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MESTRADO INTEGRADO

ARQUITETURA

A Dimensão Sensitiva na Perceção da


Arquitetura: construção do espaço
mental no campo não visual
Ana Margarida Regado Calheiros

M
2022
A DIMENSÃO SENSITIVA NA PERCEÇÃO DA ARQUITETURA
construção do espaço mental no campo não visual

Ana Margarida Regado Calheiros

Dissertação de Mestrado Integrado em Arquitetura | 2022


Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto | Orientação da Professora Doutora Ana Catarina Neiva
Esta dissertação foi defendida em prova pública no dia 8 de novembro de 2022, perante um júri composto por:
Professor Doutor Nuno Valentim Rodrigues Lopes, na qualidade de presidente.
Professor Catedrático Rui Jorge Garcia Ramos, na qualidade de arguente.
Professora Doutora Ana Catarina Neiva, na qualidade de orientadora.
Foi-lhe atribuída a classificação final de 19 (dezanove) valores.

Nota Prévia:
A presente dissertação está redigida ao abrigo do Novo Acordo Ortográfico. As citações transcritas em português
referentes a edições de língua não portuguesa, incluindo referentes, foram livremente traduzidas e/ou transcritas pela
autora. A norma para apresentação das referências bibliográficas é American Psychological Association (APA) 7th edition.
Este documento está preparado para leitura digital, apresentando ligações interativas.
II
AGRADECIMENTOS

É infindável aquilo pelo qual posso agra- eu não o fazia, a Margarida e o Luís Diogo.
decer. Fugindo entre adversidades, este À Margarida, ao José, ao Carlos, ao Tiago e
percurso é marcado por todas as con- ao Alexandre, por serem um lugar seguro
quistas e instantes de felicidade diá- para mim.
rios, mesmo em momentos de exaustão
ou fraqueza.
Aos meus colegas. Aos que desenharam Acima de tudo, à minha família.
por mim quando só sabia explicar atra-
Ao meu pai, por fazer de mim melhor e
vés de palavras, aos que pernoitaram
por permitir que lhe provasse que este
na faculdade com boa música, aos que
trajeto seria o certo, e que seria fantás-
me obrigaram a fazer pausas e descan-
tico. À minha mãe, por sempre ter bata-
sar ao sol. Àqueles que me invadiram
lhado para me mostrar que eu era capaz
a casa que transformamos em atelier
de tudo.
em tempo de pandemia, aos que toma-
ram decisões quando já não me sentia À Filipa, por ser colo infinito, abraço
capaz, aos que perderam horas a fio a apertado e a melhor conselheira. À João,
explicar-me aquilo que eu já devia sa- pelas visitas ilimitadas, palavras dedica-
ber. Em especial, à Eduarda, à Rita, à das e conforto do coração. À Ju, pelos
Mariana e ao João. devaneios artísticos e corridas de câme-
ra na mão, por cultivar o que gosto.
À Escola. Pelo caminho, pelos professo-
res, pelas viagens. À professora Filipa, Ao Vito, por ser meu parceiro incondi-
pela motivação e cuidado. Ao professor cional e fazer, sempre, que tudo pareça
Rui, por me fazer pensar a arquitetura de mais leve.
outra forma. À professora Ana, pela par- Aos meus avós, que sempre expectaram
tilha, amizade e empenho inabaláveis ao o melhor para mim, ainda que o mundo
longo deste último ano. não tenha permitido que me vissem com
Aos meus amigos. Aos que me fizeram va- o diploma.
guear o pensamento e me levaram no co- A todos, por compreenderem e perdoa-
ração pela vida. Sobretudo, aos que mo- rem as minhas ausências ao longo destes
raram comigo e cuidaram de mim quando cinco anos.

Obrigada.
III
ABSTRACT

The way in which space is experi- evance of sensorial complementarity in


enced is dependent on various con- face of diverse stimuli and their conse-
secutive stimuli, which can take effect quent actions.
both on a person’s direct perception
This study begins by systematically ex-
as well as on their field of memo-
posing the relevant knowledge in the
ry. A person’s spatial orientation is, in
field, and confronts it with experiences
turn, a consequence of the reactions
of everyday life, through an empirical
their body triggers and interprets, and
method of qualitative analysis, which
it is kinesthesia that provides the nec-
bases itself on an array of conducted
essary balance and bodily awareness to
personal interviews. The analysis is per-
produce motion.
formed in regards to a singular condition
How then can space be defined in its - blindness - as well as for the broader
multi-sensorial dimension? The body’s universe of low vision, a common conse-
confrontation with the constructed en- quence of the natural ageing cycle.
vironment gives rise to several sensory
In conjunction with the exposition of
reactions. However, the most impactful
the multi-sensorial dimension of spatial
ones are consequent from visual stimu-
comprehension, this investigation also
li, which in turn results in the supremacy
contributes to sensibilize architecture
of vision over the remaining senses.
students towards the underlying condi-
With this confrontation between the tions of visual impairment and its conse-
spatial comprehension of the visual and quences in Architectural design, through
non-visual worlds, an uneasiness arises. the conducted activity “Percurso às Es-
Blindness contrasts itself with the visual curas”. The obtained results indicate a
normative way of perceiving Architec- number of sensorial architectural ques-
ture, by highlighting the importance of tions to keep in mind during a project’s
an idealised mental space. This space is design process, and emphasises the val-
composed as much by the direct inter- ue of a participatory methodology and
pretation of the world, as by the pre-ex- education through empirical means.
isting memory, which underlines the rel-

architecture | visual impairment | sensorial perception | memory


IV
SUMÁRIO

O modo como se experiencia o espaço é Este estudo parte de uma sistematização


dependente de estímulos consecutivos de conhecimento em confronto com ex-
que atuam tanto na perceção direta como periências do quotidiano através de um
no campo da memória. A orientação de método empírico de análise qualitativa,
uma pessoa no espaço é consequente, com recurso a entrevistas realizadas. A
por sua vez, das reações que o corpo de- análise é feita desde uma condição sin-
sencadeia e interpreta, e é a cinestesia gular - a cegueira - até um universo mais
que permite o equilíbrio e consciência abrangente e consequente do ciclo natu-
corporal necessários ao movimento. ral de envelhecimento - a baixa visão.
Como se define, então, um espaço na sua Aliado à exposição da dimensão multis-
dimensão multissensorial? O confronto sensorial na compreensão do espaço, esta
corporal com o construído desencadeia investigação contribui para sensibilizar os
diferentes reações sensitivas. No entan- estudantes de arquitetura relativamente
to, as mais impactantes são consequen- às condições da deficiência visual e suas
tes dos estímulos visuais, resultando consequências na Arquitetura através da
numa supremacia da visão perante os atividade “Percurso às Escuras”. Os resul-
restantes sentidos. tados obtidos indicam questões arquite-
tónicas sensitivas a ter em consideração
Surge uma inquietação relativa ao con-
no ato projetual e ressaltam o valor da
fronto entre a compreensão espacial do
metodologia participativa e do ensino
mundo visual e do não visual. A cegueira
através de métodos empíricos.
contrapõe o modo de perceção da Ar-
quitetura do universo normo-visual, co-
locando em evidência a ideia de espaço
mental. Esta é construída tanto por in-
terpretação direta como pela memória,
salientando a relevância da complemen-
taridade sensorial na diversidade de es-
tímulos e suas consequentes ações.

arquitetura | deficiência visual | perceção sensorial | memória


V
ÍNDICE

III Agradecimentos
IV Abstract
V Sumário

1 I | Tema e Objeto
3 II | Objetivos
4 III | Metodologia e Estrutura

7 A | DEFICIÊNCIA VISUAL, ARQUITETURA E A PERCEÇÃO


MULTISSENSORIAL
9 A01 | A Deficiência Visual
15 A02 | Arquitetura e a Perceção Multissensorial

23 B | PERCEÇÃO ESPACIAL E HABITAR


27 B01 | Design Universal
34 B02 | Acessibilidade e Legislação
38 B03 | Apropriação do Espaço
39 Método de Análise Empírica
42 Resultados
55 Discussão e Conclusões
VI
61 C | PERCURSO ÀS ESCURAS
63 C01 | Role Playing
65 C02 | Percurso às Escuras: Atividade Experimental
67 Método de Realização do “Percurso às Escuras”
70 Método de Análise Empírica
71 Resultados
74 Discussão e Conclusões

77 D | REFLEXÃO
79 D01 | Deliberações
82 D02 | Limitações e Estudos Futuros
83 D03 | Nota Final

87 IV | Bibliografia
92 V | Lista de Imagens
95 VI | Anexos
VII
ÍNDICE DE ANEXOS

97 1 | Connections in Height: in between sensations


100 2 | Entrevista ACAPO - Delegação do Porto
106 3 | Entrevista IRIS Inclusiva
113 4 | Entrevista Carlos Mourão Pereira
123 5 | Estrevistas a indivíduos com Deficiência Visual
124 01 José
129 02 Luís
131 03 Paula
140 04 Maria
145 05 Marta
152 06 Marta
159 07 David
168 08 Carlos
175 09 Exércia
179 10 Aliu
186 11 Leonardo
194 12 Marta
200 13 José
206 14 Gabriel
221 6 | Inquérito Percurso às Escuras
231 7 | Registo Fotográfico Percurso às Escuras
IX
I | TEMA E OBJETO

Experienciar o espaço é uma viagem. do um envelhecimento seguro no local a


Experienciar o espaço é percorrer um que cada indivíduo se acostuma a cha-
caminho mentalmente apreendido que mar casa. Ageing in place é um conceito
se forma e desvanece a cada passo num que inclui, aquando do ato projetual, as
jogo entre a consciência e a subcons- condições inerentes ao envelhecimento
ciência dos sentidos que originam a sua e a possibilidade de adversidades na vida
apropriação. No entanto, a singularidade de cada pessoa. A inclusão de todos es-
de cada indivíduo implica que essa via- ses acontecimentos tem consequências
gem seja diferente para todos. no modo de habitar de cada indivíduo.
Deste modo, desenhar a habitação con-
As consequências de um pensamento
siderando um momento estático da vida
inclusivo na disciplina da Arquitetura
ou de um agregado familiar cristalizado
estão em constante mutação e desenvol-
torna-se inviável.
vimento, partindo de uma consideração
social e aliando-se às condições psíqui- Reconhecendo o quanto a visão se des-
cas e motoras inerentes a cada indivíduo taca na perceção da arquitetura (Spen-
(Case, 2008). Em Portugal, este proces- ce, 2020), num confronto direto entre o
so vê-se marcado, no último século, por eu e o espaço, questiona-se a colocação
um percurso progressivo de preocupa- deste sentido em supremacia perante os
ção com padrões de conforto, reajus- restantes, evidenciando a sua ausência.
te das prioridades e consciência de um O designer Canadiano Bruce Mau (1959)
aumento da esperança média de vida. refere que o ser humano permitiu a “dois
Consequentemente, surge legislação que dos campos sensitivos - visão e audição -
visa garantir as condições anteriormen- dominar a imaginação. De facto, quando
te referidas, especialmente associadas se relaciona com a cultura arquitetónica
à acessibilidade. e design, cria-se e produz-se quase ex-
clusivamente para um sentido. O visual.”
Desta sensibilização parte a vontade
(Mau, 2018, p.20)
de pensar a habitação de modo a adaptar-
-se a todas as fases da vida, potencian-
1
Instigar esta realidade passa por uma compreender de que modo a arquitetura
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

abordagem multissensorial, cuja com- pode contribuir para o enriquecimento


preensão se estende além do campo da da qualidade de vida dos indivíduos em
neurociência. A multissensorialidade en- condição de deficiência visual, utiliza-se
volvida na apreensão de um espaço ar- como ponto de partida deste estudo o
quitetónico desdobra-se em sentidos modo como se dá a apropriação do es-
com funções individuais, embora inter- paço por alguém cuja capacidade visual
ligadas. A inibição de um único senti- é reduzida.
do afeta o modo geral de compreensão
Um indivíduo com deficiência visual de-
da envolvente. No entanto, essa ausên-
senvolve modos de perceção de um es-
cia origina mecanismos alternativos de
paço alternativos à visão, bem como mé-
apropriação e entendimento.
todos de orientação nos quais a memória
Estima-se que, em 2015, existiam em desempenha um papel fundamental. A
Portugal cerca de 625000 pessoas com construção mental de um lugar é marca-
deficiência visual, das quais 35000 se- da pelas interações, estímulos e reações
riam cegas e aproximadamente 590000 com que cada pessoa é confrontada,
teriam perda parcial de visão - amblío- apropriando-se do mesmo com quan-
pes (Marques, 2018). Tendo como base a to melhor o conhecer (Herssens, 2012).
realidade em Portugal, nas suas dimen- Assim, esta investigação centra-se, es-
sões sociais e legislativas, este trabalho sencialmente, no estudo da perceção do
integra uma interação com a ACAPO espaço e adaptação da habitação incor-
- Associação dos Cegos e Amblíopes de porando as condições inerentes à defi-
Portugal - e com a IRIS Inclusiva. ciência visual.
Identifica-se a degeneração da visão Desta preocupação resulta uma análise
como uma condição comum no ciclo na- e exposição do modo como cada indiví-
tural do envelhecimento, e o seu reco- duo se apropria do espaço e o define no
nhecimento permite uma adaptação às mundo arquitetónico do seu imaginário.
condições em que a arquitetura da atua- É realizada uma atividade - Percurso às
lidade é projetada. Dados estatísticos Escuras - que coloca os estudantes de
revelam que 90% das pessoas com de- arquitetura em confronto com uma rea-
ficiência visual possuem idade igual ou lidade de ausência de visão, fomentando
superior a 65 anos (EBU) e, também em o pensamento e a consciencialização pe-
2015, a Organização Mundial de Saúde rante o assunto em causa. Assim, surge
partilhou dados que retratavam não só o uma sensibilização com consequências
aumento absoluto de pessoas acima dos nos seus modos de pensar a arquitetura,
65 anos de idade, como também o cres- como se virá a expor.
cimento da percentagem corresponden-
te ao número de idosos (OMS, 2015). Para
2
II | OBJETIVOS

Objetiva-se desmitificar a condição sin- Por fim, objetiva-se sensibilizar os estu-


gular da cegueira definindo e esclare- dantes de arquitetura para o habitar com
cendo os seus modos - congénita ou ad- défice de visão, através do “Percurso às
quirida - e seus graus - escuridão total, Escuras”, com a consciência que a de-
perceção da luz ou perceção de vultos. generação da mesma é frequentemente
consequência do ciclo de envelhecimento.
Pretende-se revelar as características
influentes na compreensão e perceção
do espaço, os estímulos mais impactan-
tes e as reações que desencadeiam, bem
como estabelecer uma relação entre es-
tes conceitos e a escala multissensorial.
A partir do pensamento de design uni-
versal, é pretendido expor realidades
habitacionais de indivíduos cegos e as
adaptações e recomendações dos mes-
mos, evidenciando possíveis melhorias
para a inclusão e integração do acaso ou
do processo de envelhecimento na ar-
quitetura em contexto nacional.
Pretende-se fomentar o pensamento
associado à acessibilidade e ao bem es-
tar na habitação, que se relacionam com
os tópicos anteriores no conceito de
ageing in place.
3
III | METODOLOGIA E ESTRUTURA

A presente investigação divide-se em De seguida, relaciona-se a arquitetura


três partes. Esta inicia-se com uma abor- com a supremacia da visão, colocando
dagem teórica, em que são tratadas pu- em evidência a importância que lhe é
blicações nacionais e internacionais, no atribuída. Faz-se, depois, uma reflexão
campo da arquitetura, acessibilidade, le- em torno da perceção multissensorial.
gislação, psicologia e neurociência. Alia- A apreensão do espaço arquitetónico
-se um trabalho empírico a esta compo- está fortemente ligada com os sentidos
nente teórica, que pressupõe a interação e a diversidade de estímulos a que cada
com pessoas que tenham relação com a indivíduo é submetido, de modo que
deficiência visual: realizam-se entrevis- importa pensar as características, tan-
tas a cegos, indivíduos com baixa visão e to sensitivas quanto neurológicas, que
instituições que se dedicam à deficiência definem estes métodos de perceção. Os
visual. Por último, é realizada a atividade cinco sentidos comumente destacados -
“Percurso às Escuras”, no qual se simula visão, tato, audição, olfato e paladar - re-
a condição de cegueira com estudantes lacionam-se com outros que serão, tam-
de arquitetura. bém, expostos, bem como a posição da
dimensão corporal que os integra. Este
A primeira parte introduz noções rela-
estudo considera autores como Juhani
cionadas com a cegueira, a arquitetura e
Pallasmaa (1936) e Peter Zumthor (1943),
perceção multissensorial:
na sua relação com a cinestesia e o to-
Primeiramente, é importante esclarecer que, Fernando Távora (1923-2005) e a sua
a condição da cegueira, a baixa visão e exposição de uma quarta dimensão para
as suas definições. Alguns dos tópicos o entendimento da arquitetura, Steen
abordados relacionam-se com o con- Eiler Rasmussen (1898-1990) e a sua ca-
texto social, os dados demográficos em racterização de experiências através de
Portugal e os meios de auxílio à mobili- sensações e MacLachlan (1932-2020) na
dade disponíveis. combinação das ideias anteriores com a
fenomenologia.
4
A segunda parte explora uma metodolo- Por último, partindo de um ponto de

Metodolodia e Estrutura
gia participativa: vista normo-visual, analisam-se os prin-
cipais atributos que possibilitam a com-
Começa-se por abordar os conceitos
preensão de um espaço e captação de
de Design Universal e Ageing in Pla-
características definidoras do mesmo.
ce, expondo o contributo destas no-
Objetiva-se confrontar essa realidade
ções no campo da arquitetura. Importa
com a do mundo não visual. Neste cam-
compreender e clarificar o modo como
po, estabelece-se o contacto com dois
se deve desconectar o termo incluir da
diferentes tipos de cegueira: congénita e
noção de acrescentar, e vê-lo, ao invés,
adquirida e, ainda, com a baixa visão.
como uma descomplicação do existen-
te (Araújo, 2018). Como referido ante- O estudo da mobilidade e métodos de
riormente, a degeneração da visão está orientação serve de base para a com-
fortemente ligada ao envelhecimento, preensão de como se forma um mapa
não representando, deste modo, uma mental do trajeto, através da perceção
condição isolada. multissensorial. Importa ter a consciên-
cia que a perceção se diferencia por inú-
Seguidamente, debate-se a necessidade
meros fatores, dos quais é relevante refe-
de repensar condições de acessibilidade
rir, desde já, o facto de cada indivíduo ser
e legislação para uma melhor adaptação e
diferente e dispor de memórias distintas.
inclusão ao envelhecimento e à degrada-
Apuram-se os modos de estruturação de
ção da visão. Expõe-se algumas das prin-
um espaço mental, no campo das distân-
cipais dificuldades do quotidiano de indi-
cias, escalas, limites, cheios e vazios.
víduos com cegueira ou baixa visão na sua
relação com o espaço privado, a habitação. Esta análise relaciona-se, também, com
questões de orientação e adaptação das
O testemunho de Carlos Mourão Pereira,
habitações à realidade não visual. É rele-
consequente de uma entrevista ao arqui-
vante deliberar sobre o modo como cada
teto [Carlos Mourão Pereira, transcri-
indivíduo se relaciona com o espaço e
ção completa da entrevista presente no
como se adapta ao mesmo - ou o adapta
Anexo 4], surge paralelamente à informa-
a si. Estas questões particulares do espa-
ção previamente referida. Esta perspetiva
ço privado ligam-se a noções de estética,
alia a experiência enquanto indivíduo cego
conforto e bem estar, numa escala em que
ao conhecimento e sensibilidade enquan-
pequenas alterações podem contribuir
to especialista em arquitetura. A ativida-
para mudanças significativas na forma de
de profissional de Mourão Pereira destaca
habitar a longo prazo (Spence, 2020).
problemas da cidade e da habitação, tanto
na tática urbanística quanto na arquitetó- A recolha de informação relatada neste
nica. São dadas sugestões de resolução de capítulo é consequência de uma meto-
problemas ao nível da habitação, visando dologia participativa, realizando entre-
uma melhoria na prática arquitetónica. vistas a indivíduos com deficiência visual.
5
Todas as entrevistas foram gravadas e A terceira parte pressupõe a consequên-
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

transcritas. Sucedeu-se uma análise qua- cia do estudo realizado:


litativa do conteúdo das entrevistas. Pri-
Apoiando-se nos alicerces erguidos nos
meiro, focou-se na identificação de temas
momentos precedentes da investigação,
chave, sintetizando a informação para
a parte final relata os resultados de uma
uma primeira explicitação. Estes temas
atividade de sensibilização com estu-
originaram a divisão da análise em cate-
dantes de arquitetura, enquanto experi-
gorias, examinando cada uma cuidado-
mentação de possível método empírico
samente para identificar as propriedades
de ensino e consciencialização.
que a caracterizam. No entanto, a relação
entre categorias não é linear. Existem Primeiro, apresentam-se casos de role
avanços e retrocessos neste processo, playing, suas consequências ou proble-
com uma constante readaptação da divi- máticas e modos de implementação em
são e implementação da informação. equipas ou métodos de trabalho e desen-
volvimento individuais. De seguida, de-
A escolha de uma metodologia partici-
bate-se sobre a atividade realizada com
pativa relaciona-se com os benefícios
a ACAPO, direcionada a estudantes de
que possibilita a ambas as partes. Por um
arquitetura. Com o exercício realizado,
lado, a busca de informação direta por
pessoas normo-visuais são confrontadas
parte de indivíduos em circunstância de
com a realidade da cegueira, numa ação
deficiência visual promove a sua partici-
de consciencialização e esclarecimento.
pação no pensamento arquitetónico, fo-
Surge, assim, uma aproximação ao modo
mentando a cidadania e a inclusão social.
como a arquitetura é apreendida num
Por outro lado, também este contacto
contexto não visual. São evidenciadas
permite o desenvolvimento de uma opi-
lacunas e dificuldades, visando possíveis
nião mais informada, que se traduz em
sugestões para estudos futuros.
mudanças nos modos de pensar e nas
práticas arquitetónicas e sociais (Calhei- Por último, a reflexão final sintetiza e
ros, Patrício & Bernardes, 2014). salienta os contributos desta investiga-
ção a níveis de cultivo de pensamento
e exposição de dados relevantes para o
pensamento da habitação, bem como
a pertinência de ações de sensibiliza-
ção junto de estudantes de arquitetu-
ra enquanto método de aprendizagem.
São apontadas limitações do trabalho,
pontos em aberto e possíveis traje-
tos consequentes desta aproximação
ao tema.
6
A | DEFICIÊNCIA VISUAL, ARQUITETURA E
PERCEÇÃO MULTISSENSORIAL

7
Como referido no ponto anterior, o pre-
sente capítulo inicia-se com um esclare-
cimento relativo à condição da cegueira,
à baixa visão e às suas definições. Alguns
dos tópicos abordados relacionam-se
com o contexto social, os dados demo-
gráficos em Portugal e os meios de auxí-
lio à mobilidade disponíveis.
É evidenciada a supremacia da visão na
relação com a arquitetura, contrapondo
com uma reflexão em torno da perceção
multissensorial. A apreensão do espa-
ço arquitetónico está fortemente ligada
com os sentidos e a diversidade de estí-
mulos a que cada indivíduo é submetido,
de modo que importa pensar as caracte-
rísticas, tanto sensitivas quanto neuro-
lógicas, que definem estes métodos de
perceção.
Estas dimensões são, assim, exploradas
na sua relação com as correntes arquite-
tónicas seguidamente referidas.
8
A01 | A DEFICIÊNCIA VISUAL

O posicionamento social dos indivíduos cionavam-se com o crescimento e pro-


portadores de deficiência visual é, ain- pagação do pensamento cristão, que
da, uma batalha em curso, cujos prece- apelava à inclusão de todos os cidadãos e
dentes se revelam como uma História ao seu direito de reconhecimento iguali-
de preconceito e rejeição. A ausência tário como “filhos de Deus” (Vieira, 2019).
de visão era comumente caracterizada
Somente no século XIX é publicado um
como uma incapacidade que tinha como
sistema de escrita e leitura para indiví-
consequência a exclusão social. Embora
duos com deficiência visual por Louis
este pensamento tenda a desvanecer-se,
Braille (1809-1852) (AFB). O alfabeto Braille
existem, ainda, inúmeros casos em que o
é um sistema de escrita tátil comumente
afastamento entre os indivíduos porta-
escrito em papel relevo, constituído por
dores de deficiência visual e os normo-
64 símbolos, em que cada um é formado a
-visuais se torna claro.
partir de um conjunto de seis pontos, aos
A cegueira era alvo de um paradigma em quais se chama sinal fundamental. Este
que a caracterização da pessoa enquan- sistema surge com o objetivo de propor-
to incapaz e desabilitada para a inserção cionar um maior acesso ao conhecimento
na sociedade era confrontada com o po- e à comunicação para indivíduos cegos,
der místico que alguns lhe atribuíam. Por numa sequência de acontecimentos que
consequência resulta um balanço entre revela um cuidado crescente para uma
o desprezo e a admiração ou o receio maior compreensão e integração na so-
(Lira & Schlindwein, 2008). Em algumas ciedade das pessoas com deficiência vi-
circunstâncias, a falência do órgão visual sual1 (Crespo & Locução, 1991).
levava à morte ou ao abandono.
Com a informação prévia em considera-
No entanto, durante a Idade Média, os ção, importa agora compreender o que
indivíduos com deficiência visual co- define a deficiência visual, desde a con-
meçaram a ser aceites e integrados em dição de amblíope à cegueira, e anali-
instituições de caridade, associando- sar os números estatísticos atuais desta
-se a asilos ou igrejas. Estas ações rela- realidade em Portugal. Como referido

1. As primeiras impressões em Braille, em Portugal, foram realizadas por Cândido Branco Rodrigues (1861-1926), no final
do século XIX. Foi Branco Rodrigues o fundador e diretor do Instituto de Cegos de Lisboa, em 1900, bem como o fundador
da instituição análoga no Porto. O Centro de Produção do Livro para o Cego foi a primeira imprensa Braille a ser constituída
em Portugal, tendo-se mantido como única até 1990, data em que surgiu o Centro de Produção Braille da ACAPO e a
partir da qual um maior número de publicações em diversas áreas de conhecimento passa a ser difundido.
9
anteriormente [Tema | Objeto], é esti- Dentro do campo da cegueira, esta divi-
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

mado que, em 2015, existiam em Portu- de-se, substancialmente, entre dois ti-
gal cerca de 625000 pessoas com defi- pos: congénita, quando é de nascença ou
ciência visual (correspondente a 6% da quando o indivíduo cega muito novo, ou
população), das quais 35 000 seriam ce- adquirida, quando surge durante a vida,
gas e aproximadamente 590 000 teriam numa fase em que o indivíduo já retém
perda parcial de visão - amblíopes (Mar- memórias visuais. No primeiro caso, não
ques, 2018). existe qualquer tipo de memória visual
que auxilie o reconhecimento de um es-
Por sua vez, a Organização Mundial de
paço, de modo que a sua perceção tem de
Saúde previa que, em 2010, existiam na
se dar unicamente através de estímulos
Europa mais de dois milhões de indiví-
que em nada se associam a imagens. Por
duos cegos e aproximadamente vinte e
sua vez, um indivíduo com cegueira ad-
quatro milhões de pessoas com perda
quirida poderá possuir referências visuais
parcial de visão (EBU).
para a construção mental de um espaço
De acordo com a ACAPO - Associação através da memória, mesmo após a ce-
dos Cegos e Amblíopes de Portugal -, gueira, o que faz com que a perceção da
Deficiência Visual é o termo mais con- arquitetura para estes dois grupos seja
sensual e abrangente para referir pes- bastante distinta. Fatores como a idade
soas cegas ou amblíopes, ou seja, indiví- em que uma pessoa perde a visão e o tem-
duos com “limitações visuais graves em po decorrido desde esse acontecimento
termos gerais”. Devido à proximidade também são muito influentes no modo
entre os dois conceitos e, muitas vezes, como a mesma se apropria do espaço.
a mínima diferença objetivamente física
Na maioria dos casos, indivíduos com
entre eles, este termo permite, também,
deficiência visual possuem algum tipo
uma descrição mais inclusiva da circuns-
de visão, embora em termos clínicos e
tância circunscrita a cada pessoa nesta
nas suas questões de limitações sejam
condição. A cegueira representa a perda
considerados cegos. Existe quem te-
total ou quase total de visão, e é avalia-
nha perceção da luz, quem veja vultos,
da, segundo o Conselho Internacional de
ou quem não tenha qualquer perceção
Oftalmologia, como correspondendo a
visual. A fotofobia é, ainda, uma doença
um grau de visão abaixo de 5%. Por sua
associada à cegueira na qual os indiví-
vez, amblíope é a palavra que caracte-
duos possuem alguma perceção visual
riza pessoas com baixa visão, ainda que
na ausência de luz, mas a iluminação
esta seja uma generalização2. O conceito
intensa - natural ou artificial - ofusca
é utilizado com a sua noção abrangente,
e provoca um efeito de perda de visão.
que corresponde a um grau de visão en-
Segundo a Sociedade Portuguesa de
tre os 5% e os 30% (ACAPO).
Oftalmologia, as três principais cau-

2. Na realidade, amblíope é um indivíduo que sofre de ambliopia, um enfraquecimento da visão sem lesões oculares, o que
não englobaria todas as pessoas com baixa visão.
10
sas de cegueira em Portugal são: de- idade igual ou superior a 65 anos (EBU).

A | Deficiência Visual, Arquitetura e Perceção Multissensorial


generescência macular ligada à idade Paula Costa, diretora da Delegação do
(DMI), glaucoma e retinopatia diabética Porto da ACAPO, refere, também, que o
(ACAPO). Estes dados estatísticos de- maior número de associados desta as-
monstram que o envelhecimento está sociação são indivíduos com idade mais
associado a um dos maiores fatores de avançada [Paula Costa, transcrição com-
cegueira, o que implica mudanças no pleta da entrevista presente no Anexo 2].
modo de vida desses indivíduos e todos Tendo isto em consideração, importa re-
aqueles que com eles interagem. Como lacionar as adaptações para a perda de
referido anteriormente [Tema | Objeto], visão às condições de acessibilidade ine-
dados estatísticos indicam que 90% das rentes ao envelhecimento.
pessoas com deficiência visual possuem

Principais patologias conducentes à cegueira na Europa Ocidental


2010
1990

0 5 10 15 20
% de prevalência

Fonte: JN
Catarata
Erros refrativos não corrigidos Glaucoma
Degenerescência macular da idade Retinopatia diabética
11
Quais são, então, as ferramentas que au- Este conceito une-se ao human centered
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

xiliam a orientação e mobilidade de um design para desenvolver métodos guia


indivíduo com deficiência visual? que visam a intuição num processo de
A sistematização que se segue evidencia deslocação e percurso (Araújo, 2018).
os meios disponíveis para a independên- Também o piso tátil integra este sistema
cia dos indivíduos com deficiência visual. de orientação, mas a sua utilização não
Os dispositivos existentes para auxiliar a é, ainda, muito difundida. Embora de im-
orientação dos mesmos são apresentados portância significativa no espaço público
com a consciência de que a sinalização ou comum, este auxílio à orientação não
de trajetos e elementos prepara o indiví- integra, em Portugal, um número elevado
duo para uma mobilidade mais segura e de percursos, devido à relativamente re-
assertiva. Por sua vez, existem diferentes cente integração na legislação nacional.
modos de uma pessoa cega ser auxilia- O Artigo 26º do Decreto-Lei 163/2006
da nos seus percursos e no modo como de 8 de agosto prevê o uso de material
se movimenta, explorados de seguida. A de revestimento de textura diferente e
combinação destes elementos vem com- cor contrastante com o restante piso na
pletar a informação consequente da per- via pública para assinalar três situações
ceção multissensorial de cada indivíduo. – escadas, rampas e passagens de peões
Deste modo, contribui para uma escolha de superfície (Ministério do Trabalho e
de trajeto com informação mais comple- da Solidariedade Social, 2006).
ta, bem como a independência da pessoa
No entanto, esta regulamentação não
com deficiência visual. Neste sentido,
pressupõe um guia de colocação deste
crescem as possibilidades de integração
dispositivo sendo, por isso, bastante dis-
e inclusão dos indivíduos na sociedade.
perso o modo de aplicação3.
O sistema Braille e o piso tátil são aque-
les que mais se destacam no campo
da orientação.
Um maior acesso à informação, conse-
quente da utilização do sistema Braille,
permite que o indivíduo com deficiência
visual se oriente no espaço. Demonstra
ser um elemento cuja integração na arqui-
tetura poderá ajudar à sua compreensão
e conexão entre espaços. Este sistema é
aplicado em alguns exemplos de sinalética,
possibilitando um maior sentido de apro-
priação consciente do espaço, e interli-
gando-se com as noções de wayfinding.

3. Para combater a falta de coerência entre a colocação de piso tátil, a ACAPO criou um documento com sugestões de
aplicação dos perfis e disposição dos mesmos para as várias situações.
Imagem 01. Sinalização com indicação Braiile.
12
Por sua vez, em termos de mobilidade, da análise momentânea de cada circui-

A | Deficiência Visual, Arquitetura e Perceção Multissensorial


importa considerar três possibilidades: to, na impossibilidade de prever situa-
a pessoa com deficiência ser guiada por ções de risco. Por sua vez, o cão guia
outra pessoa, a utilização de uma ben- permite uma deslocação em que o in-
gala branca e o recurso a um cão guia. divíduo depende de uma análise do es-
Complementares a estes auxiliares de paço que não a sua - a do cão - e op-
movimento, existem ainda aplicações de tar por este meio de auxílio requer um
mobilidade que descrevem o espaço. trabalho de confiança e adaptação.
Os cães guia são treinados para obser-
Além destes recursos físicos, o indiví-
varem o fluxo da área e possíveis obstá-
duo cego ou com baixa visão serve-se
culos, tomando decisões, muitas vezes,
dos sentidos que possui para guiar a sua
alternativas ao comando do indivíduo
deslocação, e a repetição de percursos
com deficiência visual, afastando-se de
tem elevada importância para a constru-
potenciais riscos identificados [Pau-
ção e utilização de mapas mentais. Tanto
la, transcrição completa das entrevis-
a bengala branca como os cães guia são
tas presente no Anexo 5]. Estas opções
auxiliares de mobilidade que requerem a
disponíveis para uma mobilidade inde-
consciência do indivíduo perante a pos-
pendente requerem, sempre, um nível
sibilidade de se colocar em situações de
de confiança e controlo perante o des-
risco, com diferentes perigos associados
conhecido. São vários os obstáculos que
para cada um.
podem surgir no circuito, ainda que seja
A bengala branca permite o reconhe- um percurso memorizado, como é o
cimento tátil de um percurso ou local, caso de qualquer tipo de elemento móvel
mas a sua utilização está dependente - carros, bicicletas, cadeiras, esplanadas.

Imagem 02. Deslocação com cão guia.


Imagem 03. Orientação através de piso tátil.
13
Como método de auxílio à movimen-
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

tação, existem aplicações que descre-


vem o trajeto a percorrer. Desde aplica-
ções de GPS universais - como o Google
Maps - a outras direcionadas para guiar
especificamente alguém com deficiên-
cia visual, descrevendo o que circunda
a pessoa - como é o caso da Lazarillo -,
são várias as opções disponíveis [Marta,
Anexo 5].
Fora das habitações, a bengala branca,
o cão guia ou a utilização de aplicações
orientadoras são fundamentais para a
mobilidade independente. Estas ferra-
mentas permitem uma extensão do cor-
po do indivíduo com deficiência visual.
O movimento e a perceção do espaço
- ou, em grande escala, da cidade - são
dependentes destes meios de auxílio, e
caracterizam-se de modo diferente para
cada pessoa.
No entanto, regra geral, dentro das habi-
tações, indivíduos com deficiência visual
não recorrem a estes auxílios, devido ao
reconhecimento do espaço feito pela sua
constante utilização e ao hábito da re-
lação entre o corpo e o espaço. A refle-
xão desta investigação em torno da ha-
bitação entra na discussão de ageing in
place, resultando num estudo consciente
relativamente às valências proporciona-
doras de uma experiência habitacional
confortável. É a preocupação pelo bem
estar que orienta este estudo para o
espaço privado.
14
A02 | ARQUITETURA E A PERCEÇÃO MULTISSENSORIAL

A supremacia da visão tem-se manifes- Percebendo a afirmação do visual na


tado de diferentes modos na arquite- Conceção Arquitetónica, destacam-se
tura. Esta apoia-se na crença de que é os quatro períodos que correspondem a
mais importante por permitir um en- pensamentos distintos na relação da ar-
tendimento mais claro e direto relativa- quitetura com o espaço, o cheio e o vazio.
mente ao mundo e à envolvente de cada
A Primeira Conceção Espacial, pela pers-
indivíduo. Já os estudos realizados por
petiva de Sigfried Giedion (1888-1968),
Aristóteles4 (384-322 a.C.) colocavam os
surge como consequência da evolução
sentidos no topo do modo como se dá o
social e hierárquica, que inclui as gran-
verdadeiro reconhecimento do mundo,
des civilizações arcaicas. Nestas inte-
com especial consideração pela visão,
gram-se a civilização grega e a civiliza-
criando espaço para a descriminação
ção egípcia. Esta fase é marcada por uma
consequente da sua ausência (Garcia,
“revolução fundamental no campo da vi-
2014). Carlos Mourão Pereira (1970) acre-
são” que origina a supremacia da vertical
dita que, desde então, os arquitetos ten-
e, por complementaridade, da horizontal
dem a apoiar-se fortemente nessa for-
(Giedion, 1997, p.491). Acreditava-se que
mulação filosófica, dando muita atenção
os Deuses surgiam na forma e corpo hu-
a esta hierarquia que considerava o tato
manos, interligando as suas proporções
o sentido menos nobre [Carlos Mourão
com dimensões do corpo do Homem.
Pereira, Anexo 4]. No entanto, a domi-
Esse controlo era feito, maioritariamen-
nância visual pode, também, ser justifi-
te, com base no campo visual.
cada por fatores neurocientíficos, uma
vez que existe uma parte do cérebro de- A Arquitetura destes períodos reme-
dicada ao processamento da visão bas- te mais intensamente para uma relação
tante superior do que acontece com os entre volumes. Embora o templo grego
outros sentidos (Gallace, Ngo, Sulaitis, & revele um tratamento mais minucio-
Spence, 2012). so, a atenção concedida ao espaço in-
terior era ainda pouca, relacionando-se
com os seus percursores, os egípcios.

4. Aristóteles foi um filósofo grego, discípulo de Platão, que influenciou fortemente o desenvolvimento do pensamento
filosófico da cultura ocidental nos mais diversos campos de estudo. Este autor defendia o conhecimento do mundo de um
modo empírico, em que todos os sentidos serão necessários à sua compreensão, de modo que a exclusão de um - neste
caso, a visão - não permitiria um conhecimento pleno. Esta deliberação alia-se àquela que é intitulada de intelecto puro, o
conhecimento inerente a cada um.
15
A Grécia Antiga e a construção da Acró- do todo. Esta noção alia-se à vontade
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

pole são marcadas por representarem de originar novas criações artísticas, e


um percurso traçado com consecutivas é neste século que surge uma nova for-
referências visuais. Esta ideia itinerante ma de pensar as artes, que remete para
requer movimento, mas está associada a o modo como os espaços, volumes e ma-
pontos de vista específicos para a com- teriais podem existir para retratar senti-
preensão espacial. mentos (Giedion, 1959).
A Segunda Conceção Espacial associa-se Perante todos os acontecimentos que se
às alterações ao pensamento arquitetó- seguiram à publicação de Giedon, propõe-
nico do período Romano, em que o es- -se, neste momento, refletir em torno de
paço interior se revela o foco principal. uma possível Quarta Conceção Espacial.
Para Giedion (1997), é com o Panteão e o
O Período Moderno deu origem a novas
seu imponente espaço interior oco que
dimensões na arquitetura, tanto numa
se assinala o começo deste pensamento.
vertente racional quanto numa vertente
A Terceira Conceção Espacial, por sua organicista. Pela visão de Le Corbusier
vez, relaciona-se maioritariamente com (1887-1965), arquitetura é “um facto plás-
o interesse humano pela aparência física tico para além do facto utilitário, é o jogo
do espaço, intensificada com a invenção sábio, magnífico dos volumes banhados
e exploração da perspetiva e da vontade pela luz” (Corbusier, 2006, p.21). O arqui-
de estabelecer pontos estáticos de ima- teto combina esta vontade estética com a
gens ideais. Filippo Brunelleschi (1377- sistematização da habitação, da qual re-
1446) foi um dos pioneiros na utilização sulta a máxima “a casa é uma máquina de
do desenho de perspetiva incorporado habitar” (Corbusier, 2006, p.69).
na arquitetura, e a disseminação des-
Esta forte corrente racionalista é balan-
ta prática deu-se rapidamente durante
çada com o organicismo de arquitetos
o Renascimento5. O efeito Trompe l’oeil6
como Frank Lloyd Wright (1867-1959) e
alia o desenho perspético à sua utiliza-
Alvar Aalto (1898-1976), no qual está pa-
ção no espaço, criando uma ilusão ótica
tente a ponderação da experiência do in-
que possibilita uma interpretação a três
divíduo aquando do ato de projetar. Aal-
dimensões de uma superfície que, na
to inclui nas suas divagações literárias a
realidade, possui apenas duas.
reflexão em torno da consciência de que
No século XIX, um mundo com quatro os modos de agir são consequentes da
dimensões, em que a relação espaço- apreensão de realidades circundantes
-tempo é introduzida7, vem trazer no- que se materializam quase inconscien-
vos modos de entender a continuidade temente na atitute humana (Aalto, 1993).

5. Durante este período, os cinco sentidos - visão, audição, olfato, paladar e tato - formavam um sistema hierárquico
em que a visão era destacada como o sentido do topo do sistema e o tato era considerado o mais baixo. “O sistema
Renascentista dos sentidos era relacionado com a imagem do corpo cósmico: a visão estava correlacionada com o fogo e a
luz, a audição com o ar, o olfato com o vapor, o sabor com a água e o tato com a terra” (Pallasmaa, 2012, p.18).
6. Conceito francês que se traduz para enganar o olho.
7. É Hermann Minkowski (1864-1909) quem, em 1908, introduz este conceito. Minkwoski era matemático e defendia que
as noções de tempo e de espaço isoladas se dissipariam, pela necessidade de uma constante interação entre as mesmas
para a compreensão do real.
16
Os pensamentos de Alvar Aalto impor- Poder-se-á, então, classificar o cuidado

A | Deficiência Visual, Arquitetura e Perceção Multissensorial


tam para a presente investigação por se crescente pelas experiências sensoriais e
terem demonstrado pioneiros no modo a preocupação por reações físicas e psi-
de adaptação da arquitetura a circuns- cológicas como o moto de uma Quarta
tâncias singulares. Aalto afirma que, pela Conceção Espacial?
sua experiência pessoal em construções
Através da Bauhaus, Walter Gropius
hospitalares e pelas reações físicas ou
(1883-1969) desenvolveu uma escola
psicológicas dos doentes, foi-lhe pos-
moderna de arquitetura e design, onde
sível retirar conclusões direcionadas à
“novos métodos eram introduzidos para
habitação. Quando projeta o Sanatório
treinar os sentidos para um nível de
de tuberculose de Paimio, na Finlândia,
atenção mais elevado quando compa-
este arquiteto destaca o facto de estar a
rado com outras escolas” (Rasmussen,
desenhar um quarto para um ser huma-
1964, p.176). O estímulo multissensorial
no doente, colocado horizontalmente, ao
é uma ação que, embora muitas vezes
contrário do que é mais comum, que é o
involuntária, possui uma presença cons-
posicionamento vertical dos indivíduos.
tante no modo como cada indivíduo se
As implicações consequentes são varia-
movimenta e apropria do espaço. Impor-
das, como a escolha das cores, o posicio-
ta clarificar, primeiro, aquilo que se defi-
namento da iluminação natural ou arti-
ne como espaço. Fernando Távora (2015)
ficial e a localização das fontes de ruído,
realça a generalização de espaço como
como portas (Aalto, 1950).
o negativo ou molde das formas que os
nossos olhos apreendem.

Imagens 04. 05. Sanatório de Paimio, Alvar Aalto.


17
Deste modo, espaço é o intervalo entre complementares e extensivos perante a
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

formas, ou o desenho do seu limite? classificação de cada autor. Mourão Pe-


reira considera o sistema háptico como
Intervalo e limite vivem de uma relação
aquele que mais lhe permite retirar con-
intrínseca. Parte-se, então, da sua co-
clusões relativas à qualidade arquitetó-
nexão para a definição espacial. Entre
nica que o envolve. O sistema háptico
estas duas definições acontece toda a
contempla, assim, a integração senso-
ação que resulta na apreensão do que é,
rial do sistema cutâneo com o sistema
efetivamente, o espaço. O corpo, o seu
cinestésico9, ou seja, com movimento e
posicionamento e o raciocínio mental
perceção do equilíbrio [Carlos Mourão
constituem as partes que permitem uma
Pereira, Anexo 4], tanto numa interação
análise multissensorial de um todo que é
ativa quanto passiva consequente da re-
a arquitetura.
lação com a envolvente (Herssens, 2012).
A ideia do corpo humano como centro
Os sentidos de temperatura, dor e cines-
da experiência e do modo como a per-
tesia surgem em Philosofy of Perception
ceção através dos sentidos interage com
(1989), de Donald MacLachlan, como
o corpo é um dos pontos discutidos por
sendo imprescindíveis para compreen-
Juhani Pallasmaa em The Eyes of the Skin.
der o modo como o corpo interage e se
Os sentidos integram-se com o corpo de
apropria do espaço. Por sua vez, Julian
tal modo que o próprio tenta tirar sen-
Hochberg (1923) classifica os sentidos
tido de todas as diferentes sensações
em relação com a arquitetura em três
que recolhe do ambiente envolvente. Os
categorias - os sentidos que permitem a
sentidos não são mais avaliados como
apreensão de distâncias, combinando a
sendo apenas os cinco comumente re-
visão e a audição, os sentidos apreendi-
feridos8, adquirindo diferentes níveis
dos pela pele, incluindo o toque, o olfato
e a temperatura, e os sentidos profundos,
que se relacionam com a posição e, mais
uma vez, a cinestesia (Vermeersch, 2013).
Enquanto a visão permite apenas uma
experiência isolada e estática a cada
instante, distanciando a experiência de
cada indivíduo, a audição é omni-dire-
cional, permitindo que o mesmo estí-
mulo interfira em diferentes indivíduos
num mesmo instante, do mesmo modo.
“O espaço reconhecido pelo ouvido na
escuridão torna-se uma cavidade escul-
pida diretamente no interior da mente”
(Pallasmaa, 2012, p.54).

8. Visão, Audição, Tato, Olfato e Paladar.


9. cinestesia ≠ sinestesia. A primeira diz respeito ao movimento e à perceção do corpo relativamente ao seu posicionamento
no espaço. A segunda representa as experiência sensitivas recebidas a partir de todos os sentidos.
Imagem 06. Os cinco Sentidos, Hans Makart.
18
Diferentes espaços e materiais reverbe- ressaltar a noção de envelhecimento da

A | Deficiência Visual, Arquitetura e Perceção Multissensorial


ram o som de diferentes modos, resul- própria obra. E “porque o espaço é con-
tando em que um lugar seja compreen- tínuo e porque o tempo é uma das suas
dido e apreciado através do seu eco na dimensões, o espaço é, igualmente, irre-
mesma medida que acontece através do versível” (Távora, 2015, p.19).
seu aspeto visual. No entanto, a perce-
Também a noção de ritmo se associa à
ção acústica acontece, maioritariamen-
ideia temporal, tanto no campo sonoro
te, através de uma experiência incons-
quanto no visual (Pallasmaa, 2012). Na
ciente como pano de fundo.
reflexão de Rasmussen (1964) sobre o
Zumthor (2009, p.29) refere que “o espa- efeito estimulante de uma atividade rit-
ço funciona como um instrumento gran- mada, é reconhecido que a descrição dos
de, coleciona, amplia a transmite sons”. elementos criadores desse efeito não é
No entanto, segundo um estudo de neu- suficiente para a sua compreensão. De-
rociência de Edward T. Hall (1914-2009), pendendo da submissão do indivíduo a
o nervo ótico possui cerca de dezoito ve- essa circunstância, aquilo que se define
zes mais neurónios que o nervo auditivo. como ritmo aplica-se no campo sonoro
Neste sentido, quanto do espaço se perde do mesmo modo que se aplica à arqui-
na sua breve passagem? E quanto se re- tetura. É algo que se incorpora e inte-
tém? (Pallasmaa, 2012) gra um corpo que experiencia a vida e
se guia pelo movimento imaginário da
“A Arquitetura pode ser ouvida?”, ques-
repetição. Esta experiência materializa-
tiona Rasmussen (1964, p.224) em Arqui-
-se como uma dança no espaço, um ca-
tetura Experienciada. Ouvir articula a
minho constante que requer tempo, do
experiência de compreensão de um es-
mesmo modo que trabalho mental, fun-
paço, dando-lhe uma sensação temporal
cionando como uma construção fluída e
com os modos de propagação do som.
leve do trajeto.
Mas qual o intuito da referência do tempo
conseguida pela audição? Quando Peter Zumthor (2009, p.25) ex-
põe o conceito de atmosferas associado
Pallasmaa refere a noção de ‘espaço-
ao seu ato de projetar e de compreen-
-tempo’ de David Harvey (1935), em que
der arquitetura, destaca várias sensações
as experiências de espaço e tempo se
na relação entre o espaço e a perceção
traduzem em duas dimensões: a tempo-
emocional de cada ser humano. Primei-
ralização do espaço e a espacialização do
ramente, reflete em torno do que impac-
tempo (Pallasmaa, 2012). Para Távora, o
ta a sua compreensão, desde o espaço fí-
tempo surge como elemento imprescin-
sico e estático à sua perspetiva pessoal e
dível para a definição de espaço - a sua
emocional. Existe uma relação simbiótica
quarta dimensão. Não obstante à impor-
entre estas duas dimensões, um efeito
tância da posição do observador e a sua
recíproco entre as pessoas e os elemen-
mudança no decorrer do tempo, importa
19
tos materiais. O autor equipara o espa- espaço. É algo que se sente em todas es-
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

ço construído a um corpo que toca cada tas medidas. Isto deve-se, não só, ao facto
indivíduo através da sua materialização, de que os materiais interagem e absor-
e é o modo como esses materiais “soam vem o calor corporal de modo diferente,
em conjunto e irradiam” que dá origem a mas também a uma análise psíquica da
uma composição singular. experiência humana. A cor e a iluminação
do espaço são dois dos fatores que mais
Barry Smith (1952) defende que o estí-
se destacam na perceção térmica e de
mulo de um sentido desencadeia rea-
conforto (Manav, 2013; Spence, 2020).
ções que poderão estimular outro, numa
cadeia interligada a que chama o efeito No entanto, “a maioria dos investigado-
cross-modal (Smith, 2017). Também Ras- res tem tido tendência para focar as suas
mussen (1964) refere esta ideia interliga- investigações empíricas no estudo da
da entre as várias formas de perceção, mudança de estímulo em apenas um sen-
ressaltando a dificuldade de distinguir tido de cada vez” (Spence, 2020, p.4). O
impressões táteis de impressões visuais estudo individualizado permite, por um
relativamente à cor. lado, simplificar o problema de investi-
gação do modo como o desenho arquite-
É o confronto entre os vários estímulos
tónico afeta o indivíduo sensorialmente
e a sua relação que permite uma expe-
(Malnar & Vodvarka, 2004), mas, por ou-
riência mais completa. Pallasma (2012)
tro lado, pode entender-se que o estudo
expõe duas definições de multissenso-
individualizado de um sentido negligen-
rialidade. Na primeira, apresenta-a como
cia a relação multissensorial natural da
a interação entre diferentes modalidades
apreensão de um espaço. O modo como
sensoriais no processo de perceção. Por
o ser humano reage aos meios em que se
sua vez, na segunda, afirma que uma en-
insere, sejam eles construídos ou natu-
volvente construída ser intrinsecamen-
rais, é consequência de uma combinação
te multissensorial significa que todos os
de todos os sentidos estimulados, inde-
sentidos estão envolvidos na perceção
pendentemente do indivíduo estar cien-
de um edifício ou espaço.
te da influência da sua relação ou não.
Quando se afirma que um espaço é frio, é Quando o cérebro humano é observado
comum que a referência não seja apenas por neurocientistas, a atividade é modu-
relativa à sua temperatura. Existe uma lada pelo que está a acontecer em res-
reação por parte do indivíduo que resulta posta a mais que um estímulo no mesmo
de uma antipatia ou afastamento às for- instante (Spence, 2020).
mas, materiais, sons e cores presentes no
20
O pensamento em torno dos modos de

A | Deficiência Visual, Arquitetura e Perceção Multissensorial


executar arquitetura é volátil e mutante
no seu desenvolvimento, mas as conclu-
sões decorrentes dos ensinamentos e
experiências históricas permitem, atual-
mente, validar a importância da conside-
ração sensitiva e psíquico-social no ato
projetual. Assim, embora a atualidade
partilhe de um caráter arquitetónico al-
tamente visual, presencia-se uma preo-
cupação crescente pelas condicionantes
de cada indivíduo, tanto num caráter
coletivo quando individualizado. Existe,
no entanto, ainda um grande caminho a
desenvolver no âmbito da inclusão e das
acessibilidades.

Imagens 07. 08. Interação do corpo com o construído. Piscina em Monza, Itália, Giulio Minolleti.
21
B | PERCEÇÃO ESPACIAL E HABITAR

23
Considerar toda a informação anterior e exposições e concursos pensados para
colocá-la num caso prático da atualidade fomentar a sensibilização dos envolvi-
revela-se, atualmente, uma necessida- dos, dos participantes e dos leitores.
de com consequências particularmente
É relevante serem, também, discutidos
difíceis. A interação entre a deficiência
temas relacionados a Acessibilidade. Em
visual e a arquitetura evidencia a im-
consequência da consciência do ante-
prescindibilidade da integração de ele-
riormente exposto, surge a necessidade
mentos potenciadores de uma experiên-
de questionar pessoas com deficiência
cia multissensorial.
visual relativamente às suas dificulda-
Neste capítulo são abordados os con- des e adaptações à habitação, para que
ceitos de Design Universal e Ageing in o pensamento do futuro possa ter em
Place, colocando em evidência os con- consideração essas referências. Primei-
tributos para o campo da arquitetura. Os ramente, este contacto aconteceu atra-
avanços na medicina têm vindo a possi- vés de uma tertúlia dinamizada com a
bilitar um aumento da esperança média ACAPO, onde participaram treze pes-
de vida, e cabe aos arquitetos garantir soas com deficiência visual. De seguida,
que o espaço se adapta e mantem con- foram realizadas entrevistas individuali-
fortável a experiência vivencial de todos zadas, que se apresentam em análise no
os indivíduos. Com esta consciência, im- presente capítulo.
porta relembrar que a correspondência
Importa destacar, antes do início de uma
existente entre a degradação da visão e o
exposição mais prática que se desenrola-
envelhecimento.
rá até ao fim da investigação, que foi atra-
Nesta sequência, a agregação dos vários vés do concurso Home for the Blind, pro-
campos de conhecimento tem originado movido pela Bee Breeders, que se iniciou
diferentes caminhos de desenvolvimen- o estudo apresentado. O programa previa
to, tanto arquitetónicos quanto sociais. uma habitação para uma pessoa cega e to-
Desde os campos artísticos aos cien- talmente independente, e tinha como ob-
tíficos, surgem publicações, projetos, jetivo explorar a relação entre arquitetura
24
e acessibilidade. Algumas das questões na rua de Santa Catarina, o desenho da
colocadas na apresentação do exercício nova habitação foi pensado como conse-
relacionavam-se com o modo como a ar- quente do existente, mantendo uma re-
quitetura pode influenciar a forma como lação clara com os edifícios adjacentes.
uma pessoa se move numa habitação e as As preocupações tidas nesta primeira
consequências no seu conforto, seguran- fase de aproximação à temática podem
ça e independência. ser encontradas no [Anexo 1]. Com-
preendem-se, após a presente inves-
O projeto realizado com Duarte Gon-
tigação, algumas limitações do projeto
çalves em dezembro de 2021, intitulado
como, por exemplo, a marcação textura-
Connections in Height: in between sen-
da no chão ou a diferença nos puxadores
sations, foi pensado de modo a integrar
das portas dos armários e gavetas.
a cidade consolidada do Porto. Inseri-
do num lote com um edifício devoluto

Imagem 09. Pormenor do projeto Connections in Height: in between sensations.


25

Imagem 10. Projeto Connections in Height: in between sensations.


B01 | DESIGN UNIVERSAL

A área de incidência da arquitetura na parativamente a um normo-visual nas


sua relação com a sociedade inclui to- suas atividades individuais. Isto poderá
dos os locais em que a interação entre indicar uma incapacidade para certas ta-
o espaço e o indivíduo esteja presente. refas. Quando analisado a maior escala, no
Embora o esforço para a adaptação dos relacionamento com o espaço envolvente
espaços ao maior número de indivíduos e a sociedade, este indivíduo encontra-se,
demonstre uma preocupação crescente inevitavelmente, em desvantagem.
pela integração física e social, nem todos
Em 1963, Selwyn Golsmith (1932-2011)
os locais públicos ou privados são aces-
publicou um livro intitulado Designing
síveis a toda a população (Ielegens, Hers-
fot the Disabled, no qual o arquiteto re-
sens & Vanrie, 2015).
flete acerca do modo como se criavam
Importa compreender, então, a Interna- barreiras de forma inconsciente, por não
tional Classification of Impairments, Dis- serem tidas em consideração as incapa-
abilities, and Handicaps (ICIDH). Em 2013, cidades físicas ou mentais presentes na
a classificação mais recente associada a sociedade10 (Golsmith, 1963).
este contexto mostrava um padrão típico
No entanto, o conceito de Design Uni-
entre alguns conceitos: Disease/disorder
versal, enquanto disciplina, é aprofun-
-> Imparment -> Disability -> Handicap
dado pelo arquiteto Ronald Mace (1941-
(Vermeersch, 2013, p.23). Isto surge com
1998) a partir de 1985. É defendida a ideia
a ideia de que uma doença ou alteração
de barrier free design, aliada ao compro-
dariam origem ou estariam associados a
misso com o tempo, ou seja, o envelheci-
uma dificuldade. Por consequência, essa
mento experienciado por cada indivíduo
dificuldade pode levar à incapacidade de
(UD). Em 1987, o Congresso de Design
realizar uma ação ou pensamento, pro-
Universal fez circular uma norma que
movendo a desigualdade. É dado o exem-
instituía que todos os designers deve-
plo de uma pessoa com deficiência visual,
riam incluir incapacidades e consequên-
que, tendo uma menor capacidade visual,
cias do envelhecimento no seu trabalho
atua de modo diferente ou limitado com-
(Case, 2008). As medidas a ser adotadas

10. É Selwyn Golsmith quem reconhece a lacuna de conectividade entre as ruas e os passeios para pessoas com deficiência
motora. Em consequência, cria o dropped kerb, que é uma depressão ou rebaixamento do passeio. Este elemento representa
uma rampa que conecta a parte alta à parte baixa permitindo a conectividade entre pontos no trajeto de um indivíduo com
deficiência motora.
27
para combater a desigualdade entre in- Na procura por uma solução univer-
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

divíduos permitem uma maximização sal, esta não deve apenas servir o grupo
das competências e habilidades dos in- cujas necessidades estão em estudo, mas
divíduos envolvidos. Por consequência, sim melhorar a experiência para todos
surge uma participação mais ativa, equa- os utilizadores (Ielegens, Herssens &
litária e independente por parte desses Vanrie, 2015).
sujeitos na sociedade.
Nesta sequência, em 1997, o Centro de
O Design Universal procura desenhar Design Universal publicou sete Princí-
ambientes e objetos de modo a minimi- pios de Design Universal e orientações
zar as dificuldades e barreiras que con- associadas que podem ser aplicadas nos
frontam o quotidiano das pessoas com campos de arquitetura, design e educa-
algum tipo de limitação ou incapacidade. ção (Connell et al, 1997). Os princípios e
No entanto, não basta adicionar elemen- as respetivas orientações sumarizam-se
tos integradores para estes indivíduos. de seguida:

Princípios Orientações

1. Utilização Providenciar os mesmos meios para todos os utilizadores, evitando se-


Equitativa gregações. Providenciar privacidade e segurança de forma equalitária.

2. Flexibilidade Providenciar escolha nos métodos de uso. Potencializar a


de Utilização adaptabilidade às necessidades de cada utilizador.

Eliminar complexidade desnecessária. Garantir facilidade na


3. Utilização
compreensão, independentemente da experiência do utilizador, dos
Simples e Intuitiva
seus conhecimentos, aptidões linguísticas ou nível de concentração.

Fornecer ao utilizador a informação necessária de forma eficaz, inde-


4. Informação
pendentemente das condições ambientais ou físicas existentes ou as
Percetível
capacidades sensoriais do utilizador.

5. Tolerância ao Minimizar riscos e consequências negativas decorrentes de ações


Erro acidentais ou involuntárias.

6. Mínimo Esforço Garatir uma utilização de forma eficaz e confortável com um mínimo
Físico de fadiga. Permitir ao utilizador manter uma posição corporal neutra.

