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MÉTODO ESPAÇOǧDIRECIONALǧBEUTTENMÜLLER,

MUITO ALÉM DAS PALAVRAS

BEUTTENMÜLLER´S SPACE-DIRECTIONAL METHOD, FAR BEYOND WORDS

Jane Celeste Guberfain


Professora Escola de Teatro da Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO.

Resumo: Este artigo analisa a contribuição do Método Espaço-Direcional-Beuttenmüller à formação e ao


trabalho vocal do ator teatral. Investiga os princípios que o norteiam e ressalta a sua relevância para a pre-
paração da voz em cena. Veri icamos que o Método apresenta uma estrutura lexível, valoriza as experiên-
cias individuais, a partir da sensibilidade e da consciência corporal e espacial, acompanhando as tendências
teatrais contemporâneas. Redescobre a palavra no sentido da sua expressão como um “abraço sonoro” no
ouvinte.
Palavras-chave: voz; qualidade da voz; treinamento da voz.

Abstract: This article analyzes the contribution of Beuttenmüller’s Space-Directional-Method to theater ac-
tors development and vocal work. It investigates its underlying principles and highlights its relevance for
on-stage voice training. We conclude that the method provides a lexible structure and is sensitive to indi-
vidual experience, based on physical and spatial sensitivity and awareness, in ways that are coherent with
contemporary theatrical approaches. The Method situates the word – in terms of its expressiveness – as a
“sonorous hug” to the listener.
Keywords: voice; voice quality; voice training.

Introdução ouvia atentamente a leitura dos poemas. Após


certo tempo a escritora precisou viajar para

A
escritora e baronesa dinamarquesa
Zanzibar. Ao voltar para sua casa, encontrou
Karen Blixen (1885-1962), em seu
o menino à sua espera, ansioso para ouvir
livro Out of Africa1, descreve uma
novamente a leitura rotineira. Como ela
passagem de sua vida no Quênia, onde dirigia
demorava a retornar as leituras o menino
uma fazenda de café. Karen Christentze
apelou para a sua patroa, dizendo: “Fala como
Dinesen, seu nome verdadeiro, costumava
chuva outra vez, fala!” Podemos constatar que
ler à noite, em voz alta, poemas em inglês de
a leitura dos poemas pela baronesa despertou
Byron, de Shelley, de Pope e de Shakespeare. O
no garoto fortes sensações e sentimentos,
empregado da baronesa, um menino africano
além do simples gosto de ouvir histórias. Com
da tribo quicuia, apesar de não entender
certeza a baronesa encantou o menino com
outra língua se não a da sua comunidade
as suas palavras, por saber modular a voz de
1 Traduzido para o português com o título A modo a transmitir matizes de sentimentos. Os
fazenda africana. puros e sensíveis ouvidos de um jovem quicuio

