felizmente, mais articulada que eu e se inclina
para me dar um beijo. Então dá um passo para trás, como quem admira uma
obra de arte. — Meu Deus, eu amei o seu colete!
— Obrigada. — Sorrio, meio tímida, olhando minhas próprias roupas,
muito mais consciente delas agora do que estava há um minuto. Não estou
nem malvestida, nem arrumada demais, mas minha cabeça já está pensando
se a mãe de Nicolas disse isso só por educação ou se de fato gostou do que
estou vestindo.
— Eu falei, mãe, ela que posta aqueles looks legais no Instagram! — Íris
diz, já sacando o celular.
— Você me segue no Instagram? — pergunto, meio chocada.
— Desde o carnaval! — Íris responde, como se fosse óbvio.
— Bom, a minha irmã você já conhece... — Nicolas interrompe, e tenho
a sensação de que tem mais aí do que eles estão revelando, mas não vou
insistir agora. — Então minha mãe, Cláudia, que eu já apresentei, e essa aqui
é minha tia Cássia, a inconfundível...
Cássia e Cláudia riem. Provavelmente já ouviram essa piada várias vezes.
Elas são iguaizinhas, altas e despojadas, a única diferença sendo a cor dos
cabelos. Cássia usa os dela um tantinho mais longos, em tom de castanho.
— E esse aqui é o Fernando. Pai da Fernanda — Nicolas finaliza,
desviando o olhar de mim de maneira muito estratégica.
Sorrio no automático e cumprimento Fernando. Ele não se parece muito
com ela, mas também parece bem mais velho do que eu esperava, talvez já
beirando os 70. Ele é muito receptivo e simpático, e depois de me
cumprimentar, diz:
— Você e a Nanda se conhecem?
— Ah, sim, eu... — eu odeio sua filha mesmo ela tendo sido
supersimpática comigo, só porque ela é ex do meu atual. — A gente trabalha
na mesma empresa.
— Ah, sim, sim... você é estagiária lá, que nem o Nico?
Olho de canto de olho para Nicolas, que esboça um sorriso, mas parece
desconfortável. Não tem nada de jocoso no tom de Fernando, mas uma
olhada para os presentes já me faz perceber que esse assunto é frequente e
bastante mal resolvido. Pigarreio antes de responder.
— Não, mas eu e ele trabalhamos no mesmo departamento.
— Ela é minha chefe — Nicolas me corrige, sorrindo para mim de um
jeito que me faz ficar vermelha. — E é uma chefe das chatas. Pega no meu
pé o tempo todo.
— Não tenho culpa se você não trabalha direito — digo, e ele ri.
Então, como se percebesse que estamos sendo observados, volta a fechar
a cara.
— E o vovô?
— Tá lá dentro com a Lúcia — Cássia responde. — Vão entrando. Tem
salgadinhos na cozinha!
Sigo Nicolas para dentro, observando a casa, que parece enfeitada para
uma festa infantil, e não para o aniversário de um idoso. Tem balões nas
paredes e uma faixa de “feliz aniversário” do Corinthians. Sentado numa
poltrona, arrumado com camisa, colete e gravata, está o senhorzinho mais
fofo e mais idoso que eu já vi. Suas mãos se mexem num tremelique
incontrolável em seu colo. Ao lado dele, uma moça jovem, de vinte e poucos
anos, com os cabelos escuros trançados às costas, prepara uma agulha num
pequeno kit medidor de glicemia.
— Oi, Lúcia. Oi, vô — Nicolas diz, se abaixando para cumprimentá-lo.
— Feliz aniversário.
— Nico, Nico, obrigado! — O velhinho dá tapinhas nas costas do neto. A
cena é toda tão fofa que tenho vontade de gravá-la. Nicolas não se levanta de
novo. Em vez disso, se ajoelha ao lado da poltrona, ficando na mesma altura
que o avô.
— Vô, não vai me dizer que você já atacou os docinhos.
— Foram dois brigadeiros! — ele se defende, mas Lúcia lança um olhar
chocado na direção dele.
— Foram seis brigadeiros e o senhor sabe que não pode. — Ela se
aproxima dele, mas apesar do tom, quando toma sua mão para medir a
glicemia, o faz com muito cuidado e suavidade. Ele sequer pisca quando a
agulha pica o dedo, e mal se mexe, salvo os tremores da mão.
— E quem é essa moça bonita? — ele diz, e Nicolas sorri para mim, me
convidando a me aproximar.
— Essa é a Luana, vô. Minha namorada.
Estremeço de novo ao ouvir a palavra, mas dessa vez, disfarço bem
melhor. Me inclino e dou um abraço no aniversariante.
— Muito prazer. Feliz aniversário.
— Muito prazer! Sinto muito pelo meu neto, ele puxou ao velho aqui.
— Então o senhor deve ser um cara maravilhoso.
Dessa vez, é Nicolas quem fica vermelho. Eu enrubesço por tabela.
— Quer beber alguma coisa? — ele me pergunta, e faço que sim. Então
deixamos seu avô aos cuidados de Lúcia, seguindo para a cozinha.
Apesar da sala enfeitada, não tem nenhuma arrumação no cômodo
seguinte. Tem salgadinhos dispostos em bandejas sobre a mesa, dividindo
espaço com copos descartáveis e guardanapos de papel. Nicolas me pergunta
o que quero beber, e me arranja uma cerveja da geladeira enquanto ele
mesmo pega só um copo de Coca-Cola. Então se aproxima e passa a mão
pela minha cintura.
— Então... — digo, com o coração a mil e um sorriso brincando na boca
— Namorada, é?
— Pois é — ele diz, e embora não sorria, dá para ver que está lutando
para continuar sério.
— Não recebi o memorando — brinco. Ele me puxa mais para perto, o
nariz roçando minha pele.
— Deve ter ficado perdido na ata da reunião.
— Acho que a gente devia ter outra reunião pra discutir o assunto. Sabe,
só pra ter certeza de que os sócios estão de acordo.
— Claro, a gente...
— Ah, desculpa!
Olhamos para o lado ao mesmo tempo, e me sinto como quando fomos
surpreendidos no banheiro da empresa, pensando “fodeu”, como se alguém
ali pudesse me prejudicar, ou mesmo me julgar por estar abraçada com ele
na cozinha. Mas não é ninguém com esse poder dessa vez. Agora, quem nos
encara é Fernanda.
Ela não parece aborrecida, apenas chocada por nos encontrar ali. Segura
um copo vazio, e cobre o rosto bem maquiado parcialmente com as mãos em
uma expressão de surpresa. Está tão bonita quanto todos os dias no trabalho,
só mais despojada, de jeans, sapatilhas e uma blusa sem estampa com decote
em V. Ela ri quando nos encaramos.
— Desculpa, gente, não sabia que vocês estavam aqui. Só vim pegar um
refrigerante.
— Claro. — Nicolas ri baixinho e o aperto em torno de mim se afrouxa,
mas ele não me solta até que Fernanda se aproxima para nos cumprimentar.
— Oi, Luana. Tudo bem? — ela diz, simpática, mas meio hesitante.
Trocamos um beijo que é mais um encostar de bochechas, e ela se dirige
aos refrigerantes ao mesmo tempo em que Lúcia aparece na porta da
cozinha.
— Nico, me ajuda aqui um segundo? — ela diz.
Nicolas olha de mim para Fernanda muito rapidamente antes de dizer:
— Claro.
Então aperta meu braço e some porta afora.
Não sei o que fazer, então pego uma coxinha para pelo menos ocupar a
boca. Fernanda serve seu copo, então pega um guardanapo para pegar alguns
salgadinhos. Ela deve perceber que estou tentando com afinco não ficar
encarando, ou só se cansou do silêncio desconfortável, porque diz:
— Então, já conheceu todo mundo? A Íris não para de falar de você.
— Quase todo mundo. Acho que só não conheci o pai dele ainda —
respondo, cautelosamente, lutando contra o meu impulso de ser
gratuitamente grosseira. Lembro da cena no metrô, e do quanto ela pareceu
genuinamente ofendida pelo meu comportamento.
— Ah, ele e a minha mãe às vezes vão lá pros fundos fumar, não gostam
que a Íris veja. — Ela dá de ombros, e então gira nos calcanhares para me
encarar. É um olhar sincero, sério. — Espero que isso não seja muito
esquisito pra você, me encontrar aqui.
— É um pouco — confesso com um suspiro —, mas vocês têm uma
história, e ela vai além de vocês dois. Eu posso respeitar isso.
— Que bom.
— Eu não quero ser sua inimiga, Fernanda.
Eu só estou com ciúmes , penso, mas nem preciso completar. Acho que
ela entende.
— Que bom, porque eu também não. Só quero que o Nico seja feliz.
— Pronto. — Nicolas reaparece, vindo na nossa direção pela cozinha. Ele
olha de uma para a outra, parecendo desconfiado. — O que eu perdi?
Fernanda sorri e revira os olhos. Por um segundo, não consigo encontrar
nada nela que eu queira odiar.
— Nada. Só estávamos falando mal de você.
O resto da festa é infinitamente mais fácil do que o começo dela.
Depois de encontrar com Fernanda e erguer a bandeirinha da trégua, é
como se um peso fosse retirado dos meus ombros. Nem mesmo estremeço
quando Nicolas me apresenta ao pai, logo em seguida, e consigo aproveitar o
dia conversando um pouco com todo mundo e ficando grudada a Nicolas
sem culpa.
Contudo, quem realmente cola em mim a festa toda é Íris. Mesmo que só
tenha me visto uma vez, durante o carnaval, acho que me seguir no
Instagram criou nela uma certa sensação de proximidade. Ela me segue pela
casa, puxando assunto sempre que possível, perguntando sobre lugares,
sobre roupas, sobre gostos, e sendo tão específica às vezes que começo a
ficar assustada com as capacidades de investigação de uma adolescente
munida de um celular. Mas no todo, é bastante bonitinho; ela claramente vai
com a minha cara, e é quem mais me mantém participando de conversas ao
longo do dia, muito mais até do que Nicolas.
— Ela não foi com a sua cara — Nicolas me corrige, mais tarde, quando
estamos no carro, indo embora. — Minha irmã está apaixonada por você.
— Que exagero! — Rio, e ele me acompanha.
— Não, tô falando sério. Você viu como ela te acompanhou pela casa?
Acho que você é o novo ídolo da Íris!
— Que bizarro — digo, o riso aos poucos sendo substituído por ares mais
sérios. — Não sou exemplo nem pra mim, imagina pra ela.
— Ah, isso é relativo. A Íris tá numa idade em que precisa se espelhar em
alguma coisa, né? Melhor que seja você.
— Por quê?
— Porque você entende como é ser ela de formas que eu nunca vou
conseguir entender.
Assinto, sabendo exatamente o que ele quer dizer. A jornada de alguém
como eu, ou como Íris — uma mulher gorda que não pede desculpas por ser
quem é — pode ser muito solitária às vezes. A gente se agarra aos nossos
exemplos. Não consigo me enxergar como sendo modelo para ninguém, mas
a gente nunca sabe do que o outro precisa. Se eu puder dar um tiquinho de
esperança para ela, já me dou por satisfeita.
Acabamos decidindo ir para a casa de Nicolas porque ele mora mais
perto e já estamos cansados. Quando entramos no apartamento, tiro os
sapatos, atiro a bolsa num canto e me jogo no sofá. Estou exausta, e são só
sete horas. Mas essa coisa de interagir com a família é tensa. Não sabia que
só uma tarde sendo simpática com pessoas que não conheço podia me causar
tanto cansaço.
— Abre um espacinho aí, vai. — Nicolas se aproxima, dando dois
tapinhas gentis nas minhas pernas.
Encolho as pernas apenas o suficiente para que ele se sente, depois me
estico em cima dele. Nicolas chuta os próprios sapatos para longe, então usa
aquelas malditas mãos maravilhosas para massagear minhas panturrilhas.
Solto um suspiro de alívio, e me ajeito no sofá.
— E aí, o que você achou da minha família? — ele me pergunta.
Penso nisso por um instante. Tive muitos pensamentos enquanto a gente
estava lá, mas não tive tempo de organizá-los de um jeito que fizesse
sentido.
— Eles são legais — digo, por fim. — Bem diferentes da minha família.
— Diferentes como?
— Bom, pra começar é uma família tradicional , sabe? Avô, mãe, pai,
tios. Eu nunca tive nada disso. Foi minha tia quem me criou, e ela é tudo que
eu tenho, tudo que eu conheço.
— Isso parece meio solitário.
Dou de ombros. Foi solitário, sim, por um tempo; quando eu era mais
nova, queria uma família igual à dos meus colegas, e achava que se eu não
tinha uma estrutura igual à de todo mundo era porque eu não merecia. Mas a
vida adulta tem o poder de descomplicar algumas coisas na cabeça da gente.
Hoje, já não me dói tanto.
— Mas é todo mundo muito legal — continuo, e Nicolas abre um
sorrisinho de satisfação. — Sua mãe é toda descolada, né? Não era bem o
que eu imaginava. Ela não tem muito cara de mãe.
— E o que é uma “cara de mãe”? — ele provoca, apertando meus pés.
Rio e chuto ele de brincadeira.
— Sei lá, Nicolas. Cara de mãe.
Ele ri, e me provoca com cosquinhas e apertões nos pés mais um
pouquinho só para me fazer gargalhar, então para. Solta um longo suspiro e
apoia a cabeça no encosto do sofá, parecendo completamente em paz e feliz
consigo mesmo.
— Foi um dia ótimo. Obrigado por ter vindo comigo — ele diz, esticando
a mão para encontrar a minha.
— Obrigada por ter me convidado. — Seguro sua mão entre as minhas,
massageando-a como ele fazia há apenas um minuto com os meus pés e
panturrilhas. Nicolas fecha os olhos e quase ronrona, de tão satisfeito.
— Agora só falta você me apresentar pra sua família — diz.
Não sei se é uma brincadeira ou não, mas somos nós dois, e eu não
consigo resistir a uma oportunidade de alfinetá-lo. Então, muito séria, eu
respondo:
— A gente leva os namorados para conhecerem a família, e até onde eu
sei, a gente não namora.
O efeito é imediato. Nicolas abre os olhos e se vira para mim, parecendo
chocado.
— Você tá falando sério?
É muito difícil segurar o riso, e vejo o flash de compreensão brilhando
nos olhos dele quando vacilo por meio segundo antes de me controlar de
novo. Eu poderia deixar essa passar, mas por que perderia a chance de
provocá-lo? Essa é a melhor parte do nosso relacionamento.
— Lógico. Ou você acha que é só sair falando “minha namorada” e
pronto? — digo, em um tom de falsa indignação.
Nicolas compra a minha imediatamente, e quando rebate, o faz no mesmo
estilo forçadamente exasperado.
— Você quer o quê, Luana? Flores e um pedido formal? Quer que eu me
ajoelhe pra te pedir em namoro?
— Olha, ajoelhar seria um ótimo começo — digo, revirando os olhos.
Eu esperava que ele fosse começar a rir, mas o que Nicolas realmente faz
é jogar minhas pernas para o lado, sair do sofá e se ajoelhar na minha frente.
Fico tão chocada que não consigo nem dar risada. Ele bate as mãos na lateral
do corpo e fala:
— Pronto, estou de joelhos. Namora comigo, Luana?
Levo um bom segundo para processar a informação. Então sorrio. Não
tão fácil.
— Acho que você está usando muita roupa para fazer um pedido desses.
O mínimo que eu mereço é um pouquinho mais de esforço — brinco.
Nicolas ri, torcendo o nariz, como se o fizesse a contragosto. Então tira a
camiseta, em uma lentidão calculada, que faz eu me contorcer em mim
mesma com cada trecho de pele que consigo ver.
— E agora? Namora comigo, Luana?
— Hm-hm. Ainda não. Acho que você precisa se esforçar um pouco
mais.
— Luana... — ele diz, naquele tom de aviso que me arrepia o corpo
inteiro. Sorrio, e estico o pé na direção do seu torço, roçando-o com a ponta
do dedão só para provocar.
Nicolas captura meu pé e o beija. Então, me puxa pelas pernas até que eu
esteja de frente para ele. Ele se inclina sobre mim e desabotoa meu jeans, e
