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gênero e sociedade )

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A REINVENÇÃO DO CORPO
Este livro se ancora em histórias de vida de pessoas que
Berenice Bento
mudaram o corpo, cirurgicamente ou não, para se tornarem
reais, para não serem *aberrações; expressão comum entre os!as
transexuais, e sugerirá que as explicações para a emergência da
Sexualidade e gênero
experiência transexual devem ser buscadas nas articulações na experiência transexual
históricas e sociais que produzem os corpos-sexuados e que têm
na heterossexua/idade a matriz que confere inteligibilidade aos
gêneros. Ao mesmo tempo proporá que o suposto *transexual
verdadeiro; construído pelo saber médico, que tem como objeti-
vo final para implementaÇão da masculinidade/feminilidade a
realização das cirurgias de transgenitalização, esbarra em uma
pluralidade de respostas para os conflitos entre corpo, sexuali-
dade e identidade de gênero internas à experiência transexual. ,>
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centro
latino-americano
em sexualidade
e dirci'os humanos IMS
INSTITUTO
DE MEDICINA
SOCIAl
IS.fJ\1 x~ .. 617IOO 7

visite nosso site www.direitos-sexuais.org


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QN;vE~S l TARIA
Coordenação
Maria Alzira Brum Lemos

CONSELHO EDITORIAL
Bertha K. Becker
Candido Mendes
Cristovam Buarqu e
lgnacy Sachs
Jurandir Freire Costa
Ladislau Dowbor
Pierre Sala ma

A REINVENÇÃO DO CORPO:
3•J!@I sexualidade. gênero e sociedade SEXUALIDADE E GÊNERO
Dirigida por Maria Luiza Heilborn e Sérgio Carrara NA EXPERI ÊNCIA TRAN SEXUAL
Beren ice Bento
Coordenação Editorial
Jane Russo e Anna Paula Uziel
Assistente
Isabel Miranda

CONSELHO EDITORIAL
Albertina Costa
Daniela Knauth
Lei/a Unhares Barsted
Maria Filomeno Gregori
Mariza Correo
ParryScott
PeterFry
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Richard Parker
Roger Raupp Rios

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YNIV t! RSITÃAIA
·1er_~ç cj'e r~
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Cop yright IC d os autores


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Julieca Roicman

Projeto Grá fico de Capa e Miolo


Anna Amendola

Rev isão
Shirley Lima
Argemiro Figueiredo

Editoração Eletrônica
Miguel Papi [L erra & Imagem] Dedico esre Iivro a
Joel, Alec, Sara, Pedro, Carla, Maria,
Andréia, H elena, Manucla,Virória, Bárbara , João ,

//11/11~111!1111!1111JIIII!III~IIIIJIIIIJIIIIJIIIWI//11/ Kát ia, Patrícia, Marce la, C hus, Annabel, Marra

CIP-BRASIL.CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
DO SINDICATO NACIONA L DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

B42r

Bento, BereniCe
A retnvenç.J o d o corp o : sexualidade e gênero na e xperiência
transexual/ Berenice Bento. · Rio de Janeiro: Garamond, 2006
256p - {Sexualtdade. gt:>nero e sociedade}

Inclui btbllografta
ISBN 85 7617 100-7

1 Transexualismo. 2 ldenudade sexual. 3. Sexo (Psicologia) 4. Sexo


(D•fe ren ças). 5. Papel sexual I Titulo. 11. Serie. Apoio:
06-2S65 CDD 306.7
CDU 392.6

17.07.06 21.07.06 01 S384


FO R O FOUNOATION
\

AGRADECIMENTOS

Este livro é uma versão de minha tese de dourorado, defendida em


junho de 2003, no Programa de Pós-Graduação de Sociologia da
Universidade de Brasília/UnS . Professores , interlocurores, institui-
ções e amigos co n cribuíram para o resultado final deste trabal ho .
Agradeço à Professora Doutora Deis Elucy, minha orientadora,
por me ensi n ar que fazer sociologia é um desafio apa ixonante; às
Professoras Douraras Tânia Navarro-Swa in e Lourdes Bandeira, pe-
las críticas e sugestões fundamentais ao desenvolvimenro e conclu-
sões apresentadas; à Dourara Lola Luna, pelo apo io ao t rabalho de
campo na Espanha, e ao Professor Doutor Carlos Benedito Martins,
pelo apoio durante a qualificação da tese.
Agradeço à CAPES, pelo financiamentO da pesqu isa no Brasil, e
ao CNPq, pela bolsa-sanduíche na Espanha.
Agradeço à equipe médica do Projeto Tra nsexualismo/ Hospi tal
das C lí nicas de Goiânia, em especial à sua coo rdenadora, Ora .
Mariluza Terra.
Não seria possível ter levado esta investigação adiante sem o apoio
do antropólogo Pedro Paulo Gomes Pereira e do sociólogo Rica rdo
Barbosa, interlocutores incansáveis e pacientes .
O trabalho de campo na Espanha conwu com o apoio cie ntífico
e emocional do Or. Vicent Batailler, de Manolo Martin ez e Laura
Martinez. Agradeço a acolhida dos mi litantes do Coletivo Lambda
de Valê n c ia/Espan h a .
Agra d eço à minh a filhinh a Bárb a ra, que me acompanhou em
cada momenw desta cam inhada; à minha mãe Maria, por seu amor
incondicional; aos meus irmãos To nho, Branco, Neném, Lula e Vené.
Agradeço ao seu Olavo (in memoriam), à dona Tereza, O lavinho,
Zizia, Ritinha e Zczé, por todo carinho e a fero d e um lo n go e inten-
so convívio . SUMÁRIO

PREFÁC IO _ 11_

INTRODUÇAO 19

A CONSTRUÇAO DA PESQUISA 27

A INVENÇAO DO TRANSEXUAL 39

ESTUDOS DE GÊNERO: O UNIVERSAL,


O RELACIONAL E O PLURAL 69

109 ~
CORPO E HISTÓRIA

O TRANSEXUAL OF ICIAL E AS OUTRAS


TRANSEXUALIDADES 133

A EST~TICA DOS GtNEROS 161

CORPO E SUBJETIVIDADE 1 81 .,

EXISTE UMA IDENTIDADE TRANSEXUAL? 203

NOTAS FINAIS _22 7_

REFERtNCIAS BIBLIOGRÁF ICAS _ 237_


PREFÁCIO
Deis Siqueira

O que é gê nero? Como as id entidades de gêne ro se a niculam com a


sex ual id ade? Qual é a capac idade do su jciro em s u bverrer normas
de gê n ero? Estas questões poderia m est:H presentes de fornu mais
co ntunde m e nos esw dos feministas e nas renexões sobre relações de
gê ne ro.
f n esse sentido que a pesquisa de Bere ni ce Ben to atualiza pro-
blemáticas, ina u g uradas p elas femini stas, cen rradas em torno da
relação entre subo rdinação/op ressão/exploração das mu lheres. Isto
porque e la avança a discussão, direciona ndo debates: enfrenta, como
objeto de reflexão, a transexualidade.
f inevitável p onruar, para começar, que a autora n ão discute gê-
nero a pa rtir da referênc ia biológica, mas das performances que os
s uj e itos atua lizam em su as práticas cotidianas para serem reco nhe-
c idos co m o m e mbros legítimos do gên ero co m o qual se identifi-
ca m. Assim, a referência biológica, como princípio, é tomada, e la
mesma, como objero d e crítica sociológica.
Durante muiro tempo, os estudos sobre mulheres, em sua maio-
ria, foram prisioneiros d e uma dicotomia que limitou a compreensão

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c homossexua lidade let.::elcu::.:clt:.::u':.::"-----' A REINVENÇAO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERI~NCIA TRANSEXUAL

dos processos relac ionais, tensos, confl itu osos, centrados em torno feministas, partimos da opressão das mulheres . Fato histórico incon-
do masculino e do feminino. testável. Porém, a autora avança: a opressão se dá não apenas sobre as
Com base em uma leitura que identifica no patriarcado a expres- mulheres, mas há lugares infinitos de interlocuções/diálogos/possibi-
são única, ou primordial, da subordinação feminina, acabou-se por, lidades enue esses três lugares: fato sociológico incontestável. Não se
em boa medida, essencializar o fem inino e tendeu-se a construir um pode pensar gênero sem se pensar, simultaneamente em sexo e opção
outro radical, absoluto: os homens. sexual. E a reflexão também avança na possibilidade de interlocução
Foram os estudos mais detidos sobre as relações entre os gêneros enue as Ciências Humanas e as Ciências Médicas.
que apo n taram os limites dessa concepção binária. Passou-se a ob- Nesse lugar criativo e instigante, a aurora, exercitando o delicio-
servar que masculino e feminino se constroem re lacional1nente, em so lugar que nos oferece a Sociologia Crítica, desenvolve um rico,
contín uas disputas de poder. Portanto, foi a partir dos estud os de criativo e tenso debate com os teóricos que formularam reses sobre a
gênero que se pôde avançar na desnawralização e na dessencialização rransexualidade, as quais foram aceitas como cânones . Sobrewdo
das identidades de gê n eros . com as C iências Méd icas/Biológicas. O d ispos itivo da transexualidade
No entanto, qual o espaço que se reservou, nessas reflexões arti- (como Berenice nomeia os saberes que produziram as verdades so-
culadas durante décadas sobre as relações de gênero, para as traves- bre os corpos transexuais) é chamado à cena .
r is, os/as rransexuais, as lésbicas, os gays, os rransgêneros, e tan tas Ao discutir a transexualidade como conflito identitário, e não
ou tras experiências id entitárias? Onde habitavam esses sujeitos nes- como enfermidade, a aurora nos diz que o processo de organ ização
sas teo ri as e invest i gações~ Eles renderam a não fazer parte deste social das id entidades é o mesmo, tanto para transexuats quanto
universo conceitual. para não-transexuais. A norma de gênero repete que somos o que
Retomo aqui um pergunta que Berenice Bento se faz: até que nossas genirálias informam . Esse sistema, fundamentado na dife-
ponto o silêncio da Sociologia n ão conuibuiu para a parologização r(·nça sexual, nos faz acreditar que deve have r uma concordância
dos gên eros c das sexualidades que se organizam em divergência às entre gênero, sexua lidade e corpo. Vagin a-mulher-emoção-mater-
normas de gênero e à heteronormatividade? E até que ponto nossas nidade-procriação- heterossexual idade; pênis- homem-rac ional id ade-
dificuldades, de mulheres dominantemente heterossexuais e paternidade-procr iação-heterossexualidade. As instituições estão aí,
hegemônÍcas no movimento feminista inicial, as quais perduraram normatizando, policiando, vigiando os possíveis desl izes, os deslo-
por muiros anos, não se refletiram na construção acadêmico-cientí- camentos. Mas os deslocamentos existem. Apresentam-se .
fica das relações de gênero como objeto de estudo nas Ciências Mulheres que não querem ser mães, mulheres que amam mulhe-
Humanas? res, homens e mulheres bio lógicos que reconstroem seus corpos e
De que lugar cu falo? Do lugar de feminista- movime nro social/ luram pelo reconhecimento de suas identidades de gênero e tantos
inaugural militante - que, com muita luta, conseguiu transformar outros deslocamentOS que nos revelam a ficção de pensar que os
uma "militância" em "objeto científico". Falar de relações de gênero múltiplos desejos que nos constituem são oriundos de nossas estru-
no início dos anos 80, na Academia, era motivo de chacota. tu ras biológicas e hormonais. São rea is. E, portanto, objeto de refle-
Pois Berenice conseguiu, duas décadas depois desse nosso esforço xão sociológica .
feminista inicial, dar um salto paradigmárico. Ela indica novas pos- Ademais, o texto que segue nos informa como os sujeitos sofrem
sibilidades de reflexão sobre sexo, gênero e opção sexual. Porque seu quando tentam construir suas identidades mediante deslocamen-
trabalho garante, com competência, que são lugares distintos. Nós, tos. Afinal, está-se diante da eficácia de ficções. Talvez essa seja a

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h omossexua lid•de l•cclc-=.c
ul.c::tu-='•---') A REI NVENÇÃO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERI~NCIA TRANSEXUAL

maior con tribuição do u abalho d e Berenice: apo n ta r como as insti- mulheres rransexuais feministas, m ulhe res uansexua is despolitizad as,
tuições socia is, os o lhares inquisidores, os ins ulros, os prora<.:o los rransexuais que acreditam que a c irurgia os co nduzirá a uma humani-
m édicos c a escassez de catego ri as minimamente competentes para dade n egada, uansexuais que não querem a cirurg ia e a denunciam
signiflcar sen tim entos são tecnologias discursivas que alca nçam toda como u m engodo, rra nsexuais que reivi n d ica m exclusiva m ente a
a sua eficácia quando um sujeira o lha ao seu redor e co nclui: " Eu mudança d o nome e do sexo nos documentos.
so u um ano rma l. " O s uj eira localiza suas d o res excl usivamente em Desco n f ia r do conce it o d e identidade gene rali za nte e
s ua subj e tividade, n ão co nseguindo percebe r os dispositivos socia is problemarizar a universalidade da ·experiência u a nsexual foram a ti-
qu e atua m na produção dessa ve rdad e/lugar. tud es qu e pe rmitiram que Be re ni ce não se ancorasse no idênti co ,
P~tra a a urora, a desparalogização d a rran sex u a lid adc significa m as insis tisse na diferença. E é n este mom e nto, e m particular, gue
po li tiza r o d e bate, compreender como o p o d er da m ed ical ização/ n os s urpreendemos. Quando um entrevistado lhe afirma "sou
bi ologização das condutas sexuais e dos gêneros ressign ifica o peca- uansexu a l", a a urora não se limita a tomar como dado essa a firma-
minoso no a normal, deslocando o fo co d e análise do indivíduo para ção d e identidade e continua na busca do que sign ifica para aquele
as relações hegemônicas d e poder, as quais constroem o normal e o sujeiro "ser transexual". O diá logo e ntre a Socio logia e a Antropolo-
patológico . gia é um dos belos eixos do texro.
A eficácia das recnologias discursivas é apresentada ao longo de O processo d e desconstrução do rra nsexual universal empreendi-
rodo o livro. As falas dos informantes contam da im possibilidade d a d o pela autora m e rem ete ao pró prio processo d e problematização
ex istência de sujeiras que n ão se reconhecem em seus corpos. Bicho- da categoria "mulh er", empree ndido por várias teó ricas fem inistas.
d e-st>re-cabeças, mac ho-fêm ea, aberração da n atureza ... são algumas Mu itas d e n ós concluím os q ue "ser mulher" não era o bastante para
expressões qu e os cnnevisraJus utilizam para (entar enco ntrar uma se fa la r d e uma identidad e feminina. O faro d e comparrilha rm os
n omeação pa ra seu s sentimenras de d escontinu idade. No m ea r-s e d e ter m inad os atributos biológi cos, como a ca pacidade d e gerar, não
cransex ual não resolve o problema totalme n te. esgora as múltiplas posições que os s uj eitos mu lheres assumem nas
Ao lo ngo d e três anos, Bereni ce Ben to e ntrevistou rra nsexua is no rela ções socia is, quando se relaciona gê nero à opção sexual, à etnia,
Brasil, em Madri, Va lê n cia, Barcelona. O qu e poderia p a rece r um ao nível educacio nal, à rel ig ião, às cu lturas nac ionais e locais. Nesse
excesso , justifico-se quando ve mos eme rgir narrati vas que rem etem a p rocesso analítico , a identidade fem in ina frag m e nta-se e o gênero se
uma mu lt iplic ida d e de sign ificações para a rransexualidad e. Se um aprese nta e m rod a a s ua p lastic idad e. Passa m os a nos m ove r e m
dos objeti vos da aurora era desconstruir a idé ia d e um sujeito rra nsexual terre n os mais esco rregad ios, e m qu e o co nceito d e ide ntidade passa
universal, consagrado pelo d ispositivo da rransex ua lidade, ela logrou a n os orienta r de mane ira basta nte n ebulosa, a inda q ue c ria tiva e
êxito. Alguns pontos de unidade e ntre os suj eitos que vivem a experiên- in sti gadora.
c ia rr a nsex ual , tais como, o desejo d e rea li za r a c irurg ia d e Nesse se ntido, a contribuição do trabalh o de Berenice Bento é
rransgeniralização, não permite m concl uir a existênc ia de uma " iden- incontestável. No processo de desconsrrução do rran sexual univer-
tidade transexual" (genérica, absoluta , única) . sal, a autora d esen volve uma rica refl exão so bre gênero e sexua lida-
A auto ra prefere falar d e posi;:ões iden rirári as, apegos idenritários de. D e faro, a rransexualidade é uma ex periê nc ia gue está localizada
temporários, id e n t id a d es rizom áticas, di ve rs idade do s gê n eros. no gênero . As cirurgias de tra nsge nita lização e as o ut ras mudanças
Tra nsexuais lésbicas, transexuais gays, rransexuais que q u erem casar que aco mpanham o processo transexualizador nada revelam sobre a
e reproduzir o modelo d e mulhe r su b a lte rn a ou de homem viril, o rie n tação sex ual do s ujeito. A re ivindicação dos/as tra n sexu ais é,

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homossexualidade l•c:.lcu
::.:;lt:="':.::.•_ __J A RE INVENÇAO DO CORPO: SEXUALIDADE E GtNERO NA EXPER IÊNCIA TRANSEXUAL

sobretudo, o reconhecimento como membro do gênero com o qual difund ido entre nós, b rasileiros. A teoria da performance, de Judith
se identifica, o qual estaria em discordância com suas genitálias. Burler, articulada, c riativamente, com a teo ria praxiológica de Pierre
Co nfo rm e a au ro ra demons tra, durante muicos anos a homossexua- Bourd ieu, com as reflexões d e Foucaulr so bre sexualidade e biopoder,
l idade e ntre cranscxuais foi negada. O reconhecimento da a radicalidade do pensamento de Beatriz Preciado, a lém de um in-
transexualidade como uma questão de gê nero nos leva a reconhece r tenso debate com as formu lações de outras teóricas feministas como
que há muitas possibilidades de se fazer gê n ero, para além de uma Simone de Beauvoir e Scort, resultam em um d enso rigor
relação retilínea do tipo mulher-feminino, homem-masculino, c tam- interpretativo e cri ativo em interlocução.
bém a discutirm os os direitos sociais e políticos dos sujeitos que Não existe uma hierarquização entre teoria c trabalho de campo,
v ivem o gênero fora do binarismo, como são as t ravest is, os po rqu e um al imenta e é a li mentado pelo outro . Essa dialética é
transexua is, as rransexuais, os rransgê neros. pilar d a produção científica. Logo no iníc io da o bra, a autora lem-
Durante séculos, nós, mulhe res, fomos prisioneiras do império bra os percalç0s de sua pesqu isa e da tarefa n ada fác il d e repensar
biológico . Dizia-se que não podíamos ocupar os espaços de poder seu referencial teó rico a partir das info rmações oferecidas pelo cam-
no mundo público porque é ramos o que nosso útero dete rminava . po. Também, du rante seu trabalho, enfrentou, de faro, suas hipóte-
Afirmava-se que n ossa estrutura biológica nos co nform ava às tarefas ses, preferi ndo os cam inhos mais tortuosos e as incertezas na p rodu-
de p ouca comp lex idade . Nós, feministas, politizamos o discurso ção do conhecimento. Na verdade, é fundam ental q u e se registre a
médico, a pomamos o caráter ideológico de s uas verdades inexodveis. coragem de Berenice . E la não se limitou às opções teó ricas disponí-
Por s ua vez, movimencos que se organizaram em to rno da diversida- veis, até porque a própria escolha do rema foi uma grande surpresa.
de sex ual também artic u laram co ntra-d isc ursos à h ete ronorma- É importante lembrar que sua tese de doutorado, na qual se ancora
rividade, desvinculando a sexualidade d a reprodução. esta obra, foi a primeira na Sociologia brasileira a tomar a tran-
Nessas disputas, o que esrá em jogo é o próprio conceiro de hu- sexua lidade como "objeto" de estudo.
manidade. Não nos inte ressava pensá-lo como uma categoria abs- A publ icação deste livro ab re a possibilidade para que outras, mui-
trata, universal, mas feita de carne, osso c sangue e que encontra sua tas, pessoas entrem em con tara com as reflexões d e faro inauguradas
materialidade no conceito de cidadania. A humanidade pode en- pela autora . Tan to leirores interessados em avançar sob re as relações
con tra r na c id ada nia a possibilidade de existência, ou d e de gênero, ini c ialmente re presen tadas como " relações socialmente
inteligibilidade, como afi rm a Berenice. Direito ao trabalho, à edu- construídas entre homens e m u lheres" (feminismo), quanto sujeitos
cação e também à identidade de gênero, ao próprio corpo. que desejam melhor refletir as desconexões ent re seus desejos e
Há vá rios pontos de unidad e entre o discurso femin ista e o desencontros e os valo res hegemônicos. Sejam e les heterossexuais,
rransexual. O principa l, ao meu ve r, é a luta pelo direito ao próprio homossexuais, bissexuais, rransexuais ...
corpo. Às mulheres, até hoje, no Brasil, é n egado o direita ao abor- Para além das discussões teóricas, que são, realmente, de grande
to, por exemp lo. Na questão reprodutiva, a inda somos escravas do fôlego e, ponanw, parad igmáticas p ara as teorias feministas sobre as
n osso "destino b io lógico" . Os/ as rransex u a is também lutam para "relações de gênero", e do trabalho de campo consistente (o qLte lhe
sair de um destino existencial o rie ntado pela geniráli a. ga ran te sua cienrificidade), este livro convoca, convida, chama refle-
Trabalho de campo sem teoria é casa de palha. Ao primeiro vento xões em wrno dos significados da catego ria ou do conceiw de "hu-
forte, sucumbe. Esse perigo aqui não existe. Berenice Benta fo i bus- man idade" . Porque ele extrapola a especificidade temática, na me-
car nos teóricos queer campo de estudo e apo rtes teóricos pouco dida em que põe em debate os p róprios limites de um sistema

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homos<~:exual idadf! l·l~cu::_:lt:::u:.:••_ __J

classifi cató rio h egemônico, o qual estabelece que a humanidade deve


ser classificada em torn o do que são h omens e mulheres, tomando
como d ad o primeiro, para processar tal taxonomia, a d ife rença sexual!
genitália . O livro cumpre e atualiza o d estino da Sociologia C rítica,
pois denuncia que este sistema funcio n a para um n úmero reduzido
d e suj eitos. E, portanto, precariame nte .

INTRODUÇÃO

Marcela ca minhava com elegância pelos corred ores d o Hospital das


Cl íni cas d e Go iâni a. Provavelmente, quem a observasse não descon-
fi ar ia que aquele corpo carregava uma história de co nflito com as
normas de gê n ero e reivindicava uma intervenção ci rúrgica para trans-
formar o seu pênis em .vagina.
Marcela não com binava com o cenári o hospitalar asséptico, re-
forçado pelos jalecos bra n cos, pelas fisionomias dos pac ientes e a té
pela a rquitetu ra d escascada e f ria d os edifícios . Co ntrastava com
aquele cená ri o : lo ira, lo n gos cabelos caídos sobre os ombros, pele
clara e sem pêlos, os quase 1,80 m d e a ltura, ajudados pelos sap a-
tos de salto alto, magra, vestida co m uma saia preta que destacava
seu corpo bem d el in eado. Q u em poderia s u por que era uma
transex:ual?
Ao longo desta p esq uisa, foram muitos os momentos de espanto
diante de corpos pré-operados, pós-operados, harmonizados, dep ila-
dos, retocados, sil iconados, rnaquiados. Corpos inconclusos, desfeitos
e refe itos, arqu ivos v ivos d e histórias de excl usão. Corp os que
embaralham as fronteiras entre o natural e o artificiaJ, entre o real e o

18 19
homossex u alidade je~lc~
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••_ _....J A REINVENÇÃO DO CORPO: SEXUALIDADE E GtNERO NA EXPERitNCIA TRANSEXUAL

fictício, e que denunciam, implícita ou expl icitamenre, que as nor- funcionamento das normas de gênero e, ao revelá-las, cna um campo
mas de gênero não conseguem um consenso absoluro na vida social. contraditório de deslocamentos e de fixações dessas mesmas normas.
Em silêncio, as cicatrizes que marcam os corpos transexuais falam, No Brasil, as cirurgias estão restritas aos hospitais universitários
gritam, desordcnam a ordem naturalizada dos gêneros e dramati- c públicos. Para que o/a transexual possa realizá-la, deverá fazer par-
zam perguntas que fundamentam algumas teorias femi n istas: exis- te de um programa que estabelece regu lamentos para a sua vida no
tem homens e mulheres de verdade? O corpo é o delimitador das hospital. Essas regras se materializam em protocolos, que visam a
fronteiras entre os gêneros? O natural é o rea l? Existe um ponro de criar mecan ismos para a produção do diagnóstico final e, assim,
fixação e delimitação entre o real c o fictício? Se a ve rdade está no definir se a cirurgia deve ou não ser realizada.
corpo, os sujeiras que não se reconhecem em seus corpos ge n erificados A vida do/a transexual no hospital e a especificidade do "processo
vivem uma mentira, estão fora da realidade? Ma rcela seria, então, rransexualizador" serão discut idos no cap ít u lo "A invenção do
uma mentira, uma ficção, u m pastiche de mu lher? rransexual". Nesse capículo, argumentarei que o saber específico que
Este livro se ancora em h istórias de vida de pessoas que m udaram define, classifica, normatiza, formu la etiologias e nosologias e rem
0 corpo, cirurgicamente ou não, para se tornare1n reais, para não poder de decisão sobre as demandas dos/as rransexuais que dese-
serem "ab errações", exp ressão comum entre os/ as transexu a is. Suge- jam realizar intervenções em seus corpos pode ser e n tendido como
re, ainda, que as expli cações para a emergência da experiê n c ia um "dispositivo". Na primeira parte do capítu lo, esboço a história
rransexual devem ser buscadas nas articu lações h istóricas e sociais desse dispositivo; na segunda, a partir de fragmentOs pinçados do
que produzem os corpos-sexuados e q ue têm na hererossex u al idade cotid iano do/a rransexual no hosp ital , tento vê-lo em funcionamento .
a matriz que confere inreligib ilidade aos gêneros. Ao mesmo tempo, A interpretação que apresento da experiência transexual e a rela-
propõe que o suposw "transex u al verdadeiro", construído e çao que se estabelece com o poder/saber médico estão ancoradas nos
un iversalizado pelo saber médico, esbarra em uma pluralidade de estudos queer. Essa perspectiva teó rica argu~nentará que a dicotomia
respostas para os con Diros en tre corpo, sexualidade e iden t idade d e natureza (corpo) versus cultu ra (gênero) não tem sentido, pois não
gêne ro in ternas à experiência t ra n sexual. existe um corpo anterior à cu ltura; ao contrário, ele é fabricado por
A desco nstrução do "rransexual de verdade" e a despatologização tecnologias precisas . O corpo-sexuado (o corpo-homem e o corpo-
da expe riência são os objeti vos p r incipais des te livro, co n ceb id o ao mulhe r) que dá intelig ibil idade aos gêneros encontra na experiência
longo de um trabalho de campo que se efetivou em duas frentes : transexual seus próprios limites d iscu rsivos, uma vez que aqui o gê-
entre transexua is participanres do programa ofe recido pelo Hospi- nero significará o co rpo, revertendo um dos pilares de sustentação
tal das C línicas de Go iâ ni a para a realização da c irurgia de das normas de gêne ro . Ao real izar tal inversão, deparamo-nos com
transge ni talização e em um grupo de transexuais na cidade de uma outra "reve lação" : a de que o co r po tem sido desde sempre
Valência/Espanha. Os percalços e dilemas da pesquisa serão narra- gênero e que, portanto, não existe uma essência interior e anterior
dos no capítulo "A constmção da pesquisa". aos gêneros. Quando se problematiza a re lação dicorôm ica e
A un iversalidade do sujeito transex ua l desdobra-se e m tratamen- determinista entre corpo e gênero, outros níveis constitutivos da
tos" supostamente válidos para rodos/as transexuais. A defin ição da identidade se liberam para compor arranjos múltiplos fora do refe-
transexualidade como "transtorno" ou "doença" se baseia em uma de- rente binário dos corpos.
terminada concepção de gênero, transfigurada em etiologias. Pondera- As travestis, as drag queens, os gays, as lésbicas, os drag kings, os! as
rei que esta experiência põe em destaque elementos que revelam o rranscxuais têm sido objeto de estudo e intervenção de um saber

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A REINVENÇÃO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~N ERO NA EXPERI~NCIA TRANSEXUAL
homossexualidade l•~..::lc::_:ul::::<u:..:'"----'

que se orienta pela medicalização das condutas. No momenw em as normas de gênero . Argumentarei que a exisrência de relatos his-
que se quebra a determinação nawral das condutas, também se põe tóricos d e trânsito e mobilidades entre os gêneros não nos autoriza a
em xeque o olhar que analisa os des locamentOs enquanw sinromas considerá-los como exemplos que refo rçariam a tese da atemporalidade
de identidades pervcnidas, rranswrnadas e psicóricas. A radicalização da cransexualidade. Respaldarei essa hipótese em escudos que rela-
da desnawral ização das identidades, iniciada pelos eswdos e políti- tam a histó ria da construção do corpo dimórfico e tentarei respon-
cas femin istas, aponrará que a identidade de gênero, as sexualida- de r se é possíve l pensar a existência de transexuais em contextos
des, as subjetividades só ap resentam uma correspondência com o h istóricos nos quais o co r po era interpretado por meio do
corpo quando é a heteronormatividade que orienta o o lhar. isomorfismo.
No capírulo "Escudos de gênero: o universal, o re laciona] e o Se nesse capítulo vincu lo a transexual idade ao contexto histórico
plural", fa rei um percurso histó rico dos esrudos das relações entre que remonta à medicalização das condutas baseadas no sexo, no
os gê neros, com o objetivo de justificar por que foram os escudos capítulo "O cransexual oficial e as outras transexualidades", o foco
queer, principalmente a teoria da pe rformance, que contribuíra m reside no saber que fundamenta o "dispositivo da transexualidade".
para ft tndamenta r a hi pótese de que transexualid ade é Ltma forma Articulo as dive rsas teses sobre a origem e o "tratamenw adequado"
d e atualizar, nas práticas de gênero, interpretações sob re o masculi - a que devem ser su bmeridos os/ as rransexuais em d uas posições:
no e o feminino. uma de orientação psicanalítica e outra, biologista. Embora essas
O número de publicações sobre caso~ c teorias que tentam expli- posições proponham exp licações diferentes sobre a origem do "crans-
car a oriuem da tra nscxuali dade cresceu co nsideravelm.e n re a partir rorno" ou da "doença", aparenrando uma suposta disputJ. de s3be-
o
de meados do século XX. Sua inclusão no Código l nrernacional de res, sugiro a existência de um eixo unificador e n tre ambas: a d efesa
Doenças, em 1980, representa um momento del imitador de um da heterossexu:1l idade natu ral dos corpos.
processo qu e vinh<t se consolidando desde a década de 1950. Esta Ao aventar essa explicação, tenho por objetivo propor que o "dis-
inclusão foi comemorada pelos cienristas envolvidos na produção de pos itivo da transexualidade" é alimentado pelas verdades socialmente
provas que justi fi cassem o recon h ecimenw da t ransexualidade como estabelecidas para os gêneros. Isso me leva a sugerir que, na formu-
doença e i n terpret~da como um avanço da ciência, que, fina lmente, lação dos saberes que o estruturam, nada existe q u e seja conheci-
estava desvendando as origens de uma "doença" presente em wdos mento neutro. Os indicadores eleitos para medi r n íve is de feminili-
os te m pos e culturas. dade e d e masculi n idade presentes nos demandantes às cirurgias
No capítulo "Corpo e hisrória", argumentO que, ao se conferir são os mesmos adotados para medir as condutas de um homem/
um caráter universalizante e atemporal à experiência uansexual, ou uma mulh e r biológico(a).
seja, ao se apontar a exisrência de transexuais em v~rias culturas e A construção do "rransexual oficial" base ia-se na produção de um
momentos históricos, posição freqüente entre aqueles que estudam saber específico que o separou das travestis, dos gays e das lésbicas e
a t ransexualidade, despolitiza-se a reflexão , à medida que se constró i classificou os vários t ipos de rransexuais para se chegar à de te rminação
uma espessa co rtina de fumaça que não nos pe rmite observar nada final: o "rransexual de verdade" não apresenta nenhum "problema bio-
além do indivíduo, produzindo um efeito de ocul tamento das arti- lógico", mas tem certeza absoluta de que está em um corpo equivoca-
cu lações e das estratégias de poder que produziram o sujeito do. Segundo ~ssa concepção, a c irurgia para os/as transexuais seria a
rransexual universal. Essa canina só nos possibil ita enxergar o indi- única possibilidade pa ra encontrarem um lugar e um sentido
víduo como fonte explicativa dos co nflitos, preservando-se, assim, identitário. Avançando a reflexão, problematizo essa construção a

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homos u uc ualíd•d e l • l!.lc::,:ul~
tu!.!
• •_ __J A REINVENÇAO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPER I ~NC I A TRA N SEXUAL

parri r das narra tivas dos su jeiws q ue se d efi nem transevuais, mas q ue se u corp o, n ão se co ns ricuindo e m um p ro blc m ... 0/a "rransex ua l
e n contraram respo~tas para os con fl itos enrre corpo, subjetivid ade, oflc.ial", por sua vez: a) od eia seu corpo, b) é assexuad o/a e c) d eseja
gênero e sexualidade d ive rge m es d as universalizadas nos d ocu mentos rea liza r c irurg ias p a ra qu e p ossa exe rcer a sex u a lidad e n o rm a l , a
oficiais fo rmu lados pelo saber médi co. he rerosscxua lidad e, com o ó rgão aprop riad o . S ugiro, ao contrár io, que
Nos capítul os "A estética dos gê n e ros" e "Co rpo c su b je ti vida- e les/as n ão so lic ita m as c iru rgias mo t ivad os/as p ela sex ualidade ,
d e", po n ho em dú' ida, res pald a d a n as n a rr at ivas dos(as) tampo uco são assex uados/as: q uerem mudan ças em seus corpos pa ra
enrrevisrados(as), alguns dos cân o nes qu e fun da m enta m a d efesa do ter intel igibilidad e social. Se a socied ad e di vide-se e m corpos-ho m en s
"verd ade iro u a nsexua l". E m "A estética d os gê neros", discu ro a tese e co rpos-mulhe res, aqueles que não ap resentam essa correspo ndênc ia
segundo a qu a l o/a tra nsexual sempre teve " ho r ror ao seu corpo". Os fu n dante tendem a estar fora da categoria do humano. Aponto ainda
co n fl iros com o co rpo são precedi d os de uma etapa anterior, quando que a sexual idade não apresenta uma relação d ireta com a identidade
os/ as rra nsexuais, :~ind a crian ças , são obrigados/as a se vest ir c a se de gênero . Q uando dizem "sou um homem/uma mulher em um cor-
comporrar de a co rd o com o que se s upõ e se r o n a t ura l para seu po equivocado", não se deve interpretar tal pos ição como se estives-
co rp o-sexu ad o. S ugiro uma inversão da tese ofi cia l. A re lação n ão é sem afirm a ndo que se r mulher/ home m é ig ual a ser heterossexual. As
"te nho um p ênis/uma vagin a, por isso não p osso usar vestido/calça", his tó ri as d e mu lh eres rransexua is lés bicas c d e h o m e ns tra n sexuai s
m as "qu e ro usar um ves t id o/u ma calça. Por q ue não posso?" D essa gays indi cam a n ecessidade de inre rpre rar a ide ntidad e d e gênero, a
fo rm a, a estética d os gêne ros assume um papel impo rtant e.: na ex pli- sex ua lidad e, a s ubj e ti vidade e o co rpo co m o m o d a lidad es relativa-
caçã o d os conflitos. Seja qua ndo relatam s uas in fâ n cias ( mom ento ' m e nte inde pendenres no processo d e co ns trução das idenridades.
e m qu e s urge m os primeiros sinais d e insatisfação co m o gê n er o A tra ns ito ried ad e d e um co rpo que busca adquirir vida p o r inter-
irn posro), seja qu a n do rem a m se inseri r c se r reco nh eci d os co m o m éd to das catego rias mulhe r/ ho m e m implica um tra ba lho d e deli-
m e mb ros legítim os cio gê11e ro identificad o, a impo rtân c ia d a estéti- m itação c de d e marcação co m ourras posições idc ntitárias. Essa tran-
ca em e rge co m consid erável freqüência em suas narr:~ ri vas . Se o cor- sito ri t:d ad e p e rm ite pensar em um a id e ntid;~ d c tra nsexual ? Depois
po é insd vel, fl ex ível, rerocáycl, plástico , será uma csrétic3 apropri - d as mudan ças co rporais d esejadas, os/as rransex ua is s<.: deslocarão da
ada ao gê n e ro id entificad o que lhe conferirá legitim icbdc par::t tra n- ca tegoria transexual para a de home m ou mu lher? C orno a identidade
si tar na orde m di coto mizada dos gê n eros. d e gê n ero se relacio n a com as m u da nças corporais? 1-Iá ele m e n tos
O ca pírul o "Corpo c subj eti v idade" prossegu<.: a an áli se da tese co mparti lh ad os por todos/as tra nsexua is qu e nos au torizam a pen -
d o u a nscxual uni ve rsal, ro m ando-se como va riáve l a r<.: lação que os/ sa r essa experi ê n c ia em termos d e um a " ide ntidade" ? Sugiro qu e
as tra nsexu a is esta be lecem com seu corpo . A d esco be rta d o corpo- não há uma identidade rransexual , m as posi çõe~ d e ide ntidade, pon-
sexuad o e sua idenri fl cJção com o responsável p ela imposs ibilidad e tos de a pego te mpo rá ri os qu e, simu lta nea m e nte, fi xam e desloca m
d e d ese nvo lvere m as perform a nces com as qua is se ide ntificam são os sujeitos que v ive m a expe riênc ia tra nsex ual. Essas qu estões se tor-
na r radas por a lguns/algumas e ntrevis tad os/as co m o o momento da nam co m p lexas qu a ndo le mbram os q ue as mudanças corpo ra is não
revelação de u m segredo. O conhec im e nto do corpo-seXLtado im põe rê m fim. O uso co ntinuad o d e ho rm ô ni os, as pró teses e as cirurgias
aos/às rransex ua is a ra refa de elabo ra r se ntidos pa ra os seus con fl itos, p lásticas revelam o cará ter in co ncluso do processo de con s trução
entre eles, a leitu ra que farão de s uas geni tá lias. dos corpos faze ndo-se e m gê ne ro.
A relação qu e esses sujeiws p assam a estabelecer com as ge nitálias Esses p rocessos corpo ra is p o d e m ser pe n sad os com o metáfora
pode varia r da a bjeção até o reconhecime nto d e qu e fazem parte d o para a construção da identidade. Ser um ho m em / uma mulher implica

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homossexualidade )elc:.~u::.cltc::.u'c::."----'

um trabal ho permanente, uma vez que não existe uma essência in -


terior que é posta a descoberco por meio dos aros. Ao concrário, são
esses aros, corporais, estéticos e lingüísticos, que fazem o gênero. O
verbo "fazer" significa assum ir uma posição de gênero e, nesse pro- //
cesso, devem-se conscruir ma rgens discursivas de delimitação com
oucras experiên c ias . Nesse sentido, a construção das posições
transexuais efetiva-se, p artic ula rmente, por inrermédi o de sua deli-
mitação com os gays, a6 lésbicas e as cravesris.
Os p r ob lemas que envo lvem as identificações e as p os ições
ide nrirárias serão discutidos no ca pítu lo "Existe uma id entidade A CONSTRUÇÃO D A PESQUISA
transexual?" Na segunda parte desse capítulo, questiono como essas
posições interferem na construção da vida coletiva e d a ação políti-
ca. Sugiro que n ão é possível pensar em " id e ntidade co ler iva
rransexual", mas em "comunidade de emoções" próxima ao q ue
d enom ino " identidades rizomáticas", em razão de sua capacidade
pote n cia l de c r iar fiss ur as nas normas d e gênero de fo rm a
mui ti facetada. A história desra pesquisa pode ser dividida em dois momentos: o pn-
Em b ora as reflexões apresentadas objetivem desconstruir o meiro, quando estava investigando as narrativas d e pessoas que inte-
rransexual invenrado pelo saber médico, acrediro que não teria sido gram o Projero Transexualisrno, no Hospital das Clínicas d e G oiâ n ia;
possível desenvolvê-las caso o trabalho de campo se limitasse ao es- no segundo, aproximei-me d e militantes dos cole tivos de transexuais
paço hosp ilala r. Foi necessário sair desse espaço, enco n trar esses su- na Espanh a , principal mente do Grupo de Idemidade d e G ênero e
JCttos e m outros campos soctats, onde suas falas fluíram mais livre- Tran.sexualidade (GIGT) , com sede em Valência/ Espanh a .
mente . A posição presente nos documentos oficia is de que os/as
transexua is são "rransrornados" é urna ficção e desconsrruí- la signifi -
ca dar voz aos suj eitos que vivem a expenenc ia e qu e, em últim a A PRIMEIRA FASE DA PESQU ISA: A TRANSEXUALIDADE NO CONTE XTO
instância, foram os grandes silenciados . HOSPITALAR

E m julho de 2000, com ecei a pesquisar a expenen c ia rransexual. A


pergu nta mais freqü ente que m e faziam, ao longo do tra ba lho d e
campo, era o porquê d e uma soció loga estar interessad a em um rema
"tão esu a n h o". A pesquisa exploratória parecia indicar que, d e fa co,
o rema não era a p ropriado à Sociologia: a té aquela data, ne n huma
d isserração d e mes trad o ou tese d e d o u ro rado t ive ra como foco de
aná lise a ex p e riên cia rransexua l.'
1 Algu ns rr;tb;tlhos '! llt:: tangenc iam a quesc:lo d:1 transexu~l i dade fora dos 1narcos d:t J'vtedic in:l, d o
Dire-ito c lb Psicologi:t: Campos ( 1999) :tnalisa o dr:tma dos rransc xu ais que lutam conrra uma

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I
homos sexualidade e fc::.<"::.:'!::'"::..:":....__ _J A REINVENÇÃO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERI~NCIA TRANSEXUAL

As escassas publicações encontradas refe riam-se a reses e artigos Nos p rimeiros m eses de 2001, realizei vá rias entrevistas, que co-
v inculados ao Direito, à Medicina e à Psicologia.' Nes~e m omento, meçaram a apon tar para a impossibilidade de estabelecer uma rela-
qu estionei a v iab ilidade da pesquisa, embo ra a "curiosidade" em ção entre os s ign ificados que cada um atribuía aos gê neros e o tem-
conhecer as motivações qu e levam uma pessoa a faze r uma cJrurgta po de permanência no hos pi tal, mostrando que essa re lação causal
de rransgenicalização continuasse a incomodar. não rep resentava a muhiplic idade de his tórias e relações internas à
No Brasil, este tipo de cirurgia foi reconhecido em 1997, quan- experiência transexual apontadas e m suas narrati vas .
d o o C onselho Federa l d e Medi c ina (CFM) publico u Resolução Nesse momento, concluí que para co nstruir argumentos que se
autorizando os hospitais universitários a rea lizá-la e m caráter expe- contra pusessem aos do "transexual universal" ou d o "transexual ofi-
rime nta l. Antes dessa Resolução, médicos foram julgados p elo CFM c ia l", seria fundamental mostrar, media nte as próprias narrativas, a
p e lo crime de " mutilação" , tipificação atribuída às c irurgi as de pluralidade d e significados que ma rcam esta exp e riência.
rransgen ira! ização. A primeira parte da pesqu isa foi dividida em quatro momentos:
Em setemb ro de 2000, estabeleci o primeiro con lato com o
Hos pital das Clínicas de Goiânia (HCG) . Escava em curso nesse Primeiro (julho a nove mbro de 2000): primeiras viagens a Goiânia.
hospital a organização de uma equi p e de profissionais da saúde que Conh ecim ento do fun c ionamento do Projeto e rea lização das pri-
teri a co mo larefa ate nd er os/as demandantes às ci rur g ias d e meiras entrev istas.
rra nsge n i tal ização .
As primeiras enrrevisras , ainda na fase exploratória, foram reali- Segundo (dezem bro a janeiro d e 2001): imensificação das en trevis-
zadas no hospital. Em janeiro de 2001, o Projeto contava com 11 tas. Nesse m o mento , foram realizadas principalmente nos jardins
"ca ndidatos"' para rransge niralização de homem para mulhe r c um do hospital, local onde também fo i feita uma observação sistemática
d e mulher para home m. I nreressava-me pensar, ini c ialmente, os das relações ent re os/as transexuais panic ipantcs do Projeta e os
novos significados que eram construídos para o masculi no e o fem i- membros da equipe.
nino ao longo do tempo em que os/as demandantes freqüentavam o
hosp ita l e como o co rpo se articulava em relação à sua nova ide nti- Terceiro (fevereiro a maio de 200 1): s is tematização dos resultados
dade de gênero. No enra nro, esta hipótese fo i refutada no decor rer ob tidos , pa r ticipação d as reun iões da equipe e realização de a lgu-
da pesquisa, à medida que relativizei a importân cia do hospital c da mas entrev ts tas .
própria cirurgia na v ida dos/as transexuais.
Quarto (jun h o a julho de 2002) : intensificação das entrevistas, com
um número maior d e "candidatos/as" . Poucas entrevistas foram rea-
concepção dt: identidade legal que esrrutura seu orden:unento jurídico nos li mires fixos dos corpos- lizadas no h 0spiral. Inferi que o locus vinculava-me à equipe médica,
sexu:odos; M:.luf ( 1999) :~pont:~ as difercmes formas de rr:~nsform:~çóes e rr:onsposiçõcs das fromeiras
dos gê11eros; Silva ( 1993). cmbor:~ faça uma etnografia da realidade das traveS! i, da L:~pa carioca , o que não m e permi t ia ter acesso às informações d esejadas, princi-
reproduz. inlunc:rus encon tros e di:ilogos com (ravestis que rcali z:uam c irurgiac; de transgenimliz:tção, p a lmen te acerca das n egociações sobre o masculino e o feminino
m:.1s c1uc em nenhum n'lom enro se dcfinir:tm "transexuais"; o trabalho de Dcnizan ( 1997) com
rravestis do Rio de Janeiro também n5o diferencia rransexuais de: travestis.
que eles/as estabeleciam com os membros da equipe. A essa altura, já
2
Pora um.• leitura que abord., a tr:onsexuahdade sob uma per>pectiva médico-legal-neurobiolóp,oca, ver t in ha contato sufic iente com os/as entrev istados/as para propor que
Surrer. ( 1993); Verde. ( 1997); Vieir.o. ( 1996): Arat'ojo. (2000); Freiras. ( 1998) . as en trevistas fossem fe iras em suas casas. No enranto, a m aioria não
3
''Candid;no" é o non1e :nribuído pelo hospiral aos/às demand:1nres às cirurgias. Urilizo asp:ts como
um:1 marca de disrancian1c:nco do campo nH~dico·hospimlar. conco rdou, argumentando: "M inha casa es tá em obras", "Mo ro

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homossexui!lljdade le~.::l<::..:ult:;:u.:.:::'•-----' A REINVENÇAO DO CORPO: SEXUALIDADE E GENERO NA EXPERIENCIA TRANSEXUAL

muito longe", "Lá a geme não poderá conversar direito", "M inha A SEGUNDA FASE DA PESQUISA: O GRUPO DE IDENTIDADE DE
família é mu i to preconceituosa". Escolhíamos O litros lu gares: GÊNERO ETRANSEXUALIDADE (GIGT) DE VALÊNCIA/ESPANHA
shopping centers, bares, os jardins da pousada onde fiquei hospedada
Ao longo de 11 meses (de setembro de 2001 a julho de 2002),
durante aqueles meses. Percebi que sem o mínimo de lastro de con-
conheci a realidade da transexualidade espanhola, embora seja de-
fiança não conseguiria conhecer a experiência transexual. Muitas
masiado simpl ista falar de "uma realidade" espanhola, uma vez que
vcz.es, quando iam fazer críticas aos membros da equipe, baixavam o
as questões políticas e culturais que marcam a história desse país
rom de voz, numa forma delicada de pedir para que o gravador fosse
repercutem na problemática da transexual idade. Atualmente, exis-
desligado. Essas críticas só foram feitas por aqueles que, de alguma
tem seis entidades que compõem a Federação Espanhola de
forma, desvincularam-me do Projero Transexualismo.
Transexuais: Asociación de Mujeres Transexuales de Catalunya (Bar-
Visitei aloumas
b vezes as casas de Maria, Kátia, Vitória e Pedro.
celona), Colectivo de Transexuales de Catalunya/Pro-derechos, (Bar-
Além de observar que em suas res idências, as entrevistas fluíam mais
celona), Transexualis (Madri), Centro de Identidad de Gênero (Gra-
livremente, conhecê-las foi importante para traçar um perfil
nada) , Soy como Soy (Gijón) e o Grupo de Identidade de Gênero e
socioeconômico da população que participa do Projeto. Todos/as
Transexualidade (GIGT), em Valência. Foi principalmenre no GIGT
vivem em meio a grandes dificuldades econômicas, quadro que se
que o trabalho de campo se desenvolveu.
agrava quando passam a fazer parte do Projeto, uma vez que os com-
A escolha do GIGT deve-se a a lgumas especificidades: a) É um
promissos com a rotina estabelecida no protocolo dificultam, quan-
grupo que faz parte de uma estrutura o rganizacional mais ampla, o
do não impedem, que pro curem ou tenham empregos com horários
Lambda, no qual transitam gays, lésbicas e bissexuais. Perguntava-
rígidos . Como disse Bárbara, uma das "candidatas" : "Nesses dois
me como a demarcação com os gays e as lésbicas, tão presente nos
anos, v ivo d e bico. Como posso trabalhar, sendo que tenho que vir
discursos dos entrevistados no Brasil e que aparece na literatura es-
ao hospital e à terapia às vezes duas vezes por semana?"
peciali zada como uma dist inção fundamental ("o t ransexual não é
As mudanças do local das entrevistas me fizeram concluir que,
um homossexual", afirmam), efetivava-se; b) Parecia uma contradi-
se as realizasse exclus ivamente no espaço hospitalar, apenas conse-
ção o fato de transexuais estarem no mesmo coletivo que pessoas que
guiria chegar à atualização das representações sociais em seus dis-
se organizam em torno da identidade sexual, uma vez que são as
cu rsos . Para notar as fissuras, as contradições entre as idealizações e
questões de identidade de gênero que, essencialmente, os/as carac-
as performances, objetivo teórico qu e se foi delineando aos poucos,
ter izam . 0/a rransexual pode ser heterossexual, homossexual ou
seria necessário. utilizar outros campos de observação e registro.
bissexua l - isso não abala o sentimento de não-pertencimento ao
Nos primeiros encontros, eram claros os elogios ao Projeto, assim
gênero em que seu sexo o/a posiciona; c) Os participantes mais assí-
como o reconhecimento da melhoria de suas vidas depois que passa-
duos do GIGT eram t ransexuais masculinos, inclusive seu coorde-
ram a freqüentá-lo. "Nossa, tudo melhorou depois que eu entrei no
nador, Joel Mandonavo, o que contrastava· com outros coletivos e
Projeto", era o depoimemo mais comum . Com o crescimento da con-
com a própria população com a qual eu vinha t rabalhando no Bra-
fiança, as críticas e as insatisfações começaram a emergir, ou simples-
sil, formada basicamente por Transexuais femininos, e d) o GIGT é
mente passou-se a esboçar o cansaço com a rotina de exames.
um grupo que assume no próprio nome a perspectiva de gênero, o
que o posiciona politicamente corno vinculado aos debates em ror-
no das questões de identidade, não se limitando de modo exclusivo

30 31
homossexualidade l•c::l'u=.:l:;::
l u:;::'"---.J) A RE INVENÇÃO 00 CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERi eNCI A TRANSEXUAL

aos temas médico-sanitários. As ques tões médico-sanitárias referem- coincid iam com as na rranvas das transexuats femin inos e dos mas-
se à gratuidade das c irurgias, aos protocolos m éd icos, aos hormônios, cul inos: a mulher de verdade deve "dar-se ao respeito", "não deve ser
temas que, ge ralmente, individualizam os problemas e fragmentam vulga r", "não romar a iniciativa da conqu ista". O h omem deve
a discussão. ser "forre, ter iniciat iva e ser sexualmente ativo".
Durante os meses de outub ro, novembro e deze mbro de 2001, Nessa primeira fase da investigação, encontrava nesses discursos
fiz u m mapeamento das pessoas que freqüentavam as reuniões se- a descrição feira pela literatura médica, p rin cipalmente a ps icanalí-
manais com mais constân cia para realizar as entrevistas em profun- tica, sobre os t raços com u ns entre os/as rransex uais: eles/as não só
didade. Estas começaram em janeiro de 2002 e, em junho do mes- reproduzem os estereótipos de gênero, mas os potencial izam .
mo ano, foram concluídas. Paralelamente, continuei a partic ipar das O conv ívio mai s próximo com algu n s/algum as "cand ida tos/as"
re uniões do Grupo. levou-me a desco nfiar de uma aparente homogeneidade e ntre e les/
as e uma rerilin e idad e e n tre o n ível discurs ivo e o n íve l prático. A
tím ida mulher transex ual entrevistada pela primeira vez no hosp ital
A CONSTRUÇÃO TEÓRICA DA PESQU ISA
transfo rmava-se em uma coquere quando via um "homem in te res-
Acerquei- m e da experiê n c ia transex ual , na prime ira etapa da p es- san te" passa r. A i nsinuação, os o lhares, a troca de telefones e ram
quisa, buscando compreender que representações sociais do mascu- compo rtame ntos muito co mu ns. As visitas às resid ências revelaram
lino e do feminin o organizam suas s ubj etividades em um co ntexro que controlavam suas vidas e eram independ entes.
hospitalar. Estava respaldada nos estud os de Sergc Moscovici (1978) A necessidade de repensar os pressupostOs teó ricos que s us tenta-
e de Den ise Jodelct (200 1). vam 3 pesquis3 foi aguçada quando comecei o trabalho de ca mpo n o
Tanto em Moscovici qua nto em Jodeler, a preocupação está em G I GT. Nesse espaço, o sujeiro uansexual que norteia seus d iscursos
e n con trar os elementos que estru turam h egemonicamente 3 vida c suas pdt icas por um referencial único e homogêneo do que seja o
social. E mbora 3 reori3 d3s represe n tações soc iais dista nc ie-se rel ati- masculi no e o femini no , como se houvesse um núcleo central que o
vamen te da esco la soc iológica francesa, sobretud o em relação às re- m o ldasse, foi posto e m xeq ue . U m a p lura lidade d e ex pe ri ênc ias
ses das representações coletivas (D urkhe im , 1993), re to rna 3 elas transexua is co nv ivia: transexuais fem ininas lésb icas, transexuais mas-
quando o foco de aná li se prio riza o estudo dos m ecani s mos d e re- cu linos gays, transexuais qu e não q uere m fazer a ciru rgia, mas que
produ ção da vid a social. Juram pela mudança do regis tro civ il , nar rativas, en fim , qu e des-
lni cialme nte, propus-me a estudar "as represent:Ições do masculino monla ram quaisquer possibilidades de se trabalh a r com a cen tralidade
e do femin ino na experiên cia transexual" e o rgan izei o roteiro e m fun- d3 categoria rep resentação socia l, sem nenhum a prob lemarização
ção d essa premissa teó r ica. As respostas eram, d e faro, as espe radas. ma is radica l dos níve is de des locamentos e contradições que mar-
Parecia que a hipótese segundo a qual a transexual idade é uma experiê- cam suas biografias. O fato de se sugerirem ponros de conve rgê ncia
ncia reprodutora dos estereótipos de gênero se confirmava. As respos- enrre uma narrativa e outra não é s uficiente para conclui r que haja
tas mais freqüentes e ram: "Eu m e sinro mulher, choro por qualquer um núcleo cemral de representação sobre o masculino e o feminino
coisa"; "Sou muito romântica", "É bom ser homem , porque, se eu ficar compartilhado exclusivamente e da mesma maneira por aqueles que
com mais de uma menina, não vou levar nome. A mulher é presa". vivem a experiência transexual.
O feminino aparecia referenciado na maternidade e o mascu lino, A teoria das representações sociais pe rmitiu que se ch egasse ao
na viril idade. Essa co n ce pção gerava alguns desdobram~nros que nível da reprodução dos "estereót ipos de gê ne ro". O problema está

32 33
homosse Kualid ad e l•t.:lcc::.
ul:.:.;tu:.;.<>:,.__ __,) A REINVEN ÇÃO DO CORPO: SEXUALI DAD E E GtNERO N A EXPER i tNCIA TRANSEXUAL

em comar esse nível d iscu rsivo como algo cristalizado, sem con rra-
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34 35
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ENTREVISTADOS/AS NO BRASIL

Manuela 21 Goiás Vive com o namorado. Católica Cabeleireira Ensino básico com-
pleto
Vitória 21 Goiás Vive com o namorado há dois Católica Secretária Ensino básico incom-
anos pleto
Bárbara 30 Goiás Vive só Orfã de mãe O pai não Católica Cabeleireira Em fase de conclusão
assumiu a paternidade do curso profissio-
nalizante de enfer-
magem
João 19 Goiás Vive com a namorada Os pais Católico Técnico em Ensino médio
desconhecem que deseja en ferm agem completo
mudar de gênero
Kátia 31 Goiás Vive só Orfã de pai aos 12 anos Ca tólica Doméstica Ensino básico
Não tem contato com a família incompleto
Pa trícia 2S Norte· Vive em casa de parentes Não Evangélica Cabeleireira Ensino básico incom·
americana tem contato com os pais pleto

Marcela 2S Goiás Vive com o namorado Católica Cabeleireira Ensino médio com-
pleto
--------

Nome Idade Natural Situação familiar Re ligião Ocupação Escolaridade


(anos)
Joel 2S Bolívia Vive com a irmã Sem relig ião Moto boy Ensino médio com-
pleto
Alec 30 Espanha Vive sozinho Orfão de mãe Sem religião Professor de Terceiro grau completo
ing lês (Literatura inglesa)
Chus 21 Espanha Vive com a namorada Are- Testemunha Técnico agri- Ensino médio com-
lação com os pais é ten sa de Jeová mensor pleto
(não prati-
cante)
Anna bel 44 Espanha Separada Vive com a na mo- Sem religião Engenheira Terceiro grau com-
rada Tem dois fil hos de formação. pleto (Engenharia)
Desempregada
Marta 30 Espanha Vive com a mãe Católica Professora de Terceiro grau com-
Informática pleto (Licenciada em
Informática)
\

A INVENÇÃO DO TRANSEXUAL

Este capítulo tem com o objetivo ap resentar e problematizar os cnren-


os defin idos nos protocolos méd icos para a produção do diagnóstico.
Dividiremos as di scussões em duas partes. Na primeira, há uma apro-
x imação das d efin ições consagradas nos docume n ros ollciais' que de-
terminam o s procedim e n ros que devem se r seguidos para a pro-
dução do d iagnóstico. Na segu nda, ve re mos como esses proced i-
m e ntos são vivenciados no cotidiano hospitalar pelos/as cransexuais.
A n tes, porém, faremos um breve ap arrado histórico, com o objetivo
d e contextua lizar a problemát ica transex ual.

UMA APRO XIMAÇÃO HISTÓRICA

Em 191 O, o sexó logo Magnus H irschfeld utili zou o t e rm o


"rransexualpsíquico" pa ra se refe rir a traves tis fetichistas (Castel,
200 1). O termo voltou a ser utilizado em 1949, quando Cauldwell

' S:io considerados d <'cumentos oficiais aqueles formulados pela Associação lncern3cional de Disfori.1
de Gênero Harry Bc:nj:1mi n e os da Associaç:lo Psiquiátrica An1ericana.

