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O ÍCONE BIZANTINO E A PRODUÇÃO DE SENTIDO NOS IMIGRANTES ORTODOXOS UCRANIANOS

O ícone bizantino e a produção de sentido


nos imigrantes ortodoxos ucranianos

Paulo Augusto Tamanini


Mestrando em História – Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Autor de, entre
outros, IERATIKON. A divina liturgia no rito bizantino. São José: Ecclesia, 2002.

RESUMO
O presente artigo pretende analisar como a imagem iconográfica presente na Igreja Ortodoxa
Ucraniana era percebida, sentida e usada na experiência cotidiana de famílias imigrantes
ucranianas em Papanduva – SC, município localizado no norte catarinense. Observa-se que a
Igreja Ortodoxa, presente na cidade desde 1931, se apresentava como instituição formadora
e reguladora das formas do viver dentro da família, casas, vizinhanças que, de certa forma,
estava relacionado com o poder da imagem e a imagem do poder desta instituição religiosa.
Para as análises, busco observar relações que possibilitem reflexões acerca das categorias
como identidade e imagem entrelaçadas à imigração, na qual é possível perceber construções
culturais e religiosas. A análise do discurso, na perspectiva da construção de subjetividades,
auxilia no entendimento de como o grupo de imigrantes tece para si a auto-imagem.
PALAVRAS-CHAVE: Ícone bizantino; Igreja Ortodoxa; produção de sentido.

ABSTRACT
This article examines how the iconographic image in Ukrainian Orthodox Church was seen and
used in daily life of immigrant families Ukrainian in Papanduva – SC, city located in northern
Santa Catarina, Brazil. The Orthodox Church is in the city since 1931 and it was the institution
of training and regulatory forms of life within the family, homes, neighborhoods, and this was
linked to the power of image and image of the power of this religious institution. For analysis,
i reflect on categories of identity and image where you can understand cultural and religious
buildings. The analysis of speech, in view of the construction of subjectivities, helps in the
understanding of how the group of immigrants made for you the self-image.
KEYWORDS: Byzantine icon; Orthodox Church; the production of sense.

Recebido em: 10/02/2009 Aprovado em: 10/04/2009

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PAULO AUGUSTO TAMANINI

O ícone bizantino e a produção de sentido nos imigrantes


ortodoxos ucranianos

A iconografia bizantina, de acordo com a sagrada de nos transmitir uma verdade; desta
tradição cristã ortodoxa, desenvolveu-se decorre a beleza de uma obra. Nesse sentido,
primeiramente no Oriente. É dita como uma a arte sacra ocupa um lugar de primeira ordem
forma de arte que se tem usado no cristianismo como verdade teológica e transfigurada nas
desde a antigüidade e que se conservou na vivências. Portanto, o ícone pretende ser a
Igreja Ortodoxa, como expressão de sua fé. imagem do Invisível. Quando se entra num
As paredes e as abóbadas dos templos, assim templo ortodoxo imediatamente percebe-se
como as casas dos fiéis são portadores destas inumeráveis ícones por toda a igreja.
obras de arte que pretende anunciar, em Bizâncio irradiou esta arte por todo o
linhas e em cores, a verdade revelada nos império Cristão e hoje se encontra em todas
Evangelhos: a Encarnação do Filho de Deus as Igrejas Ortodoxas espalhadas pelo mundo.
para a Salvação da humanidade e do Cosmo A atualidade do ícone é surpreendente. Há
inteiro (EL HAJ, 1971) um movimento de redescoberta das fontes
Desta forma, entende-se que o ícone não da Cristandade e o Ocidente Cristão cada
é mera arte decorativa. Sua finalidade não é dia se extasia e surpreende com as riquezas
ornamentar um ambiente residencial, nem dos ícones. Estes têm lugar e papel
simplesmente o de embelezar um templo: é importantíssimo para a espiritualidade
um meio de comunicação entre o imigrante ortodoxa para podermos compreender o lugar
e o seu sentir religioso. O ícone é uma unidade ocupado pelo Ícone, já que não existe nada
artística, espiritual e litúrgica que se identifica semelhante na tradição religiosa ocidental, seja
com uma fé e com uma Igreja e por isso o na forma artística, seja no conteúdo espiritual.
ícone é pintado conforme as normas De fato, para o Ocidente Cristão, o ícone é
iconográficas de tradição milenar, desconhecido e incompreensível até que se
remontando a época apostólica (CLEMENT, percebe sua função e sentido. É isto que nos
2003). propomos aqui, uma aproximação e penetração
A tradição ortodoxa incorporou a arte na no mundo do Ícone.
sua vivência espiritual, na medida em que a A palavra ícone vem do grego EIKÓN, que
Beleza é um dos nomes de Deus e onde há significa imagem, palavra com amplas
beleza há harmonia e Deus está presente. A aplicações e que, no Ocidente, é extensiva às
Ortodoxia reconhece Deus como primeiro figuras tridimensionais que representam o
artista: “E Deus disse: haja luz. E houve luz. E Cristo ou os santos. O Oriente Cristão não
viu Deus que era boa a luz” (Gênesis 1). Deus produz estátuas por considerar as dimensões
criou o mundo e viu que era bom! O Criador tridimensionais das formas um passo para
de todas as coisas fez sua obra e a antropomorfizar a representação e deslizar
contemplou, portanto a arte tem a função para a idolatria. Um Ícone, portanto, é

