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Platonistas nos ceus,


epicuristas na terra,
estoicos no mar
Engajamento, escapismo e utopias políticas

ALLAN MORAES

PROJETO PUB-USP 2021-2022

ORIENTAÇÃO: PROF. DR. BRENO BATTISTIN SEBASTIANI

SÃO PAULO

2022
Para Acácio e Amanda.
Sumário

Platonistas nos céus................................ 5

A GEOMETRIA COMO BASE .....................................................................................5


ORDEM, ESTABILIDADE E IMUTABILIDADE ................................................................5
GEOMETRIA VERSUS ASTRONOMIA...........................................................................7
NO CÉU EXISTE UM MODELO PARA A ORDEM NA TERRA .............................................. 12
AS TRÊS TENTATIVAS UTÓPICAS DE PLATÃO............................................................. 13
CALÍPOLIS: PRIMEIRA UTOPIA FILOSÓFICA .............................................................. 14
ATLÂNTIDA E O IMPERIALISMO ATENIENSE ............................................................. 15
MAGNÉSIA: UMA SÍNTESE UTÓPICA........................................................................ 17
DEMÉTRIO DE FÁLERON: O FILÓSOFO-REI EM ESTAGNAÇÃO? .......................................22
O ENGAJAMENTO POLÍTICO E UTÓPICO EM PLATÃO É REAL E IDEAL ............................... 26

Epicuristas na terra .............................. 28

OU: “OS CÉUS NÃO SÃO DIVINOS” ..........................................................................28


UM ÁTOMO NO OCEANO: EPICURISMO COMO ESCAPISMO NUM UNIVERSO AGORA MAIOR .... 29
ESCAPANDO COMO UMA PARTÍCULA SUBATÔMICA: A MÁXIMA EPICURISTA ‘VIVA
DESPERCEBIDO’ E O ESCAPISMO POLÍTICO ............................................................... 32
ESCAPISMO EPICURISTA COMO DEFESA? ................................................................. 35
NO CHÃO E EM PEDRA: A INSCRIÇÃO DE DIÓGENES DE OINOANDA ............................... 36
PASTORALISMO CICLÓPICO E ESQUÉRIA EPICURISTA ................................................. 41
NUM MUNDO TÃO INSTÁVEL, A ATARAXIA NÃO É O SUFICIENTE .................................... 48

Estoicos no mar .................................... 50

O SOL COMO CONSELHEIRO ................................................................................. 50


CRISIPO E O NEXUS ESTOICO................................................................................. 51
AS ILHAS DO SOL DE IÂMBULO.............................................................................. 54
ARISTÔNICO, BLÓSSIO DE CUMAS E OS CIDADÃOS DO SOL .......................................... 58
UM LUGAR SOB O SOL: ESCRAVIDÃO, REVOLUÇÃO, UTOPIAS ......................................... 61
HELIÓPOLIS VERSUS NECRÓPOLIS ........................................................................ 62

Referências .......................................... 70
1

Introdução
Nesta pesquisa analisamos o tema de engajamento político,
escapismo e utopias políticas na antiguidade grega abordando
três escolas de pensamento: 1. platonismo (e sua ênfase no
engajamento político); 2. epicurismo (e seus exemplos de
escapismo político); e 3. estoicismo (exemplo de utopias
políticas). Para isso, como comentadores principais, vamos
recorrer a John Ferguson,1 Peter Green,2 Geert Roskam,3 Page
duBois,4 mais traduções de trechos do grego que sejam
significativas no contexto da discussão.
A proposta não busca congelar os comentários sobre Platão,
Epicuro e Zenão, aqui os respectivos representantes das escolas
relacionadas a engajamento, escapismo e utopianismo político:
a ideia é antes mostrar como elas se relacionam, se influenciam,
se criticam e se contrapõem ao imaginar mundos e cidades-polis
organizados de acordo com seus princípios intelectuais mais
caros e relevantes, e nesse sentido as utopias terão ênfase ao
longo de toda a análise.
A resolução de questões básicas em torno das utopias
políticas gregas e sua recepção em comentadores modernos nos
permitirá discutir temas como gênero e posição das mulheres,
fundação de cidades, colonialismo e imperialismo, críticas e
crises da democracia, escravização antiga e moderna e o papel
das utopias em revoluções sociais.

1
John Ferguson, Utopias of the Classical World. Ithaca: Cornell University Press, 1975.
2
Peter Green. Alexander to Actium: The Historical Evolution of the Hellenistic Age.
Berkeley: University of California Press, 1990.
3
Geert Roskam, Live Unnoticed — Λάθε βιώσας: On the Vicissitudes of an Epicurean
Doctrine. Leiden: Brill, 2007a.
4
Page duBois, ‘The History of the Impossible: Ancient Utopia.’ Classical Philology 101,
n. 1, 2006, p. 1–14. Disponível em: https://doi.org/10.1086/505668. Acesso em: 10
fev. 2021.
2

Esse roteiro começa com Platão e o engajamento político a


partir da análise das relações entre seu pensamento mais
abstrato e seus esboços políticos, que buscam estabelecer uma
ordem estável, uma harmonia hierárquica, espartanizante e
uma estabilidade no tecido social a partir de questões políticas
expostas em narrativas utópicas que emolduram trechos
relevantes de diálogos como Timeu, Crítias, República e Leis.
Analisar essa visão de mundo platônica vai nos permitir, ao final,
contrapor os frutos da Academia, como Aristóteles e Demétrio
de Fáleron, não só aos epicuristas e seu escapismo mas
principalmente ao analisarmos a utopia estoica de Iâmbulo e
seus reflexos ou possível relação na revolta de despossuídos e
escravizados liderada por Aristônico em Pérgamo em torno de
133-130 a.C.
Depois disso, passamos a Epicuro. A inclusão de Epicuro a
princípio parecerá destoante: Epicuro e sua escola no jardim de
Atenas não são recepcionados por pesquisadores
contemporâneos como sintoma de resistência ou ruptura,5
menos ainda como representantes de qualquer expressão
utópica. Entretanto, é exatamente essa ausência que nos vai
permitir entender os limites do conselho de Epicuro quanto a se
“viver despercebido”, e ao analisar um fragmento de Diógenes de
Oinoanda que desenha uma espécie de ‘Idade de Ouro’ em que
uma vida como a dos deuses será realizável, quando todos no
mundo serão sábios e não haverá mais a necessidade de leis ou
muros, já que o mundo estará cheio de justiça e amizade
epicurista, vai nos permitir esclarecer mais a relação entre

5
Notar a ausência de qualquer capítulo dedicado ao epicurismo em duas importantes
referências sobre utopias na antiguidade grega, como em Ferguson, op. cit.,
passim, e em Doyne Dawson, Cities of the Gods: Communist Utopias in Greek
Thought. New York: Oxford University Press, 1992. Com isso, não quero dizer que
há uma falha de abordagem de produções anteriores, como em Ferguson e
Dawson, mas antes que o epicurismo de fato não tem muito a dizer sobre
utopianismo a não ser de forma indireta (como veremos a seguir).
3

utopias e a era de ouro e seu caráter político entre o engajamento


e o escapismo.6 Para reforçar essa análise dentro do legado
epicurista, vamos conferir uma produção do poeta-filósofo
epicurista Filodemo de Gádara (27 Sider = AP XI, 44),7 um
epigrama cujos versos tentam convencer Pisão, seu amigo e
patrono, a aceitar um convite para uma festa convivial entre
amigos epicuristas que, Filodemo garante, é melhor que
qualquer coisa vista na Esquéria, a utópica terra dos feácios da
Odisseia.
Essa análise, mais que nos permitir a distinção entre Utopia
e Arcádia quando opormos a terra dos feácios ao bucolismo da
terra dos ciclopes, vai ajudar também a definir melhor o conceito
de utopia como relacionada à polis e aos assuntos relativos à
cidade, à política, e sua antinomia com o bucolismo pastoril e
escapista, como o que vemos na produção de poetas como
Teócrito.
Como ponto de partida, desde já deve ficar claro que o
conceito de ‘utopia’ e ‘utópico’ é indefinível, pois “o espectro de
sentidos adquiridos [pela palavra ‘utopia’] desafia qualquer

6
Roskam, 2007a, p. 134-135.
7
David Sider, The Epigrams of Philodemos: Introduction, Text, and Commentary. New
York: Oxford University Press, 1997. Cf. PATON, W.R. (ed.). Greek Anthology, Volume
IV. New York G.P. Putnam’s Sons, 1916. p. 90-91. Disponível em:
https://archive.org/details/greekanthology04newyuoft/page/
90/mode/2up. Acesso em: 22 jun. 2022. Adicionalmente a Sider (1997) e Paton (1916),
vamos usar e adaptar a tradução de Leonardo Teixeira de Oliveira. Os epigramas de
Filodemo de Gádara: introdução, tradução e comentários. Orientador: Prof. Dr.
Roosevelt Araújo da Rocha Júnior. 2021, 381 fl. Tese (Doutorado em Letras) — Setor
de Ciências Humanas da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2021.
Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/73847. Acesso em: 22 jun.
2022.
4

tentativa de definição”;8 além disso, Page duBois, ao retomar as


palavras de Fredric Jameson, autor de Archeologies of the Future,
nos permite, mais que definir, antes interpretar e ler a utopia
como inesperado sintoma, como prática figurativa na
narrativa, figuração textual que emerge da inconstância.
Esta emergência é quase como um inconsciente que se deixa
falar na história, revelando desejos impossíveis, em
rupturas que persistem e rompem a uniformidade.9

Essa ruptura com o desejo de uniformidade e manutenção


do status quo será posta em evidência quando passarmos para a
narrativa da utopia estoica das Ilhas do Sol de Iâmbulo, que,
apesar de apresentar a mesma ansiedade por harmonia social
expressa em todas as utopias políticas, pode ser lida como
instigadora duma ruptura social: apesar das objeções de
classicistas como Moses Finley, Thomas Africa e Peter Green,
Iâmbulo será lido como a expressão inspiracional de uma
revolução de escravizados em Pérgamo que, sob o comando de
Aristônico, um filho bastardo de um nobre com uma harpista, se
autodenominaram heliopolitai, ‘cidadãos do Sol’, e subverteram a
ordem imposta a partir do centro de um novo e vasto império
romano. Ao final vamos buscar dar algumas respostas a questões
como escravidão e morte social, imperialismo, revolução e
utopias, e tornar mais complexa a relação das utopias com
nossos problemas e diagnósticos políticos e sociais de hoje.

8
Marília P. Futre Pinheiro, “Utopia and Utopias: a Study on a Literary Genre In
Antiquity”. In: Shannon N. Byrne et al. (ed.), Authors, Authority, and Interpreters in the
Ancient Novel: Essays in Honor of Gareth L. Schmeling. Kooiweg: Barkhuis, 2006.
Disponível em: http://www.jstor.org/stable/j.ctt13wwxhm. Acesso em: 10 fev. 2021.
p. 147-171. Uma retomada do conceito de utopia a partir de Thomas Morus também
é feito por Maria das Graças de Moraes Augusto, ‘Discurso utópico e ação política:
uma reflexão acerca da politeia platônica’. Classica, Belo Horizonte, 3, p. 45-66,
1990. Disponível em: https://revista.classica.org.br/classica/article/view/596.
Acesso em: 10 fev. 2021.
9
duBois, 2006, p. 1.
5

Platonistas nos céus


A geometria como base

ἀεὶ γεωμετρεῖν τὸν θεόν


o deus sempre geometriza
Plut. Quaest. conviv. 8.2.1-4

Como a filosofia de Platão complementa sua visão política?


Vamos usar aqui como ponto de partida a teoria das formas de
Platão: das conquistas intelectuais da antiguidade grega, uma
das mais discutidas, refutadas, elogiadas e apropriadas por
todos que discutem sobre tudo: não só matemática e geometria,
mas também filosofia e política; daí podermos fazer associações
entre engajamento político em Platão ao mesmo tempo que
abordaremos seu pensamento mais abstrato, sua visão política e
suas três utopias — Calípolis, Atlântida e Magnésia.

Ordem, estabilidade e imutabilidade

Platão acredita numa realidade metafísica perfeita e,


poderíamos até dizer, esférica e estável: como veremos mais
adiante, no Timeu, entre as seções 27 e 52, Platão nos apresenta
um artífice, um demiurgo que modela um cosmos na forma de
uma esfera que gira em velocidade uniforme sobre seu próprio
eixo — aí podemos ver não só a matemática embasando uma
visão cosmogônica, mas mesmo a visão política do filósofo
ateniense: a ordem universal do cosmos deve se refletir numa
ordenação social estável.10 Uma visão de mundo (social e política,
claro) que, nas palavras do historiador britânico Peter Green,
podemos aqui associar a

10
Green, 1990, p. 455.
6

teorias universais abstratas que predicavam um padrão


cósmico de existência consistente, imutável, um santificado
status quo que rotaciona sobre si mesmo em perfeita
circularidade.11

Essa influência do pensamento matemático de Platão


permanece durante tanto tempo entre os filósofos gregos
subsequentes que, séculos depois, no diálogo Symposiaka,
Plutarco traz uma discussão de mesa entre participantes de uma
festa convival em que o tema da matemática e da geometria
ainda se mescla com a visão de mundo política: a certa altura,
eles passam a discutir uma frase atribuída a Platão, que teria dito
que “o deus sempre geometriza”. No mesmo contexto dessa
discussão podemos facilmente conferir que existe algo mais por
trás dessa afirmação gnômica, como diz Green,12 do que nossos
olhos podem ver: um dos participantes diz que as palavras
aludem à geometria como a busca por uma verdade eterna e
abstrata, e outro (o próprio Plutarco), que elas simbolizam o
monadismo perfeito e ideal da matéria e da forma estabelecida
pelo artífice do cosmos — até aqui tudo bem: pura discussão
abstrata e teórica: física, matemática e geometria, mas o que
chama a atenção em seguida é que o terceiro participante da
discussão afirma que, enquanto a aritmética é igualitária e
populista, a geometria é ideal para uma “prudente oligarquia” ou
para uma “legítima monarquia”.13 Como bem resume Green,
nesse contexto, a frase atribuída a Platão poderia ser muito bem
traduzida como “o deus sempre apoia a distinção apropriada
entre as classes”.14

11
Id., p. 457-458.
12
Id., p. 455.
13
Plut. Quaest. conv. 719b.
14
Green, 1990, p. 455.
7

Apesar de Platão sempre apresentar um artífice que molda


um universo a partir da matemática pura e da geometria, as
buscas intelectuais que usavam a matemática podem ser vistas
como uma característica daquele complexo movimento que, do
século quarto em diante, colocou um crescente peso no
conservadorismo bien-pensant de donos de propriedades, com
um correspondente e profundo desprezo por atividades
banáusicas cotidianas, acima de tudo pelo trabalho manual e
pelas habilidades do artesão ou do trabalhador.15
Assim, podemos entender também como exigências sociais
(ou de classe), mas também não menos intelectuais, explicam
por que razão o conhecimento de geometria seria um dos pré-
requisitos para qualquer estudante buscando se inscrever na
Academia: Platão teria afirmado também que a geometria — “o
instrumento de consciência de classe de oligarcas cobiçosos por
estabilidade em seus próprios termos”16 — aspirava na direção
superior do puro inteligível e rejeitava o mero ganho material:
Euclides ordenou a seu escravo dar uma gorjeta de três óbolos a
um estudante que teria questionado o que ele ganharia por
aprender geometria, e Platão, segundo Plutarco, condenou
matemáticos que, usando instrumentos, tentaram duplicar
mecanicamente um cubo exatamente porque isso rebaixava a
geometria do plano do eterno e incorpóreo para uma mera
reprodução física.17

Geometria versus astronomia

A rejeição de Platão por atividades cotidianas, que


buscavam rebaixar qualquer conquista intelectual abstrata à
mera reprodução física num mundo material, vai tão longe que,

15
Green, id., p. 455.
16
Ibid., p. 455.
17
Plut. Quaest. conv. 718f.
8

no livro sétimo da República, para nossa surpresa, nos


deparamos com esta afirmação:
προβλήμασιν ἄρα, ἦν δ᾽ ἐγώ, χρώμενοι ὥσπερ γεωμετρίαν
οὕτω καὶ ἀστρονομίαν μέτιμεν, τὰ δ᾽ ἐν τῷ οὐρανῷ ἐάσομεν,
εἰ μέλλομεν ὄντως ἀστρονομίας μεταλαμβάνοντες χρήσιμον
[…].
é fazendo uso de problemas, disse eu, como no estudo da
geometria, que faremos incursões na astronomia também, e
vamos ignorar as coisas nos céus se quisermos ter uma parte
na valorosa ciência da astronomia […].18

