Você está na página 1de 9

O SENTIDO DE APRENDER PELOS SENTIDOS

Marly Meira
p.53
Minha experiência de muitos anos com a arte/educação trouxe a convicção
de que possibilitar experiências sensíveis com diferentes realidades é sua maior
riqueza. Tratar o sentido de aprender pelos sentidos depende de afinar o corpo
para vibrar de modo qualitativo em relação aos eventos sociais, mas especialmente
os que caracterizam o fazer artístico. Mudou muito este conceito nas últimas
décadas face ao tipo de experiências que as pessoas hoje estão vivenciando no
seu dia a dia.
Acredito que toda experiência só acontece se houver realmente uma
aprendizagem dos sentidos corpóreos, se toda a existência do experimentador for
colocada em ato, sob forma de performance criativa. O desdobramento de uma
experiência funciona desde um agir em direção a uma atuação que se configura
como performance pessoal.
Em Artes Visuais a experiência do fazer está vinculada intimamente à
estesia e à atmosfera de interação que tanto professores como alunos estejam
vivenciando no agora. Esse agora é o do instante presente, momento mágico e
indefinível em que tudo está ocorrendo porque se está ali, inteiro, a testar
capacidades de enfrentamento, nem sempre agradáveis.
Anos atrás eu dizia a meus alunos que todo ato criador passa pelo crivo
sensível da sensorialidade corpórea que pulsa por exercitar seus poderes, suas
potências de vida. O exercício é o mesmo da brincadeira, da vivência lúdica da
infância. Primeiro momento, ato inaugural que nunca se repete igual. Há sempre o
novo a desafiar impulsos, pontos de
p.54
vista, padrões de atenção, percepção e entendimento que dão partida e
chegada ao que já foi aprendido e incorporado.
Hoje estamos expostos a pressões incontroláveis sobre nossa
sensibilidade. Cabe ao professor de arte, muitas vezes, desacelerar processos de
ação cujos ritmos são próprios à máquina, mas não a gente. Ouvir o silêncio, por
exemplo. Prestar atenção a pequenos detalhes fortuitos, como fazia Da Vinci
olhando as manchas de umidade nos muros. Flagrar um raio de luz cortando
planos, panos e laços, introduzindo a maravilha dos matizes, luzes e sombras no já
conhecido. Fontes de devaneio que Bachelard apontava como indispensável à
poética do vivido. O imaginário de cada um precisa ser alimentado tanto quanto
esvaziado de excesso de imagens. Palavras, imagens e gestos necessitam
reencontrar-se para diferentes diálogos, não só os que obrigatoriamente a escola e
a sociedade impõem. O refúgio da arte na escola permite esta oferta valiosa.
Importa dosar oportunidades de aliar gesto corpóreo a atitudes de apreensão e
compreensão adquiridas por outros e filtradas pelo professor para que se ajustem à
prática da criação que demanda realizar algo pelos meios tradicionais como
desenhar, pintar, editar imagens, modelar, construir ou montar algo espacial e
temporalmente.
Felizmente algumas autoridades educacionais já perceberam que fazer
arte é alternativa saudável para evitar a droga, a violência gratuita dos embates
mesquinhos da cotidianeidade.
No aprendizado da arte o prazer é imprescindível e se reflete na formação
de atitudes diante da vida cotidiana. Resposta intransferível ao que acontece a
cada um ao criar, ao transformar em obra sonhos, imaginário, razões e desrazões
que fertilizam o pensamento, a sensibilidade e a atuação. Um exercício de ser que
não pode ser desconsiderado por ser constitutivo da ética e da cidadania.
Tenho que retomar proposta de Herbert Read (1986), grande inspirador do
movimento de arte/educação no Brasil e no mundo. Ele fala em educação estética
como ajuste complexo de emoções e sentimentos subjetivos ao mundo objetivo
para desenvolver a qualidade do pensamento e a compreensão que dependa de
um êxito, de um preciso ajustamento aos eventos. Não apenas à educação
artística, visual ou plástica, mas a todos os modos de expressão: literária, poética,
musical, auditiva, de modo a realizar apreensão integral da realidade. É na
educação dos sentidos internos e externos que se baseia a consciência, a
inteligência e o raciocínio indispensáveis a uma vida em comum, desde a mais
comum até a mais sofisticada e complexa. A
55
experiência estética, para Read possibilita preservar a intensidade de todas
as formas de percepção. Seu pioneirismo teve resposta em atuais pesquisas sobre
os novos campos abrangidos pela relação estética, como o da realidade digital,
entre outros.
