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PITTACUS LORE

OS ARQUIVOS PERDIDOS:
A ÚLTIMA DEFESA

OS LEGADOS DE LORIEN

TRADUÇÃO DE CÁSSIA ZANON


COPYRIGHT © 2016 BY PITTACUS LORE
Todos os direitos reservados à Full Fathom Five, LLC.

TÍTULO ORIGINAL
The Lost Files: The Last Defense

PREPARAÇÃO
Mariana Moura

REVISÃO
André Marinho

REVISÃO DE EPUB
Bruna Cezário

ADAPTAÇÃO DE CAPA
Julio Moreira | Equatorium Design

GERAÇÃO DE EPUB
Intrínseca

E-ISBN
978-85-510-0088-5

Edição digital: 2016

1ª edição

Todos os direitos desta edição reservados à

EDITORA INTRÍNSECA LTDA.


Rua Marquês de São Vicente, 99, 3º andar
22451-041 — Gávea
Rio de Janeiro — RJ
Tel./Fax: (21) 3206-7400
www.intrinseca.com.br
SUMÁRIO
Capa
Folha de rosto
Créditos
Mídias sociais

Capítulo um
Capítulo dois
Capítulo três
Capítulo quatro
Capítulo cinco
Capítulo seis
Capítulo sete
Capítulo oito
Capítulo nove
Capítulo dez
Capítulo onze