7. Dimensão
Garatir espaço e dimensão adequada para a abordagem,
e espaço de
manuseamento e utilização, independentemente da estatura,
abordagem e de
mobilidade ou postura do utilizador.
utilização

Fonte: Centro de Design Universal


28
Quanto da transformação para tornar sibilidade para garantir a qualidade de

B | Perceção Espacial e Habitar


um espaço inclusivo não passa, então, vida de cada indivíduo. Como referido
pela simplificação do desenho? Como anteriormente [Tema | Objeto], a Orga-
anteriormente mencionado [Metodo- nização Mundial de Saúde partilhou, em
logia], o termo incluir deve ser desco- 2015, dados que retratavam não só o au-
nectado do termo acrescentar, de modo mento absoluto de pessoas acima dos 65
a facilitar a sua implementação (Araújo, anos de idade, como também o cresci-
2018). A arquitetura teve tendência a ser, mento da percentagem corresponden-
de um modo geral, pensada para uma te ao número de idosos (OMS, 2015). Na
ideia pré concebida de um homem nor- Europa, a percentagem de pessoas acima
mal, não correspondendo às condições dos 65 anos está a aumentar a um ritmo
físicas e mentais da população em geral. sem precedentes, sendo expectável que
Embora esta mentalidade tenha vindo a atinja um valor de 30% da população em
ser alterada durante as últimas décadas, 2060 (Comissão Europeia, 2015). Embora
existem ainda minorias que enfrentam o envelhecimento da população seja ge-
dificuldades na mobilidade e orientação neralizado na Europa, dados indicam que
perante o construído. “países como Portugal e Espanha contam
de forma reiterada com as redes familia-
Indivíduos portadores de alguma limita-
res para suportar o cuidado à população
ção ou incapacidade, independentemente
envelhecida, enquanto que outros países
da sua idade ou grupo social, não estão,
apresentam distintas soluções de inde-
por norma, alocados num ponto especí-
pendência, consolidadas culturalmente
fico da cidade. Embora existam algumas
ao longo de décadas” (Lameira, 2020, p.5).
exceções, como alojamentos dedicados
a idosos ou pessoas com algum tipo de Retomando informação anteriormente
deficiência ou doença, a integração des- mencionada [A01], os dados estatísticos
tes indivíduos nas condições de habita- disponibilizados pela Sociedade Portu-
ção é, na maioria das vezes, distribuída. guesa de Oftalmologia comprovam que
Ser criança, ser idoso, estar doente ou as doenças associadas à degeneração e
ter algum tipo de limitação - temporária perda de visão, em Portugal, estão inti-
ou permanente - são acontecimentos da mamente ligadas ao envelhecimento. Por
vida humana que não dependem da con- esse motivo, importa incorporar tam-
dição económica, social ou cultural dos bém a deficiência visual na habitação e
indivíduos (Abouebeid, 2019). nas questões de acessibilidade.
O reconhecimento e compreensão do A noção de Ageing in Place revela-se, as-
anteriormente exposto deram origem sim, necessária para a consciencialização
ao conceito de Ageing in Place. As con- da população no confronto com a inca-
dições da habitação devem estar adap- pacidade. A sua premissa inicial é ajudar
tadas a questões de mobilidade e aces- pessoas idosas a permanecer nas suas
29
habitações de modo a contribuir positi- interage, embora não tenha sido cons-
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

vamente para o bem estar pessoal, inde- truído. Tendo sido pensado para possibi-
pendência, participação social e envelhe- litar ao utilizador desfrutar da experiên-
cimento saudável (Sixsmith & Sixsmith, cia sensitiva que o oceano desencadeia,
2008). Sarah Hillcoat-Nallétamby argu- este projeto permite atribuir dimensões
menta que a vontade de mudar de local multissensoriais à arquitetura.
de habitação está mais relacionada com
Após perder a visão, Mourão Pereira sen-
descontentamento com a habitação pro-
tiu que entrar no mar passou a ser uma
priamente dita do que com o espaço en-
atividade com muito risco associado e
volvente. A autora refere que, por norma,
surge, daí, a vontade de ultrapassar esta
o espaço construído tem de ser adaptado
dificuldade a partir de um elemento ar-
e melhorado para ser fisicamente possí-
quitetónico. O desenho deste espaço
vel para as pessoas o habitarem de modo
pressupõe a inclusão de pequenos tan-
confortável (Pani-Harreman et al, 2021).
ques, com diferentes tamanhos e formas,
O desafio de Ageing in Place tem-se re- que remetem para as depressões naturais
velado mais presente nos últimos anos, e presentes nas rochas. Para tornar o local
a sua preocupação acrescida observa-se confortável para todos os que o frequen-
na necessidade de construção ou adap- tam, o arquiteto desenhou um corrimão
tação de edifícios existentes. As ques- que guia o visitante pelo espaço, pos-
tões interligadas ao planeamento urba- sibilitando que o mesmo se oriente de
no, nomeadamente a relação entre os forma segura nas várias partes do traje-
espaços exteriores públicos e os espaços to. Este espaço público exterior demons-
privados, são, também, alguns dos pon- tra, assim, cuidados importantes perante
tos da revisão que têm vindo a acontecer as noções de wayfinding, possibilitando
(Lameira, 2020). que tanto pessoas com deficiência visual
quanto pessoas com condições físicas li-
Relacionando os conceitos previamente
mitadas frequentem a instalação balnear
referidos, importa expor alguns projetos
de forma segura (Vermeersch 2013).
como demonstração de bons exemplos
e possíveis resoluções de problemáticas
associadas à deficiência visual e ao en-
velhecimento. Para tal, serão referidos
três projetos.
O primeiro, de Carlos Mourão Pereira, é
uma instalação balnear na Lourinhã, Por-
tugal. O arquiteto concebeu este proje-
to após cegar, de modo que o mesmo
contempla questões do seu quotidia-
no com as quais um normo visual não
30
O segundo projeto, de Mark Cavagnero soas com deficiência visual, o tratamento

B | Perceção Espacial e Habitar


Associates Architects, é um centro para acústico foi, também, alvo de estudo nes-
pessoas com deficiência visual em São te projeto. Assim, os arquitetos procura-
Francisco, Estados Unidos da América. ram reduzir os sons mecânicos e aumen-
Mark Cavagnero (1957) desenvolveu o tar sons que transmitiam segurança no
projeto com a consultoria de Christopher movimento, como, por exemplo, o som
Downey (1963), outro arquiteto que, tal dos passos. Deste modo, as pessoas que
como Mourão Pereira, ficou cego duran- estivessem a circular consegui-se-iam
te o período da sua prática arquitetónica. aperceber se outro indivíduo se aproxi-
Sendo um espaço interior de uso não pri- masse (Rethinking the Future, 2020).
vado, este projeto destaca algumas preo-
Por sua vez, o terceiro projeto a referir
cupações a nível tátil e, mais uma vez,
é uma habitação intitulada “Mac House”,
recorre ao uso de táticas de wayfinding,
desenhada pela equipa So & So Studio
permitindo uma orientação segura dos
para Veneza, Itália. Este projeto é uma
utilizadores no interior do edifício.
reabilitação de uma casa para uma pes-
Considerando a baixa visão e e a perce- soa independente, que vivia naquele es-
ção luminosa por parte de algumas pes- paço, à data do projeto, já há 50 anos. Os
soas com cegueira, a recorrência à luz arquitetos optaram por estudar a rotina
revela-se de extrema importância para a de movimento que a cliente desempe-
apreensão visual do espaço. Neste pro- nhava na sua habitação, e desenvolveram
jeto, os arquitetos optaram por iluminar um sistema de sinalização no chão com
de forma neutra todo o espaço e evitar indicação dos trajetos a seguir.
superfícies que causem grande reflexão,
A transição entre espaços foi feita de
de modo a não perturbar a perceção lu-
modo a limitar as barreiras espaciais ao
minosa por parte dos usuários. As cores
essencial, e os espaços de circulação fo-
neutras foram, também, privilegiadas em
ram mantidos livres, de modo a facilitar a
comparação com cores claras.
mobilidade (Rethinking the Future, 2020).
A utilização de diferentes materiais entre
Com a consideração do anteriormente
os espaços de circulação e os espaços de
exposto, levanta-se a questão relativa ao
repouso permite uma separação dos mes-
modo como se podem discutir as ques-
mos, mantendo livres as áreas de circula-
tões de acessibilidades e legislação asso-
ção e seguras as zonas de repouso. Uma
ciadas aos modos de experienciarão do
vez que a audição se manifesta um dos
espaço, que se apresentam de seguida.
maiores sentidos de orientação para pes-

Imagens 11. 12. 13. Projeto para instalação balnear na Lourinhã, Carlos Mourão Pereira.
31
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva
32

Imagens 14. 15. 16. Centro para pessoas com Deficiência Visual, Mark Cavagnero.
B | Perceção Espacial e Habitar
33

Imagens 17. 18. Mac House, So & So Studio.


B02 | ACESSIBILIDADE E LEGISLAÇÃO

A conquista de uma Arquitetura com cará- contemplação de desenho inclusivo na


ter mais inclusivo surge como consequên- arquitetura são apenas sugestões, como
cia de uma consciencialização de várias anteriormente mencionado [A01].
entidades. Através da criação de legisla-
“De acordo com a Constituição da Repú-
ção, normas e recomendações é compro-
blica Portuguesa, é incumbência do Es-
vada a preocupação social a vários níveis
tado a adoção de medidas cuja finalidade
de habitabilidade. Esta discussão aborda
seja garantir e assegurar os direitos das
problemáticas consequentes de barreias
pessoas com necessidades especiais”,
que a arquitetura pode criar perante a so-
ressalta o Instituto Nacional para a Rea-
ciedade (Vieira 2019). O seu combate vai
bilitação (2020). Isto inclui “pessoas que
de encontro às noções de barrier free de-
se confrontam com barreiras ambientais,
sign, como anteriormente referido.
impeditivas de uma participação cívica
Embora se note um cuidado acrescido ativa e integral, resultantes de fatores
com a problemática da falta de acessibi- permanentes ou temporários, de defi-
lidade, os meios de implementação da le- ciências de ordem intelectual, emocio-
gislação são, muitas vezes, consequentes nal, sensorial, física ou comunicacional —
de um contorno ao objetivo final da sua promovendo deste modo o bem-estar e
utilização, ou seja, ao conforto e seguran- qualidade de vida da população e a igual-
ça de utilização dos edifícios por parte de dade real e jurídico-formal entre todos
todos os indivíduos, independentemen- os portugueses, bem como a realização
te da sua circunstância social, física ou de uma política nacional de prevenção e
psicológica. Mesmo nos casos em que as de tratamento, reabilitação e integração
normas tentam ser cumpridas, a sua má dos cidadãos portadores de deficiência
implementação resulta, muitas vezes, em e de apoio às suas famílias, o desenvol-
circunstâncias de perigo ou desorienta- vimento de uma pedagogia que sensibi-
ção para as pessoas com incapacidade ou lize a sociedade quanto aos deveres de
deficiência [ACAPO, Anexo 2]. Verifica-se, respeito e solidariedade para com eles e
também, que algumas das medidas com assumir o encargo da efetiva realização
34
dos seus direitos, sem prejuízo dos direi- análise e implementação do relatório ela-

B | Perceção Espacial e Habitar


tos e deveres dos pais e tutores”. borado pela Comissão para a Promoção
das Acessibilidades. O referido documen-
A promoção da acessibilidade ao meio
to, concluído no final de janeiro de 2020,
edificado, seja este público ou privado, e
disponibiliza dados sobre as dificuldades
ao espaço público é imprescindível para
de acessibilidade nos edifícios públicos,
garantir que todos os indivíduos possam
em Portugal (Simões, 2020a, 2020b).
exercer os seus direitos de cidadania e
promover a sua participação cívica. Im- Transpondo estas preocupações para as
porta considerar, no entanto, que, em dificuldades sentidas por pessoas com
Portugal, as questões relativas à Acessi- deficiência visual12, importa referir al-
bilidade e Mobilidade para todos surgiu gumas circunstâncias previstas pela lei,
com cuidados legislativos apenas em presentes no “Guia de Acessibilidade e
1997 (Vieira 2019). Mobilidade para Todos”, anteriormente
referido, que não surgem cumpridas em
O Decreto de Lei nº163/2006 é aquele
muitos dos locais frequentados pelos in-
que aprova o regime jurídico de aces-
divíduos em questão, tanto em espaço
sibilidade ao meio edificado. Alterado
público como em edifícios de uso coletivo.
pelo Decreto de Lei nº125/2017, passa-
ram a ser atribuídas ao Instituto Nacional Para pessoas com baixa visão ou ceguei-
para Reabilitação novas competências ra, melhorar as condições de acessibili-
que, anteriormente, estavam atribuídas à dade de um local implica, primeiramen-
extinta Direção Geral dos Edifícios e Mo- te, que a pessoa em questão seja capaz
numentos Nacionais. As leis decretadas de saber os locais a que se pode dirigir.
em 2016 previam um prazo de 10 anos Em segundo lugar, é importante que o
para a “adaptação de instalações, edifí- indivíduo saiba como alcançar o local
cios, estabelecimentos, equipamentos e, por último, saber como o utilizar ou
públicos e de utilização pública e via pú- como se integrar no mesmo. A definição
blica, com as normas técnicas de acessi- mais comum associada à acessibilidade,
bilidade” (DRE, 2017). Surge como conse- equiparando-a às noções de barrier free
quência deste decreto de lei a publicação design, pode não ser suficiente para per-
do “Guia de Acessibilidade e Mobilidade mitir que sejam cumpridas todas as ne-
para Todos”, permitindo uma interpreta- cessidades referidas (Abouebeid, 2019).
ção facilitada das normas a cumprir.
Uma das dificuldades mais referidas por
Está, atualmente, em curso, o Plano Na- pessoas com deficiência visual é a circu-
cional de Promoção da Acessibilida- lação no passeio, por este estar recor-
de (PNPA)11. Com início em fevereiro de rentemente ocupado com os mais varia-
2020, encontram-se entre as principais dos obstáculos, sejam estes fixos, como
responsabilidades da Estrutura de Missão mobiliário urbano, ou móveis, como es-
para a Promoção das Acessibilidades a planadas ou carros.

11. A Estrutura de Missão para a Promoção das Acessibilidades, com aprovação publicada em Diário da República a 4
de fevereiro de 2020, é consubstanciada pela Resolução do Conselho de Ministros nº4/2020. Este é o órgão responsável
pelos trabalhos que conduziram à elaboração do Plano Nacional de Promoção da Acessibilidade (PNPA).
12. Os exemplos aqui apresentados são consequentes de entrevistas realizadas a pessoas com deficiência visual,
35

disponíveis para leitura no Anexo 5.


O Decreto de Lei nº163/2006, anterior- vistados relacionam-se com questões
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

mente referido, prevê que “os passeios de orientação e utilização das escadas.
adjacentes a vias principais e vias distri- O mesmo decreto de lei anteriormen-
buidoras devem ter uma largura livre não te referido prevê, entre outras normas,
inferior a 1,5m” (Teles, 2017, p.74). Também que existam “faixas antiderrapantes e de
a colocação de escadas na via pública sinalização visual com uma largura não
prevê que existam patamares, superior e inferior a 0,04m e encrostadas junto ao
inferior, “com uma faixa de aproximação docinho dos degraus” (Teles, 2017, p.98).
constituída por um material de revesti- O posicionamento dos corrimões é, tam-
mento de textura diferente e cor contras- bém, contemplado. “No topo da escada,
tante com o restante piso” (Teles, 2017, os corrimões devem prolongar-se pelo
p.76). No entanto, raramente se presencia menos 0,3m metros para além do último
a existência deste elemento. degrau do lanço, sendo esta extensão
paralela ao piso” e “na base da escada,
Relativamente a edifícios e estabeleci-
os corrimões devem prolongar-se para
mentos de receção ao público, as maio-
além do primeiro degrau do lanço numa
res dificuldades referidas pelos entre-
extensão igual à dimensão do cobertor
mantendo a inclinação da escada” (Teles,
acabamento de 2017, p.100).
textura e cor
contrastante Passando para uma análise relativa ao
espaço habitacional, importa referir
que a legislação não contempla medidas
obrigatórias que interfiram diretamen-
te no modo de habitar consequente da

prolongamento do
corrimão paralela- zona de
mente ao piso colocação
de mobiliário
urbano

prolongamento do
corrimão com a
profundidade do
cobertor

Imagem 19. Guia de Acessibilidades: identificação de escada com poucos degraus.


Imagem 20. Guia de Acessibilidades: correto posicionamento de corrimões.
36

Imagem 21. Guia de Acessibilidades: área livre de circulação no espaço urbano.


deficiência visual. Isto não significa, no período Moderno que se adquiriu uma

B | Perceção Espacial e Habitar


entanto, que indivíduos com deficiên- preferência por soluções muito depura-
cia visual lhes fiquem indiferentes. Nas das, o que resulta em opções não muito
questões diretamente relacionadas com sensíveis a nível tátil. A utilização da li-
a deficiência visual, foram destacadas nha, enquanto aresta viva, ou do vértice
por Carlos Mourão Pereira [Anexo 4]13 al- poderá constituir um problema para to-
gumas medidas a considerar, umas que dos os elementos que se encontram ao
considera deverem ser implementadas nível do alcance corporal. Carlos Mou-
enquanto legislação, outras que surgem rão Pereira considera que o mobiliário
como sugestão: deve cumprir um caráter ergonómico,
de modo a adaptar-se ao corpo huma-
O arquiteto considera de elevada im-
no, que é boleado. “O mobiliário deve ser
portância a utilização de portas de cor-
uma extensão do próprio corpo”.
rer em todos os locais que assim o per-
mitam, de modo e a evitar situações de Os pontos destacados por Mourão Pe-
perigo. No caso do mesmo não ser pos- reira como sendo aqueles mais urgentes
sível, é referido que “a colocação da por- a ser repensados na habitação relacio-
ta deve ser feita, independentemente da nam-se com os expostos, no ponto se-
parede em que estiver, de modo a que, guinte, por parte dos indivíduos entre-
quando abra, fique paralela à parede ad- vistados, como sendo aqueles de maior
jacente quase sem espaço entre a porta dificuldade para uma utilização segura
e a parede”. Isto permite a libertação da do local onde vivem [B03 Resultados | O
porta enquanto obstáculo em espaços de habitar].
estar ou circulação.
Com a consciência de que estes temas
É, também, destacada a utilização de são já alvo de estudo a vários níveis, in-
degraus dentro da habitação. O arquite- cluindo os legislativos, considera-se im-
to menciona que existe tendência para portante a exposição das dificuldades e
a utilização de degraus com o propósi- sugestão de resolução da problemática,
to de criar espaços sensorialmente mais culminando nos pontos supra referidos.
ricos. No entanto, além da utilização de
No entanto, importa refletir: Existem
escadas “ser muito desconfortável para
muitas práticas que podem ajudar a mo-
determinadas pessoas, nomeadamente
vimentação de pessoas com deficiência
com o envelhecimento, a escada tam-
visual. Todavia, deve-se restringir toda a
bém representa um espaço de queda, de
arquitetura a essas práticas? Os capítu-
risco, de acidente, seja para crianças ou
los seguintes visam aprofundar o conhe-
para pessoas idosas”.
cimento e as dificuldades relacionadas
O design do mobiliário constitui, além com a questão levantada, permitindo a
do anteriormente mencionado, uma formação de uma opinião mais consis-
preocupação para o arquiteto. Desde o tente exposta no final da presente inves-
tigação [Reflexão].

13. Aconselha-se a leitura íntegra da entrevista realizada a Carlos Mourão Pereira por contemplar vários temas
arquitetónicos relevantes para o estudo em questão. A transcrição completa encontra-se disponível no Anexo 4.
37
B03 | APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO

A investigação apresentada trata a per- são pode estar, também, associada ao


ceção da arquitetura por parte de pes- envelhecimento (EBU), como anterior-
soas com deficiência visual. Deste modo, mente referido.
importa referir quais as características
A análise dos métodos de apropriação do
de destaque para o entendimento de um
espaço por parte de pessoas com defi-
espaço e os vários estímulos envolvidos.
ciência visual é feita através de uma in-
Referindo a conectividade entre o espa-
vestigação participativa. A arquitetura
ço arquitetónico e a multissensorialida-
participativa ganhou especial destaque
de, importa relembrar que este processo
no período Moderno. Em Portugal, este
de perceção é dependente da memória e
método é posto em prática no Processo
atenção de cada um. Estas desencadeiam
SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Lo-
diferentes reações cognitivas e transmi-
cal), com arquitetos como Fernando Tá-
tem diferentes recordações e modos de
vora, Alcino Soutinho e Álvaro Siza Vieira
apropriação a cada indivíduo.
(Romão, 2015).
O método empírico que guia esta parte
O processo participativo surge, nesta in-
da investigação explora o significado e
vestigação, como forma de compreender
as formas de experienciar o espaço para
dificuldades e preferências de espaços
pessoas com deficiência visual. São des-
para pessoas com deficiência visual. A
tacados os meios que permitem uma ex-
inclusão da opinião destes indivíduos no
periência quotidiana independente, bem
estudo da arquitetura permite descodifi-
como as características apreendidas de
car problemas e fomentar o pensamento
um espaço, por parte de indivíduos com
em busca de soluções - ou simplificações
deficiência visual. Com as premissas do
- para as dificuldades expostas (Elmansy,
design universal em consideração, pen-
2018). O conhecimento adquirido permi-
sa-se a habitação como um local seguro,
te que se construam espaços e práticas
privado e confortável para qualquer in-
que permitem que pessoas de diferente
divíduo. Questionam-se quais os fatores
origens entrem, experienciem e contri-
influentes para o bem estar na habitação
buam para a boa utilização do espaço ar-
para pessoas com deficiência visual, com
quitetónico (Strum et al, 2011).
a consciência que a degeneração da vi-
38
B | Perceção Espacial e Habitar
MÉTODO DE ANÁLISE EMPÍRICA
O caso de estudo baseia a análise em Condição de Visão dos indivíduos da amostra
entrevistas previamente planeadas [dis-
poníveis no Anexo 5]. A sua estrutura de
análise desenvolve-se em quatro tópi- Cegueira Baixa Visão
Adquirida 4
cos: a experiência sensorial, a experiên-
7
cia espacial, o habitar, e a sensibilização
da sociedade. As entrevistas foram rea-
lizadas individualmente, tanto em locais
físicos como por meios virtuais. Decor- Cegueira
reram entre o dia 20 de junho de 2022 Congénita
3
e o dia 3 de agosto de 2022, de acordo
com a disponibilidade dos participan-
tes. A duração das entrevistas varia entre
os trinta e um (31) minutos e os noventa
(90) minutos.
Distribuição etária dos indivíduos da amostra
A amostra é constituída por catorze (14)
indivíduos, dos quais oito (8) são do sexo 65-74 anos 15-24 anos
masculino e seis (6) são do sexo femi- 1 2
nino. As idades dos entrevistados estão 55-64 anos
2
compreendidas entre os dezassete (17) e
os setenta e dois (72) anos, sendo a mé-
dia de 39 anos. Entre as catorze (14) pes-
soas inquiridas, quatro (4) possuem baixa
45-54 anos 25-34 anos
visão e dez (10) enquadram-se na defi- 3 5
nição de cegueira. Dessas dez (10) com 35-44 anos
cegueira, três (3) são cegas congénitas e 1
sete (7) têm cegueira adquirida.
39
Os resultados seguidamente apresen- Por último, é tratada a sensibilização da
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

tados são consequência, única e exclu- sociedade. Expõe-se a opinião dos inqui-
sivamente, da informação retirada das ridos relativamente ao tratamento social
entrevistas realizadas. Nesse âmbito, consequente da deficiência visual e à
é debatida, em primeiro lugar, a expe- abordagem necessária para a busca por
riência sensorial dos indivíduos inqui- uma realidade mais inclusiva, a níveis so-
ridos no que toca aos estímulos que os ciais e arquitetónicos.
ajudam na perceção e orientação do es-
A investigação reflete os estudos reali-
paço. Este primeiro tópico, por sua vez,
zados sobre o envelhecimento seguro
integra a referência ao estímulo visual, à
em casa, acrescentando-lhes a noção
memória visual, ao tato, à acústica, à ci-
da deficiência visual. Deste modo, visa
nestesia e ao olfato.
compreender, não só, aquilo que define
De seguida, é abordada a experiência es- o conforto na habitação, mas também os
pacial relativamente a técnicas de mo- modos de perceção do espaço por parte
vimentação, criação de mapas mentais de pessoas com deficiência visual.
e referências que lhes estão associadas.
A referência aos entrevistados da expe-
Assim, a análise integra o modo como
riência empírica é realizada unicamente
os indivíduos inquiridos realizam a des-
através dos seus primeiros nomes, per-
crição de um espaço, as inseguranças e
mitindo que se mantenha o anonimato.
técnicas associadas à movimentação e a
construção do mapa mental.
Em terceiro lugar, é discutido o modo de
habitar. São discutidos tópicos relativos
à experiência de cada indivíduo na sua
habitação, nomeadamente no que toca a
alterações arquitetónicas ou obstáculos
sentidos na utilização dos espaços. São,
ainda, abordadas as definições de con-
forto, bem estar e beleza, e as suas asso-
ciações à habitação.
40
B | Perceção Espacial e Habitar
Categorização dos Resultados | Apropriação do Espaço

1 | A Experiência 2 | A Experiência
3 | O Habitar 4 | A Sensibilização
Sensorial Espacial

1.1 | O Estímulo 2.1 | As


3.1 | O Conforto
Visual Inseguranças

1.2 | A Memória 2.2 | As Técnicas de


3.2 | A Beleza
Visual Movimentação

1.3 | O Tato 2.3 | O Mapa Mental 1.3 | A Smart House

1.4 | O Espaço
1.4 | A Acústica
Exterior

1.5 | A Cinestesia

1.6 | O Olfato

1.7 | A Relação
entre o Tempo e a
Memória
41
RESULTADOS
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

1 | A EXPERIÊNCIA SENSORIAL
Como a deficiência visual diminui - ou
exclui, por completo - a utilização da
visão como sentido orientador, existem
outros estímulos que são aprofundados
e auxiliam na compreensão do espaço.
Alguns desses estímulos, como o tato
e a audição, podem transformar-se no
modo como influenciam a apreensão de
cada local.
Quando se analisa o modo como os indi-
víduos manifestam apreender o espaço,
importa elaborar uma grande distinção:
pessoas com baixa visão tendem a ser-
vir-se da pouca visão que têm para ex-
plorar o espaço, e as suas descrições são
maioritariamente baseadas em elemen-
tos visuais. Por outro lado, as pessoas
cegas destacam outros sentidos apro-
fundados de seguida.
Importa compreender, para esta análise,
como mencionado num capítulo anterior
[A02], que os cinco sentidos comumen-
te analisados têm dimensões que lhes
são complementares e variam perante a
classificação de cada autor. Para a aná-
lise seguidamente exposta, foram utili-
zados apenas os tópicos mencionados
pelos entrevistados, sendo estes a visão,
a memória, o tato, a acústica, a cineste-
sia, o olfato e a relação entre o tempo e
a memória.
42
1.1 | O ESTÍMULO VISUAL 1.2 | A MEMÓRIA VISUAL

B | Perceção Espacial e Habitar


É recorrente a referência à utilização da As pessoas com cegueira adquirida ma-
visão como principal sentido de orienta- nifestam reter memórias visuais. No en-
ção quando se trata de alguém com bai- tanto, são imagens estáticas presentes
xa visão. No entanto, é também exposto, do período que precedeu a cegueira.
por indivíduos que passaram por essa Os espaços vão-se alterando e, embora
fase e atingiram a cegueira, que “as pes- exista um esforço para alterar a imagem
soas que têm baixa visão sofrem muito que resiste na memória, esse objetivo é
mais que as pessoas cegas, porque es- raramente alcançado. Mas quanto de
tão sempre a acreditar no resíduo visual visual terá um espaço para um indiví-
que têm” [Paula, transcrição completa duo que cegou, mas já o viu? A resposta
das entrevistas presente no Anexo 5]. surge, a título de exemplo, na descrição
Os indivíduos nesta circunstância desta- de Paula perante a Avenida dos Comba-
cam as cores contrastantes como sendo tentes, em Viana do Castelo: “A Avenida,
o que mais os auxilia na compreensão para mim, é um misto, porque não con-
e orientação no espaço. Esse contras- sigo ter a imagem exata da avenida hoje
te permite-lhes identificar elementos - eu sei como são os passeios, como é a
como portas e transmite uma maior sen- rua, sei que não há carros, sei como são
sação de segurança na utilização do es- os lampiões… Mas também sei como era
paço. José destaca a cor amarela como a avenida antes e sobre essa eu tenho
sendo aquela mais distinguível dentro do imagem visual. Sobre a nova não tenho
campo visual que ainda possui. imagem visual”.
Por sua vez, os indivíduos cegos desta- Esta questão relaciona-se, também, com
cam, maioritariamente, a audição e o uma limitação na compreensão da pas-
tato para a apreensão de um local. No sagem do tempo, em termos visuais.
entanto, quando a cegueira inclui per- Retém-se uma imagem do mundo que
ceção luminosa ou distinção de vultos, deixa de corresponder à realidade, e a
estas continuam a ser ajudas visuais que adaptação dá-se pela integração de ou-
facilitam a compreensão. É também re- tras formas de memorizar. Quando in-
ferido por parte dos entrevistados com quiridos relativamente ao modo como
cegueira adquirida na idade adulta que se formam as memória, foram expostas
a descrição do local por parte de um duas opções: a tentativa de atribuir ca-
acompanhante normo-visual permi- ráter visual pela descrição das restan-
te que se crie uma imagem mental. As- tes pessoas presentes, como é o caso de
sim, ainda que não seja pelos estímulos Marta, que refere tentar associar tudo
a si dirigidos, estes indivíduos conse- que viu à nova realidade, e a dimensão de
guem ter uma perceção visual do espa- memória escura. Alguns indivíduos ten-
ço. No entanto, a recriação da imagem tam conectar as novas memórias àquilo
visual do espaço é menos mencionada que se recordam, nomeadamente no que
por indivíduos que não cegaram num toca à cor, mas outros afirmam que se
passado próximo, procurando menos cria “uma memória boa, mas uma me-
associações visuais. mória escura” [Carlos].
43
1.3 | O TATO 1.4 | A ACÚSTICA
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

A maioria dos entrevistados refere que, A audição é, a seguir ao tato, o sentido


quando possível, é feita uma análise mais mencionado pelos entrevistados
através do tato, com ou sem bengala. para auxiliar no reconhecimento de um
Isto permite descodificar os limites e os local. Alguns indivíduos têm a sensação
obstáculos, bem como as alterações ao de que os seus sistemas auditivos sofre-
nível do solo. A bengala branca funciona ram melhorias após perderem a visão,
como uma extensão do corpo, permitin- outros consideram apenas que a atenção
do a transmissão de informação através dedicada aos estímulos é maior. No en-
do tato e diminuindo o risco a que cada tanto, parece ser unânime a opinião de
indivíduo está submetido. Incorpora o que a acústica permite tirar inúmeras
ser senciente que caracteriza a realidade conclusões acerca de um espaço.
humana. A sua utilização, aliada às alte-
Um espaço amplo cria mais eco, en-
rações captadas pelos pés no percurso,
quanto um espaço estreito restringe a
permite um conhecimento instantâneo
propagação do som. A ocupação da en-
sobre as superfícies que circundam o
volvente pode, no entanto, comprometer
corpo, os espaços em que o mesmo se
esta perceção, tanto através de mobiliá-
movimenta. Esta atitude aparenta estar
rio como pela presença de pessoas. Na
intrínseca a cada um, fazendo parte das
ausência de qualquer estímulo auditivo,
suas ações do quotidiano de um modo
Maria afirma não conseguir seguir, se-
bastante natural.
quer, uma linha reta. Afirma emitir sons
Quando se analisa, por sua vez, o tato para descodificar a distância a que se
de modo direto, a ligação entre o corpo encontra dos obstáculos.
e o espaço nem sempre é tida como um
O modo como as ondas sonoras se mo-
método de reconhecimento fácil. Alguns
vimentam permite que se descodifique
dos entrevistados relatam uma difícil re-
a monotonia - ou diferença - de um es-
lação com o tato e, no caso da cegueira
paço, seja em configuração ou em mate-
adquirida, esta pode ser consequência
riais. Por exemplo, Paula refere distin-
do hábito visual de captar tudo através
guir um revestimento a madeira e uma
do olhar. Marta relata que, após cegar,
parede de betão através do sistema au-
viu-se obrigada a aprender a “lidar com
ditivo. No entanto, indivíduos que distin-
o tato” e a tocar em tudo, e que isso ain-
guem pontos de luz, manifestam prestar
da lhe causa algum incómodo. Por outro
menor atenção ao modo como os mate-
lado, é através do toque que se apreen-
riais refletem o som, porque servem-se
dem as características hápticas de um
da réstia de referência visual para com-
material ou objeto, ou seja, a sua sensibi-
preender o espaço.
lidade e conforto perante o toque.
44
1.5 | A CINESTESIA 1.6 | O OLFATO

B | Perceção Espacial e Habitar


A cinestesia também é destaca no modo O olfato contribui para sensações com-
como um indivíduo se relaciona com o plementares que, individualmente,
espaço. Alguns dos indivíduos entrevis- não se demonstram suficientes para a
tados retratam uma sensibilidade que apreensão do espaço. No entanto, é con-
lhes permite perceber que se aproxi- siderado um estímulo bastante fidedigno
mam de um obstáculo. Aliu refere-se a no que toca ao reconhecimento de es-
esta sensação como um “sexto sentido”. paço [Aliu], e bastante importante para a
Descreve-a como “um sentido de pre- distinção entre eles.
sença física que surge quando se tem
um obstáculo próximo”, mas que não
é visual. 1.7 | A RELAÇÃO ENTRE O TEMPO E A ME-
MÓRIA
Os entrevistados referem a união da au-
dição a este sentido, permitindo que seja A periodicidade com que um indivíduo
criado um referencial que tem o corpo com deficiência visual frequenta um es-
de cada indivíduo como ponto central, paço interfere, também, na sua perce-
e muitas das referências retidas são re- ção. Uma primeira análise não permite
lativas ao posicionamento do corpo, o nível de aprofundamento de um con-
num determinado momento. A título de junto de visitas, de modo que a própria
exemplo, imagine-se um espaço com perceção do espaço também se altera
uma janela aberta. O som proveniente do com o tempo. Esta realidade surge clara
exterior permite, não só, analisar a en- no exemplo dado por Marta: “Imagine-
volvente, como também compreender mos uma casa nova em que estou a viver.
a distância dessa abertura à pessoa que Ao fim de uma semana já vou ter outros
analisa o espaço. Deste modo, a pessoa estímulos (diferentes dos primeiros) que
serve-se destas referências e localiza o me vão fazer ter outra perceção comple-
posicionamento do seu corpo no espaço. tamente diferente do espaço e das suas
definições”. 45
2 | A EXPERIÊNCIA ESPACIAL
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

A Experiência Sensorial descrita pelos


participantes desta investigação, ante-
riormente apresentada, surge em relação
intrínseca com a Experiência Espacial a
que cada um está sujeito. Experienciar
o Espaço reflete-se na forma de intera-
ção entre o espaço e o indivíduo, do qual
resultam as técnicas de movimentação,
as inseguranças e a construção de um
mapa mental.
Após a exposição dos principais meios de
apreensão do espaço, importa destacar o
modo como os indivíduos o descrevem.
Regra geral, a primeira descrição do es-
paço surge de um ponto de vista bastan-
te relacionado com os limites. Primeiro,
é mencionada a configuração dos limites
do local e o posicionamento das portas
e janelas. De seguida é feita, habitual-
mente, uma análise de caráter funcional:
a disposição de alguma mobília. Apenas
alguns indivíduos mencionam as ques-
tões materiais e a sensação de amplitude
do espaço.
Tendo em consideração as descrições
realizadas pelos indivíduos entrevista-
dos e os seus relatos de experienciação
do espaço, apresentam-se as técnicas
de movimentação dos indivíduos e ex-
põem-se as maiores inseguranças senti-
das, tanto a nível habitacional quanto no
espaço exterior ou coletivo. Surge, tam-
bém, a construção do mapa mental por
parte de pessoas com deficiência visual,
e o que o mesmo significa para a sua ex-
periência do espaço.
46
2.1 | AS INSEGURANÇAS 2.2 | AS TÉCNICAS DE MOVIMENTAÇÃO

B | Perceção Espacial e Habitar


As entrevistas realizadas evidenciam que Os indivíduos com deficiência visual po-
a deficiência visual desencadeia inúme- dem servir-se de três principais modos
ras inseguranças associadas, não só, ao de orientação, como referido anterior-
movimento, como também à descrimi- mente [A01]. A pessoa com deficiência
nação social. Uma das primeiras ques- visual pode ser guiada por outra pessoa,
tões importantes de abordar é a relu- utilizar uma bengala branca ou recorrer
tância de pessoas com deficiência visual a um cão guia. Existem, ainda, aplicações
- maioritariamente com baixa visão - re- para o telemóvel, como a Lazarillo [Mar-
lativamente ao uso de dispositivos que ta] que descrevem o espaço e auxiliam
ajudam à sua movimentação. É referida no movimento.
uma preferência por andar acompanha-
Nos espaços que estão a frequentar pela
dos em locais aos quais vão pela primei-
primeira vez, as pessoas com deficiência
ra vez, causando uma grande limitação à
visual tendem a fazer uma análise mais
independência.
demorada, muitas vezes acompanhadas
Por sua vez, também o silêncio pode ser por indivíduos normo-visuais que des-
desencadeador de ansiedade. A falta de crevem o local, permitindo que a socie-
controlo visual é, por si só, um fator des- dade tenha um papel ativo na compreen-
concertante. A ausência de estímulos são do espaço. Muitas vezes, as pessoas
visuais e auditivos, em simultâneo, reti- cegas pedem indicações para percorrer
ra grande parte da capacidade de com- os espaços, e com algumas palavras con-
preensão da envolvente, contribuindo seguem reencontrar o seu percurso sem
para situações de desconforto. Leonardo dificuldade.
acentua este pensamento referindo que
Utilizando a bengala, existem dois mé-
“num espaço vazio há a ideia do horror
todos destacados: o método dos dois
ao desconhecido”.
toques e o método de arrastamento.
Do mesmo modo que a ausência de som Ambos antecipam o movimento do pé,
pode criar conflitos na compreensão do precavendo o embate em obstáculos.
espaço, também o excesso de estímulos Estas técnicas permitem que as pessoas
auditivos pode originar uma sensação de se movimentem, mas manifestam pou-
desorientação. Alguns indivíduos limi- co relativamente à orientação. Uma vez
tam a sua movimentação nesses casos, que os trajetos exatos que cada indivíduo
outros encaram a dificuldade como um quer percorrer não podem ser traçados
desafio. Marta afirma seguir o som “de no solo, são as referências memoriza-
qualquer modo”, mesmo que a oriente das que permitem uma movimentação
para locais errados, até encontrar o que independente.
procura. Afirma, no entanto, que “para
Leonardo confronta a ideia pré conce-
alguém mais ansioso, que não tenha tan-
bida de que as pessoas com deficiência
ta confiança, esses estímulos podem ser
visual têm tendência a gostar de “tudo
mais desorientadores”.
47
liso e sem degraus”, tanto a nível interior 2.3 | O MAPA MENTAL
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

quanto exterior, explicando que, nes-


Os entrevistados referem que, muitas
sas circunstâncias, se torna muito difícil
vezes, a orientação é parcialmente pro-
reter referências. São as alterações no
porcionada pela memória. É através de
espaço público, nos espaços coletivos
pontos de referência sucessivos que se
ou na habitação que permitem identifi-
cria um mapa mental. Enquanto uma
car os espaços, bem como distingui-los
primeira visita a um local requer que seja
entre si. Num local sem pontos de refe-
feito o reconhecimento do mesmo, a re-
rência, torna-se difícil que uma pessoa
corrência da visita permite que a memó-
com deficiência visual se oriente. Deste
ria desempenhe um papel importante na
modo, também é importante prever a in-
compreensão do espaço.
clusão da diferença, mesmo quando se
pensa um espaço amplo e desimpedido. Um trajeto recorrente tem tendência a
Orientando-se com um cão guia, o pro- tornar-se inconsciente. Quando as me-
cesso de orientação é o mesmo, através mórias desse trajeto têm referências
de pontos de referência. No entanto, o tanto visuais quanto de outros sentidos,
processo de análise do espaço é menos os entrevistados referem ser comum
pormenorizado, uma vez que o cão toma deixar de se distinguir, ao certo, o que
muitas das decisões de mobilidade. os guia. Torna-se, também, difícil para
a pessoa diferenciar os estímulos mais
As referências anteriormente mencio-
orientadores, uma vez que o percurso é
nadas podem ter caráter tátil, olfativo,
um somatório de referências de vários
visual ou acústico, dependendo da cir-
períodos de tempo.
cunstância. Movimentando-se na rua,
é bastante comum que os sons sejam Por sua vez, cegos congénitos definem
pontos de referência. Marta refere que, os mapas mentais que criam como uma
na busca pelo minimercado, procura “os ligação de “pontos de referência por
barulhos das caixas registadoras”. etapas” [Maria]. Embora não exista uma
imagem, e não seja possível idealizarem
Em espaços interiores que frequentam
um trajeto desenhado, afirmam-se capa-
regularmente, como é o caso da própria
zes de desenhar o trajeto com um lápis,
habitação, os inquiridos referem que não
resultando, para os normo-visuais, numa
utilizam qualquer ferramenta de apoio à
referência visual. Relativamente aos lo-
movimentação. É o reconhecimento do
cais que se recordam, a ligação entre
próprio espaço que lhes permite me-
espaços é descrita em modo de trajeto.
morizar os percursos, e as distâncias a
Maria afirma que se lembra da escola que
percorrer tornam-se inconscientes. O
frequentou no ensino secundário. Clari-
corpo adapta-se ao espaço. No entanto,
fica, no entanto, que isso significa que se
como técnica de defesa, foi referida a
recorda do percurso entre espaços.
colocação de um dos braços em posição
de “meia lua à frente do peito” [Leonar- Quando inquiridos relativamente aos
do] de modo à mão servir de amortece- trajetos do quotidiano, os indivíduos
dor no caso de embate. costumam referir que não é algo em que
48
pensem ativamente. No entanto, ana- Em locais menos frequentados, os obs-

B | Perceção Espacial e Habitar


lisando profundamente os seus traje- táculos e os elementos adaptados são
tos nos espaços, sentem-se capazes de aqueles que mais se destacam na me-
descrever o percurso - assim se define, mória do trajeto. Uns, porque colocam o
então, o mapa mental. Carlos refere que indivíduo numa situação de dificuldade,
não se preocupa em pensar num mapa outros porque facilitam o percurso.
ou saber o que tem de fazer a seguir,
porque “o movimento acontece de forma
espontânea”.
Todavia, existe quem o faça à priori. Co-
nhecendo um novo edifício, alguns dos
entrevistados afirmam tentar criar, des-
de início, uma relação entre espaços,
conectando-os. Deste modo, ainda que
a perceção do espaço seja pouco apro-
fundada, é-lhes permitido ter uma com-
preensão geral do espaço que, mais tar-
de, complementam. “A questão tátil, a
pouca perceção visual e a perceção es-
pacial construída” [Marta] são alguns dos
elementos destacados no modo como se
constrói o mapa do espaço por alguém
com deficiência visual.
“Quando penso em detalhes da cozinha,
penso na janela, que está ao fundo da
cozinha, mas penso também na textu-
ra dos azulejos e na textura da bancada.
Ao mesmo tempo, se me focar, consigo
imaginar a cozinha toda e uma perceção
meio física que os armários da cozinha
estão um pouco acima da minha cabeça”
[Marta]. Existem vários elementos, na
habitação, que contribuem para a orien-
tação no espaço, e essas referências in-
tegram o mapa que se forma sobre o es-
paço. As referências táteis, sobretudo ao
nível do chão, são bastante esclarecedo-
ras para quem se movimenta no espaço,
seja pela distinção de materiais ou uma
simples utilização de carpetes.
49
3 | O HABITAR
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

Habitar deve ser considerado tanto no assinalam-nos como problemas que a


seu sentido prático, quanto no simbó- arquitetura pode vir a resolver.
lico. De um modo geral, os indivíduos
Deste modo, são aprofundadas as noções
entrevistados consideram o local onde
de conforto e beleza, expondo as pre-
moram conveniente para as suas condi-
ferências generalizadas dos indivíduos
ções de deficiência visual. No entanto,
entrevistados. Entre o conteúdo retira-
existe o reconhecimento de que o cor-
do das entrevistas, o espaço exterior e o
po tem de se adaptar ao espaço de um
conceito de Smart House destacaram-se
modo diferente. Inquirido relativamente
surgindo, portanto, duas categorias de-
à necessidade de fazer alterações na ha-
dicadas a estas temáticas.
bitação após a perda de visão, Leonardo
manifestou não ter sentido necessidade
de fazer as realizar, mas expôs que teve
de voltar a conhecer os espaços.
A totalidade dos entrevistados refere
que o modo como uma pessoa com de-
ficiência visual se movimenta na própria
habitação é intuitivo, ultrapassando com
pouca dificuldade o período de adapta-
ção. Nenhum entrevistado afirmou ter
sentido necessidade de alterar o local
onde mora devido à deficiência visual.
Alguns indivíduos referem, ainda, que
preferem ter uma organização na habi-
tação que se relacione com aquilo que
consideram mais estético, ao invés de
tentar tornar o espaço mais adaptado ou
acessível [Paula].
No entanto, existem alguns elementos
que são considerados pontos de perigo
desnecessários, identificados maiorita-
riamente em questões como portas de
batente - especialmente nas cozinhas -,
degraus e objetos de mobiliário. Os indi-
víduos entrevistados manifestam o des-
conforto sentido com estes elementos
em circunstâncias do seu quotidiano, e
50
3.1 | O CONFORTO

B | Perceção Espacial e Habitar


A noção de conforto é consequente dos referidas memórias olfativas, sonoras,
modos de habitar de cada indivíduo en- táteis ou derivadas do paladar. Maria re-
trevistado. No entanto, generaliza-se na fere não fazer esta distinção consciente-
equiparação à segurança. Um espaço em mente. No entanto, menciona o “cheiro a
que uma pessoa com deficiência visual se canela e o calor” como o que a faz sentir
sinta confortável corresponde, por nor- conforto no inverno, e “a praia e o mar”
ma, a um espaço que conheça bem ou a no verão.
um local onde seja fácil orientar-se. Esta
ideia requere locais amplos e desimpedi-
dos, como refere Aliu. Aliu associa o de-
simpedimento do espaço e a ausência de
obstáculos à liberdade - seja ela liberda-
de de movimento ou de pensamento.
Os entrevistados que têm baixa visão ou
perceção luminosa associam a abundân-
cia de luz em pontos isolados aos locais
que gostam de frequentar, por lhes atri-
buir um maior número de referências e
por transmitir uma sensação de leveza.
No entanto, mesmo na ausência de per-
ceção luminosa, o gosto pela existência
de janelas é referido pela vontade de
contacto com o ar exterior através de
bons meios de ventilação. Marta refe-
re que, desde que perdeu a visão, sente
a necessidade de “sentir o ar” de forma
acrescida. São poucos os indivíduos que
referem associar conforto a materiais.
No entanto, os que o fazem ressaltam a
madeira como sendo o que os faz sen-
tir mais aconchegados, tanto a nível tátil
quanto acústico.
De um ponto de vista mais sensitivo, o
conforto é, também, associado a me-
mórias positivas por parte de uma das
pessoas entrevistas. Estas memórias po-
dem envolver qualquer estímulo, sendo
51
3.2 | A BELEZA
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

O conceito de beleza surge de forma di- Embora até aqui a opinião da amostra
versificada entre a amostra de pessoas seja relativamente coincidente, em des-
inquiridas. Parecem reagir à palavra com crições práticas as opiniões divergem.
alguma relutância inicial, classificam-na Muitos dos que viram anteriormente
como difícil ou complicada. Gabriel ma- manifestam preocupação pela aparên-
nifesta, até, considerar ousado utilizá-la cia visual de um espaço - não porque o
na ausência de visão. No entanto, todos veem, mas porque cultivam a imaginação
manifestam as suas preferências, ainda com a imagem que tentam criar, tanto
que de modo muito distinto. pela sua perceção como pela descrição
de terceiros. Assim, os entrevistados que
É curioso que, mesmo com ausência de
retêm fortes memórias visuais associam
visão desde o nascimento, Maria associa
texturas, materiais e descrições a perce-
a beleza a um jardim com muitas flores
ções visuais que recordam, optando por
e cores. Sabe-se, pela sua condição, que
descrições mais completas do que, para
esta noção estética parte de uma cons-
eles, é a beleza. Manifestam preocupa-
trução social do que se caracteriza como
ção pelo desenho do pormenor e pela in-
belo, uma ideia da qual o cérebro se
clusão de elementos distintivos.
apropria, mas pode também estar asso-
ciada a memórias positivas que tenham Em contrapartida, verifica-se que aque-
acontecido em locais como o anterior- les que nunca viram ou perderam a visão
mente descrito. mais cedo têm maior facilidade em des-
pegar-se das noções de estética. Pre-
Perante a diminuição na acuidade da vi-
ferem um desenho quase “hospitalar”
são e quando associada à arquitetura, a
[Maria], com o espaço desimpedido e os
noção de beleza dissocia-se de uma no-
acabamentos lisos e claros, completa-
ção estética isolada e incorpora um cam-
mente associado a um uso apenas utili-
po vasto conjunto de valores multissen-
tário.
soriais. No entanto, parece ser definida
pela maioria dos entrevistados como Por sua vez, indivíduos com baixa visão
algo que combina conforto e organiza- destacam como grande ponto de re-
ção. Surge, nesta sequência, a corres- levância para a beleza de um espaço, o
pondência entre beleza e harmonia. Co- mesmo que destacavam para o conforto:
nhecer um espaço, ouvir uma descrição a presença abundante de luz natural.
e pensar “faz todo o sentido, não trocava
nada aqui” [Marta]. Cria-se uma noção
que compila inúmeras experiências sen-
soriais e permite uma opinião coesa so-
bre um espaço.
52
3.3 | A SMART HOUSE 3.4 | O ESPAÇO EXTERIOR

B | Perceção Espacial e Habitar


Na sequência da discussão de elementos Durante as entrevistas realizadas, foram
que possam auxiliar o bom aproveita- destacados alguns elementos de elevada
mento da habitação, o conceito de Smart importância na habitação, como referido
House surge entre alguns dos membros anteriormente. O questionário termina-
da amostra entrevistada. Manifestam va com a questão: Se pudesse desenhar,
desconforto perante os equipamentos agora, a sua casa de sonho, o que não
táteis sem controlo de voz e alguma re- poderia faltar?
lutância na sua utilização de modo segu-
Entre os catorze entrevistados, dez
ro. Quando questionado relativamente à
mencionaram o espaço exterior como
sua casa de sonho, José salienta a vonta-
algo imprescindível nas suas habitações
de de ter uma “casa futurista”, que define
ideais. Foi apresentada a necessidade de
como sendo uma casa que obedece a co-
“sentir que em cima da cabeça não está
mandos de voz.
nada além do céu” [Leonardo]. Esta no-
ção vem associada a uma sensação de
liberdade consequente de sentir a natu-
reza a incidir no corpo.
Também a necessidade de percecionar
as condições meteorológicas se relaciona
com a recomendação em questão, uma
vez que, na ausência de visão, apenas a
sensação térmica e luminosa, quando
existente, permitem a apreensão das ca-
racterísticas da condição atmosférica.
O espaço exterior está associado a várias
atividades e necessidades inerentes ao
ser humano e, embora a justificação di-
versificasse entre os indivíduos entrevis-
tados, a sua consideração foi fortemente
mencionada.
53
4 | A SENSIBILIZAÇÃO
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

Sensibilizar a população é uma “missão” que interagem, mas revelam não ser co-
[Marta] que alguns dos entrevistados se mum verem essa preocupação presente.
veem no papel de cumprir. Participando Marta questionou a existência de uma
ativamente na sociedade com a vontade unidade curricular relativa a acessibili-
de informar, foi também como conse- dade nas faculdades associadas ao tema,
quência deste pensamento que se dispo- sugerindo o seu fortalecimento. Acredita
nibilizaram para integrar a investigação que o contacto com estas dificuldades
exposta. Enquanto uns consideram que durante o percurso académico sensibi-
os círculos sociais que os rodeiam estão liza os estudantes para a futura prática,
conscientes e preparados para lidar com e menciona que, muitas vezes, pequenas
uma pessoa com deficiência visual, ou- situações seriam fáceis de simular como,
tros notam, ainda, claras falhas nas for- por exemplo, colocar uma pessoa numa
mas de tratamento e oportunidades dis- cadeira de rodas, ou vendar alguém e
poníveis para alguém com visão reduzida deixar que se movimente num edifício.
ou inexistente.
A sensibilização vem, também, associa-
O conceito de inclusão é referido não da ao modo como um dos entrevistados
apenas socialmente, mas também no que interpreta a revisão da legislação. Paula
toca à arquitetura, no campo das acessi- reforça a necessidade da sensibilização
bilidades. Os entrevistados que mencio- anteceder as possíveis medidas legisla-
nam a questão, referem que sentem que, tivas uma vez que, constituindo mudan-
muitas vezes, os obstáculos arquitetóni- ças abruptas ou sem explicação, poderão
cos e urbanísticos com que se confron- ser mal acolhidas pelos profissionais de
tam parecem consequência da falta de arquitetura e construção. É, também, re-
contacto e conhecimento relativamente ferido o facto de, muitas vezes, a legis-
à deficiência visual. Acreditam que o pro- lação colidir entre si, reconhecendo que
blema se generalize para outras condi- nem sempre é possível cumprir todas
ções físicas, embora reconheçam que, ao as normas. Nesta sequência, conside-
longo dos anos, tem sido feito um per- ra que a mudança da mentalidade deve
curso positivo na adaptação dos espaços anteceder a imposição de regras, e que
a pessoas com diferentes possibilidades isso se faz através de formação e partilha
de utilização, especialmente em questões de informação.
relacionadas com a mobilidade reduzida.
No decorrer das entrevistas, manifesta-
ram interesse na dinamização de infor-
mação junto a profissionais de arquite-
tura, construção, ou outras áreas que
impactem nos espaços construídos com
54
DISCUSSÃO E CONCLUSÕES

B | Perceção Espacial e Habitar


A exposição anterior revela dimensões no espaço. O recurso a cores contras-
tanto sensitivas quanto objetivas em tor- tantes permite, assim, que pessoas nes-
no da experiência no espaço e na habita- sa circunstância possuam maior número
ção. Destas, destacam-se o controlo do de referências visuais (Abouebeid, 2019).
espaço pessoal, o conforto e as memó- Importa, no entanto, ter em considera-
rias que contribuem para uma forte liga- ção que nem sempre a “correspondência
ção entre o indivíduo e o espaço. entre o espaço físico e o espaço visual”
é exata, uma vez que a perceção visual
As qualidades sensitivas de um espaço
pode causar a distorção de distâncias
afetam os indivíduos que o frequentam
e formas (Loomis, 2003, p.2; Müsseler,
“a nível social, emocional e cognitivo”
2004, p.6).
(Spence, 2020, p.5), estando estas depen-
dentes de uma natureza multissensorial Quando se trata de cegueira com per-
no campo da perceção, conectando estí- ceção luminosa ou vultos, a perceção é
mulos variados em reações mentais que altamente influenciada pela luz, deven-
interagem entre si, ainda que de forma do, portanto, serem estudados meios de
inconsciente. O estudo da relação en- utilização da mesma com qualidade sen-
tre o conhecimento científico relativo sitiva (Spence, 2020). Relativamente ao
à multissensorialidade e as suas conse- modo como as memórias visuais se alte-
quências na apreensão da arquitetura é, ram com o tempo, John Hull (1935-2015)
atualmente, alvo de estudo pela Acade- relata que as suas memórias se desva-
mia de Neurociência para Arquitetura, neceram e deram origem a novas, que
na Califórnia, Estados Unidos da Amé- se relacionavam com aquilo que o seu
rica, possibilitando o aprofundamento corpo, enquanto pessoa cega, teria ex-
da investigação para arquitetos (ANFA, perienciado (Vermeersch, 2013). Assim,
2022). verifica-se a influência temporal na per-
ceção do espaço por cegos adquiridos.
A análise do espaço dá-se, por aqueles
que têm visão, maioritariamente através Um dos motivos de maior inseguran-
deste sentido. Como referido anterior- ça relativa à mobilidade de alguém com
mente [A02], a neurociência explica-o deficiência visual é consequente de uma
por existir uma parte do cérebro dedi- grande diferença entre o sistema visual
cada ao processamento da visão bas- e o sistema háptico, que é a escala a que
tante superior ao que acontece com os podem ser acedidos, levando a que o in-
restantes sentidos (Gallace, Ngo, Sulai- divíduo sinta “desconforto em relação
tis & Spence, 2012). Deste modo, parece ao posicionamento e uso dos equipa-
natural que indivíduos com baixa visão mentos e objetos” (Santos, 2015, p.5). “A
tendam a servir-se da pouca visão que exploração háptica está limitada ao que
possuem para se movimentar e orientar se encontra à distância do corpo e suas
55
extensões” (Herssens, 2012, p.2) - como irreconhecível pelo indivíduo que nela
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

é o caso da utilização da bengala branca habita, exceto quando regressa de um


-, enquanto a perceção visual se revela longo período fora da mesma (Spence,
muito mais extensa (Vermeersch, 2013). 2020).
Este é um dos motivos de maior inse-
A construção mental de um lugar é mar-
gurança relativa à mobilidade de alguém
cada pelas interações, estímulos e rea-
com deficiência visual, por sentir “des-
ções com que cada pessoa é confronta-
conforto em relação ao posicionamento
da, como anteriormente referido [Tema
e uso dos equipamentos e objetos”.
| Objeto] e a consciência acerca do mes-
Por sua vez, o modo como o som se pro- mo altera-se com o passar do tempo
paga permite um alcance bastante su- (Herssens, 2012). O conhecimento pro-
perior ao alcance visual, devido à sua fundo de um local, nomeadamente da
omni-direcionalidade [ACAPO, trans- habitação, permite que cada indivíduo
crição completa da entrevista presente se adapte ao mesmo, mas a perceção de
no Anexo 2]. O som permite o reconhe- cada local torna-se tanto mais subjetiva
cimento de um espaço, uma habitação, quanto mais tempo o indivíduo dispuser
sem mobília e inabitada pela crueza da no mesmo. Assim, a perceção mental que
propagação do mesmo, em oposição ao se cria de um espaço é, também, conse-
modo como a mesma se dá num espaço quente da manipulação das informações
preenchido e habitado, com inúmeras su- naturalmente realizada pela interpreta-
perfícies e materiais distintos. Espaços ção cerebral (Bustos & Fefrizzi, 2004). A
com eco elevado não transmitem sensa- análise qualitativa indica que todos os
ções de conforto devido à amplitude de indivíduos entrevistados consideram o
espaço desocupado (Abouebeid, 2019). local onde moram conveniente para as
Carlos Mourão Pereira [Anexo 4] refere suas condições de deficiência visual. A
considerar “extremamente importante a adaptação da pessoa ao espaço intensi-
acústica dos espaços, devendo procurar fica o caráter pessoal e social de inde-
que estes tenham pouco ruído e que pos- pendência, distanciando o indivíduo da
sam integrar sons da natureza”, associan- necessidade de alterar a sua habitação
do estas noções ao conforto e bem estar. (Sixsmith & Sixsmith, 2008).
A perceção olfativa destaca-se a nível A utilização de elementos adaptados es-
sensorial através de análises empíricas. pecificamente à deficiência visual na ha-
No entanto, quando os intervenientes bitação parece trazer alguma relutância
são questionados relativamente à in- por parte dos indivíduos com deficiên-
fluência do odor nas suas decisões - de cia visual, especialmente se estas ques-
percurso, segurança ou compra -, ne- tões se associarem ao envelhecimento. A
gam que esta ocorra. A própria sensa- consideração deste facto é consequente
ção olfativa que se associa à habitação é do sentido simbólico da habitação, em
56
que, enquanto espaço seguro, os utiliza- térmica mais amena, recorrendo à ma-

B | Perceção Espacial e Habitar


dores resistem à sua alteração. A noção deira como sinal de conforto, pode rela-
de Design Universal anteriormente ex- cionar-se com a temperatura procurada
posta [B01] promove a criação de “am- manter “pela maioria das pessoas, cor-
bientes acessíveis e participação social respondente ao intervalo entre 17-23ºC”
através de design inclusivo, ao invés de o (Spence, 2020, p.5).
fazer através de design exclusivo que ro-
O espaço exterior é um elemento desta-
tula e estigmatiza indivíduos com inca-
cado na discussão sobre boas condições
pacidade e idosos” (Sixsmith & Sixsmith,
de habitação. “O jardim é um espaço
2008, p.9).
multissensorial” e arquitetos como Marc
A segurança é, também, regularmente Treib (1943) refletem a preocupação da
associada por pessoas com deficiência inserção de elementos multissensoriais,
visual às noções de conforto e beleza. como os possibilitados pelo espaço ex-
No entanto, segurança pode classificar- terior, na habitação (Spence, 2020, p.14).
-se como o conhecimento de um espaço Considerando a arquitetura uma exten-
devido à sua utilização frequente [Carlos são da natureza para o domínio do ho-
Mourão Pereira, Anexo 4]. A referência a mem, a sua inserção no pensamento de
materiais e texturas podem ser conse- espaços de permanência torna-se im-
quentes do papel que os mesmos desem- perativa, tanto em espaços exteriores
penham na memória de cada indivíduo quanto interiores.
(Abouebeid, 2019). No entanto, também
as condições hápticas do material se
destacam nas sensações que o mesmo
transmite, tanto a nível de temperatura,
densidade, permeabilidade, reflexão da
luz e elasticidade (Herssens, 2012).
A temperatura tem especial destaque
nesta apreensão. A nível material, é a con-
dutividade e a radiação do mesmo que
interferem na temperatura. Por exemplo,
a sensação térmica da madeira trans-
mite calor, enquanto que uma superfí-
cie metálica é mais provável transmitir
uma temperatura inferior. Também a luz
tem especial importância na experiência
háptica, tendo em consideração a sua in-
fluência na subida de temperatura (Her-
ssens, 2012). A preferência pela sensação
57
A dupla de arquitetos Penezić e Rogina ar, cuja fluência se transformava em di-
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

elaborou, em 2001, um projeto intitulado ferentes condições acústicas e térmicas


Glass House. Projetado com a premissa nas suas paredes. “O sistema era coor-
“desde uma civilização visual para uma denado por um microprocessador que
cultura audio-tátil” (Tokio Works, 2001), transformava sensações do Mundo da
foi pensado para uma pessoa cega. Os Luz e Sombra na morfologia do Mundo
meios que suportavam a dinâmica da da Escuridão” (Tokio Works, 2001), refe-
instalação eram correntes de água e de rem os autores.
58

Imagens 22. 23. Glass House, Pezenić e Rogina.


Esta instalação, como outros projetos,

B | Perceção Espacial e Habitar


atividades ou publicações, surge com a
intenção de consciencializar as pessoas
para a deficiência visual e a sua relação
com a arquitetura, destacando as possi-
bilidades multissensoriais da mesma.
Os indivíduos entrevistados lutam por
esta sensibilização, numa procura por
uma sociedade e arquitetura mais inclu-
sivas. Entre muitas das palavras referi-
das, destacam-se as de Carlos [Anexo 5]
sobre o papel dos arquitetos:

Vocês são o futuro. Podem perfeitamente colaborar no sentido da integração.


59
C | PERCURSO ÀS ESCURAS

61
Apoiando-se nos alicerces erguidos nos
momentos precedentes da investiga-
ção, o presente capítulo expõe o con-
texto do role playing e a sua aplicação
numa atividade realizada no âmbito des-
ta investigação. Desde as vantagens às
suas limitações, este método é discuti-
do, primeiramente, com bases teóricas
e, depois, através das consequências da
atividade. Nesta atividade, pessoas nor-
mo-visuais são confrontadas com a rea-
lidade da cegueira, numa ação de cons-
ciencialização e esclarecimento. Surge,
assim, uma aproximação ao modo como
a arquitetura é apreendida num contex-
to não visual. São evidenciadas lacunas e
dificuldades, visando possíveis sugestões
para estudos futuros.
62
C01 | ROLE PLAYING

A atual prática arquitetónica já não se Foi a designer Patricia Moore (1952) quem
foca exclusivamente num homem nor- pôs em prática, entre 1979 e 1982, uma das
mal: jovem, saudável e de estatura mé- primeiras experiências de role playing.
dia, um ser humano abstrato que “estaria Numa tentativa de confrontar as impli-
sempre apto a entender novos produ- cações do envelhecimento, Moore criou
tos, dificilmente sucumbiria ao cansaço uma investigação empírica que pôs em
e não seria propenso ao erro” (Araújo, prática na primeira pessoa. Restringiu as
2017, p.128). No entanto, existem ainda articulações, limitou a capacidade auditi-
minorias que enfrentam dificuldades no va e obstruiu a visão, além de se disfarçar
confronto com o construído, como ante- de uma mulher idosa. Visitou, nestas cir-
riormente referido [B01], e alguns desses cunstâncias, mais de 200 cidades entre os
obstáculos são consequentes do natural Estados Unidos e o Canadá, confrontando
envelhecimento do corpo. o modo como se deslocava com as limita-
ções sociais e construídas (Moore, 1985).
Apenas na década de 1970 é que arqui-
tetos e designers começaram a explorar Este exemplo resume, assim, o modo
a prática do role playing, numa busca de como surge a prática referida, numa luta
um conhecimento empírico sobre as di- pela sensibilização ou aproximação à
ficuldades de relacionamento entre indi- problemática da acessibilidade, onde os
víduos com limitações ou incapacidades intervenientes são convidados a experi-
e o espaço construído que os envolve mentar situações de incapacidade. Por
(Araújo, 2017). norma, os resultados obtidos são “claros
na compreensão dos impactos que as
eventuais soluções de projeto têm en-
quanto elementos promotores de aces-
sibilidade e qualidade de vida” (Simões &
Bispo, 2006, p.20).
63
Não devem ser descartadas, no entanto,
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

as limitações deste método. A experiência


da incapacidade nunca pode ser simulada
na sua totalidade. Por um lado, porque o
período de tempo a que alguém se sub-
mete à experiência não é muito longo e
raramente se experiencia a condição so-
cial em que os indivíduos portadores da
deficiência se inserem. Por outro lado,
também a ausência de um período lon-
go de tempo invalida que a pessoa sujeita
à experiência se adapte à realidade que
está a simular, podendo possuir, por-
tanto, dificuldades acrescidas com a cir-
cunstância (Simões & Bispo, 2006).
64
C02 | PERCURSO ÀS ESCURAS: ATIVIDADE EXPERIMENTAL

Partindo das condições e vontades ex- Porto, à IRIS Inclusiva e ao mais recen-
postas nos capítulos anteriores, nomea- te contacto com a ACAPO - Delegação
damente pela “missão” [Marta, Anexo 5] de Viana do Castelo, sempre foi referido
descrita pelos entrevistados de sensibili- que transmitir informação relativamente
zação da sociedade e pelas dificuldades às dificuldades sentidas por indivíduos
com que se confrontam no seu quoti- com deficiência visual aos arquitetos se-
diano, surge a vontade de sensibilizar ria uma mais valia para pensar o futuro
os estudantes de arquitetura para as di- da cidade e dos modos de habitar. Isabel
ficuldades sentidas por indivíduos com Barciela reforça essa ideia ao explicar
deficiência visual na sua relação com o que o foque em arquitetos em formação
construído. é proveitoso por impactar os seus pen-
samentos num momento em que ain-
Os indivíduos com deficiência visual en-
da estão a ser moldados [IRIS Inclusiva,
trevistados referem, como anteriormen-
transcrição completa da entrevista pre-
te exposto [B03 Resultados | Sensibiliza-
sente no Anexo 3]14.
ção], que os obstáculos arquitetónicos
e urbanísticos com que se confrontam Apropriando-me das palavras de Carlos
parecem consequência da falta de con- anteriormente expostas [B03] e tendo-as
tacto e conhecimento relativamente à como base para o exercício posterior-
deficiência visual. É referido que o con- mente apresentado, é importante referir
fronto com estas dificuldades durante o que nós, entre tantos outros, somos o fu-
percurso académico poderá sensibilizar turo. Enquanto futuros arquitetos, surge
os estudantes para a futura prática, jus- o dever de colaborar no sentido da inte-
tificando a implementação de atividades gração.
que o possibilitem.
Também as entidades e associações re-
lacionadas com a deficiência visual ex-
põe essa preocupação. Desde o primeiro
contacto com a ACAPO - Delegação do

14. Aconselha-se a leitura íntegra da entrevista realizada a Isabel Barciela, da IRIS Inclusiva, por contemplar vários temas
65

relevantes para a sensibilização social. A transcrição completa encontra-se disponível no Anexo 3.


