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Valter Pomar

ORGANIZADOR

Edmilson Costa
Marly Vianna
Rodrigo Freire
José Reinaldo Carvalho
Ana Prestes
Ronald Rocha
Breno Altman
Iole Ilíada
Rayane Andrade
Wladimir Pomar

Escola Latino-americana
de História e Política
Escuela Latinoamericana
de Historia y Política
Valter Pomar
ORGANIZADOR

Edmilson Costa
Marly Vianna
Rodrigo Freire
José Reinaldo Carvalho
Ana Prestes
Ronald Rocha
Breno Altman
Iole Ilíada
Rayane Andrade
Wladimir Pomar

Escola Latino-americana
de História e Política
Escuela Latinoamericana
de Historia y Política
100 anos de comunismo no Brasil
2022
1a edição digital
ELAHP - Escola Latino-americana de História e Política
Associação de Estudos Página 13

Coordenação editorial e Organização


Valter Pomar

Revisão
Adriano Bueno

Projeto gráfico e diagramação


Emilio Font
Conselho editoral da Editora Página 13
Elisa Guaraná Pedro Pomar
Francisco Xarão Pere Petit
Giovane Zuanazzi Rodrigo César
Jandyra Uehara Rosana Ramos
Luiz Momesso Rosângela Alves de Oliveira
Marcos Piccin Sonia Fardin
Pamela Kenne Suelen Aires Gonçalves
Paulo Denisar Valter Pomar

Escola Latino-americana
de História e Política
Escuela Latinoamericana
de Historia y Política www.pagina13.org.br
www.elahp.com.br
Sumário
Apresentação
100 anos de comunismo no Brasil
7

Edmilson Costa
PCB: 100 anos de luta pelo socialismo no Brasil
11

Marly Vianna
Entrevista concedida no dia 1 de março de 2022
35

Rodrigo Freire
O PCB e a resistência à ditadura militar: entre a luta de massas e a
violência genocida
47

José Reinaldo Carvalho


PCdoB: 100 anos de luta por direitos do povo, democracia,
independência nacional e socialismo
63

Ana Prestes
Entrevista concedida no dia 04 de março de 2022
87

Ronald Rocha
O PRC na diáspora e na reorganização comunista
95

Breno Altman
Partido Comunista: construção interrompida
117

Iole Ilíada
As relações dos partidos comunistas com o PT: a tensão dialética entre
o comunismo e o Partido dos Trabalhadores
127

Rayane Andrade
O que o futuro nos reserva?
145

Wladimir Pomar
100 anos de fundação do primeiro partido comunista no Brasil
157

Valter Pomar
Reflexões sobre 2122
163
Apresentação
100 anos de comunismo no Brasil

O
ponto de partida deste li- Nacional Libertadora e o Levan-
vro é um curso realizado te de 1935; 4) o Partido Comunista
pela Escola Latino-ameri- durante a ditadura Vargas, a confe-
cana de História e Política (Elahp) rência da Mantiqueira e a fase final
sobre os 100 anos do comunismo do governo Vargas; 5) a legalida-
no Brasil. de, a participação nas eleições e na
O curso começou no dia 10 de Constituinte, a cassação da legenda
julho de 2021 e seu plano inicial e dos mandatos; 6) do “Manifesto
incluía 46 horas distribuídas nas de janeiro” de 1947 à “Declaração
seguintes 23 aulas: 1) uma intro- de março” de 1958, passando pelas
dução geral e uma exposição sobre grandes greves, a morte de Vargas e
a fundação do Partido Comunista o impacto do XX Congresso; 7)do V
(antecedentes, o congresso, as re- congresso de 1960 à cisão de 1962;
soluções); 2) o Partido Comunis- 8) o PCB e o golpe de 1964, o VI Con-
ta e a Internacional Comunista nos gresso do PCB e as cisões da luta ar-
anos 1920; 3) o Partido Comunista mada; 9) o PCdoB e o golpe de 1964,
frente a Revolução de 1930, a con- a Sexta Conferência e as cisões; 10)
trarrevolução de 1932, a Aliança a luta armada urbana e o Araguaia;

7
11) o PCB nos anos 1970: resistên- Vianna, Mauro Iasi, Milton Pinhei-
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

cia clandestina, direção no exterior ro, Moara Crivelaro, Sofia Man-


e quedas; 12) o balanço do Araguaia, zano e o autor desta apresentação.
a Queda da Lapa e a VII Conferên- Também convidamos para dar aula
cia do PCdoB; 13) o PCB, a reorgani- um integrante da Unidade Popu-
zação depois da Anistia e da LOPP; lar (PCR) e Wladimir Pomar, que
14) o PCdoB, a reorganização depois por distintas razões não participa-
da Anistia e da LOPP; 15) a Unidade ram do curso. Tínhamos a decisão
Comunista, a Ala Vermelha, o PCR, de convidar, para o debate final, a
o PRC e o MR8; 16) as relações dos professora Anita Prestes (poste-
☭ partidos comunistas com o PT; 17) riormente ela declinou participar
os partidos comunistas frente a cri- do presente livro).
se do socialismo; 18) o surgimento Com base na experiência do
do PPS e a reorganização do PCB; curso, concebemos esta coletânea.
19) o PCB no período dos governos O plano original previa um capítu-
Lula e Dilma; 20) o PCdoB no perí- lo sobre a trajetória do movimento
odo dos governos Lula e Dilma; 21) comunista desde 1848, vários ca-
o PCB frente ao centenário de fun- pítulos fazendo o balanço da tra-
dação; 22) o PCdoB frente ao cente- jetória do comunismo no Brasil e
nário de fundação; 23) os comunis- ensaios finais sobre “o que o futu-
tas do Brasil e brasileiros frente ao ro nos reserva”. Com alguns ajus-
centenário. tes, o plano foi implementado. No
Em comparação com o plano final das contas, a coletânea inclui
inicial, houve apenas duas altera- o ponto de vista de pessoas que mi-
ções: a aula 15 foi convertida em um litaram e/ou militam no PCB, no
estudo de caso sobre a experiência PCdoB, no PRC e no PT: Ana Pres-
do PRC; e a última aula, prevista tes, Breno Altman, Edmilson Costa,
para ser um debate, foi transferida Iole Iliada, José Reinaldo de Carva-
para 2022 (atividade não realizada lho, Marly Vianna, Rayane Andra-
até o momento em que esta apre- de, Rodrigo Freire, Ronald Rocha,
sentação está sendo escrita). Valter Pomar e Wladimir Pomar.
O curso contou com um plural Em conjunto com o curso citado
grupo de professoras e professores: anteriormente, permite uma visão
Ana Prestes, Breno Altman, Dulce ampla e plural acerca da trajetória
Pandolfi, Edmilson Costa, Iole Ilia- do movimento comunista em nos-
da, José Reinaldo Carvalho, Marly so país.

8
Encerramos esta apresentação há como provar se e quando tere-

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


prestando nossa homenagem à mi- mos êxito, mas podemos garantir
litância comunista, parte indisso- que a luta vai continuar, no Brasil e
ciável das lutas travadas pela classe no mundo, em busca da “terra sem
trabalhadora e pelo povo brasileiro, amos” cantada na Internacional.
ao longo dos últimos cem anos, em Paz entre nós, guerra aos senho-
favor da igualdade social, das li- res!☭
berdades democráticas, do desen- Valter Pomar, 17 de março de 2022
volvimento, da soberania nacional P.S. contribuíram para a edição
e por outro mundo, um mundo sem final deste livro Adriano Bueno,

explorados nem exploradores. Não Daniel Valença e Emílio Font.

9
Edmilson Costa
Edmilson Costa é professor de economia e dirigente do PCB.
Edmilson Costa
PCB: 100 anos de luta pelo socialismo no Brasil

Introdução anarquistas e também tinham in-


fluência do sindicalismo reformis-
O Partido Comunista Brasilei-
ta, duas tendências históricas que
ro (PCB) foi fundado em março de
dirigiam o movimento operário no
1922, uma data simbólica para o
Brasil. Vale lembrar ainda que nesse
povo brasileiro porque em 1922 se
período o Brasil tinha uma econo-
comemorava o centenário da inde-
mia agrário-exportadora, basea-
pendência do Brasil, emergia a Se-
da principalmente nas exportações
mana da Arte Moderna e ocorria o
de café, com uma industrialização
primeiro levante tenentista, episó-
incipiente, baseada em pequenas
dios marcantes na história do País.
Mas acima de tudo, a formação do fábricas e oficinas e, consequente-
PCB naquele ano foi resultado das mente, um proletariado ainda em
lutas populares que surgiram a par- formação.
tir da revolução soviética de 1917, No entanto, essas duas corren-
ano em que foi realizada a primei- tes do movimento operário já não
ra greve geral no Brasil, e que pros- atendiam as demandas estratégi-
seguiram ao longo da década de 20. cas do proletariado. O reformismo
Essas lutas eram lideradas pelos se limitava apenas às reivindica-

11
ções economicistas e, portanto, não riência dos bolcheviques e dos par-
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

tinha nenhum projeto estratégico tidos comunistas mais organizados


além de conseguir uma face mais na América Latina, o PCB vai aos
humana e civilizada para o siste- poucos aumentando sua influência
ma capitalista; enquanto o anar- no movimento sindical e popular,
quismo, apesar de suas palavras enquanto anarquistas e reformistas
de ordem aparentemente radicais, vão perdendo apoio junto aos tra-
não buscava organizar o proleta- balhadores, tanto que na segunda
riado num partido político para a metade da década de 20 os comu-
conquista do poder. Foi nessa con- nistas já hegemonizavam as orga-
☭ juntura que lideranças anarquis- nizações operárias e populares e a
tas e grupos comunistas de vários representação política dos traba-
Estados, decidiram formar o Par- lhadores. A partir daí, então, viria a
tido Comunista Brasileiro (PCB).1 dirigir o movimento operário bra-
A maior parte desses fundadores sileiro nas principais lutas que fo-
eram militantes oriundos do movi- ram realizadas ao longo de várias
mento anarquista com experiência décadas e se transformar na princi-
nas lutas populares do País e que, pal organização comunista do País.
influenciados pela tomada do po- Olhando retrospectivamente,
der pelos operários e camponeses pode-se dizer que a trajetória des-
na Rússia, decidiram aderir ao co- ses 100 Anos do Partido Comunista
munismo, muito embora ainda não Brasileiro é uma das mais ricas do
possuíssem uma formação marxis- movimento revolucionário porque,
ta desenvolvida. ao longo desse século de existência,
Com a criação do PCB o movi- o PCB sempre esteve incondicio-
mento operário brasileiro deu um nalmente lutando com os trabalha-
salto organizativo e alcançou um dores, trabalhadoras e a juventude
novo patamar, uma vez que os co- pela revolução brasileira e pelo so-
munistas, mesmo ainda com um cialismo. Mesmo atuando a maior
entendimento confuso da realida- parte dessa trajetória na clandes-
de brasileira, se propunham a for- tinidade2, o PCB produziu os maio-
jar uma organização que buscava res heróis populares do século XX e
representar o proletariado enquan- conseguiu influir em praticamente
to vanguarda política e, ao mesmo todos os setores da vida social e po-
tempo, disputar o poder político lítica do Brasil, quer no campo da
com a burguesia. A partir da expe- literatura, da ciência, das artes, da

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cultura e até mesmo do futebol. No Geral dos Trabalhadores) até his-

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


campo social teve influência deci- tóricas greves nacionais, bem como
siva nas principais conquistas dos participou da construção da Confe-
trabalhadores brasileiros, tanto que deração Nacional dos Trabalhado-
certa vez um poeta escreveu corre- res na Agricultura (Contag), da UNE
tamente que quem contar a história (União Nacional dos Estudantes)
do Brasil e das lutas de seu povo e e também esteve presente na luta
não falar do PCB estará mentindo. parlamentar em vários momen-
Vale destacar ainda que essa tos da história. Pode-se dizer que a
trajetória foi realizada com imen- trajetória do PCB é parte do proces-
so civilizatório brasileiro. ☭
so sacrifício e também com grande
heroísmo por parte da militância,
pois a burguesia e o imperialismo Um pouco da história
buscaram permanentemente punir Para compreendermos a traje-
severamente os comunistas pela tória de luta dos comunistas bra-
ousadia de lutar pela construção de sileiros, é importante sumariar-
uma sociedade socialista no Brasil. mos sinteticamente os principais
Milhares de militantes foram pre- momentos dessa longa história. Na
sos, torturados ou mortos ao lon- década de 20 a sociedade brasileira
go desse período, tanto em épocas estava em efervescência e a velha
ditatoriais quanto em governos de oligarquia que dirigia o País vivia
democracia formal. Na última dita- uma profunda crise. Em 1922 ocor-
dura (1964-1985), milhares de mi- reu o primeiro levante dos tenen-
litantes foram presos e torturados e tes, conhecido como os 18 do Forte,
um terço do Comitê Central foi as- reprimido brutalmente pelo gover-
sassinado na tortura, sendo que até no. Em 1924 os jovens oficiais vol-
hoje seus corpos continuam desa- tam novamente a se rebelar contra
parecidos. Como organização po- o governo, com uma insurreição em
lítica que buscava disputar o poder São Paulo e levantes em outros Es-
no País, o PCB também experimen- tados. Posteriormente, parte desses
tou diversas formas de luta, desde a oficiais, liderados por Luís Carlos
via armada em Trombas e Formoso Prestes, formaram a Coluna Prestes,
(GO) e Porecatu (PR), passando pela um movimento guerrilheiro que
organização de sindicatos, federa- viria abalar as estruturas da Velha
ções e entidades nacionais dos tra- República, ao lutar invicto ao lon-
balhadores como o CGT (Comando go mais de 25 mil quilômetros pelo

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interior do País contra as tropas do por importações, levando à queda
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

governo e depois se exilar na Bolí- dos preços dos produtos agrícolas


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via. no mercado internacional. Como o
Mais organizado nacionalmen- Brasil era dependente das exporta-
te, mas já na clandestinidade, o ções do café a economia entrou em
PCB lançou em 1927 o Bloco Operá- crise, com a falência de milhares
rio como parte da política de frente de empresas e um enorme desem-
única orientada pela Internacional prego. Consequentemente, a crise
Comunista. Posteriormente, o Bloco abalou os alicerces da oligarquia
Operário se transformaria em Blo- e abriu espaço para as mudanças
☭ que viriam a ocorrer em 1930. Em
co Operário e Camponês (BOC). Com
essa iniciativa, o PCB buscava uma meio a essa conjuntura foi realiza-
fachada legal para participar do da a eleição para a presidência da
processo eleitoral e divulgava um República, com a oligarquia agora
programa que incluía, entre outros dividida em função da crise. O setor
pontos, a luta pelas liberdades de- ligado à oligarquia cafeeira de São
mocráticas, o combate à oligarquia Paulo lançou Júlio Prestes, enquan-
e ao imperialismo, defesa dos in- to a facção dissidente da oligarquia
teresses dos trabalhadores, anis- teve como candidato Getúlio Var-
tia aos presos políticos e combate gas, pela chamada Aliança Liberal,
à carestia. Nas eleições de 1928, o com apoio do movimento tenen-
PCB elegeu seus primeiros parla- tista. O Bloco Operário Camponês
mentares para a Câmara de Verea- lançou Minervino de Oliveira, um
dores do Rio de Janeiro, então ca- operário comunista, marmoreiro e
pital federal, Minervino de Oliveira negro. Tratou-se da primeira can-
e Octavio Brandão. Ainda em 1927 didatura proletária do País, inteira-
o PCB também fundou a Juventude mente atípica aos padrões da época,
Comunista, como parte do esforço onde a disputa era feita geralmente
para enraizamento entre a juven- entre brancos e ricos.
tude brasileira. Essas eleições marcaram uma
No final da década de 20, ocor- mudança de qualidade na histó-
reria a grande crise mundial do ca- ria brasileira porque, ao contrário
pitalismo, a grande depressão, que de todas as evidências, quando as
viria atingir profundamente a eco- urnas foram abertas, o candidato
nomia brasileira. O colapso da eco- das oligarquias cafeeiras se torna-
nomia mundial reduziu a demanda ra vitorioso, quando todos apon-

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tavam Getúlio Vargas como franco fascismo e do nazismo na Europa.

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


favorito. A candidatura do PCB não No Brasil surgiu a Ação Integralis-
obteve muitos votos, mas teve uma ta brasileira, a versão do fascismo
importância fundamental, pois nacional. Com as contradições do
marcou pela primeira vez a dispu- governo Vargas, o movimento te-
ta presidencial com a presença de nentista começou a se desagregar:
um operário. Como o resultado da uma parte permaneceu no governo,
eleição foi escandaloso, imediata- outra passou a compor os partidos
mente as forças da Aliança Liberal de direita e outra se alinhou com a
denunciaram a fraude eleitoral e os esquerda. Mesmo na ilegalidade,
tenentes encontraram justificati- o PCB continuou o processo de in- ☭
va para preparar o levante militar serção do proletariado e organizou
4
contra o governo. Iniciada a revol- greves em várias regiões do País,
ta militar em outubro de 1930, uma ao mesmo tempo em que buscou
semana depois as tropas governa- combater o fascismo emergente no
mentais estavam completamente Brasil, cujo episódio marcante foi a
derrotadas e o Brasil entrava numa expulsão dos integralistas da Praça
nova etapa de seu desenvolvimento da Sé, episódio que ficou conhecido
econômico, no que ficou conhecido como a revoada dos galinhas ver-
como a revolução de 1930, a partir des, quando uma frente de esquer-
da qual se iniciou a industrialização da, liderada pelos comunistas, pôs
do País, os trabalhadores conquis- para correr os militantes da Ação
taram vários direitos, mas o novo Integralista Brasileira que buscavam
governo passou a enquadrar com realizar uma manifestação naquele
mão de ferro o movimento sindical local6. Logo depois o governo edi-
e reprimiu o sindicalismo autôno- tou a Lei de Segurança Nacional,
mo.5 O PCB se recusou a participar com o objetivo de punir tudo que
do governo com o entendimento de considerasse contra a ordem políti-
que aquele movimento significava ca e social, um eufemismo para re-
apenas um conflito entre as frações primir greves e manifestações dos
da burguesia. comunistas.
Os anos 30 foram de grande tur- Nesse período (março de 1935) o
bulência social e política tanto do PCB, os tenentes de esquerda, além
ponto de vista nacional quanto in- de personalidades progressistas e
ternacional. Internacionalmen- lideranças do movimento popular
te, verificou-se uma ascensão do lançaram no Rio de Janeiro a Alian-

15
ça Nacional Libertadora (ANL) e ele- tecimento. No dia 27 de novembro
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

geram como presidente de honra seguiram-se rebeliões no Recife e


Luís Carlos Prestes, que já tinha se no Rio de Janeiro, esta última com
incorporado ao Partido e se encon- maior repercussão, com confron-
trava clandestino no País. A Aliança tos violentos e vários mortos e fe-
tinha um programa de caráter pro- ridos. No entanto, todas as rebeli-
gressista, nacionalista e antimpe- ões foram dominadas pelas forças
rialista e, em poucos meses, a or- da ordem e o governo desencadeou
ganização ganhou enorme apoio uma brutal repressão contra alian-
popular, realizando comícios com cistas e comunistas, resultando em
☭ milhares de pessoas em várias regi- milhares de prisões, inclusive de
ões do País e incorporando em suas vários dirigentes da Internacional
fileiras centenas de milhares de fi- Comunista, entre os quais Olga Be-
liados.7 Em junho de 1935 a Aliança nário, esposa de Prestes, que viera
lançou um manifesto conclamando ao Brasil apoiar a insurreição.9 Dois
a derrubada de Vargas e a tomada anos depois, Vargas decretou o Es-
do poder por um governo popular, tado Novo, que aumentava ainda
8
nacionalista e revolucionário. mais a repressão contra as forças
A resposta de Vargas foi colo- progressistas, ao mesmo tempo em
car a ANL na ilegalidade, ainda em que flertava com os regimes fascis-
julho, e desencadear a repressão tas da Europa.
contra seus dirigentes e militantes. A emergência da Segunda Guer-
Diante das novas condições impos- ra Mundial, em 1939, vai produzir
tas pelo governo, o Partido decidiu mudanças significativas na política
preparar a insurreição contra Var- externa do governo Vargas. Mesmo
gas. Surpreendendo o comando do vacilando entre os países do eixo
movimento e antecipando-se ao nazifascista e os países ocidentais,
projeto de insurreição a partir do Vargas é obrigado a deixar de lado
Rio de Janeiro, em 24 de novembro suas simpatias pelo Eixo e aderir
começou o levante no Rio Grande ao Ocidente em troca de vantagens
do Norte. Rapidamente os aliancis- econômicas, tanto que em 1941 tro-
tas, sob o comando do cabo Giocon- pas norte-americanas já estão es-
do Dias, tomaram o poder e instau- tacionadas no Nordeste. No ano
raram um governo popular revolu- seguinte o governo rompeu com os
cionário durante quatro dias, onde países do Eixo e assinou um pac-
um sapateiro foi ministro do Abas- to político-militar secreto com os

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Estados Unidos. Mas a virada do obrigado a decretar a anistia e con-

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


governo Vargas ocorreu irrever- vocar a Constituinte, mas foi der-
sivelmente ainda em 1942 quando rubado pelos militares em outubro
submarinos alemães afundaram de 1945. A partir daí são convoca-
cinco navios mercantes brasileiros. das eleições para presidente e para
Sob pressão de manifestações po- a Assembleia Nacional Constituin-
pulares, o governo declarou guerra te. O PCB lançou o engenheiro Yedo
à Alemanha. Mesmo com parte de Fiuza à presidência e obteve cer-
sua militância na cadeia, o Parti- ca de 10% dos votos, com expres-
do realizou, em 1943, a Conferência siva votação nas grandes cidades.
da Mantiqueira com os militantes Na eleição para a Constituinte, que ☭
que não estavam presos e iniciou reunia Câmara Federal e Senado, o
uma campanha de massas para a Partido elegeu expressiva bancada:
formação da Força Expedicionária um senador, Luís Carlos Prestes, e
Brasileira (FEB) para lutar contra o 14 deputados federais, uma banca-
nazifascismo. O PCB orientou seus da coesa e combativa que marcou os
militantes a se apresentarem como trabalhos constituintes com a defe-
voluntários e vários deles foram lu- sa dos direitos dos trabalhadores, o
tar contra o nazifascismo na Euro- direito de greve, a liberdade de cul-
pa, muitos dos quais voltaram con- to religioso, entre outros.
decorados por bravura no campo de Mas a lua de mel do PCB com a
batalha. democracia brasileira duraria pou-
co, em função do pavor das elites
Redemocratização e com o comunismo, pelo reaciona-
retorno à clandestinidade rismo e entreguismo do governo
O final da Segunda Guerra Mun- Dutra e, especialmente, pelo clima
dial também representou o fim do de guerra fria que se instalara nos
governo Vargas. Em um clima já países ligados aos Estados Unidos.
bastante diferente do período dita- Nos dois anos de legalidade, em
torial, especialmente em função da função do prestígio de Prestes e da
vitória dos aliados e do papel deci- União Soviética, o PCB aumentou
sivo da União Soviética na derro- extraordinariamente suas filei-
ta do nazismo, o PCB iniciou uma ras, passando a contar com 200 mil
campanha pela anistia aos presos membros. Nas eleições para gover-
políticos e pela convocação de uma nador, deputados estaduais e pre-
Assembleia Constituinte. Vargas foi feitos, em 1947, o PCB ampliou sua

17
votação nas grandes cidades, par- envio de soldados brasileiros para
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

ticularmente no Rio de Janeiro (18 a Coréia e pela interdição da bomba


em 50 vereadores, elegendo o pre- atômica. O PCB também organizou
sidente da Câmara, o médico Cam- sindicatos agrários em várias regi-
pos da Paz), Santo André, Santos, ões do País e liderou a luta armadas
Jaboatão e em dezenas de outras ci- dos camponeses em Porecatu, no
dades. Nas Assembleias Legislati- Paraná, e Trombas e Formoso, em
vas, elegeu deputados estaduais em Goiás, tendo como líderes José Por-
12 Estados. Diante dos êxitos dos firio, posteriormente assassina-
comunistas nas eleições, em 1947, do pela ditadura, e Dirce Machado,
☭ o Supremo Tribunal Federal cassou ainda hoje viva e militando no PCB.
o registro legal do PCB e o Minis- Na segunda metade da década de
tério do Trabalho ordenou a inter- 50 o Brasil viveu um período de in-
venção nos sindicatos e na central tenso desenvolvimento industrial,
sindical dirigida pelo PCB. Um ano com o Plano de Metas do governo
depois também foram cassados os Kubitschek, que viria completar o
mandatos de todos os deputados e processo de industrialização inicia-
vereadores e do senador do Partido do com a revolução de 1930. Foi um
em todo o País, obrigando o PCB a período de grandes transformações
operar novamente na clandestini- no País: o Brasil passou da condi-
dade. ção de nação agrária para nação in-
Mesmo na ilegalidade o Par- dustrial, o proletariado aumentou
tido continuou seu trabalho jun- extraordinariamente, as correntes
to ao proletariado das cidades e do migratórias se intensificaram em
campo, na luta política e na solida- função do desenvolvimento econô-
riedade internacional. Destaca-se mico, resultando num processo de
nessas lutas, a memorável cam- urbanização acelerada das gran-
panha “O petróleo é nosso”, con- des metrópoles. Nesse período, o
tra a tentativa do governo Dutra de PCB lançou a Declaração de Março de
entregar a prospecção de petróleo 1958, um documento que buscava
às companhias estrangeiras, o que fazer uma análise da nova situação
resultou posteriormente na criação do País, afirmando que o desenvol-
da Petrobrás; as grandes greves di- vimento industrial correspondia
rigidas pelo PCB, como a de 1953, aos interesses do proletariado, que
que envolveu metalúrgicos, têxteis o processo de democratização era
e padeiros; a campanha contra o uma tendência permanente e que

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era possível o caminho pacífico da onde decidem sair do PCB, convo-

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


revolução brasileira, um erro que car uma conferência de reorganiza-
custaria caro ao PCB posteriormen- ção e formar uma nova organização
te. O documento mantinha a mes- com o nome anterior do Partido –
ma estratégia nacional-democráti- Partido Comunista do Brasil e a si-
ca do período anterior, com o agra- gla PCdoB.11 A saída dessa pequena
vante de ampliar o leque de alianças dissidência não teve grande reper-
do Partido não só para o conjun- cussão no interior do PCB, que con-
to da burguesia brasileira, mas até tinuou crescendo e ampliando sua
para setores do chamado latifúndio influência na sociedade brasileira.
produtivo.10
Mesmo que o Parti- As outras dissidências do Partido ☭
do tenha crescido expressivamen- vão ocorrer na segunda metade da
te nesse período e aumentado sua década de 60, especialmente entre
influência social e politica junto ao a juventude, e vão constituir várias
novo proletariado e outros seto- organizações guerrilheiras urba-
res da sociedade, essa estratégia de nas.
alianças com a burguesia desarmou A primeira metade da década de
o PCB para a luta revolucionária, o 60 foi um período de acirramento
que posteriormente se refletiu na da luta de classes no Brasil. Logo
incapacidade de resistência ao gol- no início da década o presidente Jâ-
pe militar de 1964. nio Quadros renunciou e abriu uma
Como resultado das repercus- grave crise institucional, pois seto-
sões do XX Congresso do Partido res militares lançaram um mani-
Comunista da União Soviética e da festo buscando impedir a posse do
emergência da revolução Cubana vice-presidente, João Goulart. Com
de 1959, o PCB vai sofrer uma série o impasse institucional, o gover-
de dissidências tanto na primeira nador do Rio Grande do Sul, Leo-
quanto na segunda metade da dé- nel Brizola, iniciou a resistência aos
cada de 60. Em 1962, um conjunto golpistas a partir daquela região do
de dirigentes, entre os quais Maurí- País, inclusive convocando a popu-
cio Grabois, João Amazonas e Pedro lação a pegar em armas, e formou
Pomar, após discordarem da linha a Cadeia da Legalidade, um movi-
política do PCB e da autocrítica em mento que teve apoio de expressi-
relação ao culto à personalidade do va parcela dos meios de comunica-
período de Stalin, lançam um ma- ção, e que mobilizou o País contra
nifesto denominado Carta dos 100, os militares golpistas. O impasse

19
terminou com um acordo concilia- vimentos culturais do País, e pos-
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

tório, após a adesão do III Exército suía grande influência entre a inte-
à posse do vice-presidente. Diante lectualidade progressista.
da possibilidade de guerra civil, os O desfecho dessa conjuntura dos
golpistas recuaram, mas o movi- primeiros anos de década de 60 foi
mento pela legalidade também fez o golpe militar, com apoio de vários
concessões: o vice-presidente João setores da igreja, do conjunto do
Goulart assumiria a presidência, empresariado e do imperialismo. O
mas o regime seria parlamentaris- País viveu a partir daí uma ditadura
ta. que durou 21 anos e o PCB foi per-

Por trás dessa crise estava a seguido de maneira implacável pelo
disputa entre dois projetos: as re- novo regime. A ditadura cassou os
formas de base, defendidas pelo direitos políticos de milhares de
movimento popular e setores pro- pessoas, entre as quais mais de cin-
gressistas e democráticos e o pro- co mil militares, cassou o mandato
jeto conservador, aliado às forças de parlamentares, governadores,
reacionárias, empresariais e ao im- prefeitos e vereadores, realizou in-
perialismo. Foi o período de mais tervenção em centenas de sindica-
intensa polarização política no Pa- tos, prendeu e perseguiu suas lide-
12
ís. Nessa conjuntura, o PCB obteve ranças e implantou o terror fascista
grande crescimento entre o prole- contra toda a oposição, especial-
tariado, a juventude e o mundo da mente para as forças organizadas
cultura, bem como entre setores contra o regime. Nessa conjuntura
militares. O PCB dirigia os princi- tensa e de derrota do movimento
pais sindicatos do País e o Coman- popular, grande parte da juventu-
do Geral dos Trabalhadores (CGT); de e alguns dirigentes, desconten-
possuía grande influência no sin- tes com a linha política do Partido,
dicalismo do campo; tinha vários que no VI Congresso de 1967 se defi-
comandantes de tropas no Exérci- niu pela constituição de uma Frente
to, nas entidades dos sargentos e Democrática como tática para der-
praças e militantes com comando rotar a ditadura, romperam com o
na Aeronáutica. Entre a juventude Partido e optaram pela luta armada
participava da direção da União Na- urbana, formando várias organiza-
cional dos Estudantes (UNE) e diri- ções guerrilheiras, todas destroça-
gia o Centro Popular de Cultura da das pela ditadura.13
UNE, até hoje um dos maiores mo- Operando na mais absoluta

20
clandestinidade, o PCB estruturou militantes na Volkswagen e este

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


a luta contra a ditadura com dois não suportou as torturas e entre-
planos para construir a resistência gou todos os militantes que conhe-
de massas ao governo: o primeiro, cia, inclusive a direção do Comitê
era o Plano de Construção do Partido de Fábrica.16 Como a organização
nas Grandes Empresas, tendo a re- era clandestina e muito compar-
gião do ABC paulista como projeto timentada, nem toda a organiza-
piloto. Com um trabalho pacien- ção comunista caiu em função das
te e determinado a partir de 1969 prisões. A repressão só conseguiu
o Partido organizou um trabalho desmantelar todo o trabalho clan-
político nas empresas da região, destino na região com as prisões de ☭
cujo resultado foi a constituição 1974/75, quando a repressão reali-
de células comunistas em todas as zou uma violenta ofensiva para li-
grandes empresas do ABC, que en- quidar o PCB. Nesse processo tam-
14
volviam centenas de militantes. O bém foram presos centenas de es-
segundo plano era a construção da tudantes em todo o país, principal-
UNE de massas, a partir do qual os mente os responsáveis pelo traba-
estudantes deveriam realizar um lho junto à juventude.17 No entanto,
trabalho de base nas universida- esse foi um trabalho tão bem-feito
des, tendo como mote os encontros que ainda hoje existem as Executi-
“científicos” de estudantes de cada vas Nacionais de cursos, muito em-
curso, que inicialmente realizariam bora a maioria dos estudantes nem
encontro nas próprias faculdades, imaginem que essas organizações
posteriormente encontros estadu- foram resultado do trabalho dos
ais e finalmente encontros nacio- comunistas.
nais, os chamados Encontrão, nos Além da luta clandestina, os mi-
quais deveriam formar as Executi- litantes do PCB, orientados pela
vas Nacionais dos Cursos. O objeti- política de construção da Fren-
vo era fazer encontros nacionais de te Democrática, também atuavam
todos os cursos e, finalmente, rea- institucionalmente no Movimen-
lizar um Encontro Nacional dos Es- to Democrático Brasileiro (MDB),
tudantes no qual seria constituída a onde contribuíram de maneira efe-
UNE de massas.15 tiva para a resistência democráti-
O trabalho político nas fábricas ca, chegando a eleger vários parla-
do ABC começou a ser desmantela- mentares. A partir de 1977, o movi-
do quando a polícia prendeu um dos mento estudantil retomou suas ati-

21
vidades em meio a grande repres- lio e aferrados à política de frente
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

são e, em 1978, ocorreu a primeira democrática do período anterior à


greve operária na região do ABC, emergência do movimento popu-
movimento que posteriormente se lar, o Comitê Central temia a radi-
espalharia pelo País como um ras- calização das greves porque esse
tilho de pólvora. Desgastada, sem movimento poderia levar a um re-
apoio popular, com o país em crise trocesso na a abertura política que
econômica e com a emergência do estava sendo implementada pela
movimento operário, a ditadura foi ditadura, para espanto inclusive da
obrigada a decretar a anistia, o que militância interna que apoiava as
☭ possibilitou o retorno dos exilados, greves.
e a partir daí o governo perdeu a Foi nessa conjuntura que Pres-
iniciativa política, enquanto o mo- tes lançou a Carta aos Comunistas,
vimento social avançava exigindo um documento no qual criticava
o fim da ditadura e eleições diretas o Comitê Central e afirmava que a
para presidente da República.18 orientação da maioria dessa direção
não mais correspondia às necessi-
A crise no Partido e os dades do movimento operário e po-
erros da velha direção pular e que o Partido estava atra-
sado no entendimento da realidade
A volta do exílio dos dirigentes
brasileira, fato que explicava a pas-
do PCB representou um longo e de-
sividade e ausência dos comunistas
sagregador processo de luta inter-
na luta real do País.
na, possivelmente o maior na his-
tória do Partido. Com a volta dos “Um partido comunista não pode,
dirigentes do exílio, a militância em nome de uma suposta demo-
tomou conhecimento de profun- cracia abstrata e acima das classes,
das divergências que existiam entre abdicar do seu papel revolucioná-
a maioria do Comitê Central, o se- rio e assumir a posição de freio dos
cretário-geral Luís Carlos Prestes movimentos populares, de fiador
e os eurocomunistas, organizados de um pacto com a burguesia, em
em torno de Armênio Guedes na que sejam sacrificados os interes-
Europa, disputa que se tornou mais ses e as aspirações dos trabalhado-
grave em função da nova conjun- res (...) Não podemos, pois, com-
tura do país com a emergência das pactuar com aqueles que defendem
greves operárias. Apartados da rea- “evitar tensões”, freando a luta dos
lidade brasileira pelos anos de exí- trabalhadores em nome de salva-

22
guardar supostas alianças com se- Consolidado o poder no interior

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


tores da burguesia”.19 do Partido, o Comitê Central, ago-
ra tendo Giocondo Dias como se-
Com esse documento, Prestes
cretário-geral, continuou sua po-
na prática se afastava do PCB, es-
lítica conciliadora tanto no que se
pecialmente porque conclamava as
refere à luta social quanto política
bases a tomar o destino do Partido
institucional. Não compreenderam
em suas mãos. As críticas de Pres-
que, com a emergência do movi-
tes à maioria do Comitê Central
mento operário, a tática de fren-
eram corretas, mas o método de te democrática deveria ser mudada
não realizar a luta interna por den- para que o Partido se incorporasse ☭
tro da organização forneceu o pre- ao ascenso das lutas dos trabalha-
texto para que a maioria da direção dores. Alguns exemplos são sim-
o acusasse de personalista, divisio- bólicos dessa política equivocada. O
nista e de desrespeitar as instâncias Partido participou da Conclat (Con-
do partido, bem como se apresentar ferência Nacional das Classes Tra-
como defensora da unidade parti- balhadoras) mas não se incorporou
dária. O chamado de Prestes teve à formação da CUT (Central Úni-
pouco efeito no interior do Partido ca dos Trabalhadores), preferindo
porque a militância fora educada construir a CGT (Central Geral dos
na concepção do centralismo de- Trabalhadores) em aliança com co-
mocrático e na perspectiva de que nhecidos pelegos. No plano eleito-
a luta política deveria ser feita por ral a política de subordinação aos
dentro da organização e não fora de interesses da burguesia era ainda
suas instâncias. É consenso entre os mais escandalosa. Nas eleições de
atuais dirigentes do Partido a cer- 1986, em São Paulo, a velha dire-
teza de que se Prestes tivesse per- ção apoiou o empresário Antônio
manecido no Partido e realizado a Ermírio de Moraes, candidato que
luta por dentro, com a autoridade estava à direita de Orestes Quércia,
política que tinha, teria derrotado do MDB. No Rio de Janeiro, apoiou
aquele núcleo dirigente e recons- Moreira Franco contra Darcy Ribei-
truído o Partido em outro patamar, ro, posição semelhante a que man-
como o fizeram uma década depois, teve nos outros Estados. Além dis-
em situação muito mais dramática, so, a direção apoiou o governo Sar-
jovens dirigentes intermediários e ney até o final de seu mandato, fa-
militantes de base no início da dé- tos que contribuíram para afastar o
cada de 90. Partido das lutas e dos movimentos

23
sociais. Esses erros políticos tam- do PCB. Mesmo ainda sem uma arti-
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

bém contribuíram para fortalecer culação nacional, esses dois docu-


uma oposição interna, que vinha mentos faziam uma dura crítica aos
desde o início da década de 80 reali- erros cometidos pelo Comitê Cen-
zando a luta política nas instâncias tral e diziam que essa direção es-
internas do Partido e que dirigiam tava esgotada para o novo ciclo de
os principais comitês municipais luta de classes que se abrira no País.
das grandes cidades do País, como Os dois documentos, resgatando
São Paulo, Rio de Janeiro, Porto as críticas que Prestes fazia no iní-
Alegre, Recife, Brasília, Belém, en- cio da década de 80, chamavam os
☭ tre outros. comunistas à resistência contra a
No entanto, com a crise dos pa- liquidação do Partido. O documento
íses do Leste europeu e com a sim- de São Paulo dizia claramente:
bólica queda do Muro de Berlim, o “Na prática, a nossa direção per-
velho Comitê Central começou a deu a perspectiva da revolução, o
colocar abertamente um conjun- que desarmou o Partido para as
to de propostas liquidacionistas, lutas cotidianas de nosso povo. A
como uma nova forma-partido, a consequência foi uma sucessão de
mudança de nome e dos símbolos graves erros políticos (...) Ao invés
do PCB, bem como a renúncia do de priorizar a atividade partidária
marxismo-leninismo, elementos na organização das massas apos-
que vieram não só comprovar os tou tudo na política institucional,
permanentes equívocos políticos, o que terminou nos isolando dos
mas a própria degeneração ideoló- movimentos sociais”.
gica daquele núcleo dirigente. Es-
E continuava afirmando que tipo
sas propostas ensejaram uma luta
de partido queriam construir:
interna aberta no interior do PCB
porque representavam a própria “Queremos transformar o PCB
liquidação do Partido e sua histó- num instrumento novo e qualifica-
ria de lutas. Começaram então a do para dirigir a revolução brasi-
aparecer os primeiros documentos leira (...) Um partido que será edu-
contra a liquidação do Partido: em cado na perspectiva da revolução
São Paulo foi lançada a Plataforma social e política e na transformação
da Esquerda Socialista e, no Rio de da sociedade brasileira e, por isso,
Janeiro, outro documento denomi- profundamente vinculado ao so-
nado Pela Renovação Revolucionária cialismo”.20

24
O documento do Rio de Janeiro lismo e capitalismo para o campo

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


reafirma a identidade do Partido e da competição pacífica, recusando
de seus símbolos e também chama a transposição mecânica dos an-
os militantes à resistência. tagonismos de classe ... O partido
deve ser laico e de massas. Não re-
“A manutenção e revalorização de
colherá em sua organização nem
nossos símbolos são fundamentais atrairá para a sua política a mas-
não só pelo que representam em sa de milhões se insistir em manter
termos de lutas das quais nos or- sua doutrina oficial - o marxismo-
gulhamos, mas porque ainda estão -leninismo ... A partir dessas refle-
carregados da mística e da espe- xões é que precisamos enfrentar a ☭
rança no homem novo e na nova questão do nome e dos símbolos
sociedade (...) Renegá-los diante do Partido ... O importante é que o
da crise é oportunismo ou covardia; conjunto de filiados, amigos e elei-
afirmá-los é a prova de coerência e tores sejam ouvidos, com o fim de
visão histórica”21 encontrar o máximo de correspon-
dência entre nomes e símbolos e o
A reconstrução caráter e exigência de nossa orga-
revolucionária nização”22 .

Essas divergências explodiram Estava mais que clara a intenção


no IX Congresso do PCB, realiza- de liquidar o partido e dar adeus à
do em 1991, que representou a de- revolução e ao proletariado. Mas
marcação de campos entre aqueles essa direção estava tão degenerada
que queriam acabar com o Partido e e, ao mesmo tempo, com uma au-
aqueles que queriam sua continui- toconfiança que não mais corres-
dade. As teses publicadas pelo nú- pondia à realidade interna do par-
cleo dirigente para esse congresso tido, que aceitou que a disputa no
confirmavam que a liquidação do Congresso fosse realizada por cha-
Partido era um projeto que estava pas, o que é atípico nos congres-
em curso: sos comunistas. Aproveitando-se
dessa oportunidade, a esquerda do
“O desfecho da disputa entre ca-
Partido, agora mais articulada in-
pitalismo e socialismo não passa
ternamente, lançou um documento
mais pelo poder de destruição de
para os delegados chamando à re-
cada um (...) A nova mentalidade
sistência:
opera no sentido da transferência
da contradição radical entre socia- “Nesses dias de debate estarão em

25
jogo a nossa história, o nosso patri- guintes votações: Fomos, Somos e
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

mônio, o futuro do PCB, os princí- Seremos Comunistas, 36,5%, Política


pios marxistas que orientaram vá- de Esquerda Para o Novo socialismo,
rias gerações de comunistas, a real 10,5%; e a chapa do Comitê Central,
inserção do Partido na vida políti- apenas 53%, resultado que signi-
ca do País e a nossa opção por uma ficou uma grande derrota para as
sociedade socialista, na perspectiva teses liquidacionistas e uma vitó-
do comunismo (...) Estamos nes- ria espetacular para a oposição, que
se congresso para defender o PCB, praticamente não tinha ninguém
seu nome e seus símbolos, buscar a no Comitê Central e passaria a ter
☭ renovação pelo rumo revolucioná- 47% e melhores condições para re-
rio, torná-lo um partido combativo alizar a luta interna. Pelo resultado
e um instrumento qualificado para do Congresso, era consenso entre a
dirigir as lutas sociais no Brasil (...) oposição que rapidamente ganharia
Por tudo isso estamos em oposição a maioria da militância para as suas
às teses do núcleo dirigente do Par- teses.
tido e, principalmente, a toda ten-
No entanto, a esquerda do Par-
tativa de transformar o PCB numa
tido teve pouco tempo para come-
organização social-democrata,
morar porque alguns meses depois
que tenha como perspectiva admi-
ocorreria a desagregação da União
nistrar o capitalismo e ser parceiro
Soviética. Então, os liquidacionis-
conflitivo da burguesia”.23
tas convocaram às pressas uma
O IX Congresso foi marcado por reunião do Comitê Central, na qual
um tenso e dramático debate polí- aprovaram um congresso extraor-
tico e muitas surpresas para a ve- dinário cujo objetivo era extinguir
lha direção. As principais teses do o Partido. A esquerda só conseguiu
núcleo dirigente foram derrota- levar para essa reunião 17 integran-
das no Congresso e eles não tive- tes da direção, em função da urgên-
ram coragem de colocar em pauta cia da convocação e de dificuldades
a questão da mudança do nome do financeiras. Essa foi uma reunião
partido; e ainda foram obrigados a patética porque vários membros da
se comprometer publicamente que velha direção se regozijavam com
não queriam acabar com o Partido. a perspectiva de acabar com o PCB.
Mas a surpresa maior foi a votação Um deles, Sergio Arouca, chegou
para o Comitê Central: as duas cha- a dizer que o PCB era um cadáver
pas de oposição obtiveram as se- podre que precisava ser enterrado.