Mas mesmo que Platão demonstre nessa passagem certa


rejeição à astronomia por puro desprezo a qualquer atividade
que se assemelhasse a funções de trabalhadores e operários
(como marinheiros que observam os céus apenas para navegar),
o cosmos fixo, ordenado, regulado e imutável é ainda em Platão
um modelo de uma ordenação social: um cosmos assim
matematicamente ordenado, que se move em torno da Terra
(com ela própria no centro e como ponto focal) é, segundo Green,
uma teoria que poderia muito bem ter sido pensada apenas para
“encorajar conceitos hierárquicos e de ordem fixa, com
macrocosmo e microcosmo refletindo uma imutabilidade física,
teológica e política — tanto na terra como nos céus”.19 Essa
aparente uniformidade de movimento nos céus
deu origem a uma complexa, e por fim lunática, teologia
astral, pela qual as estrelas e os planetas, a Terra e a Lua,
eram dotadas não apenas de vida senciente, mas também
com o poder de afetar cada detalhe da vida humana e da
sociedade, através de um processo de correspondências
cósmicas. Daí o desenvolvimento da pseudociência da
astrologia. A divindade e a vida de corpos celestes, seu
suposto movimento regular, circular, o postulado

18
Pl. Resp. 7.530b.
19
Green, op. cit., p. 454.
9

geocêntrico que embasa quase toda teoria astronômica: isso


tudo emerge como aspectos de uma Weltanschauung tão
profundamente arraigada na psiquê grega que nem mesmo
evidências aparentes e contrárias a isso poderiam erradicá-
la, e que levaram a teorizações um tanto
extraordinariamente ingênuas — embora, devemos
enfatizar, não para uma casuística conscientemente
desonesta — num processo conhecido por pensadores atuais
como “salvar as aparências”, um “maravilhoso problema”
que envolve, primeiro e antes de tudo, explicar a aparente
irregularidade dos planetas em termos que preservavam a
regularidade e circularidade geral nas revoluções dos corpos
celestes como um todo.20

Como dissemos, isso já havia aparecido no Timeu: por trás


dessa visão resta um terror primevo do caos, do mutável, do
fluxo imprevisível das meras aparências mundanas que emerge
claramente já desde os pensadores da Grécia mais arcaica, como
Hesíodo — e a polis de Platão passava agora por todas essas
mudanças, indo da demagogia viciada de líderes populistas que
eram balanceadas (ou melhor, compensadas negativamente)
pela violência totalitária de oligarquias extremistas, como a dos
intelectuais aristocráticos que em 411 lideraram a revolução dos
Quatrocentos;21 não sendo este, porém, o único evento político
de choque e terror caótico que Platão experimentou ao longo de
sua vida: seu tio Crítias fez parte da junta autoritária dos Trinta
tiranos, que tinha apoio de Esparta (sociedade pela qual Sócrates
nutria simpatias); Platão também foi convidado a fazer parte da
‘caça às bruxas’ promovida pelos Trinta; e em 399, depois de anos
de guerra civil, a democracia livre, o poder dado aos demoi,

20
Id., p. 454-455.
21
Id., p. 56.
10

condenou Sócrates à morte — em todas essas ocasiões Platão


recusou o engajamento político na prática.22
Mas Platão não permaneceu até o fim da vida voltado apenas
sobre si numa estagnação imóvel: aos sessenta anos viajou à
Magna Grécia a convite da corte de Dião, cunhado do tirano de
Siracusa, Dioniso I. Encontrou ali também Arquitas de Tarento,
filósofo, matemático e astrônomo pitagórico. Encontros e
experiências que teriam um impacto não só no pensamento de
Platão mas também em sua vida.23
Os pitagóricos de Siracusa fizeram Platão enxergar uma
verdade diferente de todas que tinha obtido até então de
Sócrates: ofereceram a Platão a certeza da imortalidade ao
revelar a ele “um mundo ideal de verdades que são sempre
imperfeitamente realizadas em objetos materiais” — assim, a
filosofia matemática pitagórica deu a solução ao problema: para
os pitagóricos (e para nós também), é evidente e eternamente
muito verdade que, em qualquer tipo de triângulo retângulo, o
quadrado do comprimento da hipotenusa é igual à soma dos
quadrados dos comprimentos nos outros dois lados, mas “essa é
sempre uma verdade apenas aproximada num triângulo que você
desenha na areia”:24 existe assim um mundo de perfeição das
Formas, real e imutável, discernível apenas pela atividade
mental, onde podemos encontrar também os modelos de todas
as verdades existentes em relação à virtude, aos deuses e à
justiça.
Hermógenes havia ensinado a Platão que a verdadeira
realidade não pode mudar, e Crátilo reforçou essa ideia ao
ensinar a Platão que o mundo material sempre estava em
mudança: agora, os pitagóricos deixaram tudo claro, montando

22
Ferguson, 1975, p. 61.
23
Id., p. 62.
24
Ibid.
11

o quebra-cabeças de Platão — porém, mais que Formas e


exercícios matemáticos com derivações filosóficas, os
pitagóricos cultivavam um modo de vida diferente daqueles em
outros locais da Grécia: tinham uma comunidade devotada à
filosofia e, de forma relativa, politicamente engajada.25
Platão aprendeu tudo isso bastante bem, retornou então
para Atenas, escreveu o Fédon e algum tempo depois, talvez
ainda na década de 380 a.C., fundou sua escola próxima ao
antigo ginásio fora dos muros de Atenas, a Academia,26 que se
tornaria uma escola famosa não só por formar filósofos,
retóricos e matemáticos, mas intelectuais que, como Aristóteles,
por sua vez educariam estrategistas e políticos com grande
influência no mundo grego.
Apesar de ser notório também que Platão teria dito que em
sua escola entrariam apenas aqueles que tivessem conhecimento
de geometria, a Academia era, em suma, uma escola para
homens de Estado, estrategistas, homens políticos, e tinha já na
antiguidade uma reputação política: o homem de posses e com
propriedades era também o homem adequado para ser educado
no caminho das virtudes, já que, livre de atividades mundanas,
livre do trabalho com as mãos (aquele representante sempre
presente no conflito de classes ateniense entre os proprietários,
os kaloi k’agathoi, e os ‘sem-nada’), podia se dedicar ainda mais a
desenvolver e aperfeiçoar sua arete, seu potencial completo em
relação à virtude moral — uma virtude que, não devemos nos
esquecer, para essa mentalidade aristocrática, era (e assim eles
justificariam depois de comprada) inata.27
Plutarco nos dá uma lista de homens ativamente engajados
no universo da política e das relações de poder do mundo grego

25
Id., p. 62.
26
Ibid.
27
Green, op. cit., p. 41-42.
12

saídos da Academia de Platão: Aristônimo na Arcádia;


Menedemo em Pirra; Fórmion em Élis; Eudoxo em Cnido;
Aristóteles em Estagira, na Macedônia (onde o próprio pai
servira como médico da corte macedônia), e não só Aristóteles
como também Xenócrates e Délio se envolveram com a corte de
Alexandre; Aristóteles também teria tentado aconselhar e
influenciar o rei Témison de Chipre com seu Protréptico; Píto e
Heraclides foram líderes de um movimento de libertação na
Trácia, onde assassinaram o tirano Cótis I; Hérmias de Atarneu
certamente tinha relações com a Academia; e Platão mesmo foi
convidado a ajudar em Cirene e Megalópolis, mas aceitou
somente os convites de Siracusa em 367 e 361.28
Nada mal para homens dedicados ao pensamento abstrato,
à matemática, à geometria e às puras Formas: como podemos
ver, foram muito práticos e engajados, mas isso ainda talvez não
explique por que razão o tema político aparece tantas vezes no
pensamento de Platão, em especial na República e nas Leis; mas
até agora entendemos, pelo menos, como o estudo da geometria
se associa com uma visão hierárquica, ordenada, estável de
mundo que se reflete na organização social. A seguir, veremos
qual é o modelo dessa ordem platônica e como ela ainda se
traduz em consequências reais, em engajamento político não
ideal, mas atual e real.

No céu existe um modelo para a ordem na Terra

Platão de fato apresenta um ideal político de perfeição estável


numa polis também ideal que “não é pensada como uma
atualização ou mesmo como uma possibilidade prática, embora
sem dúvida ele deseje que seja”.29 Esse ideal, novamente, não
está na Terra, mas talvez ‘no céu’ (ἐν οὐρανῷ, en ouranoi):

28
Ferguson, op. cit., p. 62-63.
29
Id., p. 68.
13

ἐν οὐρανῷ ἴσως παράδειγμα ἀνάκειται τῷ βουλομένῳ ὁρᾶν


καὶ ὁρῶντι ἑαυτὸν κατοικίζειν.
no céu talvez haja um padrão para aquele que, querendo
contemplá-lo, ao fazer isso, se torna cocidadão.30

Ferguson diz que o que Platão quer dizer com ‘no céu’ é
controverso,31 mas que podemos tomar no sentido literal de céu
astronômico mesmo, céu observável, com planetas e estrelas
alinhados em perfeição circular — corpos celestes que eram,
para Platão, não devemos nos esquecer, como deuses, criaturas
vivas e sencientes.32

As três tentativas utópicas de Platão

Se Platão usa um demirugo que desenha e projeta um


cosmos, para projetar uma cidade em que as pessoas vivam com
eudaimonia ele próprio terá também de começar do zero. Na
República temos um ensaio político que terá de lidar com uma
proposição e um corte radical: como diz Sócrates logo de início,
a conversa agora é sobre “como devemos viver”, e Glauco e
Adimanto, seus interlocutores, vão colocar o peso desse dilema
num conceito bem específico: justiça — a principal virtude não
só do indivíduo em suas relações, mas também do indivíduo
civilmente responsável e zeloso das leis de sua cidade: para
Platão, é impossível pensar num indivíduo sem uma cidade e
numa cidade sem leis para seus cidadãos, e o declínio de uma
cidade vem do declínio dos cidadãos em obedecer as leis.33 É sob
essas premissas que Platão desenha Calípolis, sua primeira
tentativa de uma utopia.

30
Pl. Resp. 9.592b.
31
Ferguson, op. cit., p. 69.
32
Green, op. cit., p. 462.
33
Julia Annas, “Plato’s ideal Society and Utopia”. In: Pierre Destrée, Jan Opsomer e
Geert Roskam (ed.), Utopias in Ancient Thought. Berlin: De Gruyter, 2021, p. 103-105.
14

Calípolis: primeira utopia filosófica

A relevância da justiça e das leis numa cidade em que todos os


cidadãos têm consciência de sua importância deve ser ressaltada
por uma visão: uma cidade em que os indivíduos vivam em
comunhão inspira e encoraja a desaprovação de desejos
individualistas e competitivos — por outro lado, se há
competitividade, essa seria só pela excelência: os guardiões de
Calípolis devem ser tão zelosos do bem comum que não poderão
formar famílias, e o sexo reprodutivo só pode ser praticado por
meio de relações aprovadas por oficiais responsáveis por
festivais frequentados apenas por cidadãos escolhidos por
sorteio; as crianças resultantes dessas relações devem ser criadas
comunalmente.34 Uma sociedade de todo diferente da nossa, da
de Platão acima de tudo, e como Julia Annas bem nos permite ver
em sua análise dessa utopia filosófica, Platão aqui rompe com a
estabilidade: precisamos de uma ruptura radical com nossa
sociedade como ela é, e isso só se dá por meio de uma provocação
apresentada pela utopia:
O relato das vidas dos governantes no estado ideal de
Calípolis é familiar porque é notoriamente provocativo
(como deveria ser). É uma imagem da vida comunitária que
apela à nossa imaginação. Ela nos encoraja a desaprovar
nosso modo de vida individualista e competitivo, cada um
‘arrastando para a própria casa’ tudo o que pode, pensando
em seus próprios prazeres e dores como sendo diferentes
dos dos outros. Ela é pensada para fazer os gregos se
sentirem envergonhados pela maneira como travam guerra
contra outros gregos e, notoriamente, destina-se a fazer os
homens refletirem sobre as próprias atitudes, e suposições,
sobre as mulheres.35

34
Annas, op. cit., p. 108.
35
Id., p. 109.
15

A história de Calípolis, por mais que seja um primeiro


esboço, traz em si muito a se analisar, e tanto por economia
analítica quanto de espaço, cabe passarmos para a segunda
tentativa de Platão de desenhar sua utopia filosófica, Atlântida,
e como ela ilustra melhor esses problemas e nos ajuda a
sintetizar a crítica de Platão por meio de seu utopianismo
político.

Atlântida e o imperialismo ateniense

Atlântida aparece numa narrativa na moldura do diálogo de


abertura do Timeu e é continuada no diálogo não-terminado
Crítias. A ‘história de Atlântida’ é introduzida por Sócrates no
Timeu como uma espécie de retomada da conversa do dia
anterior, retratada na República, conforme ele pretendia
descrever o tipo de constituição que pareceria se provar ‘a
melhor’ (ἀρίστη, ariste).36 Sócrates diz que as pessoas dessa
cidade haviam sido pintadas de forma estática, e que agora ele
quer colocá-las em movimento: Crítias então vai narrar a
história de uma polis situada numa ilha com enorme poder bélico
e naval que apresenta um desenho urbano feito de forma
científica e baseado em círculos concêntricos, talvez inspirado
pela perspectiva grega de como seriam as cidades de Babilônia e
Ecbátana. Atlântida, nome dado pela sua localização ficional e
utópica no oceano epônimo, tem uma relação próxima com a
antiga Atenas: no passado, o maior feito de Atenas foi ter
resistido sozinha a uma invasão de Atlântida pelo Mediterrâneo
— ecoando aqui as guerras contra os persas — e descobrimos
que essa Atenas do passado, Calípolis em ação, era de fato um
poder em terra, não em mar — ecoando o apreço de Platão pelo
ethos de Esparta; além disso, essa Atlântida conquistadora capaz
de impor essa ameaça reflete a Atenas imperialista do passado

36
Plat. Tim. 17c.
16

recente, e a derrota dessa Atlântida naval e poderosa reflete o


fracasso de Atenas ao lutar contra Esparta na Guerra do
Peloponeso. Após essa derrota, tanto Atlântida quanto Atenas
são destruídas num enorme cataclisma de terremotos e dilúvios.
Uma provocação aguda é como soa essa narrativa aos ouvidos de
qualquer ateniense orgulhoso da atual situação: Platão quer ser
tão provocador e polêmico quanto pode ser.37
Annas faz uma excelente análise quando busca responder
por que razão a narrativa sobre Atlântida não é levada adiante
por Platão, sendo interrompida de forma dramática, antes
mesmo da frase terminar. Sabemos os eventos principais da
narrativa, mas sem excluir outras respostas, uma chama a
atenção: a longa descrição sobre Atlântida, que, embora se situe
a oeste do Mediterrâneo, tem características que expõem o
orientalismo de Platão — Atlântida é exótica e muito rica, tudo é
em enorme escala, como o templo de Posêidon, que é três vezes
o tamanho do Partenon, coberto de ouro e prata, preenchido e
cercado de estátuas de ouro; suas terras férteis, com fontes de
água quente e fria, suportam manadas de elefantes, e tudo isso,
e em especial sua riqueza e seu poder naval e imperial, só
apontam para uma resposta: Atlântida soa para o ouvinte como
uma utopia muito mais interessante — em vez de ficarmos
interessados e elegermos como Calípolis como nosso modelo, a
Atenas ‘espartana’ do passado, nos sentimos atraídos por
Atlântida:
Tentar constranger seu público fazendo com que ele se
identifique com Atlântida não funciona se Atlântida for
fascinante, algo sobre o qual queremos pensar mais e
desenvolver de maneiras diferentes. A utopia, então, não
combina com o que Platão pretende fazer, e ele a abandona,
no meio de uma frase. Quando volta à questão da sociedade