Como tal, esta investigação inclui uma
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

prática de role playing da condição de


cegueira como método de confrontar os
estudantes de arquitetura às dificulda-
des sentidas pelos indivíduos com defi-
ciência visual na sua relação com a ar-
quitetura e o urbanismo.
Com a consciência das limitações an-
teriormente referidas [C01], nomea-
damente o curto espaço de tempo da
experiência e a inexistência de adap-
tação por parte dos estudantes ex-
postos à circunstância de cegueira,
esta atividade deve ser encarada como
uma ferramenta de sensibilização e de
consciencialização da problemática
da acessibilidade.
Objetivou-se consciencializar os futuros
arquitetos para a degeneração da visão
associada ao envelhecimento, submeter
os participantes à dificuldade da perce-
ção do espaço em condição de cegueira
e expô-los aos obstáculos e dificuldades
comuns na mobilidade das pessoas com
deficiência visual.
66
MÉTODO DE REALIZAÇÃO DO “PERCURSO

C | Percurso às Escuras
ÀS ESCURAS”
A atividade, realizada com o apoio e di- modo a que os estudantes tivessem
namização da ACAPO - Delegação de contacto com espaços de diferentes
Viana do Castelo -, aconteceu no dia 2 de proporções. Assim, possibilitou-se o
setembro de 2022, no Centro Cultural de confronto com realidades que poderiam
Viana do Castelo, projetado por Eduardo integrar a habitação - como é o caso da
Souto de Moura. escada, das instalações sanitárias e de
alguns dos circuitos percorridos -, bem
Os estudantes foram colocados numa
como a interação com espaços amplos
condição que simulasse a cegueira, atra-
típicos da arquitetura para uso coletivo.
vés do recurso a vendas. De modo a não
terem um primeiro contacto visual com Após este primeiro contacto, os partici-
o edifício que iriam percorrer, o ponto pantes foram direcionados para uma das
de encontro deu-se noutro local da cida- salas do edifício onde puderam tirar as
de onde foram ensinadas as técnicas de vendas e refletir em torno de alguns tó-
utilização das bengalas brancas. A partir picos seguidamente apresentados. Vol-
daí, seguiram com técnicas de guia até à taram a colocar as vendas e realizaram o
entrada do edifício, onde lhes foram en- percurso inverso, desta vez em técnicas
tregues as bengalas. de guia. Quando se encontravam nova-
mente no ponto inicial, na entrada do
Percorreram um percurso pré estabe-
Centro Cultural, retiraram as vendas e
lecido sob orientação auditiva guiada
tiveram oportunidade de analisar visual-
por mim e por duas técnicas da ACA-
mente o espaço que percorreram.
PO, Catarina Carvalho e Alice Sobrei-
ro. O trajeto incluía passagem por uma Regressaram à sala onde anteriormente
escada, visita às instalações sanitárias, tinham retirado as vendas para uma ação
diferentes tipos de percurso e acesso de sensibilização sobre a deficiência vi-
ao espaço central do Centro Cultural. sual realizada pela ACAPO - Delegação
A escolha dos espaços foi pensada de de Viana do Castelo.
67
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva
68

Imagens 24. 25. 26. 27. Percurso às Escuras. Mais fotografias disponíveis no Anexo 7.
69 C | Percurso às Escuras
MÉTODO DE ANÁLISE EMPÍRICA
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

O método de análise da atividade rea- Depois, são expostas as opiniões dos


lizada pressupõe duas fases distintas. estudantes de arquitetura perante a
A primeira é consequente de opiniões atividade a que foram expostos. Nesse
formuladas durante a atividade, resul- âmbito, é debatida, primeiramente, a ex-
tantes da observação do movimento dos periência sensorial dos participantes no
estudantes de arquitetura. A segunda, que toca aos estímulos que os ajudaram
por sua vez, implica a análise qualitativa na perceção do espaço.
consequente de um questionário previa-
De seguida, é abordada a experiência
mente planeado [Anexo 6]. A estrutura
espacial relativamente a dificuldades as-
de análise do questionário desenvolve-se
sociadas à mobilidade e à orientação no
em três tópicos: a experiência sensorial,
espaço, bem como a possíveis alterações
mobilidade e orientação e a pertinên-
propostas para o edifício.
cia desta atividade de sensibilização. Os
questionários foram preenchidos online, Por último, é questionada a pertinência
através do Google Forms, após a realiza- da atividade “Percurso às Escuras” en-
ção da atividade, entre os dias 3 e 6 de quanto meio de sensibilização e impac-
setembro. tação na prática arquitetónica futura dos
participantes.
A amostra é constituída por seis (6) estu-
dantes de arquitetura, dos quais três (3) A investigação reflete os estudos realiza-
são do sexo masculino e três (3) são do dos sobre as dificuldades de indivíduos
sexo feminino. As idades dos estudan- com deficiência visual no confronto com
tes que participaram na atividade estão o construído, acrescentando-lhes a ex-
compreendidas entre os vinte e dois (22) periência empírica de análise do espaço.
e os vinte e três (23) anos. Deste modo, visa fomentar o pensamen-
to crítico aos estudantes de arquitetura
Os resultados seguidamente apresenta-
para a sua consideração em projetos fu-
dos são consequência da atividade rea-
turos.
lizada. Inicialmente são expostos, como
anteriormente referido, os pensamentos
que acompanharam a atividade.
70
RESULTADOS

C | Percurso às Escuras
No desenrolar da atividade, verificou- Aparte todas as dificuldades sentidas e
-se que os participantes manifestaram a insegurança transmitida pelos parti-
grandes dificuldades na movimentação cipantes, foi possível verificar que estes
através da utilização da bengala branca. sentiam diferenças acústicas entre es-
Em termos de orientação, por sua vez, paços, sabendo identificar os momen-
os estudantes de arquitetura pareceram tos em que estavam a mudar de espaços,
quase constantemente dependentes do ainda que não soubessem ao certo como
auxílio de outra pessoa. seriam as configurações dos espaços que
Existiram pontos específicos onde se ve- percorriam.
rificou maior dificuldade, como é o caso Estas questões constituem, sumaria-
da deslocação na escada e na identifica- mente, os pensamentos imediatos con-
ção das instalações sanitárias. No caso da sequentes da resolução da atividade. De
escada, devido ao corrimão não cumprir seguida, serão apresentados os tópicos
a medida regulamentar depois do térmi- discutidos com os estudantes de arqui-
no dos degraus [B02], os participantes tetura, contemplando as suas opiniões
sentiram dificuldade em identificar o seu em torno do “Percurso às Escuras”.
fim, bem como o patamar intermédio.
Por sua vez, as escadas associadas às
bancadas, na parte mais ampla do cen-
tro cultural, eram desprotegidas, provo-
cando uma aparente sensação de perigo
para quem as frequentava vendado. Foi
possível verificar que, embora os de-
graus destas escadas possuíssem uma
tira antiderrapante no término do seu
cobertor, nenhum dos participantes se
apercebeu da sua existência. Outro dos
obstáculos identificados na deslocação
em espaços de circulação foi a colocação
errada de um extintor, de forma que to-
dos embateram contra o mesmo.
71
1 | A EXPERIÊNCIA SENSORIAL
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

Tal como na análise de dados anterior “Descrever o espaço ou ter perceção da


relativa à experiência sensorial de indi- sua dimensão é completamente impos-
víduos com deficiência visual [B03], os sível” [Participante C], refere um dos
estímulos mais destacados pelos estu- participantes. Acrescenta, posterior-
dantes de arquitetura para compreender mente, que “a perceção que teve do edi-
a dimensão espacial vendados foram o fício era completamente fragmentada”.
tato - referido pela totalidade dos parti- A movimentação sem ter possibilidade
cipantes na atividade - e a audição - re- de visualizar a envolvente constituiu um
ferida por cinco dos seis participantes. grande fator de confusão relativamente
aos locais onde os participantes se des-
Afirmam conseguir distinguir algumas
locavam. Um dos estudantes afirma que
características do espaço através da re-
por andar vários segmentos longos em
verberação do som, sobretudo relativa-
linha reta, ficava com a sensação que se
mente a dimensões. Acrescentam que
tratavam de corredores, ainda que a re-
também a audição lhes permitia retirar
verberação do som lhe transmitisse uma
conclusões relativamente aos materiais,
ideia oposta.
nomeadamente no embate da bengala
branca com os mesmos. Todos os participantes se sentiram ca-
pazes de distinguir os espaços amplos
No entanto, era o tato o sentido que lhes
que visitaram dos espaços mais contidos.
permitia ter mais consciência espacial
Compreendiam que seriam bastante dis-
sobre a sua localização. Fosse através do
tintos, sobretudo em questões dimensio-
uso da bengala ou da sensação tátil atra-
nais, mas também reconheceram dife-
vés do corpo, especialmente das mãos,
renças materiais enquanto os percorriam.
sentiam-se capazes de distinguir “su-
perfícies materiais: o aço das guardas, o
reboco das paredes e a madeira das ban-
cadas” [Participante C, respostas com-
pletas disponíveis no Anexo 6].
Embora com alguma capacidade para
distinguir elementos espaciais, quando
questionados especificamente sobre o
espaço que percorreram - o Centro Cul-
tural de Viana do Castelo - as afirmações
já não se tornam tão claras. Cinco dos
seis participantes garantem não ser pos-
sível para os mesmos desenhar a planta
do espaço que percorreram.
72
2 | MOBILIDADE E ORIENTAÇÃO

C | Percurso às Escuras
Quando inquiridos relativamente a ques- São assinalados como obstáculos espe-
tões de mobilidade e orientação, desta- cíficos à orientação alguns elementos,
ca-se a opinião de cinco dos seis estu- como é o caso do corrimão da escada,
dantes de arquitetura que afirmaram não que não a acompanha da forma regula-
sentir conforto a percorrer o espaço. mentar, e o facto dos degraus não pos-
suirem espelho, colocando em dúvida a
As dificuldades mais destacadas, em ter-
sua existência. Também a perturbação
mos de mobilidade14, relacionam-se com
sonora se insere como um elemento de-
o posicionamento de obstáculos acima
sorientador, “tanto em demasia como na
do nível da cintura, não identificados
ausência ou escassez de som”.
pela bengala, como caixotes do lixo sus-
pensos, extintores, lavatórios, entre ou- Como consequência desta experiência,
tros. Na ausência de obstáculos, a inse- os seis participantes afirmaram que, se
gurança constante do facto dos mesmos pudessem, fariam alterações no edifício.
poderem existir constitui, também, uma Estas relacionam-se maioritariamente
barreira à mobilidade confortável. Na ex- com as dificuldades sentidas e com os
plicitação de espaços onde a mobilidade pontos de perigo identificados. Também
era dificultada, foram mencionadas as é manifestada por parte dos estudantes
escadas e as instalações sanitárias. de arquitetura a vontade de integrar si-
nalização que facilite a orientação no
Os participantes afirmam que as dificul-
interior do edifício, seja através de refe-
dades na orientação15 foram substancial-
rências táteis a nível do solo, referências
mente superiores às sentidas na mobi-
braille, ou visuais de alto contraste.
lidade, e que, logo à partida, a “procura
por paredes para ter pontos de referên-
cia” [Participante A] era uma atividade
que transmitia frustração. Isto deve-se à
ausência de pontos de referência, o que
torna difícil criar uma ideia de percurso
ou mapa mental do espaço. Manifestam
constante sensação de desorientação,
sem conseguir estabelecer os percur-
sos realizados a cada instante, durante
a experiência.

14. Mobilidade corresponde à capacidade de um indivíduo se deslocar entre pontos, e as dificuldades correspondem aos
obstáculos que encontra na sua deslocação. Existem elementos que auxiliam a mobilidade de pessoas com deficiência
visual, como, por exemplo, os cães guia, as bengalas brancas, pessoas que as guiam ou até aplicações de telemóvel.
15. Orientação relaciona-se com os motivos que levam à escolha de um trajeto, e as dificuldades correspondem aos motivos
que fazem com que o indivíduo se sinta perdido ou confuso na escolha do percurso. Existem, também, elementos que
ajudam indivíduos com deficiência visual a orientarem-se, como é o caso dos pisos táteis ou das sinalizações em braille.
73
3 | PERTINÊNCIA DA ATIVIDADE “PERCURSO DISCUSSÃO E CONCLUSÕES
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

ÀS ESCURAS”
A exposição anterior revela dimensões
Os seis participantes envolvidos nesta tanto sensitivas quanto objetivas em tor-
atividade consideraram que os seus mo- no da experiência interativa entre a de-
dos de pensar arquitetura foram positi- ficiência visual e o espaço construído,
vamente influenciados, em várias formas submetendo futuros arquitetos tempo-
de pensamento. rariamente a essa realidade. Das ques-
tões discutidas, destacam-se a utilização
Por um lado, acreditam que lhes foi pos-
da prática de role playing como estraté-
sível reconhecer algumas das constri-
gia de ensino de arquitetura e a conse-
ções que a arquitetura pode causar a
quente sensibilização.
indivíduos com deficiência visual, levan-
do-os a encarar a legislação existente de Antes de mais, importa refletir sobre
um outro modo. Manifestam preocupa- os modos como a arquitetura pode ser
ção na forma como irão desenhar espa- experienciada, sendo estes a micro ou
ços no futuro, com a preocupação de in- macro escala. Como anteriormente refe-
cluir elementos que sentiram faltar nos rido [B03 | Discussão], a ausência de vi-
seus percursos. são implica que o espaço seja percebido
“sequencialmente, passo a passo” (Hers-
Por outro lado, reforçaram a relevância
sens, 2012, p.7) devido à necessidade da
da experiência por lhes ter sido pro-
exploração através do tato, inserindo-se
porcionado um modo de aprendizagem
na perceção a micro escala. Esta condi-
e confronto com um problema que, até
ção fomenta o pensamento em torno da
então, não tinham colocado. Afirmam
necessidade de uma riqueza háptica dos
que o modo de aprendizagem através
elementos construídos.
de role playing os influenciou a, de um
modo relativamente fácil e não muito Charles Spence (1969) (2020, p.6) refe-
demorado, tornarem-se mais sensíveis a re-se à riqueza háptica como tendo o
questões de acessibilidade. “poder de algo ordinário criar felicida-
de extraordinária”. O autor refere que
Embora sem total consciência das con-
objetos angulares dentro da habitação
sequências desta atividade nos seus fu-
têm um efeito, ainda que inconsciente,
turos enquanto arquitetos ou cidadãos,
nas emoções de cada indivíduo, impe-
afirmam ter sido uma prática enrique-
dindo alguns impulsos. Por outro lado,
cedora. É deixada a nota de desejo de
a utilização de superfícies redondas de-
que “outros (futuros) arquitetos possam
sencadeia a reação oposta. Deste modo,
ter a mesma experiência” [Participante
parece natural que, após experimenta-
C], ressaltando que é importante con-
ção da ausência de visão, os estudantes
siderar para um espaço que “menos do
de arquitetura envolvidos na atividade
que ser acessível a todos é inaceitável”
transmitam algum receio perante o em-
[Participante D].
74
bate em objetos, e que tenham em con- potenciando uma arquitetura com perfil

C | Percurso às Escuras
sideração as características hápticas nos mais inclusivo na área das acessibilida-
seus desenhos futuros, a uma micro es- des (Ielegens, Herssens & Vanrie, 2015).
cala (Herssens 2012). Perante tal circuns-
Também as implicações dos métodos de
tância, torna-se necessário “escrutinar
projetar experienciais e participativos
conceitos de orientação e desenvolver
devem ser tidas em consideração para
diferentes modos de análise espacial”
compreender as vantagens e desvanta-
(Abouebeid, 2019, p.13).
gens destes processos. O entendimen-
Importa, também, refletir em torno de to de condições sociais e científicas da
role playing enquanto estratégia de en- realidade que se tenta reproduzir num
sino. O interesse por parte dos estudan- determinado momento nunca serão, de
tes tem tendência a aumentar quando forma exata, as a que os indivíduos es-
estão submetidos a uma circunstância tão sujeitos. Como são exemplo as ativi-
diferente da sua, pela sensação desafian- dades participativas passadas em alguns
te que a mesma implica (Jarvis, Odell & bairros sociais, a “tradução do estudo
Troiano 2012). É retratado, também, pe- social e científicos em práticas arquite-
los mesmos autores, que o envolvimento tónicas pode revelar-se um esforço fa-
ativo do estudante na prática de ensino lhado” (Mallgrave, 2013, p.24). Não deve,
fomenta a sua vontade de participação, no entanto, ser um esforço desperdiça-
uma vez que deixam de integrar a posi- do. Esta chamada de atenção surge no
ção de “recebedores passivos do conhe- seguimento desta discussão por se con-
cimento do professor”. Ao invés, tomam siderar relevante, para estudos futuros,
parte ativa na experiência. Como conse- que se registem, também, os obstáculos
quência desse envolvimento, é desenvol- à integração de métodos de role playing.
vido um maior sentimento de empatia na
Acredita-se, no entanto, que o “Percurso
compreensão de condições que diferem
às Escuras” constituiu uma experiência
das suas.
positiva e influente no pensamento ar-
No entanto, importa pensar as conse- quitetónico dos futuros arquitetos que
quências práticas de role playing en- participaram na atividade. Deste modo,
quanto método de ensino. Integrando revela-se imperativo deixar a sugestão
um modo de gerar informação direta em de implementação de atividades seme-
torno de uma problemática, a mesma lhantes no percurso académico, possibi-
não deve negligenciar a recorrência a in- litando um enriquecimento a nível cien-
divíduos na situação real de deficiência tífico, sensitivo e pessoal.
visual, aquando do ato projetual. A inclu-
são da informação disponibilizada pelas
duas fontes possibilita um exercício de
pensamento de projeto mais completo,
75
D | REFLEXÃO

77
A significância da Arquitetura surge com construído e o indivíduo que o ocupa. As
o seu impacto na vida humana, nas suas adaptações consequentes de alterações
várias dimensões de apropriação, enten- físicas, psíquicas ou motoras causam re-
dimento e bem estar. O modo como cada lutância a nível psicológico, por desvir-
indivíduo se apropria do espaço, na sua tuarem o lugar de cada um, mesmo que
singularidade, permite que o mesmo se lhe sejam úteis.
defina no mundo arquitetónico do ima-
Assim, importa refletir em torno de al-
ginário de cada um. No desenvolvimento
gumas questões previamente discutidas
desta investigação, tornou-se clara a ne-
nesta investigação.
cessidade de combater obstáculos que a
arquitetura proporciona, numa luta por
uma utilização do construído mais aces-
sível e inclusiva.
Ressalta-se nesta reflexão o facto da de-
ficiência visual estar, na sua maioria, as-
sociada ao processo de envelhecimento.
Com este facto em consideração, e com
a consciência que de os indivíduos rea-
gem às adaptações realizadas nas suas
habitações, torna-se imperativo que o
desenho da habitação seja consequência
de um ato projetual que não negligencia
o envelhecimento.
A casa deve ser pensada como um lugar
que, como anteriormente referido [Tema
| Objeto], se constrói mentalmente atra-
vés de interações, estímulos e reações
resultantes do confronto entre o espaço
78
D01 | DELIBERAÇÕES

Em primeiro lugar, levanta-se a questão: mos transmitiram. Pela dimensão sen-


de que modo é que um indivíduo com de- sitiva do lugar supra exposta, não seria
ficiência visual apreende e se movimenta expectável que um indivíduo com de-
no espaço? ficiência visual afirmasse necessitar de
adaptações específicas à sua habitação.
Importa, desde logo, fazer a distinção
Muitas vezes, o significado e utilização
entre pessoas com baixa visão e com ce-
dessas adaptações, estando elas relacio-
gueira. Como mencionado ao longo des-
nadas com a deficiência visual ou qual-
ta investigação, indivíduos com visão,
quer outra limitação ou incapacidade,
independentemente da sua percentagem
“contradizem o modo como as pessoas
de acuidade, tendem a servir-se da mes-
querem viver na sua habitação: a sua pri-
ma para se movimentar e orientar no es-
vacidade, sentido de segurança ou esté-
paço.
tica” (Sixsmith & Sixsmith, 2008, p.9).
Por sua vez, aqueles cuja visão é ine-
É importante esta consideração e, nesse
xistente recorrem maioritariamente ao
sentido, esta investigação torna-se mais
tato e à audição como estímulos sensi-
relevante. Ainda que os indivíduos com
tivos nas suas atividades diárias. Por este
deficiência visual afirmem ter conforto
motivo, é importante que as qualidades
nas suas habitações e não necessitarem
multissensoriais de um espaço estimu-
de adaptações, o conhecimento das con-
lem os vários sentidos.
dições inerentes à deficiência visual per-
Seguidamente, importa relembrar que, mite um ato projetual mais consciente,
no segundo capítulo [B03], foram referi- inclusivo e adaptado. A Arquitetura não
das as questões levantadas como princi- é muito flexível ou facilmente adaptada
pais dificuldades na habitação por parte após a construção estar realizada. Isso
de pessoas com deficiência visual. No implica que “a maioria dos aspetos de
entanto, todos os inquiridos afirmaram desenho devem ser conhecidos, discuti-
sentir-se confortáveis nos locais onde dos e, se possível, experimentados antes
habitam. A conclusão a retirar destas de iniciar a construção do projeto” (Iele-
afirmações não é linear ao que os mes- gens, Herssens & Vanrie, 2015).
79
A terceira temática que merece destaque As opções regulamentares atualmen-
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

relaciona-se com as adaptações ineren- te existentes, e algumas das sugeridas,


tes à deficiência visual. Também no se- podem indicar a sua existência como
gundo capítulo, na parte de discussão caráter de adaptação para uma minoria
em torno das Acessibilidades [B02], foi da sociedade. No entanto, não tem de
levantada a seguinte questão: ser este o caráter que lhes é atribuído.
Quando pensadas desde o início do pro-
Existem muitas práticas que podem aju-
jeto, essas condicionantes transformam-
dar a movimentação de pessoas com de-
-se em premissas e desafios às quais o
ficiência visual. Todavia, deve-se restrin-
edifício deve responder. Deixam de ser
gir toda a arquitetura a essas práticas?
adaptações. Deixam de parecer apenas
Sumariamente, e antes de ser colocada para alguns. Passam despercebidas à
uma hipótese de resposta, far-se-á uma maioria, e melhoram a qualidade de usu-
enumeração de algumas das questões fruto do espaço para a generalidade da
levantadas ao longo deste estudo: utili- população.
zação de portas de correr e limitação do
Considero imperativo que o espaço es-
posicionamento das portas, quando as
teja preparado para todos, em todos os
mesmas não são de correr; inutilização
locais que todos possam frequentar.
de degraus à excessão de quando inequi-
Quando se trata de habitação, muitos
vocamente necessários; desenho de mo-
dos elementos que podem melhorar a
biliário boleado; utilização de cores con-
vida dos habitantes surgem numa micro
trastantes na identificação de espaços e/
escala, como anteriormente referido. Li-
ou portas; colocação de braille nos dispo-
geiras alterações arquitetónicas impli-
sitivos de identificação e informação; si-
cam diferentes reações a um espaço.
nalização tátil no chão, com indicação de
trajetos; utilização de degraus, sempre, No entanto, seria uma romantização
com espelho; problemática da utilização imaginar que seria possível cumprir to-
de mobiliário suspenso; entre outros. das as condições necessárias para uma
perfeita utilização do espaço em todas
Seria, na minha opinião, uma restri-
as fases da vida de um indivíduo. Com a
ção arquitetónica presumir que todas
consciência desta impossibilidade, está
as obras tivessem de cumprir todas as
na eminência que terão de ser feitas es-
questões anteriormente expostas. No
colhas e aprimorados elementos em de-
entanto, é relevante que todas as dificul-
trimento de outros. Quando isso acon-
dades e sugestões sejam consideradas
tece, deve ser garantida a informação, a
aquando do ato projetual. Existem inú-
transmissão das consequências de cada
meras hipóteses não referias que pode-
escolha e a sensibilização para o que, no
riam dar resposta às mesmas dificulda-
futuro, isso poderá implicar na desca-
des, e que em nada prejudicariam uma
racterização do lugar.
boa obra de arquitetura, tanto a nível
sensitivo quanto estético.
80
A quarta e última questão relaciona-se

D | Reflexão
com a sensibilização como meio de alte-
rar a atitude comportamental da socie-
dade. Existem vários métodos de cons-
ciencializar os indivíduos relativamente
a questões de diferença entre as pes-
soas, e esses meios devem ser procura-
dos para que, de um modo geral, a quali-
dade de vida seja melhorada.
O trabalho junto de arquitetos em for-
mação através da utilização de role
playing como estratégia de ensino, numa
tentativa de os sensibilizar para as di-
ficuldades associadas à acessibilidade
revelou-se importante para a discus-
são desta temática. Pela atividade rea-
lizada e suas consequentes conclusões,
acredita-se que o “Percurso às Escuras”
desencadeou uma experiência positiva
no circuito arquitetónico dos estudantes
envolvidos, tendo contribuído, como ex-
pectável, para a sensibilização dos mo-
dos de habitar com deficiência visual.
Apesar das importantes reflexões que
surgiram como consequência da inves-
tigação exposta, existem algumas limita-
ções e desvantagens no modo de realiza-
ção da mesma.
81
D02 | LIMITAÇÕES E ESTUDOS FUTUROS

A escolha de análise das questões dis- Também na atividade “Percurso às Es-


cutidas através de uma metodologia curas” o número de participantes po-
participativa surgiu com a vontade de derá constituir uma desvantagem. No
um contacto direto com indivíduos com entanto, o limite de pessoas possibilita
deficiência visual e a sua interação com um contacto cuidado com cada um dos
a habitação e a envolvente construtiva. participantes.
Este objetivo foi cumprido, mas reco-
Por estes motivos, esta investigação sur-
nhece-se que a amostra - de catorze (14)
ge com um caráter experimental, e todos
indivíduos - é reduzida considerando o
os elementos recolhidos encontram-se
espectro de circunstâncias diferentes
anexados. Deste modo, o conteúdo po-
que podem integrar a categoria de “de-
derá ser considerado e novamente anali-
ficiência visual”. Mais se acrescenta que
sado para estudos futuros.
a dificuldade de contacto com indivíduos
acima dos 75 anos constitui uma limi-
tação para este estudo, dado ser essa a
faixa etária onde se insere a maioria de
pessoas com deficiência visual. No en-
tanto, o estudo realizado e as conclusões
previamente expostas contrapõem, em
parte, esta limitação, uma vez que pes-
soas cuja baixa visão ou cegueira ocor-
re em idade mais baixa têm, por norma,
maior facilidade em identificar os pro-
blemas inerentes à deficiência visual e
explicitar possíveis melhorias.
82
D03 | NOTA FINAL

Termina-se, assim, este percurso com o


mesmo conceito que o iniciou:
Experienciar o espaço é uma viagem.
Experienciar o espaço é percorrer um
caminho mentalmente apreendido que
se forma e desvanece a cada passo num
jogo entre a consciência e a subcons-
ciência dos sentidos que originam a sua
apropriação. No entanto, a singularidade
de cada indivíduo implica que essa via-
gem seja diferente para todos.
Segue-se, assim, esta viagem por trajetos
incertos, embora sentidos, e guardam-se
para o futuro os caminhos percorridos.

83
Penso que não cegamos, penso que estamos cegos,
cegos que veem, cegos que, vendo, não veem.

José Saramago
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Aalto. Autoria de Ana Margarida Calheiros e
Divisare. Disponível em: https://divisare. Duarte Gonçalves.
com/projects/386217-alvar-aalto-
fabrice-fouillet-paimio-sanatorium.
92
Imagem 10 Pormenor do projeto Disponível em: https://www.cavagnero.
Connections in Height: in between com/project/lighthouse-for-the-blind-
sensations. and-visually-impaired/.
Autoria de Ana Margarida Calheiros e
Imagem 17 Mac House, So & So Studio.
Duarte Gonçalves.
Rethinking the Future. 10 Great
Imagem 11 Projeto para instalação bal- examples of Architecture for the blind
near na Lourinhã, Carlos Mourão Pereira. around the world. Disponível em:
Vermeersch, P. (2013). Towards a more https://www.re-thinkingthefuture.
multi sensory design approach in archi- com/designing-for-typologies/a2660-
tecture. 276. 10-great-examples-of-architecture-
for-the-blind-around-the-world/.
Imagem 12 Projeto para instalação
Consultado a 27 de fevereiro de 2022.
balnear na Lourinhã, Carlos Mourão
Pereira. Imagem 18 Mac House, So & So Studio.
Vermeersch, P. (2013). Towards a more Rethinking the Future. 10 Great
multi sensory design approach in examples of Architecture for the blind
architecture. 276. around the world. Disponível em:
https://www.re-thinkingthefuture.
Imagem 13 Projeto para instalação
com/designing-for-typologies/a2660-
balnear na Lourinhã, Carlos Mourão
10-great-examples-of-architecture-
Pereira.
for-the-blind-around-the-world/.
Vermeersch, P. (2013). Towards a more
Consultado a 27 de fevereiro de 2022.
multi sensory design approach in
architecture. 276. Imagem 19 Guia de Acessibilidades:
identificação de escada com poucos
Imagem 14 Centro para pessoas com
degraus.
Deficiência Visual, Mark Cavagnero.
Teles, P. (2007). Acessibilidade e
Mark Cavagnero Associates Architects.
mobilidade para todos: Apontamentos
Disponível em: https://www.cavagnero.
para uma melhor interpretação do DL
com/project/lighthouse-for-the-blind-
163/2006 de 8 de Agosto. Secretariado
and-visually-impaired/.
Nacional de Reabilitação e Integração
Imagem 15 Centro para pessoas com das Pessoas com Deficiência.
Deficiência Visual, Mark Cavagnero.
Imagem 20 Guia de Acessibilidades:
Mark Cavagnero Associates Architects.
correto posicionamento de corrimões.
Disponível em: https://www.cavagnero.
Teles, P. (2007). Acessibilidade e
com/project/lighthouse-for-the-blind-
mobilidade para todos: Apontamentos
and-visually-impaired/.
para uma melhor interpretação do DL
Imagem 16 Centro para pessoas com 163/2006 de 8 de Agosto. Secretariado
Deficiência Visual, Mark Cavagnero. Nacional de Reabilitação e Integração
Mark Cavagnero Associates Architects. das Pessoas com Deficiência.
93
Imagem 21 Guia de Acessibilidades: área
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

livre de circulação no espaço urbano.


Teles, P. (2007). Acessibilidade e
mobilidade para todos: Apontamentos
para uma melhor interpretação do DL
163/2006 de 8 de Agosto. Secretariado
Nacional de Reabilitação e Integração
das Pessoas com Deficiência.
Imagem 22 Glass House, Pezenić e
Rogina.
Tokio Works. Glass House 2001. From
a visual civilisation to an audio tactile
culture. Disponível em: https://www.
behance.net/gallery/14244251/Tokyo-
Works.
Imagem 23 Glass House, Pezenić e
Rogina.
Tokio Works. Glass House 2001. From
a visual civilisation to an audio tactile
culture. Disponível em: https://www.
behance.net/gallery/14244251/Tokyo-
Works.
Imagem 24 Percurso às Escuras. Registo
Fotográfico de Ana Catarina Neiva.
Imagem 25 Percurso às Escuras. Registo
Fotográfico de Ana Catarina Neiva.
Imagem 26 Percurso às Escuras. Registo
Fotográfico de Ana Catarina Neiva.
Imagem 27 Percurso às Escuras. Registo
Fotográfico de Ana Catarina Neiva.
94
VI | ANEXOS

95
ÍNDICE DE ANEXOS

97 1 | Connections in Height: in between sensations


100 2 | Entrevista ACAPO - Delegação do Porto
106 3 | Entrevista IRIS Inclusiva
113 4 | Entrevista Carlos Mourão Pereira
123 5 | Estrevistas a indivíduos com Deficiência Visual
124 01 José
129 02 Luís
131 03 Paula
140 04 Maria
145 05 Marta
152 06 Marta
159 07 David
168 08 Carlos
175 09 Exércia
179 10 Aliu
186 11 Leonardo
194 12 Marta
200 13 José
206 14 Gabriel
221 6 | Inquérito Percurso às Escuras
231 7 | Registo Fotográfico Percurso às Escuras
96
1 | CONNECTIONS IN HEIGHT: IN BETWEEN SENSATIONS

Foi através do concurso Home for the


Blind, promovido pela Bee Breeders, que
se iniciou o estudo previamente apre-
sentado. Como anteriormente referido,
o programa previa uma habitação para
uma pessoa cega e totalmente indepen-
dente, e tinha como objetivo explorar a
relação entre arquitetura e acessibili-
dade. Algumas das questões colocadas
na apresentação do exercício relaciona-
vam-se com o modo como a arquitetura
pode influenciar a forma como uma pes-
soa se move numa habitação e as conse-
quências no seu conforto, segurança e
independência.
O projeto foi realizado com Duarte Gon-
çalves em dezembro de 2021. Foi pensa-
do de modo a integrar a cidade conso-
lidada do Porto. Inserido num lote com
um edifício devoluto na rua de Santa Ca-
tarina, o desenho da nova habitação foi
pensado como consequente do existen-
te, mantendo uma relação clara com os
edifícios adjacentes.
97
98
99
2 | ENTREVISTA ACAPO - DELEGAÇÃO DO PORTO

A presente entrevista foi realizada pre- entanto, por vezes acontece não con-
sencialmente, na Delegação do Porto da seguirmos chegar a toda a gente, por
ACAPO, no dia 28 de abril de 2022. Teve a exemplo, aos estudantes de arquitetura.
duração de aproximadamente 1h. Talvez fossem um público interessante
para trabalhar, por necessitarem de ter
Em conversa com a autora, estiveram
essa perceção.
Paula Costa, Diretora da Delegação do
Porto da ACAPO, Maria da Luz, Técnica PC: Também temos ações de sensibili-
de Braille, e Vânia Vieira, Técnica de Mo- zação nas escolas. Para as crianças com-
bilidade. preenderem como se deve lidar com uma
criança cega. E temos protocolo com es-
colas superiores de saúde, mais especifi-
AM: Quais as iniciativas que a ACAPO camente a ortóptica.
põe em prática para sensibilização, no
ML: Consultam-nos, também, nas esco-
Porto?
las profissionais, nas diferentes áreas.
PC: Já fizemos atividades de peddy pa- Por exemplo, consultam-nos para ques-
per, visitas à Torre dos Clérigos, em que tões relacionadas com o turismo e res-
as pessoas iam com os olhos vendados tauração.
e faziam o percurso com a bengala, por
exemplo.Também já fizemos um exercí-
cio na Trindade em que colocamos obs- AM: Têm acesso a algum dado estatístico
táculos, desde um telefone, um carro, relativamente ao número de cegos em Por-
entre outros, para as pessoas normo-vi- tugal?
suais sentirem a dificuldade da pessoa
VV: É um número erróneo ainda, não
cega a andar na rua.
sei se os CENSOS de 2021 já vieram com
VV: Já existiram aqui na delegação, tam- esse valor certo. A partir dos CENSOS
bém, dinâmicas com o cheiro, jogos de deveria ser possível aferir, mais ou me-
tabuleiro, vestir e despir um boneco. No nos, o número de pessoas portadoras
100
de deficiência visual, porque é impossí- ML: E nesse aspeto já compromete, por

Anexos | Entrevista ACAPO - Delegação do Porto


vel saber pelo número de associados (da exemplo, a sensibilidade. Existem pes-
ACAPO). Lembro-me de ver uma notícia soas que têm fotofobia, também. Quan-
que referia o número de cegos. Falava de do transitam entre espaços com luz para
cerca de 35000 cegos e quase 590 000 outros espaços mais escuros, como por
pessoas com perda parcial da visão. exemplo do exterior para o interior, fi-
cam sem ver. Isso também está relacio-
AM: E como se define, em termos práti-
nado com a patologia que cada um tem.
cos, ser cego ou amblíope?
Outro aspeto importante e que também
PC: Ser cego é uma pessoa que não vê, temos de considerar: existem cegos
mesmo. O amblíope ainda vê algo. com outras deficiências associadas, por
ML: Em termos de conceito de saúde, exemplo, surdos cegos.
depende da percentagem de acuidade VV: Sim, e outras componentes, como a
visual que a pessoa tiver. Mesmo vendo motora, que também pode acontecer.
luz, tendo uma perceção luminosa, uma
ML: Neurológica, associada a outras difi-
pessoa é cega. Depois, a nível da baixa
culdades. Existe uma questão importan-
visão, existem vários graus e vários tipos,
te e que também poderá ser considerada,
também, porque também depende da
que é o facto da cegueira ser congénita
doença, e são pessoas que, apesar de uti-
ou ser adquirida. Neste aspeto, estou a
lizarem - e também se define por aí, ser
lembrar-me, por exemplo, do conceito
ou não ser pessoa com deficiência visual
de cor, ou alguém já ter vivido num es-
- que apesar de utilizarem óculos, por
paço que viu e já não vê. E também as-
exemplo, ou lupas, nunca conseguem ter
sociado à própria idade em que surge a
um grau de visão normal, enquanto uma
cegueira. Imagine que é uma pessoa que
pessoa que não é deficiente visual, utili-
cegou aos oitenta, se calhar é diferente
za óculos e consegue ter uma visão fun-
de uma pessoa que cega, por exemplo,
cional, quer para ler, para conduzir, por
aos cinquenta. A adaptação e o processo
exemplo. Importa perceber que tudo que
de aprendizagem não são os mesmos.
seja ver luz ou ver vultos já é mais uma
ajuda. Por exemplo, na orientação.
AM: Como se forma a memória de um
espaço para alguém que já o viu e deixou
AM: Uma pessoa cega já tem as suas difi-
de o ver?
culdades inerentes. Há algo que seja bas-
tante comum, há algo que costume vir ML: Existem várias questões a conside-
associado àquela que já é a cegueira? rar. A questão do bidimensional e do tri-
dimensional, por exemplo, numa criança
VV: Normalmente a cegueira vem asso-
cega… uma pessoa que nasceu cega tem
ciada a alguma doença, ou ao envelheci-
que aprender i que isso significa. Tem
mento. Pode ser diabetes, por exemplo.
101
de perceber que um pássaro, quando assim em termos físicos, o espaço. En-
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

fica em bidimensional fica espalmado e quanto uma pessoa que vê entra, olha, e
pronto… porque ela nunca o consegue consegue rapidamente ter uma imagem
ver nessa perspetiva. Uma criança que da sala, nós fazemos ao contrário. Te-
vê e que depois, mais tarde, perde a vi- mos que analisar ponto por ponto, e o
são, se calhar já faz uma interpretação mesmo será quando nós queremos en-
diferente de uma imagem bidimensional, contrar alguma coisa. Assim, se as coisas
ainda que ela seja um pouco mais com- estiverem mais organizadas, seguindo
plicada. uma lógica, seguindo uma ordem, é mais
fácil também orientarmo-nos nesse es-
AM: Passando para a questão do espaço,
paço, ainda que tenhamos de o reconhe-
como seriam ou quais seriam as princi-
cer. Por isso é que é muito importante
pais características que uma pessoa cega
as coisas não estarem sistematicamente
tem para conseguir compreender o es-
a mudar de sítio. Depois, há outros as-
paço?
petos. Por exemplo, se entrar num es-
VV: Compreender o espaço só exploran- paço, eu tento perceber pelo odor o que
do através do corpo, penso que é o que se passa naquele local. Por exemplo, se
acontece primeiro. Às vezes, uma por- eu entro num restaurante, nós também
ta aberta dá para perceber o espaço, as percebemos, pelo barulho dos talheres,
portas fechadas dão para perceber outro que aquele local é um restaurante. Uma
espaço. Se fecharmos agora os olhos há farmácia, uma pastelaria ou até uma loja
possibilidade de nós percecionarmos o do chinês se conhece pelo odor. Num es-
que está à nossa volta. A questão da ex- paço muito amplo é difícil termos pon-
ploração, de perceber como é que está, tos de referência para nos orientarmos.
também, a disposição feita de cada es- Na habitação não gosto de móveis mui-
paço, acho que tem muito a ver com a to pontiagudos, porque representam um
perceção do corpo. Apenas utilizando perigo, mas conheço pessoas cegas que
muito o ouvido, se estivermos parados, até na casa de banho têm, é uma opção
nos permite perceber mais ou menos a delas. Eu não gosto porque me transmite
distância. Os deficientes visuais usam perigo, mas elas têm a noção da estética
muito a eco localização para perceber a e gostam assim.
distância a que estão, e mesmo isso com
a bengala também é percetível, quando
bate no chão, dá para perceber o prolon- AM: Também relativa a esta questão de
gamento do som. posicionamento no espaço. Como é que
se ensina uma pessoa cega a movimen-
ML: Nós, quando entramos num espaço,
tar-se e orientar-se no espaço?
temos de explorar, temos que analisar, e
usamos o sentido do tato. O tato é ana- VV: Relaciona-se com a questão do tra-
lítico. Temos essa maneira de explorar, balho do corpo. Trazer muitas expe-
102
riências e dinâmicas para que a pessoa obstáculos pequenos - se forem abaixo

Anexos | Entrevista ACAPO - Delegação do Porto


consiga experienciar o que é o toque, do joelho, tirá-los do sítio de passagem
por exemplo, em relação a alguma coi- ou torná-los bem mais altos, para que a
sa, a distância a que ela toca nesse ob- pessoa possa detetar. Não mudar mui-
jeto, o que é aproximar e distanciar de to a disposição depois de resolver esta
um objeto. Usar a porta aberta ou a por- questão… Muitas das vezes, há pessoas
ta fechada, usar essas dinâmicas. E usar que tiram logo os tapetes, mas os tape-
mesmo o corpo a explorar o espaço para tes podem ser ponto de referência para
ele perceber que quando muda de sala, quando se estiver a chegar a algum lado,
por exemplo, um corredor, o que muda. ou para se manter em cima do tapete
Sensibilizá-lo para essas mudanças, mu- como sendo seguro… Os contrastes en-
danças de espaço. A mesma coisa na rua, tre cores claras e escuras, fortes e neu-
por exemplo, pode acontecer - quando tras, por exemplo, para pessoas com bai-
já tiver aprendido bengala. O toque da xa visão, funcionam muito bem. Quando
bengala faz um som, e quando está nesta há um espaço que é todo branco, com
sala faz um tipo diferente do que quando cadeiras brancas, mesas brancas, é mui-
está no corredor. Muitas das vezes existe to difícil de percecionar o que lá está.
uma aula em que o indivíduo cego tem Falamos muito nos contrastes que po-
de perceber quais são as portas abertas dem ser feitos.
ao longo da rua, para perceber que o som
ao toque é diferente, ou seja, passa mui-
to por experiências do corpo para que AM: Mencionou a questão de serem fei-
que haja sensibilidade a essa questão. tas alterações na habitação… É comum
que com indivíduos de cegueira adqui-
rida, ou seja, que já conheciam as suas
AM: E tem alguma sugestão, ou existe al- habitações antes, façam alterações nas
guma característica específica do espaço suas habitações após cegarem?
que reconheça que deve ser melhorada?
VV: Sim, especialmente pela família.
Um trabalho que devia ser feito de forma
Como vêm a essa sessão todos juntos,
geral, na habitação?
existe um entendimento de como devem
VV: Normalmente, na primeira sessão, fazer as alterações. Se a pessoa disser
indicamos algumas estratégias que po- que não vale a pena, não vale. Muitas ve-
dem ser adaptadas na casa de cada um. zes, não há logo a necessidade de mudar,
Por exemplo, relativamente à disposi- mas ao longo do tempo, se calhar, aca-
ção, deve haver um sítio de passagem, bam por decidir mudar.
por exemplo, mudar a mobília - há essa
transferência, mas combinada com a
pessoa - de um sítio para o outro e fazer AM: Existem outras questões que eu te-
só um sítio de passagem. Evitar que haja nho. Por exemplo, falamos muitas vezes
103
em questões de legislação e algo que mas muito estéticos. Isso é que eu julgo
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

possa tornar a arquitetura mais inclu- que é importante, que nós percebamos
siva, mas quando se entra no campo do que aquilo que é bom para os cegos é
espaço privado e da própria habitação, bom, também, para as pessoas que têm
há sempre um confronto entre obrigar dificuldades motoras, e vai ser bom para
toda a gente a fazer da mesma forma e aqueles que não têm problema nenhum.
dar liberdade naquele que é um espaço Para mim, é o conceito que é mais im-
pessoal… Será que a arquitetura devia portante. Nós não estamos a criar para
efetivamente ir por esse caminho, ou o cegos, mas para todos. Incluindo os se-
próprio hábito e adaptação individual niores - que também já veem mal.
são suficientes para que uma pessoa
cega se oriente e movimente de forma
confortável na sua própria casa? AM: Tendo em conta esta questão da
construção e da legislação, a própria
V: Não sei, na maioria das ocasiões pen-
ACAPO tem parcerias ou costuma ser
so que se trata apenas de adaptação. No
consultada aquando destes projetos, ou
entanto, existem situações em que o es-
é algo que sentem que ainda não acon-
paço se pode tornar mais seguro, a nível
tece?
de corredores, de portas, de disposição.
Estou a falar, por exemplo, da colocação ML: Talvez mais ao nível da sinalética.
de portas de correr, o que já seria mais Mas tanto ao nível da sinalética como da
seguro, em substituição de uma porta arquitetura, a maioria das vezes que os
entreaberta. contactos são feitos, não avançam.

ML: Uma questão importante. Para mim PC: Costuma haver algumas melhorias,
faz todo o sentido que existam essas re- mas nunca consideram tudo que nós su-
gras de início, ou seja, para as pessoas gerimos. Começam a incluir, por exem-
que projetam e constroem. Porque, mui- plo, o piso tátil.
tas vezes, depois de construído, é mui- ML: O piso tátil é bom, mas se o passeio
to complicado alterar alguns aspetos no estiver obstruído, também não me serve
condomínio, no apartamento. Deve-se de muito. Mais importante que um piso
pensar da seguinte forma: aquilo que é tátil, é ter um passeio onde se possa an-
melhor para as pessoas cegas e com bai- dar. É uma questão de educação.
xa visão, não é pior para os outros, até
pelo contrário. Portanto, eu acho que,
em termos de funcionalidade, e de mais AM: Relativamente, ainda, a métodos e
valia, é para todos. Na minha opinião, questões de legislação, eu queria per-
isso devia estar já legislado para evitar guntar diretamente se existem alguns
que os seus colegas façam assim uns elementos que deviam ser taticamente
projetos muito estranhos e perigosos, colocados, algo que devia ser distingui-
104
do? Por exemplo, sinalizar puxadores ou importante. Existe muito trabalho ainda

Anexos | Entrevista ACAPO - Delegação do Porto


degraus. Deve existir algum tipo de sina- para ser feito com ações de sensibiliza-
lização que facilite a movimentação na ção. Em termos de habitação, penso que
casa? Ou sendo numa casa própria não a implementação do maior número de
faz sentido? elementos ligados à Smart House seria
o melhor. No entanto, financeiramente
VV: Sendo uma casa própria, não sei se
ainda não é acessível para todos.
fará sentido. A pessoa cega conhece a
própria casa. E se, eventualmente, for ML: Existem eletrodomésticos falantes
uma pessoa com baixa visão, poderá fa- e existem eletrodomésticos que estão
zer sentido criar um contraste, sim. ligados à Smart House através de apli-
cações de telemóvel, comando de voz
AM: Mas considera que é algo que deve
ou colunas inteligentes. Por exemplo, as
ser pensado desde o início do projeto?
máquinas de lavar, os robôs, os estores
VV: Nunca debati este tema, penso eu. elétricos.
AM: A minha última questão prende-se
ML: Eu estou a o que faria se estivésse- com o envelhecimento e com a sensibi-
mos a falar de um projeto para a minha lização. Relativamente à perda de visão
casa. Para ser funcional para mim, faria e ao seu agravamento com o envelheci-
o mesmo que outra pessoa, que não tem mento, a ACAPO também tem contacto
problema visual, faria. Seria uma casa em com essas pessoas? São uma parte da
que nós possamos andar sem ter obstá- comunidade que também integra a ACA-
culos, funcional, prática. PO?

PC: E é como a Luz diz, no fundo seria ML: A grande maioria (dos associados da
uma casa que dá para si, dá para mim e ACAPO) são seniores.
dá para toda a gente. Nas habitações as PC: São seniores, sim, mas a ACAPO in-
alterações vão sendo feitas lentamente e tegra qualquer pessoa que venha ter
vão-se adaptando. Mas nós temos hos- connosco. Existem muitas pessoas que
pitais, temos centros de saúde, temos vão perdendo a visão e que não conhe-
tribunais, entre outros, em que nada é cem a ACAPO. Existem muitas pessoas
acessível para nós. que não sabem o que é a ACAPO, não sa-
bem o que a ACAPO faz, portanto não as
mandam para a ACAPO, mesmo nos hos-
AM: A preocupação é mais com os espa-
pitais.
ços públicos do que propriamente com o
privado.
PC: Sim, mas a habitação também, não
estou a dizer que a habitação não seja
105
3 | ENTREVISTA IRIS INCLUSIVA

A presente entrevista foi realizada pre- prestação de serviços com cada pessoa
sencialmente, no espaço da ÍRIS Inclusiva, que acompanhamos. E essa pessoa, de
em Viana do Castelo, no dia 13 de julho de acordo com as sua necessidades, as suas
2022. Teve a duração de aproximadamente expectativas, os seus interesses, as áreas
40 minutos. de vida em que ela sente que há algum
tipo de constrangimento à sua participa-
Em conversa com a autora, esteve Isabel
ção plena, depois dá origem a um plano
Barciela.
individual de intervenção.
Neste plano individual há várias áreas
GRUPO 1 | Compreensão do Espaço e trabalhadas e pode estar presente um
Mobilidade técnico para ajudar nas atividades. Tudo
AM: Poderia falar-me um pouco deste depende do plano. E, depois, esse tra-
projeto e dos seus principais meios de balho é feito articuladamente por esses
atuação? elementos da equipa e sempre também
com os recursos da comunidade.
IB: Nós temos áreas especificas e mui-
to bem delimitadas. Temos psicologia, Destas pessoas, poucas nos chegam di-
serviço social, animação socio-cultural, retamente. Temos as crianças que nos
um terapeuta ocupacional que trabalha são normalmente direcionadas pelas
tudo que são as atividades da vida diá- escolas. E noutras faixas etárias, temos
ria. Temos Braille, temos a parte das tec- juntas de freguesia, centros de saude, e
nologias de informação e comunicação, tudo que sejam equipas de apoio social
e orientação e mobilidade. Todos estes de proximidade.
serviços são prestados no local. Quando
uma pessoa nos procura, há uma primei-
AM: Existem na IRIS Inclusiva aulas de
ra sessão para apresentarmos uma pro-
orientação e mobilidade?
posta e expormos como trabalhamos,
porque depois temos um contrato de
106
IB: Sim. No entanto, quem está mais a não é muito fácil. Mas claro que a se-

Anexos | Entrevista IRIS Inclusiva


par do assunto é a minha colega da área gunda via depois da visão tenderá sem-
da mobilidade. pre a ser a audição. O tato também é
fundamental, mas mais no caso de uma
AM: Quais considera serem as princi-
cegueira congénita. No caso de uma ce-
pais características que permitem com-
gueira adquirida, a utilização do tato
preender um espaço, numa perspetiva
também é algo que se aprende e que re-
não visual? (Distâncias, escalas, limites,
quer predisposição e que pode requerer
cheios e vazios)
treino. Porque há pessoas que perdem a
IB: As pessoas com deficiência visual visão e que são extremamente resisten-
conseguem tirar uma ideia de dimensão tes à utilização do tato. Nós tentamos
do espaço pelo som. Dependendo se têm fazer esse trabalho com elas, e muitas
ou não tem alguma perceção luminosa, vezes há uma reação de rejeição, de não
conseguem tirar uma ideia da claridade querer tocar no que lhes está à disposi-
do espaço. E depois, tudo o resto depen- ção. Portanto, também aqui é difícil es-
de das oportunidades que a pessoa tem tabelecer uma relação entres estes sen-
para explorar e se movimentar no espaço tidos igual para toda a gente.
e de ir construindo essa imagem. A for-
ma que uma pessoa que não vê constrói
uma imagem do que a envolve segue uma AM: Considera que os estímulos orienta-
sequência contrária à nossa, que vemos. dores do espaço também podem ser de-
Nós tiramos primeiro uma imagem do sorientadores?
conjunto e depois vamos olhar para um
IB: Eu penso que esses estímulos são
pormenor ou outro, e até achamos que o
sempre informadores. Tudo o que per-
espaço no seu conjunto está muito bem
mite a uma pessoa ir buscar mais in-
conseguido ou que é muito agradável,
formação em relação ao que se passa à
mas depois começamos a aperceber-nos
sua volta é positivo. Depois, a questão é
de algo que poderia ser diferente. Neles
que a pessoa pode não ter desenvolvi-
é exatamente o contrário, eles vão ana-
da a capacidade de integração sensorial
lisar vários detalhes e, a partir daí, vão
dessa informação que lhe está a chegar
tentar ter uma ideia do conjunto, que é
de diferentes vias. Mas isso é algo que
aquele espaço no seu todo.
se treina. E a pessoa, tendo predisposi-
ção, é importante criar-lhe oportunida-
des para que esse trabalho seja feito. Por
AM: Há pouco falou-me da audição en-
exemplo, na área da terapia ocupacional
quanto estimulo, considera que é o
há uma corrente especifica que trabalha
maior estimulo da perceção ou que os
essas questões da integração sensorial.
outros intervêm de uma forma igual?
Portanto, são questões que são passiveis
IB: O tato também intervém, o olfato de intervenção, de trabalho e de desen-
também, dar uma proporção a cada um volvimento.
107
AM: Considera que esse trabalho senso- GRUPO 2 | Arquitetura
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

rial também deveria ser feito com pes-


AM: Pela experiência com indivíduos
soas que não têm problemas de visão?
com cegueira adquirida, tem conhe-
IB: Eu acho que há um défice sensorial cimento se estes tiveram necessidade
grande, mesmo dentro das pessoas que de fazer alterações nas suas habitações
são ditas normo-visuais. Alias, nós sen- após cegarem?
timos isso quando fazemos atividades
IB: Alterações mesmo estruturais em
de sensibilização que implicam contacto
casa não. Há algumas situações em que
com recursos táteis, em escolas. Nota-se
nós recomendamos alterações, mas que
que essas áreas são pouco trabalhadas,
não foram feitas. Estou agora a pensar
e deveriam ser muito mais, porque nos
num jovem que, na altura era criança,
dão outra perceção do mundo. Porque
e que tem uma casa com uma escada
os recursos e materiais desenvolvidos
bastante complicada. Ele foi perdendo
especificamente para as pessoas que
a visão gradualmente e sente uma inse-
não veem podem ser excelentes recur-
gurança muito grande naquela escada, e
sos também para as pessoas que veem.
nós consideramos que seria um proble-
Por exemplo, no caso dos museus. Se
ma facilmente solucionável com um cor-
há algum museu com réplicas de certas
rimão. Mas tirando esse tipo de situa-
peças ou maquetes de espaço, porque é
ções não estou a ver nada que implicasse
que esses elementos têm de ser só para
grandes mudanças estruturais.
as pessoas que não veem? Por exemplo,
eu poderia ter uma perceção diferen- É mais fácil nós próprios recomendar-
te duma escultura se lhe pudesse tocar mos determinadas adaptações em situa-
ao mesmo tempo que a vejo. Mas isso é ções de baixa visão, do que em cegueira.
mais uma questão cultural, todos nós fo- Mais até na funcionalidade de atividades
mos educados com uma cultura de não do quotidiano. Desde acessórios que fa-
tocar, como a expressão “ver é com os cilitem a utilização de um fogão, entre
olhos não é com as mãos”. Nós todos fo- outras. Estas questões da cozinha são
mos educados assim, e depois estes pen- uma área que desperta bastante interes-
samentos ficam enraizados. se. Para o nosso terapeuta ocupacional,
grande parte dos pedidos são nessa área.
Se calhar, se esta cultura fosse diferen-
Até de pessoas que nunca cozinharam e
te, numa situação de perda de visão essa
que querem aprender a cozinhar, e que é
resistência ao uso do tato seria mais pe-
um processo demorado, mas temos ca-
quena.
sos de sucesso.
108
AM: Quais os pontos mais importantes mos há pouco tempo num hotel da cida-

Anexos | Entrevista IRIS Inclusiva


que a Arquitetura pode tratar? de a fazer formação aos colaboradores,
mas mais no âmbito do acolhimento do
IB: É difícil essa pergunta. É uma pergun-
que no espaço que já existe. Nessa área,
ta que me faz lembrar aqui de uns quantos
temos notado uma preocupação cres-
intervenientes que lhe podiam responder,
cente.
porque há equipas a trabalhar especifi-
camente nessas áreas. Mas, para além
destas questões que já falamos de baixa
AM: Consideram que faz sentido assina-
visão, claro que se o edifício puder ser
lar taticamente alguns elementos na ha-
um edifício térreo, tanto melhor, mas eu
bitação? Como puxadores, degraus, en-
tendo a pensar nestas questões da aces-
tre outros.
sibilidade de uma forma global. Porque se
não, daqui a nada temos casas específicas IB: Eu acho que isso às vezes é mais im-
para pessoas cegas, casas específicas para portante em espaços públicos em que
pessoas de cadeiras de rodas, e portanto, a pessoa vai passear ou usufruir uma
acho que tanto quanto possível devemos quantidade limitada de vezes, do que
tentar integrar a acessibilidade com toda propriamente na habitação permanente
esta diversidade funcional. Como disse, onde a pessoa se vai conseguir familiari-
qualquer um de nós, a qualquer ponto da zar e deslocar-se de forma segura no seu
vida está sujeito a uma situação de inca- espaço.
pacidade temporária ou até mesmo a ad-
quirir uma deficiência permanente.
GRUPO 3 | Sociedade, sensibilização e
envelhecimento
AM: Que parcerias têm existido entre a AM: Quais são os projetos e parcerias
Íris Inclusiva e as entidades responsáveis para inserção das pessoas com deficiên-
pela legislação ou do mundo da constru- cia visual na sociedade que consideram
ção? ter mais impacto?
IB: Não temos parcerias nessa área. Te- IB: Eu penso que as atividades que tive-
mos pedidos por quem utiliza o espaço ram mais impacto, foram as que foram
e por quem tem responsabilidades da desenvolvidas já vocacionadas especifi-
organização do espaço. Estou-me a lem- camente para profissionais, ou futuros
brar que há pouco tempo tivemos um profissionais em formação. Portanto,
pedido de uma entidade de alojamento acaba por ser mais eficaz quando inter-
local que ia abrir aqui na cidade, mas ge- vimos com pessoas que já estão dentro
ralmente esses pedidos aparecem após de um tema específico, ao invés daque-
a construção e não têm tanto a ver com las sensibilizações mais genéricas, que
questões estruturais. Por exemplo, tive- também fazemos. Por exemplo, algo que
109
fazemos bastantes vezes são atividades cedo se começa a fazer este trabalho,
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

em cursos profissionais, o que implica melhor, e mais sucesso temos. Recordo-


que se estivermos com alunos da área da -me de alguns jovens com quem come-
saúde, fazemos tudo de uma forma di- çamos a trabalhar quando ainda eram
ferente do que se fossem alunos da área crianças, e a importância não é só pelo
do design e multimédia, por exemplo. E trabalho que se fez com eles, mas tam-
essas diferenças têm impacto porque as bém pelo trabalho que se teve com a fa-
pessoas ficam imediatamente a pensar mília e com os professores, que depois
“Eu um dia vou fazer isto, e nunca pen- tiveram um peso maior no desenvolvi-
sei nesta situação, mas agora se apare- mento deles do que nós. Para nós, os ca-
cer já sei”. Falando nas sensibilizações sos de baixa visão são mais de crianças
genéricas, uma experiência que as vezes e jovens, não temos muitas pessoas mais
é transformadora para os participantes é velhas.
obrigá-los a estar numa situação de pri-
vação de visão, para estarem, de certa
forma, nos sapatos da outra pessoa, e as- AM: Quais são as maiores dificuldades
sim apercebem-se das dificuldades. que sentem relativamente ao trabalho a
desenvolver no âmbito da inclusão? E à
Por exemplo, estou-me agora a lem-
participação dos associados nos progra-
brar de uma situação da nossa formação
mas que são propostos?
no hotel, que estava relacionada com a
área do acolhimento no restaurante, e IB: Nem sempre é fácil convencer as
nós pusemos as pessoas num momento pessoas a participar nos programas pro-
de refeição, embora que não fosse com postos. Mas o principal obstáculo que
comida real, usando apenas materiais temos muitas vezes é a importância da
específicos para treino, e os comentá- família. Nós, muitas vezes temos pessoas
rios que costumamos ter depois deste que cristalizaram há anos, e que não fa-
tipo de atividades é que são experiências zem praticamente nada de forma inde-
transformadoras. pendente, porque as famílias sempre as
protegeram e as situações às vezes che-
gam a um determinado ponto em que a
AM: Muitas vezes, os problemas de visão própria pessoa depois diz que não quer
surgem e agravam com o envelhecimen- fazer, porque é algo que já vem de trás.
to, mas penso que este assunto não é Uma barreira também muito significati-
muito consciente na sociedade em geral. va, para além destas que estão focadas na
A comunidade mais velha é um membro própria pessoa, ou nos mais próximos, é
ativo da IRIS inclusiva? a sociedade em geral. Há muitos precon-
ceitos e esteriótipos relativamente à de-
IB: De uma forma geral, são mais os jo-
ficiência visual. Nós, todos ainda ouvimos
vens que recorrem à IRIS. Quanto mais
aqueles comentários como “é ceguinho,
110
coitadinho”. Mesmo nós, que trabalha- questões mais por esse lado, as pessoas

