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ARQUITETURA
M
2022
A DIMENSÃO SENSITIVA NA PERCEÇÃO DA ARQUITETURA
construção do espaço mental no campo não visual
Nota Prévia:
A presente dissertação está redigida ao abrigo do Novo Acordo Ortográfico. As citações transcritas em português
referentes a edições de língua não portuguesa, incluindo referentes, foram livremente traduzidas e/ou transcritas pela
autora. A norma para apresentação das referências bibliográficas é American Psychological Association (APA) 7th edition.
Este documento está preparado para leitura digital, apresentando ligações interativas.
II
AGRADECIMENTOS
É infindável aquilo pelo qual posso agra- eu não o fazia, a Margarida e o Luís Diogo.
decer. Fugindo entre adversidades, este À Margarida, ao José, ao Carlos, ao Tiago e
percurso é marcado por todas as con- ao Alexandre, por serem um lugar seguro
quistas e instantes de felicidade diá- para mim.
rios, mesmo em momentos de exaustão
ou fraqueza.
Aos meus colegas. Aos que desenharam Acima de tudo, à minha família.
por mim quando só sabia explicar atra-
Ao meu pai, por fazer de mim melhor e
vés de palavras, aos que pernoitaram
por permitir que lhe provasse que este
na faculdade com boa música, aos que
trajeto seria o certo, e que seria fantás-
me obrigaram a fazer pausas e descan-
tico. À minha mãe, por sempre ter bata-
sar ao sol. Àqueles que me invadiram
lhado para me mostrar que eu era capaz
a casa que transformamos em atelier
de tudo.
em tempo de pandemia, aos que toma-
ram decisões quando já não me sentia À Filipa, por ser colo infinito, abraço
capaz, aos que perderam horas a fio a apertado e a melhor conselheira. À João,
explicar-me aquilo que eu já devia sa- pelas visitas ilimitadas, palavras dedica-
ber. Em especial, à Eduarda, à Rita, à das e conforto do coração. À Ju, pelos
Mariana e ao João. devaneios artísticos e corridas de câme-
ra na mão, por cultivar o que gosto.
À Escola. Pelo caminho, pelos professo-
res, pelas viagens. À professora Filipa, Ao Vito, por ser meu parceiro incondi-
pela motivação e cuidado. Ao professor cional e fazer, sempre, que tudo pareça
Rui, por me fazer pensar a arquitetura de mais leve.
outra forma. À professora Ana, pela par- Aos meus avós, que sempre expectaram
tilha, amizade e empenho inabaláveis ao o melhor para mim, ainda que o mundo
longo deste último ano. não tenha permitido que me vissem com
Aos meus amigos. Aos que me fizeram va- o diploma.
guear o pensamento e me levaram no co- A todos, por compreenderem e perdoa-
ração pela vida. Sobretudo, aos que mo- rem as minhas ausências ao longo destes
raram comigo e cuidaram de mim quando cinco anos.
Obrigada.
III
ABSTRACT
III Agradecimentos
IV Abstract
V Sumário
1 I | Tema e Objeto
3 II | Objetivos
4 III | Metodologia e Estrutura
77 D | REFLEXÃO
79 D01 | Deliberações
82 D02 | Limitações e Estudos Futuros
83 D03 | Nota Final
87 IV | Bibliografia
92 V | Lista de Imagens
95 VI | Anexos
VII
ÍNDICE DE ANEXOS
Metodolodia e Estrutura
gia participativa: vista normo-visual, analisam-se os prin-
cipais atributos que possibilitam a com-
Começa-se por abordar os conceitos
preensão de um espaço e captação de
de Design Universal e Ageing in Pla-
características definidoras do mesmo.
ce, expondo o contributo destas no-
Objetiva-se confrontar essa realidade
ções no campo da arquitetura. Importa
com a do mundo não visual. Neste cam-
compreender e clarificar o modo como
po, estabelece-se o contacto com dois
se deve desconectar o termo incluir da
diferentes tipos de cegueira: congénita e
noção de acrescentar, e vê-lo, ao invés,
adquirida e, ainda, com a baixa visão.
como uma descomplicação do existen-
te (Araújo, 2018). Como referido ante- O estudo da mobilidade e métodos de
riormente, a degeneração da visão está orientação serve de base para a com-
fortemente ligada ao envelhecimento, preensão de como se forma um mapa
não representando, deste modo, uma mental do trajeto, através da perceção
condição isolada. multissensorial. Importa ter a consciên-
cia que a perceção se diferencia por inú-
Seguidamente, debate-se a necessidade
meros fatores, dos quais é relevante refe-
de repensar condições de acessibilidade
rir, desde já, o facto de cada indivíduo ser
e legislação para uma melhor adaptação e
diferente e dispor de memórias distintas.
inclusão ao envelhecimento e à degrada-
Apuram-se os modos de estruturação de
ção da visão. Expõe-se algumas das prin-
um espaço mental, no campo das distân-
cipais dificuldades do quotidiano de indi-
cias, escalas, limites, cheios e vazios.
víduos com cegueira ou baixa visão na sua
relação com o espaço privado, a habitação. Esta análise relaciona-se, também, com
questões de orientação e adaptação das
O testemunho de Carlos Mourão Pereira,
habitações à realidade não visual. É rele-
consequente de uma entrevista ao arqui-
vante deliberar sobre o modo como cada
teto [Carlos Mourão Pereira, transcri-
indivíduo se relaciona com o espaço e
ção completa da entrevista presente no
como se adapta ao mesmo - ou o adapta
Anexo 4], surge paralelamente à informa-
a si. Estas questões particulares do espa-
ção previamente referida. Esta perspetiva
ço privado ligam-se a noções de estética,
alia a experiência enquanto indivíduo cego
conforto e bem estar, numa escala em que
ao conhecimento e sensibilidade enquan-
pequenas alterações podem contribuir
to especialista em arquitetura. A ativida-
para mudanças significativas na forma de
de profissional de Mourão Pereira destaca
habitar a longo prazo (Spence, 2020).
problemas da cidade e da habitação, tanto
na tática urbanística quanto na arquitetó- A recolha de informação relatada neste
nica. São dadas sugestões de resolução de capítulo é consequência de uma meto-
problemas ao nível da habitação, visando dologia participativa, realizando entre-
uma melhoria na prática arquitetónica. vistas a indivíduos com deficiência visual.
5
Todas as entrevistas foram gravadas e A terceira parte pressupõe a consequên-
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva
7
Como referido no ponto anterior, o pre-
sente capítulo inicia-se com um esclare-
cimento relativo à condição da cegueira,
à baixa visão e às suas definições. Alguns
dos tópicos abordados relacionam-se
com o contexto social, os dados demo-
gráficos em Portugal e os meios de auxí-
lio à mobilidade disponíveis.
É evidenciada a supremacia da visão na
relação com a arquitetura, contrapondo
com uma reflexão em torno da perceção
multissensorial. A apreensão do espa-
ço arquitetónico está fortemente ligada
com os sentidos e a diversidade de estí-
mulos a que cada indivíduo é submetido,
de modo que importa pensar as caracte-
rísticas, tanto sensitivas quanto neuro-
lógicas, que definem estes métodos de
perceção.
Estas dimensões são, assim, exploradas
na sua relação com as correntes arquite-
tónicas seguidamente referidas.
8
A01 | A DEFICIÊNCIA VISUAL
1. As primeiras impressões em Braille, em Portugal, foram realizadas por Cândido Branco Rodrigues (1861-1926), no final
do século XIX. Foi Branco Rodrigues o fundador e diretor do Instituto de Cegos de Lisboa, em 1900, bem como o fundador
da instituição análoga no Porto. O Centro de Produção do Livro para o Cego foi a primeira imprensa Braille a ser constituída
em Portugal, tendo-se mantido como única até 1990, data em que surgiu o Centro de Produção Braille da ACAPO e a
partir da qual um maior número de publicações em diversas áreas de conhecimento passa a ser difundido.
9
anteriormente [Tema | Objeto], é esti- Dentro do campo da cegueira, esta divi-
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva
mado que, em 2015, existiam em Portu- de-se, substancialmente, entre dois ti-
gal cerca de 625000 pessoas com defi- pos: congénita, quando é de nascença ou
ciência visual (correspondente a 6% da quando o indivíduo cega muito novo, ou
população), das quais 35 000 seriam ce- adquirida, quando surge durante a vida,
gas e aproximadamente 590 000 teriam numa fase em que o indivíduo já retém
perda parcial de visão - amblíopes (Mar- memórias visuais. No primeiro caso, não
ques, 2018). existe qualquer tipo de memória visual
que auxilie o reconhecimento de um es-
Por sua vez, a Organização Mundial de
paço, de modo que a sua perceção tem de
Saúde previa que, em 2010, existiam na
se dar unicamente através de estímulos
Europa mais de dois milhões de indiví-
que em nada se associam a imagens. Por
duos cegos e aproximadamente vinte e
sua vez, um indivíduo com cegueira ad-
quatro milhões de pessoas com perda
quirida poderá possuir referências visuais
parcial de visão (EBU).
para a construção mental de um espaço
De acordo com a ACAPO - Associação através da memória, mesmo após a ce-
dos Cegos e Amblíopes de Portugal -, gueira, o que faz com que a perceção da
Deficiência Visual é o termo mais con- arquitetura para estes dois grupos seja
sensual e abrangente para referir pes- bastante distinta. Fatores como a idade
soas cegas ou amblíopes, ou seja, indiví- em que uma pessoa perde a visão e o tem-
duos com “limitações visuais graves em po decorrido desde esse acontecimento
termos gerais”. Devido à proximidade também são muito influentes no modo
entre os dois conceitos e, muitas vezes, como a mesma se apropria do espaço.
a mínima diferença objetivamente física
Na maioria dos casos, indivíduos com
entre eles, este termo permite, também,
deficiência visual possuem algum tipo
uma descrição mais inclusiva da circuns-
de visão, embora em termos clínicos e
tância circunscrita a cada pessoa nesta
nas suas questões de limitações sejam
condição. A cegueira representa a perda
considerados cegos. Existe quem te-
total ou quase total de visão, e é avalia-
nha perceção da luz, quem veja vultos,
da, segundo o Conselho Internacional de
ou quem não tenha qualquer perceção
Oftalmologia, como correspondendo a
visual. A fotofobia é, ainda, uma doença
um grau de visão abaixo de 5%. Por sua
associada à cegueira na qual os indiví-
vez, amblíope é a palavra que caracte-
duos possuem alguma perceção visual
riza pessoas com baixa visão, ainda que
na ausência de luz, mas a iluminação
esta seja uma generalização2. O conceito
intensa - natural ou artificial - ofusca
é utilizado com a sua noção abrangente,
e provoca um efeito de perda de visão.
que corresponde a um grau de visão en-
Segundo a Sociedade Portuguesa de
tre os 5% e os 30% (ACAPO).
Oftalmologia, as três principais cau-
2. Na realidade, amblíope é um indivíduo que sofre de ambliopia, um enfraquecimento da visão sem lesões oculares, o que
não englobaria todas as pessoas com baixa visão.
10
sas de cegueira em Portugal são: de- idade igual ou superior a 65 anos (EBU).
0 5 10 15 20
% de prevalência
Fonte: JN
Catarata
Erros refrativos não corrigidos Glaucoma
Degenerescência macular da idade Retinopatia diabética
11
Quais são, então, as ferramentas que au- Este conceito une-se ao human centered
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva
3. Para combater a falta de coerência entre a colocação de piso tátil, a ACAPO criou um documento com sugestões de
aplicação dos perfis e disposição dos mesmos para as várias situações.
Imagem 01. Sinalização com indicação Braiile.
12
Por sua vez, em termos de mobilidade, da análise momentânea de cada circui-
4. Aristóteles foi um filósofo grego, discípulo de Platão, que influenciou fortemente o desenvolvimento do pensamento
filosófico da cultura ocidental nos mais diversos campos de estudo. Este autor defendia o conhecimento do mundo de um
modo empírico, em que todos os sentidos serão necessários à sua compreensão, de modo que a exclusão de um - neste
caso, a visão - não permitiria um conhecimento pleno. Esta deliberação alia-se àquela que é intitulada de intelecto puro, o
conhecimento inerente a cada um.
15
A Grécia Antiga e a construção da Acró- do todo. Esta noção alia-se à vontade
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva
5. Durante este período, os cinco sentidos - visão, audição, olfato, paladar e tato - formavam um sistema hierárquico
em que a visão era destacada como o sentido do topo do sistema e o tato era considerado o mais baixo. “O sistema
Renascentista dos sentidos era relacionado com a imagem do corpo cósmico: a visão estava correlacionada com o fogo e a
luz, a audição com o ar, o olfato com o vapor, o sabor com a água e o tato com a terra” (Pallasmaa, 2012, p.18).
6. Conceito francês que se traduz para enganar o olho.
7. É Hermann Minkowski (1864-1909) quem, em 1908, introduz este conceito. Minkwoski era matemático e defendia que
as noções de tempo e de espaço isoladas se dissipariam, pela necessidade de uma constante interação entre as mesmas
para a compreensão do real.
16
Os pensamentos de Alvar Aalto impor- Poder-se-á, então, classificar o cuidado
ço construído a um corpo que toca cada tas medidas. Isto deve-se, não só, ao facto
indivíduo através da sua materialização, de que os materiais interagem e absor-
e é o modo como esses materiais “soam vem o calor corporal de modo diferente,
em conjunto e irradiam” que dá origem a mas também a uma análise psíquica da
uma composição singular. experiência humana. A cor e a iluminação
do espaço são dois dos fatores que mais
Barry Smith (1952) defende que o estí-
se destacam na perceção térmica e de
mulo de um sentido desencadeia rea-
conforto (Manav, 2013; Spence, 2020).
ções que poderão estimular outro, numa
cadeia interligada a que chama o efeito No entanto, “a maioria dos investigado-
cross-modal (Smith, 2017). Também Ras- res tem tido tendência para focar as suas
mussen (1964) refere esta ideia interliga- investigações empíricas no estudo da
da entre as várias formas de perceção, mudança de estímulo em apenas um sen-
ressaltando a dificuldade de distinguir tido de cada vez” (Spence, 2020, p.4). O
impressões táteis de impressões visuais estudo individualizado permite, por um
relativamente à cor. lado, simplificar o problema de investi-
gação do modo como o desenho arquite-
É o confronto entre os vários estímulos
tónico afeta o indivíduo sensorialmente
e a sua relação que permite uma expe-
(Malnar & Vodvarka, 2004), mas, por ou-
riência mais completa. Pallasma (2012)
tro lado, pode entender-se que o estudo
expõe duas definições de multissenso-
individualizado de um sentido negligen-
rialidade. Na primeira, apresenta-a como
cia a relação multissensorial natural da
a interação entre diferentes modalidades
apreensão de um espaço. O modo como
sensoriais no processo de perceção. Por
o ser humano reage aos meios em que se
sua vez, na segunda, afirma que uma en-
insere, sejam eles construídos ou natu-
volvente construída ser intrinsecamen-
rais, é consequência de uma combinação
te multissensorial significa que todos os
de todos os sentidos estimulados, inde-
sentidos estão envolvidos na perceção
pendentemente do indivíduo estar cien-
de um edifício ou espaço.
te da influência da sua relação ou não.
Quando se afirma que um espaço é frio, é Quando o cérebro humano é observado
comum que a referência não seja apenas por neurocientistas, a atividade é modu-
relativa à sua temperatura. Existe uma lada pelo que está a acontecer em res-
reação por parte do indivíduo que resulta posta a mais que um estímulo no mesmo
de uma antipatia ou afastamento às for- instante (Spence, 2020).
mas, materiais, sons e cores presentes no
20
O pensamento em torno dos modos de
Imagens 07. 08. Interação do corpo com o construído. Piscina em Monza, Itália, Giulio Minolleti.
21
B | PERCEÇÃO ESPACIAL E HABITAR
23
Considerar toda a informação anterior e exposições e concursos pensados para
colocá-la num caso prático da atualidade fomentar a sensibilização dos envolvi-
revela-se, atualmente, uma necessida- dos, dos participantes e dos leitores.
de com consequências particularmente
É relevante serem, também, discutidos
difíceis. A interação entre a deficiência
temas relacionados a Acessibilidade. Em
visual e a arquitetura evidencia a im-
consequência da consciência do ante-
prescindibilidade da integração de ele-
riormente exposto, surge a necessidade
mentos potenciadores de uma experiên-
de questionar pessoas com deficiência
cia multissensorial.
visual relativamente às suas dificulda-
Neste capítulo são abordados os con- des e adaptações à habitação, para que
ceitos de Design Universal e Ageing in o pensamento do futuro possa ter em
Place, colocando em evidência os con- consideração essas referências. Primei-
tributos para o campo da arquitetura. Os ramente, este contacto aconteceu atra-
avanços na medicina têm vindo a possi- vés de uma tertúlia dinamizada com a
bilitar um aumento da esperança média ACAPO, onde participaram treze pes-
de vida, e cabe aos arquitetos garantir soas com deficiência visual. De seguida,
que o espaço se adapta e mantem con- foram realizadas entrevistas individuali-
fortável a experiência vivencial de todos zadas, que se apresentam em análise no
os indivíduos. Com esta consciência, im- presente capítulo.
porta relembrar que a correspondência
Importa destacar, antes do início de uma
existente entre a degradação da visão e o
exposição mais prática que se desenrola-
envelhecimento.
rá até ao fim da investigação, que foi atra-
Nesta sequência, a agregação dos vários vés do concurso Home for the Blind, pro-
campos de conhecimento tem originado movido pela Bee Breeders, que se iniciou
diferentes caminhos de desenvolvimen- o estudo apresentado. O programa previa
to, tanto arquitetónicos quanto sociais. uma habitação para uma pessoa cega e to-
Desde os campos artísticos aos cien- talmente independente, e tinha como ob-
tíficos, surgem publicações, projetos, jetivo explorar a relação entre arquitetura
24
e acessibilidade. Algumas das questões na rua de Santa Catarina, o desenho da
colocadas na apresentação do exercício nova habitação foi pensado como conse-
relacionavam-se com o modo como a ar- quente do existente, mantendo uma re-
quitetura pode influenciar a forma como lação clara com os edifícios adjacentes.
uma pessoa se move numa habitação e as As preocupações tidas nesta primeira
consequências no seu conforto, seguran- fase de aproximação à temática podem
ça e independência. ser encontradas no [Anexo 1]. Com-
preendem-se, após a presente inves-
O projeto realizado com Duarte Gon-
tigação, algumas limitações do projeto
çalves em dezembro de 2021, intitulado
como, por exemplo, a marcação textura-
Connections in Height: in between sen-
da no chão ou a diferença nos puxadores
sations, foi pensado de modo a integrar
das portas dos armários e gavetas.
a cidade consolidada do Porto. Inseri-
do num lote com um edifício devoluto
10. É Selwyn Golsmith quem reconhece a lacuna de conectividade entre as ruas e os passeios para pessoas com deficiência
motora. Em consequência, cria o dropped kerb, que é uma depressão ou rebaixamento do passeio. Este elemento representa
uma rampa que conecta a parte alta à parte baixa permitindo a conectividade entre pontos no trajeto de um indivíduo com
deficiência motora.