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simplesmente uma “imagem pintada sobre de subsistência e principalmente, a extração


a madeira, com técnica muito especial e de de erva mate. Quando novas famílias
acordo com cânones bem definidos quanto chegaram a Papanduva foram agrupadas
ao tema, composição, cor, harmonia que se pelos estabelecidos, no espaço que lhes eram
pretende pintar”, assim define Pe. André próprios, ou seja, na colônia de Iracema.
Sperandio, monge ortodoxo. Parecia ser necessário que esquadrinhassem
Para o imigrante ortodoxo é difícil definir territórios e lá se delimitasse um lugar
o que é um ícone, porque para eles o ícone é específico para os estrangeiros. O imigrante
uma experiência pessoal, a contemplação é o centro por onde gravitam enorme
através da pintura. Portanto, só podemos bagagem simbólica. Quando o indivíduo
defini-lo negativamente, ou seja, não é um chega a um lugar, com ele comparecem
retrato, não se pintam sentimentos ou tantos outros elementos que formam sua
emoções. Não se adora o ícone, não há risco ‘persona’ social. Por esta ‘persona’ é possível
de idolatrar a pintura, pois essa representa compreender seus costumes, maneiras de
uma imagem – um protótipo, um modelo – pensar, seus hábitos e como ele atribui
na realidade, venera-se a pessoa significado às coisas que estão ao seu redor.
representada, não o objeto em si. O ícone é O imigrante é um individuo composto pelo
uma presença misteriosa que não se define. plural: é ele e sua cultura. Neste composto
O ícone não é um simples estilo artístico nem residem elementos que ele pode julgar
um modo histórico de arte, não está preso a passíveis de modificações ou não, e, pode até
um tempo específico. mesmo, reorganizá-los para que abra espaços
O município de Papanduva, Santa para o aparecimento de outros. É uma luta
Catarina, foi criado em 11 de abril de 1954, travada entre aquilo que ele quer reafirmar
antes fazia parte do município de Canoinhas. como característico com o que é negociável,
Em meados do século XVIII, passavam por funcionando como moeda de troca. Neste
estas terras, pela então conhecida “Estrada jogo de negociatas, a religiosidade dos
da Mata” ou “Estrada das Tropas”, hoje BR imigrantes era preservada.
116, os tropeiros vindos do Rio Grande do A imigração não pode ser vista apenas
Sul, conduzindo suas tropas de muares com como mero deslocamento de pessoas, mas
destino ao Estado de São Paulo para suprir o também como deslocamento da cultura e do
mercado de charque, couro e sal. Como neste simbólico que constroem identidade. “A
local havia um ótimo pasto para alimento dos identidade é relativa, está em constante re-
animais, um capim chamado “papuã”, estes elaboração e não é uma só, senão múltipla
se alojavam nestas áreas para alimentá-los e construindo-se, na medida que se articula em
para o repouso de todos, para somente após diferentes espaços”(MONTEIRO, 2004,
alguns dias prosseguirem a viagem. Pela p.128). A identidade é “identificação, é
abundância do capim “papuã”, os tropeiros processo que se dá na família, na religião, na
chamavam estas áreas de Papanduva, aldeia”, pelo contato, pela interação
originando assim o nome da cidade. (OLIVEIRA, 1976, p.4). O contato e a
Por volta de 1828, colonos provenientes interação sugerem ou informam o similar e o
do Paraná, foram se instalando para cuidar dissimilar, o homogêneo e o heterogêneo que
da estalagem dos tropeiros e desenvolver a constroem diferenças, caracterizando o ‘que
pecuária e, com o passar do tempo, a lavoura é’ daquilo ‘que não é’. O jogo dos contrastes