ergo o quadril para ajudá-lo a me livrar da peça. Nicolas passa as mãos
demoradamente pelas minhas coxas, ora com firmeza, ora com dedos leves.
Mordo o lábio, contendo um suspiro.
— Namora comigo, Luana? — pergunta, em uma voz mais baixa, quase
rouca.
— Vai ter que se esforçar mais do que isso.
Ele sorri, claramente curtindo o desafio, e bota a cabeça entre as minhas
pernas. Sinto os dentes de Nicolas mordiscando a parte interna das minhas
coxas, e seu nariz se esfregando dolorosamente contra a minha calcinha.
Como estou levando esse jogo até o final, é impossível dizer. Se ele não me
chupar imediatamente, talvez eu morra. Isso é pior do que tortura.
— Namora comigo, Luana?
— Ainda... não...
Suas mãos percorrem demoradamente os contornos do meu quadril, até
puxar lentamente minha calcinha. É criminoso demorar tanto assim para
satisfazer alguém. Nicolas joga a peça longe, e afasta minhas pernas um
pouco mais. Deslizo mais para frente no sofá, para facilitar a vida dele, mas,
longe de me dar exatamente o que eu quero, ele decide me atiçar ainda mais.
Com a ponta do indicador, roça a parte externa dos lábios, indo mais e mais
para dentro, até inserir cuidadosamente um dedo. Gemo alto, uma súplica,
quando ele se movimenta dentro de mim.
— E agora? Ainda preciso me esforçar mais? — ele provoca.
Minha resposta é uma série de urros e gemidos desconexos, que só
pioram quando ele se inclina e finalmente me dá o que eu quero. Me seguro
ao sofá e aos seus cabelos, cada suspiro mais alto que o anterior, me
perguntando que idioma é esse que a língua de Nicolas fala com o meu
corpo que é capaz de produzir esses ruídos em mim.
Perco o ar e a noção do tempo — pode ter passado só um segundo ou
uma hora inteira quando gozo, minhas pernas estremecendo ao redor dele,
todo o cansaço me deixando. Em vez de exausta, estou acesa e sedenta por
mais. Nicolas abraça minhas pernas e descansa o rosto contra as minhas
coxas.
— E aí? Vai namorar comigo ou não? — pergunta, e desato a rir.
— É claro que sim. Sim, pelo amor de Deus, sim!
— Ótimo! — Ele ri também, e tenta se erguer. Quando o faz, é com uma
careta de dor nas costas. — Agora, será que a gente pode ir pra cama? Não
tenho mais coluna pra isso.
— Vamos. Eu te faço uma massagem — digo, mas não me mexo de
imediato. Minhas pernas ainda estão moles.
— Espero que seja uma massagem tântrica — Nicolas brinca, e me dá a
mão para me ajudar a levantar. Aceito, e, uma vez de pé, o abraço
rapidamente para um beijo.
— Você é meu namorado. Você merece.
V oltar ao trabalho na segunda-feira é tipo sonhar a noite inteira que
você era milionária e estava transando com o Ryan Reynolds em uma praia
paradisíaca, para acordar e descobrir que você é pobre, não tira férias há
séculos, não sabe mais o que é praia e é casada com um homem hétero sem
noções de higiene básica.
Por sorte, acordo ao lado de Nicolas, então só 3 dessas coisas são
verdade.
Nicolas precisa ir até o polo da faculdade resolver umas pendências,
então só vai entrar no trabalho mais tarde. Como vamos em direções opostas,
eu pego o metrô enquanto ele segue de carro até lá. Quanto mais me
aproximo do escritório, mais a sensação de estar acordando no mundo
invertido aumenta. Não acredito que até ontem eu estava feliz, vendo filme,
conversando e comendo besteira com o meu novo namorado, e agora estou
indo trabalhar. Mais do que isso, não acredito que preciso ir até lá e dar de
cara com Oscar.
Parece que uma vida inteira já se passou desde que ele roubou
descaradamente a minha ideia e a apresentou como sendo sua na quinta. O
timing parece quase irônico, agora que paro para pensar. Tive o fim de
semana todo para pensar nisso, para decidir o que falar para ele, mas, salvo
minha discussão com Nicolas na sexta à noite, não dediquei um só segundo a
isso. Fiquei distraída na minha bolha de amor com ele, e foi fácil fingir que
nada mais existia.
Mas a vida sempre dá um jeito de nos lembrar do quanto estamos
fodidos. Então, cá estou eu, fodida, entrando na empresa, apertando o botão
do elevador e tremendo dos pés à cabeça enquanto me pergunto quanto
tempo será que tenho de vantagem antes de Oscar chegar.
A resposta, é claro, é zero . No momento em que eu saio do elevador e
boto os pés no escritório, ainda bastante vazio por causa do horário, dou de
cara com Oscar na porta da sala dele, como se estivesse me esperando. Não
duvido nada de que estivesse.
— Luana! Ainda bem que chegou. Podemos? — ele diz, tão polido que
sequer parece Oscar, me convidando a entrar.
Fico um bom minuto parada, congelando, e olho em volta. Suze ainda
não chegou, e Nicolas não vem, então talvez eu esteja segura. Engulo em
seco, então o sigo para dentro da sala.
— Gostei da saia, Luana. Que tecido é esse? — ele pergunta, enquanto se
senta e aponta para a cadeira livre para que eu me sente também.
— Jeans. — Franzo a testa, ainda de pé. Agarro a alça da minha bolsa só
para ter algo para ocupar as mãos.
— Certo. Tem... caimento. — Oscar pigarreia, e então, parecendo mais
ele mesmo, diz: — E aí, pensou na minha proposta?
— Eu não... tive tempo — respondo, devagar. Ele balança a cabeça como
se fosse um pai muito decepcionado.
— Luana, Luana, nós não temos o ano todo. Essa semana vou ter uma
reunião com os diretores, e quero ter algo pra falar quando discutirmos a
minha promoção. Se vou falar seu nome ou não, só depende de você.
Emudeço, completamente enojada. Essa arrogância masculina, essa
certeza do mundo. Quem é que sequer garante que vão falar alguma coisa
sobre promoção? Quem é que, em sã consciência, promoveria alguém
babaca como esse cara?
— Mas, até lá, muita coisa pode acontecer — ele continua, se recostando
na cadeira. — Por exemplo, seu namoradinho vai matar meio dia de trabalho
pela... quarta vez nos últimos 30 dias? Talvez até mais. Junte isso às
denúncias de comportamento impróprio entre vocês dois dentro da empresa,
e já tenho justificativa mais do que o suficiente para contratar um estagiário
novo.
Não respondo. Me odeio por não responder, mas não sei o que fazer. Não
sei como reagir. E ele sabe, então se alimenta do meu medo.
— Pense bem, Luana. Eu não acho que meia dúzia de slides num power
point mixuruca valham mais do que três carreiras, você acha?
— Não — murmuro. Ele sorri.
— Ótimo. Você tem até quinta-feira para me comunicar sua decisão final.
Oscar abana a mão, e sei que estou dispensada, então dou meia volta e
saio. Boto minha bolsa na minha mesa, sentindo as lágrimas me travando a
garganta, e percebo que vou começar a chorar a qualquer instante. Então
seguro firme, e, a passos rápidos, vou me esconder na copa.
Acendo a luz quando entro, mas pelo cheiro de café, alguém já tratou de
estrear a copa muito antes de mim. Sento e pego um copinho de plástico, que
encho e esvazio duas vezes antes de me ligar que cafeína é provavelmente
minha maior inimiga no meu estado atual. Não importa. Foco no calor do
café, me agarrando ao copinho como se ele fosse meu melhor amigo, e
respiro fundo várias vezes.
Estou tentando não ter uma crise de choro no trabalho, porque não apenas
seria ridículo, como só pioraria minha situação, quando, de repente, a porta
se abre de novo.
E, para a minha surpresa, é Fernanda quem entra.
Ela está sorrindo, com o telefone na mão, e só nota que estou ali quando
tira os olhos da tela ao quase tropeçar em mim no ambiente pequeno da
copa. Então, ainda sorrindo, estende a mão para afagar meu braço e diz:
— Bom dia, Luana!
E eu não sei por quê, mas é o bom dia dela que me quebra no meio. Num
instante, estou prestes a pegar o terceiro copo de café em dez minutos; no
outro, estou cobrindo o rosto com as mãos e soluçando bem na frente dela.
Não sei se pego Fernanda desprevenida, mas ela parece ser o tipo de
pessoa que sabe lidar com qualquer situação, e age comigo como se todos os
dias visse colegas de trabalho chorando enquanto tomam café. Ela pega
guardanapos para que eu use como lenço e diz “calma” e “vai ficar tudo
bem” várias vezes enquanto afaga meus ombros. Quando outras pessoas
tentam acessar a copa, ela faz o inimaginável e tranca a porta.
Demoro vários minutos para parar de chorar. Nesse meio tempo, ela
arranja um copo d’água e o adoça com açúcar, me oferecendo para tomar.
Sempre achei que esse negócio de água com açúcar como calmante fosse
uma bobagem tremenda, mas seja pelo efeito placebo, seja porque é
realmente eficaz, acaba funcionando. Paro de chorar e fungo várias vezes,
aceitando mais guardanapos para assoar o nariz.
— Você tá melhor? — ela pergunta, parecendo genuinamente
preocupada.
— Tô. Acho. — Fungo de novo. — Mas minha cara deve estar horrível.
— Só um pouco de rímel escorrido. Vamos até o banheiro dar um jeito
nisso.
Com calma e delicadeza, Fernanda me tira da copa e me conduz até o
banheiro feminino. Ando o tempo todo de cabeça baixa, cobrindo o rosto
como uma criminosa, e quase começo a chorar de novo de tão aliviada que
fico quando entramos no banheiro e ele está vazio.
O que Fernanda descreveu como “um pouco de rímel” é, na verdade, uma
situação calamitosa. Estou inchada, e minha maquiagem inteira se desfez.
Tento corrigir como posso com papel e água, mas qualquer um que olhar
para mim vai saber que eu estive chorando. Com sorte, consigo pegar minha
bolsinha de maquiagem e me ajeitar sem que ninguém — especialmente
Suze — perceba.
Fernanda me lança olhares preocupados pelo espelho, então resolvo
puxar assunto só para desviar a atenção.
— O que você tava fazendo aqui embaixo?
— O café daqui é melhor — ela explica. — O cara que faz o café na copa
do nosso andar faz uma água suja que nem dá pra beber. Aí às vezes eu corro
aqui pra pegar um pouco.
— Entendi.
Ficamos um instante caladas, enquanto tento dar um jeito na minha cara,
e então ela toma fôlego e diz:
— Você quer conversar?
Me viro para ela, e demoro um segundo para me decidir. A resposta
esperada muito provavelmente seria não . Mas não posso conversar com
Suze, nem com Nicolas, e definitivamente preciso falar com alguém . Não
consigo acreditar no que estou fazendo, mas finalmente digo:
— Meu chefe tá me chantageando.
E passo os minutos seguintes contando a história completa para ela.
Fernanda ouve com atenção e choque enquanto falo, me interrompendo
só para soltar algumas exclamações exasperadas. Paro algumas vezes
quando outras funcionárias entram para usar o banheiro, e sigo falando
baixo, morta de medo de que nos escutem.
Quando termino, ela está com as costas apoiadas na pia e a mão sobre o
rosto, completamente embasbacada. Ambas estamos atrasadas para o
expediente, mas não me mexo, e Fernanda também não. Se alguém me
perguntasse há um mês se eu teria coragem de contar meu segredo mais sujo
para ela, a ex do meu atual, a quem eu detestei à primeira vista, eu diria que
era impossível. Mas agora, sinto um alívio enorme por ter contado a alguém,
mesmo que seja ela. Além do mais, mais do que nunca, sei que a julguei
mal. Fernanda nem tinha por que ter me escutado, mas o fez mesmo assim.
— Luana, isso é muito grave — ela diz, por fim. — Você precisa contar
para o Nico.
— Se eu contar pra ele, ele vai chegar no Oscar botando banca, vamos
todos ser demitidos e nenhum de nós vai conseguir outro emprego na vida.
— E você vai fazer o quê? Deixar que esse cara te chantageie e controle a
sua carreira, o seu futuro? O seu e o deles?
É um tapa bem dado, que eu merecia receber. Quase rio imaginando que
Suze faria coro se pudesse ouvi-la. Fernanda balança a cabeça, indignada.
— Não, a gente tem que dar um jeito nisso.
— Fernanda, não, relaxa — eu a interrompo, logo de cara. — Você nem
tem nada a ver com isso. Pode deixar que eu vou resolver.
— Não me leve a mal, Luana, mas você não parece muito disposta a
resolver. E nem tem que resolver nada disso sozinha.
A porta do banheiro se abre e mais uma funcionária entra, nos lança um
olhar desconfiado, e então se tranca em um box. Eu e Fernanda trocamos um
olhar, e ela suspira.
— Eu sei que a gente não se conhece muito bem, e longe de mim querer
decidir por você o que fazer. Mas se você aceita um conselho de alguém que
tá vendo essa confusão de fora...
— Por favor! — digo, e ela sorri.
— Conta pro Nico, e pra sua amiga. E não deixa isso barato. Vai atrás dos
seus direitos. Eu posso ajudar também, se você quiser.
— Eu não sei como — confesso, mordendo o lábio. — Tenho medo de
eles me odiarem por não ter falado nada.
Ela balança a cabeça e cruza os braços.
— Não sei sobre a sua amiga, mas o Nicolas é o cara mais bacana do
universo, e tá na cara que ele é doido por você. Ele não vai te julgar, não se
você escolher ser sincera.
Finalmente, Fernanda olha o relógio no celular e se espanta com a hora.
— Eu preciso ir. Mas, sério — ela põe a mão no meu braço e aperta de
leve antes de me soltar de novo —, posso ajudar no que você precisar. Eu
não sou advogada, mas já vi o suficiente de assédio e machismo em
ambiente de trabalho pra saber uma coisa ou outra. Não é fácil ser mulher no
mundo, e menos ainda no mundo corporativo. A gente precisa se ajudar.
Conta comigo, tá bom?
— Tudo bem — digo, surpresa e um tanto emocionada.
— Até mais tarde — diz, e se vai.
Me viro de novo para o espelho e encaro meu reflexo. Minha maquiagem
está um pouco menos destruída e meu rosto, um tanto menos inchado. Mas
não é o lado de fora que mudou. É por dentro que me sinto diferente.
Fernanda está certa. Não posso deixar que um homem — pior ainda, que
Oscar — decida meu futuro. Não posso nem vou permitir que ele controle
minha carreira.
Se esse barco afundar, então vou levá-lo comigo. Custe o que custar.
Q uando eu enfio uma coisa na cabeça, não tem Cristo que tire ela de lá,
então é claro que, no momento em que me recupero o suficiente para ir
trabalhar, quero resolver as coisas imediatamente . A ideia de deixar para depois
estava me matando, especialmente quando atravessei as baias em direção à
minha mesa, propositalmente ignorando Suze só para encontrar várias
mensagens dela no meu celular.
“Onde você está, doida? Suas coisas estão aqui e você não?”
“Amiga, tô preocupada, cadê você?”
“Alguém comentou que te viu chorando no banheiro.”
“Luana, pelo amor de Deus, que cara é essa que você entrou aqui, o que
aconteceu?”
Olho por cima do ombro, e vejo Oscar ao telefone, mas me encarando com
olhos de falcão. Sustento o olhar na base do ódio, então respondo rapidamente
para Suze:
“É uma longa história. A gente conversa na hora do almoço.”
Viro para o outro lado da sala, onde o alívio de Suze ao encarar a tela do
celular é visível. Logo, meu telefone vibra em resposta.
“Beleza.”
Agora, é só esperar.