39
I
homossexualidade e c:=ul.:.:tu::_:.a:....__
c:l __J) A REINVENÇ ÃO D O CORPO: SEXU ALIDADE E GtNERO NA EXPERitNCIA TRANSEXUAL

pub li co u um estudo de caso d e um rra nsex ual masc ulino . Nesse o gê n ero e a identidade sex ual se nam modificáveis até os 18 meses
t rabalho, são esboçadas alg umas característi cas que viriam a ser con- d e idad e.'
si d e radas excl us ivas dos/as tran sexuais. Até então, n ão havia uma As teses d e Mo ney, no entanto, não eram da determinação d o
n írida separação ent re uansexuais, travestis e homossexuais. socia l sobre o natural, mas de como o social, mediante o uso da ciên-
Na década d e 1950, co m eçam a s urg ir publicações q ue regis- cia e das instituições, poderia assegurar a diferença d os sexos. Segun-
tram e defende m a especificidade do "fenômeno transexua l" . Essas do ele, o desenvolv imenro psicossex ual é um a "conrinuação do desen -
reDexões podem se r consid eradas o início da construção do "disposi- volvime nto embrionário d o sexo . Único entre os dive rsos s istem as
tivo da transexu a lidade". 1 funcionais do desenvolvimento embrioná ri o, o sistema reprodutor é
A arti culação e ntre os d isc ursos teó ri cos e as prattcas regulado- sexualmente dimórfico" (Mon ey e Ehrhardt, s.d: 2 1). A aparência
ras dos corpos ao longo das décadas de 1960 e 1970 ga nhou v isi- do s genita is e ra fundamenta l pa r a o dese n vo lv i m e nto da
b ilidade co m o su rgimento de assoc iações intern ac ion a is, que se heterossexualidade, po is "as bases mais firm es para os esquemas de
orga ni zam pa r a pro du zi r um conhe cime nro vo lt ado à tr a n - gê nero são as diferenças entre o s gen itais femininos e m asculinos c o
sex ualidade e pa ra discut ir os meca nismos de construção do di ag- comporta mento reprodutor, uma base que nossa cultura luta para
nós ti co diferenciado de gays, lésbicas e travestis . Nota-se que a reprim ir nas crianças" (apud Colapinto, 200 J: 109).
prática e a teo r ia ca minha m juntas. Ao m es mo tempo em qu e se A co ns t rução do canal vag inal nas cria nças inrersexuais n ão era
p ro du z um saber específico, são p roposros mod e los ap ropriad os simples m e nte destinado à pro dução de um ó rgão: diri g iam-se so-
pa ra o " t ratamento". b retudo à p r escrição das práti cas sex u a is, um a vez que se defin e
Em 1953, o endocrinol ogista a le m ão rad icado n os Estados Un i- como vagina o orifício qu e pod<:: receber um pên is, confo rme apon -
dos H arry Be nj a min retoma o ter m o util izado por Cauldwell, apon - tou Preciado (2002). Qua ndo Money fo rmulou s uas teses sobre a
ta ndo a cirurgia como única a lte rnativa te rapêuti ca possível pa ra os/ estrutu ra natu ralmente dimórfica do corpo c a h ete rossex ua lidade
as transex ua is. Essa pos ição se contrapunha aos profiss ionais da sat't- como a prática n o rma l d esse corpo, n ão previu que a lg umas dessas
d e m enta l, sempre reticentes às inte rven ções corporai s como a lter- m e ninas intersexuais seriam lés bicas e reivindica riam o uso alterna-
n a tivas terapêut icas, consideradas mutilações por muiros psicana- t ivo d e se us órgãos.
listas. No arrigo "T ransvestism and T ranscxualism", Benjamin ( 1953) As fo rm ulações so bre a perrin ê nc ia d e interve nções nos corpos
ataca v io lentamente to d o tra tamento ps icotera p ê u t ico, so bre tud o ambíguos dos inte rsexos e dos transexuais terão co mo matriz co-
psica n alítico, da transexualidade e do u avest is mo. mum a tese da h eterossex ua lidad e natura l. Embora as teo r ias d e
Jo h n Money, professo r d e psicopediarria do Hosp ita l Unive rsitá- Money tivesse m como foco empírico principalmente as ci rurgias d e
ri o Jo hns Hopkins, esboçou, em 195 5, suas primei ras reses sobre o d efinição de um sexo em b eb ês h e rmafroditas, suas teses terão um
co nceito de "gênero", apoiado na Teo ria dos Papéis Sociais d o soció lo-
\
go Talcott Parsons, aplicad a à diferença dos sexos. A conclusão a que
l DuranH.' déc;_td~ts, o nlodelo de i ntc:rvenç:io Clrthgic:t em bebês hermafrodiu~. conl resrMido n as
chegara Money não poderia ser, apa rentemente, m a is revolucionária:
tcori;b de Moncy, reuniu um considcr.ivel .tpoin d.t comunid;lde cienrífica internacional. Os recurso::.
tc r;tpêuticos que Moncy u~Jv;t par~1 produz.1r crn crianças ci rurgi.t&ts ··comportamen tos ~u.Jcc1uad os" ,\
seu sexo. principal n1e nrc rdCrcnres ao controle de suas sexual idades. passaram a ser denunci;tdos por
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Segundo Foucau lc dispositivos "s:lo form;tdo::. por um conjunto heterogênc:o de pdCicls di~<.:urs1va.; militantes de :tssociaçõc:::s de inrersexo),, que lutavam conrr;\ a práric:t cotnum nos hospit;tis
e n:io discur.sivas que posf.iuem uma funç:lo esrrarégica de dominação. O poder disciplinar ob(ém su;t :tnu:r i c~1no::. de realizar ci rurgi;\S em crÍ<~IlÇI::. q u e n ..tsci:tnl cont gen it:\li:1.s am bíguas. Sobre as c irurgias
cficicia da :lSSoci;tç:io enrrc os di~cursoç re0ricos e as práric:ts regulador a~" (Fouc:1.uh. 1993: 244). e " critÍC.IS, ver Cohpomo (2001).
A REIN VENÇAO DO CORPO: SEXUALIDADE E GÉNERO NA EXPERI ÉNCI A TRANSEXUAL
homossexualidad~ Ie <::::ul.:..:<u::..:••:___
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peso fundamental na formu lação d o di spositivo da rransexualidade, "disforia d e gênero", ' termo cunhado por John Mo ney em 1973.
princ ipalmente nas teses da Associação I nternacion al de Disfori a de A HBIG DA legitimou-se como responsável pela normatização
Gênero H arry Benjamin(HBIGDA ) . Conforme o próprio Money, do "rrata m e nro" pa ra as pessoas transexuais em ro do o mundo. O
livro El ftnómeno transexual, d e Harry Benjamin , publicado em 1966,
até 1966, o conceito de gênero havia sido aplicado ao forneceu as bases para se diagnosticar o "verdadeiro" rransexual. Nesse
hermafroditismo por Money (1955) em expressões como 'papel de livro, são estabelecidos os p arâ metros para avaliar se as pessoas que
gênero' ou 'identidade de gênero' ou 'identidade/função de gênero: c h ega m às clíni cas ou aos hospitai s sol icitand o a c Hurg 1a são
O conceito de identidade de gênero ficou inseparavelmente ligado "t ra nsexu a is de ve rdade".
à transexualidade quando, em 1966, o Hospital John Hopinks Esses d ocume ncos ge raram desdobra m e ntos m icro e macro . Os
anunciou a formação de sua Clínica de Identidade de Gênero e a desdobramentos mic ro referem-se à form a como um /a rransexu al
sua primeira cirurgia de mudança de sexo (Money ap ud valo ra outro/a tra nsex ual. Os de ca ráter m acro são aqueles que se
R amsey, 1996: 17). refe re m à compreen sã o qu e as in s titui ções t êm das pessoa s
Duas grandes verrenres d e prod ução d e conheci me nto se encon- rra nsexu ais, prin cipalmenre a justiça e a medici n a, que, d iante d as
tra m na tem ática d a rransexual idade: o desenvolvime nto de teo ri as d e mandas para a muda nça dos documenros e/ou dos corpos, fazem
sobre o fu ncionamentO endocrinológico do corpo e as teo rias q ue des- avali ações sob re su as femini lidad es/masc ul inidades.
tacaram o papel da educação na for mação d a identidade d e gê n ero.
Estas du as conce pçõe!> produziram explicações distintas para a gênese A CONSTRUÇÃO DE UM CAMPO CONCEITUAL
d a transexualidadc c, co nseq üentemente, ca minhos próprios para o ESPECÍFICO PARA A TRANSEXUALIDADE
seu "rraramento" . No e ntan to, a disputa de saberes não co ns t ituiu
impedim e nto para que uma visão biologista e o utra, apa ren tem e nte A desco nstru ção d o caráter patologizanre atrib uído pelo sabe r o ficial
co nst rutivista, crabalh asse m j unras na oficial ização dos protocolos e à expe riê n c ia rransexual deve com eçar p ela prob lema tização da lin-
nos centros d e transgcnira lização. Mo ney, por exemplo, que sempre guagem que cri a c localiza os sujeitos que vivem essa experi ên c ia.
destaco u a impo rtância d a educação para a form ação d a identidade d e
gê nero, defendia a hipó rese "ainda por se r investigada [de que a ori- 4 P:H:I (l :1companhanu: nro dos docu merH O!'> e <.b h is tória da HfHGDA. consulr:tr: hnp:/1
ge m d a rransexua lid ad e está em uma] anomalia cerebr<~ l que a lte ra a www. h bigd a.org. hn p :/ / www.sym posion.con11i; r/ben ja rni n c In rp:// www. gend erc:1 re .corn.
s Segundo Ki ng ( 1998), :\ utiliLIÇ:io do nome .. disfo ria" ceve como objerivo d c nlarcar e ddin1imr o
imagem sexual do corpo de forma a torná-la incongrue nte com o sexo cm1po do ~aber n1édico com :1 populari·lação que o rermo "1ransexualismo" adquiri u. A HBI G DA
dos geni tais d e nascimento" (Mo ney apud Ra m sey, 1996: 19). defi ne ''disforia d e gênen,l" c on1o "aq uele cst.H..fo p sicol<lgico por m e io do qu:tl un1a p csso:1 d cn1o n s rr-;1
ins:u isf:tção con1 o !!>CU ~cxo cungên iro e com o p.• pel sexual. ral como é socialn1c1HC definido,
A d écada d e 1960 é o momento em q u e as formulações come-
consignado p:1ra csrc sexo, c que requer urn processo de redcsignaç5.o sexual c irlngica e ho rmonal"
ça m a te r d esdobrame ntos p ráticos, p rinc ipalmenre com a organ i- ( Ram ~ey. 1996: 176) . No Cód igo Internacion al de Doenças (C ID). a rra nsexualidad c apa rece no

zação d e Centros de Identidade d e Gê n e ro , n os E stados U nidos, capítulo ""Transtornos de Personalidade da lden~id.1de Sexua l"". assim definido: ""Transexualismo:
I
tra ta·~e de un1 desejo d e viver e ser aceito enquanto pessoa d o sexo oposro. Esre desejo se aco•np;nha
voltad os para atender exclusivamente aos /às rran sexu a is . em geral d e um sentime nto de m:tl-esrar ou de i n adapr~l ç:lo por re fc rênc i ~1 :1 seu p róprio sexo
Em 1969, realizou-se em Londres o p rime iro co n g resso da Harry an.Hôtnico e do desejo d e submeter-se a um:l int('rvenção cirlargica ou a um rr~uamcnro h ornlonal :&

fim de tornar seu corpo r:io conforme quanto possível ao sexo desejado"" (h n p:/1
Benjamin Associa t io n , qu e, em 19 77, mud a ri a seu nom e p a ra www.ps iqwcb.med .br/cid/persocid.h tml). As definições da HBI GDA e d o CID são basicunenre ,.,
H a rr y Be nj amin lnte rn at iona l Gende r D ys pho r ia A ssoc ia tion me,nus. A tuiliz...,ç:io Jo nome ..disforia" parece também rer rido como objerivo de;n~ucu ca1npos
de dispuu e n cre os s;~beres internos ao disposi rivo d;t r ransexu:1lid :~ dc.
(HB I GDA) .• A transexualidad e passou a ser considerad a uma

42 43
homossexua lid ade let.:.lcu::.:.lt:.::.":.::'"---' A RE INVENÇÃO 0 0 CORPO: SEX U A LI D A DE E G (N ERO NA EXPERI(N CIA T RANS EXUAL

"Transexualisrno" é a no rnenclatura oficial para definir as pessoas suficiente pa ra lh es garantir um sentido de identidade, e e les não
que vivem urna contradição enue corpo e subjetividade. O sufixo re ivindicam, portanto, as CJrurgtas de transgenitalização.
'' isrno" é denotativo de condutas sexuais perversas, como, por exem-
plo, "homossexualismo". Ainda na mesma lógica da parologização ,
QUANDO DIZER É FAZER
o saber ofic ial n omeia as pessoas q u e p assam pe lo processo
rransexu::dizador de mu lher para homem, de "rransexuais fem ini- A discu ssão sobre os " batismos conceitua ts" re m ete às reflexões de
nos", e de homem para mulh e r, de "uansexuais masculi n os" . Segun- Ausrin (1990) sobre a capacid ade de a linguagem criar rea lidades.
do esse raciocín io, mesmo passando po r rodos os p rocessos para a Para esse a u tor, é necessário apontar q ue a linguagem não tem so-
construção de signos corpo ra is socialmente reconhecidos com o per- m ente a função de descrever a realida d e, deve ndo ser com preen d ida
tencentes ao gên ero de ide ntificação, os/ as rra nsexu ais não co nse- como uma m o d alid ade p rodutora d e realidad es. No caso da lingua-
guiram desco lar-se do dest in o b iológico, uma vez que o gênero que gem c ie nt ífi ca, a ta refa de desvelame n ro d essa fu nção é consideravel-
signi ficará "tran sexual" será o d e nascimento. mente complexa, po is sua eficácia consiste na idéia da suposta capa-
A nomenclatu ra oficial re to m a à essen cialização q u e a p rópria ex- cidade da ciência em descrever uma d ad a realidad e de for ma n eutra.
periência rranscxual nega e reco rda rodo rempo q ue e le/ela nu nca será Q uan do Austin afi rma que se d evem examinar as palavras vin -
um ho mem/u ma m ul her de ''verd ade". Quando uma tra nsexual fe- cul ando -as a de term inadas situações , p rovoca um des locam ento do
mi nina afirma: "Eu sou u ma mu lher. Tenho q ue ajustar m eu corpo", e ixo de a n á lise d a palavra como u n idad e por si só gerado ra de sen ti-
e u m médico lhe nomeia como "transcxual mascul ino", estará citando do para re lacioná-la aos co nrexros em q ue são geradas. Esta proposi-
as normas de gênero que estabelecem que a verdad e do s ujeito está n o ção inse re-se ern sua tese d e q ue há uma classe de palavras q ue n ão
sexo. Em bora os movimemos sociais de mili ram es transexuais e a lgu- represen ta a realidad e, mas lh e dá v ida . Veja mos alguns exe m p los
mas reflexões teóricas afirmem q ue a questão d e ide n tidade é o q ue sugeridos po r A ustin .
deve p reva lecer na h o ra da nomeação, a linguagem cien tífica, por m e io Nas dec la rações "Ace ito esta m ulhe r co m o m inha legít ima esp o-
d o batismo con ceitual, reto ma a natu ralização das id entidades . sa", " Batizo este n av io com o nome d e Ra inha El izabe th", "Aposto
Util izarei "rra nsexuais fem in inas" ou ";nulheres rran sexu ais" pa ra cem c ruzado s como vai chove r" (Aus tin , 1990: 24), está se fu n da n-
me referir aos sujeitos q u e se de fi nem e se sentem como mu lheres, c do u ma ex p ectativa po r m eio d o ato da fala. Austin ch a m a rá essas
"rransexua is masculin os" o u "homens t ra nsexu ais" pa ra os q u e se ex p ressões o u classe d e p a lavras de "perfor ma ti vas"<· caracte ri zad as
defin em e se sentem com o pertencentes ao gênero m asculino . Q ua n- por sua fo rça criad o ra de realidades .
d o afi rmo que os c ritérios aqui estabelecidos panem das sub je t ivi- Pa ra A u stin , n em rod as as d ecla rações ve rdad eiras ou falsas são
da des dos p róprios sujeitos e de suas na rrativas, não estou levan do desc rições; p refere co nsiderá-las cons ta tativas (po r exemplo, q u a n -
em conta o fato de terem se submetido a u m a ciru rgia, o u o d esejo do algu é m diz: " H á um livro em cima d a m esa") . D iferentemente
de realizá-la, como critério para esta no m eação . das consta tativas, há um tipo de exp ressão q ue se disfarça não ne-
O trabalho de campo revelou q ue há u ma p lura lidade de inter_.. cessa riamente como d ecla ração factua l, d escr it iva ou co nstatativa.
pretações e de constr uções de sentidos para os confl itos e ntre o cor-
po e a subjetividade nessa experiência. O que faz u m sujeira afirmar
6 O termo "pc:::rfO rm:tnce" t! derivado do i nglês ro pcrjOrm, verbo cor rel::uo do Sllbslantivo ação e indica
que pertence a outro gênero é u m sent ime n to; para mu itos
que, ao e1nirir u ma evoc.1ç;\o, csd se re:diz.:tndo uma ação, não sen do consider:tdo corno equivalenre
transexuais, a transformação do corpo por m eio dos h ormônios já é <.l dizer :tlgo.

44 45
homossexualid;:sde c"'u'-'ltuc.-•_•_ __ ,
ot '-'1
A R EINVENÇÃO D O CORP O: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERI ~NCI A TRANSEXUAL
I

O que pode parecer esuanho é que isso ocorre exatamen te quand o a e possibilita a existência desse "e u"." Quando se diz "uan sex u al",
expressão lingüística assume sua forma mais explícita . Quando se não se está descrevendo uma situação, mas produzindo um efe iro
d iz "Aceiro", não se está d escrevendo um casamenro, m as casando- sobre os confliros do sujeitO que não encontra no mundo nenhuma
se. O aro da linguagem, sob essa perspectiva, não é uma representa- categoria class ificatória e, a partir dai, buscará "compo rtar-se como
ção da realidade, mas uma interpretação construtora de significados. 'rra nsex ual'".
A usrin chamou essa caracte rística da ling uagem de "capacidade O saber médico, ao di zer "tran sexual", está citando uma concep-
perform át ica". Burle r (1993 e 1999) fará uma leiwra da ob ra de ção muiro específica do q u e seja um/a transexual. Esse saber médico
A u stin , vin culando-a a s u as refl exões sobre as identidades de gê n e- apaga a legitimidade da p luralidade, uma vez que põe em funciona -
ros. A teoria d a linguagem d e Austin e a teoria da ci tacionalid ade de menro um conjun ro de regras consubstanciado nos prorocolos, que
Derrida (1991) a rticulam-se com outras co ntribuições teóricas, en- visa a en conuar o /a "verdadeiro/a transexua l". O ato de nomear o
tre elas a da genealogia do sa ber e do poder de Foucau lt (19 93, suje ito de transexual implica pressuposições e s uposições sobre os
200 l e 2002), para propor uma teoria sobre os processos d e cons- aws apropriados e os não-ap ropriados que os/as transexuais devem
trução dos gêneros. awalizar em suas práticas.
O insulto seria um dos atos performativos mais recorre ntes d e
produção das subjetividades de gênero. Para Buder (2002), esses
atos ling üísticos são modalidades de um discurso a utoritário, uma A CONSTRUÇÃO DO DIAGNÓSTICO DIFERENCIADO
vez que estão envolvidos em. uma rede de aurorizações e ca$tigos. O O diagnóstico de cransex ualidad e é realizado a partir d e uma exaus-
poder que tem o discurso para realizar aquilo que nomeia esri rela- ti va avaliação, qu e inclui um histó ri co complero do caso, testes ps i-
cionado com a pe rtormati v i d::~dc, ou sej:1, com a capacidade de os cológicos e sessões de te rapia.
atos ling üísti cos c itarem reiter:ldamente as nornus de gê nero, fa- O "tra tame n to" e o d iagnóstico da transexualidade adotados nas
ze ndo o poder atuar co mo /e no d iscurso.7 comissões de gênero ou nos programas de cransgeniralização se ba-
Quando o saber médico nomeia a experiência rransex ual a par- seiam em dois documentos: nas Normas de Tratamento da HBTGDA
tir d a natura lização, esrá c ita ndo as normas que fundamentam e
co n stroem os gêneros a partir d o dimorfismo. Quando se definem
R Budcr ( 1997) analisa as "Novas dircrriz.es po! íricas sobre os homosscxu~i.s no exérciro an1ericano",
as característi cas dos transcxuais, universalizando-as, determinam-
publicadas t:m 19 de junho d e 1993. nas quai~ es{~Í t:Stabelecido que a o rientação sexual não sed um
se padrões para a avaliação da ve rdade, ge rando hierarq uias que se obstáculo, :t rnenos que o n1ilirar assuma publicamenre sua co nd ição. Segundo Buder, as pabvras "sou
esuururam a parri r de excl usões . homossexual" n :io são apenas descririvas: realiz:tm o que descrevem. n:lo só no sentido de qut:
consri rue!ll o cn1issor como homossexual, m as tan1bén1 consrirucm o enunc i:1do como "candura
Conform e propôs Butl e r, onde há um eu que enuncia ou fala, homossexu~d" . O mi litar que fiz.er referência à su:t condiç5.o homossexual incorrcd em conduca
p roduz indo um efeiro no discurso, existe um discurso q u e o precede homossexual. o que scr:.í pcnaliz:1do com a exclus:'lo. Dccbrar-sc homos~ex u al não é :~pcn':l.s uma
represcnr:tç5.o de sua condu{a, uma condura ofensiva, ma.s a própria conduta. T~uuo as mulhere~
qu.1nto os honn.:ns n5o podem falar de su;1 holnossexu:tlicb.de porque Íslo ~ignificaría pôr en1 perigo
:1 tn:uriz. hc:rerossexual que:: as!)egur~l a subordinaç1o do gênero. A pai:lvra, cn(;ÍO. st: converte e m um
7
É Ítnponanu.: destacar que h;i m u it:ts formas de proferir o insulto, inclusive ins(irucionalnlente. Na "ato", n:t. medid:t en1 que seu proferimen{o circunscreve o social, o segredo e o ~ilênci o, pilares que
língua inglesa, :1s qualificações Jc gênero s:i.o muito especificas e rígidas_ Os pronome~ h~ e she (ele t;aranccrn a reprodução dos modelos hcgcmõnicos. Daí :l.S polílicas queer ctr:-tctcriz~ucm-sc pela
e ela) qualificam :~pena~ seres humanos, e a rudo ma is csd reservado o pronome ir. Em :1lguns CS(ado s expliciLlÇáo dos insulros, convertendo-os em elen1entos paro1 a consrruçfto de.: posições idcnridrias,
;Hncrictnos (na Flórida e no Missouri, por exemplo ), os/as rransexuais s5o classificados como it. Par;t
além Jc: Oll{ras fonnas de atuações políticas conc r eta~. enrre eL1s m:-tnifest:lçôes püblicas que
o Estado, des/:1s sin1plesmen(e e~{áO fora da c:negoria "ser humano". Sobre as demandas jurídic:t5 c vi!>íbil izam carícias e afetos enrre os gttys e as lésbicas, objerivando quebr:tr os !>Íiêncios q u e guardarn
;ts COIHCIH_bs por her~1nça que essa nonleaç5o lcm gerado, ver :1 revista !Jto é (6/3/2002). us segredos legi[in1adores d:1s exclusões.

46
47
homossexuillidade lec:lcc::;ulc,:
t u"-'•--~) A REINVENÇAO DO CO RPO: SEXUALI DADE E G~N E RO N A EXPERI~NCIA TRANSEXUAL

e no Manual de Diagnóstico e Estatísticas de Distúrbios Mentais (DSM)'' A TERAPIA HORMONAL


da Associação Psiquiátrica Americana (APA).
Todo/a "candidaro /a" deve romar os hormô nios apropriados para
A APA passou a incluir a transexualidade no rol de "Transtornos
modifica r as características secundárias do seu corpo. São admi-
de Identidade de Gênero" em sua terceira versão (DSM-III), em
nistrados androgênios para os rransexuais masculinos e
1980, mesmo ano em que se oficial izou a retirada da homossexua-
progesterona ou estrogênio para as transexuais femininas, em quan-
lidade desse documento. A rransexualidade apa rece na nova seção so-
tidades variadas .
bre "D istú rbios de Identidade de Gênero", junto com "Distúrbios de
Pa ra alguns especialistas, o/a "candidaro/a" só deve começar a
Identidade de Gênero da Infância" e "Distúrbios de l dentidade de
romar os hormôn ios depois de estar freqüentando as sessões de
Gênero Atípica".
psi coterapia por algum tempo. No P rojeto Transexualism o, depois
O processo rransexualizador é com posto pelas extgencias que os
de real izados os exames ge ra is, inic ia-se imedi atamente a tera pia
Programas de Redesignificação'" definem como obrigatórias para os/
hormonal.
as ''candidatas/as". Os protocolos irão concretizar essas obrigatoriedades
q uanto ao tempo de terapia, à te rapia hormonal, ao reste de vida real ,
aos testes de personalidade, além dos exames de rotina. Se o/a "candi- 0 TESTE DE VIDA REAL
dato/a" conseguir cumprir rodas as etapas e exigências estabelecidas,
Consiste na obrigaroriedade d e o/a "candidato/a" usar, durante rodo o
estará apto/a à Cirurgia de rransgenitalização.
dia, as roupas com uns ao gênero identificado ." O teste de vida real
começa já na ad m issão do/a "cand idaro/a" no Programa.
TEMPO DE TERAPIA

Todo/a "cand idato/a" deve submeter-se a um período de te rap ia . Os TESTES DE PERSONALI DADE
Recomenda-se que esse tem po seja o suficiente para que não pa irem
'I Têm como objetivo ve rificar se o/a "candidato/a" não sofre de ne-
dúv idas na equipe quanto aos resultados e não h aja arrependimento
nhum tipo de "Transtorno Específico da Personalidade". " Os testes
do/a "candidato/a" depois da ciru rgia.
ps icológicos ma is uti lizados são o HT P, o MMPI, o Havcn e o
Seguindo uma tendência ince rn aciona l defendida nos docume n-
Rorschach.
tas oficia is, no Projeto Transexualismo o tempo mín:mo exigido é
de dois anos. No entanto, ao final desse tempo, não sign ifica que o/
a "can d idato/a" estará auto m aticamen te apto/a à cirurgia. A equ ipe Os EXAMES DE ROTINA
médica poderá concluir que ele/a não é um/a t ransexual.
Conjunto de exames a que o/a "candidaro/a" é submetido, são eles:
hemograma, colesterol total, uiglicérides, g lice mia , TGI-TGO,
9 A !ICXf:l vcrsfto do Dingnostic rtrtd Sultiuirnl Mmrunl o[Meutnl DiJo1'ders (DSM) encontra-se: disponível,
Bilirrubinas, VD RL, H IV, HbsAG, Sorologia para vírus da Hepartite
en1 e.)panhol. 1u home po1gc hup://www.hum::mo.ya.cornhr~ln~exualidade/ C, imunofluorencência para T. a, PRL, Testosterona li vre, FSH, EAS,
10 ""Rcdc<ignificaç5o" é o nome ado1ado ofici.>lm~nte pcb HBIGDA para as in<crvcnçõcs cirúrgic.>s nos/
contagem de colônias (urina e antibiograma), ECG, raios X de tó rax,
.1) u~utsexuais. T.unbém é usu:1l JU esfera médica a express:lo ''mudanç:t de sexo". Aqui scd utilizada
.t cxprcso;:lo "tr.tllsgenitaliz:tç;i.o" ou simplcsmence "cirurgiJ corretiva" para ess:ls incer vençõcs, por
con!l idc r:tr que as reivindicaçõe:. dos/as tran.:. exu:~is .)C fund ame nt:J.m na reversão de un1~1 assignaç:io 11 Entendu por "gênero idcntific;1do" :1<..1ude <.JUC o/a transcxu~1l rc:ivindic:~ o reconhecimento; e, por
!ICXU;\I Ítnpost;l. "gênero :u ribuido", o que lhe foa imposco qu.mdo nasceu e ClUC est:í ref~renciado na.) genidlias.

48 49
A REINVEN ÇIIO DO COR PO: SEXUALI D A DE E G~N ERO NA EXPERi t N CIA TRANSEXUAL
c homossexualidade l•fL:C:::_ul:.:.:•u::.••:___ __J

cariótipo, raios X d a sela túrcica, ulrra-so nografia do testículo e prós- Tecidos selecionados do escroto são usados para os grandes c peque-
tara/pélvico o u endovagina l, ulrra-so nografia de abdômen superio r. nos lábios. O clitóris é fe ito a partir de um pedaço da glande. De-
pois da c iru rgia, deve ser usada uma p rótese por algum tempo, para
evita r o estreitamento ou o fec hamento da nova vagina.
A CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO Depois de feitas as cirurgias, inicia-se o processo judicial para a
N os rran sexuais m ascu linos, as c irurgias consistem na histerecro m ia, mudança dos d ocumentos.
na m astecco mia e n a co nstru ção do pênis. A h iste recro mi a é a re- Mesmo dian te de rodo o ri gor dos proced imencos, sempre paira
moção do a p arelh o reproduror, e a m astecrom ia, a re t irada dos uma dúvida: será que ele/a é u m/a rra n sexual? D iante da tran-
seios. A co nstrução do p ê nis é a parte mais com plexa, uma vez q ue sexualidade, a su p osta objetividade dos exames clíni cos não faz
as técni cas cir úrgicas a inda são precárias. Vá rios músculos já fo ram ne nh uma dife rença . Nessa ex p e ri ên cia, o saber méd ico não pode
testad os como m a té ri as- primas para o pênis. Os tecidos m ais utili- justifica r os "transtornos" po r ne n hu m a d isfun ção b io lógica, como
zados são os músculos do an tebraço, d a p a nturrilha, d a parte in te r- apa rente m e n te se argume n ta com o caso dos intersexos, que de-
n a d a coxa o u d o abdô m en. Uma das técnicas u tilizad as para a cons- vem se submeter a ciru rgias para lhes retira r a ambigüidade esté-
tru ção do escroto é a ex pa nsão d os g randes láb ios para o enxe rto de t ica dos ge n i t a is, co n formando-os aos co r pos-sexuados
expa nsores tiss ulares o u impla nte d e silicon e. h egemônicos .
Enrre os pro ble m as m a is comuns d esse tipo de c irurg ia, estão a Nos casos dos in tersexos, a "n :Hureza" disfarça-se em ambigüida-
incontinência u riná ria, necrose do n eofalo, podendo chegar à perd a de, send o a função da ciência encontrar o "verdade iro sexo", confor-
o u à morre d o pênis, cica t rizes no local d oad o r e urina residual. D e me formulou o anatomista Ta rdieu (apud Fo ucaul t, ] 985a). Para a
uma fo rma geral, os tra nsexuais mascu linos faze m a opção pelas d uas experiência transexua l, a c iênc ia teve de co nsrru ir out ros dispositi-
prim eiras c irurg ias: a histerectomi a e a m astectorn ia . vos pa ra defini-la , classificá -la, co nstruí-la .
P ara as transexua is fem ininas, a cirurgia consis te na produção da Em última in stância, o que con rrib ui rá para a formação de um
vagi na e de p lásticas para a p rodução dos pequ en os e g ra ndes láb ios. parecer méd ico sobre os níveis de fem inilid ade e masculinidade pre-
A produ ção da vagina é reali zada m edi ante o aproveitame nto d os sen tes nos dema n dantes são as no rmas de gê nero. As normas estarão
tec id os externos do pênis para reves tir as pa red es d a n ova va gm a . sen do citadas, em séries de efeitos d iscurs ivos qLte se vinculam a
elas, qua ndo o processo de u m /a "cand idaro/a" é julgado ao final.

u Os "lrans(ornos d.e personalidade.. compn:endenl vár ios cs[ados e l ipos de compon:tn1eruo. C:.d:t um
deles recebe um código especifico n:t classificaç5o accit:t inrern:lCÍon:tlmcrHc (Côdigo lntcrn:lcional FRAGMENTOS DAS ROTIN AS DOS/AS"CANDIDATOS/AS" NO HOSPITAL
de Doenças -10) c estão agrupados em: lr:ln<lOrnos específicos da persotul i dad~ (código F60) .
transtornos mistos da personalidade (f6 1), tran stornos dos hábitos e dos impulsos (F63). rransrornos Ser "candidato/a" significa desempenhar com sucesso as provas que
de per>onalid:tde da identidade sexual (F64). no qual est:l classificado o "transexualismo",
identificado pelo código F64.0. transtornos de personalidade da preferência sexual (F65), neurose de lhe são at ri bu ídas em suas visitas semanais ao hospi tal. Mas quem
compensação (F68). No DSM, ourro documento da APA, aparecem os "Normas de Tratamento par> tem o poder de dec idir se o/a "candidato/a" foi aprovado ou não? O
Transtornos de Identidade de Gênero" (ET), cujo propósito principal é "anicubr o consenso
internacional das organi7,.,ções profissionais sobre o manejo psiquiátrico, psicológico, médico e
que está em jogo nessas p rovas? Os/as t ransexuais n ão demoram
cirúrgico dos rransrornos de idcJHidadc de gênero". Tanto no DSM quanto no CID, nota-se a muito para compreender o sign ificado de ser um(a) "cand idato(a)" .
pressuposiç:io de que h~i um conjunro de indacadorcs universais qut! c:~rac(eriz:tm as/os tr:lll~exuais. Essas idéias são interiorizadas pelos(as) demandantes, que passam
Para informações sobre os "Transtornos de Personalidade" c os restes de personalidade, ver hrrp:/1
www.psiweb.med.brl_:!dlpersocid .html. a estruturar suas ações a partir dessas definições. Conforme um dos

50 51
homo!.Sexualidade l c c:::lcu:_::lt::::u':::.•_ _...J A REINVENÇÃO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPER I ~NCIA TRANSEXUAL

membros da equipe m édi ca fazia questão de repetir a cada atraso de Kátia: D essa agon ia toda, desses exames, d essas co isas rodas e do
um dos candidatos para um compromisso no hospital: "~azer parre do medo d eles fala rem que não ia operar, amolei uma faca bem amola-
projeto tem um preço . Quem não estiver disposto a pagá-lo está fo ra." da, n e E vim par a o hos pital no di a que ela ia fa lar se e u ia fazer
O o bj etivo dessa segunda parte é reconsrruir fragmentos da vida parte da eq uipe ou n ão . Aí amolei a faca bem amolada, pus na bolsa
d o/a rransexual no hospital , tentando visibilizar, por m e io de suas e trouxe. Pe n se i ass im: "Se ela fa lar que eu não posso operar, eu
n ar r at ivas, como as obrigações estipu ladas nos protol ocos são enrro no banheiro e mero a faca nisso. Tiro essa po rcari a de qualquer
vivenciadas. São fragm entos articulados em torno de jogos e esrraté- jeito. " D e qua lquer jeito eu queria tirar. E antes d isso lá no serviço,
gtas que se estabelecem naq u ele espaço. né? Eu sem pre en trava no banh eiro e tentava, chegava a machucar
rodinha com a unha, assim, esfolava ele todinho com a unha, tem o
sinal nele, d e e u aperta r a unha e machucar.
INGRESSAR NO PROJETO: O MEDO

Quando fi cam saben d o da ex is tênci a do proj eto e fazem a primei- Pode-se no tar que h <í uma diferen ça co nsid erável entre as fa las d e
ra consulra com a coo rden ad o ra, a lguns/alg umas rransexuais rela- Pedro e Ká ria. Enquanto para ele um a res posta negati va significa ri a
tam sent ir uma m ist ura de espe rança e m edo; esperança por vis- o fim da v ida, Kária, quando d ecidiu que faria ela m esma a operação
l umbrarem a possibi lidade de ficarem " livres" de partes do co rpo no hos pital, prepa rou essa estratégia norteada por seu desejo de vi-
consideradas responsáveis p ela rejeição que sentem d e s i m esm os/ ve r. Provave lm e n te seria uma forma de mostrar à equipe m édica qu e
as c m edo de n ão serem acei tos/as n o Projeto. f interessa nte ob- e la ti nha cerreza do se u des ejo d e realizar a cirurgia e, ao fazer a
se rvar q u e Pedro e Kária preparara m -se da mesma form a para rece- remoção no h ospital, ga rantiria o atcndimenco. Mas, pa ra a mb os,
b e r uma res posta negativa . seria o h osp ita l o espaço para a resolução de seus infortt.'tnios.
Para Carl a e Manuela, além do receio de n ão faze r p a rte do Pro-
Pedro: Ago ra, eu vou te fala r, cu estava d ecidido a me sui cidar. A jeto, o qu e é inte rpretado por muiros como uma gara ntia d a realiza-
doutora fa lou ass im: "làl dia você vem aqui, que eu quero te exa mi - ção d a c irurg ia, h á a a nsiedad e para co meçar a terapia hormonal.
n ar." Era o di a da resposta so b re a operação. Isso foi no comecinho ,
qua ndo e u e ntrei no proj e to. Aí eu pe nse i muito so bre isso; aí eu Carla: Se Deus quiser, eu vo u com eçar a tomar os ho rmônios. Eu já fiz
decidi q ue, se a resposta fosse não, eu ti nha m eus plan os: já tinha todos os exames e h oje à tard e vou m e e nconrrar com a doutora. Acho
subido lá no terceiro a ndar rn o hosp ital}. C h eg ue i numa ja n e la , que, com os ho rm ôn ios, eu vou ficar bem fem inina. Será que os seios
ol h e i para ba ixo, p e nsei comigo: "Se eu cair daq ui , se eu m e joga r crescem muita? E os pêlos? Eu quase não te nho pêlos, m as d á muiw
daqui de cab eça, eu ac ho que não so bra nada, _ac h o que morro.'; trabalho tirar wdo dia com pinça. AJ1, não vejo a ho ra ... Meu sonho é
Bom, é isso mesmo, se a resposta fosse não, eu ia fazer isso, ia mes- ter seios, po rq ue eu não tenho nad a , isso aqui [aponta para os seios} é
mo; tinha decidido, eu av isei aqu i em casa. Falei ass im: "0, se eu um algod ãozinh o que eu ponho para dar um pouco d e volume.
não c h egar aqui ... " la mã e interrompe a entrevista: " Isro é falta d e
Deus no coração e fa lta de fé. Bate na boca."] Eu sei, m ãe, que eu Manuefa: Vou buscar os exames h o je. É... eu tenho um p o u co d e
não t in h a que pensar assim, m as é que a revolta é d emais. Só uma medo d esses exam es darem algum pro blema c eu não poder operar.
pessoa q u e vive d o meu jeiro, com o co rpo q u e eu tenho, com a Se pelo menos eu com eçasse a tomar logo esses hormônios. Será q ue
cabeça que e u tenho ... não dá, não tem cond ições de viver. a inda vai demorar mu ito para começar?

52 53
homossexualidad e e cu::.:.
I l':.::."':.::.•_ __,)
L:.l A R EIN VENÇÃO 00 COR PO: SEXUALIDADE E GÉN ERO NA EXPERI ÉN C JA TRA NSEX UA L

Esses relaws expõem expectativas e desejos . Uma vez aceitos no que n ão é uma coisa que é só minha, como se d iz, eu q u ero, m in ha
Projeto, desencadeia-se u ma nova etapa n a relação com a equ ipe. A famíl ia te m expectativa, os m eus amigos, colegas d e trabalho . Olha,
partir daí, serão "can d idaws/as". há w d o u m contingen te d e pessoas com essa expectativa.

As dificuldades financeiras de A n dréia são, com p equ en as va n a-


OS EXAM ES E OS TESTES
çóes, semelh antes às de wdos/as os/as "can d idatos/as" freq ü entad ores
Depois da primeira entrevista, têm início os exames, a psicoterapia do Projeto .
e os testes, e, d e fato, uma rotina é estabelecida. Em dete r m inado períod o, iniciam -se os testes de p e rso n a lidad e.
Não h á uma rig idez para o início d e sua a plicação . Alg uns qu e esta-
Pedro: Fiz ta n tos, ta ntos exam es. Nossa, q u e co isa horr ível! E fo ra vam há m ais de dois anos no Projeto realizavam os testes ao m esm o
outros lá, para a cabeça . Me colocou den tro de u m tubo, u m troco te m po que outros q uase recém -ch egados.
lá e m e aplico u u m negócio aqui , não sei ond e, aqui assim [apon,ta 0/a t ra n sexu a l sabe que d eve desempe nhar b em essa etapa de
para garganta]. Meu Deus do céu, ond e t inha buraco, ass im, parece p rovas e, quando isso n ão oco rre, produ z-se u m sentime nto d e
qu e es tava saind o fogo. U m a d as m éd icas ficava m e pergunta ndo: i nseg urança.
"Você n unca b a te u a cabeça?" Esses exam es ca n sam, cansam de-
m a is. Às vezes, eu c heg u e i a pensa r em d esisti r. Eu achava q u e o Pedro: Teve u m tes te lá q ue e u não consegu i passa r n ele, porque eu
tempo era m uito, sabe? Se eu tivesse din heiro , cu acho que já ter ia cava m u ito pe rturbado com essa m e nina q ue tá lá no hosp ita l [refe re-
fe ira a cirurgia . Eu ach o n ão, teria, se ti vesse co ndições, teria fe ito . se a uma amiga imernad a]. Q uando eu fiquei sabendo, eu fique i mu ito,
A médica que pergu n t:t ra a Pedro se ele hav ia batido a cabeça, e m assim ... Então, eu não estava em cond ições d e faze r o teste, fiz ass im
o u tra ocasião, voltou a perg untar para a s ua m ãe a mes m a coisa. O mesmo, po rq ue achei que era uma o b rigação m inha. Não m e saí bem
J. fa to d e ave r iguar se ele "bateu a cabeça" é uma o utra fo rm a de se no teste. Então, ela [a psicóloga] falo u pa ra mim q ue u m a candidata
'l
qu estio nar a sanidade m ental d e Ped ro . É como se buscasse alguma U passou m uiw bem n esse teste. E ntão, isso m e gril o u , fi quei nervoso
expl icação aceitável p a ra uma "mulh e r biologicamente sadia" solici- com isso. Falei: "Você sem pre te m q u e m e comparar co m essa pessoa,
tar uma inte rve n ção no corpo . A vo n tade de Pedro de d esistir j usti- que essa p essoa é m elhor q ue eu nisso, que essa pessoa ... " E u queria
fica-se tanto pela quanridad e de restes e exam es q uan to, e p rin cipa l- q ue eles [r efere-se aos memb ros da equipe médica] fosse m m a is ami-
me n te, pelas s ituações n as qua is esses exames o colocavam . gos me us . Sabe, p ara eles é m uito fácil, né? Ficam sentad as em suas
Pa ra A n d réia, ir ao h ospi ta l significava deslocar-se d e u m Estad o cadeiras, só ouvind o . Tem hora q ue m e dá um nervoso!
pa ra outro e, em decorrên cia d isso, con centra r tod os os exames, tes-
tes, fono terapia e psicoterapia e m do is d ias, a cada mês. Pode-se nota r a inte ri o rização da idéia de "candidato" at u ando
na su bj etividade de Pedro quando afir m a que se sent iu triste p or
Andréia: Eu acho terrível. É u m período, com o se fosse u m período não consegu ir d esempenhar com êxito uma das provas. O i nverso , o
d e provas. Hoje mesm o, vim co m apenas R$3,50; o d inheiro elo sentimen to de felicidad e, também pode ser interp re tado co m o um
co letivo. Eu sei q u e não vou te r dinheiro p a ra com er, nem tomar indi cado r dessa inte rio rização e da leitu ra que faze m ele su a relação
lei te. Ago ra, você imagi na se depo is de todo esse sacr ifício eles di- com a equipe médica.
zem que eu n ão vou fazer a cirurgia? Deus me livre, e u m o r ro! Por-

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J
homouexualidade l•~.:.lcu::.:;lt:.::;u•c::.•_ __, A REINVENÇAO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPER I ~NC I A TRANSEXUAL

Pedro: Outro reste que eu fiz foi co m uma moça; para falar a ve rda- Pedro: Eu estava em um corredor co m um tanrão de ge m e esperando
de , e u nem sei bem a profissão dela . Só sei que é assim: e la rem para ser atend ido. Ai uma enfermeira ch egava na porra e fala~~ o n'~ m ~,
umas, um as pranch etas; aí rem tipo umas pinruras lá. Eu já passei aí todo mundo o lhava para mim e eu escutava os comentanos: Ua 1,
por esse reste ta mbém. Gos rei muito desse resre, passei nele. Se i que um homem com nome d e mu lher? Coisa estranha."
têm umas pinturas lá que a gente tem que o lhar de um lado para
outro. Ela grava, ela m a rca, ela anora, rudo que eu falava, ela anota- "O nome" que ele não revelou no decorrer dos nossos vários e ncon-
va, tudo, tudo, qualquer pa lavra . Ela falou: "Pedro, a parrir d e agora tros, " 0 nome" sem nome, guardado em segredo. Dizê-lo o u pronu nciá-
e u vou a nota r rudo c vo u g ravar tudo. " En tão, eu t in h a q ue ver lo seria recupera r sua condição fem inina. O nom e próprio aqu i funci-
aquela pintura e imag inar um d ese nho, qualque r coisa, qualq uer ona como uma interpelação que o recoloca, que ressuscita a posição d e
coisa que e u imaginasse rinha que falar para e la. Eu gos tei muito gênero da qu al luta para sair. Como seria seu nome d e batism o? Maria?
desse teste. E la d isse que eu passei nesse res te. Clara? Joana? Ao longo das entrevistas, poucos revelaram seus ·nomes
de bat ismo . No h ospital, no en tanto, a cena d e um e nferme iro ou
A sensação de "m e saí bem nos testes" era comu m. Algumas vezes, enfermeira grita ndo "aquele nome, o outro nome", e ra muito freq üen-
d epois de fazer os testes, a alegr ia do(a) "candidato(a)" conrrastava com te. Mu itas vezes, presenciei cenas como esta d escrita por Pedro.
·- a posição de quem os havia aplicado. Não era raro escutar comentários Os olhares inquis iJorcs das dezenas de pacientes amonroados
d e memb ros d a equipe: "O Ro rschach dele aponwu uma personalida- em longos corredores d o hospital , sem compreenderem o qu e estava
d e a mbígua. E do outro, u ma personalidade bordcrli ne"; "O MMPI acontece ndo al i - "um homem, com nome de mulher?" -, provoca-
revelou um QI abaixo da médi::t" . Isso leva à conclusão de que, muito vam um efeito co rpo ral quase mecâ nico no/a transexual, que acele-
comumenre, o que era imerprerado como êxito pelos(as) "candidaws(as)" rava o p asso, aba ixava a cabeça e p arecia que o ar lh e faltava. O q ue
não corre.spo nd ia ao diagnóstico final de quem apl icara os testes. seria "uma coisa estran ha"? Nesse momento , Pedro e ra a próp ri a
t
'I
"coisa estran ha", aqui lo que n ão tinha n ome, uma coisa, inclassi fi cável,
OS PROTOCOLOS INVISÍVEIS
n em hom e m, n e m mul her: a própr ia materialização do grotesco.
Se rem id e nt ifi cados/as p u b li ca m e nte p e lo nome q u e os /as
As o brigato riedades iam além d aquelas explic itadas n o protocolo. pos ic iona no gê n ero rejei tado era uma forma ress ig nificada de arua-
H av ia també m o "protocolo invisíve l" , efetivado nos comentários, lizar os insu ltos de "veado", "sapatão", "mach o-fêm ea", que, ao lo n -
nos o lha res e nas cen su ras dos mem b ros d a equipe e de ou t ros fu n- go d e suas v idas, os/as h aviam colocado à ma rgem . Talvez o "proto-
c io nário s do hospita l que, pouco a po u co, produziam n os colo inv isível", o não-dito, o não-explici tad o, seja o mais importan-
demandantes a necessi dade d e articula re m es tra tégias d e jogo para te e ma is difícil de negociar.
consegu irem se mo vime nta r n aque le amb ie nte . E ntre os relatos de insultos, Pedro destacou outro que o marcou.
Na rotina de exames, o/a rransexual passa por vá rios ambulatóri-
os. U m a d as cenas desc ritas como a mais co rrique ira acontecia quan- Pedro: Quando fu i v isi tar um dos douto res, ele fez uma p iadinha
do escavam esperando para serem ate ndid os e "uma mulher, lá n o que eu n ão gos te i. E le m e colocou, depois de me exam inar e de
fim do corredo r, chama gri tando aquele n ome que odeio [referência saber qua l era meu caso, ele m e colocou numa cad e ira lá, no meio
ao nome próprio de barismo]. Nossa, parece que o c hão abre". d e um monte de médicos e médicas novi nhos, como é que fa la, que
está começando? [méd icos residentes] Acho que tinha uns dez, tudo

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A RE IN VE N ÇÁO DO CORP O: SEXUALIDADE E G~NER O NA EXPERI~ N CIA TR A N SEXUAL
homosseJtual id ad e 1•1'-"cu
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em volta de mim, aquelas mocinhas curiosas, aqueles rapazinhos e Kátia: Foi horrível. Eu ali na enfermaria com as ourras mulheres e
eu lá no meio, parecendo um saco de pancada, lá 110 meio, quieti- ele me chamando pelo meu nome masculino. Três vezes eu pedi,
nho. Aí, o doutor falou assim: "O caso dela é de mulher querendo mas ele fazia de conta que não me escutava e repetia. Minha pressão
ser homem, mas transfo rmar um Joãozinho e m Maria é bem mais subiu tanto. Eu fique com medo de não poder me operar.
fácil; ago ra, uma Maria em Joãozinho é bem mais complicado." E
e u só ouvindo . Uma falava uma coisa, a outra falava outra; a í uma Depois da cirurgia, aconteceu um outro episódio que lhe provo-
das médicas falou: "Desce as calças." O lhei p a ra ele e falei: "Doutor, cou uma infecção, deixando-a internada por ma1s de 25 dias.
eu não vou descer as calças não ." Aí ele co nverso u , conversou e pe-
diu : "rira a calça aí. " Falei: "S into muito , o senho r já me viu, já sabe Kátia: E u rive que fica r vários d ias no hospi tal porque de u u ma
qu al é meu caso, con hece me u co rp o, eu n ão vou tirar." Aí u m a infecção, por meu estado em ocio n a l e por uma coisa que aconteceu
m ocinha veio para o meu lad o, fa lou ass im : "M as a ge n te q u er te no hospital. Um rapaz me ameaçou dent ro do hospical com um cani-
aj udar, a gence não que r ficar curi ando, a gente não está aq ui para vete. T inha um rapaz moreno na enfermaria, ficou me cham ando de
c uriar, a gente quer ajud ar." Falei mesmo assim: "Eu n ão vou tira r. " ele, por cu te r pêlos no rosto. A í esse rapaz me apontava para o índio
E não rirei. E le pediu u m as três vezes para t irar, eu não quis ti rar, eu e pergunt:wa: "Você tem coragem de namorar com ele?" E falava
não t irei. Eu sencado e aquele monte de gente em volta de mim ... desse jeito, me chamando de ele. Aí eu falei assim: "Se cu fosse ele,
parecendo q ue eu era não sei o q uê ... T odo m undo me curiando, me eu não es taria numa en fermaria de mulher." Isso numa segunda,
o lhando de c ima para baixo, e en to rtava a cabeça assim. Eu me senti c1uando foi na te rça-feira ele abriu um canivete na porra da minh~
um a ni mal. enfermar ia e falou: "Aqui, oh, pa ra você." Eu estava fraca . Eu fu1
agrcdida muitos a nos arrás, quando tinha 18 anos, por um ~erea~or
Se o nome próprio de batismo p ro nu nciado publicamente pro- da m inha cidade. Ele me cortou roda de canivete. Tenho vánas CICa-
duz uma descontinuidade entre esse n ome e as p e rforma n ces de trizes de can ivete [mostra as cicatri zes nas pernas, nas coxas e nos
gê nero, expor as ge ni táli as p u b licam ente ge ra a es p ctacula r ização b raços]. E cu fu i roda cortada e n um tive nenhum rra um ~, mas,
d o dife re n te . Aqu i, obse rva-se um d os meca nis m os m a is corriq u ei- q u ::~ndo ele apontou o can ivete e most rou que era p ara m1m, eu
ros de func io namemo do hosp ital: a u to ridade e poder são exercidos lembrei do que me aco n teceu . A í eu chamei a enfermeira-chefe e ela
a parr ir da infant ilização do/a "cand idato/a" . As roti n as e as obriga- me disse que era frescura minha, ele simplesmence estava querendo
ções às qua is devem se submeter j ustificam -se em n ome do seu bem - descascar um cajá com o canivete. Mas por que não abriu esse cam-
estar, sendo ass im ret irada a capacidad e de decisão e o poder do/a vere na porra da enfermaria dele?
transexual sobre seu corpo e suas ações. No enran co, há um li mite,
que não sei defini r com precisão, pa ra se aceitar o exercício desse Os fios que amarram os fragmentos que compõem os "protocolos
poder. Quando Pedro não rira a roupa, esse limite é explicitado. invisíveis" são os insultos, os o lhares que estão presentes nas e n fer-
Kátia lembra a postura do en fe rmeiro que, poucas horas antes de marias, nos ambulatórios e que a cada momento lemb ram ao/à
realizar a c irurgia de tra nsgen ira lização, fazia questão de chamá- la transexual sua condição de dife rente, de "coisa escran h a".
pelo nome mascu lino, o que lhe cau sou muito constrangimentO . Ao lonao do trabalho de campo, ocorreram encontros com psicó-
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logos que mui ras vezes se perguntavam: "Às vezes, aquele candidaro

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homossex ualidade e l~cu_lt_u_,._ _~ A REINVENÇAO DO CORPO: SEXUALIDADE E GtNERO NA EXPERIÊNCIA TRANSEXUAL

tem um comporramento que sugere uma homossexualidade repnmt- Se uma mulher de verdade é discreta na forma de se maquiar e nos
da"; "Você viu como ele estava vestido? Parecia um travesti"; "Eu tive modelos das roupas, se fala baixo c ges ticula comed idamente e rem
qu e dizer para ela: olha, você está se vestindo como uma puta." Ou uma voz que não lemb ra os falsetes das rravesris, há então rodo um
então: "Nossa! Viu como ela é uma mulher perfeita! Não tenho a conj unto de intervenções para construir um sujeira transexual que
menor dLtvida: ela é transexual", "Não tem dúvida: com o tempo, a não tenha em suas performances de gênero nenhum sinal que os cite.
gente passa a reconhecer de primeira um rransexual; basta ver a forma A coerência dos gêneros está na ausência de ambigüidades, e o olhar
de andar, de vestir, e a mão. A mão é fundamental." do especialista está ali para limpar, cortar, apontar, ass inalar os exces-
Quando esses comentários são realizados diretamente para o/a sos, fazer o trabalho de asseps ia. f o dispositi vo da rransexualidade
em pleno funcionamento, produzindo realidades e rit ualizando- as
"candidato/a", produz-se um efeito prescritivo que desencadeia no/
como verdade nas semenças proferidas, seja com julgamenros, seja
a rransexual um "ajuste" performárico àquilo que se estabelece como
com olhares inquisidores dos membros da equipe médica.
verdade para os gêneros, e que, nesse momento, o membro da equi pe
representa. Como o juiz que profere a sentença: "Eu os declaro casa-
dos", criando realidades, esses aros lingüísticos, disfarçados de "co- ESTRATÉGIAS DE NEGOCIAÇÃO
mentários descritivos", geram uma série de efeitos regulató rios
Uma primeira leitura poderia sugerir que se está dia nte de um qua-
nas performances e nas su bjetiv idades dos/as transexuais.
dro de polarização radical: de um lado, o poder médico, materiali-
Conforme analiso u Foucault (1985), nas soc iedad es modernas zado na equipe; de outro, os/as "candidaros/as" oprimidos/as, sem
se confessam os sentimentos, reoriza-se sobre a fome, inventa-se uma capacidade de resposra e de reação, vítimas de um poder que decide
ciência dos corpos, das condutas, do sexo, ao mesmo tempo em que isoladamente os rumos d e suas vidas. As condições o bjetivas para se
se submete um conjunto d e coisas ditas, e aLé as silenciadas, a pro- chegar a essa co nclusão parecem favo ráveis . Nas trajetórias de vida,
cedimentos de contro le, de seleção e de c irculação, que aruam como pode-se notar que há um viés de classe social constanre: todos são
polícia do discurso. oriundos de camadas sociais excluídas. O fato de vivenciarem a ex-
Muitas vezes, essas evocações sobre a forma de os/as lransexuais periência rransexual, ou seja, de estarem fora das normas de gênero,
se vestirem, andarem e falarem, ou seja, sobre uma determinada torna estas pessoas duplamente excluídas . Muiros afirmaram: "Se
"estilística corporal" (Bude r, 1999), eram produzidas já no primei- cu tivesse dinheiro, não suportaria isso aqui ."
ro encontro. O pouco tempo de terapia me fez co ncluir que os da- A relação que se estabelece com o hospital, de forma geral, e com
dos disponíveis para proferir tais sentenças estavam respaldados n as a equi pe, em especial, é a de favor. A noção de direito e de cidadania
performances de gênero que os/as rransexuais arualizam. f esse olhar é uma abstração que não encontra nenhum respaldo na efetivação
que se estrutura a partir das dicotomias corporais e da binariedade das microrre lações que se dão no âmbiro do hospital. Frases como:
para a compreensão das su bj et ividades q ue estará apomando os ex- " Eu tenho que dar graças a Deus . Tenho que agradecer" são fre-
cessos, denu nciando aquilo que lembra condutas e subjetividades qüentes nas conversas dos/as rransexuais com membros da equi pe.
não-apropriadas para um homem e uma mulher. O tempo de vida Mas este é um aspecto dessa relação que tende a seguir pelo cami-
no hospital rem outra função: realizar a "assepsia" nas performances nho d:1 essencialização das relações de poder, mediante uma análise
dos/as "candidatos/as", cortar as paródias dos gê neros, eliminar tudo hierárquica e dicotomizada, por meio da qual o saber-poder médico
que reco rde os seres abjetos que devem ser mantidos à margem: os não deixa outra alternativa aos/às "candidatos/as" que não seja acei-
gays, as travestis e as lésbicas. tar passivamente suas ordens e impos ições.

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homos:~;exualid.,de let.::lc:::ult::::_u:.::••_ __j)

Segundo foucault ( 1985), o poder não é co isa que alguém tem


em detrimenro do outro . Deve-se interprerá-lo como uma
l A REINVENÇÃO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERI~NCIA TRANSEXUAL

uma relação amorosa proptcta que sejam criados e desen volv idos
nos/as rransexuais mecanismos de sobrevivência psíquica e sociaL
multiplicidade de correlações d e força inrernas aos campos sociais. O Uma das alternativas que Ká tia encontrou para explicar aos seus
~oder movimenta-se de acordo com as disputas e resistências que se namorados sua situação foi definir-se corno "hermafrodita".
t nsta~r_am dentro de determinados campos. Ninguém tem o poder
der:,nmvamente. As correlações de força induzem a "estados de po- Kátia: Eu dizia que nasci com os dois sexos, que era hermafrodita.
der ' com suas redes produtivas que atravessam o corpo sociaL Não Mesmo depois que fiquei sabendo que existiam transexuais, eu con-
existe uma única direção para a atuação do poder. Ele é descontínuo, tinuei falando isso, porque é mais fáci l de aceitarem quando a gente
fragmentado e, muitas vezes, o relaciona! encon tra-se disfarçado. diz que tem um problema biológico.
Trata-se, então, de encontrar os meca n ismos específicos da re-
l~ção entre o saber m édico e os/as transe~uais q u e fazem parte do Para Helena, também era mais fácil definir-se como he rmafrodita.
I rojeto, apontando como eles/as se movunentam na tentativa de
ocupar posições que lhes sejam favoráve is nesse cam p o socia L A Helena: Aí eu fui explicar para a minha patroa .. . para começar, eu
"capacidade potencial" do sabe r médico em decid ir os rumos das falei que eu era hermafrodita, para não causar tanto impacto. Só que
vidas desses sujeitos se esvanece quando se observam os jogos e as depo is eu conversei com a mãe do nenê que eu tomo conta. Ela
estratégias de negociação implícitas que perpassam o co ti diano do / entendeu e até brigou comigo porque que eu não falei a verdade
a "candidato/a" no hospital. quando eu tinha chegado. Aí eu fui explicar para ela a difere nça. Aí
Alguns dos meca n ismos utilizados pelos/as transexuais para se ela explicou para o esposo dela e não teve problema nenh um. Mas,
posicionai nessa relação são: autoconstruir-se com o vítimas, o si lên - para mim, é mais fácil d izer que sou he rmafrodita, sem dúvida.
cio e a essencialização de s uas identidades por m eio de uma narrati-
va q ue aponta para um "desde sempre me senti assim" e o "mentir". A utilização de uma ancoragem d iscursiva baseada no biológico
Cada uma dessas estratégias desencadeia recursos discursivos espe- significa uma forma de negociar com as normas de gên ero que legi-
cíficos, gerando efeiros particulares. Interessa, aqui, principalmente timam como normais as práticas refe renciadas no discu rso da deter-
a estratégia disCLtrsiva considerada como "men ti ra" . minação natural das condu tas.
Quando chegam ao hosp ital, os/as "candidatos/as" têm em suas Para Vitória, sua voz aguda e a ausência de pêlos visíveis contri-
~iografias relaros de várias estratégias de simulação qu e lhes possibi- buíam para não ser questionada quando afirmava que era mulher.
litam sobreviver nos cam pos socia is fundamentad os na hetero-
no r matividade, sen do o hosp ital mais um desses espaços. Não me
Vitória: Para meus namorados, eu sempre disse qu e era mulher.
interessa aqui pensar "a men t ira" como um dado, mas localizá-la
Mesmo para ele [refer e-se a seu atual companheiro] eu escondi du-
como estr~.tég_ia discursiva. Dessa forma, é necessário relatar algu-
rante meses. Eu lembro como se fosse hoje do primeiro dia. Ele foi
mas expenenctas de simulação fora do hospital para depois voltar a
lá em casa me buscar. Aí ele passou lá em casa, ficou conversando, aí
~sse espaço com o problema já contextualizado, evitando-se, assim,
ele disse: "Vamos conversar lá fora?" Na hora que a gen te atravessou
mcorrer no erro de congelar as ações desses sujeiras a esse campo .
o portão, que eu fechei o portão, ele me pegou pela minha cintura e
O medo de serem descobertos por familiares, amigos, professo-
me deu um beijo. Eu pensei assim: "Beleza!! Passei no teste de novo."
res, de não consegui rem um emprego ou de não poderem manter

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homossexu alidade Ie ~..::lcv;:;.;.l<:..::u:.::r•_ __.) A REINVENÇAO DO CORPO: SEXUALIDADE E G ~ NERO NA EXPERI~NCIA TRANSEXUAL

Aí eu pensava, morre ndo de rir aqu i dentro d e m im : "Caipira, bobo . isso que eu d izia. T eve u m que eu n a m o rei m ais d e três anos. N unca
Se ele soubesse que e u ten ho no meio das pernas a mesma co isa que descobriu. Ge ra lme nte eu tinha re lações no esc u ro . Co locava uma
e le." Aí eu fui lá e dei um beijo nele. Eu sempre dizia que e u e ra walhinha aqui [assinala para o p ê nis]. A toalhinha sempre estava lá
mulher. Inclusive lá no m eu trabalho, ninguém faz ne m idéia. Quan- e nunca d eixei rocar. Mas cu tinha medo, sabe, m ed o de e les quere-
do m e pediram os docume ntos, eu disse : "Não, e u quero assinar rem tocar. E le só fi cava por trás e aí eu segurava a toalhinha, porque,
minha carreira quando tiver uma profissão unive rsitária." Eu conse- se ficasse em cima, tinha perigo d e ela escapul ir. Então, nunca d ei-
gui co m um amigo uma ca neira d e identidade co m nome femin i- xei tocar, nunca deixei ver.
no , então ... Ninguém d esco nfia, porque o que den uncia é a voz c
minha voz é rotalme me femin ina. Pedro teve van as relações a mo rosas e nenhuma de suas n amo ra-
das d escobriu nada, com exceção d e uma.
O d esejo de ser ace ita nas igrejas po r ond e passou fazia com que
Patrícia aÍirmasse que já era cirurgiad a. Pedro: D e p o is de um a n o que mo ráva mos jun tos [enqu a n to fala,
mostra a foto de sua ex-namorada], eu falei assim: "O lha, eu tenho
Patrícia: Eu esto u indo às igrejas, aí eu já falo de cara : "Oh , sou ope- uma co isa mui to séria para te falar." Aí ela ficou ass ustada. Porque
rad J, so u mu lhe r, está aqui n o d ocumc n ro . .. " Eu esrou m e ntindo, e u não e ra desse tipo de co isa, tu do ela sab ia. Aí ela sentou e e u
mas, se e u não fi ze r isso, eles vão co m eçar a dizer: "Ah , nós vamos d isse: "Que ro te fa lar ... meu nome é esse (Falei p ara e la o nome
fazer uma te rap ia com você, a í você logo vai ve r que vai mudar d e fe m inino) c m e u corpo é d o mesmo jeito do seu." E la falou: "Você
idéia, vai tirar essas rou pas c vai virar h omem. " En tão, eu falo que já está memindo p ara mim." Falei assim: "Você sabe di sso daqui [aponta
sou o perada para e les não pegarem no m e u pé. Po rq ue, se já fez a pa ra os seios], num sabe?" "Sei, m as você falo u que era aque le caso,
c irurgia, não tem mais jeiro . aquele negócio de menino q u ando está na adol escên c ia começa r a
fazer aq uel a coisa, a í nasce ." Aí falei assim : " Não, eu menti. Então
Sabe ndo que n ão pod eria co nvencer os membros da igreja d a isso daqui é igualz inho ao seu. E u tenh o ... " Eu fa le i e ela com eçou a
n ecessid ade d e realizar a cirurgia, Patríc ia e n controu no argumento c horar. Falo u assim: "Você está m e ntindo para mim , isso é brinca-
da irreversibilidade uma forma d e tra ns ita r pelas igrejas se m ter d e d eira, você está brin cando comigo." Falei: " Não é brincadei ra, não.
j ust ifica r a todo mome n to seus sentimenros e d esejos. É sério. Por que eu sou est ra nho d esse jeito' Po r que a ge nte nun ca
Nas rel ações sexuai s, tam bém se no tam estratégias pa rticul ares fica como um casal norma!:> No d ia, n a luz, essas coisas, hein? A
de negoc iação, m ediante a utilização de técnicas para que o/a par- ge nte sempre te m que ficar no escuro, essas coisas?" Aí ela com eçou
ceiro/a não descub ra as geni tálias. a o lhar para mim assim, pensando ... A í fa l.o u para m im: "Você está
mentindo , e u não q uero m a is sabe r disso, n ão m e fa la mais so bre
Kátia: Eu tenho mu ito m edo que d escub ram a realidade. Po rq u e isso." Falei ass im: " Olha, eu estou re contando porque e u ac ho que
todos os n amorados que eu tive sabiam que eu era d iferente, que era te amo d e ve rdade." Fa lei desse je iro po rqu e eu não tinha be m cer-
h e rmafrodita, m as não sabiam que eu tinha um pênis. Eu nunca teza qu e amava a inda. "Então, eu não quero mais m e ntir. A m inha
dei xei e nunca vo u de ixar tocar. E u tenho pavor d essa parte debaixo parte eu fiz, você n ão quer aceitar, problem a seu." Depois de uns
a í. Eu sempre falava assim , que eu tinh a u m probl ema sexu al que do is, três meses, e la senrou co mi go e pe rguntou se era realmente
não podia fazer sexo na vagina, que eu ti nha a vagina tampada. Era verdade e eu disse que sim.

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A REINVENÇAO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERI~NCIA TRA NSE XUAL

Quando chegam ao hospital, já trazem em suas biografias estra- colocando a li. fica pondo palav ras na minha boca. Que raiva' Eu
tégias, alg umas conso lidadas, para se moverem nos campos sociais, falo o que ela que r ouvir e ponro.
c será com essas "armas" que irão se inserir no campo do poder médi-
co. Sto ller (apud King, 1998), depois de anos atend endo a pessoas Entrevistada 3: Eu chego para faze r a terapia, ela fala: "Você está
que vinha m ao seu consultóri o so li c itando um diagnóstico de triste?", porque ela gosta de atacar a pessoa para ver a reação. Uai, se
rransexualidade, concluiu: "Eles mentem." Em uma reunião do G IGT ela está falando que estou triste, deixe-a pensar que eu esrou triste.
em Valência, quando se com entou ta l concl usão d e Sroller, houve Eu não estou triste, estou feliz, de bem com a vida, mas fico calada,
uma ga rgalhada general izada. D epois, uma das militan tes afi rmou : só balanço a cabeça.
"Nós somos mui ro mentirosos, falamos o que eles querem escutar."
O relato dessas hi stórias mostra que, ao chegarem ao hos pital, Para muitos, as sessões de psicoterapia são "chatas". Não existe ne-
os/as "ca ndidatos/as" têm uma traj etória que os/as possibilita cons- nhuma alternativa para o/a transexual; tem de fazer psicoterapia e com
truir narrativas adeq uadas às expectativas da equipe. Para c hegar a o especialista indicado pelo hospital. Para a psicanalista Collete Chiland
essa conclusão, foi necessário atentar para a movimentação que acon- (1999), que tem sua clínica voltada pa ra atender principal m enre a
tecia, por exemplo , depois de uma sessão d e psicoterap ia ou os co- crianças "afeminadas", segundo terminologia da aurora, e que defende
mencários que real izava m entre eles/as sobre algum teste. É uma a o brigatoriedade do tempo de psicoterap ia, é im possível fazer um bom
info rmação qu e não es tá facilmente d is ponível. uabalho quando o/a "candidato/a" não tem uma identificação com o
Diante da p e rg unta " E aí, qu e teste você fez hoj e?", vinham a psicoterapeuta, uma vez qu e isso compromete a al iança ter apêutica
resposta e o co m en tá rio: "Nossa, hoje e u comece i aque le teste que formada pelos momentos de transferência e contra-transferê ncia.
tem um tantão de perguntas e peg uinhas. Mas eu sou m ais esperta, Pa ra a posição oficial, os protocolos têm a função de p oss ibilitar
te nho muito cuidad o quando res pondo ." ao/ à "candidato/ a" esrar seguro sobre a decisão de realizar uma ci-
A esse co m entá rio, iniciou-se uma discussão sobre os testes, e q uem rurgia i rreversível. No entanro, pode-se afi rmar que servem para que
ainda não os tin ha realizado queria i nformações sobre as perguntas. os membros da equipe acumulem um "conjun ta de ev idênc ias" que
possibilita a p rodução de pareceres.
Entrevistada 1: Às vezes vem um a pergunta, aí você tem que ficar de A busca po r "acum u la r evidênc ias", por parte dos membros da
olho, de orelha e m pé, porque, d o co ntrá rio, passa d e três, já vem equipe m édica, não é algo que ocorra o bjetivamente. Em se tratan-
o utra quase do m esmo jeito, aí você tem que ser :::speno para falar o do de ua nsexualidade, nada é objetivo . Se, como afir ma Bu tle r (1993,
mesmo, e eu falo o mes mo. 1997, 1999), o sexo foi desde semp re gênero, no caso da transexua-
lidade os efe itos de um regime q u e regul a, produz c reproduz os
Para outras "cand idatas" o que m a1s incomodava eram as sessões gêneros com base na determinação da natureza, fará com que estas
de psicoterapia. verdades orientem o olhar classificador e normacizador dos especia-
listas sobre os corpos daqueles sujeitos que re ivindicam o direito de
Entrevistada 2: Aí vêm aqueles come ntanos: " É impo rranre você fa- mudarem de gênero e que esse reconhecimenco seja coral, inclusive
lar do seu pai." E pe nsava: "Eu lá q uero falar do meu pai , ele está com c irurg ias corretivas nas genirálias.
morto e e nterrado!" Mas n ão, tenho que falar, porque senão ela No dispositivo da transexualidade, nada é enunciaçã o cons-
fica com aquele papelzinho to m a ndo no ta . Eu não sei o que esrá tatariva . Mais do que uma fábrica de corpos d im órficos, o hospital

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homosse:acu afidad e lec:.
lc::_:ulo_:tu.:.:r•~-_.J

tenra reorgan iza r as subjetividades apropriadas pa ra "um homem/


uma mulher de verdade". No hospital, rea li za-se um t raba lho de
"assepsia de gê nero", retirando rudo que sugira ambigü idades c pos-
sa pôr em xeque um dos pilares fundanres das normas d e gênero : o
dimorfismo natural dos gê n eros.