26
Mas não bastava convocar o Con- golpe contra as deliberações do IX

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


gresso: era necessário encontrar Congresso (…) Reiterar a inabalá-
uma fórmula que lhes garantisse vel determinação de manter o PCB,
maioria na disputa com a esquerda. de fato e de direito, com seu nome
Então eles aprovaram que não fi- e símbolos, como herdeiro político
liados poderiam participar do Con- do Movimento Comunista Interna-
gresso, ou seja, bastava reunir 10 cional, da rica tradição de luta dos
pessoas em qualquer lugar que te- comunistas brasileiros e do ideá-
ria direito a um delegado, naquilo rio de Marx, Engels, Lênin e outros
que eles denominaram de Fóruns pensadores revolucionários”.24
Socialistas. ☭
Posteriormente o documento foi
Quando apressadamente a mesa
assinado pelos 30 membros da Es-
deu por encerrada a reunião, os di-
querda no Comitê Central e a partir
rigentes da esquerda se apossaram
daí passaram a existir dois partidos
do microfone e disseram que a reu-
dentro da mesma organização.
nião tinha acabado para eles, mas
que continuava para quem queria Posteriormente, o Movimento
manter o PCB. Aí então laçaram o decidiu convocar um Encontro Na-
Movimento Nacional em Defesa do cional em Defesa do PCB. Realiza-
PCB e um manifesto para a militân- do no Rio de Janeiro, contou com a
cia denunciando as manobras para presença de militantes de 10 Esta-
fraudar o Congresso e acabar com o dos, onde se aprovou um documen-
PCB. to com os objetivos estratégicos e
táticos do movimento.
“Os membros do Comitê Central
do Partido Comunista Brasileiro, “O Encontro Nacional se define
abaixo-assinados, resolvem: ma- não só pela reconstrução do PCB,
nifestar seu mais veemente repú- mas por sua renovação radical, li-
dio à postura liquidacionista da vre dos dogmas e estereótipos que
maioria do Comitê Central, que ao longo dos anos foi realizada
convocou um congresso extraor- pela velha concepção burocrática
dinário com a finalidade exclusiva dominante no CC. A renovação que
de extinguir o Partido (...) Denun- buscamos, por um lado, incorpora
ciar que essa decisão representa a toda a tradição de luta, heroísmo
capitulação ante a histeria antico- e combate dos comunistas, reve-
munista surgida após os aconte- renciando aqueles que rubricaram
cimentos na União Soviética e um com sangue e com a vida a luta por

27
uma sociedade socialista. Por ou- de Reorganização nos mesmos dias
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

tro lado, marca uma ruptura com e no mesmo Estado onde seria rea-
os métodos burocráticos, antide- lizado o Congresso dos liquidacio-
mocráticos e deformadores da vida nistas. E assim foi feito: marcou-se
do Partido (...) Queremos um par- a conferência para os dias 25 e 26 de
tido que seja um instrumento qua- janeiro de 1992 no Colégio Roose-
lificado para contribuir na direção velt, em São Paulo, mesmos dias e
das lutas sociais no Brasil, com in- mesmo Estado onde se realizaria o
serção viva nas fábricas, no cam- Congresso fraudulento. Decidiu-se
po, nos bancos, nos escritórios, no ainda que iríamos em passeata até
☭ comércio, no movimento comuni- o Teatro Zaccaro, onde eles esta-
tário, nas escolas secundárias, nas vam realizando o Congresso, para
universidades. Um Parido educado expormos as razões porque não irí-
na perspectiva da revolução social amos participar daquele evento e,
e política e na transformação radi- ao mesmo tempo, chamar os dele-
cal da sociedade brasileira, por isso gados que quisessem permanecer
profundamente vinculado ao so- no PCB a se unirem à nossa Confe-
cialismo”.25 rência.
Conforme combinado, antes de
A conferência de começar a conferência, realizamos
reorganização uma assembleia com os 500 de-
Como era de se esperar, a dire- legados presentes e seguimos em
ção do Movimento começou a to- passeata para o Teatro Zaccaro com
mar conhecimento das fraudes que nossas bandeiras e cantando a In-
estavam ocorrendo na tirada de de- ternacional. Ao chegarmos no tea-
legados para o X Congresso em vá- tro, eles quiseram impedir a nossa
rias regiões e da interferência de entrada, mas acabaram cedendo
forças conservadoras, ligadas ao diante da argumentação de que es-
MDB, fornecendo militantes e in- távamos dispostos a entrar de qual-
fraestrutura para a participação no quer forma e que queríamos apenas
Congresso. Diante disso, a direção explicar as razões porque não par-
do Movimento decidiu que não mais ticiparíamos daquele congresso e
iria participar do Congresso porque porque decidimos permanecer no
a presença da Esquerda nesse even- PCB. Conforme negociado, entra-
to fraudulento seria sua legitima- mos no Congresso e dois represen-
ção e se definiu por uma Conferência tantes nossos e dois deles falariam

28
aos delegados e depois nos retira- liação, onde mobilizamos centenas

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


ríamos. E assim foi feito: denun- de militantes para bater de porta
ciamos a farsa que era aquele con- em porta e cumprir a meta da lega-
gresso, convocamos os que esta- lização do partido, apesar da legis-
vam contra a extinção do PCB e nos lação draconiana do período.26 Um
retiramos organizadamente para o ano depois a tarefa estava cumprida
Colégio Roosevelt, onde iniciamos com êxito e em 1995 conseguimos a
a Conferência de Reorganização. Ao legalidade partidária. Além disso,
longo de dois dias os 500 delegados desenvolvemos um processo de re-
discutiram a estratégia e tática para organização do Partido, de forma
o novo período do Partido, compro- a resgatar as tradições orgânicas e ☭
meteram-se a dar continuidade ao revolucionárias do PCB, com ênfase
PCB e elegeram um Comitê Central na formação e na organização leni-
e um Comitê Executivo, cuja res- nista. Finalmente, desenvolvemos
ponsabilidade era conduzir o Par- um aprofundado estudo da reali-
tido naquela conjuntura adversa. dade brasileira, buscando entender
Os delegados voltaram aos Estados a formação da sociedade e do ca-
e o Partido começou um longo, pa- pitalismo brasileiro, a estrutura e
ciente e determinado processo de a organização das classes sociais,
reorganização revolucionária. especialmente da burguesia e do
Vencida a primeira batalha po- proletariado e o caráter do Estado
lítica, agora era hora de iniciar o brasileiro.
processo de reconstrução partidá- Esses foram os elementos que
ria em novas bases. Para tanto, foi nos permitiram, ao longo dos 30
necessário cumprir inicialmen- anos do processo de reconstrução
te pelo menos três tarefas: a) con- revolucionária, ter condições para
quistar a legalidade jurídica; b) re- formular uma nova linha política
organizar o PCB em novas bases; c) para o Partido, com uma estratégia
estudar profundamente a realidade e tática que correspondesse à reali-
brasileira de forma a que pudésse- dade do País. Dessa forma, conse-
mos formular uma nova linha polí- guimos compreender as principais
tica para o partido. Mesmo nas con- características do imperialismo
dições adversas daquele período, atual e do capitalismo brasileiro e
acordamos que era viável o cumpri- sua subordinação ao grande capi-
mento dessas tarefas. Laçamos en- tal internacional; definimos o ca-
tão uma campanha nacional de fi- ráter da revolução brasileira como

29
socialista, rompendo com anos de a grande burguesia monopolista,
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

etapismo que nos levou a derro- o monopólio capitalista da terra,


tas no passado; estruturamos um o imperialismo e um setor político
processo permanente de formação da pequena burguesia política (...)
da militância; organizamos a in- Afirmar o caráter socialista da re-
tervenção no movimento sindical, volução brasileira implica em afir-
através da Unidade Classista, e na mar que as tarefas colocadas ao
juventude, com a União da Juven- conjunto dos trabalhadores e, em
tude Comunista. E formamos ainda especial, da classe operária, nú-
coletivos no movimento feminino e cleo estratégico e central do sujei-
☭ nos diversos movimentos sociais, to revolucionário, o proletariado,
como o movimento negro, LGBT e não podem se realizar nos limites
cultura. Baseados nessas formu- de uma sociedade capitalista (...)
lações, definimos os aliados e os A revolução brasileira é socialista,
inimigos na construção do proces- finalmente, porque toda a experi-
so revolucionário brasileiro, bem ência histórica dos trabalhadores
como os elementos fundamentais demonstrou que qualquer forma de
para a construção do poder popular. pacto com a burguesia é uma mi-
Uma síntese desse processo ragem que confunde os trabalha-
pode ser observada nas resoluções dores, desorienta a luta de classes e
do XIV Congresso, evento que con- joga o horizonte socialista para as
solidou a linha política revolucio- calendas”.27
nária do PCB.
Em síntese pode-se dizer que o
“Afirmamos que a revolução bra- processo de reconstrução revolu-
sileira é uma revolução socialista cionária do PCB constitui uma tra-
considerando que o Brasil é uma jetória rica de ensinamentos e fir-
formação social capitalista desen- meza ideológica num dos momen-
volvida e monopolista, que a bur- tos mais adversos da trajetória do
guesia monopolista nacional/in- proletariado brasileiro e mundial.
ternacional constitui-se em classe Significa também uma derrota para
dominante; que o Estado brasi- os liquidacionistas no Brasil e para
leiro é um Estado burguês e que o o imperialismo que, com a queda
processo de luta de classes no ciclo da URSS, imaginava que a desagre-
recente produziu um bloco libe- gação soviética seria também o fim
ral burguês hegemônico e domi- dos partidos comunistas. Pode ain-
nante, formado pela aliança entre da ser um dos exemplos mais bem

30
sucedidos de reconstrução comu- bosa, alfaiate; José Elias da Silva, funcio-

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


nário; Luís Peres, operário vassoureiro, e
nista após a queda da URSS, princi-
Manuel Cendon, alfaiate.
palmente se levarmos em conta que
[2] Desde 1922 até 1985 o PCB só experi-
após a crise do socialismo real mui- mentou dois anos de legalidade. Os outros
tos antigos partidos comunistas se 63 anos foi obrigado a atuar clandestina-
dissolveram ou mudaram de nome; mente. Possivelmente é o Partido Comu-
nista que mais tempo teve que operar na
outros se adaptaram ao reformis-
ilegalidade em toda a história do movi-
mo; alguns se transformaram em mento revolucionário mundial.
organizações de direita, como o PPS [3] Posteriormente, o líder da Coluna,
no Brasil; e uma parcela expressiva Luís Carlos Prestes, viria aderir ao comu-
ainda não conseguiu ultrapassar a nismo e se transformar no secretário geral ☭
ressaca da queda da URSS. Olhando do PCB por várias décadas.

retrospectivamente e levando em [4] Para melhor compreensão desse perí-


odo consultar: Fausto, Boris. História Con-
conta que poucos acreditavam que cisa do Brasil. São Paulo: Edusp, 2008; Bas-
aqueles jovens dirigentes interme- baum, Leôncio. Uma vida em seis tempos,
diários e militantes de base conse- São Paulo: Alfa-Omega, 1978; Pereira,
guiriam reorganizar o velho Parti- Astrojildo. A formação do PCB (1922/1928),
Lisboa: Editora Prelo, 1976; Schwarcz.
dão, essa foi uma tarefa que valeu a
Lilian e Starling, Heloisa M. Brasil, uma
pena porque hoje o PCB é um parti- biografia. São Paulo: Companhia das Le-
do nacional, organizado do Acre ao tras, 2015; Brandão, Octavio. Combates e
Rio Grande do Sul, que resgatou seu Batalhas, São Paulo: Alfa-Omega, 1978:
Dulles, John W. Foster. Anarquistas e Co-
caráter revolucionário e construiu
munistas no Brasil. Rio de Janeiro: Nova
uma linha política à altura da luta Fronteira, 1977; Zaidan Filho, Michel. Co-
de classes em nosso País. As novas munistas em céu aberto - 1922-1930. Belo
gerações têm agora à disposição um Horizonte: Oficina de Livros, 1989. Sodré,
Nelson Werneck. Contribuição à história do
partido à altura das necessidades da
PCB. São Paulo: Global, 1984; KAREPOVS,
revolução brasileira. ☭ Dainis. A classe operária vai ao parlamento:
O Bloco Operário e Camponês do Brasil. São
Notas
Paulo: Alameda, 2006.
[1] A fundação do Partido Comunista Bra- [5] Um decreto de 1931 definia os sindi-
sileiro foi realizada em Congresso reali- catos como órgãos consultivos e de cola-
zado em Niterói, nos dias 23, 24 e 25 de boração com o governo e a legalidade dos
março. Os fundadores do PCB, represen- sindicatos dependia do reconhecimento
tando algo em torno de 70 comunistas de do Ministério do Trabalho, que tinha o po-
várias regiões do País, eram os seguintes: der de reconhecer e cassar o registro legal
Astrojildo Pereira, jornalista; Abílio Ne- da entidade.
quete, barbeiro; Cristiano Cordeiro, con- [6] Esse episódio ocorreu em outubro de
tador; Hermogênio Silva, eletricista; João 1934. Os integralistas realizaram uma
da Costa Pimenta, gráfico; Joaquim Bar- marcha pelas ruas de São Paulo e quando

31
chegaram à praça de Sé os comunistas já Essa incorporação iria dar um novo fôle-
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

os estavam esperando para impedir que go ao PC do B, porque a AP era pelo me-


ocupassem a praça. Resultou daí um con- nos duas vezes maior que o PC do B. Hoje
flito violento, inclusive com tiros, mas já não existem membros do antigo PC do B
os galinhas verdes, como os integralistas na direção dessa organização. O atual Co-
eram conhecidos, bateram em fuga desor- mitê Central é hegemonizado por ex-inte-
denada do local, resultando assim numa grantes da antiga Ação Popular.
derrota pública dos integralistas ou na [12] Para maiores informações sobre a
“revoada dos galinhas verdes”. disputa entre os dois projetos e luta polí-
[7] Os cálculos não são precisos: os mais tica nesse período, consultar: Costa, E. A
conservadores estimam em 100 mil filia- política salarial no Brasil. São Paulo: Boi-
dos enquanto os mais otimistas calculam tempo, 1997.
em 600 mil filiados. [13] No Rio de Janeiro, a maioria da ju-

[8] Fausto, Boris. História concisa do Brasil. ventude saiu do Partido e formou a Dis-
Op. cit. sidência da Guanabara, que depois viria
se transformar no MR-8 (Movimento Re-
[9] Além de Luís Carlos Prestes, foram
volucionário 8 de outubro). Em São Paulo,
presos no Brasil, entre outros, os seguin-
junto com militantes de outros Estados, é
tes dirigentes da Internacional Comunis-
formada a Aliança Nacional Libertadora,
ta: entre outros, Olga Benário (alemã),
sob o comando de Carlos Marighela. Em
Rodolpho Ghioldi (argentino), Artur Evert
Minas Gerais, no Rio de Janeiro e outros
(alemão: este foi tão torturado que enlou-
Estados, é constituído o Partido Comunis-
queceu na prisão e nunca conseguiu se re-
ta Brasileiro Revolucionário. Todas essas
cuperar, mesmo depois de solto), Victor
organizações oriundas do PCB optaram
Allen Barron (norte-americano, assas-
pela luta armada urbana e alguns anos de-
sinado ao ser jogado da janela da prisão),
pois foram massacradas pela ditadura.
Elise Evert (alemã, esposa de Artur Evert).
Olga e Elisa foram assassinadas nos cam- [14] Segundo depoimento de Lúcio Bel-
pos de concentração nazistas. No Brasil, lentani ao autor, secretário político dos
calcula-se que cerca de 15 mil pessoas fo- Comitês de Fábrica da região e ferramen-
ram presas pela repressão do governo. teiro da Volks, o PCB estava organizado em
todas as seções da Volks e tinha células em
[10] Declaração Sobre a Política do PCB.
todas as grandes empresas da região, com
Março de 1958. www.marxist.org/portu-
todos os militantes contribuindo finan-
gues. Acesso em 08/02/2022.
ceiramente com o Partido. Bellentani diz
[11] O PC do B inicialmente orienta-se que o Partido distribuía mensalmente cer-
pelas formulações do Partido Comunis- ca de trezentos jornais Voz Operária, órgão
ta Chinês, de guerra popular prolongada, clandestino do PCB, entre os metalúrgicos
e prepara um foco guerrilheiro na região da região. Esse trabalho teve tanto êxito
ao Araguaia. Posteriormente, rompe com que já estava se espalhando para outras
os chineses e adere à política do Partido do regiões: em 1974, militantes do PCB diri-
Trabalho da Albânia, ao qual permanece giram uma greve dos ônibus na capital de
fiel até a queda do regime albanês. No iní- São Paulo que, apesar da repressão, parou
cio da década de 70 o PC do B incorporou boa parte da cidade. Seus dirigentes tam-
em suas fileiras a maior parte da antiga bém foram presos. Essa foi a primeira gre-
organização católica Ação Popular (AP), ve operária contra a ditadura após as pa-
que evoluíra para as posições marxistas. ralisações de Contagem e Osasco em 1968.

32
[15] O documento que orientava essa ta- movimento sociais na história brasileira,

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


refa foi publicado no jornal clandestino do chegando a reunir mais de um milhão de
PCB, Voz Operária, em 1972 com o seguinte pessoas nas ruas no Rio de janeiro e em
título: “Movimento Universitário: recon- São Paulo.
quistar sua força, papel e prestígio”. [19] Carta aos Comunistas. www.marxist.
[16] Um dos elementos que levou a polícia org. Acesso em 09/02/2022
a desconfiar que existia uma organização [20] Costa. E. Carta de Princípios da Pla-
comunista na Volks foi um certo volun- taforma da Esquerda Socialista. São Paulo
tarismo por parte dos militantes daquela
1990
empresa. Como Medici iria inaugurar a fa-
[21] Manifesto pela Renovação Revolucio-
bricação de um milhão de carros, o Partido
então preparou uma ação para protestar nária do PCB. Rio de Janeiro s/d (Provavel-
contra o regime. No dia da inauguração, mente o documento foi redigido nos pri-
enquanto Medici discursava, na esteira da meiros meses de 1991). ☭
fábrica circulava um panfleto com críticas [22] O Brasil dos comunistas. Teses para o
à ditadura, enquanto também foram dei- IX Congresso do PCB. São Paulo s/d. (Pro-
xados panfletos em todos os banheiros da vavelmente publicadas em 1990).
empresa. Isso alertou a repressão e levou [23] Fomos, Somos e Seremos Comunistas –
às prisões. Aos companheiros delegados do IX congresso
[17] A ofensiva para liquidar o PCB foi re- do PCB. Documento da esquerda do Partido
alizada através da Operação Radar, que vi- ao IX Congresso. Rio de Janeiro, maio de
sava eliminar os principais dirigentes do 1991.
PCB, destruir sua estrutura de comunica- [24] Em defesa do PCB. Manifesto dos in-
ção, especialmente o jornal Voz Operária, tegrantes da esquerda do PCB lançado na
suas ligações internacionais e lideranças reunião do Comitê Central que decidiu
nacionais. Milhares de militantes foram convocar o Congresso Extraordinário.
presos em praticamente todos os Estados,
[25] Resolução política do Encontro Nacio-
um terço do Comitê Central foi assassina-
nal em Defesa do PCB. Rio de Janeiro, ou-
do na tortura, inclusive José Montenegro
de Lima, responsável pelo trabalho da ju- tubro de 1991
ventude. Todos esses assassinatos foram [26] Para a legalização de um partido
autorizados pelos mais altos escalões da era necessário a filiação de militantes em
ditadura, conforme documento desclassi- pelo menos nove Estados. Em cada Esta-
ficado da embaixada dos Estados Unidos. do, 20% das cidades e, em cada cidade, um
[18] Mesmo não obtendo os resultados a determinado percentual dos eleitores.
que se propunha as manifestações popu- [27] PCB. Resoluções Políticas do XIV Con-
lares pelas diretas, já foi um dos maiores gresso do PCB. Rio de Janeiro, 2009.

33
Marly Vianna
Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (1990).
Professora aposentada pela Universidade Federal de São Carlos, foi
diretora do Arquivo de História Contemporânea daquela Universidade e
até 2002 diretora-presidente da Fundação Pró-Memória de São Carlos.
Marly Vianna
Entrevista concedida no dia 1 de março de 2022

Tá muito na moda falar do “lugar tária de organização do Comitê


de fala”, então eu queria que você fa- Universitário. Depois, com o Golpe
lasse de que lugar você fala. Qual é a em 1964, eu continuei ainda na le-
tua trajetória pessoal no movimento galidade, continuei trabalhando,
comunista? mas não podia mais frequentar a
Marly Vianna: Começando pelo Faculdade, porque estava fechada,
fim, hoje eu sou “comunista avul- tomada pela polícia. Eu pedi trans-
sa”. Porque eu não estou filiada a ferência não consegui; pedi tranca-
nenhum partido, apesar de nunca mento, não consegui. Então eu fi-
ter saído do PCB. Eu entrei no PC em quei fora da Faculdade. Mas conti-
1961, quando eu entrei para a uni- nuei tentando levar uma vida nor-
versidade. E militei no partido até mal até março de 1965, quando nós
pedir pra sair da direção e do Comi- organizamos a primeira grande
tê Central, em janeiro de 1979, manifestação contra a Ditadura,
numa reunião em Praga. No início que foi quando o Castelo Branco foi
eu militei principalmente no movi- inaugurar o Fundão, no dia 15 de
mento estudantil, na Faculdade março de 65. E foi uma festa. Todo
Nacional de Filosofia. Eu era secre- mundo com mordaça e braçadeira.

35
A Química produziu o “fedor”, rio”, porque a situação estava mais
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

aquelas ampolazinhas de ácido sul- tranquila. Eu fiquei um pouco liga-


fúrico que fediam que era uma coisa da a duas empresas: a General Ele-
horrorosa. E nós compramos um tric e a Metal Leve, se não me enga-
macaco, que custou 30 contos na- no. E depois organizou-se a cha-
quela época, foi um dinheirão, fize- mada Assessoria do Comitê Central,
mos finanças. E a Medicina ficou da qual eu fiz parte. Nesse período
encarregada do macaco. O macaco houve mil peripécias, mil questões,
ia ser dopado, depois receberia uma muita perseguição. Mas só saí do
faixa de presidente, para ser larga- país em novembro de 1974, para fa-
☭ do lá na inauguração, só que quanto zer um curso de dois meses sobre O
mais eles dopavam o macaco, mais Capital, em Moscou. Fomos um
o macaco ficava excitado. O macaco grupo, nós íamos ficar janeiro e fe-
fugiu e não teve macaco, mas a ma- vereiro. Mas justamente em 75 co-
nifestação foi um espetáculo. A meçaram as maiores perseguições
partir daí, eu parei o trabalho, por- contra o partido. O grande inimigo
que eu já tinha sido detida duas ve- deles era o PCB e nós não tínhamos
zes, na escola. No dia 15 de março, o percebido isso. Nós, tolamente,
policial que havia me detido antes achávamos que o grande inimigo
mandou um recado: que eu sumis- deles era o pessoal da luta armada.
se, porque “agora a coisa estava Como nós não estávamos na luta
pesada”. Foi aí que eu entrei para a amada, não se tinha muita preocu-
clandestinidade: março de 65. No pação. Mas era o partido o grande
final de junho, estava passando inimigo deles, o que tinha tradição.
numa banca de jornal e vejo meu E quando foi no final de fevereiro de
retrato na primeira página do O 1975 veio a ordem pra nós não vol-
Globo: “procura-se”. Então, fui tarmos. O resto do pessoal voltou,
dada como espiã de Moscou. Eram mas eu e o Salles continuamos em
duas páginas só de provocação, co- Moscou. Em janeiro de 1976 teve
migo, com o Sales, que era meu uma reunião do Comitê Central, em
companheiro e com a Flora Abreu, Moscou. Foi nesta reunião que o
que depois foi uma das dirigentes Gregório Bezerra, eu e a Anita fo-
do Tortura Nunca Mais. Foi aí que mos para o Comitê Central e eu fui
eu resolvi ir para Moscou. Passei para o Secretariado. Em setembro
dois anos na Escola do Partido em de 1977 eu fui pra Paris. Passei o fi-
Moscou. Depois, quando eu voltei, nal de 77 e 78 em Paris. Esse perío-
em 1967, foi a “época do refrigé- do foi um período muito difícil,

36
porque o partido estava completa- hora que você expulsasse o impe-

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


mente desvinculado do país. As li- rialismo do Brasil, você acabava
gações aqui, com o país, eram as com o capitalismo aqui, de tal for-
mais difíceis possíveis. As pessoas ma estava imbricado o capitalismo
aqui dentro lutando para sobrevi- brasileiro com o imperialismo. En-
ver. Nós conseguimos tirar o Gio- tão, essa era uma discussão funda-
condo Dias do país, mas o Giocondo mental. A outra, era de manter um
não contribuiu em nada, só ficava aparato clandestino. Então, esse era
discutindo a relação com a Igreja. o nosso grupo. O outro grupo era
Não havia uma luta política real, capitaneado pelo Armênio Guedes,
uma compreensão real do que esta- eram o Armênio e Zuleika Alam- ☭
va se passando. E o que acontece bert, que nos chamavam de capas
nessas situações: os problemas pretas, diziam que esse negócio de
mesquinhos, os problemas inter- clandestinidade era uma coisa tola,
nos, os problemas pessoais come- que a gente tinha que fazer um par-
çam a aflorar. Nós - eu, a Anita e o tido de massas. Eu não sei como um
Sales - tínhamos muito acesso ao partido de massas no meio de uma
Prestes, não só através da Anita Ditadura, mas enfim... Era o grupo
como por eu estar no Secretariado, que tinha o jornal do partido na
que éramos o Prestes, o Giocondo e mão e uma revista que se chama
eu. Antes do Giocondo chegar, Études Bresiliennes, que era editada
quem fazia parte do Secretariado em Paris, da qual saíram cinco nú-
era aquele cão da Ditadura, o Teo- meros. E o resto do CC era um min-
doro de Melo. No Comitê Central é gau, vamos dizer assim. Era um
como se houvesse três grupos. Esse pântano. Havia nesse grupo, no
pequenino grupo, que eram o Pres- “centro”, uma raiva do Prestes, um
tes, Gregório Bezerra, Agliberto, problema com o Prestes muito
eu, Salles e Anita, querendo discutir grande. Quando o Prestes queria
a posição que nós chamávamos de entrar no Partido, no início dos
“direita”: a revolução é nacionalis- anos 1930, o Partido não quis de jei-
ta e democrática. Primeiro nacio- to nenhum. O Prestes entrou por
nalista, depois democrática. Pri- ordem da Internacional. Depois, o
meiro a gente expulsa o imperialis- Partido sempre usou a figura do
mo; depois a gente pensa no socia- Prestes, num certo culto à persona-
lismo. Essa posição era capitaneada lidade - “precisamos de um grande
pelo Marco Antonio Tavares Coe- partido, pra um grande líder”. E o
lho. O partido não entendeu que na Prestes, ele provocou, vamos dizer

37
assim, os motivos pra que essa irri- chegou inclusive a criar o cargo de
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

tação explodisse. Essa irritação vem coordenador da Comissão Executi-


principalmente daqueles praças va para o Salles, era quase como um
como o Giocondo Dias e o Melo, que vice-secretário geral. E finalmente,
eram cabos; principalmente esses em dezembro de 78, houve um pro-
dois. E os dois foram caseiros do blema muito sério em relação ao
Prestes e Prestes dizia que tinha Salles, e a minha proposta foi tirá-
ensinado marxismo aos dois. O -lo da Executiva, onde ele estava
nome de guerra do Melo no partido desde 1976. Foi convocada uma
foi o mesmo que ele tinha na re- reunião do Comitê Central e nesta
☭ pressão: Vinícius. Mas sempre o reunião eu pedi para sair da direção.
chamávamos de Pacato, porque ele Mas deixei claro: “eu tô saindo da
estava sempre muito risonho, mui- direção, eu não estou saindo do
to tranquilo. E o Dias era muito Partido”. E aí justamente o Melinho
sonso, fazia oposição nos corredo- marcou um encontro comigo em
res, mas ele nunca enfrentou o Paris, no dia 3 de fevereiro de 1979,
Prestes. O único que enfrentava o encontro ao qual eu fui e ele nunca
Prestes em reunião era o Armênio. apareceu. E aí cortaram-se os laços.
Durante esse período, que foi 76, Eu voltei para o Brasil com a anis-
77, 78, nós conseguimos influen- tia, em setembro de 79. Depois, fi-
ciar bastante o Prestes e escreve- quei em contato sempre com o
mos os documentos do Comitê Prestes e com a Anita. Eu fui contra
Central. Por exemplo, eu me lembro a posição do Prestes de se desligar
de um documento político que nós do Partido. Porque, olha, se eu sou o
escrevemos que terminava assim: Luís Carlos Prestes, quem sai são os
“a democracia que nós queremos outros. Mas o Prestes resolveu sair.
não pode parar nas portas das fá- E aí o pântano que era o Comitê
bricas”. Essa frase foi cortada no Central virou o PPS. Para mim o
CC. Então eu perguntava: “se nós partido acabou quando o Prestes
vamos ter uma oposição política saiu. E depois foi reestruturado por
mais à direita do que o PMDB, então esse grupo que hoje forma o PCB. Eu
porque que a gente está se chaman- cheguei e tive que cuidar da sobre-
do de comunista e arriscando a vivência, voltar pra Universidade,
vida?”. Nesse período todo, muito porque eu tinha parado, e em 83 eu
incentivado pela Anita, mas eu fui trabalhar na (Universidade) Fe-
apoiava também, o Prestes deu po- deral de Campina Grande, fiz um
der total ao Salles, até que em 78 concurso pra lá. Meu marido,

38
Ramón, que eu conheci em Moscou, dominar essa língua riquíssima. E

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


estamos casados há quase 50 anos, quando eu mais ou menos conse-
é espanhol, conseguiu ser professor gui me comunicar em russo, estava
em Campina Grande, primeiro na hora de ir embora. Nós vivíamos
como professor convidado, depois numa escola para alunos de países
fez concurso, e quando abriram um capitalistas. Havia uma outra para
concurso lá pra História, eu fiz e fi- países socialistas e havia a Patri-
quei em Campina Grande. Eu estava ce Lumumba, legal. Nós faláva-
lá quando o Gregório Bezerra mor- mos entre nós principalmente em
reu, em 1983. Nós fomos a Recife, francês. Éramos muito ligados aos
foi de arrepiar. O cortejo passava libaneses, aos belgas, aliás naque- ☭
pelas ruas de Recife e todos os pré- la época o francês ainda era a lín-
dios aplaudiam e jogavam papel pi- gua mais importante. Em termos da
cado ou pétalas de rosa. Um coisa sociedade, o que eu via me deixava
assim... impressionante! Então de encantada. Uma vez eu fui visitar a
onde eu falo? Como eu disse a você, casa da “mama” que limpava o lu-
voltando ao início, comunista avul- gar onde nós ficávamos. Ela e o ma-
sa, mas apoiando sempre não só o rido viviam em apartamentos cole-
PCB mas apoiando o PT, apoiando o tivos, em cada quarto morava uma
que há de progressista, o que há de família. A biblioteca de história do
importante. Houve uma época que marido dela era uma coisa impres-
eu estive também apoiando o PC- sionante. Por outro lado.tinha uma
doB, por causa da minha amizade loja em Moscou, a Berioska, onde só
com o Augusto Buonicore, que se podia comprar à dólar. Uma vez
morreu há pouco. eu fui lá, acompanhando alguém.
Quando nós saímos, tinha um se-
Antes de passar para a próxima
nhor na rua e ele começou a gritar:
questão, peço que você fale um pou-
“burgueses! burgueses!”. Outro
co sobre tua experiência em Moscou
episódio: nós tivemos umas férias e
e fale também sobre a presença do
fomos à Paris. Quando nós voltamos
partido no meio operário.
de lá, o comandante de onde morá-
Nós tínhamos 4 horas de russo vamos pediu uma reunião conosco.
por semana. Eu cheguei a traduzir Foram o comandante e mais 4 ou 5
um livro, a entender bem o que se funcionários. Era uma reunião se-
falava de política, de história ou de creta. Eles queriam saber como era
economia. O russo tem muita pala- Paris, o que se podia comprar lá.
vra latina, mas eu nunca cheguei a Os soviéticos tinham muita a ideia,

39
principalmente os que foram cria- cúpula. Nós tivemos muita força no
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

dos depois da guerra, que o mundo movimento operário, do ponto de


ocidental tinha todas as maravi- vista de direção, o que não é des-
lhas de compras e com as garan- prezível. O Comando Geral dos Tra-
tias do socialismo. Eu me lembro balhadores e a direção das greves
que eu disse a ele: “é maravilho- tiveram uma importância imensa.
so, você pode comprar tudo, quem Mas isso, não se refletia, a meu ver,
tem dinheiro né... nós por exemplo na consciência operária. É o que eu
não compramos nada”. Mas es- penso. Mas eu posso te dizer pouco,
sas questões eu não elaborava bem. porque a minha relação pessoal foi
☭ Havia também um trabalho ideoló- muito pequena.
gico que eu acho que era muito pre-
Nós estamos completando em
cário. Porque era Lenin e a Segunda
2022 100 anos de luta organizada
Guerra Mundial; Lenin e a Segunda
pelo comunismo no Brasil. Que ba-
Guerra Mundial; só se falava disso.
lanço você faz dessa luta?
As aulas eram muito fracas, tirando
a aula de russo e a aula de Filoso- Se for fazer um balanço, eu acho
fia. Já os dois meses de estudo so- que os acertos foram maiores do
bre O Capital valeram a pena. Eu sou que os erros, embora os erros te-
um pouco “retardada” para chegar nham sido imensos. O Partido não
a conclusões, realmente isso é ver- entendeu a situação brasileira;
dade. Hoje eu percebo que muitas achou que o Brasil era feudal; não
coisas eu via e não juntava, não ela- entendeu o desenvolvimento capi-
borava. Sobre o trabalho operário talista do Brasil; achou que a revo-
do PCB nesse período, eu não pos- lução era “expulsa-se o imperialis-
so falar muito, só da minha expe- mo, depois a gente faz a revolução
riência pessoal. Eu encontrei umas socialista”. Aliás, isso não é só dos
duas vezes com os camaradas da brasileiros não, muitos partidos ti-
Metal Leve e da GE. O Partido di- veram (e têm) a maior dificuldade
zia que nós tínhamos uma base de em juntar a luta anti-imperialista
40 membros na GE mas na verdade com a luta de classe. Nós tivemos
não tínhamos mais do que dois ou esse erro básico, de pensar a revo-
três A minha experiência foi essa, lução brasileira como nacional-li-
mas não posso generalizar. Hoje, bertadora. Eu penso que essa foi a
vendo de longe, eu acho que o nos- linha, o fio condutor do Partido,
so trabalho era bastante precário, que deu no nacional e democrático
porque era um trabalho muito pela e que veio dos tenentes. O pesso-

40
al diz assim: “o Marighella era um operária. Nós nunca tivemos um

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


esquerdista”. Não era um esquer- respaldo sério no movimento ope-
dista. Ele era sectário. Mas a políti- rário. Eu acho que o único Partido
ca dele era nacional-libertadora. A que teve um respaldo sério no mo-
tática, os métodos de luta, eram di- vimento operário foi o PT, naquela
ferentes, mas a luta era nacional li- época da sua fundação. Hoje eu não
bertadora, que eu acho que sempre sei. Mas respaldo no movimento
esteve ligada a esse viés militar que operário, o PCB nunca teve. Por ou-
dominou no Partido. Eu fiz uma vez, tro lado, e por causa disto, a direção
em 1965, uma pirâmide de classe do do Partido que vem toda do tenen-
Comitê Central. Então, você tinha tismo, eram os piores em matéria ☭
toda a parte de cima da direção era de teoria. Você tem, por exemplo,
militar, ou de oficiais superiores 1935. Aquela rebelião fracassada,
ou subalternos. Depois você tinha que foi um erro crasso. Depois já a
uma grande camada, das camadas partir de 1938, 39, e principalmen-
médias urbanas. Depois uma fai- te no final do Estado Novo saiu com
xa pequena de (militantes) ligados a palavra de ordem da “União Na-
ao campo e um tracinho mínimo de cional”. Em 1947 “apertar o sinto”,
operários. Eu estou falando do Co- “não façam greve”, “vamos dar a
mitê Central. E tem as nossas debi- mão aos patrões”. Sempre um ar-
lidades teóricas: nós nunca tivemos remedo do que vem de fora, sem
um Mariátegui aqui. Prestes nunca interpretar. E o Partido sempre vi-
escreveu, a não ser aquele conjun- veu debaixo da maior repressão.
to de artigos Problemas Atuais da Eu acho que a esquerda brasilei-
democracia. Nós tivemos uma difi- ra ainda não se deu conta da bru-
culdade de inserção no movimento talidade da direita brasileira, 1964
operário. Na época da fundação do tá aí pra mostrar. Mataram mosca
Partido, todo mundo dizia assim: com martelo. Que ameaça o Parti-
“os anarquistas dominavam”. Do- do estava fazendo? Que ameaça a
minavam não. Os anarquistas eram esquerda estava fazendo? Podia ser
os mais combativos. Mas a maioria a médio prazo, alongo prazo. Mas
do movimento operário era amare- naquele momento não ameaçava
la. Então você tinha uma boa von- nada. Em 1917, depois das greves,
tade, uma generosidade, uma von- a direita mandou às favas a Consti-
tade de luta, de arriscar a vida pelo tuição e expulsou do país quem ti-
bem da humanidade, mas não tinha nha filho, quem tinha neto, quem
base pra isso. Nem teórica, nem estava há 20 anos no Brasil. Mes-

41
ma coisa que fez o Jarbas Passari- mos na Faculdade de Filosofia, nós
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

nho, mandando às favas a Consti- fomos os primeiros a ir pra Cine-


tuição ao participar da decretação lândia com essa palavra de ordem.
do AI5. Acho que nós ainda não nos Então, se nós considerarmos a luta
demos conta dessa brutalidade da do Partido, não teve uma posição
direita. E nós sempre achando, “oh, importante nesse país que o Partido
a burguesia nacional”, “oh, fula- não tivesse ou à frente ou apoian-
no vai nos apoiar”, “oh, uma par- do totalmente. Então, por isso, eu
te da...”, o que é engraçado. Depois, acho que o balanço é mais positivo
em 1947 o Partido foi cassado e aí do que negativo. A esquerda ainda
☭ - sempre viradas de 180 graus - o não se juntou para fazer um balan-
Partido vai outra vez, com o Mani- ço dos seus erros. Sempre se passou
festo de Agosto, para clandestini- de uma posição para outra dizendo
dade, para a guerrilha. A partir de “erramos no passado” e acabou-se.
1952, com as greves em São Paulo, A própria autocrítica sobre 35 nunca
depois em 1958 com Manifesto de foi feita, Prestes se recusou a fazer,
Março, o Partido vai tentando sair nunca foi capaz de dizer “errei”. No
daquela clandestinidade absur- final da vida, Prestes fez autocríti-
da. Mas, o fez, a meu ver, um pou- ca: “eu errei em acompanhar esse
co pela direita, com essas posições Comitê Central...”, mas aí já tinha
principalmente nacionalistas que tudo se despedaçado. O último erro
imperavam no Partido. Então, es- do Prestes foi ter saído do Partido.
ses defeitos levaram ao inglório fim Ele tinha que ter tentado rearticu-
do Partido. Por outro lado, não teve lar o Partido. Mas ele entregou. Eu
questão importante nesse país que acho que ele estava cansado, tam-
o Partido não tivesse à frente. Não bém. Cansado e muito desgostoso.
só a luta por todas as melhorias da Sabe aquela decepção? Aquela de-
classe operária, mas esteve à fren- sesperança? Porque, pessoas em
te, pioneiro, de todas as lutas an- que ele confiava cegamente, como
tifascistas, contra o integralismo, - Giocondo Dias, por exemplo -, ele
contra a guerra, pela paz, em apoio inclusive falava em termos muito
da União Soviética. Então foram militares: “são meus homens, são
grandes acertos, da maior impor- homens da minha confiança”. Mas
tância. Em 61 o partido foi, literal- eu acho que a luta foi... valeu e vale,
mente, a primeira força política que né. Porque não só no grupo que hoje
deu a palavra de ordem “posse ao continua no PCB, que é um grupo de
Jango!”, foi o Partido. Nós estáva- pessoas combativas, como em mui-

42
tos grupos da esquerda, como o PT, tuação foi grande, ao mesmo tem-

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


como algumas pessoas do PCdoB. E po em que o avanço da direita foi
mais um argumento: às vezes você imenso. E os 21 anos de Ditadura
tem razão e não leva, né. Você ser fizeram com que a despolitização
derrotado não quer dizer que você fosse imensa também. Apesar da
estivesse errado. E muitas vezes a fontes serem mais acessíveis, você
posição do Partido obrigou que al- tem uma sociedade despolitizada,
gumas questões fossem resolvidas individualizada; um movimento
num nível mais elevado. Não que operário disperso; a precariedade
ele conseguisse as palavras de or- no trabalho, absoluta; o avanço da
dem dele, mas, ele obrigou a que as direita contra as conquistas do mo- ☭
discussões fossem feitas num outro vimento operário. Então, o Partido
patamar. Eu acho que esse papel o tem, por um lado, mais teoria; mas
Partido teve. Só você saber que tem por outro lado, uma situação obje-
no país uma agremiação que diz re- tiva muito difícil. A extrema direita
presentar os trabalhadores e que baba em relação ao Lula, de ódio, eu
está sempre combatendo a extrema espero que o PT esteja atento a isso.
direita combatendo o que há de pior Eu acho que o PT tem que estar vol-
na sociedade e defendendo o que tado para a segurança do Lula, em
há de melhor, eu acho que só isso absoluto. Aquela turma que rodeia
mostra a importância que o Partido o Bolsonaro é capaz de tudo. Fora
Comunista sempre teve. o que a sociedade inventou em re-
lação ao PT e ao Lula durante esse
Você destaca muito a debilidade
período todo.
teórica, e vincula isso também ao fato
de uma repressão sistemática. Mas Vamos então para a última ques-
depois de 1986 houve uma certa le- tão. O Manifesto, em fevereiro de
galidade e cresceu muito a presença - 1848, começava dizendo que “um
na academia - do marxismo. Em que fantasma ronda a Europa, o fan-
medida isso deve ser levado em conta tasma do comunismo”. Em 2022 dá
nesse teu balanço? pra dizer alguma coisa parecida com
isso?
Eu estudei, no início da década
de 1960, quando mais de 90% dos Eu acho que o fantasma que ron-
livros que eu tinha eram em fran- da a Europa hoje é o da extrema di-
cês ou em espanhol. O Capital, em reita, ronda sério. Mas o cerne do
português, foi publicado aqui em comunismo, ele não morre. É “so-
1968. O avanço em relação a esta si- cialismo ou barbárie”. A barbárie

43
está chegando. Essas coisas estão muito grande, mas os embriões es-
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

ocorrendo porque o capitalismo re- tão lá. E temos que ter esperança,
almente está em crise. E, cuidado, né, porque o contrário é terrível.
que crise não quer dizer que este-
Eu queria te pedir, sobre os assun-
ja acabando. Ele pode estar sendo
tos que a gente tratou aqui, algumas
muito mais agressivo exatamente
sugestões de leitura e filmes.
por causa disso. A miséria cresce no
mundo; as diferenças sociais cres- Sugiro dois livros do Enzo Tra-
cem no mundo; o continente afri- verso, um se chama As Novas Faces
cano entregue à barbárie; então, do Fascismo. Populismo e a Extrema
☭ que futuro tem o capitalismo? Cada Direita. Outro é Melancolia de es-
vez mais acirrando essas contradi- querda: marxismo, história e memó-
ções. E é aí que entra o papel des- ria. Outro é biografia do Marx es-
ses pequenos núcleos de esquerda, crita pelo José Paulo Netto. Um dos
chamem-se Partido Comunista ou filmes que eu mais gostei até hoje
não. Porque simplesmente porque é Il Compagni, Os Companheiros,
não há outra saída. A outra saída é com Marcelo Mastroianni. Outro
a barbárie absoluta. O trabalho pre- filme, que fala da desesperança é
cário foi naturalizado, a precariza- aquele com a Jane Fonda, A noi-
ção. Então, eu acho que, rondando, te dos desesperados. E O jardineiro
rondando está a extrema direita. fiel, mostrando como a indústria
Mas, eu acho que nós estamos pre- farmacêutica usa a África para suas
sentes, sofremos um retrocesso experiências.☭

44
45

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


Rodrigo Freire
é professor do Departamento de Ciências Sociais (CCHLA) da UFPB.
Filiado ao PT desde 1999, militou no PCB/PPS a partir de 1990.
Rodrigo Freire
O PCB e a resistência à ditadura militar: entre a luta de
massas e a violência genocida*

O
centenário do Partido Co- tes, o PCB se tornou o principal ator
munista Brasileiro (PCB)1 é da esquerda brasileira, estando pre-
motivo de celebração para sente em todas as lutas pela demo-
quem luta por uma sociedade livre, cratização nacional, contra a domi-
democrática e socialista. Afinal, o nação imperialista, pela expansão
PCB foi o primeiro partido organi- dos direitos da classe trabalhadora e
zado nacionalmente que, inspirado pelo socialismo. Assim, mais que do
pela Revolução Russa de 1917, as- julgar o PCB pelos seus acertos ou
sumiu como estratégia a revolu- erros, e considerando-o como pro-
ção socialista no Brasil, em torno duto do seu tempo -o “breve sécu-
da qual passou a organizar a classe lo XX”, no dizer de Eric Hobsbawm
trabalhadora. Nas décadas seguin- -, é esta trajetória de lutas que ora
[*]Dedico este artigo aos camaradas: José Salles e Nelson Rosas, que atuaram no Comitê
Central do PCB nos anos 1970, sendo Salles como membro titular e Nelson como inte-
grante da Seção de Agitação e Propaganda, redigindo artigos para os órgãos do Partido;
José Anísio Corrêa Maia, Antônio Augusto e Marlene Almeida, dirigentes do PCB da Para-
íba em 1964; Hermano Nepomuceno, presidente do PT de Campina Grande, e presidente
do PCB/PPS da Paraíba nas décadas de 1980 e 1990 e; Egesipe, meu pai, militante comu-
nista que me apresentou ao PCB. E agradeço ao Valter Pomar, pela gentileza de sempre.