Anexos | Entrevista IRIS Inclusiva


mos na área, ouvimos isso muitas vezes, percebem realmente as situações.
tal como as pessoas que têm deficiência
O que nós continuamos a sentir é que
visual também, o que, naturalmente, é um
este preconceito está muito relacionado
fator de bloqueio. E é algo que também
com desconhecimento. E se nós formos
precisa de ser trabalhado, e que por vezes
analisar, sobretudo nas gerações mais
as pessoas não querem trabalhar, porque
velhas, é provável que haja poucas pes-
é uma questão que requer um trabalho
soas que já interagiram espontaneamen-
mais de psicologia e de gestão emocional.
te com alguém cego. Portanto, enquanto
E nós temos pessoas que aceitam bem a
não for natural interagirmos com pes-
sua condição de deficiência visual, e vi-
soas com características diferentes das
vem bem com esses comentários. Mas,
nossas, o preconceito vai sempre persis-
se a pessoa não tiver esse trabalho feito,
tir.
que muitas pessoas não têm, ou porque
ainda estão na fase de não aceitação, ou Algo que eu acho muito importante, e
na fase de revolta, tudo se torna mais di- que nós tentamos promover sempre que
fícil, e é uma das áreas em que nós temos dinamizamos alguma atividade associa-
mais dificuldade em dar resposta. Se eu tiva, seja cultural, desportiva, recreativa,
fosse pensar assim de uma forma global, artística, entre outras, é a participação
o serviço de psicologia é um serviço que da comunidade toda. E muitas pessoas,
cerca de 90% das pessoas precisa, mas só no final de atividades nossas vêm dizer:
temos à volta de 20% a querer. “Ai, eu nem percebi, mas quem é que não
via afinal?”, porque estão todos diluídos
AM: Pela vossa experiência, quais as me-
pelo grupo, e assim as pessoas da comu-
lhores formas de aproximação à socieda-
nidade acabam por sair com aquele insi-
de para projetos de sensibilização? Tem
ght de que foi apenas uma atividade com
alguma recomendação?
pessoas. É como ter uma atividade com
IB: Eu penso que é sempre na perspetiva crianças, em que depois se conclui que
de nunca pôr o foco na deficiência, ou na as crianças divertem-se todas com ele-
limitação, ou na incapacidade. É sempre mentos semelhantes, e pouco interessa
preciso falar e centrar no conceito da di- se veem, se não veem ou se veem mal.
versidade. E hoje em dia, cada vez mais Portanto, acho que um dos focos impor-
vivemos todos em sociedades comple- tantes é criar oportunidades e momen-
xas, e debatemo-nos com a diversidade tos de encontro entre pessoas que são
a todos os níveis. Não é só a diversidade diferentes entre si.
funcional, é também a diversidade cultu-
Falando mais concretamente nessa área
ral, linguistica, entre outras. Vivemos to-
da arquitetura, ou da perceção e mo-
dos os dias com isso. E acho que, a par-
bilidade dentro de espaços, acho que
tir do momento em que se abordar estas
qualquer experiência que colocasse as
111
pessoas nesta situação de privação de
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

visão, e que pudesse proporcionar algu-


ma experimentação, seguida depois de
reflexão, teria um impacto positivo. Por
exemplo, aqui há pouco tempo, fizemos
uma experiência numa escola que pas-
sou por vendar as pessoas e pedir-lhes
para fazer o nó de uma gravata. E esta
experiência teve muito bom resultado,
porque, contrariamente aos nós de ata-
cadores, que praticamente toda a gente
sabe fazer, muitos jovens hoje em dia não
estão habituados a atar nós de gravatas.
Então, este desafio mostrou bem a difi-
culdade que é ensinar uma pessoa cega
como atar uma gravata. E é a partir des-
tas experiências que as pessoas come-
çam a entender melhor as dificuldades
da cegueira, e essa mudança de menta-
lidade resultam em efeitos positivos na
sociedade.
112
4 | ENTREVISTA CARLOS MOURÃO PEREIRA

A presente entrevista foi realizada virtual- tem interesse na questão do envelheci-


mente, no dia 26 de agosto de 2022. Teve a mento, já penso que faça todo o sentido
duração de aproximadamente 1h. integrar as pessoas com baixa visão, e
utilizar o termo, como utilizou, de defi-
Em conversa com a autora, esteve Carlos
ciência visual. Com o envelhecimento, é
Mourão Pereira, com 52 anos.
natural que possa haver perda de acui-
dade visual e que se cheguem a situações
CMP: Antes de começarmos, quero fa- de baixa visão, de modo que, aí, faz todo
zer-lhe uma questão. A Ana Margarida o sentido incluir a baixa visão no seu es-
mencionou a deficiência visual, mas de- tudo. Espero estar a ajudar.
pois mencionou que a relação com al- AM: Muito obrigada! É ótimo dar-me es-
guém que é cego à nascença, não foi? sas referências, porque significa que o
AM: Sim, exatamente. caminho que fiz até aqui incorpora o que
me está a dizer. Eu comecei, efetivamen-
CMP: Estou a colocar esta questão por-
te, a estudar o espaço a partir da ceguei-
que a perceção do espaço para pessoas
ra. Ao desenvolver o trabalho, percebi
com deficiência visual de modo gene-
que devia abranger, também, a baixa vi-
ralizado ou pessoas com cegueira é um
são. É precisamente devido ao conforto
pouco distinto. A deficiência visual in-
na habitação perante o envelhecimento
tegra as pessoas com cegueira e as pes-
que refiro a deficiência visual de forma
soas com baixa visão e, a nível da per-
geral. Comecei por tentar perceber o
ceção do espaço, as pessoas com baixa
que era o espaço para alguém que não
visão distinguem-se das cegas. Como a
o vê e, depois, comecei a questionar de
Ana Margarida falou que lhe interessava
modo é que se poderia melhorar o espa-
a multissensorialidade do espaço, espe-
ço para toda a gente, antevendo o pro-
cificamente das perceções não visuais,
blema da baixa visão no envelhecimento.
torna-se mais interessante focar a ques-
Tentei traçar o caminho nesse sentido.
tão da cegueira. No entanto, se também
113
CMP: Nesse caso é, efetivamente, a defi- é mesmo sem perceção luminosa - en-
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

ciência visual. Eu achei por bem falar nis- fatizou muito todas as restantes moda-
to para esclarecer caso houvesse alguma lidades sensoriais. Isto não significa que
confusão. Estou, então, aberto às suas eu esteja a ouvir melhor, não quer dizer
questões. que a minha acuidade nas outras moda-
lidades sensoriais tenha aumentado. O
que acontece é que, como não tenho o
AM: Com que idade e como adquiriu o recurso ao sentido da visão, que é muito
seu problema de visão? predominante, sobretudo nos arquitetos,
CMP: Eu tenho 52 anos, e o eu ceguei dou mais atenção aos restantes estímu-
aos 35 anos devido a um acidente. los sensoriais. Por consequência, aper-
cebi-me de uma série de pormenores
que me ajudaram muito a acreditar que
AM: De que modo é que a perda da visão seria possível continuar na área da ar-
impactou a sua prática arquitetónica? quitetura, e foi possível. Desenvolvi pro-
CMP: Ao princípio, como fiquei cego, o jetos depois de estar cego, acabei alguns
primeiro pensamento que me surgiu foi que tinha começado e iniciei outros. Até
que não seria possível continuar na ar- iniciei - e concluí - a minha tese de dou-
quitetura. No entanto, ao experimentar toramento, já na condição de cegueira.
o espaço na condição de cegueira, aper- Sempre me atraiu muito a arquitetura
cebi-me de imensos erros que estavam multissensorial e, por isso, a Escola do
presentes em determinados edifícios e Porto sempre foi muito interessante para
no espaço público urbano. Apercebi-me mim. Fui muitas vezes ao Porto e, como
que nunca tinha pensado nessas ques- é natural, um dos arquitetos que sempre
tões e que julgava que estava tudo bem. me interessou muito foi o Siza Vieira. Até
Visitei alguns edifícios, até de arquitetos aconteceu uma história curiosa, que lhe
célebres, e fiquei espantadíssimo, por- vou contar. Enquanto ainda era estudan-
que o modo de utilização do edifício já te de arquitetura, interessava-me tanto
não funcionava. Em consequência, pen- o Siza Vieira que fui à sua escola e ainda
sei que poderia haver muito interesse estava toda em betão. Fui lá de propósi-
em explorar conhecimento no campo da to para a ver, e tive imensa sorte porque
multissensorialidade não visual. Eu cha- encontrei o Siza na obra. Ao início, não
mo a isso “invisivilidade”, ou seja, existe me queriam deixar entrar. Eu disse que
uma dualidade, a nível sensorial, entre era estudante de arquitetura, que tinha
o visível e o invisível, e a “invisibilidade” ido de propósito ao Porto e que ia partir
significa a integração das modalidades no dia seguinte, então pediram-me para
sensoriais não visuais. Nesse âmbito, a esperar um pouco porque iam pergun-
perceção do espaço na condição de ce- tar ao Senhor Arquiteto se seria possível
gueira - e a minha condição de cegueira deixarem-me visitar a obra. Na altura, eu
114
julguei que fosse o arquiteto da obra, e existe uma certa conceção aristotélica

Anexos | Entrevista Carlos Mourão Pereira


depois foi uma grande surpresa quando dos sentidos em que o sentido do tato
apareceu o Siza para me deixar entrar. O é considerado o menos nobre, e em que
edifício, todo em betão, tinha muita for- o mais nobre é a visão, e parece que os
ça a nível visual. Eu lembro-me de estar arquitetos se apoiaram muito nessa for-
em salas, com aqueles grandes janelões, mulação filosófica, dando muita atenção
e aquilo, de facto, era um grande cená- a esta hierarquia. Pallasmaa contrariou
rio. O edifício era lindíssimo já em betão, esta ideia com esse livro, e tem sido mui-
quase não precisava de acabamentos, to importante por influenciar bastantes
embora eu o tenha visto, também, de- arquitetos a pensarem da forma oposta
pois de pronto. Isto foi apenas um aparte à aristotélica. Quando eu falo de tato,
que lhe queria contar. não estou apenas a falar se uma moleta
de uma porta ou um corrimão são agra-
Importa dizer-lhe, também, que um ar-
dáveis ao toque. O que estou a falar é da
quiteto que me interessou muito e que
temperatura, da qualidade do pavimento
trata de muitas questões multissenso-
- se é confortável caminhar nesse local
riais é o arquiteto Zumthor. Quando aca-
ou não -, do surgimento de determina-
bei o curso, fiz uma viagem à Suíça para
dos acontecimentos, como escadas, en-
ver as obras do Zumthor e, parecendo
tre outros. Existe uma série de questões
que não, antes de ficar cego já tinha al-
que está relacionada com a qualidade
gum conhecimento porque me interes-
tátil. Muitos arquitetos e investigadores
sava muito a arquitetura multissensorial.
nesta campo utilizam o termo “háptico”.
Talvez seja isso que me fez acreditar que
O sistema háptico é a integração senso-
seria possível explorar conhecimento na
rial do sistema cutâneo com o sistema
arquitetura e dar continuidade à minha
cinestésico, ou seja, com movimento e
prática profissional.
perceção do equilíbrio. Quando estamos
a andar, estamos a explorar toda essa
AM: Relativamente à “invisibilidade”, que forma do tato. Dessa forma, podemos
falou há pouco, e à sua experiência pes- percecionar e sentir a qualidade de um
soal, quais considera serem os estímulos determinado espaço. Um dos erros que
que mais o auxiliam na apreensão do es- os arquitetos fazem é usar muito os de-
paço? graus e as escadas. Mesmo na habitação
unifamiliar, muitas vezes são utilizados
CMP: No fundo, são estímulos muito di-
alguns degraus para criar espaços que
ferentes. A nível sensorial, o sentido que
sejam mais ricos sensorialmente, dis-
eu penso que é mais importante - e não
tinguindo-os de outros. Vou dar-lhe um
apenas para as pessoas cegas - é o tato.
exemplo: tem um corredor estreito que,
Eu aconselho-a a ler o livro The Eyes of
ao fim, se alarga com uns pequenos de-
the Skin, de Pallasmaa. Na arquitetura
graus que o conectam à sala, e quando
115
se chega à sala o pé direito é maior. Pa- seja cego, sinto-me desconfortável num
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

rece que, entrando na sala, a sensação é espaço que seja visualmente desconfor-
melhor, mas este processo é, a meu ver, tável. Por um lado, pelo facto de ter visto,
um retrocesso no conhecimento histó- recorro à minha memória visual e con-
rico da arquitetura. Isto é ir um bocado sigo imaginar como será o espaço. Por
à época medieval, em que esta circuns- outro lado, porque pessoas cegas vivem
tância acontecia, existiam escadas por com pessoas que veem, têm amigos que
todo o lado. Os edifícios resultavam de veem, normo-visuais, e essas pessoas
uma amálgama de espaços que não eram gostam de estar e sentem-se confortá-
muito pensados, a existência de escadas veis em espaços que sejam visualmente
era uma constante. Se visitar um edifício apelativos. Deste modo, é a integração
renascentista, está no mesmo piso e a das qualidades sensoriais das diversas
mudança entre salas faz-se a partir dos modalidades que o espaço compreende
tetos ou da morfologia, por exemplo. Es- que o torna confortável. Assim, um espa-
tes fatores vão variando, mas o pavimen- ço confortável, para mim, não pode ser
to é contínuo. Esta noção manteve-se no desagradável, por exemplo, a nível do ol-
Barroco, mas agora houve um retroces- fato. Se o espaço não for bem ventilado
so, a partir do século XX. Eu penso que ou tiver muitos acabamentos plásticos,
o modo como se faz esta arquitetura re- adquire um cheiro característico e pou-
vela falta de qualidade. A escada deve ser co natural que é desagradável. Um espa-
utilizada apenas quando é mesmo essen- ço que tenha madeira é sempre muito
cial. Além de ser muito desconfortável agradável a nível olfativo. A nível do tato,
para determinadas pessoas, nomeada- além dos pormenores que já referi, penso
mente com o envelhecimento, a escada que a questão térmica é, também, muito
também representa um espaço de que- importante de ser explorada pelos ar-
da, de risco, de acidente, seja para crian- quitetos. Devem procurar espaços com
ças ou para pessoas idosas. Assim, deve iluminação natural, mas que ao mesmo
ser evitadas sempre que possível. Eu falo tempo isso possa ser regulado para um
de escadas, mas refiro-me também a de- conforto de verão e um conforto de in-
graus isolados que por vezes são muito verno. É bom que possa haver esse equi-
perigosos. Existem muitas mais ques- líbrio térmico, e que existam materiais
tões, mas já foquei uma que considero e acabamentos que sejam agradáveis ao
essencial que é o tato. tato. Ao nível do mobiliário da habitação,
eu penso que também a própria disposi-
ção do mobiliário na habitação é quase
AM: E quais as características físicas do tão importante quanto é a própria arqui-
espaço que associa ao conforto? tetura do edifício. Penso que é muito im-
CMP: Eu penso que é um espaço que portante que os arquitetos façam, tam-
equilibra todos os sentidos. Embora eu bém, o design de determinados objetos.
116
O que eu tenho constatado é que, geral- de ser humana em si própria. A arquite-

Anexos | Entrevista Carlos Mourão Pereira


mente, fazem-no mal. Os arquitetos re- tura tem de ser como as pessoas, tem de
correm muito a determinadas soluções ser uma extensão de elas próprias. No
muito depuradas e isso costuma resultar início do século XX houve uma tendên-
em opções não muito sensíveis a nível cia para uma depuração tal, que houve
tátil. Muitos arquitetos recorrem à linha arquitetos que não puseram, ao longo
e ao vértice para definir determinados do século XX, determinados elementos,
objetos, ou até para definirem os seus porque consideravam que não eram ne-
edifícios. Se houver um vértice que não cessários como, por exemplo, corrimões.
esteja ao alcance corporal, em princípio Mais tarde, vai-se percebendo, com uma
já não será um problema. No entanto, o certa maturidade, que constituem uma
mobiliário está ao alcance corporal, se- componente espacial importantíssima
jam cadeiras, poltronas, mesas, qualquer e volta a dar-se valor e a pormenorizar
outro elemento. Existem todo um cará- os corrimões. Houve um repensar de
ter ergonómico que o mobiliário deveria toda a arquitetura do século XIX, com
cumprir de forma a adaptar-se ao corpo o aparecimento do betão, que levou a
humano, e o nosso corpo é muito bo- questionar determinados assuntos. Exis-
leado. Nós necessitamos desse boleado. tiam muitos pormenores dos quais se
Imagine que os nossos dedos teriam vér- foi abdicando, e não há problema! Mas
tices ou arestas vivas, como faríamos? existem determinados pormenores que
O mobiliário deve ser uma extensão do são essenciais e que, muitas vezes, a ar-
próprio corpo. Nesse âmbito, é impor- quitetura moderna não soube interpre-
tante que, para a definição da qualidade tar bem. Existem alguns elementos que
tátil, não haja vértices ou arestas vivas. eram ornamento desnecessário e que, de
Por vezes os arquitetos pensam que, em- facto, não se adaptavam aos novos ma-
bora estes pontos existam e possam pro- teriais e às novas técnicas de construir.
porcionar perigo, as pessoas veem e to- No entanto, ao mesmo tempo, também
mam precauções. No entanto, nem para retirou determinados aspetos necessá-
o caso de normo-visuais isso é verdade, rios. Eu acredito que a Arquitetura da
porque as pessoas distraem-se, ou falta Escola do Porto é um bom caminho para
a luz, ou existe uma situação de emer- prosseguir com inovação e que possa
gência e, nesses momentos, o indivíduo recuperar determinadas qualidades do
pode ficar numa situação análoga à da espaço. Com Fernando Távora, isso foi
pessoa cega e ver-se obrigado a explorar muito claro. Eu penso que a nova gera-
o espaço. A arquitetura tem que ser fun- ção de arquitetos poderá avaliar o que
cional, tem de ser resiliente no seu uso, foi feito no século XX e ver muito bem
e tem de incorporar toda uma série de se não será preciso recuar mais um pou-
mutações e de adaptações aos requisitos co e saber se algumas coisas não seriam
de conforto humanos. A arquitetura tem feitas de melhor modo anteriormente.
117
Por exemplo, existem imensas situações correr deveriam poder abrir, também,
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

de mobiliário que têm vértices. Se vir, através de um eixo vertical, facilitando a


atualmente, mesas desenhadas por um sua limpeza.
arquiteto, em madeira, é muito natural
Retomando as questões de som, eu
que tenham vértices e arestas vivas. Essa
considero extremamente importante a
mesma mesa, feita no início do século
acústica dos espaços, devendo procu-
XX, quando ainda não existia essa depu-
rar que estes tenham pouco ruído e que
ração, teria as arestas e os vértices bo-
possam integrar sons da natureza. Um
leados. Quando passava a mão, a expe-
espaço, numa casa, que não tenha jane-
riência a nível tátil era muito mais rica.
las, é um espaço negativo. É importante
Existem alguns arquitetos que fizeram
que a arquitetura consiga fazer espaços
um trabalho muito depurado no sécu-
silenciosos, mas que não sejam total-
lo XX e que souberam controlar muito
mente silenciosos, ou seja, que seja pos-
bem estas questões como, por exemplo,
sível abrir-lhes uma janela e deixar en-
o Paulo Jacobsen. Tem obras de arqui-
trar os sons agradáveis do exterior. Deve
tetura que são atuais e que o mobiliário
procurar-se incorporar algumas árvores
de arquitetura é atual. O Charles Eames
no exterior, porque atraem pássaros e
é outro bom exemplo do que estou a re-
outras circunstâncias que melhoram
ferir. Existem certos detalhes da arqui-
a experiência habitacional. Ao mesmo
tetura do passado que importa revisitar,
tempo, isso deve ser combinado com a
em termos de pormenor. O pormenor é
exposição solar. Deve existir mais a uti-
muito importante nesta questão da ar-
lização do sul, e o norte deve ser evitado,
quitetura para a deficiência visual, por-
porque existem vários problemas nas fa-
que o pormenor - não só para as pessoas
chadas a norte. Se se fizer uma varanda
cegas, mas também para as pessoas com
orientada a norte, não se consegue, por
baixa visão - é muito importante. Na ha-
norma, utilizar. É importante haver uma
bitação, nas cozinhas, algo que é mui-
especial preocupação com a orientação
to interessante para pessoas com bai-
solar da habitação.
xa visão ou com cegueira é a existência
de portas de correr. Acontece o mesmo Atualmente, existe muito a tendência
para as crianças. No entanto, as portas de se fazerem torres que, na minha opi-
de correr têm uma desvantagem que, nião, é um grande erro a nível urbanís-
na minha opinião, os fabricantes deve- tico. O urbanismo do século XIX é uma
riam prestar mais atenção. As portas de lição, ainda, para se revisitar. As torres
correr deveriam possibilitar duas ações: que surgem atualmente no redor das
não apenas a de correr, mas também a cidades são espaços muito desconfor-
de abrir. Estas questões não se prendem táveis. Em situações de trânsito, o quar-
apenas com mobiliário, mas também teirão permite que haja partes da casa
a nível geral nos edifícios. As portas de que se abram para o logradouro no in-
118
terior do quarteirão e escapem da azá- porque os municípios não conseguem

Anexos | Entrevista Carlos Mourão Pereira


fama da cidade, porque é criada uma garantir a manutenção de tudo. Quando
barreira acústica. Eu penso que existem estamos a falar de uma cidade condensa-
muitas situações de edifícios da atuali- da e consolidada, os passeios são muito
dade que não recorrem ao quarteirão, e frequentados e logo que há uma falha as
até em termos de condição térmica po- entidades são avisadas, ainda que demo-
dem ser menos eficientes. Com a utiliza- rem tempo a resolver o problema. Deste
ção das empenas, os edifícios mantêm a modo, eu considero profundamente que
condição térmica dos adjacentes, o que o quarteirão é muito importante, e pelo
eu penso que será, até, mais económico, contacto que tenho com pessoas cegas
até por existirem menos fachadas para ou de baixa visão, é-me transparecido
construir. Eu não percebo, de facto, a que têm muita dificuldade em movimen-
utilização da torre. Além disto, para as tar-se em estruturas que não se conec-
pessoas com deficiência visual é mui- tam entre si.
to importante a existência do passeio e
a referência da parede. Quando as pes-
soas vivem em torres de apartamentos e, AM: Há pouco referiu algumas altera-
assim, desintegradas dos passeios e não ções na habitação que poderiam melho-
conformando um quarteirão, é comum rar a vida das pessoas com deficiência
que as pessoas cegas se vejam obriga- visual. Pelo contacto que tenho tido com
das a pedir ajuda para se orientarem. pessoas nessa circunstância, é comum
Por outro lado, se existir o passeio com dizerem-me que qualquer indivíduo se
o quarteirão e com as lojas, tem grande adapta à sua habitação, não sendo ne-
impacto positivo na orientação devido cessário implementar regras para o es-
às referências. Penso que é uma lição paço interior. Qual a sua opinião sobre
de urbanismo que deve ser tida em con- este assunto?
ta. Esta ideia do edifício torre integra, CMP: Eu penso que tem uma certa ver-
até, um urbanismo muito associado ao dade. As pessoas vão-se adaptando ao
Le Corbusier. Eu considero que ele tem espaço e tentam corrigi-lo com o seu
pontos muito interessantes a nível do próprio uso. No entanto, nem sempre
edifício, mas tenho de o considerar de- isso é possível. Por exemplo, existem si-
sinteressante e desumano a nível de ur- tuações em que as portas abrem em sen-
banismo. É pena que muitos arquitetos tido contrário do que seria o mais indi-
urbanistas tenham repensado o espaço cado. Imagine um quarto com cerca de
dessa forma, dando origem a tantos edi- três por quatro metros. A colocação da
fícios isolados, criando zonas da cidade porta deve ser feita, independentemen-
desconexas. Surge muita área de passeio te da parede em que estiver, de modo a
que acaba por ser mal tratada ou descui- que, quando abra, fique paralela à parede
dada com o desenvolvimento do tempo, adjacente quase sem espaço entre a por-
119
ta e a parede. Existem muitas situações AM: É o que vai acontecer. A atividade
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

em que isso não acontece e, se a porta vai realizar-se no Centro Cultural de Via-
abrir ao contrário, o local de passagem na do Castelo, desenhado pelo Eduardo
torna-se uma zona de risco. Não sei se Souto de Moura, e os meus colegas vão
tem conhecimento, mas as portas são entrar vendados no espaço. São colegas
um dos maiores problemas das pessoas que não são de Viana do Castelo e que
cegas, é muito comum embaterem nelas, nunca estiveram no interior do Cen-
por isso esta questão é muito importan- tro Cultural. Ser-lhes-á explicado como
te, especialmente na habitação. Acredito se utiliza a bengala branca e, depois, o
que, nesta área, seja importante existir objetivo é que eles percorram o espaço
legislação que preveja e regulamente o com o nosso auxílio em indicações. No
posicionamento das portas. Esta infor- fim desse primeiro encontro dos meus
mação seria importante para todos os colegas com o edifício, será realizada
arquitetos, porque todos, em algum mo- uma conversa em torno do modo como
mento, são confrontados com os modos percecionaram o espaço, ainda sem o
de posicionamento das portas. verem, e voltarão a percorrê-lo, desta
vez, com técnicas de guia. Apenas depois
Assim, considero muito pertinente o
destes dois confrontos verão o espaço e
âmbito da sua investigação. No email que
o percurso que percorreram.
me enviou anteriormente, a Ana Marga-
rida referiu que estava interessada em CMP: Seria, também, muito interessante,
explorar a sensibilização e que, para isso, combinar essa simulação de deficiência
pretendia realizar uma atividade com os visual com fatos que permitissem simu-
estudantes de arquitetura da FAUP. lar as limitações físicas sentidas por pes-
soas idosas. Os fatos que estou a referir
AM: Exatamente, eu vou realizar uma
têm pesos em alguns pontos específicos
atividade na próxima semana em Viana
e, na zona das articulações, são consti-
do Castelo, com a colaboração da de-
tuídos por peças mais rígidas que não
legação de Viana do Castelo da ACAPO,
permitem a mobilidade total. Eu utilizei
para colegas meus estudantes de arqui-
um destes fatos, uma vez, e conside-
tetura. Dependendo dos resultados da
rei dificílimo subir uma escada sem um
atividade, eu espero que tenha como
corrimão, por exemplo. Penso que estas
consequência mostrar pontos positivos
experiências são extremamente impor-
na realização deste tipo de atividades
tantes para estudantes de arquitetura,
junto dos estudantes de arquitetura, e
porque é o único modo de efetivamen-
expor essa ideia à própria faculdade.
te compreenderem as limitações físicas
CMP: Eu acho isso muitíssimo interes- de algumas das pessoas que vão ocupar
sante. Penso que seria importante que o espaço, e é uma experiência que fica,
houvesse uma simulação das condições de certeza, para a memória. No campo
de deficiência visual. científico existe muita gente que ques-
120
tione este conhecimento empírico. Cor- em obras do Souto de Moura. Certamen-

Anexos | Entrevista Carlos Mourão Pereira


re-se o risco de, por exemplo, ao sub- te, poderão também existir situações
meter os seus colegas à simulação da que não estejam tão bem resolvidas ou
deficiência visual com os artefactos que adaptadas, como é natural, e isso é mui-
entender, eles considerarem que, afinal, to interessante. Escolher edifícios que
a experiência não é assim tão complica- estejam mal feitos no geral poderia pre-
da. A experiência realizada nunca pode- judicar a experiência. É importante que
rá retratar, exatamente, o real, porque, sejam edifícios com boas características,
muitas vezes, o que faz a diferença é o que se frequente boa arquitetura, porque
tempo. As tarefas podem não ser muito apenas a partir desses se podem analisar
complicadas, mas quando feitas muitas os elementos a utilizar e reconhecer os
vezes ou durante muito tempo, na vida errados. Isto permite-nos evoluir na ar-
diária, tornam-se mais complicadas. Não quitetura. Penso ser importante, tam-
é o mesmo que estar a fazer algo com bém, que a Ana Margarida escolha um
muita atenção e num determinado mo- percurso, para diminuir as situações de
mento. A simulação tem a limitação de risco, seja queda ou obstáculos ao nível
não dar, com rigor, a sensação da reali- da cabeça. Certamente vão existir espa-
dade. A realidade pode ser mais peno- ços muito ricos sensorialmente, e adap-
sa ou, por outro lado, também pode ser tados, e outros que não são. É bom o
mais fácil, por uma pessoa estar habitua- confronto com essa dualidade. Acredito
da à sua condição física. Alguém de olhos que vá fazer um bom trabalho e que vai
vendados terá, certamente, mais dificul- ser muito útil para o futuro da arquitetu-
dade a fazer algo que alguém com defi- ra. Eu tenho muita esperança na Escola
ciência visual faz regularmente. Embora do Porto.
estas limitações existam, eu mantenho a
AM: Muito obrigada! E o que define, para
opinião de que, do ponto de vista didáti-
si, a cidade?
co e especialmente para alunos de arqui-
tetura, a simulação é muito interessante CMP: Vou ter de voltar ao que já disse,
porque permite de imediato um conhe- portanto, desculpe. No entanto, para
cimento empírico relativo à realida- mim, o que define a cidade é o quartei-
de exposta. Mesmo que existam muitas rão. Quando eu sinto que existe o quar-
condicionantes que não permitam que teirão, o passeio, e que tudo o que ne-
o contacto seja cientificamente o mais cessito é possível de encontrar num
aproximado, eu penso que, se se esco- local próximo, sinto que isso é a cidade.
lherem bem os edifícios, esta atividade Quando tenho de fazer grandes percur-
só pode trazer frutos positivos. Eu não sos, em que por vezes tenho de ir de car-
visitei o edifício que a Ana Margarida es- ro, sinto que já não é cidade.
colheu, mas suspeito que tenha elemen-
tos muito interessantes, como é habitual
121
AM: E o que é a beleza?
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

CMP: A beleza, para mim, é o equilíbrio


multissensorial. Geralmente, quando
se fala em beleza, as pessoas interpre-
tam o conceito do ponto de vista visual.
No entanto, para mim, a beleza é muito
mais que isso. Aliás, por vezes podemos
afirmar que uma obra musical é bela, e
não estamos a falar de nada que abran-
ja o campo visual. Também assim penso
que se aplique à arquitetura. A beleza é
consequente da perceção multissenso-
rial e das pessoas se sentirem bem a fre-
quentar um espaço. Uma bela casa é uma
casa que funciona, onde as pessoas vi-
vem bem e são felizes. A arquitetura bela
é a que faz as cidades felizes, é o que faz
com que as pessoas gostem de viver ne-
las.

AM: Tem alguma sugestão para eu im-


plementar neste trabalho? Ou existe al-
guma pergunta que devia ter feito e não
fiz?
CMP: Não, penso que não. A Margarida
falou-me de temas muito interessantes, e
até algumas das sugestões que dei fiquei
com ideia que já as estava a cumprir, de
modo que não tenho mais nada a acres-
centar. Penso que o seu trabalho vai ficar
excelente.
122
5 | ENTREVISTAS A INDIVÍDUOS COM DEFICIÊNCIA VISUAL

Aqui serão apresentadas as entrevistas 01 José


realizadas aos catorze (14) indivíduos
02 Luís
com deficiência visual, previamente
mencionados. Entre as catorze (14) pes- 03 Paula
soas inquiridas, quatro (4) possuem baixa 04 Maria
visão e dez (10) enquadram-se na defi-
05 Marta
nição de cegueira. Dessas dez (10) com
cegueira, três (3) são cegas congénitas e 06 Marta
sete (7) têm cegueira adquirida. 07 David
Como anteriormente referido, as entre- 08 Carlos
vistas decorreram entre o dia 20 de ju-
nho de 2022 e o dia 3 de agosto de 2022, 09 Exércia
de acordo com a disponibilidade dos 10 Aliu
participantes. A duração das entrevistas
11 Leonardo
varia entre os trinta e um (31) minutos e
os noventa (90) minutos. 12 Marta
13 Jose

São expostas todas as entrevistas reali- 14 Gabriel


zadas. Encontram-se por ordem crono-
lógica de realização. A ordem das mes-
mas surge previamente identificada para
facilitar a sua consulta.
123
01 JOSÉ
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

José, 72 anos. Entrevista realizada no dia AM: Tendo em consideração que esta-
20 de junho de 2022, em Viana do Cas- mos num espaço que já conhece, pode
telo. descrever o espaço onde nos encontra-
mos (sala de estar de José)?
AM: Nasceu cego? Como e com que ida- J: Sim. Eu já conheço. Do lado esquerdo
de perdeu a visão? está a janela. Do lado direito, a porta. À
J: Não. Existe uma diferença entre o nas- frente está o relógio. Tem as dimensões
cer cego e o perder a visão. Aos 24 anos, de mais ou menos sete metros por qua-
quando tive o acidente (explosão de uma tro. Eu conheço.
mina), perdi a visão, mas ao fim de três
meses recuperei a visão de um olho. Até AM: Já morava nesta casa antes de ce-
aos 47 anos via perfeitamente, e depois gar?
nessa idade comecei a perder gradual- J: Sim. Vim para aqui quando tinha cinco
mente. Fiz uma operação, com 48 anos, anos. A casa já tem 66 anos. Aqui não pre-
que me deixou cego total. ciso da bengala, tenho as referências. Ne-
cessito sempre de dar o toque no obstá-
AM: Consegue percecionar a luz? Ou culo, tenho de ter as minhas referências.
vultos? (Exemplifica modo como se movimenta e
J: Nada. Não consigo ver nada. toca nos elementos da sala). Já sei o es-
paço de cor e onde estão as coisas, facil-
AM: De que forma perceciona e com- mente vou ao sítio.
preende as características de um espa-
ço? (Distâncias (altura, profundidade, AM: E em espaços que não conhece?
largura), escalas, limites, cheios e vazios) J: Nos espaços que não conheço, tenho
J: Como é que compreendo? Eu analiso o de fazer reconhecimento. Tenho de estar
espaço ou com a bengala ou com o tato. com a bengala, mas vou demorar sempre
Tenho de ter referências, e apenas atra- algum tempo.
vés de uma bengala ou do toque é que AM: Mas sente-se confortável?
faço o reconhecimento. Não tenho outra J: Depende do sítio, depende do espaço.
maneira de ter a perceção do espaço. Se for a um café, toco com a bengala no
AM: E através desse reconhecimento degrau e depois toco com a bengala na
que faz consegue dizer se considera o cadeira, e pergunto se está alguém. Se
espaço amplo, ou..? estiver alguém, orientam-me para o sítio
J: Depois da análise, depois de verificar, onde me posso sentar. Dão-me indica-
fico com a ideia. ções.
124
AM: Existe algum espaço do qual tenha -me com o barulho dos carros, mas se

Anexos | Entrevistas a indivíduos com Deficiência Visual


passado a gostar mais e um de que tenha for um elétrico… Sem a audição era uma
deixado de gostar, após ficar cego? desgraça.
J: Quando vou daqui ao café, percor-
ro aqui este espaço, o bairro, vou pela AM: Sente que os estímulos auditivos
rua, vou até ao túnel, (...). Se eu tivesse também podem ser desorientadores?
a certeza que nos passeios não estivesse J: Sim, não gosto de muito barulho. Às
nenhum carro, eu ia à vontade… Mas há vezes acontece de não conseguir bem
sempre algum carro. Então tenho que ir perceber de onde vem o som. Onde es-
devagar. Já sei que vai aparecer um obs- tiver muito barulho, é complicado. Só
táculo, mas continuo a passar e a fazer a me oriento pela audição e pela memória.
vida normal. Na minha casa gosto igual. Fixar pontos de referência. Se for para
Não preciso de bengala. Quando entro um sítio que eu não conheça, tenho de
num espaço diferente, como uma farmá- fazer o reconhecimento. Primeiro, tenho
cia, tenho sempre de andar de bengala. E de fazer o reconhecimento, e não cos-
peço permissão para entrar. tumo ir sozinho. Mas passando uma ou
duas vezes, já tenho as referências, já me
AM: E tem algum espaço, sem ser no es- oriento sozinho.
paço público, onde antes gostava de ir e
já não gosta? AM: Então cria mapas mentais de orien-
J: Há sítios em que me sinto à vontade. tação?
Há outros em que não. Há uma minoria J: Exatamente. Mas como eu me habi-
de pessoas que não é civilizada, infringe, tuei a ir ao café, é um trajeto que faço
obstrui os espaços de passagem. há bastante tempo e já não vejo há 24 ou
25 anos. Aí não tenho problemas, ando à
AM: E relativamente aos outros sentidos, vontade.
sente que desde que perdeu a visão fica- AM: E os mapas mentais que cria têm re-
ram mais apurados? ferências também visuais?
J: Sim. O sistema auditivo melhorou, J: Sim, tenho referências com o toque. O
apesar de que no acidente, aos 24 anos, que me lembro também tem influência.
também fiquei surdo por causa da ex- Sei mais ou menos onde estou e já sei o
plosão. Depois recuperei perfeitamente. que esperar das referências.
Penso que um ouvido ouve melhor que
outro, mas ouço bem. AM: A noção de conforto surge em con-
sequência de que características de um
AM: Sente que a audição também é um local?
estímulo para se orientar no espaço? J: Quando vou num passeio, por exem-
J: Sim, se houver barulho. Por exemplo, plo, quando vou por uma rua… Vou com
a atravessar uma passadeira eu oriento- a bengala e sinto-me mais ou menos
125
confortável. Desde que tenha uma orien- Agora, nos sítios onde ando… A emprega-
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

tação por perto, já é confortável. da dá-me algumas indicações. Por exem-


plo, “olhe que está aqui o aspirador”, “olhe
AM: Tem por hábito emitir sons para que está ali um balde”. As pessoas avisam-
descodificar os espaços, ou serve-se -me, senão tropeço.
apenas dos sons da envolvente?
J: Apenas sons da envolvente. De res- AM: Mas considera que quando um ar-
to, é com a bengala. Mas tenho alguma quiteto projeta uma casa, deviam existir
sensibilidade, quando me aproximo de algumas coisas que devia ter em consi-
um obstáculo, tenho a perceção de que deração à priori?
ele vai existir. Tenho a sensibilidade para J: Já pensei nisso. Mas uma casa não pode
perceber que estou próximo de um obs- ser desenhada para uma pessoa com de-
táculo. ficiência visual. As casas têm de ter inter-
ruptores. Eu não preciso de luz. Quando
AM: Sente que associa o som a imagens vou ao quarto, não acendo a luz. Mas se
visuais? um arquiteto me fizesse uma casa, que
J: Associo a memórias visuais, sim, às alterações haveria de fazer… Nem sei.
imagens que tenho. Porque eu apercebo-me de tudo, eu re-
conheço as coisas, porque eu já vi… Eu
AM: Qual a relação que tem com a janela faço a barba sozinho. Para uma pessoa
em termos de privacidade e iluminação? que nasceu cega, as coisas são diferentes.
A luz solar destaca-se na forma como Eu já tive a noção de como realmente são
perceciona o espaço? as coisas, as formas… Por isso… Já pen-
J: Se estiver sol, dou toque na janela e sei nisso. Um arquiteto, se me pudesse
percebo logo porque a janela está quen- fazer uma casa… Para mim… Sei lá! Não
te. Eu apercebo-me. Aqui costuma estar sei. Depois de estarem as coisas coloca-
sol de manhã. Dou toque na janela e per- das, com facilidade eu vou reconhecer.
cebo se está frio ou calor. Quando estou Adapto-me. Não preciso da ajuda de nin-
na rua apercebo-me também quando guém, faço a vida normal, sou autónomo.
está sol, quando está a chover, quando Só não cozinho, porque tenho emprega-
está sombra ou nevoeiro. da. Mas também seria mais complicado.
Quando tive o acidente, a partir daí, eu
AM: Teve de fazer adaptações à sua casa fiquei um bocado… não sei se foi trauma-
depois de ficar cego? tizado, mas não me aproximo do fogo. Fi-
J: Não. Se tiver de se alterar algo, depois quei com um bocado de receio. Na ACA-
habituo-me. Faço uma vez, duas vezes, e PO, no Porto, tive lá uma reabilitação e
memorizo essa situação. Por isso, orien- uma das aulas era a cozinha. Essa eu não
to-me com facilidade. Quando alguma fiz. Mas sei que há cegos que fazem uma
coisa está fora do sítio é que é mais chato. vida normal, vivem sós.
126
Eu já tive essa fase em que via vultos. Aju- objeto que memorizou, uma definição

Anexos | Entrevistas a indivíduos com Deficiência Visual


da muito! As sombras, os sítios. O muro abstrata que estudou.
está escuro, coisas assim. Uma pessoa
anda com a bengala, mas distinguindo o AM: Qual é a sua cor favorita?
vulto… Facilita muito. Mas essa fase foi J: Eu gosto do verde, mas a cor que uso
horrível, batia muitas vezes. Essa fase an- mais na roupa é azul. Também gosto do
tes de cegar foi chata. Ia com muita con- amarelo, é uma cor viva. O verde com o
fiança. Não distinguia e batia. A bengala amarelo. O azul e o amarelo. O cinzen-
dá-me mais segurança. to com azul… O mar. O mar é bonito. Eu
A última operação que fiz, que foi em vou para a praia e para mim é noite. Mas
Coimbra, já só via vultos e tinha sensi- se sentir o calor… Está o sol a queimar e
bilidade à luz, mas levei a bengala para é noite.
o hospital. Se algo corresse mal… Como
correu… Já tinha esse apoio. Mas tenho AM: Sente que as memórias visuais que
ultrapassado, não desisto. É da maneira possui se estão a desvanecer?
de ser. Consigo dar a volta às coisas, já J: Não. Ainda tenho a noção exata das co-
não dou muita importância a coisas que res e do resto. Já fiquei cego há 25 anos e
parecia que tinham muita importância ainda tenho as memórias todas. E outra
antes. Consigo ver o lado bom. Se me coisa… Eu não envelheço as pessoas. As
chateio é pior para mim. Que valor que pessoas que eu conheci… Quando estou
tem a vista! Só o facto de se ver é uma com pessoas amigas, eu tenho a memó-
felicidade. Tenho a sorte de já ter visto, ria visual de como eram na altura. Eu não
tenho a noção das cores. Só valorizei a conheço as pessoas como são agora. Às
cor depois de estar cego. Uma pessoa vai vezes dizem-me que se eu visse… que
ver a paisagem… Mas os tons que tem o agora está toda a gente cheia de rugas! E
monte, os arbustos, o por do sol… É lin- quando estou a conversar com alguém…
díssimo, e a gente não valoriza muito, é imagino a cara da pessoa.
banal, natural… Mas hoje valorizo muito
mais. Quem me dera! AM: O modo como cria novas memó-
rias é substancialmente diferente do que
AM: Mas ainda o consegue imaginar? acontecia quando tinha visão?
J: Perfeitamente! Vejo perfeitamente as J: Não sei responder.
coisas. Nem lhe passa pela cabeça… as
vezes que eu precisava de ver. No início AM: Qual é a divisão da casa onde costu-
era muito difícil. Ficar cego não é fácil. ma passar mais tempo e porquê?
Mas a cor é uma coisa fantástica. Uma J: A sala, porque tem a televisão. Costu-
maravilha. Se perguntar a uma pessoa mo ouvir. É aqui que passo a maior parte
cega que nunca viu como é a cor… Não do tempo.
sabe! Como descreve? Sabe como um
127
AM: Qual é, para si, a definição de algo AM: Qual é o seu espaço favorito?
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

belo? J: É a sala. É onde passo mais tempo e é


J: Como cego… É aquilo que me atrai. O também o espaço que gosto mais.
que uma pessoa acha maravilhosa, acha
bonita… São os nossos sentidos que nos AM: Se pudesse desenhar, agora, a sua
transmitem a beleza… Aquilo que a gen- casa de sonho, o que não poderia faltar?
te sente que nos agrada. É uma pergunta J: Numa casa de sonho… Tinha de ter algo
um bocado difícil. Deve ser pelas formas. com música. Aparelhagem, coluna, tinha de
ter música. E tinha de ter um quintal. Tinha
AM: O que considera ser a beleza na ar- de ter espaço. Ir ao quintal é uma maravi-
quitetura? lha para mim. Também televisão, para a in-
J: Posso dar exemplos? Aqui, em Viana do formação. Penso que era isto que não me
Castelo, eu gosto muito da linha do edi- podia faltar.
fício do hospital. Quando vi o hospital,
senti que estava bem enquadrado. Mas
isto é o que tenho de uma recordação
visual. Gosto de linhas retas. Em mobi-
liário também. Também gosto muito do
desenho do arco abatido. Não me lembro
em que edifícios havia, mas gosto. Gos-
to do vidro. De janelas grandes, amplas.
Gosto de madeira. A casa de um arqui-
teto distingue-se, não sei porquê, é di-
ferente. Uma pessoa nota quando é uma
casa de um arquiteto.
Em Lisboa gosto das Amoreiras, do Ta-
veira.
Definir o belo… É o que sentir no mo-
mento. Mas o que considero belo ago-
ra… É muito difícil. É pela descrição da
pessoa, eu vejo pelos olhos dos outros. É
pela descrição de quem estiver comigo,
mas depende também da descrição das
pessoas, e sinto que elas têm dificulda-
de em descrever. Nunca fico com grande
imagem, é muito abstrato, não consigo
dizer se é bonito ou se é feio. Mas quan-
do me descrevem… às vezes sinto que as
coisas podem ser bonitas, que são uma
maravilha.
128
02 LUÍS

Anexos | Entrevistas a indivíduos com Deficiência Visual


Luís, 27 anos. Entrevista realizada sofá e um quadro (aponta para a frente,
no dia 21 de junho de 2022, em Viana na diagonal).
do Castelo. AM: Existe algum espaço do qual tenhas
passado a gostar mais e um de que tenha
AM: Desde que nasceste que tens o mes- deixado de gostar, com a degeneração
mo grau de visão, ou foste perdendo ao da visão?
longo do tempo? L: Penso que não há. Andava no futebol e
L: Não. Eu nasci com cataratas, mas de- gostava muito de estar no campo. Agora
pois, mais tarde, tive que ser operado. gosto na mesma de ir a estádios.
Nessa altura andava no futebol e levei
uma bolada, e a retina soltou-se. Estra- AM: Quais os maiores estímulos para a
gou a córnea e a retina. Estou a ser se- orientação no espaço?
guido no Porto. J: Não uso bengala. Ainda consigo distin-
AM: E logo nesse acidente ficaste cego guir, oriento-me com a pouca visão que
de um olho? tenho.
L: Cego de um olho, sim. No outro ainda
tenho um bocadinho de visão. AM: O que é, para ti, um espaço que con-
sideres confortável?
AM: Ainda consegues distinguir, com a L: Em casa, por exemplo. Gosto de estar
visão que tens, tudo que está à tua volta, no meu quarto porque tem playstation.
ou é uma perceção de vultos?
L: Ainda consigo distinguir. Por exem- AM: E podes descrever-me o teu quarto?
plo, consigo distinguir a pessoa que está L: É médio, pequeno. Tem uma cama, a
à minha frente. Tenho 5% de visão num playstation, uma televisão plasma. Jogo
olho e 10% no outro. Mas se tapar o olho lá, às vezes com guiadores. As janelas são
que tem 10%, não vejo nada. Nem sequer grandes, são largas. São janelas de cor-
a minha mão. É como se tivesse uma nu- rer.
vem preta.
AM: E existe alguma hora do dia em que
AM: Podes descrever o espaço onde nos sintas o sol a entrar diretamente?
encontramos? L: Ao final da tarde. Baixo o estore para
L: Estamos no salão do meu pai, o meu não me incomodar.
pai é cabeleireiro. Consigo ver as portas.
À minha frente uma parede, à esquer- AM: Como a tua visão já é muito reduzi-
da outra. Aqui uma porta (aponta para da, a ausência de som interfere na forma
a frente, na diagonal), ali outra porta como te movimentas?
(aponta para trás, na diagonal). Ali um L: Não, não me incomoda.
129
AM: E em espaços que não conheces, L: Sim, é visual.
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

sentes-te menos confortável em movi-


mentar-te, ou continua a ser confortável AM: E como é que o descreverias?
para ti? L: (Descreve por palavras o trajeto). Pen-
L: Em espaços que não conheço perco- so no percurso passo por passo.
-me.
AM: Serias capaz de descrever a tua casa
AM: E como te tentas orientar quando de modo a que eu a pudesse desenhar?
estás nessa situação? L: Sim, penso que sim. (Inicia uma pe-
L: Ou vou com alguma pessoa que me quena descrição relativamente à sua
oriente, ou não sou capaz. Aqui em Via- casa)
na sou capaz de ir à ACAPO, por exem-
plo, oriento-me facilmente até lá. Mas de AM: Os espaços que já conheces e sen-
resto… Sítios no monte ou qualquer ou- tes-te mais confortável a percorrer… E
tro sítio, não em atrevo. Aqui no espaço depois existem os espaços que não co-
público consigo normalmente ir sozinho. nheces e em que não te sentes muito
confortável.. É porque esses espaços não
AM: E se for um edifício público, vais so- os vês muito bem, não é?
zinho? Por exemplo, a biblioteca. L: Perco-me. Se alguém percorrer comi-
L: Aqui vou, sim, porque já conheço. Se go duas, três vezes já sou capaz de o per-
for um sítio novo alguém irá comigo. correr sozinho.
AM: Achas que as memórias que reténs
AM: E quais consideras que são os prin- são visuais ou associadas aos outros sen-
cipais obstáculos? Não vais sozinho pelos tidos?
obstáculos ou questões de insegurança? L: Eu tenho boa memória. Bom sentido
L: São questões de insegurança. de orientação.

AM: Sentes que tens feito alterações à AM: Ainda distingues bem as cores?
tua casa conforme vais perdendo a vi- L: Sim.
são? Sentiste necessidade de mudar al-
guma coisa? AM: O que é, para ti, algo bonito?
L: Não, nunca senti essa necessidade. L: Eu distingo a beleza de algo com a vi-
Se a minha visão se mantiver assim, sou são ou com o cheiro. Gosto de flores. So-
capaz de fazer tudo. Se perder a visão bretudo da rosa.
completamente, aí terei de usar bengala.
AM: E na arquitetura, sabes dizer-me o
AM: Relativamente à forma como ima- que gostas? O que achas bonito?
ginas os teus percursos… O percurso L: Acho bonito os móveis. Os edifícios
mental que tu crias é visual? não acho.
130
AM: E gostas mais dos móveis curvos, 03 PAULA

Anexos | Entrevistas a indivíduos com Deficiência Visual


pontiagudos, com desenhos..? Paula, 52 anos. Entrevista realizada
L: Curvos, talvez curvos. no dia 22 de junho de 2022, em Viana
do Castelo.
AM: Qual é o teu espaço favorito?
L: A ACAPO. AM: Nasceu cega?
P: Não.
AM: Porquê?
L: Porque tem várias atividades. Lá AM: Como e com que idade perdeu a vi-
aprendo TIC. são?
P: Perdi a visão aos 32 anos, embora eu
AM: Tem muitas janelas? tivesse baixa visão antes. Ao longo da
L: Tem. vida, vivi sempre com baixa visão, mas
era absolutamente autónoma. Depois,
AM: As salas têm todas a mesma altura foi com um episódio de um acidente do-
ou têm alturas diferentes? méstico que deixei de conseguir contro-
L: Isso já não sei. Mas as salas são largas. lar a doença que tinha conjugada com o
acidente.
AM: E um espaço que tu não gostes?
L: Não sei. AM: Consegue percecionar a luz? Ou
vultos?
AM: Se pudesses desenhar, agora, a tua P: Não, nada.
casa de sonho, o que não poderia faltar?
L: Um plasma. A playstation. AM: De que forma perceciona e com-
preende as características de um espa-
ço? (Distâncias, escalas, limites, cheios e
vazios)
P: Eu aqui só não me desloco na área
do público em que circulam pessoas, e
por isso nunca faço esse percurso sozi-
nha. De resto, faço tudo sozinha. O que
é que me ajuda a perceber o espaço? A
dimensão da sala? A acústica. Por exem-
plo: uma parede. Quando está revestida
a madeira, eu sinto o conforto do reves-
timento, que se opõe a uma parede de
betão, fria. Sinto de forma diferente, é
algo que fui desenvolvendo, aprendendo
a percecionar.
131
Embora eu tenha perdido a visão aos 32 não poder abrir uma janela. Ao fim do
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

anos, ainda preservei a perceção lumi- dia, quando chego lá fora, é uma liber-
nosa durante uns 10 anos e a importân- tação. É sair daqui a respirar. Eu nem te-
cia que tem a perceção da luminosidade nho bem noção de que estou a respirar
é enorme. Não se consegue percecio- um ar saturado até chegar lá fora. Quan-
nar nada, sequer vultos, mas é uma aju- do abro a porta respiro, sinto o ar. Aqui
da extraordinariamente importante em vou perdendo essa qualidade e não me
termos de orientação. Depois é que eu apercebo, só quando sinto o oposto.
senti a importância daquele resíduo tão
pequenino, mas depois de ter perdido AM: Pode descrever o espaço onde nos
completamente percebi que era extre- encontramos?
mamente importante para mim, porque P: Este espaço é uma sala quadrada. Dois
me ajudava imenso nas deslocações. E dos painéis desse quadrado têm jane-
também dava para, lá em casa, perceber la inteira em cada um dos painéis, cujo
se a luz estava acesa ou apagada. Agora vértice é unido, justamente, pelas duas
tenho de recorrer a outras estratégias, vidraças - se posso chamar vidraças a
senão, se estiver sozinha em casa, a luz isto. Depois, os outros dois painéis têm
é capaz de ficar uma semana acesa sem estantes sobre toda a largura, mas não
que me aperceba. sobre toda a altura, e num desses painéis
encontramos a porta.
AM: Nessa questão da luz… Qual é a re-
lação que acaba por ter com a janela? AM: Existe algum espaço do qual tenha
Mesmo não percecionando a luz, qual é passado a gostar mais e um de que tenha
a relação que tem? Ainda é importante? deixado de gostar, após ficar cega?
P: Extremamente importante! Não con- P: Um espaço… Não me estou a conse-
sigo explicar como o sinto, não tenho guir recordar, portanto não deve existir
argumentos. Por exemplo, este espaço uma ocasião em que isso me tenha mar-
aqui (biblioteca municipal de Viana do cado profundamente. Mas eu hoje vejo os
Castelo), estas janelas não abrem, mas eu espaços de forma diferente. Por exem-
fico maravilhada com esta sala, sobretu- plo, quando via, quando entrava num es-
do pelas janelas que tem, apesar de não paço, o mais importante para mim era a
abrirem. Consigo ter sol nesta sala o dia cor. Muito mais importante do que, por
todo, e o sol é mesmo fonte de energia. exemplo, as paredes eram revestidas a
Por exemplo, durante o inverno… Este madeira ou a outro material. Talvez aí
inverno… Nunca liguei o ar condiciona- as janelas já me afetavam muito mais do
do. E obviamente o calor do sol não tem que hoje.
nada a ver do calor do ar condicionado. Hoje, não. Agora gosto muito do acon-
Mas eu também gosto muito de ar fres- chego. Gosto de entrar num espaço e
co! E o que não gosto nada nesta sala é sentir-me confortável. Não gosto do frio.
132
Tudo que é muito pedra, eu entro no es- era cega quando o edifício foi construí-

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paço e sinto frio - qualquer pessoa deve do, mas eu conheço muito bem o cen-
sentir, não sei -, mas é isso, é essa sen- tro cultural, até bastidores e isso, mas…
sação que eu tenho. Quando entro num De qualquer modo, tenho a sensação do
espaço, sinto se aquele espaço me é aco- vazio, para baixo. Mas eu sei. Se eu não
lhedor ou não. Até pode ser esteticamen- soubesse, se calhar, andava com mais se-
te horrível, mas se eu entro no espaço e gurança. Claro que eu tenho um auxiliar
sinto conforto… Exatamente porquê, eu para a minha segurança. Eu tenho um
não sei. Mas quando entro e gosto da re- cão e sei o que o cão é capaz de fazer, e
ceção do espaço, da forma como o espa- se já fui para inúmeros lugares com o cão
ço me acolhe, como é, isso para mim é e não corri perigo, ali também não vou
extremamente importante. Por exemplo, correr perigo. Mas eu sei que ali está al-
eu gosto imenso do nosso teatro (Teatro guma perigosidade e isso afeta-me. Por
Sá de Miranda). Algo que também é mui- mais que eu saiba que tenho uma ajuda
to importante é a acústica. Há espaços para a minha mobilidade e para a minha
em que é difícil conversar, ouvir-se o ou- segurança, isso está ali latente.
tro. Não se recebem os sons da mesma Outro exemplo. Estes passeios aqui à
forma. No teatro, gosto da acústica. Eu beira rio também são uma coisa estra-
conheço o teatro de quando via, e gosto nha, mas pode ter a ver comigo. Eu nun-
do conforto. Não sei se é pela expressão ca caí num buraco, nem nunca caí de um
cultural, que também conta, mas apesar passeio para a rua, por exemplo… Estas
de ser uma sala grande, é confortável. A coisas comuns. Mas eu sei que ali, que
gente entra e está bem. Há outros espa- ao lado está um rio, e isso causa-me al-
ços que são igualmente grandes, mas que gum desconforto. Não tem nenhuma si-
não oferecem esse mesmo calor, sei lá. nalização de que se está a aproximar da
beira, mas mesmo que tenha, como tem
AM: Certamente já entrou, como se sen- nos metropolitanos e nas linhas de ca-
te aqui no Centro Cultural? minho de ferro… Aquilo vale o que vale.
P: É um espaço de muito mais difícil Nós sabemos que aquilo é um perigo - e
perceção. É um espaço grande, enorme, não é só para nós que não vemos -, mas
muito maior que, por exemplo, o teatro. é qualquer coisa que está sempre ali des-
mas também, talvez, porque conheço e protegida. E essa ausência de proteção
sei como é que ele é em termos de arqui- também cria desconforto.
tetura, para mim é muito desconfortável. Uma coisa que eu sei que é perigosa: eu
Só saber que tenho aquelas bancadas… sei que o cão me protege e sabe fazer
Eu sei que o passeio que têm ao redor, o seu trabalho, mas isto é como quan-
em cima, que é extremamente largo, mas do estamos a fazer um percurso plano
eu… se calhar se fosse em linha reta dar- e estamos a percorrer uma linha reta e
-me-ia outro conforto, segurança. Eu já percorremos sem problema. Mas, se nos
133
roubarem o espaço à volta dessa linha, mais bonitas do que aquilo que possa ser
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

nós já não vamos fazer a linha conforta- mais acessível, ou que facilite a minha
velmente. Temos medo de sair da linha. mobilidade, porque eu acho que em ter-
Mas se tivermos o pavimento todo plano, mos de mobilidade, desde que conheça
já não temos esse medo. o espaço, não tenho dificuldades em ter-
mos de mobilidade física.
AM: Diria que a sua noção de beleza alte-
rou desde que perdeu a visão e passou a AM: Então não teve de fazer alterações à
ser uma noção de conforto? O que con- sua casa depois de cegar, como já era um
sidera atualmente algo bonito ou belo? espaço que conhecia..?
P: Neste momento… O que é belo para P: Exatamente. As alterações que faço
mim são as duas coisas juntas. O belo, in- não estão relacionadas com mobilidade.
dependentemente de não ver, é absolu- O que eu gosto - e isso independente-
tamente importante, e o que é belo para mente de ver - é de algo muito minima-
mim hoje, é o mesmo que anteriormente. lista. Não gosto de muitos recantos, mas
Contudo, é muito mais importante para isso é nato, é desde sempre.
mim aquilo que me facilitava em termos AM: E no mobiliário, sente que o mobi-
de perceção, orientação, por exemplo as liário retilíneo é um perigo, ou é apenas
cores - eram uma coisa muito importan- algo com que já tinha de lidar antes e não
te. Era extremamente difícil vir do exte- a incomoda?
rior e entrar num espaço em que a cor P: Isso… Vértices… É um perigo. Eu vou
era quase uniforme. Vidro era uma coisa mais facilmente de encontro a qualquer
terrível. Hoje não. Hoje gosto de um es- superfície do que quando via, e realmen-
paço bonito. Gosto de janelas, não me te a questão dos vértices é perigosa.
incomodam rigorosamente nada. Posso Eu não acho que a estética seja inútil, de
ter o sol a dar-me no rosto, não me in- todo, mas acho que há aspetos que po-
comoda rigorosamente nada, pelo con- dem ser igualmente tratados sem perde-
trário. Portanto hoje aquilo que eu gosto rem esse valor.
é do conforto, e se calhar também é por
isso que sou muito voltada para a madei- AM: Sente que os estímulos que a aju-
ra, adoro espaços com madeira, não sei, dam na orientação também podem ser
traz-me conforto. O mais importante em desorientadores?
qualquer espaço que estejamos ou fre- P: Sim! Por exemplo, imaginemos que
quentemos é o conforto, é o aspeto nú- vou a um restaurante ou a um bar. Quan-
mero um. Mas eu continuo a ter enorme do há muito ruído, ou há qualquer coi-
preocupação com o belo, com a estéti- sa que ajuda a posicionar… Mas imagina
ca do espaço, a própria organização do que estou num jantar com muita gente,
espaço. Eu prefiro ter as coisas organi- música, muita conversa, boa disposição,
zadas de forma que eu as entenda como de repente aquilo acontece sempre tudo
134
ao mesmo tempo e é absolutamente de- as portas abertas dos armários… Há que

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sorientador porque os pontos de refe- pensam abrir as portas de outra forma
rência perdem-se todos. talvez, sei lá!
AM: Preferiria portas de correr?
AM: E a ausência absoluta de som inter- P: Ou portas de correr ou elevatórias…
fere no seu sentido de orientação? Seriam uma opção. Outras barreiras… O
P: O silêncio total… Até posso estar num facto de me poder acompanhar do cão é
sítio com silêncio total, mas se houver fantástico. Mas quando surge um obstá-
oposição, por exemplo, entre uma pa- culo e as pessoas querem todas vir aju-
rede alta e uma mais baixa… Depende dar, umas a puxar daqui, outras a dizer
muito do espaço. Se for um espaço em para seguir para outro sítio, eu tenho de
que as diferentes paredes são uniformes, parar e comunicar com o cão, porque o
tudo janelas ou tudo parede, betão… E cão fica desorientado com o que se está
se realmente o silêncio é total… Desde a passar. Fico logo mais preocupada com
que haja oposição de paredes, de certa o cão. As pessoas devem pensar que sou
forma, se puder dizer assim, já me dá in- uma antipática porque só fico focada no
formação. Já posso eu emitir som e com- cão, mas eu preciso de o tranquilizar,
preender melhor o sítio onde estou. para ele poder fazer o que tem de fazer.
Mas também entendo que para as pes-
AM: Sente que associa o som a imagens soas seja aflitivo, veem tudo a acontecer
visuais? e ficam assustadas.
P: Sim. O próprio som aproxima-me de
uma imagem específica, e tenho essas AM: Eu sinto que ainda falta muita sen-
imagens visuais. sibilização, e mesmo que as pessoas não
façam por mal ou até queiram ajudar,
AM: E quais considera serem os princi- não têm conhecimento de como agir.
pais obstáculos na orientação? P: Falta, claro, e não fazem por mal, de
P: O que mais me perturba são barreiras todo! Quando tenho tempo, ainda paro
em altura. Coisas que apareçam a meia e falo com as pessoas e explico, mas há
altura. Se for algo que venha da base, não momentos em que não posso, tenho de
me incomoda, mas algo suspenso, como vir trabalhar e tenho horários a cumprir
havia aquelas cabines telefónicas, é um e nem sempre me é permitido fazer isso.
obstáculo. Eu faço-me acompanhar do Eu também me consigo por no lugar do
cão, mas o cão não perceciona essas coi- outro, porque eu sei como é que eu era
sas em altura. Uma pessoa que use ben- quando via. Mas se eu não puder passar,
gala também tem esse problema. Vege- o cão para, e é muito difícil para as pes-
tação, plantas, árvores que estão sobre soas perceberem isto. Mas isto são epi-
passeios, passadiços, também acontece. sódios pontuais.
A nível de interiores… Quando deixam Mesmo com mobiliário… O cão faz o seu
135
trabalho, desvia-me de tudo. Mesmo cobertor é estreito. Eu já apanhei o ritmo
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

com esplanadas, que por vezes ocupam da escada, mas quem não o incutiu ain-
o passeio todo… Quando chego a um sí- da, tem dificuldade. Torna-se inseguro.
tio desses que está tudo desarrumado, o Já para não falar no pavimento. Já caíram
cão toma outra marcha, e eu já sei que ali muitas pessoas.
temos de ir devagar. Se o cão vir que não
há espaço para passarmos, o cão para, AM: Acha que faria sentido no espa-
pura e simplesmente, nem sequer tenta ço interior assinalar taticamente alguns
ir. E se tiver que colocar alguma ques- elementos? Por exemplo nessa questão
tão, faço. Eu tenho de dar sempre espa- relativamente à escada, o primeiro e o
ço ao cão para ele tomar a melhor deci- último degrau estarem assinalados…
são, e ele vai tomar a melhor decisão. É P: Sim, sem dúvida. Às vezes usam aque-
uma coisa excecional. E também é difícil las bandas assim muito estreitas… Mas
aprender a confiar no cão. Nós pedimos porque não fazem, por exemplo, um co-
uma coisa e ele vai fazer uma coisa com- bertor diferente? Noutro material? Pa-
pletamente diferente, e nós temos de rece que se faz as coisas com receio. É
aprender a confiar nele. Ver que vai fa- para estar, mas era melhor que não esti-
zer uma coisa completamente diferente vesse. Façam-se as coisas com objetivo.
do que nós pedimos, mas que vai trazer Se aquilo tem um objetivo, explore-se o
a solução, portanto, se fez aquilo, é por- objetivo pelo qual aquilo é feito. Eu sinto
que exatamente o que estávamos a pedir muitas vezes que as coisas se fazem por-
não podia fazer. E nós vamos viver isso, que têm de cumprir.
por isso é que as coisas no início não são
tão claras. Quando nos dizem, no início, AM: E nas questões das cozinhas? Relati-
que o cão é que nos vai guiar, nós temos vamente à forma como o fogão e o forno
sempre receio. E esse receio vai passan- são utilizados..?
do, não é automático. P: Eu tenho de me adaptar a tudo, eu
Outras barreiras… Por exemplo, as es- prezo a minha autonomia. O forno… En-
cadas. Não é que a escada seja uma bar- quanto qualquer pessoa olha para lá e
reira, mas uma coisa que faz muita con- vê o modo que selecionou, eu faço tudo
fusão são as dimensões dos degraus. porque memorizo que o primeiro pro-
Quando são aqueles grandes, cujo co- grama é para x, o segundo para y… Mas
bertor é muito largo, é muito desconfor- porque eu faço e uso tudo. Talvez se só
tável descer uma escada que não e sabe fizesse um assado agora e outro no pró-
se é um passo longo, um passo curto… ximo ano já seria diferente. Eu imagino
E não é desconfortável estarmos a des- pessoas que usem pouco e não é fácil. Eu
cer os degraus sempre com o mesmo ajusto-me. Por exemplo, placa de indu-
pé. Mas também acontece o oposto, por ção - é fantástico, passar um pano e está
exemplo aqui nestas escadas, em que o pronto. Mas depois comecei a pensar
136
que não ai conseguir usar. Mas depois vou habitualmente, que só fiz uma vez ou