Jean-Marie Schaeffer (2005) concorda com Read quando fala em
“intensidade de experiência”. Uma intensidade com variações e aliada a diferentes
interações. Esta intensidade pode estar inclusive nas proporções matemáticas,
com capacidade de despertar certas emoções e certas decisões acerca da
validade ou não de uma questão de cálculo e exatidão. Os aspectos objetivos e
subjetivos da forma estão ligados a morfogêneses que a ciência hoje está
investigando, a certos padrões referenciais da vida que complexamente nos
orientam para mutações.
Em arte, aprendizagem estética é fator de discernimento sensível,
processo cognitivo que ocorre junto à percepção, atenção, memória e imaginação
em simultâneo. Portanto em franca dependência das sensações que ocorrem no
corpo dinâmico em relação com o ambiente. Não fica restrita ao piloto-automático
da intuição, é desafiada a continuamente se atualizar no momento presente dos
eventos experimentados.
Se a educação é cultivo de modos de expressão, não só as livres, ela se
compromete com um processo formativo do caráter das pessoas, com sua
habilidade para lidar com seu próprio imaginário em relação ao imaginário coletivo,
a prazeres e dores de sua época.
O prazer tem sido ligado à noção de satisfação/insatisfação com suas
gradações sutis e ambíguas entre estas polarizações, hoje tão fora de moda. O
mundo não é preto e branco, tampouco cinza ou neutro. É cheio de cromatismos e
metamorfoses com os quais Paulo Leminski fez uma brincadeira semântica ao falar
em metaformose, matermorfose. Formosura como campo restrito à estética
também não tem mais indicações frias ou quentes, crus ou cozidas, porque os
temperos da ação são hoje vários e instigantes.
Apesar das aparências e do abuso que os termos beleza, estética e prazer
foram associados, tradicionalmente, o assunto não pode se restringir ao pessoal,
Simplesmente traduz um diagnóstico a respeito da renovação da reflexão estética
que vem ocorrendo e que surpreende um público muito mais vasto que o da
filosofia das artes. Sobretudo porque as questões estéticas têm estado no centro
dos debates e não, como em décadas precedentes, fora do problema interativo e
relacional do mundo das artes com o da cultura e da sociedade como um todo. A
experiência estética pode ser cultivada na escola para
56
desenvolver um comportamento estético como relação com o mundo. Os
efeitos estéticos estão em todo o lugar, resultado, ou resto de atitudes constituídas
na família e no entorno vivencial.
É preciso distinguir expressões que têm dimensões estéticas e artísticas,
embora ambas se remetam historicamente. Importa que se desliguem do
idealismo, mas também do filisteísmo tacanho da banalidade (verdade/ilusão,
espírito/matéria, sujeito/objeto, arte-anti/arte, inteligência/sensibilidade, etc.). Afinal
é com nosso corpo inteiro e seus mistérios e enigmas que experimentamos aquilo
que ensinamos e aprendemos dentro e fora da escola. Importa, também, que se
desvincule estética de moral para aproximá-la de uma ética do cuidado com o
existente aqui e agora. No Brasil, tem se lutado para legitimar a validade cognitiva
da experiência estética, a começar pela estesia corpórea, seus limites e
potencialidades, seus níveis de satisfação e insatisfação com os fatos, imagens e
discursos.
Experiência estética é acima de tudo o mais, evento, algo que acontece
num tempo e lugar para e por alguém. O grau de interesse neste evento é o que
produz a atenção suficiente ao acontecer. A reflexão estética perde muito de sua
energia ao remontar à experiência que se produz num agora, de modo denso,
porque extrai sua pertinência do fato de que os seres humanos têm
comportamentos estéticos e que ela faz parte importante da visão de mundo
contemporâneo, do modo como agimos/reagimos aos eventos que presenciamos
direta ou remotamente. O erro da percepção estética é a indiferença e a
concepção distorcida de que ela é totalmente apreensível e racional. Há uma
epistemologia estética que se constrói culturalmente, mas que é apreensível
sensualmente, não sendo a sensualidade totalmente dependente da sexualidade.