47
deve ser celebrada. O PCB e a luta de massas
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

Não há como pensar o lugar do para derrotar a ditadura


PCB no século XX sem refletir sobre Do início da minha militância no
seu antípoda, o anticomunismo. A PCB, recordo uma conversa com um
ideologia e a prática anticomunista camarada que retornara ao Partido
incorporaram traços autoritários, na década de 1980, após ter militado
violentos e hierarquizantes da cul- numa organização da luta armada,
tura política brasileira, mobiliza- o que lhe resultou uma longa pri-
dos pelas elites em defesa da ma- são em Itamaracá (PE). Um herói do
nutenção da “ordem” capitalista. povo brasileiro, portanto, e pesso-

Contra a “desordem” representada almente muito afável. Perguntan-
pelos comunistas, essas elites usa- do-lhe por que havia saído do Par-
ram tanto a violência privada como tido, ele me respondeu algo como:
a violência das forças do Estado, “porque o Partido decidiu não resistir
como as polícias, o judiciário e as aos militares”. Ou seja, para o meu
Forças Armadas. camarada, a resistência armada era
Em nome do combate ao comu- a única possível e, ao condená-la, o
nismo, foram praticadas amplas PCB optara por uma espécie de pas-
violações de direitos humanos no sividade frente ao terror ditatorial.
Brasil, mesmo em períodos de vi- Grosso modo e com alguma varia-
gência de Estados de Direito. Pelo ção, esta versão predominou entre
simbolismo, destaco a deportação os setores da esquerda que assumi-
das comunistas Olga Benário e Elisa ram a luta armada, mesmo após te-
Berger para a Alemanha nazista, em rem abandonado esta tática, incor-
1936, decisão da polícia política de porando-se à vida democrática.
Vargas, chefiada por Filinto Müller, Analisando historicamente, tra-
confirmada pelo STF, órgão máxi- ta-se de uma premissa falsa. O PCB
mo do judiciário. O anticomunis- não apenas resistiu à ditadura mili-
mo e a manutenção da “ordem”- tar, participando das principais ba-
também serviram de justificativa talhas oposicionistas, como foi uma
para dois golpes de Estado, o Estado das suas principais vítimas. Sua op-
Novo e a ditadura militar, marcados ção, entretanto, foi de recusa enfá-
pelo uso massivo da violência, par- tica à luta armada, expressa desde
ticularmente contra as classes po- os primeiros momentos da ditadu-
pulares e as oposições, com desta- ra, para o que contribuíram tanto
que aos comunistas. uma análise realista da correlação

48
de forças do momento, como tam- Tais posições eram combati-

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


bém sua própria experiência his- das pelos setores mais à esquerda
tórica, particularmente o Levante do PCB, liderados por comunistas
de 1935, que resultou numa derrota históricos como Carlos Marighella,
militar e política para os comunis- Apolônio de Carvalho, Jacob Goren-
tas. Recusar a luta armada, portan- der, Mario Alves e Joaquim Câmara
to, não pode ser confundido com Ferreira. Para estes setores, faltara
passividade, nem tampouco com combatividade ao PCB no período
abandono do socialismo. imediatamente anterior ao golpe.
Até a realização do VI Congresso,
A maioria do Comitê Central
que consolidou as teses da maioria ☭
(CC), após 1964, também criticou a
do CC, as lideranças mais à esquer-
posição do Partido perante Goulart,
da foram se afastando do PCB - vo-
onde o diálogo das elites comu-
luntariamente ou por expulsão -,
nistas com o governo - de Prestes
e construindo novas organizações
em particular - convivia com uma
que se engajaram na luta armada,
orientação oficial oposicionista,
como a ALN, o PCBR e o MR8.
que cobrava do presidente a radi-
A opção do VI Congresso, em
calização do processo de reformas.
contrário, foi pela luta de massas
Tal autocrítica apareceu no informe
em favor da reconstrução da demo-
de balanço do CC ao VI Congresso do
cracia. Após o informe de balanço
PCB (1967), que sustentou que
do CC apontar que o país vivia “um
“...no fundamental, os erros que regime ditatorial militar, de conteúdo
cometemos na aplicação da linha entreguista, antidemocrático e antio-
política do V Congresso decorre- perário”(Idem, p. 116), a Resolução
ram de uma posição subjectivista, Política do VI Congresso afirmava:
da pressa pequeno-burguesa e do “Na situação actual, nossa principal
golpismo, que nos levaram a crer tarefa tática consiste em mobilizar,
na vitória fácil e imediata, a contri- unir e organizar a classe operária e
buir, com nossa actividade política, demais forças patrióticas e demo-
para precipitar os acontecimen- cráticas para a luta contra o regi-
tos, sem que existissem condições me ditatorial, pela sua derrota e a
que pudessem assegurar a vitória conquista das liberdades democrá-
da classe operária e das forças na- ticas. A realização dessa tarefa está
cionalistas e democráticas.” (PCB, estreitamente ligada aos objectivos
1980, p.86) revolucionários em sua etapa ac-

49
tual e ao desenvolvimento da luta vos, além do amplo engajamento
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

da classe operária pelo socialismo. na “organização das massas cam-


O carácter prioritário da defesa das ponesas” (Idem, p. 126), nas as-
liberdades democráticas decorre da sociações de bairros, nas lutas da
necessidade de que as amplas mas- intelectualidade, das mulheres e
sas intervenham na vida política e da juventude. Depois, a formação
no processo revolucionário.” (Idem, de uma frente única oposicionista,
p. 174) “bem mais ampla do que era aquela
que tínhamos em mira antes do gol-
Assim, o PCB defendia que “o
pe de Abril. A luta por uma tal frente
processo de isolamento e derrota da
☭ é a forma como se desenvolve agora
ditadura é o do desenvolvimento da
o processo revolucionário brasileiro.”
luta de massas e da unidade de acção
(Idem, p. 124) Nesta frente, teria
das forças democráticas” (Idem, p.
“importância destacada (...) o sec-
132). O detalhe semântico não deve
ser desconsiderado: o objetivo era tor progressista da Igreja Católica”
isolar e derrotar a ditadura, num (Idem, p. 128), além do setor liberal
movimento cumulativo que resul- da oposição. Participar das eleições
taria da luta de massas, e não derru- e apoiar os candidatos do MDB era
bá-la com um golpe de força, como importante para aglutinar forças
pretendiam as organizações da luta oposicionistas:
armada.
“Os comunistas lutam pela reali-
As tarefas prioritárias dos co- zação de eleições livres e diretas. A
munistas, portanto, eram duas. participação nas eleições, mesmo
Primeiro, a construção de um gran- com o sistema eleitoral vigente, que
de movimento de massas contra a impede a manifestação democrá-
ditadura, materializado na partici- tica do direito de voto, é um im-
pação ativa no movimento sindical, portante meio para unir as corren-
aproveitando-se de “todas as pos- tes que se opõem à ditadura, para
sibilidades de organizações legais, desmascarar sua política diante das
como as delegacias sindicais, as CI- massas e infligir-lhe derrotas que a
PAS e outras organizações existen- debilitem.” (Idem, p. 132)
tes e que reúnam os trabalhadores”
(Idem, pp. 125-6), em organizações O VI Congresso fez uma dura
não-sindicais da classe operária, condenação às táticas da luta ar-
como cooperativas, associações mada e do foco guerrilheiro, apre-
de ajuda mútua e clubes desporti- sentando-as como “voluntaristas”

50
e “blanquistas”, por desconsiderar armada, tradicional forma de luta

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


que a revolução deve ser “obra das do movimento comunista. Em con-
massas de milhões, como afirmava trário, considerava possível a mu-
Lenine”, e não “o resultado da acção dança de “palavras de ordem” e de
heróica de alguns indivíduos (expres- “formas de luta” no curso da luta
sa no lema: ‘o dever dos revolucioná- contra a ditadura:
rios é fazer a revolução’), ou de pe-
“A ditadura poderá impor ao povo
quenos grupos audaciosos.” (Idem, p.
o caminho da insurreição armada
94) Em contrário, fazia um chama-
ou da guerra civil. A situação exi-
mento à luta de massas:
ge, portanto, dos comunistas a pre- ☭
“Para o nosso Partido, o essencial paração do Partido e das massas,
no momento é estreitar suas liga- bem como o entendimento com as
ções com as grandes massas da ci- diversas correntes da frente antidi-
dade e do campo, e ganhá-las para tatorial, para essa eventualidade.”
a acção unida contra a ditadura. (Idem, p. 132)
Evidentemente, não é chamando-
Para o PCB, entretanto, ao con-
-as a empunhar armas que, nas
trário do que avaliaram a maioria
condições actuais, delas nos apro-
das organizações da esquerda bra-
ximaremos.” (Idem, p. 100)
sileira da época, esta eventualidade
Assim, ganhavam lugar central nunca chegou.
as tarefas de agitação e propagan- O VI Congresso reafirmou a po-
da (“agitprop”, no jargão comunis- sição do seu congresso anterior de
ta), campo no qual o Partido deve- que, naquela etapa da luta revo-
ria “combinar de modo adequado à lucionária no Brasil, impunha-se
actual situação o uso de meios legais uma revolução nacional, democrá-
e ilegais, de modo a atingir realmen- tica, anti-imperialista e anti-lati-
te amplas massas do povo e poder fundiária que abrisse caminho para
orientar sua luta”. Era urgente, pois, um desenvolvimento econômico
“melhorar a qualidade jornalística e democrático e independente. Rea-
política do Voz Operária, assegurar firmou, ainda, que existia no Brasil
sua distribuição rápida e efectiva a uma burguesia nacional, contrária
todo o Partido, aumentar a freqüência aos interesses monopolistas es-
de sua circulação.” (Idem, p. 145) trangeiros, à qual se opunha uma
Mesmo assim, o PCB não aban- burguesia entreguista. Assim, pro-
donou por completo a tática da luta punha que o setor nacional da bur-

51
guesia deveria ser incorporado na Nordeste e do Centro-Oeste. Cres-
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

frente única oposicionista, na qual cem as possibilidades de uma ação


a classe operária deveria inserir-se unitária da Igreja, das massas ca-
buscando conquistar sua hegemo- tólicas e de outras religiões com as
nia. O PCB mantinha a luta pelo so- demais forças antifascistas, na luta
cialismo no seu horizonte, mas não pelas reivindicações populares e
a colocava na ordem do dia: democráticas. O avanço do fascis-
mo não silenciou vozes da oposição
“...marchamos assim para uma
parlamentar. O MDB vai assumin-
solução revolucionária que repe-
do posições mais conseqüentes no
le o capitalismo como perspectiva
☭ campo da resistência, como se viu
histórica, mas não exige de modo
na tomada de posição face à indi-
imediato a passagem para o socia-
cação do general Geisel.” (Idem, p.
lismo.” (Idem, p. 97)
212)
Este etapismo do VI Congresso
esteve no centro da crítica de Pres- Como prioridades, o CC apontava
tes quando da sua ruptura com o o reforço da luta sindical e de todas
PCB, em 1980. as formas legais de luta, como a luta
pela anistia, pelas liberdades demo-
Em 1973, o CC lançou a resolução
cráticas e contra a carestia, além da
“Por uma frente patriótica contra o
preparação para as eleições parla-
fascismo”, que inovava ao afirmar
mentares de 1974. Tais eleições vol-
que “o regime evoluiu de uma di-
tadura militar reacionária para uma taram a ser objeto de nova resolução
ditadura militar caracteristicamen- do CC, de maio de 1974, que afirma-
te fascista.” (Idem, p. 209) Seguia va:
reafirmando a importância da luta
“Participando das eleições, as for-
de massas, e dava especial destaque
ças antifascistas poderão eleger
à aproximação com o MDB e com a
senadores e deputados compro-
Igreja Católica:
metidos com a causa democrática
“A Igreja mantém suas posições e derrotar os candidatos mais rea-
combativas de defesa dos direitos cionários (...) [e] contribuirão para
humanos e denúncia do terrorismo que se acelere o processo de aglu-
oficial. Dentro dela, um setor sig- tinação da frente patriótica anti-
nificativo já propõe um programa fascista, capaz de derrotar o regime
de conteúdo anticapitalista, como de traição nacional que oprime os
se vê nos manifestos dos Bispos do brasileiros.” (Idem, p. 150)

52
As eleições de 1974 possibilita- man, David Capistrano Filho e Luiz

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


ram uma grande vitória eleitoral Maranhão, dirigentes do PCB, sendo
para o MDB, que ampliou conside- os dois últimos integrantes do CC.
ravelmente sua representação par- Confessou ainda que executou mi-
lamentar e, particularmente nos litantes de esquerda, dentre eles,
grandes centros urbanos, passou a outro membro do CC, Nestor Vera,
assumir cada vez mais uma feição assassinado em 1975 após ser vítima
de “frente de massas”. O PCB par- de torturas numa delegacia em Belo
ticipou ativamente da campanha do Horizonte. Guerra afirma que a situ-
MDB, chegando inclusive a eleger ação de Vera era tão grave que julgou
parlamentares comunistas por esta ter praticado um “ato de misericór- ☭
legenda. A partir de então, a luta de- dia” (GUERRA, 2012, p. 39).
mocrática contra a ditadura mudou As declarações de Guerra não fo-
de qualidade. Mas também mudou ram as primeiras, nem as últimas,
de qualidade a repressão contra o onde agentes da repressão narra-
PCB. Nos anos que se seguiram, a ram crimes contra opositores da
ditadura militar montou uma ope- ditadura militar. Em depoimento à
ração de extermínio contra o PCB e revista Veja em 19922, Marival Cha-
conseguiu sufocar e desarticular o ves, um ex-sargento do DOI paulista
Partido. chefiado pelo coronel Brilhante Us-
tra, relatou a dinâmica em centros
O genocídio fascista contra clandestinos de tortura e execução
o PCB e a reconstrução mantidos pelo Exército, além de ter
democrática
identificado locais de desova de ca-
Em 2012, veio a público o livro dáveres em rios e sob pontes. Entre
“Memórias de uma guerra suja”, de os corpos que supostamente teriam
autoria do ex-delegado do DOPS do tido este destino, Chaves listou di-
Espírito Santo Cláudio Guerra. No rigentes do PCB desaparecidos nos
livro, Guerra narrou como conduziu anos de 1974 e 1975, como Orlan-
corpos de opositores da ditadura, do Bonfim Júnior, Elson Costa, Luis
que lhe eram entregues por oficiais Maranhão, Hiran Lima, Itair Velo-
do Exército, para serem queimados so, João Massena, José Montenegro
em fornos da Usina Cambahyba, em e Jayme Miranda. Todos, vítimas da
Campos dos Goitacazes (RJ). Guerra “Operação Radar”, montada pelo
citou, dentre as vítimas que condu- Exército para dizimar o PCB. Anos
ziu para serem incinerados, José Ro- depois, Chaves confirmou estes re-

53
latos à Comissão Nacional da Verda- apodo utilizado pelos militares para
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

de (CNV), em versão que guarda di- se referir à Restinga da Marambaia,


vergências com a de Guerra. área militar apontada como local de
Em 2014, o coronel reformado desova de cadáveres durante a dita-
do Exército Paulo Malhães, um ex- dura militar3, também localizada na
-integrante do CIE e do SNI, depôs Zona Oeste do Rio de Janeiro.
à Comissão da Verdade do Rio de Ja- Tanto Chaves como Malhães
neiro, dando detalhes sobre a cha- narraram infiltrações dos órgãos de
mada “Casa da Morte” de Petrópo- repressão no PCB. Sobre o assun-
lis. Segundo Guerra, to, Malhães afirmou à Comissão da

Verdade do Rio de Janeiro:
“Doutor Pablo [codinome de Pau-
lo Malhães] (...) tinha um pla- “[no] Partidão eu tinha tanto infil-
no pessoal para matar pessoas no trado que chegava a cansar. Escu-
país inteiro, acabar com o Parti- tar as mesmas histórias ao mesmo
dão, limpar mesmo, e isso chegou tempo (....). E o partidão eu encon-
a acontecer. Ele rodou o país inteiro trava em um escritório que eu tinha
com esse plano de eliminar o PCB”. aqui no centro da cidade. Tinha até
(GUERRA, 2012, p. 91) escritório pra encontro4 .”

O relatório final da CNV apontou Chaves, em 1992, apontou um


Malhães como um dos organizado- nome graúdo: Severino Teodoro de
res da Operação Radar. No seu de- Melo, veterano de 1935 e integran-
poimento, Malhães narrou detalhes te do CC do PCB. À época da reve-
sobre desaparecimento e esquar- lação, a direção do já renovado PPS
tejamento de corpos, o uso de ani- posicionou-se em defesa do seu in-
mais como cobras e jacarés em ses- tegrante. Afinal, tratava-se de um
sões de tortura, e apontou praias da antigo dirigente, que havia sido se-
Zona Oeste do Rio de Janeiro como cretário de Prestes em vários mo-
locais de desova de cadáveres. Não mentos de clandestinidade, inclusi-
é despropositado lembrar que, en- ve, em Moscou, na década de 1970.
tre os tantos absurdos que Bolso- Antes disso, fora responsável pela
naro afirmou que confirmam seu entrada e saída clandestina de co-
desprezo pela vida humana, está a munistas no país, como Anita Pres-
promessa de enviar a “petralhada” tes, que partiu para o exílio em 1973
para a “ponta da praia”. A referên- via Uruguaiana (RS) num carro di-
cia é direta: “ponta da praia” era o rigido por Melo (PRESTES: 2019, p.

54
161). que ele não era infiltrado, que era

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


A acusação contra Melo voltou ao uma acusação irresponsável dos
debate público em 2014, com a pu- torturadores, que inicialmente fo-
blicação do livro A Casa da Vovó, de ram os torturadores que fizeram.
Marcelo Godoy, que narra a trans- Até que eu ouvi da voz dele dizendo
formação de Melo no agente “Vi- que era. (...) O Melo.” 5
nícius”, infiltrado do DOI-CODI no
Após ter seu livro rechaçado, Go-
CC, após sofrer um mês de tortura.
doy conseguiu, de um dos seus in-
“Vinícius” passou a ser remunera-
terlocutores do antigo aparato re-
do pelos militares e entregou à re-
pressivo na ditadura, a senha usada
pressão diversos dos seus camara- ☭
para se comunicar com Melo, gra-
das, com os quais convivia há déca-
vando um depoimento onde ele as-
das. Continuou nessa condição, ao
sumiu sua condição de infiltrado.
menos, até os anos 1990, já como
Esta gravação foi apresentada a ex-
dirigente do PPS. O livro de Godoy
-integrantes do CC nos anos 1970,
repercutiu negativamente entre
como Salles, Régis Fratti e Anita
antigos militantes do PCB - inclusi-
Prestes, que confirmaram sua au-
ve entre alguns que já não estavam
tenticidade. Anita narra o episódio
mais no PPS -, que tornaram a sair
nas suas memórias (Idem, p.175).
em defesa de Melo. Afinal, tratava-
-se de “um velho comunista, pessoa Antes do desfecho trágico do as-
de confiança da direção e, em particu- sassinato de dez integrantes do seu
lar, de Prestes”, como a ele se refe- CC, o PCB já estava mapeado pela
riu, no seu livro de memórias, Anita repressão. Em 1972, Adauto Alves
Prestes (Idem, p.174). dos Santos, assessor do CC, declarou
em entrevista ao Jornal do Brasil que
Um dos que foram a público de-
era um agente infiltrado no Parti-
fender Melo foi José Salles, ex-inte-
do. Tal vigilância e a busca pela di-
grante do CC, que explicou:
zimação do PCB nos anos 1970 está
“...se conseguiu transformar o cara documentada numa infinidade de
num agente interno, um dos mem- informes e relatórios produzidos
bros do Comitê Central. Essa foi pelos órgãos de informação civis e
uma história terrível. (...) Mas eu militares, boa parte deles hoje digi-
não a conhecia... Conhecia o cara, talizada e disponível à consulta pú-
perfeitamente, de dentro, pessoal- blica no Arquivo Nacional, resultado
mente, há décadas, e defendi sim, da abertura dos arquivos da ditadura
quando saíram essas acusações, implementada nos governos de Lula

55
e Dilma. pseudônimo. Dizia o relatório:
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

O Relatório Especial de Informa-


“Cumpre ressaltar que, apesar do
ções (REI) Nº 04/74, de 22 de maio
intenso trabalho que vem sendo
de 19746, produzido pelo CIE, tra-
desenvolvido pelos órgãos de segu-
çava um perfil detalhado do PCB, rança e informações, não foi possí-
apresentando um organograma do vel, até o momento, chegar à VOZ
CC, nominando seus principais di- OPERÁRIA, que continua circulan-
rigentes e membros da Comissão do mensalmente entre os militantes
Executiva, além dos setores a ele e simpatizantes do P [referindo-se
associados, listando seus respon- ao Partido]. Isso testemunha o êxi-

sáveis. Visando “possibilitar um me- to da SAP na sua missão prioritária.
lhor acompanhamento pelas diferen- (...) Atualmente, um dos grandes
tes Agências [do Sistema de Informa- problemas dos Órgãos de Seguran-
ções do Exército (SIE)] da atuação do ça está relacionado com o mensário
Partido, (...) particularmente de seus ‘VOZ OPERÁRIA’, órgão central do
órgãos de direção nos níveis Nacional CC/PCB. Apesar das buscas e da per-
e Estadual”, este relatório é um bom manente vigilância, nada de positi-
exemplo do trabalho do Exército vo foi obtido, até o momento. Isso é
para mapear o PCB. Um ponto cen- considerado pelo P, e realmente não
tral do relatório era a atuação da Se- deixa de se constituir, uma vitória.”
ção de Agitação e Propaganda (SAP)
Outra atividade que despertava
do CC, corretamente apontada como
atenção e preocupação do CIE era
sendo então dirigida por Orlando
o trabalho do Partido em conjunto
Bonfim, e responsável pela publi-
com a Igreja Católica, que se cons-
cação do jornal Voz Operária. Vin-
tituía, naquela primeira metade dos
do a público sem interrupção desde
anos 1970, como a principal organi-
1964, e com circulação mensal em
zação da sociedade civil na oposição
tiragem considerável, o Voz Operária
à ditadura. Em diversas edições do
representava um dos poucos veícu-
Voz Operária, os comunistas retra-
los empenhados na difusão de um
tavam positivamente as atividades
pensamento opositor à ditadura du-
oposicionistas católicas. Sobre o as-
rante o período mais duro do AI-5,
sunto, dizia o citado relatório:
além de publicar resoluções do CC,
informações do Movimento Comu- “O trabalho realizado pelo PCB
nista Internacional e artigos de diri- junto à Igreja teve início em 1966,
gentes do Partido, quase sempre sob com base nas Encíclicas do Papa

56
João XXIII, as quais abriram a pos- lino, chefe do CIE, concluía que “os

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


sibilidade de um diálogo com os Órgãos de Direção do PCB encontram-
não crentes. Este trabalho teve ori- -se bem estruturados e em plena ati-
gem em uma alternativa indivi- vidade, apesar das condições adversas
dual de LUIZ INÁCIO MARANHÃO da clandestinidade”, e afirmava:
FILHO - ‘ALDO’, o qual encontrou,
inicialmente, certa resistência por “A linha política do Partidão re-
parte do Partido, tendo em vista presenta, a longo prazo, aquela que
sua tradicional posição anticlerical. proporciona maior perigo às ins-
O esforço inicial desse dirigente (...) tituições democráticas: conta com
encontrou apoio na revista PAZ E quadros mais capazes e de maior ☭
TERRA, ligada à editora CIVILIZA- experiência; é a que menos sofre a
ÇÃO BRASILEIRA, que transcreveu, ação direta dos Órgãos de Seguran-
em seu nº 6, um ensaio de sua auto- ça; é a que tem maior experiência
ria, que passou a ser um meio para na clandestinidade; é a que conta
possibilitar o diálogo.” com maior apoio externo; é a que
representa maior dificuldade (pro-
Apresentando uma lista de clé-
vas) à condenação de seus quadros,
rigos que haviam dialogado com o
que retornam rapidamente à mili-
Partido, entre os quais, Dom Paulo
tância; é a que se encontra em mais
Evaristo Arns, Dom Helder Câmara
e Dom José Maria Pires, o relatório elevado estágio de organização no

afirmava que o principal objetivo do território Nacional; é a que encon-

Partido era, através da Igreja, buscar tra maior receptividade e facilida-


contato com o campo, particular- de de penetração junto às classes:
mente através dos sindicatos rurais, política, operária, religiosa e inte-
além de realizar “atividades conver- lectual. A classe estudantil está li-
gentes” com a ação social da Igreja. gada a todas as linhas esquerdistas:
Corretamente apresentado pelo CIE pacifista, maoísta e militarista; é a
como principal elemento de ligação menos apressada, a mais cautelosa
do CC com a Igreja, Luiz Maranhão e de maior tradição; é a única que
foi sequestrado pela repressão em soube superar uma série de crises
1974, e até hoje consta da lista dos sem deixar-se desarticular e, pelo
desaparecidos políticos da Ditadura. contrário, emergiu com maior ho-
O citado relatório, assinado de mogeneidade e firmeza de posição;
próprio punho pelo General de Bri- é a que melhor aplica a política de
gada Confúcio Danton de Paula Ave- acumulação de forças.”

57
Em anexo ao relatório, estava Ocorre que em fevereiro de 1975,
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

uma relação nominal dos membros “Eli” e “Artur” já haviam sido se-
do CC, com um respectivo álbum fo- questrados pela repressão.
tográfico - que não consta do docu- Como demonstram ambos do-
mento disponibilizado no Arquivo cumentos, desmantelar o esquema
Nacional. de impressão e distribuição do Voz
Noutro documento, o Exército Operária era uma prioridade para o
deixava clara sua intenção de “neu- aparato repressivo. Afinal, o “ele-
tralização do PCB”. Tratava-se da vado estágio de organização [do
Informação Nº 768 M26 E2/757, da- PCB] no território Nacional” facili-
☭ tada de 30 de abril de 1975, que dizia: tava a distribuição do jornal, fazen-
do dele um importante instrumento
“O DOI/CODI/II Ex, analisando a
de mobilização contra a Ditadura. O
estrutura e funcionamento do PCB,
primeiro grande golpe da repres-
organizou uma relação de mem-
são contra o Voz Operária se deu no
bros do CC que, pela atuação e po-
Nordeste, em 1973, com a queda do
sição no partido, se presos, causa-
aparelho comunista no Ceará res-
riam com suas ‘quedas’ danos ir-
ponsável por imprimir e distribuir
reparáveis a curto e médio prazo a
as publicações da SAP na região.
essa organização subversiva.”
A operação foi descrita no jornal
Na lista apareciam nomes como “Correio da Manhã”, de 10 de abril
Giocondo Dias8, Hercules Correa, de 1973:
Orlando Bonfim Júnior, Jaime Amo-
“Os órgãos de Segurança desman-
rim de Miranda Elson Costa e Hiran
telaram uma célula do extinto Par-
de Lima Pereira. Tal Informação di-
tido Comunista Brasileiro que ope-
zia ainda que
rava no Ceará. Inicialmente insta-
“As ‘quedas’ de ‘ELI’ [Elson Costa] lada no Sul do país, a imprensa do
e ‘ARTUR’ [Hiran de Lima Perei- PCB decidiu deslocar várias células
ra] apresentam maior importância, para outras áreas, uma das quais
pelo fato de ter sido publicado o nº para o Ceará, onde a tipografia e
120 da ‘Voz Operária’, referente ao grande quantidade de material
mês de fevereiro de 1975, possivel- subversivo foram apreendidos. (...)
mente sob orientação de um ou de Na gráfica eram impressas as re-
ambos. Enquanto não forem pre- vistas Mundo em Revista, Estudos,
sos, a SAP terá condições de reor- o jornal Voz Operária, panfletos e
ganizar-se.” opúsculos de cunho subversivo di-

58
fundidos da Bahia até o Maranhão dicalista Luiz Inácio Lula da Silva.

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


através de uma rede de distribui- Revigorada, a oposição erguia suas
9
dores já identificados e presos .” bandeiras democráticas nas ruas,
movimentos sociais, eleições e par-
Entre os indiciados, militantes
lamentos, e o MDB seguiu crescen-
comunistas históricos, como Maria
do. A política que o PCB defendera
Aragão (MA) e Vulpiano Cavalcanti
no seu VI Congresso, de engaja-
(RN). O golpe final contra essa fase
mento popular em todas as lutas
do Voz Operária se deu com a queda
contra a ditadura - legais e ilegais,
da gráfica do Partido no bairro ca-
exceto a luta armada -, articulando
rioca do Campo Grande, em janeiro
uma frente ampla o suficiente para ☭
de 1975. No mesmo mês, foram se-
incluir a oposição liberal, ganha-
questrados os dirigentes comunis-
va dimensão nacional. Ao mesmo
tas Elson Costa e Hiran de Lima Pe-
tempo, o partido era aniquilado pela
reira, vinculados à SAP. Foram víti-
ditadura, que prendeu, torturou e
mas da Operação Radar, que então
já com a colaboração de “Vinícius”. assassinou diversos militantes co-
O último dos integrantes do CC as- munistas, provocando um cenário
sassinado pela ditadura foi Orlando de crise e de trauma do qual o PCB
Bonfim, sequestrado em 08 de ou- nunca se recuperou.
tubro de 197510. Ainda em outubro No final da década de 1970, dois
de 1975, foi assassinado outro mi- novos partidos de esquerda apare-
litante do PCB, Vladimir Herzog, no ceram, o PDT e o PT. O PT foi o prin-
DOI-CODI paulista, no contexto de cipal aglutinador dos novos movi-
ampla repressão contra os comu- mentos sociais e populares constru-
nistas em São Paulo, com centenas ídos na luta contra a ditadura. Pro-
de casos de prisões e tortura11. mulgada a Lei da Anistia, o retorno
A mobilização popular que se se- dos exilados expôs ao país a cisão
guiu ao assassinato de Herzog re- que marcara o CC do PCB no decor-
presentou um marco na luta pela rer daquela década. Em 1980, Luís
redemocratização do país. Nos dez Carlos Prestes lançou sua Carta aos
anos posteriores, o Brasil vivenciou Comunistas, rompendo com o PCB e
um amplo movimento de massas acusando a maioria do CC de, “em
contra a ditadura e pela anistia am- nome de uma suposta democracia
pla, geral e irrestrita. Novas lide- abstrata e acima das classes, abdi-
ranças emergiram, das quais a mais car do seu papel revolucionário”12.
destacada foi o metalúrgico e sin- Sem Prestes, o PCB continuou sua

59
luta pela redemocratização do país, processo político em favor de uma
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

buscando ainda sua legalização. democracia que correspondesse aos


Em dezembro de 1982, a Polícia seus interesses de classe, como de-
Federal desbaratou o VII Congres- fendeu Prestes em 1980. Assim, ao
so do PCB, prendendo todos os co- tempo que via ser reconstruída a
munistas presentes, que foram in- democracia pela qual tanto lutara, o
diciados pela Lei de Segurança Na- PCB perdia influência junto às mas-
sas.
cional, num claro sinal da limitação
da abertura política conduzida pe- A década de 1980 foi também
los militares. Derrotada a emen- marcada pela crise definitiva do
☭ “socialismo real”, enroscado nas
da constitucional das “Diretas Já”,
em 1984, a ditadura só chegou ao suas estruturas burocráticas e au-
fim em 1985, num Colégio Eleito- toritárias, findando com a queda do
ral que elegeu Tancredo Neves para Muro de Berlim em 1989 e a auto-
a Presidência da República. O PCB dissolução da URSS em dezembro
não apenas participou desse Colé- de 1991. Sempre fiel à URSS, o PCB
foi diretamente impactado por esta
gio como apoiou o governo de José
crise. Foi esse contexto que marcou
Sarney, que assumiu a presidência
o fim do “ciclo do PCB”, na feliz ex-
com a morte de Tancredo. Ainda em
pressão de Jacob Gorender, para a
1985, Sarney assinou emenda cons-
esquerda brasileira. ☭
titucional que permitiu a legaliza-
ção dos PCs. O PCB celebrou seu re-
Referências
gistro eleitoral com um slogan bem
GODOY, Marcelo. A casa da vovó. São Paulo:
humorado - “O PCB é legal” – e,
Alameda, 2014.
pela primeira vez, excluindo a foice
GUERRA, Cláudio. Memórias de uma guerra
e o martelo de uma peça publicitá- suja. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012.
ria, substituídos por uma mão com PCB. Vinte anos de política. 1958-1979. São
o polegar erguido, no clássico sinal Paulo: LECH, 1980.

de “legal”. PRESTES, Anita. Viver é tomar partido. São


Paulo: Boitempo, 2019.
Optando por se integrar no pac-
to de transição democrática “pelo
alto”, materializado na “Nova Re- Notas
pública”, o PCB foi progressiva- [1] O PCB foi fundado em 1922 com o nome
de Partido Comunista do Brasil - Seção
mente se isolando dos setores po-
Brasileira da Internacional Comunista. Em
pulares, majoritariamente envol- 1961, uma Conferência partidária decidiu
vidos na luta pela radicalização do trocar sua denominação para “Brasileiro”,

60
objetivando a legalização junto ao TSE. Em [6] Consta do documento AFZ_

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


1962, um grupo rompeu com a maioria do ACE_1026_82, do acervo do Arquivo Na-
CC e decidiu recriar o Partido, recuperando cional.
a antiga denominação e adotando a nova [7] Consta do documento BR_DFANBSB_
sigla “PCdoB”. Acredito que a disputa em V8_MIC_GNC_GGG_83007732_
torno de qual dos dois seria o partido ori- d0001de0001, do acervo do Arquivo Na-
ginal está superada, e que ambos partidos cional.
são herdeiros da tradição comunista bra-
[8] Giocondo Dias, que era então a princi-
sileira de 1922, assim como também foi o
pal liderança do PCB no Brasil, já que Pres-
PPS, surgido em 1992, no X Congresso do
tes estava exilado em Moscou, saiu do país
PCB. Nestes termos, considero adequada
apenas em 1976, quando o CC estava no
a opção editorial dos organizadores deste
cerco resultante da Operação Radar. A re-
livro de se referirem ao centenário do co-
tirada de Giocondo do Brasil foi conduzi-
munismo no Brasil. Optei, entretanto, por ☭
da por José Salles, outro integrante do CC,
escrever sobre a trajetória do PC Brasileiro que para isso contou com apoio soviético,
durante a ditadura militar. através da KGB, e do PC argentino. Salles
[2] “Autópsia da sombra”. Veja, edição prestou um importante depoimento sobre
1261, de 18 de novembro de 1992. Disponí- este episódio no filme Giocondo Dias – ilus-
vel na internet no sítio https://acervodigi- tre clandestino (2019), dirigido por Vla-
tal.ufpr.br/bitstream/handle/1884/66619/ dimir Carvalho e produzido por Caetano
Anexo%20Condor-001%20-%20Mari- Araújo, presidente da Fundação Astrojildo
val%20Chaves%20-%20Veja%20-%20 Pereira e dirigente do partido Cidadania.
18%20de%20novembro%20de%201992. [9] “Disponível no sítio da Biblioteca Na-
pdf?sequence=1&isAllowed=y. Consultado cional na internet, no endereço http://
em 22 de janeiro de 2022. memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/Ho-
[3] “Bolsonaro fez referência a área de de- tpageBN.aspx?bib=089842_08&pag-
sova de mortos pela ditadura”. Folha de fis=37083&pesq=&url=http://memoria.
São Paulo, 29 de dezembro de 2018. https:// bn.br/docreader# . Acessado em 21 de ja-
www1.folha.uol.com.br/poder/2018/12/ neiro de 2022.”
bolsonaro-fez-referencia-a-area-de-de- [10] Segundo informações do relatório da
sova-de-mortos-pela-ditadura.shtml Comissão Nacional da Verdade.
[4] “Disponível na internet no site ht- [11] Dois depoimentos importantes sobre a
tps://acervodigital.ufpr.br/bitstream/ repressão ao PCB em São Paulo nesse pe-
handle/1884/66686/Anexo%20Con- ríodo são os livros Meu querido Vlado, de
dor-028%20-%20CEV-RJ%20MA- Paulo Markun, e Herança de um sonho, de
LH%c3%83ES%20DIVULGA%c3%87%- Marco Antônio Tavares Coelho. Ambos au-
c3%83O%20P%c3%9aBLICA%20 tores eram militantes do PCB, sendo Coe-
29.05.14.pdf?sequence=1&isAllowed=y . lho um quadro importante do CC.
Consultado em 22 de janeiro de 2022.” [12] Luis Carlos Prestes, Carta aos Comu-
[5] Em depoimento prestado à Profª. Mo- nistas. Disponível na internet em https://
nique Cittadino e ao autor deste artigo, do ceppes.org.br/biblioteca/biblioteca-mar-
grupo de pesquisa “Memória, Política e xista/luiz-carlos-prestes/carta-aos-co-
Direitos Humanos”, no CCHLA/UFPB, em munistas. Acessado em 21 de janeiro de
07/11/2017. 2022.

61
José Reinaldo Carvalho
é jornalista, membro do Comitê Central e da Comissão Política
Nacional do PCdoB e secretário-geral do Cebrapaz (Centro Brasileiro
de Solidariedade aos Povos e Luta pela Paz). Foi vice-presidente do
partido entre 2001 e 2005.
José Reinaldo Carvalho
PCdoB: 100 anos de luta por direitos do povo, democracia,
independência nacional e socialismo
À Daniel Ilirian Carvalho, meu saudoso filho,
militante do Partido.
A João Amazonas, mestre, amigo, camarada
e dirigente

O
Partido Comunista do Brasil PCB, foram marcados pela tenta-
completa 100 anos de exis- tiva de implantação no movimen-
tência. Fundado a 25 de mar- to sindical, quando a luta social era
ço de 1922 como Seção Brasileira da considerada caso de polícia, de pro-
Internacional Comunista (SBIC), à paganda rudimentar das ideias so-
qual adere com a aceitação das suas cialistas e do ideal comunista, e de
21 condições estatutárias, surge da inserção na vida política. Em 1925
unificação dos diferentes grupos lançou o jornal A Classe Operária. Em
comunistas, herdeiros de correntes 1927 criou o Bloco Operário Campo-
socialistas e anarquistas europeias nês que disputou eleições legislati-
ligadas à intensa imigração ocorri- vas municipais e estaduais e lançou
da no país entre finais do século 19 a candidatura do operário Minervi-
e inícios do 20, quando começava a no de Oliveira à Presidência da Re-
desenvolver-se o incipiente capita- pública em 1930.
lismo nacional, herdeiro do escra-
vismo colonial. Raízes nacionais
Os primeiros anos de existên- A existência de uma vanguarda
cia, durante os quais adotou a sigla política vinculada às aspirações fun-

63
damentais dos trabalhadores, origi- grado as insuficiências teóricas dos
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

nada da luta de classes e que desde primeiros anos.


sempre adotou como programa má-
ximo a conquista do poder político Influência internacional
para construir o socialismo no Bra- A fundação do Partido Comunista
sil, nunca esteve desvinculada da re- guardou também relação direta com
alidade nacional nem das lutas de- os acontecimentos mundiais do iní-
mocráticas e patrióticas emergentes cio do século 20, sendo o mais im-
em nossa sociedade. Mesmo quando portante de todos a Grande Revolu-
cometeu erros graves, como o de se ção Socialista de Outubro na Rússia
☭ alhear de acontecimentos tão mar- de 1917, que deu origem ao primeiro
cantes na vida do país, por exemplo Estado dos trabalhadores sob a lide-
a Revolução de 1930, o partido dos rança do partido comunista. Como
comunistas brasileiros nunca dei- a maioria dos partidos comunistas
xou de estar fortemente impregna- do mundo, quase todos existen-
do pelo caráter nacional e democrá- tes e em pleno funcionamento nos
tico das lutas sociais do povo. dias de hoje, o Partido Comunista
A fundação do Partido Comunista do Brasil é um fruto daquela época
do Brasil, naquele longínquo 25 de de transformações revolucionárias
março de 1922, correspondeu a uma que iriam marcar indelevelmente o
necessidade objetiva do desenvol- século como o século das revoluções
vimento das lutas sociais em nosso socialistas e das lutas pela libertação
país, fez parte do ambiente de mo- nacional e social, o século das lutas
bilizações democráticas e renovação operárias, das lutas anticoloniais,
cultural que contagiaram a classe pela democracia, a justiça social e
operária da época, a intelectualida- a paz. É por isso que os comunis-
de, os setores médios e os militares tas brasileiros comemoraram com
patrióticos. Está inscrita na mesma o mesmo júbilo o centenário da Re-
cadeia de acontecimentos do qual volução de Outubro, há cinco anos.
fizeram parte a greve geral de 1917, Não por passadismo, dogmatismo,
a Semana de Arte Moderna de 1922 falta de espírito crítico e autocríti-
e as revoltas tenentistas. O Partido co, ou resistência a aceitar a derrota
Comunista do Brasil nasceu em solo do socialismo no Leste Europeu em
pátrio, deitou raízes na vida nacio- finais do século 20 e a necessidade
nal e ao mesmo tempo nasceu com de “ressignificá-lo”, mas para real-
inspiração internacionalista, mal- çar que os partidos que desfraldam

64
e empunham sem tremer as mãos e Dilma.

