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‭ ‬ ‭material‬ ‭a‬ ‭seguir‬ ‭foi‬ ‭adaptado‬ ‭do‬‭curso‬‭“Teatro‬‭para‬‭as‬‭Infâncias”,‬‭ofertado‬‭pela‬‭Escola‬

O
‭Itaú Cultural.‬
‭Você pode encontrar mais informações pelo site:‬‭https://escola.itaucultural.org.br/‬
‭INFÂNCIAS E TEATRALIDADES‬
‭ dotar‬ ‭a‬ ‭expressão‬ ‭“teatros‬ ‭para‬ ‭as‬ ‭infâncias”‬ ‭é‬ ‭reconhecer‬ ‭que‬ ‭existem‬
A
‭particularidades‬ ‭nas‬ ‭criações‬ ‭teatrais‬ ‭feitas‬ ‭para‬ ‭e‬ ‭com‬ ‭as‬ ‭crianças.‬ ‭Parte-se‬ ‭de‬ ‭um‬
‭entendimento‬‭que‬‭une‬‭os‬‭conceitos‬‭de‬‭teatro‬‭e‬‭de‬‭infância‬‭às‬‭suas‬‭distintas‬‭manifestações‬
‭em diferentes contextos. Por isso, também, o uso dos termos no plural.‬
‭A‬ ‭teatralidade‬ ‭desempenha‬ ‭um‬ ‭papel‬ ‭essencial‬ ‭no‬ ‭desenvolvimento‬ ‭individual,‬
‭cultural‬ ‭e‬ ‭social,‬ ‭sendo‬ ‭um‬‭elemento‬‭fundante‬‭na‬‭elaboração‬‭de‬‭laços‬‭de‬‭pertencimento‬‭e‬
‭de‬ ‭distintas‬ ‭percepções‬ ‭do‬ ‭mundo,‬ ‭dos‬ ‭valores,‬ ‭dos‬ ‭hábitos‬ ‭e‬ ‭das‬ ‭relações‬ ‭de‬ ‭poder.‬
‭Reconhecer‬‭essa‬‭potencialidade‬‭oportuniza‬‭um‬‭universo‬‭de‬‭possibilidades‬‭no‬‭que‬‭concerne‬
‭ao‬‭bem-estar‬‭da‬‭criança‬‭no‬‭momento‬‭presente,‬‭à‬‭sua‬‭formação‬‭humana‬‭e‬‭à‬‭transformação‬
‭social, ao mesmo tempo que demanda muita responsabilidade.‬
‭Ainda‬ ‭nos‬ ‭primeiros‬ ‭anos‬‭de‬‭vida,‬‭a‬‭criança‬‭começa‬‭a‬‭relacionar‬‭sua‬‭subjetividade‬
‭com‬ ‭a‬ ‭objetividade‬ ‭do‬ ‭que‬ ‭acontece‬ ‭no‬ ‭mundo‬ ‭para,‬ ‭por‬ ‭meio‬ ‭da‬ ‭criatividade,‬ ‭elaborar‬
‭compreensões‬‭sobre‬‭a‬‭vida.‬‭Para‬‭tanto,‬‭ela‬‭desenvolve‬‭a‬‭propriedade‬‭da‬‭teatralidade,‬‭que‬
‭é embasada em uma consciente dupla percepção da realidade.‬
‭Por‬ ‭exemplo:‬ ‭a‬ ‭criança‬ ‭brinca‬ ‭que‬ ‭o‬ ‭travesseiro‬ ‭é‬ ‭um‬ ‭bebê,‬ ‭reconhecendo,‬ ‭ao‬
‭mesmo‬‭tempo,‬‭o‬‭objeto‬‭travesseiro‬‭e‬‭o‬‭bebê‬‭simbólico.‬‭Não‬‭existe‬‭a‬‭ilusão‬‭de‬‭que‬‭se‬‭trata‬
‭de‬‭uma‬‭criança‬‭humana,‬‭não‬‭há‬‭um‬‭bebê‬‭“de‬‭mentirinha”,‬‭porque‬‭a‬‭mentira‬‭está‬‭associada‬