Falar, escrever não é o mesmo que ouvir e ver, tocar e manipular
materialidades e simbolismos. Todo crítico que coloca de lado a própria
sensibilidade está sujeito a ser refutado, mas não acatado em seu cuidado com o
ser humano integral. Os fatos estéticos não podem ser totalmente explicados, pois
sua gestalt se altera ao ser fragmentada em análises e referências alheias a quem
os vivencia. A relação estética não pode ser traduzida. Quem consegue descrever
a força de um abraço, num momento de crise, paixão ou mesmo solidariedade,
compreensão?
As ciências são parceiras desta compreensão para preencher vazios que o
pensamento não consegue elucidar, com respeito à sensibilidade. No campo da
estética a importância do pensamento humano para
57
apreender problemas atuais é um tipo de julgamento essencial não só à
detecção de crises como de mutações e possibilidades imaginárias de projeção e
solução de problemas.
Fala-se hoje em subjetividade para não cair na armadilha didática de tratar
problemas ilusórios ou imagináveis como se fossem materializáveis. O termo
virtual aparece como ferramenta útil quando se trata de ter experiências em rede,
lidar com narrativas complexas que não se esgotam nem no verbal, nem no visual.
Observando as notícias sobre o clima, constata-se o quanto a tecnologia digital
veio em socorro dessas narrativas. O hipertexto aproxima-se do modo como
funciona nossa mente, ou seja, pescando daqui e dali coisas experimentadas,
integrando-as ao que está sendo feito e abrindo janelas a por fazeres que surgem
dessa mistura.
O que é um fato estético? O que têm em comum, por exemplo, um garoto
apaixonado por um desenho animado e um insone que encontra descanso
escutando o canto matutino dos passarinhos? Um amante de arte entusiasmado ou
decepcionado com uma exposição e um leitor imerso num romance, um espectador
de um filme, um ouvinte musical?
É possível que a experiência estética desperte em cada um de nós
protótipos mentais concretos e que variam em termos de ordem e desordem, que
se liguem a nossa história pessoal, nosso nível de escolarização, a cultura que
tivemos em casa, na rua, no trabalho. Ela permanece constante no que se liga ao
corpo com suas necessidades e desejos, ao campo de estesias que o lugar em que
vivemos oferece. Refiro-me à capacidade de fruir prazer e dar prazer a alguém.
Este pode ser uma experiência epifânica ou simplesmente trivial, mas sempre um
fato que carece discernimento quanto ao caráter relacional do evento. A
experiência cognitiva está carregada de afetividade e esta provoca satisfação ou in-
satisfação que vai influir na postura estética de cada um, sua abertura ou
resistência ao que lhe acontece, a atitude positiva ou negativa frente aos estímulos
do meio.
O prazer tem intrínseca relação com o imaginário de cada um. O que é um
imaginário? Como se constitui e transforma com as aprendizagens em arte? Quais
são as ofertas culturais que enriquecem ou dificultam a configuração de um
imaginário? Estes termos começaram a ter sucesso no final do século XX. Há
obras extraordinárias acerca do assunto mas muitos confundem imaginário com o
conceito de simbolismo.
O imaginário é uma narrativa, uma trama, um ponto de vista, a vista de um
ponto hoje focado na mítica contemporânea, dita sociedade
58
do espetáculo por Guy Debord, época de fenômenos extremos por
Baudrillard, ou era da hipercomplexidade por Lipovetsky, citados por Silva (2006).
Para Michel Maffesoli (1995), o imaginário é uma ferramenta poderosa e excitante
para criar vínculos sociais. Vivemos numa época de grandes prodígios e
transformações, fruto do imaginário científico, artístico, cultural, econômico,
pedagógico, estético, etc.