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foram afetados por aqueles sons e a inados Procuramos investigar em nossa pesquisa
pela musicalidade, que o tocavam tanto quanto essas possibilidades do método, que, aplicado
um som da natureza como o da chuva. à expressão da fala pretende associar a ciência
Para obter tal resultado na leitura fonoaudiológica aos aspectos que constituem
dos poemas, acreditamos que a baronesa o verdadeiro mistério da voz: cores e formas
tenha aproveitado vários recursos da das palavras, técnica e sensibilidade, fala e
fala, com suas imensas possibilidades de vocalidade poética, isionomia, expressão
sugestão, envolvimento e sensibilização. A corporal-vocal, sentimentos e sentidos. En im
fala, independentemente da língua e do seu aspectos que fazem da voz um instrumento
conteúdo signi icativo, age como um fenômeno privilegiado da arte da comunicação. A
capaz de in luenciar sensivelmente o outro, professora e fonoaudióloga Maria da Glória
através de suas diversas modulações. Um Cavalcanti Beuttenmüller foi a mentora do
texto, como o de Karen Blixen, que a princípio Método Espaço-Direcional-Beuttenmüller.
foi elaborado para a escrita, ao ser oralizado
adquiriu materialidade e identidade próprias 1. A fonoaudióloga e professora Maria da
a partir das suas potencialidades de expressão. Glória Beuttenmüller
No teatro, a voz tem uma importância
fundamental, já que o ator utiliza vários Maria da Glória Cavalcanti
recursos para a interpretação: suas Beuttenmüller gosta de ser chamada de
possibilidades vocais e corporais aliadas Glorinha. Conta que o diminutivo foi uma
às emoções, sentimentos e energias do opção pessoal, pois considera este nome mais
personagem. Parte-se do princípio que o aberto, mais projetado, favorecido pelo grupo
modo de dizer tem uma função lingüística, consonantal [gl], principalmente pelo fonema
quer signi icativa, quer distintiva. Ou seja, o [l] que, por ser uma consoante líquida, “é
poder de sugestão da fala transcende o caráter impossível de ser pronunciada para dentro” e
lingüístico. A emissão de palavras idênticas pela sílaba “rin”, que propicia uma ressonância
pode resultar em mensagens distintas, com nasal ao nome (BEUTTENMÜLLER, 2003:15).
interpretações diferentes, devido à variação Respeitando o seu desejo, passaremos a tratá-
da curva melódica, resultando em uma la, ao longo do trabalho, como Glorinha. Ela
expressividade peculiar. constrói a originalidade do seu método à luz
O Método Espaço-Direcional- da experiência pro issional e do conhecimento
Beuttenmüller (M.E.D.B.) busca despertar adquirido nas áreas da Música, Teatro,
a sensibilidade para a percepção dessas Fonoaudiologia, Pedagogia, Odontologia e
características, que são próprias da natureza Psicologia.
da voz e, muitas vezes, pouco exploradas Beuttenmüller construiu o M.E.D.B. a
pelos pro issionais da comunicação. partir de sua experiência como professora de

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várias instituições de ensino e coordenadora vozes e gestos, criava, através do movimento,
do Setor de Logopedia, de ensino uma representação das coisas que eles nunca
especializado, no Instituto Benjamin Constant, chegaram a enxergar, a im de conseguir
de 1960 a 1974, aliada à sua sensibilidade, um resultado corporal e vocal satisfatório
adquirida como violinista e declamadora e à para a declamação dos poemas – como se
sua formação como fonoaudióloga. a voz fosse um instrumento que as izesse
A necessidade de aprimoramento enxergar: “As cores, a luz e os movimentos,
da palavra falada dos de icientes visuais que os olhos jamais puderam ver, ganharam
do Instituto Benjamin Constant permitiu novas dimensões no mundo escuro e limitado
a Beuttenmüller sensibilizar-se sobre a dessas meninas, quando aprenderam que pelas
dimensão da importância da expressividade, palavras e gestos poderiam substituir o prazer
pois percebia grande di iculdade nos alunos da visão” (BEUTTENMÜLLER, 2003, p. 52).
de compreensão para determinadas palavras e Ela conseguiu que os seus alunos
conceitos. Diante dessa situação, pressentiu a de icientes visuais compreendessem que o
necessidade de estimulá-los através dos outros prejuízo da visão poderia ser compensado por
sentidos do corpo, veiculando sensações táteis, meio de outras sensações e expressões não-
gustativas, olfativas e auditivas ao signi icado visuais, como o prazer de falar e de gesticular
das palavras. no espaço. Nesse sentido, para compensar a
O poder de sugestão, de imersão do falta da visão, os cegos receberam estímulos
ouvinte em um espaço sensorial é inerente auditivos, olfativos, táteis e gustativos. A
à fala é um dos aspectos que investigamos informação visual era substituída por uma
no M.E.D.B. E para o ator, que precisa se percepção sensorial, permitindo que os
relacionar como um atleta do coração , com o cegos vivenciassem sensações corporais. Tais
espectador, tal característica da fala apresenta- sensações geravam, por sua vez, uma imagem
se como recurso interpretativo essencial no mental, uma memória, um registro, facilitando
seu trabalho e que ele precisa dominar. a compreensão do signi icado das palavras.
Tudo começou com o trabalho realizado com a
professora cega que lhe pedira uma orientação
2. O Método Espaço-Direcional-
Beuttenmüller (M.E.D.B.) vocal: “Preciso que alguém me ensine as
palavras que desconheço. Você não precisa
Em sua atuação como professora dos me explicar o que é o sol. O sol tem calor e eu
de icientes visuais no Instituto Benjamim o ‘vejo’ e sinto. Mas não sei como é a lua... (...)
Constant, Beuttenmüller pesquisou E, por isso, não sei falar a palavra ‘lua’ com
formas inovadoras de produzir nos cegos a verdade” (BEUTTENMULLER, 2003, p. 31).
compreensão do sentido das palavras através Valendo-se de sua veia poética, logo viu que o
de sensações e sentimentos. Associando problema era tátil, uma coisa de pele, intuiu