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comecei a perceber. Algumas tinham um duas, também penso no trajeto que te-
friso que até ajudavam a perceber onde nho de fazer, os locais mais difíceis, com
se colocavam as coisas. Pensei que ia ter mais obstáculos. Mas no dia a dia não.
de ter um fogão a gás, mas depois deci- AM: E nos percursos que já conhece,
di que não, que não queria. Decidi que ia dado que alguns já conhecia antes de
ter placa de indução. Como? Ainda não cegar, imagino que tenha algumas refe-
sabia. rências visuais relativamente ao sítio que
Eu ponho as coisas desta forma. Como? está a percorrer. Por exemplo, se pensar
Não sei. Mas que vou fazer, vou. na Avenida (dos Combatentes) se calhar
E resolvi. Coloquei a placa, arranjei papel consegue imaginar visualmente a aveni-
autocolante preto, fiz umas bolinhas com da.
o furador e colei-as de modo a ajudar a P: É um misto. Por exemplo, a avenida,
minha orientação. E pronto, solucionei. para mim, é um misto, porque não con-
No início, precisava das bolinhas. Agora sigo ter a imagem exata da avenida hoje
já não preciso. Eu já aprendi a localizar o - eu sei como são os passeios, como é a
pequeno relevo que a própria placa tem. rua, sei que não há carros, sei como são
Eu ajo muito assim. Eu quero isto. Como os lampiões… Mas também sei como era
vou fazer? Neste momento não sei, mas a avenida antes e sobre essa eu tenho
vou à procura da solução, arranjo solu- imagem visual. Sobre a nova não tenho
ção. imagem visual. Tenho imagem mental,
mas não visual, então eu misturo um bo-
AM: E acredita que para o futuro a ques- cado. Entre os carros e a ausência deles,
tão de Smart House e de comandos de os passeios largos… A rua, é engraçado,
voz seriam uma ajuda, ou acha que não? eu só consigo imaginar o paralelo que ti-
P: Eu acho que sim. Já faço isso com o nha antes. Não consigo imaginar, ver, o
telemóvel, e ele faz tudo. Depois essa que está agora, e eu sei como é o parale-
implementação na casa é um espetáculo. lo que está lá agora. É muito engraçado.
Assim como o aspirador, que se manda É um sítio que eu frequentava muito e
fazer e ele faz, é muito bom. acontece isto.
Na praça da república já não me aconte-
AM: Cria mapas mentais de orientação? ce isto, já consigo formular a imagem da
Como os descreveria? atual. Mas da atual já tenho alguma per-
P: Se for um sítio que nunca fui, não sei, ceção visual de como poderia ser. Pen-
vou descobrir. Posso saber que tenho de so que ainda a vi exatamente como está
procurar determinada referência, vou agora.
atenta a isso, mas não faço ideia do que
vou encontrar até lá. Nessa situação,
penso. Se for um sítio para o qual não
137
AM: Seria capaz de descrever a sua casa na avenida como ela é hoje, eu também
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

de modo a ser desenhada uma planta do consigo.


espaço?
P: Eu acho que sim. Consigo. Claramen- AM: Qual é a divisão da casa onde costu-
te. ma passar mais tempo e porquê?
P: Onde passo mais tempo é na cozinha
AM: O modo como cria novas memó- e copa. É comum, tem apenas um bo-
rias é substancialmente diferente do que cadinho de parede a dividir. De um lado
acontecia quando tinha visão? está a cozinha, depois a mesa de jantar, e
P: Eu crio as minhas memórias muito em depois tem a televisão ao fundo e é uma
função das minhas experiências anterio- parte muito iluminada da casa, apanha
res. Eu dou cor às coisas. Eu pergunto muito sol. De verão, ou quando não cho-
muito sobre isso. Isso para mim é muito ve, abro aquelas janelas todas e é uma
importante. É preciso saber, as cores que parte muito quente da casa. Tem ali tudo
eu gosto… Eu gosto muito da cor, mas as que eu estou sempre a usar.
cores têm valores diferente dependen-
do dos locais onde se encontram, para AM: Diria que é o seu espaço favorito?
o que servem… E atribuo cor às coisas. P: Não posso dizer que seja favorito, por-
A cor que eu atribuo é em função das que também gosto muito do meu quarto
descrições que me vão fazendo, e não para dormir, para dormir confortavel-
basta a descrição de uma pessoa, por- mente, mas acabo por usar o meu quarto
que as cores… um diz uma coisa, outro apenas para dormir. O resto da parte da
diz outra… E para mim são todas cores casa eu uso muito. Depois ao fundo tem
diferentes. Os tons de verde, de azul… um balcão, tem a mesinha do computa-
Pergunto a mais que uma pessoa até ter dor, vou ali ver as receitas, vou para o
uma resposta coincidente. outro lado, para a cozinha, vou cozinhar,
AM: E sente que essas memórias visuais tem ali tudo. É um open space. Não tem
que tem continuam intactas ou de certa sofá, tem a sala, mas sinceramente tam-
forma estão a desvanecer-se? bém não tenho paciência para estar no
P: Não é desvanecer. Por exemplo, como sofá. Prefiro ir para o terraço, ouvir mú-
falei do exemplo da avenida, eu se quiser sica, ler um livro, fazer qualquer coisa e
puxar a memória da avenida exatamente pronto, sento-me muito mais depressa
como ela era, eu consigo fazer isso. Mas no terraço que na sala. Gosto muito da-
se eu pensar de repente na avenida, é quele espaço porque responde às minhas
quando eu penso naquela misturada. Da necessidades assim mais constantes.
avenida de hoje com a avenida de antes.
Agora, se pensar ativamente na avenida AM: Se pudesse desenhar, agora, a sua
de antes… Consigo construir a memória casa de sonho, o que não poderia faltar?
exata de como era. E se quiser pensar P: Posso dizer o que podia faltar? Paredes.
138
Detesto paredes. E ainda quero tirar ções não podem ser abruptas senão es-

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mais uma lá em casa. barram, sempre. E primeiro eu acho que
o processo que está a acontecer, e deve
AM: E o espaço ser tão amplo não a in- acontecer, é a mudança de mentalidades.
comoda, por causa da orientação? Porque eu já vi muitas mudanças na le-
P: Não, adoro o espaço amplo. Mas tam- gislação, claro, com muita boa intenção,
bém detesto casas muito grandes. Quan- mas não dá, impossível. Não é exequí-
do está pouca gente em casa está um vel que tudo funcione ao mesmo tempo.
numa ponta, outro no outro, e é como se E eu acho que as coisas estão a mudar
estivéssemos sós. Eu gosto de um espa- um bocadinho, que se tomou consciên-
ço pequeno, uma casa que não seja mui- cia disso. É necessário? É. Mas não se
to grande, mas ampla. Assim como tenho podem fazer mudanças abruptas. E eu
na minha casa em que está ali tudo e acho que esta noção de inclusão está a
posso agir sem que tenha de abrir por- entrar - não entrou, porque não entra
ta, fechar porta… E o que era imprescin- facilmente, mas está a entrar, e é preciso
dível… Janelas, sol! Quanto mais jane- ir criando essa mudança. Em termos de
las melhor. Era imprescindível ser tudo mentalidade, e depois legislativas.
retilíneo - o mais retilíneo possível. Se
pensasse a minha casa hoje, seria assim. AM: Para já não tem de ser legislativo, se
Quando comprei já tinha a estrutura, e toda a gente compreender o valor da in-
o facto de a ter comprado relaciona-se clusão, deixa de ser necessário haver leis
com ser na cidade, ter terraço, jardim. sobre isso.
Mas se eu pudesse desenhar a minha P: Isso, exatamente. A mim faz-me mui-
casa, seria assim um grande salão, assim ta confusão, e isto para mim é uma coi-
os quartos de algum modo separados de sa simples. Quando as pessoas conse-
um grande open space onde se conjuga- guirem olhar para estas questões como
va o espaço de jantar com a sala de estar uma coisa simples, as coisas fazem-se
e com cozinha. com naturalidade, aos coisas acontecem
como aconteciam antes quando não se
AM: Acha que a legislação devia ter um pensava nisto. As pessoas fazem coisas
papel mais ativo de forma a arquitetura bonitas, que se achava que era agradável,
se tornar mais inclusiva nestas questões e não se refletia sobre estas questões.
da habitação, ou a habitação deve ser Agora refletimos sobre elas e há solu-
mais adaptada a cada um? ções, mas elas têm de entrar na nossa di-
P: Eu acho que não pode haver mudan- nâmica interior. Nós estamos numa fase
ças bruscas, e acho que tem havido al- de mudança e o que eu sinto é que as
guma procura em alterar legislação pre- pessoas estão a acolher muito bem este
cisamente nesse sentido, na busca de conceito de inclusão, isso sim. Até por-
espaços inclusivos, só que estas altera- que quando se começou a falar de inclu-
139
são era para as pessoas com deficiência, 04 MARIA
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

hoje utiliza-se o termo inclusão para a


questão social, e eu sinto uma evolução Maria, 20 anos. Entrevista realizada vir-
desse conceito. tualmente no dia 23 de junho de 2022.
Mas a perceção que eu tenho do espaço,
dos materiais, passou a estar muito mais AM: Nasceste cega?
apurado no momento em que deixei de M: Sim.
conseguir ver sequer um foco luminoso.
Porque enquanto tempos qualquer resí- AM: Consegues percecionar luz? Ou vul-
duo visual, por mais pequenino que ele tos?
seja… A única coisa que eu tinha, eu con- M: Só luz. Ou vejo escuro, ou vejo luz.
seguia ver a luminosidade, por exemplo, Não sei bem explicar, mas vejo luz. Te-
das janelas. E a conseguir ver isso, eu já nho perceção luminosa.
não estou atenta à sensação que me pro-
duz uma parede em vidro ou uma parede AM: De que forma percecionas e com-
em madeira, porque eu percebo visual- preendes as características de um espa-
mente - mesmo não vendo - eu percebo. ço? (Distâncias, escalas, limites, cheios e
Por isso é que as pessoas que têm baixa vazios)
visão sofrem muito mais que as pessoas M: Eu acho que é pelo ouvir. Se for um
cegas, porque estão sempre a acreditar espaço largo há eco, se for estreito já não
no resíduo visual que têm e só têm aci- há tanto eco. Consegues perceber tam-
dentes. Hoje eu vivo muito mais isso do bém pela luz, se for um espaço mais es-
que quando tinha a visão reduzida. curo, regra geral também é um espaço
E a nível de orientação e mobilidade, eu mais pequeno.
não tinha muitas coisas apuradas, mas
felizmente tenho um bom sentido de AM: Podes descrever o espaço onde te
orientação. Facilmente, mesmo sendo encontras?
um espaço esquisito, com interior não M: Entras, tens uma parede, à frente tens
muito retilíneo, eu facilmente integro na outra, do outro lado tens outra e atrás
minha calema a estrutura daquele edi- não tens parede. Entras na sala tens uma
fício, e há pessoas que não, têm muita parede ao teu lado esquerdo. Tens janelas
dificuldade, mas eu facilmente entendo. à tua frente e do outro lado, direito, outra
Mesmo na rua. parede.
Mas só desenvolvi esta capacidade, só
consigo realmente perceber mesmo a AM: Quais os maiores estímulos para a
dimensão do espaço depois de ter per- orientação no espaço? Sentes que tam-
dido completamente a visão. Faço-o de bém podem ser desorientadores?
forma muito mais apurada. M: Os meus maiores estímulos são a per-
ceção da luz e a audição. Às vezes acon-
140
tece esses estímulos serem desorienta- preocupação, o não querer saber. Mas

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dores. Por exemplo, estar a sentir que depois penso que isso deve ser porque
vem luz de um local e pensar que é a saí- eu sou cega e não vejo as pessoas a olha-
da, e não é. Mas normalmente eu guio- rem para mim, então eu acho que o facto
-me mais pela audição. Se estiver com os de não ver faz com que me desinteresse
ouvidos tapados, eu vou contra tudo, não pela opinião das pessoas neste assunto.
consigo sequer seguir uma linha reta. É Mesmo na rua, não estou preocupada
mais pela audição que me guio, a clarida- se as pessoas estão a olhar para mim ou
de não tanto, só mais por janelas. não. Também não as vejo a observar-me,
então acabo por não me preocupar.
AM: Disseste que, se estivesse muito si-
lêncio, te incomodava, mas tu própria AM: Mas tu não gostas de estar em sítios
tens por hábito emitir sons para desco- que não tenham janelas, ou gostas?
dificar os espaços, ou serves-te apenas M: É-me um pouco indiferente. Se tiver
dos sons da envolvente? bom ambiente, se estiver a boa tempera-
M: Imenso. Especialmente para procurar tura… Não há problema.
algo perto de mim, para saber se estou
à beira de uma parede ou não (faz sons AM: A noção de conforto surge em con-
exemplificativos). Faz-me perceber se sequência de que características de um
estou próxima ou distante dos obstácu- local?
los/paredes. M: Essa questão é interessante, já pensei
nisso. Eu associo conforto a coisas mo-
AM: E também tens alguma perceção de dernas. Não sempre, mas regra geral coi-
materiais? sas modernas. Por exemplo, camas com
M: Não. Apenas distingo se é uma pare- colchões bons, sítios que tenham chão
de ou não é nada. Às vezes, mesmo sem de madeira. Associo imenso o conforto
emitir sons, consigo perceber se tenho ao chão de madeira, mas não pode ser
alguma coisa à minha frente ou não. Isso velha e ranger. Mas conforto mesmo as-
não sei explicar como, mas eu consigo. socio ao cheiro a canela no inverno e ao
calor. No verão associo a praia, ao mar.
AM: Qual a relação que tens com a janela
em termos de privacidade e iluminação? AM: Então sentes que o teu sistema olfa-
A luz solar destaca-se na forma como tivo também está muito relacionado com
percecionas o espaço? o que associas ao conforto?
M: Por acaso, no outro dia estava a pen- M: Sim.
sar nisso porque no meu quarto em Bra- AM: E achas que é por causa das memó-
ga eu tenho uma janela que dá para a rias que tens?
rua, e eu costumo despir-me no quarto
sem preocupações. E assumo essa des-
141
M: Não conscientemente, mas penso que M: Carros no passeio. Postes. E aqueles
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

sim, que está relacionado. pontos de publicidade no meio do pas-


seio, não vão todos até ao chão e não es-
AM: Podes descrever-me como são as tão sempre no mesmo sítio, não sei com
tuas técnicas de movimentação e orien- o que contar. E a bengala também não
tação? identifica.
M: Normalmente é muito por pontos de AM: E vais tentar ter cão guia?
referência. Aqui em casa simplesmen- M: Não quero, para já.
te habituei-me ao espaço, mas mesmo
assim dizem-me que eu ando com mui- AM: Sentes que crias mapas mentais de
to cuidado, tenho algum receio a andar orientação? Quando te queres deslocar
e ando mais devagar, mas eu acho que é um sítio para outro, por exemplo, em
muito pelos passos, por te habituares ao casa, pensas num trajeto na tua cabeça?
espaço, depois acabas por decorar. Co- M: Não.
nheces tão bem aquele espaço que o de-
coras. AM: E se estiveres na tua casa em Braga
e pensarem em ir a faculdade?
AM: E quando estás a andar com a ben- M: Sim, penso nos pontos de referência
gala? por etapas.
M: Isso é por pontos de referência. Por
exemplo, sabes que num sítio tens uma AM: E sentes que fazes um trajeto, do
porta. Fazes 90° e vais ter a passadeira à género de uma linha, quando estás a
tua frente. imaginar o caminho?
M: Não, a imagem mental não, não existe
AM: Mas porque tu já sabes. imagem, não tenho referências visuais.
M: Sim, porque me ensinaram nas aulas Penso na mesma nas direções. E se me
que era assim o percurso e eu lembro- pusesses um lápis na mão, eu era capaz
-me que é assim, tenho de decorar os de desenhar o trajeto, ou para cima, ou
pontos de referência. para a direita, ou para a esquerda…

AM: E se estiveres num espaço novo? AM: Então estarias a desenhar um traje-
M: Aí não há referências, é explorar. Ou to.
tens muita técnica e exploras - e arriscas M: Sim, de certa forma sim. Mas na ca-
-, ou não e tens de pedir ajuda. beça só penso por etapas. Primeiro te-
nho de encontrar isto, depois aquilo…
AM: Costumas arriscar?
M: Não. AM: Eu sinto que a minha referência nas
cidades se faz através de pontos que não
AM: Quais consideras serem os princi- estão muito bem unidos, e não sei se a
pais obstáculos à tua movimentação?
142
ti te acontece o mesmo, porque como que tenha no futuro, e tem um móvel,

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tens de ter referências muito mais por- cuja cor não seio qual é, com gavetas.
menorizadas do que estás a fazer, talvez O sofá está mais ou menos em frente ao
acabes por ter uma memória muito mais móvel.
concreta do que é o espaço.
M: Faz sentido. Estava a lembrar-me, por AM: E um espaço que tu gostes sem ser
exemplo, agora da escola em que andei em casa?
no secundário, a Monserrate, e eu lem- M: Gosto de estar numa biblioteca, uma
bro-me muito bem de tudo, até de es- qualquer. Porque adoro ler, adoro estar
cadas e assim. Eu lembro-me da escola, em silêncio a ler e há muitos livros.
mas o que me lembro é do percurso, de
como chego a cada sítio. AM: E qual é o espaço que gostas menos
AM: Sinto que é um mapa mais concre- em casa?
to relativamente ao posicionamento de M: Talvez os arrumos no andar de baixo.
tudo. É um corredor muito estreito por baixo
M: Talvez. das escadas. Não gosto porque é estrei-
to, é escuro, não dá para fazer lá nada.
AM: Serias capaz de descrever a tua casa
de modo a ser desenhada uma planta do AM: O que é a beleza para ti?
espaço? M: Essa pergunta não é fácil. Quando
M: Isso vê-se pela experiência do dese- penso em belo, penso num jardim com
nho. muitas flores, super colorido, ou numa
AM: Eu diria que sim, foste muito bem praia com areia muito branca e o mar
sucedida. As plantas desenhadas pelos limpo. Quanto a pessoas, não sei dizer.
meus colegas segundo a tua descrição, e Se me descreverem uma pessoa eu digo
aquelas desenhadas segundo a descrição que é feia ou bonita, mas não sei. Gosto
da tua irmã não foram assim tão diferen- de cabelos lisos, gosto de cabelos com-
tes, o que é uma reflexão engraçada. pridos, gosto de olhos grandes, lábios
grossos, narizes pequenos… Quando eu
AM: Qual é a divisão da casa onde costu- era pequena obrigavam-me a tocar na
mas passar mais tempo e porquê? cara das pessoas e eu ficava muito cons-
M: Sala, porque a internet é melhor. trangida. Na escola.

AM: Qual é o teu espaço favorito? Podes AM: Porque é que associais algo belo às
descrevê-lo? suas cores, se nunca viste as cores? Por-
M: A entrada. É um espaço um pouco que é que a cor é o critério para imagi-
amplo, que tem um sofá vermelho que nares algo bonito?
eu gostava de levar para uma casa minha M: Porque sempre me disseram que é
bonito.
143
AM: Que cores gostas muito? AM: Achas que dentro da habitação fa-
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

M: Vermelho, branco. Preto. No jardim, ria sentido assinalar alguns elementos,


amarelo, embora eu não goste muito da como degraus ou puxadores, algo assim.
cor, imagino que no jardim fique bem. M: Para mim, que me oriento, não, mas
Azul - mais para a praia. E verde. Rosa. conheço cegos que têm uma orientação
péssima, portanto… porque não? Nos
AM: E o que consideras ser a beleza na degraus é mais importante.
arquitetura? AM: E relativamente a legislação, faria
M: Eu gosto de espaços modernos. Se sentido implementar nesse sentido, ou
percebo que é feito com construções como é o teu espaço privado não é ne-
antigas, construções em pedra, já não cessário?
vou gostar. Gosto de paredes lisas, chão M: Eu adapto-me. No espaço privado
liso, tudo muito liso, tudo muito branco, cada pessoa ganha o hábito e passa a co-
tudo muito hospitalar. nhecê-lo bem. Mas isso também depen-
de de cada pessoa. Se se pode facilitar a
AM: E em termos de percurso, gostas vida, porque não?
que sejam retilíneos ou gostas do desa-
fio? Com geometrias mais complexas? AM: Se tu achas, então, que a legisla-
M: Gosto de retilíneos. Até porque tenho ção não faria assim tanto sentido, o que
anemia e não me posso cansar. achas que devia ser feito para o pensa-
mento do arquiteto ser mais inclusivo?
AM: O que gostas, em termos de mate- M: Eu acho que depende da sensibilida-
riais? de das pessoas. Se tiveres um contacto
M: Tudo que esteja envernizado, adoro. com esta realidade, automaticamente
vais estar mais desperta para isso, mas
AM: Mas preferes madeiras, ou..? E antes acho que é acima de tudo informação.
disseste que não gostavas de pedra, mas Tem de se informar as pessoas, as pes-
tu gostas da tua parede de mármore. soas não adivinham, não pensam, se não
M: Gosto, mas aquilo é pedra arranjada. têm contacto com a realidade, não vão
Das igrejas não gosto. Mas mesmo arran- estar a pensar nisso.
jada, por exemplo, se a casa fosse toda
em pedra, não gostava. Ia ser fria, ia sen-
tir-me desconfortável.
AM: Se pudesses desenhar, agora, a tua
casa de sonho, o que não poderia faltar?
M: Uma piscina interior. Acho que nada
mais.
144
05 MARTA

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Marta, 25 anos. Entrevista realizada vir- de eu não ter perceção de todo o espaço
tualmente no dia 27 de junho de 2022. e só daquilo que eu tenho em contacto,
num espaço muito cheio em que o som
AM: Tens cegueira total ou baixa visão? também não ecoa muito. Se calhar, se
M: Eu não sou considerada cega total, tenho um ou dois pontos de luz, nem se-
mas também não sou considerada am- quer é algo que ajude de forma relevante
blíope. Eu tenho muito baixa visão. Se- na minha visão, eu posso ter ideia de que
gundo os médicos, eu não tenho aquilo esse espaço é pequeno, porque estou
que é considerado de visão útil, mas a apenas a interpretar a informação que
verdade é que a minha perceção visual eu tenho. O que acontece muitas vezes,
me ajuda em imensas coisas. Eu vejo por exemplo, quando chego a um espaço
sombras e, dependendo do estado de es- novo, é que eu tenho essas informações
pírito, consigo ver cores. - o espaço, a luminosidade, o tato -, e eu
crio uma perceção. Mas imaginemos que
AM: Sempre tiveste esse problema de vi- é uma casa. Uma casa nova em que estou
são? a viver. Ao fim de uma semana já vou ter
M: Nasceu comigo, sim. outros estímulos que me vão fazer ter
outra perceção completamente diferen-
AM: De que forma percecionas e com- te do espaço e das suas dimensões.
preendes as características de um espa- E eu faço muito isto: eu tento fazer um
ço? (Distâncias, escalas, limites, cheios e mapa mental. De forma consciente ou
vazios) inconsciente, eu procuro ter uma ideia
M: Eu acho que é através do som - por de como é aquela casa, aquele espaço,
exemplo, se for um espaço que ecoa se à frente tenho a cozinha, se à direi-
muito, vai logo dar a ideia de ser um es- ta tenho a casa de banho, por exemplo.
paço de grandes dimensões -, a minha E eu procuro logo esta orientação desde
perceção visual também tem alguma im- o início. Como procuro ter estas percep-
portância aqui porque os meus olhos vão ções, às vezes procuro estímulos que me
de imediato procurar pontos de luz, de ajudem a ter essa ideia específica, uns
uma forma consciente ou inconsciente. estímulos mais básicos. Ao fim de estar
Eu procuro logo se tem janelas, se não algum tempo nesse sítio, já vou procurar
tem, se são grandes, se são pequenas. O e tentar investigar outras coisas com as
facto de quando eu me movimento ter quais não me tinha preocupado ante-
coisas perto de mim ou não - por exem- riormente. Já vou ter mais informações
plo, chegar a um sítio atolado de móveis, que me ajudam a formular a perceção do
para a direita, para a frente, etc - até espaço.
pode ser um espaço grande, mas o facto
145
AM: Tens alguma perceção de vultos, beira e esquerda são os lados pequenos
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

também, não é? do retângulo. Do meu lado direito eu te-


M: Sim, tenho. Aquela questão que eu nho o armário e a porta, que são em tons
dizia do estado de espírito, que me per- de branco e em linhas direitas.
mite ver cores ou não, que influencia, A parte que está à minha frente, do lado
também influencia a perceção que eu comprido do retângulo, tem uma ca-
tenho da dimensão do espaço. Eu não ti- deira, a minha guitarra, e ao lado tenho
nha noção que isto acontecia, mas, por a secretária onde estou sentada. Tudo
exemplo, eu tive um situação de saúde, em linhas direitas e em tons de branco.
há uns anos, em que estive internada no Ao lado da secretária tenho uma estan-
hospital, e no primeiro e segundo dia te, também branca e em linhas direitas.
que eu estive no quarto, eu estava um Depois, ao meu lado esquerdo, paralela à
pouco debilitada. A perceção que eu ti- parede onde está a porta, tenho uma ja-
nha do quarto é que era extremamente nela grande de portada que dá para uma
pequeno, até um pouco claustrofóbico, varanda e tem um cortinado grande.
sentia as coisas todas muito próximas de Atrás de mim, no outro lado comprido
mim. Mas conforme eu fui melhorando, do retângulo, tem a minha mesa de ca-
fui tendo uma perceção mais clara do beceira, que é quadrada e em linhas di-
sítio onde estava, que era mais amplo. reitas, que tem um candeeiro com um
Fui conseguindo ter a perceção do vulto abajur cor de rosa em cima e alguns ob-
da mesa que estava no campo, fui tendo jetos pessoais. Depois tenho a cama, que
uma perceção mais clara. Portanto, o es- é retangular e ocupa grande parte desse
tado de espírito também influencia aqui lado comprido do retângulo que estou a
a maneira como eu percepciono o espa- descrever. Depois tem uma zona de va-
ço. Neste momento tive mais atrapalha- zio, espaço desocupado, até à porta.
ções de saúde não relacionadas com a
visão, mas sim com uma insuficiência re- AM: Consideras que o teu quarto é alto
nal, e estou de momento a fazer um es- ou baixo?
tudo para compreender se efetivamente M: É normal. Não considero nem muito
o problema de visão que tenho sempre baixo nem muito alto.
foi o que achavam que tinha, ou se é de-
rivado de outro problema. AM: E consideras o teu quarto grande?
M: Não. Eu considero o meu quarto com
AM: Podes descrever o espaço onde es- o espaço bem aproveitado, eu diria. Não
tás? é um quarto muito grande. É médio pe-
M: O espaço onde estou agora é um queno.
quarto, um espaço que conheço bem
porque é o meu quarto. AM: Quais os estímulos para te orienta-
O meu quarto é retangular, e à minha res no espaço?
146
M: Eu ando sozinha, uso bengala, e os qualquer modo, mesmo que me oriente

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estímulos dependem. Se for dentro de para sítios errados, até encontrar o que
uma casa que eu já conheça bem, eu ra- procuro. Mas acho que para alguém mais
ramente ando de bengala. Porque ou ansioso, que não tenha tanta confiança
estou com pessoas ou porque, mesmo nisto, esses estímulos podem ser mais
sozinha, conheço bem o espaço. Nunca desorientadores.
pensei bem nisto, mas aí eu acho que são
estímulos mais relacionados com a mi- AM: Tens por hábito emitir sons para
nha perceção visual e também o olfato, descodificar os espaços, ou serves-te
porque cada um dos espaços acaba por apenas dos sons da envolvente?
ter um cheiro diferente dos restantes. E M: Sirvo-me apenas dos sons da envol-
a questão do toque também. Não é que vente.
eu ande a tocar nas coisas para saber
onde estou, mas, por exemplo, eu sei que AM: E a ausência absoluta de som inter-
a cozinha é em frente ao meu quarto e fere no seu sentido de orientação?
se for a andar em linha reta e de repen- M: Interfere no meu sentido de orienta-
te tocar com a mão em alguma coisa, eu ção, mas, mesmo desorientando-me um
vou saber em qual destes espaços estou. pouco, sinto que não é fundamental. Ou
Mas a minha perceção visual também me seja, não fico completamente paralisada
auxilia muito aqui. por isso. Tento recorrer a outros estímu-
Na rua, uso mais a perceção visual e los.
aquilo que a bengala me diz - até mais
o que a bengala me diz. E os sons dos AM: A noção de conforto surge em con-
sítios, também. Por exemplo, se quero sequência de que características de um
procurar o minimercado, eu vou procu- local?
rar os barulhos das caixas registadoras. M: Para mim, um espaço interior con-
Ou, se estou perdida na rua, aquilo que fortável precisa de ser iluminado, por
costumo fazer na rua, se não conhe- exemplo, o meu quarto é muito em tons
ço o sítio, é tentar ouvir para procurar de branco e isso traz muita iluminação
um café, uma mercearia, um sítio onde ao sítio, eu gosto. Não pode estar nem
possa perguntar, e isso faço através dos muito cheio, nem muito vazio. É muito
sons. importante que tenha objetos, coisas,
mas também que não sejam coisas dema-
AM: Sentes que alguns desses estímulos siado pesadas, como móveis demasiado
também podem ser desorientadores? grandes. Penso que coisas mais simples
M: Sinto que não penso nisso. Sou um e mais práticas são as mais confortáveis.
bocadinho aventureira. Se tiver de ir,
eu vou, e se tiver de me perder três ve-
zes, eu vou-me perder. Eu sigo o som de
147
AM: Disseste-me que o teu quarto era AM: Qual a relação que tem com a janela
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

todo muito claro, branco. Em conver- em termos de privacidade e iluminação?


sa com algumas pessoas anteriormente, A luz solar destaca-se na forma como
disseram-me que para pessoas que têm perceciona o espaço?
baixa visão, os contrastes entre cores M: Eu gosto muito da minha varanda,
claras e cores escuras ajuda muito. Sen- por exemplo, e do facto da janela do meu
tes que isso para ti era uma mais valia, ou quarto dar para a varanda, mas eu sei que
que é irrelevante e gostas é de ter o teu tenho vizinhos da frente e no início estava
quarto branco? sempre um bocado em dúvida se alguém
M: Eu, pessoalmente, gosto mais de mó- me estava a observar. Para ter segurança
veis claros e em linhas direitas. Eu pus para estar aqui de estore aberto, tive de
o meu quarto ao meu gosto, não o pus ter a certeza que durante o dia eles não
segundo uma questão muito funcional, viam nada. Não é que eu estivesse a fazer
porque é o meu espaço e eu sabia que alguma coisa de mal, mas eu nunca sei
me ia orientar nele, ma sinto que ele quando é que as pessoas estão a ver aqui-
acabou por ficar funcional sem eu o pro- lo que eu estou a fazer ou não. Se estou
curar. Mas eu sinto que, numa casa, essa sentada, se estou deitada… E foi impor-
questão dos contrastes pode ajudar, mas tante para mim ter essa noção. É impor-
não é fundamental. Imagina, na rua é im- tante para mim ter noção de privacidade,
portante termos esses estímulos porque e como eu não sei quando é que as pes-
são pontos de referência visuais que po- soas estão a ver, não consigo avaliar, eu
demos aproveitar, mas a nossa casa é a gosto de me resguardar nesse sentido.
nossa casa, é o nosso espaço, e chega a Relativamente à luz, se o sol estiver a ba-
um ponto em que pessoas com baixa vi- ter diretamente, mesmo a fazer reflexo, a
são, muito baixa visão ou cegos totais já nível visual isso pode-me incomodar um
se orientam perfeitamente em casa às bocadinho. Tirando este facto, gosto de
escuras, portanto isso é um pormenor sentir a luz.
que, no meu entender, não é tão rele-
vante para ter em casa. Mas pronto, eu AM: Quais é que tu sentes que são os
tenho a minha perceção visual, mas não teus principais obstáculos de movimen-
faço dela um recurso fundamental. Aju- tação?
da-me bastante, mas é como a questão M: Coisas, que, por exemplo, estejam à
que falamos há pouco da audição. Se eu altura da minha barriga ou abaixo disso,
fechar os olhos, se calhar vou me deso- e que não sejam da altura de um degrau.
rientar um pouco, mas não me vou per- Por exemplo, aqueles pilares pequenos
der de todo. que estão à beira das passadeiras, são
muito incomodativos, porque posso não
lhes tocar com a bengala, mas também
não são altos suficiente para eu perceber
148
que estão lá. Esse tipo de objetos aconte- AM: Tiveste de fazer adaptações à tua

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ce em muitas circunstâncias. Mas penso casa pela tua condição visual?
que não me lembro de mais, nunca tinha M: As únicas adaptações que fiz foi colo-
pensado nisso. car etiquetas em alguns sítios. Por exem-
plo, colocar etiquetas no fogão, no forno,
AM: E sentes que existem alguns dispo- coisas assim pequenas.
sitivos físicos que te ajudam na orienta-
ção? AM: Podes descrever-me os mapas men-
M: Sim. Há muitas coisas que as pessoas tais que me disseste antes que fazias?
não têm noção que são pontos de refe- M: Eu acho que é um misto daqueles três
rência. Por exemplo, caixas de eletrici- elementos que eu disse que me ajudam a
dade, caixotes do lixo, pilares grandes, orientar - questão tátil, pouca perceção
portas de lojas, por exemplo… Se for com visual e a perceção espacial construída.
a bengala e souber que a terceira porta Quando imagino a minha casa agora, no
é aquela em que quero entrar, as outras meu mapa mental não consigo que ele te-
portas acabam por ser pontos de refe- nha apenas referências visuais. Eu estou,
rência físicos sem saber. neste momento, a imaginar-me a entrar
em casa e estou a recordar-me que à mi-
AM: Sentes que dentro da habitação fa- nha esquerda, em casa, tenho a cozinha.
ria sentido assinar taticamente alguns Quando penso em detalhes da cozinha,
elementos como os degraus, ou os pu- penso na janela, que está ao fundo da co-
xadores, etc? Ou em espaços interiores zinha, mas penso também na textura dos
que não sejam habitação. azulejos e na textura da bancada. Ao mes-
M: Eu vou ser sincera… Já estive em sí- mo tempo, se me focar, consigo imaginar
tios que tinham algumas adaptações a cozinha toda e uma perceção meio físi-
para pessoas com deficiência visual, e eu ca que os armários da cozinha estão um
vou dar a minha opinião… eu não acho, pouco acima da minha cabeça.
de todo, útil. Acho que se uma pessoa ti-
ver de comprar ou adapta uma casa, as AM: Essa imagem que se forma, mesmo
coisas para cegos são um pouco caras e tendo essa pequenina perceção visual, o
faz muito mais sentido investir em coisas mapa completo do espaço nunca é uma
que são muito mais úteis para a acessi- perceção visual, é sempre uma compila-
bilidade. Em termos de arquitetura, eu ção de tudo o resto, não é?
não acho que seja útil, de todo, mesmo. M: Exatamente, é isso mesmo.
Chega a um ponto em que essas dife-
renças pensadas já não vão importar, já é AM: Serias capaz de descrever a sua casa
uma utilização prática da minha casa, eu de modo a ser desenhada uma planta do
já nem vou pensar se aquilo está ali ou o espaço?
que significa. Já é intuitivo.
149
M: Sim, claramente. à arquitetura e que eu disse que achava
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

AM: Qual é a divisão da casa onde costu- que não era importante para mim, eu
mas passar mais tempo e porquê? acho que tem a ver com isso. Porque o
M: No meu quarto, por diversos motivos. facto de eu procurar desenrascar-me
Porque me sinto confortável e é onde sem ter de adaptar meio mundo, faz com
faço a maior parte das coisas. Na varan- que eu tenha uma visão muito descom-
da, que faz parte do quarto. Mas também plicada da questão da arquitetura. Não
porque, como vivo numa casa partilhada sinto que tenha de se adaptar para a de-
com mais duas pessoas, acaba por ser o ficiência visual, colocar identificadores
espaço onde tenho mais privacidade, e ou relevos… Acho que tem a ver com a
por isso também não tenho o conforto forma como eu penso e tento solucionar
nas outras áreas que tenho aqui. as coisas. E eu acho que dentro da casa
esses pormenores são pouco importan-
AM: Estás a estudar? tes, mas na rua já são fundamentais. Eu
M: Estou a terminar a licenciatura. No acho que é muito importante haver esse
fim de semana vou quase sempre a casa. tipo de pormenores em sítios públicos,
como estações de metro, departamen-
AM: E quando tiveste de mudar de casa, tos das finanças… porque enquanto em
de onde vivas com a tua família, para casa é intuitivo, porque passo lá muitas
onde vives agora, foi um choque muito vezes, no exterior já não é, mesmo sen-
grande? do sítios aos quais eu tenho de ir. Se ti-
M: Não. Foi um desafio. Eu comecei por ver essas adaptação, eu vou-me lembrar
estar numa residência - onde eu fazia dela quando tiver de ir lá, e vai ser extre-
muito pouco em termos funcionais, tí- mamente funcional.
nhamos refeitório e etc, a única coisa
que tinha de fazer era arrumar o quarto. AM: Qual é, para ti, a definição de algo
Quando vim para uma casa, óbvio que há belo?
todo um conjunto de responsabilidades e M: É uma pergunta complicada. Eu acho
de questões para as quais também é im- que algo belo pode ser algo que me des-
portante que eu tenha uma boa perce- crevam, ou que eu toque, e que faça
ção do espaço para as fazer, como cozi- sentido na minha cabeça. Por exemplo,
nhar, lavar a louça, limpar a casa, afins… quando alguém diz “está ali uma mesa
E acho que foi um desafio. Encarei como tão feia” eu vou perguntar porquê. A pes-
um desafio. E quando não sei fazer algu- soa vai me descrever a mesa e vai me
ma coisa, não deixo que isso me limite, descrever os motivos pelos quais acha
procuro soluções. feia. Seja porque tem um padrão que vê
Pegando na questão da deficiência vi- e que é estranho, seja porque tem uma
sual e da arquitetura - há muitas ques- perna partida, o que for. Ou seja, para
tões visuais que me fizeste relativamente aquela pessoa há algo que, na cabeça
150
dela, não faz sentido. Não está em har- M: Não podia faltar uma sala com janelas

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monia. Eu acho que para mim, algo belo grandes. A casa tinha de ser muito em
é eu tocar em alguma coisa, ou explica- linhas direitas, muito iluminada. Um jar-
rem-me alguma coisa, e na minha ca- dim, com relva. Uma cozinha grande. E
beça eu conseguir fazer uma imagem e muita iluminação natural.
pensar “gosto disto, faz todo o sentido,
não trocava nada aqui”.

AM: Mas essa imagem que tu crias é vi-


sual?
M: É um misto.

AM: O que considera ser a beleza na ar-


quitetura?
M: É harmonia, também.

AM: Qual é o teu espaço favorito?


M: Acho que é o meu quarto.

AM: E qual é o espaço que menos gos-


tas?
M: Na minha casa? É a casa de banho.

AM: Podes descrever-me a casa de ba-


nho?
M: A minha casa de banho é retangular,
só que é um bocado pequena e sinto-
-me claustrofóbica. De um dos lados do
retângulo tem uma banheira. Do outro
lado pequeno, tem a sanita e o bidé. De
um dos lados compridos tem o lavatório
e o armário e do outro tenho a porta e
parte de uma parede. Mas não acho um
espaço harmonioso. Se pudesse, mudava
muita coisa ali.

AM: Se pudesses desenhar, agora, a tua


casa de sonho, o que não poderia faltar?
151
06 MARTA
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

Marta, 28 anos. Entrevista realizada vir- plicar porque eu ainda tenho muitas no-
tualmente no dia 4 de julho de 2022. ções visuais. Quando chego a um sítio, se
uma pessoa me explicar que estou num
AM: Nasceste cega? espaço retangular, quadrado, redondo, e
M: Eu nasci com glaucoma congénito, e me explicar quais são as dimensões, eu
ao longo da minha vida fui sempre con- consigo nitidamente ter essa perceção
trolando com gotas, tinha uma vida nor- e deslocar-me bem no espaço, mesmo
mal. Porém, aos 16 anos tive um acne sem qualquer apoio.
gravíssimo que me fez tomar uma me-
dicação muito forte, que entretanto saiu AM: Mesmo que esse espaço seja novo
do mercado. Na altura secou-me bastan- para ti?
te o corpo, incluindo uma parte sensível, M: Sim, mesmo que seja novo. Claro que
os olhos, o que causou um descolamen- um bocadinho mais a medo, porque te-
to da retina e, a partir daí, foram varia- nho de sentir, tenho de tocar, mas se a
das operações. Por volta dos 20/21 anos pessoa me disser mais ou menos os pas-
perdi completamente a visão. Não foi sos ou até mesmo medidas, eu consigo
propriamente o glaucoma que me tirou orientar-me bem
a visão, mas sim o descolamento provo-
cado por uma medicação, algo que pode AM: Sentes que com essas descrições
acontecer a qualquer pessoa. crias mapas mentais de orientação?
M: Sim.
AM: E agora tens alguma perceção de luz
ou vultos? AM: E esses mapas que crias têm ape-
M: Não, perdi totalmente a visão. O que nas resíduos visuais, ou têm também ou-
mais gostava quando via era a luz, as tras adaptações às quais já te habituaste
cores, e ainda é algo que mexe comigo, atualmente?
porque me fascinava. Quando perdi a vi- M: Eu acho que ainda têm muitas orien-
são aprendi a lidar com isso, mas de vez tações visuais. Como foram muitos anos
em quando sinto nostalgia por algo que com o sentido da visão, a que me habi-
eu tanto gostava. tuei e usava muito, acho que ficaram al-
gumas coisas fixas.
AM: De que forma percecionas e com-
preendes as características de um espa- AM: Podes descrever-me o sítio onde
ço? (Distâncias, escalas, limites, cheios e estás?
vazios) M: Agora estou no meu quarto. Quan-
M: Tive que me adaptar ao toque, às per- do entramos, à direita tem o móvel com
cepções do espaço. Aí ainda é difícil ex- roupas e logo a seguir tem a secretária,
152
onde estou agora, e mesmo em frente M: Não. Mas quando entro numa casa, as

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tem uma janela. Se fizesse um desenho, pessoas com quem estou tentam ajudar-
saberia colocar bem as coisas onde são, -me a descobrir o espaço de imediato,
mas assim é mais difícil. Posso explicar e é engraçado que mal entro numa casa
como se fosse um desenho? tento ter a noção de onde é cada coisa
e a partir daí começo a tentar deslocar-
AM: Podes, claro. -me, fazer daquele espaço o meu espaço.
M: Imagina um retângulo, em que do É óbvio que há espaços comuns em que
lado esquerdo tem a porta. Entras e do cada um quer organizar o espaço à sua
lado direito tem a cama e a mesa de ca- maneira, como na sala, mas conversamos
beceira, tem dois armários em canto, um e tentamos sempre encontrar a melhor
do lado e outro do outro, depois a janela solução. Por exemplo, temos uma mesa
fica mesmo ao lado de um dos móveis e a de vidro que devia estar no meio da sala,
minha secretária… e neste momento está encostada num
canto por ser mais seguro para mim.
AM: Estou um pouco confusa. A janela
está em frente à secretária? AM: Na casa onde vivias quando ficaste
M: A janela está do lado direito da secre- cega, tiveste de fazer alterações à casa
tária. quando cegaste?
M: Não. Conhecia o espaço e sabia onde
AM: Mas na parede onde a secretária estava tudo. Talvez andasse com um
está encostada? pouco mais de receio, mas como conhe-
M: Não. A secretária está encostada a cia tão bem a casa, não sentia esse tipo
uma parede, e depois no outro lado tem de problemas.
uma janela. Depois da janela tem um ar-
mário, colado também ele à parede. Já AM: E na casa onde estás atualmente, ti-
embutido. E os lados do retângulo são veste de fazer alterações?
todos mais ou menos equivalentes. Qua- M: A casa estava vazia, fomos nós que
se quadrado. trouxemos tudo, essa questão não se
levantou. Penso que a única coisa que
AM: E considerarias o teu quarto alto ou alteraria seria uma parte da casa de ba-
baixo? Amplo? nho que tem um pequeno degrau, e se-
M: Os tetos são médios. O quarto é am- ria mais confortável se ele não existisse.
plo. Eu gosto de espaços grandes para Arquitetonicamente não mudaria mais
me poder deslocar, e tento ter os móveis nada. O espaço é todo muito amplo e é
organizados para não ter obstáculos, confortável nesse sentido, não mudaria.
tanto no quarto como no resto da casa.
AM: Existe algum espaço do qual tenhas
AM: Já vivias nessa casa quando cegaste? passado a gostar mais e um de que te-
153
nhas deixado de gostar, após ficares M: Sim, de certa forma sim. Especial-
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

cega? mente o tato. Ao tocar podemos ter a


M: Por acaso, penso que não. Lidei com perspetiva das coisas, até das alturas ou
as coisas com naturalidade. Mesmo em do espaço, mas podem ser falaciosas.
espaços com muita confusão, como fes-
tivais, eu sentia-me confortável em estar AM: A noção de conforto surge em con-
lá, poucos meses depois de ter perdido sequência de que características de um
a visão. Talvez porque tinha pessoas ao local?
meu lado que me apoiavam nesse senti- M: Acima de tudo, amplo. Que não tenha
do. muitos obstáculos. Se estiver numa casa,
Penso que mais recentemente, com a se não tiver muitos móveis, muitas coisas
pandemia, é que retrocedi um pouco. com que tenha de me preocupar e que
Comecei a ganhar alguns medos. Espa- tenha medo de ir contra. Tenho de saber
ços onde eu antes ia, agora tenho mais onde está cada coisa. Portanto, amplo e
receio em ir. Pela visão e por não me que não tenha muitos obstáculos.
sentir tão à vontade no meio da confu-
são, penso que retrocedi um bocadinho. AM: E em termos de materiais, sentes
Acho que comecei a ganhar mais medos, que há algo que te faça sentir mais con-
mesmo face à visão. O facto de estar- fortável?
mos isolados fez com que alguns receios M: Eu acho que o material não é o mais
viessem à tona. importante. É óbvio que há tipos de chão
que são mais agradáveis que outros, e o
AM: Quais os maiores estímulos para a mesmo para as paredes. Por exemplo,
orientação no espaço? uma coisa que gosto muito de ter em
M: Eu nunca lidei muito bem com o tato. casa é uma varanda, ou um espaço exte-
Eu era aquela que olhava e fixava. Agora rior. Janelas fáceis de manusear também.
aprendi a lidar com o tato e a tocar nas
coisas, apesar de às vezes ainda me fa- AM: Tens por hábito emitir sons para
zer alguma confusão. Também a audição, descodificar os espaços, ou serves-te
tento estar atenta aos espaços, aos ba- apenas dos sons da envolvente?
rulhos. Até mesmo o olfato. Todas essas M: Apenas o som da envolvente. Mas eu
questões se intensificaram, e comecei a acredito que emitir sons possa ajudar,
prestar mais atenção nesse sentido, coi- porque os espaços vão emitir ecos dife-
sa que não fazia anteriormente. Usava a rentes e uma pessoa talvez ganhe uma
visão como o maior sentido. noção de espaço diferente.

AM: Sentes que esses estímulos também AM: E a ausência absoluta de som inter-
podem ser desorientadores? fere no teu sentido de orientação?
M: Eu gosto muito de sons, de barulho.
154
Independentemente de serem calmos ou me preocupo muito com isso. Se estive-

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não. O silêncio pode ser bom para mui- rem a ver, estão a ver. Acontece, estou à
ta gente, mas eu gosto de barulho e mo- vontade. A não ser que tenha de me ves-
vimento. O silêncio é um enorme vazio, tir ou despir… nesse caso costumo per-
muitas vezes. E quando se perde a visão, guntar antes às pessoas que estão comi-
perde-se também o controlo de outras go no espaço se as pessoas de fora me
coisas, e ganham-se mais ansiedades. Eu conseguem ver pela janela, e acabo por
penso que passei a lidar com a ansiedade ter mais cuidado. Tirando isso… Gosto de
de uma forma muito mais intensa desde ter sempre estores abertos. E embora te-
que perdi a visão, parecia que antes con- nha perdido a visão, gosto de manter es-
seguia controlá-la. tímulos porque, quem sabe, pode ser que
um dia haja uma operação e eu consiga
AM: Sentes que associas o som a ima- voltar a ver. A luz, o sol, a claridade são
gens visuais? muito importantes. Há muita gente cega
M: Sim, automaticamente. Por exemplo, para quem é indiferente se a janela está
se ouvir um carro, penso logo na imagem fechada ou está aberta. Para mim não.
de um carro. Gosto de ter luz, mesmo que não a veja,
e a minha família também age um pouco
AM: Então não sentes que as tuas ima- nesse sentido. Por exemplo, quando es-
gens visuais estão a desvanecer? tou no quarto, instintivamente eu acendo
M: Eu acredito que com o tempo isso vá a luz. Até porque se estiver a falar com
acontecer, mas, por agora, não. Eu pen- alguém como estou a falar contigo, por
so que existe uma diferença, em termos exemplo, tenho de ter na minha mente
psicológicos, relativamente à altura em que a outra pessoa pode não me estar a
que uma pessoa perde a visão. Eu per- ver. E eu gosto que me vejam bem, tenho
di com 21 anos. Durante muitos anos de ter essa preocupação, até porque me
tive uma enorme noção do que era esse lembro que quando via, gostava de ver
sentido, do que era a visão, e penso que, bem a outra pessoa quando estava a falar
assim sendo, deverá haver imagens que com ela. E voltando aos reflexos, eu tento
ficam. estimular. Se tiver de ir a qualquer sítio
da casa, eu ligo automaticamente o in-
AM: Qual a relação que tens com a janela terruptor. Tenho esse estímulo e é muito
em termos de privacidade e iluminação? automático.
M: Depende do local onde estiver. Por E aqui no quarto também sinto o sol, às
exemplo, agora estou no meu quarto e vezes bate aqui direto de forma intensa,
sei que em frente à minha janela tenho e sabe bem, tanto sentir o som como ter
árvores, mas se estiver no da minha irmã a noção da existência da claridade. Mas
já é diferente, porque sei que a conse- também já tive alguns momentos de an-
guem ver da rua. Mas normalmente não siedade por pensar que o sol me pode
155
estar a queimar, mesmo sendo só um bo- gala tem de ser para me orientar. Se tiver
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

cadinho de luz. de usar, também a outra mão para ter no-


Quando era pequena, eu tinha sempre de ção do espaço. Mas se estiver completa-
dormir com uma luz de presença, porque mente sozinha, agora também tento para
adorava a luz, e estar no escuro fazia-me um bocadinho para ter noção do espaço,
sempre muita impressão, e quando perdi dos sons, para imaginar o que pode estar
a visão o corpo teve de se adaptar. Mas à volta. Se conhecer também os sítios, é
se calhar também vem daí um bocadinho mais fácil e tenho recordação, oriento-
aquela perda de controlo que falei antes. -me facilmente. Mas se for um espaço
que não conheço de todo, tenho de ana-
AM: Sempre que entras num espaço tens lisar muito bem, seja ao nível do tato, da
tendência de ligar a luz, mas é costume audição… Tenho de me concentrar.
lembrares-te de a desligar?
M: Sim, também. Acho que é um me- AM: Dentro de casa, quais são os prin-
canismo. Era o que eu fazia quando via. cipais dispositivos físicos que ajudam na
É automático. orientação?
M: No primeiro dia que entrei nesta casa
AM: Como te movimentas atualmente? tive de ser orientada por quem estava
M: Eu tenho bengala, mas muitas vezes, comigo para conhecer o espaço. A par-
se estou em sítios que conheço, não a tir do momento em que eu já conhecia
uso. Já estou acostumada, posso ir um o espaço - a casa estava vazia, portanto
pouco mais devagar, mas não utilizo. E se também foi mais fácil fazer o reconheci-
tiver com pessoas por perto, se neces- mento -, eu automaticamente fui andan-
sitar peço ajuda e orientam-me. Mas se do mais livremente pela casa, em dois
estiver num sítio que não conheço total- ou três dias. Conforme as coisas foram
mente, mesmo usando a bengala, tento sendo colocadas, eu sabia sempre onde
também perceber o espaço e conhecer estava cada coisa. E se me perguntares
o máximo possível para rapidamente me onde está cada coisa da casa eu sei, por-
poder deslocar sem qualquer apoio. De- que também ajudei a colocá-las ponto
pois também acho que depende de cada por ponto. Claro que se for à casa de um
pessoa, mas na minha forma de ser, é as- amigo já tenho de estar a perguntar com
sim que tento funcionar. muitos mais receios onde estão os mó-
veis e a ajuda deles já tem de ser muito
AM: E se estiveres a andar sozinha na mais intensa.
rua?
M: Aí tenho de usar a bengala, mas tento
também usar os outros sentidos. A audi- AM: Mas tu sentes que faria sentido as-
ção, acima de tudo, para estar atenta aos sinalar taticamente alguns elementos no
espaços, isso é essencial. O uso da ben- interior da habitação? Como puxadores,
degraus, entre outros.
156
M: Por exemplo, degraus, ou até mes- AM: Ainda relativamente aos mapas

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mo na cozinha, há muitos móveis que mentais, se for um sítio completamen-
estão meio que escondidos, é fácil uma te novo e tu fores investigando o sítio e
pessoa desorientar-se na cozinha se não conseguires reter memórias desses es-
tiver ninguém a orientar. Fora isso, eu paço, as memórias são relativas a estí-
acho que, acima de tudo, marcar degraus mulos não visuais, ou continuas a asso-
ajuda, ou na casa de banho, identificar a ciá-las a estímulos visuais?
banheira ou elementos assim. Numa das M: Continuo a associar a estímulos vi-
casas de banho cá de casa há polibã, e suais. Aquilo que me lembro, que vi, que
até se pode pensar que para alguém com tenho noção.
deficiência visual a sua utilização ajuda,
por ter menos obstáculos, mas às vezes AM: E algo que tu já viste, tens essa me-
prefiro a banheira, porque me sinto mais mória visual, mas sabes que está diferen-
claustrofóbica no polibã. te. Tentas criar uma memória visual da
diferença ou é uma imagem estática na
AM: Sentes que deveria haver algum tipo tua cabeça?
de legislação para regulamentar as ques- M: Tento adaptar, tento idealizar como
tões de desenho da habitação, tendo em terá mudado. Tento imaginar de acordo
consideração a deficiência visual? com o que a pessoa que me está a expli-
M: Eu acho que tem a ver com a for- car diz.
ma como cada pessoa se adapta à casa,
e efetivamente quando é a nossa casa, AM: Serias capaz de descrever a tua casa
acabamos por nos habituar e adaptar de modo a ser desenhada uma planta do
ao espaço. Existem pessoas cegas com espaço?
grande sentido de orientação e que não M: Eu acho que sim. Mas penso que tam-
têm dificuldade nenhuma, mas também bém seria capaz de a desenhar, mesmo
existem pessoas que se sentem muito não vendo.
perdidas sempre que estão num espaço
novo. Por um lado, sinto que poderá fa- AM: O modo como cria novas memó-
zer sentido existir mais legislação, mas rias é substancialmente diferente do que
por outro lado depende de cada pessoa acontecia quando tinha visão?
e não sei se faria sentido regulamen- M: Acho que crio as novas memórias ain-
tar algo, porque uma pessoa com pouca da a partir de algumas recordações que
orientação que precise de ajudas extra tenho de como aconteciam as coisas an-
pode recorrer a elementos temporários tes. Mesmo pessoas. Quando conheço
de marcação de espaços ou assim, en- pessoas novas, tento imaginar como são
quanto está num período de adaptação. de acordo com as descrições que fazem
Depende de cada um. de si mesmas, e depois associo a imagens
visuais que guardo na memória. Tento as-
sociar tudo aquilo que vi à nova realidade.
157
AM: Qual é a divisão da casa onde costu- AM: O que considera ser a beleza na ar-
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

mas passar mais tempo e porquê? quitetura?