ESTUDOS DE GtNERO: O UNIVERSAL,


O RELACIONAL E O PLURAL

F.m um esforço para organiza r anal it ica me nte os debates reoncos


inrcrnos aos estudos d e gê neros, su geri rrês tendê n c ias ex plicativas
para os processos constitutivos d as identidades de gê ne ro, que c ha-
marei d e unive rsal, relaciona! e plural. Cada uma apresen tará reses
próprias sobre as relaçócs e nue os gê n eros, a sexual idad e e o corpo.
Essas tendências serão a presentadas por m eio d e um a in c ursão
hi stó ri co-teó ric:t, v isa ndo a co nrcxrua liza r c justifica r por qu e foram
os estudos queer - principalme nte as teses ele Burler (1999), no que
se refere à consrrução das iden tidades d e gê ne ro c à sua rebção com
a sex ualidade - que possibilitaram interpretar a experiênc ia rransexual
fora dos m arcos parologizanres propostOs pelas reses oficiais. Na se-
gunda parte des te capítulo , se rá discu tida a teoria da performance.
T rad ic iona lm e nte, os escudos sobre as/as rransexuais têm sido
realizados pe las c iê n cias "psi". 1 O sil ê ncio d a sociologia su gere que
es re re m a n ão lh e diz res p e iro, indi cando que esteja relacion a do

I Por Cl~ncaa.s r~i. compreendo ~\ r~icanál i se, a psiquiatrÍ~I C' a p.. ico1ogia.

68 69
homOUI@lilU illidad,;e l•~.:.lcu:::.h:.:::u:.:::'"---' A REINVCNÇAO 00 CORPO: SEXUALIDADE E GtNERO NA EXPERIENCIA TRANSEXUAL

cxclusivamenre aos confliros individua is e reforçando, de cerra for- Em verdade, basta passear de olhos abertos para comprovar que a
ma, a patologização das identidades que se constroem fora do humanidade se reparte em duas categorias de indivíduos, cujas
referencial biológico. roupas, rostoJ, corpos, sorrisos, atitudes, interesses, ocupações são
Se, de início, a desnaturalização das identidades de gênero esteve manifestamente diferentes (1987: 9).
centrada na compreensão dos processos históricos que legitimaram a
Dois corpos difcremes. Dois gê n eros e subjetividades diferentes .
subordinação das mulheres, rendo como substrara teórico a comprc-
Essa concepção binári:1 dos gêneros reproduz o pensamemo moderno
<:IISáo moderna do sujeira universal, arualmenre, essa desnaturalização
para os sujeiros universais, atribuindo-lhes determinadas característi-
também avança em direçao à sexualidade, ao corpo e às subjetivida-
cas que, s upõe-se, sejam compartilhadas por todos. O corpo aqui é
des. São os estudos queer que irão radicalizar o projera feminista, em
pensado como nawralmenre dimórfico, como uma folh a em branco,
um debate interno ao cam po, mas gu <.: o cxtrapola. Esses est udos
esperando o carimbo da cultura que, por meio de uma sé ri e d e signi-
habilitam as travestis, as drag queens, os drag lcings, os/as transexuais,
ficados c ulturais, assume o gênero. Buder (1999), desenvolvendo uma
as lésbicas, os gays, os bissexuais - e nfim , aqueles designados pela
crítica a essa concepção, afirma que um dos problemas desse tipo de
literatura médica como sujeiros transtOrnados, enfermos, psicóticos,
construtivismo, que hegemonizou o feminismo por décadas, é rer fei-
dewiados, perversos - como sujeiras que constituem su:1s identidades
to do corpo-sexo urna matéria fixa, sobre a qual o gênero viria a dar
medianre os mesmos processos que os conside rados "normais".
forma e sign ificado, dependendo da culwra ou do momcnw históri-
co, ge rando um m ovimenro de c~sencialização das idenridadt:s.
A UNIVERSALIDADE DA SUBORDINAÇÃO FEMININA Essa esse nc iali7.ação das identidades le va Beauvoir :1 afirmar que
os home n s não poderi:1rn chegar :1 um acordo sobre os problemas
Os estudos sob re os gêneros, inici:1lment<.:, e laboraram construcros
das mulhert:s porque atuariam como juíze~ ~.: parte. Os h e rmafroditas
para exp licar a s ubordin:1ção da mulher co m base na tradição elo
rambém não consegui riam entender a subordinação feminina, pois
pensamenro moderno, que, por sua vez, o p era sua interpreraç5o so-
é um "caso demasiado singu lar: não é homem e mulher ao mesmo
bre as posições dos gêne ros na sociedade a parrir de uma pe rspectiva
rempo, mas anres nem homem nem mulher"= (1987: 21) .
oposicional/binária e de ca ráter un ivcrsal.
O homem, para Beauvo ir, represe nta o sujeito uni vt: rsa l; a mu -
Este o lhar tem a obra O segundo sexo, d e Simone de Beauvoir,
lh e r, por sua vez, seria o seu outro abso lu to. Dessa forma, e las são
publicada em 1949, co m o um m arco. Ao afirmar que a "mu lher
mulheres em vi rtud e de sua cstruwra fisiológica; por m ais que se
não nasce, rarna-se", Bcauvoir buscava mostrar os mecanismos que
remonte na história, sempre estiveram subordinadas ao homem. Tal
d5o consistência ao "wrnar-se", constituindo um movimenra teóri-
co de desnawralização da identidade feminina. Mas desnaturalizar premissa a leva a questionar: "Por que as mulheres não co nrestam a
n ão é sinônimo d e dessencializar. Ao contrário, à med ida que se soberan ia do macho? ... De onde vem essa s ubmissão na mulher?"
apontavam os inreres~es que posicionam a mulher como inferior por (Beauvoir, 1987: 35).
uma suposta condição biológica, as posições universalistas refo rça-
ram, em boa coma, a essencialização dos gêneros, uma vez que ren- > Be,wvoir leg~tim.t a fal.t pel.t condição biológica. excluindo aquele< que vivem na ambigi.udade. Para
Ddeuzc. ~ po.ssívc:l pens.1r ou C\Crcvcr rransversalnlentc sobre cenas fenômenos .)C::m h:1ver p;,c;s~do pela
dem a cristalizar as idenridades em posições fixas.
cxpc:riênct.l rc~ll. f'.'ess;1 su.1 furmulaçã.o, o ;1utor refere-s~ 3 homos~e:xu:didadc: e ;l sua tese da
Nas primeiras páginas de seu livro, Beauvoir afirma: " homo"exual~tbdc molccul.tr Sobre os concenos de "homossexualidade molecular"" e
"nansvcr.alidadc... ver Dcrrida & Guauari (s/d)

'
70 71
homossexua lidade I•L.::
Icu::.;.h:..=
u:..=
••_ __, A REIN VEN ÇÃO DO CORP O: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERI~NCIA TRANSEXUAL

E ssas questões e o o lhar universalizantt:: co ntinu arão presentes C itando Chodorow, Orrne r constrói uma tipolog ia compor-
em vários trabalfws de teóricas feministas e alimentaram pesquisas e tamenral na qual o homem é identificado com o racional, o absrra-
reflexões duranre várias décadas. Três décadas depois, a coletânea w, a objetividade (c ultura) , e a mulhe r, com a pra ticidade, a
Natureza, cultura e mulher (C hodorow, Orrner e Rosaldo, 1979), co ncrerud e e a subje t iv idade (n a tureza), embora ela tenha a lertad o
segue, em boa medida, a herança de Beauvoir. (em uma linha apen as) que essas diferenças não são inatas ou gene-
Chodorow pane do pressuposro de que há uma unidade psíqu i- ricamente programadas.
ca n a humanidade . I sto lhe possibilita estruturar su a concepção a A mu lher é tomada co m o sinônimo de família , sendo que, n esse
parcir de uma visão rotalista da sociedade e alocar características ponto , não existe qua lquer menção ao pai. Ao se tentar v isibilizar os
comporramentais fixas a rodos os h o mens c mulhe res, independen- pro cessos culrurais mediante os qu ais o fem in ino está sempre n o
temente d a soc ied ade sob exa m e. De um lado , os hom ens que pólo subordin ado, in v is ibi lizou-se o masculino, n a turalizando-o.
norreiam suas ações por objetivid ade, awação, indiv iduação, isola- Nesse prim eiro momen to, a visibilização da mul her co m o uma ca-
men ro, solidão, p o r um modelo cogni tivo analítico; d o outro, a tegoria universal co r respondia a uma necessidade política d e cons-
mulh er, caracte ri zada pelo comportamen to comuna!, pela coope- trução de uma identidade cole t iva qu e se trad uz iria em co n q uistas
ração, pelo subjetivismo, pelo m odelo compo rtamenral relaciona!. nos espaço s púb licos. No entanro, os perigos ou os limites dessa
Ca da um oc upa uma po s ição fixa d e ntro d e uma es trutura concepção estão na essenciali zaçáo das identidades, po r um lado, c
hierarquizada c bin á ria d os gêneros. O processador da di ferença re- na vi rimização do s ujeito mulh e r, por outro. Conform e Tereza D e
pousa no fa to de as mu lheres terem a capacidad e reprodutiva. La ur ee is ( 19 94 : 207), a primeira limitação do co n ce ito de
Michelc Rosaldo (19 79) faz um co rte profundo na soc iedade, "d ife re nça(s) sex ua l(is)" é qu e ele a pris iona o pe nsa mento c rírico
dividindo-a em doi s ca mpos inco mu n icáveis: o público e o domés- fe minista a uma estru tu ra conceitual marcada pela oposição ltniver-
tico. A explicação para a estrutura hierárquica, b iná ria e dicoromizada sal do sexo.
dos gêne ros d ever-se-ia ao faro de os home n s sempre terem ocupado Simultaneamente ao processo de in sriwcionalização d o feminis-
o pólo q u e concenrra a autOridade: o mundo público. mo, começam a surgir reflexões internas aos próprios feminismos qu e
Rosaldo te nra se r descritiva sem dizer de que socied ade está Ía- apontam a necessidade de se re pensare m algu mas categorias de aná li-
lando. Este é o problema, de um a forma ge ra l, das co n ce p çõe~ se e de se construírem o utras. Os pressuposros teóricos que orienta-
uni versalisras: estão dizendo que as sociedades "são", mas não d izem ram essa gu inada foram, principalmente, a concepção d e poder e a
para onde es tão olhando. M ireya S uá rez ( 199 5) chama a ate n ção dimensão relacio na! para a construção das identidades de gên ero.'
para o faro d e estudiosos do paren tesco e da o rga nização socia l, ao
negarem o ca ráter natural de su a estrutura, " nunca enfrenra rem a
DO UNIVERSAL AO RELACIONAL
necessidade d e ta m bém estranhar as idé ias ocidentais a resp e iro da
diferença homem/mulher c das relações enrre eles" (1995: 2) . Ao longo da década de 1990, os estudos sobrl! as relações de gê nero
Tal qual Chodorow e Rosaldo, Onner ( 1979) também propõe te- se consolida ram a partir d e uma reavaliação dos pressupostos teóri -
ses para explicar a universal idade d a subordinação do gênero feminino cos q u e fundame ntavam o campo de estudos sob re as "mulh eres".
ao gênero m asculino, não se detendo ao estudo de uma sociedade es-
pecífica. A a urora propõe a seguinte questão: por que as mulheres têm
l Para unl;l criric:1 ~ concepç:io univc:rsali!.t:l e esscnciali1:ada do SUJeito mulher, v~r Y:1nnoui:Js ( 1994).
um valo r inferior, em relação aos homens, em rodas as sociedades? H"rding ( 1993). Ltlll.l (2002.1, 2002h), Buder (1999. 1998a).

72 73
I
homossexua lidad<e e IL..:.<o:.;.c
l t:.:;.u':.:.
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A tarefa teónca era d esconstruir essa mulher universal, apontando


T A REI NVENÇÃO DO CORPO: SEXUALIDADE E GeNERO NA EXPERI~NCI A TRANSEXUAL

mas em. um movirne nro com plexificador d o relaciona!. Passou-se a


o ut ras va riáveis sociológicas q ue se articulassem para a co n strução trab alhar o gên ero inte r-relacionalrnente: o h omem n egro em rela-
das identidades dos gêneros. A categoria a na lítica "gênero" foi bus- ção ao homem b ranco, o h omem de classe média e m relação ao
car nas classes sociais, n as n acionalidades, n as religiosidades, n as favelado e ao grande e mpresário, o homem nordes tino e o · do sul, e
e tni as e nas orie nt ações sex uai s os aporces n ecessá rio s para muitas outras possib ilidades de composição que surge m nas narra-
des natural izar e dessencializar a catego ria mulher, que se multiplica tivas dos sujeiras .
e se fragmenta em negras analfàbe ras, brancas conservadoras, negras O n o m e d e Joan Sco u foi f undame ntal para esse momento. A
racis tas, ciganas, camponesas, imigrantes. a u rora ap onta a necessidade d e se c riarem in strumentos analíticos
Este mome nto represe n to u uma rup tura com um o lhar que qu e poss ibilitem ao cienrista se descola r d a em piri a . Para e la , os
posicionava a mulhe r como portado ra de uma condição universal- eswdos sobre a mulhe r era m m a is descri tivos do que analíticos. Suas
men te subordinada, o que gero u, por um lado, uma representação reses logo assum iram uma grand e força na acade mia .
d a mulhe r-vítima e, por outro, d o hom em-inimigo, dois lados da Ut ilizando as conrri buições teó ricas de Foucaulr, p rinc ipalmen-
m esma moeda: o parriarcalismo. te a ge n ealogia do poder, e as do projero desconst rutivisra de Derrida,
U m d os principais d esdobram entos do o lhar relaciona! sobre os Scon d efin iu gê nero como (1) um el em ento co nstitutivo d as rela-
gêneros propiciad o pelos estudos fem inistas foi a organização de o u- ções sociais baseadas nas dife renças percebidas entre os sexos e (2)
tro campo d e estudo: o d as mascu linidades, que se fundamenta ram um a form a p rimár ia de da r significado às relações d e pod er (Scorc,
na desconstrução d o homem uni versal, naturalm ente vi ril, compe ti- 199 5: 86).
ti vo e viole mo. Será na d écad a de 1990 que este campo de estudos irá Para Scotr, "gê nero" d eve ser construído como uma catego ria ana-
aparecer na cena acad êmica. M u iras perguntas fo ram feiras: será q ue o lí rica, como um ins trumento m etodo lóg ico p ara o entendim e nto
homem negro vivencia a mascu linidade d a m esma forma que o ho- da construção, da reprodução e d as mudan ças das ide ntidades de
m e m branco? O id eal de m asculinidade é alcançado por algu m su- gê nero . A aurora propõe um conceiro que visa a aborda r gê ne ro a
je ito empírico? Quais as interdições explícitas e implícitas que se arti- partir d e uma ótica m a is sistêmica, ao mesmo tempo em que chama
cu lam para forma r a identid ad e m asculi na? Existe uma mascul inida- a atenção p ara a n ecess id ade d e os c ientistas tornarem- se mai s
d e h egemônica? Quais são as masculinidades silenciadas? auroconscie nres d a distinção entre o vocab ulá rio analítico e o m ate-
Os estudos das masculinidad es, gua rdadas as idiossin crasias teó- ri al eswdado.
ri cas," d ese n vo lvem-se no espaço teór ico aberto pela perspectiva A tarefa desse instrumental a nalítico seri a fazer p e rguntas que
relaciona!. Um dos fios co ndu rores que orien tarão as diversas pes- apontasse m os processos h istóricos gue se a rti c ula m para forma r
qu isas e reflexões d esse novo campo de estudos é a premissa de que dete rminadas co nfigu rações d as relações e nrre os gê neros, re ei ra ndo
o mascu lino e o fem ini no se co nstroem relacionalm en te e, de forma a aparente atcmporal idade gu e estru tura a relação binária e hie rár-
s imultânea, apontam qu e este "re laciona !" n ão deveria ser inter- quica como facos na tu rais.
pre tado co mo "o homem se constrói numa relação de oposição à Algumas q uestões podem ser formuladas às teses de Scorr. Ao se
mulh e r", e m uma alteridade radical , o u absoluta, conforme Beauvoir, propor estudar gên ero anco ra ndo-o nas "diferenças percebid as emre
os sexos", n ão se está retira ndo o conteúdo histórico da co nstrução
4
dos corpos-sex uados? A idé ia h egemônica segundo a qual a natureza
1'""-um" aproxi nuç:1o com os c>!udos sobre mascu lin iJ "Je, ver Bento ( 1998), Sega I ( 1990), No lasco
(199.'\), Kimmd ( 1994). Corneau (1990), Connell {1987). conscru iu dois corpos diferentes e o social aj ustaria as fun ções dos

74 75
homoHl!XuCJ IIdAd o l•c:lc:::;ulc:_:tu:.:.;ru::.,__ __,) A REINVENÇAO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPER I ~NC I A TRANSEXUAL

gêneros a panir elas aptidões naturais não é uma consrrução datada? N essas ex pc11enc ias, há um desloc::~ mcnto entre co rpo c sex uali-
Como pe nsar em dimorfismo, por exemplo, na Renasce::nça, C]Uando dade, entre co rpo c subjetividade, enrre o co rpo c as performances
o modelo que orientava os olhares sobre os corpos era o isomorfismo? de gênt:ro. /\inda qut: o referente da binariedadc esteja presente como
Propor um conceiro a partir das ·'diferenças entre os sexos" não é uma matriz de co nstrução de sentidos, negociados para os sujeitos
rerornar, por ouuos cam inhos, ao binarismo? que trans itam entre o masculino e o feminino, essas experiências
Caso Scott estivesse tratando do nível descritivo das relações bi- negam , ao mesmo tempo, que os significados qu e atribuem aos ní-
nárias entre os gê neros, sua definição seria mais apropriada; no en- veis co nstitutivos de suas identidades seja m determinados pelas di-
tanto, quando se pwpõe a fornecer um instrumental analítico de ferenças sexuais.
compreensão dessa real idade, cristal izando o conceito no referente f necessário problemarizar os limites do "relaciona! de dois" cal-
binário, reforça essa mesma estrutura, ge rando o que se poderia ch a- cado no refe re nte dos sexos. O esrudo d a sex ualidade hegemônica,
m ar de movime n to tauto lógico. Parece q u e há uma contrad ição e n - o u d a n orm a h eterossexual, e das sexu alid ades d ive rgentes ex ige o
tre a definição co nce itual e o objetivo proposto, qual scj::~ , descob rir. dcsenvolvirnenro d e análises que, embora vincu ladas ao gênero, apre-
o que leva à aparência d e uma permanência intemporal na represen- sentem autonomia e m relação a ele, o que significa p roblematizar e
tação bin:í.ria c hierarqu izada entre os gêneros, ao mesmo tempo em e nfremar a hetcrossexualidade como a matriz' que seguia o rientan-
que o conce ito se fundamenta na diferença, não como jogo de pro- do o o lhar das/os feministas.
dução de diferenças identirárias infinitas, co rn o proporá Oerrida Para Weeks ( 1993), a maioria das feministas da "primeira onda",
com sua dif.{ér:wce, mas na diferença do sexo. C]Ue ocorreu no final no século XJX , levada a cabo pelas sufragistas,
Talvez o problema resida no faro de que, ao estudar os gê n e ros e nfatizava s ua n::speirabilidade sexual; nos prime iros rempos da "se-
a parrir das diferenças sexuais, está se sugerindo explicitamente gunda onda", nos anos 60, notou-se uma hostilidade clara às mu-
que rodo dis c urso necessita do pressuposro da diferen ça sex ual, lh e res lésb icas e a suas práticas boêmias. Joan Ncsdé afirma que as
sendo que esse nível fun cionaria como um estágio pré-d iscurs ivo. lésb icas cometeram um e r ro ao p e rmitir que s uas vidas foss e m
Aqui, parece que as concepções relacionais e unive rs:1 is tendem a t rivial izadas e int erpretadas por femini stas que não co mpartilhavam
encon trar-se. A c u lw ra en craria em cena para organizar esse nível a mesm a experi ê n c ia identitária de rivada 'h orie ntação sexual. O
p ré-social, o u p ré-d iscursivo, para d istri b u ir as a tribui ções d e gê- le ma "o lesb ian ism o é a prática e o feminismo <.! a teo ria" (ap u d
nero , tomando como re::ferência as d ife renças in en.ntes aos co rpos- Weeks, 1993: 321 ), embora significasse uma apa rente un idade en -
sexuados. tre as mul h e res, inv isibilizava a identidade lésb ica. O h ererossexismo
Pode-se recuperar aqui a preocupação de Butle r (1999) segundo ge n era lizado nas teo rias feministas n ão po~ s ibilirou escuta r outras
a qual a diferença sexual pode leva r a uma coisificação d o gênero c a
um marco impli citamente h eterossexua l para a desc ri ção dos gêne-
ros, d a identidade de gê nero e da sexualidade. Enrão, qual a auro- s Segundo Butler, o conceito de: .. m.uriz heterossexual .. dc~ign.t ,-: b.t!I.C' de intdegihilid.tde culturJ.I ;ur.av~~

nomia que uma abordagem como essa reserva à sexualidad e? Como J., qu.1l )C n::uur.tli7_,, cnrpo~. gêneros c= desejos. Ess:1. rn:uril. dcfinir.i o nH,<.Jclo di~\.ursivo/cpi.Hê 1nico
hcgcntúnicu de intdtgibllid.u.lc de gênero. o qu~tl supõe: que p:1r,1 u corpo ter coerência c scruido de .. c
entender as práticas de sujeiros que se con s croem fora dessa h.tvcr unl sc:<u csdvd, c\prc~~aJn meJi:~ntc o género c:sr.hcl (m.uculino cxprc!tsa homcn1. feminino
bina riedade? Es te conceito poderia co~rribuir para a aproxim ação e exprcss.t n1ulher). A hC'tc:rossexual1dade ba.sei:~.-sc no dimurfi·Hno n;uural dos corpos. A :nuora
fund.uncntou ~u.l~ teses sobre .1 hctcrossexuahdadc, c:nquanl(l m.ltriL de: intdigihihd.tdc Jo~ gi:nc:ros,
a comp reensão d e experiências como a dos/as tra nsexu a is, das tra- nos leses de Monique Wimg (200 I) sobre "comraw he~cro>scxual .. c 110> de Adnennc Ri c h (I \181)
vestis, das drag queens, dos drag kings? sobre .. h e<crosscxualtd.lclc obngatüria".

76 77
c A REINV ENÇÂO DO CO RPO : SEXUALIDADE E GtNERO NA EXPERtÉNCtA TRANSEXUAL

vozes oprimidas que exprim iriam ourro tipo de exclusão : o da sexu - que apon tarão p a ra a necess idade de os estudos so bre sex ual idade
alidade divergente. desloca rem-se leoricamenrc dos estudos de gê nero.
Tanro no primeiro qua nro no segundo mo m en ro, considerados Pa ra R u bin (1989), deve-se a n alisar sexualidade e gê nero como
aqui co mo "universal" e "relacio n a!", res pectiva m ente, a sexualida- categor ias independe ntes, e não co m o ela mesma h av ia fe ito em
de, o gênero e a su bjetivid ad e não foram pensados fora de uma re la- The Traffic in Woman (1975), es tud o sobre os sistemas d e sexo-
ção binária. São os esrudos queer que apontarão o h e terossexismo das gênero que se tornou uma d as gra ndes referências nos estudos das
teorias fe ministas e poss ibilitarão, por um lado, a desparo logização m ulhe res d os anos 7 0. Segundo e la, não existia naque la obra um a
de experiências identitárias e sexua is até en tão interpretad as como distin ção entre d esejo sexual e gênero; ambos eram tratados como
"problemas individuais" c, por o uuo, d edicarão uma atenção espe- modalida des d o m esm o processo social s ubjace nte, e a sex ualida-
cial às performa nces q ue provocam fissu ras nas normas d e gêne ro. O de, ou a op ressão sexu a l, e ra observada co mo um epifenô m e n o da
texro- referência dos eswdos quee1- é o d e Judith B uder, Gender and o pressão d e gê n e ro.
Trouble: Feminism and rhe Subversion ofldentity, publicado e m 1990. Qua ndo Navarro-Swain (2000) propõe a seguinte questão: se as
mulhe res com eçaram a surgi r n a his tó ria a pa rtir d o femini s mo,
o nde se escondem as lésb icas, em que nichos de obscuridade e sil ên-
DO RELACIONAL AO PLURAL: OS LIMITES DOS ESTUDOS DE GÊNERO
cio se p ode encon trá-las? (2000: 13), retoma a preocupação d e Rubin
A crescente o rgan ização d e grupos em torno da o r ien tação sex ua l, e m termos da invisibilidade q ue a luta contra a opressão de gênero
na década de 1980, coi ncide com a preocu pação acadêmica sobre as ge rou n as mulh eres lésbicas. O desafio, po rtanro, e ra co ns trui r teo-
sexualidades, tlu e, nesse m omento, prohl eJnat izava, d e ntre o ucras rias q u e h a bili tassem aqueles que divergiam da norma he terossexu-
quesrões, o papel d a psic~nálise e da p sicologia n a con stru ção do a l, apo nta ndo os processos para a co n sr ~'-:! ção de s uas identidad es
"veidadeiro sexo" . A hi stÓ ri a dos inceresses mora is da burgu es ia, a sexuais a panir de referências que, por um lado, se co ntrapusessem
formação de uma força d e trabalho para a em ergente indústria e o a uma explicação referenciada nos co rpos-sexuados e, por outro, pro-
rema da popu lação - portanto , da rep rodu ção - são a lguns dos pon- duz issem um campo de contra-discursos ao saber gerado nos es p a-
ros de análise d e uma re leitu ra da hi stóri a d as sexual idades que pas- ço s co n fessio nais das clín icas d e psicólogos, ps icanalis tas, p siquia-
sam a ser vin cu ladas a conrexros sociais e po líticos específi cos. uas e programas de transgenitalização .
O livro A história da sexualidade (198 5), d e Fo ucault , foi um Ao contrário das opiniões expressadas n aque la o bra, Rubin afirma
marco nesse processo. Su as reflexões sobre as genealogias do poder e ser absolutamente essen cial analisar separadamente gê n ero e sexuali-
as arqueologias d o sabe r são organizad as nessa o bra para fund a m en - d ad e, caso se deseje uma maior proximidade com suas existên cias so-
tar sua rese de qu e a sex ual idade, redu ro que se ac redita o m ais ciais distin tas (Rubin , 1989). Era n ecessár io analisar deslocadamente
individual, seria resultado . de uma a rti culação h istórica do dispos i- a sexua lidade do gênero, o gênero do corpo-sexuado , o corpo -sexuado
tivo poder-saber, qu e põe e expõe o sexo em discu rso, produzindo da subjetividade e a sexualidade do corpo-scxuado.
efeiros sobre os co rpos c as s ubjetividades. " A crítica que Rubin faz a sero res d o movim e nto femini sta
Nos anos 80, há dois g randes movimentos teóricos: a crítica à estadunicle nse ide ntificados co m a política moral iza nte do Estado
universalidade da categoria "mulher" e os estudos sobre a sexualida- do governo R eagan a leva a se pe rgun tar se a teoria d a o p ressão dos
de, principalmente os d e Fou caulr (1985), Weeks ( 1993) e Gayle gêne ro s, desenvolvida historicamente pelo femi nis mo , a quali fica-
Rubin (1989). É essa última teórica que irá propor a lgumas questões ria, automaticamente, como t eo ri a da opressão sex u a l. De cerra
I
homossexualidade e c::lc"-'ul.:..:tu.:..:'•:.___ __, A REINVENÇAO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERI~NCIA TRANSEXUAL

forma, essa preocupação será o eixo que orientará o livro Gender and através da evocação reiterada que o reLaciona com acusações,
TroubLe, de Judith Burler (1999). Enrre outros aspectos, Butler patoLogias e insuLtos' (Butler, 2002 : Gl ).
polemizará com as teóricas feministas que vinculam o gênero a uma Na literawra estadunidense, queer é utilizado para englobar os
esrrutu ra binária que leva em seu interior a pressuposição da termos gay e lésbica, revertendo seu semido h istórico, uma vez q_ue
heterossexual idade."
era utilizado depreciativa mente para se referir aos gays. Pa ra Bouroer
O objetivo de Buder era expor e problematizar o hererossexismo (2000), o giro queer toma como objeto de análise não exclusivamen-
generalizado na teoria feminista c, ao m esmo tempo, apresentar seu te a homossexualidade, mas a construção do binômio homossexua-
desejo por um mundo no qual as pessoas que vivem a certa distância lidade/heterossexualidade, em que a heterossexualidade se revelará
das normas de gênero se reconhecessem como merecedoras de as- ao mesmo tempo como produto ra da homossexualidade e como es-
cenderem à condição humana.
trutura parasitária do seu out ro perve rso!
As questões que irão marcar o terceiro momento dos eswdos de Esses estudos se o rganizaram a parrir de alguns pressupostos: a
gênero dize m respeito à problematização da vinculação entre gêne- sexualidade como um dispositivo; o caráter performativo das id enti-
ro, sexualidade e subjetividade, perpassadas por uma leitura do cor- dades de gênero; o alcance subversivo das performances e das sexuali-
po como signiflcan.te em permanente processo de construção e com dades fora das normas de gênero; o corpo como um bio poder, fabri-
significados múltiplos. A idéia do múlciplo, da desnaturalização, da cado por tecnologias precisas." Em torno desse programa mínimo,
legitimidade das sexualidacles divergentes e das histórias das propõe-se queering, o campo de esrudos sob re sexualidade, gênero e
tecnologias para a produção dos "sexos verdadeiros" adquire um status
corpo .
teórico que, embora vinculado aos estudos das relações de gênero, A organização de coletivos de gay.r e de lésbicas põe a questão da
cob ra um estatuto próprio: são os estudos queer. sexualidade como um e le mento de unidade, de construção de id en-
Burler definirá queer como
tidad e coletiva, ao mesmo tempo em que aponta a questão de gêne-
O termo queer surge como uma interpelação que discute a questão r o como um ponto a mais, e não-exclus ivo, para explicar as desi-
da força e da oposição, da estabiLidade e da variabilidade no seio oualdades c a produção das margens. No entanto, os movimentos
da performatividade. Este termo tem operado como uma prática ~ue se organizam em torno das iden tidades sexuais, embora po-
Lingüistica cujo propósito tem sido o da degradaçãn do sujeito a nham em re lev o uma "nova" fa ce ra da dominação do s istema,
que se rejére, ou meLh01~ a constituição desse sujeito mediante esse estrutu ram -se a partir d e SLtjeiros que comparcilham entre si os
apeLativo degradante. Queer adquire todo seu poder precariamente mesmos elementos identitários, reabi litando o tema das idenrida-
des es.s.encializadas. Talvez este seja o maior d ilema das ide ntidades

6
É. irnpon~uHe dcsuc~tr 'JliC c~uuo Rubin qu:l!HO Buder n:i.o negan1 ~ts contribuições do feminismo,
tan1pouco abrem mão de unt lugar d t: f:tb feminista. Mary Russo (2000) segue um caminho próxin1o 7 Em espanhol no original. Tradução d:~. aurora.
~o aptHH;tr <.]llc..' "pe lo menos nos E!,rados Unidos, rem·se feito um cons idcdvel esforço para g:uantir s Alguns rexws podem ser considerados precursores dos esrudos quccr. encrc eles: Wceks ( 1993, I 998);
que as feministas scjarn 'rnulhc:res norn1ais' e que nossas aspir:-~çócs polícic:-~s sejam a 'tendência geral'. Karz ( 1996); Foucaulr ( 1985) H>raway ( 1991 ). Sobre os esrudos quar, ver Gamson (2002) . J omenez
Com a melhor <bs intenções (que incluem notadamente o desejo de ser inclusiva ao m.lximo) esta (2002) , Honeychurch ( 1997), Burler (2002), l'reciado (2002), Bourcier (2000). revisr:• R,vm o
estratégia normalizance n5.o pode esconder 0 seu preconceito de classe e a fixaçio a uma 'mobi lidade (2000. 2000a, 2000b). Sedgwick (2002. 1999) .
ascendente que depende de se de ix:tr outros para trás ... M ais imporrante de tudo, não questiona os 9 Sob 0 nome "estudos qul'er", h:l. um:t plur;tlidade de visões . Esses pontos s:io ;dguns que se aponran1

próprios lermos e p rocessos da normalidade" (2000: 25). como 111 :1 is ou menos consensu.tis entre os <-1ue desenvolvem e studos e milir:tncia querr.

80 81
A RE I NVENÇÃO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~N(RO Nl\ EXPERI~NC I A TRANSEX U A L
homo~uucualidade I•J._<u_hu••
__" -----'

coletivas. Como trabalhar com as diferenças e, ao mesmo tempo , 1993, mostrando principalmente a res1stencia da comunidade gay e
lésbica em ace irar os bissex uais e os transexuais em su as fileiras, dois
forjar um programa de atuação política? Quais são as ci ladas da
igualdade? E quais as da diferença? grupos que foram incorporados às políticas queer. Um_a das ~arras,
de uma mulher lésbica, posicionava-se co ntra a 1ncl u sao de
Talvez a solução seja usar o "essencialismo" das identidades como
um recurso, uma tática operacional, uma vez que o sign o mulhe r transex uais nos coletivos :
não expressa a multiplicidade e as descontinuidades das experiê nc ias ':4s transexuais não só querem ser lésbicas, mas, com toda a
fem ininas. Kr isreva (apud Burler, 1998: 340) parece su ge rir um arrogância e presunção que caracteriza os home~s, insiste":_ em ir
camin ho parecido ao a ponta r que as fe m in isws devem utilizar o ao 11 de não são bem-vindas e em tentar destrutr as reumoes das
essencialismo como fe rramenta política sem arrib u í-lo integr idade Lésbicas"'" (apurl Gamson, 2002: I 56).
on rológica. No en ta n to, con co rdo com Budcr (1 998) g uand o ad-
verte que uma coisa é utilizar o termo "mu lher" c conhecer sua insu- A resposta:
ficiência onrológica e outra é articular u ma visão normativa que cc- Por acaso, teremos de levar nossa certidão de nascimento e duas
lebre ou e manc ipe uma essência, u ma n atureza ou um a rea lidade testemunhas a todos os eventos de mulheres no futur·o? { .. ]Se vocês
cultural compartil hada, impossível d e se enco ntra r. Este d ebate se rá se Jentem ameaçadas pela simples existência de um tipo de pessoa
retomado pelos estud os queer. e desejam excluí-la para assim se sentirem melh01; 11ocês não
passam de umas fonáticas, no sentido restrito do termo" (apud
OS ESTUDOS QUEER: DO RELACIONAL DE DOIS AO PLURAL Camson , 2002: 156) .

Nos últim os anos, a p roposta teó rica de que o co rpo-sexuad o, o Em o ucra sessão, é publicada a carta de um ho m e m gay:
gênero e a sex ua lidade são p roduws his tó ri cos, co isi fi cad os co mo Q uecr 11 ão é uma palavra com a qual me identifico porque não
naturais, a!>sume u m a radicalidade de desnaturalização co m os estu- define quem sou nem representa o que penso /. ..} Sou um ho:nem
dos queer, faro g ue ted desdob ramen ros na con cepção do qu e seja que se sente sexualm ente atraído peLas pesso~s do me~rno genero
idenridade de gê n ero c em como o rga nizar as identidades co lc riv::~s . sexual N ão me sinto atraído por ambos os generos. Nao sou uma
Para esses estu dos, a lu ta o rga ni zada dos gays, d as lés b icas, d os m ulher aprisionada em um corpo de homem, m ·m um homem
u ansexuais, das t raves[is c das mulheres n egras prescin de d e um:1 aprisionado em um corpo de mulher. Não gosto n~m tenho
identidade coletiva calcad a na ficção de que todos sejam portadores necessidade de vestir-me com roupa do sexo oposto. E nao sou um
de e lem e ntos idcntidr ios esse nc ia is qu e os v is ibili zc m c os "heterosseuxai gucer ·: uma p essoa heterossexuaL que se sente
homogeneízem . A política queer é baseada na instabilidade das iden- apriosionada nas convenções da expressão sexual normativa { ..}
tidades. No entamo, a posição queer, ao longo da década de 1990,
gerou polêmicas c resistências nas comunidades gap c lésbicas n o r-
~ Cm "'P·'"~o urig&n.ll. Tr.lduç:iu d.l autora. Vale rc.sah.~r que c>'a l~siç:io c~•.ncidc com a de
te-americanas. Vejamos alguns exemplos d essas pol ê micas. algunl:tS. fenlllliSf.\~ que denunciam :.s transexu:ai!lo f(:mlnln:u que dcSCJ:lm paruc•par dos gr~pos
Gamso n (2002) relata que, em 1993, iniciou-se um forre debate fcmini~t~u conlo unl:t cenr:uiv:t de os honlens min:~rcm a comunidade das nl~lh crcs. Um dos l•v~os
mais cit"dos por aqucles que dcfcndem essa posição é o de lhymond ( 1979), Th~ trnmuxunl ~":p' r~.
na sessão de canas d o se m a nário San Francisco Bay Times sobre a Alguns ;tnni dcpou, cnl 1997. Slone. conhc:cid:~ leórica lr:ln)cxu:~l nonc-:.•nenc.,n.,. e~crever.t Th~
U[ilização do nome queer. O a u to r faz um levantamento d as acir ra- Emp•r• Srril:rs !Jnrk: A posttrnnuxunl Mnniftsto. conttapondo-se às t ese• de Raymond.
n Em espanh ol no orig&nal. T"dução da autora.
das discussões qu e se trava ram ao longo dos a n os de 1991 , 1992 c

83
82
c homouexualidade I«IL:.cu:::lt:.::u':.:.•_ __J) A REINVENÇAO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERI~NCIA TRANSEXUAL

Não quero ser incluído no guarda-chuvas queer, que engloba sistema devesse Juncionm· {e úso é discutÍvel) para a maioria das
tudo f .. r
(apud Gamson, 2002 : 155). pessoas, não funciona. Muita gente é atingida mental e fisica-
mente porque tenta calçar sapatos que não são os seus. Sou
O tom ácido das carras revela o clima que se mstaura quando as
consciente de que a maioria de vocês prefore a estabilidade,
identidades c oletivas são d iscutidas e algum elemento que possa
especialmente quando se trata de gênero. O imperativo de binário
desestabilizá-las é introduzido. Os inte resses que estão em jogo na
exige que foçamos uma escolha definitiva. Um sexo. Um corpo.
defesa das identidades coletivas são complexos e vão desde o apego à
Masculino ou ftminino. Homo ou hetero. Yin e yang" (Volcano,
manutenção de espaços de fala, que visibilizam sujeitos silenciados
2002: 2).
pelas normas de gênero, à manutenção de benefíc ios materiais o bti-
dos por meio da reprodução das categorias rfgidas e transparentes O que diferencia os rransexuais dos drag kings é que estes não
que fu ndam essas identidades, processo mais co nhecido co mo re ivindicam "uma" ident idade de gênero, mas a legi timidade dos
" instituc ionalização". Para muitos, as políticas queer" são identifi cadas trânsitos, inclusive corpo ra is, entre os gêne ros. Os hormônios, as
como um assalto, uma invasão à identidade lésbica c gay, pois pro- ci rurgias parciais ou totais das genitálias, o s ilicone, a maquiagcm
póem pensar essas identidades em seu caráte r performativo e co n - são ut ilizados pelos drag kings para construir inren cionalmcme pa-
tingente, co ntrapondo c denunciando qualquer tentativa de grava r ródias de gênero, para embaralhar frontei r as. O corpo é uLilizado
as identidades sexuais c de gênero como se fossem pedras, fixas. como manifesto, como um locus de produção de contra-discursos,
A radical idade política c teórica queer é assumida pelos drag kings, de re i n scr ituras õ ordem de gênero. As citaçócs são
mulheres b iológicas que fazem paród ias do masc ulino, alguns o pe- desconrcxtualizadas de um referencial biológico, são masculinid:t-
rados, outros n ão, e qu e rêm como programa de ação o ataque às des sem homens.
dicotomias dos gêneros. O fotógrafo drag king Del LaCrace Volcano As pe rforma nces d e gênero das travestis, das drag queens c, mais
define-se como um "terrorista do gênero". recentemente, dos drag kings impóem a construção de novas refle-
I
xões. Como explica r a emergência de m ovime ntos e de identidades
Numa reencm·naçiío anterior era conhecido como Deffa Grace,
con tin gentes que têm a pluralidade e o trânsito entre os gêneros
queer, fotógrafo lésbica. Durou quase vinte anos e foi um suporte
como princípio, que se fu ndamentam não na ambigüidade, mas na
no quaL me agarrei com o1guLho ... Hoje sou um terrorista do
pluralidade?
gênero, uma mutação intencionada, um/uma intersexo através do
A pergunta que se pode fazer para aqueles/:1s que usam a essên-
desenho.. . Um terrorista do gênero é qualquer pessoa que
cia, entendida co mo alguma coisa que rodas as mulheres/os homens
conscientemente e intencionaLmente subverte, desestabiLiza e
(e só elas/eles) têm e que poss ibili ta criar laços identitários, é: como
desafia o sistema binário de gênero. r ..)
o fato é que, embora esse entender os processos de organização das subjet iv idades, das
performances de gênero e das sexual idades dos/as transexuais e suas
12Em csp.mhol no original. Tr~duç~o da autora.
reivindicaçóes para serem reconhecidos/as como membros do gêne-
u Um exe1nplo d ..1 política qu~~r. com su:~s dtica~ de dcsconsuução das instituições disciplinare~. são :u ro identificado se não compartilham nenhuma essência com os ho-
manifc~1ações públicas do grupo ativista otlli·aids ACT UP. O Quur Nation. um grupo derivado do
mens e as mulheres biológicas?
ACT UP. opera sobretudo a1ravé. de mobilizações culcumis descenrralizadas e loc~is, que consistem
em colar ca.naze~ e au[orepresenr;açóc.) paródic:t'\ dos gfneros. Sobre as políticas qut"~r. ver Ga.rnson
(1992): Seclgwick (2002. 1999). P;tra uma desconstruç~o quur da sexualidade, ver l'reciado (2002).
l4 En1 espanhol no original. Traduç:io da autora.

84 8S
hornoSStiUJ<~Iidad~ ) ~ l~<:::ul.::
<u::..:<>:....__ __, A REINVENÇAO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERI~NCIA TRANSEXUAL

AS PERFORMANCES DE GÊNERO conuano, segundo Butler, podemos analisar gênero como uma so-
fisticada tecn o logia social heteronormativa,'" operacionalizada pelas
O que é o gê nero? Co mo ele se ani c ula co m o <.:orpo? Exis te um
instituições médicas , lingüísticas, domésticas, escolares e que pro-
nível pré-disc ursivo, co mpree ndido como pré-social, fora das rela-
duzem constantemenre corpos-h omens e corpos-mulheres. Uma das
ções de poder-saber? O gên e ro se riam os discursos formulados a
formas para se reproduzir a heterossexualidade consiste em cul tivar
partir de uma real idade corpórea, marcada pela diferença? O gênero
os corpos em sexos diferentes, com aparê ncias "naturais" e disposi-
seria a formulação cultural dessas diferenças? Existe sexo sem gêne-
ções heterossexuais na[Urais . A heterossexualidade constitui-se em
ro? Co mo se parar o co rpo/estrutu ra do corpo/resultado? Co mo se-
uma matriz que conferirá senrido às di fe renças entre os sexos.
parar a parte do corpo que não foi consrruído desde semp re por
A panir das reiterações contínuas, rea lizadas mediante interpre-
expectativas e su posições do corpo original que não está maculado
tações em atos das normas d e gênero, os corpos adqui rem sua apa-
pela culrura? Onde es tá a origem?
rência de gênero, assumindo-o em uma sé rie de aros que são renova-
Pensar as relações entre gênero e corpo, apontando os processos
dos, revisados e consol idados no tempo. ~ isso que Buder chamará
que se articula m para dar uma aparência a- histórica e destituída d e
de performatividades de gênero.
seu conreL'tdo políti co, parece-me ser uma das preocupações cen-
Antes d e nascer, o corpo já esLá inscrito em um cam po discursivo
lra is da o bra de Buder e de outras/os Leóricas/os fe mini stas queer.
determinado. Ainda quando se é uma "pro messa", um dcvir, há um
Para Budcr, o gênero não esd passivamente inscrito sobre o co rpo.
co njunto de ex pectativas estruturadas numa com plexa red e de pres-
Conform e a aurora,
suposições so bre comporramenros, goslüs c subjetiv idades que aca-
os atores sempre estão no cenário, dentro dos mesmos termos da bam por an tecipar o efeiro que se supunha causa.
pcrfõnnance. /l ssim como uma crama pode ~er representada de A história do corpo não pode se r separada ou deslocada dos dispo-
múltipLas formas, e assim como uma obra requer, ao mesmo s iti vos de consrrução do biopoder. O co rpo é um texto socialmenre
tempo, texto e interpretação, o corpo yxuado foz sua prtrte em co nstruído, um arquivo vivo d a história do processo de produçio-
espaçoJ culturalmente definidos e Leva adiante as interpretações reprodução sexua l. Nesse p rocesso, cenos códigos na[Ural izam-se,
dentro dos limites já existentes' 5 (1998: 308).

A visão que defin e gênero co mo a lgo que as sociedades criam


17 Um~' d:ts :tu coras que: rrab:tlh.l com :1 cese de ''concrato heceros.,exual" é Montque Wiuig. No ~-=u livro
para signiflcar as diferenças dos co rpos scxualizados ass<.: nra-se em
L11 pmu'~ stmight (200 I). public~do iniciolm<:nte em inglês com o título Thc strnighr mind, Winig f:11.
uma dicoromia en tre sexo ( natureza) versus gênero (culrura) ."· Se- um jogo com " p~Lwr.1 strmgiJt (direito, reto, direto, ereto, honesto, honrado), que no j~rg:ío gny
gLtndo essa visão, cada cultura moldaria, imprimiria, suas marcas !Jignific:l hcccro~scxual. ou ''nqurlcdr mcnll' rart" . A mente (cor}rcra, segundo Wiuig, univcr~:ll i z:1 lod:u
.\~ Hl;ts idéias c é tnc:tpaz de conceber um:t cul[ltra que n:lo ordene todos os seus concc-iros ~obrt.: :\base
n esse co rpo inerte c diferenciado sexualm e nte pela natureza. Ao <.b hctcrossexualid.tdc. Ain<.tt \cgundo Winig. a m;tuiz do poder ou d:t dornin:lç5o n;\o é a dnfnin:1ç:io
de: cl.t\Sc:~. nc:n1 111C~Inu as f•lÇ;tS, nlas ::1. heu~rossexu~d i d.ade. Ou se:j:a. o COIHr:tto ~cxu;1l é l) d.1
ht!tt:fO'>,CXll:\li<bdc. r~\r;t Budc:r. uu cntant:o, ·' ~cparação radica l que Wuug propõe <:nue hcceJO:.~exu.d
(reto) t:: gny é um;l rc.:.pos t:t do tipo de bin:uismo que Wittig define como o l;e.:.to fi losófico davi!>ório
tS Em c:spaohol r"\n origin:tl. Tr.:Htuç.ío da ~1utora. do pt:n.:..tnH:IHO rcro. Dt:!>t;l form.t, .1 !!.Cpar..lç;lo r.ultc:d propo~ca por Wiuig entre hc:u.·ro.)\cxu:dad:ldc t:
16 O la\•ro de Don.t Har:t.wa)', Stmitrnr. Cyborg:r nnd wonu:n: tht' rt'rnut'ntion o[ nnrurr nurc.a un1a vir.td.J IHltnossexu:tlid.,de n:tc' é cert.l, unl:t vc:z. que h~t estruturas de homossexualid:-tdc psíqutc.t nas rd.tçõcs
no fcnlilllsnlo. ou, con1o ~ugcre Preciado (200 I ), inicia utn giro pós-fen1inisL\. Pou~• H:~r:.tway. ;,1-; hctcrO!\\Cxu.tis c c~tnuuras de ln:u:rossexu:ll id:u.lc psíquica tUS rcLtções e n:a sexu.tlidade ,(ay c lé~b ic:t. O
lt:Cnologias do corpo CfUe produz.en1 o sujeito moderno, :tS~enc:~das no~ du:1lisnHJS (n1cntc x corpo. h.it:.tl dt: um~1 hc:tcJo).sexuali<bt.lt: coerente - <Jllc Wiuig d~.:.crc:\'c corn o :.1 no11na c: o usu.tl do con(r:uo
n:llurcza x cultur~l. humano x :anim:tl). esl5o sendo dissolvid:as, dando novos e .:.ofi~ri c:t.d o~ .:.ibnificado~ hcrc:n>.:.!loexual - configur.t-.:.e conHI um idc:al in:ttingivel. Par:t urna intcrlocuç!lo da concepç:io de Butler
p.1r,1 .1 rc:lação crHre sexo {n:~rurt."""c..t) c gênero (cultura). ,uhrc .. hctcro"cxu.tiO<LIJe ubo i~.Ht>ri.,·· e :1 posoç~o de Witllt;. ver Burlcr ( 1999)

86 87
homosse xualldad e l• lcu::.:.h
<.:. :..::u:..::
'•- - - - ' A REINVENÇAO DO CORP O: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERI~NCIA TRANSEXUA L

outros são ofu scados ou/e sistema t icamente eliminad os, postos às Não há corpos li vres, a nterio res aos in ves t im entos d iscu rs ivos.
ma rge ns do h umanamente aceitável. A h eterossexua lidade não s u r- A m a te rial idade d o corpo d eve ser anal isad a corno efe ito de um
ge espon ta n ea m e n te em cada corpo recé m - n asc ido, i nscreve-se p oder, e o sexo não é aq uilo q ue a lg u é m rem o u uma desc r ição
re iteradamt: nte po r me io de o pe rações cons ta ntes de rep etição e de está ti ca. O sexo é u ma d as n o rm as pe las q ua is "alg u ém " sim ples-
recitação d os códigos socia lmente investidos co m o na turais. O co rpo- m e n te se to rn a viá vel, qu e qu a lifica u m corpo pa ra a vida in telig ível.
sexuado e a suposta idé ia d a comple m e nta rid ade nat ural, q u e ga nh a H á u rna a m a rração, uma cos rura, di tada pelas no r mas, n o sentido
i n te li gibilidad e po r in te rm édio d a h etcrossex ua lid ad e, rep resenram de q ue o co rp o re fl e te o sexo, c o gê n ero só p ode ser en te n d ido, só
u ma materialidad e satu rad a de significad o, não sendo uma maté ri a adqui re v ida, q ua ndo re fe rido a essa re lação. As p erformativ id ades
fi xa, m as um a co n tínu a e in cessante mate ri a lização d e p ossibil id a- de gê n e ro qu e se a rti c u lam fo ra d essa a m a rração são p ostas às ma r-
d es, in te n cionalm e nte organi zada, condic io nad a e ci rc unscrita p e- ge n s, p o is são a na lisad as co m o id e n t id a des " tra n sto rn adas" pelo
las co nven çõ es h istó ri cas. sa b e r m éd ico .
Q ua ndo o m édico diz: "é um m en in o/ uma m e nina", pro duz-se Os corpos j<í nasce m ope rad os. Co m o suge riu Prec iad o, tod os
uma in vocação pe rfo rmativa e, nesse m o m e nto, insta la-se um co n - esta m os já m ais o u menos operad os(as) por tecno logias sociais p reci-
junto d e expectativas e s uposições em to rn o d esse co rpo . t em ro r- sas. T odos som os pós-o perad os. Não existe co rpo livre d e invcs rim en-
no dessas suposições e expectativas que se estruturam as perfo rmances tos d iscursivos, in natura. O corpo já nasce m aculad o pela cu ltura .
d e gê ne ro. As s uposições ten tam antecipa r o que seri a o m a i:. n atu - A ex pe ri ê nc ia tra nsex ual no s d iz qu e a prime ira c irurg ia não foi
ral, o m a is apropriad o p a ra o co rpo qu e se te m . Enqua n to o ap a re- be m -sucedid a, qu e o co rpo-sexuad o qu e lhe fo i a tribuído não serve
lho da ecogra fi a p asse ia pela barriga da m ãe, e la espe ra ansiosa p elas pa ra lhe co nferir sen rid o . N o e n ta nto, este p rocesso d e recons trução
palav ras m ágicas qu e irão desen cadear essas ex pec ta ti vas; m ágicas no d o corpo é marcad o po r conflitos qu e põem às cl a ras as id eolog ias d e
sentido de c riare m realidad es. Logo d ep o is, o m éd ico di rá o sexo d a gê n ero e co locam os/as rransexua is e m posição d e perm ane nte nego-
c ri a nça e as ex p ectarivas serão material i za da~ e m bri nquedos, co res, c iação co m as norm as de gê ne ro. Essas negoc iações p o d e m reprodu-
m od elos de ro upas e projetos pa ra o futu ro fi lho o u fi lha a m es m es- zir as no rm as d e gêne ro, assim como d escsta b ilizá- las ao lo ngo dos
m o d e esse corpo vir ao mundo . p rocessos d e re ite rações.
A eco g ra fi a é u m a tec no logia p rescri tiva, e não descrit iva . Q ua n- Após o nasc im em o d a c ria nça, os investime ntos di scurs ivos d iri-
d o o m éd ico d iz : " Pa r::t b é ns, mamãe, você te rá u m m e nin o/ uma ge m -se pa ra a prep a ração do corpo , a fim d e qu e este d ese mpenhe
me nin a" , es tá po nd o em discu rso uma evocação p erfo rm a t iva qu e com êxi to os pa pé is de gên ero: b o 11eca.s, saias e vestidos pa ra as m eni-
a m a rra w d os a u m aro fundac io nal. Co nfo rm e s u ge riu Preciado nas; bo las, calças, revólveres pa ra os m en inos. Parece q ue nad a escapa
(2002), a in te rp elação "é um a m e nina" não é só pe rfo rm a ti va, n o à "panóptica dos gên eros". " O mundo infa n til se constrói so bre p ro i-
se nti do d e c riar ex pectativas e ge ra r s up osições so b re o futuro d a- b ições e afi r rnações. Essa pedagogia dos gê neros tem co m o o bj eti vo
q uele corpo q ue ga nha visibilid ade p o r m eio dessa tecno logia; seus
efei tos são pro téticos: faz co rpos.
Analisar os co rpos en q uanto pró teses sig nifica desfaze r-se d a re- "' A concepção de '"poder di>Ctplinor"" de Foucaulc ( 1993) nos .tuxili• a compreender o> processos de
lação dicotô mica corpo- natureza para apo nta r o corpo co m o resul- con~trução dos corpos·)CXU:ldos ~ da incorporaç:\o de uma cstili,aica corporal. uma vt:7 que são
produzidos a parcer de um conjunto de eslrarégias discursivas c: não d1scursivas, fund.uncn[adas na
tado de tecnologias e o gênero, com o resu ltado d e tecnologtas sofis- vigil5ncio das conduca' apropnad:u. Daí a referêncta ::. "panópcica dos gêneros'", em um.• alu;:lo 3 uma
ticadas que p rod uze m corpos sexua is . d~s características do poder disciplin ar fou aultiano.

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homoueliCu<~tidad~ I• ~.;:1c:="'='":.::'~--~ A REINVENÇAO 00 CORPO: SEXUALIDADE E GEN ERO NA EXP ERIENCIA TRA NSE XUAL

preparar aq uele sujeiro par;a a vida referenciada na heterossexualidade, sexos, p ri ncipalmente as que a all[Ora co nsidera "perfo r matividades
co ns truída a partir da ideologia da complementaridade dos sexos. É queer" ( Buder, 1998a, 1999, 2002), que poss ibilitam a emergência
como se as "confusões" nos papéis provocassem , direta c imediata- de pr;iticas que inte1rompem a reprodu ção das normas dl: gênero .
m e nte, "pe rturb-ações" na orientação sexual. Com a fór mula "a escri ta é rcperível", Derrida (1991 ) enfatiza os
A infância é o momento em que o s enunciados performarivos são processos de produção das identidades. O qu e caracteriza a escrita é
inccriorizad os e em que se produz a estilização dos gêneros: " Homem precisame me o faco d e q ue, para que funcione como ta l, uma men-
não c hora", "Sente-se com o uma menina!", "Isto não é coisa de uma sage m escrita prec isa se r reconhecível e legível na ausência de quem
menina!". Esses enunciados performarivos têm a função de criar cor- a escreveu e, na verdade, até mes mo na ausência de seu s upos to
pos que reproduzam as p erform ances de gê nero hegcm ôn icas. Con - destinatário, co nfe rindo-lhe um caráter d e independê n c ia. É nesse
forme suger iu Butler, são evocações rirualizadas da lei he te rosseXLial. sentid o que D errida dirá que a escrita é reperível. A essa ca pac idade
d e r e p e tição da lin guage m e d a escrita, D er r ida chama c itac io-
nalidade, podendo sei reti rada de um determinado con 1cxro e
CITAÇOES CONTEXTUALIZADAS E DESCONTEXTUALIZADAS inse rida em outro.
O ~isrcma binário dos gt:ncros produz e reproduz a idé ia de que o Quando alguém diz. "veado" ou "sapatão", não está em itindo uma
gê nero reflete, espel ha, o sexo c que rodas as outras esferas consúrutivas opinião pessoa l; está efet ivando uma operação d e reco ru.: c co lage m.
dos s ujciros esrão amarradas a essa d e te rminação inic ial: a n a tureza Ao retirar a cxpress::lo do contexto social mais a mplo e m que ela foi
COilstrói as sexu a lidad es I! posicio na os co rpos d e aco rdo com as su- taiH:tS vezes e nunciada, real iza-se a p ri m eira operação: o re co rr e.
po~t.ls disposições n atu ra is. No entanto, como apon ta Buder (1999), Depois, ocorre o encaixe e m um novo co ntexto, no qual eL1 reapare-
quando a condição de gê nero se formul a como algo rad icalme nte ce escamoteada com o Lima opinião pessoal qu e, de faro, é uma cita-
independente do sexo, o gê nero mesmo se wrna vago c, nesse m o- ção ress igniflcada a novos co ntex to:.. As e n unciações " bicha", "ma-
mento, mlvez. fosse preciso pensar que não existe uma his tó ri a ante- cho-fêmea", "sapatão" são c itações que tê m s ua origem em um siste-
rior à própria prá ti ca cotidia n a das re ite rações. R e ite ra r sig nifi ca ma mais amplo de ope raçõ es de reco rte c co la . Segundo Oerrida
qu <: é p or m e io das práticas, d e uma intcrprc ração em ato das n o r- ( 1991 ), um e nunc iado pe rform a ti vo não poderia ser bem-sucedido
m as d e gê nero, qu e o gê nero existe. se sua fo tmulação não citasse um enunc iado "codificado" ou rcpetível.
O gênero adqu ire vida a partir das roupas qu e compõe m o co rpo, Embora a intenção do aro não desapareça, ele não comanda r:i LOdo
dos gesros, dos o lh ares, ou seja, de um a estilística d efi nida como o s is tema e roda a cena da enunciação, uma vez que essa cena encon -
apropriada. São esses si nais exteriores, pos tos em ação, que es tabili- tra-se "amarrada" a uma série de enu nciados vinculantes.
7.a.m e dão visibil idade ao corpo. Essas infindáveis repetições fu n cio- Derrida ( 199 1), rel endo Austin ( 1990), apontará os jogos qu e se
nam como c itações, e cada aro é um a citação daqu e las ve rd ades articulam para produzir as identidad es na c pela diferença, mediante
esta belecidas para os gêne ros, rendo como funda m entO para a sua enun c iados lin güís ticos . Burl er, por sua vez, apro pria-se ( reco rra)
existência a c re n ça d e qu e são d eterminad os pe la na tureza. das reflexões de Derrida (reo ria da citacionalidade) e de Au ~t in (aros
Burl er apóia-se na tese da citacionalidadc de Derrida (1991) para d a fala) c insere ((.a la) essas contribuições para propo r uma teoria
afi rm ar que a repetição possibi lira a eficácia dos aros pcrformativos sobre as práticas d e gêne ro . Segundo ela, são as repetições das ve rda-
q u e sustentam e reforçam as ide nridades hege m ô nicas, mas tam- des para os gêneros que criam a sedimentação das normas d e gênero
bém são as reperições descontexrualizadas do "comexto natural" dos e uma aparente a-hisroricidade.