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consigo mesma. Mas não o disse em voz alta. baixo, esquerda e direita, frente e trás, cheio
Meio de improviso, replicou: “A lua é morna. E e vazio, veloz, devagar ou parado, e todas as
inspira os namorados” (2003, p. 31). diversas combinações dessas percepções”
Beuttenmüller conseguiu converter (BEUTTENMÜLLER, 2003, p. 33). Concluiu que
uma imagem visual di ícil de explicar, como a a di iculdade com o reconhecimento do espaço
lua, numa percepção tátil, associando-a aos pode acarretar problemas de emissão vocal,
sentimentos. Assim como a lua, muitos outros pois, sem a devida noção de “onde” e “em que
conceitos foram compreendidos através do dimensão” deve projetar a sua voz o indivíduo
estímulo de outros sentidos. As sensações se intimida e tem di iculdades para falar e
estimulam nos cegos a criação de imagens expressar-se com naturalidade e e iciência.
mentais que facilitam o reconhecimento e a Com base na percepção desta questão
compreensão do mundo, colaborando para espacial, como vimos, ela desenvolveu com
uma expressão oral mais e iciente, através da seus alunos esse trabalho bem sucedido,
expansão de uma memória sensorial. de “Coro Falado”, obtendo reconhecimento
O senso comum entende que os cegos, pelos efeitos extremamente positivos na
por não terem a visão, não são capazes de comunicação dos de icientes visuais. A partir
construir imagens representativas, porém desta experiência, Beuttenmüller rati icou a
está comprovado que possuem um mundo importância da consciência do espaço para
de representações sensoriais (não visuais), a projeção adequada da voz, base da sua
que podem ser evocadas pela memória na metodologia de trabalho.
ausência dos objetos que as provocaram. A O M.E.D.B. foi considerado
diferença consiste em que o vidente integra revolucionário na época da sua criação
as informações de outros sentidos formando (décadas de sessenta e setenta do século XX,
uma imagem visual das experiências; no Rio de Janeiro). Os atores tradicionais, ao
cego essas imagens visuais estão ausentes, tentarem impostar a voz para serem ouvidos,
mas não a imagem mental. Uma pessoa cega de acordo com a estética vigente, produziam
tem peculiaridades especí icas e limitações um efeito sonoro de verticalização, falando
inegáveis, em relação a uma pessoa vidente, alto demais e em uma única direção, para “a
porém possui um aparelho psíquico capaz última velhinha surda da platéia”. Na visão
de representar o mundo de uma maneira proposta pelo M.E.D.B., os atores desenvolvem
qualitativamente diferente, capaz de adaptar uma nova relação com o espaço cênico: a voz
sua evolução e funcionamento psicológico com tem que ter direção e ao mesmo tempo tem
a informação sensorial de que dispõe. que envolver o espectador. Não é preciso uma
Beuttenmüller foi percebendo outras superarticulação das palavras para que se
di iculdades dos cegos, sempre relacionadas tenha uma boa compreensão delas; é preciso
à questão espacial: “extensão, distância, alto e acima de tudo, respeitar cada vocábulo, de