27
para combater a desigualdade entre in- Na procura por uma solução univer-
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva
divíduos permitem uma maximização sal, esta não deve apenas servir o grupo
das competências e habilidades dos in- cujas necessidades estão em estudo, mas
divíduos envolvidos. Por consequência, sim melhorar a experiência para todos
surge uma participação mais ativa, equa- os utilizadores (Ielegens, Herssens &
litária e independente por parte desses Vanrie, 2015).
sujeitos na sociedade.
Nesta sequência, em 1997, o Centro de
O Design Universal procura desenhar Design Universal publicou sete Princí-
ambientes e objetos de modo a minimi- pios de Design Universal e orientações
zar as dificuldades e barreiras que con- associadas que podem ser aplicadas nos
frontam o quotidiano das pessoas com campos de arquitetura, design e educa-
algum tipo de limitação ou incapacidade. ção (Connell et al, 1997). Os princípios e
No entanto, não basta adicionar elemen- as respetivas orientações sumarizam-se
tos integradores para estes indivíduos. de seguida:
Princípios Orientações
6. Mínimo Esforço Garatir uma utilização de forma eficaz e confortável com um mínimo
Físico de fadiga. Permitir ao utilizador manter uma posição corporal neutra.
7. Dimensão
Garatir espaço e dimensão adequada para a abordagem,
e espaço de
manuseamento e utilização, independentemente da estatura,
abordagem e de
mobilidade ou postura do utilizador.
utilização
vamente para o bem estar pessoal, inde- truído. Tendo sido pensado para possibi-
pendência, participação social e envelhe- litar ao utilizador desfrutar da experiên-
cimento saudável (Sixsmith & Sixsmith, cia sensitiva que o oceano desencadeia,
2008). Sarah Hillcoat-Nallétamby argu- este projeto permite atribuir dimensões
menta que a vontade de mudar de local multissensoriais à arquitetura.
de habitação está mais relacionada com
Após perder a visão, Mourão Pereira sen-
descontentamento com a habitação pro-
tiu que entrar no mar passou a ser uma
priamente dita do que com o espaço en-
atividade com muito risco associado e
volvente. A autora refere que, por norma,
surge, daí, a vontade de ultrapassar esta
o espaço construído tem de ser adaptado
dificuldade a partir de um elemento ar-
e melhorado para ser fisicamente possí-
quitetónico. O desenho deste espaço
vel para as pessoas o habitarem de modo
pressupõe a inclusão de pequenos tan-
confortável (Pani-Harreman et al, 2021).
ques, com diferentes tamanhos e formas,
O desafio de Ageing in Place tem-se re- que remetem para as depressões naturais
velado mais presente nos últimos anos, e presentes nas rochas. Para tornar o local
a sua preocupação acrescida observa-se confortável para todos os que o frequen-
na necessidade de construção ou adap- tam, o arquiteto desenhou um corrimão
tação de edifícios existentes. As ques- que guia o visitante pelo espaço, pos-
tões interligadas ao planeamento urba- sibilitando que o mesmo se oriente de
no, nomeadamente a relação entre os forma segura nas várias partes do traje-
espaços exteriores públicos e os espaços to. Este espaço público exterior demons-
privados, são, também, alguns dos pon- tra, assim, cuidados importantes perante
tos da revisão que têm vindo a acontecer as noções de wayfinding, possibilitando
(Lameira, 2020). que tanto pessoas com deficiência visual
quanto pessoas com condições físicas li-
Relacionando os conceitos previamente
mitadas frequentem a instalação balnear
referidos, importa expor alguns projetos
de forma segura (Vermeersch 2013).
como demonstração de bons exemplos
e possíveis resoluções de problemáticas
associadas à deficiência visual e ao en-
velhecimento. Para tal, serão referidos
três projetos.
O primeiro, de Carlos Mourão Pereira, é
uma instalação balnear na Lourinhã, Por-
tugal. O arquiteto concebeu este proje-
to após cegar, de modo que o mesmo
contempla questões do seu quotidia-
no com as quais um normo visual não
30
O segundo projeto, de Mark Cavagnero soas com deficiência visual, o tratamento
Imagens 11. 12. 13. Projeto para instalação balnear na Lourinhã, Carlos Mourão Pereira.
31
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva
32
Imagens 14. 15. 16. Centro para pessoas com Deficiência Visual, Mark Cavagnero.
B | Perceção Espacial e Habitar
33
11. A Estrutura de Missão para a Promoção das Acessibilidades, com aprovação publicada em Diário da República a 4
de fevereiro de 2020, é consubstanciada pela Resolução do Conselho de Ministros nº4/2020. Este é o órgão responsável
pelos trabalhos que conduziram à elaboração do Plano Nacional de Promoção da Acessibilidade (PNPA).
12. Os exemplos aqui apresentados são consequentes de entrevistas realizadas a pessoas com deficiência visual,
35
mente referido, prevê que “os passeios de orientação e utilização das escadas.
adjacentes a vias principais e vias distri- O mesmo decreto de lei anteriormen-
buidoras devem ter uma largura livre não te referido prevê, entre outras normas,
inferior a 1,5m” (Teles, 2017, p.74). Também que existam “faixas antiderrapantes e de
a colocação de escadas na via pública sinalização visual com uma largura não
prevê que existam patamares, superior e inferior a 0,04m e encrostadas junto ao
inferior, “com uma faixa de aproximação docinho dos degraus” (Teles, 2017, p.98).
constituída por um material de revesti- O posicionamento dos corrimões é, tam-
mento de textura diferente e cor contras- bém, contemplado. “No topo da escada,
tante com o restante piso” (Teles, 2017, os corrimões devem prolongar-se pelo
p.76). No entanto, raramente se presencia menos 0,3m metros para além do último
a existência deste elemento. degrau do lanço, sendo esta extensão
paralela ao piso” e “na base da escada,
Relativamente a edifícios e estabeleci-
os corrimões devem prolongar-se para
mentos de receção ao público, as maio-
além do primeiro degrau do lanço numa
res dificuldades referidas pelos entre-
extensão igual à dimensão do cobertor
mantendo a inclinação da escada” (Teles,
acabamento de 2017, p.100).
textura e cor
contrastante Passando para uma análise relativa ao
espaço habitacional, importa referir
que a legislação não contempla medidas
obrigatórias que interfiram diretamen-
te no modo de habitar consequente da
prolongamento do
corrimão paralela- zona de
mente ao piso colocação
de mobiliário
urbano
prolongamento do
corrimão com a
profundidade do
cobertor
13. Aconselha-se a leitura íntegra da entrevista realizada a Carlos Mourão Pereira por contemplar vários temas
arquitetónicos relevantes para o estudo em questão. A transcrição completa encontra-se disponível no Anexo 4.
37
B03 | APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO
tados são consequência, única e exclu- sociedade. Expõe-se a opinião dos inqui-
sivamente, da informação retirada das ridos relativamente ao tratamento social
entrevistas realizadas. Nesse âmbito, consequente da deficiência visual e à
é debatida, em primeiro lugar, a expe- abordagem necessária para a busca por
riência sensorial dos indivíduos inqui- uma realidade mais inclusiva, a níveis so-
ridos no que toca aos estímulos que os ciais e arquitetónicos.
ajudam na perceção e orientação do es-
A investigação reflete os estudos reali-
paço. Este primeiro tópico, por sua vez,
zados sobre o envelhecimento seguro
integra a referência ao estímulo visual, à
em casa, acrescentando-lhes a noção
memória visual, ao tato, à acústica, à ci-
da deficiência visual. Deste modo, visa
nestesia e ao olfato.
compreender, não só, aquilo que define
De seguida, é abordada a experiência es- o conforto na habitação, mas também os
pacial relativamente a técnicas de mo- modos de perceção do espaço por parte
vimentação, criação de mapas mentais de pessoas com deficiência visual.
e referências que lhes estão associadas.
A referência aos entrevistados da expe-
Assim, a análise integra o modo como
riência empírica é realizada unicamente
os indivíduos inquiridos realizam a des-
através dos seus primeiros nomes, per-
crição de um espaço, as inseguranças e
mitindo que se mantenha o anonimato.
técnicas associadas à movimentação e a
construção do mapa mental.
Em terceiro lugar, é discutido o modo de
habitar. São discutidos tópicos relativos
à experiência de cada indivíduo na sua
habitação, nomeadamente no que toca a
alterações arquitetónicas ou obstáculos
sentidos na utilização dos espaços. São,
ainda, abordadas as definições de con-
forto, bem estar e beleza, e as suas asso-
ciações à habitação.
40
B | Perceção Espacial e Habitar
Categorização dos Resultados | Apropriação do Espaço
1 | A Experiência 2 | A Experiência
3 | O Habitar 4 | A Sensibilização
Sensorial Espacial
1.4 | O Espaço
1.4 | A Acústica
Exterior
1.5 | A Cinestesia
1.6 | O Olfato
1.7 | A Relação
entre o Tempo e a
Memória
41
RESULTADOS
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva
1 | A EXPERIÊNCIA SENSORIAL
Como a deficiência visual diminui - ou
exclui, por completo - a utilização da
visão como sentido orientador, existem
outros estímulos que são aprofundados
e auxiliam na compreensão do espaço.
Alguns desses estímulos, como o tato
e a audição, podem transformar-se no
modo como influenciam a apreensão de
cada local.
Quando se analisa o modo como os indi-
víduos manifestam apreender o espaço,
importa elaborar uma grande distinção:
pessoas com baixa visão tendem a ser-
vir-se da pouca visão que têm para ex-
plorar o espaço, e as suas descrições são
maioritariamente baseadas em elemen-
tos visuais. Por outro lado, as pessoas
cegas destacam outros sentidos apro-
fundados de seguida.
Importa compreender, para esta análise,
como mencionado num capítulo anterior
[A02], que os cinco sentidos comumen-
te analisados têm dimensões que lhes
são complementares e variam perante a
classificação de cada autor. Para a aná-
lise seguidamente exposta, foram utili-
zados apenas os tópicos mencionados
pelos entrevistados, sendo estes a visão,
a memória, o tato, a acústica, a cineste-
sia, o olfato e a relação entre o tempo e
a memória.
42
1.1 | O ESTÍMULO VISUAL 1.2 | A MEMÓRIA VISUAL
O conceito de beleza surge de forma di- Embora até aqui a opinião da amostra
versificada entre a amostra de pessoas seja relativamente coincidente, em des-
inquiridas. Parecem reagir à palavra com crições práticas as opiniões divergem.
alguma relutância inicial, classificam-na Muitos dos que viram anteriormente
como difícil ou complicada. Gabriel ma- manifestam preocupação pela aparên-
nifesta, até, considerar ousado utilizá-la cia visual de um espaço - não porque o
na ausência de visão. No entanto, todos veem, mas porque cultivam a imaginação
manifestam as suas preferências, ainda com a imagem que tentam criar, tanto
que de modo muito distinto. pela sua perceção como pela descrição
de terceiros. Assim, os entrevistados que
É curioso que, mesmo com ausência de
retêm fortes memórias visuais associam
visão desde o nascimento, Maria associa
texturas, materiais e descrições a perce-
a beleza a um jardim com muitas flores
ções visuais que recordam, optando por
e cores. Sabe-se, pela sua condição, que
descrições mais completas do que, para
esta noção estética parte de uma cons-
eles, é a beleza. Manifestam preocupa-
trução social do que se caracteriza como
ção pelo desenho do pormenor e pela in-
belo, uma ideia da qual o cérebro se
clusão de elementos distintivos.
apropria, mas pode também estar asso-
ciada a memórias positivas que tenham Em contrapartida, verifica-se que aque-
acontecido em locais como o anterior- les que nunca viram ou perderam a visão
mente descrito. mais cedo têm maior facilidade em des-
pegar-se das noções de estética. Pre-
Perante a diminuição na acuidade da vi-
ferem um desenho quase “hospitalar”
são e quando associada à arquitetura, a
[Maria], com o espaço desimpedido e os
noção de beleza dissocia-se de uma no-
acabamentos lisos e claros, completa-
ção estética isolada e incorpora um cam-
mente associado a um uso apenas utili-
po vasto conjunto de valores multissen-
tário.
soriais. No entanto, parece ser definida
pela maioria dos entrevistados como Por sua vez, indivíduos com baixa visão
algo que combina conforto e organiza- destacam como grande ponto de re-
ção. Surge, nesta sequência, a corres- levância para a beleza de um espaço, o
pondência entre beleza e harmonia. Co- mesmo que destacavam para o conforto:
nhecer um espaço, ouvir uma descrição a presença abundante de luz natural.
e pensar “faz todo o sentido, não trocava
nada aqui” [Marta]. Cria-se uma noção
que compila inúmeras experiências sen-
soriais e permite uma opinião coesa so-
bre um espaço.
52
3.3 | A SMART HOUSE 3.4 | O ESPAÇO EXTERIOR
Sensibilizar a população é uma “missão” que interagem, mas revelam não ser co-
[Marta] que alguns dos entrevistados se mum verem essa preocupação presente.
veem no papel de cumprir. Participando Marta questionou a existência de uma
ativamente na sociedade com a vontade unidade curricular relativa a acessibili-
de informar, foi também como conse- dade nas faculdades associadas ao tema,
quência deste pensamento que se dispo- sugerindo o seu fortalecimento. Acredita
nibilizaram para integrar a investigação que o contacto com estas dificuldades
exposta. Enquanto uns consideram que durante o percurso académico sensibi-
os círculos sociais que os rodeiam estão liza os estudantes para a futura prática,
conscientes e preparados para lidar com e menciona que, muitas vezes, pequenas
uma pessoa com deficiência visual, ou- situações seriam fáceis de simular como,
tros notam, ainda, claras falhas nas for- por exemplo, colocar uma pessoa numa
mas de tratamento e oportunidades dis- cadeira de rodas, ou vendar alguém e
poníveis para alguém com visão reduzida deixar que se movimente num edifício.
ou inexistente.
A sensibilização vem, também, associa-
O conceito de inclusão é referido não da ao modo como um dos entrevistados
apenas socialmente, mas também no que interpreta a revisão da legislação. Paula
toca à arquitetura, no campo das acessi- reforça a necessidade da sensibilização
bilidades. Os entrevistados que mencio- anteceder as possíveis medidas legisla-
nam a questão, referem que sentem que, tivas uma vez que, constituindo mudan-
muitas vezes, os obstáculos arquitetóni- ças abruptas ou sem explicação, poderão
cos e urbanísticos com que se confron- ser mal acolhidas pelos profissionais de
tam parecem consequência da falta de arquitetura e construção. É, também, re-
contacto e conhecimento relativamente ferido o facto de, muitas vezes, a legis-
à deficiência visual. Acreditam que o pro- lação colidir entre si, reconhecendo que
blema se generalize para outras condi- nem sempre é possível cumprir todas
ções físicas, embora reconheçam que, ao as normas. Nesta sequência, conside-
longo dos anos, tem sido feito um per- ra que a mudança da mentalidade deve
curso positivo na adaptação dos espaços anteceder a imposição de regras, e que
a pessoas com diferentes possibilidades isso se faz através de formação e partilha
de utilização, especialmente em questões de informação.
relacionadas com a mobilidade reduzida.
No decorrer das entrevistas, manifesta-
ram interesse na dinamização de infor-
mação junto a profissionais de arquite-
tura, construção, ou outras áreas que
impactem nos espaços construídos com
54
DISCUSSÃO E CONCLUSÕES
61
Apoiando-se nos alicerces erguidos nos
momentos precedentes da investiga-
ção, o presente capítulo expõe o con-
texto do role playing e a sua aplicação
numa atividade realizada no âmbito des-
ta investigação. Desde as vantagens às
suas limitações, este método é discuti-
do, primeiramente, com bases teóricas
e, depois, através das consequências da
atividade. Nesta atividade, pessoas nor-
mo-visuais são confrontadas com a rea-
lidade da cegueira, numa ação de cons-
ciencialização e esclarecimento. Surge,
assim, uma aproximação ao modo como
a arquitetura é apreendida num contex-
to não visual. São evidenciadas lacunas e
dificuldades, visando possíveis sugestões
para estudos futuros.
62
C01 | ROLE PLAYING
A atual prática arquitetónica já não se Foi a designer Patricia Moore (1952) quem
foca exclusivamente num homem nor- pôs em prática, entre 1979 e 1982, uma das
mal: jovem, saudável e de estatura mé- primeiras experiências de role playing.
dia, um ser humano abstrato que “estaria Numa tentativa de confrontar as impli-
sempre apto a entender novos produ- cações do envelhecimento, Moore criou
tos, dificilmente sucumbiria ao cansaço uma investigação empírica que pôs em
e não seria propenso ao erro” (Araújo, prática na primeira pessoa. Restringiu as
2017, p.128). No entanto, existem ainda articulações, limitou a capacidade auditi-
minorias que enfrentam dificuldades no va e obstruiu a visão, além de se disfarçar
confronto com o construído, como ante- de uma mulher idosa. Visitou, nestas cir-
riormente referido [B01], e alguns desses cunstâncias, mais de 200 cidades entre os
obstáculos são consequentes do natural Estados Unidos e o Canadá, confrontando
envelhecimento do corpo. o modo como se deslocava com as limita-
ções sociais e construídas (Moore, 1985).
Apenas na década de 1970 é que arqui-
tetos e designers começaram a explorar Este exemplo resume, assim, o modo
a prática do role playing, numa busca de como surge a prática referida, numa luta
um conhecimento empírico sobre as di- pela sensibilização ou aproximação à
ficuldades de relacionamento entre indi- problemática da acessibilidade, onde os
víduos com limitações ou incapacidades intervenientes são convidados a experi-
e o espaço construído que os envolve mentar situações de incapacidade. Por
(Araújo, 2017). norma, os resultados obtidos são “claros
na compreensão dos impactos que as
eventuais soluções de projeto têm en-
quanto elementos promotores de aces-
sibilidade e qualidade de vida” (Simões &
Bispo, 2006, p.20).
63
Não devem ser descartadas, no entanto,
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva
Partindo das condições e vontades ex- Porto, à IRIS Inclusiva e ao mais recen-
postas nos capítulos anteriores, nomea- te contacto com a ACAPO - Delegação
damente pela “missão” [Marta, Anexo 5] de Viana do Castelo, sempre foi referido
descrita pelos entrevistados de sensibili- que transmitir informação relativamente
zação da sociedade e pelas dificuldades às dificuldades sentidas por indivíduos
com que se confrontam no seu quoti- com deficiência visual aos arquitetos se-
diano, surge a vontade de sensibilizar ria uma mais valia para pensar o futuro
os estudantes de arquitetura para as di- da cidade e dos modos de habitar. Isabel
ficuldades sentidas por indivíduos com Barciela reforça essa ideia ao explicar
deficiência visual na sua relação com o que o foque em arquitetos em formação
construído. é proveitoso por impactar os seus pen-
samentos num momento em que ain-
Os indivíduos com deficiência visual en-
da estão a ser moldados [IRIS Inclusiva,
trevistados referem, como anteriormen-
transcrição completa da entrevista pre-
te exposto [B03 Resultados | Sensibiliza-
sente no Anexo 3]14.
