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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
(CIP)
(EDOC BRASIL, BELO HORIZONTE/MG)
P221

Para não esquecer: políticas públicas que empobrecem o Brasil / Organizador

Marcos Mendes. – Rio de Janeiro, RJ: Autografia, 2022.

ISBN: 978-85-518-3976-8 [recurso eletrônico]

1. Economia. 2. Brasil – Política e governo. I. Título.

CDD 330.81

Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422

Para não esquecer: políticas públicas que empobrecem o Brasil


Mendes, Marcos (org.)

ISBN: 978-85-518-3976-8

1ª edição, março de 2022.

Editora Autografia Edição e Comunicação Ltda.

Rua Mayrink Veiga, 6 – 10° andar, Centro

Rio de Janeiro, RJ – CEP: 20090-050

www.autografia.com.br

Todos os direitos reservados.

É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem prévia autorização do autor e da

Editora Autografia.
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO
Ilan Goldfajn — Ex-presidente do BC e Diretor do
Hemisfério Ocidental do FMI
PREFÁCIO
Marcos Lisboa — Presidente do Insper
INTRODUÇÃO

CAPÍTULO 1
EXPANSÃO FISCAL DURANTE O SUPERCICLO DE
COMMODITIES
Bráulio Borges e Samuel Pessôa

CAPÍTULO 2
ESTÍMULO AO ENDIVIDAMENTO DE ESTADOS E
MUNICÍPIOS
Acauã Brochado e Itanielson Dantas Silveira Cruz

CAPÍTULO 3
REGIMES SIMPLIFICADOS DE TRIBUTAÇÃO
Bernard Appy

CAPÍTULO 4
FUNDOS GARANTIDORES COM PARTICIPAÇÃO DA
UNIÃO
Pedro Ivo de Souza Jr.
CAPÍTULO 5
FUNDO SOBERANO DO BRASIL
Marcos Mendes

CAPÍTULO 6
BENEFÍCIOS TRIBUTÁRIOS, CREDITÍCIOS E
FINANCEIROS
Tiago Sbardelotto

CAPÍTULO 7
POLÍTICA MONETÁRIA INCONSISTENTE
Marcelo Kfoury Muinhos e Filipe Gropelli Carvalho

CAPÍTULO 8
CRÉDITO DIRECIONADO E PRODUTIVIDADE: O PSI
COMO EXEMPLO
Vinicius Carrasco e Guilherme V. Marçal de Freitas

CAPÍTULO 9
CRÉDITO DIRECIONADO E SEUS EFEITOS SOBRE A
TRANSMISSÃO DA POLÍTICA MONETÁRIA
Marco Bonomo, Bruno Martins, Bruno Perdigão e Carlos
Viana de Carvalho

CAPÍTULO 10
PREVIDÊNCIA: INAÇÃO E TROPEÇOS LEVAM À
INSUSTENTABILIDADE E À DESIGUALDADE
Thais Vizioli e Rogério Nagamine Costanzi

CAPÍTULO 11
AVALIAÇÃO DA POLÍTICA PREVIDENCIÁRIA: O
CASO DO MICROEMPREENDEDOR INDIVIDUAL
(MEI)
Rogério Nagamine Costanzi e Otávio Jose Guerci Sidone

CAPÍTULO 12
PREVIDÊNCIA DOS MILITARES BRASILEIROS
Bernardo Schettini e Thaís Vizioli

CAPÍTULO 13
MP 579: O 11 DE SETEMBRO DO SETOR ELÉTRICO
Elena Landau

CAPÍTULO 14
MARCO REGULATÓRIO DO PETRÓLEO
Décio Oddone

CAPÍTULO 15
PREÇOS DE COMBUSTÍVEIS
Décio Oddone

CAPÍTULO 16
PRECISAMOS FALAR SOBRE EMPRESAS ESTATAIS:
O QUE, PARA QUE, POR QUE E OS CASOS DE
CEITEC E INFRAERO
Amaro Gomes e Francisco Sena

CAPÍTULO 17
INTERFERÊNCIA POLÍTICA EM ESTATAIS DE
CAPITAL ABERTO: O CASO DA PETROBRAS
Marcelo Trindade

CAPÍTULO 18
POLÍTICAS DE EXPANSÃO DA EDUCAÇÃO
SUPERIOR
Simon Schwartzman

CAPÍTULO 19
ACERTOS E DESACERTOS DO FUNDEB
Ricardo Paes de Barros e Laura Muller Machado

CAPÍTULO 20
O PISO SALARIAL DO MAGISTÉRIO PÚBLICO
Gustavo Guimarães e Marcos Mendes

CAPÍTULO 21
PRONATEC: UMA OPORTUNIDADE DESPERDIÇADA
Fernando de Holanda Barbosa Filho

CAPÍTULO 22
FECHAMENTO AO COMÉRCIO E ESTAGNAÇÃO: POR
QUE O BRASIL INSISTE?
Edmar Bacha

CAPÍTULO 23
ANTIDUMPING
Sérgio Kannebley Júnior

CAPÍTULO 24
A POLÍTICA DE CONTEÚDO LOCAL NA
EXPLORAÇÃO DE PETRÓLEO
Gustavo Guimarães e Marcos Mendes

CAPÍTULO 25
POLÍTICAS SETORIAIS: O INOVAR-AUTO E AS
POLÍTICAS DE APOIO AO SETOR AUTOMOTIVO
Isabela Duarte
OS AUTORES
APRESENTAÇÃO
Ilan Goldfajn — Ex-presidente do BC e Diretor do
Hemisfério Ocidental do FMI

Este livro é muito mais do que uma coletânea de artigos escritos por

especialistas ao redor de um tema interessante. É uma verdadeira

contribuição para evolução das políticas públicas no Brasil. Organizado

pelo Marcos Mendes — um dos nossos melhores economistas e mais

afiados analistas de políticas públicas — foca o que deu errado, o que

temos que evitar, tarefa fundamental para acertarmos o passo para um

futuro melhor.

Há muito vivemos no Brasil e na América Latina numa repetição

contínua de tentativas que produzem os mesmos erros. Políticas de curto

prazo com consequências negativas no longo prazo parecem ser quase

irresistíveis para os nossos políticos, e para as nossas sociedades que

demandam resolução imediata de mazelas graves e de longa data. Há

que romper este ciclo focando o que não podemos repetir.

Este interessante livro registra e analisa os equívocos que cometemos

nas políticas fiscais, tributárias, monetárias, creditícias, previdenciárias,

assistência social, regulatória, educacionais, trabalhista, comércio

internacional e de proteção à indústria. Um verdadeiro manual para

novos, mas também experientes policymakers.

Uma parte considerável do aprendizado e da evolução das sociedades

ocorre na forma de “tentativa e erro”, mas estas precisam ser capazes de

registrar e avaliar os erros. Este livro faz parte deste importante esforço

para evitarmos políticas públicas que empobrecem o Brasil.


PREFÁCIO
Marcos Lisboa — Presidente do Insper

No começo dos anos 2000, a economia brasileira parecia ter deixado

para trás a sucessão de severas crises dos anos 1980. Nosso desempenho

não se comparava a de muitos emergentes, que cresciam cerca de 6% ao

ano, mas ao menos a alta inflação fora deixada para trás desde o Plano

Real e a renda por habitante aumentava como na média do resto do

mundo. O país aperfeiçoava a sua política social, ampliava o acesso à

educação e dava alguns passos para liberalizar o comércio com o

restante do mundo. A criação de agências reguladoras indicava que

poderíamos optar pela adoção de regras e procedimentos para expandir

os investimentos de longo prazo em infraestrutura.

O entusiasmo com os anos 2000 foi obra de longa construção. A

abertura comercial começou no fim dos anos 1980. As políticas fiscal e

monetária foram progressivamente aperfeiçoadas durante mais de uma

década. O bolsa família foi um desdobramento dos programas sociais

iniciados na gestão FHC. O mesmo ocorreu com a política econômica

do primeiro governo Lula.

O que deu errado? Como, vinte anos depois, o Brasil parece reviver os

velhos pesadelos da insegurança institucional, estagnação econômica e

aumento da população abaixo da linha da pobreza? Como chegamos até

aqui?

O debate econômico com frequência enfatiza as opções de política

fiscal ou monetária e seus impactos na atividade econômica e ambos os

temas são detalhadamente analisados. Este livro, contudo, vai muito

além e aponta que as causas dos nossos problemas podem ser mais

difusas e decorrer dos detalhes de implementação da intervenção da

política pública.
Os trabalhos sistematizam o impacto das políticas de incentivo ao

investimento privado, como o Programa de Sustentação do Investimento,

ou das intervenções na área de infraestrutura, como no setor de energia.

São analisadas as implicações do desenho de políticas sociais, como

programas de transferência de renda, a previdência social e na área de

educação. Há capítulos dedicados à reforma tributária e à abertura

comercial.

Este livro convida ao debate sobre as causas do nosso fracasso. Os 33

autores dos diversos capítulos esmiúçam as evidências disponíveis e

analisam os resultados de diversas políticas adotadas nas últimas duas

décadas. Outros talvez discordem e será muito útil conhecer os seus

argumentos. Debater, com base nas evidências, os impactos do desenho

das regras do jogo e da implementação da política pública colaboraria

para que deixemos de repetir os erros do passado.


INTRODUÇÃO

Este livro pretende ser um registro histórico de políticas públicas que

tiveram resultados ruins. As ações de governo devem, idealmente, visar

mais prosperidade da sociedade, seja aumentando o crescimento

econômico, seja reduzindo a pobreza e a desigualdade. Os casos aqui

relatados fracassaram em fazê-lo, ou poderiam ter levado a resultados

muito melhores, sem custos maiores.

A motivação para a organização desta obra é ajudar a evitar a repetição

de erros. Utilizar os já cometidos como aprendizado. Não parece tarefa

fácil. Antes mesmo da conclusão do livro, o debate público já estava

cogitando a reedição ou aprofundamento de erros aqui analisados. É o

caso da intervenção do governo em decisões de empresas estatais de

economia mista, do controle de preços de combustíveis, da prorrogação

de benefícios tributários sem estudos ou critério.

Cabe, por isso, questionar quais seriam as causas dos erros em

políticas públicas e da persistência e repetição desses erros. São várias

as suas fontes, começando por diagnósticos incompatíveis com a

realidade. Seja por tentar encaixar os fatos dentro de sua visão do

mundo, seja por não fazer o dever de casa de conduzir uma cuidadosa

avaliação ex-ante do problema a resolver, muitos policy makers


lançam propostas inconsistentes.

O uso dos gastos do governo como ferramenta para estimular o

crescimento econômico é um caso típico. A moderna literatura nos

ensina que crescimento decorre basicamente de aumento da

produtividade. Somente tornando-se capaz de fazer mais e melhor, uma

economia gera mais valor e renda. Trata-se de aumentar a capacidade de

oferta da economia.

É
É, contudo, forte a ideia de que crescimento pode ser gerado pelo lado

da demanda: o governo gasta mais, isso aumenta a renda das famílias e o

consumo, induzindo as empresas a investirem mais e, com isso,

aumentarem o produto. Seguidas tentativas nessa direção, ao longo da

nossa história, levaram a gastos públicos de baixa qualidade, deficit


público, aumento de juros, inflação e recessão.

Essa visão frequentemente propõe medidas voltadas a incentivar o

consumo e o investimento das empresas, como redução de juros pelo

Banco Central, benefícios tributários a setores considerados centrais no

estímulo à produção, proteção comercial para que o consumo não

“vaze” por meio de compras no exterior e estimule a produção

doméstica. Os resultados costumam ser a má alocação de capital

(empresas pouco produtivas que só existem porque pagam menos

impostos) e o baixo acesso a insumos de qualidade a menor preço. A

produtividade e a previsibilidade caem, derrubando o crescimento que

se imaginava estar estimulando.

Certamente a política fiscal tem um papel de reativação da economia

em casos de recessões extremas, quando há muita capacidade ociosa.

Mas tão logo a economia volte a rodar com mais intensidade, o governo

deve retirar os estímulos.

É nesse momento de retirada de estímulos, contudo, que os problemas

aparecem. Os grupos que foram beneficiados pelos programas

governamentais no momento anterior pressionam pela manutenção dos

benefícios. Estímulos fiscais criados por conta da crise de 2008, por

exemplo, foram mantidos por muitos anos. Alguns estão presentes até

hoje, sendo seguidas vezes prorrogados.

O velho dilema entre benefícios concentrados e custos dispersos

explica tal situação. Muitas políticas públicas direcionam ganhos a

grupos pequenos, com capacidade de se organizar para pleitear a

introdução e perenização da política. A população em geral, que paga a

conta, está dispersa e enfrenta maior dificuldade e custo para se

organizar e contestar a medida.

Inconsistência temporal é outra questão relevante. A classe política e a

burocracia sofrem pressões de curto prazo. Há demandas por soluções


rápidas para problemas complexos, como a escalada do preço da

gasolina ou a manutenção dos empregos de uma fábrica que fechou.

Soluções emergenciais costumam ser caras e inconsistentes, muitas

vezes agravando o problema no longo prazo. Porém são tomadas para

prestar contas a quem demanda alívio imediato. Não é simples ter

disciplina para adotar políticas públicas com efeitos benéficos de longo

prazo, resistindo aos clamores de solução imediata.

Incentivos eleitorais, corrupção, falta de qualidade técnica na

burocracia governamental, natural lentidão do processo decisório das

instâncias públicas também contribuem para a implantação e

perenização de más políticas.

Há, ainda, o fenômeno de se tentar corrigir um problema criando uma

segunda distorção. Assim, por exemplo, quando uma política monetária

inconsistente produz mais inflação, surgem as propostas de

congelamento de preços. Ou quando um represamento de preços

administrados, como o de energia elétrica, resulta em prejuízos a

distribuidoras, apela-se a empréstimos para lhes garantir folga

financeira, repassando-se os custos aos consumidores via tarifa e

gerando mais inflação. Regras tributárias complexas estimulam as

empresas a buscar regimes especiais, focalizados em grupos específicos,

o que acaba tornando a legislação mais fragmentada, agravando sua

complexidade.

Todos esses fatores se somam aos anteriores e se inter-relacionam, em

maior ou menor grau, na produção de políticas públicas inadequadas e

persistentes ao longo do tempo. Remar contra essa corrente e estabelecer

políticas públicas bem fundamentadas não é tarefa trivial.

Cada um dos capítulos deste livro mostra uma política pública

específica e suas distorções, buscando fazer um diagnóstico dos erros

cometidos e relacioná-los às causas anteriormente descritas. Os

capítulos estão divididos em sete grupos temáticos: política fiscal,

política monetária e creditícia, previdência e assistência social, energia,

empresas estatais, educação e integração à economia internacional.

Política Fiscal
No Capítulo 1, Bráulio Borges e Samuel Pessôa mostram evidências
de que a opção de tentar acelerar o crescimento econômico por meio de

estímulos fiscais, a partir de 2012, em um contexto no qual a economia

brasileira já vinha operando em situação de hiperemprego, resultou na

aceleração do endividamento público e foi causa relevante da recessão

iniciada em 2014. Essa estratégia acentuou o caráter pró-cíclico da

política fiscal, que produz surtos de crescimento de curto prazo no estilo

“voo de galinha”, mas prejudica o crescimento de longo prazo. Os

autores concluem que a adoção de arcabouço fiscal que permita a

sustentação de uma política contracíclica pode ser um poderoso

instrumento para auxiliar a sociedade a conseguir construir um consenso

mínimo que viabilize ciclos longos de crescimento e menor volatilidade

macroeconômica.

No Capítulo 2, Acauã Brochado e Itanielson Cruz mostram que a

estratégia de expansão fiscal do governo federal, retratada no capítulo

anterior, se estendeu para estados e municípios, por meio de estímulos

federais ao aumento do endividamento subnacional. O diagnóstico era

de que o aumento da oferta de crédito possibilitaria mais investimentos

em infraestrutura e, consequentemente, mais crescimento. Na prática, a

nova dívida financiou a expansão de despesas correntes, em especial da

folha de pagamentos, agravando o desequilíbrio estrutural das contas

subnacionais. O investimento, por sua vez, não cresceu.

Além do objetivo não ter sido atingido, os meios foram mal

escolhidos. Inicialmente, o Ministério da Fazenda, por política própria,

e o Judiciário, quando provocado por estados e municípios,

flexibilizaram diversas normas que limitavam a dívida desses entes. Em

seguida, como reação às crises agravadas pelo aumento do

endividamento, o Congresso, com o apoio do Executivo, aprovou leis

que renegociaram dívidas com a União para conceder alívio financeiro

de curto prazo, quebrando a espinha dorsal da Lei de Responsabilidade

Fiscal. Isso gerou expectativa por novos socorros futuros e estimulou a

baixa responsabilidade fiscal nos anos que se seguiram, realimentando a

crise fiscal.
Bernard Appy explica, no Capítulo 3, que os sistemas

simplificados de tributação (Simples e Lucro Presumido) foram criados

sem análise técnica que identificasse claramente os problemas a serem

resolvidos. Tampouco foram avaliados modelos alternativos aos

adotados. As medidas sempre se baseiam em alegações genéricas

relativas à geração de empregos, redução da informalidade e

simplificação das obrigações tributárias.

Na prática, contudo, o Simples nacional nada tem de simples,

requerendo a contratação de contador ou especialista para lidar com suas

intrincadas regras. Ademais, o Simples e o Lucro Presumido favorecem

as pequenas empresas com alta margem de lucro (como os escritórios de

advocacia), com impacto regressivo sobre a distribuição de renda. Há

estímulo à pejotização na contratação de empregados, precarizando as

relações de trabalho e ampliando o deficit da previdência. Não há

evidências de criação de empregos ou estímulo à formalização de

empresas. Há, isto sim, claros indícios de prejuízos à produtividade e

desestímulo ao investimento. O custo fiscal, estimado em mais de 1% do

PIB apenas para o Simples, supera em muito o padrão internacional de

0,2% do PIB para políticas similares.

Mais importante do que regimes especiais para pequenas empresas,

seria uma simplificação geral do sistema tributário para todos. Enquanto

isso não se viabiliza, o Simples e o Lucro Presumido poderiam ter seus

efeitos negativos minorados por meio da redução do limite máximo de

faturamento para ingresso nos regimes e pela mudança da base de

cálculo atual (faturamento) por uma medida aproximada de valor

adicionado (faturamento menos folha de salários, por exemplo).

No Capítulo 4, Pedro Ivo de Souza Jr. trata do uso de fundos

garantidores. Com eles, o poder público provê garantia a financiamentos

concedidos pelo sistema financeiro a pessoas ou empresas. O capítulo

estuda os casos do Fundo de Garantia de Operações de Crédito

Educativo (FGEDUC), que garantiu riscos nas operações do Fundo de

Financiamento ao Estudante de Ensino Superior (Fies), e do Fundo de

Garantia para a Construção Naval (FGCN), criado para proteção contra


o risco de crédito das operações de financiamento à construção de

embarcações por estaleiros brasileiros.

Em tese, a formação desse tipo de fundo permite o desenvolvimento

de mercados de crédito específicos, que viabilizarão empreendimentos

de alto retorno social, mas que, por representarem elevado risco, não são

atrativos ao capital privado. Tudo dando certo, as atividades financiadas

darão retorno econômico e haverá repagamento dos financiamentos, sem

necessidade da execução das garantias prestadas pelo poder público.

O risco de perda está associado à qualidade da política pública

garantida pelo fundo. No caso da construção naval, a política subsidiada

mostrou-se inconsistente e altamente dependente de preços elevados

para o petróleo, as regras do fundo foram lenientes, permitindo alta

alavancagem, e o processo foi contaminado por corrupção. No caso do

Fies, houve concentração do risco de crédito na União, os parâmetros de

inadimplência e de registro contábil foram otimistas e tiveram como

resultado a alavancagem excessiva dos recursos do fundo. Também

faltou foco, oferecendo-se crédito subsidiado a alunos que tinham

condição econômica de custear os estudos.

No Capítulo 5, Marcos Mendes analisa o Fundo Soberano do

Brasil (FSB). Mostra que era equivocado o diagnóstico que levou a sua

criação, baseado na ideia de que o país se tornaria uma potência

petrolífera, capaz de ter superavit estrutural nas contas públicas e no

balanço de transações correntes. O fundo tinha múltiplos objetivos:

aplicar os excedentes fiscais (que nunca tivemos) em investimentos no

exterior, acumular poupança pública, fazer política fiscal anticíclica e

fomentar projetos de interesse estratégico do país no exterior.

Uma vez criado, o FSB causou prejuízos financeiros e patrimoniais.

Na falta de poupança pública, o governo se endividou para depositar os

recursos para o fundo. Algo como tomar empréstimo no cheque especial

para depositar na caderneta de poupança. Não alcançou qualquer dos

vários objetivos aos quais se propunha. A execução da política nem de

perto reproduziu o que dela se esperava, tendo sido feitos poucos

investimentos, de baixa rentabilidade, sem diversificação e sem clara

explicação das escolhas realizadas. Por fim, o fundo acabou sendo usado
como instrumento de contabilidade criativa, que visava descaracterizar o

impacto de decisões públicas sobre o deficit e a dívida do governo. O

FSB foi extinto em 2019, não sem antes enfrentar resistência política ao

fechamento de suas portas.

Tiago Sbardelotto analisa, no Capítulo 6, o crescimento acelerado

dos benefícios tributários, financeiros e creditícios a partir de 2003.

Esses benefícios são tratamento diferenciado a grupos, setores ou

regiões. Têm por função atingir objetivos como promover a atividade

econômica, reduzir as desigualdades sociais ou regionais, além de

complementar a oferta de serviços públicos. Deveriam ser aplicados em

casos muito específicos, por tempo determinado e após estudos que

demonstrassem a existência de um retorno econômico e social maior

que seu custo. No entanto, a expansão desses benefícios se deu em

contexto de fraca governança, tanto no controle e limitação em sua

concessão quanto no seu monitoramento e avaliação.

O custo fiscal dessa política foi substancial. Uma simulação feita pelo

autor mostra que a dívida bruta do Governo Geral em 2019 seria de 22 a

41 pontos percentuais do PIB menor do que a efetivamente verificada se

não tivesse havido o aumento dos benefícios. Ademais, há evidências

empíricas de que os benefícios provocam distorções alocativas que

prejudicam a produtividade e o crescimento da economia. A aprovação

de um plano de redução de benefícios tem enfrentado dificuldades para

sair do papel, e benefícios próximos a expirar têm sido renovados.

Grupos de pressão bem organizados resistem e estimulam a persistência

de uma política de baixa qualidade.

Política Monetária e Creditícia


No Capítulo 7, Marcelo Kfoury e Filipe Carvalho mostram

evidências de que o Banco Central praticou uma política monetária

inconsistente entre 2011 e 2015: fixou juros nominais de curto prazo em

valores abaixo daqueles que seriam necessários para fazer a inflação

convergir à meta fixada pelo Conselho Monetário Nacional. Em

decorrência, perdeu o controle sobre as expectativas dos agentes

econômicos em relação à inflação. O resultado usual é inflação mais alta


por um longo período, bem como maior custo de desinflação: para

recuperar a credibilidade, o BC precisa mostrar que retomou a intenção

de levar a inflação à meta, agindo de forma mais dura do que em

circunstâncias normais, para sinalizar ao mercado que, de fato, mudou

de postura.

Vinicius Carrasco e Guilherme Freitas analisam o impacto de políticas

de crédito direcionado sobre a produtividade da economia, no

Capítulo 8. E o fazem por meio do estudo de caso do Programa de

Sustentação do Investimento (PSI). Esse programa provia crédito

subsidiado pelo BNDES, com recursos a ele emprestados pelo Tesouro

Nacional, e foi criado durante a crise econômica internacional de 2008,

com o objetivo de impedir a queda da taxa de investimento da economia

e manter a trajetória de crescimento. Seu foco era o estímulo ao setor de

bens de capital e à inovação tecnológica.

O PSI constituiu importante item de benefício creditício entre aqueles

analisados no Capítulo 6. Seguindo o padrão típico de políticas públicas

que beneficiam grupos bem organizados, o PSI foi prorrogado para além

do período de crise econômica, deixando de ser uma ferramenta

anticíclica e perenizando o subsídio e o direcionamento do crédito. Seu

custo fiscal acumulado foi de R$ 285 bilhões.

Os autores mostram que o PSI não primou pela boa alocação do

capital; financiou empresas maiores e menos arriscadas, que

habitualmente já têm acesso a crédito privado com taxas favorecidas;

tendo efeito nulo ou negativo sobre a produtividade das empresas

atendidas. Observam ainda que, quando o subsídio creditício foi

retirado, aumentou a participação privada na provisão de crédito, o que

indica que a atuação do programa, em vez de expandir o crédito, estava,

em boa medida, substituindo o crédito privado por público.

O Capítulo 9, de Marco Bonomo, Bruno Martins, Bruno Perdigão

e Carlos Viana de Carvalho, mantém o foco sobre a questão do crédito

direcionado, mostrando que ele cria um grupo de vencedores. Quem tem

acesso a esse crédito, não só paga juros mais baixos, como também

adquire uma espécie de seguro em relação às flutuações futuras da taxa,

na medida em que o custo do crédito direcionado é menos sensível às


variações das taxas de juros de mercado. Os perdedores, com baixo ou

nenhum acesso a crédito direcionado, enfrentam crédito mais caro e são

mais expostos às oscilações das taxas de juros. Em razão de seus

elevados custos fiscais, o direcionamento do crédito transforma a quase

totalidade da população em perdedora, pois ela deixa de receber mais e

melhores serviços públicos, que seriam custeados com os recursos que

estão sendo gastos no subsídio creditício, e paga mais impostos para

custear essa política.

As evidências também sugerem que o crédito direcionado reduz a

potência da política monetária: dado que esse tipo de crédito tem taxas

de juros fixadas na legislação, quando o Banco Central eleva os juros

para conter a inflação, as operações de crédito com taxas fixas não são

afetadas, obrigando a autoridade monetária a aumentar a dose de juros

para obter o efeito desejado, por meio da contração do crédito no

mercado livre.

Previdência e Assistência Social


Abrindo a seção sobre previdência e assistência social, Thaís Vizioli e

Rogério Costanzi fazem, no Capítulo 10, descrição e diagnóstico

geral dos problemas da previdência social. Argumentam que a reforma

implementada em 2019 foi muito relevante, porém foi incapaz de

remover as características de insustentabilidade do sistema. Além disso,

foi antecedida, no período de 2003 e 2015, por pelo menos dez

mudanças legislativas em direção oposta, que impactaram negativamente

seu equilíbrio.

O problema central da questão previdenciária tem sido a demora para

fazer ajustes requeridos pelas mudanças demográficas. Problemas

diagnosticados desde a década de 1990 só estão encontrando soluções

três décadas depois, e, mesmo assim, elas se mostram parciais e

insuficientes.

O que está em jogo na previdência é a distribuição de benefícios às

gerações presentes à custa das gerações futuras. Na verdade, o

crescimento acelerado do deficit passou a já prejudicar a geração

presente, uma vez que se tornou o principal fator de desequilíbrio fiscal


na União, nos estados e em muitos municípios, levando a juros altos,

baixo crescimento econômico e falta de recursos para financiar outras

políticas públicas.

Ademais, a previdência tem funcionado como mecanismo de

concentração de renda. Também tem sido objeto de forte judicialização,

o que implica custos não desprezíveis.

A despeito dos elevados gastos, persistem lacunas de cobertura,

principalmente em relação aos trabalhadores por conta própria e

domésticos, além do elevado volume de empregados sem carteira de

trabalho. Uma nova reforma da previdência será necessária sem grande

demora para buscar conciliar sustentabilidade, alta cobertura,

suficiência, efeitos positivos na distribuição de renda e maior equilíbrio

na distribuição da proteção social entre crianças, adultos e idosos.

Rogério Costanzi e Otávio Sidone tratam da figura jurídica do

microempreendedor individual (MEI) e seu impacto sobre a previdência,

no Capítulo 11. Trabalhadores inscritos no MEI contribuem

mensalmente com pouco mais de R$ 60 e têm direito a benefícios

previdenciários como aposentadoria de um salário mínimo, auxílio por

incapacidade temporária (novo nome do auxílio-doença) e

aposentadoria por incapacidade permanente (antes, aposentadoria por

invalidez). Um trabalhador autônomo não registrado como MEI, para ter

cobertura similar, desembolsa R$ 121 por mês.

O MEI é fonte de crescente deficit. Os autores calculam o valor

presente do desequilíbrio atuarial em R$ 436 bilhões, mesmo partindo

de hipóteses otimistas. O problema é que esse grande subsídio

previdenciário não está sendo feito aos mais pobres: apenas 16% dos

filiados ao MEI estão entre os 50% mais pobres. O sistema poderia ser

defendido como uma ferramenta de inclusão previdenciária: argumenta-

se que, se não houvesse o MEI, boa parte dos seus beneficiários acabaria

recebendo benefícios de assistência social, no futuro. Contudo os

autores mostram que há um intenso movimento de migração de

contribuintes regulares da previdência para o MEI, o que não expande a

cobertura e fragiliza as finanças previdenciárias.

É
É notório o interesse político por expandir o MEI, incluindo novas

categorias de trabalhadores ou ampliando o limite máximo de renda para

elegibilidade. Mais uma vez trata-se de atender interesses e distribuir

benefícios de curto prazo, sem atenção aos custos de longo prazo.

Faz-se necessário focalizar o MEI nos indivíduos realmente pobres e

sem inserção no mercado formal, bem como instituir contribuição

patronal para coibir a migração de trabalhadores registrados na

previdência tradicional para o MEI.

O Capítulo 12, escrito por Bernardo Schettini e Thaís Vizioli,

mostra como a previdência dos militares brasileiros diverge do padrão

internacional, porque é mais benevolente e deficitária, ao mesmo tempo

que oferece vantagens não disponibilizadas aos civis. Enquanto nos

demais países tem havido uma convergência das regras de civis e

militares, no Brasil a reforma previdenciária de 2019 e outras mudanças

legislativas que a antecederam ampliaram as diferenças em favor dos

militares. Em paralelo à reforma de 2019, foi aprovada uma

reestruturação da carreira dos militares. O efeito líquido para o governo

federal foi um aumento de despesa anual de R$ 6 bilhões.

A questão ganha relevância ainda maior quando se considera que, no

Brasil, há policiais e bombeiros militares que têm peso bastante

relevante na folha de pagamento dos estados. Esse tratamento especial

parece ser explicado pela influência crescente dos militares nas decisões

do Poder Executivo Federal a partir de 2019, bem como pelo poder de

pressão dos policiais militares sobre os governos estaduais.

Energia
No Capítulo 13, Elena Landau descreve a desestruturação do setor

elétrico causada pela Medida Provisória 579/2012, cujo principal

objetivo era reduzir o preço da energia elétrica ao consumidor. A medida

estava baseada na crença de que a intervenção governamental sobre a

formação de preços poderia trazer resultados mais positivos que o bom

funcionamento do mercado. Para tanto, foi proposta a renovação

antecipada de concessões de geração de energia elétrica, em troca da

aceitação, pelas concessionárias, de preços menores, fixados em nível


tão baixo, que mal compensavam gastos de operação e manutenção das

geradoras.

Houve, em paralelo, recusa do governo a lidar com uma crise hídrica e

o consequente aumento do custo da energia. Em lugar de racionamento

ou racionalização da demanda, optou-se por financiar o desequilíbrio

das distribuidoras de energia com empréstimos, repassando-se o custo

da dívida e juros para a conta do consumidor. O que começou como

política para baixar preços acabou virando aumento de preços. Em vez

da prometida queda nas tarifas e ganhos de produtividade houve, nos

dois anos seguintes, aumento superior a 50%.

A MP 579 foi um dos maiores erros de política pública do setor de

energia: endividou a Eletrobras, gerou pressões inflacionárias, trouxe

graves desequilíbrios financeiros para os agentes do setor e criou

insegurança jurídica em decorrência da intervenção nos preços de

energia com o consentimento da Aneel, a agência reguladora. Seus

efeitos se espalharam para além do setor e têm levado anos para serem

resolvidos.

O Capítulo 14, de Décio Oddone, trata da reforma do marco

regulatório da exploração de petróleo, implementada pela Lei

12.351/2010. Essa mudança aconteceu em um contexto de descoberta

do pré-sal, no qual se acreditava que o Brasil se tornaria uma potência

petrolífera. A partir daí se desenhou um modelo voltado a fortalecer a

Petrobras em detrimento da concorrência internacional e se criou para a

área geográfica descrita como polígono do pré-sal a obrigatoriedade de

um novo regime de exploração: os contratos de partilha.

Esse modelo se contrapunha aos bem-sucedidos contratos de

concessão, nos quais a Petrobras e empresas privadas disputavam leilões

em condições de igualdade e o vencedor pagava um bônus de assinatura

mais royalties e participações especiais ao longo do processo de

exploração.

No novo modelo, restrito ao polígono do pré-sal, a Petrobras seria a

operadora única. Quem eventualmente ganhasse a licitação sem ter a

Petrobras no consórcio, teria que se associar a ela posteriormente,

garantindo-lhe ao menos 30% de participação. Parte da remuneração do


governo deixava de ser em dinheiro e passava a ser entregue em óleo.

Para isso, foi criada uma nova estatal, a PPSA, responsável não só por

fiscalizar a quantidade de óleo extraído, como também por armazenar e

comercializar o óleo recebido. Elevação desnecessária de custos de

transação, acompanhada de redução de competição.

O argumento a favor do regime de partilha é que ele elevaria a

arrecadação do governo (sem que houvesse justificativa lógica para isso),

permitiria maior controle do ritmo de produção (o que poderia ser feito

pelo ritmo de licitação dos campos, sem mudança de modelo) e

viabilizaria a industrialização do setor (o que se mostrou desastrado,

como a construção de refinarias a alto custo, e também poderia ser feito

no regime de concessão).

Em paralelo, a União contratou a Petrobras diretamente para extrair 5

bilhões de barris de petróleo equivalente em áreas selecionadas do pré-

sal. Criou-se, com isso, um terceiro regime de exploração: além da

concessão e da partilha, passamos a ter a “cessão onerosa”. Lacunas

contratuais e forte oscilação do preço do petróleo geraram contencioso

em torno desse contrato, que consumiu vários anos de discussão entre a

União e a Petrobras.

Além disso, a discussão da mudança do marco regulatório implicou a

suspensão das rodadas de licitação por cinco anos, justamente o período

em que os preços do petróleo batiam recorde e o governo poderia ter

obtido grandes ganhos financeiros com os leilões. O atraso no ritmo de

produção, os investimentos adiados e a perda de receita fiscal se contam

na casa de centenas de bilhões de reais.

A mudança do marco regulatório do petróleo baseou-se na

combinação de interesses corporativos e sindicais da Petrobras, com um

projeto nacional-desenvolvimentista de utilização do petróleo para

desenvolver a indústria de refino e atender interesses geopolíticos.

Resultou em grande prejuízo e atraso de investimentos e de geração de

renda no país. A despeito de importantes flexibilizações adotadas a

partir de 2016, não será simples revogar o regime de partilha ou

extinguir a PPSA, uma vez que interesses organizados sustentam a sua

manutenção.
O Capítulo 15, escrito pelo mesmo autor do capítulo anterior, trata
da complexa questão do preço dos combustíveis ao consumidor final.

Combustíveis são commodities, cujos preços são bastante voláteis no

mercado internacional. Em momentos de pico, encarecem produtos

essenciais da cesta de consumo, como gás de cozinha e gasolina, além

de afetarem custos de produção de forma generalizada. Há sempre

demandas por controle de preços, intervenção na Petrobras, subsídios ou

formação de fundos de estabilização.

No entanto, essas soluções trazem novos problemas. Controle de

preços, por exemplo, agrava o problema ao retrair a oferta: importadores

de petróleo e derivados ou produtores de combustíveis alternativos,

como o etanol, terão menos incentivos para ofertar produtos.

As soluções e mitigações efetivas requerem reformas quase sempre

difíceis de aprovar. É preciso estimular a concorrência em toda a cadeia

produtiva, desde o refino até o ponto de consumo, eliminando regulações

e práticas comerciais que se revertem em poder de mercado para as

empresas. Isso significa acabar com a posição monopolista da Petrobras

no refino, eliminar relações contratuais obrigatórias entre distribuidoras

e pontos de venda, revogar a proibição de engarrafamento de GLP por

empresa distinta da que aplica a marca ao botijão, rever políticas de

estoques mínimos obrigatórios e de proibição de importação de

combustíveis por alguns elos da cadeia produtiva, além de reformular a

tributação do setor.

Empresas Estatais
O Capítulo 16, de Amaro Gomes e Francisco Sena, analisa tanto o

marco regulatório quanto as razões econômicas para a existência de

empresas estatais. No âmbito jurídico, os autores ressaltam que a

constituição estabelece que a exploração direta de atividade econômica

pelo Estado só é permitida quando necessária aos imperativos da

segurança nacional ou de relevante interesse coletivo. O “relevante

interesse coletivo” é o que se chama, em teoria econômica, de “falhas de

mercado”: quando a iniciativa privada não consegue prover


adequadamente um bem ou serviço, caberia ao Estado agir de forma

supletiva.

Não obstante, a criação dessas empresas está sujeita a “falhas de

governo”. Os dirigentes das estatais podem priorizar seus objetivos

pessoais e corporativos em detrimento das missões da empresa. Não há

incentivos à eficiência, uma vez que prejuízos podem ser cobertos pelo

governo e os processos de contratação e licitação são submetidos a

regras morosas, típicas do setor público.

Outro problema comum é a superficialidade nos diagnósticos que

levam à criação de estatais, identificando-se falhas de mercado onde elas

não existem e/ou propondo-se soluções que não são capazes de superá-

las.

O capítulo faz um estudo de caso da estatal Centro Nacional de

Tecnologia Eletrônica Avançada S.A. (Ceitec) criada com o ambicioso

objetivo de transformar o país em um produtor competitivo nas áreas de

microeletrônica, semicondutores e circuitos integrados. Não há clareza

nos motivos de criação da empresa para além de argumentos de

substituição de importações. A empresa fracassou, está em processo de

liquidação e deixou um custo de mais de R$ 1 bilhão em recursos

aportados pelo Tesouro.

O segundo caso estudado é o da Infraero, que, apesar de ter seu escopo

de atuação reduzido pela privatização dos aeroportos, não consegue

demitir funcionários e acumula um quadro de pessoal inchado e

prejuízos sucessivos.

De mais a mais, são apresentados dados de benefícios trabalhistas e

garantias concedidos a empregados de estatais em geral, que em muito

superam benefícios pagos pelas melhores empregadoras do setor

privado.

No Capítulo 17, Marcelo Trindade trata do conflito existente no

fato de a Constituição Federal determinar que empresas estatais devem

ser entidades de natureza privada, mas, ao mesmo tempo, têm que

cumprir uma “função social”. Em nome dessa função social, o agente

político em exercício de mandato, que decide em nome do acionista

majoritário da empresa (o poder público), pode tomar decisões


populistas, controversas, que não atendem ao interesse público de forma

ampla ou que causem grandes perdas à empresa e a seus acionistas

majoritários privados.

As punições e os incentivos não são suficientes para frear esse tipo de

comportamento, seja porque não afetam financeiramente o agente

político (ao contrário do acionista majoritário controlador, que perde

com a desvalorização das ações), seja porque as multas e punições se

aplicam ao poder público e não à pessoa física do agente público. O

capítulo mostra, ainda, que a nova Lei das Estatais (13.303/16) mitiga,

mas não resolve, a maior parte dos problemas.

O caso da Petrobras é usado como exemplo, apresentando-se o conflito

de interesses existente na engenharia financeira e patrimonial montada

na cessão onerosa da União à empresa (tema tratado no Capítulo 14), os

casos de corrupção em que os agentes políticos estão conseguindo evitar

punições e as interferências em decisões estratégicas, como a da

precificação de combustíveis.

Educação
O Capítulo 18, de Simon Schwartzman, analisa a política de

expansão do ensino superior público e privado no Brasil, avaliando-a no

contexto de sua massificação, que ocorre em todo o mundo desde o

início do século passado e decolou no Brasil a partir da década de 1960.

Chama atenção para o fato de que, enquanto nos EUA e na maioria dos

países da Europa, o sistema de educação superior é diversificado,

mesclando cursos acadêmicos com cursos profissionais e técnicos, no

Brasil e na América Latina prevalece um academicismo, com pouca

atenção à diversificação da educação e sua adaptação às diferentes

necessidades, habilidades e preferências dos jovens.

A rede de universidades federais, criada a partir da década de 1940, foi

uma tentativa de copiar o modelo norte-americano de universidade de

pesquisa de ponta, ignorando a experiência daquele país com as

universidades de orientação prática e profissional. A partir da reforma

universitária de 1968, buscou-se a integração de ensino e pesquisa. Por

um lado, houve o efeito positivo de aumentar o número de professores


doutores e de centros de pós-gradução e a produção de pesquisa. De

outro, a adoção desse modelo de maneira uniforme em todo o país

tornou-se cara, sem conseguir ampliar pesquisa acadêmica e qualidade

de ensino, que ficaram concentradas em poucas universidades públicas.

Nos últimos anos houve dois movimentos em paralelo. O primeiro, foi

a expansão das universidades públicas, em seu modelo rígido e

academicista, de alto custo, sem real autonomia universitária para definir

contratações de professores e suas remunerações, e baixa produtividade

na maioria das universidades. Também foram criados institutos federais,

que deveriam ter foco em ensino vocacional, mas que adquiriram

status universitário e acabaram adotando currículos acadêmicos, com

os mesmos problemas e custos das universidades federais.

O governo federal, por seu turno, passou a financiar a rede privada, por

meio do Prouni e do Fies. O ensino superior privado se transformou em

um grande negócio garantido pelo governo federal, atraindo

investimentos vultosos e operando a baixos custos, mal cumprindo os

critérios mínimos de qualidade, e mantendo a maioria dos alunos em

cursos noturnos. O Fies entrou em colapso financeiro e precisou ser

reformulado, conforme analisado no Capítulo 4.

O equívoco central da política de expansão da educação superior no

Brasil foi não tomar em conta a necessidade de diferenciar a oferta de

cursos e programas de forma compatível com as características das

instituições, da população estudantil e do mercado de trabalho. O setor

público se manteve rígido, incapaz de responder com flexibilidade ao

novo contexto, e o setor privado, no outro extremo, na maioria dos casos

se diferenciou de forma desordenada, buscando atender às demandas de

curto prazo por credenciais educativas mais do que efetivamente formar

recursos humanos, fazendo uso de subsídios públicos quando

disponíveis, e à custa de índices altíssimos de abandono escolar e

frustrações profissionais dos egressos.

No Capítulo 19, Laura Muller Machado e Ricardo Paes e Barros

analisam os acertos e desacertos do Fundo de Manutenção e

Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais

da Educação (Fundeb) e da sua nova versão, o Novo Fundeb.


Reconhecem a importância desse fundo e de seu antecessor, o Fundef,

para aumentar o financiamento e a equidade na provisão de educação

básica em todo o território nacional. Mas chamam atenção para três

pontos relevantes.

Em primeiro lugar, é preciso mudar o foco da política educacional,

excessivamente preocupada em vincular recursos, que dá atenção apenas

subsidiária ao principal objetivo: o aprendizado e desenvolvimento dos

estudantes. Nesse sentido, seria importante aumentar a premiação pela

eficiência no uso dos recursos, mensurada por indicadores de

aprendizado dos alunos.

Em segundo lugar, deve-se aumentar a autonomia local na gestão dos

recursos. Principalmente permitindo-se que recursos poupados em um

exercício possam ser usados no ano seguinte.

Em terceiro lugar, é preciso diminuir as subvinculações e restrições

impostas, de forma centralizada, ao uso dos recursos, como a aplicação

de 70% na remuneração dos profissionais da educação, os índices de

aplicação mínima em despesa de capital e a impossibilidade de

contratação de serviços privados de ensino fundamental e médio.

No Capítulo 20, Gustavo Guimarães e Marcos Mendes analisam

as distorções geradas pelo “piso salarial profissional nacional para os

profissionais da educação escolar pública”. A legislação que criou esse

piso salarial determinou a sua correção anual por um índice que nada

tem a ver com a correção do poder de compra, e que já implicou

aumento real de 57% entre 2009 e 2021. Em 2022, o reajuste será de

mais de 30%, frente a uma inflação em torno de 10%.

Reajustes reais agressivos poderiam ser justificados pelo argumento de

que professores da rede pública ganham pouco. Contudo as evidências

quantitativas são de que eles têm rendimento superior aos professores da

rede privada e de que, na maioria dos estados, têm remuneração

equivalente à média dos profissionais do setor privado com carteira

assinada e nível superior.

Na forma que está desenhado, o piso acarreta gastos excessivos,

distorções remuneratórias em relação aos demais servidores públicos e

pressão fiscal sobre os três níveis de governo.


Estudos empíricos não constatam efeitos do aumento da remuneração

dos professores sobre a proficiência dos alunos, nem sobre o estímulo

profissional ou a melhor seleção de professores. Mesmo que a lei

estivesse funcionando a contento e obtendo resultados educacionais

positivos, a superindexação por ela criada e os demais problemas de

desenho precisariam ser reformulados.

Tentativas de correção têm esbarrado na forte resistência corporativa

dos sindicatos de professores das escolas públicas. Trata-se de um caso

típico de política mal desenhada que persiste devido à pressão dos que

são beneficiados pela distorção.

O Capítulo 21, de autoria de Fernando Holanda Barbosa Filho,

analisa a educação profissional, focando o caso do Programa Nacional

de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec). O autor mostra que

dos R$ 40 bilhões gastos no Programa, apenas uma parcela de

aproximadamente R$ 400 milhões foi alocada em uma modalidade de

treinamento que fez real diferença na empregabilidade dos alunos.

Os principais problemas constatados no Pronatec foram a elevada

evasão e a falta de adequação entre a formação dada nos cursos

oferecidos e a exigências do mercado de trabalho.

Dada a importância para o país de uma política que faça a inserção e a

reinserção no mercado de trabalho em um mundo cada vez mais

dinâmico, em que as características das profissões e as habilidades

requeridas mudam, é importante aprender com os erros e adotar as

medidas que fizeram parte dos programas com avaliações positivas. Isso

incluiria: (a) captura de demanda de forma fácil e sistemática, para

oferecer cursos nos quais exista real interesse dos empregadores, nos

locais corretos; (b) a seleção da pessoa que irá ser qualificada deve

considerar a aptidão para a área, caso contrário não terá sucesso no

curso, muito menos na empregabilidade; (c) dar atenção ao treinamento

na área socioemocional.

Chama atenção, sobretudo, o fato de montante tão relevante de

recursos ter sido aplicado em um programa sem as adequadas avaliações

ex-ante e ex-post, que permitiriam um desenho mais cuidadoso e

aperfeiçoamentos ao longo da implantação.


Integração à Economia Internacional
No Capítulo 22, Edmar Bacha argui que a recusa em abrir a

economia para o comércio exterior é uma das causas centrais que

impedem o Brasil de crescer de forma acelerada e reduzir a distância da

renda per capita do país em relação à dos países ricos.


O capítulo analisa as relações causais entre abertura econômica e

crescimento. Em seguida, procura explicar a resistência brasileira em

manter-se fechado à integração comercial. Analisa cinco pontos

distintos: o argumento pró-integração seria contraintuitivo e complexo

demais para ser defendido no debate público; existiria forte oposição dos

interesses constituídos; os benefícios da integração vêm a longo prazo,

enquanto os custos aparecem de imediato; há uma leitura simplista da

história econômica que associa proteção comercial com

desenvolvimento econômico; e haveria um excessivo otimismo e

desprezo dos custos de curto prazo por parte de quem advoga a favor da

abertura.

O autor conclui com a proposta de um programa de abertura paulatina,

combinado com suporte aos perdedores de curto prazo.

Os capítulos seguintes mostram diferentes dimensões do excessivo

protecionismo brasileiro.

O Capítulo 23, de autoria de Sergio Kanebley Jr., trata de um

mecanismo de proteção comercial previsto nas regras da Organização

Mundial do Comércio: as medidas antidumping. Elas são restrições a

importações que podem ser diferenciadas por produtos e por país.

Serviriam para reagir a estratégias comerciais agressivas, nas quais

importações entrariam com preços excessivamente baixos.

O Brasil tem utilizado intensamente o antidumping, o que se acentuou

entre 2007 e 2014. Os resultados de estudos compilados no capítulo

mostram que a decisão do governo de abrir investigação antidumping

pode ser explicada por argumentos protecionistas tanto do ponto de vista

das empresas quanto da estratégia comercial do país. Setores

economicamente mais concentrados têm maior probabilidade de obter a

abertura desse tipo de investigação, ao mesmo tempo que há também

maior foco nos setores onde existe grande penetração de importações.


Além disso, fatores de relações bilaterais, como disputas e retaliações

entre dois países da mesma forma afetam positivamente a abertura das

investigações. O governo atuou mais fortemente contra grupos de

indústria e países que com frequência peticionaram e produziram

investigações contra o Brasil.

Fatores similares mostram-se correlacionados à decisão de impor de

fato medidas antidumping, na fase seguinte à abertura da investigação.

Pedidos feitos por associações empresariais e em setores mais

concentrados têm maior probabilidade de resultarem em aplicação

efetiva. São beneficiados, também, setores geradores de emprego, em

uma preocupação de proteger empregos domésticos. Também há um

claro direcionamento de medidas para importações provenientes da

China.

De modo geral, o uso do antidumping representou aumento de custos

para os demais setores da economia nacional que compram insumos

daqueles que têm seu mercado protegido pela política de proteção.

Há aumento de custos, redução de comércio, queda de produtividade,

elevação de margens de lucros e poder de mercado de setores

concentrados. Todos esses efeitos apontam a importância do

comedimento no uso de medidas antidumping. O fato de que um setor

específico da economia está sendo prejudicado por importações não é

condição suficiente para se impor restrições a elas. É preciso levar em

conta o interesse geral da economia nacional, ou seja, de todas as

demais empresas, dos consumidores e o impacto potencial sobre o

crescimento econômico.

No Capítulo 24, Gustavo Guimarães e Marcos Mendes analisam

os custos e distorções decorrentes da política de exigência de conteúdo

local na exploração de óleo e gás. Essa política, que consiste em exigir a

aquisição de insumos junto a empresas sediadas no país, tem grande

apelo político, seja pela promessa de geração de emprego, seja pelo

estímulo à criação de uma cadeia de fornecedores ou pela atraente ideia

de transformar a exploração de produtos primários em uma atividade

econômica mais complexa, que agregue mais valor.


Todos esses argumentos são questionáveis, e ignoram os efeitos

colaterais e os custos econômicos da estratégia, que frequentemente

superam seus benefícios: empresas são forçadas a comprar insumos

piores a preços mais altos; há riscos de atraso que impõem alto custo de

capital imobilizado; a imposição de metas quantitativas e detalhadas

impede a empresa de minimizar custos por meio de alterações na

composição dos insumos; há elevado custo administrativo na

comprovação do cumprimento das regras ou na contestação judicial das

punições.

Condição necessária para que uma política de conteúdo local tenha

sucesso é que o governo tenha tradição de transparência, probidade,

eficiência e baixa captura por interesses privados. É grande o espaço

para descaminho quando se combinam: (a) decisões administrativas em

substituição a regras de mercado, (b) setores produtivos previamente

escolhidos, (c) benefícios concentrados em alguns atores e (d) custos

não transparentes que se repartem de forma difusa por toda a sociedade.

O capítulo mostra que as exigências de conteúdo local foram se

tornando cada vez mais rígidas, elevando os efeitos colaterais negativos.

Uma reforma realizada em 2017, que minorou a intensidade das

exigências, resultou em significativa melhoria na atratividade e

concorrência nos leilões de áreas de exploração, refletida em ágios

elevados e grande número de participantes. Não obstante esse sucesso,

os setores protegidos pela política pressionam pela reversão da reforma e

volta do status quo anterior.


No Capítulo 25, Isabela Duarte examina o programa de incentivo

à indústria automobilística, Inovarauto, posteriormente transformado no

Programa Rota 2030. Criado em 2012, seu objetivo oficial era, por meio

de incentivos fiscais, “apoiar o desenvolvimento tecnológico, a inovação,

a segurança, a proteção ao meio ambiente, a eficiência energética e a

qualidade dos automóveis, caminhões, ônibus e autopeças”. Contudo o

estudo mostra que o principal objetivo do programa era criar uma

reserva de mercado, protegendo a indústria nacional da concorrência de

automóveis importados.
O programa estabeleceu um regime tributário desenhado para

inviabilizar a importação de veículos automotores por empresas que não

tivessem produção ou projetos de produção no país. Para importar

veículos para o Brasil, empresas pagariam não apenas o imposto de

importação já estabelecido no valor máximo de 35%, mas também

arcariam com um diferencial de 30 pontos percentuais em impostos

indiretos. Ademais, havia exigência de produção mínima em território

nacional e de conteúdo local nas peças e equipamentos utilizados.

Certamente a produção de automóveis menos poluentes ou mais

seguros beneficia a sociedade. Entretanto, fazer isso por meio de

incentivos fiscais e reserva de mercado não é forma mais eficiente. Os

principais países produtores de automóveis utilizam meios de regulação,

que impõem critérios mínimos de segurança veicular e de emissões de

gases.

O incentivo à inovação também não justifica benefícios fiscais, pois

não há evidências de que as atividades de inovação da indústria

automotiva teriam um retorno mais expressivo do que as atividades de

inovação de outros setores. Além do mais, não há razão para crer que

uma política setorial temporária seria capaz de incentivar empresas a

alterarem sua estratégia global de inovação e transferir uma parte

significativa de seu processo de pesquisa para um país que concentra

apenas uma parcela de sua produção e não oferece condições

competitivas em termos de capital humano ou de infraestrutura de

pesquisa.

Vale ressaltar que mesmo antes da criação do programa a indústria

automotiva local já contava com forte estrutura de proteção e subsídio.

Além disso, o Inovar-Auto conflitava com acordos comerciais dos quais

o Brasil é signatário. De fato, ele foi condenado por um painel da

Organização Mundial do Comércio (OMC).

A despeito desses fatores contrários, e da inexistência de evidências

quantitativas de benefícios sociais do Programa, ele foi cosmeticamente

redesenhado, visando driblar os óbices apontados pela OMC e relançado

sob o nome de Rota 2030, mantendo a histórica proteção e subsídio à

indústria automobilística instalada no país.


CAPÍTULO 1
EXPANSÃO FISCAL DURANTE O
SUPERCICLO DE COMMODITIES
Bráulio Borges e Samuel Pessôa

INTRODUÇÃO
O Brasil adotou uma série de reformas institucionais importantes na

seara fiscal no final dos anos 1990 e começo dos anos 2000. É preciso

destacar a federalização da dívida dos governos regionais, que foi

combinada a programas de privatização dos bancos estaduais e à

proibição de emissão de dívida mobiliária por tais entes, bem como

salientar a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) em

2000, que introduziu um conjunto de padrões e regras fiscais, nacionais


1
e subnacionais.

Nesse mesmo período, no âmbito da celebração de alguns acordos com

o Fundo Monetário Internacional (FMI) — que forneceram liquidez em

moeda estrangeira para o Brasil, tendo como pano de fundo uma

sequência de crises internacionais e uma elevada vulnerabilidade

externa de nossa economia —, a execução da política fiscal doméstica

passou a atuar de modo a buscar a consecução de metas anuais de

superavit primários expressivos definidas pelo FMI (após uma

sequência de deficit entre 1996 e 1998 em bases recorrentes). Boa

parte dessa consolidação fiscal adveio de aumentos de carga tributária

recorrente (cerca de 6 p.p. do PIB entre 1997 e 2005), em especial de

tributos indiretos.

O Gráfico 1 apresenta a evolução temporal dos resultados primários

cheios, em bases recorrentes, bem como uma estimativa do resultado


primário estrutural (que desconta, do resultado recorrente, os impactos

estimados do ciclo econômico sobre a arrecadação recorrente).

Interessante notar que o fim do acordo com o FMI, a partir de 2006,

esteve associado a uma redução permanente do resultado primário

estrutural, com parte desse movimento sendo explicado por uma

aceleração dos investimentos públicos: na média 1999-2005, os

investimentos do Governo Geral equivaleram a 1,7% do PIB a.a.,

passando para pouco mais de 2% do PIB a.a., a partir de 2006 (vale

lembrar que o Programa de Aceleração do Investimento (PAC), foi


2
lançado em 2007).

Gráfico 1: Brasil: resultado primário do Governo Geral em diferentes


conceitos no período 1997-2020

Fonte: Observatório de Política Fiscal do Ibre-FGV.

As políticas descritas nos parágrafos anteriores contribuíram, em

conjunto com outros fatores, para gerar uma inflexão da trajetória do

endividamento público brasileiro. Antes desse ajuste, a dívida líquida do

setor público (DLSP) havia passado de cerca de 29% do PIB em 1995

para quase 52% em 2001, aproximando-se dos 60% em 2002 com a

forte depreciação cambial observada naquele período, em um contexto

no qual o Brasil ainda sofria do chamado “pecado original” (com parte


3
relevante da dívida pública atrelada diretamente a oscilações cambiais) .
Com o ajuste fiscal, a DLSP voltou para o patamar de 30% em

2012/2013, nível semelhante àquele dos países usualmente comparados

ao Brasil. O Gráfico 2 apresenta o critério de dívida líquida do Governo

Geral, DLGG, que exclui as dívidas líquidas do Banco Central e das


4
estatais não dependentes — e permite comparações internacionais.

Gráfico 2: Dívida líquida do Governo Geral: 2000-2020 (% do PIB)

Fontes: Banco Central do Brasil e FMI (IMF Fiscal Monitor — abril de 2021).

Contudo o aparente sucesso da política fiscal brasileira sugerido pela

dinâmica do endividamento público entre 2003 e 2012/2013 esconde

uma série de fragilidades que explicariam ao menos parte da forte

deterioração que passou a ser observada de 2014 em diante.

Embora a figura anteriormente mostrada deixe evidente que houve um

aumento relevante do endividamento público disseminado dentre os

países emergentes e em desenvolvimento ao longo da década de 2010,

sobretudo após o término do chamado “superciclo de commodities” (que

durou de 1999 a 2011, segundo a datação de Reinhart, Reinhart &

Trebesch, 2016), a elevação da dívida pública no Brasil foi ainda mais

acentuada principalmente quando comparada à média simples de

México, Colômbia e Uruguai (países que mantiveram, ao longo da


década passada, o status de grau de investimento — posição que o

Brasil conquistou em 2008 e perdeu em 2015).

De fato, houve uma expressiva deterioração do resultado fiscal

estrutural brasileiro após a grande crise financeira global de 2008-2009,

sobretudo de 2012 em diante, como já registrado no Gráfico 1. O

Gráfico 3 mostra que a política fiscal doméstica, que já vinha sendo

expansionista desde 2004, foi ainda mais em 2012-2014, de modo a

tentar mitigar o forte impacto negativo, sobre o quadro macroeconômico

doméstico, da reversão dos preços internacionais das commodities e da

piora das condições financeiras internacionais a partir de 2013 ( taper


tantrum), além de ter sido influenciada pelo ciclo político-eleitoral (já

que em 2014 ocorreriam eleições gerais no Brasil).

Gráfico 3: Brasil: impulso fiscal do Governo Geral: 1998-2019 (negativo da


variação do resultado primário cheio, ajustado pelos impactos do ciclo sobre
as receitas recorrentes, em p.p. do PIB)

Fonte: Observatório de Política Fiscal do Ibre-FGV.

Contudo esse estímulo fiscal se dava em um contexto no qual a

economia brasileira vinha operando persistentemente em situação de

hiperemprego pelo menos desde 2005/2006, como aponta o Gráfico 4.

Embora esse diagnóstico não fosse tão claro em “tempo real”, o fato é

que a posteriori as estimativas de posição cíclica da economia são

quase unânimes em apontar para esse quadro, algo que também encontra
respaldo na dinâmica da própria inflação, sobretudo dos núcleos, como
5
sugere o Gráfico 5 .

Gráfico 4: Índices de posição cíclica da economia brasileira: 1989-2021

Fontes: Ibre-FGV, IFI-Senado e estimativas dos próprios autores.

Com efeito, a política fiscal brasileira foi pró-cíclica durante boa parte

das últimas décadas, em particular ao longo do superciclo de

commodities, como percebemos pelo Gráfico 6. Como se verá ao longo

deste capítulo, políticas fiscais pró-cíclicas são prejudiciais ao

crescimento de longo prazo e à estabilização das flutuações econômicas

de curto prazo. Uma política fiscal contracíclica faz parte do que se

caracterizará adiante como “política fiscal inteligente”.

Tomando por base o ano de 1998, somente em 2000, 2011 e 2020 essa

postura foi contracíclica. É importante notar que as receitas com

royalties passaram de cerca de 0,3% do PIB em 2001 para 0,9% do PIB

em 2019, em um contexto no qual 65% delas são direcionadas a estados

e municípios, além de serem receitas livres, “descarimbadas”, que

podem ser gastas em qualquer tipo de política pública (inclusive na

contratação de funcionários públicos — uma despesa permanente).

Gráfico 5: Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA): índice cheio e


médias de medidas de núcleo: 2000-2020 (variação percentual anual)
Fontes: Banco Central do Brasil e IBGE.

Gráfico 6: Orientação da política fiscal brasileira em relação ao ciclo


econômico

Fonte: Observatório de Política Fiscal FGV-IBRE.

Isso certamente ajuda a entender por que, a despeito de a participação

direta do setor de commodities no PIB ser significativamente menor no

Brasil do que em outros países exportadores líquidos desses produtos, a

correlação contemporânea entre as variações do PIB e as variações dos


preços internacionais das commodities no Brasil foi uma das mais

elevadas nas últimas décadas, como se vê no Gráfico 7.

Gráfico 7: Correlação entre a taxa de crescimento do PIB e a taxa de


crescimento de preço de commodities não energéticas: coeficiente de
correlação entre as taxas acumuladas em quatro trimestres: 1996-2019

Fonte: Banco Mundial. Elaborado pelo Grupo de Conjuntura Dimac/Ipea.

O contraste com a postura fiscal observada na economia chilena —

muito mais dependente das commodities do que o Brasil — não poderia

ser mais evidente: o Chile foi um dos poucos países emergentes que

“surfou na onda” do superciclo de commodities com uma política fiscal

claramente anticíclica. Isso se deveu em boa medida à adoção, a partir

de 2001, de um arcabouço fiscal que passou a ter como metas os

resultados fiscais estruturais (ou seja, líquidos dos impactos estimados

do ciclo econômico e das oscilações dos preços internacionais do cobre


6
sobre as receitas), entre outros aspectos .

Vale notar, como mostra o Gráfico 8, que nem sempre foi assim: a

guinada chilena aconteceu justamente a partir da adoção dessa regra

fiscal. Até então, o Chile mimetizava o padrão observado em boa parte

das economias emergentes e em desenvolvimento, caracterizado por

políticas fiscais pró-cíclicas. O Gráfico 8 também revela que os

aprimoramentos do arcabouço fiscal brasileiro listados no começo desta

seção atuaram para reduzir a pró-ciclicalidade da política fiscal

doméstica em 2000-2014 versus 1960-1999, mas sem “mudar o sinal”

(com o Brasil “ainda na escola” no período mais recente).

Gráfico 8: Correlação entre o componente cíclico da despesa real do


governo e a variação real do PIB — vários países: 1960-1999 versus 2000-
2014

Fonte: Frankel, Vegh e Vuletin (2011). Extraído de The Reporter, 4 dez. 2015.

Convém assinalar que, no passado, esse padrão pró-cíclico da política

fiscal nas economias menos desenvolvidas tinha como um dos fatores

determinantes a virtual ausência de mercados locais de dívida na

maioria desses países, fazendo com que boa parte do financiamento de

seus deficit públicos ocorresse por meio de captações externas. Assim,


os países aproveitavam esses momentos de bonança dos fluxos de

capitais globais para elevar seu endividamento e impulsionar os gastos

públicos (e a própria economia), gerando o padrão pró-cíclico


7
identificado nos dados observados .

Não obstante, o aprofundamento de mercados domésticos de dívida,

em moeda local, especialmente após vários desses países terem logrado

êxito em controlar processos inflacionários crônicos, passou a permitir

potenciais mudanças de postura da política fiscal em direção à

anticiclicalidade, algo benéfico ao próprio crescimento econômico de

médio e longo prazo (como será explorado em maior detalhe na próxima

seção).

Feita esta introdução, este capítulo se estrutura da seguinte maneira: na

próxima seção iremos explorar em maiores detalhes os contornos gerais

de uma política fiscal ideal, já levando em conta a visão mais recente


sobre o papel que ela deveria desempenhar; na seção seguinte,

tentaremos realizar algumas análises contrafactuais para a economia

brasileira, levando em conta uma postura da política fiscal distinta

daquela efetivamente observada nas últimas duas décadas, em especial

ao longo do superciclo de commodities (1999-2011); por fim, temos

algumas considerações finais.

1. UMA REFERÊNCIA DE POLÍTICA FISCAL


IDEAL
Como sabemos, a política fiscal pode interferir no desempenho

macroeconômico de um país por meio de diversos canais. Uma das

formas diz respeito à sua orientação em relação aos ciclos econômicos

mais de curto prazo, algo que naturalmente acaba interagindo com a

atuação da política monetária, sobretudo nos países que adotam regimes

de metas de inflação e que têm regimes de câmbio flutuante.

Para além disso, a perspectiva de sustentabilidade e solvência fiscal

determinam, entre outros fatores, a percepção de risco de um país, algo

que afeta as taxas de juros longas/de equilíbrio, a taxa de câmbio

nominal e real, a magnitude e mesmo o sinal dos multiplicadores fiscais,

bem como a própria efetividade da política monetária (no âmbito da

discussão sobre dominância fiscal versus dominância monetária). Por

fim, a política fiscal, por meio da tributação, desoneração/subsídios e

gastos (incluindo tamanho, desenho, composição, entre outros aspectos)

pode afetar o crescimento econômico de médio e longo prazo, assim

como o bem-estar das sociedades em uma acepção mais ampla.

Portanto, há diversos objetivos a serem cumpridos pela política fiscal.

Nesse contexto, o FMI tem defendido, pelo menos desde 2017, o

conceito denominado de smart fiscal policy (política fiscal

inteligente) como um balizador para o desenho das instituições fiscais

dos países. Trata-se de um conjunto de diretrizes que reconhece a

existência de diversas frentes ativas de atuação da política fiscal e do

próprio Estado em termos do desenvolvimento econômico e social de

um país.
Na visão do FMI, são cinco os principais elementos definidores de

uma política fiscal inteligente — apresentados a seguir, já com algumas

qualificações adicionais:

1) ela deve ser anticíclica, atuando de forma coordenada com a

política monetária para suavizar as flutuações econômicas mais

de curto prazo dos países, de modo a viabilizar que se opere

próximo do quadro de pleno-emprego na maior parte do tempo.

No caso da política fiscal, isso pode ser feito tanto por meio da

introdução e aprimoramento dos estabilizadores automáticos (nas

receitas e despesas governamentais), como também pela

construção de espaço fiscal nos momentos de bonança para

permitir ações discricionárias mais agressivas e tempestivas nos

momentos de crise econômica mais severas e duradouras (sem

que isso gere uma piora expressiva, e mesmo contraproducente,

da percepção de solvência fiscal). Nesse contexto, as regras

fiscais devem ter “cláusulas de escape” bem definidas, além de

“regras de retorno” com alguma suavização e prevendo algumas

condicionalidades (associadas ao estágio do ciclo econômico, por

exemplo).

2) A política fiscal deve ser amigável ao crescimento econômico

de médio e longo prazo, bem como ao bem-estar (reconhecendo

que este último não depende apenas da renda per capita


agregada de um país). Desse modo, o desenho da tributação deve

ser pouco distorcivo, buscando a neutralidade em termos de

eficiência econômica, a mitigação de externalidades negativas e

combatendo outros resultados não desejáveis (como excesso de

poder de mercado). Ademais, as políticas de gastos devem ter

foco em resultados, privilegiando ações que envolvam

investimentos em infraestrutura com elevado retorno econômico

e social, bem como investimentos em capital humano.

Idealmente, tais políticas deveriam ser avaliadas de forma

sistemática, com processos institucionalizados de escolha,

alteração e extinção.
3) A política fiscal deve ser inclusiva. Isso envolve a adoção de

políticas de tributação progressivas e políticas de gastos mais

focalizadas em quem realmente precisa mais, além da presença

de uma rede de proteção social abrangente para apoiar boa parte

da população, sobretudo os mais vulneráveis, em relação às

oscilações de mercado. Vale notar que uma maior equidade, no

sentido de menores desigualdades de oportunidade, acaba

impulsionando o próprio crescimento potencial. Além disso, uma

desigualdade muito elevada de resultados, não importa se

originada de desigualdades de puro esforço ou de oportunidades,

acaba alimentando instabilidade política e mesmo a emergência

de governos populistas, impulsionando círculos viciosos que

podem gerar “tragédias de crescimento/desenvolvimento” (como

no caso argentino). Com efeito, a política fiscal deve atuar tanto

em ações mais pré-distributivas como nas redistributivas.

4) A política fiscal deve estar amparada em uma forte capacidade

de arrecadação. Como muitas políticas públicas executadas por

meio de gastos devem perdurar por muitos anos e ter uma certa

previsibilidade orçamentária, é importante que a arrecadação de

recursos pelos governos seja pouco volátil — algo que depende

da própria estabilização dos ciclos econômicos, mas também do

desenho do sistema tributário. Receitas altamente voláteis e

finitas, como aquelas associadas a royalties pela exploração de

recursos naturais, devem ter um tratamento diferenciado, que leve

em conta inclusive questões de equidade intergeracional.

5) A política fiscal deve ser prudente. Isso significa dizer que os

momentos de boom econômico devem ser aproveitados para a

construção de “espaço fiscal” e que a calibragem numérica das

metas fiscais deve ser feita com algum conservadorismo, sem, no

entanto, deixar de levar em conta todos os aspectos mencionados

anteriormente. Em função dos problemas associados à chamada

inconsistência intertemporal e ao viés de curto prazo que

naturalmente emerge em democracias com eleições regulares,

justifica-se a adoção de regras fiscais (incluindo aí a criação de

instituições fiscais independentes/conselhos fiscais para


monitorar o cumprimento dessas regras e mesmo sugerir

aprimoramentos no arcabouço de regras). Tanto o desenho como

a calibração numérica dessas regras fiscais devem estar alinhados

aos demais objetivos da política fiscal listados anteriormente.

No caso do primeiro elemento, vale a pena levantar alguns pontos

adicionais, que reforçam e qualificam a recomendação de que a política

fiscal seja anticíclica. Em primeiro lugar, cada vez mais estudos

empíricos apontam que recessões são eventos altamente regressivos, no

sentido de afetarem mais negativamente a parcela da população com

menor estoque de capital humano e que muitas vezes não está totalmente

resguardada pela rede de proteção social (como no caso dos

trabalhadores informais e da chamada gig economy). Assim, a

estabilização macroeconômica é algo desejável por também viabilizar

um desenvolvimento econômico e social mais inclusivo — e isso, por

sua vez, gera ganhos econômicos de médio e longo prazo (ver, por

exemplo, Cingano, 2014)

Em segundo lugar, trabalho recente de economistas do FMI (Cerovic

.
et al , 2018) aponta que um dos principais previsores de crises fiscais

são quadros de economia superaquecida, algo que é potencializado pelo

nível inicial da dívida antes da emergência dessa crise. Portanto, a

orientação da política fiscal em relação ao ciclo também está associada à

própria solvência do setor público.

Em terceiro lugar, Brüeckner e Carneiro (2015), a partir de uma base

de dados que engloba 175 países ao longo do período 1980-2010,

chegam à conclusão de que a volatilidade dos termos de troca afeta

negativamente o crescimento econômico médio daqueles países nos

quais a política fiscal é pró-cíclica.

Em quarto lugar, há cada vez mais trabalhos empíricos que sugerem a

existência do fenômeno conhecido como histerese econômica (ou

scarring, termo em inglês que vem sendo utilizado mais comumente


8
no debate atual) . Nos últimos 40 anos, a visão predominante entre os

economistas tratou os ciclos econômicos de maneira praticamente


9
independente das discussões sobre crescimento . Acreditava-se que as
políticas tradicionais de gestão da demanda agregada (monetária e

fiscal) podiam causar apenas distúrbios passageiros, com pouca ou

nenhuma influência sobre o PIB potencial (isto é, a capacidade de oferta

de bens e serviços da economia).

Vale notar que a palavra histerese deriva do grego e significa

“retardo”. Na física, ela é utilizada para descrever a tendência de um

sistema conservar as suas propriedades na ausência de novo estímulo.

Na economia, ela pode ser resumida da seguinte maneira: a posição

cíclica da economia pode afetar sua tendência de crescimento (tanto o

nível como a taxa de variação). Ou seja, se a economia sofre um choque

que a desvia de seu pleno-emprego (choque de demanda), seus efeitos

podem ser muito persistentes, e até mesmo permanentes em alguns

casos. É um conceito que se aproxima bastante daquele de path


dependence (dependência da trajetória) — e, como tal, dá margem
10
para a emergência de múltiplos equilíbrios .

A histerese econômica pode se manifestar por vários canais. Primeiro,

por meio do desemprego de longa duração, erodindo o estoque de capital

humano, sobretudo aquele adquirido pelo acúmulo de experiências e

treinamentos no ambiente de trabalho. Segundo, pelo fenômeno

conhecido como “fuga de cérebros”, o que também reduz o capital

humano — neste caso, de qualificação mais elevada, afetando a

capacidade de inovação do país. Terceiro, pelo aumento da

obsolescência do estoque de capital físico, com reflexos na

produtividade sistêmica. Quarto, pelo rebaixamento de expectativas dos

agentes ( belief scarring), por exemplo, desestimulando a assunção de


riscos. Ademais, a interação de quadros em que a economia opera

persistentemente abaixo do pleno-emprego com o ambiente político dá

margem para a emergência de instabilidade política e social, bem como

de medidas populistas em momentos mais próximos às eleições

(sobretudo em países pobres e/ou muito desiguais).

De fato, Fatas & Mihov (2013), usando dados para 93 países,

identificaram um impacto negativo e relevante (cerca de -0,74 p. p. ao

ano) sobre o crescimento econômico de longo prazo naqueles países

com maior volatilidade da política econômica. A definição empírica de


volatilidade adotada pelos autores corresponde justamente a variações

dos gastos governamentais não previstas pelo ciclo econômico (ou seja,

que desviariam de uma espécie de “regra de Taylor” para a política

fiscal, em que o padrão esperado seria alguma anticiclicalidade dessa


11
política ). Do mesmo modo, McManus e Ozkan (2015) perceberam,

com base em uma amostra com 114 países entre 1950 e 2010, que os

países em que a política fiscal é pró-cíclica apresentam taxas menores de

crescimento econômico, maior volatilidade do produto e taxas de

inflação mais elevadas. Vegh e Vuletin (2014) vão além e identificam

uma relação de causalidade entre políticas fiscais pró-cíclicas

(anticíclicas) colocadas em prática durante momentos de crise e

elevações (reduções) da taxa de pobreza, da desigualdade de renda, da

taxa de desemprego e dos conflitos domésticos.

Com efeito, as políticas de estabilização macroeconômica também

podem afetar o crescimento econômico de médio e longo prazos, assim

como o bem-estar da sociedade e a própria estabilidade política. Uma

vez que a política monetária tradicional nem sempre é capaz de cumprir,

sozinha, a tarefa de estabilizar os ciclos — até mesmo por conta da não

observação, na prática, do resultado teórico conhecido como “divina


12
coincidência” —, uma postura ativa da política fiscal complementa a

atuação da política monetária, assim como as chamadas políticas

macroprudenciais.

2. UM CONTRAFACTUAL PARA A POLÍTICA


FISCAL BRASILEIRA
Antes de apresentar alguns exercícios contrafactuais para a dinâmica dos

indicadores fiscais brasileiros ao longo do período do superciclo de

commodities (1999-2011), sobretudo após o término do acordo com o

FMI (a partir de 2006, quando o Brasil quitou todos os empréstimos

junto ao organismo multilateral), é interessante mostrar alguns

exercícios recentes que buscaram construir contrafactuais para

economias latino-americanas que também são exportadoras líquidas de

commodities.
O caso mais óbvio, como já explorado nas seções anteriores deste

trabalho, é o chileno, uma vez que seu arcabouço fiscal foi desenhado de

forma a levar em conta explicitamente os ciclos econômicos (muito

dependentes dos ciclos dos preços de commodities), bem como os ciclos

dos preços internacionais dos principais produtos minerais exportados

pelo Chile (notadamente o cobre).

Fuentes, Schmidt-Hebbel e Soto (2021), utilizando o método de

controle sintético e levando em conta uma amostra de 73 países entre

1982 e 2017, estimaram que a dívida bruta chilena teria sido quase 20

p.p. do PIB maior em 2017, caso o país não tivesse adotado o arcabouço

de metas fiscais estruturais a partir de 2001, como mostra o Gráfico 9,


13
extraído do artigo citado.

Gráfico 9: Chile: dívida pública bruta observada versus simulação


contrafactual em 1990-2019 (% do PIB)

Fonte: Fuentes, Schmidt-Hebbel e Soto (2021).

Vale lembrar que o Chile chegou a ter uma dívida pública líquida

negativa em cerca de 20% do PIB em 2008, por conta da forte

acumulação de recursos em moeda estrangeira em dois fundos


soberanos (que hoje possuem ativos financeiros equivalentes a cerca de
14
8% do PIB chileno) .

É útil lembrarmos que política fiscal contracíclica não equivale à

adoção pelo país de um fundo soberano. De fato, nós criamos um fundo

soberano em 2008 e mantivemos, como temos tratado no capítulo, uma

política fiscal pró-cíclica. A existência de um fundo soberano de fato

pode constituir um elemento importante na construção de um arcabouço

institucional que garanta a contraciclidade da política fiscal, mas não é

condição necessária nem suficiente para isso.

Outro caso interessante, para o qual também está disponível um

exercício semelhante que utiliza a técnica de controle sintético, é o

colombiano: o país adotou metas de resultado fiscal estrutural a partir de

2011 (“pico” do superciclo de commodities) com o objetivo de

recuperar, junto às principais agências de classificação de risco, o

status de grau de investimento — posição que perdera em 1999.


Como apontaram Arbelaez, Benitez, Steiner e Valencia (2021),

embora a dinâmica do endividamento público líquido colombiano tenha

apresentado evolução bastante distinta, para pior, em relação ao que se

projetava em 2011/2012 (quando da adoção dessa regra fiscal de

resultado estrutural), ainda assim sua evolução foi menos desfavorável

do que poderia ter sido caso não tivesse adotado essa regra fiscal. A

dívida pública líquida seria cerca de 12 p.p. maior, em 2017, caso a

Colômbia não tivesse adotado a meta de resultado fiscal estrutural a

partir de 2011. Vale notar que o país é um importante exportador líquido

de petróleo e derivados e o colapso dos preços dessas commodities

energéticas só viria a acontecer no final de 2014 (cerca de três anos após

o início da debacle dos preços das commodities não energéticas). O

PIB colombiano, que cresceu cerca de 4,5% a.a. em 2012-2014,

desacelerou para uma alta de pouco menos de 2% a.a. em 2016-2017,

acelerando para uma taxa de cerca de 3,5% em 2019.

A adoção dessa regra de resultado fiscal estrutural pela Colômbia foi

suficiente para que recuperasse a posição de grau de investimento ainda

em 2011 e a mantivesse nos anos seguintes, mesmo com a forte


15
desaceleração do crescimento e alta do endividamento . Importante
lembrar que o Chile, quando adotou seu arcabouço estrutural, em 2001,

já possuía esse status de grau de investimento em níveis bastante

elevados.

O Peru é outro país latino-americano e exportador líquido de

commodities que passou a adotar uma meta de resultado fiscal

estrutural, com ajustes pelo ciclo do PIB e dos preços dos principais

produtos por ele exportados (commodities metálicas, incluindo pedras e

metais preciosos). Concebida em 2012 e promulgada em 2013, a versão

aprimorada da Lei de Responsabilidade Fiscal peruana determinou que,

a partir de 2015, o país adotaria uma meta fiscal baseada em resultados

primários estruturais em porcentagem do PIB potencial. Ou seja, a

mudança ocorreu já em meio à fase de descompressão dos preços

internacionais de commodities.

Mendoza et al . (2021) calibraram um modelo DSGE para a economia

peruana a fim de construir um contrafactual que levasse em conta

diferentes regras fiscais no período 2000-2019. Durante boa parte desse

período o país conviveu efetivamente com regras para definir limites de

deficit e um teto para os gastos primários (com reajustes reais

positivos, em geral seguindo a estimativa de crescimento do PIB

potencial). Os autores chegaram à conclusão de que a economia peruana

teria desfrutado de maior bem-estar caso tivesse adotado a meta de

resultado fiscal estrutural durante todo esse período. Além disso, a meta

de resultado estrutural reduziria a pró-ciclicalidade dos investimentos

públicos em resposta a choques nos preços de commodities, bem como a

volatilidade da economia em resposta a choques nas taxas de juros

internacionais.

Ao passarmos para o caso brasileiro, a realização de um exercício de

controle sintético não é possível ao avaliar essa questão específica, na

medida em que o Brasil, tal como boa parte dos países emergentes e em

desenvolvimento, não adotou metas de resultado fiscal estrutural durante

o período 1999-2019 (englobando o período de alta e colapso dos preços

de commodities). Com efeito, um contrafactual para o caso brasileiro

terá que ser construído de outra maneira.


De qualquer modo, vale a pena iniciar essa análise a partir da

observação do Gráfico 10, que compara a evolução das taxas de câmbio

real e efetiva de Brasil, Chile, Peru e Colômbia. Tais países adotaram

regimes de câmbio flutuante logo após a crise russa, no final de 1998.

Ademais, 1999 também correspondeu ao ano inicial do superciclo de

commodities que iria até 2011, segundo a datação de Reinhart, Reinhart

e Trebesh (2016).

Sob regimes de taxa de câmbio nominal flutuante, as chamadas

moedas-commodities tendem a reagir a fatores internacionais comuns

(como as condições financeiras globais e os preços de commodities) e a

fatores domésticos, tanto aqueles ligados aos chamados fundamentos

macroeconômicos (solvência externa e fiscal), como aqueles ligados a

fatores mais cíclicos (notadamente a postura da política monetária — a

qual, por sua vez, também é determinada pela postura da política fiscal,

sobretudo em países que operam sob o regime de metas de inflação).

Gráfico 10: Taxa de câmbio real e efetiva, média 1994-2020 = 100

Fonte: BIS.

Certamente chama a atenção a maior volatilidade da taxa de câmbio


16
real e efetiva brasileira em relação às demais. Entre 1999 e 2011, a

taxa real brasileira apresentou valorização de quase 38%, situando-se,

ao final desse período, em um nível 26% abaixo da média 1994-2020


(referencial que pode ser considerado uma proxy do câmbio de

equilíbrio macroeconômico). Já no caso do Chile a taxa de câmbio real

depreciou 3% entre 1999 e 2011, situando-se, ao final desse período, em

nível apenas 4% mais valorizado do que a média 1994-2020 (ou seja,

bem próximo da média de longo prazo).

Vale destacar que, segundo dados do FMI, o Chile experimentou um

ganho de cerca de 70% de seus termos de troca entre 1999 e 2011, quase

o dobro do ganho de 37% para o Brasil observado no mesmo período.

Portanto, a pressão de valorização exercida pelo cenário internacional

seria muito mais intensa para o caso chileno do que para o brasileiro.

Mas, ainda assim, a taxa de câmbio real e efetiva chilena oscilou bem

menos do que a brasileira, não se distanciando de forma significativa da

taxa de equilíbrio aproximada pela média de longo prazo.

Sabemos que, quando a taxa de câmbio real se situa em terreno

excessivamente valorizado por muito tempo — como foi o caso do

Brasil mais ou menos entre 2007 e 2014 —, isso acaba gerando forte

deterioração das contas externas, aumentando a chance de crises

associadas a paradas súbitas do financiamento externo (que, por sua vez,

acabam impactando de modo negativo o crescimento econômico, ao

menos no curto prazo). Ademais, um câmbio excessivamente valorizado,

caso persista por muito tempo, também acelera um processo de

desindustrialização (doença holandesa) — algo que tende a ser ainda

mais exacerbado em um país como o Brasil, em que o ambiente de

negócios doméstico, em especial o sistema tributário, é fortemente

inibidor de maior crescimento e desenvolvimento econômico.

Vemos no Gráfico 11 uma elevada correlação entre a despesa primária

recorrente do Governo Geral (União e governos regionais) e o PIB

brasileiro, ambos em termos nominais. Essa correlação foi de +72% em

1998-2016 (+83% em 1998-2020), realçando o caráter altamente pró-

cíclico do gasto público brasileiro.

Gráfico 11: Despesa primária recorrente do Governo Geral versus PIB a


preços de mercado: variações percentuais anuais nominais
Fontes: IBGE e Observatório de Política Fiscal do Ibre-FGV.

O Gráfico 12 apresenta um exercício contrafactual bastante simples,

porém elucidativo: admite-se que a despesa primária recorrente do

Governo Geral teria evoluído de acordo com uma regra que leva em

conta a estimativa, a cada momento do tempo, da taxa de crescimento

potencial do PIB brasileiro em volume (aproximada pela expectativa de

consenso trës anos à frente para a variação do PIB efetivo em volume,

segundo a coleta do sistema Focus/BCB), acrescida da inflação

observada no ano imediatamente anterior (IPCA). Ou seja: trata-se de

um teto de gastos, válido para o Governo Geral.

Gráfico 12: Despesa primária recorrente nominal, em R$ bilhões


Fonte: Observatório de Política Fiscal do Ibre-FGV.

A diferença entre as duas trajetórias chega a R$ 456 bilhões em 2020,

montante que corresponde a pouco mais de 6% do PIB efetivo de 2020 e

a 5,5% do PIB potencial nominal estimado para o mesmo ano.

Ou seja, nesse cenário contrafactual simplificado, o resultado fiscal

estrutural seria bem maior — não necessariamente no mesmo montante

numérico apontado pelo exercício, na medida em que isso poderia estar

associado a uma carga tributária recorrente mais baixa. É bom notar que

esse exercício, por ser simplificado, ignora eventuais efeitos de

equilíbrio geral, associados a uma menor pró-ciclicalidade da política

fiscal, a um risco-país talvez mais baixo em média, a uma taxa de

câmbio menos volátil e mesmo a uma carga tributária recorrente

possivelmente mais baixa (em um contexto no qual boa parte da

arrecadação brasileira advém de tributos muitíssimo distorcivos à

eficiência econômica), entre outros.

O Gráfico 13 compara a variação real anual, pelo IPCA, do gasto

primário recorrente do Governo Geral efetivamente observado com a

trajetória contrafactual. Enquanto no primeiro caso a variação foi de

+5,5% a.a. em 2000-2016 (+4,7% a.a. em 2000-2020), no segundo ela

foi de +3,8% a.a. no primeiro período (+3,7% a.a. no período completo).

Ou seja: o cenário contrafactual ainda estaria associado a um

crescimento importante da despesa em termos reais, acima do


crescimento médio do PIB potencial em volume no mesmo período
17
(+2,6% a.a. em 1999-2016 e +2,3% a.a. em 1999-2020) .

De resto, a correlação contemporânea entre a variação da despesa

recorrente e a variação do PIB efetivo, em termos nominais, teria sido

significativamente menor: de +84,3%, nos dados observados (2000-

2020), para +42,4%.

Gráfico 13: Despesa primária recorrente real (IPCA): variação % anual

Fonte: Observatório de Política Fiscal do Ibre-FGV.

Assim, esse teto de gastos contrafactual teria gerado uma forte redução

da pró-ciclicalidade e uma situação de resultado fiscal estrutural mais

favorável. Vale notar que, sozinhas, regras de teto de despesas primárias

não permitem uma política fiscal verdadeiramente anticíclica, mesmo

quando esses tetos são desenhados para excluir algumas despesas mais

cíclicas (como o seguro-desemprego) e tratem as despesas de


18
investimento de forma distinta das demais . É o que mostraram Belu

Manescu e Bova (2020), com base em dados do período 1999-2016 para

diversos países europeus (ver figura a seguir).

Gráfico 14: Viés de pró-ciclicalidade de diversas regras fiscais: valores


positivos denotam orientação pró-cíclica
Fonte: Belu Manescu e Bova (2020).

O Gráfico 15 compara a trajetória do resultado primário recorrente do

Governo Geral efetivamente observado com aquele calculado a partir do

contrafactual, utilizando o mesmo PIB nominal e a mesma arrecadação

recorrente (iguais aos valores de fato observados).

Gráfico 15: Resultado primário recorrente do Governo Geral (% do PIB)

Fonte: Observatório de Política Fiscal do Ibre-FGV.

Como pode-se notar, além de ser mais elevado na maior parte do

tempo (algo que permitiria uma carga tributária recorrente menor do que

a efetivamente observada, como já apontado antes), esse primário teria

se elevado de forma expressiva ao longo de quase todo o período de


1999 a 2011 (ou seja, na fase de boom do superciclo de commodities)
e não somente até 2004, como aconteceu de fato. Como salientamos na

primeira seção deste texto, a economia brasileira operou em um quadro

de hiperemprego durante boa parte do período 2005-2014 e parte disso

se deveu à postura pró-cíclica da política fiscal.

Alguém poderia questionar se esse cenário contrafactual de um

crescimento real mais baixo da despesa primária recorrente seria

factível, em um contexto no qual a variação do número de benefícios

concedidos no âmbito do Regime Geral de Previdência Social (RGPS)

foi positiva em cerca de 4% a.a. nos últimos 30 anos.

Contudo é importante notar, em primeiro lugar, que tais despesas

(RGPS) corresponderam a cerca de 37% da despesa primária recorrente

do Governo Central e a 21% no caso do Governo Geral em 1999, ano

adotado como base no exercício apresentado anteriormente.

Além disso, parte relevante do aumento das despesas do RGPS, que

passaram de 3,3% do PIB, em 1986, para 5,4%, em 1999, e 8,9%, em

2020, tem sua origem no fato de que o piso previdenciário no Brasil está

indexado ao salário mínimo — variável que, idealmente, deveria servir

apenas para regular o mercado de trabalho, não afetando o pagamento de

benefícios previdenciários (inclusive por questões de equilíbrio atuarial)

e mesmo assistenciais (estes últimos deveriam seguir as linhas de

pobreza definidas por entidades como o Banco Mundial, bem como os

índices de preços mais compatíveis com o perfil de consumo da

população atendida por eles). Os reajustes reais do salário-mínimo

nacional foram expressivos ao longo das últimas duas décadas,

sobretudo entre 2005 e 2014. Vale notar que também foram concedidos,

em caráter discricionário, reajustes reais relevantes para as

aposentadorias com valor superior a um salário-mínimo, sobretudo no

período 1995-2010.

Outra fonte de aumento de despesas, que poderia ter sido evitada, foi a
19
elevação do prêmio salarial dos servidores públicos brasileiros

(Gráfico 16), sobretudo federais e no poder Judiciário, atingindo um

nível atipicamente elevado em ampla comparação internacional, como

apontou o Banco Mundial no documento Um ajuste justo —


análise da eficiência e equidade do gasto público no
Brasil.
Gráfico 16: Prêmio salarial público-privado federal (em pontos de log)

Fonte: Nemer e Menezes-Filho (2017).

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do capítulo, a defesa da adoção de uma política fiscal

contracíclica enfatizou os efeitos benéficos sobre o crescimento e bem-

estar de uma política econômica que reduza a volatilidade da atividade

econômica. Nesses termos, a discussão parece técnica, quase

tecnocrática. No entanto nos parece oportuno lembrar que o longo ciclo

de crescimento experimentado na primeira década do século 21


20
terminou na maior ou segunda maior crise dos últimos 120 anos. Um

componente importante desse colapso foi uma aguda crise fiscal.

Assim, a construção de um arcabouço contracíclico de política fiscal é

um ingrediente importante para a sustentabilidade de longo prazo dos

ciclos de crescimento, para que a trajetória da economia não seja uma

sequência de voos de galinha.

A política fiscal contracíclica permite que a política fiscal seja ajustada

suavemente ao longo do ciclo econômico. Quando o ciclo vira não

aparecerá deficit primário muito elevado. Deficit muito elevados são

digeridos com bastante dificuldade pela política. O Congresso se opõe a

aprovar leis que restaurem a sustentabilidade das contas públicas.


Uma regra com essa propriedade funciona como um mecanismo

disciplinador da formulação da política econômica e facilita o processo

de controle da sociedade sobre o governo. É sempre possível um

governante justificar aumento dos gastos, mais ainda em um período de

vacas gordas em que a receita de impostos cresce de forma acelerada. Se

houver uma regra que estabeleça que a política fiscal será contracíclica
21
será mais fácil impedir o populismo .

Os Gráficos 1, 4 e 5 apresentam a insustentabilidade da política

econômica do ponto de vista, respectivamente, da política fiscal, do ciclo

econômico e da inflação. Vale lembrar que os índices de inflação cheia

estavam artificialmente baixos pois, no período, a política econômica

manteve represados, por muitos anos e ao revés dos fundamentos, o

reajuste de diversos preços administrados (inclusive por meio de

reduções da carga tributária).

O Gráfico 17 apresenta a insustentabilidade da política econômica a

partir das exportações líquidas. Entre 2005 e 2014 a absorção de bens e

serviços — seja na forma de redução das exportações, seja na forma da

elevação das importações — elevou-se em 8 pontos percentuais do PIB.

Entende-se o motivo de, apesar de convivermos quase que o tempo todo

com excesso de demanda sobre a oferta, como indica o Gráfico 2, a

inflação não tenha explodido. A contribuição da oferta externa ajudou a

conter o processo inflacionário (os juros reais bastante elevados e o

represamento artificial dos preços administrados foram outros dois

fatores que contiveram o processo inflacionário no período).

Gráfico 17: Exportações líquidas a preços constantes (% PIB)


Fonte: Contas Nacionais Trimestrais (IBGE).

A adoção de arcabouço fiscal que permita a sustentação de uma

política fiscal contracíclica pode ser um poderoso instrumento para

auxiliar a sociedade a conseguir construir o consenso mínimo que

viabilize ciclos longos de crescimento e menor volatilidade

macroeconômica.

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1. Para uma descrição mais detalhada das instituições fiscais brasileiras entre 1993 e 2002 ver

Portugal (2017), Ferreira e Andrade (2017) e Giambiagi (2017).

2. Ou seja: a queda do resultado primário estrutural não significou queda da poupança primária

estrutural do Governo Geral na mesma magnitude, já que parte da redução do primeiro se

explicou pelo aumento dos gastos com investimentos em ativos fixos pelo Governo Geral. Isso,

contudo, não diz nada sobre os retornos econômicos e sociais desses novos investimentos.

3. O leitor mais atento deve ter reparado que a análise da dinâmica do endividamento público

levou em conta indicadores de dívida líquida. Esse era o conceito mais acompanhado pelos

analistas brasileiros até 2008/2009. A partir de então, por conta de uma série de capitalizações

dos bancos públicos, que elevavam a dívida bruta, mas não a líquida (ao menos em um primeiro

momento), o conceito de dívida líquida foi sendo relegado a segundo plano por boa parte dos

analistas (algo que ainda permanece até hoje). Contudo trabalhos empíricos já não tão recentes

do FMI (Hadzi-Vaskov & Ricci, 2016, e Henao-Arbelaez & Sobrinho, 2017) apontam que, para

países emergentes, de fato algum critério de dívida líquida é o conceito mais relevante na

determinação do risco-país percebido pelos mercados ( já controlado por fatores mais ligados à

solvência externa, entre outros condicionantes identificados). Vale notar, ademais, que esses

créditos do Governo Geral junto aos bancos públicos, que passaram de 0,5% do PIB em 2007

para quase 10% do PIB em 2015, já recuaram a cerca de 2% do PIB em 2021, devendo se

aproximar de zero em 2022/23. Além disso, a introdução, a partir de 2021, de um novo

instrumento de gestão da liquidez para o Banco Central do Brasil (o depósito voluntário

remunerado) reforça a prescrição de se observar a dívida líquida, já que esse conceito de

endividamento não é afetado por esse novo instrumento (em contraste com o conceito de dívida

bruta do Governo Geral estabelecido pelo BCB desde 2007, que é aquele que tem balizado as

projeções de sustentabilidade fiscal no Brasil já há quase uma década: ele poderá recuar em até

16 p.p. do PIB caso a autoridade monetária opte por substituir todo o estoque de operações

compromissadas em mercado por depósitos voluntários remunerados).

4. A série histórica de DLSP se inicia em 1981, ao passo que a série de DLGG tem início apenas

em 2001. Embora a DLSP seja mais abrangente do que a DLGG, elas são muito próximas entre

si em termos numéricos. Ademais, entre 2008 e 2019 suas dinâmicas foram muito semelhantes,

por conta da existência do mecanismo de equalização cambial.

5. Forbes (2019) apontou, estudando diversos países, que a inflação varejista cheia doméstica

passou a ser cada vez mais determinada por fatores globais (como oscilações de preços de

commodities e o hiato do produto global, entre outras), ao passo que a dinâmica da inflação dos

núcleos de bens e serviços e dos salários continua sendo um processo mais afetado por

condicionantes domésticos.

6. Para mais detalhes, ver Fuentes, Schmidt-Hebbel & Soto (2021). Além de descrever

minuciosamente o arcabouço chileno e sua evolução, os autores também realizaram uma revisão

bibliográfica dos trabalhos que buscaram avaliar os impactos macroeconômicos associados a

esse novo regime fiscal. Os trabalhos apontam que o crescimento médio do PIB chileno foi maior

e menos volátil. Ademais, a volatilidade da taxa de câmbio (nominal e real) e da taxa de juros

também se reduziu, entre outros efeitos macroeconômicos favoráveis.


7. Bianchi, Ottonello & Presno (2021) apontam que, quando os governos de países periféricos se

financiam por meio de captações no exterior, em moeda forte, a resposta ótima da política fiscal

a recessões domésticas é uma atuação pró-cíclica, mesmo sob a presença de elevados

multiplicadores fiscais keynesianos.

8. Para mais detalhes, ver o ótimo survey sobre o tema feito por Cerra, Fatas e Saxena, 2020.
9. Com exceção do campo dos ciclos reais de negócios, que considerava que a economia estaria o

tempo todo no pleno-emprego.

10. A possibilidade de múltiplos equilíbrios vai de encontro à hipótese de ergodicidade muitas

vezes embutida/adotada nos modelos macroeconômicos mainstream.

11. “We construct a measure of policy volatility based on the variance of unforecastable changes

in government consumption. We interpret this variance as the aggressiveness with which

politicians use spending for reasons other than smoothing the business cycles.”

12. A “divina coincidência” estabelece que, quando a inflação está na meta, a economia

automaticamente está operando no pleno-emprego. Com efeito, na presença dessa condição,

manter a inflação na meta corresponderia a um sinônimo perfeito de estabilização

macroeconômica.

13. Os autores optaram por não utilizar o indicador de endividamento líquido, pois isso reduziria

consideravelmente o tamanho da amostra utilizada no exercício (tanto em termos de países,

como em termos da extensão temporal dos dados).

14. Embora formados por ativos denominados em moeda estrangeira, os recursos que

viabilizaram a expansão dos saldos desses fundos chilenos se originaram de superavit fiscais

nominais ao longo de diversos anos.

15. A Colômbia voltou a perder esse status junto a algumas agências em 2021, refletindo a

expressiva deterioração econômica causada pelo choque gerado pela pandemia. Seu PIB recuou

quase 7% em 2020, ao passo que a dívida líquida passou de 43% do PIB em 2019 para 56% em

2020 — sugerindo um threshold de cerca de 50% para esse indicador, separando países

emergentes que são grau de investimento daqueles que não são. O Brasil ultrapassou esse limiar

em 2016, vale notar.

16. O conceito de taxa de câmbio real e efetiva leva em conta as taxas de câmbio bilaterais com

os diversos parceiros comerciais do Brasil, chegando a um indicador agregado por meio da

utilização de uma estrutura de ponderação baseada nos fluxos de comércio (exportações e

importações). Também são considerados os diferenciais entre a inflação doméstica e aquela de

cada um dos parceiros comerciais.

17. No exercício isso decorre basicamente do fato de que, no Brasil, a variação do deflator do

PIB correu sistematicamente acima da variação do IPCA médio anual, em cerca de 1,4 p.p. ao

ano.

18. Essas duas características estão presentes no expenditure benchmark, teto de gastos

adotado por diversos países europeus a partir de 2011/2012, no âmbito do Six-Pack Reform

(SGP.3). Antes disso, as regras fiscais da União Europeia eram compostas de limites de

endividamento, metas de resultado nominal e de resultado fiscal estrutural. O expenditure


benchmark interage, ainda, com medium term objectives (MTOs) de endividamento,

por meio de fatores redutores aplicados ao indexador base do teto (crescimento potencial do PIB
de cada país) e com o ciclo econômico (o tamanho e o sinal do hiato determinam o ritmo de

consolidação fiscal de médio e longo prazo).

19. O prêmio salarial corresponde à diferença entre o salário-hora do funcionário público e

aquele do funcionário do setor privado para a mesma função, já descontando os impactos

estimados de diversas características que afetam a diferença entre os salários (como gênero,

região, idade, educação, experiência e taxa de sindicalização).

20. Depende de medirmos a crise pela perda de PIB ou pela perda de PIB per capita.
21. Funke, Schularick & Trebesch (2020) apontam que o populismo, tanto associado a governos

de esquerda como de direita, é altamente nocivo ao desempenho econômico de médio e longo

prazos dos países, rebaixando o PIB em quase 15% no nível em 15 anos. De mais a mais, o

populismo é politicamente disruptivo e alimenta instabilidade política e retrocesso institucional

em vários aspectos, criando um círculo vicioso.


CAPÍTULO 2
ESTÍMULO AO ENDIVIDAMENTO DE
ESTADOS E MUNICÍPIOS22
Acauã Brochado e Itanielson Dantas Silveira Cruz

INTRODUÇÃO
No Brasil, a primeira década deste milênio foi caracterizada, em grande

medida, pela ausência de grandes crises fiscais como as que marcaram a

década de 1990. Essa melhora aconteceu em todos os níveis de governo.

Contudo a partir de 2012 as contas públicas dos três níveis de governo

apresentaram forte deterioração e se tornaram um dos principais

problemas econômicos discutidos pela sociedade.

Resumidamente, nos estados e municípios (E&M) o período entre

2000 e 2011 foi marcado pelo crescimento da arrecadação, mesmo com

crescimento das renúncias fiscais (guerra fiscal), e aumento dos gastos

públicos, em particular com pessoal ativo e benefícios previdenciários.

O crescimento da arrecadação, de modo geral, compensava as perdas da

guerra fiscal e era suficiente para o custeio dos gastos crescentes. Assim,

houve melhora do resultado primário e da situação fiscal do setor

público como um todo.

Entre 2012 e 2015, a economia brasileira desacelerou com o

esgotamento da estratégia econômica adotada até então e isso se refletiu

em menor crescimento da arrecadação. Como os entes subnacionais

possuem restrições para se endividar, em uma situação normal, isso faria

com que eles controlassem o crescimento das despesas para equacionar

a menor arrecadação.
No entanto, não foi isso que ocorreu. Com o objetivo de manter a

economia em marcha forçada, o governo federal estimulou o

endividamento subnacional com a flexibilização de critérios para

contratações de operações de crédito. Dessa forma, o período foi

caracterizado pela manutenção da expansão das despesas, menor

arrecadação e piora dos resultados fiscais, com aumento do

endividamento público.

23
O período seguinte, entre 2016 e 2019 , foi caracterizado pelo

aumento das incertezas políticas, aprofundamento da crise econômica e

deterioração das relações federativas. Foram aprovados vários projetos

de renegociação das dívidas dos entes subnacionais, no Congresso,

quebrando uma regra central da Lei de Responsabilidade Fiscal, que

proibia novas renegociações de dívidas entre entes da federação. Além

disso, houve aumento significativo da judicialização por parte dos E&M,

que passaram a contestar a aplicação de regras relativas à dívida

refinanciada pela União e ao sistema de concessão de garantias da União

a empréstimos contratados pelos entes subnacionais.

A situação financeira dos E&M piorou enquanto não surtiam efeito as

medidas de reequilíbrio adotadas, de forma esparsa e voluntária, pelos

governos locais. Assim, a manutenção de políticas públicas essenciais

para a população ficou comprometida em diversos entes.

Contudo, como, após as várias reformas e renegociações de dívidas

dos anos 1990, os entes subnacionais puderam entrar em crise

novamente, apresentando deterioração financeira tão profunda e

chegando até, em alguns casos específicos, a uma situação de

insolvência?

A resposta envolve vários fatores: inobservância das regras fiscais

vigentes, maquiagem contábil dos demonstrativos fiscais, imprudência

na condução das políticas fiscais locais e relaxamento da política de

restrição de crédito para entes subnacionais. O foco deste capítulo é o

último desses fatores: o estímulo do governo federal ao endividamento

subnacional.
1. UM BREVE HISTÓRICO DAS FINANÇAS
SUBNACIONAIS
A história brasileira é rica em episódios de crises de endividamento de

Estados e Municípios, recorrentemente socorridos pela União. É

importante ressaltar que os custos de eventuais socorros são repartidos

por toda a sociedade, bem como geram incentivos perversos para a boa

governança local, uma vez que governantes que atuam com baixa

responsabilidade fiscal têm a percepção de que serão, ao final do


24
processo, salvos pelos recursos federais . Aqueles que pretendem atuar

com responsabilidade fiscal, por sua vez, percebem que pagarão o custo

do socorro aos demais e não receberão os louros da responsabilidade.

A legislação brasileira dispõe sobre limites máximos para

endividamento e gastos dos E&M desde o início do século passado.

Devido à história de recorrentes crises de endividamento subnacional e


25,
dos subsequentes socorros da União essas regras foram ampliadas e

reforçadas. Além disso, boa parte da oferta de crédito é influenciada pela

política de concessão de garantias do Tesouro Nacional a operações de

crédito dos E&M.

Alguns dos principais marcos do desenvolvimento desse sistema são:

i) em 1926, a criação de hipótese de intervenção federal para

saneamento das finanças estaduais; ii) em 1934, a atribuição ao Senado

Federal de competência para aprovar previamente operações de crédito

externas de estados, Distrito Federal e municípios; iii) em 1969, a

competência do Senado para definir limites e condições à contratação de

operações de crédito, e, posteriormente, a instituição de competência no

Conselho Monetário Nacional para limitar e regular a oferta de crédito

por instituições financeiras a entes públicos.

Contudo, embora existissem muitos meios para o controle do

endividamento de E&M, esses instrumentos ainda eram frágeis e cheios

de exceções que acabaram permitindo a ampliação da dívida dos entes

subnacionais, em especial após a estabilização monetária ocorrida em

meados dos anos 90.

O fim da inflação elevada trouxe à tona problemas fiscais de todo o

setor público e desestruturou as operações de diversos bancos. Havia


relações entrelaçadas entre os desequilíbrios fiscais e a solidez do

sistema bancário, na medida em que estados realizavam operações de

crédito com seus próprios bancos estaduais. Isso deu uma sobrevida às

finanças públicas, mas criou um problema generalizado no sistema

financeiro. A solução envolveu a renegociação das dívidas dos estados e

a correção do relacionamento entre os entes estatais e os bancos

estaduais.

Nesse contexto, na virada do século ocorreram as maiores

renegociações de dívidas de E&M da história brasileira, que chegaram a

quase 15% do PIB do país. A partir dessas renegociações a maior parte


26
da dívida de E&M passou a ter a União como credora .

Além disso, em 2000 foi publicada a Lei de Responsabilidade Fiscal

(LRF), que atribuiu ao Ministério da Fazenda a competência de

fiscalizar o cumprimento das condições para contratação de dívidas e

vedou a realização de novos refinanciamentos de dívidas pela União,

reduzindo o risco moral percebido pelos entes subnacionais.

Dessa forma, todo o sistema de controle do endividamento foi

realinhado em torno dos contratos de refinanciamento de dívidas com a

União. Com isso, desde o início dos anos 2000, os E&M só podem se

endividar de acordo com as restrições estabelecidas pela LRF,

resoluções do Senado e os critérios estabelecidos no sistema de

garantias, propostos pelo Ministério da Fazenda.

Em relação a esse sistema de controle do endividamento, inicialmente

o que se observou foi uma postura conservadora, pois o sistema

restringia fortemente novas operações. Houve um bem-sucedido

incentivo ao ajuste fiscal nos E&M que, em sua maioria, controlaram a

expansão das despesas de pessoal e reequilibraram as contas.

Todavia, a partir de 2007 ocorreu uma inflexão significativa dessa

política, o que permitiu a ampliação do endividamento de E&M nos

anos subsequentes e, em muitos casos, o agravamento de crises fiscais

que se evidenciariam a partir da recessão iniciada em 2014.

2. O PORQUÊ
Por trás da flexibilização da política de restrição do endividamento de

E&M havia algumas premissas e um condicionante político. Várias

dessas premissas mostraram-se falsas ao longo do tempo e acabaram

contribuindo para a crise da segunda metade da década de 2010.

Premissa 1: Desenvolvimento via investimento


público
Há um diagnóstico de que o principal fator por trás do baixo

crescimento da economia brasileira é a baixa taxa de investimento e

muitos governantes tentam reverter esse quadro.

No período aqui discutido, a hipótese dominante era que flexibilizar as

restrições ao endividamento de E&M poderia viabilizar o aumento da

taxa de investimento. Isso, por sua vez, elevaria o crescimento

econômico e traria aumento de arrecadação suficiente para pagar o

serviço da dívida contratada para a empreita.

Alinha-se com essa premissa o fato de o Brasil ser a sede da Copa do

Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016. Afinal, o país poderia

construir a infraestrutura para os eventos (aeroportos, avenidas, vias de

transporte público, áreas de esporte e lazer) e toda a sociedade brasileira

se beneficiaria no futuro: o famoso “legado”.

Outro fato relevante que potencializou esse ímpeto foi a crise

financeira de 2008/2009 e a necessidade de adoção de políticas fiscais

anticíclicas capazes de mitigar seus efeitos.

Premissa 2: O brasil em crescimento permanente


Outra premissa importante era a leitura de que o bom cenário

econômico brasileiro dos anos 2000 seria duradouro. Naquela época, o

Brasil surfava na onda do grande “boom” de commodities e na euforia

generalizada com o crescimento dos grandes mercados emergentes. Essa

onda vinha ganhando tração havia quase dez anos. Adicionalmente, as

reformas estruturais que haviam sido implementadas desde a década de

1990 até o início da década de 2000 davam mais credibilidade a esse

movimento. Assim, o sentimento generalizado era de que o crescimento


robusto viera para ficar, o que estimulou a tomada de riscos maiores na

condução da política econômica.

Em especial, o bom desempenho econômico aumentava a receita dos

E&M. Vale lembrar que suas principais fontes de arrecadação própria, o

ICMS e o ISS, respectivamente, são muito sensíveis ao ciclo econômico.

Assim, o ganho cíclico de receitas foi interpretado como permanente,

sem preocupação com uma possível reversão do ciclo. Isso justificava

um aumento de margem de endividamento, dado que os E&M teriam

elevado a sua capacidade futura de pagamento.

Premissa 3: Não haveria outra crise fiscal


subnacional
Essa premissa decorre de como eram avaliados os indicadores fiscais de

E&M pela União. Os contratos de refinanciamento de dívidas dos anos

1990 muitas vezes impunham obrigações de natureza fiscal ao devedor.

Semelhante ao realizado pelo Fundo Monetário Internacional quando

socorre países, as obrigações fiscais focavam a retomada da capacidade

de emissão de dívidas no mercado financeiro e, em consequência, a

capacidade de gerar superavits para o pagamento das dívidas.


Isso posto, no fim dos anos 2000 a dívida pública, em especial a de

estados e municípios, apresentava trajetória consistentemente cadente

em relação ao PIB e o futuro parecia ainda melhor para as contas

públicas.

Além disso, julgava-se que o arcabouço normativo elaborado em

reação à crise dos anos 1990, sobretudo a LRF, seria capaz de evitar o

aprofundamento de problemas financeiros nos E&M.

Um dos motivos para isso seria a vedação imposta pela LRF à

realização de refinanciamentos de dívidas desses entes pela União. Em

tese, essa vedação faria com que E&M conduzissem suas políticas

fiscais de forma mais prudente, pois não seria mais possível o socorro
27
federal . Outro motivo era que a principal despesa obrigatória dos

E&M — a despesa com pessoal — estaria sob controle. Esperava-se que

a limitação de gastos em relação às receitas arrecadadas fosse suficiente

para assegurar o espaço necessário ao equilíbrio fiscal.


Premissa 4: Contratos seriam respeitados em
qualquer conjuntura
Outro elemento importante para justificar a flexibilização da política de

endividamento dos entes subnacionais era a fé depositada nos contratos

de refinanciamento e de garantia da União. Supunha-se que, por terem

autorização constitucional para reter receitas estaduais e municipais em


o
caso de não pagamento das obrigações junto à União (art. 167, § 4 ), tais

contratos seriam respeitados e, por isso, a União estaria resguardada em

caso de crise fiscal nos entes subnacionais. Ou seja, ela continuaria a

receber em dia independentemente do quadro fiscal do estado ou

município, configurando-se, assim, risco nulo de inadimplência. Além

disso, a ameaça, que parecia crível, de arresto de receitas, deveria levar a

uma maior responsabilidade na gestão financeira dos credores.

2.1 O CONDICIONANTE POLÍTICO


Por fim, há um componente político por trás da flexibilização do

endividamento de E&M.

Já desde meados dos anos 2000, havia grande pressão por parte dos

governadores e prefeitos para que a União soltasse as amarras do crédito.

Há mais de dez anos praticamente sem poder captar novos

financiamentos e apenas amortizando dívida antiga, os governantes

estavam ávidos para flexibilizar suas restrições orçamentárias.

Esperava-se que a flexibilização do crédito para E&M permitiria o

aumento do investimento público ou, em alguns casos, o

redirecionamento de parte dos recursos, que já seriam investidos para

outras áreas com retornos políticos elevados, como a concessão de

reajustes salariais e a contratação de servidores.

Nesse sentido, os picos de expansão do endividamento dos governos

regionais estão próximos dos anos de eleições federais e estaduais (2010


28
e 2014) .

Vale lembrar que não pretendemos aqui listar todos os motivos que

justificaram a flexibilização da política de incentivo ao endividamento

subnacional. Porém, procuramos citar as causas que consideramos mais


determinantes e mais relevantes para o entendimento das ações que se

seguiram e suas consequências.

3. O QUE FOI FEITO


O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal foi

lançado no fim dos anos 2000 como principal instrumento para

aumentar o investimento público. Ele precede, por pouco, as ações que

levariam ao aumento do crédito oferecido aos E&M, que se fortaleceu

logo depois, a partir de 2008-2009, já com os eventos esportivos

internacionais no horizonte.

Foram necessárias várias ações para viabilizar a inversão da política de

restrição ao crédito para E&M que havia vigorado por quase uma

década. Elas foram organizadas, para fins didáticos, em duas frentes:

retirada, ainda que parcial, das restrições à contratação de crédito por

E&M e aumento da oferta de crédito por instituições financeiras locais e

organismos multilaterais.

Uma das ações mais relevantes da primeira frente foi a mudança de

interpretação da regra do limite de endividamento definida nos

Programas de Ajuste Fiscal (PAF), que integram os contratos de

refinanciamento de dívidas dos anos 1990. Esses contratos impunham

condições para a contratação de crédito por E&M como contrapartida

aos benefícios financeiros que os signatários obtiveram ao verem suas


29
dívidas assumidas e refinanciadas pela União .

Pela regra original do PAF, enquanto a dívida fosse superior ao total de


30
receitas , o estado não poderia se endividar. Em 2007, já no contexto

descrito na seção anterior, essa interpretação foi alterada após

provocação dos estados. A nova interpretação passou a ser que estes

poderiam se endividar, desde que as projeções financeiras indicassem

que até o fim do contrato sua dívida seria menor que a arrecadação.

Hipóteses otimistas quanto ao crescimento econômico e à arrecadação

para 20 anos à frente facilitavam o atingimento dessa meta nas

projeções. Assim, estava aberta a porta para novo aumento de


31
endividamento dos estados maiores e já bastante endividados .
Vale destacar que municípios com refinanciamentos de dívidas com a
32
União possuem, até hoje, regra de endividamento semelhante à

originalmente aplicável aos estados. Contudo foram criadas diversas


33
exceções a essa regra por meio de resoluções do Senado Federal .

Assim, o caminho da flexibilização para os municípios foi diferente, mas

levou aos mesmos resultados.

Além das restrições às contratações de dívidas, havia condições para a

concessão de garantia da União às operações de crédito tomadas por

entes subnacionais que precisaram ser flexibilizadas. As operações de

crédito garantidas pelo Tesouro Nacional são aplicações de recursos

seguras para os bancos emprestadores e não requerem provisões em

balanço. Com isso, eles podem emprestar muito mais nessa modalidade.

Um dos principais requisitos para receber garantias do Tesouro

Nacional é possuir boa classificação de capacidade de pagamento

(Capag). Simplificadamente, a União, assim como as agências de risco,

classifica o risco de crédito dos mutuários por meio de um sistema de

atribuição de letras: de “A”, que seria a melhor classificação de

capacidade de pagamento, até “D”, a pior. E&M classificados como “C”

ou “D” não poderiam, em regra, se endividar com garantia do Tesouro

Nacional.

No entanto, a classificação de risco poderia ser “excepcionalmente”

ignorada caso o Ministério da Fazenda entendesse que a operação era

relevante para a União. Esse mecanismo já existia antes de 2007, mas

passou a ser usado com grande frequência após a inflexão da política,

pois permitia que os estados maiores e mais endividados recebessem

garantias da União.

Para se ter uma ideia do uso do instituto da excepcionalização da


34
Capag, entre 2012 e 2014 , o Ministério da Fazenda concedeu garantia
35
a entes com Capag C ou D no valor total de R$ 87 bilhões . Esse valor

superou as operações de crédito daqueles classificados como “A” ou “B”

no mesmo período, que contrataram R$ 68 bilhões.

Além dessas ações que aumentavam a demanda efetiva por crédito, as

ações adotadas pela União para ampliar a oferta de crédito aos entes

subnacionais também foram fundamentais. A primeira delas foi o


afrouxamento da regulamentação do Conselho Monetário Nacional

(CMN) sobre a concessão de empréstimos de instituições financeiras

nacionais aos E&M.

A Resolução do CMN nº 2.827, de 2001, foi criada para conter a

exposição do Sistema Financeiro Nacional ao risco de crédito do setor

público, em especial de eventual inadimplência ou default de E&M.


Ao longo dos anos, contudo, foram sendo criadas diversas exceções no

texto da Resolução para acomodar os anseios de aumento da oferta de

crédito ao setor público. Entre 2001, quando foi publicada, e 2017,

quando foi revogada, o CMN editou 131 alterações na Resolução. A

maioria delas criava, aumentava ou postergava exceções ao limite de


36
concessão de crédito . A exceção passou a ser a regra. O Gráfico 1

mostra o grande número de alterações na Resolução 2.827 ao longo dos

anos.

Gráfico 1: Número de alterações da Resolução CMN 2.827/2001

Fonte: Banco Central do Brasil. Elaboração própria.

Outra ação importante por parte da União para viabilizar sua nova

política de endividamento aos E&M foi a capitalização de bancos

públicos federais para que eles pudessem aumentar sua oferta de


37
crédito . Nesse contexto, BNDES e CEF foram os grandes responsáveis

pelo crescimento das operações de crédito sem garantia da União, pois,

entre 2007 e 2014, essas duas instituições representaram juntas quase


38
90% da oferta desse tipo de crédito aos E&M .
A União também envidou esforços para aumentar a oferta de crédito

dos organismos multilaterais, especialmente Banco Mundial e BID, aos

E&M. O governo federal, entre outras ações de natureza diplomática,

antecipou mais de US$ 3 bilhões em pagamentos de suas dívidas com

essas instituições de forma a liberar espaço em suas carteiras para

operações com os subnacionais.

Todas essas ações deram resultado e o crédito aos governos regionais

aumentou fortemente. As consequências, porém, não foram exatamente

as desejadas, como explicaremos adiante.

3.1 AS CONSEQUÊNCIAS
A média anual de pleitos de operações de crédito de E&M entre 2002 e
39
2007 deferidos pela STN foi de R$ 4,5 bilhões . Em 2008, esse valor

subiu para R$ 18 bilhões e no ano de 2013 atingiu R$ 75 bilhões. A

média anual de 2008 a 2014 foi de R$ 36,4 bilhões, oito vezes maior que

a média anual do período anterior. O Gráfico 2 ilustra o movimento em

percentual do PIB. A linha pontilhada mostra a evolução das

autorizações anuais para aumento de endividamento dos estados com

PAF, a linha tracejada, os processos de operações de crédito deferidos

registrados no Sadipem, e a linha sólida, o valor contratado em cada


40
ano, de acordo com dados declarados no CDP .

Gráfico 2: Evolução das operações de crédito de estados e municípios (%


PIB)
Fonte: Tesouro Nacional. Elaboração própria.

O saldo da dívida dos E&M, que vinha em trajetória decrescente desde

o final de 2002, voltou a subir após 2011, acelerando-se a partir de 2014,

como vemos no Gráfico 3. Ele deixa claro que o aumento se deu na

dívida bancária (interna) e na dívida externa, com redução na dívida

com a União.

Gráfico 3: Saldo da dívida de estados e municípios: 1991-2020 (% do PIB)

Fonte: Banco Central do Brasil. Elaboração própria.

O aumento da dívida é naturalmente uma das consequências negativas

da mudança da política de crédito para os E&M. Mais importante que

isso, contudo, foi que o endividamento permitiu a anestesia dos efeitos

de outros problemas das finanças estaduais, como as concessões

indiscriminadas de benefícios fiscais e a ampliação de gastos com

pessoal.

Historicamente, o orçamento público, em todos os níveis, é bastante

engessado por conta das vinculações de receitas e de despesas

obrigatórias. Durante os anos 2000, quando a economia do país crescia

significativamente, o forte crescimento da arrecadação reduzia a

necessidade de os gestores públicos escolherem quais gastos seriam

realizados, pois havia recursos em abundância.


No fim da década, contudo, a combinação de crise econômica, guerra

fiscal e crescimento dos gastos com pessoal em alguns entes reduziu a

capacidade de acomodação de interesses no orçamento.

Esse efeito foi reforçado pelas características das regras fiscais

vigentes. Os indicadores utilizados pela LRF possuem uma fragilidade:

utilizam a Receita Corrente Líquida (RCL) dos últimos 12 meses como

referência para os limites de gastos com pessoal e endividamento. Dessa

forma, pode haver um descasamento relevante entre o indicador e o

equilíbrio fiscal de longo prazo, em especial quando fatores

extraordinários ou transitórios, como elevações das receitas de royalties

e participações especiais ou de concessões e também ciclos econômicos

positivos, elevam temporariamente a RCL e permitem aumentos de

despesas rígidas, como as de pessoal. Assim, a despesa que cresceu

durante o “boom” econômico e de arrecadação permaneceu alta, rígida e

crescente, ao passo que a receita caiu, revelando o fato de que receitas e

regras fiscais muito influenciadas pelo ciclo econômico tendem a gerar

crises nos períodos de baixa.

Aqui nota-se a combinação da falha de duas das premissas

motivadoras da política de incentivos ao endividamento dos

subnacionais. O crescimento observado na década anterior não era

permanente (premissa 2) e as limitações e regras fiscais não eram

suficientes (premissa 3).

É importante notar que a abordagem dos programas de

refinanciamento, antes da flexibilização, era consistente com o que

preconiza a literatura. Contudo ela acabou superestimando a robustez

fiscal dos entes subnacionais, pois ignorava obrigações que não

compõem o conceito de dívida em geral adotado, como os restos a pagar.

Dito de outra forma, subestimava-se a importância de problemas de

fluxo de caixa, que, não raro, ocorrem mesmo em entes com indicadores

fiscais usuais aparentemente saudáveis. Com isso, pode ocorrer de

estado ou município terem bons indicadores de endividamento e de

resultado primário, mas estarem desequilibrados e se financiando

mediante atraso de pagamentos aos fornecedores, funcionários e outros


41
credores .
Nesse contexto, foi sendo colocada aos gestores a escolha entre a

contenção de gastos correntes, especialmente o mais importante deles, o

gasto com pessoal, a redução de investimentos públicos ou a contratação

de financiamentos. Como a porta do endividamento estava sendo aberta

pelo governo federal, a escolha, na maioria dos casos, foi pelo caminho

mais fácil do crédito. Assim, os novos financiamentos deram sobrevida

às políticas fiscais pouco conservadoras adotadas em alguns E&M.

O grande acesso ao crédito também não causou aumentos no

investimento público, que era o objetivo primordial da política. Os

investimentos de E&M subiram no início da onda de expansão do

endividamento, entre 2008 e 2010, mas caíram em seguida e não

chegaram aos níveis de 2010, nem no auge das concessões de

empréstimos entre 2013 e 2014, como mostra o Gráfico 4.

Gráfico 4: Investimentos e operações de crédito de estados e municípios (%


PIB)

Fonte: Tesouro Nacional. Elaboração própria (dados anteriores a 2016


extraídos do PAF antigo (Brasil-Tesouro, 2021); dados de 2014 a 2019 do
Boletim de finanças dos entes subnacionais (Brasil-Tesouro, 2020b).

Se, por um lado, não ocorreu o aumento de investimentos desejado

com o crescimento do endividamento, seus custos não tardaram a

aparecer.

Por volta de 2015, foi preciso restringir o crédito aos E&M para conter

o crescimento da dívida pública e a exposição da União, justamente


quando a crise econômica derrubava as receitas, o que potencializou o

estrangulamento do fluxo de caixa dos entes subnacionais.

Como reação, vários passaram a judicializar os contratos de

refinanciamento e de garantia da União com o propósito de diminuir


42
seus pagamentos . Algo semelhante ocorreu junto ao Legislativo

Federal, que desde então sofre pressões para aprovar leis que facilitem o

pagamento dessas dívidas, embora isso viole o que havia sido instituído

pela LRF. Assim, a premissa 4, apresentada anteriormente, de que os

contratos seriam respeitados e a União conseguiria cobrar o serviço da

dívida, também não se confirmou.

Nesse sentido, a União foi também prejudicada pela mudança da

política de crédito para E&M. O Tesouro Nacional deixou de receber ou

teve de gastar com honras de garantias não recuperadas quase R$ 33


43
bilhões entre 2016 e 2020 . Outros importantes prejudicados foram os

estados e municípios em boa situação fiscal, que viram o total de crédito

disponível diminuir, a despeito de terem condições de contratar novas

operações.

Resumidamente, essas foram as consequências mais visíveis e diretas

da mudança da política de operações de crédito de E&M. No entanto,

alguns deles buscaram métodos alternativos de financiamento que não

estavam limitados pelas regras vigentes e que não são captados pelas

estatísticas oficiais.

Nesse grupo de ações podemos citar a criação de empresas estatais

para gestão de ativos. Havia potencial para que isso melhorasse a

eficiência na gestão de ativos e passivos do governo, mas, na prática,

configuraram a antecipação de receitas ao Tesouro, a custa de nova

obrigação de pagamento pela estatal. São exemplos os casos da

Companhia Paulista de Securitização (CPSEC), do estado de São Paulo,

e do Fundo Único de Previdência Social do Estado do Rio de Janeiro

(Rioprevidência), com a emissão de debêntures para compra de títulos

da dívida ativa, ou a venda de recebíveis futuros de royalties e

participações especiais de petróleo, respectivamente.

Houve, ainda, sobretudo entre 2012 e 2017, casos em que o estado ou

o município alterou a estrutura dos fundos do regime de previdência de


servidores para permitir o gasto dos recursos acumulados em fundos

capitalizados e, assim, reduzir os aportes de recursos do tesouro local

para a cobertura dos deficits previdenciários correntes.


Por fim, o último exemplo de financiamento heterodoxo foi o saque de

recursos de depósitos administrativos ou judiciais. Especialmente no

caso em que o estado não é parte do litígio: quando as discussões forem

resolvidas, haverá uma obrigação de pagamento pelo ente público.

Para além das consequências financeiras da mudança da política de

endividamento, houve a fragilização do arcabouço consolidado pela

LRF, afastada diversas vezes nos últimos anos. Destacam-se as Leis

Complementares 148/14 e 156/16, que reduziram respectivamente

encargos e saldos de contratos de refinanciamento das dívidas dos E&M

com a União, aumentaram prazos de pagamento e suspenderam de

forma temporária suas exigências. Também merece destaque a Lei

Complementar 159/17, que institui o Regime de Recuperação Fiscal de

Estados. O Regime permite a suspensão de dívidas e a realização de

novas operações de crédito, desde que o estado se encontre em crise

fiscal extrema e assuma determinadas obrigações.

Essas novas legislações buscavam auxiliar a retomada do equilíbrio

fiscal nos entes subnacionais após a crise de 2015/2016, mas reavivaram

o risco moral para os E&M em melhor situação financeira. As

constantes disputas judiciais também colocaram em xeque um dos

pilares do funcionamento jurídico de uma sociedade moderna, que é o

cumprimento de contratos.

Todo esse movimento contribuiu para o contexto de perda de

credibilidade na estabilidade macroeconômica, queda de investimentos

privados, alta do dólar, alta de juros, queda no crescimento econômico,

desemprego, queda na arrecadação, ainda mais crise fiscal, o que

realimentou a pressão por mais quebra de regras, e assim por diante.

4. A(S) ALTERNATIVA(S)
Em primeiro lugar, a principal ação seria simplesmente não adotar a

política aqui analisada, ou seja, não incentivar o crédito a entes em

situação fiscal frágil.


Além disso, o caminho alternativo passaria principalmente pela ação

preventiva dos governantes em geral, em especial dos subnacionais, com

a adoção antecipada de reformas estruturais em despesas e receitas de

forma a evitar que se chegasse a uma necessidade de se endividar para

pagar gastos correntes. A necessidade de adoção de reformas na

estrutura de pessoal, reformas nas regras previdenciárias, reforma

tributária e fim da guerra fiscal são objeto de debate há tempos e

poderiam ter avançado com antecedência.

Outro passo importante seria a antecipação, por parte da União, das

falhas nos desenhos das regras fiscais vigentes e a sua reforma

preventiva. Algumas delas provavelmente já seriam perceptíveis com

alguma antecedência, como o caráter pró- cíclico dos limites de gastos e

endividamento. De qualquer forma, o que se observou foi o contrário, o

enfraquecimento das regras vigentes.

Na prática, contudo, essas ações preventivas dificilmente seriam

tomadas em um ambiente sem urgência.

Maior transparência sobre a real situação fiscal dos E&M e as ações

que estavam sendo tomadas (e suas consequências) também poderia ter

mitigado o problema de forma relevante, ao aumentar a pressão da

sociedade contra a adoção de políticas irresponsáveis.

Por seu lado, as diversas quebras de regras observadas, tanto de forma

judicial quanto com alterações legislativas específicas, apressadas e

pouco estruturadas, poderiam ter sido evitadas, caso o arcabouço de

controle do endividamento fosse diferente.

Existem, de forma simplificada, três caminhos para se evoluir o

controle do endividamento de estados e municípios. A primeira opção

seria dar ainda mais poderes à União, centralizando ainda mais as

decisões. A segunda, mais disruptiva, seria retirar a União do papel de

controladora do endividamento de E&M. E a terceira, que no momento

nos parece mais adequada, seria aprimorar o modelo atual, corrigindo os

erros conhecidos e incorporando os aprendizados, com inovações

pontuais.

No caminho da centralização, a União teria o controle total e só

concederia autorizações para endividamento a entes com situação fiscal


adequada e aos projetos escolhidos por ela. Esse sistema, contudo, além

de demandar um elevado volume de trabalho especializado nos órgãos

da União, vai contra o direcionamento de autonomia do pacto federativo

inscrito em nossa constituição e teria poucas chances de ser aprovado.

Além disso, esse desenho reforçaria ainda mais o caráter conflituoso

entre a União e os entes nas demandas por mais recursos. Por fim o risco

político seria grande, com a concentração das decisões em um só ente.

O outro caminho, mais usual, seria tirar a União do papel atual de

controlador do crédito. Isso poderia ser feito de duas maneiras.

A primeira seria permitir, novamente, o livre acesso de entes

subnacionais aos mercados financeiros. Os agentes do mercado

passariam a controlar os desequilíbrios fiscais via restrições de acesso a

novos financiamentos e elevações de taxas de juros dos entes em pior

situação. A maior dificuldade dessa solução é que ela depende de que

não haja a possibilidade de socorro federal. A simples existência dessa

possibilidade, por menor que seja, distorce o funcionamento do

mercado. Os bancos perderiam o incentivo a conceder crédito apenas

aos entes com boa situação fiscal, arruinando o mecanismo de controle.

No Brasil, com histórico de sucessivos socorros federais aos E&M, não

seria simples construir essa proibição de socorro de forma crível.

Seria também necessário monitorar fortemente os riscos sistêmicos

que essas operações ofereceriam ao Sistema Financeiro Nacional. E, por

fim, seria preciso reforçar o arcabouço jurídico para que as obrigações

assumidas pelos E&M fossem cumpridas, pois não é possível aplicar a

esses entes o sistema privado de execução de dívidas em que, em última

instância, o credor toma posse do patrimônio do devedor. Por exemplo,

seria preciso melhorar a sistemática de pagamento de dívidas

reconhecidas judicialmente, evitando precatórios que nunca são pagos.

Uma segunda maneira, altamente inovadora, de se seguir no caminho

da descentralização seria a criação de uma entidade com participação de

todas as esferas da Federação, um fundo responsável por administrar o

que hoje são ativos da União e conceder garantias às operações de


44
crédito dos entes . Com isso, a situação fiscal de cada ente passaria a

interessar financeiramente a todos os demais (de forma direta!), o que


criaria um ambiente de autorregulação e reduziria o potencial de

judicialização. No entanto, a criação de um órgão com participação de


45
diversas esferas da Federação é complexa .

Outra dificuldade seria a alocação de ativos que hoje pertencem à

União, já que a distribuição das cotas entre os entes não seria trivial.

Além disso, as garantias prestadas por essa entidade teriam,

possivelmente, risco maior que o dos subnacionais em melhor situação

financeira, desincentivando sua participação. Por fim, repete-se a

questão judicial mencionada antes, pois o arcabouço atual, que prevê

expressamente a sistemática de pagamento das dívidas com a União e os

precatórios, precisaria ser aprimorado, inclusive com emendas à

constituição.

O terceiro caminho para melhorar o arcabouço consiste em continuar o

processo de evolução gradual do sistema de controles da União. Este é o

caminho que no momento nos parece mais adequado. Os principais

focos do aprimoramento devem ser: i) a criação de válvulas de escape

nas restrições de endividamento para que os casos graves tenham

soluções ordenadas; e ii) o desenho de mecanismos de incentivo

adequados, de forma que as válvulas de escape não sejam soluções

agradáveis aos entes irresponsáveis e os E&M mais prudentes sejam

premiados, sinalizando que a boa gestão fiscal traz benefícios de curto e

longo prazos.

É esta a forma que tem sido utilizada para atacar os problemas fiscais

recentes de E&M. Assim como as outras, ela também tem riscos, em

especial jurídicos. Estes, contudo, são mitigados pelos incentivos

oferecidos aos entes subnacionais para que não deixem sua situação

fiscal se deteriorar. Essa lógica de incentivos não existia até 2017.

Nesse sentido, desde 2015 a União tem revisto a política de

endividamento para estados e municípios. Foram adotados critérios mais

rígidos para a concessão de crédito a entes subnacionais, que agora só

conseguem acesso a operações de volume significativo se já estiverem

em boa situação financeira ou em um dos programas especiais de

saneamento financeiro instituídos recentemente, como o Regime de


Recuperação Fiscal da LC 159/17 e o Plano de Promoção do Equilíbrio

Fiscal da LC 178/21.

A transparência também tem recebido bastante atenção, com a

reformulação de sistemas de coleta e disponibilização de dados, a

criação de publicações especializadas e acessíveis, o aprimoramento dos

portais de transparência e a cobertura da imprensa.

Embora não seja possível atribuir tal comportamento à mudança da

política de crédito da União, é possível notar que a trajetória fiscal dos

entes subnacionais tem melhorado nos anos recentes. Talvez a pior parte

da crise recente de alguns E&M tenha passado, mas as reformas

precisam avançar para que não seja necessário reeditar este texto daqui a

poucos anos.

CONCLUSÃO
A política de incentivo ao endividamento dos E&M não foi bem-

sucedida, em especial porque se mostrou falsa a premissa de que o

crédito aumentaria o investimento, o que geraria crescimento suficiente

para compensar os custos da dívida.

O investimento não veio e a economia não cresceu. O acesso facilitado

ao endividamento acabou permitindo que governantes postergassem a

necessidade de ajuste fiscal e desincentivou a adoção de reformas

estruturais necessárias em gastos e arrecadação.

No período imediatamente seguinte, o excessivo endividamento

somado à forte queda na atividade econômica (e arrecadação) contribuiu

para uma onda de quebras de regras fiscais via judicialização e

alterações legais específicas, apressadas e pouco estruturadas. Isso

acabou por reforçar a crise de confiança e piorar ainda mais a crise

econômica.

Além de simplesmente evitar o incentivo ao crédito a entes em

situação fiscal frágil, o caminho alternativo que poderia ter sido seguido

passaria acima de tudo pela ação preventiva dos governantes em geral,

em especial dos subnacionais, com a adoção antecipada de reformas

estruturais em despesas e receitas de forma a evitar a necessidade de se

endividar para pagar gastos correntes. Outro passo importante, por parte
da União, seria a identificação das falhas nos desenhos das regras fiscais

vigentes e a sua reforma preventiva. Na prática, contudo, essas ações

dificilmente seriam tomadas em um ambiente sem urgência. Uma maior

transparência sobre a real situação fiscal dos entes e as ações que

estavam sendo tomadas (e suas consequências) também poderia ter

mitigado o problema de forma relevante.

Entre as possibilidades de solução para o problema gerado houve, nos

últimos anos, uma evolução pelo caminho que no momento nos parece

mais adequado. Em nossa visão, o caminho mais promissor é aprimorar

o sistema atual com um desenho que incentive constantemente a adoção

(antecipada e previdente) de políticas fiscais responsáveis e crie uma

solução, punitiva, mas factível, para entes irresponsáveis. Em qualquer

caso, a transparência sobre a situação fiscal e as ações dos governos é

condição fundamental.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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subnacionais, 2018.
BRASIL. As honras de garantias, https://garantias.tesouro.gov.br/honras/ 2020ª.
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BRASIL.

Ajuste Fiscal (PAF), Portal Tesouro Transparente, 2021. Disponível em:


https://www.tesourotransparente. Gov.br/publicacoes/relatorio-de-avaliacao- do-programa-de-

reestruturacao-e -de-ajuste-fiscal-paf/2019/114 .

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CRUZ, I. D. S.

endividamento sustentável. Brasília: UnB, 2018. Monografia.


O Supremo Tribunal Federal como
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árbitro ou jogador? As crises fiscais dos estados brasileiros e o jogo


do resgate. In: REI-Revista Estudos Institucionais, 4(2), 2018.
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GIAMBIAGI, F.; ALÉM, A. C. Finanças Públicas: Teoria e Prática no Brasil.


S. Paulo: Atlas, 1999.

MACIEL, P. J. O processo recente de deterioração das finanças públicas estaduais e suas

perspectivas. In: SALTO, F. e ALMEIDA, M. (Orgs.). Finanças públicas no Brasil:


da contabilidade criativa ao resgate da credibilidade. Rio de Janeiro:

Record, 2016.

MENDES, M.Crise fiscal dos estados: 40 anos de socorros financeiros


e suas causas. S. Paulo: Insper. 2020.
REINHART, C. M.; ROGOFF, K. S. Growth in a time of debt. In: American Economic
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RIGOLON, F.; GIAMBIAGI, F. A renegociação das dívidas e o regime fiscal
dos estados. Rio de Janeiro: BNDS, 1999. Textos para discussão 69.
SALVIANO JR., C. Bancos estaduais: dos problemas crônicos ao Proes.
Brasília: Banco Central, 2004.

22. Este texto reflete uma visão pessoal dos autores e não representa a posição institucional da

Secretaria do Tesouro Nacional.

23. Em 2020, apesar de a atividade econômica ter diminuído de forma significativa com a

pandemia, e a arrecadação com ela, as ações coordenadas pela União (executivo e Congresso)

para combate dos efeitos da pandemia sobre as finanças dos E&M foram tão grandes que, no

final de 2020, a situação fiscal da grande maioria dos entes subnacionais estava bem melhor do

que em 2019. Colaboraram para isso, principalmente, as transferências adicionais da União para

os E&M e a mitigação da queda do consumo (e em consequência da queda de arrecadação de

ICMS e ISS) decorrente do pagamento do Auxílio Emergencial à população afetada pela

pandemia.

24. É o que se chama em economia de problema do “risco moral”.

25. Para um histórico de crises fiscais dos estados v. Mendes (2020).

26. V. mais em Giambiagi (1999), Salviano Jr. (2004), Maciel (2016) e Brasil — Tesouro

Nacional (2018).

27. Embora a Constituição continuasse a conter hipótese de intervenção nos estados em caso de

crise financeira, com suspensão dos pagamentos de dívidas por mais de dois anos ou atrasos nos

repasses aos municípios.

28. V. Gráficos 2 e 4.

29. No fim dos anos 2000, 24 estados e o Distrito Federal eram signatários desse tipo de

Programa. Ficaram de fora apenas Amapá e Tocantins.

30. Dívida financeira superior à sua receita líquida real (RLR) anual.

31. A regra de limitação da dívida ao total da receita não era restritiva para os estados menos

endividados.

32. MP 2.185/2001.

33. Tesouro Nacional (2018).

34. Em 2015, a política foi interrompida. Em 2017 a regra da Capag foi aprimorada e não houve

mais excepcionalizações pelo ministro. Ocorreram, contudo, outros eventos que permitiram

algum endividamento adicional de E&M com situação fiscal ruim, mas foram implementados

por leis complementares aprovadas no Congresso Nacional.


35. Tesouro Nacional (2018).

o o o o o
36. Entre os artigos 9 e 10 , por exemplo, foram incluídos os artigos 9 -A, 9 -B, 9 -C, D... X,

Y, Z, AA e AB. Muitos deles ainda incluíam vários parágrafos com diversos incisos.

37. Essa ação estava inserida no contexto mais amplo de financiamento da ampliação de

investimentos em geral e era voltada ao aumento de crédito tanto ao setor público, como ao setor

privado.

38. Total de operações deferidas. Fonte STN/Sadipem.

39. Pleitos apresentados ao Tesouro Nacional para verificação de limites e condições para

contratação.

40. Sadipem é o Sistema de Análise da Dívida Pública, Operações de Crédito e Garantias da

União, e CDP, Cadastro da Dívida Pública, ambos mantidos pelo Tesouro Nacional.

41. O Boletim de finanças dos entes subnacionais do Tesouro Nacional oferece uma análise do

financiamento via acúmulo de restos a pagar.

42. V. Echeverria e Ribeiro (2018).

43. Ver o portal sobre garantias do Tesouro Nacional (Brasil-Tesouro Nacional, 2020a).

44. Ver proposta do FMI (2019).

45. Basta observar que o Conselho de Gestão Fiscal, previsto na LRF, até hoje não foi criado.
CAPÍTULO 3
REGIMES SIMPLIFICADOS DE
TRIBUTAÇÃO
Bernard Appy

INTRODUÇÃO
Este capítulo é uma avaliação dos principais regimes simplificados de

tributação brasileiros: o Simples Nacional (regime especial unificado de

arrecadação de tributos e contribuições devidos pelas microempresas e

empresas de pequeno porte) e o lucro presumido. Ambos são regimes

opcionais e uma tentativa de simplificar a forma de apuração e

recolhimento de tributos com relação ao regime normal de tributação

(usualmente denominado de lucro real). No caso do Simples, há também

o objetivo explícito de reduzir a carga tributária para micro e pequenas

empresas (MPEs).

A primeira seção do texto é uma descrição dos regimes simplificados

de tributação e de sua evolução ao longo do tempo, buscando identificar

os argumentos que justificaram sua criação. A segunda seção é dedicada

a avaliar se a concepção desses regimes foi adequada, seja em termos do

diagnóstico dos problemas a serem resolvidos, seja em termos da forma

como foram implementados. Na terceira seção são apresentados os

resultados de alguns estudos que buscam avaliar o impacto econômico e

social dos regimes simplificados de tributação e, na quarta seção, são

discutidas algumas alternativas de desenho para esses regimes. Ao final,

são apresentados alguns comentários conclusivos.


1. REGIMES SIMPLIFICADOS DE TRIBUTAÇÃO
NO BRASIL
A principal característica do Simples e do lucro presumido é a

substituição, total ou parcial, das bases usuais de tributação das

empresas — venda de bens e serviços, lucro e folha de salários — pela

tributação do faturamento (receita com a venda de bens e a prestação de


46
serviços). No Brasil, as empresas estão sujeitas a dois tributos

incidentes sobre o lucro (IRPJ e CSLL), bem como a diversas

contribuições incidentes sobre a folha de salários, sendo a mais

importante a contribuição patronal para a previdência (CPP).

Também há cinco tributos gerais que incidem sobre a venda de bens e

serviços, dos quais três são federais (contribuição para o PIS e Cofins,

que têm a mesma legislação, e IPI), um estadual (ICMS) e um municipal

(ISS). A maior parte desses tributos é cobrada pelo regime não

cumulativo, segundo o qual cada empresa recolhe a diferença entre o

imposto incidente sobre suas vendas e o imposto que foi cobrado sobre

as mercadorias adquiridas para revenda e os insumos utilizados na

produção. Na tributação não cumulativa, o montante de tributos

recolhido pelas empresas não é proporcional ao faturamento, como nos

regimes simplificados, mas sim ao valor adicionado, que é a diferença

entre o faturamento e o custo de aquisição dos insumos utilizados no


47
negócio. É verdade que os tributos não cumulativos brasileiros são

extremamente falhos, gerando cumulatividade, mas ainda assim o grosso

da tributação sobre bens e serviços incide no valor adicionado e não no

faturamento.

A seguir é feita uma breve descrição dos regimes simplificados de

tributação brasileiros e de suas principais mudanças desde meados dos

anos 1990, bem como busca-se identificar, na medida do possível, quais

foram os argumentos apresentados para sua criação.

1.1 LUCRO PRESUMIDO


No regime que leva este nome, presume-se que o lucro da empresa é

uma porcentagem do faturamento, cobrando-se IRPJ e CSLL, às

alíquotas normais, sobre essa base presumida. Esse regime existe há


bastante tempo, mas sua forma atual está consolidada nas leis

9.249/1995 (que estabelece os percentuais de presunção de lucro),

9.430/1996 (que estabelece a forma de cobrança do IRPJ nesse regime) e

9.718/1998 (que estabelece os critérios de enquadramento).

Os percentuais de presunção de lucro variam entre ramos de atividade

e não são exatamente os mesmos para o IRPJ e a CSLL. Para a maioria

das atividades de prestação de serviços presume-se que o lucro

corresponde a 32% do faturamento (IRPJ e CSLL), e para a maioria das

atividades comerciais e industriais o percentual de presunção é de 8%


48
(IRPJ) e 12% (CSLL). O limite de receita anual para enquadramento

no lucro presumido vem sendo elevado ao longo do tempo, passando de

R$ 24 milhões em 1999 para R$ 48 milhões em 2003 e R$ 78 milhões

desde 2014.

Quando se criou o regime de cobrança não cumulativo para o PIS (Lei

10.637/2002) e para a Cofins (Lei 10.833/2003), optou-se pela

manutenção das empresas do lucro presumido no regime cumulativo, em

que essas contribuições são cobradas à alíquota de 3,65% sobre a

receita. Na prática, isso significa que, no regime de lucro presumido,

tanto os tributos sobre o lucro (IRPJ e CSLL) quanto parte dos tributos

sobre o valor adicionado (PIS/Cofins) são cobrados como uma

porcentagem do faturamento e não sobre as bases normais de tributação,

ou seja, o lucro e o valor adicionado.

Como se trata de um regime muito antigo, não foi possível identificar


49
os motivos que levaram à sua criação . No entanto, sabe-se que não é

entendido como um benefício fiscal pela Receita Federal, mas apenas

como uma forma alternativa e simplificada de recolhimento dos tributos

sobre o lucro e do PIS/Cofins. A nosso ver, essa é uma interpretação

equivocada, pois, como se mostra adiante, em alguns casos o regime de

lucro presumido pode levar a uma redução expressiva da carga

tributária.

1.2 SIMPLES
O Simples é muito mais amplo que o lucro presumido. Os cinco tributos

gerais sobre vendas, os dois tributos sobre o lucro e a contribuição


patronal para a previdência (CPP) são substituídos por um recolhimento

mensal unificado, calculado com base no faturamento da empresa. A

empresa segue sendo responsável pelo recolhimento do FGTS e da

contribuição dos empregados para a previdência (descontada dos

salários), mas está dispensada do pagamento de outras contribuições que

incidem sobre a folha de salários, como Sistema S e salário-educação.

Outra característica desse regime é a simplificação das obrigações

acessórias (registros e escrituração).

Embora já houvesse regimes tributários favorecidos para pequenos

negócios, o modelo atual do Simples surgiu em 1996 (entrando em vigor

em 1997), por meio da Medida Provisória 1.526, posteriormente


50
convertida na Lei 9.317/1996. Nessa versão inicial, o Simples

alcançava apenas os tributos federais (PIS, Cofins, IPI, IRPJ, CSLL e

CPP), sendo opcional a adesão de estados (ICMS) e municípios (ISS).

Na prática, o modelo de adesão não funcionou e a maioria dos estados

adotou regimes favorecidos próprios para a cobrança de ICMS das

MPEs.

A Lei 9.317/1996 estabelecia como limite de enquadramento a receita

anual de R$ 120 mil para as microempresas (ME) e de R$ 720 mil para

as empresas de pequeno porte (EPP). Esses limites foram


51
posteriormente elevados para R$ 240 mil e R$ 1,2 milhão .

O modelo da Lei 9.317/1996 previa um recolhimento mensal

calculado como porcentagem do faturamento da empresa, com alíquotas

crescentes em função do faturamento. Inicialmente essas alíquotas

variavam de 3% (ME com faturamento anual até R$ 60 mil) a 7% (EPP


52
com faturamento anual entre R$ 600 mil e R$ 720 mil) . No caso de

empresa industrial sujeita à cobrança de IPI, a alíquota era elevada em

0,5%. Os recursos arrecadados eram distribuídos pela Receita Federal

entre os diversos tributos substituídos pelo Simples, segundo critérios

fixados na lei.

Não havia diferença de alíquotas por setores econômicos. Em

contrapartida, era vedada a adesão ao Simples para uma série de setores,

com destaque para atividades do setor imobiliário e de representação


comercial, bem como para serviços de natureza intelectual e artística, de
53
profissões regulamentadas ou não .

Aparentemente não houve um estudo aprofundado que justificasse a

criação do Simples. A exposição de motivos da MP 1.526/1996

menciona genericamente que o objetivo era simplificar e reduzir a

tributação das MPEs, visando estimular a geração de empregos e a

redução da informalidade. Não há, no entanto, nenhuma menção à razão

pela qual optou-se pelo modelo do Simples (exceto pela facilidade da

tributação apenas do faturamento), nem se foram feitos estudos de

impacto ou avaliados modelos alternativos.

Em 2003 foi aprovada a EC 42, que alterou o art. 146 da Constituição

Federal, estabelecendo qual lei complementar iria definir um tratamento

tributário diferenciado e favorecido para as MPEs e prevendo a

possibilidade de instituição de um regime único de arrecadação dos


54
impostos e contribuições federais, estaduais e municipais . Com base

nesse dispositivo, em 2006 foi aprovada a Lei Complementar 123, que

criou o Simples Nacional, contemplando a arrecadação unificada dos


55
tributos federais já constantes do Simples Federal e do ICMS e ISS.

O modelo do Simples Nacional (que passou a ser aplicado em julho de

2007) é essencialmente o mesmo que vigorava para o Simples Federal.

A principal distinção é a diferenciação por ramo de atividade, por meio

da criação de várias tabelas de alíquotas (anexos da lei). Na versão

original da LC 123/2006 havia cinco anexos distintos: um para o

comércio, um para a indústria (igual ao do comércio, com acréscimo de

0,5% nas alíquotas) e três para a prestação de serviços — um incluindo

a contribuição patronal para a previdência (CPP) e dois excluindo a CPP,


56
que deveria ser recolhida pelo regime normal . A receita arrecadada era

automaticamente distribuída para a União, os estados e os municípios,

sendo a parcela federal distribuída entre os vários tributos abrangidos

pelo Simples, segundo critérios definidos nos anexos da lei.