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acordo com a sua forma e a imagem perceptual seu M.E.D.B., traz a possibilidade desta
que cada uma tem em si. metamorfose, desta libertação pela palavra.
O símbolo do M.E.D.B. é uma borboleta, Cria uma forma original de expressar a
com uma pessoa no centro e as letras do nome comunicação - ao mesmo tempo, trabalhando
do método, como podemos visualizar a seguir: com o belo, com as cores e formas da palavra,
como as diferentes fases da borboleta. Por
outro lado, a borboleta, como alguns outros
insetos, tem grande atração pela luz, e o seu
aparecimento prenuncia acontecimentos
alegres. Ao buscar o sentido da palavra na
relação entre imagem e forma, Glorinha lança
luz sobre as possibilidades de signi icação
dessa palavra.
E foram essas peculiaridades que
Glorinha conseguiu perceber e soube
trabalhar para o aprimoramento das tarefas
comunicativas dos de icientes visuais.
Figura 1: Símbolo do M. E. D. B. (BEUTTENMULLER, Glorinha ensinou-lhes a perceber que o mundo
1995)
oferecia sons, cheiros, texturas, temperaturas,
que devem ser percebidas pelo corpo todo,
A palavra borboleta é derivada do
com o auxílio da informação verbal, pelo poder
latim belbellita < bellu, ‘bom’, ‘belo’. e quer
evocativo que a palavra possui.
dizer pequena bela. As borboletas são insetos
Nesse sentido, a palavra é memória.
originados de um processo de metamorfose.
A palavra é memória de duas naturezas: a
Primeiro é larva, torna-se crisálida e depois,
palavra como memória individual, resultado
inalmente, a borboleta. Talvez exista essa
das experiências particulares de cada um; a
relação implícita entre o símbolo da borboleta
palavra como memória social, no sentido de
escolhida por Glorinha Beuttenmüller para
que a palavra é um signo ideológico, como
o seu método e a metamorfose em diferentes
a irma Bakhtin (1979). Traz uma marca
etapas que pretende promover no uso da voz
social, um registro social de possibilidades
pelo ator.
semânticas. Segundo Bakhtin, no texto do
Na Grécia antiga, quando a borboleta
falante, a signi icância vai além da fala, ou
emergia do casulo (da crisálida) dizia-se
torna-se translinguística, pois o dialogismo
que este momento era idêntico à libertação,
da linguagem compreende as relações
equivalia ao acesso à imortalidade.
intertextuais. A palavra é signi icada dentro
Simbolicamente, Beuttenmüller, com o
de um contexto social, em um processo

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narrativo que ultrapassa as relações Maria da Glória Beuttenmüller criou


signi icante-signi icado, em um diálogo que vários conceitos no seu método, reformulando
transfere a condição de sujeito da narração as concepções sobre a impostação vocal. Nesse
ao destinatário. Este, o sujeito da leitura, é sentido, a impostação da voz passou a ser
o intérprete daquele que enuncia algo para traduzida em um “abraço sonoro” na platéia,
si mesmo e para o outro. Dessa maneira como se as pessoas fossem tocadas pela voz,
tentando articular o sentido da palavra a um verdadeiro efeito de “tato à distância”.
sensações e sentimentos, Beuttenmüller Essa opinião é reforçada pela jornalista
amplia e reforça pela memória sensorial e Fátima Bernardes, locutora de telejornal de
sentimental as possibilidades expressivas do uma importante emissora no país: “O que
signo verbal. de mais importante aprendi com Glorinha
Os fenômenos são explicados no foi que, a cada frase, a cada texto, devemos
próprio estilo de ver o mundo, e o que é dar um abraço sonoro no público. Para isso
signi icativo para o enunciador pode não ser precisamos falar não apenas com a boca, a
para o outro, na mesma realidade social. Em garganta, e sim com o corpo inteiro. Essa
cada situação particular, em um processo mensagem icou, e uso em minha carreira
dialético e contínuo, cada agente sente de desde então” (Apud BEUTTENMÜLLER, 2003,
modo singular, com sua própria história p. 46).
de vida e constrói signi icados especí icos, Esses e outros conceitos como “núcleo
engendrando um texto igualmente especí ico sonoro”, “escultura sonora”, dentre outros,
para a compreensão do fenômeno. O M.E.D.B. criados no M.E.D.B. re letem um desejo pela
tem a preocupação de reunir signi icante mudança de postura do ator, que re lete uma
e signi icado, valorizando as experiências concepção e um olhar para o mundo sob
individuais e o poder sugestivo ideológico do uma nova perspectiva, uma perspectiva mais
discurso, de que nos fala Bakhtin. humana da realidade e não mais apenas pela
A partir da experiência bem sucedida ótica da técnica propriamente dita. Nesse caso,
com os cegos, os princípios do M.E.D.B., que o ator deve aliar a natureza e a singularidade
analisaremos a seguir, foram aplicados e dessa técnica com a sensibilidade e a
aprimorados no tratamento e na formação afetividade.
dos pro issionais da voz em geral, tais Acreditamos pertinente reproduzir
como atores, cantores, locutores, políticos, o organograma do M.E.D.B., que explicita
oradores, pastores e professores de claramente a interligação de todos os aspectos
quaisquer modalidades de ensino, cuja voz a serem trabalhados no ator e que expressam a
é, essencialmente, o seu instrumento de visão global do Método.
trabalho.