Sobre o autor
Conheça os livros da série
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CAPÍTULO
UM
O Escumador mog passa sobre Ashwood Estates e
dispara na direção do horizonte. Seis, Marina e Adam
estão a bordo. Um bando de garotos — adolescentes,
tecnicamente, mas para mim ainda são crianças —
prontos para atravessar o continente em busca de um
lugar chamado Santuário. Eles só sabem da sua
existência porque há muitos anos, durante uma das
muitas falhas na minha memória, eu contei aos mogs
que era importante para o futuro dos lorienos.
Espero, pelo bem de todos nós, que seja verdade. A
Terra está enfrentando uma invasão, e precisamos de
toda a ajuda que conseguirmos.
Ando quebrando a cabeça tentando me lembrar de
qualquer outra informação sobre esse lugar que, ao que
parece, é tão importante para os lorienos. Qualquer
detalhe que seja. Mas eu não me lembro de nada, e não
posso gastar tempo recuperando essas lembranças.
Tenho muito mais coisas com que me preocupar. A mais
importante delas é meu filho, Sam, que está se
colocando em perigo. Mais uma vez. Está prestes a
seguir para Nova York com John, Nove e alguns dos
agentes do FBI que se juntaram a nós para deter um
político corrupto e expor a ameaça mogadoriana.
Enquanto observo o Escumador desaparecer diante do
sol da manhã, me pergunto que tipo de pai deixa seu
único filho se envolver em tanta violência e morte. Fico
perdido nesse pensamento, sem encontrar uma resposta,
até a voz de John Smith interromper meu transe.
— Caramba, isso aqui parece uma zona de guerra.
Achei que tivéssemos apagado a maior parte dos
incêndios na noite passada.
Eu me viro e o vejo batendo o pé com força na grama
esturricada, um fio de fumaça saindo pelos lados do
sapato. Atrás dele está a casa da infância de Adam, as
janelas da frente quebradas durante a luta de ontem.
Tornou-se nossa base de operações improvisada.
— Acho que a reforma que vocês fizeram é uma
melhoria — digo, então aponto mais para o final da
quadra, para uma construção que foi demolida. —
Sempre detestei essas casas pré-fabricadas.
Estou tentando manter um clima leve para esconder a
preocupação com tudo o que está por vir. Tentando
parecer corajoso.
— Se eu fosse vocês, também não me importaria em
ver isso aqui em chamas.
Ele fixa os olhos nos meus e sorri, mas percebo que
está me avaliando. Como líder informal dos lorienos, John
deve achar que precisa cuidar de todo mundo. E faz
algum sentido que ele esteja de olho em mim. Não muito
tempo antes, eu estava preso nas instalações muito
abaixo de nossos pés — os túneis, os laboratórios de
pesquisa e as mesas de cirurgia que foram construídos
embaixo de Ashwood, onde a brutalidade dos mogs
encontrou um lugar para incubar e florescer. Se não fosse
por Adam, eu teria morrido ali. Ou coisa pior. Nem
imagino o que poderia ter sido “pior” no meu caso, mas
não tenho dúvida de que os mogs são capazes de algo
mais pavoroso do que a morte. Se alguém aqui for perder
o controle, eu sou o candidato mais provável.
Ainda assim, bem lá no fundo eu me sinto péssimo,
como se precisasse provar meu valor à causa. Talvez não
me sentisse assim se não tivesse sido o culpado por
vazar tantos segredos lóricos aos mogs, mesmo contra
minha vontade. Essa é uma das piores partes de não
lembrar muita coisa da última década: tudo o que sobrou
daqueles anos perdidos é traição, dor e a certeza de que
minha família estava por aí sem fazer ideia do que havia
acontecido comigo.
Balanço a cabeça, tentando organizar os pensamentos.
Um dos efeitos colaterais da minha mente ter sido
adulterada pelos mogs é que me distraio com facilidade.
Tenho a tendência de ir atrás de lembranças há muito
esquecidas, como se fossem coelhos no país das
maravilhas.
— Acho que tem razão — respondo.
— Você devia tentar descansar um pouco — diz John,
uma pequena ruga se formando entre as sobrancelhas.
— Tente não trabalhar demais. Quando foi a última vez
que dormiu?
— Quem precisa dormir quando se tem café e filmes
caseiros mogadorianos para assistir? — pergunto com
um sorriso desanimado.
Desde que tomamos o bairro, no dia anterior, venho
assistindo a vídeos encontrados nos arquivos do
subterrâneo de Ashwood.
— Obrigado por ajudar com isso. Quem sabe o que
podemos aprender com esses registros? Você é o único
aqui a quem podemos confiar assuntos dessa
importância. Mesmo que a equipe de Walker esteja do
nosso lado agora.
Tenho certeza de que John está fazendo um elogio,
mas há algo nas entrelinhas. Talvez ele nem sequer se dê
conta, mas está me lembrando de que não há espaço
para mim na próxima missão. Alguém precisa ficar para
trás e coletar dados, e eu sou só um velho muito bom
com um rifle, não um guerreiro como eles. Meu lugar é
aqui. Ele é um líder com um carisma impressionante para
a idade que tem. Mas eu preciso continuar lembrando a
mim mesmo de que, na verdade, ele é apenas um
adolescente, num momento da vida em que deveria
estar aprendendo cálculo ou química. Todos esses
garotos agem como se tivessem dez anos a mais do que
realmente têm (exceto, talvez, por Nove, que parece ter
parado nos treze anos).
John aponta com a cabeça para um imenso falcão
empoleirado em um galho de árvore.
— Os Chimæra estão patrulhando a área para o caso
de os mogs perceberem que não há ninguém mandando
notícias de Ashwood e decidirem investigar.
— Se os mogs estão mesmo se preparando para uma
invasão, devem ter coisas mais importantes com que se
preocupar do que Ashwood — pondero.
— Ainda assim, eles estão cuidando de você. Além
disso... — Ele olha ao redor, certificando-se de que não
há ninguém ouvindo. — Walker e a equipe dela estão nos
ajudando por enquanto, mas eu me sinto melhor
sabendo que os Chimæra protegerão você caso alguma
coisa aconteça. Eles vão ficar por aqui até voltarmos.
Sabe assoviar?
— Claro.
— Ótimo. Aquele lá, o Gamera, é seu novo guarda-
costas. Se você assoviar, ele virá correndo. Ou voando, o
que seja. — Ele encolhe um pouco os ombros. — Foi ideia
de Sam. Ele acha que você prefere o Gamera, já que o
batizou. De toda forma, mandei todos eles ficarem
escondidos. Os agentes de Walker sabem o que são, mas
se qualquer um aparecer, os Chimæra foram orientados
a não se transformar. Quanto menos gente souber deles,
melhor.
A porta da frente se abre, e Sam aparece na varanda
segurando um prato cheio de discos amarelos. Um deles
está pendurado em sua boca, balançando quando ele
salta no gramado.
— Cara, tem waffles congelados lá dentro — conta a
John enquanto mastiga. — Não sei se eram do pai do
Adam, se os federais trouxeram ou sei lá, mas tem, tipo,
dez caixas no freezer. — Ele balança a cabeça. — Todos
esses waffles e nada de calda. Monstros!
— Legal — diz John, pegando um.
Sam se esquiva, dando meia-volta para o prato ficar
fora do alcance.
— Estes são meus. Pegue os seus. E eu correria,
também. Nove fica chamando os caras do FBI para uma
queda de braço, e tenho quase certeza de que Walker
está prestes a sedá-lo ou coisa parecida.
John balança a cabeça e olha para mim outra vez.
— Lembre-se: basta assoviar.
Então ele entra.
— Você gostou? — pergunta Sam, o rosto iluminando.
— Do assovio, quer dizer. Foi minha ideia.
— John me contou. Brilhante.
Ele sorri e estende o prato.
Levanto as sobrancelhas.
— Achei que fossem seus.
— Coma uns waffles, pai. Duvido que você tenha
assaltado a geladeira no meio da sua sessão noturna nos
arquivos.
Como se tivesse escutado a deixa, meu estômago
ronca.
— Viu? — Ele coloca o prato em minhas mãos e pega
mais dois waffles para si. — Estão preparando café lá
dentro, mas esses agentes são tão viciados quanto você.
Tentei pegar uma xícara, e um deles até rosnou para
mim.
— Sam — digo. Não quero estragar o humor dele, mas
nosso tempo juntos está acabando. — Sei que não é
novidade para você, mas essa viagem a Nova York pode
ser muito perigosa. Se Setrákus Ra estiver planejando
uma aparição pública e der errado...
— Eu sei — interrompe ele. — Vou tomar cuidado. Se a
gente se meter em uma briga, vou deixar o heroísmo
para os verdadeiros super-heróis alienígenas. Não se
preocupe comigo. Apenas tente encontrar alguma coisa
aqui para nos ajudar a acabar com esses mogs de merda.
Dou um suspiro exagerado.
— O que sua mãe diria se ouvisse você falando assim?
Como se falar palavrão fosse um problema a esta
altura do campeonato. Eu nem sei de onde veio essa
reação. Acho que parte de mim ainda está tentando
disfarçar a preocupação, como se deixar que esses
garotos saibam o quanto estou com medo por eles — por
Sam — terem de ir para a linha de frente pudesse de
alguma forma destruir sua coragem aparentemente
ilimitada.
— Acho que tenho mais medo de mamãe me
acorrentar no meu quarto e nunca mais me deixar pôr os
pés do lado de fora quando eu voltar para casa, depois
que tudo isso terminar. Ah, falando nisso, será que eu
devia ligar para ela e contar que ainda estou vivo?
Penso na minha esposa. Na última vez que a vi —
quando voltei após anos desaparecido, só para descobrir
que Sam também tinha sumido —, ela não ficou muito
empolgada ao saber que eu culpava os alienígenas pelo
meu sumiço. Desde então, não se deu ao trabalho de
falar comigo.
— Vai lá — respondo. — Mas lembre-se de que o
telefone dela deve estar grampeado, então não entre em
detalhes. Eu... vou esperar até ter alguma coisa boa para
contar a ela. Daí eu ligo.
— Por falar nisso... Tome — diz ele, me dando um
telefone via satélite.
Bato nos bolsos, percebendo que não estava
carregando o meu. Sam continua:
— É, este é o seu. Adam estava mexendo nele. Parece
que os sistemas de comunicação da Terra são bem
básicos. Este aqui deve arrumar sinal, tipo, em qualquer
lugar. Ou pelo menos é o que Adam disse.
— Excelente — comento. — Todos deveríamos começar
a andar com um desses aqui, sempre.
Sam encolhe os ombros.
— Acho que sim. Mas você sabe em quantas brigas nos
metemos. Eletrônicos não duram muito conosco. É por
isso que estou deixando este com você. Vou convencer
Adam a fazer um para mim quando voltarmos.
As portas se abrem atrás dele, e John aparece, seguido
por Nove, Walker e alguns outros agentes federais a
quem eu ainda não fui apresentado.
— Muito bem — diz Nove com um sorriso. — Vamos
cortar as cabeças de alguns políticos maus na Big Apple.
Sam revira os olhos.
— Fique com este telefone, pai. Eu ligo quando tiver
novidades.
Ele tenta me dar um abraço rápido e de lado, mas eu o
puxo para um abraço de verdade.
— Tchau, filho. Tome cuidado.
— Pode deixar. A gente se vê daqui a pouco.
E assim, sem mais, ele vai embora.
Essas crianças acham que são invencíveis, mas não
são. Mesmo alguns dos Gardes, com todas as suas
habilidades, foram mortos. Por um instante eu me
pergunto se poderia convencer Sam a não ir. Ligar para
ele e pedir para que fique em um posto de gasolina ou
algum outro lugar onde possa pegá-lo. Ele poderia me
ajudar a analisar tantos anos de dados mogadorianos nas
instalações subterrâneas. Mas sei que ele nunca
aceitaria, e tenho quase certeza de que não tenho
autoridade para proibi-lo. Ele já fez muitas escolhas
difíceis sem mim.
Por que me escutaria agora?
CAPÍTULO
DOIS
Deus sabe que eu estaria mais alerta se tivesse algumas
horas de sono, mas não me imagino fechando os olhos e
descansando se Sam está a caminho de Nova York. Não
quando há trabalho a ser feito. Então dou um jeito de
pegar café da cafeteira na cozinha e volto para as
profundezas de Ashwood. Com sorte, encontrarei alguma
arma secreta que destruirá os mogs. Ou pelo menos
informações que possamos usar contra eles.
Qualquer coisa para me dar a impressão de que estou
ajudando.
Uma longa escadaria numa sala nos fundos da casa de
Adam leva até os túneis. Enquanto desço, gesso e tijolos
dão lugar ao concreto e a algumas paredes de metal liso.
Tudo é seco, cinza e pragmático. Sinto os pelos da nunca
se arrepiarem conforme desço os degraus, embora eu
não saiba dizer se é porque o ar está ficando mais frio ou
porque coisas terríveis aconteceram comigo ali, mesmo
que eu não me lembre de quase nada. Gamera me
acompanha de perto, pairando sobre meu ombro na
forma de uma libélula. Eu o cumprimento com a cabeça.
É bom saber que meu filho toma conta de mim, é claro,
mas ao mesmo tempo me sinto um fracassado. Eu é que
deveria protegê-lo.
A parte subterrânea de Ashwood Estates é um
labirinto. Um nível se contorcendo sob todo o bairro com
túneis que se estendem em reviravoltas pelo que
parecem ser quilômetros. Como se não fosse confuso o
bastante, vários dos cômodos e passagens ruíram — algo
que devemos agradecer a Adam, quando, uma
eternidade atrás, me libertou do cativeiro e usou seu
recém-adquirido Legado de terremoto. Quem sabe o que
se esconde por trás dos corredores desmoronados, que
conhecimento perdemos quando os equipamentos foram
destruídos? Se não estivéssemos prestes a perder a
Terra, talvez tivéssemos tempo de descobrir.
Mas ainda há muitos cômodos de pé. Laboratórios e
celas de detenção, por exemplo. Passo por eles, vendo
equipamentos estranhos e ferramentas cirúrgicas que
me dão calafrios. Esse lugar ainda é perigoso para mim.
Não apenas por causa da questionável integridade da
estrutura, mas pela sensação que tenho quando passo
pelos corredores: um remoto reconhecimento seguido
por uma dor aguda na cabeça. Tem alguma coisa familiar
no cheiro do lugar — bolorento, carregado de
equipamentos elétricos —, como se todas as lembranças
que esqueci estivessem apenas fora de alcance,
esperando para serem recuperadas. Esses túneis enchem
de pavor cada célula do meu corpo.
Felizmente, grande parte do medo passa quando
chego aos arquivos das instalações. Não acho que tenha
entrado aqui durante o tempo em que estive preso,
porque dou um suspiro de alívio quando passo pela
porta. Isso não quer dizer que o lugar seja aconchegante,
nada parecido com as empoeiradas bibliotecas cheias de
livros e poltronas estofadas do meu tempo na
universidade. Os arquivos são tão pouco convidativos
quanto o resto do lugar. Há monitores e terminais de
computadores enfileirados sobre mesas de aço, os
teclados de formato esquisito cobertos por marcas que
não compreendo. Gabinetes repletos de servidores e
bancos de dados com discos rígidos cobrem as paredes,
zunindo em sintonia com as lâmpadas fluorescentes no
teto. Há até mesmo uma prateleira com uma fileira de
armas a laser do lado oposto da sala — pelo visto, os
mogs nunca ficam muito longe delas.
Eu me alongo, as costas estalando, e sento em uma
cadeira de metal diante de um terminal de computador. É
o espacinho que transformei em meu no último dia: um
computador, um tablet, um laptop, uma bolsa esportiva
cheia de ferramentas e documentos que podem se
revelar úteis e um cemitério de canecas sujas. Coloco
fones de ouvido e percorro a lista de gravações mogs na
tela até encontrar o ponto em que parei. Então começo a
assistir.
Além de guerreiros implacáveis, os mogadorianos
também parecem ser bastante detalhistas quando se
trata de criar registros, embora eu não saiba se isto sirva
só para algum tipo de arquivo histórico ou se é resultado
de um regime fascista que quer ficar de olho em suas
muitas peças móveis. Avanço dezenas de vídeos, quase
todos no idioma mogadoriano e inúteis para mim depois
que Adam se foi. Às vezes encontro um em inglês, mas a
maioria é de comunicados entre humanos do ProMog,
que contêm apenas informações inúteis ou que já
sabemos. Anoto qualquer coisa minimamente
interessante no laptop. O processo todo é entorpecedor
e, a certa altura, acho que meus olhos começam a ficar
vidrados, porque não havia percebido que havia outra
pessoa na sala comigo até sentir uma mão em meu
ombro.
Giro, quase caindo da cadeira ao tentar me levantar.
O homem atrás de mim é um agente do FBI em um
terno preto. Ele é mais jovem do que eu, talvez tenha uns
trinta anos, pele morena, cabelos curtos escuros e barba
sem fazer há vários dias. No banquinho ao meu lado,
Gamera está na forma de um gato, os olhos fixos no
agente, pronto para dar o bote e se transformar. O
animal deve ter se dado conta de que sua forma
costumeira de tartaruga poderia atrair uma atenção
indesejada dos agentes.
O homem estende a mão.
— Agente Noto. Walker... — diz ele, então hesita um
pouco. — ... insistiu que eu poderia ser um recurso
valioso para você.
Gesticulo para o felino ao meu lado.
— Já tenho um guarda-costas.
Ele não acha graça. Continuo:
— Tenho certeza de que suas habilidades seriam mais
úteis lá em cima do que aqui, me vigiando enquanto
analiso dados alienígenas.
Ele dá um sorrisinho, mas é difícil saber se é de
irritação ou divertimento.
— Garanto que sou mais do que uma arma, Dr. Goode.
Faz tanto tempo que ninguém me chama de “doutor”
que a palavra parece estranha dita antes do meu nome.
Quase não acredito que um dia alunos e colegas me
chamavam assim todos os dias.
Noto prossegue:
— No passado, servi de contato com os mogadorianos.
Antes de descobrirmos quais eram suas verdadeiras
intenções.
— Ah! Então, você até sabe com quem estamos
lidando.
— Eu inclusive entendo um pouco da língua deles. Mas
admito que minha capacidade de leitura talvez não passe
do nível pré-escolar.
Enfim, um golpe de sorte.
— Por favor — digo, apertando a mão dele —, pode me
chamar de Malcolm.
Ele senta do outro lado da mesa. Eu o atualizo,
designando um conjunto de arquivos para que examine.
Tento explicar que estamos procurando qualquer coisa
útil, por mais vago que isso seja. Ele parece
compreender. Trabalhamos em relativo silêncio durante
horas, falando apenas sobre nossas descobertas e
comparando anotações. É um trabalho infrutífero. Não
descubro nada muito útil, e o progresso de Noto é lento.
Muitas vezes ele passa quinze minutos em um arquivo
antes de se dar conta de que é um pedido de
suprimentos alimentares ou relatórios sem importância
sobre o trânsito em Ashwood.
Em algum momento abro um arquivo que me deixa
paralisado, o coração batendo forte no peito. Eu
reconheço o rosto do humano na imagem. Até dou um
nome a ele, embora leve um instante para encontrá-lo na
cabeça.
Ethan.
O problema é que eu não sei por que conheço o rosto e
o nome dele.
O arquivo parece ser uma videoconferência entre
Ethan e um mogadoriano. Com base nas tatuagens,
imagino que se trate de um oficial no alto da hierarquia.
Ethan está recitando uma lista de nomes, descrevendo
fatos sobre essas pessoas e informando suas
localizações. As palavras suscitam algo na minha
memória, iluminando um dos períodos obscuros que eu
achava ter esquecido há muito tempo. Passam pela
minha mente rostos de homens e mulheres que
ajudaram os refugiados lorienos logo que chegaram à
Terra. Pessoas que eu recrutei.
Acolhedores.
É quando me dou conta de quem é Ethan. Foi um
deles. Um Acolhedor. Não, espera, não foi isso. Ia ser um
Acolhedor, mas por algum motivo eu o dispensei antes
que cumprisse a tarefa. Ele não estava lá quando os
lorienos aterrissaram. Há mais alguma coisa, fora de
alcance. Não confiava nele — mas por que não?
Enquanto assisto, começo a compreender um pouco
mais. Ele trabalhou para os mogadorianos. Um traidor
que detalhava tudo o que sabia sobre os Acolhedores e
os lorienos, o que não era muito. Ainda assim, deve ter
bastado para dar aos mogs algumas pistas.
Na verdade, parece que os mogs já tinham capturado
pelo menos um dos Acolhedores no momento em que o
vídeo foi gravado, graças às informações de Ethan. Será
que era eu?
Novas imagens passam pela minha mente. Os mesmos
rostos de antes, só que pálidos, destruídos,
ensanguentados. Eles estão aqui, em Ashwood, sendo