Embora com um escopo mais amplo que o Simples Federal, a versão

original da LC 123/2006 ainda vedava a inclusão de quase todos os

serviços de profissões regulamentadas e parte dos serviços incluídos no


Simples Nacional estava no Anexo V, cujas alíquotas eram elevadas

mesmo em relação ao lucro presumido.

Os limites de faturamento anual para enquadramento no Simples

Nacional eram, inicialmente, os mesmos do Federal — R$ 240 mil para


57
as ME e R$ 2,4 milhões para as EPP . Esses limites foram elevados,

sendo atualmente de R$ 360 mil para as ME e de R$ 4,8 milhões para as

EPP (apenas tributos federais). Para o ICMS e o ISS, o limite de


58
enquadramento no Simples é de R$ 3,6 milhões.

Desde a sua criação, o Simples Nacional passou por muitas


59
modificações . De um lado, houve uma grande ampliação do escopo

dos serviços passíveis de serem tributados em condições favorecidas,

incluindo todos os serviços de profissões regulamentadas. De outro,

foram sendo feitas várias modificações que o tornaram mais complicado,

seja para tentar compatibilizá-lo com a própria complexidade do sistema

tributário brasileiro (especialmente no caso do ICMS), seja para


60
introduzir novas vantagens para as MPEs .

Ao longo do tempo, os anexos do Simples Nacional foram modificados

várias vezes. Atualmente, além dos anexos I (comércio) e II (indústria),

há três outros para a tributação da prestação de serviços: o III (com

tributação reduzida, incluindo a CPP), o IV (com tributação reduzida,

mas excluindo a CPP, que deve ser recolhida pelo regime normal) e o V

(que inclui a CPP, mas tem tributação elevada — na maior parte dos
61
casos mais onerosa que o lucro presumido) . As empresas do Anexo V,

no entanto, podem ser tributadas pelo Anexo III, desde que as despesas
62
com a folha de salários sejam superiores a 28% da receita da empresa .

Houve também mudanças estruturais, das quais a mais importante é

criação do regime do microempreendedor individual (MEI), que é uma


63
subcategoria do Simples . Podem enquadrar-se no MEI os

microempreendedores com receita anual de até R$ 81 mil (inicialmente

R$ 60 mil). O regime do MEI dispensa o recolhimento de todos os

tributos abrangidos pelo Simples, exceto uma contribuição do

microempreendedor para a previdência no valor de 5% de um salário

mínimo e o recolhimento mensal de R$ 5 ou R$ 1 a título de pagamento


64
de ISS ou ICMS, respectivamente.
Um dos principais motivos alegados tanto para a criação do Simples

Nacional quanto do MEI foi o incentivo à formalização e à inclusão

previdenciária dos pequenos empreendedores e de seus empregados.

Pessôa e Pessôa (2020) fazem um levantamento das razões apontadas

nos debates no Congresso Nacional para o tratamento favorecido às

MPEs — geração de empregos, estímulo ao crescimento e à inovação e

mesmo a necessidade de tratar desigualmente os desiguais — e

constatam que os argumentos são sempre genéricos, nunca baseados em

uma avaliação mais elaborada das mudanças que estão sendo propostas.

Em particular, não há qualquer embasamento técnico para o

enquadramento de determinados ramos de atividade (principalmente de

prestação de serviços) em anexos mais ou menos favorecidos do Simples

Nacional. Ao menos para alguns setores, o principal motivo para seu

enquadramento mais favorável parece ter sido o poder de pressão junto

aos parlamentares. Esse é o caso, por exemplo, dos advogados, que, ao

contrário da maioria dos demais profissionais liberais foram

enquadrados no Anexo IV do Simples Nacional e não no Anexo V.

A falta de um processo mais consistente de avaliação de custos e

benefícios na montagem do Simples Nacional resultou em um modelo

de tributação não apenas distorcido setorialmente, mas também muito

complexo. De fato, é quase impossível aplicar a legislação do Simples


65
Nacional sem o apoio de um contador ou de um especialista. Com o

passar dos anos, perdeu-se um dos principais objetivos da sua criação,

que era adotar um modelo extremamente simplificado de tributação dos

pequenos negócios.

As próximas seções são dedicadas a uma avaliação mais detalhada do

Simples Nacional e do regime de lucro presumido. A avaliação dos

impactos do MEI é objeto do Capítulo 11 deste livro.

2. PROBLEMAS DE FORMULAÇÃO
Vamos nos dedicar agora a avaliar se os critérios que orientaram a

concepção dos regimes simplificados foram adequados. No primeiro

item, se o diagnóstico que orientou a criação desses regimes — a

necessidade de um tratamento tributário favorecido para os pequenos


negócios — estava correto. Em seguida, a adequação do desenho

escolhido para os regimes simplificados.

Por comodidade, daqui para a frente utilizaremos o termo Simples

para tratar do Simples Nacional. Se necessário, usa-se Simples Federal

como referência ao modelo da Lei 9.317/1996.

2.1 PROBLEMAS DE DIAGNÓSTICO


Como em qualquer política pública, programas de apoio às MPEs

precisam ser avaliados em termos de custos e benefícios sociais. Isso

pressupõe não apenas avaliar se há distorções a serem corrigidas, mas

também qual o melhor instrumento para isso. Programas de apoio mal

desenhados não apenas podem ter custo fiscal elevado e ser ineficientes

em alcançar os objetivos pretendidos, como podem gerar distorções que

reduzem a produtividade e prejudicam o próprio crescimento das

empresas que se pretende beneficiar.

A literatura sobre o tema é clara ao definir que o tratamento favorecido


66
de pequenos negócios somente se justifica em duas situações. A

primeira seria a existência de uma correlação inversa clara entre o

tamanho das empresas e a geração de externalidades positivas — como a

criação de empregos ou a capacidade de inovação. Nesse caso, o

favorecimento dos pequenos negócios, em detrimento daqueles de maior

porte, teria um efeito social positivo decorrente da criação de mais

empregos e da geração de mais inovações, que têm impacto favorável

para o crescimento econômico.

A segunda situação em que se justifica o tratamento favorecido é

quando se identificam falhas de mercado que prejudicam

proporcionalmente mais as pequenas empresas — como a cobrança de

juros mais elevados no crédito por conta de assimetrias de informação

— ou custos que oneram proporcionalmente mais os pequenos negócios,

como o custo de conformidade tributária (custo burocrático de apuração

e pagamento de impostos).

Mesmo quando constatadas essas situações, é preciso avaliar qual é a

melhor política pública para resolver o problema identificado. Nem

sempre benefícios tributários gerais aos pequenos negócios são a melhor


solução, pois nem todas as MPEs são necessariamente geradoras de

externalidades positivas ou prejudicadas por falhas de mercado.

Quando a política de apoio aos pequenos negócios não é bem

planejada, ou seja, quando alcança empresas que não necessitam de

amparo ou seu custo é muito superior aos benefícios sociais gerados, o

resultado é negativo para a sociedade. Para além de seu custo fiscal,

políticas mal desenhadas tendem a favorecer a sobrevivência de

empresas menos produtivas e dificultar sua substituição por empresas

eficientes — processo que, segundo a teoria schumpeteriana, é a base do


67
crescimento no longo prazo . Em particular, políticas que reduzem

muito o custo tributário de pequenos negócios podem desestimular seu

crescimento ou estimular sua fragmentação artificial, reforçando o

mecanismo de seleção de empresas pouco produtivas. Nesse contexto, é

essencial avaliar se os motivos usualmente apontados para a concessão

de tratamento tributário favorecido às MPEs encontram suporte na

experiência e se benefícios tributários são a melhor forma de enfrentar

os problemas identificados.

Ainda que o efeito sobre a geração de empregos seja em geral

apontado como o principal motivo para o tratamento tributário

diferenciado às MPEs, os estudos existentes não ratificam essa

interpretação. O que a literatura indica é que são as empresas novas e

que crescem rapidamente que geram novos empregos, e não aquelas já


68
estabelecidas e de baixo crescimento. Nesse contexto, a melhor

política para a geração de empregos é favorecer a criação e o


69
crescimento das firmas, e não apoiar de forma genérica as MPEs.

Um segundo argumento utilizado para justificar o tratamento tributário

favorecido às MPEs é a sua forte capacidade de inovação — que gera

externalidades positivas, uma vez que o benefício social da inovação

tende a ser maior que o ganho privado do inovador. As empresas

inovadoras são, no entanto, apenas uma pequena parcela do universo das

pequenas empresas, por isso não faz sentido estimular a inovação

concedendo benefícios a todas as MPEs. Nesse contexto, a melhor

política é focalizar os benefícios tributários nas atividades de pesquisa e

desenvolvimento (P&D) para empresas de todos os portes, ainda que

alguns autores defendam uma política que, proporcionalmente, beneficie


70
mais as empresas de menor porte . No Brasil, contudo, os principais

benefícios tributários para P&D fazem o inverso, alcançando apenas


71
grandes empresas e discriminando as MPEs.

Outro argumento utilizado para justificar a menor tributação de MPEs

— ou a menor tributação dos investidores que aplicam recursos nelas —

seria sua maior dificuldade de acesso a financiamento em condições

adequadas devido a falhas de mercado. Mais especificamente, por conta

da assimetria de informações, as instituições financeiras não teriam

como avaliar de forma adequada o risco dos negócios de menor porte,

racionando o crédito, ou cobrando juros muito elevados. Também neste

caso, benefícios tributários concedidos de forma ampla a MPEs não

parecem ser a melhor alternativa de política: em parte porque não são

todas elas que enfrentam dificuldades de acesso a capital; em parte

porque, mesmo nas situações em que a intervenção governamental se

justifica, há formas mais eficientes de fazê-la — como os mecanismos


72
de mitigação e compartilhamento de riscos a financiadores .

Para além de motivos não tributários (como a capacidade de gerar

emprego e inovação e a maior dificuldade de acesso ao crédito), um dos

principais argumentos utilizados para justificar um tratamento tributário

diferenciado para as MPEs seria o próprio sistema tributário — mais

precisamente, o impacto mais negativo para as MPEs que para as

grandes empresas do regime normal de tributação. Bergner et al. (2017)

e OCDE (2015) avaliam esses argumentos e concluem que, na maioria


73
dos casos, isso não se justifica .

Há, no entanto, uma característica do regime normal de tributação que

justifica um tratamento diferenciado para MPEs: o fato de que,

proporcionalmente, o custo de conformidade tributária — ou seja, o

custo burocrático de apurar e recolher tributos — é maior para empresas

de menor porte. Esse é o único motivo para a concessão de tratamento


74
tributário diferenciado para MPEs que encontra consenso na literatura .

É preciso muito cuidado, no entanto, para não introduzir distorções no

sistema tributário ao tentar resolver esse problema. A melhor forma de

reduzir o custo resultante da complexidade é simplificar não apenas as

obrigações tributárias das MPEs, mas também o sistema tributário em


geral — o que pode ser facilitado pelo uso da tecnologia. Bergner et al.

(2017) advertem para o risco de que o processo de simplificação da

tributação das MPEs descaracterize as próprias bases tributárias — o

que acontece, por exemplo, quando se substituem as bases usuais de

tributação (como lucro e valor adicionado) por bases presumidas, como

o faturamento. Neste caso, o resultado é não apenas a redução do custo

de conformidade, mas a introdução de distorções que levam a economia

a se organizar de forma ineficiente.

Por fim, um dos principais argumentos utilizados para justificar o

tratamento tributário favorecido às MPEs, sobretudo em países em

desenvolvimento, é seu impacto positivo sobre a formalização das

empresas e dos trabalhadores. A literatura sugere, no entanto, que a

capacidade de induzir a formalização de pequenos negócios por meio da

redução de custos é bastante limitada. La Porta e Shleifer (2014), por

exemplo, avaliam que a grande maioria dos negócios informais é

ineficiente demais para sobreviver no setor formal, mesmo com redução

de custos. Segundo os autores, uma das principais dificuldades para a

transição à formalidade é a falta de capacidade gerencial dos

empreendedores informais.

Confirmando essa percepção, experimento realizado por de Andrade,

Bruhn e McKenzi (2013) com negócios informais no município de Belo

Horizonte mostrou que a redução de custos e o fornecimento de

informações teve impacto nulo sobre a propensão a formalizar, enquanto


75
o aumento da fiscalização teve um impacto significativo . Esses

resultados apenas confirmam o risco de estruturar políticas públicas com

base em discursos genéricos sobre suas vantagens, sem avaliar impactos

efetivos e, sobretudo, sem comparar esses impactos com seu custo fiscal.

Mesmo admitindo ser necessário conceder vantagens tributárias

incondicionais para os pequenos negócios, o que está longe de ser

evidente, o ideal seria isso ser feito a partir de um modelo bem

estruturado e que causasse o mínimo de distorções possíveis.

2.2 PROBLEMAS DE DESENHO


A maioria dos países concede alguma forma de tratamento tributário

favorecido para pequenos negócios, mas não existe um padrão único ou

dominante para os benefícios concedidos. Praticamente nenhum país

possui, no entanto, um regime tão generoso quanto os simplificados

brasileiros — em termos tanto do escopo dos benefícios quanto do

limite de enquadramento (faturamento anual de cerca de US$ 850 mil

para o Simples e de US$ 13,7 milhões para o lucro presumido, pela taxa

de câmbio da data em que este texto estava sendo fechado).

Nos países desenvolvidos, é rara a substituição de múltiplas bases

tributárias por bases presumidas (como o faturamento, no caso do

Simples). O mais comum é haver benefícios relacionados a tributos

específicos. No âmbito do imposto sobre o valor adicionado (IVA), o

principal benefício — concedido pela maioria dos países — é a isenção

(ou dispensa de registro) para os pequenos negócios. Os limites de

faturamento anual para acesso a esse benefício são, no entanto, bastante

baixos com relação ao limite para enquadramento no Simples (US$ 850

mil) — representando a mediana entre os países da OCDE de US$ 27,5


76
mil e o limite mais elevado de US$ 115 mil .

No âmbito da tributação do lucro, os benefícios concedidos pelos

membros da OCDE são mais variados de modo geral voltados a

objetivos específicos (como o incentivo ao investimento e à inovação) e à


77
simplificação da forma de apuração dos tributos . Em quase todos os

casos, benefícios mais amplos, ou que resultem em uma redução

relevante do imposto devido, são limitados a negócios com faturamento


78
bem menor que o limite de enquadramento no Simples . Com exceção

da Hungria, em nenhum outro país da OCDE o limite para a concessão

de benefícios que modifiquem a forma de apuração ou reduzam o

montante de imposto devido é superior a 20% do limite do lucro


79
presumido no Brasil .

Segundo Coelho (2021), regimes de substituição de múltiplas bases de

tributação pelo faturamento (como o Simples) são mais comuns nos

países em desenvolvimento — em geral como alternativa à tributação do

valor adicionado e do lucro, mas raramente substituindo a tributação da

folha de salários. Em quase todos os casos, no entanto, o limite de


faturamento para acesso a esses regimes é bem inferior ao limite de

enquadramento do Simples. A mediana do limite de enquadramento de

19 países com tributos presuntivos sobre o faturamento listados pela

autora é de US$ 108 mil por ano (contra US$ 850 mil no Simples).

Entre esses 19 países — quase todos com regimes setorialmente menos

abrangentes que o Simples — apenas um, a Rússia, possui um limite de


80
enquadramento mais elevado que o Simples .

Em quase todos os países analisados pelos autores consultados, os

limites de enquadramento para acesso a regimes favorecidos de

tributação para MPEs são inferiores (usualmente bem inferiores) ao


81
limite de faturamento do Simples. Em todos os países, esses limites
82
são inferiores ao teto de faturamento para acesso ao lucro presumido .

O limite excessivamente elevado de enquadramento não é, no entanto,

o único problema de desenho dos regimes simplificados de tributação no

Brasil. Outras distorções — tão ou mais relevantes — resultam da opção

pela substituição das bases usuais de tributação das empresas — valor

adicionado, folha de salários e lucro — pela tributação do faturamento.

O problema da substituição das bases usuais de tributação pela

tributação do faturamento, como ocorre no Simples, é que esse modelo

tende a beneficiar as empresas que operam com altas margens (relação

entre o valor adicionado e o faturamento), em detrimento daquelas que


83
operam com baixas margens. De modo semelhante, a substituição do

lucro pelo faturamento, no regime de lucro presumido, tende a favorecer

as empresas que operam com altas margens de lucro, mas não aquelas

cuja rentabilidade é mais baixa. Esse ponto fica claro na simulação

apresentada no Gráfico 1, que mostra como o custo dos tributos (medido

como proporção do valor adicionado) varia em função da margem bruta

para uma empresa comercial estilizada, no regime normal de tributação


84
(lucro real) e nos regimes simplificados .

Gráfico 1: Custo dos tributos em função da margem de comercialização (%


do valor adicionado)
Fonte: Simulação do autor. Nota: supõe empresa estilizada com faturamento
de R$ 200 mil por mês.

Enquanto o custo dos tributos como porcentagem do valor adicionado

é relativamente constante no regime normal, nos simplificados a carga

tributária cai de modo acentuado com o aumento da margem de

comercialização. Para margens baixas, o custo dos regimes simplificados

pode ser inclusive mais elevado que o custo do regime normal de

tributação.

O principal efeito dos regimes simplificados brasileiros — baseados na

tributação do faturamento — não é, portanto, beneficiar os pequenos

negócios em geral, mas sim favorecer os pequenos negócios que operam

com altas margens — possivelmente os menos necessitados de apoio do

poder público.

Para uma empresa comercial ou industrial que opera com baixas

margens (por exemplo, 25%), a tributação pelo lucro presumido tende a

ser mais onerosa que pelo lucro real, e mesmo fazê-la pelo Simples

deixa de ser uma vantagem a partir de certo nível de faturamento (cerca

de R$ 200 mil/mês, no caso da empresa estilizada utilizada nas

simulações).

Para empresas que operam com margens elevadas, ao contrário, a

tributação pelos regimes simplificados é sempre menos onerosa que pelo

regime normal. Nesse caso, os beneficiários dos regimes simplificados


são os sócios das empresas. A título de exemplo, para uma empresa

comercial estilizada com margem bruta de 50% e faturamento mensal de

R$ 300 mil (valor adicionado de R$ 150 mil), o lucro líquido mensal,

que é a renda líquida do proprietário, seria de R$ 24,2 mil no lucro real,

de R$ 30,5 mil no lucro presumido e de R$ 53,9 mil no Simples — mais

do que o dobro da renda auferida no lucro real. Isso significa que os

regimes simplificados de tributação estão subvencionando — com

recursos públicos — a renda de empresários que já teriam uma renda

elevada se fossem tributados pelo regime normal.

Essa distorção é ainda mais evidente no caso da prestação de serviços,

setor no qual a margem é estruturalmente elevada. Para entender esse

ponto, foi feito um exercício em que se compara a tributação de um

serviço típico de profissional liberal prestado de cinco formas: a) pelo

empregado de uma empresa do lucro real; b) pelo sócio de uma empresa

do lucro presumido; c) pelo sócio de uma empresa do Simples; d) por

um autônomo prestando serviço para uma pessoa jurídica (exceto do

Simples); e e) por um autônomo prestando serviço para uma pessoa

física. No exercício assume-se que a empresa do lucro real não tem lucro

e são considerados todos os tributos recolhidos pela empresa e pelo

trabalhador (contribuição previdenciária e imposto de renda da pessoa

física — IRPF). A diferença entre o valor cobrado pelo serviço e os

tributos recolhidos pela empresa e pelo trabalhador corresponde à

remuneração líquida do trabalhador (empregado ou sócio) que prestou o

serviço.

Como as contribuições previdenciárias geram benefícios, que variam

entre as diversas situações analisadas, optou-se por somar à

remuneração líquida dos trabalhadores uma estimativa do valor presente


85
dos benefícios percebidos .

Na Tabela 1 apresentam-se o valor dos tributos devidos e a renda

líquida do trabalhador (sem e com benefícios) para um profissional

liberal que presta um serviço no valor de R$ 50 mil com margem bruta

de 80% (valor adicionado de R$ 40 mil) em cada uma das cinco formas


86
de prestação do serviço consideradas .

Tabela 1: Custo dos tributos e renda líquida do trabalhador que presta


serviço no valor de R$ 50 mil em diferentes regimes tributários (R$ mil)
Fonte: Simulação do autor.

Neste exemplo, fica claro que os regimes simplificados de tributação

causam fortes distorções distributivas, pois o custo dos tributos

recolhidos na prestação do serviço pelos sócios das empresas desses

regimes é muito menor que na prestação do serviço por um empregado

de empresa do lucro real. No lucro presumido a tributação é menos de

um terço da tributação no lucro real. Mesmo somando o valor presente

dos benefícios previdenciários à renda do trabalhador, a renda líquida do

sócio da empresa do lucro presumido ainda é mais de 40% superior à

renda do empregado da empresa do lucro real.

A simulação também apresenta os resultados para a prestação do

serviço por um trabalhador autônomo (que recebe como pessoa física).

Chama a atenção a grande diferença na tributação quando o serviço é

prestado para uma pessoa jurídica e quando é prestado para uma pessoa

física, a qual decorre do recolhimento para a previdência, pela empresa

tomadora do serviço, de 20% da remuneração do prestador.

O diferencial de custo entre os diferentes regimes também varia muito

em função do valor dos serviços prestados. No Gráfico 2, apresenta-se,

para cada uma das cinco formas de prestação do serviço, o custo dos

tributos, deduzido do valor presente dos benefícios gerados, como

proporção do valor adicionado. Se não fossem considerados os

benefícios, o grau de distorção entre os diferentes regimes seria ainda

maior.

Gráfico 2: Custo dos tributos, líquidos de benefícios, na prestação de


serviços nos diferentes regimes tributários (% do valor adicionado)
Fonte: Simulação do autor.

O que o gráfico mostra é o fato de a tributação da renda do trabalho,

na prestação de serviços, poder variar enormemente, dependendo da

forma como o serviço é prestado e do seu valor. A renda do empregado

da empresa do regime normal de tributação (lucro real) é tributada de

maneira fortemente progressiva, não só por conta do IRPF, mas também

por conta da incidência de contribuições do empregador sobre a parcela

do salário que excede o teto do salário de contribuição (R$ 6,4 mil por
87
mês em 2021) .

Essa progressividade não existe caso o serviço seja prestado pelo sócio

de uma empresa tributada pelo regime do lucro presumido. Nesta

situação, a alíquota incidente sobre a renda do trabalho do sócio é quase


88
constante.

No caso do serviço prestado pelo sócio de empresa do Simples há

progressividade na tributação — ela resulta basicamente do aumento das

alíquotas com o faturamento —, mas o custo dos tributos é bem menor


89
que no regime normal . Como os dados do gráfico deixam claro, para

um profissional liberal a opção pelo Simples só é mais vantajosa que

pelo lucro presumido até certo nível de faturamento (no exemplo


90
apresentado, cerca de R$ 40 mil/mês).
Por fim, em relação ao serviço prestado por pessoa física (autônomo),

a tributação é progressiva, mas varia muito em função de o serviço ser

prestado a uma empresa ou uma pessoa física. Em ambos os casos a

renda do autônomo está sujeita à tributação do IRPF pela tabela

progressiva, mas o custo do serviço prestado a pessoa jurídica é bem

mais elevado. O resultado é que a tributação do serviço prestado pelo

autônomo é muito semelhante à do serviço prestado pelo empregado de

uma empresa do lucro real, quando o tomador do serviço é uma

empresa, e bem inferior se é prestado a pessoa física.

Essa enorme distorção na tributação da renda na prestação de serviços

decorre de dois fatores principais: a) a cobrança de contribuição

previdenciária sobre a totalidade do salário pelo empregador do regime

normal de tributação e sobre todo o valor do serviço, no caso da

contratação de um autônomo por uma empresa, o que não ocorre nas

demais formas de prestação do serviço; e b) a cobrança de IRPF, com

base na tabela progressiva, sobre a renda do empregado formal e do

autônomo, mas não sobre o lucro distribuído pelo sócio de empresa.

Esse diferencial de tributação resulta em fortes distorções distributivas

(como deixam claro os dados da Tabela 1), sem qualquer efeito positivo

sobre a criação de emprego. Ao contrário, o regime de lucro presumido

desestimula a contratação de empregados, pois a tributação cresceria

fortemente se o serviço fosse prestado por um empregado e não pelo


91
sócio da empresa.

Essa menor tributação dos sócios das empresas estimula a

“pejotização”, ou seja, a substituição da contratação de empregados pela

contratação de serviços prestados por sócios de empresas dos regimes

simplificados. Nesse contexto, além das distorções distributivas, os

regimes simplificados acabam induzindo a precarização das relações de

trabalho, em muitos casos, reduzindo a cobertura previdenciária dos

trabalhadores e, ao mesmo tempo, agravando o deficit


92
previdenciário.

Se a consequência dos regimes simplificados fosse apenas a baixa

tributação de pessoas de alta renda e a indução à precarização das

relações de trabalho já seria bastante ruim. No entanto, o modelo


brasileiro de tributação dos pequenos negócios tem também efeitos

bastante negativos na produtividade e, portanto, sobre o potencial de

crescimento do país.

Parte desses efeitos resulta de qualquer modelo que reduza a tributação

dos pequenos negócios além do justificável por falhas de mercado ou

custos que afetem proporcionalmente mais as pequenas empresas, ou por

externalidades positivas por elas geradas.

No entanto, parte dos efeitos é específica do modelo brasileiro, que

substitui as bases usuais de tributação pelo faturamento. Um desses

efeitos é o desestímulo ao investimento por parte das empresas dos

regimes simplificados. Esse desestímulo resulta de que — ao contrário

do regime normal de tributação — a aquisição de equipamentos e de

tecnologia não reduz o montante devido de tributos sobre o valor

adicionado e sobre o lucro, pois esses são função apenas do


93
faturamento . Na prática, isso significa que os negócios tributados pelos

regimes simplificados têm menos incentivo a investir que os negócios

tributados pelo regime normal. O menor investimento reduz o estoque

de capital por trabalhador e, portanto, a produtividade do trabalho.

Outro efeito da impossibilidade de dedução de despesas na apuração

dos tributos sobre o lucro e o valor adicionado é a indução a que as

empresas desenvolvam internamente atividades que poderiam ser

realizadas de forma mais eficiente por terceiros. Ou seja, os regimes

simplificados desestimulam a aquisição de insumos e de serviços de

outras empresas, mesmo quando a terceirização de parte das atividades


94
aumente a eficiência na produção .

Além disso, o uso de uma base distinta das usuais — valor adicionado,

lucro e folha de salários — impede que o custo tributário convirja para o

custo do regime normal de tributação à medida que a receita das


95
empresas cresce. Isso cria um desincentivo a que os negócios cresçam

a ponto de ultrapassar o limite de faturamento e um incentivo a que se

fragmentem artificialmente para seguir se beneficiando da menor

tributação. O efeito, mais uma vez, é uma redução do potencial de

crescimento do país.

É
É verdade que a tributação do faturamento é mais simples que a do

valor adicionado e do lucro. Mas as distorções causadas por esse modelo

não compensam a simplicidade, exceto, talvez, no caso de negócios

muito pequenos — com limite de faturamento próximo ao do MEI, mais

compatível com o limite de isenção do IVA observado nos países da

OCDE. Isso não significa que o cálculo do valor adicionado e do lucro

para os pequenos negócios não possa ser simplificado, mas isso não

pode distorcer excessivamente a própria base de tributação.

Mesmo a substituição da tributação da folha de salários pelo

faturamento, no Simples, é questionável. Se o objetivo é criar empregos e

reduzir a informalidade, é mais eficiente reduzir a tributação da folha de

salários para todas as empresas, especialmente dos trabalhadores de

menor renda, pois assim se criam estímulos para que empresas de todos

os portes ampliem a contratação de trabalhadores menos qualificados.

Em suma, os regimes simplificados de tributação no Brasil não apenas

beneficiam negócios que, por seu tamanho, não precisariam de apoio,

como resultam em distorções distributivas, além de reduzir a

produtividade e desestimular o crescimento das pequenas empresas. Isso

significa que recursos públicos estão sendo utilizados (por meio de

renúncia de receitas) para aumentar a renda de pessoas que já teriam

renda elevada sem os benefícios tributários e, ao mesmo tempo, criando

distorções que reduzem o potencial de crescimento do país.

Talvez esse fosse o custo a pagar, caso o efeito dos regimes

simplificados na ampliação do emprego e na redução da informalidade

fosse significativo. Como se discute a seguir, tudo indica que não é isso

que ocorre.

3. IMPACTOS DOS REGIMES SIMPLIFICADOS


Avaliamos aqui o impacto dos regimes simplificados de tributação tanto

sobre a arrecadação (item 3.1), como sobre a formalização das firmas, a

geração de empregos e a produtividade (item 3.2).

3.1 IMPACTO SOBRE A ARRECADAÇÃO


Não existem estatísticas sobre o custo fiscal do regime de lucro

presumido, pois a Receita Federal considera — equivocadamente — que

esse não é um benefício de natureza tributária (gasto tributário), mas

apenas uma forma alternativa de recolhimento dos tributos sobre o lucro

e do PIS/Cofins. Mas o Simples é considerado um gasto tributário, e são

divulgadas estimativas sobre seu custo em termos de renúncia de


96
tributos federais .

Nos últimos anos, segundo a Receita Federal, a renúncia de receita de

tributos federais decorrente do Simples tem ficado em torno de 1% do

PIB, o que correspondeu, em 2019, a R$ 74,1 bilhões. Como a

arrecadação federal com o Simples naquele ano foi de R$ 80,7 bilhões,

isso significa que o custo do programa correspondeu a cerca de 48% da

arrecadação potencial caso o benefício não existisse (soma do montante


97
arrecadado com a renúncia fiscal) .

Além dos tributos federais, o Simples implica renúncia de receita


98
também para os estados (ICMS) . No caso de Minas Gerais, em 2018,

por exemplo, o gasto tributário com o Simples foi estimado em R$ 916

milhões, enquanto a arrecadação do estado com o Simples foi de R$


99
1,116 milhão. Isso corresponde a um custo de cerca de 45% da

arrecadação potencial. Se o padrão de Minas Gerais se repetir para os

demais estados, a redução de receita de ICMS com o Simples seria da

ordem de cerca de R$ 9,7 bilhões, em 2018 (0,14% do PIB).

Esse valor de gasto tributário federal e estadual (mais de 1% do PIB) é

extremamente elevado, quando comparado ao custo dos benefícios

tributários para pequenos negócios em outros países. Segundo

levantamento do Banco Mundial, os gastos tributários relacionados a

programas de apoio às micro e pequenas empresas em países


100
selecionados não ultrapassa 0,2% do PIB . O custo dos regimes

simplificados de tributação (mesmo desconsiderando o lucro presumido)

é, portanto, não apenas muito elevado, mas também muito maior que o

custo de programas com o mesmo objetivo adotados por outros países.

3.2 IMPACTO SOBRE FORMALIZAÇÃO,


EMPREGO E PRODUTIVIDADE
De forma surpreendente, dada a importância e o custo dos regimes

simplificados de tributação, existem poucos trabalhos acadêmicos

metodologicamente consistentes que analisam o impacto desses

programas sobre a formalização das empresas, o nível de emprego e a

produtividade. Os poucos trabalhos disponíveis referem-se apenas ao


101
Simples.

Um primeiro grupo de trabalhos diz respeito ao impacto com relação à

formalização de pequenos negócios no momento da criação do Simples

Federal, no final de 1996, tendo por base os dados da pesquisa sobre

Economia Informal Urbana (Ecinf) de 1997, do IBGE. Embora os

trabalhos tenham resultados díspares, a conclusão mais robusta é a de

que não há indícios de que a criação do Simples Federal tenha tido um

impacto significativo sobre a formalização dos pequenos negócios, e que

os custos do programa superam largamente os pequenos efeitos positivos


102
sobre a formalização.

Com base em outra metodologia, Matsumoto (2021) estimou que a

criação do Simples Federal resultou na criação de 258 mil empresas

formais entre 1997 e 2006, o que corresponde a pouco mais de 10% do

total de empresas deste regime no momento de sua substituição pelo

Simples Nacional. O próprio autor reconhece, no entanto, que em

termos de bem-estar social (considerando-se as distorções geradas e o

custo do programa), o impacto do Simples não é necessariamente


103
positivo. O autor também identifica uma clara aglomeração de

empresas com faturamento logo abaixo do limite de faturamento do

Simples e estima que elas deixam de crescer e reduzem suas receitas


104
entre 10% e 25% para evitar sair do regime .

Já Corseuil e Moura (2016) analisaram o impacto do Simples sobre o

nível de emprego e outros indicadores do mercado de trabalho para

empresas industriais cujo faturamento estava próximo do limite de

enquadramento. O estudo analisa esse impacto em três momentos — em

1997 (ao entrar em vigor o Simples Federal), em 1999 (quando houve

mudanças nos critérios de elegibilidade) e em 2006. A conclusão foi a

de que o efeito do Simples sobre o mercado de trabalho para empresas

industriais próximas ao limite de enquadramento foi nulo.


Outros estudos ajudam a identificar indícios do impacto do Simples

sobre a produtividade das empresas. Embora não haja trabalhos

específicos sobre o tema, alguns sugerem que esse impacto pode ser

negativo e relevante.

O principal deles é o de Barbosa Filho e Corrêa (2017), que realiza

vários exercícios de comparação de sete países (Brasil, Chile, China,

Colômbia, México, Peru e Rússia), a partir de uma base de dados do

Banco Mundial sobre empresas formais. No primeiro exercício os

autores comparam a distribuição da produtividade do trabalho entre os

vários países e constatam que, no Brasil, há uma participação

desproporcional de empresas de baixa produtividade relativamente aos


105
demais países . Esse resultado não decorre de um efeito composição

(ou seja, da maior participação, na economia brasileira, de setores de

menor produtividade), mas trata-se de um padrão observado nos

diversos setores, o que, segundo os autores, seria um indicativo de

políticas domésticas que favorecem empresas de menor produtividade.

Outro conjunto de exercícios busca avaliar a evolução de alguns

indicadores à medida que as empresas envelhecem. Observa-se que, ao

contrário do observado na maioria dos demais países, as empresas

pouco crescem com a idade (em termos de faturamento e número de

empregos), o mesmo acontecendo com sua produtividade, que também

pouco difere entre empresas mais antigas e mais novas. Esses resultados

seriam, segundo os autores, um indicador da ausência de um processo

de seleção das empresas, que leva as empresas menos produtivas a

sobreviverem por mais tempo que nos demais países.

Por fim, os autores realizam alguns exercícios contrafactuais com

vistas a estimar qual seria o efeito do aumento da produtividade média

do trabalho em duas situações: a) supondo que a produtividade mínima

das empresas no Brasil fosse igual à dos demais países; e b) excluindo,

no cálculo da produtividade média da economia, um conjunto

(selecionado por métodos econométricos) de empresas de baixo


106
faturamento e baixa produtividade . A conclusão é, segundo os

autores, “que a produtividade do trabalho agregada poderia crescer de

forma significativa caso as empresas pequenas perdessem peso relativo”


107
em relação ao total de empresas do país .
Os resultados encontrados por Barbosa Filho e Corrêa (2017) indicam

que, no Brasil, há um processo ineficiente de seleção de empresas mais

produtivas e com maior potencial de crescimento, o que favorece a

sobrevivência de empresas de baixa produtividade e baixo crescimento.

O resultado é uma redução significativa da produtividade do trabalho e,

portanto, do PIB potencial do país. Embora o texto não identifique as

causas desses resultados, os autores suspeitam que o Simples pode ser

um dos principais responsáveis, e sugerem a realização de estudos

adicionais focados nessa hipótese.

Estudo do Banco Mundial (2017) chega a conclusões semelhantes.

Segundo ele, políticas públicas mal desenhadas — entre as quais o

Simples — criaram um ambiente empresarial distorcido que favorece a

rentabilidade de empresas pouco eficientes. Uma evidência desse fato

seria uma participação muito maior de empresas com baixa qualidade de

gestão no Brasil (18% do total de empresas) que em outros países, como


108
os EUA (2%), China (6%) e México (11%) .

Em suma, embora os estudos disponíveis não sejam conclusivos, os

trabalhos disponíveis indicam que, mesmo tendo um custo elevado, os

efeitos positivos do Simples sobre a formalização das empresas, a

geração de empregos e o desempenho das firmas é pequeno ou nulo. O

pior é que é muito provável que os regimes simplificados de tributação

estejam contribuindo para favorecer a sobrevivência de empresas pouco

eficientes, dificultando seu crescimento e a sua substituição por

empresas mais eficientes e, portanto, prejudicando o crescimento do

país.

4. PODE SER DIFERENTE?


É mais fácil criticar problemas de desenho de políticas públicas a
posteriori que antecipar esses problemas na época em que os

programas estão sendo criados. Ainda assim, no caso do Simples e do

lucro presumido, uma pesquisa sobre a legislação vigente em outros

países deixaria claro que os limites de enquadramento propostos no

Brasil estavam claramente fora dos padrões internacionais. As distorções

resultantes da substituição das bases usuais de tributação pelo


faturamento talvez fossem menos claras à época, mas uma análise prévia

dos potenciais custos e benefícios dos programas provavelmente teria

antecipado ao menos parte dos problemas.

Mais relevante que identificar o que poderia ter sido feito à época em

que os programas foram criados é reconhecer as distorções que foram

geradas e buscar corrigi-las. Pior que errar é persistir no erro.

Como o principal fator que justifica um tratamento tributário

diferenciado dos pequenos negócios é a relação inversa entre o custo de

conformidade tributária e o tamanho da empresa, o ideal seria promover

uma simplificação radical do regime normal de tributação. Essa também

é opinião dos técnicos da OCDE, para quem “um sistema tributário

geral mais simples tende a ser mais vantajoso para as pequenas e médias
109
empresas que uma série de medidas de simplificação” . A partir de

regras mais simples e uniformes de tributação, seria possível definir

reduções no montante de tributos devidos pelos pequenos negócios, de

modo a compensar seu excesso de custo de conformidade relativamente

às empresas de maior porte, sem gerar distorções resultantes de

mudanças nas bases de tributação.

Ainda que uma simplificação ampla dos tributos incidentes sobre a

atividade empresarial seja o ideal, a realidade é que esse é um processo

complexo e, mesmo que bem-sucedido, provavelmente longo. Nesse

contexto, cabe avaliar quais ajustes poderiam ser feitos nos regimes

simplificados para torná-los menos nocivos à produtividade e menos

concentradores de renda.

Tendo por referência o exposto no texto, duas mudanças principais

precisariam ser consideradas. Uma é a revisão dos limites de

enquadramento. A outra é a aproximação da base de tributação dos

pequenos negócios das bases normais de tributação (valor adicionado,

lucro e folha de salários), ainda que apuradas de forma simplificada.

Observadas essas diretrizes, há diversos desenhos possíveis para o

sistema. A seguir apresenta-se uma sugestão, que não exclui outras

alternativas.

No caso do lucro presumido, não há razão para que a cobrança de

PIS/Cofins seja feita pelo regime cumulativo em vez do regime não


cumulativo normal. Já para a apuração do lucro, pode-se considerar um

regime simplificado, que, ao menos, faça a base se assemelhar mais ao

lucro que o faturamento. O modelo mais simples seria definir que a base

para o cálculo do lucro fosse o faturamento deduzido da folha de

salários e encargos, aplicando-se sobre essa base uma porcentagem mais

elevada de presunção do lucro.

Só essa mudança, desde que a porcentagem de presunção fosse bem

calibrada, já resolveria boa parte da distorção que resulta na baixíssima

tributação de profissionais liberais de alta renda que atuam como sócios


110
de empresas do lucro presumido . É verdade que esse modelo não

resolveria totalmente as distorções na tributação do lucro entre empresas

comerciais e industriais que operam com margens diferentes. Para tanto,

seria necessário um modelo um pouco mais complexo, em que, no

cálculo da base para a presunção do lucro, fossem deduzidos não apenas

a folha de salários, mas também o valor dos insumos utilizados na

industrialização e das mercadorias adquiridas para revenda, bem como

uma estimativa simplificada do valor da depreciação dos


111
investimentos . Em todo caso, como as distorções mais gritantes do

regime de lucro presumido estão na tributação de prestadores de

serviços de alta renda, mesmo a proposta mais simples já seria um


112
grande avanço .

Resta discutir o limite de enquadramento no regime de lucro

presumido. O limite atual (receita de R$ 78 milhões por ano) é

excessivamente elevado para qualquer padrão internacional. O critério

para enquadramento, nesse caso, deve basear-se menos no custo de

conformidade (que é mais relevante para empresas menores, como as do

Simples) e mais na capacidade do fisco de controlar em detalhe a

contabilidade fiscal de um número grande de empresas. Nesse contexto,

um limite de receita anual próximo a R$ 5 milhões provavelmente

alcançaria a maioria das empresas do lucro presumido, sendo mais


113
justificável que o limite atual .

Já para o Simples, Coelho (2021), com base em um modelo de

definição do limite ótimo para o tratamento tributário diferenciado de

pequenos negócios, sugere a redução do teto de faturamento dos atuais


R$ 4,8 milhões para cerca de R$ 1 milhão por ano. Essa mudança

reduziria a grande diferença entre o limite do Simples e aquele

observado em regimes semelhantes adotados por outros países.

Também no Simples, o ideal seria que as bases tributárias fossem mais

próximas das bases usuais de tributação — lucro, valor adicionado e

folha de salários. Essa opção não apenas reduz distorções que favorecem

empresas de baixa produtividade, como facilita a transição das empresas

do Simples para o lucro presumido, à medida que seu volume de

negócios cresce.

Para o cálculo do lucro tributável, sugere-se um modelo semelhante ao

proposto para as empresas do lucro presumido, seja em sua versão

simplificada (dedução da base apenas da folha de salários), seja em sua

versão mais complexa (dedução de outras despesas e de uma estimativa

simplificada de depreciação). Diferente do proposto para o lucro

presumido, no entanto, sugere-se que o lucro apurado na empresa seja

tributado na declaração de IRPF dos sócios, proporcionalmente a sua


114
participação no capital da empresa. Essa opção permite que a renda

dos sócios das empresas do Simples seja tributada de forma progressiva,

beneficiando-se do limite de isenção e das alíquotas mais baixas do

IRPF para menores rendas.

Para os tributos sobre a venda de bens e serviços, propõe-se que a base

seja, em vez do faturamento, uma aproximação do valor adicionado, que

seria apurado deduzindo-se do faturamento o valor das mercadorias

adquiridas para revenda, dos insumos utilizados na industrialização e

das máquinas e equipamentos adquiridos. Sobre essa base incidiriam

alíquotas crescentes em função do faturamento — com tabelas distintas

para comércio, indústria e serviços, a exemplo do modelo atual do

Simples (mas com apenas uma tabela para serviços). O montante

apurado seria distribuído entre PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS, da forma

como já é feito no Simples. Além de reduzir a distorção na tributação de

empresas a partir de sua margem, esse modelo estimularia o

investimento e permitiria uma transição mais suave para o lucro

presumido, facilitando o crescimento das empresas.


Por fim, sugere-se que a contribuição patronal para a previdência

(CPP) das empresas do Simples seja calculada com base na folha de

salários, mas com uma diferença relevante, ou seja, a cobrança de uma

alíquota muito mais baixa (por exemplo 5%) sobre a parcela dos salários
115
equivalente a um salário mínimo .

Há vários motivos para a adoção desse modelo. O primeiro é

obviamente o estímulo à contratação de trabalhadores de baixa renda. O

segundo é que, ainda que com alíquotas reduzidas, a base de tributação

seria a mesma do regime normal, o que reduz distorções. O terceiro é

que esse modelo diminui o estímulo à substituição de empregados pela


116
contratação de MEI. Por fim, o quarto e último motivo é que,

idealmente, esse modelo de cálculo da CPP deveria ser adotado por


117
todas as empresas, e não apenas pelas empresas do Simples. Sua

adoção pelas empresas do Simples seria um primeiro passo para uma

mudança mais abrangente do regime de contribuição previdenciária no

país.

Apesar do regime proposto ser um pouco mais complexo que o modelo

atual do Simples, não deve resultar em um aumento relevante do custo

de conformidade tributária. Como explicado na primeira seção, o

aumento da complexidade do Simples ao longo do tempo já exige o

trabalho especializado de contadores para sua apuração. O custo

adicional da apuração nos termos propostos tende a ser bem pequeno

(exigindo apenas o acompanhamento do valor dispendido na aquisição

de insumos, mercadorias para revenda e máquinas e equipamentos), e o

benefício em termos da redução de distorções distributivas e de ganhos

de eficiência tende a ser muito grande. Vale notar que tecnologias já

existentes — como a nota fiscal eletrônica e o eSocial — facilitam muito

a utilização de bases de cálculo um pouco mais elaboradas no Simples.

O objetivo das mudanças propostas não é aumentar a arrecadação.

Embora não haja cálculos precisos do impacto da proposta, é razoável

esperar um aumento da tributação da renda (IRPJ e CSLL no lucro

presumido e IRPF no Simples) e da tributação de bens e serviços. Em

contrapartida, a mudança sugerida para a cobrança da CPP no Simples


118
provavelmente resultaria numa redução da arrecadação . O efeito
líquido sobre a arrecadação, considerando a redução dos limites de

enquadramento, ainda precisa ser avaliado.

O objetivo da proposta é levar a economia a se organizar de forma

mais eficiente e estimular as pequenas empresas a investir e crescer,

além, é claro, de corrigir distorções distributivas. Em particular, a

mudança sugerida provavelmente reduziria a tributação dos negócios

realmente pequenos (por meio da isenção do imposto de renda e menor

CPP), elevando, em contrapartida, a tributação da renda dos sócios mais

ricos das empresas dos regimes simplificados, que hoje são pouco

tributados.

Por fim, é essencial considerar que as políticas públicas de estímulo

aos pequenos negócios não devem ter como único (ou principal) foco

benefícios tributários de caráter geral. Políticas voltadas à melhoria do

acesso das pequenas empresas ao crédito e ao estímulo à inovação, por

exemplo, podem ser benéficas não apenas para os pequenos negócios

com potencial de crescimento, mas para toda a sociedade.

5. COMENTÁRIOS FINAIS
Este capítulo foi dedicado à avaliação dos regimes simplificados de

tributação brasileiros — o Simples Nacional (acessível a empresas com

faturamento anual até R$ 4,8 milhões) e o lucro presumido (limite de

faturamento de R$ 78 milhões/ano). A principal característica desses

regimes é a substituição, total ou parcial, das bases usuais sobre as quais

as empresas recolhem tributos — valor adicionado, lucro e folha de

salários — pela tributação do faturamento.

As razões apresentadas para a criação e a ampliação do escopo dos

regimes simplificados sempre foram genéricas, em geral mencionando

como objetivos a geração de empregos e o estímulo à formalização das

empresas e de seus empregados. Para avaliar se os motivos alegados para

a concessão de benefícios tributários para pequenos negócios têm

fundamento técnico, foi feito um levantamento da literatura

internacional sobre o tema. A principal conclusão é que a maioria dos

argumentos utilizados no debate político — geração de empregos,

capacidade de inovação e dificuldade de acesso ao crédito — não


justificam a concessão de benefícios tributários para todas as micro e

pequenas empresas (MPEs). Por um lado, a experiência internacional

demonstra que não são todas as MPEs que contribuem para gerar

empregos e inovações, mas apenas empresas mais novas e com alto

potencial de crescimento. Por outro lado, nem todas as MPEs são

constrangidas em seu crescimento pela dificuldade de acesso a

financiamento e, mesmo nos casos em que isso ocorre, a melhor solução

é corrigir ou compensar as falhas de mercado que dificultam o acesso ao

crédito por parte das MPEs, e não dar benefícios tributários

generalizados.

Mesmo o efeito positivo da menor tributação sobre a formalização de

empresas e trabalhadores precisa ser avaliado com cuidado. A

experiência internacional sugere que o efeito da redução de custos sobre

a formalização de pequenos negócios é limitado, pois a maioria desses

negócios não tem condições de crescer e de sobreviver no mercado

formal, inclusive por conta da falta de capacidade gerencial de seus

proprietários.

Segundo a literatura internacional, o único motivo que justifica

tratamento tributário favorecido para todas as MPEs é o fato de que o

custo de conformidade tributária (custo burocrático de apuração e

pagamento de tributos) é proporcionalmente maior para os pequenos

negócios. Mesmo nesse caso, a recomendação é que o regime normal de

tributação seja simplificado e não a criação de um regime bem distinto

de tributação para as MPEs.

O preço para a sociedade de benefícios tributários para MPEs mal

calibrados ou mal desenhados pode ser muito elevado. Além do custo da

renúncia fiscal, regimes tributários para MPEs mal concebidos podem

beneficiar indevidamente pessoas de alta renda e, sobretudo, resultar em

distorções que reduzem o potencial de crescimento do país. Tais

distorções decorrem de diversos fatores. De um lado, pode-se gerar um

desestímulo ao crescimento das empresas ou um estímulo a sua

fragmentação artificial, para continuar usufruindo do tratamento

favorecido. De outro lado, podem ser criadas vantagens competitivas

indevidas para empresas menos produtivas, em detrimento de empresas

mais produtivas, amortecendo o processo de destruição criativa — pelo


qual empresas mais eficientes se expandem e empresas menos eficientes

são eliminadas — que é o principal motor de crescimento no longo

prazo.

Lamentavelmente, tudo indica que os regimes simplificados de

tributação no Brasil são não apenas mal calibrados, como também mal

desenhados. Em quase todos os países que adotam medidas redutoras da

carga tributária para pequenos negócios o limite de faturamento para

acesso aos benefícios é muito inferior ao limite do Simples, o que sugere

que o modelo brasileiro beneficia empresas que a maioria dos demais

países não julga necessitarem de redução da carga tributária. Já o limite

de faturamento do lucro presumido é mais de cinco vezes superior ao

limite de enquadramento para tratamento diferenciado no âmbito da

tributação do lucro em quase todos os países analisados (com uma única

exceção).

A consequência é que, no Brasil, o valor da renúncia tributária

resultante dos regimes simplificados de tributação é muito superior ao

observado em outros países. Enquanto o custo de regimes tributários

favorecidos em uma amostra de países selecionados pelo Banco Mundial

(2017) não ultrapassa 0,2% do PIB, apenas o Simples resulta em um

gasto tributário superior a 1% do PIB. Já o custo do lucro presumido não

é conhecido, pois esse regime não é considerado gasto tributário pela

Receita Federal.

O Simples e o lucro presumido também têm um problema sério de

desenho, que é a substituição das bases usuais de tributação pelo

faturamento, pois esse modelo favorece muito mais as empresas que

operam com altas margens, em detrimento das empresas que operam

com baixas margens — que são as que mais necessitariam de apoio do

poder público. O resultado é que os regimes simplificados acabam

subvencionando a renda de empresários de negócios que operam com

altas margens, que já teriam uma renda elevada se fossem tributados

pelo lucro real (o regime normal de tributação).

Esse problema é bem relevante no caso da prestação de serviços, setor

em que estruturalmente a margem é elevada. A prestação de um serviço

de profissão regulamentada no valor de R$ 50 mil ou R$ 100 mil, por

exemplo, resulta numa tributação cerca de três vezes maior caso o


serviço fosse prestado pelo empregado de uma empresa do lucro real que

na hipótese de sua prestação pelo sócio de uma empresa do lucro

presumido. A consequência é não apenas uma distorção distributiva

injustificável, em que uma parcela relevante das pessoas de alta renda do

país é muito pouco tributada, mas também um forte estímulo à

pejotização — resultando na precarização das relações de trabalho e no

agravamento do deficit previdenciário.


Por fim, outro efeito da substituição das bases usuais de tributação

pelo faturamento é o desestímulo ao investimento e à aquisição de bens

e serviços fornecidos por terceiros — mesmo que o terceiro seja mais

eficiente na provisão desses bens ou serviços. Isso ocorre porque o custo

da aquisição de equipamentos e insumos reduz a base dos tributos sobre

o lucro e o valor adicionado, mas não sobre o valor de um tributo

incidente no faturamento. O resultado é uma taxa menor de investimento

e a organização menos eficiente da produção, reduzindo a produtividade

do trabalho e o potencial de crescimento do país.

Essas distorções talvez fossem o custo a pagar caso os regimes

simplificados tivessem como efeito um aumento expressivo da

formalização de pequenos negócios e dos empregos. No entanto, tudo

indica que não é isso que ocorre. Os poucos estudos disponíveis indicam

que o Simples ou não teve impacto sobre a formalização de empresas e

de empregos, ou que este impacto foi pequeno — não compensando o

custo do programa e as distorções geradas. Ou seja, embora as pequenas

empresas respondam por uma parcela relevante dos empregos formais no

Brasil, há fortes indícios de que esse resultado não se alteraria de forma

relevante caso os benefícios tributários às MPEs fossem reduzidos.

Também há indícios de que o Simples pode ter um impacto bastante

negativo sobre a produtividade e o crescimento das empresas. Nesse

sentido, para Matsumoto (2021), empresas próximas do limite de

enquadramento do Simples deixam de crescer para evitar que sejam

desenquadradas.

Já Barbosa Filho e Corrêa (2017) comparam diversos países e

percebem que, no Brasil, há uma concentração maior de pequenas

empresas de baixa produtividade, bem como que, ao envelhecerem, as


empresas brasileiras crescem menos que as empresas dos demais países.

Esse seria um indicador de que políticas públicas estariam favorecendo a

sobrevivência de pequenas empresas ineficientes, dificultando sua

substituição por empresas mais eficientes e com maior potencial de

crescimento. Embora o estudo não seja conclusivo, os autores suspeitam

que o Simples seja um dos principais determinantes desse resultado.

Em suma, os poucos trabalhos metodologicamente consistentes

disponíveis sugerem que o impacto do Simples sobre a formalização de

empresas e de empregos é pequeno ou nulo, e que os regimes

simplificados de tributação podem estar contribuindo para uma redução

relevante da produtividade no Brasil. Além disso, como se buscou

demonstrar aqui, os regimes simplificados produzem distorções

distributivas relevantes, desonerando injustificadamente pessoas de alta

renda.

Esses resultados deixam claro que é necessário rever o modelo

brasileiro de benefícios tributários para as micro e pequenas empresas.

O ideal seria simplificar de forma radical o regime normal de tributação,

de modo a torná-lo aplicável a todas as empresas, reduzindo de forma

focalizada o custo para as MPEs, com vistas a compensar o excesso de

custo de conformidade tributária em relação às empresas de maior porte.

Como uma ampla mudança do regime normal de tributação é um

processo complexo e lento, propõem-se mudanças nos regimes

simplificados, orientadas por duas diretrizes. A primeira é a redução do

limite de enquadramento, tendo por referência o padrão internacional. A

segunda é a aproximação das bases tributárias nos regimes simplificados

das bases usuais de tributação — valor adicionado, lucro e folha de

salários —, ainda que apuradas de forma simplificada. Sua substituição

pelo faturamento gera muitas distorções e só se justifica para negócios

muito pequenos — com limite de faturamento próximo ao dos

microempreendedores individuais (MEI).

Para o lucro presumido, sugere-se o recolhimento de PIS/Cofins pelo

regime normal de tributação (regime não cumulativo) e, sobretudo, a

presunção do lucro com percentuais mais elevados, a partir de uma base

que se aproxime mais do lucro efetivo que o faturamento. A forma mais

simples de fazê-lo é definir como base o faturamento deduzido das


despesas com folha de salários e encargos. Uma forma mais elaborada

contemplaria ainda a dedução de despesas claramente necessárias ao

negócio (como a aquisição de insumos e mercadorias para revenda),

além da depreciação dos investimentos apurada de forma simplificada.

Desde que o percentual de presunção de lucro fosse bem calibrado,

mesmo o modelo mais simples já resolveria o grosso das distorções

distributivas resultantes da baixa tributação de profissionais que atuam

como sócios de empresas do lucro presumido. Por fim, sugere-se que o

limite de faturamento anual para acesso ao regime de lucro presumido

seja reduzido para algo entre R$ 5 milhões e R$ 10 milhões.

Já para o Simples, Coelho (2021) sugere, com base em modelo de

otimização, a redução do teto de faturamento dos atuais R$ 4,8 milhões

para R$ 1 milhão. A apuração do lucro seria semelhante ao proposto

para o lucro presumido, com uma diferença importante, que seria a

tributação do lucro na declaração de IRPF dos sócios das empresas, com

base na tabela progressiva. A tributação da venda de bens e serviços

seguiria um modelo semelhante ao atual (alíquotas crescentes com o

porte da empresa e alocação da receita entre os diversos tributos

substituídos pelo Simples), mas teria por base não o faturamento, mas

uma estimativa simplificada do valor adicionado. Enfim, sugere-se que a

contribuição patronal para a previdência das empresas do Simples incida

sobre a folha de salários, mas com a cobrança de uma alíquota muito

mais baixa (por exemplo, 5%) sobre a parcela dos salários equivalente a

um salário mínimo.

O objetivo das mudanças propostas não é aumentar a arrecadação, mas

levar a economia a se organizar de forma mais eficiente e estimular as

pequenas empresas a investir e crescer, além, é claro, de corrigir

distorções distributivas. Com as mudanças propostas, a tributação dos

negócios realmente pequenos seria provavelmente menor que a atual, no

entanto, seria eliminada a subtributação injustificada de pessoas de alta

renda.

Não se trata, é claro, da única opção de mudança possível. O essencial

é entender as distorções provocadas pelos regimes simplificados de

tributação e buscar corrigi-las — o que necessariamente passa pela


redução dos limites de enquadramento e pelo abandono da tributação

baseada apenas no faturamento.

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46. Uma descrição mais detalhada (ainda que bastante resumida) do regime normal de tributação

(lucro real), bem como do Simples e do lucro presumido é apresentada na nota complementar a

este texto, que pode ser acessada em: http://ccif.com.br/notas-auxiliares/.

47. Mais de 80% da arrecadação dos tributos sobre bens e serviços brasileiros provém da

tributação não cumulativa (ICMS, IPI e PIS/Cofins não cumulativo). O restante são tributos

cumulativos (ISS e PIS/Cofins cumulativo), que incidem sobre as vendas sem permitir a dedução

do imposto cobrado na aquisição dos insumos.

48. Na nota complementar (acessível em: http://ccif.com.br/notas-auxiliares/) apresentam-se

todos os percentuais da presunção de lucro, bem como detalha-se um pouco mais o modelo de

cobrança dos tributos no regime de lucro presumido.

49. O regime de lucro presumido existe na legislação brasileira pelo menos desde 1947 (Decreto

24.239/1947). Embora não tenha sido feito um estudo detalhado da evolução do limite de

faturamento para a opção ele ao longo do tempo, identificou-se uma elevação relevante desse

limite no final dos anos 1990. Segundo a Lei 8.541/1992, o limite de receita anual para
enquadramento no regime de lucro presumido era de 9,6 milhões de UFIR, o que correspondia a

R$ 9,4 milhões em janeiro de 1999, quando o limite foi elevado para R$ 24 milhões.

50. Pessôa e Pessôa (2020) fazem uma descrição mais detalhada da evolução da legislação de

apoio às micro e pequenas empresas antes da criação do Simples.

51. A Lei 9.732/1998 elevou o limite de enquadramento das EPP para R$ 1,2 milhão e a Lei

11.196/2005 elevou os limites das ME e EPP para R$ 240 mil e R$ 2,4 milhões,

respectivamente.

52. Com a ampliação do limite de faturamento, foram adotadas alíquotas mais elevadas, que

chegavam a 12,6% para empresas com faturamento anual na última faixa (R$ 2,28 milhões a R$

2,4 milhões).

53. A Lei 10.034/2000 flexibilizou um pouco essas restrições, permitindo a entrada no Simples

de creches, estabelecimentos de ensino infantil e fundamental e agências lotéricas e de correio.

54. A Constituição já possuía dois dispositivos que abordavam as MPEs, prevendo tratamento

favorecido (art. 170, IX) e a simplificação ou redução de obrigações administrativas e tributárias

(art. 179). A inovação da Emenda 42 foi tornar obrigatório o tratamento tributário favorecido e

abrir a possibilidade de um regime unificado de cobrança dos tributos.

55. Ao contrário do Simples Federal, que resultou de uma iniciativa do Poder Executivo, o

projeto que deu origem à LC 123/2006 originou-se no próprio Congresso Nacional. A LC

123/2006, conhecida como Lei Geral das Micro e Pequenas Empresas, trata de várias questões

além do regime tributário, como acesso a mercados, estímulo ao crédito e obrigações

trabalhistas.

56. Outra diferença é que, no Simples Federal, as alíquotas eram fixadas com base na receita

acumulada no ano calendário (crescente ao longo do ano), enquanto no Simples Nacional as

alíquotas são fixadas com base na receita acumulada nos 12 meses anteriores ao período

(mensal) de apuração.

57. Na prática, com o Simples Nacional a distinção entre ME e EPP tornou-se irrelevante, pois

eliminou-se a distinção anterior de tratamentos trabalhistas, creditícios e previdenciários,

restando apenas a tributação crescente com o faturamento, que independe da classificação.

58. A receita de exportação é contada separadamente para fins de enquadramento (sendo

tributada pelo respectivo anexo, deduzindo-se o montante devido a título de PIS, Cofins, IPI,

ICMS e ISS). Na prática, isso significa que o limite de enquadramento no Simples Nacional pode

até dobrar para empresas exportadoras. No caso do ICMS, o limite de enquadramento pode ser

reduzido para R$ 1,8 milhão nos estados cuja participação no PIB nacional for inferior 1%.

59. Um levantamento das leis complementares que alteraram a LC 123 e uma breve descrição

das mudanças podem ser acessados em:

https://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/artigos/historico-da-lei-

geral,8e95d6d4760f3610VgnVCM1000004c00210aRCRD.

60. A introdução do ICMS trouxe uma grande complexidade para o Simples, como a

necessidade de dedução do faturamento (apenas para fins de cálculo do ICMS) da receita de

produtos que já foram tributados anteriormente por substituição tributária (ST) e a cobrança do

diferencial entre a alíquota interna e a alíquota interestadual na aquisição de mercadorias em

outros estados. Ao longo do tempo essa complexidade foi aumentando, seja para contemplar

outras características do ICMS, seja para favorecer as MPEs (como na delimitação de uma lista

de produtos para os quais o ICMS pode ser cobrado por ST nas vendas para o Simples, exigindo
um controle muito complexo), seja pela autorização para que estados e municípios cobrem o

ICMS e o ISS por valor fixo ou concedam benefícios para as empresas do Simples.

61. As tabelas atuais do Simples foram introduzidas pela LC 155/2016, que também promoveu

uma mudança na forma de fixação das alíquotas, tornando a transição entre faixas de

faturamento mais suaves, mas ao mesmo tempo bastante complexo o cálculo das alíquotas. Uma

explicação mais detalhada das alíquotas e da distribuição dos setores entre os anexos do Simples

Nacional é apresentada na nota complementar, acessível em: http://ccif.com.br/notas-auxiliares/.

62. O valor da folha inclui, além dos salários, o FGTS recolhido, o pró-labore (remuneração do

trabalho dos sócios) e o valor efetivamente recolhido a título de CPP pela empresa no período.

63. O MEI foi criado pela LC 128/2008 e alcança empreendedores individuais que possuam, no

máximo, um empregado cujo salário seja de um salário mínimo ou o piso salarial da categoria

profissional.

64. Caso tenha empregado, o MEI tem de recolher também a contribuição previdenciária dele.

65. Além da complexidade do conteúdo de seu texto, a própria forma como está redigida a LC

123, fruto de sucessivas alterações, dificulta sua compreensão.

66. Ver, por exemplo, Bergner et al. (2017) e OCDE (2015).

67. Ver, por exemplo, Aghion, Antonin e Bunel (2021).

68. Bergner et al. (2017) fazem um levantamento de estudos que investigam a relação entre o

tamanho das empresas e a geração de empregos. Segundo os autores, ainda que alguns estudos

identifiquem uma relação inversa entre tamanho das firmas e a geração líquida de empregos, a

maior geração de empregos por MPEs deve-se essencialmente a empresas novas (startups) com

alto potencial de crescimento. No caso dos EUA, Haltiwanger, Jarmin e Miranda (2010) mostram

que, controlando-se pela idade das firmas, não se identifica um maior potencial de geração de

empregos por parte das pequenas empresas.

69. Aghion, Antonin e Bunel (2021), mostram que a maior facilidade de acesso a financiamento

e a melhor capacidade do sistema financeiro em selecionar firmas com alto potencial de

crescimento levam a que, nos EUA, o aumento do número de empregos em função da idade da

firma seja maior que em países em desenvolvimento, como Índia ou México.

70. OCDE (2015) menciona que não há indícios que a difusão dos efeitos positivos das

inovações seja maior para MPEs que para as grandes empresas, dando a entender que não se

justificam tratamentos diferenciados para investimentos em P&D de MPEs. Bergner et al.

(2017), no entanto, sugerem uma política que beneficie mais os investimentos em P&D das

MPEs, mas não por meio de benefícios diferenciados por porte de empresa (o que desestimularia

o crescimento das MPEs) e sim por meio da limitação do valor dos benefícios, o que reduziria o

custo da política e, em termos proporcionais, beneficiaria mais as MPEs.

71. Os principais benefícios para P&D existentes no Brasil são aqueles previstos na Lei

11.196/05 (conhecida como “Lei do Bem”), que alcançam apenas as empresas que recolhem

tributos pelo regime de lucro real, não beneficiando, portanto, as empresas dos regimes

simplificados de tributação.

72. Bergner et al. (2017) mencionam que são principalmente as startups com alto potencial de

crescimento que são prejudicadas pela restrição no acesso ao crédito resultante de assimetria de

informações. Segundo os autores, nos países desenvolvidos a maioria das MPEs já são

adequadamente atendidas pelo sistema financeiro. Ainda que isso talvez não corresponda à

realidade brasileira, para a maioria das MPEs já estabelecidas não é falta de acesso ao crédito
que impede sua expansão, mas o próprio perfil das empresas, quer dizer, não estão preparadas

para crescer.

73. Os motivos pelos quais o regime normal de tributação tenderia a prejudicar mais as MPEs

que as grandes empresas são de diversas ordens. Um deles é a limitação à compensação de

perdas na tributação do lucro nas empresas, pois as MPEs tendem a acumular mais prejuízos em

sua fase inicial de operação que as grandes empresas. Outro seria o chamado debt bias, ou seja, a

menor tributação do capital de terceiros (dedutível na apuração do lucro tributável) que do

capital próprio, o que prejudicaria as MPEs, que em geral são financiadas mais com capital

próprio que com dívida. Por fim, um último argumento seria a maior possibilidade de

planejamento tributário da parte de grandes empresas multinacionais que das pequenas e médias

empresas locais. Em todos esses casos, no entanto, os autores entendem que a melhor solução

são mudanças no regime geral de tributação e não a criação de tratamentos diferenciados para

MPEs.

74. Essa é a conclusão não apenas de Bergner et al. (2017) e OCDE (2015), mas também de

autores como Freedman (2009).

75. Os autores distribuíram aleatoriamente um conjunto de empresas informais em um grupo de

controle e nos quatro grupos de tratamento a seguinte distribuição: a) empresas que receberam

informações sobre como se formalizar; b) empresas que receberam informações e para as quais o

custo de abertura da firma foi zerado e disponibilizou-se o trabalho gratuito de um contador por

um ano; c) empresas que receberam a visita de um fiscal municipal; e d) empresas vizinhas às

que receberam a visita de um fiscal municipal. Somente no terceiro caso (fiscalização da

empresa) a propensão à formalização cresceu de forma significativa (entre 21 e 27 pontos

percentuais), mas ainda assim a tendência é que parcela relevante dessas empresas retorne à

informalidade.

76. Dados de OCDE (2015), que apresenta uma descrição detalhada dos benefícios tributários

para MPEs nos países membros da Organização e em alguns outros países. Os valores em moeda

local foram convertidos para US$ com base na paridade de poder de compra para o consumo

privado.

77. Segundo OCDE (2015), os benefícios mais comuns para MPEs no âmbito do imposto de

renda são a adoção de um regime de caixa para a apuração do lucro tributável, medidas de

incentivo ao investimento e à inovação (como depreciação acelerada ou créditos tributários) e a

concessão de tratamento diferenciado na recuperação de créditos fiscais. Menos comum é a

concessão de isenções para parte do lucro ou a redução do imposto devido em função do número

de empregos gerados. Alguns países também concedem benefícios de imposto de renda no nível

do investidor, seja para estimular o investimento inicial em pequenos negócios, seja para

desonerar parte da renda recebida das MPEs, seja para reduzir a tributação do ganho de capital

na venda da MPE ou de seus ativos.

78. A única exceção é a Hungria, cujo principal benefício (Kiva) substitui a tributação do lucro

(alíquota usual de 9%) e da folha de salários (alíquota usual de 17%) por um tributo cobrado à

alíquota de 11% sobre a soma dos dividendos distribuídos, da folha de salários e de algumas

outras rendas das empresas (como ganhos de capital). Na prática, isso significa que os lucros

reinvestidos não são tributados. Em 2021, o limite de faturamento anual para acesso ao Kiva foi

elevado para HUF 3 bilhões (pouco mais de US$ 9 milhões). O Kiva não reduz, no entanto, a

tributação do IVA, cuja alíquota-padrão na Hungria (27%) é das mais elevadas do mundo e cujo

limite de isenção anual é inferior a US$ 50 mil.


79. Entre os países da OCDE, o maior limite de faturamento anual para a apuração do lucro pelo

regime de caixa (principal benefício concedido na maioria dos países no âmbito da tributação do

lucro) é de pouco mais de US$ 2 milhões. Já o maior limite para regimes presuntivos de

apuração do lucro (com base no faturamento ou outro indicador) é de pouco mais de US$ 500

mil.

80. Segundo dados apresentados por Coelho (2021), o limite de enquadramento para o tributo

presuntivo sobre o faturamento na Rússia seria de US$ 2,06 milhões (esse tributo substitui o IVA

e a tributação corporativa sobre o lucro e a propriedade, mas não as contribuições sobre folha

para a seguridade social). Excluindo a Rússia e o Brasil, a média do limite de enquadramento

dos países listados pela autora é de US$ 184 mil — superior à mediana, mas ainda muito inferior

ao limite do Simples.

81. As exceções, ao menos no que diz respeito a benefícios com efeito relevante sobre o

montante devido de tributos, são, como já mencionado, a Hungria e a Rússia.

82. Além dos trabalhos já citados, Pessôa e Pessôa (2020) também fazem uma análise

comparativa do Brasil com seis países, constatando que em todos esses países o limite de

enquadramento nos regimes simplificados de tributação é inferior ao do Simples.

83. O valor adicionado corresponde à soma da remuneração do capital (lucro e juros) e do

trabalho (folha de salários). Grosso modo, portanto, desconsiderando os juros, a tributação dos

lucros e da folha de salários aproxima-se da tributação do valor adicionado.

84. A simulação foi feita considerando uma empresa com faturamento mensal de R$ 200 mil.

Nessa e nas demais simulações feitas neste texto, considera-se a margem bruta, ou seja, a relação

entre o valor adicionado bruto (incluindo tributos) e o faturamento bruto. Uma explicação

detalhada das hipóteses utilizadas na simulação encontra-se na nota complementar, acessível em:

http://ccif.com.br/notas-auxiliares/.

85. O valor presente dos benefícios previdenciários foi fixado em 30% do salário de

contribuição, o que corresponde a uma estimativa de seu valor para uma taxa real de desconto de

3% ao ano. Para o benefício do FGTS (apenas para o empregado da empresa do lucro real),

supôs-se que seu valor presente é a própria contribuição da empresa. Vale notar que essas

hipóteses provavelmente superestimam o valor do benefício, pois a taxa real de juros de longo

prazo atual é bem superior a 3%.

86. As simulações consideram que o sócio da empresa do lucro presumido retira um pró-labore

de um salário mínimo e que o sócio da empresa do Simples retira um pró-labore correspondente

a 28% do faturamento, pois essa é a opção mais racional para a maioria dos profissionais liberais

(que passam a ser tributados pelo Anexo III e não pelo Anexo V). Caso o profissional tenha um

tratamento favorecido no Simples (caso dos advogados, que são tributados pelo Anexo IV), a

tributação seria ainda menor. As hipóteses utilizadas no exercício são detalhadas na nota

complementar, acessível em: http://ccif.com.br/notas-auxiliares/.

87. O teto do salário de contribuição é o dos benefícios previdenciários. Isso significa que as

contribuições previdenciárias acima do teto, que não geram benefícios, são equivalentes a uma

tributação da renda do trabalhador. Para cada R$ 100 adicionais que uma empresa gasta na

remuneração de um empregado com salário superior a R$ 6,4 mil, cerca de R$ 40 são tributos e

apenas R$ 60 são efetivamente recebidos pelo trabalhador. Isso é equivalente à incidência de

uma alíquota marginal de 40% sobre a renda do trabalho formal.

88. A alíquota só não é constante por haver um pequeno aumento na alíquota do IRPJ incidente

sobre o lucro (32% do faturamento) superior a R$ 60 mil por trimestre (R$ 20 mil/mês).
89. Há alguma progressividade também porque supôs-se que, para ser tributado pelo Anexo III

do Simples, o profissional declara um pró-labore de 28% do faturamento, sobre o qual incide o

IRPF e a contribuição individual para o INSS (até o teto), mas não a contribuição do empregador

sobre folha.

90. Se for considerada apenas a tributação (sem o valor presente dos benefícios), para um

profissional liberal a opção pelo Simples só é mais vantajosa que o lucro presumido para

faturamento até R$ 20 mil/mês.

91. No caso do Simples (exceto na tributação pelo Anexo IV), a diferença da tributação caso o

serviço seja prestado por um empregado e não pelo sócio da empresa não é relevante.

92. Pode-se questionar se o governo deve interferir na opção por relações de trabalho com menor

custo e menores benefícios. O problema é que, na pejotização, a redução de custos é muito maior

que a redução dos benefícios, o que, na prática, significa que os regimes simplificados induzem à

precarização das relações de trabalho. Esse processo se dá não apenas pelos regimes do Simples

e do lucro presumido, mas também pelo MEI — cujo impacto sobre a pejotização de

trabalhadores de baixa renda tende a ser mais relevante. É verdade que a pejotização traz o risco

de multas, caso a relação com o trabalhador pejotizado seja caracterizada como relação de

emprego. Ainda assim, as empresas — especialmente de menor porte — ponderam os benefícios

da pejotização e os riscos incorridos, muitas vezes optando pela estratégia de maior risco e

menor custo fiscal.

93. No regime normal, as despesas com investimentos são dedutíveis na apuração do lucro, à

medida que os ativos vão sendo depreciados, e são dedutíveis da base de cálculo dos tributos

sobre o valor adicionado (ICMS, IPI, e PIS/Cofins não cumulativo). No Simples não há qualquer

dedução pelo investimento e no lucro presumido não há dedução na apuração do lucro nem da

base de cálculo do PIS/Cofins.

94. Esses dois argumentos — desestímulo ao investimento e à terceirização — são desenvolvidos

em Barbosa Filho e Lukic (2019).

95. Esse problema é mitigado no Simples por conta das alíquotas crescentes com o faturamento,

mas ainda assim, no caso de empresas comerciais e industriais com altas margens, a tributação

ao se alcançar o limite de faturamento ainda é muito inferior à do lucro real e mesmo à do lucro

presumido.

96. Já existe pleito para que também o Simples deixe de ser considerado gasto tributário. A LDO

2022 continha dispositivo nesse sentido. Houve veto presidencial, pendente de análise do

Congresso, quando este capítulo estava sendo escrito.

97. Afonso (2019) critica a forma como a Receita Federal calcula o gasto tributário do Simples,

uma vez que esse é feito tendo por referência o que seria arrecadado caso a empresa recolhesse

os tributos pelo lucro presumido. Como a proporção entre a arrecadação e o faturamento das

empresas é mais alto no lucro presumido (9,4%) que no lucro real (7,7%), o autor argumenta que

o cálculo do gasto tributário seria menor se calculado com referência ao lucro real. Contudo esse

é um argumento frágil porque, como exposto, são as empresas com maiores margens de lucro

(cuja tributação seria ainda maior se feita pelo regime normal) que tendem a optar pelo lucro

presumido e pelo Simples. De fato, como ressaltam Pessôa e Pessôa (2020), ao comentar as

críticas de Afonso (2019), as empresas não optariam pelo lucro presumido se esse regime fosse

mais oneroso que o lucro real.

98. O Simples alcança também o ISS, que é um imposto municipal. Nesse caso, no entanto, é

provável que o gasto tributário não seja elevado (ou até que haja algum ganho de receita), pois a
parcela da receita do Simples destinada ao ISS é elevada se comparada com as alíquotas usuais

do imposto, e é muito comum haver reduções significativas no custo do ISS fora do Simples para

alguns serviços (caso de sociedades uniprofissionais de profissões liberais).

99. O dado de gasto tributário com o Simples em MG foi obtido das prestações de contas do

estado, refletindo o efetivamente realizado, e difere da projeção que consta dos anexos dos

projetos de lei orçamentários (LDO e PLOA). Os dados de arrecadação com o Simples de Minas

Gerais constam das estatísticas do Simples Nacional divulgadas pela Receita Federal do Brasil.

100. Ver Banco Mundial (2017), p.11. Segundo o relatório, esse custo seria de 0,2% do PIB para

o Canadá, 0,1% do PIB para Chile, México e África do Sul, e menos de 0,1% do PIB para

França, Índia e Argentina.

101. Há também trabalhos sobre o regime dos microempreendedores individuais (MEI), que não

são objeto do presente texto.

102. O primeiro desses estudos é o de Monteiro e Assunção (2012), originário de um trabalho de

2006, no qual se identifica que a criação do Simples Federal teve um pequeno efeito positivo

sobre a formalização no setor de comércio, mas nenhum nos demais setores. Monteiro (2016)

retoma esses resultados e estima que o custo fiscal da criação do programa supera largamente o

aumento da arrecadação decorrente da formalização das empresas comerciais. O segundo, é o de

Fajnzylber, Maloney e Montes-Rojas (2011), originário de um trabalho de 2009, que chega à

conclusão radicalmente distinta de que a criação do Simples Federal teria tido um efeito positivo

e relevante sobre a formalização de empresas e o desempenho dos pequenos negócios

formalizados. Dada a inconsistência entre os resultados dos dois estudos, que tratam do mesmo

período a partir da mesma base de dados, Piza (2016) busca entender por que os resultados são

tão distintos, e conclui que o principal motivo é a data de corte considerada para a criação do

programa (cuja diferença é de um mês entre os dois trabalhos). Com base em uma série de testes

econométricos, Piza afirma que os resultados encontrados por Fajnzylber, Maloney e Montes-

Rojas (2011) não podem ser atribuídos à criação do Simples Federal e conclui que os dados não

indicam que o programa tenha sido efetivo em elevar a taxa de formalização dos pequenos

negócios. Indo além, sua conclusão é de que os dados utilizados nos dois trabalhos (ECINF)

podem não ser os mais adequados para analisar o impacto do programa sobre a formalização e o

desempenho das pequenas empresas.

103. Esses resultados constam do primeiro paper de Matsumoto (2021).

104. Esses resultados são apresentados no segundo paper de Matsumoto (2021).

105. O dado de produtividade é calculado pela relação entre o faturamento (convertido para US$

pela paridade do poder de compra) e o número de empregados das empresas. Enquanto nos

demais países há uma concentração de empresas com produtividade média e caudas “finas” (ou

seja, poucas empresas de baixa e alta produtividade), no Brasil há caudas “grossas” (ou seja,

maior concentração de empresas nas caudas da distribuição, especialmente na cauda de baixa

produtividade).

106. O exercício parte da constatação de que no Brasil, ao contrário dos demais países, é

possível identificar três clusters (aglomerados) de empresas em função do faturamento e da

produtividade: um cluster mais relevante (mas menos que nos demais países) de empresas de

produtividade média, um de empresas de baixa produtividade e um (menos relevante) de

empresas de alta produtividade. Por meio de métodos econométricos, as empresas são


distribuídas entre esses três clusters, sendo aquelas que integram o de baixa produtividade

excluídas no exercício contrafactual.

107. Barbosa Filho e Corrêa (2017), p. 140.

108. Dados do World Management Survey citados em Banco Mundial (2017), p. 22.

109. OCDE (2015), p. 15. Tradução própria.

110. A título de exemplo, caso o percentual de presunção de lucro fosse elevado de 32% do

faturamento para cerca de 80% da nova base (faturamento menos folha e encargos, inclusive o

pró-labore) já se corrigiria a maior parte da subtributação da renda dos sócios de empresas do

lucro presumido com poucos empregados. Para o comércio e a indústria, o percentual de

presunção de lucro nesse modelo simplificado teria de ser mais baixo, mas mais elevado que o

atual.

111. Não cabe, neste capítulo, detalhar esse modelo. Mas a ideia básica é que apenas algumas

despesas — inequivocamente associadas ao negócio — fossem deduzidas da base. As demais,

cuja vinculação ao negócio é mais difícil de ser controlada (como despesas de locomoção, gastos

com restaurantes, etc.) continuariam sendo presumidas (a presunção de despesas está implícita

na fixação de um percentual de presunção do lucro inferior a 100%). Esse modelo tem duas

vantagens. Uma é que se elimina o desincentivo ao investimento que caracteriza o regime atual.

Outra é que se evita a discussão sobre a dedutibilidade de despesas que podem ser usadas para

promover a distribuição disfarçada de lucros, cujo controle é mais difícil nos pequenos negócios.

112. Outra opção para mitigar a baixa tributação da renda no lucro presumido seria tributar o

lucro distribuído pela tabela progressiva do IRPF, descontando o que foi pago na empresa. Essa

opção pressupõe, no entanto, uma discussão mais ampla da tributação dos lucros distribuídos

(não só pelas empresas dos regimes simplificados), bem como, idealmente, a criação de uma

alíquota adicional mais elevada de IRPF para altas rendas. Como esses são temas que fogem do

objetivo do presente capítulo, optou-se por não explorar essa alternativa.

113. Uma opção é definir um limite mais elevado (por exemplo, R$ 10 milhões) para empresas

industriais e comerciais e um limite menor para a prestação de serviços.

114. Esse modelo, conhecido como “passthrough” é adotado por vários países, inclusive pelos

EUA (embora, neste caso, não se trate de um lucro presumido e sim do lucro apurado em

balanço). Para o Simples, sugere-se que a empresa retenha mensalmente na fonte o IRPF

incidente sobre o lucro calculado, sendo a renda e o imposto retido incluídos posteriormente na

declaração de ajuste anual do sócio.

115. No caso de um empregado com salário de 1,5 salário mínimo, por exemplo, a alíquota da

CPP seria de 5% para um salário mínimo e de 20% (alíquota normal) para meio salário mínimo.

116. O ideal é que a contribuição previdenciária do MEI fosse elevada (por exemplo, em 10% de

um salário mínimo) para reduzir ainda mais a diferença na tributação com os empregados das

empresas do Simples e reduzir as distorções no mercado de trabalho.

117. As razões para a adoção de uma menor tributação da parcela inicial dos salários são

explicadas na terceira seção de Appy et al. (2018).

118. Mudanças na composição da tributação, como a proposta, apresentam um problema

adicional, que são as regras de vinculação e partilha dos tributos. Um aumento do imposto de

renda equivalente a uma redução da CPP, por exemplo, reduz a receita da União, pois quase 50%

da receita do imposto de renda é partilhada com os estados e municípios. Esse é um ponto que
precisa ser considerado e equacionado em qualquer proposta de mudança que envolva várias

categorias de tributos.
CAPÍTULO 4
FUNDOS GARANTIDORES COM
PARTICIPAÇÃO DA UNIÃO
Pedro Ivo de Souza Jr.

INTRODUÇÃO
O objetivo deste capítulo é tratar da materialização dos riscos fiscais de

dois fundos garantidores que têm participação da União. São eles: o

Fundo de Garantia de Operações de Crédito Educativo (FGEDUC), cuja

criação teve como finalidade garantir parte do risco em operações de

crédito educativo, no âmbito do Fundo de Financiamento ao Estudante

de Ensino Superior (FIES), formalizados até o segundo semestre de

2017, e o Fundo de Garantia para a Construção Naval (FGCN), criado

para proteção contra o risco de crédito das operações de financiamento à

construção ou à produção de embarcações e também do risco decorrente


119
de performance de estaleiro brasileiro (com sede no país e que tenha

por objeto a indústria da construção e reparos navais).

Os fundos garantidores são instrumentos criados com o objetivo de

viabilizar políticas públicas por meio da participação da União como

sua cotista. São de natureza privada, têm patrimônio próprio dividido

em cotas, separado do patrimônio dos cotistas, e são sujeitos a direitos e

obrigações próprias. A União participa sozinha ou junto com outros

cotistas e as decisões ocorrem apenas na assembleia de cotistas, com

peso proporcional à sua quantidade de cotas.

A formação desse tipo de fundo tem geralmente como função corrigir

falhas de mercado, permitindo que, por exemplo, se desenvolvam

mercados de crédito específicos, que viabilizarão empreendimentos de


alto retorno social, mas que, por representarem elevado risco privado,

não são atrativos ao capital privado. Tudo dando certo, as atividades

financiadas darão retorno econômico e haverá repagamento dos

financiamentos, sem necessidade de execução das garantias prestadas

pelo poder público. Se houver perdas, elas estarão limitadas ao

patrimônio do fundo.

O risco de perda está associado à qualidade da política pública

garantida pelo fundo. Incentivos a setores econômicos que não têm

condições de ser eficientes, mesmo na presença de subsídios, ou

desenhos de contratos que estimulem a inadimplência ou a concessão de

crédito pouco rigorosa tendem a resultar em acionamento das garantias.

Dessa forma, os riscos fiscais estão relacionados a eventos passíveis de

causar uma redução no patrimônio líquido dos fundos, o que

consequentemente acarretaria uma diminuição dos valores das cotas da

União. Eventos que provoquem o acionamento de garantias concedidas

com os recursos dos fundos geram a obrigação de pagamento de honras

e a consequente sub-rogação dos direitos de crédito sobre a parte

inadimplida.

Nos casos em que as garantias concedidas pelo fundo tenham

contragarantias oferecidas pelos tomadores de crédito, a perda para a

União somente se materializa nas situações em que não se verifique a

execução dessas contragarantias. Assim, os montantes expostos a risco

são os valores das cotas da União aportados.

A criação de um fundo garantidor privado se dá por diversos

instrumentos legais. O processo se inicializa com a edição de lei para

autorizar a criação do fundo, que será posteriormente criado pela

instituição financeira responsável por sua administração. A mesma lei

em geral cria o conselho de participação, órgão colegiado responsável

por subsidiar a atuação da União na assembleia de cotistas do fundo. Em

seguida, faz-se necessário editar um decreto que dispõe sobre a

composição e atribuições desse colegiado.

Por sua vez, o administrador deve elaborar o estatuto do fundo, a ser

apreciado pelo conselho de participação antes de aprovação na

assembleia de cotistas. Por fim, após a criação do fundo, a União realiza

É
o aporte de cotas, na forma e nos limites estabelecidos na lei. É

necessária a edição de decreto autorizando o montante a ser aportado e

portaria do ministro da Economia em que se define a forma na qual se

realizará o aporte. Normalmente, a União é representada na assembleia

de cotistas pela Procuradoria-geral da Fazenda Nacional (PGFN). O voto

da União é de responsabilidade do ministro da Economia, subsidiado

pelo conselho de participação.

A lei que autoriza a criação do fundo deve conter também o valor-

limite que a União é autorizada a aportar, a forma na qual poderão ser

realizados os aportes e como se dará a representação da União na

assembleia de cotistas, além de itens que deverão por regra constar do

estatuto do fundo, bem como um dispositivo que cria o conselho de

participação. Já a definição da instituição financeira responsável pela

administração do fundo, em alguns casos, é definida diretamente na lei

e, em outros casos, é apresentadacomo “instituição financeira

controlada, direta ou indiretamente, pela União”.

Esse desenho tem por finalidade garantir transparência e criar

instâncias de fiscalização. Isso, contudo, não torna o fundo imune a

decisões inadequadas, oriundas de pressões políticas e de não haver

cotistas privados que defendam seus interesses. Fundos com elevada

participação da União como cotista correm o risco de ser lenientes ou

calibrar mal o balanço de risco, visto que eventuais perdas serão

socializadas.

Quando realizado em moeda corrente, o aporte de recursos pela União

ao fundo garantidor produz deficit primário e é considerado no cálculo


das despesas sujeitas ao teto dos gastos. Então, é necessário que o órgão

responsável pelos aportes possua orçamento e recursos financeiros para

realizá-los.

Essa é uma forma conservadora de contabilizar o impacto da política

pública nas contas da União: todo o valor liberado ao fundo representa

uma despesa imediata; havendo retornos para a União, mediante resgate

de cotas, registra-se uma receita. Já os processos de honra de garantias e

da execução de contragarantias não impactam o resultado fiscal do

governo, pois não há fluxo de recursos com a Conta Única da União


(CTU): no caso da honra de garantias, o dinheiro já saiu do Tesouro e já

sensibilizou o resultado fiscal; no caso de o fundo conseguir executar

uma contragarantia, os recursos entram nele e não nas contas do

Tesouro.

Assim, para apresentar a forma pela qual o risco fiscal em fundos

garantidores privados com a participação da União se materializou, este

capítulo, além da introdução, apresenta mais três seções. Na segunda

seção discute-se o Fundo de Garantia para a Construção Naval (FGCN)

e sua respectiva política pública, explicitando-se a materialização de seu

risco fiscal e explicando como ocorreu a insolvência do fundo. A

terceira seção trata do Fundo de Garantia de Operações de Crédito

Educativo (FGEDUC), de como o Fies afetou as contas do fundo

garantidor e o impacto fiscal nas contas públicas. Por fim, a última seção

apresenta as considerações finais.

1. FUNDO DE GARANTIA PARA A


CONSTRUÇÃO NAVAL (FGCN)

1.1 DESCRIÇÃO DO FUNDO


O FGCN foi criado com o objetivo de garantir o risco de crédito das

operações de financiamento à construção ou à produção de embarcações


120
e o risco decorrente de performance de estaleiro brasileiro , conforme

estatuto, regulamento e legislação vigentes, tendo como objetivo

incentivar a retomada da indústria naval brasileira. O Fundo tem

natureza privada e patrimônio próprio dividido em cotas, separado do

patrimônio dos cotistas, e é administrado e gerido pela Caixa

Econômica Federal (CEF), que o representa judicial e

extrajudicialmente.

O FGCN foi instituído pela Lei nº 11.786, de 2008, que autorizou a

União a participar no fundo até o limite global de R$ 5 bilhões. O saldo


121
integralizado por ela desde a criação do Fundo foi de R$ 3,85 bilhões .

O único resgate de cotas ocorreu em 28 de dezembro de 2012 pela

União, com um valor de R$ 1 bilhão do patrimônio, que ainda não

estava comprometido com garantias outorgadas. A União detém 98,33%


das cotas de participação, valor-base de dezembro de 2020. Os demais

cotistas possuem 1,73% das cotas e são seis estaleiros, além das 29

sociedades de propósito específico (SPE) subsidiárias da Sete Brasil

S.A. A prevalência da União como cotista já sinalizava a propensão a

risco, visto não haver interesses privados em manter a solvência do

fundo.

Entre 2012 e 2014, o FGCN concedeu garantias em empréstimos de

curto prazo (conhecidos por empréstimos-ponte), a 29 SPE subsidiárias


122
da Sete Brasil Participações, para construção de 29 sondas para

exploração de petróleo da camada pré-sal (risco de crédito), a quatro

estaleiros brasileiros (risco de performance), e afiançando 50% do saldo

devedor dos empréstimos (risco de crédito), cujo valor total seria

quitado com financiamentos de longo prazo.

O valor garantido decorrente desses empréstimos-ponte seria quitado

principalmente a partir de contratos de financiamento de longo prazo

com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social

(BNDES) e com o Fundo da Marinha Mercante (FMM). Contudo os

referidos financiamentos não foram concedidos pelo BNDES, nem pelo

FMM, o que levou a Sete Brasil à insolvência e ao acionamento das

garantias prestadas pelo FGCN.

Foram honrados US$ 1,25 bilhão, valor inferior ao total de garantias

prestadas pelo Fundo, restando em torno de US$ 798,2 milhões em

garantias não honradas. A Sete Brasil entrou em recuperação judicial em

2018 e o FGCN tornou-se credor da empresa em R$ 6,3 bilhões de reais.

O Fundo apresenta hoje um patrimônio líquido de R$ 61,5 milhões e há

dúvidas quanto ao seu futuro. A Tabela 1 apresenta os valores

garantidos, pagos e o saldo devedor por credor.

Tabela 1: Valores garantidos, pagos e saldo por credor


Fonte: Caixa — VO/Vifug/Defus, 016/2018, de 13/08/2018.

1.2 A POLÍTICA PÚBLICA E A SETE BRASIL


S.A.
123
Em 2007, após a descoberta das reservas petrolíferas do pré-sal ,

começou a ser desenvolvido, dentro da Petrobrás, o projeto para criação

de uma nova empresa, a Sete Brasil. Essa empresa teria como finalidade

intermediar a construção de sondas de perfuração para o pré-sal como

forma de desenvolver a indústria nacional.

O projeto, que foi apresentado a investidores como uma grande

iniciativa de governo e somaria investimentos da ordem de US$ 27

bilhões, passou a ser liderado por Pedro Barusco e João Carlos Ferraz,

ambos da Petrobras, que se desligaram da estatal para comandar a Sete

Brasil.

Assim, a Sete Brasil S.A., uma empresa de investimentos especializada

em gestão de portfólio de ativos voltados ao setor de petróleo e gás na

área offshore no Brasil, em especial aqueles relacionados ao pré-sal

brasileiro, foi criada em 2010. A Petrobrás se tornou acionista da

empresa, com 10% de suas ações. Os outros investidores foram os

fundos de pensão Petros, Previ, Funcef e Valia, além dos bancos

Santander, Bradesco, BTG-Pactual e o FI-FGTS.

O projeto foi iniciado em 2011 a partir da assinatura dos sete

primeiros contratos com o Estaleiro Atlântico Sul (EAS), que estava em

fase final de construção em Pernambuco. Após esses primeiros

contratos, foram encomendadas 21 sondas adicionais. Com o objetivo de

estimular a indústria nacional, a Sete Brasil, a Petrobras e o governo

federal, em conjunto, decidiram dividir essa encomenda pelo Brasil.


Assim, cinco estaleiros foram contratados para construir as sondas.

Além do Atlântico Sul, foi contratado o Estaleiro Brasfels, em Angra, e

construtoras como Odebrecht, UTC, Ecovix, Queiroz Galvão e OAS se

comprometeram a construir três estaleiros.

Para iniciar o projeto, a Sete Brasil havia contratado US$ 4 bilhões em

empréstimos pontes com dez instituições financeiras, enquanto não

fechava o financiamento de longo prazo com o BNDES. Os recursos do

BNDES seriam utilizados posteriormente para quitar esses empréstimos.

A princípio, por serem financiamentos de prazo mais curto, os

empréstimos-ponte apresentariam menos risco para investidores e,

portanto, teriam taxas consideradas competitivas. Em 2014, o projeto

ganhou tração com a garantia de que o BNDES iria financiar a

construção de sondas. O apoio financeiro aprovado pelo BNDES, entre

empréstimos e aportes do BNDESpar foi de R$ 10 bilhões.

Em maio de 2014, o ex-diretor de Abastecimento da Petrobras Paulo

Roberto Costa foi preso no âmbito da Operação Lava Jato e revelou a

existência de um esquema de corrupção dentro da Petrobras. Foi o início

do naufrágio da empresa. Em novembro de 2014, Pedro Barusco,

gerente-executivo de engenharia da Sete Brasil, em delação premiada,

denunciou um esquema de corrupção que envolvia a empresa e

representantes dos estaleiros. Com o andamento das investigações, a

crise econômica e a queda no preço do barril do petróleo, o

financiamento do BNDES foi cancelado e a empresa teve que suspender

o pagamento dos estaleiros. Sem o financiamento, a Sete Brasil recorreu

a empréstimos bancários de curto prazo que somavam em torno de R$

10,1 bilhões. Mesmo assim, a crise se estendeu aos estaleiros, que se

viram obrigados a iniciar um cronograma de demissões por todo país

que representou mais de 25 mil cortes ao longo de 2015.

Em fevereiro desse ano, com a substituição de Graça Foster por

Aldemir Bendine na presidência da Petrobras, a empresa quis renegociar

com a Sete Brasil a quantidade de sondas encomendadas. Tentou-se a

redução do contrato para 12 a 15 sondas, que se revelou infrutífera. Por

sua vez, alguns estaleiros, como o Brasfels e o Jurong, decidiram

continuar a construção das primeiras sondas enquanto aguardavam uma

solução para o impasse. Sem uma solução concreta e com empréstimos


de curto prazo vencendo, a Sete Brasil decidiu entrar em recuperação

judicial em agosto de 2016.

Com a impossibilidade de quitação das dívidas assumidas pela Sete

Brasil, todas as garantias de crédito asseguradas pelo FGCN foram

acionadas de 2015 a 2016. Procedeu-se a honra de US$ 1,25 bilhão.

Contudo esse montante não foi suficiente para quitar todas as honras,

ficando em torno de US$ 798,2 milhões a título de garantias não

honradas, como se vê na Tabela 1.

Em novembro de 2018, a Sete Brasil teve seu plano de recuperação

judicial (PJR) aprovado. Nesse momento, o FGCN se tornou credor da


124
Sete Brasil devido às contragarantias definidas no momento das
125
respectivas honras das fianças, totalizando R$ 6,3 bilhões .

A princípio, se poderia atribuir o fracasso do projeto a uma inesperada

queda do preço do petróleo e à negativa do BNDES em prover os

créditos de longo prazo que já haviam sido prometidos.

Quanto ao primeiro ponto, deve-se dizer que é fato bem conhecido que

preços de commodities no mercado internacional têm grande

volatilidade. Logo, não seria de se esperar que os preços elevados, que

vigoravam no momento em que se decidiu pelo projeto de fabricação de

sondas, se mantivessem por longo período. Fazer deslanchar um projeto

de longo prazo cuja viabilidade dependia da manutenção de preços

muito elevados do petróleo pode ser considerado uma decisão temerária.

Com relação à mudança de postura do BNDES, não havia outra

possibilidade frente às evidências de corrupção que afloraram nos

processos de investigação. A diretoria e os conselhos do Banco não

poderiam fechar os olhos aos fatos, sob pena de prejudicar seu

patrimônio e de haver responsabilização penal aos gestores e

conselheiros.

Além disso, outro problema era a previsão de criação de uma indústria

local para suprir o pré-sal e fomentar a economia. Para tanto, o governo

definiu que pelo menos 60% dos equipamentos de prospecção deveriam

ser fabricados no Brasil, percentual extremamente elevado frente ao

padrão de produção dessa indústria no cenário mundial.


A ameaça de atrasos dos estaleiros, uma cadeia de fornecedores ainda

em expansão e a falta de mão de obra adequada acabaram surgindo ao

longo do projeto como os principais gargalos. No início de 2012, dos

sete estaleiros que iam construir as sondas, quatro estavam apenas

iniciando as obras e dois estavam em ampliações, necessárias para

atender as encomendas.

Dessa forma, havia dúvidas quanto à capacidade dos estaleiros

nacionais de produzir as sondas com preços, prazos e qualidade

minimamente alinhados ao que se praticava no mercado internacional.

Ainda com relação a problemas de sustentabilidade em políticas

públicas para a indústria naval, em 2014, foi apresentado um estudo


126
produzido pelo Ipea , no qual se identificou que a produtividade do

trabalho nos estaleiros não aumentou entre 2005 e 2011, no âmbito do

Programa de Renovação da Indústria Naval (Promefe). O referido estudo

corrobora a tese da possível incapacidade da indústria local de produzir

as sondas com a qualidade desejável e a preços competitivos

internacionalmente. Ou seja, apesar da reserva de mercado, essa política

de substituição de importação não funcionou.

1.3 A EXECUÇÃO DAS GARANTIAS E AS


CONSEQUÊNCIAS PARA
O FGCN
Com a inadimplência das SPEs, decorrentes do vencimento antecipado

das dívidas de curto prazo garantidas pelo FGCN, em março e maio de

2015 o Fundo honrou todas as 64 garantias de crédito que haviam sido


127
concedidas . O montante total de garantias chegava a R$ 7,7 bilhões,

valor superior ao seu patrimônio. Essa alavancagem caracteriza uma

postura de risco da gestão do Fundo. Dessa forma, toda a sua

disponibilidade patrimonial foi utilizada no pagamento parcial das

fianças. Como o regramento do FGCN prevê que os pagamentos de

honras de garantias devem ser ressarcidos, o Fundo se tornou credor da

Sete Brasil.

A empresa entrou em recuperação judicial em 2016 e foi determinada

a apresentação de um PRJ ao administrador judicial e aos credores.


Tanto o FGCN quanto os financiadores participaram de sua elaboração.

Entre os financiadores estavam o FI-FGTS, o Banco do Brasil London

Branch, o Banco Itaú BBA Nassau Branch, o Banco Santander (Brasil)

S.A. Grand Cayman Branch e o Banco Bradesco S.A. Grand Cayman

Branch.

Em 2015, ocorreu a honra da fiança de uma parcela vencida do

financiamento para construção da sonda referente à SPE Joatinga

Drilling B.V., ao Standard Chartered Bank, único credor que não aderiu

a um acordo celebrado, em janeiro de 2016, entre os entes financiadores

das outras 28 SPEs.

Esse acordo, denominado Termo de Prorrogação e Repactuação do

Instrumento de Assunção de Obrigação de Não Fazer e Outras Avenças

Standstill),
( antecedeu o pagamento das respectivas fianças do FGCN

aos financiadores, que acabaram recebendo cerca de 59% dos valores de

honras.

O pagamento parcial das honras ocorreu porque, como vimos, o Fundo

operava alavancado e, portanto, não havia patrimônio suficiente para

honrar todas as garantias que foram acionadas simultaneamente. Desta

forma, ao mesmo tempo que as SPEs deviam ao fundo o ressarcimento

das fianças honradas, o FGCN também devia aos financiadores o saldo

de garantias de crédito ainda não honradas.

O valor das garantias honradas foi definido com base na posição de

ativos do fundo, deduzidos os recursos para o custeio do FI-FGCN e do

próprio FGCN, no valor de R$ 50,8 milhões e foram pagas em três

parcelas. As primeiras duas parcelas, em fevereiro de 2016, nos valores

de R$ 2,7 bilhões e R$ 1,2 bilhão, e a terceira, em maio de 2016, no

valor de R$ 493 milhões. Desse modo, o FGCN efetuou as honras das

garantias até o limite de seu patrimônio.

O PRJ da Sete Brasil foi aprovado e homologado judicialmente em

novembro de 2018. O plano apresentou um conjunto de ações que

incluem a venda de quatro sondas, cujas obras foram paralisadas em

2015 e estavam em fase de construção bastante avançadas. Quanto às

demais sondas, o destino previsto é o desmanche para sucateamento e


dação de componentes e insumos em pagamento de dívidas das SPEs

para com os respectivos estaleiros.

De mais a mais, o PRJ tem o objetivo de extinguir de forma definitiva

as dívidas e direitos pendentes entre os diversos atores envolvidos no

processo, quais sejam, entre as SPEs e os estaleiros, entre as SPEs e os

agentes financeiros (saldos devedores), entre o FGCN e os agentes

financeiros (saldos das garantias de crédito não honradas), bem como as

dívidas das SPEs para com o FGCN (ressarcimento de garantias

honradas).

Ainda no âmbito do PRJ, em 2019, o FGCN participou das reuniões

de credores e assembleias gerais, que levaram à aprovação de proposta

apresentada pelo grupo britânico Magni Partners em leilão judicial para

alienação de quatros sondas, pelo valor de U$ 396,15 milhões. A

proposta da Magni, tendo como operadora a Etesco, foi aprovada pelas

instâncias deliberativas da Petrobras. Os credores aguardavam a

conclusão pela Sete Brasil dos instrumentos jurídicos para conclusão da

venda das quatro sondas. Como providência prevista no PRJ, a Sete

Brasil apresentou proposta de reestruturação societária e financeira, a

qual foi aprovada em reunião de credores.

A proposta de leilão dessas quatro sondas possibilitaria a recuperação

financeira de apenas 4,9% dos valores devidos pelo grupo Sete Brasil ao

Fundo e, com a reestruturação financeira, o Fundo seria desobrigado de

honrar as garantias em aberto referentes às sondas alienadas.

Em 2018, foi feita pela Controladoria-Geral da União (CGU) a

auditoria anual de contas do FGCN, que examinou os atos de gestão


o
praticados entre 1 de janeiro e 31 de dezembro de 2018, bem como atos

de gestão alusivos a exercícios anteriores que repercutiram no exercício

sob exame. Os achados registrados no Relatório de Auditoria

consubstanciam fatos que deram causa ao atual contexto de insuficiência

financeira do fundo, são eles:

Deficiências ocorridas na gestão de riscos que resultaram em

insuficiência financeira para honrar garantias no montante

aproximado de US$ 798,2 milhões.


Aceite de modalidade de contragarantia incompatível com o

caráter de curto prazo dos empréstimos garantidos pelo

FGCN.

Deficiência da gestão de riscos referente à avaliação da

capacidade financeira dos estaleiros.

Ausência de comprovação dos parâmetros adotados na análise

de solvência das entidades garantidas.

A auditoria verificou que o limite de exposição do Fundo definido para

cada entidade garantida não foi obedecido ao serem concedidas as


o o
outorgas. De acordo com o §4 do artigo 7 da Lei nº 11.786 de 2008, o

limite de exposição do Fundo é de 25% do seu patrimônio, calculado em

relação a cada entidade garantida, a qual é definida como “contratante

ou estaleiro, quando se tratar de garantia de risco de crédito, ou

estaleiro, quando se tratar de garantia de risco de performance”.

Percebeu-se que nos procedimentos de outorga de garantia não foram

analisados os riscos de cada projeto individualmente e cada SPE foi

considerada uma entidade garantida, em razão de ser a contratante da

construção. O fato de as SPEs estarem societariamente ligadas à Sete

Brasil não foi considerado pela administradora ao se estabelecer o limite

de exposição do Fundo. Portanto, embora as garantias tenham sido

outorgadas às SPEs de forma individual, as operações de garantia de

crédito, na verdade, tinham o risco de crédito todo concentrado na

empresa Sete Brasil.

A Caixa manifestou-se sobre esse ponto dizendo que “embora a

questão seja colocada como sendo de ‘interpretação’, tratou-se da

aplicação do que se encontra disposto em Lei e nas normas que dela

decorrem”. Ou seja, o entendimento da administradora é que a aplicação

literal das normas, considerando cada SPE uma entidade garantida,

cumpriria o que a legislação determina com relação ao limite de 25% de

exposição por entidade garantida. Esse parece ser mais um caso em que

a determinação política para realizar os financiamentos foi mais forte

que as instâncias de governança e prevenção de riscos.


Ainda com relação à gestão de riscos, a alavancagem do FGCN acabou

tornando exposição do fundo superior ao seu patrimônio líquido (PL).

Inicialmente, o regulamento do FGCN não previa a possibilidade de

alavancagem, contudo, em dezembro de 2012, foi aprovada alteração do

regulamento do FCGN em que se institui a alavancagem máxima de 2,5

vezes o PL.

Essa alteração foi aprovada por meio do voto ad referendum


CPFGCN/MF 02/2012, o qual foi submetido diretamente à assembleia

de cotistas (sob o argumento de urgência) e, somente após 154 dias,

deliberado pelo Comitê de Participação no Fundo de Garantia para a

Construção Naval (CPFGCN). A justificativa para essa alteração

apresentada no voto ad referendum foi a “necessidade de agilizar o

processo de concessão de garantias, de aperfeiçoar a atuação da

administradora na alocação dos investimentos, de permitir uma

utilização otimizada dos recursos por meio da alavancagem”.

A ordem desses eventos vai de encontro ao que estabelece o Decreto nº

7.070, de 2010, em que consta como competência do CPFGCN

examinar as propostas de alterações do regulamento antes da apreciação

pela assembleia de cotistas, estabelecendo prazo de 15 dias para

submeter ao referido comitê de participação quando as alterações forem

aprovadas por meio de voto ad referendum.


Assim, com a concentração de riscos decorrente de se tratar cada SPE

como entidade garantida e o aumento na alavancagem do fundo, não

foram adotadas medidas mitigadoras de risco, como adotar nível

prudente de alavancagem e diversificar a carteira de garantias.

Por fim, com relação às contragarantias, também houve deficiência na

gestão de riscos, uma vez que ocorreu descasamento entre os prazos de

maturação das garantias e das contragarantias. Os empréstimos-ponte,

tomados com o objetivo de se iniciar a construção das embarcações,

foram garantidos pelo FGCN. Por sua vez, a administradora do Fundo

aceitou como contragarantias a hipoteca das embarcações que ainda

viriam a ser construídas. Essas contragarantias eram ativos contingentes,

uma vez que o colateral da hipoteca eram as embarcações a serem

construídas e, com isso, não existiam no momento da concessão das


garantias. De resto, o montante dessas contragarantias era incerto, já que

seus valores de mercado dependeriam da qualidade de construção, além

da manutenção dos contratos de afretamento da Petrobras.

Assim, as garantias foram concedidas para empréstimos de curto

prazo, enquanto as contragarantias dependiam da construção das

embarcações, cujo prazo era estimado em quatro anos. Para mitigar o

risco de liquidez decorrente desse descasamento de prazo, a

administradora informou que o financiamento de curto prazo seria

integralmente quitado quando o de longo prazo fosse aprovado, o que

não ocorreu.

Por fim, a auditoria da CGU apresentou duas recomendações à

assembleia de cotistas. A primeira foi a de apurar a responsabilidade

pela má gestão que resultou na insolvência do Fundo e quantificar os

prejuízos causados a ele, bem como providenciar o respectivo

ressarcimento. A segunda foi o monitoramento da execução das

contragarantias para recomposição parcial do patrimônio do FGCN, na

medida em que fosse permitido pela PRJ do grupo Sete Brasil e pelo

acordo de Standstill. Além disso, em caso de materialização de

prejuízo, quantificá-lo e providenciar o respectivo ressarcimento,

cumprindo o disposto no artigo 20 do regulamento do FGCN, tendo em

conta que a administradora — a CEF — era a responsável por danos

causados ao patrimônio do Fundo.

2. FUNDO DE GARANTIA DE OPERAÇÕES DE


CRÉDITO EDUCATIVO

2.1 DESCRIÇÃO
O Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e o seu Fundo de Garantia

de Operações de Crédito Educativo (FGEDUC) compuseram, até 2017,

uma política pública com sérios problemas. Em 2017, para corrigir esses

problemas, foi promulgada a Lei 13.530, que instituiu, para os contratos

de financiamento realizados a partir de 2018, regras mais sustentáveis

(Novo Fies). Mas o que analisaremos aqui é o antigo Fies.


O FGEDUC, fundo garantidor privado que apresenta a União como

único cotista, foi criado com o objetivo de garantir parte do risco em

operações de crédito educativo, no contexto do Fies, concedidas pelos

agentes financeiros mandatários do Fundo Nacional de Desenvolvimento

da Educação (FNDE) a estudantes que atendam a critérios estabelecidos

em Lei, no regulamento do Fies e no estatuto do FGEDUC até dezembro

de 2017.

O Fundo foi criado a partir da necessidade de se encontrar solução

para a dificuldade que os estudantes enfrentavam em relação à

obrigatoriedade de apresentação de fiador para obtenção de

financiamento do Fies: fazendo o papel de fiador, o Fundo passava a se

expor ao risco de crédito que agentes privados (famílias, bancos, etc.)

não se dispunham a correr.

O FGEDUC é um fundo de natureza privada, patrimônio próprio e

separado do patrimônio do seu cotista e do seu administrador.

Inicialmente, o FGEDUC foi criado e administrado pelo Banco do

Brasil, mas, a partir de 2018, o fundo passou a ser administrado pela

Caixa.

Inicialmente, o Fundo se destinava apenas a alunos com renda familiar

mensal bruta per capita até 1,5 salário mínimo ou que estivessem

matriculados em curso de licenciatura ou fossem bolsistas parcial do

Programa Universidade para Todos (Prouni) e que optassem por

inscrição no Fies no mesmo curso em que é beneficiário da bolsa.

Posteriormente, a Lei nº 12.873, de 2013, possibilitou oferecer garantias

a todos os estudantes de forma simultânea com outras garantias ou

exclusivamente pelo Fundo, além de alterar o modo de contabilização

pelo Banco do Brasil e a apuração do valor garantido. Essas alterações

na legislação foram os principais fatores que levaram a um aumento

significativo dos contratos e, em consequência, da exposição a riscos do

fundo.

Os financiamentos concedidos pelo Fies estavam distribuídos em três


128
fases, de acordo com a evolução prevista contratualmente :
a. Fase de utilização: período no qual o estudante está cursando o

ensino superior e limitado ao prazo de duração regular do curso.

Nessa fase ele paga, a cada três meses, o valor referente aos juros

incidentes sobre o financiamento.

b. Fase de carência: período iniciado logo após a conclusão do

curso, com duração de 18 meses no qual ele continuava pagando

trimestralmente os juros devidos sobre o financiamento.

c. Fase de amortização: período iniciado no mês imediatamente

seguinte ao fim da fase de carência, quando é estabelecido o valor

das prestações que ele irá pagar mensalmente até a liquidação do

financiamento, cujo prazo podia alcançar cerca de três vezes o

período financiado do curso.

O Fies, desde sua criação em 1999 até o ano de 2020, concedeu em

torno de 3,4 milhões de financiamentos, dos quais 2,7 milhões a partir

do ano de 2010. O FGEDUC, por sua vez, concedeu garantias para

contratos entre 2010 e 2017.

FGEDUC mostrou ao final de 2020 um total de ativos no montante de

R$ 16 bilhões e patrimônio líquido de R$ 6,817 bilhões. O Fundo possui

uma carteira garantida de 1.939.085 contratos, totalizando

aproximadamente R$ 63,2 bilhões garantidos, e apresenta uma previsão

de honras no valor de R$ 6,32 bilhões. O valor médio dos

financiamentos garantidos por ele em 2020 ficou em torno de R$ 32,6

mil reais. Cerca de 87% dos contratos firmados receberam cobertura de

90% do valor do financiamento, conforme Tabela 2.

Tabela 2: Distribuição dos contratos garantidos pelo FGEDUC

Fonte: Administradora do FGEDUC.

O FGEDUC garantia 80% do valor dos encargos educacionais até abril


129
de 2012 e, desde então, passou a garantir 90% do valor emprestado .
Os ativos do fundo, que totalizam R$ 16 bilhões, estão aplicados em

cotas de Fundo de Investimento Exclusivo Administrado pela Caixa, dos

quais 17,1% estão alocados em renda variável — ações de bancos

públicos — e 82,9% em renda fixa, conforme as Tabelas 3 e 4.

Tabela 3: Rentabilidade das disponibilidades do FGEDUC — renda variável

Fonte: Administradora do FGEDUC.

Tabela 4: Rentabilidade das disponibilidades do FGEDUC — renda fixa

Fonte: Administradora do FGEDUC.

A rentabilidade desse Fundo foi de 4,78% em 2020, em função da

combinação da rentabilidade negativa na carteira de renda variável e da

rentabilidade positiva da carteira de recursos aplicados em renda fixa. A

escolha das ações de bancos públicos parece ser mais orientada por

critérios políticos de que por critérios de rentabilidade esperada do

investimento, o que impôs custo adicional aos riscos já incorridos por

ele.

O FGEDUC tem como principais receitas os aportes do Tesouro

Nacional e a Comissão de Concessão de Garantia (CCG), que

corresponde a 6,25% sobre a parcela garantida pelo fundo. Ele cobra o

CCG das instituições de ensino superior (IES) para que elas utilizem a

garantia ofertada por ele. A CCG é cobrada mensalmente, sendo

debitada do valor pago pelo Fies às entidades mantenedoras de

instituição de ensino, por ocasião do pagamento dos encargos


educacionais. Além disso, o FGEDUC considera uma inadimplência de

10% e trabalha com uma alavancagem de dez vezes o valor do seu

patrimônio, além de um stop loss de 10%. Como se verá adiante, essa


taxa de inadimplência foi subestimada e a alavancagem excessivamente

alta.

130
Em outubro de 2013 alterou-se a forma de contabilização pelo

Banco do Brasil e a apuração do valor garantido pelo Fundo passou a ser

realizada pelo valor efetivamente desembolsado e não pelo valor total do

contrato. Essa alteração permitiu um aumento da concessão de garantias.

Outra medida semelhante foi a alteração, em 2015, da contabilização

do patrimônio do fundo. O total de receitas relativas à CCG passou a ser

somado ao PL do fundo, considerando o conceito de patrimônio líquido

ajustado (PLA).

O PLA e a contabilização do valor garantido pelo valor desembolsado

foram os principais fatores para a expansão significativa da oferta de

garantias, a partir de 2014. Anteriormente, outros motivos para a oferta

de garantias foram a redução da taxa de juros do financiamento de 6,5%


131
para 3,5%, em agosto de 2009 , e a ampliação do prazo de
132
amortização, em outubro de 2010 .

Com relação à situação de adimplência dos contratos, o Comitê Gestor


133
do Fies (CG-Fies) , por meio da Resolução FNDE nº 27, de 10 de

setembro de 2018, estabeleceu que os contratos em atraso são aqueles

com prestações não pagas a partir do primeiro dia após o vencimento e


o
que os inadimplentes, os com prestações não pagas a partir do 90 dia

após o vencimento da prestação, observados na fase de amortização do

financiamento.

Nos contratos formalizados até 2009, os atrasos nos pagamentos,

contados a partir de um dia, foram observados em 111.176 contratos

(66,8%). O saldo devedor desses contratos era de R$ 1,5 bilhão,

equivalente a 60,3% do total da carteira. Segundo a Tabela 5, o maior

volume de operações em atraso se concentra na faixa acima de 360 dias

de atraso. O quadro, portanto, era de alta taxa de inadimplência e longa

persistência dos atrasos.


Tabela 5: Situação dos contratos concedidos até 2009

Fonte: Administradora do FGEDUC. Posição em 31/12/2020. Contratos


assinados até 15/1/2010.

Entre 2010 e 2017, o atraso nos pagamentos, por parte dos estudantes,

dos financiamentos contados a partir de um dia, foram observados em

1.466.516 dos contratos (58,8%). Se for considerado o saldo devedor

integral desses contratos, juntos eles respondem por um valor total de R$

56,1 bilhões, equivalentes a 51,4% do total da carteira. Conforme pode-

se observar na Tabela 6, o maior volume de operações em atraso

também se concentra na faixa acima de 360 dias de atraso.

Tabela 6: Situação dos contratos concedidos entre 2010 e 2017

Fonte: Administradora do FGEDUC. Posição em 31/12/2020. Contratos


assinados a partir de 15/01/2010.

A trajetória da inadimplência dos financiamentos concedidos entre

2010 e 2017 tem apresentado tendência crescente, caracterizando um

risco possível de ocorrer, principalmente em virtude da maior parte dos

contratos formalizados nesse período encontrarem-se na fase de


amortização, isto é, na fase em que o estudante começa a pagar

efetivamente pelo valor financiado, conforme se observa no Gráfico 1.

Gráfico 1: Contratos inadimplentes em fase de amortização

Fonte: FNDE.

Com relação às medidas de mitigação do risco de crédito nos contratos

do Fies, os contratos de financiamento formalizados até 2009 não

dispõem de cobertura de fundo garantidor, portanto, são garantidos

exclusivamente por fiança convencional ou por fiança solidária. Por sua

vez, do total de contratos por modalidades de garantias, observa-se que

67% da carteira de contratos do Fies são garantidos exclusivamente pelo

FGEDUC. Se considerada a cobertura concomitante com fiança, esse

percentual garantido pelo fundo representa 78% da carteira de

financiamentos concedidos a partir de 2010, caracterizando

concentração de risco na União, conforme Tabela 7.

Tabela 7: Contratos e valor da dívida segundo modalidade de garantia

Fonte: FNDE. Posição em 31/12/2020. Contratos assinados a partir de


15/01/2010.
Devido às características para as quais foi dimensionado, o FGEDUC

possui limitação de honra de 10% do total da carteira garantida no Fies

stop loss).
( Dessa forma, como o fundo possui uma carteira garantida

que totaliza em torno de R$ 63,32 bilhões, apresenta-se uma previsão de

honras de R$ 6,32 bilhões.

2.2 A POLÍTICA PÚBLICA E O FIES


O Programa de Financiamento Estudantil tem o objetivo de financiar a

graduação de estudantes em instituições de ensino superior (IES)

privadas. Ele é operacionalizado por meio do Fundo de Financiamento

ao Estudante do Ensino Superior, de natureza contábil, instituído pela

Lei nº 10.260, de 2001.

Entre 1998 e 2004, a política educacional adotada pelo governo federal

para o ensino superior incentivou a participação do setor privado. Nesse

período, o número de IES privadas passou de 764 para 1.789 unidades,

um aumento de 134%, com consequente elevação de aproximadamente

126% nas matrículas em cursos de graduação presenciais. Enquanto no

mesmo período, o número de matrículas na rede pública aumentou 46%.

A partir de 2009, foi observado um novo movimento na política

educacional com forte ampliação do Fies, passando de mais ou menos

182 mil contratos em utilização, em 2009, para 1,9 milhão, em 2015, um

acréscimo médio de 280 mil matrículas por ano. A maior parte desse

incremento ocorreu a partir de 2011, atingindo o valor máximo de 733

mil novos contratos em 2014, conforme Gráfico 2.

Gráfico 2: Novos contratos (em milhares)


Fonte: FNDE.

Esse intenso aumento no Fies a partir de 2010 é explicado pelas

condições financeiras mais favoráveis para o estudante que permitiram

um crescimento em ritmo incompatível com a disponibilidade de

recursos no médio prazo, bem como a transferência dos riscos para o

setor público, por meio da substituição da fiança pela garantia provida

pelo FGEDUC.

Além disso, boa parte dos contratos do Fies foram celebrados com

estudantes que já cursavam, ou cursariam, o ensino superior e tinham

condições financeiras para arcar com as mensalidades. Isso se reflete no

fato de que, entre 2009 e 2015, o Fies concedeu em torno de 2,2 milhões

de novos financiamentos, contra cerca de 1 milhão de novas matrículas.

Nesses casos, portanto, o erário assumiu custos e riscos desnecessários.

Assim, o modelo de contratação com garantia do FGEDUC e a

alavancagem de dez vezes o patrimônio do fundo possibilitou a forte

ampliação do programa sem que o patrimônio público à época da sua

implantação fosse significativamente afetado. O indicador de resultado

primário, por exemplo, só foi impactado pelos aportes para

integralização de cotas do FGEDUC.

As principais causas para a insustentabilidade fiscal do Fies foram o

aumento do risco de crédito, o subsídio implícito e a governança do

programa. Com relação ao risco de crédito, o problema relaciona-se

primeiramente ao fato de os alunos não enxergarem o crédito como um


financiamento, mas como bolsa ou empréstimo a fundo perdido. Além

disso, no que diz respeito à concentração do risco na União, decorrente

da baixa contribuição das IES para o FGEDUC, foi o que contribuiu

para o risco moral das IES, que se viram incentivadas a captar o máximo

possível de contratos. Por último, à inadimplência subestimada,

considerando o percentual já observado, de cerca de 30% na carteira em

fase de amortização (contra 10% nas estimativas que embasaram as

garantias aos financiamentos), com baixa probabilidade de recuperação,

e o verificado pela experiência internacional.

Quanto ao subsídio implícito, o alto diferencial entre o custo da dívida

pública e a taxa de juros do Fies (6,5%) gerou um subsídio implícito

elevado, contribuindo para o aumento do endividamento público. E, por

fim, em relação à governança do programa, observou-se a ausência de

planejamento fiscal de médio prazo relacionado à oferta de vagas.

Dessa forma, com as mudanças que ocorreram no processo de

garantias do Fies ao longo do tempo, o risco fiscal concentrou-se na

União, e foi passada para a sociedade uma percepção equivocada de que

o programa podia ser ampliado sem aumentar os riscos fiscais e o

endividamento do setor público.

Com relação aos custos fiscais do Fies, sua execução financeira é


134
composta de emissão primária de CFT-E , que são repassados para o

FNDE, em contrapartida à disponibilidade financeira do programa; pela

recompra de CFT-Es remanescentes após pagamento da contribuição

previdenciária devida e subsidiariamente para o pagamento dos demais

tributos administrados pela Receita Federal pelas mantenedoras; por

fim, pelos repasses ao FGEDUC-CCG, os quais representam o volume

de financiamentos concedidos ao longo dos anos, conforme Tabela 8,

que mostra o crescimento exponencial dos custos.

Tabela 8: Execução financeira anual do Fies

Fonte: STN/RFB.
Ademais, outros custos causaram o impacto adicional do programa

sobre o endividamento público: i) integralização de cotas do FGEDUC;


135
ii) despesas administrativas do programa; e iii) subsídio implícito .

Dessa forma, o custo fiscal total do Fies deve considerar a soma de todos

esses fatores, totalizando no período que vai de 2010 a 2017, o montante

de R$ 117,6 bilhões, conforme a Tabela 9.

Tabela 9: Custo anual do Fies

Fonte: ME/STN e ME/Secap.

Em função do desenho do programa, com o carregamento do

diferencial de taxas de juros, realização das perdas por inadimplência,

após o stop loss, além das despesas administrativas, as contas públicas


serão fortemente afetadas nos próximos anos. Ou seja, apresentam um

risco fiscal que é, inclusive, incorporado no Anexo de Riscos Fiscais da

Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2022, conforme pode-se apreender

das Tabelas 10 a 12.

Tabela 10: Estimativa de desembolso para o período de 2021 a 2023

Fonte: Anexo de Riscos Fiscais 2022.

Tabela 11: Estimativa de impacto primário

Fonte: Anexo de Riscos Fiscais 2022 — Fies antigo (até 2017).

Tabela 12: Estimativa de subsídio implícito


Fonte: Anexo de Riscos Fiscais 2022 — Fies antigo (até 2017).

Por fim, para corrigir as falhas nessa política pública, apresentadas

anteriormente, e reduzir o risco fiscal da União, foi promulgada a Lei

13.530, de 2017, que instituiu, para os contratos realizados a partir de

2018, regras sustentáveis para o programa (Novo Fies), como a

vinculação do valor da prestação à renda efetiva do financiado, o fim do

período de carência, a coparticipação obrigatória das instituições de

ensino, pagamento diretamente ao agente financeiro e a concentração do

risco de crédito nas instituições de ensino. Ademais, foi criado um novo

fundo garantidor, o FG-FIES, o qual, dentro de alguns anos, será

composto majoritariamente de aportes das instituições de ensino, e não

mais pela União, e que trabalha com uma alavancagem bem menor do

que dez vezes o patrimônio, como praticado anteriormente, ficando em

torno de 3,5 vezes. A despeito das melhorias, somente o tempo e as

avaliações da nova política pública indicarão se ela se comportará a

contento ou exigirá novos ajustes.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este capítulo abordou a materialização dos riscos fiscais decorrentes de

políticas públicas implementadas por meio de fundos garantidores

privados formados a partir de recursos públicos, buscando identificar as

razões por trás das perdas da União, apontar as deficiências no controle

das políticas e na avaliação e monitoramento dos riscos, além de avaliar

o custo fiscal dessas políticas.

O primeiro caso analisado foi o do Fundo de Garantia para a

Construção Naval (FGCN). Mostrou-se que as perdas foram decorrentes

de uma combinação de fatores.

Em primeiro lugar, uma política pública inconsistente: subsidiar a

produção de sondas, com a fixação de metas pouco realistas para o

percentual de insumos nacionais usados na fabricação, em uma estrutura


industrial sem capacidade de atender a demanda em condições de preço,

prazo e qualidade minimamente competitivas.

Em segundo lugar, foram estabelecidas regras lenientes em relação à

alavancagem do fundo, à concentração de riscos na União e à

desconsideração dos limites legais de concessão de garantias a entidades

coligadas. Toda governança construída para o projeto não parece ter

resistido às pressões políticas por flexibilização de acesso às garantias e

acúmulos de risco na União.

Em terceiro lugar, a viabilidade dos projetos financiados dependia de

que os preços do petróleo se mantivessem em seus picos históricos por

muitos anos à frente. A reversão desses preços reduziu o retorno

esperado de muitos campos, inviabilizando, no curto prazo, a construção

das sondas.

Em quarto lugar, todo o processo foi contaminado por corrupção, que

resultou na interrupção dos financiamentos de longo prazo, necessários à

sustentação do programa.

O segundo caso apresentado foi o do Fundo de Garantia de Operações

de Crédito Educativo (FGEDUC), criado com o objetivo de garantir

parte do risco em operações de crédito educativo, no âmbito do Fundo

de Financiamento Estudantil (Fies).

Políticas de crédito estudantil são comuns em todo o mundo. O

problema do modelo criado no Brasil foi a concentração do risco de

crédito na União, que incentivou as instituições de ensino a ampliar ao

máximo as matrículas atreladas ao financiamento, dado que não

arcariam com os custos da inadimplência.

Os parâmetros de operação do Fundo foram excessivamente otimistas

em relação à inadimplência esperada. Também houve a adoção de

critérios pouco conservadores sobre como contabilizar desembolsos e

como apurar seu patrimônio líquido. Tudo isso visando ampliar ao

máximo os financiamentos concedidos, o que, obviamente, em um

segundo momento representou aumento da inadimplência e dos

respectivos custos fiscais.

Por fim, houve também falta de foco da política pública, em que se

ofereceu crédito a alunos que já custeavam suas mensalidades sem a


necessidade de subsídio ou financiamento público.

Nos dois casos, a lição é que impactos fiscais adicionais podem

ocorrer em políticas públicas criadas com fundos garantidores privados,

cujas perdas estariam, a princípio, limitadas ao patrimônio do Fundo.

Mitigadores de risco, como a existência de fundos garantidores, não são

salvaguarda de que perdas e falhas adicionais não possam ocorrer em

políticas públicas mal dimensionadas, inclusive causando significativo

impacto fiscal adicional. Falhas no desenho das políticas, em suas

governanças e na gestão de risco podem ocorrer e trazer grandes

prejuízos para a sociedade.

Por fim, uma forma de mitigar os riscos decorrentes de políticas

públicas seria a institucionalização de avaliações ex-ante e ex-post


para gerar informação à tomada de decisão dos gestores na busca de

melhoria contínua das políticas públicas e, com isso, permitir correções

em seus rumos, quando necessário.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BRASIL. Secretaria Nota Técnica SEI 33945/2020/ME.
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BRASIL. Secretaria de Tesouro Nacional. Anexo de Riscos Fiscais da LDO 2022.


Disponível em: https://www.tesourotransparente.gov.br/publicacoes/anexo-de-riscos-fiscais-da-

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BRASIL. Caixa Econômica Federal.

de 2019. Fundo de Garantia da Construção Naval.


BRASIL. Ministério da Economia. Relatório de Gestão Integrado 2020.
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Competitividade e tributação na indústria de


SILVA, Marcello Muniz da.

construção naval brasileira: peso dos tributos sobre preço de navio


petroleiro e plataforma offshore. Repositório do Conhecimento/Ipea, [S.i.].
SINAVAL. Apresentação Sete Brasil — Reunião de diretoria. Disponível em:
http://sinaval.org.br/wp-content/uploads/ReuniaoDiretoria2012_Sete.pdf. Acesso em: 20 set.

2021.

119. Risco de performance: incertezas relacionadas ao fiel cumprimento de todas as obrigações

contraídas em contrato pelo construtor e a inadequação da qualidade da construção, em conjunto

ou isoladamente, com a possibilidade de prejuízo decorrente de inadimplemento.

120. Estaleiro brasileiro: a pessoa jurídica constituída segundo as leis brasileiras, com sede no

País, que tenha por objeto a indústria de construção e reparo navais;

121. R$ 1.345.623.212,34, em 01/03/2010, e R$ 2.500.000.000,00, em 28/08/2012.

122. Sonda de perfuração é um equipamento para perfurar poços de acesso a reservatórios de

petróleo ou gás natural.

123. Área de reservas petrolíferas encontrada sob uma profunda camada de rocha salina, entre as

camadas rochosas do subsolo marinho.

124. Segundo o regulamento do FGCN, os tipos de contragarantias que poderiam ser fornecidas

eram: penhor das ações do estaleiro, alienação fiduciária ou hipoteca da embarcação, fiança dos

acionistas controladores do estaleiro, comodato das instalações, máquinas e equipamentos do

estaleiro e seguro garantia no valor mínimo de 3% do crédito (se utilizado em embarcação

destinada ao uso petrolífero) ou de 10% do crédito (nos demais casos).

125. R$ 4,8 bilhões (valores históricos honrados) somados a R$ 1,5 bilhão (atualização

monetária e juros contratuais), conforme RG FGCN 2018.

126. Silva (2014).

127. Algumas das SPEs tinham mais de um contrato de fiança com o FGCN.
128. O Novo Fies alterou as fases do programa. Deixou de existir o período de carência (que

estimulava a inadimplência) e o prazo de amortização passou a ser definido em regulamento

editado pelo Ministério da Educação, observando-se o aprovado pelo Comitê Gestor do Fundo

de Financiamento Estudantil (CG-Fies), em prestações mensais equivalentes ao maior valor

entre o pagamento mínimo e o resultante da aplicação percentual mensal vinculada à renda ou

aos proventos mensais brutos do estudante financiado pelo Fies.

129. Portaria MEC 14/2012.

130. Lei nº 12.873/2013.

131. Resolução CMN nº 3.415/2009.

132. Lei nº 12.202/2010.

133. Previsto na Lei nº 13.530, de 8 de dezembro de 2017, instituído pelo Decreto de 19 de

setembro de 2017.

134. Certificados Financeiros do Tesouro — Série E (CFT-E): títulos remunerados pelo Índice

Geral de Preços do Mercado (IGP-M).

135. Diferença entre a taxa de juros que remunera os títulos do Tesouro Nacional (custo de

oportunidade) e a taxa de juros cobrada nos financiamentos aos estudantes.


CAPÍTULO 5
FUNDO SOBERANO DO BRASIL
Marcos Mendes

INTRODUÇÃO
Em 2008, o Brasil criou o Fundo Soberano do Brasil (FSB). Este

capítulo tem por objetivo mostrar que não havia razões suficientes para

criar esse fundo. O diagnóstico que levou à sua criação foi superficial.

Uma vez criado, o FSB causou prejuízos financeiros e patrimoniais,

implicou desperdício do tempo dos gestores públicos e não alcançou

qualquer dos vários objetivos aos quais se propunha. Além disso, acabou

sendo usado como instrumento de contabilidade criativa, que visava

descaracterizar o impacto de decisões públicas sobre o déficit e a dívida

do governo.

Esse é um exemplo típico de má política pública. O equívoco foi

reconhecido e o FSB foi extinto em 2019, não sem antes enfrentar

resistência política ao fechamento de suas portas.

A seção 1 expõe os motivos pelos quais os países criam fundos

soberanos. A seção 2 explica por que não fazia sentido criar esse tipo de

fundo no Brasil. A seção 3 descreve o FSB, analisa as poucas operações

que realizou, o prejuízo que causou e os custos financeiros e de

oportunidade que impôs aos contribuintes. A seção 4 conclui.

1. FUNDOS SOBERANOS: O QUE SÃO E PARA


QUE SERVEM
Um fundo soberano nada mais é que aquele no qual o governo de um

país deposita recursos públicos usados para comprar ativos, em geral no


136
exterior . Os objetivos desse tipo de fundo podem ser:

a) poupança: visa transferir recursos para as próximas gerações.

São fundos usados, em geral, por governos de países cuja receita fiscal é

elevada e associada à exploração de recursos naturais finitos, como

petróleo ou cobre. A poupança é formada para garantir que parte da

riqueza possa beneficiar as gerações futuras, e não desperdiçada em

gastos que favoreçam apenas a presente.

b) estabilização: tem por objetivo suavizar as flutuações das

receitas públicas, em países cujo Tesouro é muito dependente de

tributação e royalties sobre a exportação de commodities. Uma vez


que o preço destas tem ciclos de alta e baixa, que se alternam de forma

pouco previsível, a finalidade do fundo é poupar nos períodos bons e

sacar nos períodos de preços baixos. Isso permite ao governo evitar

políticas fiscais irresponsáveis e insustentáveis nos períodos de boom,


bem como atuar com políticas anticíclicas nos momentos negativos.

c) investimentos: países que têm superavit estrutural na sua

conta de transações correntes com o exterior acumulam reservas

internacionais não necessárias para saque no curto prazo, pois elas são

crescentes e abundantes. Podem aplicar os recursos em investimentos de

baixa liquidez e maior rentabilidade, usando para isso um fundo

soberano. Já os países que não emitem moeda de curso internacional,

como o Brasil, e que em geral têm deficit na sua conta-corrente de

balanço de pagamentos, precisam de entrada de capitais estrangeiros

para equilibrar esse balanço. Podem, por isso, estar sujeitos a crises de

balanço de pagamentos e acumulam reservas como um seguro contra

fuga de capitais. Para tanto, precisam ter suas reservas aplicadas no

curto prazo, com liquidez imediata, a fim de tê-las disponíveis para

venda quando houver uma corrida contra a moeda nacional. Logo, não é

conveniente que apliquem as reservas internacionais em ativos ilíquidos,

por meio do fundo soberano.

d) controle da taxa de câmbio: países com grandes


superavit estruturais em transações correntes ou com alta volatilidade
nessa conta podem usar o fundo soberano para manter parte de suas
reservas internacionais no exterior. Com isso, evitam o ingresso das

divisas no país e a consequente valorização ou oscilação excessiva do

câmbio. Todavia, para que haja maior controle do câmbio, esses países

precisam impor controles ao fluxo de capitais (conta de capital do

balanço de pagamentos). Também não está garantido que sejam capazes

de controlar a taxa real de câmbio, definida seja como o câmbio nominal

descontada a inflação, seja como a relação entre os preços dos bens

comercializáveis no exterior e os preços dos não comercializáveis.

e) desenvolvimento: parte do superavit das contas públicas é


depositado em um fundo a ser utilizado para dar crédito a empresas ou

financiar projetos de desenvolvimento, como os de infraestrutura. Trata-

se de destinar parte da poupança pública para finalidades

preestabelecidas e fazer que o recurso seja gerido fora do orçamento

fiscal anual.

f) previdenciário: poupança dos superavit fiscais para arcar

com os deficit futuros do sistema previdenciário.

Essas finalidades citadas anteriormente indicam que faz sentido ter

fundo soberanos em países que apresentem uma ou mais das seguintes

características a seguir:

1. contas públicas estruturalmente superavitárias.


É o caso dos países exportadores de petróleo — Arábia Saudita ou

Noruega, por exemplo —, em que os governos recebem elevados

royalties, que em muito superam as necessidades de gasto público.

Isso lhes permite dispor de recursos extras, que serão acumulados para

gastar com as gerações futuras, com as aposentadorias da geração

presente ou, ainda, direcionados para subsidiar o investimento de

empresas privadas ou para gastos considerados estratégicos, como os de

infraestrutura.

2. alta dependência da receita pública em relação


a um pequeno número de commodities de
exportação. O exemplo típico é o Chile e sua alta dependência da
exportação de cobre, principal fonte de recursos para o governo.

Despesas públicas são em sua maior parte obrigatórias, estáveis no


tempo e o orçamento do governo não pode ficar sujeito a flutuações

inesperadas advindas do mercado internacional.

3. superavit estrutural na conta de transações


correntes do balanço de pagamentos. Decorre de saldo
positivo tanto nas transações comerciais quanto na remuneração de

capitais, como no caso da China, que é uma verdadeira “máquina de

exportações”.

Note-se que, a alguns países, aplica-se mais de um dos casos

anteriores: países exportadores de petróleo, por exemplo, são

tipicamente superavitários nas contas fiscais e em conta-corrente do

balanço de pagamentos, além de terem receitas públicas voláteis, em

decorrência da oscilação do preço internacional do petróleo.

2. FAZIA SENTIDO CRIAR UM FUNDO


SOBERANO NO BRASIL?
A Tabela 1 apresenta os países que operavam fundos soberanos em
137
2008, ano em que o Brasil decidiu criar o seu , comparando os

indicadores relevantes. O que ela mostra é que o Brasil não se encaixa

nos critérios que levam à criação desse tipo de fundo.

Tabela 1: Indicadores econômicos associados à oportunidade de criação de


fundo soberano
Fontes: Banco Mundial (World Development Indicators) e FMI (World
Economic Outlook Database). Elaborado pelo autor.

A coluna (A) da Tabela 1 mostra que, enquanto a média dos demais

países produziu, no período 2000-2008, um superavit em transações

correntes no balanço de pagamentos de 18% do PIB, o Brasil teve

deficit de 1%. Vale dizer, suas transações comerciais não geravam um

saldo positivo de dólares que estivesse disponível para aplicar no

exterior.

No período 2003-2007, o Brasil teve seu único período de saldos

positivos em transações correntes. Isso pode ter sido interpretado pelo

Governo Federal como uma mudança estrutural, que justificaria a

criação de um fundo soberano. No entanto, os saldos foram pequenos e

reverteram a deficit a partir de 2008, ano de criação do fundo


138
. O

mais correto, antes de tomar a decisão de criá-lo, seria aguardar e


verificar se, de fato, estávamos frente a uma nova realidade econômica

ou era uma simples flutuação cíclica, o que de fato se observou.

A coluna (B) mostra que o setor público brasileiro também não gerava

sobra de reais nos seus cofres, de modo que não havia uma poupança

pública a ser aplicada no fundo soberano. Enquanto os demais países

mostraram superavit nominal de 4% do PIB na média de 2000 a

2008, o Brasil apresentava um deficit nominal médio de 3% do PIB.

Logo, o governo não dispunha de poupança para guardar para as

gerações futuras, financiar empresas nacionais ou cobrir deficit


previdenciários futuros.

Embora houvesse, nos idos de 2008, grande expectativa com a

possibilidade de nos tornarmos um grande exportador de petróleo, a

coluna (C) da tabela mostra que, na média de 2000 a 2008, as vendas

internacionais de combustíveis representavam apenas 6% das nossas

exportações contra 54% da média dos demais países. Se a ideia era lidar

com a volatilidade dos preços do petróleo, a criação de um fundo

soberano deveria esperar que a promessa de superprodução do pré-sal se

concretizasse.

As colunas (D) e (E) mostram que ficamos um pouco acima da média

do grupo na exportação de minérios e de alimentos, mas as receitas

públicas com tributação e royalties sobre esses produtos estavam

longe de ter grande peso na arrecadação tributária total. Ao contrário de

Chile e Mauritânia, com economias e fisco extremamente dependentes

de um único produto de exportação, o Brasil tem uma economia

diversificada com ampla base tributária. Ademais, os preços dos

produtos de sua cesta de exportações (minério e alimentos) não têm

correlação elevada, o que mitiga eventuais picos e vales. Parece,

portanto, pouco justificável um fundo soberano para fins de estabilização

da receita fiscal.

Para tornar o caso brasileiro ainda mais inadequado à formação de um

fundo soberano, as colunas (F) e (G) da Tabela 1 mostram que tínhamos

uma dívida pública muito superior à média do grupo, assim como uma

taxa de juros real muito mais alta que a média dos demais. Isso significa

que, para o Brasil (em especial para as nossas gerações futuras), seria
mais vantajoso fazer esforço para quitar e reduzir a dívida pública do

que acumular recursos em uma conta separada de poupança (o fundo

soberano).

O argumento se fortalece ainda mais se o objetivo fosse aplicar no

exterior, onde as taxas de juros eram muito inferiores às nacionais. Criar

um fundo soberano, nessas condições, equivaleria a tomar dinheiro

emprestado no cheque especial para depositar na caderneta de

poupança: a perda seria certa. Entregaríamos uma dívida ainda maior

para as gerações futuras, em vez de beneficiá-las.

Pode-se afirmar que por volta de 2008 o Brasil já havia acumulado

muitas reservas internacionais e, portanto, o fundo soberano seria uma

oportunidade para obter melhor rentabilidade dessas reservas e também

para influenciar a taxa de câmbio, mantendo os recursos no exterior e

evitando a valorização do real.

De fato, a coluna (H) mostra que em 2008 tínhamos reservas

internacionais equivalentes a 8,5 meses de importações — valor elevado

e igual à média dos demais países retratados na tabela. Contudo,

conforme já argumentado antes, o Brasil acumulou essas reservas não

por ter saldos positivos estruturais em transações correntes, mas como

um seguro contra crises internacionais. O setor público tomou dinheiro

emprestado para comprar essas reservas. O seguro tinha, portanto, um

custo.

Desde a crise asiática de 1997, ficou claro que países sujeitos a

estrangulamento econômico por falta de divisas internacionais deveriam

manter um saldo de reservas para evitar a situação de ficar sem moeda

forte em caixa. Na ocorrência desse sinistro, as empresas nacionais não

teriam dólares para pagar suas importações, com graves consequências

para o funcionamento da economia.

A função de seguro exercida pelas nossas reservas internacionais é a

de estarem disponíveis, em aplicações de curto prazo, para serem

vendidas quando uma crise surgir. Não faz sentido direcioná-las para a

aquisição de participação em empresas ou outros ativos de baixa

liquidez.
Quanto a usar o fundo soberano para manter as divisas no exterior,

evitando seu ingresso no país e a consequente valorização da taxa de

câmbio, a estratégia esbarrava em uma questão institucional: no Brasil, a

política cambial e gestão das reservas é atribuição do Banco Central.

Gerir taxa de câmbio via fundo soberano significaria repassar parte do

poder de decisão para o Ministério da Fazenda. Criar o fundo soberano

sem tomar uma decisão sobre as atribuições do BC e da Fazenda em

matéria cambial tornaria o fundo inócuo, caso o BC continuasse no

comando da política. No mínimo, criaria ruídos na gestão da política de

inflação, fortemente influenciada pelo câmbio.

Além disso, a conta de capitais do Brasil (fluxo de empréstimos e

investimentos) é aberta, e os elevados valores que ali transitam

impactam o câmbio. Um movimento de manter reservas no exterior com

vistas a desvalorizar o câmbio poderia tornar os ativos nacionais baratos

para os estrangeiros e incentivar a entrada de dólares pela conta de

capitais, valorizando o real. Para controlar o câmbio, seria preciso impor

restrições à entrada e saída de capitais. Essa seria uma mudança muito

mais profunda da política cambial: o abandono da taxa de câmbio

flutuante.

Portanto, somente criar um fundo soberano não seria medida com

potencial de influenciar a taxa de câmbio efetiva real, que depende

também da inflação e da relação entre os preços de bens exportáveis e

não comercializáveis no exterior.

Também não havia necessidade de um fundo soberano para viabilizar

política anticíclica. A lógica de o governo gastar mais em períodos de

recessão, para ativar a economia, e fazer ajuste fiscal em momento de

crescimento rápido, não requer um fundo soberano. Essa conduta pode

ser utilizada com os instrumentos tradicionais de política fiscal: geração

de deficit e venda de títulos públicos no mercado doméstico, nas

crises, e aumentos de impostos e superavit nos períodos positivos.


Na prática, expansão fiscal em recessões implicará mais dívida

pública. Como vemos na coluna (B) da Tabela 1, o governo brasileiro é

estruturalmente deficitário. Ele não acumula poupança nos tempos bons

para poder gastar nos tempos ruins. Se não há poupança a acumular, não
faz sentido criar um fundo de poupança. Como já afirmamos, em razão

do alto custo da nossa dívida pública, o melhor a fazer nos tempos de

bonança é quitá-la para que, nos períodos de crise, ela esteja em nível

mais baixo, dando mais espaço para eventual política anticíclica.

Em suma, não havia em 2008, assim como não há no presente,

motivos para a criação de um fundo soberano no Brasil. Apesar disso,

tomou-se a decisão de criá-lo.

3. O FUNDO SOBERANO DO BRASIL


Em 24 de dezembro de 2008 foi publicada a Lei 11.887, que criou o

Fundo Soberano do Brasil (FSB). A exposição de motivos que


139
acompanhou o projeto de lei , enviado ao Congresso em maio de

2008, exalava otimismo em relação ao futuro do Brasil. O país já teria

dado a volta por cima no problema fiscal, tendo obtido superavit


primário acima da meta no ano anterior (no entanto, como vimos, ainda

tínhamos deficit nominal e, portanto, poupança pública negativa). As

reservas internacionais se acumulavam e tínhamos obtido o grau de

investimento na avaliação de agências internacionais de avaliação de

risco.

Ao mesmo tempo, a China havia lançado um fundo soberano em 2007,

o que havia colocado a ideia “na moda”. O desejo de ser país grande,

como o parceiro dos Brics, estimulava a criação do fundo brasileiro.

A exposição de motivos deixava clara a intenção de se utilizar o fundo

para interferir na cotação do câmbio, melhorar a rentabilidade das

reservas internacionais, fazer investimentos estratégicos no exterior e

aliviar a flutuação de receitas fiscais. Vimos na seção anterior que todos

esses objetivos ou não estavam ao alcance de um fundo soberano, ou

eram inadequados para a realidade brasileira, ou, ainda, poderiam ser

obtidos sem a criação do fundo.

Interessante observar que entre a apresentação do projeto, em clima de

Brasil Grande, em maio, e a promulgação da lei, em dezembro, houve a

quebra do banco Lehman Brothers e o início da crise financeira

internacional. No discurso público, o FSB se converteu de instrumento

para gerir a bonança em instrumento para lidar com a crise econômica.


Na verdade, não havia a necessidade de tal fundo para se executar a

política de aumentar gastos públicos financiados por endividamento,

adotada a partir de então.

O texto da lei fixava como objetivos do fundo “promover investimentos

em ativos no Brasil e no exterior, formar poupança pública,


mitigar os efeitos dos ciclos econômicos e fomentar projetos de interesse

estratégico do País localizados no exterior”


140
. Embora a seção 2 já

tenha analisado a impropriedade de se atingir tais metas via FSB, vale

chamar atenção para o termo “formar poupança pública”. O que forma

poupança pública são decisões de controlar gastos e elevar receitas. A

criação do FSB não gera poupança. A relação causal é inversa: são

países que já dispõem de alta poupança que criam fundos soberanos.

A referida lei permitia a realização de investimentos no Brasil e no

exterior, sendo a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP) a rentabilidade

mínima a ser alcançada nos investimentos internos, e a London

InterBank Offrered Rate (Libor) a taxa de referência para aplicações

internacionais. O uso da TJLP chama atenção por se tratar de uma taxa

subsidiada e fixada administrativamente pelo governo. Como o Tesouro

iria se endividar para colocar dinheiro no FSB, pagando um custo mais

alto que a TJLP, caracterizava-se a situação de “pegar emprestado no

cheque especial para aplicar na caderneta de poupança”: a meta de

rendimento do FSB era menor que o custo dos seus recursos. O Gráfico

1, adiante, mostra essa diferença de rentabilidade.

o
O art. 4 da lei dizia que o FSB seria irrigado com recursos fiscais do

Tesouro, vedada a emissão de títulos públicos. Isso não significava que o

Tesouro não estaria se endividando para custear o FSB. Bastaria uma

triangulação: uma despesa, que antes era financiada por recursos de

arrecadação tributária, passaria a ser financiada por dívida. E o dinheiro

que pagava aquela despesa passava a financiar o FSB. No fim das contas,

o que se tinha era o aumento da dívida para financiar o Fundo.

Mas nem foi preciso usar esse jogo contábil. No mesmo dia de sanção

da lei, foi editada a Medida Provisória 452, que alterou a lei e permitiu a

emissão de dívida como fonte de financiamento do FSB.


E assim foi feito. Em 30 de dezembro de 2008 fez-se um aporte de R$
141
14,24 bilhões no Fundo, a partir de títulos emitidos pelo Tesouro .

Ficava evidente que o “fundo de poupança” tinha como primeiro

depósito (e que seria o único na curta vida do FSB) um dinheiro que não

era poupado, e sim originado em endividamento.

A lei também criava um instrumento que seria usado para as

aplicações financeiras do FSB: o Fundo Fiscal de Investimento e

Estabilização (FFIE). Tratava-se de um artifício para que o dinheiro

saísse da conta do Tesouro e passasse a ser administrado pelo Banco do

Brasil, que veio a ser contratado para gerir o FSB. O FFIE tinha

natureza privada e seu cotista único era a União.

Tratava-se, pois, de uma conta do Tesouro fora de sua conta única no

Banco Central. Se em determinado ano o Tesouro estivesse com bom

desempenho fiscal, poderia transferir dinheiro para o FSB, o que seria

registrado como uma despesa do Tesouro e reduziria o resultado

primário do ano. Mais à frente, se houvesse necessidade de dinheiro

para cumprir a meta de resultado primário, sacaria dessa reserva.

O instrumento teria alguma lógica se essa poupança existisse de fato.

Mas como o resultado nominal (resultado primário mais juros) era


142
negativo , no fim das contas o que se estava fazendo era pegar dinheiro

emprestado para aplicá-lo com rentabilidade menor.