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revela identidades, pois segundo Kathrin Assim, a religiosidade parece ser um


Woodward identificar é, simultaneamente, elemento de identidade que está
construir diferenças (WOODWARD, 2000, intimamente ligada à etnicidade do grupo e
p.39). A identidade é plasmada, é construída “pode se tornar um elemento poderoso de
e é atribuída na relação, mas movida por identidade, verdadeira reivindicação
interesses (CHARTIER, 1990, p.17), sejam cultural”, como afirma Andrea Semprini
eles políticos, religiosos e étnicos. Os interesses (SEMPRINI 1999, p.163).
selecionam, mantém e reforçam identidades Segundo o historiador romeno Mircea
objetivando fins outros que se mascaram na Eliade, a igreja é um espaço sagrado com um
suposta abnegação e desprendimento, valor existencial importante para o homem
residentes no simples fato de preservar. O religioso e é ela quem orienta as possibilidades
grupo constrói imagens de si na relação com das vivências no viver real (ELIADE, 1999, p.
o diferente e esta construção está em plena 26-27). As casas da colônia estavam
transformação, pois o outro sofre de mutações construídas ao seu redor como se buscassem
constantes e se prolifera em demasia. Não o aconchego, a proteção e a segurança de
há somente um outro. Diante de cada pessoa um centro ou ainda como filhos que se
o outro se propaga tão velozmente quanto aninhavam nos braços da mãe, sentindo-se
maior for o número de relacionamentos. Em seguros, protegidos. Também pode ser vista,
determinados circunstâncias e tempos até muito além do espaço reservado ao sagrado,
mesmo aqueles que são tidos como similares, místico e espiritual, mas também como um
reaparecem diante dos olhos como um outro. lugar de afirmação, preservação e
As réplicas perfeitas talvez, só existam no transmissão da cultura. Daí, pode-se pensar
imaginário. Os pares não são cópias; são que o pleno exercício da espiritualidade
sujeitos cuja individualidade é guarda relação intrínseca com evidentes
ontologicamente construída pelo plural, e, que finalidades como para outros objetivos , não
se diferenciam entre si. Posto isto, parece que implícitos.
o imigrante associava sua religiosidade e sua Segundo os cânones da Igreja Ortodoxa,
veneração aos ícones, como marcas de toda igreja deve ser construída estando de
pertencimento e de identidade. frente para o nascente, devendo os fiéis estar
Os imigrantes construíram suas casas em com a face voltada para o Oriente (onde
sistema de mutirão e, da mesma forma, nasce o sol) no momento da celebração da
ergueram seu templo: uma igreja no estilo Divina Liturgia, pois Cristo é a luz que veio
bizantino eslavo, toda de madeira extraída para iluminar as trevas (SPERANDIO, 2008),
da mata. Depois de pronta, em 1931, nela se revela o sacerdote ortodoxo.
reuniam os imigrantes para manifestar sua A igreja, espaço sagrado, entendida por
religiosidade, e solidificar seus laços familiares Émile Durkheim, como sendo o lugar
e sociais. destinado à vivência religiosa, não pode co-
Observa-se que a igreja ocupava um existir no mesmo espaço do profano nem no
espaço preponderante no pensar social dos mesmo tempo em que as coisas profanas
imigrantes: a igreja era um lugar de poder convivem, por isso ela edifica seu calendário,
social. Parecia ser ela o ponto de separando dias do trabalho dos dias dedicados
convergência e o eixo centralizador das ao sagrado, indicando dias específicos para
engrenagens do existir étnico daquele lugar. as festas (DURKHEIM,1989) ou seja,