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homo ssexualida de lel.O:Icu::.::ltou•
.:_:.::.•_ _...J A REINVEN ÇÁO DO CORPO: SEXUAliDADE E G~NERO NA EXPERI ~NCIA TRANSEXUAL

As performances de gênero seriam ficções soc1a1s tm posmvas, Para Buder (1998), o gênero é um ato que já foi e nsaiado, muito
sedimentadas ao longo do tempo, e que ge rariam um conjunto de parecido com um libreto que sobrevive aos atores particu lares, mas
est ilos corporais que aparecem como uma organização narural (e daí que requer atores indiv iduais para ser atualizado e reproduzido sis-
deriva seu carácte r ficcional) d os corpos e m sexos . Dessa fo rm a, a tematica m e nte como reali dade . Ao form ul a r "gê n e ro" co m o uma
perfo rm ari vidade não é um "aro" único, singular: são as reiterações rep e tição estilizad a de aros, Burler abri u espaço para a inclusão de
das normas ou do conjunro de n ormas. O fa ro d e adquiri r o status experiências d e gênero que estão além de um referenre bi o lógico.
de um aro no presente ge ra o ocul tamen ro das co nve nções das quais Os aros generificados são, emão, interpretad os como citações de
ela deriva . Além disso, esse ato não é originalmente teatral: sua apa- uma su posta origem . Agir de acordo com uma mulher/um homem
rente rea rralidade é produz ida na medida em que s ua historicidade é pôr e m fun cio n amento um conjunro d e ve rdad es que se acredita
não pode ser a rodo tempo revelada . es tarem fundam e ntadas na natureza.
Essa repetição estilizada fo rm a rá o c ime n to das ide ntidades dos Quan d o se age e se d eseja reproduzir o homem /a mulhe r "de
gên eros. Mas as repetições em atos não são origin almente in ve nta- verdad e", espera-se qu e cada aro seja reco nhecido como ag uele que
d as pelo indivíduo . Nas difere ntes mane iras possíveis de repetição, nos posiciona legitimamente na ordem d e gê nero. No e nta nro, nem
na ruptura ou na repetição subve rsiva desse estilo é que se en contra- sempre o resultad o co rrcs pond e àqu ilo que é definido c a cciro social-
rão poss ibi lidades para rra ns ro rmar o gê n ero . m e nte como aros pró prios a um homem / uma mulher. Se as ações
A socied ad e tenta m ate ri al izar nos co rpos :-~s ve rdades para os n ão conseguem co rres ponder às expectarivas estru turadas a partir
gêneros por meio das reiterhçócs nas instituições sociais (a fa mília, a de supos ições, abre-se uma possibilidade para se d esesrab iliza rem as
igreja , a escola, as c iências). A necessidade p e rmane nte do siste m a n orm as de gê n e ro, q u e geralmente u tili za m a vio lê n c ia fís ica e/ou
de a fi rma r c reafirm ar, por exemplo, que mu lh eres e homens são s imbó li ca p ara m a n ter essas prá ti cas às marge n s do consid e rado
diferentes por sua natureza ind ica que o s ucesso e a concretização humanamente normal.
desses ideais não ocorrem como se deseja. O qu e nos leva a p e nsar Te ntar reproduz ir uma n atu reza em ato faz com que se renha d e
que o s istema n ão é um todo coerente e, confo rm e apontou Butlcr estar inte rpre tando as normas, o que é feito a parrir de suposições,
(1999), são as possibilidad es de rema te ri a] ização, abe rras p elas re i- da pane do sujeito, e d e expectati vas, por pa rte d o outro. Tanto as
reraçõcs, q ue pode m pote n c ia lme nte ge rar in stabilidad es, fazendo suposições quanto as expectativas estão costu radas pelas idealizações
com que o poder da le i regulató ria volte-se co mra ela mes m a, geran- dos gê ne ros- aq uelas verd ad es que d efine m os co mpo rtam en tos, os
do rearricu lações qu e apontem os limites d a efi cácia dessa lei. desej os e os pen sa m e ntos a propriados para homens/ mulh e res.
As reite rações do sis tema em afi rmar a determinação da natureza A inte n ção de (re)p roduzir o modelo h egemôni co da mulher
so bre os gê neros revela que o gêne ro n ão é uma identidade estável; (bo ndosa, comp reensiva, passiva, sensíve l, vaidosa e, prin c ipalmen-
ao con trário, é uma id entidade deb ilm ente constiruída n o tempo - te, q u e te nha o matrimônio com o d estino) c do hom em (que não
uma ident id ade ins tituída por uma rep etição estilizada de aros. Para chora, v iril, sexual e profissionalmente ati vo, competitivo) provoca
Butl er, o gênero n ão é uma essên c ia interna. Essa suposta "essên c ia potencialm ente sentim e ntos de fru stração e d e dor.
interna" seria produzida mediante um conjun to d e atos postulados O fracasso p ara se fazer "real" por meio da encarnação do "natu-
por meio da estilização dos co rpos. D essa forma, o que se su põe ra l'' co ns titui as práticas d e gê n ero. As id ealizações d e gê n e ro são
como uma característi ca natural dos co rpos é algo que se antecipa e luga res i n ab itáveis, vazios d e corpos, plenos de dor e frustrações .
qu e se produz mediante certos gestos corporais naturalizados. Conforme analiso u Buder (2002), é co m o se houvesse um sorriso

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c homOUt!Jiuotlid.adelcc::lc=-:
ul;.::tu.:..:r.o_ __. A REINVENÇAO 00 CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERl~NCIA TRANSEXUAL

subversivo no efeito pastiche das praticas paródicas, em que o ongi- diversas configurações de gênero, como camadas sobrepostas d e
nal, o auti:nrico e o real também estão constituídos ...omo efeitos de ressigniflcação do masculino e do feminino, em um movimento con-
tecnologias que constroem os corpos sexuados. tínuo de produção de metáforas que, simultaneamente, podem
A busca po r implementar um modelo inatingível tem alguns des- desestabiliz.ar a identidade substantiva e privar as narrações
dobramenws: pode ge rar senrimenws de culpa e frustração, mas naruralizadas da heterossexualidade do seu protagonismo central.
também revela as possibilidades potenciais para as transformações, Essas possibilidades, no entanto, se efetivam a partir da mediação
revelando, assim, a própria fragilidade das normas de gênero, uma entre as idealizações e as práticas concretas. Por essas idealizações, as
vez que está assentada em algo fundamenralmenre pl<istico, maleável "mulheres de verdade" são heterossexuais, desejam ser mães, são pas-
e manipu láve l: o co rpo. sivas e emocionalmente frágeis. Nessa perspectiva, não há possibilida-
As formas idealizadas dos gêneros ge ram hierarquia e exclusão . Os de de articular as esferas constirurivas dos sujeitos fora desse roteiro.
regimes de verdades estipulam que certos tipos de expressões relacio- Os d eslocamentos são viscos como problemas individuais, talvez. fruto
nadas com o gênero s5.o falsos ou ca rentes de originalidade, enquanw de :tlgum "distúrbio", como seria o caso dos/as transexuais.
outros são verdadeiros e originais, condenando a uma mone em vida,
exilando em si mesmo os sujejws que não se ajustam às idealizações. A PRÁTICA COMO MODALIDADE EXPLICATIVA DAS RELAÇÕES SOCIAIS
As idealizações são as bases para a reprodução das normas de
gêne ro. Quando se pergunta: "O que é ser mulher/homem?" ou "O As performances de gênero são empreendimentos individuais? Cada
que o/a leva a scnrir-se mulher/homem?", são articulados enuncia- sujei to faz uma interpretação, em ato, das normas d e gênero? En-
dos que funcionam como idealizações. Ao se vincular o gênero a um tão, como se efetiva a vida social dos gêne ros? Qual a relação entre as
conjunto de atribuws relacionados ao homem c 3 mulher, está se norrn:J.s de gênero e as performances individuais?
falando das suposições baseadas numa natureza que falaria por in- Butler aponta a ob ra de Bourdieu, principalmcme sua teoria
termédio dos aros. Os sujeitos, b uscando realizar essas idealizações, pr~iológi~a, como uma reflexão que contribui para desvendar os mc-
passam a agi r por pressuposições. c:tnismos mternos aos campos sociais que estru turam as práticas dos
Quando se pergun ta a um/a transexua l o que é ser mulher/ho- sujeitos que por eles transitam. Embora a au rora não aprofunde essa
m em, essas id ea li?.ações emergem em suas narrativas. Caso nos d et i- observação, alguns pontos de conco rdância en rre as duas obras podem
vésse m os nesse núcleo central, estaríamos apontando o nível das ser estabelecidos, tomando como ponto de referência a prática.
reproduções hegemôn icas. No entanto, ao colocar esse discurso em A construção da identidade de gênero é um processo de longa c
aro, em ação, não se nora uma correspondência linear c mecânica ininterrupta duração. Na soc ia lização primária, começam a ser
cnrre as ideali7ações e as práticas. No caso dos/as transexuais, a estrulllradas as primeiras disposi.,:ões duráve is, que Bourdieu chama
implememação dessas idealizações está desde o início comprometi- de habitus. Ainda que o autor, ao propor o conceito de habitus, não o
da, pois um dos pilares de sua sustentação é a dete rmin ação das faça vinculando-o diretamente à produção dos gêneros, parece-me pos-
subjetiv idades pela estrutura biológica. Das idealizações às práticas, sível falar de um "habitus de gênero", construído pela reiteração, que,
há o espaço das interpretações, e aí se abrem os espaços par:t na socialização primária, encontrará nas instituições familiares, escola-
descontinuidades e possíveis transformações. res e religiosas os responsáveis por este processo de reprodução das
As performances de gênero que reivindicam a inreligibilidade verdades que, pouco a pouco, vão se naturalizando e sendo incorpo-
fora dos marcos naruralizantcs teriam o efeito de fazer proliferar radas . Por meio da ' manipulação" teórica desse conceito, pode-se

94 9S
c hornossexualidad ~ 1•..,_1
c:u::.h:.::u:.::r•_ ___j) A REINVENÇÁO DO CORPO: SEXUALIDADE E GtNERO NA EXPERitNCIA TRANSEXUAL

entender como indivíduos, ao nascerem, já enco ntram uma co mpl e- que os SUJeHos têm margens de interpretação c que há espaços para
xa rede de funções esrrururadas, bem d efinidas, c cumo, com o conví- a produção de contra-discursos e fissuras na ordem de gênero. Esse
vio social, passam a inreriorizar maneiras de ser comuns a seu gênero. seria talvez o princípio organizador das subjetividades.
Por considerar a imporrância da socialização primária, Bourdieu Por ser portador dessa matriz geradora de sentido, ao mesmo
afirma que o indivíduo não reconstrói diar iamente s ua visão do tempo em que interage com outras matrizes, o agen te social pude
mundo, nem mesmo sua forma de agir sobre ele. Ao contrário, ele desempenhar tarefas mú lt iplas, segu indo o princípio de improvi-
rraz em si, por um processo de inc u lcação (o u "inte ri orização da sações regradas, n o sentido de que sua consciência não nasce a
exteriorização"), um "sistema de disposição durável" (porque n ão foi cada momento: o modus operandi não está coralmente sob o con-
produzido pelo indivíduo, é anrerio r a ele), um habitus, que funcio - trole dos ind ivíduos. Isso significaria que os indivíd uos porradores
na prat icamen te como uma bússola, dete rn1inando as "co ndutas 'ra- de habitus iguais agiriam igualmente? No caso dos habitus d~:: gê-
zoáveis' ou 'absurdas' para qualquer agente" (Bou rdi eu, 1983: 63) nero, poder-se-ia in ferir que rodos os homens/as mulheres atuari-
inserido em uma cstrurura. Este é o princípio norteador da percep- am igualmente? Na noção de desvio, co nform e formulada por
ção e da apreciação de roda experiên cia posterior. O habitus é a ma- Bourdieu, enco ntra-se a resposta: o habitus social é a matriz, mas
triz ge radora de sentidos. E, no caso dos gêneros, uma das matrizes há tam bém os sistemas de disposições indiv id uais, adquiridos por
que dará inteli gi bilidade e semido será a h cterossexualidade. É a constantes reest ruturações ou ajustamentos, varialldo de acordo
partir dessa matriz que se justificam e se constroem corpos como com as s itu ações. O grau de desvio que o indivíduo porra em rela-
en cidades diferen res. ção à matriz varia. É no espaço do "desvio" que se localizam as
O habitus permite ao aror adaptar-se a situações concretas. A prá- subjetiv idades . Daí Bourd ieu conside rar que as ações dos ind iví-
tica do agente social é o p rod uw d a relação d ialét ica cnrre uma dLtos podem assumir o caráter de ações coordenadas , ainda que
situação e um habitus. No momento do agir, o age nre social exter ioriza não totalmente, pois resu ltam do encontro de diferentes habitus,
uma " lei tura" própria (fruro da in teriori7..ação da exteriorização) da sendo este o princípio da socialização.
situação v ivida, o que o rorna ::~o mesmo tempo um indivíduo por- São essas disposições duráveis que produzern os corpos-sexuados.
tador de uma personal idad e sin g ular e de um habitus soc ial, con- Dessa forma, os atos que fazem os corpos rambém são experiências
tribuindo pa ra construir uma si tuação. Em termos butlcrianos, são comparri lhadas pelas significações cultu ra is, sendo "aros coletivos",
as performances de gê nero, efetivadas pela citacional idade das no r- não apenas Ltm "assunto individual". O corpo é uma situação histó-
mas, que fazem o gênero, processo que ocorre em um movimento r ica, uma manei ra de ir fazendo-se, tornando-se, dramatizando e
algumas vezes tenso, outras vezes, acomodado. A permanente inter- rep roduzindo uma s iwação histórica que o gera, que o rorna real,
pretação c a n egoc iação com as verdades construídas soc ia lmente que o corporiflca. A corpo rização man ifesta claramente um conjun-
para os gêneros fazem com que cada aro do fazer-se em gênero esteja to de esrratég:as materializadas em uma estilística da existência que
inser id o em um campo mais amplo, por meio da evocação de nunca se auro-estiliza roralmenre, pois é dada pelas condições his-
a l teri~ades i m p I íci tas e explícitas. tóricas que limitam suas possibilidades.
Os sistemas de: disposições individuais são va riantes estruturais Para Bourdieu, são as disposições duráveis inrerio ri zadas pelo
do habitus social que o indivíduo reestrutura n o confronto com agente, confrontadas com uma s ituação concreta, que constituem
outros habitus. Quando se fala de performances de gênero e na capa- uma conjuntura determinada. Este é o princípio fundamental da
cidade de o agente atuar inrerprerando as normas, está se afirmando teoria da ação em Bourdieu; é o que garante a regularidade da vida

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c A RE INVENÇÂO DO CORPO: SEXUALI DADE E G~NERO NA EXI'ERI~NCIA TRANSEXUAL

social: os SIStemas de disposições duráveis renovam-se por meio das t} UC esrep vincu lado à natureza, subvertendo, ass11n , o fundamento
ações dos agentes sociais, atualizando-se nas praticas estruturadas. que estrutura as normas de gênero.
A forma como essas atualizações se darão devem ser relacionadas aos As teses de Burler e de B ourdieu sobre a imporrância da pranca
campos sociais. E aqui a prática do sujeito não é vista como algo para explicar a organização das identidades encontram na definição
isolado, mas sim inserida em contextos sociais mais amplos. Ou de experiência proposta por Lauretis (1984) uma outra ponte de
seja, analisar a prática dos agentes sociais é um exercício relacional, interlocução. Para a aurora, a experiência é o processo por meio do
em que o binômio habituslcampo social deverá ser considerado. qual a subjetividade é construída. Pela experiência, o sujeito se põe
Para Bourdieu c Buder, a vida social e os processos de constitui- ou é posto na realidade social e percebe como subjetivas (que têm
ção das identidades efetivam-se med iante as práticas socia is. Em s ua origem no indivíduo e se referem a ele próprio) aquelas relações
Bourdieu, essas práticas não são determinadas livremente p elos su- - mater1a1s, econômicas e interpessoais - que são, de faro, soc1a1s e
jeitos, mas estão articuladas em/por campos soci ais . '~ E m B u rler, h isró ri cas.
pode-se suge r ir que a articu lação entrt: normas de gêne r o c Compreender a organ ização das subjetividades, portamo, impli-
performances su b ve rs ivas d e gê n ero, a parti r de c itações d esco n- ca vinculá-las às experiências concretas- como estou propondo rea-
textual izadas, encontre uma correspondência no pensamento de lizar com a rransexualidade. Tal concepção nos impele a fazer movi-
Bourdieu sobre as orrodoxias e as hcterodoxias constitutivas dos cam - mentos de costuras e de articu lações teóricas que, embora só ga-
pos socia is. Embora a aurora não trabalhe com o conceiro de "campo nhem materialidade nos indivíduos , devem inserir-se em contextos
socia l", pode-se suge rir que o gênero seria um campo social com his tóri cos, sociais e culwrais mais amplos. A idéia de experiência
regras de funcionamento , com posições de pod er hegemônicas e como produtora da subjetividade me pôs diante da difícil tarefa de,
disputas inte r nas. No emanro, enquanto para Bourdieu a reprodu- simultaneamente, inserir as hisrórias dos sujeiros que vivem a expc-
ção do campo estaria garamida pela defesa da "doxa" q u e o estrutu- riênc.:ia transexual em conrexros mais amplos c não apagar suas vozes
ra , para Butler, aqueles que estão no campo de gênero ocupando co m classificações que pressupõem uma unidade in ter na, uma coe-
uma posição de heterodoxia, de excluídos das posições hegem ônicas são e uma unid i recional idade - opção que produziria uma
do campo, podem subverter a p róp ri a noção de gênero com o a lgo essencialização e un iversalização d:1 experiência .
A i nda que haja muitas concordâncias entre a Teoria da Performance
19 O 'JliC inici:tlmentc Bourdieu (1977. 1983 e 1989) denomin:wa '\itu.tçiio" possou o ser definido c a d a Praxiologia, nota-se que a primeira deixa um espaço maior às
como "campo socbl"; um loru.J csuuturado no qual as rda.çóc:~ socJais aconrecem e cujas propriedades
ações e interp retações individuais; ou seja, a Teo r ia da Performance
podem ~er ~111 :-dis.\d.,s inderendente:menlc das característic.'ls de seus ocupa.nres. No cs(udo que fez de
divcr>os c.> mpos. Bourdieu observou a presenç.~ de regularidades cnrre eles, levando·o o cstobelecer foi formulada a parti r de um olhar que tenra compreender as ações,
algun>Os lct< de funcionamcn<o. O campo é composto fundamentalmente por dois pólos opostos: o articulando-as às possibilidades que podem gerar em termos de
pólo dos dominados (heterodoxia) c dos domin•ntes (orrodoxia). A dispura d;lS posições dentro do
campo assemelha-se;. de um jogo. Ao mesmo tempo em que h:i luta, h~ consenso. pois as pessoas que mudanças na~ práticas dos gêneros, principalmente aquelas clara-
estão engaj:-td.ts na luta panicipan1 dos cnesmos pressupo~tos que estruturam o seu funcionamenro (a mente desvinculadas de um referenle biológico, como as das traves-
dox:t). A lut:t prc:~supóe um acordo enue os ant:tgonistas sobre o que merece sc:r disputado. não se
questionando o "pcdesral dos crenças últimas sobre as quais repou<a o jogo inteiro" ( 1983: 91 ). Para
ris, dos drag kings, das drag queens e dos/as cransexuais.
BourdH~u. quen1 se dispõe J. enuar no campo irnplicimmcnte ;\Ccita que ser:i necessário investir, e só
h:i investimenro quando h~ interesse no jogo. Cada individuo. ao entrar para um campo. é portador
de de1ermin.1do qunnrum social (capital social). que determina a posição que ele ocupa no seu
Ulterior. Todo can1po tem un1a autonomia rebtiva em rebção :\OS outros campos sociais.

98 99
homos sexualidade I• ~~cu~lt:.::u:.::'"--__J) A REINVENÇÀO DO CORPO: SEXUALIDADE E G(NERO NA EXPERI(NCIA TRANSEXUAL

OS ESTEREÓTIPOS DOS"ESTEREÓTIPOS" perguntar o porquê de as/os r ransexuais se identifica rem


Para Colletc Chiland (1999), uma das característ icas dos/as discursivamcnre com determinadas performances de gênero qua lifi-
rransexuais é a reprodução dos estereótipos de gênero. Segundo ela, cadas como retrógradas, submissas .
Embora correndo o risco de cansar o leitor, ainda se deve pergun-
o discurso dos transexuais interrogados sobre o que é a masculini- tar: o que são es tereótipos de gênero? Idéias preconcebidas? Juízos
dade ou a fiminilidade é notaveLmente pobre e conformista. O resultantes de determinadas expectativas que, por sua repetição, são
discurso típico de um transexual biologicamente homem é: "Me rorinizados como verdades? Mas rodos os sujeitos sociais não atuam
casaria, ficaria em casa, me ocuparia da cozinha, esperando que de acordo com determinadas expectativas e suposições que, acred ita-
meu marido voltasse para casa, passearia com a criança se, sejam as apropriadas para o seu gê nero? Qual o sentido ou mesmo
(adotada) em urn La ndau. " Para não se encontrar reduzida a a operacionalidade teórica dos "estereótipos el e gênero"?
esta situação, as mulheres de nossa cuLtura lutaram durante D e uma forma geral, os/as transexuais sentem dificuldades de falar
décadas, inclusive séculos-" ( 1999: 71). ele seus confl itos porque não sabem como nomeá-los. Corno explicar
Pode-se infe rir, por essa avaliação, que as mulheres b iológicas já às pessoas que seu desejo é vivenciar a experiência elo ou tro gênero se
teriam superado o s estereót ipos de gê n ero, sendo as mulhe res seu ó rgão geni ta l arua subjerivamcnre co m o o obsraculizado r dessa
rranscxuais as responsáveis por, em seus discursos, recordarem uma possib ilidade de trâ nsito? Para ter mais segu ra nça no processo de in -
época d e subord inaçã-o d as mulhe res. No entan to , as performances serção no mundo elo gênero, é cerro que muitos temam rep roduzir o
discursivas que reproduzem a idea lização da mu lher dona de casa, modelo ela mu lher s ubm issa c do homem viril, pondo em d estaque
esposa fiel e mãe não se limitam às mulh eres transexuais. traços identificados com as norm as de gênero.
As reses de Chiland se encontram com as de Jan ice G. Raymo nd As identidades não são monolíticas nem coerentes, como n os
(1979), conhecida por se co ntrapor e nfat icamen te às rransexua is fe- fazem acred ita r a lg uns discursos psicanalíticos que constroem, as-
min inos (que ela chama de rransexuais mascul inos), denunc iando-os sim, uma representação estereo tipada elos/as rranscxuais, apon tan -
como um e mbuste, urna tentativa a m a is de o poder patriarcal invadir do que seus discursos são "pobres e con formistas" (Chi land, 1999) .
o território feminino, chegando a sugerir que a transexualidade teria a Concordo com Foucaulr ( 1996) q uando ele afirma q u e, ao se
função de liquidar a população femin ina. As mulheres natura is deve- estuda rem os procedimentos ele controle e d e d el im itação dos dis-
riam, então, denunciar e resistir a essa nova forma de dominação. cursos, deve-se estar atento ao cliw c ao não-dito, aos silê nc ios como
Será que uma lei wra cu lpabilizantc, co mo a que faz Chiland, partes estruturantes dos discursos. f necessário tentar identifi car as
seria suficiente p ara explicar os complexos mecanismos de en trada diferen tes manei ras ele não dizer e como é distribuído o que se pode
e o que não se pode dizer.
no mundo do gênero identificado pelos/as transexuais? Não seria
equ ivocado exigir que as/os rransex uais sejam naturalme n te s ubver- Conside rando tal assertiva como vá lida, pode-se quest ionar a
sivos/as, quando também co mpartilham os sis tem as simbóli cos so- represe ntação el os/as rrans exua is como um rodo homogêneo,
cialmen te significativos para os gêneros? Será que a própria expe- monolítico, sem co ntrad ições e d iferenças internas, dando a im-
riência já não contém em si um componente subve rsivo, n a medida pressão d e que só h á uma única forma de v ive n c iar a
em que desnaturaliza a identidade de gênero? Deve-se, ao contrário, rransex ualidade . Aquele que consegue se ajustar às definições e
aos c ri térios estabelecidos pelo saber médico para um tra n sexual
D Em c>panhol no original. Tradução d.1 autora. seria um " rra n sexual verdadei ro". Tal representação é cons t ruída
Uni~er!>iaade federal do R10 Granar 00 Nol1ll
100 Centro de Clénciaa Hu~nas. Letras e Art-.
101
Biblioteca SetOO.I Especietiulda
levand o em co nra exclusivamente um m omento da vida dessas pes- identificado como a verdade, e a verdade é ditada pelos tmperativos
soas: a consul ta denrro de um determinado campo socia l, o hospita l. do co rpo. Ourra vez, reto mo as seguintes perguntas: o que é um
Existem co nfli tos entre os sistemas d iscursivos, con fo r me sal ie ntou homem e uma mulher de verdade? O que é ter sentimentos femini-
Scon (1999), e contradições inte rnas a cad a um d eles, o que retira o nos e masculinos? Como co ncluir que este ou aque le sentim enro é
caráter transpa rente, óbvio, d esses discursos, tornando-os mais com- m a is ou m e nos fem inino/masculino? Como reco nhecer um homem/
plexos e escorregadios. uma mulhe r "de verdad e"?
Além d e relacionar a enunciação d os d iscursos aos campos soCiaiS
nos quais são proferidos, pode-se sugerir outra possibilidade explicativa
DOS ESTEREÓTIPOS ÀS PARÓDIAS DE GtNERO
pa ra qu e se re presente m os/as rransexuais como " reprodutores dos
estereótipos de gênero" e que se refe re à forma como entram no cam- Segundo a teoria da p erformance, os s uj eitos co nstroem suas ações
po do gênero ide ntificad o . Os/as transexuais fora m so cializados/as em por suposições e expectativas. No caso do gênero, as s uposições fun -
instituições que os/as prepararam para a tuar de acordo com o gê nero c ionam como se uma essê n c ia interi or que m arca a existê n cia d a
que lhes fo i atribu ído. Geralmente, depois d e um longo período de mulher e do homem pud esse pôr-se a d escoberto. Cada aro é uma
imped imentos, começam a vive nc iar experiências do gê nero com o tenra riva d e desvelamenro dessa ce rceza, como se fosse "a n a tureza"
qual se idcnrifl cam. Como não ti veram acesso à socialização de uma falando em aros. Essa supos ição ge ra um conjun to de expectativas
me nin a (para as rransexuais fe mininas) o u de um m e nino (para os fundamenralmenre basead as n as idealizações de uma " nawreza per-
rran sex ua is m asc ulin os), tampouco vive nc iaram os p rocessos de feira" , como é o exemplo d o " instinto materno" ou do " homem n a-
inrerio rização d as verdades que resultam na incorporação de uma d e- turalmente viril c forre" . As expectativas, em articulação com as su-
term inad a estil ística dos gêneros, terão de aprendê-las. A questão que pos ições, acabam produzindo, confo rme sugeriu Bu rler, o fenôme-
se impõe, quando se au rodefl nem como transexuais, é encontra r pon- n o mesmo que a nrecipam, pois fazem com que os s ujeitos renrem,
ros de apego social menre aceiws para o gên ero idenrificado. Ou seja, em suas práticas, reprodu zir modelos qu e se supõem como verda-
quais as pe rformances d e gê nero que devem awalizar paw serem acei - deiros para o seu gênero ou para o gênero com o qual se identifi cam,
tos co mo membros do gênero id entificado? como é o caso dos/as transcxuais.
Não se está afirmand o q ue ex istam mulheres e hom ens "de ver- Nessa p e rspecti va, não existe um refe re nte n at ural , original,
dade", levando-se em com a a soc ia lização primária; apenas d eve-se para se vivenciarem as p e rform a n ces d e gênero. O original, se-
destacar que, qua ndo a lguém se reconhece como transexual e, p o r- g undo as n o rmas d e gê n e ro, está referenciado no corpo (corpo-
tanto, a té d eterminado mome n to de sua vida obteve a edu cação d e vagina-mulh er, corpo-pênis-hom e m). Aí res idiri a a verdade d os
um gê n ero que ele/a rejeita, deverá, a partir daí, fazer um conjun to gê neros, e aq ueles qu e co nstroe m s uas performa n ces fora do refe-
d e m ovimentos para se incorporar ao novo gê nero . Nesse mome nto, ren te biológico são interpretados como uma cópia mentirosa do
são produzidos efeitos co rporais e discursivos que fazem com que homem /da mulher d e ve rdade. Nesse processo, os gays, as lés bi-
alguns teóri cos co nsidere m os/as transexuais como reprodutores dos cas, os/as rra nsexuais, as traves tis, a mãe "desnaturada" são exclu-
"estereó tipos de gênero", m as que, no e ntanto, propomos nomeá- ído s d aq uilo que se co n sidera huma n a men te normal. Para uma
los, seguindo Burler, "paródias de gê nero". co nce pção essencializado ra, essas práticas pe rfo rm a tivas n ão pas-
f nesse movimento d e convencimento c inse rção no mundo do sa m d e có pias burlescas das mui heres e dos homens d e verdad e.
outro gên ero q u e a discussão do real e d o fi ctíc io aparece. O "real" é Segund o t a l pe rspectiva,

102 103
homossexualida de l•lc:.cu:.;.lto.::.uro.::.•_ __, A REINVENÇAO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO N A EXPERI ÉNCIA TRANSEXUAL

Não pode haver maior tragédia nem maior erro que zmczar uma se problematizarn as múltiplas interpretações e as prancas internas
série de mutilações ou inter.ftrências na forma do corpo de uma à experiênc ia transexual so bre o masculino e o feminino, apagadas
pessoa ou o controle de suas gLânduLas com o equivocado objetivo sob a rubrica genérica de "rransexuais" . A parologização das expe-
de convertê-La em uma paródia de aLgo que nunca poderá ser, por. riências de gêne ro que estão às margens da no rma encontra aí um
muito que deseje. Não podemos converter um homem em uma argumenco para justificar a permanente produção de um saber que
mulher nem uma muLher em um homem1 ' (Stafford-Ciark apud insriwi e posiciona o/a rransexual como um enfermo, um transtor-
King, 1998: 146). nado. Contrapondo- me a essa v isão, propomos uma leitura das
performances de gênero enquanto paródias, desfazendo os limites e
A verdade d os gêneros, no en tanco, não está nos corpos; estes,
as fro nteiras que separam o natu ral do artificial, o real d o i rreal, a
inclusive, d eve m ser observados como efeitos de um regime q u e não
verdade da m en tira, o humano do não-humano .
só regula, mas c r ia as dife renças entre os gêneros. A expe riência
O que difere nc ia as paródias é a legitimidad e q ue as normas de
rransexual destaca os gestos que dão visibi lidade e estabelecem o
gênero conferem a cada uma delas, instaurando, a partir daí, uma
gênero por meio de negociações e de in terpretações, na p rá ti ca, do
d isputa discursiva e u ma produção incessante de discursos sobre a
que seja um hom em c u ma mulhe r. A aparente có pia não se explica
leairimidade
o de alo-umas
o existirem c de outras serem silenciadas .
em referênc ia a um a or igem. A própria idéia de origem pe rde o
Quando os/as transexuais atualizam em suas práticas interpretações
se nr ido c a/o "mulher/homem de verdade" passa a ser considerado
do qu e seja um/ a homem/ mulher por meio de acos co rporais mate-
também có pia, u ma vez q ue tem de ass u m i r o gê n ero da m esma
r ializados em cores, modelos, acessórios, gestos, o resultado é uma
forma: por interm édio da reiteração dos atos.
paród ia de outra paródia, que dcscstabi li za a identidade naturaliza-
Na versão d o masc ul ino e d o fe mi n i no que os/as transexuais
d a, centrada no homem e na mulher "bio logicamente n ormais".
atualizam em suas perform ances, está o componente m imético, no
sentido interpretativo que o termo mímese enscja. Não existe uma
forma ma is verdadeira de ser mu lher ou homem, mas configurações EMBARALHANDO FRONTEIRAS
de prát icas que se efet ivam mediante interpretações negociadas com
Ao longo d este capítulo, discuti a articulação que algumas teonas
as idealizações d o femin ino e do masculino.
i nternas aos est udos de gênero apresentaram para a relação en u e
Uma derivação daque les q ue analisam a exper iê n c ia tra n sexual
gêne ro, corpo e sexualidade; apresentei os eswdos queer e expl icitei
como u ma imi tação das/os "mulh eres/homens de verdade" se en-
por que, ao d efi nir como objetivo dessa investigação a despato-
contra nos que os/as qua li ficam como reproducores dos estereóti-
logização d a experiência rransexual, deveria apoia r-me em um
pos. Tal afirmação reforça, por outros cam inhos, a tese de q u e existe
referencial reó ri co que apontasse os processos constitutivos das iden-
uma verdade única para os gêne ros. Na apa rência de um a crítica
tidades fora de um referente biológico, como no caso da teoria da
feminista, co mo as que fazem Ch illand e Raymond, recupera-se o
performan ce; estabeleci uma interlocução dessa teoria com a Teoria
essencialismo po r outros caminhos.
P raxiológica, co nsiderando como ponta fundamental de unidade
Quando se de s taca o aspecto "estereot ipado" das práti cas
entre ambas as práticas sociais referentes aos gêneros; e, utilizando a
transexuais, por um lado se reforça a tese de que há uma ve rdade
teoria da performance, desenvolvi uma aproximação com a posição
para os gêneros que se referencia no corpo-sexuado; por outro, não
d e auto res que consideram os/as transexuais "reprodutores dos este-
21 F.m espanhol no original. Tradução da autora. reótipos de gê nero" .

lOS
homossexualidade I•JL.:.cu::.:.lt:::u:::'"---') A REINVENÇÃO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERIÉNCIA TRANSEXUAL

Seguindo os caminhos empreendidos para cons truir os argumenros Co n struir uma identidade que articule d e for m a diferenciada essas
deste capítulo (d o geral para uma análise mais facada) , um último esferas consti tutivas do sujeito é pôr-se em posição d e conflito com
movimenro será feiro: um pequeno exercício que visa a apontar al- as normas h egemônicas de gênero.
guns deslocamenros que a experiência rransexual propic ia às normas A su posição implícita que segue orien tando a classificação oficial
de gênero . de uma pessoa como rransexual é a de uma mente a prisionada e m
um co rpo, uma mente h eterossexual. É inconcebível, a partir d essa
pe rspectiva, que um corpo-sexuado home m se reconstrua como cor-
DESLOCAMENTO 1: GtNERO E CORPO-SEXUADO
po-sex uad o mulher e que eleja como objeto de desejo uma mulhe r,
"Sou um/a homem/mulher, em um corpo equivocado. " p ois uma mulher "de verdade" já nasce feira, é heterossexual, e só
assim poderá desempenhar seu princ ipal p a pel: a maternidade.
A experiência rransexual caracteriza-se pelos deslocamentos. Quan- Tal concepção está fundamemada no dimorfi smo radical, segun -
do se afirma: "sou um/a homem/mulher em um corpo equivocado", do o qual os papéis de gênero, sex u alidade, s ubjetividade e
está se afirmando que o gênero está em disputa com o corpo-sexuado. performariv idades dos gê neros se apresentam colados uns aos outros
A suposta correspondência entre o nível anatômico e o nível cultu- e, q uando existe qualquer nível d e deslocamenro , o terapeuta rem
ra l n ão e n co ntra respaldo. Aqui, d e paramo-nos com roda a de acuar no sentido de restabelecer a o rdem. É esse mapa que forjará
plasticidade dos co rpos: seios não-lactantes; úteros não-procriativos; as b ases fundamenta is da transcxualidade o ficial.
c litóris que, m ediante a ut ilização d e hormônios, crescem até se A normalidad e está id e ntifi cad a com a h e terossexualidade. Para
rramío rm are m em ó rgãos sexua is externos; prós tatas que não pro- muicos psicólogos responsáveis em elabora r o re la tório com o diag-
du ze m sêmen; vozes que mudam de rona lidade; barbas, bigodes e nós ti co, é impensáve l qu e p essoas faç:~ m a c irurgia d e trans -
p ê los q ue cobriam rostos e peiros inesperados. A plasticidade do
genital iz.ação e se considerem lés bi cas ou gays.
co rpo se reve la.
Quando uma pessoa que já vive o prim eiro desloca m en ro (co rpo
Reco nhecer a existência d esse d eslocamenro, contudo, não signifi-
e gênero) escolhe como obj e to de desejo uma pessoa que tem o
ca que rodos/as os/as transexuais exijam as mesmas intervenções cirúr-
m es mo gê nero que o seu , produz-se um outro deslocamento. A se-
gicas. Muitos não as querem, reivindicam, exclusivamente, mudanças
xual idade c a identidade de gê nero divergem das norm as de gênero.
nos do cume n ros. Nesses casos, a aparência d o gênero id entificado é
Embo ra seja m ui to com um encontra r pessoas que constroem s ua
obtida com o uso de hormônios, sili cone e maquiagem. À m ed ida que
sexualidade e sua identidade d e gê nero d essa forma, não há na lite-
nos ap roxi mamos m a is das narrativas d os/as transexuais, a umentam
ratura médica consultada referências a esses casos .
os níveis d e des locamenros e a pluralidade interna a essa expe riência.

D ESLOCAMENTO 111: DOS O LHARES


DESLOCAMENTO 11 : GtNERO, SEXUALIDADE E CORPO-SEXUADO

"Sou um/a homem/mulher em um corpo equivocado e meu desejo ".E um homem ou uma mulher?"
está direcionado para pessoas do mesmo gênero." As tra nsformações reivindicadas por eles/elas estão localizadas em re-
Segundo a norma de gê ne ro, a sexualidade normal é a heterossexual, giões do corpo que foram objeto de co nstantes inversões discursivas,
pra ti cada por um homem e uma mulh e r "b iolog icam en te sãos" . principalme nte religiosas e científicas. Seja interpretada com o pecado

106 107
C- homossexualidade leL:I<:::.:
ul=t":.::'•_ __J í

ou pacologi:1, essa expenencia põe em dúvida algumas das categorias


I
fundadoras do pensamento e estruturadoras de nossos o lhares sobre o
mundo generificado. É nesse sentido que se pode observar sua capaci-
dade ou potencial subversivo, uma vez que deslocam as noções de
"real" (ve rdade) e "fictício" (menrira). O corpo já não é uma rota se-
gura para posicionar os sujeicos no mundo polarizado dos gêneros, e a
I
realidade de gênero se fragil iza. O corpo transexual põe essa verdade II
em um labirimo. Já não será possível ter um juízo sobre a anacomia
que se supõe estável partindo da roupa que cobre e articula o corpo.
Muitas vezes, o olhar do observador já não é suficience para condu-
I
I
CORPO E HISTORIA

zi-lo com segurança no aro classificatório: a dúvida se instala. Quan- I


do participávamos de um programa de TV sobre rransexuaLidade,
observei os olhares dos convidados para os/as militantes do Grupo de
Identidade de Gênero e Transexualidade (GIGT), de Valência . To-
dos que faziam parte desse grupo fo ram submetidos ao peso dos olha-
res sobre seus co rpos. Eram o lhares fixos, agressivos, confusos, pene-
tranLes, perguntando-nos silenc iosamente: "Será um homem? Será A interpretação de que existem dois corpos diferentes, radicalmente
uma mulhe r?" opostos, e d e que as expl icações para os comporramentos dos gêneros
O trabalho de cam po pcrmtttu-me vivenciar situações que reve- estão nesses corpos, foi uma verdade que, para se estabelecer c se tor-
laram outras faces da experiência rransexual. Comen tei co m a lgu- nar hegcmônica, empreendeu uma luta contra outra interpretação
mas transexuais se esse clima de inquisição não os in comodava: "Com sobre os corpos: o isomorfismo . Sugiro que a transexualidade esteja
o tempo, você esquece. Não dá para m andar codo mundo à m erda" relacionada ao dimorfismo. Dessa forma, não é possível cirar essa ex-
(nota do diário de campo). Aqueles que mantinham o olhar sobre os periência par a se referi r a ou r ros ri pos de rrânsi to e de mobi I idade
conv idados do Co letivo estava m seguros de sua auroridadc . Seus enuc os gêneros em ourras culturas c em outros contextos históricos.
olhares reabilitam as no rmas de gêneros, c itando-as, incitando-nos. Ao se retirar o conreL'1do hi stórico dessa experiência, apagam-se as
Pode-se analisar esse momenro sob outra perspectiva. As catego- estratégias de poder que se articulam para determinar que a verdade
rias masculino/feminino como construídas pelas normas de gênero última dos sujeitos está em seu sexo.
desesrabilizando-se, começando a falh ar. Talvez seja aqui que se deva Este breve estudo histórico sobre o corpo centrar-se-á nas sign ifi-
mudar a p ergunta de "será um homem/mulhe r?" para "afinal, o que cações que o modelo d imórfico reserva à vagina, ao pênis c aos seios,
é um homem c uma mulher?". partes privilegiadas na definição da verdade dos sexos. É em torno da
Quando tais categorias são colocadas em dúv ida, também se tor- relação que as subjetividades estabelecem com essas partes co rpora is
nam confusas ou propiciam uma crise na idéia de uma idenridade que a problemática transexual se localiza. Na segunda parte, farei uma
de gêne ro fundamentada n o corpo. O real e o irreal começam a se ap roximação com a história de Herculine Barbin, que será lida com o
confundir. O "real", aquilo que invocamos como o conhecimen ro um marco arbitrário anunciador de uma época em que a verdade
natura lizado do cu, é uma realidade que pode mudar. última das condutas deverá ser buscada no corpo. Nesse sentido, o

1 09
108
c h~ossexualidade Ie c::::ul.:..:tu::..:'":....__
c:l __,) A REINVENÇAO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERI~NCI A TRANSEXUAL

caso de Herculine Barbin será interpretado como precursor da forma Essa aná lise presentista' não considera a especificidade histórica
contemporânea do saber médico em interpretar os rorpos e sua rela- da transexualidade, fundamentada na medicalização da sexualida-
ção com a sexualidade e a identidade de gênero. de, que ocorreu no século XIX e que instituiu um sistema de classi-
ficação de condutas individuais baseadas no "sexo verdadeiro".
O faro de haver relaros de pessoas que divergiam das normas
O ALCANCE HISTÓRICO DA TRANSEXUALIDADE
estabelecidas para os gêneros, burlando-as das mais variadas formas,
Seria correro afirmar que a experiência tran sexual esteve p resente em não permite considerá-las como rransexuais. As sociedades reservam
outros momenros da história ocidental e em outras sociedades? Uma lugares e/ou punições diferentes daqueles hoje dest inados às/aos
primeira aproximação com a bibliografia sobre transexualidade po- transexuais. O que antes era uma fraude - por exemplo, vestir-se com
deria ind icar que houve muitos t ransexuais na história, afinal são roupas não-apropriadas a seu gênero - ou um indicador de uma dádiva
inúmeros os casos de mulheres que se passaram po r h omens no div ina, atualmente, na sociedade ocidental em que nos situamos, é
Re nascimento e, em menor quantidade, homens que se passaram sinroma de uma esuurura de personalidade desequilib rada. O olhar do
por mul heres ou os relatos ernográficos de experiências de rompi- especialista, com suas técn icas de escuta, classificação e registro, substi-
mento de rronre iras entre o masculi no e o fem inino em vá rias cultu- tui o padre, o juiz ou os tribunais popu lares, os quais eram os respon-
ras. Mas quais são os indicadores que autorizam considerá- los/as sáveis por avaliar as condutas dos chamados gêneros fraudulentos. \
transexuais? O ano de 1949, qua n do a expressão "rransexualismo" Falar de rransexualidade nos obriga a relacioná-la ao protagonismo
foi utilizada com o significado que lhe é atr ib uído conrem- que o saber méd ico assume na defin ição d a verdade que se esconde
poraneamente, poderia ser considerado, então, como o momento nas "identidades transtornadas" . A escura terapêu t ica substitui a
em que, fina lmente, descobriu-se e nomeou-se um velho conflito de confissão . O anormal, o abjero, o transrornado, a abe rração da natu-
identidade de gênero, represemando uma evolução da ciência, à reza e o psicórico substi tuem o fraudulento e o pecam inoso. O ter-
med ida que o d iferenciou da ho m ossexual idade, da travestili dade e mo "substituir" refere-se a um movimento histórico de ressignificação
de outros tipos de ''transtOrnos"? para as exp licações das origens dos gê n e ros, ass im como ao novo
Bullough (1998) realizou vá r ios estudos de casos hi stó ricos que lugar que os divergentes devem ocupar na sociedade. Os conAiros
considerou exemp los de transexualidade. P3r? o auror, a inda que o com as normas de gênero são vivenciados como problemas indivi-
te rmo só tenha aparecido em meados do século XX, é impo rtante duais, como enfe rm idades ou anomalias, e será nas fi las dos hospi-
te n tar enqu adrar essa expe riência em uma perspect iva h istórica a tais e dos Centros de Identidade de Gênero que esses sujeitos busca-
mais longa possível. Estudos antropológicos també m vão util izar rão respostas aos seu s conAiros, silenc iados, em razão do medo de
"transexualidade" para se referir à experiência de mobilidade e trân- serem considerados doentes. O hospital põe em movimentO a cons-
sito enrre os gêneros em outras culturas. ' trução de corpos ind ividualizados.

inexistindo qu:llqucr discuss:lo sobre intervenções cin'1rgicas. Poas:t ( 1998) segue o n1c~mo caminho
t Sobre etnogr:tfias que: uliliz:tm "cransexu:elidade'' para referir-se a experiências de tr:lnsito enrre o s em s~u escudo sobre a con1unid::adc f:t'afafines, entre os sarno:tnos, no senrido de n5o ''desconfi:u" das
gêneros ern culturas não ocidentais, ver Wikan ( 1998). A aurora, em seu esrudo sobre homens que categorias cicncíficao; daborad:ts e:n1 um dererrninado contexto político, histórico e social c de aplicá-
p~tss:J.m a viver como nntlheres n~t socie<.bdc Om:ln, apropria~se do referencial proposro pcb
la\ co1no ::.c ebs simplesn1ente descrevessent rc:.lid:adcs.
psicanJiise c pelos teóricos ofici:tis ocident:lis da Hanscxualid:1de, sem problenl~niz.;.i-lo. A sociedade ' 2 Um:1 :an::ilise prescncist:l, segundo Burler (1993). caracteriza-se pela univers:tlizaç:'lo de uma sC:rít: de

Om.in, diferente d.J.s socicd:1dcs ocidc:1H:lÍS, ;:tccira c reserva um csp:aço social par.t esrc rr5nsiro, pressupostos, independenrernentc das cr:tvas hisróricas e cuhur:tis.

110 111
c homos sexua lida d e l•c:.l
cu::;;lt:=u'c:.
• _ __, A REINVENÇÃO DO CORPO : SEXUALIDADE E G ~NERO NA EXPERI ~NCIA TRAN SEXUAL

Quan do se nega o conte úd o histó r ico e c ulcura l da exp eriên c ia co nstitu ir com o um dispositivo esp ecífico, q ue se enco n tra e m pl e-
t ra nsex u a l, esca m ote ia m -se ou sec un dariza m - se as es rr a reg 1as n o pe r íodo de o pe racionalização, co m a o rga nização c rescente d e
d iscu rsivas que s usten tam as no r mas de gêne ro. Os disc ursos q ue co missões o u p rojetos v in culad os a hospita is v isan do a "tra tar" os
criam a rransex ualidade têm uma histó ria q ue preced e e con d icio na "d isfó ricos de gên ero" .
seu uso con tem porâ neo. Nesse sentido, deve-se d esnacuralizar a idéia D epois dessa breve exposição , retom o a questão inicial q ue a pro-
presenrista d o sujeito como o ri ge m e p roprietá rio d o q ue diz, loca- vocou: com o falar d e transexualid ade, por exemplo, n a Renascen ça ,
lizando suas ações em séries de efeitos vi nculantes que a u to ri zam e/ época repleta d e histórias d e mul heres q ue se p assava m po r h o m e ns,
ou in terd itam os d iscu rsos possíveis. quando o modelo d e corpo era o isomo rfism o? Não seria uma con -
H a usm a n (1 998), negando a universa lidad e da tra nsexu a lid ad e, trad ição p e nsa r a exis tê n cia d e rransexua is em con tex tos histó ricos
destaca a impo rtâ n cia das tecn o log ias p a ra se exp licar a em e rgên cia nos q ua is os co rpos era m li dos como co ntín uo s?
dessa experiê ncia . Segundo a a u rora , o d esenvolv im e nto tecnológico
rem o efe ito d e produ zir n ovas for mas de os sujeitos se re lacionare m
A GENITALI ZAÇÃO DA SUBJETIVIDADE
.• co m se u s c o r pos e c om s u as e m oções . A s ubj e ti v id a d e do s/as
transexua is, segu ndo a a u ro ra, se cons trói so b uma inte ração especí- O levanta m e nto b ibli og rá fico realizad o p o r Laqu eur (200 l ) so bre a
fi ca com as ideo logias e as tecn olog ias e se cris taliza nas práticas d e prod ução d e textos q u e u tilizavam como fundamento argumentarivo
d eterm in adas ins t iruiçõ es c u ltura is, com o a profissão m édica .·' o impé rio d a bio logia pa ra explicar a o rdem m ora l e d e termina r as
Ai nda que eu esteja p arcia lme nte d e acord o qua n to ao p a pel d es- dife renças e ntre home ns c m ulheres, revelou a inexistênc ia d e o b ras
sa relação n a co n strução d as s u bjeti vida d es dos indi v íduo s qu e escr itas <t ntes do sécu lo X VII que ti vesse m essas diferenças com o
vive nc ia m confl itos co m d ete rm inad as partes de seus co rpos, vê-se tem as. T ex tos q u e fizessem referênc ia à mo ra l d os gê neros baseada
·. que há a lg u mas co nd ições his tó ricas a nterio res para que isso ocorra . n as d iferenças a n atômicas e b iológicas só co m eça ra m a ser publ ica -
Refi ro -m e a o processo h istór ico d e n a tura liza ção dos gê ne ros, da d os no sécu lo XVII . Ao lo ngo d os séculos XVIII e XIX, esse q u ad ro
gen ira lização d a sexu alid ad e c d as subj etividades q ue se d a rá m e- mud a su b s tancialme nte, qua ndo "surg ira m cente nas, sen ão m ilha-
d ia nt e u m a di s puta c om a re prese ntação do corp o ún ico o u res, d esses trabalhos, nos quais as d iferen ças sexua is Ío ram a rti cula -
isom ó rfi co . D ian te d e afi rmações co m o : "Sou uma a be rração d a na- d as nos sécu los que se seguira m" (Laqueur, 200 1: 19 2) .
tu reza" o u " Eu não m e senti a ne m home m nem mu lh er", d eve-se Pa ra Foucau lr (1985a) , ent re os a n os d e 1860 - 1870 , h á u m a
questio na r o que leva o suje ira a sentir-se "a no rmal ", ex p ressão tão co ns iderável p ro life ração d e discu rsos m édi cos que b uscam p ro va r
com um nas n a rrativas d os/as tran sexu a is, a ntes d e procura rem um qu e o s co m po rta m e ntOs d e rod as as o rdens e, principa lmen te, os
co ns u ltó rio. sex u ais têm sua origem n a bio log ia dos co r pos. A busca d o sexo
A t ra n sexu alidad e deve ser observada co mo um d os m a is recen - ve rdadeiro e da co rreção d e p ossíveis "d isfa rces" d a n a tu reza ta m -
tes desdo bra m entos d o dispositivo d a sexua lidade, passa nd o a se bém está em cu rso, em bo ra a pe n as e m m ead os do século XX isso se
ro rn e rea lidade, com as c irurgias d e "correção" das ge nirá lias d os
hermaf roditas . Assim , a ide ntificação das p e rve rsões e do ve rdadei-
Parecc:·mc: que a ~wtora se refere ;l "recnologi~" no senrido de técnicas, de um conhecimento aplicado
3
ro sexo dos h e rmafro ditas seria uma ta refa p a ra o o lh a r d o es p ecia-
a utn fim. enquanro :t compreens5o Je "tecnologia" que compartilho está rebcionad.t a um conjunto
pol1n1orfo de discursos e pr.iticas que atuam no senrido de produzir efeicos n:uuraliLanrcs nos corpos
lista, qu e consegu iria pô r fim às dúv idas sob re as a mb ig ü id a d es
ou, rnais precisamente, corn efeiros protéticos, a partir d~1 nlarnz hererossexuJI das geni tál ias . É nesse inte rvalo de tempo (1860- 1870), confo rm e

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11 3
A REINVENÇÂO DO CORPO: SEXUALIDADE E GÊNERO NA EXPERIÊNCIA TRANSEXUAL
c
\
cosmo, ao fundamento da diferença incomensurável. Aristóteles e
discutirei adiante, que uma parte consideráve l da história de
Galena estavam errados ao afirmarem que os órgãos fémininos
Herculine Barbin se desenvolverá, situando seu drama no contextO
eram uma forma menor dos órgãos masculinos e, conseqüente-
da medicalização das condutas.
mente, que a mulher era um homem menos perfeito (Laqueur,
O médico Achille Chereau afirmou, em 1844, que "só devido ao
ovário é que a mulher é 0 que é" (apud Laqueur, 2001: 213), antes 2001: 189).
mesmo q ue qualquer evidência científica "com provasse" a impo r- Os d iscu rsos científicos sobre as diferenças biológicas e nrre ho-
tância desse órgão na vida da mulh er, 0 que só iria acontecer quatro mens e mulheres, construídos como verdades irrefutáveis ao longo
décadas depois, cai ndo por ter ra a rese de que a d escobe rta d o dos sécu los XVII I c X IX, foram anrecedidos pela rediscussão do
dimo rfismo sexual ter ia sido fruta d a evolução da ciência. Como novo es tatu ra social da mul her. Por vo lta da segu n da metade do
d isse Laqueur, quase tud o que se queira dize r sobre sexo já contém sécu lo XVIll, as diferen ças anatôm icas e fisiológicas visíveis entre os
em si uma reivind icação sobre o gênero. sexos não era m cons ide radas, até que se rornou politicamente im-
Muito anres, em 1750 , uma época de redefinições políticas, so- portante diferenciar, do ponto de vista biológico, h o m ens e mulhe-
.· ciais e econô micas para a mulhe r fra ncesa, o filósofo fra n cês Diderot res med iante o uso do d iscu rso científi co. Con forme sugeriu Costa,
antecipou Chereau ao afirmar que
a ciência veio avalizar o que a ideologia já estabelecera. O sexo de
r·..]a muLner traz d entro d e sz· um o' -v.a-o susce'Ptível de terríveis
'L 1
6 filósofos e moralistas havia decretado a dijérença e a desigualdade
espasmos, que dispõe dela e que suscita em sua imaginação entre homens e mulheres; a ciência médica vai confirmar o bem-
fomasmas de todo tipo. E no delírio histérico que ela retorna ao fundado da pretensão política. A diferença dos sexos vai estam-
passado, que se Lança no futuro, e que todas as épocas lhe são par-se nos corpos ftmininos sobretudo a) na diferença dos ossos; b)
presentes. É do órgão próprio do seu sexo que partem todas as suas na diferença dos nervos e c} na diferença do prazer sexual O sexo
idéias extraordinárias (Diderot, 1991: 123). vai investir os corpos diversificando -os segundo inreresses cufturaiJ
O a rgume nto que justificava a exclusão das mulheres da vida (Cos ta, 1996: 84).
pú blica baseava-se numa suposta fragi lidad e e na forre emo tividad~ No isomorfismo (Costa, 1996; N unes, 2000; Marrenscn, J 994),
de seu caráter. Para que 0 n ovo contratO social fosse efetivado, fot existia um único corpo. O corpo da mulher e ra igual ao do homem,
necessário estabelecer um outro: o sexual. Será este contrato, segun- sendo a vagina um pênis invertido. A idéia central aqu i é de conti-
do Pateman (1993), q u e irá buscar na ciê nc ia os fun damentas pa ra nuid ade, e não de oposição. O Lttero era o escroto fem inino; os ová-
j ustificar ta l exclusão, embora muitas das descobertas sobre o fu ncio- ri os, os testículos; a vu lva, um prepúcio; e a vagina, um pênis inver-
namento dos corpos, inclusive a dinâmica reprodutiva, fossem apa- tido. No lugar desse modelo, foi constru ído o dimorfismo. Os cor-
recer apenas no final do sécu lo XlX. pos justificariam as desigualdades supostamente naturais ent re h o-
Os dois sexos foram inventados como um novo fu ndamento para mens e mulheres.
o gênero. Conforme Laqueur, Era necessário criar uma lin guagem dicotomizada para batizar
os órgãos mascu linos e femininos. Até meados do século XVII,
em alguma época do século XVIII, o sexo que nós conhecemos foi
utilizavam-se nomes assoc iados para d es ignar os ovários e os testÍ-
inventado. Os órgãos reprodutivos passaram de pontos
cu los. A "vagina", defin ida como "a bainha ou órgão côncavo no
paradigmáticos para mostrar hierarquias ressonantes através do

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qual o pen1s se encaixa durante a relação sexual e por onde os O modelo segundo o qual homens e mulheres eram classificados
bebês nascem" (Laqueur, 2001: 199), entrará na linguagem mé- conforme um g rau d e perfeição metafísica, conforme seu calor vital,
<'"dica européia por volta de 1700. Nessa definição de "vagina", os ao longo de um eixo cuja causa final era o masculino, deu lugar, no
dois atributos que dão inteligibilidade ao feminino estão presen- final do século XVIII, a um novo modelo de dimorfismo radical, de
-t tes: a hecerossexualidade ("a bainha ou órgão côncavo no qual o divergênc ia bio lógica . Uma anatomia e uma fisiologia de
pênis se encaixa dLtrante a relação sexual") e a maternidade ("por incomensurabilidade subsciwíram uma metafísica de hierarquia na
_onde os bebês nascem"). representação da mulher em relação ao homem.
1
A linguagem científica é uma das mais refinadas tecnologias de No isomorfismo, o homem é o referente, pois possui a energia
. produção de corpos-sexuados, à medida que realiza o aw de nomear, necessá ria para gerar a vida, enquanco a mulhe r, por ser menos quente
de batizar, de dar vida, como se est ivesse realizando uma tarefa des- - ou um homem imperfeito -, guardaria a sememe produzida pelo
critiva, neutra, natu ralizando-se. calor masculino. No isomorfismo, o corpo é representado em ter-
O ventre da mulher, que era uma espécie de falo negativo no mos de continuidade e a diferença, em termos de graus.
isomorfismo, passou , em mead os do século XVIII , a ser nomead o Os estudos históricos de Laqueur tiveram como objetivo aponrar
"útero" - um órgão cujas fibras, ne rvos e vascu larização ofereciam que o sexo no isomo r fismo era um fundamento inseguro para
uma explicação e uma justificativa natu ra lista para a cond ição social' posicionar os sujeitos na ordem social e que as mudanças corpóreas
da mulher. O ovário, durante dois mi lên ios, não ceve um nome podiam fazer o corpo passar faci lmente de uma categoria ju rídica
específico. Galeno referia-se a ele com a mesma palav ra que usava (feminina) para outra (masculina).
para os testículos mascul inos, orcheis, deixando que o contexto escla- Na Renascença, a questão dos hermafroditas, por exemplo, era
recesse o sexo ao q ual ele se referia (Laq ueu r, 2001 : 1G). juridicamente analisada segundo a pe rspectiva de gênero . Não se
Aos poucos, a linguagem torno u -se dimórfica. Os significa n tes tratava de saber a qual sexo pertenciam realmente. Segundo Laqueur,
cristal izaram-se, fixaram-se os significados . Já não era possível en- "os magistrados estavam mais preocupados com a manuten ção das
tender o corpo como um significado flu tuante, como poderia ocor- c laras fronte iras sociais, o que hoje chamamos de gênero, do que
rer no iso m o rfismo. As estruturas que eram considerad as comuns com uma realidade corpó rea" (2001: 86).
ao homem e à mulher - o esqueleto e o sistema nervoso - foram Para Foucault (1985 e 2001), o dever dos hermafroditas de te-
diferenciadas . rem um ún ico sexo, sendo obrigados a assumir rodas as obrigações
Conforme apontou Costa (1996), em meados do sécu lo XIX, vincu ladas a este, é um fato recente, pois durame séculos admitiu-
os manequins cien tíficos do homem e da mulher já escavam pron- se a p resença dos dois sexos . O sexo que se atribuía no nascimento
tos. De homem invertido, a mulher passou a ser o inverso do ho- era decidido pelo pai ou pelo pad rinho. Na idade adulta, quando se
mem . E aqui se opera uma inversão : os corpos-sexuados que foram aproximava o momento de se casar, o hermafrodita poderia decidir
inventados pelos interesses de gênero ganharam o estatuto de fato I
por si mesmo se queria continuar no sexo que lhe haviam atribuído
originário . / ou se p referia o outro. A ún ica condição era que não mudasse mais,
A luta para a construção de uma leitura dos corpos baseada na pois poderia ser penalizado, sob acusação de sodomia. Foram essas
d iferenc iação radical entre os corpos - sexuados se i mpõe mudanças que acarretaram a maioria das condenações dos he rmafroditas
hegemonicamente no século XIX, propiciando a emergência de novas durante a Idade Média e o Renascimento. A posição jurídica dos
subjetividades e de novas identidades coletivas. hermafroditas mudará radicalmente com o estabelecimemo de que a

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c homos1oexualidade l•~.:;lcu:::_lt~u''-"•---' A REINVENÇÃO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERI~NCIA TRANSEXUAL

verdade das condutas deve ser buscada no sexo, sem ambigüidades que é a finda do pênis masculino; é quase como. .. a pequena
ou confusões. cobertura da vulva, que aparece como um excrescência circular na
Para Laqueur, a interpretação de Foucault sob re a mobilidade genitáLia masculina (Galena apud Laqueur, 200 l: 168-69).
dos gêneros na Renascença é excessivamente idealizada. No entan-
Para os médicos da Renascença, havia um sexo único e pelo me-
to, ele reconhece que as mudanças de gênero eram muito mais co-
nos dois sexos sociais com direitos e obrigações d istintos. O sexo
muns do que se pode imaginar nos dias atuais. Histórias como as de
biológico, que se usa como base e referência para a construção dos
Marie-Germain, a menina que virou menino, eram comuns na Re-
gêneros conremporaneamente, inexistia. O pênis, por exemplo, era
nascença e contrastam com a história de Hercul ine Barbin (1838 -
um símbolo de status e não um sinal de alguma outra essência
1868), caso qu e discutirei mais adiante como exemplo da legitimi-
onto lógica profundamente arraigada, ou seja, o sexo real.
dade que o dispositivo da sexualidade assume na d efinição de sexuali-
Os estudos históricos de Laqueur tiveram como objetivo apontar
dades e condutas normais e patológicas.
que o sexo deve ser compreendido como epifenômeno no pensa-
O médico francês Ambroise Paré (1509-1590), cirurg1ao de
J
m ento pré-iluminista, enquanto o gênero, que consideramos como
vários reis, julgava que não havia nada de extraordinário no fato de
1 categoria cul tural, e ra o primário o u o "real".
uma menina virar um menino e relatou casos, entre eles o de Marie-
Friedli (1999) del im itou seus estudos ao século XVIII e resga-
que-virou-Germain. Segundo Paré, Germain Garnier trabalhava
tou inúmeros casos de mulheres que se passavam po r homens, fato
.. no séquito do rei quando ele o conheceu. Até os 15 anos, viveu
interpretado pela autora como uma resistência aos novos papéis de
como menina. N a puberdade, a menina fez um movimento rápi-
mãe e de esposa que lhes estavam sendo impu tados. É interessante
.. ~
do e violemo ao saltar por uma vala quando corria atrás de porcos . os ver b os sao
o bse rva r que, n o caso d e M ane, ,- H
tornar-se , v1rar ;)) (( . Jl

,, e, nesse mesmo instante, a genitáli a masculina rompeu os liga-


já nos casos relatados por Friedli, fa la-se em "passar por", ou seja,
' mentos que até então a prendiam . O caso mobilizou a cidade e as
II em uma clara influência do discurso do sexo verdadeiro. O caso de
autoridades locais, que, em assembléia, decidiram que Marie pas-
·' Herculine Barbin situa-se em um contexto no qua l o dispositivo
saria a se chamar Germain e que es tava apto a desenvolver as ativi-
da sexual idad e já estava em pleno funcionamento e, como desdo-
dades masculinas.
bramento, a medica lização das sexualidades . Em meados do sécu -
Essa mudança era nawral, segundo Paré, uma vez que "as mulhe-
lo XIX, já não é possível "vi rar", "tornar-se" ou "passar". Todo su-
res têm tanta coisa oculta dentro do corpo quanro os homens têm do
jeito rem um sexo e a ta refa da ciência é desfazer os "disfarces" da
lado de fora; a única diferença é que elas não têm tanto calor, nem
natureza e d eterminar o sexo ve rd adeiro a partir de um exame
capacidade de empurrar para fora o que a frieza d e seu temperamento
minuc ioso do corpo .
mantém preso em seu imerior" (Paré apud Laq ueur, 200 l: 126).
Como estão sendo discutidas as ress ignificações dos corpos e as
O anatomista Estienne, seguidor de Galena, afi rma:
disputas de saberes, antes de entrar no estudo do caso de Herculine,
O que está dentro da mulher está para fora nos homens; o que é o fare i uma breve exposição das ressignificações dos seios, parte do
prepúcio nos h~mens é a parte pudenda da mulher. Pois, diz corpo femin ino que desperta desejos nas transexuais femininas e
Galeno, o que se vê como uma espécie de abertura na entrada da abjeção nos t ransexuais masculinos.
vulva nas mulheres, na verdade, encontra-se no prepúcio da parte
pudenda masculina.. . Nós chamamos de garganta do ventre o

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OS SEIOS LACTANTES às crianças e às vidas das mulheres como mães e esposas·' e a fascina-
ção dos europeus pelo seio feminino forneceram as condições para a
O corpo feminino, principalmente os seios, foi alvo de uma Intensa
inovação de Lineu.
ressignificação no século XVIII. Tradicionalmente, os seios ocupa-
Simultaneamente ao termo Mammalia, Lineu introduziu o ter-
ram uma posição destacada na representação do feminino no mun-
mo Homo sapiens. Para Schiebinger (1997), a escolha do termo sapiens
do moderno, seja como ícone da beleza feminina no mundo grego
é significativa. O homem, tradicionalmenre, é diferenciado dos ani-
(pequenos, firmes e hemisféricos), seja como símbolo da luxúria d as
mais por sua razão, sendo , inclusive, classificado no mundo medie-
bruxas (murchos c alongados). val como ..{llJ..i.mgL rationafe. Assim, na terminologia de Lineu, uma '
Em 1758, Lineu, cientista que criou a taxonomia moderna das característica femi-n,ina (as mamas lactantes) liga os humanos aos '
espécies, introduziu o termo Mammalia para distinguir a classe de
seres brutos, enquan to uma característica rradicionalmen te mascu- \
animais que englobava humanos, ch ipanzés, ungulados, preguiças, lina (a razão) os separa do mundo da natureza.
peixes-boi, elefantes, morcegos e todos os outros seres dotados de pê- A discussão sobre o aleitamento materno pode ser inserida den-
los, três ossos no ouvido e um coração de quatro câmaras. Ao eleger o tro de um movimento mais amplo, que, segundo Foucault ( 1985),
•.
termo Mammafia para a classificação dos seres humanos, Lineu se seri a notado ao longo do século XVIII e que se consubstanciaria em
contrapõe à classificação de Aristóteles, que posicionava os humanos um quadro de grandes conjuntos estratégicos que desenvo lveram
na classe dos "quadrúpedes". Mas por que os seios? Quais as motiva- dispositivos específicos de saber e de poder: a histerização do corpo
ções que levaram Lineu a eleger Mammalia, destacando uma caracte- da mulher, a pedagogização do sexo da criança, a socialização das
rística associada principalmente à fêmea e aos órgãos reprodutivos, no condutas de procriação e a psiquiatrização do prazer perverso.
estabelecimento do lugar dos seres humanos na natureza? Os discursos de Lineu eram voltados para a denúncia dos males
Para a historiadora Schiebinger (1997), é necessário contar o outro que o leite estranho causaria à c riança, com a rransmissão de doe n-
lado da história, ou recontar a história com um olhar generificado. A ças, e inais: o carácer da criança de classe alta poderia facilmente
nomenclatura é igualmente histórica, surgindo a partir de circuns- ser corrompido pelo lei te das amas de classe inferior. Em 1752,
tâncias, contextos e conflitos específicos, e deve-se perguntar o por- Lineu fez um pronunciamento contra a barbárie das mulheres que não
quê de cerro termo ter sido cunhado, estabelecido e naturalizado. amamen tavam seus filhos, afirmando que elas deve riam guiar-se pelo
Lineu não foi exclusivamente um cientista consagrado à tarefa exemplo dos animais, que, espontaneamente, oferecem suas mam as a
das class ifi cações infindáveis; esteve envolvido pessoalmente nas cam- seus filhotes.
panhas realizadas pelo Estado francês contra as amas-de-leite e em A proliferação de textos sobre a importância dos seios lactanres
defesa do a le itame nto materno . Essas campanhas articulavam-se com como identificadores da condição feminina desloca-se do tema po-
os realinhamentos políticos que redefiniriam o lugar apropriado para pulação e passa a ter autonomia. Se no século XVIII os seios lactantcs
a mulher, o mundo doméstico, utilizando como e ixo argumentativo motivam um conjunto de discursos que tentan1 legitimar-se nas
a estrutura natural de seu corpo. Já não se trata do se io da vi rgem ou subjetividades enquanto verdades, o século XIX o lê como m ais uma
o da bruxa, mas o da mulher lactante, em um momento histórico
4 En1 u m p ronu ncian1enru rea l iz~do e m 179 3. por ocasião do primeiro ani versário da República
em que os médicos e os políticos começavam a enaltecer as qualida-
Francesa. Pierre-Gaspard C haumeue, um imporcan [e líder, afirma: "'Desde q uando é decenre que as
des do lei(e materno. n1ulheres d e senem dos zelosos c u idãdos d e seus la res e d a alime n{ação de seus filh os, v indo aos lugares
A visão científica de Lineu surgiu sinton izada com importantes públicos pa r~\ ouvi r discu rsos nas g ale rias e no senado ? Foi aos homens que a na[ureza confio u o s
cuidado s domésticos' D eu- nos elo seios par:t nutrir nossas crianças?" (ap ud Shiebinge r, 1997 : 225) .
correntes políticas do século XVIII - a reestruturação da assistência

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c homossexualidade le'-'lc,_,ult,_,u,_,<a_ __J) A REINVENÇÃO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERIÊNCIA TRANSEXUAL

prova do dimorfismo dos corpos. Os seios como símbolo da mater- se10s, pois os denunciam como uma "farsa" de homem. A mesma
nidade; a maternidade como destino de todas as mulheres."' preocupação têm as rransexuais femininas com relação ao pênis.
Uma complexa rede de argumentos (morais e científicos) e inte- Os discursos das/os transexuais revelam, entre outros aspectos, a
resses (de Estado, de gênero, de classes e religiosos) embaralha~se eficácia do processo de interiorização de um discurso assumido como
c . / verdade, o que lhes provoca sofrimentos, uma vez que interpretam
para rewrçar um movimento mais amplo: ser mulher é ser mãe, e é
a panir dessa atribuição natural que a sociedade deverá atribuir-lhe 1
suas dores como prob lema individual. No entanto, e contraditoria-
suas funções, ou seja, os seios serão uma das provas incontesres de mente, esses senrimenros também revelam os limites discursivos do
que uma mulher é diferente de um homem e os seios (lactantes) são modelo dimórfico. Para os/as rransexuais, esses conflitos são
símbolos da pureza materna. inexplicáveis e muitos/as dizem que alimentam a esperança de que
Esses discursos têm um efeito protenco: produz os seios-ma- algum dia ,se descobrirá uma causa biológica para explicar suas con-
ternos, dentro de um projeto mais amp lo de fabricação dos cor- dutas. Quais as práticas que levam o sujeito a se perceber e a se pensar
pos-sexuados (corpo-homem/corpo-mulh er). É necessário pensar como um "anormal", uma "aberração", sem direito à existência>
a construção dos corpos-sexuados como produto de uma tecno- "Eu só queria ser uma pessoa normal", "Já me senti uma aberra-
logia biopolírica, como um sistema complexo de estruturas regu- ção", " Quero andar na rua d e mãos dadas com minha mulher, como
. !adoras que controlam a relação entre os corpos, as subjetividades uma pessoa normal" . Estas são narrativas de sujeitos que interiorizaram
~'
e os desejos. estas verdades. Não se trata de construir um/a rransexual vítima, 1nas
A história da amamentação e da valorização do seio lactante é mais de se perguntar o que significa ser "uma pessoa normal", o que é "ser
.,X um capítulo da luta pela hegemonia do modelo dos dois sexos. Em- normal", quais os mecanismos e os critérios para se definir, classificar,
bora tenha ocorrido um esquadrinhamento científico dos corpos com catalogar alguém como normal ou anormal?
o objetivo de provar que não há nada que ligue a mulher e o homem,
enfatizei aqui as mudanças dos olhares sobre os órgãos reprodutivos,
QUAL É O SEXO VERDADEIRO DE HERCULINE?
uma vez que serão principalmente essas partes do corpo que marcarão
os conflitos daqueles que vivem a experiência rransexual. O livro Question médico-légaie de i'identité dans les rapports avec les vices
Os efeitos dessas verdades inreriorizadas fazem com que se tente de conformation des organes sexuales, do médico-legista francês Ambroise
agir de acordo com aquilo que se supõe naturaL É a pressuposição Tard ieu, publicado em 187 4, objetivava fundamentar sua tese sob re
de uma natureza agindo sobre as condutas que irá organizar as sub- a origem biológica das condutas. Para o autor, o comportamento é
jetividades, de forma que se tentam reproduzir ações que sejam as irrelevante na determinação do verdadeiro sexo . A questão do sexo é
mais "naturais". No entanto, a existência de sujeitos que não agem biológica, pura e simples: trata-se de "um a pura questão de faro, que
de acordo com as expectativas do dimorfismo nos leva a pensar nas pode e deve ser solucionada pelo exame anatômico e fisio lógico da
fissuras das normas de gênero e que suas verdades não alcançam pessoa em questão" (Tardieu apud Foucaulr, 1983: 11 O).
uma eficácia total. Nesse livro, Tardieu apresenta o caso de Herculine Barbin' e
Um dos desdobramentos foi a emergência de subjetividades que publica seu diário para reforçar sua tese sobre os danos que se podem
não se reconhecem como pertencentes ao gênero que suas genitálias
s A :wtobiogr:.fia de Herculine fo i ;l propriada por T~ rdieu e ficou esquecid:t du r~ntc n1ui ro tem po, :u é
lhes atribuem: os/as transexuais. Para os rransexuais masculinos, a
se r recuper:Hh por rouc:tulc , em 1978. No en[a iH O, só se conseguiu {er :1cesso a uma pane: J e suas
parte do seu corpo que mais lhes causa problemas e repulsa são os n1emó rias. pois T :Hdieu n~o a publicou lO tnlmenle. Foucault organi1.ou o livro sobre a h istóri:l de

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homossexualidade I• c:::;ul:tu
L::! !:!!.••
: :..__ ___J) A REIN V EN Ç ÃO D O CORPO: SEXUALIDADE E GENERO NA EXP ERI ~ NCI A TRANS EXUA L

causar a uma pessoa quando não se defi ne com exatidão o sexo. Pa ra vida consagrada ao abandono e ao ftio isolamento. Oh, meu
e le, o caso de Hercu line deve ser tomado como um exemplo da Deus, que destino o meu! Mas o desejaste assim, e eu me caLo
gravidade das conseqüê n cias in div id uais e soc ia is que podem te r (Barbi n apucl Foucaul t, 1983: 100).
uma constatação errada do sexo da c riança que acaba de nascer. Se- A urd idura do enredo p repara o leitor para um fi m p rox 1mo e
gundo ele, a c iência viria pa ra d esfaze r o "disfa rce" da n a tureza, que trágico, o que contrasta com a alegria com que n a rra a época em que
a presenta os ó rgãos genita is com uma apa rê n cia am b ígua e con fusa. vivia entre as m ulheres e seus amores. A cronologia não parece ser o
r ..} não pôde suportar a existência miserável que seu novo sexo m ais im portante . Q uando escrevia s u as memórias, já estava longe
incompleto lhe irnpôs. Certamente, nesse caso, as aparências do de casa, m orava em Paris e v ive n c iava sua cond ição mascul in a com
sexo feminino fomm levadas às últimas conseqüências, mas, gra nd e so frim e n to . H e rc u line começou a escreve r suas m e m ó rias
apesar disso, a ciência e a justiça foram obrigadas a reconhecer o aos 25 a n os; três an os depois, iria suicidar-se .
erro e a devolver esse jovem rapaz a seu sex o verdadeiro (Tardie u Sua ide n t idad e, con s truída e v ivenciacla co m o fe minina , estava
apud Foucault, 1983: 11 4) . fragme ntada; ela não co nseguia um luga r no mun do on d e posicio na r-
se. Ass im, parece que narra r é um exercício catártico . As noites que
H erculine v ive u como mulher até os 2 1 anos. D epo is d e alg uns passou co m Sara são reco rdadas com alegria. Foi u m ano ele enco n-
exa rn es, concl uiu -se qu e h av ia sido batiz ada co m o sexo e rrado. tros cl andestinos. Sara era a filh a d a dona do Insti tuto d e Ens ino só
Quando o caso torn o u-se púb lico em sua pequena cidade do in te rior para me ninas ond e H ercu line co m eçou a trabalha r aos 19 a n os com o
d a Fran ça, a impre nsa n otic io u como se fo ra u m acontecime n to co- a u xili a r de professo ra e d o qual se to rna ria d ireto ra.
mu m. Segund o um jo rn a l, es te e ra um d esses casos de apa rê n c ia Nas p o ucas páginas fin a is, e ncont ramos H ercu line d e primida e
e n ganosa do sexo (Fo u caul t, 1983) . só . A na r rativa se to rn a ma is te nsa. O desespero e a revo lta po r sua
H e rculin e foi edu cad a e m colégi os d e fre iras. Aos 20 a nos, d es- cond ição marcavam sua escnta.
co briu qu e t inha um a m á-fo rmação das genitá lias. Os exames m édi -
cos co nclu íram que a predominância da ge nitália c a lgumas ca rac te- E agora só!.. . só.. . para sempre' Abandonado, banido do meio de
rís ticas secundá ri as Íaziam d ela, se m dúvida, um h ome m. Quase meus irmãos.' Eh' Mas o que estou dizendo? Será que tenho o
tod a a na rrativa d o seu diári o é d edicada à é poca e m que vive u c omo direito de chamá-los de irmãos? Não, não tenho. Sou sól De
mulhe r e e ntre as mulhe res . A segund a pa rte, no e n tan to, co m eça minha chegada a Paris data uma nova fose de minha dupla e
co m um a lerta : estranha existência. Criado durante vinte anos entre moças, fui
primeiramente camareira. A os 16 anos, entrei na qualidade de
Acho que já disse tudo a respeito dessa fose da m inha existência em aluna-professora para a escola normal de { .. } Aos 19, tirei meu
que pertencia ao sexo feminino. Estes foram os dias felizes de uma diploma de proftssora; alguns meses depois, dirigia um internato
renomado na área administrativa de r..};
sai de fá aos 21 anos,
durante o mês de abri!' (Ba rbin apud Foucau lt, 1983: 1 1O) .
Herculinc cnl du.ts p.utes: a primeira é: composta por su.ts n1emórias; a segund~1. por docun1cnros
produzidos pelos médicos que a examinaram (dois pareceres médicos, um deles escrito pelo
respons.ívcl peb ;tutópsi:t de Hcrculine), matérias jornalísticas e documentos dsversos sobre :t vida de
Herculine. Na tradução para a língua inglesa. Foucault publicou pch• primeira ve1. uma apresentação
do livro. A publicação desse dossiê fn parte de um programa histórico levado .1 cabo por Foucault, 6 Hc.:rculine usa algun1as vcz.es o gênero gramatical feminino, ouuas o masculino para referir-se 3 si
que vis:cv.t ~' olpont~lr os mec~tnismos genealógicos d~1 construção da sexualidade:: ociden(:tl mesm~l.