Mais barato seria não ter o FSB e, em anos de superavit primário,

usá-lo para pagar parte dos juros da dívida, de modo a limitar o seu

crescimento.

Na prática o FSB gerava uma comodidade para os gestores públicos. O

Ministério da Fazenda era (e ainda é) obrigado a cumprir uma meta de

resultado primário. Nem sempre é fácil calibrar essa meta no início do

ano. Às vezes, ao longo do ano, as condições econômicas mudam e a

meta fixada se torna muito fácil ou muito difícil de cumprir. Caso se

torne muito difícil, há um custo político de negociar com o Congresso

um projeto de lei para mudar a meta.

O FSB permitia driblar esse custo político: nos anos em que a meta

ficasse frouxa, o governo poderia mandar dinheiro para o FSB. Isso

significaria uma despesa primária e, portanto, redução do resultado


primário do ano, aproveitando o espaço na meta. Nos anos em que a

meta estivesse difícil de cumprir, o governo sacaria recursos do FSB, o

que representaria uma receita para o governo e consequente melhoria do

resultado primário.

Note-se, contudo, que esse “sapato largo e confortável” para o gestor

público tinha um custo para a sociedade. Como apontado anteriormente,

tomar dinheiro emprestado para fazer depósito no FSB custava caro.

3.1 AS OPERAÇÕES DO FSB


Uma vez recebido o depósito de R$ 14,24 bilhões em dezembro de

2008, o Fundo os transferiu para seu braço de investimento (FFIE), que

deixou os recursos aplicados em títulos públicos até 2010. Alegava-se

que a falta de regulamentação da lei não permitia que houvesse regras e

diretrizes para os investimentos. O Decreto 7.113, que criou o Conselho

Deliberativo do FSB, só foi editado em dezembro de 2009. Ou seja,

entre 2008 e 2010, tomou-se dinheiro emprestado, com a emissão de

títulos públicos, para comprar títulos públicos.

Em 2010, o FSB, por meio do FFIE, comprou ações do Banco do

Brasil e da Petrobras. Além de títulos públicos e operações


143
compromissadas , essas duas ações foram os únicos ativos que o FSB

possuiu durante sua existência.

Essa composição dos ativos estava muito longe da concepção original

do Fundo. Primeiro, não havia aplicações no exterior. Segundo, não

fazia sentido ter uma carteira de investimento que se pretendia que fosse

um seguro contra a flutuação da economia brasileira em que os ativos

eram altamente correlacionados com o desempenho da economia local.

Terceiro, o alto grau de concentração em apenas duas empresas também

aumentava o risco incorrido pelo Fundo.

As ações da Petrobras foram integralmente vendidas em 2012, com

prejuízo nominal de R$ 5,4 bilhões. Os títulos do Banco do Brasil foram

mantidos em carteira e vendidos gradualmente ao se extinguir o Fundo.

A Tabela 2 mostra as operações com ações da Petrobras em valores

nominais e o correspondente prejuízo. A venda se fez porque o Tesouro


precisava de recursos para aumentar o resultado primário de 2012, que

estava abaixo da meta.

Tabela 2: Operações com ações da Petrobras realizadas pelo Fundo


Soberano do Brasil: valores históricos

Fontes: Relatórios de desempenho do FSB e Relatórios de Gestão do FSB.


Elaborado pelo autor.

Em 2012, já despido dos objetivos grandiosos planejados para o

Fundo, o FSB parece ter se convertido em instrumento das manobras

contábeis que caracterizaram o Tesouro Nacional no período. As vendas

das ações da Petrobras pelo FSB não foram simples operações com o

mercado. Envolveram troca de títulos públicos e ações entre o Tesouro, o

BNDES e o FSB, com o objetivo de capitalizar empresas estatais e o

BNDES e de prover o BNDES de funding para ampliar seus

empréstimos.

Isso levava a operações triangulares que, quase sempre, se resumiam

em manobras contábeis para que se realizassem despesas primárias e

aumento de dívidas sem que os números aparecessem na contabilidade.

Para tanto, era importante ter instituições públicas fora do conceito de

setor público para fins de elaboração de estatísticas fiscais: era o caso

dos bancos públicos, da Petrobras e do FSB.

Em termos patrimoniais, o FSB acumulou perda nominal de R$ 7

bilhões. O Gráfico 1 mostra a valorização nominal do seu patrimônio

em comparação com o custo de financiamento do Tesouro Nacional, que

é dado pela chamada taxa implícita da dívida bruta do governo federal.

Enquanto a dívida pública, que financiou a capitalização do FSB,

acumulou custo nominal de 187%, o FSB valorizou-se 93%. Ou seja,

comparando as duas taxas conclui-se que houve perda patrimonial de


144
49% no período . Aplicando esse percentual ao capital inicial do FSB,

ou seja, de R$ 14,2 bilhões, a perda nominal (sem levar em conta a


145
inflação) foi de R$ 7 bilhões .

Gráfico 1: Rentabilidade do FSB, taxa de juros implícita da dívida bruta do


governo federal e TJLP (% a.a. nominal)

Fontes: Relatórios de desempenho do FSB, BNDES e Banco Central do Brasil.


Elaborado pelo autor.

A título ilustrativo, o Gráfico 1 também apresenta a TJLP, que era a

taxa fixada como meta de rentabilidade do FSB. Usar como meta uma

taxa subsidiada, fixada de forma administrativa, indicava a baixa

ambição em termos de rentabilidade para o Fundo desde a sua

concepção.

Durante a vigência do Fundo, essa taxa de referência modesta ajudou a

ocultar as perdas que se acumulavam. Nenhum relatório do FSB faz

menção ao efetivo custo de financiamento do Tesouro. Sempre se usa a

TJLP como base de comparação.

Em 2016, quando já estava clara a disfuncionalidade do FSB, o

Ministério da Fazenda propôs ao Congresso sua extinção, por meio da

Medida Provisória 830. Na exposição de motivos, justifica-se a extinção

pelo fato de o FSB ter sido criado em um período de otimismo, quando

o Brasil havia alcançado grau de investimento na classificação das

agências de rating, o pré-sal acabava de ser descoberto e esperava-se


uma melhoria estrutural nas contas fiscais do país a partir do novo fluxo

de rendas do petróleo.

No entanto, continua o documento:

O contexto macrofiscal conjuntural e prospectivo do país mudou

radicalmente no período mais recente, tornando cada vez menos

óbvios os benefícios de se manter a operacionalidade do FSB.

(...) Pela ótica financeira, a dinâmica fiscal impôs

questionamentos à racionalidade da existência do FSB. Entre

eles, está o custo de financiamento para a viabilização do fundo

já que, pelo fato do Brasil nunca ter apresentado superavit


nominal, sempre foi necessário o governo captar recursos em

mercado. Nesse contexto, a falta de poupança fiscal no Brasil

(deficit nominal) implicava a necessidade de se endividar para

formar um fundo que possivelmente teria uma rentabilidade


146
menor que os juros do endividamento.

O Congresso não votou a MP 830 e o FSB continuou a existir. Porém,

durante a vigência da Medida Provisória, o Tesouro Nacional sacou

todos os recursos depositados no Fundo e os utilizou para quitar dívida

pública. Posteriormente, a Medida Provisória 881, de 2019 — conhecida

como MP da Liberdade Econômica —, convertida na Lei 13.874/19,

finalmente extinguiu o FSB.

3.2 CUSTOS OPERACIONAIS E DE


OPORTUNIDADE
Uma política inadequada, como o FSB, não comporta apenas os custos

patrimoniais e financeiros anteriormente descritos. Há também o custo

operacional e de oportunidade, por alocar os recursos do setor público

para atividades de que não resultam benefício à população, perdendo-se

a oportunidade de usá-los em finalidade mais útil.

Uma vez que é costume supor que a máquina pública coloque à

disposição seus recursos humanos, financeiros e materiais ociosos para

definir uma nova política pública, esse é um custo pouco visível.


A Tabela 3 dá uma ideia do aparato criado em torno da gestão de um

fundo desnecessário.

Tabela 3: Normas, instrumentos de gestão e de prestação de contas do


Fundo Soberano do Brasil

Fonte: Legislação e relatórios citados na tabela. Elaborado pelo autor.

Em primeiro lugar, registra-se que tramitaram no Congresso uma lei e

quatro medidas provisórias tratando do tema. Isso significa ocupar

espaço na agenda de votações, alocar servidores para analisar pareceres,

propor emendas, estudar o tema. Antes disso, foi gasto tempo no

Executivo para se discutir a proposta, elaborar as minutas de projeto de

lei e medida provisória, bem como realizar projeções e estudos.

Uma vez em funcionamento, a política pública passa a requerer atos de

gestão, a se realizarem mediante normas infralegais: decretos, portarias

e resoluções, que igualmente tomam tempo e mobilizam recursos. No

caso do FSB foram seis decretos, dois despachos ministeriais, uma

portaria e 12 resoluções.

Para gerir o FSB, foi criado um Conselho Deliberativo, composto de

nada menos que os ministros da Fazenda e do Planejamento, além do

presidente do Banco Central. Uma estrutura similar ao do importante

Conselho Monetário Nacional, para tomada de decisões pouco

relevantes, que passaram a ocupar a agenda dos principais gestores da

política econômica. Certamente eles podiam ser representados por


subordinados, mas que também eram importantes gestores e tinham

agendas mais pertinentes a tratar.

A Secretaria do Tesouro Nacional criou uma coordenação-geral

específica para a gestão do FSB, mobilizando servidores (foram entre

sete e nove servidores enquanto existiu a coordenação), alocando

funções comissionadas. Além disso, a coordenação passou a tomar o

tempo da gestão central do Tesouro, por exemplo, por meio de sua

inclusão no planejamento estratégico da instituição, aplicando-se energia

para definir o que seriam a missão e as metas de uma coordenação cuja

finalidade era gerir um fundo sem maior utilidade.

Não bastasse criar uma coordenação na STN, também foram formadas

uma câmara consultiva e outra de planejamento de investimentos,

lembrando que os investimentos realizados foram basicamente a compra

e venda de ações do Banco do Brasil e da Petrobras, além da aplicação

em títulos do Tesouro, o que certamente não requereria um colegiado ou

um complexo planejamento de investimentos.

Além disso, contratou-se a distribuidora do Banco do Brasil

(BBDTVM) para gerir o fundo de investimentos, o que obviamente

implicou o pagamento por esse serviço, que, para todo o período de

existência do FSB, teve o custo de R$ 75,3 milhões, em valores de


147
março de 2021, como detalhado na Tabela 4 .

Tabela 4: Encargos operacionais do Fundo Fiscal de Investimento e


Estabilização (FFIE): R$ mil de março de 2021

Fonte: Relatórios de Gestão do FSB: 2009-2018.

O aparato de controle também era amplo. A tradição brasileira é de

extensivos controles interno e externo, nem sempre eficazes, mas quase

sempre geradores de processos longos e custosos de prestação de contas.

Exigia-se do FSB os relatórios de desempenho (trimestral), de


administração (semestral) e de gestão (anual), cujo conteúdo oscila entre

o formalismo burocrático e ambição e autocongratulação que estavam

longe da realidade.

O relatório de gestão de 2011, por exemplo, faz planos para uma

sofisticada política de alocações de recursos em 2013, que nunca

ocorreu, pois o Fundo fez a sua última operação relevante em 2012:

Durante o ano de 2012, com base nesses estudos, será elaborada,

em conjunto com o BCB e o Ministério do Planejamento,

Orçamento e Gestão (MP), proposta de Planejamento


de Investimentos para 2013, que abordará as classes
de ativos passíveis de investimento, diretrizes

de risco, aspectos de governança, entre outros


assuntos. Além disso, serão propostas taxas referenciais

de rentabilidade específicas por classe de ativos para


investimentos nacionais e internacionais. [Grifo
nosso] (Relatório de Gestão do FSB 2011, p. 15)

A política de investimentos só foi aprovada em junho de 2013. Tanto

trabalho, que buscou “o estado da arte da teoria de gestão de carteiras”,

não serviria mais para nada, dada a suspensão das operações:

Em 28 de junho de 2013, o Conselho Deliberativo do FSB

(CDFSB) aprovou a Política de Investimentos do FSB, por meio

da Resolução CDFSB 11. Essa política se ampara em quatro

pilares: a) Governança; b) Carteiras de


Referência; c) Limites Operacionais; e d)
Indicadores de Desempenho. Cabe salientar que a
Política consolida diversas ações de aperfeiçoamento

dos processos de funcionamento do FSB e foi baseada nas


melhores práticas internacionais em gestão
de fundos de riqueza soberana, bem como no
estado da arte da teoria de gestão de
carteiras e datação de ciclos econômicos.
[Grifo nosso] (Relatório de Gestão do FSB 2013, p. 14)

Além desses relatórios, a BBDTVM ainda tinha que publicar todos os

demonstrativos e auditoria independente, exigidos de fundos de

investimentos pela Lei 6.404/76, além de cumprir as exigências da

regulação da CVM.

4. CONCLUSÕES
Mostramos aqui que a criação e a gestão do Fundo Soberano do Brasil

constituíram um exemplo típico de política pública inadequada. O

diagnóstico que levou à sua criação não definiu claramente as razões

para fazê-lo. Os objetivos propostos eram confusos, o Brasil não exibia

as características típicas que tornam proveitosa a criação desse tipo de

fundo. A execução da política nem de perto reproduziu o que dela se

esperava, tendo sido feitos poucos investimentos, mal alocados, sem

diversificação e sem clara explicação para as escolhas realizadas. A

despeito da miríade de relatórios e instrumentos de planejamento,

governança e controle, o resultado foi um prejuízo patrimonial de R$ 7

bilhões, em valores históricos, além de desnecessários custos

administrativos e de oportunidade para a máquina pública.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Rendas do petróleo, questão federativa e instituição
FREITAS, P.S. de.

de fundo soberano. Consultoria do Senado. Centro de Estudos. Texto para Discussão 53,
2009.

MAGALHÃES, A.S. Determinantes dos fundos soberanos de investimentos e o caso brasileiro.

Revista Tempo do Mundo, v. 3, n. 2, ago/2011. p. 111-139


SECRETARIA DO TESOURO NACIONAL. Relatórios de Gestão do Fundo
Soberano do Brasil. Edições de 2009 a 2018, s/d.
SECRETARIA DO TESOURO NACIONAL. Relatórios de Atividades do Fundo Soberano do

Brasil. Edições de 2009 a 2018, s/d.

SECRETARIA DO TESOURO NACIONAL. Relatórios de Administração do Fundo Soberano

do Brasil. Edições de 2009 a 2018, s/d.

Í
CAPÍTULO 6
BENEFÍCIOS TRIBUTÁRIOS,
CREDITÍCIOS E FINANCEIROS148
Tiago Sbardelotto

INTRODUÇÃO
Os benefícios tributários, financeiros e creditícios são instrumentos de

política pública que, por meio de tratamento diferenciado a grupos

setores ou regiões, têm por função atingir objetivos como promover a

atividade econômica, reduzir as desigualdades sociais ou regionais ou

complementar a oferta de serviços públicos.

O objetivo deste capítulo é analisar os impactos da expansão desses

benefícios ao longo das duas primeiras décadas do século 21, que, na

ausência de governança adequada, teve implicações adversas sobre as

contas públicas e resultados econômicos negativos ou pouco

significativos.

Para tanto, além desta introdução, o capítulo conta com mais quatro

seções. Na primeira, discute-se a evolução dos subsídios, para cada um

dos três tipos de benefícios aqui analisados — tributários, financeiros e

creditícios, ao longo do período 2003 a 2019, explicitando-se as

possíveis causas desse fenômeno.

Na segunda seção, mostra-se um exercício simples em que se avalia

qual teria sido a evolução da dívida pública na ausência dos subsídios. O

impacto é substancial: na hipótese mais benevolente, a Dívida Bruta do

Governo Geral (DBGG) em 2019 estaria 22 pontos percentuais do PIB

abaixo do valor efetivamente observado: em vez dos 74,3% do PIB,

então registrados, teria ficado em 52,3%.

A terceira seção avalia os efeitos econômicos dos subsídios, em

especial sobre o crescimento econômico e desigualdade, além dos


impactos das distorções econômicas que permanecem até hoje. A última

apresenta as considerações finais.

1. A EVOLUÇÃO DOS SUBSÍDIOS E OS


PROBLEMAS NO DESENHO INSTITUCIONAL
Os benefícios tributários, creditícios e financeiros conferem tratamento

diferenciado a determinados grupos, setores ou regiões, reduzindo seu

ônus econômico em relação ao restante da sociedade. Podem ter

diferentes objetivos, como fomentar a atividade econômica, reduzir as

desigualdades regionais, complementar oferta de serviços públicos ou

corrigir falhas e distorções de mercado. É comum utilizar-se o termo

subsídio para designar o conjunto de benefícios de diferentes naturezas.

A despeito de sua similaridade, benefícios tributários, creditícios e

financeiros atuam de formas distintas sobre as finanças públicas e o

sistema econômico, o que torna necessário conceituá-los antes de seguir

com a avaliação dos seus impactos.

Não existe consenso acerca da definição de benefício tributário ou


149
gastos tributários, como são usualmente designados . No entanto, a

Secretaria da Receita Federal do Brasil (SRFB), responsável pela

identificação e estimativa de impacto desses benefícios e pela elaboração

do Demonstrativo de Gastos Tributários, apresenta a seguinte definição:

Gastos tributários são gastos indiretos do governo realizados por

intermédio do sistema tributário, visando a atender objetivos

econômicos e sociais e constituem-se em uma exceção ao

Sistema Tributário de Referência, reduzindo a arrecadação

potencial e, consequentemente, aumentando a disponibilidade

econômica do contribuinte.

Em linhas gerais, entende-se o gasto ou benefício tributário como um

gasto indireto do governo, realizado por meio do sistema tributário,

utilizando-se isenções, anistias, reduções de alíquotas, presunções

creditícias, deduções, abatimentos e diferimentos de obrigações


tributárias. A instituição de um novo benefício tributário afeta as
150
finanças públicas pela via da redução da arrecadação .

Por sua vez, os conceitos de benefícios financeiros e creditícios

contam com definição estabelecida na Portaria do Ministério da Fazenda

361/2018, a qual será utilizada como referência. Assim, os benefícios ou

subsídios financeiros correspondem:

(...) aos desembolsos efetivos realizados por meio de

equalizações de juros, de preços ou de outros encargos

financeiros, bem como assunção de dívidas decorrentes de saldos

de obrigações de responsabilidade do Tesouro Nacional, cujos

valores constam do orçamento da União.

Tanto no caso da equalização de preços como na de juros, o governo

garante aos agentes o recebimento de determinado preço mínimo ou a

disponibilidade de crédito a juros abaixo do mercado, compensando os

compradores e os emprestadores pela diferença entre os preços mínimos

e os preços de mercado, no primeiro caso, e entre os juros praticados

pela instituição financeira e os juros de referência do mercado, no

segundo.

Os benefícios financeiros impactam as finanças públicas pela via da

elevação da despesa primária e são explicitamente incorporados na

discussão anual da lei orçamentária.

Por fim, os benefícios ou subsídios creditícios são concedidos no

âmbito de programas de empréstimos com juros favorecidos, na maior

parte operacionalizados por bancos públicos. Eles são definidos como

“gastos incorridos pela União decorrentes do diferencial entre o

rendimento de fundos, programas ou concessões de crédito,

operacionalizados sob condições financeiras específicas, e o custo de

oportunidade do Tesouro Nacional”.

Essas políticas ocorrem por meio da captação pelo governo federal de

recursos financeiros junto ao mercado privado ou de fundos específicos,

como o Fundo de Amparo ao Trabalhador e os Fundos Constitucionais.

O custo dos benefícios creditícios corresponde ao diferencial entre a


taxa a qual os empréstimos aos agentes privados são realizados e o custo
151
de oportunidade do Tesouro Nacional .

O impacto dos benefícios creditícios nas finanças públicas é uma

elevação do custo implícito da dívida pública, representada por um

acréscimo das despesas financeiras.

O Gráfico 1 ilustra o crescimento dos subsídios da União para o

período 2003 a 2019, para o qual há informações disponíveis. Como se

nota, entre 2003 e 2015, há um crescimento substancial dos subsídios,

tendência parcialmente revertida nos anos seguintes. Quando se analisa

a composição dos subsídios, chama a atenção que a maior parte do

crescimento está concentrada nos benefícios tributários, movimento que

se inicia em meados dos anos 2000 e atinge o maior nível em 2015,

mantendo-se em níveis um pouco inferiores nos anos seguintes.

Os benefícios financeiros não apresentam tendência definida, embora

seja possível verificar algum crescimento a partir de 2011, com pico em


152
2015 e redução nos anos posteriores . Por fim, os benefícios

creditícios, por estarem relacionados à variação da taxa de juros básica,

naturalmente apresentam maior variação ao longo do tempo. No entanto,

de forma similar ao que se verificou para os demais benefícios, nota-se

crescimento a partir de 2011 e redução nos últimos anos da série.

Gráfico 1: Evolução dos subsídios da União (% PIB)

Fonte: Secap/ME.
O que explica o crescimento o contínuo dos subsídios? Uma primeira e

mais óbvia explicação reside na política econômica de caráter mais

intervencionista que permeou todo o período até 2014. Inicialmente,

esse direcionamento se refletiu em uma política industrial mais ativa,

que promoveu contínua elevação dos gastos tributários com políticas de

incentivo, mantendo o foco em políticas herdadas do passado, como os

incentivos à Zona Franca de Manaus e ao setor automobilístico,

apontado por Curado e Curado (2016).

O lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e

posteriormente do Plano de Desenvolvimento Produtivo (PDP) em 2008

reforçaram a visão de um Estado voltado à indução do processo de

crescimento. Mas é a partir da emersão da grande crise financeira, ainda

em 2008, que ocorre um aprofundamento dessa agenda, com a utilização

de diversos instrumentos de política econômica no intuito, inicialmente,

de responder aos efeitos adversos dessa crise e, em seguida, de manter o

país com um patamar elevado de investimentos.

A Tabela 1 mostra os programas criados ou ampliados no período a

partir de 2003, seu impacto acumulado ao longo do tempo e o quanto

representaram do total dos benefícios de cada natureza. De fato, os

benefícios tributários instituídos aí ilustram bem a direção da política

econômica. Chama a atenção, por exemplo, a quantidade de regimes

especiais criados, a maior parte deles ligados a setores considerados

“estratégicos”: infraestrutura portuária (Reporto), redes de

telecomunicações em banda larga (REPNBL-Redes), indústria de defesa

(Retid) e até estádios de futebol (Recopa) foram beneficiados com

isenções, reduções de alíquotas e outros tratamentos diferenciados.

Entretanto, os benefícios não ficaram restritos apenas à indústria,

abarcando diversos setores da economia, como ilustram as políticas de

desoneração da cesta básica (agricultura e agroindústria), títulos de

crédito do setor imobiliário e do agronegócio e desoneração da folha

salarial, implementada a partir de 2011 com quatro setores e ampliada

até atingir 56 ao final de 2014. Além disso, benefícios que já existiam

foram renovados ou ampliados, como é o caso da Zona Franca de

Manaus e do Simples Nacional, que contou com a inclusão de várias


atividades e elevação dos limites de faturamento a níveis superiores aos
153
de países desenvolvidos .

Os benefícios financeiros também tiveram peso significativo no

período e demonstram a visão do Estado como indutor do crescimento

econômico. O Programa de Sustentação de Investimentos (PSI) foi

criado a partir de 2009 em resposta à grande crise e tinha como

principal meta estimular a produção, a aquisição e a exportação de bens

de capital e a inovação tecnológica, ou seja, era um programa desenhado

para estimular o investimento. O PSI ofereceu linhas de crédito

subsidiados para empresas que desejassem realizar investimentos no

país, classificados em 19 subprogramas. Já o Programa Minha Casa

Minha Vida (PMCMV) tinha por finalidade ampliar o investimento

imobiliário com incentivo à produção e aquisição de unidades

habitacionais ou requalificação de imóveis urbanos e rurais para famílias

de baixa renda.

Por fim, a política mais intervencionista também se observa no âmbito

dos benefícios creditícios, em particular nos empréstimos da União ao

BNDES, que chegaram a R$ 416 bilhões entre 2008 e 2014 e serviram a

ele de funding no financiamento de projetos de investimento em geral,

tendo como base a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), fixada abaixo

das taxas equivalentes de mercado.

Tabela 1: Impacto dos benefícios instituídos ou ampliados a partir de 2003

2003 a 2019 2009 a 2019

R$ % R$ Milhões %
Milhões Total (2019) Total
(2019)

Benefícios Tributários (Total) 3.884.948 100,0 3.142.442,9 100,0

Simples Nacional1 1.001.554 25,8 824.262,6 26,2

Zona Franca de Manaus e Áreas 395.565 10,2 294.418,9 9,4


de Livre Comércio1

Desoneração Cesta Básica 312.992 8,1 265.778,0 8,5


2003 a 2019 2009 a 2019

R$ % R$ Milhões %
Milhões Total (2019) Total
(2019)

Desoneração da Folha de 135.766 3,5 135.765,6 4,3


Salários

Medicamentos, Prods. 125.155 3,2 98.708 3,1


Farmacêuticos e Médicos1

Regimes Especiais2 77.146 2,0 70.875 2,3

Setor Automotivo 62.437 1,6 48.312 1,5

Pesquisas Científicas e Inovação 52.535 1,4 41.646 1,3


Tecnológica

Embarcações e Aeronaves1 33.470 0,9 26.987 0,9

Demais 130.916 2,8 116.747 3,1

Benefícios Financeiros (Total) 478.147 100,0 373.345,0 100,0

Programa de Sustentação do 67.068 14,0 67.068 18,0


Investimento (PSI)

Minha Casa Minha Vida (MCMV) 124.326 26,0 124.326 33,3

Demais 12.419 2,6 8.645 2,3

Benefícios Creditícios (Total) 694.873 100,0 506.191,8 100,0

Empréstimos da União ao BNDES 179.773 25,9 179.741 35,5

Fies1 50.290 7,2 44.321 8,8

Demais 11.834 1,7 11.175 2,2

1. Políticas que foram ampliadas.


2003 a 2019 2009 a 2019

R$ % R$ Milhões %
Milhões Total (2019) Total
(2019)

2. Inclui Reporto, Reidi, RPNBL, Recap, Recopa, Prouca-Reicomp, Renuclear,


Padis/PADTV, Programa de Inclusão Digital e Olimpíadas.

A segunda explicação para o crescimento dos subsídios consiste na

precariedade dos mecanismos de governança, particularmente no

tocante a: i) instituição de novos subsídios e ii) monitoramento e

avaliação daqueles já vigentes.

O controle sobre a introdução de novos subsídios diferia de acordo

com sua natureza, mas em geral era bastante permissivo. No caso dos

benefícios tributários, sua criação ou expansão é regulada

principalmente pelo art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

Em linhas gerais, este artigo determina que propostas de benefícios

tributários que resultem em renúncia de receitas devem atender a dois

requisitos: i) a apresentação das estimativas de impacto orçamentário-

financeiro para o exercício em que iniciar sua vigência e os dois

subsequentes; e ii) a demonstração de que os impactos dos benefícios

tributários foram considerados na estimativa de receita da lei

orçamentária e não afetarão as metas de resultados fiscais previstas no

anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias ou, alternativamente, a

instituição de medidas de compensação por meio do aumento de receita

tributária.

Gráfico 2: Observância das condicionalidades legais de benefícios


tributários
Fonte: Elaborado pelo autor com base em pesquisa legislativa.

A despeito da determinação legal, o Gráfico 2 mostra que 66% das

medidas provisórias ou projetos de lei que instituíram benefícios

tributários após a publicação da LRF não continham sequer o cálculo de

impacto fiscal do benefício tributário e a 76% faltavam a indicação da

forma de compensação na exposição de motivos ou a justificação do

projeto de lei. Ou seja, duas informações que seriam fundamentais para

a tomada de decisões — quanto custa e como será pago o benefício —


154
não estavam disponíveis ao se apresentar a proposta à sociedade .

É interessante notar também que se tornou uma prática comum no

período o “contrabando” de benefícios tributários dentro de medidas

provisórias, muitas vezes sem relação com seu objeto. Por ter uma

tramitação diferenciada, com prazo delimitado de vigência (120 dias no

máximo) e entrar em regime de urgência depois de ultrapassados 45

dias, as medidas provisórias permitiram que novos benefícios fossem

criados sem ter de passar pelas discussões a que estariam sujeitas no

processo legislativo regular.

Tome-se por exemplo a MPV 255/2005. Sua versão inicial apresentava

apenas três artigos cujo objetivo era a prorrogação do prazo para opção

pelo regime de imposto de renda retido na fonte de pessoa física dos

participantes de planos de benefícios. A versão final, convertida na Lei

11.196/2005, possuía 133 artigos, a maior parte deles estabelecendo

novos benefícios ou ampliando alguns existentes. Em todos os casos,

não havia estimativa de impacto ou medida de compensação indicada.


Além disso, chama a atenção a forma de compensação do impacto da

renúncia de receita associada aos benefícios instituídos. Considerando-

se o mesmo conjunto de informações da legislação, verificou-se que em

92% dos casos a perda de receita foi compensada pela inserção dos seus

efeitos na lei orçamentária anual do exercício seguinte (art. 14, I),

reduzindo-se as despesas discricionárias para se manter a meta de

resultado primário. Esse é um resultado esperado: primeiro, porque é

bem mais custoso, do ponto de vista político, aumentar alíquotas ou

instituir tributos sobre outros setores para compensar a perda de

arrecadação. E segundo, porque uma vez inserido no orçamento, o

impacto do benefício tributário “se perde” nos anos seguintes, ou seja,

não aparece de forma explícita, o que torna difícil fazer a correta

associação do custo da política pública em termos fiscais. Como

consequência, há uma contínua erosão da base de arrecadação do

governo sem uma correspondente redução da despesa, afetando o

equilíbrio fiscal no longo prazo.

Não se trata de um problema tipicamente nacional. Mesmo países

desenvolvidos têm dificuldades de estabelecer um nível de transparência

no orçamento que permita uma maior discussão sobre os benefícios

tributários. Redonda e Neubig (2018), em uma análise de relatórios

fiscais que compreende 43 países da OCDE e do G20, incluindo o

Brasil, apontam que, apesar de seu impacto significativo sobre

orçamentos governamentais, os benefícios tributários são opacos e

geralmente não são submetidos ao mesmo nível de escrutínio no

processo orçamentário que os gastos diretos. De forma semelhante,

Burman & Phaup (2011), ao analisar o caso dos Estados Unidos,

avaliam que embora os gastos obrigatórios e os benefícios tributários

sejam semelhantes no sentido de que geralmente são direitos ilimitados

e não estão inseridos nas discussões sobre o orçamento, os custos dos

benefícios tributários têm a característica adicional de serem invisíveis

para os formuladores de políticas e cidadãos, já que são deduzidos das

receitas.

A instituição de benefícios creditícios também sofre de problemas.

Exceto pela necessidade de prévia e expressa autorização para a

contratação de operações de crédito, no texto da lei orçamentária, em


créditos adicionais ou lei específica (art. 32 da LRF), não existem

condicionantes à instituição de benefícios creditícios.

De fato, como mostrou a experiência, a simples autorização legislativa

não foi suficiente para prevenir a criação de um “orçamento paralelo”

com a política de empréstimos da União ao BNDES iniciada em 2008.

Nesse caso específico, utilizou-se uma sistemática de emissão direta de

dívida pública ao BNDES em que, em vez de o Tesouro Nacional ir ao

mercado privado levantar os recursos financeiros e posteriormente

encaminhá-los ao BNDES, o que conferiria algum grau de

transparência, ele simplesmente repassou ao banco títulos com


155
vencimento de curtíssimo prazo. Conforme dispôs o TCU , a entrega

de títulos aos bancos públicos por essa via não convencional recriou

mecanismo semelhante ao da conta movimento da década de 1980. Tal

entrega, sem a contrapartida financeira, permitiu que os bancos públicos

fossem financiados indiretamente pelo Bacen, por exemplo. Na prática,

o que houve foi o uso, pela via oblíqua, de crédito do Bacen para custear

políticas públicas.

No que diz respeito aos benefícios financeiros, as regras são mais bem

definidas. Por se tratar de despesas de caráter primário, esses subsídios

devem respeitar o disposto nos artigos 16 e 17 da LRF, que são mais

restritivas que aquelas voltadas aos benefícios tributários e determinam

a estimativa de impacto das medidas, a comprovação de que a despesa

criada ou aumentada não afetará as metas de resultados fiscais previstas

no anexo de metas fiscais e seus efeitos financeiros devem, nos períodos

seguintes, ser compensados pelo aumento permanente de receita ou pela

redução permanente de despesa. A concessão de subvenções,

especificamente, deve atender também o disposto no art. 26 da LRF, que

requer autorização por lei específica, que responda à Lei de Diretrizes

Orçamentárias (LDO) e esteja prevista no orçamento ou em seus

créditos adicionais.

Por fim, com a emergência do Novo Regime Fiscal (Emenda

Constitucional 95/2016), que criou o teto de gastos, as despesas com

benefícios financeiros passaram a disputar espaço com outras despesas

no orçamento. Impõe-se, assim, a discussão no âmbito do processo

orçamentário do quanto a sociedade deve destinar a esses programas.


O segundo aspecto relacionado à instituição das políticas financiadas

pelos três tipos de subsídios aqui analisados foi a ausência de avaliação

ex-ante, realizada antes da implementação de nova política ou

expansão de política já existente. A importância dessa análise reside no

fato de que constitui um mecanismo mais rigoroso para a tomada de

decisão, permitindo um uso mais parcimonioso dos recursos públicos.

Para tanto, são fundamentais a definição dos objetivos e metas a serem

atingidos, os valores dispendidos, o prazo de vigência e as estratégias de

monitoramento e avaliação, com a instituição clara de responsabilidades

a órgãos gestores, entre outros aspectos.

Na prática, o que se verifica é a ausência de um ou mais requisitos na

maioria dos benefícios tributários instituídos. Uma auditoria realizada


156
pelo TCU em 2015 concluiu que, de modo geral, as normas

instituidoras não estipulam claramente os objetivos, metas e indicadores

da política pública relacionada ao benefício tributário. Além disso, a

maioria dos gastos tributários avaliados à época tinha caráter

permanente, inclusive quando se consideravam apenas aqueles

benefícios instituídos nos últimos dez anos.

Na mesma linha, a Secretaria do Tesouro Nacional divulgou uma

análise feita em 2017 sobre os benefícios tributários, a qual indica que

84,3% dos gastos tributários tinham prazo indeterminado de vigência

em sua legislação, mais da metade (52,5%) não tinha órgão responsável

designado e nenhum deles tinha objetivos e metas quantificados. Não há

avaliação similar sobre a situação benefícios financeiros e creditícios,

mas a situação não deve divergir sensivelmente.

O segundo aspecto da governança de benefícios, designado análise ex-


post, é a avaliação e o monitoramento dos benefícios vigentes. A

avaliação é um instrumento relevante para a tomada de decisões ao

longo da execução da política, pois diz ao gestor o que aprimorar e, em

alguns casos, como fazê-lo. O monitoramento, por sua vez, é um

processo contínuo ao longo da implementação que permite identificar

problemas e falhas prejudiciais a ações, processos ou objetivos da

política pública durante a execução e, assim, reúne condições para

ajustar planos de implementação.


Em termos efetivos, poucas políticas públicas nas últimas décadas

tiveram uma análise ex-post realizada. Curiosamente, programas como


a desoneração da folha e o PSI contavam com instâncias de

monitoramento, o que permitiu que diversas análises fossem realizadas e

identificassem a baixa efetividade da política pública. Como se verá nas

considerações finais, houve um significativo incremento de análises ex-


post com a implementação do Comitê de Monitoramento e Avaliação

de Políticas Públicas (CMAP) a partir de 2018.

2. O CUSTO FISCAL DAS POLÍTICAS DE


SUBSÍDIOS
Como já salientado, o impacto causado por esses benefícios difere de

acordo com sua natureza: enquanto os tributários afetam diretamente a

receita primária, pela perda de arrecadação, os financeiros representam

aumento de despesas primárias. Já os benefícios creditícios afetam

diretamente a dívida pública.

Os valores expressos no Gráfico 1 mostram exatamente esses efeitos,

no entanto, a análise do custo fiscal das políticas públicas deve avaliar,

também, o impacto do custo fiscal dessas políticas sobre a dívida

pública. Para tanto, mostraremos aqui um exercício no qual se estima a

trajetória da dívida pública caso as decisões com relação à ampliação


157
dos subsídios não houvessem ocorrido .

Antes de realizar esse exercício, é necessário contextualizar algumas

premissas. Em termos de benefícios tributários, o método para

mensuração das renúncias fiscais utilizado pela Receita Federal do

Brasil é o de perda de arrecadação. Nele se compara a arrecadação

efetiva da receita com a que teria sido coletada sem os benefícios

instituídos, assumindo que o comportamento dos contribuintes não se

alteraria, assim como as receitas de outros impostos e o impacto de

outros benefícios tributários.

Suponhamos a extinção de algum benefício tributário. É provável que,

daí por diante, parte da base de arrecadação deixe de existir pelo fato de

que, provavelmente, as empresas que dependem desse subsídio para


sobreviver fechariam as portas. Assim, dificilmente o ganho de

arrecadação será igual ao montante estimado de renúncia de receita.

Para contornar essa dificuldade técnica, a estimação dos impactos do

ganho de arrecadação com a não instituição dos benefícios tributários

considerará cenários com reversão de 75%, 50% e 25% dos valores

renunciados à arrecadação efetiva.

Uma segunda hipótese diz respeito à utilização dos recursos

arrecadados em que estejam ausentes benefícios tributários. Com um

volume maior de receitas, é possível tanto ampliar as despesas em

mesmo montante, sem qualquer impacto sobre a dívida pública, como

destinar todo o ganho de receita para a elevação do resultado primário,

com impacto de redução da dívida pública ou ainda qualquer outro

cenário de combinação entre elevação de despesas ou de resultado

primário. Por simplificação, será utilizada a hipótese de que o montante

arrecadado a mais será destinado totalmente para o resultado primário,

com impacto direto sobre a dívida, tendo em vista o objetivo deste

exercício.

A terceira premissa relativa aos benefícios tributários é o montante a

ser considerado como “mínimo”, ou seja, o valor sobre o qual se

considerará o “excesso” de benefícios. De fato, todos os sistemas

tributários têm, em maior ou menor grau, isenções, deduções, alíquotas

diferenciadas ou outras desonerações consideradas desvios do sistema

de referência. Assim, algum nível de benefícios tributários deve existir,

até porque se trata de um instrumento de política pública que, em

determinadas condições, pode ter resultados benéficos.

A decisão sobre o nível mínimo não é trivial e envolve um certo grau

de arbitrariedade. No entanto, como o objetivo aqui é demonstrar o

impacto dos benefícios instituídos a partir de 2003, ano inicial da série

de dados disponíveis, em que o montante total de renúncia perfazia 2%


158
do PIB, podemos considerar esse valor como o mínimo . Assim, na

elaboração das estimativas, será considerado excesso todo o montante

que ultrapassar esse valor. Por exemplo, para o ano de 2007, ano em que

os benefícios tributários foram de 3,26% do PIB, o montante a ser

acrescido seria de 1,26 p.p. do PIB.


Em relação aos benefícios financeiros e creditícios, há que se fazer

algumas ponderações. Como mostrou o Gráfico 1, o impacto desses

benefícios oscila ao longo do tempo, com períodos de crescimento

alternando períodos de retração. No caso dos benefícios financeiros, a

variação dos custos fiscais decorre principalmente do diferencial entre

os juros praticados nos programas e os de referência do mercado e do

diferencial entre os preços mínimos e os de mercado, que variam

significativamente no período analisado. Com isso, adotar um valor

mínimo de benefícios financeiros, como foi feito no caso dos tributários,

é pouco razoável, pois isso dependeria mais da taxa de juros de

referência do mercado do que de uma decisão de política pública.

Uma alternativa a essa limitação seria selecionar programas

específicos, identificar os seus custos e utilizar essas informações para

calcular o impacto fiscal. Assim, para nosso exercício serão

considerados os valores relativos aos subsídios mais relevantes criados

no período avaliado: o PSI e o PMCMV.

Os custos dos benefícios creditícios também sofrem com a oscilação

do custo médio de emissão dos títulos públicos federais. Novamente,

tratar de um nível mínimo para esses benefícios é pouco razoável. Como

no caso dos benefícios financeiros, aqui será selecionado um programa

específico, criado no período compreendido no exercício de impacto

fiscal e cujo custo foi bastante significativo: os empréstimos da União ao

BNDES. Em termos de efeitos, como a DBGG é diretamente

sensibilizada no momento da emissão dos títulos, será considerado o

impacto em um cenário em que esses não tivessem sido emitidos. Por

consequência, também serão excluídos os efeitos das devoluções

antecipadas promovidas pelo BNDES.

A Tabela 2 apresenta os impactos fiscais para cada natureza de

benefício, considerando, no caso dos benefícios tributários, como

proposto anteriormente, três possíveis cenários de recuperação de

receita. No caso dos benefícios creditícios, os valores são maiores que

os demais benefícios nos primeiros anos e apresentam sinal negativo a

partir de 2015, quando se iniciaram as amortizações e as devoluções

antecipadas de recursos do BNDES ao Tesouro Nacional.


Tabela 2: Cenários de ganhos fiscais potenciais (% PIB)

Ano Benefícios Benefícios Benefícios


Tributários Financeiros Creditícios

Arrecadação
Potencial

75% 50% 25%

2006 0,5 0,4 0,2 0,0 0,0

2007 0,9 0,6 0,3 0,0 0,0

2008 0,9 0,6 0,3 0,0 0,7

2009 1,1 0,7 0,4 0,0 3,2

2010 1,1 0,7 0,4 0,0 2,1

2011 1,1 0,7 0,4 0,2 1,1

2012 1,3 0,9 0,4 0,2 1,1

2013 1,6 1,1 0,5 0,3 0,8

2014 1,8 1,2 0,6 0,3 1,0

2015 1,9 1,3 0,6 0,9 -0,3

2016 1,7 1,1 0,6 0,3 -1,8

2017 1,8 1,2 0,6 0,2 -0,8

2018 1,7 1,1 0,6 0,2 -1,9

2019 1,6 1,1 0,5 0,1 -1,4

Fonte: Elaboração própria com base em dados da Secap/ME.

A partir das informações apresentadas, pode-se avaliar os impactos

dos benefícios na dívida pública utilizando-se a equação dinâmica da

dívida:
em que Dt é o nível da dívida no período t, i é a taxa de juros implícita
nominal da dívida, SPt é o superavit primário e At são ajustes
patrimoniais e metodológicos.

A redução dos benefícios tributários e financeiros aumenta receitas e

reduz despesas, afetando diretamente o superavit primário. O maior

superávit primário, por sua vez, resulta em montante de dívida menor

quando comparado ao cenário em que se mantém os benefícios. Assim,

no período seguinte ( t+1) a taxa de juros it+1 incidirá sobre um

montante menor, reduzindo também o valor da conta de juros. Portanto,

além dos efeitos diretos sobre o resultado primário, tem-se também os

efeitos dinâmicos sobre juros nominais.

Os benefícios creditícios, por sua vez, afetam diretamente o montante

dívida. Na medida em que se considera um cenário sem emissão, além

da redução da DBGG tem-se também uma redução nos juros nominais

nos períodos seguintes, pelos efeitos dinâmicos da equação.

O Gráfico 3 apresenta os resultados da simulação com as hipóteses

elencadas anteriormente. Como se verifica, o impacto em qualquer dos

cenários é bastante significativo: a dívida pública ou seria reduzida ao

final do período (nos casos em que a arrecadação se eleva em 75% ou

50% do montante de benefícios revertidos) ou se manteria em patamar

relativamente estável em valores entre 45%-60% do PIB. Comparando-

se o final do período, a diferença entre o cenário mais benigno e o

efetivamente realizado é bastante significativa, ou seja, chega a 41,4 p.p.

do PIB. Mesmo nos cenários intermediários, que seriam mais prováveis,

a diferença é grande e oscila entre 22 e 31,7 p.p.

Gráfico 3: Simulações da trajetória da Dívida Bruta do Governo Geral


(DBGG) versus trajetória ocorrida (% do PIB)
Fonte: Elaboração própria.

Os resultados apresentados demonstram que o custo para a sociedade

das decisões tomadas no passado em relação à instituição de benefícios

foi bastante elevado. Por outro lado, pode-se argumentar que os

benefícios tiveram efeitos positivos sobre a economia, em especial sobre

a taxa de crescimento. De fato, mesmo que tenha havido efeito positivo

— e como se verá na próxima seção, essa assertiva é bastante

controversa — ele provavelmente não foi suficiente para “pagar” o custo

dos benefícios.

3. O IMPACTO ECONÔMICO DOS BENEFÍCIOS


As políticas públicas baseadas nesses subsídios, ao introduzir ou alterar

incentivos na economia, visam alcançar objetivos específicos, como

ampliar o nível de investimentos em determinados setores, promover o

crescimento econômico e também aumentar a competitividade e reduzir

as desigualdades. Em resumo, essas intervenções só se justificam porque

são instrumentos para ampliar o bem-estar social. Nesse sentido, esta

seção discute os impactos econômicos dos benefícios instituídos, a fim

de verificar se propiciaram efetivamente impactos positivos.

Se algumas políticas isoladamente podem prover ganhos em termos de

crescimento econômico ou redistribuição de renda, é pouco provável que

quando avaliadas em conjunto o resultado seja o mesmo. Afinal, os

benefícios no país têm objetivos muito distintos e o desenho de cada um

não costumou considerar a interação com os demais. Além disso, a


inclusão de novos benefícios sem revisão dos anteriores implica o

acúmulo de incentivos (e distorções) no sistema econômico, com

prejuízos aos próprios objetivos das políticas públicas.

Tome-se por exemplo o crescimento econômico. Primeiro, a criação de

benefícios, em particular os tributários, tem como efeito adicionar

complexidade ao sistema tributário, e isso, no caso brasileiro,

corresponde a piorar o que já é complexo. Como apontou Lisboa (2014),

os incentivos ou desonerações tributárias e os diversos regimes especiais

implicam maior complexidade das regras e obrigações distintas para

atividades produtivas equivalentes, distorcendo as decisões privadas de

produção e resultando em insegurança jurídica, com prejuízo ao

crescimento de longo prazo.

Em segundo lugar, o tratamento diferenciado decorrente dos

benefícios tributários, financeiros e creditícios permite que empresas ou

setores menos eficientes continuem operando, enquanto empresas ou

setores mais eficientes são duplamente penalizados: além de competirem

em condições desiguais, ainda têm de arcar com os custos dos subsídios

— seja por tributos mais altos, seja por uma taxa de juros mais elevada.

Por fim, a possibilidade de se obter vantagens por meio de benefícios

de qualquer natureza tem como efeito incentivar a organização de

grupos de interesse cujo único objetivo é obter tratamento diferenciado,

ou por meio do orçamento, ou por menor carga tributária, ou por uma

política de proteção de mercado. Como consequência, as empresas

passam a destinar recursos significativos, que poderiam ser utilizados

para aumentar a sua produtividade, a atividades de lobby político.


O efeito do acúmulo de benefícios ao longo do tempo sobre o

crescimento econômico no Brasil foi abordado por Corcelli (2021). A

partir de um modelo de painel, o autor apontou que, para cada 1% de

aumento na razão gastos tributários/PIB, o crescimento per capita


anual é reduzido na média em 0,013% e esta relação é linear. Em outros

termos, quando considerados em conjunto, os benefícios tributários

seriam nocivos ao crescimento econômico, um resultado que corrobora

os argumentos apresentados. Em um exercício hipotético, isso significa


que, se fosse mantido o mesmo nível de benefícios de 2005, o PIB

nacional estaria 0,33 p.p. acima do efetivamente verificado em 2019.

Outro objetivo comum no conjunto de benefícios é a redução da

desigualdade de renda ou da pobreza. Nesse sentido, Leister et al. (2018)

avaliaram o efeito na redução da desigualdade de diversos benefícios

tributários, com foco na desoneração da cesta básica. Os resultados

foram comparados com o Programa Bolsa Família (PBF) e com um

cenário hipotético em que os valores fossem distribuídos de forma

igualitária entre todos os extratos de renda.

Tabela 3: Variação do índice de Gini em razão de benefícios tributários e


programas de referência — valores efetivos

Gasto Tributário/Programa Efeito sobre o


Gini

Benchmark 1 — Bolsa Família -0,0077

Benchmark 2 — Distribuição igual para todos -0,0042

Simples Nacional 0,0018

Agricultura e Agroindústria — Desoneração Cesta -0,0016


Básica

Desoneração da Folha de Salários 0,0000

Medicamentos, Produtos Farmacêuticos e Equips. -0,0005


Médicos

Desenvolvimento Regional 0,0005

Demais -0,0011

Total Gastos Tributários -0,0009

Fonte: Leister et al. (2018).

Da Tabela 3 pode-se extrair que, de fato, se compararmos a

desoneração da cesta básica e o PBF, este último é 4,8 vezes mais

eficiente em reduzir a desigualdade de renda no país. Mesmo no caso


em que os recursos fossem simplesmente redistribuídos de forma

igualitária entre a população, o resultado seria melhor do que a

desoneração da cesta básica. Resultado similar é apresentado em Brasil

(2019): a extinção da desoneração com redistribuição dos seus valores

de forma igualitária reduziria a desigualdade e a pobreza em 0,16% e

1,67%, respectivamente; se os mesmos recursos fossem redirecionados

ao PBF desigualdade e pobreza, seriam reduzidas em 0,77% e 10,16%.

A Tabela 3 mostra que outras políticas também não se saem tão bem: a

desoneração de medicamentos, produtos farmacêuticos e equipamentos

médicos tem pouco efeito sobre a desigualdade, a desoneração da folha

tem efeito nulo e os programas do Simples Nacional e Desenvolvimento

Regional são concentradores de renda. No conjunto, os benefícios

tributários reduzem as disparidades de renda, porém de forma pouco

efetiva quando comparado a outros programas e a um custo muito mais

elevado.

Além de não serem eficientes em promover o crescimento econômico

e com pouco resultado em reduzir pobreza e desigualdade, os benefícios

instituídos no país causaram distorções com impactos duradouros. É o

caso do PSI, que como já vimos, tinha como objetivo estimular o

investimento.

O impacto do PSI sobre o nível de investimento é controverso.

Conforme apontam Ellery et al . (2015), comparações internacionais

sugerem que não há nada de particular na economia brasileira que possa

ser visto como um impacto positivo do PSI, já que a rápida recuperação

da taxa de investimento foi observada em outros países que já em 2010

ou 2011 tiveram taxas semelhantes às observadas no período anterior à

crise.

O fato é que o PSI selecionou setores específicos, aos quais forneceu

créditos subsidiados, o que possivelmente resultou em alocação de

capital ineficiente. Embora esse efeito tenha ocorrido em toda a

economia, talvez o caso mais conhecido seja o dos caminhões, que

foram beneficiados com uma linha de crédito no BNDES.

Gráfico 4: Licenciamento de caminhões e desembolsos do BNDES


Fonte: BNDES e Anfavea.

O Gráfico 4 mostra a evolução do licenciamento de caminhões (eixo

esquerdo) e os desembolsos do BNDES relacionados ao Finame BK

aquisição e comercialização — transportes (eixo direito). A área cinza

marca o período de duração do PSI. Como se nota, houve um

crescimento substancial na quantidade de caminhões licenciados no

período do PSI, chegando a um volume extraordinariamente elevado

quando se avalia a série histórica disponível. A combinação da oferta

excessiva com retração da demanda nos anos seguintes é considerada a

causa mais provável da greve dos caminhoneiros em 2018 e até hoje

impacta a renda desse setor: o financiamento gerou um excesso de oferta

de fretes, derrubou o seu preço e deixou os caminhoneiros sem renda.

Em resumo, apesar da possibilidade de políticas públicas realizadas

por meio de subsídios produzirem efeitos positivos no crescimento ou na

distribuição de renda, no caso brasileiro o que parece é que os efeitos

sobre o crescimento são negativos ou próximos a zero, enquanto os

relacionados à redução da desigualdade e pobreza são pouco expressivos

diante do custo dos programas. Não bastasse isso, as políticas instituídas

nos últimos anos produziram distorções que persistem no tempo, à base

de resistência política organizada por seus beneficiários.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este capítulo abordou a evolução dos benefícios tributários, creditícios e

financeiros a partir de 2003. A intenção foi identificar as razões por trás


do seu crescimento expressivo, apontar as deficiências no controle da

instituição e na avaliação e monitoramento dos benefícios, avaliar o

custo fiscal dessas políticas, em termos de endividamento público, bem

como discutir seus principais impactos econômicos.

Houve avanços institucionais relevantes após o período de forte

crescimento dos subsídios e dos problemas fiscais por eles gerados. Por

exemplo, o Decreto 9.191/2017 estabeleceu que os atos normativos

submetidos pelos diversos órgãos ao presidente da República deverão

apresentar pareceres de mérito que contemplem elementos da análise ex


ante, e o Decreto 9.203/2017 estabeleceu uma política de governança,

que deve ser seguida por toda a Administração Pública.

Em 2018, foi criado o Comitê de Avaliação de Subsídios (CMAS), que

tem sido responsável pela avaliação ex-post de diversos benefícios

tributários, creditícios e financeiros, seguindo um ciclo definido no

âmbito do Comitê de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas

(CMAP). As análises produzidas, em geral, revelam que há pouca

efetividade nos benefícios e podem subsidiar decisões de alteração ou

extinção.

Adicionalmente, nos últimos anos houve de fato uma redução dos

subsídios, concentrada na maior parte em benefícios financeiros e

creditícios. É verdade que boa parte dessa redução se deve às menores

taxas de juros praticadas no período, mas ainda assim houve decisões

políticas importantes, como o encerramento do PSI, a devolução de

parte dos recursos emprestados pela União ao BNDES e a substituição

de uma taxa de juros tabelada abaixo das taxas de mercado — a TJLP

— pela Taxa de Longo Prazo (TLP), referenciada nos títulos públicos de

cinco anos emitidos pelo Tesouro Nacional.

Ainda assim, os principais desafios aqui apontados permanecem. O

controle sobre a criação de benefícios, especialmente os tributários,

ainda é insuficiente. É necessário reformular as regras contidas na LRF,

pois não é possível a permanência de uma sistemática de compensação

cujos efeitos no longo prazo são a contínua erosão das bases tributárias.

Além disso, é preciso que as regras sejam mais duras em contexto de

desequilíbrio fiscal, permitindo que novos benefícios sejam instituídos


apenas se forem compensados pela eliminação de outros benefícios da

mesma natureza.

A criação de benefícios com prazo indeterminado deve ser vedada. As

políticas públicas precisam ter objetivos que se efetivem de forma

determinada. Se uma política não atingiu seus objetivos dentro do

período, deve ser avaliada e alterada ou substituída por outra mais

eficiente; se atingiu, deve ser encerrada, sob pena de criar ineficiências

ou distorções no longo prazo.

As avaliações ex-ante e ex-post devem ser institucionalizadas em

todos os ministérios e principalmente no Poder Legislativo. É

fundamental que os representantes do povo disponham de todas as

informações necessárias para a tomada de decisão, ainda que a política

tenha sua dinâmica própria. Além disso, é importante buscar a melhoria

na qualidade das avaliações, por meio de parcerias com organismos

internacionais e acadêmicos especializados nas suas diversas técnicas.

Por fim, é fundamental que benefícios de baixa efetividade sejam de

fato alterados ou extintos. Para tanto, é preciso o devido enfrentamento

dos grupos de interesse, caso contrário, apresentar planos de redução de

benefícios servirá apenas para cumprir formalidades legais.

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Economies. Discussion Note 2018/3. Zurique: CEP: 2018.

136. Para uma descrição dos fundos soberanos existentes na primeira década do Século 21, ver

Freitas (2009) e Magalhães (2011).

137. A lista de países foi obtida em Magalhães (2011).

138. Fonte: Banco Central do Brasil.

139. Em 38/2008 ao PL 3674/2008.

o
140. Lei 11.887/2008, art. 1 . Grifo nosso.

141. O Tesouro Nacional disponibiliza em seu sítio na internet a coletânea de relatórios de

desempenho do FSB, de onde são extraídas as informações financeiras do Fundo aqui

apresentada em www.tesourotransparente.gov.br/publicacoes/relatorio-de-desempenho- do-

o
fundo-soberano- do-brasil /2013/25 (4 semestre).

142. Em 2007 o deficit nominal do governo federal foi da ordem de R$ 48 bilhões e, em 2008,
de R$ 36 bilhões. Não havia, pois, poupança a ser depositada no FSB.

143. Aplicações de curto prazo em títulos públicos.


144. (1+187%)/(1+93%)-1=49%

145. 49%*14,2 = 6,96

146. Medida Provisória 830. Exposição de motivos.

147. Esse valor foi pago pelo patrimônio do FSB, de modo que o custo já está embutido na baixa

rentabilidade mostrada no Gráfico 1.

148. O autor agradece os comentários de Marcos José Mendes, José de Anchieta Semedo Neves,

Pedro Jucá Maciel e Thayssa Mendes Tavares Pena. As opiniões contidas neste capítulo são de

inteira responsabilidade do autor.

149. Para uma discussão sobre o conceito de gasto tributário, v. Pellegrini (2014).

150. É importante destacar que o núcleo conceitual do benefício tributário é ser uma exceção
ao sistema tributário de referência. De fato, podem existir políticas de desoneração

tributária que também produzem impactos econômicos e sociais, mas não constituem benefícios

tributários, como mostra Brasil (2019).

151. Em termos metodológicos, a Portaria 57/2013 definiu esse custo de oportunidade como o

custo médio de emissão dos títulos públicos federais.

152. É preciso destacar que o resultado de 2015 é afetado pelo pagamento de valores que haviam

sido contratados nos anos anteriores, mas foram intencionalmente postergados.

153. V. Pessoa, Pinto e Zugman (2020).

154. Esse tema foi objeto de análise do TCU, que resultou no Acordão 747/2010 — Plenário.

155. Acórdão 56/2021 — Plenário.

156. Auditoria integrante do processo TC 018.259/2013-8, que deu origem ao Acordão

1205/2015 — Plenário.

157. Para não incorrer em maiores discussões sobre o indicador da dívida pública a ser avaliado,

escolheu-se a Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) por ser mais comumente utilizado nas

análises de sustentabilidade tanto interna como externamente. Contudo, nada impede que,

consideradas as devidas particularidades, a DLSP seja utilizada em exercícios similares.

158. Este é o mesmo valor estabelecido pela Emenda Constitucional 109/2021 como objetivo do

plano de redução de benefícios tributários que o Poder Executivo deve encaminhar ao Congresso

Nacional, ou seja, uma reversão ao período inicial desta análise.


CAPÍTULO 7
POLÍTICA MONETÁRIA
INCONSISTENTE159
Marcelo Kfoury Muinhos e Filipe Gropelli Carvalho

INTRODUÇÃO
O objetivo deste capítulo é mostrar que entre 2011 e 2015 o Banco

Central praticou uma política monetária inconsistente. Ou seja, fixou

juros nominais de curto prazo em valores abaixo daqueles que seriam

necessários para fazer a inflação convergir à meta fixada pelo Conselho

Monetário Nacional.

Em política monetária há um debate se regras são melhores do que

políticas discricionárias, pois podem ter resultado melhor em termos de

minimizar as variâncias da inflação e do produto. A regra pura seria uma

decisão quase mecânica, que engessaria as mãos da autoridade

monetária. Já a total discrição poderia dar liberdade completa de ação

em cada momento do tempo.

O regime de metas para a inflação tem sido adotado por diversos

países, desde 1991, por permitir uma combinação de regras com

decisões discricionárias. Há uma regra geral para definição da taxa de

juros de curto prazo pelo Banco Central — conhecida como regra de

Taylor -, mas também espaço para que a autoridade monetária se desvie

dessa regra em decorrência de condições conjunturais específicas.

Se usada com moderação, a discricionariedade leva a resultados

favoráveis em termos de suavização de preços e produtos. Por outro

lado, um Banco Central que abuse da discricionariedade estará flertando

com o abandono da regra, o que diminuirá a previsibilidade dos agentes


econômicos em relação aos preços e à trajetória de crescimento da

economia.

Bancos centrais que se desviam excessivamente do comportamento

esperado correm o risco de perder o controle sobre as expectativas dos

agentes econômicos em relação à inflação. Isso pode resultar em

inflação mais alta por um longo período, bem como em maior custo de

desinflação: o BC terá que mostrar que retomou a intenção de levar a

inflação à meta, agindo de forma mais dura do que em circunstâncias

normais, para sinalizar ao mercado que, de fato, mudou de postura.

Particularmente nos mercados emergentes, os bancos centrais

enfrentaram com frequência a crítica de abusar da discricionariedade,

muitas vezes sacrificando a estabilidade de preços, provavelmente uma

consequência da falta de autonomia, bem como de estruturas

institucionais inadequadas.

Embora o ceticismo em relação aos bancos centrais de mercados

emergentes continue até hoje, o Banco Central do Brasil (BCB) foi

amplamente poupado disso na maior parte do tempo em que vigorou o

regime de metas de inflação (MI), iniciado em 1999. O BCB segue um

mandato explícito de MI que, junto com outras reformas econômicas,

como o Plano Real em 1994, têm contribuído para a queda e

estabilidade da inflação. No entanto, desde a instituição do regime de

MI, o BCB não deixou de receber sua cota de críticas e, em algumas

ocasiões, não conseguiu cumprir o limite superior da meta de inflação

estabelecida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).

Em especial, houve um período de forte desvio da política de juros do

BCB em relação ao que seria esperado pela aplicação da regra de Taylor.

De meados de 2011 ao início de 2015, o BCB puxou os juros para baixo.

O debate econômico da época atribuiu essa mudança de rumo à

interferência do Executivo sobre o Banco Central, em um caso clássico

de interferência na condução autônoma da política monetária.

Este capítulo mostra resultados estatísticos que corroboram a

percepção de que a política monetária naquele período foi inconsistente,

na medida em que se desviou excessivamente da aplicação da regra de

Taylor.
Apresentamos, a seguir, breve contexto histórico da implantação e

execução do regime de MI no Brasil. Na seção 2 apresentaremos, de

forma simplificada, o embasamento teórico para analisar os objetivos de

política monetária. Na seção 3 são apresentados e comentados os

principais resultados estatísticos. A última seção resume as conclusões.

A principal delas é de que houve, de fato, uma mudança significativa da

política monetária no período 2011-2015, para torná-la mais leniente

com a inflação. Foi revertida uma postura mais enfática de busca de

cumprimento do centro da meta, observada desde o início do regime de

MI. A partir de 2016, o BCB voltou a se comportar de forma mais

coerente com a referida regra e a, efetivamente, mirar a meta de inflação

fixada pelo CMN.

1. CONTEXTO HISTÓRICO
O Brasil adotou a política de MI em 1999 simultaneamente à mudança

na política cambial. Deixamos de ter um câmbio fixo e o real passou a

flutuar em relação ao resto do mundo. Foi o início do tripé

macroeconômico, baseado nas metas para a inflação, câmbio flutuante e

superavit fiscal. Com ele, foram satisfeitos os pré-requisitos para o

sucesso do novo regime:

Autonomia operacional da autoridade monetária: a autonomia

do BCB para execução da política monetária foi estabelecida

em lei apenas em 2021 (Lei Complementar 179/2021), mas

durante parte significativa do regime de MI os presidentes da

República concederam autonomia de fato ao BCB.

Um objetivo (meta de inflação) perseguido com o uso de um

instrumento (taxa de juros), portanto, sem tentativas de atingir

um segundo objetivo (taxa de câmbio), uma vez que o câmbio

se tornara flutuante.

Ausência de dominância fiscal, ou seja, não havia uma

situação de precariedade das contas públicas a ponto de o BC

ser constrangido a não subir juros para não agravar o custo da

dívida.
O mote é que os juros devem ser fixados para combater a inflação. O

câmbio deve flutuar para equilibrar as contas externas. Anteriormente, o

que víamos era os juros bem altos para evitar a fuga de capitais e a

desvalorização do real, e o câmbio fixo para combater a inflação.

Ao observar o Gráfico 1, verificamos que, após a introdução do regime

de MI, há três períodos durante os quais a inflação ficou claramente

acima da meta.

O primeiro episódio deveu-se à fuga de capitais em 2002, decorrente

da incerteza associada à eleição do presidente Lula, resultando em forte

desvalorização do real. A moeda chegou a R$ 4 em outubro de 2002, o

que equivale hoje a cerca de R$ 8 reais ao corrigirmos o valor do

câmbio pelo diferencial de inflação. A segunda vez foi durante o governo

da presidente Dilma Rousseff. O terceiro é atualmente devido a

pandemia e a crise hídrica.

Gráfico 1: Inflação e metas no Brasil (% ao ano)

Fonte: IBGE e Banco Central do Brasil.

Nossa análise será concentrada no período de 2011 a 2015, que

representa um episódio de descontrole da inflação sem que tenha havido

um choque externo (como o da pandemia da Covid-19 ou de

expectativas políticas, como o de 2002). Trata-se de um período em que

o BCB tinha liberdade e instrumentos suficientes para manter a inflação

dentro da meta. O descontrole da inflação, naquele período, parece estar

associado à mudança de postura do BCB, e não a choques exógenos.


Nosso objetivo é verificar se, de fato, a política monetária praticada no

período foi inconsistente com os objetivos do regime de metas de

inflação.

2. A REGRA DE TAYLOR
A regra de Taylor baseia-se no estudo econométrico de John Taylor com

o Federal Reserve dos EUA (FED) (Taylor, 1993), que tinha por objetivo

identificar a função de reação da autoridade monetária americana entre

1984-1992. Ela sugere que, quando a inflação ultrapassa a meta, o

Banco Central deve aumentar as taxas de juros nominais em uma

proporção maior do que o aumento inflacionário, para controlar a alta

dos preços, o chamado princípio de Taylor. Também estipula que os

bancos centrais podem reduzir as taxas de juros nominais quando o

produto cair abaixo do potencial, com vistas a suavizar as flutuações dos

ciclos econômicos.

Clarida, Galí e Gertler (1997) propuseram uma versão da regra de

Taylor em que o Banco Central define sua política de juros levando em

conta o valor esperado futuro da inflação, em comparação à meta de

inflação, e do hiato entre o PIB e o PIB potencial. O Banco Central

trabalha com um conjunto de informações — como consultas aos

analistas de mercado e indicadores antecedentes — que lhe dão a melhor

previsão possível da trajetória futura da inflação e do PIB.

Essa regra pode ser resumida pela equação (1), que será

detalhadamente explicada a seguir:

(1)

A equação indica que a autoridade monetária orienta suas decisões

para a fixação da taxa de juros de curto prazo olhando:

e
a) o quanto a inflação esperada (π ) se distancia da meta de inflação

fixada pelo governo (π*) — no caso do Brasil, fixada pelo Conselho

Monetário Nacional — esse é o termo da equação.

b) o quanto o nível de atividade econômica estimada pelo BC ( ) se

distancia do potencial de produção da economia ( ) — esse é o termo


da equação.

Observando o hiato entre inflação esperada e a meta e qual a

estimativa de desaquecimento ou superaquecimento da

economia, o Banco Central decide se sobe ou diminui os juros.

Ele atribui um peso a cada uma dessas medidas. Assim, um BC muito

preocupado em manter a inflação perto da meta reagirá mais

rapidamente a desvios da inflação em relação à meta. Na equação isso

significa que o valor de β será elevado. Um BC mais preocupado em

manter o nível de atividade ( ) perto do potencial de produção ( )

terá um valor de γ elevado, reagindo mais rapidamente a desvios do

produto em relação ao potencial.

O instrumento que o Banco Central utiliza é a taxa de juros nominal,

composta da taxa de juros real ( ) somada à inflação esperada

naquele momento ( ). Esse é o elemento que está no lado esquerdo da

equação . Essa taxa de juros nominal, definida pelo BC, terá

que ser maior que a taxa de juros nominal de equilíbrio da economia

caso a intenção seja “apertar” a política monetária para

combater choques inflacionários, ou menor que ela, caso a intenção seja

estimular o crescimento do PIB no curto prazo.

A taxa de juros nominal de equilíbrio é aquela que se

considera ser a que prevalecerá no longo prazo, composta do juro real

mais a inflação percebida como a que prevalecerá no longo prazo,

representada pela meta . Ela é o ponto de referência do BC. A

Autoridade Monetária colocará o juro nominal acima ou abaixo dessa

taxa, a depender do hiato da inflação , do hiato do produto

e das suas preferências em relação ao controle da inflação (β)

ou à estabilização da atividade econômica (γ).

São esses parâmetros de preferência que fazem, na aplicação da regra

de Taylor, o mix entre a regra mecânica e o espaço para o BC exercer

discricionariedade, que decorre da variação de β e γ, em cada momento

do tempo, em decorrência de outras informações circunstanciais detidas

pelo BC e que não estão explicitamente consideradas na equação (1).


A equação (1) pode ser alterada para trabalharmos com taxas de juros

reais, em vez de taxas nominais. Passando a inflação esperada

( ) para o lado direito e rearranjando os termos temos:

(2)

Um exemplo numérico simples ajuda a compreender o funcionamento

da regra. Suponhamos que o BC avalie que a economia está no nível do

produto potencial ( ) e que a inflação esperada para os próximos

12 meses seja de 3% ( ), igual à meta fixada pelo CMN (

). Além disso, o BC tem alta preferência por ajustar os desvios

da inflação esperada em relação à meta (β), de modo que β = 3.

Teríamos então que:

(3)

Como a inflação esperada está igual à meta, o BC mantém a taxa de

juros real ( ) igual à taxa real de longo prazo ( . Se, contudo,

houver uma elevação da inflação esperada para, digamos, 5%, a regra

faria o BC elevar a taxa de juros real de curto prazo ( ) em 4 pontos


160
percentuais :

Se, por outro lado, o BC tem baixa aversão a inflação, a sua política de
e
fixação de juros reagirá pouco a aumentos na inflação esperada (π ). Isso

significa, nos termos da equação (2), que β < 1. Suponhamos, no

exemplo, que β = 0,5. Nesse caso teríamos:

Ou seja, o BC desse exemplo é tão leniente com a inflação que, mesmo


e
com o aumento da inflação esperada (π ), ele opta por reduzir os juros

real de curto prazo ( ) em relação ao juro de equilíbrio de longo

prazo ( . Ele subirá o juro nominal em um montante menor


e
que o crescimento da inflação esperada (π ).
Uma outra forma de interpretar a equação (2) é supor que o BC tenha

uma meta de inflação própria (π**), diferente daquela fixada pelo CMN

(π*). Digamos que ele seja leniente e, embora o CMN tenha fixado π* =

3%, trabalhe com π**= 4,5%. Nesse caso, o exemplo da equação (3)

passaria a ter a seguinte configuração:

e
Mesmo com a inflação esperada (π ) igual à meta formal do CMN
*
(π ), o BC vai reduzir os juros reais de curto prazo em relação aos juros

de equilíbrio pois, “secretamente”, seus dirigentes aceitam uma inflação

de 4,5%.

Em suma, a equação (2) pode ser usada para mensurar o quanto um

BC é duro ( hawkish — no jargão do mercado) ou leniente ( dovish)


em determinado momento do tempo. Isso pode ser feito de duas formas.

A primeira é supor que o BC persegue a meta fixada pelo CMN, caso

em que a sua postura será medida mediante a estimação de como o valor

de β varia ao longo do tempo. Quanto maior β, maior a preferência do

BC por inflação baixa. A segunda forma é supor que β não varia no

tempo, e que as decisões da Autoridade Monetária são feitas levando em

conta sua meta implícita de inflação (π**), que difere da meta do CMN

(π*).

3. OS VALORES ESTIMADOS PARA O BRASIL


Carvalho (2021) estimou a variação do valor de β (peso conferido pelo

BC ao cumprimento da meta de inflação) para o caso brasileiro no


161
período 2004-2020 . O Gráfico 2 mostra que o termo β esteve acima

de 1 na maior parte do período da amostra, demonstrando que o Banco

Central do Brasil (BCB) estava seguindo a regra de Taylor, com ênfase

na convergência da inflação para a meta. Contudo o valor de β caiu

significativamente a partir do segundo trimestre de 2011, chegando a

ficar negativo entre 2012 e 2015, indicando uma mudança dovish nas

preferências de política monetária do BCB no período. O coeficiente se

recupera a partir de 2016, embora não retorne para o padrão


162
pré-2011 .
Gráfico 2 : Coeficiente da inflação na regra de Taylor

Fonte: Carvalho (2021).

Essa queda significativa do peso da inflação na regra de Taylor do BCB

por volta de 2011 é consistente com as críticas a uma política monetária

excessivamente estimulante naquele período, que se descolou demasiado

da regra de Taylor e caminhou com excessiva discricionariedade.

Uma forma alternativa de retratar o mesmo fenômeno é a estimativa da

meta de inflação implícita do BCB (π**). O Gráfico 3 mostra variação

significativa da meta implícita de inflação estabelecida pelo BCB ao

longo do tempo. Embora a maior parte dos valores estimados fique

dentro das bandas oficiais da meta de inflação fixada pelo CMN, a meta

implícita de inflação, por vezes, saiu das bandas.

O período 2011-2015 registra o maior descolamento da inflação

implícita em relação ao centro da meta oficial do CMN.

Gráfico 3: Estimação da meta de inflação implícita do Banco Central do


Brasil
Fonte: Carvalho (2021).

Podem ser definidos cinco períodos no Gráfico 3.

Em primeiro lugar, o período entre o segundo trimestre de 2004 e o

quarto trimestre de 2008, quando a meta implícita do BCB estava abaixo

do centro da meta do CMN, embora dentro da faixa definida, indicando

uma abordagem mais hawkish. Esses anos se correlacionam com o

primeiro e início do segundo mandato de Lula, com o BCB ainda

comandado por Henrique Meirelles.

Em segundo lugar, vem o período entre o primeiro trimestre de 2009 e

o segundo trimestre de 2011, quando a meta de inflação implícita

estimada se alinha em grande parte com o centro da meta de inflação do

CMN. Os dados mostram um rápido aumento da meta de inflação

implícita em torno da Grande Crise Financeira, quando o BCB assumiu

um tom mais acomodatício, embora ainda em linha com a meta do

CMN, acabando por ser menos hawkish do que nos anos anteriores.
Em terceiro lugar, vem o período entre o terceiro trimestre de 2011 e o

primeiro trimestre de 2015, quando a meta de inflação implícita

estimada para o BCB estava significativamente acima do centro da meta

de inflação do CMN. Entre o segundo trimestre de 2012 e o segundo

trimestre de 2013, os valores estimados da meta implícita não estão

apenas acima do centro da meta, mas também acima da banda superior

definida pelo CMN. Esse resultado ocorre durante a gestão de Alexandre

Tombini no BCB, quando o banco seguiu uma política monetária muito


mais estimulante. A meta implícita de inflação está em linha com a

queda significativa dos parâmetros de inflação (β), que nesse período

girava em torno de zero.

O quarto é o período entre o segundo trimestre de 2015 e o terceiro

trimestre de 2019, quando a meta implícita do BCB segue a meta

explícita. Nos anos que se seguiram, já na administração de Ilan

Goldfajn, a meta implícita do BCB volta a coincidir com a meta oficial

fixada pelo CMN.

Por fim, a partir do quarto trimestre de 2019 e até o final da amostra

no terceiro trimestre de 2020, o BCB parece ter adotado uma abordagem

mais dovish em relação à política monetária. Com certeza, é difícil

concluir que as escolhas de política do BCB durante o quarto trimestre

de 2019 foram significativamente diferentes daquelas dos trimestres

anteriores, mas a abordagem mais estimulante torna-se mais clara nos

dois primeiros trimestres de 2020, quando o BCB respondeu ao choque

no produto causado pela pandemia da Covid-19.

Um outro ponto bastante original de Carvalho (2021) e aqui

apresentado é a avaliação sobre se o significativo afrouxamento da

política monetária na gestão Tombini teria contaminado as expectativas

de inflação do mercado. Ou seja, se ao observar o comportamento do

BCB o mercado teria passado a prever inflação mais alta, causando a

chamada “desancoragem” das expectativas.

Avaliando visualmente o Gráfico 4, pode-se notar que a série histórica

do desvio implícito da meta em relação à série oficial da meta parece

“anteceder” as mudanças nas expectativas de inflação dos agentes de

mercado, pesquisadas pelo BCB, e publicadas no Relatório Focus. De

fato, a aplicação de um teste estatístico de causalidade indica haver

precedência temporal dos movimentos da meta implícita em relação a

mudanças nas expectativas de inflação pelo mercado. Já a causalidade

inversa (BCB alterando a sua meta implícita em decorrência de

mudanças na percepção do mercado) não foi constatada.

Gráfico 4: Desvio implícito da meta e expectativa de inflação


Fonte: Carvalho (2021) Nota: desvio da meta em pontos percentuais (eixo
da esquerda). Expectativa de inflação em percentual ao ano (eixo da
direita).

Essa é uma indicação de que um comportamento do BCB,

inconsistente com a regra de Taylor, pode gerar, como consequência, a

desancoragem das expectativas de mercado (que passam a ser superiores

à meta).

Para recuperar sua reputação, e fazer os agentes de mercado voltarem a

acreditar que a meta fixada pelo CMN será efetivamente o alvo do BC, a

Autoridade Monetária precisa fazer grande esforço de comunicação e,

eventualmente, ser mais hawkish do que o necessário, impondo custos


adicionais à sociedade em termos de taxas de juros e redução do

crescimento econômico de curto prazo.

Por último, a Tabela 1 detalha a meta de inflação implícita para o

período da amostra sob o mandato de cada presidente do BCB,

mostrando estatísticas descritivas para cada um. O desvio médio

quadrático da meta de inflação implícita estimada de cada governador a

partir do centro explícito da meta do CMN também é medido. Com essa

métrica, pode-se notar que o mandato Tombini, de fato, saiu do padrão e

teve inflação implícita quase sempre acima do centro da meta, e foi o

único no qual ela esteve acima da banda superior da meta.

Tabela 1: Estatística das metas implícitas dos presidentes do BCB

Meirelles Tombini Goldfajn Campos


Neto
Meirelles Tombini Goldfajn Campos
Neto

Números de trimestres na 30 22 10 7
amostra (n)

Abaixo da banda inferior da 0 0 0 0


meta
(0%) (0%) (0%) (0%)

Entre a banda inferior e centro 24 2 5 2

(80%) (9 %) (50%) (29%)

Entre o centro e a banda 6 17 5 5


superior
(20%) (77%) (50%) (71%)

Acima da banda superior 0 3 0 0

(0%) (14%) (0%) (0%)

Desvio médio quadrático da 1.168262 1.957557 0.078214 0.16439


meta

4. CONCLUSÃO
Entre 2011 e 2015 houve significativa alteração na política monetária do

BCB, que se tornou mais leniente e passou a fixar juros de curto prazo

significativamente abaixo daqueles que seriam recomendáveis pela regra

de Taylor.

O capítulo mostrou evidências quantitativas desse desvio. Também

apresentou um teste de causalidade que indica que uma postura do BCB

inconsistente com a referida regra teve possíveis efeitos de

desancoragem das expectativas inflacionárias.

A resposta às pressões inflacionárias tem se fortalecido desde 2016,

embora não aos níveis observados antes da virada dovish de 2011 nas

preferências monetárias do banco.


A condução da política monetária no período da presidente Dilma

Rousseff foi inferior ao verificado ao longo do regime de metas no

Brasil. O resultado da meta implícita é o mais forte e mostra que durante

o mandato do presidente do BCB, em 14% do período se perseguia uma

meta de inflação superior ao teto da meta, e só em menos de 9% no

período mirou-se abaixo da meta. Esse comportamento causou uma

piora no controle das expectativas de inflação.

No regime de metas, o controle das expectativas é não apenas

primordial para se ter a inflação na meta, mas também uma medida das

mais importantes para se verificar a credibilidade da autoridade

monetária. A perda de credibilidade aumenta o custo em termos de

produto para trazer a inflação para a meta, o que significa aumento da

recessão para desinflacionar a economia em períodos de choque de

oferta.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO, F. G. The Central Bank of Brazil’s Taylor rule over time. S.

Paulo: Fundação Getulio Vargas-EESP, 2021. Dissertação de mestrado.

CLARIDA, R.; GALÍ, J.; GERTLER, M. Monetary policy rules in practice:


some international evidence. NBER Working Paper Series 6254, 1997.
LAUBACH, T.; WILLIAMS, J. C. 2003. Measuring the natural rate of interest. In: Review of
Economics and Statistics, 85(4).
TAYLOR, J. B. versus policy rules in practice. In: Carnegie-
1993. Discretion

Rochester Conference Series on Public Policy, 39, 1993. Disponível em:


doi:https://www.sciencedirect.com/science/journal/01672231.

159. O presente capítulo é baseado na dissertação de mestrado de Filipe Gropelli Carvalho, The
Central Bank of Brazil’s Taylor Rule Over Time, apresentada à FGV-EESP em agosto

de 2021.

160. Essa mudança não precisa ser abrupta. Na verdade, os bancos centrais aumentam ou

reduzem suas taxas gradualmente, ao longo de meses, sinalizando ao mercado a direção e o

possível novo ponto de equilíbrio.

161. Mais uma vez remetemos os leitores interessados na estratégia de estimação e demais

especificações técnicas de Carvalho (2021).

162. Carvalho (2021) faz duas outras estimativas da variação de β no tempo, com diferentes

hipóteses de trabalho, chegando a resultados muito similares ao aqui apresentado.


CAPÍTULO 8
CRÉDITO DIRECIONADO E
PRODUTIVIDADE: O PSI COMO
EXEMPLO
Vinicius Carrasco e Guilherme V. Marçal de
Freitas163

INTRODUÇÃO
O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) é

o principal banco de desenvolvimento do Brasil e um dos três maiores

do mundo. Até o início de 2018, sua atuação foi marcada por uma taxa

de juros de referência (Taxa de Juros de Longo Prazo — TJLP) inferior

às taxas de juros de mercado e, entre 2008 e 2014, pelo recebimento de

empréstimos do Tesouro Nacional, que totalizaram R$ 440,8 bilhões.

Os desembolsos do BNDES tiveram forte expansão entre 2008 e 2014,

tendo por fonte de recursos os empréstimos recebidos do Tesouro. O

ápice dessa expansão está relacionado ao Programa de Sustentação do

Investimento (PSI), cuja principal meta era estimular a produção, a

aquisição e a exportação de bens de capital e a inovação tecnológica. O

contexto em que o PSI foi lançado era de crise internacional: a crise

financeira de 2008 se espalhava pelo mundo e ameaçava interromper o

ciclo de crescimento na economia brasileira. O PSI foi utilizado como

instrumento anticíclico, com o objetivo de, ao impedir a queda da taxa

de investimento da economia, manter a trajetória de crescimento.

O objetivo deste capítulo é discutir qual foi a efetividade do PSI em

dimensões como indução de investimento, produtividade e estímulo ao

mercado de crédito livre e de capitais. De maneira indireta, a discussão


(alguns diriam o experimento induzido pelo PSI) lança luz sobre um
tópico maior: o efeito de crédito direcionado e subsidiado sobre a

economia. Além desta pequena introdução, este capítulo se divide em:

seção 1, que discute princípios gerais de financiamento de projetos do

ponto de vista econômico, seção 2 que descreve o PSI em suas diferentes

fases, seção 3, que descreve evidências dos impactos do PSI, seção 4 que

analisa impactos sobre a produtividade da economia e o

desenvolvimento do mercado de capitais e, por fim, a seção 5, com a

conclusão.

1. PRINCÍPIOS TEÓRICOS DE FINANCIAMENTO


DE PROJETOS: PASSO A PASSO CONCEITUAL
De maneira simples, um investimento — seja num projeto de

infraestrutura, a construção de uma planta, a inovação de um processo

produtivo ou a aquisição de uma máquina — requer alguma forma de

desembolso imediato que terá como contrapartida fluxos de caixa futuro.

Esquematicamente, um investimento pode ser expresso por um balanço

que tem, do lado do passivo, a forma pela qual esse investimento é

financiado e, do lado do ativo, o valor econômico dos fluxos que gera.

Na discussão sobre crédito direcionado/subsidiado, muito se foca o lado

do passivo e pouca atenção é dada ao lado do ativo, o que nos parece um

equívoco: fazer com que o lado do ativo fique “de pé” (seja tecnicamente

viável e economicamente rentável) é condição necessária para adequar o

passivo (como financiar o projeto).

Nessa visão, um primeiro passo para se avaliar um investimento

envolve o cômputo de sua taxa de retorno (TIR — taxa interna de

retorno): a taxa à qual o valor presente dos fluxos (esperados) de caixa

futuro do investimento é igual a zero. Compara-se, então, essa taxa com

o custo (privado) de se financiar o investimento (WACC — o custo

médio ponderado de se financiar um projeto). Sempre que a TIR for

maior que o WACC, o investimento será feito por agentes privados, sem

a necessidade de nenhuma forma de subsídios. Importante notar que isso

ocorre mesmo que o projeto gere benefícios para terceiros

(externalidades positivas, no jargão dos economistas): como


investimentos são, em geral, indivisíveis, a existência de externalidades é

condição necessária, mas não suficiente para uma política de subsídios.

Se retornos privados forem suficientemente altos, não há a necessidade

de nenhuma forma de subsídio. A concessão de subsídios, neste caso,

não afeta diretamente a alocação: o investimento será feito com ou sem

eles. Há, no entanto, dois efeitos deletérios. O primeiro é distributivo:

transfere-se recurso da sociedade para os acionistas associados ao

investimento. O segundo efeito impacta o mercado de crédito e de

capitais: havendo subsídios, não há porque se buscar por fontes privadas

de financiamento. Em outras palavras, o subsídio simplesmente induz

substituição de fontes de financiamento, desestimulando o crescimento

do mercado privado de crédito. O efeito crow-out pode ser bastante

relevante, especialmente em programas vultosos como o PSI.

O caso em que alguma forma de política de subsídios se justifica é

quando a TIR do investimento é menor que o WACC, mas os benefícios

das externalidades positivas fazem com que a taxa de retorno social

(“TIR social”) do projeto seja maior que o WACC. Em tal situação,

ausente alguma forma de subsídio, o investimento não será levado a

cabo, embora seja de interesse social que o seja.

A questão relevante aqui é de ordem prática. Por duas razões:

i) como medir os benefícios sociais/externalidades? É preciso que haja

alguma forma de avaliação ex ante, que justifique de maneira clara quais

os benefícios sociais gerados (idealmente com estimativas) e o porquê

de os retornos privados serem insuficientes para que haja uma solução

puramente privada. Mais importante ainda é que haja alguma forma de

avaliação ex post (avaliação de impacto) que confronte os resultados de

fato gerados pelo projeto com a visão ex ante que justificou o

investimento no projeto e que gere conhecimento para decisões futuras.

ii) Tendo-se decidido pelo investimento, qual a forma de subsidiá-lo?

Por meio de subsídios nas taxas de financiamento ou por meio de

subsídio direto (transferências para quem investe)? Por meio de

subsídios a um intermediário (como o BNDES), que então faz

empréstimos, ou por subsídios que saiam direto do Tesouro? Essas e


mais questões sobre o processo de concessão do empréstimo (e sua

governança) são bastante relevantes (mas fogem do escopo do capítulo).

Um caso que deveria ser fácil, ao menos teoricamente, é quando a TIR

for menor que o WACC e o investimento não gerar externalidades

positivas, as decisões privadas e de interesse social também deveriam

coincidir: certamente, o investimento não vai ser levado a cabo por um

agente privado. Tampouco é de interesse social que o investimento seja

feito. No entanto, surge um problema relevante quando o investimento é

feito. Há, então, má alocação de capital na economia, que se manifesta

por meio da geração de “excesso” de capacidade nas atividades

financiadas e cunha de produtividade entre atividades/setores, levando à

redução da produtividade. Ou seja, se aquele capital fosse investido em

atividades nas quais TIR > WACC, haveria maior geração de valor para

a sociedade. É sob essa perspectiva que este capítulo trata o PSI.

2. PROGRAMA DE SUSTENTAÇÃO DO
INVESTIMENTO (PSI)

2.1 DESCRIÇÃO
Para tentar impedir que a crise financeira de 2008 colocasse fim ao ciclo

de crescimento iniciado no começo da primeira década do século XXI, o

governo brasileiro aplicou uma série de políticas de estímulo à

economia. Tais políticas tiveram sucesso em evitar a queda do

crescimento no curto prazo. De fato, em 2010, o produto interno bruto

(PIB) brasileiro cresceu 7,53% contra -0,13%, em 2009, e 5,09%, em

2008. Essa rápida recuperação da economia brasileira contrastava com a

recuperação lenta nos estados unidos e em diversos países da europa, o

que legitimou o conjunto de políticas usadas no brasil como uma

abordagem alternativa e de sucesso para responder aos efeitos da crise

de 2008.

Uma das principais políticas implementadas na época foi o PSI, que

tinha como objetivo estimular o investimento, de modo a manter a

economia aquecida. Criado em 2009, em um contexto de retração da

atividade econômica e do investimento, o PSI tornou mais atrativas as


condições dos financiamentos do BNDES para aquisição de máquinas e

equipamentos produzidos no país. As taxas de juros foram reduzidas e

passaram a ser fixas. A vigência do programa foi estendida várias vezes,

e a cada renovação iniciava-se uma nova fase.

No período 2009 a 2014, o Tesouro Nacional concedeu empréstimos

ao BNDES enquanto esteve em vigor o Programa de Sustentação do

Investimento (PSI). Os subsídios implícitos nos empréstimos do Tesouro

Nacional ao BNDES somaram, no acumulado de 2009 a 2019, cerca de

R$ 181 bilhões (Ministério da Economia. Secretaria do Tesouro


164
Nacional, 2018) . Os subsídios explícitos nos financiamentos do PSI

somaram, no acumulado de 2009 a 2019, aproximadamente R$ 76

bilhões (Ministério da Economia. Secretaria do Tesouro Nacional,


165
2018) . Como os financiamentos do BNDES, que usaram recursos do

Tesouro Nacional, envolveram um custo elevado, somente efeitos

positivos de grande magnitude poderiam garantir um benefício maior

que o custo. Ou seja, na análise do período 2009 a 2014, é

particularmente importante ter em mente a ressalva de que o efeito

positivo não é suficiente para garantir uma relação custo-benefício que

justifique a intervenção do BNDES na economia.

O BNDES foi o responsável pela execução do programa, que operava

principalmente na modalidade indireta e automática, por meio dos

produtos BNDES-Finame, principal linha de crédito do BNDES para o

financiamento da compra isolada de máquinas e equipamentos no país.

Nessa modalidade, o BNDES atua como repassador de recursos para as

instituições financeiras credenciadas, que recebem os pedidos de

financiamento do programa e assumem o risco de crédito das operações.

O objetivo do PSI era estimular a aquisição de bens de capital (BK)

nacionais naquele contexto de 2008 e, dessa forma, contribuir para a

recuperação dos investimentos na economia. As principais alterações

introduzidas pelo PSI foram a redução substancial das taxas de juros

outrora praticadas no finame e o estabelecimento de um valor fixo para

essas taxas.

O programa começou em julho de 2009 e só foi encerrado em

dezembro de 2015. Até 2011, as ações do programa foram realizadas

apenas pelo BNDES e, a partir de 2011, este passou a tocar o programa


em parceria com a financiadora de estudos e projetos (Finep). Durante a

vigência do PSI, os desembolsos do BNDES aumentaram de forma

substancial. Em junho de 2009, mês anterior à implementação do

programa, os desembolsos do banco, corrigidos pela inflação e

acumulados em doze meses, foram de R$ 165 bilhões, já em julho de

2009, mês que começou o PSI, o valor acumulado em doze meses foi de

R$ 207 bilhões. O pico ocorreu em novembro de 2010 quando os

desembolsos do BNDES, acumulados em doze meses, chegaram a R$

280 bilhões. Apenas em julho de 2015 o acumulado em doze meses

retornou a patamares inferiores a R$ 200 bilhões. Em dezembro de

2015, o PSI foi oficialmente encerrado. A Tabela 1, retirada de Machado

e Roitman (2015), descreve as condições de financiamento nas três das

fases do PSI. Já o Gráfico 1 mostra, a título de comparação, a evolução

das taxas de juros anuais média de financiamento para pessoas jurídicas

provido pelo mercado livre de crédito em comparação com as do

BNDES, bem como a evolução do IGPM no período.

Tabela 1: Evolução das condições de financiamento nas três fases do PSI


entre 2009-2011

Fonte: Retirado de Machado e Roitman, 2015.

Gráfico 1: Evolução Taxa de Juros PJ e BNDES


Fonte: Banco Central. Elaborado pelos autores.

O Gráfico 2, também retirado de Machado e Roitman (2015) mostra a

evolução do desempenho mensal do PSI medida em termos do valor

total de bens financiados segundo o mês da contratação do

financiamento ao longo do período 2009-2011. É possível observar que a

demanda por financiamentos no âmbito do programa aumenta ao longo

da primeira fase, apresentando um pico em dezembro de 2009, quando

estava previsto o seu encerramento. Com a prorrogação para o primeiro

semestre de 2010, as contratações tiveram uma queda em janeiro desse

ano, mas cresceram por alguns meses, e novamente atingiram o pico em

junho de 2010, às vésperas da nova data final. Durante a segunda fase, as

contratações mensais evoluíram da mesma forma que na primeira, com

um total de bens financiados oscilando entre R$ 1 bilhão e R$ 2 bilhões

de reais, com picos nos meses em que os agentes esperavam o fim do

programa, dezembro de 2010 e março de 2011. Na terceira fase, as

contratações mensais arrefecem, sem que houvesse um pico em

dezembro de 2011.

Gráfico 2: Evolução mensal do valor total de bens financiados pelo PSI para
firmas industriais no período 2009-2011 (R$ bilhões correntes)
Fonte: Retirado de Machado & Roitman, 2015.

No período de vigência do PSI, o BNDES teve um desembolso de

recursos maior do que nos períodos anteriores e posteriores ao PSI. Com

efeito, no período anterior ao PSI, a média de desembolsos do BNDES,

acumulados em doze meses, foi de R$ 92,67 bilhões. No período

posterior ao PSI, essa média foi de R$ 87,51 bilhões. Já no período do

PSI, a média foi de R$ 259,11 bilhões, com um pico de R$ 310,40

bilhões em novembro de 2010.

O relatório de atividades do BNDES referente ao período de 2007 a

2015 (BNDES, 2015) descreve de maneira clara o mecanismo pelo qual

o PSI estimulou investimentos (uso intenso de subsídios): “Assim, do

ponto de vista teórico, o programa deve ser compreendido como uma

redução do preço final de bens de capital (preço do bem somado ao

custo do financiamento). O PSI representava, portanto, um estímulo no

plano microeconômico para que os agentes (empresas brasileiras)

alocassem mais recursos para o investimento naquele contexto”.

3. IMPACTOS DO BNDES E DO PSI


Esta seção sumariza os principais resultados trazidos pela literatura que

avalia o BNDES de maneira geral, e que discute o PSI em particular.

Antes de avançar, é importante lembrar que o BNDES tem quatro

produtos para financiamento de investimento: (i) Finame, destinado à

aquisição de máquinas e equipamentos; (ii) Finem, voltado para projetos

de investimento de maior porte (atualmente acima de R$ 10 milhões);


(iii) BNDES automático, para projetos de investimentos de menor porte;

(iv) cartão BNDES, destinado a financiar o investimento de micro e

pequenas empresas (mpmes). Além disso, existem produtos que podem

impactar indiretamente a formação de capital, como o BNDES exim

(que financia exportações), bem como programas que buscam incentivar

o investimento, sendo o PSI o maior deles.

3.1 A LITERATURA QUE AVALIA O BNDES


A Literatura que avalia o BNDES busca responder a três grandes
166
perguntas:

I. Como o acesso aos empréstimos subsidiados influenciam no

comportamento das firmas?

II. Quais tipos de firmas o BNDES financia?

III. Quais são os impactos na economia como um todo?

3.1.1 COMO O ACESSO AOS EMPRÉSTIMOS


SUBSIDIADOS INFLUENCIAM NO
COMPORTAMENTO DAS FIRMAS?
O artigo de Bonomo, Brito e Martins (2015) talvez seja uma das

principais contribuições para o debate dos impactos dos diferentes

financiamentos do BNDES, ao mostrar que o crédito governamental teve

um papel importante na compensação da crise de crédito privado no

Brasil durante a crise financeira que se iniciou em 2008. No entanto, os

autores mostram que as concessões de crédito do governo continuaram

em expansão depois que a economia se recuperou. Os autores também

investigam algumas características importantes desta expansão, usando

um enorme repositório de contratos de empréstimo entre bancos e

empresas, compondo um painel de quase 1 milhão de empresas entre

2004 e 2012. Os resultados mostram que, ao nível de empresa, não

houve estímulo ao investimento ou liberação da restrição financeira das

firmas, o que sugere ter havido apenas substituição de fontes de

financiamento (e os consequentes efeitos distributivos e de desestímulo a

fontes privadas de financiamento).


Lazzarini et al. (2015) apontam que os empréstimos e os investimentos

de capital que induziram não tiveram qualquer efeito consistente no

desempenho e no investimento das empresas, exceto pela redução nas

despesas financeiras, proporcionadas pelos subsídios que acompanham

estes empréstimos, o que uma vez mais sugere o efeito de substituição de

fontes (com consequências distributivas). Os dados ao nível da empresa

permitem aos autores, inclusive, controlar outras fontes de

heterogeneidade neste nível.

Negri et al. (2015), por sua vez, encontram um efeito dos empréstimos

sobre o emprego e as exportações, mas não sobre a produtividade. Já

Ottaviano e de Sousa (2009) apontam que as empresas que tomam

empréstimos do BNDES tendem a ter um desempenho melhor do que as

não beneficiárias. Todavia, o desempenho superior das beneficiárias

reflete, essencialmente, características exógenas no âmbito da empresa,

que antecedem o recebimento de empréstimos do BNDES, ao invés de

refletir o efeito deles. Os autores também encontraram que os

empréstimos do BNDES aumentam a produtividade apenas das firmas

grandes, enquanto o efeito para as firmas pequenas é pequeno e o efeito

agregado é quase zero.

3.1.2 QUAIS TIPOS DE FIRMAS O BNDES


FINANCIA?
Bonomo, Brito e Martins (2015) trazem robusta e importante conclusão

de que empresas maiores, mais velhas e menos arriscadas se

beneficiaram da maior parte da expansão do crédito patrocinada pelo

governo, além daquelas que pagam juros menores no mercado privado.

Adicionalmente, os autores concluem que embora um maior acesso ao

crédito direcionado tenda a levar para maior alavancagem, o efeito sobre

o investimento parece ser insignificante para empresas de capital aberto.

Já que as taxas de juros nos empréstimos vinculados são mais baixas do

que as taxas de juros de mercado, empresas com maior acesso a esse

tipo de empréstimo tendem a ter menor custo em suas dívidas.

Lazzarini et al. (2015) apontam que empresas grandes foram as que se

beneficiaram dos investimentos feitos pelo banco. Carvalho (2014), por

sua vez, mostra, usando dados ao nível de firma para empresas


brasileiras de manufatura, evidências de que o controle do governo sobre

os bancos leva a uma influência política significativa sobre as decisões

reais das empresas. O autor argumenta, ainda, que empresas qualificadas

para empréstimos bancários do governo expandem o emprego em

regiões politicamente atraentes e perto das eleições. Essas expansões

estão associadas a empréstimos adicionais (favoráveis) de bancos

governamentais. Além disso, essas expansões persistentes ocorrem

pouco antes de eleições locais em que a competição está acirrada e estão

associadas a um menor crescimento futuro do emprego por empresas em

outras regiões não beneficiadas. A análise sugere, assim, que os políticos

no brasil usam os empréstimos bancários para transferir empregos para

regiões politicamente atraentes e para longe de regiões não atraentes.

Por fim, Coleman e Feler (2015) mostram que localidades no Brasil

com alta participação de bancos governamentais receberam mais

empréstimos e apresentaram melhores resultados de emprego em relação

às localidades com baixa participação de bancos governamentais.

Embora o aumento dos empréstimos bancários do governo tenha

mitigado uma queda econômica, o artigo aponta que esses empréstimos

foram politicamente direcionados, alocados de forma ineficiente e

reduziram o crescimento da produtividade.

3.1.3 QUAIS SÃO OS IMPACTOS NA ECONOMIA


COMO UM TODO?
Antunes, Cavalcanti e Villamil (2015), fazendo a análise a partir de

dados do BNDES, mostram que a redução da taxa de juros no

empréstimo, como política para reduzir fricções no mercado de crédito,

tem pequeno efeito sobre o nível de produção e os salários. Portanto, não

é eficaz para reduzir o problema de sub investimento devido a fricções

de mercado. O artigo calibra seu modelo para os EUA, mas faz um

exercício contrafactual para o BNDES.

Por sua vez, Cavalcanti e Vaz (2017) usam uma variação no acesso a

um empréstimo direcionado do BNDES para avaliar o efeito causal de

melhores condições de crédito sobre o investimento e produtividade das

empresas brasileiras de manufatura. Os efeitos causais estimados

apontam, em média, para mudanças positivas na tendência de taxas de


investimento e de índices de produtividade. No entanto, os autores

mostram que depois de considerarem os efeitos fixos de empresa e de

ano, tais efeitos permanecem estatisticamente significante apenas para as

alterações permanentes nas condições de oferta de crédito.

Além destes, Bonomo, Brito e Martins (2015) argumentam que a

enorme expansão do crédito orientada pelo governo, em um país onde

sua participação já era elevada, deveria ser motivo de preocupação por

vários motivos: i) a alocação de recursos entre setores e empresas

poderia ser distorcida; ii) como parte do crédito é subsidiado, pode ter

consequências fiscais; iii) poderia impedir o desenvolvimento dos

mercados de capitais e impactar negativamente o setor bancário privado;

iv) como as taxas de juros não mercantis são pagas sobre o crédito

direcionado, que representa uma grande parcela do crédito total (cerca

de 37% em dezembro de 2012), a transmissão da política monetária

pode ser adversamente afetada (esse último ponto é tratado no Capítulo

9 deste livro).

3.1.4 REVISÃO DA LITERATURA ESPECÍFICA


DO PSI: AS EVIDÊNCIAS DO IMPACTO SOBRE
O INVESTIMENTO DAS EMPRESAS
Grimaldi et al. (2016) usam informações disponíveis da pesquisa

industrial (PIA) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

(IBGE), no nível da empresa, tendo por objetivo contribuir para o debate

avaliando o impacto do PSI no nível de investimento das empresas —

com foco no setor industrial. A principal conclusão é que os resultados

empíricos mostraram um impacto positivo do PSI no nível de

investimento das empresas, embora, pela análise, sua magnitude tenha

diminuído entre 2009 e 2010.

Machado e Roitman (2015) avaliam os efeitos do BNDES PSI sobre o

investimento no ano do financiamento e no ano seguinte. Caso se

constate queda do investimento futuro, argumentam os autores, tem-se

um indício de que as empresas anteciparam investimentos já planejados

independentemente de haver subsídios, para aproveitar as condições

favoráveis do programa. As estimativas não indicam a substituição de


investimentos não contemplados pelo PSI por outros beneficiados pelo

programa no ano de obtenção do financiamento junto ao PSI. Machado e

Roitman (2015) encontram, por outro lado, alguma evidência de

antecipação de investimentos, mas que não se mostra robusta a variações

na especificação da estimação econométrica. De modo geral, o artigo

encontra evidências de que, no ano em que receberam financiamento do

PSI, as empresas não reduzem outros investimentos ou o uso de outras

fontes de recursos. Ou seja, não identificam efeito substituição, seja de

fontes de recursos, seja dos investimentos realizados.

Por fim, Machado, Grimaldi e Albuquerque (2018) estimam um

impacto positivo do PSI no nível de investimento das empresas, embora

sua magnitude tenha diminuído entre 2009 e 2010. Os autores

argumentam que a redução do impacto médio do PSI foi acompanhada

pela elevação dos desembolsos médios do programa para empresas no

setor da indústria no período, que alcançaram R$ 465 mil em 2010 —

contra R$ 298 mil um ano antes. Esses dois movimentos combinados

geraram uma forte queda na medida de adicionalidade de investimento

do programa, ou seja, a relação impacto por desembolso. Assim, os

autores mostram que, em média, cada R$ 1 de desembolso do PSI gerou

um impacto de R$ 1,18 no investimento das empresas em 2009. No ano

seguinte, o mesmo R$ 1 desembolsado estava associado a apenas R$

0,58 de investimentos que não teriam ocorrido sem este financiamento.

Neste sentido, Machado, Grimaldi e Albuquerque (2018) concluem que,

em 2009, o PSI foi capaz de afetar a decisão de investimento na medida

em que induziu a inclusão de outras fontes de capital. No entanto, é

possível observar algum grau de substituição em 2010, com os

desembolsos do PSI substituindo outras fontes de financiamento. Assim,

esta dinâmica significa que a adicionalidade do PSI diminuiu no período

analisado pelos autores.

4. PRODUTIVIDADE E DESENVOLVIMENTO DO
MERCADO PRIVADO

4.1 PRODUTIVIDADE
Na seção anterior, descrevemos artigos que apontaram para o aumento

de investimento trazido pelo PSI, o que vai na direção do que se espera.

Só não haveria aumento do investimento se o único efeito do PSI fosse o

de substituição de fontes, ou seja: todos os projetos seriam levados a

cabo independentemente do PSI e os agentes somente trocaram a fonte

de seu financiamento. Isso dificilmente seria o caso pelos enormes

subsídios associados ao programa: de fato, para uma dada taxa de

retorno, ao baratear de maneira substancial o financiamento, projetos

que não seriam viáveis sem o estímulo do PSI passaram a sê-lo.

Do ponto de vista econômico, a análise relevante é se esses projetos

deveriam ter sido levados a cabo. Como discutimos na seção 1, esse

deveria ser o caso se os retornos sociais fossem maiores que os privados

(e estes maiores do que os custos privados de investir). Em tal situação,

o efeito sobre a economia terá sido positivo. Se, ao contrário, o

investimento adicional simplesmente viabilizou projetos sem valor

econômico, o programa terá gerado perdas do pronto de vista da

economia, ao não dar uso alternativo e mais produtivo aos recursos.

Como tentar medir essas perdas?

Um projeto ruim levado a cabo diminui a produtividade total da

economia. Os Gráficos 3 e 4 fazem a associação da Produtividade Total

dos Fatores (TFP) com medidas do volume de crédito direcionado e

desembolsos do PSI. Obviamente, de maneira alguma, podemos, a partir

dos gráficos, estabelecer uma relação causal entre essas variáveis. Mas é

no mínimo curioso que em período de aceleração dos desembolsos do

PSI tenha havido redução da TFP.

Gráfico 3: TFP Brasil e percentual do Saldo de Crédito Direcionado sobre o


Saldo de Crédito Total
Fonte: TFP: TED, The Conference Board Jul/2020; Saldo de Crédito
Direcionado e Saldo de Crédito Total: Banco Central. Elaborado pelos
autores.

Há Literatura que, a partir de dados mais granulares, tenta relacionar o

efeito de políticas que afetam a alocação dos investimentos e do capital

sobre produtividade agregada. Hsieh e Klenow (2009), em importante

artigo que criou toda uma literatura, mostram os potenciais ganhos

provenientes de uma hipotética realocação do estoque de capital entre

firmas em países em que a regulação econômica tem grande impacto

sobre a alocação do capital. Eles comparam china e índia, países

fortemente regulados, com os estados unidos, que pode ser considerado

como a fronteira de produtividade. Teoricamente, em uma economia

perfeitamente competitiva e não sujeita a erros de mensuração, o

produto marginal do capital deveria ser igual em todas as firmas de um

determinado setor. Para dar conta das fricções existentes na realidade e

dos erros de medida, as diferenças de produto marginal entre as firmas

dos EUA são tomadas como o melhor padrão possível de se obter na

realidade.

Os autores chegam a resultados substanciais: a realocação hipotética,

na qual a distribuição de frequência do produto marginal na China e na

Índia equivalesse à observada nos EUA poderia gerar ganhos de

aumento de TFP entre 30% e 50% na China e 40%–60% na Índia. Isso

indica que a regulação econômica na China e na Índia mantêm vivas

empresas de baixa produtividade que, nos EUA, não sobreviveriam. Ao


fecharem, empresas pouco produtivas liberam capital e trabalho para

serem usados de forma mais eficiente pelas sobreviventes.

Gráfico 4: TFP Brasil e Desembolsos Acumulados do BNDES PSI

Fonte: TFP: TED, The Conference Board Jul/2020; Desembolsos BNDES PSI:
BNDES. Elaborado pelos autores.

Em artigo importante, Caballero, Hoshi e Kashyap (2008) analisam o

efeito de financiamento de maus projetos sobre a economia. Mais

especificamente, na década de 1990, grandes bancos japoneses

financiaram empresas pouco produtivas ( zombies). De fato, por

estarem expostos a essas empresas, os bancos continuaram a financiá-las

para evitar reconhecer prejuízos. Os autores mostram que a

sobrevivência de empresas pouco produtivas teve as seguintes

consequências: reduziu o investimento das demais empresas; reduziu a

produtividade no nível da indústria; aumentou o diferencial de

produtividade entre zombies e as demais empresas (reduzindo, assim,

produtividade total). Aqui, vale relembrar de artigo de Bonomo, Brito e

Martins (2015), que apresenta evidência de que empresas maiores, mais

velhas e menos arriscadas se beneficiaram da maior parte da expansão

do crédito patrocinada pelo governo brasileiro.

Por fim, Ribeiro e Nucifora (2017) avaliam especificamente o

programa BNDES Finame-PSI (linha que financia aquisição de bens de

capital, ônibus e caminhões) e o seu impacto sobre investimento e

produtividade (do trabalho e TFP), tanto dos adquirentes dos produtos


quanto dos produtores dos equipamentos financiados. Os autores

encontram efeito positivo sobre vendas de produtores, porém o efeito

sobre a produtividade (tanto do trabalho quanto TFP) destes é zero. Já

para adquirentes, há efeito positivo sobre investimento: usuários do PSI-

Finame têm maior taxa de investimento que não usuários, porém

encontram também efeito sobre produtividade (tanto do trabalho quanto

TFP) negativo para manufatura e varejo. Portanto, concluem que o

programa levou ao aumento de vendas e investimento, porém com efeito

negativo (ou nenhum) sobre a produtividade.

4.2 DESENVOLVIMENTO DO MERCADO DE


CRÉDITO E DE CAPITAIS
Ainda não há, ao menos que saibamos, Literatura para o Brasil inferindo

de maneira precisa os efeitos de crowd-out do PSI (e mais geralmente


de crédito subsidiado). Fazemos, aqui, um exercício que leva em conta a

queda dos desembolsos do BNDES, principalmente ao fim do PSI em

dezembro de 2015, a redução da taxa Selic de 2016 em diante e a

substituição da taxa de juros subsidiada até então usada pelo BNDES

(TJLP) por uma taxa que segue o custo de financiamento do tesouro

(TLP), a partir de janeiro de 2018. Levantamos a hipótese de que, a

partir dessas mudanças institucionais e de política pública de crédito, o

mercado de crédito livre e de capitais tenha tido espaço para florescer.

O Gráfico 5 mostra que, a partir de 2017, mercados de capitais e

crédito bancário ex-BNDES ganharam importância como fontes de

financiamento das empresas a partir do momento que o BNDES

enxugou o tamanho de sua carteira de crédito.

Gráfico 5: Fonte de Financiamento do Crédito Amplo à Pessoa Jurídica


(índice do valor real)
Fonte: Relatório de Estabilidade Financeira do Banco Central Abril 2021 e
BNDES. No mercado de capitais, consideraram-se apenas os instrumentos
de debêntures e notas promissórias. Elaborado pelos autores.

O Gráfico 6 reforça essa percepção ao comparar o acumulado de

concessões de empréstimo para empresas advindos do BNDES e de

fontes de crédito livre. Mais uma vez há a indicação de que o

encolhimento do BNDES no mercado de crédito abre espaço para o

crédito não regulado.

Gráfico 6: Concessões de crédito livre e pelo BNDES a pessoas jurídicas (R$


bilhões, valor acumulado 12 meses)

Fonte: Banco Central. Elaborado pelos autores.

5. CONCLUSÃO
Ao longo do texto, elencamos algumas de nossas conclusões a respeito

da atuação do BNDES e, mais especificamente, da efetividade do

Programa de Sustentação do Investimento (PSI), programa que tinha

como objetivo estimular o investimento, de modo a manter a economia

aquecida, no período pós-crise de 2008. Olhando para os efeitos do

BNDES, particularmente do PSI (seu programa de maior relevância),

sobre a produtividade do brasileiro e a alocação de capital no país,

encontramos, dentre outras, evidências de que:

1) O programa não primou pela alocação de capital.

2) O BNDES financiou empresas maiores e menos arriscadas, que

habitualmente já têm acesso a crédito no mercado privado a taxas mais

favorecidas.

3) O BNDES-PSI-Finame levou ao aumento de vendas e investimento;

porém, na evidência trazida pelo estudo disponível com micro dados

nível da planta, sem efeitos (ou com efeito negativo) sobre a

produtividade. Isso, por si só, é um ponto de atenção. Como, de acordo

com o ministério da economia, o PSI teve custo fiscal acumulado de R$

285 bilhões, a preços de junho de 2021 (Ministério da Economia.

Secretaria do Tesouro Nacional, 2021), apenas se houvesse enorme

efeito positivo o PSI se justificaria como política pública.

4) Houve um crowd-in das fontes de financiamento privadas assim

que os juros atingiram patamares menores.

Concluímos com duas sugestões de análises relativas às novas formas

de atuação do BNDES. Vimos, durante a pandemia, o BNDES atuar de

maneira distinta, viabilizando como instrumento de ligação entre

instituições financeiras e tomadores de crédito, em vez de intermediário

financeiro de fato, em programas de financiamento subsidiado, como o

pese e o peac. Quando comparado ao PSI, esse modo de atuação teria

sido mais efetiva? Da mesma forma, a área de mercado de capitais do

BNDES passou a utilizar Fundos de Direitos Creditórios (FIDCS)

parceiros de instituições de pagamentos para viabilizar crédito para

pequenos empreendedores. Quais as diferenças em relação à atuação

usual do BNDES junto a pequenas empresas (operações indiretas via

sistema bancário)? Qual a efetividade dessa ação? Ela estimula ou inibe

É
o mercado privado? Qual custo dessa atuação. É salutar que o BNDES

esteja tentando se reinventar. É indispensável que o esforço de

pesquisadores na avaliação de sua atuação acompanhe essa tentativa e

ajude a guiá-la.

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Working Paper.
Souza-Sobrinho, N., & Nakane. (2 de 2002). Uma Avaliação do Canal de Crédito no Brasil.

163. Ambos são da StoneCo. Vinicius Carrasco também é Professor de Economia da PUC-Rio.

164. Tais subsídios implícitos decorrem da diferença entre o custo de captação do Tesouro

Nacional e o custo contratual dos empréstimos concedidos ao BNDES. O cálculo é feito em

valores constantes de 31 de dezembro de 2019.

165. Tais subsídios explícitos decorrem da diferença entre a taxa de juros recebida pelo

financiador e a taxa de juros paga pelo mutuário. O cálculo é feito em valores constantes de 31

de dezembro de 2019, e inclui as equalizações ao BNDES e à Finep.

166. Para uma análise mais ampla da literatura, remetemos o leitor a barboza et al. (2020).
CAPÍTULO 9
CRÉDITO DIRECIONADO E SEUS
EFEITOS SOBRE A TRANSMISSÃO DA
POLÍTICA MONETÁRIA
Marco Bonomo, Bruno Martins, Bruno Perdigão e
Carlos Viana de Carvalho

INTRODUÇÃO
No Brasil, o Estado intervém no mercado de crédito de diversas formas.

A mais aparente é a existência de bancos de propriedade estatal

cumprindo funções de bancos comerciais, de investimentos e

desenvolvimento. A existência de regras de direcionamento do crédito

para certas finalidades, mesmo quando concedido por bancos privados,

constitui uma forma de intervenção menos transparente, porém bastante

abrangente, que afeta vários aspectos da vida econômica. No auge da sua

penetração em 2015, o crédito direcionado correspondia a 50% do total

do crédito, com participação similar no crédito à pessoa física e à pessoa

jurídica.

Neste capítulo, abordaremos os efeitos do crédito direcionado na

economia, com foco no período entre a crise financeira de 2008 e 2015,

quando essa política atingiu seu ápice. Após apresentarmos alguns de

seus aspectos mais gerais, analisaremos com mais detalhe evidências

disponíveis sobre como o crédito direcionado impacta a transmissão da

política monetária, por meio do canal de crédito para firmas.

As evidências disponíveis nos levam a concluir que o direcionamento

de crédito, na forma observada historicamente, promove ganhadores e


perdedores em mais de uma dimensão e diminui a potência da política

monetária.

1. CRÉDITO DIRECIONADO: JUSTIFICATIVAS,


LIMITAÇÕES E BREVE HISTÓRICO
A propriedade estatal de bancos e a regulação do mercado de crédito
167
estão presentes em boa parte do mundo . No Brasil, a intervenção por

meio do crédito direcionado tem se dado conjuntamente com a

concessão de subsídios, que se materializam nas taxas às quais esses

empréstimos são concedidos — em níveis bastante inferiores às

cobradas no crédito livre (ou não direcionado). Historicamente, o

direcionamento não só garantiu a oferta de crédito para determinados

fins, como transferiu recursos para seus tomadores.

As justificativas para garantir a provisão de crédito e para subsidiá-lo

são conceitualmente distintas. Problemas de assimetria de informação

podem ocasionar falhas de mercado, incluindo o seu racionamento. Por

exemplo, uma empresa com alto potencial de rentabilidade pode não

conseguir crédito por não dispor de garantias ou histórico de crédito.

Nesse caso, uma intervenção para garantir a oferta de crédito pode ser

justificável. O direcionamento do crédito é uma das intervenções

possíveis para corrigir essa distorção, mas a concessão de garantias por

entidades públicas ou a provisão de seguro podem ser suficientes — e

mais eficientes — em algumas situações.

Externalidades positivas na atividade a ser financiada também

poderiam justificar a concessão de subsídios, como no caso de projetos

que têm retorno social maior que o retorno financeiro esperado pelo

empreendedor. O crédito subsidiado poderia assim contribuir para que a

oferta da atividade que gera externalidade positiva não fosse subótima.

Entretanto, subsídios concedidos por outros meios cumpririam o mesmo

papel. A provável razão para o subsídio concedido via barateamento do

crédito ser tão disseminado é não estar plenamente sujeito ao crivo do

processo orçamentário. Isso reduz sua transparência, tornando seu custo

mais opaco.
Além de falhas estruturais de mercado, momentos de crise ou

ambientes com alta instabilidade econômica podem impedir o bom

funcionamento dos mercados de crédito. Essas situações também podem

justificar intervenções nestes mercados, visando a proteger a atividade

econômica.

No entanto, intervenções do governo podem ser ineficientes devido a

problemas de incentivo inerentes ao setor público. Em particular, regras

de alocação como as do crédito direcionado têm efeitos secundários nas

decisões dos bancos e dos agentes econômicos, com reflexos em outras

linhas de crédito. No Brasil, a abundância de crédito subsidiado

direcionado parece ter tido efeito inibidor sobre o crédito livre e o

mercado de capitais.

O Brasil viveu, até o começo da década de 1990, um dos mais longos

processos de hiperinflação da história. Nestas circunstâncias, havia um

alto grau de incerteza em relação ao nível de inflação, o que

praticamente inviabilizava o mercado privado de crédito de longo prazo

e o de capitais. Nesse contexto, empréstimos de longo prazo só existiam

se providos pelo Estado — no caso de empresas, pelo BNDES.

Com a estabilização da inflação a partir de 1994/1995, era de se

esperar que houvesse um desenvolvimento do mercado de capitais e um

alongamento do mercado de crédito privado. Após alguns anos e ganhos

adicionais de estabilidade com o chamado tripé macroeconômico, o

volume total de crédito e a participação do crédito privado passaram a

aumentar em meados dos anos 2000, a despeito de taxas de juros ainda

extremamente elevadas no país. Esse processo foi beneficiado não só

pela estabilidade econômica e pelo ambiente externo favorável, mas

também por medidas que reduziram os riscos inerentes a cada

empréstimo individual, como a alienação fiduciária.

Nesse contexto, o crédito vinha se expandindo, ao mesmo tempo que a

participação do crédito direcionado no seu total se reduzia. Contudo, a

crise financeira de 2008 interrompeu o processo (ver Gráfico 1). O

crédito direcionado e os bancos públicos foram então amplamente

utilizados para atenuar os efeitos da crise, inicialmente com a

perspectiva de que a trajetória anterior fosse retomada quando os efeitos

da crise se dissipassem.
Gráfico 1: Evolução do crédito/PIB e da participação do crédito direcionado
antes e depois da crise de 2008

Fonte: Sistema de informações de créditos (SCR) e de séries temporais


(SGS) do Banco Central do Brasil. Cálculos dos autores.

No entanto, a partir da crise teve início um processo de aumento

continuado da participação do crédito público e direcionado, que parece

ter refletido uma mudança de diagnóstico por parte do governo da então

presidente Dilma Rousseff sobre o papel do crédito governamental. A

visão predominante passou a ser a de que o processo de expansão do

crédito deveria ser liderado pelo Estado, o que levou o governo a

implementar medidas visando ao aumento da participação do crédito

direcionado e do crédito provido por bancos estatais. Esse processo só

foi interrompido com a crise econômica e política de 2015/2016, que

culminou com o impeachment da presidente e a mudança no rumo da

política econômica a partir da gestão do presidente Michel Temer (ver

Gráfico 1). A última seção deste capítulo aborda algumas mudanças

ocorridas desde então.

2. CARACTERÍSTICAS DO CRÉDITO
DIRECIONADO
Os recursos para o crédito direcionado são constituídos por vários

mecanismos. O primeiro é por meio do direcionamento de uma parcela


dos recursos captados pelas instituições financeiras. No final de 2019,

30% dos depósitos à vista deveriam ser aplicados em crédito rural e 2%

em microcrédito. Dos depósitos de poupança, 65% deveriam ser


168
destinados ao crédito imobiliário ; dos recursos captados via letras de

crédito do agronegócio (LCAs), 35% deveriam ser aplicados em crédito

rural, enquanto a totalidade dos recursos obtidos por emissões de letras

de crédito imobiliário (LCIs) era direcionada ao financiamento

imobiliário.

A obrigatoriedade de direcionamento de recursos captados pelos

bancos restringe a oferta de empréstimos no segmento livre do mercado

de crédito. Por outro lado, a renúncia fiscal associada à isenção

tributária da remuneração dos depósitos de poupança, LCIs e LCAs

torna esses instrumentos de captação mais atrativos, favorecendo as

modalidades de crédito para as quais os recursos são direcionados.

Um segundo tipo de fontes de recurso, de origem fiscal e parafiscal,

são os fundos constituídos por poupança forçada, contribuições e

impostos. A poupança forçada dos trabalhadores formais é recolhida ao

Fundo Garantidor por Tempo de Serviço (FGTS), que financia

empréstimos do Sistema Financeiro de Habitação. Os recursos do Fundo

de Amparo ao Trabalhador (FAT), que financiam empréstimos diretos e

indiretos (repassados por meio dos bancos) do BNDES, são formados a

partir da contribuição do PIS, cobrada sobre o faturamento das

empresas. Os recursos dos fundos regionais FNE, FCO e FNO são

constituídos por uma parcela dos impostos sobre produtos

industrializados (IPI) e sobre a renda (IR). Esses recursos são utilizados

no financiamento de empréstimos a empresas e pessoas físicas das

regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste, por meio de bancos e agências

estatais, havendo um limite mínimo de 30% de recursos destinados a

micro e pequenas empresas.

Do ponto de vista da destinação dos recursos, a maior parte dos

empréstimos direcionados concedidos às firmas tem por finalidade o

financiamento do investimento, em particular o de infraestrutura, e

projetos de desenvolvimento, enquanto os empréstimos livres são, em


169
grande parte, para capital de giro das empresas . Já o crédito
direcionado concedido a indivíduos é em sua maior parte para aquisição
170
de imóveis, seguido pelo financiamento da agricultura .

Os bancos de propriedade estatal têm grande participação no mercado

de crédito direcionado. Em 2015, quando a política de intervenção

estatal nesse mercado estava no seu auge, eles eram responsáveis por três

quartos do total, o que representava, por sua vez, quase dois terços do

seu crédito. O BNDES, por meio de empréstimos diretos ou de repasses

de suas linhas para bancos, detinha 72% do crédito direcionado a firmas.

O Banco do Brasil era responsável por 61% do crédito rural, enquanto a

Caixa Econômica Federal, por 74% do crédito imobiliário residencial.

Uma outra característica do crédito direcionado no Brasil é que uma

parcela relevante dos recursos direcionados apresenta taxas de juros

subsidiadas e com baixa sensibilidade em relação às flutuações das taxas

de mercado. O Gráfico 2 ilustra essa característica, por meio da

comparação das taxas de juros reguladas e de mercado do crédito

direcionado rural e imobiliário concedido. As taxas reguladas do crédito

direcionado não só flutuam menos que as de mercado, como situam-se

sistematicamente abaixo das mesmas. As mesmas observações se

aplicam à taxa de juros de longo prazo (TJLP), que até o final de 2017
171
indexava a maior parte dos empréstimos do BNDES (ver Gráfico 3) .

Gráfico 2: Taxas de juros do crédito direcionado nos segmentos imobiliário


e rural
Fonte: Sistema de séries temporais (SGS) do Banco Central do Brasil.

Gráfico 3: Evolução da taxa Selic, TJLP e taxa de capital de giro: baixa


sensibilidade do crédito direcionado à política monetária

Fonte: Sistema de séries temporais (SGS) do Banco Central do Brasil.


A proporção de crédito direcionado teve uma trajetória ascendente

após a crise financeira de 2008, alcançando 50% dos empréstimos totais

em 2015. O crédito para pessoas jurídicas representava 54% do crédito

total. O crédito direcionado era aproximadamente metade tanto do

crédito para pessoa física quanto dos empréstimos para pessoa jurídica.

Essa tendência começou a ser revertida a partir do segundo semestre de

2016. Em agosto de 2021, o crédito direcionado representava 40% do


172
crédito total . Essa redução resultou da queda quase pela metade do

crédito direcionado para pessoas jurídicas, enquanto o crédito para

pessoas físicas manteve-se mais ou menos constante como proporção do

PIB (ver Gráfico 4). A última seção deste capítulo aborda algumas

medidas que contribuíram para essas mudanças.

Gráfico 4: Distribuição do crédito/PIB entre crédito livre e direcionado, para


pessoas físicas (PF) e jurídicas (PJ) — dezembro de 2015 versus agosto de
2021
Fonte: Sistema de séries temporais (SGS) do Banco Central do Brasil.
Cálculos dos autores.

3. SUBSÍDIOS NO CRÉDITO DIRECIONADO:


ALGUNS ASPECTOS QUALITATIVOS
Quando custeados pelo governo, subsídios associados ao crédito

direcionado oneram as contas públicas. Isso não deveria ser um

problema per se — afinal, políticas públicas implicam custos.

Historicamente, entretanto, parte relevante desses subsídios têm sido

concedidos por meio de mecanismos parafiscais, sem que precisem

competir por espaço orçamentário com outros gastos potencialmente

meritórios. Em particular, parte desses subsídios não é sujeita às regras

fiscais implementadas nas últimas duas décadas para disciplinar e dar

credibilidade à política fiscal brasileira. Portanto, é bastante provável

que o volume total de subsídios tivesse sido substancialmente menor

caso estivessem sujeitos às regras fiscais. A transparência em relação a

mecanismos parafiscais, não obstante ter aumentado ao longo do tempo,

não substitui a disciplina e legitimidade que resultariam se todos os

subsídios estivessem regularmente sujeitos ao processo orçamentário.

Quando custeados por outros meios que não a subvenção, subsídios

creditícios em geral produzem alguma distorção econômica. A razão é

simples. Se há uma fonte que provê financiamento barato para o crédito

direcionado, pode-se inferir que esse financiamento seja obrigatório.

Caso contrário, a parte que o concede optaria por outro uso, mais
rentável, para seus recursos. A obrigatoriedade de prover financiamento

barato tende a distorcer as escolhas das instituições sujeitas a tais

obrigações. Um possível efeito colateral é a elevação dos custos de

outras atividades, na medida em que os emprestadores buscam

compensar a perda de rentabilidade que resulta desse direcionamento.

Um exemplo pode ser útil para ilustrar o ponto. Parte dos recursos

captados pelos bancos por meio de depósitos à vista tem que ser

direcionada para crédito rural e microcrédito. Na ausência dessa

obrigação, os bancos poderiam destinar os recursos para atividades mais

lucrativas do que os empréstimos nessas duas modalidades. Portanto, o

direcionamento onera o produto bancário “depósito à vista” e pode ter

como efeitos colaterais um aumento de tarifas associadas à conta-

corrente ou o encarecimento de outras modalidades de crédito. Essa é a

lógica por trás da crítica da “meia-entrada” associada ao crédito

direcionado. A obrigatoriedade de conceder créditos com baixo retorno

acaba onerando o custo do crédito livre, na medida em que os

emprestadores buscam compensar a baixa rentabilidade com retornos


173
mais elevados em operações não direcionadas .

Mesmo quando não envolvem recursos públicos de forma explícita,

subsídios associados ao crédito direcionado com frequência envolvem

algum uso de recurso público. Um exemplo são modalidades de crédito

direcionado com recursos da caderneta de poupança, como parte do

crédito imobiliário e do crédito rural. O subsídio nestes casos decorre

das taxas de juros reguladas que remuneram a caderneta de poupança —

produto cuja rentabilidade, na maior parte do tempo, fica abaixo de

outras aplicações financeiras com risco e liquidez similares. Ora, mas se

a caderneta de poupança oferece baixa remuneração na maior parte do

tempo, como consegue captar recursos? Em parte, isto é possível pois


174
seus rendimentos não estão sujeitos a tributação . Isso faz com que sua

remuneração fique relativamente mais competitiva nas comparações

líquidas de impostos.

Independentemente de sua origem, subsídios tendem a viabilizar ou

ampliar a escala de projetos ou atividades que não se materializariam na

sua ausência. Se bem empregados, viabilizam ou ampliam atividades

cujo retorno social excede o privado, como no exemplo clássico do


saneamento básico. Caso contrário, viabilizam maus projetos, com

impactos deletérios sobre a alocação de capital e a produtividade da

economia, ou simplesmente transferem renda para os beneficiários dos

subsídios, sem impacto relevante sobre suas decisões de investimento.


175
De fato, há evidência empírica nesta direção . Historicamente, firmas

que recebem crédito direcionado tendem a ser maiores, mais velhas e


176
menos arriscadas que a média . Outra diferença detectável

estatisticamente é que firmas com maior proporção de crédito

direcionado apresentam menor custo de financiamento e maior

alavancagem. A evidência disponível para empresas de capital aberto

indica não haver associação entre o volume de crédito direcionado


177
obtido e suas decisões de investimento . Por último, há também

evidência de efeitos deletérios do crédito direcionado sobre a eficiência


178
da alocação de recursos e sobre a produtividade da economia .

4. SUBSÍDIOS NO CRÉDITO DIRECIONADO ATÉ


2015 SOB DIFERENTES ÂNGULOS
Os subsídios embutidos no crédito direcionado acompanharam sua

expansão na primeira metade da década passada, chegando a 1,5% do


179
PIB em 2015. De acordo com estudo do Banco Mundial , esse custo

era bancado na maior parte pelo Tesouro (0,9% do PIB), mas também

pela sub remuneração das poupanças livre e forçada (0,3% poupança e

0,3% FGTS). Outra forma de estimar os subsídios é utilizar as taxas de

juros do crédito livre concedido pelos bancos privados como referência

para avaliar o subsídio embutido nas taxas de juros do crédito

direcionado, o que resulta em um número bem mais alto. Nesse caso,

chega-se aos mesmos 1,5% do PIB de subsídio só para a parcela dos


180
empréstimos a empresas em 2015 (ver Gráfico 5) .

Devido aos incentivos inerentes ao setor público, os empréstimos

livres concedidos por bancos públicos também podem embutir

subsídios. O Gráfico 5 também mostra a evolução da diferença entre os

juros médios cobrados por bancos públicos e privados nas operações

livres para o mesmo tomador, multiplicado pelo volume concedido pelos

bancos públicos.
Gráfico 5: Subsídios embutidos nos empréstimos a empresas (2011-2015),
em R$ bilhões

Fonte: Bonomo e Martins (2017) e Pazarbasioglu et al. (2017).

A distribuição do subsídio entre firmas e setores apresentava grande

dispersão. A princípio, em decorrência de dois fatores: a proporção de

crédito do setor e a participação do crédito direcionado nos empréstimos

contraídos pelo setor (ver Gráfico 6). A manufatura (31%), o setor de

serviços (27%) e de energia (16%) recebiam as maiores fatias do crédito

direcionado em 2015. Em parte, isso ocorria porque são setores com

grande participação no volume total de crédito.

Gráfico 6: Crédito direcionado versus não direcionado para empresas, por


setor (média 2006/2015)

Fonte: Pazarbasioglu et al. (2017).


No intuito de avaliar quais setores eram desproporcionalmente

beneficiados por subsídios, é conveniente utilizar um índice setorial que

normaliza o subsídio que cada setor recebeu pela sua participação no


181
crédito total . Um índice acima de 1 significa que o setor recebeu

subsídios em proporção maior do que sua participação no crédito. O

Gráfico 7 mostra a evolução desse indicador para cada setor entre 2011 e

2015. Nota-se uma tendência à convergência entre os indicadores de

setores, sugerindo a generalização dos subsídios.

Se os subsídios do crédito direcionado fossem focados somente em

atividades que gerassem externalidades positivas, esperaríamos uma

grande variação no índice descrito anteriormente. A generalização dos

subsídios evidenciada pela convergência dos índices setoriais é

indicativa de uma ausência de critério na concessão de subsídios. De

fato, uma análise detalhada do financiamento do BNDES chegou à

conclusão de que somente 22,3% dos desembolsos foram orientados a

atividades que inequivocamente geravam externalidades positivas. Em

contraste, quase a metade dos desembolsos tiveram como destino


182
atividades sem externalidades claras .

Gráfico 7: Índice de alocação relativa dos subsídios creditícios (2011-2015)

Fonte: Bonomo e Martins (2017) e Pazarbasioglu et al. (2017).

5. CRÉDITO DIRECIONADO E A POLÍTICA


MONETÁRIA
No que tange à política monetária, o crédito direcionado interfere no seu

efeito sobre diferentes firmas e setores econômicos. Faz, portanto, com

que a política monetária tenha efeitos distributivos, na medida em que

passa a afetar firmas e setores de forma diferenciada. Além disso, o

crédito direcionado provavelmente afeta também a potência da política

monetária.

Estes efeitos do crédito direcionado decorrem do fato de que,

historicamente, suas taxas de juros têm baixa sensibilidade em relação

às taxas de juros de mercado que, por sua vez, respondem à política

monetária. Essa menor sensibilidade das taxas de juros do crédito

direcionado interfere na forma como a política monetária opera sobre a

economia.

A política monetária no Brasil é conduzida no âmbito do regime de

metas para a inflação. Nele, o Banco Central calibra o nível da taxa de

juros de curto prazo ao longo do tempo, visando a atingir as metas para a

inflação definidas pelo Conselho Monetário Nacional. Se a dinâmica da

inflação sugere que ela caminha para a região acima da meta num

horizonte temporal que torna indicado à política monetária alterar seu

curso, o Banco Central aumenta os juros com o objetivo de manter a

inflação na meta. No caso oposto, ou seja, quando a inflação ruma para

patamares abaixo da meta, o Banco Central reduz a taxa de juros para

estimular a economia e elevar a inflação. A eficácia da política

monetária depende, em grande medida, dos incentivos que diferentes

taxas de juros provêm para as decisões de firmas e consumidores.

Em termos operacionais, o Banco Central do Brasil conduz a política

monetária por meio da fixação de uma meta para a taxa Selic, que é

determinada no mercado de empréstimos com prazo de um dia entre

instituições financeiras lastreados em títulos públicos federais. A Selic

influencia taxas de juros para prazos mais longos (a chamada estrutura a

termo das taxas de juros), que, por sua vez, compõem o custo de

diferentes modalidades de crédito. Portanto, um canal importante pelo

qual a política monetária influencia decisões de consumo e investimento

é justamente o crédito.

Se o crédito está mais barato, consumidores tendem a consumir mais.

Por exemplo, podem adquirir bens duráveis como automóveis e


eletrodomésticos — ou substituir bens antigos por novos. Podem

também tomar empréstimos para aumentar o consumo corrente de

outros bens e serviços, tendo como contrapartida o consumo um pouco

menor no futuro, quando o crédito encarecer. Raciocínio análogo vale

para investimentos de empresas. Crédito barato pode estimular novos

projetos ou expansão de negócios existentes. Se o custo do crédito

responde pouco à política monetária, esse canal perde eficácia.

A baixa sensibilidade à política monetária das taxas de juros do

crédito direcionado é ilustrada nos Gráficos 2 e 3. Foram frequentes os

ciclos de aperto e afrouxamento monetário (elevação e redução da Selic)

em que algumas taxas de juros do crédito direcionado ficaram

essencialmente constantes. Em contraste, taxas de juros de diferentes

modalidades de crédito livre refletiram, em maior ou menor grau, os

movimentos da Selic.

Essa menor sensibilidade das taxas de juros do crédito direcionado à

política monetária, quando comparadas às taxas do crédito livre, pode

ser comprovada de forma rigorosa por meio de métodos econométricos.

Em essência, os métodos contrastam firmas ou setores com diferentes

fatias de crédito direcionado como proporção do crédito total contratado.

A evidência com dados no nível de firmas mostra que, quanto maior a

fatia do crédito direcionado como proporção do crédito total da firma, i)

menor a sensibilidade do seu custo médio do crédito à política

monetária e ii) menor a contração do seu volume de crédito quando a


183
taxa Selic aumenta . Em outras palavras, variáveis financeiras de

firmas com mais crédito direcionado estão menos sujeitas aos efeitos da

política monetária.

Diante da baixa sensibilidade das taxas de juros do crédito direcionado

à Selic, a menor sensibilidade do custo médio do crédito para firmas

com mais crédito direcionado é um resultado esperado, em virtude de

um efeito composição. A evidência empírica mostra, entretanto, que os

impactos do crédito direcionado sobre a sensibilidade do custo do

crédito das empresas à política monetária vão além do efeito

composição. Firmas com uma parcela maior de crédito direcionado se

deparam também com menor sensibilidade das taxas de juros do seu

crédito livre à política monetária. Ou seja, a sensibilidade do seu custo


médio do crédito à Selic é ainda menor, pois diminui não apenas pelo

efeito direto da sua parcela de crédito direcionado, como também pela

menor sensibilidade do seu crédito livre. Uma possível explicação é que

o maior acesso a crédito direcionado aumenta o poder de barganha da

firma junto aos bancos e, com isso, ela consiga mitigar o repasse de

aumentos de taxas de juros para as taxas de suas operações com crédito

livre.

Com base nessas evidências, será possível concluir que a existência de

crédito direcionado, além de reduzir a exposição financeira das firmas à

política monetária, afeta também o lado operacional de seus negócios? A

evidência empírica com base em dados no nível de firmas indica que

sim. Após um movimento de alta da Selic, o nível de emprego contrai


184
menos em firmas com maior proporção de crédito direcionado . Além

disso, esse resultado só se aplica a firmas de pequeno e médio porte. Nas

maiores, a sensibilidade do emprego a mudanças na Selic independe da

participação do crédito direcionado no total de crédito tomado pelas

empresas. Este último resultado sugere que, para as grandes, o crédito

direcionado pode constituir apenas uma fonte de lucros financeiros, sem

relevância para suas operações. Esse resultado é consistente com a

evidência citada anteriormente para empresas de capital aberto, cujo

investimento não apresenta relação com a participação do crédito

direcionado no volume total de crédito contraído.

A evidência disponível mostra que o crédito direcionado faz com que a

política monetária tenha efeitos distributivos, na medida em que tem

menor influência sobre firmas com maior acesso a esse tipo de crédito, o

que sugere também que o crédito direcionado pode reduzir a potência da

política monetária. Nesse caso, para obter um determinando efeito sobre

a economia, o Banco Central precisaria alterar o nível da Selic com

maior intensidade, para compensar o impacto atenuado pela baixa

sensibilidade do crédito direcionado.

Do ponto de vista estritamente lógico, entretanto, não há garantia de

que se possa extrapolar os resultados reportados anteriormente,

baseados em impactos diferenciados sobre as firmas, para a economia

como um todo. A razão é que, ao menos teoricamente, é possível que a

introdução de crédito direcionado na economia, além de reduzir a


sensibilidade das firmas tomadoras dessas modalidades de crédito à

política monetária, aumente a sensibilidade das firmas com baixo ou

nenhum acesso a crédito direcionado a mudanças na Selic. Esses efeitos

indiretos do crédito direcionado sobre outras empresas resultariam de

mecanismos que determinam o equilíbrio como um todo da economia

— os chamados efeitos de equilíbrio geral. Agregando-se os dois efeitos,


185
é possível que a potência da política monetária fique inalterada .

Entretanto, resultados baseados em dados setoriais podem

complementar as evidências ao nível da firma reportadas anteriormente.

Em particular, é razoável supor que dados setoriais sejam mais

informativos dos efeitos agregados, uma vez que já levam em conta

efeitos de equilíbrio dentro dos setores em questão.

A evidência disponível para o Brasil, com base em dados de subsetores

da indústria manufatureira, corrobora os resultados obtidos com dados


186.
de firmas Em resposta a um aperto da política monetária, setores

com maior proporção de crédito direcionado vivenciam menor retração

do volume de crédito, com menor aumento do seu custo. No que tange à

atividade econômica, esses setores vivenciam menor contração, medida


187
tanto pelo volume de produção do setor , como pelo nível de novas
188
contratações de empregados . O uso de dados setoriais permite
189
também analisar os impactos da política monetária sobre preços .

Ainda em resposta a um aperto monetário, setores com maior proporção

de crédito direcionado vivenciam menor pressão desinflacionária.

Em resumo, para um conjunto de variáveis, que inclui crédito,

atividade econômica e preços, a evidência empírica baseada em dados

de firmas e setoriais mostra que o crédito direcionado faz com que a

política monetária tenha efeitos distributivos, na medida em que passa a

afetar firmas e setores de forma diferenciada. Aqueles com maior

proporção de crédito direcionado mostram-se menos sensíveis à política

monetária. Não obstante a possibilidade teórica de que o crédito

direcionado possa gerar efeitos apenas distributivos (e não agregados), a

evidência aqui reportada — especialmente a baseada em dados setoriais

— parece favorecer a ideia de que o direcionamento reduz a potência da

política monetária.
6. REDIRECIONAMENTO DA POLÍTICA
CREDITÍCIA A PARTIR DE 2016
O governo do presidente Michel Temer iniciou um redirecionamento da

política econômica a partir de meados de 2016 que produziu profundas

mudanças no mercado de crédito brasileiro. A principal mudança no

crédito direcionado envolveu a atuação do BNDES, que começou a rever

o sistema de subsídios nos seus empréstimos por meio da nova política

operacional, anunciada no começo de 2017. A concessão de

empréstimos utilizando como indexador a TJLP, que embutia fortes

subsídios, passou a ficar sujeita ao critério de externalidades positivas,

isto é, retorno social superior ao privado.

A Lei 13.483, de 21 de setembro de 2017, criou uma taxa de juros

para substituir a TJLP na remuneração dos recursos do Fundo de

Amparo ao Trabalhador (FAT), importante fonte de recursos subsidiados

para o BNDES. A nova taxa, denominada Taxa de Longo Prazo (TLP), é

composta de uma taxa de juros pré-fixada acrescida da inflação medida

pela variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo —

IPCA. A taxa pré-fixada é determinada com base em uma média

temporal da taxa de juros para o prazo de cinco anos das taxas de juros

dos títulos públicos federais indexados à inflação medida pelo IPCA (as

Notas do Tesouro Nacional série B — NTN-B). A Lei previa ainda um

período de transição de cinco anos, iniciado em 2018, durante o qual se

aplica um redutor à taxa pré-fixada da TLP, de modo a suavizar o

processo de redução dos subsídios creditícios. No entanto, mesmo antes

dessa convergência ocorrer de forma plena, a forte redução das taxas de

juros de mercado fez com que os subsídios nos empréstimos do BNDES

diminuíssem substancialmente.

Além da criação da TLP, houve mudanças similares nas regras para o

crédito rural e operações dos fundos constitucionais. A Resolução 4.664

do Conselho Monetário Nacional, de 6 de junho de 2018, estabeleceu

metodologia para definição das taxas de juros aplicáveis às operações de

crédito rural com recursos controlados (excetuando-se as operações com

recursos dos fundos constitucionais), denominadas taxas de juros do

crédito rural (TCR). Para elas foram criadas modalidades pré e pós-

fixadas, esta última indexada ao IPCA. Em ambos os casos, as taxas de


juros das modalidades são baseadas nas taxas dos títulos públicos

federais com prazos semelhantes. Na mesma direção, a Lei 13.682, de

19 de junho de 2018, estabeleceu novo cálculo para as Taxas de Juros

dos Fundos Constitucionais (TFC), para operações de crédito não rural.

As TFC têm como base a taxa pré-fixada da TLP, acrescida da variação

do IPCA, à qual se aplicam coeficientes de ajuste que refletem fatores

como diferenças nos níveis de desenvolvimento regional, o tipo de

operação e a finalidade do projeto receptor do financiamento.

As mudanças de política econômica e a gradual redução das taxas de

juros não reguladas produziram uma diminuição do crédito direcionado

para empresas e um aumento do financiamento por meio do mercado de

capitais, conforme evidências apresentadas em diversos estudos do


190
Banco Central do Brasil .

Além do desenvolvimento do mercado de capitais e da redução da

participação do crédito direcionado no crédito total, o advento da TLP e

de outras taxas de crédito direcionado com maior sensibilidade a taxas

de mercado (TCR e TFC) podem ter atenuado os efeitos distributivos da

política monetária associados ao direcionamento. Podem também ter

aumentado a potência da política monetária. Essas questões deverão ser

objeto de estudos futuros.

7. CONCLUSÃO
As evidências disponíveis nos levam a concluir que o direcionamento de

crédito, na forma observada historicamente, promove ganhadores e

perdedores em múltiplas dimensões. Cria um grupo de vencedores com

acesso a crédito mais barato e com uma espécie de seguro em relação às

flutuações da economia, na medida em que o custo do crédito

direcionado é menos sensível às taxas de juros de mercado. Os

perdedores, com baixo ou nenhum acesso a crédito direcionado,

enfrentam crédito mais caro e são mais expostos às oscilações das taxas

de juros. No agregado, as evidências sugerem que o crédito direcionado

reduz a potência da política monetária. Em função de seus elevados

custos fiscais, o direcionamento do crédito produz ainda uma maioria

esmagadora de perdedores silenciosos: a quase totalidade da população,

que deixa de receber melhores serviços públicos e paga mais impostos


para custear os subsídios ao crédito direcionado — na maioria das vezes,

sem se dar conta disso.

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167. Ver La Porta et al. (2002).

168. Há também a caderneta de poupança rural, que cria obrigações de concessão de crédito

rural. Em 2019, a alíquota de direcionamento era de 60%.

169. Ver Pazarbasioglu et al. (2017) para mais detalhes.

170. Idem.

171. De janeiro de 2018 em diante, a taxa de longo prazo (TLP) substituiu a TJLP como

principal referência para operações do BNDES (ver última seção deste capítulo).

172. No entanto, a participação dos bancos estatais no crédito direcionado manteve-se

aproximadamente constante no período.

173. Ver, por exemplo, Pazarbasioglu et al. (2017). Para evidência econométrica de que

direcionamento do crédito pode encarecer o crédito livre, ver Carvalho e Martins (2018).

174. Além disso, a caderneta de poupança provavelmente se beneficia dos baixos níveis de

educação financeira de parte relevante da população brasileira.

175. Bonomo, Brito e Martins (2015). Resultados obtidos a partir de análise econométrica com

microdados do registro de operações de crédito mantido pelo Banco Central do Brasil (SCR).

176. Essa conclusão está em consonância com a análise da carteira de crédito do BNDES de

Frischtak et al. (2017), onde se conclui que a maior parte do crédito foi destinada a tomadores

que, pelo seu porte, teriam acesso a outras fontes de crédito.

177. Sobre este último ponto, ver também Lazzarini et al . (2014).


178. A esse respeito, ver o Capítulo 8 deste livro.

179. Pazarbasioglu et al. (2017).

180. Subsídio calculado com base na diferença entre os juros médios do crédito livre e do crédito

direcionado tomado pelas firmas de cada setor, ponderando-se pelo total de crédito direcionado

tomado por cada setor (Bonomo e Martins, 2017).

181. Bonomo e Martins (2017).

182. Frischtak et al. (2017).

183. Bonomo e Martins (2016). Resultados obtidos a partir de análise econométrica com

microdados do SCR.
184. Bonomo e Martins (2016). Resultados obtidos a partir de análise econométrica com

microdados do SCR cruzados com microdados do Registro Anual de Informações Sociais

(RAIS).

185. Para um modelo teórico em que a potência da política monetária essencialmente não varia

com a presença de crédito direcionado, ver Castro (2019). As dificuldades para se obter

conclusões sobre fenômenos agregados a partir de evidência baseada em dados desagregados

analisados em cortes transversais são temas da fronteira de pesquisa em macroeconomia. O

leitor interessado deve procurar artigos que contribuem para o debate sobre o missing intercept.

186. Ver Perdigão (2018).

187. Dados da Pesquisa Industrial Mensal, do IBGE.

188. Dados da RAIS.

189. Dados do índice de preços ao produtor amplo — Setor Industrial, do Ibre-FGV.

190. Ver boxes publicados pelo Banco Central em diferentes edições do Relatório de Inflação

(RI) e do Relatório de Economia Bancária (REB): “Evolução recente do crédito no segmento de

pessoas jurídicas” (RI dez/2017), “Financiamento junto ao mercado de capitais e ao setor

externo e estoque de endividamento das empresas” (RI mar/2018), “Financiamento amplo das

empresas”, (RI jun/2018), “Custo do financiamento às pessoas jurídicas”, (RI set/2018),

“Liquidações antecipadas de operações de crédito no Sistema Financeiro Nacional”, (RI

dez/2018), “Evolução do crédito ampliado às empresas” (REB 2018).


CAPÍTULO 10
PREVIDÊNCIA: INAÇÃO E TROPEÇOS
LEVAM À INSUSTENTABILIDADE E À
DESIGUALDADE
Thais Vizioli e Rogério Nagamine Costanzi

INTRODUÇÃO
A Previdência Social é um direito fundamental. E, sob essa égide, não faltam

defensores de medidas que visem ao aumento da cobertura previdenciária a

qualquer custo, que lutem por benefícios elevados em relação ao padrão de

renda dos brasileiros, que se revoltem contra reformas que busquem tornar o

sistema previdenciário sustentável. Frequentemente, contudo, não atentam

aos preceitos constitucionais de equilíbrio financeiro e atuarial dos regimes

previdenciários, bem como aos impactos na carga tributária atual e futura e

na trajetória do endividamento público.

O Brasil passou recentemente por uma ampla reforma previdenciária, que

foi muito importante para reduzir a trajetória de crescimento acelerado e

insustentável da despesa. Contudo as alterações chegaram tarde: foram

muitos anos sem mudanças significativas, marcadas pela inação do Estado.

Tal processo foi agravado por diversas políticas implementadas ao longo

das últimas décadas que foram na direção contrária da sustentabilidade e

justiça social. Não se ativeram ao fato de que os recursos são escassos e os

impactos das políticas previdenciárias se perpetuarão por várias gerações. O

resultado é que a previdência no Brasil já apresenta características de

insustentabilidade e, mesmo com a reforma de 2019, isso tende a piorar com

o rápido envelhecimento populacional em curso no País.

Este capítulo apresenta, além desta introdução, a descrição do sistema

previdenciário brasileiro na seção 1, uma análise dos erros e problemas que


se acumularam nas últimas décadas e dos desafios e dos problemas que

permanecem após a reforma de 2019 na seção 2. A seção 3 traz as

conclusões.

1. O SISTEMA PREVIDENCIÁRIO BRASILEIRO

1.1 CONCEITOS E MARCO NORMATIVO


A Previdência Social é uma política de Estado de longo prazo, que consiste

em um dos elementos fundamentais dos arranjos dos Estados de Bem-Estar

contemporâneos. Sua principal finalidade é cobrir os riscos associados à

incapacidade laborativa, permitindo que os cidadãos possuam condições

financeiras para suavizar a renda e a capacidade de consumo ao longo da

vida. Também é seu objetivo funcionar como um mecanismo seguro que

permita o compartilhamento de riscos e a redução da incerteza, assim como

atenuar a pobreza (principalmente da população idosa) e redistribuir renda

(Barr e Diamond, 2006; Barr, 2012).