mostrados a mim como ameaça ou alerta de que vou
acabar como eles se não contar ao Dr. Anu — o cientista-
chefe de Ashwood — tudo o que ele quiser saber.
Morto. Assassinado.
Engulo os waffles e o café que voltam pela minha
garganta enquanto Ethan continua falando. Com base no
que ele diz, a mensagem parece ser velha — de antes
dos acontecimentos em Paradise. Mas Ethan deixa uma
bomba escapar: ele foi encarregado de treinar e recrutar
o Garde Número Cinco. Ele já tinha entrado em contato
com o menino.
O vídeo termina e tudo começa a fazer sentido para
mim. Apesar de toda a confusão e das falhas de minha
memória, sei que algumas coisas são verdadeiras. Eu era
o encarregado de recrutar os Acolhedores. Devo ter
mantido Ethan conosco em algum momento, mesmo que
o tenha expulsado do grupo antes de os lorienos
chegarem. Ethan se virou contra nós e provavelmente
transformou o Cinco no traidor que é hoje.
E por isso Oito está morto.
É uma linha de raciocínio fácil de acompanhar. Os
pontos quase se ligam sozinhos e criam uma relação
direta entre mim e o cadáver de Oito. Tiro os óculos e
aperto a ponte do nariz, tentando aliviar a dor que de
repente começa a latejar em minha cabeça conforme sou
inundado por essas lembranças e percepções. Não
apenas dei informações sobre o Santuário, mas também
os ajudei a transformar um dos lorienos em simpatizante
dos mogs. Quem sabe que outras coisas terríveis eu fiz
quando estava sob o controle deles — ou que sem querer
desencadeei tentando ajudar os Gardes. Será que vou
acordar amanhã e de repente descobrir que também
ajudei a planejar a invasão? Como começo a consertar
tudo isso?
Percebo que Noto está me encarando. Ele está com
uma expressão grave, mas há um sinal de preocupação
nos olhos. Ou talvez desconfiança.
— Estou bem. Só uma dor de cabeça.
— Talvez seja melhor dar um tempo — sugere ele. —
Tomar um pouco de ar.
Concordo com a cabeça, mas não faço qualquer
esforço para me mover.
— Tenho certeza de que não deve ser nada fácil voltar
aqui — diz Noto. — Walker me contou por alto o que
aconteceu com você. É meio engraçado, na verdade. Eu
investiguei seu desaparecimento. — Ele faz uma pausa
antes de acrescentar: — Bom, acho que “engraçado” não
é bem a palavra certa.
Eu não esperava por isso. Ele parece jovem demais
para ter se envolvido no caso.
— É mesmo? — pergunto.
— Não no começo, mas depois do incidente mog na
escola... Sabe sobre isso, não sabe?
— Sei.
— Foi quando nossa equipe deslocou-se para Ohio.
Passei algum tempo investigando seu desaparecimento.
Era um enigma e tanto. Como se você tivesse
simplesmente desaparecido da face da Terra. — Ele
estreita um pouco os olhos, me encarando. — Você ainda
não lembra o que aconteceu?
— Não me lembro de nada de quando fui levado —
respondo, com um suspiro. — Não sei nem se algum dia
saberei o que houve. Já tentei juntar as peças. Coisas
estranhas trazem lembranças. A maioria só flashes de
imagens e sentimentos. Mas mesmo isso é difícil reter ou
compreender. Faltam trechos até de anos anteriores à
abdução. O que quer que eles tenham feito me destruiu.
Levaram embora muita coisa da minha vida.
— Nem imagino.
Penso mais uma vez nos Acolhedores e no vídeo que
descobri mais cedo, em que estou drogado ou sofrendo
lavagem cerebral, sendo controlado de alguma forma.
— Que bom, eu acho — comento. — Os mogadorianos
fizeram coisas terríveis aqui... comigo e com outros.
Ainda assim, ficaria feliz em lembrar cada detalhe
torturante se isso significasse também recuperar todas
as minhas lembranças boas.
— Falando assim... — diz Noto, buscando as palavras
certas. — ... É muito tempo perdido.
Inclino um pouco a cabeça para o lado. Algo que foi
dito antes não está fazendo sentido.
— Por que estavam investigando meu
desaparecimento? Foi há tanto tempo, e, considerando
tudo o que deve ter acontecido depois do ataque à
escola, vocês deviam ter preocupações maiores.
— Seu filho era um dos principais suspeitos e estava
desaparecido. Não podíamos descartar a possibilidade de
que você estivesse trabalhando fora do radar com John
Smith ou até com os mogadorianos. Se ao menos eles
tivessem nos avisado que estavam com você...
Ele para, percebendo que está cavando a própria cova
ao me fazer lembrar que, enquanto eu estava em coma
no subsolo, ele e o restante dos agentes de Walker
estavam colaborando com meus captores.
— Nós não sabíamos. — Seus olhos encontraram os
meus. Seu tom parece sincero, embora eu não saiba se
Noto está tentando convencer a si mesmo ou a mim. —
Todas as vítimas civis e as prisões, os planos de
invasão... Meu Deus, achávamos que estávamos
recebendo armas avançadas e melhorias médicas
ajudando-os a encontrar fugitivos alienígenas.
Enquanto ele fala, sinto a raiva borbulhar no
estômago. Não por ele, mas por tudo: o FBI, os mogs,
meu encarceramento. Tento esquecer e me concentrar
no que é importante.
— Bem, é melhor nós dois fazermos algo para
compensar nossos pecados. Destruir os mogs pode não
nos absolver do que fizemos sob a influência deles, mas
me parece um bom começo.
Noto assente com a cabeça. Ficamos sentados em
silêncio por alguns instantes antes de uma nova
pergunta vir à minha mente.
— Vocês estavam investigando Sam. O que
descobriram?
Ele respira fundo, parecendo um pouco aliviado.
— Ótimas notas. Uma aptidão excepcional para
ciências. Uma obsessão compreensível por teorias de
conspiração e pelo espaço. Eu não gosto de mexer no
histórico de internet da maioria dos adolescentes, mas
Sam passava a maior parte do tempo livre pesquisando
planetas distantes e discutindo em fóruns sobre
potenciais aparições de extraterrestres. Quer dizer, ele
também pirateou muitos filmes e músicas, mas de modo
geral parece um ótimo garoto.
— Não posso levar crédito por nada disso — declaro,
sentindo uma pontada de culpa.
Noto balança a cabeça.
— Está me dizendo que é mera coincidência seu filho
ter se tornado um aliado dos lorienos? Alguma coisa que
você fez deve ter passado para ele.
— Se pelo menos eu lembrasse o que foi... — digo,
tentando fazer piada com a situação, sem conseguir. —
Juro, se Anu e Zakos já não estivessem mortos, eu
mesmo os mataria.
Noto contorce o rosto de repente, franzindo o cenho.
— Quem?
— Dr. Anu. Foi o primeiro médico mogadoriano que...
— Não, o outro
Ele não está olhando para mim, mas digitando.
— Zakos — murmuro. — Ele... depois que o Dr. Anu
morreu, ele passou a supervisionar meu cativeiro. Ele era
mau. Quer dizer, os dois eram, mas parecia que Zakos
sentia prazer nos experimentos. Um cientista louco
mogadoriano. Pelo que sei, quase matou Adam. Mas o
garoto o pegou primeiro quando fugimos.
Noto assente com a cabeça.
— Isso foi na queda, certo? Quando vocês saíram?
— Foi.
Depois que saí dos túneis destruídos carregando
Adam, procurando nos esconder no caos e na confusão,
percorremos o país tentando evitar a recaptura. As
semanas voaram. Passamos muito tempo dormindo em
campos e nos alimentando dos restos que
encontrávamos.
— Quando achei que havia se passado tempo o
bastante e ousei voltar a Paradise para me reunir com a
família, Sam havia desaparecido — continuo.
— Certo...
A voz de Noto está baixa, distante, como se ele não
estivesse mais escutando. Seus olhos estão fixos na tela.
— O que foi?
— Tenho uma gravação do Dr. Zakos aqui.
Ele ergue a cabeça e olha nos meus olhos.
— É do começo deste ano — conta. — Apesar do que
quer que tenha acontecido aqui, ele sobreviveu.
— Não — sussurro, me aproximando da tela dele. —
Não é possível. Adam o nocauteou, depois o teto caiu em
cima dele...
Mas ali está ele na tela. Ao fundo, o laboratório está
em frangalhos, as paredes rachadas e o piso coberto de
destroços. É evidente que foi depois de Adam destruir
parte da base. Zakos parece satisfeito consigo mesmo,
os olhos negros brilhando na imagem pausada.
Levo alguns segundos para compreender o que estou
vendo, mas então sinto um golpe no peito. Dr. Zakos — o
açougueiro, o cientista louco, o monstro — ainda está
vivo. Ainda está lutando contra nós.
Em algum lugar das partes mais sombrias de minha
mente, há um flash estranho. Não é exatamente alegria,
mas algo parecido, quando me dou conta de que posso
ter a oportunidade de ficar frente a frente com um de
meus captores.
— Parece que foi chamado para algum projeto
confidencial que Setrákus Ra está supervisionando. Algo
que acreditam que vá garantir a vitória mogadoriana.
Antes que eu diga qualquer coisa, porém, o rádio
comunicador do agente estala.
— Noto, suba aqui! Tem alguma coisa acontecendo em
Nova York.
CAPÍTULO
TRÊS
As naves de guerra chegaram. Primeiro foram registradas
sobre Nova York, depois sobre outras cidades em todo o
mundo.
— Pronto — sussurro para mim mesmo.
Tudo o que tentei evitar está acontecendo. Os mogs
estão aqui, com força total.
É uma invasão.
Será que Sam está em segurança?
Noto e eu nos reunimos com pelo menos uma dúzia de
agentes federais em torno dos diversos monitores na sala
de mídia da casa para ver repórteres e apresentadores
em choque tentando entender o que está acontecendo.
Em pouco tempo, todas se concentram em uma mesma
transmissão: um sinal ao vivo da ONU. Ella aparece,
assim como Setrákus Ra, na forma de um homem de
meia-idade. Ele está dizendo alguma coisa sobre querer
paz. Ranjo os dentes.
Em seguida, há uma espécie de comoção, e a câmera
passa para John, cujo rosto é um retrato da raiva. É
quando tudo vai pelos ares.
Onde está Sam?
Procuro por um sinal de meu filho, mas ele não está no
meio da multidão quando as mãos de John começam a
brilhar com fogo. E, quando Ra se transforma em um
monstro apavorante, a câmera mostra apenas as
pessoas no palco. Quando a transmissão ao vivo é
interrompida, as emissoras de notícias continuam
exibindo as mesmas imagens sem parar. Ainda assim,
não vejo Sam.
Tento ligar para seu telefone, mas ele não atende. É
claro que não. Deve estar lá, no meio da confusão, mas
fora do alcance da câmera. Minhas mãos começam a
tremer enquanto sou tomado por uma sensação de
impotência. Estou muito longe. Eu deveria tê-lo
impedido, exigido que não fosse. Mas é tarde demais. O
que posso fazer? De repente, a ideia de voltar para os
arquivos parece tola, como tentar usar uma garrafa
d’água para apagar um incêndio florestal. Só me resta
assistir às imagens em looping.
No começo, os vídeos são apenas reprisados, sem
comentários, como se os próprios âncoras não
soubessem como reagir. Então, há um bombardeio de
teorias, alertas e garantias de que ou o governo poderá
lidar com isso ou é diretamente responsável por tudo.
Gamera, ainda na forma de um gatinho preto, se
enrosca entre minhas pernas, roçando em mim. Seus
olhos verdes vão de um lado para outro, as orelhas em
pé. Por um momento me pergunto o quanto ele
compreende do que está acontecendo. Será que sente
que fomos invadidos por nosso inimigo? Que tudo está
mudando?
Ao redor, os agentes do FBI tentam lidar com os
acontecimentos da melhor forma que podem. A maioria
está perplexa e boquiaberta, ou está alucinada, gritando
a cada sinal de ocupado ou chamada que não completa
ao telefone, berrando nos aparelhos de rádio, tentando
entender a situação. Ninguém tem notícias de Walker, e
percebo que muitos desses agentes querem ir para
campo.
Não sei quantas vezes vejo as imagens se repetindo.
Começam a chegar informações de todo o mundo. A
humanidade não sabe como reagir. Forças chinesas
atacam a nave de guerra sobre Pequim, mandando
aviões para bombardeá-la de cima. Ao mesmo tempo,
caminhões disparam mísseis por baixo, o céu irrompendo
em chamas. Mas a nave permanece intocada, ao que
parece protegida por alguma espécie de escudo invisível.
Os mísseis explodem num campo de força, provocando
uma chuva de fogo e destroços sobre a cidade. Alguns
mísseis parecem ricochetear, extinguindo edifícios
altíssimos, destruindo a paisagem.
Quando a fumaça se dissipa, a nave de guerra segue
intocada, mas Pequim está em chamas.
Tumultos e pilhagens irrompem em cidades do mundo
todo. Parece acontecer em locais onde nem sequer há
uma nave de guerra. Imagino que, quando há uma
espaçonave alienígena gigantesca pairando sobre a
cidade, a probabilidade de pessoas irem para as ruas
diminui. Estão assustadas, amedrontadas; algumas estão
prontas para lutar, outras dizem que é o fim dos tempos.
Há inclusive imagens de um grupo com cartazes de boas-
vindas no qual lê-se: “Me abduza!”
Tento lembrar como reagi quando encontrei provas
irrefutáveis de que havia vida fora da Terra. Quando
conheci Pittacus Lore. Explosões de imagens e
sentimentos passam pela minha mente. Estupefação.
Medo. Validação. Pittacus segura um tablet branco.
Quando ele me pede ajuda, seus olhos queimam como
fogo.
Um novo vídeo começa a passar em um dos
monitores, me afastando desses pensamentos.
Reconheço a voz de Sarah Hart de imediato enquanto ela
explica quem são os Gardes e os mogadorianos — depois
de passar a vida tentando manter os lorienos em
segredo, é impressionante ouvir falar deles em rede
nacional. No começo, o vídeo só passa em uma emissora
de notícias, mas em seguida todas começam a transmiti-
lo, dizendo que foi encontrado no YouTube. Chegam a
interromper a cobertura do ataque para reproduzi-lo, até
que a voz de Sarah ecoa ao meu redor, de todos os alto-
falantes, contando ao mundo sobre John Smith e os
lorienos.
Os apresentadores tentam dissecar as imagens,
exibindo capturas de tela e histórias de Eles Estão Entre
Nós. Fico sem fôlego enquanto assisto.
Tudo está acontecendo, todas as peças de dominó
estão caindo. Eu mal consigo acompanhar.
A certa altura, o agente Noto fica de pé ao meu lado.
Ele não tira os olhos da tela enquanto fala:
— Podemos assistir às notícias em um notebook lá
embaixo, se você quiser voltar ao trabalho.
— Eu sei — digo baixinho. — Mas qual é o sentido? O
que poderíamos descobrir para nos ajudar?
Lá fora, o sol está começando a se pôr. Meus olhos
coçam. Sem dúvida estão vermelhos. E a combinação
entre a cafeína e os acontecimentos se desenrolando na
tela me deixou quase trêmulo.
— Foi apenas uma sugestão. Também não consigo
parar de olhar. — Ele solta uma risada curta e rouca. — O
mundo está se borrando de medo agora.
— E a gente está brincando de casinha em um maldito
bairro alienígena — retruca outro agente, colocando-se
entre nós dois. — Que diabo estamos fazendo aqui, Noto?
— Cumprindo as ordens de Walker — responde Noto
com voz calma e ponderada; apenas um vestígio de
irritação transparece.
— Walker foi para Nova York. Até onde sabemos, ela
pode estar morta.
Vejo Noto olhar para mim antes de voltar a atenção ao
outro.
— Esta é uma base inimiga muitíssimo valiosa. Não
podemos simplesmente...
— Puta que pariu, não estamos brincando de pique-
bandeira.
— Não consigo falar com ninguém — revela o homem,
tentando em vão sussurrar. — Os leais aos mogs devem
ter cortado as comunicações nos escritórios. Ou isso, ou
todos agentes que temos estão tentando descobrir o que
fazer. Não estamos longe da capital. Em um raio de trinta
quilômetros, há meia dúzia de coisas mais importantes
do que proteger a merda de uma base mogadoriana
semidestruída. Armas. Civis. Pessoas que sabem códigos
de lançamento. E isso é só o que lembro de cabeça. Não
podemos deixar isso tudo cair em mãos inimigas.
Apesar de tudo o que está acontecendo — ou talvez
por causa da explosão de adrenalina e do senso de
responsabilidade aprimorado que percorre meu corpo —,
uma lembrança sibila de algum canto escuro da minha
mente.
A última coisa de que precisamos é que isso caia nas
mãos dos inimigos.
As palavras ecoam várias vezes. Sei que é importante,
mas não lembro por quê. Aos poucos, uma cena começa
a vir à luz. Estou na varanda da minha casa. Sam está
comigo, mas muito jovem e frágil. Uma mulher que não
conheço está lá, fazendo um alerta. Qual?
Fecho os olhos, tentando me agarrar à lembrança
antes que ela se vá. Talvez seja algo que possa nos
ajudar.
Então eu recordo. Ela está me dizendo que, se me
encontrou, os mogs também me encontrarão. Que minha
família não está a salvo. E fico com medo, porque sei que
não posso ir embora, já que os lorienos planejam voltar
para Paradise um dia.
Por isso fiquei.
Engulo mais uma onda de náusea. Nos últimos meses,
deduzi que os mogs haviam me apanhado de surpresa.
Mas não foi bem isso. Eu sabia que eles poderiam me
encontrar. Fui alertado. Mas não dei ouvidos. E se eles
tivessem levado minha família? E se tivessem levado
Sam também? Como pude ser tão burro?
Por outro lado, quem é a mulher com quem eu estava
conversando? Não era uma Acolhedora, nem uma
Cêpan... mas tenho a sensação de que era loriena.
Alguém que me deixava ao mesmo tempo impressionado
e amedrontado.
Onde ela está agora?
— O que você acha, Malcolm? — pergunta Noto, e levo
um instante para me dar conta de que está falando
comigo.
— Perdão — respondo, minha voz um sussurro rouco.
— O quê?
É quando os Chimæra do lado de fora começam a
enlouquecer.
Guinchos de aves soam de toda parte, interrompendo
a cacofonia das notícias e das discussões. Gamera sibila,
saltando para meus braços. Noto e eu nos entreolhamos,
e então ele me segue quando corro até a porta da frente,
gritando alguma coisa sobre tomar cuidado. Alguns
agentes já estão no gramado, incluindo uma olhando por
um binóculo. A distância, uma espécie de aeronave se
aproxima.
— O que temos aqui? — indaga Noto.
— Parece um helicóptero de transporte. — A agente
passa o binóculo a Noto e acrescenta. — Símbolo do
Exército.
— Sabemos quem são? — pergunto.
Embora os agentes estejam nos ajudando em
Ashwood, o governo não é lá muito confiável no
momento. Tento me lembrar do que li no Eles Estão Entre
Nós e de tudo o que descobrimos, esperando saber em
quem podemos confiar entre o pessoal do Exército, se é
que podemos confiar em alguém.
— Estamos apenas com rádios comunicadores aqui, e
a maior parte das redes de celular caiu — murmura Noto.
— A menos que você tenha visto algum tipo de
equipamento de transmissão no subterrâneo, não temos
como ligar para eles.
— Entre — ordena Noto, sacando sua arma. — E
alguém traga para cá as armas grandes.
Gamera rosna. No céu, os Chimæra restantes
continuam em revoada de um lado para outro,
guinchando.
— Vou lá para dentro — aviso. — Se algo der errado...
Mas não sei ao certo como concluir a frase. O agente
Noto apenas meneia a cabeça na direção da porta e, sem
saber o que fazer, obedeço. Quando entro, afasto as
lâminas da persiana de madeira e vejo o helicóptero
pousar na rua diante da casa.
Dois homens de uniforme tático preto saltam do
helicóptero assim que ele pousa. O da frente mantém a
arma no coldre lateral, mas os agentes do FBI, em
postura tensa, apontam as armas para ele. O outro
homem carrega uma espécie de fuzil de assalto
atravessado nas costas e tem um corte de cabelo no
estilo militar. Parece ser feito apenas de músculos, como
um lutador profissional.
Vejo bocas se mexendo, mas não ouço nada por causa
do barulho das hélices. Noto dá um passo para a frente,
mostrando o que imagino ser um distintivo. Ele conversa
com os homens por um tempo e então levanta uma das
mãos para os agentes atrás dele, que relaxam um pouco.
Em seguida, Noto volta-se para a janela pela qual
estou olhando. Os outros repetem o movimento, até que
todos estão olhando fixamente na minha direção.
— Ah, não... — sussurro.
Os homens de uniforme preto seguem Noto pelo
gramado. Gamera sibila, saltando no chão à minha
frente.
— Calma, calma — digo baixinho, vendo os homens se
aproximarem. — Acho que está tudo bem.