‭à‬ ‭ausência‬ ‭de‬ ‭consciência,‬ ‭mas‬ ‭sim‬ ‭um‬ ‭bebê‬ ‭de‬‭faz‬‭de‬‭conta.‬‭Há,‬‭ao‬‭mesmo‬‭tempo,‬‭um‬
‭travesseiro‬ ‭real‬ ‭e‬ ‭um‬ ‭bebê‬ ‭simbólico‬ ‭real.‬ ‭Portanto,‬ ‭a‬ ‭teatralidade‬ ‭não‬ ‭está‬ ‭vinculada‬ ‭à‬
‭“mentirinha”, mas à consciente percepção de uma construção simbólica.‬
‭Por‬ ‭meio‬ ‭da‬ ‭teatralidade‬ ‭das‬ ‭brincadeiras‬ ‭de‬ ‭faz‬ ‭de‬ ‭conta,‬ ‭a‬ ‭criança‬ ‭cria‬‭quadros‬
‭simbólicos‬‭discursivamente‬‭sintéticos‬‭que‬‭a‬‭auxiliam‬‭a‬‭compreender‬‭a‬‭vida‬‭e‬‭a‬‭se‬‭relacionar‬
‭com‬ ‭ela,‬ ‭assimilando‬ ‭comportamentos,‬ ‭valores‬ ‭e‬ ‭modos‬ ‭emocionais‬ ‭de‬ ‭acordo‬ ‭com‬ ‭os‬
‭referenciais‬ ‭que‬ ‭ela‬ ‭recebe‬ ‭do‬ ‭ambiente‬ ‭social‬ ‭cotidiano‬ ‭e‬ ‭de‬ ‭criações‬ ‭artísticas.‬ ‭Nesse‬
‭caso,‬ ‭predomina‬ ‭o‬ ‭movimento‬ ‭de‬ ‭dentro‬ ‭para‬ ‭fora.‬ ‭Ou‬ ‭seja,‬ ‭a‬ ‭criança‬ ‭elabora‬ ‭uma‬
‭materialidade discursiva para sua subjetividade.‬
‭Por‬ ‭outro‬ ‭lado,‬ ‭no‬ ‭teatro‬ ‭predomina‬ ‭o‬ ‭movimento‬ ‭inverso:‬ ‭a‬ ‭criança‬ ‭internaliza‬
‭modelos‬ ‭e‬ ‭valores‬ ‭com‬ ‭base‬ ‭em‬ ‭engajamentos‬ ‭emocionais‬ ‭com‬ ‭a‬ ‭cena,‬ ‭associados‬ ‭aos‬
‭seus‬ ‭próprios‬ ‭referenciais.‬ ‭A‬ ‭arte‬ ‭teatral,‬ ‭pelo‬ ‭seu‬ ‭caráter‬ ‭de‬ ‭convivência‬ ‭e‬ ‭pela‬ ‭não‬
‭reprodutibilidade‬ ‭da‬ ‭experiência,‬ ‭tem‬‭um‬‭impacto‬‭significativo‬‭no‬‭desenvolvimento‬‭estético‬
‭da‬ ‭criança,‬ ‭no‬ ‭que‬ ‭concerne‬ ‭à‬ ‭sua‬ ‭capacidade‬ ‭de‬ ‭interpretar‬ ‭e‬ ‭comunicar‬ ‭por‬ ‭meio‬ ‭de‬
‭distintos‬‭signos.‬‭Desse‬‭modo,‬‭a‬‭criação‬‭de‬‭teatros‬‭para‬‭as‬‭infâncias‬‭exige‬‭responsabilidade‬
‭e‬ ‭conhecimento,associados‬ ‭à‬ ‭permanente‬ ‭aprendizagem‬ ‭sobre‬ ‭e‬ ‭com‬ ‭as‬ ‭crianças,‬ ‭tendo‬
‭como premissas o respeito e a curiosidade por essa fase da vida.‬
‭Isso‬‭não‬‭significa‬‭delimitar‬‭quais‬‭temas‬‭são‬‭adequados‬‭às‬‭infâncias,‬‭mas‬‭sim‬‭como‬
‭essa‬‭comunicação‬‭vai‬‭acontecer,‬‭a‬‭fim‬‭de‬‭que‬‭resulte‬‭em‬‭espetáculos‬‭que‬‭apoiem‬‭a‬‭criança‬