Não sei como consigo trabalhar naquela manhã — a bem da verdade, a


resposta é que não trabalho muito. Faço algumas coisas no piloto automático,
mas não rendo quase nada. Em um dia normal, isso significaria já calcular as
horas extras para dar conta de tudo, em pânico com a bronca de Oscar. Agora,
não poderia estar menos preocupada. Tudo o que eu quero é foder com a vida
desse cara, mesmo que custe meu emprego e, potencialmente, minha carreira.
Quando finalmente chega a hora do almoço, eu e Suze nos encaramos antes
de levantarmos ao mesmo tempo. Não dizemos nada uma para a outra no
percurso até o elevador, nem enquanto descemos, com ele cheio de gente. É só
quando chegamos do lado de fora do prédio que minha amiga me agarra e diz:
— Cacete, Luana, que susto que você me deu!
Eu a abraço de volta, e ficamos assim por um longo minuto. Quando ela me
solta, parece que já tirei um peso das minhas costas mesmo sem sequer ter
contado algo para ela.
— O que você quer comer? Vamos naquele mexicano da outra esquina? —
ela propõe, naquele tom de irmã mais velha que sempre me deixa aliviada.
— Seria ótimo, mas meu VR já acabou.
— Queria ser a amiga que fala “eu pago”, mas o meu VR tá nas últimas
também — brinca, e compartilhamos a risada desesperada das trabalhadoras
cansadas. — Sujinho, então?
— Sujinho.
Andamos caladas até o restaurante, e não é até termos disputado espaço com
uma fila de gente e pedido nossos pratos executivos que finalmente Suze me
fala:
— Anda, desembucha.
E chega a hora da verdade.
Nem sei por onde começar, então encaro meu prato em silêncio por alguns
instantes, pensando na melhor forma de dizer. Acho que não existe uma. Essa
história tem tantas camadas de merda que simplesmente não tem uma forma de
melhorar nenhum lado dela para amenizar na hora de falar. Então, escolho ser
brutalmente sincera.
— O Oscar está me ameaçando. Ameaçando a gente, na verdade.
Suze me encara de queixo caído por um minuto inteiro, antes de bater na
mesa e praticamente gritar:
— Puta que pariu, eu tinha certeza! Eu falei pro Nicolas, eu falei!
— Você o quê? — pergunto, em choque. — Vocês falaram sobre isso?
— Claro que a gente falou sobre isso, Luana! Você tá toda esquisita desde a
reunião!
Faz sentido, mas, ainda assim, fico chocada com a informação. Não é como
se Suze e Nicolas existissem só quando estão comigo, mas sou, de certa forma,
uma conexão entre eles. Tem algo de muito estranho em pensar nos dois
conversando sem mim, e sobre mim, mas é, ao mesmo tempo, muito fofo. Ele é
meu namorado, e ela, minha melhor amiga. Quero que os dois se deem bem.
— Eu falei pro Nicolas que eu tinha certeza que tinha rolado alguma coisa
depois da reunião, algo que você não queria contar pra gente — ela continua, e
dá uma garfada, mastigando rapidamente antes de perguntar: — O que
exatamente ele te falou?
— Bom, basicamente que ele vai destruir a nossa carreira se eu ou vocês
falarmos que ele roubou a nossa ideia — digo, e a cada palavra, é como se eu
desfizesse um nó no meu peito. — Ele quer ser promovido, e vai usar a
campanha pra isso. Se a gente não disser nada, ele vai beneficiar nós três com
uma promoção e um aumento. Mas se a gente abrir a boca...
Suze dá outra garfada e mastiga, me encarando com um ar exasperado.
— Você acredita mesmo que ele cumpriria a parte dele no trato? — diz,
ainda de boca cheia.
— Não — falo —, mas tenho certeza de que ele acabaria com a nossa raça
se eu me negasse a fazer o que ele quer.
— Então você não respondeu nada pra ele ainda?
— Não. Entrei em pânico e não sabia o que fazer. Primeiro, achei que fosse
mais fácil só deixar ele levar os créditos, mas depois...
— Depois você tomou um chá de semancol? — ela brinca, e solto uma
risadinha.
— Não. Na verdade, foi a Fernanda quem me abriu os olhos.
Suze ergue as sobrancelhas, surpresa.
— Fernanda, Fernanda ? A Fernanda ex do Nicolas?
Suspiro, e provo minha comida pela primeira vez. Está fria, como
provavelmente estava quando chegou ao prato, já que o sujinho preza pelo
preço e não pela qualidade, mas está comível. Tem gosto de alívio.
— Ela mesma. Ela me fez perceber que tem uma coisa que é mais
importante do que ser promovida — digo, e Suze franze o cenho.
— E o que é?
— Foder com a vida de homem escroto.
Suze gargalha e, como não pedimos nada para beber, ergue o garfo em um
brinde imaginário. Batemos nossos talheres, e rio com ela até que, aos poucos
vamos nos acalmando. Conto a história completa, tudo que Oscar me falou, e
toda a minha conversa com Fernanda no banheiro. Minha amiga vai de enojada
a impressionada, e quando termino, já estamos nos levantando para voltar ao
trabalho, já no fim do nosso horário de almoço.
— Mas então... o que a gente vai fazer? — Suze me pergunta, enquanto
andamos de volta para o prédio. — Porque eu me recuso a deixar como está.
— Não, isso tá fora de questão — concordo —, mas ainda não sei. Preciso
contar pro Nicolas. Acho que ele vai ficar puto.
— Talvez ele fique um pouco puto, mas é só porque ele fica puto com tudo.
Que signo você disse que ele é mesmo?
— Eu não faço a menor ideia.
— Deve ser Áries. Ou Capricórnio. Capricorniano é sempre mal-humorado.
Entramos no prédio e passamos nossos crachás. Enquanto esperamos o
elevador, Suze se vira para mim.
— Obrigada por confiar em mim, amiga. Mesmo.
— Você é a única amiga que eu fiz em todos esses anos de empresa! É claro
que eu confio em você! — digo, e Suze dá de ombros.
— Mesmo assim. Eu imagino como deve ter sido difícil pra você tomar essa
decisão. Eu sei como é tenso ser mulher e tentar crescer profissionalmente no
meio de um monte de cara babaca.
Torço o nariz para segurar o choro. Já me basta a torneira aberta mais cedo
na copa; não preciso de outra crise bem no meio do hall de entrada.
— Mas ele não é tão onipresente nem tão poderoso assim. E mesmo se for,
se a gente não tomar uma atitude, ele vai continuar assediando e oprimindo
outras mulheres pra sempre, e isso simplesmente não tá certo . Alguém tem que
fazer alguma coisa, então melhor que seja a gente, e melhor que seja logo.
Sorrio, mais confiante por ter ela ao meu lado, e entramos no elevador.
Quando subimos e desembarcamos no nosso andar, Suze lança uma piscadela
para mim antes de irmos cada uma para a sua mesa. Oscar não está na sala dele,
mas também não fico olhando toda hora para saber se está me vigiando.
Estou mais segura por não caminhar mais sozinha.
“T á tudo bem? Você tá com uma cara esquisita.”
Recebo a mensagem de Nicolas tão logo ele inicia o expediente, depois
da hora do almoço. Mesmo sentados na frente um do outro, mal trocamos
um sorriso e um “bom dia” desde a hora que ele chegou.
Tá tudo ok. Você pode ir lá pra casa hoje? A gente precisa conversar ,
digito de volta.
Ergo os olhos e vejo os ombros dele se tensionando. “A gente precisa
conversar” é provavelmente a pior coisa que um ser humano pode dizer para
o outro, mas não quero adiantar o assunto aqui e agora, ou Nicolas vai
acabar dando uma de machão e indo até a sala de Oscar tirar satisfações com
ele. Todo cuidado é pouco.
“Posso. Mas não tenho roupa pra dormir.”
“Tudo bem. Qualquer coisa você usa uma minha.”
Vejo-o segurar o riso, e então guardar o telefone. Quando Nicolas ergue
os olhos para mim, é um olhar de pura cumplicidade e confiança que enche
meu peito de alegria.
O resto do dia passa devagar. Troco algumas palavras com ele para falar
sobre trabalho, e ele mantém aquela carranca mal-humorada e profissional
que sempre usa e que, não há muito tempo, eu confundia com um mau
humor de verdade. Faço o que tenho que fazer, mas, sinceramente, não me
esforço demais. Estou de saco cheio de sempre fazer meu melhor para que
um cara meia-boca como o Oscar leve todos os créditos. Por mim, já chega.
Quando acaba o expediente, sou a primeira a bater o ponto digital e
recolher minhas coisas. De lá da sala dele, Oscar grita:
— OH, LUANA, AINDA FALTOU PEÇA PRA ME ENTREGAR.
Paro onde estou, segurando a bolsa e pensando em umas duzentas coisas
mal-educadas que posso dizer, a começar por “você é um ladrão filho da
puta”. Mas não comi quieta até agora para estragar tudo com um escândalo
desnecessário. Então simplesmente digo:
— Bota na conta.
Pego minhas coisas e vou embora.
Encontro Suze e Nicolas no hall dos elevadores, e a mão de Nicolas
esbarra propositalmente na minha. Ele a segura firmemente quando entramos
no elevador lotado, e não solta mesmo quando saímos e atravessamos as
catracas da empresa. Suze se despede da gente, e vamos buscar o carro dele
na garagem.
— E aí, sobre o que você quer conversar? — ele pergunta, em um tom
casual, enquanto andamos até onde ele estacionou.
— Eu prefiro esperar a gente chegar em casa — digo. Nicolas ergue as
sobrancelhas e solta minha mão quando chegamos ao carro. Ele abre as
portas, entra e espera até que eu tenha entrado também para dizer:
— Você não vai terminar comigo, vai? Seria o namoro mais curto do
mundo.
Eu o encaro, surpresa com a pergunta. Pelo tom, é impossível saber se ele
está brincando ou não, mas acho fofo de qualquer maneira. Como somos
nós, é claro que não posso simplesmente responder e deixar passar.
— Claro que eu vou terminar com você. Mas queria uma carona
primeiro.
Ele solta uma gargalhada curta, e dá dois tapinhas na minha coxa.
— Se você acha que essa carona vai sair de graça, tá muito enganada.
Nicolas dá a partida e sai lentamente da garagem. No caminho até a
minha casa, discutimos o que vamos comer, e, como estamos ambos sem
grana e o salário ainda não caiu, decidimos que a lasanha congelada que
sempre deixo no freezer para emergências vai ter que bastar. Nenhum de nós
fala sobre o elefante na sala, mas dá para notar que existe uma tensão
vigente. Nicolas está falante demais e eu estou monossilábica, e estamos
tentando compensar os excessos um do outro na conversa. É um alívio
quando finalmente chegamos ao meu prédio.
O elevador está vazio quando entramos, e Nicolas me prensa contra um
dos cantos, dando um beijo tentador na minha boca. Mas não tem intenção
nem clima para nada, e quando as portas se abrem no meu andar, já nos
soltamos. Ele solta uma risadinha baixa enquanto andamos até a porta.
— O que foi? — pergunto.
— Lembra quando a gente veio pra cá pela primeira vez? Os pegas no
elevador? — ele diz, e assinto. — A gente mal começou a namorar e a magia
já acabou.
— Não é isso que acontece quando as pessoas namoram? Elas param de
transar e passam a só brigar 24 horas por dia?
— Acho que sim, né? Estamos no caminho certo.
Abro a porta e vou entrando, deixando para ele a missão de trancá-la
atrás de mim. Tiro os sapatos, atiro a bolsa em uma cadeira, e já me adianto
em tirar a lasanha do freezer e colocá-la no micro-ondas. Só então eu e
Nicolas nos sentamos no sofá, eu com as pernas sobre as dele, e ele com o
torso virado meio torto para poder olhar para mim.
— E aí, o que aconteceu?
Solto um longo suspiro antes de responder. Parece que já faz vinte anos
que estou vivendo esse dia, esses problemas. Não sei nem por onde começar.
— Pelo que a Suze me disse, acho que você até já desconfia — digo.
A expressão de Nicolas muda, do suave para a carranca com o maxilar
travado. Isso vai ser difícil.
— O Oscar tá me chantageando pra ficar com o nosso material — falo,
rápido como se arrancasse um curativo. — Se a gente não colaborar, ele vai
demitir nós três e garantir que a gente nunca mais seja recontratado.
Ele me encara por um instante sem nenhuma mudança na expressão.
Então, cuidadosamente, fala:
— Por favor, me diz que você mandou esse cara se foder.
— Não — respondo, e Nicolas fecha os olhos em um misto de decepção
e raiva. — Não respondi nada pra ele ainda, na verdade. Falei que “ia
pensar”.
Ele balança a cabeça, puto da vida, mas se mantém surpreendentemente
calmo quando fala.
— Luana, não tem o que pensar. Isso é crime, além de tudo. Você tem
que denunciar ele pro RH. Tem que queimar o filme desse filho da puta.
— Nicolas, ele sabe sobre a gente. Ele sabe sobre todas as vezes que a
gente se pegou dentro da empresa — digo, recolhendo minhas pernas e me
ajeitando até ficar de frente para ele. — É a palavra do meu supervisor
contra a minha, e pior: de um homem contra a de uma mulher. Em quem
você acha que vão acreditar, ainda mais se ele tiver provas contra o meu
caráter?
— Ter dado uns beijos no estagiário no banheiro durante a festa da
empresa não é prova nenhuma sobre nada!
— Talvez não pra você. Mas eu sou mulher. Não tenho autorização pra
errar.
Nicolas não responde. Em vez disso, solta um suspiro pesado e corre as
mãos pelo rosto. Aproveito a pausa para falar exatamente tudo que Oscar me
disse desde o dia da reunião e sobre minha conversa com Fernanda essa
manhã no banheiro, e continuo mesmo quando o micro-ondas apita e Nicolas
vai buscar nosso jantar. Quando acabo, já estamos na mesa de jantar,
mordiscando a lasanha sem realmente comê-la, e Nicolas está descabelado
de tantas vezes que já passou as mãos pelo cabelo enquanto eu falava.
— Desculpa não ter te contado antes — digo, por fim. — Eu sei que te
envolve também, mas eu pensei... sei lá o que eu pensei. Pensei que tava
fazendo o melhor.
— Olha, eu não gosto do fato de você ter escondido isso de mim, mesmo
que por pouco tempo — Nicolas declara. Então me encara, e seu olhar se
suaviza. Ele alcança minha mão sobre a mesa e aperta meus dedos nos dele.
— Mas você contou agora. E a gente vai resolver isso juntos.
Sorrimos um para o outro, e sinto o mesmo alívio que senti quando
finalmente contei para Suze o que estava acontecendo. Mentir é uma coisa
horrorosa. Parece que a gente carrega o mundo nas costas sem necessidade.
Nunca mais quero passar por isso.
— Sabe o que é o mais irônico? — Nicolas diz, então, e reviro os olhos
porque sei exatamente o que ele vai dizer.
— Que foi a Fernanda quem me abriu os olhos?
Ele assente e ri baixinho, e não resisto em acompanhá-lo.
— Ela é legal — admito, e Nicolas concorda.
— É mesmo. Fico feliz que vocês não se odeiem.
— Eu também. Dá muito trabalho odiar as pessoas.
Comemos em silêncio até os dois estarem de pratos vazios, mas ninguém
se mexe para levá-los até a cozinha. Nicolas se recosta contra a cadeira, eu
me apoio com os cotovelos sobre a mesa, e passamos uns bons minutos
assim, cada um com os seus pensamentos.
— O que a gente vai fazer? — pergunto, então, porque é isso que não me
sai da cabeça. Fui de 0 a 100 em menos de um dia, e em nenhum momento
parei pra pensar de fato no que poderia fazer a respeito. Só sabia que
precisava contar para Nicolas e Suze. O depois vinha... depois.
Mas agora que a verdade está escancarada, eu preciso decidir o que fazer.
O relógio está correndo. Oscar não vai esperar por muito tempo.
— Bom, tem uma parcela minha que quer muito entrar lá amanhã e
quebrar a cara dele... — Nicolas começa, e reviro os olhos mais uma vez.
— Isso vai ajudar muito — interrompo, mas ele finge não me ouvir.
— ...mas acho que o que a gente precisa agora é de provas. Provas contra
ele.
— E como a gente vai conseguir isso?
— Não sei. — Ele hesita e solta um bocejo. — Acho que a gente devia se
reunir. Eu, você, a Suze e a Fernanda. Se juntar todas as cabeças,
conseguimos pensar melhor do que sozinhos.
— É uma ideia. Mas precisa ser logo. O Oscar já tá no meu pescoço, não
acho que ele vai me deixar pensando na proposta dele pra sempre.
— Amanhã, então. Vou falar com a Nanda. — Ele saca o celular e então
pega o meu sobre a mesa e me entrega. — Fala com a Suze. Vamos
aproveitar a hora do almoço.
Assinto, e digito uma mensagem para Suze enquanto ele faz o mesmo
com Fernanda. Minha amiga não visualiza, mas sei que vai me responder
antes de dormir, então deixo o celular de lado. Nicolas põe o dele sobre a
mesa também e então se inclina para mim, segurando minhas mãos.
— Vai dar certo. Não sei como ainda, mas vai dar certo — ele garante.
Tento sorrir, mas não sai mais do que uma careta duvidosa.
— Eu espero que sim, porque eu gostaria muito de não ficar
desempregada ou de ter que mudar de carreira.
— Não vai! Não vamos! — Ele me puxa para um abraço e beija meu
pescoço. — Você é muito melhor no que faz do que ele. A gente vai achar
uma solução, eu te prometo.
— Você não pode prometer uma coisa dessas! Não tem como cumprir! —
digo, meio esganiçada. Nicolas me solta e beija suavemente minhas
bochechas, minha testa, a ponta do meu nariz, e, finalmente, minha boca.
— Você ficaria surpresa com as promessas absurdas que eu faria de tudo
pra cumprir só pra te ver feliz, Luana. A gente vai dar um jeito. Confia em
mim.
Sorrio e, só por essa noite, escolho confiar.
N icolas vai para casa tarde, apesar dos meus protestos, porque não tem
uma única peça de roupa limpa para usar no trabalho no dia seguinte. Vou
dormir me sentindo cansada e acordo me sentindo podre. Assim que pego o
celular, me deparo com três mensagens. A primeira é de Suze confirmando
nosso almoço para formular o plano contra Oscar. A segunda é de Nicolas,
confirmando a presença de Fernanda também. A terceira é de tia Marli.
Ela quase nunca dá as caras virtualmente. Tia Marli é daquele tipo de pessoa
que usa a internet e os aplicativos de redes sociais apenas quando está viajando,
e quer postar trocentas fotos dela e de Horta na praia, ou em época de eleição,
quando ela enche o saco de todo mundo com memes, correntes informativas
sobre partidos de esquerda ou uma variação das duas coisas. De resto, é difícil
que ela realmente pegue o celular para alguma coisa, então fico até surpresa
quando vejo uma notificação com o nome dela.
Abro a mensagem dela por último, e logo percebo que não deveria ter ficado
preocupada. Ela me mandou uma figurinha de dois cachorros cruzando no meio
de uma enchente, com a legenda “para o amor, não tem tempo ruim”, seguido
da mensagem: kkkk lembrei de você, pivete.
Dou uma risadinha que se transforma numa gargalhada incontrolável,
daquelas de doer a barriga. Faz tempo que não rio assim, e, sinceramente, nem
sei direito se sei por que estou rindo tanto — a imagem sequer é tão engraçada
assim. Mas rio e rio, e quando levanto da cama e vou para o banho, ainda estou
rindo, e só paro de rir quando finalmente respondo para ela:
“Bom, acertou em cheio, porque eu tô exatamente igual a esses cachorros aí,
aproveitando o que dá enquanto o resto do mundo desmorona.”
Milagrosamente, ela responde quase na hora, e visualizo quando saio do
banho:
“Puta que pariu, como você é dramática, menina!
Isso quer dizer que você abriu as pernas pro Nicolau?”
Volto a rir, mais controladamente dessa vez. Eu devia fazer isso mais vezes,
trocar mensagens com tia Marli. Minha vida certamente seria mais leve se eu
fizesse isso com frequência.
É, abri sim, respondo. Ela visualiza na hora. Fico imaginando minha tia
passando um café e esperando minhas mensagens chegarem, e então
comemorando com um grito que acorda a vizinhança inteira.
Sabia que você podia ser inteligente de vez em quando! , responde.
Vai se foder , digito, e ela retruca mandando a mesma figurinha de novo.
Desisto e bloqueio o celular.