O imaginário é uma espécie de repositório semântico das idéias que
brotam do social e afetam as pessoas. Muito dessa afecção se dá via prazer. O
prazer penetra nos poros fruto da interação interior/exterior corpóreo, graças a
poderes de configuração mental que o complexo consciente/inconsciente produz.
Uma teia, um enredo, uma narrativa sem começo, meio e fim que invade o espaço
para nele aninhar o tempo e as vivências pessoais. Num sentido trivial, o
imaginário tem sido confundido com criatividade e como subjetividade oposta ao
real. Uma filosofia do imaginário reconhece-o como capacidade humana de
produzir imagens, e elas brotam como chuva de uma fonte misteriosa que a
tradição religiosa atribui a entidades que se comunicam espiritualmente, seja
através de energias do além, seja de modo profano para possibilitar a relação do
concreto viver com abstrações.
Para Maffesoli,(1995) o imaginário é uma absorção do real que outros
autores dizem ser mistura do virtual com o atual do vivido. Implica uma estesia, ou
seja, uma reação/interação do corpo com tudo aquilo que o motiva a pensar, sentir,
atuar. O imaginário é responsável, pois, por ações que dependem de uma
performance, de colocar em forma sensível aquilo que inventa, descobre, explora
nem sempre de modo consciente. O imaginário é um modo de resolver a questão
da temporalidade, isto é, movida por uma energia vital. No imaginário não há
percurso único, mas vários e enredados. Há cruzamentos de tempos da memória,
da atenção e da expectativa. Para Santo Agostinho isso é revelação de que temos
uma alma, de que somos agraciados por uma energia divina que nos anima e faz
buscar o conhecimento, a tolerância com o outro, a natureza, tudo o que existe.
Embora seja uma capacidade de produzir imagens, o imaginário não é
álbum de figurinhas, nem memorial, como também não condensa uma arte ou agir
sobre o mundo. É sim uma espécie de rede virtual mutante de sentidos, valores,
sensações e figuras que vão se adensando no percurso da interação com um fazer
atual, seja ele manifesto ou implícito.
Para Bachelard (1993), o devaneio permite sentir como funciona o
imaginário, não sendo ele só contemplação de algo feito ou experienciado no
momento. Ele se forma a partir de um estilo de

59
ser, como espaço imaterial ou universo de significados contaminados pelas
vivências pessoais e sociais. O sentido dado por Maffesoli a este termo é o de uma
força que integra um patrimônio de grupos sociais, fonte de lembranças, afetos,
modos de vida, hábitos, costumes, padrões de conduta, enfim, tudo o que contribui
para cimentar as relações dos indivíduos entre si, com seu ambiente físico e
cultural.
Na concepção de Silva (2006, p.11), o imaginário é um reservatório que
“agrega imagens, sentimentos, lembranças, experiências, visões do real que
realizam o imaginado, leituras de vida” que sedimentam um modo de ver, sentir,
agir, desejar, de modo a facilitar as relações individuais e grupais. Refere o sentido
de “aura” com que Walter Benjamin caracterizou aquele olhar mais denso que
apomos ao que vemos, e que faz sentir que também estamos sendo vistos por um
outro, criando uma atmosfera de cumplicidade. Eis o sentido de perceber algo feito,
se fazendo ou por fazer como mais que um trabalho físico, material. Como algo em
que se coloca a alma, a paixão, a substância virtual mesma da qual somos feitos
para aperfeiçoar, usar da melhor forma possível, a fim de tornar a vida mais
prazerosa e valiosa.
Felizmente a idéia de prazer ainda não foi totalmente desvirtuada pelo
sexismo que é apresentado de modo banalizado nos meios de comunicação. O
prazer que a escola deve preservar ou transformar, se constatadas as maneiras
com que é tratado na família e na sociedade atual, é algo extremamente importante
no ato de aprendizagem formal da escola. Ela é responsável pela construção do
imaginário de professores e alunos, e, por extensão de tudo o que dela sai para ser
partilhado socialmente.