125
124
A REINVENÇÃO DO CORPO: SEXUALID A DE E G~N ERO N A EXPERI ~ NCIA TRA N SEXU AL
homossexu alidade l•c:l<.::;
ul.:.=t
u.:.::
' a'---__j

A leitura de suas memo n as leva-me a concluir que Hercu line, mundo e torne-se uma religiosa, mas não revele a ninguém a
quando foi consultada pelo méd ico pela primeira vez, não tinha confissão que me foz, pois um convento de mulheres não a
consciência de sua condição d e he rmafrodita. l-Ierculine sempre es- admitiria. Essa é a única saída que eu vejo, e creia- me, aceite-a
teve em ambientes religiosos só para men in as, onde as d ifere n ças (Barbin apud Foucaul t, 1983: 62) .
anatômicas e sexuais eram inv isib ilizadas. Q u ando procu rou o mé- Após os exames médicos, essa a lternativa p n ão tinha sen t ido.
dico, foi para encontrar explicações para as dores que sentia no ab- Um exame médico "comprovou que l-Ierculi ne foi registrad o com o
dôme n. Segundo ela, sexo errado" (Tard ieu ap ud Foucault, 1983: 111 ) e que dever ia as-
as respostas que eu dava às suas perguntas eram para ele sum ir rodos os papéis do novo sexo.
enigmáticas, ao invés de esclarecedoras. Mas ele continuava a H erc uli ne não t in ha ne nhum co nfli ro co m s u a iden t ida d e de
perguntar. Sabemos que, diante da doença, um médico goza de gê n ero. Seus co n fli tos localizavam-se na sex ualid ade. E la, u ma mu-
certos privilégios que ninguém pensa em contestar. Mas eu o ouvia lher, am a ndo o utra mulhe r. A ciênc ia veio p rovar que ela estava equ i-
suspirar, como se não estivesse satisjêito com seu exame. A senhora vocada: ela era um h o m em que amava uma mulhe r e que, p o rta n to,
P .. estava lá, esperando uma resposta (Barbin apud Foucaul t, deve ria desempenha r rodas as perfo rma n ces d e aco rdo com o se u
1983: 82). sexo predom inan te, o masculino. Ao decid ir nesta di reção, o saber
m édico afi rmo u q u e estava descrevendo uma situação, q uando, na
H ercul ine só p rocu rou aj u da m édica d evido às ins istê n c ias d e ve rdade, em defesa da hetero norm ari vidad e, estava cria n do uma nova
Sara; n o en ta n ro, a confissão d o seu a m or por Sara ao padre d a c ida- situ ação.
....
:;
de foi in iciativa su a. D e pois d essa confissão, s ua v ida e a d e Sara Ao ro ta!, fo ram três exames, o prim eiro, realizad o na casa da m ãe
passaram a ser contro ladas p o r a lgu mas a lunas, a ped ido do pad re. de Sara. Nesse exame, o médico não lh e fez nenhum co m e ntá rio,
·-.
Passando férias na casa da mãe, l-Ierculi nc procurou ou tra vez e n tão não se sabe o q u e ele viu e co ncl ui u; o segun do e o te rceiro
um padre que a conhecia h á an os. Este foi categórico: ela não pod e- médicos chegara m às mesmas co n cl u sões : era um caso de
i ria ma is vive r entre as m e ninas. Mas o q ue Herculi ne conto u ? Q ue h e r mafroditism o . O segundo médico é p ersuasivo e categó rico e m
·'
era h erm afrodita? Q ue tinha um a vagina c u rta e um cl itóris que se seu objetivo d e o bter in fo rmações da p acie n te.
inchava c poderia chegar a med ir ci nco centímetros? E m n e nhum
mome n ro de sua na r rati va eb se n omeou o u se ide n tifico u como [ . .] aqu.i você não deve ver em mim apenas o médico, mas também
"herma frod ita" ou qualq uer o u tra classiflcação méd ica. E la só teria o con[ess01: Se tenho necessidade de ver, tenho também de saber. O
contato com esse m undo das classificações e dós exames detalhados momento é grave, muito mais do que você imagina, talvez. Terei
alguns m eses depois dessa co n fissão. que prestar declarações precisas a seu respeito, primeiramente ao
O d ilema de Hercul ine era co mo poderia a m a r u ma m ulher. A monsenhor, e em seguida à Lei, que sem dúvida me chamará como
c ul pa a persegu ia. E m n enhu m momento ela disse: "Eu que ro ser testemunha (Barbin apud Foucault, 1985: 92).
um homem , e u m e sin to co m o u m homem. " Q uando o médi co d iz aqui você não deve ver em mim apenas o
D iante dos relatos de H erc uli ne, o padre po nderou: médico, mas também o confessor, antecipa o que viria a ser uma reali-
[ .. } você não pode continuar nessa situação, pois também é dade no século XX, quando o saber médico, principal m ente a psi-
perigosa. Então, o conselho que lhe dou é o seguinte: retire-se do canálise, se estabelece como o legítimo o u vinte das dúvidas e das

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homossexualidade ]ec:::lcu::::lt:=:u•c::•_ __J A RE IN VENÇÃO DO CORPO ' SEXUALIDADE E GÊN ERO N A EXP ERIÊNCI A TRA NSEXUAL

do res dos sujeicos. Conforme aponrou Foucau lt, a uadição de extor- id entificados como fe m ininos, o que provocaria uma contradição com
quir confissóes sexuais e m forma de ciência "através de uma codificação a d ec isão dos médicos, que passariam a considerá-la uma transexual. 7
do 'faze r fa la r', co mbinando o exame com a confissão, a narração de Segundo deslocame nro: corpo, gênero e sex ua lidade. Alé m de
si mesmo com o desenrolar de um conjunco de sinais e de sintomas rransexual, Hercu line seria lésbica. O saber médico defi n e: "Você é
decifráveis" (Foucault, 1983 : 65), fundam encou-se e m torno de duas um homem. " Herculine, d iscord ando d esse parece r, p oderia afir-
idéias: no poder da confissão em torno do sexo e de que é nosso sexo mar que construiria um corpo com sign os identificados como femi -
que contém a verdade de nós m esmos. ninos e que con tinuaria vivenciando seu desejo pel as mulh eres .
No caso de H ercul i ne, há uma tríade discursiva articu lada e ope- Terceiro deslocamenco : a sexua lidade e o gênero . Suponhamos
rando n o sentid o ·d e buscar a verdade do sexo e estabelecer seus que, ao contrári o do decidido, os médicos considerassem que a pre-
limites: o rel igioso, o médico e o legal. dom inânc ia de suas características mo rfológicas a qualificaria co mo
Nesse momenw h istórico, já não era possível se "passar po r ou- mulher, ou seja, seria uma mulher que desempenha as performances
tro gênero, co m o as mulheres disfarçadas do século XVIII; tampouco femininas , num corpo femin ino, e que te ri a desejo por mulhe res.
uma pessoa q u e nasceu com um sexo poderia tornar-se de outro, Também estaríamos dian te d e uma mulh e r lésbica.
como o do pequeno Marie-Germ ain, sem correr o risco de ser con- Os exercícios poderiam con tinuar. Nesse jogo de combinações a r-
s ide rado doente. O dispositivo da sexu a lidade estava em pleno pro- bitrárias, estou sugerindo que os médicos, ao exam iná-la (os d ois últi-
'·· cesso de ope racionalização. Após o exame, o médico afirma: mos, d iferentemen te do primeiro), já sab ia m d e seu envolvimento
amoroso com Sara. A leitu ra do caso me leva a pensar que o de terminante
f ..} Não sei o que o monsenhor vai decidir; mas duvido que ele na produ ção de seus pareceres fo i a defesa da heterossexualid ad e, mes-
permita que você retorne a L. .. Esse lado de sua vida está perdido,
mo sabendo q ue custaria muito a H erculi ne adaptar-se às performances
pois que sua. situação não seria tolerável. O que realmente me
que sua nova cond ição de gên ero lhe impunha.
causa espanto é que o meu conftade de L. .. , sabendo o que você é,
O caso de Herc ul ine assume, então, para os propós itos deste
tenha se comprometido ao ponto de deixá-la ficar lá por tanto
·' capítulo, um pap e l demarcador: ele é in terpretado como um marco
...i tempo. Quanto à senhora P .. , sua ingenuidade não se explica
d efinido r ent re duas formas de interp retar o corpo. Conform e Butler
(Ba rbin apud Foucault, 1983: 76)
(1999) , as convenções lingüísticas que produzem seres com gênero
A partir desse momento, a vida de H e rculine já não lhe perten- intelig íveis (homem/mu lhe r) esbarram n os próprios limi tes do s is-
c ia. Sua ident idade de gên ero e a re lação que estabelece com seu tema b iná ri o d iante de se res como Hercu line, porque provocam uma
co rpo não são, a princípio, m arcadas por con fli tos . H á uma única quebra na continuidade causal en tre sexo/gênero/desejo . Mas o olhar
passagem em qu e se d iz desconfortável por não te r a mesma frescura do es pecial ista é preparado para d esfazer os "disfarces da n at ureza",
e a g racios idade q ue s uas co legas, poré m esta questão não é um para pôr ordem, retirar o caráter a mbíguo .
. ' ponto forre e m suas narrati vas. As tesou ras simbólicas do poder médico continuam sua operação
\/ Sugiro um p equeno exercício de deslocame n to p ara o caso de p a ra a produção de corpos dimórfi cos , sem amb igüid ades . t o
Herculine .
Prime iro deslocamento: a relação entre gên ero e corpo . D iante dos 7 t. imporranrc le mbrar que csrou tr:u~mdo o G\SO de Herculine, por um bdo , como um nu.rco
~nbitr:irio d~1n1edic:tl izaç5o das canduras e de um mon1enro histórico, no qu:1l o di morfl~mu jd era
dados fornecidos pela própria aurora, pode-se concluir que, se fos- o rnodelo hegen1ônico par:l ;t inrerprer:tção dos corpos e . por ourro. como pn:cursor da experiênc ia
se possíve l, e la interferiri a em seu corpo para reforça r os s 1gnos rranscxu~1l no que se refere à re iJçáo com o poder médico .

1 28 129
c I
homoss:ex ualida d e e c~ul:_:tU::_:<a:__
L::l __.)
A REIN VENÇÀO DO CORPO: SEXUALIDADE E GtNERO NA EXPERIÉNCIA TRAN SEXUAL

trabalho de assepsia dos gêneros realizado no espaço legitimado pela de minha fi:aqueza e de minha profonda inexperiência dos homens
modernidade, o es paço h ospitalar, que se inre n sifica n o século XX, e das coisas.' (Ba rbin apud Faucaulr, 1983: 85).
p rincipalmente n o que se refere aos hermafroditas e às/aos transexua is.
Se a n tes de romar conhecimenro d e qu e e ra um hermafrod ita a Aqui a na rrativa se coma m ais tensa. U m an un ciar permanente
descontinuidade estava localizada entre sexo e p erfo rmances, de- que não estava su po r tando a vida com o h omem, que o s uicídio seria
pois, prod uz-se o utro níve l: uma d esco ntinuidade anatô mica, que a única alternativa. Ela prevê seu fim.
não p ossibil itava a Herc uli nc transitar n o mundo dos hom e n s, Quando chegar esse dia, alguns médicos forão tumulto em torno
tampouco no d as mulhe res. O sabe r médico p ôs o rd em , mas, ao de meus despojos; eles virão buscar em mim nova luz, analisar
fazê-lo, exclu iu d efinit ivamente a possibilidade de H erculin e voltar todos os misteriosos sofrimentos que se concentraram num único
a conviver no mundo fe m in ino, mundo que a co n stitui u como su- ser. Oh, príncipes da ciência, sábios químicos, cujos nomes ecoam
je iro generificado . Se as normas de gê n ero só co nfere m in rei i- no mundo, analisem então, se for possível, todas as dores que
g ibilidade, ou seja, vida, àqueles se res q ue estão alocados e m gêne- queimaram e devoraram esse coração até suas últimas fibras;
ros apropriados aos co rpos sexuados, estabelecendo uma relação d e todas as Lágrimas ardentes que o inundaram, dessecaram em suas
co rrespondência, quando re riram d e Hercul in e o gên ero que ela as- selvagens opressões.' ( Ba rbin apud Foucaulr, 1983 : 96).
sumiu ao longo d e sua vida , ta mbém lhe retiram a vida .
e: Fo i exa tame nte isso o q ue acontece u. Em feve re iro d e 1868,

tT'
O suicíd io parecia inevitável. Todos os empregos que tentou em
Paris lhe foram negados po rque não tinha um físico preparado p a ra Hercu lin e se suicid o u . Ainda restava u m ú lti mo exame: a autó ps ia.
desenvolv~-los. Por m::t is que seus documenros a posicionassem no Dr. E. Coujon, anatomista, p ub lica no Journal de L'anatom ie et de La
mundo m ascu lino , suas pe rformances não a qualificavam para ocu- physiofogie de L'home, em 1869, os dados obtid os na autópsia:
r
="· pa r os posros de trabalho disponíveis. '/1 autopsia permitiu retificar o primeiro julgamento ftito a
Qu ando os m édicos, o padre, a justiça, todos em uníssono d isse- respeito do sexo que perdurou durante a maior parte de sua vida,
:'. ra m que ela er::t ele, Herculine inte riorizou tais discursos como ver-
I l
,,
bem como confirmar a exatidão do diagnóstico que, por último,
dade e passo u a senri r ve rgonha e c ulpa por seu passado: "A situação devolveu-Lhe seu verdadeiro lugar na sociedade" (Goujon apud
a tual e ra o bastante para m e fazer rompe r co m aqu ele passado que Foucault, 1983: 121).
m e fazia corar" (Barbin apud Foucaulr, 1983: 78). A culpa é uma
marca nos discursos dos/as rra nsex uais que entrev istei e/o u conheci. No e nra m o, n ão deixa de recuperar a dúvida in icial: ela tinha um
D epois de um processo re lativa m e nte curto, menos d e ano, clitó ris vo lumoso o u um pênis alrofiado? Novamente, o corpo é revi-
Adelain e H ercu line Barb in desa pa rece dos registros legais para ce- rad o, conado, e m busca do verdadeiro sexo. Aquele corpo inerte, sem
d e r luga r a Abel Barbin. vida, ainda poderia g ua rdar algum segredo. O olha r a re mo sobre o
ó rgão genical mapeia o ramanho do o rifíc io d a vulva, o tam a nho do
Tudo estava fiito. A partir de agora, o estado civil me obrigaria a cliróris-pên is, das vesículas sem inais, dos cubos rcsticulares, do ú tero,
fozer parte daquela metade da raça humana a que chamamos de da cavidade vaginal, das glândulas vulva-vaginais, da uretra. '
sexo forte. Eu, criada até os 21 anos de idade entre as moças tímidas Conforme apo ntei no início desce capíru lo, a orga n ização das
das casas religiosas, iria como Aquiles deixar Longe, bem Longe de s ubj etividades em um mundo ma rcado pela polarização naruraliza-
mim, um passado deLicioso, para entrar na arena, armada apenas da dos gêne ros acaba por criar um conjunro de subj er ividades e

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hom ossexual idade Jelc:;cu:.:.;lt:.::.;
u':.::.;•_ _ _,

sex u a lidad es di ve r gentes do mode lo es ta be lec ido p e las normas de


gên ero, m as que serão recuperadas po r essas mesm as normas à m edida
que se estruturam ex plicações pato logizanres pa ra essas subjeti vidad es
c sexua lidad es di ve rge ntes, o perando-se um a inve rsão : o p rob le m a
está n o indivíduo, e não nas normas d e gên e ro .
A ex periê ncia rra nsexual é um dos d esd o bramentos d o dispositi-
vo d a sexu a lidad e, se ndo possível o b se rvá-la como acontecimento
histó rico . No sécu lo XX, mais precisam e nte a partir d e 1950, ob-
serva-se um saber sendo organ izado em torno d essa experiência. A
ta refa e ra co nstruir um dispositivo específico que apontasse os sin - O TRANSEXUAL OF ICIAL E
tomas e formulasse um d iagnóstico para os/as transexuais. Co m o AS OUTRAS TRANSEXUALIDADES
descob rir o "verdad eiro rransexual"? Como dife renciá-lo da travesti
e/ou do homossexual?

A lg un s teoncos proporão t eses para ex pli c a r a origem da


transexual idade , ao mesmo tempo em que apontarão os "rrata m e n -
ros" adequados. Pa ra a presente pesquisa, essas teses foram agrupa-
..?.'·'· das e m do is t roncos fundamenta is: o prime iro o peracionaliza rá s ua
le itura a partir de um referente psicanalítico e o segundo estará apoia-
d o na estrutura biológica. Essas duas posições inventaram dois t ipos
d e rransexuais. C h amarem os o prim e iro de "transcxual stolleriano"
e o segundo, de "rransexual benj a miniano" , em referê ncia ao p sica-
na li s ta Rob e rr Srolle r c ao endoc rinolog ista Harry Benjamin , res-
p ec tr va m e nte .
Ambos os auto res definirão critérios para se diagnosticar o v e r-
d ade iro tra nsexual. Os critérios fo ra m estabelecidos levando e m conta
ca racte rís ticas inferidas como compa rtilhadas p o r rodo/a rransexual,
o guc propi ciará do is d esd o bram e ntos umbilicalme nte ligados: (l )
a defini ção d e protocolos e orie nrações acei tos internac io n a lme nte
para o "tra tame nto" d e p essoas rra n sexu a is e (2) a unive rsalizaçã o
d o/a tra nsex u a l.
São raros os mome ntos e m que se pod em ver as pos ições d e psi-
canalistas e d e endoc rinologis tas em di sputas decla radas. D e fo r m a

132 133
c ho rnosselCu.,lidade lelo:l
cu:_::lt:.:::u•c::_•- - - ' A REINVENÇÃO DO CORPO: SEXUALIDADE E G tNERO NA EXPERI~NCI A TRANSEXUA L

geral , elas trabalham juntas: cada uma cede um pouco. O de pessoas que haviam se submetido à ciru rgia sem um rigoroso
endocrinologista espera o dia em que a ciência descobrirá as origens acompanhamento psico lógico anterior. O subtexto de sua exposição
biológicas da cransexualidade, o que provocaria um reposic ionamento estava assentado na reafirmação da autoridade dos profissionais psi
do papel c do poder dos terapeutas, pois, atualmente, são eles os para a produção dos diagnósticos. Em sentido contrário, o cientista
responsáveis em dar a palavra final sobre as c irurg ia s de holandês ]os Megens, membro da H arry Benjamin lnternational
transgenitalização. Os terapeutas, por sua vez, esperam que a escuta Gender Dysphoria Association, mostrava dados que revelavam um
e o tempo durante o qual o/a "cand idato/a" se submete obrigaroria- índice elevado de satisfação dos c iru rgiados que se contrapunham
menre à terapia o remova da convicção da necessidade da c irurgia. aos de Chiland. Segu nd o ele, as pessoas que o procuram já sabem o
Millot (1992), psicanalista de o rientação lacan iana , exp ressou que querem, sendo que o di agnóstico é conduzido basicamente pelo
essa concepção quando relatou o encontro co m "uma jov em aurod iagnóstico. Diante d essa pos ição, a ps icanalista afirmou: "t
transexual" (a aurora refere-se a um uansexual masculino) que , foi inaceitável, um absurdo, concordar com o autodiagnóstico. Estas
;......
procurá-la, pessoas não têm co ndições de rea lizá-lo ." [D iár io d e campo]
A questão do autodiagnóstico choca-se frontalmente com o po-
acreditando erroneamente que eu Lhe daria o endereço de um
de r dos profissionais das ciências psi de definir o destino das pessoas
cirurgião capaz de praticar as operações de mudanças de sexo.
que sol ici tam as cirurgias. No entanto, o qu e ocorre de faro é o
f nsisti para que me dissesse por que desejava tanto ser operada.
aurodiagnóstico. Ao longo do tempo em qu e deve freqüenrar os pro-
Respondeu-me que era porque tinha a impressão de que, tendo a
g ramas de t ra nsgeni talização, os/as rransex ua is estabelecerão um jogo
aparência de uma mulher enquanto se sentia homem, vivia em
de convc.:ncim enro com os membros das equipes para obterem um
uma mentira. Objetei-Lhe que, ao se operm~ ela não foria senão
,.., diagnóstico que auto ri ze a c iru rgia .
trocar uma mentira por outra (1992: 123) .
·,... Os/as enrrcvistados/as, sem exceções, relatam que foram eles mes-
Para a aurora, seria a ps ica nális~ que conseguiria tirá-lo dessa si- )
mos que identificaram seus conAiros, fosse ouvindo um programa d e
:'.
.1 tuação de " loucu ra e paixão", revelando-lhe a verdade. Mas qual é a TV, um am igo ou a partir de outras fontes. Antes, as idas aos consul-
,•
me n tira e qual é a verdade? Como um saber se outorga o direito de tórios de psicoterapeutas serv iam para aprofundar suas dúvidas. Para
definir a verdade última das s ubj etividades a partir da diferença um deles, as feridas deixadas pelos psicólogos que consultou são ma1s
sexual? A mentira é sentir-se um homem no corpo de mulher? Ou profundas e difíceis de cicatrizar que várias mastecromias. Outro lem-
querer transformar esse corpo que a sociedad e construiu como femi- bra que a médica sugeriu que deveria procurar uma igreja, pois aque-
nino e lh e atribuiu uma p osição com a qual ele n ão está de acordo? les sentimenros de ter um corpo em divergência com a mente não
A verdade e a mentira dos suje iros estão refe renciadas no co rpo ou, existiam . Quando procuram um Programa de Transgenitalização, já se
antes, no órgão sexual? autodcfinem como transexuais e, ao longo dos dois anos, constroem
No Sem in ár io I nternacion a l de Ident idade de Gênero c uma narrativa biográfica e desenvolvem performances que têm o obje-
Tran sexual idade, realizado em Valência/Espanha (200 1), essas duas tivo de convence r os membros da equipe de que são um homem/uma
posições se co n frontaram de forma clara. A ps icanal ista francesa mulher em um corpo equ ivocado.
Collete Chi land (200 1) fez sua conferência ressaltando o sucesso do Diante das divergências entre os dados sobre "satisfação versus
tratamento levado a cabo com crianças "afeminadas", ao mesmo tempo arrependimento" apresentados po r Chilland e Megens, devem ser
em que revelava dados sobre um índi ce elevado de a rrependimenros questionadas as bases teóricas que fundamentam essas duas posições

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c hono~sexualidade IelL!:c!!:ul~tu~r•::.__ _,) A REINVENÇAO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPER I ~NCIA TRANSEXUAL

c que os fazem gerar diagnósticos e procedimen cos aparentemente O TRANSEXUAL STOLLERIANO


tão diferentes. As divergências teóricas não são 1mpedimenros para O ljvro de Sroller, A experiência transexual, é uma das refe rências
se considerarem tais saberes como parres estruturantes do dispositi- ob rigatórias para os profissionais que se a proxim am da
vo da transexualidade. O dispositivo não é algo homogêneo; seus rra nsexualidade. Escriw em 1975, e le aponra como um d os princi-
saberes internos formam um conj u nto heterogêneo, que busca sua pais indicadores para a possibilidade de uma sexu alidade "anormal"
eficácia por vários caminhos. (homossexual, bissexual, t ravesti e transexual) o fato de a criança
Megens (1996) faz sua leitura da experiência rransexual e realiza gostar de brincadeiras c de se vestir co m roupas do outro gênero.
seu trabalho a parrir de uma filiação teórica: a de Harry Benjamin. Para Stoller, a expl icação para a gênese da rransexualidade estaria
Chiland (1999, 2001), por su a vez, foi formada pelas teses de Roberr na relação da criança com sua m ãe. Segundo ele, a mãe do tran sexual
Sro ll er. Essas posições serão lidas criticamenre p or uma terceira po- é uma mu lher q u e, dev ido à inveja que tem dos homens e ao seu
sição: a que se está construindo ao longo deste texto e que tenta, desejo incon sciente de ser h omem, fica tão fe liz com o nascimento
mediante argumentos histó ricos, socio lógicos e antropológicos, e do fi lho que transfere seu desejo para ele. 2 Isso aca rreta uma ligação
por meio de narrativas de pessoas rra nsexua is, identificar as bases extrema e ntre filho e mãe, o que não deixa o co nflito de tdipo se
expl icativas para a eme rgência dessa experiência. estabe lecer, devido à inexistência da figu ra paterna como riva l. A
Neste capíru lo, apo n to as bases teór icas q u e fundame n tam essas en trada no confl ito de tdipo e sua resolução, segundo o autor, são
duas concepções, problematizando-as ::1 part ir dos relatos e das nar- momentos decis ivos para a constituição da identidade d e gêne ro da
rativas colhidos ao lo n go do trabalho de campo. c riança e de sua identidade sexual.
O faro de suge rir esses do is troncos explicativos que constituem A verdade sobre o transexual estaria em sua infância e, mais espe-
o dispositivo da transexualidade, referenciad os n as teses de Sto llcr c cificamente, na relação com sua mãe. A essência do rransexual é sua
Benjam in, não s ignifica q ue não haja uma m ulti p licidade de reses c mãe . Sro ller, inclusive, coloca rá em dúvida um diagnósti co d e
pesq u isas. No e ntanto, elas sempre estão mais ou menos agrupadas rra n sexualidade se o pac iente tiver uma mãe diferente daquela qu e
em torno de uma posição psicanalista ou biologista. Lothstein (1975), ele ca racterizou como a mãe típica do rransexual.
um dos ci e nti stas responsáveis p e la realização de p esqu isas com Descreve n do uma mãe que procurou seu consultór io, Swller
tra n sexuais, d esenvo lve u um estudo com dez tra n sexuais, m il izan- apresen t a alguns in dicado res de um comportamento femin ino
do, como ajuda, testes ps icológicos para determina r a "extensão das d esvianre :
patologias" . Conclu iu q u e os/as tra nsexuais são depressivos, iso la-
dos, individ ualis tas, com profunda d ependên c ia, imaturos, narc i- { .. } é eficiente, enérgica e dada a negócios. Veste-se de uma
sistas, egocêntricos e potencialmente exp losivos. Essa foi uma das maneira masculina, com cabelos curtos, quase sempre usa slacks e
mui tas pesqu isas que jus t ificaram a inclusão da transexual idade no camisas de seu marido. Ela inveja os homens e é mordaz e
Cód igo Internacional d e Doenças e no DSM-IV, em 1980. ' condescendente em relação a eles, dominando situações sociais.
Diz que seu casamento é infeliz, havendo uma grande distância
I As pcsquis.1s par.1 a produção de um diagnóscico diferenciado estão em plena operacionaliz.ação. No
Congre>So Mundial t!e Sexologia ( Havana/Cuba. 2003), o cient ista Grccn (2003) proferiu uma { ':,..)\rucs de começar a "rratar"' ~' cri.tnç;l que apresenta sinais de transexu:tl idade, Stoller analisa ~l nüc,
conferência sobre "novas evidências biológicas da síndrome rransexual". Segundo ele, algumas das pois é na relnçiio que eb rem com o filho c na fonn.\ como desempenh.1 seus papéis de g~nero que: .15
rnais recentes pesquisas apontanl que a populaç~o rranscxual ten1 impres~óes digitais diferenciad:.s c.."xplictçóes para a. origcnl d.t uansexualidade deveriam ser busctdas. QuarHo m:1is d i),ta.rHc a n1âc
daquelas elos n5o-lransexuais. (Diário de campo) t:)tivc:s~e dos p.1drões de ferninilid.tde, m:.íor a probabilidade em ter um filho rransexual.

136 137
A REINVENÇAO DO CORPO: SEXU A LI DADE E G ÊNERO N A EXPERI ~ N CI A T RAN SEXUAL
homossexualidade l•1..:cl
c :u::;lt::::
u•:=-•_ _ _,

entre ela e seu marido. Ela é, sem dúvida, quem toma as decisões d estacar q ue Sto lle r n ão se dis ta n c ia de Fre ud. Ao co ntrá rio , lê a
na fomília (Stoller, 1982: 99). rra nsexu a lidade a partir do complexo de castração.
Segu ndo F re ud (1976), discutin do o en igma da fem in ilidade,
O com aw co m c ri an ças que gostavam de usar roupas femininas,
d e brincadeiras e d e b r inqued os femininos levo u S tolle r a elaborar a acredito havermos encontrado esse fator específico {reftre-se ao fim
hipó tese d e que esses menin os, se não fossem tratados desde a pri- d o vínculo da menina com a mãe, que marca seus primeiros anos}
m e ira in fâ ncia po r um a n a lista, na id ad e a d ul ta se ap rese nta ria m e, na verdade, no Lugar onde esperávamos encontrá-Lo, embora de
co m o tra nsex ua is e, p ro vave lmen te, reivindicariam a muda nça d e uma forma surpreendente. Eu disse onde esperávamos encontrá-Lo,
sexo. A ra ridade d esses caso s n a infâ n cia levo u Sto lle r a pe nsa r que pois se situa no complexo da castração. Afinal, a distinção
os "verdadeiros" tran sex ua is adu ltos são ta mbém raros e re presen- anatômica (entre os sexos) deve expressar-se em conseqüências
ta m uma m inor ia nos p edidos de mudan ça de sexo. psíq uicas. F oi uma surpresa, no entanto, constatar, na aná lise,
O trabalh o de Sroller não se limita a tenta r apo ntar as causas d a que as meninas responsabili zavam sua mãe pela faLta de p ênis
transexualidade. Seu obj etivo é apresenta r a lg uns casos d e crianças nelas e não p erdoam por terem sido, desse modo, colocadas em
qu e freqüenrara m se u cons ultó r io e , m ediante mte nsa te rap ia , vi- desvantagens (F reud, 1976: 153) .
ram a mascu linid ad e su rgir. ' Segundo o a utor,
A dife re n ça sex ua l tam bé m marcará d efiniti va m e n te o m e mno,
existem duas contraforças em ação sobre ele [a criança}, q ue, ao pe rcebe r a ausê ncia d o p ê nis no corpo d a m en ina , vê su rgir
atualmente, q ue estão Lutando nos dois fados de sua em suas le mb ra nças
bissexua!idade, uma tentando vencer a outra, e nesse estágio d e
f. ..) as arneaças q ue provocou contra si, ao brincar com esse órgão;
sua vida, rep etindo as fo rças que anteriormente criara m sua
começa a dar crédito a elas, e cai sob a influência do tem or de
bissexualidade. Uma é seu terapeuta, que (co m o represen tante
castração, que será a mais poderosa força motriz do seu
da sociedade, da saúde, e de conformidade com a realidade
desenvolvimento subseqüente. O complexo de castração nas
j externa) estri do Lado de sua masculinidade; a outra, a sua
;• rneninas tam bém se inicia a o verem elas os genitais do outro sexo.
fomífia (sua mãe, em especial), que, apesar do d esejo consciente
D e imed iato, percebem a dijêrença e, deve-se admiti-lo, também
de cooperrtr com o tra tamr·n to, age de uma maneira q ue
a sua importância. Sentem-se injustiçadas, muitas vezes decla-
mantém a ftminifidade (Srolle r, 1982 : 8 0) .
ram que querem "ter uma coisa assim, também': e se tornam
Vale ressaltar q ue não se tem como o bjetivo faze r um estudo d a vítim as da inveja do pênis; esta deixará marcas indeléveis em seu
p sica nálise, m as apon ta r com o fo ra m orga nizadas explicações psica- desen volvimento e na fo r m ação de seu caráter, não sendo
n a líticas p ara a ex pe ri ê n c ia tra n sexua l, co ns ide rand o-as como um superada, sequer nos casos mais favoráveis, sem um extremo
d os ele m e ntos constitut ivos d o d ispositivo da transexu a lidade. A o bra dispêndio de energia psíquica (Freud , 1976: 1 54).
de S ro ller é ro m ada com o uma referência. No e man to, é impo rta n te
A exp licação p a ra a liga ção da m e n i na co m o p a i es ta n a n o
d esejo o r ig i nal d e p oss ui r o pê n is, n egado p el a m ãe . No e n ta n to ,
3 Caso o p;tcienrc f~lS!.c .H.hdto, o o bjetivo cr~t fazê- lo aL.tndonar a repu lsa pelo órg.io genital. podendo a siwação fe m i nina, ou a fe mini lidade, só se impõe se o d esejo do
rorn.u-M.: um h uJnossexu.tl , um.t u:tvesci ou um bi~sc:xu:d . Ne~ses casos, o tr;H;uncnlo é consider:ldo
pên is fo r s u bs t ituído pelo d esejo d e u m bebê. Media nte u m for-
exicoso, poi~. st:gundo Slollcr. conl isso, o p.tci ente s:tiri:t d.t sicu:tç5.o de "':tberr~tç:ío sexu;tl'' par.1 a de
..perversão". te d ispê nd io d e e n e rgia psíq u ica, o "bebê assu me o luga r d o p ên is

139
138
c homoss~xualidade le~.:::lcu"-'lt:.::_ur:.::.•_ __, A REINVENÇÁO DO CORPO: SEXUALI DADE E GtNERO NA EXPER I ~NCIA TRANSEXUAL

co nsoanre uma primmva equivalência simbólica" (Freud, 1976: 158). voltados para a díade mãe-fi lho. Dessa forma, salvam-se a teoria da
A maternidade e a heterossexualidade são os desrinos para a formação castração e os cânones que fundamentam a leitura binária dos cor-
do que Freud ch ama de "feminilidade normal" ( 1976: 163). ' pos, baseada na matriz heterossexual.
Stoller é um radical defensor do dimorfismo . Para ele, as
{ .. } Uma mãe pode transferir para seu filho aquela ambição que performances de gênero, a sexualidade e a subjetividade são níveis
teve de suprimir em si mesma, e dele esperar a satisfação de tudo constitutivos da identidade do suje ito que se ap resentam colados
aquilo que nela restou dos complexos de masculinidade. Um uns aos outros. O masculino e o feminino só se encontram por in-
casamento não se torna seguro enquanto a esposa não conseguir terméd io da comp lementaridade da h~terossexualidade . Quando há
tornar seu marido também seu filho, e agir com relação a ele corno qua lquer nível d e descolamenro, o terapeuta intervém no sentido de
rnãe (Freud, 197 6: 164).
restabelecer a ordem e a coe rência . É esse mapa que fornecerá as
Aqui enco ntra mos a "m ãe stolleria na" . E la é a mulher que não bases essencia is para a construção do seu diagnóstico. Para Stollcr,
consegue resolver o complexo de castra ção com os cuidados excessi-
o que deixará o homem normal com uma quantidade apenas
vos que dispensa ao filho. Sua inveja do pênis não tem limite. Seu
microscópica ·de perversão será uma mãe feminina que aprecze a
1 • filho é o seu fa lo, o que ge ra uma relação de simbiose extrema entre
heterossexualidade e a masculinidade (em homens}, e um pai
ele e ela, excluindo a fi gura paterna. Com essa exclu são, o complexo
masculino que aprecie a heterossexualidade e a feminilidade (em
de Édipo não se instaura.
:! mulheres}, ou seja, pais que possam resolver o conflito edipiano do
A experiência transexual inverte esra lógica. A inveja do pen1s se
~ menino (1982 : 125) .
transforma, metaforicamente, na "inveja da vagi n a"; o pênis,
I t Para Swller, a tarefa do terapeuta seria induzir o conflito de Édipo
I ~ sign ificante universal, perde seu poder e é t ra nsfo rmado e m "uma

,.
~.
c.:oisa que não me deixa viver", "um pedaço de carne ell(re as pernas". para que um a feminilidade ou masculinidade "no rm al" possa sur-
Ou, para os transexuais masculinos, a recusa em "ajustar-se" a urna gir. O autor re lata casos de mães que le vara m seus filhos ao seu
definição de "feminilidade normal". co nsultório por estarem desespe radas com o faro de eles gostarem
Quebrando-se o princíp io do pênis como símbolo de status e/ou de brin car com bonecas e usar rou pas impróprias, e outros compor-
refe rente o ri g ina l, desmontam-se os enca ixes p ro postos por Stoll e r tamentos "ano r mais" . Quanlo ma is cedo a mãe romasse consciência
(( " )) ))

em sua leitura psicanalítica para a gênese de uma experiência que desses "desvios", mais fáceis seriam o tratamento e a cura
põe em xeque a vincu lação direta entre gêne ro, sexualidade e subje-
Estamos começando a ter algum sucesso no tratamento de crianças
t ividade. Nessa perspectiva, as performances de gê n ero qu e as/os
e, assim, acreditamos que a feminilidade possa ser alterada, à
transexuais atualizam em suas ações serão interpretadas e normatizadas
medida que mostramos a eles o novo "país". Somos otimistas que,
como distúrbios, abe rrações, doenças. A pato logização individualiza
após lamentar suas perdas, esses meninos possam experimentar que
os conflitos, uma vez que o olhar e a escuta do especialista estarão
realmente vale a pena ser um homem. Esperamos que, assim como
4
aprender a língua de um novo país seja mais fácil para crianças do
Aind.l sohrc o complexo de c:tstr.tção e sua resolução, Frcud 3firn1ar:i: .. (. .. ) n5o é senão com o
surgimcnco do desejo de cer um pênis que a boneca-bebê se lOrna um bebê obcido de seu pai e, de
que para adultos, mesmo essas crianças "deslocadas" possam
ac.:ordu c..:om i))O, o objelivo do nuis intenso desejo feminino. Su.1 felicid~de é grande se depois disso aprender a nova linguagem da masculinidade (1982: 93) .
esse:: dc:)ejo Je cc:r um bebê se concrcriz.;1 na rcalid;'lde; e multo especi:1lmenre assim se d:i se o bebê é
um menininho que cr.tz consigo o pênis cão profundamencc de~cjado" ( 1976: 158).

140 141
homoss~uwa l idade j e c;::,"':::'":::'•_ _..J
<.::1

A REINVENÇAO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO N A EXPERI~NCIA TRANSEXUAL

Um _indicador de que o tratamento obteve êx iw, ou de qLtc Para provar que é possível "curar" aqueles que apresentem um
o conflito de fd· f, . . d . sep,
" 1po 01 m uz1do corretamente, seria o faw de que com po rtam ento afeminado, Swller relata vá rias histórias de crian-
u m a ampla hostilidade em relação à mãe começa a aparecer" (Swller ças que conseguiram desenvolver sua masculinidade. Sua preocupa-
l 9 8 2: 33). '
ção era evitar que esses meninos se tornassem adulws transexuais.
_ Stoller . nometa · esse rratamenw de "co mplexo de Édipo
Uma dessas crianças fez uma lista com as regras que um menino de
tet apeu. ncamem, em d uz1.d o " ( 1982 : 101.
. ) Para que essa indução seJ·a
verdade deve segu ir, mais uma vez reproduzida por Stoller como
I
rea IZada co m s uce sso, d evem ser ressa lta dos os elementos
exemplo de uma bem-suced ida indução:
estruturantes• I enn·d a d e mascu 1.ma h egemônica. A parrir do re-
da< ·d
conhectment . d
o o pents com o um elemen ro d ifcrenc iador en tre 0
A • 1) Não brincar com meninas; 2) Não brincar com bonecas de
mascul. , .tn o e 0 f,em1ntno,· · passa-se a agrega r novos s ign ificados à meninas; 3) Não se vestir com roupas de meninas; 4) Nem
gentta
·c l1 a : O re con ect· m en to d o pents, ao mesmo tempo em q ue
h A • mesmo olhar o armário da irmã; 5) Não se sentar como uma
d aercnc1a esse · 1w
· d as mu ll1eres, também passa a ser um e le- menina; 6) Não folar como uma menina; 7) Não ficar de pé
J . suJe
' mento tdentific ad o r d e s ua co n d.1ção de superio ridade . Pode-se ob- como uma menina; 8) Não pentear o cabelo como uma menina;
•,;
servar que . ' nesse processo, a co nstrução da m asculinidade desenvol- 9) Brincar como um menino; 10) Não usar maquilagem; 11)
ve-se Slm ultanea memc a, m1sogm1a . . . e à homofobia. / . Não deixar que seu quarto pareça um quarto de menina; 12)
Stoller relata um exemp Io d e tn · d uçao f n do e le, obteve
_ que, segu Não fozer poses; 13) Ser um menino (Swller, 1982: l 02).
sucesso.
Essa criança conseguiu "recupe rar" sua mascu lin idade roubada
Os meninos começam a valorizar seus pênis (por exemplo, ele pela mãe. O terapeuta desempenhou com sucesso sua função de
passa a ficar em p e, para unnar, . enquanto antes se sentava)- "[ ... ] representan te da sociedade, da saúde, e de conformidade com
d esenvolvem fi b ·
. o zas; atacam zszcamt'nte mulheres - bonecas e'
fi . a rea lidade exte rn a" (Stoller, 1982: 80) .
·' menznas
d . ' send0 o prazer, mazs. d o que a raiva, 0 afeto
:~ onunante . ,· aparecem b rznca
· d ezras
. . mazs. zntrusivas,
muzto . tais ONDE ESTÁ A MÃE STOLLERIANA?
como atzrar e acertar bo Las em suas mães e em outras mulheres
( Stoll er, 1982 : 2 ). A relação que os/as entrevistados/as têm com suas mães e suas famí-
9
lias, de forma geral, está longe do modelo defin ido por Stoller. Suas
Após ter sid 0 encoraJa · d a a expressar sentimentos hostis obser-
histórias apon tam para níveis diferenciados d e proximidade com a
vou-se que gr_a d ua Imente a cn.ança se w rn ou m a is agressiva ' "come-
mãe, variando de uma cena proximidade até uma total ausência.
dçou a b ater. vtole ncamenre no rosw da Barbic [uma boneca]' g ri ran- Para Sara, Carla, Maria e Patrícia, a mãe esteve auseme em grandes
o com
. , raiva·' 'cal e a b oca,
' ou ' toma .tsso, Barbte
. ' , ou outro nome
' de períodos de suas vidas.
mde~dma ~l982: 105). Algu ns indicadores do tratame n w b em-su- Sara define sua mãe como "muito sistemática e preconceituosa".
ce 1 o, alem da · ·d a d e, 10ram
c . .
h < agress1V1 a tdennficação com o terapeuta Aos 16 anos, decidiu sair de casa po rque não agüentava mais o seu
S a curiosid a d e sexua'1 a agressao
ornem, - e a cresce n te distância da
contro le. Nesse momento, não encontrava uma definição para os
mãe. egundo Stoller, "esses sinais de um complexo de f'.dipo pare- seus conflitos, que eram v ivenciados clandestinamente. De um lado
cem ser o produto da terapia" (1982: 105).
para outro, morando em várias casas, foi distanciando-se da mãe,
definida como uma estranha. Aos 22 anos, já na universidade,

142
143
l"lomoHe xu a lidade lelt.:::<u::_::ltcu•
::::.:.
• _ _..J
A REINVENÇ AO D O CO RPO : SEX U A LIDAD E E G ENER O NA EXPERIENCI A TRANSE XU AL

começou a ves t ir-se com ro upas femi ni nas. D iante das muda n ças carinhos exagerad os n ão se ap resen ta. Ao co n tra n o, abandono, pre-
estéticas "do fi lho", s ua mãe comentara: "Você pod e fazer m il p lásti- conceiw, falta de re ferências m aternas são ma rcas dessas h istó rias.
cas, mas n unca será uma mul h er." Pedro, V itória e K átia, embora te nham vivido parte d e suas vidas
com s uas mães, nu nca encontra ram nelas apoio algum. No caso de
I Sara: Mi nha mãe sempre m e largou, sem p re m e largou , m e d eixou Ped ro, a situação é um pouco diferenre. Diz q u e s u a m ãe já n ão o
t por aí. Me l a rgo u~ Me u pai? Esse nem co nra m esm o. Mas e la m e rejeita ran w qua nto antes d e s u a e nrrada no Projeto T ra nsexualismo.
la rgou, não é po rque e u sou ass im não, até po rque eu só ass u mi h á Vitória sa iu d e casa aos 15 anos e ma nrém po ucos vín c ulos co m a
pouco te m po. Sempre foi ass im. N unca mud o u. C omo e u disse: fam íli a . A rela ção d e K á tia co m a m ãe é fo rtem ente marcad a pelo
com saia ou sem saia, é tudo uma coisa só. se ntimen to de rejeição . E m uma das entrevistas que real izamos após a
~ ci rurg ia , dizia que tinha mui ta vontad e d e voltar para a sua c idad e,
Carla fo i mora r com um ri o mate rno qua n do era a inda crian ça. A o nde sua m ãe vivia, para mostrar que con seguiu realizar seu so nho .
'; mãe fi cou grávida aos 16 a nos d e um h o m em que n ão assumiu a
' pate rn idad e e a aba ndono u . Pa ra Ca rla, a ép oca em que vive u com
.~ ' Kátia: Assim qu e e u te rmina r minhas c irurg ias, que ro vo ltar e reen-

~ ,.
. seus rios fo i "um inferno", po is a tra tava m com o "uma escrava" . Aos contra r com m eu s irm ãos e m inha mãe. Vo u chegar b em bo n ita e,
16 anos, pediu p ara a m ãe ir buscá-la. Na época, v ivia e m Barreiras, de preferê ncia , co m um na m orad o. Q uero provar para ro d os eles
qi :-•• no estad o da Ba hia. Ass im como Sara, Carla disfa rçava seu inte resse q ue eu es tava ce rta.
.. pelas "coisas d e m enina" . Co meço u a desenvolver uma relação m a is
l f,É p róx ima com a m ãe quando se mudo u p a ra Go iâ nia. Sua m ãe sempre a rejetro u , e mbo ra, nu ma posição contrad itó ria,
~ A mãe d e Maria era am a nte de um faze ndeiro e tinha três fi lh os d e Ká ria fosse res ponsável p e las ta refas d a casa, enqua nto seu s ir m ãos
~~:
I
·,. seu p rim e iro marido . Quando M ari a n asceu , o pai exigiu que sua es- traba lhava m na roça. E m suas memó rias, o pai é representado com o
<, '

~j posa legítima ass umisse sua educação. Nas fé rias, M aria enco n trava-se uma pessoa carin hosa e pro teto ra. E la lem bra q ue, quando ch egava
'I ·' co m sua mãe biológica. O pai m o rreu quando e la tinha cinco a nos. alguma v isita no sítio onde vi v i<~, a m ãe pedia para ela não aparecer na
fi Aos 12 anos, fug iu de casa e com eçou a trabalhar, po is não supo rtou os sa la. O s tios n ão d e ixavam que os fi lhos tocassem sua m ão , p ois ti-
li maus-tratos d a m ad rasta. Aos 16 a nos, com eçou a se p rostttu tr.
!' nham m ed o d e "pegar essa doe nça, que ficassem fe mini nos com o eu".

Maria: Eu tinha 12 anos quando fugi. Procure i minha mãe. Fiq uei uns Kátia: Nossa, co m o eu apa nhe i ~ Apa nhei mu1to e mUltas vezes n ão
tempos lá, nove m eses co m a minha mãe. M inha mãe a rrumo u rudo e n te nd ia por que minha m ãe me ba tia ta n ta. Ac ho que ela viu nas-
direitinho para e u volta r para o pessoal do meu pai q ue me crio u, q ue cer um h omem e de repe nte esse homem fo i se transfo rm a n do em
cuido u de m im, né? Ai eu falei: "Eu não vou ." Eu ti nha medo p o rq ue uma mul he r. Apesar de q ue o pênis nunca teve nada, nunca su biu .
m inha mad rasta me ba tia po r causa da min ha mãe c j ud iava m uito de Mi nh a m ãe tentava , fo rçava m ui ta, me b a tia pa ra m udar m in ha
m im. Minha o relha era torcid a de ta nto espich a r. Chega dava feri da. ma n eira de gos ta r das co isas, ma n e ira d'eu brin car, mas é in teres-
Quando eu fug i para procu rar m inha mãe, m inha cabeça vo cê n ão san te, co m o e u já te fa le i, ela batia, m as m e o b r igava a faze r as
podia rriscar que chiava, chiava de tan to pus, d e tanta paulada de pau . coisas de casa, essas co isas, lavar, cozinh ar, cuidar d a c riação. Até
Nessas narra ti vas, a figu ra da m ãe s u perpro retora, c iumenta, in- qua n do m eu pa i estava ele me a judava, me defe ndi a mais . Nad a é
vejosa do p ênis e e m asculad o ra d o filh o d evid o a se us c uidad os e pior do q u e a reje ição.

144
145
homossexualidade I e '-'1
c"-'
ul-'=tu-'=
'•'------.J A REINVENÇÂO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERI ~NCIA TRANSEXUAL

Andréia, Helena, João, Marcela e Manuela mantêm contatos com dade". Nesse sentido, não poderiam realizar as cirurgias, recomendan-
suas famílias. Suas mães não são definidas como "mulheres carinho- do-se, possivelmente, terapias para assumirem a homossexualidade.
sas"· Andréia, que vive com os pais, reconhece as dificuldades deles Pa ra Stoller, a cirurgia só seria recomendada como um último
em aceitarem sua situação, principalmente por causa dos comentá- recurso, e os "transexua is de verdade" se ri am pouqu íssimos. Para
rios dos vizinhos. que a identidade de gênero não se tornasse "essa aberração", segun-
Helena perdeu o pai quando tinha dez anos. Quando começou a do o auror, seria necessário que os pais - p rincipalmente as mães -
se comp~rtar de forma femi nina, a desejar as roupas de mulher e a sair es tivessem mu iro atenros ao comportamento dos filhos. A interven-
com amtgos gays, já era adolescente. A mãe trabalhava muito para ção do terapeuta só obteria êx ito se fosse realizada nos primeiros
educar os três filhos, não tendo tempo para "dedicar-lhe mimos". anos de vida da criança, quando a inda é possível que o social inter-
A história de Pedro é parecida com a de Helena. Ele perdeu o pai venha nos rumos que a identidade de gênero seguirá; depois, qual-
quando era a inda criança. A mãe assumiu sozinha a educação dos quer "tratamento" ficaria comprometido. Daí a importância que os
.. 'J

filhos, passando boa parte do tempo fora de casa. A relação de Pedro relatos da infância (dos jogos, das cores, das roupas, da relação com
'
', ' com a mãe era tensa, pois ela o recriminava por seu "comportamento os pais, da re lação com os am igos) assumem na escuta terapêutica
de homem". Tentando pôr um fim a essas desavenças, Pedro ten tou, voltada à produção do diagnóstico de transexual idade.'
sem sucesso, namorar um. garoto e usar roupas femininas.
:J
. Marcela e Bárbara foram as únicas que a firmaram seu amo r in- OTRANSEXUAL BENJAMINIANO
condicional a suas mães. Para Marcela, "m inha m ãe é tudo". Bárba-
ra perdeu a mãe quando tinha 25 anos e, embora ela não a apoiasse A construção das dcfi.niçõcs para a dete rm inação do verdadeiro

totalmente em seu d esejo por "co isas do mundo feminino", era seu rransexual não esteve li mitada às reflexões de Sroller. Harry Benjamin
I
,,,.~~I único referencial de família. dedicou pane de sua vida intelectual a essa tarefa e à construção de
outra explicação para a gênese e o "tratamento" d a transexualidade.
·' Há uma disputa, algumas vezes implícita, outras, explícita, sobre os
'f Bárbara: Eu acho que minha missão na Terra foi cuidar de minha
mãe. _Meu pai nunca ligou para mim. Só foi m e pôr no mundo, para cwen os para se estabelecer a verdade última para a dete r minação do
depois nos abandonar. Minha mãe também não tinha muito tempo. transexual. A base fu ndamenral da disputa entre esses saberes está na
Sempre trabalha ndo nas casas dos outros. Inclusive, eu morei com pressuposição que norteia cada um sob re a origem dessa experiência.
minha ria a té os dez anos, aí eu sofri um est upro. Meus três primos Para Benjamin, "~_sexo" é composro de vários sexos: o cromossomático
me estupraram. Foi só aí que passei a viver com minha mãe. Ela nun- (o u genético), o gonádico, o fcnotípico, o 'psicológico c o juríd ico. Para
ca aceJtou muito esse m eu jeito, mas eu entendo 0 lado dela. o
ele:- ~exo cromossomático é o responsável pela determinação do sexo
e do gênero (XX para as mulheres e XY para os homens) .
Em maio r ou m e nor nível, essas histó rias familiares encon t ram-se
s An:tlisando o caso de um:t criançt que fo i lev:td:t ;JO seu consuhório peb m5.e, S[oller conten ta: "e ela
marcadas pela p obreza, por mulheres abandonadas por seus compa- :tinda c:.pcrou :lté <.JUC de t ivesse cinco anos p:t.r:t procurar ajud:t (. .. ).Sem u;;u:nnenro. pode ser urde

nheiros e po r famílias fragmentadas. O olhar srolleriano sob re essas demais para que esse menino se desenvolva como un1a pessoa masculina" (1982: 42) . Para S coller, o
rerapeur:t !iÓ poder:i :tgir sobre ;t identidade dt:: gênero de uma crianç:t !!.e tal "problent;;t" for <.lt: tccrad o
famílias buscaria na relação entre os filhos e suas mães a explicação para cedo. pois, :t partir de dercrntinaJa id:H.ic:, torna -se irreversível. fix.:1ndo o sujeito definirivamenre c m
a existência de um membro transexual c, provavel mente, chegaria à <.ictcrmin:td:t posiç:'"io dent ro d:ts rc b çôcs d e gênero c da scxualid:tde. Esse período seria po r vo ha d o
primeiro ano de vida. t)uanJo ele id dnc;nvolvcr as raíz.cs funda m entais c inalreráveis de sua
conclusão de que nenhum dos casos relatados é de "transexuais de ver- m~1scu li n i dack ou fcminilid:1de.

146 147
C homou~xu~.lidade l~lc::<u
::.:l::.:
tu::.:••;..__ ___,

Quando um/a "candidato/a" enrra em um programa de transge-


I A REI NVENÇAO DO CORPO : SEXUALIDADE E GENERO NA EXPERIEN CIA TRANSEX U A L

dade. Os ovanos normais produzem óvulos e, onde e les se


nitalização, um dos primeiros exames solicitado é o carióripo. Uma
má-formação cro m ossomárica muda ria o diagn óstico d e cra nsexua-
l enconrram, há fem inilidad e ... O homem masculino e a mulher
feminina são qualidades principalmente herdadas- (200 1: 1O).
lidade para hermafroditismo. Nesse caso, a c iru rgia de rransgenJ- I F inalmente, apresenta o sexo psicológico como o mais flexível,
talização é, em ge ral, indicada automaticam e n te. Pa ra munas, o
podendo ocorrer mesmo q ue esteja em oposição aos demais. Nesse
momento desse exame rep resenta u ma esperan ça:
caso, "produ zem-se graves p ro ble m as para aq uelas pessoas sem sor-
te. Suas vidas são normalmen te trágicas"• (200 1: 16). L esse tipo de
Marta: Eu pensava : "Tomara que tenha algum problema." Eu dese-
oposição q ue caracte riza ria o "fenômeno transex ual " .
jei muito que isso oco r resse. Mas, infelizmente, agora estou convencida
A no rm a lidad e ocorre q uando os d ive rsos níveis cons titu t ivos d o
de que a origem da rra nsexualidade é social.
sexo não estiverem em desaco rdo. U m comportam ento q u e a p resen-
te q ualqu er nível d e deslocame n to en tre esses níveis seria um sinto-
Benjamin reserva um p apel fu ndam en tal ao sexo cromossomático.
ma d e que h á um ma u fun c io n a men to . A lé m da dete r min ação
Segu ndo ele,
hormonal d a fem inil idade e d a mascul in idade, seria a hcterossexua-
[..}à exceção dos acidentes durante a gestação, que podem provocar lidade qu e articula ria os vári os sexos ao "sexo".
defonnidades hermafroditas, o bebê recém-nascido revelará seu sexo Pode p a rece r u ma contrad ição o fato d e Harry Ben jamin , q ue
pela presença ou ausência de caracteres sexuais primtir;os e acred itava na determin ação b io lógica para os gên eros, te r defe ndid o
secundários. Os testículos (e os ovários) são os "primários" porque firmemente as c iru rgias de t ra n sge ni ta lização, u ma vez que os/as
estão ligados diretamente à reprodução. Os caracteres sexuais cranseXLtais seriam a p rova d e q ue s uas teses escavam eq u ivocadas .
secundários do homem são o pênis, o escroto, a próstata, a Para ele, no e n tanto, essa con tradição n ão existia. Afi r mava q ue, co m
distribuição dos pêlos, uma voz mais grave e uma psicologia o dese nvolvimento das ciências b io m éd icas, p oder-se- ia encon trar
masculina (agressividade, autoconfiança e outras características uma resposta para esse "fenô m e no" . D aí suas constantes críti cas aos
associadas). Tudo isso é amplamente desenvolvido e mantido pelo psican a listas e psicó logos que defend iam a escuta te rapê uti ca como
hormônio testicular chamado androgênio. As características secun- o t ratame n tO a pro p ri3do.''
dárias femininas são o clitóris, a vulva, o útero (com sua fonção O a u rodiagnóstico é defend id o como legít i m o pe los
menstrual). A vagina, os seios, a voz feminina, a dl,tribu;ção dos benjaminianos. Para Benjamin, a c irurgia seria a u n1ca te rap ia pos-
pêlos e as características m entais femininas (timidez, compreensão, sível para os/ as "tra nsexu a is ve rdade iros". Ao localizar a o rigem d as
emociona/idade e outros/' (Benjam in, 2001: 16). iden t idades de gêne ro no sexo cromossomát ico e a sexua lidade no
sexo germ inai, Benjamin reafi rma e reat ualiza Tardieu , para quem a
O sexo gonodal div ide-se e m dois: o sexo germ inai (serve para a
p rocriação) e o e n doc rin o lógico. Para Benja mi n,
7 Em csp.tnhol no origtnal. Traduç:to c grifos da autora.

o sexo germinai serve unicamente para a procriação. Os testículos • Em esp.tnhol no original. Tradução da autora.
• Awalmcnte, um grupo de ciemisras na Hobnda est:í desen volvendo pesquisas com resros cerebrais de
no rmais prod uzem esperma c, ond e há esperma, há masculin i-
rransexuaic; femininos e masculinos. Esses es(udos local iz.am~se principalmc::n re no hipodl:uno. zona
ccrebr.tl que se supõe ser,, respons;ível pelas conduras, incluindo a seXltal. Esso equipe é chefiJda pelo
endocrino logista Gooren (s.n.L), defensor e pesquisador das causas neurobiológicas para a
6
Em C>panhol no origmal. Tr.tduç.lo da autoro. { r~UI -"-CX U.ll id.tde.