‭no‬ ‭seu‬ ‭empoderamento‬ ‭e‬ ‭no‬ ‭desenvolvimento‬ ‭de‬ ‭sua‬ ‭autonomia‬ ‭por‬ ‭meio‬ ‭da‬ ‭fruição‬
‭artística, contribuindo para a sua formação emocional, ética e estética.‬
‭Vale‬ ‭destacar‬ ‭que‬ ‭os‬ ‭vínculos‬ ‭emocionais‬ ‭das‬ ‭crianças‬ ‭com‬ ‭as‬ ‭pessoas‬
‭responsáveis‬ ‭por‬ ‭elas‬ ‭são‬ ‭essenciais‬ ‭no‬ ‭desenvolvimento‬ ‭de‬ ‭suas‬ ‭elaborações‬ ‭sobre‬ ‭o‬
‭mundo.‬ ‭Por‬ ‭essa‬ ‭razão,‬ ‭ao‬ ‭colocar‬ ‭luz‬ ‭sobre‬ ‭a‬ ‭arte‬ ‭teatral‬ ‭para‬ ‭as‬ ‭infâncias,‬ ‭é‬
‭imprescindível‬ ‭abordar‬ ‭o‬ ‭papel‬ ‭das‬ ‭pessoas‬ ‭adultas‬ ‭mediadoras‬ ‭e‬ ‭seus‬ ‭ecos‬ ‭tanto‬ ‭na‬
‭criação‬ ‭artística‬ ‭quanto‬ ‭na‬ ‭sua‬ ‭apreciação.‬ ‭Nesse‬ ‭sentido,‬ ‭é‬ ‭essencial‬ ‭a‬ ‭formação‬
‭artístico-pedagógica‬‭específica‬‭não‬‭somente‬‭de‬‭quem‬‭cria‬‭obras‬‭teatrais‬‭para‬‭crianças,‬‭mas‬
‭também‬ ‭de‬ ‭quem‬ ‭integra‬ ‭distintas‬ ‭comissões‬ ‭de‬ ‭seleção‬ ‭de‬ ‭projetos‬ ‭e‬ ‭de‬ ‭elaboração‬ ‭de‬
‭ olíticas‬ ‭públicas‬ ‭voltadas‬ ‭para‬ ‭as‬ ‭culturas‬ ‭das‬ ‭infâncias.‬ ‭Para‬ ‭um‬ ‭aprofundamento‬ ‭na‬
p
‭questão da mediação, indicamos a leitura de JUGUERO; GIL, 2016.‬
‭Cabe‬ ‭salientar‬ ‭que‬ ‭essa‬ ‭formação‬‭engloba‬‭a‬‭práxis,‬‭ou‬‭seja,‬‭uma‬‭prática‬‭dialógica‬
‭atenta‬ ‭e‬ ‭curiosa‬ ‭com‬ ‭as‬ ‭crianças‬ ‭associada‬ ‭a‬ ‭conhecimentos‬ ‭sobre‬ ‭o‬ ‭desenvolvimento‬
‭infantil.‬ ‭Os‬ ‭estudos‬ ‭acadêmicos‬ ‭são‬ ‭um‬ ‭caminho,‬ ‭mas,‬ ‭certamente,‬ ‭não‬ ‭são‬ ‭a‬ ‭única‬
‭possibilidade.‬ ‭O‬ ‭fundamental‬‭é‬‭desenvolver‬‭a‬‭escuta,‬‭o‬‭afeto,‬‭o‬‭senso‬‭investigativo‬‭e‬‭uma‬
‭permanente‬‭vontade‬‭de‬‭aprender‬‭a‬‭partir‬‭da‬‭integração‬‭entre‬‭conhecimentos‬‭embasados‬‭e‬
‭experiências concretas, sempre focadas na construção do diálogo com a criança.‬
‭Nesse‬ ‭sentido,‬ ‭algumas‬ ‭dicas‬ ‭práticas‬ ‭podem‬ ‭auxiliar‬ ‭no‬ ‭desenvolvimento‬ ‭dessa‬
‭habilidade‬ ‭de‬ ‭escuta.‬ ‭É‬ ‭interessante‬ ‭encontrar‬ ‭momentos‬‭para‬‭brincar‬‭com‬‭as‬‭crianças‬‭e,‬