Entrando na casa, Noto apresenta como coronel Lujan
o militar que parece estar no comando. Ele tem um
aperto de mão firme e olhos escuros e penetrantes
abaixo das espessas sobrancelhas pretas. O outro
homem não é apresentado, mas em um pedaço de tecido
preso ao bolso da frente do uniforme está escrito
“Briggs”.
— Sou Malcolm Goode.
Lujan e o companheiro apenas assentem com a
cabeça, como se eu tivesse oferecendo uma informação
já conhecida. Eles não se mexem ou passam do hall de
entrada.
— Dr. Goode — fala Lujan. — Irei direto ao ponto.
Nosso país está sitiado e enfrentando uma invasão
alienígena. O presidente e diversos outros membros
importantes da administração foram levados a um
bunker, onde planejam a reação dos Estados Unidos a
esta crise. Sua assistência foi solicitada.
— Minha assistência? — pergunto.
— Parece que Walker entrou em contato com as Forças
Armadas — explica Noto. — Querem respostas sobre o
que está acontecendo, e ela deu seu nome a eles. Disse
que você poderia esboçar uma imagem clara do conflito.
Ao que parece, ela está presa em Nova York porque...
bem, você viu o que está acontecendo lá.
— Meu filho. Ela deu notícias de Sam?
— Não falei diretamente com a agente Walker —
responde Lujan. — Só estou aqui para me certificar de
que seu translado ocorra bem. Como pode imaginar, o
tempo é um fator-chave, Dr. Goode.
Minha cabeça dispara, e me pergunto se eu ao menos
tenho a opção de dizer não a esses homens. E ainda há a
possibilidade de que alguma coisa dos arquivos de fato
possa ajudar — por mais improvável que pareça,
considerando as notícias.
Por outro lado, tenho quase certeza de que serei mais
útil se for ouvido pelo presidente e puder explicar o que
está acontecendo. Isso ajudará Sam e os outros.
— Se você me der alguns minutos, gostaria de pegar
alguns dos meus pertences no subterrâneo. Meu rifle
está lá embaixo, além de muitas informações que eu
gostaria...
— Podemos providenciar uma arma para você —
responde Lujan.
— E posso manter as coisas funcionando por aqui —
acrescenta Noto. — Se seu filho ou algum dos outros
voltar... — Ele faz uma pausa. — Bem, parece que Walker
sabe como entrar em contato com o bunker.
— Mas...
— Com todo o respeito, senhor — diz o coronel. —
Precisamos ir.
Olho de um para outro antes de concordar com a
cabeça. Gamera se remexe entre meus pés.
— Minha bolsa e meu casaco estão na sala de jantar —
aviso, indo para o cômodo ao lado antes que alguém
proteste.
Gamera me segue. Olho por cima do ombro, me
certificando de que os militares não estão vendo, então
abro o zíper e faço um sinal para ele entrar.
— Não é o ideal — sussurro, enquanto ele se encolhe
até a forma de um besouro e entra. — Mas é o melhor
que posso fazer.
Pego um velho telefone via satélite — mantenho o
novo no bolso o tempo todo, para o caso de Sam ligar —
antes de vestir o casaco e jogar a alça sobre o ombro,
evitando sacudir demais Gamera lá dentro. De volta ao
hall de entrada, lanço o telefone antigo para Noto.
— É seguro. Entro em contato com você quando puder.
Continue procurando por qualquer coisa que possa nos
ajudar.
Ele é interrompido por mais guinchos do lado de fora,
seguidos por gritos. O rádio comunicador de Lujan estala.
— Cinco aeronaves desconhecidas se aproximando!
— Mantenha a posição! — grita Lujan no aparelho,
depois se vira para mim. — Precisamos sair daqui já. Se o
helicóptero for atingido, é um longo trajeto de volta à
capital, e com certeza não chegaremos lá pela estrada. O
engarrafamento se estende por quilômetros.
— Vá! — diz Noto. — Boa sorte.
Assinto. Então, começo a correr.
Estamos a poucos metros da porta quando vejo
Escumadores mogadorianos vindo com tudo para
Ashwood.
CAPÍTULO
QUATRO
Estamos na metade do gramado quando um Humvee
bate nos portões de ferro que dão acesso para as
propriedades. Ele acelera em nossa direção, então vira
em um piscar de olhos e freia cantando pneus no lado
oposto a um pequeno muro de tijolos que separa dois
lotes. As portas se abrem. Vejo rostos pálidos de
mogadorianos. De repente, Briggs me puxa para o chão e
me empurra para trás de um dos veículos do FBI
estacionados no gramado entre a casa e o helicóptero.
Fico sem fôlego. Chove vidro quando as janelas do carro
são destruídas.
— Fique abaixado! — grita Briggs.
Ele se junta aos agentes federais atrás do SUV e
começa a atirar na direção dos mogs.
Atrás de mim, agentes quebram as janelas do segundo
andar da antiga casa de Adam e começam a disparar. De
onde estou, não sei dizer onde está Lujan.
Cinco aves pousam no chão perto de mim. Suas garras
tremem, indicando a transformação. Olho para a varanda
e vejo Noto. O sangue goteja da marca de tecido
queimado no ombro de seu paletó. Aponto para ele.
— Protejam os outros! — sussurro alto o bastante para
que me ouçam.
Os Chimæra entortam as cabeças e me encaram sem
expressão.
— Vão! — grito.
Eles se espalham. Briggs olha para mim, recarregando
o fuzil. Ele rosna alguma coisa no rádio comunicador,
depois se vira para mim, gritando.
— Quando eu começar a atirar, você vai. Corra até o
helicóptero.
Concordo com a cabeça, arfando, tentando recuperar o
fôlego. Minha mochila está ondulando ao meu lado. Dou
um tapinha nela, tentando dizer a Gamera que estou
bem. Ele poderia se libertar se quisesse, tenho certeza.
Mas, como estamos prestes a levantar voo, não quero
correr o risco de perdê-lo.
Acima de nós, os Escumadores já circularam e estão se
aproximando. Ouço um forte barulho de explosão quando
um deles se incendeia do outro lado do gramado. Sigo o
rastro de fumaça até o helicóptero. É quando me dou
conta de que é um veículo armado, provavelmente cheio
de todo tipo de munição.
— Vá! — grita Briggs, abrindo fogo mais uma vez.
Saio a mil, focando no nosso helicóptero e ignorando
todo o resto. Para alguém que passou a maior parte da
última década em coma induzido, os músculos atrofiando
e se desintegrando, dou uma bela corrida. Ashwood é um
borrão, mas tenho consciência dos disparos ao meu redor
e ouço o chiado e o pulso elétrico das armas a laser. Há
outro disparo do helicóptero. Com a visão periférica, vejo
o Humvee mogadoriano pegar fogo.
Acontece que Lujan já estava no helicóptero,
disparando o que suponho ser um lançador de granadas.
Quando chego lá, ele me puxa para dentro, meio que me
empurrando para o banco de trás. Afivelo o cinto,
ajeitando a mochila entre os pés e tentando avaliar os
prós e contras de soltar Gamera. O problema é que não
conheço esses homens, nem sequer aonde estou indo.
Com toda a dor e o sofrimento que meus atos causaram
no passado, não suportaria a ideia de Gamera ou
qualquer outro Chimæra acabar sendo dissecado em
uma mesa de laboratório de algum centro de pesquisa do
governo, em nome da ciência.
Lujan rosna no rádio comunicador.
— Recurso a bordo. Vamos decolar em cinco segundos,
quer você esteja aqui ou não.
É uma ordem não apenas para Briggs, mas também
para o piloto, que assente com a cabeça.
Além do piloto, há um segundo soldado na cabine.
Imagino que seja quem está atirando com as armas
principais do helicóptero. Do lado oposto de onde entrei,
outro soldado está ajustando a mira de uma imensa
metralhadora. Os olhos dele estão no céu, focados nos
Escumadores que se aproximam, disparando.
Briggs se atira dentro do helicóptero alguns segundos
depois. Ele grita quando cai, de joelhos. Uma das botas
está coberta de sangue, e o braço esquerdo está
pendurado na lateral do corpo.
— Tire todos nós daqui! — berra Lujan para o piloto,
depois se vira para o homem na metralhadora. — Mire
nos alvos.
Enquanto o helicóptero estremece e começa a levantar
voo, tento ajudar Briggs a sentar ao meu lado,
perguntando se ele está bem. Mas ele desconversa,
cerrando os dentes enquanto aperta o cinto. Eu me
inclino para a frente, tentando dar uma olhada nas naves
que se aproximam.
As três abrem fogo ao mesmo tempo. Nosso
helicóptero desvia para o lado, nos sacudindo lá dentro, e
escapamos por pouco de sermos atingidos. Chovem tiros
sobre Ashwood, e somos pegos no fogo cruzado. Eu me
seguro e resisto à vontade de vomitar. É a primeira vez
que ando de helicóptero. Pelo menos que eu saiba.
— Acabe com esses cretinos! — grita Lujan.
Tiros de metralhadora enchem o ar, seguidos pelo
cheiro acre e metálico das rodadas descarregadas. Uma
arma maior dispara de um ponto na frente da aeronave.
Enrijeço o maxilar e agarro o cinto de segurança com
tanta força que parece que vou fazer exame de sangue.
Ondas de choque de uma explosão lá fora balançam o
helicóptero. Um Escumador cai, em chamas.
— Droga! — exclama Briggs. — Um daqueles imbecis
do FBI devia estar com disparador de mísseis terra-ar.
Voamos para a frente. Um Escumador circunda
Ashwood, mas outro nos persegue em alta velocidade,
indo de um lado para outro e fazendo loopings em zigue-
zague para desviar dos tiros disparados pelo helicóptero.
— O que quer que você tenha encontrado naquela
base, não devem querer que saia de lá — grita Lujan,
para ser ouvido apesar do barulho.
O que perdemos? Ou o que deixamos passar?
— Eu não encontrei nada — respondo.
— É, mas eles não devem saber disso.
— São só alienígenas furiosos — resmunga Briggs.
Enquanto fala, ele se atrapalha tentando levantar com
o braço direito a perna esquerda da calça, ensopada de
sangue.
— Deixe-me ajudar — ofereço.
Ele respira fundo algumas vezes, o suor acumulando
na testa, antes de se recostar ao assento. Entendo isso
como um consentimento e levanto a calça, soltando-a da
bota, até passá-la por um buraco feito por um tiro que
atravessou a panturrilha. Ele aponta para um kit médico
preso na parte interna da fuselagem do helicóptero,
então me ensina a limpar e cobrir a ferida com um
curativo de compressão.
— Me pegou no meio da corrida — conta ele, entre
uma instrução e outra e longas sequências de palavrões.
— Caí com o ombro direto no chão. Acho que deslocou.
— Posso tentar colocar de volta, se quiser.
— Você é doutor?
— Tecnicamente... — digo. — Sou astrônomo.
Briggs apenas me encara, a cabeça maquinando uma
resposta. Mas ele não tem chance de concluir. Um tiro de
Escumador nos atinge, e damos um mergulho repentino,
caindo vertiginosamente pelo que devem ser dezenas de
metros no ar em apenas alguns segundos. Tenho certeza
de que vamos bater, mas o piloto nos estabiliza.
— Cacete! — grita Lujan enquanto levanta o atirador e
o ajuda a voltar à posição.
— Não dá para ir mais rápido do que essa coisa! —
berra o piloto.
Enquanto Lujan fala com os outros soldados, faço um
esforço para olhar pela janela. É quando vejo: uma nave
de guerra mogadoriana pairando sobre Washington.
— Impossível — murmuro, sabendo muito bem que é
possível, que é real.
Mas ver a nave gigantesca pessoalmente é algo para
que não estou preparado, mesmo depois de toda a
cobertura na tevê. É espantoso da pior maneira possível.
Abaixo de nós, a cidade parece estar em um silêncio
lúgubre, ao menos pelo que percebo. Não há fumaça
saindo dos edifícios. Nenhum jato está atacando a
monstruosidade alienígena que domina o céu da capital
da nossa nação ao anoitecer.
— Onde está o resto do Exército? — pergunto. — A
Guarda Nacional? Onde estão nossas defesas?
— Demos ênfase à evacuação de recursos de alto valor
— responde Briggs. — A maior parte de nossos alvos
estava na cidade. Você é um dos poucos que tivemos
que assegurar pelo ar. Do contrário, temos ordens de
permanecer em solo. O helicóptero vai nos deixar perto
do destino. Servirá de distração caso precisemos de
cobertura enquanto percorremos o restante do caminho
a pé.
— Não acho que vamos ser deixados em qualquer
lugar se não nos livrarmos deste Escumador.
Briggs olha para mim, confuso.
— É como chamamos as aeronaves mogs menores —
explico.
Ele pensa um pouco.
— Acho melhor do que “óvni”.
O helicóptero chacoalha de novo. Lujan está berrando
com os dois homens na cabine. Alguma coisa sobre
evitar danos colaterais. Briggs balança a cabeça.
— Tudo bem — diz ele, inclinando o ombro machucado
para mim e olhando na direção oposta. — Vá em frente.
Ajeite meu braço.
— Tem certeza? — pergunto.
— Se aterrissarmos em uma zona de perigo, não quero
estar mancando e sem conseguir mirar. Anda logo.
Embora eu saiba como o processo deve funcionar
fisicamente, nunca coloquei um ombro deslocado no
lugar. Briggs fecha os olhos enquanto tiro meu cinto de
segurança, me ajeitando no melhor ângulo para ter
algum apoio.
— Vou contar até três — aviso, agarrando o braço dele.
— Um...
— Segurem-se — grita Lujan para nós. — Vou
experimentar uma coisa, e vai balançar muito.
O helicóptero muda de direção, me atirando para cima
de Briggs. Ouço um estalo alto quando nos chocamos.
— Merda! — exclama ele.
Acho que ajeitei o ombro por acidente.
Levo alguns segundos para entender o que o piloto
está fazendo. Ele recuou e diminuiu a velocidade para
que o Escumador fique bem ao nosso lado: na linha de
tiro perfeita para a metralhadora. As balas varrem o
casco da nave alienígena, destruindo-a.
— Uhuuul! — grita o atirador.
A cabine da nave alienígena se incendeia, deixando
uma trilha de fumaça atrás de si.
Briggs expira devagar.
— Que jeito de despistar alguém.
— Que seja! — diz Lujan. — Pegamos aquele merda.
Parece que...
Ele para quando vemos o Escumador emborcar para o
lado, seguindo bem na nossa direção. O piloto está
fazendo uma última tentativa de destruir o alvo. Nós
avançamos, mas não a tempo. A nave atinge a parte de
trás do helicóptero, destruindo o rotor da cauda. Então,
começamos a descer em espiral rumo ao gramado, um
mergulho em meio a destroços de vidro, metal e berros.
CAPÍTULO
CINCO
Acordo com um tapa no rosto. Meus olhos se abrem, mas
o mundo está indistinto e cheio de fumaça, nada além de
formas embaçadas e uma escuridão desorientadora. Por
alguns segundos, temo estar de volta ao receptáculo
mog, como se tudo o que aconteceu nos últimos meses
— minha fuga, meu reencontro com Sam — não passasse
de um longo sonho no coma induzido.
Alguém está gritando, mas não consigo decodificar, o
som distorce em meus ouvidos. Sinto que começo a cair
para a frente. Então, antes que eu entenda o que está
acontecendo, alguém me puxa, me arrasta.
Mais um tapa no rosto. Com certeza não se trata de
Anu ou Zakos: os dois preferiam agulhas e lâminas a
sujar as mãos com espécimes humanos.
Aos poucos tudo volta ao foco, e começo a lembrar o
que se passa. Eu ergo o corpo me apoiando com as mãos
e os joelhos num gramado macio, tossindo e tentando
recuperar o fôlego. Meus pulmões parecem estar cheios
de fumaça e fogo. As primeiras coisas que vejo são o
helicóptero e o Escumador, um amontoado chamuscado
de metal retorcido a cem metros de distância. Lujan e
Briggs estão de pé perto de mim, o segundo encostado
em uma árvore, evitando ao máximo amparar-se sobre a
perna ferida. O rosto de ambos está sujo de alguma coisa
escura. A borda da nave de guerra está acima de nós,
bloqueando o céu.
Enquanto continuo a arfar, sinto a cabeça girar. Ficar
de pé é um processo complicado, e Lujan se apresenta
para evitar que eu caia. Mas enfim eu me sinto seguro
para avaliar os arredores. É quando o vejo, iluminado e
resplandecente diante de nós, em contraste com a noite
quase fechada.
— Aquilo é... — começo, mas não concluo o
pensamento; estou impressionado demais com a
percepção de onde estamos, do que aconteceu.
— O Monumento a Washington — completa Lujan. —
Demos sorte de termos caído aqui, senão poderia haver
vítimas civis. Não estamos longe do destino.
Se um acidente aéreo no meio de meia dúzia de
marcos históricos nacionais é uma coisa boa, isso revela
mais sobre o estado atual do mundo do que deveria.
— E os outros? — pergunto, me lembrando dos
homens a bordo.
— Não sobreviveram — responde Briggs.
Tem mais alguma coisa me incomodando vagamente,
mas meus pensamentos estão confusos. Escorre sangue
da minha têmpora esquerda. Devo ter batido a cabeça no
acidente. Como se eu já não tivesse danos cerebrais
suficientes.
— Precisamos ir — avisa Lujan. — Agora. Há inimigos
patrulhando a cidade, e é impossível que não tenham
visto nossa queda.
É quando me dou conta.
— Minha mochila! — grito, correndo na direção dos
destroços.
Gamera está lá. O que aconteceu com ele?
— Você não pode... — começa Briggs, mas eu o ignoro.
Até onde se sabe, só existe um punhado de Chimæra,
e eu não vou deixar um deles, meu guarda-costas, ser
queimado vivo.
Lujan me intercepta, agarrando a parte de trás da
minha camisa com firmeza e me girando antes que eu
saia correndo pela clareira.
— Escute aqui, Goode — rosna ele. — Briggs arriscou a
vida tirando você de lá, e não vou mesmo deixar você
morrer, ou inalando fumaça, ou em uma explosão, ou
sendo capturado ao tentar resgatar sua bagagem. Nossa
missão é levar você ao bunker, e é o que vamos fazer,
custe o que custar.
— Você não entende... — começo a explicar, mas
então ouço um guinchar.
O som de um pássaro chamando. Um grande falcão
está empoleirado em um galho de árvore, me encarando.
Ele abre as asas como que para se comunicar comigo.
Balanço um pouco a cabeça, aliviado. É evidente que
subestimei o quanto esses animais são resilientes. Lujan
me observa como se eu fosse idiota e me puxa na
direção de Briggs.
— Com alguma sorte, vamos percorrer o resto do
caminho sem transtornos — fala Lujan.
— Eu não diria que a sorte esteve do nosso lado esta
noite — resmunga Briggs.
— Aonde estamos indo? — pergunto.
— Para a Union Station — responde Lujan, pegando a
arma reserva e conferindo se está carregada. — Haverá
transporte para nos levar até um local seguro.
— Os trens ainda estão circulando?
— Nenhum trem que seja de conhecimento público.
Fico meio boquiaberto. Eu me lembro de ter lido
teorias da conspiração falando de túneis secretos que
passam sob locais como a Casa Branca e o Capitólio,
todos ligados pela Union Station. Eu não imaginava que
fosse verdade.
Acho que eu não deveria ficar surpreso.
Briggs dá um passo à frente com os olhos arregalados.
— Senhor — sussurra ele enquanto puxa o fuzil de
assalto das costas.
Eu me viro e vejo outro Escumador se aproximando
dos destroços, a alguns quilômetros de distância.
— Vamos — diz Lujan, apontando para a direção
oposta. — Se forem espertos, vão procurar
sobreviventes.
Ele nos leva pelo National Mall, o passeio principal da
capital, seguindo junto às árvores em vez de pela área
central. As árvores oferecem um pouco de proteção, mas
não são densas o bastante para nos esconder se os mogs
se aproximarem com um Escumador com luzes externas
ligadas. Pelo menos a folhagem funciona como uma
ótima trilha para Gamera, que salta de galho em galho
como um esquilo de rabo peludo. É um pequeno milagre
a escuridão nos camuflar um pouco, mas a luz ambiente
que resta nos impede de ficar invisíveis. O Capitólio está
quase um quilômetro à frente, a fachada branca
cintilando no breu. O silêncio é assustador, ainda mais
considerando onde estamos. Eu temia que as cidades
estivessem repletas de militares e pessoas
enlouquecidas — ou pior, esquadrões de mogadorianos.
— Onde está todo mundo? — sussurro ao passarmos
por uma série de museus. — Isto aqui não costuma estar
cheio de turistas? O que aconteceu com eles? Por que
não apareceu de imediato uma equipe de segurança
quando quase batemos no Monumento a Washington?
— Aqui era uma zona de evacuação prioritária —
explica Lujan. — Os quarteirões ao redor da Casa Branca
e do Capitólio foram esvaziados. Depois que a resistência
em Nova York se transformou em destruição
generalizada, a postura oficial dos militares passou a ser