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cênica capaz de produzir um envolvimento
sonoro no espaço.
Projetar a voz no núcleo sonoro do
espaço é essencial, tanto para garantir a
audibilidade e envolvimento sonoro, quanto
para garantir o melhor rendimento com o
mínimo de esforço do aparelho fonador. Para
tanto, é de suma importância a percepção
desse núcleo, que varia de acordo com o
tipo de palco ou espaço cênico. Para se ter
a percepção do núcleo sonoro, traçam-
se no espaço de atuação linhas diagonais
imaginárias e estabelece-se o ponto de
encontro dessas linhas, para que a voz seja
Figura 2: Organograma do M.E.D.B.
(BEUTTENMÜLLER; LAPORT, 1974, p. 2) lançada no espaço global pelo ator.
Por outro lado, o ator deve ter um
treinamento especializado para que possa
Ao analisarmos as relações apontadas
aproveitar as caixas naturais de ressonância
neste organograma, percebemos um
com o controle respiratório. A sonorização
movimento circular que sugere uma ação
deve ser realizada respeitando-se a forma
constante de retro-alimentação. A consciência
global da palavra e a sua imagem. Ao
e vivência de todas estas etapas são
pronunciá-la, devemos levar em conta a
consideradas imprescindíveis para garantir
percepção corporal, vocal, espacial e rítmica,
um desenvolvimento artístico harmonioso e
através dos movimentos e esforços motores,
um bom desempenho do ator no teatro, seja
para que se estabeleçam relações na atividade
qual for a natureza da concepção estética da
artística.
encenação, a tendência do texto ou a exigência
O relacionamento é a base da arte
da direção.
teatral: do ator com os outros atores, do ator
Um dos aspectos essenciais apontados
com o cenário, do ator com os objetos cênicos
constitui o objetivo principal do ator:
e do ator com o público. Esse relacionamento
“relacionamento”, que se encontra no centro
deve ser realizado através do uso dos
do esquema de Beuttenmüller. A atividade
sentidos, sentimentos e emoções do ator,
teatral deve ser realizada pelo ator com
expressos vocal e corporalmente, a partir de
equilíbrio e controle do seu esquema corporal-
suas vivências, como recomenda Stanislavski
vocal, através de movimentos básicos e
(1995).
esforços motores, na busca de uma presença