‭nessas‬ ‭ocasiões,‬ ‭tentar‬ ‭não‬ ‭conduzir‬ ‭a‬ ‭brincadeira,‬ ‭mas‬ ‭sim‬ ‭acompanhar‬ ‭o‬
‭desenvolvimento‬‭proposto‬‭pelas‬‭crianças,compreendendo‬‭o‬‭seu‬‭modo‬‭de‬‭se‬‭comunicar‬‭em‬
‭cada‬ ‭ocasião.‬ ‭Vale‬ ‭lembrar,‬ ‭no‬ ‭entanto,‬ ‭que‬ ‭as‬ ‭brincadeiras‬ ‭não‬ ‭são‬ ‭neutras‬ ‭em‬ ‭seus‬
‭significados‬‭e‬‭podem‬‭ser‬‭boas‬‭oportunidades‬‭para‬‭desconstruir‬‭estereótipos‬‭e‬‭propor‬‭novos‬
‭pontos de vista por meio da ludicidade.‬
‭Além‬‭disso,‬‭é‬‭recomendado‬‭assistir‬‭a‬‭muitos‬‭espetáculos‬‭para‬‭crianças,‬‭tendo‬‭como‬
‭foco‬‭a‬‭reação‬‭da‬‭plateia.‬‭As‬‭crianças‬‭são‬‭muito‬‭espontâneas,‬‭e‬‭é‬‭possível‬‭perceber‬‭quando‬
‭um‬ ‭trabalho‬‭as‬‭envolve‬‭emocionalmente‬‭e‬‭instiga‬‭suas‬‭percepções.‬‭Certamente,‬‭é‬‭preciso‬
‭atentar‬‭ao‬‭contexto‬‭como‬‭um‬‭todo,‬‭pois‬‭fatores‬‭como‬‭ruídos‬‭externos,‬‭falta‬‭de‬‭estrutura‬‭ou‬
‭mesmo‬ ‭despreparo‬ ‭dos‬ ‭acompanhantes‬ ‭podem‬ ‭influenciar‬ ‭na‬ ‭fruição‬ ‭artística‬ ‭infantil.‬
‭Nesse‬ ‭sentido,‬ ‭tanto‬ ‭a‬ ‭repressão‬ ‭imposta‬ ‭por‬ ‭responsáveis‬ ‭no‬ ‭início‬ ‭da‬ ‭peça‬ ‭quanto‬ ‭o‬
‭excesso‬ ‭de‬ ‭excitação‬ ‭podem‬ ‭interferir‬ ‭na‬ ‭qualidade‬‭da‬‭experiência‬‭teatral‬‭vivenciada‬‭pela‬
‭criança.‬‭Afinal,‬‭apreciar‬‭uma‬‭obra‬‭de‬‭arte‬‭é‬‭um‬‭aprendizado‬‭estético‬‭complexo‬‭e‬‭repleto‬‭de‬
‭possibilidades.‬ ‭Uma‬ ‭plateia‬ ‭de‬ ‭crianças‬‭em‬‭silêncio‬‭e‬‭extremamente‬‭concentradas‬‭no‬‭que‬
‭ocorre‬‭na‬‭cena‬‭pode‬‭significar‬‭um‬‭enorme‬‭engajamento‬‭emocional.‬‭E‬‭momentos‬‭de‬‭reação,‬
‭com‬ ‭risos,‬ ‭sugestões‬ ‭e‬ ‭aqueles‬ ‭olhos‬‭brilhantes‬‭grudados‬‭no‬‭palco‬‭também‬‭são‬‭sinais‬‭de‬
‭um diálogo efetivo com a plateia.‬
‭Cabe‬ ‭refletir,‬ ‭no‬ ‭entanto,‬ ‭que‬ ‭não‬ ‭basta‬ ‭falar‬ ‭o‬ ‭mesmo‬ ‭idioma‬ ‭que‬ ‭as‬ ‭crianças;‬ ‭é‬
‭preciso‬ ‭ter‬ ‭responsabilidade‬ ‭nos‬ ‭valores‬ ‭e‬ ‭nos‬ ‭modelos‬ ‭promovidos‬ ‭pela‬ ‭peça,‬ ‭pois‬ ‭o‬
‭engajamento‬ ‭emocional‬ ‭faz‬ ‭com‬ ‭que‬‭elas‬‭assimilem‬‭as‬‭mensagens‬‭subliminares‬‭de‬‭modo‬