A previdência, no Brasil, está organizada em três regimes, independentes

entre si: (i) o Regime Geral de Previdência Social — RGPS, voltado

principalmente aos trabalhadores do setor privado, (ii) os Regimes Próprios

de Previdência Social — RPPS, instituídos no âmbito de cada ente federado e

voltados aos servidores públicos titulares de cargos efetivos, e (iii) o Regime

de Previdência Complementar — RPC, facultativo e privado.

Além deles, cumpre destacar o papel desempenhado pelo Benefício de

Prestação Continuada — BPC, previsto na Lei Orgânica de Assistência

Social (Loas), e que se refere à garantia de um salário-mínimo para a pessoa

com deficiência ou idosos com 65 anos ou mais, com renda familiar per
capita mensal de até ¼ do salário mínimo. Embora trate-se de benefício

assistencial, de caráter não contributivo, configura parte importante do


191
sistema de proteção social do Brasil, e exerce o papel de “pilar zero” . Em

especial, destaca-se que o benefício compartilha objetivos com a política


192
previdenciária, já que também visa garantir renda a idosos e deficientes .

Por fim, no âmbito do sistema previdenciário brasileiro, destaca-se o

Sistema de Proteção Social dos Militares (SPSM), que compartilha objetivos

com os regimes previdenciários, especialmente no que se refere à garantia de

renda na velhice, tratado no Capítulo 12 deste livro.


1.2 DADOS
Atualmente, o Brasil gasta mais de R$ 1 trilhão por ano com despesas

previdenciárias públicas (RGPS, RPPSs e SPSM) e BPC, conforme ilustra a

Tabela 1. Isso representa cerca de 15% do PIB, gasto muito superior ao que

muitos países desembolsam com todo seu sistema de proteção social. De

acordo com o Gráfico 1, mesmo tomando como base apenas países da


193
OCDE , o Brasil gasta apenas com previdência e BPC (linha horizontal no

gráfico) mais do que o gasto social de vários países e muito mais do que
194
esses países gastam com previdência , embora possuam estrutura etária

muito mais envelhecida. O gasto social médio da OCDE é de 20% do PIB, e

com previdência, de 7,7%.

Tabela 1: Receita, despesa e resultado — regimes previdenciários e BPC — R$


bilhões e % do PIB — 2020 (União) e 2019 (estados e municípios)

União Estados Municípios Total

RGPS RPPS SPSMFA BPC RPPS SPSM RPPS

Receita 404,77 52,19 6,65 0,00 62,17 14,53 50,62 590,94

5,4% 0,7% 0,1% 0,0% 0,8% 0,2% 0,7% 7,9%

Despesa 663,90 90,97 54,44 62,67 141,40 45,20 56,93 1.115,50

8,9% 1,2% 0,7% 0,8% 1,9% 0,6% 0,8% 15,0%

Resultado -259,13 -38,78 -47,79 -62,67 -79,22 -30,67 -6,31 -524,56

-3,5% -0,5% -0,6% -0,8% -1,1% -0,4% -0,1% -7,0%

Fonte: Resultado do Tesouro Nacional e RREO/STN para União, e RREO e DIPR


para estados e municípios.

Gráfico 1: Gasto social e com previdência — países da OCDE — % do PIB


Fonte: OCDE. Último ano disponível entre 2016 e 2019.

A Tabela 1 mostra que o gasto da União, isoladamente, representa 78% da

despesa pública total do país com previdência e BPC, sendo que 60% de toda

a despesa está a cargo do RGPS. Essas despesas representaram 57,2% da

despesa primária total da União em 2019. Assim, para todo o restante dos

gastos da União (saúde, educação, pessoal ativo, seguro-desemprego,

investimento, custeio, etc.), restam menos da metade dos recursos.

No Gráfico 2 podemos notar o crescimento real acumulado da despesa da

União com previdência e BPC e o crescimento real das demais despesas

primárias da União no período de 2008 a 2020. O crescimento real médio

observado no período foi de 4,18% ao ano para as despesas com previdência

e BPC, acumulando 63% de crescimento no período, e de 3,64% ao ano para

as demais despesas primárias, que acumularam 45%.

Gráfico 2: Crescimento real acumulado — despesas e receitas da União com


Previdência e BPC versus demais receitas e despesas da União

Fonte: Resultado do Tesouro Nacional. Ano base: 2008 = 100. Deflator: INPC do
ano anterior (fator de reajustamento monetário dos benefícios previdenciários e
do salário-mínimo). Observações: (i) as despesas com previdência incluem o
RGPS, o RPPS da União e do SPSMFA, (ii) a despesa de 2020 está descontada de
R$ 429,5 bilhões de créditos extraordinários decorrentes da pandemia da Covid-
19.

É interessante observar que as despesas com previdência e BPC sempre

apresentaram trajetória crescente, enquanto as demais despesas tiveram

variações ao longo do período, atreladas ao movimento da receita, já que a

única regra fiscal vigente até 2016 era a meta de resultado primário. As

receitas previdenciárias, contudo, cresceram mais do que a despesa no

período de 2011 a 2014, anos de formalização e aquecimento do mercado de

trabalho, mas a partir de 2015 apresentaram queda significativa.

Já a trajetória de evolução crescente da despesa previdenciária tenderá a ser

agravada pelo rápido processo de envelhecimento populacional já iniciado no

país, que representará cada vez mais pessoas recebendo benefícios

previdenciários e BPC, e cada vez por mais tempo. A receita não é apenas

afetada pelo envelhecimento populacional, mas também pela dinâmica do

mercado de trabalho, pois haverá cada vez menos pessoas em idade ativa

contribuindo para a previdência.

O resultado desse processo é que, mesmo após a aprovação da Emenda

Constitucional 103, de 2019, a despesa apenas com benefícios do RGPS deve


195
alcançar mais de 10,3% do PIB em 2040, e cerca de 14% em 2060 . Esse

padrão de evolução tende a ser reproduzido no BPC e nos demais regimes

previdenciários, ainda que em menor grau, já que a evolução da sua despesa

é influenciada pela política de recursos humanos, que define o ingresso de

novos participantes (servidores e militares).

Tais características revelam que, mesmo após ter passado por uma profunda

reforma em suas regras de acesso e cálculo de benefícios, a previdência

brasileira não tem atendido os preceitos constitucionais de equilíbrio

financeiro e atuarial. De fato, a sustentabilidade é um fator primordial a ser

considerado na previdência brasileira: o índice Mercer, por exemplo, que


o
avalia sistemas previdenciários de todo o mundo, posicionou o Brasil em 37

lugar (de 39) no quesito sustentabilidade. Embora figure melhor nos demais
o o
requisitos (adequação — 9 lugar, e integridade — 23 lugar), fruto,

principalmente de elevados níveis tanto da cobertura de idosos como da

suficiência (refletido pelo valor dos benefícios quando comparados à renda

média), há muitos elementos a serem aperfeiçoados para que a política

cumpra de fato todos os seus objetivos e faça melhor uso desse já muito

elevado nível de despesa.


As próximas seções discutirão alguns dos motivos das dificuldades de

sustentabilidade do sistema previdenciário brasileiro nas próximas décadas e

das demais lacunas observadas, em função de escolhas de políticas adotadas

pelo Brasil ao longo dos últimos anos.

2 OS ERROS E PROBLEMAS

2.1 INAÇÃO
A previdência é, por sua natureza, uma política de longo prazo. Regras

definidas hoje podem ter impacto por muitas décadas. Assim, é

imprescindível que se considere a dinâmica demográfica na avaliação da

sustentabilidade financeira e atuarial dos regimes. Isso é especialmente

relevante em sistemas públicos financiados por repartição (em que os

benefícios são custeados por contribuições correntes), como ocorre no Brasil,

que comumente vivenciam a postergação da necessidade de ajustes

paramétricos.

A crise financeira da previdência social data de antes da Constituição de

1988 (Santos, 2008). Não por acaso, já nos primeiros anos que se seguiram à

sua promulgação foram discutidas propostas visando saneá-la. Em 1992, o

Executivo encaminhou projeto de lei que estabelecia novas fontes de custeio

para a previdência, e em 1995 foi encaminhada Proposta de Emenda

Constitucional (PEC) em que se promoviam ajustes nas regras de concessão e

cálculo de benefícios, prevendo um regime de previdência complementar e

estabelecendo idade mínima (Nogueira, 2012).

Essa PEC foi aprovada e promulgada (EC 20) apenas em dezembro de

1998, cerca de quatro anos após seu encaminhamento. Apesar de ter

representado importantes alterações em direção à maior sustentabilidade,

pontos importantes não foram aprovados, em que destacamos a instituição de

idade mínima e a limitação dos benefícios dos servidores públicos ao teto do

RGPS.

Em razão do fracasso na tentativa de introdução de idade mínima, a Lei

9.876/1999 tentou garantir maior adequação das aposentadorias por tempo

de contribuição (ATC) do ponto de vista atuarial, ao introduzir o fator

previdenciário (FP). Trata-se da introdução de um mecanismo de

ajustamento automático à demografia, já que incrementos na expectativa de

sobrevida resultavam em queda nos valores dos benefícios.


Tais reformas levadas a cabo, ainda que não integralmente implementadas,

revelam que a necessidade de adequações no sistema previdenciário já era


196
conhecida , assim como o rápido processo de envelhecimento populacional

que o Brasil passaria num futuro cada vez menos distante e seus efeitos sobre

a política previdenciária. Ademais, embora houvesse relativa estabilidade no

resultado previdenciário até 2014, em decorrência principalmente do

aumento das receitas ilustrado no Gráfico 2, a despesa já apresentava forte

crescimento. No entanto, entre 2000 e 2016 foram propostas reformas que

impactaram apenas as regras do RPPS da União ou promoveram alterações


197
marginais , não afetando de maneira significativa a trajetória de evolução

da despesa, com exceção da Lei 13.135/2015, que ajustou algumas regras de

pensão por morte do RGPS, mas foi ofuscada pela flexibilização do fator

previdenciário.

Ao contrário, algumas alterações promovidas no período representaram

impacto muito negativo para o equilíbrio atuarial do sistema. Em especial,

cabe destacar a criação da figura do microempreendedor individual (MEI),

analisado no Capítulo 11 deste livro, e a regra 85/95 progressiva, de que trata

a próxima seção. Além do desafio à sustentabilidade decorrente do

envelhecimento populacional, o surgimento de novas formas de trabalho

também cria possíveis riscos ao financiamento da previdência. Nesse

contexto, uma regulamentação cuidadosa e sistêmica delas é fundamental

para evitar, ou pelo menos atenuar, os referidos riscos ao financiamento.

Assim, apenas em dezembro de 2016, com o encaminhamento da PEC 287,

retomaram-se discussões mais significativas sobre alterações nas regras

previdenciárias com impacto mais significativo sobre a despesa. O

amadurecimento dessas discussões e o encaminhamento da PEC 6, em 2019,

levaram à aprovação da EC 103/2019, que, a despeito de seu impacto


198
relevante sobre a evolução da despesa , ainda deixou lacunas importantes.

Nota-se que questões discutidas desde 1995, como a introdução de idade

mínima para o RGPS, vieram a ser aprovadas apenas em 2019, mais de duas

décadas depois, mas com longas regras de transição. As referidas regras de

transição aplicam-se a todos os segurados filiados a Previdência até a data de

entrada em vigor da Emenda, ou seja, novembro de 2019. Nesse sentido, a

correção de rumos previdenciários é sempre muito lenta, o que eleva o custo

da inação.
A título de exemplo, um homem com 18 anos já filiado ao RGPS, antes da
199
reforma de 2019, poderá se aposentar com 62 anos em 2063 . De forma

similar, uma mulher já filiada ao RGPS antes da reforma, com 18 anos, ainda

poderá se aposentar em 2060 com 59 anos. Apesar de hipotéticos, esses

exemplos revelam que o trajeto até as idades mínimas de 65/62 anos de

aposentadoria é muito longo. Também denota o problema associado à

exclusão, por parte do Congresso, da proposta de ajuste à demografia

explicitado na PEC 6/2019, o que permitiria incrementos automáticos às

idades de acesso à aposentadoria.

Assim, verificamos que reformas previdenciárias têm grande lapso de

tempo entre a identificação do problema e a efetiva aprovação de legislação

corretiva. Uma vez aprovada a reforma, ainda há demora para que seus

efeitos sejam integralmente materializados. Por esse motivo, a inação do

governo no período de 2000 a 2016 para promover alterações mais profundas

nas regras previdenciárias já constitui erro grave, que impactará não apenas

as gerações presentes, mas também futuras.

Na realidade, esse período não foi marcado apenas por inação, mas por

medidas que, do ponto de vista exclusivo do equilíbrio financeiro e atuarial,

afetaram negativamente o RGPS. Entre 2003 e 2015, é possível contabilizar

pelo menos dez mudanças legislativas que impactaram negativamente o


200
equilíbrio financeiro do regime .

De fato, os sucessivos déficits primários da União observados desde 2014

têm como causa principal o resultado previdenciário, conforme demonstra a

Tabela 2. Considerando apenas receitas e despesas não previdenciárias, o

resultado primário teria sido positivo em todo o período.

Tabela 2: Resultado primário, resultado previdenciário e resultado primário sem


previdência — União — R$ bilhões

2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020

Resultado -23,48 -120,50 -161,28 -124,26 -120,22 -95,06 -313,59


primário

Resultado -117,61 -151,72 -219,87 -262,55 -274,48 -308,68 -345,21


Previdência

Resultado -56,70 -85,82 -149,73 -182,45 -195,20 -213,18 -259,13


RGPS
2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020

Resultado -29,67 -31,20 -33,60 -38,46 -36,81 -46,66 -38,78


RPPS U

Resultado -31,24 -34,70 -36,53 -41,65 -42,48 -48,84 -47,30


SPSMFA

Resultado 94,13 31,22 58,59 138,29 154,26 213,61 31,62


primário sem
previdência

Fonte: Resultado do Tesouro Nacional e RREO. Obs.: o resultado primário de 2020


desconsidera créditos extraordinários de R$ 429,5 bilhões decorrentes da
pandemia da Covid-19.

Isso reforça o argumento de que a previdência tem consumido cada vez

mais recursos que poderiam ser destinados a políticas com maior potencial
201
de induzir o crescimento econômico e reduzir a desigualdade .

De fato, ao analisar as curvas de concentração de renda por fonte, Soares e

Bloch (2020) demonstram que a previdência não tem atingido seu objetivo de

reduzir a desigualdade social, já que reproduz quase perfeitamente a

distribuição de renda do país. Uma transferência é progressiva quando seu


202
coeficiente de concentração é inferior ao coeficiente de Gini , no entanto, a

previdência apresenta índice de concentração ligeiramente superior, de 0,544

ante 0,540. No caso dos RPPS, Silveira et al. (2020) mostram que os RPPS

concentram 73% de suas transferências no décimo mais rico e, dessa forma,

contribuem sobremaneira para o agravamento da concentração de renda. O

coeficiente de concentração do RPPS é de 0,82, ou seja, altamente


203
regressivo .

Mais ainda, esses sucessivos déficit elevaram substancialmente a dívida,


204
que saltou de 56,3% do PIB em 2014 para 74,3% em 2019 , e será

financiada pelas gerações futuras, que também serão responsáveis por custear

despesas previdenciárias correntes cada vez maiores. A crise gerada pela

pandemia da Covid-19 agravou a crise econômica e fiscal que se iniciou a

partir de 2014, tendo em vista a combinação de forte retração econômica,

queda nas receitas fiscais, aumento das demandas e dos gastos sociais que,

em conjunto, acentuaram o crescimento da dívida pública, que chegou a

88,8% do PIB em dezembro de 2020.


2.2 REGRA 85/95 PROGRESSIVA
Para além da inação, políticas equivocadas foram adotadas no período

recente, destacando-se a adoção da regra de cálculo 85/95 progressiva.

Durante a tramitação da MP 664 (convertida na Lei 13.135/2015), que

buscava ajustes básicos nas regras de pensão por morte, o Congresso

Nacional flexibilizou significativamente a aplicação do fator previdenciário

(FP). Pela emenda aprovada pelo Congresso, caso a soma de idade e tempo

de contribuição fosse 85 para mulheres ou 95 para os homens, não seria

aplicado o FP, o que na prática representava um aumento expressivo no valor

dos benefícios, o fim da lógica atuarial na concessão das aposentadorias por

tempo de contribuição (ATC) e a destruição do mecanismo de ajustamento

automático à demografia (Costanzi, Fernandes e Ansiliero, 2018).

Embora tenha vetado a proposta, o Executivo apresentou a MP 676/2015

(convertida na Lei 13.183/2015), que mantinha a regra 85/95, aumentando-a

progressivamente para 90/100 até 2022. Durante a tramitação no Congresso

Nacional, a progressão ficou ainda mais lenta, alcançando 90/100 apenas em

31/12/2026. Cabe destacar que, no período de 2000 a 2014, o FP gerou


205
redução da despesa estimada em cerca de R$ 102 bilhões . Portanto, a nova

legislação fragilizou uma ferramenta eficaz de contenção de custos.

Como mostram Costanzi, Fernandes e Ansiliero (2018), a regra 85/95

progressiva criou situações em que, para mulheres, com apenas um ano de

postergação, seria possível elevar o valor inicial do benefício em 55,8%. O


206
fluxo acumulado de benefícios, em valor presente, iria aumentar 48% .

Para homens, o efeito não foi muito diferente: com apenas dois anos e meio

de postergação seria possível obter um aumento no valor do benefício de

44,5%, com aumento do fluxo acumulado de benefícios, em valor presente,


207
de 24,2% .

No período de 2015 a 2019, foram concedidas cerca de 566 mil ATCs sem

aplicação do FP. O valor médio desses benefícios foi 49,9% superior ao

daqueles que tiveram a aplicação do fator. Essa diferença representa

incremento da despesa anual para o RGPS da ordem de R$ 6,9 bilhões. A

idade média da ATC, no ano de 2019, foi de 54,8 anos, que demonstra a

precocidade que prevalecia antes da reforma de 2019 e cujo ajuste ocorrerá

de forma gradual. Nessa idade, em 2019, a expectativa de sobrevida, para

ambos os sexos, era de 27,5 anos, de tal sorte que essa diferença anual,
mantida por esse período, acumularia um incremento da despesa da ordem de
208
R$ 188,7 bilhões .

Felizmente, com a EC 103, a sangria fiscal gerada pela regra 85/95

progressiva foi estancada, tendo em vista que com o estabelecimento gradual

das idades mínimas de 65/62 anos, o FP deixou de ser aplicado, exceto em

uma regra de transição temporária e no caso de direito adquirido. Contudo, o

caso da Lei 13.183/2015 mostra uma fragilidade institucional, a qual permite

que sejam tomadas medidas que aumentem de forma expressiva a despesa

previdenciária sem qualquer preocupação com seus impactos de médio e

longo prazo e sobre a carga tributária das futuras gerações.

Como os benefícios de aposentadoria têm uma longa duração, em especial

quando concedidas de maneira precoce — como ocorre no Brasil, qualquer

alteração nas regras ou no valor do benefício podem gerar incrementos nas

despesas por várias décadas. Nesse sentido, cabe salientar que a MP

676/2015, origem da nova regra 85/95, foi apresentada sem estimativa de

impacto, apenas alegando a urgência em razão da necessidade de se opor a

proposta ainda mais gravosa aprovada pelo Congresso e vetada pelo


209
Executivo .

Para além do ponto de vista fiscal, cabe enfatizar que o público beneficiário

das ATCs é justamente aquele de maior escolaridade e maior estabilidade no

mercado formal de trabalho e, portanto, de maior renda e que com frequência

acumula benefício e renda do trabalho formal (Costanzi e Ansiliero, 2017). O

impacto negativo sobre a distribuição de renda também é salientado por

Penafieri e Afonso (2013), para quem a regra 85/95 proporcionaria valores de

benefícios mais generosos.

Nesse sentido, estimativas da Secretaria de Previdência (CMAP, 2021)


210
revelam descontinuidades nas taxas de reposição (TR) dos benefícios do

RGPS ao redor das pontuações 85/95. Para mulheres que decidiram se

aposentar por tempo de contribuição contabilizando 84 pontos na soma de

idade e tempo de contribuição, a TR média ficou em 74,6%; já para as que se

aposentaram apenas quando contabilizaram 85 pontos, a TR atingiu a média

de 92,3%. Quanto aos homens que se aposentaram pelo fator, conseguiram

repor 83,9% de sua renda pré-aposentadoria, enquanto quem somou os 95

pontos, repôs 96,8%.

2.3 ELEVADA JUDICIALIZAÇÃO DOS BENEFÍCIOS


A análise das causas do elevado crescimento da despesa previdenciária e com

BPC não pode deixar de lado a excessiva judicialização dos benefícios, tendo

em vista que concessões judiciais já chegam a quase 13% do total de


211
concessões do INSS . De acordo com estimativas da Associação dos Juízes

Federais do Brasil (Ajufe), o custo operacional da judicialização contra o


212
INSS ultrapassa R$ 4,67 bilhões .

Tal fenômeno, além de afetar a sustentabilidade dos regimes, também gera

inequidades na aplicação de regras entre regiões. Nota-se que a concessão

judicial de benefícios não cria obrigação de que todas as regras sejam

observadas, permitindo que a implementação do benefício ocorra sem

necessidade de atendimento a critérios definidos para a concessão


213
administrativa (CMAP, 2020).

É legítimo o controle pelo Judiciário da legalidade dos atos administrativos,

contudo, observa-se uma judicialização excessiva e crescente da temática

previdenciária. A análise das concessões judiciais de benefícios

operacionalizados pelo INSS revela que sua participação saltou de 1%, em

2001, para 13% em 2020 (Costanzi et al., 2021), v. Gráfico 3. Os autores

demonstram que enquanto as concessões totais apresentaram crescimento

médio de 2,85% a.a. nesse período, as concessões judiciais cresceram em

média 17,5% a.a. O direito previdenciário é o tema mais ajuizado na Justiça


214
Federal, e já alcança mais de 3,5 milhões de novos casos por ano .

A judicialização não é focalizada em benefícios específicos, mas abrange as

mais diversas espécies de benefícios previdenciários, como o auxílio por

incapacidade temporária ao trabalho (o chamado auxílio-doença), a

aposentadoria por incapacidade permanente (invalidez), a aposentadoria por

idade, a aposentadoria por tempo de contribuição, a aposentadoria especial, o

salário família, o salário-maternidade, a pensão por morte, bem como o BPC.

Gráfico 3: Evolução das concessões judiciais do INSS — 2001 a 2020


Fonte: INSS/Síntese.

A despesa com emissão de benefícios judiciais também cresceu, como

esperado, de forma acelerada no período de 1995 a 2020: saltou, em valores

reais a preços de dezembro de 2020, de menos de R$ 1 bilhão em 1995 para

um patamar em torno de R$ 80 bilhões nos anos de 2019 e 2020. O

crescimento anual médio foi de quase 20% a.a. nesse período. Ademais,

esses valores consideram apenas a despesa com emissão judicial (sem

considerar aquelas decorrentes de Ações Civis Públicas — ACPs, aplicadas

administrativamente pelo INSS) e não levam em consideração os gastos com

sentenças judiciais. Essa última cresceu de R$ 6,5 bilhões, em 2009, para R$

19,9 bilhões em 2020, ou seja, triplicou em termos nominais. Em valores

reais, o incremento médio anual no período foi de 4,8% a.a.

Tal processo decorre tanto de insuficiências da análise administrativa como

da expansão da atuação do Judiciário, que não se restringe ao controle e

revisão (CNJ, 2020). Em especial, destaca-se que, muitas vezes, o Judiciário


215
realiza análises caso a caso (CNJ, 2020). Esse processo também tem como

causa características da legislação (tendo em vista que o direito

previdenciário é regulado por um sistema de regras complexo e extensivo) e

da realidade socioeconômica do país.

Chama atenção que esse comportamento explosivo que compreende

meados da década de 1990 até o momento atual tenha ocorrido em um

período em que, estruturalmente, houve melhora das condições de

atendimento e operacionais do INSS por causa dos ganhos de eficiência

decorrentes da incorporação de avanços na tecnologia da informação. Mesmo

reconhecendo a complexidade das causas desse processo, que incluem o

maior acesso ao Judiciário, tal realidade parece indicar para uma expansão
do chamado ativismo judicial e a necessidade de debater formas mais

eficazes de aprimorar a defesa judicial da União.

a
Também é importante destacar que os Tribunais Regionais Federais da 4 e
a
da 5 região apresentam o maior número de processos ajuizados (54% do

total de casos de direito previdenciário da Justiça Federal), apesar de as

unidades federativas atendidas possuírem menos de 30% da população. A

justificativa para tanto reside no fato de que esses são os tribunais com maior

percentual de decisões procedentes ou parcialmente procedentes (mais de


216
60% do total) .

Iniciativas recentes, como a EC 103, que restringiu a competência delegada

a causas em que a comarca de domicílio estiver a mais de 70 km da vara

federal, e a Lei 13.876, que alterou aspectos da competência delegada à

Justiça Estadual, tendem a reduzir decisões discrepantes.

A EC 103/2019, no entanto, não promoveu simplificação da legislação, que

poderia contribuir para a redução da judicialização. Ao contrário, apenas no

RGPS há previsão de quatro regras de transição para aposentadoria por

tempo de contribuição, fora a regra de transição da aposentadoria por idade e

a regra permanente.

O tratamento dessa temática é de fundamental importância para gerar

maior igualdade na aplicação das regras previdenciárias e contribuir para a

sustentabilidade dos regimes, em especial do RGPS. De qualquer forma,

deveria ficar claro que uma maior permissividade do judiciário acaba

afetando positivamente a lucratividade da indústria advocatícia, o que tende a

gerar uma maior alocação de recursos para o setor e para busca incessante de

novas teses que possam representar novos ganhos financeiros aos pleiteantes.

2.4 BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA


A Lei Orgânica de Assistência Social (Loas) previa inicialmente a

necessidade de o idoso contar com 70 anos ou mais de idade para obter o

BPC. No entanto, o Decreto 1.744/95 reduziu a idade para 67 anos a partir de

1998 e para 65 anos a partir de 2000. Tal redução foi efetivada pelo Estatuto

do Idoso (Lei 10.741/2003). As alterações ocorreram na contramão do que se

esperava, tendo em vista o envelhecimento populacional em curso no país e

do aumento da expectativa de sobrevida.

Ao contrário do que foi feito no Brasil, vários países propuseram regras de

acesso aos benefícios de natureza assistencial ou não contributiva menos


benéficas do que as regras dos benefícios contributivos. A Grécia, por

exemplo, passou a considerar os ativos acumulados, além da renda, para

avaliar se o indivíduo é elegível ao benefício assistencial. Já a Argentina

exige que o beneficiário idoso tenha pelo menos 70 anos de idade, além de o

benefício possuir valor reduzido em relação à aposentadoria mínima do

regime contributivo. Considerando 20 países da América Latina e Caribe, o

valor das aposentadorias não contributivas ficou em 16,3% da renda per


capita, enquanto o BPC, no caso brasileiro, era o que apresentava a maior

relação (33%), quase o dobro da média da região (OCDE, BID e Banco


217
Mundial, 2014) .

O BPC do idoso pode ser interpretado como um pilar zero, de natureza

assistencial, da previdência no Brasil, o qual possui objetivo primordial de

alívio da pobreza. No entanto, é importante que o desenho da política

previdenciária entre seus distintos pilares seja bem definido para que os

benefícios não contributivos não concorram com os contributivos. Com a

mesma idade de acesso da aposentadoria por idade, no caso dos homens, e

com valor igual ao piso previdenciário, o BPC pode trazer eventual

desincentivo para que as pessoas se formalizem e contribuam para a


o
previdência, ainda que o BPC não tenha abono anual (13 ) nem gere pensão

por morte. Tentativas recentes de adequação do benefício não prosperaram

no Congresso Nacional.

2.5 ELEVADA FRAGMENTAÇÃO DE REGRAS


Um problema que persistiu ao longo das alterações refere-se à elevada

fragmentação de regras e à existência de diferentes regimes ou critérios de

concessão para categorias distintas de trabalhadores, situação que perdura


218
desde o efetivo início da implementação da política previdenciária no país .

A Lei Eloy Chaves (Decreto 4.682/1923), que definiu as bases legais e

conceituais sobre as quais se estabeleceu a previdência no Brasil, tinha como

princípio básico que ela não deveria ser estendida a amplas categorias

sociais, mas concedidas a grupos específicos que exerciam determinada

atividade (Nogueira, 2012).

Por meio desse dispositivo legal, foram criadas as Caixas de

Aposentadorias e Pensões (CAPs), dirigidas aos empregados das empresas de

estradas de ferro. Em 1933, elas foram substituídas por um novo elemento


organizacional, os Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs), que se

ligavam a categorias profissionais e não mais a empresas específicas.

Assim, embora a Constituição vede a adoção de critérios diferenciados para


o o
a concessão de benefícios (§1 do art. 201 e §4 do art. 40), a instituição de

novos regimes próprios de previdência social (§ 22 do art. 40) e a


o
caracterização por categoria profissional ou ocupação (§4 -C do art. 40,
o
inciso I do §1 do art. 201), ainda permanecem regras diferentes para

professores, agentes penitenciários, agentes socioeducativos, policiais,


219
militares . Além dessas categorias profissionais, também existem regras

distintas para deficientes e trabalhadores sujeitos a agentes nocivos.

Ademais, apesar de ter aproximado as regras do RGPS e do RPPS da

União, a EC 103/2019 ainda mantém a diferenciação entre os regimes

voltados a trabalhadores privados e servidores públicos. Tal fragmentação

provavelmente tem origem na necessidade de atração de servidores, em que

os regimes próprios eram tratados como acessórios da política de pessoal dos

entes, e as aposentadorias eram consideradas benesses em decorrência dos

serviços públicos prestados (Calazans e Caetano, 2013).

Em especial, é importante destacar que as regras de transição ainda serão

aplicadas por muito tempo, de modo que regras diferentes entre RGPS e

RPPS da União serão observadas por algumas gerações. Por exemplo, os

servidores ingressos antes de 2003 mantêm seu direito à integralidade e

paridade. A diferenciação entre essas categorias tem contribuído para tornar

o sistema previdenciário regressivo.

Os indicadores de adequação são usualmente computados para fazer

inferência sobre os aspectos distributivos de um sistema previdenciário a

partir da comparação entre indivíduos ou grupos. Como exemplo, a taxa de

reposição (TR) compara os valores de aposentadoria com a renda anterior à

aposentadoria e a taxa interna de retorno (TIR) compara o fluxo de


220
benefícios com o de contribuições . É desejável que os indicadores sejam

inversamente proporcionais à renda, de maneira que as diferenças de

rendimentos entre trabalhadores sejam atenuadas após a aposentadoria, e o

objetivo redistributivo de um sistema previdenciário seja atendido.

A Tabela 3 mostra que, enquanto o RGPS apresenta características

progressivas, com redução da TR e da TIR e aumento da renda dos segurados

daquele mesmo regime, o RPPS da União apresenta características


regressivas. A comparação entre os dois regimes também revela TR bem

superiores para o RPPS da União em relação ao RGPS.

Tabela 3: Taxa de Reposição (TR) e Taxa Interna de Retorno (TIR) — RGPS e RPPS
da União (%) para aposentadorias concedidas em 2018 por quartil de renda

TR TIR

Quartil de renda RGPS RPPS RGPS RPPS

1º 114,4 97,0 12,0 4,2

2º 94,6 102,0 8,4 4,4

3º 78,4 97,4 5,5 5,0

4º 56,7 107,0 3,3 5,5

Total 88,5 100,5 7,7 4,7

Fonte: CMAP (2021). Secretaria de Previdência.

Quanto aos RPPS, destaca-se a existência de cerca de 2.150 entes que têm

regime próprio, com possibilidade de diferentes regras de acesso, cessação e

cálculo de benefícios previdenciários. Essa elevada fragmentação sem dúvida

favorece desigualdades intermuniciapais, e também intramunicipais, já que

os trabalhadores da iniciativa privada estão sujeitos às regras do RGPS.

Ademais, dificulta-se a fiscalização da gestão desses regimes, e em especial a

verificação de seu equilíbrio financeiro e atuarial.

Neste contexto, parece fundamental destacar que, em que pese os avanços

da EC 103/2019, aspectos muito importantes da proposta original da PEC

6/2019 foram alterados na tramitação do Congresso Nacional. Uma mudança

negativa foi a exclusão dos servidores públicos estaduais e municipais da

reforma de 2019, que cria um risco grave de falta de padronização das regras

dos regimes previdenciários dos servidores públicos. Embora até se tenha

construído uma proposta para tratar do assunto (a PEC 133/2019, também

denominada PEC paralela), ela não avançou e apresenta medidas com grave

risco para o sistema previdenciário brasileiro. Nota-se que o deficit atuarial


221
dos RPPS de estados e municípios está estimado em mais de 40% do PIB

e as despesas com previdência já consomem parcela elevada da despesa


222
corrente dos entes .
Outro aspecto foi a exclusão da proposta de modificações na previdência

rural. No âmbito do RGPS, os homens rurais podem se aposentar cinco anos

mais cedo do que os urbanos (65 x 60 anos) e, no caso das mulheres, essa

diferença elevou-se de cinco para sete anos (62 x 55 anos). Ainda que os

segurados especiais rurais contribuam por meio de uma alíquota aplicada

sobre o valor comercializado de sua produção, o valor contribuído ou o

número de contribuições realizadas ao longo da vida laboral não são

condições de acesso aos benefícios do RGPS para esses segurados. Assim, há

uma característica não contributiva, ou frouxamente contributiva para a

clientela rural (Schwarzer, 2000). O resultado é que, embora responda por

20% da despesa, a clientela rural é responsável por apenas 2% da

arrecadação para o RGPS. No ano de 2020, a arrecadação do RGPS rural foi

suficiente para bancar apenas 6,4% da despesa total com essa clientela.

Ao contrário do que poderia indicar o senso comum, essa diferenciação a

favor do setor rural não se justifica do ponto de vista previdenciário. Como

vemos em Santos et al. (2020), no período de 1999 a 2018 houve uma forte

tendência de convergência das idades médias de óbito de beneficiários de

aposentadoria por idade urbana e rural, denotando que, na atual conjuntura,

não há como justificar uma idade menor para os trabalhadores rurais por

questões demográficas ou de expectativa de sobrevida (Gráfico 4).

Albuquerque (2020), ao analisar os dados do Censo de 2010, também

mostrou que em todas as idades as expectativas de vida dos indivíduos

residentes em áreas rurais foram superiores às obtidas para a área urbana,


223
tanto dos homens quanto das mulheres .

Ademais, essas diferenças entre as clientelas urbana e rural geram espaço


224
para comportamentos oportunistas e possíveis irregularidades . As

reformas previdenciárias levadas a cabo no Brasil, contudo, não foram

capazes de promover a igualdade na idade de concessão e mecanismos que

garantam caráter efetivamente contributivo à clientela rural. Mesmo nesse

contexto de forte desequilíbrio, as alíquotas da previdência rural foram

reduzidas por meio da Lei 13.606/2018. Dessa maneira, torna-se imperiosa a

necessidade de buscar mecanismos para trazer maior sustentabilidade à

previdência rural.

Gráfico 4: Idade média de óbito — aposentadorias por idade urbanas e rurais —


RGPS — 1998 a 2018
Fonte: Santos et al. (2020). Com objetivo de harmonizar as diferentes idades de
aposentadoria (variando de 55 a 65 anos), foram consideradas apenas as mortes
com 65 anos ou mais de idade.

A existência de diversas regras para diferentes categorias profissionais e de

trabalhadores foge à tendência observada no resto do mundo. Em particular,

de todos os países da OCDE, apenas quatro ainda mantêm um esquema

inteiramente separado para servidores civis: Bélgica, França, Alemanha e

Coreia. O que prevalece no âmbito da OCDE é a igualdade entre os

servidores públicos e trabalhadores privados, havendo 17 países que não têm

nenhum esquema especial em separado e outros quatro com separação

institucional, mas benefícios similares. Outros dez países têm um regime

integrado, mas apresentam benefícios distintos em relação ao setor privado

(OCDE, 2016).

3. CONCLUSÕES
O Brasil gasta muito com previdência, mas a despeito dos riscos associados à

sustentabilidade do sistema previdenciário, o país não tem sido capaz de

atender a alguns de seus objetivos. Por um lado, mostra nível relativamente

elevado de cobertura e de suficiência, mas acaba exibindo problemas de

adequação e principalmente de sustentabilidade. Em relação à adequação, ao

contrário de redistribuir renda, a previdência brasileira tem sido responsável

por aumentar sua concentração, em especial, por conta dos RPPS. Além

disso, a despeito dos elevados gastos, persistem lacunas de cobertura,

principalmente em relação aos trabalhadores por conta própria e domésticos,

além do elevado volume de empregados sem carteira de trabalho.

Apesar da ampla reforma realizada em 2019, que representou importantes

avanços na direção da sustentabilidade em médio e longo prazo do regime


previdenciário brasileiro, ainda persistem grandes desafios. Em especial,

apontamos aqui mudanças na legislação que representaram contrarreformas,

responsáveis por agravar o desequilíbrio atuarial e as iniquidades

previdenciárias. Também ressaltamos o fato de que há grande lapso de tempo

entre a identificação de problemas e a sua solução: a inação é também uma

contrarreforma.

Reformas adicionais em direção à maior sustentabilidade serão cruciais e

não podem demorar a ser discutidas e implementadas. Entre os elementos a

se observar, devem constar revisão automática da idade mínima de

aposentadoria, aumento da idade da aposentadoria rural e debate sobre

reestruturação do RGPS rural, convergência entre idades mínimas de homens

e mulheres, convergência mais rápida entre regras do RGPS e RPPS da

União, bem como entre os RPPS dos entes subnacionais e o RGPS, e

mudanças nas regras do BPC. Distorções relativas ao regime de MEI e no

sistema de proteção social dos militares também precisam ser revistos,

conforme análise feita nos Capítulos 11 e 12 deste livro.

Alterações futuras também deverão levar em conta objetivos associados ao

sistema de seguridade social brasileiro, principalmente quanto à necessidade

de buscar maior equilíbrio entre as diferentes vertentes de cobertura, como

de crianças e idosos. Ainda restam muitos desafios e problemas a serem

enfrentados e uma nova reforma da previdência será necessária sem grande

demora para buscar conciliar sustentabilidade, alta cobertura, suficiência e

efeitos positivos na distribuição de renda, em associação com a construção de

um sistema de proteção social mais equilibrado durante todo ciclo de vida. O

histórico, contudo, mostra que evitarmos contrarreformas e as armadilhas da

inação já exigirá bastante esforço.

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Sept20081pdf.pdf.

191. A estrutura proposta pelo Banco Mundial para os sistemas de previdência social compreende a

combinação de cinco elementos: (a) um pilar zero, não contributivo, que deve prover um nível mínimo

de proteção; (b) um primeiro pilar contributivo, que visa repor parte da renda, (c) um segundo pilar

obrigatório que baseia-se em contas individuais, (d) um terceiro pilar voluntário que pode adotar

diversas formas, (e) um quarto pilar que prevê fontes informais intrafamiliares ou intergeracionais de

apoio financeiro e não financeiro para idosos, incluindo acesso a cuidados de saúde e habitação.

192. Embora deficiência não deva ser confundida com incapacidade laborativa, é fato que sistemas de

proteção social em todo o mundo estabelecem mecanismos de proteção às pessoas com deficiência.

193. Renda per capita média de US$ 44,8 mil em 2020, ante US$ 15 mil para o Brasil. Dados da

OCDE.

194. O gasto com previdência, conforme apurado pela OCDE, inclui parcelas semelhantes a

aposentadorias e pensões por morte, ou transferências não contributivas a idosos, mas não inclui

parcelas destinadas a cobrir incapacidade temporária, por exemplo. Assim, a despesa não é diretamente

comparável com as despesas previdenciárias brasileiras, que no caso do RGPS incluem auxílio por

incapacidade temporária.

195. Anexo VI.5 PLDO 2022. Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/materias-

orcamentarias/pldo-2022.

196. Tafner e Giambiagi (2007), por exemplo, já alertavam para a necessidade de reforma e propunham

alterações que só vieram a acontecer em 2019, mais de 12 anos depois (e nem todas em sua

integralidade).

197. A EC 41 de 2003 estabeleceu que os benefícios seriam calculados com base em todas as

remunerações, além de contribuições sobre a remuneração de servidores inativos. Quanto ao RGPS, a

EC 41 previu um sistema especial de inclusão previdenciária para trabalhadores de baixa renda, que

resultou na criação do MEI (analisado no Capítulo 11 deste livro). A EC 70, de 2012, alterou as regras

de aposentadoria por invalidez no serviço público. A Lei 12.618, de 2018, deu fim à aposentadoria

integral dos servidores públicos ingressos a partir de 2013. Por fim, a Lei 13.135, de 2015, estabeleceu

regras mais rígidas para a concessão de pensão por morte, como estabelecimento de carência, tempo

mínimo de casamento e fim da concessão do benefício de forma vitalícia, independentemente da idade

do cônjuge.

198. Embora não sejam diretamente comparáveis, projeções fiscais de longo prazo apontavam pra

despesa do RGPS em 16,75% do PIB, de acordo com o Anexo VI do PLDO 2019, reduzidas para

13,9% após a aprovação da reforma, conforme Anexo IV.5 do PLDO 2022, uma diminuição de quase

3,3 p.p. do PIB.


199. Considerando a regra de transição estabelecida no artigo 16 da EC 103/2019, que exige soma de

idade e tempo de contribuição de 105 para homens e 100 para mulheres. Os exemplos consideram

densidade contributiva de 100%.

200. As dez mudanças legislativas citadas são: 1) Lei 10.666/2003; 2) Lei Complementar 123/2006; 3)

Lei 11.718/2008; 4) Lei Complementar 128/2018; 5) Lei 12.470/2011; 6) Lei Complementar

142/2013; 7) Lei 12.873/2013; 8) Lei Complementar 150/2015; 9) Lei 13.146/2015; 10) Lei

13.183/2015.

201. Os Informes de Previdência de maio e junho de 2020, publicados pela Secretaria de Previdência,

apresentam relevante esforço de síntese dos resultados da literatura sobre adequação e desigualdade na

política previdenciária.

202. Instrumento para medir o grau de concentração de renda em determinado grupo. Numericamente,

varia de zero a um (alguns apresentam de zero a cem). O valor zero representa a situação de igualdade,

ou seja, todos têm a mesma renda. O valor um (ou cem) está no extremo oposto, isto é, uma só pessoa

detém toda a riqueza. Quanto maior, pior é a distribuição de renda.

203. Estudo feito a partir dos dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2017 e 2018.

204. Dívida bruta do governo geral, conforme dados do Banco Central.

205. Valores estimados a preços de dezembro de 2020, corrigidos pelo INPC.

206. Usando taxa de juros ou de desconto de 3% ao ano.

207. Usando taxa de juros ou de desconto de 3% ao ano.

208. A estimativa foi calculada de forma agregada e a diferença de valor também decorre de diferenças

de pontuação (em geral, aqueles sem fator têm um pouco mais de idade e/ou tempo de contribuição),

de modo que o valor não é muito preciso, mas traz informações sobre a ordem de grandeza do prejuízo

fiscal gerado pela regra. Costanzi, Fernandes e Ansiliero (2018) apresentam estimativas mais precisas,

mas que se referem apenas aos primeiros 25 meses de funcionamento da regra (2015 a 2017), com

impacto de R$ 54,7 bilhões, considerando o aumento no valor inicial do benefício e a expectativa de

sobrevida do beneficiário.

209. Prevista no PL de Conversão 4, de 2015, que era 85/95 sem progressão. Disponível em:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/Exm/Exm-MP%20676-15.pdf (acesso em:

30 mai. 2021).

210. A Taxa de Reposição (TR) consiste na relação entre os rendimentos obtidos posterior e

anteriormente à aposentadoria e é indicador ligado de forma direta ao objetivo primário dos sistemas

previdenciários de suavização da renda quando da aposentadoria. Na prática, é calculada com

frequência pela divisão entre o valor do primeiro benefício recebido e a renda do trabalho no período

anterior.

211. Dados de 2020, de acordo com informações do Suibe/Dataprev.

212. Estudo técnico da Ajufe, de 11 de agosto de 2019, conforme informações do CMAP (2020).

213. Como exemplo, nota-se que o critério de renda para acesso ao BPC vem sendo sistematicamente

descumprido. A existência de Ações Civis Públicas (ACP) que permitem o desconto de valores de

medicamentos e tratamentos de saúde da renda familiar, associado à ausência de regras sobre a forma

como deve-se dar esse desconto, fazem com que o critério não seja observado em muitos casos.

214. 88% dos casos concentram-se na Justiça Federal e no STJ, tendo em vista que, no geral, a

competência para julgar as ações propostas contra o INSS é na primeira, por força do art. 109 da

Constituição. O valor considera recursos e processos do mesmo CPF.

215. A decisão do STF que flexibilizou o critério de renda do BPC, por exemplo, não criou uma lista

exaustiva de casos que deveriam ser observados conjuntamente à renda, cabendo uma avaliação caso a
caso ao juiz. Isso traz elevada discricionariedade às decisões da justiça.

216. Conforme dados apresentados em CNJ (2020).

217. V. OCDE, BID e Banco Mundial (2014). Panorama dos Sistemas Previdenciários na América

Latina e Caribe.

218. Conforme Nogueira (2012), iniciativas existentes até a década de 1920 tiveram âmbito muito

limitado e poucas vezes alcançaram implementação concreta.

219. A Lei 13.954/2019 explicitou que os militares não estão sujeitos a regime de previdência, mas a

sistema de proteção social, distanciando ainda mais essa categoria dos trabalhadores civis.

220. Como a TR não considerou a média salarial, mas apenas os 12 meses anteriores à aposentadoria,

e a TIR considera todo o período contributivo, há uma redução da correlação entre ambas.

221. Estimativas da Secretaria de Previdência para 2017.

222. De acordo com dados do Programas de Reestruturação e Ajuste Fiscal (PAF) e informações do

Boletim de Finanças dos Entes Subnacionais — 2020, da Secretaria do Tesouro Nacional, a

participação das despesas previdenciárias alcançou, em 2019, 18% e 8,5% da despesa corrente das

unidades federativas e dos municípios, respectivamente, com forte tendência de elevação.

223. Claro, contudo, que neste caso, a expectativa de vida foi estimada considerando o local de

residência e não o conceito de urbano e rural previdenciário. De qualquer forma, mostra que a

realidade é diferente do senso comum e coloca luz sobre a importância de que esses aspectos técnicos

sejam levados em consideração no desenho da política previdenciária para a clientela rural.

224. Outro fator alterado no Congresso que tem contribuído para fraudes e irregularidades refere-se à

introdução do descarte de contribuições que poderiam reduzir o valor do benefício. O descarte,

o o
associado à não aplicação do divisor mínimo (§2 , art. 3 , Lei 9876/99) criou a possibilidade de que,

com apenas uma contribuição após julho de 1994, o segurado aumentasse sobremaneira o valor do seu

benefício. Considerando apenas as aposentadorias por idade concedidas no período de novembro de

2019 a junho de 2021, o impacto é de cerca de R$ 19 bilhões (Dataprev, 2021), levando em conta a

expectativa de duração dessas referidas aposentadorias. Contudo parte significativa desse impacto

(cerca de R$ 16 bilhões) decorre da interpretação jurídica de que o divisor não teria sido recepcionado

pela EC 103/2019. A referida Emenda de modo efetivo não manteve, de forma explicita, o divisor, mas

também não o revogou explicitamente.


CAPÍTULO 11
AVALIAÇÃO DA POLÍTICA
PREVIDENCIÁRIA: O CASO DO
MICROEMPREENDEDOR INDIVIDUAL
(MEI)
Rogério Nagamine Costanzi e Otávio Jose Guerci
Sidone

INTRODUÇÃO
Em dezembro de 2008, foi aprovada a Lei Complementar 128. Entre as

suas alterações, constava a criação da figura do microempreendedor

individual (MEI), a qual permitiu recolhimento dos impostos e

contribuições abrangidos pelo Simples Nacional em valores fixos

mensais, independentemente da receita bruta por ele auferida no mês,

desde que o faturamento no ano-calendário anterior não superasse R$ 36

mil ou R$ 3 mil por mês, no caso de início de atividade.

A referida Lei estipulou a contribuição do MEI num valor fixo mensal

de, no máximo, R$ 51,65, correspondente à soma das seguintes

parcelas: a) R$ 45,65, a título da contribuição previdenciária, na

condição de contribuinte individual, e fixado, de início, em 11% do


225
salário mínimo ; b) R$ 1,00, a título de Imposto sobre Circulação de

Mercadorias e Serviços (ICMS); e c) R$ 5,00, a título de Imposto Sobre

Serviços (ISS). Também garantiu a isenção de diversos impostos, como

o Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ), o Imposto sobre

Produtos Industrializados (IPI), a Contribuição Social sobre o Lucro


Líquido (CSLL) e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade

Social (Cofins).

Estava inaugurada a fase de seguro com ampla cobertura

previdenciária a um custo inferior a R$ 1,99 por dia, mais


226
especificamente a exatos R$ 1,52 por dia .

Obviamente, a nova figura, ainda que pautada pelo objetivo meritório

de inclusão previdenciária, já nascia com um desequilíbrio evidente,

pois contraria o artigo 201 da Constituição Federal, que exige a

observância do equilíbrio financeiro e atuarial. Infelizmente, esse

importante preceito constitucional tem sido negligenciado com

frequência.

Quando o MEI foi criado (legalmente em 2008, mas funcionando de

fato a partir de 2009), a Constituição permitia (no § 12 do artigo 201)

que leis criassem sistema especial de inclusão previdenciária. Tal

autorização constitucional, contudo, era exclusiva “para atender a

trabalhadores de baixa renda e àqueles sem renda própria que se

dediquem exclusivamente ao trabalho doméstico no âmbito de sua

residência, desde que pertencentes a famílias de baixa renda,

garantindo-lhes acesso a benefícios de valor igual a um salário mínimo”.

Portanto, a rigor, o programa do MEI deveria ter sido focalizado

exclusivamente em trabalhadores de baixa renda. Contudo não é o que

vem ocorrendo na prática.

Posteriormente a sua criação, o limite de faturamento foi sendo

elevado. No momento em que este capítulo foi escrito estava fixado em

R$ 81 mil/ano, existindo pressão política para novos incrementos desse

limite.

A alíquota de contribuição para a Previdência, que já era baixa (11%

do salário mínimo), foi reduzida, em 2011, para 5% do salário mínimo,

por meio da MP 529, de 7 abril de 2011, uma decisão casuística, sem

avaliação do impacto sobre o equilíbrio atuarial do RGPS.

Na exposição de motivos da referida MP, foram explicitadas

estimativas de renúncias da ordem de R$ 276 milhões, em 2011, e de R$

414 milhões, nos anos de 2012 e 2013, apenas associadas à redução da

alíquota de 11% para 5%. Ou seja, mensurou-se apenas o impacto de


curto prazo na arrecadação do sistema. Entretanto, o impacto adverso

nas finanças da previdência, oriundo da contribuição reduzida para um

nível quase simbólico, irá ocorrer conforme os beneficiários do MEI

passem a acessar crescentemente benefícios temporários (auxílios) e

permanentes (aposentadorias e pensões por morte) do RGPS, muitos dos

quais se estenderão por várias décadas.

A combinação do aumento do limite de renda para acesso com

redução das contribuições acabou por resultar tanto na piora da

focalização dessa política (pelo aumento do faturamento anual, que

incluiu mais pessoas fora da faixa de menor renda), como também no

acréscimo dos desequilíbrios financeiros e atuariais do RGPS, já

expressivos naquela época, conforme se demonstrará nas seções

seguintes. No processo de conversão da MP 529/2011 na Lei


227
12.470/2011, o Congresso ainda ampliou aos segurados facultativos a

possibilidade da contribuição reduzida com alíquota de 5% do salário-

mínimo.

Obviamente, é elevada a popularidade de medidas de inclusão no curto

prazo. No entanto, a dinâmica previdenciária exige uma avaliação dos

custos ao longo do tempo, uma vez que é da natureza do sistema

previdenciário que os custos se manifestem, de forma cada vez mais

intensa, muitas décadas adiante. Esse é um exemplo da natureza de ação

coletiva do funcionamento da Previdência: bondades de curto prazo são

muitas vezes escolhidas por criarem benefícios imediatos e

concentrados, ainda que acarretem elevados custos difusos para toda a

sociedade no futuro.

Um argumento muito utilizado pelos defensores da medida seria o

impacto positivo sobre a formalização dos trabalhadores por conta

própria, os quais tradicionalmente possuem baixo percentual de

contribuição previdenciária e, assim, já seriam potenciais beneficiários


228
do Benefício de Prestação Continuada (BPC) , que paga um salário-

mínimo mensal sem exigência de contribuição prévia. Dessa forma,

poderia haver, inclusive, algum ganho na arrecadação previdenciária.

Contudo tal argumentação é desarrazoada, pois a cobertura do MEI é de

natureza previdenciária, e, portanto, muito superior à do BPC. O BPC


o
não inclui abono anual (o 13 ), pensão por morte e vários outros
229
benefícios de risco, como auxílio por incapacidade temporária e

salário maternidade.

Portanto, mesmo sendo possível um impacto significativo de

formalização de trabalhadores que, na ausência da política do MEI,

satisfizesse os critérios de elegibilidade para se tornarem beneficiário do

BPC, o aumento na arrecadação não seria suficiente para fazer frente

àquele esperado das despesas previdenciárias associadas. Ademais, no

caso das mulheres, existe a possibilidade de antecipação do benefício

(62 anos na aposentadoria por idade contra 65 anos do BPC).

Além disso, existe a possibilidade de o segurado que venha aderir ao

MEI não ser necessariamente um trabalhador informal não coberto pela

previdência por nunca ter contribuído, e sim um segurado já

contribuinte que opte pela migração ao MEI, incentivado pela potencial

redução das contribuições. Ele pode até mesmo ser induzido a realizar

tal mudança com o intuito de ocultar uma relação de emprego. Nesses

casos, não apenas inexiste ganho em termos de proteção social, como tal

processo acaba levando, sem dúvida, à fragilização do financiamento da

previdência.

Dado o alto custo fiscal, seria importante que, no mínimo, essa política

fosse muito bem focalizada nos trabalhadores de fato mais pobres e com

pouca capacidade contributiva. Tal critério, contudo, a depender da

natureza da ocupação do trabalhador, pode ser incompatível com um

limite de faturamento de R$ 81 mil/ano, que conta ainda com risco de

subfaturamento para a manutenção do tratamento tributário

extremamente favorecido.

É necessário reestruturar o programa, tendo em vista que sua escala

ganha dimensões cada vez mais elevadas. Desde a sua criação, ele já

alcançou, em meados de 2021, o patamar de 12,5 milhões de pessoas


230
inscritas . A Tabela 1 mostra que, entre dezembro de 2009 e dezembro

de 2020, o número de registrados cresceu cerca de 11 mihões, ou seja,

uma média de 1 milhão a mais de inscritos por ano, com forte

aceleração nos anos de 2019 e 2020 (mesmo antes da pandemia da

Covid-19).

Tabela 1: Número de MEIs registrados e contribuintes


Fonte: Elaboração dos autores a partir de dados da Receita Federal,
https://www.gov.br/empresas-e-negocios/pt-br/empreendedor, Anuário
Estatístico da Previdência Social (vários anos) e Sebrae (2019, 2021). N.d.=
não disponível. * Em fevereiro de 2018, cerca de 1,372 mil inscrições de MEI
foram canceladas por inadimplência. ** Dados preliminares e sujeitos a
revisão.

Na prática, contudo, o volume de pessoas efetivamente contribuindo é

muito menor do que o total de inscritos, pois o programa sempre foi

caracterizado por um elevado nível de inadimplência, muitas vezes na

casa dos 50%. A título de exemplo, a Tabela 1 mostra, ao final do ano de

2019, 9,4 milhões de inscritos, no entanto, o número médio mensal de

MEIs contribuindo para previdência foi somente de 3,8 milhões.

Naquele mesmo ano, o número de MEIs com pelo menos uma

contribuição no ano era de cerca de 5,4 milhões (57,6% do total de

inscritos).

Em que pese a escala menor dos que estão de fato contribuindo e,

portanto, elegíveis ao benefício, a Tabela 2 mostra que o MEI representa

parcela crescente e já relevante do total de trabalhadores com

contribuição para o RGPS.

Tabela 2: Contribuintes pessoas físicas do RGPS e MEI


Fonte: Elaboração dos autores a partir de dados Anuário Estatístico da
Previdência Social (vários anos). * dados de 2019 preliminares e sujeitos a
revisão.

O restante deste capítulo está organizado da seguinte forma: a seção 1

analisa a questão da focalização; a seção 2 analisa a questão da

formalização versus migração de trabalhadores já formalizados para o

MEI; a seção 3 estuda o impacto de longo prazo do MEI nas contas da

previdência e a seção 4 apresenta as conclusões.

1. AVALIAÇÃO DA FOCALIZAÇÃO DO MEI


O programa do MEI apresenta nítido e extremo desequilíbrio do ponto

de vista financeiro e atuarial. A contribuição para o RGPS, de 5% do

piso legal de remuneração, corresponde, em 2021, a R$ 55,00.

Embora os benefícios sejam limitados ao salário-mínimo, apenas o

pagamento de um único mês de benefício exigiria, sem considerar a

capitalização dos fluxos envolvidos, 20 contribuições mensais para o seu

completo financiamento. Essa conta simplificada mostra que o nível de

subsídio é elevado e aproxima-se do benefício não contributivo do BPC,


destinado a pessoas com renda familiar mensal per capita inferior a ¼
do salário-mínimo.

A título de exemplo: para uma mulher de 47 anos, que faça

contribuição ao MEI durante 15 anos sem interrupção e se aposente aos

62 anos, as contribuições capitalizadas corresponderiam a apenas cerca

de 5,6% do fluxo esperado de aposentadoria. Nessa estimativa de

pagamentos à beneficiária, está incluída apenas a aposentadoria e não

outros benefícios de risco ou não programados, como auxílio para

incapacidade temporária (auxílio-doença), salário maternidade, pensão

por morte e aposentadoria por invalidez.

A verificação de um elevado nível de subsídio ressalta a necessidade

de focalização dessa política pública apenas em trabalhadores informais

com baixo nível de renda e capacidade contributiva limitada, ou seja,

nos mais pobres. Contudo não é o que vem ocorrendo: análise de

Costanzi e Ansiliero (2017) mostrou que, considerando-se a renda

familiar mensal per capita, cerca de 65% dos MEIs estavam entre os

30% mais ricos da população e em torno de 84% deles, entre os 50%

mais ricos. Apenas 16% estavam entre os 50% mais pobres.

Um sintoma claro dessa piora da focalização é a alteração do perfil

educacional dos MEIs: o percentual de trabalhadores inscritos como

MEI que tinham pelo menos curso superior incompleto ou nível

educacional mais elevado teria crescido de 16%, em 2012, para 31%, em


231
2019 , ano em que ainda havia 39% com ensino médio ou técnico

completo. Portanto, a soma dos percentuais anteriores permite concluir

que sete em cada dez beneficiários do MEI tinham pelo menos o ensino

médio ou técnico completo em 2019. Conforme Costanzi e Ansiliero

(2017), o perfil educacional do MEI era muito similar ao dos

empregados com carteira assinada e superior à dos trabalhadores por

conta própria.

Usando dados da PNAD Contínua do IBGE (PNADC) de 2019 é


232
possível obter uma aproximação do perfil dos contribuintes do MEI .

Isso permite estimar que apenas 18,4% dos contribuintes para o MEI

estavam entre os 50% mais pobres da população, considerando o

rendimento domiciliar per capita 233


, de acordo com o Gráfico 1. De
forma inversa, 81,6% dos contribuintes para o MEI estariam entre os

50% mais ricos da população, sendo que 61,7% estariam entre os 30%

mais ricos da população. Essas estimativas reforçam a necessidade de


234
modificar essa política visando melhorar a focalização do MEI .

Gráfico 1: Estimativa da distribuição dos MEIs por décimo de rendimento


domiciliar per capita — Brasil — 2019

Fonte: Elaboração a partir dos microdados da PNADC Anual do IBGE de


2019.

2. AVALIAÇÃO DA INCLUSÃO PREVIDENCIÁRIA


PROMOVIDA PELO MEI (MIGRAÇÃO VERSUS
FORMALIZAÇÃO)
A defesa do MEI sempre foi fortemente calcada no argumento de que

o programa teria o efeito benéfico de estimular a formalização de

milhões de empreendedores informais que existiam (e continuam

existindo em larga escala, mesmo após mais de 12 anos do programa) no

mercado de trabalho brasileiro. Ainda que com objetivo meritório, essa

visão simplista do programa desconsidera a importância do desenho

adequado das políticas públicas, com suas devidas precauções.

No caso do MEI, seria desejável que o programa não permitisse, em

escala relevante, a migração de trabalhadores já formalizados para essa

categoria de contribuinte, situação que se distanciaria em absoluto do

objetivo inicial de resgate da informalidade e inclusão previdenciária.


Tal migração é indesejável, visto que, por um lado, não implica ganhos

em termos de proteção social, e, por outro, acarreta a fragilização do

financiamento do RGPS. Há, além de tudo, o risco adicional de que o

MEI possa ser utilizado para ocultar uma relação de emprego, algo que

precisa ser evitado, mas cujo formato atual da política acaba por

favorecer.

Nesse sentido, foram analisados os dados do Anuário Estatístico da

Previdência Social (AEPS) e elaborou-se um painel a partir do Cadastro

Nacional de Informações Sociais (CNIS), para reunir microdados sobre

o histórico contributivo dos filiados ao RGPS entre 2005 e 2014. Esse

painel, embora defasado pela indisponibilidade de dados recentes

publicizados, permite identificar quem contribuía em outras categorias

da previdência antes de se filiar ao MEI e oferece um retrato da

migração de trabalhadores formais para o novo regime, mesmo antes da

deterioração do mercado de trabalho que se seguiu à recessão de 2014-

2016.

Acompanhando Ansiliero et al. (2020), optou-se por critério

simplificado para estimar quem seriam os trabalhadores já vinculados à

previdência que migraram para o MEI. São utilizadas distintas

definições, conforme identificação de contribuições realizadas

anteriormente ao registro como MEI:

qualquer contribuição prévia, independentemente do tempo

transcorrido (Migrante_0).

contribuições prévias ao RGPS, em qualquer categoria, dentro

dos 36 meses imediatamente anteriores à primeira

contribuição feita como MEI (Migrante_I).

contribuições dentro dos 24 meses anteriores ao primeiro

recolhimento como MEI (Migrante_II).

contribuições prévias nos 12 meses que antecederam a

primeira contribuição válida como MEI (Migrante_III).

O Gráfico 2 mostra que, mesmo utilizando o critério mais estrito para

caracterizar a migração, nada menos que 28% dos inscritos no MEI no


período 2009-2014 não representariam formalização e sim substituição

do tipo de vínculo previdenciário, o que significa quase 1/3 no caso dos

homens. No conceito menos estrito, a migração poderia chegar a 56%.

Deixaram uma categoria menos subsidiada para desfrutar os subsídios

do MEI. De forma coerente com os dados do Gráfico 2, Ansiliero et al.

(2020) também demonstraram que parcela relevante dos novos inscritos

no MEI não eram trabalhadores informais se formalizando, mas sim

trabalhadores já formalizados e contribuintes para a Previdência Social

que migraram para o MEI.

Gráfico 2: Percentual de migrantes para o MEI, segundo diferentes critérios


de classificação de migração e sexo — 2009-2014

Fonte: Extração Especial — CNIS/DATAPREV. Elaboração dos autores. Notas:


1. No total, exclusive casos com sexo ignorado. 2. Não há uma referência
temporal única, já que o intervalo considerado para cada indivíduo depende
de sua data de filiação ao MEI.

Ressalta-se que os percentuais de migração são menores entre as

mulheres, pois entre elas, em particular se pertencentes a estratos

socioeconômicos mais baixos, a baixa densidade contributiva e o

acúmulo de períodos sem recolhimentos previdenciários são ainda mais

comuns. Em que pese a variação de migração de acordo com os cenários

ou critérios adotados, todos os resultados apontam para um relevante

nível de migração, e não de redução da informalidade.


Nesse contexto de alta migração, é importante avaliar o risco de

estímulo à substituição de trabalhadores em postos de trabalho formais

por pessoas jurídicas prestadoras de serviços (a chamada pejotização)


no financiamento da previdência. Houve forte expansão do MEI mesmo

num contexto de estagnação ou mesmo retração em todas as demais

categorias de segurados do RGPS. Além da migração, há aumento da

filiação previdenciária inicial direta sob a forma de planos subsidiados.

Outro aspecto a ser considerado é que essa política teve, entre as suas

justificativas, a necessidade de incrementar o baixo grau de contribuição

previdenciária entre os trabalhadores por conta própria. Na prática,

contudo, os indicadores não mostram nenhuma melhora significativa da

contribuição previdenciária desse grupo, havendo, inclusive, uma queda

no período de 2017 a 2019, em anos em que houve forte aumento dos

inscritos como MEI (Gráfico 3). Claro, contudo, que o comportamento

também é afetado por outros fatores, em especial, as tendências mais

gerais do próprio mercado de trabalho em termos de maior ou menor

informalidade.

Gráfico 3: Contribuição para previdência entre trabalhadores por conta


própria em % do total

Fonte: Elaboração a partir dos micro dados da Pnad Contínua Anual 2012 a
2019 — faixa etária de 16 anos ou mais.
Pesquisa do Sebrae (2019 e 2021) também mostrava que o percentual

de MEIs que tinha, antes da filiação ao MEI, a posição de emprego com

carteira de trabalho assinada como ocupação anterior cresceu de 41%,

em 2013, para 51%, em 2019. Por outro lado, diminuiu a importância

relativa da ocupação anterior de empreendedores e empregados

informais e da participação de pessoas com escolaridade de até ensino

médio incompleto no programa.

Um aspecto relevante na discussão da migração é que, em geral, sobre

a prestação de serviços do MEI para pessoas jurídicas não incide a


235
contribuição patronal de 20%, exceto para algumas poucas atividades .

Isso acaba sendo um grande estímulo à pejotização ou mesmo a usar o

MEI para estabelecer relações de emprego disfarçadas, com menor

custo.

Sobre essa possível substituição disfarçada de relação de emprego, a

Lei Complementar 123 estipula que o Comitê Gestor do Simples

Nacional “determinará as atividades autorizadas a optar pela sistemática

de recolhimento (...) de forma a evitar a fragilização das relações de

trabalho, bem como sobre a incidência do ICMS e do ISS”. Na prática,

contudo, a lista é bastante extensa: em que pesem variações ao longo do

tempo, tem ficado em torno de 500 ocupações.

Além disso, é preciso se considerar que em razão do elevado número

de inscritos e da baixa importância desse grupo na arrecadação dos

governos federal, estadual e municipal, é muito provável que a

fiscalização das ocupações realmente exercidas seja muito frágil na

prática e, portanto, a referida lista de ocupações acabe sendo muito

limitada como instrumento para evitar o vínculo empregatício disfarçado

de MEI.

Por sinal, uma das possíveis explicações da elevada inadimplência do

MEI pode ser a inscrição em busca de outros tipos de benefícios, como


236
planos de saúde para pessoa jurídica , mais baratos que para pessoa

física, ou mesmo desconto na compra de carros. Embora nesses casos

não necessariamente haja benefício previdenciário subsidiado, pode

haver benefícios que decorram de tratamento tributário favorecido a


pessoa jurídica, o que também produz efeitos negativos nas finanças

públicas.

3. AVALIAÇÃO DOS IMPACTOS FISCAIS DE


LONGO PRAZO DO MEI NAS CONTAS DA
PREVIDÊNCIA
Como vimos anteriormente, a criação de planos com elevado grau de

subsídios possui apelo popular, pois permite benefícios imediatos (no

curto prazo) e concentrados: proteção previdenciária a custo

praticamente simbólico e com possibilidade de continuar a ter ampla

proteção previdenciária com uma contribuição muito reduzida. Todavia,

os desequílibrios dessas medidas irão se manifestar no futuro (em anos

ou até décadas mais tarde), quando dessa proteção resultar a concessão

de benefícios, em especial, aqueles de longa duração, como as

aposentadorias e pensões por morte.

Assim, os elevados custos acabarão por ser arcados, de maneira difusa,

pelas futuras gerações, seja por meio de maiores contribuições de

trabalhadores ativos, seja pela cobertura do deficit com recursos


237
tributários . Tal caracterização mostra a necessidade de fortalecimento

do quadro institucional da Previdência Social, de forma que medidas


238
com impacto relevante no futuro não sejam aprovadas sem análises

mais detalhadas dos seus impactos em médio e longo prazos. A

avaliação dos impactos do MEI para a Previdência é essencial, porque,

como mostra a Tabela 2, o MEI vem crescendo em ritmo tão acelerado

que passou a ter escala relevante no total de contribuintes para o RGPS.

Vale ressaltar alguns pontos:

a) o ritmo de inscrições no MEI mostra aceleração nos anos entre

2019 e 2021 — em 2019, por exemplo, os contribuintes com pelo menos

uma contribuição do RGPS cresceram 1,6%, mas no caso do MEI, o

incremento foi de 18,3%.

b) no caso de contribuintes com pelo menos uma contribuição no ano,

a participação do MEI no total passou de 0,08%, em 2009, para 7,81%,

em 2019. Já no caso do número médio mensal de contribuintes, a

participação do MEI no total do RGPS cresceu de 0,02% para 7,21%,


entre 2009 e 2019. Claramente, o MEI passou a ter uma escala relevante

no total de contribuintes do RGPS. Atualmente, portanto, quase um em

cada dez contribuintes pessoa física do RGPS é MEI. Assim, tanto os

outros nove contribuintes, como os trabalhadores das gerações futuras

serão chamados a colaborar para o financiamento dos subsídios

oferecidos aos beneficiários do MEI.

Quando analisamos a questão pelo lado da receita, percebemos que a

participação do MEI na arrecadação líquida do RGPS é muito pouco

significante. Em 2019, por exemplo, enquanto os MEIs responderam por

algo em torno de 7% dos contribuintes pessoa física do RGPS (Tabela

2), a arrecadação foi de apenas R$ 2,6 bilhões, que correspondeu a

apenas 0,6% da receita líquida do RGPS, conforme vemos na Tabela 3.

Também cabe destacar que parte relevante dessa pequena arrecadação,

em relação à receita total, acaba sendo consumida pelo pagamento de

benefícios de risco.

Tabela 3: Arrecadação do MEI e líquida do RGPS em R$ bilhões nominais

Fonte: Arrecadação do MEI, dados da Secretaria da Receita Federal, e da


arrecadação líquida do RGPS, da Secretaria de Previdência do Ministério do
Trabalho e Previdência.

Uma primeira análise que buscou avaliar os impactos do MEI nas

contas do RGPS em médio e longo prazo foi feita por Costanzi (2018).

Considerando apenas o impacto daqueles que contribuíram como MEI

no ano de 2014, e restringindo a despesa futura exclusivamente às

aposentadorias por idade, notou-se que o MEI iria gerar, no período de

2015 a 2060, uma arrecadação acumulada de R$ 35,1 bilhões e uma


despesa de R$ 499,9 bilhões, resultando em deficit acumulado da

ordem de R$ 464,7 bilhões.

O impacto sobre as contas do RGPS nas próximas décadas é muito

negativo, em especial, a partir da década de 2030, quando será maior a

concessão de aposentadorias às pessoas inscritas no MEI, mas de forma

mais intensa nas décadas de 2040 e 2050. Naquele cálculo, o salário

mínimo foi mantido constante em termos reais, hipótese pouco provável

até 2060. Ademais, não foi considerada a despesa com benefícios de

risco ou não programados, como auxílo por incapacidade temporária

(auxílio-doença), salário-maternidade, aposentadoria por incapacidade

permanente (aposentadoria por invalidez) e pensão por morte.

Claramente, caso fosse considerado todo o rol de benefícios do RGPS

oferecidos aos contribuintes como MEI, o deficit seria ainda maior.


Com intuito de atualizar essa estimativa, realizamos novo exercício, no

qual foram considerados os trabalhadores que tiveram pelo menos uma


239
contribuição como MEI em 2018 , na faixa de idade de 18 a 64 anos

para homens, e de 18 a 61 anos para mulheres. Nesse sentido, a

avaliação assemelha-se a uma avaliação atuarial de massa fechada, ou

seja, restrita à projeção dos fluxos de arrecadação com contribuição

previdenciária e de despesa com benefícios daqueles indivíduos já

inscritos como MEI em 2018.

A evolução do quantitativo desses MEIs ao longo do tempo foi

estimada a partir das probabilidades de óbito presentes nas tábuas de


240
mortalidade da população brasileira em 2019, por sexo, do IBGE . A

projeção dos fluxos de arrecadação anuais consiste simplesmente no

produto entre o número de contribuintes MEIs em cada ano

multiplicado por doze contribuições mensais de valor igual a 5% do

salário mínimo estimado para o ano.

Já em relação à projeção dos fluxos de despesa, ressalta-se que

somente são estimados os benefícios de aposentadoria por idade, para os

quais as concessões ocorrem a partir dos 65 anos, no caso de homens, e

62, de mulheres, que consistem nas novas regras de elegibilidade

estabelecidas pela Emenda Constitucional 103/2019, após a vigência das

regras de transição.
Dessa maneira, assume-se implicitamente que os indivíduos tenham

cumprido toda a carência necessária para a aposentadoria por idade ao

atingirem as respectivas idades mínimas, quando passam da condição de

contribuintes para a de beneficiários. Por fim, a projeção dos fluxos de

despesa anuais consiste no produto entre o número de beneficiários

(aposentados) em cada ano multiplicado por 13 pagamentos mensais de

valor igual ao piso previdenciário estimado para o ano.

As projeções fiscais para diferentes horizontes temporais, iniciados no

ano de 2021, são apresentadas no Gráfico 4, em um cenário para o qual

se adotou a hipótese de ausência de crescimento real do salário-mínimo.

Observa-se que o total da despesa já supera o montante de arrecadação

nos primeiros dez anos ( déficit de R$ 39 bilhões), e atinge um déficit


acumulado de R$ 186,8 bilhões, R$ 437,0 bilhões, R$ 728,8 bilhões e

R$ 1,07 trilhão, em 20, 30, 40 e 75 anos, respectivamente. Por fim,

observa-se que o resultado atuarial estimado para os MEIs totaliza um

déficit de R$ 435,7 bilhões 241


.

Gráfico 4: Projeção do resultado previdenciário dos MEIs — em R$ bilhões

Fonte: Elaboração dos autores.

O Gráfico 5 apresenta a projeção do resultado dos MEIs para

diferentes hipóteses de crescimento real do salário-mínimo. A avaliação

dessas possibilidades é fundamental, pois afeta diretamente os

resultados obtidos. Isso ocorre pois tanto as contribuições como os

benefícios de valor igual ao piso previdenciário são diretamente

vinculados ao salário-mínimo. O cenário base, já mostrado no Gráfico 4,


é de um déficit atuarial de R$ 436 bi, no caso de ausência de

crescimento real do salário-mínimo. Contudo no caso de crescimento

real anual de 2% a.a., o déficit atuarial é cerca de 80% superior,

atingindo R$ 781 bilhões.

Gráfico 5: Projeção do resultado previdenciário dos MEIs — em R$ bilhões

Fonte: Elaboração dos autores.

É importante ressaltar que os valores apresentados consistem em

subestimativas dos verdadeiros custos associados ao MEI, uma vez que

são associados apenas ao grupo já inscrito como MEI em 2018, e

contemplam exclusivamente a aposentadoria por idade, deixando de

lado todo o rol de benefícios do RGPS (aposentadoria por incapacidade

permanente, auxílios, pensões por morte e outros benefícios). Logo, é

nítido o elevado custo desse programa, em que a discrepância entre as

magnitudes das projeções de despesas e receitas evidencia o substancial

subsídio direcionado aos seus participantes.

Um ponto a ser destacado é que a legislação previdenciária brasileira

tem um conjunto relevante de tratamentos diferenciados criados na

lógica do varejo político, que muitas vezes distorcem a racionalidade

total do sistema previdenciário. Por exemplo, um MEI irá conseguir

obter o direito a um benefício de salário-mínimo com uma contribuição

mensal de 5% do salário mínimo (R$ 55 reais em 2021), ao passo que

um empregado formal, que ganhe o piso legal, alcançará esse direito a

uma prestação de mesmo valor, com uma contribuição de 27,5% do

referido salário mínimo (R$ 302,50). Ou seja, um segurado empregado,

que pode ter renda menor que o MEI, gera um benefício de mesmo valor
(salário-mínimo) com uma contribuição 5,5 vezes maior. Isso deixa

claro que tratamentos diferenciados acabam gerando iniquidades, em

especial, pela falta de rigor na criação dessas diferenças de tratamento.

Sobre esse ponto também cabe destacar que a EC 103/2019 tornou

ainda mais urgente a reformulação do MEI. Uma das principais

desvantagens do plano de benefícios para esse tipo de segurado é que

não dá direito a aposentadoria por tempo de contribuição. Contudo,

como a reforma de 2019 elimina de forma gradual a referida espécie,

essa desvantagem irá gradualmente deixar de existir.

Para um segurado homem filiado antes da reforma, talvez seja

interessante contribuir com 20% do salário-mínimo para poder se

aposentar com 35 anos de contribuição e não com 65 anos de idade.

Contudo para um segurado homem filiado depois da reforma, quer

contribua com 20%, quer com 5% do salário-mínimo, em ambos os

casos só poderá se aposentar aos 65 anos de idade.

4 CONCLUSÕES E CONSIDERAÇÕES FINAIS


O diagnóstico apresentado do programa MEI aponta para aspectos

importantes, ou seja, (i) focalização inadequada, (ii) expressivo grau de

migração (e não apenas formalização) e (iii) impativo relevante nas

contas já deficitárias do RGPS a médio e longo prazos.

Desde a Constituição Federal de 1988, o pilar previdenciário

contributivo da Seguridade Social passou por um processo de

“assistencialização” sem o cuidado de focalizar os subsídios nos mais

necessitados, suscetível a critérios superficiais e estereotipados de

elegibilidade, tanto no caso do MEI, como no da previdência rural.

O RGPS já tinha um esquema com elevado grau de subsídio voltado

para o setor rural, mas as regras da totalidade do setor urbano eram mais

adequadas em termos de equilíbrio financeiro e atuarial, principalmente

a partir da aplicação obrigatória do fator previdenciário no cálculo das

aposentadorias por tempo de contribuição, que acabou por implicar

benefícios com valores mais reduzidos no caso de aposentadorias

precoces, as quais somente serão inviabilizadas de maneira gradual a

partir da reforma de 2019 (EC 103/2019).


De certa forma, o MEI assemelha-se à figura do segurado especial

rural, mas no setor urbano e acrescido de distorções. O programa é

caracterizado por péssima focalização, relevante e inapropriada

migração, estimula o subfaturamento e fragiliza o financiamento do

RGPS, situações adversas que ocorrem sem ganhos relevantes em

termos de inclusão ou cobertura previdenciária, em um contexto no qual

o sistema previdenciário já se vê pressionado pelo processo de

envelhecimento populacional.

É notável o interesse político de promover mudanças na legislação

previdenciária que acabam por resultar em dificuldades de

sustentabilidade do sistema ao longo do tempo. Sob a luz de preceitos de

inclusão previdenciária, são tomadas medidas de criação de outros

planos previdenciários ou até mesmo a redução das alíquotas de

contribuição, como no caso do MEI e do segurado facultativo de baixa

renda (ambos com contribuições simbólicas de 5% do salário-mínimo)

ou da redução da contribução patronal do empregador doméstico

(conforme artigo 34 da Lei Complementar 150, de 1 de junho de 2015).

Tais alterações da política previdenciária devem ter seus efeitos e sua

focalização avaliados periodicamente, com o intuito de oferecer

elementos para um diagnóstico adequado com vistas ao aprimoramento

dessas políticas.

A discussão do nível de contribuição previdenciária é fundamental.

Ainda que as alíquotas dessa contribuição no Brasil sejam altas, deve-se

considerar que essa realidade vem do fato de que a despesa com

previdência é alta. Uma redução exagerada e inadequada das alíquotas

do MEI acaba por gerar efeitos incertos de aumento da proteção

previdenciária, mas certamente promove a fragilização do financiamento

da previdência já deficitária.

Ainda que existam elementos sólidos para seu diagnóstico, uma

eventual reformulação do programa (por exemplo, aumento das alíquotas

de contribuição) tende a enfrentar dificuldade política, muitas vezes

oriunda tanto da resistência de grupos de interesse, como até mesmo de

um ambiente inadequado de discussão no Poder Legislativo, uma vez

que o aprimoramento da política exige debate profundo acerca das

múltiplas dimensões que caracterizam o complexo tema da política


previdenciária. Por outro lado, no caso do MEI, estão presentes

movimentos políticos em direção à ampliação do escopo do programa, o


242
que pode acarretar o agravamento das distorções .

Frente ao diagnóstico apresentado, torna-se inequívoca a

recomendação de uma correção profunda e urgente do MEI, ainda que

enfrente forte resistência política. Entre os principais pontos que devem

ser debatidos destacam-se, pelo menos, de forma emergencial:

a) Procurar formas de restringir novas inscrições no MEI apenas a

trabalhadores que de fato estejam inseridos de maneira estrutural no

setor informal do mercado de trabalho, com baixa capacidade

contributiva, e entre os mais pobres, para promover uma melhor

focalização e evitar a migração de contribuintes de outras categorias,

que não necessitam de subsídio ou que não estejam entre os mais

pobres.

b) Avaliar a possibilidade de instituição de contribuição patronal para

os contratantes pessoa jurídica de serviços do MEI, como forma de

restringir a pejotização, em especial, aquela destinada a ocultar as

relações de emprego, bem como debater a revisão da atual alíquota de

5%, mesmo que de forma seletiva.

c) Rediscutir o Simples Nacional, de forma a evitar que, dadas as

atuais regras, o subfaturamento seja incentivado como um mecanismo de

redução da carga tributária, como ocorre com microempresas que

mudam para MEI, além do evidente desestímulo da migração no sentido

contrário (ou seja, que MEIs se tornem microempresas).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Previdência Social. Vários anos. Disponível em:

http://www3.dataprev.gov.br/infologo/.

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N.; FERNANDES, A. Z.

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março de 2020. Disponível em:

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COSTANZI, R. N.; ANSILIERO, G. Os desequilíbrios financeiros do microempreendedor

individual (MEI). In: Carta de Conjuntura, Ipea, 38, 2018. Disponível em:

https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/conjuntura/180117_CC38_desequilibrio_fin

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http://www22.receita.fazenda.gov.br/inscricaomei/private/pages/relatorios/relatorioMesDia.jsf

225. O salário-mínimo de 2008, a partir de março daquele ano, foi de R$ 415,00.

226. R$ 45,65, dividido por 30 dias.

227. A categoria segurado facultativo refere-se à pessoa física com idade superior a 16

anos que, mesmo sem exercer atividade remunerada que a torne segurado obrigatório, decide,

por interesse próprio, filiar-se ao RGPS. Abrange, por exemplo, estudantes, donas de casa e

desempregados.

228. O BPC é um benefício assistencial, portanto, não exige contribuição previdenciária prévia,

e foi instituído pela Lei 8.742/1993, conhecida como Lei Orgânica da Assistência Social (Loas)

e de valor mensal igual ao salário-mínimo, pago a pessoas idosas ou com deficiência em

condição de vulnerabilidade.

229. Segundo a EC 103/2019, a nova terminologia do auxílio-doença passou a ser auxílio por

incapacidade temporária.
230. Conforme informações obtidas

em:http://www22.receita.fazenda.gov.br/inscricaomei/private/pages/relatorios/relatorioMesDia.js

f o total de inscritos no MEI teria atingido cerca de 12,5 milhões (12.526.074) no dia 24 de julho

de 2021. Disponível em: no site https://www.gov.br/empresas-e-negocios/pt-br/empreendedor.

Acesso em: 30 jul. 2021.

231. Sebrae, 2019 e 2021.

232. Utiliza-se o grupo de trabalhadores por conta própria com contribuição para previdência e

com registro em CNPJ como proxy para os inscritos como MEI, pela PNADC Anual de 2019.

233. Elaborado a partir dos microdados da PNADC Anual do IBGE de 2019.

234. Esses resultados são muito similares aos encontrados por Costanzi e Ansiliero (2017).

235. Serviços de hidráulica, eletricidade, pintura, alvenaria, carpintaria e de manutenção ou

reparo de veículos, conforme estabelecido pelo artigo 18-B da Lei Complementar 123.

236. Houve grande procura do MEI com a intenção de ter acesso a planos de saúde para pessoa

jurídica ou em condições mais favoráveis, e isso resultou na Resolução 432 da Agência Nacional

de Saúde Suplementar (ANS), estabelecendo que “para a contratação de plano privado de

assistência à saúde coletivo empresarial, o empresário individual deverá apresentar documento

que confirme a sua inscrição nos órgãos competentes, bem como sua regularidade cadastral

junto à Receita Federal, e outros que vierem a ser exigidos pela legislação vigente, pelo período

mínimo de 6 (seis) meses, de acordo com sua forma de constituição”.

237. Tal dinâmica, típica de problemas de ação coletiva, pode induzir a uma decisão socialmente

não ótima, na medida em que existe nítido incentivo para ganhos políticos de curto prazo, ainda

que acarrete consequências indesejadas para a sociedade.

238. Outro exemplo típico de medida com alto custo fiscal de longo prazo foi a chamada “regra

85/95 progressiva”, que criou a possibilidade de aposentadoria por tempo de contribuição sem

incidência obrigatória do fator previdenciário, que garantia o equilíbrio atuarial para esta espécie

de benefício. A não aplicação exigiu apenas a combinação de soma de idade e tempo de

contribuição de 85 para mulheres ou 95 para homens, entre 2015 e 2018, aumentando para 86 e

96, em 2019. Trata-se de verdadeira contrarreforma da previdência realizada em 2015.

239. A utilização do total de inscritos como MEI com pelo menos uma contribuição em 2018

poderia, por um lado, implicar a sobrestimativa das despesas com aposentadorias desse grupo,

pois é possível que um subconjunto desses inscritos não contribuísse com regularidade. No

entanto, como as regras de acesso à aposentadoria programada exigem, com a reforma de 2019,

uma carência relativamente baixa (15 anos de contribuição na regra de transição da

aposentadoria por idade ou para os já filiados antes da reforma), é razoável supor que a maior

parte dos indivíduos inscritos como MEI atinja a carência para acesso ao benefício, de tal

maneira que a sobrestimativa apontada seria bastante atenuada. Além disso, o baixo valor da

contribuição tende a favorecer uma maior densidade contributiva.

240. Foram utilizadas as tábuas em versão extrapolada (elas apresentam a extrapolação do grupo

etário 80+ para idade mais avançadas), produzidas pelo próprio IBGE e disponibilizadas em:

https://www.gov.br/previdencia/pt-br/assuntos/previdencia-no-servico-

publico/atuaria/arquivos/2020/ pela SPREV/MTP.

241. O resultado atuarial foi computado a partir da aplicação de uma taxa de desconto igual a

3% ao ano para os fluxos financeiros futuros. A utilização de uma taxa de desconto alternativa de

5% ao ano implicaria a redução do deficit atuarial para cerca de R$ 263,3 bilhões.


242. Ver PLP 147/2019, na versão aprovada no Senado, que amplia o faturamento do MEI para

determinados grupos ocupacionais e garante a autorização de determinadas ocupações como

MEI. O PLP 30/2021, também aprovado no Senado, igualmente amplia o alcance do programa

ao liberar o MEI para atividades intelectuais. O PLP 108/2021, também aprovado no Senado,

aumenta o faturamento do MEI de R$ 81 mil para R$ 130 mil/ano e que possa contratar dois

empregados.
CAPÍTULO 12
PREVIDÊNCIA DOS MILITARES
BRASILEIROS
Bernardo Schettini e Thaís Vizioli

INTRODUÇÃO
O objetivo deste capítulo é descrever o sistema de previdência dos militares

brasileiros, muito diferente do regime geral ou dos regimes próprios dos

servidores civis. Aqui discutiremos também sua reformulação recente à luz

da experiência de outros países. Essa reforma foi branda, quando comparada

à tendência internacional, e difícil de justificar, tendo em vista as mudanças

na previdência dos demais trabalhadores brasileiros.

Na seção 1, mostramos que os sistemas militares de muitos outros países

apresentam diferenças em relação ao dos trabalhadores civis, que podem ser

justificadas por especificidades nas atividades e na gestão de pessoas. Por

outro lado, notamos que tais diferenças têm se tornado menos acentuadas

nos países europeus e até mesmo nos Estados Unidos, que sempre

mantiveram um sistema generoso, porém munido de instrumentos de

monitoramento do desempenho.

A seção 2 descreve o caso brasileiro e apresenta algumas estatísticas que

demonstram que os militares representam um custo desproporcional na

previdência, não apenas na esfera federal, mas também para os estados. A

seção 3 descreve a reforma promovida em 2019, que aumentou o tempo de

serviço necessário para a aposentadoria e o valor das contribuições para as

pensões. A mesma lei reestruturou as carreiras militares de forma a reajustar

as remunerações.

1. EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL
Começamos por notar que existem três motivos principais para a existência

de regras previdenciárias diferentes para os militares:

a) Fatores históricos: a previdência militar ressurgiu, muito tempo

depois das primeiras experiências na antiguidade, com os estados nacionais

modernos na Europa ocidental e nas colônias americanas. Diversos países

mantiveram esse tipo de previdência apartada da dos demais trabalhadores

após a consolidação dos sistemas nacionais de previdência no século

passado.

b) Natureza especial da atividade: a exposição a risco e a

necessidade de vigor físico para o desempenho de certas atividades são

fatores objetivos que podem justificar aposentadorias especiais para

militares. Outros elementos específicos da atividade militar, como a

disponibilidade permanente, ausência de benefícios pagos aos demais

trabalhadores (horas-extras, adicional noturno e FGTS), são menos

convincentes, tendo em vista que os estatutos militares e outros normativos

preveem pagamentos e vantagens que inexistem na legislação trabalhista ou

previdenciária civil.

c) Gestão de recursos humanos: países com necessidades

especiais de pessoal militar podem apresentar um desenho específico da

previdência para impulsionar o recrutamento de pessoal qualificado,

incentivar o desempenho e a promoção dos membros que demonstram mais

aptidão e permitir a dispensa digna daqueles que se tornam dispensáveis

após muitos anos de serviço ativo.

É notória a tendência internacional de harmonização das regras

previdenciárias nos setores público e privado e entre as diferentes categorias

profissionais. A seguir, mostramos que isso afetou os militares de diversos

países europeus, tornando as condições de aposentadoria mais parecidas

com as dos trabalhadores civis. Até mesmo países com necessidades

especiais de pessoal, como os Estados Unidos, modernizaram-na nos

últimos anos. A existência de instrumentos de monitoramento para avaliar o

desempenho da previdência militar é um atributo importante do sistema

americano.

1.1 BREVE PANORAMA DA EUROPA


Os primeiros sistemas de previdência dos militares europeus surgiram no

final do século 16 e, inicialmente, contemplavam somente benefícios por


incapacidade e pensões por morte, mas depois passaram a incluir formas de

aposentadoria programada (Clark, Craig e Wilson, 2003). Hoje em dia, o

que diferencia os militares dos trabalhadores civis em muitos desses países

são as condições diferenciadas de aposentadoria programada, como a idade

mínima ou o tempo de serviço exigidos. Tais diferenças, no entanto, têm se

tornado menos pronunciadas com o passar do tempo (Eckefeldt e Pătărău,

2020).

É verdade que nem todos os países europeus analisados possuem

aposentadorias específicas para militares, mas verifica-se que as condições

especiais existem e continuam a ser aplicadas para os novos entrantes na

maioria dos casos, como descrito na Tabela 1.

Os principais atributos das aposentadorias especiais dos militares

europeus são idades mínimas mais baixas ou inexistentes (presente em 19

países dos 28 analisados), tempo de contribuição reduzido (14 países) e

benefícios mais elevados (13 países), ao passo que regras de indexação

diferentes são raras (1 país). Do total de 20 países onde há aposentadorias

especiais para militares, pelo menos 15 passaram por reformas recentes,

incluindo os quatro que descontinuaram as condições mais favoráveis, com o

intuito de promover a sustentabilidade no longo prazo.

Tabela 1: Aposentadorias especiais dos militares na Europa (2017/2018)

Número Relação de países

Não existe 8 Áustria, Suécia, Chipre, República Tcheca,


aposentadoria Alemanha, Estônia, Holanda e Grécia
especial para
militares

As aposentadorias 4 Dinamarca, Espanha, Luxemburgo e Hungria


especiais de militares
estão sendo extintas

Os novos militares 16 Bélgica, Bulgária, Croácia, Irlanda, Finlândia,


acessam França, Itália, Letônia, Lituânia, Malta, Polônia,
aposentadorias Portugal, Romênia, Eslováquia, Eslovênia e
especiais Reino Unido

Fonte: Country fact sheets, Pensref. Directorate-General for Economic and


Financial Affairs, European Commission. Baseado em pesquisa do Ageing
Working Group (AWG), estrutura técnica do Economic Policy Committee, com
países membros. Em alguns casos, as informações são oriundas de pesquisa
bibliográfica (publicações de outros organismos internacionais).
Na Tabela 2, apresentamos mais informações das aposentadorias especiais

dos militares de países selecionados, e verificamos que, atualmente, é

comum a fixação de idade mínima e as fórmulas de cálculo dos benefícios

quase sempre são semelhantes às dos trabalhadores civis. A vinculação da

idade de aposentadoria à evolução da expectativa de sobrevida é verificada

em alguns casos. Nota-se, ainda, que a maior parte dos sistemas de

previdência dos militares europeus são contributivos.

Tabela 2: Atributos da aposentadoria dos militares de países europeus


selecionados (2017/2018)

Descrição aposentadoria regular Se a regra Financiamento


precoce de cálculo
é mais
vantajosa
do que
para civis

Espanha 60 anos, desde que com 30 anos de Não Sem informação


(sistema contribuição como empregado do
fechado a Estado
novos
entrantes)

França Idade mínima de 5 a 10 anos menor Não, apesar 9,14% para o


do que a dos demais trabalhadores da fórmula militar e
(que é de 62 anos para a nascidos a ser 126,07% para o
partir de 1955), tempo de específica, é governo*
contribuição mínimo de 17 ou 27 comparável
anos, de acordo com o status

Itália 57 anos e 7 meses; 40 anos e 7 Não 33%, sendo 2/3


meses de contribuição não importa pagos pelo
a idade; (todas as condições de governo e 1/3
aposentadoria precoce reajustadas do militar
de acordo com mudanças na
expectativa de vida)

Portugal 60 anos e 3 meses (6 anos antes Sim Contribuições


dos demais), aumentando com a de 11% do
expectativa de idade, mesma militar e 23,75%
fórmula de cálculo, sem descontos do empregador
de sustentabilidade e aposentadoria
precoce

Fonte: Questionnaire files, Pensref. Directorate-General for Economic and


Financial Affairs, European Commission. Informações extraídas dos questionários
do AWG respondidos pelos países membros com o apoio das autoridades locais.
(*) Pode incluir parcela para cobertura do déficit.

1.2 EVOLUÇÃO DO SISTEMA AMERICANO


Os fatores históricos e a natureza especial da atividade são elementos

importantes para explicar o tratamento diferenciado conferido aos militares,

mas o fator primordial no caso americano é a gestão de pessoal. Como a

carreira militar não dispõe de entrada lateral (isto é, ingresso de indivíduos

de meia-idade previamente qualificados e com experiência na atividade), o

sistema de previdência americano dispõe de elementos para promover o

recrutamento, incentivar a continuidade e o desempenho de jovens

promissores e, ao mesmo tempo, desincentivar a permanência de indivíduos

sem aptidão, permitindo a dispensa digna daqueles que se tornam

dispensáveis com o passar do tempo.

Antes de mais nada, deve-se observar que os militares americanos

contribuem para a seguridade social geral, não específica dos militares,

desde 1957 e computam o tempo de atividade militar para obter os

benefícios.

A previdência específica para militares não substitui a seguridade social,

isto é, eles recebem a aposentadoria da seguridade social além do benefício

da previdência militar. O sistema de previdência exclusivo dos militares era

totalmente não contributivo até 2018, quando passou pela maior reforma de

sua história, de modo a contemplar uma parcela de contribuição definida. Os

militares aposentados também recebem alguns benefícios em espécie, como

assistência à saúde, que não está disponível para todos os americanos

(Kamarack, 2017).

No sistema anterior, instituído em 1947, o militar adquire direito a um

benefício de aposentadoria igual 2,5% da base de cálculo para cada ano de

serviço depois de completar 20 anos de atividade, limitado ao recebimento

máximo de 75% da base de cálculo. Assim, com 20 anos de serviço, os

militares do sistema anterior adquirem o direito a uma aposentadoria igual a

50% da base de cálculo.

No entanto, menos de 20% deles alcançam 20 anos de serviço e, portanto,

não acessam a aposentadoria militar. Os demais deixam o serviço logo após

adquirirem o direito, ao completarem 20 anos de serviço, o que tipicamente

ocorre por volta dos 45 anos de idade. O parâmetro para o cálculo do


benefício é o salário básico (equivalente a cerca de 60% da remuneração

regular, que inclui auxílios de moradia e subsistência) e depende da data de

entrada no serviço militar (Asch, 2019).

Na Tabela 3, resumimos as principais mudanças na previdência dos

militares americanos em 1980 e 1986, além dos atributos do novo sistema,

denominado Blended Retirement System (BRS, sistema misto de

aposentadoria, em português), instituído em 2018. Aqueles que ingressaram

antes de 1980 tinham o benefício calculado aplicando-se o multiplicador de

2,5% ao salário básico final e a base de cálculo dos que entraram depois

daquela data passou a ser a média dos 36 maiores salários básicos. Nos dois

casos, há reajuste anual pela inflação.

Tabela 3: Comparação entre o legado e o sistema misto de aposentadoria dos


militares americanos

Sistema Final Basic High Three Redux Blended


pay (até (reforma de (reforma de Retirement
setembro 1980) 1986) System
de 1980) (reforma de
2017)

A quem se Membros que Membros que Membros que Membros que


aplica entraram entraram entre entraram entraram depois
antes de 8 de 8 de setembro depois de 31 de 1o de janeiro
setembro de de 1980 e 31 de julho de de 2018 ou que
1980 de julho de 1986 e que tinham menos
1986 e pessoas aceitam o de 12 anos de
que entraram bônus com 15 serviço em 31
depois dessa anos de serviço de dezembro de
data e não e se 2017 e optaram
aceitam o comprometem por aderir
bônus a ficar 5 anos a
mais

Base de Salário Média dos 36 Média dos 36 Média dos 36


cálculo básico final salários salários básicos salários básicos
(cerca de básicos mensais mais mensais mais
60% da mensais mais altos altos
remuneração altos
regular)
Sistema Final Basic High Three Redux Blended
pay (até (reforma de (reforma de Retirement
setembro 1980) 1986) System
de 1980) (reforma de
2017)

Multiplicador 2,5% por ano 2,5% por ano 2,5% por ano 2% por ano de
para o de serviço de serviço de serviço, serviço
benefício menos 1% para
definido cada ano de
serviço inferior
a 30
(restabelece
aos 62 anos)

Reajuste Inflação Inflação Inflação menos Inflação


anual 1%
(restabelecido
aos 62 anos)

Contribuição Contribuições Contribuições Contribuições Contribuição


definida individuais, individuais, individuais, mínima patronal
sem sem sem de 1% com
contrapartida contrapartida contrapartida contribuição
paritária de até
mais 4%

Opção de Apenas Apenas Apenas Opção de


receber anuidade anuidade anuidade receber uma
parte do mensal mensal mensal parcela na
benefício de aposentadoria,
uma só vez sendo o
benefício
integral
restabelecido na
idade de
aposentadoria
da seguridade
social

Benefício US$ 30 mil Pagamento de


adicional recebíveis aos um incentivo
para 15 anos de entre 8 e 12
continuação serviço com anos de serviço
obrigação de com obrigação
permanecer 5 de continuar por
anos adicionais mais 3 anos
no serviço ativo
Fonte: U.S. Department of Defense, Office of the Actuary.

Os que entraram a partir de 1986 têm um redutor de um ponto percentual

no multiplicador para cada ano de serviço inferior a 30, ou seja, quem se

aposenta com 20 anos de serviço tem um benefício igual a 40% da média

dos 36 maiores salários (2,5% para cada ano menos 10%), em vez de 50%

como antes. Os pagamentos com o redutor ocorrem até os 62 anos de idade,

quando a fórmula original é restaurada. Ademais, o reajuste anual desse

grupo é dado pela inflação menos 1%. Essa regra se tornou impopular por

ter afetado a capacidade de recrutamento e retenção das Forças Armadas e,

ainda no final dos anos 1990, o governo americano voltou atrás: aqueles que

entraram depois da data de corte devem escolher, 180 dias antes de

completar 15 anos de serviço, entre a regra antiga (que inclui o reajuste

anual pela inflação) ou um pagamento de US$ 30 mil.

O sistema anterior, baseado apenas em benefício definido, foi

descontinuado, e aqueles que entraram a partir de 2018 já foram

automaticamente vinculados ao sistema misto. Nele, há uma parcela de

benefício definido e uma parte na forma de contribuição definida, com

capitalização em contas individuais. A contribuição mínima é de 1%, e o

militar adquire o direito a partir de dois anos de serviço. Há contribuição

patronal paritária de até mais 4%, que começa depois de dois anos de

serviço e vai até 26 anos. Assim, os militares que deixam o serviço antes de

20 anos levam consigo uma quantia que poderão acessar depois dos 60 anos

de idade.

Os militares americanos também podem acessar o benefício vitalício se

adquirirem incapacidade permanente, situação em que podem escolher entre

duas fórmulas de cálculo: 2% ou 2,5% para cada ano de serviço vezes a base

de cálculo, de acordo com a data de entrada, ou o resultado da multiplicação

da base de cálculo pelo percentual de incapacidade, calculado pelo

Departamento de Defesa. Além disso, há duas situações em que o militar

deixa pensão por morte aos dependentes: se morrer na ativa ou se, após a

aposentadoria, aderir a um plano subsidiado pelo governo. Nesse plano, o

membro define uma base de cálculo a partir da qual contribui. Após a sua

morte, o cônjuge passa a receber uma anuidade igual a, no máximo, 55% da

aposentadoria, se tiver menos de 62 anos. O percentual diminui para 35%

aos 62 anos, quando o pensionista poderá acessar os benefícios da

seguridade social. Os filhos recebem a pensão até completarem 18 anos ou,


no caso de estudantes de ensino superior, até os 22 anos (Hustead e Hustead,

2001).

As mudanças descritas anteriormente foram moldadas para modernizar o

sistema de previdência e ao mesmo tempo atender as necessidades de

recursos humanos. Mas a operacionalização não será neutra do ponto de

vista fiscal. A despesa aumentará nos primeiros anos em função das

contribuições para a previdência complementar, enquanto o gasto com a

parcela de benefício definido diminuirá no futuro.

O sistema de previdência militar americano paga benefícios a mais de 2,3

milhões de pessoas a um custo anual de aproximadamente US$ 60,5 bilhões,

o que corresponde a uma despesa por pessoa de quase US$ 30 mil anuais, ou

seja, em torno da metade da renda per capita dos Estados Unidos 243
. Esse

sistema não é imune a críticas, pois a aposentadoria precoce dos militares

representa um custo elevado para os cidadãos daquele país. Por outro lado,

os Estados Unidos realizam operações militares mundo afora regularmente,

e a preocupação com o recrutamento pode ser justificada de forma clara para

a sociedade.

De resto, há instrumentos de monitoramento não apenas da previdência,

mas do desempenho de todo o pacote de compensação dos militares. A cada

quatro anos, por exemplo, o presidente deve elaborar uma revisão abrangente

do sistema de compensação militar e encaminhá-la, junto com

recomendações, para o Congresso.

2. MILITARES BRASILEIROS
Os militares brasileiros possuem um sistema de previdência específico, bem

mais vantajoso que o dos trabalhadores civis dos setores público e privado.

As principais normas dos militares das Forças Armadas estão previstas no

próprio Estatuto dos Militares — Lei 6.880, de dezembro de 1980 — e na

Lei das Pensões Militares — Lei 3.765, de maio de 1960. Apesar de muito

antigos, esses normativos não passaram por grandes mudanças nas últimas

décadas: as principais ocorreram por meio da Medida Provisória 2.215-10,


244
de agosto de 2001; e da Lei 13.954, de dezembro de 2019 .

O caso brasileiro é singular porque os militares não atuam apenas em

funções tradicionais, como segurança nacional e preservação dos poderes

constitucionais, pois são a categoria profissional mais numerosa atuante na

segurança pública, para a qual desempenham as funções de polícia


ostensiva, manutenção da ordem e defesa civil. Enquanto as Forças Armadas

são organizadas e mantidas pelo governo central, as polícias militares e os

corpos de bombeiros militares ficam a cargo dos governos estaduais. Cada

unidade federativa possui seu próprio estatuto militar e normativos

complementares que definem a estrutura das carreiras e os elementos de

previdência social.

2.1 FORÇAS ARMADAS


Os militares ativos são divididos em dois grupos de acordo com o tipo de

vínculo: os de carreira e os temporários, incorporados para prestação de

serviço militar obrigatório ou voluntário. Os temporários não adquirem

estabilidade e instituem benefícios previdenciários a cargo do sistema

militar apenas nas hipóteses de invalidez ou morte ocorridas durante o

exercício da atividade militar. Do ponto de vista do círculo hierárquico, tanto

os militares de carreira quanto os temporários se dividem em: oficiais,

praças e praças especiais, que são os alunos de órgão de formação de

militares. A primeira coluna da Tabela 4 mostra que os temporários

representam mais da metade dos militares ativos e que os praças

(temporários e de carreira) respondem por mais de 80% do mesmo total.

O sistema de previdência militar federal paga benefícios a 163 mil

indivíduos e outras 124 mil famílias a custo anual de R$ 44,4 bilhões (69% a

mais do que os R$ 26,2 bilhões gastos com os militares da ativa, conforme a

segunda coluna da Tabela 4). O gasto per capita mensal é de R$ 11.900


245
por benefício , o que corresponde a um benefício médio anual de quase

R$ 155 mil, ou seja, mais de quatro vezes a renda per capita brasileira.

Em valores absolutos, com correção por paridade de poder de compra, o

valor do benefício médio do militar brasileiro é superior ao do americano,

embora a renda per capita americana seja quase quatro vezes maior do
246 247
que a brasileira . Para cada militar ativo de carreira, há 1,8 benefício .

Da terceira coluna da Tabela 4 depreende-se que a remuneração média de

um oficial inativo (R$ 18.928) é 22% maior que a de um oficial da ativa (R$

15.499).

Tabela 4: Número de militares federais brasileiros de acordo com a situação e


despesa de cada grupo (2020)
Número de Valor Valor Valor anualizado
membros (em anualizado mensal por pessoa (R$
milhares) (R$ por milhares)
bilhões) pessoa
(R$)

Militares 369 26,2 5.341 71,0


ativos

Carreira 161 17,7 8.287 110,2

Oficiais 37 7,6 15.499 206,1

Praças 113 9,8 6.512 86,6

Praças 11 0,3 2.291 30,5


especiais

Temporários 209 8,5 3.075 40,9

Oficiais 16 2,4 11.450 152,3

Praças 187 5,7 2.302 30,6

Praças 6 0,4 5.489 73,0


especiais

Total de 287 44,4 11.890 154,6


benefícios

Inativos 163 24,2 11.447 148,8

Oficiais 48 11,9 18.928 246,1

Praças 115 12,4 8.306 108,0

Pensionistas 124 20,1 12.470 162,1


tronco

Oficiais 76 16,2 16.359 212,7

Praças 48 4,0 6.359 82,7

Fonte: Avaliação Atuarial do Sistema de Pensões Militares das Forças Armadas,


Brasil (2021).

Quatro fatores principais concorrem para explicar por que a despesa com

benefícios militares é desproporcionalmente elevada. Primeiramente, os


militares se aposentam muito jovens: antes de completarem 50 anos na

maior parte dos casos. A aposentadoria precoce decorre das condições de


248
transferência para a reserva remunerada a pedido e de ofício .

A aposentadoria a pedido acontece após o militar completar um número

mínimo de anos de serviço, que era igual a 30 anos até 2019, enquanto a

aposentadoria de ofício ocorre nas idades-limite do seu posto ou graduação,

inferiores a 50 anos para os graus hierárquicos mais baixos até 2019 (a partir

de 44 anos). Existem ainda outras hipóteses de aposentadoria de ofício, que

contribuem para a saída precoce, como o preenchimento das quotas


249
compulsórias .

Em segundo lugar, o valor do provento é igual ao soldo integral do posto

ou graduação que possuía, além das gratificações e adicionais incorporáveis,

e é reajustado da mesma forma que a remuneração dos ativos (integralidade

e paridade). Até 2001, os militares eram promovidos no momento da

aposentadoria, ou seja, acessavam o soldo correspondente ao grau

hierárquico imediatamente superior, regra que ainda é aplicada a algumas

hipóteses de invalidez.

Em terceiro lugar, as pensões são sempre integrais e, na maior parte dos

casos, vitalícias. Para cônjuges, são sempre vitalícias, não importa a idade

ou outro atributo. Além disso, as filhas solteiras daqueles que ingressaram

antes de 2001 e optaram por pagar um adicional de contribuição também

têm direito a pensões vitalícias.

Por fim, o fato de que as aposentadorias dos militares federais são não

contributivas potencializa o encargo fiscal que esse sistema representa para

os contribuintes. Em relação às pensões, a contribuição normalmente era de

7,5% até 2019, inexistindo contrapartida patronal.

As principais mudanças na previdência militar anteriores a 2019

ocorreram por meio da MP 2.215-10/2001, que introduziu limite de 21 anos

de idade (24, se estudante universitária) para a pensão das filhas dos novos

militares e acabou com a contagem de tempo fictício e a promoção no

momento da aposentadoria. Tais mudanças, que visavam corrigir situações

anacrônicas, levam tempo para apresentar efeitos fiscais. E, no caso da

mudança nas pensões, a regra de transição foi excessivamente generosa e


250
muito mais lenta do que a dos civis . De acordo com relatório de auditoria

do Tribunal de Contas da União, as pensões das filhas maiores


representavam 59% da quantidade e 46% do gasto com pensões militares em

2016 (Brasil, 2017).

Esse conjunto de fatores contribui para explicar o crescimento real da

despesa com militares federais nos últimos anos (Tabela 5). A variação total

de 2008 a 2020 foi igual a 39% (média anual de 2,9%), enquanto a despesa

com servidores civis aumentou 21% (1,7% ao ano). No mesmo período, o

PIB brasileiro apresentou crescimento acumulado de pouco mais de 10%, o

que indica um grande descompasso.

Tabela 5: Crescimento real da despesa com militares das Forças Armadas e


servidores civis federais (2008/2020)

Média anual (%) Acumulado no período (%)

Militares federais 2,9 39,1

Ativos 3,1 41,6

Inativos e pensões militares 2,8 37,6

Servidores civis federais 1,7 20,6

Ativos 1,6 19,6

Aposentadorias e pensões 1,8 22,2

Crescimento do PIB 0,9 10,3

Fonte: Resultado do Tesouro Nacional. Deflator das despesas: IPCA.

Apesar de responderem por apenas 1,2% do número de benefícios

previdenciários pagos pelo governo federal e contribuírem com cerca de

1,5% da arrecadação (R$ 7 bilhões), a despesa com a previdência dos

militares (R$ 52 bilhões) corresponde a 6,4% do total. A última coluna da

Tabela 6 indica também que a participação dos militares no déficit (R$ 45


bilhões) é desproporcional: quase 13% do total.

Tabela 6: Participação percentual dos militares no número de benefícios e nas


receitas e despesas dos regimes de previdência federais (2020)

Quantidade de Receita Despesa Deficit


benefícios

Previdência dos militares 1,2 1,5 6,4 12,6


Quantidade de Receita Despesa Deficit
benefícios

8,6 11,0 14,0

Regime próprio de 2,4


previdência social

Regime geral de 96,4 89,8 82,5 73,3


previdência social

Total 100,0 100,0 100,0 100,0

Fonte: Para benefícios: Boletim Estatístico da Previdência Social, Avaliação


Atuarial do Regime Próprio de Previdência Social da União, e demonstrativos de
“quantitativo físico de pessoal” das Forças Armadas. Para informações
financeiras: Relatório Resumido de Execução Orçamentária, Secretaria do
Tesouro.

2.2 POLÍCIAS MILITARES E CORPOS DE


BOMBEIROS MILITARES
A maior parte dos militares brasileiros é formada pelos policiais e

bombeiros dos governos estaduais: aproximadamente 460 mil ativos (25% a

mais do que os 369 mil ativos das Forças Armadas — Tabela 4) e 303 mil

aposentados (86% a mais do que os 163 mil aposentados das Forças


251
Armadas — Tabela 4), além dos 135 mil pensionistas de militar . Desse

modo, para cada militar ativo nos estados, há quase outro aposentado ou

pensionista.

Os militares representam por volta de 20% dos estatutários estaduais e,

devido às regras previdenciárias específicas, têm significado um custo

crescente para as administrações dessa esfera ao longo dos anos (Gráfico 1).

A despesa total ultrapassou R$ 80 bilhões em 2019. Em termos

proporcionais, o gasto com esse grupo representa 12% da receita corrente

líquida estadual.

Gráfico 1: Evolução da despesa anual com militares estaduais: 2007 a 2019 (R$
bilhões de dez/2020)
Fonte: Execução Orçamentária dos Estados e Relatório Resumido de Execução
Orçamentária, Secretaria do Tesouro. Santos et al. (2017). Nota: Despesa bruta
declarada pelos estados. Não considera o gasto do Distrito Federal custeado pelo
governo federal. A despesa com ativos se refere apenas aos vencimentos e
vantagens fixas de pessoal militar (elemento de despesa 12). Deflator: IPCA.

A participação dos aposentados e pensionistas nas despesas dos estados

com os militares estaduais aumentou nos últimos anos, o que não

surpreende, porque as medidas de gestão que podem ser adotadas pelos

governadores para controlar a folha de pagamentos não afetam diretamente

os benefícios previdenciários (a exceção são os reajustes nos soldos, que

afetam os benefícios por meio da paridade). Dito de outro modo, para que

haja contenção das despesas estaduais com benefícios instituídos por

militares, faz-se necessária a reformulação das regras previdenciárias.

Cada unidade federativa apresenta um estatuto militar contendo as

condições de aposentadoria da categoria, que, na reforma de 2019, foram

descontinuadas. Essas leis estaduais se assemelhavam muito ao estatuto das

Forças Armadas. Vale a pena elencar as principais diferenças no que se

refere à aposentadoria:

a) Tempo de serviço e idade mínima: quase todos os estados

estabeleciam um número mínimo de 30 anos de serviço como condição para

a aposentadoria programada integral sem idade mínima. Mas há algumas

exceções dignas de nota: o estado do Espírito Santo havia elevado o tempo

de serviço para 35 anos, em 2007, e o Ceará, ainda em 2006, havia

instituído idade mínima de 53 anos de idade aos novos militares. Por outro

lado, o Amapá exigia somente 25 anos de serviço, ao passo que Minas


Gerais e Rio de Janeiro permitiam a aposentadoria integral com 25 anos de

efetivo serviço militar (ou seja, excluindo tempo de trabalho fora da

corporação e tempo fictício).

b) Contagem de tempo fictício e promoção no


momento da aposentadoria: essas condições especiais, previstas
para os militares das Forças Armadas até 2001, continuavam presentes nos

estatutos da maioria dos estados. A contagem do tempo fictício (aplicada em

especial para licenças especiais vencidas e não gozadas) poderia antecipar

em até dois anos a data de aposentadoria do militar. A promoção no

momento da aposentadoria se refere à situação em que o provento não é

apenas integral, mas sim igual à remuneração da patente imediatamente

superior.

Um aspecto diferente na esfera estadual até 2019 era o financiamento dos

benefícios previdenciários. Os percentuais de contribuição não eram fixados

nos estatutos, mas sim em outras leis estaduais, normalmente nas que

regulavam o funcionamento dos regimes próprios de previdência social.

Desse modo, ao contrário do que ocorre no governo federal, as

aposentadorias militares já eram contributivas e tinham alíquotas de

contribuição dos ativos iguais às dos servidores civis na maioria dos casos.

A alíquota mais frequente era de 11% e alguns estados, como Goiás, já

praticavam percentuais superiores.

3. REFORMA DA PREVIDÊNCIA E
REESTRUTURAÇÃO DAS CARREIRAS
Em mais de uma oportunidade, os militares brasileiros patrocinaram

mudanças legislativas para diferenciá-los formalmente dos servidores civis,

visando evitar reformas mais profundas na previdência e a aplicação de

outras normas da administração pública, como a necessidade de conferir

transparência e acompanhar a evolução dos passivos atuariais. Evidências

disso foram a exclusão da terminologia “servidores militares federais” da

Constituição em 1998 e a criação, em 2019, da denominação Sistema de

Proteção Social dos Militares das Forças Armadas para o conjunto de


252
normas relativas à remuneração, previdência, assistência e saúde .

Em 2019, o Executivo apresentou o Projeto de Lei 1.645, que foi

convertido na Lei 13.954/2019 com poucas alterações. A seguir,

descrevemos as principais mudanças promovidas por essa nova Lei, além da


já citada criação do sistema de proteção social. Nessa exposição,

diferenciamos as medidas de cunho previdenciário das relacionadas à

restruturação das carreiras, cabendo adiantar que as últimas representaram

aumento de despesa que consumiu todo o ganho fiscal gerado pelas

primeiras.

3.1 REFORMA DA PREVIDÊNCIA DOS MILITARES


As modificações na previdência foram apresentadas como a contribuição

dos militares para o esforço de ajuste fiscal. Apesar de terem reduzido

algumas distorções, foram brandas se comparadas às mudanças para os

trabalhadores civis dos setores público e privado (Tabela 7).

Tabela 7: Comparativo da reforma da previdência de acordo com o regime de


previdência (regras permanentes)

Militares Servidores civis Trabalhadores


estatutários das filiados ao filiados ao
Forças Armadas Regime Próprio Regime Geral
da União

Contribuições Majoração de 7,5% Alíquotas do Alíquotas do


para 10,5% na servidor passaram trabalhador
contribuição normal a ser progressivas, empregado se
de militares ativos e variando de 7,5% tornaram mais
aposentados para as até 22% de acordo progressivas,
pensões, que passou com a faixa variando de 7,5%
a ser cobrada salarial; até 14%; alíquota
também de contribuições de patronal de 20%,
pensionistas; aposentados e incidente sobre
contribuição pensionistas acima todo o salário, não
extraordinária de do teto do RGPS, foi alterada
1,5% nas pensões e podendo incidir
igual a 3% para as sobre a parcela
filhas beneficiárias de acima de um
pensão vitalícia; salário-mínimo no
aposentadoria caso de déficit
continua não atuarial
contributiva e inexiste
contribuição patronal
Militares Servidores civis Trabalhadores
estatutários das filiados ao filiados ao
Forças Armadas Regime Próprio Regime Geral
da União

Elegibilidade Tempo de serviço Majoração da idade Instituição de idade


para a aumentou de 30 para mínima masculina mínima igual a 65
aposentadoria 35 anos, sem idade (feminina) de 60 (62) anos para
programada mínima (55) para 65 (62) homens (mulheres)
anos, mínimo de 25 e tempo mínimo de
anos de contribuição igual a
contribuição e 10 20 (15) anos
de serviço público

Valor e Não houve mudança: Média de 100% dos Média de 100% dos
reajuste da integralidade e salários de salários de
aposentadoria paridade (sem contribuição desde contribuição desde
modificação) julho de 1994, no julho de 1994, no
lugar dos maiores lugar dos maiores
salários salários
correspondentes a correspondentes a
80% do período 80% do período
contributivo, contributivo,
limitada pelo teto limitada pelo teto.
do RGPS. Reajuste Reajuste anual pela
anual pela inflação inflação do INPC
do INPC

Valor e Não houve mudança: Base de cálculo: Base de cálculo:


reajuste da integralidade e valor da valor da
pensão por paridade aposentadoria ou, aposentadoria ou,
morte no caso do no caso do
instituidor estar em instituidor estar em
atividade, o valor atividade, o valor
que teria direito que teria direito
caso se caso se
aposentasse por aposentasse por
invalidez (60% da invalidez (60% da
média mais 2% média mais 2%
para cada ano além para cada ano além
de 20, no caso dos de 20, no caso dos
homens); 60% (1 homens); 60% (1
dependente) mais dependente) mais
10% para cada 10% para cada
dependente dependente
adicional, limitado adicional, limitado
ao total de 5 ao total de 5
Militares Servidores civis Trabalhadores
estatutários das filiados ao filiados ao
Forças Armadas Regime Próprio Regime Geral
da União

Duração da Vitalícia para cônjuge Vitalícia no caso de Vitalícia no caso de


pensão por ou companheiro, cônjuge ou cônjuge ou
morte inclusive filha companheiro com companheiro com
solteira, se o mais de 45 anos mais de 45 anos
instituidor entrou (sujeito a reajuste (sujeito a reajuste
antes de 2001 e de acordo com a de acordo com a
optou pela expectativa de expectativa de
contribuição vida) vida)
extraordinária

Fonte: Elaboração dos autores.

A medida de maior impacto fiscal foi a alteração nas alíquotas de

contribuição para custeio das pensões militares (por volta de R$ 5 bilhões

anuais), detalhada na Tabela 8: a alíquota de contribuição normal passou de

7,5% para 10,5%. As pensionistas passaram a contribuir (inclusive por meio

de alíquota extraordinária, quando o instituidor optou por deixar pensão

vitalícia para a filha) e as filhas beneficiárias de pensão vitalícia passaram a

recolher contribuição extraordinária de 3%.

Tabela 8: Alterações nas alíquotas de contribuição para pensões militares

Tipo de Quem recolhe 2019 2020 2021


contribuição em
diante

Normal Militares ativos e inativos 7,5% 9,5% 10,5%

Pensionistas 0,0% 9,5% 10,5%

Extraordinária: Militares antes de 2001 que 1,5% 1,5% 1,5%


pensão vitalícia para optaram pela manutenção de
filhas solteiras pensão vitalícia para filhas

Pensionistas, exceto filha não 0,0% 1,5% 1,5%


inválida

Pensionista filha não inválida 0,0% 3,0% 3,0%

Fonte: Elaboração dos autores.


Os praças especiais (alunos das escolas militares), os cabos e soldados que

possuíam até dois anos de serviço também passaram a contribuir. Embora

antes não houvesse contribuição, o tempo de serviço correspondente contava

para fins de aposentadoria. Essa mudança não deve ser subestimada,

sobretudo quando se observa que esse grupo representava cerca de 20% do

total de militares ativos, segundo informações do Ministério da Defesa

prestadas ao Tribunal de Contas (Brasil, 2017).

A segunda alteração mais relevante do ponto de vista fiscal foi a elevação,

de 30 para 35 anos, do tempo mínimo de serviço para a aposentadoria com

proventos iguais ao soldo integral do posto ou graduação que possuía (efeito

estimado é de R$ 0,4 bilhão para 2022 e R$ 1,3 bilhão para 2039). Tal

mudança foi acompanhada de uma regra de transição bastante generosa:

para qualquer militar ativo na data de promulgação da lei, aplica-se pedágio

de 17% sobre o tempo que faltava para completar 30 anos de serviço. Ou

seja, os militares com 25 anos de tempo de serviço terão que trabalhar dez

meses adicionais e aqueles com 15 anos trabalhados, 2,5 anos a mais.

De fato, a regra de transição dos militares é muito mais branda se

comparada à dos trabalhadores civis: para se aposentar sem idade mínima,

um trabalhador do setor privado deve cumprir pedágio igual a 50% do tempo

de contribuição faltante. Mesmo antes da reforma, os trabalhadores filiados

ao regime geral já deveriam contar com pelo menos 35 anos de contribuição

para se aposentarem antes de 65 anos de idade (no caso dos homens, que

representam mais de 90% dos militares).

As outras duas medidas relacionadas à aposentadoria militar foram: a

introdução de tempo mínimo de exercício de atividade militar nas Forças

Armadas igual a 30 anos para oficiais oriundos das escolas de formação e

praças e a 25 anos para os demais oficiais; e a elevação das idades-limite

para a transferência de ofício à reserva (de 44 a 66 para 50 a 70 anos),

equivalente à aposentadoria compulsória dos servidores civis (75 anos). As

idades-limite para a transferência da reserva à reforma também aumentaram

(de 56 a 68 para 68 a 75 anos), mas não apresentam efeito prático relevante.

Destacamos alguns elementos críticos da previdência militar que não

mudaram com a reforma:

a) Integralidade e paridade: proventos iguais ao do posto ou

graduação que possuía no momento da aposentadoria, com a inclusão dos

adicionais e gratificações, sendo aplicado o mesmo reajuste. Essa regra


também era aplicada no serviço público, mas foi extinta há quase 20 anos

(atualmente aplica-se apenas aos servidores que entraram antes de 2003 e se

aposentam pelas regras de transição).

b) Não instituição de idades mínimas de


aposentadoria: a instituição de idades mínimas para os militares,

ainda que inferiores às aplicadas aos trabalhadores civis, deve ser

considerada à luz da experiência de outros países. Os benefícios auferidos

pelos militares brasileiros aposentados são elevados em relação à renda per


capita brasileira e duram muito tempo.
c) Aposentadorias não contributivas: os militares

continuaram sem participar do custeio de sua inatividade e tampouco há

contribuição patronal. O fato de que os militares adquirem direito a receber

do Estado proventos vitalícios sem nunca terem aportado contribuições está

relacionado à noção de que os membros dessa categoria não se aposentam,

mas sim tornam-se inativos após cumprirem certos requisitos legais.

Lembramos que a mesma situação existia no serviço público civil, mas foi

extinta em 1993.

d) Ausência de contribuição dos militares


temporários: esse grupo, que representa mais da metade dos ativos,
continua sem contribuir para financiar os benefícios de aposentadoria ou

pensão que podem instituir a cargo do sistema de previdência militar ou

outro regime. Os militares temporários, embora não possam usufruir da

aposentadoria militar por tempo de serviço, podem originar benefícios por

invalidez ou falecimento precoce enquanto prestam o serviço militar. Mais

ainda, o tempo de serviço militar temporário é objeto de contagem recíproca


253
para fins de aposentadoria em outros regimes .

e) Pensões integrais vitalícias: o cônjuge ou companheiro, não

importa a idade ou tempo da união, mantém a pensão até a morte. As filhas

solteiras, no caso daqueles que entraram antes de 2001 e optaram por pagar

uma contribuição adicional, mantêm o direito à pensão vitalícia. Além

disso, as pensões continuam sendo sempre iguais ao valor integral da

remuneração do instituidor.

Por fim, destacamos que as medidas adotadas em âmbito federal devem ser

estendidas a policiais militares e bombeiros dos estados e do Distrito

Federal. A elevação do tempo de serviço necessário para a transferência à


reserva é um ponto positivo na imensa maioria dos estados. Mas outras

possuem consequências negativas, cabendo destacar que as alíquotas de

contribuição dos militares de alguns estados eram superiores às novas

alíquotas dos militares federais, de modo que esses entes federativos

perderam parte da fonte de financiamento do déficit.

3.2 REESTRUTURAÇÃO DAS CARREIRAS DOS


MILITARES DAS FORÇAS ARMADAS
A mesma Lei que promoveu as mudanças na previdência reestruturou as

carreiras militares: houve acréscimo nos valores dos soldos, criação do

adicional de disponibilidade militar e ampliação significativa do adicional de

habilitação. Ademais, o valor da ajuda de custo paga por ocasião da

aposentadoria dobrou de valor. A justificativa para esse conjunto de medidas

residia no fato de que os rendimentos dos militares estavam defasados.

As remunerações relativas às Forças Armadas são formadas pelo soldo,

adicionais e gratificações, estes dois últimos fixados em percentuais do

soldo referente a cada posto ou graduação. Já a ajuda de custo é calculada

em relação à remuneração total e é devida quando o militar é transferido de

localidade ou se aposenta. Seu valor variava de metade até quatro vezes o

valor da remuneração, dependendo da situação que enseja o pagamento.

O reajuste dos soldos afetou apenas dez graduações, com aumento médio

de 11%. Essa revisão não alcançou os oficiais de qualquer posto, o que

contribuiu para conter o efeito fiscal (acréscimo de R$ 380 milhões por

ano). Por outro lado, os oficiais, especialmente aqueles de patente mais alta,

foram beneficiados de forma desproporcional pelas demais medidas.

A criação do adicional de disponibilidade militar equivale à recriação do

adicional de tempo de serviço, extinto em 2001 e mantido apenas para

aqueles militares que já faziam jus a ele naquela época (não há acumulação

das duas parcelas, paga-se a mais vantajosa). A medida representa uma

espécie de contrarreforma, no sentido de que recriou uma parcela já extinta

há 20 anos. A justificativa apresentada para a recriação foi a necessidade de

remunerar a categoria pela disponibilidade permanente e dedicação

exclusiva, mas a parcela é paga inclusive aos militares reformados. O

impacto fiscal é significativo (R$ 2,8 bilhões por ano), pois os percentuais,

assim como os valores da base de incidência, crescem de acordo com o

posto ou graduação — variando de 5% a 41% do soldo.


A majoração do adicional de habilitação é a medida de maior impacto

fiscal (R$ 1,3 bilhão em 2020 e R$ 8,1 bilhões em 2023, quando terá

impacto integral) entre todas as mudanças promovidas nas carreiras

militares. Esse adicional é um incentivo à capacitação, que é devido em

contrapartida a cursos realizados com aproveitamento pelo militar. Os

acréscimos foram muito significativos, em especial para cursos acessados

pelos militares de patente mais alta. Os percentuais que antes variavam de

12% a 30%, agora podem chegar a 73%.

Do mesmo modo que a recriação do adicional de disponibilidade, a

elevação dos percentuais pagos a título de habilitação, na prática, representa

um acréscimo nas remunerações que apresenta certa tendência de

concentração nas patentes mais altas (Gráfico 2). A título de exemplo, um

oficial superior com doutorado recebia um adicional de 30% do valor do

soldo e passou a receber 73%, o que representa entre R$ 8 mil e R$ 10 mil

por mês aproximadamente, dependendo do posto (acréscimo de cerca de R$

5 mil ou mais). Esse mesmo oficial tem direito a um adicional por

disponibilidade que gira em torno de 40% do soldo. Já um terceiro-sargento

com curso de especialização recebia um adicional de 16% e passou a

receber 27%, o que representa por volta de mil reais por mês (R$ 400 a mais

do que antes). Seu adicional de disponibilidade pode ser de 16% ou 6%,

dependendo de fazer ou não parte dos quadros especiais.

Gráfico 2: Remuneração dos militares por posto ou graduação antes e depois


dos adicionais de disponibilidade e habilitação (R$)
Fonte: Elaboração dos autores. Nota: Os percentuais são aqueles que serão
aplicados a partir de julho de 2023.

Por fim, outra alteração digna de nota refere-se à majoração no valor da

ajuda de custo, que passou de quatro para oito vezes o valor da remuneração

calculada com base no soldo do último posto do círculo hierárquico a que

pertencer o militar (efeito de R$300 milhões por ano).

3.3 EFEITOS FISCAIS CONSOLIDADOS


A Tabela 9 discrimina o efeito fiscal das medidas descritas anteriormente

para demonstrar que a reforma na previdência militar foi mais do que

compensada pela reestruturação das carreiras. O efeito líquido para o

governo federal converge para um aumento de despesa de cerca de R$ 6

bilhões por ano.

Nesse contexto, um tópico importante são as medidas apresentadas para

fazer face ao aumento da despesa não compensada pelas alterações

referentes à previdência militar: aumento da arrecadação do imposto de

renda retido na fonte em função do aumento das remunerações (que não é

integralmente absorvido pela União, tendo em vista que 46% da receita é

destinada a estados e municípios), receita adicional da contribuição a


Fundos de Saúde (também em função dos aumentos remuneratórios),

redução dos efetivos militares (não há compromisso legal ou normativo em

lei para tal redução, cujo impacto considerado supera R$ 4 bilhões por ano a

partir de 2024), militares aposentados contratados por órgãos públicos no

lugar de servidores efetivos e outras medidas.

Tabela 9: Impacto fiscal da reforma da previdência combinada com a


reestruturação das carreiras miliares (2020/2029)

2020 2021 2022 2023 2024 2025 2026 2027 2028 2029

Reforma da 4,5 5,5 5,4 5,3 5,4 5,4 5,3 5,4 5,5 5,5
previdência
militar (A)

Nova 1,3 1,8 1,8 1,8 1,9 1,8 1,7 1,7 1,7 1,7
contribuição
(ativos e
inativos)

Nova 2,8 3,1 3,1 3,1 3,1 3,1 3,1 3,1 3,1 3,1
contribuição
(pensionistas)

Redução de 0,4 0,6 0,5 0,4 0,5 0,6 0,5 0,5 0,6 0,7
despesa
(aumento do
tempo de
serviço)

Reestruturação 4,7 7,1 9,4 11,1 11,6 11,6 11,6 11,6 11,6 11,6
das carreiras
militares (B)

Adicional de 2,8 2,8 2,8 2,8 2,8 2,8 2,8 2,8 2,8 2,8
disponibilidade
militar

Adicional de 1,3 3,6 5,9 7,6 8,1 8,1 8,1 8,1 8,1 8,1
habilitação

Ajuda de custo 0,3 0,3 0,3 0,3 0,3 0,3 0,3 0,3 0,3 0,3

Aumento dos 0,4 0,4 0,4 0,4 0,4 0,4 0,4 0,4 0,4 0,4
soldos
2020 2021 2022 2023 2024 2025 2026 2027 2028 2029

Efeito fiscal -0,3 -1,6 -4,0 -5,8 -6,2 -6,2 -6,3 -6,2 -6,1 -6,1
líquido–(A) -
(B)

Medidas 1,8 3,0 4,2 5,4 5,9 6,3 6,5 6,7 6,9 7,3
adicionais de
compensação
(C)

Fonte: Projeções do Ministério da Defesa. Nota: Inclui ajuste dos autores para
considerar alterações nas alíquotas de contribuição. O PL 1.645/2019 promovia
crescimento mais gradual das alíquotas, mas o texto aprovado acelerou o
aumento.

Primeiramente, é interessante observar que grande parte dessas medidas se

refere a aumentos de arrecadação e, por conseguinte, não ajudam a controlar

o crescimento da despesa. Isso é importante, porque o teto de gastos é a

principal regra fiscal brasileira e tem contribuído para a estabilidade

macroeconômica. Em segundo lugar, a maior parte da economia vem de

uma promessa, sem compromisso legal, de reduzir os efetivos.

4. CONCLUSÕES
Este capítulo mostrou que a reforma da previdência dos militares brasileiros

de 2019 foi branda quando comparada às mudanças aplicadas aos

trabalhadores civis e não está de acordo com a tendência internacional. A

noção de que os militares devem se aposentar um pouco mais cedo possui

fundamento, mas falta justificativa razoável para todas as demais diferenças.

A tese de que os militares não se aposentam ou não possuem regime de

previdência, mas sim um sistema de proteção social, é mais retórica do que

realidade. Lembramos que pouco mais de um ano após a criação dessa

denominação (Sistema de Proteção Social dos Militares), a consideração de

que os militares da reserva são aposentados para todos os efeitos práticos foi

usada para estender à categoria a decisão do Supremo Tribunal Federal que

permite a aplicação do teto remuneratório do serviço público separadamente

ao benefício de aposentadoria e ao salário e não à soma das duas parcelas.

Ou seja, os argumentos são usados conforme a conveniência, para garantir

vantagens remuneratórias.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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B. recruitment,
retention, and performance. Santa Mônica: Rand Corporation, 2019.
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Relatório de Auditoria do Processo TC-
001.040/2017-0. Brasília, 2017.
Proposta de subsídios para o Projeto de Lei de
BRASIL. Marinha do Brasil.

Diretrizes Orçamentárias 2022: Ane–o IV.7 — Avaliação atuarial do sistema de pensões


militares das Forças Armadas. Brasília, 2021.

CLARK, R.; CRAIG, L.; WILSON, J. A history of public sector pensions in the
United States. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2003.
ECKEFELDT, P.; PĂTĂRĂU, A. Special pensions in the EU. Directorate General Economic and

Financial Affairs, European Commission, discussion paper, 125, 2020.


HUSTEAD, E.; HUSTEAD, T. Federal civilian and military retirement systems. In: MITCHELL, O.;

HUSTEAD, E. (eds.). Pensions in the public sector, 2001.


KAMARACK, K. Military retirement: Background and recent developments. Congressional

Research Service. Washington, 2017.

SANTOS, C. H. et al. Crescimento dos gastos com pessoal ativo e inativo dos estados brasileiros entre

2006-2016. Carta de Conjuntura, n. 37 (nota técnica II), Ipea, Brasília, 2017.

243. Informações do Departamento de Defesa americano.

244. Outros normativos relevantes são o Decreto 49.096, de 10/10/1960, sobre pensões militares; o

Decreto 4.307, de 18/7/2002, que regulamenta a MP 2.215-10; a Portaria Interministerial 2.826, de

17/8/1994, que estabelece normas para concessão e revisão dos valores das pensões militares; e a

Portaria Normativa 86/GM-MD, de 22/09/2020, que disciplina o adicional de disponibilidade militar.

245. R$ 44,4 bilhões de despesa total divididos por 287 mil benefícios resulta em um gasto anual de

o
aproximadamente R$ 154,7 mil. Considerando 12 meses mais o 13 salário, temos um benefício

médio de R$ 11.900.

246. A taxa de conversão do real para dólar com correção para poder de compra (que flutua muito

menos do que as taxas tradicionais) é inferior a três. Ela coloca o rendimento médio do militar

brasileiro aposentado próximo da renda per capita americana.


247. 287 mil benefícios previdenciários divididos por 161 mil militares de carreira = 1,78.

248. Os militares da reserva remunerada ficam sujeitos à prestação de serviços na ativa mediante

convocação ou mobilização e são dispensados definitivamente da prestação de serviços quando são

reformados. A reforma acontece quando o militar da reserva atingir a idade-limite do seu grau

hierárquico ou, se for da ativa, devido à incapacidade definitiva.

249. As quotas compulsórias visam assegurar a renovação, o equilíbrio e a regularidade de acesso a

determinadas posições da hierarquia militar. Tais quotas funcionam da seguinte forma: as Forças

devem garantir um certo número de vagas para progressão todo ano e, quando o número de promoções

a certa patente somado ao total de militares que irão permanecer naquela posição for superior ao

efetivo máximo fixado na legislação, o excedente deve ser aposentado compulsoriamente.


250. A mudança na duração das pensões por morte dos trabalhadores civis dos setores públicos e

privado, promovida pela MP 664, de dezembro de 2014, passou a valer para todas as novas

concessões, independentemente da idade, data de entrada ou outro critério, tendo duração limitada de

acordo com a expectativa de vida do pensionista na data de óbito do segurado. Por outro lado, a

concessão de pensões vitalícias para as filhas solteiras de militares continua ocorrendo mesmo 20

anos após a MP 2.215-10, de agosto de 2001, pois os militares que ingressaram antes daquela data

mantiveram o direito, mediante um adicional de contribuição de 1,5%.

251. Dados informados pelos estados no Demonstrativo de Informações Previdenciárias e Repasses

(DIPR) à Secretaria de Previdência. Há dúvida quanto à comparabilidade entre as informações de

pensionistas do DIPR e as pensões militares. No caso das Forças Armadas, sabemos que as 124 mil

pensões-tronco da Tabela 4 são pagas a 200 mil pensionistas diferentes (uma pensão-tronco pode ter

mais de uma quota). Portanto, do ponto de vista conceitual, os 135 mil pensionistas dos estados

deveriam ser comparados aos 200 mil pensionistas dos militares federais. Mas não sabemos se todos

os estados declaram de fato o número de pensionistas ou se alguns deles simplesmente informam o

número de pensões-tronco.

252. O efeito prático mais evidente é bloquear a aplicação de normas de previdência equivalentes às

dos servidores civis. A denominação “sistema de proteção social” caracteriza um novo instituto,

distinto dos regimes previdenciários, com intuito de afastar entendimentos de que os benefícios de

inatividade dos militares são previdenciários. Pretende-se, assim, por exemplo, evitar a necessidade de

avaliação atuarial referente aos militares inativos e a incidência de outras normas gerais aplicadas a

esses regimes, de que é exemplo a lei de que trata o § 22 do art. 40 da Constituição Federal. A

exposição de motivos do projeto de lei afirma que tal alteração leva em consideração as peculiaridades

da profissão militar. Quanto à exclusão da terminologia “servidores militares”, nos parece mais

política, com o intuito de diferenciá-los dos servidores civis.

253. A Lei 13.954/2019 estabeleceu compensação financeira entre o sistema de previdência dos

militares e os demais regimes. Essa medida é positiva do ponto de vista da contabilidade pública, pois

permitirá o cálculo correto do resultado dos diferentes regimes previdenciários. No entanto, como a

compensação ocorrerá integralmente à custa do erário, não trata do principal problema, que é a

ausência de contribuição do militar temporário.


CAPÍTULO 13
MP 579: O 11 DE SETEMBRO DO
SETOR ELÉTRICO254
Elena Landau

INTRODUÇÃO
No dia 11 de setembro de 2012, foi publicada a Medida Provisória 579,

logo convertida na Lei 12.783/13. A principal motivação do governo era

provocar redução nos preços de energia. O mecanismo escolhido para

isso foi propor a possibilidade de renovação antecipada das concessões

de geração de energia, que venceriam, na sua maioria, em 2015, em

troca da adesão ao regime de cotas de energia.

Ao contrário do esperado, poucas empresas optaram pela renovação

nos termos propostos. A Eletrobras, uma estatal federal, foi a única

geradora de grande relevância que assinou novos contratos. À exceção


255
de Ceee-GT e Emae , as estaduais não aderiram à proposta da referida

MP. Os transtornos ocasionados no setor foram imensos.

Primeiro, resultou em grave crise financeira na holding de energia ao

reduzir suas receitas no mesmo período em que os investimentos nos

projetos estruturantes, licitados poucos anos antes, maturavam. Segundo,

por causa da natural elevação da demanda, decorrente da queda nas

tarifas de energia no primeiro momento, uma crise hidrológica já

previsível, no final de 2012, agravou as condições de oferta. Era a

tempestade perfeita.

Além do aumento de demanda, a adesão abaixo do previsto deixou

distribuidoras descontratadas — como será detalhado ao longo do texto

—, obrigando-as a recorrer ao mercado quando o preço de liquidação


256
por diferença (PLD) naturalmente refletia a situação de escassez.

Terceiro, em lugar de aplicar uma política de demanda para controlar

esse desequilíbrio, reproduzindo o que foi feito por ocasião do


257
“racionamento” de 2001 , a opção foi financiar a compra de energia

extra das distribuidoras por empréstimos bancários e repassar o custo da

dívida e juros ao consumidor.

A continuidade do despacho de energia, apesar da grave redução do

nível dos reservatórios, superou o percentual de risco hidrológico

tradicionalmente aceito no setor. Como a mesma MP transferiu o custo

desse risco às distribuidoras, ele foi repassado aos usuários do serviço.

Um tarifaço se seguiu.

A MP 579 segue até hoje como exemplo de um dos maiores erros de

política pública do setor de energia: endividou a Eletrobras, gerou

pressões inflacionárias, trouxe graves desequilíbrios financeiros para os

agentes do setor e criou insegurança jurídica em decorrência da

intervenção nos preços de energia com o consentimento da Aneel, a

agência reguladora. Seus efeitos se espalharam para além do setor e têm


258
durado anos para sem serem resolvidos .

Na seção 1 serão descritos os antecedentes que levaram ao uso da

renovação de concessões como mecanismo de interferência nos preços.

A seguir, uma descrição da MP 579, sua adesão pela Eletrobras,

considerada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) como

exercício abusivo do poder de controle, a participação da Aneel e os

efeitos sobre as tarifas.

1. ANTECEDENTES
Boa parte das concessões do setor elétrico brasileiro vivia uma situação

peculiar nos meses que antecederam a publicação da MP 579. O dia 7 de

julho de 2012 era a data limite para o pedido de prorrogação das

concessões de parcela expressiva do setor elétrico, o que incluía grande

parte de ativos da Eletrobras, e muitos outros pertencentes a empresas

estatais, como a Companhia Energética de São Paulo (Cesp), a

Companhia Paranaense de Energia (Copel) e a Companhia Energética de

Minas Gerais (Cemig).


Era uma situação de grande insegurança jurídica, porque havia

distintas correntes de interpretação sobre a legislação, que variavam da

impossibilidade de novas prorrogações, o que levaria necessariamente à

licitação da concessão, ao entendimento de que a prorrogação era parte


259
do arcabouço legal que regulamentou o art. 175 da Constituição .

Quando a Constituição foi promulgada, havia muitas concessões

antigas, outorgadas antes de 1988. O art. 175, além de exigir a licitação

para a delegação de serviços, estabeleceu, no inciso I do parágrafo

único, que a lei deveria dispor sobre “o regime das empresas

concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter

especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições

de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão”.

Importante ressaltar que, mesmo sendo empresas estaduais ou

privadas, as concessões que compõem seus ativos são federais, uma vez

que, nos termos do art. 21 da Constituição Federal, compete à União,

explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão.

Por isso, a importância de uma legislação que viesse a regularizar a

forma de delegação prevista no art. 175. Para evitar a licitação de todos

os ativos com novos contratos de concessão, uma transição do regime de

outorga para o contratual recém-criado foi necessária.

Na época, havia uma grande variedade de situações no setor elétrico a

serem reguladas por legislação infraconstitucional: concessões em

estado precário, obras a serem terminadas, falta de formalização e prazo,

por exemplo. A Lei 8.987/95, a das Concessões, regulamentou o art.

175, mas isso era insuficiente para regularizar o setor de energia e

precisou ser complementada pela Lei 9.074, do mesmo ano, que trata da

prorrogação das concessões então existentes. Ainda assim, o quadro


260
continuou bastante confuso .

A expectativa era de que o avanço da privatização no setor pudesse

organizá-lo e unificar prazos e condições na assinatura dos novos

contratos. Mas a desestatização da Eletrobras, que havia sido incluída no

Programa Nacional de Desestatização (PND) pelo Decreto 1.503, de

maio de 1995, não se completou. Leilões em separado, e subsequentes,

para suas principais subsidiárias foi a modelagem de venda escolhida no


governo de Fernando Henrique Cardoso como forma de implementação
261
de um ambiente de competição entre empresas geradoras . A primeira
262
a ser vendida foi a Gerasul (1998), depois Tractebel Energia . E parou

por aí. Resistências políticas inviabilizaram a privatização de Furnas e o


263
projeto de desestatização foi abandonado . Os estados também

mantiveram suas geradoras e o setor continuou dominado por grandes

estatais, como Cemig, Copel e Cesp, além da holding federal.

Diferentemente do segmento de distribuição, no qual ocorreu um bem-

sucedido programa federal e estadual de desestatização, na geração e

transmissão boa parte dos ativos continuou estatal, de controle federal

ou estadual.

A situação de parte das concessões de geração só foi formalizada em

2004, para que pudessem participar de um leilão de venda de energia

existente. A solução encontrada pela agência reguladora Aneel foi a

assinatura de novos contratos, com base na legislação em vigor, isto é,

na Lei 9.074, mas com a data-base retroagindo à sua promulgação, em 7

de julho de 1995. A adesão a esses contratos era condição necessária


264
para a participação nos leilões de venda de energia . Essa mesma

legislação estabeleceu o direito a uma prorrogação, de forma geral por

mais 20 anos, desde que o pedido fosse feito com até 36 meses de

antecedência do final da concessão.

Outra peculiaridade desses contratos é que a sua assinatura foi

considerada como prorrogação, mesmo que o primeiro contrato tivesse

como base a nova legislação. Isso explica a grande concentração de

vencimentos em 2015 e a exigência que os pedidos de prorrogação

fossem protocolados até 7 de julho de 2012, poucos meses antes da

publicação da MP 579.

Como o governo não havia proposto nenhuma nova regulamentação

sobre a possibilidade de extensão de prazo, as empresas resolveram

encaminhar seus pedidos, sob um vazio legal, para garantir direitos.

De todo modo, era esperada a hipótese da prorrogação, porque a

alternativa — que seria a licitação das concessões — poderia levar à

privatização de boa parte do sistema Eletrobras, o que não estava nos

planos do governo de então, que havia, inclusive, retirado, por lei, a


265
empresa do PND . A preocupação tinha razão de ser, afinal, o

vencimento das concessões atingiria cerca de 20 GW, ou 20% da

capacidade instalada na época. Na transmissão, cuja retirada do Estado

demorou a ocorrer, venceriam 82% dos contratos e na distribuição, 40%.

Os agentes do setor estavam estudando o assunto e propondo

alternativas com anos de antecedência, tendo enviado em conjunto


266
propostas ao Ministério de Minas e Energia (MME) ao final de 2008 .

Não obtiveram retorno. Sendo um assunto tratado com tanta

antecedência pelos agentes do setor, não se esperava que o governo fosse

deixar o tempo se esgotar sem tomar uma decisão a respeito.

Havia muitas dúvidas sobre as novas exigências que poderiam ser

impostas nos contratos: a renovação seria onerosa? A que preço de

energia os contratos seriam renovados? Os preços estariam indexados

nos novos contratos e que índice de preços seria utilizado? Contratos de

qual duração? Haveria reagrupamento das menores concessões de

distribuição? O que aconteceria com os contratos de energia que

vencessem antes das concessões serem renovadas? Como seria calculado

o valor dos ativos não depreciados e dos investimentos não amortizados

a serem indenizados? Sem saber qual o valor de reversão, as empresas

não poderiam sequer decidir entre prorrogar ou devolver seus ativos.

Foi nesse clima de expectativa e muita insegurança jurídica que, no dia

11 de setembro de 2012, o governo jogou a bomba no setor com a edição

da MP 579. Seu teor pegou todos de surpresa.

2. A MEDIDA PROVISÓRIA
A MP 579 nasceu cheia de erros, de múltiplos aspectos. Primeiro, na

própria ideia de buscar uma redução artificial nos preços e tarifas de

energia. Além disso, não foi feita análise prévia de impacto regulatório,

o que teria mostrado, de partida, a insustentabilidade financeira da

proposta, além do retrocesso no modelo de competição, provocando um

desarranjo no setor de geração. Erros de planejamento deixaram as

distribuidoras descontratadas e expostas aos preços de energia no

mercado de curto prazo, e estes foram repassados às tarifas.


Tudo isso só foi possível porque a governança do processo falhou por

completo. No setor, houve total desarticulação do Executivo com

importantes agentes, tanto empresariais quanto acadêmicos, ignorando

as contribuições que haviam sido feitas ao longo dos anos.

O mais grave foi a agência reguladora não ter mantido sua autonomia e

a isenção necessária para a avaliação da política tão transformadora na

operação do setor. Neste sentido, foi simbólica a participação do diretor-

geral da Aneel na cerimônia de anúncio da medida junto com o governo.

Por fim, para evitar o fracasso completo da política, o governo usou seu

poder de voto na Eletrobras para impor a adesão da empresa à proposta,

obrigando a estatal federal a aceitar condições tão negativas. A receita

para dar errado estava coma.

2.1 GOVERNANÇA PRECÁRIA


Além do objetivo de reduzir tarifas para consumidores residenciais,

havia pressão do setor industrial eletrointensivo, que ameaçava levar

suas fábricas, empregos e impostos para outro país. O modelo de

competição primeiro pensado por FHC e depois modificado por Lula,

não estava resultando na redução de preços de energia como


267
esperado .

A solução então encontrada pelo governo foi usar o vencimento dos

contratos de concessão para criar condições que impusessem uma

redução drástica nos preços de energia gerada, que seria transmitida às


268
tarifas finais . Para as distribuidoras reguladas pela Aneel foi

permitida a prorrogação, uma única vez, por 30 anos, sem impor novas

condições. Nesse caso, por ser segmento regulado, ganhos de

produtividade já eram incorporados a cada revisão tarifária. Assim, o

governo considerou mais eficiente permitir a permanência do mesmo

concessionário em nome da continuidade do serviço do que realizar

nova licitação.