ção], que os obstáculos arquitetónicos
e urbanísticos com que se confrontam Apropriando-me das palavras de Carlos
parecem consequência da falta de con- anteriormente expostas [B03] e tendo-as
tacto e conhecimento relativamente à como base para o exercício posterior-
deficiência visual. É referido que o con- mente apresentado, é importante referir
fronto com estas dificuldades durante o que nós, entre tantos outros, somos o fu-
percurso académico poderá sensibilizar turo. Enquanto futuros arquitetos, surge
os estudantes para a futura prática, jus- o dever de colaborar no sentido da inte-
tificando a implementação de atividades gração.
que o possibilitem.
Também as entidades e associações re-
lacionadas com a deficiência visual ex-
põe essa preocupação. Desde o primeiro
contacto com a ACAPO - Delegação do
14. Aconselha-se a leitura íntegra da entrevista realizada a Isabel Barciela, da IRIS Inclusiva, por contemplar vários temas
65
C | Percurso às Escuras
ÀS ESCURAS”
A atividade, realizada com o apoio e di- modo a que os estudantes tivessem
namização da ACAPO - Delegação de contacto com espaços de diferentes
Viana do Castelo -, aconteceu no dia 2 de proporções. Assim, possibilitou-se o
setembro de 2022, no Centro Cultural de confronto com realidades que poderiam
Viana do Castelo, projetado por Eduardo integrar a habitação - como é o caso da
Souto de Moura. escada, das instalações sanitárias e de
alguns dos circuitos percorridos -, bem
Os estudantes foram colocados numa
como a interação com espaços amplos
condição que simulasse a cegueira, atra-
típicos da arquitetura para uso coletivo.
vés do recurso a vendas. De modo a não
terem um primeiro contacto visual com Após este primeiro contacto, os partici-
o edifício que iriam percorrer, o ponto pantes foram direcionados para uma das
de encontro deu-se noutro local da cida- salas do edifício onde puderam tirar as
de onde foram ensinadas as técnicas de vendas e refletir em torno de alguns tó-
utilização das bengalas brancas. A partir picos seguidamente apresentados. Vol-
daí, seguiram com técnicas de guia até à taram a colocar as vendas e realizaram o
entrada do edifício, onde lhes foram en- percurso inverso, desta vez em técnicas
tregues as bengalas. de guia. Quando se encontravam nova-
mente no ponto inicial, na entrada do
Percorreram um percurso pré estabe-
Centro Cultural, retiraram as vendas e
lecido sob orientação auditiva guiada
tiveram oportunidade de analisar visual-
por mim e por duas técnicas da ACA-
mente o espaço que percorreram.
PO, Catarina Carvalho e Alice Sobrei-
ro. O trajeto incluía passagem por uma Regressaram à sala onde anteriormente
escada, visita às instalações sanitárias, tinham retirado as vendas para uma ação
diferentes tipos de percurso e acesso de sensibilização sobre a deficiência vi-
ao espaço central do Centro Cultural. sual realizada pela ACAPO - Delegação
A escolha dos espaços foi pensada de de Viana do Castelo.
67
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva
68
Imagens 24. 25. 26. 27. Percurso às Escuras. Mais fotografias disponíveis no Anexo 7.
69 C | Percurso às Escuras
MÉTODO DE ANÁLISE EMPÍRICA
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva
C | Percurso às Escuras
No desenrolar da atividade, verificou- Aparte todas as dificuldades sentidas e
-se que os participantes manifestaram a insegurança transmitida pelos parti-
grandes dificuldades na movimentação cipantes, foi possível verificar que estes
através da utilização da bengala branca. sentiam diferenças acústicas entre es-
Em termos de orientação, por sua vez, paços, sabendo identificar os momen-
os estudantes de arquitetura pareceram tos em que estavam a mudar de espaços,
quase constantemente dependentes do ainda que não soubessem ao certo como
auxílio de outra pessoa. seriam as configurações dos espaços que
Existiram pontos específicos onde se ve- percorriam.
rificou maior dificuldade, como é o caso Estas questões constituem, sumaria-
da deslocação na escada e na identifica- mente, os pensamentos imediatos con-
ção das instalações sanitárias. No caso da sequentes da resolução da atividade. De
escada, devido ao corrimão não cumprir seguida, serão apresentados os tópicos
a medida regulamentar depois do térmi- discutidos com os estudantes de arqui-
no dos degraus [B02], os participantes tetura, contemplando as suas opiniões
sentiram dificuldade em identificar o seu em torno do “Percurso às Escuras”.
fim, bem como o patamar intermédio.
Por sua vez, as escadas associadas às
bancadas, na parte mais ampla do cen-
tro cultural, eram desprotegidas, provo-
cando uma aparente sensação de perigo
para quem as frequentava vendado. Foi
possível verificar que, embora os de-
graus destas escadas possuíssem uma
tira antiderrapante no término do seu
cobertor, nenhum dos participantes se
apercebeu da sua existência. Outro dos
obstáculos identificados na deslocação
em espaços de circulação foi a colocação
errada de um extintor, de forma que to-
dos embateram contra o mesmo.
71
1 | A EXPERIÊNCIA SENSORIAL
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva
C | Percurso às Escuras
Quando inquiridos relativamente a ques- São assinalados como obstáculos espe-
tões de mobilidade e orientação, desta- cíficos à orientação alguns elementos,
ca-se a opinião de cinco dos seis estu- como é o caso do corrimão da escada,
dantes de arquitetura que afirmaram não que não a acompanha da forma regula-
sentir conforto a percorrer o espaço. mentar, e o facto dos degraus não pos-
suirem espelho, colocando em dúvida a
As dificuldades mais destacadas, em ter-
sua existência. Também a perturbação
mos de mobilidade14, relacionam-se com
sonora se insere como um elemento de-
o posicionamento de obstáculos acima
sorientador, “tanto em demasia como na
do nível da cintura, não identificados
ausência ou escassez de som”.
pela bengala, como caixotes do lixo sus-
pensos, extintores, lavatórios, entre ou- Como consequência desta experiência,
tros. Na ausência de obstáculos, a inse- os seis participantes afirmaram que, se
gurança constante do facto dos mesmos pudessem, fariam alterações no edifício.
poderem existir constitui, também, uma Estas relacionam-se maioritariamente
barreira à mobilidade confortável. Na ex- com as dificuldades sentidas e com os
plicitação de espaços onde a mobilidade pontos de perigo identificados. Também
era dificultada, foram mencionadas as é manifestada por parte dos estudantes
escadas e as instalações sanitárias. de arquitetura a vontade de integrar si-
nalização que facilite a orientação no
Os participantes afirmam que as dificul-
interior do edifício, seja através de refe-
dades na orientação15 foram substancial-
rências táteis a nível do solo, referências
mente superiores às sentidas na mobi-
braille, ou visuais de alto contraste.
lidade, e que, logo à partida, a “procura
por paredes para ter pontos de referên-
cia” [Participante A] era uma atividade
que transmitia frustração. Isto deve-se à
ausência de pontos de referência, o que
torna difícil criar uma ideia de percurso
ou mapa mental do espaço. Manifestam
constante sensação de desorientação,
sem conseguir estabelecer os percur-
sos realizados a cada instante, durante
a experiência.
14. Mobilidade corresponde à capacidade de um indivíduo se deslocar entre pontos, e as dificuldades correspondem aos
obstáculos que encontra na sua deslocação. Existem elementos que auxiliam a mobilidade de pessoas com deficiência
visual, como, por exemplo, os cães guia, as bengalas brancas, pessoas que as guiam ou até aplicações de telemóvel.
15. Orientação relaciona-se com os motivos que levam à escolha de um trajeto, e as dificuldades correspondem aos motivos
que fazem com que o indivíduo se sinta perdido ou confuso na escolha do percurso. Existem, também, elementos que
ajudam indivíduos com deficiência visual a orientarem-se, como é o caso dos pisos táteis ou das sinalizações em braille.
73
3 | PERTINÊNCIA DA ATIVIDADE “PERCURSO DISCUSSÃO E CONCLUSÕES
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva
ÀS ESCURAS”
A exposição anterior revela dimensões
Os seis participantes envolvidos nesta tanto sensitivas quanto objetivas em tor-
atividade consideraram que os seus mo- no da experiência interativa entre a de-
dos de pensar arquitetura foram positi- ficiência visual e o espaço construído,
vamente influenciados, em várias formas submetendo futuros arquitetos tempo-
de pensamento. rariamente a essa realidade. Das ques-
tões discutidas, destacam-se a utilização
Por um lado, acreditam que lhes foi pos-
da prática de role playing como estraté-
sível reconhecer algumas das constri-
gia de ensino de arquitetura e a conse-
ções que a arquitetura pode causar a
quente sensibilização.
indivíduos com deficiência visual, levan-
do-os a encarar a legislação existente de Antes de mais, importa refletir sobre
um outro modo. Manifestam preocupa- os modos como a arquitetura pode ser
ção na forma como irão desenhar espa- experienciada, sendo estes a micro ou
ços no futuro, com a preocupação de in- macro escala. Como anteriormente refe-
cluir elementos que sentiram faltar nos rido [B03 | Discussão], a ausência de vi-
seus percursos. são implica que o espaço seja percebido
“sequencialmente, passo a passo” (Hers-
Por outro lado, reforçaram a relevância
sens, 2012, p.7) devido à necessidade da
da experiência por lhes ter sido pro-
exploração através do tato, inserindo-se
porcionado um modo de aprendizagem
na perceção a micro escala. Esta condi-
e confronto com um problema que, até
ção fomenta o pensamento em torno da
então, não tinham colocado. Afirmam
necessidade de uma riqueza háptica dos
que o modo de aprendizagem através
elementos construídos.
de role playing os influenciou a, de um
modo relativamente fácil e não muito Charles Spence (1969) (2020, p.6) refe-
demorado, tornarem-se mais sensíveis a re-se à riqueza háptica como tendo o
questões de acessibilidade. “poder de algo ordinário criar felicida-
de extraordinária”. O autor refere que
Embora sem total consciência das con-
objetos angulares dentro da habitação
sequências desta atividade nos seus fu-
têm um efeito, ainda que inconsciente,
turos enquanto arquitetos ou cidadãos,
nas emoções de cada indivíduo, impe-
afirmam ter sido uma prática enrique-
dindo alguns impulsos. Por outro lado,
cedora. É deixada a nota de desejo de
a utilização de superfícies redondas de-
que “outros (futuros) arquitetos possam
sencadeia a reação oposta. Deste modo,
ter a mesma experiência” [Participante
parece natural que, após experimenta-
C], ressaltando que é importante con-
ção da ausência de visão, os estudantes
siderar para um espaço que “menos do
de arquitetura envolvidos na atividade
que ser acessível a todos é inaceitável”
transmitam algum receio perante o em-
[Participante D].
74
bate em objetos, e que tenham em con- potenciando uma arquitetura com perfil
C | Percurso às Escuras
sideração as características hápticas nos mais inclusivo na área das acessibilida-
seus desenhos futuros, a uma micro es- des (Ielegens, Herssens & Vanrie, 2015).
cala (Herssens 2012). Perante tal circuns-
Também as implicações dos métodos de
tância, torna-se necessário “escrutinar
projetar experienciais e participativos
conceitos de orientação e desenvolver
devem ser tidas em consideração para
diferentes modos de análise espacial”
compreender as vantagens e desvanta-
(Abouebeid, 2019, p.13).
gens destes processos. O entendimen-
Importa, também, refletir em torno de to de condições sociais e científicas da
role playing enquanto estratégia de en- realidade que se tenta reproduzir num
sino. O interesse por parte dos estudan- determinado momento nunca serão, de
tes tem tendência a aumentar quando forma exata, as a que os indivíduos es-
estão submetidos a uma circunstância tão sujeitos. Como são exemplo as ativi-
diferente da sua, pela sensação desafian- dades participativas passadas em alguns
te que a mesma implica (Jarvis, Odell & bairros sociais, a “tradução do estudo
Troiano 2012). É retratado, também, pe- social e científicos em práticas arquite-
los mesmos autores, que o envolvimento tónicas pode revelar-se um esforço fa-
ativo do estudante na prática de ensino lhado” (Mallgrave, 2013, p.24). Não deve,
fomenta a sua vontade de participação, no entanto, ser um esforço desperdiça-
uma vez que deixam de integrar a posi- do. Esta chamada de atenção surge no
ção de “recebedores passivos do conhe- seguimento desta discussão por se con-
cimento do professor”. Ao invés, tomam siderar relevante, para estudos futuros,
parte ativa na experiência. Como conse- que se registem, também, os obstáculos
quência desse envolvimento, é desenvol- à integração de métodos de role playing.
vido um maior sentimento de empatia na
Acredita-se, no entanto, que o “Percurso
compreensão de condições que diferem
às Escuras” constituiu uma experiência
das suas.
positiva e influente no pensamento ar-
No entanto, importa pensar as conse- quitetónico dos futuros arquitetos que
quências práticas de role playing en- participaram na atividade. Deste modo,
quanto método de ensino. Integrando revela-se imperativo deixar a sugestão
um modo de gerar informação direta em de implementação de atividades seme-
torno de uma problemática, a mesma lhantes no percurso académico, possibi-
não deve negligenciar a recorrência a in- litando um enriquecimento a nível cien-
divíduos na situação real de deficiência tífico, sensitivo e pessoal.
visual, aquando do ato projetual. A inclu-
são da informação disponibilizada pelas
duas fontes possibilita um exercício de
pensamento de projeto mais completo,
75
D | REFLEXÃO
77
A significância da Arquitetura surge com construído e o indivíduo que o ocupa. As
o seu impacto na vida humana, nas suas adaptações consequentes de alterações
várias dimensões de apropriação, enten- físicas, psíquicas ou motoras causam re-
dimento e bem estar. O modo como cada lutância a nível psicológico, por desvir-
indivíduo se apropria do espaço, na sua tuarem o lugar de cada um, mesmo que
singularidade, permite que o mesmo se lhe sejam úteis.
defina no mundo arquitetónico do ima-
Assim, importa refletir em torno de al-
ginário de cada um. No desenvolvimento
gumas questões previamente discutidas
desta investigação, tornou-se clara a ne-
nesta investigação.
cessidade de combater obstáculos que a
arquitetura proporciona, numa luta por
uma utilização do construído mais aces-
sível e inclusiva.
Ressalta-se nesta reflexão o facto da de-
ficiência visual estar, na sua maioria, as-
sociada ao processo de envelhecimento.
Com este facto em consideração, e com
a consciência que de os indivíduos rea-
gem às adaptações realizadas nas suas
habitações, torna-se imperativo que o
desenho da habitação seja consequência
de um ato projetual que não negligencia
o envelhecimento.
A casa deve ser pensada como um lugar
que, como anteriormente referido [Tema
| Objeto], se constrói mentalmente atra-
vés de interações, estímulos e reações
resultantes do confronto entre o espaço
78
D01 | DELIBERAÇÕES
D | Reflexão
com a sensibilização como meio de alte-
rar a atitude comportamental da socie-
dade. Existem vários métodos de cons-
ciencializar os indivíduos relativamente
a questões de diferença entre as pes-
soas, e esses meios devem ser procura-
dos para que, de um modo geral, a quali-
dade de vida seja melhorada.
O trabalho junto de arquitetos em for-
mação através da utilização de role
playing como estratégia de ensino, numa
tentativa de os sensibilizar para as di-
ficuldades associadas à acessibilidade
revelou-se importante para a discus-
são desta temática. Pela atividade rea-
lizada e suas consequentes conclusões,
acredita-se que o “Percurso às Escuras”
desencadeou uma experiência positiva
no circuito arquitetónico dos estudantes
envolvidos, tendo contribuído, como ex-
pectável, para a sensibilização dos mo-
dos de habitar com deficiência visual.
Apesar das importantes reflexões que
surgiram como consequência da inves-
tigação exposta, existem algumas limita-
ções e desvantagens no modo de realiza-
ção da mesma.
81
D02 | LIMITAÇÕES E ESTUDOS FUTUROS
83
Penso que não cegamos, penso que estamos cegos,
cegos que veem, cegos que, vendo, não veem.
José Saramago
IV | BIBLIOGRAFIA
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de Mestrado, Faculdade de Arquitetura
da Universidade de Lisboa.
Zumthor, P. (2009). Atmosferas. 1ª
edição, 2ª impressão. Barcelona:
Litosplai, SA. 75.
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V | LISTA DE IMAGENS
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ÍNDICE DE ANEXOS
A presente entrevista foi realizada pre- entanto, por vezes acontece não con-
sencialmente, na Delegação do Porto da seguirmos chegar a toda a gente, por
ACAPO, no dia 28 de abril de 2022. Teve a exemplo, aos estudantes de arquitetura.
duração de aproximadamente 1h. Talvez fossem um público interessante
para trabalhar, por necessitarem de ter
Em conversa com a autora, estiveram
essa perceção.
Paula Costa, Diretora da Delegação do
Porto da ACAPO, Maria da Luz, Técnica PC: Também temos ações de sensibili-
de Braille, e Vânia Vieira, Técnica de Mo- zação nas escolas. Para as crianças com-
bilidade. preenderem como se deve lidar com uma
criança cega. E temos protocolo com es-
colas superiores de saúde, mais especifi-
AM: Quais as iniciativas que a ACAPO camente a ortóptica.
põe em prática para sensibilização, no
ML: Consultam-nos, também, nas esco-
Porto?
las profissionais, nas diferentes áreas.