evitar confrontos com os mogadorianos e não interferir
nas patrulhas que eles enviam das naves de guerra. As
pessoas estão sendo tiradas de suas casas em
Manhattan. Estamos tentando evitar que isso aconteça
aqui também.
Engulo em seco à menção de Nova York e dou um
tapinha no bolso para me certificar de que o telefone via
satélite ainda está lá.
Será que Sam está em segurança?
— E qual é a postura não oficial? — pergunto.
— Reunir recursos em segredo e preparar as
contramedidas. Por que você acha que está aqui?
Estamos quase no Capitólio quando Briggs começa a
ficar para trás. Tem sangue escorrendo do curativo na
perna dele.
— Merda! — exclama Lujan, quando percebe. — Está
muito ruim?
— Continuem sem mim. — Briggs se encosta em uma
árvore. Ele está suando muito, a adrenalina começando a
se esgotar. — Vou ficar bem aqui. Se algum deles cruzar
por mim, não vou para o enfrentamento.
Lujan o encara por alguns segundos, então concorda
com a cabeça.
— Não podemos largá-lo aqui — protesto.
— Nossa missão é levar você até o bunker em
segurança — diz Lujan pelo que parece ser a décima vez
desde que o conheci.
Ele já está começando a correr.
— Mas eu não vou sem ele.
O coronel se vira para mim, com um ar de desprezo.
— A esta altura, a decisão não cabe a você.
Olho de um para o outro, mas parece que nenhum dos
dois tem a intenção de mudar de ideia. Então, continuo
falando:
— Vocês não conhecem o inimigo como eu. É por isso
que o presidente me quer, não é? Se deixarmos Briggs
aqui e os mogs o encontrarem, um soldado ferido e
solitário perto dos destroços de uma das naves deles, o
que acham que vai acontecer? Na melhor das hipóteses,
vão matá-lo. É mais provável que o levem como
prisioneiro. Acredito que ele saiba aonde estamos indo.
Vocês os levariam direto para o presidente.
— Eu não vou falar — garante Briggs.
— Acha que isso importa? — pergunto, levando dois
dedos até as laterais da minha cabeça, onde os mogs
colocavam eletrodos. — Eles vão arrancar da sua mente
tudo o que você sabe. Eles têm tecnologias
inimagináveis. Você vai contar todos os seus segredos, e
só então vão começar a machucar você de verdade.
Lujan range os dentes. Por um instante, eu me
preocupo achando que condenei Briggs a uma morte
prematura e começo a preparar argumentos contra
sacrificá-lo. Por fim, o coronel aponta o dedo grosso para
meu rosto.
— Não se mexa. Vou sondar o terreno adiante. — Ele
olha para Briggs. — Quando eu voltar, esteja pronto para
correr.
Ele some. Briggs encara o chão, tenso. Parece com
raiva, mas não sei ao certo se é dos mogs, de mim ou de
si mesmo. É provável que seja uma combinação dos três.
— Eu deveria ser deixado para trás — murmura ele por
fim.
— Você me tirou dos destroços, não foi? — pergunto.
— Estava fazendo meu trabalho.
— Bem, agora estamos quites.
Ele fica em silêncio, os olhos na grama. Pego o
telefone por satélite e confiro se não perdi nenhuma
chamada de Sam e se o aparelho está intacto depois do
acidente. Em seguida, bato nos bolsos para ver se
esqueci de alguma outra coisa útil que possa estar
comigo.
— Perdeu alguma coisa? — pergunta Briggs.
— A arma mogadoriana, no acidente. Eu tinha
colocado na mochila.
Ele encolhe os ombros e tira uma pistola de um coldre
nas costas.
— Sabe usar uma dessas? — indaga.
— Sou melhor com rifle de longo alcance, mas acho
que consigo me virar.
Ele dá uma risada e me entrega a arma. Na lateral está
escrito “Beretta”.
— Não é uma arma alienígena — comenta ele. — Mas
quebra o galho.
Briggs tem um pouco de gaze extra no bolso, e eu o
convenço a me deixar fazer um novo curativo em sua
perna. Ele precisa de cuidados médicos de verdade, mas,
no momento, é o que dá para fazer.
Quando Lujan volta, estou acabando.
— O caminho está bem tranquilo em frente — diz ele.
— Vi uma patrulha mog indo para o local do acidente.
Eles devem ter sido chamados para procurar
sobreviventes. Espero que os cretinos não sejam muito
bons em rastreamento.
Ele vê a pistola na minha mão.
— Não use isso a menos que precise. A discrição é
nossa maior vantagem no momento.
Há um barulho no alto. Gamera está saltando em um
galho, fazendo barulhos estranhos de roedor e olhando
de mim para as árvores pelas quais já passamos.
— Vamos... — começa Lujan.
A continuação da frase, independentemente do que
seja, é abafada pelo rugido intenso vindo das árvores
atrás de nós.
CAPÍTULO
SEIS
Uma espécie de animal sai das sombras. Não, é mais
como um demônio. Mesmo na relativa escuridão, vejo
sua cara grotesca. Os traços têm algo de morcego. Os
olhos pretos ficam acima do que parece uma fileira de
quatro ou cinco narinas agitadas — será que a criatura
nos encontrou pelo cheiro? A mandíbula abre tanto que
parece solta, exibindo fileiras de dentes irregulares dos
quais pinga saliva na grama. O monstro tem braços e
pernas compridos e musculosos demais para ser
confundido com um animal da Terra, além de um chifre
pontudo em cada cotovelo ou junta. À luz fraca, não sei
dizer se seu corpo de aparência escorregadia é cinza ou
azul-escuro.
— Que porra é essa? — pergunta Lujan.
Um monstro mogadoriano, penso, me lembrando de
Sam, Adam e os outros falando sobre essas criaturas.
Mas não tenho tempo para explicar. A besta ruge outra
vez e começa a correr nas quatro patas, impulsionada
pelos membros imensos. Levanto a arma e puxo o
gatilho. Há apenas um clique, sem disparo.
— Solte a porcaria da trava! — grita Briggs, abrindo
fogo.
Lujan se junta a ele, disparando um revólver gigante
que parece capaz de derrubar um elefante.
A criatura parece inabalada, ou talvez não tenha sido
atingida por nenhum dos tiros. Qualquer que seja o caso,
ela dispara em nossa direção, me arrancando do caminho
com um braço imenso, e sou lançado no tronco de uma
árvore. Briggs o engana, desviando do golpe seguinte e
indo para trás. Uma saraivada de balas de seu fuzil de
assalto destrói uma das pernas da criatura. O membro
cai com força no chão.
Ouço atrás de mim alguém lançar ordens em um
idioma que faz todos os músculos do meu corpo ficarem
tensos. Há uma dezena de mogs — talvez mais —
correndo na nossa direção por entre as árvores, tentando
chegar até a fera. Vários já estão se aproximando.
— Mogs! Protejam-se! — grito, ficando de pé.
Briggs se abaixa atrás de outra árvore perto de mim
enquanto os disparos fazem chover cascas de troncos
queimados ao redor. Solto a trava da pistola, e atiramos
no esquadrão que se aproxima. Alguns dos mogs se
desintegram. Atrás de mim e vários metros à esquerda,
Lujan dispara em um ritmo constante, mogs virando
fumaça a cada tiro. A arma ressoa como um canhão toda
vez que ele puxa o gatilho.
Em algum momento, o monstro deve ter desaparecido.
Não o vejo em lugar algum. Ou talvez tenha se tornado
pó, destruído por Lujan.
— Acabou — digo quando minha arma fica sem
munição.
Briggs joga um novo pente para mim, e eu me
atrapalho para recarregar.
É quando ouço um rugido vindo de cima e me viro bem
a tempo de ver a criatura saltar das árvores, usando sua
perna musculosa restante para se atirar bem na minha
direção. Sou lento demais e não tenho a arma carregada
e na mira a tempo. O monstro ergue um dos cotovelos,
pronto para me atingir com a junta dentada.
Assovio.
É um reflexo — em pânico, eu me esqueci do meu
guarda-costas, mas alguma parte primitiva da minha
consciência deve ter percebido que assoviar seria a única
coisa que me salvaria. Gamera desce em uma fração de
segundo, com certeza estava nas árvores, à espera do
momento de atacar, movendo-se com tanta rapidez que
me pergunto se já estava no ar quando chamei. O
Chimæra assume a forma de uma pantera, interceptando
a fera mog no ar, enfiando os dentes afiados na perna
boa do monstro.
— Que diabo está acontecendo? — grita Lujan,
apontando a arma para os animais lutando diante dele.
— Não atire! O felino está comigo!
Ele olha para mim, confuso. É quando um disparo o
atinge na barriga. Lujan geme, segurando o estômago
enquanto se ajoelha.
— Merda! — exclama Briggs.
Ele começa a avançar, mas há um alvoroço de feras
entre nós e Lujan, sem contar a meia dúzia de mogs
ainda atirando em qualquer coisa que se move.
— Gamera!
Não sei o quanto os Chimæra compreendem alguém
que não seja um Garde, mas a pantera olha na minha
direção enquanto rasga a perna restante do monstro.
Aponto para o meio das árvores, de onde está vindo o
fogo.
— Ataque.
Ele deve entender alguma coisa, porque se transforma
em uma ave e voa acima de nossas cabeças. Momentos
depois, ouço um rugido, seguido pelo grito de um
mogadoriano. Dura apenas alguns segundos antes de
fazer-se silêncio.
Dou alguns passos para a frente, ficando perto das
árvores para me proteger. Quando me aproximo do
monstro mog, ele ruge para mim, esforçando-se para se
levantar usando apenas os braços.
Levanto a pistola e atiro sem parar. Todas as balas se
alojam na cabeça do desgraçado. Um muco escuro e
viscoso se espalha pelas árvores e na grama atrás dele.
Uns segundos depois, minha pistola fica sem munição de
novo.
O monstro cai no gramado. Sem vida. Então, começa a
se dissolver lentamente, até não haver nada além de
uma pilha de cinzas.
Apesar de estar em um tiroteio com invasores que
vieram dominar meu planeta, não consigo deixar de
sentir satisfação toda vez que um deles se transforma
em pó.
Talvez eu não seja tão inútil, afinal.
— Merda, estou quase sem munição — diz Briggs.
É quando me dou conta de que os disparos inimigos
também pararam.
Gamera vem correndo do meio das árvores, de novo
na forma de uma pantera negra, os pelos brilhantes
cobertos de cinza.
— Meu Deus — repete Briggs diversas vezes. — O que
está acontecendo?
Não consigo responder. Lujan está gemendo na minha
frente, a mão na barriga. Há fumaça saindo dos buracos
no peito. Ele deve ter sido atingido algumas vezes
quando não estávamos acompanhando. Há sangue por
todo canto.
Eu me ajoelho ao lado dele, mas é tarde demais. Ele
aponta na direção da Union Station e então para de
respirar. Tudo o que faço é fechar seus olhos e murmurar
um pedido de desculpas por ele ter sido arrastado para
aquilo, dizendo a mim mesmo que Lujan será a última
vítima dessa guerra, mesmo sabendo que não é verdade.
— Ele está... — começa Briggs.
Faço que sim com a cabeça.
— Essa coisa... — pergunta ele, apontando com o fuzil
para Gamera, que examina as árvores, farejando o ar. —
Esse... esse animal... é alienígena também?
— Este animal está do nosso lado. E acabou de salvar
nossa vida.
Briggs se afasta de mim, sem tirar os olhos de Gamera
até estar perto de Lujan. Há remorso em seu rosto.
— Precisamos chegar à estação — diz ele com a voz
baixa. — Esse tiroteio deve ter alertado todos os inimigos
no raio de um quilômetro. Estarão aqui logo, logo.
— O que fazemos com o corpo? — pergunto.
Briggs apenas balança a cabeça.
— Ele preferiria garantir que a missão fosse
completada.
Entendo o argumento, mas o coronel perdeu a vida
tentando me levar ao presidente. Não posso deixá-lo
aqui, ao relento. Arrasto Lujan até um emaranhado de
arbustos e tento escondê-lo da melhor maneira possível.
É minha melhor ideia. Digo a mim mesmo que, quando
chegarmos a qualquer que seja o destino final, posso
mandar alguém para buscar o corpo dele, mas no fundo
sei que há preocupações muito maiores.
Não me dou conta do quanto minhas mãos estão
trêmulas até largá-lo. Apesar de todas as lutas de que
participei, ainda não me acostumei com a morte. Na
verdade, ninguém deveria se acostumar com algo assim.
Briggs se agacha ao meu lado, pegando a arma e a
munição de Lujan. Quando termina, faz um sinal com a
cabeça para mim e seguimos em frente. Briggs deve
sentir uma dor terrível a cada passo, mas não solta um
“ai” ou sequer diminui o ritmo. Vou atrás dele, me
perguntando como as coisas ficaram tão ruins. E penso
no meu filho.
Será que Sam está em segurança?
E não posso deixar de pensar nos outros, também.
Adam, o restante dos Gardes, Sarah — até mesmo em
Noto e os agentes que deixamos para trás em Ashwood.
O que aconteceu com eles? O que vai acontecer com
todos nós?
CAPÍTULO
SETE
Avançamos sem incidentes, embora o trajeto seja um
pouco nebuloso para mim. A adrenalina é a única coisa
que me mantém em movimento, graças ao choque por
tudo o que está acontecendo combinado com minha falta
de sono. A certa altura, um esquadrão de mogs passa
correndo por nós em Humvees, mas Briggs e eu ficamos
perto dos parques e das árvores, e de alguma forma não
somos pegos. Minha mente está cheia de perguntas.
Quem está fornecendo veículos aos mogs? O que eles
estão fazendo agora que, pelo visto, têm liberdade total
para se locomover pela cidade?
Ligo para Sam no caminho, mas ele não atende.
Tento ao máximo não pensar no que isso significa, mas
a preocupação com a segurança dele continua a dominar
minha mente.
Por fim, Briggs e eu chegamos à Union Station, uma
gigantesca estrutura cheia de lojas, restaurantes e linhas
de trem. Evitamos a entrada principal. Briggs me leva até
uma porta lateral e tira um fone receptor do bolso
quando entramos em um corredor estreito e vazio.
— Major Briggs falando — sussurra ele. — Estou com o
recurso. Conseguem ver?
Ele aponta para uma câmera na parede. Alguém deve
ter respondido.
— Negativo — diz ele. — Somos apenas nós dois. — Ele
se vira para mim. — Todos os trens e ônibus estão
suspensos. A estação deveria ter sido evacuada, mas
imagino que ainda haja inimigos patrulhando. Mas nosso
caminho não irá nos levar para perto dos saguões
principais.
— Com quem você... — começo, mas Briggs leva o
dedo aos lábios e balança a cabeça duas vezes.
Ouço o eco distante de vozes mogadorianas vindo de
algum lugar do corredor. Eles estão ali.
Briggs manca por um corredor auxiliar e depois até
uma série de escadas espirais, hesitando vez ou outra
para descobrir aonde ir, segurando o fone de ouvido com
o dedo e, suponho, escutando orientações. Não sei se
nosso caminho é uma rota para evitar os mogadorianos
ou se é complicado por si só. Ele se comunica apenas por
gestos, os olhos o tempo todo procurando sinais de
movimento, enquanto seguimos pelo labirinto de
corredores e salas de serviço que a maioria das pessoas
nunca vê. Gamera nos acompanha, zumbindo na forma
de um inseto, pronto para se transformar a qualquer
momento.
Por fim, chegamos a um cômodo que se parece com
um escritório — embora, com base na mobília e no
carpete cor de abacate, pareça não ter sido redecorado
desde que eu era menino. Briggs encontra na parede um
teclado touch atrás de um pequeno quadro da Casa
Branca. É a única coisa que parece nova ali. Ele digita um
código e baixa a cabeça para o teclado, que deve ter
algum tipo de sensor de retina. A parede ao lado dele se
move, e uma série de placas grossas de aço desliza para
o lado, revelando uma salinha com um piso de grade de
metal.
Ele gesticula para eu passar, depois solta um longo
suspiro enquanto as paredes voltam para o lugar atrás de
nós. Em seguida, aciona um interruptor, e o piso começa
a se mexer.
Estamos em um elevador.
— Graças a Deus — diz ele, encostando-se na parede,
enfim contraindo o rosto e agindo como um homem
ferido.
— Isso é loucura — sussurro.
Não consigo calcular quantos lanços de escadas
descemos, mas tenho a impressão de que estamos muito
abaixo do nível que qualquer estação subterrânea de
metrô teria.
— Há túneis secretos e salas de segurança neste
prédio desde a administração de Truman. Quando a
Guerra Fria começou a ficar séria, fizeram todo tipo de
entradas e saídas secretas. E... Bem, digamos que os
arquitetos foram criativos.
Paramos em um pequeno patamar. Há uma porta com
uma placa dizendo “Somente funcionários”.
— Devia ser um almoxarifado não utilizado — explica
ele, apontando para a porta. — O que quer dizer...
Ele segue até uma parede vazia e começa a pressionar
tijolos aleatoriamente, murmurando sozinho. Por fim, um
deles afunda, e parte da parede desliza para o lado.
Briggs se vira para mim e sorri.
— O que eu falei? Você ficaria surpreso com o tipo de
esquisitice que o governo criou nos anos 60 e 70. É como
se tirassem inspiração dos filmes de James Bond.
O painel se fecha atrás de nós ao entramos no que
parece um museu de vagões de trem — há dez ou mais
enfileirados à nossa frente.
— Que lugar é este? — sussurro baixinho, olhando ao
redor.
Não parece haver outra entrada ou saída.
— O centro de transportes confidencial da Union
Station. — Ele aponta para uma das câmeras na parede e
manca até lá. — Ótimo. Parece que mandaram nosso
carro de volta. Não vamos precisar esperar por ele.
— Como você sabe disso tudo? — pergunto.
Mesmo que ele seja um major, parece que a missão
está muito acima de seu nível hierárquico.
— Há uma pequena equipe de soldados estacionada
em uma base secreta aqui na cidade. Nossa principal
preocupação é evacuar em segurança recursos e alvos
de alto nível caso haja uma emergência.
Ele digita um código na lateral de um dos trens, e a
porta se abre. O vagão é mais ou menos do tamanho
convencional de metrô, mas a decoração é de um jato
particular: toda em veludo e couro.
— Incrível — murmuro, enquanto Gamera pousa em
um banco e assume a forma de uma tartaruga.
— Você ainda não viu nada. Olha isso.
Briggs vai até a frente da composição e aperta uma
série de botões. O trem sacode e de repente estamos
afundando no concreto, até todo o vagão ficar vários
metros abaixo do piso. Um conjunto de luzes se acende,
e eu vejo trilhos adentrando um túnel escuro à nossa
frente até desaparecer de vista.
— Chegaremos em uma hora. Por que não tenta dormir
um pouco?
O vagão avança, me desequilibrando um pouco. Eu me
seguro na lateral de uma poltrona antes de me largar
nela.
É como se, ao sentar, meu corpo desistisse, pronto
para desmaiar.
Enquanto Briggs se ocupa na frente da composição,
pego o telefone via satélite. O que quer que Adam tenha
feito com ele, funcionou bem, porque consigo sinal.
Mas Sam não atende.
Por favor, esteja a salvo, onde quer que esteja.
Antes que eu comece a me preocupar com meu filho
ou imaginar o que ele pode estar fazendo, um sono
escuro e sem sonhos toma conta de mim, e o resto do
mundo desaparece.
CAPÍTULO
OITO
— Malcolm!
Eu me sento num instante ao acordar com o som do
meu nome, voltando à consciência com um susto.
— Até que enfim — diz Briggs. — Estou gritando há um
minuto. Achei que ia precisar dar um tapa na sua cara de
novo.
Ele está no banco diante de mim, a perna ferida
estendida. O curativo está começando a ficar com
sangue nas bordas. Percorro o vagão com os olhos até
encontrar Gamera, ainda em forma de tartaruga,
roncando no chão aos meus pés.
— Onde estamos? — pergunto.
— Quase no bunker. Imaginei que você iria querer ter
alguns minutos para acordar.
Concordo com a cabeça, esfregando os olhos, que
ardem, e me dou conta de que devo estar prestes a ficar
desidratado, se é que já não estou. Olho para o telefone.
Nada, ainda. Dormi menos de uma hora.
— Ainda estamos no subterrâneo?
— O sistema todo é subterrâneo — responde Briggs. —
É secreto, lembra?
— Fascinante — digo, ainda tentando entender o que
está acontecendo.
Desde que fui libertado dos mogs, acordar vem se
mostrando um processo em que aos poucos me lembro
de onde estou e do que estou fazendo — ainda mais se
me encontro em um lugar estranho.
— Tenho tantas perguntas que não sei por onde
começar.
— Você tem perguntas? — retruca ele, então aponta
para Gamera. — Aquilo ali é um bichinho de estimação
alienígena que muda de forma. É a coisa mais maluca
que já vi. Bom... talvez teria sido uma semana atrás.
Antes de todo o resto.