37
Annas, op. cit., p. 110-111.
17

ideal de cidadãos bons e felizes em sua obra posterior Leis,


ele usa uma abordagem diferente.38

Magnésia: uma síntese utópica

Atlântida, como vimos, é a antiutopia política inacabada de


Platão: é no diálogo Leis que de fato ele apresenta a união entre
teoria e prática depois de suas experiências como observador e
como participante político na forma de outra polis ideal:
Magnésia, a anti-Atlântida.39
O traço mais interessante de Magnésia é a descrição da
organização social do Estado de forma ainda mais aplicada que
em Calípolis: comunitarismo, compartilhamento em relação à
vida familiar dos cidadãos magnésios (a seguir veremos que os
estoicos levam esse compartilhamento mais a sério e o aplicam
de forma mais radical) junto do ideal de haver um número
limitado de famílias com propriedades inalienáveis — e esse
número de famílias é de 5.040. Por que esse número? Por razões
matemáticas, claro:40 5.040 é o resultado de 2 x 3 x 4 x 5 x 6 x 7, é
divisível por todos os números de 2 a 10, bem como por 12, 14, 15,
16, 18, 20, 21, 24, 28, 30 e outros. Esse número, 5.040, é o número
de famílias, não de cidadãos, e em Magnésia as crianças são
também cidadãs.
Em Aristóteles, na Política, embora não haja nenhum design
de uma polis utópica, vemos detalhes matemáticos precisos do
mesmo tipo: sua polis deve ter um número de cidadãos

38
Annas, op. cit., p. 112. Na linha dos estudos de recepção, Annas faz um resumo
muito interessante do legado da narrativa sobre Atlântida no Renascimento e
depois, até a modernidade mais recente, mostrando que a narrativa foi
recepcionada de forma que Platão não havia intencionado: mais como narrativa
inspiracional do que como exemplo de uma antiutopia crítica à Atenas de sua
época.
39
Ferguson, op. cit., p. 75-76.
40
Ibid.
18

planejado, e nós podemos rir dos números, mas Platão e


Aristóteles estão certos: como somos cada vez mais forçados a
aprender com nossas megacidades e seus problemas
infindáveis, existe um número ótimo para negócios e indústrias,
bem como universidades e aeroportos, e o mesmo se aplica a
uma cidade-Estado, a uma polis: assim como um navio de quinze
centímetros ou com dois quilômetros deixa de ser um navio,
para Aristóteles, uma polis com apenas dez cidadãos ou com mais
de cem mil cidadãos deixa de ser uma cidade-Estado, já que no
primeiro caso o número é insuficiente para sustentá-la; no
segundo caso, existe gente demais para se organizar e deliberar
sobre os problemas; além do mais, Aristóteles diria (não
podemos afirmar se com ou sem razão), com nossas
megacidades, perdemos nosso senso de unidade política e todo
o senso de comunidade.41
Outro ponto interessante é que as famílias magnésias vivem
de atividades da agricultura: cada família deve viver de forma
autossuficiente de seu próprio lote de terra; nenhum cidadão
deve exercer nenhuma atividade de ganho que não da
agricultura; Magnésia não tem indústrias, negócios ou
comércio; e falando em números, a matemática deve ser
ensinada a todos, e matemática aplicada apenas a alguns; o
dinheiro deve ser mantido em circulação mínima, sem
empréstimos a juros; e ali não existem extremos de pobreza e
riqueza.42
Aqui Platão e Marx concordam: o princípio da organização
social é econômico. Além de baseada em economia, entretanto,
a cidade ideal de Platão nas Leis é religiosa. Seria demais discutir
aqui a religiosidade em Platão, mas devemos ter em mente,
conforme mostra Ferguson, que agnosticismo era raro (embora

41
Id., p. 84.
42
Id., p. 76.
19

Sócrates mesmo tenha morrido agarrado a um frio agnosticismo


que, como vimos, Platão superaria por meio dos pitagóricos),43 e
Platão associava, com o esnobismo sempre presente em todos os
períodos da humanidade, a falta de religiosidade à má educação,
à falta de origens nobres.44 Não é de se admirar que, apesar de
parecer uma sociedade bastante igualitária esta que Platão nos
oferece nas Leis, nela existem não apenas quatro tipos de classe
de proprietários como também a censura às artes liberais — em
compensação existe um programa de promoção da ambidestria
(sic), e, mantendo o compromisso adotado desde que escreveu a
República, de igualdade de oportunidade entre os sexos45 — mas
agora nas Leis, para Platão “ἡ θήλεια ἡμῖν φύσις ἐστὶ πρὸς ἀρετὴν
χείρων τῆς τῶν ἀρρένων […]” — “a mulher é, em relação à nossa
natureza quanto à excelência, inferior aos homens […]”.46
Mais que simplesmente machista, Platão busca aí uma
justificativa para mostrar por que haveria boas razões para
convidar as mulheres para participar civilmente de sua
sociedade ideal: para ele, é apenas ali que elas podem ser
influenciadas e aprender a excelência para valer (visão que não
exclui o machismo de qualquer forma) — para Platão, o feminino
se define a partir do masculino, assim como, por meio do
‘especialismo’ entre funções e trabalhos, o homem livre, o
homem que trabalha para si, o dono de posses, aquele treinado
para a política, define aquele que não é livre, o escravizado.47

43
Id., p. 62.
44
Id., p. 78.
45
Id., p. 76-77.
46
Pl. Leg. 6.781b.
47
Ferguson, op. cit., p. 64; cf. Green, op. cit., p. 382, onde afirma que o conceito de
liberdade e a definição de ‘homem livre’, para os gregos, “depende muito menos do
tipo de trabalho que ele faz, mas antes se ele o faz para si próprio e não, sob
coerção, para outros”.
20

Nada para nos admirarmos: é notório que mulheres e


pessoas escravizadas não tinham direitos e deveres políticos na
Grécia, tampouco participavam das decisões políticas mesmo na
democracia, porém na República e nas Leis a escravidão jamais é
questionada, uma vez que Platão pressupõe que numa
comunidade governada pelas melhores das leis a escravidão deve
ser tida como um dado básico da organização social. As pessoas
escravizadas estão ali como mero substrato: a única questão
relativa a elas é o tratamento adequado, requerido não devido ao
potencial perigo que escravizados representam quando são
maltratados, mas também porque a alma do senhor não deve ser
rebaixada pela crueldade infligida sobre seus escravos,48 e até
mesmo os guardiões da polis ideal de Platão, os militares, são
incidentais e apenas ‘auxiliares’, os desistentes da busca pela
excelência, meros servidores do filósofo-rei:49
A alma do indivíduo deve conter a razão que escraviza, ou
domina, seus apetites e sua força; a polis deve conter uma
classe dominante que escravize até o último de seus
habitantes; o cosmos deve ser visto como contendo um
princípio da razão, do bem, da divindade, que governa e
escraviza o resto desse cosmos, sua existência material
distante do local metafísico da forma do mestre. A doutrina
da “escravidão natural” está implícita, embora não
declarada, no pensamento de Platão.50

As Leis descrevem em detalhe a educação que os cidadãos


deverão receber, e elas se assemelham muito com a educação
voltada para os guardiões na República: é uma educação de
caráter mais que uma educação técnica ou de habilidades, e
apesar de seu caráter espartano, e por mais que exista certo viés
que busca ler em Platão sempre um desgosto com a democracia

48
Page duBois, Slavery: Antiquity and it’s Legacy. New York: I.B. Tauris, 2010. p. 57.
49
Id., p. 74.
50
duBois, 2010, p. 58.
21

ateniense, essa educação busca desenvolver no cidadão dois


traços da sociedade ateniense que Platão considera positivos:
participação e prestação de contas. Magnésia assim representa,
como bem resume Annas,
uma das muitas tentativas de Platão de ter o melhor dos dois
mundos. Os cidadãos do estado ideal de Platão terão o tipo
de atitude espartana em relação às suas leis; eles vão
considerá-las como estabelecidas e não para serem
infinitamente litigadas ou complementadas. Além disso,
todos eles compartilharão uma educação comum que
fortalecerá seus laços culturais com seus concidadãos e
estabelecerá limites para a preocupação com suas próprias
famílias. Mas eles terão o tipo de atitude ateniense de
participar da cidadania ativa e esperar que todos participem
de sua vez de ajudar a administrar assuntos públicos. Eles
também esperam responsabilidade e, portanto, menos
corrupção em todos os seus representantes. Platão espera
que essa combinação resulte em cidadãos que tenham uma
melhor concepção do bem comum do que espartanos ou
atenienses. Os cidadãos de Magnésia apreciarão a
importância de almejar ser virtuoso — sábio, justo,
autocontrolado e corajoso — de forma que tenha
precedência sobre qualquer objetivo quanto a riqueza ou
poder.51

As Leis em si não se propõe a apresentar essas leis, assim


como a República não tem a intenção de demonstrar todo o
conhecimento e sabedoria que evoca, mas antes busca mostrar
como sair daqui, de sociedades de fato imperfeitas, para chegar
lá, na sociedade ideal onde as pessoas vivem de forma virtuosa e
florescem52 — e essa preocupação com leis e constituições, como
veremos, vai surgir de novo em seus discípulos, em especial em
Aristóteles, de forma ainda mais séria, comprometida e

51
Annas, op. cit., p. 116.
52
Id., p. 117.
22

contundente, e não devemos nos espantar com o fato de que um


desses representantes do platonismo político se tornará ele
próprio uma espécie de filósofo-rei legislador (embora não tão
comprometido com a retidão espartana) em nenhum outro lugar
que não Atenas: Demétrio de Fáleron.

Demétrio de Fáleron: o filósofo-rei em estagnação?

Demétrio de Fáleron, um prolífico escritor produto do


Peripatos de Teofrasto que governará Atenas por dez anos (de 317
a 307 a.C.), deixado de fora das Vidas paralelas de Plutarco, é uma
figura central para analisarmos um momento breve mas muito
interessante do período helenístico e seus reflexos sobre o
engajamento político, o escapismo e, talvez, uma utopia
aplicada.
É interessante notar que Delfim Leão, num interessante e
bastante detalhado artigo sobre a atuação política de Demétrio
de Fáleron, define esses dez anos como um “período de forte
dinâmica constitucional e legislativa”;53 já Peter Green, ao
dedicar todo um capítulo a essa interessante figura, dirá, pelo
contrário, que o que aconteceu no período “foi que nada
aconteceu”.54
A figura de Demétrio, sob essa perspectiva, em vez de ser a
de um filósofo-rei de moral ilibada, um verdadeiro Guardião
platônico, se distancia dum fundador de leis, um nomothetes
fundador, como um Drácon ou Sólon, para mero legislador de
leis que restringiam luxos diversos: Demétrio põe fim aos belos
mas terrivelmente caros monumentos funerários do Cerâmico;

53
Delfim Leão, “Demétrio de Fáleron e a reinvenção da polis democrática”. In: Breno
Battistin Sebastiani et al. (coord.), A poiesis da democracia. Coimbra: Imprensa da
Universidade de Coimbra, 2018. p. 241-291. Disponível em: https://digitalis-
dsp.uc.pt/jspui/handle/10316.2/45144. Acesso em: 15 out. 2021. p. 241.
54
Green, op. cit., p. 36-51.
23

cria um conselho de mulheres (gynaikomonoi), cujo trabalho é


reforçar regulações que restringiam gastos com vestidos, joias,
servos e carros; limita a trinta o número máximo de convidados
para casamentos ou banquetes (grandes e suntuosos banquetes
do próprio Demétrio de Fáleron são legião, diz Green), bem
como promulga leis para investidores de terras e propriedades.55
De qualquer forma, seja entre os historiadores da
antiguidade, seja entre os atuais, a figura de Demétrio de
Fáleron, e em especial seu governo, sempre despertou opiniões
díspares: seu governo ora é tratado, por alguns, como um
regresso à democracia ou então, pelo contrário, como um
retorno na direção da tirania. Leão observará que, de qualquer
modo, Demétrio teria sido exitoso na busca pelo equilíbrio
possível durante o declínio do sistema de autonomia da polis do
período arcaico e clássico dentro do novo sistema de domínio
macedônio: Atenas, nesse contexto atribulado, sob Demétrio, de
fato viveu um período de paz e prosperidade.56
Esse período de paz e prosperidade, entretanto, pode ser
visto como um momento de total estagnação:57 aquela tarefa de
revisar toda a legislação ateniense (tarefa que vem a calhar a um
peripatético como Demétrio de Fáleron), segundo Green, não
passariam de uma série de restrições de caráter negativo, sem
qualquer programa positivo ou dinâmico as embasando.58
Economia(s) à parte, essas leis restringindo luxos tinham como
objetivo talvez manter as pessoas comuns silenciadas ao
demonstrar certo controle restritivo aos superiores delas. Ainda
assim, mesmo esse ‘silêncio’ não impediu que Demétrio de
Fáleron fosse pintado por seus inimigos e detratores como uma

55
Id., p. 47.
56
Leão, op. cit., p. 245.
57
Green, op. cit., p. 45.
58
Ibid.
24

figura extravagante: um belo homem de trinta anos, uma escolha


interessante de Cassandro, que talvez tenha escolhido Demétrio
de Fáleron para dar um pouco do próprio remédio platônico aos
atenienses ao colocar no poder um líder um produto do Peripatos
aristotélico sob direção de Teofrasto, é o mesmo homem que,
segundo Green, pode ser retratado como um “almofadinha
elegante que tingiu o cabelo de loiro, se vestia suntuosamente e
que cultivava cortesãs e belos rapazes com uma alegre
imparcialidade bissexual”.59 Este retrato, ao contrário do que
vimos com Leão, coloca Demétrio de Fáleron numa posição
demasiadamente humana, num patamar menor que aquele
ocupado por figuras quase divinas de tão afastadas no tempo,
como Drácon e Sólon, meros fantasmas simbólicos dum passado
grandioso com camadas e camadas de tradição.
Demétrio de Fáleron, por outro lado, apesar das acusações
de extravagância, como quando, em sua glória, teve canções
performadas nas Dionisíacas por uma espécie de coro ao ar livre
que o teria comparado em esplendor e beleza ao Sol,60
provavelmente tem como anedota mais interessante e simbólica
do seu período como líder de Atenas aquela registrada por
Políbio: as razões de Demétrio Poliorcetes ficam bem às claras
para qualquer um que, como Plutarco, tem o olhar treinado para
a natureza humana; já as razões de Demétrio de Fáleron para,
conforme registra Políbio, ter promovido uma parada com
burros alinhados saindo de diante do teatro ou ter colocado uma
lesma mecânica liderando suas procissões públicas, cuspindo

59
Id., p. 46.
60
Id., p. 50-55. Green (op. cit., p. 45) também diz que isso não é nada perto de
quando comparamos as extravagâncias (e polêmicas) do seu par em negativo,
Demétrio Poliorcetes, que não só teve canções performadas pelos cidadãos
atenienses libertos do poder do Falereu que equiparavam Poliorcetes a um deus
encarnado mas também fez da câmara anterior do Partenon seu próprio palácio,
onde, com anuência dos atenienses e de uma provedora de cortesãs chamada
Lamia, teria passado todo o inverno promovendo rodadas de orgias.
25

saliva nos cidadãos atenienses,61 permanece um mistério. Mero


pão e circo?62 Discordando de modo frontal com Green, podemos
dizer que talvez não. Políbio diz que Demétrio justifica ações
desse tipo como uma forma de mostrar que os atenienses eram
lentos e burros, e que Atenas havia desistido de suas antigas
ambições de liderar toda a Grécia com glória, dançando
submissa sob as ordens de Cassandro.63
Contra essa nova ordem de fato nem mesmo o filósofo-rei
solar foi capaz de lutar contra: o principal inimigo de Cassandro,
Antígono Monoftalmo, na primavera de 307, conferiu o
comando de 250 navios em Éfeso e cinco mil talentos em
dinheiro a seu filho, Demétrio (em breve chamado Poliocertes,
‘Sitiador’), com o comando de liberar todas as cidades gregas e
Atenas antes de todas. Policertes chegou ao Pireu sem aviso,
pegou a defesa sem guarda e a notícia de sua chegada foi
recebida com entusiasmo pelo povo. O forte na colina de
Muniquia, no Pireu, se rendeu após um breve cerco. Poliocertes
entrou na polis do Falereu em triunfo, que recebeu um salvo-
conduto para Tebas, mas terminou sua vida em refúgio
involuntário em Alexandria, onde teria escrito uma monografia
em defesa do próprio governo em que alegaria que, de fato, ele
havia melhorado a democracia ateniense durante seus dez anos
de governo, além de compor um hino de louvor ao novo deus
solar sincrético (representado mais tarde pelos romanos, em
especial, como um Zeus helênico, porém mais um Osor-Hapi
egípcio) Serápis, talvez em gratidão por tê-lo curado de uma
cegueira temporária.64