Oscar faz uma aparição rápida no escritório aquela manhã, mas não fica nem
meia hora. Pelo que ouço, parece que ele tem uma reunião que vai durar o dia
todo. Não consigo decidir se isso é algo a ser celebrado ou temido, então
escolho não pensar em nada disso e me dedico a trabalhar e manter minhas
paranoias mais ou menos no lugar.
Parece que vivo uns cem anos até a hora do almoço. Quando enfim podemos
sair, Oscar ainda não voltou, e saio com Nicolas e Suze sem me preocupar em
estar sendo vigiada. Descemos juntos até o térreo, onde esperamos por
Fernanda, que se atrasa alguns minutos e chega pedindo mil desculpas. Como
estamos todos duros, voltamos ao mesmo sujinho onde eu e Suze fomos ontem.
Cada um pede sua marmita — até Fernanda, que, por um instante, acho que
parece sofisticada demais para um lugar tão simples, mas não tece nenhum
comentário a respeito — e então, é hora de colocar as cartas na mesa.
— Bom, então, a gente precisa decidir o que fazer com relação ao Oscar —
digo.
Os três me olham. Suze respira fundo e toma a dianteira.
— Amiga, acho que na verdade é você quem precisa decidir. É você quem
ele está ameaçando.
Assinto devagar, e olho para cada um deles. Formamos um time estranho,
inesperado: minha melhor amiga, o cara que apostei que poderia conquistar e
que acabou se tornando meu namorado, e a ex dele. Nós não temos nada a ver
um com o outro, e talvez seja por isso que vai funcionar. Equipes são feitas
somando diferenças. Vai dar certo. Tem que dar.
— Eu quero acabar com ele — respondo, então. — Quero arrastar a cara
dele na lama. Quero devolver cada um dos absurdos que ele disse pra mim,
quero detonar a carreira dele. Quero que ele saiba com quem ele está mexendo.
Quanto mais falo, mais inflamada fico, e sinto meu rosto arder de raiva,
minha respiração ficando cada vez mais pesada. Engulo em seco.
— Mas não sei como fazer isso. Eu não sei se tenho poder suficiente pra
isso.
Ninguém responde nada, mas posso ver que Nicolas está se mordendo para
falar. Fico feliz que ele se contém. Nada do que ele possa me dizer agora vai ser
mais verdadeiro ou vai me ajudar mais do que a escolha que ele faz de ficar
quieto sobre coisas que não sabe. Às vezes, o melhor que a gente pode pedir de
um homem é o silêncio.
— Olha, vai ser complicado — Fernanda concorda por fim, com uma careta.
— Não vou mentir, pode ser que você não saia ilesa. O mercado é cruel.
— Eu sei — murmuro, e ela toca minha mão brevemente.
— Mas não quer dizer que não dê pra ser feito — apressa-se em dizer. — Se
a gente agir com cuidado, não vai sobrar Oscar, eu te garanto.
— Você tem alguma ideia? — é Nicolas quem pergunta, tirando os braços da
mesa quando o garçom chega com os nossos pratos.
— Bom, primeiro você precisa concordar com os termos do Oscar —
Fernanda diz para mim.
A reação de todo mundo é imediata.
— O quê?
— Você tá doida?
— Mas por quê?
— Calma, gente, olha só... — Fernanda ergue as mãos, pedindo calma, e
espera todo mundo se calar para continuar. — A gente não tem como provar o
roubo intelectual se as ideias não forem mesmo roubadas, entende? Se você
acusar ele de ter pego as suas ideias, o seu projeto, mas não existir uma
documentação provando que ele usou algo que é seu...
— Faz sentido — Nicolas concorda.
— Mas ainda assim vai ser a palavra da Luana contra a dele — Suze
contrapõe, e agito a cabeça em concordância, porque era exatamente no que eu
estava pensando. — Ele pode alegar que foi acordado, que a Luana cedeu
voluntariamente. Como a gente vai provar que foi roubo?
— É, e não é como se ele fosse documentar a chantagem, né? — adiciono.
— Ninguém além de nós dois presenciou aquela conversa. Eu não tenho prova
nenhuma de que ele tá me coagindo.
Fernanda torce o nariz, e fazemos um segundo de silêncio. Então, o olhar de
Nicolas se ilumina.
— Mas temos testemunhas, e provas , de que a ideia original era sua, e que
não foi apresentada para a equipe — ele diz.
Nos voltamos para ele, e Nicolas segura minha mão sobre a mesa.
— Luana, eu e a Suze, nós estávamos lá. Nós temos todos os rascunhos
originais do projeto, com datas, com marcações. Nós podemos testemunhar a
seu favor — continua, mais empolgado agora. — Não é só a sua palavra contra
a dele. Se você topar, e ele apresentar a ideia como sendo dele e sem creditar
você, então a gente pode provar o roubo intelectual sim.
— Pode dar certo! — Suze também se anima, arriscando um sorriso.
Olho deles para Fernanda, que também sorri. Eu já não tenho tanta certeza.
Parece um tiro no escuro, algo tão incerto que beira o inacreditável. Nicolas
aperta minha mão para capturar minha atenção de novo.
— Amor, vai dar certo! — ele garante. — É como a Nanda falou, talvez
sobre pra gente, mas ileso ele não sai.
— Eu não sei — digo, e passo a mão livre pelo rosto. — Tô tão preocupada.
Parece tão impossível que alguém acredite em mim, sabe? Mesmo com tudo
isso. Ele é meu chefe, é homem, tá nessa empresa há vinte anos, tem um mundo
de credibilidade, e eu sou só...
Não completo a frase, porque acho que cada um naquela mesa o fez como
achou que devia. Fernanda cutuca a comida e suspira.
— Bom, se de repente houvesse uma segunda acusação, sabe, alguma outra
atitude imprópria que você pudesse denunciar e também usar como prova de
caráter... — ela diz, pensativa. — É meio ridículo, ter que provar que você é
honesta, quando você é a vítima aqui, mas o mundo é o que é, né? Estamos
tentando formular o plano que te dê a melhor chance possível. Claro que não é
pra você mentir nem inventar nada, porque senão isso pode se voltar contra
você...
Fernanda segue falando, mas parei de escutar. Uma segunda acusação. Uma
atitude imprópria.
Olho para Nicolas, e depois para Suze. Acho que os dois pensaram na
mesma coisa que eu. E, dessa vez, nem vou precisar me esforçar muito para
conseguir provas.
— Ele me assedia moralmente desde o primeiro dia — digo, e a voz de
Fernanda morre no meio da frase. Ela me encara, boquiaberta. — Já me chamou
de gorda, de baleia, fala coisas horríveis das minhas roupas quase todos os dias
desde que comecei a trabalhar aqui.
— Meu Deus, Luana! — Fernanda cobre a boca com as mãos. — Você
tem... quero dizer, alguém já viu...
— Todo mundo já viu — Suze a interrompe, e balanço a cabeça.
— Sim, mas não quero que tudo dependa da palavra dos outros — digo, e
então solto um longo suspiro. Toda aquela conversa está me deixando com dor
de cabeça. — Vou conseguir provas. Não deve ser muito difícil. Ele só precisa
estar no mesmo ambiente que eu por dois segundos.
Ela assente, e ninguém responde. Acabo encerrando o assunto com um
simples “bom, é isso” e todos tentamos almoçar como se não houvesse uma
nuvem pesada de preocupação pairando sobre as nossas cabeças.
Quando chega a hora de voltar, Fernanda e Suze seguem na frente. Eu e
Nicolas andamos mais devagar, de mãos dadas. Sigo por vários metros de
cabeça baixa, até que ele para no meio da calçada, me puxa mais para o canto e
ergue meu rosto com as pontas dos dedos.
— Ei. Respira, tá? — ele me diz, e tento sorrir. — Você tá sendo corajosa
pra caralho, e vai passar por essa. Eu sei que não posso fazer muito, mas eu tô
aqui com você, a Suze também, e a Fernanda também. Você vai conseguir. E vai
se orgulhar muito por ter feito isso.
— Eu sei. Só queria que fosse mais fácil.
— Também queria. Mas vai passar. Você vai passar por isso.
— Eu sei.
Ele me abraça e beija minha testa, então seguimos de volta para a empresa.
De alguma forma, ter um plano mudou tudo, mas não ajudou em nada.
— O scar, eu preciso falar com você — digo, no dia seguinte.
Não acredito que estou fazendo isso. Não acredito que estou fazendo isso.
Não acredito que estou fazendo isso.
Repito mentalmente as palavras que ensaiei em casa de forma cuidadosa
enquanto espero ele gesticular para que eu entre. É o fim do expediente, e quase
todo mundo já saiu ou está saindo. Nicolas me espera lá embaixo, e Suze está se
demorando de propósito para me esperar sair, embora tente não chamar atenção.
Achei que seria o horário ideal para colocar nosso plano em ação porque não
tem quase ninguém perto o bastante para nos escutar, e já que o escritório dele
não tem porta, é o mais perto que podemos chegar de privacidade.
Oscar me encara, com a feição azeda de todos os dias. É impressionante
como nem mesmo para chantagear alguém ele faz um esforço. Então, acena
para que eu entre.
— Diz aí, Luana, o que você quer? — ele fala.
Engulo em seco. Nem preciso parecer assustada, porque estou apavorada, e
tenho certeza de que dá para ver em cada centímetro do meu rosto. Isso pode
dar errado de tantas formas. Não acredito que estou fazendo isso.
— Só vim te dizer que eu topo — digo, com a voz tremendo. — A proposta
que você me fez, eu topo.
O semblante dele muda automaticamente. Oscar se levanta e abre os braços,
e, por um segundo horroroso, acho que vai me abraçar. Felizmente, ele não dá
nem mais um passo na minha direção, e só bate as mãos, parecendo satisfeito.
— Ah, perfeito, perfeito! Sabia que você ia acabar ficando do lado certo,
Luana! De boba você não tem nada!
Sorrio amarelo, mas logo fecho a cara de novo.
— Como eu já sabia que você ia topar, tomei a liberdade de já apresentar a
campanha nova pra diretoria — ele continua, fazendo meu sangue ferver. — E
eles adoraram o nosso trabalho.
Nosso . Eu mal posso esperar para destruir esse homem.
— Ah, é?
— Oh, sim. Começamos a trabalhar nela ainda essa semana. Acredito que
seja a minha última campanha à frente da nossa equipe.
Ah, mas vai ser mesmo .
— Então já tá tudo certo? — pergunto, porque simplesmente não consigo me
controlar. Oscar abre um sorriso ferino.
— Tudo encaminhado. Muito em breve, vamos todos trabalhar em setores
diferentes.
Sorrio forçadamente, e me pego imaginando Oscar no seu futuro emprego
como desempregado. Vai ser divertido olhar para a cara dele enquanto ele
recolhe as coisas e some dali. Eu mal posso esperar.