Gamera encara o dedo dele com curiosidade.
— Parece estar com fome — comenta Briggs.
— Ele não morde — digo. — Pelo menos acho que não.
O nome dele é Gamera. Foi ideia minha. Ele... sempre
pareceu gostar do meu filho.
Briggs resmunga alguma coisa que não entendo.
— Quando chegarmos aonde quer que estejamos indo,
gostaria que você não mencionasse o poder dele aos
outros. Não que eu não confie em ninguém... é só porque
temo que...
— Não se preocupe — interrompe ele. — Você tem
razão em ser cauteloso. Todo mundo está inquieto. Ainda
estamos tentando descobrir quem está com os
mogadorianos e quem não está. Mas o grupo reunido no
bunker é seleto. Ainda assim... quer dizer, alienígenas
existem, então não sei mais o que esperar.
Eu preciso me concentrar. Nomes passam pela minha
mente — homens e mulheres que sabemos serem
agentes ProMog.
— O vice-presidente estará no bunker? — pergunto.
Pelo que me vem à mente, ele é a autoridade mais alta
que vendeu a alma aos mogadorianos.
— Não. Pelo que sei, está desaparecido. Sumiu junto
com os seguranças logo depois do que aconteceu na
ONU. Já devem tê-lo encontrado a esta altura, mas é
procedimento padrão manter o presidente e o vice em
locais diferentes em uma situação assim. Sabe, para que
não sejam mortos ao mesmo tempo caso alguma coisa
dê errado.
— Ah — digo. — Isso é bom.
— Você acha que...
Ele não termina a pergunta. Apenas a deixa no ar. Mas
fica óbvio o que está na cabeça dele.
— Os federais acham que ele está trabalhando com os
mogs.
Foi uma das primeiras coisas que Walker nos disse
quando apareceu em Ashwood. Isso foi mesmo ontem?
— Meu Deus. — Briggs desvia o olhar e volta a me
encarar. Seu olhar é penetrante. — Meu Deus! Nós temos
alguma chance?
— Preciso acreditar que sim — respondo.
Briggs parece reconfortado. Os músculos do rosto
relaxam um pouco.
— Não vou falar de Gamera — diz ele.
— Sabe, você nunca me disse como se chama.
— Major Briggs.
— Isto é, seu primeiro nome.
— Ah. — Ele encolhe os ombros. — É. Acho que todo
mundo se acostuma a usar o sobrenome. É Samuel.
Sam.
É claro. Sorrio, ainda que minha preocupação por Sam
volte com força.
— É o nome do meu filho.
— Ele não estava em Ashwood, estava?
— Não. Já tinha saído. Foi para Nova York tentar deter
os mogadorianos. Ele está lutando contra eles há meses,
tentando evitar que tudo isso acontecesse. Trabalhando
com os Gardes. Os alienígenas bons.
Briggs assente com a cabeça, mas não diz nada por
um ou dois minutos. Quando fala, sua voz tem o tom
mais suave que eu ouvi desde que ele apareceu para me
levar até um bunker secreto.
— Minha mãe é a única pessoa que me restou. Ela
mora no Bronx, mas... trabalha na cidade. Eu não
consegui entrar em contato.
Um lampejo de dor passa pelo rosto dele, então
desaparece. Briggs volta à expressão fechada que parece
ser seu estado natural.
Dou meu telefone a ele.
— Aqui — digo.
— Não tem sinal no subterrâneo.
— Tem, sim.
Ele me olha com curiosidade e pega o telefone.
— Como isso é possível?
— Longa história.
Eu o vejo digitar o número com cuidado, os dedos
hesitando a cada botão. Ele leva o telefone à orelha por
um longo tempo antes de me devolver, balançando a
cabeça.
— Tenho certeza de que ela está bem — digo, sabendo
muito bem que essa garantia é inútil.
A velocidade do trem começa a diminuir. Briggs fica de
pé.
— Ela é uma senhora durona. Tenho certeza de que
está bem. Olha só, pode devolver minha arma? São meio
criteriosos quanto a quem pode portar armas aqui
embaixo.
Entrego a pistola. Ele manca um pouco ao se
posicionar diante da porta deslizante do vagão. Os freios
guincham, e enfim paramos. O major se alonga, cerrando
os dentes ao colocar peso sobre a perna ferida.
— Espero que tenham uma ótima equipe médica aqui.
E água quente.
Gamera volta a assumir a forma de um inseto e salta
para meu ombro quando me coloco ao lado de Briggs.
— E café — acrescento. — Espera. É a primeira vez que
você vem aqui?
— Pessoalmente, é. Mas conheço a planta como a
palma da minha mão, então sei bem o que esperar.
A porta se abre, e a primeira coisa que vejo são cinco
homens de terno escuro apontando metralhadoras para
meu rosto.
Briggs não recua ao ver as armas. Eu, por outro lado,
dou um salto e levanto as mãos.
— Major Samuel Briggs — diz um homem de preto
quando dá um passo à frente.
Briggs o cumprimenta com a cabeça. O homem leva
um pequeno dispositivo eletrônico até os olhos dele e o
faz colocar os dedos sobre um tablet. Deve ter passado
no teste, qualquer que seja, porque o homem se afasta
para que Briggs saia do vagão.
— Este é o recurso, Malcolm Goode — anuncia Briggs
ao se colocar entre os homens; nenhum deles desvia a
arma de mim. — Ele foi revistado. Eu o desarmei.
Apesar disso, um dos homens de terno dá um passo à
frente e me revista. Ele mostra meu telefone via satélite
para o homem que parece estar no comando, mas este
apenas balança a cabeça.
— Não vai servir de nada tão fundo no subterrâneo e
com todos os nossos escudos — conclui ele, e eu sinto
um aperto no coração. Ele continua: — Mão.
Estendo a mão, me sentindo na obrigação de obedecer
a qualquer ordem, e ele a posiciona sobre o tablet. Uma
velha foto minha aparece na tela — sei que foi usada em
cartazes de “desaparecido” quando sumi —, junto com
uma espécie de registro cheio de informações a meu
respeito. O homem puxa o tablet antes que eu leia
alguma coisa.
— Bem-vindo à Base Liberty — diz ele. — Sou o vice
comandante Richards, do serviço secreto. Acompanhe-
me.
— Espere. Como vocês têm minhas digitais? —
pergunto, guardando o telefone que o outro homem me
devolveu e grato a todo o universo pelo fato de o sujeito
não ter conferido o sinal. — Que informações foram
obtidas?
O homem solta uma risadinha e não se dá ao trabalho
de responder às perguntas. Apenas se vira e começa a
caminhar na direção de uma porta do outro lado da sala,
que não passa de uma grande caixa de concreto. Só
então noto um homem de jaleco pairando sobre um
painel de controle em um canto.
— Mantenha o trem aqui — diz Richards a ele quando
passamos. — Este é o último de nossos convidados da
Union Station.
Ele nos leva até uma passagem estreita. As paredes e
o piso são cinzas como ardósia. Nossos passos ecoam
pelo corredor. Briggs vem atrás de mim, seguido pelos
homens armados.
— Você está ferido, Major — observa Richards, sem
olhar para trás. Eu me pergunto se ele notou o curativo
antes ou se chegou a essa constatação pelo som
irregular dos passos de Briggs. — Vamos acordar a
equipe médica.
— Onde estamos? — pergunto.
— Você está em um bunker subterrâneo secreto. É
tudo o que tenho liberdade de contar no momento.
Ele se vira. Mais uma passagem. Quanto tempo passei
percorrendo labirintos subterrâneos nos últimos dias?
Esta “Base Liberty” está começando a me lembrar
Ashwood, e não é exatamente uma sensação boa.
— Disseram que o presidente mandou me buscar.
Quando irei me encontrar com ele? Há muito a discutir
sobre os mogadorianos e quem no governo...
— São quase quatro da manhã. Todos estão fazendo
uma pausa de duas horas antes de se reunir outra vez.
Quando sua presença for requisitada, alguém irá buscá-
lo.
Ele para diante de uma porta e a abre. Vejo um
quartinho com uma mesa e uma cama coberta. Há um
frigobar e um armário pequeno entre duas portas
estreitas. É um pouco melhor do que eu esperaria de um
quarto de alojamento ou de hotel barato.
— Há roupas limpas no armário e produtos de higiene
no banheiro. Também há água e comida.
— Vocês me trouxeram até aqui para me colocar em
um quarto e... — começo.
— Terá que nos perdoar por não haver uma cesta de
presentes e uma suíte presidencial à sua espera, mas
estamos em uma situação de emergência, Dr. Goode.
Aconselho que fique aqui até ser chamado. Não fique
passeando pelos corredores. Manterei um homem à sua
porta... caso precise de alguma coisa.
— Espere — digo, me sentindo mais como prisioneiro
do que como alguém que está ali para ajudar o
presidente. — Não vão me dizer onde estou e eu não
devo sair do quarto? O que está acontecendo aqui?
Richards dá um sorrisinho.
— Se quiser ir embora, tem permissão, doutor. Pedirei
a alguns de meus homens que o acompanhem até a
superfície e garantam que você nunca mais encontre
este lugar.
Olho para Briggs, que assente para mim de uma
maneira que deveria ser encorajadora. Então, suspiro e
entro no quarto.
— Alguém o chamará mais tarde — continua Richards.
— Durma um pouco. O dia será longo.
A porta se fecha, e eu fico sozinho. Fiquei esperando
que a porta fosse trancada, mas não aconteceu. Pelo
menos não que eu tenha conseguido escutar.
Vou lavar o rosto no banheiro minúsculo e percebo que
a combinação de sujeira e vários dias de barba por fazer
me deixaram com a aparência de um mendigo. É só
quando a água na pia fica cor-de-rosa que me dou conta
de que minhas mãos estão sujas de sangue. De fazer
curativo em Briggs ou de tocar em Lujan. Talvez até seja
meu — tenho um corte na lateral da cabeça e sangue
nos cabelos. Pego o telefone. Não sei o que Adam fez
com o aparelho, mas é genial: tem sinal, apesar do que
Richards disse. Estou prestes a voltar ao quarto e ligar
para meu filho quando paro, olhando ao redor.
Considerando o quanto todos estão sendo sigilosos,
tenho certeza de que não deveria ter contato com o
mundo exterior, e o quarto com certeza tem escutas.
Como não posso perder o telefone, fico no banheiro,
fecho a porta e ligo a torneira e o chuveiro, tentando
esconder minha voz o máximo possível.
Tento ligar para Sam, mas ele não atende. De novo.
Dou um soco na pia, fazendo o espelho tremer.
Disco outro número. Desta vez, alguém atende.
— Alô?
— É o Malcolm. Espero não ter acordado você.
— Eu não durmo muito — responde Noto.
— Que bom saber que você escapou daquela bagunça.
— Digo o mesmo. Alguns homens estão feridos, mas
vão ficar bem. É necessário mais do que aquele grupo de
batedores que os mogs mandaram para nos destruir. Mas
eles vão voltar.
— É provável — comento. — Mas não sei ao certo se
Ashwood é uma grande prioridade para eles agora.
— Não tem importância. Estamos juntando tudo o que
conseguimos dos arquivos e indo para um esconderijo. —
Ele faz uma pausa. Quando volta a falar, o tom de voz é
mais baixo. — Não recebemos nenhuma notícia de
Walker, mas agora que os mogs sabem que estamos
aqui, não podemos ficar esperando outro ataque. Vamos
partir em breve, antes do nascer do sol. Mas não se
preocupe. Estamos, hum, tentando levar as aves de
guarda conosco. Onde você está? Está em segurança?
Olho ao redor, para as paredes estéreis do banheiro. O
vapor do chuveiro está começando e encher o ambiente.
De repente, começo a me sentir claustrofóbico.
— Bem — digo baixinho —, eu não faço ideia.
CAPÍTULO
NOVE
Alguém bate com força na porta, me acordando. Saio
cambaleando da cama, onde caí no sono ainda vestido,
por cima do cobertor. Minha mente está confusa, e o
relógio me diz que estou no quarto há poucas horas.
Richards está do outro lado da porta. Ele me dá uma
olhada de cima a baixo.
— Você tem cinco minutos para se arrumar — anuncia
ele. — Foi intimado para o centro de comando.
— Intimado? — pergunto, tentando me concentrar e
entender o que está acontecendo.
Examino minhas roupas amarrotadas. Não sei ao certo
quando tomei banho pela última vez. Se eu quiser que
alguém me leve a sério, preciso ficar um pouco mais
apresentável.
— Cinco minutos — repete ele.
Após fechar a porta, encontro no armário uma camisa
que fica um pouco grande e a coloco para dentro das
calças. Em seguida, escovo os dentes, limpo os óculos e
tento domar meu cabelo, que está completamente
arrepiado. Estou acabando de calçar os sapatos quando
batem outra vez na porta. Gamera zumbe ao meu lado,
mas balanço a cabeça, estendendo a mão até ele. O
Chimæra já salvou minha vida, e não quero correr o risco
de expô-lo na frente de quem eu for encontrar. Alguém
com certeza vai acabar percebendo que há sempre um
inseto andando em cima de mim.
No corredor, Richards me dá um copo de isopor com
café.
— Está puro — diz ele.
— Como eu gosto.
— Que bom.
Ele dá meia-volta e segue pelo corredor.
— Vocês têm certeza de que podem confiar nas
pessoas que reuniram aqui? Os ProMog, os apoiadores
humanos dos alienígenas, vão fundo. O vice-presidente,
o...
— Houve um motim generalizado na administração
ontem, quando foi tudo pelos ares. Um verdadeiro
esquadrão de elite solicitado pela sua amiga, a agente
Walker, cuidou da maioria dos que você chama de
“ProMog”. Estão sob custódia. Os que conseguiram fugir
estão escondidos. Os homens e mulheres que estão aqui
foram avaliados ou, em alguns casos, convocados da
reserva. Mesmo assim, estamos de olho em todos.
Não tenho dúvida de que meu quarto está grampeado.
— É por isso que estamos tão isolados? As outras
pessoas também não sabem onde estamos?
— Nós decidimos em quem podemos ou não confiar —
responde ele enquanto passamos por uma série de
portas que me faz imaginar quantas pessoas estão aqui
embaixo. — Lembre-se de que você foi trazido até aqui
como consultor especial, mas que só deve prestar
consultoria quando solicitado. As decisões tomadas aqui,
quaisquer que sejam, são definitivas e pelo bem maior do
país. E, acima de tudo, são secretas. Compartilhar
qualquer informação com pessoas não autorizadas será
considerado traição.
— Claro — digo, me perguntando se não teria sido
mais inteligente ficar em Ashwood mesmo.
Richards para na frente de portas duplas espessas
guardadas por quatro militares uniformizados e armados.
— O destino dos Estados Unidos, e muito
provavelmente do mundo, está sendo decidido aqui. Há
uma cadeira para você encostada na parede de trás.
Mantenha-se em silêncio até que solicitem sua resposta.
Ele empurra uma das portas e me faz entrar.
A sala está pouco iluminada. A maior parte da luz vem
dos imensos monitores que cobrem as paredes,
mostrando noticiários de todo o mundo. Pelo menos dois
deles mostram o vídeo de Sarah sobre John e os Gardes.
Outro mostra imagens trêmulas de um prédio destruído
em Manhattan.
Será que Sam está em segurança?
A sala em si é quase toda ocupada por uma mesa
retangular gigante de mogno laqueado à qual está
sentada uma dúzia de homens e mulheres. São pessoas
que têm desde minha idade até uns sessenta anos,
talvez um pouco mais. Reconheço alguns como membros
do gabinete. Um punhado de assistentes de aparência
mais jovem pairam mais atrás, fazendo anotações,
digitando em dispositivos eletrônicos, às vezes
sussurrando no ouvido de alguém à mesa.
As vozes preenchem o ar, se sobrepondo, todas
competindo por atenção.
“... a Guarda Nacional no Brooklyn. Tropas estão sendo
mobilizadas na Geórgia, mas o mais rápido que
conseguiremos levá-las até lá...”
“... obviamente seria um último recurso, mas temos
protótipos não testados de armamentos que poderiam se
mostrar eficazes...”
“... viu o que aconteceu na China. As naves de guerra
são protegidas por uma espécie de campo de força.
Podemos acabar bombardeando nossos cidadãos se
lançarmos mísseis contra eles...”
“... sugere que uma evacuação completa das principais
cidades norte-americanas pode salvar milhões de vidas,
mas o custo e a logística iriam...”
“... marchando pela Ponte do Brooklyn ao mesmo
tempo em que deixa unidades no Central Park...”
No outro lado da sala, Arnold Jackson, o presidente dos
Estados Unidos, está de pé, de costas para a mesa. Está
com um telefone fixo na orelha. Depois de alguns
segundos, ele solta o fone. Observo-o respirar fundo e se
recompor antes de voltar para a mesa. Não se senta,
apenas apoia as mãos na madeira polida. Está com
olheiras profundas. O cabelo curto está mais grisalho do
que eu vinha percebendo na tevê. Ele parece ter
envelhecido dez anos nas últimas vinte e quatro horas. O
resto da sala fica em silêncio.
— A União Europeia está oficialmente aberta à ideia de
negociar com Ra, apesar da forte desaprovação de
diversas nações, inclusive Alemanha e Espanha. Há
tumultos se espalhando por toda a cidade de Moscou.
Houve confirmação visual de uma nave pairando sobre a
Coreia do Norte, mas como o país não se comunica com
o exterior, não fazemos ideia de como vão reagir.
Ninguém planeja atacar as naves depois de ver o que
aconteceu em Pequim e as consequências da resistência
em Nova York, mas todos estão juntando forças em sigilo
para um contra-ataque, caso seja necessário. E aqui
estamos nós, nos escondendo em um bunker
subterrâneo enquanto naves de guerra pairam sobre
milhões de cidadãos americanos. Então me digam, o que
faremos agora?
Todos começam a falar ao mesmo tempo. Isso dura
uns cinco segundos.
— Chega — interrompe Jackson. Ele se vira para um
homem mais velho sentado à esquerda, vestindo um
uniforme de oficial coberto de estrelas e medalhas. —
General Lawson. Qual é sua avaliação da situação?
Lawson se encosta no espaldar da cadeira.
— Nova York e Pequim foram jogadas de poder —
responde ele, em uma fala lenta, com um leve sotaque
sulista que não identifico de onde é. — Esses alienígenas
são espertos. Vêm se infiltrando pouco a pouco entre nós
há anos. Isso quer dizer que entendem nosso
funcionamento como países individuais e como planeta.
Sabem como somos. Não se destrói uma cidade como
Nova York só porque uma coletiva de imprensa deu
errado. Se faz isso para mostrar que tem poder. Que se
pode fazer isso de novo. Nova York foi a bomba atômica
deles. Diabo, aposto que os contra-ataques em Pequim
foram orquestrados pelos cretinos para mostrar ao resto
do mundo que eles são intocáveis. Estão nos dizendo,
sem sutileza, que este planeta é deles, se quiserem. A
mim, parece que temos dois cursos de ação: tentar
sermos mais inteligentes do que eles ou explodi-los. Nem
um nem outro será fácil.
— Há uma outra opção — ressalta o presidente. —
Ouvimos os mogadorianos. Fazemos o jogo deles... pelo
menos por ora. Se começarem a matar mais civis, que
escolha temos?
— Você está falando em rendição? — pergunta Lawson,
estreitando os olhos. — Eu preferiria ver a extinção da
humanidade a nos tornarmos escravos. Existe a
possibilidade de que empregar alguma medida mais
extrema possa...
— Não autorizarei um ataque nuclear em solo
americano — declara o presidente. — Mesmo que
abatêssemos uma daquelas naves, os resultados seriam
catastróficos, e os inimigos provavelmente abririam fogo
contra as outras cidades de imediato.
— Ah, eu concordo — responde Lawson. — Vamos
deixar para algum outro país o comichão no dedo de
testar armas nucleares. Minha sugestão é enviar equipes
pequenas para Nova York. Tomar algumas das naves
menores e fazer soldados como reféns. Ver o que
descobrimos ou fazer engenharia reversa. Também
devemos começar a interrogar os traidores ProMog que
prendemos. Agressivamente.
Jackson concorda com a cabeça, então aponta para um
dos monitores que está transmitindo o vídeo de Sarah.
— E este “Garde”? John Smith. Nós o encontramos?
— Gardes são alienígenas ilegais que podem ter
acabado de começar uma guerra interplanetária em solo
americano — resume uma mulher loura com o cabelo
preso em um coque. — Ra estava falando em paz antes
de ser atacado.
Estreito os olhos para avaliar a mulher, tentando
imaginar como os Gardes poderiam ser culpados por
isso. Mas, por outro lado, essas pessoas não conhecem
os lorienos como eu.
— Isso foi antes de ele se transformar em um monstro
ao vivo na televisão — acrescenta outro.
Logo todos passam a falar ao mesmo tempo de novo.
— São alienígenas. Como você esperava que fosse a
aparência deles?
— Por que não diz à população de Manhattan que eles