PC: Já fizemos atividades de peddy pa- Por exemplo, consultam-nos para ques-
per, visitas à Torre dos Clérigos, em que tões relacionadas com o turismo e res-
as pessoas iam com os olhos vendados tauração.
e faziam o percurso com a bengala, por
exemplo.Também já fizemos um exercí-
cio na Trindade em que colocamos obs- AM: Têm acesso a algum dado estatístico
táculos, desde um telefone, um carro, relativamente ao número de cegos em Por-
entre outros, para as pessoas normo-vi- tugal?
suais sentirem a dificuldade da pessoa
VV: É um número erróneo ainda, não
cega a andar na rua.
sei se os CENSOS de 2021 já vieram com
VV: Já existiram aqui na delegação, tam- esse valor certo. A partir dos CENSOS
bém, dinâmicas com o cheiro, jogos de deveria ser possível aferir, mais ou me-
tabuleiro, vestir e despir um boneco. No nos, o número de pessoas portadoras
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de deficiência visual, porque é impossí- ML: E nesse aspeto já compromete, por
fica em bidimensional fica espalmado e quanto uma pessoa que vê entra, olha, e
pronto… porque ela nunca o consegue consegue rapidamente ter uma imagem
ver nessa perspetiva. Uma criança que da sala, nós fazemos ao contrário. Te-
vê e que depois, mais tarde, perde a vi- mos que analisar ponto por ponto, e o
são, se calhar já faz uma interpretação mesmo será quando nós queremos en-
diferente de uma imagem bidimensional, contrar alguma coisa. Assim, se as coisas
ainda que ela seja um pouco mais com- estiverem mais organizadas, seguindo
plicada. uma lógica, seguindo uma ordem, é mais
fácil também orientarmo-nos nesse es-
AM: Passando para a questão do espaço,
paço, ainda que tenhamos de o reconhe-
como seriam ou quais seriam as princi-
cer. Por isso é que é muito importante
pais características que uma pessoa cega
as coisas não estarem sistematicamente
tem para conseguir compreender o es-
a mudar de sítio. Depois, há outros as-
paço?
petos. Por exemplo, se entrar num es-
VV: Compreender o espaço só exploran- paço, eu tento perceber pelo odor o que
do através do corpo, penso que é o que se passa naquele local. Por exemplo, se
acontece primeiro. Às vezes, uma por- eu entro num restaurante, nós também
ta aberta dá para perceber o espaço, as percebemos, pelo barulho dos talheres,
portas fechadas dão para perceber outro que aquele local é um restaurante. Uma
espaço. Se fecharmos agora os olhos há farmácia, uma pastelaria ou até uma loja
possibilidade de nós percecionarmos o do chinês se conhece pelo odor. Num es-
que está à nossa volta. A questão da ex- paço muito amplo é difícil termos pon-
ploração, de perceber como é que está, tos de referência para nos orientarmos.
também, a disposição feita de cada es- Na habitação não gosto de móveis mui-
paço, acho que tem muito a ver com a to pontiagudos, porque representam um
perceção do corpo. Apenas utilizando perigo, mas conheço pessoas cegas que
muito o ouvido, se estivermos parados, até na casa de banho têm, é uma opção
nos permite perceber mais ou menos a delas. Eu não gosto porque me transmite
distância. Os deficientes visuais usam perigo, mas elas têm a noção da estética
muito a eco localização para perceber a e gostam assim.
distância a que estão, e mesmo isso com
a bengala também é percetível, quando
bate no chão, dá para perceber o prolon- AM: Também relativa a esta questão de
gamento do som. posicionamento no espaço. Como é que
se ensina uma pessoa cega a movimen-
ML: Nós, quando entramos num espaço,
tar-se e orientar-se no espaço?
temos de explorar, temos que analisar, e
usamos o sentido do tato. O tato é ana- VV: Relaciona-se com a questão do tra-
lítico. Temos essa maneira de explorar, balho do corpo. Trazer muitas expe-
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riências e dinâmicas para que a pessoa obstáculos pequenos - se forem abaixo
possa tornar a arquitetura mais inclu- que é importante, que nós percebamos
siva, mas quando se entra no campo do que aquilo que é bom para os cegos é
espaço privado e da própria habitação, bom, também, para as pessoas que têm
há sempre um confronto entre obrigar dificuldades motoras, e vai ser bom para
toda a gente a fazer da mesma forma e aqueles que não têm problema nenhum.
dar liberdade naquele que é um espaço Para mim, é o conceito que é mais im-
pessoal… Será que a arquitetura devia portante. Nós não estamos a criar para
efetivamente ir por esse caminho, ou o cegos, mas para todos. Incluindo os se-
próprio hábito e adaptação individual niores - que também já veem mal.
são suficientes para que uma pessoa
cega se oriente e movimente de forma
confortável na sua própria casa? AM: Tendo em conta esta questão da
construção e da legislação, a própria
V: Não sei, na maioria das ocasiões pen-
ACAPO tem parcerias ou costuma ser
so que se trata apenas de adaptação. No
consultada aquando destes projetos, ou
entanto, existem situações em que o es-
é algo que sentem que ainda não acon-
paço se pode tornar mais seguro, a nível
tece?
de corredores, de portas, de disposição.
Estou a falar, por exemplo, da colocação ML: Talvez mais ao nível da sinalética.
de portas de correr, o que já seria mais Mas tanto ao nível da sinalética como da
seguro, em substituição de uma porta arquitetura, a maioria das vezes que os
entreaberta. contactos são feitos, não avançam.
ML: Uma questão importante. Para mim PC: Costuma haver algumas melhorias,
faz todo o sentido que existam essas re- mas nunca consideram tudo que nós su-
gras de início, ou seja, para as pessoas gerimos. Começam a incluir, por exem-
que projetam e constroem. Porque, mui- plo, o piso tátil.
tas vezes, depois de construído, é mui- ML: O piso tátil é bom, mas se o passeio
to complicado alterar alguns aspetos no estiver obstruído, também não me serve
condomínio, no apartamento. Deve-se de muito. Mais importante que um piso
pensar da seguinte forma: aquilo que é tátil, é ter um passeio onde se possa an-
melhor para as pessoas cegas e com bai- dar. É uma questão de educação.
xa visão, não é pior para os outros, até
pelo contrário. Portanto, eu acho que,
em termos de funcionalidade, e de mais AM: Relativamente, ainda, a métodos e
valia, é para todos. Na minha opinião, questões de legislação, eu queria per-
isso devia estar já legislado para evitar guntar diretamente se existem alguns
que os seus colegas façam assim uns elementos que deviam ser taticamente
projetos muito estranhos e perigosos, colocados, algo que devia ser distingui-
104
do? Por exemplo, sinalizar puxadores ou importante. Existe muito trabalho ainda
PC: E é como a Luz diz, no fundo seria ML: A grande maioria (dos associados da
uma casa que dá para si, dá para mim e ACAPO) são seniores.
dá para toda a gente. Nas habitações as PC: São seniores, sim, mas a ACAPO in-
alterações vão sendo feitas lentamente e tegra qualquer pessoa que venha ter
vão-se adaptando. Mas nós temos hos- connosco. Existem muitas pessoas que
pitais, temos centros de saúde, temos vão perdendo a visão e que não conhe-
tribunais, entre outros, em que nada é cem a ACAPO. Existem muitas pessoas
acessível para nós. que não sabem o que é a ACAPO, não sa-
bem o que a ACAPO faz, portanto não as
mandam para a ACAPO, mesmo nos hos-
AM: A preocupação é mais com os espa-
pitais.
ços públicos do que propriamente com o
privado.
PC: Sim, mas a habitação também, não
estou a dizer que a habitação não seja
105
3 | ENTREVISTA IRIS INCLUSIVA
A presente entrevista foi realizada pre- prestação de serviços com cada pessoa
sencialmente, no espaço da ÍRIS Inclusiva, que acompanhamos. E essa pessoa, de
em Viana do Castelo, no dia 13 de julho de acordo com as sua necessidades, as suas
2022. Teve a duração de aproximadamente expectativas, os seus interesses, as áreas
40 minutos. de vida em que ela sente que há algum
tipo de constrangimento à sua participa-
Em conversa com a autora, esteve Isabel
ção plena, depois dá origem a um plano
Barciela.
individual de intervenção.
Neste plano individual há várias áreas
GRUPO 1 | Compreensão do Espaço e trabalhadas e pode estar presente um
Mobilidade técnico para ajudar nas atividades. Tudo
AM: Poderia falar-me um pouco deste depende do plano. E, depois, esse tra-
projeto e dos seus principais meios de balho é feito articuladamente por esses
atuação? elementos da equipa e sempre também
com os recursos da comunidade.
IB: Nós temos áreas especificas e mui-
to bem delimitadas. Temos psicologia, Destas pessoas, poucas nos chegam di-
serviço social, animação socio-cultural, retamente. Temos as crianças que nos
um terapeuta ocupacional que trabalha são normalmente direcionadas pelas
tudo que são as atividades da vida diá- escolas. E noutras faixas etárias, temos
ria. Temos Braille, temos a parte das tec- juntas de freguesia, centros de saude, e
nologias de informação e comunicação, tudo que sejam equipas de apoio social
e orientação e mobilidade. Todos estes de proximidade.
serviços são prestados no local. Quando
uma pessoa nos procura, há uma primei-
AM: Existem na IRIS Inclusiva aulas de
ra sessão para apresentarmos uma pro-
orientação e mobilidade?
posta e expormos como trabalhamos,
porque depois temos um contrato de
106
IB: Sim. No entanto, quem está mais a não é muito fácil. Mas claro que a se-
ciência visual. Eu achei por bem falar nis- fatizou muito todas as restantes moda-
to para esclarecer caso houvesse alguma lidades sensoriais. Isto não significa que
confusão. Estou, então, aberto às suas eu esteja a ouvir melhor, não quer dizer
questões. que a minha acuidade nas outras moda-
lidades sensoriais tenha aumentado. O
que acontece é que, como não tenho o
AM: Com que idade e como adquiriu o recurso ao sentido da visão, que é muito
seu problema de visão? predominante, sobretudo nos arquitetos,
CMP: Eu tenho 52 anos, e o eu ceguei dou mais atenção aos restantes estímu-
aos 35 anos devido a um acidente. los sensoriais. Por consequência, aper-
cebi-me de uma série de pormenores
que me ajudaram muito a acreditar que
AM: De que modo é que a perda da visão seria possível continuar na área da ar-
impactou a sua prática arquitetónica? quitetura, e foi possível. Desenvolvi pro-
CMP: Ao princípio, como fiquei cego, o jetos depois de estar cego, acabei alguns
primeiro pensamento que me surgiu foi que tinha começado e iniciei outros. Até
que não seria possível continuar na ar- iniciei - e concluí - a minha tese de dou-
quitetura. No entanto, ao experimentar toramento, já na condição de cegueira.
o espaço na condição de cegueira, aper- Sempre me atraiu muito a arquitetura
cebi-me de imensos erros que estavam multissensorial e, por isso, a Escola do
presentes em determinados edifícios e Porto sempre foi muito interessante para
no espaço público urbano. Apercebi-me mim. Fui muitas vezes ao Porto e, como
que nunca tinha pensado nessas ques- é natural, um dos arquitetos que sempre
tões e que julgava que estava tudo bem. me interessou muito foi o Siza Vieira. Até
Visitei alguns edifícios, até de arquitetos aconteceu uma história curiosa, que lhe
célebres, e fiquei espantadíssimo, por- vou contar. Enquanto ainda era estudan-
que o modo de utilização do edifício já te de arquitetura, interessava-me tanto
não funcionava. Em consequência, pen- o Siza Vieira que fui à sua escola e ainda
sei que poderia haver muito interesse estava toda em betão. Fui lá de propósi-
em explorar conhecimento no campo da to para a ver, e tive imensa sorte porque
multissensorialidade não visual. Eu cha- encontrei o Siza na obra. Ao início, não
mo a isso “invisivilidade”, ou seja, existe me queriam deixar entrar. Eu disse que
uma dualidade, a nível sensorial, entre era estudante de arquitetura, que tinha
o visível e o invisível, e a “invisibilidade” ido de propósito ao Porto e que ia partir
significa a integração das modalidades no dia seguinte, então pediram-me para
sensoriais não visuais. Nesse âmbito, a esperar um pouco porque iam pergun-
perceção do espaço na condição de ce- tar ao Senhor Arquiteto se seria possível
gueira - e a minha condição de cegueira deixarem-me visitar a obra. Na altura, eu
114
julguei que fosse o arquiteto da obra, e existe uma certa conceção aristotélica
rece que, entrando na sala, a sensação é espaço que seja visualmente desconfor-
melhor, mas este processo é, a meu ver, tável. Por um lado, pelo facto de ter visto,
um retrocesso no conhecimento histó- recorro à minha memória visual e con-
rico da arquitetura. Isto é ir um bocado sigo imaginar como será o espaço. Por
à época medieval, em que esta circuns- outro lado, porque pessoas cegas vivem
tância acontecia, existiam escadas por com pessoas que veem, têm amigos que
todo o lado. Os edifícios resultavam de veem, normo-visuais, e essas pessoas
uma amálgama de espaços que não eram gostam de estar e sentem-se confortá-
muito pensados, a existência de escadas veis em espaços que sejam visualmente
era uma constante. Se visitar um edifício apelativos. Deste modo, é a integração
renascentista, está no mesmo piso e a das qualidades sensoriais das diversas
mudança entre salas faz-se a partir dos modalidades que o espaço compreende
tetos ou da morfologia, por exemplo. Es- que o torna confortável. Assim, um espa-
tes fatores vão variando, mas o pavimen- ço confortável, para mim, não pode ser
to é contínuo. Esta noção manteve-se no desagradável, por exemplo, a nível do ol-
Barroco, mas agora houve um retroces- fato. Se o espaço não for bem ventilado
so, a partir do século XX. Eu penso que ou tiver muitos acabamentos plásticos,
o modo como se faz esta arquitetura re- adquire um cheiro característico e pou-
vela falta de qualidade. A escada deve ser co natural que é desagradável. Um espa-
utilizada apenas quando é mesmo essen- ço que tenha madeira é sempre muito
cial. Além de ser muito desconfortável agradável a nível olfativo. A nível do tato,
para determinadas pessoas, nomeada- além dos pormenores que já referi, penso
mente com o envelhecimento, a escada que a questão térmica é, também, muito
também representa um espaço de que- importante de ser explorada pelos ar-
da, de risco, de acidente, seja para crian- quitetos. Devem procurar espaços com
ças ou para pessoas idosas. Assim, deve iluminação natural, mas que ao mesmo
ser evitadas sempre que possível. Eu falo tempo isso possa ser regulado para um
de escadas, mas refiro-me também a de- conforto de verão e um conforto de in-
graus isolados que por vezes são muito verno. É bom que possa haver esse equi-
perigosos. Existem muitas mais ques- líbrio térmico, e que existam materiais
tões, mas já foquei uma que considero e acabamentos que sejam agradáveis ao
essencial que é o tato. tato. Ao nível do mobiliário da habitação,
eu penso que também a própria disposi-
ção do mobiliário na habitação é quase
AM: E quais as características físicas do tão importante quanto é a própria arqui-
espaço que associa ao conforto? tetura do edifício. Penso que é muito im-
CMP: Eu penso que é um espaço que portante que os arquitetos façam, tam-
equilibra todos os sentidos. Embora eu bém, o design de determinados objetos.
116
O que eu tenho constatado é que, geral- de ser humana em si própria. A arquite-
em que isso não acontece e, se a porta vai realizar-se no Centro Cultural de Via-
abrir ao contrário, o local de passagem na do Castelo, desenhado pelo Eduardo
torna-se uma zona de risco. Não sei se Souto de Moura, e os meus colegas vão
tem conhecimento, mas as portas são entrar vendados no espaço. São colegas
um dos maiores problemas das pessoas que não são de Viana do Castelo e que
cegas, é muito comum embaterem nelas, nunca estiveram no interior do Cen-
por isso esta questão é muito importan- tro Cultural. Ser-lhes-á explicado como
te, especialmente na habitação. Acredito se utiliza a bengala branca e, depois, o
que, nesta área, seja importante existir objetivo é que eles percorram o espaço
legislação que preveja e regulamente o com o nosso auxílio em indicações. No
posicionamento das portas. Esta infor- fim desse primeiro encontro dos meus
mação seria importante para todos os colegas com o edifício, será realizada
arquitetos, porque todos, em algum mo- uma conversa em torno do modo como
mento, são confrontados com os modos percecionaram o espaço, ainda sem o
de posicionamento das portas. verem, e voltarão a percorrê-lo, desta
vez, com técnicas de guia. Apenas depois
Assim, considero muito pertinente o
destes dois confrontos verão o espaço e
âmbito da sua investigação. No email que
o percurso que percorreram.
me enviou anteriormente, a Ana Marga-
rida referiu que estava interessada em CMP: Seria, também, muito interessante,
explorar a sensibilização e que, para isso, combinar essa simulação de deficiência
pretendia realizar uma atividade com os visual com fatos que permitissem simu-
estudantes de arquitetura da FAUP. lar as limitações físicas sentidas por pes-
soas idosas. Os fatos que estou a referir
AM: Exatamente, eu vou realizar uma
têm pesos em alguns pontos específicos
atividade na próxima semana em Viana
e, na zona das articulações, são consti-
do Castelo, com a colaboração da de-
tuídos por peças mais rígidas que não
legação de Viana do Castelo da ACAPO,
permitem a mobilidade total. Eu utilizei
para colegas meus estudantes de arqui-
um destes fatos, uma vez, e conside-
tetura. Dependendo dos resultados da
rei dificílimo subir uma escada sem um
atividade, eu espero que tenha como
corrimão, por exemplo. Penso que estas
consequência mostrar pontos positivos
experiências são extremamente impor-
na realização deste tipo de atividades
tantes para estudantes de arquitetura,
junto dos estudantes de arquitetura, e
porque é o único modo de efetivamen-
expor essa ideia à própria faculdade.
te compreenderem as limitações físicas
CMP: Eu acho isso muitíssimo interes- de algumas das pessoas que vão ocupar
sante. Penso que seria importante que o espaço, e é uma experiência que fica,
houvesse uma simulação das condições de certeza, para a memória. No campo
de deficiência visual. científico existe muita gente que ques-
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tione este conhecimento empírico. Cor- em obras do Souto de Moura. Certamen-
José, 72 anos. Entrevista realizada no dia AM: Tendo em consideração que esta-
20 de junho de 2022, em Viana do Cas- mos num espaço que já conhece, pode
telo. descrever o espaço onde nos encontra-
mos (sala de estar de José)?
AM: Nasceu cego? Como e com que ida- J: Sim. Eu já conheço. Do lado esquerdo
de perdeu a visão? está a janela. Do lado direito, a porta. À
J: Não. Existe uma diferença entre o nas- frente está o relógio. Tem as dimensões
cer cego e o perder a visão. Aos 24 anos, de mais ou menos sete metros por qua-
quando tive o acidente (explosão de uma tro. Eu conheço.
mina), perdi a visão, mas ao fim de três
meses recuperei a visão de um olho. Até AM: Já morava nesta casa antes de ce-
aos 47 anos via perfeitamente, e depois gar?
nessa idade comecei a perder gradual- J: Sim. Vim para aqui quando tinha cinco
mente. Fiz uma operação, com 48 anos, anos. A casa já tem 66 anos. Aqui não pre-
que me deixou cego total. ciso da bengala, tenho as referências. Ne-
cessito sempre de dar o toque no obstá-
AM: Consegue percecionar a luz? Ou culo, tenho de ter as minhas referências.
vultos? (Exemplifica modo como se movimenta e
J: Nada. Não consigo ver nada. toca nos elementos da sala). Já sei o es-
paço de cor e onde estão as coisas, facil-
AM: De que forma perceciona e com- mente vou ao sítio.
preende as características de um espa-
ço? (Distâncias (altura, profundidade, AM: E em espaços que não conhece?
largura), escalas, limites, cheios e vazios) J: Nos espaços que não conheço, tenho
J: Como é que compreendo? Eu analiso o de fazer reconhecimento. Tenho de estar
espaço ou com a bengala ou com o tato. com a bengala, mas vou demorar sempre
Tenho de ter referências, e apenas atra- algum tempo.
vés de uma bengala ou do toque é que AM: Mas sente-se confortável?
faço o reconhecimento. Não tenho outra J: Depende do sítio, depende do espaço.
maneira de ter a perceção do espaço. Se for a um café, toco com a bengala no
AM: E através desse reconhecimento degrau e depois toco com a bengala na
que faz consegue dizer se considera o cadeira, e pergunto se está alguém. Se
espaço amplo, ou..? estiver alguém, orientam-me para o sítio
J: Depois da análise, depois de verificar, onde me posso sentar. Dão-me indica-
fico com a ideia. ções.
124
AM: Existe algum espaço do qual tenha -me com o barulho dos carros, mas se
AM: Sentes que tens feito alterações à AM: Ainda distingues bem as cores?
tua casa conforme vais perdendo a vi- L: Sim.
são? Sentiste necessidade de mudar al-
guma coisa? AM: O que é, para ti, algo bonito?