Os erros de concepção foram inúmeros, começando pela imposição de

um regime de alocação de cotas na geração, em substituição ao regime


269
de produtor independente (PIE) . O PIE foi criado pela Lei 9.074/95

como mais um mecanismo de transição para um modelo concorrencial


em que os preços de energia refletiam as condições de mercado, seja nos

leilões para o mercado cativo (ACR), seja na comercialização no

mercado livre (ACL). A MP foi convertida na Lei 12.783/13, que logo


o
em seu art. 1 impôs a alocação de cotas às distribuidoras e fixou a

remuneração com base nos custos de operação e manutenção.

Para a transição, assumiu-se que as usinas e ativos estavam

depreciados, sem previsão, portanto, da indenização. Outro equívoco.


270
Mesmo previsto na Lei de Concessões , o cálculo do valor de reversão
271
dos ativos nunca foi regulamentado pela Aneel . O governo pressupôs

que, tendo as usinas mais de 30 anos de prazo de outorga, os

investimentos já estariam amortizados, ignorando a data em que, de fato,

a usina entrou em operação. Havia situações nas quais, por razões

alheias às concessionárias, muitos anos se passavam entre uma data e

outra. O caso mais emblemático foi o da Usina de Xingó, que entrou em

operação só em 1997 e não tinha seus investimentos amortizados em


272
2012 .

No segmento de transmissão esse erro foi ainda maior. Ela começou a

ser privatizada depois da distribuição e, ao se introduzirem os leilões

para novas linhas, o segmento convivia com diferentes tipos de

regulação. Nem todas as concessões tinham o mesmo critério de

incorporação dos ganhos de eficiência. Havia estatais com contratos

antigos e as novas — privadas — com sistemas distintos de revisão de


273
tarifas e prazos de outorga.

A MP 579 determinava que os ativos de transmissão existentes em 31

de maio de 2000 seriam considerados totalmente depreciados,

independentemente da vida útil remanescente dos respectivos

equipamentos. A reação contrária do setor foi imediata e o governo

editou nova medida provisória, a MP 591, de dezembro de 2012,

retirando a presunção de amortização dos investimentos e aumentando o

valor total de indenização devido pela União à Eletrobras e às outras

transmissoras. Não resolveu por completo a questão, a dívida com as

concessionárias não foi paga de imediato e vai pesar no bolso dos


274
consumidores até 2027 .
Com essa nova MP, ao definir o valor para os novos contratos, o

governo acreditou que as empresas detentoras dos ativos fossem de

transmissão, fossem de geração, fariam qualquer negócio para terem

suas concessões renovadas, afinal, a preocupação com a prorrogação

dominava o setor desde 2008. Esqueceram de fazer contas, mas as

empresas, sociedades de economia mista, sabiam que não poderiam

tomar decisões impensadas, sob risco de serem processadas pelos

acionistas minoritários. O que de fato aconteceu para o grupo

Eletrobras.

O MME tratava o tema de forma política, afinal, eram empresas

estatais estaduais, com concessões federais, as principais interessadas na

prorrogação, além da própria Eletrobras. Mais um erro. Contas feitas e

ficou claro que os três anos restantes de contrato eram mais vantajosos

que os 30 anos oferecidos com os preços definidos com base em custo

de operação, nas condições definidas unilateralmente pelo governo


275
federal . Auditores independentes da Eletrobras estimaram uma perda

de R$ 22 bilhões com a adesão e ainda informaram R$ 32,7 bilhões de

ativos de geração e transmissão expostos à MP 579 e passíveis de

indenização no balanço de 30 de setembro.

Os mesmos cálculos se aplicavam às demais empresas.

As ações da companhia chegaram a cair 65% até o final de novembro

de 2012 e fecharam o ano com uma perda de 50% em relação a agosto.

Com a proximidade da assembleia de acionistas para aprovar a adesão

a MP 579, que seria realizada no início de dezembro, maior era a

apreensão dos minoritários com o uso político da empresa para cumprir

uma “missão social” de reduzir inflação e fomentar a produção

industrial. Entre a publicação da MP e as assembleias, balanços foram

divulgados, reforçando os equívocos nos cálculos da indenização

oferecida pelo governo. A diferença total era de cerca de R$ 30 bilhões e

decorria principalmente dos valores ligados aos ativos de geração, mas

também incluía os ativos de transmissão anteriores a 2000. A maior

perda era da Eletrobras (R$ 18,7 bilhões), seguida por Cesp (R$ 6,1

bilhões), Cemig (R$ 2,53 bilhões) e Cteep (R$ 1,6 bilhão). Para as

empresas que decidissem renovar os contratos, a diferença entre o valor


contábil dos ativos e a indenização reduziria o lucro do ano de 2012 e o
276
patrimônio líquido .

A adesão à proposta do governo era voluntária e, para surpresa e

indignação do governo, Cemig, Copel e Cesp preferiram manter seus


277
contratos .

Uma rápida análise de impacto regulatório teria evitado erros tão

evidentes. A captura política da Aneel permitiu que a MP avançasse,

sem qualquer avaliação técnica, e se transformasse na Lei 12.783 em

janeiro de 2013.

2.2 A REAÇÃO DOS MINORITÁRIOS: O VOTO


DA CVM278
Minoritários da Eletrobras recorreram à Comissão de Valores

Imobiliários (CVM) e acusaram a União de cometer abuso de poder de

controle, na assembleia que aprovou os novos contratos. Digno de nota é

o fato de que o presidente do Conselho da Administração na ocasião era

Marcio Zimmermann, secretário-executivo do Ministério de Minas de

Energia. O ministro de Minas e Energia, Edison Lobão, junto com a

presidente Dilma Rousseff e o ministro da Fazenda Guido Mantega,

assinou a MP 579, o que mostrava flagrante conflito de interesse.

A CVM considerou a União culpada de descumprimento do art.


o
115, § 1 da Lei 6.604/76, conhecida como Lei das Sociedades

Anônimas, que estabelece que o direito a voto do acionista deve

ser exercido no interesse da companhia. Relembrando, o

art.115 define que será considerado voto abusivo aquele exercido

com o fim de causar dano à companhia ou a outros acionistas,

ou obter” vantagem ou que possa resultar em prejuízo para a

empresa ou outros acionistas.

A CVM destacou também que a adesão à renovação antecipada das

concessões implicaria renúncia ao direito de contestação judicial da

indenização. Como a indenização prevista na MP era inferior ao que a

companhia tinha em seus cálculos, a União — acionista controlador —


teria benefícios, ao desembolsar valor menor, em detrimento dos

interesses da holding.

O colegiado da autarquia decidiu pela aplicação à União da multa

máxima prevista por lei. A União recorreu da decisão ao Conselho de

Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN). E infelizmente, já


279
no governo de Michel Temer, ganhou .

Um olhar burocrático à questão implicou a defesa automática do que

parecia ser o interesse do Ministério da Fazenda no caso: evitar a multa

de R$ 500 mil. Mas terminou por anular o excelente trabalho da CVM

em uma ação em que a União aparecia, pela primeira vez, como ré, em

discussão de possível conflito de interesses, ao exercer o direito de voto

em assembleias gerais de sociedades de economia mista, em que o

capital privado e o público coexistem.

Teria sido fundamental a consolidação desse entendimento pelo

próprio governo, que na ocasião da reunião do Conselhinho vinha

patrocinando um choque de gestão nas sociedades de economia mista,

após a aprovação da nova Lei das Estatais. Alguém comeu mosca.

A assinatura de novos contratos feriu de morte a Eletrobras. O impacto

da MP na companhia está na raiz da decisão pela sua capitalização, que

levará à perda de controle da União. A redução de suas receitas, a partir

de 2013, coincidiu com o período de grandes desembolsos para honrar

investimentos em projetos estruturantes, contratados poucos anos antes.

A relação entre a dívida líquida e a geração de caixa chegou a 8,78


280
vezes . De 2012 a setembro de 2016, o patrimônio líquido caiu de R$

68 bilhões para R$ 33,29 bilhões. Em contrapartida, o endividamento

avançou de R$ 26,6 bilhões para R$ 43,64 bilhões no mesmo período. A

percepção do mercado de que a empresa poderia ter dificuldade para

pagar suas dívidas elevou os juros exigidos e reduziu o prazo de

pagamento. Como resultado, o custo do serviço da dívida subiu 58%, de

R$ 2,68 bilhões para R$ 4,23 bilhões, entre 2014 e 2016.

A nova Lei das Estatais, impondo novos requisitos para cargos da

administração e uma boa governança, permitiu o turn around da

empresa, sem afastar a necessidade de aportes de capital para novos

investimentos. No processo de ajuste financeiro dos anos que se


seguiram, a Eletrobras perdeu participação no mercado, tanto por conta

da política de desinvestimentos quanto da impossibilidade de participar

de novos leilões e empreendimentos.

Desde 2017 até o momento em que este capítulo é escrito, tenta-se

desfazer os erros da imposição do regime de cotas, por meio de uma

renovação dos contratos das concessões atingidas pela medida. A

capitalização foi a solução encontrada para gerar recursos para a

Eletrobras pagar pela “descotização” de suas concessões, retornando ao

status anterior de produtor independente de energia.

O custo da intervenção e do voluntarismo do governo Dilma foi

altíssimo.

2.3 TARIFAÇO: O TIRO SAIU PELA CULATRA


“Vou ter o prazer de anunciar a mais forte redução que se tem notícia

neste país nas tarifas de energia elétrica das indústrias e dos

consumidores domésticos. Os consumidores residenciais terão uma

redução média de 16,2%. A redução para o setor produtivo vai chegar a

28%, Todos os consumidores terão sua tarifa de energia elétrica

reduzida, ou seja, a conta de luz vai ficar mais barata.” Foi assim que a

presidente Dilma Rousseff anunciou a medida, em pronunciamento em

cadeia nacional de televisão e rádio, 6 de setembro de 2012. O objetivo

era elevar a competitividade: “Esta queda no custo da energia elétrica

tornará o setor produtivo ainda mais competitivo. Os ganhos, sem

dúvida, serão usados tanto para redução de preços para o consumidor

brasileiro como para os produtos de exportação, o que vai abrir mais

mercados dentro e fora do país. A redução da tarifa de energia elétrica

vai ajudar também, de forma especial, as indústrias que estejam em

dificuldades, evitando demissões de empregados” .


Na cerimônia de lançamento da medida, no Palácio do Planalto, para

anunciar a redução nas tarifas, o então ministro de Minas e Energia,

Edison Lobão, reafirmou que a redução do custo de energia elétrica era

“uma das mais arrojadas iniciativas para impulsionar o desenvolvimento

do Brasil”.
Para cumprir a promessa a MP 579 trouxe as seguintes alterações na

operação do setor:

a. alocação de cotas de energia ao preço médio de R$ 32,81/MWh,


281
calculado para remunerar operação e manutenção ;

b. redução no custo de transmissão por meio da diminuição da Receita

Anual Permitida (RAP);

c. Corte de encargos setoriais com redução de 75% da Conta de

Desenvolvimento Energética (CDE), viabilizado por aporte do Tesouro

Nacional, lastreado nos recebíveis do serviço da dívida de Itaipu.

De fato, em 2013, as tarifas médias tiveram uma redução de 16%, indo

de R$ 253,12/MWh em 2012 para R$ 211,72/MWh em abril de 2014.

No entanto, uma série de eventos, previsíveis (se uma análise regulatória

tivesse sido feita) provocaram um aumento superior a 50% entre 2014 e

2016.

Além de uma intervenção no mercado, na qual se impôs preços

artificiais de energia, houve o erro básico de subestimar o desequilíbrio

entre oferta e demanda de energia que uma redução abrupta de tarifas

iria causar. O que é surpreendente, porque, além de ignorar regras

básicas do funcionamento do mercado, na base da política estava a

intenção de impulsionar o emprego com o aumento da produção. E para

agravar ainda mais o desequilíbrio, a redução de IPI incidente sobre

produtos da linha branca foi renovado em dezembro, impactando

adicionalmente a demanda de energia.

Mas não foram só pressões do lado da demanda que ocorreram. Outro

problema não previsto pelo governo foi a exposição contratual das

distribuidoras no contexto de uma crise hídrica que já se anunciava. Em

dezembro daquele ano venceriam contratos de comercialização de

energia, em torno de 8,5 mil MW médios, assinados com geradoras


282
passiveis de renovação pelas regras da MP. A Lei 10.848/04 obriga

distribuidoras a estarem totalmente contratadas, e elas necessitariam,

portanto, de uma reposição do montante a vencer. Um leilão de energia

permitiria a contratação com preço definido, sem risco de exposição ao

preço de liquidação por diferença (PLD).


O governo nunca trabalhou com a hipótese de que não haveria adesão
283
de todas as geradoras ao novo sistema de cotas , e isso supriria com

folga a recontratação necessária. Um erro. O MME esqueceu-se de que a

adesão era facultativa e, ignorando a incerteza sobre o montante que iria

de fato ser renovado, cancelou um leilão de energia existente, A-1,


284
previsto para o final de 2012 . Essa modalidade de leilão tem como

objetivo suprir as necessidades de empresas de distribuição, declaradas

com dois meses de antecedência. E o cancelamento ocorreu quando já

havia indicações de que a hidrologia em 2013 seria menos favorável.

Certo de que as empresas aceitariam as condições impostas pela MP a

fim de ganhar mais prazo para explorar suas concessões, o governo errou
285
na mão . Como nem todas as geradoras assinaram novos contratos, as

distribuidoras entraram em 2013 subcontratadas. Essa presunção do

governo causou grande desequilíbrio — involuntário — às

distribuidoras, cujos custos foram repassados aos consumidores e


286
contribuintes .

Na tentativa de atenuar os efeitos da crise, foram realizados leilões em

2013 e 2014, mas como os preços teto estabelecidos eram muito baixos,

em relação ao que vigorava no mercado livre, as geradoras não ofertaram

energia suficiente para atender a necessidade das distribuidoras.

O PLD atingiu o preço máximo de R$ 822/MWh, e ainda entravam no


287
sistema usinas térmicas a mais de R$ 800/MWh . Os custos para as

distribuidoras se tornaram insustentáveis e não estavam previstos nas


288
tarifas. Em lugar de incentivar a redução da demanda , o governo

resolveu financiar o desajuste financeiro dessas concessionárias com

empréstimos bancários. Foi então criada a conta Conta no Ambiente de

289
Contratação Regulado (ACR) , cujo objetivo era cobrir, total ou

parcialmente, as despesas incorridas pelas concessionárias de


290
distribuição em decorrência de exposição involuntária no mercado de

curto prazo e do despacho de usinas termelétricas na modalidade por

disponibilidade de energia elétrica.

291
A Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) ficou

responsável pela operacionalização desses empréstimos. Entre abril de

2014 e maio de 2015 obteve junto a instituições financeiras três


financiamentos que totalizaram R$ 21,176 bilhões para a Conta-ACR,
292
conforme detalhado na Tabela 1 . O primeiro empréstimo havia sido

contratado a CDI mais 1,9%, mas foi repactuado para CDI mais

2,525%. Um ano depois, o custo subiu para CDI mais 3,15%, revelando

a resistência do sistema financeiro a elevar seu risco junto às

distribuidoras.

Tabela 1: Operações de crédito da Conta-ACR: R$ nominais

FINANCIAMENTO INDICADOR SPREAD VALORES (R$)

1o CDI 2,53% 11.200.000.000,01

2o CDI 2,90% 6.578.887.694,91

3o CDI 3,15% 3.398.031.734,03

TOTAL 2,74% 21.176.919.428,95

Fonte: Site da CCEE.293

Os consumidores arcaram não só com o aumento de tarifas, como


294
também com o pagamento de custos da dívida e de juros ao

financiamento da exposição e elevação de custos das distribuidoras, que

foram repassados às tarifas.

Na indústria, a iniciativa também não trouxe resultado algum. As

associações de classe deram apoio total à iniciativa do governo, recebida

como uma resposta deste ao fato de a energia elétrica no Brasil estar

entre uma das mais caras do mundo. O tal impacto sobre a

competitividade não veio. Com o aumento expressivo dos preços no

mercado livre (ACL) e sinais inequívocos de desaquecimento da

economia, parte da indústria optou por ganhar dinheiro vendendo seus

contratos, assinados antes da crise, aos novos preços de curto prazo. A

arbitragem foi grande. De produtores industriais, muitos passaram a

comercializadores de energia, aproveitando a janela de oportunidade que

o grande desequilíbrio no mercado de energia, gerado pela intervenção

do governo, criou.
Dilma se sentiu traída pela indústria e pelos governos estaduais. As

três grandes concessionárias (Cemig, Cesp e Copel), que se recusaram a

aderir ao regime de cotas, obtiveram ganhos extraordinários com a


295
elevação dos preços de curto prazo .

Outra questão que ficou anos pendente de solução foi o GSF (sigla em

inglês para generation scaling factor), que reflete a diferença entre


a energia contratada pelas hidrelétricas e a efetivamente gerada. Para

cumprir contratos foi necessário recorrer ao mercado de curto prazo, que

registravam preços elevados por causa das condições hidrológicas. Boa

parte das geradoras entrou na Justiça com pedido de suspensão de

pagamento, alegando não terem sido as responsáveis, e sim o governo,

pelo risco hidrológico, pois foi o Operador Nacional do Sistema Elétrico

(ONS) que determinou que as hidrelétricas poupassem recursos


296
hídricos , além de atraso na operação de linhas de transmissão e

importação de energia definida pelo governo.

Segundo as geradoras, tais decisões políticas teriam causado a redução


297
do GSF , fornecendo menos que suas garantias físicas, tornando-as

expostas ao mercado à vista. Apenas parte delas, as do ambiente


298
livre , conseguiu levar essas liminares até 2018, provocando

desequilíbrios na CCEE, que consolida os contratos.

E em mais um equívoco da MP 579, o custo do risco hidrológico das

concessões em regime de cotas tinha sido transferido aos


299
consumidores . Segundo dados da Aneel, entre janeiro de 2013 e

agosto de 2017, o impacto médio anual do GSF nas cotas foi de R$ 3,6
300
bilhões, a serem repassados por meio das bandeiras tarifárias . Nesse

período, o GSF custou R$ 16,7 bilhões aos consumidores do mercado

cativo (das distribuidoras).

Junte-se a todos esses fatores a indenização devida às transmissoras

que aderiram à MP 579. Até hoje os consumidores pagam na tarifa essas

indenizações, que foram, a princípio, ignoradas pela medida, que

pressupunha de forma errada que grande parte desses ativos estaria

depreciada. Em 2017, a Aneel finalmente definiu os valores a serem

pagos ao longo dos oito anos: R$ 62,2 bilhões. Essa é uma dívida que

deveria ter começado a ser paga já em 2013, mas foi sendo adiada
sucessivamente, e isso explica o fato de que mais da metade desse

montante se refere apenas à atualização dos valores. Em 2021, uma nova

extensão de prazo para a quitação das indenizações foi estabelecida de

forma a atenuar os impactos tarifários no período da pandemia.

O resultado do populismo tarifário foi um tarifaço, com a elevação de

tarifa média de 20,7%, em 2014, mais 24%%, em 2015, e atingiu R$

315,53, acumulando um aumento de 50% em relação a 2013.

A intervenção nos preços de energia não trouxe nenhum impacto sobre

produção e competitividade, como prometido pelo governo, e ainda

onerou as famílias consumidoras do mercado cativo de energia, sem

qualquer chance de administrar suas contas de luz. Além do

desequilíbrio financeiro da Eletrobras, do impacto sobre as

distribuidoras e seus consumidores, os custos da judicialização em torno

dos valores a serem recebidos como indenização, especialmente para as

transmissoras, se prolongou, e não estava resolvido até a data de redação

deste capítulo.

O Tesouro, que já havia feito um aporte na CDE de R$ 9,856 bilhões

em 2013, elevou a transferência para R$ 13 bilhões no ano seguinte,

tentando atenuar o impacto nas tarifas. Nem as transferências do

Tesouro, nem a redução inicial de R$ 16,8 bilhões na CDE, no entanto,

foram suficientes para impedir o tarifaço de 2014. A incorporação da

exposição ao risco hidrológico, a descontratação das distribuidoras e o


301
acionamento de usinas fora da ordem do mérito fizeram com que,

somente em dois anos — 2013 e 2014 — novos R$ 61 bilhões fossem

adicionados à CDE, segundo cálculos do Tribunal de Contas da


302
União .

O ano de 2014 terminou com o pior nível de armazenamento de água

da série histórica e o mês de janeiro foi o mais seco, até então. Por isso,

as térmicas foram acionadas e a conta combustível (CCC) aumentou. A

tarifa de Itaipu, cuja energia representa 20% das compras das

concessionárias das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, foram


303
reajustadas em 46% em dólar . Além disso, o início do pagamento das

indenizações e os restos a pagar de 2014 pressionaram ainda mais as

tarifas.
Os mecanismos usados até aquele momento para evitar o repasse

imediato aos consumidores estavam esgotados; não havia mais como

elevar o volume de empréstimos nem o aporte da União. Restou alocar

os custos na CDE, que, sem as transferências do Tesouro, viu seu saldo

subir de R$ 1,7 bilhão em 2014 para R$ 22,06 bilhões em 2015. A

divisão desses custos não foi equilibrada entre as regiões do país, tendo

impacto muito maior para os consumidores das regiões Sul, Sudeste e


304
Centro-Oeste .

As bandeiras tarifárias foram finalmente introduzidas no intuito de

sinalizar os custos com geração e ajudar na racionalização da demanda,

mas acabam por trazer nova pressão sobre tarifas em razão das

condições menos favoráveis de geração. Para amenizar o impacto, em

novembro de 2014, a Aneel, em decisão controversa, divulgou novo


305
valor para o PLD , que caiu de R$ 822,83/MWh para 388,48/MWh.

Mas nenhuma ação foi suficiente para impedir um aumento médio de

37% nas tarifas, acumulando 50% em dois anos. O tiro saiu pela culatra.

3. CONCLUSÃO
A MP 579, convertida na Lei 12.783/13, é sempre lembrada como a

mais grave experiência de política pública que o setor elétrico já viveu.

Ela nasceu errada, baseada na crença de que a intervenção sobre a

formação de preços poderia trazer resultados mais positivos que o bom

funcionamento do mercado. Uma tempestade perfeita foi armada. O

governo fixou preços de energia que mal compensavam gastos de

operação e manutenção, assumiu equivocadamente a depreciação geral

de ativos sujeitos à renovação de concessão, subestimou a independência

das estatais estaduais, assumindo que a adesão aos novos contratos seria

total e ignorou os sinais de crise hídrica, acumulando erro em cima de

erro.

O impacto previsível no curto prazo foi enorme, com grande pressão

sobre as tarifas. Em lugar da prometida queda nas tarifas e ganhos de

produtividade, causou nos dois anos seguintes aumento superior a 50%,

conhecido como tarifaço. Os efeitos de médio e longo prazo também

não foram desprezíveis: pagamento de indenizações, que se arrastam por

anos, judicialização em torno do valor e repartição do risco hidrológico.

É
É um manual do que não fazer em políticas públicas. Faltou tudo:

governança, transparência e planejamento.

Em 2017, o Ministério de Minas e Energia abriu uma consulta pública

(CP 33) com o objetivo de desfazer os equívocos da MP 579,

destacando-se a ideia de “descotizar” os contratos de concessão

renovados com base na medida. A capitalização da Eletrobras, com

vistas à sua privatização, foi consequência dessa decisão. Era necessário

realizar aportes de capital na companhia para fazer frente ao pagamento

das novas outorgas no regime de produtor independente de energia. Sem

recursos do Tesouro, a opção escolhida foi uma oferta pública de ações.

E, ao mesmo tempo, foi decidido que a União não acompanharia o

aumento de capital, de forma a diluir sua participação a 45% do total.

O processo não ocorreu de imediato, porque a privatização, que

decorreria da operação, demandava uma autorização do Congresso

Nacional, já que a Lei 10.848/04 havia retirado a Eletrobras e suas


306
subsidiárias do Programa Nacional de Desestatização . O governo

Temer enviou o PL 9.643/18, que não foi apreciado. Bolsonaro novo

projeto de lei, o PL 5.877/19, muito parecido com o anterior, em

novembro de 2019. Esse também ficou adormecido nas gavetas do


307
Congresso por falta de empenho do governo .

Pressionado pelas críticas à lentidão do processo de privatização,

reforçadas pela intervenção na Petrobras, que culminou com a demissão

de Roberto Castello Branco, Bolsonaro publicou então a MP 1.031/21,

em substituição ao PL, para acelerar a capitalização da companhia. Uma

péssima ideia. O prazo para aprovação de um projeto de conversão em

lei é muito curto — 120 dias — incompatível com a importância da

Eletrobras e a complexidade do setor.

O resultado não surpreendeu. Era previsível a má qualidade do

relatório que saiu da Câmara e que foi piorado no Senado. Pouca atenção

foi dada à privatização, à modelagem e às hipóteses utilizadas para a

distribuição de recursos. Não se discutiram outras formas de venda,

como bloco de controle ou a venda de subsidiárias em separado. A

distribuição dos recursos entre desconto nas tarifas, via aportes na CDE,

e o pagamento de bônus de outorga não veio acompanhada de estudos


que explicassem as decisões tomadas. Foi modificada também sem

explicações nos relatórios. Os critérios de participação acionária no

limite de 10%, para garantir a pulverização de controle, nunca foram

esclarecidos. Será, sem dúvida, a privatização com menos transparência

já feita.

Isso abriu espaço para que várias emendas de assuntos não

relacionados à operação de oferta pública fossem incorporadas sem

critério. Paradoxalmente, o relatório final repete os erros da MP 579, de

grave intervenção no funcionamento do mercado, que vinha avançando

em direção a mais competição e modernização.

Apesar de inúmeros vetos, corretos, que o projeto de conversão sofreu,

a reserva de mercado para determinadas fontes — gás natural e PCHs

—, com definição de volume, preço e localidade, permaneceu no texto,

distorcendo o funcionamento do setor elétrico, afastando as funções de

planejamento da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e, muito

provavelmente, elevando as tarifas, apesar dos aportes feitos na CDE

com parte dos recursos a serem obtidos na venda.

Mais uma intervenção indevida que vai custar caro ao país e que se

soma à herança da MP 579. Seus erros deveriam ter deixado uma lição

sobre políticas públicas no setor, como a importância do planejamento e

da análise prévia de impactos regulatórios. Não foi dessa vez.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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SCHUFFNER, C.; RAGAZZI, A.P Eletrobras avalia os impactos da MP. In: Valor
Econômico, 16/11/2012, Caderno Empresas, p. 8.

254. Agradeço os comentários de Ângela Magalhães Gomes, Patrícia Sampaio e Solange David,

isentando-as, claro, de eventuais erros e opiniões que permanecerem no capítulo.

255. V. Landau, E., Dutra, J. e Sampaio, P. (2013).

256. O preço de liquidação de diferenças (PLD) é utilizado como referência para os preços no

mercado livre de energia e para valorar a energia no mercado de curto prazo (MCP). Para o

cálculo, são contabilizadas as diferenças entre a energia contratada e os montantes realmente

gerados ou consumidos.

257. O termo racionamento não é fiel às políticas de demanda implementadas pela Câmara de

Gestão da Crise em 2001. Incentivos bem desenhados levaram a uma redução na demanda

superior à meta estabelecida. A conotação negativa do “racionamento”, decorrente da queda no

nível de atividade, impediu que políticas de demanda fossem usadas nas crises hídricas

posteriores, como em 2014. Em 2001, A MP 1.055 criou a Câmara de Regras Excepcionais para

a Gestão Hidroenergética (Creg), com poderes para administração de reservatórios, mas não

introduziu incentivos para a racionalização do uso de energia.

258. Só com a operação de capitalização, aprovada pelo Congresso em 2021, a Eletrobras poderá

sair do regime de cotas. A base tarifária ainda carrega os efeitos dos riscos hidrológicos do
passado e a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) passou a ser utilizada para absorver

todas as disfunções do setor, atingindo valores superiores a R$ 20 bilhões ao ano. A CDE é um

fundo setorial que tem como objetivo custear diversas políticas públicas do setor elétrico

brasileiro, como universalização do serviço de energia elétrica em todo o território nacional,

concessão de descontos tarifários a diversos usuários do serviço (baixa renda, rural, irrigante,

serviço público de água, esgoto e saneamento, geração e consumo de energia de fonte

incentivadas, etc.), modicidade da tarifa em sistemas elétricos isolados (conta de consumo de

combustíveis — CCC) e competitividade da geração de energia elétrica a partir da fonte carvão

mineral nacional. A CDE passou a cobrir também os subsídios cruzados que foram retirados da

estrutura tarifária.

259. Ver Landau, E. (2009).

o
260. Ver art. 4 e a seção V da referida lei.

261. O modelo escolhido para privatização da Eletrobras em 2021 foi o de capitalização da

holding com diluição do controle da União. Eletronuclear e Itaipu Binacional, por questões

legais, formarão uma nova empresa, que permanecerá nas mãos do Estado.

262. Tractebel Energia é hoje a Engie, maior geradora privada do Brasil. A maior do país é o

grupo Eletrobras.

263. V. Landau, E. (2021).

264. Como decorrência, entre os anos de 2012 e 2014 expirariam cerca de 17 GW médios

contratados no primeiro leilão de energia existente, em 2004. Ver Sales, C.(2016).

o
265. Lei 10.848, art. 31, § 1 . Em razão da retirada da empresa, por lei, do PND, foi necessária

uma autorização legislativa específica para permitir a perda de controle do governo na

capitalização da Eletrobras, decidida por Temer e confirmada no governo Bolsonaro, por meio

da Lei 14.182/21. Em geral, basta um decreto presidencial para incluir uma estatal no programa

de desestatização, como fez FHC em 1995.

266. Em novembro de 2008, o Ministério de Minas e Energia (MME) convida associações do

setor para apresentação da proposta relativa à questão do futuro das concessões, em função do

o
fim de seus prazos, e solicita a entrega de manifestação escrita sobre o assunto (Ofício n

2.317/2008/SE-MME). Como consultora da Associação Brasileira de Concessionárias de

Energia Elétrica (ABCE) coordenei os estudos sobre o tema que foram enviados ao MME.

267. No governo FHC, a lógica era a competição entre empresas, por isso a opção de vender as

subsidiárias da Eletrobras em separado. Modelo que não se completou. No governo Lula, a

operação foi invertida. Com a promessa de evitar novas crises de abastecimento, a ministra

Dilma Rousseff estabeleceu a obrigação de 100% de contratação para as distribuidoras. Por meio

da MP144/2003, convertida na Lei 10.848/2004, novas regras foram estabelecidas. Desde então,

as distribuidoras devem declarar sua demanda para o mercado cativo (ACR) para os próximos

cinco anos, com uma margem de erro aceita pela regulação. A competição passa a se dar não

mais pelo mercado e sim por empreendimento, em leilões de energia nova. Os leilões são

programados a partir do balanço energético e podem ser do tipo A-5, para usinas hidrelétricas,

ou A-3, para usinas térmicas. Há também a previsão de leilões A-1, de energia existente, em

caso de necessidade de ajuste na oferta. A contratação da energia ofertada nos leilões é feita de

forma centralizada pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), e também

podem comercializar contratos para o mercado livre (ACL). Esse modelo, com alguns ajustes

para a incorporação de novas fontes de energia renováveis e intermitentes, é o que, em linhas


gerais, prevalece até hoje. Pesam também nas tarifas encargos e tributos, como ICMS, que

representam metade do valor final das contas pagas pelo consumidor final.

268. Para os aspectos jurídicos da MP 579, v. BRITO, V. (2014).

269. Segundo o art. 11, considera-se produtor independente de energia elétrica a pessoa jurídica

ou empresas reunidas em consórcio que recebam concessão ou autorização do poder concedente

para produzir energia elétrica destinada ao comércio de toda, ou parte, da energia produzida, por

sua conta e risco.

270. Os artigos 35 e 36 da Lei 8.987, de 1995, preveem que, no advento do termo final do

contrato de concessão, bens, direitos e privilégios transferidos ao concessionário revertem ao

poder concedente. Este, no entanto, deve indenizar o concessionário pelos investimentos ainda

não depreciados ou amortizados realizados com a finalidade de garantir a continuidade do

serviço prestado.

271. V. Sampaio, P. e Guerra, S. (2019) e Lustosa, I. (2011).

272. Ver Barcellos, A.P. (2017).

273. Havia vários tipos de concessão: (i) as ditas “prorrogadas” a partir de 1995 e que têm termo

final em 2015, com previsão contratual de prorrogação por até 20 anos e revisão tarifária

periódica a cada quatro anos; (ii) as relativas aos leilões realizados até setembro de 2006, que

admitem no contrato prorrogação por até 30 anos, sem previsão tarifária periódica; (iii) as

o
licitadas a partir da publicação da REN n 230/2006, com possibilidade de prorrogação por mais

30 anos, para as quais os contratos preveem a revisão periódica a cada cinco anos.

274. Mais um efeito da grande judicialização provocada pela MP. Para cumprir decisões

liminares, a Aneel excluiu a parcela chamada de “remuneração” da tarifa de uso do sistema de

transmissão, calculada sobre os bens reversíveis, ainda não amortizados e nem depreciados,

prevista na Lei 12.783, de 2013. Com a cassação da medida, foi preciso fazer os cálculos de

forma retroativa. Para diminuir o impacto sobre tarifas “optou-se pela alternativa de pagamentos

no prazo de oito anos e de forma gradativa, assegurado o valor presente líquido da operação”.

a
Voto do relator Sandoval Feitosa, na 44 Reunião Extraordinária da Diretoria, 22 de abril de

2021. Processo: 48500.000753/2019-29. 26.

275. V. Schuffner, C. e Ragazzi, A.P. (2012).

276. V. David, S. (2013).

277. A Cemig ainda tinha uma razão a mais: por ocasião da venda de participação minoritária a

um grupo privado, em leilão realizado em 1998, foi assinado novo contrato com a Aneel, que

previa explicitamente sua prorrogação. A empresa estadual continuou operando seus ativos até a

o
decisão final da disputa legal no STF, em que o direito de prorrogação foi finalmente negado n

20.432/DF do STJ.

o
278. V. extrato da sessão de julgamento do processo administrativo sancionador CVM n

RJ2013/6635.

279. Desempate na votação ocorreu pelo exercício de voto de qualidade. V. Pimenta, G. e

Dantas, I. (2017).

280. Revela uma alavancagem financeira muito imprudente. Ao final de 2016, já no governo

Temer, e no início da reestruturação financeira, o indicador cai para 6,1. Com a inclusão das

indenizações decorrentes da MP 579, ele chega a 3,6. Como resultado da política de alienação de
ativos e suspensão de novos investimentos desde 2016, a Eletrobras fechou o ano de 2020 com

essa relação em 2,2. Se forem consideradas as receitas com indenização (RBSE), o múltiplo cai

para 1,6.

281. O novo preço pressupunha que os ativos estavam todos amortizados, o que não era verdade.

E foram fixados abaixo dos custos médios praticados, cf. Por dentro da conta de luz (Aneel,

p.13).

o
282. Lei 10.848/04, art. 2 : “As concessionárias, as permissionárias e as autorizadas de serviço

público de distribuição de energia elétrica do Sistema Interligado Nacional — SIN deverão

garantir o atendimento à totalidade de seu mercado, mediante contratação regulada, por meio de

licitação (...)”.

283. A medida dedicava todo o volume a ser renovado no regime de cotas ao mercado cativo

(ACR).

284. Portaria 599, de 28 de novembro de 2012, cancelando a exigência da Portaria 305/06 e a

realização do leilão A-1, para o ano de 2012.

285. O prazo limite para a aceitação da proposta vencia antes do prazo para a votação do projeto

de conversão da MP em lei, acrescentando mais insegurança ao confuso processo de renovação

de concessões. Ver Landau, E. (2012).

286. Sem a adesão de todas as geradoras, a queda nas tarifas seria de 15% em média, e não 20%,

como havia anunciado o governo. Para manter o percentual prometido, o Tesouro elevou seu

aporte inicial à CDE, previsto em R$3,3 bilhões, fechando o ano de 2013 com valores próximos

de 10 bilhões.

287. Para se ter uma base de comparação o PLD médio em 2012 ficou abaixo de R$ 200 MWh.

No leilão A-3/2013, usinas térmicas por disponibilidade de energia, que entrariam em operação

três anos depois, foram contratadas a R$ 133,75 por MWh. Disponível em:

https://www.aneel.gov.br/home?

p_p_id=101&p_p_lifecycle=0&p_p_state=maximized&p_p_mode=view&_101_struts_action=

%2Fasset_publisher%2Fview_content&_101_returnToFullPageURL=%2F&_101_assetEntryId=

14487508&_101_type=content&_101_groupId=656877&_101_urlTitle=homologado-

parcialmente-o- resultado-do-leilao- a-5 -de-2013&inheritRedirect=true

288. A entrada do sistema de bandeiras tarifárias chegou a ser adiada para evitar maior pressão

sobre tarifa.

o
289. Decreto 8.221, de 1 de abril de 2004.

290. Ocorre quando eventos extraordinários e imprevisíveis, reconhecidos pela Aneel como

o
alheios à vontade do agente vendedor. Resolução Normativa Aneel n 531, de 21 de dezembro

de 2012.

291. Sobre as funções da CCEE e modalidades de leilão, v. David, S. (2013).

292. Valores históricos, que, corrigidos pelas condições do financiamento, alcançam R$ 37

bilhões a serem transferidos para tarifas em cinco anos a partir de 2015.

293. Disponível em: https://www.ccee.org.br/portal/faces/pages_publico/o-que-

fazemos/contas/conta_acr/acr_financiamento?_afrLoop=59826264977102&_adf.ctrl-

state=dxig77dmk_30#!%40%40%3F_afrLoop%3D59826264977102%26_adf.ctrl-

state%3Ddxig77dmk_34.
294. Taxas de administração do pool de bancos, custos jurídicos e de auditoria, gestão da Conta-

ACR.

295. TCU 011.223/2014-6, Tabela 5: Venda no curto prazo — geradoras não aderiram.

Disponível em: https://tcu.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/315619102/1122320146/inteiro-teor-

315619128?ref=feed.

296. Processo 0036564-70.2015.4.01.3400. Mais de uma associação do setor recorreu à Justiça,

nem todas tiveram sucesso (v. processo: 34944-23.2015.4.013400).

297. GSF atingiu 90,6% ao PLD médio de R$ 688/MWh. Só para Itaipu os valores atingiram R$

4 bilhões.

298. Os geradores do ambiente regulado repactuaram seu risco hidrológico em 2016. Em troca

da extensão da outorga das usinas. A Lei 14.052/20 estende o direito de repasse do risco

hidrológico de geradores para consumidores, relacionado a atraso na operação de linhas de

transmissão, importação de energia e geração termelétrica. Por sua vez, a Lei 14.182/21, no

o
art.18, § 9 , inclui as empresas do Grupo Eletrobras na repactuação.

299. A MP 1031 revogou essa mudança e o risco hidrológico retornou às geradoras, como previa

inicialmente a Lei 10.848/04.

300. As bandeiras tarifárias refletem os custos variáveis da geração de energia elétrica.

Dependendo das usinas utilizadas para produzir a energia, esses custos podem ser maiores ou

menores. Antes das bandeiras, tais variações de custos só eram repassadas no reajuste seguinte, o

que poderia ocorrer até um ano depois.

301. O ONS determina o despacho de usinas com o objetivo de obter um misto de geração de

energia ótimo, ou seja, ao menor custo possível, no curto e no longo prazo. Um dos critérios é

acionar apenas as usinas térmicas com valores menores que o PLD, isto é, por ordem de custo,

ou por ordem de mérito. Em condições climáticas muito adversas, para preservar o nível de

armazenamento nos reservatórios, o operador pode se ver obrigado a despachar usinas térmicas

de valor muito elevado, portanto, fora da ordem de mérito.

302. TCU 011.223/2014-6. Tabela 2: Custo para o sistema da antecipação das concessões. Só

nos anos de 2013 e 2014, os custos da exposição involuntária ultrapassaram R$ 36 bilhões.

303. Toda garantia física de Itaipu é alocada na forma de cotas. Com vazões baixas, a energia

que deixou de ser gerada teve que ser comprada a preço de PLD, custo que foi absorvido em

2014 e repassado em 2015.

304. V. Polito, R. e Fucuchima, L. (2020).

305. V. Audiência Pública, nº 54/2014, nota técnica no 001/2014-ASD-SEM-SRG/ANEEL.


306. Em geral, a lei que criou o PND funciona como uma autorização legislativa genérica e basta

um decreto presidencial para incluir uma estatal no programa de privatizações, como fez o

presidente Fernando Henrique Cardoso em 1995 com a Eletrobras. Mas ao ser retirada do PND,

hoje PPI (Programa de Parcerias de Investimento), só uma nova lei poderia reincluir a Eletrobras

no programa.

307. Landau, E (2021).


CAPÍTULO 14
MARCO REGULATÓRIO DO
PETRÓLEO
Décio Oddone

INTRODUÇÃO
Este capítulo trata do impacto do marco regulatório adotado no setor do

petróleo após o advento do pré-sal. Começa com um resumo da

evolução da exploração de petróleo no Brasil, a partir dos anos 1930.

Passa pela primeira descoberta, pela fundação da Petrobras, pela quebra

do monopólio, pela descoberta do pré-sal e suas consequências, pela

crise de 2014 e chega à retomada, iniciada em 2016. Analisa os

resultados das políticas adotadas a partir de 2007 e conclui com

sugestões de como melhorar a atratividade dos investimentos no país em

um momento no qual, com a aceleração da transição para uma economia

de baixo carbono, as disputas por investimentos entre os países vão se

acirrar.

1. DO INÍCIO AO MONOPÓLIO
Na década de 1930, um amplo debate público influenciou o papel do

Estado na indústria do petróleo na América Latina. Na Argentina, havia

sido criada a estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF). A Bolívia

que, após a Guerra do Chaco com o Paraguai, havia nacionalizado as

áreas de operação da Standard Oil, em 1936, também fundou a sua

estatal do petróleo, a Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos

(YPFB). O presidente Lázaro Cárdenas nacionalizou as atividades de

petróleo no México em 1938, criando a Petróleos Mexicanos (Pemex).


Esses movimentos estimularam aqui a criação do Conselho Nacional

do Petróleo (CNP), em 1938. O abastecimento de petróleo foi declarado

de utilidade pública. As atividades de refino foram nacionalizadas.

Posteriormente, o CNP passou a ser responsável pelas operações estatais

de exploração, produção e industrialização do petróleo. O Conselho

autorizou a continuação da exploração que um grupo privado conduzia

em Lobato, na Bahia, onde, em janeiro de 1939, foi achado petróleo. A

descoberta, no entanto, não encontrou quantidades comerciais.

Em junho de 1939, o CNP assumiu os trabalhos de exploração e

declarou ilegais as atividades desenvolvidas por companhias privadas.

Com o mundo em guerra, a ameaça de desabastecimento se tornara real.

A indústria do petróleo se converteu em prioridade nacional. O poço de

Candeias, em 26 de novembro de 1941, deu início à produção de

petróleo no Brasil. Novos campos foram descobertos. Pequenas

refinarias experimentais foram implantadas em Candeias e Aratu, ambas

na Bahia.

Em 1947, voltou à discussão a política do petróleo e surgiu a

campanha O Petróleo É Nosso, lema oriundo do movimento estudantil.

Em dezembro de 1951, Getúlio Vargas, que também ocupara a

Presidência à época da fundação do CNP e da descoberta de Candeias,

enviou ao Congresso o Projeto 1.516, que criava a Petróleo Brasileiro

S.A. Segundo a proposição original, não haveria monopólio. O Estado

teria 51% das ações da nova empresa.

Em junho de 1952, o deputado Bilac Pinto apresentou uma emenda na

qual propunha estabelecer a Empresa Nacional de Petróleo (Enape), que

teria o monopólio estatal. A polêmica prosseguiu até que, em 3 de

outubro de 1953, o presidente Vargas assinou o projeto de lei que criava

a Petrobras e estabelecia o monopólio estatal do petróleo. As operações

do CNP passaram à nova empresa.

Surpreendentemente, a companhia contratou o geólogo norte-

americano Walter Link, um ex-empregado da Standard Oil, para chefiar

seu Departamento de Exploração. Os esforços foram concentrados na

Amazônia. Em março de 1955, houve descoberta de petróleo em Nova

Olinda (AM), que se demonstrou sub comercial. Logo a insatisfação

com os parcos resultados começou a converter-se em frustração. Link


era pessimista em relação à presença de petróleo na maioria das bacias

brasileiras. Suas ideias, resumidas no chamado Relatório Link, não

estavam erradas. Questionavam a existência de grandes depósitos de

petróleo em terra no Brasil, uma das crenças dos setores nacionalistas.

Caíram como uma bomba na opinião pública. Os debates alcançaram a

Câmara de Deputados. O novo governo, de Jânio Quadros, trocou o

comando da empresa. Em março de 1961, a diretoria da Petrobras

encomendou a dois técnicos brasileiros uma reavaliação das conclusões

de Link.

Esse trabalho recomendou a continuidade da exploração em algumas

bacias. Surgiram descobertas importantes no Nordeste e estudos no mar.

Em 1968, aconteceu a primeira descoberta marítima, Guaricema, em

Sergipe. Era o início da saga que iria transformar a história do petróleo

no país e a economia brasileira.

A bacia de Campos veio em seguida, mas, no final dos anos 1970, a

produção da Petrobras não chegava a 200 mil barris por dia. Antes das

descobertas em Campos, a companhia havia concentrado recursos na

construção de refinarias. Para explorar petróleo no exterior, criou a

Petrobras Internacional S.A. (Braspetro). Em 1974, foram autorizados

contratos de risco, pelos quais empresas estrangeiras podiam explorar

petróleo no Brasil. Não produziram bons resultados.

Os contratos de risco, no entanto, junto com a incursão internacional,

tiveram um papel fundamental no preparo da estatal para o fim do

monopólio e a competição por blocos para exploração, consequências da

Lei do Petróleo, de 1997.

A atuação no exterior trouxe um grande sucesso: a descoberta do

campo gigante de Majnoon-Najhum, no Iraque, a maior da década de

1970 no mundo. Após uma complexa negociação, a área foi

nacionalizada, ficando a Petrobras responsável pela operação, mas a

guerra Irã-Iraque fez com que a empresa abandonasse a região. O acordo

permitiu ao Brasil acesso a petróleo em condições favoráveis durante a

segunda crise e ao mercado de bens e serviços do Iraque.

Em 1984, a produção nacional havia alcançado 500 mil barris por dia.

Estava se iniciando a exploração em águas profundas, que, com as


descobertas de campos como Albacora e Marlim, permitiu que a

extração chegasse a 1 milhão de barris, em 1997. Apesar desses

resultados, os anos 1980 foram difíceis. O Brasil enfrentou crises e, por

duas vezes, interrompeu o pagamento da dívida externa. A década de

1990 marcou a regularização da relação com os mercados

internacionais. Durante aquele período, a maior parte dos recursos

disponíveis era direcionada à produção na bacia de Campos.

A partir das descobertas em Campos, a Petrobras decidiu comprar e

operar mais sondas. Quando os preços do petróleo colapsaram, em

1986, os afretamentos também despencaram. Plataformas que custavam

US$ 120 mil por dia passaram a ser alugadas por menos de US$ 30 mil.

Como não havia orçamento para a perfuração de muitos poços no Brasil,

as sondas próprias ficaram sem trabalho. Com equipamentos ociosos, a

companhia passou a prestar serviços de perfuração a outras empresas no

exterior.

Ainda nos anos 1990, o gás natural começou a ganhar importância no

planejamento energético brasileiro. A Petrobras assinou contratos para

construção do gasoduto Bolívia-Brasil e exploração de gás na Bolívia. A

descoberta dos campos gigantes de San Alberto e Sábalo representou o

maior sucesso no exterior desde Majnoon. Então, a empresa desenvolveu

a sua primeira subsidiária integrada no exterior, com refinarias e postos.

No entanto, em 2006, em evento de grande repercussão, ela viria a ser

objeto de medidas nacionalistas por parte do governo boliviano. Os

contratos de produção foram renegociados, os postos perderam a marca

da companhia e as refinarias foram revendidas para a Bolívia.

2. A QUEBRA DO MONOPÓLIO
Em 1997, a Lei 9.478 determinou o fim do monopólio, estabeleceu a

criação do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) e da

Agência Nacional do Petróleo (ANP), definindo novas regras que

autorizavam a realização de leilões de áreas para exploração de petróleo

e gás em que a Petrobras competiria em igualdade de condições.

Igualdade relativa, pois a posição de incumbente dava à companhia o

privilégio de dispor do conhecimento geológico das bacias brasileiras,


razão pela qual outras empresas disputavam a posição de parceira da

estatal.

A partir de 1999, a Petrobras passou por um processo de

modernização. Vendeu ações na Bolsa americana. As rodadas de

licitação atraíam interesse. Em sociedade com outras empresas, a estatal

começou a adquirir blocos exploratórios nos leilões da Agência. Houve

um “boom” nas atividades de exploração e produção no Brasil.

Em 2002, os preços dos combustíveis foram liberados. A expansão

internacional continuou. Naquele mesmo ano, a companhia adquiriu a

Perez Companc, segundo maior grupo econômico argentino, que tinha

sofrido com a crise do final de 2001. Criou a Petrobras Energia S.A.

(Pesa), empresa com capital aberto nas Bolsas de Buenos Aires e Nova

York e operações em vários países da América Latina. Ativos de

exploração foram comprados nos EUA e na África.

Entretanto, a venda dos campos maduros do Nordeste, que permitiriam

que fossem explorados por empresas especializadas, não progrediu.

Também não avançou a ideia de fazer parcerias no refino ou vender

refinarias, o que aumentaria a competitividade e diminuiria o risco de

intervenção nos preços. Apenas uma troca que envolveu ativos na

Argentina e 30% da refinaria de Canoas foi avante, em 2001, mas não

houve sucesso. A Petrobras acabaria recomprando a participação na

refinaria em 2009. Esses movimentos teriam possibilitado que a empresa

concentrasse investimentos nos seus negócios mais lucrativos de

exploração de petróleo em águas profundas.

A Petrobras se modernizava e se tornava competitiva após ter sido

exposta a forças de mercado. Em 2003, contudo, um novo governo

assumiu. A interferência estatal sobre a companhia voltou a aumentar

gradativamente. Medidas que estimulavam a meritocracia, como regras

para nomeação de dirigentes e bônus de desempenho a executivos, foram

revogadas. A economia, estimulada pelo ciclo de commodities, se

recuperava. O aumento dos juros e do superavit primário começou a

dar resultados. A inflação caiu, o dólar baixou e o crescimento voltou.

Iniciou-se a discussão do estabelecimento de uma meta de déficit zero,


que traria para baixo a dívida pública, abrindo caminho para um
crescimento sustentável. A ideia não foi adiante. Era o princípio da

gestação dos problemas que afligiriam a economia brasileira anos

depois. Complementada pela implantação da Nova Matriz Econômica e

das novas políticas para o setor de petróleo.

3. O PRÉ-SAL
Há anos se especulava sobre a possibilidade de existir petróleo em uma

sequência de rochas sedimentares localizadas abaixo de uma espessa

camada de sal em águas profundas nas bacias de Campos e Santos (área

demarcada na Figura 1). A partir de 2000, a Petrobras, em conjunto com

outras empresas, começou a adquirir blocos na região, inclusive áreas

que haviam estado em mãos de companhias estrangeiras na época dos

contratos de risco, o chamado pré-sal.

Figura 1: A região do pré-sal, com o polígono estabelecido em 2010

Fonte: ANP.

Em 2005, surgiram indícios de volumes significativos de petróleo no

bloco BM-S-11, posteriormente chamado de Tupi. As primeiras

descobertas mostraram reservatórios de alta produtividade, grandes

estruturas e petróleo de boa qualidade, indicando que o pré-sal seria

uma das principais fronteiras exploratórias no mundo. Abriu-se uma


série de oportunidades, gerando uma onda de otimismo quanto ao futuro

da indústria do petróleo no país.

a
A euforia era grande com a 9 Rodada de Licitações da ANP, em

novembro de 2007. O preço do óleo vinha crescendo desde o início da

década. Beirava os US$ 100 por barril. Os bônus de assinatura de blocos

exploratórios estavam na casa do bilhão de dólares na Nigéria e em

Angola. Eram os níveis especulados para o leilão.

A descoberta, no entanto, tinha exacerbado os sentimentos

nacionalistas. Dirigentes da Petrobras indicavam que não haveria risco

exploratório. A recém-criada OGX tinha contratado técnicos da

Petrobras, o que causou mal-estar. Estimulado pela ideia de que o pré-

sal era um bilhete premiado, de risco zero, o governo decidiu retirar da

rodada os 41 blocos com potencial para descobertas na província.

Faltou uma compreensão correta dos motivos que tinham produzido

avanços e retrocessos ao longo do tempo. Ou houve uso político da

oportunidade. A exploração de petróleo é uma atividade arriscada.

Menos de 20% dos poços pioneiros perfurados no mundo encontram

petróleo. Apesar dos altos níveis de sucesso obtidos, a ideia de que uma

área gigantesca, com centenas de quilômetros de extensão, como a que

compreende o pré-sal, não apresenta risco não tem fundamento técnico,

mas prosperou.

Em toda a América Latina, intervenções governamentais que

reduziram o acesso a capitais tinham causado queda na extração. A

produção da Petrobras havia começado a crescer quando a empresa,

preparada pela convivência com concorrentes, encontrou petróleo na

bacia de Campos. E decolou a partir do fim do monopólio e da

realização dos leilões. A descoberta do pré-sal elevou a demanda por

recursos físicos e financeiros. Estavam dadas as condições para que

outras companhias passassem a investir nos vários segmentos da

indústria. Nada disso foi levado em conta. Em um ambiente muito mais

complexo e demandante que o de décadas anteriores, em lugar de buscar

atrair mais atores para o setor, velhas ideias de domínio estatal foram

resgatadas.
4. A NOVA POLÍTICA DO PETRÓLEO
Começaram as discussões sobre um novo modelo contratual. Em 2009,

foi estabelecido um comitê interministerial para avaliar o marco

regulatório. Em vez de aprimorar o modelo de concessão, que havia sido

exitoso na atração de capital e no aumento da exploração, ganharam

força a criação de outro tipo de contrato, que desse maiores poderes à

União, e a ideia de a Petrobras ser a operadora única na nova fronteira

geológica. Após intensos debates, em 22 de dezembro de 2010, foi

promulgada a Lei 12.351, que alterou dispositivos da Lei 9.478, de 6 de

agosto de 1997, que havia estabelecido as condições para o fim do

monopólio estatal do petróleo. A nova lei criou o polígono do pré-sal

(Figura 1) e o conceito de área estratégica, região em que deve ser

aplicado o contrato de partilha da produção.

O polígono foi determinado por coordenadas geográficas. As

características geológicas e o fato de conter muitas jazidas acima da

camada de sal, conhecida como pós-sal, de menor produtividade, foram

desconsiderados. A ideia de a Petrobras ser a operadora única na nova

fronteira geológica prevaleceu. Buscava favorecer a empresa controlada

pelo Estado e desconsiderou que parte do seu capital social pertencia a

privados. A lei definiu que uma nova empresa pública seria a

representante dos interesses da União nos contratos. Essa empresa, que

veio a se chamar PPSA, participaria do comitê operacional que

administraria os consórcios e ficaria responsável pela comercialização

dos hidrocarbonetos recebidos pela União sob o regime de partilha.

Também foi estabelecido um ambicioso Fundo Social, a ser irrigado

com as rendas obtidas na exploração do pré-sal, tendo como finalidade

constituir fonte de recursos para o desenvolvimento social e regional.

Também seria objetivo do fundo mitigar as flutuações tanto da renda

gerada pelas atividades de produção e exploração de petróleo e outros

recursos não renováveis quanto dos preços.

As mudanças na política energética, no entanto, não se limitaram ao

estabelecimento do contrato de partilha, da PPSA e do Fundo Social. Em

março de 2009 havia sido aprovada a Lei 11.990, que dispunha sobre as

atividades relacionadas a gás natural, e veio a ser revogada em 2021 pela


Lei 14.134, a chamada nova lei do gás. Porém, por questões de espaço, o

setor de gás natural não é objeto deste capítulo. A distribuição dos

recursos advindos da exploração de petróleo e gás foi revisitada. A Lei

12.734, de 30 de novembro de 2012, determinou novas regras de

alocação, entre os entes da Federação, dos royalties e da participação

especial devidos. Estados produtores, que perderiam arrecadação,

entraram com Ações Diretas de Inconstitucionalidade no Supremo

Tribunal Federal. Em março de 2013, uma liminar suspendeu os efeitos

das alterações promovidas pela Lei até o julgamento final da ação, o que

não havia ocorrido até o momento em que este capítulo foi escrito. As

regras de exigência de conteúdo local foram aprofundadas, como se

descreve em detalhes no Capítulo 24 deste livro. Os leilões de novos

blocos para exploração foram suspensos.

Em um ambiente de preços de petróleo crescentes, a Petrobras tinha se

beneficiado das estimativas de aumento das reservas e da posição de

operadora única dos novos contratos de partilha da produção. Passou a

assumir elevados compromissos de investimentos. Em 2010, a União

contratou diretamente com a empresa o direito de produzir 5 bilhões de

barris de petróleo equivalente (produção de óleo e gás medida em barris

de petróleo) de áreas selecionadas do pré-sal. Foi o chamado contrato de

Cessão Onerosa, que deu origem a uma capitalização da estatal em cerca

de US$ 70 bilhões, a maior operação do tipo até então realizada.

As previsões de produção aumentaram significativamente, chegando a

4,9 milhões de barris de petróleo por dia em 2020, segundo o plano de

negócios 2011-2015, divulgado em 2011. Os projetos ambiciosos iam

além da produção de petróleo no pré-sal. Incluíam a manutenção dos

campos maduros no portfólio e investimentos em todos os segmentos da

indústria do petróleo, em biocombustíveis e em energia. Inclusive em

sondas de perfuração. Foi criada uma empresa para contratar junto a

estaleiros a serem implantados no Brasil a construção de até 28 novas

sondas, com taxas diárias que poderiam chegar a US$ 400 mil por dia

em contratos de dez ou 15 anos. A exemplo do que ocorreu nos anos

1970, essa decisão viria a se mostrar um equívoco. Refinarias tinham

sido compradas nos EUA e no Japão. Apesar dos reveses causados por
medidas intervencionistas de governos da América Latina, continuaram

os investimentos no exterior.

5. PARTILHA X CONCESSÃO
Desde 1997, vigorava no Brasil o regime de concessão na oferta de áreas

de exploração de petróleo e gás natural. Os resultados foram positivos.

Centenas de blocos foram contratados e dezenas de empresas passaram a

investir no país.

Os defensores de um novo modelo alegavam que os contratos de

partilha permitiriam ao Estado uma maior arrecadação e um maior

controle sobre o ritmo da produção, além de administrar a exportação e

fazer política industrial. O regime de concessão é simples, com regras

bem definidas. Nos leilões o bônus de assinatura é estabelecido pela

empresa, sendo o principal componente da proposta. Vence a disputa a

melhor combinação do bônus de assinatura com os outros fatores que

compõem a oferta. Caso não haja descoberta de petróleo, o consórcio

perde o valor do bônus e os investimentos. Havendo sucesso, desenvolve

o campo e dispõe da produção. Paga royalties de 5% a 10%, percentual

aplicado à maior parte dos casos, imposto de renda (IR) e participação

especial (PE). A PE é uma espécie de imposto adicional sobre a renda,

aplicável aos campos de alta produtividade, regulamentada pelo Decreto

2.705, de 1998. Pode alcançar 40%. O investidor tem controle das

operações. A interferência do governo limita-se às aprovações, licenças

e fiscalizações de órgãos como a ANP. Esse regime, que estimula a

redução dos custos operacionais e a eficiência, é amplamente adotado

em países com indústria petrolífera mais desenvolvida.

O modelo de partilha é mais complexo. Introduz os conceitos do custo

em óleo, valor que a empresa pode recuperar, e lucro em óleo, que é

repartido entre empresa e União. O bônus de assinatura é um valor fixo.

Vence a disputa a empresa que oferecer a maior parcela de lucro em óleo

para a União. Em caso de fracasso, a empresa também perde o valor do

bônus e os investimentos em exploração. Havendo sucesso, desenvolve o

campo e dispõe da sua parcela do lucro em óleo. O restante pertence à

União. Também contempla o pagamento de royalties e imposto de renda.


Por permitir uma aceleração da recuperação dos custos, a implantação

dos contratos de partilha, em países da Ásia e África, no século passado,

contou com o apoio da indústria petrolífera. Esse regime proporciona

maior controle ao Estado, que tem a prerrogativa de aprovar os custos

recuperáveis e acesso direto à produção. No entanto, a necessidade de

validação dos gastos resulta em insegurança e riscos para os

empreendedores.

No modelo adotado no Brasil, os royalties subiram para 15%. A

Petrobras tornou-se operadora obrigatória, com pelo menos 30% de

participação. A nova estatal, PPSA, passou a participar dos consórcios,

tendo o direito de indicar a metade dos integrantes dos comitês que

gerenciam os contratos, inclusive seu presidente, que tem poder de veto

e voto de qualidade. A PPSA também assumiu a responsabilidade de

comercializar a parcela de óleo e gás da União.

O montante de rendas do petróleo carreado para o governo (carga

fiscal) não depende do regime de contratação, mas das alíquotas

definidas para cada um dos tributos. Basicamente, é função dos

royalties, da parcela de lucro em óleo entregue à União e do IR, na

partilha, e dos royalties, das alíquotas de PE e do IR, na concessão,

como mostrado na Figura 2.

Figura 2: Carga fiscal — concessão e partilha


Fonte: ANP.

Com os atuais níveis de PE, a carga fiscal dos contratos de concessão

fica na faixa de 50% a 65%. No caso da partilha, por decisão do CNPE,

a carga fiscal alvo nos leilões tem sido mais alta, em torno de 75%.

Chegou a 85%, no caso do primeiro leilão dos excedentes da cessão

onerosa. No entanto, uma carga fiscal maior poderia ter sido obtida no

regime de concessão de forma mais simples pelo aumento da PE para os

campos do pré-sal, sem a criação dos contratos de partilha.

À discussão sobre a tributação somou-se a questão da operação única

da Petrobras. Com a carga fiscal na casa dos 75%, a parcela da renda

disponível para os consórcios era de 25%, que seriam da Petrobras, caso

ela operasse todo o pré-sal. Como a União detém por volta de 36% do

capital da companhia, poderia vir a receber, a título de dividendos, 9%

adicionais. Assim, a parcela do Estado na renda do petróleo poderia

chegar a 84% (75% em tributos e 9% em dividendos). Todavia, a lei

estabeleceu um percentual mínimo de 30% para a Petrobras em cada

campo. Nesse caso, o Estado só receberia 30% dos dividendos (2,7% da

renda livre) e poderia vir a alcançar cerca de 78% do total. Assim, é

possível concluir que a principal motivação para a Petrobras ser a

operadora única não foi arrecadatória. Estava relacionada ao objetivo de

exercer maior controle das operações.

A adoção da partilha tampouco era necessária para possibilitar uma

possível administração da produção pelo Estado. O contrato de partilha

permitiria utilizar o poder da PPSA para ditar o volume de produção de

um campo, mas esse tipo de medida traria muitas controvérsias e

diminuiria a atratividade dos investimentos no país. Se o governo

decidisse manter recursos estratégicos não explorados para garantir o

abastecimento futuro, seria mais fácil gerenciar o ritmo das licitações,

que independe do regime de outorga.

Outro objetivo do regime de partilha seria a possibilidade de o governo

utilizar a sua parcela dos hidrocarbonetos produzidos para realizar ações

geopolíticas junto a parceiros comerciais. Ou para fazer política

industrial, fornecendo abaixo do preço de mercado a setores que

desejasse estimular. Essas ações, entretanto, representariam algum tipo


de subsídio que, mesmo questionável, poderia ser dado de forma mais

transparente, no regime de concessão.

Uma dificuldade adicional do regime de partilha é que a fração da

participação da União é recebida em óleo e gás, não em dinheiro. O

governo tem que assumir a logística e o custo de vender os volumes

recebidos. Essa comercialização revelou-se uma tarefa mais complexa

que o planejado.

A coexistência dos regimes de partilha e concessão ao lado de um

terceiro, cessão onerosa, tornou mais difícil e custosa a regulação em

geral e a administração de reservatórios compartilhados.

Como os principais objetivos de política energética almejados com o

modelo de partilha poderiam ter sido alcançados com ajustes no regime

de concessão, a adoção do contrato de partilha trouxe complexidades

desnecessárias para o ambiente de negócios.

6. CONTEÚDO LOCAL
A exigência de requisitos mínimos de conteúdo local (CL) está presente

em contratos de exploração e produção de petróleo em diferentes países,

como se pode ver no Capítulo 24 deste livro.

Na Noruega e na Inglaterra, regras de CL ajudaram no

desenvolvimento de fornecedores para a indústria de petróleo e gás. No

Brasil, a contratação local surgiu opcionalmente nos primeiros contratos

firmados pela ANP. Na segunda rodada, passou a ser um dos parâmetros

de avaliação das propostas. Desde 2005, passaram a ser especificados

percentuais mínimos, que deveriam ser certificados por entidades

devidamente registradas na Agência. Ao longo do tempo, as regras

foram se tornando mais exigentes e complexas, demandando que as

empresas especificassem, além de percentuais globais, seu detalhamento

em mais de 90 itens. Essas medidas foram acompanhadas pelo

estabelecimento de pesadas multas financeiras e de sanções, como perda

da concessão e proibição de participar em futuras rodadas de licitação.

As iniciativas para incentivar o desenvolvimento da indústria local de

petróleo e gás levaram à criação de programas como o Programa de

Mobilização da Indústria Nacional de Petróleo e Gás Natural (Prominp)


e o Programa de Estímulo à Competitividade da Cadeia Produtiva, ao

Desenvolvimento e ao Aprimoramento de Fornecedores do Setor de

Petróleo e Gás Natural (Pedefor).

Enquanto nos contratos de concessão os percentuais nas fases de

exploração e de desenvolvimento eram ofertados na licitação, a partir

dos valores globais mínimos e máximos estipulados no edital e dos

percentuais mínimos a cada item especificado, nos de partilha os

requisitos passaram a ser fixos, estabelecidos pela ANP. Em um

ambiente de preços crescentes, as empresas passaram a oferecer, nos

leilões de concessão, altos compromissos. Acreditavam na possibilidade

de isenção, quando fosse comprovado que não era possível atender os

percentuais comprometidos. No entanto, apesar do CL ser um dos

fatores na definição do vencedor de um bloco, apenas em um caso foi

determinante.

Com a queda do preço do petróleo, em 2014, e a crise enfrentada pela

indústria em seguida, projetos foram paralisados. Os pedidos de isenção

de cumprimento de obrigações de CL, como os relativos às plataformas

dos campos de Libra e Sépia, passaram a se acumular. Mas a

regulamentação nunca tinha sido concluída, o que só veio a ocorrer a

partir de 2018.

A exigência de CL não garante negócios para a indústria nacional. A

efetiva contratação local de insumos só ocorre se houver investimentos.

A postergação de projetos trouxe prejuízos para as empresas de petróleo,

para a União, estados e municípios e para a cadeia de fornecedores. O

Estado, que recolhe a maior parte da renda dos projetos, ficou com a

maior parcela das perdas. Perdeu mais que as empresas.

Para cada ano de atraso na entrada em produção de uma plataforma de

150 mil barris por dia, como as do pré-sal, as receitas fiscais postergadas

chegavam a cerca de R$ 2,6 bilhões, com o petróleo a US$ 50 por barril.

Considerando o conjunto das plataformas previstas, a demora nas

contratações causadas pelas disputas sobre CL produziu perdas da

ordem de dezenas de bilhões de reais por ano. O prejuízo das empresas

foi menor, na casa de R$ 870 milhões por plataforma a cada ano. O

impacto nos fornecedores, com o adiamento da compra de equipamentos

e da contratação de serviços, também foi relevante. Para cada sistema de


produção de petróleo (poços, equipamentos e plataforma de produção)

cerca da metade, algo como US$ 3 bilhões, seriam contratados no

Brasil.

Além disso, o efeito das ineficiências causadas por altos níveis de CL

precisava ser considerado. Contratações a preços maiores reduzem o

imposto de renda e a participação especial pagos pelas empresas. Nos

contratos de partilha, além do IR, elevam o custo em óleo, por meio do

qual a União arca, juntamente com as empresas, com os gastos das

operações. Assim, quanto maior o custo em óleo, além de mais baixo o

IR, menor a parcela da produção que cabe à União.

Por tudo isso, a revisão das regras de CL era fundamental para atrair

novos investimentos e, principalmente, destravar projetos que estavam

em carteira, a maneira mais rápida e eficaz de acelerar a retomada da

atividade.

7. A INTERRUPÇÃO DOS LEILÕES


a
Após a realização da 10 Rodada, em 2008, os leilões foram paralisados.
a a
Só foram retomados em 2013, com a 11 Rodada de Concessões e a 1

de Partilha, que ofereceu a área de Libra. Durante aquele período, a

única contratação foi a Cessão Onerosa, em 2010. O ambiente já não era

mais o mesmo. As mudanças haviam afetado o ânimo da indústria

petrolífera. Libra saiu pelo percentual mínimo de lucro em óleo, sem


a a
competição. Os resultados da 11 e da 12 Rodadas de Concessão

frustraram as expectativas. No final de 2015, a ANP licitou 266 blocos


a
na 13 Rodada. Apenas 37 áreas foram adquiridas, por cerca de R$ 120

milhões, um valor bem abaixo do esperado (Figura 3).

Figura 3: Histórico de rodadas da ANP


Fonte: ANP.

Os cinco anos sem rodadas causaram uma forte redução na exploração.

O setor perdeu dinamismo. A atividade passou a ser uma fração da que

havia no passado. Enquanto os projetos e a arrecadação no setor de

petróleo e gás eram postergados, o país pagava juros cada vez mais

elevados sobre a dívida.

8. OS IMPACTOS
Durante o período que se seguiu à descoberta do pré-sal, a Petrobras se

beneficiou das estimativas de aumento da produção. O Brasil tornou-se

o país com o maior número de campos gigantes descobertos em 20 anos

e entrou para a lista dos detentores de grandes reservas.

Para financiar investimentos que alcançariam US$ 47,3 bilhões por

ano no período 2011-2015, o endividamento da Petrobras cresceu,

atingindo a casa dos US$ 100 bilhões — a maior dívida corporativa do

mundo empresarial. O otimismo reinante não permitiu uma correta

avaliação dos riscos. A falta de alinhamento dos preços da gasolina e do

diesel aos praticados no mercado internacional vinha afetando o caixa da

empresa desde 2011, o que fez com que acumulasse perdas com a

importação de derivados. Antes que o aumento da produção gerasse os

recursos necessários para reduzir a dívida, a companhia foi impactada

por uma série de adversidades.

No final de 2014, a cotação do petróleo despencou. O real se

desvalorizou. Investigações sobre corrupção aprofundaram os problemas


da estatal e de seus principais fornecedores. A Petrobras perdeu o grau

de investimento, o que aumentou o custo de captação de novas dívidas.

As conjunturas política e econômica se deterioraram. A economia

entrou em recessão e se contraiu por três anos consecutivos.

Os investimentos programados foram reduzidos. De US$ 47,3 bilhões

por ano, no período de 2011a 2015, para US$ 19,7 bilhões por ano,

entre 2015 e 2019. A estimativa de produção de petróleo da companhia

para 2020 caiu de 4,9 milhões para 2,7 milhões de barris por dia.

A empresa foi forçada a anunciar um agressivo plano de venda de

ativos e a concentrar recursos nas áreas mais rentáveis do pré-sal.

Investimentos em campos maduros, refinarias, negócios de gás natural e

biocombustíveis foram adiados ou cancelados. Os principais ativos no

exterior foram vendidos. A ideia de criar uma multinacional verde-

amarela foi abandonada.

A decisão de interromper os leilões, introduzir os contratos de partilha

e concentrar a operação do pré-sal na Petrobras não produziu os

resultados esperados. As companhias que haviam se preparado para

adquirir áreas no Brasil tiveram seus planos frustrados e passaram a

buscar ativos em outros países. O esperado aumento da exploração não

aconteceu. O número de poços perfurados no Brasil até então, apenas 30

mil, continuava insuficiente para identificar o real potencial exploratório

do país.

Restavam as campanhas de exploração e os projetos de

desenvolvimento decorrentes dos leilões já realizados, que não foram

capazes de evitar uma diminuição drástica na perfuração de poços

(Figuras 4 e 5). A quantidade de sondas em operação caiu de cerca de

90, em 2012, para 16, em 2017, eliminando mais de 70 mil empregos.

As descobertas de petróleo, que chegaram a 173, em 2012, ficaram em

24, em 2017.

Figuras 4 e 5
Fonte: ANP Fonte: ANP.

Se por um lado a extração no pré-sal sustentou o crescimento da

produção, de outro, os volumes declinaram nas bacias maduras (Figuras

6 a 9).

Figuras 6 a 9

Fonte de todas as figuras: ANP

As receitas de participações governamentais, em vez de subir, caíram.

Foram de R$ 49,6 bilhões, em 2013, para R$ 17,9 bilhões, em 2016.

Decresceram especialmente na bacia de Campos, no Espírito Santo e no

Nordeste. Os royalties recebidos pelo estado de Sergipe, por exemplo,

saíram de R$ 153,9 milhões, em 2012, para R$ 69,9 milhões, em 2017.


Se as licitações de Libra e as duas rodadas de partilha que ocorreram

em 2017 tivessem sido realizadas em 2010, US$ 30 bilhões em

investimentos poderiam ter sido antecipados. Nessa situação, até 2017, a

União teria recolhido cerca de US$ 16 bilhões em receitas. Caso o

calendário de leilões tivesse sido mantido, até 30 sistemas de produção

poderiam ter sido instalados. Os investimentos poderiam ter chegado a

R$ 600 bilhões, impactando significativamente a formação bruta de

capital. A arrecadação adicional poderia ter sido da ordem de R$ 500

bilhões entre 2014 e 2017, o período mais agudo da recessão.

A dependência de um único cliente relevante mostrou não ser saudável

para os fornecedores de serviços e equipamentos. Se houvesse outros

operadores no pré-sal, a crise da Petrobras não teria sido tão impactante.

Menos encomendas para a indústria e empregos teriam sido perdidos.

Desde a criação do Conselho Nacional do Petróleo, em 1938, o setor já

tinha sido afetado por decisões de cunho ideológico. À época do

estabelecimento do monopólio, interesses nacionalistas prevaleceram em

detrimento de um mercado mais competitivo. Nos anos 1980, o fracasso

dos contratos de risco e o sucesso na bacia de Campos adiaram uma

possível abertura, que só veio em 1997 e não alcançou os segmentos de

refino e gás. No entanto, nenhuma intervenção teve o impacto negativo

das medidas adotadas a partir de 2007.

A Petrobras passou por sua mudança mais intensa e enfrentou a crise

mais profunda, justamente em um momento em que as condições de

mercado eram ideais para um aumento da produção e do lucro. Os

preços do petróleo estavam em crescimento e havia capital abundante, a

juros baixos. Foi a maior oportunidade perdida em uma geração.

9. A RETOMADA
Em 2016, era preciso adotar medidas que permitissem a recuperação dos

investimentos e a retomada da atividade. O fim da obrigação de a

Petrobras operar todos os campos do pré-sal foi objeto da Lei 13.365, de

29 de novembro daquele ano. Por um acordo político, foi estabelecida

uma preferência, de forma que a estatal atuasse como operador e


possuísse participação mínima de 30% nos consórcios formados para

exploração dos blocos licitados no regime de partilha de produção.

Seguiram-se ações no âmbito da política energética e da regulação. O

objetivo era atrair diversos tipos de investidores para os três ambientes

de exploração e produção presentes no Brasil: o pré-sal, os demais

campos marítimos e as áreas terrestres. Pela primeira vez foi criado um

calendário plurianual de rodadas. Com uma visão de longo prazo, as

empresas poderiam se preparar melhor para participar dos leilões. Foi

adotada uma nova política de conteúdo local com índices globais e

apuração mais fácil. Para quantificar o potencial petrolífero nacional,

intensificar as atividades exploratórias, promover a adequada

monetização das reservas e maximizar a recuperação dos reservatórios

existentes foram aprovadas novas políticas de exploração e produção.

O governo lançou programas voltados à revitalização de áreas

terrestres (Reate) e desenvolvimento do mercado de gás natural (Gás

para Crescer). O CNPE publicou diretrizes para individualização da

produção, definindo condições para a operação de campos

compartilhados por mais de um consórcio de empresas. Os contratos de

concessão ficaram mais simples e atraentes. Os royalties foram

reduzidos em áreas de fronteira. Foi regulamentada a isenção de


a
conteúdo local para os contratos até a 13 Rodada, removendo um

contencioso que paralisava investimentos.

As renovações de concessões foram simplificadas, os royalties sobre a

produção incremental resultantes de investimentos adicionais foram

reduzidos e o Reserve Based Lending, um financiamento garantido pelas

reservas de petróleo, foi regulamentado. Para estimular a exploração,

otimizar a utilização da infraestrutura ociosa e prolongar a extração no

entorno de campos já em produção, criou-se um novo modelo de leilão

de blocos: a oferta permanente. Consiste na disponibilidade contínua de

campos devolvidos e blocos exploratórios, por meio da qual há um

estoque permanente de áreas em carteira, dando oportunidade aos

investidores de adquirirem ativos a qualquer tempo.

O Regime Aduaneiro Especial de Importação e Exportação de Bens

(Repetro) venceria em 2020, prazo incompatível com os horizontes dos


contratos assinados após 2010. Foi renovado, permitindo que a

tributação permanecesse reduzida durante a realização dos

investimentos e fosse transferida para a etapa de produção, quando o

projeto já está gerando caixa.

Para aumentar o volume de petróleo retirado dos reservatórios até o

fim da vida útil, governos costumam adotar incentivos econômicos e

estimular as transferências de operação para empresas especializadas.

Medidas como essas também eram necessárias no Brasil. Enquanto a

média mundial de recuperação de petróleo em uma jazida está na casa

dos 35%, aqui era de 21%, em 2017. Aumentar a extração em 1%

representaria acrescentar 2,2 bilhões de barris de óleo equivalente às

reservas, que estavam em 15,5 bilhões em 2018. Um incremento desse

porte atrairia US$ 18 bilhões em investimentos e geraria US$ 11 bilhões

em royalties.

O reposicionamento da Petrobras demandou ações de política

energética e regulatórias. Para que os investimentos em campos maduros

fossem retomados, o CNPE se manifestou e a ANP estipulou um prazo

para a Petrobras decidir o destino de cerca de 250 campos em que havia

reduzido investimentos.

Foi acordada a revisão do contrato de Cessão Onerosa, que tinha

lacunas significativas, o que desencadeou contencioso entre a União e a

Petrobras. O imbróglio se arrastava desde 2014, gerando perdas

bilionárias a cada ano que passava. A renegociação viabilizou a licitação

dos volumes de óleo que excediam os 5 bilhões de barris vendidos à

Petrobras.

As medidas surtiram efeito. Os resultados dos primeiros leilões

superaram as expectativas. Os ágios nos blocos mais promissores foram


a
elevados. No entanto, apesar de as principais áreas oferecidas na 6

Rodada de Partilha e no Leilão do Excedente da Cessão Onerosa terem

sido contratadas, esses certames não tiveram o mesmo sucesso. As

incertezas sobre as regras aplicáveis às compensações devidas à

Petrobras pelos investimentos nos campos desestimularam a


a
participação de outras empresas no Leilão do Excedente. Na 6 Rodada,
a Petrobras, depois de ter exercido a preferência em três áreas,

surpreendeu e apresentou somente uma oferta.

Entre 2017 e 2019, o país atraiu R$ 112 bilhões a título de bônus de

assinatura, mais de 90% de todo o montante arrecado no mundo no

período. Os impactos fiscais foram significativos. Mais empresas

passaram a investir em exploração no Brasil. Ao mesmo tempo, novas

companhias começavam a adquirir ativos maduros e a apostar na sua

revitalização.

Em janeiro de 2020, a produção bateu recorde, atingindo pela primeira

vez mais de 4 milhões de barris de petróleo equivalente por dia, dos

quais 3,168 milhões de barris de óleo. Os royalties, as participações

governamentais e os recursos destinados a pesquisa e desenvolvimento

pelas empresas voltaram a subir. O setor de petróleo e gás começava a

deixar para trás a sua maior crise.

Mais importante que os bônus arrecadados eram os investimentos e a

arrecadação tributária previstos. Estimativas feitas em 2019 indicavam

que, se os projetos identificados fossem viabilizados, a produção poderia

chegar a 7 milhões de barris por dia, colocando o país entre os cinco

maiores produtores. Nesse caso, os investimentos alcançariam R$ 1,7

trilhão até 2030, enquanto a arrecadação potencial em valores nominais

poderia chegar a R$ 5,6 trilhões até 2054, com pico de cerca de R$ 300

bilhões anuais por volta de 2030.

Recentes insucessos na exploração no pré-sal e a provável redução de

demanda acelerada pela pandemia da Covid-19 vão reduzir as

estimativas de produção. No entanto, o potencial continua exuberante e

não tem paralelo na região. A retomada dos projetos já em andamento e

o início dos investimentos decorrentes das rodadas realizadas a partir de

2017 estão sustentando o crescimento das participações governamentais,

que continuarão a subir fortemente, impactando de forma muito positiva

as contas públicas. As contratações junto à cadeia de fornecedores vêm

aumentando e gerando empregos. No entanto, os blocos mais

conhecidos do pré-sal já foram contratados, as grandes empresas

construíram um portfólio robusto de ativos na região (Figura 10) e a

exploração em áreas de fronteira, característica de boa parte dos blocos

disponíveis no país, está perdendo atratividade em decorrência da


a
transição energética, como confirmou, em 2021, a 17 Rodada de

Concessão. Para continuar a atrair investimentos, é preciso melhorar a

competitividade dos projetos no Brasil.

Figura 10: Blocos na região do pré-sal

Fonte: ANP

10. O FUTURO
Ninguém diria, em 1970, que a solução para a autossuficiência brasileira

em petróleo estava escondida sob as águas profundas de Campos e

Santos e que, 50 anos depois, o país estaria exportando mais de 1 milhão

de barris por dia.

Hoje pode-se afirmar que isso foi consequência das inovações

tecnológicas e de gestão para as quais a Petrobras se preparou ao longo

do tempo, da quebra do monopólio, das rodadas de licitação e das

medidas tomadas a partir de 2016. Não das políticas intervencionistas

adotadas nas últimas décadas.

Nos países da América Latina, a politização do petróleo tem gerado

mais perdas que benefícios. Raramente trouxe os resultados prometidos.

Além de privilégios, produziu dividendos políticos efêmeros e

duvidosos, seguidos de desajustes estruturais, jamais soluções

duradouras. As experiências recentes indicam que transparência,

competição e parcerias são mais eficientes que monopólios. Avanços

tecnológicos e de gestão florescem quando o ambiente favorece os

negócios. A concentração de investimentos em uma só empresa, por


mais importante que seja, deixou lacunas que custam caro, como a falta

de capacidade de refino quando o país tem excedentes de petróleo, o

baixo desenvolvimento do mercado doméstico de gás e a acentuada

queda de produção nos campos maduros.

Desde os anos 1950, a indústria do petróleo viveu períodos em que a

oferta ou a demanda eram dominantes, facilitando o planejamento e

estimulando a execução de projetos de longo prazo de maturação como

os localizados em águas profundas ou a exploração em zonas de

fronteira. A transição energética aumentou as incertezas sobre a

demanda futura. No ambiente pós-covid, os ciclos de preço serão mais

curtos e a disputa por investimentos entre países vai se acentuar. Para

atrair mais empresas e capital, é importante que o Brasil continue

aperfeiçoando o marco regulatório e aumentando a competitividade.

Uma vez que as áreas mais promissoras do pré-sal já foram licitadas, o

principal objetivo deve ser garantir investimentos nos contratos já

assinados. Como o regime fiscal brasileiro é regressivo, o ideal seria

aproveitar as discussões sobre a reforma tributária para melhorá-lo.

Seria importante também não reabrir discussões que trazem insegurança

aos investidores, como as relacionadas a conteúdo local ou Repetro. A

oferta permanente poderia se tornar a forma preferencial de contratação,

abrangendo todas as áreas disponíveis, inclusive as localizadas dentro do

polígono. O regime de contratação deveria ser simplificado, optando-se

somente pela concessão. A conversão dos contratos de partilha

existentes em convênios de concessão parece de difícil implementação.

Contudo, enquanto houvesse ofertas de áreas em partilha e concessão, o

CNPE poderia ser autorizado a deliberar sobre a definição de área

estratégica, o direito de preferência da Petrobras poderia ser extinto e os

poderes da PPSA nos consórcios poderiam ser revistos. Os

investimentos em campos maduros e o desenvolvimento de acumulações

sub comerciais devem ser estimulados. Como não falta tecnologia para

gerar energia e produzir petróleo e gás de forma ambientalmente

responsável, inclusive de fontes não convencionais, é necessário

aperfeiçoar e acelerar o processo de licenciamento ambiental. Uma

medida aconselhável seria definir de antemão quais as regiões em que


haveria banimento das atividades e quais seguiriam abertas à

exploração.

Por fim, é preciso que as relevantes receitas futuras do petróleo sejam

utilizadas de forma correta. As expressões “maldição do petróleo” e

“doença holandesa” são comumente empregadas para alertar sobre os

riscos do mau uso da renda petrolífera e do efeito do aumento da

exportação de recursos naturais no setor industrial. Não existe maldição

do petróleo nem doença holandesa quando há regulação eficiente e boa

gestão. É necessário um adequado emprego dos royalties e dos demais

recursos destinados a União, Estados e municípios para que a última

janela de oportunidade para extração de petróleo e gás, antes da

inevitável transição energética, beneficie efetivamente a sociedade

brasileira.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Dos antecedentes da descoberta de Candeias
ODDONE DA COSTA, D. F.

ao Relatório Moura — Oddone, um passeio documentado por um


período importante da história da exploração de petróleo no Brasil.
[S.l.]: Petrobras, [s.d.]. Disponível em: https://docplayer.com.br/20873420-Decio-fabricio-

oddone-da -costa.html.
ODDONE DA COSTA, D. F. Óleo e Gás no Brasil. Uma oportunidade
histórica? Disponível em: https://www.atlanticcouncil.org/wp-

content/uploads/2016/07/Oleo__Gas_no_Brasil.pdf

ODDONE DA COSTA, D. F. Artigos diversos.

REFERÊNCIAS NA INTERNET
Audiência pública no Senado para debater a atuação da ANP.
Disponível em: http://www.anp.gov.br/arquivos/palestras/senado-decio.pdf.

Seminário Debates do Brasil — Os caminhos do futuro do óleo e gás


no país, 2018. Disponível em: http://www.anp.gov.br/images/Palestras/ANP_Decio-
Oddone_Semin%C3%A1rio_OGlobo_Agosto_2018.pdf.

Petrobras — Plano de Negócios 2011-2015. Disponível em:

https://infopetro.files.wordpress.com/2011/07/pnpetrobras2011-2015.pdf

ANP — Números Consolidados E&P, 2017. Disponível em:

http://www.anp.gov.br/images/publicacoes/sinteses/Numeros_consolidados_E&P-2017.pdf.
ANP — royalties e participações. Disponível em: http://www.anp.gov.br/royalties-e-

outras-participacoes/royalties.

Caderno Abespetro 2017. Disponível em:

https://abespetro.org.br/publicacoes/caderno-abespetro-2017-v2.pdf.
CAPÍTULO 15
PREÇOS DE COMBUSTÍVEIS
Décio Oddone

INTRODUÇÃO
Nas economias de mercado os preços dos derivados do petróleo flutuam.

Somente em casos extraordinários viram notícia. No Brasil, entretanto,

variações significativas causam discussões que trazem prejuízos ao setor

produtivo e aos consumidores. Em um país que adota o regime de livre

iniciativa, as cotações são estabelecidas pelo mercado. Combustíveis são

commodities. Nenhum país é formador de preço. Exceto os que adotam

controles, todos trabalham com as referências internacionais. Manter os

valores relacionados com os do mercado e do câmbio garante o

abastecimento e permite a atração de investimentos, o que possibilita a

ampliação da oferta e a redução da dependência externa. Também evita

o incentivo ao consumo excessivo de bens escassos e conserva a

estrutura de custos da economia alinhada à das cadeias produtivas

globais.

No entanto, quando os preços sobem há grande mobilização social,

pois há impacto na inflação, afetando particularmente os mais pobres e

algumas categorias profissionais. Falar em controlar as cotações ou

calculá-las com base nos custos é um equívoco conceitual. Foi tentado

sem êxito por décadas. A liberdade de preços teve início em janeiro de

2002. O alinhamento efetivo às referências externas, todavia, é muito

mais recente. Decorre da postura adotada pela Petrobras a partir da crise

iniciada em 2014. Se por um lado é necessário manter as cotações

internas vinculadas às internacionais, por outro os preços ao consumidor

devem ser justos. Mesmo não havendo ação mágica para reduzir o preço
ou atenuar a volatilidade, há espaço para, mediante uma atuação

adequada, sem interferências ou distorções, mitigar os efeitos ao

consumidor.

Este capítulo discute a importância de manter a inevitável flutuação

nos preços das commodities, de aumentar a competição ao longo da

cadeia de fornecimento de combustíveis e de otimizar a cobrança dos

tributos.

1. CONTEXTUALIZAÇÃO
Em 1956, o primeiro mecanismo formal de definição de preços apareceu

na Lei 2.975, que assumiu a paridade com os valores de importação nos

portos brasileiros como critério para o estabelecimento dos preços de

derivados no mercado interno. Retratava a realidade, pois a paridade é

uma boa aproximação do preço de mercado. Havendo importações, a

paridade de importação se impunha. Esse raciocínio foi considerado no

Plano de Refinarias 1958/1961 apresentado pela Petrobras ao CNP em

dezembro de 1958. O plano, que previa a construção de mais refinarias

no país, representava um primeiro passo na direção de alcançar a meta

de autossuficiência no abastecimento em derivados. Determinava que,

enquanto houvesse importações, a política de preços deveria se orientar,

como até então, pelos preços CIF (que incluem seguros e fretes) dos

similares importados. No entanto, o documento trazia a expectativa, que

perdura até hoje para alguns, de que, quando o país atingisse a

autossuficiência em petróleo, a formação interna de preços poderia ser

ditada a partir dos custos de produção ou dos preços de exportação.

Aquele trabalho foi elaborado em uma época em que vigorava o conceito

do monopólio estatal. Seria necessário que o país tivesse excedentes e se

mantivesse fechado ao comércio de derivados para formar preços com

bases nos custos. O mundo mudou. A economia se globalizou, as

transações internacionais decolaram, as cadeias produtivas se

integraram, a Petrobras deixou de ser monopolista. Com vários agentes

operando no Brasil, não seria razoável precificar derivados a partir dos

custos de produção. Havendo uma oferta que superasse a demanda

interna, a competição se encarregaria de levar os preços para a faixa da

paridade de exportação. Contudo a ideia de precificar os derivados a


partir dos custos permaneceu latente, especialmente a partir dos anos

1970, quando os choques nas cotações do petróleo estimularam

intervenções nos valores dos combustíveis.

No início da década de 1980, o Brasil era fortemente dependente de

importações. A Petrobras concentrava, como hoje, as atividades de

refino. Os preços eram formados a partir da cotação da gasolina, que

gerava excedentes para subsidiar o gás liquefeito de petróleo (GLP ou

gás de cozinha), o diesel, o querosene e a nafta. Um terço do custo da

gasolina correspondia a impostos. O álcool, como o etanol era chamado

naquela época, tinha um valor 25% inferior. Com subsídios aos fretes, os

preços eram mantidos iguais em todo território nacional. Aplicavam-se

subsídios cruzados entre diferentes produtos e subsídios diretos, com

recursos públicos.

Para contabilizar as perdas da Petrobras ao importar petróleo e

derivados a preços maiores que os praticados internamente, foi criada a

chamada conta-petróleo. Por meio da fixação dos preços no mercado

interno, a estatal era usada para fazer política pública. Com o aumento

da diferença entre os valores praticados e os preços da matéria-prima e

dos derivados importados, a conta-petróleo passou a acumular deficit


crescente. Os excedentes gerados pela gasolina deixaram de cobrir os

subsídios aos outros derivados. A queda do valor do petróleo, em 1986,

fez com que o subsídio ao álcool carburante ficasse ainda mais oneroso.

Na Constituição de 1988, foi eliminado o imposto único sobre

combustíveis e criado o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e

Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de

Comunicação (ICMS) estadual e um imposto municipal, que não se

aplicava ao diesel. A partir dos anos 1990, começou um processo de

desregulamentação das normas aplicadas à distribuição e revenda de

combustíveis automotivos e de gradual redução do controle dos preços,

das margens de comercialização e dos fretes. Os preços passaram a ser

iguais apenas nas bases de distribuição. Foram abrandadas as exigências

para operação de distribuidoras. O número cresceu de dez para 400. Os

subsídios para fretes, que eram fonte de fraudes, sofreram redução

gradual. Em 1995, com a liberação da cotação da nafta petroquímica,

começou o processo de flexibilização dos preços. Em seguida foi a vez


do querosene de aviação, da gasolina e do álcool. Em 1997, os postos

foram liberados para comercializar combustível de qualquer

distribuidora.

A Lei do Petróleo (Lei 9.478/1997) estabeleceu a livre concorrência

no setor, criou a Agência Nacional do Petróleo (ANP) e definiu a

abertura do mercado de combustíveis automotivos, que só veio a ser

concluída no final de 2001. Alguns ajustes precisavam ser feitos. A

conta-petróleo, um custo a ser arcado pelos contribuintes, havia chegado

a bilhões de reais. Por meio de uma fórmula que contemplava a chamada

parcela de preço específico (PPE), recolhida nas suas refinarias, a

Petrobras, até dezembro de 2001, foi compensada pelo Tesouro. Essa

parcela também tinha o objetivo de estabilizar as cotações no mercado

doméstico e garantir a competitividade do etanol. Na transição, foi

transformada na Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico

(Cide), um tributo regulatório sobre combustíveis. Seu objetivo principal

era funcionar como instrumento de estabilização de preços. Em

momento de elevação da cotação do petróleo, seria reduzida. Quando

houvesse queda nos custos dos combustíveis, seria elevada.

As discussões sobre uma maior competição no setor vêm de décadas.

De antes da Constituinte de 1988. Em 1999, a ANP contratou junto à

consultoria Arthur D’Little um estudo para reestruturar o setor em

médio e longo prazos. Foi proposta a desregulamentação desde o poço

de petróleo até a bomba de combustíveis, abrangendo importação,

refino, transporte, distribuição e comercialização. Os postos passariam a

poder comprar combustível direto das refinarias e as distribuidoras

teriam o direito de operar revendas. Os transportadores revendedores

retalhistas (TRR), agentes que fornecem diesel, querosene e óleo

combustível em grandes quantidades para empresas, como hospitais,

indústrias e transportadoras, também poderiam operar com revendas. O

projeto não foi adiante, mas, desde então, foram feitos ajustes na

regulação. Nem todos na direção de um mercado mais competitivo.

O início da abertura foi um período conturbado. A redução das

exigências para operação de distribuidoras possibilitou a criação de

empresas que atuavam de forma a obter liminares que as isentavam de

recolher tributos. Perderam os cofres públicos e as empresas que não


recorriam a essas manobras. Algumas delas deixaram de atuar no país.
o
Por fim, o processo chegou a uma conclusão. A partir de 1 de janeiro de

2002, os atores econômicos passaram a ter liberdade para estabelecer

margens e preços em um ambiente de livre concorrência.

A seção seguinte mostra a evolução do comportamento dos preços

desde a abertura. Em alguns momentos a Petrobras praticou valores

superiores aos de referência. Em outros, inferiores. Até 2014, a maior

parte dos projetos de investimento era conduzida pela estatal. A

regulação refletia um modelo em que a Petrobras era responsável pelo

abastecimento e atuava em toda a cadeia, inclusive, por meio de

subsidiárias, na distribuição, segmento no qual também atuavam

empresas privadas. A partir de 2016, a empresa passou a legitimamente

defender os interesses dos seus acionistas. Entretanto, para muitos

brasileiros a companhia é do povo e existe para fazer política pública. Os

resultados são conhecidos. Mais de 20 anos depois da liberação das

cotações, o setor carece de investimentos e o país segue dependendo de

importações e imerso em discussões sobre o valor dos combustíveis.

2. A EVOLUÇÃO DO PREÇO DOS


COMBUSTÍVEIS
Com a liberação e a necessidade de o país importar derivados e petróleo

para completar a carga nas refinarias, era natural que os preços

voltassem a seguir as variações dos combustíveis no mercado

internacional e no câmbio. No entanto, isso nem sempre ocorreu de

forma regular. Ainda em 2002, às vésperas da eleição presidencial,

houve aumento da cotação do petróleo e disparada do dólar. A ANP

determinou uma redução no preço do GLP envasado em botijões de 13

kg, padrão para uso residencial, o que criou uma diferenciação das

cotações em função do uso. Foi o primeiro ajuste na metodologia de

precificação dos combustíveis nesses quase 20 anos. A Figura 1 traz a

evolução dessas práticas desde 2002.

Figura 1: Evolução da metodologia de precificação dos combustíveis a


partir de 2002
Fonte: ANP.

Inicialmente, os preços da gasolina e do diesel buscavam seguir os

patamares internacionais, sem alterações frequentes. Os picos eram

atenuados, como pode ser verificado nos Gráficos 1 e 2, a seguir, que

mostram o comportamento do preço de gasolina e diesel, de janeiro de

2002 a julho de 2021, nos mercados de referência (litoral estadunidense

do golfo do México) e interno, a partir de dados retirados do Relatório

do Mercado de Derivados de Petróleo publicado mensalmente pelo

Ministério de Minas e Energia (MME).

Gráfico 1: Variação do preço da gasolina

Fonte: Ministério de Minas e Energia - MME

Gráfico 2: Variação do preço do diesel


Fonte: MME

Quando as cotações externas caíram, em reação à crise financeira de

2008, os valores permaneceram praticamente inalterados, só vindo a

sofrer alterações significativas no final de 2012. De 2008 a 2010, a

Petrobras praticou preços superiores aos internacionais, se capitalizando

para fazer frente aos grandes investimentos planejados no período. Entre

2011 e 2014, os preços nas refinarias estiveram abaixo das referências, o

que trouxe perdas estimadas em cerca de R$ 100 bilhões. Essa prática

também prejudicou o setor de biocombustíveis. A partir de 2015, o

quadro mudou, possivelmente em função da necessidade de reduzir a

dívida da empresa.

Em 2016, a Petrobras adotou a prática de seguir o preço de paridade

de importação (PPI), que inclui, além do valor de aquisição, todos os

outros custos e riscos incorridos pelo comprador, por exemplo, perdas,

fretes e seguros, com uma margem para cobrir os riscos. O PPI não é um

valor único, como tampouco são os valores de referência nos mercados

de origem. Depende das particularidades de cada importador, dos

volumes contratados e dos custos de frete e seguros e de acesso à

infraestrutura logística. Tem um valor distinto em cada local, fruto da

distância percorrida e do modal de transporte adotado. Os custos de

transporte, movimentação e perdas variam por produto, sendo maiores

no caso do GLP. Como a Petrobras é dominante, a sua referência

prevalece. No entanto, não importa a configuração do setor, seguir o PPI

é a única forma de manter o mercado abastecido.


Até 2017, as cotações internas se mantiveram acima das

internacionais, inclusive das vigentes nos países da OCDE, de acordo

com o mesmo relatório do MME (Gráficos 3 e 4).

Gráficos 3 e 4: Comparação dos preços da gasolina e do diesel, sem


contabilizar tributos, no Brasil com os praticados nos países da OCDE, entre
2015 e o início de 2018

Fonte: MME

Fonte: MME
As importações cresceram. As margens caíram. Com os importadores

ganhando mercado, os preços do diesel e da gasolina passaram

gradativamente a se aproximar dos internacionais.

A cotação do GLP residencial permaneceu congelada até 2015,

quando voltou a flutuar (Gráfico 5). Os valores do mesmo produto para

uso não residencial foram subindo mais acentuadamente, para

compensar os aplicados às embalagens de 13 kg. Em janeiro de 2018, a

companhia anunciou que os ajustes seriam trimestrais em vez de

mensais e a referência continuaria sendo o preço do butano e propano

(componentes do GLP) comercializados no mercado europeu, acrescido

de uma margem de 5%. A partir de agosto de 2019, os reajustes

passaram a ser feitos sem periodicidade definida. A base continuou a ser

a paridade de importação, mas usando a região do golfo do México, que

dispõe de oferta mais abundante e onde tem origem a maior parte dos

volumes importados, como exemplo, acrescida de uma margem para

remuneração dos riscos inerentes à operação. A diferenciação de preços

com base no tamanho da embalagem criou uma série de distorções, que

só foram eliminadas quando os preços foram equalizados em 2020.

Gráfico 5: Variação do preço do GLP

Fonte: MME.
As variações na cotação do querosene de aviação seguiram mais

fielmente as praticadas externamente (Gráfico 6).

Gráfico 6: Variação do preço do querosene de aviação


Fonte: MME.

A partir do início das operações do gasoduto Bolívia-Brasil em 1999,

o óleo combustível passou a sofrer maior competição do gás natural (por

restrições de espaço não tratamos aqui da precificação desse

combustível). A sua cotação (Gráfico 7) teve reajustes mais frequentes

até 2010. Desde 2011, seguiu uma trajetória que tem similaridades com

as cotações do diesel e da gasolina.

Gráfico 7: Variação do preço do óleo combustível

Fonte: MME.
A experiência indica que o modelo adotado desde 2002, em que a

Petrobras detém o monopólio de fato no refino e fornece a maior parte

dos derivados, não funcionou na plenitude. Houve momentos em que os

preços do diesel e da gasolina eram inferiores aos de referência.

Também ocorreram períodos em que eram superiores, justamente

durante as recessões de 2008-2010 e de 2014-2017. Quando os valores

estiveram abaixo dos necessários para viabilizar a importação, a estatal

supria o mercado, absorvendo perdas bilionárias. Nos períodos em que

os preços estavam alinhados com o mercado ou acima dos

internacionais, apareciam as importações por terceiros, que

diversificavam e garantiam o fornecimento, além de limitar o poder de

mercado da Petrobras.

O menor nível de transparência na divulgação dos preços facilitou o

descasamento entre os mercados doméstico e externo por longos

períodos. Com uma oferta mais competitiva e informações mais

detalhadas, as margens foram reduzidas e as cotações passaram a se

aproximar mais das referências. Embora o período decorrido desde 2018

seja curto, pode-se afirmar que os preços praticados desde então são os

mais alinhados ao mercado internacional jamais praticados desde

janeiro de 2002.

3. A GREVE DOS CAMINHONEIROS DE MAIO


DE 2018 E SUAS CONSEQUÊNCIAS
Quando as cotações do petróleo despencaram no final de 2014, a

Petrobras não alterou os preços dos principais derivados, que se

mantiveram acima dos praticados em outros países. Em outubro de

2016, a companhia anunciou que seguiria o PPI, com reajustes mensais

para a gasolina e o diesel, mais uma margem para remunerar riscos. Em

julho de 2017, os reajustes passaram a ser diários. A divulgação

constante dos preços médios deu visibilidade contínua ao tema. As

cotações do petróleo e do dólar subiram, em 2018. A combinação dos

aumentos com os anúncios diários provocou a greve dos caminhoneiros.

O impacto foi enorme. Houve desabastecimento parcial e impacto no

crescimento da economia.
A postura adotada pela Petrobras após 2014 vinha demandando uma

mudança na atuação dos órgãos responsáveis pela política energética e

pela regulação. O reposicionamento legítimo da estatal (que, após um

período em que teve prejuízos e perda de reputação, passou a buscar

maximizar o lucro e não mais a atuar como braço do governo)

demandava ações de política energética e regulatórias para que os preços

praticados refletissem a ação das forças do mercado e os investimentos

no abastecimento de combustíveis fossem retomados. Regular um

mercado com alto grau de concentração e adotar medidas que

contrariam interesses é tarefa difícil, que só é exitosa quando o regulador

adquire força para introduzir novas regras. A greve dos caminhoneiros

mostrou a necessidade de aumentar a competitividade ao longo de toda a

cadeia e de implementar medidas que eliminassem reservas de mercado

e barreiras à concorrência. E, assim, criou as condições para que o

executivo e os órgãos reguladores atuassem com maior intensidade.

O governo federal usou as ferramentas disponíveis. Reduziu a Cide a

zero e diminuiu o PIS/Cofins sobre o diesel. Como isso não foi

suficiente para gerar o efeito desejado, criou uma subvenção para

produtores e importadores, assumindo os custos via Tesouro.

Corretamente, não interferiu nos preços no nível do produtor ou

importador. No entanto, essa política tinha custo fiscal elevado e

subsidiava o combustível para todos, em vez de focar nos mais

necessitados.

Em função da situação instalada com a greve, a ANP adotou uma série

de medidas para garantir a continuidade do abastecimento e inibir

preços abusivos: liberação da vinculação de marca para vendas de

distribuidoras de combustíveis líquidos, combustíveis de aviação e GLP;

suspensão das regras que exigiam a manutenção de estoques

operacionais mínimos de gasolina, diesel e querosene de aviação;

flexibilização da obrigatoriedade de mistura de biodiesel no diesel A e

de etanol anidro entre 18% e 27% da mistura na gasolina A; permissão

para que TRRs vendessem a postos revendedores; liberação do

engarrafamento de vasilhames de GLP por distribuidoras de outras

marcas. Passado o momento mais agudo da crise, as ações emergenciais

foram revogadas.
Em audiência pública no Congresso Nacional, o Conselho

Administrativo de Defesa Econômica (Cade) propôs nove medidas para

aumentar a concorrência no setor e reduzir os preços ao consumidor:

permitir que produtores de etanol vendam diretamente aos postos;

repensar a proibição de verticalização do setor de varejo de

combustíveis; extinguir a vedação à importação de combustíveis pelas

distribuidoras; fornecer informações aos consumidores do nome do

revendedor de combustível, de quantos postos o revendedor possui e a

quais outras marcas está associado; aprimorar a disponibilidade de

informação sobre a comercialização de combustíveis; rever a

substituição tributária do ICMS; repensar a forma de tributação do

combustível; permitir postos de autosserviços (sem frentistas) e

reconsiderar as normas sobre o uso concorrencial do espaço urbano.

A Secretaria de Acompanhamento Fiscal, Energia e Loteria (Sefel) do

então Ministério da Fazenda, atual Secretaria de Avaliação,

Planejamento, Energia e Loteria (Secap), do Ministério da Economia

(ME), sugeriu a adoção de medidas para eliminar as restrições à

verticalização entre segmentos do setor (produção, distribuição e

revenda) e a proibição de comercialização a revendedor com bandeira

diferente da distribuidora, além de liberar a venda direta de etanol dos

produtores aos postos de revenda. Simultaneamente propôs ações para

sanear eventuais distorções tributárias resultantes da liberação, o

estabelecimento de mecanismos de amortecimento contra variações do

preço dos combustíveis, discutindo-se os limites e possibilidades para

sua implementação, bem como as melhores práticas para o desenho

desse mecanismo e a extinção da política de preços diferenciados para o

segmento de GLP.

Um grupo de trabalho na alçada do Ministério da Fazenda

recomendou a adoção da venda direta de etanol, de medidas no âmbito

fiscal e a avaliação pela ANP da revogação da resolução que estabelece a

tutela regulatória da fidelidade à bandeira (a fiscalização pela Agência

do cumprimento dos contratos entre distribuidoras e postos). A ANP e o

Cade montaram um grupo de trabalho para estudar o mercado de

combustíveis.
Paralelamente, começou a ganhar força um movimento pela

intervenção no preço da gasolina e estabelecimento de uma

periodicidade mínima para os reajustes. A ANP abriu uma inédita

tomada pública de contribuição (a TPC 1/2018), que avaliou estabelecer

um espaço de tempo mínimo entre os reajustes. Como, nos mercados

verdadeiramente livres, os preços flutuam quando necessário, não em

períodos definidos, a consulta resultou na resolução que conferiu maior

transparência na divulgação dos preços, que passaram a ser informados

não mais pela média aritmética, sem considerar os volumes entregues

em cada local, como a Petrobras adotava, mas por ponto e condição de

entrega.

No contexto de discussão sobre os entraves regulatórios para a

competição, a ANP abriu outras quatro TPCs: 2/2018 (venda direta de

etanol hidratado das usinas para os revendedores varejistas), 3/2018

(verticalização da cadeia de abastecimento), 4/2018 (tutela regulatória

da fidelidade à bandeira) e 7/2018 (enchimento fracionado de

recipientes transportáveis de GLP por parte dos distribuidores e a

comercialização de GLP em recipientes de outras marcas). Quando este

capítulo estava sendo elaborado, essas TPCs continuavam em análise.

No primeiro semestre de 2018, a Petrobras havia lançado uma

iniciativa para separar as refinarias do Nordeste e do Sul em clusters e

vender 60% de participação em cada um deles. Após a greve, a ANP

enviou ao Cade um ofício recomendando que fosse avaliada a

concentração no mercado de refino. A autarquia responsável pela defesa

da concorrência abriu inquérito e, por meio de documento do seu

Departamento de Estudos Econômicos, divulgado em dezembro de

2018, indicou que a concentração permite algum nível de poder de

mercado para a Petrobras, que se utiliza de sua localização geográfica

isolada em termos dos mercados mundiais principais para incluir na sua

margem de lucro o custo de transporte. Esse trabalho trouxe as seguintes

recomendações: venda de ativos por completo, sem que a Petrobras

mantenha resquícios de participação societária passiva; venda de ativos

regionais a agentes diferentes, em vez da criação de quase monopólios

regionais, para que os consumidores brasileiros possam se beneficiar da


concorrência; desinvestimentos no Sudeste brasileiro, onde há elevada

densidade econômica do ponto de vista de demanda e oferta de insumos.

Com a posse do novo governo em janeiro de 2019, as iniciativas para

abertura do mercado de abastecimento, que estavam organizadas no

Programa Combustível Brasil tiveram continuidade por meio da

iniciativa Abastece Brasil. Em maio de 2019 o Conselho Nacional de

Política Energética (CNPE) aprovou a Resolução 9, que estabelece

diretrizes para a promoção da livre concorrência na atividade de refino

no País. Em junho foi a vez da Resolução 12, que estabeleceu diretrizes

para a promoção da livre concorrência no abastecimento de

combustíveis, demais derivados de petróleo e biocombustíveis.

Em junho de 2019, o Cade e a Petrobras celebraram Termo de

Compromisso de Cessação (TCC) por meio do qual a estatal se

comprometeu a vender oito refinarias de petróleo com os ativos

relacionados a transporte de combustível, incluindo a refinaria localizada

em Minas Gerais.

O assunto abastecimento de combustíveis também chegou ao

Congresso Nacional, que organizou audiências públicas para debater

temas como o preço dos combustíveis, a verticalização do setor de

combustíveis líquidos e a venda direta de etanol.

Em 2020 e 2021, as negociações para venda de refinarias avançaram e

várias medidas para aumentar a competição no setor de combustíveis

tinham sido tomadas ou estavam em análise. Ao longo desse período, a

volatilidade dos preços e da taxa de câmbio produziu alterações

constantes nos preços dos derivados, que continuaram sendo objeto de

amplas discussões públicas.

4. A COMPOSIÇÃO DO PREÇO DOS


COMBUSTÍVEIS
A questão do custo dos combustíveis não sai de cena. Quando os preços

internacionais do petróleo ou a cotação do dólar sobem, surgem

preocupações com o impacto para o consumidor. Quando caem, se

debate porque as reduções nas refinarias não chegam às bombas.


O preço dos combustíveis nas refinarias representa, a depender do

produto, cerca de 30% a 50% do valor final. No entanto, concentra a

discussão sobre os custos. Isso ocorre porque o domínio da Petrobras no

refino faz da estatal a principal formadora dos preços, o que permite que

setores da sociedade entendam que possa haver alguma intervenção

pública na empresa para proteger o consumidor. Esse raciocínio está

equivocado, mas, enquanto a estatal for dominante, a percepção de que o

governo é responsável pelo preço dos combustíveis e pode fazer algo em

nível de empresa para reduzi-lo estará presente.

Uma análise completa do valor cobrado pelos combustíveis deve

abranger todos os seus componentes: produtos, incluídos os

biocombustíveis utilizados na mistura, margens de distribuição e

revenda e tributos. No momento em que este capítulo estava sendo

escrito, os preços dos combustíveis, pressionados pela cotação do dólar e

pelo petróleo, que tinha recuperado o patamar de US$ 70 por barril,

perdido antes da pandemia da Covid-19, haviam atingido nível recorde.

O preço médio do diesel no estado de São Paulo estava em R$ 4,647/l, o

da gasolina em R$ 5,681 e o do GLP em R$ 92,59 por botijão de 13 kg.

A parcela do produtor era de R$ 2,499, R$ 2,044 e R$ 47,13,

respectivamente. A Figura 2 mostra a composição média do preço do

diesel S10, da gasolina e do GLP no Brasil. A parte do refinador era de

53%, 33,8% e 50,1%. O restante correspondia ao custo dos

biocombustíveis misturados ao diesel e à gasolina, às margens de

distribuição e revenda e aos tributos.

Figura 2: Composição média do preço do diesel, da gasolina e do GLP no


Brasil (29/08 a 04/09/2021)
Fonte: Petrobras e ANP.

Antes de concluir alguma operação de venda de refinaria, a Petrobras

detinha 98% da capacidade de refino de petróleo no Brasil e fornecia

cerca de 80% dos combustíveis consumidos aqui. Como não há

refinarias suficientes e as unidades necessitam de matéria-prima

importada para formar o mix processado, embora o país tenha se

tornado um exportador relevante de petróleo, continua dependendo da

importação de óleo e combustíveis.

Derivados de petróleo são commodities, ou seja, produtos similares,

produzidos e negociados mundialmente, como café, soja, milho, minério

de ferro ou de cobre. A precificação não tem relação com o custo de

produção. Para viabilizar a compra de um produto no exterior para

venda no mercado interno, o preço de paridade de importação se impõe.

Importações por privados e investimentos, necessários para garantir e

aumentar a oferta e mitigar as altas de preços, só se justificam quando os

preços seguem a paridade. Dessa forma, os investidores têm segurança

de que não serão surpreendidos por intervenções inesperadas. Se a

paridade não for respeitada, haverá subsídios à importação ou

desabastecimento. Não existirão investimentos.

O biodiesel e o etanol misturados ao diesel e à gasolina também têm

preços atrelados ao mercado internacional. O etanol compete com a


gasolina. Como o seu poder energético equivale a 70% do presente no

derivado do petróleo, seu preço tende a respeitar essa relação. O

biodiesel segue a cotação de outra commodity, a soja, seu principal

insumo. O preço do etanol, nos primeiros nove meses de 2021, havia

subido bem mais que o da gasolina. O aumento do custo da matéria-

prima provocou uma disparada no preço do biodiesel, que saiu de R$

2,30/l, no final de 2017, para R$ 5,60 em setembro de 2021. As

autoridades reduziram de 13% para 10% o teor na mistura. No entanto,

não há questionamentos sobre a formação das suas cotações nem

demandas de intervenção por parte do executivo. Tampouco o governo é

responsabilizado pelo preço dos biocombustíveis. Possivelmente, porque

na produção de etanol e biodiesel não haja a concentração existente no

Brasil na elaboração do combustível de origem fóssil. E porque, como o

plantio e beneficiamento da cana e da soja não são objeto da politização

associada à exploração do petróleo, nunca houve uma campanha O

Etanol e o Biodiesel São Nossos.

A escalada nos preços dos combustíveis nos últimos anos, no entanto,

não ocorreu somente no valor nas refinarias, mas também nas margens

nominais de distribuição e revenda e nos tributos. As margens são

estabelecidas pelo mercado. Atuam no Brasil cerca de 150 distribuidoras

de gasolina, etanol e diesel, embora as três principais sejam responsáveis

pela maior parte dos volumes. No setor de GLP há um menor número de

distribuidoras, mas as três maiores também detêm participação

majoritária. A revenda está pulverizada em mais de 40 mil postos de

gasolina, diesel e etanol e mais de 70 mil pontos de venda de GLP.

As margens na gasolina e diesel representam a menor das parcelas que

compõem os preços, cerca de 10% do total. Mesmo reduções

significativas não serão suficientes para alterar o patamar das cotações.

Ainda assim, elas devem ser definidas da forma mais competitiva e

eficiente possível. Para isso, é preciso que seja dada maior liberdade de

atuação aos agentes, que a regulação promova o estímulo à concorrência

e o livre acesso às instalações de transporte, tratamento e

armazenamento de derivados, que sejam feitos investimentos para

aumentar a eficiência logística e que a competição ocorra em bases

justas.
Os tributos são definidos pelos governos federal e estaduais. Os

impostos federais são cobrados por meio de um valor fixo por litro. O

PIS/Cofins é de R$ 0,6869 na gasolina e de R$ 0,3271 no diesel. A Cide,

que se aplica somente à gasolina, é de R$ 0,10. Os tributos federais

sobre o GLP foram zerados. O tributo estadual ICMS representa um

percentual do preço final. As alíquotas variam por estado. A Tabela 1

traz o percentual que os tributos representam no preço final do diesel, da

gasolina e do GLP.

Tabela 1: Participação dos tributos no preço final dos combustíveis (em


pontos percentuais, de 29/08 a 04/09/2021)

Tributos Diesel Gasolina GLP

Federais 7 11,4 0

Estaduais (média) 16,2 27,8 15,6

Total 23,2 39,2 15,6

Fontes: Fecombustíveis, ANP.

Embora a sociedade tenha a percepção de que os tributos sobre os

combustíveis são elevados, a definição do seu nível é uma questão de

política pública. Há países em que são mais baixos que no Brasil. Da

mesma forma que existem os que tributam mais. Qualquer escolha é

legítima. No entanto, devem ser definidos e cobrados de forma simples e

eficiente, o que não ocorre aqui.

5. ESTABILIDADE DOS PREÇOS


Quando os preços sobem há um clamor pela estabilização. Nesses

momentos, confunde-se nível e volatilidade das cotações. Para que os

preços sejam os mais justos, devem ser formados em ambiente

competitivo e transparente ao longo de toda a cadeia, do produtor e

importador ao ponto de revenda. No entanto, commodities têm cotações

intrinsecamente voláteis. Às suas flutuações se somam as variações na

taxa de câmbio. Inibir a transferência das cotações dos produtos e do

câmbio ao consumidor é difícil e contraproducente.


Alguns países implementaram fundos de estabilização. Em períodos

de cotações baixas, se utilizariam recursos de um tributo para capitalizá-

lo. Em situações de preços altos, o tributo seria reduzido, segurando os

valores ao consumidor. Assim haveria previsibilidade. Os resultados, em

geral, não foram animadores. Quando os valores estão baixos é

politicamente difícil mantê-los altos para criar ou capitalizar o fundo.

Como as discussões só ocorrem em momentos de alta, seria necessário

aportar recursos públicos para viabilizar, inicialmente, a ideia. A sua

criação daria margem ao aumento da pressão por intervenções. Na alta,

para que as cotações não subam. Na baixa, para que sigam o mercado e

caiam. Possivelmente, demandaria aportes públicos frequentes. Por isso,

é improvável que um fundo para estabilizar preços opere

adequadamente.

Uma alternativa de financiamento seria usar parte da arrecadação

gerada pela produção de petróleo para subsidiar os combustíveis. Do

ponto de vista fiscal, a situação do Brasil atual é diferente da vivida no

passado, quando aumentos no preço do petróleo afetavam negativamente

a balança de pagamentos, os custos dos combustíveis e a inflação. O país

será um exportador de petróleo cada vez mais relevante. Recebe mais

dólares, royalties e outras participações governamentais quando o preço

sobe. Um aumento na cotação internacional do petróleo gera recursos

suficientes para mitigar parte do impacto no preço ao consumidor da

gasolina, do diesel e do GLP. Empregar uma parcela da arrecadação

excedente para compensar impactos no preço dos derivados ao

consumidor por meio da redução de impostos seria uma decisão de

política pública. A questão é se, em tempos de transição energética, de

carência de recursos para a redução da desigualdade e de busca de

aumento da produtividade da economia, esse seria o melhor destino para

os ingressos extraordinários. E se as regras que estabelecem o teto de

gastos permitiriam esse tipo de utilização das receitas extraordinárias.

É importante lembrar que a ideia de minimizar a volatilidade dos

preços foi materializada na Cide, idealizada originalmente para atuar

como mecanismo de estabilização. Seria mais alta nos momentos de

queda das cotações e mais baixa nos de alta. Não funcionou. Há

dificuldades práticas para implementar alterações rápidas no seu valor.


Além disso, para evitar distorções, deveria voltar a ser aplicada sobre o

etanol, como concebido inicialmente. Caso contrário, favoreceria a

cotação desse combustível. O Fundo Social criado com os recursos da

exploração do pré-sal também teria a função de mitigar flutuações de

preços. Se por um lado o uso da Cide ou do Fundo como ferramenta de

estabilização dos preços só seria eficaz se houvesse ajustes e disciplina

rígida na aplicação, por outro a cobrança do ICMS por meio de um valor

fixo por litro seria uma forma objetiva de reduzir a volatilidade, como

descrito adiante.

Outra ideia, que surgiu com o aumento da produção, é taxar a

exportação de petróleo para incentivar a construção de refinarias. O

atual nível de preços está mais afetado pelo câmbio que pelo cru. Desde

o início da década passada, a cotação do petróleo caiu, de mais de US$

100 para cerca de US$ 80 o barril (Gráfico 8). A do dólar, no entanto,

disparou (Gráfico 9). Foi de menos de R$ 2 para mais de R$ 5. Com

isso, o barril saiu de R$ 200 para R$ 440. Aplicar imposto na

exportação de petróleo atingiria o coração do setor de petróleo no país,

impactando investimentos, produção e arrecadação. Colocaria em risco

o futuro da indústria no Brasil, quando justamente se posiciona para

aumentar significativamente a produção. Além disso, como refinarias

têm sido fechadas ao redor do mundo, é improvável que novas unidades

de grande porte venham a ser construídas aqui.

Gráfico 8: Evolução do preço do petróleo

Fonte: MME
Gráfico 9: Variação da taxa de câmbio

Fonte: Banco Central

A intervenção em nível de produtor ou importador e a taxação da

exportação de petróleo seriam equívocos. A criação de um fundo

possivelmente demandaria recursos públicos que poderiam ser melhor

empregados. Terminaria significando, na prática, um subsídio aos

combustíveis para pobres e ricos. Daria sinais equivocados de preço e

desequilibraria oferta e demanda, desconectando um custo relevante dos

praticados em outros países. Por fim, estimularia o consumo de produtos

que poluem.

Restariam soluções pontuais, como uma subvenção ao gás de cozinha

para famílias pobres ou compensar os transportadores pela variação no

preço do diesel entre a contratação do frete e a entrega da carga, como

nos EUA. A primeira medida, contudo, já foi implementada, quando foi

criado o Vale Gás, depois integrado ao Bolsa Família. Como

demonstrado na prática, um reforço dos recursos repassados por esse

programa seria mais eficiente para combater a pobreza que a diluição

dos aportes em diferentes iniciativas de menor poder de fogo. A

segunda, o chamado fuel surcharge (sobrepreço em função do

diesel), protege os caminhoneiros do sobe e desce do preço do

combustível. É aplicada até no envio de encomendas, amplamente

adotado no eficiente sistema logístico americano. A tabela de frete,

adotada a partir da greve dos caminhoneiros, busca produzir um efeito

semelhante, mas o modelo americano é mais simples e funcional.


6. A NECESSÁRIA CONCLUSÃO DA ABERTURA
Apesar do aumento da produção de petróleo, a abertura iniciada nos

anos 1990 não se completou. A concentração nos setores de gás natural

e de refino e abastecimento pouco se alterou e a criação de um mercado

competitivo não se concretizou. A partir de 2016, uma série de medidas

foi responsável pela maior transformação que o setor de petróleo e gás

jamais havia experimentado. A retomada exitosa dos leilões e outras

medidas levaram o segmento de exploração e produção a um novo

patamar. Em julho de 2021, a produção alcançou mais de 3 milhões de

barris por dia, volume superior no mês ao de todos os países da

Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), exceto Arábia

Saudita e Iraque. Apenas o aumento substancial da produção e da

arrecadação, entretanto, não é suficiente para completar a transformação

potencial que a indústria pode produzir em benefício da sociedade

brasileira.

A decisão do governo, em 2016, de dar autonomia à Petrobras, que

passou a definir preços de forma independente e a vender ativos, foi

fundamental para o processo de modernização do setor. O CNPE, a

ANP e o Cade passaram a atuar em prol de um ambiente mais

competitivo. O modelo vigente havia sido montado há décadas, quando a

Petrobras exercia o monopólio da produção e refino, participava da

distribuição de derivados e se confundia com a indústria de petróleo e

gás no Brasil. Os corpos técnicos da estatal, do MME, da ANP e de

outros órgãos públicos e instituições haviam sido formados em um

ambiente de monopólio e de proximidade entre a empresa e o governo.

Fruto das circunstâncias que existiam durante a época do monopólio e

da presença da companhia ao longo de toda a cadeia, algumas normas e

práticas vigentes até hoje limitam as transações comerciais, restringem a

liberdade comercial dos agentes e criam reservas de mercado e barreiras

de entrada. A conclusão do processo de abertura do setor de petróleo e

gás é um desafio complexo, que vai além de decisões técnicas ou

regulatórias. Avança no ambiente da cultura das corporações e entidades

e da política. E tem interfaces com a forma de tributação, que foi

estabelecida quando a Petrobras era dominante. Essa nova estratégia,

como esperado, enfrentou e continua enfrentando resistências. Os


desinvestimentos e o alinhamento dos preços aos mercados

internacionais sempre foram objeto de questionamentos.

Apesar das dificuldades, alguns avanços são visíveis. Os preços dos

derivados de petróleo passaram a ser divulgados com maior

transparência e nunca estiveram tão próximos dos internacionais. O

acordo firmado entre o Cade e a Petrobras para diminuir sua

participação no mercado de refino começa a dar resultados. A estatal

deixou a distribuição de derivados e de gás de cozinha, o que eliminou

conflitos de interesse ao longo da cadeia. A qualidade da gasolina

vendida no Brasil se aproximou dos padrões internacionais. Algumas

mudanças na regulação ajudaram a aumentar a competição.

A Petrobras nunca teve condições de fazer todos os investimentos

necessários. Agora não pretende mais fazer. Porque o setor de petróleo e

gás no Brasil necessita de capitais além dos que a estatal pode levantar,

é preciso que muitas empresas invistam no país. Só quando houver mais

companhias refinando petróleo, importando derivados e disputando

efetivamente espaço com a estatal, bem como existir maior competição

ao longo de toda a cadeia, os preços serão formados da forma mais

adequada possível.

Com a conclusão da venda dos campos maduros e da metade do

parque de refino e a concretização da abertura do mercado de gás

estarão dados os passos mais importantes para modernizar o setor. O

monopólio será, por fim, substituído por uma indústria competitiva e

dinâmica. Os investimentos crescerão. Os preços em nível de refinaria

ou importação serão ditados pela concorrência. O governo sempre será

cobrado pela evolução do valor dos combustíveis, mas as intervenções se

limitarão a medidas para fomentar a competição ou aprimorar a

cobrança de tributos. As discussões sobre uma possível privatização da

Petrobras poderão se resumir a uma avaliação desapaixonada sobre a

melhor alocação dos recursos da União. Se essa for a decisão política, a

companhia poderá ser dividida e vendida em partes, para diminuir a

concentração, levantando recursos que poderão ter um destino mais

nobre que o setor de petróleo, já alvo então de investimentos privados

mais elevados que os que a Petrobras monopolista sozinha jamais pode

fazer.
7. O QUE FAZER
Para que a abertura tenha continuidade, as ideias intervencionistas

precisam ser superadas. Ao longo do tempo, os preços dos combustíveis

foram objeto de todo tipo de medida. Muitas de impacto imediato,

tomadas em momento de crise. Houve controle de preços, intervenções,

subsídios cruzados e diretos. Nada funcionou. Os custos fiscais foram

altos. A oferta foi inibida. A Petrobras acumulou perdas. Como a

empresa voltou a ter lucros, setores da sociedade entendem que seria

possível alguma intervenção para proteger o consumidor.

As variações nas cotações dos derivados, como em qualquer

commodity, podem ser intensas e imprevisíveis, uma vez que estão

sujeitas tanto a pressões de oferta e demanda quanto a questões

geopolíticas. Não existe saída milagrosa para reduzir o preço ou a

volatilidade. Exceto ajustes na tributação, não há medida imediata capaz

de atenuar o repasse nos preços dos combustíveis quando o petróleo ou

o dólar sobem. Intervenções causam distorções que cedo ou tarde vêm à

tona. Uma solução definitiva e sustentável precisa considerar o que a

pioneira Lei 2.975 já reconhecia em 1956 (o nível das cotações é

determinado pelo ambiente externo) e passa basicamente pelo

compromisso com o alinhamento dos preços domésticos aos

internacionais. Para evitar aumentos decorrentes de margens

excessivamente altas, também, por uma maior competitividade em toda

a cadeia (produção, importação, distribuição e revenda) e pela

disponibilização de informações de forma transparente. E, por fim, pela

cobrança de tributos de forma simples e eficiente.

O alinhamento dos preços aos praticados nos mercados internacionais

é fundamental para a garantia do abastecimento de combustíveis, para o

sucesso da Petrobras e da indústria brasileira de petróleo e

biocombustíveis, para a atração de investimentos e para a redução da

dependência de importações. O desalinhamento dos preços prejudica o

consumidor e o setor de combustíveis e dificulta a programação de

investimentos, além de impactar a competitividade externa do setor

produtivo, que fica exposto a variações de custos importantes de forma

desconectada do mercado mundial.


Qualquer redução nos preços ou nas margens adotadas acima do PPI

só virá com o aumento da concorrência ou crescimento da oferta. Maior

flexibilização na definição dos volumes entregues pela Petrobras às

distribuidoras pode estimular a concorrência. Um melhor acesso à

infraestrutura logística, com a Transpetro (subsidiária de logística da

Petrobras) passando a ser uma efetiva prestadora de serviços para toda a

indústria, poderia fomentar a competição. Após os desinvestimentos, é

esperado que os novos proprietários, para otimizar os custos unitários de

produção, venham a operar com fatores de utilização superiores aos que

têm sido empregados, o que deve aumentar a oferta doméstica e

diminuir as importações. A geração de excedentes para exportação seria

a maneira de reduzir estruturalmente os preços internos, que poderiam

chegar a condições próximas da paridade de exportação. Ou seja,

valores equivalentes aos internacionais menos os custos de venda no

mercado externo. No entanto, como existe capacidade de refino ociosa

no mundo, é difícil que sejam aprovados novos projetos para construção

de refinarias no país. Talvez unidades de pequeno porte voltadas para

nichos de mercado. Possivelmente, após os desinvestimentos, devem ser

executados projetos de melhoria ou ampliação de plantas existentes.

Novos projetos, entretanto, só se justificarão se houver convicção de que

os preços seguirão atrelados ao mercado e se os riscos de intervenções

ou de adoção de práticas anticoncorrenciais forem baixos.

O progresso na venda de ativos e a entrada de novos agentes no

segmento de refino vão estimular a disputa por market share, em vez


da formação de monopólios regionais, e uma maior competição,

especialmente nos limites dos mercados de influência de cada unidade.

O valor do petróleo a ser processado nas plantas, hoje definido pela

Petrobras como um preço de transferência interno, passará a refletir o

custo de oportunidade de compra local vis-à-vis as alternativas de

importação, que representarão uma opção para os refinadores. Um

mercado mais aberto também atrairá mais importadores, pressionando

as margens de lucro e retirando da Petrobras a posição de formador de

preços. No caso do GLP, uma maior competição pode ser mais relevante

ainda. O frete e a manipulação requerem navios e instalações especiais,

o que dificulta o suprimento. Um melhor acesso aos terminais existentes


e o aumento da capacidade melhorariam a oferta, hoje limitada pela

dificuldade de uso da infraestrutura. A diversidade no refino e na

importação vai se refletir em maior dinâmica na distribuição e na

revenda de diesel, gasolina e gás de cozinha.

É necessário que haja mais liberdade e competição também na

produção e importação de biocombustíveis. A decisão de extinguir os

leilões de biodiesel já foi tomada, mas, para aumentar a oferta, o uso do

HVO, um similar do produto convencional, processado em refinarias,

deveria ser autorizado. As reservas de mercado e as restrições à

importação deveriam ser eliminadas. Considerando os efeitos na saúde

pública e no meio ambiente, em momentos de variações elevadas nos

preços, os percentuais de mistura de biodiesel e etanol poderiam ser

flexibilizados, com os agentes tendo liberdade para definir quais os

volumes adotados. Também é importante evitar que medidas que

estimulam o uso de biocombustíveis acabem se convertendo em

proteção para esses produtos.

A experiência mostrou que não basta que os preços estejam alinhados

aos mercados internacionais e que sejam estabelecidos em um mercado

livre, dinâmico, aberto e competitivo. É preciso ainda que haja

transparência na sua divulgação. A transparência é importante na

transição para um mercado concorrencial, pois reforça o ambiente

regulatório. Promove estruturas de mercado mais eficientes. Aumenta a

capacidade de resposta dos agentes a deficiências de oferta. Reduz as

assimetrias de informação. Melhora a avaliação das oportunidades de

investimento. Protege os interesses do consumidor, pois dificulta a

prática de valores muito distintos dos vigentes em outros mercados

relevantes. Permite que a sociedade entenda como se dá a formação dos

preços e ajuda o consumidor a validar e aceitar melhor as flutuações da

commodity e do câmbio.

Apesar dos progressos dos últimos anos, ainda existem padrões que

estabelecem reservas de mercado e restrições que impedem transações

comerciais, contribuem para a concentração e dificultam a concorrência.

Essas práticas têm pouca visibilidade, ao contrário das questões que

envolvem a Petrobras e os preços que pratica, mas podem ter algum


reflexo na melhoria da competitividade na cadeia. E não é porque o

impacto pode ser limitado que devem ser desconsideradas.

O arcabouço regulatório deve estabelecer normas que garantam a

qualidade, a segurança e uma competição justa, por meio do combate à

sonegação, à fraude, à adulteração e ao roubo de combustíveis. Os

principais argumentos para a manutenção das regras que estabelecem

restrições à concorrência estão vinculados a preocupações com esses

temas, mas isso não pode inibir a melhoria da regulação. Quanto maior

for a competição, mais limitada será a atuação de agentes com

capacidade para formar preços ou dificultar a transmissão integral das

suas variações ao longo da cadeia.

Existem medidas simples que podem ajudar o funcionamento do

mercado. Nenhuma delas isoladamente tem a capacidade de mudar o

patamar dos preços ao consumidor ou mitigar a volatilidade. No entanto,

seria recomendável, para que se tenha um ambiente de negócios

competitivo e com regulação moderna, fazer uma avaliação de cada

uma. No caso das que dependem de mudança na regulamentação, deve

ser seguido o rito regulatório, que contempla análise de impacto,

consulta e audiência públicas, sendo implementadas se esse processo

definisse que trariam benefícios para o ambiente econômico. A seguir,

alguns exemplos.

Recentemente foi autorizada a importação por distribuidoras,

eliminando uma restrição existente. No entanto, a regulamentação

determina que a venda de combustíveis deve ser intermediada por uma

distribuidora. A venda direta de etanol vem sendo objeto de discussões

e, quando este capítulo estava sendo escrito, estava a ponto de ser

aprovada, como ocorre com a permissão para que TRRs possam

comercializar com postos revendedores. Faltaria liberar a venda direta

dos outros combustíveis, autorizar a mistura de biocombustíveis por

produtores e importadores, hoje realizada exclusivamente por

distribuidoras, e eliminar as restrições de verticalização entre os

segmentos do setor.

A questão do uso da marca em postos de gasolina é um exemplo raro

do emprego de recursos públicos na fiscalização de contratos entre

privados. Essa prática reduz a capacidade da ANP de executar atividades


de interesse do consumidor, como a verificação da qualidade dos

combustíveis. O fim da obrigatoriedade de a Agência fiscalizar os

contratos entre as distribuidoras e os postos, a chamada tutela

regulatória da fidelidade à bandeira, também vem sendo discutido há

anos e poderia ser implementado. Como a revisão das políticas de

estoques mínimos obrigatórios.

O mercado de gás de cozinha é o que apresenta mais limitações. A

infraestrutura é precária e a Petrobras é o único importador relevante. Os

requisitos técnico-econômicos, como a forma de determinação dos

volumes entregues a cada distribuidora pela Petrobras, e os altos

investimentos requeridos em instalações, equipamentos e logística

funcionam como barreira à entrada de novos agentes na importação e

distribuição.

As margens de distribuição e revenda representam cerca de um terço

do custo final ao consumidor. Possivelmente porque a logística para

enchimento dos vasilhames é complexa e cara. Em função de acidentes

ocorridos com botijões, foi desenvolvido um modelo pelo qual as

distribuidoras se encarregam da inspeção e troca dos recipientes

defeituosos. A recarga só é autorizada em uma engarrafadora da

distribuidora que ostenta a marca na embalagem. O vasilhame é de

propriedade do consumidor, que o adquire na primeira vez em que

compra o produto, mas só pode ser trocado por outro da mesma

empresa. Quando um bujão vazio é substituído por um de outra

distribuidora, não pode ser recarregado. Deve ser levado a uma central

ou base de destroca, de onde será enviado a uma engarrafadora da

distribuidora correspondente. No entanto, existem apenas nove centros e

sete bases de destroca de botijões no Brasil. E 187 locais para recarga. O

Amapá não conta com nenhum, mesma situação de 77 das 137

mesorregiões do país. Por isso, os bujões precisam viajar longas

distâncias, encarecendo os custos.

O usuário recebe o vasilhame na sua casa ou vai retirá-lo em uma

revenda. Não é permitido levá-lo para recarregar ou comprar um bujão

parcialmente cheio, prática que equivaleria a um motorista ser obrigado

a encher todo o tanque do carro. Isso impacta particularmente as


famílias de baixa renda, que chegam ao fim do mês sem recursos para

comprar um botijão completo.

A durabilidade dos recipientes é elevada. Foi desenvolvida tecnologia

que permite o seu monitoramento. O custo de inspeção e reposição é

relativamente baixo. Uma vez que o consumidor se responsabilizasse

pelo custo de substituição do vasilhame, em caso de avaria ou final de

vida útil, novas soluções para o enchimento e troca de botijões poderiam

ser adotadas. As engarrafadoras poderiam encher bujões independente

da marca. O usuário, como acontece em outros países, poderia levar o

bujão a locais de enchimento, onde o recipiente poderia ser total ou

parcialmente completado. Essas medidas poderiam reduzir o custo de

movimentação.

Até recentemente, as cotações do produto eram diferentes por causa da

utilização, mas seu uso continua restrito. Não pode ser empregado em

saunas, piscinas e caldeiras, por exemplo. Essas limitações datam de

épocas em que havia escassez no mercado internacional. Precisam ser

revogadas, para que o mercado cresça e seja mais atraente e para que o

consumidor possa incluir o GLP no rol de combustíveis entre os quais

pode escolher.

A malha aérea brasileira é precária. O custo do querosene de aviação

representa quase um terço do valor da passagem. O mercado de

distribuição do produto conta com poucas empresas e há dificuldades no

acesso às bases de fornecimento de combustíveis nos aeroportos. O

acesso aos dutos e às infraestruturas nos portos e nos aeroportos poderia

ser facilitado. A especificação do querosene de aviação jet fuel)


(

empregado no Brasil é distinta da comumente adotada em outros países.

A autorização do emprego do jet fuel tipo A, mais comum, facilitaria a


importação e melhoraria as condições de competição.

A autorização da elaboração da mistura asfáltica por consumidores

finais poderia reduzir os custos do produto.

A divulgação por aplicativo dos preços atualizados e de uma

comparação entre os custos dos diferentes combustíveis para o

consumidor representaria um avanço na direção de uma maior

transparência, liberdade e eficiência na escolha. Para facilitar as


transações com o exterior e ajudar a controlar os preços, as

especificações e as normas devem estar alinhadas às adotadas em outros

países.

Enquanto os preços nas refinarias e as margens devem ser

estabelecidos em um mercado dinâmico, aberto e competitivo e

divulgados com transparência, os tributos devem ser cobrados de forma

racional e eficiente. No Brasil, a tributação dos combustíveis é

complexa. Ajustes são recomendáveis.

O cálculo do ICMS amplifica os movimentos de preço. Os estados

definem quinzenalmente um preço de referência (Preço Médio

Ponderado ao Consumidor Final — PMPF, ou preço de pauta), sobre o

qual é aplicada uma alíquota. Como representa um percentual do preço

ao consumidor, na prática se aplica sobre todos os tributos, inclusive ele

próprio, caracterizando uma bitributação.

Um crescimento do valor na refinaria e, em consequência, na bomba,

leva a um incremento no preço de referência. Que, por sua vez, se traduz

em um maior tributo, que é repassado novamente na bomba. O processo

se repete sucessivamente, propagando o aumento inicial, em ciclos de 15

dias, até que o efeito se dilua. A título de exemplo, um aumento de R$

0,50 na refinaria, em um estado com alíquota de 30%, produz um

incremento adicional de R$ 0,15, seguido de outro de R$ 0,05, 15 dias

após, e de mais um de R$ 0,02, um mês depois do movimento original.

Algo similar ocorre, no sentido inverso, em situações de redução de

preço. Essas variações geram mais volatilidade nos valores ao

consumidor e na receita dos estados, amplificando os efeitos dos

aumentos de preço na economia. Em momentos de alta, provocam

crescimento da arrecadação estadual.

A forma como o imposto é cobrado estabelece uma espécie de preço

de referência, que inibe a competição e incentiva a venda a valores mais

altos, pois um revendedor que cobra um valor mais baixo que o médio

acaba pagando uma alíquota equivalente maior. Por outro lado, as altas

diferenças de alíquota entre estados (Tabela 2) produzem variações

significativas nos valores dos tributos, incentivando a sonegação, em

especial no setor de etanol, na região Sudeste. As perdas anuais são

bilionárias. Além disso, levam os consumidores a privilegiar a compra


nos locais de menor tributação, produzindo ineficiências. Esse efeito é

particularmente nocivo no mercado de aviação, pois as empresas optam

por abastecer nos estados em que o ICMS é menor.

Tabela 2: Diferenças nas alíquotas de ICMS dos combustíveis (em pontos


percentuais)

Diesel Gasolina Etanol

Diferenças alíquotas ICMS 13 9 20

Fonte: Confaz

Sem entrar no mérito do montante arrecadado em cada estado, é

recomendável substituir a cobrança de um percentual do preço final ( ad


valorem) por um valor fixo por litro ( ad rem). Também uniformizar

as alíquotas e o preço de pauta (a base sobre a qual incide a alíquota).

Essas medidas, que estavam em discussão no Congresso Nacional

quando este capítulo estava sendo redigido, dariam maior estabilidade

ao preço ao consumidor e mais previsibilidade à arrecadação estadual,

além de ajudar no combate à sonegação.

Também é importante adotar a monofasia tributária, condição em que

seria atribuída aos produtores a responsabilidade pelo tributo devido, em

lugar da substituição tributária, que, ao concentrar a arrecadação de

tributos em um único contribuinte da cadeia de produção em lugar de

outros, dá margem a liminares que acabam produzindo passivos fiscais e

distorções concorrenciais. A monofasia é particularmente importante

para combater as fraudes, mais frequentes na comercialização de etanol,

pelas quais distribuidoras são abertas e fechadas sem recolher as

parcelas de PIS/Cofins e ICMS.

Só com a adoção de medidas que aumentem a competição e melhorem

a cobrança dos tributos o consumidor terá a oportunidade de viver em

uma economia em que os preços são ditados por forças de mercado. Só

assim, mais de 20 anos depois do fim do monopólio, a politização, as

expectativas de intervenção governamental nos preços ao produtor e as

eternas discussões sobre os combustíveis poderão se resumir ao que


deveriam abranger: o aumento da oferta e da competição e o nível e

formato da cobrança dos tributos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Petróleo e Estado, ANP, 2015.
BRASIL. Ministério de Minas e Energia. Relatório do Mercado de Derivados de
Petróleo, 2008-2021.
BRASIL. Senado Federal. Audiência pública no Senado para debater a
atuação da ANP. Disponível em: http://www.anp.gov.br/arquivos/palestras/senado-

decio.pdf
BRASIL. ANP. Seminário Debates do Brasil — Os caminhos do futuro do óleo e gás no país.

Disponível em: http://www.anp.gov.br/images/Palestras/ANP_Decio-

Oddone_Semin%C3%A1rio_OGlobo_Agos to_2018.pdf
ESTEVES, H. B. B.; BICALHO, L. M. N. de O.; OLIVEIRA FILHA, M. T. A.

Diferenciação de preços na comercialização de GLP: um problema


regulatório ou de política pública? Disponível em: https://www.gov.br/anp/pt-
br/centrais-de-conteudo/notas-e-estudos-tecnicos/estudos-

tecnicos/arquivos/2009/diferencializacao-precos-comercializacao-glp-2009.pdf

ODDONE da Costa, D. F. Artigos diversos.


PETROBRAS. Plano de Refinarias 1958/1961. Arquivo pessoal.
CAPÍTULO 16
PRECISAMOS FALAR SOBRE
EMPRESAS ESTATAIS: O QUE, PARA
QUE, POR QUE E OS CASOS DE
CEITEC E INFRAERO
Amaro Gomes e Francisco Sena

INTRODUÇÃO
308
O Panorama das Empresas Estatais Federais , disponibilizado pela

Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais (Sest),

do Ministério da Economia, registrava, ao final de setembro de 2021,

158 empresas, das quais 46 de controle direto e 112 de controle indireto.

Não obstante a determinação de dissolução da Ceitec em 2021, esse

número não foi reduzido comparativamente a dezembro de 2020 em


309
virtude da inclusão da NAV Brasil , cuja criação foi confirmada com a

publicação do Decreto 10.589, de 24 de dezembro de 2020, e que

iniciou operações em 30 de junho de 2021.

Em dezembro de 2020, também de acordo com a Sest/ME, desta feita

conforme o Relatório Agregado das Empresas Estatais Federais


310
(Raeef) existiam 46 empresas estatais de controle direto da União

(Ceitec ainda estava incluída no relatório, visto que ainda estava em

operação normal) que atuavam em setores diversos, como abastecimento

alimentar, financeiro, indústria, infraestrutura e transporte, pesquisa e

gestão de projetos e contratos, petróleo, gás e energia elétrica, saúde,

tecnologia da informação e comunicação.


O Raeef destaca que o Valor Adicionado Bruto (VAB) dessas
311
empresas representava 5,3% do PIB , empregavam mais de 460 mil

pessoas, com gastos de R$ 96,6 bilhões somente em despesas com

pessoal (em alguns casos com salários que chegam a R$ 145 mil por

mês e generosos planos de aposentadoria e saúde), e honorários de

presidentes que podem chegar à casa dos R$ 2,9 milhões por ano. O

resultado líquido consolidado foi de R$ 60,6 bilhões no exercício de

2020, que culminou em R$ 5,4 bilhões de dividendos e juros sobre


312
capital próprio pagos à União. Já as estatais dependentes acumulam

prejuízos e receberam, somente em 2020, aportes de R$ 19,4 bilhões do

Tesouro Nacional.

Este capítulo apresenta as características das empresas estatais

federais, explora brevemente o paradigma das empresas público-

privadas, destaca alguns aspectos do panorama das estatais federais,

seguido da fundamentação jurídica e econômica para a constituição das

estatais e culmina com estudos de caso da Ceitec e da Infraero. Questões

relativas à governança não serão tratadas aqui, ressaltando que o tema é

explorado no Capítulo 17 deste livro, com foco nas empresas de

capitaberto.

1. EMPRESAS ESTATAIS E SUAS ESPÉCIES:


EMPRESAS PÚBLICAS, SOCIEDADES DE
ECONOMIA MISTA E SUBSIDIÁRIAS
Empresas estatais são sociedades cuja maioria do capital social com

direito a voto pertence direta ou indiretamente a um ente político estatal.

Compreendem-se nesse conceito as empresas públicas, as sociedades de

economia mista e as suas subsidiárias, todas alcançadas no Brasil pelo

Estatuto Jurídico das Empresas Estatais — Lei 13.303, de 2016 (Lei das

Estatais).

As empresas públicas são os empreendimentos estatais em sentido

mais estrito, pois não admitem qualquer participação privada em seu

capital e, por definição, são de capital fechado. Podem ter controle

integral de apenas um ente público ou ter o capital social formado por

participações de mais de um ente público, como é o caso da Companhia


Docas do Ceará, controlada pela União, mas que tem a participação

societária do estado do Ceará e de algumas prefeituras municipais.

Outro exemplo é a Dataprev, que, além da União como acionista

controlador, possui como acionista o INSS, autarquia federal cujo

regime jurídico é de direito público.

Importante salientar que, além de não permitirem a participação de

capital privado em sua estrutura acionária, é vedada às empresas

públicas, segundo o artigo 11 da Lei das Estatais, a emissão de

debêntures ou outros valores mobiliários conversíveis em ações, com o

objetivo de evitar o risco potencial de transmutação da empresa pública

em uma sociedade de economia mista pela simples conversão de um

título mobiliário.

As sociedades de economia mista, por sua vez, são empresas estatais

controladas por capitais públicos, mas que dispõem de capital privado

para a consecução de seu objeto social. Nessas organizações, o ente

estatal detém a maioria do capital com direito a voto, assumindo,

portanto, o controle formal da sociedade.

Em decorrência dessa configuração do capital social nas sociedades de

economia mista, os conflitos entre acionista controlador e acionista

minoritário são recorrentes, em virtude da necessidade de conciliação

dos objetivos de política pública do ente estatal, motivador para a sua

criação, com a legítima busca dos acionistas não controladores privados

pela rentabilidade apropriada do patrimônio investido.

No conjunto de estatais de economia mista, existem as de capital

fechado, como a Ceagesp e a Ceasaminas, e de capital aberto, como a

Petrobras e o Banco do Brasil. E é exatamente nas de capital aberto que

os conflitos entre o acionista controlador e os acionistas não

controladores, conjugados a fatores como a dispersão do capital

acionário e a regulação do mercado de capitais, se apresentam com mais

frequência e a conciliação entre os objetivos de política pública e de

rentabilidade financeira são mais desafiadores.

Finalmente, há as subsidiárias das empresas estatais, que são estatais

controladas indiretamente pelo ente público. No âmbito federal, estão


concentradas no Banco do Brasil, BNDES, Caixa Econômica Federal

(Caixa), Eletrobras e Petrobras.

A estrutura de capital da empresa estatal controladora não vincula a

forma de constituição de sua subsidiária. Assim, existem subsidiárias de

empresa pública constituída na forma de capital aberto, como é o caso

da Caixa Seguridade, controlada pela Caixa, uma empresa pública, bem

como as de capital fechado de uma sociedade de economia mista, caso

da Eletronorte, controlada pela Eletrobras.

As subsidiárias submetem-se ao mesmo regime jurídico das empresas


313.
públicas e das sociedades de economia mista Contudo estão sujeitas,

a princípio, a uma interferência menor do poder público — como a

supervisão pelo ministério “em cuja área de competência estiver


314
enquadrada sua principal atividade” e a manifestação da Sest/ME

acerca de temas assembleares, como destinação de lucros e alteração do

capital social —, em virtude da inexistência de uma relação direta de

controle acionário. A condução dos negócios sociais nas subsidiárias é

de responsabilidade da estatal controladora, diretamente ou por

intermédio dos dirigentes indicados, cabendo à administração pública

atuação direta.

2. CONTROLE ACIONÁRIO EM EMPRESAS


ESTATAIS E O PARADIGMA DAS EMPRESAS
PÚBLICO-PRIVADAS
Tanto o Decreto-Lei 200, de 1967 quanto a Lei 13.303, de 2016,
315
adotaram para as empresas estatais uma “acepção formal” do

conceito de controle acionário, em contraponto ao conceito material


316
estabelecido na Lei das Sociedades por Ações (Lei 6.404, de 1976 ).

Portanto, para enquadrar como empresa estatal uma sociedade da qual o

Estado seja acionista, basta simplesmente assegurar que o ente público

detenha, direta ou indiretamente, a maioria do capital votante dessa

sociedade, independentemente do exercício do controle material ou de

fato, qual seja, a eleição da maioria dos administradores e a efetiva

condução dos negócios sociais.


A adoção de tal acepção formal para estabelecer o conceito de empresa

estatal delimita o universo das participações estatais sujeitas a institutos

típicos do direito público, como a licitação, o concurso público para a

contratação dos empregados e a jurisdição por órgãos de controle

estatais. Caso não se adotasse essa acepção formal e tendo em vista o

dinamismo do conceito material de controle, é possível que uma

participação minoritária do Estado se transmutasse entre privada e

estatal diversas vezes ao longo de sua existência, o que, naturalmente,

importaria em claras dificuldades para a gestão e o controle públicos.