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celebrar os dias santos. Se de um lado, a Igreja santos ou passagens da vida de Jesus


marcava o tempo, prescrevendo quais dias iconografadas nas paredes, sentiam-se
deveriam ser observados como dias santos, impelidos, pelo olhar, a buscar no passado a
por outro, o grupo o marcava com suas fé que seus antepassados professaram, bem
características. A Igreja dos ucranianos como recordações, lembranças.
tornou-se típica; as marcas do pertencimento Tudo aquilo que atrai e prende nossa
a tornava elemento identificador de etnia. O atenção pelo olhar chama-se, segundo a
grupo deixava seus rastros, seus selos, de semântica latina, de ‘espetáculo’. Quando
forma visível afastando possibilidades de temos a sensação de sermos testemunhas de
confusão e a inteligibilidade e decifração algo surpreendente, denominamos de
desses códigos se fazia possível para os ‘espetacular’ a visão que obtivemos do
membros de sua grei. ocorrido. O espetacular dá-se pela
Também Certeau entende que é contemplação, atraída pela plástica visual,
necessário que a igreja construa seu próprio pela força do convencimento, pela afirmação
espaço onde seja possível gerir seus saberes da suntuosidade das formas, cores e traços
e poderes, já que ela se coloca como ‘outra’ como também pela representação dada em
dentro de um espaço social previamente seu conjunto. Os ícones, modelados e
organizado (CERTEAU,1994). A igreja, para produzidos para promover a sensibilidade,
além de constituir o território autorizado e através da visão, articulava o real com a
apropriado onde se sucediam estas possibilidade e a probabilidade do real. A
manifestações religiosas, era uma instituição igreja era a instituição que contribuía para a
onde o simbólico ultrapassava as fronteiras manutenção da ordem, ou melhor, reforçava
do real, uma vez que lidava com realidades simbolicamente a ordem pela pregação
subjetivas, de natureza espiritual, proferida por quem era autorizado a fazer pela
predominantemente individualizada, por mais sua condição: o sacerdote. O sacerdote
que se manifestasse coletivamente. ortodoxo não era a instituição, mas o seu
A Igreja Ortodoxa, fazendo uso do recurso representante legal que usava da palavra
da imagem através da abundância dos ícones como meio de convencimento, como
expostos nas paredes do templo, levava os necessidade de comunicação. O sacerdote
corpos piedosos de seus fiéis às experiências tentava transmitir um ensinamento por via
tidas como contemplativas, reforçando o de autoridade e apelo à obediência, isto é,
simbólico inserido no factual. A imagem em nome de outro: em nome da Igreja a quem
passava a ter lugar privilegiado no âmbito da deveria estar subserviente. Suas palavras não
representação. A igreja não era somente a eram reconhecidas como suas, mas da
soma do conjunto de imagens, mas uma instituição a que pertencia, por isso tinham
instituição que também socializava memórias peso: assim criam, assim faziam valer. As
pelas imagens. Nas palavras de Debord: “O palavras instituídas pelo seu legítimo
espetáculo, como tendência a fazer ver (por representante clerical não eram reconhecidas
diferentes mediações especializadas) o como regras impostas, mas como princípios
mundo que já não se pode tocar diretamente, coletivamente organizados e que precisavam
serve-se da visão como sentido privilegiado ser colocados em prática. A estratégia
da pessoa humana” (DEBORD, 1997). Os discursiva adotada por ele visava produzir uma
ucranianos ao entrarem na igreja repleta de naturalidade no processo de imposição, como