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


a bandeira do socialismo, da luta- Ainda que sofrendo reveses, o
-anti-imperialista, da libertação Partido assumiu heroicamente ba-
nacional e social, são os legítimos talhas radicais, que embora derro-
herdeiros daquelas tradições revo- tadas, expressavam também o espí-
lucionárias fundadoras, portadores rito de luta do povo e mostravam a
dos mesmos princípios e ideais e disposição dos comunistas de acei-
continuadores de suas lutas, mesmo tarem o percurso de caminhos difí-
em condições totalmente distintas. ceis em momentos históricos cru-
Foi esta convicção que manteve os ciais: a insurreição nacional liberta-
comunistas brasileiros no campo do ☭
dora de 1935, quando o fascismo se
Movimento Comunista Internacio- implantava na Europa e assomava
nal até os dias atuais. por aqui, e a Guerrilha do Araguaia
(1972-1975), em plena ditadura mi-
Partido de memoráveis litar fascista.
lutas
A trajetória de construção do
Durante um século, o partido dos partido dos comunistas enfrentou
comunistas brasileiros atravessou dificuldades objetivas relacionadas
diferentes etapas em um prolonga- com o reacionarismo do Estado bra-
do e aturado processo de implanta- sileiro. O Partido foi golpeado e vi-
ção na vida política e social do país. timado por ações de terrorismo de
Protagonizou momentos gloriosos, Estado, por políticas de extermínio
lutas memoráveis e escreveu seu conduzidas por governos ditato-
nome na história das lutas do povo riais. Pagou o elevado preço da clan-
brasileiro. Demonstrou ser um par- destinidade e da perda em combate
tido comprometido com as grandes ou sob tortura e frio assassinato nos
causas nacionais e populares, com cárceres de centenas de militantes e
as conquistas do povo, os direitos quadros dirigentes. Foi um baluarte
sociais dos trabalhadores das ci- da luta pela liberdade.
dades e do campo, a democratiza- Com toda a legitimidade, os mi-
ção do país no pós-Segunda Guerra litantes e quadros do PCdoB come-
Mundial, a Assembleia Constituin- moram o transcurso do centenário
te de 1946, a vitória na luta contra da fundação do Partido. Também os
a ditadura, a conquista da anistia, a amigos nacionais e internacionais,
Constituinte de 1987-88, os gover- os companheiros de viagem, os alia-
nos progressistas liderados por Lula dos circunstanciais, patriotas e de-

65
mocratas de diferentes convicções ma da Conferência Nacional Extra-
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

ideológicas, compartilham com os ordinária (1962), o documento da 6ª


comunistas a alegria de chegar aos Conferência (1966), a Resolução da
100 anos, saudando fraternalmente 7ª Conferência (1979), as resoluções
e desejando maiores vitórias a uma dos 6º, 7º e 8º congressos, respecti-
organização política que deitou tan- vamente em 1983, 1988 e 1992.
tas raízes no solo nacional e deixou Merece destaque que as resolu-
tantas marcas na vida política e cul- ções do 6º Congresso (1983) mar-
tural do país ao longo de uma traje- cam uma transição importante en-
tória acidentada, mas ininterrupta. tre o conceito de “duas etapas da
☭ Por qualquer ângulo de que se mire revolução” para o de “revolução de-
a história, não há como separar a mocrática e popular rumo ao socia-
vida republicana brasileira das lutas lismo”, transição que se completará
sociais e, desde os primeiros anos da no 8º Congresso, de 1992 (Socia-
década de 1920, da influência e do lismo já) e no Programa Socialista,
papel exercidos pelo Partido Comu- quando o Partido passa a conside-
nista do Brasil. Desde sua fundação rar que a sociedade brasileira es-
até os dias de hoje, foi enorme, em tava objetivamente madura para o
alguns casos decisiva, a presença, a socialismo. Este Programa Socialis-
influência, a direção dos comunistas ta foi elaborado originalmente por
nas lutas e vitórias dos trabalhado- incumbência do 8º Congresso, na
res e do povo brasileiro. 8ª Conferência Nacional (1995). Sua
versão definitiva foi aprovada no 9º
Aprendizado da estratégia Congresso, em 1997. Posteriormen-
e tática revolucionárias te, em 2009, o Partido aprovou novo
No longo processo de amadure- programa no 12º Congresso, apon-
cimento político e teórico, o Partido tando o socialismo como objetivo e o
deixou marcas importantes e con- plano nacional de desenvolvimento
tribuições seminais para a forma- como caminho.
ção de um programa político da luta Muito embora golpeado, o Par-
pela emancipação nacional e social tido sobreviveu e assumiu o desafio
dos trabalhadores e do povo brasi- de organizar, mesmo nas difíceis
leiro, a revolução política e social condições da clandestinidade, a luta
que ainda está por ser feita. Desig- do povo, tendo sempre como norte
nadamente, o Programa do 4° Con- a luta democrática, pelo progresso
gresso (1954), o Manifesto-Progra- social, a independência nacional e o

66
socialismo. As gerações de militan- da revolucionária com ideologia co-

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


tes e dirigentes que se sucederam munista e cujo programa máximo
ao longo deste século de existên- seja a construção do socialismo.
cia do Partido fizeram rico e inten- Aparentemente, a realidade em-
so aprendizado tático e estratégico prestaria razão aos que, ignorando
e amadureceram política e ideolo- as leis objetivas do desenvolvimen-
gicamente, um processo que não foi to histórico, tomam por saudosismo
isento, até mesmo nos dias atuais, e gesto anacrônico a celebração do
de lutas políticas e ideológicas em centenário do Partido Comunista.
que tem sido necessário enfrentar Mas é com orgulho, justo orgu-
o oportunismo de direita, o falso ☭
lho, que os comunistas fazem esta
esquerdismo e o liquidacionismo. celebração, porque é gloriosa a his-
Não têm sido poucas na história do tória dos comunistas, é heroica a sua
PCdoB, inclusive nos dias atuais, as gesta e é enorme a contribuição que
tentativas de transformá-lo ou num deram nas lutas por transforma-
grupo sectário desligado da realida- ções sociais e políticas, pela eman-
de ou dissolvê-lo no seio de outros cipação da humanidade. No caso do
partidos de cariz social-democrata. Brasil, foi com o intelecto, o empe-
O percurso da construção do so- nho, e quando necessário as armas e
cialismo no mundo, a trajetória zi- o sangue de inolvidáveis heróis que
guezagueante dos comunistas no escrevemos memoráveis páginas da
Brasil e em outros países, os erros trajetória do povo brasileiro na luta
cometidos e as derrotas sofridas são por democracia, independência na-
utilizados como argumentos pelos cional e progresso social.
ideólogos da burguesia e do impe-
rialismo para proclamar a derrota Enfrentando desafios
irreversível do socialismo, a falên- Celebrar a história centenária de
cia dos seus ideais e a inutilidade do um partido como o PCdoB é antes
partido comunista. Até mesmo ra- de tudo reflexão e posicionamen-
zões de ordem eleitoral - pois esta- to diante dos agudos problemas do
mos na época em que os partidos so- presente e da perspectiva. A exis-
cial-democratas da esquerda mode- tência e a permanência do Partido
rada e conciliadora são majoritários não resultam de uma atitude volun-
na esquerda - são invocadas como tariosa. Antes, correspondem a uma
pretexto para desistir do ingente necessidade histórica. O Partido é
esforço de construir uma vanguar- necessário para os grandes comba-

67
tes do nosso tempo, para cumprir as siderando que as vitórias eleitorais
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

grandes tarefas históricas de nossa já seriam o primeiro passo para a


época. construção da nova sociedade. Bas-
A festa do centenário do Parti- taria deixar florescer os brotos do
do, com orientação ideológica, po- neo-nacional-desenvolvimentismo
lítica e estética em que se ressalte e do neo-republicanismo demo-
a linha revolucionária do Partido, a crático para que, numa sucessão de
perspectiva do socialismo e a sim- governos democráticos cheguemos
bologia da luta revolucionária, pode por geração espontânea ao socialis-
fortalecê-lo para o enfrentamen- mo no Brasil. Rebaixando-se a es-
☭ tratégia, rebaixam-se a arquitetura
to dos desafios atuais. Em primei-
ro lugar, para constituir o sujeito e a engenharia políticas necessárias
político da luta pelo socialismo, o a afiançar a existência de uma força
grande exército de massas da revo- de combate à altura dos desafios da
lução brasileira, com os novos con- época.
teúdos e formas próprios da época Os comunistas comemoram o
presente. Nessa tarefa os comunis- centenário do seu partido confian-
tas mantêm diálogo e alianças, in- tes em que, ainda que árduo e tor-
teração e relações de unidade e luta tuoso, devem trilhar, sem renúncia
com outras forças democráticas e nem renegação, a via do desenvolvi-
as correntes de esquerda que têm o mento do Partido, para construir um
socialismo como objetivo. Esse diá- sujeito político capaz de organizar e
logo não é simples, porquanto a es- mobilizar o povo e ser fator ponde-
querda é hegemonizada por setores rável na construção da unidade das
políticos e intelectuais encantados forças progressistas e populares. A
com as supostas novas capacidades aposta dos comunistas para enfren-
expansivas da economia capitalis- tar os desafios atuais é consolidá-lo
ta, fascinados com a existência de como uma força de combate pelo
blocos econômicos imperialistas e socialismo no Brasil, não permitin-
êxitos eleitorais efêmeros da social- do a sua diluição, enfraquecimento
-democracia. Para estes, a luta pelo orgânico, esmaecimento ideológico
socialismo não passa de anacronis- ou liquidação.
mo. Ou o socialismo pelo qual lutam O enfrentamento dos desafios
recebe tantos epítetos que se desfi- atuais significa que o PCdoB será,
gura. Sobre a luta pelo socialismo no como sempre foi, uma força irre-
Brasil, buscam falsos atalhos, con- conciliável com as classes dominan-

68
tes retrógradas, opressoras e entre- implacável sobre as classes domi-

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


guistas; uma força irreconciliável nantes. Dizia, na redação do Progra-
com o imperialismo, um partido de ma Socialista (1997):
classe, portador das aspirações his-
“O desenvolvimento deformado
tóricas dos trabalhadores e de todo
da economia nacional, o atraso, a
o povo brasileiro; capaz de sinteti-
subordinação aos monopólios es-
zar em plataformas políticas amplas
trangeiros e, em consequência, a
e unitárias, as questões emergentes
crise econômica, política e social
ligadas à perspectiva socialista. João
cada vez mais profunda, são o re-
Amazonas deixou-nos o ensina-
sultado inevitável da direção e do ☭
mento – que o coletivo sabiamente
comando do país pelas classes do-
incorporou ao Programa Socialis-
minantes conservadoras. Consti-
ta (1997) - de que na situação con-
tuídas pelos grandes proprietários
creta do Brasil a luta pelo socialismo
de terra, pelos grupos monopolis-
exige a fixação de objetivos táticos e
tas da burguesia, pelos banqueiros
estratégicos de nível elevado, cons-
e especuladores financeiros, pelos
ciente de que devido aos problemas
que dominam os meios de comu-
históricos e estruturais da socieda-
nicação de massa, todos eles, em
de brasileira, adquirem significado
conjunto, são os responsáveis di-
primordial a luta em defesa da sobe-
retos pela grave situação que vive o
rania e da independência nacional,
país. Gradativamente, separam-se
a luta pela democratização ampla
da nação e juntam-se aos opres-
e profunda do país e a solução dos
sores e espoliadores estrangeiros.
problemas sociais, em permanente
As instituições que os representam
agravamento. Separar esses veto-
tornaram-se obsoletas e inservíveis
res da luta é um exercício metafísi-
à condução normal da vida política.
co fadado ao fracasso. Na estratégia
Elitizam sempre mais o poder, res-
e tática revolucionárias do PCdoB,
tringindo a atividade democrática
os vetores nacional, democrático e
das correntes progressistas. A mo-
social se entrecruzam e todos atu-
dernização que apregoam não ex-
am num sentido histórico único - a
clui, mas pressupõe, a manutenção
conquista do socialismo.
do sistema dependente sobre o qual

Enfrentar as classes foi construído todo o arcabouço do


dominantes seu domínio.”

João Amazonas fazia uma análise Os comunistas brasileiros com-

69
preenderam também que a luta de- que a luta pelo socialismo no país
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

mocrática e patriótica pelo desen- não é um processo em linha reta. Na


volvimento, a soberania nacional, condução dessa luta, os comunistas
em defesa da nação ameaçada pela compreenderam que deviam tomar
voragem neoliberal, era no fundo em consideração essas peculiari-
um aspecto da luta de classes, in- dades, assim como a correlação de
separável da luta pelo socialismo na forças estratégicas no plano mun-
fase peculiar que o Brasil vivia. dial.

O Programa Socialista (1997) fri-


Defesa dos princípios
sava:
☭ Nos idos de 1992 (8º Congres-
“Tais classes [dominantes] não so), quando a regra geral era o li-
podem mudar o quadro da situa- quidacionismo, o Partido foi firme
ção do capitalismo dependente e na defesa dos princípios do socia-
deformado. Sob a direção da bur- lismo científico, do marxismo-le-
guesia e de seus parceiros, o Brasil ninismo e da construção do socia-
não tem possibilidade de construir lismo, sobretudo da experiência de
uma economia própria, de alcançar construção do socialismo na URSS,
o progresso político, social e cultu- malgrado os graves erros ali come-
ral característicos de um país ver- tidos. Naquele congresso, o Partido
dadeiramente independente. Na foi autocrítico ao avaliar que tinha
encruzilhada histórica em que se resvalado em desvios dogmáticos e
encontra o Brasil, somente o socia- lançou o desafio de, ao aprofundar a
lismo científico, tendo por base a autocrítica, não trocar o dogmatis-
classe operária, os trabalhadores da mo pelo revisionismo.
cidade e do campo, os setores pro- Ao tirar lições da derrota do so-
gressistas da sociedade, pode abrir cialismo no plano internacional, o
um novo caminho de independên- Partido orientou:
cia, liberdade, progresso, cultura e
bem-estar para o povo, um futuro “Embora em suas linhas mestras
promissor à nossa Pátria”. o socialismo científico seja idênti-
co em todos os países, sua concre-
Referenciado no marxismo- tização em cada lugar exige pon-
-leninismo e numa interpretação derar as particularidades locais e
científica da evolução histórica do nacionais. Essas particularidades
Brasil, de sua complexa e peculiar dão feição própria ao regime avan-
formação, o PCdoB tem presente çado que substitui o capitalismo. O

70
modelo único de socialismo é anti- Esta concepção orientou o pen-

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


científico”. samento e as ações do Partido em
grandes lutas sociais e políticas. O
Ponto alto do amadurecimento
coletivo comunista aprendeu que
programático, estratégico e tático
o caminho para o socialismo passa
da direção comunista são as formu-
“pela realização de inúmeras bata-
lações contidas no capítulo intitula-
lhas em diferentes níveis com a am-
do “O caminho para alcançar o so-
pla participação do povo”. A luta pelo
cialismo”, do já aludido Programa
socialismo não pode ficar restrita à
Socialista (1997).
propaganda revolucionária, sendo
Ali afirma-se que a conquista do indispensável atuar no curso políti- ☭
socialismo é um caminho de “árdua co real, estar presente nos pequenos
disputa” com “as classes retrógra- e grandes combates do povo. Esta
das que dominam o país”. Durante o compreensão, sintetizada naquele
rico debate nas fileiras partidárias Programa Socialista, fica nítida:
em torno da elaboração desse pro-
grama, João Amazonas identificava “Importância particular na mobili-

essas classes como “forças poderosas zação das massas, buscando isolar

que não cederão facilmente as posi- ou neutralizar os inimigos, tem a fi-

ções que detêm”. Sempre referencia- xação de objetivos concretos de ní-

do no materialismo histórico, dizia: vel mais elevado” (…) “Nesse senti-


do, adquire significado primordial a
“A máquina do Estado está em suas defesa da soberania e da indepen-
mãos. Utilizarão o engodo e as pro- dência nacional; a exigência de de-
messas jamais cumpridas, o mo- mocratização ampla e profunda da
nopólio da mídia, recorrerão ao vida do país; os reclamos da ques-
arbítrio, apelarão para o fascismo, tão social em constante agrava-
não vacilarão em juntar-se aos in- mento. São objetivos relacionados
tervencionistas estrangeiros a fim com a questão do poder, visando
de tentar conter e esmagar o mo- tirar o Brasil do atraso e da pobre-
vimento progressista. Todos os que za, garantir a liberdade para o povo,
almejam uma pátria livre e sobera- afirmar a identidade nacional. Essa
na, que desejam avanços contínuos luta apresenta não apenas aspecto
nos terrenos político, econômico, tático. Perdurará por largo período
social e cultural, terão de enfrentar e somente terminará com a vitória
decidida e persistentemente as for- definitiva das forças progressistas.
ças inimigas”. As classes dominantes não têm al-

71
ternativa. Insistirão até o fim na maior razão agora, quando o país
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

política entreguista, antinacional, está sob a direção de forças de extre-


persistirão na via antidemocrática e ma-direita, o Brasil continua viven-
antissocial”. do uma encruzilhada histórica, gra-
ves impasses, para os quais não ha-
Este é o núcleo do pensamento
verá saída se os problemas de fundo
tático e estratégico do PCdoB. É re-
da sociedade não forem enfrentados
sultado, acima de tudo, da experiên-
e as classes dominantes não forem
cia. Uma bússola para que o Partido
derrotadas. E não o serão nos mar-
não se perca nas ínvias encruzilha-
cos do regime político e econômico
das com que se depara atualmen-
☭ dessas classes. A luta pela soberania
te. Este pensamento é a chave para
nacional, a democracia e o progres-
compreender o papel da acumula-
so social se relacionam com a luta
ção de forças no processo revolu-
pelo poder político entre as classes
cionário: “Todo o procedimento po-
trabalhadoras, as massas populares,
lítico e organizativo, relacionado com
por um lado, e as classes dominan-
o caminho para o socialismo” – dizia
Amazonas – “objetiva acumular for- tes, por outro. Comemorar o cen-
ças, ganhar prestígio e influência no tenário do Partido é assumir uma
seio do povo”. posição de combate nesse conflito
estrutural da sociedade brasileira. É
“A conquista do socialismo é obra em primeiro lugar por aí que o povo
das amplas massas, dos trabalha- brasileiro percorrerá o seu caminho
dores em geral. Exige, na atualida- peculiar para a edificação da nova
de (1997), a criação de uma sólida sociedade em nosso país.
frente nacional, democrática e po-
pular, reunindo partidos, perso- Partido da luta
nalidades políticas e democráticas, anti-imperialista
organizações de massas, defenso-
Comemorar o centenário do Par-
res da soberania nacional, agru-
tido é também aceitar os novos de-
pamento decidido a derrocar as
safios da luta anti-imperialista. To-
classes reacionárias e a realizar as
dos os congressos do PCdoB desde
transformações de que o Brasil ne-
1997 até o 14º Congresso (2017),
cessita”.
ressaltaram com ineditismo o pro-
Mesmo depois da vigência por cesso de declínio histórico do impe-
quase uma década e meia de gover- rialismo estadunidense, a emergên-
nos progressistas no Brasil e, com cia de novos polos geopolíticos, a

72
transição conflituosa para um novo Moscou apoiou o princípio defen-

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


sistema internacional, que emerge dido por Pequim de que no mundo
agora com mais nitidez. A bandeira existe apenas uma China e rechaçou
do internacionalismo e do anti-im- a incitação por parte dos Estados
perialismo nunca tremeu nas mãos Unidos a separatistas em Taiwan,
da direção partidária ao longo da- parte inalienável da integridade ter-
quelas duas décadas. ritorial chinesa e da unidade política
Os presentes acontecimentos in- da República Popular da China.
ternacionais são claros sobre a con- China e Rússia estão irmanadas
figuração de uma nova situação in- nos esforços pelo multilateralismo

ternacional, que os comunistas per- autêntico e pelo soerguimento de
ceberam desde que assomaram os um sistema internacional multipo-
primeiros sinais. O recente encontro lar, baseado no Direito Internacio-
entre os presidentes da China e da nal, no papel preponderante de uma
Rússia (4 de fevereiro), em Pequim, ONU atualizada no funcionamen-
resultou na assinatura de uma De- to de suas instâncias, na execução
claração Conjunta que é o mais im- plena do princípio de resolver por
portante acontecimento geopolítico vias políticas específicas os confli-
desde o fim da guerra fria. O docu- tos entre as nações. Igualmente, vão
mento é a expressão de uma nova reforçar a atuação em organismos
aliança que tem forte impacto sobre internacionais e fóruns regionais e
o sistema internacional. globais.
China e Rússia estão decididas A grande novidade resultante
a doravante atuar conjuntamen- da reunião de cúpula bilateral de 4
te em todas as agendas internacio- de fevereiro é que a China e a Rús-
nais. Mantendo o princípio de não sia assumiram-se como potências
interferência nos assuntos internos mundiais decididas a frear os pla-
de outro país, a China deixou claro nos hegemonistas do imperialismo
de que lado está na atual crise que estadunidense. Sua atuação con-
envolve os EUA, a Otan, a Ucrânia junta nas agendas globais tende a se
e a Rússia. O país socialista asiático tornar o fator preponderante para
apoiou as posições russas em face a inauguração de novo tipo de co-
das tensões geradas pela expan- operação e de relações internacio-
são da Otan, liderada pelos Estados nais, o que poderá favorecer a luta
Unidos, rumo às fronteiras da Eu- pela autodeterminação dos povos e
ropa com a Rússia. Reciprocamente, o advento da paz. As duas potências

73
demonstraram cabalmente a sua membro ativo do Encontro de Par-
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

disposição para construir um mun- tidos Comunistas e Operários, tendo


do multipolar, a tornar uma norma inclusive sediado um desses even-
o multilateralismo genuíno e nor- tos, em 2008.
malizar a cooperação internacio- Igualmente, escapando a toda
nal. Vão atuar como países estabi- pressão e sem temer os efeitos da
lizadores, conscientes que estão da propaganda grosseira comandada
gravidade dos desafios mundiais e por círculos imperialistas e da ex-
ao mesmo tempo de seu papel para trema-direita, consolidou sua pre-
estabelecer um novo equilíbrio do sença no Foro de São Paulo, por
☭ mundo. No encontro de 4 de feve- compreender que a América Latina
reiro os estadistas dos dois países é um importante cenário da con-
assinaram uma nova Declaração frontação entre os povos e o impe-
que, para além de reafirmar esses rialismo. O que ocorrer em nosso
princípios, estabelece as bases e os continente terá repercussão decisi-
parâmetros para a construção de re- va na luta anti-imperialista em nível
lações correspondentes à nova era mundial.
emergente no mundo. A compreen-
Comemorar o aniversário do
são deste fenômeno é indispensável
Partido é elevar a consciência do
para orientar a ação dos comunistas
nosso povo, das demais forças da
e demais forças revolucionárias na
esquerda e dos nossos próprios mi-
atualidade.
litantes e quadros quanto ao nível
As análises e resoluções inter- de nossas responsabilidades no ce-
nacionais dos congressos do PCdoB nário político em que se desenvolve
ao longo dos anos 1990 e nas duas a luta anti-imperialista na Améri-
primeiras décadas do século 20 po- ca Latina. A história cobrará muito
sicionaram o Partido no posto avan- de nós, exigirá esforço redobrado,
çado da luta contra o imperialismo porquanto não será uma luta fácil,
e sua política de guerra que agride porque o imperialismo norte-a-
brutalmente a paz e a segurança dos mericano é cada vez mais agressivo
povos, a democracia, a independên- e ardiloso. Embora sofra seguidas
cia nacional e os direitos dos traba- derrotas, dispõe de um aparatoso
lhadores. sistema político destinado a impedir
Com grande acerto, o PCdoB re- as mudanças, a perpetuar sua hege-
afirmou-se como partido do Mo- monia. Na tática do inimigo não fal-
vimento Comunista Internacional, tam tergiversações e propagandas

74
insidiosas contra Cuba, Nicarágua, a questão: encontra-se na ordem

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


Venezuela, Bolívia e as forças polí- do dia a tarefa de lutar por melho-
ticas anti-imperialistas em luta pelo rias no capitalismo, de combater as
poder político. “deformações” da globalização e as
Não está ainda plenamente con- “perversões” da crise, ou a tarefa de
figurada a nova correlação de forças elaborar estratégias, táticas e pôr
que levará a humanidade a novo ci- em prática métodos revolucionários
clo revolucionário. Mas tampouco que conduzam os trabalhadores em
essa correlação de forças forma-se todo o mundo à luta pelo socialismo
por geração espontânea, caben- como único caminho para superar
os inarredáveis impasses com que ☭
do aos partidos que lutam pelo so-
cialismo adotar linhas estratégicas, a humanidade está confrontada?
procedimentos táticos e métodos de Adaptação ou resistência e luta, eis
ação consoantes à necessidade de o dilema em face do qual se encon-
abordar a luta pelo socialismo nas tram as forças de esquerda. Resistir
novas condições. O fator consciente e lutar, sempre, diz-nos o legado da
também faz parte das mudanças de história que hoje celebramos.
correlação de forças. E, por óbvio, a A premissa para alcançar novas
ausência temporária de uma corre- conquistas para os trabalhadores e
lação de forças favorável à ofensiva os povos é a revolução política e so-
revolucionária não pode nem deve cial e a superação das atuais estru-
servir de pretexto a uma estratégia turas e superestrutura da sociedade.
e tática de conciliação e adesão ao A conquista de direitos políticos e
inimigo. Em nenhuma circunstância sociais plenos, que assegurem o po-
os partidos revolucionários devem der político para os trabalhadores e
deixar-se capturar pelas artima- a emancipação social não emanarão
nhas do inimigo de classe. de um “aperfeiçoamento” do siste-
Diante do capitalismo-impe- ma burguês nem serão dádivas das
rialismo em profunda crise que classes dominantes, aliás cada vez
põe de manifesto a senilidade do mais reacionárias.
sistema, das políticas neoliberais
dos governos conservadores e so- Tática ampla, firme e
ciais-democratas, das políticas de
flexível
guerra do imperialismo, da nature- O PCdoB chega ao seu centená-
za reacionária do sistema político e rio mais maduro e consciente de
econômico burguês, ganha relevo que a luta pelo socialismo no Brasil

75
não será um caminho em linha reta, volvendo-se em cima das batalhas
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

nem o resultado apenas da propa- concretas.


ganda das ideias socialistas e revo- Na luta contra a ditadura, na 6ª
lucionárias. Nem muito menos da Conferência Nacional (1966), rea-
conciliação de classes. Será uma luta lizada em plena clandestinidade, o
prolongada, que comportará avan- PCdoB formulou a ideia da “união
ços e recuos e exigirá persisten- dos brasileiros para livrar o país da
te acumulação de forças. É preciso crise, da ditadura e da ameaça neoco-
travar muitas batalhas em distintos lonialista”.
níveis, elevando em cada uma delas
Quando a ditadura militar assu-
☭ o nível de participação e de consci-
miu abertamente um caráter fascis-
ência política do povo. Os comunis-
ta e escolheu o terror de Estado como
tas devem ser capazes de concertar
método de guerra contra o povo, os
alianças políticas amplas, caracteri-
comunistas se alçaram em armas
zar sua atuação cotidiana pelo má-
na Guerrilha do Araguaia, manten-
ximo de flexibilidade e habilidade
do a perspectiva da luta política e de
para atrair mais e mais adeptos e
massas. Os documentos emitidos
aliados ao projeto de transforma-
pela Guerrilha indicavam a perspec-
ção da sociedade. Sem idealizações,
tiva política e de luta de massas dos
é imperativo aceitar os desafios de
comunistas naquele momento dra-
cada situação política concreta, per-
mático.
correr com objetividade o curso dos
acontecimentos políticos, distinguir Durante a ditadura militar, que
com acuidade qual a tarefa principal foi a noite dos tempos para nossa
em cada conjuntura, criar as con- Pátria, sob o tacão de generais fas-
dições para que as massas façam a cistas, torturadores, opressores e
própria experiência. Uma tática am- entreguistas, os comunistas, aber-
pla, combativa, firme e ao mesmo ta ou clandestinamente, com a cara
tempo flexível será sempre um bom própria ou mimetizados, nunca fu-
método a que os comunistas devem giram aos embates políticos nem
recorrer para atingir os objetivos deixaram de ser amplos e tatica-
estratégicos. mente flexíveis.
O pensamento tático e estraté- Ainda no auge do regime arbi-
gico do Partido Comunista do Brasil trário, sob a presidência do gene-
foi plasmando-se ao longo do tem- ral Geisel, algoz dos comunistas,
po. A visão combativa, ampla e fle- mandante da operação crimino-
xível de acumular forças foi desen- sa que resultou na chacina da Lapa,

76
em cujo governo eram comuns as plantados no chão, mergulhando

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


torturas e os assassinatos de oposi- profundamente no curso político
tores, o Partido abria o caminho da real, incidindo fortemente na con-
luta política e até mesmo da atuação juntura política, mantendo o rumo
parlamentar. Sob a orientação do estratégico e traçando caminhos vi-
documento “Conquistar a liberdade áveis para promover as necessárias
política, alcançar a democracia po- rupturas que resultarão nessa revo-
pular” (1976), o Partido formulou as lução política e social, que é um pro-
bandeiras de luta pela revogação dos cesso político prolongado e não se
atos e leis de exceção, pela anistia restringe à adoção de uma determi-
ampla, geral e irrestrita e pela con- nada forma de luta. ☭
vocação da Assembleia Constituinte
O PCdoB chega ao seu centenário
livremente eleita.
reafirmando as linhas do Programa
A mesma perspectiva de apli- Socialista. O centro estratégico e tá-
car uma tática ampla, combativa e tico permanece o entrelaçamento da
flexível para acumular forças este- luta por uma República de Trabalha-
ve presente na luta pelas Diretas Já dores, por um novo regime políti-
(1983-1984), no apoio à eleição de co, a luta democrática, a luta social,
Tancredo Neves no Colégio Eleitoral pelo desenvolvimento e a emanci-
(1985), no apoio crítico à Nova Re-
pação nacional. O significado essen-
pública (1986), na ação legislativa
cial e sentido histórico dessa luta é
e nas ruas durante os trabalhos da
a ruptura com o regime das classes
Constituinte (1987 e 1988), no apoio
dominantes e o sistema de domina-
à nova Constituição, nas campanhas
ção do imperialismo, abrindo cami-
pela eleição de Lula presidente da
nho para a conquista do socialismo.
República (1989, 1994, 1998, 2002
e 2006). E nas campanhas vitorio- Para isto, é indispensável um
sas da presidenta Dilma, em 2010 e movimento de massas forte, uma
2014. Faz parte do positivo balanço frente das forças democráticas, pa-
da estratégia e tática dos comunis- trióticas, progressistas, de esquer-
tas a ação política durante os gover- da, que reúna os partidos políticos,
nos sob a égide do PT, entre 2003 e as personalidades independentes e
2016. os movimentos classistas e popula-
res.
O Partido Comunista do Brasil
segue o caminho da luta pelo socia-
Fortalecer o Partido
lismo acumulando forças nas novas
condições, atuando com os pés bem A celebração do centenário do

77
Partido Comunista do Brasil, para ganizados, de quadros capacitados
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

além de uma festa, é a renovação e direções com descortino político,


em nível superior da consciência de firmeza ideológica e lucidez teórica.
que na luta pelo socialismo é pri- Aspecto essencial do pensamen-
mordial a existência de um Partido to e da ação do PCdoB é a luta per-
Comunista forte, ligado às massas, sistente para construir um parti-
especialmente as classes trabalha- do comunista organicamente forte,
doras; um partido com milhões de ideológica e politicamente capaz, à
militantes, dirigidos por quadros altura da sua missão histórica, liga-
experimentados e provados, mu- do às massas, em especial aos tra-
☭ lheres e homens forjados na luta balhadores, um Partido com força
do povo. Um partido marxista-le- militante, influência política ampla,
ninista, portador de consistência presente nos acontecimentos can-
ideológica, capaz de, sem se perder,
dentes, dotado de amplo horizonte
atualizar-se permanentemente, de
histórico, cultural e teórico, enrai-
compreender e adaptar-se aos no-
zado no solo nacional, patriótico e
vos tempos, que saiba resgatar tudo
internacionalista. Nos idos de 1945
o que há de positivo no rico tesou-
a 1948 construímos um partido com
ro teórico e das experiências revo-
algumas dessas características que
lucionárias históricas no Brasil e no
tinha, ademais, força eleitoral. Hoje
mundo, e submeter os erros a rigo-
está em curso uma complexa edifi-
rosa crítica. Um partido que com-
cação, que necessita de persistência
preenda que não há modelos para
no rumo e constante avaliação, veri-
a construção do socialismo e que o
ficação e aperfeiçoamento.
“segredo” de seu êxito consiste em
“descobrir” as peculiaridades do Nesse quadro, tarefa de mag-
país e da situação em que atua. Um nitude é a consolidação do Partido
partido que não aceita pôr em causa Comunista do Brasil como um par-
sua identidade comunista em nome tido forte e capaz de dar orientações
da substituição da “forma-partido” políticas acertadas. Nada se fará em
pelo “movimento”, ou uma fórmula termos de aprofundamento da de-
qualquer de apresentação eleitoral, mocracia, reforço da soberania na-
um partido que, mantendo-se aber- cional e realização das aspirações
to às filhas e filhos do povo, seguirá das massas populares sem um Par-
sendo uma organização de combate tido Comunista forte no Brasil.
pela revolução política e social bra- Esta é uma lição da história. Pre-
sileira. Um partido de militantes or- cisamos de um Partido Comunista

78
apetrechado com uma linha política, de ativistas e lideranças, os melho-

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


uma estratégia e tática e autoridade res filhos e filhas do povo, o Partido
moral para enfrentar os grandes de- mantém a sua independência políti-
safios atuais e os que se podem vis- ca e ideológica.
lumbrar em perspectiva, um Partido Avesso a todo tipo de dogmatis-
para o presente e o futuro, disposto mo, esquematismo e cópia de mode-
a dar o melhor de si para transfor- los, o Partido reafirma e enriquece a
mar o Brasil e fazer com que o país teoria do marxismo-leninismo e do
avance – num processo complexo socialismo científico, ao tempo em
de acumulação de forças – para o que se encontra imerso no esforço
socialismo, um partido que, sem cli- ☭
para conhecer e interpretar o mun-
chês, mas também sem temor, este- do atual e a sociedade brasileira, tal
ja à altura das tarefas da revolução como evolui e se apresenta, sempre
política e social indispensável para com o intuito de transformá-la e de
resgatar a dignidade do povo brasi- superar revolucionariamente o ca-
leiro, defender a independência da pitalismo. Sem a referência teórica e
pátria e avançar para emancipação ideológica do marxismo-leninismo,
nacional e social. seríamos ecléticos, faríamos polí-
Por isso, não somos nem deve- tica às cegas e nos perderíamos na
mos ser um partido qualquer, mas torrente inexorável da luta de clas-
um partido com nítida identidade de ses.
classe – um partido dos trabalhado- O referencial ideológico do Par-
res, das massas exploradas e opri- tido, em todas as ações que reali-
midas da sociedade -, um partido za, é o ideal comunista, o objetivo
convicto de que por meio da acumu- socialista e o caráter inapagável da
lação revolucionária de forças, ain- organização partidária. O PCdoB é
da que prolongada, é possível pro- um partido comunista, revolucio-
mover rupturas políticas e sociais e nário, portador do ideal comunis-
abrir caminho ao socialismo. ta, da missão histórica de construir
Inteiramente voltado para a mo- o socialismo. Também, um partido
bilização política do povo brasileiro, marxista-leninista, de classe, de-
concentrado no seu enraizamento fensor dos interesses fundamentais
entre as classes trabalhadoras, em- dos trabalhadores. Um partido anti-
penhado nas alianças políticas de -imperialista, patriótico e interna-
cariz progressista, determinado a cionalista. São traços de identidade,
ampliar suas fileiras com a filiação portanto indeléveis, insubstituíveis

79
por qualquer arranjo de natureza de “renovação”, negação da “for-
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

circunstancial. ma-partido”, mudança de nome e


A este conteúdo e raízes históri- de simbologia sempre redundaram
cas correspondem a bandeira com no liquidacionismo. É só conferir a
sua cor vermelha, o símbolo da foice trajetória recente dos partidos co-
e do martelo e a sigla PCdoB. São ele- munistas no mundo. Todos em que
mentos de identidade, inseparáveis as teses das supostas “ressignifica-
e irrenunciáveis da nossa essência e ção e renovação” prevaleceram, de-
dos nossos objetivos históricos. sapareceram ou mudaram de iden-
Sendo capacitado política, teó- tidade, transformando-se em linha
☭ auxiliar da burguesia. Os partidos
rica e ideologicamente, o Partido,
como forma superior de organi- comunistas que preservam influ-
zação da classe trabalhadora e das ência eleitoral e de massas foram os
massas exploradas e oprimidas, não que romperam com os “renovado-
se confunde com o movimento es- res”, atualizaram seus métodos sem
pontâneo e trata cientificamente da abrir mão dos princípios.
sua estruturação orgânica, da liga- O caminho de acumulação re-
ção com as massas e da formação e volucionária e prolongada de for-
promoção dos seus quadros. ças não é retilíneo, mas acidentado
O Partido está chamado a aper- e escarpado. Percorrê-lo é aceitar as
feiçoar seus métodos de atuação e dificuldades da caminhada. Lênin
direção, a melhorar o estilo e sinto- advertiu sobre isso quando dizia aos
nizar dialeticamente a compreensão revolucionários russos que eles não
sobre as linhas de acumulação de deveriam “se desconcertar pelo fato
forças. Tendo como eixo a luta pelo de que em muitos lugares não acha-
socialismo, atuando sobre a reali- rão nenhum caminho trilhado, mas
dade concreta, concentra suas ener- que terão de se arrastar à beira de um
gias na luta de massas, nos embates abismo, abrir passagem por bosques
eleitorais e na luta de ideias, sem intrincados e saltar por cima dos bura-
fetiches, deformações nem unilate- cos. Não se queixem da falta de cami-
ralidades arbitrárias e metafísicas. nhos: seriam lamúrias inúteis, pois to-
Na história do próprio PCdoB e de dos deviam saber de antemão que não
outros partidos comunistas, teses seguiam um caminho já explorado,
sobre supostas “ressignificações nivelado e retificado” (Em “O pro-
do socialismo”, revisões de princí- grama agrário da social-democracia
pios revolucionários sob o disfarce russa”, março de 1902). Sendo as-

80
sim, esta caminhada requer visão de revolucionária do Partido (18 de fe-

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


longo prazo, convicções arraigadas, vereiro, 1962-2022), decidida pela
determinação e força, qualidades Conferência Nacional Extraordiná-
que os comunistas forjam coletiva- ria, após longa e aturada luta inter-
mente, exercendo a crítica e a auto- na. A conferência de 1962 na práti-
crítica, no âmbito da vida orgânica ca refundou o Partido Comunista do
coletiva e da luta política de massas. Brasil sobre bases revolucionárias e
Celebrar o centenário da fun- deu início a um esforço, que se es-
dação do Partido é reafirmá-lo e tende até os nossos dias, de forma-
desenvolvê-lo, transformando-o ção e consolidação de um núcleo
marxista-leninista no Brasil. ☭
numa poderosa força política ca-
paz de dirigir lutas e incidir sobre os O documento aprovado pelo Co-
acontecimentos. mitê Central, em 2012, e no ano se-
É nestes termos que devemos guinte pelo 13º Congresso, alusivo
encarar com objetividade e sentido ao 90º aniversário da fundação do
prático a tarefa de mostrar e difun- Partido, situa assim o episódio:
dir uma imagem compreensível às
“No dia 18 de fevereiro de 1962 re-
grandes massas populares sobre o
alizou-se a Conferência extraor-
que é, o que quer e para que serve o
dinária que reorganizou o Partido
Partido Comunista do Brasil. É algo
Comunista do Brasil. O evento, apa-
indispensável para que nos façamos
rentemente modesto, revestiu-se de
entender e ajudemos o povo a assi-
grande importância histórica para
milar o sentido das transformações
o povo e os trabalhadores brasilei-
históricas que deve empreender
ros. Tratava-se, naquela ocasião,
para pôr o Brasil na senda do pro-
de reorganizar o Partido que estava
gresso social, da liberdade, da inde-
sendo ameaçado em sua existência
pendência, do socialismo.
enquanto organização proletária e
revolucionária”.
1958-1962: página de
luta e vitória contra o O que significou a refundação do
oportunismo de direita e o PCdoB em 1962? Essencialmente, foi
liquidacionismo um episódio decisivo da luta contra
Para o Partido Comunista do Bra- o oportunismo de direita, que se ex-
sil, a celebração do centenário (25 de pressava no documento conhecido
março, 1922-2022) é indissociável como Declaração de Março de 1958.
do 60º aniversário da reorganização E contra o liquidacionismo ideo-

81
lógico e orgânico. De acordo com A celebração do 60º aniversário
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

Maurício Grabois, “A Declaração de da conferência que reorganizou o


Março de 1958 não exprime uma po- partido sobre bases marxistas-le-
lítica justa, não corresponde aos in- ninistas, tal como a do centenário,
teresses de classe do proletariado. No chama a atenção para os novos de-
essencial, tal documento defende uma safios da atualidade. Recentemen-
linha oportunista de direita”. (“Duas te, a partir do desaire eleitoral de
concepções, duas orientações polí- 2018, surgiram no interior do Par-
ticas”, publicado na Tribuna de De- tido novas tendências oportunistas
bates do 5º Congresso, em 1960). de direita e liquidacionistas, torna-
☭ das públicas em entrevistas de al-
A mesma avaliação foi feita pelo
guns poucos dirigentes e ocupantes
Comitê Central (2012) e pelo 13º
de relevantes cargos institucionais a
Congresso (2013):
veículos da mídia nacional e inter-
“A Declaração de Março de 1958 nacional.
consolidou a guinada reformista da Episódios como este, assim como
maioria da direção do Partido, pois a luta interna entre os anos 1956 e
afirmava que o processo de demo- 1962, mostram como tem sido com-
cratização era ‘uma tendência per- plexa e tortuosa, muitas vezes dolo-
manente’ e poderia ‘superar quais- rosa, a luta para fazer vingar no Bra-
quer retrocessos e seguir incoerci- sil uma corrente política e ideológi-
velmente adiante’.” ca comunista organizada no âmbito
“A Declaração considerava a bur- de um partido.
guesia como ‘uma força revolucio- A reincidência de uma luta que
nária’ e julgava existir a ‘possibi- tem o oportunismo de direita e o li-
lidade real de conduzir, por formas quidacionismo como pano de fundo
e meios pacíficos, a revolução anti- encontra explicação nas exigências
-imperialista e antifeudal’ no Bra- objetivas da luta política e ideoló-
sil.” gica, na dimensão das tarefas revo-
lucionárias atuais. O repto de firmar
Começavam, assim, a ser defini- no cenário político um partido co-
das mais nitidamente duas tendên- munista revolucionário, de classe e
cias opostas no interior do Partido: convicto da sua missão histórica de
uma reformista e outra revolucio- derrotar o imperialismo e as classes
nária. Elas iriam se enfrentar dura- dominantes retrógradas para abrir
mente nos debates do 5º Congresso caminho ao socialismo no país é
do Partido, realizado em 1960. cada vez mais agudo e seu enfrenta-

82
mento ainda mais complexo do que a estratégia e a tática, ou em termos

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


em tempos pretéritos. mais simples, a linha política, ma-
Para uma numerosa militância téria na qual se acumularam acer-
comunista jovem, assim como para tos, mas também os mais impor-
os quadros maduros e os dirigen- tantes erros teóricos e práticos dos
tes, celebrar o aniversário da re- comunistas. A oscilação entre for-
organização do PCdoB sobre bases mulações programáticas adequadas
revolucionárias e marxistas-leni- à época e às correlações de força, o
nistas deve corresponder a um in- “esquerdismo” e o oportunismo de
vestimento de energias intelectu- direita sempre puseram em tensão
ais, morais e materiais para que este as fileiras partidárias e provocaram ☭

partido se desenvolva e se consoli- grandes cisões.


de como uma força de combate pelo A ruptura com o revisionismo
socialismo no Brasil, o que signifi- contemporâneo, fortemente mar-
ca dizer que terá que ser um partido cada por acontecimentos externos
irreconciliável com as classes do- ao país e pertinentes ao movimento
minantes retrógradas, opressoras e comunista internacional, foi provo-
entreguistas, antagônico ao impe- cada principalmente por razões in-
rialismo, um partido de classe, por- ternas, relacionadas com a tática e a
tador das aspirações históricas dos estratégia da revolução brasileira e a
trabalhadores e de todo o povo bra- construção do Partido.
sileiro, capaz de sintetizar em pla- Foi a partir da reorganização re-
taformas políticas amplas e unitá- volucionária em 1962 e da experiên-
rias as questões emergentes do país, cia acumulada na luta contra a dita-
como a nacional, a democrática e a dura militar iniciada em 1964, que o
popular, sempre em ligação com a partido desenvolveu seus princípios
perspectiva socialista. Um partido de estratégia e tática e firmou sua li-
de todas as lutas do povo brasileiro e nha política.
nítida identidade comunista.
O núcleo marxista-leninista for-
Estas foram as razões determi- mado após a conferência de 1962
nantes para a divisão que resultou pelos camaradas João Amazonas,
na existência de duas formações que Maurício Grabois, Pedro Pomar e
se reivindicavam como comunistas Carlos Danielli dirigiu a formulação
no Brasil, o PCdoB e o PCB. de uma estratégia revolucionária,
Na história do Partido, um divi- baseada nos princípios do marxis-
sor de águas importante sempre foi mo-leninismo, e de uma tática si-

83
multaneamente ampla, combativa das da revolução e do socialismo, o
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

e flexível, noções indissociáveis. O que gerou na esquerda um ambien-


Partido aprendeu que era indispen- te desfavorável, de desmoralização,
sável enraizar-se entre as massas, descrédito e fracasso. Esse ambiente
inserir-se no curso político, enfren- não está totalmente superado, mas
tar os grandes e pequenos emba- estamos vivendo um recomeço, uma
tes políticos do cotidiano, realizar nova transição.
alianças amplas e acumular forças No reposicionamento da luta pelo
revolucionariamente. socialismo, não se pode ser fatalista
A evolução do PCdoB não teria e captar apenas os sinais da ofensi-
☭ sido possível sem a ruptura revolu- va reacionária. É preciso perceber as
cionária de 18 de fevereiro de 1962. novas potencialidades revolucioná-
rias que estão despertando. O cami-
Em busca da alternativa nho que percorrerá doravante a luta
pelo socialismo não será fácil nem
Comemorar o 60º aniversário da
retilíneo. Esta luta se confronta em
refundação do Partido Comunista do
cada momento, em cada batalha,
Brasil sobre bases marxistas-leni-
com um colossal sistema de domi-
nistas é se disponibilizar por inteiro nação que não cederá pacificamente
a começar uma nova luta por alter- as suas posições. Se os trabalhado-
nativas de fundo, com caráter de- res e os povos querem um novo sis-
mocrático, nacional e popular, que tema político, econômico e social,
representem uma ruptura com o es- liberdades, soberania e direitos, paz
tado atual de coisas. Para as forças e segurança, terão de encetar a luta
anti-imperialistas, revolucionárias, política de classes, na qual hão de
progressistas, partidárias do socia- ter firmeza diante da força, sabedo-
lismo, trata-se de retomar a luta ria em face do engodo, uma eleva-
pelo socialismo nas novas condições da consciência política-ideológica,
do século 21. força organizativa, tirocínio tático-
O movimento revolucionário vive -estratégico e capacidade de com-
ainda sob o impacto das derrotas so- bate em face de inimigos poderosos.
fridas pelo socialismo no início dos A celebração do 60º aniversá-
anos 1990, as quais produziram sig- rio da reorganização do PCdoB so-
nificativa mudança nas correlações bre bases revolucionárias e do cen-
de força e debilitaram o fator sub- tenário da fundação é uma ocasião
jetivo. O começo dos anos 1990 foi propícia para cultivar esses valores
marcado pelas derrotas generaliza- e renovar esta disposição de lutar.