As dificuldades que a escola encontra para operar do melhor modo no
desenvolvimento do imaginário dos alunos e professores vêm do exíguo tempo
dedicado à criação. A carga de informações e deveres ditos de sistematizar e
racionalizar o conhecimeneto são tão grandes, que ela não dá conta de selecionar
aquilo que individual e localmente importa para formar uma rede afetiva capaz de
instaurar valores de consenso grupal. O efeito disso é a procura dos jovens por
redes de relacionamento na Internet.
Apesar de incompleta e efêmera, a rede social está cumprindo seu papel
de preencher afetivamente o que falta à família e à escola. Ela oferece
oportunidade de ter prazer na conversa, no encontro, na visualização de imagens,
na troca de sonhos, desejos, manifestações muitas vezes reprimidas do imaginário
de cada um. Digo incompleta porque falta a estas redes o contato presencial, algo
que reconheço fundamental
60
na escola e que faz parte da interação corpo a corpo professor/aluno,
formação de tribos eleitas para interesses comuns. Falta-lhe também o manuseio
direto com matérias palpáveis e visíveis que vão nascendo do trabalho corpóreo
dentro de um ambiente físico, trabalho esse necessário para o conceito de lugar
dentro de um espaço maior.
Por isso as crianças gostam tanto de pintar, desenhar, modelar, construir
algo do seu jeito próprio. Elas fazem ensaios de arte brincando, tecendo seu
imaginário sem o constrangimento do utilitário ou do construir conhecimento lógico.
A ilógica ou paralógica imaginária funciona em ambientes libertários no entender
dos teóricos em arte-educação.
Sem vontade política dos arte/educadores, como reformular o imaginário
escolar, as fontes de obter e dar prazer a processos de invenção, descoberta,
exploração de novas maneiras de ser, pensar, agir e sentir?
A luta começa por reconhecer que a escola se encontra espremida entre
uma tradição ascética e um abuso desordenado da sensibilidade dos indivíduos,
em sua vida cotidiana. Há que rever conceitos como o de hedonismo que se
alicerça apenas em gozo material, sem que se pense em razões e práticas
consensuais que não se cristalizem na satisfação efêmera da sensorialidade
corpórea.
Uma boa imagem é inesquecível, e dispensa explicações. Uma palavra
oportuna carrega consigo um desejo de cercá-la de cuidadosas imagens, para que
seja retomada. Ferramentas existem para ajudar o corpo a se ver melhor com suas
práticas. Na escola esquece-se ser o corpo a mais extraordinária ferramenta para a
ação. Afinar o corpo como um instrumento é deliciar o ouvido para sutilezas
inesperadas, agradar o olhar para passear por lugares não tocáveis ou não
tocados. Não exploramos o suficiente as ferramentas corpóreas de modo lúdico,
prazeroso, embora a sociedade já tenha se antenado para esses prazeres, sempre
pensados como negócio rentável.
Um alerta sobre o hedonismo se faz necessário. Há tendência ao sucesso
fácil, à obtenção do prazer sem esforço e sofrimento, segundo a noção estética que
beleza é dom e inspiração é o que faz o poeta criar suas obras. Nada disso. Regina
Silveira (em Morais, 1995) disse há algum tempo que o primeiro passo para o
professor de arte é fazer arte. É vivenciar as dificuldades e o esforço despendido
para obter a garantia de um trabalho bem feito, esteticamente bem sucedido e
inteligente, e que é preciso dialogar, sobretudo com o ambiente, com as
circunstâncias não só do que permite ou impede a criação, como a maneira como o
trabalho irá ser exposto, se expor ao intercâmbio com esse meio. Angélica Morais
(1995) que entrevistou Regina, diz que a formação de novos

61
artistas só vai melhorar se o professor se aprimorar, sendo ele o centro do
processo. Não acredita naquele que fala muito e produz pouco. Os melhores
professores são os melhores artistas.
O sistema de ensino parece ter esquecido que pensar também é uma arte
e que o imaginário e o prazer são ingredientes dos melhores temperos, receitas e
modos de processar aprendizagens que façam sentido, tenham valor e se dirijam
diretamente ao foco dos dilemas e enigmas contemporâneos.
Que prazer é esse oferecido por um fazer, como o da arte que muitas
vezes implica em sofrimento, dúvida, paradoxo quando depende de passar ao ato,
sentimentos, desejos, idéias prazerosas inconsistentes?