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demonstra Bourdieu: “O que faz o poder das Tal refinamento é conseguido pelo contínuo
palavras e das palavras de ordem, poder de esmero das sensibilidades, exercitado nas
manter a ordem ou de subvertê-la, é a crença tramas, nos enredamentos das vivências de
na legitimidade das palavras e daquele que certa sacralidade. Contemplar um ícone, sem
as pronuncia, crença cuja produção não é da este preparo, é contemplar sem compreender,
competência das palavras” (BOURDIEU, por isso é uma contemplação estéril de
1996, p.14) . Somada à palavra proferida sentido e visão: deve-se compreender o que
estava a figura do clero ortodoxo, portador se vê ou, do contrário, não há o que se ver
de um extenso capital simbólico, que (FOERSTER,1996). Estar diante do ícone de
agigantava o poder de persuasão e de devoção parecia, para alguns fiéis estar diante
convencimento acomodando a tudo isso o de sua história, pois as lembranças do passado
espetáculo do figurino: a batina preta vestia um impingiam a nostalgia, remetendo o orante a
homem maduro de voz grave, com barbas e outros tempos, quando a mesma contemplação
cabelos compridos. A presença do padre era feita, em sua terra natal, em sua igreja. Tais
impunha a autoridade e o respeito, mesclada reminiscências invadiam o cenário, sem pedir
por uma nesga de mitificação à pessoa religiosa. licença, interrompendo o momento de oração
Ao reverenciar a pessoa do sacerdote ou para dar lugar a saudade.
ao contemplar os ícones nas paredes da Segundo Chartier, as práticas do passado
igreja, os fiéis estavam diante do estupor da chegam até nos, geralmente, através de textos
imagem. A imagem discursa com vozes escritos que obedecem a uma lógica
‘ouvidas pelos olhos’, pela força impositiva de adequada e seqüencial. “A imagem obedece
sua aparência. A estampa, impregnada de uma outra lógica, que não é mesma da
sentidos, instiga e faz emergir as escrita, a lógica da construção e decifração
sensibilidades, parece mendigar por ser da figura” (CHARTIER, 2004, p.12) . O que
compreendida sem precisar pedir, por aquilo nos chega do passado através da imagem,
que demonstra, por aquilo que oferta na nem sempre é passível de fácil decifração,
evidente plasticidade e maleabilidade de pois foge do senso comum; há que se ter um
estilos. A sócia majoritária da esperança é a olhar aguçado e esmerado. A escrita, penso,
imaginação. A imaginação remete às exige igualmente refinamento, todavia, não
imagens criadas no abstrato, em busca de tão contundente, para sua compreensão e
uma corporificação no real. Ela alimenta a assimilação intelectual. Quem já não
esperança com seus devaneios, criando experimentou a sensação de deleite, de
mundos e entidades possíveis, presumíveis, satisfação e de catarse, ao se deparar com
plausíveis e prováveis, fazendo com que o um bom texto, livro ou obra, diante de
sonho se aproxime ao máximo do concreto. palavras tão acertadamente construídas, de
Por isso, talvez , como afirma Eliade : “A mais pensamentos tão inteligentemente
pálida das existências está repleta de símbolos articulados, das idéias que levam a fazer
o homem mais realista vive de liames entre reflexões, materializados nas
imagens”(ELIADE, 2002, p.12). Para tanto formas elegantes do escrever? O texto escrito
faz uso de uma linguagem apropriada: a nos permite tais sensações, talvez porque siga
linguagem do sonho, do imagético. uma trajetória seqüencial, puxado pelo
A linguagem iconográfica é codificada campo gravitacional das teorias, calçado
pelo refinamento de quem tenta decifrá-la. pelos conceitos, protegido pelos métodos,

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tentando fugir de possíveis sofismas, Se na escrita, busca-se uma coerência


resultando numa esperada coerência. lógica e racional, na imagem não se busca, a
O impacto frente à imagem é fruto da priori, elucidações, esclarecimentos ou
percepção que abre possibilidades para explicações do contemplado. Almeja-se um
outros entendimentos, outros olhares. Não entrelaçamento daquilo que está vivo, daquilo
obedece a uma trajetória seqüencial ou um que é real e concreto com aquilo que é
estilo igual a da escrita, mas trilha seus próprios espiritualizado, pensado, imaginado,
caminhos para uma correta interpretação do subjetivado. Confundir, talvez seja a fusão de
que nela se contempla. A imagem tantos olhares subjetivos, de tantos
iconográfica exposta no ambiente propício pensamentos tomados por corretos, mas que
para oração (a igreja) estendia seus rizomas se perdem no ato de se contemplar uma
para além desta finalidade: oportunizava a imagem. Em um ícone, por exemplo, os limites
contemplação. A contemplação é a espaciais da figura não coincidem
comunicação com a beleza e a beleza é necessariamente com a abrangência de sua
essencialmente gratuita, não se impõe apenas representação, ela ultrapassa os perímetros
se propõe (EVDOKIMOV , 1990, p.47). A físicos, impostos pela sempre criativa
beleza nem sempre está naquilo que é imaginação. Ao reverenciar um ícone de
explícito, por vezes ela prefere ser encontrada Cristo ou de Maria, automaticamente, quem
no escondido, não quer ser o centro de o contemplava parecia ser transportado para
convergência de todos os olhares, só daqueles outras dimensões, outras realidades, outros
poucos que a mereçam; a visibilidade de sua contextos.
essência se dá por outras vias, não apenas Os fenômenos visuais ou a visualidade
pelo olhar. Na igreja de rito bizantino eslavo, estética, que dos ícones pareciam brotar,
parece que o mais importante, que o mais podiam determinar algo de histórico, uma vez
sagrado será encontrado no velado, tanto que, que a imagem repercutia de maneira
o altar principal está atrás de uma parede sintomática no imigrante, fazendo-o
chamada iconostase, do grego åßêïíïóôÜóéïí rememorar o pretérito. Sob o prisma da
que significa uma parede ornamentada com exigência metodológica, os ícones podem,
ícones separando o santuário do corpo da então ser encarados como fonte histórica, pois
igreja. O sagrado está polarizado pelo mistério possibilitam lograr alguns entendimentos.
que convida ao respeito e não ao temor. Para Ulpiano Bezerra de Menezes, os ícones
Ainda hoje, muitos cristãos não bizantinos, são um insuperável manancial de
não compreendem o porquê da parte mais informações que seria insensato ignorar , pois
sagrada de uma igreja ortodoxa estar apontam para tantos vetores das vivências
reservada ao clero e alguns auxiliares. Parece do presente e do passado. Os ícones não são
que este fato desconcerta-os, a ponto de ser apenas fontes estagnadas, elas interagem no
necessário desvelar o mistério para satisfazer cotidiano fazendo parte do discurso produzido
a compreensão. Os ucranianos, ao que e circulado por aqueles com quem às imagens
parece, não estavam preocupados com a se afinam. As figuras tornaram-se parte
razão, com os porquês, com a compreensão; integrante da elaboração do discurso
relevante era contemplar, adorar, deixar-se reforçando o seu caráter documental. O
absorver pelo mistério. historiador não pode se deixar seduzir pura e