M: Quarto ou sala. Como a sala é mais M: Boa questão. Eu sempre gostei de es-
ampla, sinto-me mais à vontade, sin- paços que tivessem desenhos. Acho que o
to que tenho mais liberdade. Também é liso representa a sua simplicidade, mas eu
bom porque posso estar no sofá, ou a ver sempre gostei de ver os relevos, de poder
televisão, ou no computador. E o meu observar o desenho. Na arquitetura sem-
quarto gosto porque é o meu canto, sin- pre gostei de ver espaços como eu cha-
to-me confortável. mo “com vida”. Não deveria ser um espaço
todo branco.
AM: Qual é, para ti, a definição de algo
belo? AM: Qual é o teu espaço interior favorito?
M: Isso é tão relativo! Porque aquilo que M: Os sítios onde costumo dar con-
pode ser bonito para mim, pode ser me- certos, se forem confortáveis e tiverem
nos bonito para ti. Acima de tudo, aqui- boa ventilação, são locais onde me sinto
lo que valorizo sempre é o interior das bem. Mas desde que ceguei também co-
pessoas, e desde que perdi a visão isso mecei a dar mais valor à ventilação dos
intensificou ainda mais. Mas se for em espaços, mesmo sendo espaços fecha-
paisagens, o que eu mais gostava era dos, porque uma boa ventilação faz com
ver o sol, ou o azul do céu, o turque- que me sinta mais à vontade. No geral
sa… Adorava ver as nuvens, observar o comecei a ter mais necessidade de abrir
mar, o horizonte, as árvores, as paisa- janelas, sentir o ar. Se agora me dissesses
gens, as cores, tudo isso. E agora, quan- um espaço novo a que eu teria de ir, eu
do me convidam para ir a sítios de que pensaria na ventilação, nos obstáculos e
eu gostava, às vezes penso “vou para lá nas janelas, para receber luz, mesmo que
para quê se não consigo ver o sítio como eu não a veja, e ar.
eu gostaria?”. Nesse sentido tenho feito
um exercício de me focar nos sons, nos AM: Se pudesses desenhar, agora, a tua
cheiros, nos sabores, nas vivências e nas casa de sonho, o que não poderia faltar?
pessoas que estiverem comigo para ca- M: Tinha de ser uma casa grande. Não
racterizar um sítio. Acho que não é uma podia faltar um jardim ou um gran-
forma de substituir a imagem, mas é uma de terraço para poder estar no exte-
forma de ganhar mais noção dos outros rior. Acima de tudo, um espaço con-
sentidos que temos. É sempre uma nova fortável, amplo, onde me pudesse
descoberta, começo a valorizar mais os deslocar à vontade, e em que os mó-
outros sentidos. veis fixos ou embutidos fossem de
fácil acesso.
158
07 DAVID

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David, 42 anos. Entrevista realizada atra- a percepção se a luz estiver acesa. Por
vés de chamada de telemóvel no dia 30 outro lado, se me aparecer um obstáculo
de junho de 2022. não consigo vê-lo, apenas se me encon-
trar muito concentrado é que consigo
AM: Nasceu cego? sentir a existência de algo, que por vezes
D: Não. Fui perdendo a visão ao lon- nem lá está.
go dos anos devido a uma doença cha-
mada Retinose Pigmentar. Esta doença AM: Referiu que tinha perceção de luz,
vai degenerando a retina e o nervo óti- no entanto de vultos já não?
co provocando a cegueira com o passar D: Já não, mas entendo que por vezes é
dos anos. Aos 11/12 anos foi quando sen- complicado para muitas pessoas acei-
ti a mudança mais significativa, uma vez tarem que perderam completamente a
que no ano anterior ainda conseguia ver visão, e aguentam até mais tarde a des-
o que se encontrava no quadro da es- crever algo que veem, mas que, na reali-
cola, mas a partir desse ano isso já não dade, já não é ver. É mais uma sensação,
era possível. Consegui adaptar-me uma vontade de ver. O nosso cérebro ainda
vez que a perda de visão aconteceu de preserva algumas imagens que comple-
forma lenta. Aos 15/16 anos mudei-me mentam o que as pessoas pensam que
para o Porto, pois as escolas de Viana do veem, porque é difícil admitir que já não
Castelo e Caminha não se encontravam se vê nada. Se estiver a falar com alguém
preparadas para me dar o acompanha- muito tempo, também fico com a sensa-
mento que necessitava. Não sabia o que ção que o cérebro construiu uma ima-
era uma bengala ou uma máquina braille. gem dessa pessoa, mas a imagem não
Seria estranho de repente aparecer na existe. Isto é a minha perceção sobre os
escola com uma máquina extremamen- casos com que lido, mas posso estar en-
te barulhenta que não me permitia estar ganado.
confortável numa sala de aula. No Porto
aprendi a andar de bengala e a adaptar- AM: Se tem perceção da luz, então con-
-me à minha nova realidade, e foi hones- segue identificar, num espaço, onde são
tamente a minha melhor decisão. as janelas?
D: Penso que sim. Existem coisas às
AM: Foi aos 16 anos que perdeu a visão quais deixei de prestar atenção com
totalmente? o tempo, mas acho que ainda sou ca-
D: Não totalmente, ainda hoje consi- paz de identificar os locais das janelas,
go ter sensibilidade luminosa. Se entrar especialmente se estiver muito sol no
num local com muita luminosidade ou exterior. Por exemplo, neste momen-
num quarto, por vezes ainda consigo ter to estou na sala de casa, e aqui há uma
159
situação que me pode dificultar essa Não fico obcecado com isso em nenhum
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

perceção, que é a sala ter muita luz. dos casos, e penso que o facto de os
Tem duas portas em vidro bastante meus pais terem uma casa unifamiliar e
grandes, que dão para a varanda, têm não terem grande preocupação com isso
cerca de dois metros por dois metros e também fez com que eu crescesse des-
pouco. Como são dois focos de luz, pode preocupado. Além disso, eu estou senta-
criar uma falsa ilusão da luz vir de um do na cadeira, e pela minha perceção da
sítio diferente. No entanto, se tivesse só altura do edifício, considero difícil que
um, acho que seria mais fácil de conse- na envolvente consigam ver que estou
guir identificar a janela. aqui sentado. O edifício é alto, a estrada
Penso que tenho mais facilidade, tam- é baixa, e tenho a sensação que as casas
bém, porque eu tenho vários arquitetos da envolvente são todas mais baixas. Tal-
na família - não que se preocupem mui- vez a minha atitude fosse diferente se ti-
to com acessibilidade, mas quando estão vesse edifícios mais altos aqui à volta.
juntos estão sempre a falar de arquite-
tura, e uma pessoa acaba por aprender. AM: De que forma perceciona e com-
Sempre tive, também, curiosidade de preende as características de um espa-
imaginar o espaço a três dimensões. Por ço? (Distâncias, escalas, limites, cheios e
exemplo, penso no que estará por bai- vazios)
xo desta divisão ou por cima. Sei que há D: Penso que tenho essas noções atra-
muitas pessoas normo-visuais que não vés do som. Se estiver no espaço apenas
conseguem ter esta perceção. Eu consi- uma vez, pode ser uma sensação errada,
go dizer: estamos na sala, isto são apar- mas se frequentar o local várias vezes
tamentos, portanto por lógica de design, acabo por ter maior perceção do espaço.
por baixo deve estar uma sala também. De qualquer modo, acho que o que mais
Existem pessoas que me contradizem, me permite essa perceção é o som. Se
que pensam que não será assim. Por aca- estiver muito barulho consigo perceber
so, eu gosto de tentar perceber as dinâ- se o espaço é maior, ou tem mau isola-
micas da construção. mento, ou se o teto é mais alto. Depois
de conhecer o espaço, de andar dentro
AM: E qual a relação que tem com a jane- deles, começo a ter uma perceção mais
la em termos de privacidade? completa devido aos trajetos que faço.
D: Se eu estiver muito tempo num sítio
em que tenha a sensação que me podem AM: Pode descrever o espaço onde se
estar a ver, tenho tendência para fechar encontra?
as cortinas. Depende da zona da casa. D: Estou numa sala sobre o quadrado, que
No quarto tenho mais cuidado, mas na deve ter cerca de 2,30 ou 2,40 metros de
sala deixo sempre tudo aberto, não me altura. Como é uma construção antiga e
preocupo com quem possa estar a ver. é tudo meio torno, não sei exatamente o
160
formato, mas penso que o espaço deve dentro. No meu apartamento existem al-

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ter cerca de 5 metros por 4 metros, algo gumas coisas que não gosto. Por fora, o
semelhante. A parte da porta de entra- edifício não está muito bonito, mas esta
da faz um recorte de cerca de um metro, luz foi um dos motivos pelos quais escolhi
que acresce, do outro lado, ao hall de en- o apartamento. Ter tanta luz agrada-me.
trada. Tirando isso é um espaço regular. E dizem que a vista aqui é boa, também.
Tem duas janelas, como tinha dito antes. Não que eu possa desfrutar dela, mas a
Numa das janelas o sol incide de manhã, minha família pode.
ao nascer do sol, mas não é diretamente. AM: Existe algum espaço interior do qual
Na outra janela o sol incide ao fim do dia, tenha passado a gostar mais e um de que
durante o verão, e no inverno não chega tenha deixado de gostar, após ficar cego?
a incidir. O edifício tem três frentes. Aqui D: Nunca pensei nesse assunto. Con-
na sala não tem bem orientação nascente siderando a sua questão, penso que só
poente, porque já andei com a bússola a poderia acontecer na casa dos meus
tentar perceber - agora consigo aceder a pais, porque era o espaço que mais fre-
estas informações com os mecanismos de quentava e onde morava enquanto ia
acessibilidade do telemóvel. perdendo a visão, mas nunca me agarrei
muito a isso. Podem existir alguns por-
AM: A forma como a luz incide nesse es- menores, nas habitações, aos quais ago-
paço influencia o modo como o David o ra presto mais atenção como estando
percepciona? É algo que goste? mal feitos ou sendo perigosos, enquanto
D: Eu gosto que as casas tenham luz, e uma pessoa não se habitua a frequentar
gosto de ter a sensação de entrar num o espaço. Alguns casos em que as esca-
espaço e de ele ter luz natural - mesmo das surgem - e não estou a falar de vão
que eu não a veja. Por exemplo, existe um de escadas de vinte degraus, mas sim lo-
sítio em que eu tenho uma sensação de cais com três ou quatro degraus, e não
luz brutal, mas que sei que não é natural têm guardas ou qualquer aviso de que
e incomoda-me, que é naquela transição, nos estamos a aproximar de uma esca-
no Norte Shopping, entre o piso das lo- da. Normalmente, nos espaços interiores
jas e o andar do Continente e da Worten. onde nos sentimos confortáveis, em casa,
Aquele espaço tem uma luz absurda, fa- entramos e fechados a bengala. Falo por
z-me confusão, especialmente porque se mim e pelas pessoas cegas que conheço.
percebe claramente que a luz não é na- Andamos mais naturalmente, porque es-
tural. O sol cria um calor diferente. Eu já tamos habituados ao espaço, confiamos,
não gosto de frequentar o espaço em ge- considera-mo-lo seguro. Por exemplo,
ral, porque está sempre repleto de gente. em casa dos meus pais existe uma situa-
Tenho a sensação de que quando fazem ção em que quando se vai da sala para a
um projeto de arquitetura, fazem tam- garagem tem de se passar por dois de-
bém pessoas numa fábrica para colocar graus. Nunca me aconteceu nada, mas
161
agora reconheço que se eu tivesse cega- a passagem para a sala. Foi uma solução
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

do mais novo ou se estivesse lá com al- projetada pelo meu irmão, que é arquite-
guém cego de nascença, aquele obstá- to. Às vezes, quando estava na sala e me
culo poderia ser mais perigoso. Logo que levantava muito rápido para ir ao quarto,
se abre a parte, os degraus estão uns 70, guiava-me pela luz da janela do quarto,
80 centímetros à frente. Reconheço o que atravessava o hall de entrada. Assim,
perigo nestas questões, mas não me fez evitava colidir com a parede. No entanto,
deixar de gostar do espaço. Se fosse eu quando deixei o apartamento, esta es-
a fazer isto, agora, teria de pensar numa tratégia já não resultava muito bem. Pro-
solução diferente. Por vezes as obras fa- vavelmente já teria perdido mais visão.
zem-se de uma forma porque se pensa Mas pronto, para quem tem perceção lu-
que vai ficar mais bonito. Por exemplo, minosa, penso que a luz é, também, uma
inúmeros casos em que o corrimão aca- grande ajuda.
ba mais cedo que o último degrau… Isso
é algo extremamente perigoso para um AM: Sente que esses estímulos também
cego, porque o corrimão é a tua referên- podem ser desorientadores?
cia, é o que te indica que acabou a escada. D: Sim, claro, em vários casos. Como es-
távamos a falar da luz, vou dar um exem-
AM: Há pouco disse que considerava que plo relativo à luz. Se estiver num sítio
o seu maior estímulo para a orientação com janelas a toda a volta, a abundância
no espaço era a audição, certo? de luz é muita e torna-se complicado sa-
D: Em termos de compreender as di- ber de onde vem. Enganamo-nos facil-
mensões do espaço, sim, é. No entanto, mente.
no apartamento em que eu vivia no Por-
to, a luz da janela da rua também me aju- AM: A noção de conforto surge em con-
dava bastante. O apartamento tinha sido sequência de que características de um
alterado e transformado num open spa- local?
ce. Aí, ficou uma situação um pouco pe- D: Madeira. Para mim, o espaço é confor-
rigosa para quem não souber que aquele tável se tiver madeira. Quando digo ma-
elemento existe. Foi deixada uma parede deira, o taco, para o chão, também está
que não completa a distância total entre incluído. E, atualmente, o parquet tam-
as duas paredes perpendiculares, para bém já imita, de certa forma, mas o som
marcar o hall de entrada. Portanto, ima- é diferente. Eu penso que um espaço
gina um espaço com quatro metros de com madeira é, em geral, mais bonito e
largura. A parede que ficou tinha dois mais harmonioso. Se for o caso de existi-
metros de comprimento e estava coloca- rem escadas dentro de casa, prefiro tam-
da ao centro da largura - com um metro bém que sejam em madeira. E os tetos
livre para cada lado. Num dos lados, ti- serem em madeira também é agradável!
nha uma folha de vidro, e no outro era No entanto, atualmente colocar madeira
162
fica muito caro, e nem toda a gente pode so que nunca pus em hipótese. Fui-me

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escolher esta opção. Eu prefiro devido à adaptando à situação do que ia vendo.
sensação que a madeira transmite, mes-
mo acusticamente. O gesso cartonado AM: Eu perguntei pela sua sensibilidade
também transmite uma boa sensação e pela forma como se preocupa em com-
acústica. Portanto, para mim, tudo que preender os espaços.
eu pudesse ter dentro de casa em ma- D: Quando eu fui para o Porto, estive
deira, seria em madeira. dois anos no Instituto São Manuel e de-
pois fui morrer com o meu irmão. O meu
AM: Tem por hábito emitir sons para irmão e outro colega andavam em arqui-
descodificar os espaços, ou serve-se tetura, outros dois colegas de casa em
apenas dos sons da envolvente? arquitetura na Lusíada e um andava em
D: Sei que existe gente que tem por há- Belas Artes. Estive sempre num ambien-
bito emitir sons, por exemplo, estalar os te no meio de arquitetos e artistas. Mes-
dedos, mas eu não o costumo fazer. Por mo quando vinha de fim de semana e ia
vezes faço-o por curiosidade, até porque ao café com o meu irmão, era muito raro
gosto de música e gosto de explorar es- que não nos cruzássemos com um arqui-
sas condições acústicas. Para me orien- teto e não acabássemos a falar de arqui-
tar não o faço. tetura. Com todo esse convívio, ia estan-
Para me orientar, por exemplo, se visi- do atento às conversas e fui ganhando
tar a casa de alguém que não conheço, alguma sensibilidade. Ainda me lembro
começo a pensar como será o espaço. A de, na altura, conseguir ver alguns dese-
sala é desta forma, o hall de entrada era nhos que eles faziam à mão, e eu achava
daquele lado, então os quartos deverão muito interessante. Também achava as
ser no sítio x e a cozinha no sítio y. Tento maquetes muito engraçadas. Eu adorava
imaginar, mas existem muitas casas di- quando apareciam maquetes por casa, e
ferentes e muitas vezes devo estar erra- eu ia tateando e tentando descodificar o
do. Mas se me deixarem andar sozinho e que seriam os espaços. Todo este pro-
adaptar-me ao espaço, tenho facilidade cesso levou-me a ter muita perceção do
em compreender as dinâmicas e rela- espaço.
ções dos espaços.
AM: Retomando as perguntas relativas
AM: Por curiosidade, o David alguma vez à sua orientação, a ausência absoluta de
quis ser arquiteto? som interfere no seu sentido de orienta-
D: Penso que não. Embora o meu irmão ção?
tenha seguido arquitetura e os mais no- D: Sim.
vos tenham tendência para seguir os ir-
mãos, quando estava no 9º ano já tinha AM: Sente que associa o som a imagens
bastante dificuldade na visão, então pen- visuais?
163
D: Eu acho que, ou eu já fui mais atento, mas tenho em ideia que tinha mais faci-
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

ou com o tempo fui perdendo a faculda- lidade, há uns anos atrás, em colocar cor
de de o fazer, não tenho a certeza. Ainda nas imagens. Agora fica tudo mais a pre-
associo o som a algumas imagens visuais, to e branco. Se calhar estou a ficar velho
mas não o faço intuitivamente. Estou ha- e funciono como as máquinas fotográ-
bituado à cegueira e já não penso muito ficas antigas. Às vezes tenho a sensação
nisso. A ouvir música, quando estou mais que tenho mais dificuldade em atribuir
concentrado, por vezes associo alguns cor às imagens atualmente.
sons, não a imagens, mas a cores. Uma
guitarra elétrica com distorção costuma AM: Considera que o modo como cria
parecer-me um som mais cinzento, por novas memórias é substancialmente di-
exemplo. O som ajuda-nos em imensas ferente do que acontecia quando tinha
circunstâncias, especialmente na rua. visão?
Em alguns sítios, até prefiro que estejam D: Penso que é igual. Às vezes noto que,
carros a passar do que não estejam, por- por não ver, posso ficar com uma situa-
que, pelo menos, sei que estou no pas- ção errada da situação. Depois, a con-
seio. Agora com a questão das rampas, versar sobre o que aconteceu, as pes-
que favorecem muito as pessoas com ca- soas apercebem-se que eu fiquei com a
deira de rodas, o que é muito bom, nós ideia errada e explicam-me de uma for-
podemos ir acidentalmente para a es- ma diferente. Por exemplo, se me expli-
trada. Existem muitos sítios em que não carem um espaço e a linguagem não for
estão sinalizadas. Ouvir o som dos car- suficiente descritiva para a minha con-
ros ajuda bastante para sabermos o lo- dição, eu posso ficar com uma ideia do
cal onde estamos, nessas circunstâncias. que me descreveram diferente do que
Já apanhei alguns sustos devido a estas me queriam transmitir. Agora, se for eu
rampas. Não condeno, porque sei que é descobrir uma casa, por exemplo, costu-
fundamental para pessoas com deficiên- mo ficar com uma perceção quase cer-
cia motora ou com carrinhos de bebés, ta de como é o espaço. No entanto, se
mas para nós pode ser complicado. for acompanhado já me sinto um pouco
Sinto que, em casa, o som também é um constrangido em pedir às pessoas para
grande auxílio. No entanto, com o passar me deixarem explorar sozinho, então
dos anos sinto que vou deixando de as- guio-me pelo que me dizem e depois
sociar o som a imagens. Não sei explicar percebo que fico com ideias erradas.
cientificamente, não sei se fui perdendo
o hábito ou se uma pessoa vai perdendo AM: Quando se criam essas memórias,
a faculdade de o fazer. ainda estão associadas a elementos vi-
AM: Então sente que as memórias visuais suais?
que possui se estão a desvanecer?
D: Eu penso que consigo criar a imagem,
164
D: Apenas em alguns casos. Por exemplo, por vezes colido com alguns obstáculos.

Anexos | Entrevistas a indivíduos com Deficiência Visual


se estiver a explorar um espaço e estiver Normalmente, isso acontece porque fa-
diante de uma porta, eu imagino-a da cilitei e fiz a técnica errada, outras por-
forma que eu penso que seja, de acordo que são, efetivamente, objetos que não
com o que descrevem ou com o que sin- seria possível detetar, como as cabines
to através do tato. telefónicas que intersetam o chão apenas
num local e o resto fica suspenso.
AM: Pode esclarecer quais as suas técni-
cas de movimentação? AM: Diria que a distração e alguns obje-
D: Quando tinha baixa visão, andava tos como as cabines telefónicas são, en-
sem nada. Tinha alguns mecanismos tão, os seus maiores obstáculos?
de defesa. Quando andava com cole- D: Sim, penso que sim. Existem mais al-
gas meus, existia sempre um que, de guns elementos que poderia identificar
certo modo, me guiava. Ia com a mão como obstáculos, como a parte saliente
no ombro dele e seguia. Depois apren- dos semáforos, por exemplo. Eu pen-
di que a técnica dos guias era colo- so que existem soluções para alguns
car a mão no cotovelo, mas na altura destes problemas que seriam fáceis de
não sabia. Com o que conseguia ver e fazer, e talvez os objetos até ficassem
com o conhecimento dos locais, ia-me mais bonitos.
movimentando. Quando andava sozi-
nho e não usava bengala, tinha mais di- AM: E em espaços que não conhece, o
ficuldade em sítios com muita claridade. seu modo de orientação e de exploração
Preferia andar em sítios que tivessem do espaço muda?
sombra ao invés de locais com muito sol. D: Sim. Quando vou para algum local
Às vezes penso nos percursos que fazia, que não conheço, por norma ando mais
dentro da escola, para ir para uma sala. devagar e com mais cuidado. Caminho
Dava voltas bem maiores do que era ne- mais concentrado, e tento fazer a téc-
cessário para fazer caminhos mais fáceis nica de movimentação da bengala com
para mim. Tentava evitar degraus, por- mais precisão. Também tento prestar
que não os conseguia distinguir, então ia mais atenção ao que ouço e ao que sin-
pelos locais que tinham rampas. Eu não to através dos pés. As pessoas pensam
podia fugir aos meus mapas, porque era que as nossas referências táteis são sen-
assim que me orientava. Fui obrigado a tidas através das mãos, mas, para mim,
criar os meus roteiros para não colidir uma tampa de saneamento pode ser
com os objetos de jardim, bancos, postes um ponto de referência, tanto pela tex-
ou espaços de brincar. tura como pelo som que deteto quando
Depois, com a bengala, ficou tudo mais alguém a pisa.
facilitado. Acontecem alguns percalços AM: Relativamente à habitação, conside-
quando vou muito confiante, penso que já ra que faz sentido assinalar taticamente
conheço muito bem o local e a técnica, e alguns elementos no interior da habita-
165
ção? Como puxadores ou degraus. Ou a mam dizer-me que é muito mais caro, e
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

arquitetura não deve ditar essas regras eu compreendo, mas seria uma melhoria
porque cada pessoa se adapta ao espaço muito grande.
em que está?
D: Atualmente, que se pensa a habitação AM: Teve de fazer adaptações à sua casa
como hoje sendo de uma pessoa e ama- devido à cegueira?
nhã já podendo ser de outra, sem nunca D: Já estive em várias casas diferentes,
saber quais os problemas da pessoa que e em todas fiz algumas alterações, mas
vai habitar aquele local, talvez faça sen- penso que nenhuma foi consequente de
tido algum tipo de preocupações. Claro questões relacionada com a deficiência
que eu considero melhor, por exemplo, visual. As alterações estiveram mais re-
falando de um apartamento, que o mes- lacionadas com questões de preferên-
mo não tenha daqueles degraus peque- cia. Por exemplo, por questões de gosto
nos de um ou dois centímetros - que e de hábito da frequência de casas de
nem são degraus, parecem mais falhas. família, eu preferiria ter um open spa-
Mas eu penso que isso não tem neces- ce. No entanto, no apartamento onde
sariamente a ver com arquitetura. Às ve- estou, a sala está separada da cozinha.
zes, são problemas de engenharia ou da É preciso disponibilidade e tempo para
construção, mas claro que se culpa sem- realizar obras para poder retirar a pa-
pre o arquiteto nestas circunstâncias. rede divisória, e sinto que agora não é o
Mas retomando a questão, estes proble- momento. Prefiro assim e eventualmen-
mas são de evitar. Claro que uma pessoa te farei essa alteração, mas não tem a ver
se adapta, habitua-se, mas cada vez que com o modo como me movimento no
leva alguém a casa tem de se estar a ex- espaço, está apenas relacionado com o
plicar tudo devido a esses riscos. Nou- meu gosto.
tras circunstâncias, poder-se-ia dizer à Em termos de questões de mobilidade
pessoa para andar à vontade. ou de orientação, não me recordo de ne-
Imagina que me davam a oportunidade nhuma alteração que tenha sentido ne-
de desenhar um projeto à vontade. Para cessidade de fazer.
mim, numa casa, não colocaria portas
sem ser portas de correr para dentro das AM: Há pouco referiu os seus ma-
paredes. Os piores inimigos de um cego, pas mentais de orientação. Isso apenas
os maiores riscos na habitação, são as acontecia quando tinha baixa visão, ou
pessoas da família, porque estão habi- continua a criá-los?
tuadas. É muito normal, de repente, en- D: Continuo a criá-los. Acredito que, de-
contrar uma porta entreaberta, e é qua- vido ao uso da bengala, tenho mais fa-
se certo que a pessoa cega vai colidir. Às cilidade em mudar os percursos ou em
vezes aconselho pessoas a colocarem as aventurar-me para percursos menos
portas da forma que referi, mas costu- conhecidos, mas continuo a criar os per-
cursos mentais.
166
AM: E os mapas mentais que cria desde colocar as divisórias dos espaços. Era um

Anexos | Entrevistas a indivíduos com Deficiência Visual


que ficou cego são marcados por que es- exercício interessante de se fazer.
tímulos ou referências?
D: Algumas das referências mais mar- AM: Qual é a divisão da casa onde costu-
cantes são consequentes do estímulo ma passar mais tempo e porquê?
tátil, mas através dos pés e da bengala e D: Eu tenho uma divisão em que tenho o
não através das mãos. Os sons dos espa- equipamento de música, penso que será
ços ou da rua também são importantes nesse espaço. Passo muitas horas com o
para estes percursos mentais. Depois, meu filho no quarto dele ou na sala, mas
como tenho perceção luminosa, existem isso acontece consoante a vontade dele.
alguns sítios em que a luz me ajuda, tam- Em termos individuais, é na divisão da
bém. música.

AM: Nos locais que percorre e que já viu AM: Qual é, para si, a definição de algo
antes, sente que se baseia nas memórias belo?
visuais que tinha para se orientar no es- D: Essa é uma questão para muitas horas.
paço? Penso que, de modo geral, esta opinião
D: Nas ruas que frequento, penso que vai-se definindo consoante a nossa ida-
sim. Ainda tenho muita orientação con- de e consoante as nossas experiências.
sequente da memória visual que tenho Eu gosto muito da natureza, mas não sei
do espaço. Algo que me apercebo é que, mais o que dizer.
por vezes, a minha noção de distâncias AM: E na arquitetura, o que considera
pode estar um pouco alterada. Não sei se bonito?
seria por ser mais novo na altura em que D: Gosto de casa térreas, apenas com
ainda via, mas alguns trajetos pareciam- rés do chão, e da inclusão da madei-
-me maiores do que me parecem atual- ra onde for possível. Gosto de espaços
mente. que tenham muita luz. Não sou fanático
por casas grandes, gosto de casas sim-
AM: Pensa que seria capaz de descrever ples, minimalistas e com poucos ador-
a sua casa de modo a ser desenhada uma nos. Penso que é isto. Casa térrea, luz e
planta do espaço? madeira. Também gosto muito dos open
D: Poderia não sair exatamente igual, space e, se a casa for alta, também acho
mas penso que era capaz. Eu sinto que, interessante que exista um mezzanine. E
até, se me deixassem o material corta- um alpendre.
do, seria capaz de fazer uma maquete AM: E qual é o seu espaço favorito?
da casa onde vivo. Não ficaria a 100%, D: Gosto da casa toda, sinto que não te-
mas penso que seria capaz de fazer algo nho preferência. Gosto dos vários espa-
aproximado. O apartamento é um retân- ços consoante o momento do dia. Se ti-
gulo, e penso que seria capaz, depois, de vesse um estúdio só para mim em casa,
167
poderia ser esse o sítio, mas como não 08 CARLOS
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

tenho, não pode ser. Se a minha sala es-


tivesse completamente virada a poente e Carlos, 49 anos. Entrevista realizada no
a luz incidisse diretamente, acredito que dia 14 de julho de 2022, em Viana do Cas-
gostaria ainda mais do espaço e de pas- telo.
sar tempo aqui.
Fora de casa, gosto de ir ao Restaurante AM: Nasceu cego?
Caçana, porque tem a esplanada virada a C: Não, eu ceguei aos 10 anos. A minha
poente e sinto-me confortável com o sol, história é um pouco curiosa, porque eu
passo lá uns bons fins de tarde. Poderia ceguei em plena sala de aula, na escola
ser melhor, claro, mas é um sítio em que primária, em Caminha. Foi como se me
gosto de estar. desligassem uma luz. Isso aconteceu co-
migo quando andava na quarta classe.
AM: Se pudesse desenhar, agora, a sua Depois tive um processo complicado a
casa de sonho, o que não poderia faltar? nível de cirurgias, no Porto e até em In-
D: Não poderia faltar um open space, glaterra. Em Inglaterra, na primeira ope-
ter bastante luz, ser uma casa térrea ração que fiz consegui ficar a ver 70% do
com muita madeira, portas de embutir olho direito - o único que ainda estavam
na parede e tudo com a maior simplici- a tentar salvar - e depois, a partir daí, se-
dade possível. Quereria ter um bom re- guiu-se um percurso de várias cirurgias
cuperador de calor, para manter a casa que, se me recordo, foram 10, em cerca
quente no inverno, e técnicas de ener- e 15 meses, nos anos 80. Depois não sei
gia sustentável, como painéis solares. ao certo o que aconteceu, mas eu de-
Tudo que se puder fazer de modo a me- veria ter ido a uma consulta e operação
lhorar o conforto da casa e gastar me- numa determinada data para serem re-
nos energia, acho importante. Gostava, tiradas cataratas e algo mais que já não
também, que pudesse ter um espaço só me recordo, mas que permitia que man-
para mim, para poder ter o meu espaço tivesse a visão no olho olho direito na
de música. Era importante ter uma boa ordem dos 70%. Infelizmente, não fui na
exposição solar para ter um alpendre ou data que estava estipulada pela equipa
um pequeno jardim. médica. Fui com cerca de cinco meses
de atraso. Fizeram na mesma a operação,
mas durante a cirurgia tive uma hemor-
ragia interna que me fez perder a visão.

AM: O incidente na sala de aula foi devi-


do a um acidente?
C: Não. Segundo aquilo que me recordo,
foi um descolamento da retina. Foram uns
168
anos complicados na infância e adoles- é que uso sempre óculos de sol. Seja com

Anexos | Entrevistas a indivíduos com Deficiência Visual


cência. Depois, infelizmente, também fui sol, chuva, vento… é uma proteção.
vítima de abandono familiar. Tudo acon-
teceu. Mas tudo isso que sofri na pele, AM: De que forma perceciona e com-
na época, fizeram de mim mais maduro, preende as características de um
mais lutador. Acreditei em mim, o que espaço?
considero importante para nos poder- C: Eu penso que tem a ver com aquilo
mos superar e atingir os nossos objeti- que foi a minha preparação para a in-
vos, e foi uma fase complicada, mas está dependência futura. Eu estive no Por-
ultrapassada. to 5 anos, dos 12 aos 17, no Instituto São
Ao longo da vida fui seguindo as minhas Manuel, que era uma escola já especia-
convicções. A única coisa que não con- lizada para pessoas com Deficiência Vi-
segui e que era um sonho que tinha era sual. Lá nós aprendemos tudo, sobretu-
seguir o curso superior de história, para do relativamente a formas de manter a
ser professor. Era muito bom aluno e era independência e modos de orientação
algo que queria, mas as circunstâncias da e mobilidade, o que ajuda e permite ter
vida não me permitiram. Tive de aban- uma noção daquilo que nos rodeia. Ob-
donar os estudos para começar a ganhar viamente, nem sempre isso é possível,
a vida, na fase dos meus 20 anos. Não era sobretudo quando há aglomerado de
a opção que eu queria, mas teve de ser. pessoas. Aí torna-se mais difícil termos
Atualmente trabalho na rádio, na Geice- noção se estamos a um metro da parede
FM e na Alto Minho. Já faço rádio há cer- ou a 30 centímetros de uma esplanada.
ca de 28 anos, que era outro dos meus Sinto que também tenho perceção a ní-
sonhos. E outra função que desempenho vel de altura, tenho mais ou menos ideia,
e gosto muito é ser telefonista. Trabalho mas depende muito do local e do mo-
na USF Gil Eanes e é uma das coisas que mento.
gosto mesmo de fazer. Com muita calma
e paciência. AM: Pode descrever o espaço onde nos
encontramos?
AM: Consegue percecionar luz ou vul- C: Este espaço eu sei que é um conten-
tos? tor, já aqui estive. A área específica não
C: Não. A única perceção visual que te- sei, porque quando venho para aqui, nor-
nho é um reflexo, quando está muito ca- malmente, é para o apoio de informáti-
lor, na vista direita. Até me causa dores. ca, portanto vou sempre para o mesmo
Pelo que eu sei, eu tenho no interior do local, nunca tive a oportunidade de eu
olho uma lâmina que me introduziram na próprio explorar a área que me rodeia.
altura, não sei bem como se chama, mas Eu penso que, tendo em conta as condi-
está lá fixada. Em dias de muito calor ções, o espaço poderá ter dois metros e
isso provoca-me algumas dores. Por isso qualquer coisa de altura, talvez.
169
AM: Quais os maiores estímulos que uti- C: Eu utilizo a bengala. Há quem consi-
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

liza para a orientação no espaço? ga utilizar a bengala na diagonal, mas


C: Isso tem muito a ver com as áreas que eu acho que isso é um risco. Eu utilizo a
cada um frequenta. Por exemplo, em casa técnica dos dois toques, que penso ser
tenho perfeitamente perceção daquilo a mais comum. Quando vou a andar, o
que me rodeia, do espaço que frequento. toque da bengala antecede o local onde
Sempre com cuidados, porque sou uma vou posicionar o pé. Ao pousar o pé di-
pessoa que põe quem me rodeia muito à reito, toco com a bengala do lado es-
vontade. Até a minha família se esquece, querdo e vice versa. Isso permite dete-
por vezes, que eu sou cego, o que é óti- tar muito mais facilmente os obstáculos,
mo. Muitas vezes deixam portas abertas, mas nem sempre isso é possível. Já tive
objetos fora do local, mesmo que os aler- alguns acidentes, e um até algo grave,
te. Mas temos esse à vontade e por vezes porque a bengala não deteta tudo. Va-
esses pormenores falham. Em casa não mos supor que nos aparece um buraco
tenho qualquer dificuldade. Mesmo em na frente - não temos qualquer hipótese.
alguns cafés que frequento, circulo den- Por vezes somos avisados, mas quando
tro deles sem bengala, e as pessoas até estamos sozinhos não há qualquer pos-
ficam admiradas. Vou ao balcão, à mesa sibilidade de nos proteger. Eu tenho sido
e à casa de banho. Obviamente que para um crítico relativamente à colocação dos
ter esse sentido de orientação não basta andaimes, e já participei até em algumas
um ou dois dias a frequentar o espaço, reportagens, porque as leis têm de ser
sobretudo em locais públicos. É necessá- cumpridas e infelizmente não são. Quan-
ria uma frequência de visitas para, com o do se colocam os andaimes tem de se co-
tempo, poder sentir aquela orientação e locar uma rede em seu redor, porque se
aquilo que me rodeia. Mesmo a nível de a pessoa cega for a circular e os andai-
ruído, por exemplo, sou capaz de dizer mes estiverem sobre o passeio, a bengala
onde estão mais clientes ou onde não toca na rede e não há o risco de ir con-
estão. Relativamente a obstáculos, no tra eles. Não tendo essa rede, a bengala
espaço as pessoas também me costu- passa por baixo do andaime e a pessoa
mam alertar. Num local tem a máquina não tem possibilidade de o identificar,
de tabaco, noutro tem a arca de gela- vai contra ele. Foi o que me aconteceu
dos, por exemplo. Hoje em dia as pessoas a mim. O mesmo relativamente aos veí-
também já estão mais sensibilizadas que culos pesados em cima do passeio, por-
antigamente, elas próprias já nos ajudam que acontece o mesmo. A bengala passa
de forma a podermos orientar-nos com por baixo e não existe hipótese de defe-
mais facilidade. sa. Também posso acrescentar - sei que
agora se faz com mais relevância, tendo
AM: Pode explicar-me como são as suas em conta que infelizmente se tem pouco
técnicas de movimentação? civismo em pleno século XXI - para evi-
170
tar a colocação dos veículos em cima do AM: Ainda sobre estas questões de mo-

Anexos | Entrevistas a indivíduos com Deficiência Visual


passeio, utilizam-se aqueles mecos. Por vimentação, quando está em espaços
um lado, é bom. Pelo outro, para as pes- que não conhece, o seu modo de se mo-
soas cegas é um risco. vimentar no espaço altera?
C: É uma boa pergunta. Eu sempre fui
AM: Pondera ter cão guia? uma pessoa muito independente e aven-
C: Sim. Aliás, em 2017 eu abri processo tureira. Em qualquer dificuldade, por
para adquirir um cão guia. Fui a Mortá- exemplo, combinar com alguém e ir até
gua, fiz os testes e foi aprovada a atri- ao Porto ou até Lisboa e seguir esse ca-
buição de um cão guia. No entanto, tive minho, eu faço-o. E é óbvio que, não sa-
de fazer uma operação à coluna e não bendo onde são os locais ou o que tenho
correu muito bem, de modo que, tendo de fazer, tenho de perguntar, mesmo a
de fazer outra, a equipa médica não me nível de transportes públicos.
aconselhou a prosseguir com o processo Para lhe dar outro exemplo - em 1998
naquele momento. O cão tem um sentido eu fui estudar para Lisboa, para Chelas,
de orientação fantástico, são altamente tirar um curso de informática. Eu não
treinados, mas também têm os seus pi- conhecia nada nem ninguém em Lisboa.
cos, e o receio da equipa médica era que Estava hospedado no Jardim da Estrela,
bastava um movimento mais brusco do mas ia, todos os dias, por volta das 6h
cão para eu me poder lesionar. Por esse da manhã, para Chelas de autocarro. Ia
motivo, tive de cancelar o processo e o com dois colegas que já conheciam o ca-
cão foi atribuído a outra pessoa. minho. Mesmo não conhecendo os espa-
Neste momento, tendo em consideração ços, eu caminho com muita calma, muita
o meu estado de saúde, não vou requi- serenidade, tentando perceber o que vai
sitar um cão guia até nova avaliação da surgindo, qual o lado para o qual tenho
equipa médica. No entanto, gostava de o de virar. Vou estando atento ao piso,
fazer no futuro. Sente-se mais segurança cujas mudanças também me dão dicas na
a todos os níveis. orientação.
Pela experiência que eu tenho com vá-
rios colegas que têm cão guia, o fee- AM: Sente que faria sentido, nas habita-
dback é extraordinário. Aliás, eu estive a ções, nós assinalarmos, enquanto arqui-
fazer os tais testes que falei há pouco e tetos, alguns elementos como degraus
eles indicam o cão adequado de acordo ou puxadores? Ou pensa que não fará
com as características da pessoa e as ca- sentido por ser a própria casa?
racterísticas do cão. Uma vez pergunta- C: Penso que é uma combinação dos dois.
ram-me como era a velocidade do meu Poderá haver algum ajuste de algumas
passo - devagar, médio ou ligeiro - e a habitações, como, por exemplo, a orien-
escolha do cão foi de acordo, também, tação para a qual abrem as portas. A ní-
com a velocidade do seu passo. vel de degraus tem a ver com a estrutura
171
do edifício. Por exemplo, na casa onde AM: Tem por hábito emitir sons para
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

estou agora temporariamente, no cimo descodificar os espaços, ou serve-se


das escadas existe uma curva em que os apenas dos sons da envolvente?
degraus encurtam e é muito perigoso. C: Apenas dos sons da envolvente.
Poderia ser diferente. Mas, tirando estas
questões que poderiam ser melhoradas, AM: E a ausência absoluta de som inter-
uma pessoa habitua-se. O edifício ser fere no seu sentido de orientação?
de um forma ou outra vai causar sem- C: Não. Não me incomoda.
pre obstáculos, nunca será exatamente à
medida da pessoa cega, mas, com o tem- AM: Sente que estes estímulos auditivos
po, as pessoas cegas têm perfeitamente também podem, por vezes, ser desorien-
de ir conhecendo o espaço e adaptar-se tadores?
às condições. Atualmente os edifícios C: Depende daquilo que se faz, do nosso
também já têm outro tipo de requisitos dia a dia. No trabalho eu uso computador
que os antigos não têm, e que já melho- com sistema de voz e uso auricular, mas
ram a mobilidade para todos. Se ainda se muitas vezes sou obrigado a pedir que
pode fazer melhor? Provavelmente sim, façam menos barulho para me orientar
acho que sim. naquilo que estou a fazer. Trabalho no
Passa muito por sensibilização. E a sen- centro de saúde e há sempre movimen-
sibilização é importante, não só por es- tação de muita gente, de modo que usar
tes casos, mas por outros da sociedade o auricular me ajuda muito a orientar no
com que me debato todos os dias. E sei que quero fazer e não perturba as pes-
que a nível nacional há muita gente com soas à minha volta. A nível de espaço, eu
esse pensamento e que batalham para gosto bastante de movimento. Gosto de
que isso aconteça, mas não é um proces- convívio e de barulho.
so fácil.
AM: Sente que associa o som a imagens
AM: A noção de conforto surge em con- visuais?
sequência de que características de um C: Não, não acontece. Eu tenho perfeita
local? Existe algum tipo de material de noção do que são os objetos, a praia, o
que goste mais? sol. Tenho essas imagens, e até me lem-
C: Penso que me habituei desde muito bro de locais em que passei antes de ce-
cedo àquilo que é a realidade, por isso gar. Lembro-me muito bem dos rostos
nunca fui exigente relativamente ao dos meus irmãos. Mas se me pergunta-
modo como o espaço tinha de ser para rem como é a minha esposa ou a minha
me sentir bem. Sinto-me à vontade, in- filha, só consigo descrever o rosto delas
dependentemente do local, do espaço, pelo tato. Ou pelo que me dizem, claro.
da movimentação. Sou calmo e lido mui- A nível dos objetos, hoje em dia acho fá-
to bem com as situações. ceis de detetar, não tenho dificuldade,
172
por exemplo, um relógio. Mas quando mesmo caminho, já conheço o percurso

Anexos | Entrevistas a indivíduos com Deficiência Visual


ouço os sons não penso ativamente nas e vou seguindo. Não me preocupo em fa-
imagens. Acho que penso nessas ima- zer o mapa, saber o que tenho de fazer a
gens em casos como quando vou à praia, seguir, o movimento acontece de forma
e fico a imaginar como estão as ondas, espontânea.
mas no dia a dia não me acontece.
AM: Seria capaz de descrever a sua casa
AM: Qual a relação que tem com a janela de modo a ser desenhada uma planta do
em termos de privacidade e iluminação? espaço?
A luz solar destaca-se na forma como C: Penso que sim.
perceciona o espaço?
C: Eu evito a luz direta. Não gosto da AM: Tem memórias visuais que o ajudam
sensação de ter o sol a incidir em mim. na orientação?
Relativamente à privacidade, depende C: Não.
da janela em si. Por norma, prefiro ter os AM: Sente que as memórias visuais que
cortinados ou aquelas aqueles vidros que possui se estão a desvanecer?
não permitem ver para o interior, mas C: Penso que não.
nunca fui muito pessoa de me preocupar
com isso. Sinto-me à vontade. AM: O modo como cria novas memó-
rias é substancialmente diferente do que
AM: Teve de fazer adaptações à sua casa acontecia quando tinha visão?
devido à sua deficiência visual? C: Não consigo explicar muito bem.
C: Não, absolutamente nada. Antes pelo Aquilo que criamos na nossa memória
contrário, mantém-se tudo como esta- é o que vai acontecendo no dia a dia e
va. Claro que fui fazendo alterações, no- aquilo que nos rodeia. Cria-se uma me-
meadamente na substituição de algumas mória boa, mas uma memória escura. No
janelas, para colocar vidro duplo, mas meu caso, após cegueira, é uma memória
não se relacionam com a deficiência vi- escura. Está maioritariamente associada
sual. No interior nunca necessitei de fa- aos estímulos dos outros sentidos.
zer nenhuma alteração.
AM: Qual é a divisão da casa onde costu-
AM: Cria mapas mentais de orientação? ma passar mais tempo e porquê?
C: Não. C: Sala, porque gosto muito de ouvir mú-
sica, de ouvir televisão e de conversar
AM: Se tivesse de ir daqui para a sua com a família.
casa, é passo a passo ou cria um trajeto
antes? AM: Qual é, para si, a definição de algo
C: Já conheço, já estou habituado, é pas- belo?
so a passo. Costumo optar sempre pelo
173
C: Se falarmos de pessoas, é óbvio que tas seriam duas valências que introduza
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

para mim a beleza interior é o mais im- numa habitação para mim, se possível.
portante. Muitas vezes questiono: o que Quem sabe, um dia.
adianta ser bonito por fora e no interior
não ter beleza nenhuma? Penso que a AM: Qual sente que deveria ser uma for-
beleza é a humildade, a sinceridade, o ma de sensibilizar as pessoas que veem
amor ao próximo, o respeito, entre ou- para a deficiência visual?
tros valores. A beleza interior pode valo- C: Eu acho que o trabalho que ainda se
rizar-nos muito mais que aquilo que é o deve fazer com mais prontidão está rela-
nosso exterior. Costumo dizer que o ex- cionado com questões de descriminação.
terior, muitas vezes, não reflete o que é As pessoas cegas, hoje em dia, ainda não
o interior. vítimas de descriminação, e essa é uma
AM: O que considera ser a beleza na ar- das coisas que, de facto, não tolero. Em-
quitetura? bora eu ache que algumas vezes é dito
C: Sinceramente, nunca pensei nisso. Em sem intenção de descriminar, eu não me
casa gosto de estar na sala, como já disse, contenho. Tenho de ser muito frontal, de
mas a nível de beleza não me preocupo. forma educada, claro, mas muitas vezes
Não penso nisso. E a casa está organiza- chamo a atenção de uma forma fria para
da e mobilada ao gosto da minha esposa, as pessoas comecem a ter mais disponi-
portanto nunca me preocupei com isso, bilidade e sensibilidade perante a pessoa
sei apenas as características que me vão com deficiência visual. A pessoa cega ain-
dando. Não vendo, não consigo criar uma da é um pouco tratada como um objeto,
imagem de como é o espaço exatamente. porque se acha que tem de se fazer tudo,
E pelo lado exterior de um edifício, não acha-se que a pessoa cega não é capaz de
consigo saber como é. Posso saber que é cozinhar, não é capaz de se vestir, de pas-
alto, saber que tem grandes vitrines, mas sar a ferro, lavar a loiça, e podia continuar
a beleza em si, sinceramente, acho que a lista. E isto não é verdade. Eu, felizmen-
para mim não se destaca. te, não tenho qualquer tipo de dificuldade
em fazer nenhuma destas tarefas.
AM: Se pudesse desenhar, agora, a sua
casa de sonho, o que não poderia faltar? AM: Por esse motivo é que eu gostava,
C: Boa pergunta. Muitas vezes falo dis- também, que este meu trabalho culmi-
so com a minha filha. Existem duas coi- nasse com uma atividade de sensibiliza-
sas que, se tivesse a minha casa de so- ção com os meus colegas de arquitetura.
nho, não poderiam faltar. Uma delas era C: Vocês são o futuro. Podem perfeita-
a piscina, e outra delas era um estúdio mente colaborar no sentido da integra-
musical, possivelmente até eu próprio ção. Quantos mais o fizerem, melhor.
criar uma rádio online. Sou um amante Não é fácil, mas também não é impossí-
da música e da comunicação social. Es- vel.
174
09 EXÉRCIA

Anexos | Entrevistas a indivíduos com Deficiência Visual


Exércia, 25 anos. Entrevista realizada AM: Pode descrever o espaço onde se
virtualmente no dia 25 de julho de 2022. encontra?
E: Estou em frente a um armário que é
AM: Nasceu cega? preto e alto. Estou situada num quarto.
E: O meu problema foi adquirido, mas foi Não tenho noção e não consigo fazer
no meu primeiro mês de vida. Devido à uma descrição em metros, mas o espaço
doença de Glaucoma nunca vi. Fui diag- é pequeno. Não sei mais o que dizer para
nosticada com Glaucoma adquirido. o descrever. É um espaço quadrado.

AM: Consegue percepcionar a luz ou AM: E como são as paredes?


vultos? E: São normais, são de cimento.
E: Sim. Consigo percepcionar luz, vultos
e cores. Apenas isso. AM: Tem janelas? Quando incide a luz?
E: Sim, tem duas. Durante a manhã, a
AM: De que forma percepciona e com- luz entra pela janela à minha frente e,
preende as características de um espa- durante a tarde, pela janela que está ao
ço? (Distâncias, escalas, limites, cheios e meu lado direito.
vazios)
E: Eu não consigo ter muita consciên- AM: Sente que os estímulos que referiu
cia das características que exemplificou. também podem ser desorientadores?
Não consigo ter controle sobre elas, a E: Por vezes sim, confundem-me. Mas,
não ser que me aproxime e tateie o local. se tiver alguém que vê, por perto, para
me explicar, torna-se mais fácil. Isto em
AM: Mas sente que seria capaz de entrar espaços que não conheço. Quando es-
num espaço novo e descrever algumas tou em espaços que conheço, já tenho
das suas caraterísticas, depois desse re- consciência de como tudo se distribui,
conhecimento? e até de algumas das áreas dos espaços.
E: Depende de alguns fatores. Por No entanto, esta noção é consequente
exemplo, da luminosidade do local onde do modo como as pessoas que veem me
me encontre. descrevem o espaço.

AM: Então as suas maiores referências AM: Quais as suas técnicas de movimen-
partem do estímulo da pouca perceção tação?
visual que ainda tem? E: Dentro de casa e em locais que fre-
E: Sim. Tenho entre 5% e 10% de visão. quento com regularidade não utilizo ne-
Relativamente a outros estímulos, aquilo nhum auxílio. No entanto, em sítios que
a que mais recorro é o tato. não conheço, nos que frequento com
175
pouca regularidade ou na rua utilizo ben- consequências no modo como me movi-
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

gala. A partir do momento em que conhe- mento.


ço o espaço, já estou habituada e utilizo Fora de casa acontece-me o mesmo. Por
as minhas técnicas sem bengala de forma vezes peço ajuda, outros nego ajuda por
autónoma. Como, por exemplo, colocar a me sentir capaz de me movimentar sozi-
mão em frente ao corpo como proteção nha. É bom termos autonomia para nos
ou apoiá-la na parede para me orientar. deslocarmos, e tenho consciência que as
Sigo até ao local onde pretendo chegar. pessoas sem deficiência visual não têm
Numa casa com mais mudanças de dire- muita noção de como os cegos se orien-
ção torna-se mais difícil. Quando não uti- tam, mas precisamos da nossa indepen-
lizo bengala, utilizo estas técnicas. dência. Muitas vezes oferecem ajuda,
mas não sabem como agir e acabam por
AM: E em espaços que não conhece, dificultar a movimentação. Por vezes
existe algum método a que recorra para perguntam-me de que modo prefiro que
fazer o reconhecimento do espaço? me agarrem, e eu explico que devo ser
E: Utilizo a técnica de varrimento. Raste- eu a agarrar a pessoa. É o único modo
ja-se a ponta da bengala de um lado para de nos orientarmos com alguém, porque
o outro. Utilizo este método para pisos sentimos o movimento do corpo da pes-
lisos, e utilizo a técnica dos dois toques soa - seja a subir, a descer, a desviar-se
para pisos mais rugosos. de algum elemento do trajeto, nós senti-
mos tudo.
AM: Sente-se confortável a percorrer
espaços que não conhece? AM: A noção de conforto surge em con-
E: Sinto-me desconfortável. Como não sequência de que características de um
conheço, sinto-me insegura. No entanto, local?
quando me habituo ao espaço, a situação E: Um espaço confortável é, acima de
muda. tudo, um espaço que eu conheça bem. É
um espaço onde estou habituada a loca-
AM: Quais considera que são os princi- lizar-me e onde me sinto segura.
pais obstáculos para a sua orientação?
E: Na habitação, o primeiro é a insegu- AM: Existe algum material que a deixe
rança. Uma pessoa, para se orientar, tem mais confortável ou é indiferente?
de se sentir segura. Depois, algo que E: Para mim é indiferente.
também considero importante, tendo
pessoas que veem ao meu lado - na mi- AM: Sente que a audição contribui como
nha família sou a única que não vê -, a estímulo para a sua deslocação?
distração deles é também um risco. Por E: Na habitação, penso que é irrelevante.
muito que tentem ajudar, por vezes não Uso a audição para ter a noção do espa-
pensam em algumas atitudes que têm ço, mas não sinto que seja muito impor-
176
tante para a minha orientação. É um es- exemplo, saio da cozinha e viro à es-

Anexos | Entrevistas a indivíduos com Deficiência Visual


paço que eu conheço. No exterior já tem querda para encontrar a casa de banho,
grande importância. seguindo a parede.
AM: E a ausência absoluta de som inter- Depois, conhecendo o sítio já não penso
fere no seu sentido de orientação? nestas referências nem faço distinções,
ES: Em locais que eu conheço, não. Se mas em espaços novos recorro a algumas
for em locais que não conheço, torna-se ajudas extra. No chão coloco umas mar-
confuso. cas táteis que me indicam onde é o quar-
to, por exemplo.
AM: Qual a relação que tem com a janela
em termos de privacidade e iluminação? AM: Então considera que faz sentido as-
E: Na casa onde estou não tenho ne- sinalar taticamente alguns elementos no
nhum problema, porque moro num interior da habitação? Como escadas,
quinto andar e não existe a possibilidade puxadores, entre outros.
de alguém me ver, por exemplo, a trocar E: Penso que não é necessário. Pelo me-
de roupa. De qualquer modo, por segu- nos, para mim não é necessário. Desde
rança, fecho as persianas. que conheça o espaço, o material ou as
marcações não me fazem diferença, seja
AM: E em termos de iluminação? Sente no chão, nas paredes, nos degraus ou
que a luz solar se destaca no modo como nos puxadores.
percepciona o espaço?
E: Sim. Tento fazer esse reconhecimen- AM: Agora que conhece bem o espaço,
to quando entro num espaço. Se estiver seria capaz de retirar as marcas táteis
num espaço que não tem janelas, sinto- que tem à entrada do seu quarto?
-me um pouco desorientada. Não inter- E: Como estou habituada, sim, seria.
fere no quanto eu gosto ou não gosto
do espaço - por exemplo, a maioria das AM: Teve de fazer outras adaptações na
casas de banho que conheço não têm ja- sua habitação?
nela. As pessoas explicam-me como é o E: Não, esta foi a única adaptação que fiz.
espaço e eu tento orientar-me.
AM: Como descreveria os seus mapas
AM: Na habitação, quais os principais mentais de orientação?
dispositivos físicos que ajudam na orien- E: Vamos supor que eu entro em casa e
tação? viro à direita. Se seguir em frente, vou
E: Eu tenho pontos de referência que me até ao meu quarto. Quando saio do quar-
ajudam a compreender onde é o quarto to, se seguir sempre em frente, vou ter
e a casa de banho, por exemplo. Atra- à cozinha. Depois, na cozinha, viro à es-
vés dos pontos de referência físicos que querda até à sala. […] Eu vou decorando,
eu tenho, eu faço um mapa mental. Por mentalmente, o percurso que faço entre
as divisões.
177
AM: Quando faz essa descrição, quais são E: O quarto. É retangular e é grande. A
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

os estímulos que estão associados à des- porta fica atrás de mim, quando entro. O
locação? Por exemplo, conta o número de guarda roupa fica do lado direito e, em
passos, segue a parede com a mão, como frente ao guarda roupa, tem outro armá-
o faz? rio do lado direito. A janela é sempre em
E: Sigo a parede, mas esqueci-me de re- frente, na parede oposta à porta, e a luz
ferir um estímulo importante - é um es- direta incide durante a tarde.
tímulo mental, perceptivo, a memória.
Utilizo bastante a memória. AM: E qual é o espaço que menos gosta?
E: Gosto de todos.
AM: Qual é a divisão da casa onde costu-
ma passar mais tempo e porquê? AM: Se pudesse desenhar, agora, a sua
E: É o quarto. Tenho a minha privacidade casa de sonho, o que não poderia faltar?
e sinto-me mais à vontade para fazer as E: O essencial, para mim, em termos de
coisas que gosto como, por exemplo, ver adaptação, teria de incluir boas condi-
televisão. ções de acessibilidade. Gostaria de ter
um aspirador robot e uma casa com in-
AM: Qual é, para si, a definição de beleza? teligência artificial para acender e apa-
E: Para mim, a definição de beleza é es- gar as luzes, para poder utilizar coman-
tar bem comigo mesma. Não adianta ser dos de voz a partir do meu telemóvel.
uma pessoa fisicamente bonita e não me Gostaria de ter tudo automático.
sentir bem comigo mesma, ter um cora-
ção endurecido.

AM: E o que a faz sentir que está num


espaço bonito?
E: A limpeza. Um espaço tem de ter uma
boa limpeza e tem de estar bem organi-
zado. Isso é, para mim, a beleza funda-
mental. E tem de estar organizado de
modo a que eu me consiga orientar, não
devem existir obstáculos. Mas não ligo a
decorações ou requintes.

AM: Qual é o seu espaço favorito? Como


o descreveria, arquitetonicamente?
178
10 ALIU

Anexos | Entrevistas a indivíduos com Deficiência Visual


Aliu, 27 anos. Entrevista realizada vir-
tualmente no dia 25 de julho de 2022. conseguia fazer, como jogar futebol. Por
isso, punha-me no meio deles, no campo,
AM: Nasceu cego? e tentava jogar também, mas ficava muito
A: Não. Eu nasci com visão reduzida ape- frustrado por não conseguir. Sempre ex-
nas num olho, no outro via bem. No en- perimentei tirar fotografias, sozinho, com
tanto, tive um acidente aos quatro anos o telemóvel, mas nunca tinha mostrado a
que desencadeou uma perda de visão ninguém. Mais tarde, dei uma entrevista
gradual até ao estado de cegueira to- ao Jornal de Notícias por ser cego e fa-
tal, que atingi aos dez anos. Eu vivia em zer vários desportos e o jornalista que,
África, vim para Portugal em 2005 e es- na altura, realizou essa entrevista pediu
tava quase a fazer dez anos. Fui operado para ficar com o meu contacto. Mais tar-
e perdi por completo a visão, mas já sa- de desafiou-me a fazermos um projeto
bia que ia acontecer. Quando cheguei cá juntos, em que eu seria o sujeito e ele o
já só via luzes e vultos, e depois perdi o fotógrafo. No entanto, apercebeu-se que
restante. eu era uma pessoa curiosa e decidiu dar-
-me umas câmeras descartáveis para eu
AM: Tem perceção de luz ou de vultos? fotografar. Sempre que ia de férias, levava
A: Tenho cegueira total. No entanto, as câmeras e fotografava. Para mim, tirar
como costumo dizer, não vejo luz, mas fotografias está relacionada com a parte
tenho outras percepções. Além do cam- sonora e espacial, ao invés da parte visual.
po auditivo, utilizo bastante outro senti- Presto atenção ao que está à minha volta,
do que sinto que ainda é pouco explora- o áudio, o que estou a ouvir, o que estou
do, que é uma sensação de sombra, mas a sentir. Na altura, quando ouvia um ba-
não é sombra visual. É um sentido de rulho diferente, interessante ou desco-
presença física que surge quando temos nhecido, pegava na máquina, direcionava
um obstáculo próximo, mas não é visual, e captava. Uma vez fui a um miradouro,
é uma sensação que, depois, se confirma na Arrifana, e senti que estava num local
com a bengala. Costumo dizer que este é alto. Pensei para mim mesmo que a linha
o nosso sexto sentido. do horizonte deveria estar à minha fren-
te, então peguei na câmera e tirei foto-
AM: Pode falar-me um pouco acerca do grafia. Pensei que poderia dar origem a
seu projeto de fotografia Do Teu Ombro uma fotografia interessante, até porque
Vejo o Mundo? estava a ouvir o mar ao longe. Quando ele
A: Sempre fui uma pessoa curiosa e dada revelou as fotografias, achou o resultado
a desafios e ficava muito triste quando interessante. Nesse momento, mudamos
os meus colegas faziam algo que eu não a perspetiva do trabalho. Deixou de ser
179
um trabalho em que eu era meramente o AM: Sente que o gosto pela fotografia e
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

fotografado e ele o fotógrafo e passou a outras artes lhe trazem uma sensibilida-
ser um trabalho de equipa. Foi daqui que de acrescida para entender o espaço ao
nasceu o projeto e foi assim que entrei no seu redor?
mundo da fotografia. A: Eu penso que é o contrário. Penso que
AM: Agora que o projeto já acabou, con- a sensibilidade que tenho, que fui ad-
tinua a fotografar? quirindo ao longo do meu crescimento
A: Continuo, sim. Devo receber uma câ- - seja pelas ferramentas que fui adqui-
mera profissional agora no final de agosto rindo, pelo contacto com o desporto, no-
e a ideia é ir para locais e tentar captar meadamente futebol, voleibol, vela, judo
algo interessante. Penso que, acima de e karaté, ou pelo confronto com outras
tudo, natureza. Pretendo continuar com circunstâncias -, trouxe-me uma no-
o projeto em parceria com o meu cole- ção do espaço diferente, porque o meu
ga, que estará sempre a dar-me apoio a corpo não está tenso. O meu corpo está
editar as fotografias, por exemplo, mas no preparado para o impacto, não existem
fundo agora sou eu quem tem de avançar. grandes surpresas, está habituado a in-
teragir. Estou relaxado quando estou nos
AM: Como imagina aquilo que retrata locais, e isso traz-me outra abertura em
por imagem? termos auditivos e sensoriais. Penso que
A: Eu tenho algumas memórias visuais em consequência, na fotografia, também
que relaciono com o que ouço e ima- funciona como uma mais valia.
gino o que poderei estar a fotografar.
Por exemplo, lembro-me da imagem da AM: De que forma perceciona e com-
praia, e recordo-me da areia, do mar e preende as características de um espa-
da linha do horizonte onde toca o céu. ço? (Distâncias, escalas, limites, cheios e
Recordo-me da natureza, da floresta, do vazios)
por do sol. Quando vou fotografar, tento A: Eu também sou músico, sou bateris-
recordar-me desses elementos, depen- ta, e o som integra uma parte importante
dendo do sítio onde estou. Se estiver na da minha vida. Quando chego a um local
cidade, por exemplo, se estiver em Lis- que não conheço, tento prestar atenção
boa em que existem muitos carros, ten- às condições acústicas do sítio. Tento
to adaptar a minha memória a esse am- compreender o eco e faço estalidos com
biente. Quando estou a fotografar tenho os dedos para utilizar a ecolocalização.
consciência que os locais não vão ser Tento captar se o espaço está cheio, que
iguais às memórias que tenho, até por- faz menos eco, ou se está vazio, porque
que as memórias são de quando vivia em faz mais eco. Isto é apenas um exemplo.
África e a realidade é bastante diferente, Não sei explicar como descodifico a altu-
lá predominava o vazio sonoro e paisa- ra de um espaço, mas parece que consi-
gístico e cá estou no meio da cidade. go sentir se é alto ou mais baixo. Depois,
180
tento andar pelo local, acompanhado ou to alto. Não tem o pé direito como uma

Anexos | Entrevistas a indivíduos com Deficiência Visual


sozinho e verificar se a minha intuição igreja, por exemplo, mas é alto. As camas
inicial se confirma. são de madeira. O chão é liso de azule-
jo, é frio. Relativamente à luz, o quarto
AM: Sente que essas sensações também tem luz direta mais ou menos a partir do
distinguem materiais? meio dia, que entra pela marquise.
A: Eu penso que sim. Sinto diferenças AM: Existe algum espaço do qual tenha
se estiver num local revestido a pedra passado a gostar mais e um de que tenha
ou num local revestido a madeira, por deixado de gostar, após ficar cego?
exemplo, mas aqui ajuda também a sen- A: Sinceramente, penso que não. Penso
sação térmica. Um local revestido a ma- que não existe nenhum sítio com o qual
deira é mais quente e o som parece mais tenha sentido isso. No entanto, não gos-
compacto. Se forem materiais como o to de estar em espaços fechados. Por
metal já considero mais difícil identifi- exemplo, não consigo estar muito tem-
car. Penso que madeira e pedra são os po dentro de bares ou discotecas por-
que considero mais fáceis de identificar. que, normalmente, são ambientes muito
Se for uma mudança de material no chão agressivos pelo preenchimento das pes-
também se sente através do tato. soas e do som, deixa-me sem referências
e perco o sentido de orientação.
AM: Pode descrever o espaço onde se
encontra? AM: Há pouco falou-me da audição e do
A: Estou no meu quarto. É um espaço que referiu como o “sexto sentido” como
quadrado. Estou de costas para a pare- maiores sentidos de orientação. Pode
de onde está a porta, e a porta está mais aprofundar um pouco o assunto?
para a esquerda. Estou sentado numa A: A audição é o principal sentido de
cama e tenho outra atrás de mim - o meu orientação no meu quotidiano, porque é
quarto tem duas camas. Existe um espa- a forma que encontro para ter referên-
ço entre as camas que tem uma mesa de cias do que acontece à minha volta. A au-
cabeceira. Junto a mim, à esquerda, exis- dição tornou-me a minha forma de ver,
te uma secretária com um computador. “os meus olhos”, porque é o modo como
À minha frente, à esquerda, tem uma posso interpretar as pessoas, ouvir o que
porta para a marquise, que é comprida e elas me estão a dizer. Quem vê consegue
tem janelas viradas para a rua principal. interpretar algumas expressões faciais
Na marquise existe uma estante de me- e a postura corporal, mas para mim isso
tal com prateleiras onde tenho o calçado não existe. Eu guio-me pela voz e pelos
e uma mesa. Ainda no quarto, à direita, sons que as pessoas emitem, até pela
entre a cama e a parede, tem outra mesa própria respiração. Penso que encontro
de cabeceira. As paredes do quarto são aí o equilíbrio. Se não ouvisse, penso que
brancas e o teto não me parece mui- não seria capaz de me orientar bem, de
181
ter noção espacial. Quando estou a an- menos.
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

dar de transportes públicos e saio num AM: E a ausência absoluta de som inter-
local que não conheço bem, oriento-me fere no seu sentido de orientação?
pelos passos das pessoas ou procuro a A: Pode acontecer, especialmente em
saída de modo a tentar perceber de onde sítios que não conheço. Se for num lo-
vem o som dos carros. Relativamente à cal que conheça, não me incomoda, mas
outra perceção de que falei há pouco, eu se estiver em espaços que não conheço
penso que é bastante útil porque em mo- tão bem torna-se complicado, porque eu
mentos em que estamos mais distraídos oriento-me pelo movimento das pessoas
acaba por funcionar como um alerta, por e pelo som. Por exemplo, na Estação de
sentirmos que está alguém próximo ou Cais do Sodré, o comboio nunca para no
algum obstáculo. Em casa esta sensação mesmo local. Após sair do comboio, te-
também me ajuda bastante, porque ando nho de ficar parado a tentar compreen-
muito rápido e, por vezes, com a distra- der o movimento das pessoas e a tentar
ção, não sigo o trajeto exato. Se não ti- encontrar o som da escada rolante para
vesse esta sensação, acabaria por bater me orientar. Consoante esta sensação
em objetos muitas vezes. O olfato tam- auditiva, escolho o trajeto a seguir. Se for
bém é importante para reconhecimento numa hora com menos afluência em que
não só dos espaços, como também das está tudo parado, eu fico confuso.
pessoas.
AM: E quais as suas técnicas de orienta-
AM: Sente que esses estímulos também ção?
podem ser desorientadores? A: Eu ando sempre de bengala. Quando
A: Podem. Como disse, por exemplo, no estou com amigos que veem, se tivermos
caso da discoteca. Como está a aconte- de andar rápido, coloco-lhes a mão no
cer muita coisa, nós não conseguimos cotovelo ou no ombro e vou com eles.
focar nenhuma. Quando quero atra-
vessar a rua e existe muita afluência de AM: Se estiver a fazer reconhecimento
transportes, também me sinto desorien- de um espaço sozinho, como o faz?
tado, porque não consigo ouvir os carros. A: Depende. Se for um espaço muito
A sensação do sexto sentido pode enga- amplo, como um centro comercial, te-
nar, também, e pode colocar o corpo em nho de usar bengala. Se for um edifício
alerta e sob alguma tensão em vão, mas como uma casa, um apartamento ou um
não me deixa desorientado. Penso que pavilhão, faço-o sem bengala. Em espa-
o olfato será, destes três, o que engana ços que conheço bem não gosto de an-
dar com bengala, gosto de andar livre-
mente, até porque isso ajuda a estimular
a minha orientação espacial. Então, em
edifícios que não conheço bem mas que
182
têm dimensões mais reduzidas, tento fa- AM: E quais considera serem os princi-

Anexos | Entrevistas a indivíduos com Deficiência Visual


zer o reconhecimento sem bengala. Vou pais obstáculos de orientação e movi-
andando e ouvindo os sons e, se tiver de mentação?
me guiar pela parede, vou tocando com A: Os obstáculos que mais considero
a mão. atualmente estão relacionados com os
dispositivos móveis, como os carros mal
AM: Em casa desloca-se sempre sem parados, a desorganização numa casa.
bengala? Mesmo na minha própria casa, questões
A: Sim, sempre sem bengala. Não a con- que regularmente acontecem são, por
sigo usar em casa. Mesmo quando vou exemplo, ir contra portas semi abertas
a casa de um amigo, ando sempre sem ou tropeçar em objetos de limpeza, como
bengala. baldes ou vassouras. Não são elementos
que estão sempre presentes, então com-
AM: Dentro da sua casa tem referências plica a mobilidade, podendo, até, criar
que o guiam entre os espaços? resistência ao movimento. Impedem a
A: Sim, porque nós construímos mapas locomoção mais rápida pelo receio.
mentais. Quando chegamos ao espaço e
fazemos o reconhecimento, facilmente AM: Teve de fazer alterações à sua casa
se cria um mapa dentro de nós. Ao pen- devido à cegueira?
sar na divisão, identificamos os locais A: Não. Na minha casa não tive de fazer
com obstáculos, seja uma escada à di- grandes alterações, mas desde o iní-
reita ou um vaso à esquerda. Se chegar à cio que o meu pai colocou o mobiliário
sala, sei onde estão os sofás, o piano, os de modo que não existissem grandes
candeeiros. Assim que chego a um local, obstáculos, desloco-me tranquilamen-
faço o reconhecimento daquilo que pode te. Atualmente estou a viver em Lisboa,
obstruir a minha passagem. Em casa é o numa residência, porque estou cá a es-
primeiro local onde devemos fazer isso, tudar, e é também um sítio apropriado
para depois transpor essa confiança para para pessoas com deficiência visual, en-
a rua. tão não tive de fazer qualquer alteração.