Assim, mesmo que numa participação minoritária direta ou indireta do

Estado haja o exercício do poder de controle de fato pelo ente público,

não se estará diante de uma empresa estatal, como é o caso das empresas

público-privadas, assim denominadas pioneiramente por Aragão (2018).

São participações minoritárias do Estado, com algum poder de controle

estatal, como uma golden share ou a celebração de acordo de

acionistas, mas que não são empresas estatais na acepção formal vigente

na legislação brasileira.

Importante frisar que, apesar de as empresas público-privadas não

estarem sujeitas ao mesmo regime jurídico das estatais, a atuação do

administrador público enquanto acionista dessas companhias demandará

a observância dos princípios constitucionais da administração pública.


o o
Ademais, conforme o artigo 1 , § 7 , da Lei 13.303, de 2016:

Na participação em sociedade empresarial em que a empresa

pública, a sociedade de economia mista e suas subsidiárias não

detenham o controle acionário, essas deverão adotar, no dever de

fiscalizar, práticas de governança e controle proporcionais à

relevância, à materialidade e aos riscos do negócio do qual são

pacipes.

3. PANORAMA DAS EMPRESAS ESTATAIS


FEDERAIS
Como já destacamos, segundo dados disponibilizados pela Sest/ME,

existem atualmente 158 empresas estatais federais, das quais 46 de


controle direto, entre empresas públicas e sociedades de economia

mista, e 112 subsidiárias dos grandes grupos estatais.

317
São nove empresas estatais federais de capital aberto , que atuam em

setores diversos como óleo e gás, energia, telecomunicações, finanças,

serviços, abastecimento alimentar, infraestrutura de transportes, saúde e

tecnologia da informação. Sua capitalização ultrapassa R$ 500 bilhões,

superior a 10% do valor de mercado de todas as 393 empresas listadas

na B3 S.A. — Brasil, Bolsa, Balcão, na data-base de 30 de setembro de


318
2021 .

No ano de 2020, o Programa de Dispêndios Globais (PDG) das

empresas estatais federais não dependentes do Tesouro Nacional, peça

elaborada pela Sest/ME, que compõe o Orçamento Federal e mede o

volume de recursos despendidos nessas companhias, tanto os oriundos

da geração de caixa próprio quanto os decorrentes de aportes do

acionista controlador, ultrapassou R$ 2,4 trilhões. Ademais, nesse

mesmo ano, a União investiu mais de R$ 83 bilhões nas empresas

estatais não dependentes, para aquisição de bens do ativo imobilizado e

para inversões financeiras.

Quanto às empresas estatais federais dependentes, em 2020 o Tesouro

Nacional transferiu R$ 19,4 bilhões para custear as atividades

deficitárias dessas companhias. Portanto, a manutenção das suas

atividades, além da pressão orçamentária e recursos públicos escassos

em um momento desafiador para o equilíbrio fiscal, concorre com

relevantes necessidades e demandas sociais, como educação, saúde,

segurança e saneamento básico.

As empresas estatais são grandes empregadores diretos e indiretos de

mão de obra. Ao final de 2020, as estatais federais de controle direto

empregavam mais de 460.195 pessoas, com despesas de pessoal de R$

96,6 bilhões.

De acordo Relatório de Benefícios das


com dados do

Empresas Estatais Federais (Rebef) , igualmente elaborado 319

pela Sest/ME, chamam atenção os benefícios concedidos pelas estatais,

inclusive as dependentes do Tesouro Nacional, ultrapassando em muitas

medidas o que usualmente é concedido aos empregados do setor


privado. São vários os exemplos, como auxílio creche/babá, seguro de

vida/acidentes pessoais, assistência/auxílio educacional para

dependentes (o BNDES, por exemplo, concede benefício de R$

1.261,65/mês por dependente de até 17 anos e 11 meses, mesmo já

pagando o mais elevado salário médio entre as estatais, de R$ 29.230),

abono assiduidade (ou seja, prêmio para o empregado que vai trabalhar

conforme acordado em contrato de trabalho), auxílio medicamento e

várias formas de auxílio para educação e capacitação profissional.

Algumas estatais ainda apresentam elevados déficits técnicos em seus

planos de previdência complementar (R$ 746 milhões no Basa; o

BNDES tem déficit técnico de R$ 1,4 bilhão e provisões matemáticas a

constituir de R$ 1,6 bilhão; a CBTU, déficit técnico de R$ 470,9

milhões; a Caixa, de R$ 5,4 bilhões e provisões matemáticas a constituir

de R$ 20,8 bilhões; a Casa da Moeda, déficit técnico de R$ 180,7

milhões; as Companhias Docas, déficit técnico contratado de R$ 1,1

bilhão; a Codevasf, de R$ 31,4 milhões).

Finalmente, não é incomum a participação de estatais no custeio do

Benefício de Assistência à Saúde (BAS) em percentual bastante

generoso. É o caso do Banco do Brasil (64% de cobertura), do BNDES

(cobertura integral inclusive no chamado pós-emprego e abrange

genitores do empregado como beneficiários se observados alguns

critérios, entre os quais ser dependente no imposto de renda), a

Companhia Docas do Ceará (92%), Companhia Docas do Rio de Janeiro

(75%), Ceagesp (94%), Casa da Moeda do Brasil (77%), Companhia

Docas do Estado da Bahia — Codeba (90%), Companhia Docas do

Estado do Rio Grande do Norte — Codern (86%), Companhia Docas do

Estado do Espírito Santo — Codesa (91%), Conab (85%), CPRM

(57%), Correios (68%), Eletrobras (92%), Embrapa (62%), Emgeprom

(57%), INB (84%), Infraero (92%), Nuclep (70%), Petrobras (76%) e

Serpro (73%).

Oportuno lembrar que várias dessas empresas são deficitárias e

dependentes do Tesouro Nacional (como Amazul, CBTU, Conab,

CPRM, Embrapa, INB e Nuclep).


4. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA PARA A
CONSTITUIÇÃO DE EMPRESAS ESTATAIS
A livre iniciativa é um dos fundamentos do Estado Democrático de
o
Direito e da ordem econômica, conforme se depreende dos artigos 1 e

170 da Constituição Federal de 1988 (Carta Magna).

Essa consagração do livre empreender pela iniciativa privada é

coerente com o art. 173 da Carta Magna, que estabelece que a

exploração direta de atividade econômica pelo Estado só é permitida

quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou de

relevante interesse coletivo. Ou seja, caberia ao Estado atuar como

agente econômico empreendedor somente de forma subsidiária,

atendendo a um dos dois pressupostos constitucionais anteriormente

elencados.

Como a criação de empresas estatais depende de autorização

legislativa, conforme o art. 37, inciso XIX, da Constituição Federal de

1988, a Lei 13.303, de 2016, estabeleceu que a lei específica que

autorizará a criação da empresa estatal deverá expressar de forma clara o

relevante interesse coletivo ou o imperativo de segurança nacional que

justifica a criação da empresa, nos termos do já mencionado art. 173.

No entanto, na prática, essa subsidiariedade da atuação direta do

Estado na economia contempla uma elevada margem de

discricionariedade, principalmente quanto à definição do que seria o

“relevante interesse coletivo”, que justificaria a criação de uma empresa

estatal. Assim, os limites de atuação do Estado empresário brasileiro

acabam sendo definidos a depender do viés mais liberal ou

intervencionista do governo ou da formação de maioria política que

tenha interesse na criação ou não extinção de uma empresa específica.

5. FUNDAMENTAÇÃO ECONÔMICA PARA A


CONSTITUIÇÃO DE EMPRESAS ESTATAIS

5.1 BREVE HISTÓRICO DAS EMPRESAS


ESTATAIS NO BRASIL
O surgimento de empresas estatais no Brasil coincide com o processo de

industrialização por substituição de importações iniciado a partir da

década de 1930 e foi intensificado sobremaneira nas décadas de 1960 e

1970 sob a égide do nacional-desenvolvimentismo. Segundo Giambiagi

e Além (2011):

O processo de industrialização do Brasil deu-se a partir do

modelo de substituição de importações, marcado pela proteção

ao mercado local e pela intervenção do Estado na economia. O

“estado desenvolvimentista” não apenas assumiu o papel de

planejador do processo de industrialização, como também

investiu diretamente em setores considerados estratégicos para o

desenvolvimento industrial brasileiro, com destaque para a

infraestrutura — principalmente estradas, energia e

telecomunicações.

Boa parte do investimento direto estatal a que se referem os autores

deu-se por intermédio da constituição de empresas estatais.

Ao longo da década de 1980, como consequência da crise de

financiamento do Estado brasileiro e da exaustão do modelo de

substituição de importações, interrompe-se o ciclo de expansão das

empresas estatais brasileiras. Esse movimento é o embrião para a

política de desestatização que emerge nos anos de 1990, com o advento

do Programa Nacional de Desestatização (PND), cujo pontapé inicial foi

dado com a edição da Lei 8.031, de 1990, posteriormente substituída

pela Lei 9.491, de 1997, ainda em vigor.

Segundo Cezarini (2020), durante os governos Collor, Itamar Franco e

Fernando Henrique Cardoso, foram desestatizadas mais de 130

empresas em níveis federal, estadual e municipal, totalizando uma

receita superior a US$ 87 bilhões e mais de US$ 18 bilhões em

transferência de dívidas. As principais desestatizações desse período

incluem Usiminas, Acesita, Fosfértil, CSN, Embraer, Light, Companhia


320
Vale do Rio Doce, Telebrás e Banco do Estado de São Paulo.

A partir de 2003, o processo de privatização foi praticamente

descontinuado e foi retomada a criação de empresas estatais de controle

direto da União com atuação em diversos segmentos da economia,


representando aumento significativo da intervenção do Estado na

economia e envolvendo questionáveis justificativas quanto ao interesse

coletivo ou segurança nacional, ou mesmo sem um aprofundamento

robusto, como destacamos em um dos casos práticos apresentados neste

capítulo, que teria levado à criação dessas empresas: Agência Brasileira

Gestora de Fundos Garantidores e Garantias S.A. — ABGF (2012),

Amazonia Azul Tecnologias de Defesa S.A. — Amazul (2013), Centro

Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada S.A. — Ceitec (2008),

Empresa Brasil de Comunicação S.A. — EBC (2007), Empresa

Brasileira de Administração de Petróleo e Gás Natural S.A. — PPSA

(2013), Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia —

Hemobras (2004), Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares —

Ebserh (2011), Empresa de Pesquisa Energética — EPE (2004),

Empresa de Planejamento e Logística S.A. — EPL (2012) e finalmente a

NAV Brasil Serviços de Navegação Aérea S.A. (2021).

Somente entre 2003 e 2016, além das nove empresas estatais federais

de controle direto já mencionadas, foram criadas ainda mais de 40

subsidiárias dos grandes conglomerados estatais e observou-se ainda um

vigoroso aumento na participação de empresas estatais nos processos de

concessão (em empresas público-privadas), a exemplo dos aeroportos

com a participação da Infraero e as sociedades de propósitos específico

(SPE) da Eletrobras para construir as usinas hidrelétricas de Santo

Antônio, Jirau e Belo Monte.

A partir de 2016, o processo de privatizações foi retomado e, desde

então, mais de 70 empresas estatais foram desestatizadas ou

desinvestidas, com destaque para a privatização da Petrobras

Distribuidora (BR) e das distribuidoras de energia elétrica controladas

pela Eletrobras, além da liquidação da Companhia Docas do Maranhão

(Codomar) e, mais recentemente, da Ceitec.

5.2 EMPRESAS ESTATAIS E FALHAS DE


MERCADO
As empresas estatais foram constituídas ao longo do tempo sob o

argumento de necessário envolvimento direto do Estado para a


implementação de políticas públicas, com variado grau de extensão e de

êxito em seu propósito.

O “relevante interesse coletivo” estabelecido na Constituição Federal

como uma das motivações para a criação de estatais é o que, em teoria

econômica, se costuma chamar de correção de falhas de mercado. O

Estado entraria suplementando o mercado naquelas funções que este não

cumpre adequadamente.

Uma falha de mercado típica é a existência de monopólios naturais,

situação em que é mais eficiente existir uma única empresa provendo

bens ou serviços. Um exemplo característico é o do abastecimento de

água em uma cidade. O alto custo de instalação da rede de distribuição

impõe o fato de que é mais eficiente existir apenas uma rede, controlada

por uma única empresa. Dado que empresas monopolistas, ao controlar

o mercado, tendem a ofertar serviços em quantidades menores e preços

maiores do que os praticados em mercados concorrenciais, uma forma

de o governo corrigir esse problema é ter uma empresa estatal operando

o monopólio natural e provendo o serviço com quantidades e preços

equivalentes aos que seriam praticados em um mercado concorrencial.

Note-se que há outras soluções possíveis para o monopólio natural:

seria viável conceder o serviço a uma empresa privada e submetê-la às

regras impostas por uma agência reguladora. Logo, o uso de empresas

estatais é apenas uma das soluções possíveis.

Outro caso de falha de mercado se refere às externalidades positivas.

Há situações em que a produção de um bem por uma empresa privada

gera benefícios para toda a sociedade. Pesquisas sobre inovação

tecnológica, por exemplo, dão lucro a quem as produziu, mas também

beneficiam toda a sociedade ao aumentar a produtividade da economia e

criar produtos e mercados. Em geral, o produtor privado está preocupado

essencialmente com o seu retorno econômico individual. Ao não

valorizar os benefícios sociais de sua atividade, ele acaba provendo o

bem ou serviço em quantidades inferiores ao ótimo social.

Uma forma de resolver esse problema é criar uma empresa estatal para

produzir bens e serviços geradores de externalidades, como é o caso de

estatais voltadas para pesquisa científica, da qual a Embrapa é um


exemplo no Brasil. Mais uma vez, o uso de estatais não é o único

caminho. Podem ser usados subsídios e isenções tributárias ou

regulação, como a legislação de patentes.

Outra externalidade que costuma levar à criação de estatais são os

chamados mercados incompletos. Eles existem sempre que o custo de

prover um dado bem ou serviço é menor que o montante que os

consumidores estão dispostos a pagar por ele, mas o mercado privado

não oferta o bem ou serviço.

Isso pode ocorrer por falta de garantias (como estudantes não terem

renda para dar garantia em um crédito educativo), falta de informação

(por exemplo, um plano de saúde pode não aceitar um cliente por não

conhecer seu histórico médico) ou concentração de risco (o fator

climático pode fazer com que os sinistros no meio rural possam ocorrer

em grande quantidade e simultaneamente, dificultando ao mercado

privado ofertar produtos para esse tipo de seguro). Em geral, bancos

estatais são criados para prover crédito e produtos financeiros a

clientelas não atendidas pelo mercado em decorrência desses problemas.

Também nesse caso as estatais não são a única solução: fundos

garantidores, subsídios, difusão de informação e regulação adequada

podem desenvolver os mercados que sejam de início incompletos.

Outro argumento também muito usado para a atuação do Estado seria

de indutor de uma indústria ou do desenvolvimento regional. O mercado

interno pode ser suficientemente grande para, por exemplo, justificar

uma indústria automobilística. Porém, a ausência de indústrias

provedoras de insumos essenciais para a produção do bem de consumo

— como é o caso da siderurgia para a indústria automobilística —

justificaria a entrada do Estado nessa produção. Dada a alta intensidade

de capital exigida na siderurgia, e a inexistência da indústria que

compraria seus produtos, o investidor privado não veria atratividade em

investir na produção de aço. Se o Estado entrar produzindo aço, ele

oferece o insumo necessário à indústria automobilística e essa pode

florescer. Em seguida, o Estado pode se desfazer do seu investimento na

indústria de base.

Esse argumento é controverso e não se sustenta em um contexto de

economia aberta, em que simplesmente a indústria automobilística


poderia se instalar no país e comprar aço importado. No entanto, foi

muito popular e justificou investimentos estatais significativos em

atividades produtivas desde os anos 1950.

5.3 EMPRESAS ESTATAIS E FALHAS DE


GOVERNO
Ao agir visando superar falhas de mercado, as entidades públicas estão

sujeitas às suas próprias falhas, que a literatura chama de “falhas de

governo”. Empresas estatais são ambientes propícios para a ocorrência

dessas falhas.

Vale mencionar, em primeiro lugar, o problema conhecido como

“principal-agente. A autoridade que comanda subordinados não

consegue acompanhar todas as ações e decisões de seus comandados.

Por isso, estes podem se desviar das ordens e missões recebidas com

vistas a saciar seus interesses individuais, em detrimento dos coletivos.

Assim, por exemplo, as determinações de um conselho diretor de uma

empresa podem não ser seguidas à risca pelos gerentes da empresa.

Outro ainda, políticos que, uma vez eleitos, passam a trabalhar em prol

de seus interesses particulares e não os dos eleitores.

No caso de empresas estatais, é muito comum que ocorra tanto a

captura política da gestão da empresa (em que um grupo político

controla a gestão e passa a usá-la para atingir os seus objetivos privados,

em detrimento dos objetivos sociais da organização) quanto a captura

por seus empregados (caso em que os salários altos e os benefícios

passam a ser mais importantes que o atingimento das metas da

empresa).

Outra falha de governo é a falta de incentivo à gestão eficiente. O fato

de empresas estatais poderem ser socorridas pelo Estado sempre que

derem prejuízo diminui o incentivo para que sejam adequadamente

geridas. A isso acrescenta-se o fato de que seu regime jurídico é distinto,

limitando-se a possibilidade de falência. Além disso, apesar de seus

empregados estarem submetidos à Consolidação das Leis do Trabalho

(CLT), que é igualmente aplicável no setor privado, em realidade

somente podem ser contratados mediante a realização de concurso


público e o eventual desligamento em caso de necessidade (por exemplo,

a Infraero, que já não tem mais aeroportos relevantes para administrar e

cuja receita, por causa disso, reduziu de forma significa, ainda detém

quase 8 mil empregados) costuma ser difícil, se não impossível,

perpetuando a relação de emprego (temos exemplos de estatais que

foram liquidadas e que seus empregados continuam com contratos de

trabalho em vigor, “cedidos” para outros órgãos da administração

pública, caso de Rede Ferroviária Federal — RFFSA e Geipot). Isso

sem mencionar que a demissão por baixo desempenho e ineficiência é

praticamente inexistente, culminando por desestimular o empenho e a

produtividade.

Muitas empresas estatais são monopolistas nos seus mercados, e isso

também desestimula a produção eficiente. Ainda que tenham sido

criadas para superar os problemas do monopólio privado, dificilmente os

monopólios estatais escapam das mesmas práticas dos privados.

De modo geral, empresas estatais que perdem suas funções continuam

a existir, devido à pressão política dos empregados e dos políticos para

manterem as rendas que obtêm por meio da empresa. Outras são criadas

sem que haja claro diagnóstico a respeito da falha de mercado que

pretendem corrigir e de como se blindarão contra as falhas de governo.

De mais a mais, existem estatais que não são “materialmente”

empresas, na medida em que não exploram atividade econômica de fato.

É o caso do Serviço Geológico do Brasil (CPRM), que tem como


321
missão “disseminar conhecimento geo científico com excelência,

contribuindo para a melhoria da qualidade de vida e desenvolvimento


322
sustentável do Brasil”. Já a Empresa de Pesquisa Energética (EPE)

“tem por finalidade prestar serviços ao Ministério de Minas e Energia

(MME) na área de estudos e pesquisas destinadas a subsidiar o

planejamento do setor energético, cobrindo energia elétrica, petróleo e

gás natural e seus derivados e biocombustíveis”, assim também o Grupo


323
Hospitalar Conceição (GHC) , cuja missão é “oferecer atenção

integral à saúde, pela excelência no ensino e pesquisa, eficiência da

gestão, comprometimento com a transparência, segurança

organizacional e responsabilidade social”. Não nos parece razoável ou

lógico ter uma empresa estatal com tais características. Seriam, no


máximo, departamentos ou agências diretamente vinculados aos

ministérios da área correlata. Além da ausência de lógica econômica (no

conceito de falha de mercado ou falha de governo), o custo operacional é

bem superior ao que seria no caso das atividades desenvolvidas

diretamente no ministério, pois, dependentes do Tesouro Nacional, ainda

precisam estabelecer e manter toda uma estrutura de governança, sem

seno real.

6. ESTUDO DE CASO: CENTRO NACIONAL DE


TECNOLOGIA ELETRÔNICA AVANÇADA S.A.
(CEITEC)
Em 1999, conforme destaca Filipin (2016), “a Motorola Semicondutores

decidiu doar uma linha de produção de circuitos integrados usada para o

Brasil”, formalizando proposta de doação do conjunto de equipamentos

para a Universidade de São Paulo (USP) e para a Universidade Estadual

de Campinas (Unicamp). Foi elaborado projeto para instalar um

laboratório de prototipagem de chips dentro da USP, sendo que a

construção do laboratório e da sala limpa exigiriam um investimento em

torno de R$ 30 milhões. Esses recursos foram então requeridos

inicialmente à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

(Fapesp), em seguida ao governo do estado de São Paulo e em ambos os

casos negados.

Diante da impossibilidade de concretizar o projeto com a USP e a


324
Unicamp, em junho de 2000 foi firmado um protocolo de intenções ,

formalizando a criação do Ceitec no Rio Grande do Sul. Interessante

notar que, ainda segundo Filipin (2016), a opção foi por criar uma

fábrica de baixo volume para prototipagem, em substituição à criação de

um laboratório dentro de uma universidade, por consir que:

(i) uma universidade não teria condições de operar uma

infraestrutura tão cara; (ii) o governo do estado do Rio Grande do

Sul não queria favorecer uma universidade em detrimento de

outras; e (iii) a criação de um centro independente daria mais

visibilidade à participação do governo estadual no

empreendimento.
O protocolo estipulava que os signatários conjugariam esforços e

recursos para implantar o Ceitec e essa seria a primeira etapa de um

conjunto de ações e investimentos estratégicos na área de

microeletrônica.

Em 2001, foi assinado convênio com o Fundo Nacional de

Desenvolvimento Científico e Tecnológico do MCTI (Finep), destinado

à execução de estudo de mercado. No mesmo ano, a prefeitura de Porto

Alegre selecionou e declarou de utilidade pública um terreno a ser

utilizado para a construção das instalações do Centro.

Em 2002 foi criada a associação civil que administrou o Ceitec (até

2008) e contratada empresa para a execução das bases para o projeto de

engenharia. Entre 2003 e 2004 executou-se o estudo de viabilidade

urbanística, obteve-se a licença ambiental para a obra e lançou-se o

edital de contratação do projeto executivo do centro operacional. Ainda

em 2004, o MCT (atual MCTI) lançou o edital de licitação para a

construção do Ceitec e constituição do projeto executivo do prédio de

pesquisa e manufatura.

Em 2005, o Centro assinou contrato com o MCT, no valor de R$ 148

milhões, para a construção do Ceitec e iniciou operações da primeira

linha de negócios no Instituto de Informática da UFRGS e no Parque

Científico e Tecnológico da PUCRS (Tecnopuc).

O ano de 2007 marca a entrega do primeiro chip comercial pelo

Ceitec, financiado com recursos do Finep (convênio assinado em 2006)

para o custeio de prototipagem e concepção do produto.

Com tal histórico, o relator do Projeto de Lei da Câmara 94, de 2008,


325
senador Renato Casagrande, em seu parecer apresentado à Comissão

de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática do

Senado Federal, opinou tratar-se

(...) de uma iniciativa vitoriosa, promissora, capaz de levar o País

a um patamar elevado no seio das nações mais desenvolvidas em

sistemas e produtos das áreas da microeletrônica, em especial no

que se refere a dispositivos semicondutores e circuitos

integrados”.
Na realidade, tal conclusão baseou-se apenas no fato de que “o ano de

2007 marca a entrega do primeiro chip comercial pelo Ceitec, graças à

aprovação de um projeto pela Finep, em janeiro de 2006, que

contemplava o pagamento dos custos de prototipagem e concepção do

produto”. Ou seja, com o uso de recursos públicos, desta feita oriundos

da Finep.

A Exposição de Motivos Interministerial EMI


326
00041/MCTCC/MF/MPOG, de 3 de outubro de 2007 , que

encaminhou o Projeto de Lei (PL) para a criação do Ceitec, asseverou

que

A estratégia de implementação na forma de empresa pública leva

em conta entre outras vantagens a possibilidade de implantação

rápida, regime jurídico de empresa mais flexível, controle

público, contratação de pessoal no regime celetista, realização de

receitas próprias e a captação de recursos de outras fontes e não

apenas do tesouro, além de trazer segurança jurídica.

E ainda que

a implantação da Ceitec se constituirá de um passo importante na

produção de componentes de microeletrônica, propiciando a

substituição seletiva e competitiva de importação que, hoje,

apresenta um grande déficit na balança comercial brasileira

nessa área, indicando, assim, sua constituição como de relevante

interesse coletivo.

A assertiva que justificaria o interesse coletivo requerido no artigo 173

da Constituição Federal é, no mínimo, discutível e não são apresentados

elementos que possibilitem um julgamento robusto e substanciado dos

benefícios à coletividade. A EMI 00041/MCTCC/MF/MPOG é

superficial, aponta apenas razões de balança comercial, não demonstra o

real interesse coletivo e justifica a criação de uma estatal para

substituição de importações.
Além de existirem vários outros produtos que são objeto de

importação e igualmente impactam a balança comercial, a EMI

00041/MCTCC/MF/MPOG não destaca qual é o montante desse

déficit, em termos absolutos ou relativos. Pelo menos este poderia ser

considerado um elemento objetivo para sua avaliação, não obstante

entendermos igualmente questionável o interesse coletivo se baseado no

impacto na balança comercial.

Em seu relatório, o senador Renato Casagrande opina que

O projeto, de natureza autorizativa, conforme solicitado pelo

autor, obedece aos ditames da Constituição da República,

conforme insculpido no inciso XIX de seu art. 37, que requer lei

específica destinada a autorizar “a instituição de empresa

pública”, como o que agora se cogita. [Destaca ainda que] o PLC

94, de 2008, observado de forma genérica, nada mais faz que

estatizar uma associação civil, sem fins lucrativos, em pleno

funcionamento, especializada no desenvolvimento e na produção

de circuitos integrados. Para tanto, conta atualmente com a

colaboração dos governos federal, do estado do Rio Grande do

Sul e do município de Porto Alegre, de instituições de ensino e

pesquisa e de empresas privadas.

Para reforçar esse argumento, o relator ainda ressalta que

a estatização pleiteada garantirá à instituição do repasse de

recursos oriundos do MCT, o que possibilitará a realização de

investimentos e a manutenção de pessoal, até o Centro atingir sua

autossuficiência, o que deverá ocorrer num prazo de até três anos.

Na realidade, como bem o sabemos, os impactos da criação de uma

empresa estatal vão muito além de simplesmente “estatizar uma

associação civil”, principalmente no caso daquelas dependentes do

Tesouro Nacional. São impactos de longo prazo e que passam ao poder

público a responsabilidade por manter as empresas em operação com

gastos cuja dimensão é difícil, senão impossível, antecipar. Sustentar a


criação de uma empresa estatal, com duração indefinida, totalmente

dependente do Tesouro Nacional, com base na entrega de apenas um

produto cujo desenvolvimento contou com recursos públicos (por

intermédio do Finep) nos parece questionável por ampliar em demasia o

conceito de interesse coletivo.

Além disso, a empresa jamais atingiu a autossuficiência antecipada

pelo relator (em 2008) para ocorrer num período de três anos. A
327
propósito, de acordo com o Finep , entre 2008 e 2011 o Ceitec

recebeu cerca de R$ 97 milhões da financiadora, sendo que o projeto

para implantação da fábrica (construção, equipar a design house com


estações de trabalho e ferramentas de projeto e aquisição de

equipamentos complementares) consumiu ainda R$ 400 milhões do

governo federal. Ao município de Porto Alegre coube a cessão do

terreno e ao governo estadual, essencialmente, o fornecimento de

infraestrutura de energia, água e saneamento.

Oportuno ressaltar que o referido relatório do senador Renato

Casagrande não menciona e por conseguinte não analisa ou apresenta

quaisquer considerações quanto aos requisitos constitucionais para

criação de empresa estatal, previstos no artigo 173 da Carta Magna.

Com a promulgação da Lei 11.759, de 31 de julho de 2008, o Ceitec

tornou-se empresa estatal, dependente do Tesouro Nacional (recebendo

da União os recursos financeiros para o pagamento de despesas com

pessoal ou de custeio em geral ou de capital), e iniciou suas operações

em 7 de novembro de 2008.

No entanto, o Ceitec teve sua dissolução societária determinada pelo

Decreto Presidencial 10.578, de 15 de dezembro de 2020. Em seu


328
histórico como estatal, entre as realizações destacadas estão o chip do

boi, o chip do passaporte brasileiro e o chip para o Sistema Nacional de

Identificação Automática de Veículos (Siniav). Foram pouco mais de 12

anos de operação, apresentando prejuízos acumulados de R$ 175

milhões, de 2008 a 2020, consumindo R$ 729,5 milhões em recursos do

Tesouro Nacional de 2009 a 2020 (se agregarmos os R$ 400 milhões

destinados para a construção da fábrica antes da transformação em


estatal, o montante aportado pelo Tesouro chegaria a R$ 1.129,5

milhões, sem considerar os recursos do Finep).

329
O Ceitec, em liquidação , tinha como objetivo desenvolver soluções

científicas e tecnológicas que contribuíssem para o progresso e o bem-

estar da sociedade brasileira e sua finalidade era explorar diretamente a

atividade econômica no âmbito das tecnologias de semicondutores,

microeletrônica e áreas correlatas.

Com lotação autorizada de 192 funcionários, tinha quando da

liquidação um total de 180 colaboradores. Em 2020, de acordo com os

dados do Raeef, o faturamento foi de pouco mais de R$ 12 milhões e o

prejuízo chegou a R$ 62 milhões. As subvenções do Tesouro Nacional

no ano foram da ordem de R$ 61 milhões. Somente no período coberto

pelo Raeef, de 2016 a 2020, acumulou prejuízos de R$ 94 milhões e

recebeu aportes do Tesouro Nacional no montante de cerca de R$ 361

milhões.

Os estudos determinados pelo Decreto Presidencial 10.065, de 14 de

outubro de 2019, que qualificou o Ceitec no Programa de Parcerias de

Investimentos (PPI), observaram que, dado o contexto global da

indústria de semicondutores, a falta de flexibilidade do modelo de

empresa estatal frente à complexidade da indústria de alta tecnologia e a

ausência de perspectiva da empresa em obter autossustentabilidade

financeira indicam a necessidade de se reordenar a posição Estatal no

setor. Ademais, ressaltou que a avaliação econômico-financeira realizada

indicou que, caso os cenários do plano de negócios do Ceitec se

concretizassem, a estatal continuaria dependendo dos aportes da União

“para se sustentar financeiramente e [...] seriam necessárias

reestruturações relevantes de forma a aumentar sua geração de caixa e

consequentemente gerar valor para o ativo”.

Em suma, segundo o relatório, o Ceitec não obteve resultados

suficientes para viabilizar economicamente a empresa e, como

consequência, a União necessita aportar recursos para cobrir os deficit


de caixa. É destacado ainda o desafio para que a estatal alcance a

autossustentabilidade, em virtude dos elevados custos fixos vinculados à

manutenção da estrutura física instalada em Porto Alegre (prédio com


salas limpas, estrutura, máquinas e equipamentos), a folha de

pagamentos dos funcionários e as demais despesas gerais e

administrativas.

A única (óbvia) alternativa seria avançar no faturamento e

diversificação de clientes. Contudo a crescente demanda de produtos

seria atendida por multinacionais que produzem em larga escala e

apresentam preços mais competitivos do que o Ceitec e o

desenvolvimento de um nicho para produtos com maior customização

exigiria esforço de desenvolvimento de toda a cadeia de suprimentos

(fornecedores a clientes finais), o que demandaria tempo e investimentos

significativos.

O Relatório Final do Comitê Interministerial apontou cinco

alternativas para o Ceitec: (i) manutenção do modelo estatal, (ii)

manutenção parcial do modelo estatal com realização de parcerias

privadas, (iii) alienação de controle, (iv) cisão ou (v) liquidação,

culminando por apontar como viáveis a liquidação (preferida pelo

Ministério da Economia) e a alienação de controle (preferida pelo

Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações — MCTI).

Como ressaltado, o Ceitec teve sua dissolução determinada pelo

Decreto 10.578, de 2020. No entanto, foi autorizada a publicização, nos

termos da Lei 9.637, de 15 de maio de 1998, das atividades direcionadas

à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico e à inovação no

setor de microeletrônica, executadas pelo Ceitec. O MCTI deverá adotar

os procedimentos para a divulgação das regras para seleção e

qualificação de entidade privada sem fins lucrativos como organização

social, destinada a absorver tais atividades, observado o disposto do art.


o
7 ao art. 13 do Decreto 9.190, de 2017.

O caso do Ceitec é emblemático para demonstrar os prejuízos ao

erário e, em última instância à sociedade brasileira, da criação de uma

empresa estatal sem um claro objetivo de política pública e para

solucionar inadequadamente uma falha de mercado. Além dos prejuízos

acumulados ao longo dos anos, o próprio procedimento de liquidação,

executado em virtude do desinteresse da iniciativa privada em adquirir a

companhia, é dispendioso e demorado, por causa da multiplicidade de


atores envolvidos e da necessidade de um processo moroso de

articulação para findar as atividades da companhia deficitária.

Infelizmente, o Ceitec não é um caso isolado de constituição de

empresa estatal sem justificativa robusta de que seria a melhor

alternativa para a correção de uma falha de mercado ou de

implementação de uma política pública relevante. Na realidade, essa

avaliação deve obviamente ser conduzida e discutida de maneira

aprofundada antes da criação de empresa estatal e, também, de forma

recorrente ao longo do tempo. O Estado brasileiro, enquanto

empreendedor, deve avaliar, no âmbito de sua política de propriedade, a

adequação e pertinência da criação e da manutenção de empresas

estatais e participações minoritárias, inclusive considerando a

possibilidade de privatização e liquidação de sociedades.

Interessante notar que, conforme noticiou o Jornal do


Comércio 330
:

a empresa inglesa EnSilica, uma das líderes mundiais no

fornecimento de circuitos integrados, os chips, acaba de aterrissar

no Rio Grande do Sul. A operação será no Parque Científico e

Tecnológico da PUCRS (Tecnopuc) e a previsão é que a

inauguração ocorra ainda em novembro [de 2021].

A realidade questiona a “necessidade” de ter uma estatal para a

produção de circuitos integrados, quando há empresas privadas dispostas

a fazê-lo.

7. ESTUDO DE CASO: INFRAERO E A


PRIVATIZAÇÃO DOS AEROPORTOS
A Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária — Infraero foi

criada em 1973, com base na autorização concedida pela Lei 5.862, de

1972, com o objetivo de implantar, administrar, operar e explorar

industrial e comercialmente a infraestrutura aeroportuária brasileira.

Em 2011, a Infraero era responsável pela administração de 66

aeroportos no país, o que correspondia a 97% do tráfego aéreo regular


no Brasil. A companhia operava à época com um contingente de mais de

13 mil colaboradores e obteve, em 2011, lucro líquido de R$ 156,8

milhões.

Com base no diagnóstico de que o Estado era incapaz de garantir os

investimentos necessários para a modernização dos aeroportos

brasileiros e assegurar a qualidade do atendimento aos usuários, foi

iniciado, a partir de agosto de 2011, um amplo programa de privatização

dos aeroportos brasileiros.

Com o sucesso do processo de privatização dos principais aeroportos

do país, a Infraero atualmente é responsável por apenas 30% do tráfego

aéreo regular no Brasil, número que deve cair mais ainda com a

conclusão dos processos de concessão em andamento no momento em

que este capítulo foi escrito. Ademais, a Infraero, ao final de 2020,

possuía em seus quadros 7.893 empregados, dos quais 5.784 ativos e

2.109 cedidos a órgãos da administração pública direta e indireta.

A Infraero também era responsável por parcela relevante da atividade

de navegação aérea no Brasil, que migrou para a NAV Brasil, estatal

criada em dezembro de 2020 pela cisão parcial da Infraero.

Apesar de participar minoritariamente nas Sociedades de Propósito

Específico privadas que administram os aeroportos de Guarulhos,

Campinas, Brasília, Confins e Galeão, o que tem potencial de gerar

receita para a companhia, o processo de privatização dos aeroportos

mais rentáveis reduziu significativamente o faturamento da Infraero nos

últimos anos, agravado pelos efeitos da pandemia da Covid-19.

Ademais, o processo de privatização não foi acompanhado de uma

redução proporcional no quadro de empregados da empresa, o que

manteve suas despesas num patamar elevado, contribuindo para a piora

do resultado líquido.

Entre 2016 e 2020, operou com sucessivos prejuízos que totalizam

mais de R$ 6,4 bilhões. As demonstrações financeiras de 2020

evidenciam, além disso, que o patrimônio líquido da Infraero, pela

primeira vez em sua história, está negativo, configurando uma situação

de passivo a descoberto, na qual as obrigações superam os bens e

direitos da companhia.

É
É notório, portanto, que o quadro de pessoal da Infraero não foi

adequadamente ajustado à nova realidade da companhia,

comprometendo sobremaneira a sua sustentabilidade econômico-

financeira. A cessão de boa parte da mão de obra da empresa para outros

órgãos da administração pública direta e indireta, como medida de

redução de custos, evidencia esse desequilíbrio.

Embora o processo de privatização dos aeroportos brasileiros, na

maioria dos casos, tenha gerado melhoria considerável da infraestrutura

aeroportuária e do atendimento ao usuário, a sustentabilidade

econômico-financeira da Infraero permaneceu comprometida com a

modelagem implementada. Em especial, o fato de ser sócia minoritária

dos consórcios a obriga a fazer aportes de capital aos investimentos nos

aeroportos que são decididos pelos controladores, sem ter

disponibilidade financeira para isso.

O fato de haver resistências políticas à demissão de empregados de

estatais, demonstra a rigidez e o custo pago pelos contribuintes ao se

preservar o interesse de um grupo de empregados da empresa em

detrimento do interesse coletivo e da eficiência econômica.

8. CONCLUSÃO
O que se buscou aqui foi esclarecer os conceitos de empresas estatais e

suas espécies — empresa pública, sociedade de economia mista e

subsidiária — bem como discorrer sobre as principais características de

cada uma dessas formas de participação do Estado na economia.

Além disso, objetivou-se entender o histórico da criação de estatais no

Brasil e os fundamentos jurídicos e econômicos para a intervenção

empresarial do Estado na economia brasileira.

Por meio dos estudos de caso e da avaliação dos relatórios agregados,

pudemos perceber o tamanho do Estado empresário brasileiro, tendo em

vista a participação dessas empresas no PIB, o número de empregados, o

montante de recursos do PDG e tantas outras métricas discutidas. Foi

possível também depreender as distorções relacionadas à constituição e

gestão de estatais no Brasil, nem sempre atreladas à correção de uma

falha de mercado ou à instituição de uma política pública relevante. Por


último, evidenciou-se que, para corrigir as distorções na constituição de

empresas estatais, a solução, em geral, é a condução de processos

morosos de desestatização ou de liquidação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos

Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Disponível em:

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2021.

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Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática, sobre o Projeto de Lei

da Câmara 94, de 2008 (2.468, na Câmara dos Deputados, apresentado pelo Presidente da

República por meio da Mensagem 879, de 2007), que “autoriza a criação da empresa pública

Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada S.A. — CEITEC e dá outras p”ovidências”,

tramitando em regime de urgência Constitucional. Disponível em:

https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?

dm=3597056&ts=1630429234619&disposition=inline . Acesso em: 28 set. 2021.

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de Contas da União.

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308. O Panorama é atualizado diariamente com dados das estatais federais. Consulta efetuada

em 7 out. 2021:

http://www.panoramadasestatais.planejamento.gov.br/QvAJAXZfc/opendoc.htm?

document=paineldopanoramadasestatais.qvw&lang=en-

US&host=QVS%40srvbsaiasprd07&anonymous=true.

309. A criação da NAV Brasil, responsável pela navegação aérea, que estava a cargo da Empresa

Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero), foi aprovada pela Lei 13.903, de 2019.

310. Publicado anualmente pela Sest e focado nos principais dados do exercício para as estatais

de controle direto. Disponível em: https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/empresas-

estatais-federais/transparencia/publicacoes-2/raeef/edicoes-raeef-

1/RAEEF2021exerccio202019.08.2021.pdf

311. A Sest/ME informou que o percentual foi calculado considerando a relação entre o VAB

divulgado pelas empresas estatais de controle direto por meio da Demonstração do Valor
Adicionado (DVA), que evidencia os valores correspondentes à formação da riqueza gerada pela

empresa em determinado período e sua respectiva distribuição, e o produto interno bruto (PIB)

brasileiro no exercício medido pelo IBGE. Foi considerado o VAB de 44 empresas, pois os

dados de Valec e Codern ainda não estavam validados no Sistema de Informações de Estatais

(Siest), na data de elaboração do Raeef. Disponível em:

https://siest.planejamento.gov.br/gerta/public/pages/acessoPublico.jsf.

o
312. O artigo 2 , inciso III, da Lei Complementar 101, de 2001 (Lei de Responsabilidade

Fiscal), caracteriza como dependente a “empresa controlada que receba do ente controlador

recursos financeiros para pagamento de despesas com pessoal ou de custeio em geral ou de

capital, excluídos, no último caso, aqueles provenientes de aumento de participação acionária”.

313. Lei 13.303, de 2016, artigo 1, parágrafo 6.

o
314. Decreto-Lei 200, de 1967, art. 4 , parágrafo único.

o
315. Decreto-Lei 200, de 1967, art. 4 : a Administração Federal compreende:

“(...)

II - A Administração Indireta, que compreende as seguintes categorias de entidades, dotadas de

personalidade jurídica própria:

(...)

b) Empresas Públicas;

c) Sociedades de Economia Mista.

(...)

o
Art. 5 Para os fins desta lei, considera-se:

(...)

II - Empresa Pública — a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com

patrimônio próprio e capital exclusivo da União, criado por lei para a exploração de atividade

econômica que o Governo seja levado a exercer por força de contingência ou de conveniência

administrativa podendo revestir-se de qualquer das formas admitidas em direito. (Redação dada

pelo Decreto-Lei 900, de 1969).

III - Sociedade de Economia Mista — a entidade dotada de personalidade jurídica de direito

privado, criada por lei para a exploração de atividade econômica, sob a forma de sociedade

anônima, cujas ações com direito a voto pertençam em sua maioria à União ou a entidade da

Administração Indireta. (Redação dada pelo Decreto-Lei 900, de 1969).

(...)

o
§ 1 No caso do inciso III, quando a atividade for submetida a regime de monopólio estatal, a

maioria acionária caberá apenas à União, em caráter permanente.”

316. Lei das S.A.:

“Artigo 116 — Entende-se por acionista controlador a pessoa, natural ou jurídica, ou o grupo de

pessoas vinculadas por acordo de voto, ou sob controle comum, que:

a) é titular de direitos de sócio que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas

deliberações da assembleia-geral e o poder de eleger a maioria dos administradores da

companhia; e
b) usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos

órgãos da companhia.

Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia

realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os

demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua,

cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.”

317. Banco do Brasil, Petrobras, Eletrobras, Telebras, BB Seguridade, Banco do Nordeste do

Brasil (BNB), Banco da Amazônia S.A. (Basa), Caixa Seguridade, Eletropar.

318. Obtido no site da B3. https://www.b3.com.br/pt_br/market-data-e-indices/servicos-de-

dados/market-data/consultas/mercado-a-vista/valor-de-mercado-das-empresas-listadas/bolsa-de-

valores-diario/. Acesso em: 1 out. 2021.

319. Disponível em: https://www.gov.br/economia/pt-br/centrais-de-

conteudo/publicacoes/relatorios/relatorios-das-empresas-estatais-federais/rebef/rebef-

2020.pdf/view

320. A privatização do Sistema Telebras ocorreu em 29 de julho de 1998 por meio de 12 leilões

consecutivos na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro (BVRJ). A Telebras, no entanto, continuou

existindo sob controle estatal, após a cisão da empresa original, que culminou na criação de 12

holdings regionais de telefonia, todas de controle privado.

321. Disponível em: http://www.cprm.gov.br/publique/Sobre/Missao%2C-Visao%2C-Valores-e-

Principios-19.

322. https://www.epe.gov.br/pt/a-epe/quem-somos.

323. https://www.ghc.com.br/default.asp?idMenu=institucional&idSubMenu=4.

324. Assinado em 26 de junho de 2000 e teve como signatários o estado do Rio Grande do Sul, a

Secretaria Estadual da Ciência e Tecnologia, a Secretaria Estadual do Desenvolvimento e dos

Assuntos Internacionais, o município de Porto Alegre, a Secretaria Municipal de Produção,

Indústria e Comércio, a Companhia de Processamento de Dados do Estado do Rio Grande do

Sul, a Companhia de Processamento de Dados do Município de Porto Alegre, a Federação das

Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul, a Federação das Associações Empresariais do Rio

Grande do Sul, a Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica, a Pontifícia

Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), a Universidade Federal do Rio Grande

do Sul (UFRGS), a Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), o Consórcio Ibero-

Americano de Ciência e Tecnologia para a Educação e a Motorola Inc.

325. https://legis.senado.leg.br/sdleggetter/documento?

dm=3597056&ts=1630429234619&disposition=inline.

326. A EMI 00041/MCTCC/MF/MPOG originou o PL 2.468, de 2007, que culminou no Projeto

de Lei da Câmara (PLC) 94, de 2008, cujo relator foi o senador Renato Casagrande. Disponível

em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?

codteor=529055&filename=Tramitacao-PL+2468/2007. Acesso em: 28 set. 2021.

327. Disponível em: http://www.finep.gov.br/noticias/todas-noticias/3860-primeiro-chip- do-

Ceitec-sera- produzido-comercialmente .

328. Disponível em: http://www.Ceitec-sa.com/pt/quem-somos/historico.

o
329. Em sessão realizada em 1 de setembro de 2021, o Tribunal de Contas da União (TCU)

ordenou, por quatro votos contra três, ao governo federal a suspensão da liquidação do Ceitec e
determinou o fornecimento pelo Ministério da Economia em 60 dias de mais informações sobre

a decisão de incluir a empresa no rol das empresas a serem desestatizadas.

330. Disponível em:

https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/colunas/mercado_digital/2021/10/814270-

exclusivo-empresa- lider-global-no- mercado-de -chips-se-instala-no-

tecnopuc.html#.YV777OuWtw0.whatsapp.
CAPÍTULO 17
INTERFERÊNCIA POLÍTICA EM
ESTATAIS DE CAPITAL ABERTO: O
CASO DA PETROBRAS
Marcelo Trindade

INTRODUÇÃO
Este capítulo analisa as medidas legislativas adotadas no Brasil para a

moralização das empresas estatais de capital aberto e a melhoria da sua

governança e procura identificar as razões pelas quais tais medidas não

têm funcionado a contento. Tomaremos a Petrobras — maior estatal

com ações negociadas em Bolsa do país — como exemplo dos

problemas que, em maior ou menor escala, têm historicamente ocorrido

nas demais companhias controladas pela União Federal e não têm sido

evitados pelas providências adotadas para combatê-los.

Em linha com esse propósito mais restrito, não abordaremos alguns

aspectos relevantes relacionados ao tema das empresas estatais no Brasil.

Não cuidaremos, por exemplo, da oportunidade e conveniência da

criação de empresas estatais (tema abordado no Capítulo 16 deste livro).

Além disso, não trataremos da governança de estatais que não têm suas
331
ações negociadas em mercado .

Essa segunda limitação, relativa às companhias fechadas, não impede

que algumas das observações aqui deduzidas lhes sejam aplicáveis. Na

verdade, pretendemos sustentar que a origem dos mais relevantes

problemas de governança que ainda persistem nas estatais brasileiras é o

desalinhamento entre os interesses da empresa e os dos agentes políticos


que determinam a direção pela qual é exercido o poder de controle do

acionista público.

Partindo-se dessa premissa, é razoável supor que qualquer empresa

estatal, independentemente de ter ou não o capital aberto, enfrenta os

mesmos problemas. Na verdade, a partir da máxima tornada célebre por

Louis Brandeis, segundo a qual “sunlight is said to be the best of


332
desinfectants; eletric light the most efficient policeman” , é possível

imaginar que a ausência de visibilidade inerente às companhias estatais

fechadas agrave os riscos de má gestão em relação a elas.

Pelas mesmas razões, algumas das propostas aqui formuladas para

lidar com os problemas de gestão das empresas estatais abertas podem

ser aplicáveis às estatais sem ações negociadas em Bolsa de Valores.

Iniciaremos nossa análise com uma breve descrição do regime legal

das empresas estatais vigente no Brasil, com destaque para a

Constituição Federal e a Lei 13.303, de 2016 — a Lei das Estatais.

Em seguida, serão apontados os conflitos de interesse que surgem na

gestão de uma companhia aberta estatal e os mecanismos atuais

destinados a lidar com eles, considerando, além da Lei das Estatais, as

normas da Lei 6.404, de 1976 — conhecida como Lei das S.A.

A seção seguinte será dedicada à análise dos eventos públicos que

envolveram a Petrobras, para identificar os exemplos de conflitos de

interesse que se verificaram naquele caso, as razões pelas quais os

mecanismos existentes não funcionaram e porque os posteriormente

criados também não funcionariam, caso já existissem.

Finalmente, a última seção deste capítulo examinará algumas

propostas que têm sido debatidas em âmbito internacional e proporá

alterações no sistema atual, tanto na competência para realizar a

nomeação dos administradores de companhias abertas estatais quanto

em relação às sanções dos agentes políticos, como forma de incentivar

que a administração das companhias abertas estatais brasileiras seja feita

com maior qualidade e probidade.

1. REGIME JURÍDICO DAS EMPRESAS ESTATAIS


NO BRASIL
Aquilo que se chama comumente de empresa estatal abrange, no Brasil,

dois conceitos legais distintos. O primeiro é o de empresa pública, que é

a estatal em que a totalidade do capital é público (da União, de estados,

do Distrito Federal ou de municípios). O segundo conceito é o de

sociedade de economia mista, na qual, como diz o nome, a maioria do


333
capital é estatal, mas há acionistas privados .

No âmbito da União Federal, exemplos do primeiro tipo são a Caixa

Econômica Federal, os Correios e a Embrapa, e do segundo a Petrobrás,

o Banco do Brasil e a Eletrobrás. Entre os estados, a Sabesp, de São

Paulo, a Sanepar, do Paraná, e a Cemig, de Minas Gerais, são exemplos


334
de sociedades de economia mista .

As grandes linhas do regime legal das empresas estatais estão

desenhadas na própria Constituição Federal, no artigo 173. A

Constituição limita a criação de empresas públicas e sociedades de


335
economia mista (e suas subsidiárias) às hipóteses de “exploração

direta de atividade econômica pelo Estado”, e desde que tal atuação seja

“necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante

interesse coletivo, conforme definidos em lei ”.


Ao limitar a liberdade para a criação de empresas estatais tanto quanto

à forma — edição de lei — quanto à finalidade — segurança nacional e

relevante interesse coletivo —, o artigo 173 da Constituição é coerente


o
com o princípio da livre iniciativa, consagrado nos seus artigos 1 ,

inciso IV, e 170, segundo os quais, salvo norma constitucional

específica, todas as atividades econômicas são permitidas aos agentes


336
privados e vedadas ao Estado .

Ao mesmo tempo que restringe o exercício de atividade econômica

pelo Estado às hipóteses que menciona, a Constituição exige que aquela

atividade se dê por meio de uma pessoa jurídica especialmente criada.

337
As razões para essa exigência são múltiplas, mas a principal delas
o
está indicada no inciso II do § 1 do próprio artigo 173 da Constituição

Federal, segundo o qual as empresas públicas e sociedades de economia

mista ficam sujeitas “ao regime jurídico próprio das empresas privadas,

inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas


338
e tributários” .
Aquela norma deixa claro que a Constituição parte do correto

pressuposto de que, para exercer atividade econômica, transformando-se

em empresário, o Estado deve abrir mão dos privilégios a ele

normalmente assegurados, como o de não pagar tributos e o de não


339
responder com seu patrimônio pelo cumprimento de suas obrigações .

Não há dúvida, portanto, de que, apesar da origem quase sempre

pública do capital que financia o início de suas atividades, as empresas

estatais têm natureza privada. Pagam tributos como qualquer outra

pessoa jurídica de direito privado e o seu patrimônio responde por suas

obrigações — com uma única ressalva, contraditória e provavelmente


340
inconstitucional, de que sua falência não pode ser decretada .

Além de igualar ônus e riscos das atividades da empresa estatal aos

dos demais agentes do mercado, a Constituição também se preocupa

com a manutenção de um ambiente de competição justa, tendo em vista

o poder que pode derivar da atuação de uma empresa de propriedade

pública.

o
Por isso é que o § 4 do artigo 173 da Constituição estabelece que “[a]

lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos

mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos


341 o
lucros”, enquanto o § 5 do mesmo artigo manda impor às estatais as

“punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a

ordem econômica e financeira e contra a economia popular”.

Apesar da atenção com a competição e do comando relativo à

responsabilidade, a Constituição não ignorou a contradição inerente às

empresas estatais, divididas entre sua natureza privada — necessária, na

visão constitucional, ao desempenho de sua finalidade — e o

cumprimento de sua missão pública, razão mesma de existirem.

Assim, é a própria Constituição que manda a lei regular a função

social das estatais e as formas de fiscalização pelo Estado e pela

o
sociedade (art. 173, § 1 , II). E indo além, exige a “licitação e

contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os


o
princípios da administração pública” (art. 173, § 1 , III).
Essas restrições à liberdade de atuação das empresas estatais, que

decorrem da fiscalização pelos órgãos de Estado — como a

Controladoria-geral da União e o Tribunal de Contas da União — e da

obrigação de contratar por meio de licitação que obedeça aos princípios

da administração pública, dificultam a atuação daquelas empresas. Se

por um lado são empresas privadas e devem competir no mercado, por

outro as estatais são fiscalizadas como se integrassem a administração

pública e ficam obrigadas a adotar processos de contratação mais


342
complexos .

Por fim, é importante mencionar a preocupação constitucional com a


o
qualidade de gestão das empresas estatais. O inciso IV do § 1 do artigo

173, determina que a lei regule “a constituição e o funcionamento dos

conselhos de administração e fiscal, com a participação de acionistas

minoritários”. E o inciso V do mesmo parágrafo demanda disposição

legal sobre “os mandatos, a avaliação de desempenho e a


343
responsabilidade dos administradores” das estatais .

O detalhamento do regime jurídico das empresas estatais fixado pela

Constituição coube à Lei 13.303/16, conhecida como Lei das Estatais,


344
editada apenas em 2016 , em reação a diversos escândalos envolvendo

aquelas empresas, especialmente relacionados a fatos tornados públicos

a partir da chamada Operação Lava Jato — com destaque para aqueles

envolvendo a Petrobras.

A Lei das Estatais dedicou atenção aos temas relacionados à


o o
transparência (art. 8 ), a controles internos e gestão de riscos (art. 9 ), à

qualificação dos dirigentes (arts. 10 e 17) e à organização estrutural de

governança (arts. 13). Além disso, tratou da função social das estatais,

exigindo que estivesse indicada “no instrumento de autorização legal

para sua criação” (art. 27), ainda que, contraditoriamente, tenha ela

própria fixado padrões gerais, e por vezes vagos, de “realização do


345
interesse coletivo” .

A Lei das Estatais também lidou especificamente com os riscos de

conflitos de interesse causados pelo fato de o Estado ser, em relação a

essas empresas, o único sócio (nas públicas) ou sócio majoritário (nas


sociedades de economia mista). Para isso, abordou conflitos de duas

naturezas.

De um lado, tratou dos deveres e responsabilidade do acionista

controlador das estatais, mantendo substancialmente a disciplina da Lei

das S.A., ou seja, sujeitando a pessoa jurídica de direito público

controladora (União, estado, Distrito Federal ou município) ao dever de

“exercer o poder de controle no interesse da companhia, respeitado o


346
interesse público que justificou sua criação” , e à responsabilidade por
347
abuso de poder de controle .

Por outro lado, a Lei das Estatais inovou ao impor deveres de natureza

não patrimonial à pessoa jurídica de direito público controladora da

sociedade de economia mista, obrigando-a a: (i) preservar a

independência do Conselho de Administração (art. 14, inciso II); (ii)

observar a política de indicação de conselheiros, diretores e membros do

Conselho Fiscal, cuja edição passou a ser obrigatória com a Lei (art. 14,

inciso III); e (iii) incluir no código de conduta aplicável à sua própria

administração um dever de silêncio em relação à “informação que possa

causar impacto na cotação dos títulos da empresa pública ou da

sociedade de economia mista e em suas relações com o mercado ou com

consumidores e fornecedores ” (art. 14, inciso I).


o
Por fim, atendendo ao comando do § 1 do artigo 173 da Constituição,

a Lei das Estatais disciplinou longamente a contratação de serviços e

obras por meio de licitação (arts. 28 a 84) — em um regime mais

moderno e simplificado do que aquele então em vigor para a

administração pública —, e cuidou da fiscalização pelo Estado e pela

sociedade (arts. 85 a 90).

Quanto a este último ponto, a Lei das Estatais deixou claro que a

supervisão pelo órgão estatal a que se vincula a empresa “não pode

ensejar a redução ou a supressão da autonomia” dos administradores,

“nem autoriza a ingerência do supervisor” na gestão (art. 89). Do

mesmo modo, as ações dos órgãos de controle, como a CGU e o

Tribunal de Contas, “não podem implicar interferência na gestão (...)

nem ingerência no exercício de suas competências ou na definição de

políticas públicas” (art. 90).


Disso decorre que os administradores de sociedades de economia

mista, além das proteções relativas à sua qualificação e impedimentos

(arts. 10 e 17) e à sua independência (art. 15), tiveram protegida, pela

Lei das Estatais, sua autonomia de atuação — submetida evidentemente

a controle posterior, na forma da Lei das S.A. e das normas aplicáveis à

supervisão pública.

As normas da Lei das S.A. relativas aos administradores de sociedades

de economia mista com ações negociadas em Bolsa não diferem

daquelas aplicáveis aos demais gestores de companhias abertas. Tais

normas se baseiam fundamentalmente na chamada business


judgment rule, segundo a qual os diretores e conselheiros não têm

obrigação de acertar, mas sim de cumprir os deveres de diligência e de

lealdade aos interesses da companhia, informando-se de forma adequada

sobre as decisões que precisam tomar, adotando um processo decisório

que permita a discussão apropriada dos temas e analisando os benefícios


348
e riscos da decisão .

2. CONFLITOS DE INTERESSE EM ESTATAIS E


REMÉDIOS ATUAIS
Em qualquer situação na qual a gestão de um interesse não seja realizada

pelo seu titular, pode haver conflito entre os interesses do gestor e do

titular. Não é surpresa, por isso, que em uma companhia aberta os

interesses da empresa — e portanto do conjunto de seus acionistas —

possam colidir, ou ao menos não coincidir inteiramente, com os dos


349
encarregados da gestão da empresa .

Esse tipo de conflito de interesses é denominado na literatura

internacional como “problema de agência” agency problem),


(

porque opõe os interesses de um titular do direito (principal) e um

gestor ( agent) 350


. Daí os mecanismos para lidar com esse conflito

serem denominados, pelos economistas, de custos de agência ( agency


costs) 351
.

Quando existe acionista controlador, que detenha a maioria do


352
capital , o alinhamento entre os interesses desse acionista e os dos
acionistas minoritários é mais provável, pois o controlador sofrerá

grande parte da perda que a empresa experimentar.

Contudo mesmo nesse cenário podem ocorrer conflitos de interesses.

Um exemplo comum é o da aquisição, pela empresa, de ativos em que o

acionista controlador detenha participação maior do que a por ele detida

na companhia. Nesse caso, o controlador poderia orientar a companhia a

adquirir o ativo por preço superior ao seu efetivo valor. A Lei das S.A.

lida com esse tema, determinando que o controlador vote no interesse da

companhia (art. 116) e considerando ilícito, e sujeito a indenização e

punição, o abuso de poder de controle (art. 117).

Já nas companhias com o capital disperso entre milhares de acionistas,

em que nenhum deles detém uma parcela majoritária ou mesmo

relevante dos votos nas assembleias, ocorre a chamada dissociação entre

a propriedade e o controle, e o risco de que os interesses dos gestores

prevaleçam sobre o dos acionistas aumenta. Tal risco agrava-se quanto

maior for a liberdade de atuação dos administradores, isto é, quanto

menos dependerem do voto dos acionistas em assembleia. Na verdade,

mesmo quando a assembleia é necessária, o reduzido interesse

econômico individual dos acionistas tende a fazer com que não

compareçam para votar ou outorguem procurações aos próprios


353
administradores para votarem em seu nome .

Lidar com esse tipo de conflito de interesses tem sido um dos

principais objetivos do sistema jurídico desde sempre. O direito romano

já se preocupava em determinar ao mandatário (procurador) que atuasse


354
no interesse dos mandantes . E as leis aplicáveis às sociedades
355
anônimas no Brasil sempre trataram dessa questão .

Ocorre que, no caso das sociedades de economia mista de capital

aberto, o risco de conflito de interesses entre gestores e proprietários é

ainda maior, porque acontece em três níveis. Além das duas espécies de

conflitos comuns nas companhias abertas em geral — entre os

administradores da companhia (agentes) e os acionistas (principais) e

entre o acionista controlador que pode impor sua vontade (agente) e os

acionistas minoritários (principais) — as companhias estatais

experimentam o risco de conflito entre os interesses do agente político


que indica os administradores e estabelece os rumos para os negócios da

empresa (agente) e os interesses da própria empresa, e portanto dos

acionistas (principais).

O problema é que as normas da Lei das S.A. e da Lei das Estatais que

buscam mitigar os conflitos de interesses limitam-se ao modelo aplicável

às demais sociedades anônimas, o qual não é suficiente para lidar com o

conflito de interesses entre agentes políticos e acionistas de empresas

estatais.

Ambas as leis utilizam mecanismos de limitação dos poderes dos

administradores — mediante a imposição de matérias a serem

obrigatoriamente submetidas à assembleia geral de acionistas —,

determinam que os gestores atuem no interesse da empresa e impõem a

eles a possibilidade de sanção administrativa e indenização, caso se

desviem daqueles deveres.

Do mesmo modo, a Lei das S.A. e a Lei das Estatais, além de exigirem

do controlador atuação no interesse da companhia, com risco de sanção

e de responsabilidade civil, impedem o voto daquele acionista em certas

situações e o obrigam à divulgação mais intensa de informações do que

aos demais. A Lei das Estatais vai ainda mais longe, limitando mais

intensamente a liberdade de escolha dos administradores pelo

controlador estatal e impondo a ele o dever de “preservar a

independência do Conselho de Administração no exercício de suas

funções” (art. 14, inciso II).

Essas normas, entretanto, não tratam diretamente do conflito de

interesses. Ademais, elas se dirigem ao acionista controlador da

sociedade de economia mista, que não é o agente político, mas sim a

pessoa jurídica de direito público em nome de quem ele toma decisões.

Em outras palavras, a indenização pela violação daqueles deveres será

paga pela própria pessoa jurídica de direito público que exerce o

controle (União, estado, Distrito Federal ou município), e não pelo

agente político que oriente indevidamente o voto na assembleia, destitua

o administrador que se oponha a seus desejos ou interfira na

independência do Conselho de Administração.


O mesmo se diga quanto às sanções administrativas aplicáveis pelo

órgão regulador, que a Lei das S.A. e a Lei das Estatais não mandam

impor a tais agentes — e que, mesmo se fossem impostas,

provavelmente não os impediriam de prosseguir em suas carreiras

políticas.

Como vimos na seção anterior, no único momento em que impôs

deveres ao agente político, a Lei das Estatais o fez indiretamente, ao

mandar incluir no código de conduta aplicável à alta administração (da

União, do estado, do Distrito Federal ou do município) o dever de

manter sigilo sobre “informação que possa causar impacto na cotação

dos títulos da empresa pública ou da sociedade de economia mista e em

suas relações com o mercado ou com consumidores e fornecedores” (art.

14, inciso I).

Assim, o eventual descumprimento desse dever, além de não se

relacionar com os conflitos de interesse, dará causa apenas a uma

admoestação pelos órgãos de controle encarregados da supervisão da

aplicação do código conduta, mas não constituirá, ao menos de forma

explícita, ato ilícito civil, nem muito menos levará à perda do cargo ou a

qualquer sanção mais grave.

Por outro lado, os riscos de queda de cotações ou de danos à imagem,

que têm papel relevante no desestímulo a atos abusivos por

administradores e controladores de companhias abertas em geral,

igualmente não têm impedido os agentes políticos de interferir na gestão

de empresas estatais ou demitir administradores que resistam a suas

pretensões de intervenção.

É verdade que, tanto quanto os agentes políticos, os controladores

privados também podem demitir administradores que discordem de sua

visão estratégica ou resistam à prática de atos indevidos em benefício do

controlador. A diferença está em que, quando se trata de capital privado,

os riscos decorrentes dessa espécie de retaliação são grandes.

Em primeiro lugar, a divulgação dos eventos — desde o voto contrário

do administrador no conselho de administração ou na diretoria, caso se

chegue a esse ponto, até notícias sobre as causas da substituição —

normalmente levará à queda nas cotações das ações. Isso afetará o


patrimônio do próprio controlador, o que já pode ser suficiente para

inibi-lo. E, em segundo lugar, o ruído atrairá a atenção dos reguladores

— notadamente da CVM —, aumentando o risco de sanções

administrativas e de condenação em indenização pelos danos causados à

companhia, o que também tende a frear o acionista controlador privado.

O mesmo não ocorre com os agentes políticos, responsáveis pelas

decisões do acionista controlador público, pelas razões antes expostas:

eles não pagarão a indenização, mesmo que ela venha a ser imposta à

pessoa jurídica de direito público que controla a empresa, e a repressão


356
dos reguladores não os atinge — e mesmo que viesse a atingi-los,

seria provavelmente indiferente para suas carreiras, que não se

desenvolvem no mercado de capitais nem dependem da captação pública

de recursos.

3. A PETROBRAS COMO (MAU) EXEMPLO


A corrupção no serviço público sempre foi considerada um dos graves

problemas brasileiros. As empresas estatais e os fundos de pensão de

seus empregados sempre foram tristes protagonistas desses eventos.

Diversas iniciativas legislativas foram adotadas para combater a

persistente corrupção brasileira, quase sempre como resposta a

escândalos. A Lei 8.249, de 1992 (a Lei da Improbidade Administrativa)

e a Lei 12.846, de 2013 (a Lei Anticorrupção) são exemplos da tentativa

de reação a desvios de servidores públicos e seus cúmplices, por meio

de uma melhor tipificação de condutas e da imposição de sanções mais

severas.

Além do combate direto à corrupção, muitas normas destinam-se a

enfrentá-la indiretamente. É o caso das regras legais relativas às

licitações públicas — vistas anteriormente, que também constam, como

modificações, da Lei das Estatais —, com o propósito de assegurar

maior competição e melhor formação dos preços nos contratos para

fornecimento de produtos e serviços prestados.

A Petrobras é uma das maiores companhias brasileiras. Tratando-se de

sociedade de economia mista de capital aberto, dividido em ações

ordinárias e preferenciais sem voto, é controlada pela União Federal, que


detém pouco mais de 50% do capital votante, e cerca de 37% do capital

total.

Com essa composição de capital, e sendo regida pela Lei das S.A., a

Petrobras faz parte daquele grupo de empresas antes referido, em que

existe um acionista controlador com participação relevante no capital

total, o qual, por isso, deveria ter seus interesses bastante alinhados aos

da companhia na maior parte das deliberações.

Apesar disso, a Petrobras envolveu-se com frequências em acusações

de más práticas corporativas, em prejuízo da própria companhia, e por

vezes de condutas ilícitas ligadas à corrupção. Vale revisitar alguns

episódios mais recentes.

Em 2009 o governo federal anunciou um expressivo plano de

capitalização da Petrobras, destinado a financiar a exploração das

reservas de petróleo da área marítima conhecida como pré-sal. Como a

União Federal não teria recursos para subscrever as novas ações, criou-

se um mecanismo pelo qual ela cederia onerosamente à Petrobras o

direito a 5 bilhões de barris de petróleo, a serem extraídos daquelas

reservas nos anos seguintes.

A cessão do direito aos barris de petróleo seria paga pela Petrobras em

títulos públicos, viabilizando o aporte de recursos pela controladora. Já

os demais acionistas deveriam subscrever o aumento de capital em

dinheiro, que seria usado para reduzir o endividamento da companhia, e

na própria exploração das reservas.

O conflito de interesses sobre o valor presente dos barris a serem

extraídos no futuro era evidente. Quanto maior fosse aquele valor, mais

ações a União receberia. A controladora (agente) tomaria a decisão em

nome dos demais acionistas (principais), embora seus interesses fossem

contrários.

Essa modalidade de conflito de interesses é comum na vida das

companhias em geral, e por isso mesmo a Lei das S.A. a enfrenta de

algumas formas, entre elas pelo impedimento do voto dos acionistas na

avaliação dos bens que aportarem ao patrimônio da empresa — no caso,


357
o direito aos barris de petróleo . Ocorre que o aumento de capital foi
estruturado de modo a afastar aquele mecanismo da Lei das S.A.

desenhado para lidar com o conflito.

À época, foi criado um comitê independente, formado inclusive por

representantes dos acionistas minoritários no Conselho de

Administração, que aprovou os termos da cessão onerosa dos barris,

instrumentalizada em uma compra, e não como aumento de capital em

bens, mas que serviu para a União Federal liberar os recursos

necessários à subscrição do aumento de capital.

Os acionistas minoritários e demais agentes de mercado, por sua vez,

sempre mais atentos aos rendimentos de curto prazo que à defesa de

princípios, aderiram maciçamente à operação. A oferta pública das

ações restantes, liquidada no segundo semestre de 2010, foi um absoluto

sucesso, no valor de cerca de 70 bilhões de dólares, na maior

capitalização já realizada nos mercados mundiais. Esse sucesso, e a

pouca reação de acionistas minoritários, ofuscou a estratégia utilizada

para impedir a incidência dos mecanismos legais de proteção da

minoria.

Pouco tempo depois, com a queda da cotação do petróleo, os

resultados para os acionistas que subscreveram o aumento de capital já

não eram bons. Foi quando eclodiu, em 2014, no âmbito da Operação

Lava Jato, a revelação de um sofisticado esquema de desvio de recursos

da Petrobras, que desnudou a inviabilidade de diversos dos

investimentos da companhia e levou a enorme perda de valor da

Petrobras.

Segundo as confissões, os corruptores destinaram uma parte dos

recursos obtidos com o sobrepreço das obras e serviços vendidos à

Petrobras aos administradores indicados pela União Federal e outra,

maior, ao financiamento de partidos políticos e campanhas eleitorais.

Em outras palavras, a contrapartida passou a incluir não apenas a

propina ao agente público ou ao administrador da estatal, mas também o

financiamento eleitoral de quem indicara tais agentes.

Os administradores das empresas e os corruptores que

confessadamente participaram das fraudes foram condenados, criminal e

administrativamente. Mas os agentes políticos, inicialmente condenados,


têm conseguido adiar seu julgamento final pelo judiciário. Os demais

administradores, que não tinham envolvimento no esquema, têm sido

absolvidos, inclusive porque os desvios dos valores justos das obras e

serviços eram percentualmente baixos — ainda que em vultosos

montantes, por conta da envergadura dos empreendimentos —, e por

isso de impossível detecção.

Além do cometimento de atos ilegais, a experiência da Petrobras

também tem demonstrado outra faceta dos conflitos entre os interesses

dos agentes políticos com os da própria empresa — e em consequência

de seus acionistas, inclusive a União Federal. Trata-se da interferência

dos políticos na atuação dos administradores da companhia, em especial

quanto à fixação do preço dos combustíveis pela Petrobras.

Aquela interferência ocorreu no Brasil em quase todos os governos,

acima de tudo pela repercussão do preço dos combustíveis sobre a

inflação. Mais recentemente, quando se buscou a equalização com o

preço internacional para evitar a interferência política, a reação de

caminhoneiros à alta do preço do diesel, em 2018, causou uma greve

que paralisou o transporte rodoviário no país e, em 2021, a destituição

do presidente da Petrobras.

Esse conjunto de eventos relativos à Petrobras é indicativo, em

primeiro lugar, da dificuldade de fazer cumprir, nas empresas estatais, as

normas legais destinadas a lidar com conflitos de interesse. A

estruturação de operações societárias mais sofisticadas pode afastar a

incidência das regras ordinárias de proteção, e é quase sempre inviável

fazer com que a estrutura alternativa seja submetida ao regime jurídico

da opção evitada, pois muitas razões legítimas podem justificar, ou ser

alegadas para justificar, a forma utilizada.

Mesmo assim, quando se trata de uma empresa que tem apenas

acionistas privados, os danos patrimoniais e de imagem causados ao

controlador pela discussão pública da legitimidade da operação, assim

como os riscos pessoais de punição aos administradores — havendo ou

não acionista controlador —, muitas vezes são suficientes para

interromper o negócio ou ao menos levar à revisão de seus termos.


Já nas empresas estatais, o fato de que os agentes políticos não sofrem

repercussões econômicas nem sanções, caso atuem em conflito com os

interesses da empresa — mesmo quando prejudicam o próprio acionista

público —, pode levar, e com frequência leva, a uma atuação tão

somente determinada pelo efeito político buscado por quem toma a

decisão.

Em segundo lugar, os eventos da Petrobras também revelam a

dificuldade de impedir que os agentes políticos interfiram na

administração motivados por razões dissociadas do interesse da

empresa. Nesse caso, soma-se à inexistência de sanções e riscos pessoais

a própria lei, que permite que o interesse da sociedade de economia

mista ceda ao “interesse público que justificou sua criação”, cujos

limites são quase sempre difíceis de identificar.

4. PROPOSTAS DE EVOLUÇÃO
Para lidar com os problemas apontados, o caminho ideal seria,

evidentemente, que a população percebesse o uso político das empresas

estatais como um fato negativo e elegesse representantes que, no seu

próprio benefício eleitoral, se comprometessem a respeitar o interesse da

empresa e do acionista público, quando da indicação de administradores,

e a respeitar a independência da gestão da companhia.

O tema, contudo, tem pouquíssimo apelo eleitoral, além de desafiar

outro conflito de interesses: o da população que se percebe diretamente

beneficiada por medidas demagógicas de intervenção pelos agentes

políticos na gestão das estatais — como o congelamento de preço de

combustíveis — e não consegue perceber a relevância, para sua própria

vida, da defesa do interesse do patrimônio da sociedade de economia

mista, que tem acionistas privados, muitos deles estrangeiros.

Para que não se dependa exclusivamente da postura correta dos

agentes políticos da vez, é preciso, portanto, adotar medidas que

incentivem a administração com qualidade das companhias abertas

estatais e a correta gestão dos conflitos de interesse que surgirem em

suas atividades e que sejam eficazes para constranger os políticos a não

interferir em sua gestão.


Review of the
Em dezembro de 2020 a OCDE tornou público o

Corporate Governance of State-Owned Enterprises relativo


ao Brasil. Embora elogiando a promulgação da Lei das Estatais, o

relatório sugere a adoção de medidas de curto e médio prazo para a


358
melhoria da governança das estatais brasileiras .

No curto prazo as sugestões incluem a criação de uma política de

gestão das participações estatais nas empresas, incluindo maior clareza

na justificação para que o Estado seja acionista de uma companhia, e o

fortalecimento dos conselhos de administração, inclusive quanto às

regras para sua eleição.

Como vimos, a Lei das Estatais buscou tratar das questões relativas à

indicação dos administradores, seja ao estabelecer requisitos mínimos de

qualificação dos apontados, seja ao criar impedimentos à eleição de

pessoas nas quais enxergou risco de excessiva vinculação com os

agentes políticos responsáveis pela indicação, por seu histórico

profissional, por sua posição em órgãos de governo e ainda por ligações

de parentesco ou afinidade.

Além disso, a Lei das Estatais restringiu, pela primeira vez, a própria

atuação do agente político, ao determinar que os códigos de conduta da

alta administração tratassem do dever de sigilo sobre temas que possam

causar impacto no mercado. Contudo essa providência é limitada em seu

escopo — que não alcança as hipóteses de intervenção indevida na

administração nem no exercício do poder de voto do acionista público

— e insuficiente quanto às suas consequências, pois resulta apenas na

aplicação de sanções brandas.

Diante disso, e em linha com as recomendações da OCDE, parece-nos

que seria possível evoluir no tratamento dos conflitos de interesse de

duas maneiras. Em primeiro lugar, revogando-se a ressalva ao interesse

público que justificou a criação da sociedade de economia mista de

capital aberto, ficando seus administradores e o acionista controlador

obrigados a perseguir o interesse da empresa, exclusivamente.

Essa alteração é inteiramente compatível com o regime jurídico

desenhado pela Constituição Federal, o qual, como vimos, considera que

a atuação no mercado com pessoa jurídica de direito privado, sem


privilégios de qualquer espécie, é da essência das estatais. O interesse

público referido pela Constituição, que permite a criação da sociedade

de economia mista, deve necessariamente ser compatível com a

finalidade lucrativa. Não sendo esse o caso, o caminho deve ser o da

criação de uma empresa pública, na qual não existe apelo à poupança

popular.

Por outro lado, se o poder público não detiver o capital necessário para

desenvolver sozinho a empreitada e precisar recorrer ao capital privado,

captando poupança popular, deve ficar obrigado a remunerar esse

investimento, como qualquer empresa.

Entretanto, essa alteração legislativa deveria ser acompanhada de

outras, que produzissem o efeito de impedir, ou ao menos limitar mais

intensamente, a possibilidade de intervenção do agente político sobre a

administração das sociedades de economia mista de capital aberto.

No campo das nomeações e demissões de conselheiros de

administração e principais executivos, uma alternativa seria condicioná-

las ao exame por um órgão de Estado, e não de governo. Tal órgão

poderia, por exemplo, ser formado por uma combinação de servidores

públicos de carreira e profissionais gabaritados da iniciativa privada,

todos com mandatos alternados e que não coincidissem com os

mandatos dos agentes políticos, e sem possibilidade de recondução. A

esse órgão caberia examinar o currículo dos indicados e as razões para

sua demissão, antes que as indicações ou afastamentos pelo agente


359
político fossem considerados eficazes .

Já no campo da responsabilidade em razão da interferência indevida

pelo agente político, um caminho seria o de tipificar claramente, na Lei

de Improbidade Administrativa, a conduta de ingerência ilícita na

autonomia dos Conselhos de Administração de sociedades de economia

mista de capital aberto, com as consequências de indenização pessoal e

de perda de direitos políticos ali previstas.

Alterações como essas poderiam contribuir para incentivar as

administrações das sociedades de economia mista a dedicarem-se a

obter resultados para as companhias, assegurando aos administradores

tranquilidade para realizar a finalidade empresarial que constitui a


própria razão da existência daquelas sociedades e servindo de

desestímulo a intervenções pelos agentes políticos em conflito com os

interesses da sociedade.

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e III.

331. Desde a Emenda Constitucional 19, de 1998, e a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei

Complementar 101 de 2001), a legislação passou a diferenciar as estatais dependentes e não

dependentes de recursos públicos, definidas como “empresa controlada que receba do ente

controlador recursos financeiros para pagamento de despesas com pessoal ou de custeio em geral

ou de capital, excluídos, no último caso, aqueles provenientes de aumento de participação

o
acionária” (art. 2 , III, da Lei Complementar 101/01). Ao final de 2020 havia 187 empresas

estatais federais no Brasil, das quais 46 controladas diretamente pela União Federal e 141

controladas indiretamente, isto é, subsidiárias de empresas controladas diretamente. Das 46

empresas controladas diretamente, 19 eram dependentes e 27 não dependentes, na forma da

classificação utilizada pela Lei de Responsabilidade Fiscal. As principais companhias abertas

estatais brasileiras são a Petrobras, com valor de mercado, ao final de 2020, de cerca de R$ 373

bilhões, o Banco do Brasil (cerca de R$ 11 bilhões), BB Seguridade (cerca de R$ 59 bilhões) e a

Eletrobras (cerca de R$ 57 bilhões). Fonte: Brasil (2021).

332. Brandeis (1914), p. 92.

333. Esses conceitos constavam originariamente do Decreto-Lei 200, de 1967 — a seu tempo

conhecido como a Lei da Reforma Administrativa –, e foram acolhidos pela Lei 13.303, de 2016,

que conceitua a empresa pública como “a entidade dotada de personalidade jurídica de direito

privado, com criação autorizada por lei e com patrimônio próprio, cujo capital social é

integralmente detido pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios”,

admitindo, contudo, a participação no capital social “de outras pessoas jurídicas de direito

público interno, bem como de entidades da administração indireta”, desde que “a maioria do

capital votante permaneça em propriedade da União, do Estado, do Distrito Federal ou do

o
Município” (art. 3 e seu parágrafo único). Já a sociedade de economia mista é definida pela

mesma lei como “a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com criação

autorizada por lei, sob a forma de sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam

em sua maioria à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios ou a entidade da

administração indireta”.

334. Todos os exemplos citados são de sociedades de economia mista de capital aberto, com

ações negociadas em Bolsa de Valores, mas nada impede que haja acionistas privados em

sociedades de economia mista fechadas.

335. A criação de empresas públicas e sociedades de economia mista e a de suas subsidiárias,

bem como a participação de qualquer delas em empresas privadas, depende da edição de lei

específica, segundo o art. 37, incisos XIX e XX, da Constituição Federal.

336. Aragão (2018), p. 53.

337. Organização administrativa e contratação de pessoal sem obedecer ao teto de remuneração

do funcionalismo público, entre outros.

o
338. O § 2 do art. 173 reforça o aspecto tributário, ao enfatizar que as estatais “não poderão

gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado”.


339. Segundo o art. 150, VI, “a”, da Constituição Federal, à União, aos estados e aos municípios

é vedado instituir impostos sobre “patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros”. Já o art. 100

da Constituição Federal estabelece que as dívidas da União, dos estados e dos municípios, assim

também a de todas as pessoas jurídicas de direito público — como as autarquias —, são pagas

por meio de precatórios, apresentados pelo Poder Judiciário até 31 de julho de cada ano, para

serem incluídos no orçamento e quitados até o fim do ano seguinte. Isso ocorre porque os bens

de propriedade pública somente podem ser alienados na forma da lei (Código Civil, arts. 100 e

101), e por essa razão não podem ser penhorados para cumprimento de obrigações (Código de

Processo Civil, art. 832). No Supremo Tribunal Federal tem prevalecido o entendimento de que

somente às estatais que não prestam serviço público são inteiramente aplicáveis as citadas regras

da Constituição. Em 2020 o Tribunal firmou a tese de que a “sociedade de economia mista, cuja

participação acionária é negociada em Bolsas de Valores, e que, inequivocamente, está voltada à

remuneração do capital de seus controladores ou acionistas, não está abrangida pela regra de

imunidade tributária prevista no art. 150, VI, ‘a’, da Constituição, unicamente em razão das

atividades desempenhadas” (Recurso Extraordinário 600.867-SP, julgado em 21/08/2020).

Quanto aos debates no âmbito do STF sobre o tratamento das empresas estatais que prestam

serviços público, v. Mendes (2018).

340. O art. 242 da Lei 6.404, de 1976 (Lei das S.A.), que expressamente impedia a falência das

sociedades de economia mista, foi revogado pela Lei 10.303, de 2001. Com isso, passou a ser

admitida a falência daquelas sociedades, mas remanesceu a dúvida quanto à possibilidade de

falência das empresas públicas. Contudo a Lei 11.101, de 2005 (Lei de Falências), afastou

expressamente a possibilidade de falência nos dois casos. Sobre o tema, com ampla citação de

doutrina contrária à possibilidade da falência de estatais, ver Sacalzilli, Spinelli e Tellechea

(2018), p. 153. Por outro lado, sustentando que a possibilidade de falência somente está afastada

para empresas estatais prestadoras de serviço público, v. Meirelles (2006), p. 363-364.

341. Em consonância com o princípio da livre concorrência estabelecido no art. 170 da

Constituição Federal, ao tratar da ordem econômica.

342. Entre essas dificuldades vale mencionar, também, a necessidade de edição de lei específica

para a criação de subsidiárias, e para a autorização de participação em empresas privadas —

prevista nos incisos XIX e XX do art. 37 da Constituição. Em 1995, quando da apresentação

pelo presidente da República da Proposta de Emenda Constitucional 173, previa-se a supressão

da exigência de autorização legislativa para a criação de subsidiárias que atuassem na mesma

área da empresa estatal. Segundo a exposição de motivos que a acompanhou, a proposta “vem

conferir maior autonomia e agilidade para o bom desempenho nas condições de mercado. Esta

flexibilização, contudo, só se aplicará às situações em que a subsidiária tenha como finalidade o

desenvolvimento de atividades econômicas similares às da empresa matriz”. A PEC 173/95 veio

a transformar-se na Emenda Constitucional 19, de 1998, que procedeu a diversas alterações no

regime das empresas estatais, mas não suprimiu aquela exigência de lei específica constante do

art. 37.

o
343. Ambos os incisos do § 1 do art. 173 da Constituição foram incluídos pela Emenda

Constitucional 19, de 1998.

o
344. A Lei 13.303/16, como se vê de seu art. 1 , “dispõe sobre o estatuto jurídico da empresa

pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, abrangendo toda e qualquer

empresa pública e sociedade de economia mista da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos

Municípios que explore atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de


prestação de serviços, ainda que a atividade econômica esteja sujeita ao regime de monopólio da

União, ou seja, de prestação de serviços públicos”.

345. Determinando que aquela realização da função social “deverá ser orientada para o alcance

do bem-estar econômico e para a alocação socialmente eficiente dos recursos geridos” pela

estatal, com “ampliação economicamente sustentada do acesso de consumidores aos produtos e

serviços da empresa pública ou da sociedade de economia mista” e com “desenvolvimento ou

emprego de tecnologia brasileira para produção e oferta de produtos e serviços (...), sempre de

o
maneira economicamente justificada” (art. 27, § 1 , incisos I e II). Por outro lado, a Lei das

Estatais acertadamente determina que as empresas estatais adotem “práticas de sustentabilidade

ambiental e de responsabilidade social corporativa compatíveis com o mercado em que atuam”

o
(art. 27, § 2 ).

o o
346. Art. 4 , § 1 , da Lei 13.303/16. A redação dessa norma é muito semelhante à do art. 238 da

Lei das S.A., segundo a qual “[a] pessoa jurídica que controla a companhia de economia mista

tem os deveres e responsabilidades do acionista controlador (artigos 116 e 117), mas poderá

orientar as atividades da companhia de modo a atender ao interesse público que justificou a sua

criação”. De todo modo, é possível sustentar que com a nova lei há somente um dever, ou seja, o

de atuar no interesse da companhia, limitado pelo interesse público, e não mais dois deveres

paralelos — sutileza certamente insuficiente para produzir repercussão prática no dia a dia das

estatais.

347. Art. 15 da Lei 13.303/16. As novidades desse dispositivo, em relação à Lei das S.A., foram

a possibilidade de um terceiro prejudicado ajuizar a demanda diretamente contra o controlador

— hipótese com remota possibilidade de aplicação prática —, a desnecessidade de detenção de

um percentual mínimo do capital para ajuizar a ação, mesmo sem prestação de caução, e a

fixação de um prazo prescricional de seis anos, comparados com os três anos previstos na Lei

o o o o
das S.A. (cf. § 1 e § 2 da Lei 13.303/16). O § 2 do art. 4 também deixa claro que a

sociedade de economia mista de capital aberto sujeita-se à supervisão pela Comissão de Valores

Mobiliários (CVM), nos termos da Lei 6.385, de 1976.

348. As decisões do administrador deverão, portanto, ser informadas, refletidas e

desinteressadas, porque o seu dever de diligência inclui “um comportamento diligente e honesto

... em vista da obtenção” do melhor resultado, mas não o resultado em si mesmo, como ensina

Comparato (1978), p. 535. Para uma análise completa sobre os deveres dos administradores de

companhias abertas, consultar Adamek (2009).

349. Para uma aprofundada análise dos conflitos de interesses em sociedades anônimas e seu

tratamento legal, consultar França (2014).

350. “Esses conflitos [de interesse] têm o caráter do que os economistas chamam de ‘problemas

de agência’ ou problemas ‘principal-agente’”, que surgem “sempre que a prosperidade de uma

das partes, denominada ‘principal’, depende de ações tomadas pela outra parte, denominada

‘agente’. O problema está em motivar o agente a agir no interesse do principal e em vez de

simplesmente no seu próprio interesse” (Hansmann e Kraakman, 2004, p. 21 — tradução livre).

351. “O principal pode limitar as divergências com seu interesse estabelecendo incentivos

apropriados para o agente e incorrendo em custos de monitoramento destinados a limitar as

atividades anômalas do agente. Além disso, em algumas situações o agente deverá despender

recursos (custos de caução) — no original bonding costs — como depósitos em garantia,

prêmios de seguro e obrigações de não concorrência” “para garantir que ele não realizará certas
ações que prejudicariam o principal ou para assegurar que o principal será compensado se ele o

fizer. No entanto, geralmente é impossível para o principal ou o agente a custo zero garantir que

o agente tomará as decisões ótimas do ponto de vista do principal. Na maioria das relações de

agência, o principal e o agente incorrerão em custos positivos de monitoramento e custos de

caução (não pecuniários e pecuniários) e, além disso, haverá alguma divergência entre as

decisões do agente e aquelas decisões que maximizariam a prosperidade do principal. O

equivalente em dinheiro da redução de prosperidade experimentada pelo principal devido a essa

divergência também é um custo da relação de agência, e nos referimos a este último custo como

‘perda residual’. Definimos os custos de agência como a soma de: (1) as despesas de

monitoramento pelo principal, (2) os custos de caução pelo agente, (3) a perda residual” (Jensen

e Meckling, 1976, p. 308 — tradução livre).

352. Maioria do capital total, não apenas do capital votante. Quando há emissão de ações

preferenciais sem voto ou de ações com voto plural, o fato de o controlador prevalecer nas

decisões das assembleias não assegura seu alinhamento com o interesse da empresa, na qual

pode deter participação econômica reduzida.

353. É a observação de Berle e Means, em sua obra clássica sobre o tema publicada

originalmente em 1932: “Como seu voto pessoal conta pouco ou nada na assembleia, a menos

que possua um bloco muito grande de ações, o acionista está praticamente reduzido à alternativa

de não votar ou de delegar seu voto a indivíduos sobre os quais não tem nenhum controle e de

cuja escolha não participou”. E concluem: “Assim, onde a propriedade está suficientemente

subdividida, os administradores podem se tornar um organismo autoperpetuador, mesmo que sua

participação na propriedade seja desprezível. Essa forma de controle pode ser adequadamente

chamada de ‘controle gerencial’ (management control).” (Berle e Means, 2007, p. 80-82 —

tradução livre).

354. Moreira Alves (2000), p. 170.

355. V. os arts. 82, 120 e 154 do Decreto-Lei 2.627, de 1940, e os arts. 115, 117 e 156 da Lei

6.404, de 1976. A respeito da interpretação das normas da lei anterior, v. Valverde (1953), vol.

II, p. 66-68; 314-316, e vol. III, p. 83-85. Para a interpretação da lei atual, v. Campos (2009), p.

1154ss, e França (2014).

356. As penalidades aplicadas pela Comissão de Valores Mobiliários sempre se restringiram ao

ente público controlador e aos administradores da sociedade de economia mista, quando também

o
acusados, não alcançando o agente político. Vejam-se, por exemplo, os processos n 12/97,

julgado em 07/12/2000 (condenados o estado do Mato Grosso do Sul, como controlador da

o
Enersul, e alguns administradores da companhia); n 11/97, julgado em 18/10/2001 (condenados

o estado do Mato Grosso, controlador da Cemat, alguns administradores da companhia e

o
cúmplices pelos atos ilícitos); n RJ2002/4985, julgado em 08/11/2005 (condenada a União

o
Federal, controladora do Banco do Estado de Goiás); n RJ2013/6635, julgado em 26/05/2015

o
(condenada a União Federal, como controladora da Eletrobrás); e n RJ2012/1131, julgado em

26/05/2015 (condenado o estado de São Paulo, como controlador da Empresa Metropolitana de

o
Águas e Energia). No processo n 07/03, julgado em 04/07/2007 (condenado o município de São

Paulo, como controlador da Anhembi Turismo e Eventos), o prefeito Celso Pitta fora também

acusado, mas foi excluído do feito, por decisão unânime do Colegiado, porque “não há

fundamento legal para a sua acusação nessa qualidade, no âmbito desta autarquia. Não se pode

falar aqui, como é óbvio, de controle indireto da Companhia pelo Prefeito. Tampouco se pode
acusar o representante legal do controlador, nessa condição, por exercício abusivo do poder de

controle, pois quem exerce o controle é o Município, e não quem o representa”. Em um caso que

não envolvia acusação de abuso de poder de controle, mas sim de descumprimento do dever de

sigilo sobre um fato relevante atinente aos negócios da Nossa Caixa S.A., sociedade de economia

mista então controlada pelo estado de São Paulo, a CVM aceitou proposta de extinção do

o
processo por termo compromisso, formulada por Claudio Lembo, ex-governador (Processo n

RJ2007/11305, examinado em 05/06/2008). Como antes referido, o dever de sigilo de agente

político é atualmente tratado pela Lei 13.303, de 2016, mas apenas para determinar sua inclusão

nos códigos de conduta das altas administrações.

o
357. Art. 115, § 1 , da Lei 6.404/76.

358. OECD (2020).

359. Pinto Junior (2013, p. 438) relata experiência desenvolvida pelo estado de São Paulo,

visando ao efeito oposto, ou seja, o de levar os conselheiros de administração a votar no sentido

determinado pelo agente político, evitando-se a necessidade de substituição do conselheiro que

discordasse. O estado incumbiu um órgão específico, o Conselho de Defesa dos Capitais do

Estado (Codec), do “relacionamento com os conselheiros de administração das companhias

controladas”, prevendo-se a assinatura, por estes, de um termo de compromisso, pelo qual “o

conselheiro obrigava-se a votar em relação a determinadas matérias seguindo as instruções do

Codec”. Ainda segundo o autor, a “medida gerou grande inconformismo por parte de alguns

setores governamentais, que visualizaram aí a tentativa de cercear a liberdade dos conselheiros

de formular juízos discricionários sobre a condução dos negócios sociais”.


CAPÍTULO 18
POLÍTICAS DE EXPANSÃO DA
EDUCAÇÃO SUPERIOR
Simon Schwartzman

INTRODUÇÃO
O ensino superior, que no passado era acessível somente a um número

muito limitado de pessoas, começou a se expandir rapidamente em todo o

mundo sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial, alterando

profundamente a maneira pela qual as instituições de ensino são

organizadas e administradas, como se financiam e se relacionam com os

governos, bem como os conteúdos dos cursos e as características dos

estudantes. A estimativa é que, em 1900, havia cerca de 500 mil

estudantes de nível superior em todo o mundo; em 2000, cerca de 100

milhões; e em 2019, segundo o Instituto de Estatística da Unesco, 389


360
milhões .

O Brasil também acompanhou esse processo, ainda que com atraso. Em

1960, tínhamos cerca de 60 mil estudantes. A partir daí, o sistema cresceu

vertiginosamente, sobretudo no século 21, e chegou aos atuais cerca de 10

milhões, dos quais 8,6 milhões em cursos de graduação, em torno de 400

mil em cursos de mestrado e doutorado stricto sensu e mais 1 milhão


361
em cursos de especialização . O objetivo deste capítulo é examinar

como essa expansão se deu, a partir do marco legal estabelecido desde a

década de 1960 e dos incentivos e mecanismos de financiamento do

governo federal nos últimos 20 anos. Argumentamos que o país não criou

um marco legal e regulatório adequado para um sistema de educação

superior de massas e que os incentivos financeiros, além de projetarem um

crescimento insustentável de custos, geraram grandes ineficiências, sem


proporcionar a formação de capital humano na escala que seria desejável

para o país, bem como frustrando as expectativas de milhões de pessoas.

2. DA EDUCAÇÃO SUPERIOR DE ELITE À


EDUCAÇÃO SUPERIOR DE MASSAS
Esta expansão tem sido interpretada, na literatura especializada, a partir

dos trabalhos pioneiros de Martin Trow sobre a transição entre três


362
estágios distintos: a educação superior de elite, de massas e universal .

As principais referências para Trow são Estados Unidos, Inglaterra e

Europa Ocidental, mas são processos que ocorrem de forma mais ou

menos semelhante nos diversos países.

O primeiro estágio, da educação superior de elite, é quando o número de

estudantes desse nível não chega a 15% do grupo de idade relevante

(tipicamente entre 18 e 22-23 anos); o segundo, de educação superior de

massas, quando atinge entre 16 e 50% do grupo de idade; e o terceiro, de

educação superior universal, ao atingir 50% ou mais do grupo de

referência.

A educação superior de elite é percebida como um privilégio para um

pequeno grupo de pessoas, sobretudo por causa de sua origem social. A

expectativa sobre a educação superior, nesse estágio, é que ela ajude a

formar a mente e o caráter dos estudantes, preparando-os para papéis

sociais de elite, incluindo o exercício das profissões liberais clássicas,

como o direito, a medicina e a engenharia. O currículo escolar é

fortemente estruturado nos termos das concepções vigentes sobre a

formação acadêmica ou profissional. Os estudantes, sobretudo homens,

entram na educação superior logo que terminam o ensino médio e

permanecem aí até se formar. O estudo se dá em universidades

relativamente homogêneas, administradas de forma autônoma por seus

professores, que compartem certos consensos sobre a cultura universitária,

e os estudantes são selecionados por mérito acadêmico. As políticas

públicas se limitam a financiar as universidades e garantir os privilégios

profissionais dos formados, regulando o exercício das profissões de modo

a barrar a entrada dos não diplomados ou de profissionais estrangeiros,

garantindo reserva de mercado e remunerações mais altas aos graduados.


No segundo estágio, da educação superior de massas, ela passa a ser

percebida como um direito de todas as pessoas que cumpram

determinadas qualificações. Há ênfase maior na capacitação para o

desempenho de atividades profissionais que exigem maior qualificação

técnica. O currículo tende a ser mais modular e mais flexível. Muitos

estudantes ingressam no ensino superior mais velhos, muitos trabalham

enquanto estudam e nem todos terminam os cursos. As instituições

costumam ser mais heterogêneas, tanto entre si como internamente. A

administração é normalmente feita por ex-professores que se transformam

em administradores e por funcionários, e os processos de decisão internos

passam a ser influenciados por grupos de interesse formados por alunos,

funcionários e associações profissionais do setor privado e de agências

governamentais. Os padrões acadêmicos variam conforme as instituições e

as áreas de estudo e os estudantes são admitidos por uma combinação de

critérios meritocráticos e políticas compensatórias que buscam aumentar a

igualdade de oportunidades. Surgem novos tipos de instituições, sobretudo

privadas, com e sem fins lucrativos. As políticas públicas passam a incluir

considerações sobre investimentos em recursos humanos, ciência e

tecnologia e equidade de acesso. Há uma preocupação crescente com os

custos, a avaliação da qualidade e a relevância da educação recebida, bem

como com a regulação do mercado público e privado de oferta de cursos e

títulos.

No terceiro estágio, o da educação superior universal, que ocorre quando

mais da metade da população é coberta, ela passa a ser vista como direito

de uma parte muito maior da população. Aumenta a diversidade de

instituições, de critérios de qualidade e de estudantes. Os critérios de

avaliação passam a ser menos acadêmicos e mais práticos, em termos de

valor adicionado e acesso ao mercado de trabalho. A administração passa

a ser mais profissional e se aproxima à lógica do setor privado. As

questões de acesso incorporam cada vez mais critérios sociais de etnia e

classe social. A autonomia acadêmica e os privilégios especiais dos

universitários começam a ser questionados, e a autossuficiência das

instituições é reduzida pela interferência crescente de agências

governamentais.

Este modelo interpretativo, necessariamente simplificado, deixa de fora

coisas muito importantes, como a regulação do mercado de trabalho das


pessoas de formação universitária e toda a questão do financiamento,

assim como o problema do peso relativo do setor público e do privado na

educação superior. No entanto, é suficiente para evidenciar a profunda

transformação que ocorre na educação superior quando ela se expande e a

necessidade de tomar essas transformações em consideração quando se

pensa nas políticas públicas para o setor.

3. DINÂMICA E POLÍTICAS DE EXPANSÃO


A expansão do ensino superior faz parte do amplo processo de

urbanização e modernização econômica que ocorre em quase todos os

países, com o crescimento da indústria, dos serviços e do setor público. A

explicação mais usual para esse crescimento é que ele responde às

necessidades de formação de recursos humanos com alta capacitação

requerida pelas sociedades modernas, o que seria observável pelos

rendimentos mais altos de pessoas mais educadas em relação às


363
demais . No Brasil, em 2001, quando a expansão se intensifica, a renda

média de pessoas com nível superior era 3,5 vezes maior do que a de

pessoas com educação média. Em 2019 a proporção havia caído para


364
2,2 , ainda suficientemente alta para justificar uma corrida por títulos

universitários, na qual muitos ficam pelo caminho.

A essa interpretação da educação em termos de capital humano se

contrapõe uma outra segundo a qual a educação é um “bem posicional”

em que as pessoas buscam credenciais que permitam a elas conquistar ou

permanecer em posições sociais de alto prestígio e renda, em detrimento


365
das demais . As credenciais não seriam somente mecanismos de

sinalização das qualificações dos formados, no sentido proposto por


366
Michael Spence , mas títulos que garantiriam determinados direitos e

privilégios em desfavor dos que não os têm. No Brasil esses direitos e

privilégios incluem, por exemplo, a obrigatoriedade de contratar filósofos

para dar aulas no ensino médio, de empregar farmacêuticos em todas as

farmácias, da presença de advogados em quase todos os atos legais, bem

como de pisos salariais de agrônomos, contadores, arquitetos e outras

profissões definidas em lei. Além disso, existem preferências e

expectativas salariais informais no mercado de trabalho associadas a

títulos universitários e aquelas que ocorrem em relação a gênero e etnia.


Em uma sociedade hipotética em que a disponibilidade e as

características do mercado de trabalho se mantenham estáticas, a

competição por credenciais cada vez mais altas leva a custos públicos e

privados crescentes, sem que isso resulte em mais capacidade produtiva

dos estudantes, equidade ou crescimento econômico. No mundo real, o

quanto a educação desempenha uma ou outra destas funções (formação de

recursos humanos ou vantagens posicionais), ou uma combinação delas, é

uma questão empírica, que varia conforme as características e a dinâmica

da economia, da regulação do mercado de trabalho e dos diferentes níveis

e tipos de curso.

4. O VIÉS ACADÊMICO
Um fenômeno importante associado à expansão da educação superior é o

que os especialistas denominam academic drift, que pode ser traduzido


por viés acadêmico, que é a tendência que as instituições de ensino

superior têm de copiar padrões organizacionais e institucionais das

instituições universitárias. O termo também tem sido usado para descrever

a preferência que ocorre no ensino médio pelos currículos mais

tradicionais, de cunho acadêmico, em vez daqueles mais práticos e


367
aplicados . Essa tendência se explica pelo alto prestígio das carreiras e

instituições universitárias mais tradicionais e pelos benefícios materiais e

simbólicos que seus alunos obtêm e todos tratam de emular. Quando o

viés acadêmico predomina, todos os cursos superiores recebem a

denominação de universitários e todos os títulos proporcionados pelas

instituições de ensino superior são considerados equivalentes.

Os rankings nacionais e internacionais de universidades, incluindo os do

sistema de avaliação do ensino superior adotado no Brasil, no qual todas

as instituições são alinhadas em um mesmo contínuo, reforçam essa

tendência. Prevalece o pressuposto de que todos jogam na mesma divisão,

o que, na prática, acentua a desigualdade, pois poucas instituições e

poucas pessoas conseguem efetivamente chegar nos níveis mais altos de

prestígio, reconhecimento e renda. A alternativa é desenvolver sistemas

diferenciados, em que, ao lado das instituições e carreiras mais

acadêmicas e de maior prestígio, se criam modalidades de formação mais

simples, práticas, voltadas mais diretamente ao mercado de trabalho, que

podem proporcionar maior empregabilidade e renda para o grande número


de pessoas que acabam sendo excluídas na competição pelas posições de

maior prestígio.

Tanto nos Estados Unidos, que foi o primeiro país a desenvolver um

sistema de educação superior de massas, quanto na Europa e Ásia,

predominam sistemas diferenciados, que já se manifestam a partir do

ensino médio. Nos Estados Unidos a diferenciação foi feita, ainda no

século 19, pelos Morrill Land-Grants Acts do final do século 19,

estatutos que moldaram as condições financeiras para a criação de uma

rede de colégios estaduais voltados para a educação prática em agricultura

e artes mecânicas, bem como mais adiante, a partir sobretudo da Segunda

Guerra, de um grande sistema de escolas comunitárias municipais, para

cursos curtos e em grande parte orientados à formação prática para o


368
mercado de trabalho . Na Europa, a opção foi criar uma rede paralela de

escolas técnicas de nível médio, pós-médio e superior, tanto quanto

possível orientadas para atender à demanda de mão de obra mais

qualificada da economia. Os países asiáticos, em geral, seguiram o modelo

europeu.

5. EQUIDADE E DIFERENCIAÇÃO
Existe uma importante controvérsia na literatura sobre as vantagens e

desvantagens relativas de sistemas mais diferenciados ou homogêneos. A

Alemanha, cujo sistema educacional já começa a diferenciar os estudantes

pouco depois dos 10 anos de idade, encaminhando-os a escolas mais

acadêmicas ou de formação mais prática, é mencionada tanto como

exemplo de uma sociedade que discrimina cidadãos por critérios

aparentemente meritocráticos, mas que ocultam na prática diferenças de

classe, quanto como o país com um dos melhores sistemas de educação

profissional do mundo, garantindo um alto nível de empregabilidade e

qualificação profissional a toda a sua população. O consenso parece ser

que a educação fundamental deve ser tão ampla e homogênea quanto

possível, garantindo a igualdade de oportunidades para todos, mas que a

partir do ensino médio já é necessário oferecer alternativas de formação

que tomem em conta as diferenças de interesse, preferência e competência

que existem na população, e adequadas aos diversos níveis de necessidade


do mercado de trabalho. A evidência é que a desigualdade social tende a
369
ser menor em países com sistemas educacionais mais diferenciados .

Em contraste com Estados Unidos e Europa, em quase toda a América

Latina, o aumento da demanda por educação superior nos centros

urbanos, iniciada em muitos países antes do Brasil, foi atendido pela

liberação do acesso às universidades a todos que conseguiam completar o

ensino médio. Esse modelo igualitário na entrada veio associado ao

fechamento na saída, já que só pequena fração dos estudantes consegue se

formar, sobretudo nas profissões mais competitivas. Uma das

consequências desse modelo, cuja origem é associada ao Movimento de

Reforma ocorrido na Universidade de Córdoba, Argentina, em 1908, foi a

forte politização das universidades públicas, com o predomínio de

critérios políticos e partidários, mais que acadêmicos ou profissionais, na

condução de suas atividades. Esse modelo não era incompatível com a

existência de alguns departamentos e centros de excelência em lugares

como a Universidade de Buenos Aires ou a Universidade Nacional do

México, mas são geralmente ilhas de qualidade em instituições


370
disfuncionais .

6. FINANCIAMENTO
Com a expansão do ensino superior, coloca-se a questão de seu

financiamento, que passa a ser importante na medida em que o número de

estudantes aumenta e as instituições se tornam mais complexas. Há um

consenso bastante generalizado de que a educação infantil e básica deve

ser subsidiada, na medida em que isto se torne necessário para garantir a

igualdade de oportunidades e elevar o nível de capacitação de toda a

população. Já o financiamento público da educação superior é mais

controverso. Os países da Europa Ocidental são os únicos, ou quase


371
únicos, que proporcionam educação superior gratuita . Na América

Latina, incluindo o Brasil, a educação em instituições públicas tende a ser

gratuita mesmo para estudantes em condições de pagá-la. Por outro lado,

em nenhum país a educação superior existe sem financiamento público

(mesmo quando os alunos pagam pelo ensino), predominando diferentes

combinações de educação pública e privada e incentivos para que as

instituições, públicas ou privadas, busquem recursos próprios.


Na perspectiva do ensino superior como formador de recursos humanos,

os gastos públicos em educação seriam um investimento que se justificaria

sempre, pois redundaria em maior produtividade e renda a toda a

economia. Esta é uma interpretação fortemente favorecida pelos

estudantes, suas famílias e pessoas que trabalham no setor educacional,

tanto público quanto privado. Na perspectiva oposta, de ensino superior

como provedor de “bem posicional”, os investimentos públicos seriam

simplesmente um subsídio a grupos privilegiados que conseguem se

beneficiar das vantagens das credenciais educativas que obtêm e por isso

deveriam cobrir seus próprios custos.

Na prática, uma vez que se decida por gastar com o ensino superior, as

políticas públicas precisam se esforçar para que haja efetiva formação de

recursos humanos, fornecendo externalidades para a sociedade, e a criação

de igualdade de oportunidades. Não faz sentido subsidiar a mera

competição por diplomas, nem estimular a demanda por carreiras

altamente seletivas que poucos conseguem completar. A busca de

equidade não pode se limitar a facilitar o acesso aos cursos, mas deve

incluir também apoio para que os que chegam ao ensino superior com

dificuldades possam conseguir bons resultados e currículos adequados

para públicos com diferentes níveis de formação. Ainda do ponto de vista

da equidade, o critério de financiamento não deve ser aquele de o

estudante estar matriculado em uma instituição pública ou privada, e sim

o de saber se ele necessita de apoio e tem condições de se capacitar. Como

a renda futura das pessoas com educação superior tende a ser

relativamente alta, uma forma adequada de financiamento são os créditos

estudantis de longo prazo e associados à renda futura dos estudantes,


372
como acontece na Austrália e, mais recentemente, no caso do Fies

brasileiro. Além do apoio aos estudantes, é importante financiar

instituições de bom desempenho, condicionado à expectativa de resultados

específicos em pesquisa, qualificação profissional, equidade, etc., ou como

investimentos destinados ao desenvolvimento da educação superior em


373
regiões específicas .

7. A EXPANSÃO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR NO


BRASIL E SUAS CARACTERÍSTICAS
O Gráfico 1 mostra a expansão de longo prazo da educação superior no

Brasil. O que se observa é um sistema extremamente diminuto até a

década de 60, um crescimento significativo na década de 70, estagnação

nas décadas de 1980 e 1990, e uma aceleração a partir do ano 2000. A

taxa de matrícula, líquida (eixo da esquerda), foi calculada como a

proporção de jovens entre 18 e 22 anos que estão matriculados no ensino

superior. A taxa bruta, que compara o número total de matrículas com a

faixa etária de referência, é significativamente maior, porque grande parte

dos estudantes de nível superior no Brasil é mais velha. Assim, em 2019,

47,5% dos alunos matriculados tinham mais de 22 anos e a taxa bruta de

matrícula era de 49,4%, comparado com a taxa líquida de 21,5%.

Gráfico 1: Expansão da educação superior no Brasil

Fonte: Censo da Educação Superior, diversos anos, para matriculados; e


PNAD, diversos anos, para taxas de matrícula.

Nos termos da classificação de Trow, portanto, a educação superior

brasileira só se transforma em educação de massas a partir de 2010,

quando a taxa líquida de matrícula chega a 15,6%. No entanto, para um

país como o Brasil, que só conseguiu universalizar o acesso à educação

primária na década de 1990 e, em 2019, tinha 30% de sua população de

25 anos ainda sem completar o ensino médio, a comparação não deve ser

feita com a população total, mas com a população urbana mais educada.

Nos grandes centros urbanos, é possível dizer que a transição da educação

superior de elites para a de massas começa a ocorrer a partir da expansão


dos anos 1960 e o processo de universalização — o terceiro estágio desse

processo — começa a ganhar forma a partir de 2000.

8. O MODELO BRASILEIRO DE EDUCAÇÃO


SUPERIOR
Para entender as características dessa expansão, é necessário considerar a

maneira pela qual o sistema brasileiro de educação superior se formou e

vem evoluindo. O Brasil nunca teve universidades de elite no estilo anglo-

saxão, com colleges residenciais destinados à formação cultural e moral


de suas elites. Aqui, desde que as primeiras faculdades foram

estabelecidas, no início do século 19, o modelo seguido foi o das escolas

para as profissões liberais tradicionais, como o direito, a medicina e

engenharia. Era uma educação de elite, no sentido de que o acesso

limitava-se aos filhos das poucas famílias com mais recursos cujos pais já

ocupavam posições importantes no governo ou no setor privado.

Os cursos eram ministrados por profissionais estabelecidos que

lecionavam como atividade adicional, ou honorária, e as principais

funções das faculdades eram as relações pessoais que se estabeleciam e a

iniciação dos jovens nas profissões e atividades econômicas e político-

administrativas dos pais. Os custos eram baixos e a principal política

pública tinha a ver com a regulamentação dos privilégios profissionais dos

diplomados, protegendo-os da concorrência de pessoas com formação

prática, como os rábulas, mestres de obras e parteiras, o que implicava

também colocar limites à expansão das matrículas e à fundação


374
instituições de ensino .

Esse sistema começa a mudar com a criação da Universidade de São

Paulo, em 1934, que pela primeira vez cria um núcleo de professores

pesquisadores na Faculdade de Filosofia, mas só se altera mais

profundamente com o surgimento da rede de universidades federais, a

partir da década de 1940, e sobretudo com a reforma universitária de

1968, que foi uma tentativa de implantar o modelo norte-americano da

universidade de pesquisa, com cursos de pós-graduação funcionando

como um nível adicional de formação superposto aos cursos profissionais.

No Brasil, a reforma de 1968 teve dois impulsionadores, o Ministério da

Educação, principalmente pela atuação do então Conselho Federal de


Educação, e o Ministério do Planejamento, em especial pela atuação da

Financiadora de Estudos e Projetos (Finep). Para os educadores, o objetivo

era criar uma universidade de alto padrão que pudesse implementar o

princípio da integração do ensino e da pesquisa, constituído por um corpo

de professores com formação de doutorado. Para os economistas e

técnicos da Finep, o objetivo era desenvolver no país capacidade de

pesquisa e aplicação de ciência e tecnologia, em particular nas áreas de

engenharia, agricultura e saúde.

A reforma de 1968 teve como consequência o aumento significativo do

número de professores universitários com título de doutor, além da criação

de um setor de pós-graduação e pesquisa bem maior e mais estruturado do

que em outros países da América Latina. Por outro lado, apresentou duas

consequências problemáticas. Primeiro, as regras formais do modelo de

universidade de pesquisa adotado em 1968, que ainda perduram inclusive

como norma constitucional, foram adotadas em todo o sistema federal,

aumentando custos e limitando o crescimento, mas sem conseguir

propagar a cultura de pesquisa e a qualidade acadêmica, que ficaram

concentradas em poucas instituições e departamentos. Segundo, por causa

da dificuldade de expansão de um sistema dispendioso, a crescente

demanda por acesso à educação superior passou a ser atendida em geral

pelo setor privado, que se expandiu de forma acelerada, sem nenhum

mecanismo efetivo de aferição e controle de qualidade.

É importante observar que, ao procurar adaptar o modelo norte-

americano de ensino superior para o Brasil, não se tomou como referência

a ampla base de community colleges e universidades locais de

orientação prática e profissional daquele país, mas somente as poucas

universidades de pesquisa como Harvard, Columbia ou Princeton. Essa

tentativa de adotar o modelo da research university para o Brasil

ocorreu justamente na década em que a demanda por acesso à educação

superior começou a aumentar. Em 1960, havia no Brasil 102 mil

estudantes de ensino superior, dos quais 41% no setor privado, formado

em sua maioria por instituições confessionais ou familiares. Em 1970, já

eram 425 mil, metade em instituições privadas. Essa pressão ficou

marcada pela questão dos “excedentes” que conseguiam passar nos


375
exames vestibulares, mas não conseguiam vagas . Em vez de incentivar

a criação de um sistema de educação profissional e técnica compatível


com a massificação da demanda, a opção brasileira foi liberar a expansão

do ensino superior privado para oferecer nominalmente os mesmos

diplomas que o setor público, ainda que sem possibilidade de emular o

modelo da universidade de pesquisa preconizado na legislação. Em 2019,

o setor privado chegou a 76% das matrículas, sobretudo em instituições

privadas com fins de lucro.

9. A EXPANSÃO DO SETOR PRIVADO


Uma alteração legislativa importante que ajudou a ampliar as matrículas

na educação superior privada foi a Lei nº 9.131, de 1995, que autorizou a

existência de instituições de ensino superior com fins de lucro. Ela

representou o reconhecimento de que um número crescente de instituições

privadas, embora designadas como filantrópicas, na prática operava como

empresas lucrativas por meio de diversos subterfúgios. Pela nova

legislação, as instituições que demonstrassem ser de fato filantrópicas

teriam vantagens fiscais, enquanto as demais seriam consideradas

empresas como outras.

Até 2000, as instituições privadas não recebiam recursos públicos, a não

ser na forma de financiamento para atividades de pesquisa e pós-

graduação, que só beneficiava umas poucas entidades, como a Pontifícia

Universidade Católica do Rio de Janeiro. É a partir de 2000, nos governos

do Partido dos Trabalhadores, que tradicionalmente se opunha à educação

privada, que o governo começa a financiar instituições privadas por meio

de dois mecanismos: o programa Universidade para Todos (Prouni) e o

Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies).

O Prouni foi criado em 2004, pela Lei 11.096/2005, com o objetivo de

fazer que as instituições de ensino superior privadas concedessem um

determinado número de bolsas de estudo a estudantes carentes em troca de

benefícios fiscais. Já o Fies foi criado por Medida Provisória, em 1999,

transformado em lei em 2001, e passou por diferentes alterações desde

então. Consiste basicamente em um crédito subsidiado do governo federal

aos estudantes do setor privado para pagar anuidades em instituições.

A principal vantagem do Prouni é que ele permitiu aumentar de forma

significativa o número de matrículas gratuitas oferecidas pelo governo

federal a um custo muito menor por vaga do que as do sistema federal. Em


2006, o Prouni ofereceu 138 mil novas vagas, das quais 99 mil com bolsas

integrais, comparado com 161 mil vagas oferecidas por todo o sistema

federal. Segundo as estimativas do Inep, o custo nominal por aluno nas

universidades federais era de R$ 10.872 em 2005; o custo/aluno do

Prouni, em termos de renúncia fiscal, era de R$ 940 reais, 11 vezes


376
menos . A estimativa é que o custo do programa chegou a cerca de um

R$ 1,2 bilhão, em 2016, tendo atendido a cerca de 2,5 milhões de

estudantes até 2017. Para o ano de 2019, a Receita Federal projeta um


377
custo de R$ 2,2 bilhões .

Uma das críticas ao programa é não haver direcionamento dos recursos a

instituições de mais qualidade ou determinadas áreas consideradas

prioritárias. Outra, é que apesar de os alunos, para participar, deverem ser

de escolas públicas ou negros ou indígenas, o conceito mínimo necessário

no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) acaba excluindo os mais

necessitados. Por fim, o programa beneficia sobretudo as instituições

privadas com fins de lucro, pois as não lucrativas já tinham isenção fiscal.

No entanto, os benefícios trazidos pelo Prouni às instituições privadas são

diminutos se comparados àqueles do Fies.

Esse programa tem por objetivo financiar o custo das matrículas e

mensalidades dos estudantes em instituições privadas por meio de um


378
fundo de natureza contábil, o Fies, instituído pela Lei nº 10.260/2001 .

Com esse mecanismo, o governo federal transfere às instituições de ensino

o pagamento da matrícula e o estudante se compromete a pagar o

empréstimo de longo prazo e a juros subsidiados. O valor da matrícula é

estabelecido pela instituição e o estudante tem um ano de carência e um

período igual a três vezes a duração do curso para amortizar a dívida. Até

2015, a taxa de juros era de 3,4% ao ano e não dependia da renda do


379
estudante, nem do desempenho na nota do Enem . O risco era mal

dividido entre as escolas privadas, estudantes e Tesouro, sobrecarregando

este último. Isso causou uma expansão da oferta de vagas, a preços

elevados, de modo que as escolas se apropriavam dos subsídios

creditícios. Cursos sem qualidade para garantir renda posterior aos alunos

os colocavam, com frequência, em situação de endividamento excessivo,

reforçando a inadimplência, estimada em 50% nos primeiros anos.

Reforma posterior, realizada em 2017, buscou limitar o subsídio de

crédito, dividir com as escolas o risco de inadimplência e aperfeiçoar a


governança do programa, em especial quanto à definição de número de

vagas e alavancagem do fundo garantidor. O Tesouro reconheceu perdas


380
superiores a R$ 43,8 bilhões da modalidade antiga do Fies.

A partir do Fies e do Prouni, o ensino superior privado se transformou

em um grande negócio garantido pelo governo federal, atraindo

investimentos vultosos e operando a baixos custos, mal cumprindo os

critérios mínimos de qualidade, e mantendo a maioria dos alunos em

cursos noturnos. Com a redução do Fies, a partir de 2015, decorrente do

esgotamento financeiro de um sistema desequilibrado, grande parte dos

cursos noturnos se transformara em cursos a distância, proporcionando

uma forte redução de custos por aluno, e, possivelmente, níveis de

abandono ainda mais altos do que anteriormente, tendência que se

consolidou durante a epidemia do Coronavírus em 2020 e 2021.

10. EXPANSÃO DO SISTEMA FEDERAL


Ao mesmo tempo que estimulava o crescimento do ensino privado, o

governo federal tratou de ampliar o sistema federal. Criou novas

universidades, sobretudo em cidades do interior, e abriu financiamento

destinado a aumentar matrículas nas instituições existentes: o Programa de

Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais

(Reuni). Além disso, transformou a rede federal de Centros de Formação

Tecnológica e escolas agrotécnicas federais preexistentes em 38 Institutos

Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, de status universitário, como

detalhado mais adiante.

O Programa Reuni foi estabelecido pelo Decreto 6.096, de 24 de abril de

2007. As universidades poderiam aderir ao programa oferecendo mais

vagas e mais cursos, incluindo cursos noturnos, que antes o sistema

federal não oferecia, e em troca receberiam mais recursos e autorização

para contratar mais professores. Em 2008, foram gastos 8,9 bilhões de


381
reais no programa .

Essa política levou a aumentos significativos dos gastos, do número de

instituições e do número de alunos matriculados no sistema federal. Em

2000, havia 61 instituições federais: em 2019 eram 110. Como podemos

ver na coluna (A) da Tabela 1, os gastos com o sistema federal, excluindo

os institutos federais, aumentaram de R$ 18,7 bilhões para R$ 35 bilhões


entre 2001 e 2019, em valores de 2019. O número de professores no

sistema federal aumentou de 50,2 mil para 120,5 mil, a quase totalidade

em contratos de trabalho de tempo integral, e o número de funcionários

técnico-administrativos cresceu de 65,7 mil para 96,5 mil. As matrículas

no sistema federal passaram de 482 para 1,332 mil em 2019, um

crescimento significativo de 275%, mas inferior à expansão do ensino

privado no mesmo período, de 1,807 mil para 6,515 mil, 360%. Com isto,

a percentagem de matriculados no sistema privado chegou a 75,8% do


382
total .

Tabela 1: Despesa primária do Ministério da Educação (2001-2009)

Superior Profissional Superior + outras Total


Profissional MEC

R$ bi % R$ bi % R$ bi % do R$ bi %
de do de do de total de do
2019 total 2019 total 2019 2019 total

(A) (B) (C) (D) E=A+C F=B+D (G) (H) (I)

2001 18,7 43% 1,7 4% 20,4 47% 23,1 53% 43,5

2003 17,7 40% 1,7 4% 19,4 44% 24,5 56% 43,9

2005 17,9 41% 2,2 5% 20,1 46% 23,5 54% 43,6

2007 22,7 39% 2,7 5% 25,4 44% 32,7 56% 58,1

2009 25,8 36% 4,7 7% 30,5 43% 41,2 57% 71,7

2011 31,5 32% 8,8 9% 40,3 41% 58,5 59% 98,8

2013 37,0 30% 14,4 12% 51,4 42% 71,2 58% 122,6

2015 39,3 34% 15,5 13% 54,8 47% 60,4 52% 115,2

2017 37,0 33% 13,1 12% 50,1 45% 60,7 55% 110,8

2019 35,0 31% 13,0 12% 48,0 43% 63,4 57% 111,4

var. 16,3 11,3 27,6 40,3


absoluta
no período
Superior Profissional Superior + outras Total
Profissional MEC

R$ bi % R$ bi % R$ bi % do R$ bi %
de do de do de total de do
2019 total 2019 total 2019 2019 total

var % no 87% 681% 135% 175% 156%


período

Fontes: Siafi – Sistema Siga Brasil, STN – Boletim de Resultado do Tesouro


Nacional

11. OS INSTITUTOS FEDERAIS


Os Institutos federais foram criados pela Lei 11.982, de 29 de dezembro

de 2008, pela aglutinação de escolas agrotécnicas federais, escolas

técnicas vinculadas às universidades federais, escolas técnicas federais e

os Centros Federais de Educação Tecnológica (Cefets). A lei determinou,

entre outros dispositivos, a criação de 13,276 mil cargos de professores de

carreira de nível superior, 10,654 mil técnicos administrativos e um grande

número de cargos gratificados para funções de reitores, pró-reitores e

outros, dando aos institutos uma estrutura de custos equivalente à das


383
universidades federais .

A criação desses institutos foi apresentada e defendida partindo da ideia

de criar um modelo para o ensino técnico e profissional no Brasil pela

implementação do conceito gramsciano de politecnia, em cursos de tempo

integral que combinariam a formação técnica e profissional com a


384
formação geral e humanística . A Tabela 2 permite ver como evoluíram

os Institutos em termos de matrícula em seus primeiros dez anos.

Tabela 2: Evolução das matrículas nos institutos federais e Cefets no período


de 2009-2019

2009 2011 2013 2015 2017 2019

Superior Bacharelado 14.394 22.881 34.799 49.347 68.422 85.350

Licenciatura 15.094 26.925 40.544 45.140 55.028 67.585

Tecnológico 38.609 51.659 44.910 50.151 58.355 62.430


2009 2011 2013 2015 2017 2019

Total 68.097 101.465 120.253 144.638 181.805 215.365

Propedeutico 36.566 4.829 2.318 4.314 1.477 2.095

técnico 11.717 86.495 111.139 127.110 164.655 201.050


integrado

técnico 34.312 31.053 37.570 36.815 43.544 35.253


concomitante
Médio
técnico 40.173 58.090 60.245 122.789 108.071 92.924
subsequente

EJA 4.132 13.896 12.456 9.784 9.129 12.722

outros 907 257 465 571 490 320

Total 127.807 194.620 224.193 301.383 327.366 344.364

Fonte: INEP, Censo da Educaçãp Superior e Censo Escolar, diversos anos.

O número de estudantes em cursos técnicos de nível médio nos institutos

passou de 127 mil a 344 mil, com ênfase em cursos integrados, em que os

alunos estudam em tempo integral, que passaram de 9% para 58% das

matrículas nesse nível. Para os alunos que passam pelo processo seletivo

destes cursos, esta é uma boa oportunidade de se prepararem em tempo

integral e gratuitamente para o Enem e ter acesso a um curso superior no

sistema federal, com a vantagem de serem incluídos nas cotas de

estudantes provenientes de instituições públicas. Isso significa que os

cursos não estão voltados predominantemente a estudantes que se

destinam a atividades profissionais de nível intermediário, como se

poderia supor.

A outra dificuldade é que, pelo seu alto custo e seletividade, o modelo

não é escalável. Em 2019, os institutos federais só atendiam a 3,7% do

total de estudantes de nível médio do país e 22% dos estudantes em cursos

técnicos de todas as modalidades (integrado, concomitante e subsequente).

Em todo o Brasil, somente 17% dos estudantes de nível médio estão em


385
algum curso de nível técnico .
O novo status universitário permitiu que os institutos federais

aumentassem as matrículas de nível superior, que passaram de 68 mil para

216 mil. Os cursos tecnológicos, ou seja, cursos profissionais de curta

duração, que correspondiam a 55% das matrículas em 2009, passaram a

menos de 30% em 2019, perdendo lugar para cursos de bacharelado e de

licenciatura. A pós-graduação praticamente não se desenvolveu. Em 2017

havia 38,451 mil estudantes de pós-graduação em todos os institutos

federais, dos quais 32,453 mil em cursos de especialização lato sensu e


somente 403 em cursos de doutorado, e nada que se possa mencionar em
386
termos de pesquisa . Esses dados confirmam que a criação dos institutos

federais foi um caso exemplar de academic drift, em que instituições

destinadas originariamente ao ensino vocacional se desviaram de seus

objetivos iniciais e se tornaram equivalentes, em custos, às instituições

acadêmicas de pesquisa, sem conseguir implementar de forma adequada o

modelo pretendido.

12. OS ERROS DA POLÍTICA DE EXPANSÃO


Vista na perspectiva atual, é evidente que, do ponto de vista financeiro, a

expansão não se mostrou viável, da mesma forma que a ampliação dos

gastos públicos em educação; com a previsão do Plano Nacional de

Educação de 2012 de chegar a 10% do PIB em 2024, já era inviável desde

que convertida em lei. Teria sido possível melhorar a eficiência e reduzir a

inadimplência do Fies, e isso provavelmente significaria que o setor

privado não teria crescido como cresceu. Os investimentos no sistema

federal poderiam ter sido mais adequados, com uma alocação mais

cuidadosa de recursos associada a expectativas mais bem definidas de

resultados.

No entanto, além da viabilidade de obter uma economia com uma

administração mais judiciosa dos recursos públicos, existe uma questão

mais geral que tem a ver com a maneira pela qual o Brasil tentou lidar

com a demanda por expansão. No sistema federal, a manutenção

generalizada do modelo da universidade de pesquisa, adotado pela reforma

de 1968 e reiterado no artigo 207 da Constituição de 1988, segundo o qual

“as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e

de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de


indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”, acabou levando a

duas disfunções importantes. Em primeiro lugar, aos equívocos da

tentativa de organizar todas as instituições públicas de acordo com o

modelo da universidade de pesquisa. Depois, o não cumprimento do

princípio da autonomia de gestão financeira e patrimonial.

Tabela 3: Classificação das instituições públicas de ensino superior

Tipos de instituições públicas

Grandes Pequenas IES IES


multiversidades com com PG e Públicas
PG e Pesquisa Pesquuisa de Ensino

Número de instituições 16 18 124

alunos por professor 14,9 12,1 13,5

alunos em graduação e 712.488 223.802 1.306.957


pós

% em cursos de pós- 24,5 20,0 6,7


graduação

% de professores 84,5 80,4 54,9


doutores

% de professores em 89,9 91,2 87,9


dedic exclusiva ou
integral

Publicações por 5,2 3,9 1,1


professor

% alunos em ciências 49,6 35,2 52,6


sociais e humanidades

% conclusão em 8 anos 54,9 52,1 43,3

Idade média dos alunos 25,3 24,8 26,3

Alunos provenientes de 41,1 52,5 60,5


escolas públicas
Tipos de instituições públicas

Fontes: Elaborado a partir de microdados do Censo da Educação Superior,


Plataforma Sucupira, Scimago Journal & Country Ranks e ENADE.

A Tabela 3 mostra uma classificação das instituições públicas de


387
educação superior em três grupos . O primeiro é formado por 16

instituições com mais de 30 mil alunos, que podem ser descritas como

“multiversidades”, que apresentam cursos de graduação, pós-graduação e

pesquisa nas diversas áreas de conhecimento — são 12 universidades

federais, as três universidades paulistas e a Universidade Estadual do Rio

de Janeiro. O segundo é formado por 18 universidades públicas de menor

porte, que também têm atividades mais significativas de pós-graduação e

pesquisa, das quais 11 são federais. O terceiro é formado por 124

instituições, das quais 79 federais, que apresentam em sua grande maioria

alunos egressos do setor público, que praticamente só se dedicam ao

ensino.

Basta comparar o terceiro grupo com os dois primeiros para observar

que não faz sentido que todas essas 124 instituições de ensino tenham a

mesma forma organizacional, centrada em professores de tempo integral e

dedicação exclusiva, quando poderiam muito bem operar com a maioria

de professores em tempo parcial, ativos em suas respectivas profissões.

Mesmo nos dois primeiros grupos, faria todo o sentido ter duas carreiras

separadas de professores, uma para os que efetivamente se dedicam ao

ensino de pós-graduação e pesquisa, em tempo integral, e outro de

professores de ensino, com diferentes tipos de vinculação profissional.

Além de reduzir significativamente os custos, esse formato permitiria que

as instituições estabelecessem vínculos muito mais fortes e atualizados

entre seus cursos de formação profissional e os mercados de trabalho onde

atuariam seus professores.

A razão pela qual isso não ocorre é que as universidades estão sujeitas a

normas administrativas idênticas, como as de isonomia, que vêm tanto das

agências governamentais quanto das pressões corporativas que partem do

seu interior. Isso se aplica ao sistema federal e, em diferentes graus, aos

sistemas estaduais mais significativos como os de São Paulo e Rio de

Janeiro. O Ministério da Educação, para efeitos regulatórios, reconhece a

existência de instituições não universitárias como Centros Universitários e


Faculdades Isoladas, mas essa classificação praticamente só se aplica ao

setor privado.

No sistema federal, todos os professores seguem o mesmo plano de

carreira e os salários e disponibilidade de vagas são controlados e

administrados diretamente pelo governo federal. Apesar do que diz a

Constituição, as universidades não têm nenhuma autonomia para

administrar seu recurso mais estratégico, que são seus professores, seja

buscando talentos para determinadas áreas e oferecendo salários

competitivos, seja demitindo aqueles que se mostram improdutivos ou

inadequados.

Tabela 4: Tipos de instituições privadas

Tipos de Instituições Privadas

Instituições Instituições Universidades Faculdades


de grande diferenciadas e centros isoladas
porte

Número de 19 78 225 1.795


instituições

total de matriculas 2.330.202 659.436 1.670.452 2.738.335

% em cursos de pós- 0,19 5,13 0,73 0,14


graduação

% alunos em ciências 64,50 58,40 49,70 65,00


sociais e
humanidades

% em cursos noturnos 88,3 62,3 69,4 76,2


e à distância

% de alunos em 23,5 5,9 10,1 7,0


cursos vocacionais
(tecnológicos)

alunos por docentes 109,5 18,7 27,6 18,9

% de escola pública 69,6 54,1 60,6 69,0

Taxa de conclusão em 37,7 40,2 39,3 41,0


8 anos
Tipos de Instituições Privadas

Idade média dos 30,0 25,5 26,9 27,1


alunos

A Tabela 4 dá as características principais de quatro grandes grupos de

instituições privadas: 19 de grande porte, com mais de 30 mil alunos; as

diferenciadas, com um mínimo de atividades de pós-graduação; as demais

universidades e centros universitários privados; e, por fim, um grande

número de faculdades isoladas. É grande o contraste em relação ao

sistema público em quase todas as dimensões. A maioria dos alunos são

mais velhos, estudam à noite ou a distância, praticamente não existem

cursos de pós-graduação, os professores são contratados em regime de

tempo parcial ou como horistas e há um segmento significativo de

estudantes em cursos curtos, vocacionais, que praticamente não existem

nas instituições públicas.

A comparação entre os dois setores mostra o equívoco central da política

de expansão da educação superior no Brasil, que foi não tomar em conta a

necessidade de diferenciar a oferta de cursos e programas de forma

compatível com as características das instituições, da população estudantil

e do mercado de trabalho. O setor público se manteve rígido, incapaz de

responder com flexibilidade ao novo contexto, e o setor privado, no outro

extremo, se diferenciou de forma desordenada, buscando atender às

demandas de curto prazo por credenciais educativas mais do que

efetivamente formar recursos humanos, fazendo uso de subsídios públicos

quando disponíveis, e à custa de índices altíssimos de abandono escolar e

frustrações profissionais dos egressados. O Ministério da Educação, que

teria a responsabilidade de orientar o processo de expansão, desenvolveu

um sistema regulatório e de avaliação que se mostrou caro e incapaz de

informar aos estudantes a qualidade dos cursos em termos daquilo que se

propõem, incluindo possibilidades efetivas de conclusão e trabalho futuro,

mantendo a “régua” da qualidade voltada a atributos de um modelo ideal

de formação de alto nível associado à pesquisa que só poucos cursos em


388
determinadas instituições conseguem cumprir .

Por não lidar de forma adequada com a necessidade de atender as

necessidades diferenciadas da população brasileira, o sistema educacional

do país está contribuindo para reforçar as grandes desigualdades que já se


manifestam desde a educação inicial. Observando a população de 25 anos

de idade, que já deveria ter concluído ou estar concluindo a educação

formal, observamos que 29% está cursando ou concluiu o ensino superior.

Dos demais, 30% não concluiu o ensino médio, e outros 40% ficaram em

sua grande maioria sem uma qualificação profissional adequada para o

mercado de trabalho, pela ausência de um sistema robusto de educação


389
profissional de nível médio no país . Para a população como um todo,

dos que conseguem entrar no ensino superior, menos da metade é capaz

de concluir o curso depois de oito anos, como se observa nas Tabelas 3 e

4. Dos que se formam, somente metade consegue trabalhar em atividades

superiores de direção e gerência, profissionais das ciências e


390
intelectuais . É um enorme esforço, e grande frustração, para os milhões

que apostam nas promessas da educação superior de massas, e nunca

veem chegar a sua hora.

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377. Fonte: Receita Federal do Brasil — Demonstrativo de Gastos Tributários.

378. Este sumário do Fies se baseia em Secretaria do Tesouro Nacional (2017).

379. A questão do FIES é tratada no Capítulo 4 deste livro.

380. Nota Técnica SEI nº 33945/2020/ME. Disponível em:

https://www.tesourotransparente.gov.br/ckan/dataset/8675a0a4-31c5-4593-a24d-

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381. Ministério da Educação (2009).

382. Dados do Censo da Educação Superior (2000 e 2019).

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385. Dados do Censo Escolar de 2019.

386. Disponível em: http://plataformanilopecanha.mec.gov.br.

387. Schwartzman et al. (2021).

388. Veja, para uma análise crítica e proposta de reformulação do sistema de avaliação, OECD

(2018).

389. A lei de reforma do ensino médio de 2017 foi uma tentativa de oferecer mais alternativas de

formação neste nível, mas com sérias limitações, e até agora não foi implementada. V., entre

outros, Simon Schwartzman (2018).

390. Dados da Pnad Contínua, 2019.


CAPÍTULO 19
ACERTOS E DESACERTOS DO
FUNDEB
Ricardo Paes de Barros e Laura Muller Machado

INTRODUÇÃO
A Constituição Federal, em seu art. 208, estabelece a educação como

um direito social subjetivo, sendo dever do Estado a garantia de acesso


391
universal e gratuito ao ensino obrigatório (BRASIL, 1988). Em seu

art. 211, atribui funções específicas à União, aos estados, ao Distrito

Federal e aos municípios, e no art. 212 é bastante explícita ao

determinar como a educação deve ser financiada (BRASIL, 1988).

Nossa Constituição Federal, portanto, define explicitamente tanto

parâmetros para o financiamento da educação como para a divisão de

funções entre os entes federados. Em sua redação original, no entanto,

nossa Carta não estabelece qualquer proporcionalidade entre os recursos

a serem alocados a uma dada rede de ensino e o número correspondente

de estudantes a serem por ela atendidos (matrículas), podendo, dessa

forma, levar a substanciais disparidades na disponibilidade de recursos

por estudante entre redes públicas de ensino.

392
Com vistas a corrigir essa grave deficiência na redação original da

Constituição Federal e permitir que os preceitos constitucionais de


393
igualdade de acesso e permanência numa escola de qualidade

pudessem ser perseguidos com maior perspectiva de sucesso, a Emenda

Constitucional 14/1996 instituiu o Fundo de Manutenção e

Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do

Magistério (Fundef). Este foi posteriormente expandido para cobrir toda


a educação básica por meio de sua transformação no Fundo de

Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização

dos Profissionais da Educação (Fundeb) e mais tarde no Novo


394
Fundeb .

A imensa importância distributiva do Fundef-Fundeb é


395
incontestável . Veja, por exemplo, o Gráfico 1, no qual é apresentada a

Curva de Lorenz associada à distribuição dos recursos por estudante, na


396
presença e na ausência do Fundeb . Quando medida pelo coeficiente

de Gini, a desigualdade nessa distribuição declina quase a metade,


397
passando de 0,28 sem o Fundeb para 0,16 com ele .

Gráfico 1: Curva de Lorenz referente à distribuição dos estudantes segundo


a disponibilidade de recursos por estudantes da rede, com e sem Fundeb:
Brasil, 2015

Fonte: Elaboração própria a partir de Tanno (2017: Anexo).

Essa acentuada contribuição do Fundeb à redução na desigualdade de

recursos entre redes não significa que não existam aspectos no seu
398
desenho que poderiam ser aprimorados . Nosso objetivo aqui é

identificar um conjunto de deficiências no desenho do Fundeb.

Conforme procuraremos justificar, essas deficiências, se devidamente

corrigidas, podem torná-lo um instrumento ainda mais redistributivo e

que, além disso, também promova um uso mais eficaz dos recursos

disponíveis, contribuindo para melhores resultados educacionais.


Este capítulo está organizado em cinco seções, incluindo esta

introdução. A próxima seção descreve brevemente a evolução do

desenho do Fundef ao Novo Fundeb. Essa descrição visa ressaltar os

aspectos do desenho que serão debatidos nas seções subsequentes e

fornece uma base para aqueles pouco familiarizados com o desenho do

Fundef-Fundeb. A segunda seção trata das deficiências no desenho do


399
Novo Fundeb que foram herdadas do desenho original do Fundef . Na

terceira seção abordaremos as deficiências decorrentes de interpretações

incorretas do diagnóstico original sobre a origem e natureza das

desigualdades educacionais no Brasil. Essas interpretações, como

procuraremos demonstrar, têm impedido aprimoramentos no desenho do

Fundeb, indispensáveis para que uma maior equidade educacional possa

ser efetivamente alcançada. Na quarta seção tentaremos demonstrar que,

desde sua concepção inicial, certos dispositivos não relacionados à

missão redistributiva do Fundeb foram acoplados à sua legislação,

trazendo efeitos deletérios, ou no mínimo duvidosos, para o desempenho

educacional brasileiro. Por fim, na última seção, apresentamos um

resumo das deficiências identificadas e recomendações para melhorias

do Novo Fundeb, ou seja, o que deveria ser removido, o que deveria ser

modificado e o que deveria ser acrescentado.

1. FUNDEF, FUNDEB E NOVO FUNDEB


O art. 212 da Constituição Federal estabelece que os estados, Distrito

Federal e municípios devem aplicar no mínimo 25% de suas receitas

com impostos e transferências na manutenção e desenvolvimento do


400
ensino (MDE) . Como não existe razão alguma para a receita

tributária de municípios e estados ser proporcional às matrículas nas

correspondentes redes de ensino, essa forma de financiamento acaba

levando a gigantescas diferenças entre a distribuição das matrículas

entre redes de ensino e a correspondente distribuição dos recursos

alocados à educação. Conforme o Gráfico 1 ilustra, caso nenhuma

redistribuição de recursos fosse orquestrada, apenas 20% dos recursos


401
estariam sendo alocados para atender 40% dos estudantes .

Com o objetivo de reparar esse desbalanceamento, ao menos entre


402
redes de ensino de um mesmo estado, a EC 14/1996 estabeleceu a
criação de 27 fundos, um em cada estado e outro no Distrito Federal,

denominados de Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino

Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef).

Em cada estado, 15% de boa parte das receitas estaduais, distrital e

municipais com impostos e transferências constitucionalmente

vinculados à educação deveriam ser aportados ao Fundef do estado ou


403
Distrito Federal . Os recursos desses fundos deveriam ser utilizados

exclusivamente na MDE de apenas uma etapa educacional: o ensino

fundamental. A partilha dos recursos do fundo entre redes de ensino do


404
mesmo estado deveria ocorrer de forma proporcional ao volume de

matrículas no ensino fundamental de cada rede.

Com vistas a reduzir as disparidades entre os fundos dos diversos

estados e o Distrito Federal, ficou também estabelecido que a União


405
deveria complementar os fundos mais carentes , com vistas a garantir

um volume mínimo de recursos por estudante matriculado no ensino

fundamental em todas as redes de ensino. Durante o período de vigência

do Fundef, esse mínimo era definido discricionariamente a cada ano,

não podendo ser inferior à média nacional alcançada com base na

agregação dos recursos dos 27 fundos anterior à contribuição da


406
União .

No que se refere à utilização dos recursos, além de só poderem ser

alocados à MDE do ensino fundamental e no exercício financeiro em

que forem creditados, o § 5º do art. 5º da EC 14/1996 estabelecia que ao

menos 60% desses recursos deveriam necessariamente ser alocados à

remuneração dos profissionais do magistério em efetivo exercício de


407
suas atividades no ensino fundamental público .

O Fundef não foi criado como uma forma permanente de organização

e distribuição dos recursos vinculados à educação. Ao contrário, nasceu

como uma disposição constitucional transitória a ser revista uma década

após a sua criação, em 2006. Ao ser feita a sua revisão, optou-se pela

sua substituição por fundos que promovessem melhor distribuição de


408
recursos em todas as etapas da educação básica . Foi então criado pela

EC 53/2006 o Fundeb, que permaneceu, da mesma maneira que seu


antecessor, como uma disposição constitucional transitória, com

vigência estabelecida para os 14 anos subsequentes (2007-2020).

Para compensar a inclusão de toda a educação básica, a contribuição

de cada estado e município foi elevada de 15% para 20% de boa parte
409
das receitas com impostos e transferências vinculadas à educação .

Em correspondência, a distribuição dos recursos entre redes de ensino

no mesmo estado passou a ser baseada no número de estudantes


410
matriculados na educação básica , respeitados os respectivos âmbitos
411
de atuação prioritária para estados e municípios . Dessa forma, os

municípios passaram a receber recursos com base no seu volume de

matrículas na educação infantil e ensino fundamental e os estados, com

base no seu volume de matrículas no ensino fundamental e médio.

Da mesma forma como ocorria no Fundef, ficou estabelecido que a

União deve complementar o Fundeb dos estados com menor

disponibilidade de recursos por estudante. Ao contrário do seu

antecessor, a regulamentação do Fundeb requer que a contribuição da

União seja maior ou igual a 10% da soma dos valores do conjunto dos
412
fundos estaduais e distrital . A nova legislação impõe também maiores

restrições sobre a origem desses recursos, que agora não podem vir das

receitas da União com o salário-educação nem superar 30% das

despesas compulsórias da União com educação (18% das receitas da


413
União conforme o art. 212 da Constituição Federal) .

No que se refere à utilização dos recursos, o Fundeb se assemelhava

muito ao Fundef. Só podiam ser utilizados (i) no exercício financeiro em


414
que foram creditados , (ii) na MDE da educação básica, e (iii) com a

alocação de pelo menos 60% para remuneração dos profissionais do

magistério da educação básica em efetivo exercício de suas atividades na


415
rede pública .

Apesar dos recursos recebidos serem proporcionais à matrícula na

educação básica devidamente ponderada, sua utilização é livre, não

havendo qualquer requerimento para que, por exemplo, a despesa por

estudante seja similar entre etapas de ensino ou nas áreas rural e urbana.

Esses recursos, no entanto, só podem ser alocados, com algumas

exceções, para custear o ensino em escolas estaduais e municipais. Uma


abertura é dada apenas ao financiamento de instituições privadas que
416
ofereçam educação no campo, infantil ou especial — exceção que não

constava nas diretrizes do Fundef. Portanto, recursos do Fundeb não

podiam ser alocados para a oferta de educação fundamental e média

regular urbana em escolas privadas.

Com o fim da vigência do Fundeb em 2020, a EC 108 definiu o Novo


417 418
Fundeb . Agora de natureza permanente , continua constituído de 27

fundos e não altera nem a contribuição de estados, Distrito Federal e

municípios, nem a forma como esses recursos são compartilhados no


419
âmbito de cada fundo .

A contribuição da União, no entanto, sofreu profundas alterações. Em

termos de magnitude, passou de no mínimo 10% dos recursos agregados

dos 27 fundos para no mínimo 23%, dividida em três parcelas, a saber, a

primeira de 10,0%, a segunda de 10,5% e a terceira de 2,5%, com


420
objetivos e distribuição diferenciada , como veremos a seguir.

No caso da primeira parcela (10%), como no antigo Fundeb, a União

tem ainda a missão de reduzir a desigualdade entre fundos. Para esse

objetivo, continua a ter o dever de complementar os fundos mais

carentes com ao menos 10% do recurso agregado dos 27 fundos.

Em relação à segunda (10,5%), adicionalmente, a União assume a

função de promover de forma direta a equalização no volume de


421
recursos por estudante entre redes . Com vistas a atender essa nova

missão, no Novo Fundeb, a União deve contribuir com pelo menos

10,5% do recurso agregado dos 27 fundos. Ao contrário da contribuição

tradicional, que é transferida aos Fundos, essa nova contribuição deve

ser realizada diretamente às redes de ensino “efetivamente” mais

carentes do ponto de vista fiscal. Assim, no tocante a esta segunda

contribuição, tanto a unidade receptora (rede em vez de Fundo) como o

critério para se avaliar o grau de carência são modificados.

Quanto à complementação da União aos 27 fundos, o grau de carência

é avaliado pelo volume de recursos alocados ao Fundo por matrícula das

redes que o compõem. No caso da avaliação do grau de carência das

redes, ele é definido de forma mais abrangente, pela razão entre o

volume total de recursos que compulsoriamente essa rede deve


dedicar à educação (excluindo o que contribui para o seu fundo estadual

e incluindo o que recebe do Fundeb) e o número de estudantes que

atende.

O volume total de recursos que uma rede aloca à educação difere


do que a rede tem acesso apenas via o Fundeb por três motivos. Em

primeiro lugar, porque nem todas as receitas (impostos e transferências)

estaduais e municipais fazem parte da cesta que contribui para o

Fundeb. Assim, a contribuição compulsória de 25% dessas receitas à

educação é alocada diretamente por estados e municípios, sem passar

pelo Fundeb. Em segundo lugar, das fontes de receita que contribuem

para o Fundeb, os estados e municípios devem alocar a ele apenas 20

pontos percentuais dos 25% vinculados à educação. Assim, 5% dessas

receitas ficam à disposição das redes. Por fim, estados e municípios têm

outras receitas vinculadas diretamente à educação como o salário-

educação, as transferências de programas universais geridos pelo

Ministério da Educação e a parcela vinculada à educação das receitas de

exploração do petróleo e gás que representam uma fonte adicional de

recursos.

Por fim, com respeito à 3ª Parcela (2,5%), a União passa a ter como

objetivo incentivar e premiar as redes com melhor desempenho. Para

tanto, passa a distribuir, adicionalmente, ao menos 2,5% do volume total

de recursos dos fundos que compõem o Fundeb, para as redes que

alcancem melhorias no grau de atendimento e na aprendizagem dos

estudantes, com redução das desigualdades.

Com respeito à origem dos recursos da União, as restrições impostas

pelo novo Fundeb são idênticas às impostas em sua versão anterior:

essas contribuições não podem vir das receitas da União com o salário-

educação, nem superar 30% das despesas compulsórias da União com


422
educação .

No que se refere à utilização dos recursos, o Novo Fundeb tanto

mantém as preexistentes como amplia e introduz restrições. Como no

caso dos fundos anteriores, os recursos do Novo Fundeb só podem ser

utilizados (i) na MDE da educação básica, (ii) no exercício financeiro

em que lhes forem creditados e (iii) para custear, exceto com algumas
exceções, o ensino em escolas públicas estaduais e municipais. Como no
423
Fundeb, o financiamento de instituições privadas fica restrito à oferta

de educação no campo, infantil ou especial, não podendo ser alocados

para a fundamental e média regular urbana.

Em modificação ao Fundeb anterior, o Novo requer que ao menos 70%

dos recursos sejam alocados para remuneração dos profissionais


da educação básica em efetivo exercício. O quanto essa mudança o
torna mais restritivo é discutível. Por um lado, o Novo Fundeb restringe a

liberdade de alocação na medida em que amplia a porcentagem a ser

alocada à remuneração dos profissionais da educação (de 60 para 70%).

Por outro lado, amplia o grupo a que essa restrição se aplica, passando

deprofissionais do magistério para profissionais da


educação. O quanto essa mudança aumenta ou reduz as limitações
na alocação de recursos depende do quanto uma rede de ensino

tipicamente dedica à remuneração de profissionais da educação além do

que já o faz para a remuneração de professores. Caso essa parcela supere

10%, nenhuma restrição adicional está efetivamente sendo imposta.