vieram em paz?
— Temos tropas procurando por ele em Nova York
neste instante — diz Lawson, então se levanta e começa
a andar ao redor da mesa. — Francamente, senhor,
apesar do que seus informantes do FBI dizem, eu não
colocaria muita fé em nenhum desses extraterrestres.
Não sabemos nada a respeito deles além do que esse
vídeo anônimo diz. O inimigo de nosso inimigo nem
sempre é um amigo. Quem pode confirmar que esse John
Smith não é pior do que Ra?
— Ele não é — declaro, dando um passo para a frente;
todos se viram para mim. — Ele é... Eles são nossa única
esperança de derrotar os mogadorianos.
Richards põe a mão em meu ombro e me puxa para
trás, mas o presidente me chama.
— Malcolm Goode, não é? — pergunta o general,
pronunciando cada sílaba com cuidado. — Seja bem-
vindo. Sabe, pesquisei sobre você quando ouvi que o
presidente mandou chamá-lo. Parece que muitas das
suas teorias e ideias foram desacreditadas por seus
colegas quando você era professor. Na verdade, elas lhe
custaram seu emprego, não foi? Antes de ser abduzido
por alienígenas.
Ele faz uma pausa. Sei por quê. Mesmo quando provas
de vida extraterrestre estão caindo do céu, alegar que
fomos abduzidos ainda parece loucura para a maioria das
pessoas. Ele continua:
— Como podemos ter certeza de que você não é
apenas um maluco que vai nos dizer que o pé-grande
comanda os illuminati?
Sinto o rosto queimar, uma mistura de raiva e
constrangimento. Então respondo:
— Como o devido respeito, general, sei mais sobre o
que está acontecendo no mundo neste momento do que
qualquer outra pessoa nesta sala.
— Se esteve todos esses anos com os mogadorianos,
será que você não é um espião?
Richards fala atrás de mim:
— O major Briggs informou que os inimigos se
esforçaram bastante para matá-lo.
— Mas não o suficiente, pelo visto — diz Lawson com
um meio sorriso.
— Muito bem, general, basta — retruca Jackson. — Dr.
Goode, compreendo que não foi fácil para o senhor
chegar aqui. Obrigado por vir. O que pode nos dizer sobre
o que está acontecendo?
Respiro fundo.
— Bem... Na verdade, o processo está em andamento
há mais de uma década. Há mais tempo ainda, na
verdade. E isso só levando em conta o papel da Terra.
Conto tudo a eles — ou pelo menos as partes mais
relevantes — o mais rápido possível. Minha prisão.
Paradise. Chicago. A base mog em West Virginia. Não faz
mais sentido esconder. Algumas pessoas à mesa
seguram o riso ou reviram os olhos quando conto sobre
os piken ou os poderes dos Gardes. Embora tenham visto
John em ação na tevê, é difícil descrever a habilidade de
Seis para criar tempestades. Mas se calam quando
começo a contar como descobrimos que os mogs e o
governo estavam trabalhando juntos. Ao longo de toda a
minha fala, o presidente e Lawson ficaram me
encarando, sem nem exibir uma emoção sequer.
— E agora estou aqui — concluo.
A sala fica em um silêncio sepulcral por alguns
segundos. Quase me arrependo por não ter levado
Gamera comigo. Eu faria um encerramento e tanto se o
atirasse à mesa e deixasse todos boquiabertos ao verem-
no se transformar. É claro que haveria a possibilidade de
isso ser interpretado como um ataque contra o
presidente, o que faria com que eu e Gamera fôssemos
mortos.
— Precisaremos retomar a base em Dulce — declara
Jackson, por fim. — Quero saber que diabo aconteceu lá e
por que não ficamos sabendo a respeito. E vejam se
conseguimos rastrear o esquadrão do FBI que estava
passando o pente fino nos arquivos de Ashwood.
Ofereçam tudo o que for necessário para proteger as
informações que recolheram na base mog e descubram
se têm qualquer pista sobre como abater aqueles
campos de força das naves de guerra. Talvez haja
alguma coisa naqueles arquivos. E alguém descubra
onde fica esse lugar em West Virginia.
— Senhor presidente — diz Lawson. — Esta história é
muito boa, mas estamos falando de um bando de
adolescentes contra todo o exército deles. O senhor quer
mesmo confiar o destino do país a um menino de
dezesseis anos?
Um dos assistentes sussurra no ouvido da mulher de
coque.
— Parece que esse John Smith é bem-aceito entre a
nação. O povo o ama. Pelo menos é o que diz a pesquisa.
— Na melhor das hipóteses, esses garotos são
bombas-relógio — debocha um homem à mesa. — Por
mim, não ficaria na mesma sala de um garoto
pubescente que pode arrancar minha cabeça com um
pensamento.
Lawson sorri.
— Aposto que nossos inimigos sentem o mesmo.
— Gostem ou não, os Gardes são a melhor chance de
derrotar os mogadorianos sem uma guerra em larga
escala — concluo.
— Se eles querem lutar, deveriam lutar sob nosso
comando.
— Sem querer ofender, general, mas o governo não
tem um bom histórico no que diz respeito aos lorienos.
— Estamos falando de menos de dez Gardes e seus
aliados, certo? — pergunta Jackson. Ele se vira para um
assistente. — Prepare uma videoconferência com nossa
equipe na zona de evacuação do Brooklyn. Quero que
esses Gardes sejam encontrados. Quero falar com John
Smith. Depois pensamos que rumo tomaremos.
Um dos assistentes de Jackson respira fundo e corre
até ele, colocando um tablet diante do chefe e
sussurrando alguma coisa que não escuto.
O presidente arregala os olhos.
— Senhor... — começo.
Ele ergue a mão.
— Tenho operações militares para coordenar e uma
nação apavorada para administrar. Entrarei em contato
quando tivermos mais perguntas.
E assim, Richards me leva para o corredor.
— Mas, senhor... — insisto, só que todos na sala já
voltaram a atenção para um dos monitores na parede,
onde o assistente está exibindo um vídeo.
A última coisa que vejo antes de as portas do centro
de comando se fecharem são os olhos pretos de Setrákus
Ra na tela.
CAPÍTULO
DEZ
Nem Richards nem eu falamos no caminho até o quarto.
Por mim, tudo bem. Estou ocupado demais imaginando
quais são as exigências de Ra e repassando todas as
formas como eu deveria ter formulado meus argumentos
no centro de comando, como eu poderia ter ajudado
mais a Sam e aos lorienos.
Quando voltamos, Briggs está parado diante da porta,
apoiado em uma muleta.
— O major Briggs foi designado para proteger você —
informa Richards.
— Você quer dizer me vigiar — retruco.
Briggs não faz contato visual.
— É um procedimento padrão — diz Richards. — Os
convidados sempre têm um acompanhante. É para sua
própria segurança.
— Sabe, eu posso ser útil — continuo. — Arrume dados
para eu examinar. Um computador. Caramba, não tenho
nada para fazer além de olhar para as paredes. É uma
cela. Até prisioneiros têm acesso a bibliotecas.
— É temporário — explica Richards, franzindo o cenho.
— Olha só, todos estamos tentando seguir ao máximo o
protocolo. A quantidade de decisões que precisam ser
tomadas aqui...
Ele balança a cabeça e continua:
— Voltarei mais tarde. Tenho certeza de que o
presidente vai querer falar com você depois de todos
terem digerido o que explicou na reunião.
— Pode pelo menos me contar se eles encontrarem os
Gardes?
— Você será informado de qualquer questão não
confidencial considerada relevante na sua situação.
Agora, por favor...
Entro e bato a porta. Na mesma hora me sinto um
idiota, como uma criança que vai para o quarto batendo
o pé com raiva dos pais. Mas estou com raiva. Por não ter
tido notícias de Sam. Por ser tratado como um
prisioneiro. Por, apesar de tudo o que foi feito para tentar
proteger a Terra, os Gardes ainda serem vistos como
possíveis inimigos.
Deito na cama agitado, tentando me acalmar. Começo
a contar de cem a zero, algo que fazia quando os mogs
me deixavam consciente — qualquer coisa para afastar a
mente das coisas horríveis que estavam por vir. Em
algum lugar perto do cinquenta, durmo de novo, meu
corpo tentando compensar todo o sono perdido dos
últimos dias.
Depois de algumas horas de cochilo sem sonhos, meu
telefone toca. Desperto de imediato, entrando no
banheiro, trancando a porta e abrindo as torneiras de
novo.
Não reconheço o número.
— Alô? — atendo, prendendo a respiração enquanto
espero ouvir quem está do outro lado da linha.
— Oi, pai — diz Sam. — Achei que você não ia atender.
Apesar de tudo o que está acontecendo, no momento
em que ouço a voz dele tudo fica bem. Sou tomado pelo
alívio e, por um breve instante, sinto que posso
desmoronar. Apoio as costas na parede e me deixo cair
no chão.
— Estou aqui, filho. Onde você está? O que está
acontecendo? Você está em segurança?
Fecho a boca antes de fazer mais mil perguntas.
— Estou em segurança, sim — responde ele. — John e
eu estamos no Brooklyn. Quando o ataque começou,
tentamos salvar o máximo de gente que conseguimos.
Depois começamos a procurar por Nove, mas a equipe
de Walker nos encontrou no metrô e nos trouxe para um
acampamento temporário. Não sei se vão nos dar
condecorações, se querem nos alistar ou nos prender.
Há muita coisa que eu poderia responder em relação a
isso, mas percebo que Sam tem alguma outra coisa em
mente, pelo tom cantado de sua voz. Alguma coisa que
não está me contando. Saber o que é parece muito mais
importante do que contar o que aconteceu comigo.
— E aí? — pergunto. — Qual é o problema?
— Não há nada de errado — diz ele, pronunciando as
palavras devagar. — Pelo menos, acho que não. Mas,
pai... você está sentado?
— Estou.
— Hum, não sei bem como explicar, mas... Tenho
Legados agora. Ou pelo menos telecinesia. Tinha um
piken vindo contra nós, e eu... consegui. Eu o empurrei
com o pensamento, como se fosse John, Seis ou Luke
Skywalker... Sou tipo um Jedi. E estou usando isso o dia
todo.
Minha boca faz barulhos que não passam de sílabas
avulsas e vogais malformadas. Não consigo processar o
que ele está falando.
Meu filho tem poderes? Como? Por quê?
O que isso quer dizer?
— Pois é — conclui Sam, em resposta à minha falta de
coerência. — Foi mais ou menos assim que me senti no
começo também.
— Mas como é possível? — pergunto, por fim. — John
transferiu os poderes dele para você ou...?
— Acho que não. Ele está tão confuso quanto eu. Ah, e
nós conhecemos outra pessoa na cidade. Uma menina
qualquer que nunca tinha ouvido falar dos lorienos ou
dos mogs até hoje. Ela também tem poderes. Pai... e se
houver outros por aí? Tipo, e se humanos de todo o
planeta começarem a ter Legados?
As implicações são extraordinárias — ainda mais em
termos de proteger a Terra. Que força tem a capacidade
de conceder habilidades assim? Talvez alguma coisa que
encontraram no Santuário? Adam e os outros estão bem?
— Pai? Você está aí?
— Sim, eu só estou... tentando entender — digo, minha
cabeça ainda processando.
Um sorriso toma conta do meu rosto quando me dou
conta de que, se Sam tem este poder, vai conseguir se
proteger melhor.
— Vamos dar um passo de cada vez. Qual é o próximo
movimento de vocês?
— Hum, não sei bem. John está conversando com
Walker. Nove e Cinco estão aqui por perto, brigando. Vou
mantendo você atualizado. E você?
Faço um resumo do que aconteceu depois que ele
partiu. No geral, Sam responde com “O quê?!” e
variações de “Ai, caramba!”. Conto que naquela manhã
falei com o presidente.
— Nossa. Parece que você ganhou status de astro de
rock.
Olho de um lado a outro do banheiro, penso no espaço
que fui orientado a não deixar.
— Mais ou menos — digo.
— Pelo menos vocês não estão presos em Ashwood.
Iam acabar ficando sem waffles.
Levo um segundo para me dar conta de que ele deve
estar pensando que os agentes de Walker estão comigo,
mas não tenho a oportunidade de corrigi-lo. Ouço vozes
do lado dele da linha, mas não entendo o que dizem.
— Droga, pai, preciso ir. Falo com você logo, certo?
Fique bem.
— Você também, filho. Você também.
Ele desliga. Fico sentado no chão, tentando entender o
que tudo isso poderia significar.
Faz alguns minutos que desliguei o telefone quando
batem de novo na porta. Abro esperando ver Richards
pronto para me arrastar para mais uma reunião ou coisa
parecida, mas é Briggs.
— Oi — diz ele, ainda de muleta e segurando uma
caixa de papelão em que alguém escreveu “rosbife”. —
Almoço.
— Obrigado — respondo, pegando a comida. — Como
está a perna?
— Muito melhor, obrigado. Eles têm uma enfermaria de
primeira aqui embaixo. Nunca vi algumas daquelas
máquinas.
— Está se divertindo no corredor?
Ele dá de ombros.
— Devo avisar se você for a algum lugar, mas não
devo impedi-lo de ir. Você não é um prisioneiro ou coisa
parecida.
Ele parece um pouco constrangido ao admitir.
— Ah — prossegue ele, tirando um livro de baixo do
braço e o entregando para mim: O único e eterno rei, de
T.H. White. — Tome. Havia uns livros na sala de
recreação, mas acho que os outros eram guias de campo
e manuais de operação.
— Obrigado.
Ele ainda não está me encarando. Parece mais
simpático do que ontem... por quê?
— Enfim, achei ter ouvido um telefone tocar. Mas isso
é impossível, já que não tem como conseguir sinal aqui
embaixo.
Não digo nada. Ele faz um sinal para trás de mim, e eu
abro mais a porta para que entre.
— Seu telefone funciona aqui? — sussurra ele quando
a porta se fecha atrás de nós.
Mal o escuto e respondo no mesmo tom cochichado.
— Pelo jeito, sim. Como eu disse antes, é uma longa
história.
— Nós não podemos ter qualquer comunicação com o
mundo lá fora. Eu deveria confiscar o aparelho.
Droga. Não posso deixá-lo pegar minha única conexão
com meu filho. É por isso que ele parece tão hesitante?
— Olha só, as únicas pessoas que têm esse número
são pessoas em quem podemos confiar. É importante
que eu mantenha contato. Eles sabem mais sobre o que
está acontecendo lá fora do que nós.
Briggs me encara, sem piscar, pelo que parece um
longo tempo. Por fim, volta a falar.
— Será que eu... — Ele hesita, olhando para o piso de
concreto. — Será que eu posso fazer uma ligação rápida?
Solto um suspiro de alívio e faço um sinal para ele me
acompanhar até o banheiro, onde abro a torneira.
— Aqui.
Mudo o sinal de chamada para vibrar antes de
entregar o aparelho, me sentindo um idiota por não ter
feito isso antes.
Ele olha para o telefone como se eu tivesse acabado
de largar uma granada — algo me diz que talvez seja a
primeira vez que ele desobedece a uma ordem. Ou talvez
seja apenas o medo do que possa vir do outro lado da
linha. Enquanto ele digita o número e leva o telefone à
orelha, suas mãos tremem um pouco. Durante os toques,
sua respiração vai ficando cada vez mais rápida, e ele
enrijece o maxilar. Ouço os toques continuando, cinco,
seis vezes.
Enfim, alguém atende.
Toda a postura de Briggs muda. Ele relaxa. Por um
instante, acho que vai desmaiar.
— Mãe — diz ele.
Saio do banheiro para lhe dar um instante de
privacidade. Sento na cama e apoio a cabeça nas mãos.
Minha cabeça ainda está a mil, tentando entender o que
Sam me contou.
Meu filho. Com Legados.
Acho que sempre soube que ele era especial.
Só então penso de novo na reunião que tive, em como
os Gardes são considerados aliados, mas também
possíveis ameaças ao país.
E sinto um aperto no coração quando me dou conta de
que isso também se aplica a Sam.
CAPÍTULO
ONZE
No começo da noite, já li um quarto de O único e eterno
rei quando batem de novo na porta, desta vez de um
jeito rápido, quase nervoso. Enfio o telefone embaixo do
travesseiro.
O livro cai da minha mão quando vejo o presidente
parado no corredor, acompanhado por dois agentes do
serviço secreto. Ele está suando, os olhos arregalados e
avermelhados nos cantos.
— Aconteceu alguma coisa com minha filha — diz ele.
— Por favor, você poderia falar com ela?
— É claro... — falo gaguejando, perplexo com a
aparição dele. — Vou fazer tudo o que puder, mas... não
sou médico.
Isso não parece importar, pois ele já está seguindo
pelo corredor. Briggs encolhe os ombros, parecendo tão
confuso quanto eu. Tudo o que posso fazer é segui-lo.
— Ela estava ótima — explica Jackson por cima do
ombro. — O assessor me disse que ela estava vendo um
filme quando de repente teve uma convulsão e alguma
coisa estranha aconteceu com os olhos. Estavam
brilhando. Então, ela perdeu a consciência por alguns
segundos. Não faz sentido.
— Havia mais alguém com ela? — pergunto.
— Não. Minha mulher... estava na Califórnia quando
tudo isso começou. Ela está em um esconderijo lá.
A voz é diferente daquela do homem que estava diante
da mesa de funcionários do alto escalão de manhã.
Temos mais em comum do que eu poderia imaginar. Ele
também é um homem separado da família, incumbido de
proteger não apenas o povo de seu país, mas aqueles
que ama. De tentar descobrir como manter todos a salvo
ao mesmo tempo.
— Sua filha já teve convulsões antes? — pergunto.
— Nada. Os médicos daqui disseram que não
conseguem diagnosticar nada de errado com ela. Ela diz
que está bem, mas... está assustada. Nunca a vi agindo
dessa maneira. Ela viu alguma coisa quando estava
inconsciente. Uma sala de reunião em que havia um
bando de adolescentes a quem ela se refere como “os
mocinhos” e um homem muito mau.
Jackson para diante de uma porta protegida por
guardas e se vira para mim.
— Ela viu Setrákus Ra. Não sei como... assim que as
naves apareceram, fomos levados para os esconderijos,
então ela não viu nenhuma das imagens. Mas ela o
descreveu exatamente como ele estava logo depois de
se transformar na ONU, e no vídeo que enviou esta
manhã.
— Meu Deus... Espere, esse vídeo...
— Depois — retruca ele. — Por que ela está vendo o
líder dos mogadorianos? É algum tipo de ataque?
Balanço a cabeça, sem saber ao certo. Mas então
lembro que Ella e alguns outros Gardes já tiveram visões.
— Não é algo inédito — falo. — Setrákus Ra já invadiu
sonhos antes, mas até onde sei seus alvos eram apenas
os lorienos.
— Ela disse que havia centenas de pessoas que
pareciam compartilhar essa... visão. Mostrei a ela uma
foto de John Smith depois de ouvi-la descrever um
menino que falou com eles. Era ele.
Jackson está com o rosto absolutamente confuso e me
encara enquanto tenta compreender o que está
acontecendo com a filha. Como não tenho nenhuma
resposta para dar, ele entra pela porta.
É óbvio que a suíte presidencial no bunker é muito
mais bem mobiliada do que a minha. Apesar da falta de
janelas, parece um apartamento pequeno normal. A
menina está sentada em um sofá branco felpudo. Seus
cabelos escuros estão presos em um rabo de cavalo. Ela
tem quinze, talvez dezesseis anos. Uma mulher está
sentada ao seu lado, tentando colocar um pano molhado
em sua testa.
— Eu disse que estou bem — insiste a menina,
empurrando a mulher.
— Obrigado, Vera — diz Jackson, dispensando a
mulher. — Você pode sair por um instante? Tomar um
pouco de ar fresco?
Não há ar fresco aqui embaixo, mas Vera entende e
nos deixa a sós com a menina. Ela para ao lado da porta,
olhando para nós três.
— Querem que eu mande mais alguém entrar? —
pergunta ela, sem dúvida se perguntando se Jackson não
se sentiria mais confortável com um agente do serviço
secreto aqui.
— Não, obrigado, Vera.
Eu sei que não sou uma ameaça, mas é bom saber que
Jackson também não me vê assim. Ou, o que é mais
provável, isso só demonstra o quanto ele está
desesperado.
O presidente se vira para a filha.
— Melanie, este é o Dr. Goode.
— Pode me chamar de Malcolm — digo, estendendo a
mão.
Melanie olha para mim, então de volta para as próprias
unhas, pontudas e pintadas de rosa-claro fosco. Ela
parece nervosa e, pela forma como Jackson a observa,
imagino que vê-la aflita não seja normal.
— Não sei de nada além do que contei a você, pai —
murmura ela. — Tudo aconteceu muito rápido. Foi
confuso.
— Certo — continua Jackson. — Eu contei a ele os
pontos principais. Malcolm conhece os Gardes. Ele...
Ela se vira para mim com os olhos arregalados, enfim
interessada.