AM: O mapa mental que origina tem AM: Sente que quando os arquitetos es-
imagens ou apenas referências não vi- tão a projetar uma casa deveriam assi-
suais? nalar alguns dispositivos físicos? Como,
A: Tem imagem no sentido da memória. por exemplo, degraus, puxadores…
Ou seja, sei o que é uma porta. Mesmo A: Penso que sim. Sobretudo degraus,
não a vendo, sabendo que está uma por- entradas e saídas. Penso que seria algo
ta naquele local, sei o que é, como é. bastante importante. Poderiam ser colo-
car os relevos perto das escadas, rampas
183
e elevadores ou na aproximação às por- AM: E a noção de conforto surge em
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

tas. Penso que se devia pensar mais na consequência de que características de


prática de algo que vai ser utilizado pelas um local?
pessoas. A: Depende do local. Na habitação, tem
de ser um local amplo. Corredores um
AM: Sendo no interior da sua própria pouco largos. No chão, se não existir al-
casa, considera que faria sentido? catifa, é bom que, pelo menos, seja liso.
A: Sim. Nós somos humanos e é natural Gosto de andar descalço em casa. Em
esquecermo-nos de algo. Já me aconte- termos de decoração, é bom se não ti-
ceu bastantes vezes, por exemplo, es- ver muitos vasos, porque podem ser um
quecer-me que a escada acaba naquele obstáculo. O mais importante é ser um
local, e acabo por torcer o pé. E temos de espaço largo. Normalmente, as pessoas
pensar, também, que embora a casa seja têm um espaço pequeno e ainda o en-
nossa, nós recebemos pessoas, amigos, chem de coisas. Eu gosto de espaços ar-
e mesmo que nós tenhamos uma boa rumados. Gosto que esteja tudo no seu
orientação, devemos pensar na casa para local e que haja espaço, até porque é o
todos. Um dia a casa é nossa, noutro dia modo de me sentir livre. Não gosto da
pode já não ser. Hoje estamos habituados sensação de ter algo muito próximo de
ao modo como está a casa, mas amanhã mim.
podemos ter qualquer outro problema
que nos reduz ainda mais a mobilidade e AM: Seria capaz de descrever a sua casa
necessitar desses elementos. Poderiam de modo a ser desenhada uma planta do
ser pensados logo à partida. espaço?
A: Se pensar muito, sim.
AM: Qual a relação que tem com a janela
em termos de privacidade e iluminação? AM: Sente que as memórias visuais que
A luz solar destaca-se na forma como possui se estão a desvanecer?
perceciona o espaço? A: Talvez. Começa a haver a mistura en-
A: No modo como perceciono o espa- tre a imaginação e a memória passada.
ço, penso que não, dado que não tenho Provavelmente as imagens não são bem
qualquer perceção luminosa. No entan- como eu imagino. Acredito que não se
to, se sentir o calor, isso também funcio- perca tudo, mas as imagens tornam-se
na como modo de orientação. Em ter- uma compilação da memória e do ima-
mos de privacidade, não sei ao certo. Eu ginário.
sou uma pessoa que gosta de estar perto
da janela, durmo com as persianas aber- AM: O modo como cria novas memó-
tas e gosto de abrir a janela e ouvir o mar rias é substancialmente diferente do que
ao longe. Penso que não me faz confusão acontecia quando tinha visão?
nenhuma.
184
A: É diferente, sim. Novas memórias são, grande com um interior pintado a azul -

Anexos | Entrevistas a indivíduos com Deficiência Visual


sobretudo, memórias sensitivas e audi- um azul do mar. Deveria ter janelas não
tivas. Posso construir uma possível ima- demasiado grandes, quadradas. Poderia
gem, mas nunca vai corresponder exa- ter um teto que não fosse muito alto e
tamente à realidade. Se corresponder, é ter alcatifas. Era importante ter um jar-
por coincidência. Atualmente tenho me- dim a toda a volta de casa, com um po-
mórias que não são exatamente visuais. mar. Gosto muito de corredores largos.
Por fora, a casa teria de ser toda verde,
AM: Sente que associa o som a imagens por causa da natureza e das árvores. De-
visuais? veria ter rampas e, para mim, o belo aca-
A: Tento, pelo menos. Mas inconsciente- ba por ser aquilo de que eu posso usu-
mente não o faço. fruir, onde me posso sentir confortável,
isso é que é o belo.
AM: Qual é a divisão da casa onde costu-
ma passar mais tempo e porquê? AM: Se pudesse desenhar, agora, a sua
A: Por norma, na varanda. Gosto muito casa de sonho, o que não poderia faltar?
de estar sentado na cadeira, olhar para A: Não podia faltar um pomar, não podia
fora e ouvir os sons da rua. Gosto de es- faltar o jardim, as janelas e a alcatifa. So-
tar lá a escrever, a ouvir música. bretudo, não podia faltar conforto.

AM: E qual é o seu espaço favorito?


A: Penso que é o meu quarto.

AM: Qual é, para si, a definição de algo


belo?
A: Algo belo é aquilo que nós podemos
sentir. É algo que vem de dentro, aquilo
que podemos interiorizar e, depois, ex-
teriorizar. Para mim, o belo é um concei-
to que vem do interior. No exterior, as-
socio o belo à natureza. Tudo que está na
natureza é belo. Tudo que eu posso ouvir
é belo.

AM: O que considera ser a beleza na ar-


quitetura?
A: A beleza na arquitetura seria a jun-
ção entre o físico e a perceção espacial.
Considero belo, por exemplo, uma casa
185
11 LEONARDO
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

Leonardo, 63 anos. Entrevista realizada entram. Se um espaço tiver só uma jane-


virtualmente no dia 26 de julho de 2022. la, por aquela janela vem mais barulho se
estiver aberta. Se não estiver aberta, po-
AM: Nasceu cego? de-se ter a perceção luminosa que se
L: Não, perdi a visão aos 14 anos de ida- sente. Tem-se aquela perceção da luz no
de, devido à doença Eales. corpo que as pessoas no geral sentem,
de calor e intensidade.
AM: Consegue percepcionar a luz? Ou
vultos? AM: Pode descrever o espaço onde se
L: Tenho cegueira total, mas houve um encontra?
período entre os 14 e os 16 anos que ain- L: É um escritório, mas um espaço rela-
da via alguma coisa. A cegueira total foi a tivamente pequeno. Portanto, À minha
partir dos 16 anos, perdi a visão rapida- frente tem a secretária, atrás um armário
mente. Atualmente, a percepção que eu e duas cadeiras. Portanto, terá cerca de
tenho da luz é quando incide no corpo o 5 metros quadrados.
calor da luz.
AM: E tem janelas?
AM: De que forma perceciona e com- L: Tem. Tem uma janela à minha direita,
preende as características de um espa- que tem persianas. Se eu abrir a persia-
ço? (Distâncias, escalas, limites, cheios e na sinto mais luz a incidir no meu corpo.
vazios) Estou aqui sentado e, se abrir a persiana,
L: Pelo eco, e pela forma como os sons o calor vai-me incidir no braço direito.
me chegam. Ou seja, se um espaço for Se for incomodativo tenho de ir fechar a
grande e muito vazio, o eco é maior. Se persiana que foi o que aconteceu quase
o espaço estiver ocupado com móveis agora, porque a estas horas da manhã o
cria uma perceção do espaço diferente sol incide aqui.
do que quando o espaço está vazio. E se
for um espaço relativamente pequeno ou AM: E durante a tarde já pode estar mes-
médio, se estiver com muita gente, fica- mo que esteja com a persiana aberta.
-se com a sensação de um espaço maior L: Exatamente, durante a parte da tarde
pelo barulho das pessoas, pelo movimen- o sol já não incide aqui, mas sim noutras
to, e de onde vêm os sons. Se estiver num partes da casa.
espaço vazio muito grande, pode ouvir-
-se a porta aberta ou uma janela. Tem- AM: Existe algum espaço do qual tenha
-se a perceção da distância a que estão passado a gostar mais e um de que tenha
de nós próprios, se estão relativamente deixado de gostar, após ficar cego?
perto ou mais distantes, pelos sons que L: Não, adaptei-me sempre a todos os
186
espaços, até porque conheci espaços di- som desaparece, não é tão límpido. Nós

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ferentes e tentava perceber como é que não gostamos muito de espaços muito
os espaços existem. Quando vou pela vazios, gostamos mais de espaços preen-
primeira vez a um espaço tento perce- chidos.
ber de imediato o tipo de espaço que é.
Por exemplo, analisando o piso ou o tipo AM: Está a falar muito da audição. É esse
de escadas, as pessoas acabam por per- o seu maior estímulo de orientação?
ceber o tipo de imóvel que está diante L: Exatamente, é muito importante. Eu
de nós. Por exemplo: uma vez entrei no vou-lhe dar um exemplo. Se eu entrar
museu dos Biscaínhos, em Braga. Na en- num museu ou um espaço público, a
trada havia umas escadas em pedra, cuja gente acaba por perceber se tem janelas
pedra não era lisa. Depois, a diretora do ou portas abertas, ou porque tem lumi-
museu esclareceu-me que as pedras não nosidade ou porque vem som dali. Por
eram lisas porque estava num museu exemplo, há certos edifícios que se as
com mais de 200 anos e, com o passar portas ou janelas estiverem abertas ou-
dos anos e a passagem das pessoas, a ve-se o ruídos dos carros, e isso é um in-
pedra ia-se deteriorando. Com o tempo, dicativo que está uma rua próxima, que
vai-se desgastando. há ali ruído, que a porta está ali. Vamos
imaginar que entramos num museu, e
AM: Portanto, sente o material e sente depois já não sabemos como sair. Se ou-
também o tempo a passar no material. vir o barulho de carros a passar na rua,
L: Exatamente. Por exemplo, distingue- sigo o ruído para poder encontrar o ex-
-se muito bem se é tapete ou alcatifa. Se terior. À partida, para o som chegar a
tem aqueles tapetes por cima do chão da mim, deveria existir uma porta de saída
tijoleira, ou madeira, ou se são embuti- ou uma janela.
dos. Ou seja, existe um espaço onde eles
encaixam. E depois, se o espaço estiver AM: E sente que esses estímulos por ve-
pouco preenchido por móveis, transmite zes também podem ser desorientadores?
uma sensação de vazio. Se estiver cheio, L: Ah, pode pode, porque é assim, tudo
transmite uma sensação de preenchido. depende da forma que uma pessoa co-
Se estiver vazio, o próprio som é dife- nhece o espaço, porque as vezes pode
rente. Nós, as pessoas cegas, não gosta- pensar que está dum lado duma jane-
mos dos espaços completamente despi- la mas está no outro. Ou seja, a gente
dos, porque temos mais dificuldade no aí tem de ter sempre aquela percepção
som. Espalha-se mais, e embora a gente se o ruído se apresentou do lado direi-
ouça bem, não estamos a ver a cara da to ou esquerdo. Nós usamos sempre o
pessoa, a boca da pessoa, e temos um nosso corpo como posicionamento face
pouco de dificuldade na perceção. Se o aos pontos de referências e orientações.
espaço estiver muito vazio, parece que o Agora, se estiver duas janelas abertas
187
uma de cada lado com o mesmo ruído coisas que as pessoas cegas em regra
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

pode dificultar a orientação, a menos geral não gostam: Há pessoas que di-
que a pessoa decida logo, eu vou em zem assim, essas ruas se fosse tudo liso e
frente e vou-me orientar ou pelo ruído sem degraus era melhor para as pessoas
da direita ou pelo ruído da esquerda. E, circularem. Não é, nós não gostamos de
por exemplo, essas situações que falo tudo liso ao contrário do que as pessoas
acontecem muitas vezes nos comboios pensam, porque os degraus, as trans-
ou no metro, porque há locais que a saí- versais, servem-nos de pontos de refe-
da é so por um lado e ha locais onde é rências, enquanto que o passeio liso não
pelos dois. E para quem não vê nada tem tem pontos de referência, assim como
de estar muito atento se as pessoas vão nos edifícios lisos sem nada também não
por um sentido ou pelos dois, ou se de- é a melhor coisa. Vamos imaginar um
via perguntar. Assim como, num museu edifico grande e longo, é importante ter
ou num edifício publico, por exemplo, as ali a meio qualquer coisa, seja uma co-
vezes há degraus ou portas ou corredo- luna grande ou uma peça de decoração
res dum lado e do outro, e aí aa vezes a ou uma janela ou uma porta que sirva de
forma como as pessoas indicam tem de orientação. Isso é muito importante por-
se dizer se é para virar à direita ou à es- que um espaço muito vazio muito igual
querda, por exemplo. não nos ajuda com os pontos de referên-
cia.
AM: Tem por hábito emitir sons para
descodificar os espaços, ou serve-se AM: E por exemplo, se for a uma biblio-
apenas dos sons da envolvente? teca em que regra geral está muito silen-
L: Não, para qualquer percurso eu vou cio sente-se confortável?
precisar duma informação prévia para L: Aí sinto porque mesmo no silêncio
saber mais ou menos onde o local se lo- há sempre algum ruído, ouve-se por-
caliza. tas, pessoas a mover-se, isto ou aquilo.
É sempre fácil de me orientar numa bi-
AM: E a ausência absoluta de som inter- blioteca por que ouve-se sempre algum
fere no seu sentido de orientação? ruído.
L: Ora bem, o silêncio pode ajudar, tudo
depende. Existem silêncios que ajudam e AM: Sente que associa o som a imagens
silêncios que não ajudam. Existem silên- visuais?
cios em que basta um pouco de barulho L: Ora bem, regra geral não. Só se for
para facilitar a audição de alguns acon- qualquer coisa que eu conheci em tem-
tecimentos. Agora, o silêncio total num pos. Sons de ambulâncias, motorizadas,
edifício grande não é bom conselheiro. carros, sinos por exemplo, campainhas
Num espaço vazio existe a ideia do hor- de porta, bombos.
ror ao desconhecido. Por exemplo, umas
188
AM: Qual a relação que tem com a janela AM: E nos espaços interiores utiliza

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em termos de privacidade e iluminação? sempre essa técnica? Não costuma an-
L: A janela é assim, nos temos de saber dar de bengala?
de janela aberta o que é que é visível de L: Em minha casa não. Se for numa esco-
fora para dentro para nos nos sentirmos la ou num museu, sim, uso bengala. Mas
confortáveis. Por exemplo, se for na casa em casa, no interior, não.
onde mora e não tiver informação inicial,
tem de perguntar a alguém “se for esta AM: E quais são os principais obstáculos
janela o que é que se vê para dentro”, e se à sua orientação?
quiser mais privacidade procura-se tirar L: Os obstáculos que são mais perigo-
a luz para quem vê de fora. Portanto, à sos para nós são obstáculos ao nível da
partida as janelas mantêm a privacida- cabeça. Vamos imaginar uma porta que
de, mas a pessoa tem de ter cuidado se vem de baixo, mas tem ali uma divisória
de facto fort visível para o exterior por ou um vidro em cima, temos de baixar
as condições para dar mais privacidade a cabeça porque mesmo que usemos a
com persianas ou os blackouts que ta- bengala, ela não deteta o que está na ca-
pam a luz, não é? beça. Se for na rua, aqueles toldos que há
para dar sombra ou de gelados, a bengala
AM: Há pouco estava-me a dizer que a pode passar por baixo, e bate-se com a
forma como a luz solar incide no corpo cabeça. Outra coisa que pode ser perigo-
também interfere na forma como perce- sa num casa casa, é haver degraus den-
ciona o espaço. tro da própria casa, por há casas que têm
L: Exatamente, dá-me a perceção da ja- degraus entre duas divisões, ou degraus
nela se é ampla ou mais pequena e da in- para ir da parte de baixo para a parte de
tensidade da luz que ali cai. cima dos quartos, e degraus no interior
levantam sempre algumas dificuldades.
AM: Pode esclarecer quais as suas técni-
cas de movimentação? AM: Considera que, se se assinalassem
L: Eu uso bengala, portanto, para andar alguns desses elementos, por exemplo,
na rua é a técnica dos dois toques, do to- se houvesse esses degraus no interior
car primeiro antes do pé que vai para a mas estivessem assinalados, deixariam
frente. Nos interiores é sempre o braço de ser um problema?
esquerdo em meia lua colocado à frente L: Ora bem, sim. Assinalados do tipo,
do peito. Porque se eu em casa for con- teria de ser ou um tapeta embutido, ou
tra uma cadeira a mão serve de amorte- um material diferente no chão, ou uma
cedor, ou seja, bate com a mão ou o bra- espécie duma cancelazinha que não pre-
ço e não bate logo com o corpo, porque judicasse a estética, mais simbólica que
se for o corpo pode abalroar a cadeira ou outra coisa. E esta segurança dava para
a mesa, enquanto que se for a mão nessa pessoas cegas e mesmo até para crianças.
posição serve de amortecedor.
189
Vamos imaginar, uma casa com as esca- graus, ou se os tiver, tem de ter algo que
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

das em cima, uma cancelazinha evitava os identifique. E outra coisa, quando for
que a pessoa tropeçasse ali no primeiro assim espaços, corredores, etc. com de-
degrau, porque é sempre mais difícil en- graus, é preciso ter sempre corrimões.
contrar o primeiro degrau. Ou então um Não é que as pessoas não descem sem
tapete que também é uma coisa que se pôr a mão no corrimão, mas é bom para
usa para dizer que esta perto do degrau. qualquer pessoa, porque pode as ve-
zes tropeçar em qualquer coisa, ir a cair
AM: A noção de conforto surge em con- e é sempre bom ter o corrimão para se
sequência de que características? agarrar. E se for com a mão ligeiramente
L: O conforto num edifício é ter algo à frente, até pode ser só com um dedo,
que nos identifique no chão ou ao lado dá aquela perceção do fim das escadas
ou nas portas. Um espaço muito longo ou fim do patamar que também é útil. E
sem luz para nós não é assim um espaço não dá segurança umas escadas que não
muito confortável. Gostamos de espaços têm corrimão.
médios, não muito longos, e que nos dê
alguma informação. Pode ser uma janela, AM: Teve de fazer adaptações à sua casa
pode ser uma portada, etc. Por exemplo, depois de ficar cego?
num corredor muito grande, ter portas L: Não não, coisa nenhuma. Eu tive é de
pelo caminho, para nós já nos dá alguma voltar a conhecer os espaços.
informação.
AM: Cria mapas mentais de orientação?
AM: Claro, mas e se for dentro de casa o Como os descreveria?
que é que o faz sentir confortável? L: Sem querer, involuntariamente, nós
L: Dentro de casa, é assim, regra geral criamos mapas mentais em casa. E inte-
é tudo num piso sem degraus, no caso riorizamos mapas mentais do tipo, apro-
dos apartamentos. Se for em casas au- ximar-se uma porta, ou numa divisória
tónomas, se possível, o mais confortável maior, o tipo de curva que tem de fazer
é não ter degraus. Porquê? Vou dar um para ir pra porta ou pra janela. E depois,
exemplo, vou por uma rua fora, conheço numa casa, uma coisa que as vezes dá
a rua, vou com a bengala, vou à vonta- indicação também é ter tapetes ou car-
de, caminhando a passo médio. Mas, se petes no chão. Pode ter ou pode não ter,
eu sei que naquele quarteirão de rua vou mas a questão dos tapetes as vezes tam-
ter um degrau a descer já vou com algu- bém serve como ponto de referência. E
ma preocupação de encontrar o degrau, crio muitas referências táteis, sobretudo
a marcha já vai ser mais reduzida, para ao nível do chão, dos pés. Ou então, se
que o degrau não apareça duma forma as janelas ou portas estiverem abertas,
distraída. Ora, uma casa, se for uma casa pelo barulho pode dar indicação qual é o
autónoma, se possível não devia ter de- quarto que está aberto, embora, por sua
190
casa, as pessoas acabam por conhecer o L: Não, as memórias não. Uma coisa que

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quarto em que saem ou que estão. mudou é a escrita. Eu escrevia manual-
mente, e com o tempo vou-me esquecen-
AM: Seria capaz de descrever a sua casa do como é que algumas letras se fazem.
de modo a ser desenhada uma planta do Eu agora não escrevo à mão, uso o com-
espaço? putador com o Braille, claro que como eu
L: Sim, portanto, a minha casa é um bo- não vejo, com o tempo acabo só por assi-
cado enviesada no prédio por causa do nar o meu nome e acabo por não me lem-
sol. Eu tenho um quarto que tem uma ja- brar como algumas letras se faziam. Não
nela para a rua principal. Depois, tenho é que me faça falta, mas reconheço que
uma porta que dá acesso a um pequeno com o tempo mudou.
corredor onde tem uns armários embu-
tidos, depois tem uma porta que isola AM: O modo como cria novas memó-
esse quarto para um corredor onde tem rias é substancialmente diferente do que
acesso a mais dois quartos. Ou seja, en- acontecia quando tinha visão?
tre a porta do quarto principal e a porta L: É, porque agora memorizo com base
que isola a parte mais íntima da casa tem em pontos de referência que podem ser
dois quartos. Depois disso tenho o Hall diversos. Pode ser o tipo de piso, um ta-
de entrada, que em frente tem a cozinha, pete, uma carpete. Na rua pode ser um
e do lado direito tem uma porta que vai poste encostado à parede, ou um caixote
pra sala, e depois da cozinha tenho uma do lixo, por exemplo. A forma como ando
porta que dá acesso à varanda, e se for numa rua ou num espaço que não co-
pela sala, ao fundo tem uma janela que dá nheço implica procurar identificar pon-
acesso à mesma varanda que da cozinha. tos de referência, o que é completamen-
te diferente do que acontecia quando
AM: Tem memórias visuais que o ajudam via. Assim como quando vou num trans-
na orientação? Se sim, qual o papel dessas porte publico: se for um transporte que
memórias na compreensão do espaço? vou frequentar com alguma frequência,
L: As memórias visuais só ajudam em zo- eu tenho que memorizar uma curva fe-
nas que eu conheci quando via. Em zo- chada para a direita, ou uma subida sig-
nas que eu só conheço depois de não nificativa para a esquerda, ou passar por
ver não ajuda tanto. Mas em zonas que baixo de um túnel que é mais sombrio
eu conheci quando via ainda mantenho e tem um ruído diferente dos motores.
memórias visuais, e se não houver gran- Não precisava destes pontos de referên-
des alterações ainda consigo identificar cia quando via. Na altura as referências
exatamente o lugar onde estou. eram as árvores, os prédios, as casas, as
lojas comercias. Agora já não me baseio
AM: Sente que as memórias visuais que nesse tipo de elementos.
possui se estão a desvanecer?
191
AM: Qual é a divisão da casa onde costu- uma miniaturas ou então a descrição que
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

ma passar mais tempo e porquê? nos dão. Mas para quem não vê é sempre
L: Ora bem, é no escritório, por uma tentar tocar com as mãos ou nas portas
questão de trabalho. É onde tenho o ou nas paredes, e isso acaba por nos dar
computador, onde tenho o computador, alguma sensação, por exemplo, aquelas
onde tenho internet, onde tenho tudo, portas dos edifícios robustos, dá-nos a
ficheiros para reencaminhar, a impres- perceção de que é um material bom, ro-
sora braille, o scanner, entre outros. E busto, sólido, resistente.
porque o meu hobby é ler, é escrever, é
ver o correio eletrónico, fazer pesquisas. AM: E acha a sua casa bonita? Porquê?
L: Eu acho, porque é uma casa que em
AM: Diria que, então, esse é o seu espaço termos de espaço não tem nenhum cons-
favorito? trangimento. É um T4, e tem bons espa-
L: É, sem dúvida. É este o meu espaço fa- ços. Claro que não tem o espaço que eu
vorito e, depois, o quarto, para dormir. desejaria ter, atendendo à cidade, é um
espaço que quer os quartos, quer a sala,
AM: Qual é, para si, a definição de algo quer a varanda, tem o espaço essencial.
belo? Ou seja, não é demasiado grande nem
L: É assim, em termos de beleza, eu gos- demasiado pequeno. Dá perfeitamente
to muito de tocar em peças, assim peças para circular nele sem constrangimentos
de roupa, de vidro, de cerâmica, de ma- nem receios. Porque há espaços que são
deira. E para mim uma coisa bela é uma constrangedores. Eu já estive em apar-
coisa que se toca e é leve, lisinha e agra- tamentos em que nos quartos se tem de
dável ao toque. Há coisas que são mesmo entrar de lado por causa da cabeceira da
agradáveis ao toque, são levezinhas, com cama. A minha casa não, felizmente nes-
aspeto liso, etc. É por aí que eu avalio, é se aspeto tem uma área boa.
pelo toque que vamos explorando, ao ní-
vel da perfeição da lisura, e também para AM: Se pudesse desenhar, agora, a sua
ter uma percepção da arte e da qualida- casa de sonho, o que não poderia faltar?
de do produto, através do tato. L: O escritório, um bom espaço para ter
os computadores e os equipamentos que
AM: E o que considera ser a beleza na eu preciso bem montados e com tudo
arquitetura? à mão. E ter uma varanda. Uma varan-
L: Na arquitetura nem sempre é fácil de da claro que se fosse possível em toda a
tocar num edifício muito grande, por volta da casa, mas claro que nem sem-
isso uma réplica pode ser uma ótima aju- pre isso é possível. Mas uma varanda era
da. Uma réplica dum edifico grande, para fundamental. Porque uma pessoa que vê
a pessoa cega que nunca viu, ou para pode estar dentro de casa e olhar para a
quem vê mas nunca conheceu, pode ser janela, ver o tempo que está lá fora. Para
192
quem não vê é diferente. Se eu quiser to- um dos lados das escadas em rampa, mas

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mar o pulso ao dia que está hoje, tenho depois quem mora no rés do chão desse
de ir à varada e sentir que em cima da lado não quer a rampa, quer as escadas.
minha cabeça não tenho nada se não o Se fosse no início já ninguém reclamava,
céu. É assim que percebo a temperatu- se for à posteriori já é sempre mais difícil.
ra e a luminosidade. Para quem não vê é É um pequeno pormenor mas faz toda a
muito importante sentir toda a natureza diferença. Para mim agora não faz dife-
a incidir no seu corpo, ter esta sensa- rença nenhuma, mas para uma pessoa
ção de liberdade. Por exemplo, eu já fui de cadeira de rodas faz. E, no entanto,
a alguns jogos em estádios de futebol e na rua tem uma rampa do passeio da rua
gostei. Porquê? Devido àquela sensação para entrar na porta de entrada, mas de-
de estar num espaço muito amplo e de pois da porta de entrada a pessoa tem de
não ter nada por cima, aquela sensação ir para o elevador, e para lá chegar tem
de liberdade de sentir o vento por todos três degraus. E o que se discute é que,
os lados. às vezes, no desenho de um prédio pode
não custar nada e as pessoas aceitam
AM: Obrigada, Leonardo. Já coloquei to- logo se estiver de origem. Depois adaptar
das as questões que tinha. Tem alguma é sempre preciso mexer, e há sempre al-
sugestão para mim? Algo que devesse ter guém que não está de acordo por isto ou
perguntado e não perguntei? por aquilo. Eu percebo que claro que às
L: Não. Como é arquiteta, aquilo que as vezes isto não é bem assim, mas no início
pessoas normalmente me falam sobre a não custa nada, e depois adaptar é que
questão de acessibilidade nos edifícios é traz estas dificuldades.
que, no início, não custa muito, e depois
adaptar nem sempre é tão fácil. Hoje em
dia, por exemplo, é sempre bom ter no
acesso aos elevadores uma rampa. Não é
por causa dos cegos, é mais por causa das
pessoas idosas, de cadeira de rodas, que
têm de ir ao hospital, pessoas com car-
rinhos de compras ou carrinhos de bebé.
Por exemplo, aqui no meu prédio, o aces-
so da rua à porta de entrada, para subir
para o elevador tem três degraus. A mim
não me incomoda, mas houve aqui uma
senhora doente no prédio que tinha de ir
de cadeira de rodas e já tinha essa difi-
culdade. Claro que depois na reunião de
condomínio pôs-se a hipótese de tornar
193
12 MARTA
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

Marta, 17 anos. Entrevista realizada vir- AM: E se eu te pedisse para me fazeres


tualmente no dia 1 de agosto de 2022. uma descrição como se eu fosse dese-
nhar o espaço, o que dirias?
AM: Nasceste cega? M: É uma sala retangular. Tem uma jane-
M: Sim. la e duas portas. Do lado direito relati-
vamente à porta principal tem dois sofás
AM: Consegues percecionar a luz? Ou em forma de meia lua. A outra porta está
vultos? na mesma parede, mas no lado oposto
M: Eu tenho perceção luminosa. Isto sig- da sala, junto à janela. A mesa está, tam-
nifica que consigo distinguir entre dia bém, ao lado direito relativamente à por-
e noite e, num espaço interior, consigo ta principal, mas do lado esquerdo rela-
compreender se a luz está acesa ou apa- tivamente ao sofá. Tem seis cadeiras. O
gada. móvel atrás de mim está do lado direito
imediatamente a seguir à porta principal.
AM: De que forma percecionas e com-
preendes as características de um espa- AM: Consideras que é um espaço alto ou
ço? (Distâncias, escalas, limites, cheios e baixo?
vazios) M: É um espaço relativamente alto.
M: Essa perceção está relacionada, por
exemplo, com a acústica. Se um espa- AM: Quais os maiores estímulos para a
ço estiver repleto de pessoas, eu consi- orientação no espaço?
go sentir. Com o andar, também me vou M: Neste momento não estou na minha
apercebendo, gradualmente, da dimen- casa, mas é como se fosse, porque é a
são do sítio onde estou, tanto pelo tato casa do meu avô. Existem alguns ele-
como pelo som dos meus passos. Nor- mentos que temos em atenção nos espa-
malmente, se o espaço for maior, o som ços que eu frequento. Agora já não acon-
soa de forma diferente. tece tanto, mas quando eu era mais nova
acontecia bastante. Por exemplo, tentá-
AM: Podes descrever o espaço onde es- vamos não ter demasiada mobília numa
tás? divisão, tentando manter sempre um
M: Neste momento, estou numa sala re- espaço livro em que eu me conseguisse
lativamente grande. Eu tenho consciên- movimentar sem obstáculos. Os meus
cia que é uma sala espaçosa, que tem pais tinham especial cuidado com as me-
uma mesa e que de um dos lados tem so- sas de centro mais baixas, que normal-
fás. Sei, também, que atrás de mim está mente existem nas salas de estar, e com
um móvel. É uma sala que eu conheço móveis mais baixos, de um modo geral.
bem. Tentávamos ter tudo do modo mais sim-
ples possível, da forma mais organizada.
194
AM: Embora frequentes esse espaço há vel, e utilizo sempre, pelo menos, duas

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muito tempo, como sabes qual o trajeto aplicações para me orientar. Uma delas
que tens de seguir? chama-se Lazarillo e penso que poderá
M: Eu tenho os espaços decorados. Por ser interessante para explorares. O que
regra, uma pessoa cega não utiliza ben- a aplicação faz é descrever com bastante
gala na sua casa ou em espaços que co- precisão o que me circunda na rua. Por
nhece, mas se for à casa de alguém que exemplo, “farmácia: 30 passos à direita”.
não conheço ou onde não me sinto muito Nunca é muito certo, mas ajuda bastan-
à vontade, tenho tendência para usar a te. Penso que quem utiliza mais este gé-
bengala. Tento manter-me perto de pa- nero de aplicações é quem anda em sí-
redes ou outras referências físicas que eu tios desconhecidos, como é o meu caso.
identifique no espaço. Ao mesmo tempo utilizo o Google Maps,
porque a aplicação anterior não me per-
AM: E se estiveres num espaço público? mite colocar um destino final. É a melhor
M: Nesses espaços, por regra, temos de opção para mim porque, por um lado, sei
fazer um reconhecimento prévio com que vou ter ao sítio e, por outro, sei tam-
alguém que veja. No entanto, se tiver bém por onde estou a passar.
mesmo de ir sozinha - o que me acon-
tece muitas vezes porque tenho de via- AM: Essas aplicações fazem com que
jar sozinha devido às competições -, sou prestes um pouco menos de atenção ao
confrontada com locais em que é difícil que te rodeia?
orientar-me. Por exemplo, é muito difí- M: Talvez. No entanto, eu nunca utilizo
cil circular em aeroportos, mas costu- os dois fones, porque isso bloqueia-me
mo conseguir distinguir alguns pontos outro sentido, então acabo por ter uma
de referência, que podem ser sonoros. perceção mais ou menos geral do que
Tenho de estar muito atenta ao que as me rodeia. Não vou tão atenta, claro, es-
pessoas em meu redor estão a fazer, e pecialmente ao movimento das outras
também mantenho muita atenção aos pessoas, o que seria fundamental caso
cheiros. Assim, consigo perceber se es- não utilizasse as aplicações.
tou a passar por um restaurante, por
uma loja de perfumes, ou outras referên- AM: Há pouco referiste que te guias, por
cias que tenha. Tenho de estar atenta a vezes, pelo som dos teus passos quando
tudo. estás a percorrer um espaço. Também
tens por hábito emitir sons para desco-
AM: Sentes que esses estímulos também dificar os espaços, ou serves-te apenas
podem ser desorientadores? dos sons da envolvente?
M: Sim, por vezes sinto que me enganam, M: Não. Sei que existem pessoas que o
pode acontecer. No entanto, atualmen- fazem, mas eu não. Sinto que é um pou-
te, eu nunca ando na rua sem o telemó- co estranho. Mas só o facto de estares
195
a andar já consegues ter muitas perce- por exemplo, que os sofás estejam en-
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

ções auditivas, por exemplo pelo eco do costados à parede ou que a mesa esteja
andar. Se estiver na rua e estiver a andar mais para o lado, para eu poder ter espa-
tranquilamente e sentir repentinamen- ço para me movimentar à vontade.
te uma corrente de ar, sei também que
significa que existe uma rua ao meu lado. AM: Relativamente a materiais, tens al-
Penso que o próprio som de mim a andar guma preferência?
já me dá referências suficientes. M: Sim. Posso dar um exemplo concreto.
Nós mudamos a cozinha de nossa casa
AM: E a ausência absoluta de som inter- e, quando pedimos o primeiro projeto, o
fere no teu sentido de orientação? arquiteto escolheu a placa de indução, o
M: Penso que não. O barulho excessivo microondas e o forno elétrico. Neste pri-
interfere mais no meu sentido de orien- meiro projeto, eu não conseguia usar ne-
tação. Por exemplo, se for a uma dis- nhum dos eletrodomésticos, porque eram
coteca tento não me afastar muito dos todos táteis. Nós pedimos para trocar.
meus amigos, porque sei que é um local
em que facilmente me vou perder. Nes- AM: Qual a relação que tens com a janela
ses casos tenho de ter um pouco mais de em termos de privacidade e iluminação?
cuidado, mas consigo gerir. M: Em termos de iluminação não me faz
grande diferença. Algo que por vezes é
AM: E a noção de conforto, para ti, surge difícil para mim, em locais que não co-
em consequência de que características nheço, são, por exemplo, aquelas casas
de um local? de banho que têm portas em vidro fosco.
M: Nós trabalhamos com pontos de re- Isso, para mim, é um conceito estranho,
ferência. Em cada espaço tentamos en- e já falei com várias pessoas cegas que
contrar um lugar, um ponto, a partir do me dizem o mesmo. Nós fomos ensina-
qual consigamos ir a todo o lado essen- dos que o vidro é transparente, permite
cial. Normalmente, eu gosto de espaços ver de um lado para o outro. Este é um
que tenham um ponto que possa usar conceito abstrato para nós, mas é como
como referência. Por vezes basta uma o entendemos.
parede. No entanto, um espaço muito Em casa gosto que haja bastantes janelas
vazio, muito amplo, também me pode e que os espaços sejam arejados. Como
desorientar. tenho noção de luminosidade, quando es-
tou em casa gosto de ter as janelas aber-
AM: E dentro de casa, o que faz com que tas porque me sinto mais confortável.
te sintas confortável?
M: Eu não gosto que haja móveis no meio AM: E relativamente a privacidade?
dos espaços, prefiro que estejam encos-
tados a algum local. Costumamos tentar,
196
M: Neste momento não me preocupo M: Esplanadas são elementos muito difí-

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muito com isso, porque eu vivo em Ou- ceis de identificar por não estarem fixos
teiro e praticamente não tenho vizinhos. na rua. Postes de eletricidade também
No entanto, para o ano vou viver sozinha costumam ser um problema, mas já me
e, caso vá para um apartamento, sei que habituei. Uma das piores situações são
terei de ter mais cuidado. os carros estacionados, mas penso que
não haverá nada a fazer.
AM: Ainda relativamente à tua mobilida-
de: mesmo utilizando as aplicações, an- AM: Consideras que faria sentido assi-
das sempre de bengala, certo? Alguma nalar taticamente alguns elementos no
pensaste ter cão guia? interior da habitação? Como degraus ou
M: Sim, eu estou em lista de espera para puxadores.
ter cão guia, neste momento. Eu gosto M: Eu penso que, sendo a nossa casa,
de utilizar a bengala, sinto-me confor- nós acabamos por nos habituar. No en-
tável, mas também já uso desde o meu tanto, identificar as escadas seria uma
quinto ano, portanto teria cerca de dez boa ideia. Basta colocar uns riscos an-
anos. Também gosto de utilizar por- tes das escadas, umas marcas pequenas,
que é autoexplicativo para as pessoas. A que nós detetamos com o pé ou com a
bengala faz com que percebam que sou bengala. Penso que se fosse algo padro-
cega, e as pessoas afastam-se para eu nizado, para nós, cegos, facilitava muito,
passar, por exemplo, o que me facilita e para as pessoas em geral não faria dife-
muito a deslocação. Quando estou a ten- rença no quotidiano.
tar aceder a algum local acontece o mes-
mo: as pessoas sabem que sou cega, en- AM: Tiveram de fazer adaptações à casa
tão ajudam-me a encontrar o que estou por teres nascido cega?
à procura. A bengala serve para detetar M: Fizemos algumas alterações. Eu vivo
pequenos obstáculos como, por exem- numa casa que é como uma pequena
plo, postes. No entanto, existem falhas. quinta. Existem alguns sítios onde exis-
Por exemplo, existem uns outdoors que tem muros que, anteriormente, não ti-
não têm o ponto de apoio contínuo, en- nham proteção. Quando eu tinha oito
tão em grande parte estão já no ar. Eu anos caí cerca de três metros e, a partir
andei três anos numa escola que tinha daí, o meu pai começou a colocar rede e
um desses outdoors no exterior, e eu an- guardas em todos os sítios em que pu-
dei três anos a bater neles quase todas as desse cair. Já tinham começado esse
semanas. processo, mas quando isto aconteceu
colocaram mesmo em todo o lado. Te-
AM: Existem mais elementos que tu mos, também, um local onde o espaço é
identifiques como sendo grandes obstá- demasiado alto, e os meus pais coloca-
culos à movimentação? ram um corrimão para que eu pudesse
197
chegar aos pontos que eu preciso. Isto M: Eu passo muito pouco tempo em
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

tudo no exterior. Dentro de casa, está casa, mas é o meu quarto. É o local onde
mais relacionado com questões de dis- tenho mais privacidade, é o meu sítio.
posição de mobiliário. Nós somos seis em casa, vivo com os
meus avós, os meus pais e a minha irmã,
AM: Há pouco disseste que decoras os então é difícil estar sozinha nos espaços
espaços. Sentes que crias mapas mentais comuns.
de orientação?
M: Sim. AM: E dirias que o quarto é o teu espaço
favorito?
AM: Como os descreverias? M: Sim, penso que sim. Está organizado
M: Vou dar um exemplo para explicar. à minha maneira.
Eu treino no Surf Clube de Viana - pen-
so que os arquitetos costumam conhe- AM: Podes descrevê-lo?
cer este edifício. Este edifício tem várias M: É um quarto grande, quadrangular. A
partes, e eu decorei os trajetos a partir partir da porta tem, à direita, uma cómo-
da entrada, onde tem receção e um bar. da. À direita da cómoda tem uma janela -
A partir daí decorei os caminhos para o na parede à direita da porta. Em frente à
balneário, para o ginásio, para a sala de cómoda tem a minha cama, na horizon-
massagens, para a parte de baixo onde tal em relação à porta e à cómoda. A par-
tem as pranchas. Basicamente, tenho tir da porta, em frente tem um pequeno
um ponto como se fosse um ponto 0, e a armário e à esquerda tem outro armário.
partir daí tenho várias rotas. Por exem- Na parede em frente à porta, do lado di-
plo, para ir para o balneário eu sei que reito, tem uma mesa de cabeceira junto à
tenho de virar à esquerda, seguir o cor- cama. Penso que é isto.
redor até ao fundo e que ao fundo vai
existir um tapete. Quando chego ao ta- AM: O que é, para ti, a definição de algo
pete, sei que tenho de virar. belo?
M: Difícil. Para mim o belo é um conceito
AM: Sentes que serias capaz de descre- abstrato, pelo menos no sentido normal
ver a tua casa de modo a ser desenhada da palavra. Para mim, algo belo é um lo-
uma planta do espaço? cal onde me sinta confortável, onde me
M: Sim. Por acaso, eu já fiz isso uma vez. sinta bem.
A minha professora de piano é arquite-
ta e uma vez fizemos esse exercício para AM: Se pudesses desenhar, agora, a tua
ver se era possível, e consegui. casa de sonho, o que não poderia faltar?
M: Na minha casa de sonho não poderia
AM: Qual é a divisão da casa onde costu- faltar uma piscina.
mas passar mais tempo e porquê?
198
AM: Interior ou exterior? M: Sim. Isso é fácil de perceber, sobretu-

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M: Exterior. do nas crianças. É muito fácil de perce-
ber as que convivem com pessoas cegas
AM: Agora vou fazer-te algumas per- e as que me veem pela primeira vez. Para
guntas apenas porque quero saber um as crianças que costumam frequentar o
pouco mais sobre o teu percurso. Sendo clube já é bastante normal estarem co-
campeã mundial de surf, como é que te migo. Por exemplo, o filho do meu trei-
sentes na água? De onde surgiu o gosto? nador tem dez anos, e ainda hoje estáva-
M: Quando os meus pais perceberam mos a surfar e ele viu-me a ir na direção
que tinham uma filha cega, foram-lhes dele e disse que, por uns segundos, se
recomendados vários tipos de terapia. esqueceu que eu era cega e não me ia
Desde pequena que fiz equitação tera- dizer nada. Apenas quando se lembrou
pêutica, por exemplo. Uma das ativida- é que gritou para avisar, senão teríamos
des que mais lhes foi recomendada foi a chocado. Para eles é natural. No entanto,
natação, então eu vou à piscina desde os as crianças que vão lá pela primeira vez
meus seis meses. Andei na natação até fazem imensas perguntas, e como veem
aos dez anos, mas depois acabei por sair. que o ambiente é tranquilo e que nós
Um dia o Areias viu-me a andar de skate fazemos piadas sobre o facto de eu ser
e ele convidou-me para ir experimentar cega, sentem-se mais à vontade.
surf, então mais tarde fui com ele expe-
rimentar. Foi aí que conheci o meu trei- AM: E com pessoas mais velhas, o que
nador, o Tiago, e acabei por ficar por lá. sentes?
Relativamente ao que sinto quando estou M: Com pessoas mais velhas costuma ser
na água, depende do local onde começo. mais fácil, porque as pessoas percebem
Por exemplo, se alguém me deixar no de imediato. Depende muito do ambien-
mar depois da rebentação, eu sei voltar a te onde eu estiver. Se estiver com al-
terra. No entanto, as praias são dos sítios guém que já me conhece e que transmite
mais difíceis para uma pessoa cega se às restantes pessoas que estou tranqui-
orientar. A praia do cabedelo tem imensa la com a situação, é mais fácil. Se esti-
areia, imenso espaço livre, e a partir do ver num ambiente em que não conheço
momento em que saio do passadiço não ninguém, sou eu que tenho de transmi-
tenho qualquer tipo de referência para tir essa mensagem e deixar as pessoas à
voltar. Posso tentar procurar o passadiço vontade para me fazerem perguntas. Te-
novamente, mas é muito difícil. nho de estar sempre a explicar às pes-
soas e a ensinar. É uma missão.
AM: Sentes que no resto da população
em geral já existe alguma sensibilização AM: Achas que o caminho a seguir rela-
para o tópico? tivamente à habitação está mais relacio-
nado com legislação ou com sensibiliza-
ção dos arquitetos?
199
M: Eu não sei se existe, mas eu penso 13 JOSÉ
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

que, nas universidades, por exemplo, de-


via existir uma abordagem maior sobre José, 56 anos. Entrevista realizada vir-
estes assuntos. Talvez já exista uma uni- tualmente no dia 1 de agosto de 2022.
dade curricular de acessibilidade, mas
penso que isso poderia ser tornado mais AM: É cego ou possui baixa visão?
presente. Talvez isso devesse ser um cri- J: Eu tenho baixa visão. Eu via bem e há
tério para os trabalhos que os arquitetos cerca de seis anos o problema começou
desenvolvem na sua formação. Se já vies- a agravar com mais intensidade. A mé-
sem com isso da universidade, com esta dica já tinha identificado o problema há
consciência presente, quando fizessem vários anos, mas no início eu não o sen-
projetos reais iam ter esse cuidado tam- tia. Apenas quando piorei é que fiz mais
bém. testes e descobri que tinha a retina pig-
Existem muitas dinâmicas que se po- mentada, visão tubular. Enquanto tenho
dem fazer na área da deficiência que são luz, ainda me desenrasco e sinto-me
fáceis de executar e também fáceis das confortável, dentro do possível. Quan-
pessoas sem problemas perceberem. Se do começa a diminuir a luz já sinto mui-
puseres uma pessoa numa cadeira de ro- ta dificuldade em movimentar-me em
das e lhe disseres simplesmente para ir, sítios que não conheço bem. Sinto-me
basta para as pessoas compreenderem perdido, não consigo ver nada. Tenho até
a dificuldade de mobilidade. Se venda- receio de ir ao café, porque quando en-
res uma pessoa e a deixares andar num tro no espaço não consigo identificar a
edifício, vai ser fácil de compreender disposição do mobiliário. Por vezes sen-
as dificuldades de alguém que é cego. to-me numa mesa em que já estão pes-
Quando eu vou a um supermercado ou soas, e fico bastante envergonhado.
a uma loja no centro da cidade, é difícil,
por exemplo, eu saber onde tenho de me AM: Ainda está numa fase de adaptação?
dirigir para pagar. Sobretudo nas lojas J: Sim. Quando ainda trabalhava já me
da cidade, que são mais pequenas e com queixava de alguns elementos que me
menos gente. atrapalhavam, como degraus. Tentei dar
algumas sugestões, mas não me presta-
vam atenção. Ainda hoje reparo em al-
gumas casas que não estão preparadas
para alguém cego, muito menos com
baixa visão. Aliás, penso que existe mais
gente com baixa visão do que cega, até
pessoas de idade. Poder-se-ia facilitar a
vida a pessoas com problemas como o
que eu tenho.
200
AM: Desde que idade sente que ficou da não sabemos ao certo o futuro disto.

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mais limitado? Pode piorar ou estagnar, e deste modo já
J: Comecei a fazer testes por volta dos estou adaptado. Conheci a IRIS Inclusiva
45 anos. Aí foi quando deixei de condu- devido à necessidade de aulas.
zir. No início, ainda conduzia. Depois, a No dia a dia ando com a bengala, por re-
minha esposa começou a levar-me e a gra geral, para prevenir os momentos em
ir-me buscar ao trabalho, porque já não que sinto mais dificuldade. O meu maior
conseguia conduzir ao fim da tarde, a luz receio é sair e me atrasar a fazer algo.
estava mais baixa e tinha dificuldades. A Como a luz diminui, já tenho dificuldade
partir daí, decidi por iniciativa própria em me movimentar, por isso ando sem-
deixar de conduzir, antes que pudesse pre com a bengala. No entanto, sinto-me
causar um acidente. diferente das outras pessoas a andar
com a bengala, todos olham para mim,
AM: E atualmente tem alguma perceção não gosto da sensação. Mas a bengala
visual, se existir luz? é uma grande ajuda. Sente-se o relevo
J: Sim, é isso. Por exemplo, quando en- do chão, os degraus, detetamos tudo. É
tro num sítio com luz amarelada bastante incrível como isso acontece, transmite
baixa, não consigo ver. Até gostava de vi- muita segurança a uma pessoa.
sitar museus e cafés, mas já se torna com-
plicado. Segundo o que a médica disse, as AM: O modo como a sociedade o encara
minhas células estão a morrer e quanta ainda lhe cria desconforto?
menos luz absorverem, menos consigo li- J: Sim, é isso. Basta ir às compras e te-
dar com o problema. Quando tenho luz, nho de dizer que tenho dificuldade em
também já não consigo distinguir as for- ver, tenho de pedir ajuda. Por exemplo,
mas. Os degraus são um problema muito para pagar no multibanco, por vezes não
grande para mim por esse motivo. O pri- consigo ver os números e peço ajuda. É
meiro degrau e o último são os mais com- comum perguntarem se não tenho ócu-
plicados, e se forem revestidos a um ma- los com algum ar de desprezo, nem se
terial como azulejo, que tem juntas, tenho preocupam em saber se a pessoa tem al-
de ir a arrastar os pés porque nunca sei se gum problema de visão. Quando vou às
é uma mudança de plano. A minha visão já compras utilizo muito o telemóvel para
não consegue distinguir. fazer zoom nas etiquetas, ler o que está
nos produtos e saber os preços. Se não
AM: Utiliza algum auxílio à movimenta- fosse o telemóvel, não conseguiria agir
ção? de modo independente. Mas a sociedade
J: Já comecei a aprender a utilizar benga- ainda descrimina muito. O passeio tem
la, porque os médicos me aconselharam. muitos obstáculos para alguém com de-
Aconselharam-me a ter aulas de bai- ficiência visual e, por vezes, ao desviar-
xa visão para me habituar, porque ain- -me de obstáculos, bato em alguém. As
pessoas olham para mim desconfiadas.
201
AM: De que forma perceciona e com- algo silencioso se aproxima, como, por
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

preende as características de um espa- exemplo, bicicletas. Quando quero atra-


ço? (Distâncias (altura, profundidade, vessar a estrada, embora eu olhe para
largura), escalas, limites, cheios e vazios) um lado e para o outro com a visão que
J: Faço-o através da visão. Vou tentar ex- tenho, como é reduzida e não tenho vi-
plicar-lhe como é que eu vejo. Conhece são periférica, passa tempo suficiente
as câmeras Polaroid? Primeiro tira a fo- para uma bicicleta se aproximar. Sendo
tografia e apenas gradualmente come- um carro, consigo perceber pela audi-
ça a aparecer a imagem. Quando entro ção se posso atravessar ou não. Quando
num sítio estranho, em que não conheço sinto a visão reduzida, presto muita mais
nada, eu entro e está tudo escuro. Aos atenção ao que estou a ouvir.
poucos começa a aparecer a imagem,
dependendo da luz que tiver. Aí come- AM: Sente que esses estímulos podem
ço a ter a perceção de como é o espa- ser desorientadores?
ço. A minha visão demora algum tempo a J: Sim, sinto que me enganam. Se eu for
adaptar-se. No entanto, o que sinto com atento a um dos estímulos, basta haver
os pés é também muito importante. Se qualquer interferência e já fico na dúvida
sentir alguma alteração no solo, seja por relativamente ao que me está a orientar.
materiais ou texturas, fico sempre com Quando estou a andar no passeio, até as
algum receio, e já o faço há muito tem- sombras das árvores ou das pessoas me
po. Tenho tendência para arrastar o pé assustam, porque me parecem buracos.
quando isso acontece, porque não sei se Quando vou a andar, tento manter um
é simplesmente uma mudança de mate- foco, olhar sempre em frente, senão de-
rial ou se é um degrau ou outro obstácu- soriento-me, sinto-me perdido.
lo. Basta existir uma depressão ou uma
lomba e tenho tendência para trope- AM: A noção de conforto surge em con-
çar. A minha visão vê tudo nivelado, não sequência de que características de um
consigo distinguir o relevo de nada. Por local?
exemplo, se olhar para uma escada, para J: Para mim, um sítio confortável não
mim é uma rampa, tanto vista de cima pode ter degraus ou rebaixamentos,
como de baixo. como acontece nos passeios. O facto de
ser tudo da mesma cor também dificul-
AM: Sente que o tato e a visão são, então, ta a minha perceção do espaço e deixa-
os maiores estímulos para se orientar? -me desconfortável. Se os degraus esti-
J: Sim. Não utilizando a bengala, são os vessem todos assinalados, já seria muito
pés que utilizo para me orientar. A audi- mais fácil para mim e deixaria de ser um
ção também ajuda, mas tento compreen- obstáculo tão grande quanto é. Eu dou-
der o espaço sobretudo pelo tato. No -me muito bem com a cor amarela, é o
entanto, noto muita dificuldade quando que vejo melhor. Os pisos mudarem de
202
pavimento ou de cor por nenhum mo- alguma visão, portanto associo sempre

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tivo dificulta a minha movimentação, os sons às imagens.
porque penso sempre que estou a entrar
num local diferente ou que vai surgir um AM: Qual a relação que tem com a janela
obstáculo. Se os passeios fossem todos em termos de privacidade e iluminação?
amarelos, para mim seria muito mais fá- A luz solar destaca-se na forma como
cil saber por onde tenho de seguir. perceciona o espaço?
J: O apartamento em que estou tem
AM: E dentro da habitação, sente que a muita luz natural, e só sinto mesmo ne-
diferença cromática ajudaria? Entre o cessidade de ligar a luz quando o sol está
chão e as paredes, por exemplo, ou as a desaparecer. Se eu tivesse a possibili-
paredes e os interruptores. dade de fazer uma casa, não queria pare-
J: Isso ajudaria bastante. O chão, sen- des, gostava que fosse tudo vidro, a toda
do todo uniforme, não há problema. E a volta. Quanta mais luz tiver na casa,
sendo a minha habitação, eu também a melhor para a minha visão. A maior par-
conheço e sei onde estão os obstáculos, te das casas têm janelas pequenas, penso
portanto não tenho dificuldades. que as pessoas não têm noção do bem
que a luz natural faz aos olhos.
AM: Então, sente que faz sentido fazer
essas adaptações na habitação, ou sendo AM: Quais são os seus principais obstá-
a sua própria casa não fazem falta? culos de orientação?
J: Eu penso que faria sentido que es- J: Em casa, os maiores obstáculos são as
tas questões fossem pensadas de início. portas. Se fecharem as portas, como du-
Aliás, eu estou a tentar fazer algumas rante a noite não vejo por haver menos
adaptações na minha casa. Como tenho luz, bato nelas. Estou habituado a que
muitos dispositivos elétricos, como es- estejam sempre abertas. Piora porque te-
tores, por exemplo, estou a tentar por nho o vício de não acender a luz. Tenho a
tudo com comando de voz. Já tem preços sensação que conheço a casa toda e, por
acessíveis e, aos poucos, estou a adaptar vezes, o meu filho deixa as portas fecha-
a minha casa dessa forma. das e torna-se um problema para mim.
No apartamento onde estou não tenho
AM: E a ausência absoluta de som inter- grandes obstáculos, sinto que está prepa-
fere no seu sentido de orientação? rado para o meu problema. Não tem pila-
J: Penso que não. res, não tem cantos. É como se fosse um
quadrado e as divisões distribuem-se no
AM: Quando ouve o som, associa-o a interior. Tenho varandas enormes e tam-
imagens visuais? bém não tenho obstáculos.
J: Sim, sempre. Eu conheço os objetos, li-
dei com eles muitos anos e ainda tenho
203
AM: Além dos eletrodomésticos e dos seios para as entradas das garagens das
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

comandos de voz, sentiu necessidade de casas. Torna o trajeto para quem está a
alterar algo mais na sua habitação? fazer o percurso a pé muito mais irre-
J: Não, para já não. gular e acidentado. Porque é que não
é o dono da casa que tem de fazer essa
AM: E em espaços que não conhece, o adaptação sem interferir com o passeio?
seu modo de orientação, muda? As rampas poderiam estar na estrada?
J: Sim. Quando entro num sítio que não Existem muitas pessoas que caem devi-
conheço, tento não me aproximar dos li- do a estas depressões do passeio. É di-
mites. Sei que nesse local haverá obstá- fícil a mobilidade em locais irregulares,
culos, então tento seguir pelo centro do sobretudo para pessoas de idade.
espaço. Enquanto não conhecer bem o
sítio, tento movimentar-me pelo espaço AM: Cria mapas mentais de orientação?
livre. J: Sim, é automático. Estou a olhar para
um espaço e crio logo o desenho. Habi-
AM: Nessas ocasiões utiliza a bengala? tuei-me a fazê-lo e agora é uma grande
J: Não, é raro utilizar a bengala no in- ajuda. Quando percorro um espaço, crio
terior. Só utilizo a bengala se existirem de imediato um desenho mental que me
muitas escadas, mas, normalmente, para ajuda a orientar-me das vezes seguintes.
esses sítios vou acompanhado, então
não sinto necessidade de a usar. Em pos- AM: Como descreveria esses mapas
so térreos não costumo usar. mentais? Quais são os estímulos?
J: O principal estímulo é visual, mas de-
AM: Quais os principais dispositivos físi- pende do quanto conseguir ver no mo-
cos que ajudam na orientação? mento em que visitar o espaço. Muitas
J: Além das faixas amarelas nos degraus, vezes guio-me com a mão, para tentar
existem outros elementos que sinto que compreender o que é cada coisa. Depois
deveriam ser melhorados. Por exemplo, compreendo e traço um desenho na mi-
em Viana do Castelo existem uns pila- nha cabeça. É automático. Eu sempre fui
res pequenos nos limites das passadei- muito independente, até a cozinhar, e o
ras que são baixos, cinzentos. Costumo facto de me orientar bem sozinho é muito
bater neles, porque não os consigo ver. importante para mim. Não costumava ter
Aquelas bolas baixas que costumam es- ninguém a ajudar-me, e não quero que o
tar em torno dos canteiros ou os bancos, façam agora também. Sinto que quanto
por exemplo os da Avenida, também são mais ajudarem, mais uma pessoa começa
obstáculos que poderiam ser alterados a ficar limitada, e não gosto disso.
se tivessem outra cor. Têm a mesma cor
do chão. Também nunca percebi porque
é que, de forma geral, rebaixam os pas-
204
AM: Seria capaz de descrever a sua casa AM: Pode descrever a sua sala?

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de modo a ser desenhada uma planta do J: Posso. A minha sala tem, do lado sul,
espaço? duas portas grandes viradas para a va-
J: Acho que sim. randa, e uma porta mais pequena vira-
da para Ponte de Lima (este), onde tem
AM: Há pouco falou-me de alguns ele- também uma varanda grande. É qua-
mentos que o ajudavam na orientação. se um quadrado, tem apenas um re-
Sente que faz sentido assinalar alguns canto, que é a lareira. Tem um sofá no
desses elementos no interior da habita- meio, virado para Ponte de Lima. De-
ção, mesmo sendo a sua própria casa? pois, tem a televisão e a prateleira na
J: Sim. Estando na zona de conforto, a parede em frente ao sofá, e do lado es-
pessoa fica ainda mais distraída. Se os querdo tem o recuperador de calor e
elementos de perigo estiverem assinala- algumas prateleiras. Nas minhas cos-
dos, é uma prevenção. tas tem uma parede grande, que divide
a sala da cozinha, e a porta de entrada
AM: O modo como cria novas memórias para a sala é ampla, de duas folhas. Atrás
é diferente do que acontecia quando ti- do sofá tem a mesa de jantar e um canto
nha visão total? com um estirador, onde eu fico a fazer
J: Sim, totalmente. Antes percorria os os meus trabalhos, onde eu desenhava.
espaços sem me preocupar com os lo-
cais onde estava. Agora tento fazer uma AM: Costumava desenhar?
leitura quase Raio-X, tento decorar tudo J: Sim, desenho desde pequeno, era o
e fazer o desenho, fazer a planta. Presto meu trabalho. Desenhava retratos. Tra-
mais atenção aos pormenores. Por isso balhava também como decorador. Ainda
é que lhe digo que acho que seria capaz hoje desenho, mas utilizo lupas. É o meu
de descrever a planta da minha casa com passatempo, e é a minha paixão.
alguma precisão.
AM: Ainda faz retratos?
AM: Qual é a divisão da casa onde costu- J: Sim, ainda consigo. Adaptei tudo. Te-
ma passar mais tempo e porquê? nho o estirador, o computador ao lado
J: Onde passo mais tempo é na sala. É o e um tablet para ampliar as imagens ao
sítio onde sinto mais conforto porque máximo. Tenho sempre a lupa disponível
tenho lá a televisão, o computador, te- também. E estou mesmo junto a uma das
nho tudo. portas grandes que dão para a varanda,
porque são em vidro e tenho de ter luz
AM: E qual é o seu espaço favorito, em natural. Sob a luz de lâmpadas não con-
casa? sigo fazer nada. Não sei porquê, mas não
J: É a sala, também. Sempre foi. consigo. Se estiver nublado também já
não consigo.
205
AM: Qual é, para si, a definição de algo 14 GABRIEL
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

belo?
J: É quase tudo. É a natureza. E é a arte, Gabriel, 49 anos. Entrevista realizada
que eu gosto muito. E as obras de arqui- virtualmente no dia 3 de agosto de 2022.
tetura espetaculares que por vezes se
veem. AM: A deficiência visual que o Grabriel
AM: O que considera ser a beleza na ar- tem é cegueira ou baixa visão?
quitetura? G: Tem sido ao longo da vida uma bai-
J: Um edifício muito bem feito e orga- xa visão que está neste momento muito
nizado, que é aquilo em que cada vez se próxima de cegueira. É uma doença de-
aposta mais, e ainda bem. Tudo amplo e generativa das células da retina. Quan-
com grandes janelas. do se identifica é quase imperceptível,
praticamente temos 100% da visão. Isto
AM: Se pudesse desenhar, agora, a sua aconteceu-me aos 8 anos, quando se
casa de sonho, o que não poderia faltar? identificou e depois vai-se perdendo, de
J: Luz. E, depois, gostava que fosse uma forma extremamente lenta. Neste mo-
casa futurista, dar-lhe ordens e ela obe- mento não vivo numa escuridão, ainda
decer. Ser uma casa inteligente. Mas, so- tenho perceção da luz, da luminosidade,
bretudo, muita luz natural. portanto ainda consigo ter a perceção
se é dia ou noite e se estou num espaço
com luz acesa ou luz apagada. É pratica-
mente este o resto visual que tenho.