— Você fez a coisa certa — Nicolas me garante, no caminho para a minha


casa.
Estamos a pé hoje. É a placa do carro dele, então pegamos o metrô juntos, e
me apoio nele enquanto ele se segura nos ferros. Fico hipnotizada por um
instante, observando a janelinha que tem no último vagão do trem na linha
amarela, vendo os trilhos correrem e desaparecerem túnel adentro conforme
avançamos. Então suspiro e me viro para ele.
— Eu sei, mas não significa que não seja incômodo — digo. Nicolas me
aperta em torno do seu corpo.
— Ah, um incômodo por algo certo é melhor do que ficar confortável com
algo errado. — Ele faz uma pausa, e então diz: — E ainda tem amanhã...
— É, ainda tem amanhã.
Bufo ao me lembrar de amanhã, que talvez nem seja amanhã de fato. O
plano é usar os próximos dias para repetir as roupas que mais causaram
comentários ofensivos por parte de Oscar. Inicialmente, pensei em fazer tudo no
mesmo dia, mas Suze apontou que não seria legal ter uma gravação onde eu
concordasse em ceder à chantagem dele quando pretendia acusá-lo de roubo
intelectual, mesmo que uma coisa não excluísse a outra. Então hoje foi a parte
um do plano. Amanhã, começa a parte dois.
Não deve ser tão difícil, espero. Oscar tem um repertório infinito de
comentários horríveis sobre mim sempre na ponta da língua, e algumas
combinações de roupas já causaram mais furor do que eu acharia possível. Vai
ser fácil arrancar isso dele.
— Ai, vamos falar de outra coisa, vai — digo por fim, me lembrando de
outro assunto que eu e Nicolas temos pendente. — Te falei que minha tia quer
te conhecer?
— Tia? Que tia?
— A tia Marli, ué. Eu só tenho uma tia.
— Ah, aquela que te mandou a figurinha engraçada dos cachorros? A que é
casada com o...
— Horta — completo, quando ele claramente não consegue lembrar. — Ela
mesma.
— Estamos muito sérios, hein? Você conhecendo minha família, eu
conhecendo a sua...
— Você indo pra minha casa pela... sei lá, quarta vez essa semana?
— Daqui a pouco a gente casa.
— É. Daqui a pouco.
Rimos um para o outro, aquele riso meio sem jeito de verdades com um
fundo de brincadeira. Fico esperando o momento em que a ideia de uma vida
inteira com ele me pareça uma bizarrice, ou que eu fique assustada porque
estamos indo rápido demais, mas essa sensação simplesmente não me bate. Sim,
é a terceira ou quarta vez que ele vai pra minha casa essa semana, e nos últimos
meses nos alternamos entre o meu apartamento e o dele. E, desde que decidimos
ficar juntos, parece que já evoluímos mais como um casal do que jamais achei
que seria possível em tão pouco tempo.
Parece estranho e errado andar tanto tão rápido, mas a verdade é que estar
com o Nicolas me fez perceber que certo e errado são muito relativos quando se
trata de amor. Não tem receita. Como diz minha tia, tem que fazer no olho.
— Fala pra ela que é só me chamar — Nicolas diz, após uma breve pausa.
— Se eu falar isso pra ela, ela vai te chamar sem mim — brinco, e ele ri.
— Tá com ciúmes, Luana?
— Não, tô é com medo. Ela vai te comer viva.
— Tão ruim assim?
— Vai esperando.
Batemos papo pelo resto do caminho, e, uma vez em casa, Nicolas me ajuda
a fazer uns sanduíches de frios para a janta e a escolher o que vou usar amanhã.
Ele está encarando tudo isso muito mais numa boa do que eu — ou, pelo
menos, é muito melhor em mascarar o quanto está tenso. Ele dá palpites de
moda, elogia minhas roupas e brinca com as minhas maquiagens como se fosse
criança, antes de me jogar na cama e transar comigo para me fazer esquecer o
que vem pela frente.
Mas, quando apagamos a luz e ele me abraça para dormir, não consigo
pregar o olho. O amanhã ainda vem, e vou ter que lidar com ele.
E ainda não acredito que estou fazendo isso.
O alinhamento dos planetas deve estar todo errado, porque, no dia
seguinte, Oscar nem sequer me chama na sala dele. Ele grita o nome de vários
funcionários, mas nunca o meu, e berra até mesmo com Nicolas, mas não se
dirige a mim em nenhum momento.
Na sexta-feira, a mesma coisa. Vou com um vestido branco que, da última
vez que usei, fez com que Oscar uivasse na minha direção dizendo que eu
parecia uma lua cheia, mas ele nem parece notar. A única vez que fala comigo é
quando manda um e-mail para todo o departamento marcando uma reunião na
segunda-feira. De resto, parece que nem mesmo nota que eu existo.
Não sei dizer se isso é bom ou ruim, mas certamente é frustrante. Quando
pegamos o elevador para ir embora no fim do expediente na sexta, eu, Nicolas e
Suze concordamos em adiar os planos, mas não muito.
— Ele com certeza vai apresentar o projeto na reunião de segunda — Suze
aponta. — Bom, tecnicamente já apresentou, mas agora oficialmente né. Então
temos que esperar até lá de qualquer maneira.
— É. E torcer pra ele me ofender pra eu ter provas pra usar contra ele —
digo, amargamente.
— Bom, semana que vem a gente pensa nisso! — ela diz, então se vira para
mim: — Quer ir lá em casa amanhã, fazer uma noite de meninas? Sem ofensa,
Nicolas.
— Sem problemas. — Ele ri, erguendo as mãos.
— Quero — digo, sorrindo. — Acho que tô precisando.
— Ótimo. Você traz a vodca e eu trago as máscaras faciais.
— Perfeito.
E é assim que, menos de 24h depois, acabo no chão da sala de Suze,
levemente bêbada e com uma máscara de carvão grudada na minha cara,
enquanto minha amiga come pães de queijo que acabamos de assar e tenta
encontrar um filme decente na TV a cabo.
— Você acha que isso realmente funciona? — pergunto, e ela mastiga
devagar enquanto pondera.
— Televisão paga? Não. Puta negócio sem futuro.
— Não, Suze, essas máscaras. — Encosto o indicador na testa com cuidado,
e tento mexer a boca e os músculos do rosto, retesados pela gosma
industrializada. É o tipo de coisa em que eu penso quando estou bêbada: a
eficácia dos cosméticos.
— Ah, não sei. Mas é melhor que nada, né? Se eu fosse rica, levava a gente
pra um SPA de verdade.
— Obrigada, amiga. Eu também levaria a gente num SPA.
— Pelo menos, quando tudo explodir, a gente vai estar hidratada.
— É, né? Hehe.
Suze pausa em algum canal exibindo uma versão dublada de Jurassic Park ,
e parece muito concentrada em dinossauros por vários minutos. Tomo mais um
gole de vodca com energético, me sentindo numa balada, só que melhor, porque
não tem homens em volta, nem música eletrônica alta, e estou sentada com a
minha melhor amiga em vez de pegando fila para entrar em um lugar cheio.
Roubo um pão de queijo de Suze, e tomo um susto quando ela subitamente se
vira para mim e diz:
— Eu vou embora.
— O quê? Daqui? Mas é a sua casa! — digo, sem entender.
— Não. Vou embora daqui, daqui. — Ela faz um gesto circular com as mãos.
— Daqui do Brasil.
— Suze, do que você tá falando?
Ela desliga a TV e se vira para mim, arrancando a máscara do próprio rosto.
Não sei se já está na hora, mas faço o mesmo, e amassamos os restinhos de
gosma numa bolinha que deixamos num canto do chão. Suze não parece mais
levemente bêbada, e sim mortalmente séria.
— Eu já queria, lembra? Tava pensando nisso — ela diz, assentindo, e tenho
a sensação de que está anunciando sua decisão não só para mim, mas para si
mesma. — Eu vou mesmo. Mês que vem.
— Mas vai pra onde? Vai como?
— Estudar fora. Já faz um tempo que eu tô pensando nisso. Não quero mais
ficar nessa empresa, Luana. Nem se eu fosse promovida, sabe? Já tô de saco
cheio. E não aguento mais ficar me perguntando como seria se eu fosse. Eu
posso ir, sabe? Tenho uma grana guardada. Só me falta coragem.
Eu a encaro, a sobriedade me batendo na marra. Não quero que ela vá.
Detesto pensar em continuar naquela empresa sem Suze lá, mesmo que tudo dê
certo e Oscar seja demitido. Detesto pensar em não ter minha melhor amiga ao
alcance. Mas o que eu realmente digo é:
— Então vai. Não tem nada te impedindo. Vai.
Nos olhamos, e acho que Suze entende o sentimento, isso de querer ir, mas
querer ficar. Mas falei sério. Não tem nada prendendo Suze aqui, nenhuma casa,
um filho, algo tão importante que não possa esperar. Ela merece isso. Então,
quero que vá.
— Mas pra onde você vai? Já tem uma ideia? — digo, porque vou começar a
chorar se não falar nada.
— Eu tava pensando em Malta? — ela diz, sacando o celular. — Dizem que
lá tem balada 24 horas por dia. A Ibiza do Mediterrâneo.
— Mas você vai estudar ou ir pra balada?
— Nada me impede de fazer os dois.
Ela abre o Instagram para procurar por sites de intercâmbio e, pelo resto da
tarde, a gente se diverte sonhando. Eu não sei o que vai vir para mim depois de
segunda-feira, mas sei que para Suze só espero o melhor.