L: Não, nunca senti essa necessidade. L: Eu distingo a beleza de algo com a vi-
Se a minha visão se mantiver assim, sou são ou com o cheiro. Gosto de flores. So-
capaz de fazer tudo. Se perder a visão bretudo da rosa.
completamente, aí terei de usar bengala.
AM: E na arquitetura, sabes dizer-me o
AM: Relativamente à forma como ima- que gostas? O que achas bonito?
ginas os teus percursos… O percurso L: Acho bonito os móveis. Os edifícios
mental que tu crias é visual? não acho.
130
AM: E gostas mais dos móveis curvos, 03 PAULA
anos, ainda preservei a perceção lumi- dia, quando chego lá fora, é uma liber-
nosa durante uns 10 anos e a importân- tação. É sair daqui a respirar. Eu nem te-
cia que tem a perceção da luminosidade nho bem noção de que estou a respirar
é enorme. Não se consegue percecio- um ar saturado até chegar lá fora. Quan-
nar nada, sequer vultos, mas é uma aju- do abro a porta respiro, sinto o ar. Aqui
da extraordinariamente importante em vou perdendo essa qualidade e não me
termos de orientação. Depois é que eu apercebo, só quando sinto o oposto.
senti a importância daquele resíduo tão
pequenino, mas depois de ter perdido AM: Pode descrever o espaço onde nos
completamente percebi que era extre- encontramos?
mamente importante para mim, porque P: Este espaço é uma sala quadrada. Dois
me ajudava imenso nas deslocações. E dos painéis desse quadrado têm jane-
também dava para, lá em casa, perceber la inteira em cada um dos painéis, cujo
se a luz estava acesa ou apagada. Agora vértice é unido, justamente, pelas duas
tenho de recorrer a outras estratégias, vidraças - se posso chamar vidraças a
senão, se estiver sozinha em casa, a luz isto. Depois, os outros dois painéis têm
é capaz de ficar uma semana acesa sem estantes sobre toda a largura, mas não
que me aperceba. sobre toda a altura, e num desses painéis
encontramos a porta.
AM: Nessa questão da luz… Qual é a re-
lação que acaba por ter com a janela? AM: Existe algum espaço do qual tenha
Mesmo não percecionando a luz, qual é passado a gostar mais e um de que tenha
a relação que tem? Ainda é importante? deixado de gostar, após ficar cega?
P: Extremamente importante! Não con- P: Um espaço… Não me estou a conse-
sigo explicar como o sinto, não tenho guir recordar, portanto não deve existir
argumentos. Por exemplo, este espaço uma ocasião em que isso me tenha mar-
aqui (biblioteca municipal de Viana do cado profundamente. Mas eu hoje vejo os
Castelo), estas janelas não abrem, mas eu espaços de forma diferente. Por exem-
fico maravilhada com esta sala, sobretu- plo, quando via, quando entrava num es-
do pelas janelas que tem, apesar de não paço, o mais importante para mim era a
abrirem. Consigo ter sol nesta sala o dia cor. Muito mais importante do que, por
todo, e o sol é mesmo fonte de energia. exemplo, as paredes eram revestidas a
Por exemplo, durante o inverno… Este madeira ou a outro material. Talvez aí
inverno… Nunca liguei o ar condiciona- as janelas já me afetavam muito mais do
do. E obviamente o calor do sol não tem que hoje.
nada a ver do calor do ar condicionado. Hoje, não. Agora gosto muito do acon-
Mas eu também gosto muito de ar fres- chego. Gosto de entrar num espaço e
co! E o que não gosto nada nesta sala é sentir-me confortável. Não gosto do frio.
132
Tudo que é muito pedra, eu entro no es- era cega quando o edifício foi construí-
nós já não vamos fazer a linha conforta- mais acessível, ou que facilite a minha
velmente. Temos medo de sair da linha. mobilidade, porque eu acho que em ter-
Mas se tivermos o pavimento todo plano, mos de mobilidade, desde que conheça
já não temos esse medo. o espaço, não tenho dificuldades em ter-
mos de mobilidade física.
AM: Diria que a sua noção de beleza alte-
rou desde que perdeu a visão e passou a AM: Então não teve de fazer alterações à
ser uma noção de conforto? O que con- sua casa depois de cegar, como já era um
sidera atualmente algo bonito ou belo? espaço que conhecia..?
P: Neste momento… O que é belo para P: Exatamente. As alterações que faço
mim são as duas coisas juntas. O belo, in- não estão relacionadas com mobilidade.
dependentemente de não ver, é absolu- O que eu gosto - e isso independente-
tamente importante, e o que é belo para mente de ver - é de algo muito minima-
mim hoje, é o mesmo que anteriormente. lista. Não gosto de muitos recantos, mas
Contudo, é muito mais importante para isso é nato, é desde sempre.
mim aquilo que me facilitava em termos AM: E no mobiliário, sente que o mobi-
de perceção, orientação, por exemplo as liário retilíneo é um perigo, ou é apenas
cores - eram uma coisa muito importan- algo com que já tinha de lidar antes e não
te. Era extremamente difícil vir do exte- a incomoda?
rior e entrar num espaço em que a cor P: Isso… Vértices… É um perigo. Eu vou
era quase uniforme. Vidro era uma coisa mais facilmente de encontro a qualquer
terrível. Hoje não. Hoje gosto de um es- superfície do que quando via, e realmen-
paço bonito. Gosto de janelas, não me te a questão dos vértices é perigosa.
incomodam rigorosamente nada. Posso Eu não acho que a estética seja inútil, de
ter o sol a dar-me no rosto, não me in- todo, mas acho que há aspetos que po-
comoda rigorosamente nada, pelo con- dem ser igualmente tratados sem perde-
trário. Portanto hoje aquilo que eu gosto rem esse valor.
é do conforto, e se calhar também é por
isso que sou muito voltada para a madei- AM: Sente que os estímulos que a aju-
ra, adoro espaços com madeira, não sei, dam na orientação também podem ser
traz-me conforto. O mais importante em desorientadores?
qualquer espaço que estejamos ou fre- P: Sim! Por exemplo, imaginemos que
quentemos é o conforto, é o aspeto nú- vou a um restaurante ou a um bar. Quan-
mero um. Mas eu continuo a ter enorme do há muito ruído, ou há qualquer coi-
preocupação com o belo, com a estéti- sa que ajuda a posicionar… Mas imagina
ca do espaço, a própria organização do que estou num jantar com muita gente,
espaço. Eu prefiro ter as coisas organi- música, muita conversa, boa disposição,
zadas de forma que eu as entenda como de repente aquilo acontece sempre tudo
134
ao mesmo tempo e é absolutamente de- as portas abertas dos armários… Há que
com esplanadas, que por vezes ocupam da escada, mas quem não o incutiu ain-
o passeio todo… Quando chego a um sí- da, tem dificuldade. Torna-se inseguro.
tio desses que está tudo desarrumado, o Já para não falar no pavimento. Já caíram
cão toma outra marcha, e eu já sei que ali muitas pessoas.
temos de ir devagar. Se o cão vir que não
há espaço para passarmos, o cão para, AM: Acha que faria sentido no espa-
pura e simplesmente, nem sequer tenta ço interior assinalar taticamente alguns
ir. E se tiver que colocar alguma ques- elementos? Por exemplo nessa questão
tão, faço. Eu tenho de dar sempre espa- relativamente à escada, o primeiro e o
ço ao cão para ele tomar a melhor deci- último degrau estarem assinalados…
são, e ele vai tomar a melhor decisão. É P: Sim, sem dúvida. Às vezes usam aque-
uma coisa excecional. E também é difícil las bandas assim muito estreitas… Mas
aprender a confiar no cão. Nós pedimos porque não fazem, por exemplo, um co-
uma coisa e ele vai fazer uma coisa com- bertor diferente? Noutro material? Pa-
pletamente diferente, e nós temos de rece que se faz as coisas com receio. É
aprender a confiar nele. Ver que vai fa- para estar, mas era melhor que não esti-
zer uma coisa completamente diferente vesse. Façam-se as coisas com objetivo.
do que nós pedimos, mas que vai trazer Se aquilo tem um objetivo, explore-se o
a solução, portanto, se fez aquilo, é por- objetivo pelo qual aquilo é feito. Eu sinto
que exatamente o que estávamos a pedir muitas vezes que as coisas se fazem por-
não podia fazer. E nós vamos viver isso, que têm de cumprir.
por isso é que as coisas no início não são
tão claras. Quando nos dizem, no início, AM: E nas questões das cozinhas? Relati-
que o cão é que nos vai guiar, nós temos vamente à forma como o fogão e o forno
sempre receio. E esse receio vai passan- são utilizados..?
do, não é automático. P: Eu tenho de me adaptar a tudo, eu
Outras barreiras… Por exemplo, as es- prezo a minha autonomia. O forno… En-
cadas. Não é que a escada seja uma bar- quanto qualquer pessoa olha para lá e
reira, mas uma coisa que faz muita con- vê o modo que selecionou, eu faço tudo
fusão são as dimensões dos degraus. porque memorizo que o primeiro pro-
Quando são aqueles grandes, cujo co- grama é para x, o segundo para y… Mas
bertor é muito largo, é muito desconfor- porque eu faço e uso tudo. Talvez se só
tável descer uma escada que não e sabe fizesse um assado agora e outro no pró-
se é um passo longo, um passo curto… ximo ano já seria diferente. Eu imagino
E não é desconfortável estarmos a des- pessoas que usem pouco e não é fácil. Eu
cer os degraus sempre com o mesmo ajusto-me. Por exemplo, placa de indu-
pé. Mas também acontece o oposto, por ção - é fantástico, passar um pano e está
exemplo aqui nestas escadas, em que o pronto. Mas depois comecei a pensar
136
que não ai conseguir usar. Mas depois vou habitualmente, que só fiz uma vez ou
AM: E se estiveres num espaço novo? AM: Então estarias a desenhar um traje-
M: Aí não há referências, é explorar. Ou to.
tens muita técnica e exploras - e arriscas M: Sim, de certa forma sim. Mas na ca-
-, ou não e tens de pedir ajuda. beça só penso por etapas. Primeiro te-
nho de encontrar isto, depois aquilo…
AM: Costumas arriscar?
M: Não. AM: Eu sinto que a minha referência nas
cidades se faz através de pontos que não
AM: Quais consideras serem os princi- estão muito bem unidos, e não sei se a
pais obstáculos à tua movimentação?
142
ti te acontece o mesmo, porque como que tenha no futuro, e tem um móvel,
AM: Qual é o teu espaço favorito? Podes AM: Porque é que associais algo belo às
descrevê-lo? suas cores, se nunca viste as cores? Por-
M: A entrada. É um espaço um pouco que é que a cor é o critério para imagi-
amplo, que tem um sofá vermelho que nares algo bonito?
eu gostava de levar para uma casa minha M: Porque sempre me disseram que é
bonito.
143
AM: Que cores gostas muito? AM: Achas que dentro da habitação fa-
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva
AM: Qual é a divisão da casa onde costu- que não era importante para mim, eu
mas passar mais tempo e porquê? acho que tem a ver com isso. Porque o
M: No meu quarto, por diversos motivos. facto de eu procurar desenrascar-me
Porque me sinto confortável e é onde sem ter de adaptar meio mundo, faz com
faço a maior parte das coisas. Na varan- que eu tenha uma visão muito descom-
da, que faz parte do quarto. Mas também plicada da questão da arquitetura. Não
porque, como vivo numa casa partilhada sinto que tenha de se adaptar para a de-
com mais duas pessoas, acaba por ser o ficiência visual, colocar identificadores
espaço onde tenho mais privacidade, e ou relevos… Acho que tem a ver com a
por isso também não tenho o conforto forma como eu penso e tento solucionar
nas outras áreas que tenho aqui. as coisas. E eu acho que dentro da casa
esses pormenores são pouco importan-
AM: Estás a estudar? tes, mas na rua já são fundamentais. Eu
M: Estou a terminar a licenciatura. No acho que é muito importante haver esse
fim de semana vou quase sempre a casa. tipo de pormenores em sítios públicos,
como estações de metro, departamen-
AM: E quando tiveste de mudar de casa, tos das finanças… porque enquanto em
de onde vivas com a tua família, para casa é intuitivo, porque passo lá muitas
onde vives agora, foi um choque muito vezes, no exterior já não é, mesmo sen-
grande? do sítios aos quais eu tenho de ir. Se ti-
M: Não. Foi um desafio. Eu comecei por ver essas adaptação, eu vou-me lembrar
estar numa residência - onde eu fazia dela quando tiver de ir lá, e vai ser extre-
muito pouco em termos funcionais, tí- mamente funcional.
nhamos refeitório e etc, a única coisa
que tinha de fazer era arrumar o quarto. AM: Qual é, para ti, a definição de algo
Quando vim para uma casa, óbvio que há belo?
todo um conjunto de responsabilidades e M: É uma pergunta complicada. Eu acho
de questões para as quais também é im- que algo belo pode ser algo que me des-
portante que eu tenha uma boa perce- crevam, ou que eu toque, e que faça
ção do espaço para as fazer, como cozi- sentido na minha cabeça. Por exemplo,
nhar, lavar a louça, limpar a casa, afins… quando alguém diz “está ali uma mesa
E acho que foi um desafio. Encarei como tão feia” eu vou perguntar porquê. A pes-
um desafio. E quando não sei fazer algu- soa vai me descrever a mesa e vai me
ma coisa, não deixo que isso me limite, descrever os motivos pelos quais acha
procuro soluções. feia. Seja porque tem um padrão que vê
Pegando na questão da deficiência vi- e que é estranho, seja porque tem uma
sual e da arquitetura - há muitas ques- perna partida, o que for. Ou seja, para
tões visuais que me fizeste relativamente aquela pessoa há algo que, na cabeça
150
dela, não faz sentido. Não está em har- M: Não podia faltar uma sala com janelas
Marta, 28 anos. Entrevista realizada vir- plicar porque eu ainda tenho muitas no-
tualmente no dia 4 de julho de 2022. ções visuais. Quando chego a um sítio, se
uma pessoa me explicar que estou num
AM: Nasceste cega? espaço retangular, quadrado, redondo, e
M: Eu nasci com glaucoma congénito, e me explicar quais são as dimensões, eu
ao longo da minha vida fui sempre con- consigo nitidamente ter essa perceção
trolando com gotas, tinha uma vida nor- e deslocar-me bem no espaço, mesmo
mal. Porém, aos 16 anos tive um acne sem qualquer apoio.
gravíssimo que me fez tomar uma me-
dicação muito forte, que entretanto saiu AM: Mesmo que esse espaço seja novo
do mercado. Na altura secou-me bastan- para ti?
te o corpo, incluindo uma parte sensível, M: Sim, mesmo que seja novo. Claro que
os olhos, o que causou um descolamen- um bocadinho mais a medo, porque te-
to da retina e, a partir daí, foram varia- nho de sentir, tenho de tocar, mas se a
das operações. Por volta dos 20/21 anos pessoa me disser mais ou menos os pas-
perdi completamente a visão. Não foi sos ou até mesmo medidas, eu consigo
propriamente o glaucoma que me tirou orientar-me bem
a visão, mas sim o descolamento provo-
cado por uma medicação, algo que pode AM: Sentes que com essas descrições
acontecer a qualquer pessoa. crias mapas mentais de orientação?
M: Sim.
AM: E agora tens alguma perceção de luz
ou vultos? AM: E esses mapas que crias têm ape-
M: Não, perdi totalmente a visão. O que nas resíduos visuais, ou têm também ou-
mais gostava quando via era a luz, as tras adaptações às quais já te habituaste
cores, e ainda é algo que mexe comigo, atualmente?
porque me fascinava. Quando perdi a vi- M: Eu acho que ainda têm muitas orien-
são aprendi a lidar com isso, mas de vez tações visuais. Como foram muitos anos
em quando sinto nostalgia por algo que com o sentido da visão, a que me habi-
eu tanto gostava. tuei e usava muito, acho que ficaram al-
gumas coisas fixas.
AM: De que forma percecionas e com-
preendes as características de um espa- AM: Podes descrever-me o sítio onde
ço? (Distâncias, escalas, limites, cheios e estás?
vazios) M: Agora estou no meu quarto. Quan-
M: Tive que me adaptar ao toque, às per- do entramos, à direita tem o móvel com
cepções do espaço. Aí ainda é difícil ex- roupas e logo a seguir tem a secretária,
152
onde estou agora, e mesmo em frente M: Não. Mas quando entro numa casa, as
AM: Sentes que esses estímulos também AM: E a ausência absoluta de som inter-
podem ser desorientadores? fere no teu sentido de orientação?
M: Eu gosto muito de sons, de barulho.
154
Independentemente de serem calmos ou me preocupo muito com isso. Se estive-
perceção, que é a sala ter muita luz. dos casos, e penso que o facto de os
Tem duas portas em vidro bastante meus pais terem uma casa unifamiliar e
grandes, que dão para a varanda, têm não terem grande preocupação com isso
cerca de dois metros por dois metros e também fez com que eu crescesse des-
pouco. Como são dois focos de luz, pode preocupado. Além disso, eu estou senta-
criar uma falsa ilusão da luz vir de um do na cadeira, e pela minha perceção da
sítio diferente. No entanto, se tivesse só altura do edifício, considero difícil que
um, acho que seria mais fácil de conse- na envolvente consigam ver que estou
guir identificar a janela. aqui sentado. O edifício é alto, a estrada
Penso que tenho mais facilidade, tam- é baixa, e tenho a sensação que as casas
bém, porque eu tenho vários arquitetos da envolvente são todas mais baixas. Tal-
na família - não que se preocupem mui- vez a minha atitude fosse diferente se ti-
to com acessibilidade, mas quando estão vesse edifícios mais altos aqui à volta.
juntos estão sempre a falar de arquite-
tura, e uma pessoa acaba por aprender. AM: De que forma perceciona e com-
Sempre tive, também, curiosidade de preende as características de um espa-
imaginar o espaço a três dimensões. Por ço? (Distâncias, escalas, limites, cheios e
exemplo, penso no que estará por bai- vazios)
xo desta divisão ou por cima. Sei que há D: Penso que tenho essas noções atra-
muitas pessoas normo-visuais que não vés do som. Se estiver no espaço apenas
conseguem ter esta perceção. Eu consi- uma vez, pode ser uma sensação errada,
go dizer: estamos na sala, isto são apar- mas se frequentar o local várias vezes
tamentos, portanto por lógica de design, acabo por ter maior perceção do espaço.
por baixo deve estar uma sala também. De qualquer modo, acho que o que mais
Existem pessoas que me contradizem, me permite essa perceção é o som. Se
que pensam que não será assim. Por aca- estiver muito barulho consigo perceber
so, eu gosto de tentar perceber as dinâ- se o espaço é maior, ou tem mau isola-
micas da construção. mento, ou se o teto é mais alto. Depois
de conhecer o espaço, de andar dentro
AM: E qual a relação que tem com a jane- deles, começo a ter uma perceção mais
la em termos de privacidade? completa devido aos trajetos que faço.