AM: O seu processo de degenerando da


visão começou quando tinha 8 anos?
G: Sim. Nessa altura foi quando se iden-
tificou, mas ainda tive dois/três anos em
que quase não notava quase nenhuma
alteração, notava em pequeno pormeno-
res, em pequenas coisas. E depois, pouco
a pouco, foi-se fazendo sentir, até que
no 12º ano já tive que fazer com material
adaptado, com braille. Já não conseguia
ler para o quadro, já não conseguia ler os
meus livros. O 12º foi o ponto de viragem.
Foi quando eu tive que começar a utilizar
material adaptado: o braille e livros gra-
vados. O outro ponto foi um pouco mais
tarde, talvez aos 21/22, quando deixei
206
de conseguir andar na rua de forma au- ção muito em função da ressonância do

Anexos | Entrevistas a indivíduos com Deficiência Visual


tónoma, sem auxiliar. Tive que começar som. O caso da profundidade, se eu en-
a andar com bengala e já não consegui tro num espaço pela primeira vez e te-
andar. Isso não foi uma coisa de um dia nho uma pessoa ao fundo dessa sala ou
para o outro, as alterações visuais não desse espaço que me fala, eu pelo menos
são assim bruscas, em curtos períodos a partir daí crio logo uma noção de “até
de tempo. Mas aos 21/22 foi quando co- ali esta sala prolonga-se”. Não sei se me
mecei a utilizar bengala na rua e em al- estou a conseguir explicar. Depois pode-
guns momentos mais críticos e depois a rá ser mais um pouco ou não, mas tendo
partir dos 24/25 já tive que usar sempre. um bocadinho da circunstância… quan-
do eu entro num espaço depende da cir-
AM: Disse-me que tinha uma doença de- cunstância. Se nesse espaço está uma
generativa. Sabe dizer-me o seu nome? pessoa que já lá está e me fala, depende
G: É uma retinopatia pigmentada. Pode da posição dessa pessoa, ou se esta um
aparecer com outros nome, como re- televisor… Depende. Tem sempre a ver
tinosa, retinosa pigmentada, retinite,… com o som.
São tudo processos da mesma família.
AM: Pode descrever o espaço onde se
AM: Atualmente, de que forma percecio- encontra?
na e compreende as características de G: Posso. Mas é fácil para mim, porque
um espaço? (Distâncias, escalas, limites, conheço muito bem este espaço. Por-
cheios e vazios) tanto, o que lhe vou dizer neste mo-
G: É difícil de descrever, mas sim, eu te- mento resulta de um acumular de infor-
nho essa perceção. O cheio ou vazio é mação que eu demorei muito tempo a
fácil. Até pelo eco, consigo ter uma sen- construir. Não é a minha casa. Eu estou
sação aproximada. Eu julgo que a altura na clínica onde trabalho à tarde - neste
do espaço, talvez pela mesma razão, pela momento já só cá estou eu, já saiu toda a
ressonância do som acima da minha ca- gente. É uma clinica que neste momen-
beça, eu consigo perceber de um forma to é só utilizada por mim e por mais um
bastante aproximada. A profundidade, médico. Quando eu cheguei cá, era uti-
eu acho que no geral eu consigo ter essa lizado por muita gente, com uma sala de
perceção mas já houve circunstâncias espera constantemente cheia. Portanto,
em que eu, depois mais tarde, percebi eu demorei muitos anos até construir
que afinal o espaço era mais profundo este imagem final do espaço onde estou.
ou que afinal tinha uma barreira antes Posso-lhe dizer que neste momento es-
daquilo que eu pensava. Deve ter a ver tou na receção. Esta receção é mais ou
também com o tipo de materiais que fa- menos um retângulo, não é exatamente.
zem o revestimento ou que fazem estas Talvez tenha 8/9 metro por uns 4 me-
barreiras, porque eu tenho essa perce- tros e algo. Este retângulo que eu lhe
207
descrevi tem um balcão, em L, que ocupa faço de forma consciente porque já estou
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

a maior parte desta área que acabei de muito mecanizado. Às vezes quem me vê
descrever. entrar diz depois à rececionista que nem
se aperceberem que eu não via. São pe-
AM: O espaço tem janelas? quenos toques que eu vou dando em zo-
G: Este retângulo que eu lhe descre- nas muito estratégicas, nomeadamente,
vi não tem janelas, mas depois tem uma o ângulo do balcão que está em forma de
porta ou uma abertura com perto de 3 L. Eu, como já conheço o espaço depois
metro que dá para a sala de espera, que vou procurando zonas muito especificas
é um outro retângulo contíguo a este. que depois me orientam para virar à di-
Aí sim tem janelas. Esse outro retângu- reita ou para parar. Portanto, a estrutura
lo deve ter para aí uns 8 metros de largo física, alguns relevos da estrutura físi-
e uma das faces, a que dá para a rua, é ca nós vamos habituando a procurá-los
toda em vidro, com janelas. Depois, para pelo tato para depois decidirmos se va-
a minha direita, este retângulo da rece- mos virar à direta, se vamos continuará
ção prolonga-se com um corredor que em frente ou saber em que zona do es-
dá para salas de consulta e para a casa paço é que estamos. Eu uso cão guia já
de banho do fundo. Aqui, já dentro da há alguns anos. Por utilizar um cão guia
zona da receção, atrás do balcão, o espa- há uma parte da minha orientação que
ço tem uma abertura que dá uma casa de às vezes passo para 2º plano porque é o
banho e para uma outra sala de escritó- cão que está a fazer. Portanto não é im-
rio, que é um backoffice, digamos assim, possível às vezes vir numa chamada te-
mais pequeno. lefónica, com o auricular, em conversa.
Nessa circunstância é mais fácil perder a
AM: Quais os maiores estímulos para a noção do espaço, porque a minha mente
orientação no espaço? Há pouco dis- está ocupada com outra função e aí o ir
se-me que era a audição. Sente que há detectando alguns relevos físicos vai-me
mais algum que o ajude muito? dando informação.
G: Há. Os elementos físicos do espaço.
Eu estou a falar de coisas que normal- AM: Quando está, por exemplo, a cami-
mente não penso, não as torno cons- nhar na rua ou em espaços que não co-
cientes. Elas vão existindo de uma forma nhece tão bem, são os mesmos estímulos
quase inconsciente na minha vida. Eu que o orientam?
entro aqui disparado rapidamente por- G: Não. Aí, neste momento, é diferente.
que venho atrasado… Para além de já ter Na rua é um pouco diferente. O cão vai
criado uma noção da distância que devo me desviando de tudo o que são obstácu-
percorrer para contornar este balcão da los e aí eu vou me guiando. A pouquíssi-
receção, às vezes vou-me guiando com ma visão que tenho às vezes é suficiente
toques muito subtis, e que às vezes já não para perceber que o bloco de edifícios à
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minha direita já terminou porque passei do. Não me pergunte exatamente como,

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da sombra para o sol. E isso já me dá uma também não é uma coisa que se faça de
orientação com respeito à proximidade forma consciente. É o habito. É a pessoa.
da próxima rua que vou atravessar. Tam- AM: Sente que, por vezes, esses estímu-
bém durante a noite, se acabo de passar los podem ser também desorientadores?
em frente uma determinada loja que tem G: Podem. Quando lhe falei da situação
uma luminosidade na montra diferente, de determinada montra ter uma deter-
isso também me vai dando algumas in- minada luminosidade, por exemplo. Pode
formações acerca da situação onde es- haver o dia em que chego lá e, se tiver
tou, em que ponto da rua eu estou. Há havido alguma alteração, isso pode-me
uma série de truque são muito meus e baralhar. Os relevos que procuramos nor-
que cada pessoas tem os seus. Porque malmente não são desorientadores. Só
mesmo quem tem baixa visão, a baixa vi- em algumas circunstâncias muito con-
são não é igual para todos, uns detetam cretas, em que eu próprio me tenha de-
mais a luz, outros detetam mais a sobra. sorientado, em que não tenha feito bem
Estes são os meus truques, que tem mui- a minha parte de orientação. Eu trabalho
to a ver com este tipo de coisas. Eu tam- no hospital de manhã até às três da tarde.
bém tenho, e acredito que a maior parte Eu para encontrar a porta do meu gabi-
das pessoas que não veem ou não veem nete, o espaço onde trabalho, quando não
há muito tempo, vão criando uma coisa vou com o cão (já aconteceu, em alguns
muito difícil de descrever que é uma no- períodos), eu guio-me por um peque-
ção de tempo de “ok, eu pelo tempo que no corrimão que está ali na parede. Esse
estou a caminhar já devo estar a chegar corrimão interrompe-se para dar lugar à
à escada que preciso”. Eu desço as es- porta que eu preciso de entrar. Mas se,
cadas do metro e vou com o meu cão - por acaso, eu for um bocadinho distraído
em rigor eu não conto os passos mas no e não fizer bem esse trabalho… Aconte-
fundo é quase como se contasse - devo ceu eu passar a porta, procurar o corri-
estar mesmo a chegar à escada, devo mão (e ele estava lá, porque continua após
estar mesmo a chegar ao torniquete do a porta), “devo estar a chegar”. “Não estou
metro. É uma noção que se vai criando e a chegar”, é porque já passei. Eu próprio
que, por passar tantas vezes no mesmo me distrai, devia ter procurado o contac-
sitio, fazer o mesmo trajeto, começamos to antes. Dalguma forma não procurei,
a criar uma certa noção de “ok já cá es- deixei passar demasiado tempo e entre-
tou”, que às vezes é bastante exata, bas- tanto já tinha passado a porta.
tante rigorosa. Às vezes eu tenho noção Que os elementos em si me baralhem,
de que já estou a chegar e estou mesmo; não estou a recordar-me, neste momen-
às vezes tenho a noção que a escada está to, de uma circunstância. Claro, se são
mesmo a começar e efetivamente ela espaços que não domino, em que eu en-
está mesmo ali. É algo que se vai afinan- tro a primeira vez, preferia ter referên-
209
cias, outro tipo de referências (marcas no G: Eu acho que sim. Estou a responder
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

chão ou algo assim). Agora os espaços que a perguntas que raramente torno muito
eu domino e que possa dizer que há uma conscientes. Mas agora que penso um
estrututa que me confunde… não me es- bocadinho tenho quase a certeza que
tou a lembrar de nada. sim.
AM: O Gabriel tem por hábito emitir
sons para descodificar os espaços ou AM: Qual a relação que tem com a janela
serve-se apenas dos sons da envolvente? em termos de privacidade e iluminação?
G: Não, não tenho. A sua pergunta é per- Sente que a luz solar se destaca na forma
tinente. Eu conheço pessoas que recor- como perceciona o espaço?
rem ao truque, com muita frequência, de G: Sim. Até porque, para mim, apesar de
estalar os dedos, mas eu não. Eu prefiro ter esta pouquíssima visão, essa noção
ir-me baseando nos sons já existentes. de onde é que vem a luz permite posi-
cionar-me bem no espaço. Isto é bastan-
AM: E a ausência absoluta de som inter- te importante em casa, mas mais ainda
fere no seu sentido de orientação? no meu trabalho, porque acabo por ter
G: É uma boa pergunta. Se calhar não uma certa preocupação também com
é tão rica, a minha perceção do espaço aquilo que as pessoas veem em mim. Eu
no silencio absoluto. Se calhar fica um não parecer muito desorientado, não
bocadinho prejudicada mas não fica to- passar às outras pessoas uma imagem
talmente prejudicada. Isto é extremante de desorientado e de perdido no espaço,
difícil de explicar, mas é possível no si- para mim, é importante. Então sirvo-me
lêncio absoluto - ou se calhar a respos- muito da luminosidade que vem de uma
ta para isto está no facto de o silêncio janela ou da luz que vem da lâmpada do
absoluto não é fácil de existir (às vezes teto. Eu utilizo muito essa informação.
estamos mais em silêncio mas só o facto É muito pouco o que eu vejo, mas faço
de termos a nossa respiração e o nosso um aproveitamento grande, ainda, neste
próprio movimento já não será silêncio sentido, de conseguir-me posicionar e
absoluto - estarmos muito quietinhos e dirigir-me precisamente para a direção
num espaço silencioso e começarmos a que eu quero.
construir uma noção de espaço, que de-
pois poderá ser mais realista ou não. Mas AM: E em termos de privacidade? Como
que nós estamos a construi-lo, estamos. é que a janela se relaciona consigo?
Isso pelo menos comigo funciona. G: Eu tenho cuidado. Vivo num primeiro
andar numa rua não muito larga. Portan-
AM: Sente que associa o som a imagens to, tenho o cuidado de baixar o estore
visuais? e, quando subo, de não subir de forma a
expor tudo o que está lá dentro.
AM: Há pouco disse-me que utilizava cão
guia. Antes disso utilizou bengala?
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G: Utilizava bengala, sim. mos funcionar. Uma é sabermos para

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onde é que queremos ir, saber que ruas
AM: Pode falar-me um pouco dessa temos que percorrer e para onde é que
transição? temos que virar. A outra é ir com a ben-
G: A transição, em termos de conforto, gala tendo uma referência, que pode ser
é muito fácil, mas gera ali alguns pro- a linha dos edifícios ou o passeio ao qual
blemas. O primeiro é um problema de nos encostamos e vamos tomando aquilo
confiança. A primeira vez que me colo- como referência. Depois há um conjun-
caram à beira de um cão e me disseram to de obstáculos, de mobiliário urbano,
para dar as instruções combinada, para uns que são fixos, outros que são móveis.
ele avançar, eu fiquei um bocadinho “é Os caixotes do lixo são móveis, as espla-
esta criatura que me vai guiar?”, apesar nadas são móveis - uma esplanada pode
de estar farto de saber que é assim que não estar rigorosamente com a mesma
funciona. Mas quando me tocou a mim disposição que estava no dia anterior -,
a ser guiado por um cão há aquele re- e há os fixos que são os postes, as caixas
ceio de “mas agora posso confiar?”, “não dos semáforos, as caixas de eletricidade
vou cair no primeiro obstáculo?”. É uma e as bocas de incêndio. E há as pessoas,
sensação estranha de confiança. Depois, que são mais do que móveis. Nós com a
ainda dentro da confiança mas já den- bengala temos que deletar o obstáculo
tro dos aspetos práticos, há aquela fase e contorná-lo. Às vezes, a seguir àquela
de termos que nos habituar a como se boca de incêndio está a porta do edifí-
ganha essa confiança, de como me po- cio que eu preciso de entrar. Ou a seguir
siciono, o que tenho que fazer para que àquela caixa de eletricidade ou àquele
funcione. Depois há outra coisa que é poste, dois ou três passos mais para a
uma preocupação de outra ordem, que frente é onde está a passadeira que eu
é “ok esta criatura agora vai andar co- preciso de atravessar. Com o cão nós
migo o dia todo e eu vou ter que estar só precisamos de ter a noção de qual é
preocupado, em dar lhe agora e levá-la a rua que queremos ir, se queremos se-
ao jardim às horas necessárias”. Aí já sou guir em frente, se está na hora de virar
eu enquanto cuidador. Agora vou ter que para a direita ou para a esquerda. Por um
ir para o emprego, mas para além da res- lado pode-nos tornar a coisa um boca-
ponsabilidade que já tinha, vou ter que dinho mais difícil porque perdemos um
arranjar espaços para cuidar desta cria- bocadinho aquela noção de se já estamos
tura. É outro nível de procuração. Quan- muito perto da porta que queremos ou
do aos aspetos práticos, ultrapassando não, ou da paragem que queremos ou
estas pequenas questões de confiança não. Aqui entra em bocadinho aquela no-
e de como isto funciona, não tem nada ção do “ok por aquilo que já andei devo
a ver. Nós com bengala precisamos de 3 estar muito próximo”. Quando são tra-
coisas importantíssimas para conseguir- jetos que o cão já conhece, nós só pre-
211
cisamos de dizer “busca a porta” “busca tamos a passar uma zona em que há um
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

a paragem”, porque já está familiarizado, poste ou qualquer obstáculo. Mas tem a


já sabe aquilo que eu quero. E portanto, ver com a dimensão do passeio. Se hou-
vai para aquela porta porque já lá fomos ver espaço, eu passo e nem me apercebo.
várias vezes. Mas não tem nada a ver, a Se o passeio tiver dimensões mais curtas
noção do espaço transforma-se. Nós ou alguém deixou uma moto em cima do
deixamos de utilizar estas referências fí- passeio, ou um carro, o cão aí já tem que
sicas dos degraus do edifício, o rebordo me avisar de alguma forma, adota outra
do edifício, a boca de incêndio. Alias, nós atitude e eu percebo logo que aqui esta-
passamos a passar pelas ruas e a não ter mos com algumas dificuldade em passar.
noção da quantidade de mobiliário que lá Às vezes o espaço é mesmo muito curto
existe e quando temos a bengala temos e eu percebo que é o caixote, o carro ou
noção de tudo, até, às vezes, das ervas qualquer coisa. Se ainda assim temos al-
daninhas que estão encostadas ao muro gum espaço para passar, eu só percebo
e nas quais a bengala fica presa, e é uma pela atitude do cão que estava ali qual-
grande chatice, ou que as pessoas dei- quer coisa, que ele me desviou de qual-
xam ali sacos do lixo. O meu cão anterior quer coisa, e acabo por não perceber o
adoeceu e depois morreu e até vir este que é que era.
novo cão tive que voltar à bengala e foi
completamente desesperante porque eu AM: Como é a experiência de andar em
passei a perceber que havia sacos do lixo espaços que não conhece com um cão
na rua, que havia ervas daninhas encos- guia?
tadas ao muro. E com o cão, ele simples- G: Aí o cão é extremante útil porque eu
mente desvia-se e nós vamos atrás. Pas- não faço ideia como é que è aquela rua
samos por coisas que não temos sequer que vou ter que passar naquele dia, mas
a noção de que estão lá. sei que ele não me vai deixar bater em
nada. Eu tenho que ir para os sítios com
AM: Movimentando-se com o cão, sen- alguma informação prévia - alguém me
te que ainda tem alguns obstáculos à sua que disse “se saíres nesta estação do
movimentação? metro sais por este lado ou por aquele,
G: Sim. Vou dar alguns exemplos. Como e depois a rua que tu queres é mesmo a
os passeios em Lisboa não são propria- que está em frente”. Eu tenho que elevar
mente muito largos, muitas vezes, mes- alguma informação previa. Se não levar
mo com o cão, se há um caixote do lixo, muita informação prévia, faço aquilo que
o espaço que resta é curto para mim e as pessoas antigamente faziam, que é
para o cão. Portanto, ele de alguma for- perguntar a alguém que está por ali a cir-
ma avisa-me, puxa-me, para, vai mais cular. A maior parte das pessoas hoje em
lento,... e eu acabo por perceber que es- dia já não faz, porque utiliza o Google-
tamos a contornar um caixote ou que es- Maps, e quase ninguém pergunta nada
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a ninguém. Eu também tenho essa pos- barreira a meio. Estamos a falar de um

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sibilidade, mas não funciono muito com sítio com 12/14 metros por, talvez, 8 de
isso. Existem GPS para pessoas que não largo e depois está subdividido a meio.
veem, ou mais adaptados à realidade das Trabalhamos ali 2, às vezes 3 colegas,
pessoas que não veem, e eu às vezes uti- com montes de marquesas e vário tipo
lizo. Mas isto não é assim tão preciso, às de equipamentos pelo meio -, não ando
vezes tem margens de erro um bocadi- com o cão, ando sozinho. Neste mo-
nho grandes, um bocadinho desorienta- mento, está tudo verdadeiramente mui-
doras. Mas é uma ferramenta que se vai to mapeado. É frequente eu sair da zona
tornar cada vez mais, à medida que se vai onde estou mais, venho lavar as mãos ao
aperfeiçoando e tornando mais rigorosa. lavatório, e às vezes quando estou a vol-
Tenho a certeza que nós pessoas que não tar para o meu sítio, posso ouvir algum
vemos vamos começar a utilizá-la cada doente de algum colega meu dizer ”ah,
vez mais. Mas a partir do momento em mas eu não tinha percebi que ele não vê!
que eu posso perguntar a alguém na rua: Nem parece”. Porquê? Porque esta ma-
“a Segurança Social, onde é que fica?” e a peado. Mas posso-lhe dizer que antes
pessoas diz-me “olhe, continua por este disto, cortei aqui o sobrolho 2 ou 3 ve-
passeio, atravessa duas ruas e depois na zes numa esquina antes do dito lavató-
terceira vira à esquerda e vai encontrar o rio, ou seja, às vezes aprende-se da pior
edifício da Segurança Social”. E é isto que maneira. Às vezes já está mapeado, mas
eu vou dizer ao cão: ”vamos em frente”, porque me distraio com qualquer coisa…
“procura a passadeira”, “atravessa” “con- e basta 30 cm ao lado e já chocamos com
tinua em frente”, “procura a passadeira”. qualquer coisa. Não é impossível acon-
É isto que eu vou dizendo ao cão. Claro, tecer ainda hoje se houver algum factor
depois quando chegar à frente do edifí- de distração, não é impossível ficar um
cio que estou à procura vou ter que per- bocadinho baralhado. Mas no geral, 90
guntar “o edifício da Segurança Social, e tantos porcento das vezes eu faço as
onde é que fica?” e a pessoa já me diz. Às minhas coisinhas, vou direto ao sítios, às
vezes até se disponibiliza “olhe, são vinte coisas e funciona, acho eu.
metros mais à frente. Eu acompanho-o
lá”. Normalmente é mais ou menos assim AM: E se estiver num espaço interior
que funciona. que não conhece? Sente que o seu modo
de orientação muda? Porque já não tem
AM: E se estiver em espaços interiores? esse mapa mental.
Suponho que não esteja sempre com o G: Muda, muda. Até o meu compor-
cão. tamento muda, porque não me sinto
G: Não. Mesmo no hospital, o cão chega à vontade. Enquanto não começar de
e fica lá no seu cantinho. Ali no meu es- alguma forma a construir um desenho
paço - é um espaço único que tem uma do espaço que estou a ocupar, sinto-me
213
até bastante inibido. Depois afeta até a G: Quando é a nossa própria casa, nós
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

forma como me estou a exprimir, porque adaptamo-nos rapidamente, e os de-


acabo por não me libertar muito, porque graus passam a estar ali e já nem pen-
estou demasiado preocupado em reco- samos neles. Ultrapassamo-los sem ter
lher esta perceção do espaço. Às vezes que tornar isso consciente, sem ter que
há pessoas mais atentas, ou até porque os procurar. Mas cuidado, isto é a minha
tem mais à vontade - e aconteceu há experiência. As pessoas que perdem a vi-
pouco tempo atrás, a primeira vez que são mais tarde, de forma tardia, não fun-
fui a casa de uma pessoa que começa cionam assim. Às vezes passam 30 anos a
há imenso tempo -, e assim que entrei, viver numa casa e depois perdem a visão.
ela começa-me a fazer uma discrição Continuam a viver na mesma casa e tem
exaustiva do espaço: ”aqui está a minha uma dificuldade enorme em ultrapas-
prateleirinha, aqui está a mesinha com sar aquele degrau que conhecem há 30
o telefone, aqui esta não-sei-quê…”. Mas e tal anos. As pessoas que perdem a vi-
isto não acontece, isto não é o habitual. são mais cedo, as coisas tornam-se mui-
O habitual é fazerem-me uma descrição to naturais em casa, acho eu. É a minha
muito sucinta: ”aqui estamos no hall, mas perceção e das pessoas que conheço.
viramos aqui à direita e temos a salinha Mas da minha experiência pessoas, eu
de estar”, “aqui é onde esta o sofá”, é uma rapidamente interiorizo esse tipo de aci-
descrição muito elementar. Passado um dentes ou de obstáculos no meu espaço
bocado são capazes de dizer “se preci- mais familiar.
sares de ir à casa de banho, é aqui, é só
saíres, vais por aqui…”. Depois, pouco a AM: Diria, então, que não é, ou não deve
pouco, a informação vai chegando. Mas ser, uma questão de legislação?
de facto, a mim, pessoalmente - mas isso G: Para esta pergunta acabo por remeter
tem ver com a minha forma de ser, não a algo um pouco diferentes da primeira.
é igual para toda a gente -, inibo-me até A primeira é como é que eu lido com o
um ponto. Há um certo desconforto por meu espaço. Se falamos em legislação é
não se estar a controlar o espaço. porque temos que generalizar concei-
tos e ao generalizar já vamos incluir es-
AM: Sente que, derivado disso, quando tas pessoas que perdem a visão de forma
falamos da questão da casa, da habitação tardia, e alguns muito tardia (alguns po-
própria, faria sentido haver dispositivos dem ter 70 anos ou 75 quando perderam
físicos no interior da habitação que fos- a visão graças à doença de diabetes). E
sem assinalados, num material diferente, aí as pessoas estão mais condicionadas,
por exemplo? Sente que isso faria senti- porque nessa fase não perderam só a
do ou que quando é a nossa própria casa visão, já perderam boa parte do seu sis-
acabamos por nos adaptar? tema do equilíbrio. E depois, para além
disto, remete também para a outra
214
circunstância, que é nossa perceção na AM: Penso que a identificação dos de-

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qualidade de visitantes, nas casa dos graus com materialidade diferente ou
nossos amigos, dos nossos familiares. E sinalização para alertar pessoas com de-
uma legislação, se calhar, estaria mais a ficiência visual, ainda não estão a ser a
pensar nesse tipo de circunstâncias do discutidas, não.
que propriamente duma pessoas que não G: Pronto, mas aí a utilidade é toda. Eu
viu nunca ou que perdeu a visão muito acho que a utilidade aí é toda. Dentro
jovem e que tem a capacidade de se am- de casa, da minha casa, para mim não é
bientar muito rapidamente ao seu espa- muito útil, mas quando estou na casa dos
ço familiar, à sua casa. Se me perguntar meus amigos, dos meus familiares, aí já
se é descabida uma legislação, não, não é passa a ter utilidade. Se é justo impor aos
descabida. É claro que isto levanta imen- meus amigos e familiares uma adaptação
sas outras questões, mas respondendo que não é para eles, pelo menos hoje, a
só àquilo que me pergunta, não é desca- pensar só em quem vem visitar ou a pen-
bido que pudesse ser pensada legislação sar numa eventualidade de um dia… pois
para este tipo de circunstâncias. não sei se é justo. Mas tem a sua perti-
nência, sim, é pertinente.
AM: Pelo menos começar pela sensibili-
zação e depois, talvez, aos poucos, che- AM: Não se tem que pensar a adaptação
gar a alguma legislação mais universal. com seja algo limitativo para essas pes-
G: Sim. Mas agora de repente ocorreu-me soas, pode apenas dar mais indicações
outro pensamento. O espaço da minha de projeto que vão ajudar a encontrar
habitação é, efetivamente, a área do meu outras soluções igualmente boas às que
apartamento, mas também é as zonas co- já existem.
muns do meu edifício. E aí sim, faz mui- G: Sim, é verdade. Mas a maior parte das
to sentido que a legislação obrigue - aí a pessoas e dos colegas arquitetos, tem
minha resposta é totalmente clara e obje- uma preocupação grande com a estética,
tiva -, que os degraus tenham um mate- e às vezes estas coisas rompem um bo-
rial diferente a avisar da proximidade dos cadinho com a estética. Eu acho que os
degraus, que tenham uns rebordos anti- arquitetos adoram degraus, e eu percebo
-derrapantes. Aí a minha resposta é cla- o efeito estético dos degraus nos edifí-
ríssima, e faz todo o sentido, e se calhar já cios, é fantástico, mas às vezes até é mais
tarda. Provavelmente até já existe. Eu sei barato fazer uma rampa, mas valoriza-
que já existe alguma legislação, até com -se muito os degraus. Há edifícios que
respeito às rampas, mesmo dos edifícios tem, e eu acho que é por razoes estéti-
habitacionais. Provavelmente os degraus cas, aqueles degraus que têm dimensões
já estarão contemplados, mas não sei, não fora do normal. Entre cada degraus às
tenho a certeza. vezes existe um pé e meio. Aquilo é su-
per desconfortável para subir e perigoso,
215
porque aquilo não se ajusta a uma mar- AM: Há pouco, falou-me dos mapas
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

cha normal. É difícil acertar o passo com mentais que cria, para sua orientação.
aquela afastamento preciso dos degraus. Esses mapas que cria têm que tipo de es-
Quando são 3 ou 4 metros entre os de- tímulos? Como os descreveria?
graus, que às vezes acontece em recintos G: No meu caso, têm estímulos visuais.
muito amplos, aí tudo bem, mas às vezes Porque eu, como lhe digo, se houver uma
temos 2 metros e tem um degrau pe- janela, é uma boa referência para mim,
queno e mais 2 metros e outro degrau, e eu utilizo muito essa informação. A dis-
tudo bem. No entanto, existe um tipo de tância, o posicionamento de outras lu-
distância de degraus que não é a distân- zes, mesmo que não seja a luz natural, eu
cia típica das escadas de edifício. Devem também utilizo bastante. E depois vou-
ter cerca de meio metro, e dar um passo -me guiando, efetivamente, por elemen-
entre degraus é descabido, mas passar o tos físicos, uma coluna, uma porta antes
pé logo para o degrau a seguir também é da outra… Esse tipo de relevos também
descabido. Então gera ali uma atrapalha- me dá imensa informação. Se me per-
ção. Eu admito que em termos estéticos guntar qual me dá mais informação, eu
se calhar resultou bem, funcionou, mas não sei, sinceramente. É uma combina-
principalmente para quem não vê, ajus- ção, talvez seja de forma igual ou muito
tar-se àquela distância de degrau é mes- próxima.
mo muito complicado, por vezes.
AM: E com toda a razão. Há muitas for- AM: Acha que seria capaz de descrever a
mas de fazer uma escada de forma este- sua casa de modo a que fosse desenhada
ticamente agradável. Não é preciso que uma planta?
seja desconfortável. É só uma questão de G: Eu acho que não ficaria muito longe
incluir a informação toda e não só algu- do real. Eu acho que conseguia descre-
ma. ver a minha casa de uma forma muito
G: Pois, acredito que sim. A maior par- aproximada porque eu gosto de me guiar
te das minhas queixas têm a ver com o por metros. Eu tenho uma fita métrica
espaço público, não tanto com as habi- marcada em braille e utilizo estas me-
tações. didas com frequência. Quando eu vou
comprar um frigorífico, uma mesa, eu
AM: Mas teve que fazer adaptações à sua meço o espaço. Faço questão de, no sí-
casa, pela sua deficiência visual, ou não tio, ver as dimensões do objeto que vou
necessitou? comprar a ver se cabe, se não cabe. An-
G: Não necessitei. tes de perder a visão, eu ajudei muito o
meu pai a fazer bricolage, a fazer coi-
sas, tirar medidas. Portanto, eu acho
que tenho uma visão muito aproximada
das distâncias. Modéstia à parte ou sem
216
modéstia nenhuma, não sei, eu acho, às a ver a disposição dos objetos. Também

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vezes, até mais assertiva do que pessoas há certeza que eu tenho que eles estão
que veem, que me dizem que são 80 cm, lá e que estou àquelas distâncias quando
e vamos a medir e afinal é um metro e eu entro no sítio. Eu acho que às vezes
tal… Eu acho que acerto mais que gente me convenço a mim próprio que estou a
que vê - não é que ele sejam burrinhos ver aquelas coisas, quando na realidade
e eu muito inteligente, não é isso que não estou a ver. E depois, se me mudam
estou a dizer -, mas se calhar é porque as coisas, eu tenho que fazer um esforço
tenho uma necessidade de ser mais rigo- para me convencer que aquilo já não está
roso com estas coisas e eles, como não lá. Isto que lhe acabei de dizer é muito
precisam, acabam por não desenvolver verdade. Esta história da lareira do meu
tanto. Portanto, se eu lhe fosse descre- pai é como se eu ainda a visse naquele
ver a minha casa, provavelmente, íamos sítio e eu tenho que tornar consciente
conseguir fazer uma planta muito acer- que, primeiro, não estou ver coisa ne-
tada. nhuma e, segundo, que ela já não exis-
te. É difícil de explicar isto, mas é muito
AM: Quando está a visitar locais que vi- assim que funciona. E depois, se à exis-
sitou quando via, sente que as memórias tência deste objeto, efetivamente, cor-
visuais que tem de como era na altura, responde uma memória visual, isto ain-
ainda o ajudam na sua orientação? da fica muito mais gravado, muito mais
G: Muito, ajudam muito. Alterações que presente.
o meu pai fez à casa dele, depois de eu AM: Eu ia perguntar-lhe a seguir se as
sair de lá e já depois de eu deixar de memórias visuais se estão a desvanecer,
ver… Há uma casa que, anteriormente, mas suponho que não.
era uma cozinha com uma chaminé e G: Não, não todas. Algumas sim, mas pe-
com um espaço lareira, e que eu, apesar los vistos, existe uma razão ou uma ex-
de ele já ter destruído aquilo há imen- plicação científica para o facto. Como as
sos anos, eu quando entro lá, tenho que células da retina são responsáveis pelas
tornar consistem já não está ali. Porque cores, são das primeiras coisas que se
se não, é quase como se estivesse a ver, perdem nesta doença. Às tantas, eu ain-
as memórias visuais ficaram. Mas não só da vejo as pessoas mas já não consigo
as visuais. Esta construção que eu faço, ver a cor da camisola que têm. Mas eu
este mapa que eu faço de um espaço, se, guardo uma memória, acho eu, muito fiel
de repente, vier alguém e trocar tudo, eu do que é o azul, o verde, o vermelho, o
tenho que andar ali muitos dias a tor- amarelo. Também guardo uma memória
nar consciente que já não está com era. muito fiel do que é um edifício, o que é o
Porque o facto de eu construir aque- seu telhado, o que é a visão de uma jane-
le espaço é como estivesse a ver quan- la, o que é um pôr do sol no mar. Eu acho
do entro, é como se eu estivesse quase que não estão muito alteradas estas me-
217
mórias, consigo visualizá-las muito bem, meiro momento registo que está ali um
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

como se estivesse a olhar para elas. As armário e, só depois, é que eu vou adi-
fisionomias não. Eu não me lembro da cionando pormenores a esse armário.
cara dos meus pais. Na realidade não me É tudo muito em tons em pretos e cin-
lembro da cara de ninguém, nem da mi- zentos, a minha memória. Não lhes vou
nha própria quando eu ainda me via ao atribuindo propriamente outras tonali-
espelho. E isto aconteceu até aos 15/16 dades. Às vezes, como ainda tenho esta
anos, em que eu ainda me conseguia ver perceção da luz, às vezes consigo perce-
mais ou menos ao espelho, mas eu não ber que determinado móvel é mais claro
me lembro da minha própria cara, tenho e outro mais escuro. E aí sim, vou acres-
muita dificuldade. Às vezes, quanto mui- centando essa informação complemen-
to, consigo lembrar de pormenores de tar, mas que anda sempre muito entre os
pessoas, de mim nada, mas de uma ou pretos e os cinzentos mais claros e mais
outra pessoa talvez me consiga lembrar escuros. Não lhes vou atribuído outro
do pormenor de um olho, isoladamen- tipo de classificação. E depois se é uma
te, ou do aspeto da cara ou só do nariz mesa, e se o espaço debaixo dessa mesa
ou da cor do cabelo e alguns caracóis ou está disponível. Com o passar do tempo
se tinha cabelo liso,… Alguns pormeno- vou acrescentando este tipo de informa-
res isoladamente quase que consigo vi- ção, ou porque estou lá sentado e com
sualizar. Mas já não confio muito nessas o passar do tempo, de tanto me sentar
memórias. Não há uma única pessoas e aproximar a cadeira e afastar, vou per-
que eu me lembre do conjunto, da fisio- cebendo que ali de baixo não está nada.
nomia, da cara, do cabelo. Esse tipo de Este tipo de outras informações vou
memórias perde-se. acrescentando. Mas isto é um processo,
é lento.
AM: E considera que o modo como cria
novas memórias é substancialmente di- AM: Em casa, qual é a divisão na qual
ferente do modo como fazia quando ti- costuma passar mais tempo? Porquê?
nha visão. G: Há-de ser ou o meu quarto ou a co-
G: É substancialmente diferente, sim. zinha. Passo pouquíssimo tempo na sala.
Na cozinha eu gosto de cozinhar. Duran-
AM: Como são as memórias agora? te a semana não tenho tempo para nada,
G: São mais a preto e branco. Quando chego a casa tardíssimo, mas no fim de
eu dizia antes, que quando entro na mi- semana gosto de cozinhar e passo algum
nha sala do hospital e sei onde é que es- tempo na cozinha. Quando não estou na
tão os objetos, eu quase que os começo cozinha, estarei no quarto a descansar, a
a visualizar. Mas é uma construção que ouvir podcasts, a arrumar qualquer coi-
vai, pouco a pouco, acrescentando por- sa, a tocar guitarra, a tentar! São estas
menores, ou seja, que, se calhar, no pri- a duas divisões onde passo mais tempo.
218
Depois temos um terraço com umas di- que tenho, apesar de não ver, que é

Anexos | Entrevistas a indivíduos com Deficiência Visual


mensões até simpáticas. No verão pas- aquela de quando alguém descreve um
samos lá algum tempo, mas será um ter- espaço como clean, quando alguém diz
ceiro espaço, ou um quarto, se calhara “é assim tudo muito clean”. Eu acho que
até seguir à casa de banho. Não passo tenho essa perceção e acho que é uma
assim tanto tempo no terraço, mas ago- coisa que me agrada e que relaciono
ra, na primavera/verão, passa-se algum com a beleza e também com o confor-
tempo sim. to. E isto diz respeito a muita coisa: ao
chão que estou a pisar, às paredes,.… A
AM: E qual é o seu espaço favorito? minha noção de clean acho que é exata-
G: Eu gosto da cozinha porque me di- mente, ou muito aproximada, à de uma
virto da cozinha e fazemos a refeições pessoa que vê, se bem que ela depois
na cozinha também, que é sempre um está a considerar também alguns aspe-
momento agradável. Mas lá está, andaria tos visuais como a limpeza propriamente
entre o quarto e a cozinha. dita. Mas eu acho que também consigo
ter essa perceção apesar de não ver. Se
AM: Atualmente, para si, a noção de con- calhar não rigorosa, não exatamente. Se
forto, surge em consequência de que ca- tiver lá uma manchinha, eu não a vou
raterísticas de um local? ver, mas no geral eu consigo ter uma
G: O tipo de ocupação, a forma como noção de limpeza do espaço. E neste
se ocupa o espaço. A minha casa é pe- momento, eu acho que minha noção de
quenina, portanto este requisito não beleza está parcialmente adulterada. Eu
consigo tê-lo em casa, mas eu gosto gosto de elementos como cortinas ou
de espaços amplos, em que existe es- tapetes. Não tenho, mas tenho um certo
paço à volta das coisas. Eu gosto de di- fascínio ou apreço particular por aque-
visões não muito preenchidas, com las tapeçaria de paredes, aqueles painéis
os seus elementos básicos mas não de tapeçaria. Acho que é algo que me dá
gosto de divisões super ocupadas ou uma sensação agradável, apesar de não
sobreocupadas. A casa esta um bocadi- conseguir ter a informação da imagem
nho assim. Por ser pequenina acaba por do objeto, mas a presença dá-me uma
estar um bocado preenchida. Mas eu gos- sensação de conforto, mas se calhar um
to muito de ter espaço para circular à pouca a tender para essa noção de bele-
volta das coisas. za ou de espaço embelezado.

AM: Qual é para si a definição de algo AM: Também um pouco ainda do que se
belo? O é a beleza? lembra de quando tinha visão?
G: Ora, aí está uma coisa para a qual eu G: Sim, vem muito daí. Mas também se
não tenho dedicado muita reflexão, ul- eu entrar num espaço cujas paredes te-
timamente. Há uma noção que eu acho nham algum elemento de madeira, tam-
219
bém me dá uma noção qualquer do que pequena para aquilo que é a sua utiliza-
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

é estética. Se bem que é completamen- ção. As janelas são importante, a dimen-


te um abuso da minha parte utilizar este são das janelas é importante. Eu gosto de
termo, porque a estética quase só diz efetivamente de casas com muito vidro e
respeito à informação que recebemos com janelas grandes, e acho que isso não
por via visual. E eu não vou por aí. Mas tem a ver com facto de ainda utilizam a
pelo tato aquilo dá-me uma noção de luminosidade que vem da rua, mas tam-
conforto, bem estar e, se quisermos abu- bém com o ar que entra e tem também
sar, de alguma beleza. a ver com a imagem, a estética que eu
guardo de quando via. Janelas grandes,
AM: Se pudesse desenhar, agora, a sua janelas que são portas.
casa de sonho, o que não podia faltar?
G: Um hall grande, espaçoso, uns 8/10 AM: E um espaço exterior, também era
metros. Há um elemento que não é pro- importante para sim?
priamente arquitetónico mas que é de- G: Sim um espaço exterior também é bas-
corativa e que tenho neste meu con- tante importante. Nós enquanto família
sultório, mas numa dimensão muita temos sobrevivido muito nesta casa por-
aborrecida, que é uma fonte com água, que o espaço exterior é grande. Aquele
que se autoalimenta com uma bomba. terraço, apesar de eu não ir muito, ele
Eu gostava que esse hall tivesse assim acabam por melhorar muito o viver den-
uma coisa com uma dimensão bastante tro de uma casa mais pequena. E vou bas-
maior do que aquela que tenho aqui. Eu tante ao terraço, não é muito tempo a fa-
gosto do barulho da água, do som. Eu sei zer sala, passar o meu tempo no terraço,…
que há umas com umas estatuetas, uns mas vou lá com frequência para regar as
cantamos, mas essa noção eu não con- plantas, ou brincar um bocadinho com a
sigo ter, não consigo ter essa noção da cadela, ou pôr o lixo,… Vou imensas ve-
imagem e da estética. Portanto gostava zes ao terraço, não passo é muitas horas
de ter uma dessas fontezinhas. Divisões a desfrutar do terraço, sentado e a des-
grandes e espaçosas, tal como disse an- contrair. De facto termos aquele terraço
tes; uma cozinha com espaço, extre- muda completamente a forma de utilizar
mamente funcional. Gosto de cozinhar, o pequeno espaço lá dentro. Retira muita
portanto gostava que as coisas fossem da sensação de claustrofobia lá dentro.
de facto funcionais. A minha cozinha não
é assim tão pequena comparativamente
com muita coisa que temos aqui no cen-
tro de Lisboa. A minha deve ter para aí
12 metros quadrados, eventualmente até
um bocadinho mais, não é assim tão pe-
quena. Mas às vezes torna-se demasiado
220
6 | INQUÉRITO PERCURSO ÀS ESCURAS

O inquérito que seguidamente se apre- SECÇÃO I | EXPERIÊNCIA SENSORIAL


senta pretendeu registar a opinião dos
Questão 1. Como descreves o espaço que
estudantes de arquitetura envolvidos na
percorreste? (por exemplo, relativamen-
atividade de sensibilização “Percurso às
te a escalas, amplitude, som, materiais,
Escuras”, realizada em Viana do Castelo
entre outros)
no dia 2 de setembro de 2022. A realiza-
ção da atividade contou com o apoio e
dinamização da ACAPO - Associação de Respostas:
Cegos e Amblíopes de Portugal. A. O espaço dava a sensação de ser gran-
de, sobretudo na nave central e a perda
de orientação fazia-o parecer repleto de
Este inquérito encontrava-se divido em
corredores intermináveis. As diferenças
três secções, duas das quais apresenta-
de som também eram substanciais, pois
vam uma breve introdução que precedia
o eco permitia perceber, com as devidas
as questões, e que estará, também, pre-
limitações, a dimensão do espaço e a sua
sente na exposição seguinte, escrita do
forma.
mesmo modo que aparecia no inquérito.
A primeira secção tratava questões da
B. Ao longo do percurso tive a perceção
experiência sensorial, a segunda secção
de diferentes escalas nos espaços, tendo
refletiu em torno da temática da aces-
a noção que uns eram mais pequenos e
sibilidade e mobilidade e, por último, a
outros maiores. Ao entrar na sala prin-
terceira secção relacionava-se com a
cipal, o eco existente na mesma indicava
sensibilização.
que me encontrava num espaço amplo
Apresenta-se cada questão seguida das e na altura idealizei também que tivesse
respostas dos seis participantes, de for- um pé direito mais elevado. porem, tiran-
ma anónima (A, B, C, D, E e F). do nessa parte do percurso, não consegui
ter uma noção muito correta da dimen-
são dos espaços em que me encontrava.
221
A diferença de materiais, no meu ver, fe- D. Descrever o espaço ou ter perce-
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

z-se sentir através da forma como a ben- ção da sua dimensão é completamen-
gala deslizava e o som que a mesma fazia te impossível. Durante o percurso, toda
ao bater no chão ou no rodapé/parede/ a minha atenção centrou-se apenas em
móvel que utilizávamos como guia. Os tentar seguir o percurso indicado, em
únicos materiais que consegui distiguir garantir que a todo o momento a benga-
ao longo do percurso foram a madeira e la batia em algo e a tentar perceber se a
o alumínio. escada já tinha terminado ou não. Sen-
ti-me completamente desorientada, não
Por outro lado, no que toca à parte do pe-
saberia minimamente descrever o cami-
rurso no exterior, senti-me bastante per-
nho que tínhamos feito. Mesmo depois
dida. Devido a todo o barulho e movimen-
de perceber qual era o edifício em que
to que nos envolvia eu senti-me bastante
estávamos - um edifico que conhecia, de
desorientada, não tendo a mínima noção
modo geral -, ao longo do percurso, não
de nada do que me rodeava.
era minimamente capaz de me situar, de
saber se haveria uma parede à esquer-
C. O percurso iniciou-se ainda na rua, da, à direita, o que fosse. A perceção
era possível distinguir alguns tipos de que tive do edifício era completamente
pavimento de calçada mais irregular, fragmentária, no sentido em que apenas
e ouvia-se o barulho dos carros, que conseguia ter noção das coisas em que, a
se tornava bastante desorientador. Já cada momento, estava a tocar, quer fos-
dentro do edifício, parecia haver dois se com a mão ou com a bengala. Nessas
tipos distintos de espaço, um mais am- alturas conseguia perceber os materiais
plo (como de um pavilhão), com pou- das coisas, no entanto apenas daquelas
ca reverberação, e outros mais com- que tocava com as mãos. Por seu lado, a
pactos (vestíbulos e casa de banho, por bengala, ao bater nas laterais, permitia
exemplo), com uma atmosfera sonora tirar algumas conclusões acerca dos ma-
completamente distinta, com os sons a teriais, mas mais através da audição.
reverberar e tornarem-se confusos. Po-
rém, pelo facto de andar vários segmen-
E. Grande espaço, frio, materiais metáli-
tos longos em linha reta, parecia ficar
cos e madeira.
com a sensação que se tratavam de cor-
redores, pois nunca percorri a largura
desses espaços para averiguar a propor- F. O edifício que percorremos na activi-
ção em planta. dade tinha um conjunto de espaços que
se distinguiram uns dos outros exata-
Pelo tato, pude distinguir alguns mate-
mente devido às suas dimensões e aos
riais, como a madeira, aço e reboco.
seus materiais. No momento de entrada
o espaço parecia curto o que, por sua
222
vez, dava a sensação de que estávamos materiais e para ter uma noção espacial

Anexos | Inquérito Percurso às Escuras


muito próximos uns dos outros. As esca- mais abrangente.
das que sucederam foram desafiantes e
de difícil compreensão espacial. O cor-
C. Os estímulos auditivos foram os mais
rimão metálico que acompanhava o per-
importantes para a percepção do volume
curso tinha algumas interrupções que
interior: espaços mais apertados (casa de
perturbavam a descida.
banho e vestíbulo) reverberavam muito
No momento a seguir, surgiu o espaço mais que o espaço de pavilhão. O tato
das casas de banho que se destacou pela permitia distinguir algumas superfícies
concentração de som - o que significava materiais, o aço das guardas, o reboco
que era bastante mais pequeno em re- das paredes e a madeira das bancadas.
lação aos anteriores. Já não me recordo Ao mesmo tempo, o som que a bengala
bem, mas algures neste percurso havia fazia ao bater nas guias laterais ajudava
um material metálico que respondia ao a identificar alguns materiais (por exem-
toque da bengala. No espaço seguinte, plo a chapa metálica dos móveis logo no
o som deixou de se concentrar e tinha- início do percurso). Por fim o roçar da
-se a sensação de um vazio maior, de um bengala no chão e o próprio barulho dos
espaço bastante maior, que percorremos passos ajudava a criar alguma ideia do
sob um material bastante mais irregular material do pavimento, mas não conse-
(o qual eu não saberia dizer o nome). guia ter a certeza.
Os espaços seguintes eram novamente
mais pequenos com acessos em corre- D. Para mim, foi principalmente o tato
dor. que me deu informações acerca do espa-
ço.

E. Texturas sentidas através da bengala e


Questão 2. Quais os estímulos que te
das mãos, acústica dos espaços.
permitiram tirar essas conclusões?
F. A audição e o tato.
Respostas
A. A audição e o tempo a caminhar per-
mitiram tirar as conclusões anteriores.

B. Penso que o mais essencial foi o uso


da audição para captar o eco e a for-
ma como o som refletia nos espaços. A
bengala ajudava também a perceber os
223
Questão 3. Sentes-te capaz de desenhar SECÇÃO II | MOBILIDADE E ORIENTAÇÃO
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

o espaço que percorreste?


Esta descrição serve apenas para auxiliar a
resposta a duas das perguntas que se se-
Respostas:
guem, distinguindo mobilidade de orien-
A. Não. tação.
Mobilidade corresponde à capacidade
B. Não.
que tiveste para te deslocares entre pon-
tos, e as dificuldades correspondem aos
C. Não.
obstáculos que encontraste na tua des-
locação. Existem elementos que auxiliam
D. Não.
a mobilidade de pessoas com deficiên-
cia visual, como, por exemplo, os cães
E. Não.
guia, as bengalas brancas, pessoas que as
guiam ou até aplicações de telemóvel.
F. Sim.
Por sua vez, a orientação relaciona-se
com os motivos que te levaram a esco-
lher um trajeto, e as dificuldades cor-
respondem aos motivos que te fizeram
sentir perdido ou confuso na escolha do
caminho. Existem, também, elementos
que ajudam indivíduos com deficiência
visual a orientarem-se, como é o caso
dos pisos táteis ou das sinalizações em
braille.

Questão 1. Sentiste-te confortável a per-


correr o espaço?

Respostas:
A. Sim.

B. Não.

C. Não.

D. Não.
224
E. Não. batendo entao numa das suas esquinas.

Anexos | Inquérito Percurso às Escuras


O facto das toalhas de mãos não se en-
F. Não. contrarem nas laterais do lavatório foi
também um problema, no meu ver.

C. Em geral, não me pareceu haver mui-


Questão 2. Quais foram as maiores di- tos obstáculos, as superfícies do chão
ficuldades que sentiste em termos de são planas sem desníveis inesperados.
mobilidade? Talvez os problemas mais gritantes são
os lavatórios suspensos na casa de ba-
Respostas: nho, que não dão informação no chão da
sua existência, e muito facilmente se se
A. Os objetos suspensos ou à altura do
tornam num obstáculo invisível; os uri-
peito, que através da bengala não eram
nóis não convencionais também levam a
percetíveis e contra os quais embati.
alguma confusão; e também as escadas
que, pelo desenho das guardas, indicam
B. As partes do percurso onde senti mais
erroneamente o seu fim, havendo ain-
dificuldade foram as escadas e as ca-
da um ou dois degraus à frente, e ainda
sas de banho. Nas escadas, tanto a subir
a ausência de espelhos nos degraus, que
como a descer, o corrimão tinha algumas
tornam a sua subida mais complicada.
incongruências, não acompanhava da
forma mais correta as escadas e as suas
D. Essencialmente os obstáculos eram
arestas eram afiadas, fazendo com que
objetos que saiam fora dos alinhamen-
me pudesse magoar facilmente se nelas
tos das paredes, como por exemplos dos
batesse. O facto dos degraus não terem
caixotes do lixo, os lavatórios, os extin-
espelho também dificultou a subida dos
tores.
mesmos.
Nas casas de banho, a disposição dos
E. Localizar objetos ou estruturas acima
elementos pareceu-me confusa inicial-
da cintura, subir e descer escadas e pa-
mente. O facto das cabines estarem ali-
tamares.
nhadas com a porta de entrada facilitou
o percurso, porém ao sair da casa de
F. Uma das maiores dificuldades de mo-
banho para procurar o lavatório, bastou
bilidade foi a adaptação à bengala e à
uma das portas da cabine estar aberta
guia e, por sua vez, a interpretação des-
para eu me confundir e entrar na mes-
tes estímulos. As escadas e as passagens
ma achando que estava a entrar na zona
estreitas constituíram uma das maiores
onde o lavatório se encontrava. Para la-
dificuldades.
var as mão o lavatório foi também um
problema, sendo que este era suspenso,
com a bengala não o consegui localizar,
225
Questão 3. Quais foram as maiores di- D. Durante todo o percurso estive com-
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

ficuldades que sentiste em termos de plemente desorientada. Não tinha noção


orientação? nenhuma de onde estava nada ou de que
lado tinha vindo. No entanto, houve al-
Respostas: guns elementos que de facto não ajuda-
ram a seguir o percurso que nos estava
A. Andar à procura das paredes para ter
a ser indicado, como sejam os corrimões
pontos de referência foi particularmente
das escadas, que não acompanhavam
frustrante, porque nunca se sabia quan-
todo o vão de escadas a que correspon-
do chegariam e deste modo era difícil
diam. Também o facto de elas não terem
criar uma ideia de percurso ou um mapa
espelho dificultava a perceção do sitio
mental do espaço.
onde se estava, porque muito facilmente
uma pessoa engata o pé entre os degraus
B. A nível da orientação, penso que não
e parece que existe lá um buraco.
me teria conseguido guiar de forma efi-
ciente sem as orientações de quem nos
E. Localizar-me em espaços amplos e
acompanhava. Tirando as partes do per-
corredores.
curso em que caminhávamos acompa-
nhando uma parede guia, por exemplo,
F. Relativamente à orientação o que se
não consegui encontrar nenhuma outra
revelou mais difícil foi a perturbação
forma de me guiar nos espaços. A entra-
sonora. Tanto em demasia como na au-
da da casa de banho é um exemplo de
sência ou escassez de som. Se o primeiro
algo que, sem a orientação de alguém, eu
torna tudo muito confuso e assoberban-
não encontraria. Se existisse alguma guia
te, a segundo situação não dava qualquer
ou piso tátil no chão acho que seria mais
referência espacial. Quanto à diferença
fácil de encontrar o que pretendemos.
de pisos não senti qualquer relevância
no meu percurso. Apenas notei que ele
C. As dificuldades na orientação foram
mudou de um espaço para o outro, mas
substancialmente maiores que as de mo-
essa mudança também era perceptível
bilidade. Não haveria qualquer possibili-
pelo som. Se eventualmente eu me per-
dade de me orientar sem a ajuda de outra
desse, não acredito que conseguisse ter
pessoa. Os pavimentos não tinham qual-
consciência do sítio onde me encontra-
quer indicação tátil, nem se quer junto às
va. Não existiam sinalizações nem comu-
escadas; a numeração das bancadas não
nicação por braille (eu também não sa-
tinha qualquer relevo nem Braille asso-
beria ler).
ciado que, apesar de não o saber ler, tor-
navam-nas apenas num disco metálico;
as casas de banho também não tinham
indicações claras, por exemplo.
226
Questão 4. Farias alterações no edifício? tipo de relevo ou alto contraste de forma

Anexos | Inquérito Percurso às Escuras


a facilitar a sua compreensão.
Respostas:
C. Acho que seria importante uma corre-
A. Sim.
ção do desenho da guarda, a instalação
de sinalização mais clara e com Braille,
B. Sim.
e possivelmente de marcações em rele-
vo no chão. Isto não será suficiente para
C. Sim.
uma independência completa, provavel-
mente, mas poderia ajudar muito.
D. Sim.

D. Se, hipoteticamente, se pudessem fa-


E. Sim.
zer alterações dessa dimensão no edifí-
cio, penso que as escadas seriam algo a
F. Sim.
repensar. A questão dos corrimões é bas-
tante complicada para um cego que utili-
ze o espaço, porque sendo já uma escada
um elemento, só por si, mais perigoso, o
Questão 5. Se sim, quais?
facto de os corrimões serem de alguma
forma enganadores potenciam ainda mais
Respostas:
este perigo. Também uma escada com
A. Reduzir os materiais salientes ao ní- espelho seria mais conveniente.
vel do tronco e colocar espelhos nos de- Para além disto, tentar embutir de alguma
graus. forma nas paredes elementos que este-
jam soltos ou salientes, poderia também
B. Penso que os principais aspetos a ser ser positivo.
melhorados seriam as escadas, elevador
Finalmente, e a uma escala um pouco di-
- que não contem nenhum tipo de si-
ferente, os números que identificam os
nalização tátil ou sonora auxiliar - e as
lugares das bancadas deveriam ter rele-
bancadas. As escadas, como ja mencionei
vo, para que, pelo tato, fossem identifi-
anteriormente, são acompanhadas de
cáveis.
um corrimão que tem diversas proble-
máticas e os degraus não tem espelhos.
Nas bancadas, achei pouco seguro os de-
E. Escala mais humana, mais auxílios
graus não terem qualquer tipo de guarda
(corrimãos, escadas com parede).
ou corrimão e a sinalização no número
dos lugares era impossível de compreen-
der para alguém com deficiência visual. F. Essencialmente mais sinalização no
O número dos lugares deveria ter algum piso que desse uma leitura para quem
227
circula com a bengala. Assim como ten- SECÇÃO III | SENSIBILIZAÇÃO
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

taria tornar o espaço mais tátil no geral.


Por exemplo, foi muito difícil para mim Como sabes, esta atividade de sensibi-
encontrar as maçanetas das portas, e lização foi pensada para estudantes de
estava com receio do momento em que arquitetura, e nós tínhamos (a ACAPO
eu ia acertar em cheio numa delas com o e eu) como objetivo consciencializar-te
braço e magoar-me. Talvez eu colocasse para as dificuldades das pessoas com
uma linha horizontal ao longo da porta deficiência visual na utilização da arqui-
que encaminhasse o movimento para a tetura. Para tal, decidimos expor-te a al-
maçaneta da porta. guns obstáculos e dificuldades comuns
na mobilidade e orientação das pessoas
cegas.
A tua opinião é, assim, importante para
eu saber a pertinência desta atividade.

Questão 1. Sentes que esta experiência


acrescentou algo ao teu modo de pensar
arquitetura?

Respostas:
A. Sim.

B. Sim.

C. Sim.

D. Sim.

E. Sim.

F. Sim.
228
Questão 2 . Se sim, o quê? com uma série de legislações que temos

Anexos | Inquérito Percurso às Escuras


(e teremos) que seguir. Sabemos o não
Respostas: podemos fazer mas nem sabemos, mui-
tas vezes, ao certo porquê ou ao que se
A. Motivou a pensar o espaço do lado de
devem na verdade essas restrições. E
quem o sente, mais do que de quem o vê.
é-nos muito fácil pensar em ignorar es-
sas regras, porque é algo que não com-
B. A partir de agora acho que não vou
preendemos e que vemos como algo que
pensar num espaço da mesma forma.
está contra nós, contra o nosso desenho
Através desta experiência percebi que
e as vontades de temos para o espaço
existem certos aspetos estéticos que,
que estamos a projetar. Mas a verdade é
apesar de estarem cada vez mais a ser
que menos do que ser acessível a todos,
incutidos, nem sempre são a melhor es-
é inaceitável.
colha, podendo dificultar bastante a ex-
Agora, hoje, sentimos na “pele” as conse-
periência de alguém com deficiência vi-
quências do não cumprimentos da legis-
sual.
lação ou da sua falta. Ou no mínimo, da
Um assunto muito falado durante a ex-
falta de uma sensibilidade do arquiteto
periência foi a importância de elementos
em relação à utilização do espaço por
como portas ou sinais terem um alto con-
pessoas cegas.
traste, de forma a serem mais facilmen-
te compreendidos. A existência de braille
E. Sinto que me ajudou a perceber a im-
nas sinalizações de locais de caracter pú-
portância do pensamento inclusivo no
blico também me parece essencial, espe-
desenho de espaços públicos e das cida-
cialmente se for em conjugação com alto
des.
contraste dos materiais ou cores desses
mesmo sinais.
F. Não sei especificar qual será o impac-
to, mas estou mais sensibilizada para as
C. Esta experiência abriu-me para um
dificuldades que um espaço pode consti-
problema que, muito provavelmente,
tuir para alguém que não se guia pela vi-
nunca teria sido colocado na minha for-
são. Todos sabemos que cada vez mais o
mação. Acho que terei mais atenção nos
mundo vive de experiências visuais e os
desenhos dos vários elementos arqui-
detalhes vão sendo pensados com essa
tetónicos (guardas, paredes, mobiliário,
premissa. No entanto, os espaços são
entre outros) para ficarem devidamente
mais do que isso e provocam mais sen-
sinalizados; e também no conforto acús-
tidos do que a visão. O que não é assim
tico, que se torna um sentido muito mais
tão imediato de compreender para quem
importante para quem tem deficiência
sempre viu. Portanto, creio que tentarei
visual.
guiar o meu trabalho em direção a ques-
tões como esta, como a adaptação a pes-
D. Ao longo do percurso no curso de ar-
soas com deficiência visual.
quitetura, vamos sendo confrontados
229
Questão 3. Que falhas tens a apontar a Questão 4. Sugestões:
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva

esta experiência?
Respostas:
Respostas:
A. —
A. Falta de capacetes e caneleiras, por-
que apesar dos guias serem fantásticos, B. —
os espaços não estão feitos para prote-
ger pessoas com deficiência visual. C. —

B. Considero que não existiram falhas na D. Obrigada por nos proporcionares esta
experiência. Foi muito bem organizada e atividade. Espero que no futuro, outros
extremamente interessante e esclarece- (futuros) arquitetos possam ter a mesma
dora. experiência que nós! Foi muitíssimo re-
levante.
C. Penso que se a experiência fosse feita
individualmente, ou mesmo sem acom- E. Considero que seria importante ouvir
panhamento poderia ter sido mais imer- a experiência de alguém com deficiência
siva, porém isto traria algumas dificulda- visual.
des que poderiam tornar-se impeditivas.
Por outro lado, por ter sido executada F. Teria sido interessante também explo-
numa obra de Souto de Moura, foi-me rar o espaço sozinha, mas reconheço que
facilmente reconhecível o edifício, e não seria fácil, uma vez que não se con-
provavelmente ajudou-me a identificar seguiria assegurar a minha segurança.
os tipos de espaço que nele se encontra-
vam.

D. Nenhuma.

E. Nenhuma.

F. Creio que este questionário deveria


ter sido preenchido no local, antes de
termos visto o espaço e antes de termos
sido sensibilizados com o power point da
ACAPO.
230
7 | REGISTO FOTOGRÁFICO PERCURSO ÀS ESCURAS

Apresentam-se, de seguida, algumas fo-


tografias da atividade Percurso às Escu-
ras. O registo fotográfico foi realizado
pela Prof. Dr. Ana Catarina Neiva.

231
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva 232
233 Anexos | Registo Fotográfico Percurso às Escuras
Perceção da Arquitetura e Dimensão Sensitiva 234
235 Anexos | Registo Fotográfico Percurso às Escuras
Perceção da Arquitetura e dimensão sensitiva:
construção do espaço mental no campo
não visual
Ana Margarida Regado Calheiros
FACULDADE DE ARQUITETURA

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