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Reflexões do poeta do Canto VIII

● Contextualização

Vasco da Gama permanece nas naus e decide não desembarcar, visto que
já não confia no ambicioso Catual, pois já o traíra anteriormente, era muito
ambicioso (“cobiçoso”), corrupto (“corrompido” e “pouco nobre”). Por outro
lado, Gama espera vir a descobrir a verdade com o tempo, daí também a sua
decisão de permanecer a bordo da embarcação.
Ora, esta referência a Vasco da Gama é o exemplo que serve de ponto de
partida para a reflexão do Poeta, que adverte, a partir do verso 5 da estância
96,para o efeito corruptor do dinheiro, que tanto sujeita os ricos como os pobres.

● Estrutura interna

• 1.ª parte (estância 96) – Reflexão sobre o poder do dinheiro, a que ninguém
escapa, seja rico ou pobre.

• 2.ª parte (estâncias 97-99) – Exemplos que confirmam a reflexão feita na estância
96.

OUTRA HIPÓTESE

• 1.ª parte (4 primeiros versos da estância 96) – Caso particular dos Portugueses,
vítimas da cobiça do Catual.

• 2.ª parte (v. 5, est. 96 – est. 99) – Generalização dos perigos da ambição
desmedida e do poder corruptor do dinheiro, na Antiguidade e na atualidade.

● Análise da reflexão

•1.ª parte – Reflexão sobre o poder do dinheiro.

▪ Momento narrativo e descritivo: Vasco da Gama permanece a bordo das naus,


desconfiado do Catual indiano, que exigiu a entrega de mercadoria para permitir
aos Portugueses prosseguir viagem, situação que motiva a reflexão do Poeta.

▪ Caracterização do Catual, do Regedor: “cobiçoso”, “corrompido”, “pouco


nobre” → adjetivação.

▪ Caracterização de Vasco da Gama:


▪ O poder corruptor do dinheiro, que tanto sujeita os ricos como os pobres:
ninguém escapa ao “vil interesse” e à “sede imiga” do dinheiro, “que a tudo nos
obriga”.

▪ O uso da 1.ª pessoa do plural (“nos”) sugere que se trata de uma situação comum
a todos os homens.

• 2.ª parte – Exemplos que fundamentam o ponto de vista do Poeta

A partir da estância 97, o Poeta vai procurar fundamentar a sua reflexão,


apresentada na anterior.

▪ Exemplos da Antiguidade que fundamentam o ponto de vista do Poeta, isto é,


que exemplificam o poder negativo do dinheiro e do ouro:

. O Rei da Trácia, Polimnestor, assassinou Polidoro, filho de Príamo, rei


de Troia, para lhe roubar o ouro que Polidoro transportava. De facto,
para o salvar, quando a cidade estava prestes a cair em poder dos
Gregos, o rei confiou-o/enviou-o com ouro ao monarca da Trácia que,
todavia, se apoderou do metal precioso e o assassinou, atirando o seu
corpo ao mar.

. Acrísio, rei de Argos (Grécia), encerrou a sua filha Dánae numa torre
para a impedir de ter filhos e, deste modo, não se concretizasse uma
profecia de um oráculo que anunciou a morte do soberano às mãos de
um neto. Porém, Júpiter metamorfoseou-se em chuva de ouro,
introduziu-se na torre e engravidou-a. Desse ato nasceu Perseu, que,
concretizando a profecia, assassinou o avô acidentalmente.

. Tarpeia, uma jovem romana, filha de Spurius Tarpeius, abriu as portas da cidade
de Roma aos inimigos Sabinos, em troca de uma recompensa: pulseiras de ouro.
Tácio, rei dos Sabinos, consentiu, mas ao entrar na cidadela, repugnado pela
traição da jovem, atirou-lhe não só a bracelete, mas o escudo que tinha no
braço. Os soldados fizeram o mesmo e Tarpeia morreu esmagada.

▪ A perífrase e a dupla adjetivação do verso 6 da estância 97 intensificam o brilho


do ouro, do dinheiro, causa da sedução, denunciando os vícios da ganância, da
traição e da avareza.

▪ Nas estâncias 98 e 99, o Poeta enumera os efeitos negativos do dinheiro/ouro:

. Derruba o que há de mais forte e conduz à traição: os soldados rendem-se


quando as suas fortalezas ainda se encontram abastecidas (“Este rende munidas
fortalezas”).

. Promove a traição e a falsidade entre os amigos: “Faz tredores e falsos os


amigos”.

. Transforma o mais nobre em vilão / Corrompe o que há de mais nobre e puro,


sem temer a desonra: a ambição material pode levar nobres, capitães ou virgens
a renderem-se ao seu poder, mesmo tendo consciência de que a sua honra ficará
manchada (“Este corrompe virginais purezas, / Sem temer de honra ou fama
alguns perigos…”).

. Deturpa o conhecimento / corrompe as ciências: “Este deprava às vezes as


ciências”.

. Altera / corrompe os juízos e as consciências: “Os juízos cegando e as


consciências.”

. Distorce / perverte a interpretação de textos: “Este interpreta mais que


sutilmente / Os textos…”.

. Manipula as leis e a justiça, que se aplicam arbitrariamente: “este faz e desfaz


leis”.

. Fomenta o perjúrio / a difamação: “Este causa os perjúrios entre a gente”.

. Propaga a tirania dos reis: “E mil vezes tiranos torna os Reis” [a hipérbole
intensifica a ideia de tirania].
. Corrompe os membros do clero, ainda que sob uma capa de virtude.


Em síntese, os vícios provocados pela ambição são os seguintes:

i) a traição (“Faz tredores e falsos os amigos”);

ii) a corrupção (“Este corrompe virginais purezas”);


iii) a arbitrariedade (“Este interpreta mais que sutilmente / Os
textos…”);

iv) a mentira / o perjúrio (“Este causa os perjúrios entre a gente”);

v) a tirania (“E mil vezes [hipérbole] tiranos torna os Reis”).

▪ A anáfora do pronome demonstrativo «Este» amplifica os efeitos perversos do


dinheiro.

▪ Adotando uma perspetiva didática, o Poeta denuncia a degradação moral da


sociedade do seu tempo, destacando a valorização do dinheiro enquanto fonte de
corrupção. Ao longo da reflexão, Camões releva o facto de o dinheiro e os seus
efeitos perniciosos atingirem a sociedade em geral e os vários grupos sociais.
Ninguém lhe fica imune, desde os mais ricos aos mais pobres, incluindo os
próprios membros do clero: amigos, inimigos, nobres, chefes militares, homens
de ciência, homens das leis, reis e religiosos.

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