Reconheço que é um rito de passagem que terá que servir como portal
para decisões e ações que requerem controle sobre o fato de ter ou não satisfação
com aquilo que se é, faz, sabe ou quer. Sabemos o quanto bailarinos, músicos,
artistas plásticos, cineastas sacrificam momentos de lazer e jogo descomprometido
com poéticas que articulam, para dedicar-se com afinco a práticas e exercícios que
muitas vezes resultam em fracasso. Isso numa época em que facilidades mil são
oferecidas pela cultura.
Na escola não se discute a questão do trabalho com prazer, os benefícios
que um projeto de descobertas e conquistas pode trazer para a formação ética dos
alunos. Poucos são os professores carismáticos que conseguem imantar suas
aulas com paixão, por vê-las como culminância de um árduo processo de
preparação. Processo que se esgota, talvez em instantes de profunda e reverencial
cumplicidade afetiva?
Octávio Paz afirma que se sexo é fogo, amor e prazer são a chama que
precisa ser mantida para tornar a vida apetecível, digna e sábia em todas as
interações, não só naquelas que mantém a sobrevivência física. Falo de um
suporte espiritual sem o qual o professor não ensina, nem cuida de seus alunos
para que desenvolvam atitudes de amor, tolerância, envolvimento afetivo com
aquilo que fazem. Aprendendo a lidar com os sentimentos próprios e alheios,
enfim, desenvolvendo um caráter, uma qualidade de vida capaz de superar
conflitos e dificuldades do dia a dia.
Não sou psicóloga, falo como esteta que sempre lutou por um estilo de
agir, algo que os jovens lutam por afirmar e contrapor a atitudes frias e muitas
vezes raivosas em adultos nas quais evitam se espelhar. Esquecemos a lição
básica de nossos ancestrais: hospitalidade. O acolhimento ao outro em sua
diferença. Ser hóspede da escola é se dar bem com seus anfitriões, zelar pelo
conforto e prazer da tribo, aprender
62
a lidar com pequenas causas de atrito afim de desenvolver espírito de
grupo, interação e generosidade para tolerar diferenças. Algo que os jovens estão
buscando nas redes sociais, embora tenham perto de si imensas possibilidades de
formar tais redes concretamente e não só em caráter virtual. Na família, na escola,
na turma eleita por afinidades.
Todos somos educadores, em todas as circunstâncias, inegavelmente, na
medida em que nos afetamos uns aos outros ao conviver. Isso é canteiro de obras
que se cultiva só com prazer e muito esforço e consideração. Tenho testemunhado
em lugares os mais surpreendentes isso acontecer. Isso é cultura, gente! Agrária
responsabilidade de manter nosso lugar na terra aprazível, fértil não só de idéias,
mas ideais e afagos benfazejos. Não jogar lixo no chão, manter higiene física,
mental e social, abrir espaço para belezas que nascem frágeis e até inocentes em
pequenos projetos factíveis sonhados junto. Pratiquemos mais nossa
potencialidade de ter prazer dando prazer, prazeres múltiplos, sensuais e sensíveis
a vários níveis de competência humana.

Referências
BACHELARD, Gaston. El aire y los sueños. México: Fondo de Cultura Econômica, 1993.
MAFFESOLI, Michel. A contemplação do Mundo. Porto Alegre: Artes e Ofícios,
1995.
MEIRA, Marly Ribeiro e Silvia Sell Duarte Pillotto. Arte, afeto e educação: a sensibilidade na ação
pedagógica. Porto Alegre, Mediação: 2010.
MEIRA, Marly Ribeiro. Filosofia da criação. Porto Alegre: Mediação, 2003.
MORAIS, Angélica. Regina Silveira: cartografias da sombra. São Paulo, EDUSP, 1995.
READ, Herbert. A redenção do robô. (Trad. Fernando Nuno). São Paulo: Summus,
1986.
SCHAEFFER, Jean-Marie. Adiós a la estética. Madrid: Móstoles, 2005.
SILVA. Juremir Machado. As tecnologias do imaginário. Porto Alegre, Sulina, 2006.

Você também pode gostar