148
149
homou@•ualidadel c cu::.:_lt:.::u:.::r•_ _.....J
'-"1 A REIN VE N ÇAO DO CORPO: SEXUALIDADE E GÊNERO NA EXPERIÊNCIA TRANSEXUAL

verdade última dos SLLJeHos deveria ser buscada não nos comporta- zam a identidade rransexual a parti r de um conjunto limitado de
mentos, mas na biologia dos corpos - no caso d e Benjamin, princi- a tri butos . Estava em cu rso o processo d e constru ção da univer-
palmenre nos hormônios. A conseqüência imediata das posições de salização do rransexual.
Benjamin é a definição da transexualidade como uma enfermidade. A universalização cumpriu o papel de estabelecer como verda-
Segundo Ramsey (1998), um dos d efe nso res de suas reses, deira uma única poss ibilidad e de resolução para os conflitos entre
co rpo, subjetividade e sex ualidade, ao mesmo tempo em que os di-
[. .. } por mais que isso soe duro, transexuais não são normais.
ferenciou de outros "transto rn os", como a homossexualidade c a
Dizer que um transexual- ou alguém que tem finda paftztina ou
rraves rilidade. A rransexua lidade ga nhou um esta tuto próprio e um
um defeito congênito de coração - não tem anomalia alguma é
diagnóstico diferenc iado. Segundo Benjamin,
pura ilusão. já dizer que todos esses pacientes podem ser
conduzidos a uma quase normaLidade com a ajuda da medicina alguns pesquisadores acreditam que as duas situações, travestismo
e da psicologia é correto... Por mais que se sintam "normais" por e transexualismo, devem separar-se claramente, principalmente
dentro quanto à sua identidade de gênero, os transexuais não são com relação a seu "sentimento sexual" e seus pares sexuais eleitos
realmente plenos, inteiros, enquanto o interior não se coadunar (objeto de eleição). O travesti - dizem - é um homem, sente-se
com o exterior. Mais uma vez, afirmar que o transexual não se como homem, é heterossexual e simplesmente quer vestir-se como
dewia da norma biológica e psicológica é ilud ir-se. I:."m minha uma mulher. O transexual se sente uma mulher ("aprisionada em
opinião, é preferível considerar os problemas reais inerentes a esse um corpo de homem'') e se sente atraído por outros homens. Isso
distzírbio e resolvê-los a negrí-los (Ramsey, 1998 : 80) . foz dele um homossexual se seu sexo jór diagnosticado de acordo
com seu corpo. No entanto, ele se autodiagnostica segundo seu sexo
As divergências e nrre a concep ção psicana lítica ( tr a n sex u a l
psicol6gico feminino . Fie sente atração sexual por um homem
swlleriano) e a biologista (rransex ual benjominiano) não imped e m
como heterossexual, ou seja, normal'" (200 1: 30) .
que profissionais dessas áreas trabalhem juntos nos programas de
rransgeniralização . A té o momento, são os p rofission ais do saúde 0/a verdadeiro/a transexual, para Benjamin, é fundament::tlmcnre
mental que dão a t'dr ima p a b v ra quanto à realização da ci rurg ia. assex uado e sonha em ter um corpo de homem/mulher que será
Qual seria, então , o ponto central de unidade d essas co nce pções? O obt ido pela inte rve nção cirúrgica . Essa c irurg ia lhe possib ili tar ia
ponto de co nvcrgênci::t encre Benjamin e Stollc r está na ideologia de desfrutar do status social d o gê n ero com o qual se identi fi ca, ao mes-
gênero. Quando uma pessoa diz "sou um h o m em/uma mulher" e o mo tempo em que lhe permitiria exe rcer a sexualidade apropriada,
especia lista pergunta "o que ~ um/a hom e m / mulh er?", será com o órgão apropriad o. Nesse sentido, a h eterossexua lidade é
dese ncadeada u ma relação d isc ur s iva b aseada nas ve rdad es definida como a norma a partir da qual se julga o que é um homem
estabelecidas para a definição de mulher/homem. e uma mulher de verdade .
Benjamin selecion ou a lguns indicadores que co n s iderou cons- Benjamin propõe uma tabela na qual classifica níveis de indecisão
tantes nas histórias dos/as transexua is e com os quais estabeleceu os e desorientação sexual e de gênero. Em um conjunto de seis ripas
parâmetros definidores do verdadeiro uansexual. Não demorou (pse udotravesti masculino; travesti fetichista masculino; travesti au-
_ mulro pa ra que esses critérios fossem consid erados como referências tênrico; transexual não-cirúrgico; transexual verdadeiro de intensidade
para se aval iarem os discursos dos d emandantes à cirurg ia . Esses
indicadores foram fixados em termos de ca racterísticas que cristali- 10 En"'l t::sp:tnhol n o (HIP, i l1~1 1. Tr;td uç:to d a :auor.L

150
15 1
homoss exualidade Je ~::1
cu:::_lt:..:.u:..:.••_ __, A RE INVENÇÁO DO CORPO: SEXUALIDADE E GtNERO NA EXPER I ~NCIA TRAN5EXUAL

moderada; transexual ve rdadeiro de a lta ime nsidad e), chega-se às ca- As histórias dos jogos e das negociações sexua is que alguns entre-
racterís ticas fundamentais que definirão o transexual verdadeiro. vistados estabelecem com seus/suas parceiros levam - me a problematizar
Ao longo do trabalho de campo, conhec i histó rias de v ida de esta verdade. Kátia manteve re lações com um rapaz por quase rrês
rransexuais que têm uma v ida sexual ativa; que vive m com seus/suas anos. Viviam juntos e tinham uma v ida sexual, segundo ela, satisfatória.
companheiros/ as antes da cirurgia; de pessoas que fazem a cirurgia Pedro define sua vida sexual como boa e considera-se um bom parcei-
m as não ti veram relações heterossexuais, pois se consideram lésbicas ro sexual: sempre teve muitos " rolos" . Viveu três anos com uma com-
e gays. Ap roximei-me d e outros que não ac reditam que a cirurgia pa nheira. Assim como Kátia, suas co mpanh eiras de curta ou longa
lhes p ossibilitará ascender à mascu li nidade ou à feminilidade, pois duração não sabiam que ele e ra transexual.
defendem que suas identidades d e gênero não serão garantidas pela
existência d e um pênis o u de uma vagina e que, portanto, a princ i- Pedro: Eu lhes dizia que não gostava de carinhos no peito e só t inha
pal reivi ndicação é o direito legal à identidade de gênero, indepen- relações às escuras . Eu m es m o fiz uma prótese que escondo muito
dentemente da ci ru rgia. bem. Ago ra estou vive ndo co m o utr:l moça.

Maria, duranre muitos anos, foi p rofissional do sexo e teve tam -


DO TRANSEXUAL BENJAMINIANO A OUTRAS TRANSEXUALIDADES
bém várias relações afetivas estáveis. Afi rm a: " Gosto muiro de fazer
Para Benjamin , o rransexual verdadeiro é aquele que sexo . Afinal, as carnes são fracas."
Estas histórias desconstroem pou co a pou co a imagem d e um
1) vive uma inversão psicossexual total; 2) pode viver e trabalhar
sujei to rra n sexual assexuado. Todos/as os/as en trevistados/ as, à exce-
como uma mulher, mas apenas vestir as roupas não lhe dá alívio
r ção de Sara, que faziam parte do Projero Transexualismo t inham
to· suficiente; 3) intenso mal-estar de gênero; 4) deseja intensamente
~· v ida sexu a l ativa . Não se discutem aqui as complexidades e as nego-
manter relações com homens normais e mulheres normais; 5)
ci::tções que se dão com relação à sexualidad e, mas aponta-se pa ra o
solicita a cirurgia com urgência; 6) odeia seus órgãos masculinos"
faro d e que a consrrução de um /a transexual assexuado não encontra
(Benjam in , 200 1: 45) .
nenhum res p a ldo nas histórias de vida que conheci. São muitas as
Vejamos a lguns desdobramentos dessas definições. táticas e técn icas utilizadas para sentir e dar p razer. Cada um, a seu
m odo, inve nta formas de negocia r co m suas/seus com p a nhe iras/os
PRIMEIRO: SOBRE A RELAÇÃO COM AS GENITÁLIAS.
as relações afetivas e sexuais.
Se rodos/as os/as transexuais odeiam seus ó rgãos, deduz-se que não Outros desdobramentos dessa d efini ção d a relação dos/as
rêm vida sexual. A escuta te rapêutica e de rod a equipe médica é transexuais co m seu órgão podem ser aponrados como "pequenos"
realizad a para notar se os/as demandantes con segu em obter alg um desdobramentos. Supõe que rodas as rra nsexu a is femininas devam
praze r com seus ó rgãos. Caso possam, provavelmen te serão diagnos- escond er o pê nis e os rransexu ais masculinos, dissimular a existência
ti cados como n ão- rransexu a is . 0 /a rra n sex u al ofic ia l é qu ase dos seios. O olhar do especia lis ta geralme nre não deixa escapar esse
assexuado, uma vez que n ão consegue tocar seus órgãos. índi ce d e rejei ção. Um dos membros da equipe comentou: "Você
viu Bárbara? Você viu que ela n ão esconde o pênis?" Bárbara usava
uma calça jean s e só um o lhar mui to ate nto poderia observar um
11
Em c:~p.Hlhol no original. Traduç:i.o d;1 auror;L pouco m a is de volume n a pane d a frente da calça comprida .

152 1 53
A REIN VE N ÇÃO DO CORPO: SEX UALI DADE E G~NERO NA EXPERI~NCJA TRANSEXUAL
I
homossexualidade e c.:lc~ul=tu.;..:••'------'
/

A lógica que co nduziu esta observação tão minuciosa foi o pres- No meu caso, quando constatei que tinha atração sexual por
suposto de que todos transexuais de "verdade", por não su porrarem mulheres (transexuais ou não:..transexuais, não jàço distinção), tive
se us órgãos, os escondem . conflitos pessoais que requereram um intenso trabalho de assumir-
me como lésbica, independentemente de assumir-me como mulher.
S EGU NDO: AINDA SOBRE A RELAÇÃO COM AS GENITÁLIAS E A SEXUALIDADE. Essa desvinculação, embora possa parecer fiíciL, lhes asseguro que
Se as pessoas tra n sexuais odeiam seus ó rgãos genitais é fundame n- não é. Com o passar dos anos, a lesbiandade entre mulheres
talmen te porque n ão lhes permitem ter relações sexuais, dizem os transexuais passou a adquirir cada vez maior visibiLidade [ . .}.
defensores do transexual benj am inia no. A motivação principal para Começou a organização de uma nova categoria: "MuLheres
demandá-las seria a vo ntade de exercer a sexualidade normal, como transexuais Lésbicas". Encontros de Lésbicas que restringiam o acesso
u m a pessoa normal , com o órgão apropriado. Pa ra muitas/ os, no de muLheres transexuais, grupos de Lésbicas que expressavam um
entanto, não é o desejo d e manter relações heterossexua is que as/os convite especiaL às muLheres Lésbicas transexuais, Lésbicas não-
leva a fazer a cirurgia, uma vez que há tra nsexuais femini nas q ue se transexuais que começavam a pensar sobre a possibiLidade de ter ou
definem co mo lésbicas e tra nsexuais mascul inos, como gays. não ter reLações com lésbicas transexuais (Ramos, 2002: 20) .
Annabel foi casada durante vinte anos. Teve uma fi lh a e adotou Mo isés Marrínez se dcfme como u m ho mem tra nsexua l gay.
um men ino. N a relação com a ex-esposa, dese nvolvia as tarefas mais
v in c uladas socialm e n te ao fe m in ino. Scxualmenre, n u nca conseguiu Em m uitos casos, ao p1'opor uma reLação afttiva e/ou sexuaL a
d ese mpe n har o pap el do ho m em viri l. Os confl itos fora m si lencia- homens, nós Lhes provocamos dúvidas e contradições sobre sua
dos ao longo de mu iros a n os. Chegou um m o m ento em que n ão opção sexuaL, questionando-se a possibiLidade de u ma homosse-
pôde mais co nv iver com as dúv idas e as a ngúst ias . Inic ialmente, x uaLidade (acontece exatamente o mesmo nas reLações com
quando procurou a ajuda de esp ecialis tas, a in d a estava com a ex- muLheres). Existe competitividade com esse outro homem dentro do
esposa. A siwação do seu casamen to ficou " insusten tável" quando relacionamento? E o fantasma de uma possíveL heterossex ualidade
começo u a usar roupas femininas e a partici par de um coletivo de por pm·te do outro? E o que acontece em uma relação homossexual
rransex uais. Para Annabel, o amor q ue sentia pela ex-esposa, no e n - entre dois transexuais masculinos?
ta n to, n ão dim i nuiu. Todas as suas fantasias e desejos eróticos li - Ah! E a jàlocracia. O culto ao pau. Como agir em círculos de
gam-se ao mundo femin in o . A d iscu ssão da cirurgia e a te ra pia pessoas onde se supõe que todos têm pau, menos você? Ou quando
hormonal não. estão v incu ladas a um d esejo de man ter relações h e- não se sabe quem o tern? (Martínez, 2 00 2: 30) .
terossexu a is. S ua p rim e ira re lação es tável depo is d a separa ção foi E ssas n a rrativas nos pos icio nam d iante d e uma complexa red e d e
co m uma mulhe r.
s ig nifi cados que abre es paços para novas ime rp retações das sex uali-
Juana Ramos, pres ide nte do Co let ivo T ra n sexuais d e Madri e dades, deslocando-as do gê nero e de u m referenc ia l n a tu ra l. Fazer a
Coo rdenadora d a Federação Estatal d e Lés b icas e Gays, d esen volve c iru rgia e d efi nir-se lésb ica é embaralhar as cate gorias binárias q u e
uma reflexão sob re a constru ção de s ua ide n t ida d e d e gên e ro , da elaboram o o lhar so bre os cor p os, pondo em dúv ida a relação de
represen tação do corpo e d a in tersecção d esses níveis pa ra a constru - causalidade enrre c irurg ia, sexualidade e o ve rdadeiro t ransexual.
ção de sua sexua lidad e q ue nos põe diante de uma r ica e co mplexa Para rnu iros especialistas, n o en tanto, a ex istência de rransexuais
multiplicidade de art icu lações idemitárias . lésbicas e gays contradiz toda e qualqu er possibilidade d e compreensão.

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c homossexua lidade I • '-"1
cu:_::lt:.:::u'c=-"- - --' A REINVENÇÃO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NER O NA EXPERieNCIA TRANSEXUAL

"Então, não entend o para que faze r cirurgia . Se ele e ra um homem e o utra . Quando eu fui para a escola, aos d ez a nos, comecei a me d ar
gostava d e mulheres, ou se ela gostava de homens, para que fazer cirur- conta da diferença e a notar que aquilo que não faz ia diferen ça pa ra
gia? Qual o se ntido d e ter uma vagina se o que se deseja é mancer mim fazia a d ife ren ça . Aí é que começaram os proble m as . Eu não
relações com outra mulher?" Foram as p erguntas que uma psicó loga fez quero a vagina pelo sexo não. Eu quero para provar para as pessoas que
quando conheceu essas config urações das sexualidades entre as/os eu posso romar banho no banhe iro com mulher e esrou lá toda feliz.
- transexuais. Elas não vão fi car duvida ndo se eu sou mulher, se eu so u homem.
Para muiros profissionais, não é possível compreender a homos-
sexualidade entre os/as rransexuais. Porém, quando uma pessoa diz: Até aqui, foram co ntrapost as as defi nições do "ve rd a d eiro
" Eu tenho um corpo equivocado, so u um/a homem/mulher apr isi- transex ua l" com uma plural id ade de respostas aos conflitos entre
onado/a e m um corpo de mulher/homem", isro não significa qu e corpo, subjetiv idade e sexu alidad e encontrada nas p róprias pessoas
ser mulher sej a igual a ser heterossexual. Quando a sociedade esta- que estão v ive nciando essa expe riência e que não estão d e acordo
be lece que o /a home m /mu lher d e ve rdade é heterossexual, deduz-se com as normas oficiais. Interessa-me, agora, refletir sobre a quarta e
imediatamen te qu e um/ a homem/mulher transexual tam bém d eve- última caracte rística dos/ as transexuais, segundo a pos ição oficial: a
rá sê-lo, e são con struídos dispositivos em torno dessa verdade. ciru rgia d e trans gen italização .
Os padrões de masculinidade e femin ilidade construídos socialmente
reOetem-se nas definições do q ue seja um/a transexual d e verdade. É
HOMENS-PÊNIS E MULHERES-VAGINA7
nesse sentido que esta experiência põe em funcionamenro os valores
que estruturam os gêneros na socied ade. São estas concepções que orien- Todos/as os/as tra nsexuais benjaminianos/as d eseja m solucionar seus
ra m os m édicos e os profissionais da saúde quando se aproximam das/ conflitos media nre a realização da cirurgia. Esse cânone não informa
os transex uais. Se a sociedade afirma que o normal é a heterossexual idade, exclusivamen te os profissionais responsáveis pelo diagnóstico , mas
quando se afirma "sou mulher/homem", é como se a heterossexualidade estrutura também parâmetros entre as próprias pessoas transexuais,
estivesse sendo evocada como um dado natura l, que determina a coe- construindo hierarquias in ternas à experiência . A questão que m u itos
rênc ia e a existênc ia dos corpos sexuados. As cirurgias seriam, então, propõem é: "Se você é um/a homem/ mulher aprisionado/a em um
para possibil itar-lhes exercer a heterossex ualidade. corpo d e h omem/m ulher, por qu e não muda r esse corpo?" E as mu-
Os motivos que levam uma pessoa a fazer a c irurgia não são sem- danças n o co rpo são fe itas. Muitos/as tomam os h o rm ôn ios, faze m
pre os m esmos e, mui tas vezes, não estão imed iatamente vinculados d ep ilações defin itivas e o utros p rocedime ntos para te re m uma apa-
à sexualidad e: su rge m em mome ntos e condições esp ecíficas de cada rência do gênero idenrificado, porém não querem faze r a cirurgia d e
b iografia. Para Andréia, essa n ecessidade só apareceu porque se ntia transgenitalização.
q ue, para ser con side rada mulher, a vag ina se ri a importan te , não Se a vida social é fei ta de ho m e n s e mu lh e res com corpos sexu al-
porqu e ela a desejasse imediatam en te. m ente apropriados, então, como class ifica r as pessoas que têm o
sentime nto de pertencer ao gên ero co ntrário ao que seu corpo lhes
Andréia: Eu ac red itava qu e poderi a vive r n o rm al m ente com o uma informa, mas que não querem fazer a cirurgia ou q u e rela ti viza m su a
senhora, sem problemas, que isso que tenho n o meio d as p ernas não importâ n cia?
faria diferença. Eu n ão pensei que esse sexo anatômico fosse provocar Pa ra os homens transexuais, a relação ent re a c irurg ia c a verda-
transtorn os para mim. Mas eu pensava uma coisa e a vid a me 1nostro u de dos gê n eros tem outras variáveis. As técn icas c irúrg icas pa ra a

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ul~tu::'"----')
A REINVENÇÂO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERI~NCIA TRANSEXUA L

consrrução do neofalo não tiveram grandes avanços ao longo das últi- A .M.L.l fez a c irurgia para a ext irpação bilatera l e há algum
mas décadas. Parece que a ciência não tem muita pressa em criar novas tempo realizava a terapia hormonal, tendo rodos os signos corporais
tecnologias para intervir nos corpos-sexuados femini nos, levando-me a identificados socialmente como masculinos. Pode-se infer ir que esse
pensar nas assimetrias de gênero na produção das tecnologias para rrans- juiz o cond enou a viver em uma não-identidade, a estar excluído da
formar os corpos ctemmmos.
· · M u1ros
· · ·
Cirurgiões argu mentam que são categoria humana. Se a humanidade se div ide em h omens-pênis e
raros os casos de rransexuais m asculinos, o que não justificaria um mulheres-vagina, qual é o luga r de A.M.L.I?
Investimento em pesquisa para atend er a uma cl ientela tão red uzida. A "aparência" se refere à produção d e um corpo sem ambigüida-
De forma geral, os transexuais masculinos não fazem a cirurgia do des, esteticamente possível de d esen volver a heterossexualidade. É
neofalo. Para todos os transexuais en trevistados, a cirurgia mais impor- como se houvesse um subtexro nesse parecer: "Você não é possível.
tante é a d os seios. Joel fez a m astecrom ia e a histerecrom ia . Alec e Seu corpo é uma ambigüidade que o/a exclui do poss ível, do real."
~hus também desejam realizar essas c irurgias e vão esperar o desenvol- Esse caso nos rem ete outra vez a He rculine Barb in . O que há de
VImento e o aprimoramento d as técnicas para a construção do neofalo. co mu1n en tre eles? Tanto em um quanro em outro, vê-se o poder
-~uando um transexual d ecide não se operar e entra na justiça que não permite ambigüidades, decid indo a vida e a morte das pes-
soliCitando a mudança do prenome e do sexo em seus d ocu m entos, soas em n ome da ordem heterossexual.
um conjunto de con seqüências é dese n cadeado, o que re m e te ao Até aqui, apontei os desdobramentos que uma definição do que
ponto in ic ial desta discussão: quem são os tra nsex uais de verdade? é um/a transexual de verd ade produz em termos de diagnóstico. É o
. As teses de Benjamin são os cânon es d e finidores d e pareceres, que c hame i no início des te ca pítulo de "desdob ramentos macro",
diagnósticos c classificações. Todas as vezes que um juiz, um m édico visíve is. Porém, entre os/as próprios tra nsexuais, essa é um a discus-
ou um ps icó logo e m item um pa rece r sobre a demanda de uma são que suscita debates imensos.
,.... pessoa que está e m conflito co m o gê n ero imposto, está fazendo J á se sabe que a re ivind icação d os/as transexuais é o reconheci-
uma c itação do que já se transfo rmou em n o rma , e m verdade cien- m e nto dos gêneros . E n tão, como classificar essas pessoas? Os/ as
t ífica, a partir das qua is os/as demandantes são avaliados. Nesses tra n sexu a is não-cirurgiados afirmam: "Eu sou um /a homem /mu-
momentos se nota a operacionalidade do dispositivo da transexua- lher, quero m eu direito à id entid ade de gênero." Como lhes res pon-
lldadc. Assim , se todo rransexual d e verdade só e ncontra na ciru rgia d er? 'Não, se você é um/a homem/mulher, onde está seu /sua pên is/
os m eca nismos para a superação de se us transto• nos, não se poderá vagina?" E como os/as nomear? Qual é o lugar deles/as na vida social?
c~n~cder a um tra nsexua l que n ão esteja totalmente c irurgiad o o Eles/as n ão existem? Reproduz-se internamente um a hierarquia
d ire itO à m udança legal da ide n tidade de gê n ero? assimétrica, ge radora de exclusões. Os cirurgiados ocupam o nível
Em setem bro de 2 002, A.M.L.I (http//www.carlaanronelli .com.es), mais alto n essa hierarquia dos/as tra nsex uais de verd ade.
um transexual masculino teve seu ped ido d e mudança d e nome e sexo Em uma reunião de t ransexuais, pode-se notar esse processo de
~os documentos rejei tado por um juiz espanhol. O juiz exigia que constru ção de hierarquias e m fun cio name nto. '!
el: la transexual que lo so licite se haya sometido a las operaciones Urna representan te do Coletivo de Transexuais da Cata lu nha d is-
qu •rúrgicas y t ratamie n ros h ormonales necesarios para la supresión c utia com uma represencanre do Coletivo de Madri o a lcance da Lei
de sus caracteres sexua les o ri g inales y se haya dotado de órganos de Identidade de Gênero espanhola que estava e m debate no parla-
sexuales semcjan tes, ai menos en apariencia, a los correspondientes ai mento espanhol. O debate se encam inhou para a importância da
sexo que s ien te n como propio". c irurgia para a mudança legal da identidade de gênero . Enquanto a

158 1 59
I
homossexualidade e c.:::ulc.:..:tu:.:.;••:.__
L:l _J

discussão segu1a, uma das mulheres transexuais presentes comenta-


va à meia-voz:

Eu respeito aqueles que não querem jàzer a cirurgia, porém eu


sempre quis minha vagina. Agora que a tenho, me sinto uma
mulher completa. Desejo que a minha primeira noite seja muito
especial. Você sabe... toda mulher quer seu príncipe encantado,
quer chegar à primeira noite virgem.
Toda mulher tece uma cumplicidade ide ntirária. Mas quem so-
mos nós, mulheres? Quais são os elementos identitários que nos A ESTÉTICA DOS GÊNEROS
poss ibilita m a nomeação como "nós"? Quais são as características
,., internas próprias do ser mulher que nos particularizam ao mesmo
t
,
te mpo que nos diferenciam "d eles"?
Seu d iscurso contava d e uma mulher idealizada; põe e m funcio-
namento as ex pectativas construídas socia lm e nte para os gêneros,
materializadas na idéia da pureza feminina, que apr isio na mulheres
bio lógicas c não-biológicas; falava de lugares inabitáveis. O grande ausente nas formu lações de Burler é o próprio corpo, ob-
Csrc :.cnL irne nLu de ser uu de estar incompleto, ou mesmo em :.~::t vuuY t eci ado (2001), uma vez que a auto ra não trata dos proces-
déb ito, constitui as conti n gê n cias idenritária s e, para muitos/as sos es pecíficos para a s ua produção, reduz indo a identidade a um
rra nsexuais, não é a cirurgia que lhes garantirá a coerência idcntitária eíeilO do discurso, ignorando as formas d e incorporação específicas
qu e procuram; para outros, porém, a cirurg ia pode represcnrar a que caracter izam distintas insc rições pe rfo r mativas da identidade.
possibilidade de ascenderem à condição humana . Embora Burler afirme qu e n ão existe uma essência interior que é
posta e m evidência por meio dos atos, não diz n ada sobre a
espec ificidade dos processos de construção dos co rp os que buscam
aju star-se ao modelo d imórflco ou, a inda, sobre aqueles que jogam
co m as am big üidades e reconstroem seus corpos com este objetivo,
como os drag kings e as travestis.
Essa crítica é importante n a medida em que aponta para a neces-
sid ade de se aprofunda r a análise dos m ecanismos específicos das
mudanças corporais, a lenando-nos para a sua plasticidade. ' No en-
ta nto, h á um outro nível de composição e visibilização dos gêne ros

1 l;ty Prosscr ( 1998) c o urros rcpresen[antes de comun idades transgêneros ·c rransexuais americanas
u Enconcro de cr.mscxuais como atividade paralela; XIV !ntern"ional AIDS Conference/Barcelona, ~..rilic;un
a in<Hrumen[alização da performance da drng qu~~n na teoria de Buder, uma vez que eb a
julho 2002 define: co1no exemplo par:tdigmático da produç5.o de idcncidade performari va. Segundo Prosser. o

160 1 61
c I
homosse:xu•lidade e lc:.
<u:;:l;::tu.:::••=-- - - ' A R EINVENÇAO DO CORPO: SEXU A LIDADE E GEN ER O N A EXPERIENCI A T R A N SEXU A L

que amecede, de for m a ge ral, os p rocessos d e mudanças co rp o ra is d etermi nadas formas d e cobrir os co rpos-sexuados . As ro upas n ão
propriamente d itos (seja p o r meio de h o rmô nios e/o u c ir urg ias) e cump rem excl usivame nte um papel func io nal. Con forme apon tara m
.· que apresenra uma autono mia co nside rável. Como cobrir o corpo? V illaça e F red Góes (1998), as rou pas constroem habitu.s pesso ais que
Como escolher a cor, a ro upa, o sapato, o pe ntead o q ue d a rão esta- a rtic ulam relações e ntre o corpo e o seu me io . Pode-se su ge rir q u e,
bi lidade ao co rpo? Se o corpo-sexuad o é um e feito p ro tético d as para a fo rm ação d os habitus dos gêneros, a estética partici pa d e fo rma
tecnologias fundame n tadas n a h eterossexu alidade , a m o d a co n sti - a d ar visibilidad e aos tre inamentos p rop riamente cor porais.
tui-se como prótese d esse corpo . A im po r tân cia estética pode ser con siderada como u m a va r iável
Esse corpo-sexuado fala por interm édi o das roupas, d os acessó ri os, co nsta nte nos discursos dos/as e n t revistados/as. Q ua ndo e ram c ria n -
das cores. A impo rcân cia da estét ica ap a rece n as n a rrati vas dos/as ças, d esejava m as ro upas e as co res p roibidas; qu ando co meçaram a
entrevistadas como um demarcador entre os gênero s, e é sobre a trabalha r, um dos prim e iros atos foi compra r s uas roupas p a ra
relação entre gê ne ro e estética que se tra tará neste capítul o.' "m o n ta r" seus g ua rda- ro upas . Nesse momento, é possível observa r
Se o co rpo é plástico , manipulável, operável, tra nsform ável , o as idealizações ope rando as escolhas e as exclusões. A estética tam-
que irá estab ilizá-lo n a o rde m dicoro mizada dos gê n e ros é a s u a bém ap a rece com o u m ind icad o r d e níveis de m asculinidad e e d e
aparência d e gê ne ro. É comum enco n tra r transexua is que, a ntes de fe mi n ilida d e, a lé m d e ser um a va riável pa ra a n egoc iaçã o c om a
começarem os processos d e h a rm onização, ge ra m con fu são e p as- eq ui pe m é dica.
sam d es percebidos aos olhares classificadores, graças à utili zação d e Te nta nd o s iste matiza r a discussão sobre a es té ti ca dos corpos-
artifícios para tt rcm a aparência do gê nero identifi cado . sex uados re fe re n c iada nas fa las dos/ as entrevistad os/as, propõem-se
\
O sentido qu e se atribui às roupas e aos acessórios liga-se a um três m ovimentos: (l ) estética, infâ ncia e m e mó ria, em que as narra-
campo mais amplo d e significados que exrrapola a idé ia d e u m "gos- ti vas nos levam a um- t empo d e repressões dos desejos clandest in os
to pessoal", v in c ulan d o -se às n o rm as d e gê n e ro que es ta b e lece m de u sa r um a co r o u um a peça co ns id erada impró p ria para o seu
gê n ero . A m e m ó ria aqui é evocad a p ara legitimar a lo n gevidad e de
um sen tim e n to d e conAiro qu e "estava ali d esde se mpre" ; (2) n a
composição d e um es cilo, qua ndo com eçam a co mpra r suas roupas,
que se pod e ~firm ar é q ue os/as cr3 nsex.uais e os/as tran sgén cros p õem sobre a mesa não ape nas d evem realiza r o trabalho d a c itacio nalidade. Qu al o tipo de roup a
perform;'lnces tea trais ou de cenários acravés do.s gêneros (crosr-gender}, mas transforrn<tções que rên1
a p ro priad a p a ra um /a ho m em /m ulh e r? A escolha de um d e te rmi-
um raio de aniculaç5.o mui co 111 ais :~mplo: são mudanças fís icas, se xu ais, soci:1is e políticas dos corpos
que não eS[ão em cen:l. Butlcr (2002), no en tanto, afirmad. que ron1 o u as drng qurt'nl como exemplo nado estil o está v inc ulada às id ealizações dos gê n eros; (3) a es té tica
de performa<ividade fora de u m referente biológico e não como m odelo paradigmático. n c h os pita l. M a is do que observa r as n egociações explíci tas entre os
sexualidade, com ~nfase na construção dos fetich es sexu:&is q ue algumas
2
Sobre 3 relação entre moda c :t
peços geram (o sapa<o. o e>p anilho, ,. meias), ver S1eele ( 1997) . E m Unmrxo, Winick wmad a
m embros da eq uipe e os/as "cand idatos/as" sobre a/o verdadeira/o
mod.l como um indicador d:1s rnud anças mais gerais pdas quais p assou a juventude n o ne~amer i cana mulher/ homem po r m e io das ro upas. Nesse espaço, ta mbém se es-
nas décadas de 1960 e 1970. Os cones de cabelo, as ro u pas. a m o d a espo n iva, os gestos, as m úsicas.
tabelece uma co mparação e ntre os/as rransex ua is sob re os/as que
as danças vão romper o pad rão de sep aração absoluta en<re os géneros, o q u e res ul!a na prod ução de
um estilo un issex. Ouuos aucores an alisarão a moda con1o forma d e produ zir imagens q u e pa nicipam melho r se veste m , estabe lecen do-se, ass im, uma h ie rarq uia a p artir
U.l organização de um social <ribal (Maffesoli, 1987. 1989); ou!ro s, como fo rma de explicitar uma dos níveis d e fe m inili dade/ m asc ulinidad e q u e cada um consegu e
classe social c, nesse tnovimcnco, s5.o esc:abclccidos códigos de discinção em relação a ou tras classes
(Bourdieu, 1983); ou como um indicador do "1mpirio dn nparinâa': que se anicula ao crescen<e ma terializar nos estilos eleiros.
processo de personali:z.ação (Lipove<sky. 1998); ou. ainda. como propôs Elias ( 1997). as roupas como
conjunco de códigos de exposição, rcsuição, autoconcrolc, que marcarão a vida na cone e o próp rio
processo c ivil izador.
(

16 2 1 63
A REINVENÇAO DO CORPO, SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERI~NCIA TRANSEXUAL
homossex ualidade J• fc:.<u::.;_lt;.;:cu:.='"--~

ManueLa: Desde criança, sabe~ Eu exerço ma1s esse lado feminino.


A ESTÉTICA COMO UMA VARIÁVEL EXPLI CATIVA
Desde criança eu me ocupo ma is pelo lado do universo feminino:
Uma das verdades para se classificar uma pessoa como transe~ual roupas, brinquedos, tudo sempre foi mais por esse lado. Depois,
diz que 0 motivo principal que impulsionaria as/os rransexua1s a quando eu já tin ha uns 13, 14 anos, eu vestia sempre ro upas unissex,
so li citarem inte rve n ções c irú rgicas seria a ceneza, desde semp re, não assim totalmente masculinas, que cu não gostava. Sempre gos-
de serem homens/mulheres em corpos equivocados . Por essa co n - tava de blusinha baby look, sabe? Quando eu comecei a trabalhar, a
cepção, a chave explicat iva para a existência dos confliros e p~ra a p rimeira coisa que fiz foi comprar minhas roupas. Ah, eu achei bom,
sua superação esta ri a no corpo. No entanto, nota-se que h a um me senti bem. Po rque eu não gostava de vestir uma cueca, eu me
momento ante rio r à descoberta da existên cia de um "co rpo equi- sentia estranha. A í, quand o eu compre i uma calça do jeito que eu
vocado" n a e mergê nci a dos con flitos entre corpo , sexua lid ade e
ide n tidade de gênero. A consciência do corpo-sexuado aparecerá
e m um m omento posterior. Não ocorre uma d escob erta simultâ-
I queria, foi ótimo! Eu tinha 15 anos. Sempre fiz unhas das meninas
lá da rua de casa, das mulheres . Eu fui montando meu guarda-
roupa, sabe?
nea do tipo: "Eu tenho vagina, por isso n ão posso usar cu eca" ou I
I
"Eu tenho pênis, po r isso n ão posso u sa r calcinha". Os relatos A f reqüência de depoimentos semelhantes aos de Manuela le-
inv~rrem essas sentenças. De uma forma geral, ap ontam que, n a vo u-me a concluir que se pode ri a pensar em termos de uma "fo r ma-
infância, sent iam desejo de ter roupas e acessó rios do outro gêne- I
ção -~j~cursiva" (Foucault, 1985, 1996) que ind icava a importância
ro. Os confl itos ini ciais que apa recem são mais o u menos ass im: -da estética pa ra a compreensão dos processos de organização das
"Eu quero usar um vestido . Por que não posso?" ou "Eu quero u sar performances de gênero, conferi ndo- lh e uma certa autonomia
uma calcinha. Por que não posso?" expl icativa p a ra a emergência dos conflitos com as normas de gêne-
O que antecede aos confl itos com as gen itálias sã~ aqueles com _a
própria constru ção das verdad es para os gê neros, efe~Jvadas nas o bn-
I ro. Afirmações do t ipo "Me sentia ri d ícu lo usando vestidos . Que
coisa horrível, aqueles laços!" ou "Od iava aquelas calças" são ima-
gações que os co rpos paulatinamente d evem assumn para que ~as­ gens recorrentes .em suas le m branças .
sam desempenhar com sucesso os desígnios do seu sexo . Aqu 1, o
gênero apare nte m ente está a serviço do sexo. Assumir um g~ n e ro é
um processo d e longa e ininterrupta duração. Nessa pedagog1a, u ma
I Uma le itura psicanalítica, nos mo ldes de Stolle r, apontaria que o
uso, na infância, de roupas impró prias para o gê n ero in formado
pelo sexo seria sintoma de u m a sexualidade constru ída fora do com-
das lições primeiras é aprend er a usar, quere ndo ou não, as cores e as plexo de tdipo . Nesse caso, não seria sufic iente apontar a es tética e
roupas definidas como ap ropriadas. . •
O fascínio p or roupas, jogos e cores vmcu lados ao outro genero
que lhes foram proibidos na infância pode ser identificado como
I os gostos, tampouco do tá-los de uma potencialidade expli cativa. A
verdade dessa conduta "desviada" deve ser e ncontrada mediante uma
"varredura" no inconsciente, rendo como bússola a sexualidade, que,
desencadeador dos confl iros iniciais . A infância é lembrada como por sua vez, estará refe renciada na relação binária pai- mãe. É nessa
um período de permane n te insatisfação e de ave rsão às roupas e a díade hcteronormatizada que se encontrarão os porquês de a criança
outros acessó rios generificados que eram obrigados/as a usa r. O desenvolver determinadas identificações. Essa concepção busca a
m omenro em que passam a comprar suas próprias roupas, a_o con- coe rência da ação a partir de uma suposta cor respondên c ia entre
trá rio, é descrito com grande felicidade e com um fo rte sentimento corpo, sexual idade e gênero, confer indo à estética o caráter de
de li berdade, como narra Manuela. cpifenômeno da sexualidade.

165
164
c homos s~xualidade ) e lc:.cu::.:.lt:..:cu';c:_"-- - - ' A REINVENÇÃO D O CORPO: SEXUALIDADE E GENERO NA EXPERIENCII\ TRANSEXUAL

Vejamos a importância que a estettca desempenhou na história de Quando Maria afirma "Aquele pensamento asstm de mulher, ele
Maria. O desejo de realizar a cirurgia era para usar as roupas de que querer ser", não está se referindo ao desejo de ter uma vagina, mas
gosta, sem ter de se p reocupar em "esconder nada". Ma is adiante, em ser reconhecida pu blicame nte como mulher pelas roupas que
voltarei a discutir a relação entre ci rurgia e estética de gênero. No cobrem e estabi lizam o corpo, e "aquele montinho" comprometia
entanw , vale apontar o caso de Maria para reforçar o argumento da qualquer possibilidade de sucesso desse objetivo. A história de Ma-
precedência da estética dos gên eros e de que ser reconhecido como ria dramatiza muitas outras histórias que escutei ao longo das entre-
homem/mulher está diretamente vinculado à apa rência do gênero. vistas . Mu itos/as não fizeram o corte físico, mas o desejo de serem
Ma ri a começou sua cirurgia por conta própria aos 14 anos, con- reconhec idos e viverem as performances com as quais se identifi-
tinuou aos 18 e, aos 4 5, espera o momento de concluí-la. cam, levam-nos/nas a realizar os corres simbólicos: usam faixas para
esconder os seios, escondem o pênis, u sam m aquiagens fortes para
Maria: Eu olhava meu corpo e ach ava h orrível, aquele montinho na dissimular os sinais da barba, enxertos para produzir um efeito visual
minha frente . Eu detestava, para mim al[uilo e ra o cúmulo do absur- de seios fartos.
do. A minha cabeça é de mulher, c eu roda feminina , toda maravilhosa Se não existe nenhuma essência interna aos 1:>cêneros e ser de um
e aquele monte ali. E eu vestia uma roupa, o lhava nas mulheres, nas gênero é, ames de tudo, "fazer" gênero, no sentido de ações conti-
colegas, vestia as roupas ficava linda, toda chique. Ai, meu Deus, aque- nuadas, re ite radas, a estética, então, assume um papel imporrante
le monte e eu horas a rrumando aqui lo. Eu falei : "Não, eu vou rirar, para ajudar a compreensão dos mecanismos de produção dos confli-
não agüe nto." Eu sei que fui um erro m eu, em te r começado a minha tos c de enlrac.la no gênero identifi cado na experiência transexual.
cirurgia, porque eu me mutilei. Eu tirei os testiculos. Eu tirei q uando
Linha 14 anos, tirei um cogu inh o. Mas depois sarei, nossa, mas foi um
INFÂNCIA, MEMORIA E ESTÉTICA
milag re. Comecei a tirar, tirei um, o meu pensamento de criança ...
Pensei: "Ass im eu tiro, aí eu visto a calça c outro fi ca um pouco de cá, Cont::~r histórias é remeter-se ao passado; é pôr a memo n a e m ação.
um rantinho de cá e o povo vê que era uma perereca." Meu pensam en- A infância é lembrada como um período de permanente insatisfação
to, aquele pe nsam ento assim de mulher, de querer ser. Ai, eu tirei, a í as e de aversão às roupas que eram obrigados/as a usar. Mas como esse
minhas colegas chegaram da boate, eu estava praticamente mona, j:l ato de lembrar é real izado? A organ ização das lem branças funciona
tinha perdido m eu sangue rodo. Ai eu tirei o ouuo, depois ... corn 18 como um recurso para legitimar suas hisrórias de insatisfação com o
anos, lá já em Belém. Aproveitei que estava l:í, internei no hospital e gênero tmposro.
aproveitei que e u estava no hospital e falei aqui eu tiro o outro . Tirei o A infância é uma fase da v ida evocada com grande força. No entan-
outro coquinho e o povo do hospital ficou tudo louco. Foi com urna to, a memória não pode ser com preendida como um arqu ivo de ima-
gilete . Para dizer a ve rdade, nem senti dor. Que você vai e aperta, gens que é posto em movimento em suas narrativas. Rele mbrar é um
aperta, esquenta você nem sente. Você tem lo ucura para t irar aqu ilo, a~o interpretac_ivo, no qual o sujeiro atua liza uma leitura sobre o pas-
que aquilo tá te incomodando, que você n ão tá . n em aí. Eu só nunca sado e as lembranças são matizadas pelas condi ções do presente.
tirei meu pênis, se eu tirasse o pênis, não tinha corno fazer a cirurgia. Se é o social que fornece as matrizes por meio das quais os indiví-
Naquela época, não tinha possibilidade de fazer essa cirurgia. Eu que- duos processam suas lembranças, é ele, o suje ito, quem recorda a
ria tirar porque era uma coisa que estava me incomodando, porque o partir de uma lei tura singular do seu passado. Para Halbwachs
pintinho ficava murcho ali, podia vestir minhas calças ... (1990), contudo, os membros de um gr upo que comparti lharam

166 167
homOSS<t-liCualidade I• c::l
c:::ul"-'tU::_:'>:..__ __,
A REINVENÇÃO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERitNCtA TRANSEXUAL

determinada história e habitaram um es paço específico atualizaram


Não se está fazendo uma dicotomia entre memóna coleti va e me-
igualmenre a lembrança de um passado comum.
mória individual, até porque a memória coletiva só sob revive median-
Para essa abordagem, a aurono mia do sujeito em inte rpretar seu
te as narra tivas de sujeiras histórica e socialmente localizados. A ma-
passado estaria condicionada à história do grupo. A memória p~ssoal
téria lemb rada, a substância social d a memó ria, é tanto indi vidual
depe nderia do seu relacionamenro com a família, a classe social, a
quanto social. Ao trabalhar as lembranças compartilhadas e transmi-
escola, a igreja e a profissão. Porém, como salientou Ecléa Bosi (1998:
tidas p or um grupo, "o recordador vai pau latinamen te individuali-
41 1), po r muiro que se deva à memória coletiva, pois é ela que dá o
zando a m emória comunitária e, no que lembra c no como lembra,
sentido de perrencimenro, temos de considerar que ela sofre com as
faz com que fique o que signifique" (Bosi, 1998: 3 1) . .f nesta dialética
mudanças d e seus membros e, embora tenha um lastro comum, cada
que nos inse rimos n o mundo e lançamos luzes no passado; n ela, a
memb ro a inte rioriza d e uma forma singular. 3
síntese é sempre provisória, po rque novas luzes podem cla rear regiões
S ugiro uma inversão na formulação de Halbwach s: a memória n ão
antes obscu recidas, que poderão m odificar a prime ira região ilumina-
está condicionada aos espaços sociais em que o suj eito transitou, m as
da, em um movimento de permanente interpretação e reinterpretação.
aos espaços sociais em que transita no m o mento em que essa m emóri.a
O tempo d o lembrar, como salientou Walter Benjamim , não é vazio e
é evocada. Não b asta afirmar q ue recordar é interpretar; deve-se Ir
homogêneo, é um "tem po saturado de agoras" (1989: 229) .
a lém e apo nta r este "i nterp retar" com o um ato relaciona!, vinculan-
A definição do diagnóstico de transexualidade está fundamentad a,
do-o aos co ntextos em que são evocados. Quando um/a transexual
em g rande medida, nas na rrativas sobre a infância. O terapeuta estará
fala da infância para um membro d a equ ipe, no espaço hospitala r,
aremo para notar se há uma linha de coerência e continuidade e n tre o
sabe que deve selecionar fatos significativos que comprovem suas per-
desejo presente d e ser reconhecido/a como h o mem / mu lher e o passa-
manentes c comínuas insatisfações com o gênero qu e lh e foi arribuí-
do. A lo n gev idade dos confl itos é um indicado r importante pa ra se
d o. f aí q ue a estética apa rece com grande força a rgumc ntativa.
definir um diagnóstico favoráve l à cirurgia. No entanto, quando eles/
as afi rm am que não gostavam d as roupas que eram o bri gados a usar
n ão estão afirmando que tenham aversão às suas ge ni tálias.
: A discuss:1o sobre :-~ men"ló ria e ,\ c;lp:tc idadc de o sujeilo im primir sua m:-~rcl n o ato de rccorcbr csr.i
Pode-se sugerir que a reafirmação de uma identidade, utiliza ndo
rcl.lcion.\da a um: 1 discu ss:io mais ampla :)obre os li mites c :l~ po5sibilid u..ics de os su jeiras produz.ircm as lemb ranças como recurso, c umpre uma dupl a função : retira a
·
ICIIUI';\:) · · ·IS SO b rC 0 m l\11Jo qL1e o'~ ce1c,• · Em H ·•lbwachs
onglll:l. ' • essa e>JJacidade é vista como linlltad.t
id é ia de c ulpa , e, simul taneamente, legitima as performances d e
pelo.!. quadros soci~tis que estrutu ram su:ls lenlbranças; ou, em termos durkhein~i:tnos. o ato de le1nhr~r
vincula-se ~1 consciência coletiva e só po de ser compreendido nos seus n1arcos. Em Rerg~on (apud Bo~a. gê nero a partir da essencialização da iden tidade. Conforme disse
199H), h:í uma rcflex5o sohre a memória em si rnesma, cotno subjerividadc livre, n5.o h3vendo unu Manuela, "a diferença do t ransexual para um gay é que n ós sempre
rclll;Hizaçà.o dos sujc ilo'>-que~lembra m, nem das re lações entre os sujeiras e a~ c~ isas l c mbra~:l s . P.H:t
Hcrg.!.on, 0 princípio CC !Hrnl d ~t m e m ória scri.t a conservação do ~a!J~adu ~uc sob acv 1ve, q uando e evocado sou be m os quem somos".
no presenrc sob a fo 1 n1a d:1 lembrançt. como en1 c~tado mconsCienre. A!:. lembr~tnças, por e.!Jl.l Para Patrícia, a infân cia Íoi uma época de g randes co nfusões. Fi-
:-~Uord.tgenl, serian1 3~ sobrcvivénci:1s do pa::..s:.ado, en~ergindo através -~e i~1agens-lembranças. P~1 ra ~l'lt-us
estudos .!.obre:: 111 emóri:-~ c construção de sent1dos na expene ncta rransexual, aproxtmea-mc,
lha d e pais missioná ri os, as idé ias de pecado, cas tigo, culpa são os
p.trucul.1rnlenre. da~ fo 11nubções de Bosi, segundo as quais "C;tdot memória ind_1 vidu~tl é um ponto de pontos fones de sua narra ti va.
Vl<it.l sobre a 111 cn"'óri.t coletiv.t. Nosso~ deslocan1cnros alteram esse ponro de VISt.l: pertencer :J. novos
Patrícia: Eu pensava que era pecado eu querer co isas de m enina. Eu
grupo" 11 0 .~, faz evocar lembrrtnças significativas par:~. esre. presente e sob a lu 1. ex~lic:uiva q u e convén1 :l açã~
atu.1 J. 0 que nos parece unidade e múltiplo. Par.1 localizar um.t lembrança nao bast.a .um fio de Ana.dne. co mecei com a igreja. Fu i para a igreja. Tem a parte d os homens e das
é preci::..o desenrob.r fios de me3d:.s diversas, pois el:t é u m ponlo de c:n:onrro_ de vanos c:1mmhos, e um mu lheres, n a hora que me punham para sentar do lado dos jovens, mas
ponto complexo de convergência üos muitos planos do nosso pass;~do (Bos1. 1998: 4 13).
dos meninos. Ai, meu D eus do céu! Eu tin ha que levantar o b raço, aí

1 68
1 69
homossexualidade Iel~c_ul_tu'-"'"---') A REI NVENÇAO DO CORPO' SEXUALIDADE E GENERO NA EXPERIENCIA TRANSEXUAL

eu via minha mãe levantando as mãos, a í as correntinhas escorregavam piu e nunca vou ser cons iderada como menina? Mais qu e droga,
do seu braço, as mulheres, aquela coisa mais linda, com correnrinha, ficava com raiva. A vida da mulher é mais colorida.
com relógio, com anel de brilhante e o vento batendo no cabelo d elas
no ventilador e eu queria estar sentada do lado das mulheres. Eu tinha Quando Patrícia afirma "qu er d izer que eu nunca vou te r, porque
cabelo curtinho, mas eu me sentia assim como uma delas. te nho piu- p iu e nunca vou se r co ns iderada como m e nin a?", es tá
elaborando uma interpre tação de sua infância com o o lh ar de al-
O que desejava Patrícia com essa reco n stru ção poética das mu- gué m que descob r iu a causa das inte rd ições pa r a não ter "o
lheres que freqüentavam a ig r eja? Se r mulhe r ou usar "aqu elas perfuminho" e "a fest in ha d e a nive rsário" .
correntinh as" e ou tros objetos identificados como femininos? Mas,
se o corpo-prótese não existe sem as próteses da moda, ser mulher ASSUMINDO O GÊNERO IDENTIFICADO
não pode ser desvinculado d e uma determ inada estilística . Parece-
me q u e, ao desejar "ser mulher", Patrícia es tá reivind icando essa E ntra r no mundo do gêne ro esco lhido e encontrar um "ponto de
posição para que possa desenvolver as performances fe mininas. So- equilíbrio" n a compos ição de um estilo é uma ta refa que exige o b-
bre os presentes e as ro upas, Patrícia lem bra: se rvação e c ritérios. Alg umas vezes, este processo é lento . Q u ando
saber que não está "demais", que são muitos acessórios? Como com -
Patrícia: Mi nha m ãe ch egava do serviço dela, dava presente de Na- binar as cores d as roupas com o sapato ? Q ual a ro u pa apropr iad a
tal, que r dizer, cueq uin ha pra Patríc ia, ca lcinha p a ra as minhas pa ra cada ocas ião? Qual o estilo que p erm iti rá ser reco nhecida/o
i rmãs, bo n equin h a, xampuz inho de sere ia para as m eninas, como mulher/homem ?
xa m puzinho d e cavali nho p ra Pat ríc ia. Q u e ódio que me dava,
ch orava de raiva, porq ue e u que ria xa mp u7.inho de se re ia b o niti - Annabe!: No in ício, você não sabe o qu e pôr. Principalmente para
nh o tam b ém. Eu que ri a a qu e les perfum i nh os c h ei r osi nh os, mim, que com ece i tão tarde. Eu acho que queria recupe rar o te mpo
ralqu inho de mulh er. Me davam as co isas bruscas, aq u eles cavali- perdido. F icava aquele exagero . Você não lembra qua n do c u come-
nhos, aqueles indinh os idiotas, sa be? Nossa, q u e n e rvo que eu fi- cei a usar roupa fem i nina~ Eu m e sen t ia um a m enina de 1 5 anos e
cava . Aquelas cuequ inh as co m abe rtura do lado. Até chorava d e queria me vestir assim . Adoro as co res alegres, os brincos , as pulse i-
nervo, eu ficava com ta nta raiva. Eu ia b rin car co m as minhas ras. Mas, com o tempo, encon trei um ponto de eqLtilíbrio .
irmãs, eu queria ser a mamãe. As m eninas faziam an iversá rio, t i-
nha bo linho co m vel inha de cinco anin has, balão. A Patrícia nun - Vitória: Quando eu assum i, escancare i, usava minhas b e rmudas
ca teve nada disso, tanto q ue sou apaixonada por torta e b olo. Eu coladinhas, m inh as ro u pas e saía p ara a festa ...
tenho trauma. Eu nu nca t ive um bolo de aniversário, nunca. Aqu ilo
al i já fo i virando u m trauma n a m inha cab eça, já comecei a m e Patrícia tentou muitas vezes desemp enhar as perform ances masculi-
sentir rejeitada; quer dize r, então não p osso ganhar porque elas são nas, usar "aquelas roupas horrorosas" para ser aceita pela igreja. C h egava
mulheres, elas gan ha m as co isas mais delicadas e ganham bo lo e a simular c ríticas às mulheres que se vestiam de forma mais livre .
eu não ganho? Homem, enrão, é um b icho que fo i feito para ralar Patrícia: Até com os 14 anos eu era da Assembléia de Deus. Fingia que
e so fre r, te r barba e aquela coisa. Eu detesto pêlo, ode io pêlo, não era rapaz e d etestava ver aquelas mulheres com as rou pas cu rtinhas,
gosro. Então, quer di ze r que eu nunca vou ter, porque tenho piu- aquele "shortinho" . Tipo de ro upa igual da Carla Perez. Na verdade, eu

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homoss exualidade: ) el'-'-cu
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A REINVENÇÃO D O CORPo, SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERI~NCIA TRAN SEXUAL

falava p:ua os colegas: ''Isso é prostiruta." Eu estava querendo ser igual, atenções, que m e deixa com vergonha. Às vezes surge m ·
" , , ,, - ' una pergun-
estava querendo vestir igual. Eu falava assim: "Isso é prostituta. Isso vai ta: Sera que ela e hom em ou mu lher. Semp re acontece iss O . E U
para o inferno se não se converte r, aceitar Jesus." E eu me comendo por ainda te nho a marca da barba . Mas, quando saio, a rranco tudo. Com
denrro de vontade de ser mulher, vestir aquela roupa, ser igual. a pinça, eu tiro rodos os cabelos desde que começaram a nascer.

Patrícia lembra da admiração que sentia ao observar sua irmã se Andréia: Eu gosto muito de me arrumar, mas há m ui to tem po que
arrumando para sa ir d e casa: os perfu m es, o cabe lo muito bem pen- estou sem faze r co mpras, a té a unh a não estou faze ndo rodo final d e
tead o, as roupas ín t imas . se m ana. En tão, a produ ção é uma co isa q u e mexe muito com a
minha auto-esti ma. Se eu estiver produzida, esto u maravilhosamente
Patrícia: Quand o fui morar com a minha irmã e m Belo Horizonte, be m . Eu q ue ro ser vista se eu estiver com cab elo arrumado, se e u
estava co m I Lí anos, o u 12, 13, n ão m e le mbro mais a idade. Ela saía es tive r com roupa boni ta, e u qu e ro ser vista. Ao concrário, se eu
e eu ia m exer nas coisas dela. Aqueles c re m es caros dela, que ela com- t iver co m as roupas que já vesti, que eu não su po rto m ais nem ver, se
prava d a Avo n; aq uelas co isas, aq uelas a re inhas. Ela ia tomar banho , e u p udesse, ninguém m e via, eu e ntrava num buraco qu e ninguém
quo eu via, colocava a toal ha, coisa de mu lher, na cabeça. Passava cre- m e achava. Isto mexe muno co m a minha auto-es tima.
m e branco no rosto, ia lixar a unha assistindo à novela. Na hora que
ela saía para trabalhar, eu ia ao banheiro, esqu entava a água, d eixava a Para os tra nsexuais masculinos, não havia nada m a 1s con stran ge-
água esquentar, aq u ela fum aça no banheiro, n em ca belo g ran d e e u dor d o que se ve r no es pelho com um vestido e um laço cor-de-rosa.
,. ti nha. Punha a toalha e saía com o roupão dela. Ia para o quarto, m e Pa ra C hus, e ra um choque quando estava anda ndo pelas ruas c v1a
m aq uiava, passava o negócio no o lho, p unh a um pcp 1no n o olho e sua im agem refletida nas vitrines: "Pa ra mim , aq uela n ão e ra c u . Eu
ficava lá lixando, igua l mulher, me sentindo o máximo . sentia ver gonha . Me sentia ridícul o ."
Os tra n sexua is m asculinos admi ram a s imp lic idade dos h o m en s
Par:l Pat ríc ia, Kátia e H elen a, a moda m asc ulin a é pobre e se m e m se ves(lrem , o qu e esta mtimamente ligad o à valorização d e um a
g raça", e nqua m o a d as m ulheres é feita d e cores, perfumes e bri- carac te r ísti ca tida como masculina: a o b jet ividad e e a pra ticid ade.
lh os . Todas falam da tris teza que se ntiam qua n do e ra m ob ri gadas a "As mu lh eres fica m ho ras fala ndo de maqui age m , roupas e outras
ves tir "aquelas ro up as sem graça" . "Ser h omem é muito sem g ra- bo bage n s" , come nto u Alce. No e n ta nco , ser si m ples n ão s ig nifica
ça", comentam . não ser re finado, n ão ter "bom gosco".
Kát ia e A n d ré ia definem-se co mo "mu ito vaid osas" ; são fascina- Cada uma, pouco a p ouco, re lata rá seus processos pa ra definir
d as por rou pas, recusam -se, inclusive, a ir a uma festa se n ão tiverem um estilo, que está vin culado a um campo mais amplo d e sig nifi ca-
uma roupa nova para usar. dos. Para A lec, James Bond é o tipo qu e ele tenra seguir, " m esmo
sabendo que não tenho d inheiro, e u gosto das coisas boas". Ch us
Kátia: Quando eu vou sair, eu m e arrumo bem a rrumada. Se for para prefere as roupas marcadamente m asculinas: terno, grava ta, relógio
sair mal-arrumada, eu não saio, fico quieta em casa, e outra, eu ten ho g rande, co res mais escu ras, sapacos.
mania de roupa nova. Eu passo meses e meses sem sair. Adoro perfu- Para Joel, a co nstr ução de su a masculinidade esteve v incu lad a,
me, roupa nova, m aquiagem eu gosto, me sinto bem . Então, quando inicialmente, a um determinado estilo d e rou pa . No começo, a inda
e u saio, so u o cen t ro das atenções. Não gosco de se r o centro das ad o lesce nte, p asso u a freq üentar a mbi en tes masculinos que valori-

1 72 1 73
homossexualidade I• <=I
c:;:;.ul=tu;.;:
'"- - - ' A REINVENÇÃO DO CORPO: SEXUALIDADE E GtNERO NA EXPERitNCIA TRANSEXUAL

zavam uma es te(lca agress iva e dicoromizada em re lação à csreuca Essas cons ide rações de Manuela foram realizadas em uma reu-
feminina. Essa radicalidade foi amenizada, por um lado, porque en- nião do G I GT. Nessa m es m a reunião, o utras trans ex uais se
co n trou um npo neutro para as suas roupas e, po r outro, porque o posicionaram co ntrárias à posição de Manuela. Para elas, as mu lhe-
contara com a discussão sobre identidade d e gê n ero o fez compreen- res devem buscar a so briedade e a discrição, adjetivos que, afinal,
d er muitos dos "mitos d a masculinidade" . qualificam o fem inino.
O aro d e vestir um a calc inha, combinada com o s uti ã , um a A d iscussão sob re os estilos remete aos processos que cada um
sa ia justa que valorize as nádegas, uma blu sa justa, o p e ntead o , o viven c ia para a composição do seu . Quando perguntados so bre por
salto alto, o vermelh o c o d ourado co mo cores preferid as e ntre as qua is momen tos tiveram de p assar a té definir seu estilo, dois tipos
transcxuais femininas , são inrerpretações que l hes po ssibilitam d e respostas emergiram. A primeira remete às narrativas da memó-
in serir-se no campo do gê nero identificado. Com isso, não pre- ria, "?esde sempre fui assim", confo rm e visto anterio r mente. Este
tend o afir m a r qu e se tenha c hegado a um tipo estético ca rac te rís- t ipo de construção d e sentido foi mais freqüente entre os/as e ntre-
tico das/os transexuais. Há muitas divergê n cias sobre este ponto. vistados/as que faziam parte do Projeto Transexualismo. O segundo
Pa ra Manue la, as mulh e res hoj e em di a seguem um modelo tipo d e resposta trabalha co m noções claras de mímese, de uma
d e mulh e r racional , objetiva na hora d e se vestir, sem tempo d e repetição interpretada do que os/as aproximaria de um/a homem /
fi car d ia nte do espelho. Para ela, uma das ca racterís ticas da mu- mulhe r biológico/a. A construção d a masculinidade/ feminilidade,
lh e r ~ a vaidade. nesse caso, efetiva-se mediante uma aparente "cópia".
No enranro , inclu sive para os que negam a idéia da "cópia", como
MrznueLa: Adoro m e arrumar para sai r, gast:u tempo comigo. Gosto Kátia e Sara, pode m -se notar d eslizes discursivos. Para Kária, sua
d e mu lheres com c urvas farras. Fui criada vendo minha m ãe usa ndo p atroa muttas vezes lh e c ham a a atenção por estar usa ndo roupas
salto alto rodo dia. la ao cinema para ve r aquelas mulheres maravi- " ind ece ntes".
lhosas co mo Marilyn Monroe. Hoje, a mulh er que r u sa r cabe lo c ur-
co, pouca maquiage m, roupas discretas, e são m agérrimas. Eu ach o Kátia : Onrem m esmo e la me disse: "Mas você está d epravada. Uma
esta mulhe r anoréxica horrível. ~u gosto do excesso .: _ moça d a sociedade não anda desse jeito. Isso é indecente. " Eu falei
f'. imeressante observar como as identificações de Manuela estão ass tm para ela : "Ah, mas e u queria mostrar os meus dotes femini-
próximas ao imaginário camp, que se caracteriza por uma preferên- nos ." Ela falou ass im: "Têm outras ma neiras de você mostrar seus
cia pelo exagero , pe lo excesso, por uma forma de ve r o mundo como dores feminin os. Uma calça jcans coladinha, por exemp lo ."
um fenômeno estético (Maffesoli , 1989), n a medida em que evoca a
fa nras ia, o lúdico no cotidia no, e in corp o ra n a composição d e um As imerpelações d e sua patroa provocam-lhe um efeito reflexivo
estilo pessoal elementos ident ificados co mo próprios d o mundo da que a leva a muda r de roupa; afinal, s ua patroa é uma "mulher nor-
fantasia, do teatro; rompe, assim, os limites entre real e fi cção, paró- mal" . Embora Kátia defina que a fo rma d e se vestir é imporrante
dia e o ri gin al. para ser reconhecida como "mu lh er de resp eito", n o momento de
pôr em mov im ento essas idealizações, o resultado n ão refletirá m e-
cani camente essa constru ção, haja vista as interpelações de s ua pa-
4
~5o entrevislei Manuela indrvidu~dmence. Essas notas são de Uffid reunião do G IGT. Manuela e
transexu:.l ferninina, c~ntora de óper.t, anisca plásric01 e p:ucicipa even(u:..lnlente das reuniões do
troa. Daí a impo rtância d e se pe rcebe r que, entre o nível discursi vo
G IGT. (cuja articu lação dos en unciados vincula-se ao campo social específico
homossekualida de I e ~:.I
cu:::.lt:.::ur:.::•_ _...J A REINVENÇÂO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERI~NCIA TRANSEXUAL

em que são proferidos) e a expertencia, há discrepâncias. As Sara: Da forma que eu me visto, ninguém nem se toca. Só se a pessoa
materializações das idealizações passam pelo efeito do pegar e observar mesmo. Se for uma pessoa muito observadora,
desmapeamenro,s quebrando a idéia de co ntinuidade, causa e efei- curiosa, às vezes sim. Por exemplo, eu não uso calça jeans. Eu uso
tO, retilinearidade entre discurso e prática. roupa mais social. .. Eu estou 24 horas produzida. Geralmente, do
Para Patríc ia, as normas sociais não estão erradas. Ela interpreta jeito que eu ando, as pessoas acabam não pedindo documentos. Até
seu caso como uma exceção. Diz que tem problemas e que, nesse mesmo nas viagens que eu faço, geralmente eles pedem identidade e a
caso, a sociedade deveria ser mais tolerante. Para ela, as travestis, ao passagem, eles n ão olham nem na minha passagem, muiras vezes nem
se vesti rem co m o mulheres, "não afrontam a sociedade como os gays". na minha idenridade eles não olham. [... ] Geralmente as pessoas fi-
cam olhando para mim, bocão aberto : um mulherão da minha altura,
Patrícia: Pelo menos eles não afrontam. Mesmo que não façam a 1,77 m, com salto 13, eu fico com 1,90 m. Já me confundiram com
cirurgia, ninguém vê que é um homem. O pior é ver dois homens manequim. Hoje eu entro num lugar, as pessoas que não me conhece-
com barba e tudo se beijando. É uma pouca-vergonha, dois homens ram antes, que não me viram antes, nunca vão p ensar que sou um
barbudos se beijando. Já o travesti não. Quem vê pensa que é uma rransexual. Eu me visto e m e porto como uma mulher normal. As
mulher, né? roupas ajudam d emais . Eu já não tenho um corpo de se jogar fora
também. Não me sinto a oitava maravilha do mundo, mas também
Para Patríc ia , o gênero e a sexualidade estão polarizados na estcn- não sou de se jogar fora. Mas consigo passar, mesmo estando com as
ca e na estilística. O problema não esrá fundamentalmente em se outras que são desengonçadas [referência às outras "cand idaras" do
ver dois home ns se beijando, mas no faro de eles terem aparência d e Projero Transexualismo]. Têm umas desengonçadas ...
homens. Aqui, a dicotomização não se dá em termos das subjetivi-
dades, mas sim n::ts performances que visibilizam os gê neros. A estét ica a ajuda a construir uma auto-imagem positiva. Con-
A escolha de um estilo também está relacionada a um outro cam- forme discutirei no próximo capítulo, a auto-imagem para a lgu ns/
po estratégico de negociações . Sara usa roupas feminin as mais clássi- algumas é negativa (quando falam das gen irá lias) e positiva (quando
cas, não usa calça jeans ou roupas decoradas, gosta de calças de seda, apontam panes do co rpo) . Ass im, por um mom ento, depara-se com
blusas de algum tecido fino, saltos altos, bijuterias douradas. Segun- sentimentos de inferioridade, confo rme apontou Kátia: "Às vezes,
do ela, é mais fácil ped irem documentos para uma pessoa que está eu me sinto um lixo"; e, em outros, emerge uma cons iderável aura-
malvestida do que para ela. Essa foi a forma que encontrou para burlar estima. A mesma Kátia afirma: "Não é por nada não, m as, quando
o controle social: passar como pertencente a uma classe social qu e não eu m e arrumo e fico bem b on ita, n ão rem para n inguém."
é a s ua. Essa composição estética não está limitada por ral estratégia,
pois revela a sua inrerpretação sobre uma moralidade feminina rígida,
ESTÉTICA NO HOSPITAL
pautada em valores como "mulher de respeito" e "mulher de família".
"Uma estética apropriada para o gênero apropr iado." É isso o que os
5
Sérvulo Figucir:t define d~smapcamcnto como ;1 "coexiscénci,t de 111apas, ideais, identidades c normas protocolos exigem quando determinam que "os/as ca ndidatos /as"
conrraditórias nos suj~itos. O desn1apcam~ruo não é a perda ou a simples au5oênci::1 de 'mapas' para devem vestir-se com as roupas do gênero identificado (test e de
oricnc;tção. mas sim .t existénci:l de mapas difer~ntes e concradicórios inseriras ~n1 níveis diferentes
c rcb<ivameme diS<oc i.•do> dentro do sujeito'" ( 1987: 23). Nesse caso. pode-se observar que h:í um
v ida real). Nas negociações efetivadas com a equipe médica c com
imaginário camp negociando com as ide;tlizações escécicas para os gêneros. o contexto hospitalar sobre o masculino e o feminino, a forma como

176 1 77
homossexu a lida d e I •L::Ic=.;.ult;..::u.:..=
'• - - - ' A REI NVENÇÀO DO COR PO: SEXUALIDADE E G~N ERO N A EXPER I ~N C IA TRANSEXUAL

o/a "candidaro/a" se apresenta é um dos indicado res ma1s importan- visibil izam e posJcJonam os corpos-sexuad os, os corpos em trâ nsito
tes na determi n ação dos graus de femini lidade/masculi nidade que ou os corpos ambíguos na o rdem dicotomizada dos gêneros. Vestir-
cada um possui, conforme foi discu tido no capítulo sobre a opera- se é um dos atos performáticos mais carregad os de significados para
cional ização do d isposit ivo da t ra n sex ua lidade, "A invenção do a construção d as performances dos gêneros.
transexual". Se a estética pode ser interpretada como uma moeda para a in-
Entre os/as transexuais, a estética também é valorizada como um serção no campo do gêne ro identificado, podendo significar a possi-
ind icado r de fe minilidade/ m asculin idad e. Um d os tem as recorren - bili dade de agrega r "cap ital d e gêne ro" aos/às tran sexua is. pod e-se
tes entre os/as "cand id aros" refere-se às rou pas e aos acessórios, ge- q uestionar o po rquê de o processo não parar neste ponto e de eles/
rando m u itas vezes uma certa r ivalidade para se defi ni r a/o m ais e las reiv i ndica re m as in tervenções n os co r pos, seja media n te
fem inina/m asc uli no. h o r môn ios, silico n es ou/e c iru rgias .
Kátia d efin e-se como a m ais femini na de tod as, as o utras "ainda
têm mui ro que apre nde r" . Pa ra Ma1cela, as colegas n ão sabem se
vesti r. Sara, po r sua vez, afirma qu e algu mas colegas do P rojeto pare-
cem " umas destronca das)) c q ue o utras se vestem co mo ,,putas, u sam
ro u pas para c ha m a r a aten ção, com a bar riga para fora" . Para Sara,
uma "mulher de respeito" não se dá a esse "desfrute".
Os com e ntár ios e as p equ enas rival idad es era m f reqüen tes, e m -
bora ho uvesse momentos ocas io n a is e m q ue se reu niam p ara se elo-
g iar m u tu a m e nte.
Um dia, Maria chegou ao hosp ital com um vestido longo, b ra n -
co , semi t ran sparen te, co m u m d e co te pro fundo, q ue de ixava seus
seios insin uarem -se. A admiração d as colegas foi gra n de: "Como você
rem os seios boni ros!", "Meu sonho é te r os seios assim", "Com o
você co nsegui u?", "Ah , minha fi lha, é a natu reza!" Ela caminh ava
com o m bros para t rás, e reta, perform a tica m ente valo ri za n do seus
seios, q u e estavam quase sempre em destaq ue.
As d ive rgê ncias entre eles/as so bre a forma aprop ri ad a d e um/a
homem / mulhe r se vestir contribuem para d esfazer a idéia d a ex peri-
ência transex ual como u m todo h omogên eo e reproduror dos "este-
reót ipos" dos gêneros. As ve rsões dispon íveis sobre o masculino e o
fe m ini n o que c irc ul am na socied ad e ta mbé m circ ulam aq ui.
O gênero só existe na prática c sua existência só se realiza med iante
um conjunro de re iterações cujos conteúdos são fruros de interpre-
tações sobre o m asc ulin o e o feminin o. O ato d e pô r uma ro u pa,
escolher a cor, compor um estilo, são ações q ue fazem o gênero, q ue

178 1 79
CORPO E SUBJETIVIDADE

Para Ceccarell i,

o sofrimento psíquico do transexual se encontra no sentimento de


uma total inadequação, de um lado, à anatomia do sujeito e seu
'sexo biológico' e, de outro, a este mesmo 'sexo psicológico' e sua
identidade civil. Essas pessoas, cujo sentimento de identidade
sexual não concorda com a anatomia, maniftstam uma exigência
compulsiva, imperativa e inflexível de 'adequação do sexo:
expressão utilizada pelos próprios transexuais; como se elas, foce a
esta convicção de incompatibilidade entre aquilo que são
anatomicamente e aquilo que sentem ser, se encontrassem num
corpo disforme, doente e monstruoso (1998: 2).