61
Plb. 12.13.
62
Green, op. cit., p. 47.
63
Plb. 12.13.
64
Green, op. cit., p. 47-48.
26

O engajamento político e utópico em Platão


é real e ideal

A influência de Platão, como vimos, mostra que de fato sua


defesa pelo engajamento político (especialmente dos kaloi
k’agathoi, dos proprietários, homens bons e livres dedicados ao
aprendizado da excelência intelectual) não fica apenas no ideal:
seu utopianismo espartanizante e suas preocupações com a
constituição ideal que apontaria para uma polis de fato justa
exibem, por consequência e de forma indireta, intenções
bastante mundanas e com consequências muito reais.
A análise de Julia Annas sobre as tentativas de Platão de
descrever utopias expõem uma tentativa do filósofo de criticar o
sistema ateniense aproveitando o que nele via de útil, mas sem
deixar de lado a estima pelas constituições de polis oligárquicas,
em especial Esparta, que permitiriam aos senhores e donos de
propriedades suplantar qualquer ruptura social com a ordem
estabelecida por eles. Como bem resume Dawson após uma
importante análise sobre as utopias de Platão e mesmo de
Aristóteles em seu Cities of the Gods, publicado em 1992:
Os escritos utópicos de Platão e Aristóteles pretendiam
tranquilizá-los [aos donos de propriedades]. Eles
forneceram uma nova ideologia para reformar e revitalizar
os valores aristocráticos tradicionais; seu objetivo prático
era a criação de uma classe alta unificada e disciplinada,
generosa com o patronato e imune às tentações das
insurreições entre facções. Dali algum tempo o objetivo
prático se tornou cada vez mais evidente. Terminou em
tirania. Mas já no tempo em que Demétrio de Fáleron
governou outras visões da Utopia tomavam forma em
Atenas.65

65
Doyne Dawson, Cities of the Gods: Communist Utopias in Greek Thought. New York:
Oxford University Press, 1992. p. 102.
27

O breve enfoque histórico e biográfico na figura de


Demétrio de Fáleron nos permitiu conferir como o engajamento
político pode ter como consequência uma quase utopia platônica
espartanizante aplicada sem muita rigidez, claro, mas com
ironia (ou não), em nenhum outro lugar que não na própria polis
de Platão.
Vamos voltar a Platão e a Aristóteles e a essa visão ordenada,
sempre ansiosa com a instabilidade, as insurreições ou revoltas
populares contra os proprietários quando analisarmos a
influência do pensamento utópico no estoicismo de Zenão,
Crisipo e Iâmbulo e na figura de Aristônico, líder de uma revolta
que prometia liberdade a pessoas escravizadas. Por agora
veremos como Epicuro tentará dar conta do problema do
engajamento político ao oferecer outra solução para o problema:
a defesa de uma vida afastada, retirada, o ‘escapismo’ e o
desengajamento político aceitos como modo de vida voluntário,
jamais como uma decisão negativa, e como esse caminho não só
evita a dor e o desprazer como seria, em oposição direta a Platão,
o único meio e modo de viver uma vida de fato como a dos
deuses.
28

Epicuristas na terra
Ou: “os céus não são divinos”

λάθε βιώσας
Viva despercebido!

Muitos conhecem Epicuro por meio de um dos seus conceitos


mais famosos e mais criticados muito porque Epicuro, diríamos
hoje academicamente, não referenciou, não atribuiu a ideia
original aos seus verdadeiros criadores, Demócrito e Leucipo: o
atomismo — e muitos chegam ao atomismo de Epicuro por meio
de um de seus discípulos mais famosos: o poeta romano
Lucrécio, autor do poema didático Sobre a natureza das coisas (De
rerum natura), e por meio de Lucrécio têm acesso àquele
entendimento último da natureza das coisas: o universo não é
feito a partir do molde de formas abstratas, mas de matéria física
corpórea, e o átomo (ἄτομος, ‘não-cortável’) é seu elemento mais
básico.
Poderíamos dizer que o atomismo é tão fundamental para o
sistema filosófico de Epicuro quanto a geometria para o de
Platão. O atomismo é também quase que praticamente a arqui-
inimiga da teoria das Formas, é seu negativo: a oposição
epicurista ao platonismo vai tão longe que, junto com os cínicos
e os céticos, chega a rejeitar junto até mesmo a geometria por
completo.66

66
Green, 1990, p. 463.
29

Um átomo no oceano: epicurismo como escapismo


num universo agora maior

Não seria diferente quando falamos de política em Epicuro:


ela também é uma espécie de negativo do platonismo. Ao
contrário do verdadeiro platonista, seja ele o filósofo-rei, seja o
Guardião, sejam até mesmo aqueles que nem são mencionados,
os escravos, as mulheres e as crianças, todos engajados para
manter a divisão apropriada de classes na polis de Platão, o
epicurista está diante de um mundo diferente, em que a polis não
é mais o centro do universo, como era (literalmente, como
vimos) para Platão: antes de tudo, era um mundo em que
Alexandre, o Grande, havia morrido precocemente e de forma
inesperada, deixando como legado a comandantes e estrategos
um império que se tornaria ele todo praticamente um campo de
batalha que ia da Grécia, passando pela Síria e pelo Egito, pela
Mesopotâmia e pelos desertos de Kavir e Lut até quase o
Himalaia67 — era um mundo mais vasto que o conjunto ilhado
das póleis gregas, um mundo com uma organização social agora
tão expandida e com tantos atores novos que os epicuristas
foram praticamente deixados de fora da nova organização
social representada [agora] por uma plutocracia de negócios
em grande parte despolitizada de um modo que nenhuma
das outras escolas (com exceção dos cínicos, que eram párias
sociais de qualquer forma) parece ter sido deixada.68

E qual a razão dos epicuristas terem sido deixados de fora e,


talvez assim, renegado a participação civil se refugiando no
Jardim? Green69 nos diz que certamente não pelo fato de os

67
Claude Zygiel, Map of Alexander's empire and his route. Wikimedia, 24 mar. 2006.
Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Alexander_the_Great#/media/File:
MacedonEmpire.jpg. Acesso em: 15 ago. 2021.
68
Green, op. cit., p. 454.
69
Id., p. 622.
30

epicuristas terem deixado os deuses habitarem distantes,


afastados de qualquer atividade humana, nos Campos Elíseos —
ideia que certamente teria chocado e repelido qualquer
platonista que tomava os planetas como deuses, e os deuses
como responsáveis por qualquer ação na terra, inclusive a
aplicação da justiça, da organização social da polis, como vimos.
O que de fato deve ter chocado os gregos em relação ao
epicurismo é exatamente a visão de mundo atomista: um cosmos
formado por átomos se movendo randomicamente pelo espaço,
universos materiais que vinham à existência e se extinguiam
meramente por um processo de causação mecânico, sem
qualquer princípio divino ou teológico por trás disso tudo; em
suma, uma concepção de cosmologia física que foi mais a
exceção do que a regra não só para Platão, mas para o mundo
grego como um todo durante muito tempo. Lembremos que
Lucrécio sente a necessidade de reafirmar e reconfirmar, muito
tempo depois de Platão, ainda por volta do século I d.C., que
“terra e céus não são divinos”.70 Como bem resume Green: 71
A negação, numa tacada só, da providência, da imortalidade
e de qualquer inter-relação direta entre o homem e os céus
(agora privados de toda força senciente e reduzidos a uma
mera dança de átomos), isso pode ser tutelado, por Lucrécio
e seus antecessores, como motivo de alívio à tirania da
superstição, mas para a maioria das pessoas na era
helenística, ela trouxe terror e desespero, logo convertidos
numa rejeição agressivamente incrédula.

De qualquer forma, a presença e a relevância do epicurismo


dentro desse novo mundo grego, agora sem ter mais a polis como
centro, é um indício de que tudo se relativizou: o homem não
tinha mais tanto poder para agir dentro de sua polis, e a perda de

70
Green, op. cit., p. 460.
71
Id., p. 623.
31

liberdade política, segundo Green,72 inevitavelmente direcionou


a busca do homem para seu interior. Nem todos os homens
buscavam o mesmo, obviamente, “mas um número considerável
daqueles que não buscavam ganho financeiro, material (e de
fato, alguns que também os buscavam) estavam em uma jornada
pela libertação da alma”, e se eles não podiam mais ter
verdadeira liberdade política (como tinham na polis
democrática), “agora podiam ao menos alcançar uma libertação
interior, uma maestria de si próprios”.73
O homem grego não tinha mais aquele valor caro aos gregos
do período de Péricles, aquilo que mantinha a polis orgulhosa,
sabendo em que direção ir (ao menos até a época em que
Aristófanes coloca Dioniso numa jornada ao Hades para trazer
os antigos poetas trágicos ao palco para aconselhar e direcionar
os atenienses): autarkeia, autossuficiência, autonomia.74 Por
outro lado, esse homem grego agora
poderia ir atrás, em privado, de todas aquelas virtudes
significativamente negativas que encontramos tuteladas
por filósofos helenísticos: aponia, ausência de dor; alypia,
desapego da prostração; akataplexia, ausência de
aborrecimento; ataraxia, não-perturbação; apragmosyne,
distanciamento de assuntos mundanos; apatheia, não-
sofrimento (ou libertação emocional); e, uma ao menos
positiva, galenismos, a tranquilidade do mar calmo.75

Além desses conceitos de uma nova forma de virtude, uma


das principais armas para o epicurismo foi a máxima λάθε
βιώσας, lathe biosas — ‘Viva despercebido!’. Como veremos a
seguir, mais que arma e meio de defesa num mundo inseguro,

72
Id., p. 53.
73
Ibid.
74
Ibid.
75
Id., p. 55-56.
32

foi também uma espécie de ‘cura’ que Epicuro ofereceu a seus


seguidores num mundo agora muito mais instável, ameaçador e
inseguro que o de Platão.

Escapando como uma partícula subatômica: a


máxima epicurista ‘Viva despercebido’ e o escapismo
político

A máxima epicurista λάθε βιώσας, lathe biosas — ‘Viva


despercebido’76 — não existe em nada do pouco que nos restou
do próprio Epicuro, e chegou a nós indiretamente, em especial
por meio de um ensaio de Plutarco bem bobo (nas palavras de
Green77) intitulado Εἰ καλῶς εἴρηται τὸ λάθε βιώσας, que
podemos traduzir quase literalmente como Se é bom e belo o dito
‘viva despercebido’, ou simplesmente De latenter vivendo.
A máxima pode ser interpretada de diversas formas, mas,
no contexto mais amplo, e não apenas político, se traduz não em
simples desengajamento político, num modo de vida ‘escapista’
que de fato fez sucesso: é importante lembrar que Epicuro, nos
diz Roskam,78 oferecia sua doutrina como uma espécie de ‘cura
da alma’, com argumentos ‘terapêuticos’.79
Roskam, em A commentary on Plutarch’s De latenter vivendo,80
também diz que a obra perdida de Epicuro intitulada Περὶ βίων
(Peri bion) deve ter sido muito importante no contexto de
discussão sobre desengajamento político, já que Epicuro talvez
tenha sido o primeiro a motivar e defender um ideal por uma
‘vida despercebida’ por meio de uma argumentação coerente e

76
Geert Roskam, Live Unnoticed — Λάθε βιώσας: On the Vicissitudes of an Epicurean
Doctrine. Leiden: Brill, 2007a.
77
Green, op. cit., p. 59.
78
Roskam, op. cit., p. 34.
79
M. Nussbam, 1986 apud Roskam, 2007a, p. 34; Green, 1990, p. 630.
80
Geert Roskam, A commentary on Plutarch’s De latenter vivendo. Leuven: Leuven
University Press, 2007b. 279 p.
33

sistemática: ela talvez contivesse não apenas um mero conselho


que defendia a rejeição ao engajamento político, mas talvez,
junto disso, uma defesa positiva da alternativa fornecida por
Epicuro: uma vida mais reservada, de preferência no famoso
Jardim.
Apesar dessa tentativa de abarcar o todo, rejeitando uma
visão de mundo não apenas política e com isso oferecendo a seus
seguidores um modo de vida completo, uma cura junto de um
distanciamento dos problemas mundanos, essa atitude
epicurista não deixou de atrair desaprovação: mais que o próprio
Plutarco, Cícero é um dos mais obstinados críticos do
epicurismo. Apesar de parecer tomar a doutrina epicurista
quase como uma ofensa pessoal pelo fato de muitos de seus
amigos terem aderido a ela (ou ‘se convertido’), Cícero não tem
conflitos pessoais com a doutrina de cura oferecida pela escola
do Jardim: um de seus amigos mais próximos e duradouros, o
poeta Ático, aderiu ao epicurismo.81
Cícero então talvez se sinta ofendido pela doutrina ‘viva
despercebido’ muito mais pelo fato de ele próprio ser um político
e orador que faz sua vida dessas atividades cívicas do que por
mera intriga pessoal ou desavença intelectual: a doutrina de
Epicuro é uma rejeição à própria existência de Cícero; assim,
mesmo quando Cícero foi obrigado a se retirar da vida política e
viu a si próprio diante do dilema de ter de se desengajar
(involuntariamente) de qualquer atividade cívica, escolheu como
solução se retirar e escrever suas obras como um último serviço
ao seu país.82
Cícero também não deixa de tratar como relevante o fato de
que os epicuristas se recusaram a participar de uma embaixada,
enviada por Atenas a Roma em 155 a.C., com representantes de

81
Roskam, 2007b, p. 49.
82
Id., p. 50-51.
34

cada escola filosófica. Não sabermos mais detalhes desse evento:


não sabemos se os epicuristas aplicaram seu famoso ‘cálculo do
prazer’ e simplesmente decidiram que não valia a perturbação de
sua ataraxia; não sabemos se eles foram mesmo excluídos da
embaixada por uma decisão dos próprios atenienses; de
qualquer forma, de acordo com Roskam,83 foi uma decisão
problemática: ao recusarem delegar um membro de sua escola
para participar da embaixada, os epicuristas deixaram bem claro
que eram a única escola filosófica importante que não
beneficiava sua pátria nesse assunto em particular. Podemos só
imaginar o quanto isso deve ter sido motivo de desprezo por
parte de um político-filósofo tão dedicado à sua pátria como
Cícero julgava ser ele próprio.
A atitude desses homens, que na época de Péricles seria
criticada com aqueles termos que expressavam desprezo,
apragmones, ‘aqueles que não fazem nada’, e idiotai, ‘cidadãos
privados’, ‘idiotas’,84 não deve ser vista como um escapismo
típico somente do período helenístico e de Epicuro e seus
seguidores; tampouco são resultado da perda de autonomia
política com o deslocamento de Atenas como centro do mundo
grego agora para cidades como Alexandria, Antioquia, Pérgamo
e Éfeso:85 a educação, o cultivo ou aprimoramento da alma do
indivíduo já havia sido proposta por Pitágoras, pelos órficos e
mesmo por Sócrates e Platão,86 e o escapismo de modo geral (seja

83
Roskam, 2007b, p. 38.
84
Green, op. cit., p. 605. Cf. Harry David Rube. Political Polupragmones: Busybody
Athenians, Meddlesome Citizenship, and Epistemic Democracy in Classical Athens
Citizenship. Brunswick: Bowdoin College Digital Commons, 2016. Honors Project
46. Disponível em: https://digitalcommons.bowdoin.edu/honorsprojects/46.
Acesso em: 20 ago. 2020.
85
Green, op. cit., p. 55.
86
Roskam, 2007b, p. 55.
35

lá qual for sua adjetivação: fantástico, político ou intelectual) já


pode ser encontrado muito antes de Epicuro:
Os coros de Eurípides estão sempre desejando estar em
outro lugar, remoto e romântico, de preferência
metamorfoseados em pássaros. O motivo ornitológico
reaparece na comédia de Aristófanes Os pássaros (414), onde
dois cidadãos insatisfeitos querem deixar para trás Atenas e
seus processos judiciais intermináveis e burocratas
violentos; Êupolis, em Os demos (412), […] recorre a líderes
mortos para resolver problemas atenienses. Já em Plutus de
Aristófanes (388) encontramos a suposição de que a riqueza
“é tanto a causa final quanto o pré-requisito de todas as
atividades”.87

O pensador do período helenístico, como Epicuro, é muito


mais um herdeiro e desenvolvedor do que um criador dessa atitude
anticívica, autocentrada e escapista de se posicionar no mundo
— e assim, ao se apropriar dessa herança, o Jardim de Epicuro
se torna um centro de defesa, e os estoicos e cínicos, cada um a
seu modo, também tomaram seus postos para defender um
modo de vida diferente — não refutaram nem suplantaram o
platonismo e o aristotelismo e sua defesa do engajamento
político: apenas deslocaram ambos para outra posição no xadrez
político do mundo helenístico (agora mais expandido) e
entraram no jogo com as armas e defesas de que puderam se
apropriar.88

Escapismo epicurista como defesa?