84
Isto implica superar debilidades e a luta parlamentar e a ação institu-

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


enfrentar concepções falsas sobre cional em poderes locais e eventual-
a condução estratégica e tática da mente, quando for o caso, no poder
luta política de classes, a organi- nacional.
zação do Partido e da esquerda re- O Brasil vive sob um regime de
volucionária. O elemento funda- extrema-direita antinacional, an-
mental do Partido Comunista e das tidemocrático e antipopular, resul-
forças de esquerda consequente é a tante do golpe de Estado perpetrado
resistência e a luta transformado- pelas classes dominantes reacio-
ra. O fulcro da organização parti- nárias e o imperialismo por meio
dária são as classes trabalhadoras, de forças políticas reacionárias. Os ☭
as forças democráticas, patrióticas comunistas e as forças consequen-
e populares. Construir organismos tes da esquerda devem apostar na
de base, antes dos comitês eleito- elevação da consciência e da decisão
rais; valorizar o militante e o qua- de resistir e lutar do povo brasileiro
dro partidário, antes das celebrida- para retomar o caminho do comba-
des “companheiras de viagem” e os te pela edificação de um país demo-
“filiados por razões eleitorais”, ca- crático, progressista, socialista. Es-
tegoria esdrúxula; dar força aos di- tão na ordem do dia tarefas urgen-
rigentes de lutas políticas e sociais, tes entrelaçadas: desenvolver a luta
que são lutadores e dirigentes e não política de massas, forjar a unidade
cabos eleitorais; assegurar o funcio- das forças da esquerda consequen-
namento das instâncias partidárias te, criar uma frente única ampla dos
estatutariamente constituídas, e democratas e patriotas suscetíveis
não subordinar o funcionamento do de se unir na luta contra o regime de
Partido às conveniências de eleitos, extrema-direita e por mudanças es-
titulares de cargos parlamentares e truturais no país.
de governos, que aliás não são obti- Para os comunistas do PCdoB,
dos por méritos pessoais e sim pelo entre essas tarefas está a de cons-
esforço do coletivo partidário. As- truir um partido comunista, com
segurar o centralismo democrático, base militante, estrutura orgânica,
que somente é possível com a disci- capacidade de intervenção política e
plina consciente e o funcionamento eleitoral, ligação com as massas tra-
regular das instâncias, desde a base balhadoras e populares, caráter de
ao Comitê Central. O eixo da acumu- classe, densidade ideológica mar-
lação de forças tem de ser a luta po- xista-leninista e perspectiva socia-
lítica de massas, à qual deve servir lista. ☭

85
Ana Prestes
Analista internacional, doutora em Ciência Política pela UFMG,
diretora da Fundação Maurício Grabois, integra o Comitê Central e é
Secretária de Relações Internacionais do PCdoB.
Ana Prestes
Entrevista concedida no dia 04 de março de 2022

Tá muito na moda falar do “lugar xeira Rabelo, e ali nascemos, não só


de fala”, então eu queria que você fa- eu e meu irmão, mas um bando de
lasse de que lugar você fala. Qual é a netos. Somos 25 netos, grande par-
tua trajetória pessoal no movimento te nasceu no exterior. Ou nasceu na
comunista? União Soviética, ou nasceu em Mo-
Ana Prestes: Eu nasci em 1977, çambique, ou nasceu em Cuba. A
em uma casa de comunistas, na família não podia viver, nessa épo-
União Soviética, em Moscou, na casa ca, no Brasil. Quando vem a anistia
dos Prestes, na casa dos meus avós, em 1979 os meus avós voltam para
Maria e Luís. Nasci no interior de o Brasil e aos poucos os filhos vão
uma família que, por ter lutado pelo voltando. Eu chego no Brasil peque-
comunismo, precisou sair do país na, no começo dos anos 80. Até o fa-
depois do golpe de 64. Em 1970 saiu lecimento do meu avô, em 1990, eu
todo mundo do Brasil e foram para vou ter uma convivência muito for-
a União Soviética. Minha mãe, Er- te com ele e minha avó. Vou come-
melinda Ribeiro Prestes, é filha do çando a entender o que ele significa,
Prestes, casou ali na União Soviética quem é essa figura, porque ele era
com meu pai, José Nicodemos Tei- muito procurado. A gente partici-

87
pou muito da campanha do Brizola UBES, em Goiânia. E aí o pessoal co-
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

com ele, na campanha de 1989, foi meça a dizer “ah, tem uma Prestes
quando eu comecei a entender um lá no Grêmio da Escola Técnica”. E
pouco mais o que era o mundo da nessa época eu começo a conhecer as
política. Os amigos que a gente re- lideranças, principalmente do PT e
cebia em casa eram os amigos dele. PCdoB na área da juventude, vou co-
Muitas das referências nossas de nhecer o pessoal da União da Juven-
infância eram músicas e festas so- tude Socialista. Eles vão me convidar
viéticas, havia um ar de felicidade para uma série de atividades, ple-
na família por regressar ao Brasil e nárias e encontros, aquele processo
☭ ao mesmo nostalgia dos tempos de de tirar delegado. Eu vou entrar por
Moscou. Foi essa a minha infância e essa porta, nesse meio da juventu-
a minha adolescência, muito ligada de da UJS e do PCdoB, que era críti-
a eles, principalmente no Rio. Mes- co à figura do Prestes. Algum tempo
mo eu não morando no Rio, é nesta depois é que eu fui entender porque
época que eu estabeleço também um algumas pessoas falavam: “nos-
vínculo e uma relação muito forte sa, mas ela é Prestes, o que que ela
com a minha avó, que acaba de nos está fazendo no PCdoB?”. Eu mesma
deixar, em 4 de fevereiro de 2022. Já não entendia - nessa época - mui-
adolescente, eu vou começar a fa- to bem o que tinha acontecido em
zer movimento estudantil em Goiâ- 1962. A esta altura, final da adoles-
nia, como secundarista. Toda a mi- cência, eu fico muito impressionada
nha referência política era do meu com a força da UJS: “gente, que bom
avô e da minha avó e alguma medi- que isso existe, né?”, uma juventude
da dos meus pais, embora eles não unida em torno da luta pelo socialis-
tenham mantido atividade política mo. Nessa época vai haver o Festival
ao regressarem da URSS. Eu fui fa- da Juventude e dos Estudantes em
zer ensino médio numa escola mui- Havana, em 1997, o primeiro festi-
to tradicional em Goiânia, que era a val depois da queda do leste europeu.
Escola Técnica Federal de Goiás, a Viajo para esse festival e lá conheço
ETFG. Me envolvi com o movimento as juventudes dos outros países, jo-
estudantil e nessa época eu não tinha vens que estão lutando pelo socia-
nenhuma filiação partidária. Entrei lismo, pelo comunismo, em outros
no Grêmio da Escola Técnica. Inclu- países. Acho que foram 14 mil jovens
sive eu era de um grupo que se dizia naquele festival. Eu fico absoluta-
independente de qualquer partido. mente encantada. Eu falo: “gente, é
Nessa época, vai haver congresso da isso que eu quero para minha vida.

88
Eu quero participar disso. Quero me internacionais do Partido.

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


engajar, quero participar”. E mui-
Você tem lembranças da vida coti-
to rapidamente vou entrando nesse
diana na URSS?
universo, vou pra direção nacional
da UJS, viro secretária internacional Ana Prestes: Eu tenho muitas
da UJS em 2000. É aí que começa a lembranças de Moscou. Eu saí de lá
minha trajetória dentro do PCdoB. E aos 7 anos. Uma coisa que eu lembro
ao longo dessa trajetória de 22 anos, muito é o apartamento. Era um apar-
muitas coisas vão mudando no mo- tamento muito grande, na entrada
vimento comunista internacional; da Praça Vermelha. Olhando pela ja-
dentro do PCdoB e também na minha nela a gente via a fila do Mausoléu do ☭
vida e na minha visão. Mas eu adoto Lenin. Eu lembro desse apartamento
esse lugar de militância. Inclusive muito frequentado, por muita gente,
eu vou ter que pacificar uma série de muitas festas. Minha avó falava com
conflitos que vão aparecendo, uma muito orgulho que pela casa dela em
série de questionamentos que vão Moscou passavam mais brasilei-
aparecendo à medida que eu vou co- ros do que pela embaixada do Brasil.
nhecendo a história, quais foram as Muitos jovens, gente de várias partes
diferenças tão grandes entre Prestes do mundo. Eu lembro do cotidiano,
e Amazonas. Mas eu assumo este lu- da escola, da neve, de ir para a esco-
gar: “eu sou brasileira, comunista, la e estar muito frio. Lembro muito
quero lutar pelo comunismo, eu en- dos passeios nos parques, na própria
tendo que tem uma série de partidos, Praça Vermelha. Lembro muito cla-
mas eu considero o PCdoB um par- ramente dos rituais de início de ano
tido que tem uma perspectiva trans- escolar, essa coisa da educação para
formadora revolucionária no Brasil, eles é muito forte. Não lembro muito
e é aqui que eu vou ficar”. E finquei o do meu avô no cotidiano, mas lem-
pé mesmo no PCdoB. Ao longo des- bro muito da minha avó, de receber
sa minha trajetória, eu estive todo as pessoas, de estar com a gente.
tempo na área internacional. Fiquei
A gente vai comemorar, esse ano,
em relações internacionais da UJS
os 100 anos de fundação do Partido,
até 2006, quando nasce minha pri-
que balanço você faz?
meira filha, Helena. Em 2009, eu
entro pro Comitê Central. No final de Ana Prestes: Esses 100 anos de
2009 eu entro pra Comissão de Rela- luta pelo comunismo dentro do Bra-
ções Internacionais e no último con- sil não podem ser dissociados dos
gresso virei secretária de relações 100 anos de luta pelo comunismo

89
no mundo. Os comunistas atuam de naro e todo o seu entorno, os que se
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

uma forma internacionalista, vincu- opõem a esse movimento são cha-


lados ao movimento comunista in- mados: “ah, vocês são comunis-
ternacional. Nesses 100 anos houve tas! Vocês são comunistas!”. Esta é
diferentes fases dos comunistas aqui a referência brasileira do que é ser
no Brasil. Uma primeira fase, até comunista, né? Isso está fundado
a metade do século 20, é uma fase nessa quadra histórica que vai até os
muito pujante e de muitas tentativas 40. Depois, vem uma fase mais com-
de acerto. Muito do que se vai colher plicada, os anos 50, os anos 60, em
na segunda metade do século 20 é que há muita confusão interna en-
☭ fruto do que se fez nessa primeira tre os comunistas tentando acertar
metade do século. É quando o Par- o rumo, encontrar esse seu lugar,
tido ainda está tateando, se envolve que vai de uma maior radicalidade a
em uma série de atividades e quan- uma maior conciliação com as forças
do tenta se associar a essa figura tão burguesas. Essa foi a grande questão
popular que foi o Prestes. Depois, dos comunistas até o golpe de 64.
a revolta de 35 impacta fortemen- Quando veio o golpe de 64, também
te todo o desenrolar do Partido, até há uma profunda diferença das vias,
hoje, toda a sua história. O baque que é quando o partido de fato se sepa-
sofreu a partir disso, com a deporta- ra entre PCdoB e o que fica do PCB.
ção da Olga, com a prisão do Prestes. Esse é um momento muito dramá-
O Partido conseguiu - ao longo des- tico da vida dos comunistas no Bra-
ses 10 anos de prisão do Prestes e de sil. No momento seguinte, anos 70
enfrentamento mundial ao nazifas- e 80, surgem outras forças, princi-
cismo - forjar esse lugar dos comu- palmente o PT, muito em cima des-
nistas no Brasil. A figura do Prestes sa fragmentação e desses desacertos
consegue sair ainda mais popular, internos, dessas diferenças internas
em 45 Prestes é eleito senador, você dos comunistas, que não consegui-
tem a eleição de toda aquela banca- ram perdurar nesse lugar que eles
da, do Grabois, do Jorge Amado, os tinham conquistado até os anos 40.
comunistas se entranham na socie- Mas seguem com muita influência
dade brasileira, conquistam seu lu- no pensamento cultural, no pen-
gar. Até hoje o nosso lugar é esse, o samento filosófico, no pensamen-
enfrentamento ao fascismo, o en- to econômico, dentro da academia.
frentamento ao nazismo e à todas Quantos artistas e grandes nomes da
essas forças conservadoras. Tanto nossa cultura, do nosso pensamen-
é que agora, com a vinda do Bolso- to brasileiro, se associaram a tradi-

90
ção comunista, mesmo que não es- antes da pandemia. Essa questão da

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


tivessem filiados organicamente? Os guerra na Ucrânia vai ser motivo de
anos 80 são os anos de grande colap- divisões profundas. Você tem o Par-
so. Com a saída do Prestes do PCB, tido Comunista Grego que acha que
ele vai pro PDT; o pessoal do PCB vai está havendo uma guerra entre im-
pra um lado, o PPS vai para outro; e perialismos - o imperialismo dos
o PCdoB foi o que melhor conseguiu EUA, o imperialismo russo; você
conciliar a luta democrática com um tem o Partido Comunista Português,
projeto de transformação, de de- cujos parlamentares foram dos pou-
senvolvimento nacional. Desde 89, cos que votaram no parlamento eu-
com a primeira candidatura Lula, se ropeu contra uma decisão mais dura ☭
associa a uma trajetória petista. Vai contra a Rússia, por entender que
participar das disputas eleitorais, vai não é possível somente condenar
participar da construção do que foi a Rússia e desconhecer o que há de
a vitória de 2003, vai participar dos responsabilidade na OTAN, nos EUA,
dois governos Lula, dos dois gover- com relação a essa guerra. E têm al-
nos Dilma, até o fim. A trajetória do gumas diferenças também entre os
PCdoB nesses últimos 30 anos está comunistas da América Latina. Tem
muito associada à construção da es- os comunistas venezuelanos, por
querda no Brasil e aos projetos lide- exemplo, que hoje se posicionam de
rados pelo PT. uma forma bastante crítica ao pró-
prio governo venezuelano, enquan-
Está escrito no Manifesto Comu-
to outros partidos comunistas na
nista: “um fantasma ronda o mundo,
América Latina estão em diferen-
o fantasma do comunismo”. Isso foi
ças com eles justamente por enten-
dito em 1848. Em 2022, dá pra falar o
derem o papel do governo Maduro
mesmo ou alguma coisa parecida? O
num contexto anti-imperialista in-
projeto comunista continua atual? E o
ternacional. E existe o enorme Par-
movimento comunista internacional?
tido Comunista da China, que não
Existe um movimento comunis- se mete muito em nenhuma dessas
ta internacional. Inclusive, eu estou duas linhas. Sobre o comunismo,
hoje aqui em Lisboa, porque estamos acho que ele está assombrando hoje
em vias de organizar o 22º Encontro mais ainda do que quando Marx es-
Internacional dos Partidos Comu- creveu isso no Manifesto Comunista.
nistas e Operários. O primeiro pre- A pandemia do Coronavírus e a crise
sencial depois do início da pandemia. climática são dois grandes exemplos
O último foi em 2019, justamente de como esse sistema capitalista está

91
chegando no seu limite. As respostas “Estamos apostando no multilate-
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

dadas durante a pandemia... foi mui- ralismo”. “Não estamos competindo


to didático ver como cada sistema com os EUA”. Em vários aspectos eu
reagiu e atuou. Como a China, Viet- sou adepta dessa leitura sobre a Chi-
nã, Cuba, deram prioridade à vida na. A gente não vê a China conquis-
humana, à busca de soluções coleti- tando territórios ou intervindo nas
vas, à preservação da vida. E como o dinâmicas de conflitos entre outros
capitalismo deixou as pessoas mor- países, outras nações. Eles têm uma
rerem, deixou que o sistema conti- postura muito clara do que signifi-
nuasse atuando mesmo que isso sig- ca para eles Taiwan; do que significa
☭ nificasse a morte de milhares, mi- para eles Hong Kong; do que signi-
lhões e milhões de pessoas. Como vai fica para eles o Mar do Sul da China;
se dar a debacle desse sistema, em dos ataques que eles vêm sofren-
quanto tempo, como vai haver uma do sobre Xinjiang. Eles deixam isso
nova hegemonia, se não comunista, tudo muito claro. Mas eles não saem
mas socialista, que busque e apre- tentando conquistar territórios
sente soluções concretas para a hu- como é a prática do imperialismo. E
manidade a partir dessa perspectiva, hoje claramente a China reivindica o
isso a gente não sabe, né? Mas que o marxismo, reivindica as experiên-
fantasma está rondando, está. cias socialistas, e tem tentado par-
ticipar desse movimento comunista
Em que medida a China é uma re-
internacional, mas com as caracte-
ferência?
rísticas muito próprias deles, sem
O lugar da China é uma grande se afetar muito por essas diferenças
pergunta que todos nos fazemos. que tão rolando entre os diferentes
Eles trilharam um caminho muito partidos comunistas que estão fora
próprio. Existe uma parte do movi- do poder. Porque eles estão no poder.
mento comunista internacional que
Voltando ao tema do início: quem
considera a China um país imperia-
quiser saber mais sobre a Maria Pres-
lista. Mas uma coisa que a gente ob-
tes, existe biografia, livro, depoimen-
serva é os chineses falando: “nós só
tos? E a relação do Prestes com o PC-
queremos o nosso desenvolvimento.
doB e com o PCB, existe um balanço
Nós temos direito ao nosso desen-
mais equilibrado dessa relação? Algu-
volvimento. Nós acreditamos em
ma publicação que você queira nos in-
uma humanidade de futuro compar-
dicar, ou esse ainda é um vácuo?
tilhado”. Eles têm falado muito nes-
se mantra: “futuro compartilhado”. Eu acho que ainda há um vácuo,

92
viu? Eu acho que deveria ser mais es- zado, com muitas fotos das viagens

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


crito. Eu mesma se tivesse a oportu- dela com o Prestes, da vida na União
nidade e mais tempo, gostaria de fa- Soviética. Por último, eu e dois pri-
zer isso. Nesses últimos documentos mos fizemos um livro infanto-juve-
que saíram do PCdoB, dos 90 anos do nil, que se chama Minha valente avó.
Partido, 10 anos atrás, e agora estão É um livro em homenagem a todas
sendo elaborados documentos sobre as mulheres que lutaram contra a
o centenário, é perceptível que o tra- ditadura e hoje são avós e bisavós. A
tamento dado à figura do Prestes já gente faz até uma homenagem à Dil-
é bastante diferente frente ao de dé- ma como uma avó valente também.
cadas atrás. Mas eu não conheço ne- É um livro para crianças e jovens. Eu, ☭
nhum livro, ninguém que tenha es- o Edu Prestes e a Andreia Prestes es-
crito de uma forma clara sobre isso. crevemos.
Inclusive, estou curiosa para ver os
Se você fosse sugerir a alguém ler
documentos que vão sair a respei-
ou ver algo que pudesse falar desses
to, por conta dos 100 anos do par-
100 anos de luta, resumindo em duas
tido. Sobre a minha avó Maria, tem
ou três indicações, o que você indica-
uma autobiografia que ela lançou em
ria?
1992 e depois tem uma nova edição
de 2012, que é Meu Companheiro, 40 Tem um livro maravilhoso para
anos ao lado de Luís Carlos Prestes. conhecer o pensamento do Marx, do
E tem um material do Conselho Es- Engels e de todos que rodearam eles:
tadual da Mulher do Rio de Janeiro, Amor e Capital, da Mary Gabriel. Da
uma espécie de documentário. Tem primeira fase do século 20, eu gos-
um vídeo com ela. Tem muito mate- to muito do Memórias do Cárcere,
rial da Câmara e do Senado também, do Graciliano Ramos. O Olga, de Fer-
entrevistas feitas com ela. A gente nando Morais. E o John Reed tam-
pensa, como família, organizar me- bém, com o Dez Dias que Abalaram
lhor esse material para disponibi- o Mundo. Eu gosto do filme Olga do
lizar. Ela estava escrevendo, no fi- Jayme Monjardim, apesar de ter uma
nal do ano, com meu tio Luís Carlos, narrativa novelesca própria da Rede
um livro em formato de blog: O sa- Globo. E gosto do filme Jovem Marx
bor clandestino de Maria Prestes. Ela também. Para quem não viu, ver o
contava histórias de onde ela passou, Marighella é fundamental. E o filme
dessas Repúblicas Soviéticas todas, e que é baseado no Dez dias que abala-
ela ia falando e ia escrevendo recei- ram o mundo, o Reds. Eu gosto des-
tas de comidas. Está bem organi- ses. ☭

93
Ronald Rocha
é sociólogo e dirigente nacional do
PRC (Partido da Refundação Comunista).
Ronald Rocha
O PRC na diáspora e na reorganização comunista

O
texto que segue foi escri- pessoais, decerto polêmicas, mas
to por encomenda e com calcadas na práxis dirigente coleti-
base na aula proferida em va da organização examinada.
23/10/2021, disponível no YouTu- Em nada, sublinhe-se, pretende
be como sessão da série “100 anos reavivar os contenciosos passados
de comunismo no Brasil”, promo- e colocar obstáculos extemporâne-
vida pela Escola Latino Americana os à já tão difícil unidade no mun-
de História e Política (Elahp). Re- do laboral e das forças populares
gistra, de modo panorâmico e de- – particularmente, no que se refe-
masiadamente sucinto, em face das re aos revolucionários –, que tem
exigências editoriais, a experiência um alcance estratégico. Tal esfor-
do Partido Revolucionário Comu- ço escolhe como propósito exclu-
nista (PRC) na diáspora do movi- sivo a verificação das linhas gerais
mento comunista brasileiro, focan- que nortearam uma trajetória sin-
do na reestruturação e nas políticas gular e seus resultados, incorpo-
empreendidas, com suas grandezas rando mais um elemento à história
e mazelas. Obviamente, a redação é do movimento comunista no sécu-
prenhe de memórias e conclusões lo de sua vida partidária no Brasil.

95
Refere-se a um patrimônio comum do Comitê Central (CC), aprovadas
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

às militâncias partícipes das mais em reuniões regulares ou extraor-


variadas vertentes, mostrando-se dinárias; os ensaios da Revista Te-
avesso, por sua importância e seu oria e Política mantida pela Editora
caráter histórico, a mesquinhos pa- Brasil-Debates, com assinaturas de
triotismos de grupo. militantes orgânicos e intelectu-
O PRC, um partido de orientação ais progressistas; os artigos e ma-
marxista, ganhou certa notorieda- térias frequentemente autorais, do
de nos 1980. Agremiação com espe- jornal tabloide impresso Fazendo o
cial iniciativa e capacidade política, Amanhã; os títulos acadêmicos, es-

consubstanciou em cinco anos – e timulados pelo glamour de sua tra-
mais quatro com preparações or- jetória singular.
ganizacionais – uma vereda signi-
ficativa do movimento comunista. Os antecedentes
Surgiu em 1984, no fórum máxi- O PRC surgiu no período inau-
mo projetado inicialmente como VI gurado pelo golpe de 1964, pas-
Congresso – vez que o V acontecera sando pelo Terrorismo Estatal ins-
em 1960, portanto, anteriormen- titucionalizado mediante o AI-5, e
te à estruturação do Partido Co- concluído em 1988, quando a nova
munista do Brasil (PCdoB). Ao fim, Constituição fez soar o dobre de fi-
nomeou-se I Congresso, de cunho nados que anunciava o fim do regi-
fundacional. Durou e atuou inten- me ditatorial-militar. Nas sombras
samente até 1989, quando extinta repressivas se completou a cri-
no III Congresso por deliberação se do Partido Comunista Brasilei-
majoritária dos seus delegados na- ro (PCB), cujos primórdios vinham
cionais eleitos nas células e, após, de 1958 com a Declaração de Março,
nas sessões estaduais. que mesclara uma ideologia nacio-
Perpassada por contenciosos e nal-desenvolvimentista com a es-
discussões, nas formulações in- tratégia evolucionista, gerara em
ternas e disputas externas, deixou vão críticas no V Congresso, calde-
vastíssima documentação, mesmo ara-se com altercações referentes à
que nem tivesse registro na lega- revolução brasileira, imbricara-se
lidade: as Teses Oficiais, os artigos com a contenda sobre o movimento
polêmicos publicados nas Tribunas comunista internacional e prepara-
de Debates (TD) e as resoluções, ra o cisma de 1962.
nos três congressos; as orientações A fragmentação do antigo PCB

96
prosseguiria, já que a ineptidão vi- burguês-reformista e o esquerdis-

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


sível de oferecer uma resistência mo –, sem uma posição amadure-
suficiente ao golpe, visando a bar- cida sobre a formação econômico-
rá-lo, motivava uma luta interna -social do País e a estratégia socia-
crônica. No VI Congresso – 1967 – lista, mostrou-se insuficiente para
desembocaram contradições irre- garantir a unidade.
conciliadas, que opunham o CC, na O PCdoB, na VI Conferência,
maioria inerte, a militantes com- 1966, já centrava o ataque no re-
bativos, inclusive a quadros his- gime político de caserna. Imedia-
tóricos. Aquele desautorizou toda tamente, concluiu que a resistên-
iniciativa imprevista pela milimé- ☭
cia teria choques armados e ado-
trica legalidade vigente, afastan- tou medidas pertinentes, atraindo
do-se dos anseios e manifestações revolucionários de outras proce-
imperantes na massa mais avan- dências. Do PCB, a maioria do Co-
çada. Uma porção desses abrigava mitê Estadual (CE) e a Dissidência
uma onda voluntarista em política, (DI-Partidária) da GB, ambos na
espontaneísta em matéria de ação, Conferência de Unificação Estadu-
imediatista no levante armado e li- al, 1968, em meio a manifestações
quidacionista em organização: lu- operárias e universitárias. Um ano
taram corajosamente, mas isola- após, em Guerra Popular: o caminho
dos. da luta armada no Brasil, o CC pro-
Precedido por esgarçamentos e feriu a opção positivada em 1972:
ações disciplinares, tal conclave se- as Forças Guerrilheiras do Araguaia
ria criticado nos 1980 por Luiz Car- (Foguera) enfrentaram três opera-
los Prestes. Na Comissão de Resolu- ções de cerco e aniquilamento. Em
ção, durante os trabalhos congres- plena guerra, dá-se o ingresso de
suais, o dirigente refutara o caráter Ação Popular (AP).
“semicolonial” do Brasil, insistin- Entrementes, a crise conjuntural
do no seu cunho capitalista, mas precedente ao golpe, que refluíra,
ficara em minoria como na véspe- recrudesceu com força no anticlí-
ra, quando apresentara o Informe max do “milagre”, como admitido
de Balanço do CC. Assim, aparecem em pronunciamento presidencial
trechos dúplices na Resolução Polí- pela TV – Saudação ao povo brasi-
tica. O esforço do secretário-geral leiro, 30/12/1974. Algo se transfor-
em manter a disputa em duas fren- mava: o ciclo longo – Kondratieff –
tes – contra o desenvolvimentismo inaugurado pela expansão conhe-

97
cida como Golden Age adentrara em sacre premeditado abortou a dis-
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

1972 a Fase B, marcada pela estag- cussão coletiva no CC, que decidiria
nação, também no Brasil. Sincro- sobre o crucial, complexo e doloro-
nicamente, as correntes à esquerda so debate interno acerca da resis-
efetivavam suas táticas eleitorais. tência guerrilheira. O documento
O PCdoB fez a campanha pelo voto Sobre o Araguaia, redigido pelo se-
nulo em 1966 e 1970, mas partici- cretário de organização, analisa-
pou do sufrágio em 1974, com fis- va corajosamente as dificuldades
suras, e 1978, em uníssono, cujos internas, inclusive as provocadas
resultados potencializaram o cam- pelo revés no confronto armado.
☭ po democrático e agravaram os im- Pacientemente, buscava entender
passes políticos. as causas do insucesso e as manei-
A conjuntura evoluía rapida- ras de seguir em frente, mas com a
mente, com as inconformidades unidade orgânica. O balanço disse
oposicionistas sinalizando am- que a derrota fora não “temporá-
pliações. Geisel, no Discurso aos di- ria” e causada por meras falhas da
rigentes da Arena, em 29/8/1974, “Comissão Militar”, operacionais e
logo após a terceira e última cam- táticas, mas “completa” e devida,
panha militar no conflito ao nor- basicamente, à “concepção”.
te, anunciava uma flexão visando
a controlar o rumo da “sua” tran- A VII Conferência Nacional
sição “lenta, gradativa e segura” No crepúsculo dos 1970, quan-
para uma “democracia” – como do as lutas operárias e populares
valor, conceito e substantivo uni- de massas experimentavam o novo
versal-abstrato, sem conteúdo so- ascendimento, com muros exigin-
cial e sem historicidade particular, do “Anistia Geral, Ampla e Irrestri-
não como qualificação do regime ta” – por fim obtida ma non tropo
politico. Para minimizar o risco de em 1979 –, os exilados faziam suas
ruptura, os chefes repressivos pro- malas e os dirigentes pecedobistas
gramavam eliminar os comunistas, no exterior dedicavam-se a cons-
como tentaram na Chacina da Lapa, truir a VII Conferência. O Concla-
em 16/12/1976, ao executarem Pe- ve ocorreu na pequena Tirana, com
dro Pomar, João Batista e Ângelo delegados que majoritariamente
Arroio. vieram do Brasil, vinculados às es-
Além de atingir o Partido que di- truturas sobrevivas em vários esta-
rigiu a contestação armada, o mas- dos, inclusive dois entre os quatro

98
membros do CC ainda em ativida- pletando-se a prestação de contas

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


de. Foram duas fases: setembro de quanto aos gastos e as providên-
1978, ao fim do verão nos Balcãs, cias de organização, entre as quais
entrando em outono; março de a ordem do dia, o segundo ponto
1979, quando se acercava o inverno avaliou, como de praxe, o informe
albanês à primavera. sobre os dirigentes nacionais pre-
Na primeira, os trabalhos acon- sos, inclusive um presencial que foi
teceram com planura, sem deba- aprovado sem ressalvas. Por fim,
te profundo sobre a realidade na- avaliou-se a situação política na-
cional concreta e o período aberto, cional sem qualquer decisão, tam-
bém deixada para o Pleno que se ☭
como demonstra o Informe Político
então apresentado pelo secretário- constituiria em breve.
-geral, que incluiu “a preparação Dias depois, em uma espaçosa
da luta armada” entre as ”tare- casa com dois andares, iniciou-se
fas políticas”, embora relativizada o Conclave. O Informe Político rece-
pela expressão “em certos casos”. beu contestações, concentradas na
Desconsiderava-se a conjuntura e a tese de que haveria condições para
situação do Partido, que fora seve- outro levante logo após a derro-
ramente atingido e carecia das con- ta militar ocorrida no fim de 1973.
dições mínimas para então reto- A primeira intervenção remeteu à
má-la. No entanto, a segunda ses- categoria formulada por Lênin em
são teria outro rumo, pois refletiu a A Bancarrota da II Internacional,
inquietação trazida pelos delegados 1914-1915, citada: “Para um mar-
internos ao País, mormente sobre a xista, indubitavelmente, a revolu-
luta entre classes que se desenvol- ção é impossível sem que haja uma
via e a correlação de forças na tran- situação revolucionária, mas nem
sição conservadora. toda situação revolucionária con-
Enquanto chegavam os delega- duz à revolução”. A pendência, que
dos e as últimas porções de neve se procurou desqualificar pela pa-
derretiam na Praça Skenderbeu – lavra “conceitual”, gerou mudan-
onde sobressai a estátua do herói ças no texto, mas insuficientes para
no combate à invasão turca – reu- eliminar na totalidade o vaticínio
niu-se o CC. Dos cinco participan- sobre uma revolta iminente.
tes, quatro residiam na Europa: Di- No entanto, a Resolução, após a
ógenes Arruda, Dynéas Aguiar, João longa discussão transcorrida, in-
Amazonas e Nelson Levy. Com- corporou vários pontos de alta rele-

99
vância. Concentrando na “conquis- [...] em marcha para o socialismo”:
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

ta da mais completa liberdade polí- soava como agitação visando à do-


tica”, manteve o combate ao regime bra na conjuntura.
dos generais. Concomitantemente, O aspecto positivo é que, final-
para dialogar com as grandes mas- mente, a revolução em duas etapas
sas, defendeu as consignas: revo- sumira do mapa estratégico – em
gação imediata e integral dos atos e silêncio. Entre as demais polêmi-
leis arbitrários; anistia ampla, geral cas, sedimentou-se implicitamen-
e irrestrita; Constituinte convocada te, após a controvérsia de uma dé-
por decisão do novo governo de- cada, que a formação econômi-
☭ mocrático-provisório e com eleição co-social brasileira é capitalista
livre. Para tanto, pregou a união das e o proletariado, além de ocupar o
“mais amplas forças políticas e so- lugar dirigente na revolução, tem
ciais em torno das bandeiras demo- foros de força motriz. Quanto ao
cráticas e populares”, sem descurar balanço da guerrilha, a maioria –
de fortalecer a oposição operária ressalvando-se a comovida e unâ-
e as esquerdas, como seu “núcleo nime homenagem ao heroísmo dos
mais ativo”. combatentes –, ficou aquém das
No entanto, a pretensa “gesta- opiniões predominantes na Lapa,
ção” revolucionária, por mais que que depois viriam completamente
aparecesse mitigada, repercutiria à luz com a libertação integral dos
na política, pois acontecia pari pas- prisioneiros. Foi equivocado suge-
su à ilusão de que seria possível re- rir que a linha militar colocada em
produzir mecanicamente a experi- prática deveria continuar em vigor.
ência bolchevique de outubro, indo
aos propósitos estratégicos em O congresso atravancado e
breve prazo. Embora fosse correto
o regresso
afirmar que “a conquista da com- Como a organização, para os co-
pleta liberdade não era o fim em si munistas, é uma dimensão da prá-
mesmo”, representava uma “fase xis – também no patamar teórico
necessária do processo político em e técnico – e a forma por excelên-
curso” e “deveria servir ao avan- cia mediadora da luta laboral com
ço das lutas libertadoras”, gerava a política revolucionária, produziu
confusões determinar uma propa- a VII Conferência mais duas celeu-
ganda imediata pela “criação de um mas. No diapasão da primeira fase,
novo regime de democracia popular apareceu a proposição de que o Ple-

100
no avaliasse a conduta na prisão mente cinco membros dos 16 res-

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


de quatro membros do CC. Anteci- tantes, entre os quais seis presos e
pavam-se as sanções disciplinares mais um – Jover Teles – investiga-
sem direito estatutário à defesa, do por traição na Chacina da Lapa.
justificativas sobre o rito sumário Da composição inicial, cerca da me-
e informações confiáveis, pois se- tade havia sido assassinada. Só dois
riam libertados em breve. Minori- pontos estavam na ordem do dia: o
tária no encaminhamento, à diver- retorno ao Brasil e o exame da Con-
gência nada restou senão abster- vocatória. O primeiro se concluiu,
-se. Mesclando-se tal quesito com mas o segundo gerou impasse: três
a discussão de 1976, o resultado foi camaradas foram contrários à rati- ☭
um péssimo prenúncio. ficação. Depois de horas, o trabalho
Até por causa do clima pesado, a restou suspenso, para ser retomado
proposição de que o Congresso de- em solo francês na outra semana.
veria ser anunciado imediatamen- Paris ostentava uma brisa prima-
te, mas sem data marcada, resul- veril quando se reencontraram os
tou compreendida como a forma dirigentes para de novo enfrenta-
correta – baseada no centralismo rem o litígio.
democrático e amparada no Esta- O assunto poderia ter sido en-
tuto – para garantir a unidade po- cerrado em Tirana, pois já ensejara
lítica e orgânica. Mesmo porque o várias rodadas com intervenções,
Partido vinha de 15 anos em total cheias dos argumentos possíveis.
clandestinidade, imposta pela bru- Mas tudo se repetiu na casa fora do
tal repressão, além de se ter vincu- Centro, como todas nas cercanias
lado a combates armados, tudo sem do Metrô. No primeiro dia, ocu-
a chance de avaliar coletivamen- pando a tarde inteira, os infinitos
te as suas trajetória e orientações, aspectos do problema foram mas-
temas de polêmicas internas. Com tigados e ruminados. Estava claro
encaminhamentos contra e a favor, que a maioria estabelecida naquele
aprovou-se a Convocatória. Na se- fórum parcial forçava uma unâni-
quência, o encerramento suscitou me revogação, para que o “consen-
esperança de consenso, que durou so” a fórceps significasse o ponto
apenas 24 horas. final do assunto. No dia seguinte,
Como a Conferência é consulti- após as repetitivas ponderações,
va, especialmente se bifásica, reu- os defensores sustentaram que o
niu-se novamente o CC, com so- debate ali acabara e reivindicaram

101
uma votação, feita com certa ina- com nomes cooptados nove anos
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

petência: três a dois. Foi-se o Con- atrás: ocorria que só assim os dois
gresso às calendas gregas. terços exigidos para medidas ex-
Os delegados, ao pisarem o ter- tremas, já maquinadas, seriam ob-
ritório pátrio, com notícias pela tidos. Eis o resultado: quatro expul-
metade sobre o entrevero, pres- sos a toques de caixas, exatamente
taram seus informes. Alastrou-se aqueles inconformados com a deci-
o debate: os CEs de SP (Estrutu- são de Paris e favoráveis à convoca-
ra 1), BA e RJ apoiaram o Congres- ção do Congresso.
so e a discussão tornou-se nacio- Ao contrário de retirada ou “ra-

nal. Também os recém-libertados cha”, simplesmente aconteceram
apresentaram suas versões. Quan- exclusões visando a eliminar di-
do Arruda chegou, em outubro, rigentes que tinham opiniões dis-
viu a situação real e percebeu que crepantes. A seguir, a dissolução
da missa conhecera somente uma dos CEs que, amparados estatuta-
parte. Passou a dialogar mais am- riamente, propunham o Congresso.
plamente, fora da bolha, em busca Também houve um desligamen-
de soluções. Atormentado, foi rece- to por solidariedade, formalizado
ber o secretário-geral no aeroporto. na reunião da comissão responsá-
Era novembro. Retornando, ainda vel pela Tendência Popular do Mo-
no automóvel, passou mal. Seu co- vimento Democrático Brasileiro
ração, combalido e aflito, cedeu às (MDB), MG: dois anos após, ainda
superlativas fadigas e tensões. Pa- sob a vigilância ditatorial, o veícu-
rou quando menos podia. lo A Classe Operária noticiou, fal-
Na circunstância configurada, samente, que teria existido “ex-
o remanescente membro da Exe- pulsão”, registro por si elucidativo.
cutiva Nacional escolheu por conta Como a liquidação nunca foi alter-
própria quem seria do CC ou reabi- nativa, os quadros afastados no tri-
litado para entrar na primeira reu- ângulo MG-RJ-SP marcaram um
nião realizada no Brasil após quatro encontro. A data caiu na Semana
anos, em março de 1980. Partici- Santa.
param 12 dirigentes. Sintomatica-
Surge o PCdoB (Esquerda)
mente, ficou de fora um que inte-
grava o Pleno desde 1971, inclusive Os dirigentes nacionais e um
os três encontros no exterior. Ale- convidado foram chegando sem
gou-se uma dúvida sobre a lista alarde à discreta Inhapim, adjacen-

102
te ao Vale do Aço mineiro. Todos como a instância dirigente: acabou

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


apresentavam idades situadas entre sendo, na prática, uma Comissão
os 34 e 40. Em vários dias, vence- Executiva Nacional.
ram os temas elencados: conjuntu- Um ano depois, dilatando prazos
ra política; Guerrilha do Araguaia; para os contatos e textos prepara-
informe sobre a VII Conferência; tórios, bem como garantindo que a
recente reunião do CC; cenário do decisão fosse tomada pela instân-
Partido; Editora Brasil-Debates; cia estatutária, foi convocada uma
Revista Teoria e Política. Conside- Conferência Nacional, denomina-
rando a crise orgânica intensifi- da VIII. Em 1981 – logo após 1º de
cada pela maioria na Direção Na- ☭
outubro, Dia Nacional de Lutas sin-
cional em março, resolveram sem dicais – reuniu-se o pleno em SP.
votações, pois sequer tinham or- Com a discussão acerca da conjun-
ganismo, convidar os CEs para uma tura, foram apreciadas várias pro-
conversa. Faltando representações, postas. No plano de organização,
haveria um quadro para cada estru- aprovou-se que a COC se trans-
tura. Seria em SP a intitulada Reu- formaria em Comissão Nacional
nião Nacional de Consultas. de Organização do Partido (Cnop).
O Conclave se realizou em se- Também se decidiu a divulgação
tembro, quando a Editora e a Re- de um longo e ambicioso texto aos
vista já estavam funcionando. Per- militantes – Fundamentos Ideológi-
correndo a pauta – mais ou menos cos das Normas Estatutárias – não a
espelhada na reunião de abril –, o guisa de resolução, mas como con-
passo em frente formalizou a Es- tributo ao debate.
querda do PCdoB – PCdoB(E) –, O mais relevante, porém, residiu
que por algumas pessoas seria re- na proveitosa discussão em torno
ferida erroneamente como “A Dis- dos materiais oferecidos pela CT,
sidência”. Logo depois assumiu cada qual examinado em rodadas
a responsabilidade, amparada na específicas por inscrição individu-
própria resolução da VII Conferên- al, como acontece de praxe. Apro-
cia, de convocar o VI Congresso, em varam-se as Teses sobre Programa,
conexão com a sequência histórica que apresentava uma consistente
de 1960. Em decorrência, escolheu análise da formação econômico-
a Comissão de Organização do Con- -social e a estratégia da revolução
gresso (COC) e a Comissão de Te- brasileira, de caráter socialista. In-
ses (CT). Aquela funcionou de fato troduziu-se também como assunto

103
congressual o Estatuto, que fora re- afastavam do situacionismo e de-
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

digido com base na experiência do mostravam simpatia com a eleição


movimento comunista internacio- direta para presidente, incompatí-
nal e ainda incorporara os recen- vel com a manutenção do arbítrio
tes aprendizados. Por fim, defini- e inaceitável para o Alto Comando.
ram-se as Normas do VI Congresso e, Abriu-se uma brecha extraordiná-
respeitando-se a tradição marxista ria para derrotar o Governo Federal
consolidada nos conclaves partidá- e até, como propunha o PCdoB(E),
rios, abriu-se a TD. derrubá-lo. Naquele momento, a
Ainda ocorreu em abril de 1983 a Cnop encampou efetivamente a
☭ campanha pelas Diretas Já e, man-
IX Conferência Nacional, que atua-
lizou a tática e apoiou a convocação tendo a linha de superar o regime
da greve geral, por fim realizada em – com suas instituições –, cunhou
julho, bem como efetivou, imedia- a palavra de ordem oficial: Diretas
tamente, o processo de assembleias com Liberdade.
nas células e as etapas estaduais, A resolução foi aplicada nos
com prazos, visando à sessão na- eventos populares, como na “Ple-
cional do Congresso no início de nária Nacional da CUT” – maio de
1984. Ademais, liberou a resolu- 1984 – e nos entendimentos por
ção Lutar pela reunificação dos re- cima. Uma tática radical, mas tam-
volucionários comunistas. O esfor- bém ampla. No Bairro Pinheiros,
ço de organização era prioritário, Capital paulista, dois membros da
mas o processo político nacional Cnop se reuniram com Teotônio
exigia um fino acompanhamento. Vilela, capitalista, golpista em 1964
A crise do regime se aprofundava e senador pelo partido governista.
quando saiu no Diário Oficial, em O clima foi respeitoso. Com a fi-
19/4/1983, a emenda mais conheci- gura enferma, o político alagoano
da como Dante de Oliveira, que pas- expôs a sua desavença com a situ-
sou a catalisar os anseios e impul- ação e o seu motivo para votar na
sos democráticos. PEC no 5/1983: “redemocratizar”
As manifestações tinham come- o Brasil. Os comunistas elogiaram
çado em março. No meio do ano fo- a coragem do interlocutor, frisaram
ram convocados atos com partici- os consensos e apresentaram suas
pação ampla de massas, nas gran- opiniões. Todos saíram seguros de
des cidades. A burguesia se dividira. que o ciclo militar estava no cre-
Muitos liberais-conservadores se púsculo; porém, relutava.