Caso contrário, o Novo Fundeb torna-se efetivamente mais restritivo.

Por fim, é importante ressaltar que no antigo Fundeb tanto a alocação

dos recursos entre etapas e modalidades de ensino como entre despesas

correntes e de capital eram livres. O Novo Fundeb continua assegurando

liberdade nessas alocações, exceto com relação às novas transferências

da União realizadas diretamente às redes com baixa capacidade fiscal

(10,5% do total dos fundos estaduais e distrital). Nesse caso, ao menos


424
15% das transferências devem ser dirigidas para despesas de capital e
425
50% a educação infantil .

2. DEFICIÊNCIAS NO DESENHO ORIGINAL


Conforme já mencionado, tanto o Fundef como o Fundeb não formam

um único fundo e sim um conjunto de 27 fundos, levando a que o

recurso disponível por estudante varie entre os fundos estaduais e

distrital, mesmo após a contribuição da União. Na medida em que o

objetivo constitutivo do Fundeb é a equalização dos gastos por estudante

entre redes, essa característica é certamente indesejável. A constituição


de um fundo nacional único traria certamente uma equalização maior

dos gastos por estudante entre redes. Quando a desigualdade é medida

pelo coeficiente de Gini, a constituição de um fundo único levaria a que


426
a desigualdade declinasse de 0,16 para 0,13 (veja Tabela 1) .

No entanto, conforme Cruz et al. (2019) corretamente ressaltam,

diferenças nas condições do mercado de trabalho e no custo de vida

podem levar a que determinadas redes necessitem de um volume maior

de recursos que outras. Além disso, disparidades no grau de

vulnerabilidade entre comunidades também podem fazer que o ideal não

seja a equalização de recursos por estudantes entre redes. Não obstante,

em ambos os casos, a equalização ainda poderia ser a meta, desde que

ajustes para custo de vida e grau de vulnerabilidade dos estudantes

sejam incluídos. Adicionalmente, mas não de menor importância, deve

ser ressaltado, que, como qualquer outra forma de compartilhamento de

arrecadação, o Fundeb e sua unificação geram desincentivos à

arrecadação pelos governos municipais, estaduais e distrital. Assim,

seria possível argumentar que o objetivo não é perseguir a perfeita

equalização de recursos, mesmo quando corrigida por diferenças em

custo de vida e grau de vulnerabilidade.

Outro aspecto que perdura desde o desenho original do Fundef, é a

opção por não incluir nele todos os recursos estaduais, distritais e

municipais vinculados à educação pelo art. 212 da Constituição Federal

(BRASIL, 1988). Estima-se que 20% desses tributos não contribuem


427
para o Fundeb . Ademais, das receitas que contribuem para o fundo, a

parcela que os municípios e estados devem aportar (20%) é apenas 80%

do total (25%), que devem compulsoriamente alocar à educação. O

resultado é que o Fundeb, além de compartilhar recursos somente entre

redes de ensino do mesmo estado, o faz apenas com uma parcela dos

recursos estaduais e municipais que devem necessariamente ser alocados

à educação. Dessa forma, o Fundeb não elimina nem mesmo a

desigualdade em recursos por estudante entre redes de ensino de um

mesmo estado. Caso todas as receitas vinculadas à educação de um

mesmo estado fossem proporcionalmente compartilhadas entre suas

redes, a desigualdade em recursos por estudante, medida pelo


428
coeficiente de Gini, declinaria de 0,16 para 0,12 (veja Tabela 1) . A
despeito de sua indiscutível contribuição redistributiva, o

compartilhamento de todas as receitas vinculadas à educação pode

reduzir os incentivos ao esforço local de arrecadação — veja Cruz et al.


429
(2019) sobre essa questão .

Tabela 1: Grau de desigualdade na distribuição dos recursos por estudante


segundo desenhos alternativos para o Fundeb: Brasil, 2015

Fonte: Elaboração própria a partir de Tanno (2017: Anexo). - Nota: Fundeb


Pleno significa que estados, Distrito Federal e municípios contribuem com
25% de todas as suas receitas vinculadas à educação (não inclui salário-
educação).

Por fim, desde o desenho original do Fundef, uma terceira restrição

desnecessária ao Fundeb que perdura é o fato de não se constituir num

fundo plurianual. Outros fundos, como o Fundo de Amparo ao

Trabalhador (FAT), permitem que recursos recolhidos em um ano fiscal


430
possam ser utilizados em anos subsequentes . No Fundeb, todos os

recursos arrecadados num dado ano precisam necessariamente ser gastos


431
no mesmo ano . Essa necessidade contribui para uma série de

ineficiências e dificulta o planejamento de longo prazo. A receita fiscal

varia com os ciclos econômicos, enquanto os gastos com educação

precisam ser bem mais estáveis, uma vez que a população atendida

flutua muito pouco. O Fundeb, na medida em que obriga os gastos com

educação a seguirem os ciclos econômicos, gera sistematicamente anos

em que ocorre escassez e anos em que recursos que deveriam ser

poupados acabam tendo que ser compulsoriamente gastos. Conforme o

Gráfico 2 ilustra, embora o número de matrículas tenha permanecido

praticamente constante ao longo da última década, os recursos aportados

ao Fundeb oscilaram, levando a correspondentes flutuações na


disponibilidade de recursos por matrícula. Em princípio, os recursos

arrecadados entre 2013 e 2015 poderiam ser poupados para serem

utilizados no período posterior (2016 a 2018) em que as receitas

declinaram.

Gráfico 2:Evolução do total de recursos do Fundeb, matrículas nas redes


públicas (exceto federal) e recursos por matrícula, Brasil, 2007 a 2020

Fonte: Elaboração própria a partir de dados de FNDE (2021), STN (2021) e


Inep (2021b). - Nota: Os dados referentes aos recursos do Fundeb foram
obtidos nas planilhas anuais em FNDE (2021), para os anos de 2007 a 2015,
e das transferências municipais e estaduais do Fundeb (STN, 2021), para os
anos de 2016 a 2020, e acrescidas de 10% referentes à contribuição da
União. Os valores estão expressos nos preços médios de 2020 e foram
deflacionados a partir do IPCA, considerando os preços médios anuais.

3. ARMADILHAS DE UM DIAGNÓSTICO MAL


INTERPRETADO
O diagnóstico original, que serviu de justificativa para a criação do

Fundef, era preciso ao assinalar que a redação original da Carta de 1988

levava a um acentuado descasamento entre arrecadação e matrículas, e,

portanto, que havia a necessidade de uma considerável redistribuição

dos recursos destinados à educação (veja Gráfico 1). Ao longo dos anos,

entretanto, esse diagnóstico acabou sendo mal interpretado.

É
É justificável considerar que a correção do descompasso entre

arrecadação e matrículas seja uma condição necessária para que o

preceito constitucional de “igualdade de condições para o acesso e


432
permanência na escola” possa ser alcançado. No entanto, considerar

que a correção desse descompasso seja suficiente para que o direito à

educação seja assegurado a todos com igualdade de condições é


433
injustificável.

Em educação, como em qualquer outra área da atividade humana, os

resultados alcançados não dependem apenas do esforço e dos recursos

alocados. Eles dependem também da eficiência com que esses esforços e

recursos são empregados. A inequidade na disponibilidade de recursos

entre redes de ensino representa apenas um dos fatores determinantes da

gigantesca desigualdade educacional que perdura no País.

A evidência disponível, inclusive, aponta que a inequidade na

disponibilidade de recursos não só não é o único determinante como

sequer é o de maior expressão. Como se vê no Gráfico 3, no Brasil, 80%

das disparidades no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica

(Ideb) entre redes municipais ocorre entre aquelas com o mesmo gasto

por aluno. Apenas 20% das disparidades no Ideb devem-se a

disparidades entre redes com diferentes níveis de gasto por aluno. Em

outras palavras, no Brasil, a maior parte das divergências em resultados

educacionais entre redes deve-se a diferenças na eficiência com que os

recursos disponíveis estão sendo utilizados e não a disparidades na

disponibilidade de recursos. Logo, para que haja equidade educacional,

mais importante que distribuir melhor os recursos é a equalizar a

eficácia com que esses recursos são utilizados.

Gráfico 3: Relação entre o gasto por estudante e o Ideb nos anos iniciais:
Brasil, redes municipais, 2018-2019
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do FNDE/Siope (2018) e Inep
(2019).

Diversos países (OECD, 2017) reconhecem que os instrumentos

tipicamente utilizados para promover uma distribuição mais equitativa

dos recursos e os utilizados para promover seu uso eficaz estão

intimamente interligados. Os mecanismos utilizados para distribuir

recursos sempre influenciam a eficácia com que esses recursos são

empregados. Ao contrário do que ocorria com o Fundef e o antigo

Fundeb, a EC 108 (BRASIL, 2020a), reconhece essa interdependência.

Nesse sentido, ao lado de uma variedade de dispositivos voltados a uma

melhor distribuição dos recursos, essa Emenda inclui dois dispositivos

especificamente voltados para incentivar a utilização mais efetiva dos

recursos.

O primeiro desses dispositivos está relacionado à vinculação da


434
distribuição do ICMS ao desempenho educacional . Segundo ele, ao

menos 10% da parcela desses recursos distribuídos dos estados para os

municípios precisa estar vinculada a “indicadores de melhoria nos

resultados de aprendizagem e de aumento da equidade, considerado o

nível socioeconômico dos educandos” (BRASIL, 2020a). Vale ressaltar,

que essa forma de distribuição do ICMS já vinha sendo praticada pelo

estado do Ceará e diversos estudos certificam a sua eficácia em

promover melhor desempenho educacional (Brandão, 2014; Carneiro e

Irffi, 2018; e Holanda, 2020). Existe, no entanto, uma válida e recorrente


preocupação com a possibilidade de que esse instrumento

inadvertidamente também leve a aumentos na desigualdade. É o caso de

Souza (2021). De fato, redes com maiores recursos podem utilizar essa

vantagem para alcançar melhores resultados e a partir daí conseguirem

se beneficiar mais dos recursos atrelados aos incentivos. Não obstante, à

medida que os recursos forem alocados em função do progresso (em vez

de nível alcançado) e de reduções na desigualdade, as redes mais

carentes podem inclusive estar em vantagem. Esse será o caso, na

medida em que é mais factível, para aqueles abaixo da média, se

aproximarem, do que para aqueles que já estão acima da média se

afastarem ainda mais. Em todo caso, para evitar a produção de

inequidades pelos incentivos, é fundamental assegurar ampla assistência

técnica às redes mais vulneráveis e manter um permanente sistema de


435
monitoramento e avaliação das consequências desses incentivos .

436 437
O segundo dispositivo estabelece que cerca de 11% do aporte da

União ao Fundeb deve ser alocado diretamente às redes que alcançarem

melhorias no atendimento e na aprendizagem com redução na

desigualdade e aprimoramentos de gestão.

Em suma, a EC 108 avança ao reconhecer que instrumentos voltados à

distribuição de recursos, quando adequadamente desenhados, podem

também promover o seu uso mais efetivo. Embora o desenho desses dois

mecanismos ainda precise ser mais bem especificado e sua eficácia

devidamente avaliada, sua adoção representa um importante avanço no

reconhecimento de que as disparidades na efetividade do gasto também

devem ser mitigadas.

A despeito dos avanços, o tradicional foco excessivo do Fundeb na

distribuição de recursos tem trazido consequências indesejáveis, embora

não intencionais. Em primeiro lugar, em todos os ramos da atividade

humana, o desenvolvimento de um bom projeto precede a busca de

financiamento. Esse princípio, no entanto, em boa medida foi invertido

na educação brasileira, em que a busca por recursos precede a discussão

sobre o que será feito com eles. O Fundef e Fundeb, com seu tradicional

foco quase exclusivamente distributivo, talvez tenha de forma

inadvertida contribuído para reforçar esse viés, levando a que a política

educacional brasileira dê maior atenção à busca de recursos do que


propriamente ao desenho e à avaliação de projetos educacionais de

qualidade.

Esse tradicional foco do Fundeb na disponibilidade de recursos

também reforça um segundo viés indesejável da política educacional

brasileira: uma maior atenção aos meios (recursos) que propriamente

aos fins (resultados). Na tentativa de equalizar a qualidade da educação,

a noção de qualidade considerada se refere muito mais a insumos

(professores e infraestrutura) do que aos resultados a serem alcançados


438
(proficiência e desenvolvimento do estudante) .

No entanto, quando a Constituição Federal estipula que todos têm

direito a educação de boa qualidade, o que se pretende é que a educação

assegure a todos o “pleno desenvolvimento”, o “preparo para o exercício


439
da cidadania” e a “qualificação para o trabalho” . É importante no

desenho das políticas educacionais sempre considerar que a

disponibilidade e qualidade dos insumos (professores, infraestrutura,

material didático, etc.) são apenas instrumentos/meios para se alcançar o

real fim da educação: assegurar o pleno desenvolvimento de cada

estudante.

4. ASPECTOS NÃO RELACIONADOS À


EQUALIZAÇÃO DOS RECURSOS POR
ESTUDANTE
A extensa legislação que criou o Fundef e o Fundeb não se limita a

definir regras para a constituição dos fundos e sua repartição. Ela tem
440
por meta também regular a utilização dos recursos desses fundos .

Trataremos agora de três aspectos dessa regulação que julgamos merecer

particular reconsideração. Antes, no entanto, discutiremos a

racionalidade e inconveniências decorrentes da imposição de restrições

à utilização de recursos.

Na medida em que recursos são vinculados à educação, torna-se

imediatamente necessário caracterizar quais as classes de gastos

consideradas válidas. Na ausência dessa caracterização, a vinculação se

torna evidentemente inócua. Os artigos 70 e 71 da LDB (BRASIL,


1996b) cumprem exatamente essa missão, ao descreverem o que conta e
441
não conta como despesa de MDE .

A regulamentação de uso dos recursos do Fundef-Fundeb não é igual

ao estipulado pela LDB. Ela é ainda mais restritiva. Se essas restrições

adicionais são justificáveis, então deveriam se aplicar ao conjunto de

todos os recursos e, portanto, modificar o disposto nos referidos artigos

da LDB. Por causa dessa regulamentação díspar, as diversas fontes de

financiamento da educação pública não podem ser tratadas de forma

unificada. Alocações que podem ser adotadas com recursos de uma

fonte, não podem ser adotadas com recursos de outra.

Essa multiplicidade de restrições de uso diferenciadas pode levar a que

limitações específicas a algumas fontes se tornem inócuas. Na medida

em que uma restrição imposta à utilização de uma fonte não se aplica a

todas as demais, um gestor que precise dedicar a um item uma parcela

de recursos maior do que a fonte de uso restrito permite, pode contornar

esse obstáculo usando de forma desproporcional aquelas às quais o

impedimento não se aplica. Assim, quando existem suficientes recursos

nas fontes que não compartilham uma dada restrição, esse expediente

tornaria a restrição inócua.

No entanto, se muitas fontes compartilharem a mesma limitação, pode

não ser possível circundar a restrição. Caso a alocação desejada não seja

permitida, a despeito de ser a mais adequada, a restrição imposta passa a

ser uma fonte de ineficiência.

Uma vez que restrições específicas podem levar a ineficiências

alocativas, qual a vantagem da sua adoção? A única justificativa possível

parece ser impedir que gestores locais incorram em erros na utilização

de seus recursos. Isso, no entanto, tem validade contestável, em

particular quando grande diversidade de contextos locais demanda

substancial diversidade na alocação dos recursos. Nesse caso, não existe

uma única alocação adequada. Se o objetivo é assegurar que o gestor

aloque os recursos disponíveis da melhor maneira, em vez de restringir

sua autonomia para isso, o mais adequado seria (i) monitorar o resultado

final, (ii) oferecer assistência técnica, (iii) realizar e difundir estudos e

diretrizes que possam orientar os gestores locais na definição da melhor


utilização dos recursos e (iv) impor sanções em casos de sistemática

incapacidade de alcançar metas factíveis.

442
Em consonância com sua denominação , o Novo Fundeb requer que

uma parcela substancial equivalente a 70% de seus recursos seja

direcionada ao pagamento dos profissionais da educação básica em


443
efetivo exercício . Como a educação requer recursos humanos em

grande quantidade, espera-se que boa parcela do que as redes recebem

acabe se dirigindo ao pagamento desses profissionais, levando a que a

restrição imposta pelo Fundeb seja inócua. De fato, desde 2015, mais de

70% do gasto público direto com educação básica foi dedicado ao

pagamento de pessoal ativo, porcentagem essa que permaneceu acima de


444
65% ao longo dos últimos 15 anos .

Como nem todos os recursos de uma rede provêm do Fundeb, mesmo

para aquelas que dedicariam menos do que 70% de seus recursos a esse

fim, essa restrição pode, ainda assim, ser inócua. Para isso, basta que a

rede tenha acesso a recursos suficientes de outras fontes. Ou seja, uma

rede que gostaria de dedicar no máximo r% dos seus recursos à

remuneração dos profissionais da educação básica, precisaria de que a

parcela de recursos que recebe do Fundeb fosse inferior a (10 /7)%. r


Assim, se uma rede desejasse dedicar no máximo 49% dos seus recursos

à remuneração dos profissionais da educação básica, a restrição imposta

pelo Fundeb seria inócua desde que esse Fundo representasse no

máximo 70% dos recursos a que tem acesso.

Como se vê no Gráfico 4, o Fundeb responde em média por apenas

60% dos recursos vinculados à educação. Assim, essa restrição imposta

pelo Fundeb só seria efetiva para redes que desejassem dedicar menos

do que 42% dos seus recursos para a remuneração dos profissionais da

educação básica. Conforme o referido gráfico mostra, apenas 22% das

matrículas são de redes em que menos do 28,5% dos seus recursos

provêm de outras fontes, fora o Fundeb. Apenas para elas, a restrição

imposta pelo Fundeb seria efetiva, caso seu objetivo fosse destinar

menos do que 50% com a remuneração dos profissionais da educação

básica.
Gráfico 4: Distribuição dos estudantes segundo a porcentagem dos
recursos da rede em que estuda que não provém do Fundeb, Brasil, 2015

Fonte: Elaboração própria a partir de Tanno (2017: Anexo).

A capacidade de contornar essa restrição, no entanto, não deve ser

universal. Em algumas redes a imposição do Fundeb deve limitar a

autonomia, impedindo que a alocação mais adequada dos recursos

disponíveis possa ser adotada. Nos municípios mais pobres, a quase

totalidade dos recursos para educação provém do Fundeb; e neles as

restrições serão mais efetivas e terão maior potencial para impedir uma

alocação mais adequada às condições locais.

A ressalva de que 70% dos recursos disponíveis devem seguir para a

remuneração dos profissionais da educação básica não é a única imposta

pelo Novo Fundeb, outros dispositivos dessa natureza foram

adicionados. Um deles requer que 15% dos recursos repassados pela

União diretamente às redes com menor disponibilidade total de recursos

por estudante (i.e., redes em que o valor anual total por aluno [VAAT]
445
fique abaixo do mínimo definido nacionalmente ) devam ser alocados
446
a despesas de capital e 50% à educação infantil (BRASIL, 1988) .

Não há dúvida de que as despesas de capital e com a educação infantil

merecem maior atenção no financiamento da educação pública. Segundo

o Inep (2021a), as despesas de capital como porcentagem do gasto

público vêm declinando, chegando nos últimos anos a uma inexpressiva


447
participação, inferior a 5% do gasto público direto . Por sua vez, é
448
consensual que a contribuição da educação infantil é indispensável

para o “pleno desenvolvimento da pessoa”, objetivo último da educação.

Embora, ao longo das duas últimas décadas, a participação da educação


449
infantil no gasto público já tenha crescido de 10% para 15% , a

necessidade de aumentar a oferta de vagas nessa etapa e a qualidade dos

serviços oferecidos requer que essa participação continue crescendo.

Vale ressaltar que essa nova contribuição direta da União às redes

(10,5% do montante total dos fundos estaduais e distrital) corresponde

apenas a pouco mais de 5% do volume total de recursos vinculados à


450 451
educação . Assim, essas restrições adicionais , por estarem sendo

impostas apenas a uma pequena parcela (5%) do total de recursos, têm

grandes chances de se tornarem inócuas.

Como a distribuição desses recursos é dirigida apenas às redes em

municípios com menor capacidade de arrecadação, as restrições

impostas ao seu uso podem limitar as escolhas de algumas redes locais.

Isso, no entanto, é pouco provável, pois se espera que a distribuição

desses recursos, a despeito de sua regra de focalização, acabe sendo bem

pulverizada. Esses recursos devem beneficiar mais da metade dos


452
estudantes matriculados e cerca de 60% das redes de ensino . Além

disso, a expectativa é que, nas redes beneficiadas, essa contribuição da


453
União represente menos de 30% dos recursos disponíveis . Dessa

forma, as restrições impostas serão inócuas para todas as redes

interessadas em dedicar pelo menos 4,5% dos seus recursos a despesas


454
de capital e 15% à educação infantil , que representa a atual média

nacional.

Direcionar à educação infantil metade da nova contribuição da União

representará um aumento de 2 a 3 pontos percentuais na parcela do gasto

com educação básica dirigido à educação infantil, que deverá passar de

15% para 17% a 18%. É preciso, sem dúvida, aumentar a cobertura e a

qualidade da educação infantil e, portanto, aumentar os recursos

alocados a essa etapa educacional. Essa necessidade de redirecionar

recursos à educação infantil, todavia, deve declinar ao longo da próxima

década, na medida em que a transição demográfica avança e os


investimentos na expansão da oferta maturam. Assim, não parece haver

racionalidade para se expandir, de forma constitucional, a alocação de

recursos à educação infantil, muito menos quando essa expansão se

restringe às redes com menor capacidade de arrecadação. Preferível seria

contar com um sistema de incentivos aplicável a todas as redes

municipais, sensível a seu desempenho e suas necessidades, que pudesse

ser avaliado e ajustado frequentemente.

Por fim, é importante ressaltar o impedimento que o Fundeb coloca à

participação de instituições privadas na provisão pública da educação

fundamental e média urbana. Ao contrário da LDB, que reconhece a

participação da iniciativa privada como uma forma válida de oferta de


455
educação pública , as leis que regulamentam o Fundeb excluem a

possibilidade de as redes públicas recorrerem à iniciativa privada na

provisão de educação fundamental e média em áreas urbanas.

Em princípio, deveríamos colocar a infraestrutura social inteira a

serviço de toda a população, em particular, da população mais pobre.

Impedir que a população tenha acesso a parte dos serviços disponíveis

não parece favorecer nem a ampliação do acesso nem a melhoria na

qualidade dos serviços disponíveis. Como o Sistema Único de Saúde

(SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) têm

demonstrado, a provisão privada de serviços públicos pode contribuir de

forma significativa para a melhoria na cobertura e na qualidade dos

serviços oferecidos.

Segundo o Todos pela Educação (2020), “... essa mudança drenaria


recursos da rede pública para a privada, ampliando a desigualdade e

sem garantir benefício efetivo ao atendimento escolar, e, portanto,

representaria um retrocesso”. A possibilidade de poder utilizar

recursos públicos para contratar o setor privado amplia as possibilidades

de escolha do gestor educacional. Nas mãos de gestores idôneos, a

ampliação das possibilidades de escolha é benéfica e jamais poderia

representar um retrocesso, uma vez que o gestor tem sempre a liberdade

de não utilizar o setor privado se assim o desejar. Se a utilização do setor

privado traz ou não benefícios, cada gestor local pode verificar, não é

preciso presumir-se de antemão. A ampliação da liberdade de escolha,


de fato, pode trazer maior desigualdade, na medida em que permite que

melhores gestores têm maior autonomia e podem levar sua rede a

melhores resultados. A imposição de impedimentos à eficiência não é

definitivamente uma forma adequada de se buscar maior igualdade.

Outro ponto relevante sobre esse impedimento é ele ser contraditório.

A legislação do Fundeb permite que serviços educacionais relativamente

mais complexos, como educação infantil, educação no campo e

educação especial, possam ser oferecidos por instituições privadas. Se a

participação dessas instituições é bem-vinda na provisão desses serviços

relativamente mais complexos, por que não seria também na dos menos

complexos, como a educação fundamental e média urbana? A estratégia

inversa, na qual o Estado teria o monopólio da provisão dos serviços

mais complexos, talvez se justificasse na argumentação de que as

instituições privadas teriam dificuldade em oferecê-los. A estratégia

adotada, em que o monopólio estatal é das formas mais simples de

educação, carece de justificativa.

5. SÍNTESE DAS RECOMENDAÇÕES


É inquestionável a contribuição do Novo Fundeb e de seus antecessores

para uma melhor distribuição dos recursos educacionais. O que não

significa que modificações no seu desenho não poderiam elevar ainda

mais essa contribuição. Neste capítulo apontamos dois caminhos que

potencializariam essa melhoria. Em primeiro lugar, a capacidade

redistributiva do Novo Fundeb poderia ser maior, caso todas as receitas

estaduais e municipais constitucionalmente vinculadas à educação

passassem a ser integralmente depositadas nos respectivos fundos

estaduais e distrital. Em segundo lugar, o efeito redistributivo do Novo

Fundeb poderia também ser maior se os 27 fundos que o constituem

passassem a formar um fundo único nacional.

Para se garantir a igualdade de oportunidades educacionais, uma

distribuição equitativa de recursos é certamente necessária, mas também

insuficiente. Conforme o Gráfico 3 ilustra, mais importante que a

equidade na distribuição de recursos é a equidade na eficácia com que

esses recursos são utilizados. Instrumentos como o Fundeb, responsáveis

pela distribuição de recursos, são também reconhecidamente eficazes


para promover maior eficiência na sua utilização e, por isso, precisam

ser usados com esse fim. A EC 108 (BRASIL, 2020a) dá um importante

passo nessa direção, ao incluir dois instrumentos voltados à promoção

de melhorias na qualidade do gasto público.

Não obstante, tão importante quanto incentivar melhorias na gestão, é

assegurar autonomia para que uma melhor gestão possa ser realizada.

Nesse sentido, a natureza contábil do Fundef-Fundeb, que impede que

recursos sejam poupados para utilização em momentos difíceis no

futuro, é um desnecessário inconveniente. O Novo Fundeb seria mais

coerente com uma utilização eficaz de recursos caso passasse a

constituir-se num fundo plurianual.

Além de impedir que seus recursos possam ser poupados, o Novo

Fundeb impõe uma série de restrições ao seu uso, que vão bem além do

que estabelece a LDB. Três mereceram particular atenção: (i) aplicação

de no mínimo 70% dos recursos à remuneração de profissionais da

educação; (ii) aplicação em despesas de capital e em educação infantil

de no mínimo 15% e 50%, respectivamente, de uma das novas

contribuições da União; e (iii) impossibilidade de contração do setor

privado para a provisão de ensino fundamental e médio urbano. Em

todos os casos, essas restrições podem levar a alocações ineficazes de

recursos, que poderiam ser evitados caso a autonomia alocativa do

gestor não tivesse sido limitada pelas restrições impostas.

O debate que levou ao Novo Fundeb foi certamente intenso e frutífero.

Dois importantes princípios, no entanto, acabaram recebendo muito

menos atenção do que deveriam. Em primeiro lugar, a atenção deveria

estar integralmente focada no desenvolvimento pleno dos estudantes,

pois a importância da qualidade dos insumos decorre apenas de sua

contribuição, indireta e dependente da conjunção de outros fatores, ao

objetivo da educação que é o desenvolvimento pleno dos estudantes. Em

segundo lugar, a política educacional precisa estar muito mais focada na

formulação de projetos de qualidade, pois a captação e repartição de

recursos per se não é suficiente nem para uma educação de qualidade

nem para uma educação mais equitativa.

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391. A matrícula de crianças de até 3 anos em creche não é obrigatória, embora a garantia de

vagas seja dever do Estado.

392. Que foi ampla e rapidamente reconhecida logo após a promulgação da Constituição. Veja,

por exemplo, a exposição de motivos 273 do Ministro da Educação (BRASIL, 1995).

393. Veja Incisos I e VII do art. 206 da Constituição Federal (BRASIL, 1988) e o Inciso I do art.

3º da Lei de diretrizes e bases da educação nacional — LDB (BRASIL, 1996b).

394. O Fundeb foi instituído pela EC 53/2006 (BRASIL, 2006) e Novo Fundeb, pela EC

108/2020 (BRASIL, 2020a).

395. A importância do Fundef e do Fundeb para o avanço de diversos indicadores educacionais

também é bem documentada. Veja, por exemplo, Vegas e Gordon (2005), Menezes-Filho e

Pazello (2007) e Cruz e Rocha (2018).


396. Estas estimativas foram obtidas a partir das informações em Tanno (2017, Anexo). Sobre o

impacto distributivo do Fundeb, veja também Araújo (2013).

397. Quando a desigualdade é medida pelo Índice de Theil-L, o declínio é ainda maior, com a

desigualdade passando de 0,18 sem o Fundeb, para 0,04 com o Fundeb (veja Tabela 1).

398. Pelo contrário, diversos estudos buscam apontar como o Fundeb poderia ser aprimorado.

Veja, em particular, Tanno (2017; 2020), Cruz et al. (2019) e Souza (2021).

399. Isto é, deficiências na EC 14/1996 (BRASIL, 1996a), que foram reproduzidas na EC

53/2006 (BRASIL, 2006), que criou o Fundeb, e também na EC 108/2020 (BRASIL, 2020a),

que o remodelou.

400. O que constitui uma despesa considerada ou não como MDE se encontra descrito nos

artigos 70 e 71 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Por exemplo, gastos

com merenda escolar não representam uma despesa válida com a manutenção e desenvolvimento

do ensino (MDE).

401. Vale ressaltar que o ideal não necessariamente corresponde à equalização da

disponibilidade de recursos por estudante entre redes. Como chamam a atenção Cruz et al.

(2019), existem diferenças em custo de vida entre redes e aquelas que atendem comunidades

mais vulneráveis podem requerer recursos adicionais por estudante.

402. Essa Emenda foi regulamentada pela Lei 9.424/1996 e implementada em todo o território

nacional a partir do início de 1998 (BRASIL, 1996c).

403. As receitas que faziam parte dessa contribuição eram: (a) Fundo de Participação dos

Estados (FPE); (b) Fundo de Participação dos Municípios (FPM); (c) Imposto sobre Circulação

de Mercadorias e Serviços (ICMS, inclusive os recursos relativos à desoneração de exportações,

de que trata a Lei Complementar 87/96); e (d) Imposto sobre Produtos Industrializados,

proporcional às exportações (IPIexp). Veja, por exemplo, o Manual de Orientação:


Fundef (BRASIL, 2004).
404. Na verdade, nem todas as matrículas recebiam o mesmo peso. Matrículas na educação

especial, no campo, e nos anos finais tipicamente recebiam um peso maior que as matrículas

urbanas nos anos iniciais.

405. Fundos no qual o valor total por matrícula no ensino fundamental fosse abaixo da média

nacional.

406. Isto é, o mínimo teria que superar a razão entre a receita agregada dos diversos fundos e a

matrícula total no ensino fundamental nas redes estaduais, distrital e municipal.

407. Nos primeiros cinco anos, era permitido utilizar esses recursos na capacitação de

professores leigos.

408. Que abrange, além do ensino fundamental, a educação infantil, o ensino médio e a

educação de jovens e adultos.

409. Além das transferências e impostos que já contribuíam para o Fundef (FPE, FPM, ICMS e

IPIexp), passaram também a fazer parte: (i) Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e

Doação de Quaisquer Bens ou Direitos (ITCD), (ii) Imposto sobre a Propriedade de Veículos

Automotores (IPVA), (iii) Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (cota-parte dos

municípios) (ITRm), (iv) adicional na alíquota do ICMS de que trata o art. 82, § 1º, do Ato das

Disposições Constitucionais Transitórias, (v) receitas da dívida ativa tributária, juros e multas

relativas aos impostos anteriormente mencionados (inclusive os que já contribuíam para o


Fundef) e (vi) impostos que a União eventualmente instituir no exercício da competência (cotas-

partes dos estados, Distrito Federal e municípios). Veja, por exemplo, o Manual de
Orientação: Novo Fundeb (BRASIL, 2021).
410. Nem todas as matrículas recebiam o mesmo peso, matrículas na educação infantil, especial,

no campo, nos anos finais, no ensino médio e em tempo integral recebem um peso maior que as

matrículas urbanas nos anos iniciais.

411. Veja §§ 2º e 3º do art. 211 da Constituição Federal (BRASIL, 1988).

412. Veja o Inciso VII (d) do art. 2º da EC 53/2006 (BRASIL, 2006).

413. Veja o Inciso VIII do art. 2º da EC 53/2006. Essas duas restrições têm o efeito de ampliar as

despesas totais com educação, pois o salário-educação tem que ser gasto com atividades fora das

financiadas pelo Fundeb, e o aumento da transferência da União ao Fundeb não pode ser

integralmente compensado por redução em outras despesas da União com educação (BRASIL,

2006).

414. Veja Artigo 21 da Lei 11.494. O Fundeb e o Fundef representam apenas uma fonte de

recursos vinculada à educação, é um fundo de natureza contábil que não permite que recursos

captados num ano fiscal (exercício financeiro) possam ser poupados e utilizados em exercícios

futuros (BRASIL, 2007).

415. Veja Inciso XII do art. 2º da EC 53/2006 (BRASIL, 2006).

416. Nesse caso, essas instituições precisam ser comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem

fins lucrativos, e precisam estar conveniadas com o poder público.

417. O Novo Fundeb foi regulamentado pela Lei 14.113 (BRASIL, 2020b).

418. Embora seu funcionamento deva ser revisto em 2026 e posteriormente a cada dez anos.

419. O Novo Fundeb traz uma inovação que permite incorporar aos fatores de ponderação das

matrículas de cada rede, o grau de vulnerabilidade socioeconômica dos estudantes e a

capacidade de arrecadação dos municípios.

420. Sobre a distribuição das parcelas, veja as alíneas a, b, e c do Inciso V do novo art. 212-A da

Constituição Federal (BRASIL, 1988).

421. Vale ressaltar que na versão anterior do Fundeb, a contribuição da União visava apenas

reduzir a desigualdade entre fundos.

422. Veja o Inciso VIII do art. 212-A da Constituição Federal (BRASIL, 1988).

423. Nesse caso, as instituições precisam ser comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem

fins lucrativos e estarem conveniadas com o poder público.

424. De acordo com Inep (2021a), “as Despesas de Capital compreendem os dispêndios com

construções, reformas e reparos nas edificações, entre outros”.

425. Veja Inciso XI e § 3º do Inciso XIII do art. 212-A da Constituição Federal (BRASIL,

1988).

426. Veja Araújo (2013) para uma análise profunda do papel redistributivo da constituição de

um fundo único para as redes com maior e menor arrecadação.

427. Essa estimativa é baseada em informações retiradas de Tanno (2017). Vale ressaltar que

nesse cálculo os recursos derivados do salário-educação não são considerados, embora eles se
constituam numa fonte adicional de recursos vinculados à educação, sob o controle de

municípios, estados e Distrito Federal.

428. A inclusão de todas as receitas vinculadas (art. 212 da Constituição Federal) à educação na

cesta do Fundeb certamente gera a necessidade de informações ágeis e fidedignas sobre toda a

arrecadação tributária municipal. Não se trata, no entanto, de uma demanda adicional. Essa

informação já é indispensável tanto para a verificação de que 25% de todas as receitas estaduais

e municipais estejam efetivamente sendo alocadas à educação, como para a alocação de uma de

uma das três contribuições da União ao Fundeb. De fato, como os 10,5% dos fundos que a União

deve contribuir devem ser distribuídos de forma focalizada às redes com menor volume de

receitas vinculadas à educação por estudante, sua distribuição requer informação sobre todas as

receitas municipais vinculadas à educação.

429. Além disso, obriga estados e municípios a dedicarem uma parcela ainda maior dos recursos

vinculados à educação àquelas que são suas obrigações constitucionais (art. 211). Reduz dessa

forma os recursos que os estados podem destinar ao ensino superior e que os municípios podem

dedicar ao ensino médio.

430. Uma alternativa a um fundo plurianual seria utilizar como orçamento a média móvel da

arrecadação dos últimos cinco anos segundo Cruz et al. (2019), Afonso e Castro (2019) sugerem.

431. Vale ressaltar que existe uma cláusula — § 3º do art. 25 da Lei 14.113 (BRASIL, 2020b) —

que permite que até 10% dos recursos do Fundeb, inclusive transferências da União, possam ser

utilizados nos primeiros meses do ano subsequente (primeiro quadrimestre).

432. Inciso I de art. 206 da Constituição Federal (BRASIL, 1988).

433. O reconhecimento de que a igualdade na repartição dos recursos não é condição suficiente

para a garantia de educação de qualidade para todos está presente na análise do Fundeb realizada

por diversos autores. Veja, em particular, Cruz et al. (2019) e Castioni, Cardoso e Cerqueira

(2021).

434. Veja item II do § Único do art. 158 da Constituição Federal (BRASIL, 1988). Vale ressaltar

que esse dispositivo não está diretamente vinculado ao formato do Novo Fundeb.

435. Sobre isso veja, por exemplo, Cruz et al. (2019) e Moreno (2020).

436. Artigo 212-A, V, c (BRASIL, 2020a). Esse, sim, é parte constitutiva do Novo Fundeb.

437. Corresponde aos 2,5 pontos percentuais da contribuição total de 23% (portanto, 10,9%) do

volume total dos fundos, que no Novo Fundeb a União deve transferir diretamente às redes de

ensino em função de seu desempenho. Veja Inciso V do art. 212-A da Constituição Federal

(BRASIL, 1988).

438. Essa maior preocupação com a disponibilidade e a qualidade dos meios e não com a

qualidade dos resultados não é exclusiva do Fundef-Fundeb, pois está também presente na Lei de

Diretrizes e Bases (LDB). Invariavelmente, quando a LDB trata da qualidade da educação, ela se

refere a insumos educacionais. Vale ressaltar, no entanto, que no Plano Nacional de Educação

(PNE), embora o conceito de qualidade não se aplique apenas a resultados educacionais

(desenvolvimento dos estudantes), a visão de qualidade voltada a resultados está bem melhor

representada, em particular, nas metas 5 e 7.

439. Veja art. 205 da Constituição Federal (BRASIL, 1988).

440. A regulamentação do uso dos recursos de um dado Fundo restringe o rol de alocações

possíveis na medida em que impõe limites máximos e mínimos para determinadas classes de
despesas. No limite, impede que certas despesas sejam realizadas ou que algumas sejam

compulsórias.

441. Um inevitável inconveniente da vinculação e de restrições ao uso é a necessidade de

monitorar, validar e fiscalizar cada componente do gasto.

442. Vale relembrar que Fundeb significa Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da

Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação.


443. Conforme vimos na seção 1, assegurar que uma alta proporção das receitas do fundo se

destinem à remuneração de profissionais da educação não é uma novidade do Novo Fundeb. A

legislação do Fundef já requeria que 60% dos recursos fossem dirigidos à remuneração dos

profissionais do magistério do ensino fundamental e o Fundeb, que a mesma proporção tivesse

como destino o pagamento dos profissionais do magistério da educação básica. O Novo Fundeb

elevou essa porcentagem para 70%, mas também ampliou a categoria beneficiada para abarcar

todos os profissionais da educação básica em exercício.

444. Veja em Inep (2021a) os indicadores financeiros educacionais — investimento por natureza

da despesa.

445. Art. 212-A, alínea b do inciso V da Constituição Federal (BRASIL, 1988).

446. Art. 212-A, Inciso XI e § 3º da Constituição Federal (BRASIL, 1988).

447. Veja em Inep (2021a) a proporção do investimento público direto por natureza de despesa.

448. Veja OECD (2020) e Berlinski e Schady (2015).

449. Veja em Inep (2021a) a proporção do investimento público total por nível de ensino.

450. Essa estimativa considera que o aumento na contribuição da União (de 10% para 23%)

seria a única mudança e que o antigo Fundeb (quando a contribuição da União era de 10%)

representava 59% dos recursos vinculados à educação (veja Gráfico 4).

451. 15% para despesas de capital e 50% com educação infantil.

452. Estimativas obtidas a partir de informações em Tanno (2017, Anexo).

453. Idem.

454. Vale ressaltar que a restrição de gastos relativa à educação infantil se aplica ao conjunto das

redes e não a cada uma isoladamente. Mas mesmo que se aplicasse a cada rede de forma

individual, seria muito pouco restritiva.

455. Veja art. 70, em particular o Inciso VI: “Considerar-se-ão como de manutenção e

desenvolvimento do ensino as despesas realizadas com [...] concessão de bolsas de estudo a

alunos de escolas públicas e privadas” (BRASIL, 1996b).


CAPÍTULO 20
O PISO SALARIAL DO MAGISTÉRIO
PÚBLICO456
Gustavo Guimarães e Marcos Mendes

INTRODUÇÃO
A Emenda Constitucional 53/2006 determinou que lei federal

estabelecesse um “piso salarial profissional nacional para os


457
profissionais da educação escolar pública”. A Lei 11.738/2008 (Lei

do Piso) regulamentou esse dispositivo, criando o “piso salarial

profissional nacional para os profissionais do magistério público da

educação básica”.

Este capítulo mostra que a Lei do Piso gerou distorções e aumentos de

custos, sem evidências de melhoria do aprendizado dos alunos. Trata-se

de um caso típico, em que mesmo estando patente a disfuncionalidade e

custos gerados por mal desenho de uma dada política pública, não é

simples alterá-la devido às resistências dos grupos que delas se

beneficiam.

A seção 1 faz um breve sumário dos motivos teóricos pelos quais se

justificaria uma política de piso salarial para o magistério, e os

resultados que a literatura acadêmica tem encontrado no mundo para

esse tipo de política. A seção 2 descreve os principais pontos da referida

lei. A seção 3 expõe os seus problemas. A seção 4 mostra a dificuldade

política para se consertar uma distorção legal que gera benefícios à

carreira do magistério público, que tem grande força corporativa. A

seção 5 expõe o agravamento do problema em consequência da

aprovação do novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da


Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação

(Fundeb). A seção 6 contém as conclusões.

1. POR QUE UM PISO SALARIAL PARA O


MAGISTÉRIO?
O objetivo final de qualquer política na área educacional é o aumento da

proficiência dos estudantes. Assim, o objetivo primordial tem que ser o

aprendizado dos alunos. Educação de melhor qualidade significa

aumento da mobilidade social, redução da pobreza e da desigualdade.

Também significa maior produtividade da economia, o que gera

crescimento de renda para todos em médio e longo prazo.

A literatura aponta que a qualidade dos professores é determinante

para atingir os objetivos anteriormente listados. Hanushek (2016),

usando dados relativos aos Estados Unidos (EUA), afirma que ter um

bom professor, em vez de um professor de capacidade média, durante

três ou quatro anos seguidos, é o suficiente para eliminar a diferença de

aprendizado entre dois alunos em decorrência de distintas rendas

familiares. O hiato entre negros e brancos se fecharia entre 3,5 e 5 anos.

Apenas um ano de estudo com um professor excelente adiciona US$ 800

mil na soma da renda ao longo da vida de uma classe de 30 alunos. Cada

ano a mais de atividade de um professor acima da média agrega

centenas de milhares de dólares à renda que será obtida pelos alunos ao

longo da vida.

Políticas de ampliação da remuneração real de professores — como o

piso do magistério brasileiro — visam justamente aumentar a

quantidade de alunos que estudarão com bons professores, o que

ocorreria pelos seguintes canais:

Atração e retenção na profissão de candidatos mais

qualificados.

Aumento do grau de satisfação dos professores, estimulando-

os a se esforçar mais.

Redução da necessidade de os professores terem múltiplos

empregos, o que reduziria o estresse e aumentaria a sua


capacidade de ensinar.

Recuperação da defasagem histórica que a remuneração de

professor teria em relação a outras profissões de nível

superior.

Agora, professores melhores decorrem de salários maiores? A

literatura empírica tem dificuldade em achar relação causal entre

aumentos de remuneração de professores e melhoria nos indicadores de

aprendizado dos alunos. Isso só é identificado com mais clareza nos

casos em que o pagamento é proporcional ao desempenho do professor,

e quando a seleção de professores evita a entrada de profissionais

desqualificados, bem como possui mecanismos de demissão daqueles


458
que apresentam mau desempenho .

Hanushek (2016), analisando o caso dos EUA, aponta que o problema

central está justamente na política de remuneração linear dos

professores, não premiando o bom desempenho e pagando o mesmo

salário para bons e maus professores. O autor argumenta que o custo da

folha de pagamentos é muito alto, pois a educação é intensiva em mão

de obra. Os governos estaduais e municipais, que remuneram os

professores da rede pública, não têm capacidade fiscal de pagar salários

elevados a todos.

Dessa forma, acaba-se gerando um “equilíbrio ruim”: a desconexão

entre remuneração e desempenho torna impossível aumentar os salários

de todos os professores a ponto de remunerar adequadamente os

melhores. Ao mesmo tempo, o salário unificado pago a todos acaba

sendo uma remuneração excessiva para os piores professores, quando

comparado com o valor que eles agregam aos alunos e à sociedade.

Note-se que estamos nos referindo ao caso dos EUA, um país rico e

emissor da moeda de reserva internacional, portanto, com restrição

fiscal menor do que a do Brasil.

Além disso, há a dificuldade de remover do magistério os professores

de mau desempenho. Regras de estabilidade no emprego e resistências

sindicais à avaliação geram essa restrição. Registre-se, mais uma vez,


que não se está falando aqui apenas do contexto brasileiro, sendo esse

um problema mesmo em países mais desenvolvidos.

Ainda segundo Hanushek (2016), substituir apenas 8% dos piores

professores dos EUA por outros de qualidade média puxaria aquele país
o
de uma posição intermediária (25 lugar em 2018) para o topo das notas

do exame Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa),

aplicado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento

Econômico (OCDE).

No caso brasileiro, o piso do magistério é uma regra geral, não

baseada em premiação de desempenho. Coerente com o que se observa

na literatura internacional, estudos empíricos com o caso nacional não

detectam efeitos diretos ou indiretos do piso sobre a qualidade do

ensino.

Silva Filho (2016) não identificou relação causal entre os aumentos

promovidos pelo piso e o desempenho dos estudantes em testes

padronizados. Também não encontrou evidências de maior esforço dos

professores ou de aumento na proporção de professores trabalhando em

regime de tempo integral, renunciando às múltiplas ocupações. Foram

detectados apenas efeitos positivos de muito pequena monta na

qualificação dos professores recrutados e no nível educacional dos

estudantes que decidiram ingressar em cursos de pedagogia ou

licenciaturas.

Tavares e Ponczek (2018), embora não estudem explicitamente o efeito

do piso do magistério, avaliam aumentos salariais decorrentes de

gratificação por tempo de serviço (também não relacionada a mérito,

portanto) no estado de São Paulo. Não encontram relação entre aumento

dessa remuneração dos professores e proficiência dos alunos.

Hirata, Oliveira e Mereb (2019) do mesmo modo não encontram

relação estatisticamente significativa entre acréscimos reais na

remuneração e melhoria de desempenho dos alunos em testes

padronizados no Brasil. Os autores fazem uma revisão da literatura,

apontando que aumentos generalizados de salário dos professores têm

alto custo e baixo resultado. Isso indica que outras estratégias tendem a

ser mais eficazes, como esforços para melhorar o uso do tempo pelo
professor em sala de aula, aperfeiçoamento da formação específica e

continuada oferecida a ele, exclusão dos docentes com pior desempenho,

sistematização dos currículos. Os incentivos ao bom desempenho são

difíceis de implementar, mas, se bem desenhados e testados, podem

gerar aumento sistemático e sustentável da proficiência dos alunos.

Apesar desses resultados conhecidos na literatura internacional e

nacional, a instituição de um piso salarial universal no Brasil por vezes é

defendida como forma de equiparar a remuneração dos professores da

rede pública à dos docentes da rede privada ou à de outras profissões de

nível superior. A ideia subjacente seria que professores do ensino

público ganham muito pouco e, ao menos temporariamente, seria

necessária uma política de convergência das remunerações desses

profissionais com outros equivalentes (os da rede privada ou

profissionais de capacitação semelhante).

Não há, contudo, evidências claras de que haja, em termos gerais,

baixa remuneração de professores na rede pública brasileira. Ao

contrário, em relação aos pares no mercado de trabalho educacional

privado, diversos estudos mostram que os docentes da rede pública

ganham mais que os da rede privada, além de terem estabilidade no

emprego e um pacote mais favorável de benefícios previdenciários (Inep,

2020b; Paes de Barros e Machado, 2020; Matijascic, 2017; Barbosa

Filho, Pessôa e Afonso, 2009).

Comparações de remunerações de profissões distintas, que apresentam

uma estrutura de oferta e demanda completamente diferentes, são

frágeis caso não se faça um controle bastante adequado. Não obstante,

existe um número razoável de trabalhos nesse sentido. Como era de se

esperar, na comparação com outros profissionais de nível superior as

evidências são controversas. Hirata, Oliveira e Mereb (2019) mostram

que, por um lado, a comparação direta de remunerações médias aponta

menor remuneração dos professores (mais uma vez sem computar as

vantagens da estabilidade, da duração do ano letivo, dos benefícios

previdenciários e aposentadoria especial). Por outro lado, os autores

mostram que a remuneração dos professores brasileiros como proporção

do PIB per capita fica acima da média desse indicador para vários

países desenvolvidos. De modo similar, vemos em Schleicher (2018)


que, no Brasil, a remuneração dos professores como proporção da

remuneração dos trabalhadores com nível superior está um pouco

abaixo, porém muito próxima, da média observada nos países da OCDE.

É comum que se compare a remuneração dos professores brasileiros

com a dos professores de países da OCDE, utilizando-se dados da

publicação Education at a Glance, para apontar que os professores

brasileiros ganham muito menos. Essa comparação não é adequada. Os

países da OCDE têm em média renda per capita três vezes mais alta

que o Brasil. Não só os professores daqui ganham menos que os de lá,

mas também os nossos advogados, médicos e engenheiros. O adequado

é colocar a remuneração dos professores de cada país como proporção

da renda média ou PIB per capita do respectivo país.


Matijascic (2017), por sua vez, mostra que, dividindo a população

brasileira por faixas de renda, os professores da educação básica estão

sub-representados na composição das famílias de renda baixa e média, e

sobrerepresentados nas famílias com renda per capita acima de três

salários-mínimos. Paes de Barros e Machado (2020) mostram que, em

2018, somente em cinco dos 27 estados (SP, RJ, RS, SC e PE) os

professores da rede estadual com nível superior recebiam menos que a

média dos empregados do setor privado, com nível superior e carteira

assinada.

A realidade dos professores da rede pública com salários aviltantes

parece ter ficado para trás. Mesmo antes da instituição do piso, em 2008,

já havia política pública voltada a elevar continuamente a remuneração

dos docentes. Em 1996, 12 anos antes, foi criado o Fundo de

Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de

Valorização do Magistério (Fundef, antecessor do Fundeb — Fundo de

Financiamento da Educação Básica), com uma regra que estipulava que

60% do total dos recursos deveria ir para a remuneração dos docentes.

Àquela época, era comum ver professores em pequenas cidades

recebendo menos que o salário-mínimo. Mais de duas décadas de

Fundef/Fundeb e uma década de piso do magistério parecem ter mudado

fortemente essa realidade. Isso sem levar em conta o sistema de

aposentadoria favorecido e a menor probabilidade de perda de emprego.


Pode haver, sem dúvida, situações em que, em determinado estado ou

nível de ensino, as remunerações ainda estejam defasadas. Mas isso não

justificaria a fixação de um piso generalizado, aplicável a todos os

professores, de todas as redes públicas, de todo o país.

Mesmo que houvesse indicações empíricas da necessidade de uma

elevação generalizada de remuneração no magistério público, e da

eficácia desse aumento de remuneração como instrumento para melhorar

o aprendizado, há problemas de desenho da política que aumentam seus

custos, diminuem os impactos positivos pretendidos e geram efeitos

negativos sobre outras políticas públicas.

É nessas distorções da regra do piso que este capítulo concentra sua

análise.

Antes, apresenta-se na Tabela 1 um panorama da remuneração média

dos docentes da educação básica, estimada pelo Instituto Nacional de

Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) para o período


459
2012-2017 .

Tabela 1: Remuneração média mensal padronizada para 40 horas semanais


dos docentes da educação básica por rede de ensino: Brasil — 2012 a 2017
(R$ mil de 2017)

Fonte: Inep (2020b). Nota: Deflator — IPCA.

Constata-se, em primeiro lugar, que, conforme já afirmado

anteriormente, a remuneração média na rede pública é aproximadamente

30% superior ao que se paga na rede privada.

Em segundo lugar, nota-se que os professores contratados pelo governo

federal (uma minoria, tendo em vista que o ensino básico está

concentrado nos estados e municípios) não só têm remuneração muito

mais alta, como obtiveram significativos ganhos reais no período, com

acréscimo médio de 40% nos salários.


A informação mais relevante, contudo, é o aumento real de 13% para

os professores da rede municipal, frente a uma estabilidade do valor real

na remuneração estadual. Isso provavelmente reflete o efeito agregado do

piso: dado que antes da lei havia mais municípios que estados pagando

abaixo do piso, a introdução da regra induziu a convergência das

remunerações municipais em direção ao valor médio pago pelos estados.

Mais adiante, na seção 3, se verá que o piso cresceu bem mais que os

13% reportados na Tabela 1. Isso porque nem todos os municípios

pagavam abaixo do piso e outros desrespeitam a lei e continuam

remunerando menos que o por ela exigido.

2. AS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS E
DISFUNÇÕES DO PISO SALARIAL DO
MAGISTÉRIO
A Lei do Piso fixou, para o ano de 2008, o valor de R$ 950 mensais

como piso remuneratório dos professores da educação básica (infantil

até o ensino médio) na rede pública de todo o país. Dado que a quase

totalidade do ensino básico público é provido por estados e municípios,

é sobre esses governos que recai o custo e a responsabilidade do

pagamento.

Esse valor refere-se ao vencimento inicial da carreira dos profissionais

de nível médio, para uma jornada de 40 horas semanais. Jornadas de

duração distinta devem ter o valor ajustado proporcionalmente.

O ponto mais importante da Lei (e que gera mais distorções, como se

verá adiante) é a regra de reajuste anual do piso. O índice de reajuste é

equivalente à variação do gasto mínimo por aluno no âmbito do


460
Fundeb . Trata-se de procedimento pouco usual: em vez de se usar um

índice de inflação, corrige-se o piso por um indicador que nada tem a

ver com a variação do custo de vida e a preservação/valorização real da

remuneração. Como será visto a seguir, esse método de correção

provoca fortes e seguidos aumentos reais no valor do piso.

O piso não é apenas uma espécie de salário-mínimo, abaixo do qual

não se pode remunerar os professores da rede pública. Ele se refere ao

vencimento básico e não à remuneração total, sendo estabelecido como


o vencimento inicial da categoria, excluindo-se adicionais e gratificações

pagos aos docentes. Isso significa que, quando o piso se eleva, toda a

escala de remunerações do plano de carreira — referenciada no

vencimento básico — tende a crescer proporcionalmente.

Como a regra de reajuste leva a aumentos acima da inflação, o impacto

sobre a folha se propaga pelo reajuste a todos os docentes, e não apenas

àqueles que estão no nível inicial da carreira. Como se verá adiante, a

reação de muitos gestores foi simplesmente desmontar os planos de

carreira para diminuir o impacto do piso nas contas públicas.

Ademais, o conjunto de profissionais atendido pelo piso é mais amplo

que o de professores efetivamente em sala de aula. O piso se aplica

também aos profissionais que atuam nas funções de “direção ou

administração, planejamento, inspeção, supervisão, orientação e

coordenação educacionais, exercidas no âmbito das unidades escolares”.

Importante registrar que, no caso de entes públicos que tenham regime

próprio de previdência (ou seja, seus servidores não se aposentam pelo

Regime Geral — INSS) o valor do piso se aplica a todos os aposentados

e pensionistas que tenham direito à chamada regra de paridade (ou seja,

recebem todos os benefícios concedidos aos ativos).

A lei também estipula que 1/3 da jornada de trabalho será para

atividades fora da sala de aula. Extrapola, portanto, a simples fixação de

remuneração, impondo ainda limitação à jornada de trabalho.

Por fim, prevê que os estados e municípios que não tiverem condições

de pagar o piso podem requerer ajuda financeira à União para fazê-lo.

3. OS PROBLEMAS DA LEI DO PISO

3.1 A SUPERINDEXAÇÃO
O principal problema está no índice usado para corrigir anualmente o

valor do piso. O valor mínimo por aluno, no âmbito do Fundeb, tende a

crescer bem acima da inflação. De forma simplificada, se pode dizer que

ele é calculado dividindo-se receitas de tributos que compõem o Fundeb

pelo número de alunos:


(1)

O numerador dessa fração — os recursos do Fundeb — é composto de

um percentual das receitas fiscais dos estados e municípios mais uma

complementação percentual da União. Essas receitas tendem a crescer

no mesmo ritmo do PIB nominal: fora alguns anos de recessão, têm

crescimento real, acima da inflação.

O Gráfico 1 mostra que os recursos totais aportados ao Fundeb pelos

estados, municípios e União, em 2020, eram 27% maiores, em termos

reais, que os do primeiro ano após a promulgação da Lei do Piso

(mesmo considerando a redução de 2020 pelo impacto da pandemia da

Covid-19).

Gráfico 1: Recursos totais aportados ao Fundeb por União, estados e


municípios: 2009-2020 (R$ bilhões de 2020)

Fontes: Secretaria do Tesouro Nacional e IBGE. Nota: deflator Índice Nacional


de Preços ao Consumidor (INPC).

Já o denominador da equação (1) — o número de alunos matriculados

— tende a cair ano após ano, em decorrência da queda da taxa de

natalidade e envelhecimento da população: temos cada vez menos

crianças e jovens em idade escolar.

O Gráfico 2 mostra que entre 2009 e 2020 o número de matrículas na

educação básica da rede pública caiu nada menos que 15%. Em 2020

havia 6,8 milhões de alunos a menos que em 2009.

Gráfico 2: Número total de matrículas nas escolas da rede pública de


educação básica (milhões de matrículas)
Fonte: Censo Escolar da Educação Básica — MEC.

O resultado é que o gasto por aluno cresce, a cada ano, bem mais que a

inflação, elevando persistentemente o valor real do piso salarial.

O Gráfico 3 mostra o efeito dessa superindexação. Em 12 anos de

existência, o piso remuneratório do magistério cresceu 3,04 vezes em

termos nominais, muito acima da inflação, do PIB nominal ou do

salário-mínimo, mesmo após a política de valorização deste último.


461
Houve um crescimento real de 57% no período.

Gráfico 3: Crescimento nominal do piso do magistério, do salário-mínimo e


do PIB versus variação acumulada do INPC: 2009-2020 (Índice 2009=1)

Fontes: IBGE e MEC. PIB Nominal de 2021, estimativa Focus (11/6/21).

O crescimento do piso poderia ter sido ainda mais intenso se a

recessão iniciada em 2014 não tivesse freado a evolução da receita do


Fundeb. Como se vê no Gráfico 1, desde 2015 essa receita tem se

mantido praticamente estagnada.

A partir da equação (1) vê-se que se o número de alunos

(denominador) cai ano após ano, a taxa de crescimento do piso salarial

vai ser maior que a taxa de crescimento da verba total do Fundeb

(numerador). Isso significa que, com o passar do tempo, os recursos do

Fundeb terão parcelas crescentes absorvidas pelo pagamento da folha,

diminuindo a disponibilidade de verbas para investimentos e

manutenção da rede de ensino.

O Gráfico 4 mostra o descasamento entre o crescimento do total de

recursos alocados ao Fundeb, de 26%, entre 2009 e 2020, e o

crescimento do piso, de 66%, no mesmo período.

Gráfico 4: Crescimento real do piso do magistério versus crescimento real


do total de recursos alocados pela União, estados e municípios ao Fundeb
(Índice 2009=1)

Fontes: IBGE e MEC.

A Tabela 2 mostra que, de fato, está crescendo a parcela do Fundeb

gasta com a folha de pagamentos. Em 2009, 25% dos municípios

gastavam mais de 80% da verba do Fundeb com o pagamento da folha,

percentual que subiu para 30% em 2019. No período, o

comprometimento médio do Fundeb com a folha subiu de 71% para

75%, tendo crescido em 59% dos municípios.

Tabela 2: Distribuição dos municípios conforme o percentual dos recursos


do Fundeb consumidos no pagamento da remuneração dos profissionais do
magistério: 2009 versus 2019 (%)

Fontes: IBGE e MEC.

Isso obrigará as administrações estaduais e municipais a reforçar os

orçamentos da educação para além do que já é reservado pelo Fundeb.

Logo, será preciso retirar recursos de outras áreas. Um candidato natural

é a saúde, que tem o segundo maior orçamento nos municípios, como

mostra o Gráfico 5.

Gráfico 5: Distribuição da despesa empenhada dos municípios por função:


2019 (%)

Fonte: STN/Siconfi.

Essa transferência de recursos da saúde para a educação, contudo,

parece inadequada em um contexto em que diminui o número de alunos

e aumenta o número de idosos que requerem mais cuidados médicos. O

Gráfico 6 mostra que, entre 2020 e 2060, o público-alvo da educação


básica (com idade entre quatro e 19 anos) cairá de 47,6 milhões de

pessoas para 36,5 milhões. Já o público-alvo típico da assistência à

saúde (acima de 60 anos) crescerá de 34,3 milhões para 75,2 milhões de

pessoas. Comprometer parcelas crescentes do orçamento com educação

possivelmente fará faltar recursos para a saúde, onde a demanda crescerá

fortemente.

Gráfico 6: Projeção da população brasileira entre quatro e 19 anos e com


60 anos ou mais (milhões de habitantes)

Fonte: IBGE.

3.2 DISTORÇÃO NAS RELAÇÕES FEDERATIVAS


Dado que a atribuição de prover educação básica é principalmente dos

estados e municípios, uma lei federal obrigando-os a pagar aos

professores um piso, de valor elevado e crescente, tem implicações

negativas para as relações fiscais intergovernamentais.

Cada região e estado tem um nível médio de renda e custo de vida

diferente, bem como dinâmicas distintas do mercado de trabalho. Um

piso salarial pode ser muito baixo para São Paulo e muito alto para o

Piauí. Um valor único nacional nunca será capaz de lidar com tal

diversidade, e se torna cada vez mais distorcivo a cada aumento em

termos reais, pois estamos falando de um piso, ou seja, o menor

vencimento a ser pago ao mais baixo nível da carreira.

A descentralização é uma característica do federalismo fiscal que visa

dar flexibilidade para que as políticas públicas sejam geridas conforme


as especificidades locais. A centralização na definição do piso atua

contra essa flexibilização.

Pode-se argumentar que o piso tem por objetivo evitar que algumas

administrações paguem remunerações aviltantes aos professores. Mas

nesse caso ele teria que ser regionalizado e alinhado ao custo de vida

local, ou menor se adotado na forma nacional, e não se justificaria a sua

superindexação.

Deve-se levar em conta que o Fundeb já conta com instrumento para

estimular a adequada remuneração dos profissionais da educação: a

reserva de 70% dos recursos (até 2020 eram 60%) para a remuneração.

O montante reservado é bastante elevado e já permite o pagamento de

remunerações dignas, sem a necessidade de engessamento dos valores

em termos nacionais.

O elevado custo acaba gerando estresse fiscal em alguns entes da

federação. Ainda que a lei tenha previsto cooperação financeira da

União, essa não se concretizou. Acabou sendo adotada uma regra geral

na qual se considera que parte das transferências da União para o

Fundeb representaria a ajuda para o pagamento do piso. Ou seja,

aplicou-se a todos os entes federados, e não apenas aos sem capacidade


462
de arcar com o pagamento como fora previsto na lei .

Mesmo que a regra fosse seguida à risca, haveria estímulo a

comportamento estratégico: municípios capazes de pagar o piso

poderiam prover informações distorcidas visando receber o benefício. O

custo administrativo para monitorar esse comportamento é elevado,

introduzindo burocracia e consumindo recursos fiscais adicionais.

O impacto fiscal vai além da folha do magistério. Martins (2021)

constata que o aumento do piso acabou gerando pressão para aumento

de remuneração do restante do funcionalismo. O autor estima que a cada

1% de aumento do piso há uma elevação de 0,4% na folha de pagamento

municipal relativa a servidores não relacionados à área de educação. O

crescimento das remunerações na educação vai tornando a escala de

pagamentos desproporcional e gera demanda por aumentos em outras

carreiras do funcionalismo municipal. O resultado é maior

comprometimento das finanças locais com o pagamento da folha.


O sucesso dos professores em obter um piso nacional estimula outras

categorias a demandar o mesmo tratamento do Congresso Nacional. Por

exemplo, quando este capítulo estava sendo escrito, tramitava na Câmara

dos Deputados o PL 2.564/2020, que propõe fixar piso salarial para

enfermeiros, técnicos de enfermagem, auxiliares de enfermagem e

parteiras. Somente no setor público, o impacto fiscal estimado era de R$

18 bilhões anuais (Anahp, 2021). A rigidez e a pressão fiscal sobre os

entes subnacionais só aumentam.

Ademais, a determinação de que 1/3 da jornada deve ser cumprida fora

da sala de aula gera a necessidade de um efetivo maior de professores,

não só aumentando os custos como criando rigidez na alocação dos

profissionais.

Outro problema está no fato de que a regra é procíclica: quando a

economia está crescendo e a arrecadação aumentando, os reajustes do

piso serão mais fortes. Isso consolida um novo patamar de remuneração

que não poderá ser diminuído quando, mais à frente, a economia entrar

em recessão e a arrecadação cair em termos reais. O Gráfico 1, acima,

mostra que os aumentos reais concedidos até 2014 tiveram que ser pagos

nos anos seguintes em um contexto de receita real menor que a de 2014.

Menezes Filho (2015) ressalta que esse problema é agravado pelo fato

de que o piso do ano t+1 é fixado no ano t, com base em uma estimativa

de quais serão os recursos do Fundeb e o número de matrículas em t. Se

houver um erro de estimativa que leve à fixação de um piso a maior, a

conta fica ainda mais desfavorável para o estado ou município, que terão

que pagar um piso mais elevado, sem receber recursos suficientes do

Fundeb.

Por outro lado, se o erro de estimativa for na direção oposta, fixando

um piso mais baixo, haverá “sobra” de recursos do Fundeb frente a uma

folha salarial mais baixa. Mas isso não alivia as contas dos municípios,

porque, pela regra do Fundeb, no mínimo 70% dos recursos têm que ir

para a folha. Se esse percentual não for consumido pelo reajuste do piso,

terá que custear outro tipo de gasto da folha, como gratificações


o
extraordinárias, 14 salário, etc.
No Brasil, os estados e municípios tendem a apresentar desequilíbrio

fiscal crônico. A folha de pessoal é o principal fator de pressão de

gastos, como mostram Pellegrini (2020) e Brasil — Tesouro Nacional

(2020). Legislação federal que pressione ainda mais esse gasto agrava o

problema.

Mendes (2020) mostra que o federalismo brasileiro já possui diversas

características que causam pressão política para que a União socorra

financeiramente os estados e municípios. As obrigações de gastos

criadas por lei federal constituem uma delas. O autor identifica 29

operações de socorro financeiro da União a estados e municípios entre

1983 e 2020, aí incluídos desde grandes assunções e refinanciamento de

dívidas a parcelamentos de precatórios, perdões de débitos com órgãos

federais e socorros a bancos estaduais. Essa permanente insegurança

quanto à sustentabilidade fiscal resulta em juros altos e baixa capacidade

dos estados e municípios para tomar crédito e investir em infraestrutura.

Dado que a Lei do Piso não prevê punição ao seu descumprimento,

muitos entes públicos simplesmente não cumprem a determinação legal.

Relatório do Ministério da Educação (2020) aponta que, em 2018,

25,8% dos municípios e 29,6% dos estados não cumpriam a regra do

piso. Isso produz um ambiente de judicialização e confrontação com

sindicatos, que em nada colabora para o desenvolvimento da educação

local.

Juridicamente, o problema é um pouco mais complexo, pois pode

haver conflito entre o aumento de remuneração que a Lei do Piso

determina e o limite de gasto com pessoal estipulado pela Lei de


463
Responsabilidade Fiscal (LRF) . O gestor fica na posição de escolher

qual lei descumprirá.

3.3 DISTORÇÕES ALOCATIVAS


O fato de o piso se aplicar aos aposentados e pensionistas quebra a

argumentação entre maior remuneração e melhoria do ensino, que é a

razão de ser do aumento real de remuneração. Afinal, aposentados e

pensionistas não estão dentro da escola. Não se aplica a eles o


argumento de remunerar bem para motivar o bom trabalho e atrair os

melhores profissionais.

A vinculação dos planos de carreira à remuneração básica do piso

induz os estados e municípios a desmontar esses planos, para reduzir o

custo total da folha. Martins (2021) mostra evidências de achatamento

das escalas de remuneração dos professores nos municípios, com todos

ganhando próximo ao piso. Dificulta-se a possibilidade de um sistema

de pagamentos por desempenho que, como visto na seção 1, é um ponto

central para induzir melhoria da qualidade de ensino.

Há, portanto, distorções nos incentivos que jogam contra o objetivo de

melhorar a qualidade do ensino.

4. A DIFICULDADE POLÍTICA PARA CORRIGIR


OS PROBLEMAS
Em 23 de junho de 2008, apenas uma semana após a publicação da Lei

do Piso (16 de junho de 2008), o mesmo Poder Executivo que não

sugeriu veto ao dispositivo de reajuste do piso, mandou outro projeto

para o Congresso Nacional no qual propunha alterar a regra de correção,

que passaria a ser feita pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor

(INPC).

Essa brusca “mudança de ideia”, em tão curto espaço de tempo, reflete

os conflitos internos do Executivo.

A Câmara dos Deputados aprovou esse novo projeto (PL 3.776/2008).

O Senado alterou-o fortemente, retornando à lógica de reajustar o piso

pela variação do gasto por aluno. Após mais de três anos de tramitação,

em novembro de 2011 a Câmara votou pela rejeição das alterações feitas

no Senado, restituindo a redação original. O projeto foi aprovado nas

comissões e, por regra regimental, não precisaria ser votado em

plenário.

Contudo a então deputada Fátima Bezerra ingressou com recurso junto


464
à mesa diretora para invalidar a aprovação final do projeto pela

Comissão de Finanças e Tributação, o que demandaria a votação do

projeto pelo plenário da Câmara. Esse recurso permanece engavetado há


dez anos. Bastaria rejeitar o recurso para que a lei fosse à sanção,

corrigindo o principal problema da Lei do Piso.

Recentemente, com a aprovação do Novo Fundeb, como veremos na

próxima seção, foi apresentado o PL 2.075/2021, que propõe i) nova

definição para o piso — compreenderá todas as vantagens pecuniárias,

pagas a qualquer título, ao magistério público da educação básica — e

ii) atualização anual do piso, sempre em maio, pela variação acumulada


465
do INPC . A força corporativa da categoria dos professores da rede
466
pública , contudo, consegue anular esforços políticos nesse sentido.

Passam a surgir, então, propostas intermediárias, como a correção do

piso pelo INPC mais uma correção real equivalente a um percentual do

crescimento do gasto por aluno. Isso torna o problema menos agudo,

mas não o resolve, pois no longo prazo continuará havendo crescimento

contínuo do valor real da remuneração, e todas as implicações negativas

anteriormente expostas. Ademais, uma regra que estabeleça ganhos

reais, para qualquer que seja o objetivo (sair de patamares muito baixos

ou convergir para determinado valor médio) deveria ser temporária.

Com a superindexação da regra atual alinhada às regras do Novo

Fundeb, há grande chance de se manter permanente crescimento do piso

acima do crescimento do PIB nominal, tornando-a não sustentável.

E isso já está acontecendo. Com o aumento de receitas e a contínua

redução dos números de alunos (intensificada ainda mais pelos efeitos

da pandemia), para 2022, por conta da fórmula de reajuste que não tem

qualquer racionalidade econômica e de incentivos, o piso será reajustado

em 31,30%, passando de R$ 3.349 para R$ 4.397,91. Isso irá impactar

fortemente os entes subnacionais, seja em suas políticas de gestão da

educação, seja em suas finanças.

5. A APROVAÇÃO DO NOVO FUNDEB E O


AGRAVAMENTO DO PROBLEMA
A Emenda Constitucional 108/2020 fez ampla reformulação nas regras

do Fundeb. A principal delas foi o aumento da complementação que a

União é obrigada a fazer ao Fundo, que passou de 10% para 23% do

montante aportado por estados e municípios. Esse aumento será gradual


ao longo de seis anos. Isso significa que o numerador da equação (1)

crescerá fortemente nos próximos anos, pressionando ainda mais os

reajustes do piso.

Ocorre, porém, que a revogação da Lei 11.494/2007 pela nova

regulamentação do Fundeb (Lei 14.113/2020) deixou vácuo legal na

regra de correção do piso. A lei revogada continha a regra de reajuste do

piso:

o
Art. 5 O piso salarial profissional nacional do magistério

público da educação básica será atualizado, anualmente, no mês

de janeiro, a partir do ano de 2009.

atualização de que trata o caput


Parágrafo único. A

deste artigo será calculada utilizando-se o


mesmo percentual de crescimento do valor
anual mínimo por aluno referente aos anos iniciais do
ensino fundamental urbano, definido nacionalmente, nos termos

da Lei 11.494, de 20 de junho de 2007. (Grifo nosso).

Ocorre que o “valor anual mínimo por aluno”, na nova e complexa

sistemática do atual Fundeb, pode ter várias interpretações, ocasionando

diferentes indexadores para o piso. O potencial de judicialização é

grande.

As estimativas iniciais do Ministério da Economia já apontavam que,

com a adoção do indexador que gera maior reajuste, esse seria acima de

30% em 2022 (de fato foi 31,30%) e em torno de 18% em 2023. Até

2027, o reajuste médio anual seria de 18% ao ano. Supondo uma

inflação de 4% ao ano no período, o ganho real do piso nesse período

seria de 84%.

Mesmo que se adote o indexador menos favorável ao reajuste do piso,

o crescimento nominal seria de 49% em seis anos, representando um

ganho real de 18%, quando descontados os 4% ao ano de inflação.

Outro problema que surge com o novo Fundeb é que foi revogado o

dispositivo que permitia usar parte dos recursos do Fundo para


o
complementar o piso. O art. 7 da lei que regulamentava o antigo
467
Fundeb permitia que até 10% da complementação da União ao Fundo

fossem usados para medidas de melhoria da qualidade da educação. A

partir daquela lei, esse montante passou a ser usado a título de

complementação do piso salarial, ainda que não obedecesse à lógica de

complementar somente nos casos de incapacidade local para pagar o

piso. O valor era então pago na mesma proporção do restante da

complementação da União.

468
Não existe dispositivo similar na nova regulamentação do Fundeb .

Permanece a obrigação de complementação do piso criada pela Lei do

Piso, sem que seja possível usar os recursos federais aportados ao

Fundeb para complementar o piso.

Ou seja, além de arcar com uma conta muito maior de

complementação ao Fundeb (mais que o dobro da conta anterior), a

União terá que fazer aportes adicionais para complementar, também, o

pagamento do piso salarial. Esses aumentos sucessivos sobre um valor

base que cresceu nos últimos anos bem acima da inflação e do salário-

mínimo, como visto no Gráfico 3, alinhado à destinação de 70% do

Fundeb para folha dos profissionais do magistério, vai ampliar o número

de municípios que, para cumprir as leis da educação, terão que

descumprir a LRF.

Mantida uma regra de reajuste que permita à despesa de pessoal

crescer invariavelmente acima das receitas que compõem o Fundeb irá

drenar todos os recursos para a folha de pagamentos e demandar

complementações cada vez maiores e insustentáveis para a União. Tudo

isso, sem resolver o problema dos entes subnacionais no financiamento

das despesas com educação que continuarão a crescer, em média, acima

das receitas.

Durante o debate do novo Fundeb estava clara a necessidade de

reformular a Lei do Piso. Porém, mais uma vez, as resistências

corporativas impediram tal revisão.

6. CONCLUSÕES
Esse capítulo mostrou que a lei que instituiu o piso remuneratório do

magistério tem problemas sérios de desenho que acarretam gastos

excessivos, distorções remuneratórias, pressão fiscal sobre os três níveis

de governo e efeitos adversos sobre outras políticas públicas.

Estudos empíricos não constatam efeitos do aumento da remuneração

dos professores sobre a proficiência dos alunos, o estímulo profissional

ou melhor seleção de professores. Mesmo que a lei estivesse

funcionando a contento e obtendo resultados positivos, a superindexação

por ela criada e os demais problemas de desenho precisariam ser

reformulados.

Nesse sentido, o ponto principal a tratar seria a substituição da

superindexação do reajuste pelo procedimento usual de correção por um

índice de preços.

Adicionalmente, para evitar distorções alocativas, seria importante,

também, transformar o piso em um salário-mínimo da categoria, de

modo que seu reajuste não tivesse conexão automática com toda a escala

de remuneração do plano de carreira. Também seria importante revogar

as restrições relativas a tempo de exercício fora de sala de aula e limitar

a abrangência do piso aos servidores ativos, excluindo o

transbordamento do pagamento aos inativos.

Projeto de lei com esse conteúdo foi elaborado em 2017 no âmbito do

Poder Executivo Federal, porém, mais uma vez as resistências

corporativas impediram até mesmo a sua formalização e apresentação ao

Congresso Nacional.

Em suma, o capítulo analisou um caso clássico de política pública mal

desenhada, que produz diversos efeitos adversos, mas que sobrevive a

base de pressão política dos seus beneficiários.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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para Enfermeiros, Técnicos e Auxiliares de Enfermagem e Parteiras,
2021. Disponível online.

BARBOSA FILHO, F.H.; PESSÔA, S.A. e AFONSO, L.A. Um estudo sobre os diferenciais de

remuneração entre os professores das redes pública e privada de ensino. In: Estudos
Econômicos, São Paulo, 39(3), jul.-set., 2009.
Relatório do 3o ciclo de monitoramento das metas
BRASIL. INEP-MEC.

do Plano Nacional de Educação, 2020. Disponível online.


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educação básica: pareamento das bases de dados do Censo da
Educação Básica e da Rais. Nota técnica no 10/2020/CGCQTI/DEED, 2020b.
BRASIL. Tesouro Nacional. Boletim de finanças dos entes subnacionais,
2020. Disponível online.

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6/2020.

HIRATA, G., OLIVEIRA, J.B.A., MEREB, T.M. Professores: quem são, onde trabalham,

quanto ganham. Ensaio: avaliação e políticas públicas. In: Educação, Rio de Janeiro,

27(102), jan./mar., 2019. Disponível online.

MARTINS, F. (2021). Ensaios sobre os professores da educação básica


municipal: quantificação, remuneração e a despesa com pessoal
ativo, Universidade Federal Fluminense, 2021. Tese de doutorado.
MATIJASCIC, M.Professores da educação básica no Brasil: condições
de vida, inserção no mercado de trabalho e remuneração. Brasília: Ipea,
2017. Texto para Discussão 2304. Disponível online.

MENDES, M.Crise fiscal dos estados: 40 anos de socorros financeiros


e suas causas. S. Paulo: Insper Conhecimento, 2020. Texto para Discussão. Disponível
online.

MENEZES FILHO, N.A. Como melhorar a educação no Brasil?. In: Interesse Nacional,
31 out.-dez. 2015.

PAES DE BARROS, R.; MACHADO, L Aperfeiçoamento do desenho do


Fundeb, 2020. Apresentação em Power Point.
PELLEGRINI, J. Análise da situação fiscal dos estados. In: BRASIL. SENADO FEDERAL.

Instituição Fiscal Independente — Estudos Especiais no 14, 2020.

Disponível online.

SCHLEICHER, A. Talis — Teaching and learning International Survey —


insights and interpretations. OCDE, 2020.

456. Os autores agradecem os comentários e esclarecimentos de Aumara Feu, Cláudia Deud e

Pedro Nery, isentando-os de eventuais erros e opiniões contidos no capítulo.

457. Constituição Federal, art. 206, inciso VIII.

458. Silva Filho (2016) apresenta uma revisão dessa literatura.

459. Não é simples obter esse número. Para tanto, é preciso unir microdados de pelo menos duas

bases de dados distintas: o Censo da Educação Básica e a Relação Anual de Informações Sociais
(RAIS), localizando individualmente o CPF do professor nas duas bases e fazendo diversos

ajustes metodológicos.

o
460. Mais precisamente, o art. 5 , parágrafo único, estabelece que “a atualização de que trata o

caput deste artigo será calculada utilizando-se o mesmo percentual de crescimento do valor

anual mínimo por aluno referente aos anos iniciais do ensino fundamental urbano, definido

nacionalmente, nos termos da Lei 11.494, de 20 de junho de 2007.” (Grifo nosso). Essa lei era a

regulamentação do Fundeb até o advento do novo Fundeb (Emenda Constitucional 108/2020,

regulamentada pela Lei 14.113/2020). A nova lei de regulamentação do Fundeb revogou a Lei

11.494/2007 e deixou um vácuo sobre a forma de cálculo do piso do magistério, como será visto

na seção 4.

461. (3,04/1,93) - 1 = 0,573.

462. Essa realidade muda com a vigência do novo Fundeb, ponto que será tratado na seção 4.

463. A ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) 4.167 e 4.848 questionaram três

dispositivos da Lei do Piso que foram todos declarados constitucionais pelo STF.

464. Recursos 108/2011.

465. Propostas que já constavam nos PL 619/2007 e PL 3.776/2008.

466. Matijascic (2017) mostra que, em 2015 quase metade dos professores da rede pública

municipal e estadual era filiada a sindicato, contra apenas 28% na rede privada.

467. Lei 11.494/2007.

468. Lei 14.113/2020.


CAPÍTULO 21
PRONATEC: UMA OPORTUNIDADE
DESPERDIÇADA
Fernando de Holanda Barbosa Filho

INTRODUÇÃO
O Brasil criou, ao longo das últimas décadas, diversos programas de

qualificação profissional. Seu intuito era ampliar a empregabilidade, a

produtividade e o rendimento dos trabalhadores. Nessa linha, o governo

federal implementou em 1995 o Plano Nacional de Formação


469
Profissional (Planfor) , cuja meta inicial era mobilizar recursos para

que, a partir do ano de 1999, 20% da população economicamente ativa

(PEA) fossem treinados anualmente. No entanto, o plano de qualificação

profissional que mais ganhou foco foi o Programa Nacional de Acesso

ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec). Assim como seus

antecessores, esse programa, que formalmente continua existindo,

morreu por mau desempenho, redução de recursos orçamentários e

ausência de mudanças que o tornassem efetivo.

O Pronatec superou as 8 milhões de matrículas já em 2014, fato

utilizado na campanha eleitoral com grande destaque pela então

presidente Dilma Rousseff. No entanto, apesar da grande dimensão, não

se sabia a real efetividade do programa. Estaria o programa

proporcionando maior empregabilidade para o seu público-alvo?

Estariam seus alunos se saindo melhor do que os que não tiveram a

oportunidade de cursar o Pronatec?

Este capítulo avalia esse programa. É composto desta breve introdução

e dividido em cinco seções. Na seção 1, fazemos a sua descrição,


mostrando a evolução do número de matrículas e de seu custo ao longo

do tempo. A seção 2 mostra avaliações de programas de qualificação

profissional no Brasil, em especial do Pronatec. As lições das diversas

avaliações e o aprendizado com seus erros são apresentados na seção 3,

enquanto a seção 4 é a conclusão.

1. O PRONATEC: O QUE ERA E EVOLUÇÃO NO


TEMPO
O crescimento econômico do período entre 2002 e 2010 provocou

grande queda da taxa de desemprego e uma maior demanda por força de

trabalho qualificada. Existia pressão por qualificação para que um

potencial “apagão” de mão de obra não travasse o crescimento


470
econômico . A queda sistemática do desemprego e a grande

formalização do mercado de trabalho pressionavam os salários e

criavam a impressão de uma escassez relativa de mão de obra. Em

consequência, havia pressões pela liberação da contratação de trabalhos

estrangeiros (qualificados). No entanto, existia oposição dos sindicatos,

pelo temor de que os trabalhadores estrangeiros obtivessem os melhores


471
postos de trabalho . Nesse ambiente surgiu o Pronatec, que tinha como
o
um dos principais objetivos o cumprimento da meta n 11 do Plano

Nacional de Educação (PNE) 2011/2020, ou seja, triplicar as matrículas

da educação profissional técnica de nível médio, assegurando a

qualidade da oferta.

O Pronatec buscava ampliar a empregabilidade (especialmente dos

trabalhadores menos qualificados) e ao mesmo tempo prevenir o

“apagão” de mão de obra que estaria ocorrendo no Brasil. Com isso, o

governo federal fez aprovar a Lei 12.513, de 26 de outubro de 2011, que

criou o Pronatec. Seus objetivos eram:

i) expandir, interiorizar e democratizar a oferta de cursos de educação

profissional técnica de nível médio presencial e a distância, assim como

cursos e programas de formação inicial e continuada ou qualificação

profissional;

ii) fomentar e apoiar a expansão da rede física de atendimento da

educação profissional e tecnológica;


iii) contribuir para a melhoria da qualidade do ensino médio público,

por meio da articulação com a educação profissional;

iv) ampliar as oportunidades educacionais dos trabalhadores, por meio

do incremento da formação e qualificação profissional;

v) estimular a difusão de recursos pedagógicos para apoiar a oferta de

cursos de educação profissional e tecnológica;

vi) estimular a articulação entre a política de educação profissional e

tecnológica e as de geração de trabalho, emprego e renda.

o
O art. 2 da Lei 12.513, de 2011 mostra que o público-alvo do

programa seria formado por:

i) estudantes do ensino médio da rede pública, inclusive da educação

de jovens e adultos (EJA);

ii) trabalhadores;

iii) beneficiários dos programas federais de transferência de renda;

iv) estudantes com ensino médio completo em escola da rede pública

ou em instituições privadas, na condição de bolsista integral, nos termos

do regulamento.

De forma geral, o público-alvo do programa era composto de alunos

do ensino médio público, beneficiários de programas de transferência de

renda e pessoas que recebiam o seguro-desemprego.

Além disso, o Pronatec era desenvolvido seguindo cinco grandes eixos

que ampliavam a oferta gratuita de cursos técnicos de nível médio e de

cursos de formação inicial e continuada (FIC), que podem ser apontados

da seguinte forma:

i) Bolsa formação: oferta de cursos gratuitos para estudantes do


ensino médio (cursos técnicos — bolsa formação estudante) e para

trabalhadores (cursos FIC — bolsa formação trabalhador).

ii) Expansão da Rede Federal de Educação


Profissional e Tecnológica (EPT): promoção da expansão da
Rede Federal (Institutos Federais, na maioria), com o objetivo de

ampliar a oferta de educação técnica.


iii) Brasil Profissionalizado: ampliação da oferta e

fortalecimento da educação profissional e tecnológica integrada ao

ensino médio nas redes estaduais.

iv) Acordo de Gratuidade com o Sistema S 472


:

utilização de parte dos recursos do acordo de gratuidade com o Sistema

S. O Pronatec buscava a ampliação progressiva da aplicação dos

recursos dos Serviços Nacionais de Aprendizagem, recebidos da

contribuição compulsória, em cursos técnicos e de formação inicial e

continuada ou de qualificação profissional, em vagas gratuitas

destinadas a pessoas de baixa renda, com prioridade para estudantes e

trabalhadores.

v) Rede e-Tec Brasil : oferta de cursos técnicos e Formação

Inicial e Continuada (FIC) na modalidade a distância.

A bolsa formação é uma das iniciativas dentro do Pronatec que

possibilitava o acesso a cursos presenciais, realizados pela Rede Federal

de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, por escolas

estaduais de Ensino Profissional e Técnico (EPT) e unidades de serviços

nacionais de aprendizagem integrantes do Sistema S. Apresentava duas

modalidades: estudante e trabalhador. Na modalidade estudante, os

cursos técnicos possuíam carga horária igual ou superior a 800 horas e

eram destinados a alunos regularmente matriculados no ensino médio

público, para a formação profissional técnica de nível médio, na

modalidade concomitante. Já a modalidade trabalhador oferecia cursos

de formação inicial e continuada, também denominados de qualificação

profissional, a pessoas em situação de vulnerabilidade social e

trabalhadores de diferentes perfis. Em ambos os casos, os beneficiários

têm direito a cursos gratuitos, alimentação, transporte e material

didático-instrucional necessário.

1.1 OFERTA DE CURSOS


Entre outubro de 2011 e maio de 2014 foram ofertados 158 cursos e 638
473
cursos FIC, distribuídos em 12 eixos tecnológicos : ambiente e saúde,

controle e processos industriais, desenvolvimento educacional e social,

gestão e negócios, informação e comunicação, infraestrutura, produção


alimentícia, produção cultural e design, produção industrial, recursos

naturais, segurança e turismo, hospitalidade e lazer. Nesse período

ocorreu uma predominância de cursos dos eixos de gestão e negócios e

de controle e processos industriais, tanto nos cursos FIC quanto nos

técnicos.

O programa teve grande expansão entre 2011 e 2014, período em que

foi executada a maior parte das dotações orçamentárias a ele destinadas.

A partir de 2015, os gastos com o programa caíram de forma

progressiva, sendo em 2020 um gasto residual. Apesar de formalmente

continuar existindo, o Pronatec segue a característica da maior parte dos

programas malsucedidos do Brasil: morte por inanição orçamentária,

mau desempenho e ausência de mudanças que o tornem efetivo a partir

de avaliação dos resultados obtidos nos anos iniciais de implementação.

O Gráfico 1 mostra a grande evolução do número total de alunos que

passaram pelo Pronatec. Em dezembro de 2014, já tinham passado pelo

programa mais de 8 milhões de alunos.

Gráfico 1: Evolução do total de matrículas nos cursos do Pronatec

Fonte: Setec/MEC.

Os ofertantes dos cursos são as escolas públicas federais, estaduais e

municipais, as unidades de ensino de Senai, Senac, Senar e Senat,

instituições privadas de ensino superior e de educação profissional

técnica de nível médio. A Tabela 1 mostra a distribuição das matrículas

do Pronatec Cursos Técnicos e por cursos FIC. Até 2014, a maior parte

das matrículas foi nos cursos FIC, que representavam praticamente 70%

do total.
Tabela 1: Evolução das matrículas no Pronatec entre 2011 e 2014

Cursos Técnicos 2011 2012 2013 2014 Total


(TEC)

Bolsa formação - 101.225 287.293 584.473 986.436

Brasil 82.823 79.770 84.953 58.640 298.704


Profissionalizado

E-Tec 27.159 56.498 103.332 22.152 209.141

Acordo Sistema S 85.357 102.807 157.117 127.655 472.936

Rede Federal de 118.515 120.504 127.887 90.039 457.111


EPCT

Cursos FIC 2011 2012 2013 2014 Total

Bolsa formação 22.821 530.703 1.238.512 996.116 2.786.241

Acordo Sistema S 583.624 733.721 905.852 602.969 2.826.166

Total 920.299 1.725.228 2.904.946 2.482.106 8.036.735

Fonte: Setec/MEC.

A Tabela 2 mostra os gastos do Pronatec com as diferentes iniciativas.

Grande parte desses recursos viera do acordo de gratuidade com o


474
Sistema S , atingindo R$ 18,7 bilhões e mais R$ 20 bilhões de reais de

outras fontes orçamentárias. O custo fiscal do programa entre 2011 e

2016 atingiu R$ 38,5 bilhões: um custo médio mensal anual de R$ 6,4

bilhões.

Tabela 2: Investimentos e indicadores Pronatec entre 2011 e 2016

Iniciativa Matrículas Recursos (R$


bilhões)

Acordo de Gratuidade 3.252.767 18,7

Brasil Profissionalizado 537.032 1,3

Bolsa formação (TEC e FIC) 4.657.583 11,3


Iniciativa Matrículas Recursos (R$
bilhões)

E-Tec 423.106 0,7

Expansão da Rede Federal (TEC e 857.373 6,5


FIC)

Total 9.727.861 38,5

Fonte: Simec (* data da apuração do indicador: 31/12/2016). O indicador


utilizado foi “matrículas efetivadas”, por não haver no sistema o indicador
de vagas para todas as iniciativas do programa. Considera-se que cada
matrícula efetivada em um momento anterior foi uma vaga oferecida.

2. IMPACTOS DE CURSOS DE QUALIFICAÇÃO


PROFISSIONAL NO BRASIL
A análise de políticas de qualificação profissional enfrenta a dificuldade

de isolar o efeito do programa do efeito de outras variáveis que podem

afetar a empregabilidade. Ou seja, é necessário isolar caraterísticas

individuais (como habilidades inatas e esforço) e evitar a existência de

algum viés de seleção na análise. Por exemplo, um trabalhador que opta

por se matricular num curso é diferente de um trabalhador que não se

matriculou no curso. Ou aquele que decide ingressar no curso pode ser

mais ativo na busca de alternativas que ajudem no emprego e/ou ter mais

facilidade para a qualificação oferecida. Em ambos os casos a

empregabilidade desse trabalhador seria superior à de um que não se

matriculou, mesmo na ausência de treinamento. O trabalhador que se

matriculou mostra pelo menos estar em busca de alternativas em relação

aos que não se matriculam. Dessa forma, comparar os dois grupos não é

adequado.

O Brasil desenvolveu nas últimas décadas diversas políticas públicas

de ensino técnico e profissional, entre as quais o Plano Nacional de

Qualificação do Trabalhador (Planfor, 1996-2003), o Programa de

Expansão da Educação Profissional (Proep, 1997-2003), o Programa

Nacional de Qualificação Profissional (PNQ, 2003-2012), além do

Pronatec. Na seção seguinte, vamos mostrar alguns resultados do


impacto dos programas de qualificação profissional, em particular do

Pronatec.

No Brasil, a avaliação de programas ainda é pouco explorada, na

medida em que existe dificuldade de se obter dados e falta tradição de

avaliação de programas por parte dos governos. A criação de um hábito

de avaliação facilitaria a organização de bancos de dados necessários

para a avaliação de programas. Com isso, o melhor uso dos reos

públicos.

2.1 PLANFOR, PNQ E EDUCAÇÃO


PROFISSIONAL
De forma geral, os resultados das avaliações são mistos. Existem

evidências mais favoráveis com relação aos cursos de ensino técnico e

menos favoráveis aos de qualificação profissional.

O Plano Nacional de Formação Profissional (Planfor) tinha meta

inicial de treinar cerca de 20% da população economicamente ativa

(PEA) anualmente. Os recursos eram repassados às secretarias estaduais

e municipais de trabalho e estas, por sua vez, contratavam entidades

para ministrar os cursos (em geral, associações de trabalhadores ou de

empregadores). O programa não atingiu a ambiciosa meta de treinar

20% da PEA: no ano de 2000, atingiu “somente” 5,2%.

Fernandes, Menezes-Filho e Zylberstajn (2000) fizeram uma avaliação

do programa cujo objetivo era verificar o impacto sobre a renda

potencial para os participantes, utilizando técnicas de propensity


score. A conclusão foi que o programa de treinamento não tinha sido

efetivo para seus participantes. Já Severnini e Orellano (2010), usando

os microdados da Pesquisa do IBGE de Padrões de Vida (PPV) de 1996,

encontraram impacto positivo de 37% nos rendimentos para alunos de

curso profissionalizante de nível básico (qualificação profissional). No

entanto, para alunos de cursos tecnólogos de nível superior, houve

impacto negativo de 27%.

Paes de Barros et al. (2011) utilizaram o suplemento especial da

Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2007 sobre a

educação profissional e aspectos complementares da educação de jovens


475
e adultos (EJA) para avaliar o programa bolsa qualificação no Espírito

Santo. Os autores mostraram que a qualificação profissional possui

impacto positivo na remuneração dos trabalhadores e o impacto é mais

elevado para os trabalhadores de baixa escolaridade. Concluem, além

disso, que a qualificação profissional não possui impacto sobre o

desemprego e sua duração.

Neri (2012) analisou os determinantes da demanda por educação

profissional e estimou ser 48,2% maior a chance de ocupação para uma

pessoa da população em idade ativa com formação profissional

concluída do que a de outra pessoa sem esse curso, mas com

características observáveis iguais. Vasconcelos et al. (2010) avaliaram o

ensino médio profissional e encontraram rendimentos 37% mais altos

para quem cursou ensino médio técnico em comparação com o

tradicional. Aguas (2012) avaliou a educação profissional e encontrou

impacto positivo e significativo sobre emprego e salário tanto para

egressos de cursos técnicos quanto de qualificação profissional,

enquanto para Musse e Machado (2013) há impacto positivo e

significativo sobre salário para egressos dos cursos de qualificação

profissional.

Oliva, Ponczek, Souza e Tavares (2014), utilizando os micro dados da

Pesquisa Mensal de Emprego (PME), avaliaram o impacto do ensino de

jovens e adultos (EJA) e da educação técnica e profissional (ETP). Os

autores viram impacto positivo e significativo associado à maior

participação no mercado de trabalho e nível de ocupação dos egressos

dos cursos de ETP na comparação com os egressos de EJA. Houve

maior impacto nos salários dos egressos dos cursos do EJA do que os do

ETP no emprego público.

Reis (2015), que também utilizou os micro dados da PME, percebeu

impacto positivo da educação profissional sobre os rendimentos do

trabalho (horário e mensal), bem como sobre a probabilidade de

conseguir um emprego. No entanto, a evidência não indicou que esse

tipo de treinamento melhorou o acesso aos postos de trabalho no setor

formal. Ainda de acordo com os resultados do autor, a formação

profissional no Brasil parece ser mais eficaz para os trabalhadores com

maior nível de educação formal e mais experiência no mercado de


trabalho do que para os indivíduos em grupos economicamente

desfavorecidos.

De modo geral, a literatura indica que a formação técnica tem

impactos positivos na empregabilidade e na renda, porém a intensidade

desses impactos depende crucialmente do desenho de cada programa.

Como se verá a seguir, o Pronatec não tem resultados substanciais a

apresentar, principalmente quando esses são comparados ao seu alto

custo fiscal, mostra a Tabela 2.

2.2 AVALIAÇÕES DO PRONATEC

2.2.1 IMPACTO NA EMPREGABILIDADE


Ao longo dos últimos anos, diversos trabalhos foram realizados,

avaliando os resultados do Pronatec. Nesta seção, busca-se mostrar os

estudos conhecidos pelo autor acerca do assunto.

Os trabalhos abaixo mencionados comparam trabalhadores que se

matricularam nos cursos, mas não puderam cursá-los por razões alheias

à sua vontade, ou seja, turmas lotadas, cursos cancelados e outros fatores

fora do controle do aluno. Dessa forma, o grupo de controle (quem não

fez o curso) é mais parecido com o grupo de tratamento (quem fez o

curso). Controlando por outros fatores e comparando o efeito

unicamente do Pronatec fornece uma visão melhor dessa política.

Barbosa Filho, Porto e Liberato (2015) avaliam especificamente como

se deu a reinserção profissional de trabalhadores desligados do mercado

de trabalho formal em 2011 e readmitidos entre 2012 e 2013, que

tenham feito algum curso do Pronatec bolsa formação na modalidade

FIC. O artigo avalia em que medida a qualificação profissional

contribuiu para reinserir desempregados no mercado e enquanto elevou

a remuneração do trabalho.

Com base nos dados do Relatório Anual de Informações Sociais

(RAIS) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e do Sistema

Nacional de Informações da Educação Profissional e Tecnológica

(Sistec) do MEC, os autores constatam que o percentual de reinserção

no mercado de trabalho formal foi menor entre os trabalhadores que


fizeram cursos no bolsa formação — FIC do que entre aqueles que se

matricularam, mas não fizeram o curso, uma indicação da baixa eficácia

do Pronatec. O grupo de controle foi composto de pessoas que fizeram a

pré-matrícula no bolsa formação modalidade FIC, mas não obtiveram a


476
confirmação .

No período analisado, os autores verificam que os cursos de formação

inicial e FIC não ampliaram a empregabilidade. Os resultados

mostraram que trabalhadores que concluíram o programa não

apresentaram maiores percentuais de reinserção e de ganho salarial no

mercado de trabalho formal em relação ao grupo de controle. O mesmo

pôde ser verificado com relação aos ganhos salariais.

Sousa et al. (2015) avaliam o impacto sobre os inscritos no Cadastro

Único para Programas Sociais (CadÚnico) que participaram na iniciativa

bolsa formação FIC e encontraram resultados mistos, na dependência

dos grupos de comparação utilizados. O grau de formalização (vínculo

empregatício formal ou microempreendedor individual) dos

participantes do programa aumenta com relação a três dos grupos de

controle analisados. No entanto, no caso do grupo formado por

indivíduos pareados no início do período, que melhor corresponde ao


477
adequado, os resultados não demonstraram impacto positivo do

programa. Mais uma evidência de baixa eficácia do programa, em linha

com Barbosa Filho et al. (2015).

O Pronatec teve um braço chamado de Pronatec-MDIC. A principal

diferença entre os dois programas reside no fato de o segundo coletar

informação junto a grandes empresas de diversos setores e regiões a

respeito da demanda futura de trabalho. Desta forma, ele difere do

Pronatec geral por ter um mecanismo de captura da demanda de

mercado por trabalhador qualificado. Após o contato direto com as

empresas, faz-se um mapa de demanda pelo qual entende-se as reais

necessidades de qualificação dos trabalhadores por região e ofertam-se

os cursos necessários.

O MDIC entrava em contato direto com empresas, primeiramente de


478
forma precária . Essas demandas eram cadastradas vinculadas ao

Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) da empresa demandante.


Embora as empresas especificassem curso e quantidade demandada, o

contato não vinculava nenhuma obrigação daquele CNPJ com a

contratação de alunos egressos dos cursos. No entanto, criava um

vínculo, ainda que informal, entre as empresas e o programa, permitindo

seguidos aperfeiçoamentos na identificação das demandas reais do

mercado. Somente após a coleta da demanda, o MDIC encaminhava seu

mapa de demanda para a pactuação/contratação dos cursos.

Posteriormente, o MDIC desenvolveu uma plataforma que permitia

capturar a demanda e pactuar as vagas de forma mais rápida, fazendo

com que a demanda do mercado fosse atendida de forma mais célere e

desta forma, ampliando a possibilidade de emprego dos egressos. Esta

plataforma foi chamada de Supertec e continua em operação.

O’Connell, Mation Basto e Dutz (2017) avaliaram o Pronatec-MDIC.

O estudo observou o treinamento vocacional guiado pela demanda

capturada no Pronatec-MDIC e concluiu que ele afetou de forma

positiva as mais de 300 mil pessoas que passaram por ele entre 2014 e

2015.

Os autores utilizaram a base de dados da RAIS, bastante rica em

dados de emprego, cruzada com dados administrativos do programa.

Dessa forma, puderam avaliar os resultados do programa sobre a

empregabilidade. Como em trabalhos citados anteriormente, o grupo de

controle foi composto de pessoas que se matricularam nos cursos, mas

por razões alheias à sua vontade não puderam cursá-los.

Os resultados indicam que o Pronatec de forma geral não teve qualquer

impacto sobre a empregabilidade, corroborando Barbosa Filho et al.

(2015) e Souza et al. (2015). Entretanto, o Pronatec com captura da

demanda (Pronatec-MDIC) impactou de modo positivo a

empregabilidade. Segundo os autores, o Pronatec-MDIC ampliou a

empregabilidade média em 8,6% para o público geral. Em relação ao

público beneficiário do seguro-desemprego, o aumento de

empregabilidade atingiu 14,6%. Os resultados mostram ainda que o

sucesso do programa não é fruto da contratação ocorrer somente nas

empresas em que a informação foi coletada, pois apenas 10% dos

trabalhadores empregados entram nas empresas que informaram a sua

demanda ao programa. Assim, a informação fornecida pelas empresas


participantes sinaliza a necessidade do mercado e não é específica a

essas empresas.

O estudo sugere que o maior impacto em empregabilidade do público

Pronatec-MDIC decorre da combinação de foco em ocupações mais

demandadas com o acompanhamento da dinâmica regional. Ou seja,

procura-se entender as ocupações mais demandadas em cada região. O

Pronatec-MDIC apresentou melhor convergência entre programa e

demanda local, indicando um caminho para o aperfeiçoamento do

Pronatec. A participação do setor privado na definição da demanda

parece resultar em ajuste melhor entre oferta e demanda futura pelo tipo

de treinamento recebido.

Em estudo recente, O’Connell e Mation (2020) estendem a análise

anterior e confirmam os resultados daquela pesquisa, mostrando que o

Pronatec-MDIC amplia a empregabilidade em relação ao Pronatec

tradicional, sem o mecanismo de captura da demanda. Os autores

reforçam que a informação obtida de firmas específicas funciona como

uma boa informação do mercado em que atuam, indicando uma

tendência do setor. Por último, os autores mostram que o Pronatec

tradicional possui efeito positivo (embora pequeno) na empregabilidade,

diferentemente do que encontraram no estudo anterior.

Quintana e Cravo (2020) analisam o impacto do Pronatec-MDIC sobre

a duração do emprego nas firmas que demandaram qualificação e sobre

os trabalhadores que completaram seus cursos. Eles não conseguiram

separar grupos de controle e de tratamento baseados em razões

exógenas, pois a escolha de participar do programa estaria

correlacionada com as características individuais de firmas e

trabalhadores. Para minimizar o viés de seleção, os autores adotaram um

Propensity Score Matching (PSM) e estimações de diferença-em-

diferença para comparar firmas e trabalhadores que participaram com

aqueles com características similares, mas que não participaram do

programa.

Foram usados dados administrativos do Pronatec-MDIC e dados da

RAIS entre 2011 e 2017. A junção dos dados permitiu acompanhar

firmas e trabalhadores antes e depois da participação no programa de

qualificação profissional.
Os autores concluem que a duração do vínculo de emprego aumenta

8,89 meses para trabalhadores matriculados nos cursos demandados

pelos empregadores. No entanto, para os trabalhadores que completam o

curso, a duração diminui em 3,36 meses. Não se pode afirmar que a

menor duração do vínculo é fruto de melhores ofertas de trabalho aos

trabalhadores que passaram pela qualificação, o que seria uma

possibilidade. Por último, pode-se afirmar que os trabalhadores que

completam o curso ficam 1,03 mês menos tempo desempregados.

Firmas observam um maior desligamento no ano inicial do programa e

maior duração do vínculo a partir do terceiro ano.

2.2.2 ANÁLISES DO TCU E DO SENADO


O Tribunal de Contas da União realizou auditoria operacional que teve

foco principal na avaliação da bolsa formação. O TCU escolheu essa

parte do Pronatec, pois ela representou um gasto de R$ 8 bilhões, no

período de 2011 a 2014. Isso representou 78% das despesas totais do

programa até aquele momento. Conforme vimos anteriormente, na

Tabela 1, as modalidades de bolsa formação responderam por quase

metade das matrículas do Pronatec no período 2011-2014.

A análise do tribunal avaliou a efetividade dos cursos FIC da bolsa

formação na empregabilidade e renda dos egressos (restritos ao setor

formal). Esse estudo, sem um grupo de controle, encontrou efeito

positivo sobre a empregabilidade, mas não sobre a renda. Em seu

relatório, a efetividade estaria relacionada com o perfil dos alunos

egressos e aos eixos tecnológicos dos cursos realizados. Menciona, por

exemplo, que o público do antigo Ministério do Desenvolvimento Social


479
(MDS) e da região Nordeste apresenta maior empregabilidade .

O tribunal também constatou que o programa não conseguiu atender

de forma satisfatória o público de reincidentes do seguro desemprego,

um de seus públicos-alvo. O baixo atendimento desse grupo (abaixo de

1%, segundo as conclusões do estudo) seria resultado da falta de oferta

adequada de cursos. Ressalta ainda a elevada empregabilidade do

Pronatec-MDIC, em que a captura da demanda seria tão eficiente que os

índices de empregabilidade dos egressos chegariam a 95% ao final dos

cursos.
Infelizmente, os resultados de empregabilidade do estudo do TCU

estavam errados devido à ausência de um grupo de controle adequado.

Como vimos anteriormente, os estudos que avaliaram de forma

adequada a política mostraram que somente o Pronatec-MDIC teve

efetividade, mas na faixa entre 8% e 15% e não na dos 95% da análise

do TCU.

Particularmente, a empregabilidade do Pronatec como um todo falhou

segundo os três estudos anteriormente mencionados: Barbosa Filho et

al. (2015), Sousa et al. (2015) e O’Connell et al. (2017) mostram que

somente o Pronatec-MDIC mostrou ganhos de empregabilidade dos

egressos, e mesmo nesse caso, numa faixa de 8% a 15%, bem abaixo da

reportada pelo TCU. Para O’Connell e Mation (2020), o Pronatec-MDIC

amplia a empregabilidade em relação ao Pronatec tradicional. Os autores

percebem ainda que o Pronatec tradicional possui efeito positivo,

embora pequeno na empregabilidade.

O Senado Federal (2017), por sua vez, apontou que os recursos

empenhados no âmbito do Pronatec (2011-2017) tiveram pouco ou

nenhum impacto, em especial devido à alta evasão e ao distanciamento

entre a formação escolar e as exigências do mercado de trabalho. A

exceção foi o modelo adotado pelo então Pronatec-MDIC, o Supertec,

baseado em mapeamento de demanda e alinhamento de currículos às

empresas.

3. DISCUSSÃO
Tendo em vista a baixa produtividade da economia brasileira e a

necessidade de acumular capital humano, devemos necessariamente


480
considerar o contexto da chamada Quarta Revolução Industrial . Esse

novo paradigma foi potencializado na última década pela interface de

diversas novas tecnologias — inteligência artificial, internet das coisas,

manufatura aditiva, biologia sintética, robótica autônoma, entre outras

— que estão viabilizando a fusão dos mundos físico, digital e biológico.

A recente pandemia da Covid-19 reforçou a necessidade de se

capacitar e requalificar a mão de obra nacional para os desafios que

deverão surgir nos próximos anos. A adoção do trabalho remoto e o uso


de novas tecnologias estão disponíveis somente a uma fração dos

trabalhadores brasileiros. Habilitar a força de trabalho para esse novo

cenário é um desafio que deve ser enfrentado por políticas públicas, em

especial as de qualificação/requalificação profissional.

A consultoria McKinsey, com dados de 46 países, estima que, até

2030, 800 milhões de trabalhadores poderão perder o emprego para

robôs e máquinas (15,7 milhões só no Brasil). Além disso, até 375

milhões de trabalhadores (14% da força de trabalho global) precisarão

mudar de ocupação. Para 60% dos empregos, ao menos um terço das


481
atividades rotineiras poderão ser automatizadas . Tal contexto se soma

às novas relações trabalhistas que surgem com modelos de negócios

disruptivos. Atualmente, de 20% a 30% da força de trabalho dos Estados

Unidos e Europa já é composta de trabalhadores autônomos e

empreendedores. Desses, 15% utilizam plataformas digitais como


482
Upwork, Uber e Airbnb .

483
Um estudo da União Europeia para o horizonte de 2030 sinaliza que

a natureza do trabalho mudará. Trata-se de uma mudança estrutural no

sentido de ocupações com maior autonomia, crescente conteúdo de

tecnologias da informação e comunicação, menos atividades físicas e

rotineiras e cada vez mais necessidade de competências socioemocionais

— softskills — como trabalho em equipe, resiliência, liderança e

criatividade. E não se trata de uma tendência para o futuro somente:

hoje, 40% dos empregadores na União Europeia já encontram problemas

para preencher vagas. Ademais, muitas vezes trabalhadores são

contratados por uma determinada competência técnica ou diploma, mas

são demitidos justamente pela falta de competências socioemocionais.

Desse modo, entende-se que, para haver avanço significativo em

termos de produtividade e competitividade nacional, é necessário

investir em larga escala em qualificação e requalificação, tendo em vista

os conhecimentos, habilidades e atitudes necessárias aos trabalhadores e

firmas do futuro, sob o risco de não podermos nos beneficiar desse novo

paradigma. Por isso, a adoção de políticas de capacitação profissional

eficientes e focadas nas demandas do mercado são cada vez mais

importantes.
A seção anterior mostrou que, apesar das limitações normais dos

estudos de impacto de políticas de capacitação, houve aumento de

empregabilidade do Pronatec-MDIC entre 8,6% e 14,6%, indicando um

caminho a ser seguido. Ao mesmo tempo, a falta de qualquer resultado

positivo na avaliação das demais partes do Pronatec mostra os erros que

podem ser evitados.

Segundo o próprio TCU, o Pronatec-MDIC se destacou pela elevada

inserção de seu público no mercado de trabalho, entretanto, a parte do

Pronatec sob comando do MDIC era relativamente pequeno,

respondendo por algo em torno de 1% no período de 2011 a 2014.

Dessa forma, uma análise custo-benefício mostra que o Pronatec foi

uma política cara e inadequada para melhorar a qualificação profissional

de nossa mão de obra. Uma política que custou R$ 38,5 bilhões entre

2011 e 2014 alocou, segundo o TCU, somente cerca de R$ 385 milhões

para a única parte do programa que tinha eficácia. Os demais 99% foram

alocados em iniciativas que não tiveram impacto positivo, não

necessitando sequer de uma análise custo-benefício para mostrar como

foi ineficiente. Deduzimos disso a importância de se utilizar avaliações

na alocação dos escassos recursos públicos.

Os bons resultados do Pronatec-MDIC indicam a importância da

realização da captura de demanda por meio de contato direto com o

setor produtivo.

No entanto, como mostram os dados, apesar de o Pronatec-MDIC ter

grande impacto sobre seus beneficiários, o efeito agregado foi baixo.

Isso decorre da pouca quantidade de vagas disponibilizada ao programa.

Além da adequada captura da demanda, outros pontos são

importantes. Deve ser destacada a necessidade de adequação dos

currículos oferecidos para atender as reais exigências do mercado. O

perfil dos alunos em relação aos cursos é outro ponto importante no

sucesso do treinamento. Devem-se indicar alunos para cursos de sua

área de interesse e com requisitos mínimos que permitam a eles absorver

o conteúdo. Caso contrário, o desinteresse provoca o abandono do curso

ou da área de atuação no futuro.


Em suma, para o sucesso dos egressos dos cursos de qualificação

profissional, vários fatores devem estar alinhados. O curso certo, na


484
localização correta, indicado para a pessoa correta e com

desenvolvimento de habilidades socioemocionais.

As avaliações anteriormente realizadas mostram o caminho mínimo

que deve ser percorrido para que programas de qualificação e

requalificação profissional possam ser bem-sucedidos. Vale citar aqui a

conclusão do já citado estudo do Senado:

Necessidade de reorganização e remodelagem do Programa, com

o estabelecimento de indicadores de acompanhamento

consistentes, relacionados, por exemplo, à identificação do perfil

individual adequado para determinado curso (correto

nivelamento inicial), ao oferecimento do curso adequado (curso

alinhado com o mercado), situado no local certo (curso onde há

empresas que irão absorver a mão de obra ou onde existam

arranjos produtivos locais), levando ainda em conta o

desenvolvimento de habilidades ligadas ao comportamento do

trabalhador (aspectos não só técnicos, mas habilidades


485
socioemocionais também) e ao empreendedorismo.

Com isso, nos parece que o diagnóstico para a montagem de um

programa de qualificação profissional focado está realizado e que os

passos que devem ser adotados estão claros no âmbito técnico.

4. CONCLUSÕES
A importância de se ampliar o capital humano no Brasil é um fator

indiscutível para ampliar a produtividade, o emprego e, com isso, o bem-

estar no país. Neste aspecto, a qualificação profissional não pode ser

negligenciada. E, como pudemos perceber ao longo deste capítulo, não

faltaram políticas públicas implementadas no país que buscassem atingir

o objetivo de melhor preparar nossa mão de obra para o futuro.

Apesar do grande potencial que a qualificação profissional possui em

termos de empregabilidade e produtividade, os estudos anteriormente


reportados demonstram que os cerca de R$ 40 bilhões utilizados no

âmbito do Pronatec tiveram pouco ou nenhum impacto positivo para o

país. Houve elevada evasão e falta de adequação entre a formação dada

nos cursos oferecidos e as exigências do mercado de trabalho.

A exceção apontada nos estudos ocorreu com relação ao Pronatec-


486
MDIC , um modelo baseado no mapeamento de demanda e

alinhamento de currículos junto às empresas. Esse braço do Pronatec

mostrou elevação da empregabilidade de 8,6%. Uma amostra específica

de beneficiários de seguro-desemprego mostra que a iniciativa gerou um

aumento de 14,6%.

Entretanto, a iniciativa Pronatec-MDIC, segundo relatório do Tribunal

de Contas da União (TCU), recebeu somente cerca de 1% do total de

recursos gastos no Pronatec. Ou seja, a única parte do programa capaz

de entregar resultados positivos em termos de empregabilidade teve seu

montante de recursos bastante limitado. As demais iniciativas com

nenhum efeito comprovado receberam o restante dos recursos. Assim,

podemos concluir que, dos quase R$ 40 bilhões utilizados no programa,

somente parcos R$ 400 milhões foram alocados em qualificação

profissional que fizeram a diferença. O restante foi somente mau

dispêndio dos escassos recursos públicos.

Dada a importância para o país de uma política que faça a inserção e a

reinserção no mercado de trabalho em um mundo cada vez mais

dinâmico, é importante que aprendamos com os erros passados e

adotemos as medidas que fizeram parte dos programas com avaliações

positivas.

Para não repetir esses erros, é preciso que futuros programas voltados

à qualificação profissional no país tenham pelo menos as seguintes

características: (a) captura de demanda de forma fácil e sistemática, para

alocar meios em cursos nos quais exista real interesse dos empregadores

nos locais corretos; (b) a seleção da pessoa que irá ser qualificada deve

considerar a aptidão para a área, caso contrário não terá sucesso no

curso, muito menos na empregabilidade; (c) dar atenção ao treinamento

na área socioemocional. Essas características replicam um modelo que

conseguiu ter impacto positivo.


Obviamente, em um mundo tão dinâmico, as condições para um

programa bem-sucedido devem variar ao longo do tempo. Políticas bem

ajustadas demandam avaliações e ajustes constantes. Por isso, antes de

ter as características anteriormente implementadas, a principal medida a

ser adotada nas políticas públicas em geral, e especificamente nos

programas de qualificação profissional, é a cultura da avaliação. Para

tanto, necessitamos ter transparência dos dados e uma forma de

implementação das políticas públicas que permita sua constante

avaliação.

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469. O Planfor funcionou entre 1995 e 2003 e foi substituído em 2003 pelo Plano Nacional de

Qualificação (PNQ).

470. Naquele período, a economia brasileira apresentava ritmo acelerado de expansão, tendo

registrado as seguintes taxas de crescimento: 4,0% em 2006, 6,0% em 2007, 5,0% em 2008,

7,6% em 2010 e 3,9% em 2011. No ano de 2009 o Brasil cresceu -0,1% devido ao impacto da

crise econômica internacional no Brasil.

471. De acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), nas autorizações temporárias

em 2012, o visto destinado ao profissional com vínculo empregatício no Brasil teve um

crescimento de 26%, em relação a 2011. Entre 2009 e 2012 essa categoria teve um crescimento

de 137%, passando de 2.460 profissionais autorizados, em 2009, para 5.832, em 2012. As

principais áreas foram engenharia, tecnologia, análise de sistemas, petróleo e gás, construção

civil e obras de infraestrutura. Ainda no total de autorizações temporárias, houve um

crescimento de 23% nos profissionais estrangeiros ligados à assistência técnica, com 19,9 mil
profissionais em 2012. Entre os autorizados a trabalhar temporariamente, o grupo de mestres e

doutores teve um aumento de 560% entre 2009 e 2012. Esse foi um dos grupos que mais cresceu

em números relativos no Brasil.

472. Firmado em 2009, o acordo prevê que as entidades cumpram um Programa de

Comprometimento de Gratuidade (PCG), com previsão de chegar à aplicação de dois terços de

suas receitas líquidas na oferta de vagas gratuitas nos cursos de formação para estudantes de

baixa renda e trabalhadores — empregados ou desempregados. O acordo prevê também o

aumento da carga horária dos cursos, que passaram a ter, no mínimo, 160 horas.

473. A distribuição dos cursos em eixos tecnológicos permite haver um núcleo politécnico

comum, fundamentado nas mesmas ciências, o que torna o processo educativo sintonizado.

474. Os recursos da gratuidade não representaram desembolso adicional, mas sim a utilização de

percentual das receitas do Sistema S, que não constam do orçamento da União, embora sejam

arrecadados por meio de contribuições compulsórias. Parte desses recursos, em decorrência dos

acordos de gratuidade, deveria ser destinada ao Pronatec.

475. O suplemento foi produzido a partir do convênio entre o MEC e o IBGE e contém

informações sobre o perfil dos indivíduos que estavam frequentando ou já haviam frequentado

cursos de qualificação profissional e de nível técnico, além das especificidades desses tipos de

educação.

476. Resultados similares aos obtidos pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à

Fome.

477. V. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2015), Tabela 4, p. 19.

478. Entravam em contato telefônico e colocavam as demandas em uma planilha.

479. Análise realizada sem grupo de controle.

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survey.

484. Área de interesse e qualificação mínima para acompanhar os cursos são requisitos mínimos.

485. Senado Federal (2017). Disponível em: http://legis.senado.leg.br/sdleg-

getter/documento/download/daf245c9-fd5f-47fa-87de-a4db0956167d

486. Com a plataforma Supertec para a captura da demanda.


CAPÍTULO 22
FECHAMENTO AO COMÉRCIO E
ESTAGNAÇÃO: POR QUE O BRASIL
INSISTE?
Edmar Bacha

INTRODUÇÃO487
Este capítulo argui que a recusa em abrir a economia para o comércio

exterior é uma das causas centrais que impedem o Brasil de crescer de

forma acelerada e reduzir a distância da renda per capita do país em

relação à dos países ricos. A próxima seção inicia-se com uma

comparação da experiência de crescimento do Brasil com a da Coreia do

Sul após a Segunda Guerra. Trata-se de motivação para análise

estatística subsequente do colapso do crescimento brasileiro a partir de

1980. Sustenta-se que esse colapso esteve associado ao aprofundamento

da substituição de importações dissociado da expansão das exportações.

A segunda seção considera as evidências que sustentam a importância

da abertura ao comércio exterior para o crescimento econômico.

Pergunta-se então por que, face a essas evidências, o Brasil persiste em

manter-se fechado. Consideram-se, na terceira seção, cinco justificativas

para essa postura. O capítulo conclui com esboço de um programa de

integração à economia mundial.

1. FECHAMENTO AO COMÉRCIO E BAIXO


CRESCIMENTO
Motiva-se a avaliação da importância da abertura ao comércio exterior

para o crescimento com uma comparação do Brasil com a Coreia do Sul

desde 1950. Conforme se vê no Gráfico 1, até 1974 a Coreia do Sul

tinha uma renda per capita menor do que a do Brasil. A partir do

início da década de 1960 esse país inicia um processo de catch-up e


em seguida de ultrapassagem. Atualmente, o Brasil tem uma renda per

capita de apenas 1/3 daquela da Coreia do Sul.


Gráfico 1: Relação entre renda per capita do Brasil e da Coreia do Sul (%),
1950-2020

Fonte: Elaboração própria com dados do projeto Maddison (1950 a 2016) e


do FMI (2017 a 2020). As séries estão corrigidas pela paridade do poder de
compra.

Há várias hipóteses sobre por que a Coreia do Sul deu certo e o Brasil

não. A que interessa explorar neste capítulo está explicitada no Gráfico

2: a abertura ao comércio exterior, que a Coreia do Sul fez a partir do

início da década de 1960, quando iniciou sua decolagem, e o Brasil não

fez.

Na Coreia do Sul, em meados da década de 1960, o coeficiente de

abertura ao comércio exterior — relação entre a soma das exportações e

importações e o PIB — era em torno de 7%. Hoje em dia, esse valor está

em torno de 110%. Enquanto isso, o Brasil, que em meados da década

de 1960 tinha um coeficiente de abertura de cerca de 5%, atualmente o

tem apenas na casa dos 25%.


Gráfico 2: Grau de abertura ao comércio exterior Brasil e Coreia do Sul,
1950-2018

Fonte: Elaboração própria com dados de exportação, importação e PIB do


PWT 9.1 e World Development Indicators, a preços constantes de 2011.
Calculou-se o grau de abertura como exportações mais importações
divididas pelo PIB.

Para lastrear a conjectura a respeito da relação entre fechamento da

economia e colapso de crescimento, considera-se a experiência

brasileira no pós-Segunda Guerra. O Gráfico 3 mostra a evolução do

PIB brasileiro desde 1950. As barras indicam as taxas anuais de

crescimento do PIB e a linha pontilhada a média móvel decenal dessas

taxas. Constata-se o colapso do crescimento a partir de 1981.

Gráfico 3: Taxa de crescimento do PIB, Brasil 1950-2020

Fonte: Elaboração própria utilizando dados do Ipea.


Até 1980, o Brasil crescia a cerca de 7,5% a.a. Depois disso, houve

uma transição — a chamada década perdida — ao fim da qual se

estabeleceu um novo padrão de crescimento de apenas 2,5% a.a. até

meados da década de 2010. Recentemente, houve uma derrocada, com a

taxa de crescimento no último decênio perto de zero.

De forma simplificada, o crescimento do PIB depende do aumento do

estoque de bens de capital: máquinas, edificações e equipamentos

capazes de gerar mais produção. Para possibilitar a aquisição de novos

bens de capital, é preciso que uma parcela da renda deixe de ser gasta na

compra de bens de consumo e se direcione para a compra dos bens de

capital. As famílias, as empresas e o governo acumulam poupança, que é

em geral disponibilizada no sistema financeiro. E este fornece os

recursos para que as empresas comprem novos bens de capital. A

poupança externa é uma forma adicional de financiar a aquisição de

bens de capital.

A quantidade de bens de capital que será comprada com a poupança

depende de seus preços. Os preços dos novos bens de capital

determinam o poder de compra da poupança. Quanto mais caros forem

esses bens, menos deles a poupança conseguirá adquirir. E quanto PIB

adicional será gerado pelos bens de capital adquiridos depende da

produtividade desses bens. Uma máquina que produz 50 unidades de

produto por hora é mais produtiva que outra que produz 40 unidades.

Esse mecanismo de crescimento, discutido em Bacha e Bonelli (2016),

é ilustrado a seguir:

Considera-se a seguir o que se passou ao longo do crescimento

brasileiro no pós-guerra nessas três dimensões — poupança, preço dos

novos bens de capital e produtividade do capital. Em primeiro lugar, a

poupança, que se ilustra no Gráfico 4.

Gráfico 4: Evolução da poupança por períodos (% PIB)


Fonte: Elaboração própria com dados do Ipea. Cálculo da poupança externa
feito pela subtração da Poupança Interna da Formação Bruta de Capital.

Numa comparação das médias dos períodos anteriores e posteriores a

1980 constata-se uma pequena redução da taxa de poupança, de 19,4%

para 18,1% do PIB. Portanto, a sociedade brasileira passou a ter menos

recursos para adquirir os bens de capital necessários para impulsionar o

crescimento.

Mais importante, porém, foram dois outros fenômenos. Em primeiro

lugar, a poupança passou a comprar menos bens de capital devido ao

aumento dos preços desses bens. Esse aumento foi em torno de 30%

numa comparação da média do período anterior a 1980 com a média do

período posterior a 1980, conforme ilustra o Gráfico 5.

Gráfico 5: Evolução do preço dos bens de capital (p=1 em 2000), de 1947 a


2020
Fonte: Dados do Ipedata e do IBGE da Formação Bruta de Capital Fixo, em
preços correntes, e da Formação Bruta de Capital Fixo, a preços de 2010,
para o cálculo do deflator da FBKF. Tomou-se a série do deflator do PIB do
Ipeadata. Calculou-se o preço do investimento como a razão entre o deflator
da FBKF e o deflator do PIB, com p=1 em 2000. Ver Bacha e Bonelli (2016a)
para uma explicação do processo de correção de p entre 1986 e 1995.

Além disso, os bens de capital se tornaram menos produtivos para a

geração do PIB. Houve uma queda da produtividade do capital de cerca

25%, quando se comparam as médias dos períodos anteriores e

posteriores a 1980, conforme ilustra o Gráfico 6.

Gráfico 6: Evolução da produtividade do capital (PIB/estoque de capital


fixo)

Fonte: Elaboração própria baseada em Bacha e Bonelli (2016a). As séries


estão a preços de 2000. Usaram-se dados do Ipea para a formação bruta de
capital fixo.

Os bens de capital ficaram mais caros e menos produtivos ao longo do

processo de industrialização no pós-guerra. Por que isso ocorreu? Uma

explicação está na insistência em manter a economia fechada, tratando

de se produzir no Brasil insumos, máquinas e equipamentos que eram

antes importados por preços menores e com produtividade maior. O país

aprofundou a substituição de importações em vez de aumentar as

exportações para facilitar as importações e o investimento eficiente. Este

seria o caminho para a produção eficiente de bens e serviços de

qualidade, capazes de concorrer no mercado internacional. Foi o

caminho que a Coreia do Sul tomou. Aos insumos, máquinas e

equipamentos mais caros e menos produtivos se agregou um baixo

dinamismo da construção civil. Como a poupança também se reduziu

(embora com menor influência), o resultado foi o colapso do

crescimento a partir de 1980.

Bacha e Bonelli (2016a) discutem essa hipótese em mais detalhe, mas

cabe observar seu contraste com a visão de que o colapso do

crescimento se deveu à crise da dívida externa de 1981-1983 seguida da

aceleração da inflação e dos planos fracassados de estabilização até

1994. Sem negar a importância desses eventos, a interpretação aqui

proposta é por assim dizer mais estrutural. Tratou-se de um processo de

desaceleração que já estava em curso nos anos 1970, durante a marcha

forçada do governo Geisel, mas que foi mascarado pelo aumento da taxa

de poupança de 17,6% para 23,6% do PIB entre 1963-1967 e 1974-1980

(com ampla contribuição do endividamento externo) o qual naquele

período mais do que compensou a queda da produtividade do capital e o

aumento dos preços dos bens de capital então em curso.

2. POR QUE O BRASIL INSISTE?


Tendo como pano de fundo a experiência de baixo crescimento do país

desde 1980, associada ao aprofundamento da substituição de

importações, percorrem-se inicialmente argumentos a favor da abertura

ao comércio. Em seguida, caracteriza-se o grau de fechamento da

economia brasileira. A seção 3 pergunta: se os benefícios da abertura


são tão elevados, por que o Brasil não a faz? Consideram-se cinco

argumentos contrários à abertura que circulam no país, para concluir, na

seção 4, com esboço de programa de integração ao comércio exterior

que leva as objeções relevantes em consideração.

2.1 INTEGRAÇÃO É BENÉFICA


Desde o clássico livro de David Ricardo, Princípios de Economia

Política e Tributação, de 1817, sabem os economistas que um país se

beneficia ao integrar-se à economia internacional. Ricardo tinha em

mente os benefícios que adviriam da especialização do país naqueles

produtos em que é relativamente mais produtivo. Ele venderia a seus

parceiros comerciais tais produtos e deles compraria a preços mais

baratos os produtos nos quais é relativamente menos produtivo. Trata-se

do princípio das vantagens comparativas: cada país se especializa

naqueles produtos em que é relativamente mais produtivo e, em

consequência, todos os países podem beneficiar-se de uma maior

produção em nível mundial e de preços mais baixos do que em um

cenário alternativo, em que todos produzissem e consumissem

isoladamente. Por ser pertinente à discussão contemporânea sobre o

chamado “custo Brasil”, observa-se que Ricardo deliberadamente coloca

a Inglaterra com menor produtividade do que Portugal em todas as

linhas de produção, e demonstra assim mesmo que aquele país (tanto

quanto Portugal) se beneficiaria especializando-se naquelas linhas em

que sua desvantagem produtiva era relativamente menor.

Modernamente, o comércio internacional não é mais de produtos

finais, como nos exemplos de Ricardo, mas predominantemente de

produtos intermediários por meio das cadeias internacionais de valor:

cada país se especializa em uma etapa de produção — um smartphone,

por exemplo, tem peças produzidas em diversos países, as empresas

automotivas se especializam não na produção do veículo inteiro, mas em

partes e peças que são montadas em terceiros países. Cabem às matrizes

as tarefas de design, tecnologia e, em muitos casos, propaganda e

marketing. Partes, peças e componentes podem ser produzidos por

empresas independentes e não apenas por subsidiárias das

multinacionais.
Também não é um comércio entre firmas pequenas, atuando com

custos crescentes, em regime de concorrência perfeita, como nos

exemplos de Ricardo. O jogo agora é predominantemente entre empresas

grandes, que conseguem diferenciar seus produtos por marcas ou

atributos específicos, ganham, com isso, capacidade de definir preços e

têm algum mecanismo de proteger seus mercados. Apple e Samsung têm

atributos para fidelizar seus clientes, que não se movem

automaticamente de uma marca para outra. Marcas de café especiais ou

roupas esportivas criam suas diferenciações e abrem competição por

outros meios que não somente a disputa de preços.

Finalmente, boa parte do comércio não é mais entre firmas

independentes, mas entre filiais e subsidiárias de uma mesma empresa

multinacional. Para uma resenha da moderna teoria do comércio

internacional, veja Helpman (2011).

Nessas condições, três outras dimensões dos benefícios do comércio

além da especialização sobressaem. Em primeiro lugar, o comércio

permite às empresas localizadas em um país absorverem a tecnologia

disponível na fronteira da produção internacional, seja porque abrigam

multinacionais que estão na fronteira, seja porque as nacionais passam a

fazer parte da cadeia de produção das que estão na fronteira. Assim, as

empresas de um país engajado nas cadeias globais de valor incorporam o

“estado das artes” mundial a seus processos produtivos. Tornam-se,

portanto, mais produtivas e capazes de gerar mais crescimento.

Em segundo lugar, devido à ampliação de mercados propiciada pelo

comércio internacional, as empresas mais produtivas podem expandir-se

sem ter a limitação do mercado doméstico. Deste modo, ganham escala

e produzem bens e serviços a preços mais competitivos.

Por fim, ao aumentar a concorrência por mercados, o comércio

permite uma seleção natural das firmas mais produtivas, que sobressaem

em relação àquelas que antes subsistiam protegidas por barreiras à

importação. Trabalhadores, capital físico e insumos são transferidos das

empresas menos produtivas para as mais produtivas. Em consequência, a

economia como um todo se beneficia.


O comércio internacional favorece a inovação e por meio dela o

crescimento por: (i) tamanho do mercado, (ii) concorrência, (iii)

vantagens comparativas, (iv) transferência de tecnologia. Cada um

desses mecanismos oferece uma fonte potencial de ganhos dinâmicos de

bem-estar, expressos por maior taxa de crescimento econômico.

Literatura recente sugere serem esses ganhos substanciais em relação

aos ganhos estáticos da teoria ricardiana. Para uma resenha da literatura

teórica e aplicada sobre comércio e inovação, veja-se Melitz e Redding

(2021).

A experiência histórica dos “milagres econômicos” — no sudeste

asiático, na periferia da Europa e na Oceania — comprovam que os

países que superaram a armadilha da renda média e se juntaram aos

países desenvolvidos após a Segunda Guerra Mundial o fizeram com

uma integração crescente ao comércio internacional. Nem todos os

países que se abriram ao comércio se desenvolveram, mas todos os

países que se desenvolveram o fizeram com uma significativa integração

comercial ao resto do mundo. Utiliza-se um corte de renda per capita


de US$ 25 mil para caracterizar um país rico. Identificam-se doze casos

de sucesso sumariados na Tabela 1. Coreia do Sul, Hong Kong, Israel,

Singapura e Taiwan chegaram lá com exportações industriais; Espanha,

Grécia, Irlanda e Portugal, com exportações de serviços; Austrália, Nova

Zelândia e Noruega, com exportações de recursos naturais. A natureza

dos produtos variou de acordo com as respectivas vantagens

comparativas, o fator comum foi a integração à economia mundial.

Tabela 1: Características dos 12 países que superaram a armadilha da


renda média desde a Segunda Guerra
Fonte: Dados da Central Intelligence Agency (CIA), disponíveis em
www.cia.gov.

Curiosamente a mediana da renda per capita desses 12 países (US$


43 mil) é três vezes a do Brasil (US$ 15 mil), a mesma relação existente

entre a mediana de seu grau de abertura (77%) e a do Brasil (24%).

Além de abertos, esses 12 países são pequenos e relativamente

igualitários. O Brasil é um país grande e desigual. Tamanho e

desigualdade são problemas sérios. Para o México não bastou abrir-se

ao comércio exterior por meio do Nafta. O Norte do país integrou-se aos

EUA e Canadá, mas o Sul permaneceu estagnado. Essa experiência

sugere que para assegurar o crescimento em países grandes e desiguais

são necessárias duas integrações: a externa e a interna, e esta tanto do

ponto de vista social como do regional, tema elaborado em Bacha e

Bonelli (2016b).

As resenhas de Donaldson (2015) e Irwin (2019) da literatura recente

sobre comércio e crescimento confirmam empiricamente os benefícios

do comércio. Existe uma relação causal positiva entre participação do

comércio e tamanho do PIB, e reformas comerciais liberalizantes

impactam positivamente no crescimento econômico. Num modelo

macroeconômico que leva em conta a existência do setor informal,

utilizando dados do Brasil, Dix-Carneiro et al. (2021) sugerem que uma

redução de 40% nas barreiras ao comércio exterior traria um ganho de

produtividade de 9,6% para o país.


2.2 BRASIL: UM DOS PAÍSES MAIS FECHADOS
DO MUNDO
Em contraste com a abundante evidência dos benefícios do comércio

internacional, o Brasil permanece sendo umas das economias mais

fechadas do mundo.

Grandes economias são grandes exportadoras: os Estados Unidos são a

primeira economia do mundo e a segunda maior exportadora; a China é

a segunda maior economia e a primeira exportadora; o Japão é a terceira

maior economia e a quarta maior exportadora; a Alemanha é a quarta

maior economia e a terceira maior exportadora; a França ocupa a quinta

posição tanto no tamanho da economia quanto na importância das

exportações; o Reino Unido tem a sexta maior economia do mundo e é o

décimo maior exportador.

Já o Brasil, em 2018 a oitava maior economia do mundo, era apenas o


o 488
25 maior exportador . O PIB do Brasil representava 3% do PIB

mundial, mas suas exportações alcançaram apenas 1,1% das


489
exportações mundiais . Um gigantinho em termos de PIB, o Brasil é

um anão em termos de exportações.

O que se vê do lado das exportações se confirma do lado das

importações. Em 2018, a participação das importações no PIB do Brasil

foi de apenas 11,6%. Esse é o menor valor entre os 164 países


490
considerados pelo Banco Mundial .

Trata-se de uma situação paradoxal, porque em 2018 o Brasil era o

sexto destino mais preferido para o investimento direto estrangeiro no

mundo (atrás apenas de Estados Unidos, China, Canadá, Hong Kong e


491
Singapura) . O país permite a livre entrada de empresas estrangeiras,

mas cria embaraços às exportações e importações de bens e serviços.

Essa é uma receita pronta para um “crescimento empobrecedor”, como

nos alertaram Harry Johnson e Jagdish Bhagwati nos anos 1960. As

multinacionais e seus empregados prosperam ao explorar o mercado

interno protegido. Por exemplo, produzindo e vendendo, dentro do país,

carros de qualidade inferior com preços elevados, pois não há a

concorrência de carros importados nem a possibilidade de produzir

carros melhores, devido às restrições à importação de máquinas e


insumos de qualidade. Mas o resto do país empobrece, ao ver seus

recursos domésticos aplicados na substituição ineficiente de importações

(automóveis caros e de qualidade inferior aos importados) em lugar de

serem empregados em linhas de produção nas quais o país poderia

competir no mercado internacional.

3. ARGUMENTOS CONTRA A ABERTURA


Por que o Brasil se mantém fechado, quando os benefícios da integração

ao comércio exterior são tão óbvios? Exploram-se cinco possíveis

razões:

o argumento pró-integração é complexo demais;

a oposição dos interesses constituídos é muito forte;

os benefícios da integração vêm no longo prazo, enquanto os

custos vêm na frente;

uma leitura simplista da história do país desfavorece a

abertura;

as hipóteses pró-abertura equivocam-se quanto ao real

funcionamento da economia.

3.1 COMPLEXIDADE DOS ARGUMENTOS PRÓ-


ABERTURA
De certa feita um matemático descrente da cientificidade da economia

desafiou Paul Samuelson (Prêmio Nobel de Economia em 1970) a

explicitar uma proposição econômica logicamente verdadeira que não

fosse óbvia. Após algum tempo, Samuelson respondeu: a teoria das

vantagens comparativas! Nas palavras de Samuelson (1969), com minha

tradução:

Que [a teoria das vantagens comparativas] é logicamente

verdadeira não precisa ser argumentado diante de um

matemático; que não é trivial é atestado pelos milhares de

pessoas importantes e inteligentes que nunca foram capazes de


compreender a doutrina por si mesmas ou de nela acreditar

mesmo depois de ela lhes ter sido explicada.

De fato, não é intuitivo que um país deva abandonar parte de sua

produção e emprego para concentrar seus recursos em outros produtos e

atividades cuja demanda depende do humor de estrangeiros. A teoria do

comércio exterior antes de David Ricardo era a de Adam Smith, para

quem os países deviam exportar o que sobrava depois de satisfeita a

demanda interna — o comércio era um vent for surplus, uma saída

para o excesso de capacidade interna. Trata-se de uma posição mais

intuitiva e fácil de entender do que o famoso, mas complexo exemplo de

Ricardo, segundo o qual Portugal deveria especializar- se na produção

de vinhos ainda que também fosse mais produtivo do que a Inglaterra na

produção de tecidos. A intuição do resultado de Ricardo talvez possa ser

mais bem captada pelo exemplo de uma advogada que é melhor

digitadora do que seu assistente, mas ainda assim lucra ao dedicar-se

apenas à advocacia, deixando a digitação aos cuidados do assistente.

A ideia de proteger o mercado interno e exportar o que sobra é um

prato cheio para políticos à esquerda e à direita. Exemplos recentes são o

plano de comércio exterior baseado no princípio da America First de

Donald Trump, e os discursos de Dilma Rousseff em 2011 conclamando

a defesa do mercado interno contra a crise internacional. Em nível

político, a abertura ao comércio que decorre da teoria das vantagens

comparativas aparenta ser um ato de masoquismo intelectual. Só resta

apelar para o ditado segundo o qual água mole em pedra dura tanto bate

até que fura, para tentar superar essa barreira cognitiva.

3.2 OPOSIÇÃO DE INTERESSES


CONSTITUÍDOS
A segunda explicação para a dificuldade da abertura é a oposição dos

interesses constituídos — firmas e sindicatos que teriam a perder com a

desproteção do mercado doméstico. Os benefícios da abertura são

difusos: são os consumidores de uma maneira geral e empresas e

trabalhadores desacostumados com a ideia de exportar que dela se


beneficiam. Por outro lado, as empresas que monopolizam o mercado

interno e que perderiam com a abertura são politicamente poderosas,

como ilustrado pela influência das associações, federações e

confederações industriais nas decisões de política comercial do governo

brasileiro. Não somente os interesses industriais, também o lobby

agrícola impede a entrada no país de produtos como a banana do

Equador, a carne do Paraguai, o café robusta do Vietnã. Sem falar nos

escritórios de advocacia e de engenharia, que não permitem a

concorrência de firmas estrangeiras. Associações profissionais criam

barreiras à contratação de estrangeiros, adicionais às dificuldades

burocráticas que eles têm para obter vistos de trabalho no Conselho

Nacional de Imigração. É impressionante a obsessão autárquica do país,

para usar a feliz expressão de Marcelo de Abreu (2018).

Trata-se não de uma questão de economia, pois não se nega que a

abertura amplie o bem-estar social. Mas de economia política: interesses

econômicos organizados e poderosos seriam prejudicados.

Disse Keynes uma vez que no longo prazo não são os interesses, mas

as ideias que levam a melhor. Trata-se, pois, de vencer a guerra das

ideias, inclusive para mobilizar grupos empresariais que conseguem

enxergar além de seus interesses imediatos.

3.3 BENEFÍCIOS NO LONGO PRAZO; CUSTOS


NO CURTO PRAZO
A terceira explicação para a não abertura é que seus benefícios se

materializam no longo prazo quando os recursos produtivos se deslocam

para novas e mais produtivas ocupações. Os custos, por outro lado, são

imediatos. Para que recursos econômicos escassos (capital e trabalho)

sejam realocados de atividades pouco produtivas para outras mais

produtivas, é preciso que empresas fechem, implicando a perda de

emprego e de mercado para os produtores nacionais substituídos pelas

importações adicionais.

Os representantes da indústria também invocam o “custo Brasil” para

resistir à abertura, referindo-se às disfunções do sistema de tributação ao

consumo e à deterioração da infraestrutura. Na medida em que afetem


igualmente toda economia, essas distorções reduzem a competitividade

das empresas localizadas no Brasil de um modo geral, mas não afetam

as vantagens comparativas do país. A taxa de câmbio se encarrega de

equilibrar as importações às exportações, desvalorizando-se na medida

necessária para compensar o custo Brasil. O argumento tem valia na

medida em que esse custo pune mais fortemente uns setores do que

outros, alterando artificialmente as vantagens comparativas setoriais.

Sua redução deveria ser simultânea à abertura da economia, para evitar

tanto distorções alocativas como uma taxa de câmbio excessivamente

desvalorizada.

Além disso, em sociedades que dão grande valor ao presente e menor

valor ao futuro a troca de desemprego hoje por empregos melhores no

futuro tem pouca aceitação. Os benefícios não compensariam os custos

da abertura. A preferência pelo presente em detrimento do futuro pode

ter várias explicações. Uma delas seria a pobreza: grande parte da

população está preocupada em sobreviver hoje, e não pode se dar ao

luxo de pensar no futuro. Por isso prefere políticas imediatistas. Outra

explicação seriam as altas taxas de juros vigentes no Brasil, que

representam um desconto grande das rendas a serem obtidas no futuro.

Como as taxas de juros brasileiras corrigidas pela inflação tem se

reduzido, pelo menos um dos fatores que geram miopia em relação ao

futuro está mitigado. Aumenta a chance de se ver na abertura econômica

a via para aumentar o bem-estar das futuras gerações.

3.4 LEITURA SIMPLISTA DA HISTÓRIA


Uma quarta explicação para a oposição à abertura deriva de uma leitura

simplista da história econômica do país. De modo resumido, segundo

essa leitura, o Brasil estagnou no século 19 com uma economia aberta,

baseada na exportação de produtos primários. O país progrediu no

século 20 com uma economia fechada, baseada na substituição de

importações industriais. Com essa visão da história, por que então no

século 21 abrir a economia, o que seria sinônimo de desindustrialização

e condenação do país à condição de exportador de bens primários?


Em relação a essa visão simplista, cabe assinalar que por 120 anos,

desde a década de 1840 até a de 1960, as exportações do país foram

baseadas na monocultura do café. Em função da política de valorização

do produto praticada pelo governo brasileiro, o café eliminou da pauta

das exportações outros produtos que poderiam nela ter-se firmado, como

o algodão e tecidos. Esses produtos tinham enorme dificuldade de

competir nos mercados estrangeiros, pois o preço em dólares do café era

muito atrativo e a taxa de câmbio se mantinha sobrevalorizada. Eles se

tornaram “gravosos” na linguagem da época. Em consequência, ocorreu

uma redução dramática da participação das exportações no PIB, à

medida que a parcela do Brasil no mercado mundial do café diminuía e

os setores domésticos que não participavam do comércio exterior se

expandiam. De 70% no início do século 20, a participação do país nas

exportações mundiais de café caiu para 30% na década de 1960. Dizia-

se que o Brasil abria o guarda-chuva dos preços altos do café, para

dentro do qual entravam outros produtores latino-americanos e

africanos. A parcela das exportações totais no PIB diminuiu de 20,6%

em 1906, quando a valorização do café foi introduzida, para apenas

3,3% em 1964, quando o café finalmente perdeu sua posição dominante

nas exportações brasileiras.

A política de valorização destinava-se a aumentar a receita com as

exportações de café, aproveitando-se da baixa reação da demanda a

preços elevados e do tempo que tomava para a produção de café dos

países concorrentes reagir. Paradoxalmente, no médio prazo ela resultou

numa crônica escassez de divisas, na medida em que se comprimia a

participação das exportações na renda nacional. Lidou-se com essa

escassez por meio da política do similar nacional. Significava que

produtos que tivessem similares produzidos no Brasil não podiam ser

importados, seja por restrições quantitativas, seja por tarifas elevadas e

complexa burocracia portuária. Por outro lado, esses similares nacionais

não conseguiam ser exportados devido a seus altos preços e baixa

qualidade. Criou-se, assim, uma indústria voltada quase que

exclusivamente para o abastecimento do mercado interno.

Ao mesmo tempo, as divisas geradas pela exportação de café foram

reservadas para as necessidades de insumos e bens de capital


importados dessa indústria. Durante um longo período, essa reserva foi

garantida por controles quantitativos, pelo licenciamento das

importações. Mais tarde, prevaleceu um sistema de taxas de câmbio

múltiplas, decididas administrativamente. Importadores de mercadorias

consideradas essenciais tinham acesso à moeda internacional a taxas

mais favorecidas. E, enfim, por tarifas elevadas às importações.

Hoje em dia, outras commodities ganharam importância na pauta

de exportação e o Brasil não depende mais do café. Mas o setor

industrial em processo de encolhimento se mantém voltado para dentro,

não concorrendo nos mercados externos.

A substituição das importações funcionou bem durante certo tempo

porque quando ela se iniciou, na década de 1930, o país era uma

economia agrária subdesenvolvida, caracterizada por excesso de mão de

obra que emigrava dos campos para as cidades. Também no período de

1930 até o fim da Segunda Guerra predominava o protecionismo nos

mercados internacionais. O simples fato de o indivíduo sair de uma

lavoura de subsistência e passar a trabalhar no meio urbano, em

processos produtivos mais organizados, assegurava o crescimento da

produtividade da economia como um todo. Foi a urbanização associada

à industrialização que transformou o país pobre num país de renda

média.

Hoje em dia a população é quase toda urbana e cessou a fonte fácil de

ganhos de produtividade pela migração da mão de obra do campo para a

cidade. Agora, esses ganhos têm que ser conseguidos a partir da

transformação das atividades já estabelecidas. Como arguem Dix-

Carneiro et al. (2021), a presença de um importante setor informal

aumenta os benefícios da abertura, pois ela permite que empresas

formais mais produtivas tomem o lugar de empresas informais menos

produtivas.

Além disso, no século 21 a questão não é mais exportar produtos

primários sem ligações com o resto da economia, mas lhes adicionar

valor por meio de complexos agro-minero-industriais, cuja

produtividade nada fica a dever ao setor manufatureiro como um todo. O

exemplo de países ricos que são majoritariamente exportadores de bens


primários, como Canadá, Noruega, Austrália e mesmo o Chile, mostram

que é inadequado associar exportação de produtos primários a atraso e

pobreza. A chamada maldição dos recursos naturais pode ser superada

com boas instituições e políticas adequadas, conforme expõem Bacha e

Fishlow (2011).

3.5 EXCESSIVO OTIMISMO DAS HIPÓTESES


PRÓ-ABERTURA
As explicações anteriores parecem intelectualmente insuficientes para

deter um movimento de abertura da economia, mas não esgotam o

assunto. Há uma quinta possibilidade a considerar. Trata-se do possível

otimismo das hipóteses que fazem os “aberturistas” sobre o

funcionamento da economia. Em sua formulação neoclássica

tradicional, a hipótese implícita é que a oferta cria sua própria procura.

Bastaria reduzir as tarifas e outros embaraços protecionistas para

produzir uma realocação eficiente de recursos, sem afetar seja o

equilíbrio interno (pleno emprego), seja o equilíbrio externo

(exportações emparelhadas com as importações).

Entretanto, devido à rigidez de preços e à inércia na alocação dos

recursos (novas fábricas não se produzem do dia para a noite), ao

substituir produção doméstica por importações a abertura pode gerar

desemprego e desequilíbrio na balança comercial. Caso o câmbio seja

flutuante, em princípio, ao abrir-se às importações ele se desvaloriza, o

que ajuda a equilibrar a economia. Mas num regime de câmbio

administrado, como o Brasil tinha até janeiro de 1999, essa

desvalorização pode não ocorrer. Dix-Carneiro e Kovak (2019)

documentam que, em seguida ao episódio de liberação comercial do

Brasil no início dos anos 1990, as regiões mais expostas à concorrência

externa enfrentaram aumentos de desemprego com relação à média

nacional.