D: Se eu estiver muito tempo num sítio
em que tenha a sensação que me podem AM: Pode descrever o espaço onde se
estar a ver, tenho tendência para fechar encontra?
as cortinas. Depende da zona da casa. D: Estou numa sala sobre o quadrado, que
No quarto tenho mais cuidado, mas na deve ter cerca de 2,30 ou 2,40 metros de
sala deixo sempre tudo aberto, não me altura. Como é uma construção antiga e
preocupo com quem possa estar a ver. é tudo meio torno, não sei exatamente o
160
formato, mas penso que o espaço deve dentro. No meu apartamento existem al-
do mais novo ou se estivesse lá com al- projetada pelo meu irmão, que é arquite-
guém cego de nascença, aquele obstá- to. Às vezes, quando estava na sala e me
culo poderia ser mais perigoso. Logo que levantava muito rápido para ir ao quarto,
se abre a parte, os degraus estão uns 70, guiava-me pela luz da janela do quarto,
80 centímetros à frente. Reconheço o que atravessava o hall de entrada. Assim,
perigo nestas questões, mas não me fez evitava colidir com a parede. No entanto,
deixar de gostar do espaço. Se fosse eu quando deixei o apartamento, esta es-
a fazer isto, agora, teria de pensar numa tratégia já não resultava muito bem. Pro-
solução diferente. Por vezes as obras fa- vavelmente já teria perdido mais visão.
zem-se de uma forma porque se pensa Mas pronto, para quem tem perceção lu-
que vai ficar mais bonito. Por exemplo, minosa, penso que a luz é, também, uma
inúmeros casos em que o corrimão aca- grande ajuda.
ba mais cedo que o último degrau… Isso
é algo extremamente perigoso para um AM: Sente que esses estímulos também
cego, porque o corrimão é a tua referên- podem ser desorientadores?
cia, é o que te indica que acabou a escada. D: Sim, claro, em vários casos. Como es-
távamos a falar da luz, vou dar um exem-
AM: Há pouco disse que considerava que plo relativo à luz. Se estiver num sítio
o seu maior estímulo para a orientação com janelas a toda a volta, a abundância
no espaço era a audição, certo? de luz é muita e torna-se complicado sa-
D: Em termos de compreender as di- ber de onde vem. Enganamo-nos facil-
mensões do espaço, sim, é. No entanto, mente.
no apartamento em que eu vivia no Por-
to, a luz da janela da rua também me aju- AM: A noção de conforto surge em con-
dava bastante. O apartamento tinha sido sequência de que características de um
alterado e transformado num open spa- local?
ce. Aí, ficou uma situação um pouco pe- D: Madeira. Para mim, o espaço é confor-
rigosa para quem não souber que aquele tável se tiver madeira. Quando digo ma-
elemento existe. Foi deixada uma parede deira, o taco, para o chão, também está
que não completa a distância total entre incluído. E, atualmente, o parquet tam-
as duas paredes perpendiculares, para bém já imita, de certa forma, mas o som
marcar o hall de entrada. Portanto, ima- é diferente. Eu penso que um espaço
gina um espaço com quatro metros de com madeira é, em geral, mais bonito e
largura. A parede que ficou tinha dois mais harmonioso. Se for o caso de existi-
metros de comprimento e estava coloca- rem escadas dentro de casa, prefiro tam-
da ao centro da largura - com um metro bém que sejam em madeira. E os tetos
livre para cada lado. Num dos lados, ti- serem em madeira também é agradável!
nha uma folha de vidro, e no outro era No entanto, atualmente colocar madeira
162
fica muito caro, e nem toda a gente pode so que nunca pus em hipótese. Fui-me
ou com o tempo fui perdendo a faculda- lidade, há uns anos atrás, em colocar cor
de de o fazer, não tenho a certeza. Ainda nas imagens. Agora fica tudo mais a pre-
associo o som a algumas imagens visuais, to e branco. Se calhar estou a ficar velho
mas não o faço intuitivamente. Estou ha- e funciono como as máquinas fotográ-
bituado à cegueira e já não penso muito ficas antigas. Às vezes tenho a sensação
nisso. A ouvir música, quando estou mais que tenho mais dificuldade em atribuir
concentrado, por vezes associo alguns cor às imagens atualmente.
sons, não a imagens, mas a cores. Uma
guitarra elétrica com distorção costuma AM: Considera que o modo como cria
parecer-me um som mais cinzento, por novas memórias é substancialmente di-
exemplo. O som ajuda-nos em imensas ferente do que acontecia quando tinha
circunstâncias, especialmente na rua. visão?
Em alguns sítios, até prefiro que estejam D: Penso que é igual. Às vezes noto que,
carros a passar do que não estejam, por- por não ver, posso ficar com uma situa-
que, pelo menos, sei que estou no pas- ção errada da situação. Depois, a con-
seio. Agora com a questão das rampas, versar sobre o que aconteceu, as pes-
que favorecem muito as pessoas com ca- soas apercebem-se que eu fiquei com a
deira de rodas, o que é muito bom, nós ideia errada e explicam-me de uma for-
podemos ir acidentalmente para a es- ma diferente. Por exemplo, se me expli-
trada. Existem muitos sítios em que não carem um espaço e a linguagem não for
estão sinalizadas. Ouvir o som dos car- suficiente descritiva para a minha con-
ros ajuda bastante para sabermos o lo- dição, eu posso ficar com uma ideia do
cal onde estamos, nessas circunstâncias. que me descreveram diferente do que
Já apanhei alguns sustos devido a estas me queriam transmitir. Agora, se for eu
rampas. Não condeno, porque sei que é descobrir uma casa, por exemplo, costu-
fundamental para pessoas com deficiên- mo ficar com uma perceção quase cer-
cia motora ou com carrinhos de bebés, ta de como é o espaço. No entanto, se
mas para nós pode ser complicado. for acompanhado já me sinto um pouco
Sinto que, em casa, o som também é um constrangido em pedir às pessoas para
grande auxílio. No entanto, com o passar me deixarem explorar sozinho, então
dos anos sinto que vou deixando de as- guio-me pelo que me dizem e depois
sociar o som a imagens. Não sei explicar percebo que fico com ideias erradas.
cientificamente, não sei se fui perdendo
o hábito ou se uma pessoa vai perdendo AM: Quando se criam essas memórias,
a faculdade de o fazer. ainda estão associadas a elementos vi-
AM: Então sente que as memórias visuais suais?
que possui se estão a desvanecer?
D: Eu penso que consigo criar a imagem,
164
D: Apenas em alguns casos. Por exemplo, por vezes colido com alguns obstáculos.
arquitetura não deve ditar essas regras eu compreendo, mas seria uma melhoria
porque cada pessoa se adapta ao espaço muito grande.
em que está?
D: Atualmente, que se pensa a habitação AM: Teve de fazer adaptações à sua casa
como hoje sendo de uma pessoa e ama- devido à cegueira?
nhã já podendo ser de outra, sem nunca D: Já estive em várias casas diferentes,
saber quais os problemas da pessoa que e em todas fiz algumas alterações, mas
vai habitar aquele local, talvez faça sen- penso que nenhuma foi consequente de
tido algum tipo de preocupações. Claro questões relacionada com a deficiência
que eu considero melhor, por exemplo, visual. As alterações estiveram mais re-
falando de um apartamento, que o mes- lacionadas com questões de preferên-
mo não tenha daqueles degraus peque- cia. Por exemplo, por questões de gosto
nos de um ou dois centímetros - que e de hábito da frequência de casas de
nem são degraus, parecem mais falhas. família, eu preferiria ter um open spa-
Mas eu penso que isso não tem neces- ce. No entanto, no apartamento onde
sariamente a ver com arquitetura. Às ve- estou, a sala está separada da cozinha.
zes, são problemas de engenharia ou da É preciso disponibilidade e tempo para
construção, mas claro que se culpa sem- realizar obras para poder retirar a pa-
pre o arquiteto nestas circunstâncias. rede divisória, e sinto que agora não é o
Mas retomando a questão, estes proble- momento. Prefiro assim e eventualmen-
mas são de evitar. Claro que uma pessoa te farei essa alteração, mas não tem a ver
se adapta, habitua-se, mas cada vez que com o modo como me movimento no
leva alguém a casa tem de se estar a ex- espaço, está apenas relacionado com o
plicar tudo devido a esses riscos. Nou- meu gosto.
tras circunstâncias, poder-se-ia dizer à Em termos de questões de mobilidade
pessoa para andar à vontade. ou de orientação, não me recordo de ne-
Imagina que me davam a oportunidade nhuma alteração que tenha sentido ne-
de desenhar um projeto à vontade. Para cessidade de fazer.
mim, numa casa, não colocaria portas
sem ser portas de correr para dentro das AM: Há pouco referiu os seus ma-
paredes. Os piores inimigos de um cego, pas mentais de orientação. Isso apenas
os maiores riscos na habitação, são as acontecia quando tinha baixa visão, ou
pessoas da família, porque estão habi- continua a criá-los?
tuadas. É muito normal, de repente, en- D: Continuo a criá-los. Acredito que, de-
contrar uma porta entreaberta, e é qua- vido ao uso da bengala, tenho mais fa-
se certo que a pessoa cega vai colidir. Às cilidade em mudar os percursos ou em
vezes aconselho pessoas a colocarem as aventurar-me para percursos menos
portas da forma que referi, mas costu- conhecidos, mas continuo a criar os per-
cursos mentais.
166
AM: E os mapas mentais que cria desde colocar as divisórias dos espaços. Era um
AM: Nos locais que percorre e que já viu AM: Qual é, para si, a definição de algo
antes, sente que se baseia nas memórias belo?
visuais que tinha para se orientar no es- D: Essa é uma questão para muitas horas.
paço? Penso que, de modo geral, esta opinião
D: Nas ruas que frequento, penso que vai-se definindo consoante a nossa ida-
sim. Ainda tenho muita orientação con- de e consoante as nossas experiências.
sequente da memória visual que tenho Eu gosto muito da natureza, mas não sei
do espaço. Algo que me apercebo é que, mais o que dizer.
por vezes, a minha noção de distâncias AM: E na arquitetura, o que considera
pode estar um pouco alterada. Não sei se bonito?
seria por ser mais novo na altura em que D: Gosto de casa térreas, apenas com
ainda via, mas alguns trajetos pareciam- rés do chão, e da inclusão da madei-
-me maiores do que me parecem atual- ra onde for possível. Gosto de espaços
mente. que tenham muita luz. Não sou fanático
por casas grandes, gosto de casas sim-
AM: Pensa que seria capaz de descrever ples, minimalistas e com poucos ador-
a sua casa de modo a ser desenhada uma nos. Penso que é isto. Casa térrea, luz e
planta do espaço? madeira. Também gosto muito dos open
D: Poderia não sair exatamente igual, space e, se a casa for alta, também acho
mas penso que era capaz. Eu sinto que, interessante que exista um mezzanine. E
até, se me deixassem o material corta- um alpendre.
do, seria capaz de fazer uma maquete AM: E qual é o seu espaço favorito?
da casa onde vivo. Não ficaria a 100%, D: Gosto da casa toda, sinto que não te-
mas penso que seria capaz de fazer algo nho preferência. Gosto dos vários espa-
aproximado. O apartamento é um retân- ços consoante o momento do dia. Se ti-
gulo, e penso que seria capaz, depois, de vesse um estúdio só para mim em casa,
167
poderia ser esse o sítio, mas como não 08 CARLOS
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva
para mim a beleza interior é o mais im- numa habitação para mim, se possível.
portante. Muitas vezes questiono: o que Quem sabe, um dia.
adianta ser bonito por fora e no interior
não ter beleza nenhuma? Penso que a AM: Qual sente que deveria ser uma for-
beleza é a humildade, a sinceridade, o ma de sensibilizar as pessoas que veem
amor ao próximo, o respeito, entre ou- para a deficiência visual?
tros valores. A beleza interior pode valo- C: Eu acho que o trabalho que ainda se
rizar-nos muito mais que aquilo que é o deve fazer com mais prontidão está rela-
nosso exterior. Costumo dizer que o ex- cionado com questões de descriminação.
terior, muitas vezes, não reflete o que é As pessoas cegas, hoje em dia, ainda não
o interior. vítimas de descriminação, e essa é uma
AM: O que considera ser a beleza na ar- das coisas que, de facto, não tolero. Em-
quitetura? bora eu ache que algumas vezes é dito
C: Sinceramente, nunca pensei nisso. Em sem intenção de descriminar, eu não me
casa gosto de estar na sala, como já disse, contenho. Tenho de ser muito frontal, de
mas a nível de beleza não me preocupo. forma educada, claro, mas muitas vezes
Não penso nisso. E a casa está organiza- chamo a atenção de uma forma fria para
da e mobilada ao gosto da minha esposa, as pessoas comecem a ter mais disponi-
portanto nunca me preocupei com isso, bilidade e sensibilidade perante a pessoa
sei apenas as características que me vão com deficiência visual. A pessoa cega ain-
dando. Não vendo, não consigo criar uma da é um pouco tratada como um objeto,
imagem de como é o espaço exatamente. porque se acha que tem de se fazer tudo,
E pelo lado exterior de um edifício, não acha-se que a pessoa cega não é capaz de
consigo saber como é. Posso saber que é cozinhar, não é capaz de se vestir, de pas-
alto, saber que tem grandes vitrines, mas sar a ferro, lavar a loiça, e podia continuar
a beleza em si, sinceramente, acho que a lista. E isto não é verdade. Eu, felizmen-
para mim não se destaca. te, não tenho qualquer tipo de dificuldade
em fazer nenhuma destas tarefas.
AM: Se pudesse desenhar, agora, a sua
casa de sonho, o que não poderia faltar? AM: Por esse motivo é que eu gostava,
C: Boa pergunta. Muitas vezes falo dis- também, que este meu trabalho culmi-
so com a minha filha. Existem duas coi- nasse com uma atividade de sensibiliza-
sas que, se tivesse a minha casa de so- ção com os meus colegas de arquitetura.
nho, não poderiam faltar. Uma delas era C: Vocês são o futuro. Podem perfeita-
a piscina, e outra delas era um estúdio mente colaborar no sentido da integra-
musical, possivelmente até eu próprio ção. Quantos mais o fizerem, melhor.
criar uma rádio online. Sou um amante Não é fácil, mas também não é impossí-
da música e da comunicação social. Es- vel.
174
09 EXÉRCIA
AM: Então as suas maiores referências AM: Quais as suas técnicas de movimen-
partem do estímulo da pouca perceção tação?
visual que ainda tem? E: Dentro de casa e em locais que fre-
E: Sim. Tenho entre 5% e 10% de visão. quento com regularidade não utilizo ne-
Relativamente a outros estímulos, aquilo nhum auxílio. No entanto, em sítios que
a que mais recorro é o tato. não conheço, nos que frequento com
175
pouca regularidade ou na rua utilizo ben- consequências no modo como me movi-
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva
os estímulos que estão associados à des- porta fica atrás de mim, quando entro. O
locação? Por exemplo, conta o número de guarda roupa fica do lado direito e, em
passos, segue a parede com a mão, como frente ao guarda roupa, tem outro armá-
o faz? rio do lado direito. A janela é sempre em
E: Sigo a parede, mas esqueci-me de re- frente, na parede oposta à porta, e a luz
ferir um estímulo importante - é um es- direta incide durante a tarde.
tímulo mental, perceptivo, a memória.
Utilizo bastante a memória. AM: E qual é o espaço que menos gosta?
E: Gosto de todos.
AM: Qual é a divisão da casa onde costu-
ma passar mais tempo e porquê? AM: Se pudesse desenhar, agora, a sua
E: É o quarto. Tenho a minha privacidade casa de sonho, o que não poderia faltar?
e sinto-me mais à vontade para fazer as E: O essencial, para mim, em termos de
coisas que gosto como, por exemplo, ver adaptação, teria de incluir boas condi-
televisão. ções de acessibilidade. Gostaria de ter
um aspirador robot e uma casa com in-
AM: Qual é, para si, a definição de beleza? teligência artificial para acender e apa-
E: Para mim, a definição de beleza é es- gar as luzes, para poder utilizar coman-
tar bem comigo mesma. Não adianta ser dos de voz a partir do meu telemóvel.
uma pessoa fisicamente bonita e não me Gostaria de ter tudo automático.
sentir bem comigo mesma, ter um cora-
ção endurecido.
fotografado e ele o fotógrafo e passou a outras artes lhe trazem uma sensibilida-
ser um trabalho de equipa. Foi daqui que de acrescida para entender o espaço ao
nasceu o projeto e foi assim que entrei no seu redor?
mundo da fotografia. A: Eu penso que é o contrário. Penso que
AM: Agora que o projeto já acabou, con- a sensibilidade que tenho, que fui ad-
tinua a fotografar? quirindo ao longo do meu crescimento
A: Continuo, sim. Devo receber uma câ- - seja pelas ferramentas que fui adqui-
mera profissional agora no final de agosto rindo, pelo contacto com o desporto, no-
e a ideia é ir para locais e tentar captar meadamente futebol, voleibol, vela, judo
algo interessante. Penso que, acima de e karaté, ou pelo confronto com outras
tudo, natureza. Pretendo continuar com circunstâncias -, trouxe-me uma no-
o projeto em parceria com o meu cole- ção do espaço diferente, porque o meu
ga, que estará sempre a dar-me apoio a corpo não está tenso. O meu corpo está
editar as fotografias, por exemplo, mas no preparado para o impacto, não existem
fundo agora sou eu quem tem de avançar. grandes surpresas, está habituado a in-
teragir. Estou relaxado quando estou nos
AM: Como imagina aquilo que retrata locais, e isso traz-me outra abertura em
por imagem? termos auditivos e sensoriais. Penso que
A: Eu tenho algumas memórias visuais em consequência, na fotografia, também
que relaciono com o que ouço e ima- funciona como uma mais valia.
gino o que poderei estar a fotografar.
Por exemplo, lembro-me da imagem da AM: De que forma perceciona e com-
praia, e recordo-me da areia, do mar e preende as características de um espa-
da linha do horizonte onde toca o céu. ço? (Distâncias, escalas, limites, cheios e
Recordo-me da natureza, da floresta, do vazios)
por do sol. Quando vou fotografar, tento A: Eu também sou músico, sou bateris-
recordar-me desses elementos, depen- ta, e o som integra uma parte importante
dendo do sítio onde estou. Se estiver na da minha vida. Quando chego a um local
cidade, por exemplo, se estiver em Lis- que não conheço, tento prestar atenção
boa em que existem muitos carros, ten- às condições acústicas do sítio. Tento
to adaptar a minha memória a esse am- compreender o eco e faço estalidos com
biente. Quando estou a fotografar tenho os dedos para utilizar a ecolocalização.
consciência que os locais não vão ser Tento captar se o espaço está cheio, que
iguais às memórias que tenho, até por- faz menos eco, ou se está vazio, porque
que as memórias são de quando vivia em faz mais eco. Isto é apenas um exemplo.