‭bastante‬ ‭efetivo.‬ ‭Ter‬ ‭curiosidade‬ ‭para‬ ‭constantemente‬ ‭aprender‬ ‭sobre‬ ‭o‬ ‭universo‬ ‭infantil,‬
‭por‬‭meio‬‭de‬‭estudos‬‭e‬‭práticas‬‭enraizados‬‭no‬‭amor‬‭pelas‬‭crianças,‬‭mantendo‬‭o‬‭diálogo‬‭com‬
‭elas‬ ‭como‬ ‭foco‬ ‭principal,‬ ‭é‬ ‭um‬ ‭caminho‬ ‭efetivo‬ ‭e‬ ‭afetivo‬ ‭na‬ ‭criação‬ ‭de‬ ‭teatros‬ ‭para‬ ‭as‬
‭infâncias.‬

‭AÇÃO DIALÓGICA E LÓGICA LÚDICA INFANTIL‬

‭Na‬‭perspectiva‬‭aqui‬‭apresentada‬‭e‬‭defendida,‬‭a‬‭criação‬‭de‬‭teatros‬‭para‬‭as‬‭infâncias‬
‭ eve‬ ‭possibilitar‬ ‭que‬ ‭a‬ ‭criança‬ ‭tenha‬ ‭um‬ ‭papel‬ ‭ativo‬ ‭na‬ ‭construção‬ ‭dos‬ ‭sentidos‬ ‭e‬ ‭das‬
d
‭sensações‬ ‭propostos‬ ‭a‬ ‭partir‬ ‭dos‬ ‭elementos‬ ‭em‬ ‭cena.‬ ‭Isso‬ ‭não‬ ‭significa‬ ‭que‬ ‭ela‬ ‭precisa‬
‭intervir‬ ‭ou‬ ‭interagir‬ ‭explicitamente,‬ ‭mas‬ ‭que‬ ‭precisa‬ ‭sentir-se‬ ‭apta‬ ‭a‬ ‭dialogar,‬ ‭de‬ ‭alguma‬
‭forma,‬ ‭com‬ ‭a‬ ‭obra‬ ‭–‬ ‭ainda‬ ‭que‬ ‭no‬ ‭silêncio‬ ‭contemplativo‬‭da‬‭fruição‬‭estética.‬‭O‬‭objetivo‬‭é‬
‭que haja uma ação dialógica.‬

‭AÇÃO DIALÓGICA‬

‭ ‬ ‭ideia‬ ‭de‬ ‭ação‬ ‭dialógica‬ ‭está‬ ‭presente‬ ‭em‬ ‭uma‬ ‭das‬ ‭obras‬ ‭mais‬ ‭conhecidas‬ ‭de‬
A
‭ aulo‬ ‭Freire,‬ ‭Pedagogia‬ ‭do‬ ‭oprimido‬‭.‬ ‭Nela,‬ ‭o‬ ‭educador‬ ‭pernambucano‬ ‭defende‬ ‭a‬
P
‭ ialogicidade‬‭como‬‭parte‬‭da‬‭educação‬‭libertadora‬‭e‬‭o‬‭diálogo‬‭como‬‭uma‬‭ferramenta‬‭central‬
d
‭na‬ ‭conscientização‬ ‭das‬ ‭pessoas‬ ‭e‬ ‭na‬ ‭transformação‬‭social.‬‭Ele‬‭sugere‬‭que‬‭a‬‭pessoa‬‭que‬
‭propõe‬ ‭o‬ ‭diálogo‬ ‭educativo‬ ‭procure‬ ‭“pensar‬ ‭no‬ ‭modo‬ ‭de‬ ‭pensar”‬ ‭para‬ ‭estabelecer‬ ‭um‬
‭posicionamento‬ ‭ativo‬ ‭tanto‬ ‭de‬ ‭quem‬ ‭educa‬ ‭quanto‬ ‭de‬ ‭quem‬ ‭aprende‬ ‭–‬ ‭no‬ ‭contexto‬ ‭aqui‬
‭apresentado, respectivamente, artistas e crianças.‬
‭Para‬ ‭estabelecer‬ ‭uma‬ ‭ação‬ ‭ativamente‬ ‭dialógica,‬ ‭é‬ ‭necessário‬ ‭que‬ ‭as‬ ‭diferentes‬
‭pessoas‬ ‭envolvidas‬ ‭no‬ ‭diálogo‬ ‭utilizem‬ ‭a‬ ‭mesma‬ ‭lógica‬ ‭operacional,‬ ‭como‬ ‭quando‬ ‭se‬