O fim de semana é tão tranquilo e agradável que nem mesmo penso em me


vestir para arrancar comentários de Oscar na segunda-feira. O clima está meio
bizarro, nem totalmente frio, nem exatamente quente, então coloco uma calça
social e uma camisa salmão com manga 7/8. Não é até chegar no escritório que
penso que poderia ter me esforçado um pouquinho mais; afinal, cada dia que
passa de espera, é um dia a mais de nervoso para a minha conta.
Nicolas chega alguns instantes atrasado, e mal me dá bom dia. Mas vejo seu
olhar me seguindo quando me levanto para ir até o banheiro, uma hora mais
tarde, e, quando volto, tem uma mensagem dele no meu celular.
“Você poderia pelo menos ter me avisado que vinha com essa calça.”
Tento não rir, e acabo disfarçando o riso com uma tosse fingida. Espio
Nicolas pelas baias, e ele ergue as sobrancelhas para mim.
Se soubesse que teria esse efeito, teria vestido de propósito , respondo. Ele
retorna segundos depois.
Você é terrível, Luana.
Não sabia que você gostava de me ver sofrer.
Que drama! É só uma calça!
Não, é VOCÊ nessa calça.
E você é linda.
Meu deus, a sua bunda...
O que tem a minha bunda?
Quer mesmo que eu diga?
Eu sempre quero que você diga.
A sua bunda fica perfeita nela.
Deve estar ainda mais perfeita debaixo dela.
Ah, e tá mesmo.
Sabe aquela calcinha azul de lacinho?
Tô com ela.
Porra, Luana.
Porra.
Sabe o que eu queria fazer?
O quê?
Queria te jogar numa cama e arrancar essa calça de você.
E beijar e morder cada lado da sua bunda do jeitinho que você merece.
E o que mais?
Ah, aí eu ia te fazer um carinho.
Bem devagar. Um dedo de cada vez.
De bruços, que é pra eu poder olhar a sua bunda enquanto você se contorce.
E depois...
— LUANA.
Tomo um susto tão grande com o grito de Oscar que o celular cai da minha
mão, bate na mesa e se perde no chão. Estou toda vermelha, morta de calor e de
vergonha, e vejo Nicolas se encolher até ter metade do tamanho. Fico de pé,
desnorteada, a comichão na minha calcinha confusa com a interrupção. Quero
matar Nicolas, mesmo sabendo que ele não é o único culpado nessa história.
Então, vou até a sala de Oscar.
— S-sim? — digo. Ele me lança um olhar enfezado.
— Que porra que você tava fazendo que não me escutou chamar nas
primeiras vinte vezes? — ele pergunta, mas não me deixa responder — Olha só,
depois da reunião quero que você e o estagiário comecem a traçar a ações
diretas nas redes sociais, ok? Quero isso num relatório pra mim amanhã cedo.
— Mas a reunião é no fim do expediente.
— Você já vai sempre pra casa com ele, aproveita e faz alguma coisa de útil
pro mundo.
Engulo em seco, travo o maxilar e assinto. Essa farra vai durar pouco. Estou
doida pra derrubar esse filho da puta.
Me viro pra sair, mas Oscar me chama de novo.
— Luana.
— Sim?
Ele analisa minha figura, e sei o que está vindo. Sei o que está vindo e não
posso gravar. Não tem uma merda de telefone comigo, porque derrubei o meu,
porque tomei um susto porque estava trocando putarias com o meu namorado
em pleno horário de trabalho.
— Essa cor de camisa te faz parecer uma porca. Vê se melhora o seu guarda-
roupa.
Engulo mais uma ofensa e volto para minha mesa.
A inda estou meio puta com Nicolas quando chega a hora da reunião.
Discuti com ele durante o almoço e não nos falamos direito desde então.
Mesmo sabendo que ele não é cem por cento culpado nessa história, estou
agindo como se fosse porque é muito mais conveniente para mim. Quando
entramos na sala de reuniões e me ajeito ao lado de Suze enquanto ele vai firme
na missão de moço do café, quase me sinto culpada por estar dando um gelo
nele.
Quase.
Até, é claro, Oscar abrir sua apresentação de slides e eu ver uma versão
piorada do projeto em que nós trabalhamos duro por um fim de semana inteiro.
Aí fico cinco vezes mais puta do que antes.
— Boa tarde, boa tarde — Oscar diz, um tanto mais manso que o normal. —
A pauta hoje é a campanha de dia dos namorados. Vou passar pra vocês meu
projeto completo, que já foi aprovado, e aí vamos distribuir as funções.
Suze põe a mão no meu antebraço, apertando até eu sentir dor. Dá para ver
na cara dela que ela está tão puta quanto eu. Toco sua mão, e ela me solta,
respirando fundo. Pega o celular, mexe nele por uns segundos, e então o coloca
sobre a mesa. Lá do outro lado da sala, Nicolas parece que vai explodir.
— Como vocês já ficaram sabendo, o tema da campanha vai ser educação
sexual — Oscar continua. — Vamos aproveitar pra falar sobre amor como
cuidado e essas merdas todas pra fazer o pessoal usar camisinha e parar de
distribuir AIDS por aí. Aqui estão as peças...
Ele vai passando de slide em slide, explicando tudo com uma falta de senso
e de cuidado que me deixa cada vez mais mortificada. É ainda pior do que da
primeira vez, porque agora ele nem faz questão de esconder o quanto não dá a
mínima para o que a campanha fala. É tão claramente não dele que não sei
como ninguém se levanta para acusá-lo.
Nicolas serve o café e, quando termina, se senta na única cadeira disponível,
bem ao lado do projetor. Ele encara o aparelho, e acho que sou a única pessoa
que consegue diferenciar seu mau humor normal da fúria homicida do seu olhar
de agora. Ele evita olhar para mim, ou para Oscar, ou para a apresentação, e só
senta lá, encarando o vazio.
Queria ter essa opção, mas sou chefe dele, e tenho experiência suficiente em
reuniões com Oscar para saber que, se eu perder a atenção por um segundo
sequer, vou ser perseguida por isso pelo resto dos meus dias.
Então, quando já estamos lá há um bilhão de anos, Oscar começa a chamar
as pessoas para distribuir as tarefas. Como se fosse um professor de primeira
série, ele vai chamando os nomes e pedindo às pessoas que levantem e se
dirijam até a frente da sala. É uma mania horrorosa que ele tem de fazer todo
mundo se sentir desconfortável, mas ninguém nunca fez nada a respeito.
Ninguém nunca faz nada a respeito dele.
Tento prestar atenção a tudo que ele está dizendo, mas entre ficar
transtornada com os slides destruídos da minha ideia e perceber que Oscar é o
chefe mais abusivo e filho de uma puta que eu já vi em toda a minha vida sem
que ninguém nunca tenha feito nada, eu abstraio completamente.
Como é possível que esse homem ainda esteja aqui? Como é possível que só
eu, só nós estejamos ativamente dispostos a denunciar esse cara? Não é o
primeiro nem o único abuso de poder dele. Oscar grita com todo mundo, nos
xinga em alto e bom tom, ofende o trabalho, a personalidade, os corpos, os
gostos de todo mundo. Ele age como se trabalhasse com robôs, e não com
pessoas. Nunca o vi sendo bacana com ninguém abaixo dele — no máximo
puxando saco dos caras que estão nos cargos mais altos.
E então, percebo que é isso. Os caras dos cargos mais altos. Oscar é parte de
um problema que é anterior a ele. E talvez eu consiga tirá-lo da empresa, mas
isso não vai significar nada. Ainda vão ter homens acima dele, homens
poderosos, que vão criar a próxima geração de homens poderosos que acham
que podem passar por cima de qualquer um, enquanto a gente se fode e faz todo
o serviço. Nunca vai parar.
— LUANA.
Dou um salto na cadeira, me levantando tão rápido que bato a perna na mesa
e faço tudo tremer. Me odeio pelo susto, e odeio Oscar ainda mais.
— Vem aqui. — Ele abana a mão na minha direção, como se eu fosse uma
serviçal.
E eu vou, mas toda dura e retesada, cada centímetro do meu corpo tremendo
de ódio. Ando até a frente da sala, ao lado de Oscar, e a luz do projetor me cega,
então ergo um braço na frente do rosto. Quando olho para o meu chefe, ele está
rindo.
— Puta que pariu, Luana, você é tão grande que dá pra ver a campanha
inteira em você! — ele diz, e gargalha.
Eu o encaro, impassível, por um instante. Ouço meia dúzia de risos nervosos
ao redor da sala, mas eles são um murmúrio no fundo da minha consciência.
— Ai, ai, bom, você vai ficar responsável pelas ações de redes sociais...
peraí, deixa eu colocar a foto na sua barriga... e vai também produzir...
Ele continua falando, mas já parei de escutar. Já ouvi demais. Já aguentei
muito mais do que deveria. Emprego nenhum, carreira nenhuma vale isso.
Então pego Oscar pelos braços, ergo o joelho e o acerto em cheio bem no
meio das pernas.
Ele se curva de dor, e eu tomo impulso e repito. Não consigo me controlar.
Nem consigo me dar conta do que estou fazendo enquanto ele grita e arfa de
dor, se afastando de mim com as mãos no saco, a cara vermelha de pura agonia.
Olho em volta, para os meus colegas chocados. Alguns deles se levantaram,
mas nenhum se mexeu para ajudar Oscar. Do outro lado do projetor, Nicolas
também se levantou, e me encara, embasbacado. Olho para o meu chefe, caído
no chão, tentando abraçar as próprias bolas, e sou atingida por um misto de
terror e satisfação.
Então pego minhas coisas e saio da sala.