Seria fácil aqui traçarmos um paralelo entre essa defesa pelo


escapismo de Epicuro, num mundo talvez ainda mais instável e
caótico que o de Platão, com a própria vida atribulada de

87
Roskam, 2007b, p. 56.
88
Green, op. cit., p. 58.
36

Epicuro, já que assim como Platão ele correu riscos. Epicuro, por
exemplo, ao buscar levar seus ensinamentos (e suas polêmicas)
aos cidadãos de Mitilene, antagonizou com muitos intelectuais
da região, então sob o comando do tenebroso Antígono
Monoftalmo, e é muito provável que teve de fugir sob ameaças
de julgamento e morte.89
Entretanto, Roskam nos adverte que ver aí um motivo da
filosofia de desengajamento político em Epicuro é reduzir uma
doutrina, como vimos, terapêutica e filosófica ao mesmo tempo,
a mero bon mot, a mera máxima sagaz, e que associar o dito de
Epicuro a desilusões e reajustes no modo de vida vai em direta
contradição com as fontes antigas, “onde a vida reservada nunca
é tida como a alternativa involuntária”.90
Entre esses e diversos outros paradoxos de se tentar manter
uma vida positivamente ‘despercebida’, reservada e afastada de
questões políticas num mundo instável e inseguro, podemos,
como fizemos ao trazer exemplos práticos do platonismo,
também trazer aqui uma interessante figura por meio da qual
nos chegou muito da doutrina epicurista: Diógenes de
Oinoanda.

No chão e em pedra:
a inscrição de Diógenes de Oinoanda

Um personagem sem igual, Diógenes de Oinoanda, um


velhinho epicurista, escapou para essa cidade jônica de nome
engraçado e quase utópico, perto da atual Fethiye, ao sudoeste
da Turquia, e construiu uma defesa muito interessante do modo
de vida reservado: uma inscrição de sua própria interpretação da
doutrina epicurista (bem como algumas cartas e doutrinas do
próprio Epicuro) talhada em pedra monumental, datada em

89
Green, op. cit., p. 60.
90
Roskam, 2007a, p. 64-65 (grifo do autor).
37

torno de 120 d.C., e que, de fato, deve ter provocado o efeito


contrário, atraindo muito a atenção de qualquer um que
passasse por essa stoa não estoica, mas epicurista.
Diógenes não apenas defende que não devemos nos meter
em assuntos políticos como também fala muito de si: de suas
viagens a Rodes, seus contatos com amigos e sua saúde fraca.
Mera garrulice de um velhinho? Arrependimento tardio de um
homem sem muita fama e conquistas e agora com vontade de
aparecer? 91
Antes de responder, é importante notarmos, como nos
adverte Roskam, que o mundo grego desse período tinha uma
característica peculiar no que diz respeito à relação dos homens
de poder com seu povo e suas cidades:
Políticos ricos gastavam grandes somas de dinheiro em
nome do interesse público, e em troca o povo mostrava sua
gratidão oferecendo diferentes tipos de homenagens. Esse
pacto tácito entre aristocratas ricos e a multidão de cidadãos
comuns garantiu a preservação do sistema político local e
muito contribuiu para manter a paz e a ordem nas cidades.92

Trata-se do sistema evergético: políticos e homens de poder,


ricos aristocratas, faziam benfeitoras, doações para obras,
projetos e festivais como forma de manter a ordem e a influência
sobre a cidade de sua escolha. Diógenes, para ter doado à cidade
uma grande stoa talhada em pedra, deve ter sido um homem rico,
logo, mesmo que quisesse ficar de fora da política de Oinoanda,
como um potencial homem de poder e aristocrata,
provavelmente foi convocado por uma população que estava
acostumada a associar poder e riqueza com doações,

91
Roskam, 2007a, p. 130-131.
92
Id., p. 136.
38

benfeitorias e filantropia a fazer uma benfeitoria para


Oinoanda, sua cidade.
A solução de Diógenes é genial: em vez de se expor e entrar
nesse jogo político, ele o faz de forma indireta, doando a
Oinoanda uma stoa em pedra para adornar um local público
contendo uma doutrina que ensinava a busca por uma vida
afastada de assuntos políticos. Diógenes pôde se manter assim
fiel à máxima lathe biosas, e podemos imaginá-lo curtindo, já
velhinho, sua ataraxia distante dos problemas políticos.
Podemos até imaginar que Diógenes,
apesar de sua idade avançada e seus problemas de saúde,
sentia prazer em visitar sua inscrição e observar os
transeuntes estrangeiros que liam a mensagem. Esses
estrangeiros não precisam saber que o velho doente ao lado
deles era o próprio autor da inscrição. Não precisava haver
nenhuma troca de palavras entre eles. No entanto, Diógenes
terá retornado perfeitamente satisfeito ao seu pequeno
jardim. Isso, se prova algo, mostra o domínio perfeito da
doutrina epicurista.93

É interessante que Roskam retrate Diógenes como um


velhinho doente pois Martin Ferguson Smith, o classicista
britânico que trabalhou nas escavações das ruínas e no registro,
na tradução e divulgação das inscrições da stoa de Diógenes de
1968 a 2003, num documentário sobre as escavações,94 vai citar
sua tradução das palavras inscritas por Diógenes (fr. 3), que
abaixo reproduzo de forma completa:
Já tendo chegado ao pôr do sol da minha vida (estando quase
no limiar da partida do mundo devido à velhice), quis, antes

93
Id., p. 144.
94
Nazım Güveloğlu, A Gigantic Jigsaw Puzzle: The Epicurean Inscription of Diogenes
of Oinoanda. Produtor executivo: Halil Turan. Roteiro: Nazım Güveloğlu. [S.l.]:
ODTÜ-METU, 10 mar. 2015. 1 vídeo (31 min 53 s). Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=1s-z7uZd9X8. Acesso em: 17 nov. 2021.
39

de ser tomado pela morte, compor um [belo] hino [para


celebrar a] plenitude [de prazer] e assim ajudar agora
aqueles que são bem constituídos. Agora, se apenas uma
pessoa ou duas ou três ou quatro ou cinco ou seis ou
qualquer número maior que você escolher, senhor, desde
que não seja muito grande, estivesse em uma situação ruim,
eu deveria abordá-los individualmente e fazer tudo ao meu
alcance para dar-lhes os melhores conselhos. Mas, como eu
disse antes, a maioria das pessoas sofre de uma doença
comum, como uma peste, com suas falsas noções sobre as
coisas, e seu número está aumentando (porque em mútua
emulação eles pegam a doença um do outro, como ovelhas);
além disso, [é] certo ajudar [também] as gerações vindouras
(pois elas também nos pertencem, embora ainda não
tenham nascido) e, além disso, o amor pela humanidade nos
leva a ajudar também os estrangeiros que vêm aqui. Agora,
como os remédios da inscrição atingem um número maior
de pessoas, quis usar esta stoa para divulgar publicamente os
[remédios] que trazem a salvação. Esses medicamentos nós
colocamos [totalmente] à prova; pois dissipamos os medos
[que nos prendem] sem justificativa e, quanto às dores, as
infundadas extirpamos de todo, enquanto as naturais
reduzimos ao mínimo absoluto, tornando sua magnitude
reduzida.95

Esse ‘projeto’ de Diógenes de Oinoanda, que aqui chamarei


de utópico, se reflete em outro fragmento de sua inscrição que
associa a cura epicurista a uma futura Idade de Ouro:
Em um fragmento notável (56, I, 1-12), Diógenes descreve
uma espécie de futura “Idade de Ouro” quando a vida dos
deuses passará para os homens. Naquele tempo, todos terão
alcançado a sabedoria, e não haverá mais necessidade de
muros ou leis, pois tudo estará cheio de justiça e amor

95
A tradução em inglês está mais facilmente acessível no site Diogenes of Oinoanda:
The Epicurean Inscription, disponível em: http://www.english.enoanda.cat/
the_inscription.html. Acesso em: 21 nov. 2021.
40

mútuo (δικαιοσύνη γὰρ ἔσται μεστὰ πάντα καὶ φιλαλληλίας).


Assim, todos poderão desfrutar de uma segurança
perfeita.96

Roskam vai definir esse fragmento como expressando


‘crenças utópicas’ de Diógenes; e depois de dizer que, conforme
Smith, não há paralelos dessas ideias tanto em Epicuro quanto
em outros membros posteriores do Jardim, e que essas ideias de
Diógenes foram associadas por outros classicistas como reflexo
de ideias contemporâneas, que ele não vê “qualquer razão para
concluir que o fragmento é incompatível com a doutrina
ortodoxa de Epicuro”. Depois dessa breve consideração, que
julgo ser muito relevante tanto para analisar os ideias de
escapismo político e antiutopianismo no epicurismo, Roskam
sugere que evitemos enfatizar demais a importância dessa
passagem. Porém, descartar as ideias (anti)utópicas de uma
escola filosófica tão preocupada com ideais de escapismo e com
uma visão realista, material, racional e ponderada dos
problemas humanos equivaleria a descartar os momentos em
que o epicurismo parece querer comunicar de forma
inconsciente sua visão de mundo, suas esperanças e seu projeto
filosófico — suas utopias — e, o principal: a relação desses
projetos escapistas ou utópicos com outras escolas.
Veremos a seguir que esse projeto talvez não seja
característico apenas de Diógenes de Oinoanda: um epigrama de
Filodemo de Gádara, o poeta-filósofo epicurista, também nos
pinta de forma breve porém sugestiva o projeto epicurista ao
retomar a utopia da terra dos feácios retratada por Homero na
Odisseia.

96
Roskam, 2007a, p. 134.
41

Pastoralismo ciclópico e Esquéria epicurista

Para entender a confusão que autores como Peter Green fazem


entre escapismo e pastoralismo, é importante começarmos
nossa análise da terra utópica dos feácios, Esquéria, ao colocá-la
em oposição à terra dos ciclopes. Não cabe aqui começar a
análise dessa distinção ao opor a descrição do povo de Esquéria
com a figura dos ciclopes em obras como a Teogonia pois, para
resumirmos o argumento de Robert Mondi,97 o ciclope homérico
é talvez uma reformulação do legado da tradição folclórica
comum tanto a Homero quanto a Hesíodo.
Em Homero, essa mimese de criação, inovadora, pode ser
entendida não só pela análise de Mondi quanto à inovação
homérica com ciclopes que não são mais meros dáimones-
trovão, como são na Teogonia, mas antes um povo longínquo e
antropomorfizado.
Essa inovação fica mais evidente se colocarmos a terra dos
ciclopes como uma oposição a Esquéria. Vejamos uma breve
descrição da terra dos feácios no livro VI da Odisseia, entre os
versos 2-10, quando somos apresentados a Esquéria e seus
habitantes:
[…] αὐτὰρ Ἀθήνη
βῆ ῥ᾽ἐς Φαιήκων ἀνδρῶν δῆμόν τε πόλιν τε,
οἳ πρὶν μέν ποτ᾽ ἔναιον ἐν εὐρυχόρῳ Ὑπερείῃ,
5ἀγχοῦ Κυκλώπων ἀνδρῶν ὑπερηνορεόντων,
οἵ σφεας σινέσκοντο, βίηφι δὲ φέρτεροι ἦσαν.
ἔνθεν ἀναστήσας ἄγε Ναυσίθοος θεοειδής,
εἷσεν δὲ Σχερίῃ, ἑκὰς ἀνδρῶν ἀλφηστάων,
ἀμφὶ δὲ τεῖχος ἔλασσε πόλει, καὶ ἐδείματο οἴκους,
καὶ νηοὺς ποίησε θεῶν, καὶ ἐδάσσατ᾽ ἀρούρας.

97
Robert Mondi, ‘The Homeric Cyclopes: Folktale, Tradition, and Theme’.
Transactions of the American Philological Association, 1983, p. 17-38. Disponível em:
https://www.jstor.org/stable/284000. Acesso em: 22 jun. 2022.
42

[…] e Atena
foi até a terra, a cidade dos varões feácios.
Eles antes moravam na espaçosa Hipereia,
próximo aos ciclopes, varões arrogantes,
que os lesavam, pois na força eram superiores.
De lá fê-los erguer-se o deiforme Nauveloz,
e assentou-os em Esquéria, longe de varão come-grão;
em volta puxou muro para a cidade, construiu casas,
fez templos de deuses e dividiu as glebas.98

E agora uma descrição da terra dos ciclopes conforme o livro


IX da Odisseia (v. 105-124):
De lá navegamos para diante, atormentados no coração.
E à terra dos ciclopes, soberbos, desregrados,
chegamos, eles que, confiantes nos deuses imortais,
não plantam árvores com as mãos nem aram,
mas, sem semear nem arar, isso tudo germina,
trigo, cevada e videiras, que produzem
vinho de grandes uvas que a chuva de Zeus lhes fomenta.
Eles não têm assembleias decisórias nem normas,
mas habitam os cumes de montes elevados
em cavas grutas, e cada um impõe normas
sobre filhos e mulheres, e não cuidam uns dos outros.
E pequena ilha lá se espraia à margem do porto,
nem perto nem longe da terra dos ciclopes,
matosa; nela há cabras inumeráveis,
selvagens: movimento de homens não as afasta,
nem caçadores a frequentam, os que, no mato,
sofrem agonias percorrendo os picos dos montes.
Eis que não é coberta por rebanhos nem lavouras,
mas ela, sem que se semeie e are, todos os dias
está privada de homens, mas nutre cabras que balem.99

98
Christian Werner, Odisseia: Homero. São Paulo: Cosac Naify, 2014. E-book.
p. 27.2 (grifo nosso).
99
Id., p. 33.105.
43

É interessante que Mondi, ao lidar com o questionamento


da descrição da terra dos ciclopes e de Polifemo como uma
“existência utópica”,100 acaba desviando sua abordagem para a
temática da era dourada e do nobre selvagem. Embora a
abordagem de Mondi dialogue de forma indireta com muitas das
observações de John Ferguson (em especial o capítulo ‘The Noble
Savage’),101 vamos nos focar aqui na relação entre utopia e
pastoralismo partindo da distinção feita por Eric Saylor:
A utopia às vezes é coloquialmente empregada como
sinônimo de Arcádia, mas, no contexto pastoral, devem ser
tratados como conceitos distintos [...]. Primeiro, as
descrições da Arcádia — por mais que tenham sido
submetidas à licença poética — baseiam-se em relatos de
uma província grega real, tão real agora quanto era no
mundo antigo. A utopia, no entanto, sempre foi um lugar
fictício, um lugar que existe em um estado de graça eterna e
imutável e onde o potencial humano foi plenamente
realizado. […] Dito de outra forma: a Arcádia é inspiracional,
enquanto a Utopia é aspiracional.102

A essas afirmações poderíamos buscar uma resposta talvez


mais simples e que não pretende categorizar e distinguir
utopianismo e pastoralismo exatamente porque
[…] talvez o que aflija a sociedade comum não seja a
inconsistência, mas a multiplicidade de seus hábitos rituais.
Se for o caso, então o ideal social real seria uma sociedade
muito simplificada, e o caminho mais rápido para a utopia
seria fornecer o mínimo absoluto de estrutura e organização
social. Essa concepção da sociedade ideal como
simplificada, mesmo primitiva, tem muito mais
importância literária do que a própria utopia, que na