África e a realidade é bastante diferente, Não sei explicar como descodifico a altu-
lá predominava o vazio sonoro e paisa- ra de um espaço, mas parece que consi-
gístico e cá estou no meio da cidade. go sentir se é alto ou mais baixo. Depois,
180
tento andar pelo local, acompanhado ou to alto. Não tem o pé direito como uma
dar de transportes públicos e saio num AM: E a ausência absoluta de som inter-
local que não conheço bem, oriento-me fere no seu sentido de orientação?
pelos passos das pessoas ou procuro a A: Pode acontecer, especialmente em
saída de modo a tentar perceber de onde sítios que não conheço. Se for num lo-
vem o som dos carros. Relativamente à cal que conheça, não me incomoda, mas
outra perceção de que falei há pouco, eu se estiver em espaços que não conheço
penso que é bastante útil porque em mo- tão bem torna-se complicado, porque eu
mentos em que estamos mais distraídos oriento-me pelo movimento das pessoas
acaba por funcionar como um alerta, por e pelo som. Por exemplo, na Estação de
sentirmos que está alguém próximo ou Cais do Sodré, o comboio nunca para no
algum obstáculo. Em casa esta sensação mesmo local. Após sair do comboio, te-
também me ajuda bastante, porque ando nho de ficar parado a tentar compreen-
muito rápido e, por vezes, com a distra- der o movimento das pessoas e a tentar
ção, não sigo o trajeto exato. Se não ti- encontrar o som da escada rolante para
vesse esta sensação, acabaria por bater me orientar. Consoante esta sensação
em objetos muitas vezes. O olfato tam- auditiva, escolho o trajeto a seguir. Se for
bém é importante para reconhecimento numa hora com menos afluência em que
não só dos espaços, como também das está tudo parado, eu fico confuso.
pessoas.
AM: E quais as suas técnicas de orienta-
AM: Sente que esses estímulos também ção?
podem ser desorientadores? A: Eu ando sempre de bengala. Quando
A: Podem. Como disse, por exemplo, no estou com amigos que veem, se tivermos
caso da discoteca. Como está a aconte- de andar rápido, coloco-lhes a mão no
cer muita coisa, nós não conseguimos cotovelo ou no ombro e vou com eles.
focar nenhuma. Quando quero atra-
vessar a rua e existe muita afluência de AM: Se estiver a fazer reconhecimento
transportes, também me sinto desorien- de um espaço sozinho, como o faz?
tado, porque não consigo ouvir os carros. A: Depende. Se for um espaço muito
A sensação do sexto sentido pode enga- amplo, como um centro comercial, te-
nar, também, e pode colocar o corpo em nho de usar bengala. Se for um edifício
alerta e sob alguma tensão em vão, mas como uma casa, um apartamento ou um
não me deixa desorientado. Penso que pavilhão, faço-o sem bengala. Em espa-
o olfato será, destes três, o que engana ços que conheço bem não gosto de an-
dar com bengala, gosto de andar livre-
mente, até porque isso ajuda a estimular
a minha orientação espacial. Então, em
edifícios que não conheço bem mas que
182
têm dimensões mais reduzidas, tento fa- AM: E quais considera serem os princi-
AM: O mapa mental que origina tem AM: Sente que quando os arquitetos es-
imagens ou apenas referências não vi- tão a projetar uma casa deveriam assi-
suais? nalar alguns dispositivos físicos? Como,
A: Tem imagem no sentido da memória. por exemplo, degraus, puxadores…
Ou seja, sei o que é uma porta. Mesmo A: Penso que sim. Sobretudo degraus,
não a vendo, sabendo que está uma por- entradas e saídas. Penso que seria algo
ta naquele local, sei o que é, como é. bastante importante. Poderiam ser colo-
car os relevos perto das escadas, rampas
183
e elevadores ou na aproximação às por- AM: E a noção de conforto surge em
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva
pode dificultar a orientação, a menos geral não gostam: Há pessoas que di-
que a pessoa decida logo, eu vou em zem assim, essas ruas se fosse tudo liso e
frente e vou-me orientar ou pelo ruído sem degraus era melhor para as pessoas
da direita ou pelo ruído da esquerda. E, circularem. Não é, nós não gostamos de
por exemplo, essas situações que falo tudo liso ao contrário do que as pessoas
acontecem muitas vezes nos comboios pensam, porque os degraus, as trans-
ou no metro, porque há locais que a saí- versais, servem-nos de pontos de refe-
da é so por um lado e ha locais onde é rências, enquanto que o passeio liso não
pelos dois. E para quem não vê nada tem tem pontos de referência, assim como
de estar muito atento se as pessoas vão nos edifícios lisos sem nada também não
por um sentido ou pelos dois, ou se de- é a melhor coisa. Vamos imaginar um
via perguntar. Assim como, num museu edifico grande e longo, é importante ter
ou num edifício publico, por exemplo, as ali a meio qualquer coisa, seja uma co-
vezes há degraus ou portas ou corredo- luna grande ou uma peça de decoração
res dum lado e do outro, e aí aa vezes a ou uma janela ou uma porta que sirva de
forma como as pessoas indicam tem de orientação. Isso é muito importante por-
se dizer se é para virar à direita ou à es- que um espaço muito vazio muito igual
querda, por exemplo. não nos ajuda com os pontos de referên-
cia.
AM: Tem por hábito emitir sons para
descodificar os espaços, ou serve-se AM: E por exemplo, se for a uma biblio-
apenas dos sons da envolvente? teca em que regra geral está muito silen-
L: Não, para qualquer percurso eu vou cio sente-se confortável?
precisar duma informação prévia para L: Aí sinto porque mesmo no silêncio
saber mais ou menos onde o local se lo- há sempre algum ruído, ouve-se por-
caliza. tas, pessoas a mover-se, isto ou aquilo.
É sempre fácil de me orientar numa bi-
AM: E a ausência absoluta de som inter- blioteca por que ouve-se sempre algum
fere no seu sentido de orientação? ruído.
L: Ora bem, o silêncio pode ajudar, tudo
depende. Existem silêncios que ajudam e AM: Sente que associa o som a imagens
silêncios que não ajudam. Existem silên- visuais?
cios em que basta um pouco de barulho L: Ora bem, regra geral não. Só se for
para facilitar a audição de alguns acon- qualquer coisa que eu conheci em tem-
tecimentos. Agora, o silêncio total num pos. Sons de ambulâncias, motorizadas,
edifício grande não é bom conselheiro. carros, sinos por exemplo, campainhas
Num espaço vazio existe a ideia do hor- de porta, bombos.
ror ao desconhecido. Por exemplo, umas
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AM: Qual a relação que tem com a janela AM: E nos espaços interiores utiliza
das em cima, uma cancelazinha evitava os identifique. E outra coisa, quando for
que a pessoa tropeçasse ali no primeiro assim espaços, corredores, etc. com de-
degrau, porque é sempre mais difícil en- graus, é preciso ter sempre corrimões.
contrar o primeiro degrau. Ou então um Não é que as pessoas não descem sem
tapete que também é uma coisa que se pôr a mão no corrimão, mas é bom para
usa para dizer que esta perto do degrau. qualquer pessoa, porque pode as ve-
zes tropeçar em qualquer coisa, ir a cair
AM: A noção de conforto surge em con- e é sempre bom ter o corrimão para se
sequência de que características? agarrar. E se for com a mão ligeiramente
L: O conforto num edifício é ter algo à frente, até pode ser só com um dedo,
que nos identifique no chão ou ao lado dá aquela perceção do fim das escadas
ou nas portas. Um espaço muito longo ou fim do patamar que também é útil. E
sem luz para nós não é assim um espaço não dá segurança umas escadas que não
muito confortável. Gostamos de espaços têm corrimão.
médios, não muito longos, e que nos dê
alguma informação. Pode ser uma janela, AM: Teve de fazer adaptações à sua casa
pode ser uma portada, etc. Por exemplo, depois de ficar cego?
num corredor muito grande, ter portas L: Não não, coisa nenhuma. Eu tive é de
pelo caminho, para nós já nos dá alguma voltar a conhecer os espaços.
informação.
AM: Cria mapas mentais de orientação?
AM: Claro, mas e se for dentro de casa o Como os descreveria?
que é que o faz sentir confortável? L: Sem querer, involuntariamente, nós
L: Dentro de casa, é assim, regra geral criamos mapas mentais em casa. E inte-
é tudo num piso sem degraus, no caso riorizamos mapas mentais do tipo, apro-
dos apartamentos. Se for em casas au- ximar-se uma porta, ou numa divisória
tónomas, se possível, o mais confortável maior, o tipo de curva que tem de fazer
é não ter degraus. Porquê? Vou dar um para ir pra porta ou pra janela. E depois,
exemplo, vou por uma rua fora, conheço numa casa, uma coisa que as vezes dá
a rua, vou com a bengala, vou à vonta- indicação também é ter tapetes ou car-
de, caminhando a passo médio. Mas, se petes no chão. Pode ter ou pode não ter,
eu sei que naquele quarteirão de rua vou mas a questão dos tapetes as vezes tam-
ter um degrau a descer já vou com algu- bém serve como ponto de referência. E
ma preocupação de encontrar o degrau, crio muitas referências táteis, sobretudo
a marcha já vai ser mais reduzida, para ao nível do chão, dos pés. Ou então, se
que o degrau não apareça duma forma as janelas ou portas estiverem abertas,
distraída. Ora, uma casa, se for uma casa pelo barulho pode dar indicação qual é o
autónoma, se possível não devia ter de- quarto que está aberto, embora, por sua
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casa, as pessoas acabam por conhecer o L: Não, as memórias não. Uma coisa que
ma passar mais tempo e porquê? nos dão. Mas para quem não vê é sempre
L: Ora bem, é no escritório, por uma tentar tocar com as mãos ou nas portas
questão de trabalho. É onde tenho o ou nas paredes, e isso acaba por nos dar
computador, onde tenho o computador, alguma sensação, por exemplo, aquelas
onde tenho internet, onde tenho tudo, portas dos edifícios robustos, dá-nos a
ficheiros para reencaminhar, a impres- perceção de que é um material bom, ro-
sora braille, o scanner, entre outros. E busto, sólido, resistente.
porque o meu hobby é ler, é escrever, é
ver o correio eletrónico, fazer pesquisas. AM: E acha a sua casa bonita? Porquê?
L: Eu acho, porque é uma casa que em
AM: Diria que, então, esse é o seu espaço termos de espaço não tem nenhum cons-
favorito? trangimento. É um T4, e tem bons espa-
L: É, sem dúvida. É este o meu espaço fa- ços. Claro que não tem o espaço que eu
vorito e, depois, o quarto, para dormir. desejaria ter, atendendo à cidade, é um
espaço que quer os quartos, quer a sala,
AM: Qual é, para si, a definição de algo quer a varanda, tem o espaço essencial.
belo? Ou seja, não é demasiado grande nem
L: É assim, em termos de beleza, eu gos- demasiado pequeno. Dá perfeitamente
to muito de tocar em peças, assim peças para circular nele sem constrangimentos
de roupa, de vidro, de cerâmica, de ma- nem receios. Porque há espaços que são
deira. E para mim uma coisa bela é uma constrangedores. Eu já estive em apar-
coisa que se toca e é leve, lisinha e agra- tamentos em que nos quartos se tem de
dável ao toque. Há coisas que são mesmo entrar de lado por causa da cabeceira da
agradáveis ao toque, são levezinhas, com cama. A minha casa não, felizmente nes-
aspeto liso, etc. É por aí que eu avalio, é se aspeto tem uma área boa.
pelo toque que vamos explorando, ao ní-
vel da perfeição da lisura, e também para AM: Se pudesse desenhar, agora, a sua
ter uma percepção da arte e da qualida- casa de sonho, o que não poderia faltar?
de do produto, através do tato. L: O escritório, um bom espaço para ter
os computadores e os equipamentos que
AM: E o que considera ser a beleza na eu preciso bem montados e com tudo
arquitetura? à mão. E ter uma varanda. Uma varan-
L: Na arquitetura nem sempre é fácil de da claro que se fosse possível em toda a
tocar num edifício muito grande, por volta da casa, mas claro que nem sem-
isso uma réplica pode ser uma ótima aju- pre isso é possível. Mas uma varanda era
da. Uma réplica dum edifico grande, para fundamental. Porque uma pessoa que vê
a pessoa cega que nunca viu, ou para pode estar dentro de casa e olhar para a
quem vê mas nunca conheceu, pode ser janela, ver o tempo que está lá fora. Para
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quem não vê é diferente. Se eu quiser to- um dos lados das escadas em rampa, mas
ções auditivas, por exemplo pelo eco do costados à parede ou que a mesa esteja
andar. Se estiver na rua e estiver a andar mais para o lado, para eu poder ter espa-
tranquilamente e sentir repentinamen- ço para me movimentar à vontade.
te uma corrente de ar, sei também que
significa que existe uma rua ao meu lado. AM: Relativamente a materiais, tens al-
Penso que o próprio som de mim a andar guma preferência?
já me dá referências suficientes. M: Sim. Posso dar um exemplo concreto.
Nós mudamos a cozinha de nossa casa
AM: E a ausência absoluta de som inter- e, quando pedimos o primeiro projeto, o
fere no teu sentido de orientação? arquiteto escolheu a placa de indução, o
M: Penso que não. O barulho excessivo microondas e o forno elétrico. Neste pri-
interfere mais no meu sentido de orien- meiro projeto, eu não conseguia usar ne-
tação. Por exemplo, se for a uma dis- nhum dos eletrodomésticos, porque eram
coteca tento não me afastar muito dos todos táteis. Nós pedimos para trocar.
meus amigos, porque sei que é um local
em que facilmente me vou perder. Nes- AM: Qual a relação que tens com a janela
ses casos tenho de ter um pouco mais de em termos de privacidade e iluminação?
cuidado, mas consigo gerir. M: Em termos de iluminação não me faz
grande diferença. Algo que por vezes é
AM: E a noção de conforto, para ti, surge difícil para mim, em locais que não co-
em consequência de que características nheço, são, por exemplo, aquelas casas
de um local? de banho que têm portas em vidro fosco.
M: Nós trabalhamos com pontos de re- Isso, para mim, é um conceito estranho,
ferência. Em cada espaço tentamos en- e já falei com várias pessoas cegas que
contrar um lugar, um ponto, a partir do me dizem o mesmo. Nós fomos ensina-
qual consigamos ir a todo o lado essen- dos que o vidro é transparente, permite
cial. Normalmente, eu gosto de espaços ver de um lado para o outro. Este é um
que tenham um ponto que possa usar conceito abstrato para nós, mas é como
como referência. Por vezes basta uma o entendemos.
parede. No entanto, um espaço muito Em casa gosto que haja bastantes janelas
vazio, muito amplo, também me pode e que os espaços sejam arejados. Como
desorientar. tenho noção de luminosidade, quando es-
tou em casa gosto de ter as janelas aber-
AM: E dentro de casa, o que faz com que tas porque me sinto mais confortável.
te sintas confortável?
M: Eu não gosto que haja móveis no meio AM: E relativamente a privacidade?
dos espaços, prefiro que estejam encos-
tados a algum local. Costumamos tentar,
196
M: Neste momento não me preocupo M: Esplanadas são elementos muito difí-
tudo no exterior. Dentro de casa, está casa, mas é o meu quarto. É o local onde
mais relacionado com questões de dis- tenho mais privacidade, é o meu sítio.
posição de mobiliário. Nós somos seis em casa, vivo com os
meus avós, os meus pais e a minha irmã,
AM: Há pouco disseste que decoras os então é difícil estar sozinha nos espaços
espaços. Sentes que crias mapas mentais comuns.
de orientação?
M: Sim. AM: E dirias que o quarto é o teu espaço
favorito?
AM: Como os descreverias? M: Sim, penso que sim. Está organizado
M: Vou dar um exemplo para explicar. à minha maneira.
Eu treino no Surf Clube de Viana - pen-
so que os arquitetos costumam conhe- AM: Podes descrevê-lo?
cer este edifício. Este edifício tem várias M: É um quarto grande, quadrangular. A
partes, e eu decorei os trajetos a partir partir da porta tem, à direita, uma cómo-
da entrada, onde tem receção e um bar. da. À direita da cómoda tem uma janela -
A partir daí decorei os caminhos para o na parede à direita da porta. Em frente à
balneário, para o ginásio, para a sala de cómoda tem a minha cama, na horizon-
massagens, para a parte de baixo onde tal em relação à porta e à cómoda. A par-
tem as pranchas. Basicamente, tenho tir da porta, em frente tem um pequeno
um ponto como se fosse um ponto 0, e a armário e à esquerda tem outro armário.
partir daí tenho várias rotas. Por exem- Na parede em frente à porta, do lado di-
plo, para ir para o balneário eu sei que reito, tem uma mesa de cabeceira junto à
tenho de virar à esquerda, seguir o cor- cama. Penso que é isto.
redor até ao fundo e que ao fundo vai
existir um tapete. Quando chego ao ta- AM: O que é, para ti, a definição de algo
pete, sei que tenho de virar. belo?
M: Difícil. Para mim o belo é um conceito
AM: Sentes que serias capaz de descre- abstrato, pelo menos no sentido normal
ver a tua casa de modo a ser desenhada da palavra. Para mim, algo belo é um lo-
uma planta do espaço? cal onde me sinta confortável, onde me
M: Sim. Por acaso, eu já fiz isso uma vez. sinta bem.
A minha professora de piano é arquite-
ta e uma vez fizemos esse exercício para AM: Se pudesses desenhar, agora, a tua
ver se era possível, e consegui. casa de sonho, o que não poderia faltar?
M: Na minha casa de sonho não poderia
AM: Qual é a divisão da casa onde costu- faltar uma piscina.
mas passar mais tempo e porquê?
198
AM: Interior ou exterior? M: Sim. Isso é fácil de perceber, sobretu-
comandos de voz, sentiu necessidade de casas. Torna o trajeto para quem está a
alterar algo mais na sua habitação? fazer o percurso a pé muito mais irre-
J: Não, para já não. gular e acidentado. Porque é que não
é o dono da casa que tem de fazer essa
AM: E em espaços que não conhece, o adaptação sem interferir com o passeio?
seu modo de orientação, muda? As rampas poderiam estar na estrada?
J: Sim. Quando entro num sítio que não Existem muitas pessoas que caem devi-
conheço, tento não me aproximar dos li- do a estas depressões do passeio. É di-
mites. Sei que nesse local haverá obstá- fícil a mobilidade em locais irregulares,
culos, então tento seguir pelo centro do sobretudo para pessoas de idade.
espaço. Enquanto não conhecer bem o
sítio, tento movimentar-me pelo espaço AM: Cria mapas mentais de orientação?
livre. J: Sim, é automático. Estou a olhar para
um espaço e crio logo o desenho. Habi-
AM: Nessas ocasiões utiliza a bengala? tuei-me a fazê-lo e agora é uma grande
J: Não, é raro utilizar a bengala no in- ajuda. Quando percorro um espaço, crio
terior. Só utilizo a bengala se existirem de imediato um desenho mental que me
muitas escadas, mas, normalmente, para ajuda a orientar-me das vezes seguintes.
esses sítios vou acompanhado, então
não sinto necessidade de a usar. Em pos- AM: Como descreveria esses mapas
so térreos não costumo usar. mentais? Quais são os estímulos?