De alguma forma, naquela noite, vou parar na casa de Suze com ela,
Nicolas, Fernanda e três pizzas gigantescas.
Estou comendo e bebendo uma cerveja, mas ainda não parei completamente
de tremer. Todo mundo está tratando essa situação como se fosse natural, mas,
enquanto vejo Suze e Nicolas recontarem a cena para Fernanda, não consigo ver
nada de normal naquilo; nem no que aconteceu, nem nesse jantar estranhamente
comemorativo com um grupo que jamais esperei formar. O mundo parece estar
inteiro virado do avesso.
Dou uma mordida atrás da outra no meu pedaço de pizza e fico em silêncio.
Suze está chorando de rir lembrando da cara de Oscar quando o atingi, e
Fernanda está rindo, mas com as mãos sobre a boca, como se sentisse culpa por
ver graça naquilo tudo. Só Nicolas é que me olha e vê que não estou nada bem.
— Ei. Respira — ele diz, pondo a mão sobre a minha perna. — Você só fez
o que todo mundo aqui queria ter feito muito antes.
— Eu bati nele, Nicolas. Eu apelei pra violência. Isso nunca é certo — digo,
interrompendo as risadas da mesa. Suze suspira e baixa o rosto.
— Amiga, eu sei que você tem razão, mas ao mesmo tempo... você chegou
no seu limite. E foi justificado. Tem um monte de testemunhas.
— É, mas...
Sou interrompida quando o meu celular toca. Não reconheço o número, mas
quando atendo, meu coração está acelerado.
— Alô?
— Alô, Luana? — diz uma voz feminina do outro lado.
— É ela.
— Oi, boa noite. Aqui é a Joyce, do RH do Grupo Inter, tudo bem? Desculpa
ligar tão tarde.
Merda, merda, merda, merda, merda.
— Oi, Joyce. Tudo bem, e você? — digo e, imediatamente, os três à minha
volta fazem expressões idênticas de pânico.
— Tudo sim. Viu, dados os acontecimentos dessa tarde, o departamento
queria marcar uma reunião com você amanhã de manhã. Você tem
disponibilidade?
Quero rir, porque estão me perguntando se estou disponível em um dia de
semana, quando tecnicamente vou para a empresa trabalhar de qualquer jeito. Já
entendi o recado, e quero chorar.
— Tenho sim — respondo.
— Ótimo. Pode ser umas... oito e meia?
— Pode, pode sim.
— Combinado, então, estaremos te esperando. Boa noite.
Desligo sem responder e encaro o telefone até a tela se bloquear sozinha.
Não preciso nem repassar o que foi dito para que todo mundo entenda. Nicolas
aperta a mão na minha perna, mas nada é capaz de me dar segurança agora.
— Eu vou ser demitida — digo, não sei por quê. Acho que preciso falar em
voz alta para admitir que é verdade. — Eu vou ser demitida, e o Oscar vai ficar
e vai ficar com a minha ideia, porque agora eu perdi completamente a razão.
— Não! Nós ainda podemos provar que ele roubou o que a gente criou —
Nicolas garante, mas balanço a cabeça, em total negação.
— Ninguém vai acreditar em mim agora. Eu agredi meu chefe. Não tenho
mais moral nenhuma.
— Você pode até ter agredido ele, mas tem moral, sim — Suze diz, e então
pega o próprio celular e dá alguns cliques. — Porque você tem como provar que
pelo menos foi provocada.
Ela abre uma gravação de áudio, que reconheço na hora como sendo da
reunião. Então avança até escutarmos a voz horrorosa de Oscar gargalhando
enquanto me compara a uma tela, mas tem o bom senso de parar antes que
possamos ouvir o momento exato em que eu o atinjo nas bolas.
— Eu vou com você amanhã pra testemunhar — Suze continua.
— Eu também — Nicolas já se prontifica.
— E sério, Luana, qualquer pessoa que estivesse naquela sala de reuniões é
testemunha. Vou falar com as pessoas, ver se alguém pode falar. Isso ajuda, não
ajuda, Fernanda?
Todos olhamos para ela, que torce o nariz. Mal a conheço, mas já sei que
posso confiar nela para sempre ser honesta. Ela suspira.
— Não vou mentir, a situação se agravou muito com a agressão. Não sei
quais são as chances reais de reverter alguma coisa, mas todo testemunho ajuda.
— Acho que não dá pra reverter mais nada — digo baixinho —, mas se for
pra cair...
— A gente cai atirando — Nicolas completa. Rio sem vontade e concordo.
É melhor do que nada.
Q uando eu tinha catorze anos, fui para a diretoria da escola pela
primeira vez. Digo primeira porque foi uma sequência de visitas àquela
mesma sala nos anos que se seguiram. Mas nenhuma foi tão desconfortável
quanto a primeira. Eu tinha sido pega matando aula em um dos banheiros,
ouvindo música no meu discman nem um pouco escondida em um dos
boxes, e lembro até hoje do pânico que senti enquanto esperava tia Marli
chegar para a reunião. No fim, tomei só uma advertência, a primeira de
muitas, e tia Marli me ensinou jeitos melhores de matar aula.
Agora, enquanto espero minha reunião no RH, me sinto exatamente da
mesma forma. Meu corpo todinho está travado de pânico, e eu me mexo
constantemente nas cadeiras desconfortáveis, tentando achar uma posição.
Suze está adiantando o trabalho dela antes da hora da reunião, quando vai
descer para me ajudar, mas Nicolas está do meu lado, segurando minha mão.
O andar do RH é bem diferente do nosso. Tem uma recepção central, bem
iluminada, logo ao lado do elevador, com umas cadeiras encostadas na
parede. Dali, não se abre para as baias, como no nosso andar, mas sim para
um corredor de várias portas de salas de reunião diferentes, e só então para
as baias, mais ao fundo. Foi tudo reformado desde que fui contratada, e o
piso antigo de carpete foi substituído por algum piso frio num tom pálido de
bege, que faz tec tec tec toda vez que bato meu pé no chão para aliviar a
ansiedade.
Desamasso minha camisa e minha saia um milhão de vezes. Estava tão
nervosa que acordei às cinco para me preparar para vir para cá. Sempre achei
que o que a gente veste, e como a gente se veste, passa uma primeira
impressão poderosa. Espero que minha combinação de hoje passe essa
mensagem de “sou extremamente profissional, isso foi um erro que jamais se
repetirá”.
Mas a quem estou querendo enganar? Não tenho a menor chance.
São 8:25 quando ouço passos e uma porta se abrindo. Não me levanto,
mas me inclino para espiar. Me arrependo na hora, pois, vindo do corredor,
vem Oscar, com Joyce logo atrás.
Ele parece bem, do jeito como sempre está — alto, embromado, e com
cara de quem vai passar por cima de você com um trator. Fico ainda mais
tensa, e me agarro à mão de Nicolas com tanta força que sinto dor nos nós
dos dedos. Meu coração acelera tanto que o sinto bater na garganta. Espero
por uma provocação, por um eu te avisei , por alguma coisa.
Mas nada acontece. Oscar passa por nós e, salvo o olhar mortal que lança
na minha direção, ele finge que não estamos ali. Aperta o botão do elevador,
que se abre instantaneamente, e desaparece de vista.
— Bom dia, Luana — Joyce me diz. — Vamos lá?
Olho para Nicolas uma última vez para buscar forças, e ele tenta sorrir.
Beija minha mão, e então me solta. Me levanto, alisando minhas roupas de
novo, e sigo Joyce corredor adentro até entrarmos em uma das salinhas.
Não tem nada lá dentro exceto uma mesa redonda com algumas cadeiras.
Me sento de um lado, e ela de outro. Joyce é uma garota muito bonita, alta,
com cabelos curtos e escuros e os olhos amendoados. Ela me dá um sorriso
prático, daquele que diz que ser simpática com você é basicamente a
descrição do trabalho dela. Entre nós, sobre a mesa, está uma pilha de papéis
que tento não espiar. Joyce cruza as mãos sobre eles.
— Bom, Luana, imagino que saiba por que está aqui — ela diz. Até seu
tom de voz me faz lembrar da diretoria da minha antiga escola.
— Sei, sei sim — digo, engolindo seco as lágrimas que sobem. Pare com
isso, Luana , quero gritar para mim mesma. Você é adulta, você cometeu um
erro, você vai lidar com tudo isso como gente grande.
Mas a verdade é que nenhuma palavra tem efeito. Gente grande também
sente medo. Não adianta tentar me convencer do contrário.
— Como você deve imaginar, já conversamos com o Oscar e ele deu a
versão dele da história... — ela diz, e me controlo muito para não perguntar
o que aquele filho da puta falou sobre mim. — Mas gostaríamos de ter a sua
versão dos fatos. Poderia me contar o que aconteceu?
Eu a encaro um segundo, pensando por onde começar. Poderia dizer que
fui provocada, que Oscar mereceu ter apanhado, começar pelo roubo
intelectual e pela chantagem. Mas a verdade é que é muito anterior a isso.
Não começou ontem.
— O Oscar me assedia moralmente desde que entrei na empresa —
começo, primeiro evitando seu olhar, mas depois erguendo o rosto para
encará-la. — Desde o meu primeiro dia como estagiária, ele é gordofóbico e
machista. Posso dar alguns exemplos de coisas que ele já me disse, se você
quiser.
Joyce ergue as sobrancelhas, surpresa, e então busca uma caneta e um
papel livre.
— Por favor.
Respiro fundo, e começo a falar.
Não faço ideia de quanto tempo fico ali. Falo sobre tudo, dos gritos às
ofensas, das “brincadeiras” sem graça à chantagem. Mostro todo o projeto
original da campanha, salvo no meu celular, e cito Suze e Nicolas como
minhas testemunhas. Quando chego nos acontecimentos de ontem, já falei
tanto que Joyce preencheu uma página inteira.
— Eu perdi o controle ontem — admito, a boca já seca de tanto falar. —
Mas depois de tudo, cheguei no meu limite, sabe? Simplesmente reagi.
— Mas Luana, se era algo tão recorrente, por que você não procurou o
RH? Por que não falou comigo? — ela me interrompe. A pergunta de um
milhão de dólares.
Crispo os lábios e balanço a cabeça.
— No começo do ano, um dos nossos estagiários foi demitido por
assediar sexualmente um monte de funcionárias. Ele não foi preso, não
prestaram queixa contra ele, não fizeram nada na empresa para garantir a
segurança das mulheres que trabalham aqui. E ele era só um estagiário —
digo, e vejo a cor sumir de seu rosto enquanto olho para ela. — Você acha
mesmo que denunciar as agressões que o Oscar, o meu chefe , fez contra
mim, teria tido algum efeito? Quando a maior parte das pessoas acharia
graça nos comentários que ele fez só porque eu sou gorda?
— Entendo... — ela anota algumas coisas rapidamente no papel.
— Eu posso não poder provar tudo, mas tenho uma gravação da reunião
de ontem, e tenho várias testemunhas. Não sei se vai resolver alguma coisa,
mas...
— Olha, Luana, aqui entre nós, às vezes é muito difícil chegar a algum
lugar com essas denúncias — Joyce diz, se inclinando na minha direção e
falando baixo, como se temesse ser ouvida. — Mas da minha parte, posso
garantir que vou fazer tudo que eu puder pra que você não seja a única
prejudicada nessa história.
Congelo.
— A única?
Joyce corrige a postura e suspira, buscando entre a pilha de papéis até
encontrar o que procura.
— O Oscar decidiu não abrir um processo contra você, mas infelizmente
uma agressão física não pode ser tomada levianamente — ela diz, torcendo o
rosto rapidamente em uma careta de desculpas. — Infelizmente
precisaremos desligar você da empresa.
Mundo injusto do caralho. É claro que eu estou demitida. Mesmo assim,
sinto um nó se formando na garganta.
— Claro — digo.
— Mas é claro que isso não acaba aqui. — Joyce insiste. — Vamos ouvir
as testemunhas de todos os lados, e tomaremos todas as medidas cabíveis.
— Eu também — digo, com uma certeza que não tinha dois segundos
atrás. Mas naquele segundo, sei que, se a empresa não fizer nada por mim,
eu mesma vou fazer. — Vou tomar todas as medidas cabíveis.
Joyce não responde, mas pelo micro sorriso que abre, acho que entende e
apoia.
Então seguem-se as praticidades, os papéis a serem assinados, a
formalização da demissão e os próximos passos. Justa causa. Nem mesmo
vou ter direito a um seguro desemprego, ou a receber qualquer coisa, agora
que estou no olho da rua. Enquanto isso, Oscar segue trabalhando. Segue
empregado. Segue protegido.
Maldito mundo injusto do caralho.
— L uana, cheguei.
— Hmmmmmmmm...
— Você ainda tá na cama?
— Hmmmmmmmm...
Abro os olhos a tempo de ver Nicolas chegando. Estou na casa dele, na cama
dele, de onde não saí nas últimas quatro horas, depois de uma maratona de
séries e um pacote de pipoca de micro-ondas.
— Amor. Você falou que ia levantar — ele diz, sentando na beirada da cama.
— Eu tô deprimida. Me deixa ficar deprimida.
— Deixo. Mas me preocupo mesmo assim.
Nicolas põe a mão no meu rosto, e beijo a palma. Ele tem sido o melhor de
todos os suportes emocionais nas últimas duas semanas. Desde a minha
demissão, alternamos entre a minha casa e a dele, e ele não me deixou sozinha
nem um único dia, exceto quando vai trabalhar. Porque ele ainda tem um
emprego. Eu não. Nem emprego, nem reputação. Sou a doida que chutou o saco
do chefe.
— Como foi hoje? — pergunto, sem saber bem se estou perguntando para
saber mesmo, ou se para me punir com inveja porque não estou mais
empregada. Nicolas suspira.
— Foi... interessante — ele diz — A Joyce me chamou pra conversar.
— Ela o quê?
Me sento, subitamente mais interessada. Desde aquele fatídico dia, nada
mais tinha acontecido. Suze enviou o áudio da reunião para o pessoal do RH,
mas nem ela, nem Nicolas, tinham sido chamados. Pirei muitas vezes me
perguntando se tudo havia sido em vão, se aquela história de que Joyce não ia
deixar que eu fosse a única prejudicada era balela, mas parece que ela só se
atrasou um pouquinho.
— Ela me chamou pra conversar — Nicolas repete. — E pelo que parece, eu
não fui o único. Suze também foi.
— Ela não comentou nada comigo! — exclamo, indignada. Mas, quando
pego meu celular, vejo que desligou por falta de bateria. Se ela me mandou
alguma coisa, não teria nem como ver.
Nicolas ri baixinho, e então continua.
— Bom, a Joyce basicamente queria saber sobre o dia da reunião, sobre o
nosso relacionamento, e se eu presenciei alguma outra cena de assédio moral
que ela devesse saber. Contei tudo pra ela, tudo que eu sei, pelo menos.
— Ela perguntou do dia da festa? Da gente no banheiro? — pergunto. Nem
sei por que estou preocupada. Não tem como isso ser pior do que tudo, a essa
altura do campeonato.
— Não, ela não disse nada. Acho que nem ficou sabendo — Nicolas me
tranquiliza. — Mesmo que soubesse, não existe prova física de nada. A única
testemunha nem tá mais na empresa, então não importa.
— É. — Assinto, um tanto mais calma. Meus dias têm sido assim, uma
bagunça entre o pânico completo e me convencer de que na verdade não é tão
ruim. Não estou nem cá, nem lá.
— E não é só isso — Nicolas diz, puxando o próprio celular do bolso. —
Você não tá mais no grupo da empresa, né?
— Não. Me removeram no dia seguinte que eu fui demitida. O que tá
rolando?
— Bom, obviamente, todo mundo ficou sabendo do que rolou. E se alguém
não sabia, a Suze contou — ele diz, meu coração acelerando a cada palavra. —
E as pessoas começaram a responder.
— Responder como?
Ele me estende o celular em resposta. Pego e passo os olhos pelas
mensagens.
O Oscar me disse que eu fedia a podre no amigo secreto da empresa. Me
deu um kit de sabonetes pra ser menos “encardido”.
Ele me chamou de vaca leiteira quando meus seios cresceram depois da
gestação.
Na festa da empresa ano passado, ele disse que eu podia “prestar um favor”
pra ele se quisesse ser promovida mais rápido.
Aquele cara é nojento, ele tem um monte de revista de mulher pelada
escondida no escritório dele. Eu já vi.
— O que é isso? — pergunto, mais chocada a cada mensagem.
— Isso é a prova de que não é só você. E tem mais. — Ele pega o celular e
roda a tela. — Tá vendo aqui? A Ana Lúcia, o Tadeu, a Cristina, a Bárbara, a
própria Suze... são pessoas que foram ofendidas e assediadas por aquele cara, e
que foram até o RH denunciar essa semana. Por sua causa.
— Por... minha causa?
— É. Porque você teve coragem de fazer o que todo mundo queria, mas
ninguém fez — Nicolas continua. — Tem tanta denúncia, tanta testemunha que
o RH não vai poder ignorar. Eu não dou nem mais uma semana pro Oscar rodar.
Eu o encaro, sem responder. Sinto vontade de chorar, mas não é de
desespero dessa vez. O alívio é tamanho que parece relaxar partes do meu corpo
que eu sequer percebia que ainda estavam tensas. Nicolas sorri.
— A Fernanda tem uma amiga que é advogada trabalhista que pode ajudar a
gente. Se juntar todo mundo, mover um processo contra ele vai ser mais fácil —
ele diz. — Mas depende de você. Se você falar “bora”, todo mundo vai encarar.
O que você acha? Vamos lutar, ou vamos deitar nessa cama e ver The Fosters
até morrer?
— Eu tava assistindo Drop dead diva , na verdade — brinco, mas logo em
seguida rio. — Bora.
— Essa é a minha garota!