100
Mondi, op. cit., p. 19.
101
Ferguson, 1975, p. 16-22.
102
Eric Saylor, English Pastoral Music: from Arcadia to Utopia, 1900-1955. Chicago:
University of Illinois Press, 2017. E-book. p. 3143.
44

literatura é um gênero relativamente menor, nunca


desvinculado da teoria política. Pois a sociedade
simplificada é a base da convenção pastoral, uma das
convenções centrais da literatura em todos os estágios de
seu desenvolvimento.103

Uma vez que entendemos que o pastoralismo é uma


resposta antiutópica que enseja em si alguns elementos das
utopias, como numa ‘antinomia interdependente’ ou numa
‘identificação por vício’, podemos passar a entender que a visão
de mundo pastoral/antiutópica pode ser nada mais que uma
forma de escapismo do urbano/utópico que busca uma
alternativa simplificada aos rituais das utopias e das
organizações sociais que oprimem o indivíduo.
Podemos ver esse tipo de sociedade simplificada não apenas
no modo de vida ciclópico como retratado por Homero, mas em
seu diálogo constante com a produção poética subsequente,
como no caso do Idílio XI de Teócrito (v. 38-53):
E cá sei tocar a siringe como nenhum dos ciclopes,
cantando-te a ti, doce pomo adorado, e a mim mesmo,
amiúde
até bem tarde da noite. E crio-te, sim, onze corças,
todas de branco pescoço, e quatro filhotes de urso.
Então comigo vem cá, e não terás prejuízo,
e o glauco mar — oh deixa que muja junto da praia;
mais doce no antro ao meu pé tua noite há de ser:
onde loureiros estão, e estão flexuosos ciprestes,
e hera escuríssima, e a vinha também, cujo pomo é bem
doce,
e água fresca, que o Etna arborizadíssimo de alva
neve a mim me destila, e a licor de ambrosia me sabe.
Quem a tantas e tais o mar preferira, e as ondas?
Mas se a ti te pareço não mais que um enorme sobrolho,

103
Frye, op. cit., p. 338.
45

hei lenha de roble e, debaixo da cinza, fogo indelével:


de ti suportava até mesmo se tu me queimasses a alma, e o
que é mais, se o monolho queimasses, o bem mais caro que
tenho.104

Uma vez que usamos o Idílio XI de Teócrito como exemplo


dessa relação entre utopia e pastoralismo e seu legado deixado
por Homero tanto nos criadores das ficções utópicas quanto no
advento do pastoralismo helenístico, cabe retomar uma questão:
embora, segundo Nogueira, a tradição pastoril de Teócrito
dialogue em proximidade com Hesíodo em Trabalhos e dias,105
cabe observar, como fizemos acima ao citar Mondi, que o ciclope
monolho é um legado e uma inovação homérica: Teócrito faz uso
de ambos, Homero e Hesíodo, em sua própria mimese de
reprodução e recriação.
Deixando Teócrito um pouco à parte, cabe dizer que seria
demais traçar aqui a influência do legado homérico na produção
de outro importante poeta helenístico, Filodemo de Gádara, mas
um breve verso de seu epigrama 27 nos revela um pequeno
tesouro que pode ajudar a entendermos a antinomia entre
feácios utópicos e ciclopes pastorais e desfazer algumas
concepções errôneas em torno de conceitos como utopia,
pastoralismo, urbanismo e escapismo, especialmente em Peter
Green, obscurecem ou confundem nossa compreensão da
relação íntima entre utopianismo, escapismo e pastoralismo e

104
Érico Nogueira, Verdade, contenda e poesia nos Idílios de Teócrito. Orientador: Prof. Dr.
João Angelo Oliva Neto. 2012, 298 fl. Tese (Doutorado em Letras Clássicas) —
Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas, Departamento de Letras
Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. p. 121. Disponível em: https://teses.
usp.br/teses/disponiveis/8/8143/tde-06112012-125428/publico/2012_EricoNogueira.
pdf. Acesso em: 22 jun. 2022. p. 141.
105
Nogueira, op. cit., p. 139.
46

seu desenvolvimento através dos tempos, principalmente na


produção poética e em prosa do período helenístico.
Assim, vejamos o epigrama de Filodemo em questão (27
Sider = AP XI, 44):
αὔριον εἰς λιτήν σε καλιάδα, φίλτατε Πείσων,
ἐξ ἐνάτης ἕλκει μουσοφιλὴς ἕταρος,
εἰκάδα δειπνίζων ἐνιαύσιον· εἰ δ᾽ ἀπολείψεις
οὔθατα καὶ Βρομίου χιογενῆ πρόποσιν,
ἀλλ᾽ ἑτάρους ὄψει παναληθέας, ἀλλ᾽ ἐπακούσῃ
Φαιήκων γαίης πουλὺ μελιχρότερα.
ἢν δέ ποτε στρέψῃς καὶ ἐς ἡμέας ὄμματα, Πείσων,
ἄξομεν ἐκ λιτῆς εἰκάδα πιοτέρην.

Amanhã, à sua humilde cabana, caríssimo Pisão,


teu companheiro caro às Musas às nove te arrasta
dando de jantar em teu anual Vigésimo; e se perderás
úberes e um brinde com Brômio de lavra quiana,
ainda verás companheiros todo-verdadeiros, ainda ouvirás
coisas muito mais melífluas do que a terra dos feácios.
E, se alguma vez também nos voltares os olhos, Pisão,
conduziremos Vigésimo, de um humilde, a um mais
gordo.106

A menção à terra dos feácios num contexto de corte urbano


cabe bem mais a um poeta epicurista que o escapismo pastoral.
Mais que isso, porém, uma análise detida quanto a por que razão
Filodemo ‘prefere’ a terra dos feácios à terra dos ciclopes
(supondo que ele tivesse apenas as duas opções, como parece ser
sempre o caso) ajuda a desfazer algumas concepções errôneas

106
Tradução adaptada de Leonardo Teixeira de Oliveira, Os epigramas de Filodemo de
Gádara: introdução, tradução e comentários. Orientador: Prof. Dr. Roosevelt
Araújo da Rocha Júnior. 2021, 381 fl. Tese (Doutorado em Letras) — Setor de
Ciências Humanas da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2021, p. 265.
Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/ 1884/73847. Acesso em: 22 jun.
2022. Cf. David Sider, The Epigrams of Philodemos: Introduction, Text, and
Commentary. New York: Oxford University Press, 1997, p. 152.
47

quanto ao legado utópico e pastoril de Homero, como quando


Green, ao analisar o pastoralismo, afirma que,
[a] a conexão entre epicurismo e pastoralismo reside no
afastamento da mundanidade dos negócios e da política que
o cenário pastoral pressupõe.107

Nessa equiparação de Green entre, digamos, ‘escapismo


utópico’ e ‘escapismo pastoral’ há um erro de definição que
obscurece e confunde a relação entre utopia e pastoralismo que
buscamos resolver aqui: Filodemo opta por mencionar a terra
dos feácios, uma utopia urbanizada, não pastoral, como vimos,
e isso seria suficiente para deixarmos de lado qualquer
equiparação da busca epicurista pela ataraxia fazendo uso do
pastoralismo; mas se alguém chamasse a atenção para o fato de
que Filodemo apenas opta pela terra dos feácios por estar o
epigrama ambientado num contexto de relações de corte,108
poderíamos lembrar que, mais que Filodemo, Teócrito mesmo
criou seu pastoralismo no ambiente de corte e patronato de
Ptolomeu Filadelfo109 (patronato, aliás, mais rentável que o de
Pisão).
Mais que um Filodemo que se equipara ao bardo feácio
Demódoco, essa oposição entre a terra dos feácios e dos cíclopes
revela a antinomia paradoxal e interdependente entre
utopianismo e pastoralismo: se o pastoralismo é uma reação
real, pragmática e inspiracional que se opõe à ficção meramente

107
Green, op. cit., p. 239.
108
Seria interessante confrontar a escolha da terra dos feácios por parte de Filodemo
e o patronato de Pisão com algumas das questões abordadas pelo poeta-filósofo em
seu ensaio sobre o rei ideal de acordo com Homero usando o tema do
escapismo/engajamento político epicurista conforme tratado por Geert Roskam no
capítulo ‘Philodemus’ de seu Live Unnoticed (2007a).
109
Frederick T. Griffiths, Theocritus at Court. Leiden: Brill, 1979. passim.
48

descritiva e ideológica das utopias, por que a Arcádia sempre se


opõe à Utopia em termos fantásticos e pouco verossímeis?
Cabe chamar a atenção para que o ‘pastoralismo [de um
escapismo] urbanizado’110 como o de Teócrito não nasce de uma
‘sociologia’ quase científica e de uma reflexão filosófica porém
ideológica (como no caso das utopias), mas revela exatamente
em seu caráter ficcional e fantástico — o clima ameno, os
rebanhos que cuidam de si e que nunca requerem cuidados,
frutas e grãos em abundância, vasos e instrumentos musicais
maravilhosos, o tempo livre e de lazer inverossímeis — a relação
visceral entre Utopia e Arcádia; e podemos até dizer em resumo:
as maravilhas utópicas do palácio e da terra de Alcínoo que visam
simplificar a vida dos feácios se transformam numa natureza
maravilhosa e simplificada na terra dos ciclopes.
Assim, Utopia e Arcádia não deveriam ser entendidas como
criações independentes e distintas, ou uma como uma resposta
superior, mais verossímil ou praticável à outra, tampouco a
Utopia é somente aspiracional e a Arcádia inspiracional: ambas
ensejam formas interdependentes de Weltanschauung porque
não podem, e jamais puderam ser tanto ontem quanto hoje,
independentes, e o fato de a Odisseia já trazer em si essa
antinomia interdependente no conflito entre feácios e ciclopes
não deveria nos causar espanto nem nos levar a não-lugares sem
respostas.

Num mundo tão instável, a ataraxia não é o


suficiente

Apesar de o cosmos antes ordenado de Platão agora ter sido


deslocado por novos atores, em especial pelo epicurismo e seu
alinhamento com um mundo privado, reservado, individualista,
típico do período helenístico, havia ainda algo presente no
110
Green, op. cit., p. 233.
49

espírito grego (e, como vimos, também nos romanos, em


especial em Cícero) que não permitia que o exemplo de Diógenes
de Oinoanda ou de Filodemo de Gádara, usando dum escapismo
autossatisfeito, se tornasse uma utopia em terra, um mundo de
jardins epicuristas e afastado de questões sociais e políticas.
O que foi isso que, nas visões de qualquer epicurista,
impedia que muitos gregos desejassem a ‘cura’ de seu mestre
associada a uma vida reservada e despercebida?
Simples orgulho, como vimos, da própria autonomia? Não
uma mera autonomia individualista (como a dos ‘libertários’ e
negacionistas de vacinas em nome da chamada ‘liberdade
individual’ de hoje): a autarkeia, a autossuficiência como parte de
um todo maior, ao qual chamavam polis (Platão conhecia bem o
público ao qual se dirigia) ainda estava presente e bem viva.
Talvez tenha havido também nesses primeiros momentos
da stoa de Zenão um orgulho que se recusa a olhar apenas para o
chão, a se isolar num pequeno jardim, que se recusa a ver a si
próprio como doente, como necessitado de qualquer ‘cura’
epicurista — uma visão de mundo e de existência que não
permitiria esse autoeclipse da própria individualidade proposto
por uma ‘vida despercebida’.
Os estoicos aparecem agora também para procurar mostrar
que a vida, os céus, terra e mar podem oferecer muito mais que
galenismos e ataraxia: podem oferecer uma visão utópica capaz de
transformar vidas e lugares por completo e que, de forma muito
diferente do espartanismo idealizado de Platão ou do escapismo
de Diógenes de Oinoanda, que aguarda autossatisfeito por uma
futura Idade do Ouro com jardins e amigos epicuristas, vai
influenciar outro modo de visão de mundo antes impossível: um
mundo em que todos são livres e não há mais seres humanos
escravizados a relações de hierarquia, submissão e opressão,
uma polis onde todos são livres de fato.
50

Estoicos no mar
O Sol como conselheiro

[…] μάλιστα δὲ εἰς τὸν ἥλιον,


οὗ τάς τε νήσους καὶ ἑαυτοὺς προσαγορεύουσι.
[…] e mais que todos o Sol,
a partir do qual nomeiam as ilhas e a si mesmos.
Diod. Sic. 2.59.7

O cosmos estoico não diferencia e não distingue a natureza da


divindade, e não é só inteligível como é inteligente: “o universo
estoico não é apenas como uma criatura viva [como para os
platônicos], ele é uma criatura viva”,111 e mais que isso, esses
cosmos é gerido por uma espécie de causalidade universal — o
chamado nexus causal do logos estoico — de modo que a
felicidade humana depende de se encontrar a correta relação
individual com a natureza ou com Deus (ou ambos).112
Seu criador, um jovem fenício alto, magro, atlético, de pele
escura, chamado Zenão, da cidade de Cítio, em Chipre, filho de
um comerciante, segundo os relatos deixados pelos antigos,
depois de um naufrágio perto do Pireu, chegou a Atenas por
volta de 312; diz-se também que, pouco depois desse acidente,
ele teria entrado numa livraria e, após ‘pergaminhar’ as
Memoráveis, de Xenofonte, teria perguntado ao vendedor onde
poderia encontrar homens como Sócrates. Crates, um seguidor
do Cão, o famoso Diógenes do barril, um cínico, passava pela rua
no momento: “Siga aquele homem”, respondeu o vendedor.113

111
Lloyd, 1970, p. 29 apud Green, op. cit., p. 64.
112
Ibid.
113
Green, op. cit., p. 61-62.
51

Apesar desse evento anedótico, Zenão manteve alguns dos


ensinamentos dos cínicos, mas não se tornou um pária social
como eles: passou a ensinar sua própria doutrina na Stoa Poikile,
o Pórtico Pintado, que servia como uma espécie de galeria de
arte, e tendo sucesso com seus ensinamentos, teria sido
convidado para a corte de Antígono Gônatas114 — Zenão negou o
convite, mas enviou um discípulo no lugar, Perseu, que teria
morrido defendendo Corinto a mando de Antígono.