— Você conhece John Smith? — pergunta ela.
— Conheço.
Ela abre a boca como se fosse dizer alguma coisa,
então fecha de novo. Como parece hesitante, continuo
falando.
— Sam, meu filho, está com ele em Nova York. Lutando
contra os mogs. John é o melhor amigo dele.
Será que Sam está em segurança? A pergunta está no
fundo da minha mente, como sempre.
— Você também viu, então? — indaga ela.
Balanço a cabeça, negando. Ela franze a testa e desvia
o olhar.
— Por que eu? — suplica ela. — Por que fui sugada
para o sonho bizarro deles?
— Você consegue me contar mais alguma coisa? —
pergunto. — Eles disseram de onde eram?
Mencionaram...
Pauso para recordar e acrescento:
— ... um lugar chamado Santuário, talvez?
Ela balança a cabeça, estreitando os olhos, tentando
se lembrar.
— Acho que não — diz ela. — Havia pessoas do mundo
todo. Eles tinham... — Ela faz uma pausa. — Eles nos
disseram que poderíamos viajar usando uma pedra tipo
“lite”, ou coisa parecida. Um monte delas apareceu em
um mapa que uma menininha assustadora nos mostrou.
— Loralite... — sussurro.
Não faz sentido. Pelo que sei, os Gardes precisavam do
poder de teleporte de Oito para usar as pedras. Quando
foi que isso mudou? Será que isso tem relação com os
novos Legados?
— O que mais John disse? — pergunto.
— Ele queria que nos uníssemos a ele. Disse que
podemos salvar o mundo se nos rebelarmos contra os
malvados.
— E seu pai disse que Setrákus Ra estava lá. Ele...
disse alguma coisa?
— Ele disse que viria atrás de nós. De todos nós. —
Lágrimas escorrem pelo rosto dela. — Disse que ia matar
cada um de nós que estava assistindo. Ele... pai, ele era
horrível.
Jackson se agacha apoiado em um joelho e a puxa
para si, me olhando com os dentes cerrados. Ponho a
cabeça para funcionar, tentando entender o que poderia
estar acontecendo. Parece que John estava tentando
recrutar pessoas, mas nenhum dos Gardes jamais
demonstrou o poder de criar algum tipo de ilusão
compartilhada antes. A menos que seja um novo Legado
ou...
Novo.
Penso em Sam. E na menina que ele mencionou. No
fato de que pode haver novos Gardes surgindo em todo o
mundo.
— Melanie — digo baixinho. — Quando você começou
a mover as coisas com a mente?
Estou arriscando, mas é claro que acertei em alguma
coisa. Ela para de chorar. Para de respirar, na verdade.
Devagar, ela se afasta do pai até seus olhos escuros
estarem fixos nos meus.
— Como você...?
— A mesma coisa está acontecendo com meu filho —
explico, raciocinando enquanto falo. — Acho que com um
monte de gente no mundo. Provavelmente, todos os
outros que você viu no sonho.
— Então não sou só eu? Achei... Estava com medo de
ser a única. E achei que talvez estivesse ficando louca e
que toda essa coisa do sonho era uma prova de que
preciso ser internada em um hospício.
— Melanie, o que está acontecendo? — pergunta
Jackson, olhando de mim para ela.
A voz dele está comedida, mas é impossível não
perceber a urgência e a dor que esconde.
Melanie olha para ele, a expressão contorcida em uma
estranha mistura de esperança e medo, uma ruga
profunda aparecendo no espaço entre as sobrancelhas.
— Hoje de manhã eu estava olhando para uma foto da
mamãe que eu trouxe comigo. Você já tinha saído. Eu só
queria conversar com ela, queria que ela estivesse aqui.
Então, a foto simplesmente flutuou até mim. Tipo, saiu
voando da mesa de cabeceira e bateu no meu rosto. Eu...
achei que havia sido algo que os alienígenas fizeram
comigo. Como se eu fosse morrer. Mas daí continuei
fazendo isso com as coisas.
— O quê?
A pergunta de Jackson é pouco mais do que um
sussurro.
— Pode nos mostrar? — pergunto, olhando ao redor. Há
uma garrafa d’água na mesinha de centro à nossa frente.
— Ali. Você pode atrair a garrafa até você?
Ela se concentra. Aos poucos, a garrafa começa a se
mexer até se erguer da mesa. A garrafa flutua no ar,
espalhando água pelo gargalo. Jackson fica de pé em um
salto.
— Querida... Você está fazendo isto? — indaga ele.
— Não fale comigo — pede ela, franzindo ainda mais
as sobrancelhas. — Isto é difícil.
— Mas... como? Como você está...
— Pai, eu disse...
A garrafa de repente se amassa, espirrando para o alto
um jato de água entre nós três. Em seguida, cai no chão.
— Não sou muito boa nisso — confessa Melanie,
baixinho. — Meu quarto está... meio bagunçado.
— Por que não me contou isso? — pergunta Jackson.
Ele não para de balançar a cabeça, tentando encaixar
as peças do quebra-cabeça.
— Eu estava assustada.
Jackson sorri, mas então se dá conta de alguma coisa,
porque seu rosto logo se contorce em sofrimento.
— Mutação — murmura ele. — Habilidades anormais...
— Não há nada a temer — digo, embora não tenha
qualquer certeza disso. — Se bem que... Melanie, talvez
você ganhe mais habilidades estranhas. Todos os Gardes
têm mais de uma. Acho que telecinesia costuma ser a
primeira a aparecer.
Ela olha para mim com imensos olhos castanhos,
boquiaberta. Depois se vira para o pai.
— Precisamos ajudá-los.
— Quem, querida? — indaga Jackson.
— Os Gardes! — responde ela, em voz mais alta, mais
séria. — Não podemos deixar aquele mostro vencê-los e
depois pegar o resto de nós. Ele já invadiu a Terra e
destruiu Nova York. A forma como me encarou quando
estava gritando, dizendo que ia me matar... que ia matar
a todos nós...
Ela respira fundo e engole em seco, secando os olhos
com o dorso das mãos, borrando o rímel e o delineador.
Quando percebe o borrão, de repente parece
envergonhada.
Jackson a abraça outra vez, e ela começa a despejar
perguntas. Por que ela? Que outras habilidades os Gardes
têm? Isso é contagioso?
Faço o melhor possível para tranquilizá-la, mas eu
mesmo não tenho muitas respostas. Por fim, exausta, ela
se vira para o pai.
— Vocês podem me deixar sozinha, só um instante? —
pergunta.
— Melanie... — começa Jackson.
— Tipo dez minutos, pai — insiste ela. — Acabei de
descobrir que tenho superpoderes e quero pirar um
pouquinho. Sozinha.
Jackson concorda com a cabeça e se levanta, me
guiando para o corredor. Assim que a porta se fecha, ele
me puxa para longe do alcance dos agentes do serviço
secreto e sussurra:
— O que há de errado com ela? — Sua respiração está
vacilante, como se ele estivesse tentando não perder o
controle. O que, considerando o que acabou de ver, não
é de se estranhar. — Como isso aconteceu?
— Eu não sei ao certo o que está acontecendo, mas
garanto que não há nada de errado com ela.
Isso sai em um tom um pouco mais ríspido do que eu
esperava, provavelmente porque estou pensando em
Sam de novo. Respiro fundo.
— Acho que está acontecendo com muita gente. Não
sei com quantas pessoas ou como elas foram escolhidas,
mas imagino que os mesmos poderes que os Gardes têm
estejam sendo dados a humanos, jovens, em todo o
mundo. Telecinesia. Talvez outras coisas, eu... não sei.
— Os Gardes fizeram isso?
— Acho que não. Quando eu... — Hesito, pois lembro
que não deveria estar em contato com o mundo exterior.
— Isso está acontecendo com meu filho, Sam, como eu
disse. Quando falei com ele a respeito, tive a impressão
de que os Gardes também ficaram surpresos quando ele
demonstrou essa habilidade. E os mogs não iriam querer
dar poder às pessoas que estão tentando derrotar. Não
sei que força está atuando aqui.
Jackson continua balançando a cabeça, mexendo o
maxilar para a frente e para trás enquanto eu falo. Ele
processa as coisas por um instante, secando o suor da
testa.
— Recebemos um vídeo esta manhã — conta ele, por
fim. — Ra sabe sobre isso. Disse que são as “mutações”
dos Gardes que estão dando poderes às pessoas. Ele
insiste que lhe entreguemos qualquer um que demonstre
habilidades anormais para ser submetido a “tratamento”.
Os olhos dele encontraram os meus.
— Ele quer minha filha.
— E meu filho — acrescento, sentindo minha pulsação
dobrar de velocidade. Sempre foi perigoso enfrentar os
mogadorianos, mas agora que ele tem poderes, será um
alvo específico. — Não podemos deixar os mogs pegá-
los.
— Claro que não — diz ele de imediato; então se
recompõe. — Não sei se ele pode rastrear pessoas com
novos poderes, mas se puder... Ele nos deu quarenta e
oito horas para entregar os Gardes e qualquer outra
pessoa que tenha sofrido mutação. Depois disso, irá
declarar guerra.
— Não... — falo, um protesto inútil. — Você não pode
entregar pessoas inocentes. E os Gardes são nossa única
chance, como eu disse. Estão do nosso lado. Você precisa
confiar em mim. Precisa acreditar neles. Caramba,
dediquei anos tentando ajudá-los. Confiei a vida do meu
filho a eles. Pense no que isso significa, de pai para pai.
Você não pode entregá-los.
Jackson dá um soco na parede, enrijecendo o maxilar.
— Inferno! — exclama ele, desabafando toda a
frustração e o medo. Em seguida, baixa o tom de voz. —
Por que ela? Ela é uma adolescente. Uma criança.
— Pessoas da idade dela são o motivo pelo qual este
planeta ainda não foi dominado. Vi garotos de dezesseis
anos de idade destruírem esquadrões inteiros de
mogadorianos. Eles andam em paredes, invocam
tempestades... alguns podem curar feridas que seriam
sentenças de morte. Mesmo os que não têm poderes
estão lutando com cada ímpeto de força, fazendo o que
podem.
— E não fazemos ideia de quantos desses
adolescentes que acabaram de receber superpoderes
estão nos Estados Unidos, certo? Meu Deus, estamos
falando de cidadãos americanos. Não podemos entregá-
los aos invasores.
Penso outra vez no que a filha dele disse, tentando
entender tudo o que está acontecendo. O sonho
compartilhado. As ameaças de Ra. As pedras de loralite.
— Se há áreas de teleporte surgindo pelo mundo,
talvez você também vá lidar com uma leva desses
indivíduos com novos poderes vindo para os Estados
Unidos. Parece que John Smith está recrutando. E ele
está em Nova York.
— Todo um exército de super-humanos adolescentes —
resume Lawson atrás de mim. — Interessante.
Jackson lança um olhar incisivo ao general. Não sei há
quanto tempo ele está parado perto de nós, mas é
evidente que ouviu bastante coisa.
— Esses garotos de quem vocês estão falando
poderiam ser bons soldados se lhes dermos uma
liderança forte — sugere ele. — Melanie não, é claro. Ela
ficará escondida por motivos de segurança. Mas, se há
um exército de super-heróis novinhos em folha lá fora,
vamos querer que lutem do nosso lado. Quanto mais
rápido colocarmos uma coleira neles, melhores as coisas
serão no longo prazo.
— Eles não são cachorros, general — retruco, me
virando para ele.
Se tentar colocar uma coleira no meu filho, vou
lembrar ao general de que não preciso de superpoderes
para lutar.
— É claro que não. Eles parecem ser armas. Não é
aonde você quer chegar?
— Eles são garotos — digo. — E devem estar
aterrorizados.
— Bem-vindo à guerra, Sr. Goode — ironiza Lawson.
— Doutor — digo, uma correção mesquinha que eu não
fazia há mais de uma década.
Sinto minha pulsação nas têmporas.
As narinas de Lawson tremem um pouco.
— Todos estão apavorados, doutor. É algo que
podemos usar.
Viro as costas para ele.
— Senhor presidente, sei que é muita coisa para
processar, tanto como pai quanto como líder. Mas
lembre-se: o que quer que esteja acontecendo, sua filha
está envolvida. Pode não ser uma loriena, mas pode
muito bem ser Garde. Lembre-se disso quando tomar
decisões. O senhor não pode entregá-los. Os Gardes não
são inimigos. Os mogadorianos é que são.
Jackson me encara, assentindo com a cabeça, antes de
se virar para Lawson.
— Se esses Gardes humanos começarem a aparecer
nos Estados Unidos querendo lutar, nossa função será
garantir que não façam nenhuma tolice, mas sem
subjugá-los. Não podemos lutar uma guerra em duas
frentes. General, convoque todos ao centro de comando
em trinta minutos. Quero definir nosso plano de ação.
Nossa principal ameaça no momento são os alienígenas
cujas naves de guerra estão estacionadas sobre nossas
cidades. Ainda temos mais de quarenta horas de “paz”
para pensar em um plano. Ele contrai um pouco os lábios
antes de prosseguir. — E quero conversar pessoalmente
com John Smith.
— Sim, senhor — responde o general Lawson,
desaparecendo em um corredor.
— E, Dr. Goode, quero que esteja lá também. Agora, se
me der licença, vou ver como está minha filha.
Ele volta para a suíte, me deixando sozinho no
corredor.
De volta ao meu quarto, Briggs está junto à porta,
passando o peso do corpo do pé para a muleta.
— Eu ouvi, ahn... — diz ele. — Acho que alguma coisa
estava zumbindo lá dentro um pouco mais cedo.
Não respondo. Tudo o que sei é que preciso pegar o
telefone. Claro que tenho uma porção de chamadas
perdidas do número pelo qual Sam me contatou mais
cedo. Aperto todos os botões errados tentando discar,
sem me preocupar em me esconder de algum grampo ou
dispositivo de gravação. Enfim, a ligação completa.
— Pai?
A voz de Sam está nervosa, trêmula. Só me dou conta
de que estava prendendo a respiração quando o escuto
falar, então o ar sai dos meus pulmões com alívio.
— Sam, graças a Deus, o que houve? — pergunto. —
Você está bem? Onde você está?
— Ah, que merda! — responde ele. — Achei que
tivesse acontecido com você também. Eu...
Também?
— Eu estou bem, pai, mas... — Ao fundo, ouço gritos,
aflitos e animalescos. — Uma coisa terrível aconteceu.
Será que você poderia... pai, precisamos de você.
Não hesito em responder. Sei que em outro ponto
deste bunker os líderes da nação estão se reunindo de
novo. Há um lugar para mim à mesa deles.
Mas meu filho precisa de mim. E não é como se eu não
pudesse aconselhar o presidente de longe.
— É claro, Sam — digo, fazendo um sinal para Gamera
me seguir. — Só me diga para onde ir. Eu já estou a
caminho.
— Eu... — Ele faz uma pausa. Quando fala de novo,
parece estar segurando o telefone longe da orelha. —
John, espera, onde você...?
Ouço vozes sussurradas que não compreendo, e
então...
— Pai, ligo para você em cinco minutos, está bem?
Ele desliga antes que eu faça qualquer uma das
dezenas de perguntas que preciso de resposta, a
principal sendo: Que diabo aconteceu?
Ainda assim, tenho cinco minutos para descobrir como
fugir de um bunker secreto. Lembro que Richards disse
que eu poderia ir embora a qualquer momento, mas que
ele faria seus homens me acompanharem até a saída, se
certificando de que eu não poderia levar ninguém de
volta ao bunker. O tempo todo aquilo me pareceu uma
ameaça mal disfarçada, mas não acho que o presidente
deixaria Richards me matar — ainda mais agora. Ainda
assim, seria mais rápido e fácil sair dali sem ser
percebido.
O problema é que eu nem mesmo sei onde estou. A
uns cem quilômetros da capital, se o trajeto de trem
levou uma hora? Mais longe? E como eu faria para me
locomover?
No corredor, Briggs percebe que há alguma coisa
errada — e que eu estou dando no pé.
— Não — diz ele, balançando a cabeça.
— Achei que eu não fosse um prisioneiro — retruco.
Ele não tem uma resposta imediata.
— É meu filho — explico. — Eu preciso ir.
— Minhas ordens são de relatar...
— Por favor, Samuel — insisto. — É minha família. Se
sua mãe estivesse com problemas, você iria, não é?
Principalmente se ela estivesse envolvida em tudo o que
está acontecendo, como meu menino está. Ele precisa de
mim, e estou indo embora. Se você tentar me manter
aqui, só vai assegurar minha recusa em ajudar.
Vejo o conflito nos olhos de Briggs. Ele olha para os
corredores.
— Venha atrás de mim — diz ele. — Rápido.
Ele não espera minha resposta antes de seguir na
direção oposta ao centro de comando e à suíte do
presidente. Passamos por uma série de corredores
cinzentos. Com a cabeça, ele cumprimenta as pessoas
por quem passamos, que devem imaginar que estou
sendo levado para algum compromisso. Por fim,
chegamos à grande sala de concreto pela qual entramos
no bunker. O vagão de trem ainda está no centro dela.
O homem de jaleco está com o rosto enterrado em um
tablet. Ele levanta o olhar quando entramos.
— Estou aqui para lhe render, Joe — diz Briggs. —
Senha Juliette Delta Kilo.
Joe — acho — estreita os olhos para nós.
— Só posso fazer um intervalo daqui a uma hora.
Briggs dá uma risadinha.
— Se quiser continuar trabalhando, por mim tudo bem.
O homem remexe o nariz ao voltar a atenção para
mim, levantando a sobrancelha.
— Nosso convidado é cientista — explica Briggs,
encolhendo os ombros. — Está interessado no software
que usamos. Além disso, está um tédio horroroso lá
embaixo, e ele está me divertindo com histórias sobre os
ETs.
— Tá, tudo bem — murmura Joe.
Ele se levanta e sai, resmungando alguma coisa sobre
como a comida dali é ruim. Briggs o olha furioso
enquanto ele sai.
— Nós nos conhecemos há muito tempo — cochicha
ele. — Esse cara é um babaca.
— Venha comigo — digo. — Você vai ficar encrencado
quando descobrirem que me ajudou.
Ele balança a cabeça.
— Ficaria mais encrencado se desertasse. Além disso,
tecnicamente você não é um prisioneiro. Vou dizer que
você me manipulou e eu caí na sua conversa. O que não
é muito longe da verdade. A menos que você queira
bater na minha cabeça com minha arma ou coisa
parecida, mas acho que é mais fácil eles acreditarem que
você foi mais esperto do que eu, e não mais forte. Sem
ofensas.
— Briggs, eu... — Mas eu não sei o que dizer. —
Obrigado.
Ele aciona os controles. Anoto números em um bloco
que encontro ali perto.
— Este é meu número. Entregue isso para Richards.
Diga a ele que é como Jackson pode entrar em contato
comigo. Diga a eles... que é um assunto de família.
Acredite se quiser, mas acho que o presidente vai
compreender.
Na parede oposta, um painel de metal se abre na
parede, revelando um pequeno elevador.
— Isso vai levar você até a superfície — explica Briggs,
colocando o bilhete no bolso. — Em algum momento
alguém vai sair atrás de você. É melhor não estar por
perto quando isso acontecer. Podem insistir para você
voltar.
— Acho que corri mais nos últimos dias do que em
toda a minha vida — digo, avançando para o elevador.
Gamera vem zumbindo atrás de mim.
É só quando a porta começa a se fechar que me dou
conta de que não sei o que me espera lá em cima.
— Espera, onde estamos?
— Richards não disse? Base Liberty.
Ele dá um sorrisinho antes de desaparecer atrás da
porta de metal que está se fechando.
Subo o que parecem vários andares até finalmente
parar. A porta se abre e, por um instante, o brilho do sol
é ofuscante. Ando por um gramado cheio de agulhas de
pinheiro enquanto meus olhos se acostumam com a
luminosidade.
Eu me viro a tempo de acompanhar a parede atrás de
mim se fechar, até se parecer com nada além de um
pedaço qualquer do imenso muro de pedra à minha
frente — uma espécie de represa. Dou alguns passos,
tentando descobrir onde estou. É quando vejo um folheto
desbotado com um mapa no chão, semienterrado.
“Reserva Liberty”, diz o papel. Espano a poeira. Segundo
o mapa, estou a norte de Washington, não muito longe
de Baltimore.
— Muito bem — digo, olhando para a libélula no meu
ombro. — Vamos encontrar uma estrada.
Começo a correr. Gamera avança, transformando-se no
ar até virar um cavalo. Ele recua e fica parado diante de
mim, sacudindo a crina.
Acho que encontrei uma maneira mais rápida de sair
de perto do bunker.
Meu telefone toca enquanto me acomodo no lombo de
Gamera. Sam está do outro lado da linha quando atendo.
— Oi, pai — diz ele.
— Filho — respondo enquanto Gamera começa a
galopar —, para onde vou?
SOBRE O AUTOR

© Howard Huang

Pittacus Lore é o Ancião a quem foi confiada a história


dos lorienos. Passou os últimos anos na Terra,
preparando-se para a guerra que decidirá o destino do
planeta. Seu paradeiro é desconhecido.

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