104
O I Congresso, de 1984, SP, se reuniu a sessão na-

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


rumo ao PRC cional, rompendo com a velha sigla.
No dia 21 Lênin foi homenageado
Seria demorado e complexo.
aos 60 anos de sua morte. Aprova-
Apesar dos portentosos pronuncia-
ram-se as Resoluções do I Congresso
mentos aos milhões nas ruas, com
do Partido Revolucionário Comunista
energia e impulso, que consubstan-
– Programa, Estatuto e Tática – e o
ciavam o excepcional surto ascen-
CC.
dente no campo democrático, nada
garantia que a PEC fosse aprovada Tudo aconteceu em meio a vivas
e, muito menos, que a influência polêmicas. No patamar da estraté-

liberal nas movimentações seria gia, houve unanimidade quanto ao
revertida, pois se mostrava predo- caráter socialista imanente à revo-
minante na sociedade política e na lução, de vez que a formação econô-
mídia. O próprio afluxo de amplas mico-social brasileira foi definida
massas – que até aquela conjuntura como capitalismo dependente sob
se quedavam nas margens da con- a dominância monopolista-finan-
tenda e só então viviam sua expe- ceira. Uma proposta estreita, po-
riência – enclausurava o processo rém, tentou sem alcançar êxito res-
hegemônico no senso comum. Ne- tringir à classe operária o alicerce
nhuma via mais promissora existia do Estado reconstruído na ruptura
que mergulhar na luta real de clas- e vigente na complexa transição ao
ses, com as suas características, comunismo. Se aceita, excluiria do
aporias e limites. poder o campesinato e a pequena
O PCdoB(E) acolheu militantes burguesia urbana, empobrecidos –
com extrações distintas – Movi- bloco histórico na totalidade –, si-
mento pela Emancipação do Pro- tuação incompatível à democracia
letariado (MEP), AP e círculos vin- popular como regime político de li-
culados à Revista Teoria e Política. berdade ampla e de massas em pro-
Com boa presença entre os estu- tagonismo ativo.
dantes nos 1980, pela Caminhando A confusão que misturou a cate-
indicou dois presidentes na UNE. goria de relações produtivas – mor-
Mantinha deputados nas legendas mente o tipo de propriedade – com
MDB e Partido dos Trabalhadores a de formação econômico-social,
(PT). Com estrutura nos principais no referente ao capitalismo esta-
estados, completaram-se as condi- tal, significou certa concessão ao
ções para o Congresso. Em janeiro antissovietismo, como disse Pres-

105
tes ao secretário de organização, o Estatuto, exceto quanto ao nome
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

reunidos no RJ. Também surgiram do novo partido, que foi a sufrágio.


posições hostis à questão nacional, Surgira uma proposta sem a palavra
como se o seu reconhecimento ree- “comunista” na designação, in-
ditasse o “etapismo”. Tal enfoque, dício da postura que só post festum
que nem persistiu até a votação, seria desenhada completamente,
ignorava que o capital no Brasil é mesmo porque se associava com
subordinado. Mesmo que de modo certa busca frenética de permissão
nenhum a sociedade seja semicolo- legal para frações durante os pro-
nial, o reclamo por soberania é ta- cessos congressuais. Naquele mo-
☭ refa proletária chave, indissociável mento, a sigla e o nome apareciam
da luta socialista que supõe um em- como debates normais, sobretudo
bate anti-imperialista interno e na entre militantes que vinham da crí-
geopolítica mundial. tica recente ao dogmatismo e ne-
A consolidação do Programa gavam os vetos a priori. As normas
Máximo, como teoria e resolução, orgânicas inovavam, mas cum-
permitiu não só que o PRC na pró- priam o mainstream e cimentavam
pria fundação tivesse um norte cla- o funcionamento coletivo, baseado
ro, apontando ao que Marx definiu nas metas comuns e no centralismo
como “associação de indivíduos democrático.
livres”, como também que os seus A conjuntura suscitou contro-
militantes se ligassem às represen- vérsias. Em oposição à Cnop, plan-
tações de massas e às multidões, teou-se a insurreição imediata,
sem receio de se diluir ou cair em blanquismo redivivo de ultraes-
condutas oportunistas e pragmáti- querda em que a ideia revolucio-
cas. Teriam certeza, pelo menos em nária bastaria. Houve ainda uma
tese, de que as mediações táticas e proposta exclusivamente ambien-
flexíveis jamais seriam desfigura- talista. Outros, pasmos com a for-
doras, pois conheciam os seus pro- ça da oposição liberal, punham o
pósitos. Eis por que nunca precisa- combate à conciliação no mesmo
riam jogar sua doutrina como tijo- plano que ao regime, diluindo a
lo sobre as entidades, nem temer a direção do fogo tático. Para deter
frente política entre correntes ou os arroubos estreitos e aventurei-
partidos, nem mesmo cair no sec- ros, as Resoluções nem falaram de
tarismo da insegurança. uma situação revolucionária. Mas,
Seguindo a toada, confirmou-se vergando a vara para se afastarem

106
de argumentos que desejavam pa- no, que jamais cairá [...] se não for

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


recer mais à esquerda, sugeriram, ‘derrubado’.” Adicionalmente, o
em hipérbole apressada, que o fim PRC, em vez de consolidar e am-
da opressão ditatorial poderia levar pliar seu núcleo dirigente – para
“de roldão o Estado burguês”. lhe garantir a têmpera estabilizada
e competente, bem como a unidade
O II Congresso entreabre a política, imprescindíveis –, assistiu
porta para o ecletismo a seus quadros nacionais darem um
Em 1983 o PIB descera. Mas de- exemplo de fragmentação públi-
pois subira. Mantinha-se a crise ca em vários aspectos. Assim, o CC
passou a funcionar com base nos ☭
política e os partidos legais ocu-
pavam espaços. No ano seguinte, o arreglos das reuniões periódicas,
PRC propôs a chapa unitária no 1º em que o centralismo democrático
Congresso Nacional da CUT (Con- era dispensável.
cut). Entraram na Direção Nacional: Há textos que transparecem
José Novaes, camponês do CC; Chi- a Babel. O secretário político, em
co Mendes, seringueiro do CE-AC, 1984, escreveu que o Brasil estaria
que seria responsável pela propos- em “processo de gestação de uma
ta União dos Povos da Floresta no situação revolucionária” e assim
2º Concut. O Partido apoiou tam- retornou à imagem criptonatura-
bém a “Marcha à Brasília por Dire- lista refutada na VII Conferência,
tas Já”. Com a rejeição congressual mesmo criticando logo após a “vi-
em 1985, flui o acúmulo ao Colégio são objetivista e fatalista da his-
Eleitoral. Inexistia uma “intensi- tória”. Outra proposta, exibindo
ficação acentuada [...] da atividade ao estilo dos embates internos aos
das massas, [...] empurradas [...] a partidos social-liberais de massas
uma ação histórica independente”. um apoio em “1/3 do CC”, apre-
Faltava o elemento chave da situa- sentou àquela tese um repto na
ção revolucionária. TD, após tecer algumas vulgarida-
De mais a mais, os trabalhadores des sobre a crise da economia. Para
ainda careciam de um partido e de- justificar um diagnóstico acerta-
mais condições que lhes propicias- do – “nenhuma previsão [...] para
sem a “capacidade”, como “classe [...] uma situação revolucionária”
revolucionária, de conduzir ações –, que seria dedutível do conceito
[...] de massas vigorosas o suficien- clássico, preferiu adotar uma pre-
te para destruir [...] o velho gover- missa falsa.

107
Lênin se refere a “uma ação his- de que, dois anos anteriores à saga
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

tórica independente” no que diz de Outubro, teria o revolucionário


respeito às massas em face da bur- soviético concebido as “transfor-
guesia e de seu Estado, assim como mações objetivas” com vacuidade
distingue o “ser social” da volição subjetiva, sem o Gesellschaftlichen
externa e demiúrgica como pro- Seins de Marx.
pugna o idealismo. Deixa claro, Os Prolegômenos a Toda Meta-
pois, que o protagonismo de mas- física Futura – lembrando Kant –
sas é algo real, ou seja, uma síntese exprimiram-se no II Congresso,
de “múltiplas determinações e re- de Ouro Preto, MG, em outubro de
☭ lações”, como formulada no Grun- 1985. As resoluções, com as Te-
drisse, nunca uma criação, mais ou ses recortadas e coladas, inclusive
menos racional “da vontade” ilu- a do CC, acolheram o subjetivismo
minista e pedagogista, seja “desses e o saco de gatos. Sobre a derrota
ou daqueles grupos e partidos”, seja situacionista no Colégio Eleitoral,
“de tais ou quais classes”. Separa- esmoreceram o ataque ao regime
-se de Kautsky e dos esquerdistas, – que teria “terminado”, pois con-
rejeitando assim a dita consciên- ceitualmente mesclado ao gover-
cia exclusivamente originária, “de no civil – e centraram no “comba-
fora”. Mas o dirigente bolchevique te proletário-revolucionário mais
teria que ser “corrigido”. consequente à transição burguesa”.
Para tanto, só haveria de ser Tancredo seria idêntico a Maluf,
“historicamente independente a equação inconcebível para quem
ação revolucionária de massas com organizara, no eixo da BR-116, a
caráter socialista”, com “desen- campanha da oposição em 1978. A
volvimento das forças subjetivas da “desestabilização” da “Nova Repú-
revolução”. Especulava que “a si- blica” poupava o inimigo principal.
tuação revolucionária deixou de ser Tal simetria selou a participa-
produto apenas de mudanças obje- ção institucional exclusiva no PT.
tivas independentes da vontade dos Para uns, era somente uma ces-
grupos, partidos ou classes”. As- são indicativa entre aliados. Para
sim, estampava-se o típico enfoque outros, adesão “ao” partido le-
dualista – “mudanças objetivas”, gal, opondo-se a que o PRC o fosse
na realidade; “forças subjetivas da com motivos distintos, mas com-
revolução”, na mentalidade –, for- plementares: o defensivismo, ale-
çando a insânia “contemplativa” gando a cautela e a inexistência de

108
condições; o secretismo, a título de mente complexa, o ataque de ace-

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


“princípio”. De vez que a resolução falia funcionou como ensaio geral
Construir uma Alternativa Operária da ruína. O Governo Sarney – que
e Popular definia o “partido” como merecia dos comunistas uma pos-
“necessariamente clandestino”, a tura oposicionista, mas nunca o
proposta para registro foi recusa- ataque central, sistemático e sem
da. Capitulou-se, pois, ao pretexto mediações, remeteu ao Parlamento
que afastara o PRC dos palanques a Mensagem no 330/1985. Propôs
nas Diretas Já. O CC, como também a convocação de uma Constituinte,
o Fazendo o Amanhã que circulava afinal concretizada como institu-
desde julho, tinham nas mãos uma to congressual mediante a PEC no ☭
colcha de retalhos. 26/1985, já com reunião marcada
para fevereiro do ano seguinte. Com
Os sinais da crise a oposição inicial de vários dirigen-
O PRC crescera de 1985 a 1988. tes, que desdenhavam o Movimen-
Além do boom sindical, expandira- to Pró-Constituinte, o 2º Concut,
-se nos bairros populares de gran- aprovou em 1986 a “participação
des centros e constituira vereadores popular” e o mandato encabeçado
em cidades importantes, como em por Genoíno publicou Nossas Exi-
Belo Horizonte, São Paulo e For- gências na Constituinte.
taleza, nessa última elegendo Ma- A Constituição, redigida na
ria Luíza como a primeira prefei- transição conservadora e sob a he-
ta em capitais estaduais. Mas o III gemonia do capital, resultaria em
Congresso, de 1988, foi adiado por um regime democrático limitado e
“atraso da publicação das Teses” e restritivo, mas também institucio-
“dificuldade de avançar” na “ela- nalizaria o fim do regime castren-
boração teórica”. De fato, a hiper- se, bem como conquistas e direitos
trofia institucional com dispersão populares, inclusive atinentes aos
político-ideológica comprometia o trabalhadores. O CC, alheio, lan-
nível orgânico. Dois membros sa- çava em junho de 1988 a resolução
íram do CC. Os materiais oficiais, Aprofundar a Luta contra o Governo
esfarinhados em comissões dispa- e pela Deslegitimação da Nova Cons-
ratadas e hostis a sínteses, foram tituição. Repetindo a de março, de-
jogados sobre a sessão nacional, finia o projeto em tela como, “es-
capitulando-se “ao Deus dará”. sencialmente”, a posição “do setor
Em uma conjuntura extrema- mais conservador da burguesia”.

109
Ensinava: “o combate à nova Cons- pós-moderna declarava guerra sem
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

tituição visa desmistificá-la e des- quartel ao real e à razão, glorifican-


legitimá-la” como “pretenso esta- do a “dominância” dos événements
tuto regulador do comportamento contingenciais, além de associar-se
de todas as classes sociais”. ao subjetivismo presente no “pen-
Os assuntos candentes ignora- samento 68”, especialmente ao ir-
vam o doutrinarismo, enquanto a racionalismo nietzcheano e heide-
presença orgânica do PRC no movi- ggeriano. Os partidos comunistas
mento sindical, como no 3º Concut, foram expostos a uma pressão iné-
continuava, mas por iniciativa de dita e brutal, como poucas durante
☭ a sua história.
alguns dirigentes motivados. Com a
“globalização”, os conglomerados O “espírito” romântico de um
– alicerces da geopolítica monopo- “tempo” – zeitgeist, referido por
lista-financeira – imprimiam seus Hegel – se dirigiu ao PRC no escalão
valores à mundialização do capital. das ideias, que os quadros preza-
Entre os trabalhadores, os planos vam. Um preceptor atento enxerga-
de “reestruturação” tangidos pe- ria, sob a empáfia crônica, o desa-
las emergentes forças produtivas brigo: sem tradição histórica, salvo
traçavam o retrato interno do pro- as exceções contáveis como dedos
letariado e lhe retirava direitos. No em uma das mãos, estavam pouco
topo, a contrarreforma do Estado e vinculados ao movimento operário
o privaticismo simulavam o passa- de massas, sobretudo às entidades
do liberal, mas enfeitado pelo pre- representativas sindicais. Falta-
fixo “neo”. A contraofensiva bur- vam-lhes as relações pulsantes no
guesa buscava responder à Fase mundo proletário e o senso prático,
Depressiva da Onda Longa. condições indispensáveis ao ângulo
Concomitantemente, o bloco materialista. Procurando susten-
socialista enfrentava dificuldades tar-se à margem das necessidades
sérias – evidenciadas na crise que ontológicas na luta real de classes,
tornaria o Muro de Berlin o símbolo a política fugia das próprias conse-
da restauração, em 1989, e que des- quências, como reflexos de uma luz
constituiria de vez a União das Re- distante.
públicas Socialistas Soviéticas, em Além da vulnerabilidade, in-
1991 –, agravadas pelos multiface- sinuava-se o pendor errático do
tados ataques imperialistas. Como ecletismo intelectual. Na maioria,
se não bastasse, a performance os dirigentes ignoravam as obras

110
fulcrais de Marx, Engels e Lênin, memorar os resultados contíguos

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


não raro chegando primeiro às ore- das especulações, cristalizados em
lhas ou resenhas de livros adversos. forma de voluntarismo e dualismo,
A encantação por Lukács cingiu-se exacerbados ao paroxismo.
à sua tentativa kantiana e hegelia- A concepção idealista se revelou,
na rumo ao marxismo, mas des- descaradamente. Os seus debutan-
denhando as lições registradas no tes – cumprindo rituais de passa-
Prefácio de 1967 a História e Cons- gem até 1989, quando aportaram
ciência de Classe. Desconheciam os no liquidacionismo total – sus-
Prolegômenos e a Grande Ontologia, tentavam que o Partido seria uma
só disponíveis em alemão pela edi- ☭
ideia do tipo absoluto: “Assim, o
ção póstuma de 1984 e no idioma problema histórico da possibilida-
italiano em 1990. Por Gramsci, a de, da finalidade e da necessidade
magia calcou-se nas edições par- da Revolução Social surge primeiro,
ciais brasileiras e citações de intér- na História, como problema teóri-
pretes, pois apenas um quadro lera co, como consciência histórica [...]
o Quaderni completo. O Partido torna-se o princípio, o
meio e o fim do problema histórico
Cai a cortina de cetim da revolução”. Se o real é “resulta-
Decerto, alguns dirigentes na- do”, como poderia existir o fato que
cionais do PRC nunca foram mar- fosse a sua enteléquia fundante?
xistas, senão como adoção de au- O platonismo tentava explicar os
tores como tênues referências in- noumena – virtudes “superiores”,
telectuais junto a tantas outras na “criadoras” de “fenômenos” que
cultura “ocidental” e nas modas. aparecem aos sentidos.
Nos anos anteriores ao III Congres- Em 1987, com genericidades.
so, porém, a maioria rompeu até Um dizia: “É necessário erguer uma
mesmo com semelhante concubi- realidade produzida pelo sujei-
nato. Poucos membros do CC agiam to, um mundo concebido pelo sa-
como tais: os desvarios individua- ber, uma sociedade produzida pela
listas se manifestavam sem qual- consciência fundada numa uni-
quer pudor, inclusive nos instru- versalidade onde [sic] todos se re-
mentos legais mantidos pelo Parti- conheçam iguais, independentes e
do. As mesmas opiniões apareceram livres.” Já em 1989, apressado em
na TD, mas desta feita compativel- demolir o PRC, até para rasgar uma
mente às normas internas. Cabe re- das inconfortáveis “duas camisas”,

111
outro insistia: “realizar uma ava- tiva, menos ainda com as lutas re-
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

liação crítica da nossa trajetória ais de classes. A sessão nacional se


desde 1984, encerrar [...] a existên- aproximava, sem orientação algu-
cia da organização então criada”; ma ou perspectiva de resolver o im-
“sempre estive comprometido com passe. O secretário político trans-
o nosso projeto original. Hoje, con- fugira rumo à onda liquidacionista,
tudo, considero que caberá ao con- que absorveu a Comissão Executiva
gresso desconstituí-lo, substituin- toda, com exceção de um membro.
do-o por outra concepção, com [...] Com a situação interna insusten-
as implicações práticas”. tável, sem alternativas e interlo-
☭ cuções, o secretário de organização
Paralelamente – vez que a luta
real de classes continuava, em vias concluiu com rapidez um texto que
de se refletir após 29 anos na dis- defendia com abrangência o legado
puta eleitoral direta para presiden- partidário e o entregou ao Pleno do
te –, o secretário de organização III Congresso, reunido em agosto
viajou a Rio Branco, Rio de Janeiro de 1989, SP.
e Montevideo para desmascarar um Na ocasião, a rodada sobre or-
agente provocador ligado à repres- ganização não passou de um simu-
são. Passando-se por membro do lacro. A proposta majoritária, com
Movimento de Libertação Nacio- dois terços de votos, aglutinados
nal Tupamaros (MLN-T) e do PDT em RS e SP, decretou: “a nossa tra-
carioca, o infiltrado assediava no jetória [...] resultou na desconsti-
Acre a militância do PRC, PT e Igre- tuição da [...] base teórico-filosó-
ja Católica, dizendo-se porta-voz fica que sedimentava a nossa uni-
de “guerrilheiros” peruanos e ofe- dade enquanto PRC” – o “marxis-
recendo armas para um levante na mo”. A dissolução do Partido no PT
região fronteiriça. Com a indicação foi reforçada pelo segundo projeto,
do MLN-T, o plano de interferir na mais pitoresco por tentar manter
eleição de 1989, atingindo Lula e um grupo de quadros secreto. A tese
Brizola, foi quebrado e os partidos rejeitada obteve, aproximadamen-
envolvidos alertados. te, um terço de apoio, concentrados
Em contraste com a desenvoltu- em MG. As demais bancadas se di-
ra externa, o CC quedava entorpe- vidiram. Imediatamente, o secretá-
cido nas questões internas, que gi- rio de organização rejeitou partici-
ravam em torno de frases abstratas par de qualquer seita conspiratória
e sem relação com a realidade obje- e outras discussões, pois o Pleno

112
partidário se autoextinguira. pansão, aparecem os sinais de cri-

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


Caíra, então, a cortina de ce- se teórico-ideológica, que seguem
tim, já puída e desbotada compa- até 1989, após a reunião do CC pos-
rativamente àquela que se abrira tergando as suas tarefas imediatas,
em 1980, há nove anos, e às Reso- referentes à conjuntura e à sobre-
luções do I Congresso do Partido Re- vivência do Partido, e renunciando
volucionário Comunista, em 1984, ao papel dirigente, derramado nos
que inauguravam: “Um partido que colos dos CEs. Por fim, a liquida-
nasce profundamente comprome- ção concluída na sessão nacional do
tido com a luta da classe operária e Congresso derradeiro.

das massas populares contra a bur- Girava o carrossel, configurando
guesia e a sua cidadela, a ditadura campos irreconciliáveis. O exorcis-
militar [...] Nascido no dia 21 e ja- mo do marxismo “em crise” foi o
neiro, data comemorativa do 60º diapasão da paisagem. Os comunis-
aniversário da morte de Wladimir tas enfrentaram o debate público
Ilicht Lênin, [...] afirma seu víncu- na perspectiva contra-hegemôni-
lo histórico e ideológico com a obra ca, pois dizia respeito a quase dois
revolucionária deste grande conti- mil camaradas, sem falar nos sim-
nuador dos fundadores do socialis- patizantes. O primeiro foi na “Ple-
mo científico, Marx e Engels.” Em nária Nacional” de fevereiro – SP,
suma, o PRC foi tal vaga-lume: bri- 1990 –, marcada para sacramentar
lhou muito e viveu pouco. “uma nova tendência do PT”. Ali
houve uma bifurcação. A maioria
Sobe novamente se ligou ao Manifesto por uma Nova
a bandeira rubra Esquerda. Outros, então em mino-
Pode-se periodizar, generica- ria, mas com muitos vínculos mili-
mente, a experiência peerrecis- tantes pelo Brasil afora, organiza-
ta em quatro capítulos. Primeiro, ram provisoriamente o Movimento
a reconstrução, que vai do encon- por uma Tendência Marxista no PT
tro em 1980, que marcou a Reunião (MTM), que depois decidiria sobre
de Consultas para setembro, até o I o rumo definitivo.
Congresso do Partido, fundacional, A “Nova Esquerda”, proclaman-
em 1984. Na sequência, o rápido do a sua límpida concepção dualista
crescimento político e organizacio- e idealista sobre a história, mante-
nal, indo ao II Congresso, em 1985. ve-se no socialismo, porém, vaci-
Em terceiro, ainda em plena ex- lando e o redefinindo como “pro-

113
jeto racional e ético”, baseado em cassou e prejudicou, seriamente, o
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

valores universais como “liberda- movimento comunista.


de”, “humanidade” e “verdade”, Ponto elevado na disputa pública
agregando-lhes outra simulação foi o Ato em Defesa do Marxismo –
abstrata: “democracia”. Instanta- na Faculdade de Direito, USP, Largo
neamente, “avançou” ao passado São Francisco, SP, 1990. Quando, no
bernsteiniano, que procurava legi- ápice da reação internacional, mui-
timar-se no senso comum da ha- tos se consumiam na própria crise
bermasiana comunicação. A pérola de valores que parecia terminal, mil
rósea, ingênua e sincera, reluz em revolucionários de várias vertentes
☭ 1991: “eu me subordino à ética, e lotaram o Auditório Nobre. A figu-
não ao interesse de classe, nem a ra central era Florestan Fernandes,
uma visão totalitária da socieda- à época deputado federal, um inte-
de humana que é o comunismo.” lectual marxista de grande prestí-
Concluíra-se o “transformismo”, gio. À mesa, o secretário de orga-
como referido por Gramsci no Qua- nização, antes imerso nas tarefas
derni. internas, usou da palavra em nome
Em sentido antagônico, surge dos comunistas presentes, sobre os
a publicação em livro, pela Edito- quais caía o ataque dos prófugos e
ra Interferência, SP, 1989, da pro- da mídia burguesa: “O marxismo
posta minoritária no III Congresso, surgiu umbilicalmente ligado aos
ampliada e com anotações – Teses ideais revolucionários da moderni-
Tardias; capitalismo e revolução so- dade”.
cial no Brasil moderno. Dois anos Continuou, desafiando a faina
depois, Democracia Divina e Demo- do luto ao movimento comunista
cracia Profana – editada pelo Proje- para supostamente se “atualizar”.
to Joaquim de Oliveira, MG, 1992, e “Modernidade significa contrapo-
apresentada por Florestan Fernan- sição ao arcaico no sentido de re-
des – critica os pensamentos ma- volucioná-lo, [...] como Fausto, que
joritários em suas manifestações ousou dar uma ordem ao sobrena-
imediatamente posteriores. Toda- tural” no tempo verbal imperati-
via, sem qualquer laivo de pragma- vo: “escavaca este mundo antigo e
tismo, valem as suas consequências engendra um mundo novo”. Pros-
concretas: o exótico neokantis- seguiu: “É isto que nós marxis-
mo pós-moderno, mergulhado na tas queremos, hoje: escavacar este
confusão da ética com a moral, fra- mundo burguês, este mundo de ex-

114
ploração, este mundo de opressão, munista se funde aos 100 anos dos

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


este mundo de alienação, e engen- partidos celebrantes. Fica do antigo
drar um mundo novo, através da PRC o breviário da sua experiência:
transição socialista”. Para concluir: o vínculo dos coletivos com a massa
“somos críticos, [...] estamos aber- proletária é necessidade; a política
tos, queremos o diálogo e queremos é a expressão máxima na luta real
de classes; o Estatuto é a mediação
mais que todos; porém, somos re-
entre a práxis política e sua dimen-
volucionários incorrigíveis.”
são teórica; o prisma ontonegativo
Eis a senha para rever o fio ver- às instituições do capital recusa o
melho de 1922, que passa no V Con- politicismo; a formação teórico-i- ☭
gresso do Partido da Refundação deológica é uma chave na constru-
Comunista em 2018, o novo PRC. ção partidária; o trabalho contra-
Trata-se, porém, de outra história, -hegemônico é intrínseco à política
em que o princípio da unidade co- revolucionária. ☭

115
Breno Altman
é jornalista e fundador do site Opera Mundi.
Breno Altman
Partido Comunista: construção interrompida

N
o centenário da fundação de uma perspectiva revolucionária.
do Partido Comunista, sua Apesar dos longos períodos de
história e de suas ramifica- banimento e clandestinidade, os
ções está repleta de heroísmo, de- comunistas foram capazes, ao me-
dicação às grandes causas popula- nos durante os trinta anos de seu
res e compromisso com a emanci- apogeu, entre 1934 e 1964, de se-
pação da classe trabalhadora. Mui- mear uma cultura socialista entre
tos foram os episódios da trajetória setores populares, atrair aliados de
nacional, desde março de 1922, que distintas camadas sociais e dese-
seriam impensáveis sem a parti- nhar um bloco histórico que, de-
cipação destacada desse partido. senvolvido, poderia eventualmente
Muitas vezes pagando sua abnega- representar uma alternativa de po-
ção com sangue e prisão, os comu- der comandada pela classe operá-
nistas foram a principal corrente de ria.
esquerda até o início dos anos 80. Esse processo de amadureci-
Deve-se primordialmente à sua in- mento, porém, foi rompido com o
tervenção as fases nas quais o pro- golpe militar, diante do qual o Par-
letariado brasileiro aproximou-se tido Comunista Brasileiro (PCB),

117
principal herdeiro de 1922, viu- dência externa.
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

-se prostrado e paralisado, como Mesmo quando, a partir dos anos


produto de uma estratégia incapaz 50, o país acelera sua industriali-
de compreender as características zação, este raciocínio continuaria
fundamentais do capitalismo bra- vigente, com algumas adaptações
sileiro, das classes sociais e da di- para encaixar a substituição de im-
nâmica do Estado burguês. portações estimulada pelos gover-
A assertiva principal do pensa- nos Getúlio Vargas (1951-1954) e
mento então hegemônico no par- Juscelino Kubitschek (1956-1960).
tido remontava ao VI Congresso da A forte presença do capital externo

Internacional Comunista, realizado nos módulos fundamentais da nova
em 1928, e a classificação do Brasil economia, especialmente na indús-
no grupo de países “neocoloniais e tria de bens de consumo durável,
semifeudais”, nos quais seria im- como automóveis e eletrodomés-
prescindível a realização de uma ticos, mas também em infraestru-
revolução nacional-libertadora, tura (energia elétrica e telefonia),
de natureza burguesa, que pudes- permitia manter a mesma chave de
se expulsar o imperialismo e o la- leitura sobre a relação entre o im-
tifúndio. perialismo e a burguesia interna.
Essa lógica enxergava que o de- A aliança entre o capital agrá-
senvolvimento capitalista brasi- rio e as multinacionais controlava
leiro era bloqueado pela extração o Estado, que financiava as princi-
de riquezas promovida pelo capital pais etapas de processamento das
estrangeiro, movida principalmen- matérias-primas, como siderur-
te através da captura de riquezas gia e metalurgia, transferindo es-
minerais e agrícolas, cuja expor- ses insumos, de forma subsidiada,
tação tinha como contrapartida a às indústrias de ponta que eram
importação de produtos industria- criadas, a maioria sob controle de
lizados. Nesse esquema econômico, conglomerados estrangeiros e com
apenas os proprietários rurais, o sociedade minoritária de grupos
capital financeiro e alguns núcleos brasileiros. A agricultura continu-
da burguesia industrial encontra- ava como a principal atividade de
vam atendimento a seus interesses exportação e a expansão territorial
de acumulação, cujo pano de fundo da fazenda capitalista ampliava o
seria a reprodução permanente do exército industrial de reserva, por
subdesenvolvimento e da depen- conta dos fluxos migratórios, aju-

118
dando a depreciar ou limitar os sa- refas democrático-burguesas prin-

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


lários urbanos, mesmo com o cres- cipais, viria a ter um caráter socia-
cimento do emprego. lista.
Essa dinâmica de acumulação A análise comunista identificava
era interpretada como uma con- que os trabalhadores sofriam mais
tinuação atualizada das relações com o subdesenvolvimento e a de-
“neocoloniais e semifeudais”. Os pendência do que com a exploração
beneficiados seriam os capitais in- capitalista, explicada como uma
ternacionais, os latifundiários, os contradição secundária. Seus ini-
banqueiros e os poucos segmentos migos, portanto, seriam os mesmos

industriais ou comerciais associa- da “burguesia nacional”, a quem
dos à modernização conservadora. caberia exercer a hegemonia do
Os prejudicados, além de operários enfrentamento anti-imperialista e
e camponeses, seriam as camadas antilatifundiário, para preservar a
médias e o que se convencionou unidade da frente interclassista que
chamar de “burguesia nacional”, se desejava formar. Se o proletaria-
cuja contradição com o imperialis- do viesse a lutar pela direção dessa
mo e o latifúndio teria uma nature- coalizão, com seu programa e suas
za antagônica. formas de organização, uma cisão
Frente a um modelo incapaz de poderia ser precipitada, com o fa-
gerar mercado interno de massas vorecimento do bloco pró-impe-
e um crescimento econômico am- rialista.
plamente desnacionalizado, com os Essa concepção seria apresen-
fundos públicos a serviço da bur- tada com clareza na chamada De-
guesia agrária e das multinacio- claração de Março de 1958 e nas
nais, esta “burguesia nacional” es- resoluções do V Congresso (1960).
taria fora da festa e objetivamente Nenhum desses documentos trou-
poderia marchar, segundo a direção xe maiores novidades acerca das
comunista, ao lado dos trabalhado- leituras sobre a formação do capi-
res. Essa possibilidade tinha origem talismo brasileiro, ainda enraiza-
na interpretação de que a revolução das nas teses dos anos 20 e 30. Mas
brasileira deveria se desenvolver houve um deslocamento tático re-
em duas etapas: a primeira seria levante, para o bem e para o mal: os
nacional e democrática, para liber- dois braços que serviram a Getúlio
tar o capitalismo de seus entraves; Vargas, os trabalhistas e o PSD, esse
a segunda, após a resolução das ta- último parcialmente, passavam a

119
ser vistos como a expressão políti- temente da interpretação tradicio-
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

ca da “burguesia nacional”, com os nal do partido, o imperialismo e o


quais deveria ser constituída uma latifúndio eram as vertentes prin-
frente na qual os comunistas, em cipais do desenvolvimento capi-
uma primeira etapa, aceitariam pa- talista, incluindo a dependência e
pel coadjuvante. a superexploração do trabalho, ao
Estes textos também sacramen- contrário de serem seus obstáculos:
taram que tanto a primeira quanto eram essas as fontes que determi-
a segunda etapa da revolução brasi- navam a acumulação e a moder-
leira poderiam ocorrer sem insur- nização aceleradas da economia. A
☭ “burguesia nacional” vinha sen-
reição e guerra civil, pela via insti-
tucional. Chegaram a afirmar que o do integrada ao bloco hegemôni-
fortalecimento da democracia era a co, com suas contradições cada vez
tendência principal do desenvolvi- mais amainadas com o capital es-
mento capitalista, sempre aborda- trangeiro e o monopólio da terra,
do como um fenômeno semelhante compreendendo que também o seu
ao ocorrido com as revoluções bur- futuro dependeria da oferta de as-
guesas na Europa durante os sécu- salariados a baixo custo, concen-
los XVII e XIX. trando suas vendas nos escalões de
Essa orientação, ainda que su- alta renda da sociedade e preparan-
jeita a oscilações e conflitos inter- do-se para participar de mercados
nos, traria benefícios imediatos. O externos. Essa fração de classe não
PCB ampliou sua influência polí- viria a se comportar de acordo com
tica, rompendo o isolamento a que a previsão dos comunistas, mas
esteve submetido na primeira me- preferindo ser sócia minoritária
tade dos anos 50, quando situava o do capitalismo dependente do que
varguismo no campo imperialista e supostamente majoritária em uma
contra essa corrente se opunha fe- mítica revolução nacional-liberta-
rozmente. Entre 1960 e 1964, mes- dora.
mo na ilegalidade, os comunistas Aprisionado em sua estratégia, o
voltaram ser, em certa medida, um PCB jamais se preparou para o puts-
partido de massas e ator relevan- ch dos generais ou sequer o ante-
te entre os que defendiam as ideias viu com clareza. Não percebeu que
nacionais-desenvolvimentistas. o deslocamento das classes ocorria
A médio prazo, porém, estava em fluxo oposto ao de suas análises.
contratada uma tragédia. Diferen- Ao aceitar passivamente a noção de

120
que o comando daquele processo o surgimento do PT. Não tinham

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


caberia à “burguesia nacional”, ab- suficiente presença popular e terri-
dicou de construir força autônoma torial. Tampouco se dedicaram, em
de massas e uma estrutura militar sua maioria, a travar o debate sobre
independente, apesar de sua razo- os antigos erros estratégicos, pre-
ável presença nas Forças Armadas. ferindo se concentrar nas questões
Ajudou a semear ilusões entre a táticas, especialmente o recurso ou
vanguarda e o povo, atrelado à pre- não à luta armada contra a ditadura.
sunção de que haveria uma conflu- A resposta principal ao fracasso da
ência irrefreável entre capitalismo estratégia comunista foi um con-
e democracia. junto de variáveis esquerdistas no ☭

Na hora da verdade, quando o terreno da ação política imediata,


bloco oligárquico-burguês se deci- quase sempre enfeixadas pelo lan-
de pela derrubada de João Goulart e çamento da guerra de guerrilhas.
os militares assumem essa tarefa, o A mesma política nacional-li-
PCB não estava à altura de enfren- bertadora ou nacional-desenvol-
tar a contrarrevolução, desarmado vimentista, de larga duração, foi o
por suas convicções e contamina- substrato de guinadas à direita ou
do por uma prática marcada pela à esquerda no curto prazo. Os mo-
prioridade à superestrutura, tanto mentos de radicalização do partido
parlamentar quanto sindical. Bu- eram baseados na interpretação de
rocratizado e paralisado, o partido que a potência da contradição con-
sofreria, ao lado das demais forças tra o imperialismo acabaria por le-
de esquerda, uma derrota históri- var a “burguesia nacional” para
ca, em boa medida desmoralizan- uma atitude revolucionária, o que
te. Nos anos seguintes, envolto em justificaria denunciar e combater
sucessivas crises internas e ainda seus setores vacilantes, colocando
atado às velhas concepções, viveria a vanguarda da classe trabalhado-
uma longa decadência, até o ocaso ra na demarcação de terreno do que
dos anos 80, sem jamais recuperar deveria ser um campo de ruptura
o peso político que tivera entre os com a ordem agrário-imperialista.
anos 30 e 60 do século passado. Quando o pêndulo oscilava para a
Os demais agrupamentos não ti- moderação tática, como entre 1958
veram densidade para ocupar o es- e 1964, vingava a percepção de que
paço gerado pelo colapso do PCB, o os comunistas, naquela etapa da
que somente viria a acontecer com revolução, não poderiam ir além

121
dos interesses da “burguesia na- Mauro Marini e outros formulado-
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

cional”, cujo programa estabelecia res da Teoria Marxista da Depen-


as possibilidades concretas da épo- dência tampouco eram tomados em
ca histórica que se vivia. conta. Mesmo depois do golpe de
O golpe militar acabou se reve- 1964, o partido seguiu passo na te-
lando uma derrota sem paralelo oria consagrada mais de trinta anos
não apenas pela repressão que de- antes.
sataria, levando à morte centenas A voz mais representativa a
de revolucionários, incluindo diri- romper com estes paradigmas, no
gentes comunistas de grande expe- final dos anos 70, ironicamente se-
☭ riência e prestígio. Outro fator a se ria Luiz Carlos Prestes, lendário se-
levar em conta é que o regime ins- cretário-geral do PCB desde 1942,
talado a partir de 1964 empurrou o cargo para o qual fora eleito ainda
capitalismo brasileiro ao seu mais quando estava preso nas masmor-
elevado grau de desenvolvimen- ras do Estado Novo. Ao publicar sua
to – sem democracia, mantendo e “Carta aos comunistas”, em 1980,
expandindo o latifúndio, arrochan-
ele propunha, com coragem e desa-
do os salários e aprofundando a de-
pego, uma revisão autocrítica pro-
pendência externa. Acabou se cons-
funda da estratégia que comandara
tituindo na prova cabal de que a lei-
por tantos anos, o que lhe custaria o
tura comunista sobre o capitalismo
afastamento da liderança e da pró-
brasileiro não parava de pé, atolada
pria legenda.
em uma visão eurocêntrica de que
a América Latina e o Brasil repeti- Além de isolado na direção do
riam os degraus evolutivos da for- partido, o ponto de vista formula-
mação capitalista no velho mundo. do por Prestes era demasiado tar-
dio. O velho combatente encon-
Alguns intelectuais vincula-
trava-se no outono de sua vida e o
dos ao PCB – como Caio Prado Jú-
ciclo histórico do PCB já se encer-
nior, entre outros – tentaram ofe-
rava, decompondo-se a toque de
recer interpretações diferentes ao
caixa seus vínculos com as novas
discurso oficial, mas sem êxito.
Também pouca ou nenhuma res- classes trabalhadoras e suas orga-
sonância interna tiveram autores nizações, com o mundo da cultura
independentes, como Florestan e da juventude. Logo a seguir viria a
Fernandes, com seu clássico “A re- crise do socialismo soviético e o de-
volução burguesa no Brasil”. Rui saparecimento do primeiro Estado
socialista, praticamente coincidin-

122
do com o falecimento do Cavaleiro modelo de partido fosse exporta-

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


da Esperança, em março de 1990. A do para todos os recantos, em que
viabilidade de uma alternativa co- pese as distintas circunstâncias
munista, nos moldes da III Inter- nacionais nas quais cada seção te-
nacional, deixava de existir, ao me- ria que atuar. O comunismo brasi-
nos em futuro visível. leiro, como organização, nos seus
O apogeu e o declínio do Partido primeiros dez anos, foi essencial-
Comunista fundem-se à trajetória mente um produto dessa modela-
de seu líder. O partido fundado em gem, como ocorreria em vários ou-
1922 era apenas um pequeno gru- tros países. Não somente essa refe-
rência deveria ser seguida à risca, ☭
po de propagandistas e organiza-
dores. Somente iria se transformar cumprindo as determinações das
em uma organização revolucio- “21 condições para adesão à III In-
nária de massas com a entrada do ternacional”, documento aprovado
chefe tenentista. Seu protagonismo no II Congresso da entidade (1920),
seguiria vigente apenas enquan- como estava sacramentado que re-
to Prestes se manteve à frente da voluções proletárias apenas seriam
agremiação, particularmente antes possíveis sob a direção de partidos
da catástrofe de 1964. Foi uma ja- comunistas desse tipo – o que aca-
nela de três décadas, durante a qual baria sendo desmentido pelas revo-
o PCB possuiu as condições sociais e luções cubana e nicaraguense, aliás.
históricas, apesar da repressão in- O Brasil, porém, tinha um perfil
cessante, para ser o instrumento de muito diferente da Rússia de Lênin.
vanguarda da revolução brasileira. Seu proletariado, além de diminu-
Além do prestígio de seu dirigente to, estava fragmentado por indús-
máximo, contavam a favor dos co- trias pequenas e médias, com baixa
munistas a imagem libertadora da escolarização, escandaloso analfa-
União Soviética e o avanço da revo- betismo e pouca experiência políti-
lução mundial no pós-guerra, com co-sindical, praticamente forma-
a configuração do campo socialista. tado por uma primeira geração de
Antes de 1934, o PCB percorreu a imigrantes e migrantes, somada a
trilha recomendada pela direção da filhos de negros libertos da escra-
III Internacional, criada em 1919. O vidão no final do século anterior.
exemplo fornecido pela vitória dos O país não dispunha de uma mas-
bolcheviques, sob a batuta de Lê- sa de intelectuais que, expurgados
nin, fez com que um determinado da institucionalidade e da vida aca-

123
dêmica, pudesse servir como colu- tos que confluiriam para a Revolu-
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

na vertebral a um partido com ca- ção de 1930. Quando o comandan-


racterísticas leninistas, integrando te da Coluna Invicta adere ao PCB,
capacidade teórica com disponi- ainda morando na URSS, em 1934, o
bilidade para a educação e a orga- partido conquistaria uma audiência
nização das classes trabalhadoras. social muitas vezes superior à sua
Sem qualquer tradição marxista de inserção natural, incluindo poten-
relevo, a raiz principal do PCB seria te presença nos quartéis. O prestis-
uma costela do anarcossindicalis- mo, ao se fundir com o comunis-
mo, de onde provinha a maioria de mo, lança essa corrente ao primeiro
☭ seus quadros dirigentes. plano da vida política.