Crisipo e o nexus estoico

Esse evento, entretanto, não é a única marca do


envolvimento estoico com negócios de Estado e poder: Crisipo,
aquele “sem o qual não haveria estoicismo”, prostates, espécie de
diretor-substituto de Zenão na Stoa entre 232 e 207 a.C., já havia
desenhado um esquema que, como o platonismo, uniria uma
visão de mundo astronômica com os eventos terrestres; nesse
sentido, no universo de Crisipo, o cosmos é uma cidade, as
estrelas são seus cidadãos, o sol é o conselheiro, e a estrela
vespertina um oficial do governo.115
Crisipo também teria afirmado que “os corpos celestes, e
tudo que possui alguma regularidade sempiterna, não podem
ser criados pelo homem; portanto, aquilo pelo que ele são feitos
é melhor que o homem; mas do que poderíamos chamá-lo senão
Deus?”.116 Podemos concluir com Ferguson que “toda a visão
política de Crisipo é governada por sua visão do universo como
uma comunidade de deuses e homens”.117
Essa relação entre deuses e homens e, mais interessante,
entre homens e o poder terreno, para Crisipo, se traduz num

114
Ibid.
115
Ferguson, 1975, p. 117.
116
Green, op. cit., p. 633-634.
117
Ferguson, op. cit., p. 117.
52

movimento duplo de aproximação e afastamento das questões


políticas, e embora seu pessimismo, como diz Ferguson,
tendesse a elogiar o quietismo político, o desengajamento,
também é dito que ele teria afirmado que o sábio aceitaria a
monarquia e a realeza.118 Talvez isso seja sintoma de algo não
resolvido pela filosofia estoica: aquele paradoxo entre o nexus
causal do logos, e, ao mesmo tempo, a autonomia e liberdade do
indivíduo promovida pelo estoicismo não pode ter conciliação.119
Uma atitude ambígua, mas não menos direcionada para a
ação política de fato: como Platão, Crisipo chega mesmo a
retomar as mulheres como agentes políticas; para ele,
cuidadoras deveriam ser filósofas, sábias, e ainda segundo
Ferguson, Crisipo foi o primeiro estoico a afirmar
explicitamente que mulheres e homens são iguais em relação à
virtude (no que, como vimos, se distancia de Platão): assim, sua
comunidade conforme imaginada em sua Politeia, República (e
Zenão também havia escrito uma República) é uma cidade de
homens e mulheres parceiros no Estado. 120
Mas esse desenvolvimento das ideias do criador da escola na
Stoa Poikile não deixa de ocultar visões mais radicais que, como
veremos a seguir, vão influenciar os escritores estoicos de
utopias políticas: Zenão defendia a extinção de toda forma de
moeda, bem como de templos, tribunais, ginásios e alianças
locais; em suma, de tudo que era usado pela polis, como vimos,
para sua autonomia, sua autarkeia — e como não bastasse, Zenão
havia proposto, em seu período como cínico, o comunitarismo

118
Ibid.
119
Peter von Möllendorff, “Stoics in the Ocean: Iambulus’ Novel as Philosophical
Fiction”. In: Marília P. Futre Pinheiro; Silvia Montiglio (org.). Philosophy and the
Ancient Novel (Ancient Narrative Supplement 20), Gronigen, 2015. p. 29. Disponível
em: http://archiv.ub.uniheidelberg.de/propylaeumdok/3340/1/Moellendorff
_Stoics_in_the_ocean_2015.pdf. Acesso em: 15 ago. 2021.
120
Ferguson, op. cit., 117.
53

entre esposas e maridos (mais especificamente, o direito de


homens compartilharem a posse de mulheres para fins de
relacionamento sexual), além do uso de roupas unissex, e era
contra a monogamia, sendo também firmemente tolerante com
relações homossexuais.121
Tudo isso era, de alguma forma, mais que mera herança
cínica retomada de tempos em tempos para chocar a moral
ateniense: era uma crítica frontal a Platão e Aristóteles (e aos
epicuristas também); mas o estoicismo, apesar dessa repulsa
pelas instituições atenienses, não pregaria um afastamento
político total: ele jamais deixaria de também herdar e
desenvolver, a seu modo, aquelas ferramentas de ação e defesa
que vimos serem usadas, de modo conformador, pelos
epicuristas:122 mais que um escapismo relativo, o utopianismo
estoico, veremos bem, é um modo de defesa, resistência e
revolução em um mundo instável e ao mesmo tempo congelado
em velhas concepções de virtude para o qual era preciso, a
qualquer custo, haver uma alternativa.
Mesmo que Crisipo e grande parte do ideal estoico trate a
política como um cosmopolitismo astronômico, e embora sua
ética defenda a noção abrangente e abstrata de viver em
harmonia de acordo com a ordem cósmica, as consequências
dessas ideias foram bem práticas, e aquele que havia ensinado a
jovens a completude e o domínio de si mesmo teria também
generais, governadores de província e mesmo imperadores
como alunos e discípulos do mestre do Pórtico.123
Mas mais que questionar como as palavras daquele homem
alto, atlético, de pele escura, discursando na Stoa Poikile de
Atenas, foram capazes de tomar grande parte do mundo grego e

121
Green, op. cit., p. 633.
122
Id., p. 64.
123
Ibid.
54

romano como cativos de um novo modo de vida posto em


prática, é importante, como veremos a seguir, analisar como o
estoicismo também criou uma espécie de utopianismo político e
revolucionário que, paradoxalmente, seria mais tarde silenciado
pelo conformismo e pelo escapismo romanos que recorreriam a
um estoicismo ético preocupado apenas em discernir uma vida
conforme a natureza.
Como veremos, a filosofia daquele homem que teria
chegado a Atenas após um naufrágio se transformará, nas mãos
de escritores helenísticos herdeiros dum primeiro legado
estoico, um refúgio, uma salvação e uma breve resistência na
forma de distantes ilhas no mar, com cidadãos que vivem em
perfeita harmonia com a natureza, sem se preocupar com
templos, tribunais, ginásios e todas as velhas instituições típicas
de uma polis, ou na forma de uma cidade apenas de escravizados
livres, ambas sem deixar de ter, claro, o Sol como símbolo dessas
utopias.

As Ilhas do Sol de Iâmbulo

Intitulada, segundo David Winston,124 Ilhas do Sol ou


possivelmente As aventuras de Iâmbulo nos Mares do Sul, a narrativa
de Iâmbulo (escrita entre 165 e 50 a.C.) não sobreviveu, mas por
meio principalmente de excertos na Bibliotheke historike de
Diodoro Sículo (2.55-60), podemos tentar reconstituir um pouco
dessa maravilhosa narrativa utópica estoica no mar.
Uma reconstrução da narrativa de Iâmbulo pode ser,
conforme Winston e von Möllendorff,125 a seguinte: Iâmbulo

124
David Winston, “Iambulus’ Islands of the Sun and Hellenistic Literary Utopias”.
Science-Fiction Studies, v. 10, section 3, Nov. 1976. p. 219-217. Disponível em:
https://www.depauw.edu/sfs/backissues/10/winston10art.htm. Acesso em: 15 ago.
2021.
125
Winston, op. cit., p. 219-221; cf. von Möllendorff, 2015, passim.
55

tinha paixão por conhecimento, mas com a morte de seu pai


comerciante, ele próprio teve de assumir as atividades; assim, ao
passar pela costa da Somália, ele e um companheiro foram
capturados e levados para a costa da Etiópia, onde foram
obrigados a participar de um ritual de purificação da terra: ele e
seu companheiro ganharam um barco com provisões para seis
meses, e foi-lhes mandado navegar em direção ao sul até
chegarem a uma ilha habitada por um povo virtuoso — se
chegassem a essa ilha a salvo, assegurariam, além da própria
vida, paz e prosperidade para os etíopes por seiscentos anos; se
retornassem, seriam punidos e trariam desastre a toda a nação;
depois de quatro meses navegando um mar tempestuoso, ambos
chegaram à ilha designada, e alguns dos nativos trouxeram o
barco à praia; a ilha tem um formato circular, com uma
circunferência de aproximadamente mil quilômetros; ela é parte
dum arquipélago com sete ilhas, todas de mesmo tamanho e
equidistantes, e todas seguem as mesmas leis e costumes;
embora fique na linha do Equador, tem um clima temperado e
feácio, com plantas fornecendo frutos o ano inteiro, todos de
muito boa qualidade e em abundância; dia e noite têm a mesma
duração, e ao meio-dia não existe sombra.126
Os habitantes são muito exóticos; têm mais de um metro e
oitenta de altura, ossos flexíveis como músculos, e agarram
objetos de forma que ninguém os consegue soltar; têm cabelo,
sobrancelhas e cílios e barba no queixo, mas o resto do corpo é
totalmente suave e sem pelos, e eles são não apenas belíssimos
como muito bem proporcionados; as aberturas de suas orelhas
são maiores que as nossas e têm uma espécie de válvula de
fechamento; eles têm a língua partida em duas na ponta, e fazem
esse corte chegar ainda mais atrás de forma que ela fique dupla
até a base; assim, eles são capazes não só de reproduzir qualquer

126
Ibid.
56

linguagem humana, mas também conversam com mais de uma


pessoa ao mesmo tempo: com uma parte da língua podem
responder a questões de um interlocutor, e com a outra podem
falar de eventos cotidianos; vivem em grupos de quatrocentos
indivíduos; cada grupo é comandado pelo membro mais velho,
que tem autoridade de monarca e é obedecido por todos; eles
trabalham de forma comunitária, servindo uns aos outros, seja
pescando ou em outras atividades, e com exceção dos muito
velhos, realizam suas atividades cívicas de forma rotativa;127 eles
não se casam e mantêm um compartilhamento de esposas e
cuidam em comum das crianças; quando crianças, aliás, eles são
frequentemente trocados de cuidadores, de modo que nem a
própria mãe é capaz de reconhecer o próprio filho; além disso,
cada grupo tem um tipo de pássaro exótico muito grande que
usam para fazer um teste: os bebês são montados nos pássaros,
e aqueles que suportam o voo são cuidados e crescem em
comunidade, mas aqueles que ficam nauseados ou em pânico
eles descartam como tendo um temperamento impróprio; além
dessa ave, existe um animal redondo, similar a uma tartaruga,
cuja pele tem duas linhas diagonais amarelas, ao final de cada
qual há uma boca e um olho; ao redor dele todo existem pés, de
modo que ele consegue andar em qualquer direção; seu sangue é
capaz de colar novamente qualquer membro amputado (exceto
partes vitais) enquanto o sangue estiver fresco; caso algum dos
membros das ilhas tenha uma doença incurável ou algum defeito
físico, é compelido por lei a se suicidar, e quando chegam aos 150
anos de idade, é costume que se deitem sobre uma grande e
estranha planta que causa uma morte sem dor durante o sono;
assim, eles também enterram seus mortos na maré baixa; se
interessam por todas as áreas de conhecimento, mas
principalmente por astrologia; têm também um alfabeto que

127
Ferguson (op. cit., p. 127) conclui que Iâmbulo talvez conhecesse a Política de
Aristóteles, e seria daí que teria retirado o conceito de rotação de funções cívicas.
57

representa vinte e oito diferentes valores fonéticos, mas


contendo apenas sete caracteres, com cada um destes
assumindo quatro diferentes formas; como deuses, eles
reverenciam o céu amplo, especialmente o Sol e, de modo mais
geral, os corpos celestes todos; durante os festivais, são cantados
hinos e músicas em reverência aos deuses, mas especialmente ao
Sol, a partir do qual eles nomeiam tanto a ilha quanto a eles
próprios.128
Iâmbulo e seu companheiro ficaram na ilha por sete anos,
mas foram banidos talvez por não terem alcançado a perfeição
dos ilhéus ou talvez por serem uma fonte de corrupção do modo
de vida adotado; e o número sete, aqui, não é por acaso: von
Möllendorff129 mostra como a pedagogia estoica determinava a
idade de sete anos de uma criança como o primeiro passo rumo
à maturidade; assim, Iâmbulo e seu companheiro tiveram o
mesmo tempo de aprendizado que qualquer outra criança para
se adaptarem ao modo de vida dos ilhéus.
Não conseguiram se adaptar, claro, e a expulsão de ambos
da ilha é uma prova daquele conflito estoico de que falamos
antes: o paradoxo da relação entre o nexus causal, em que tudo é
predeterminado pela natureza, e a liberdade e determinação do
indivíduo — é exatamente esse conflito, representado por
Iâmbulo entre os dois protagonistas, de um lado, e os ilhéus, de
outro, que faz da narrativa de Iâmbulo tão estoicamente
didática: de uma forma ou de outra, o indivíduo deve cooperar
com a ordem natural, mesmo que seja numa utopia, numa
distante cidade jamais vista antes.130

128
Winston, 1976, p. 219-221.
129
von Möllendorff, 2015, p. 27-28.
130
Id., p. 30-31.
58

Aristônico, Blóssio de Cumas e os cidadãos do Sol

Mais interessante que essa relação entre a utopia de Iâmbulo


com a própria doutrina estoica e com o legado de Zenão é a
análise, agora possível, da relação entre escravidão, revolução e
utopia por meio da figura de Aristônico, líder de uma revolução
em torno de 133-130 a.C., que teve como ápice a promessa de
libertação e de cidadania a escravizados em Pérgamo,
importante entreposto comercial. Segundo Justino, “Havia um
filho de Eumenes, chamado Aristônico, não nascido em
casamento, mas de uma amante de Éfeso, filha de uma harpista,
e após a morte de Átalo, este jovem reivindicou o trono da Ásia
como tendo sido de seu pai” (36.4.6).131 Estrabão traz um resumo
da revolução de Aristônico:
Depois de Esmirna chega-se a Leucas, uma pequena cidade
que após a morte de Átalo Filométor foi levada a se revoltar
por Aristônico, que tinha a fama de pertencer à família real
e pretendia tornar seu o reino. Ele foi banido [de Esmirna]
depois de ter sido derrotado em uma batalha naval perto do
território de Cumas pelos efésios, mas avançou pelo interior
e rapidamente reuniu um grande número de pessoas sem
recursos, e também de escravos, conclamados com
promessa de liberdade, aos quais ele chamou de cidadãos do
Sol [πλῆθος ἀπόρων τε ἀνθρώπων καὶ δούλων ἐπ᾽ ἐλευθερίᾳ
κατακεκλημένων, οὓς Ἡλιοπολίτας ἐκάλεσε].132

Esse evento, junto de inferências biográficas sobre


Aristônico, estão bem retratados num artigo influente do

131
Page duBois, “The History of the Impossible: Ancient Utopia.” Classical Philology
101, n. 1, p. 1–14, 2006. Disponível em: https://doi.org/10.1086/505668. Acesso em:
10 fev. 2021. p. 6.
132
Strab. 14.1.38.
59

renomado classicista Thomas W. Africa.133 O mais importante da


análise de Africa é a ansiosa tentativa de desfazer qualquer
relação errônea quando associamos a revolução de Aristônico
como um produto de ideias utópicas, e menos ainda
influenciado pela utopia dos cidadãos do Sol de Iâmbulo:
[B]rochuras utópicas não significavam nada [para um]
proletariado agrário de mão calejada que não era capaz de se
identificar com programas incompreensíveis de felicidade
futura ou descrições superficiais de distantes bênçãos […].
Heliópolis foi criada para consumo local apenas, e só pode
ser distorcida por uma intelectualização excessiva.134

A influência da visão de Africa sobre a revolução de


escravizados liderada por Aristônico contra poleis vizinhas e, em
último, contra Roma, que suplanta a revolta, vai levar
historiadores e outros grandes classicistas, como Moses Finley,
a uma recepção que pode ser resumida pela postura de Peter
Green:
[…] Devemos dar atenção ao conselho salutar de Finley […]
‘contra buscar um livro por trás de cada ideia ou ação
popular’ […]. Não é fácil levar a sério quaisquer utopias
helenísticas […]. [A]penas em fantasias ou mitos podemos
encontrar princípios como abolição da escravidão,
comunismo, amor livre e anarquia social […].135

Green cita do influente texto “Utopianism Ancient and


Modern”, capítulo de The Use and Abuse of History, publicado em
1975 por Finley.136 O texto de Finley, apesar das relevantes
133
Thomas W. Africa, “Aristonicus, Blossius, and the City of the Sun”. International
Review of Social History, v. 6, n. 1, 1961, p. 110-24. Disponível em: http://www.jstor.
org/stable/44581450. Acesso em: 10 dez. 2021.
134
Africa, op. cit., p. 121.
135
Green, op. cit., p. 394.
136
Moses I. Finley, “Utopias Ancient and Modern”. In: Moses I. Finley, The Use and
Abuse of History. New York: The Viking Press, 1975. p. 178-192.
60

reflexões e questionamentos acerca da utopia como (sub)gênero


e do tratamento de diversas questões políticas contemporâneas,
que de modo geral refletem a ansiedade pré e pós-revolução
russa de 1917 e também posterior, no contexto da guerra fria,
pode ser lido hoje com um olhar mais crítico e embasado. Finley
busca desfazer a relação entre a utopia de Iâmbulo e a revolução
de Aristônico:
Essa afirmação [Finley aqui se refere ao trecho de Estrabão
visto acima], que citei na íntegra, não é exatamente
informativa. No entanto, isso, juntamente com o fato
adicional de que Aristônico foi apoiado pelo filósofo estoico
Blóssio de Cumas, o ex-mentor dos [irmãos] Gracos, é a
única base para a outrora comum suposição de que
Aristônico propôs introduzir na vida real na Ásia Menor o
regime social e político projetado pelo utópico escritor
lâmbulo, que disse de seus ilhéus que acima de todos os
outros deuses eles honram o sol, ‘a partir do qual nomeiam
as ilhas e a si mesmos’.137

Mesmo que saibamos pouco de sua vida, Blóssio de Cumas


é uma figura interessante por si: tendo fugido do expurgo em
Roma após o assassinato do reformador Tibério Graco, Blóssio
se juntou a Aristônico na Ásia Menor e teria de fato incitado a
revolta. Apesar dessas tentativas ansiosas de dissociar a revolta
de escravizados de Aristônico e sua promessa de cidadãos livres
numa Heliópolis, promessa talvez inspirada pelo estoicismo de
Blóssio de Cumas, das Ilhas do Sol de Iâmbulo, uma instigante
sugestão numa inscrição de um decreto descoberto em Claros,
perto de Cólofon, na Ásia Menor, e publicada em 1989, ajuda a
ilustrar mais a polêmica e talvez inverter de todo a perspectiva
quanto a essa questão polêmica e como tratar desses eventos:

137
Finley, op. cit., p. 184.
61

No decorrer do decreto, […] o texto menciona um local de


outra forma jamais atestado, uma δούλων πόλις (cidade dos
escravos): “saques e ataques armados ocorrendo com danos
na cidade dos escravos” (γι|νομένης ἁρπαγῆς καì ἐφόδου |
μεθ' ὅπλων καì ἀδικημάτων ἐ|πì τ(ῆ)ς ὑπαρχούσ(η)ς (ἡ)μεῖν
χώρας | ἐπì Δούλων πόλεως).138

Jeanne Robert e Louis Robert, que descobriram e


registraram a inscrição e o decreto, de forma intrigante e talvez
bastante correta associam essa Cidade dos Escravos com a
revolução de Aristônico,139 o que leva Page duBois a se
questionar:
Resta uma pergunta: o que é uma δούλων πόλις? O grau em
que a frase é um oxímoro só pode suscitar especulações.
Uma polis não pode ser feita de escravos, exceto em algum
mundo utópico. Em termos de visão de mundo grega, uma
polis tem cidadãos, pessoas livres, talvez metecos e escravos.
Uma cidade que consista apenas de cidadãos existe somente
no imaginário, no reino ficcional, na obra de um escritor,
por exemplo, como Iâmbulo […].140

Um lugar sob o sol: escravidão, revolução, utopias

Aristóteles começa sua Política definindo uma polis como


uma espécie de ‘parceria’ ou ‘relação comunitária’,141 e essas
relações são como aquelas entre homem e mulher ou governante
e súdito, e por essa última relação ele parece se referir a senhor e
escravo, já que, pouco depois, retomando o esnobismo
intelectualista de Platão, devemos entender que “quem é capaz
de se suster usando a mente é por natureza governante e por

138
Jeanne Robert e Louis Robert, Claros I: Décrets hellénistiques, fasc. 1 [Les
inscriptions], Paris: Recherche sur les civilisations, 1989 apud duBois, 2006, p. 7.
139
duBois, 2006, p. 7.
140
Id., p. 8.
141
Arist. Pol. 1252a1.
62

natureza senhor, e quem o faz com o corpo é súdito e por


natureza escravo”.142
Talvez porque a relação senhor-escravo é frágil, ou
arbitrária, impossível de ser naturalizada de forma
exaustiva, Aristóteles volta a ela repetidamente quando da
discussão sobre correlação. A correlação senhor/escravo não
é imediatamente legível, talvez, ou mesmo
presumivelmente legível, como é uma relação de
parentesco, por exemplo, e deve-se, portanto, insistir nela
de forma compulsiva.143

A Cidade dos Escravos, provável menção à Heliópolis de


Aristônico, e as Ilhas do Sol de Iâmbulo aparecem assim como
uma ruptura suscitada pela dissolução das velhas hierarquias e
instituições: uma cidade em que todos são livres e onde não há
escravos, apenas cidadãos, entra em colisão e disputa com a
visão de mundo hierárquica, espartanizante, estável e
estagnada, mantenedora do status quo, das utopias platônicas e
sua constante ansiedade no tratamento das utopias e da
condição do escravizado dispendida desde então, a relação entre
utopias e revoluções, entre cidades com escravizados e cidades
que apontam para uma ruptura — o que tudo isso pode nos dizer
sobre o que viemos analisando até agora? O que diz sobre nós,
nossas cidades e nossos problemas?

Heliópolis versus Necrópolis

A escravidão, problema ainda tão presente quanto na


Antiguidade, quando não pior, dado que mesmo que a
escravidão hoje não seja, como foi na Antiguidade, na Idade
Média e em especial durante tráfico transatlântico de pessoas
escravizadas, um dado fundamental da organização econômica

142
Arist. Pol. 1252a4.
143
duBois, 2006, p. 9.
63

atual,144 hoje o número de pessoas escravizadas é estimado em 27


milhões, o que expõe uma característica monstruosa do racismo
e da globalização contemporânea: que talvez existam mais
pessoas escravizadas vivendo hoje do que todas as pessoas
extirpadas da África e escravizadas durante os séculos de tráfico
transatlântico.145
Como estamos falando de mundos utópicos imaginários
com reflexos práticos e reais e vice-versa, aqui talvez seja o
momento de estabelecer outra relação — aquela entre revolução,
escravidão e antinegritude: a insistência de Aristóteles quanto ao
problema da escravidão deve ser interpretada dentro duma
ruptura que busque desmantelar as estruturas de poder e
opressão arrastadas até nossas praias pela ansiedade expressa
na tradição clássica que lida com tais questões sempre de forma
a silenciar aqueles dados que se opõe frontalmente a uma visão
de mundo em que o fim desses sistemas e de sua relação com a
própria linguagem e expressão humanas anulariam nossa
própria capacidade de lidar com nossa realidade social, política
e conceitual. Para quem possa pensar que a relação entre legado
clássico, escravização e antinegritude é frágil, um trecho do
canto 5 do épico Os Lusíadas ajuda a reforçar esse elo quando
descreve o encontro de marinheiros portugueses com uma
comunidade negra:
Eis, de meus companheiros rodeado,
Vejo um estranho vir de pele preta,
Que tomaram por força, enquanto apanha
De mel os doces favos na montanha.
Torvado vem na vista, como aquele
Que não se vira nunca em tal extremo;
Nem ele entende a nós, nem nós a ele,

144
Page duBois, Slavery: Antiquity and it’s Legacy. New York: I.B. Tauris, 2010.
(Ancients and Moderns Series.). p. 6.
145
Id., p. 16.
64

Selvagem mais que o bruto Polifemo. (5.27-8)146

Essa passagem do épico de Camões, que retoma a imagem


de Polifemo, o ciclope selvagem devorador de homens, está
ligada de forma histórica, psicológica e social àquele evento de
terror, choque e ansiedade descrito por Frantz Fanon em seu
Peles negras, máscaras brancas e bem sintetizado por Frank
Wilderson em seu Afropessimismo:
Em suma, todos os seres sencientes, humanos e negros, se
unem sobre a imago do objeto fóbico negro, para que
possamos formar uma “comunidade” psíquica mesmo que
não possamos formar uma comunidade política […].
Lembre-se daquele momento em Peles negras, máscaras
brancas quando Fanon se vê através dos olhos de um menino
branco que grita de terror: “Olha, um negro!”. David
Marriott escreve: “Simbolicamente, Fanon sabe que
qualquer homem negro poderia ter desencadeado a fantasia
da criança de ser devorada que se liga ao medo da negritude,
pois esse medo representa o ‘esquema epidérmico racial’ da
cultura ocidental — o medo inconsciente de ser literalmente
consumido pelo outro negro.147

A ansiedade de Aristóteles, que talvez esteja prevendo novas


instabilidades e rupturas, é assim relevada quando do
tratamento desse estrato social que só pode ser e existir quando
ligado de forma visceral à existência de um superior, de um
senhor, já que, como ele próprio afirma de forma insistente nas
Categorias,
[a] existência de um mestre envolve a existência também de
um escravo. Se existe um escravo, então deve existir um

146
Emanuel Paulo Ramos (org.), Os Lusíadas de Luís de Camões. Porto: Porto Editora,
1972. p. 181-182.
147
Frank B. Wilderson III. Afropessimism. New York: Liveright, 2020. p. 248.
65

mestre […]. Além disso, a relação vale para eles também:


cancelar um significa cancelar [συναναιρεῖ] o outro.148

O termo que Aristóteles usa nesse trecho, ‘cancelar’, mas,


como observa duBois, podendo ser traduzido com uma carga de
ansiedade e, de forma mais precisa, como ‘anular mutuamente’,
sugerindo um fim mais violento a ambos, escravizado e senhor,
não deixa de suscitar mais questões e problemas: a influência de
Platão e Aristóteles não só na Antiguidade como ao longo de toda
a Idade Média e do Renascimento e durante o tráfico de
escravizados da África, e a ênfase de Aristóteles na ‘anulação
mútua’ ou na não-humanidade da pessoa escravizada, como
quando afirma, mais uma vez, que não podemos definir ‘escravo’
como ‘bípede’, ‘apto ao conhecimento’ ou ‘humano’, mas apenas
como ‘escravo de um senhor’,149 nos obriga a estabelecer outra
relação entre escravidão antiga e moderna via antinegritude,
pois como bem resume Frank B. Wilderson:
Na economia libidinal do antagonismo Humano versus
Escravo, este não pode ser imaginado como filho, pai ou
irmão de alguém, nem pode ser imaginado como alguém
que fala uma linguagem filosófica, cuja política concorreria
ou entraria em conflito com membros do tribunal. Ele “não
tem resistência ontológica aos olhos do homem branco”.
Como objetos em uma estrutura gramatical, […] são objetos
sobre os quais o sujeito de uma frase atua, e a estabilidade
da raça humana depende de que esses papéis nunca sejam
alterados ou revertidos.150

Tanto Aristóteles quanto Wilderson, apesar de opostos


numa disjunção histórica, compreendem e revelam um dado que
fundamenta a estrutura social da humanidade como um todo: a

148
Arist. Cat. 7b15-20.
149
Arist. Cat. 7a35.
150
Wilderson III, op. cit., p. 164-165.
66

escravidão e a morte social, quando desafiadas por uma ruptura,


por uma instabilidade na ontologia fixada pela relação
senhor/escravo, ou, na análise de Frank Wilderson, entre
branco/negro, reconfiguraria de todo o mundo como o
conhecemos,151 reconfiguraria nossa própria expressão e lugar
no mundo, o que nos leva a retomar esses fragmentos utópicos e
deixar a análise ainda mais complexa, já que, como diz com
precisão Page duBois,
[é] fácil que desconsideremos tais momentos, já que nada
veio deles, e lembrá-los, recuperá-los, é quase impossível; a
função da utopia talvez não seja imaginar um futuro melhor,
“mas sim demonstrar nossa total incapacidade de imaginar
tal futuro […] de modo a revelar o cerco ideológico do sistema
onde estamos de alguma forma presos e confinados”. É esse
aprisionamento e confinamento dentro do sistema de
escravidão que as propostas utópicas de Aristônico revelam.
É, de fato, a própria questão do eu e da identidade que uma
utopia de escravizados questiona, em um mundo em que as
relações sociais e a identidade exigem tanto o livre quanto o
não-livre para sua própria existência […]. Uma cidade de
escravos como uma cidade real, material, é inconcebível,
irrealizável, impossível. Como pode haver uma cidade de
homens livres, a liberdade universal imaginada em uma
utopia do estoicismo radical, todos senhores e nenhum
escravo, nenhum escravo para permitir a possibilidade de
liberdade? Como pode haver uma cidade de escravos, uma
cidade de não-livres, onde não há senhores?152

Esses questionamentos, que talvez só possam ser suscitados


na análise das rupturas causadas pelas utopias políticas em
contraposição umas às outras, ajudam a buscar uma nova
linguagem, novos símbolos e lugares sintáticos e semânticos,
como o alfabeto dos habitantes das Ilhas do Sol de Iâmbulo,

151
Wilderson III, op. cit., passim.
152
duBois, 2006, p. 14.
67

novas relações que reconfiguram nossos mapas mentais, que


expõem paradoxos e impossibilidades, como bem analisa Page
duBois, e que nos levam a nos questionar sobre nossas
impossibilidades emolduradas pelo conceito de ‘utopia’
empregado sempre em seu sentido negativo, associado a ideias
absurdas e fantasias idiossincráticas. Por meio de
silenciamentos que tentam impedir a imaginação de apontar
para lugares em que o fim da escravidão, por exemplo, é um
dado possível e atingível, já que usando do afropessimismo
como ferramenta e arma de contraposição aos clássicos e à
ontologia aristotélica, como vimos ao sobrepor Aristóteles e
Wilderson, conseguimos diagnosticar ou ao menos começar a
apontar para nossas próprias impossibilidades e limitações. Por
que não podemos resgatar o mínimo, mero fragmento que seja,
de uma revolta contra uma visão de mundo sempre hierárquica
e aristocrática, oligárquica, reacionária, escravizadora, sempre
parte dum Ocidente que levou o homem branco a uma situação
de constante ansiedade em relação ao evento de ruptura mais
simbólico de todos, a possibilidade da revolta dos escravizados?,
pois como bem esclarece Achille Mbembe em seu Crítica da razão
negra,
[…] se há algo que assombra a modernidade do início ao fim
é a possibilidade desse acontecimento singular, a “revolta
dos escravos”. Uma revolta escrava sinaliza não apenas a
libertação, mas também a transformação radical, se não do
próprio sistema de propriedade e trabalho, pelo menos dos
mecanismos de sua redistribuição e, portanto, das bases
para a reprodução da própria vida.153

Nesse sentido, será que podemos usar as utopias para


imaginar um mundo reconfigurado pelo fim, por exemplo, do

153
Achille Mbembe, Critique of Black Reason. Translated and with an Introduction by
Laurent DuBois. Durham: Duke University Press, 2017. p. 37.
68

capitalismo predatório do meio ambiente? O capitalismo não é


capaz de fornecer esse mundo, e o utopianismo de agora, como
o solarpunk ou o afrofuturismo, desafiam essa limitação ao
apontar para lugares em que essas ansiedades foram superadas.
Seu reflexo na realidade serve como diagnóstico e crítica da
condição atual. Se podemos imaginar um mundo em que o fim
das instituições como são hoje é, seria possível, uma cidade sem
escravizados, então somos a todo momento obrigados a rever
nossa própria relação com as utopias.
E um mundo que aponta para o fim das polícias e das
políticas de extermínio? Uma cidade utópica que funcione, como
todas as utopias, como um espelhamento das nossas próprias
limitações em imaginar lugares diferentes, uma Heliópolis que
se oponha à necrópolis de hoje, a qual nos mantém presos a tais
lugares-comuns — isso tudo é uma utopia?
E já que estamos falando de clássicos, somos capazes de
imaginar um mundo intelectual sem mais a área de clássicos,
sem o peso do cânone, dos épicos e da tradição conservadora que
se apropria dos clássicos numa usurpação ou num silenciamento
contínuo em torno de tais questões? É assim que desafia Dan-el
Padilla Peralta, classicista e professor de história romana na
Universidade de Princeton nascido na República Dominicana.
Numa reportagem sobre Padilla em 2021 publicada no The New
York Times, a autora resume a postura de Padilla:
Ver os clássicos como Padilla os vê significa quebrar o
espelho; significa condenar o legado clássico como uma das
histórias mais prejudiciais que contamos a nós mesmos.
Padilla desconfia de colegas que citam os usos radicais de
clássicos como forma de evitar mudanças; ele acredita que
tais exemplos foram superados pela longa aliança do campo
com as forças de dominação e opressão. Clássicos e brancura
69

são os ossos e tendões do mesmo corpo; eles cresceram


fortes juntos, e eles podem ter que morrer juntos.154

A reportagem ainda registra uma proposta desafiadora de


Padilla lançada como resposta a uma participante que menciona
a cor de Padilla e o ‘mérito’ dele em ocupar tal cargo numa
conferência promovida pela Society of Classical Studies da
Universidade de Nova York em janeiro de 2019 intitulada ‘O
futuro dos clássicos’:
“Aqui está o que eu tenho a dizer sobre a visão de clássicos
que você delineou”, disse ele. "Não quero me envolver com
isso. Espero que o campo como você o delineou morra e que
morra o mais rápido possível”.

O que essas possibilidades e impossibilidades dizem sobre


nossa capacidade, sobre nossos lugares atuais? Page duBois
finaliza bem, e eu a acompanho aqui, pois
[…] no atual estado lamentável do mundo, com sua nova
concepção de οἰκουμένη ameaçada por novas iniciativas
imperiais, não devemos esquecer, não devemos abandonar,
banalizar ou apagar nossas memórias fragmentárias, os
vestígios de esperança, de demandas impossíveis e lutas por
um mundo melhor que pode ser visualizado entre as fendas
das grandes narrativas de conquista, mesmo que essas
experiências libertadoras, como todos aqueles que os deuses
amam, tenham morrido jovens.155

154
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2021/02/02/magazine/classics-greece-rome-whiteness.html. Acesso em: 17 mar.
2021.
155
duBois, 2006, p. 14.
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