Eu obviamente não sabia o quão cansativo e trabalhoso seria abrir um


processo por assédio e danos morais, mesmo em conjunto.
Os meses que se seguiram foram marcados por audiência atrás de audiência.
A Glória, amiga da Fernanda, de fato era uma excelente advogada, que nos
tratou como pessoas, e não futuras fontes de renda. Fizemos várias reuniões, em
grupo e individualmente, e levantamos todas as provas e testemunhos possíveis
para dar conta do processo.
Como Nicolas previa, antes mesmo do fim, Oscar já tinha saído da empresa.
Mas não foi tão rápido quanto ele imaginava: só fizeram mesmo alguma coisa
quando nós viemos a público nas redes sociais denunciar os assédios e o
silêncio da empresa. Quando Oscar foi desligado, Nicolas fez questão de
pessoalmente fazer os posts de nota de repúdio oficiais do Grupo Inter.
Mesmo assim, demorou para acabar. Demorou tanto que eu arranjei um novo
emprego, como chefe do departamento de mídias sociais de uma start-up , e
Suze fechou seu intercâmbio e pediu as contas da empresa. Tanto que, quando a
minha última audiência enfim chega, eu já quase superei tudo aquilo — quase.
Não o suficiente para desistir, mas o bastante para que, quando me sento ao lado
da minha advogada e de frente para Oscar, não tremo nem um pouquinho. Só
sustento seu olhar.
Oscar está péssimo. Parece que envelheceu uns dez anos desde que nos
vimos pela última vez. Não tenho notícias dele desde então, mas espero que
esteja sem emprego, sem dinheiro e sem perspectivas. É o mínimo que ele
merece.
A juíza, uma mulher de uns cinquenta e poucos anos e fartos cabelos
grisalhos, lê as informações do processo até ali. Então passa a palavra para os
advogados, que falam outro tanto no seu jurisdiquês complicado. O tempo todo,
só encaro Oscar, e ele me encara de volta.
Falei que ia acabar com você , eu penso, e espero que ele consiga enxergar
cada palavra nos meus olhos. Falei que ia cair, mas te levava junto .
Ele desvia os olhos primeiro. Sorrio. A curva mais bonita de um homem é a
que ele faz para se desviar de uma mulher quando sabe que está fodido na mão
dela.
— Acredito que a defesa gostaria de propor um acordo? — a juíza diz,
finalmente. O advogado de Oscar assente.
— Sim, meritíssima. Meu cliente propõe o pagamento de uma indenização
como forma de ressarcir a vítima por quaisquer danos morais e psicológicos a
que tenha sido exposta.
Ele nos passa um documento com os termos do acordo. Ergo as
sobrancelhas, momentaneamente chocada com o valor oferecido. Glória pega o
papel e o lê rapidamente antes de cochichar para mim.
— Luana, recomendo fortemente que você aceite. É um valor justo, e até
poderíamos conseguir mais, mas isso nos poupa trabalho e tempo. O que me
diz?
Olho de canto de olho para Oscar. Ele está miúdo, encolhido em si mesmo.
Fico pensando no quanto deve ter oferecido aos outros antes de mim, na
quantidade de dinheiro que deve estar gastando para colocar um fim a essa
tortura.
— Eu aceito. Mas quero outra coisa também — cochicho de volta minha
ideia.
— E então? — a juíza diz, após alguns instantes de espera.
Glória se empertiga na cadeira.
— Minha cliente aceita o acordo — diz, por fim, e posso ver os ombros do
advogado de defesa caindo de alívio —, mas gostaríamos de incluir um segundo
item.
— Que seria? — diz a juíza.
— Gostaríamos que o sr. Oscar se pronunciasse publicamente pedindo
desculpas à minha cliente e aos demais ex-funcionários que moveram essa ação.
Uma vez que muitos episódios de humilhação e assédio aconteceram
publicamente, acreditamos que seria um bom encerramento se o acusado se
propusesse a pedir desculpas de forma mais ampla. O mesmo poderia ser feito
em qualquer rede social de sua preferência.
A cara de Oscar é impagável. Ele claramente não estava esperando por isso.
Por um instante, penso que eu até desistiria do dinheiro só para vê-lo se
humilhando e nos pedindo desculpas na internet. Mas não. Vou tirar tudo dele,
principalmente o orgulho.
O advogado cochicha algo em seu ouvido. Ele assente.
— Meritíssima, aceitamos os termos — ele diz.
— Muito bem. Então temos um acordo.
— N ão acredito que você vai mesmo embora!
— Eu vou mesmo embora!
— Não!!!
Abraço Suze na calçada, e Nicolas buzina no nosso ouvido. Passamos para
pegá-la no caminho da casa da minha tia, e em vez de deixar as despedidas para
quando chegarmos lá, estamos fazendo escândalo na frente de uma estação de
metrô.
Vamos rápido para o carro, e Nicolas arranca de onde estava, em um local
proibido. Ele resmunga qualquer coisa sobre a gente não ter noção, mas
nenhuma de nós presta muita atenção nele.
— Quer dizer que finalmente vou conhecer sua tia? — Suze diz, toda
empolgada. — Agora que eu vou morar fora?
— Acho que a Luana tem vergonha da gente — Nicolas brinca, e dou um
tapa na coxa dele.
— Não tenho! Vocês vão entender quando a gente chegar lá.
— A Nanda te avisou se vai, Suze? — Nicolas pergunta. Do banco de trás,
minha amiga emite um muxoxo.
— Ela disse que ia ver, então acho que não vem, não. Vai ser só a gente.
Seguimos batendo papo até a casa de tia Marli. Quando chegamos lá,
descarregamos as compras — afinal, a casa é dela, mas o churrasco é nosso — e
entramos sem tocar a campainha, seguindo o pagode que vem de lá do fundo do
quintal. Quando chegamos, Horta já acendeu a churrasqueira, e minha tia está
dançando com uma cerveja na mão.
— Ah, finalmente! — ela grita quando nos vê. — Eu já tava morrendo de
fome e nada de vocês darem o ar da graça, inferno!
— Ai, para de reclamar e me ajuda aqui! — exclamo de volta.
Eles nos ajudam a levar tudo para a cozinha, guardar o que precisa ser
guardado e separar o que precisa ser separado. Só então faço as apresentações.
— Tia Marli, essa é a Suze, minha amiga...
— Você é a que vai largar tudo e ir pros states ? — ela me interrompe.
— Marli, ninguém mais fala states ! — Horta diz, e minha tia lhe mostra o
dedo do meio.
— Isso! — Suze concorda, aos risos. — Mas vou pra Europa, na verdade.
Pra Brighton.
— Brai-o quê?
— Brighton.
— Parece ótimo, vem cá!
Elas se abraçam, e Suze cumprimenta Horta. Então, chega a hora da verdade.
— Tia, esse é o Nicolas. Meu namorado — digo.
E é só quando falo que eu percebo o quanto queria falar isso, o quanto quis
falar isso tantas vezes na minha vida. Sempre achei que nunca ter namorado
ninguém não tinha me feito falta, e talvez não tenha feito mesmo. Nunca fui
menos feliz, menos completa ou menos amada por não ter namorado. Mas a
pior parte, a parte que mais doía, que sempre doía, era a de não ter tido escolha.
De nunca ter sido uma opção. De sempre ter sido escanteio.
Não mais. Não com ele.
— Deixa eu olhar pra você — minha tia diz, e mesmo com aquele tamanho
minúsculo comparado a Nicolas, ela o puxa de todos os lados, mexe no seu
rosto, o faz girar nos calcanhares, e pede a ele para sorrir como se estivesse
analisando um cavalo.
— E aí? — pergunto, na expectativa.
Ela sorri.
— É, acho que dá pro gasto.

É uma das tardes mais divertidas da minha vida.


Passamos horas bebendo, comendo e conversando. Suze e Nicolas se
encaixam perfeitamente naquela família louca que formo com tia Marli e Horta,
e quando chega a hora de ir embora, ninguém quer ir, mesmo que já tenhamos
tomado toda a cerveja e comido todas as carnes.
Como está tarde e Suze bebeu demais, resolvemos levá-la em casa. Ela ronca
no banco de trás, e só acorda quando estacionamos na frente da casa dela. Então
a acordo e a acompanho até a porta.
— Obrigada por hoje, amiga. Foi a melhor despedida de todas — ela diz,
com a voz mole de bebida e sono. Eu rio e a abraço.
— Obrigada você. Por tudo. Por esse ano inteiro, por todos os anos! — digo.
— Luana, eu vou só morar fora, não vou morrer!
— Me deixa.
— Tá bom.
Ela me abraça de volta, bem apertado, e beija os dois lados do meu rosto.
— Vejo vocês amanhã no aeroporto? — pergunta, e assinto.
— Pode deixar. Bom descanso.
— Pra vocês também. Me avisa quando chegar.
— Aviso sim.
Volto para o carro, e Nicolas sorri para mim. Fico pensando em como as
coisas mudaram do início do ano para cá. Emprego novo, namorado novo,
minha melhor amiga indo embora. Quando tudo aquilo começou, jamais
imaginei que chegaria até aqui. Nicolas segura minha mão.
— E aí, pra casa? — pergunta.
— Pra casa — digo. Ele abre um sorriso zombeteiro e engata o carro para
sair.
— Mas qual casa hoje?
Recosto contra o banco e olho para ele.
— Tanto faz. Qualquer casa, desde que você esteja comigo.
Ele sorri ainda mais, as bochechas ficando vermelhas. E, como é ele, é claro
que diz:
— Você tá me pedindo em casamento, Luana?
E, como somos nós, é claro que respondo:
— Claro que não, eu nem gosto de você.
Ele ri, e segue em frente. Não sei para onde estamos indo, mas sei que
qualquer lugar sempre vai ser o melhor destino se ele estiver do meu lado.
Nicolas

— A mor, cadê a toalha de rosto? — ouço Luana gritando, lá do


banheiro. Me espreguiço na cama e bocejo.
— Eu coloquei pra lavar. Tava suja. — respondo.
— E você não colocou outra?
— Eram onze horas da noite, Luana! Eu nem sei em que caixa estão as
toalhas! — digo, virando para o lado. Não consigo decidir se ter vendido
meu colchão para ficar com o de Luana quando nos mudamos foi a melhor
ou a pior decisão do mundo. Por um lado, esse é bem mais confortável. Por
outro, acho que nunca mais vou conseguir sair dele.
Ouço passos, mas não reajo a tempo. No instante seguinte, Luana está
com as mãos molhadas e geladas em cima de mim, secando-as nas minhas
costas.
— Como assim você não sabe em que caixa? Não era pra estar em caixa
nenhuma ! — ela grita, como uma dona de casa psicopata.
— Ai, Luana, tá frio pra caralho! — grito de volta, tentando puxar as
cobertas para me proteger.
— A gente já se mudou faz quase um mês e você não terminou de
desempacotar a sua parte, eu vou te matar! — ela continua, puxando o
cobertor, tentando me alcançar. Eu sou mais forte, mas ela é muito mais
insistente, e o que é pior: conhece todos os meus pontos fracos. Quando não
consegue encostar nas minhas costas, ela encontra um jeito de enfiar o
mindinho bem dentro do meu ouvido.
— Aiiii, Luana, cacete, para com isso!
E, simples assim, a briga se torna uma competição de cócegas.
Uma competição que, infelizmente, perco de lavada.
A gente se embola no cobertor e nos lençóis, e se Luana conhece todos os
meus pontos fracos, mas eu não posso dizer o mesmo sobre ela — aquele
inferno de mulher parece não sentir cócegas em parte nenhuma do corpo.
Acabo à sua mercê, deitado de barriga para cima, com seu peso em cima de
mim, suando mesmo na manhã fria de agosto, rindo até ela decidir que está
satisfeita.
— Tá bom, tá bom, eu juro que eu guardo as toalhas hoje! — digo,
tentando segurar as mãos dela antes que ela me faça mijar de tanto rir.
— Acho bom. Se você acha que a nossa casa vai ficar igual era a sua,
pensa de novo! — ela diz.
Entrelaço meus dedos nos dela, o riso aos poucos se transformando em
um sorriso bobo que só mesmo Luana consegue arrancar de mim. Nunca
achei que ficaria tão feliz sendo um idiota apaixonado como sou estando
com ela.
— Fala isso de novo. — peço. Ela ri.
— O quê?
— Nossa casa.
Luana gargalha.
— Minha casa. Você só mora aqui porque é meu escravo sexual. — ela
diz, se inclinando na minha direção.
— Ah, é? Fala isso mais algumas vezes que eu consigo prestar uns
serviços antes do café da manhã.
Luana ergue os quadris e olha para baixo, fazendo uma careta forçada de
decepção.
— Nossa, precisa de tudo isso? Eu achei que os caras ficassem de pau
duro toda hora.
Penso em uma coisa tão horrível para dizer que não resisto. A única coisa
melhor do que falar sério com Luana é fazê-la rir. Então abro meu melhor
sorriso de paquerador e disparo:
— De pau duro eu não sei, mas de coração mole eu fico o tempo todo
quando tô com você.
Luana gargalha tão alto que chega a guinchar, de um jeito que a faz
parecer um porquinho da Índia e me faz rir junto com ela. Ela rola para o
lado, rindo sem parar, e dessa vez sou eu quem rolo para cima dela,
prendendo-a sob mim e beijando seu rosto enquanto ela tenta se esconder.
— Você... é tão... brega! — ela diz, entre as risadas.
— É por isso que você me ama!
— Você é muito metido!
— É por isso que você me ama também
Consigo segura-la pelos punhos, e ela ri, sem nenhuma resistência, e se
deixa beijar. Percorro seu rosto, seu pescoço, seu colo, até voltar e mergulhar
de novo em sua boca. Luana cheira a corpo dormido e sabonete de maracujá,
e o gosto mentolado na sua língua parece acordar cada pedacinho de mim
que ainda estava dormente. É como um tremor que percorre meu corpo
inteiro. Cada pedaço da minha pele grita o nome dela.
— Se eu te der mais do que um coração mole, será que você deixa eu
transformar a sua casa em nossa? — provoco, e ela sorri, seus dedos
agarrando os meus cabelos.
— Depende do quanto você consegue fazer em... — ela se inclina para
olhar o relógio na mesa de cabeceira. São seis e meia. Ela costuma sair pro
trabalho às sete e meia — Meia hora?
— Meia hora agora, meia hora quando a gente voltar... — brinco, minhas
mãos já descendo para se aventurar por ela — A gente pode ter meia hora
pelo resto das nossas vidas.
E sse livro só existe graças ao empenho, apoio e amor de várias pessoas.
Eu provavelmente vou esquecer de listar todas elas (não tem jeito, sempre
falta alguém), mas prometo dar o meu melhor.
Para a minha família, de sangue e a que escolhi, obrigada por me
permitirem ter escolhas. Pai, mãe, eu sei que nem sempre foi fácil, mas cada
nova conquista só existe porque vocês me deram asas pra voar. Leo, você é
meu melhor amigo, meu parabatai e meu irmão, e eu nunca não vou poder te
agradecer por confiar em tudo o que eu faço. Leandro e Helena, obrigada por
tirarem minha cabeça do mundo e manterem meus pés no chão quando eu
preciso. Mari, obrigada por me ouvir e nunca soltar minha mão.
Nunca vou poder agradecer o suficiente por todo o trabalho e dedicação
das meninas da Increasy. Alba, você é a melhor agente, amiga e mãe literária
que eu poderia pedir. Obrigada por acreditar nas minhas loucuras. Grazi,
Mari, Guta, vocês estão sempre comigo comprando todas as brigas e todas as
ideias, e isso é tudo que uma autora pode querer. Obrigada!
Uma menção honrosa ao meu querido amigo e muso inspirador, JP Lima!
Me desculpe por ter te transformado no estagiário pervertido por uma
página! Prometo compensar esse lapso em personagens futuros. Você merece
o mundo!
Para Lucy e Susi, que foram as madrinhas dessa história, um obrigada
gigantesco por terem me aguentado falando sobre isso, sido minhas
primeiras leitoras e terem servido de inspiração indireta para criar as
personagens desse livro! Amo vocês!
Um imenso agradecimento também aos meus amigos pessoais e
profissionais que trabalharam na feitura desse livro! Letícia e Renato, vocês
são maravilhosos e é uma honra e um privilégio contar com vocês em todos
os projetos!
Meus apoiadores no Catarse, eu não seria nada sem vocês! Obrigada Babi
Angelli, Raphael Castilho, Malu Centin, Renata e Ana Bia Glanzmann, Lucy
Boni, Sandra Siriani, Aline Lima, Núbia Gusmão, Eliane Bernardes, Aline
Tavares, Marcos Vinícius Moreira, Susi Lopes, Domenica Mendes, May
Mortari, Andreza Garces, Carol Vidal, Gabi Balarin, Aione Simões e
Gabriele Souza. Vocês tornam esse e todos os projetos possíveis por
acreditarem em mim o suficiente para me manterem trabalhando! Nada disso
seria possível sem vocês!
E a todos os leitores que acompanharam essa história, seja nas postagens
que deram início a ela no Twitter, seja nos mais de 12 meses em que ela foi
postada no Wattpad, ou seja agora, na Amazon, muito obrigada! Se eu insisti
em terminar essa história, foi graças a vocês. Por vocês, tudo sempre vale a
pena.
N ascida em 7 de maio de 1992, Lara Siriani — ou Larissa Siriani — é
uma paulistana que nunca fez a menor ideia do que queria fazer da vida; até
começar a escrever. Publicada desde os 17 anos, é autora de mais de dez
obras entre contos e romances. Vive em São Paulo com os pais e quatro
cachorros, e sonha em viajar o mundo, encabeçar a lista de best-sellers e
conhecer o príncipe encantado. Não necessariamente nessa ordem.
Saiba mais
Twitter: @LarissaSiriani
Instagram: @LarissaSiriani
Site: www.larissasiriani.com.br/blog

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