A interpretação do a utor d e que o/a transexual vê seu corpo co mo


"disforme", "doente", "mo nstruoso" não é uma posição isolada. De
uma fo rma geral, o dispositivo da uansexualidade de fi ne nesses ter-
mos a relação que o/a transexual rem com seu corpo. A sup osta
re lação de abjeção que ele/ela tem com seu corpo gera outras Inter-
p retações, co mo , por exemplo, a a usênci a de sexualidade.

181
c homossexua lidade I• c:
lcc:.:
ul.:.::
tu.:..:'•:___ ___,
A RE IN VENÇÀO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO N A EXP ERI~N C IA TRANSEXUAL

Para Ramsey, O CORPO SEX UADO


o padrão transexuaf normal tem baixo ou nenhum impulso Quando discuti a relação entre transexualidade e estét ica, afi rmei
sexual, arriscam muito pouco quanto a esse ponto. O pequeno que a consciência da existên cia de corpo-sexuado aparece rá em uma
grupo que gosta de se masturbar deveria jàzer muitas perguntas - fase da v ida em que já há uma ident ificação co m determinadas
e ponderar respostas cuidadosamente - antes de se Lançar à performances de gên ero. Para muitos, essa descoberta significa um
cirurgia (1996: 11 O). m o m ento de atribu ição d e sentido para as várias s urras, ins ultos e
Conform e essa visão, a procura p ela Cirurgia tem como finalida- rejeições famil iares. Ter um p ênis/uma vagina e não conseguir agir
d e a satisfação sexual, o que diverge da interpretação aqui e laborada, d e acordo com as expectativas, ou seja, n ão con seg ui r d esenvolver o
segundo a qu a l é a busca po r inse rção n a vida soc ial o princ ipal gênero "apropriado" para seu sexo, é uma d escoberta vive n ciada com
m otivo para pleiteá-la . g rande surpresa para a lguns.
T entare i a rgume nta r, em primeiro luga r, que não h á uma rej ei-
ção linear ao co rpo e ntre os/as rransexuais; ao contrário, a con s tru- Kátia: Só vtm a conhecer m eu corpo aos 14 a nos, q u ando v 1 uma
ção d a auro- imagem para muitos é positiva, destacando-se, inclusi- revista p o rno gráfi ca e mbaixo do colchão do m e u irmão e vt uma
ve, alg uma parte do co rpo con siderada "maravilhosa", princ ipa lmente mulhe r sem roupa. Eu já t inha visro me us irmãos pelad os com o
e ntr e as t ra n sex u a is. No e nta nto , muitas vezes n ota-se qu e a pênis duro, mas o meu era aquela coisinha pequeninha, nunca su-
int e ri o r ização d as ve rdades produz id as pe lo d ispos itivo da biu. P ara m im , toda mulh er e ra daqu ele jeito. Eu ficava es p e rando
t ransex ualidad e não os/as poss ibilita notar essa ambigüidade. Em m eus seios crescerem , porque minhas a migas es tava m de peito grande
mu itos m omenros, a firm am "e u odeio m eu corpo", para, logo de- e e u não. Nelas, veio a m enstruação e em mim não, n é? E ntão, eu
pois, dize rem "Nossa, me acho linda, princ ipalme nte m e u cabelo e fiquei preocupada com aquilo. E ou tra, eu entrei na escola com ] 8
meu bumbLun". anos. E u aba ndone i a fa mília e fui morar com um tio m eu n a c ida-
A a firmação el e qu e os/as transexua ts odei am seus co rpos está d e . Na esco la é qu e se descob re. Aí, com 18 anos, proc urei uma
baseada e m tropas meto n ím icos .' Toma-se a parte (as ge nitá lias) m édica e p e rguntei para ela. Eu queria sa ber por que todas as mi-
pelo todo (o corpo). É com o se a genitál ia fosse o corpo. Esse movi- nhas a migas tinham a m e nstru ação. Os peitos d elas e ram gr andões
m e nto de co n struir o a rg ume nto meto-ni~ica~ énte" eS"p e lh a a pró- e o me u era pequeno, só duas bolinhas. Então, eu queria perguntar
pria interpretação m odern a para os corpos, em qu e o sexo d efin e a o porqu ê d e tudo aq u ilo. Eu m e se ntia uma mulhe r, ag ia como
verdad e última dos suj eitos. mulher. Q uer dize r, q u e nem uma mulh er. Tem muiro tempo qu e
O segundo objetivo d este capítu lo é apontar que a re lação que eu buscava ajuda para e ntender esse m eu p roblema. Não e ntendia o
os/ as transexuais têm co m as ge nitál ias não é marcada excl Ltsiva- que e ra isso. Q ue ia fazer com tudo a quil o? A í eu procu re i uma
mente p ela abjeção. Os re laros so bre a relação com as genitál ias médica qu a ndo tinha 18 anos e ela m e d isse que eu não e ra ne m
variam d e afirmações ta is com o "Ten ho h o rror a essa coisa'' até "Ele homem n e m mulher. N un ca t inha visto um travesti n a minha vida,
faz parte do m e u corpo, não tenho ra iva". nunca t inha v isto um h omossexual; se já tinha visto, não ti nha
percebido nada tam bém . A í en tão e u fa lei: "Gen te do céu , é por
isso que minha mãe não gosta de mim!" Aí vem tudo aq uil o n a
1
Sobre '\ropos" c uma. :lnálise tropológica das ciências modernas, ver Whice ( 1994).
cabeça . Eu cheguei até ela para pergunta r se ela sab ia que e u era
assi m , ela disse q ue sabia, m as tinha vergon ha de fa lar, vergonha de

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A REIN VENÇÀ O D O CO RPO: SE XU A LIDADE E G~ N ERO N A E X PER I ~ N CIA TRA N SEX U A L
cu~lt~u•:.:_•_
homossexua li d ade I e l!:l _ .J

é tornar-se home m . Mais do que dar vida por in te r médio de um aw


expl icar. Eu ch egu ei a se nri r cólicas esperando a men stru ação . De
lingü ís tico, a palav ra "pênis" contam ina suas id entidades. Entre os
tanro que rer a mensrruação, senria cólica. Chegue i a fazer vários
transexuais, os seios tam pouco são nomeados; de form a geral, apon-
u ltra-sons, eu não deixei de pensar que tinha a lguma co 1sa d entro tam-nos qua n do se referem a eles ou falam "dessa parte de c ima".
d e mim. Aí eu pensei: "Poxa, como eu sou d iferenre ." E nrão, come-
Anterio r mente, d iscuti como Bu der (1997) a nalisa a h omo fo bia no
cei a fazer mu itas pergunras para a min ha mãe. Eu não acreditava. exército norte-ame ricano a partir de u ma no rm ativa interna que
Para mim , e u e ra m ul he r e p ronw. pro ibiu que se us m emb ros se assum issem p ubl icam e n te como ho-
mossexua is. Su g iro q ue "pên is" e "seios" també m p odem ser class ifi -
Fo ram vários en co nrros com Kátia n o h os p ital, e m su a casa, n a
cad os, nesse caso, co m o palavras q u e "co ntagia m " . Ao. serem p ro-
casa d e s ua patroa e e m locais públ icos. Por o u tros ca minh os, eu nu n ciad as, d ese n cadeiam um co nj u n to d e p osições ide n ti tárias para
sem pre lh e pe rg u n tava: "Vo cê d esco b r iu qu e se u co rp o e ra de h o - quem as e m ite e para q ue m as escu ta.
m e m aos 14 a n os? " A respos t a também e ra a m esm a : "Eu p e n sei
Até o mo m en to em que Kátia d esconh ecia a "verdad e" d o seu
que as m u lhe res tivessem uma coisinha na f ren te, mas que n ão su - corp o, co nviveu co m ele e n ão se colocava a q uest ã o da c ir u rgia;
b ia. M u itas vezes m in ha m ãe m e tra tava mal, m as eu não sab 1a po r
tampouco compreen d ia o porquê do desp rezo d a m ãe. Qua ndo d es-
q ue, não ligava uma co isa com o urra." cobriu que sua ge ni tália estava em desacord o com o seu gê n ero, que
Out ra im agem reco rre nte p ara j ustificar sua "ign o râ n c ia" era o
e ra esse co rpo sexu ado o respo n sável p or imped i- la de faze r e d e
faw de seu pênis "nu nca te r sub id o". Ao lon go de nossos e nco ntros, exerce r as perfo rmances com as q uais se identificava, com eçaram os
observei q ue Ká t ia estabelecia uma relação e n tre o pênis e reto e a confl itos. A " revelação" desse corpo sexuad o aca rrerou um a ourra
masculinidade. revelação: final m ente descob r iu o porquê da rejeição da mãe.

Kátia: E eu pensava assim , esmagando ele: "Nunca f)l.ais ele ia levan - Kátia: A co isa é h o r rível, porq ue você vê que não era aquilo que imagi-
ta r." E n tão, eu ten tei esmagar, assim com as unhas. E u tin ha u m pavor nava, q ue você p ensava que era. Eu ia me m atar. O pior é q ue eu tinh a
e u m medo dele leva nta r algu m d ia. Então, p ara isso não acontece r, eu um a o bsessão d e q u e re r m e matar n a frente d a m inh a m ãe e fala r:
esm agava ele com as u nhas assim , esfregava assi m. Eu n ão sentia do r, "Você Íez, você esrá ve ndo a d estruição." Era essa a inrenção, sabe?
por cau sa d e tanta an gústia com aq ui lo ali, cu não ~e nna dor.
Se Kátia estava segu ra d e q ue era uma me n in a co m um a "coiSI-
Caso seu pên is ficasse erew, seria uma p rova de que ela não era u ma n ha" na fren te, Sara, ao conrrário, ti nha mui tas dúv idas quand o era
mulher. Inclusive, q uando começou a tocá-lo de forma mais freqüe nre crian ça que fo ram sile n ciadas pelo med o de ser punida pela fam ília.
para fazer a h igiene, teve muiw medo quando o viu se "m exendo".
Sara: In te ressante, antigame n te, qua n do eu era criança, e u pe nsava
Kátia: Deus me livre! Quando eu vi aquela co isa mexendo, eu v1 que assim: "Será q ue todo mundo está errado? Esse povo está rudo e rra-
ele estava vivo e parei com aqu ilo. do?" E u pensava q u e eu era a pessoa certa. Todo mundo estava erra-
do. Aí, com o tempo, eu fui parando para pensar, m as eu nu n ca fui
"Aquela coisa" , "aquilo", "um pedaço de carne são algum as das
criança d e pergu n tar nada. Sempre eu pergu ntava para m tm mes-
expressões com uns en tre as rransexuais femininas para nomear "esse ma . Eu nunca confi ei em fala r com ni ngué m .
pedaço de carne que tenho entre as pernas". Proferi r a palavra "pên is"

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homossexualidade l•lc::<u::.:;h:.::.u•:.::.•_ __, A REINVENÇÃO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERIÉNCIA TRANSEXUAL

Alec, quando era criança, imaginava que a produção das diferen- Para João, os seios e a menstruação significaram o fim da liberdade.
ças anatômicas e sexuais era um processo de longa duração. Nin-
guém nascia menino ou menina, o tempo iria separando-os. Estu- João: Até a ocasião dos meus 12, 13 anos, eu ficava sem camisa,
dou em colégios de freiras, onde os corpos estavam sempre escondi- entendeu? Eu ficava só de calção. À vontade comigo mesmo . Aí foi
dos. Para ele, rodas as crianças tinham os corpos iguais, e a definição surgindo a adolescência, seios, essas coisas, aí você tem que se fechar,
do sexo aconteceria um dia, enquanro estivesse dormindo. Então, se tampar. Esse corpo de mulher me incomoda. Aí pronro, quando
ele acordaria e teria um corpo de homem. Acreditava que as mudan- veio a menstruação, aos 13 anos, já não podia ficar sem camisa,
ças para um corpo de menino levavam tempo e que não seria neces- livre. Aí pronro, acabou. Não podia ficar como eu era mesmo: livre.
sária uma intervenção pessoal para fazê-lo. Seria o gênero que deter- E aí quando começaram a surgir os meus seios, essas coisas, eu cho-
minaria o sexo. Aos 12 anos, no lugar do pênis, veio a menstruação. rava, eu não queria, entendeu?
Nesse momento, com eçaram os confliros.
Para os transexuais masculinos, a menstruação e os seios anunciam
Afec: Quando eu era criança, tinha um ideal de que wdos éramos o fim dos sonhos, da liberdade, a im possi bilidade de se tornarem
iguais, até que um momenco da vida teu corpo tinha que se trans- bomens e, por outro lado, a separação definitiva dos mundos dos
formar, porque, é verdade, meu corpo tinha que se transformar. gêneros a partir dessas diferenças. A descoberta do corpo-sexuado
Às vezes eu rezava, pedindo um milagre, mas chego u a menstrua- impõe a tarefa de relacionar-se com as partes do corpo responsáveis
ção e acabo u minha hisrorinha. E logo me saíram os seios, aí pen- pela rejeição que sofrem, ao mesmo tempo que desencadeiam uma
sei: "Caramba, o que está acontecendo aqui? Nada sa iu como eu busca para se definirem, para encontrar respostas e modelos que
esperava. lhes possibilitem construir id entificações. Mu itos/as relataram que
Aos 12 anos, quando chegou a menstruação, íoi uma catástrofe, me "depois de pensar, pensar, eu cheguei à conclusão : vou cortar" .
caiu o mundo em cima [ ... ] Não tinha visto o corpo desnudo de
' uma mulher e de um homem para poder observar as diferenças que
' ABJEÇÃO E CONVIVÊNCIA
existiam. Acho que as idéias e as crenças que eu tinha é porque
igno rava as diferenças. Cada um encontrará respostas e cam inhos para co n viver com as
partes de seus corpos que é responsável por lhe retirar a possibili-
Neste caso, parece-me que Alec desejava ter os músculos, a ener- dade de se r reconhecido como membro do gênero com o qual se
gia e a força masculina e não, prioritariamente, os órgãos reprodu rores. identifica .
Helena também fala de sonhos .
Kátia: Eu entrei no banhe iro da minha patroa, quando eu v1a o
Helena: Quando era criança, e u deitava na c.ama,. .d<;>rm ia pensan- preconceito na rua, eu entrava no banheiro com a faca na mão. Teve
do: "Amanhã eu podia acordar com o cabelo grande, que nem uma vez que eu quase tirei. Aí, eu liguei para um doutor amigo. Eu
uma menina." Sempre pensei, aquele desejo, aquela vontade, mas odeio tanro esse troço que já levei uma bronca d'J médico por não
sempre assim, como se fosse um passe de mágica. Depois dos 16 é ter asseio. Porque eu detesto aquilo ali. Eu mij'J êenrada igual uma
que eu comecei a me transformar e ver que tinha que buscar outros mu lher, mas acon t ece que no pênis eu não toco. Eu tenho pavor
recursos. dele. Ago ra, com o tratamento psicológico, eu esrou aprendendo a

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homo~uuc:u al ldad e l•ll.!:cu:.::lt:;:c
u':.;:•_ _- ' A RE I NVEN ÇAO DO CORPO: SEX UALI D AD E E G~N E RO N A EXPERitNCIA TRANSEX U A L

assear. Tinha m edo de q ue ele s ubisse. T in ha pavor: ett fa lo no "treco" Vitória: Pa ra te fa lar a verdade, esse negocto de te r o órgão n ão me
como se tivesse ti rad o, porque para mim ele nunca ex ist iu. incomod a. Eu q u ero m e se n ti r mais fem i n i na d o que eu já sou.
Sempre tive esse o b jetivo, porque eu ia ... acho q ue re falei n as ou tras
Patrícia: A parre do meu co rp o qu e m enos gosto é o pênis. Acho fi ras, qua n do e u ves tia rou pa ín tima ficava uma coisa assim d ife ren -
h orrível. Te nho ojer iza, e u te nho p avor desse n egócio . Ah, nem ... te, não dava para m ostra r, mas ficava. Se a pessoa o lh ar bem assim, o
Eu já remei a té co rtar [... ] qua ndo e ra peq uen a, eu lembro, deve ria bi q u íni , dá di fe r ença. D e p en d en do d a calcinh a não d á d ife re n ça,
rer u ns 12 a n os. Eu sub i e m uma á rvo re. Tinha d aq uelas fo rmi gas fi ca pequ e nininho, normal. T am o é q u e, q u ando cu visto as m inhas
b em grand es. Aí e u pegu ei duas, ia colocar d e um lad o e d o outro, ro u pas, c u n ão me sinto incomodad a. É uma pa n e d e m im , vo u
n a h o ra qu e uma co locou as m a ndíbu las d ela saiu san g u e, aí eu c u ida r d e le . Eu m e sinw 99 ,99 % mu lh e r, fa lta só esse p equ en o
g ritei e saí corre ndo. d e ta lh e. Po rqu e eu so u fê m ea de co rp o e a lm a, e ntão e u vo u tira r
uma coisa q u e alguém m a ndo u e rrad o. É a m es m a coisa qu e vo cê
A ndréia: O q u e eu que ria era v1ver bem , mesmo que eu não tivesse qu ebra r u m a unha, vo u faze r m inha unha, é a mesma coisa, vo u
vagin a, m as e u que ri a e ra não te r isso. C h eguei a plan ejar rirá-lo. E u fi car m a is bo ni ta. Isso . N ão s into incomodad a, n ão sin to assim , vai
.'
pensei, vo u e ntrar n o banhe iro do ho spita l, levo tesoura, blocos d e mel h o ra ndo mais a in d a.
gases, x il oca ína , p laneje i tu do. E u pensava e m i njetar x ilocaí na, a . ,,
resou ra já va i esta r a m o lad inha, d esinfetad a, e os b locos d e gases é P ara Bea/ o pê nis faz pa rte d o seu co rpo, e ela não re ivindica a
j ustamente p a ra estanca r a h emo rragia a té o m o m e nro d a sutura . c iru rg ia, pois u ma vag in a nã o mu da rá se u senrim e nw d e gê nero,
E u pensei gue tinh a que ser n o ba nh eiro d o hosp ita l, se eu fize r em " não passará d e u m buraco" . Para ela, é seu sentim ento q u e impo rra,
casa é mu iro lo nge, o socorro p ode d e m o rar e eu posso m o rre r po r se nd o o ó rgão ro ralme m e secund á ri o. P ôs prótese n os se ios, não
causa d a h em o rrag ia. rem n e nhum s inal d e ba rba o u pêlo nos braços e tom a hormô n ios.
' •'
..•r H is tó ri as co m o a d e Bea, qu e re ivindica o di reito à identidade legal
Esses relatas ex p õem u m quadro d e ab jeção, e m bora com níveis de gê ne ro fe mi n ina, desv inculan do-a d a cirurg ia, p õe- nos d ia nte d a ..~·
., dife re n ciados . An dréia , por exemplo , n ão tem o m esmo "pavo r" q ue p lura lid ad e d e co n fig ura ções intern as à ex periê n cia t ra n sexual.
1:1 ~I
·• :1'

Kát ia, ta m p o uco é p oss ível inte rp retar o desejo manifes to d e fica-
re m " li v res", i ncl us ive com a vo ntade de "ti rar em por co nta pró-
A MASTURBAÇÃO
p r ia", como vo ntade d e morrer. É impo rra nte ressalta r esse as pecto
para q u e não se co nstrua uma imagem suicidóge na d o/a transexual, A reje ição à ge nitá lia s ig nifica q ue não se con segu e o bter prazer po r
u m dos primeiros p assos pa ra v irim izá- lo/a. Tal cons trução desdo- meio d o seu toque? O tran sexua l con srruído oficialme nte n ão co n-
bra-se em sua in fantilização, po is se supõe q ue seu sofrimenro não segue tocá-lo para faze r a hig iene, tampo u co pa ra a obte n ção d e
os/as permi te atuar ou decid ir so b re seus corpos. p razer: é um a relação d e to ta l abjeção. No en ta nto, q ua n do M arcela
A abjeção, poré m , não é a ún ica possibilidade de lei tura para as
gen irálias. Pa ra V itó ria, o pênis está a li, faz parte d o seu corpo. Não
se cons idera "anormal", apenas "tenho u ma co is inha a m a is q u e n e- ' 13ca EspeJO é uma das fundadoras do Colecivo de Mulheres Transexu.1is d.1 Catalunha. Participei de
v;irias reuniões de.s.se colerivo e ::l ennevisrei. A discuss:io sobre a import:tncia ou não da realização d.1
cessita de correção" . c i rurgi~1 e~d 1nsersda em um debate mai~ amplo sobre a Le1 de Identidade de Gênero que rram ira no
Senado esp.mhol.

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homossexva lidadte J•i!:lcu~lt~u•:::_•_ __J A REINVENÇÃO DO CORPO: SEXUAliDADE E G~NERO NA EXPERI~NCIA TRANSEXUAL

afirma "Eu acho o pen1s podre, horrível", não se pode deduzir que _ mim. Isso aqui não vai ser jogado fora, a única coisa que vão rirar são as
esteja dizendo "Eu não o toco, não me masturbo". Segundo ela, bolinhas, o resto vai estar tudo aqui. Você esrá enrendendo? Então, o
que cu vou fazer? Vai conrinuar aqui, a mesma coisa. A única coisa que
Marcefa: Às vezes até, para falar a verdade, eu me masturbava sozi- vão tirar são as bolinhas. Na hora da relação é normal. Freme, atrás, ai,
nha, sabe? Eu não posso mentir. Já me masturbei sim, ele já subiu de rodo jeito. Eu sou normaJ, normal. Eu lavo, mexo e brinco com o
sim. Pode ser uma co isa que às vezes a pessoa tem vergonha de falar órgão. Tudo depende da fantasia. Eu não me incomodo.
que rem. Só se uma pessoa é deficienre, que tem problema, que esrá
paralisado o corpo rodo, aí talvez não tenha ereção; como que uma Alec ass iste a filmes eróticos enquanto se masturba e, quando se
pessoa que é absolutamente normal não vai ter? Igual te falei, quan- olha no espelho, vê um h omem. Toca o seu clitóris como se fosse um
do eu e ra adolescente já m e masturbei. Agora, com os hormônios, pênis . A trajetória de Alec para assumir-se como homem transexual
não sobe mais. Eu sei que é abso lutam ente n orm a l. Eu sendo revela os próprios processos para a construção das identidades. Até
rransexual ou não, é normal a masturbação. Quando faço, estou os 23 anos, só reve relações com rapazes. O medo de ser considerada
pensando que estou sendo penerrada por outro homem, que eu es- lésb ica e do preconceito dos parentes e conhecidos o fez, inclusive,
tou beijando, que eu estou dando, que eu estou chupando . Agora "exagerar" em sua fama de "loba". Tin ha muiros n amo rados, mas
não, não tenho ereção completa. Às vezes posso até ter uma meia sempre teve um amor feminino clandestino. A forma que encontrou
ereção, se eu ficar afirmando muito, pensando, querendo, eu posso para suporrar o seu corpo feminino foi mediante uma intensa rotina
até ter 80% de ereção, mas não chega a l 00%. de ginástica. "Eu cheguei a fazer oito ho ras de ginást ica por dia.
!~ Quando eu via os co rpos dos n1eus namorados, eu pensava: nossa,
' Por que algun s/umas tra n sexu a is mentem ou sentem vergonha eu estou muiro rnelhor que ele."
d e se masrurbar? Devemos voltar, ourra vez, à construção do Aos 23 anos, decidiu "parar de mentiras" e buscar soluções para
rransex ual como a lguém totalmente avesso às suas genitálias c o seu corpo. A história de Alec aponta para o faro de que a relação
"' assexuado. Se a "identidade rransexual" íoi caracterizada pelo horror entre o corpo c a sexualidade não é retilínea. Ele não gostava de seu
às genitálias, seria impensável, sob essa perspectiva, admitir que é co rpo fem inino, mas conseguiu ter relações sexuais com rapazes,
possível obter algum t ipo de prazer com elas. sem problemas com a penetração. No momento em que realizamos
Os/as rransexuais sabem das suposições e expectativas construídas a pesquisa, tinha uma namorada, a prim eira de sua vida, e não lhe
para as suas condutas, princ ipalmenre no espaço hospitalar. O dis- agradava que ela tocasse em suas genitál ias, embora conseguisse se
positivo da transexualidade tenta regular as microinrerações que se masturbar. Aos 30 anos, estava em pleno processo de mudanças
efetivam nesse espaço, além de remar interferir, em níveis variados, corpo rais, po r meio dos hormôn ios .
na organização de suas subjetividades. Se o "transexual de verdade"
não se masturba, "Quem sou? Como posso masturba r-me?"
CIRURGIA E SEXUALIDADE
Vitória: Têm umas meninas lá no Projeto que têm uma frescurada,
""Eu não toco no órgão". Frescura. Frescura para se sentir mais assim. É Mas, se conseguem masturbar-se, ou mesmo se não rêm problemas
mentira. Se me fala: ''Ah, que cu nunca peguei." Eu digo: "Mentira~ Se em rocar suas genitál ias para outras finalidades, por que querem
não pegasse, estaria fedendo, né?" Eu já me masturbei sim. Eu roco nO-· realizar a cirurgia? Afirmar que alguns se masturbam ou que outros
órgão sem problemas. Geme, é uma parte do meu corpo~ Faz parte ~- mentem não revela os conflitos que alguns vivem com a sexualidade.

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c homouex u ~lidad e l • lc::.cu"'-ll~
u'c=-•--~ A REINVENÇÃO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERI~NCIA TRANSEXUAL

Para Vitória, a imagem de "fogosa" e "boa de cama" sempre foi que os movimentos, se forem movimenws mais violentos, a toalha
alimentada por ela, q ue, na verdade, m ente sobre o orgasmo. pode sair. .. No caso de um relacionamenw amoroso, a cirurgia vai
me dar liberdade de movimento, eu vou poder ter liberdade para
Vitória: Eu não gosto de gozar. A gente fica com um corpo m ole, ab ri r as pernas, para andar. Eu não sou aquela pessoa ilud ida, pen-
dor de cabeça. Fico o dia imeiro f rustrada. Q uando eu chegava ao sando : "Ah, a cirurgia va i abrir minhas porras e eu vou ser feliz ."
extrem o, eu não me sentia bem, ficava com raiva, ficava com vergo- Genre, imagina, não é passaporte para a felic idade de ninguém,
nha do meu parceiro. Sabe o q ue eu q ueria? Quando eu fize r a cirur- - porque, se fosse ass im, roda mulher era feliz. Eu tenho consciência.
gia, não tem um je ito de faze r uma ligação lá dentro para tirar esse Como se diz, eu vou fazer uma coisa que eu p~eciso para ser livre. Eu
negócio d e gozar, não? Que eu não q u ero esse trem . Q uando eu vejo não estou apostando que com isso vá ser feliz. Não, já vou conviver
q ue esto u ch egando , eu mando pa ra r, eu finjo q ue gozei. Eu fa lo : bem comigo mesma, eu vou me sen ti r no rn1al.
"Pára, qu e eu gozei." E u finjo . N as m in has relações, sempre e u finj o
q ue gozo . Saber que tem u m o lho te observa ndo, falta de respe ito Se para And réia a c iru rg ia não está d iretamenre re lac ionada à
com Deus, sabe? Se eu for pe nsar na fa lta d e respe ito com D eus, eu sexualidade, Manuela já é cautelosa, mas con corda com as afirmações
não fico com n inguém. Eu gosto de fing ir e menti r. D epo is, eu de Andréia no seu desejo de realizar a cirurgia para sentir-se livre.
quéro m ais. Eu fi njo e e le acredita." Ai, p ega o papel higiê nico,
co rre, ra pidinho." Aí eu d igo: "Qu ero mais." Aí ele me diz: "Nossa, Manuela : Eu tenho um pouquinho de medo de não sentir prazer
esro u achand o esq u isito p orque você gozava e m andava eu vaza r." de pois da c irurgia, mas e u ac ho que não é mais por esse lado do
sexo, é mais por um lado emocional que eu me preocupo mais. Eu
A nd ré ia estabelece u ma dicotom i :~. entre a cirurgia e a sexualidade. penso em ser mais livre. Eu acho q ue m e incomoda menos eu ter a
vagina no meu corpo, mesmo que eu não sinta prazer, que um pê-
Andréia: Quando eu cheguei no Projeto, eu d isse: "Olha, não estou nis. É ho rr ível, porque, quando eu vou fazer certas coisas, incomo-
i, em busca de orgasmo, de p raze r, não. O que eu quero é corrigir o da, por exemplo, no clube ou alguma coisa assim . Sabe, eu nunca ~l
'rt!

meu sexo." Eu fa lei em ad eq uar. E u que ria corrigi r, porque eu sem - fiq u ei n ua de frente para ninguém, eu mo rro de vergonha e medo l '1 ,

p re m e sen ti uma mulher d efeituosa . E nu nca m e se n t i homem q ue que se interessem pelo meu órgão . Com a c iru rgia, eu vou ficar mais
quer m uda r de sexo. Po rque dentro de mim eu nunca fui um h o - livre. Você tem roda a aparência femin ina, procu ra re r os traços fe-
mem. E u lavo, faço xixi, como se fosse u m a co isa q ue está a li pa ra mininos, mas não é comp leta. Então, assim, muitos causam dúvida,
coçar. Me incomoda o faw de eu ter isso aqui, para m im, pesa ton e- ou alguma piadinha, a lguma coisa assi m . A í você tiran do fica mais
ladas, eu digo pesa em te rmos emocionais; me ti ra a liberdade. Você fácil, ass im, das pessoas verem . Por mais que você tenha uma técnica
sab e o que é não poder fica r pelada na frente do seu namorado? para esconder e tudo, nunca fica perfeito, num fica igual. Sempre
Po rq u e, eu penso assim : "Meu Deu s, se eu sou mulher e ten ho esse fica mais alto, aí têm aqueles o lhares, ne
problema, eu não quero q ue ele veja para não quebrar o encanw ."
Eu nunca t ive aquela liberdade de tomar banho com namo rado, Para Marcela, sua vida sexual com seu companheiro é satisfatória;
abrir as penas, ficar à vomade. Quando a ge n te tem relação de fren- o que lhe incomoda é esconder o pên is durante a relação. O desejo
te e ele fica por cima, eu uso aque la técn ica da toalha. A gente pega de realizar a Cirurgia é para ficar "livre" .
uma toalha e põe, mesmo assim cu fico com o maior cuidado por-

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homossc•ualidade I•IL:.cu::.:.
lt:.::.u':.=."- - - ' A REINVENÇÃO DO CORPO: SEXUALIDADE E GÉNERO NA EXPERI~NCIA TRANSEXUAL

Marcela : Meu sonho é co nhece r F ernando de Noronha. E, para eu faça o que agora? Porque panr po r parir, têm mu itas mulheres
mim, ir num lugar desses, eu tenho de ir d e biquíni, eu quero ficar qu e não chegaram a parir até hoj e. Então, com a vagina eu vou me
à vontade, eu não posso ir desse jeito. A cirurgia é para me libertar, sen tl r segura.
sentir li vre, quero me sentir livre, libe rdade, e u p od er andar sem ter
medo de alguma coisa d espencar nas minhas pernas. Eu não esto~ _ As respostas e as fo rmas d e se relacionarem com as genitálias e as
preocupada co m prazer. f'. para me sentir livre. Eu qu e ro sentir ~~ sexualidades são diversas. No e ntanto, quando se pergunta o porquê
berdade. Eu não vou ter que ficar escondendo. Eu só durmo co m o da cirurgia, encontra-se uma constân c ia nas resp ostas: '~Qu e ro ser
shortinho do tcham para não ter perigo d e esbarra r em nada. livre." Nenhum(a) dos(as) entrevistados(as) respondeu : "Eu quero
a c trurgia para conseguir ser penetrada ou penetrar, para conseguir
Vitória e Carla també m sonham com o dia em que poderão pôr um orgasmo ." Entre os transexuais masculinos, a mastectomia é a
um biquíni e ir ao clube. cirurgia qu e lhes dará o que as tra nsexuais fem ininas conseguirão
com a construção d a vagina, ou sejat._a liberdade. f'. o desejo de
Vitória: Im agina e u no clube, toda mulher e, de repente, a tromba serem reconhecidos(as) socialmente com o membros do gê n ero iden-
sai? Você está ente ndendo? Por isso que é necessária uma cirurgia. tificado que os/as leva a realizar os ajustes corporais.
Você está com um corpão de mulher lá .. . E ntão é isso. A c irurgia é Enquanto não realizam o corte físico, na carne, o co rre simbólico,
para corrigir. Porque uma vagina não vai m e fazer mais mulher nem por meio de técnicas para dissimular os signos que "os denunciam"
menos mulher. como m emb ros do gênerc r ejeitado, é efet ivado. A util ização de
faixas que aperta m os seios, técnicas para esconder o pê nis, cam ise-
Carla: Sabe 0 que eu pe nso? Eu penso assim, qu e quando eu ftzer tas c om go la a lta p ara n ão m ost rar o po mo-de-adão , p e ru cas,
minha cirurgia para mim, assim , se Deus quiser, que vai ser ~ais fácil m aq ui:1gens para disfarçar os si nais de barba são algumas das lécni-
para mim, sabe, vou poder ir para o clube, eu t~nho cartemnha d~ cas utilizadas na busca de uma coe rência e n tre as performa nces d e
clube, mas não posso, poder bronzear a parte de Cima e a parte debat- gê ne ro e o co rpo apropriado para d esenvolvê-la.
xo, mesmo assim quand o eu tomar os hormônios eu vou poder: d e
shorr e bustiê em ci m a, aí embaixo eu n ão posso, entendeu? Set lá, joel: É muito cansativo, rodo o tempo tem que colocar as faixas para
poder usar uma calça assim, fina, branca, assim você não pode. escon d er os se ios . No ve rão faz um calor insuportável. Fico com
medo de abraçar as pessoas e elas descobrirem que as fa ixas estão al i.
Sara: O que eu es pero com essa c irurgia? A libe rdade, poder viver.
Eu não vivo, eu simplesmente vegeto. Eu não vivo não, eu vegeto. João : Eu tenho sorte porque tenho pouco seio . Então, uso uma ca-
Eu n ão co n siao ter um namorado, não co nsi go um e mprego. Eu m iseta bem, bem apenada, e sempre uso um a camisa folgada, de
nunca tive rel~ção . Sou virgem . Com esse troço aqu i, que não devia mangas compridas, para disfarçar. Mas eu não posso me ver no es-
estar aqui, eu vou estar fazendo e não estarei sentindo prazer. Agora, p elho nu.
se eu fizer a cirurgia e não sentir prazer, isto não m e assusta, porque, Acompanhe i a lgumas muda nças que aconteceram com os dois
acima de tudo, vou estar satisfeita. Eu vou ter mais segurança com a entrevistados que realizaram a cirurgia enquanto desenvolvia a pes-
vagina, é lógico. Se alguém falar alguma coisa, a rranco minha roupa qu isa : Kátia (co nstrução da vag i na em abril d e 200 1) e Joel
fora. Eu poderei falar: eu sou mulher. Que r o que m ais? Quer que (masteccomia e histerectomia, em j unho de 2002).

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A R EINVENÇAO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPER I ~NCIA TRANSEXUAL
homossexualidad" J•l'-l<:::ul:::;tu:..:r•_ __,

Para Joel, a masteccomia signiftcou ficar livr~ ~~s faixas ~ue o O CORPO ADMIRADO
incomodavam, principalmente no verão, e a posstbt!tdade de nrar a Antes de realizar a cirurgia, há um conjunto de técnicas ;a transmi-
camiseta no banheiro junco aos seus companheiros de trabalho, de tidas para a construção de características corporais que lhes possibi-
abraçar os/as amigos/as livremente e de usar camisetas do ti~o re,ga- litam transita r como membros do gênero identificado. Esse conhe-
ta. 0 epo1·s que fez- a ciruro-ia
o ' nocou-se uma mudança cons1deravel c imenco é adquirido com as amigas (p rincipalmenre travestis). Além
em sua postura, na fala e na forma de se aproximar das pessoas. O daquelas técnicas desc ritas, o uso de anticoncepcional para fazer os
tímido Joel, que estava sempre com os ombros voltados para dentro, seios crescerem, enrre as rransexua is, é uma das mais comuns.
tenrando esconder os seios, passou a incorporar uma parte do seu
corpo que tin ha sido carrada simbolicamente para a composição de Andréia: Eu comecei a tom ar an ticoncepcion a l com 19 anos para
suas performances. _, . , ter seios, eu já tinha um pouco, mas eu queria mais. Aí começou a
No caso de Kátia, as mudan ças também foram visiveis. Ja no nascer, a gente começa senrin do, vai ficando dolorido. Quando eu
hospital, dizia-se feliz. Na primeira entrevista depois da c iru rgia, tiver dinheiro, um dia, eu vou pôr si licone, porque eu acho que é o
ela relata suas sensações antes da c irurgia. tin ico jeito.

Kátia: Eu falei assim: "Amanhã você sai daqui [referência ao pênis]. Maria: Eu tinha 17 anos, trabalhava numa boate em Belém, nessa
Aman hã você não existe mais, esse ... u ma coisa q ue eu tinh a ali no casa cu e ra garçonete . Aí ele [o farmacêutico] fa lou assim: "Eu já
:.
meio das pernas que se chama pênis. Então foi isso que eu pensei: notei que você gostaria de ter seio, de ser bem fem inina, né?" Nossa,
·'i~ "Vai sair daqui seu desgraçado, amanhã você não está aq ui. " E~1 queria quando esse homem fa lot t ::1ss im que tinha jeito de nasce r seio, eu
~~ mais, realmente, ficar livre dele e olhar c ter uma vagma. Era Isso que quase pulei nele de fel icidade. Aí eu romei os hormônios todo mês.
" eu queria. E a hora que eu acorde i no (~uarto, ~ ue leve i a mão lá, Nossa senho ra, eu me senti mocinha mesmo . Todo homem ficava
~~
r: percebi que rinha ficado livre. Foi uma feliCidade Imensa. Eu sabia de
.,
r:
todos os riscos, mesmo assim eu queria. E., se morresse, morrena feliz.
me olhando assim. Nossa senhora, eu romei muito tempo, aí cres-
ceu, ficou lindo, ma rav il hoso . Mas acho que os meus seios desen vol-
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li 1

veram porque eu ti rei os (estícu los, né?


Passadas algumas semanas, fu i entrevista r Kát ia em sua casa.
Quando cheguei, ela estava vestida e legantemente, com u ma sandá- As partes do corpo mais valorizadas pelas transcxuais são as náde-
lia de salto alto, saia e blusa douradas, o que contrastava com sua gas e os seios: "O xeque-mate da mulher é o seio c a bunda", apon-
ú lt ima imagem no hospital, pálida, com pêlos no rostO. Visivel- tou Manuela. Mas cada um destacará uma parte do seu corpo que
mente feliz, Kátia propôs: "Vamos fazer a entrevista na praça." . considera mais banira.
A cidade onde mora é pequena. Várias vezes paramos a entrevtsta Andréia: As colegas de faculdade falam assim : "Andréia, parece que
para ela conversar com alguém que a cumpri~enta~a. ~~mpre sor- sua bunda tem uma luz que brilha, porque onde você passa nin-
rindo, dizia: "Escou superfeliz. Agora eu me Stnto livre.__ guém fica sem o lhar."
ofato de hav~r escolhido um lugar público para a realização da
entrevista pode ser interpretado como a vontade de publicizar seu Sara: Meu cabelo agora tá horrível perante o que era. Meu cabelo
corpo. era lindo, lindo, tinha um cabelo muito bonito. J ogava meu cabelo
Assim como Joel, Kátia parecta que passara a sen(l r-se livre.

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[ homossexualidi!lde le~..:cl<u::::.lt'-"u'-"'"---
A RE INVEN ÇÃO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERI~NCiA TRANSE X UAL

para todo lado e o pessoal, assim, olhava e dizia assim: "Nossa, é Pedro: As três eram superamigas. Eu tive um caso com essa primeira,
uma beleza e ramo." Tinha um cabelo que não era qualquer um, ele depois com essa e agora estou tendo com essa daí. Então, o pessoal
ainda está bonito, mas já foi mais. fica falando que eu estou querendo aproveitar, para contar, sai r con-
Para Vitória, sua voz é o que mais lhe agrada, depois os seios. tando vantagem que eu t ive com uma e depois com as três amigas.

Vitória: Todo mundo fala que eu já fiz a cirurgia por causa da voz. Enquanco Maria e Kátia explicitam sua imagem, Pedro realiza
Eles acham que a minha voz não é assim. A voz é a coisa mais impor- esse percurso através, principalmente, de sua performance sexual, o
tante para uma mulher. Olha só, quem pode dizer que eu não sou que, para ele, definiria e diferenciaria o homem de verdade.
mulher? Inclusive não tomo muito hormônio porque pode me pre-
judicar. Eu tenho wdo de mulher, mas a minha voz já é uma coisa A GENITALIZAÇÃO DAS RELAÇÕES
que poucas têm. Eu adoro meus seios pequenos. Primeiramente, se
eu colocar silicone, eu sei que meu namorado nunca mais vai tocar. A genitalização da sexualidade é um dos desdobramentos do dispo-
Ele falou que é natural. E também para que eu vou querer peitão, se sitivo da sexual idade que faz coincidir sensações com determinadas
zonas corporais, reduzindo o corpo a zonas erógenas, em função de
....
;: peitão cai? Só tomei uma canela de anticoncepcio nal. Por isso que
eu falo que eu tenho hormônio feminino, porque, se eu ficar toman- uma distribuição assimétrica do poder entre os gêneros (feminino/
do esse tanto de remédio, aí, esses remédios vão me fazer mal. mas cu! in o), conforme apontou Preciado (200 1). A genitalização ,
no entanto, não se limita à sexualidade : at ravessa as relações.
Não há uma al.l[o-imagem corporal negativa; ao contrano, as qual i- O medo de p erderem ou de não conseguirem namorados(as) pela
dades físicas s::ío valorizadas. R ealizei diversas entrevistas nas casas de falta de uma vagina, nas transexua is, e do pênis, nos tra nsexuais,
Kátia, Pedro e Maria. Nessas ocasiões, observei a importância que con- apareceu em algumas narrativas. Para And ré ia, o homem necessita
feriam às suas fotos. Na casa de Maria, todas as paredes de sua pequena de "sexo vaginal". Ela se relaciona com um homem que vive com
uma mulher não-transexual. A necessidade de ter uma vagina para
sala são ocu padas com foros suas; na casa de Kátia, a entrevista de uma
tarde teve como roteiro seus álbuns de fotos. Foi nesse momenro que
comecei a problematizar a tese de que o/a transexual "odeia seu corpo".
!
!
sup rir suas necessidades sexuais foi o sentido que And réia atribuiu a
essa "vida dupla" do companheiro.
O que estava diante de meus olhos era uma Kátia que adorava brincar
carnaval e exibir seu corpo. Afirmava com o rgulho: "Ganh ei o concurso Andréia: Às vezes, ele vem me procurar e eu falo assim: "Poxa, você fez
ele carnaval várias vezes." Em uma dessas fotos, tirada a distância e um com a outra, eu não vou fazer com você. Você não p recisa, me deixa."
pouco desfocada, ela está em cima de uma pedra, em pé e totalmente Mas eu vou te contar uma coisinha: como eu não gosto de sexo, eu dava
despida. "Você está vendo o diro-cujo [referência ao pênis]? É o que eu essa desculpa, ne Aí eu falava: "Você tem uma vagina para transar, por
te digo, ele sempre foi minúsculo, nunca subiu." que você quer fazer comigo também?" Agora, no fundo, no fundo, na
Na casa de Pedro, as fotos contavam as histórias de suas ex-na- verdade, é humilhante para mim. Eu saber que ela fazia sexo vaginal e
moradas. A cada foto, uma explicação: "Com essa, eu fiquei dois eu seria obrigada a fazer anal, porque eu não tinha outra possibilidade.
anos. Com essa só tive um casinha ." Suas histórias amorosas legiti- Então eu aceirei porque, como se diz, primeiro porque eu o amava
mam, em boa medida, sua masculinidade. muito; segundo, eu ponderei justamente essa questão anatômica, ela
ter a vagina e eu não ter. Me senti diminuída, me senti numa posição

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homossexualidade oe lc:.cuo;..ltc:cu'_•_ ___J A REINVENÇÃO 00 CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERI~NCIA TRANSEXUAL

de desvantagem em relação a ela. Eu pensava: "Meu Deus, eu não É importante lembrar que, ao afirmar esse sentimento de inferiori-
tenho vagina, como é que eu posso exigir que ele fique comigo." dade, Kátia não está dizendo "Eu sou inferior". Em outra pane da
entrevis ta, afi rmo u: "Nunca me senti inferior em relação a uma
O sentimento de inferioridade em uma relação amorosa, de sen- mulher. Eu até me acho mais bonita do que algumas mulheres. Por
tir-se menos e estar ameaçada pelos fantasmas de "corpos-normais", ter o corpo mais bonito, por ter o bumbum mais arrebitado, então
levou-a a aceitar essa situação . Bárbara também viveu uma situação eu me acho mais bonita do que certas mulheres, de corpo ."
parecida com a de Andréia. O que a experiência transexual revela são traços estrutu rantes das
ve rdades para gêneros, para as sexualidades e as subjeti vidades. Nes-
Bárbara: Eu pensava: como posso pedir para ele ser fiel? Eu, nesse sa experiência, o que nos constitui é revelado com tons dramáticos
estado? Sabe, aceitei muita coisa. Acho que também é o medo de que são analisados pelos protocolos médicos como enfermidades.
ficar só. Tenho horror à solidão. Mas chegou um dia em que disse: Este capítulo foi iniciado com uma citação que apontava um traço
chega! Ele teve a ousadia de transar com essa mulher na minha casa. constitutivo dos/as transexuais, qual seja, "o sofrimento psíquico do
Não suportei mais tanto sofrimento . Ele continua me procurando, transexual se encontra no sentimento d e uma total inadequação; de
mas não quero mais. um lado, a anarom ia do sujeito e seu 'sexo biológico' e, de outro, este
mesmo 'sexo psicológico' c sua identidade c ivil" (Ceccarelli, 1998:
A vagina e o pênis, nesse sentido, são moedas de negociação das
relações. Marcela se sentiu ameaçada por sentir-se incompleta e acre-
II 2). Esse seria, portanto, o fio condutor fundamental da identidade
transexual. No entanto, ao longo deste capítulo, problematizei essa
ditar na necessidade natural do homem de penetrar uma vagma, ~ ve rdade por interméd io das narrativas de sujeitos que se consideram
sentimento companilhado por outras entrevistadas.
I transexuais, mas que revelam um leque mais amplo de respostas para
I os conflitos entre as genitálias (c não o corpo), as identidades de gêne-
Marcela : Eu penso que uma mulher com vagina pode usar essa vagi- ro c as sexualidades. No momento em que empreendi essa reflexão,
na con1o arma, que ela pode querer usar conua mim, então eu me aca bei por produzir uma outra problcmatização: é possível se pensar a
sinto ameaçada. É como se eu me sen tisse uma mulhe r incompleta. experiência transexual em termos de uma "identidade"'
Isso me deixa uiste. Mas quero fazer a cirurgia, em primeiro lugar, Não existe uma "id en tidade tra nsexual", mas posições de identi-
por mim, para me sentir livre, o resto vem depois. dade organizadas através de uma complexa rede de identificações
que se efetiva mediante movimentos de negação e afirmação aos
Kátia: Me sentia várias vezes inferior, principalmente quando você modelos disponibilizados socialmente para se deflnir o que seja um/
sabe qu e o homem está te traindo com uma mulher. Eu pensava: a homem/m ulher de "verdade" .
gente, eu sou uma porcaria, sou um Lixo . Eu me sentia como um lixo.
Era isso -que eu sentia. Muitas vezes, para não ter que ficar sozinha, eu
pensava que, se ficasse com um homem fe io, uma coisa assim feia, eu
pensava que pelo menos outra mulher não ia se interessar por ele.
Acho, sim, que o homem valoriza mais a mulher que tem vagma.

Universidade Federal do R10 Grande do Norte


Centro de Clénciaa ~~a. letra5 e Artea
200 Bibioteca Sek:lrial Especialiuda 201
•. A
EXISTE UMA IDENTIDADE TRANSEXUAL?

Um cara chegou para mim e jàlou assim: "Deixe eu te perguntar:


você é travesti?" Eu falei: "Não, eu não sou um travesti. " "Você é
mulher então?" Eu fiquei pensando: "O que eu sou?.'" (Ca rl a)

Esse depoimenw reve la as dificu ldades para significa r os sentimen-


to s. Diante dele, os li mit es das ca tegori as ho mem/mu lh er
re terenc iadas n o corpo se apresenta m. O reconhecimenw d a dite-
re nça, "Não so u mulher nem homem", implica um trabalho de ela-
boração de sentidos, de encontrar pontos de ide ntificações. O obje-
tivo deste capítulo é, prime iro, refletir sob re os jogos d e negação e
afirmação qu e envolvem os processos de sig nificação das posições
ide ntitár ias, para, depois, focaliza r as intersubjetividades atuando
na co nstrução de um a id e ntidade coletiva.

POSIÇÃO, EXCLUSÃO E IDENTIFICAÇÕES

Quando discuti as performatividades que fazem o gê nero, destaquei


que a identidade de gê nero não é uma essência que adquire visib ili-
dade pe los atos ; ao contrário, são os atos, ling üís ticos e corporais,

203
homossexualidade 1•~..:1c~ulc:.:tu::.;'":...__ ___,) A RE I NVENÇÃO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERI ~NCIA TRANSEXUAL

que darão vida aos SUJeitoS generificados. O trabalho de fabricação margens, e de atração por modelos idealizados . Ao mesmo tempo
das identidades é permanente, tem um caráter incluso. que se identificar envolve um trabalho discursivo de fechamento e
Para Stuarr Hall (2000), "identidade" deve ser enrendida como de demarcação de fronteiras simbólicas, simultaneamente significa
um ponto de encontro, de sutura, entre os discursos e as práticas que o reconhecimento de características que são partilhadas com outros
nos interpelam a ocupar posições como sujeitos sociais de discursos gr upos ou pessoas, ainda que idealmente. São as identificações que
particulares. A evocação "Eu sou" ou "Eu não sou" relaciona-se a um revelam o processo mesmo de organização da identidade ("Eu quero
campo discursivo prescritivo: exige que o emissor da sentença se ex- ser um homem/uma mulher").
plique e ponha em funcionamenro as reiterações que o localizam em Reconhecer que ex iste um "ourro" que me constitui implica o
um fluxo contínuo de uma formação d iscursiva histórica e social. reconhecimento de que somos construídos na/pela d iferença. Para
As identidades são pontos de apego temporário às posições-de- Bude r (1993), o p rocesso de assumir um gênero, de fazer o corpo_
sujeito que as práticas d iscurs ivas co nstroem para nós. Segundo Hall visível no interior da inteligibilidade cu ltural, significa costurar iden-
(2000: 1 J O), as identidades resultam de uma bem-sucedida, po- tiftcações e expelir e negar outras. Para a auro ra, essa matriz excludente
rém precária, articulação ou "fixação" do sujeito ao fluxo do discur- exige a produção das margens habitadas por seres que são construídos~
so, realizada por meio dos efeitos das tesouras e das costuras nas como abjetos, como não-humanos. Essa operação cria hierarquizações __...
s u bjetiv idades, ou seja, em termos derridarianos, do "efe ito da que estabelecem as posições de poder.
c ita cio na I idade". As un idades que as identidades proclamam são construídas no
Ao apontar o caráter posicional da "identidade", atribu i-se a ela interior d o jogo do poder e da exclusão; elas resultam não de ullla
um status de temporariedade, d e u m a fixação provisória c insrável. totalidade natural inevitável ou primord ial, mas de um processo de
Contudo, é semp re "uma p osição" que se fixa ("Eu sou"/"Eu não fechamento, de produção e de reprodução de margens, delimitadas
sou"). Nesse sentido, concordo com Hall (2000) quando ele p r ivi- por fronteiras discursivamente inrr:1nsponíve is. A const ituição de
legia o conceiro de identificação,' pois possibil ita uma aprox imação uma identidade social é, portanto, um ato de poder.
com os movimentos para a construção desses pontos de fixa ção tem- Talvez o que dê "ide ntidade" à ide ntidade seja essa capacidade
porários, vinculando-os à contingência da experiência, e não à apli- de, mediante pontos de identificação, gerar as margens, ressuscitar
cação de uma le i exterior. os seres abjetos p or meio dos discu rsos, para voltar a ma tá- los por
Falar d e " identificação" impõe a tarefa d e refletir sobre os jogos de meio de insu ltos e de outras evocações prescritivas , preservando a
negação e de afirmação, de repulsa pelo "outro", pelos que habitam as "minha identidade" da contam inação . Mas quais as margens pro-
duzidas e ( re)produzidas pelos (as) transexuais?
1
O concciro de ''idcnriflcação" foi cunhado inic ialmcnrc pcl:t psican~tlisc. Rcfcrc·sc ao .. processo Confo rme apontado a nteriormente, o/a transexual só passa a exi-
pl·lo qu:tl um sujei(o assin1ila um aspec to , um:. propriedade, un1 atributo do outro e se
p:,icológico bir uma "ca ra própria" na literatura médica em meados do sécu lo
rr.tnsform.t, rocll ou p.1rci:tl1nente, segundo o n'lodelo desse ourro. A person;.tlidade consrirui-se e
dofercncia-sc por uma série de idoncific.tçóes" (L~planche & Pon1alis. 1998: 226) . Se, ~omo aponwu
XX, e será em torno de algumas demarcações que ele/a aparecerá e
Fremi (Ltplanchc & l'onralis. 1998), a idenufic.tç:io é o mocanismo psicológ1co pelo qual o sujeito as posições identitárias se materializarão: "Não sou bicha", "Não
humano se consrirui c se esse processo é rc:tlizado .nravés da assimilaç!io de :tlguma coisa do "ouno", sou travesti", "Não sou sapatão". A relação que os/as transexuais vão
devcnHh perguntar como cs~c "outro" se.: consrirut. 1:'1nto o "eu" quanto o '"oulro" se constÍluern pelo
rncsmo processo, fazendo com que se quebre :1 idC:ia de que cxi~rc ulll "ourro" origin:d, primei ro. estabelecer com essas margens constitutivas p ode variar do ódio
Confottne ~ugeri 3ntt:rionnentc. a fornl~t como esc:t série de idenrificaçóes assu1ne visibilidade, ou o ("Odeio bicha", "Ten ho nojo de sapatão", "Não sou igual a e les") ao
proce~\o .nr:wC::s do qu;1l ''o ~ujcito hun1.uto 'c constirui", est~r.i fund<~.n1entada nas reiter:tçóes
pcrfor m.itic~ts.
reconhecimento da diferença ("Não sou igual a eles/as").
c homosse:xuitlidad e l ·l~cu::,::lto.:::ur:=_•_ _...J A REINVENÇ Ã O DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERI(NCIA TRANSEXUAL

O g rau de proximidad e c de distanciamen to dessas margens n ão Patrícia: Com dez anos, 11 anos, eu comecei a ver o que eu era e o
é algo p etrificado o u verbali zado igualmente em rodos os espaços que e u não era. Mas era tudo uma confusão. Eu assistia a~s ~rogra­
sociais. No contexto hospitalar, a delimitação é realizad a com gran- m as religiosos e ia à ig reja . Os p astores falavam que Jesus Ia vir, mas
de força argumemaü va e radicalidade . No GIGT, embo ra elas este- os homossexuais, o s a fe min ados, não iam herdar o Reino d e Deus.
jam prese ntes, não aparecem com a m es m a freqüê ncia, tampouco Então eu não sou bicha. Os irmãos chegavam e fal ava m: " Irmãozinho,
co m a m esm a intensidade dema rcadora. Outra vez le mbro de Hall por que você está chorando tanro?" Eu falava: "Eu sei pastor porque
(2000), quando ele afirma que podemos nos sentir a m esm a pessoa eu estou c horando." Eu c horava d e soluçar. Sabe, eu tentei sair com
em várias situações, m as somos p osicionados diferente m e nte p elas m e nma, us a r roup as d e menino para ve r se esqu ecia essas idé ias,
expecta ti vas, suposições e restrições socia is que envolvem as regras mas não dava.
d e func ionamento dos campos sociais por onde transitamos, geran-
do um duplo movimento especu lar: somos posicionados e nos Paulatinamente, essas verdades interiorizadas o peravam no dis-
posic ionamos de acordo com os campos sociais nos qu ais atuamos. curso d e Patrícia no sentido de produção e reprodução das margens.
O falO d e o G I GT integ rar um coletivo que agrega gays , lésbicas
e bi ssexuais (Lambda) favo rece a construção de um espaço para a Patrícia: Nossa, eu d e testo gay. Não concordo com isso, não. Uma
discussão d e diversas manifestações de homofobia e transfobia, ge- coisa muito aberrante, escandalosa. C hama a ate nção. Uma coisa que
ran do, segundo Jocl, coord enador do G I GT, "um espaço pedagógi- quer ch amar a aten ção, você enrende? Não tenho nada contra eles,
co contra as intolerâ n cias d e qu e somos vítimas e reproduwres". No não. O s gays não têm n ad a de mulhe r c ficam se beijando na frente de
hospital, o princ ipal o bjetiYo do/a transexual é prova r à equ ipe mé- crianças. Eu queria que eles respeitassem , não se beijassem e n em ficas-
d ica que n ão é gay/ lésbica, artic ulando, para isso, um conjunto d e sem com aq uele olhar de amor. D eixa p ara fazer isso dentro d e casa. Os
estratégias que visam a alcança r esse convencimento , co nfo rm e já travestis também têm que se comporta r, eles estão muito relaxados.
discutido. No enca nto, não se pode negar que, embo ra exista o es- Gostam de ficar pelados, de ficar mostrando, aquela coisa e tudo. Tra-
pecífico d e cada ca mpo social ou, nos termos d e Bourdieu (1989), vesti até que eu concordo d e ficar pegando na m ão. Porque o menino,
os o bjetos de poder em torno dos quais as pos ições da h e te rodoxia e a criança vai ver senrado na praça, vai ver que é mulher. Pode pegar, dar
da ortodoxia se m ovimentam c se estabelecem, há c imentos entre uns beijinhos. Porque travesti parece mulher m esmo, de seios e wdo.
esses campos so ciais, c a ave rsão a qualqu er m a nifestação que propo- Agora gay, de barba, velho, careca ... As pessoas fala m assim para mim:
nh a o ro mpime nto com a h eterossexu alidad e é um deles. Então, em "Ah, eu acho as pessoas ass im com o você tão legai" e eu p e rg unto:
m a io r ou menor nível, a homofo bia é uma d essas configurações sim- "Com o você? Como assim, m eu filh o? 'Você' o quê? Sou ge nte, sou
bólicas que co rta m a socied ad e transve rsalme n te. mulhe r. " O homem tem d e m a nte r a imagem d ele d e homem c ser
m ach o. Q ue r ser mulhe r? Enrão, tra nsforma e mostra a imagem de
mulher feminina . Se o rapaz rem um problema, se é realmente prova-
EU NÃO SOU ...
do que é rransexual, que não é gay, o que ele vai faze r? Vai fazer uma
O conhecimen to de que existem gays/ rravestis/lésbicas se dá, inicial- cirurgia. Porque a cirurgia está aí, quem deu? D eus, a ciênc ia d e D eus.
me nte, por meio d as falas d e pessoas que os/as apresentam como
se res abje tos, "se m ve rgonha", "pecaminosos" . "Se r gente", para Pat rícia, é ser reconhec id a como mulher e te r
uma aparê n c ia apropriada ao gê n e ro ide ntificado . P a r a que esse

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A RE IN VENÇÃO DO CORPO: SEXUALIDADE E GtNERO NA EXPERi t N CIA TRANSEXUAL
homossex ualidade I•L::Ic::_:ul:.;:
tu.:_:
••~_ _J)

reco nhecimento seja efetivado, posiciona o gay como o outro ra- A ndréia fo ram as únicas que conseguiram ch egar à uni versidade por-
d ical. A travesti, por s ua estética e performances, e mbora habite as que faziam um esforço considerável para n ão "dar p istas". A escola
margens, apresenta um nível de aceitabil idade maio r para ela. apa rece co m o uma instituição saturada, produtOra e reprodutora da
Na primeira vez que Andréia viu uma travesti, ficou co m a sensa- homofobia.
ção de "Eu não sou isso" Na Espanha, pode-se inferir que o nível de escola ridad e dos e n -
trevistados e ra maior porque con seguiram dissimular seus desejos e
Andréia: Quando eu vi a primeira vez, achei ridículo. E u vi uma vez medos . Para a lgun s, era impen sável assumir o gênero ide ntificado
n uma feira. Ele estava dançando. Tinha aquele círculo d e pessoas, todo no trabalho , para os amigos ou, ai nda, e ntre os famil iares.
mundo sorrindo, e aq uela palhaçad a. Então, aquele clima m e d eu um
nojo, porq ue eu vi ::l co isa pelo lado do ridículo. Eu não sou assi m , não.
OQUE EU SOU?