‭conversa‬ ‭em‬ ‭um‬ ‭mesmo‬ ‭idioma.‬ ‭No‬ ‭caso‬ ‭da‬ ‭arte‬ ‭para‬ ‭crianças,‬ ‭a‬ ‭composição‬
‭pluriperceptiva‬ ‭da‬ ‭cena‬ ‭precisa‬ ‭estar‬ ‭embasada‬ ‭nos‬ ‭modos‬ ‭infantis‬ ‭de‬ ‭perceber‬ ‭e‬ ‭se‬
‭comunicar‬ ‭com‬ ‭o‬ ‭mundo,‬ ‭o‬ ‭que‬ ‭se‬ ‭conceituou‬ ‭lógica‬ ‭lúdica‬ ‭infantil‬ ‭(JUGUERO,‬ ‭2019a,‬
‭2022b).‬
‭A‬‭Lógica‬‭lúdica‬‭infantil‬‭se‬‭constitui‬‭na‬‭composição‬‭de‬‭quadros‬‭sintéticos‬‭lúdicos‬‭que‬
‭apresentam‬ ‭situações‬ ‭e‬ ‭emoções‬ ‭por‬ ‭meio‬ ‭da‬ ‭teatralidade.‬ ‭Nessa‬ ‭construção,‬‭elementos‬
‭pluri‬ ‭perceptivos‬ ‭e‬ ‭afetivo-racionais‬ ‭interconectam-se‬ ‭a‬ ‭partir‬ ‭de‬ ‭diferentes‬ ‭associações,‬
‭que,‬‭por‬‭sua‬‭vez,‬‭oportunizam‬‭elaborações‬‭racionais,‬‭culturais,‬‭emocionais‬‭e‬‭psíquicas‬‭por‬
‭meio da criatividade.‬

‭PLURI PERCEPÇÃO‬

‭ ‬‭termo‬‭foi‬‭criado‬‭por‬‭Viviane‬‭Juguero‬‭para‬‭identificar‬‭manifestações‬‭da‬‭teatralidade‬
O
‭em‬ ‭que‬ ‭variados‬ ‭tipos‬ ‭de‬ ‭percepção‬ ‭são‬ ‭estimulados‬ ‭simultaneamente,‬ ‭como‬ ‭quando‬
‭vemos‬‭uma‬‭cena‬‭e‬‭percebemos‬‭a‬‭palavra,‬‭o‬‭tom‬‭da‬‭fala,‬‭a‬‭trilha‬‭sonora,‬‭cenários,‬‭figurinos,‬
‭movimentações‬ ‭e‬ ‭signos,‬ ‭criando‬ ‭sentidos‬ ‭que‬ ‭se‬‭constituem‬‭no‬‭encontro‬‭de‬‭todos‬‭esses‬
‭elementos, em uma composição plural interconectada.‬
‭Na‬ ‭prática,‬ ‭o‬ ‭que‬ ‭acontece‬ ‭é‬ ‭que‬ ‭a‬ ‭criança‬ ‭“brinca”‬ ‭com‬ ‭ideias,‬ ‭sentimentos‬ ‭e‬
‭situações,‬ ‭assumindo‬ ‭um‬ ‭papel‬ ‭ativo‬ ‭no‬ ‭manejo‬ ‭de‬ ‭suas‬ ‭experiências‬ ‭e‬ ‭encontrando‬
‭elaborações‬ ‭que‬‭permanecem‬‭subjetivas‬‭até‬‭que‬‭ela‬‭atinja‬‭maturidade‬‭para‬‭lidar‬‭com‬‭elas‬
‭por‬ ‭meio‬ ‭de‬ ‭abstrações‬ ‭e‬ ‭reflexões‬ ‭mais‬ ‭objetivas.‬ ‭É‬ ‭por‬ ‭isso‬ ‭que‬ ‭abordar‬ ‭questões‬ ‭e‬
‭situações‬ ‭partindo‬ ‭da‬ ‭lógica‬ ‭realista‬ ‭e‬ ‭abstrata‬ ‭própria‬ ‭das‬ ‭pessoas‬ ‭adultas‬ ‭acaba‬ ‭por‬
‭intimidar‬‭as‬‭crianças,‬‭sem‬‭estabelecer‬‭um‬‭diálogo‬‭real‬‭com‬‭elas.‬‭Pessoas‬‭adultas‬‭precisam‬