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simplesmente pela beleza da imagem; mais DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo:


Comentários sobre a sociedade do espetáculo,
do que mensurar sua estética, talvez deva se
Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
ater aos modos de como estas imagens são
DURKHEIM, Èmile. As formas elementares da
apreendidas. Quando o imigrante ucraniano
vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália.
sentia-se atingido pelo estupor da imagem, São Paulo: Ed. Paulinas, 1989.
observa-se um modo peculiar de apreensão ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos: ensaio
que o levava a produzir sentidos. Talvez, seja sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo:
nesta produção de sentidos que resida a chave Martins Fontes, 2002.
para entender tal arrebatamento como ______. O sagrado e o profano. São Paulo:
conseqüência da capacidade que ele tinha Martins Fontes, 1999.
de articular os códigos imagéticos com o real. EL HAJ, Georges. A Igreja Ortodoxa no mundo.
Através das imagens, o passado daqueles Rio de Janeiro: Aurora, 1971.
imigrantes tornava-se coetâneo, tornando EVDOKIMOV, Paul. Teologia da Beleza: a arte
possível não esquecê-lo, reforçando aspectos do ícone. Milano: Mondadori, 1990.
caros ao grupo e ao indivíduo. FOERSTER, Heinz von. Visão e conhecimento:
No rastro deste novo jeito de se fazer disfunções de segunda ordem. In: SCHNITMAN,
Dora Fried (org). Novos paradigmas, cultura e
história, trilham outros tantos exemplos que subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
abrem os olhos para o fato acontecido e sua
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Rumo a uma
decorrente interpretação dadas pela música, “história visual”. In: MARTINS, José de Souza;
pela dança, pelas artes plásticas e ECKERT, C. ; NOVAES, S. C. (orgs.). O imaginário
cenográficas. A história, plasmada pelos e o poético nas ciências sociais. Bauru: EDUSC,
2005.
códigos, pela representação, pelos
entendimentos põem em relevo não somente MONTEIRO, Guadalupe Vargas. Cosmogonia,
mentalidad y región. In: DEMBICZ, Andrzej.
o acontecido, mas os significados que lhe são (editor) Interculturalidad en América Latina en
atribuídos dentro de um contexto. âmbitos locales y regionales. Warszawa: CESLA,
2004.
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e estrutura Social. São Paulo: Pioneira, 1976.
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lingüísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: Laureano Pelegrin. Bauru: EDUSC, 1999.
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CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Entrevista cedida em 20 de junho de 2008.
Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, Acervo do autor.
Rio de Janeiro: Vozes, 1994.
VOVELLE, Michel. Imagens e imaginário na
CHARTIER, Roger. Entrevista a Isabel Lustosa. história: fantasmas e certezas nas mentalidades
RJ: Casa Rui Barbosa. Mimeo, 2004. desde a Idade Média até o século XX. São Paulo,
______. A História Cultural: entre práticas e Ática, 1997.
representações. Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro: WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença:
Bertrand Brasil, 1990. uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA,
CLEMENT, Olivier. Fontes. Os místicos cristãos Tomaz Tadeu. Identidade e diferença. Petrópolis:
dos primeiros séculos. Juiz de Fora: Subiaco, Vozes, 2000.
2003.

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