A transição para um equilíbrio interno e externo pode ser longa e

penosa. Em regimes democráticos, em que os políticos precisam dar

respostas imediatas às agruras da população, a abertura pode

simplesmente ser abortada. Foi o que ocorreu no Brasil a partir de 1995,

quando se observou um retrocesso em relação à abertura de 1990 do


governo Collor, precedida por duas rodadas de redução tarifária no

governo Sarney. Nesse período, à abertura às importações se sobrepôs

uma apreciação do real que prejudicou a balança comercial.

4. ESBOÇO DE UM PROGRAMA DE ABERTURA


A implicação desta quinta hipótese é que a estratégia de integração

precisa ser baseada em “cenouras” e não só em “chicotes”. Ou seja, é

preciso estimular a demanda e remover impedimentos à reestruturação

da oferta. Reforma tributária e recuperação da infraestrutura devem

complementar a abertura, ampliando a produtividade da economia e a

competitividade da indústria.

A sugestão é, em primeiro lugar, fazer uma transição para a abertura

de forma paulatina e pré-anunciada. Em segundo lugar, ampliar o

seguro-desemprego e a programas de retreinamento e realocação de mão

de obra, para mitigar os custos da transição.

Adicionalmente, promover mecanismos de reciprocidade comercial,

para garantir que mercados externos se abram às exportações à medida

que o mercado interno é aberto às importações. Com um cuidado de

essas negociações, lentas e difíceis, como mostra o andamento da

proposta de acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia, não

serem usadas pelos lobbies empresariais para dilatar o cronograma da

abertura unilateral.

Finalmente, ao se partir de uma situação de equilíbrio comercial,

quando se reduzem as tarifas e outros mecanismos protecionistas deve

ocorrer uma desvalorização da moeda que compense os produtores

nacionais, ao encarecer as importações e aumentar a competitividade

das exportações. Isso pode dar-se naturalmente, pois, na antecipação de

uma abertura às importações e do correspondente aumento da demanda

por moeda estrangeira, os agentes financeiros passariam a entesourar

dólares, desvalorizando o real. Entretanto, nas atuais condições do país

trata-se de um ponto discutível. A situação externa parece extremamente

favorável para o Brasil no mundo pós-covid, com reservas internacionais

elevadas, balança comercial positiva, ciclo das commodities em alta e


fortes estímulos fiscais nos países industriais. Nessas condições, parece

difícil arguir a necessidade de um câmbio ainda mais desvalorizado.

Mais amplamente, trata-se de conceber uma estratégia para o futuro da

indústria no Brasil que envolva tanto a redução do custo Brasil como a

abertura comercial. Esta pode ser vista como uma forma de promover a

transformação da indústria, consistente com sua integração ao comércio

internacional. Trata-se de ativar grupos de interesse, além de

acadêmicos, que possam se mobilizar em favor da abertura e se

contrapor às disposições contrárias. Urge formular uma estratégia

industrial que, pressupondo a abertura, seja capaz de motivar segmentos

do empresariado.

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SAMUELSON, P.A. (org.) International economic relations: proceedings for the


Third Congress of the International Economic Association. London: MacMillan, 1969, p. 1-11.

487. Inclui material de Bacha (2016), Bacha (2019a) e Bacha (2019b). Sem implicá-los nos

resultados, agradeço os comentários de Eduardo Augusto Guimarães, José Tavares, Maílson da

Nóbrega, Marcos Mendes, Persio Arida, Sandra Rios, Sheila Najberg e Winston Fritsch.

Agradeço também a assistência de pesquisa de Maria Mittelbach.

488. Dados do PIB e das exportações em dólares correntes do CIA World Factbook. Disponível

em: www.cia.gov.

489. Exportação de bens e serviços em preços correntes. Os dados para o Brasil são das contas

nacionais trimestrais do IBGE (www.ibge.gov.br). Dados do GDP mundial são do World

Economic Outlook, do FMI (www.imf.org). Os dados das exportações mundiais são do Banco

Mundial, World Development Indicators (www.worldbank.org).

490. Dados do coeficiente de importações são do Banco Mundial. Disponíveis em

http://data.worldbank.org.

491. Dados são da UNCTAD, World Investment Report. Disponível em:

https://worldinvestmentreport.unctad.org/.
CAPÍTULO 23
ANTIDUMPING
Sérgio Kannebley Júnior

INTRODUÇÃO
Medidas antidumping (AD) são previstas no Acordo Geral sobre Tarifas

e Comércio (Gatt). Constituem restrições impostas por um país à

entrada de um produto específico oriundo de alguns países, como é o

caso do Brasil, que pode impor limitações à importação de PVC

procedente dos EUA ou do México, sem fazê-lo em relação ao mesmo

produto comprado de outros países.

De modo geral, o argumento a seu favor serve para evitar que os

produtos entrem com preços excessivamente baixos, o que caracterizaria

uma estratégia do vendedor para excluir os competidores nacionais do

mercado e, em seguida, agir como monopolista, controlando os preços

praticados.

O Brasil tem se utilizado intensamente desse mecanismo, e notamos

que seu uso se acentuou entre 2007 e 2014. Este capítulo tem como

objetivo resumir os resultados de pesquisas conduzidas por Kannebley,

Remedio e Oliveira (2020), Caliani e Kannebley (2021), Kannebley,

Oliveira e Remedio (2021), que avaliam a aplicação da política de

antidumping no Brasil.

Os artigos aqui apresentados discutem respectivamente os

determinantes da abertura de investigações e as efetivas aplicações de

medidas AD, seus impactos sobre as importações e a produtividade,

bem como a margem de lucro das empresas industriais. Os trabalhos

têm em comum o interesse pelo ponto de inflexão do uso dessas medidas


e o período em que o Brasil atinge o pico nos pedidos de investigação e

de aplicação de antidumping.

Com isso espera-se oferecer uma sequência de evidências que,

combinadas, auxiliam na compreensão dos determinantes para a

implementação dessas medidas, seus efeitos posteriores sobre comércio


492
e eficiência produtiva .

Os resultados mostram, em primeiro lugar, que a decisão do governo

de abrir investigação antidumping pode ser explicada por argumentos

protecionistas tanto do ponto de vista das empresas quanto da estratégia

comercial do país. Setores economicamente mais concentrados têm

maior probabilidade de obter a abertura de investigação de dumping, ao

mesmo tempo que há também maior foco nos setores em que há grande

penetração de importações. Além disso, fatores de relações bilaterais,

como disputas e retaliações entre dois países da mesma forma afetam

positivamente a abertura das investigações. O governo atuou mais

fortemente contra grupos de indústria e países que com frequência

peticionam e produziram investigações contra o Brasil.

Fatores similares mostram-se correlacionados à decisão de impor de

fato medidas antidumping, na fase seguinte à abertura da investigação.

Pedidos feitos por associações empresariais e em setores mais

concentrados têm maior probabilidade de resultarem em aplicação

efetiva. São beneficiados, também, setores geradores de emprego, em

uma preocupação de proteger empregos domésticos. Também há um

claro direcionamento de medidas para importações provenientes da

China.

No período posterior a 2007 houve, como consequência da

intensificação das medidas antidumping, redução do comércio e

aumento nos preços dos bens gravados por essa política. Ao mesmo

tempo que se tornou mais protecionista, ela também se mostrou mais

deletéria ao comércio exterior brasileiro.

Por fim, os resultados também apontam que os setores beneficiados

pela proteção concedida por essas medidas tiveram reduzida sua

produtividade relativamente aos não protegidos e aumentaram sua

margem de lucro após a implementação delas.


De modo geral, a política aqui analisada representou aumento de

custos para os demais setores da economia nacional que compram

insumos daqueles que têm seu mercado protegido pelo antidumping.

Aumento de custos, redução de comércio, queda de produtividade,

aumento de margens de lucros e poder de mercado de setores

concentrados. Todos esses efeitos apontam a importância do

comedimento no uso de medidas antidumping. O fato de que um setor

específico da economia está sendo prejudicado por importações não é

condição suficiente para se impor restrições a elas. É preciso levar em

conta o interesse geral da economia nacional, ou seja, todas as demais

empresas, os consumidores e o impacto potencial sobre o crescimento

econômico.

Além desta introdução, o capítulo é formado por outras cinco seções.

A seção 1 é uma explanação sobre dumping e antidumping e ainda como

a literatura econômica analisa esse instrumento. A seção 2 faz um breve

histórico do antidumping no mundo e no Brasil. A seção 3 analisa os

determinantes da abertura de investigação e da efetiva implementação de

medidas AD no Brasil. A seção 4 apresenta a avaliação da política sobre

os volumes e preços de importações, enquanto a seção 5 se ocupa do

impacto sobre a produtividade e a margem de lucro. A seção 6 traz as

conclusões.

1. O QUE É O DUMPING E ANTIDUMPING


A prática de dumping é legalmente definida no Artigo VI do Acordo

Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt, “General Agreement on Tariffs

and Trade”, na sigla em inglês) como a exportação de um produto

(líquido de custos de transação) a preço inferior ao seu valor normal,

isto é, ao preço praticado para produto similar no mercado doméstico do


493
país exportador. A legislação define requisitos necessários para a

aplicação do direito ao antidumping (AD) como instrumento de proteção

aos produtores domésticos afetados por dumping, uma vez comprovado

que a discriminação de preços causa dano material à indústria doméstica

do país importador ou retarda seu estabelecimento.


Uma característica fundamental dessas medidas, que as diferencia das

barreiras tarifárias, é a sua natureza discriminatória: apenas um

subconjunto dos países que exportam para o país de origem da

investigação é examinado pela alegada prática de dumping. Assim, por

exemplo, o Brasil pode impor tarifas AD à importação de tubos de PVC

vindos dos EUA ou do México, e não e não fazer o mesmo se

proveniente de outro país. No caso, EUA e México seriam os “países

nomeados” na medida de AD.

Segundo Rivera-Batiz e Oliva (2003) a tarifa antidumping é

estabelecida com base da margem de dumping, que é definida como a

diferença entre o preço local e o preço justo, ou normal, das

importações, passível de ser medido pelo preço cobrado pelo exportador,


494
pelo seu custo marginal de produção ou ainda pelo seu custo médio .

A tarifa antidumping contrabalança essa margem, restabelecendo a

igualdade entre o preço local e o preço do importador somado aos custos

de transporte. O aumento dos preços cobrados por esses países deve

causar a retração das importações oriundas dos países nomeados —

aqueles gravados pelo antidumping. Caso isto não se reverta plenamente

em aumento da produção doméstica, um possível efeito decorrente das

medidas AD é o de desvio de comércio para países não nomeados, o que

reflete a redução de eficácia do instrumento. No nosso exemplo, haveria

redução de importação de PVC vindos dos EUA e México e aumento

das compras junto à China ou Coreia.

Segundo Bown e McCulloch (2015) os efeitos de medidas

antidumping se manifestam por diversos canais. O primeiro deles é a

redução do número de firmas ativas no mercado doméstico. O

estreitamento das possibilidades de escolha do consumidor aumentaria a

parcela de mercado de cada firma remanescente, diminuindo a

concorrência e viabilizando a elevação da margem de lucro bruta.

Pelo lado da eficiência, a teoria de comércio argumenta que, ao

proteger e favorecer a permanência no mercado de plantas de baixa

produtividade, e dificultar a realocação de recursos para setores mais

produtivos, as tarifas antidumping deveriam produzir um efeito negativo

sobre a produtividade dos setores protegidos pelas medidas. Uma


empresa pouco eficiente, na ausência de antidumping, poderia ir à

falência. O capital e o trabalho que ela emprega poderiam ser absorvidos

por outras empresas mais eficientes, elevando o potencial de

crescimento da economia. Havendo o antidumping, mantém-se viva uma

empresa menos produtiva, gerando menos valor à sociedade.

Um segundo canal se dá com a elevação dos custos dos insumos

domésticos protegidos pelo AD. O antidumping beneficia o produtor

doméstico que concorre com o produto importado. No entanto, pode

prejudicar outros produtores domésticos e exportadores que utilizam

como insumos importações de produtos que sofrem medidas AD. O

impacto sobre os consumidores domésticos é semelhante a uma tarifa de

importação. No nosso exemplo, todos os empreendedores e

consumidores domésticos que utilizam PVC podem sofrer com o

aumento de custos.

Uma vez conhecidos esses possíveis efeitos, então resta perguntar o

motivo da adoção de tais medidas por parte do governo. Segundo Niels

(2000), defensores da política AD a classificam como uma válvula de

escape que permite aos governos manter apoio político para a

liberalização comercial. De acordo com seus defensores, a legislação

AD permitiria uma flexibilização nos acordos comerciais do Gatt/OMC

para que os países, frente a choques políticos ou econômicos,

escapassem temporariamente da obrigatoriedade de manter tarifas

baixas em produtos específicos (Bown e McCulloch, 2015). Com isso,

os acordos não correriam o risco de serem desfeitos.

Prusa e Skeath (2005) acreditam ser difícil justificar o crescente uso

do AD apenas com base na possibilidade de comércio injusto, pois isso

configura uma forma proeminente de protecionismo, tanto em países

desenvolvidos como em desenvolvimento. A ampliação do número de

países usuários das medidas AD, bem como do número de produtos

envolvidos, não poderia ser apenas justificada pela necessidade de

proteção especial e sim por comportamentos estratégicos, ou

retaliatórios, para combater não somente práticas empresariais, mas

também políticas governamentais consideradas injustas.

De acordo com Nelson (2006), é da natureza da implementação de

antidumping o tratamento de cada setor separadamente, sendo esse um


exemplo de política econômica em nível micro. O antidumping é

sobretudo um tipo de lobby bastante específico que envolve o pagamento

(em especial de advogados) de uma taxa fixa relativamente pequena para

acesso a um sistema administrativo cujo, resultado será uma taxação, um

acordo de preço, a retirada (muitas vezes com um acordo negociado com

as empresas estrangeiras) ou nada. Os setores, ou firmas, decidiriam na

margem quanto alocar em busca de proteção e a quantidade de recursos

a direcionar para a atividade produtiva diretamente. Setores com poder

de mercado e capacidade de organização seriam mais capazes de se

mobilizar para ter sucesso em levar o governo a adotar uma medida AD.

O Brasil faz parte de um conjunto de países em desenvolvimento

categorizados como novos usuários de medidas AD formado, entre

outros, por Índia, Rússia, Malásia, México e Argentina. Zanardi (2004)

reporta um painel de petições para investigações iniciadas entre 1981 e

2001. Seus dados mostram um total de 4.597 investigações iniciadas

nesse período, aproximadamente 64% das quais foram iniciadas por

antigos usuários, como Austrália, Canadá, Estados Unidos e países da

comunidade europeia. Conforme Prusa (2005), após a conclusão da

Rodada Uruguai, novo padrão passa a se configurar: mais de metade das

ações abertas foram propostas por novos usuários.

Após reformas de sua legislação antidumping e da reformulação e

aprimoramento de seus procedimentos de avaliação e julgamento de

pedidos de investigação, o Brasil tornou-se um dos principais usuários

nos anos 2000. Entre 1995 e 2014 o Brasil figurou entre os dez maiores

peticionários das medidas, juntamente com Índia, Estados Unidos,

União Europeia, Argentina, Austrália, China e Canadá. Mas o ponto de

inflexão da trajetória de uso desse tipo de medida foi o ano de 2007,

tornando-se, com o passar dos anos, um dos três maiores peticionários

de investigações AD do mundo. Entre 2013 e 2105 o Brasil liderou o

ranking de pedidos de investigação. Foram 112 medidas antidumping

iniciadas pelo Brasil, que correspondem a 15% das medidas restritivas

ao livre comércio analisadas pela Organização Mundial do Comércio

entre 2013 e 2015


495
. Segundo o Anuário do Comércio Exterior
Brasileiro de 2020, da Secex, considerando o que está em vigor

atualmente, o Brasil é o quarto país com mais medidas de defesa


o
comercial em vigor (161), sendo o 12 alvo dessas medidas por parte de

outros países (40).

2. ANTIDUMPING: HISTÓRICO RECENTE


De acordo com Hindley and Messerlin (1996), a maior parte das

regulações AD instituídas no início do século 20 eram desenhadas para

combater a precificação predatória e, de fato, originaram poucas ações

antidumping. Mas a moderna história da sua legislação inicia-se apenas

após o Gatt de 1947, ainda que a aplicação efetiva dessas medidas tenha

permanecido em segundo plano no que diz respeito às políticas

comerciais internacionais até o início da década de 1980 (Blonigen e

Prusa, 2001).

Com a entrada em vigor, em 1995, de uma nova versão do Artigo VI

do Acordo Geral, referente a antidumping, negociado na rodada do

Uruguai, houve um novo impulso às petições por essas medidas. Sua

popularidade como instrumento de defesa comercial se deveu a

crescente liberalização comercial, existindo ainda quem defenda que a

presença do direito antidumping possibilitou essa liberalização, ao

sinalizar que os setores mais afetados por reduções tarifárias teriam uma

válvula de escape em situações específicas de perda de competividade

(Zanardi, 2006).

A primeira promulgação de lei antidumping brasileira data 16 de

janeiro de 1987 (Decreto 93.941), em concordância com o Acordo

Relativo à Implementação do Artigo VI do Gatt de 1979. A

promulgação dessa legislação permitiu propiciar à indústria doméstica

novo mecanismo de proteção à competição externa, sob gestão do

Ministério da Fazenda (MF).

Em 1995, o governo federal criou a Câmara de Comércio Exterior

(Camex), órgão colegiado composto de diversos ministérios, e o


496
Departamento de Defesa Comercial (Decom) , um departamento do

Ministério da Indústria, do Comércio e do Turismo (MICT) específico

para realizar análises técnicas das investigações de defesa comercial

(dano, dumping, salvaguardas, etc.).


O Gráfico 1 mostra a evolução das investigações e da aplicação de

medidas AD do Brasil entre 1995 e 2016. Araújo (2017) divide o uso

desse instrumento nos seguintes períodos de aprendizagem de uso

(1995-2002), quando poucas investigações foram abertas, de moderação

de uso (2003- 2006), trecho de inflexão da série temporal, de aceleração

de uso (2007-2010), quando o número de petições protocoladas

começou a aumentar a um nível acima da média dos anos anteriores, e

de assiduidade de uso (2011-2014), quando o Brasil elevou o número

das investigações iniciadas a patamares recordes. Posteriormente há um

retorno gradual ao uso mais moderado dessa medida.

Gráfico 1: Medidas antidumping peticionadas e aplicadas: 1995-2016

Fonte: Elaboração própria a partir de dados da OMC (2016).

Conforme Ornelas, Ferraz e Pessoa (2018, apud FERRAZ, 2018), o

histórico de abertura de processos antidumping no Brasil estaria acima

do esperado para um país com suas características. Para Araújo (2017),

o crescente uso das medidas AD por parte do Brasil associa-se a uma


497
política comercial protecionista . Dessa maneira, para o autor, o

mecanismo de proteção teve como fundamento promover os interesses

anticompetitivos de produtores domésticos em vez de contrabalançar os

supostos efeitos danosos causados pela prática de dumping.

A Tabela 1 lista os países mais frequentemente nomeados pelo Brasil

entre 1999 e 2014. É notório o foco que o país dirigiu à China, que
sozinha representou quase 20% das investigações recebidas. Os cinco

exportadores que encabeçam a lista — em ordem decrescente: China,

Estados Unidos, Coreia do Sul, Alemanha e Índia — representaram

combinados mais de 35% das nomeações. No geral, os 14 países mais

citados representaram, juntos, quase 60% do total das nomeações do

período. Os países em desenvolvimento, principalmente comandados

por China, Coreia do Sul e Índia, passaram a ser mais suscetíveis às

investigações brasileiras a partir de 2007. Antes disso, na contramão da

tendência mundial da época, as nomeações contra os países

desenvolvidos prevaleciam.

Tabela 1: Países mais nomeados em investigações antidumping do Brasil:


1999-2014

Fonte: Elaboração própria a partir de dados de Bown (2015).

Os setores de plásticos, químicos, metais, animais e têxteis foram os

mais frequentemente nomeados de 1999 a 2014, seguindo a tendência


498
mundial para os três primeiros. Em todo o período amostral, mais de

um terço das nomeações foi dirigiu-se somente ao setor de plásticos, o

que evidencia o grau de seletividade das medidas AD do Brasil.

Na Tabela 2, vemos que o perfil das nomeações por setor sofreu

alterações no ao longo dos anos. No período 1999-2002, o setor de

animais foi isoladamente o mais nomeado de todos; no período 2003-

2006, contudo, não recebeu mais nenhuma nomeação. Por outro lado, o

setor de plásticos, que teve apenas 14 produtos nomeados em 1999-

2002, passou a ser o mais visado a partir no período 2003-2006. Os

setores de metais e de tecidos também passaram a receber mais

nomeações em 2007-2010. Por fim, no período 2011-2014, o setor de

químicos reassumiu a posição de vice-líder em nomeações recebidas,

acompanhado do setor de metais.

Tabela 2: Setores mais nomeados em investigações antidumping do Brasil


Fonte: Elaboração própria a partir de dados de Bown (2015) e World
Customs Organization (WCOOMD, 2017).

3. DETERMINANTES DAS INVESTIGAÇÕES E


APLICAÇÕES DE MEDIDAS AD PARA
INDÚSTRIA BRASILEIRA
O argumento que justifica a demanda de firmas domésticas por medidas

antidumping seria a existência de dumping predatório, aquele em que as

firmas estrangeiras praticam, no país de destino, um preço baixo o

suficiente para expulsar as firmas domésticas do mercado. Segundo

Markusen et al. (1995), isso requereria fixar um preço tão baixo que as

firmas domésticas não seriam capazes de cobrir seus custos variáveis a

qualquer nível de produção. É baixa a possibilidade de tais estratégias

serem vencedoras, ainda que teoricamente concebíveis, em razão da

necessidade de manutenção por um longo período de tempo de preços

baixos até conseguir excluir os competidores do mercado e manter sua

posição monopolista.

Por outro lado, as evidências reportadas por Nelson (2006) são

consistentes com a hipótese de que a demanda por proteção cresceria

com a fraqueza macroeconômica doméstica e a pressão competitiva

internacional. Assim, em vez de serem utilizadas para prevenir formas

predatórias de dumping, a tendência seria de que as medidas AD fossem

utilizadas como instrumentos para produzir aumento do poder de

mercado dos produtores domésticos, a despeito de possíveis prejuízos

para os consumidores domésticos.

Prusa e Steath (2005) destacam a existência de incentivos econômicos

e motivos estratégicos para explicar o comportamento de países nas

ações de AD. Suas evidências empíricas rejeitam a noção de que o


aumento nessa atividade é explicado exclusivamente por um aumento no

comércio injusto e apoiam a visão de que os incentivos estratégicos

desempenham um papel crítico na motivação de países individuais para

registrar reclamações de AD contra seus fornecedores.

As petições por motivos econômicos estariam relacionadas ao

aumento de importações, ou então ao simples fato de determinados

países deterem grande participação nas importações domésticas. Com

isso, o AD seria um instrumento usado em momentos de redução de

tarifas ou maior volatilidade cambial. Funcionariam como uma proteção

especial necessária para corrigir problemas de cooperação ou variações

súbitas de fluxos de comércio no curto prazo.

Assim, teríamos as ações voltadas ao Grande Fornecedor, que

representariam o país com maior participação das importações em

determinado produto ou setor, e as relacionadas a Variação nas

Importações, que captariam surtos de importações.

Por outro lado, fatores não econômicos, como motivações estratégicas,

ou retaliatórios (“olho por olho, dente por dente”), para combater não

apenas práticas empresariais, mas também políticas governamentais

consideradas injustas, poderiam ser razões para a implementação dessas

medidas.

Finger (1993, apud Prusa e Skeath, 2005) argumenta que os países

que fazem uso de medidas AD formam um tipo de clube, cujos

membros tendem a aplicar medidas entre si, em vez de aplicar a outros


499
países . Possibilidades de colusão internacional, ou influência política

de setores, seriam fatores determinantes nesse caso. Essas motivações

seriam inconsistentes com a ideia de comércio injusto. Para avaliar

empiricamente esses efeitos, Prusa e Skeath (2005) constroem variáveis

empíricas denominadas Clube, que identifica grupos de países que

atuam conjuntamente em petições de AD, e uma variável de Retaliação.

Um exemplo de estratégia retaliatória seriam as petições do Canadá

contra o Brasil e vice-versa. Por exemplo, entre 1988, que é quando o

Brasil implementa a legislação antidumping, até 2014, o Canadá abriu

investigações contra o Brasil em oito dos anos representados. Em dois

deles, o Brasil responde com abertura de processos contra o Canadá no

Á
mesmo ano. De maneira semelhante, a África do Sul peticiona o Brasil

em cinco anos diferentes desde 1996. Para quatro deles, há abertura no

Brasil de um processo contra a África do Sul em até um ano após a ação

sul-africana. Outro fato recente de prática de retaliação ocorreu na

relação comercial entre Brasil e Costa Rica, envolvendo importações de


500
chocolates e chás .

Considerando a competência distinta do Decom, a quem cabia

examinar a procedência e o mérito de abertura de investigações de

dumping, e da Camex, a quem cabe fixar direitos antidumping e

compensatórios, Kannebley, Oliveira e Remédio (2021) utilizam dados

de 243 classes industriais brasileiras no período de 2007 a 2016 e

estimam separadamente modelos para a probabilidade de investigação e

aplicação de medidas AD. O Anexo I contém a descrição dos modelos

estatísticos estimados.

Para analisar a decisão de investigação AD no caso brasileiro, os

autores usam uma versão modificada do modelo de Prusa e Skeath

(2005), considerando que o estudo trata de um único país e envolve

informações setoriais. O Gráfico 2 apresenta os cinco maiores impactos

das variáveis incluídas no modelo sobre a probabilidade de investigação


501
para AD . A estimação demonstrou que, entre os motivos estratégicos,

o efeito retaliação e o efeito clube foram aqueles que mais afetaram a

probabilidade de se conduzir uma investigação para a imposição de

medidas AD. Entre as variáveis explicativas de natureza econômica

(proteção especial), a variável Grande Fornecedor teve impacto estimado

mais próximo das variáveis de motivação estratégica. Além disso,

percebe-se que setores mais concentrados e aqueles com maiores

coeficientes de importação têm maior probabilidade de terem atendidos

seus pedidos de investigação. O índice de concentração setorial, CR4, é

o quarto fator a impactar a probabilidade de investigação, enquanto o


502
coeficiente de importação setorial é o quinto . Ou seja, esses

resultados demonstram que o deferimento, por parte do governo, de

pedidos de investigação para aplicação de medidas AD pode ser

explicado por argumentos protecionistas, tanto econômicos como

estratégicos.
Gráfico 2: Efeitos marginais da probabilidade de investigar AD

Fonte: Kannebley, Oliveira e Remédio (2021).

Uma vez que se abre a investigação, pode-se aplicar ou não a medida

AD. A probabilidade de aplicação foi modelada com base na literatura

que relaciona a capacidade de influência política sobre os órgãos de

política comercial a características observáveis das indústrias.

Finger, Hall e Nelson (1982) argumentam que a estrutura industrial

pode se traduzir em formas de poder político. Tanto o tamanho da

indústria, como o grau de concentração estão positivamente

relacionados à chance de obter a imposição de medidas. Setores maiores

e mais concentrados teriam maior capacidade de organização e

realização de pressão política em favor da aprovação de suas petições.

Nelson (2006) também considera que o fornecimento de proteção pode

ser afetado pela necessidade aparente ou genuína de alívio à indústria.

Uma indústria que está sofrendo com o aumento do desemprego, a perda

de participação no mercado doméstico em razão de importações

estrangeiras e o baixo uso de capacidade instalada deve ser mais

propensa a obter alívio. Destaca ainda que variáveis como o crescimento

da produção doméstica, o crescimento das importações e a penetração

das importações poderiam influenciar a decisão de imposição de

medidas AD.

Além disso, uma indústria com uma alíquota tarifária mais baixa deve

ter mais sucesso em obter a imposição das referidas medidas. Por fim,

Hansen (1990) argumenta que uma indústria altamente protegida não só

tem menor probabilidade de obter proteção adicional por meio de AD,

como também menor probabilidade de solicitar ou pressionar por


regulamentação adicional em relação a uma indústria relativamente

desprotegida, uma vez que os custos de aquisição de regulamentação

adicional provavelmente excederiam os benefícios. Assim, a tarifa atual

de uma indústria também deve ser uma boa medida de sua probabilidade

de buscar proteção.

Finger, Hall e Nelson (1982) também afirmam que a razão capital-

trabalho dos setores poderia representar diferenças nos custos

comparativos. Setores intensivos em capital seriam mais propensos a

apresentar economias de escala e com a redução da produção tenderiam

a apresentar desvantagem comparativa. Sendo assim, tenderiam com

mais facilidade a decidir a favor da imposição dessas medidas.

Com isso, o modelo de probabilidade de aplicação de medidas AD

incluiu variáveis relativas a:

variação da produção setorial

participação do emprego da classe setorial

saldo comercial do setor

razão capital-trabalho

uma variável dummy para petições realizadas contra empresas

chinesas, dado o papel de destaque dessas empresas como


503
alvo de medidas AD

uma variável que denota o fato de a petição ter sido realizada

por associação ou federação empresarial, a fim de destacar a

possível organização e influência política do setor

variáveis defasadas de penetração de importações, a razão

preço custo, PCM e o indicador de participação de mercado


504
CR4 .

O Gráfico 3 indica os cinco fatores que mais afetam a probabilidade de


505
aplicação das medidas AD .

O maior efeito apurado diz respeito à variação da produção. Seria de

se esperar que uma queda da produção levasse a maiores concessões de

AD. No entanto, o resultado aponta uma correlação positiva entre as


duas variáveis. Não se pode descartar um possível problema de

endogeneidade na estimação estatística. De qualquer forma, é

importante ressaltar que não parece haver preferência à concessão de

medidas para setores que estão temporariamente fragilizados.

A segunda variável de maior impacto indica que há maior

probabilidade de concessão de medidas a setores com alta participação

no emprego e manifesta preocupação em proteger esses empregos.

A terceira mais relevante é o fato de o processo ter sido aberto por

associação empresarial. De certa forma esse resultado é induzido pela

própria legislação nacional. Os artigos 34 e 37 do Decreto 8.058, de

2013, exigem que a petição seja apresentada pela totalidade dos

produtores nacionais do produto em questão ou por parcela significativa

deles. Logo, setores com maior capacidade de organização, que possuam

associação ou sejam mais concentrados deveriam conseguir apresentar

mais pleitos. Isso mostra que a regulamentação nacional já traz um

direcionamento protecionista e enviesado a favor de setores

politicamente mais organizados.

Também aparecem como relevantes o grau de penetração de

importações no setor que obteve a proteção e o fato de o país-alvo da

medida ser a China.

Gráfico 3: Efeitos marginais da probabilidade de aplicar AD

Fonte: Kannebley, Oliveira e Remédio (2021).

Em suma, as evidências proporcionadas pelo estudo de Kannebley,

Oliveira e Remédio (2021) demonstram que a política antidumping no

Brasil no período recente (de 2007 a 2016) focou sua atuação não
apenas no fornecimento de proteção especial a setores em que as

importações representassem risco competitivo às empresas industriais

nacionais, mas também foi influenciada politicamente por interesses

setoriais específicos. Isso representou custo para os demais setores da

indústria, que compram insumos daqueles que têm seu mercado

protegido. Não se trata, pois, de proteção generalizada à indústria, mas a

alguns de seus segmentos, em detrimento dos demais.

Por outro lado, essa política buscou sinalizar no âmbito internacional

uma postura mais agressiva e com credibilidade, atuando mais

fortemente contra grupos de indústria e países que frequentemente

peticionam e produziram investigações contra o Brasil.

4. OS EFEITOS DAS MEDIDAS ANTIDUMPING


DO BRASIL SOBRE SUAS IMPORTAÇÕES
A literatura discorre sobre diferentes possibilidades de efeito do uso das

medidas AD sobre os fluxos unilaterais de comércio entre os países, e

que devem depender, em última instância, do arcabouço institucional e

legal que rege a aplicação dos direitos AD. Essas medidas podem surtir

diferentes efeitos sobre as importações, conforme abordado na seção 2:

de destruição de comércio, que reflete a diminuição das

importações provenientes dos países nomeados (ou seja,

aqueles países que não foram sujeitos à investigação);

de investigação, que mostra a diminuição das importações

provenientes dos países nomeados durante o período de

investigação (que dura, em média, um ano);

de criação de comércio, que reproduz o aumento das

importações provenientes dos países não nomeados;

de reputação/colusão, demonstra o aumento dos preços de

importação cobrados pelos países não nomeados e nomeados,

seja porque os nomeados passam a ter menos competição, seja

porque a medida AD sinaliza um limite mínimo de preços

aceitável para todos os países;


de desvio de comércio, se dá quando as importações de países

nomeados são simplesmente substituídas por importações de

países não nomeados.

Considerando que o ano de 2007 pode ser apontado como um ponto de

inflexão na política para medidas AD no Brasil e levando em conta a

atuação com o viés protecionista apontada pela literatura, bem como as

evidências produzidas em Kannebley, Oliveira e Remédio (2021), é

interessante verificar seus efeitos sobre as importações brasileiras.

Calliani e Kannebley (2021) analisam esses possíveis efeitos sobre as

importações industriais brasileiras entre 1999 e 2016. A descrição do

modelo estimado está no Anexo II.

Os resultados foram obtidos a partir de duas amostras. A primeira

considerou os casos de medidas implementadas entre 1999 e 2006

(denominado de período de uso moderado do AD). Verificou-se nesse

período que o efeito de destruição de comércio foi mais do que

compensado pelo desvio de comércio a países não nomeados. Isso

implicou crescimento dos valores importados após a abertura das

investigações AD, resultante do aumento das importações oriundas dos

países não nomeados.

Já os resultados das estimações para o período de 2007 a 2014

demonstraram um padrão distinto do impacto das medidas AD sobre as

importações. A partir de 2007, quando se intensificou seu uso pelo

Brasil e o país se lançou ao protagonismo internacional, predominou o

efeito de destruição sobre o de criação de comércio, resultando em

redução líquida das importações.

Os Gráficos 4 e 5 representam o comportamento ao longo do tempo

dos impactos das medidas AD em cada um dos períodos sobre o valor


506
das importações . Nesses gráficos é possível observar melhor o efeito

das medidas AD ao longo do tempo, a contar do primeiro ano após o

início da investigação, até o quinto.

Na estimação para a amostra de 1999 a 2006, observa-se que o

impacto negativo sobre as importações dos países nomeados segue até o

quinto ano, mas é compensado pelo efeito das mesmas medidas sobre os
países não nomeados, fazendo que o efeito total seja positivo ao longo

período. Já para o período de 2007 a 2014, o comportamento das

importações dos países nomeados e não nomeados apresentam forte

associação positiva, com uma reação às medidas mais acentuada até o

segundo ano após a implementação da medida AD, o que leva a um

impacto ligeiramente negativo ao longo do tempo sobre o total das

importações.

Gráfico 4: Impacto das medidas AD sobre o valor importado: 1999-2006

Fonte: Calliani e Kannebley (2021).

Gráfico 5: Impacto das medidas AD sobre o valor importado: 2007-2014

Fonte: Calliani e Kannebley (2021).

No período de 1999 a 2006 o crescimento das importações deveu-se à

resposta das quantidades importadas. Observou-se a destruição de

comércio a partir do terceiro ano e a criação a partir do segundo ano, o


que fez com que as quantidades totais de importação (total de países)

tenham crescido em média à taxa de 60% entre o segundo e o quinto

após o início das investigações. Ademais, praticamente não houve efeito

das medidas sobre os preços de importação cobrados pelos países

nomeados e não nomeados.

Nos resultados das estimações para o período de 2007 a 2014 as

quantidades importadas foram reduzidas a uma taxa média de 16% e as

importações originárias dos países não nomeados não compensaram a

destruição de comércio ocorrida. Por outro lado, no segundo período,

notou-se um efeito positivo sobre os preços de importação cobrados

tanto pelos países nomeados quanto pelos países não nomeados —

aumentaram em média nos cinco anos à taxa média de 11%. Evidências

de que os preços, de países nomeados e não nomeados, responderam a

medidas AD aplicadas fazem possível supor que tenham prevalecido os

efeitos de investigação e reputação/colusão anteriormente descritos.

Esses efeitos podem ter sido reflexo da drástica mudança de perfil das

firmas peticionárias — passaram a adotar o hábito de renovar

sistematicamente os pedidos de investigação, sobretudo com a finalidade

de dissuadir as importações em caráter permanente — e da maior

tendenciosidade de forma geral do sistema AD. Ou seja, a intensificação

dessa política comercial ao mesmo tempo que a tornou mais eficaz na

redução das importações e na substituição pela produção nacional,

também mostrou-se mais deletéria ao comércio exterior brasileiro.

5. EFEITOS SOBRE PRODUTIVIDADE E PODER


DE MERCADO
A fim de captar um efeito sistêmico das medidas AD sobre a indústria,

Kannebley, Remédio e Oliveira (2020) estimam os impactos das

medidas antidumping sobre a produtividade das firmas e suas margens

de lucro. Esse é um ponto essencial, pois ganhos de produtividade são a

fonte mais relevante de crescimento econômico sustentado de longo

prazo. Políticas públicas que afetam negativamente o crescimento da

produtividade representam um peso negativo sobre o potencial de

crescimento da economia.
Considerando novamente o ponto de inflexão para o uso de medidas

AD, Kannebley, Remédio e Oliveira (2020) fazem uso de informações

de comércio das ações antidumping aplicadas a firmas estrangeiras

(peticionadas por firmas brasileiras) e microdados para 31.445 empresas

industriais brasileiras para o período de 2003 a 2013. O objetivo do

estudo foi identificar o impacto das AD sobre a produtividade total dos

fatores e sobre a margem de lucro (markup). Alguns detalhes da

estratégia de estimação estão descritos no Anexo III. Foram obtidos

resultados para todas as empresas protegidas pelo AD (amostra geral) e

para a comparação entre as protegidas e um grupo de controle não


507
protegido (amostra pareada) .

A Tabela 3 apresenta estatísticas descritivas dos coeficientes

estimados. As estimativas para a amostra geral indicaram uma redução

da produtividade em torno de 9% na média e 5% na mediana durante o

período analisado para as firmas protegidas por medidas AD, enquanto

as estimativas da amostra pareada indicaram uma redução de 14% e

11%, respectivamente.

No caso das estimativas produzidas a partir da amostra geral, o

impacto sobre o markup das firmas industriais foi um aumento de 1,5%

na média e 2,3% na mediana, enquanto para a amostra pareada foi igual

a 2,6% e 3,6%, respectivamente. Quando são considerados apenas os

coeficientes estatisticamente significantes, esses valores são ligeiramente

superiores.

De modo geral, os resultados apresentados demonstram que os setores

beneficiados pela proteção concedida por medida AD tiveram sua

produtividade reduzida com relação aos setores não protegidos, bem

como aumentaram sua margem de lucro após a implementação dessas

medidas.

Tabela 3: Resumo das estimativas de impacto

Produtividade Markup

Amostra Todos Sign. a 5% Todos Sign. a 5%

Geral
Produtividade Markup

média -8,9% -14,4% 1,5% 2,6%

mediana -5,1% -10,7% 2,3% 2,6%

Pareada

média -11,3% -14,8% 2,6% 3,8%

mediana -12,2% -14,6% 3,6% 4,5%

Fonte: Kannebley, Remédios e Oliveira (2020)

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A discussão sobre antidumping passa também pelo debate de ser ou não

adequado penalizar o exportador estrangeiro por ser capaz de oferecer

preços baixos ao consumidor nacional. Essa prática não é

necessariamente predatória, no sentido de tentar expulsar do mercado os

concorrentes locais. Pode tratar-se de uma simples prática de

discriminação de preços, ou seja, oferta de preços mais baixos a

consumidores de países com renda menor e de preços mais altos onde o

poder de compra seja maior. Essa segmentação é positiva, pois significa

aumento de bem-estar agregado, e não deveria ser coibida por políticas

públicas.

Além disso, como argumentou-se ao longo do texto, é muito pouco

provável a prática de concorrência predatória em mercados abertos, pois

a eliminação dos concorrentes locais e elevação dos preços

automaticamente atrairá novos competidores para o mercado. Seria

muito difícil e custoso para a empresa predadora obter e manter a

condição de monopolista. Ou até mesmo de roubar fatias de mercado de

forma permanente.

De acordo com a lógica puramente econômica não há razão clara para

o uso de medidas antidumping. Não obstante, por fatores políticos,

observa-se que a ampliação do seu uso contingente reflete uma

tendência internacional. Tanto países desenvolvidos quanto países

emergentes, têm feito uso expressivo de tal instrumento.


Ao longo dos anos 2000 as medidas antidumping, como instrumento

de proteção contingente da indústria nacional, foi parte integrante do

fortalecimento de uma política comercial protecionista que até hoje

subsiste no Brasil.

Atualmente há um esforço de redução de excessos e abrandamento da

política. Antes da abertura dos processos está sendo feita uma análise de

interesse público para averiguar se a totalidade da economia sofrerá

efeitos adversos. Isso significa colocar o interesse da coletividade à

frente do interesse específico das firmas e setores que demandam

proteção.

A despeito desses aperfeiçoamentos, é importante dar atenção aos

sinais protecionistas emitidos por todo o conjunto das políticas

industrial e comercial. Como foi demonstrado, a inflexão na aplicação

das medidas antidumping levou a uma leitura da efetividade das firmas

que produziu impactos mais restritivos sobre o comércio e

possivelmente deletérios sobre a indústria, visto que a maior parte dela é

prejudicada, por estar na posição de compradora de insumos a alto custo.

O uso das medidas antidumping deve, portanto, estar de acordo com o

conjunto de medidas e políticas complementares a fim de estimular o

avanço da eficiência produtiva. É fundamental sua integração a uma

política de comércio exterior brasileiro que tenha o aumento de bem-

estar como objetivo amplo em sua formulação.

ANEXO I: MODELOS DE PROBABILIDADE PARA


INVESTIGAR E APLICAR AD
Kannebley, Oliveira e Remédio (2021) estimam as equações A.1 e A.2,

que representam a probabilidade de investigação e aplicação da medida

AD respectivamente contra a classe industrial i do país j no período

corrente t. Os modelos podem ser expressos com a seguinte forma geral:

(A.1)

(A.2)

em que:
seria o vetor composto das variáveis do modelo de Prusa e Skeath

(2005);

são variáveis de controle setorial e variáveis dummies de ano.

ANEXO II: MÉTODOS DE ESTIMAÇÃO PARA


IMPACTO SOBRE IMPORTAÇÕES DAS MEDIDAS
AD
Calliani e Kannebley (2021) estimam modelos para valores, preços e

quantidades das importações a países nomeados e não nomeados nas

investigações a partir da seguinte forma geral:

(A.3)

(2)

em que é a variável dependente do conjunto país-produto-caso no

ano (valores, preços e quantidades); é a variável dependente

defasada em um período; é um escalar; é um vetor de ordem x

das demais variáveis independentes; é um vetor de ordem x dos

parâmetros respectivos a se estimar e é o termo de erro aleatório do

conjunto no período . Assume-se um modelo com componente de

erro simples, em que denota o termo de erro específico-

individual não observado e , o termo de erro idiossincrático

remanescente. O efeito individual específico pode representar vantagens

comparativas que levam a um crescimento sustentado de determinada

fonte de exportação.

Reescrevendo-se (A3) com o operador de diferença, elimina-se o

componente , gerando correlação entre e Para sua estimação

são utilizadas variáveis instrumentais.


(A.4)

São estimados dois conjuntos de regressões em que, para o primeiro

conjunto de regressões, as variáveis explicativas em envolvem

variáveis dummy de investigação AD, que tem por objetivo capturar o

efeito total das medidas AD ao longo de um período de cinco anos. No

segundo conjunto de regressões, as variáveis explicativas em

envolvem variáveis dummy de investigação interadas com as variáveis

dummy de resultado das medidas AD (aplicada, rejeitada e

compromisso de preços) e tem por objetivo capturar o efeito das

medidas AD por tipo de resultado.

ANEXO III: PROCEDIMENTOS ADOTADOS PARA


ESTIMAÇÃO DE IMPACTO SOBRE
PRODUTIVIDADE E MARKUP
Kannebley, Oliveira e Remédio (2020) estimaram medidas alternativas

de produtividade do trabalho e produtividade total dos fatores, bem

como de markup utilizando a metodologia De Loecker (2011) e De

Loecker e Warzynski (2012), além do cálculo de margem preço-custo.

De posse dessas medidas como variáveis dependentes de equações,

utilizando uma abordagem de diferenças em diferenças, estimaram os

impactos da aplicação de medidas AD sobre a produtividade e o markup

das empresas industriais pertencentes aos setores protegidos por tais


508
medidas para duas amostras, uma geral e outra pareada . A

especificação de diferença em diferenças para mensurar o impacto da

medida AD sobre a produtividade e o markup da firma são dados pela

equação:

(A.5)

em que , é o efeito fixo, são efeitos temporais,

é uma variável dummy que captura as firmas que receberam

proteção antidumping, X é conjunto de variáveis de controle, composto

de variáveis dependentes defasadas e o logaritmo da razão capital-

trabalho, e é o erro aleatório.


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492. É importante destacar que, pela aplicação das medidas AD mais associada a produtos

industrializados, e também em razão de maior disponibilidade de dados para setores e firmas

industriais, os referidos estudos não permitem a extensão de seus resultados a todo conjunto da

economia brasileira ou ainda a realização de extrapolação para cálculo de efeitos de bem-estar

agregados.

493. Fonte: https://www.wto.org/english/res_e/booksp_e/gatt_ai_e/art6_e.pdf

494. Em termos de preços, a margem de dumping para o bem i, , é a diferença entre o preço

do exportador em seu mercado doméstico, , e o preço recebido na exportação para o mercado j,

líquida dos custos de transporte t, , isto é: . Segundo Markusen et al.

(1995), na terminologia legal, o custo médio é denominado como o valor justo.

495. Segundo informe da Organização Mundial do Comércio, disponível em:

https://www.wto.org/english/news_e/news16_e/trdev_22jul16_e.htm.

496. Na nova estrutura regimental do Ministério da Economia, o Decom passou a ser

denominado Subsecretaria de Defesa Comercial e Interesse Público (SDCOM), porém

permaneceu vinculado à Secretaria de Comércio Exterior do Ministério da Economia (Secex).

497. Segundo Araújo (2017), as firmas fabricantes de PVC (mercadoria básica do setor de

químicos), por exemplo, desenvolveram o hábito de renovar sistematicamente os pedidos de

investigação, mesmo cientes de que viriam a falhar em assegurar a aplicação dos direitos AD

[vide a hipótese do “peticionário de processo” em Araújo (2017)].

498. Fonte: https://www.wto.org/english/tratop_e/adp_e/AD_InitiationsBySector.pdf.

499. A ideia de clube diferiria de uma retaliação simples na medida em que o pedido de

investigação para dumping de um país A sobre um país B não tivesse como contrapartida apenas

um pedido de investigação posterior de B contra o país A, mas que fosse acompanhado por

outros países que se relacionam comercialmente com A. Essas estratégias ganharam maior

destaque com a entrada nos novos usuários das medidas AD, que ajudaram a proliferar seu uso

como proteção contingente.


500. https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-retalia-costa- rica-e-taxa- importacao-

de -chocolates-e-chas-em-quase-28,70003521341.

501. Formalmente, trata-se de efeitos marginais médios, , em que essa

expressão é calculada para toda observação e se extrai a média dos efeitos marginais cada ,

sendo que aqui é uma função de distribuição logística.

502. Especificamente, o índice CR4 foi construído com base na razão entre o total de emprego

das quatro maiores classes setoriais e o total de emprego do grupo industrial. O coeficiente de

importações é a razão entre o total de importações e a produção industrial da classe industrial.

503. É importante notar que o artigo 15.a.ii do Protocolo de Acessão da China à OMC permitia

que metodologias alternativas fossem utilizadas na apuração do valor normal e de custos de

produtores/exportadores chineses, o que aumentava a probabilidade de constatação de prática de

dumping e, por isso, de aplicação de medidas antidumping.

504. A relação preço-custo é um indicador de poder de mercado, também conhecido como

índice de Lerner. O cálculo da margem preço-custo observável é dado pela razão entre lucro

bruto e receita bruta.

505. O gráfico não faz a devida correção para variáveis contínuas ou binárias. Para expressar

corretamente quanto implica a variação em 1% de uma variável contínua ou em log deve-se

calcular . No gráfico, as barras refletem apenas .

506. Foram estimadas equações para preço, valor e quantidade. Os comentários no texto se

referem a esses três impactos, mas por questões de espaço, a apresentação gráfica restringiu-se

apenas ao efeito sobre o valor importado.

507. Como o setor que peticiona antevê o benefício da proteção contingente, é razoável admitir a

existência de autosseleção no processo. A fim de controlar esse potencial problema de

endogeneidade foram definidos grupos de tratamento e controle por meio de escore de

propensão. Esse procedimento torna as empresas comparáveis por meio da aproximação das

características observáveis das firmas protegidas e não protegidas no período anterior à aplicação

da medida AD. O ponto de referência para o pareamento foi o ano de 2006, quando isso não

ocorreu.

508. Foram contabilizados, a partir de 2007, 22 novas classes Cnae beneficiadas por medidas

AD, constituindo um conjunto de setores em que é possível proceder uma análise que considere

o período anterior e posterior à aplicação da medida AD. Dessa forma, na análise com a amostra

pareada o período de 2003 a 2006 foi considerado um período pré-tratamento e o da aplicação

do tratamento a partir do ano de 2007.


CAPÍTULO 24
A POLÍTICA DE CONTEÚDO LOCAL
NA EXPLORAÇÃO DE PETRÓLEO
Gustavo Guimarães e Marcos Mendes

INTRODUÇÃO
Este capítulo mostra que a política de conteúdo local na exploração de

petróleo existente no Brasil até 2017 era uma política empobrecedora e

danosa: diminuía investimentos, elevava custos, destruía empregos e

tolhia o potencial de geração de renda pública e privada.

Políticas de conteúdo local (PCL) são a proteção concorrencial e/ou

subsídio às empresas de um país cujo objetivo é garantir vantagem em

relação aos concorrentes internacionais. Têm grande apelo político, pois

baseiam-se na ideia de empregar os cidadãos nacionais, em vez de

“exportar empregos para a China”, além de dar suporte ao crescimento

das empresas e da tecnologia nacional, industrializando o país.

Quando relacionadas à exploração de recursos naturais, como no caso

a ser estudado aqui, há também o argumento de que é preciso evoluir na

escala de complexidade das atividades econômicas. Por exemplo, em vez

de ser exportador de petróleo bruto, o país deveria se esforçar para

refiná-lo e desenvolver setores industriais usuários dessa matéria-prima,

que supostamente seriam mais lucrativos e gerariam mais efeitos


509
multiplicadores na cadeia produtiva.

Há, contudo, custos econômicos nessa estratégia. Não é incomum que

eles superem os benefícios, como será mostrado ao longo do capítulo. A

seção 1 descreve as características da PCL, os seus prós e contras. A

seção 2 expõe a PCL executada no setor de petróleo e gás no Brasil nas


últimas décadas. A seção 3 analisa os problemas dessa política. A seção

4 apresenta evidências quantitativas dos impactos negativos. A seção 5

descreve a reforma realizada em 2017 e seus resultados positivos. A

seção 6 analisa a economia política das exigências de CL e as pressões

para o desmonte das reformas recentes. A seção 7 conclui.

1. POLÍTICAS DE CONTEÚDO LOCAL


As PCLs podem ser sintetizadas como o estabelecimento de regras
510
relativas à quantidade e/ou preço , aplicáveis à demanda doméstica de

produtos industriais que visem à produção nacional. Pode ter caráter

indicativo ou natureza compulsória. Portanto, permitem estabelecer uma

reserva de mercado para empresas locais frente às estrangeiras. As

exigências de CLs mais usuais se aplicam a compras governamentais. É

comum o uso da chamada “margem de preferência”, na qual a empresa

nacional pode vencer uma licitação mesmo apresentando um preço

maior que o do competidor estrangeiro. Assim, no que tange ao estímulo

da demanda via preço, a margem de preferência é operada de maneira

semelhante a uma tarifa de importação ad valorem (tributa de acordo


com o valor do bem ou serviço), pois permite que o preço do bem ou

serviço local seja superior ao de origem internacional a ele semelhante

até um diferencial de preço determinado (em termos percentuais).

Também é usual a exigência de um percentual mínimo de fornecedores

domésticos em programas públicos específicos (construção de rodovias,

gastos militares, etc.).

Também existe política de CL imposta a empresas privadas.

Financiamentos públicos subsidiados podem ter como contrapartida a

obrigação, por parte da empresa beneficiária, de adquirir insumos de

empresas nacionais. Concessões para exploração de recursos naturais —

petróleo, minério, geração de energia — podem igualmente conter a

exigência de empregar trabalhadores nacionais e adquirir insumos nas

empresas nativas. Portanto, o estímulo do mercado doméstico se dá por

meio de quantidades, no qual se destaca a aplicação de metas ou

exigências (índices mínimos em termos percentuais) de conteúdo local,

ou seja, uma parte ou a totalidade da demanda de insumos deve ser

atendida com produtos locais.


Em países com restrições fiscais, as exigências de CL impostas a

empresas privadas são atrativas para os políticos, pois lhes permitem

fazer política pública sem onerar diretamente o Tesouro. Os custos

recaem sobre as empresas e são repassados, de forma não transparente, a

toda a sociedade.

De modo similar, quando a imposição de CL recai sobre uma grande

empresa estatal, como no caso da Petrobras, que sempre foi o principal

ator do mercado de petróleo no Brasil, acaba havendo espaço para que

parte do caixa da empresa seja aplicado com fins de política pública e

não de gerar retorno ao acionista. A estatal passa a ser gerida a partir de

um misto de objetivos empresariais e de governo.

Na prática, exigências de CL constituem barreira não tarifária ao

comércio internacional. O Brasil persegue, há décadas, uma política de

industrialização pela via da proteção das empresas nacionais, fechando-

se ao comércio, como mostra o Capítulo 22 deste livro. Por isso, temos

diversas políticas de CL.

A nova lei de licitações (Lei 14.133/2021), por exemplo, garante

margens de preferência a empresas nacionais nas compras


511
governamentais . O BNDES financia, com juros subsidiados, a

aquisição de bens de capital produzidos por empresas nacionais

cadastradas junto ao Banco. Benefícios fiscais e da Zona Franca de

Manaus estão vinculados a compromissos de nacionalização de


512
insumos .

Em um levantamento internacional de exigências de CL, Hufbauer et

al. (2013) identificaram 117 medidas propostas ou implementadas a

partir de 2008. Dessas, 15 ocorreram no Brasil, que ficou em primeiro

lugar em número de iniciativas de CL.

No cenário internacional, a gradativa perda de competitividade de

indústrias tradicionais dos EUA em relação a concorrentes asiáticos,

como no caso da siderurgia, levou à ampliação desse tipo de política

pela maior economia do mundo. O movimento se acirrou a partir da

crise econômica de 2008, devido ao desemprego concentrado nas

regiões que hospedam as indústrias mais afetadas pela perda de


513
competitividade . Esse movimento dos EUA tem sido usado como

justificativa política para legitimar a aplicação de CL por outros países.

Especificamente no setor de petróleo, há duas experiências

consideradas bem-sucedidas na aplicação de exigências de CL —

Noruega e Reino Unido — que acabam inspirando e justificando a


514
aplicação dessas medidas por outros países .

Mesmo a mais bem-sucedida política de CL implica custos. Significa

obrigar o governo ou empresas a pagar mais caro por seus insumos, que

também poderão ser de pior qualidade, pelo menos nos estágios iniciais

da política, até que a indústria local consiga atingir níveis internacionais

de qualidade. Há risco de atrasos no fornecimento, impondo custo de

capital em setores como o de petróleo, em que há grandes investimentos

iniciais e o fluxo de receitas só ocorre anos depois, o que impacta a taxa

de retorno e a viabilidade dos projetos.

O fato de que as exigências de CL são muitas vezes estabelecidas na

forma de quotas (aquisições mínimas, percentuais do total adquirido,

etc.) é outro fator de ineficiência. Os preços, em uma economia de

mercado, são sinalizações importantes que ajudam as empresas a definir

sua combinação ótima de insumos e produtos. Ao desconsiderá-los, a

legislação acaba impedindo que as empresas minimizem os seus custos,

por meio da escolha de insumos e estratégias alternativas de


515
produção .

Uma política bem-sucedida é aquela que consegue gerar um fluxo

futuro de benefícios maior que os custos de sua implantação. E isso

requer muito mais que a simples proteção às empresas nacionais. É

preciso torná-las competitivas e libertá-las da necessidade de proteção.

O que requer a coordenação das exigências de CL com outras políticas,

como a de pesquisa e desenvolvimento, articulando empresas e governo

com instituições de pesquisa e universidades, buscando metas e prazos

claros para os ganhos de produtividade. Também é necessário o acesso a

insumos importados e uma estratégia de proteção que seja finita (de

forma crível), para que os beneficiários tenham incentivos de sair do

estágio inicial na “incubadora”.


Condição essencial para a boa condução integrada dessas políticas é

que o governo tenha tradição de transparência, probidade, eficiência e

baixa captura por interesses privados. É grande o espaço para

descaminho quando se combinam: (a) decisões administrativas em

substituição a regras de mercado, (b) setores produtivos previamente

escolhidos, (c) benefícios concentrados em alguns atores e (d) custos

não transparentes que se repartem de forma difusa por toda a sociedade.

As chances de sucesso aumentam quando já existem vantagens

comparativas prévias que possam ser exploradas. No caso da Noruega,

por exemplo, uma já desenvolvida indústria naval voltada para a pesca

recebeu incentivos para se especializar em equipamentos de exploração


516
de petróleo em mar .

Países com tradição de boa governança pública e baixa corrupção,

como Noruega e Reino Unido, têm maiores chances de retirar resultado

positivo desse tipo de estratégia. Países de pior governança, por sua vez,

têm maior risco de imporem custos à sociedade, apenas para gerar

ganhos a grupos específicos. Ganhadores tradicionais desse tipo de

política são empresas ineficientes (as eficientes não precisam de

proteção) e seus trabalhadores, empresas bem conectadas ao governo e

políticos que têm financiamento e base eleitoral relacionada aos grupos

protegidos.

517
De fato, a literatura mostra que políticas de CL em países de menor

desenvolvimento institucional, como Angola, Nigéria, Cazaquistão,

Indonésia e Arábia Saudita, são mais voltadas para gerar emprego e

ganhos de curto prazo, sem maior capacidade de gerar inovação, ganhos

de produtividade e diversidade do sistema produtivo. Mesmo em um

país desenvolvido como os EUA, os checks and balances


institucionais não têm sido capazes de impedir o aprofundamento da

política de proteção aos ineficientes e bem conectados produtores de

ferro e aço.

Outras políticas horizontais tendem a ser mais eficientes na promoção

do investimento e crescimento econômico de longo prazo, porém

demoram mais a apresentar resultados e dividendos eleitorais, como

melhorar o ambiente de negócios, investir na educação em geral e no


treinamento dos trabalhadores, ter um sistema tributário simples e
518
equitativo ou investir em infraestrutura e logística .

Em países onde há grande número de acordos internacionais de

comércio, os privilégios dados às empresas nacionais acabam se

estendendo às empresas dos parceiros comerciais, mitigando os efeitos

da restrição. É o que ocorre, por exemplo, com a política buy


American dos EUA, de margem de preferência nas compras públicas.

Em nações mais fechadas, como o Brasil, essa possibilidade diminui,

aumentando o grau de impositividade e as distorções decorrentes das


519
exigências de CL .

Uma fragilidade central é que as restrições administrativas não

conseguem contemplar a complexidade das relações econômicas em

uma economia globalizada. O modelo de negócio vitorioso das últimas

décadas é o da formação de cadeias globais de valor, em que empresas

situadas em diversos países se especializam em partes diferentes de um


520
processo produtivo .

Isso implica que uma empresa eficiente, capaz de competir no mercado

internacional, tende a ser uma grande importadora, pois conta com os


521
insumos produzidos por outros participantes da cadeia global . Impor

exigências de CL restringe o acesso a insumos importados, bloqueando a

participação nas cadeias globais de empresas que têm de cumprir quotas

de CL, dificultando que elas atinjam a fronteira de produtividade.

O Brasil tem um exemplo interessante: a Embraer, um dos poucos

casos bem-sucedidos de indução de criação de empresa de padrão

internacional. Ao mesmo tempo que é uma das maiores exportadoras

industriais do Brasil, a Embraer é também uma grande importadora. Por

nunca ter sido submetida a requisitos de CL, ela sempre teve liberdade

para importar componentes de qualidade, especializando-se em

segmentos da indústria aeronáutica em que tem vantagens comparativas,

como o design de aeronaves. Os custos fiscais e econômicos da criação


da Embraer foram contrabalançados por uma estratégia de conexão com
522
a pesquisa e desenvolvimento e a posterior privatização . Em

contraposição, a indústria naval brasileira tem sido objeto de sucessivos

programas de incentivos e extensivas políticas de CL, não tendo sido


capaz de se consolidar, justamente pela falta de foco e isolamento do

processo produtivo em relação ao resto do mundo.

2. A POLÍTICA DE CONTEÚDO LOCAL


APLICADA AO SETOR DE PETRÓLEO NO
BRASIL
Nos anos 1970, a Petrobras iniciou uma política de desenvolvimento de

fornecedores. A ideia do governo federal era usar uma empresa estatal

monopolista para financiar uma política de substituição de importações.

Foram estabelecidos programas de aquisição e transferência de

tecnologia, normas e padrões de qualidade, qualificação dos

fornecedores e compras de insumos a preços acima dos praticados no

mercado internacional. Um sistema de cadastramento estabelecia uma

barreira protetiva aos fornecedores nacionais. A partir de 1986, o

programa focou a capacitação tecnológica para atividades de exploração

e produção em águas profundas, a fim de lidar com as novas descobertas


523
da empresa .

Na segunda metade da década de 1990, com o fim do monopólio


524 525
estatal e a nova Lei do Petróleo , instituiu-se uma política de CL

aplicável às empresas públicas e privadas que viessem a participar das

licitações de campos de exploração. Essa política foi se tornando

gradativamente mais impositiva, restritiva e burocratizada, o que

potencializou os seus efeitos colaterais negativos.

Na primeira rodada de concessões, em 1998, não havia cláusula de

CL. Em seguida, passou-se a adotar a recomendação de preferência a

empresas nacionais nos casos em que custo, qualidade e prazo

estivessem no mesmo padrão dos fornecedores internacionais. As

empresas definiam livremente quais partes da produção seriam

abastecidas por produtos nacionais.

Em 2003, quando se realizou a quinta rodada de licitações, foram

instituídos percentuais mínimos de CL para cada bloco específico de

exploração: uma empresa com dois ou mais blocos teria que cumprir as

exigências em cada um deles.


Além disso, foi estabelecida diferenciação nas exigências para

exploração em águas profundas, águas rasas e em terra. Criaram-se

diferentes exigências para a fase de exploração (prospecção do petróleo)

e desenvolvimento (efetiva extração do óleo).

Maiores percentuais de CL passaram a contar pontos no processo

licitatório. Eram previstas multas por descumprimento. Até 2004,

quando se deu a sexta rodada, não havia fiscalização governamental

quanto ao cumprimento dos compromissos de CL. As próprias empresas

declaravam a origem de seus insumos.

A política ficou mais rígida, detalhada e complexa a partir da sétima

rodada, em 2005. Passou-se a considerar a localização dos blocos

segundo quatro critérios: em terra, em águas rasas com lâmina de até

100 m, em águas rasas com lâmina entre 100 e 400 m e em águas

profundas. Para cada localização do bloco havia uma planilha que

definia o percentual mínimo de cada item e subitem. No total, eram mais

de 90 insumos para os quais se deveria especificar qual o percentual de


526
aquisição nacional, o que impunha rigidez ao processo produtivo .

Era preciso cumprir, ao mesmo tempo, um percentual global de CL

para o empreendimento, e cada um dos percentuais estabelecidos para

itens e subitens. A empresa participante do certame licitatório tinha

liberdade apenas de distribuir pesos entre os itens e subitens.

A Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis

(ANP), designada para fiscalizar o cumprimento da regra, não tinha

condições operacionais de fazê-lo. Por isso, foi criada uma cartilha de

conteúdo local e a Agência passou a habilitar empresas certificadoras

que avaliariam o cumprimento da regra pelos produtores de petróleo.

Introduziu-se, com isso, um complexo sistema de fiscalização e

auditoria, além de se criar um mercado de certificação que não agregava

valor à sociedade, exercendo atividade de cunho cartorial. A Figura 1

ilustra o processo de certificação.

Figura 1: Processo de certificação de cumprimento de requisito de


conteúdo local
Fonte: ANP.

Em paralelo, abriu-se a possibilidade de isenção de cumprimento dos

compromissos contratuais de CL ( waiver), nos casos em que a empresa


demonstrasse impossibilidade de adquirir o insumo com preço, prazo ou

qualidade nos padrões internacionais. O processo de waiver, contudo,

não foi imediatamente regulamentado, gerando ampla margem de

discricionariedade à autoridade pública e de contestação pelas empresas

protegidas. O resultado foi o aumento do litígio e a consequente

paralisação de empreendimentos.

3. OS PROBLEMAS DA POLÍTICA DE
CONTEÚDO LOCAL VIGENTE ATÉ 2017
O principal problema de se instituir uma alta exigência de CL para

exploração de petróleo, em pleno século 21, é que se está impondo à

sociedade um custo para construir uma indústria voltada para o passado.

O mundo está em busca de energias alternativas, que permitam enfrentar

os desafios do aquecimento global. O petróleo está fadado a perder

relevância nas próximas décadas.

A prioridade dos países que têm grandes reservas deve ser explorá-las

o mais rápido possível, sob pena de ver seus ativos minerais perderem

valor em futuro próximo. Impor custos e incerteza jurídica às empresas

exploradoras significa reduzir o ritmo de extração de petróleo, o que leva


a menos pagamento de royalties e impostos ao governo e a menor

geração de emprego e renda.

Uma indústria de ponta no setor de petróleo será de pouca utilidade

futura. Uma estratégia de industrialização ligada ao petróleo fazia

sentido nos anos 1960 e 1970, quando Noruega e Reino Unido fizeram

suas apostas. Não parece mais ser o caso.

Quanto à política propriamente dita, não havia, e na nova versão pós-

2017 continua não havendo, um cronograma de redução da proteção aos

fornecedores nacionais. As exigências têm caráter permanente. A falta

de perspectiva de enfrentar a concorrência internacional desestimula os

esforços de ganhos de produtividade, tornando a política uma simples

proteção de empresas ineficientes.

Quando essa proteção ocorre em setores oligopolizados ou

monopólios, o problema se agrava. À falta de concorrência externa se

agrega a baixa concorrência interna, reforçando os preços altos e a

qualidade baixa dos produtos oferecidos.

Outro problema é que a proteção é generalizada para os diversos elos

da cadeia produtiva, desde os fornecedores diretos, especializados em

produtos específicos para a indústria de petróleo, até os elos mais

longínquos, como os produtores de máquinas e equipamentos não

diretamente relacionados ao setor, aço ou produtos petroquímicos. Fosse

a proteção restrita aos fornecedores diretos, estes poderiam ter mais

acesso a insumos importados, o que permitiria avançar em qualidade e

produtividade. Ficando presos a toda a cadeia de produção nacional, as

chances de se tornarem competitivos são menores.

A proteção extensiva também tem o inconveniente de tornar a regra

procíclica. Em momentos de grandes investimentos, é preciso expandir a

capacidade de oferta de toda a cadeia produtiva do setor. Passado esse

pico, haverá capacidade ociosa. Como argumentam Almeida et al.

(2016, p. 39):

Os investimentos em exploração e produção, no país,

aumentaram de US$ 10 bilhões para US$ 40 bilhões, entre 2006

e 2013. Para atender o mesmo nível de conteúdo local, a cadeia


fornecedora deveria ter aumentado sua capacidade de produção

em quatro vezes, em sete anos. Ressalte-se que os investimentos

em exploração e produção caíram de US$ 40 bilhões, em 2013,

para cerca de US$ 25 bilhões, em 2015. Caso a cadeia tivesse

conseguido acompanhar o ritmo de crescimento da demanda,

estaria com uma capacidade ociosa maior do que já apresenta

neste momento.

Recorrer à importação, em lugar do fornecimento interno compulsório,

dá mais flexibilidade para lidar com a típica volatilidade de

investimentos e produção que ocorre no setor de petróleo.

O detalhamento de exigências, chegando ao nível de itens específicos

do processo produtivo, ignora o fato de que as tecnologias evoluem e

que, entre uma licitação e o efetivo início do desenvolvimento de um

campo de petróleo, pode se passar uma década. As empresas acabam

assumindo, no momento do leilão, o compromisso de usar equipamentos

que, na hora da efetiva realização do investimento, já estarão

ultrapassados.

A exigência de cumprimento de CL na fase de exploração também é

contraproducente. Essa é a fase de alto risco, em que as empresas

encontrarão ou não o óleo a ser explorado. Impor custos nessa fase

significa desestimular o esforço de prospecção, diminuindo o total de

óleo encontrado. O objetivo deveria ser incentivar o maior volume

possível de descobertas.

Percentuais elevados de CL podem gerar um salto descontínuo nos

diferenciais de qualidade, custo e prazo de entrega dos equipamentos.

Um exemplo está na construção de plataformas. O Brasil adquiriu

competitividade nos componentes que se agregam à plataforma (os

chamados módulos e topside), mas não é competitivo em produzir os

cascos, um mercado dominado por alguns poucos produtores mundiais.

Fixar um CL em percentual que possa ser cumprido pelos segmentos

eficientes da produção nacional não seria problemático, porque os

cascos podem ser importados e concluídos no Brasil. Mas, com um


percentual de CL muito alto, torna-se necessário entrar na construção
527
nacional dos cascos, derrubando a eficiência total do processo .

Para que se tenha uma ideia de qual seria esse tombo de eficiência,

basta ver o diferencial da produtividade brasileira em relação aos líderes

mundiais na produção de cascos à época de tais exigências no Brasil. A

produtividade do trabalhador de um estaleiro brasileiro equivalia a

apenas 36% da produtividade de um trabalhador de Cingapura, ou

menos de 1% da produtividade de um trabalhador japonês (Gráfico 1).

O custo em dólares por tonelagem bruta compensada (CGT, na sigla em

inglês) para navios tanque é quase três vezes maior no Brasil quando

comparados aos custos na China. Para navios de suprimento, é 1,5 vez

maior que o de Cingapura (Gráfico 2).

Gráfico 1: Tonelagem bruta compensada por empregado (2014)

Fonte: IBP com base em dados da IHS.

Gráfico 2: Custo em dólares por tonelagem bruta compensada (2014)

Fonte: IBP com base em dados da IHS.

Os estaleiros brasileiros não perdem apenas no custo para seus

concorrentes internacionais, mas também no prazo de entrega: a

plataforma P-66, produzida no Brasil, possuía um casco de 288 metros e

demorou 44 meses para ser entregue. A Prelude, fabricada na Coreia do


528
Sul, tinha casco de 488 metros e demorou 12 meses para ser entregue .
Ou seja, a Coreia do Sul produziu plataforma com o dobro do tamanho

em 30% do tempo gasto no Brasil.

De acordo com relatório do Brasil, IBP (2015), que analisou

detalhadamente a política de CL, a definição dos índices mínimos foi

feita a partir de consulta exclusiva às empresas interessadas, sem base

em estudos sobre a real capacidade de atendimento da demanda pela

indústria nacional. Em muitos casos, considerou-se haver no país

capacidade técnica para produzir determinado equipamento, mas não se

avaliou a capacidade de produzir a quantidade demandada pelo

mercado, nem tampouco o prazo em que a demanda seria atendida.

A burocratização do processo de aferição do cumprimento da regra —

por meio da certificação ilustrada na Figura 1 — somada à aplicação de

multas e a incertezas jurídicas do waiver acabaram gerando a

paralisação de processos exploratórios em decorrência de contencioso

administrativo e judicial em torno das multas.

Os dados mostram que a situação antes da reforma de 2017 estava se

mostrando insustentável. A ANP recebeu, entre 2011 e 2017, 230

pedidos de waiver. O potencial acréscimo de produção pelo

destravamento de projetos, caso se conseguisse “limpar a pauta” de

pedidos de waiver, era da ordem de 20 bilhões de barris de petróleo

equivalente. Nada menos que 150 poços estavam com exploração

impossibilitada por contenciosos em torno de questões de CL. Os

investimentos para exploração desses poços somavam US$ 10 bilhões,

mas os litígios em torno de cumprimento de regra de CL praticamente

os interromperam. Havia nesse grupo poços em áreas licitadas desde a

sétima rodada de licitações, realizada em 2005, petróleo que já deveria

estar sendo extraído há mais de uma década. Um único pedido de

waiver foi analisado e decidido na Agência após mais de quatro anos

do início das análises, o que já sinalizava o fracasso não apenas do

mecanismo de isenção, mas da própria política como fora desenhada.

Havia rigidez nas exigências. Mesmo que o concessionário

conseguisse waiver para um item ou subitem, isso não reduzia a

exigência global, obrigando-o a compensá-lo com o aumento de

aquisições nacionais em outros itens.


A demora no processo decisório acrescenta elevado custo de capital. O

caso do campo de Libra — a maior área de exploração do mundo — é

ilustrativo. O processo de contratação pela Petrobras se iniciou em

agosto de 2015. Ao longo de um ano, no qual nove estaleiros brasileiros

foram consultados, a Petrobras recebeu apenas uma proposta que atendia

as exigências. Em agosto de 2016, o processo foi cancelado devido ao

preço excessivo da proposta: 40% acima do mercado internacional.

Ainda em agosto de 2016, a Petrobras solicitou waiver ao

cumprimento do CL em Libra. Em setembro daquele ano, um novo

processo de contratação foi iniciado pela Petrobras, até então sem

resposta da ANP. Porém, entre janeiro e março de 2017, o processo foi

suspenso por liminar concedida ao Sindicato Nacional da Indústria de

Construção e Reparação Naval e Offshore (Sinaval).


Apenas em outubro de 2017, dois anos e dois meses após o início do

processo de contratação pela Petrobras, a ANP concedeu a isenção

parcial das exigências de CL, sem a qual Libra teria se tornado inviável

economicamente. A opção por aceitar o sobrepreço de 40% ou pagar o

valor da multa contratual pelo não cumprimento das exigências de CL,

que poderia superar US$ 630 milhões, provavelmente resultaria na

devolução do campo pelo consórcio.

4. EVIDÊNCIAS QUANTITATIVAS DE RELAÇÃO


CUSTO-BENEFÍCIO NEGATIVA
A política de CL tem dois efeitos em sentido contrário. Por um lado,

expandem-se as encomendas às empresas nacionais e o emprego: o

efeito indução. Por outro lado, há a redução do investimento total no

setor, provocado pelo sobrecusto imposto por essa política, que acaba

levando a menos encomendas e menos empregos: o efeito desestímulo.

Uma forma de avaliar o impacto líquido da política é tentar estimar o

tamanho dos efeitos indução e desestímulo.

Prieto (2014) considera três riscos incorridos por uma operadora que

precise cumprir exigências de CL: sobrecusto, atraso e multas por

descumprimento.
Seu estudo fez simulações, calibrando as variáveis-chave com valores

próximos das condições técnicas, de mercado e de CL vigentes no

Brasil. Comparou uma situação em que não há exigência de CL a uma


529
situação em que há essa exigência . A Tabela 1, a seguir, resume os

resultados, obtidos com intervalo de confiança de 95%.

Tabela 1: Resultado das simulações sobre o custo que as exigências de CL


impõem sobre o projeto de extração e produção de petróleo

Fonte: Prieto (2014).

No cenário sem exigência de CL, a taxa interna de retorno média

ficaria próxima a 19%. A probabilidade de o retorno do investimento

ficar abaixo de 10% seria zero. Já no cenário com CL, o retorno cairia

para a faixa de 10,5% a 11,1%, com uma probabilidade de 38,6% de ser

inferior a 10%.

Em termos de valor presente líquido (ou seja, o valor atual de todo o

fluxo futuro de receitas menos custos, descontados a uma taxa anual de

10%), o cenário sem CL indica um ganho entre US$ 2,5 bilhões e US$

2,6 bilhões. Já com a existência de CL, o valor presente passa a girar em

torno de zero, ficando entre US$ 188 milhões negativos e US$ 15

milhões positivos.

Com as regras vigentes antes de 2017, os riscos associados à exigência

de CL derrubavam significativamente as expectativas de retorno e,

portanto, eram determinantes para que uma operadora desistisse de dar

lance em um leilão ou abandonasse a exploração de campos já


530
adquiridos: um forte efeito desestímulo .

a
Almeida et al. (2016) comparam as regras vigentes até a 13 rodada

com uma mais flexível. Concluem que, para um dado conjunto de


especificações técnicas do reservatório hipotético a ser explorado, após

13 anos do início da exploração, o cenário com maior CL levaria a

investimento total no período de US$ 250 bilhões, ao passo que o

investimento no cenário com exigências mais flexíveis atingiria US$ 417

bilhões. Esse segundo cenário resultaria em 60 mil empregos a mais no

ano de pico da produção, bem como em uma geração de renda adicional

de US$ 1,1 bilhão naquele ano, sem contar os US$ 3 bilhões a mais em

receitas governamentais.

531
Resultado similar é obtido por estudo da IHS Energy , também

comparando cenários de CL mais rígido e mais flexível. A flexibilização

dos critérios de CL levaria a uma perda de 1,9 mil empregos indiretos,

que seria mais do que compensada pela criação de 72,7 mil empregos

diretos.

Em suma, o efeito desestímulo parece ter predominado em relação ao

efeito indução, resultando em impacto negativo agregado sobre a

economia.

5. A REFORMA DA POLÍTICA EM 2017


Em 2017, após muito esforço técnico e embates políticos, concretizou-se
532
uma reforma de simplificação da política de CL . Extinguiu-se a

custosa e burocrática necessidade de certificação e a longa lista de mais

de 90 itens e subitens que precisariam cumprir as exigências. Em

substituição, criou-se uma exigência global (sem especificar em que

tipos de equipamentos ou serviços deveriam ser aplicados) para a fase

de exploração e para três segmentos na fase de desenvolvimento: poço,

coleta e plataformas (Unidades Estacionárias de Produção — UEP).

A rigor, a mudança foi feita para a segunda e a terceira rodadas do


a
regime de partilha no pré-sal e para a 14 rodada do regime de

concessão. As regras poderiam ser mantidas ou alteradas nas rodadas

seguintes. Não estando fixadas em lei, podem sempre ser adaptadas ao

longo do tempo mediante edições de resoluções e outros instrumentos

infralegais. Reflexo do sucesso obtido nessas rodadas, o modelo se

manteve para as demais realizadas até 2019 (rodadas 4, 5 e 6 de partilha,

rodadas 15 e 16 de concessão), além de ser replicado nas rodadas de


áreas com acumulações marginais, oferta permanente e por meio de

aditivos em contratos passados. A Tabela 2 mostra os percentuais de CL

adotados na reforma regulatória.

Essas exigências, ainda que mais baixas e simples que as

anteriormente vigentes, ainda são elevadas. Por exemplo, a fase de

exploração deveria ter exigência zero, para que houvesse máximo

estímulo à prospecção. E o conteúdo de 25% dificilmente será atingido

pelas partes relativas a módulos e topside, implicando a necessidade

de produção nacional de elementos que poderiam e deveriam ser

importados.

Foi extinta a figura do waiver. Dada a alta burocracia e a incerteza

jurídica decorrente desse instituto, considerou-se melhor trabalhar com

exigências e multas mais baixas e, em troca, não criar a possibilidade de

isenção do cumprimento da regra.

Posteriormente, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE)

autorizou a ANP a estender as novas regras aos blocos licitados em

rodadas anteriores, como forma de resolver impasses em torno de

descumprimento e multas que estavam bloqueando a exploração


533
daquelas reservas .

Tabela 2: Índices de conteúdo local do novo modelo (%)

Fonte: Resolução CNPE 7/2017.

a a
A 14 e a 15 rodadas de licitações no regime de concessão e a

segunda, terceira, quarta e quinta rodadas no regime de partilha foram

sucessos inegáveis. E isso decorreu dos avanços no marco regulatório do

setor, composto principalmente da mudança na política de CL e do fim

da obrigatoriedade da Petrobras como operadora única dos campos do


534
polígono do pré-sal e pela extensão do Repetro .
Para ilustrar esse fato, é útil comparar o resultado do leilão do campo

de Libra (realizado antes das reformas) com os feitos sob a vigência das

novas regras, ambos no pré-sal brasileiro (regime de partilha). A Tabela

3 mostra que no caso de Libra não houve concorrência. Nenhuma

empresa se interessou em disputar com o consórcio da Petrobras, e isso

fez com que o consórcio “vencedor” oferecesse uma participação em

óleo igual ao mínimo fixado no edital: 41,65%.

Libra é um dos campos mais atraentes do pré-sal. E foi vendido em um

momento no qual o petróleo estava cotado a elevados US$ 109 por

barril. Mesmo em condições tão favoráveis, o leilão não atraiu

operadores além da Petrobras. E isso ocorreu justamente porque o marco

regulatório era inadequado e não atraia investimentos.

Já nos leilões realizados sob as novas regras (da segunda à sexta

Rodada de Licitação de Partilha da Produção), diversas empresas

participaram da disputa e chegou-se a pagar até 80% de óleo excedente

para a União, um ágio de 673,69% (Entorno de Sapinhoá, na segunda

rodada). Tal fato ocorreu em um cenário no qual o preço do barril do

petróleo era quase metade do que vigorava à época do leilão de Libra.

Como pode ser visto na síntese da Tabela 3, as rodadas realizadas após

a mudança regulatória no setor: i) atraíram mais interesse de empresas

em média; ii) geraram maior competição e lances nos blocos licitados;

iii) tiveram ágio médio acima de 200% em um cenário de preço do

petróleo no mercado internacional muito mais baixo e com ativos menos

atrativos que no caso de Libra.

Os resultados também foram exitosos nos leilões do regime de

concessão, fora do polígono do pré-sal. A primeira rodada com o novo


a
marco regulatório, a 14 Rodada, teve o maior bônus de assinatura total

da história até então e as duas maiores ofertas por bloco — cerca de R$

2,24 bilhões e R$ 1,2 bilhão (valores nominais). O ágio atingiu um

patamar histórico de 1.556%. Os recordes não ficaram apenas nos

valores e na participação governamental oferecidos, também

surpreenderam os números de empresas, países e lances.

a
No Gráfico 3, pode-se visualizar como o resultado da 14 Rodada de

Licitação em regime de concessão em 2017 foi expressivo. As rodadas


a
de licitações com resultado semelhantes foram a nona (2007) e 11

(2013), isso em um contexto de barril cotado acima de US$ 70 e US$


a
100, respectivamente. A 15 rodada foi ainda maior, arrecadando mais

que o dobro do sucesso do ano anterior. Apenas as três rodadas de


a a a
concessão após o novo marco (14 , 15 e 16 ), em termos de bônus de

assinatura, representaram mais do que todo o histórico entre a primeira e


a
a 13 (116%). Os principais fatores desse sucesso foram o

aperfeiçoamento regulatório e a qualidade dos ativos.

Tabela 3: Indicadores de resultado das rodadas 1 a 6 do regime de partilha


(2013-2019)

Fonte: ANP/SPL, conforme a Lei n° 12.351/2010, e IBP.

Gráfico 3: Arrecadação em bônus por rodada de concessão e preço do


petróleo

Fonte: ANP, IBP, EIA/DOE.

Notas: A rodada 8 foi cancelada; 2) Bônus de assinatura deflacionado pelo


IGP-M (base 1998=100) e preço do petróleo a preços correntes.
Outro fato de destaque foi o retorno ao Brasil da ExxonMobil, a maior

companhia petrolífera do mundo e uma das maiores empresas globais.

Os leilões a partir de 2017 também resultaram no fortalecimento da

posição de outras grandes empresas internacionais no Brasil: Statoil,

Shell e BP Energy, além da entrada de empresas como a CNODC e

Qatar Petroleum. Segundo a Wood Mackenzie, só entre 2016 e 2018,

cerca de 80% dos pagamentos de bônus de assinatura pagos em todo o

mundo vieram para o Brasil, em torno de 70% dos quais, pagos por

empresas privadas (Brasil, IBP, 2019b).

6. A ECONOMIA POLÍTICA DO CONTEÚDO


LOCAL E A TENTATIVA DE CONTRARREFORMA
A cadeia de produção de petróleo não é composta apenas das operadoras

de petróleo (Petrobras e suas concorrentes) e de um conjunto

homogêneo de fornecedores. Como em todo setor econômico, existem

diversos elos de fornecedores na cadeia produtiva, como ilustrado na

Figura 2.

Figura 2: Elos da cadeia de produção do setor de petróleo e gás

Fonte: elaborado pelos autores

O primeiro elo, composto das empresas que fornecem diretamente às

operadoras, é formado por empresas especializadas no setor e que

oferecem serviços customizados de engenharia, projeto e construção,

instalações submarinas, bem como por serviços relacionados a poços,

sísmica e apoio logístico. O segundo elo da cadeia envolve produtos

químicos, equipamentos elétricos e mecânicos, entre outros, fornecidos

às empresas do primeiro elo.


No terceiro elo da cadeia, estão aqueles que fornecem para o segundo e

que produzem máquinas e equipamentos em geral. Existe ainda um

quarto elo, composto das empresas siderúrgicas, fornecedores de

produtos ao terceiro elo e a outros setores da economia. Em paralelo,

existe a indústria naval, que atende tanto ao setor petróleo quanto outros

ramos de navegação.

Os grandes beneficiários da política de CL são a indústria naval e as

empresas do terceiro e do quarto elos. No caso dessas últimas, não

apenas são beneficiadas pelas exigências feitas aos seus compradores

(primeiro e segundo elos), como também não são dependentes do setor

de óleo e gás. Por serem produtores de aço, além de máquinas e

equipamentos em geral, por exemplo, não são especializados em

equipamentos para o setor de óleo e gás, fornecendo também para

diversos outros setores.

Assim, para esses segmentos (terceiro e quarto elos), não é primordial

que a exploração de petróleo prospere, dado que eles têm demanda em

outros setores da economia. A reserva de mercado a eles garantida pela

política de CL lhes dá o poder de ter um mercado cativo, sem

concorrência, para vender mais caro às empresas do primeiro e segundo

elos, sem se preocupar com qualidade ou prazo.

Já a indústria naval no Brasil, embora possa produzir embarcações não

ligadas ao setor petróleo, tornou-se muito dependente do setor em

decorrência de estímulos dados por governos anteriores para o

investimento no setor. O problema é que essa indústria não consegue ser

competitiva, como visto nos Gráficos 1 e 2. Ela foi criada à base de

subsídios, expandiu-se excessivamente e não consegue se manter como

fornecedora de equipamentos para o setor de petróleo sem proteção

elevada.

Por outro lado, as empresas que estão no primeiro e segundo elos de

fornecedores, e dependem direta e exclusivamente do sucesso da

indústria do petróleo, são contrárias às medidas protetivas e, em

especial, ao CL. Para elas, o fundamental não é uma política de CL a

exigir que o elo seguinte da cadeia lhes compre um percentual de seus

insumos, mas sim a existência do máximo de atividade econômica


possível na indústria de óleo e gás: o efeito indução lhes é menos

importante que o efeito desestímulo.

Note-se que o país já é competitivo em vários segmentos e, mesmo

com baixa exigência de CL, a indústria nacional de fornecedores não

será deslocada do mercado. Afinal, a proximidade da assistência técnica

e de peças de reposição em relação ao local de produção é uma

vantagem não desprezível. Sem falar nos custos de frete e logística para

trazer equipamentos pesados de países distantes.

A Associação Brasileira das Empresas de Serviços de Petróleo

(ABESPetro), que representa as empresas fornecedoras e prestadoras de

bens e serviços com atuação exclusiva ou predominante para a indústria

de óleo e gás (primeiro e segundo elos da cadeia), é crítica às políticas


535
de CL excessivo . É importante destacar que essa associação

representa cerca de 80% dos responsáveis pelas atividades de exploração

e produção em mar no Brasil.

A pressão a favor da política vem dos fornecedores do terceiro e quarto


536
elos . Ocorre que esses segmentos já desfrutam de diversos outros

benefícios de proteção, como medidas de antidumping (ver o

Capítulo 23 deste livro), altas tarifas e financiamentos subsidiados no

âmbito do BNDES. O CL é apenas mais um item no seu kit de

proteção.

Esses beneficiários resistiram à reforma da política e, tão logo ela foi

aprovada, prepararam diversos projetos de lei (PL 8.629 e PL 9.302,

apensados ao PL 7.410, todos de 2017, que tramitam em regime de

urgência e prontos para pauta no plenário, no momento em que este

capítulo foi escrito) para restabelecer, de forma rígida em texto legal, o


537
que antes constava apenas de normativos da ANP . Os efeitos

negativos descritos na seção 4 seriam amplificados por essa rigidez e

perpetuidade da regra. Ao mesmo tempo, a pressão sobre o Executivo,

para alteração do modelo pela via infralegal, é perene.

7. CONCLUSÕES
Este capítulo apresentou um caso relevante de política de CL, ou seja,

aquela aplicada ao setor de petróleo e gás no Brasil. Foram descritas as


distorções dessa política e apresentadas evidências quantitativas de que

ela tem efeito empobrecedor sobre a economia brasileira. A reforma

realizada em 2017 flexibilizou a política, ainda que mantendo

requerimentos de CL. Essa flexibilização, em conjunto com outras

reformas do setor petróleo, viabilizou resultados expressivos em leilões

de concessão e partilha, o que indica o alto custo do protecionismo

anteriormente praticado.

Não obstante os evidentes benefícios da reforma, setores antes

protegidos continuam a buscar o restabelecimento das exigências do

passado e consolidá-las em lei, o que certamente representaria um

retrocesso significativo.

O Brasil possui diversas outras políticas de CL, não tratadas neste

capítulo, mas que dificilmente produzem uma relação benefício-custo

positiva para o país, devido ao baixo grau de evolução institucional do

setor público, propensão à captura por interesses privados, alta

ineficiência e burocracia. Uma revisão e flexibilização dessa política, em

linha com a que ocorreu no setor de petróleo e gás natural, é uma pauta

relevante para ampliar a produtividade e, consequentemente, o potencial

de crescimento econômico do Brasil.

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509. Dados da Petrobras mostram que não há evidências de maior rentabilidade do refino em

comparação com a exportação de óleo bruto. Mesmo com o pré-sal, no qual é preciso viabilizar

infraestrutura para explorar em águas ultraprofundas, os custos vêm caindo devido aos ganhos

contínuos de eficiência e a alta produtividade de alguns campos, o que torna a exploração uma

atividade bastante rentável. Enquanto o custo da Petrobras por barril atingiu um máximo de US$

15,4 em 2012 e segue em uma trajetória de queda, atingindo US$ 10,4 em 2019, o preço do

barril no mercado internacional flutuou entre US$ 111,6 e US$ 64,7 no mesmo período (Brasil,

IBP, 2019a). Quanto ao refino, as margens são historicamente baixas, algumas vezes não

suficientes para cobrir os altos custos de capital, como os logísticos e de adequação de

especificação dos combustíveis, gera poucos empregos na fase operacional, riscos ambientais e

baixo encadeamento com restante da indústria (Brasil, ABDI, 2011).


510. A expressão “política de conteúdo local” é aplicada, com maior frequência, ao

estabelecimento de regras referidas à quantidade.

511. Art. 26. No processo de licitação, poderá ser estabelecida margem de preferência para:

I - bens manufaturados e serviços nacionais que atendam a normas técnicas brasileiras;

II - bens reciclados, recicláveis ou biodegradáveis, conforme regulamento.

o
§ 1 A margem de preferência de que trata o caput deste artigo:

I - será definida em decisão fundamentada do Poder Executivo federal, no caso do inciso I do

caput deste artigo;

II - poderá ser de até 10% (dez por cento) sobre o preço dos bens e serviços que não se

enquadrem no disposto nos incisos I ou II do caput deste artigo;

III - poderá ser estendida a bens manufaturados e serviços originários de Estados Partes do

Mercado Comum do Sul (Mercosul), desde que haja reciprocidade com o País prevista em

acordo internacional aprovado pelo Congresso Nacional e ratificado pelo Presidente da

República.

o
§ 2 Para os bens manufaturados nacionais e serviços nacionais resultantes de desenvolvimento

e inovação tecnológica no País, definidos conforme regulamento do Poder Executivo federal, a

margem de preferência a que se refere o caput deste artigo poderá ser de até 20% (vinte por

cento).

o
§ 3 (VETADO).

o
§ 4 (VETADO).

o
§ 5 A margem de preferência não se aplica aos bens manufaturados nacionais e aos serviços

nacionais se a capacidade de produção desses bens ou de prestação desses serviços no País for

inferior:

I - à quantidade a ser adquirida ou contratada; ou

II - aos quantitativos fixados em razão do parcelamento do objeto, quando for o caso.

o
§ 6 Os editais de licitação para a contratação de bens, serviços e obras poderão, mediante

prévia justificativa da autoridade competente, exigir que o contratado promova, em favor de

órgão ou entidade integrante da Administração Pública ou daqueles por ela indicados a partir de

processo isonômico, medidas de compensação comercial, industrial ou tecnológica ou acesso a

condições vantajosas de financiamento, cumulativamente ou não, na forma estabelecida pelo

Poder Executivo federal.

o
§ 7 Nas contratações destinadas à implantação, à manutenção e ao aperfeiçoamento dos

sistemas de tecnologia de informação e comunicação considerados estratégicos em ato do Poder

Executivo federal, a licitação poderá ser restrita a bens e serviços com tecnologia desenvolvida

no País produzidos de acordo com o processo produtivo básico de que trata a Lei 10.176, de 11

de janeiro de 2001.

512. Araújo Jr. (2016).

513. Guimarães (2016), Hufbauer (2013).

514. Almeida et al. (2016).


515. As políticas de margem de preferência, baseadas no sistema de preços, tendem a ser menos

distorcivas que as fundamentadas em percentuais mínimos de aquisição de insumos nacionais,

principalmente quando a política é respaldada em quantidades específicas de modelos e detalhes

dos bens a serem adquiridos, impondo restrições adicionais ao conjunto de escolha da empresa e

elevando ainda mais os custos.

516. Almeida et al. (2016)

517. Hufbauer et al. (2013), Almeida et al. (2016), Guimarães (2016).

518. Hufbauer et al. (2013).

519. Guimarães (2016).

520. Dutz (2018), Aghion et al. (2021).

521. A medida mais tradicional de abertura comercial de um país é (X+M)/Y, ou seja, a soma de

suas exportações e importações em relação ao próprio PIB. Em 2020, entre os 139 países com

dados disponíveis pelo Banco Mundial, o grau de abertura do Brasil era de 32,5%, um dos países

mais fechados do mundo, posição 131 no ranking.


522. A história da criação da Embraer, precedida da bem-sucedida criação do Instituto

Tecnológico de Aeronáutica (ITA), bem como os seus custos e percalços políticos, estão

descritos em Morais (2006).

523. Almeida et al. (2016)

524. Emenda Constitucional 9/1995.

525. Lei 9.478/97.

526. A PLC para o setor de petróleo está refletida nos contratos de exploração regulados pela

ANP. A título de exemplo do microgerenciamento e dos custos de transação envolvidos na

prestação de contas, ver as exigências de PL na 13ª Rodada de Licitação que constam no Anexo

XIV:

https://rodadas.anp.gov.br/arquivos/Round_13/Edital_R13/edital_R13_BE_vfinal_PosRD_0912

15.pdf

527. IBP (2016), TCU (2015).

528. Elaboração IBP; dados IHS. Comparação extraída de relatório do Brasil, TCU (2015).

529. No caso em que há exigência de CL, são considerados os três riscos: sobrecusto, atraso e

descumprimento.

530. Tendo sido publicado em 2014, o estudo trabalha com hipótese muito otimista para o preço

do petróleo. Se o modelo fosse reestimado com preços mais baixos, a rentabilidade cairia nos

dois cenários, tornando ainda mais negativa a expectativa de resultado em um cenário com CL.

531. IBP (2016).

532. Resolução 7/2017 do CNPE.

533. Resolução CNPE 1 de 2018 e Resolução ANP 726 de 2018.

534. Lei 13.365/2016 e Lei 13.586/2017. Outras melhorias regulatórias como a oferta

permanente (de blocos de rodadas anteriores e não arrematados) e o calendário plurianual de

rodadas de licitações (inédito no Brasil) contribuem para desenvolver o setor e atrair novos

investimentos. Nesse sentido várias medidas infralegais foram editadas como as resoluções

CNPE 17/2017 e 3/2020.


535. Apresentação, 28/03/2017. Política de Conteúdo Local — Posicionamento. Disponível em:

http://www.anp.gov.br/wwwanp/images/Consultas_publicas/Concluidas/2017/n_03/Anexo_I_Ab

esPetro_Apresentacao.pdf. O link não funciona mais e não encontrei a apresentação via Google.

536. Para uma posição favorável à política de CL pré-2017, v. Fiesp (2017).

537. Propõe exigências mínimas legais de CL (30% para exploração e 50% para o

desenvolvimento da produção sem distinção dos ambientes operacionais) sem qualquer

justificativa técnica dos valores. Em síntese, enrijece as obrigações, prejudica atratividades das

licitações, retira flexibilidade para adequação à capacidade da indústria local e não considera o

ambiente operacional (terra ou mar, por exemplo).


CAPÍTULO 25
POLÍTICAS SETORIAIS: O INOVAR-
AUTO E AS POLÍTICAS DE APOIO AO
SETOR AUTOMOTIVO
Isabela Duarte

INTRODUÇÃO
Em 1919, a Ford inaugurou a primeira fábrica de veículos do Brasil. Era

o início da atuação da indústria automotiva no país e de uma longa

relação entre produtores de veículos e o setor público. Em 2021, a Ford

anunciou sua intenção de sair do Brasil. Nesses pouco mais de 100 anos,

foram várias a políticas públicas implementadas com o objetivo de

proteger, subsidiar e regulamentar a atuação de empresas desse setor. A

saída da Ford não reflete dificuldades específicas de uma empresa.

Mesmo após décadas de apoio estatal, o Brasil não possui uma indústria

automotiva competitiva, capaz de atuar no mercado internacional ou de

fornecer aos brasileiros automóveis com níveis satisfatórios de

qualidade, preço e segurança.

Neste capítulo, faremos uma apresentação do Inovar-Auto, a política

nacional para o setor automotivo com efeito entre 2013 e 2017.

Mostraremos que o Inovar-Auto foi desenhado sem levar em contato

princípios básicos para a implementação de boas políticas setoriais, sem

incorporar as necessidades corporativas e tecnológicas do setor e em

direto confronto com os compromissos assumidos pelo país junto aos

seus parceiros comerciais . Ao fim, ficará claro que o baixo nível de

competividade da indústria automotiva nacional é resultado direto do

desenho inadequado das diversas políticas de apoio ao setor.


Na seção 2, detalharemos a legislação que criou e regulamentou o

programa Inovar-Auto. Em 3, faremos uma breve apresentação do que a

literatura em economia tem a nos dizer sobre a necessidade de políticas

setoriais e as melhores práticas a serem adotadas no desenho de políticas

dessa natureza. A seção 4 apresenta uma avaliação ex-ante do Inovar-

Auto, mostrando que, já no momento da criação do programa, eram

claras as deficiências em seu desenho. Na seção 5, faremos uma

avaliação ex-post e apresentaremos as evidências disponíveis acerca

do impacto do Inovar-Auto. Concluímos, na seção 6, com uma breve

exposição do Rota 2030, programa criado para substituir o Inovar-Auto,

e do estado atual da indústria automotiva no Brasil.

1. POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O SETOR


AUTOMOTIVO E O INOVAR-AUTO
É longo o histórico de políticas públicas desenhadas com o objetivo de

subsidiar a produção do setor automotivo brasileiro e de protegê-lo da

concorrência internacional. Em meados da década de 1950, temos as

primeiras políticas ativas de proteção ao setor, a partir do lançamento do


538
Plano de Metas . Desde então, houve o lançamento de diversas
539
políticas específicas para o setor , que variaram em tamanho e nos

instrumentos utilizados. O ponto comum entre elas está na justificativa

para sua implementação, ou seja, que a indústria automotiva nacional

necessitaria de apoio estatal e de forte proteção contra a concorrência

externa para se manter ativa e competitiva, e nos seus efeitos — a

manutenção de um setor automotivo de baixa produtividade e

dependente de políticas de apoio.

O Programa de Incentivo à Inovação Tecnológica e Adensamento da

Cadeia Produtiva de Veículos Automotores, ou Inovar-Auto, representou

mais um capítulo desse longo histórico. O programa foi criado pela

Medida Provisória 563, de 3 de abril de 2012, posteriormente convertida

na Lei 12.715, de 17 de setembro de 2012, e esteve válido entre os anos

de 2013 e 2017. O objetivo oficial do Inovar-Auto era “apoiar o

desenvolvimento tecnológico, a inovação, a segurança, a proteção ao

meio ambiente, a eficiência energética e a qualidade dos automóveis,


caminhões, ônibus e autopeças”. Ficará claro aqui que o principal

objetivo do programa era criar uma reserva de mercado, protegendo a

indústria nacional da concorrência de automóveis importados.

De acordo com a legislação, poderiam participar do Inovar-Auto

empresas que produzissem automóveis no país, empresas que aqui

comercializassem automóveis ou aquelas que tivessem projeto aprovado

para a instalação de fábrica ou produção de novos modelos no país.

Aquelas que desejassem ser consideradas habilitadas a participar do

programa deveriam atender a uma série de requisitos. A habilitação e o

monitoramento do cumprimento das condições de habilitação eram de

responsabilidade do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e


540
Comércio Exterior (MDIC) .

Eram dois os tipos de requisitos para habilitação. Em primeiro lugar,

os obrigatórios. Todas as empresas habilitadas deveriam assumir o


541
compromisso de atingir níveis mínimos de eficiência energética .

Havia ainda quatro requisitos opcionais. As produtoras de veículos a

gasolina deveriam atender a três desses quatro requisitos e as produtoras

de veículos a diesel, a dois dos quatro requisitos. Os opcionais incluíam,

primeiro, o compromisso de realizar no país um nível mínimo de gastos

em pesquisa, desenvolvimento ou inovação. Incluíam também o

compromisso de realizar no Brasil gastos com engenharia, tecnologia


542
industrial básica e capacitação de fornecedores . O terceiro requisito

opcional exigia que as empresas habilitadas ao programa aderissem ao

programa nacional de etiquetagem veicular, administrado pelo Instituto

Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro). Por fim, as

empresas poderiam optar por realizar um número mínimo de atividades


543
fabris e de infraestrutura de engenharia no país .

Em contrapartida, as empresas habilitadas receberiam incentivos

tributários. Especificamente, essas empresas poderiam apurar créditos

de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) com base nos

dispêndios realizados no país em insumos estratégicos, ferramentaria,

pesquisa e desenvolvimento, capacitação de fornecedores e engenharia e


544
tecnologia industrial básica . Esses créditos poderiam ser utilizados

para compensar um aumento de 30 pontos percentuais no IPI aplicado a


545
todos os veículos vendidos no país e estabelecido logo antes da
546
criação do programa .

De acordo com pronunciamento do presidente da Associação Nacional

dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) à época do

lançamento do programa, o novo regime automotivo seria

“transformador” e o setor automotivo brasileiro passaria a ter “mais

escala, mais competitividade, aliadas à inovação tecnológica, o que

aumentará a participação das empresas brasileiras no mercado


547
internacional” .

Na prática, o Inovar-Auto era apenas uma política de proteção contra a

concorrência externa. O programa estabeleceu um regime tributário

desenhado para inviabilizar a importação de veículos automotores por


548
empresas que não tivessem produção ou projetos de produção no país .

Para importar veículos para o Brasil, empresas pagariam não apenas o


549
imposto de importação já estabelecido no valor máximo de 35% , mas

arcariam também com um diferencial de 30 pontos percentuais em

impostos indiretos.

Políticas de restrição à concorrência externa não produziram no

passado uma indústria automotiva moderna e competitiva, capaz de

atuar no mercado internacional e de oferecer produtos com qualidade e

custo satisfatórios aos consumidores brasileiros. Como veremos ao longo

das próximas seções, o Inovar-Auto apresentou as mesmas falhas de

desenho e os mesmos efeitos deletérios de políticas passadas.

2. POLÍTICAS SETORIAIS: PRINCÍPIOS E


MELHORES PRÁTICAS
Intervenções governamentais desenhadas com o objetivo de incentivar a

produção de determinada indústria ou setor estão geralmente associadas

a elevados custos. De acordo com a teoria econômica, intervenções

setoriais apenas se justificariam em situações em que se observam as

chamadas falhas de mercado. Existe uma falha de mercado quando não é

possível obter uma alocação eficiente de recursos por meio da interação

livre entre agentes atuando nesse mercado. Um tipo específico de falha


de mercado utilizada com frequência para justificar políticas setoriais é a

presença de externalidades.

Há externalidade econômica quando um processo produtivo ou uma

transação econômica impactam o bem-estar de uma terceira parte que

não concordou livremente em participar desse processo ou transação.

Externalidades podem ser positivas ou negativas. Negativas referem-se a

interações de mercado que resultam em um custo a ser arcado por

terceiros, como no caso de atividades que causam poluição, e as

positivas, em um benefício a terceiros, como quando as atividades de

pesquisa e desenvolvimento de um setor resultam em um retorno nos

termos de produtividade para toda a sociedade.

A presença de externalidades é o argumento mais utilizado para

justificar intervenções na indústria automotiva. O argumento é que a

atuação do governo seria necessária para aumentar a eficiência

econômica no setor, inibindo externalidades negativas, ao incentivar a

produção de automóveis mais seguros ou menos poluentes, e

subsidiando externalidades positivas, no caso de atividades de inovação

que, em tese, teriam efeitos positivos para toda a sociedade.

Na prática, identificar situações em que políticas setoriais poderiam

trazer retorno positivo para a sociedade não é uma tarefa trivial.

Primeiro, impõe-se o desafio de estabelecer se as condições que

justificariam uma intervenção estão, de fato, presentes em um

determinado setor. Segundo, é preciso avaliar se a ação do governo seria

efetiva para reduzir as falhas que impedem o adequado funcionamento

do mercado. Terceiro, não é simples avaliar se a política, tal como

desenhada, é capaz de gerar valor positivo não apenas para aqueles

envolvidos diretamente no setor, mas para a sociedade, que é a

financiadora de toda e qualquer ação do governo. Por exemplo, uma

política pública que subsidia a realização de pesquisa e desenvolvimento

por um determinado setor não cria valor para a sociedade se todo o valor

criado por meio dessas atividades é convertido em maiores lucros para o

setor.

Além de avaliar se a política é capaz de gerar retorno positivo para a

sociedade, é importante considerar se esse retorno mais que compensa

os custos da política. Políticas setoriais estão associadas a custos diretos,


o seu custo fiscal, e indiretos, relacionados às distorções alocativas

geradas por ela. Políticas que criam uma estrutura de proteção artificial

a um determinado setor podem levar à manutenção de atividades de

baixo potencial produtivo, inibir a concorrência, deslocar emprego e

investimentos de atividades de alto potencial produtivo para atividades

de potencial menor, aumentar os custos de produção para setores não

protegidos e prejudicar consumidores, elevando custos e reduzindo

qualidade dos produtos ofertados.

Um custo indireto de particular relevância para políticas setoriais é

aquele associado ao risco de captura política. Elas são organizadas por

meio de um processo em que formuladores de políticas públicas,

representantes eleitos e partes interessadas discutem a forma mais

adequada de se intervir em um setor. Esse é um processo político por

natureza e, portanto, está sujeito a influências diversas.

A teoria econômica mostra que o interesse difuso dos consumidores

ou de potenciais competidores dificilmente está representado nesse

processo. O mais comum é que os interesses de empresas já

estabelecidas, especialmente empresas que atuam de forma coordenada e

contam com um grupo organizado para defender seus interesses, como é

o caso da Anfavea, seja levado em consideração ao longo do

desenvolvimento da política. Políticas setoriais organizadas de acordo

com interesses de empresas já estabelecidas e de seus trabalhadores

pode gerar barreiras à entrada e outros tipos de distorções, criando ou

reforçando ineficiências na produção.

Deve-se levar em consideração, também, o custo de oportunidade, que

reflete as ações que deixamos de realizar por conta da criação da política

setorial. Os recursos fiscais e o tempo dos legisladores poderia ser gasto

em outra política que desse resultado melhor, mas que não foi adotada

porque prevaleceu a escolha pelo incentivo ao setor automobilístico.

É necessário realizar uma avaliação abrangente, capaz de informar se a

implementação de uma determinada política representa o melhor uso

dos recursos públicos. Vale lembrar que recursos públicos são escassos e

que todos os recursos, financeiros ou não, investidos em programas

setoriais poderiam ser utilizados em políticas com potencial maior

retorno, como investimentos em educação ou infraestrutura básica.


Em razão dessa combinação de fatores, alguns economistas defendem

a ideia de que políticas setoriais raramente teriam impacto positivo para


550
a sociedade e que governos deveriam, portanto, evitá-las . De acordo

com essa corrente, mais adequado seria se governos apoiassem a

indústria apenas por meio de políticas transversais, isto é, aquelas que

afetariam de forma positiva a atuação de toda a indústria, sem

discriminação ou favorecimento a determinado setor. No rol de políticas

transversais, incluem-se políticas estruturadas com o objetivo de

aumentar a segurança jurídica, melhorar o ambiente de negócios, reduzir

custos associados à produção e promover a concorrência e a inovação.

Para outro grupo de economistas, é possível que políticas setoriais


551
tenham impacto positivo sob determinadas condições . Entretanto, é

necessário que sejam concebidas de forma a minimizar seus riscos. A

literatura em economia oferece uma lista das práticas e princípios que

deveriam guiar a sua formulação.

Em primeiro lugar, políticas setoriais apenas são recomendadas para

lidar com situações em que uma intervenção estatal temporária tenha o

potencial de eliminar barreiras que impedem a indústria ou setor de

atuar de forma independente, sem subsídios ou proteção estatal. Um

setor permanentemente dependente de apoio do governo não é viável,

não se justificando o uso de recursos públicos para manutenção de suas

atividades produtivas. Portanto, é preciso que políticas setoriais sejam

organizadas com prazo limite e sejam acompanhadas por plano

transparente de redução e eventual eliminação de benefícios.

Acredita-se que políticas industriais têm maiores chances de sucesso

quando criam um arcabouço no qual os setores beneficiados seguem

expostos à concorrência e, portanto, são incentivados com constância a


552
buscar processos de produção mais eficientes e produtivos . É

fundamental, ainda, que a política respeite a lógica produtiva de cada

setor. Produtores estão mais bem posicionados que formuladores de

políticas públicas para entender qual a forma mais eficiente de organizar

seus processos produtivos. Políticas fortemente intervencionistas, que

tentam exercer controle excessivo sobre a organização da produção,

podem resultar no aumento de custos, afetando consumidores e

reduzindo níveis de produtividade.

É
É importante que a sociedade tenha clareza em relação aos custos e

benefícios de diferentes políticas setoriais. Para mensuração dos

benefícios, a política deve ser acompanhada por um plano de avaliação

de impacto, que determine de forma clara os objetivos a serem

alcançados e as métricas a serem utilizadas no momento da avaliação.

Esta deve permitir também analisar e mensurar os potenciais custos

diretos e indiretos da política. Recomenda-se ainda que os recursos

utilizados para execução da política sejam transparentes e delimitados.

Assim, políticas que distribuem subsídios previstos de forma

transparente em orçamento são preferíveis a políticas que distribuem

benefícios por meio de isenções fiscais.

Por fim, é necessário considerar os custos administrativos de

implementação e manutenção da política. Políticas simples e

transparentes são preferíveis a políticas com elevados custos de

conformidade. Políticas que requerem processos complexos para

determinação e liberação de incentivos criam ineficiências e custos

desnecessários tanto para o poder público quanto para os atores privados

que se beneficiam dela.

Na próxima seção, mostraremos que, em primeiro lugar, não havia, à

época da criação do Inovar-Auto, evidências apontando para a

necessidade de uma política de apoio e proteção ao setor automotivo.

Segundo, que o Inovar-Auto foi organizado em desacordo com as

melhores práticas sugeridas pela literatura e pela evidência

internacional.

3. INOVAR-AUTO: UMA AVALIAÇÃO EX ANTE


A criação de políticas setoriais apenas se justifica em situações nas

quais existem falhas de mercado. A presença de externalidades foi a

justificativa do governo para a criação de um programa exclusivo de

apoio à indústria automotiva. Incentivos financeiros e proteção à

concorrência externa seriam necessários para induzir a indústria

nacional a produzir automóveis mais seguros e de maior eficiência

energética, além disso, para incentivar atividades de pesquisa e inovação

em território nacional que, por sua vez, trariam externalidades positivas

para toda a sociedade.


A simples presença de externalidades em uma determinada indústria

não é razão suficiente para justificar uma intervenção do governo. É

preciso verificar ainda se a atuação do governo seria a forma mais

efetiva de lidar com elas, quais seriam os benefícios sociais resultantes

dessa atuação e se estes compensariam custos diretos e indiretos. De

fato, a produção de automóveis mais eficientes ou mais seguros teriam

um efeito positivo sobre a coletividade. Entretanto, não há razão para

crer que um programa complexo que distribui incentivos fiscais para

empresas habilitadas e a cria uma reserva de mercado para produtores

nacionais é a forma mais eficiente de lidar com esse tipo de

externalidade. Essa não é a abordagem adotada pelos principais países

produtores de automóveis.

Uma análise da experiência internacional revela que critérios mínimos

de segurança veicular são implementados, em geral, por meio de

requerimentos regulatórios. Cada país determina critérios de segurança

de acordo com uma análise que considera os benefícios obtidos a partir

da imposição de requerimentos mais rígidos de segurança contra custos

de implementação. Nos últimos anos observamos, ainda, uma tendência

de imposição gradual de requerimentos regulatórios que têm por

objetivo estabelecer níveis adequados de emissões, aumentar eficiência

energética e promover tecnologias com menor potencial poluente.

Alguns países, em conformidade com as metas de redução de emissões

estabelecidas em tratados internacionais, estabeleceram planos que

preveem metas de redução gradual e eventual eliminação na produção de

veículos que utilizam tecnologias potencialmente mais poluidoras.

O argumento de que seria necessário a criação um programa de

incentivo a pesquisa, desenvolvimento e inovação na indústria

automotiva segue a lógica de que essas atividades teriam um retorno

positivo para a sociedade, que se baseia em uma extensa literatura que

mostra como a realização de investimentos em pesquisas e

desenvolvimento impactam positivamente o nível agregado de

produtividade da economia, seja por meio do seu papel na formação e

treinamento de pessoal especializado, seja pelo transbordamento de


553
inovações de um setor para outro . Entretanto, não há evidências de
que as atividades de inovação da indústria automotiva teriam um retorno

mais expressivo do que as atividades de inovação de outros setores.

Ademais, essa estratégia não é coerente com a lógica que estrutura as

atividades de pesquisa e desenvolvimento da indústria automotiva

global. Todas as montadoras em atuação no país são parte de empresas

multinacionais que seguem uma estratégia global de desenvolvimento de

produtos e concentram suas atividades de pesquisa e desenvolvimento

em grandes centros de pesquisa localizados em seus países sede.

Nesse contexto, não há razão para crer que uma política setorial

temporária seria capaz de incentivar empresas a alterarem sua estratégia

global de inovação e transferir uma parte significativa de seu processo de

pesquisa para um país que concentra apenas uma parcela de sua

produção e não oferece condições competitivas em termos de capital

humano ou de infraestrutura de pesquisa.

Os ganhos sociais associados a uma política pública para inovação

seriam potencialmente muito maiores se fossem direcionados por meio

de uma política transversal que criasse condições para que todos os

setores da economia investissem em inovações capazes de trazer ganhos

agregados de produtividade. Alternativamente, o país poderia investir

em uma estratégia de absorção de tecnologia, em vez de focar a criação

de tecnologias. Dado que estamos muito atrasados em relação à fronteira

tecnológica, poderíamos dar saltos de produtividade sem

necessariamente produzir tecnologia própria. Essa estratégia exigiria

investimentos maciços em educação fundamental e secundária, para

habilitar nossa mão de obra a entender, operar e difundir as novas

técnicas trazidas do exterior. Também seria necessário ampliar a

abertura comercial, para facilitar a entrada de tecnologia. Nesse caso, a

política pública seria totalmente distinta da que foi adotada: em vez de

subsídios e proteção à indústria, teríamos investimento na educação e


554
abertura da economia .

Mesmo se considerássemos que havia justificativa para a

implementação de uma política para o setor automotivo, era claro, desde

o princípio, que o Inovar-Auto não foi desenhado de forma consistente

com as melhores práticas para políticas setoriais. Em primeiro lugar,


percebemos que apesar da justificativa oficial, o principal objetivo do

Inovar-Auto era, na verdade, restringir a concorrências de produtos

estrangeiros. O programa foi desenhado de forma a praticamente

inviabilizar a importação de automóveis no país, criando uma forte

estrutura de proteção à indústria local. Conforme exposição anterior,

políticas setoriais têm maior chance de sucesso quando são

acompanhadas por um arcabouço regulatório que promove a

concorrência no setor beneficiado, criando uma estrutura de incentivos

que leva empresas a buscarem maior eficiência e ganhos de

produtividade. O Inovar-Auto restringiu a concorrência de empresas não

instaladas no país e não criou uma estrutura que incentivasse as aqui

instaladas a competirem por mercados externos. Sem pressões

competitivas, elas enfrentam poucos incentivos a reduzirem preços e

aumentarem a qualidade dos seus produtos, prejudicando consumidores

finais.

Vale ressaltar que mesmo antes da criação do programa a indústria

automotiva local já contava com forte estrutura de proteção. O imposto

para importação de automóveis era de 35 pontos percentuais, valor

máximo para tarifas dessa natureza. Empresas instaladas nas regiões

Norte, Nordeste e Centro-Oeste podiam contar com benefícios


555
adicionais associados a regimes tributários diferenciados . Durante a

vigência do Inovar-Auto, estima-se que mais de R$ 8,5 bilhões tenham

deixado de ser arrecadados pelo governo federal em razão de benefícios


556
regionais . Entre 2002 e 2011, os desembolsos do BNDES para o setor

automotivo, a juros subsidiados — incluindo montadores e produtoras


557
de autopeças — somou mais de R$ 50 bilhões . Os federais se somam

a uma série de isenções e benefícios regionais.

O Inovar-Auto, organizou-se em conflito com os princípios

estabelecidos pelos acordos comerciais dos quais o Brasil é signatário.

De fato, em 2017, após denúncia formal do Japão e da União Europeia,

o Inovar-Auto foi condenado por um painel da Organização Mundial do


558
Comércio (OMC). Segundo as conclusões do painel, o programa

violava princípios acordados em tratados internacionais: primeiro, ao

conceder reduções em impostos indiretos exclusivamente a produtores

nacionais e, segundo, ao criar requisitos de conteúdo nacional para


559
realização, no país, de um número mínimo de etapas fabris . O painel

também concluiu que o Inovar-Auto, ao conceder condições especiais


560
para importação de veículos do México e do Mercosul , violava a

cláusula de nação mais favorecida, um princípio que garante a uma

nação enfrentar as mesmas condições de comércio como qualquer outra

nação. A implementação de políticas que infringem acordos

internacionais não só afeta a credibilidade do país junto aos seus

parceiros comerciais, mas também expõe o país ao risco de sanções. A

condenação foi parcialmente mantida, em 2018, após apelação.

O programa era, ainda, inconsistente em relação à lógica produtiva do

setor automotivo global. O Inovar-Auto tinha cinco anos de duração em

um setor em que o período de maturação de investimentos é de médio e

longo prazo, cerca de dez ou 15 anos. O prazo curto aumentava os riscos

e incertezas associados a decisões produtivas.

Ademais, obrigava empresas a tomarem decisões de produção que não

são consistentes com a estrutura global da indústria. A produção

mundial de automóveis é realizada, em grande parte, por um grupo

pequeno de empresas multinacionais com sede em países com tradição

em indústria automotiva. A produção segue uma lógica regional-global

com o aumento da importância, nas últimas décadas, de complexas

cadeias globais de valor. De acordo com essa lógica de produção, peças

e componentes são produzidas por grandes empresas fornecedoras que

atuam em parceria com as montadoras no desenvolvimento de produtos

e organizam sua produção de forma regional, com o objetivo de manter

uma combinação ótima entre ganhos de escala e custos de mão de obra.

Essas peças e componentes são, então, utilizados na montagem final dos

automóveis, atividade frequentemente realizada nas proximidades dos

mercados consumidores.

Para ter acesso aos benefícios tributários associados ao Inovar-Auto,

empresas que já estivessem instaladas no país deveriam realizar um

número mínimo das chamadas etapas fabris em território nacional. Isso

se chocava com o modelo anteriormente descrito, de divisão

internacional do trabalho.
A apuração de créditos tributários dependia ainda da aquisição dos

chamados insumos estratégicos, isto é, insumos de alto conteúdo local.

O Inovar-Auto, portanto, exigia que empresas do setor adaptassem sua

produção de forma a replicar todas as etapas de seu processo produtivo

no país. Para cumprir esses requisitos, deveriam utilizar peças e

equipamentos produzidos localmente, sem os ganhos de qualidade, custo

e escala atrelados a uma produção global. Pouco claras eram as opções

disponíveis para empresas que necessitavam de peças e componentes

altamente especializados, sem produção local. Essas exigências

aumentam custos de produção e impedem que empresas instaladas no

país se integrem às cadeias globais de valor, reduzindo a

competitividade da produção nacional e prejudicando consumidores.

O Inovar-Auto também criou uma estrutura regulatória que incentivava

empresas a aumentar sua produção no Brasil. Dados os requisitos de

habilitação e as regras para apuração de incentivos, se beneficiavam do

programa aquelas que já tivessem produção nacional ou que optassem

por apresentar um plano de investimento detalhando sua intenção de

iniciar ou aumentar a produção no país. Conforme detalharemos na

próxima seção, existe um número mínimo de veículos que uma planta

deve produzir para atingir um nível eficiente de escala. O programa não

previa qualquer plano ou estratégia que considerasse o impacto que o

aumento da capacidade instalada no Brasil teria sobre a escala ótima do

setor automotivo e o custo final da produção local. Novas empresas

estavam sendo atraídas para produzir e vender exclusivamente para o

mercado nacional (dado que a produção no Brasil não é competitiva no

mercado externo). Isso induzia um excesso de oferta, que afetaria a

escala ótima de produção de todas as montadoras.

Outro foco potencial de problemas, que já era evidente no momento de

lançamento do Inovar-Auto, eram o alto custo de conformidade e a

insegurança jurídica gerada pelo programa. Era de responsabilidade do

MDIC avaliar se as empresas candidatas cumpriam os requisitos de

participação no momento da habilitação e durante toda a vigência do


561
programa . Cabia, então, aos técnicos do MDIC avaliar como essas

empresas conduziam seu processo produtivo e criar instrumentos para

que elas comprovassem se sua produção obedecia aos compromissos


assumidos no momento da habilitação. As 15 portarias publicadas após

o início da vigência do programa demonstram que essa não era uma


562
tarefa trivial .

Uma definição clara do que seriam insumos estratégicos foi

estabelecida apenas em 2013 com a Portaria MDIC 113 de 15 de abril

de 2013. De início, insumos estratégicos seriam aqueles adquiridos

localmente. Essa descrição foi alterada pela Portaria MDIC 257, de 23

de setembro de 2014, que passa a definir insumos estratégicos de acordo

com seu nível de conteúdo produzido localmente. Um sistema oficial

para acompanhamento do programa foi criado apenas ao final de


563
2013 . Por meio dele, as empresas produtoras de veículos e seus

fornecedores deveriam apresentar informações detalhadas de seu

processo produtivo, de sua aquisição de insumos e do conteúdo nacional

desses insumos, fatores relevantes para a verificação das condições de


564
habilitação e apuração de créditos tributários .

Além do elevado custo administrativo a que empresas e seus

fornecedores deveriam se submeter na prestação de informações, não era

claro como se daria o processamento desse material pela equipe técnica

do MDIC. Apenas em 2017, após auditoria da Controladoria-Geral da


565
União (CGU) constatar não haver um processo adequado de

verificação dos compromissos assumidos pela empresa habilitada, foram

criados Comitês de Análise Técnica (CAT) a serem compostos de

especialistas no setor automotivo cujo objetivo era auxiliar os técnicos

do MDIC na elaboração de avaliações acerca da conformidade dos

compromissos assumidos pelas empresas habilitadas ao Inovar-Auto.

Em 2017, ainda, temos autorização para a realização de auditorias

independentes. Procedimentos claros e transparentes relativos à

fiscalização do cumprimento de compromissos assumidos com o

programa foram criados apenas em meados de 2018, após seu


566
encerramento .

De acordo com a legislação, as empresas que não cumprissem os

requisitos para habilitação seriam desligadas do programa e deveriam

devolver os créditos obtidos até o momento da sua desabilitação. Esse

foi o caso da empresa JAC Motors, que teve sua habilitação cancelada
em 2016 e foi obrigada a devolver incentivos recebidos entre 2013 e
567
2014 . A complexidade do programa resultava em custos

administrativos desnecessários e insegurança jurídica para as empresas

participantes, e isso, por sua vez, afetava decisões econômicas e projetos

de investimento no Brasil. Além disso, a complexidade criava potencial

para disputas. Vale mencionar o caso das fabricantes Audi, BMW e

Mercedes-Benz, que afirmam ter mais de R$ 290,7 milhões a receber do

governo por sua participação no programa. A Audi anunciou que voltará


568
a produzir no país somente após o pagamento desses valores .

Por fim, é importante ressaltar a falta de transparência em relação ao

valor dos benefícios concedidos e ao custo total do programa. Os

benefícios tributários associados ao Inovar-Auto são concedidos na

forma de renúncia de receitas. De acordo com a legislação do programa,

as empresas habilitadas podem apurar créditos presumidos de IPI até

determinado limite.

Quando subsídios são concedidos de forma indireta, como no caso de

renúncia de receitas, a sociedade perde em termos de transparência e

previsibilidade. Não há uma discussão aberta no Congresso envolvendo

representantes da sociedade com o objetivo de determinar o valor

adequado do subsídio a ser concedido. É desafiador computar o custo de

oportunidade associado a subsídios indiretos e mais difícil ainda avaliar

o custo econômico de um programa quando não é necessário discutir de

que forma a sociedade arcará com ele. Informações da Receita Federal

mostram que o custo não é desprezível. Estima-se que cerca de R$ 6

bilhões tenham deixado de ser arrecadados durante os anos de duração


569
do programa .

4. INOVAR-AUTO: UMA AVALIAÇÃO EX POST


Na seção anterior detalhamos como o programa Inovar-Auto

apresentava, já no momento de sua implementação, falhas de

planejamento que contrariavam princípios básicos da literatura em

economia. Nesta, avaliaremos como essas falhas afetaram os resultados

do programa e apresentaremos algumas das evidências disponíveis sobre

o seu impacto.
O Inovar-Auto foi delineado de forma a criar uma reserva de mercado

destinada a proteger a indústria automotiva nacional da concorrência de

produtores externos. O programa teve um impacto significativo sobre a

venda de veículos importados. O Gráfico 1 apresenta os dados de


570
importações e exportações de veículos em US$ FOB entre 2000 e

2020. Nele fica claro que antes da elevação da tarifa de IPI para

importados, em 2011, havia uma tendência de aumento nas importações

de veículo. Segundo dados da Anfavea, em 2011, veículos importados

chegaram a representar 23% dos licenciados no país. Após a criação do

Inovar-Auto, observamos uma queda consistente nas importações. Em

2017, ano de encerramento do programa, veículos importados

representaram apenas 10% dos licenciamentos. Esse resultado é um

forte indicativo de que o programa, de fato, teve o objetivo de estabelecer

barreiras à concorrência externa, criando uma reserva de mercado para

os automóveis produzidos no país. Esse sistema de proteção afetou

negativamente importadoras, revendedoras e consumidores.

Gráfico 1: Importação e exportação de veículos no período entre 2000 e


2020 — valor FOB (US$)

Fonte: Sistema Aliceweb.

Em segundo lugar, não há evidências de que os efeitos do Inovar-Auto

sobre os investimentos na indústria automotiva tenham trazido

resultados positivos. De acordo com Sturgeon et al. (2017), produtores

de veículos se comprometeram a investir mais de R$ 8,5 bilhões no

Brasil entre 2013 e 2017. Os autores ressaltam, entretanto, que este

impacto positivo reflete uma tendência de investimentos que já existia


antes da criação do programa e que cerca de metade deles teriam

ocorrido mesmo sem a sua criação. Os autores destacam, ainda, que o

aumento em investimentos não é necessariamente benéfico, uma vez que

a indústria automotiva brasileira enfrenta um problema de excesso de

capacidade.

As sucessivas políticas cujo objetivo era atrair empresas do setor ao

Brasil resultaram em um número excessivo de montadoras instaladas.

Considerando que uma planta, para atuar de forma competitiva, deve

produzir algo entre 50 mil e 150 mil veículos, o mercado interno

brasileiro ofereceria escala para apenas seis ou sete montadoras. Em

2017, havia mais de 20 montadoras em atuação no país. Percebemos,

portanto, que a indústria no Brasil atua em escala subótima, o que

resulta em custos elevados, baixa produtividade e preços elevados ao

consumidor. A atuação nessa escala resulta, ainda, em um cenário

indesejável de dependência do setor pela manutenção de benefícios

fiscais e subsídios.

Terceiro, o Inovar-Auto não teve como resultado aumentos

significativos nos esforços nacionais em pesquisa e desenvolvimento e

não pode ser associado a inovações significativas no setor. A partir de


571
dados da Pesquisa de Inovação do IBGE (Pintec) , podemos observar

uma redução nos gastos em pesquisas e desenvolvimento por parte de

empresas fabricantes de veículos após a criação do programa. Em 2011,

antes do Inovar-auto, empresas fabricantes de automóveis investiram

2,79% de sua receita líquida de vendas em atividades inovativas e 1,38%

em atividades internas de pesquisa e desenvolvimento. Após a

implementação do programa, observamos uma redução desses valores.

Os gastos com atividades inovativas diminuíram para 2,13% em 2014 e

2,25% em 2017. Já os gastos com atividades internas de pesquisa e

desenvolvimento foram reduzidos para 1,10% em 2014 e 0,85% em

2017.

Utilizando dados da Organização para a Cooperação e

Desenvolvimento Econômico (OCDE), podemos avaliar como o

programa afetou o número de patentes depositadas pelo setor


572
automotivo, uma medida direta de inovação . Durante a vigência do

programa, entre 2013 e 2017, cerca de 64 patentes referentes ao setor


573
automotivo foram depositadas no Sistema Internacional de Patentes

(PCT) por residentes no Brasil. Isso representa um aumento de apenas

5,5% em relação a uma comparação com o período anterior, isto é, entre

2008 e 2012. Uma comparação internacional mostra que o desempenho

do Brasil no quesito inovação foi inferior à de seus pares, que, nesse

mesmo período, apresentam aumento no depósito de patentes pelo setor

automotivo da ordem de 36,9%. O crescimento nos países da OCDE foi

de 32,2%. O desempenho de outros emergentes com destaque na

produção de automóveis também foi superior ao do Brasil. O número de

patentes depositadas pela Índia cresceu 47,9%, pelo México, 60,0%,

pela Tailândia, 12,60%, e pela Turquia, 343,8%.

Por fim, notamos que o Inovar-Auto fortaleceu o argumento de que a

indústria nacional apenas sobreviveria com a manutenção de políticas

específicas para o setor automotivo. Esse argumento foi utilizado

diversas vezes para angariar apoio à manutenção de uma política

fortemente intervencionista para o setor automotivo e durante o longo

processo de discussões com relação à definição do programa que viria a

substituir o Inovar-Auto, o Rota 2030, que será apresentado na próxima

seção, onde discorreremos um pouco sobre as perspectivas para o setor.

5. PERSPECTIVAS PARA A INDÚSTRIA


AUTOMOTIVA E O ROTA 2030
574
O Programa Rota 2030 — Mobilidade e Logística foi criado em 2019

e substituiu o Inovar-Auto como política nacional para o setor

automotivo. Oficialmente seu objetivo era “apoiar o desenvolvimento

tecnológico, a competitividade, a inovação, a segurança veicular, a

proteção ao meio ambiente, a eficiência energética e a qualidade” dos

veículos produzidos no país. O Rota 2030 repete o erro de políticas

anteriores ao oferecer elevados subsídios ao setor, sem apresentar

respostas para problemas estruturais que diminuem a competividade da

indústria brasileira.

Podem se habilitar ao Rota 2030 empresas produtoras de veículos ou

autopeças, ou ainda empresas com projeto de produção aprovados.

Aquelas habilitadas ao programa podem deduzir do Imposto sobre a


Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o

Lucro Líquido (CSLL) parte dos dispêndios realizados no país em

pesquisa e desenvolvimento. Esse subsídio representaria um retorno de

10,2% a 12,5% do valor dos gastos desse tipo realizados. Em

contrapartida, as empresas devem se comprometer a atingir

determinados níveis de rotulagem veicular, eficiência energética,

desempenho estrutural associado a tecnologias assistivas à direção e

dispêndios com pesquisa e desenvolvimento tecnológico.

O Rota 2030 tem validade de 15 anos com revisões programadas a

cada cinco anos. Estimativas da Receita Federal apontam que o Rota

2030 custará, entre 2019 e 2021, mais de 5,4 bilhões de reais em


575
arrecadação perdida . Esse valor pode ser acrescido a uma previsão de

mais de R$ 14 bilhões em arrecadação perdida devido a benefícios


576
regionais destinados ao setor no período entre 2019 e 2020 .

Na prática, ele consiste em medidas de manutenção do modelo do

Inovar-Auto, contornando as características desse programa que levaram

à condenação pela OMC. Assim, por exemplo, os incentivos não são

mais concedidos em tributos indiretos, passando a incidir sobre tributos

baseados na renda e no lucro das empresas.

Apesar da criação de mais um programa de apoio ao setor automotivo

e de vultosos subsídios, a indústria automotiva brasileira enfrenta sérias

dificuldades. O setor, altamente dependente do mercado interno, teve de

enfrentar os choques de demanda resultantes da crise econômica de

2014 e daquela causada pela pandemia da Covid-19. A associação entre

o elevado custo de se fazer negócios no Brasil, a falta de integração do

país ao comércio internacional e a baixa competitividade da indústria

local tornam pouco provável a possibilidade de que a indústria possa

compensar quedas na demanda interna com uma maior participação no

comércio internacional.

Além dos recentes choques de demanda, será necessário enfrentar a

realidade de um país que pouco se preparou para as mudanças profundas

que deverão afetar o setor nas próximas décadas. Pressões regulatórias e

mudanças no perfil da demanda indicam novo paradigma para a

indústria, dando prioridade à produção de veículos de menor impacto


ambiental, como veículos híbridos e elétricos, somada à crescente

incorporação de tecnologia embarcada avançada e ao surgimento de

veículos autônomos e semiautônomos. Para se adaptar ao novo perfil da

indústria, as empresas deverão realizar investimentos significativos e

racionalizar suas estratégias de produção global.

Como resultado da combinação entre sucessivas crises e políticas

públicas inadequadas, observamos, nos últimos anos, uma redução

expressiva nos níveis de produção do setor automotivo no Brasil.

Segundo dados da Anfavea, a produção de veículos no país caiu 40%

entre 2013 e 2016. Após ligeira recuperação a partir de 2017, temos


577
nova queda expressiva em 2020, em meio à crise da Covid-19 . Esse

movimento é acompanhado por demissões em massa e fechamento de


578
fábricas .

Para tornar a indústria automotiva competitiva e melhorar a qualidade

e o preço ao consumidor, é necessário, primeiro, que o país invista em

políticas horizontais de melhoria de seu ambiente de negócios. Essa


579
opinião é compartilhada pela Anfavea, que em seu anuário de 2021

aponta para a “necessidade imediata de mudanças profundas nas

estruturas tributárias e administrativas do governo, e também de

reformas pontuais que removam entraves burocráticos, jurídicos e fiscais

que pesam sobre os ombros do sistema produtivo. Também ‘para ontem’

é a necessidade de intensificar obras de infraestrutura capazes de

melhorar os custos logísticos no país. ”. É necessário, ainda, que essas

políticas sejam acompanhadas por um processo de abertura comercial

que exponha o setor à concorrência externa e crie condições para que ele

se integre às cadeias globais de valor e reduza seus custos de produção.

Por fim, é fundamental que o país estabeleça um plano previsível e

transparente para redução e eventual eliminação de proteções e subsídios

ao setor. Sete décadas após a criação das primeiras políticas de proteção

à indústria automotiva nacional, é chegada a hora de reconhecer que a

indústria já não é nascente há algum tempo e que precisa aprender a

andar com suas próprias pernas.

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538. O Plano de Metas, lançado em 1956 por Juscelino Kubitschek, listava entre suas

prioridades a consolidação da indústria automotiva no país. Essa consolidação seria alcançada

com aumento das restrições à importação e com incentivos diretos à produção nacional.

539. Para mais informações, v. Barros e Pedro (2012).

540. O MDIC foi extinto em janeiro de 2019 e incorporado ao novo Ministério da Economia.

541. Os níveis de eficiência energética eram calculados como uma média da eficiência energética

de todos os automóveis novos vendidos pela empresa e os patamares mínimos eram crescentes ao

longo do tempo.

542. Os dispêndios mínimos em engenharia, tecnologia industrial básica e capacitação de

fornecedores também foram estabelecidos em valores crescentes ao longo do tempo, passando de

0,50% da receita bruta total em 2013 para 1,0% em 2017.

543. Decreto complementar (Decreto 7.819, de 2012) detalhava as etapas fabris a serem

realizadas no Brasil. Entre as listadas há as atividades de estampagem, soldagem, tratamento

anticorrosivo e pintura, injeção de plástico, fabricação de motor, de caixa de câmbio e

transmissão, montagem de sistema de direção e suspensão, de sistema elétrico, de sistemas de

freio e eixos, produção de monobloco ou montagem de chassis, montagem, revisão final e

ensaios compatíveis e infraestrutura própria de laboratórios para desenvolvimento de testes de

produtos. O número de etapas fabris exigidas também era crescente no tempo, variando entre 8 e

11.

544. As empresas com projeto aprovado de instalação de fábrica no país estavam autorizadas a

apurar crédito presumido relativo aos veículos por elas importados.

545. Decreto 7.819, de 3 de outubro de 2012.

546. As empresas poderiam obter, ainda, um desconto adicional de até 2 pontos percentuais do

IPI, a partir de 2017, se atingissem metas complementares de eficiência energética.

547. V. https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,para-anfavea-novo-regime-automotivo-e-

transformador,129417e.

548. Empresas que optassem por apresentar projetos de investimento deveriam iniciar após a

aprovação um cronograma para a realização do projeto e durante o período de execução do

investimento estariam autorizadas a importar veículos similares aos que seriam produzidos com

redução da alíquota de IPI.

549. Empresas importadoras poderiam solicitar habilitação ao programa, mas suas importações

livres do acréscimo de IPI seriam limitadas a uma cota máxima de 4,8 mil unidades ao ano.
550. V. Hevia et al. (2017).

551. V. Stiglitz (2015).

552. V. Aghion et al. (2015) e Pop e Connon (2020).

553. V. Aghion e Howitt (1992) e Akcigit et al. (2017).

554. Aghion, P., Antonin,C. e Bunel, S. (2021), Capítulo 7.

555. V. legislação relacionada: Lei 9.440/97, art. 11-A; Lei 12.218/10; Decreto 7.422/10; Lei

9.826/99; Lei 12.218/10; Lei 12.973/14; Lei 13.043/2014; Decreto 7.422/10 e Lei 12.407/11.

556. Valor baseado em estimativas de perda de arrecadação da Receita Federal (disponíveis em:

https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/receitadata/renuncia-

fiscal/previsoes-ploa/ ).

557. V. Barros e Pedro (2012).

558. V. https://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/cases_e/ds472_e.htm.

559. O Inovar-Auto foi condenado por violar os artigos III:2 e III:4 do Acordo Geral de Tarifas e

Comércio (Gatt) e o artigo 2.1 do Acordo sobre Medidas de Investimento Relacionadas ao

Comércio (Trim).

560. Veículos importados do México e do Mercosul tinham acesso a regimes tarifários

diferenciados no contexto de acordos comerciais prévios.

561. A exceção eram as atividades de pesquisa e desenvolvimento que deveriam ser fiscalizadas

pelo MCTIC.

562. Portaria MDIC 106, de 12 de abril de 2013; Portaria MDIC 113, de 15 de abril de 2013;

Portaria MDIC 280, de 4 de setembro de 2013; Portaria MDIC 297, de 30 de setembro de 2013;

Portaria MDIC-MCTI 772, de 12 de agosto de 2013; Portaria MDIC 257, de 23 de setembro de

2014; Portaria MDIC 290, de 14 de novembro de 2014; Portaria MDIC-MCTI 318, de 23 de

dezembro de 2014; Portaria MCTI 5, de 20 de janeiro de 2015; Portaria MDIC 74, de 26 de

março de 2015; Portaria MDIC 117, de 15 de abril de 2016; Portaria MDIC 328, de 21 de

dezembro de 2016; Portaria MDIC 68, de 22 de fevereiro de 2017; Portaria MDIC 133-SEI, de 6

de março de 2017; Portaria MDIC 1.123-SEI, de 29 de junho de 2018.

563. Ver Portaria MDIC 280, de 4 de setembro de 2013.

564. Cunha (2017) detalha a complexidade do sistema de apuração de informações acerca dos

insumos utilizados na produção de veículos pelas empresas habilitadas ao Inovar-Auto.

o
565. Relatório de Auditoria CGU n 201503383/2014.

566. Ver Portaria MDIC 1.123-SEI, de 29 de junho de 2018.

567. https://economia.estadao.com.br/noticias/negocios,montadora-e-obrigada- a-devolver-

incentivos- fiscais-por -falta-de-investimentos,10000054463.

568. Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Empresa/noticia/2020/09/epoca-negocios-

audi- pode-deixar-de- produzir-carros -no-brasil-se-governo-nao-pagar-divida.html.

569. Disponível em: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/dados-

abertos/receitadata/renuncia-fiscal/previsoes-ploa/.

570. Produtos classificados entre as posições 87.01 e 87.05 da Nomenclatura Comum do

Mercosul (NCM).
571. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/multidominio/ciencia-tecnologia-e-

inovacao/9141-pesquisa-de-inovacao.html?edicao=17110&t=resultados.

572. Utilizamos como medida de inovação o número de patentes depositadas junto ao Sistema

Internacional de Patentes por pessoas residentes em cada país em análise. As informações estão

disponíveis no site da OCDE (https://www.oecd-ilibrary.org/science-and-technology/data/oecd-

patent-statistics_patent-data-en).

573. Consideramos apenas patentes classificadas na categoria B60 da Classificação Cooperativa

de Patentes (CPC).

574. Lei 13.755, de 10 de dezembro de 2018.

575. Veja em: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/dados-

abertos/receitadata/renuncia-fiscal/desoneracoes-instituidas/desoneracoes-instituidas-2018-08-

02-2019.pdf

576. Veja em: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/acesso-a-informacao/dados-

abertos/receitadata/renuncia-fiscal/previsoes-ploa/

577. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/01/08/producao-de-veiculos-

no-brasil-cai- 316percent-em -2020-diz-anfavea.ghtml.

578. Disponível em: https://www.poder360.com.br/economia/da-ford-a- mercedes-pandemia-

impulsiona- saida-de -fabricas-do-brasil/.

579. Disponível em: https://anfavea.com.br/anuario2021/anuario.pdf


OS AUTORES
Acauã Brochado: Mestre em Economia pela USP, atualmente

cursa o PhD em Economia em Frankfurt. Entre 2014 e 2020, trabalhou

diretamente com a supervisão da situação fiscal de Estados e Municípios

no Tesouro Nacional.

Amaro Gomes: Foi Secretário de Coordenação e Governança das

Empresas Estatais Federais (Sest), do Ministério da Economia. Servidor

do Banco Central do Brasil desde 1992, onde ocupou a Chefia do

Departamento de Normas. Foi Board Member do International

Accounting Standards Board (IASB) no período de 2009 a 2019. Mestre

em Contabilidade e Finanças pela Lancaster University (UK).

Bernard Appy: Economista, é diretor do Centro de Cidadania

Fiscal, think tank independente que tem como objetivo contribuir para o

aprimoramento do sistema tributário brasileiro. Entre 2003 e 2009 foi

Secretário Executivo e Secretário de Política Econômica do Ministério

da Fazenda.

Bernardo Schettini: Técnico em Planejamento e Pesquisa do

IPEA, onde desenvolveu estudos principalmente sobre finanças públicas

e previdência. Já foi coordenador-geral de política fiscal na SPE e

atualmente é assessor na Secretaria de Previdência. É doutor em

economia pela UNB.

Bráulio Borges: Graduado em economia pela FEA-USP e mestre

em teoria econômica pela mesma instituição. É economista-sênior da

LCA consultores, onde está desde 2004, e pesquisador-associado do

FGV-IBRE desde 2015. Sua dissertação de mestrado em finanças

públicas recebeu o prêmio Tesouro Nacional em 2005.

Bruno Martins: Pesquisador do Banco Central do Brasil. Doutor

em economia pela EPGE/FGV.

Bruno Perdigão: Analista do Banco Central do Brasil. Doutor em

economia pela PUC-Rio.


Carlos Viana de Carvalho: Diretor de Pesquisa da Kapitalo

Investimentos e Professor do Departamento de Economia da PUC-Rio.

Foi Diretor de Política Econômica do Banco Central e economista do

Federal Reserve Bank of New York. É bacharel e mestre em economia

pela PUC-Rio e PhD em economia pela Princeton University.

Décio Oddone: Diretor-presidente da Enauta S.A. Foi diretor-geral

da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP)

e atua há mais de 35 anos no setor de óleo e gás. É engenheiro e doutor

honoris causa em Educação pela Universidad de Aquino. Cursou o

Advanced Management Program na Harvard Business School e o

Advanced Management Programme no Insead.

Edmar Bacha: Diretor do IEPE/Casa das Garças, membro da ABL

e da ABC. Participou do Plano Real, foi presidente do BNDES e do

IBGE, professor em universidades no Brasil e nos EUA. Seu livro mais

recente é No País dos Contrastes (Intrínseca/História Real, 2021).


Elena Landau: Economista e advogada. Foi diretora de

Desestatização do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e

Social — BNDES e presidente do Conselho de Administração da

Eletrobras. Atualmente integra o Conselho da Eneva. É Presidente do

Conselho Acadêmico do Livres e sócia do escritório de advocacia Sérgio

Bermudes.

Fernando de Holanda Barbosa Filho: Fernando de

Holanda Barbosa Filho é professor e pesquisador da FGV/IBRE. Foi

Secretário de Políticas Públicas de Emprego e Secretário Adjunto de

Política Econômica. É bacharel em economia pela UFRJ, mestre em

economia pela FGV/EPGE e PhD em economia pela New York

University.

Filipe Gropelli Carvalho: Estudante de mestrado na Johns

Hopkins e assistente de pesquisa no Institute of International Finance.

Foi analista da Eurasia Group, é mestre em economia pela FGV-EESP e

bacharel pela Universidade de Toronto.

Francisco Sena: Servidor público federal e atualmente

coordenador-geral de governança de estatais da Sest, no Ministério da


Economia.

Guilherme Marçal de Freitas: Bacharel em Economia pela

FEA-USP e mestre em Economia pela Escola de Economia de São

Paulo da Fundação Getúlio Vargas. Desde 2021, é economista da equipe

de pesquisa econômica da StoneCo.

Gustavo José de Guimarães e Souza: Economista com

especialização em estatística, mestre e doutor em economia pela UnB

com estágio doutoral na Columbia University. Primeiro colocado no

concurso do Banco Central. Professor de mestrado no IDP. Foi

Secretário de Avaliação, Planejamento, Energia e Loteria, e Secretário

Especial Adjunto de Fazenda, ambos no Ministério da Economia, onde

trabalhou de 2016 a 2022. Atualmente é Secretário Parlamentar no

Senado Federal.

Isabela Duarte: Formada em Economia pela Universidade de

Brasília, com mestrado e doutorado em Economia pela PUC-Rio.

Especializada em avaliação do efeito de políticas de educação,

concorrência e aumento de produtividade. Foi Assessora do Secretário

de Produtividade e Concorrência no Ministério da Fazenda entre 2017 e

2019 e pesquisadora pós-doutora na Escola de Governo da Universidade

de Harvard (Harvard Kennedy School).

Itanielson Cruz: Mestre em Economia pela FGV-SP. Desde 2014,

trabalha diretamente com a supervisão da situação fiscal de Estados e

Municípios no Tesouro Nacional.

Laura Muller Machado: Mestre em economia aplicada pela

Universidade de São Paulo, professora e pesquisadora no Insper. Dedica-

se à análise e à difusão de evidência científica para formulação e

avaliação de políticas públicas.

Marcelo Kfoury Muinhos: Professor da FGV-EESP. Foi chefe

do departamento de Pesquisa do Banco Central do Brasil e economista-

chefe do Citi-Brasil. É Phd em Economia pela Universidade de Cornell-

USA.

Marcelo Trindade: Advogado, professor do Departamento de

Direito da PUC-Rio, foi diretor e presidente da Comissão de Valores


Mobiliários — CVM.

Marco Bonomo: Professor titular de economia do Insper. Foi

professor assistente e associado da PUC-Rio e professor associado da

EPGE-FGV. É bacharel e mestre em economia pela PUC-Rio e PhD em

economia pela Princeton University.

Marcos Mendes: Doutor em economia pela USP. É pesquisador

associado do Insper. Consultor Legislativo do Senado — licenciado. Foi

chefe da assessoria econômica do Ministro da Fazenda de 2016 a 2018.

Otávio Sidone: Doutorando em Economia na UnB, mestre e

bacharel em Economia pela USP e mestre em Direção e Gestão de

Planos e Fundos de Pensão pela OISS e Universidade de Alcalá. É

servidor público federal. É coordenador-geral de Estudos

Previdenciários no Ministério do Trabalho e Previdência

Pedro Ivo Ferreira de Souza Junior: Mestre em Economia

do Setor Público pela UnB e bacharel em Engenharia pela UFMG. É

Auditor Federal de Finanças e Controle da Secretaria do Tesouro

Nacional e atua como coordenador-geral de Estudos Econômico-Fiscais.

Ricardo Paes de Barros: Doutor em economia pela

Universidade de Chicago. Integrou o IPEA por mais de 30 anos,

atualmente é professor do Insper e dedica-se à geração de evidência

científica para formulação e avaliação de políticas públicas.

Rogério Nagamine Costanzi: Doutorando em Economia pela

Universidade Autônoma de Madrid e mestre em Economia pela USP e

em Direção e Gestão de Sistemas de Seguridade Social pela OISS e

Universidade de Alcalá. É servidor público federal. Ocupou diversos

cargos no Ministério do Trabalho e Previdência. É Subsecretário do

Regime Geral de Previdência Social.

Samuel Pessôa: Pesquisador associado do FGV-IBRE e chefe da

pesquisa econômica da Julius Baer Family Officy. Mestre em física e

doutor em economia, ambos pela USP e colunista do caderno de

mercado do jornal Folha de São Paulo.

Sérgio Kannebley Jr.: Professor titular do departamento de

Economia da Faculdade de Economia Administração e Contabilidade


Campus de Ribeirão Preto — USP (FEA RP-USP). Pesquisador nas

áreas de Economia Internacional, Industrial e de Tecnologia.

Simon Schwartzman: Estudou sociologia e política na

Universidade Federal de Minas Gerais, e é doutor em ciências políticas

pela Universidade da Califórnia, Berkeley. É membro da Academia

Brasileira de Ciências.

Thais Vizioli: Auditora Federal de Finanças e Controle, da

Secretaria do Tesouro Nacional. Foi coordenadora na Assessoria

Especial do Ministério da Fazenda entre 2016 e 2018 e atualmente é

assessora na Secretaria de Previdência. É mestre e doutoranda em

Economia pela UnB.

Tiago Sbardelotto: Analista de finanças públicas da XP

Investimentos. Auditor do Tesouro Nacional licenciado. Mestre em

economia pela UnB. Atuou na regulação de serviços de comunicações

(Anatel) de 2005 a 2014 e no Tesouro Nacional na área de planejamento

estratégico e fiscal de 2014 a 2021.

Vinicius Carrasco: Ph.D. em Economia pela Stanford University,

sócio-diretor da StoneCo e Professor do Departamento de Economia da

PUC-Rio. Foi, de 2013 a 2017, membro-afiliado eleito da Academia

Brasileira de Ciências. Entre 2016 e 2017, foi Diretor de Planejamento e

Pesquisa do BNDES.

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