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17/11/2021 14:31 Um amor de biblioteca – Resista!

Observatório de resistências plurais

Resista! Observatório de resistências plurais

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e defendendo os espaços plurais de produção, difusão e compartilhamento de
saberes, conhecimentos e artes. RESISTA!

29 DE OUTUBRO DE 2019
RESISTAORP

Um amor de biblioteca
Cada caso de amor deixa o rastro de uma bibliografia, de livros trocados e depois compartilhados.

Setembro é um bom mês. É o momento em que novos livros, como filhotes nascidos no começo do verão, saem pela primeira fez para brincar em
praça pública, com suas almofadas macias e suas costas brilhantes. As livrarias se enchem com esses corpos desconhecidos. Alguns chegarão às
casas, farão parte de uma biblioteca, se deitarão nas mesas de cabeceira e até entrarão em camas entranhas. Os livros são, como os vírus, entidades
intermediárias entre o objeto e o ser vivo.

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Uma biblioteca é uma biografia material, escrita com as palavras dos outros, constituída da acumulação e da ordem de diferentes livros que alguém
leu ao longo de sua vida. É preciso acrescentar aos livros lidos os livros possuídos sem terem sido lidos, aqueles que repousam nas prateleiras ou
que esperam sobre as mesas, mas nunca foram abertos, nem olhados. Em uma biografia, os livros não lidos são indicadores de desejos frustrados, de
vontades passageiras, de amizades rompidas, de vocações não cumpridas, de depressões secretas que se escondem sob o pretexto de excesso de
trabalho ou falta de tempo. Às vezes, são máscaras que o falso leitor usa para emitir sinais literários que visam suscitar a simpatia ou a
cumplicidade de outros leitores. Outras vezes, como em uma página do Instagram, apenas a capa, o nome do autor ou mesmo o título de um livro
contam. Os livros não lidos são uma reserva de futuro, pedaços concentrados de tempo, indicando uma direção que a vida teria podido tomar, mas
que ela não tomou ou que ainda poderia tomar.

Cada relação amorosa deixa atrás de si uma bibliografia como uma espécie de traço ou de herança onde assinalamos os livros que cada amante
levou ao outro. Da mesma maneira, poderíamos dizer que cada relação tem sua bíblia, seu livro sagrado, o livro por meio do qual um amor ou um
fracasso amoroso é narrado. A intensidade e o grau de realização de um amor podem ser medidos pelo impacto que a relação amorosa teve sobre
sua biblioteca pessoal.

Com a companheira com quem vivi mais tempo, chegamos a formar uma biblioteca de mais de 5.000 exemplares, reunindo nossos livros e
acrescentando novos a cada dia. Embora faça quatro anos que nos separamos enquanto casal romântico (segundo as convenções burguesas e
patriarcais que regem ainda o que é socialmente compreendido por casal), jamais fomos capazes de separar os livros. Virginie e eu viemos de dois
mundos diferentes, ou para ser mais preciso, tivemos duas bibliotecas radicalmente heterogêneas antes de nos amar. A dela era composta por mil
livros sobre a cultura musical e o punk rock, dos quais vários em inglês, misturados a uma boa coleção de literatura americana e a uma seleção a
dedo de romances policiais franceses. A minha era formada pela passagem por instituições universitárias de três países diferentes, dos jesuítas à
New School for Social Research, passando por Princeton ou pela École des Hautes Études en Sciences Sociales. Era uma biblioteca bastante tediosa e
estudiosa, em três línguas, que reunia os clássicos gregos e latinos, a história da arquitetura e da tecnologia, assim como da filosofia francesa, e que
apenas aproximadamente 500 títulos de feminismo, de teoria queer e anticolonial vieram abalar a paz canônica do pensamento ocidental.

Nosso amor causou primeiro a troca de alguns livros entre nossas respectivas bibliotecas. Talvez tudo tenha começado com a migração de Le corps
lesbien, de Monique Wittig, de minha biblioteca para encontrar na sua um lugar ideal entre Albertine Sarrazin e Goliarda Sapienza. Depois houve o
contrabando de seu Ellroy e de seu Calaferte que afiaram suas páginas para abrir espaço em minha biblioteca entre Hobbes e Leibniz. Em seguida,
houve o glorioso encontro de sua Lydia Lunch com minha Valerie Solanas. A evasão de seu Baldwin em minha biblioteca para encontrar um lugar
ao lado de Angela Davis e bell hooks. Era como se as fronteiras políticas estabelecidas por cada biblioteca caíssem diante do charme dos livros da
outra.

Então, quando nos mudamos, operou-se a fusão das bibliotecas. A reorganização de todas as séries, a ruptura do cânone, a reviravolta do
repertório, a perversão do alfabeto. Derrida parecia melhor na companhia de Philippe Garnier e Laurent Chalumeau. Mais tarde, a metamorfose
aconteceu: a biblioteca começou a crescer com novos títulos provenientes da inseminação mútua. Surgiram assim prateleiras inteiras de Pasolini e
Joan Didion, de June Jordan e Claudia Rankine, de Susan Sontag e Elfriede Jelinek. Depois, Virginie aprendeu a falar espanhol e chegaram, como

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novos órgãos, Roberto Bolaño, Osvaldo Lamborghini, Pedro Lemebel, Diamela Eltit e Juan Villoro. A biblioteca tornava-se um monstro diante do
qual podíamos passar horas a brincar como crianças, reunindo um Achille Mbembe aqui e uma Emma Goldman ali, olhando a anatomia mutante
desses corpos de ficção. A biblioteca comum estava viva e crescia conosco.

A reprodução, que poderíamos dizer quase sexual, de nossas bibliotecas tornou impossível a separação dos livros quando decidimos nos separar e
eu me mudei para Atenas. Isto é a prova de que nossa biblioteca comum era muito mais sólida do que nós mesmas enquanto casal. Nosso amor era
um amor de livro. Não porque correspondesse a uma narrativa literária, nem porque sua qualidade fosse mais fictícia que real, mas porque unia
nossos livros de maneira mais permanente e definitivamente do que nossos corpos.

Crônica de Paul B. Preciado publicada no jornal Libération, em 20 de setembro de 2019. Disponível em:
<https://www.liberation.fr/debats/2019/09/20/un-amour-de-bibliotheque_1752670 (https://www.liberation.fr/debats/2019/09/20/un-amour-
de-bibliotheque_1752670)>.

Tradução: Luiz Morando

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