Nas falas d e Pa trícia c Andréia, nota-se a eficác ia d as re iterações O co nh ecimento d a existência d e outras pessoas que compartilham a
implementadas p elas ins tituições em posicionar às m a rge n s operan- m esma sensação de não-pertencimenro ao gê ne ro atribuído é relatado
d o em seus discu rsos. Aos poucos, interpelações como "B icha é feio , como um momento de "revelação" e de encontro. Finalmente, conse-
é p ecado, é doe n ça" ou " Duas mulheres juntas é co isa d o diab o" guem nomear, situa r o que sentem; e ntender que não são os ún icos
geram efe itos nas s ubjetividad es de negação d e qua lque r possibi li- com aqueles conflitos e, principal m ente, que não são gays, travestis ou
dade de identificação com esses "outros". lésbicas . Ser "t ransexual" oferece uma posição ide ntitária que dará um
A escola é le mb ra d a como um espaço de te rror, o nd e os/as sentido provisóri o a suas vidas. Contudo, socialme nte, co ntinuarão
tra nsexuais eram v ítimas de rodo tipo de preconceito. ide nti ficados como "veado/ travesti/sapatão", o que implica um outro
trabalho : como explicar para os outros o qu e eu sou? Nesse p o nto,
Kátia: Na esco la, quando m e ch amavam de veado ou de macho- recuperam-se as margens, por meio do "Eu não so u"
fê m ea, eu chorava, m e afastava de rodo mundo, não sa ía para o re-
creio. E u só te nh o a 3 3 série completa. Eu parei em 96 ... E u parei Kátia: Eu não me sentia um gay, cu m e sentia uma mulhe r. Aí um
d e estuda r n o m e io d a LÍ" série. Noras boas ... po r causa desse pre- ra paz c hego u inte ressado e m mim c disse : "Você está parece ndo
co nceito q u e n ão agüe ntava . Não agüen tei o precon ceito de me ch a- ta nto um traves ti. " Fo i hor rível. Aí eu disse: "Eu n ão so u um tra ves-
mare m de m ac ho-fêmea, d e veado, d e travest i, essas coisas rodas. ti, eu sou um he rmafrodita." Eu se i que não sou, mas o que posso
fazer? É isso qu e e u semp re falo. Aí e le per g untou o qu e é
Andréia: M eu De us, que h o rror era wdo aq uilo! Se e u sa ía para o h er mafrod ita, "é pessoa que nasce com dois sexos" . Eu sempre falava
recreio . Eu que achava que esse órgão não tinha a m enor importâ n- isso. Mu iros saía m de perto , diziam que não namorariam mulh er
c ia, que rodo mundo me reco nheceria como uma mul h er. Muitas que tinha dois sexos.
vezes, puxavam m eu cabelo e e u tinha que brigar, principalmente
q uando me cham avam de veadinho. As insti t uições socia is produzem e rep roduzem as m arge n s p o r
meio de duas táticas simultâneas: pela exposição discu rsiva daqueles
O baixo nível de escola ridade dos e ntrev istados no B rasi l tal vez que estão fora das normas de gênero, por inte rmédi o das reiterações
possa, em cerra m ed ida, ser ex plicado por esse cam inho. Sa ra e prescritivas , dos in su ltos, e pelo ocu ltam e nto, pela inv isibilização .
A REINVENÇAO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~ NERO NA EXP ERI ~NC I A TRANSEXUA L
homosse•ualidade I• '-<:::_ult!::":.::'"
"' _ __.J

Joel: Às vezes, eu tenho multo ódio. Eu nunca tinha visto uma lésbica A forma de V1venc1ar essa identificação é refo rçando as margens. re-
na m inha vida. nunca me disseram n ada. Nunca tinha visto duas mu- produz indo os insultos como marca de diferenc iação. numa série de
lheres se beijando. Em meu país [Bolívia) é tudo muiro escond ido. efeitos vinculantes às normas de gênero. Mas quais são os indicadores
Então, eu culpo essa sociedade que m e escondeu outras possibilidades. aponrados que os/as distanciam das margens? Qual a diferença da
"minha diferença"?
J oel afirm a que, quando viu pela primeira vez duas mulheres se
beijando, teve nojo: "Aquilo era impossível. " Segundo ele, "o traba- Kátia: N ota-se a dirc rença entre o travesti e o transexual no gesto.
lho de tirar rodas as m erdas que somos obrigados a acreditar rem m e Eu no ra nos gestos, porque o transexual não rem aquela requeb ração,
cus tado muiro" . Talvez o conhecimentO e a visibilização de afetes aquela desmunhecação de m ão, sabe?
fora dos marcos h eterossexuais não lhe fi zessem mudar seu desejo de
transform ar seu co rpo, aré porq ue. conforme vem-se tentando a rgu- Carla : Assim , na minha cabeça, o travesti p e mais tipo estrela. Já
mentar ao longo d e tod o este texto, a transformação do corpo não chega aqui e qu er abafar. Parece que está o tempo rodo brilhando
está condicionad a à orientação sexual . mas, conforme e le m esmo que n em eles fa lam : brilhando na passare la. C h ega aqui e joga o
disse. "teri a me poupado muita dor e confusão" . cabelo para cima, e faz o show... aqui na praça; na língu a deles, na
Para: outros, se r transexu al ai nda é a lgo pouco compreendido. m inh a, não. Você m e entende? Eu não sou isso. Tô falando o jeito
Pedro, mesmo fazendo pa rte do Projete Transexualismo, não con se- que e les são . Então, para rodo mundo ... para chamar a atenção.
gue definir com clareza o que é "ser rransexual", mas afi rma con c isa- Sabe, peço a D eus rodo o dia isso: "Meu Deus. me ajuda. fala com
m e nte : "Macho-fêmea eu não so u. " as pessoas 1ne entende rem, que e1as não pense m que eu sou um gay.
Maria utilizou "travesti" várias vezes para se defini r, inclusive p or que ehs pensem ass im, que cu sou um a mu lh er. Eu sei que para
m e io da fal a d e s ua filha: "M inha filha me d isse: ah. m ãe, para mim pessoas l:í fo ra é d iríc il . mas que elas me respeite m mai s. o qua ntO cu
você é linda assim do seu jeito. Se você quiser, eu também vi ro travesti respeite elas. Eu não sou ... um gay. Eu te nho muita d iferença de
para ficar igual a você [para a fi lha, Maria não deveria fazer a cirurgia) ." gay." Eu pen so assim : eu quero saber esse pedacinho assi m que eu
Provavelmenre. Maria se identificou como travesti ao longo de sua tenho de homem para as pessoas olharem pra mim e mexer.
vida. "Ser rransexual" é uma ress ignificação dessa identidade que ocorre
nos espaços hospitalares. Em diversos momentos dos n ossos encon- A dife rença apontad a não escava em uma essência interior entre
tros, Ma ria se d efin iu rraves ri. S ua ascenção à co ndição de mulher eles/as e os outros, mas nas perform ances, na estilística corporal e
ocorre rá d epois da cirurgia. A principal oposição que estabelece é com discursiva (des munhecam , falam alto, requebram ) e, em um movi-
o gay. Segundo ela, "se me c hamam de veado. eu digo: olha se eu sou mento co n t raditório, serão as performances q ue os ap r;ximarão das
a filha da pu ta da tua mãe. Veado é você. Seu escroro!" 2 m a rgens. Uma questão que os/as mobilizava era tentar compreender
A ide nti ficação dos/as rransexuais como gays/travestis/lésbicas está p or que, apesar d e rodos os esforços discursivos c performáticos para
rodo o tempo lembrando-as/as de sua condição d e "diferentes" . não serem "confundidos", não co nseguiam êxito total.

2 Maria, durante mais de 30 anos , fo i profissional do sexo. Nesse universo, conforme etnografia de Carla: Às vezes, eu escava dançando, e pe n sava : "É bom cu para r,
Silv" ( 1993). a rrave>ti pod< s<r opemdo ou não. Isso não constitui um dado •uficient< para a estou parecendo um travesti . Deixa eu d ançar mais comportada,
cLI:>sific,tção do oper.ldo enquanto ··u:.nscxu:tl". Talvc1. por is::.o M:uia tenha algumas vez.es definido-
se como travesti.
como uma mulher."

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I
hom oss exualidad e e lt.:e
<u:.:.lt""u':;:•_ _ _, A REINVENÇÂO DO CORPO: SEXUALIDADE E GeNERO NA EXPERI~NCIA TRAN SEXUAL

Bárbara: Eu sou uma pessoa de respeito, me dou ao respeito. Não sex ua lidad e e o gêne ro apresentam-se colad os. Tenra-se recupera r a
fi co aí pe la ru a. Então, eu não sei por que muitos m e chamam de coe rência estabelecida pelas norm as de gê n e ro, segun d o as quais
veado. Às vezes, eu penso: por quê? O que eu ten ho em mim ? sexual idade e gêne ro são determ in ados pela natureza, p o r m e io do
esforço da diss imulação. A hererossexualidade do parce iro dará vida
Nas relações sexuais, uma das formas que a lgu ns/umas e ncontra- ao " m e u" gênero. Para que se possa existi r na posição do gê n ero
vam para não serem "confundidos" com "veados" era não d e ixare m o identificad o, necessita-se da co nfirmação dessa posição pelo des in-
pêni s ser visto ou tocad o . Para o s rransexuais mascu li nos, os seios teresse do outro pelo ó rgão genital.
eram a pa rte d o seu co rpo interdita às caríc ias. A ide nt idad e, como
um jogo d e im agens, precisava d a co nfirmação do outro para se
EU QUERO SER. ..
estabelecer. A re lação sexual se configurava em um d esses momen-
tos. A existênc ia d e uma subj etividade e d e pe rforma n ces v inc uladas Se as margens, "Eu não sou" , são ex plic itadas porque as normas de
ao gê nero identificado poderia "cair por terra" se o pa i'Ceiro/a v isse e/ gê ne ro rea rualizam essas verdades po r m eio d as reiterações discursivas
ou to casse suas gcn itál ias. A lém d e se r apontado co mo um teste c não-discurs ivas, o "Eu sou" impli ca um t rab a lh o de n egociações
para o parceiro/a, em casos de relações h eterossexua is. Caso houves- com as idealizações . Quando se afi rma que a id e ntidade é form ada
se interesse pelas genitálias, colocar-se-ia e m dúvida a masculinida- ..pela/na diferença, desessencializando-a à m edida que o foco de a n á-
de/fem in ilid ad e do outro. li se reca i no jogo qu e se esta b elece com o outro, h a bilita-se o
relacio nal-plural como pri ncípio que deve o rientar nosso olhar so-
Patrícia: Eu não gosto de que eles veja m n ão. Eu fi co con strang ida, bre os co mplexos e difu sos processos qu e n os formam. Nesse senti-
co m vergo nha . Nu n ca d eixei eles vere m a mi nha frc::nrc::. E c::les olha- do , devem ser e n fatizadas as idealizações que orientam a construção
va m ass im e falavam: " Deixa eu faze r na frente." Quer dize r, pe nsava d o "Eu quero ser", os pólos positivados das ide ntificações.
que tinha vagina. [... ] " Deixa?", "Não, não! E se tiver o utra co isa na A idealização do feminino está parricu la rme nre vinculada a . um
frente, um pacote?" Os m en inos falavam: "N ão, n egócio d e paco te ca mpo d e qualidades fund amen tado na image m da mãe, d a santa,
e u já tenh o o m eu." E u fi cava a legre. Então, qu er di ze r que esses contrapo ndo-se à da prostituta.
m en in os são m achos. Agora teve unta vez q u e cu fa lei co m um m e-
nino assim , um rapazinho: " O lha, n ão fiz c irurgia. N ão sou mulher Sara : Eu não so u pervertida, eu n ão q uero isso para a minha vida.
a inda. Q u e eLL so u mulher, mas não co mpleta. " Aí e le disse : " Tem N ão vo u fi car fazendo progra m as, m e prostituindo. E ntão, a m e-
' nada, n ão. Deixa eu ver, de ixa eu pegar." Falei: "Ah, é! Pode vest ir lho r coisa que eu faço é agüentar tudo que a m inha fa mília tem a
sua calça q u e acabou, não quero papo, não. E u gosto de m ach o, de ~i ze r e vira r a cara pra outro lado. E u m e dou o respeito.
homem. " O h o m em tem pavor d e pênis d e outro homem. Eu pe-
g uei e falei: "Não, meu fi lho, pode vestir sua roupa. Acabou com Patrícia: Eu não quero ser uma mulher para fazer programa, para ir
meu tesão. Não, não, você não passa de um gayziio. Vai me descul- lá para a beira das estradas para faze r co isas com h omem , o homem
par, m as você é gay." faz com você, você faz com homem. Não, e u quero ser mulh er para
ser mulher, viver na sociedade, ter m eu m arido, m eu namo rado, sair
A sexu alidade, nessas falas, é tomada como um momenro de con - assim na rua, ter m e u serviço dig n o, respeitado.
firmação do reco nheci mento d o gênero identificado. Nesses casos, a

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homossexu~ lidade]•l~cu:::lto.::.u•:.::•_ __J)
A REIN VEN ÇAO DO CORPO: SEXUALI DADE E GtNERO NA EXPERitNCJA TRANSEXUA L

Há uma coinc idência nas narrativas dos transexuais masculinos c se pos tctonar em determinada formação disc ursiva, mas, subjetiva-
femininos quando se referem às idealizações. Para os homen s men te, vive esse "sujeiramenro" na clandestinidade de sua so lidão.
rransexuais, as mulheres são idenrificadas pela capacidade de doar, Reconhecer o confliro entre o corpo e a subjetividade, en contrar
de cu idar, pela doçura. As idealizações masculinas são povoadas por um nome para essa sensação ou diferenciar-se d e gays/rravestis/lésbi-
homens viris, sem n enhum rraço que sugira ambigüidades em seus cas não são evidências que nos aurorizem a afirmar a existência de
corpos. Se, para o feminino, são as questões referentes à subjetivida- uma " identidade rransexual". E depois da c irurgia? Continuarão
de que aparecem com mais freqüência (emotivas, frágeis, solidárias), transexuais? Qual o lugar que o social lhes reservará? Serão reconheci-
para o masculino, as idealizações estão mais vinculada~ a uma n or- dos como mu lheres/ homens? Como eles/as se aurodefinirão? Para
ma estética corporal (forres, musculosos, alros, peludos) . mutros, não rem sentido considerar-se rransexual depois da cirurgia.
Essas id ea li zações, de certa forma, aprisionam os rransexuais
masculinos. Joel, aos 18 anos, procurou um médico para saber se Helena: Eu ouvi d izer que, depois que a genre fizer a c irurgia, nossos
existia alguma técnica para fazê-lo crescer mais a lguns centím etros. documentos, onde aparece "sexo", vão pôr feminino e uma observa-
Ele hav ia lido em uma revista uma técnica que co n sistia em partir o ção "transexual". Se for assim, eu prefiro que deixe como está.
osso da perna e enxertar uma prótese que poderia fazê-lo ganhar
mais alguns cenrímetros d e ahu ra. O médico, no enranro, retirou- Se depois da cirurgia não tem mais sentido falar em transexual,
lhe qualquer esperança de êxiro e afirmou que o m elhor seria que ele como pensar em uma identidad e? Como falar em identidade coleti-
se conformasse com a altura. Nesse momenro, Joel teve vontade de va? Uma ide ntidade coletiva com data para terminar? Mas, se exisce
morrer e chegou a pensar em se suicidar. uma identidade co letiva, em torno de quais eixos ela se via biliza e
O esforço de Alec para construir um corpo musculoso, confo rme visibi liza? Aqui as perguntas fundamentais são: quem somos nós ? O
relatado anteriorme nte, também pode ser interpretado como uma que que re mos?
tentativa de se aproxima r das idealizações corp orais masculinas.
Vale aqui recu pera r a idéia de Buder (1999) sobre a impossibili-
dad e de se real izarem plenamente as idealizações, inclusive, eu ac res- "QUEM SOMOS NÓS?"3
ce ntaria, as re lacionadas às no rmas estético-corpo ra is, as quais a au- Uma das " lim itações" em se pensar a organização d e uma iden-
to ra não m e nciona. Quando se afirma o ca ráter ficcional dessa cons- tidade coletiva, para além dessa relação com o saber médico, está na
trução, não se deve diminuir sua eficácia como produtora de efeitos própria " natureza" de sua existência. A marca que unificaria os
concreros nas subjet ividades. transexuais seria, do ponto de vista oficial, o desejo de realizar a
Diante da questão " Quem sou eu? Um homem, um a mulher?", c irurg ia e, portanto, o horror ao seu corpo. Será que se pode pensar
nora-se a eficácia de um regime que regula as diferenças de gênero, a experiência rransexual nos termos d e uma " ide ntidade transexual"?
atuando e construindo subjetividades que não enco ntram, nas cate- A idéia de idenridade, em te rmos pos icionais, de provisoriedade,
go ri as dis ponibilizadas socialmente, uma específica que possibilite da contingên cia, é dramatizada nessa experiência. D epois da cirurgia,
construir as ide ntificações. E talvez aí esteja o drama da expe riê nc ia
transexua l: mais uma vez, o sujeito é apresentado como a fo nte dos
significados dos quais ele é um efeito. f'. o que Hall (2000) chama l Para discurir ;l especificidade da org;tnizaç:\o da idemidadc coler iva rransexual , ser:\ uriliz.ado como
r.ferência o rrabalho de campo no Grupo de ldenridade de Gênero c Tramexualidade (G IGT).
de "mecanismos do falso reconhecimenro". O sujeito é "sujeitado" a rccorr~ndo ao .diário de c ounpo.

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homosseJCua lidade )elc::<u::.:;lt:=u•:.::.•_ __,) A REINVENÇAO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERI~NCIA TRANSEXUAL

seguiram transexuais? A mudança nos documentos os çará esquecer (Diário de campo, 14/12/2001)
a experiência do medo e dos conAiros? A ciru rg ia e/ou as outras "Tenho estranhado a forma como os militantes que vêm às reuniões
mudanças apagarão essa memória de sofrimentO c de exclusão antes se ves tem. É muito diferente dos que entrevistei no Brasil. As transe-
compartilhada? Como essas questões interferem na produção de uma xuais usam calça jeans, e pode-se notar que não lançam mão de ne-
identidade co leriva? nhuma técnica para esconder o pênis. Meu olhar já estava acostuma-
Esses são alguns dos dilemas que dramatizam a vida coletiva e a do à forma de os/as transexuais se vestirem . Parece que o trabalho de
própria consuução de uma idemidade co letiva transex u a l. Não se campo no hospital m e condicionou a uma expectativa, e daí o meu
trata d e pensar a vida coletiva como um espaço de apagam entO das susto. Lembro de Yliana San chez, no Seminário Internacional d e Iden-
diferenças: elas estão presentes como marcas de classe, de religião, tidade de Gênero e Transexualidade [Yiiana foi uma das conferencis-
de nacionalidade. Trata-se d e e ncontra r pontos de unidade que pos- tas do Seminário, em nome do Coletivo de Mulheres Transexuais da
sam materializar-se em ações pol íticas e em identificações que u ltra- Catalunha]: não usava nenhuma maquiagem, calçava uma chinela de
passem a experiê ncia individual. No en tanto, esses "pontos" não são cou ro, usava calça jeans, camiseta e levava urna mochila. Não fazia
quantificáveis, tampouco estão visibilizados em um "programa" ou nenhuma q uestão de ter uma voz aguda. Os militantes do GIGT
uma agenda de lutas. estão mais próximos d e um m odelo menos fixo e dicotômico."
Qua.ndo foram discutidos os processos de formação da " identi -
dade rransexual", destaquei como os insultos funcionam na produ- O espaço da militância é mais livre, no sentido d e permitir que
ção dos segredos e dos silêncios. A maio r ia daqueles que p articipa- cada um esta bel eça os modelos de feminino e masculino com os
vam das re uniões d o G I GT não tinha assumido s ua ide ntidade de qua is se identifica. Ninguém é obrigado a fazer o "teste de vida
gênero nos outros campos sociais por onde transitava, o que dificul- real". Mu itos d os participantes vinh am direto do trabalho para as
tava a participação em atividades públicas. reuniões c não tinham tempo pa ra "se a rruma r". Isto gerava, inic ial-
Na manifestação do dia 29 de junho de 2002 em Madri, o Dia m e nte, confu sões na hora d e respe itar a identidade de gênero. Dian-
do Orgulho Gay, um grupo de si mpatizanres do GlGT carregava te de nossos olhos, estava uma pessoa com todos os signos defini-
faixas com a lg um as das reivindicações. Nenhum dos militantes, à dos como masculinos , mas que pedia para que a chamassem por
exceção do coordenador, part icipou d a manifes tação. seu nome fem inin o . Às vezes, os deslizes e ram inevitáveis. Essa era
Sempre que havia atividades públicas (uma entrevista na TV, n o uma das fon tes de conflito, em menor escala, entre os próprios
rádio, uma audiência com alguma autoridade, uma panAetagem ), a membros do GIGT, e, em maior, e ntre os do GIGT com os g rupos
discussão sobre os limites da ação de um g rupo político sem m ili - do Lambda.
tantes públ icos su rgia. A inda assim , a v ida coletiva segui a adian te. Muitos(as) dos(as) tra n sexuais que participavam do GIGT se se n-
Todos compreendiam e compartilhavam o significado de uma apa- tiam d es respe itados por outros militantes d o Lambda. A discussão
r ição pública e a vinculação de s u a imagem a um co letivo de sobre a rransfobia era um ponto de pauta constante em suas reuniões
rransexuais. Para muitos, isso poderia custar o emprego, o fim dos internas. O debate cen trava-se na necessidade de se res peitarem os
laços com a família, e alguns preferiam conduzir suas histórias de processos de tran sformações corporais e estéticos ind ividua is. Ou
forma mais negociada. seja, p or mais que um parricipante ai nda n ão estivesse fazendo a
terapia ho rmo nal, que usasse roupas masculinas e a inda mostrasse

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homosse~eualidade lel::lc:u
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•• _ ___. A REINVENÇÃO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~N ERO NA EXPERI~NCI A TRANSEXUAL

sinais de barba, mas se apresentasse como Natália, por exemplo, se identificarem as hierarquias, deve-se valer de outros mecanismos,
esse seu mom ento deveria ser respeitado. t nesse sentido que Joel sendo um deles a própria normativa de funcionamento d o grupo.
afirmava que o Lambda era um espaço educativo. Esta questão e Segundo essa normattva,
o utras fizeram com que o GIGT formulasse um "códi go" d e respeito
Art.2.
en tre os militantes que passou a ser transmitido a rodos os recém -
Ingressos .
2a. Es esencial que en las reLaciones internas de grupo se respete ef
Q uando se afirma que no GIGT há um espaço de maior liberda-
proceso en ef que se encuentra cada transexuaf.
de quando comparado ao espaço h ospitalar, que enquad ra as ca nd u-
ras e m protolocos rígidos, isso não sign ifica que não haja compara-
2b. Como grupo integrante dei Cofectivo Lambda, es jimdamen-
ções entre os que estão mais ou menos avançados n o processo d e
tal que Los miembros de Los otros grupos respeten La identidad de
mudanças corpora is. E aqu i também o olhar construído para classi-
uénero de cada uno de nosotros.
ficar os gêneros a partir das informações contidas no exterior d esse o

co rp o (ro upas, ausência/ presen ça de pêlos , a usênc ia/presença de


Así mismo, exigimos respeto total y absoLuto a nuestra identidad
m aq uiagem) estabelece uma hiera rquia interna construída a partir
reconocida y ai nombre por ef que nos presentamos.
de quem está mais próximo das idealizações dos gêneros.
A construção de hierarquias internas tam bé m é o rgan izad a le- En rre outros pontos, a vida no grupo difere nc ia-se da vida no
vando-se em conta o tempo da terapia hormonal e seus e feitos nos hosp ita l po rque o grupo p ropicia que essas questões sejam debati-
corpos. O nascimento da barba, a voz g rossa, os p êlos qu e crescem das . No hospital, n ão h á espaço para a probl emarização das hierar-
por rodo corpo do rransexual masculino, os seios femininos, a queda quias internas à ex p eriê ncia transexual. Ao contrá rio , as hierarquias
dos pêlos e outros signos deslocam esses corpos d o gên ero imposto . são produzidas c incentivadas. Um dos memb ros da equipe comen-
Co n fo rm e se aproxima co rpora lme nte d o gê n ero identificado, a u- tou: "Eu não e nte ndo esses rra nsexua is que querem se o rganizar em
menta a distâ nc ia entre os que conseguem os resultados com a cera- associações . Para mim, o/a rranscxual de verdade que r passar desper-
pia hormonal e os que a ind a devem usar outros artifícios (maquiagem cebido no meio da multidão."
para disfarçar a barba, enxerto n o sutiã, perucas).
A c irurgia é um momento que possibilita acumular m a is "capital
OS RÓTULOS E OUTRAS POLtMICAS
de gênero" e, por último, o reconh ecimento definitivo, quando se
consegue mudar os documentos. Os h ormôn ios, as cirurgias e a (Diário d e campo, 19/11/2001)
mudança dos d ocu m e nros são e tapas que localiza rão cada um em ''A reunião foi confusa. Seis pessoas parttctparam pela primeira vez.
determ inada posi ção hierárquica para ch egar ao reconhecimento do Todos vieram mocivados po r um programa exibido na TV na sema-
seu srarus de hom em/mulher. O cumprimento desses três momen- na passada que d iscutia a rransexualidade e que contou com a parti-
tos cria níveis d e disranciamenro com os outros. cipação do coordenador do GIGT. A ordem do dia proposta não
Essa hierarquização interna, no e nta nto, n ão é algo que te nha uma conseguiu ser implemen tada . Nova mente o rema dos rótu los vol-
co ncrerude ou uma visibil idade de fácil ap reensão: são os com en- tou . Um dos recém-chegados d isse que não se reconhece no rótulo
tários e os olhares os indicadores, que poderiam ser considerados in- de rransexual. Alguns participantes concordaram com ele. 'Para que
visíveis, mas que esrão presentes a cada encontro. Nesses casos, para os rótulos? Eu não sou um rransexual , sou uma pessoa, ' comentou. "

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A R EINVENÇ AO DO CORPO: SEXU ALIDADE E G~N E RO N A EXPERI ~N CI A TRAN SEXU AL
I
homosuncu a lidade e c:~
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(Diá rio de campo, 18/3/2002) As motivações que levam as pessoas a procurarem o grupo são múl-
"A discussão dos rótulos outra vez. Um dos presentes disse que tiplas. Para o coordenador Joel, deve-se ter espaço para todas as expec-
não suporta quando alguém acha que ele é transexual. 'Eu não sou tativas. Alguns p rocuram info rmações sobre as clínicas que fazem as
transexual: eu sou muito mais d o q ue um rótu lo que tentam me cirurgias e sobre os preços, outros buscam espaços de sociabilização e
impor. O que vamos faze r aqu i ~ Reforçar esses rótu los?' Sempre me outros, ainda, estão mais d ispostOs a fazer luta política.'
chama a atenção a oco rrênc ia desse d ebate e o cl ima tenso que ele Ao longo do tempo, o G rupo foi fo rmando uma consciência de
cria. Por q uê? Q uais são os medos? Parece que sempre se está voltan- gênero e da necess idade de d iscutir os determinantes sociais para
do ao ponto zero, que estamos pa rticipando de u m a pn m eJra re u- explicar a expe riência rra nsexu al. O Íato de assum ir a perspectiva de
nião de u m grupo q ue acabo u d e ser fu nd ado." gêne ro está expresso na forma como se identifi ca - Grupo d e Iden-
t idad e de Gê n ero e Transexu al idade. No e n ta nto, a di scussão so bre
A polê mica de com o definir o gru po está relacio n ada à p ró pria a orige m d o co nflico nun ca fo i abenamen te realizada; tam po uco fo i
p robl em át ica t ra nsexua l. A p lura lidad e de exper iências d e v ida e d e discu tido como o grupo d everia se posicio nar diante das teses o ficiais
respostas para os con fli tos existen tes para a relação entre corpo, iden- q u e as qua li fica m com o "transto rn ados" e "doen tes". E m a lg uns
tidade de gê ne ro c sexual idade se reflete na hora q ue se tenta en con- momentos, essa discu ssão fo i an u nciad a, inclusive de forma t e nsa.
trar u m "te r mo que fech e, cristalize e substancialize suas hi stó ri as.
Provavelme nte, esse é um de b ate sem solu ção defini ti va. (D iár io de ca m po, 18/2/2002)
Q ua ndo se observa essa fo rma de pensar c enca m in har a vida cole- "Um a das pa rtic ipa ntes da reun ião, d iante da discussão sobre se
tiva, ou seja, que a d iferença biográ fi ca n ão pode ser apagada o u a rransexual idad e é u ma d oença ou u m p roblema socia l, afir m o u :
subsu m ida no termo "uansexual", p roduz-se uma sensação d e fragili- - Para m im , ta n to faz se me conside ram co mo tran storn ad a o u
d ade, ou m esmo a falta de coesão e d e objetivos po líticos. O o lha r que doe n te. O me u m edo é q ue a gen te, ao luta r para reti rar essa id é ia
busca u ma fo r ma t rad icio na l d e organizar as id e n tidad es co le tivas , de doença, fragilize nossa lu ta para q u e a previdê nc ia socia l a rqu e
nesse caso, n ão e nco ntra rá os ind icado res visíveis q ue a caracteriza m. com as d esp esas d o tratamento.
As d ific u ldad es estão em e ncon tra r p o n tos de conve rgê n c ias en - Essa o pinião d esencadeo u uma te nsa discussão .
tre ( l ) o interesse e m reso lve r "os m e u s prob le m as" ( c irurg ia , - Uma m ulhe r gráv ida é u ma d oente? Não . E a p revidência paga,
h orm ôn ios, e mp rego, re lação com a fam ília), (2) as questões m édi - não paga? Você se senre tra nsto rnad a? Você se sence d oe nte?
co- trabalhi sta-sa n itárias comuns e (3) a articulação de um a consciên - - Nao . Mas como c h amar esse sen ti me n to q ue temos?
c ia contra as in tolerâncias im postas àq ueles que não atua m d e aco r-
do com as normas de gên ero. É em to rn o desses pontos q u e as con-
tradições e as discussões sobre o encami n hamen to da v ida co le tiva 4 Ao longo do trabalho de campo na Espanha, o Coletivo desenvolveu várias atividades. en<re elas:
se dão. re~lli:z.ou a campanha ~mn como qui~ra1", contra a homofobia e a rransfobia, que consistia em proferir
conferências cn1 escolas e institutos; redigiu um manifesto sobre os direitos d:1s pessoas transcxuais;
Segundo um dos m ilitantes, "parece q ue tudo se resu m e à c irur- c:nviou canas com reivindicações às autoridades públicas, principalmente de apoio à Lei de
gia e a quem consegue melhores resultados com os ho rm ô n ios . Às ldcntid~1dc de Gênero que tramita no Senado; organizou uma fcsr:1 para encerrar a campanha de
coleta de assinaturas de autoridades e personalidades públicas que apóiam a Lei de ldemidade de
vezes, sinto que me faltam forças para levar o gr upo. Mas não se
C<nero: organizou o 28] (Dia do Orgulho Cny) em Valência: preparou a participação do Colet ivo no
pode co ncordar com isso. Não se pode confund ir os processos ind i- 29] (d ta do Orgulho Cny em Madri. 29 de jun ho): organizou o Primeiro Encontro Nacional Misto
viduais com a vida do grupo". de Tr;ul::tcxuai!», ;;1.lénl de ouuas atividades que envolveram todos os militantes do Lambda.
homossexualidade ~~~~c~ult~u~'a_ __j A REINVENÇÃO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPER I ~NCIA TRANSEXUAL

-Temos que discutir. Mas não podemos aceitar que nos chamem mais complexas e confli tuosas, que se possa sen tir uma "identida-
de anormais." de": uma identidade fo rmada por sentimentos e emoções.
Se as divergências sobre os rumos da vida co letiva e da relação
Em outras ocasiões, surgiu a proposta de que se deveria "saber com os psicólogos acirram os ânimos, as histórias dos sofrimentos,
jogar" com a ques tão das definições, para se tirar "proveitos". dos preconceitos e das intolerâncias que cada um relata possibilitam
a criação de laços de cumplicidade e d e solida riedad e. São, sobretu-
(Diário de campo, 24/3/2002) do, as histórias dos insultos compartilhados que lhes permitem cons-
"O relacionamento com os médicos ou t ra vez gerou polêmica. trui r traços comu n s em suas subjetividades . Então, por mais con-
Uma das particip antes afirmou: 'Eu sei que não sou doente. Mas eu trad itório que possa parecer para uma abordagem que busca traços
acho que a gente tem que se r mais esperto. Devemos sab er jogar essen cialistas para explicar a organização das identidades cole tivas,
com essas definições. De que ad ianta eu dizer que eu não so u ? Vou são particularmente os traços da s ubj etividade qu e justificam eles
mudar a idéia dos médicos? Deixa eles pensarem o que quise rem."' estarem ali, escutando e se emocio nando com as dores do outro .
E m algumas reuniões foi possível ouvir d epoimentos, n ão exclu-
Para Alec, cada um pode ter suas teses e encaminh a r seu processo sivamente dos/as transexuais, mas de pais que estavam presentes, e
da forma que lhe parecer mais a propriada, mas o coletivo deve ter norou-se a idéia d e uma comunidade de emoções em funcionamen-
um discurso unificado e, nesse sentid o, não se pode concordar com to, que está para além da pessoa transexual.
a tese do transexual como alguém doente.
Essa relação com o saber e o poder médico é uma das questões- (D iário d e ca mpo, 22/l/2002)
chave ua condução da vida coletiva. De fato, os/as transexuais a inda "Éra mos 14 prese ntes na reunião. As mães de Ch us c Nayara
não conseguiram p roduzir discursos de resistência ao saber méd ico. estavam presentes, e uma terceira mãe, P ilar, que veio p ela primeira
Os ga)'S e as lésbicas têm Ltma d iscussão acumulada sobre a constru- vez acompa nhada de seu esposo, pedindo ajuda para a sua filha
ção das identidades, em um movimento explícito de produção d e (rransexual feminina). A mãe de Naya"ra falou das dificuldades em
conua-di scursos aos saberes médicos e religiosos. A transexual idade aceitar as mudanças da filha (transexual feminina). A mãe de C hus
não conseguiu li bertar-se das referências estabelecidas pelo disposi- relatou as dificuldades que a inda enfrenta para aceitar a s ituação.
tivo da transexualidade. Disse que muitas vezes pensou que Deus a estava castigando, que
deveria te r feito alguma coisa muito errada. ~empre teve um senti-
mento d e culpa muito g rande e se perguntava todos os dias onde
UMA COMUNIDADE DE EMOÇÕES tinha errado. (Era membro da igreja Testemunhas de Jeová)."
As reuniões do GIGT d ividem-se em duas partes: na primeira, são A reunião foi muito tensa e um clima de dor marcava os depoi-
discutidas questões ge rais e encaminhamentos práticos; na segun- mentos das mães. Nessa reunião, foi possível senti r concre tamente
da, há uma confraternização e um lanche. Nesse momento, ch ama- as complexas redes de sofrimentos qu e se tecem em torno dos(as)
do de "la hora de! picoteo", trocam-se informações sobre médicos, transexuais. T odos os presentes, militantes e simpatizan tes, ficaram
conversa-se mais livremente sobre vários temas, formam-se peque- calados, escutando as mães e as discussões entre elas.
nos grupos ou faz-se um círculo grande, em que se fala de temas Alguns pontos que foram abordados em suas falas:
variados. Talvez seja aí, fora da rigidez de uma pauta e das questões

222 223
homosse xual id a d e l•lc;.<"
:c.":.::.
"':.::."----' A REINVEN ÇAO 90 C O RPO: SEXUALI OA OE E G ~ N ERO NA EXP ER I ~NC I A T RANSEXU AL

1 - O reste de vida real : u ma das mães disse que s ua fi lha foi ao "sentido na carne o mesmo que eu" ou, como dis~e outro m il itante
psicólogo c que, na primei ra visita, já lhe foi exigido que deveria fazer do GlGT , "é mu ito bom e n contra r pessoas que sabem d o qu e e u
o teste de v ida rea l (deve ria usar roupas fem in inas) durante rodo 0 estou falando . Enconcrar gente como eu me deu um g ran d e alívio,
d ia . Para essa mãe, tal ob rigato riedad e é "imbecil", po rque não é si m - senti que n ão e ra uma lo u cura min h a, q u e não escava só" . O coletivo
ples de uma hora para ouua uma pessoa passa r a se vestir com ourras é um espaço de fa la e de enconcros.s
rou pas, "Afi n al, com o reagirá a vizinhança q ua ndo 'o' v issem vestido No processo de aceitação e d e construção d e uma nova id en t ida-
de m oça?" Destacou que seri a u ma dup la penalização: a lém dos seus de é importa nte a ca paci dade de ela bo rar uma h istória, e o encontro
sofri mentos e confl itos, que m daria emp rego para u ma pessoa vestida co m outras histórias si m ila res faci li ta esse processo. Não existe ne-
com roupas d e o utro sexo? A mãe d e Nayar a d isse pa ra ela não se nhum espaço socia l pa ra eles/as fala rem d e su as d ores e so frimentos
preocupa r, qu e afin al não e ra uma co isa rio co mplicada: e ra só pô r as c serem escuta d os sem o cri vo de esta rem sendo avaliad os. O s m o-
roupas qu a ndo esti vesse c hega ndo ao consu ltó rio d o psicólogo. m.en ros e m qu e se pôd e nota r a id éia d e "co m pa rci lh am e n ro" ou d e
uma "co mun id ad e d e emoções" são aqu e les e m q ue eles/as esc utam
2 - Pi lar fa lo u mui to d a n ecess idade d e as m ães a ce itarem seus e fa la m so b re suas hi stórias vidas.
filh os. Segund o ela, indepe nde n te m e nte das o pções dos/as fi lhos/as, A pa rt ir da d in â mi ca inte rn a d e funcionamento do Gru po, po-
eles/::J.s co ntinu am sendo seus/s uas filhos/as. A m ãe d e C h us con cor- d e m ser propos tas alg umas questões de ord e m m a is ge ra l: a té qu e
dou , mas não nega a d ificuldade q ue se nte, po is ela gero u crês filhas, p o n to s uas prá ti cas e seu s d iscu rsos p rod u zem d esco n ti nu idades
e não du as filh as e u m fi lho (sua voz com eçou a falha r. As pa lav ras já su bve rs ivas? Q ua l a capacidade d e essa ex pe riê nc ia p roduzi r e o rga-
não saíam co m Ouidez. P re nunciava-se o cho ro). Essa posição imediara- ni za r conu a-d iscursos às n o rmas d e gê n ero? Essas não são q u estões
m e m e fo i rebat ida pela m ãe a n te rio r com um a p e rg u n ta: "Qual é a simp les, do ti po ca usa e efeito, o u q ua ntificáveis, daí t ra ta r m os a
do r ma i o r ~ t a su a? O u a d o seu filh o, q ue v ive a rod o in sta nte 3 expe r iência cole ti va co m o u ma "comunidad e d e e m oções" .
humilhação d e não ser aceiro? Pa ra que ser m ãe? O q ue é ser m ãe~" Pl ummc r ( 1993) d iscu t irá a co n s timi ção de "co munidad es d e
emoções" refe rindo -se à din â m ica orga nizacio na l d os gru pos d e gay.r
3 - N a ho ra do "picoteo ", as conve rsas girava m bas icam e n te e m c lésb icas . Vi fiueles (2 000) ta mbé m interp retará as ent ida d es d e
rorn o das h is tó rias d e v is itas aos psicólo gos . U m dos p a rti ci pantes m u lh e res lés bi cas como "comu nid ad es de e m oção" . Na q uestão d a
afirm o u : "Todos os psicó lo gos que fu i dissera m -m e q ue eu e ra lés bi- tra nsex ual idade, a id é ia da u n id ad e at ravés da subj etivid ade assume
ca . Fo i só a pa rtir d o m o m ento que eu cheg uei a esse últim o e disse aspeccos pa rt icu lares, po is, co nforme a po nta m os, a prov isoried ade e
'eu so u tra n sexua l e p reciso d e um pa recer seu p ar a q u e eu possa a complexidade interna d o q u e se c h ama "identidade t ra nsexual"
to m ar os ho r mônios', q u e co nseg ui a lg uma co isa." O u t ro co m en- d ramatizam esse traço . Já d iscu timos q ue não é a orientação sexu al
rou : "Ch eguei ao psicólogo e d isse a m esma coisa, eu sou uan sexual;
sabe o q u e ele me d isse? ' Você faz te rapia h á d ois a nos?' 'Não .' 'En-
tão, você não é cransexua l. "' s A tilfusJo c.)crir.1 de un'l conjunro de experiênci=ts forma pane do que ~e cham., 'notrr:uivas pessoais' ou
"t/g l"Oiniug-out stori~s" {Lewin,l991 ) . Traca-se de um novo gênero lirc:drio escrito por gnys, lésbic:~.s,
u.1nscxu:.is c inrcrsc.:xos, atr:J.Vés do qual são os próprios sujeitos que revelam, inlcrprct:Hn c negociam
Aos p o ucos, vêem-se dese n h a r traços d e u nidade b aseados em sua idenlidade conl as norn'las de gênero. O cexlo Je Hcrculinc B:ubin pode ser considcr:a do um dos
precursores desse estilo litcdrio. Para a leitura de alguns relato> atuo-biográficos. ver: Herzer ( 1995).
laços a p aren temen te inv is íveis, mas q ue têm com o lastro de susten- Alburquerque & j.111nelli (199G). Rito (1998). Gimeno (2002). França (2000). Sobre esse novo
tação as em oções e a necessid ad e de e n con tra r pessoas q ue ten h am gênero liter.írio, ver Campos ( 1999), Lcwin ( 1991). Viiiuales (2000).
homosu~tual idade I • IL.;:;cu"-"lt~
u•c:c•- - - '

1.
que os iguala, tampouco uma concepção umca de gênero, e, ainda,
sob esse guarda-chu va ch amado "rransexu al" enco n t ramos pessoas
que reivindicam o direito à iden tidade de gêne ro sem c irurgia. Essas
questões (corpo, o rientação sexual, questões legais) propiciam que
seja m arriculados pontos de unidade que só ga nh am uma maior
consistênc ia quando se abre espaço para a fala, para a comunicação
de dores e excl usões.
Tentou-se mostrar como as posições transexuais (e não a " identi-
dade tra nsexual") criam fissuras por muitas caminhos. t como se
fosse um ri zoma, uma raiz que não tem um a ün ica direção para NOTAS FINAIS
nascer e se espalh ar. Ao serem discutidos os desloca mentOs e os exer-
cíc ios d e co mposição, tinha-s e em m e nte a r g umenta r que as
dissonâncias enrre sexo, gênero e sexualidade, c a impossibilidade
de pensar qualquer determinação natura l para uma s uposta corres-
ponqênci a entre esses níveis, já traziam em si uma ruptura com as
normas. Ao mesmo tempo, empreendi um esfo rço para despatologiz.ar
essa expe ri ência à m edida que insisti em argumentar q ue não é pos- Diance d e um "objeto de pesquisa tao incomu m para a Sociologia,
sível compreendê-la se nos limitarmos ao sujeito como fome exclu- ::~sperguntas m a is freqüentes d uran te o desenvolvimento deste tra-
siva da expe riê nc ia. Daí utili za r-se re iteradame nte a co n cepção d e balho eram: "Como são os rransexuais? Como eles vivem?" No iní-
subj etividade, pois, ao mesmo tempo e m que habita as narrativas c io da pesquisa, respondia com um cerro ar de satisfação pelo inte-
dos suje ito~ que vivcnciam a experiência, ela as relaciona a co nrcxtos resse que o renu "rransexua is" s uscitava. No e ntanto, a imersão na
soc ia is mais amplos. segunda eta pa do trabal ho de campo, já distante d o contexro hospi-
Quando rea lizei esse movimento de articulação entre as falas dos talar, c a aproximação com os estudos queer co meçaram a produzir
suj e iras, relacionando-os aos campos sociais, d e parei-me com a for- um efe ito de incômodo d ia nte do pronome "eles".
ça regu lató ria das normas d e gênero, que atravessa m e corram rodos Esse "e les" imp õe e es tabe lece uma distância int ran sponível.
os campos sociais. Ao fazer esse m ovime nto d e arriculação teórica, " Nós", os de dentro, "eles", os de fora, aqueles que ninguém sabe
esfo rçan d o- m e para co mpreender as dinâmicas internas à experiên- como v ivem, nem co isa alguma sobre suas sexua lidades, seus sonhos
c ia, notei qu e as marcas definidoras, ca racte ri zado ras, dos sujeitos c seus desejos. É muito fác il torna r exótico um campo novo de estu-
co nside rad os tran sexuai s desapareciam e, em seu lu ga r, emergiam dos, processo muitas vezes disfarçado d e "estranhamento" .
jogos de n egociação que colocavam em destaque traços valorizados Mu itas vezes, quando relatava "suas" v idas, con tribuía para essa
socia lmente para dar vida aos gêneros. cxorização, um caminho segu ro para a paro logização. A cada relato
Agora, caminhando para a conclusão, surge um certo d esconforto d e como "eles" viviam, alargavam-se as margens, construía-se uma
em se fa lar "d os/as transexuais", como se essa experiê n cia esgotasse e alteridade absoluta entre_ "nós" e "e les", e cu m e constituía nessas
fixasse os sujeitos que vivem determinadas experiências d e deslocamenro. na rrat ivas co mo aquela que está dentro, municiada da autoridade
que o trabalho de campo e a própria ciência m e conferiam. A pergunra

2l6 227
homossex ualidade] e cu:;:.h:.:o
c:.l v:.:o
•• - - - ' A REINVENÇÃO DO CORPO: SE XUA LIDADE E GtNERO NA EXPERitNCIA TRANSEXUAL

" Como eles vivem?" passou a ter um resultado diferen te. No lugar afirmando, a experiência transexual provan a justamemc o êxiro d as
de uma dissertação sobre "eles", a resposta se rra nsfo rm ou em uma no r mas de gê n e ro.
indagação: " Eles> Não ex iste um 'eles'." Em ú ltima instância, foi No e ntantO, essa po nderação, embora vá lida, esbarra em alguns
isso qu e te ntei argumenta r ao longo deste trabal h o . ponros. Prime iro, os descolamencos que a ex periência realiza já reve-
Não existe um processo específico para a co n sti t u ição d as ide n - lam o ca rá ter ficcional dessas n ormas. O co rp o transexu a l apon ta
t idades de gê nero para os/as tra n sexua is. O gêne ro só ex iste na que a matéria de s us tentação e de s u porte d essas normas é vul nerá-
prática, na experiência e sua realização se dá mediante re iterações vel, pois é fundamenralmenre "plástica", flexível, rompendo as fro n -
cujos co nteúdos são interpretações sobre o m asculino e o femini- Leiras e ntre c ultura (p lástico) c natureza (corpo).
no, em u m jo go, muitas vezes contraditó ri o c esco rregad io, es ta- Segundo, fal a r que a experiê n cia transexu al retorna ao dimorfismo
b e lecid o co m as no rm as d e gên ero. O ato de pô r uma ro upa, esco- é su por que rodos/as os/as t ra nsex u<~. i s têm os m esmos co nfli tos e as
lh er uma cor, acessó ri os, o corte de cabe lo, a forma de andar, en- mesmas respostas para a relação entre co rpo, su bjetividade, sexuali-
fim , a esté ti ca e a es tilística co rporal, são aros qu e faze m o gêne ro, d ade e idenL idade de gênero. D e ntro do que se nomeia "transexu a l",
q u e v is ibilizam e estabiliza m os co rp os na ordem di coromizada h á um a cons ideráve l pluralidad e de a rticul ações dos ní ve is
dos gê n e ros. Tamb ~ m os/as homens/mulheres bio lógicos/as se fa- co nstitutivos d as posições d os suj eitos.
ze m na repeti ção d e aros q ue se su p õe seja m os m a is naturai s. A O controle so bre os corpos transexuais se dá m ed ia nte um saber
partir da c itac ionalidade de uma suposta o r igem, tran sex u ais e es pecífico que está para além do desejo de co ntrol ar as p erforma nces;
n ão- tra n sexu ai s ig u a la m -se . ~ busca-se inte rferir n a o rganização da subjetividad e e na definição da
A ex p e riência rransexual põe em d esraquc aque les aros discursivos \ sex u<~.lidade a prop riada. A esse saber polimo rfo, nomeei "dispositivo
e co rpo ra is co nsid erados socialmen te importantes para d a r v ida aos da tra n sex u a lid ad e".
co rp os-scxuados, ao m esm o tempo em que os d esloca. Se a exper iência O d ispositivo põe e m fun cio n ame nto, provave lm ente, um d os
nega a origem bio lógic:1 para a explicação dos compo rta m entos, co n- m<~. i s dramáticos exemplos d e autoridade profissional contemporâ-
traditoria m e nte, é a press uposição d essa o rigem n a tural qu e ge ra rá nea. Essa autoridade é o btida e se fund a m enta em uma inversão qu e
as ex pectativas e as suposições sobre as ca nduras aprop r iadas para os legitim ará o fun c ionamento do di sp ositivo: supõe-se q u e a font e
gê n e ros. d os confli tos está no suje ito , e não nas normas d e gên eros.
Os corp os dos rra nscx ua is e dos n ão- tra n scx u a is são fab ri cados Destaquei a lgumas das est ratégias d iscurs ivas e não-discursivas
por tec nologias precis:1s e so fi sticadas que têm como um d os m ais q ue os/as transex ua is a rticu la m ao lo n go do tempo em que são obri-
poderosos resultados, nas subjetividades, a crença d e que a d ete rmi- gados a freqüentar o hospital , negociando posições que lhes possibi-
nação das identidades esrá inscrita em a lguma parte dos cor pos. A litem ascender às c irurgias. Não se pode esquecer que é a pos ição d e
expe riê nc ia transexual realça que a p r imeira c irurgia que nos con sti - pode r dos membros das equipes que os faz p rocurar espaços de
Lu i u em co rp os-sexuados não co n seg uiu ga ranti r sent id os posicio nam en to m a is favoráveis. As o brigações impos tas pelos pro-
ide ntitá rios, a ponta ndo os limites discursivos dessas tecnol ogias e a toco los, tratados aq ui co m o o n ível operacio n al d o dispos itivo, os/as
possibi lidade rizomática de se c riarem fiss uras nas normas de gêne- levam a esta be lecer esrratégias de negociação em torno d as ideal izações
ro, co nforme discutido no capítulo sob re identidade coleti va. do m ascul ino/fe minino.
Talvez. se possa argumentar que, ao reivindicar a transgenitaliz.ação, O trabalho da equ ipe m édica co ncentra-se na realização d a asseps ia
reafirma-se o dimorfismo e, com isso, ao con t rár io do qu e se está dos co rpos-seXLta dos, p or m eio de proroco los visíve is e invisíveis.

228 229
homosse-xual id ade l·~lc::u:,::ltc:::u•c::.•---' A REINVENÇÃO DO CORPO: SEXUALI DADE E G~NERO NA EXPER I ~NCIA TRANSEXUAL

Mediante interpelações prescrmvas, testes, olhares, terap 1a, enfim, para que esse corpo esteja de aco rdo com a m ente e, ass1m, exercer a
tesouras e próteses simbó licas, busca-se reti rar o excesso, cortar a sexu alidade n o rma l com uma pessoa normal."
a mbigüidade e recuperar a suposta unidade pe rdid a naque les cor- O que t e ntei apresentar foram hi s t ó ri as d e tran s exuais
pos pré-operados. (1) que não se relacionam ig u alme n te com suas genitá lias, (2) que
Depois de anos freqüentando sessões de terapia, fazendo exames não têm aversão total aos seus corpos - ao contrário, a auto-imagem
rotineiros, submetendo-se a vários restes d e persona lid ade, a sessões corporal é freqüe ntemente positivada; (3) que não fazem a c irurgia
d e fonote rap ia, a inda paira uma dúvid a nos membros da equ ipe, muitas mo t ivad os fundamentalmente pela sexualidade; e histórias onde (4) a
vezes n ão anunciada clarame nte: " Será que ele/a é um /a transexual de homossexua l idade es tá prese nte en tr e as mulhe res e os hom e n s
verdade?" Na prod u ção do diagnóstico, o ún ico m apa seguro qu e transexuais e (5) a ele ição das díades amorosas não ocorre de forma
orienta a movimentação d os membros da equi pe são as ve rdades acei- retilínea: hom e n s/ mul h eres transexuai s desejam h o m en s/mulheres
tas socialmente para se d efinir "um homem/ uma mulher de verd ad e". não-transexu a is (ou seja, "normais", segundo Benjamin). Muitos ca-
O s níveis de feminilidade/masculinidad e esta belec idos para que sais são formados p or pessoas que se definem com o transexuais, seja
a c irurgia seja indicada são organizados pela matriz qu e co nfe re em re lações hete rossexuais, seja em relações h omossexuais.
inte lig ibilidad e aos gêneros e que te m na heterossexualidade um d e Diante de um a considerável pluralidad e d e respostas sobre o papel
seu s _pi lares d e sustentação . Acredita-se qu e os/as transcxuais d ese- da c irurgia, e n fat izei que a qu estão cirurgia/iden tidade de gênero é
jam realizar interven ções em seus co rpos para que p ossam estabele- uma e n t re o utras . Mas isso não s ign ifica que se esteja diminuindo
cer a unid ad e entre ide ntidade d e gê n ero e sexu a lidad e, quando o sua importânc ia para aqueles que v ivem o d rama de terem em seus
qu e os/as tra nsexua is busca m com essas c irurg ias reparado ras é o co rpos partes abje tas, identificadas como respon sáveis por s uas do-
reconhecimento de seu perte ncimenro à h umanidade. A huma ni- res c exclusões . O reconhec ime nto da legi timidade das c irurg ias, no
dade só existe e m gêneros, c o gênero só é re co nhecível, só ga nha e n tanto, não represenra a reafirm ação da a utoridad e dos profiss io -
vida e adq uire in te ligibi lidade, segundo as no rmas d e gê n ero, e m nais en vo lvidos n o processo d e pro dução do diagnóstico e m dec idir
corpos- ho m e ns c corpos- mulheres . Ou seja, a reivindi cação Cd t ima pelo/a transexual. A infanrilização do/a transexual por parte do dis-
dos/as rra nsexu ais é o reco nhecimenro socia l d e su:1 co nd ição hum a- pos itivo d a transcxualidade é um dos s ubtcxtos que s ustentam os
na. Contud o, te r um "corpo apropriado" ao gê n ero n ão sig nifi ca qt~ e protocolos v isíveis c invisíveis. D essa forma, as obrigações se legiti-
se esteja reivindicando a h eterossexualidade. m a m por inte rm édio do argum e nto d e q u e se está agindo p a r a
A partir dos a rg um entos a presentados sobre a necess idade d e protegê-los/as d e uma dec isão equivocada e de qu e as obrigações
desconstruir o rra nsexual universal, tanto em sua verte nte psicanalis- protocoladas são todas para o seu bem.
ta, q uamo na biologis ta, aqu i nomeados de "tra nsexual stolleriano" e Os conLroles e os sa beres que estruturam esse dispositivo co ntras-
"tra nsexual benjamin iano", respeC[ivamentc, poder-se-ia deduzir q ue tam com os mecan ismos liberais do saber médico qua ndo se referem à
estou relati vizand o a imponância d a cirurgia. D e fato, eu a rclativizo reconstru ção plástica de outras partes d os corpos. De uma forma ge-
n o que se refe re a formu lá- la como úni co cam inho p ossível para a ral, argumenta-se que as c irurgias que os/as transcxuais re iv indicam
resolução d os confli tos en tre corpo, sexualidade e identidad e de gêne- são irreve rs íveis. Mas uma cirurg ia em um nariz também é, nesse
ro e tomá-la com o referência a panir da qual mdos/as os/as transexuais sentido, irreversível: a forma "original" estará para sempre perdida.
são avaliados. N as teses oficiais, rudo aparece un idirecio n almenre: "O O s/as tra n sexu a is reivindi cam um tipo d e c irurgia que questio-
tra nsexual tem uma rejeição abso luta ao seu corpo, deseja a cirurgia na as bases d e s ustentação d os corpos-sexuados. A binari edade que
homossexualid ad•l•c:lc::;.
ult:..::u:..::r•_ __J A REINVENÇI\0 DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERI~NCIA TRANSEXUAL

o ri enta o olhar do profissional de saúde mental e dos endo- em pato logizá-lo . A reJetçao ao pems e aos seios é, por um lado, a
cr.in ~log istas sobre os corpos n ão aceita que a ci rurg ia reparadora negação da precedência explicati va do bio lógico sob re o cultu ral e o
sep tnterpretada como uma plástica corretiva da assignação inic ial, ques tionam ento d as teses psicanalíticas que partem da diferença se-
quan~o se determinou que o bebê, por ter um pênis/uma vagina, xual para exp licar a gênese do suje ito.
devena atuar de acordo com a s press uposições estruturadas social- A experiê ncia tra n sexual parece questionar as binariedades que
m e nte para o seu co rpo. Vale reco rdar a posição de H a rry Benjamin , funda m a psique dos gê neros: a inveja do pênis e o complexo da
segundo a qual onde há esperma há masculinidade e onde há óvulo castração são aqui invertidos, em baralhados, questionados, negados.
h á feminil idade. Ou seja, existe uma dett:rminação n a t uralm ente A mulher transexua l "in veja a vagina" no sent ido d e d eseja r desen-
dimórfica na cons tituição d as identidades sociais. vo lver as performances fem inin as; o homem transexual re ivindica
Talvez se possa argumentar q ue seja um excesso co mp; rar uma que lhe ti rem o útero, os ovários, os seios e, ao proceder assim , nega-
plástica no nariz de alguém que deseja ajusLá-lo a d eterminadas ex- se a reso lv e r o complexo d e castração pela maternidade. H á uma
pectativas e id ealizações co rporais a um a c irurg ia co rretiva das subversão dos cânones que fundamentam a psicanál ise dos gên eros.
gen itá lias . O m a is prude nte, e ntão, seria propor outro exemplo, Se p ara muitos/as transexuais o direito de realizar as c irurgias
p ara corroborar o argumenro de que esse dispositivo funciona a ser- não d eve estar vinculado ao poder médico, para outros, a mudança
VIÇO da heteronormatividade. dos do cumentos tampouco pode estar condicionada à real ização das
U m levantam en to dos trabalhos apresentados no Co ngresso ciru rgias. Nesses casos, os do cumentos com o nome próprio de aco r-
Mundial de Sexolog ia (Cu ba/ março d e 2003) reve la um conside- do com o gênero identi fi cado, as mudanças corpo rais pelo uso d os
ráve.l número de comuni cações q ue ap resentam e propõem técni- hormônios e a lgumas técn icas para co nseguir um a estética cons ide-
cas tnovado ras de " implantes d e próteses infláveis e e nxertos veno- rad::t apropriada são transformações sufi cientes para lhes gara ntir u m
sos para a d isfunção sexual" , a lém d e vá rias técnicas "cirúrgicas d e sen tido de iden tidade . Para eles/as, as ciru r gias de transgenitalização
ala~gamenw d o pênis". No e n ta nto, aq ue les qu e qu e re m p ê nis não rêm importância. A gen itá li a, nesses casos, n ão é um lugar
maio res não são passíveis de serem cons iderados transrornados, saturado de s ignificados para as s uas sexua lidades ou existências . A
d oe ntes ou p s icóticos , tampo uco se estabelecem procedimenws sexu a lidade está d eslocada radic::dmenre do ó rgão reprodutor. O pê n is
d e co ntrole mater ial izados em p rotocolos qu e definem r egras e e a vagina estão ali , faze m parre do seu co rpo, não se constituindo
n o rmas p ara esse homem que deseja ter um pênis com "d ime n sões u m Locus de produção de co nfli tos . A ide ntid ad e lega l de gê nero,
sa risfatórias". então, é a principa l reivindicação. Co nfo rme apo ntou u ma d as en-
As técnicas servem para ga rantir o bom funcionamento da virili- t rev istadas, "é sempre muito constrangedor ter que explicar o tem-
d ade masculina . O que difere um home m que d eseja um pê nis maio r po todo que aquele q ue está na fo to da minha identidade sou eu . Já
de ~ma pessoa que não o quer? Qual a diferença d e uma p essoa que acontece u de chamarem até a polícia, po rqu e pensaram que eu t i-
faz Impla ntes de próteses nos seios para se tornar mais feminina d e nha roubado os documentos de a lgum h omem. Eu não posso ter
ou tra que não os quer? As respostas a essas questões podem seau ir uma conta no banco, não posso faze r um crediário, en fi m , é semp re
muiros camin hos. O que trilhe i neste trabalho me leva a concluir a mesma coisa. Quando pedem os meus documentos, parece que o
que, enquanto o desejo de ter um p ênis ou seios com determinadas ch ão vai abrir sob meus pés".
dimensões e formas reforça a idea lização dimórfica dos co rp os, 0 O di reito à identidade legal de gênero é particularmente importan-
corpo transexual a põe em xeque, daí a necessidade do dispositivo te para os transexuais masculi nos, que, de forma ge ral, não fazem rodas
homou~JC.ualidade l·~lcu::_;;lto.:."':.:.•_ __J A REINVENÇÃO DO CORPO: SEXUALIDADE E G~NERO NA EXPERI~NCIA TRANSEXUAL

as cirurgias consideradas pane do "processo transexualizador". Confor- No Seminário In ternacional de Identidade de Gênero (Valência/
me apomei, muiws não realizam a cirurgia para a fabncação do pênis. 2001), uma mulher transexual comentou: "Imagine que você esteja
Embora a experiência uansexual revele que a identidade de gê- em um quarw. Chega alguém, fecha a porta e diz a você: 'Agora você
nero não é determinada pelo corpo, a justiça, para ate nder a suas vai escolher alg uma coisa que está aí.' Aí você olha para um lado,
demandas, exige que o/a transexual tenha se submetido a wdas · as para o outro, e começa a abrir as gavetas. Tem a 'gaveta homem' e a
cirurgias ou pelo menos a uma parte delas. Um dos argumentos diz 'gaveta mulher', tudo muito bem etiquetado, mas também tem a
respeito à capacidade reprodutiva de um corpo não-cirurgiado. Pode- 'gaveta gay' e a 'gaveta lésbica'. E você não encontra nenhuma gaveta
se deduzir que, depois d a cirurgia, será um/a homem/mulhe r, po- para se m eter. Mas eu tenho que me definir. Então me defino uma
rém incompleto, já que uma das modalidades definidoras dos sujei- mulher transexual lésbica . Mas não m e si n to totalmente mulh er,
tos generificados, a capacidade reprodutiva, estaria ause nte. Retoma- não sei bem o que significa se r rransexua l e agora estou lésbica. Onde
se, ass im , à questão da heterossexua li dade como matriz de está o problema? Durante muito tempo e u pensei que eu era o pro-
inteligibilidade dos gê neros . blema. Hoje eu sei, c isso pelo menos me dá um pouco mais de paz,
Depo is da cirurgia, mesmo que consigam as mudanças legais, os/ que o problema está lá fora."
as transexuais serão sempre identificados como seres incompletos, e a As histórias d e H erculin e Barbin, Manuela, Juana Ramos, Moisés,
incomplcrude aqui é interpretada pelas teses oficiais como anormali- Sa ra, Pedro, Carla, Maria, Bea Espejo, Andréia, H elena, Kátia, Pa-
dade. A ausência da capacidade reprodutiva rende a posicioná-los/as trícia, Marcela, V itória, Bárbara, João, Joel, Alec, C hus, A n nabel,
inexoravelmente às margens, não permitindo que asce ndam à condi- Natáli a, Mana interrom pem a linha de continuidade e de coerência
ção de humanos. Esse talvez seja o resultado final da patologização da que se supõe n atural entre corpo, sexualidade e gênero, ao m esmo
exper iência levada a cabo pelo dispositivo. Conío rme sencenciou tempo em que apontam os limites da efi cácia das normas de gênero
Ramsey, os/as ''transcxuais nunca st:rão normais". Mas, diante dessa/e c abrem espaços para a produção de fissuras que podem, potencial-
mulher/homem "incomplero", porém cirurgiado, pelo men os se ga- mence, transfo rm ar-se em contra-discu rsos c libertar o gênero do
rantirá a norma estética corporal que define que mul heres têm vagina corpo-sex uado .
e hom ens têm pênis. Através da aparência d os corpos-sexuados asse-
gura-se a reprodução parcial das normas de gênero . A luta dos/as
transcxuais pelo direiro à identidade legal de gêne ro sem a realização
da cirurgi:t esbarra na matriz de inreligibilidade dos gê n eros, mas este
encontro acaba produzindo efeitos inesperados, como a própria expo-
sição/explicitação dessa matriz. .
Essas duas questões- direito à realização da cirurgia fora do dis-
positivo da rransexualidade e direito à identidade de gênero sem
cirurgia - foram retomadas aqui, por um lado, para reafirmar a ne-
cessidade de se problematizar o poder médico, que se supõe o de-
tentor da verdade última sobre os corpos dos sujeitos, e, por outro,
para apontar os limi tes das catego rias consrruídas socialmente para
posiCIOnar os sujeitos.

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