Ainda que tenham ocorrido ini- A Aliança Nacional Libertado-


ciativas para se estabelecer uma te- ra (ANL), criada em 1935, que vi-
oria sobre o capitalismo brasileiro ria a mobilizar multidões por todo
– entre as quais se destaca “Agra- o país, foi o retrato mais nítido da
rismo e industrialismo”, de Octá- ascendência de Prestes, presiden-
vio Brandão -, saltava às vistas a te de honra da coalizão. Mesmo no
irregularidade, a debilidade e a in- exílio e na clandestinidade, era o
seu chamado que permitia cons-
consistência das formulações. Es-
truir um polo de esquerda, de opo-
sas fraquezas induziam o partido a
sição a Getúlio Vargas, com chances
seguir as resoluções teóricas da III
de se viabilizar como alternativa de
Internacional quase como dogmas
poder. Sequer a derrota da rebelião
aos quais deveriam ser encaixadas
militar, em novembro daquele ano,
a história e a realidade locais, pre-
enterrando a ANL, fruto de grave
servando maior autonomia relativa
erro na análise do equilíbrio de for-
para movimentos táticos.
ças, retiraria do líder da sublevação
O que mudaria o cenário do co- sua aura de martírio e heroísmo.
munismo brasileiro pouco teria a
Preso em 1936, Prestes seria
ver com acumulação orgânica de
anistiado em 1945 e retomaria a
conhecimento e ação ou avanços atuação pública como secretário-
de consciência do frágil proleta- -geral do PCB, à frente de comitê
riado nacional. Essa alteração se- central com importante presença
ria provocada, no início dos anos de ex-oficiais militares, uma ex-
30, pela ruptura da ala esquerda cepcionalidade na comparação com
do tenentismo, conduzida por Luiz outros partidos comunistas e con-
Carlos Prestes, com os movimen- tingência do legado prestista. Se-

124
riam apenas dois anos de legali- qual Prestes era o expoente, desa-

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


dade, entre 1945 e 1947, seguidos guou em suas fileiras. O PT nas-
de uma década em absoluta com- ceu como síntese das portentosas
partimentação após o banimento greves operárias contra a ditadura,
do partido, até o período de 1958 a nos anos 70, simbolizadas princi-
1964. palmente por Lula. Esse encontro
Mais que o fracasso de 1935, será entre organização e movimento é
a falta de resistência ao golpe mi- decisivo para ancorar uma inter-
venção política que saia dos guetos
litar que quebrará a confiança nos
e das margens. Ainda que não te-
comunistas e afetará a imagem
nha resultados eternos, abre por-
de seu líder histórico. Durante os ☭
tas para um período relativamen-
quinze anos seguintes, o PCB ain-
te longo de identidade do partido
da se manteria como a maior le-
com as massas, potencializando
genda de esquerda, mas definhan-
as chances de elevação da sua cul-
do, até que a saída de Prestes, em
tura política, organização e mobi-
1980, fosse sentida como um beijo
lização. Esse período, no entanto,
da morte.
tem que ser aproveitado antes que
Além dos problemas estratégi- as forças originais de propulsão se
cos e táticos vivenciados pelos co- dissipem.
munistas, é fundamental compre-
A orientação político-teórica
endermos que a história brasileira
pode não ser a precursora, no Bra-
oferece características distintas dos
sil, de partidos protagonistas, pois
enunciados da III Internacional. Se
esses se erguem a partir de pujan-
na Rússia e outras nações foi pos- tes movimentos sociais. Sem uma
sível a construção de partidos in- leitura adequada da história e da
fluentes através do recrutamento formação brasileiras, porém, sem
por um núcleo dirigente e da fusão definições teóricas, estratégicas e
da teoria com o movimento, essa táticas que possam transformar a
experiência não teve lugar no Brasil base social em um punho de com-
até hoje. bate, através de um sistema mo-
O PCB adquiriu protagonismo lecular de organização, os espaços
quando um movimento nacional e históricos podem se fechar. Às ve-
popular de grande envergadura, do zes para sempre. ☭

125
Iole Ilíada
Doutora em Geografia Humana pela USP, foi Secretária de Relações
Internacionais do PT e vice-presidenta da Fundação Perseu Abramo,
da qual integra atualmente o Conselho Curador.
Iole Ilíada
As relações dos partidos comunistas com o PT: a
tensão dialética entre o comunismo e o Partido dos
Trabalhadores*

I.O processo de fundação cional-democrática ou burguesa,


do PT e a demarcação com o que tinha implicações sobre uma
o “velho comunismo” política de alianças pautada na
conciliação com setores da classe
O PT surge como uma novida-
dominante) e pela postura dian-
de histórica, o que lhe ajudou a en-
te da ditadura implementada em
cantar corações e mentes quando
1964, considerada excessivamente
o “velho comunismo” – ou pelo
“moderada”. As críticas a essa po-
menos aquele representado pelo
lítica não vinham apenas de fora do
PCB, que era ainda o maior partido
Partido, mas também provocavam
da esquerda brasileira – já não o
conseguia mais, desgastado, como dissensões internas, notadamente
sabemos, por diversas cisões, pe- entre os militantes da seção pau-
las críticas à concepção “etapista” lista e entre os “prestistas”.
da revolução brasileira (a ideia de Contribuíram, para que o PT
que no Brasil a revolução deveria aparecesse como um contraponto
passar primeiro por uma etapa na- à tal posição, as disputas travadas
[*] Roteiro escrito em outubro de 2021 para a Aula 16 do Curso “100 Anos de Comunismo
no Brasil”, realizado pela ELAHP – Escola Latino-Americana de História e Política.

127
no seio do sindicalismo e a ascen- res, “pelegos”, do sindicalismo,
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

são das lutas sociais no final dos conformando o bloco que ficou co-
anos 1970 e início dos anos 1980. nhecido como “Unidade Sindical”,
Para o PCB, que ainda atuava na do qual participavam também o
ilegalidade (condição só altera- PCdoB e o MR-8.
da em 1985), não foi um momento
Tal aproximação ajudou a con-
fácil, seja pelas dificuldades tra-
solidar a ruptura entre as duas
zidas pela linha política assumida
vertentes sindicais. Se na I Conclat
ou pela “concorrência”, até então
(Conferência Nacional da Classe
inédita, que os “novos atores” –
Trabalhadora), em 1981, estavam
☭ para citar a expressão consagrada
todos juntos, já em 1983 ocorre-
por Eder Sader – e a nova força po-
ram dois congressos distintos: um
lítica e social passaram a exercer,
em São Bernardo do Campo, que
colocando em xeque a hegemonia
fundou a CUT; o outro na Praia
que aquele partido julgava ter na
Grande que, seguindo a proposta
esquerda brasileira.
do PCB, optou naquele momento
Escorado assim em uma polí-
por não criar outra central sindical
tica cautelosa, que privilegiava a
e apenas eleger uma Coordenação
negociação e o não conflito direto
Nacional da Classe Trabalhadora/
com o regime – justificada sem-
Conclat.
pre em nome de uma transição de-
mocrática pactuada e dos riscos de A consolidação da cisão acen-
um retrocesso político no proces- tuou a caracterização crítica, por
so de reabertura – o PCB encon- parte dos sindicalistas que viriam a
trou enorme dificuldade de en- fundar o PT, desse “velho sindica-
frentar o crescimento deste setor lismo” como “reformista”, “pele-
que apostava na combatividade e go”, “não autônomo”, caracteri-
no enfrentamento inclusive como zado pelo afastamento com rela-
formas de lutar contra a Ditadura, ção às lideranças e organizações
chegando mesmo a se colocar con- locais dos trabalhadores e as suas
tra as greves e mobilizações. reivindicações, além de totalmente

Esta política conciliatória e a adaptado e dependente da estrutu-


“concorrência” estabelecida pela ra sindical oficial, que se conside-
hegemonia na esquerda levaram o rava excessivamente “atrelada ao
PCB a intensificar sua associação Estado”.
com os setores mais conservado- Quanto às críticas do PCB aos

128
“novos sindicalistas” e ao “novo em 1962, adotou inicialmente uma

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


partido” (a partir de 1980), depen- política de aliança com os sindica-
dendo das circunstâncias, elas se listas daquele partido, opondo-se
davam pela direita ou pela esquerda. também à criação da CUT (consi-
Assim, ora os petistas eram cha- derada um “braço sindical do PT”)
mados de “esquerdistas” e incon- e participando mais tarde da fun-
sequentes, ora de “economicistas” dação da Central Geral dos Traba-
e social-democratas. Famosa fi- lhadores (CGT) junto com o PCB
cou a acusação de que a criação do e outras forças da antiga Unidade
PT teria sido facilitada delibera- Sindical, em 1986. Partidariamen-
te também eram críticos ao PT, por ☭
damente pelo General Golbery do
Couto e Silva – o principal “ideó- considerarem que a nova agremia-
logo” da ditadura militar brasileira ção era um elemento de divisão na
– para dividir a esquerda e enfra- luta contra a ditadura – lembrando
quecer as “verdadeiras” organiza- que o PCdoB nesta época também
defendia uma política de frente
ções revolucionárias.
ampla.
Aliás, após o desempenho do
Contudo, diferentemente do que
PT nas eleições de 1982 – abai-
ocorreu com o PCB – cuja maioria,
xo do que seus próprios militan-
mimetizando o processo italiano,
tes e dirigentes previam –, muitos
em 1992 descaracterizaria total-
membros do PCB afirmavam que o
mente o antigo partido, assumindo
PT havia “morrido antes mesmo
em um primeiro momento o nome
de ter nascido”, compartilhando
de Partido Popular Socialista (PPS)
e disseminando a visão de muitos
e, mais recentemente (em 2019), a
no período de que o projeto petista
denominação Cidadania, abraçan-
estava fadado ao fracasso.
do hoje tristemente as pautas neo-
No entanto, como sabemos, ao liberais e o uso “udenista” do tema
longo dos anos 1980 o PCB assistiu da corrupção – o PCdoB viraria à
não só à consolidação do projeto da esquerda.
CUT, mas à ascensão do PT como o
A crise social e econômica que
maior e mais representativo par- se seguiu em 1987 ao Plano Cru-
tido de esquerda do país, tanto no zado, proposto pelo Governo Sar-
campo institucional como social. ney que até então o PCdoB apoiava,
O PCdoB, por sua vez, apesar levará aquele partido a rever suas
de ter nascido de um racha do PCB políticas e a buscar uma aproxima-

129
ção cada vez maior com o PT. Tan- A posição desses agrupamentos
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

to assim que em 1988 romperam diante do PT variava muito. Alguns


com a CGT e formaram a Corrente deles se dissolveram após a filia-
Sindical Classista, que em segui- ção (concebiam o partido como
da se integrará à Central Única dos “estratégico”, ou seja, aquele que
Trabalhadores, dela só saindo no dirigiria a revolução brasileira).
final de 2007 para, junto com o PSB Outros viam no partido um mero
e outras correntes independentes, abrigo provisório, sem maiores
fundarem a Central dos Trabalha- chances de tornar-se um partido
dores e Trabalhadoras do Brasil revolucionário efetivo (“partido

(CTB). tático” ou partido-frente, dentro
Essa aproximação também se do qual seria possível acumular
manifestou no âmbito partidário, forças até a criação futura do ver-
sendo que o PCdoB apoiou todas as dadeiro “partido revolucionário”).
candidaturas presidenciais lança- Assim, da constituição do PT
das pelo PT desde 1989. participaram diversos militantes,
E quanto às demais organiza- intelectuais, grupos, facções, ten-
ções que reivindicavam o comu- dências e partidos de orientação
nismo no Brasil nesta época? Em marxista-leninista, muitos origi-
grande medida, como veremos a nários de cisões anteriores do PCB
seguir, elas terão papel fundamen- ou do PCdoB, ainda que não neces-
tal na fundação do PT. sariamente conservassem o quali-
ficativo “comunista” no nome.
II.As correntes comunistas Entre esses citamos, por sua
na constituição do PT importância:
A esquerda marxista é sem- Organização Revolucionária
pre citada como um dos principais Marxista Política Operária (Po-
grupos no processo de constitui- lop, de 1961), da qual participaram
ção do Partido dos Trabalhadores, desde o início dissidentes do PCB,
ao lado dos “novos sindicalistas” e que deu origem a várias outras
já citados e da Igreja progressista. organizações (Comando de Liber-
Afinal, praticamente todas as or- tação Nacional/Colina; Vanguar-
ganizações da esquerda brasileira, da Popular Revolucionária/VPR;
com exceção do PCB, do PCdoB e do Partido Operário Comunista/POC;
MR-8, ingressaram no PT. Vanguarda Armada Revolucionária

130
Palmares/VAR-Palmares; Organi- rompera com o PCdoB em 1967);

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


zação de Combate Marxista-Le- Organização Comunista Democra-
ninista - Política Operária/”Nova cia Proletária (OCDP, remanescen-
Polop”; Movimento de Emancipa- tes da AP). Essas três organizações
ção do Proletariado/MEP). Dessa formariam em 1985 o Movimento
“genealogia” do movimento co- Comunista Revolucionário (MCR),
munista brasileiro convergiram que em 1989 abandonaria a ideia
para formar o PT muitos militantes do PT como “partido tático” e se
e algumas correntes (que ingres- converteria em Força Socialista
saram no Partido enquanto tal). (FS) e depois em APS - Ação Popu-
lar Socialista (2004), tendo saído ☭
Ação Popular Marxista Leni-
do Partido em pleno PED (processo
nista (APML ou simplesmente
de eleição direta das direções par-
AP), que apesar de ter sua origem
tidárias) de 2005.
na juventude de esquerda católica,
foi se radicalizando no enfrenta- Partido Comunista Brasileiro
Revolucionário (PCBR): fundado
mento à ditadura e acabou por se
em 1968 por figuras como Mário
fundir ao PCdoB em 1973 – contra
Alves, Jacob Gorender e Apolô-
a posição de um grupo minoritário,
nio de Carvalho, egressos do PCB.
que posteriormente decidiu parti-
Remanescentes participaram da
cipar ativamente da fundação do
fundação do PT. Posteriormente,
PT.
alguns deles deram origem à ten-
Ação Libertadora Nacional dência interna Brasil Socialista
(ALN), formada por dissidentes (BS).
do PCB logo após a Conferência da
Partido Revolucionário Comu-
Organização Latino-Americana de
nista (PRC), que cindiu com o PC-
Solidariedade (OLAS), realizada
doB e em 1985 ingressou no PT, a
em Havana em 1967. Muitos rema-
partir daquela concepção de um
nescentes da organização partici-
“partido-frente”. Em 1989 prota-
param da fundação do PT.
gonizará uma grande viragem à di-
Movimento de Emancipação reita, passando por uma revisão de
do Proletariado (MEP, constituído suas concepções originais, rom-
por uma dissidência da Polop au- pendo com o marxismo e conver-
todenominada “Fração Bolchevi- tendo-se em Nova Esquerda (NE).
que”); Ala Vermelha (PCdoB-AV ou Em 1992, seus principais líderes
simplesmente “ALA”, grupo que fundarão a Democracia Radical

131
(DR), durante muito tempo con- tido dos Trabalhadores”. Também
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

siderada a corrente mais à direita levará mais tarde, no 5º Encontro


do PT. Essa metamorfose do PRC (1987), à regulamentação do direi-
também dará origem ao Movi- to de tendência, que visava colocar
mento por uma Tendência Marxis- freios àquilo que era considerado
ta (MTM), que manterá sua visão uma “dupla militância”.
marxista e revolucionária (e que Mas o interessante a observar é
em 2011 participará da fundação da que não foram apenas tais agrupa-
EPS- Esquerda Popular e Socialis- mentos de origem marxista-leni-
ta). nista os responsáveis pela influên-

Isso sem falar nas correntes cia do ideário comunista na cons-
trotskistas que confluíram para tituição do PT. Embora a “Articu-
o PT, mas que apesar de se origi- lação” tenha nascido como esse
narem na mesma tradição mar- contraponto, no interior daquela
xista-leninista romperam preco- corrente majoritária havia mui-
cemente com a “raiz central” do tos militantes e quadros políticos
comunismo, tais como a Conver- oriundos dessa mesma tradição,
gência Socialista (CS); a Demo- tais como José Dirceu, Marco Au-
cracia Socialista (DS); e, um ano relio Garcia, Rui Falcão, Eder Sa-
após a fundação do PT, a corrente der e Wladimir Pomar, ou mesmo
Liberdade e Luta, que passou a ser o grupo de militantes do Diretório
conhecida como O Trabalho (OT), Paulista do PCB cuja principal lide-
nome do jornal editado no Brasil rança era David Capistrano Filho,
pela Organização Socialista Inter- que rompera com aquele partido
nacionalista (OSI), corrente à qual em 1983 e ingressara posterior-
se filiava. mente no PT.
A existência dessas correntes E se muitos desses quadros –
organizadas no interior do PT, al- como aliás também os intelectuais
gumas atuando como verdadeiros de matriz comunista que ingressa-
“partidos dentro do partido”, le- ram individualmente no Partido –
vará, como contraponto, ao lan- o fizeram por enxergar no PT uma
çamento em 1983 do “Manifesto experiência distinta, essa opção ao
dos 113” e à fundação da corrente mesmo tempo se apoiava na espe-
que ficou conhecida como Articu- rança de reconstruir o projeto de
lação – que se propunha a repre- um partido revolucionário da clas-
sentar “a verdadeira face do Par- se trabalhadora, possibilidade que

132
não enxergavam mais nos “ve- É verdade que desde sua funda-

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


lhos” partidos. ção o PT defendia uma espécie de
Começa a se configurar aqui “via alternativa”, do ponto de vista
mais claramente aquilo que cha- formal e organizativo, aos partidos
mamos de “tensão dialética entre comunistas tradicionais, expressa
sobretudo na ideia de um “parti-
o comunismo e o PT”. Afinal, se
do-movimento”, que queria evitar
por um lado o PT nasceu demar-
os dogmatismos teóricos valori-
cando com o “velho comunismo”,
zando a prática partidária e comba-
por outro uma parte importante
ter a burocratização estabelecen-
dos militantes e dissidentes oriun-
do canais de participação de baixo ☭
dos dessa tradição ajudou a cons-
para cima.
tituir o Partido. E se por um lado
aqueles que o fizeram buscavam o Mas essa ideia do “novo” mui-

“novo”, por outro queriam reavi- tas vezes será exagerada, levando
a uma certa recusa em considerar
var o antigo projeto de um partido
a história do movimento operá-
revolucionário no Brasil. Aqui cabe
rio anterior ao partido, o que foi
bem o conceito de superação, fun-
muitas vezes criticado, inclusive
damental na dialética: a produção
por aqueles que nele ingressaram
do novo que carrega em si elemen-
vindos dessa outra tradição. Preo-
tos do velho. Isso ficará mais cla-
cupado em se apresentar como no-
ro a seguir, quando trataremos das
vidade, o PT seria acusado de “des-
ideias comunistas na formação do
considerar as heranças e as tradições
PT.
das lutas passadas”, que se fizeram
presentes, como vimos, inclusive
III.As ideias comunistas na
na sua formação.
constituição do PT
Isso levaria muitos no PT a afir-
Como apontamos acima, apesar mar – e alguns o fazem até hoje –
dessa ideia de “novidade históri- que “O PT derrubou o Muro de Ber-
ca”, as bases teóricas e ideológicas lim em 1980, quando nasceu”, como
que fundarão o PT serão uma sín- diria Lula em uma entrevista à re-
tese de rupturas, continuidades, vista Teoria e Debate1 (TD) em 1991.
desenvolvimento e superação do A história dessa “ruptura com o
pensamento dos partidos de es- Muro de Berlim”, no entanto, é
querda que o precederam, princi- bem mais complexa do que essa
palmente as correntes comunistas. afirmação pode fazer crer.

133
Antes de mais nada, é impor- palavras ecos daquele outro Mani-
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

tante destacar que, apesar da frase festo famoso, escrito em 1848?


proferida por Lula, o Manifesto de Embora os documentos não fa-
Fundação do PT2 traz uma série de lem em “comunismo”, está pa-
referências características do ide- tente o objetivo de construir uma
ário comunista. Nele, há uma forte sociedade superior ao capitalis-
ênfase na luta de classes e na visão mo. Isso fica claro, por exemplo,
de que a sociedade possui dois lados no discurso de Lula no 1° Encontro
antagônicos: o primeiro, do “povo Nacional do PT3 (1981), onde mais
trabalhador”, dos “construtores das uma vez se observa um viés dire-
☭ riquezas da nação”, das “massas ex- tamente influenciado pela tradição
ploradas”; e o outro, formado pela comunista:
“elite”, que seria constituída pelos
“Nós, do PT, sabemos que o mun-
“exploradores”.
do caminha para o socialismo. [...]
O documento também afirma
Os trabalhadores são os maiores
que o partido nascia “da decisão
explorados da sociedade atual. Por
dos explorados de lutar contra um
isso sentimos na própria carne e
sistema econômico e político que não
queremos, com todas as forças,
pode resolver os seus problemas, pois
uma sociedade que, como diz o
só́ existe para beneficiar uma mino-
nosso programa, terá que ser uma
ria de privilegiados”, e portanto “da
sociedade sem exploradores. Que
vontade de emancipação das mas-
sociedade é esta senão uma socie-
sas populares”. Aqui fica evidente o
dade socialista?”.
caráter anticapitalista do Partido,
e a proposta de que ele fosse, nas Respondendo a essa pergunta,
palavras do Manifesto, uma “fer- poderíamos acrescentar: a rigor,
ramenta da construção de uma so- uma sociedade sem explorados ou
ciedade que responda aos interesses exploradores já seria uma socieda-
dos trabalhadores e dos demais seto- de comunista.
res explorados pelo capitalismo”. Em É verdade que nesse mesmo
suas linhas finais, o documento discurso de 1981 já aparece a de-
arremata: “O PT buscará conquis- marcação com o socialismo sovi-
tar a liberdade para que o povo pos- ético, caracterizado como “buro-
sa construir uma sociedade igualitá- crático”. Mas a crítica é igual ou
ria, onde não haja explorados e nem ainda maior a qualquer perspectiva
exploradores”. Ora, não seriam tais social-democrata:

134
“Sabemos que caminhamos para de 1980, podendo ser constatada,

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


o socialismo, para o tipo de socia- por exemplo, nas resoluções do 4°
lismo que nos convém. Sabemos Encontro Nacional, realizado em
que não nos convém, nem está em 1986, que fazem referência ao so-
nosso horizonte, adotar a ideia do cialismo como uma “sociedade sem
socialismo para buscar medidas classes”, construída por meio da
paliativas aos males sociais cau- “socialização dos meios de produ-
sados pelo capitalismo ou para ção”, a ser realizada com a “ruptu-
gerenciar a crise em que este sis- ra radical contra a ordem burguesa”.
tema econômico se encontra. Sa- Ou mesmo na formulação da estra-
tégia democrático-popular, que foi ☭
bemos, também, que não nos con-
vém adotar como perspectiva um delineada no 5º Encontro, em 1987.
socialismo burocrático, que aten- Ainda em 1987, encontramos
de mais às novas castas de tecno- outro exemplo da influência das
cratas e de privilegiados que aos ideias comunistas sobre o PT. Re-
trabalhadores e ao povo”. ferimo-nos ao lançamento da re-
vista Teoria e Debate4(TD), que as-
A presença de referências de
sumia no editorial a divisa “sem te-
inspiração comunista nos docu- oria revolucionária não existe prática
mentos de fundação e em outros revolucionária”.
textos dos primeiros anos do Par-
O projeto da revista, publicada
tido não é casual. Como dito an-
originalmente pelo Diretório Re-
teriormente, além dos diversos
gional do PT-SP mas com alcance
agrupamentos com essa origem
nacional, sendo vendida aos inte-
que ingressaram no PT, este tinha
ressados, partia da constatação de
entre seus principais formulado-
que a hegemonia das classes do-
res aqueles militantes da tradição
minantes sobre os trabalhadores
marxista-leninista que ingressa-
acontecia principalmente através
ram na Articulação, ainda que es- da manipulação dirigida das infor-
ses jamais tenham se organizado mações, através da sua produção
enquanto tal no interior da cor- intelectual, sua propaganda e seus
rente. produtos culturais veiculados pe-
Mas essa influência não será los meios de comunicação de mas-
encontrada apenas nos docu- sas – evidenciando uma influência
mentos inaugurais do partido. Ela claramente gramsciana. Assim, na
prosseguirá ao longo da década disputa pela hegemonia, o PT te-

135
ria como tarefa o desvendamen- tes textos publicados na TD, Apo-
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

to sistemático dos “mecanismos de lônio de Carvalho dirá que o “PT é


dominação e funcionamento da or- assim: em parte, continuidade; em
dem burguesa, apontando novos ho- parte, ruptura e inovação. Esses ele-
rizontes”. mentos contraditórios vão, desde o
Aliás, a TD merece uma nota de início, marcar sua trajetória” (nº.9,
destaque, porque será através dela 1990). Wladimir Pomar igualmen-
que o PT buscará enfrentar, na- te observará que “como todo fenô-
quele período, as discussões e os meno histórico, o PT representa certa
problemas das definições estra- continuidade, mas representa fun-
☭ damentalmente uma ruptura” (nº.4,
tégicas, teóricas e políticas que o
partido precisará assumir dian- 1988). Florestan Fernandes defen-
te dos desafios que a história lhe derá a ideia de que PT deveria ser
apresentará, o que não será tarefa “um partido no qual o socialismo
simples, seja pelo fato do Parti- marxista tenha uma certa consistên-
do ter nascido de um amálgama de cia” (nº.13, 1991), enquanto Marco
tradições distintas, seja porque na Aurélio Garcia definirá o Partido
sua origem, ao menos no discurso, como “pós-social-democrata e pós-
enaltecia mais a luta prática que o -comunista”, cuja identidade seria
debate teórico. Como se sabe, a re- construída “não combatendo estas
vista segue existindo, tendo pas- correntes, mas dialogando critica-
sado a ser editada desde 1997 pela mente com elas, voltado para novos
Fundação Perseu Abramo (que fora (e velhos) desafios que seus ances-
criada um ano antes) e se torna- trais não puderam responder” (nº12,
do apenas digital desde 2011. Mas 1990).
infelizmente já não cumpre mais E por falar em comunismo e
esse papel há algum tempo. social-democracia, será também
O debate realizado na TD nes- através da TD que o PT enfrentará
te período inicial deixará, por si- a crise que atingirá toda a esquer-
nal, mais evidente aquela “tensão da mundial quando a experiência
dialética” entre a continuidade da soviética chega ao fim. A leitura
tradição da esquerda brasileira no dos ricos debates da época mos-
PT, que era fortemente comunista, tra como não foi nada simples, e
e a busca por superar essa tradição muito menos linear e consensual,
e constituir algo novo. o balanço do período e a discussão
A título de exemplo, em diferen- sobre suas consequências e sobre

136
os rumos que o Partido deveria to- cia” e na ideia de que era possível a

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


mar – ficando demonstrado que, convivência do mercado com uma
diferentemente do que afirmara “economia social” – feitos esses a
Lula, o Partido não havia “derru- serem obtidos a partir de uma atu-
bado o Muro de Berlim” já no seu ação reformista, que privilegiava a
nascimento. É isso que veremos a luta institucional.
seguir. Desse modo, muitos intelectu-
ais e políticos de esquerda, sobre-
IV.Os impactos da “Queda tudo na Europa, correram a fazer
do Muro” e do fim da URSS uma “autocrítica” de seu passado

A derrota da experiência sovié- e a renegar o legado bolchevique-
tica no final da década de 1980 re- -leninista. Mais que isso: a crise
presentou uma crise generalizada do socialismo será mesmo tratada
na esquerda mundial, e impulsio- como “crise do ideário marxista”.
nou um amplo processo de revisão Essa esquerda, autointitulada “de-
do marxismo. Ganharam destaque, mocrática”, passará assim a des-
nesse período, as ideias dos mal crer da ideia de socialismo como
chamados “marxistas ocidentais” e objetivo da ação revolucionária e a
uma leitura bastante particular de relegar a segundo plano ou mesmo
Antônio Gramsci – difundida em desconsiderar temas e conceitos
grande medida pelo Partido Co- como a luta de classes, a apropria-
munista Italiano (PCI) e pela cor- ção da mais-valia, o fetichismo da
rente de pensamento identificada mercadoria etc.
pelo rótulo “eurocomunismo” –, O primeiro impacto mais direto
com base nas quais muitos ten- dessa crise sobre o PT se fará sen-
taram se esquivar dos problemas tir durante as eleições presiden-
trazidos pela nova condição histó- ciais de 1989. A direita não pensou
rica, negando aquela experiência e duas vezes antes de associar o PT
afirmando a intenção de constituir àquele modelo de sociedade que
uma “nova esquerda”. entrava em colapso naquele mo-
Parte importante dessa “nova mento – e que os noticiários insis-
esquerda”, descrente da revolução tiam em retratar da pior maneira
e da possibilidade de derrotar o ca- possível, vendendo a ideia de que
pitalismo, passou a colocar a ênfa- o fim daqueles governos socialis-
se de sua atuação no alargamento tas era uma verdadeira “libertação
da “cidadania” e da “democra- dos povos”. A candidatura de Lula,

137
além de tudo apoiada pelo PCdoB, diata e nem sem grande debate e
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

foi vítima então de uma intensa disputa interna. E mesmo as “rup-


campanha anticomunista. turas” com essa tradição, quan-
Embora os resultados daquela do se deram, foram em distintos
eleição tenham sido espetaculares graus. Houve quem rompesse com
para o PT – consolidando-o como o que chamava de “socialismo bu-

partido hegemônico da esquerda rocrático”; houve quem fosse além


e rompesse com o “marxismo orto-
brasileira e como polo com capaci-
doxo”; e houve aqueles que rompe-
dade efetiva de disputar o governo
ram com o próprio marxismo, sem
do país – a derrota, ainda que por
☭ nenhuma adjetivação.
muito pouco (arredondando, Lula
teve 47% e Collor 53% dos votos Também é importante assinalar
válidos), levou setores do Partido a que, no início, houve demonstra-
considerarem que era preciso dis- ções de entusiasmo no PT – regis-
tanciar-se mais do ideário comu- trados mais uma vez nos debates
nista e participar daquele movi- publicados na TD – com relação à
mento de “autocrítica” que ocorria Perestroika e à Glasnost, processos
em âmbito internacional. de abertura econômica e política
intentados na URSS sob a direção
Em realidade, o PT já abrigava
de Mikhail Gorbachev na segun-
em seu interior quadros que ten-
da metade dos anos 1980. E essas
diam a um viés social-democrata,
manifestações vinham de quadros
e que neste momento se julgaram
com visões tão distintas quanto
“amparados pela história” para
David Capistrano Filho, Luis Fa-
rechaçar as experiências revolu-
vre, Zé Dirceu, João Machado ou
cionárias e o comunismo. Aprovei-
Augusto de Franco, para citar ape-
tando, portanto, a onda interna-
nas alguns. A imensa maioria es-
cional, as vertentes mais modera-
creveria, na ocasião, não acreditar
das e reformistas buscaram avan-
que tais reformas significassem
çar dentro do Partido e empurrá-lo um retorno ao capitalismo; antes,
para rupturas mais radicais com os poderiam conduzir a um aprimo-
paradigmas clássicos do marxis- ramento daquela experiência, uma
mo. correção de rumos em direção a um
Mas é preciso lembrar que esse socialismo democrático e dirigido
“avanço” das visões reformistas efetivamente pelos trabalhadores.
no PT não se deu de forma ime- Isso sem contar a visão de alguns

138
trotskistas de que o momento re- los sísmicos na esquerda mundial e

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


presentava uma “revolução dentro brasileira, e que marcará uma rup-
da revolução”, e que a derrubada tura mais clara com o ideário co-
do governo do PCUS seria naquele munista:
momento algo “progressivo”.
“Para o PT, socialismo é sinônimo
De todo modo, é interessan- de radicalização da democracia.
te notar o grande espaço dado a Isso quer dizer que a concepção
esse debate no PT, a demonstrar de socialismo do PT é substan-
mais uma vez o quanto, querendo cialmente distinta de tudo que,
ou não, o Partido estava vinculado enquanto concepção, vimos con- ☭
à tradição comunista e sabia que o cretizado em todos os países do
desenlace daquele processo tam- chamado socialismo real [...] Afi-
bém lhe dizia respeito. nal, ‘democracia, para nós, é si-
À medida que o processo de multaneamente meio e fim’. Dizer
queda dos regimes socialistas se isso implica recusar todo e qual-
concretizava, no entanto, come- quer tipo de ditadura, inclusive a
çou a ganhar terreno nesse debate ditadura do proletariado, que não
no Partido uma ideia central: a da pode ser outra coisa senão ditadu-
“democracia como valor univer- ra do partido único sobre a socie-
sal”. Mas embora a frase remeta ao dade, inclusive sobre os próprios
título de uma obra de Carlos Nel- trabalhadores”.
son Coutinho escrita em 1979, é
O problema é que essa concep-
importante lembrar que o próprio
ção abstrata de democracia, que
autor rechaçaria mais tarde a “per-
a pensa em termos “universais”,
da da identidade socialista” do PT,
sem a particularidade de classe,
fazendo então questão de afirmar
é prima-irmã da ideia de que por
que se não havia socialismo sem
vias institucionais, “democráti-
democracia, tampouco podia haver
cas”, se pode chegar ao socialismo.
democracia sem socialismo. E também parente próxima de uma
De todo modo, a consolidação proposta “light” de socialismo, na
dessa concepção será carimbada qual, sem superar o capitalismo, é
na Resolução do 1° Congresso Na- possível combater seus efeitos ne-
cional, em 1991 – convocado jus- gativos a partir de políticas públi-
tamente para tentar enfrentar a cas e de um Estado democrático de
confusão produzida por tais aba- direito.

139
Pode-se dizer, assim, que o PT Citamos por exemplo Augusto
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

estava assumindo por vias tortas de Franco, para quem o momen-


o velho reformismo e a velha so- to era de “rasgar a antiga cartilha
cial-democracia que ele nascera baseada no mito segundo o qual o
criticando. Afinal, esse debate não ‘marxismo-leninismo’ (com esse hí-
tinha nada de novo, retomando na fen no meio) seria uma teoria cien-
verdade antigas polêmicas da es- tífica” (TD nº.9, 1990). E também
querda internacional que remon- Eugênio Bucci, para quem “Sta-
tam ao revisionismo de Eduard lin, seu aparelho e seus métodos não
Bernstein do final do século XIX, caíram do céu. São todos eles a mais
☭ acabada resultante do partido bol-
para ficar só na referência mais co-
nhecida. chevique que substituiu-se a qual-
quer noção de Estado. A ditadura
De toda sorte, foi esse o deba-
stalinista é também obra de Lenin e
te que esquentou o caldeirão pe-
de Trotsky” (TD nº.14, 1991).
tista naquele momento, e que foi
Sobre o marxismo, dirá Aldo
publicado em grande parte na TD.
Fornazieri: “O desmoronamen-
Aliás, os títulos dos artigos dão a
to do comunismo no Leste Europeu
exata medida do revisionismo e do
não atestou somente o fracasso de
reformismo propostos por parte
uma tentativa de construção do so-
dos pensadores petistas. Para ficar
cialismo. Foi também consequência
apenas em três exemplos: “Socia-
dos impasses da concepção marxista
lismo real: muito o que (des)fazer”
da história e da própria idéia de um
(Augusto Franco, TD nº.9, 1990);
futuro ‘reino da liberdade’, ilusão e
“Adeus às armas?” (Paulo Vannuc- engano ideológico que o suportava”
chi, TD nº.11, 1990);“A revolução (TD, nº.13, 1991). E Renato Janine
perdida: nós que amávamos tan- Ribeiro sentenciará: “Filosofica-
to as reformas” (Eugênio Bucci, TD mente, uma coisa só ora é certa: não
nº.14, 1991, p.41); . se pode mais pensar a classe traba-
Para que não restem dúvidas, lhadora como sujeito da História”
tais textos não propunham ape- (TD, nº.10, 1990).
nas uma crítica dura ao stalinismo Percival Maricato irá além e cri-
e à uma suposta burocratização da ticará até as relações históricas do
URSS. A crítica se estendia às con- PT com Cuba: “A tentativa de dizer
cepções de Lenin e, como dissemos que o PT nunca teve essa relação com
antes, às próprias ideias marxistas. o autoritarismo é uma fraude. Aliás,

140
com Cuba temos até hoje. É outra mente, nenhum desses caudais. O

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


fraude dizer que o regime cubano PT não possui filosofia oficial (...)
não é autoritário” (TD nº.14, 1991). O que une essas várias culturas

É claro que, nesse debate, tam- políticas libertárias, nem sempre

bém houve quem buscasse defen- textualmente codificadas, é o pro-

der a herança comunista, princi- jeto comum de uma nova socieda-

palmente os quadros das tendên- de, que favoreça o fim de toda ex-

cias mais à esquerda. E esse em- ploração e opressão”.

bate de visões políticas bastante Mas é importante que se diga


distintas – por vezes antagônicas que essa decisão por não assumir ☭
– vai gerar no PT uma caracterís- uma “ideologia oficial” coincidirá,
tica fundamental, que alguns verão na prática, com um deslocamen-
como vantagem, e outros como um
to de várias correntes do PT para a
problema: o “pluralismo ideológi-
direita. A própria Articulação, ten-
co”, que se por um lado permite ao
dência majoritária, fará esse giro
Partido ampliar sua representação
no início dos anos 1990. Essa gui-
junto às massas e atrair quadros
nada fará com que, em 1993, um
de distintas orientações, por outro
grupo de militantes da Articula-
resulta muitas vezes em uma es-
ção mais próximos do marxismo
pécie de frouxidão no que se refere
se agrupe em torno do manifes-
às necessárias definições políticas,
to “Hora da Verdade”, parte dos
sobretudo as de natureza estraté-
quais formará no final daquele ano
gica e programática.
a Articulação de Esquerda (AE).
Esse pluralismo será consagra-
Mais tarde, outras correntes
do, por exemplo, nas resoluções do
também assumirão posições mais
7° Encontro Nacional (1990):
à direita no interior do PT, e outras
“Confluíram para a criação do PT se formarão já professando visões
(...) diferentes correntes de pensa- social-democratas (e até social-
mento democrático e transforma- -liberais), sendo cada vez menor
dor: o cristianismo social, mar- o número de militantes no Parti-
xismos vários, socialismos não- do que hoje reivindicam a tradição
-marxistas, democratismos radi- comunista.
cais, doutrinas laicas de revolução Pode-se concluir, portanto,
comportamental etc. O ideário do que essa ruptura do PT com posi-
Partido não expressa, unilateral- ções mais fortemente influencia-

141
das pela herança comunista deu- primeira eleição direta para presi-
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

-se menos em sua origem, e mais dente em 1989, já citadas anterior-


no bojo do processo de crise da es- mente, mas também pela atuação
querda mundial suscitado pelo fim conjunta na maior parte dos em-
da experiência soviética e pela as- bates políticos travados no país,
censão do pensamento neoliberal. seja na luta institucional ou na luta
social – ainda que possa sempre
V.Breves notas sobre a haver alguns “focos de incêndio”
relação atual do PT com o isolados, como por exemplo nas
comunismo disputas nas entidades estudantis
☭ e em alguns redutos sindicais.
Atualmente, o perfil das filia-
Já com o PCB – herdeiro da sigla
das e filiados ao PT mudou bastan-
depois da criação do PPS, conforme
te com relação àqueles três grupos
citado anteriormente – as relações
principais que estavam presen-
são bem mais complexas, variando
tes na sua fundação. E as mudan-
da franca oposição nos momen-
ças ensejadas no Partido levaram,
tos em que o PT esteve no governo
como dissemos acima, a uma di-
(ainda que tenham participado da
minuição bastante significativa da
coligação que elegeu Lula em 2002,
presença de “comunistas”, ou de
tendo com ela rompido formal-
pessoas que reivindicam essa tra-
mente em 2005) até o apoio “crí-
dição, entre os quadros partidários
tico” a candidaturas em segundo
– ainda que seja possível detectar,
turno do PT, como no caso recente
sobretudo nos segmentos mais jo-
de Fernando Haddad nas eleições
vens da base social do PT, um in-
de 2018.
teresse crescente pelas ideias mar-
Finalmente, cabe destacar que
xistas e mesmo pela história do
no âmbito internacional o PT man-
comunismo internacional.
teve desde sua fundação um rela-
Resta comentar muito rapida-
cionamento muito próximo com
mente sobre a relação atual do PT
partidos comunistas, como o de
com os partidos comunistas, no Cuba, por exemplo. E as diretrizes
Brasil e no mundo. da política internacional do Parti-
No caso do Brasil, vale destacar do, espelhando o “pluralismo ide-
a relação bastante estável com o ológico” de que é constituído, con-
PCdoB, que pode ser atestada pe- sagraram as relações com todos os
las coligações realizadas desde a espectros da esquerda mundial, o

142
que inclui a “família” comunis-

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


ta. Basta lembrar que o PT é um
dos fundadores e ocupa a Secreta-
ria Executiva do Foro de São Pau-
lo, no qual atua um grande número
de partidos comunistas da América
Latina. Mas isso vale também para
os demais continentes. ☭

Notas

[1] Falaremos mais sobre a Teoria e Debate
adiante, pelo papel que a revista cumprirá
no debate de ideias, incluindo as ideias co-
munistas, dentro do PT.
[2] O Manifesto pode ser lido em https://
fpabramo.org.br/csbh/wp-content/uplo-
ads/sites/3/2017/04/03-P1_Dossie-Doc-
tos.pdf
[3] As resoluções deste e de outros en-
contros aqui citados podem ser encontra-
das no acervo do Centro Sérgio Buarque
de Holanda, da Fundação Perseu Abramo
(https://fpabramo.org.br/csbh/encon-
tros-nacionais-do-pt-resolucoes/).
[4] O acervo com as edições da Teoria e
Debate pode ser consultado, pelo ano de
publicação, em https://teoriaedebate.org.
br/edicao/.

143
Rayane Andrade
é professora, advogada e secretária de direitos humanos do PT-RN.
Rayane Andrade
O que o futuro nos reserva?