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De acordo com o M.E.D.B., voz é vida, Podemos estabelecer uma relação com
voz é movimento, voz é ar. E essa voz tem que a epígrafe do livro do autor português José
envolver o ouvinte. Esse envolvimento tem a Saramago (1995): “Se podes olhar, vê, se
ver com o abraço sonoro – que é a adequada podes ver, repara”. O mesmo é recomendado
projeção da voz no espaço. E para se conseguir no M.E.D.B. saber ver, saber reparar, para que
dar o abraço sonoro no público, Beuttenmüller se possa tocar o outro com a voz. Seu próprio
recomenda “olhar-ver-enxergar” para poder olhar e a sua voz se manifestam tocando o
“tocar” o espectador com a voz. Devemos outro. Essa atitude só pode ser concretizada
usar o nosso corpo e a nossa voz de forma se houver o domínio do espaço. E isso implica
criativa e personalizada, pois para ela: “A no domínio da projeção vocal no espaço que
voz é a identidade, o selo, a marca sonora de deve vir acompanhada da forma e da imagem
uma pessoa (...) Falamos com o corpo inteiro, das palavras. Tal pensamento se relaciona com
desde a ponta dos pés até a ponta dos cabelos” a Teoria da Gestalt, que considera a percepção
(BEUTTENMÜLLER, 2003, p. 40). Por este como um fenômeno de totalidade, mais do que
motivo, o corpo e a voz devem estar sempre como uma justaposição de partes. A Teoria da
a inados, através da sensibilidade, consciência Gestalt surgiu no inal do século XIX e hoje é
dos movimentos, equilíbrio interno e externo importante linha de pesquisa e atendimento
e da economia de esforços. É curioso observar terapêutico na Psicologia (GOMES FILHO,
que esses fatores também são fundamentais 2000).
para os pesquisadores Rudolf Laban (1978) A palavra vai expressar um universo
e Moshe Feldenkrais (1977), constatado em de imagens e signi icados que devem ser
nossos estudos do Doutorado. levados em consideração pelo ator na
Além disso, devemos usar a expressão expressão vocal, da palavra como fenômeno
do olhar quando se fala, para que se possa de totalidade, a partir de sua percepção, da
conjugar o “olhar-ver-enxergar”, reunindo sua sensibilidade e da sua experiência. Cabe
todos os outros sentidos de uma forma ao ator, ao representar seu personagem,
humanista, pois envolve afetividade. transmitir sentimentos e sensações, dar vida
Beuttenmüller propõe uma outra natureza de às palavras, através da sua maneira própria de
interpretação, pois esse afeto vai se re letir falar. Descobrindo suas possibilidades, o ator
no gesto, no movimento, na fala e em todas as pode ir além do signi icado padronizado ou
ações, pois no teatro se dialoga principalmente pré-estabelecido, criando nuanças e sutilezas
com afetos. As idéias podem ser obtidas pela de âmbito supra-segmental2. Nesse sentido,
leitura dos livros. Os afetos se transformam
em voz. Voz que expressa o afeto dando um 2 Os aspectos supra-segmentais dizem
“abraço sonoro” no espectador. respeito aos sons não-verbais, além da
exploração da melodia das palavras. Estão
relacionados aos aspectos extralingüísticos

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a palavra pode trazer em si a representação da enriquecedora, que propiciou terreno fértil
realidade ou criar outra realidade, sugestiva de para o aperfeiçoamento do seu método e a
sentidos, como se fosse uma “escultura sonora”. sua aplicação, não só junto aos atores, como
Para que se possa viver intensamente também junto a outros pro issionais.
um personagem é preciso perceber o mundo Beuttenmüller parte assim da premissa
à nossa volta, utilizando com propriedade os de que a palavra traz em si mesma a cor e
sentidos e expressando os sentimentos de a forma que de inem o seu poder sugestivo
forma envolvente para o público. Segundo e sinestésico, envolvendo uma fusão de
o M.E.D.B., para que se estabeleçam essas sensações na sua emissão. Esse aspecto da fala
relações entre os sentimentos e os sentidos, o será um pilar sobre o qual se fundará a sua
ator necessita “olhar-ver-enxergar” em cena, metodologia espaço-direcional.
de forma a dominar o espaço através da visão.
Artigo recebido em 18 de março de 2011.
Conclusão Aprovado em 20 de abril de 2011.

A ausência da dimensão espacial Referências Bibliográϐicas


existente na limitação dos cegos inspirou
o desenvolvimento do Método Espaço- ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São
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teórica, por sua grande intuição e pela
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palavra projetada no espaço ocupam um lugar
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Maria da Glória Beuttenmüller Janeiro: Forense Universitária, 1974.
aprimorou a aplicação do seu método nos
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excitada pelo exercício da experiência docente, Enelivros, 1982, 1989 e 1992.
associada à densa bagagem acumulada nos
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anos anteriores com os de icientes visuais
Direcional – Dicção. Rio de Janeiro: Objetiva do
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cursos realizados. Uma vivência extremamente

BEUTTENMÜLLER, Maria da Glória. O


da comunicação. Despertar da Comunicação. Rio de Janeiro:

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Interações entre Corpo e Voz no Espaço Jane Celeste Guberfain

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