‭buscar‬ ‭conhecimentos‬ ‭fundamentados‬ ‭e‬ ‭se‬ ‭abrir‬ ‭para‬‭conseguir‬‭dialogar‬‭com‬‭as‬‭crianças‬
‭com‬ ‭base‬ ‭em‬ ‭sua‬ ‭lógica‬ ‭lúdica‬ ‭infantil.‬ ‭Nesse‬ ‭processo‬ ‭de‬ ‭comunicação‬ ‭inter‬ ‭etária,‬ ‭é‬
‭essencial‬‭que‬‭os‬‭adultos‬‭não‬‭“atirem‬‭o‬‭pau”‬‭na‬‭brincadeira‬‭e‬‭possam‬‭distinguir‬‭os‬‭sentidos‬
‭construídos‬‭por‬‭elaborações‬‭simbólicas‬‭emotivo-pluri-perceptivas‬‭daqueles‬‭que‬‭resultam‬‭de‬
‭discursos realistas redutores.‬

‭QUE TAL UM EXEMPLO?‬

‭Ao‬‭analisar‬‭a‬‭brincadeira‬‭de‬‭roda‬‭“Atirei‬‭o‬‭pau‬‭no‬‭gato”,‬‭é‬‭possível‬‭perceber‬‭que‬‭a‬
l‭etra‬‭narra‬‭uma‬‭história‬‭lúdica‬‭que‬‭está‬‭profundamente‬‭relacionada‬‭tanto‬‭à‬‭doce‬‭melodia‬
‭da‬‭canção‬‭quanto‬‭aos‬‭cúmplices‬‭movimentos‬‭da‬‭ciranda.‬‭Nesse‬‭jogo,‬‭a‬‭criança‬‭vivencia,‬
‭subjetivamente,‬ ‭distintos‬ ‭papeis‬ ‭vinculados‬ ‭a‬ ‭situações‬ ‭de‬ ‭agressão,‬ ‭elaborando‬
‭emoções e sensações com as quais precisa lidar durante a vida.‬
‭A‬ ‭ciranda‬ ‭abarca‬ ‭as‬ ‭figuras‬ ‭da‬ ‭pessoa‬ ‭agressora‬ ‭("Atirei‬ ‭o‬ ‭pau‬ ‭no‬ ‭gato"),‬ ‭da‬
‭observadora‬ ‭("Dona‬ ‭Chica‬ ‭admirou-se")‬ ‭e‬ ‭do‬ ‭ser‬ ‭agredido‬ ‭(o‬ ‭gato).‬ ‭Nesse‬ ‭contexto,‬
‭interpretar‬ ‭o‬ ‭gato‬ ‭é‬ ‭a‬ ‭parte‬ ‭mais‬ ‭divertida‬ ‭da‬ ‭brincadeira,‬‭em‬‭razão‬‭da‬‭possibilidade‬‭de‬
‭gritar‬ ‭“miau”‬ ‭e‬ ‭do‬ ‭desafio‬ ‭corporal‬ ‭de‬ ‭se‬ ‭agachar‬ ‭rapidamente,‬‭sem‬‭perder‬‭o‬‭equilíbrio,‬
‭ endo‬ ‭esse‬ ‭movimento‬ ‭um‬ ‭sinal‬ ‭da‬ ‭agilidade‬ ‭do‬ ‭gato‬ ‭ao‬ ‭fugir‬ ‭da‬ ‭paulada.‬ ‭Em‬
s
‭comparação‬ ‭com‬‭as‬‭pessoas‬‭da‬‭história,‬‭o‬‭gato‬‭é‬‭pequeno‬‭e‬‭frágil,‬‭o‬‭que‬‭causa‬‭grande‬
‭empatia‬ ‭nas‬ ‭crianças,‬ ‭que‬ ‭também‬ ‭são‬ ‭pequenas‬ ‭e‬ ‭frágeis‬ ‭em‬ ‭relação‬ ‭às‬ ‭pessoas‬
‭adultas‬ ‭e,‬‭muitas‬‭vezes,‬‭se‬‭sentem‬‭agredidas‬‭pelo‬‭ambiente‬‭em‬‭que‬‭vivem,‬‭de‬‭diversas‬
‭formas.‬
‭Apesar‬ ‭de‬ ‭ser‬ ‭agredido,‬ ‭o‬ ‭gato‬ ‭não‬ ‭morre,‬ ‭ele‬ ‭consegue‬ ‭se‬ ‭salvar‬ ‭e‬