J: O principal estímulo é visual, mas de-
AM: Quais os principais dispositivos físi- pende do quanto conseguir ver no mo-
cos que ajudam na orientação? mento em que visitar o espaço. Muitas
J: Além das faixas amarelas nos degraus, vezes guio-me com a mão, para tentar
existem outros elementos que sinto que compreender o que é cada coisa. Depois
deveriam ser melhorados. Por exemplo, compreendo e traço um desenho na mi-
em Viana do Castelo existem uns pila- nha cabeça. É automático. Eu sempre fui
res pequenos nos limites das passadei- muito independente, até a cozinhar, e o
ras que são baixos, cinzentos. Costumo facto de me orientar bem sozinho é muito
bater neles, porque não os consigo ver. importante para mim. Não costumava ter
Aquelas bolas baixas que costumam es- ninguém a ajudar-me, e não quero que o
tar em torno dos canteiros ou os bancos, façam agora também. Sinto que quanto
por exemplo os da Avenida, também são mais ajudarem, mais uma pessoa começa
obstáculos que poderiam ser alterados a ficar limitada, e não gosto disso.
se tivessem outra cor. Têm a mesma cor
do chão. Também nunca percebi porque
é que, de forma geral, rebaixam os pas-
204
AM: Seria capaz de descrever a sua casa AM: Pode descrever a sua sala?
belo?
J: É quase tudo. É a natureza. E é a arte, Gabriel, 49 anos. Entrevista realizada
que eu gosto muito. E as obras de arqui- virtualmente no dia 3 de agosto de 2022.
tetura espetaculares que por vezes se
veem. AM: A deficiência visual que o Grabriel
AM: O que considera ser a beleza na ar- tem é cegueira ou baixa visão?
quitetura? G: Tem sido ao longo da vida uma bai-
J: Um edifício muito bem feito e orga- xa visão que está neste momento muito
nizado, que é aquilo em que cada vez se próxima de cegueira. É uma doença de-
aposta mais, e ainda bem. Tudo amplo e generativa das células da retina. Quan-
com grandes janelas. do se identifica é quase imperceptível,
praticamente temos 100% da visão. Isto
AM: Se pudesse desenhar, agora, a sua aconteceu-me aos 8 anos, quando se
casa de sonho, o que não poderia faltar? identificou e depois vai-se perdendo, de
J: Luz. E, depois, gostava que fosse uma forma extremamente lenta. Neste mo-
casa futurista, dar-lhe ordens e ela obe- mento não vivo numa escuridão, ainda
decer. Ser uma casa inteligente. Mas, so- tenho perceção da luz, da luminosidade,
bretudo, muita luz natural. portanto ainda consigo ter a perceção
se é dia ou noite e se estou num espaço
com luz acesa ou luz apagada. É pratica-
mente este o resto visual que tenho.
a maior parte desta área que acabei de muito mecanizado. Às vezes quem me vê
descrever. entrar diz depois à rececionista que nem
se aperceberem que eu não via. São pe-
AM: O espaço tem janelas? quenos toques que eu vou dando em zo-
G: Este retângulo que eu lhe descre- nas muito estratégicas, nomeadamente,
vi não tem janelas, mas depois tem uma o ângulo do balcão que está em forma de
porta ou uma abertura com perto de 3 L. Eu, como já conheço o espaço depois
metro que dá para a sala de espera, que vou procurando zonas muito especificas
é um outro retângulo contíguo a este. que depois me orientam para virar à di-
Aí sim tem janelas. Esse outro retângu- reita ou para parar. Portanto, a estrutura
lo deve ter para aí uns 8 metros de largo física, alguns relevos da estrutura físi-
e uma das faces, a que dá para a rua, é ca nós vamos habituando a procurá-los
toda em vidro, com janelas. Depois, para pelo tato para depois decidirmos se va-
a minha direita, este retângulo da rece- mos virar à direta, se vamos continuará
ção prolonga-se com um corredor que em frente ou saber em que zona do es-
dá para salas de consulta e para a casa paço é que estamos. Eu uso cão guia já
de banho do fundo. Aqui, já dentro da há alguns anos. Por utilizar um cão guia
zona da receção, atrás do balcão, o espa- há uma parte da minha orientação que
ço tem uma abertura que dá uma casa de às vezes passo para 2º plano porque é o
banho e para uma outra sala de escritó- cão que está a fazer. Portanto não é im-
rio, que é um backoffice, digamos assim, possível às vezes vir numa chamada te-
mais pequeno. lefónica, com o auricular, em conversa.
Nessa circunstância é mais fácil perder a
AM: Quais os maiores estímulos para a noção do espaço, porque a minha mente
orientação no espaço? Há pouco dis- está ocupada com outra função e aí o ir
se-me que era a audição. Sente que há detectando alguns relevos físicos vai-me
mais algum que o ajude muito? dando informação.
G: Há. Os elementos físicos do espaço.
Eu estou a falar de coisas que normal- AM: Quando está, por exemplo, a cami-
mente não penso, não as torno cons- nhar na rua ou em espaços que não co-
cientes. Elas vão existindo de uma forma nhece tão bem, são os mesmos estímulos
quase inconsciente na minha vida. Eu que o orientam?
entro aqui disparado rapidamente por- G: Não. Aí, neste momento, é diferente.
que venho atrasado… Para além de já ter Na rua é um pouco diferente. O cão vai
criado uma noção da distância que devo me desviando de tudo o que são obstácu-
percorrer para contornar este balcão da los e aí eu vou me guiando. A pouquíssi-
receção, às vezes vou-me guiando com ma visão que tenho às vezes é suficiente
toques muito subtis, e que às vezes já não para perceber que o bloco de edifícios à
208
minha direita já terminou porque passei do. Não me pergunte exatamente como,
chão ou algo assim). Agora os espaços que a perguntas que raramente torno muito
eu domino e que possa dizer que há uma conscientes. Mas agora que penso um
estrututa que me confunde… não me es- bocadinho tenho quase a certeza que
tou a lembrar de nada. sim.
AM: O Gabriel tem por hábito emitir
sons para descodificar os espaços ou AM: Qual a relação que tem com a janela
serve-se apenas dos sons da envolvente? em termos de privacidade e iluminação?
G: Não, não tenho. A sua pergunta é per- Sente que a luz solar se destaca na forma
tinente. Eu conheço pessoas que recor- como perceciona o espaço?
rem ao truque, com muita frequência, de G: Sim. Até porque, para mim, apesar de
estalar os dedos, mas eu não. Eu prefiro ter esta pouquíssima visão, essa noção
ir-me baseando nos sons já existentes. de onde é que vem a luz permite posi-
cionar-me bem no espaço. Isto é bastan-
AM: E a ausência absoluta de som inter- te importante em casa, mas mais ainda
fere no seu sentido de orientação? no meu trabalho, porque acabo por ter
G: É uma boa pergunta. Se calhar não uma certa preocupação também com
é tão rica, a minha perceção do espaço aquilo que as pessoas veem em mim. Eu
no silencio absoluto. Se calhar fica um não parecer muito desorientado, não
bocadinho prejudicada mas não fica to- passar às outras pessoas uma imagem
talmente prejudicada. Isto é extremante de desorientado e de perdido no espaço,
difícil de explicar, mas é possível no si- para mim, é importante. Então sirvo-me
lêncio absoluto - ou se calhar a respos- muito da luminosidade que vem de uma
ta para isto está no facto de o silêncio janela ou da luz que vem da lâmpada do
absoluto não é fácil de existir (às vezes teto. Eu utilizo muito essa informação.
estamos mais em silêncio mas só o facto É muito pouco o que eu vejo, mas faço
de termos a nossa respiração e o nosso um aproveitamento grande, ainda, neste
próprio movimento já não será silêncio sentido, de conseguir-me posicionar e
absoluto - estarmos muito quietinhos e dirigir-me precisamente para a direção
num espaço silencioso e começarmos a que eu quero.
construir uma noção de espaço, que de-
pois poderá ser mais realista ou não. Mas AM: E em termos de privacidade? Como
que nós estamos a construi-lo, estamos. é que a janela se relaciona consigo?
Isso pelo menos comigo funciona. G: Eu tenho cuidado. Vivo num primeiro
andar numa rua não muito larga. Portan-
AM: Sente que associa o som a imagens to, tenho o cuidado de baixar o estore
visuais? e, quando subo, de não subir de forma a
expor tudo o que está lá dentro.
AM: Há pouco disse-me que utilizava cão
guia. Antes disso utilizou bengala?
210
G: Utilizava bengala, sim. mos funcionar. Uma é sabermos para
cha normal. É difícil acertar o passo com mentais que cria, para sua orientação.
aquela afastamento preciso dos degraus. Esses mapas que cria têm que tipo de es-
Quando são 3 ou 4 metros entre os de- tímulos? Como os descreveria?
graus, que às vezes acontece em recintos G: No meu caso, têm estímulos visuais.
muito amplos, aí tudo bem, mas às vezes Porque eu, como lhe digo, se houver uma
temos 2 metros e tem um degrau pe- janela, é uma boa referência para mim,
queno e mais 2 metros e outro degrau, e eu utilizo muito essa informação. A dis-
tudo bem. No entanto, existe um tipo de tância, o posicionamento de outras lu-
distância de degraus que não é a distân- zes, mesmo que não seja a luz natural, eu
cia típica das escadas de edifício. Devem também utilizo bastante. E depois vou-
ter cerca de meio metro, e dar um passo -me guiando, efetivamente, por elemen-
entre degraus é descabido, mas passar o tos físicos, uma coluna, uma porta antes
pé logo para o degrau a seguir também é da outra… Esse tipo de relevos também
descabido. Então gera ali uma atrapalha- me dá imensa informação. Se me per-
ção. Eu admito que em termos estéticos guntar qual me dá mais informação, eu
se calhar resultou bem, funcionou, mas não sei, sinceramente. É uma combina-
principalmente para quem não vê, ajus- ção, talvez seja de forma igual ou muito
tar-se àquela distância de degrau é mes- próxima.
mo muito complicado, por vezes.
AM: E com toda a razão. Há muitas for- AM: Acha que seria capaz de descrever a
mas de fazer uma escada de forma este- sua casa de modo a que fosse desenhada
ticamente agradável. Não é preciso que uma planta?
seja desconfortável. É só uma questão de G: Eu acho que não ficaria muito longe
incluir a informação toda e não só algu- do real. Eu acho que conseguia descre-
ma. ver a minha casa de uma forma muito
G: Pois, acredito que sim. A maior par- aproximada porque eu gosto de me guiar
te das minhas queixas têm a ver com o por metros. Eu tenho uma fita métrica
espaço público, não tanto com as habi- marcada em braille e utilizo estas me-
tações. didas com frequência. Quando eu vou
comprar um frigorífico, uma mesa, eu
AM: Mas teve que fazer adaptações à sua meço o espaço. Faço questão de, no sí-
casa, pela sua deficiência visual, ou não tio, ver as dimensões do objeto que vou
necessitou? comprar a ver se cabe, se não cabe. An-
G: Não necessitei. tes de perder a visão, eu ajudei muito o
meu pai a fazer bricolage, a fazer coi-
sas, tirar medidas. Portanto, eu acho
que tenho uma visão muito aproximada
das distâncias. Modéstia à parte ou sem
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modéstia nenhuma, não sei, eu acho, às a ver a disposição dos objetos. Também
como se estivesse a olhar para elas. As armário e, só depois, é que eu vou adi-
fisionomias não. Eu não me lembro da cionando pormenores a esse armário.
cara dos meus pais. Na realidade não me É tudo muito em tons em pretos e cin-
lembro da cara de ninguém, nem da mi- zentos, a minha memória. Não lhes vou
nha própria quando eu ainda me via ao atribuindo propriamente outras tonali-
espelho. E isto aconteceu até aos 15/16 dades. Às vezes, como ainda tenho esta
anos, em que eu ainda me conseguia ver perceção da luz, às vezes consigo perce-
mais ou menos ao espelho, mas eu não ber que determinado móvel é mais claro
me lembro da minha própria cara, tenho e outro mais escuro. E aí sim, vou acres-
muita dificuldade. Às vezes, quanto mui- centando essa informação complemen-
to, consigo lembrar de pormenores de tar, mas que anda sempre muito entre os
pessoas, de mim nada, mas de uma ou pretos e os cinzentos mais claros e mais
outra pessoa talvez me consiga lembrar escuros. Não lhes vou atribuído outro
do pormenor de um olho, isoladamen- tipo de classificação. E depois se é uma
te, ou do aspeto da cara ou só do nariz mesa, e se o espaço debaixo dessa mesa
ou da cor do cabelo e alguns caracóis ou está disponível. Com o passar do tempo
se tinha cabelo liso,… Alguns pormeno- vou acrescentando este tipo de informa-
res isoladamente quase que consigo vi- ção, ou porque estou lá sentado e com
sualizar. Mas já não confio muito nessas o passar do tempo, de tanto me sentar
memórias. Não há uma única pessoas e aproximar a cadeira e afastar, vou per-
que eu me lembre do conjunto, da fisio- cebendo que ali de baixo não está nada.
nomia, da cara, do cabelo. Esse tipo de Este tipo de outras informações vou
memórias perde-se. acrescentando. Mas isto é um processo,
é lento.
AM: E considera que o modo como cria
novas memórias é substancialmente di- AM: Em casa, qual é a divisão na qual
ferente do modo como fazia quando ti- costuma passar mais tempo? Porquê?
nha visão. G: Há-de ser ou o meu quarto ou a co-
G: É substancialmente diferente, sim. zinha. Passo pouquíssimo tempo na sala.
Na cozinha eu gosto de cozinhar. Duran-
AM: Como são as memórias agora? te a semana não tenho tempo para nada,
G: São mais a preto e branco. Quando chego a casa tardíssimo, mas no fim de
eu dizia antes, que quando entro na mi- semana gosto de cozinhar e passo algum
nha sala do hospital e sei onde é que es- tempo na cozinha. Quando não estou na
tão os objetos, eu quase que os começo cozinha, estarei no quarto a descansar, a
a visualizar. Mas é uma construção que ouvir podcasts, a arrumar qualquer coi-
vai, pouco a pouco, acrescentando por- sa, a tocar guitarra, a tentar! São estas
menores, ou seja, que, se calhar, no pri- a duas divisões onde passo mais tempo.
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Depois temos um terraço com umas di- que tenho, apesar de não ver, que é
AM: Qual é para si a definição de algo AM: Também um pouco ainda do que se
belo? O é a beleza? lembra de quando tinha visão?
G: Ora, aí está uma coisa para a qual eu G: Sim, vem muito daí. Mas também se
não tenho dedicado muita reflexão, ul- eu entrar num espaço cujas paredes te-
timamente. Há uma noção que eu acho nham algum elemento de madeira, tam-
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bém me dá uma noção qualquer do que pequena para aquilo que é a sua utiliza-
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva
z-se sentir através da forma como a ben- ção da sua dimensão é completamen-
gala deslizava e o som que a mesma fazia te impossível. Durante o percurso, toda
ao bater no chão ou no rodapé/parede/ a minha atenção centrou-se apenas em
móvel que utilizávamos como guia. Os tentar seguir o percurso indicado, em
únicos materiais que consegui distiguir garantir que a todo o momento a benga-
ao longo do percurso foram a madeira e la batia em algo e a tentar perceber se a
o alumínio. escada já tinha terminado ou não. Sen-
ti-me completamente desorientada, não
Por outro lado, no que toca à parte do pe-
saberia minimamente descrever o cami-
rurso no exterior, senti-me bastante per-
nho que tínhamos feito. Mesmo depois
dida. Devido a todo o barulho e movimen-
de perceber qual era o edifício em que
to que nos envolvia eu senti-me bastante
estávamos - um edifico que conhecia, de
desorientada, não tendo a mínima noção
modo geral -, ao longo do percurso, não
de nada do que me rodeava.
era minimamente capaz de me situar, de
saber se haveria uma parede à esquer-
C. O percurso iniciou-se ainda na rua, da, à direita, o que fosse. A perceção
era possível distinguir alguns tipos de que tive do edifício era completamente
pavimento de calçada mais irregular, fragmentária, no sentido em que apenas
e ouvia-se o barulho dos carros, que conseguia ter noção das coisas em que, a
se tornava bastante desorientador. Já cada momento, estava a tocar, quer fos-
dentro do edifício, parecia haver dois se com a mão ou com a bengala. Nessas
tipos distintos de espaço, um mais am- alturas conseguia perceber os materiais
plo (como de um pavilhão), com pou- das coisas, no entanto apenas daquelas
ca reverberação, e outros mais com- que tocava com as mãos. Por seu lado, a
pactos (vestíbulos e casa de banho, por bengala, ao bater nas laterais, permitia
exemplo), com uma atmosfera sonora tirar algumas conclusões acerca dos ma-
completamente distinta, com os sons a teriais, mas mais através da audição.
reverberar e tornarem-se confusos. Po-
rém, pelo facto de andar vários segmen-
E. Grande espaço, frio, materiais metáli-
tos longos em linha reta, parecia ficar
cos e madeira.
com a sensação que se tratavam de cor-
redores, pois nunca percorri a largura
desses espaços para averiguar a propor- F. O edifício que percorremos na activi-
ção em planta. dade tinha um conjunto de espaços que
se distinguiram uns dos outros exata-
Pelo tato, pude distinguir alguns mate-
mente devido às suas dimensões e aos
riais, como a madeira, aço e reboco.
seus materiais. No momento de entrada
o espaço parecia curto o que, por sua
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vez, dava a sensação de que estávamos materiais e para ter uma noção espacial
Respostas:
A. Sim.
B. Não.
C. Não.
D. Não.
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E. Não. batendo entao numa das suas esquinas.
Respostas:
A. Sim.
B. Sim.
C. Sim.
D. Sim.
E. Sim.
F. Sim.
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Questão 2 . Se sim, o quê? com uma série de legislações que temos
esta experiência?
Respostas:
Respostas:
A. —
A. Falta de capacetes e caneleiras, por-
que apesar dos guias serem fantásticos, B. —
os espaços não estão feitos para prote-
ger pessoas com deficiência visual. C. —
B. Considero que não existiram falhas na D. Obrigada por nos proporcionares esta
experiência. Foi muito bem organizada e atividade. Espero que no futuro, outros
extremamente interessante e esclarece- (futuros) arquitetos possam ter a mesma
dora. experiência que nós! Foi muitíssimo re-
levante.
C. Penso que se a experiência fosse feita
individualmente, ou mesmo sem acom- E. Considero que seria importante ouvir
panhamento poderia ter sido mais imer- a experiência de alguém com deficiência
siva, porém isto traria algumas dificulda- visual.
des que poderiam tornar-se impeditivas.
Por outro lado, por ter sido executada F. Teria sido interessante também explo-
numa obra de Souto de Moura, foi-me rar o espaço sozinha, mas reconheço que
facilmente reconhecível o edifício, e não seria fácil, uma vez que não se con-
provavelmente ajudou-me a identificar seguiria assegurar a minha segurança.
os tipos de espaço que nele se encontra-
vam.
D. Nenhuma.
E. Nenhuma.
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Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva 232
233 Anexos | Registo Fotográfico Percurso às Escuras
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva 234
235 Anexos | Registo Fotográfico Percurso às Escuras
Perceção da Arquitetura e dimensão sensitiva:
construção do espaço mental no campo
não visual
Ana Margarida Regado Calheiros
FACULDADE DE ARQUITETURA