A
pergunta inquietante so- condições precárias. Um país que
bre o que será de nós mo- vê avolumar-se nas vias públicas
biliza diversas possibilida- o contingente de pessoas em si-
des de respostas. A adivinhação do tuação de rua; cuja juventude não
porvir sempre fascinou a humani- encontra expectativas de ser apro-
dade. Busca-se pistas sobre o que veitada no mercado formal de tra-
virá nos astros, em fenômenos da balho e é assassinada aos montes
natureza, nas histórias de antepas- sem provocar qualquer comoção.
sados, em gráficos, cálculos e, ago- Esse é o retrato do passado-pre-
ra, através dos famosos algoritmos. sente, montado cuidadosamen-
Ocorre que ao revisar o centenário te pela classe dominante para que
do comunismo em nosso territó- seja imóvel.
rio a questão sobre que horizonte O planejamento de futuro dos
aguarda a classe trabalhadora bra- algozes estaria absolutamente ga-
sileira se reveste ainda mais de um rantido se não fosse a luta de clas-
tom de urgência. ses, a teimosia e a organização dos
O Brasil é um país de milhões de trabalhadores. Nesse caminho, ho-
famintos, onde a maioria reside em mens e mulheres valorosas tom-

145
baram e a tarefa de pensar a luta “O futuro não demora
pelo socialismo segue aberta. Em Já aconteceu
um momento da história em que se Olha que já aconteceu
atravessa mais uma crise profunda O que já aconteceu
do capitalismo-patriarcal-racista, Olha o que aconteceu
combinada ao estabelecimento da Já aconteceu com você
pandemia provocada pelo corona- Aconteceu comigo
vírus e a reorganização da dinâmi- O fogo que queima em você
ca geopolítica, tudo aponta para a Também queima comigo”
necessidade de antecipar as cenas Baiana System
dos próximos capítulos.
Fã assumida de Baiana System,
Nesse sentido, organizo a pre-
sempre recorro a potência de suas
sente contribuição em três pon-
poesias para acalentar a alma e co-
tos. Começo com a advertência de
locar as ideias no lugar. A provoca-
Baiana System - “O futuro não de-
ção de Russo Passapusso instiga a
mora” - onde aponto para a ne-
pensar o futuro como iminência e
cessidade de colocarmos a defesa
também como algo recorrente. Se
das ideias socialistas, de maneira
Marx falava que a história da hu-
radical e ousada, como questão da
manidade é a história das lutas de
ordem do dia e de vida ou morte.
classes, a música baiana vai tam-
Em sequência, pensando a partir
bém nesse sentido. As experiências
do poeta Cazuza, quero apresen-
se repetem e é possível identificar-
tar minhas provocações através
-se com elas, ainda que estejam
da chave - “Um museu de grandes
distanciadas por séculos, produ-
novidades” - onde destaco algu-
zindo uma sensação de pertenci-
mas das questões que penso serem
mento. Essa chama acompanhou
fundamentais para orientar uma
os operários e camponeses russos
prática política e teórica comunis-
que fizeram a Revolução de 1917 e
ta articulada com as demandas da
motivou as rebeliões nos quilom-
classe trabalhadora existente. E,
bos brasileiros. O fogo que se espa-
por fim, trago minha própria pre-
lha ao longo dos séculos na busca
dição. Em “Revolução periférica”,
de um outro mundo.
antecipo que futuro devemos mi-
Assim o futuro não demora, pois
rar e que destino desejo contribuir
as circunstâncias materiais - de ex-
para que exista.
ploração e escalonamento da bru-
O futuro não demora talidade contra os trabalhadores
e trabalhadoras - não cessam. Em depressão psicológica (banzo); 2)

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


um modo de produção que conver- o assassínio dos próprios filhos ou
te tudo que há em acumulação de de outros elementos escravos; 3) a
riqueza, voraz e sempre faminto, fuga individual; 4) a fuga coletiva;
a pulsão pela morte sempre com- 5) a organização de quilombos lon-
pete com a batalha pela vida. Não ge das cidades. b) Formas ativas: 1)
causa estranheza que a população as revoltas citadinas pela tomada
mais vitimada hoje pela miséria e do poder político; 2) as guerrilhas
truculência policial seja negra, ou nas matas e estradas; 3) a partici-
que as mulheres sejam constante- pação em movimentos não escra-
mente alvo de estupro e toda sorte vos; 4) a resistência armada dos ☭
de sevícias, quando em toda nossa quilombos às invasões repressoras
história enquanto país tenha sido e 5) a violência pessoal ou coletiva
assim. contra senhores ou feitores. Essas
diversas formas de reação ponti-
Contudo, para interromper
lharam, lastrearam todo o tempo
essa engrenagem são necessários
em que existiu o trabalho escravo.
instrumentos potentes, diversos,
E não apenas em determinados lu-
criativos e difíceis de serem aces-
gares mas em todas as regiões onde
sados. A organização da classe tra-
predominava esse tipo de trabalho.
balhadora é e continuará sendo
O padrão de comportamento domi-
um grande desafio para estancar e
nante na classe senhorial, por seu
reverter a sangria capitalista-pa-
turno, era também condicionado
triarcal-racista. Clóvis Moura, ao
pela intermitência desses diver-
analisar as rebeliões de escravi-
sos tipos de reação, criando me-
zados, demonstra como homens e
canismos de defesa quer ideológi-
mulheres, negros e indígenas de-
cos, quer institucionais através de
senvolveram táticas de subversão,
apelos às autoridades para manu-
mesmo diante da monstruosidade
tenção de tropas repressoras nos
do regime escravocrata brasileiro. diversos locais onde havia perigo
Regime este que, cumpre salientar, de sublevação de escravos ou onde
se estabelece nessas terras em con- elas se estavam verificando. Como
junto com o capitalismo. se vê, aquilo que se chamou “o
“As formas de que se revestiu o constante perigo que a escravaria
protesto do escravo [...] poderão ser representa”, não apenas solapava
enumeradas da seguinte maneira: o regime de trabalho, mas atingia
a) Formas passivas: 1) o suicídio, a o comportamento da classe senho-

147
rial” (MOURA, 1981,p.251). apenas alguns exemplos da bonita
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

Moura coloca como a dinâmica história de dedicação à construção


de resistência, seja passiva ou ati- de um país com cara de povo que se
va, influenciava a resposta da clas- organizou.
se senhorial. As diferentes formas Como o panorama atual não
de reagir ao sistema, que incluíam deixa mentir, ainda que envidando
as contradições e erros, mostram os maiores esforços e pagando com
que houve muita resistência negra a própria vida pela ousadia de lu-
e indígena no país. A lógica de ar- tar pelas coisas mais belas, a ampla
ticular a disputa cultural, jurídica maioria do povo continua na ser-
☭ vidão. Partindo da provocação de
e econômica se mostra eficaz até
hoje, sendo bem sucedida ao impe- Clóvis Moura, percebe-se a simila-
dir que as rebeliões na senzala não ridade entre o passado com o cená-
se convertessem em uma revolu- rio de hoje.
ção. A questão do suicídio, por exem-
E a classe senhorial, detento- plo, persiste vitimando de maneira
ra dos meios de produção, vem se majorada a população negra e indí-
mantendo na condução do engenho gena. Destaco os dados do Ministé-
Brasil dessa mesma forma. A clas- rio da Saúde
1
se trabalhadora vem, ora com mais ao demonstrar que “em 2016, o
ou menos sucesso, engendran- risco de suicídio foi 45% maior em
do suas estratégias de resistência. adolescentes e jovens negros com-
Somos o país que foi palco para as parados aos brancos” e registram
Ligas Camponesas, que pariu Eli- o mesmo aumento entre “indíge-
zabeth Teixeira e Francisco Julião; nas (2012: 2,1% e 2016: 2,9%)”. As
nessas terras surgiu o Sindicato do razões da extinção da própria vida
Garrancho, que organizou os tra- já eram vistas como relacionadas
balhadores da indústria do sal no ao capitalismo-patriarcal-racista
interior do Rio Grande do Norte em pelo próprio Marx, o que reforça a
1931; aqui tivemos o Almirante Ne- argumentação que desenvolvo no
gro, João Cândido, que denunciou sentido de mostrar que os efeitos
os castigos escravocratas da ma- que continuam ao longo da histó-
rinha nacional; e que em 1989 viu ria têm como fundamento a lógica
Tuíre, mulher Mēbêngôkre, em- funcional do modo de produção vi-
punhar um facão contra a face do gente.
representante do Estado. Esses são Do ponto de vista da dispu-

148
ta cultural, a ascensão dos setores ramento e a insana guerra às dro-

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


bolsonaristas tem como catapulta gas facilitam a vida das organiza-
a pauta moralista cristã e reforça a ções paramilitares que desenham
cruzada das elites contra as mani- os mapas da cidade conforme seus
festações populares. A mesma tur- interesses. De um lado as facções e
ma que criou a Lei da Vadiagem e de outro as milícias, em um conflito
proibiu a capoeira, já propôs proi- que deixa os trabalhadores empa-
bir o funk e usa da circunstância da redados por todos os lados. Com os
pandemia para disparar seu horror Bolsonaros no Palácio do Planal-
racista no carnaval, exemplo de re- to, o elogio à tortura e aos policiais
sistência cultural da classe traba- assassinos é feito sem perturbar o ☭
lhadora brasileira (e) de forte in- sono das instituições republicanas
fluência negra. que dormem em paz, fecharam os
As mulheres são disputadas pela olhos para o golpe contra a presi-
lógica identitária liberal como por- denta Dilma Rousseff e celebraram
ta-vozes de todo o horror reacio- a prisão ilegal de Lula.
nário. Vejamos a atuação de Bia Ki- O agro-pop aprova seus paco-
cis e companhia limitada contra a tes de veneno, segue concentran-
maioria das trabalhadoras em pau- do terra e matando gente. Há uma
tas essenciais como acesso a direi- anuência tácita, inclusive dos se-
tos sexuais e reprodutivos e garan- tores de esquerda, de nosso papel
tias trabalhistas básicas. A defesa como engenho do mundo, assu-
do “bela-recatada-do lar” e a cru- mindo a característica de expor-
zada contra o aborto, fazem cenas tador de materiais primários e im-
deploráveis existirem, como a per- portador de produtos como nossa
seguição a uma criança de 10 anos, sina nesta Terra.
abusada sistematicamente, para Assim, é uma questão de vida e
impedi-la de interromper a gravi- morte reagirmos. Para tanto, pre-
dez. A diversidade sexual é a cereja cisa-se recolocar no campo das
do bolo na articulação das narrati- disputas das ideias nossas palavras
vas, demarcando a reprodução do de ordem. Socialismo, comunismo,
patriarcado como forma pela qual a vermelho, foice e martelo, estrelas
classe se expressa. Qualquer desvio e poesias. Enquanto herdeiros de
ao padrão branco-hetero, deve ser uma tradição altiva que é intencio-
atacado. nalmente silenciada e que precisa
A industrialização do encarce- ser ecoada por nossas organizações

149
não como um passado glorioso que as não-hetero foi construída com
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

morreu, mas como promessa de o abuso da condição do poeta bra-


que o futuro não demora. Não po- sileiro, que como crítico da socie-
de-se agir com nossa simbologia dade brasileira da época, nos legou
e ideias-força de maneira cínica. um dos versos mais potentes ao
A luta pelo socialismo deve ser co- pensarmos em futuro. Em “O tem-
locada como a alternativa para a po não para”, o carioca nos mos-
emancipação do conjunto das tra- tra como a estrutura colocada no
balhadoras e trabalhadores. E para país faz os dias correrem e as coi-
tanto, precisamos refletir, depois sas permanecerem as mesmas. Ao
☭ desse século de tentativas, como mencionar “um museu de grandes
avançar nessa missão, tema que me novidades” penso na provocação
debruço a seguir. em sentidos distintos. O primei-
ro, no que trabalhei anteriormen-
Um museu de grandes novidades
te - a persistência do capitalismo-
“Eu vejo o futuro repetir o passado
-patriarcal-racista faz a situação
Eu vejo um museu de grandes no-
concreta de barbárie seguir - e, em
vidades
um segundo, as ideias potentes de
O tempo não para
uma sociedade sem patrões, sem
Não para não, não para
fronteiras e sem classes parecem
Nas noites de frio é melhor nem
ter sido colocadas em uma espécie
nascer
de galeria, como artefatos de um
Nas de calor, se escolhe, é matar
tempo tão-tão distante que servem
ou morrer
apenas para serem miradas, mas
E assim nos tornamos brasileiros
que não se viabilizam mais, afinal,
Te chamam de ladrão, de bicha,
como canta Elis Regina, o tempo
maconheiro
passou, “eles venceram, e o sinal
Transformam um país inteiro num
está fechado para nós que somos
puteiro
jovens”.
Pois assim se ganha mais dinhei-
De maneira oposta, acho que es-
ro”
ses museus estão repletos de novi-
Cazuza
dades, de maneira genuína. As táti-
Cazuza foi uma das vítimas da cas de rebelião dos escravizados, a
caça contra a diversidade sexual em forma de articulação dos partidos
nosso país. A vinculação - até hoje comunistas, a existência do Parti-
existente - da AIDS com as pesso- do dos Trabalhadores (PT), apesar

150
de suas incontáveis metamorfo- lismo no Brasil precisa se inspirar

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


ses - como nos fala Valter Pomar especialmente nas experiências que
- provam que essas ideias são fan- outras nações fora do eixo capita-
tasticamente frescas e capazes de lista-patriarcal-racista. Os proces-
assustar quem se beneficia da car- sos das lutas na África e na América
nificina. Latina ainda precisam de um olhar
Assim como o conto do barco mais atento da vanguarda. Sabe-
de Teseu, onde as peças são troca- mos pouco, ou muito pouco, sobre
das ao longo da viagem e ao che- o que as lideranças negras africanas
gar no porto não sabemos se esta- formularam e colocaram em movi-
mento na construção do socialismo ☭
mos diante da mesma embarcação
que partiu ou de algo inteiramente em seus territórios. É necessário
novo, cumpre à classe trabalhado- beber das fontes dos socialismos
ra renovar as ideias socialistas sem das periferias para alimentarmos o
abandonar o que essa compreen- que nossos ancestrais já acumula-
são teórico-política da vida tem por ram ao longo das gerações.
base: o fim da exploração. É necessário que o nosso socia-
Especialmente por estarmos em lismo entenda que a questão racial,
um território único, precisamos de mulheres e da diversidade sexu-
começar entendendo quais as ca- al não são atrapalhos na busca pela
racterísticas que o fazem ser o que cabeça de nossos inimigos. A forma
é. Somos uma terra de imigrantes, como se vive a classe é racializa-
que conhece pouco suas popula- da e genderizada. Os que nos opri-
ções originárias; temos uma massa mem já sacaram que essas questões
de trabalhadores majoritariamen- são incontornáveis, e com a male-
te negros; carregamos mais tem- abilidade típica de quem explora, a
po de convívio com a escravidão do adaptação já está sendo feita. A di-
que com a República e, dentro des- nâmica de absorver essas deman-
se regime, mal conhecemos o sig- das como formas segmentadas de
nificado de democracia. Se contar- observar o fenômeno e potenciais
mos só de 1988 até os dias atuais, já plataformas para multiplicação dos
experimentamos 2 impedimentos dividendos não pode afastar a nos-
presidenciais, um dos quais não há sa massa crítica desse debate.
mais dúvida de ter sido um golpe de O Brasil negro, mulher e indíge-
Estado. na precisa de um socialismo cons-
De forma que a luta pelo socia- truído para si. Como uma roupa

151
que nos caiba, envolva nosso corpo Yzalú
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

único, atenda a forma como nos ex-


A provocação desse texto vem da
pressamos e o que queremos, essa
pergunta “o que o futuro nos reser-
“velha roupa colorida”, como nos
va?”. Se convidada a responder em
fala Belchior, deve ser exibida com
menos de 140 caracteres, como quer
gosto e potência por onde passa-
a novilíngua das redes nada sociais,
mos. Na luta de classes neste país
diria “se acertamos, uma revolu-
nunca houve espaço para a ausência
ção periférica socialista”. Parece-
de radicalidade. Eles, nossos inimi-
-me que essa seria a maneira mais
gos, a classe dos senhores, sempre
honesta de encapsular o que acre-
☭ foram vis, estúpidos, criminosos e
dito. Como parte dessa classe tra-
continuarão a ser enquanto existem
balhadora brasileira que tem cara
como manifestação dessa estrutura
de mulher, jovem, preta e parte da
torpe. Cabe a nós sermos inarreda-
comunidade LGBT, entendo que o
velmente radicais, na defesa da vida
socialismo comprometido com a
de cada uma e cada um de nós. Pre-
emancipação humana é a melhor
cisamos dar consequência às nos-
alternativa à barbárie em que nos
sas palavras bonitas. O socialismo-
inseriram.
-de-boca não nos levará a lugar al-
gum. No máximo a colecionadores É necessário expandir as rebeli-
de êxitos passados que não temos ões nas senzalas para concebermos
coragem de perseguir. uma revolução periférica, nome
que intitula um dos coletivos or-
Assim, sigo ao tópico final dessa
ganizados no tempo recente e que
conversa.
deu demonstrativos de que cami-
Revolução periférica nho temos que perseguir. O coletivo
“Falo pros manos big, pras mina se notabilizou nacionalmente pela
raga ação direta que performaram na
Pra todas as massas, tribos e raças queima da estátua do bandeirante
Eu to na roda assassino Borba Gato. O gesto altivo
Eu sou facção racional não passou despercebido. Depois da
Sou a garota que mora na rua ação, a onda de debates sobre nossa
A favela pura verdade colonial se alastrou como
Revolução da fome nua fogo.
Meu Milton lírico Nas trincheiras onde estão as
Eu sou a essência esquerdas, houve quem dissesse
Sou musica periférica brasileira” que o ato era coisa da direita, outros

152
disseram que era uma ação radical sustar o andar de cima. Fazer isso

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


demais para os tempos soturnos acontecer é absolutamente priori-
que vivemos, afinal só daria mu- dade para termos um futuro, pois
nição ao inimigo. Essas avaliações, depois de um século de lutas de-
além de absolutamente equivoca- vemos dialogar com esta realida-
das, mostram o nível de descone- de e apresentarmos uma ofensiva à
xão das nossas vanguardas e dire- classe dominante para além da dis-
ções com a realidade da maioria do puta democrática burguesa.
povo. Não podemos crer que a dinâmi-
Qualquer preto de comunidade ca de vencer as eleições desenhadas

brasileiro sabe bem que a munição pelo próprio modo de produção seja
deles contra nós é infinita. Inde- o nosso teto de ação política. Essa
pendentemente da benção dos se- trincheira é importante, mas as-
nhores, somos nós que pagaremos sim como Mao Zedong nos alertava
com a vida nos pelourinhos moder- sobre o perigo de se enfeitiçar pela
nos - os postes de qualquer quios- flecha do método materialista e es-
que como o caso de Moise Kaba- quecer da luta prática, não pode-
gambe explicitam - por essa docili- mos cair nos encantos das urnas e
dade com quem nos fustiga. A ação esquecer da luta onde as relações de
do coletivo rendeu a prisão arbitrá- exploração e opressão se materiali-
ria de Paulo Galo e sua companhei- zam. A dureza que o povo enfrenta
ra, Géssica Barbosa. Galo repre- hoje com a carestia e o assédio de
senta o que é a classe trabalhadora doutrinas religiosas que oferecem
hoje. Preto, trabalhador entregador conforto diante do abismo não se-
de aplicativo, sem qualquer estabi- rão resolvidas apenas com uma
lidade ou direitos, duramente vi- maioria eleitoral que, como nos
giado pela classe senhorial. A partir provou a história, não se sustenta
da luta política se coloca como um por si só, diante de um Congresso
socialista. Um socialista brasileiro e de um Sistema de Justiça da elite.
periférico. Assim, é necessário recuperar o
Penso que se conseguirmos or- trabalho das nossas organizações
ganizar essa classe trabalhadora, de esquerda para a disputa dire-
a partir de suas múltiplas identi- ta, cotidiana, de corações e men-
dades; e fazer com que haja mais tes, aliando-o à disputa eleitoral.
Galos e Géssicas em todas as peri- Ampliar o alcance da ação política
ferias, teremos muita chance de as- também é uma tarefa importante

153
para tirar as nossas vanguardas do o esgotamento, mas não apontam
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

estado de docilidade que se encon- para nenhuma possibilidade além


tram. Diversificar nossas táticas de da distopia em si.
ação é imperativo, entendendo que É preciso então construir as
a tecnologia desempenha um papel condições subjetivas e objetivas
fundamental na contemporaneida- nas nossas organizações, para que
de. Não subestimar nossos inimigos a luta pela revolução socialista bra-
nem nosso potencial de organiza- sileira não seja apenas um futuro
ção e crer que é possível encampar inefável, mas um futuro constru-
uma luta socialista periférica como ído. A junção desses fatores com a
☭ imperativo de ação são compreen- piora sensível nas condições de vida
sões que precisam ser hegemônicas do povo permitem que a luta comu-
entre a esquerda nacional. Estudar nista seja colocada, de novo, na or-
de maneira profunda as experiên- dem do dia. É necessário, como diz
cias socialistas – tais como a chi- Clóvis Moura, refletindo sobre o
nesa, soviética, cubana, etc. – seus Brasil escravista, apostar na “re-
êxitos e contradições, assim como a beldia, [...] uma categoria socioló-
luta socialista africana e latino-a- gica dinâmica dentro daquele tipo
mericana é crucial para ajudar no de sociedade e servia não apenas
processo de formulação da teoria para equacionar, mas dinamizar a
necessária para suportar ações cada realidade”.
vez mais incisivas contra o Capital. Na incapacidade de exercitarmos
Nenhuma vitória é garantida, nossa rebeldia, seja devido às for-
mas no rumo que se aprumam nos- mas tradicionais e engessadas pelas
sas naus não podemos esperar nada quais passaram a operar as organi-
além de ciclos de algum amorteci- zações de esquerda, seja na forma
mento da chibata, nunca a sua des- de confrontar as classes dirigentes,
truição. O crescimento da chamada o futuro não se mostra como espe-
extrema direita, inclusive com a re- rado. O que se passará daqui a um
abilitação do nazismo, mostra que século depende das lutas desenha-
não há tempo para perder. Avançam das no presente. A história não está
os procedimentos de precarização e acabada e a classe trabalhadora tem
privatização de bens e recursos es- que ser protagonista para termos
senciais. A própria dinâmica da in- uma chance, enquanto espécie, de
dústria cultural investe em enredos recuperar o planeta e estabelecer-
cinematográficos que constatam mos uma sociedade materialmente

154
solidária e fraterna. 2012 a 2016. Brasília: Ministério da Saúde,

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


2018. Disponível em <https://bvsms.sau-
Se o exercício da vidência moveu de.gov.br/bvs/publicacoes/obitos_suici-
a humanidade em suas múltiplas dio_adolescentes_negros_2012_2016.
manifestações, esse texto não dei- pdf?fbclid=IwAR1JvKQIuNZNIT6s_
XKYEm6OiAUWfWH1toENITr1xUB1T-
xa de ser um exercício pretensioso
jV_wlWCeA1iBIM> Acesso em 20 de fev.
de futurologia. Mas, se algo é cer- de 2022>
to é que o sonho move as pessoas a
fazerem o impossível ser conquis-
tado. Qual apostador diria que a fa-
mília de monarcas mais rica da Ásia
seria subjugada pelo conjunto de ☭
trabalhadores esfomeados; quem
diria que um migrante pernambu-
cano que passou fome se tornaria
presidente; e que uma mulher negra
maranhense, como Maria Aragão,
seria médica e destacada militante
comunista. Quem é trabalhador luta
contra o impossível todos os dias.
Como o diário de Maria Carolina de
Jesus não deixa de lembrar, a bar-
bárie também é professora.
É nesse esforço que penso que
nosso futuro está atado ao papel
que desempenhamos agora. Revisi-
tando nossos acertos e erros, apro-
ximando nossa teoria das questões
centrais para o povo e construindo
as condições para que uma revolu-
ção periférica socialista seja o hori-
zonte.☭

Notas
[1] Cf. Brasil. Ministério da Saúde. Secre-
taria de Gestão Estratégica e Participativa.
Departamento de Apoio à Gestão Partici-
pativa e ao Controle Social. Óbitos por sui-
cídio entre adolescentes e jovens negros

155
Wladimir Pomar
é militante do PT. Autor de vários livros, foi coordenador do Instituto
Cajamar e da campanha Lula em 1989.
Wladimir Pomar
100 anos de fundação do primeiro
partido comunista no Brasil

A
história do surgimento, levaram a tal multiplicação orga-
organização e desenvol- nizativa, assim como a inúmeras
vimento do comunismo dificuldades.
no Brasil talvez possua particula-
Em vista disso, talvez fosse
res que o distinguem do comunis-
conveniente àqueles que, no Bra-
mo de inúmeros outros países do
sil, enxergam no comunismo uma
mundo. O que é natural, se levar-
perspectiva de futuro superior
mos em conta os processos desi-
para o desenvolvimento humano,
guais de desenvolvimento histó- social, político e econômico, re-
rico. alizar pesquisas mais profundas
Assim, talvez mais do que em sobre as deficiências apresentadas
diversos outros países, no Bra- pelas diversas correntes ideológi-
cas e políticas que se autodenomi-
sil não é difícil encontrar, ainda
naram “comunistas”, de modo a
hoje, várias das organizações em
encontrar as raízes de tais dificul-
que esse partido se desdobrou ao
dades e diversidade.
longo desse século de vida, assim
como conhecer os motivos que as Por exemplo, talvez fosse pro-

157
veitoso levantar como as diversas peso principal da economia brasi-
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

correntes comunistas analisaram leira tinha por base o sistema la-


o desenvolvimento da sociedade tifundiário (cafeeiro, açucareiro e
brasileira, pelo menos desde os pecuário), e a maior parte da força
anos 20 do século 20, e como isso de trabalho de então estava con-
influenciou a conformação de po- centrada nesses latifúndios agrí-
líticas correspondentes. Isso tal- colas.
vez seja um bom exercício para
Essa força de trabalho era for-
descobrir tanto os pontos avança-
mada principalmente por campo-
dos, quanto as deficiências que, ao
☭ neses arrendatários e meeiros, a
longo desse século de existência,
maioria dos quais vinha de famí-
levaram o comunismo brasileiro
lias que haviam vivido subordina-
a uma multiplicidade de correntes
das ao sistema escravista que do-
políticas.
minou a agricultura brasileira até
Não esqueçamos que a fundação 1889. O senador Vergueiro tentou
do Partido Comunista no Brasil re- uma experiência diferente, im-
sultou, basicamente, da influência portando trabalhadores livres eu-
da Revolução Russa de 1917 sobre ropeus para trabalhar nos cafezais
parte considerável da intelectua- de São Paulo no sistema de parce-
lidade, assim como das lutas dos ria. No entanto, os donos dos cafe-
trabalhadores da incipiente in- zais, inclusive o próprio senador,
dústria de então, localizada prin- não estavam acostumados a tra-
cipalmente em São Paulo e no Rio tar com homens livres trabalhan-
de Janeiro. E convém recordar que do para si, mesmo nessa suposta
essas indústrias incipientes em- forma de “parceria”. O mau tra-
pregavam muitos trabalhadores to, acrescentado à alta exploração,
migrantes europeus, grande parte levou os trabalhadores europeus a
deles influenciados pelo anarquis- um levante armado em Ibicaba.
mo, mas que enxergaram na Re-
Por outro lado, parte da popu-
volução Russa uma esperança de
lação rural das diversas regiões
libertação.
brasileiras descobriu que havia
Por outro lado, as indústrias regiões do país onde era possí-
de então não eram apenas inci- vel encontrar terras devolutas, a
pientes. Elas eram minoritárias no exemplo do norte do Paraná e de
universo econômico brasileiro. O algumas regiões de Goiás, e reali-

158
zar nelas uma atividade econômi- ria ou fabril, era então minoritária

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


ca independente. O que propiciou no conjunto da população brasi-
a formação de uma agricultura de leira, e a burguesia industrial era
trabalhadores livres em diversas insignificante no contexto nacio-
regiões do país ainda não ocupa- nal. O que, às vezes, induzia partes
das por latifúndios. do comunismo nacional a buscar
alianças com tais setores burgue-
Ou seja, bem vistas as coisas, a
ses, na perspectiva da dissemina-
economia brasileira dos anos 1920
ção no trabalho fabril assalariado.
ainda não era capitalista. A maior
parte da força de trabalho do país Por outro lado, os documentos ☭
ainda não conhecia a venda dessa comunistas da época indicam que
sua força como a forma principal a maior parte da população traba-
de existência e sobrevivência. E a lhadora, os camponeses sem-ter-
participação da burguesia indus- ra, arrendatários, parceiros, me-
trial nas classes dominantes era eiros etc., não tinha uma atenção
insignificante. política correspondente a seu peso
no país. E, em geral, não era pes-
Nesse sentido, convém lembrar quisada, nem mobilizada, como
que os anos 1930 e 1940 foram sa- força política capaz de realizar as
cudidos, pelo menos nas classes mudanças propostas pelos comu-
dominantes de então, majorita- nistas ou por outras forças políti-
riamente latifundiárias, por uma cas progressistas. Lembremos que
discussão sobre a necessidade, ou a Coluna Prestes se negou a aceitar
não, da industrialização brasilei- a incorporação de camponeses às
ra. Aliás, é tragicômico que, ain- suas fileiras.
da hoje, o latifúndio moderno, ou
Essa situação só começou a ser
o agro, se considere a “verdadeira
modificada nos anos 1950, quando
indústria”do Brasil.
o capitalismo desenvolvido (nor-
Também não se pode esque- te-americano, francês, alemão,
cer que as primeiras indústrias de japonês etc.) iniciou o processo de
porte, a siderúrgica e a de cami- globalização do capital e passou a
nhões, foram estatais, por inicia- investir pesadamente na indus-
tiva do governo Vargas. Ou seja, trialização de países onde a força
a principal base social do comu- de trabalho era mais barata, como
nismo no Brasil, a classe operá- era o caso do Brasil. O chamado

159
Plano de Metas do governo JK re- As greves e lutas operárias dos
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

presentou apenas a formalização anos 1970 e 1980 foram funda-


desse movimento inicial de glo- mentais para levar a ditadura mi-
balização do capitalismo, mas não litar a um impasse político. Por
chegou a promover uma situação um lado, para a burguesia, a ne-
que forçasse mudanças profundas cessidade de utilizar a democracia
na agricultura latifundiária. formal como sistema de governo
é imperiosa para contrapor-se às
Tais mudanças só ocorreram
propostas comunistas de demo-
durante a ditadura militar, nos
cracia popular. Por outro, qual-
☭ anos 1970, quando o processo de
quer ditadura que impeça a força
globalização capitalista intensi-
de trabalho de reivindicar condi-
ficou os investimentos no Brasil,
ções melhores de vida pode facili-
desencadeando uma intensa mi-
tar e estimular seu despertar para
gração da força de trabalho ru-
o comunismo.
ral para as cidades industriais, e
obrigando o sistema latifundiário Além disso, embora com parti-
a modernizar mecanicamente seu cipação minoritária comunista em
sistema produtivo, praticamen- seu desenvolvimento, essas lutas
te liquidando o arrendamento e a operárias desembocaram na orga-
meação rural. nização e fundação do Partido dos
Trabalhadores, em 1980. Objeti-
Ou seja, a ditadura militar, para
vamente, portanto, foi criada mais
criar seu fantasioso “milagre eco-
uma vertente, prática e teórica,
nômico”, foi obrigada a tornar o
a ser estudada e enfrentada pelas
Brasil um país majoritariamente
diversas correntes comunistas. E,
capitalista, criando a massa po-
embora possa haver dúvidas sobre
pulacional trabalhadora fabril, ou
se o PT possa ser definido como
operária, que é a base populacional
socialista, sua presença prática na
da perspectiva comunista. Base
vida econômica, social e política
que só amadureceu e foi capaz de
do país, como expressão da clas-
demonstrar sua força a partir dos
se trabalhadora, representa, para
anos 1970, quando as diferentes
a burguesia e seus representantes
tentativas comunistas de supera-
ideológicos e políticos, uma ame-
ção da ditadura militar através das
aça “comunista”.
lutas armadas urbanas e/ou rurais
já haviam fracassado. Dizendo de outro modo, 100

160
anos depois de seu surgimento vai ser capaz de responder aos de-

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


no Brasil, através da fundação de safios nacionais atuais e futuros,
um partido próprio, o comunismo especialmente aqueles relaciona-
continua presente e parece assu- dos com o desenvolvimento in-
mir diferentes modalidades para dustrial, científico e tecnológico, é
responder à diversidade dos pro- algo que só a história poderá res-
blemas nacionais.Saber qual delas ponder. ☭

161
Valter Pomar
é professor da Universidade Federal do ABC e
integrante do Diretório Nacional do PT.
Valter Pomar
Reflexões sobre 2122

P
or razões de ofício, li todos contribuição dada pelos vermelhos
os artigos deste livro antes a cada uma das conquistas políti-
de sua publicação. Portan- cas, sociais e econômicas do povo
to, não considero adequado utili- brasileiro em geral e da classe tra-
zar este meu texto para contraditar balhadora em particular.
esta ou aquela afirmação de quem Ao tempo que comemoramos,
aceitou o convite para participar da também devemos reconhecer que
coletânea 100 anos de comunismo no ainda não conquistamos nossos
Brasil. Interessados em saber meu objetivos estratégicos: soberania
ponto de vista a respeito, podem ir nacional, liberdades democráticas,
ao livro Comunistas do Brasil (Edito- bem-estar social, desenvolvimen-
ra Página 13, 2021). to e dar início à transição socialista
Noves fora as polêmicas, nosso continuam sendo metas a buscar e
agora centenário movimento co- a alcançar.
munista nacional pode e deve co- Os passos maiores ou menores
memorar muita coisa, desde sua dados em direção àquelas metas -
sobrevivência contra o ferro e o especialmente durante os gover-
fogo das classes dominantes, até a nos Vargas, Goulart, Lula e Dilma

163
– não tiveram continuidade, foram vas, a fatores externos? Será que
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

deformados e geralmente desmon- ainda não chegou nossa hora na fila


tados na reação subsequente a cada do pão? Ou não chegamos lá devido
fase de progresso social. ao fato de nossos objetivos serem
Aliás, no Brasil de 2022 ganha- simplesmente impossíveis?
ram novamente força vários dos Os artigos e entrevistas des-
dilemas que caracterizavam nosso ta coletânea tratam, direta ou in-
país em 1922. Cem anos depois, so- diretamente, de responder a estas
mos nação primário-exportadora, questões. Pessoalmente, a que con-
a política é disputada por oligar- sidero mais importante é a última.
☭ quias & militares, a questão social é Afinal, não tenho a menor dúvida
caso de polícia, sem falar de nossa de que seguiremos lutando e, por-
política externa de costas para os tanto, explorando todas as possi-
vizinhos. bilidades para materializar nossos
A almejada vitória de Lula nas objetivos. Mas se eles forem impos-
eleições presidenciais de 2022 não síveis, de nada ou de muito pouco
tem o condão de alterar, de per si, adiantarão nossos esforços. Neste
estas variáveis da equação. Eleito, o caso, na biblioteca da Fundação de
novo presidente assumirá o gover- Hari Seldon, os livros comunistas
no de um país sob vários aspectos acabarão acondicionados na mes-
muito pior do que foi no passado ma estante onde ficam os livros al-
mais ou menos recente. quimistas (aliás, com o perdão do
Os comunistas – e toda a es- trocadilho, finalizo este texto no
querda brasileira, comungue ou não dia em que Alckmin deixa de ser
com o objetivo final de uma socie- “socialdemocrata” e se converte
dade baseada na propriedade coleti- em “socialista”, mas sem deixar de
va dos meios de produção, sem clas- ser neoliberal e continuando a ser
ses e sem Estado, sem opressão nem um golpista).
exploração de nenhum tipo – volta Voltando ao ponto da “impos-
e meia debatem por quais motivos sibilidade”: a prova do pudim está
os objetivos estratégicos do nosso em comê-lo e, portanto, a única
movimento ainda não foram alcan- maneira de demonstrar cabalmente
çados. a possibilidade do comunismo será
Terá sido devido a uma linha a sua existência e, ademais, por um
política equivocada, a imaturidade tempo mais ou menos prolongado.
das condições subjetivas e objeti- Neste sentido, a discussão sobre a

164
possibilidade do comunismo tem Hoje, por exemplo, a situação

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


similaridade com as polêmicas so- ambiental, sanitária, social, eco-
bre a trajetória do Cosmos: trata- nômica, política e militar do mundo
-se de elaborar e testar hipóteses, inclui problemas insuperáveis nos
combinando experimentos parciais marcos de uma sociedade capita-
e abstrações cerebrais. Como é ób- lista. Aliás, “crise sistêmica” é um
vio, as respostas obtidas através dos nomes dados para a crescen-
deste método deixam sempre uma te contradição entre os problemas
grande margem de incerteza, que gerados pelo capitalismo em escala
muitos dos adeptos da causa ten- mundial e a impossibilidade destes
tam superar com um pouco de fé, problemas encontrarem solução ☭
muita esperança e altas doses de em uma ordem controlada por uma
utopia. Por sinal, tais elixires (fé, minoria e organizada pela acumu-
esperança e utopia) são insepará- lação de lucros.
veis de qualquer processo massivo Por outro lado, para cada um
de transformação social, mas limi- dos problemas componentes da tal
tar-se a eles acabaria transforman- “crise sistêmica”, existem soluções
do um partido político em uma seita disponíveis, graças ao desenvolvi-
religiosa milenarista. mento das forças produtivas da hu-
Os fundadores da tradição co- manidade. Evidente que o capitalis-
munista - Marx & Engels Co.- op- mo maximiza a dimensão destru-
taram por outro caminho: estudar tiva e desumanizante dos avanços
as tendências do desenvolvimento científico-tecnológicos, submete o
capitalista, à busca de provar duas trabalho vivo ao controle do traba-
teses fundamentais: 1/a de que as lho morto. Mas a cooperação, a ação
contradições do capitalismo criam coletiva, o planejamento, a ciência,
dificuldades crescentes e no limite a tecnologia, a produtividade, a en-
instransponíveis para sua reprodu- genhosidade e a sensibilidade da
ção e 2/a de que o desenvolvimento espécie humana podem ser liber-
do capitalismo cria a necessidade e tadas do objetivo do lucro e podem
a possibilidade de sua superação por ser postas ao serviço da vida. Ocor-
uma sociedade baseada na proprie- rendo isto, para citar Marx e En-
dade comum dos meios de produção. gels, chegará ao fim a pré-história
Estas duas teses foram confirma- da humanidade.
das pela história transcorrida desde A “crise sistêmica” expres-
então. sa, portanto, a contradição cada

165
vez mais profunda e cada vez mais Marx morreu em 1883, Engels
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

aguda entre – para usar os termos em 1895. Em 1917 triunfou a Revo-


clássicos - as relações de produção lução Russa. E, pouco mais de cem
baseadas na propriedade privada e anos depois da primeira edição do
o desenvolvimento das forças pro- Manifesto, partidos comunistas go-
dutivas baseadas na ação coletiva. A vernavam uma parte importante da
mudança é possível e principalmen- Eurásia e marcavam presença em
te necessária, pois ou colocamos as praticamente todos os países do
forças produtivas sob controle so- mundo, com maior ou menor in-
cial ou desceremos cada vez mais fluência. Mas as revoluções que le-
☭ ladeira abaixo (na expressão vintage varam ao poder partidos inspirados
de Engels, popularizada por Rosa: em Marx e Engels não foram vito-
“socialismo ou barbárie”). riosas naquelas sociedades onde
Enfim, o tempo deu razão para as as forças produtivas estavam mais
teses fundamentais de Marx & En- desenvolvidas. Em decorrência, as
gels Co. Entretanto, na boca do ano tentativas de transição socialista
de 2023, quando se completarão 175 iniciadas no século XX não foram
anos da primeira edição do Mani- simples, não foram rápidas, não fo-
festo do Partido Comunista, é forçoso ram pacíficas e nem foram tão de-
reconhecer que a expectativa de que mocráticas “para a maioria” como
o capitalismo faleceria rapidamente previam os defensores da ditadu-
era tão exagerada quanto o famoso ra do proletariado. E, talvez o mais
noticiário dando conta da morte de grave, a maior parte das tentativas
Mark Twain. de transição socialista iniciadas no
O Manifesto do Partido Comunista século XX não chegou viva ao século
data de 1848. Seus autores combina- seguinte.
vam uma visão de longo prazo com Em 1998, 150 anos depois do
grandes expectativas de curto prazo. Manifesto, haviam diminuído tanto
Mas o “espectro” que rondava a Eu- o território governado quanto o nú-
ropa era obra e graça de um número mero absoluto e relativo de aderen-
muito reduzido de pessoas. E as re- tes ao comunismo. Isso foi devido
voluções de sua época nunca ultra- ao efeito combinado do neolibera-
passaram o limiar burguês, com ex- lismo, da crise da socialdemocracia
ceção da gloriosa Comuna de Paris, e do colapso do socialismo soviéti-
que entretanto foi esmagada dentro co. Um quartel depois, há óbvias di-
das fronteiras da “cidade luz”. ferenças: 1/importantes mudanças

166
na composição da classe trabalha- o da abertura de um novo ciclo de

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


dora, com reflexos na sua atuação transições socialistas, que contri-
política e sua visão de mundo; 2/a bua para a superação definitiva do
crise sistêmica mundial, na qual capitalismo, mesmo que isso exija
tem destaque o declínio relativo décadas e séculos de esforço conti-
dos Estados Unidos; 3/a força e a nuado.
importância da República Popular Se pensarmos em termos de cur-
da China, ainda que parte da “Ur- to e médio prazo (portanto, se pen-
sal global” tenha dúvidas acerca sarmos em termos de anos e déca-
da natureza do regime chinês; 4/o das) e, claro, se desconsideramos
crescimento relativo da esquerda ☭
o gambito Posadas, os três cená-
em geral e dos comunistas como rios citados podem ocorrer de for-
parte disto, na região da América ma combinada e simultânea, como
Latina e Caribe. aliás vem acontecendo desde 1917:
Assim, neste ano de 2022, con- hecatombes bélicas, sociais e am-
siderando o retrospecto e o estado bientais + capitalismos com dife-
da arte, é preciso ser realista. Al- rentes doses de barbárie + variados
cançar nossos objetivos estratégi- tipos de transição socialista. O que
cos é uma das possibilidades, mas leva à seguinte pergunta: como de-
não é a única e – dadas as dificul- sequilibrar o jogo a favor da tran-
dades envolvidas – não é nem mes- sição socialista, tornando factível
mo a mais provável. Um dos futuros uma sociedade comunista mundial,
possíveis é a “destruição das clas- mesmo que no longo prazo?
ses em luta”, inclusive sob a forma Há várias respostas para esta
de uma hecatombe ambiental cau- pergunta, envolvendo diferentes
sada pela pressão brutal exercida tipos de articulação entre luta de
pelo capitalismo sobre a natureza. classes e luta entre Estados, mas só
Outro futuro possível é a continui- considero corretas as que incluem
dade - por mais algum tempo - do na equação pelo menos três vari-
capitalismo, o que pode ser dar sob áveis: a disposição revolucionária,
certas condições e variadas formas um anticapitalismo consciente e o
(falo a esse respeito no livro So- antimperialismo militante.
cialismo, publicado pela editora da Só as revoluções são capazes de
Fundação Perseu Abramo e reedita- superar a força inercial da explora-
do pela Editora Página 13). E há um ção e opressão de classe, de gêne-
terceiro cenário, pelo qual lutamos: ro e racial que marcam as socieda-

167
des humanas há séculos e séculos. nários que revelam baixíssima dis-
|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL

E embora as revoluções não sejam posição revolucionária, reduzida


fruto da vontade individual, elas consciência anticapitalista e abso-
não acontecem, ou acontecem mas luta confusão geopolítica.
não são vitoriosas, se milhões de Indo ao grão: para um novo ciclo
pessoas gente-como-a-gente não de transições socialistas ter maio-
estiverem dispostas a virar o mun- res chances de êxito, é preciso im-
do de ponta cabeça. por derrotas aos Estados Unidos. Afi-
Ademais, as revoluções não su- nal, o império ianque jogou papel
peram o capitalismo, apenas criam fundamental, em todo o século XX e

as pré-condições políticas para até agora, para a “estabilidade ins-
sua superação. A superação do ca- tável” do capitalismo. E mesmo em
pitalismo exige um esforço mate- declínio, os EUA continuam sendo
rial de longo prazo, orientado por um obstáculo poderoso. Portanto,
uma disposição social consciente. não há como superar o capitalismo
Não um desejo voluntarista, mas sem impor derrotas internas e ex-
a consciência dos passos necessários ternas ao capitalismo imperialista e
para construir uma sociedade como seu Estado militarista, messiânico
nunca existiu até hoje. e autoritário.
Por fim, mas não menos im- Este é um dos muitos motivos
portante, o capitalismo não é um pelos quais nossa luta na América
fenômeno nacional, mas mundial. Latina e o Caribe adquire uma im-
E o mundo não é plano, pois o de- portância estratégica, que trans-
senvolvimento capitalista é “desi- cende os nossos interesses diretos
gual e descombinado”. Por isto não continentais e brasileiros. Expulsar
basta pensar em termos de luta de os EUA da região que eles conside-
classes, é necessário pensar tam- ram seu quintal (“pátio traseiro”)
bém em termos de luta entre Es- é uma das principais contribuições
tados (que embora sejam expres- que podemos e devemos dar para a
são da hegemonia de determinadas superação do capitalismo. E não há
classes, são ao mesmo tempo um como ter êxito nesta tarefa, sem a
“ator” distinto das classes). contribuição do Brasil.
Neste ano de 2022, no plano Sendo assim, a luta da classe
mundial e nacional, há inúmeros trabalhadora brasileira pelo po-
exemplos de autoproclamados co- der, a luta por controlar o governo,
munistas, socialistas e revolucio- o parlamento, o sistema de justi-

168
ça, as forças armadas e policiais, ganização da classe trabalhadora,

|100 ANOS DE COMUNISMO NO BRASIL


os meios de comunicação, educa- deste ou daquele partido, até por-
ção e cultura, o sistema financeiro que não é o nome dos partidos que
e os principais meios de produção, define seu conteúdo: cem anos bas-
a luta por reunir as condições polí- tam para saber que há mais tipos de
ticas necessárias para reorientar a esquerdas (e de comunistas) entre o
sociedade brasileira em um sentido céu e a terra do que poderia imagi-
distinto daquele predominante há nar a nossa vã filosofia. Trata-se de
séculos, esta nossa luta é essencial uma tarefa a ser cumprida pelo par-
para o conjunto da América Latina tido no sentido histórico da palavra,
e Caribe e também essencial para o ou seja, pelos setores mais cons- ☭
destino do mundo. cientes e organizados da classe tra-
Precisamos chegar em 2123 di- balhadora brasileira. Neste ninho
zendo: cumprimos esta tarefa, atin- de mafagafos, melhor comunista
gimos (de preferência: “faz tempo, será quem melhor contribuir nesta
há décadas”) estes objetivos estra- luta. E se ao final tudo der certo, es-
tégicos. Não se trata, é bom dizer, taremos mortos, mas chegaremos
de uma tarefa desta ou daquela or- lá. ☭

169
Escola Latino-americana
de História e Política
Escuela Latinoamericana
de Historia y Política

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