‭possivelmente‬ ‭seguir‬ ‭vivendo‬ ‭novas‬ ‭aventuras.‬ ‭O‬ ‭fato‬ ‭de‬ ‭esse‬ ‭frágil‬ ‭e‬ ‭indefeso‬ ‭animal‬
‭conseguir‬ ‭sobreviver‬ ‭a‬ ‭uma‬ ‭agressão,‬ ‭subjetivamente,‬ ‭traz‬ ‭esperança‬ ‭e‬ ‭coragem‬ ‭para‬
‭que‬‭as‬‭crianças‬‭enfrentem‬‭seus‬‭próprios‬‭desafios.‬‭Ou‬‭seja,‬‭ao‬‭brincar‬‭com‬‭essa‬‭cantiga,‬
‭é‬ ‭mais‬ ‭provável‬ ‭que‬ ‭as‬ ‭crianças‬ ‭criem‬ ‭vínculos‬ ‭afetivos‬ ‭com‬ ‭os‬ ‭animais‬ ‭do‬ ‭que‬‭sejam‬
‭incitadas a cometer qualquer ato violento contra eles.‬
‭Sem‬ ‭compreender‬ ‭essa‬ ‭lógica,‬ ‭pessoas‬ ‭adultas‬ ‭modificaram‬ ‭a‬ ‭letra‬ ‭da‬ ‭cantiga‬
‭com‬ ‭base‬ ‭em‬ ‭seu‬ ‭pensamento‬ ‭realista.‬ ‭Na‬ ‭versão‬ ‭“Não‬ ‭atire‬ ‭o‬‭pau‬‭no‬‭gato”,‬‭a‬‭história‬
‭lúdica‬ ‭desaparece‬ ‭e‬ ‭a‬ ‭narrativa‬ ‭se‬ ‭transforma‬ ‭em‬ ‭uma‬ ‭ordem‬ ‭categórica.‬ ‭A‬ ‭proibição‬
‭realista‬ ‭revela‬ ‭a‬ ‭possibilidade‬ ‭concreta‬ ‭de‬ ‭agressão‬ ‭e‬ ‭resulta‬ ‭em‬ ‭sensação‬ ‭de‬
‭insegurança‬‭devida‬‭à‬‭sugestão‬‭de‬‭violência‬‭iminente.‬‭Essa‬‭alteração‬‭reduz‬‭a‬‭brincadeira‬
‭a‬ ‭uma‬ ‭visão‬ ‭simplista‬ ‭e‬ ‭isolada‬ ‭da‬ ‭letra,‬ ‭o‬ ‭que‬ ‭distorce‬ ‭sua‬ ‭operação‬ ‭comunicativa,‬
‭destrói‬ ‭a‬ ‭ludicidade‬ ‭e‬ ‭cria‬ ‭um‬ ‭discurso‬ ‭que,‬ ‭em‬ ‭vez‬ ‭de‬ ‭empoderar‬ ‭as‬ ‭crianças,‬ ‭as‬
‭intimida.‬

‭ sse‬ ‭exemplo‬ ‭auxilia‬ ‭no‬ ‭entendimento‬ ‭da‬ ‭lógica‬ ‭lúdica‬ ‭infantil,‬ ‭mas‬ ‭não‬ ‭deve‬ ‭ser‬
E
‭empregado‬ ‭para‬ ‭prejulgar‬ ‭contextos‬ ‭específicos,‬ ‭pois,‬ ‭apesar‬ ‭da‬ ‭perda‬ ‭da‬ ‭ludicidade‬
‭original,‬ ‭as‬‭crianças‬‭ainda‬‭podem‬‭se‬‭sentir‬‭acolhidas,‬‭a‬‭depender‬‭da‬‭atmosfera‬‭afetiva‬‭em‬
‭que‬ ‭estiverem‬ ‭inseridas.‬ ‭Ao‬ ‭mesmo‬ ‭tempo,‬ ‭é‬ ‭importante‬ ‭lembrar‬ ‭que‬ ‭as‬ ‭brincadeiras‬
‭folclóricas‬ ‭não‬ ‭são‬ ‭intocáveis:‬ ‭oriundas‬ ‭da‬ ‭sabedoria‬ ‭popular,‬ ‭elas‬ ‭estão‬ ‭abertas‬ ‭a‬
‭transformações,‬‭muitas‬‭vezes‬‭assumindo‬‭versões‬‭diferentes,‬‭desde‬‭que‬‭não‬‭percam‬‭a‬‭sua‬
‭essência lúdica‬

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