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INFÂNCIAS E TEATRALIDADES
dotar a expressão “teatros para as infâncias” é reconhecer que existem
A
particularidades nas criações teatrais feitas para e com as crianças. Parte-se de um
entendimentoqueuneosconceitosdeteatroedeinfânciaàssuasdistintasmanifestações
em diferentes contextos. Por isso, também, o uso dos termos no plural.
A teatralidade desempenha um papel essencial no desenvolvimento individual,
cultural e social, sendo umelementofundantenaelaboraçãodelaçosdepertencimentoe
de distintas percepções do mundo, dos valores, dos hábitos e das relações de poder.
Reconheceressapotencialidadeoportunizaumuniversodepossibilidadesnoqueconcerne
aobem-estardacriançanomomentopresente,àsuaformaçãohumanaeàtransformação
social, ao mesmo tempo que demanda muita responsabilidade.
Ainda nos primeiros anosdevida,acriançacomeçaarelacionarsuasubjetividade
com a objetividade do que acontece no mundo para, por meio da criatividade, elaborar
compreensõessobreavida.Paratanto,eladesenvolveapropriedadedateatralidade,que
é embasada em uma consciente dupla percepção da realidade.
Por exemplo: a criança brinca que o travesseiro é um bebê, reconhecendo, ao
mesmotempo,oobjetotravesseiroeobebêsimbólico.Nãoexisteailusãodequesetrata
deumacriançahumana,nãoháumbebê“dementirinha”,porqueamentiraestáassociada
à ausência de consciência, mas sim um bebê defazdeconta.Há,aomesmotempo,um
travesseiro real e um bebê simbólico real. Portanto, a teatralidade não está vinculada à
“mentirinha”, mas à consciente percepção de uma construção simbólica.
Por meio da teatralidade das brincadeiras de faz de conta, a criança criaquadros
simbólicosdiscursivamentesintéticosqueaauxiliamacompreenderavidaeaserelacionar
com ela, assimilando comportamentos, valores e modos emocionais de acordo com os
referenciais que ela recebe do ambiente social cotidiano e de criações artísticas. Nesse
caso, predomina o movimento de dentro para fora. Ou seja, a criança elabora uma
materialidade discursiva para sua subjetividade.
Por outro lado, no teatro predomina o movimento inverso: a criança internaliza
modelos e valores com base em engajamentos emocionais com a cena, associados aos
seus próprios referenciais. A arte teatral, pelo seu caráter de convivência e pela não
reprodutibilidade da experiência, temumimpactosignificativonodesenvolvimentoestético
da criança, no que concerne à sua capacidade de interpretar e comunicar por meio de
distintossignos.Dessemodo,acriaçãodeteatrosparaasinfânciasexigeresponsabilidade
e conhecimento,associados à permanente aprendizagem sobre e com as crianças, tendo
como premissas o respeito e a curiosidade por essa fase da vida.
Issonãosignificadelimitarquaistemassãoadequadosàsinfâncias,massimcomo
essacomunicaçãovaiacontecer,afimdequeresulteemespetáculosqueapoiemacriança
no seu empoderamento e no desenvolvimento de sua autonomia por meio da fruição
artística, contribuindo para a sua formação emocional, ética e estética.
Vale destacar que os vínculos emocionais das crianças com as pessoas
responsáveis por elas são essenciais no desenvolvimento de suas elaborações sobre o
mundo. Por essa razão, ao colocar luz sobre a arte teatral para as infâncias, é
imprescindível abordar o papel das pessoas adultas mediadoras e seus ecos tanto na
criação artística quanto na sua apreciação. Nesse sentido, é essencial a formação
artístico-pedagógicaespecíficanãosomentedequemcriaobrasteatraisparacrianças,mas
também de quem integra distintas comissões de seleção de projetos e de elaboração de
olíticas públicas voltadas para as culturas das infâncias. Para um aprofundamento na
p
questão da mediação, indicamos a leitura de JUGUERO; GIL, 2016.
Cabe salientar que essa formaçãoenglobaapráxis,ouseja,umapráticadialógica
atenta e curiosa com as crianças associada a conhecimentos sobre o desenvolvimento
infantil. Os estudos acadêmicos são um caminho, mas, certamente, não são a única
possibilidade. O fundamentalédesenvolveraescuta,oafeto,osensoinvestigativoeuma
permanentevontadedeaprenderapartirdaintegraçãoentreconhecimentosembasadose
experiências concretas, sempre focadas na construção do diálogo com a criança.
Nesse sentido, algumas dicas práticas podem auxiliar no desenvolvimento dessa
habilidade de escuta. É interessante encontrar momentosparabrincarcomascriançase,
nessas ocasiões, tentar não conduzir a brincadeira, mas sim acompanhar o
desenvolvimentopropostopelascrianças,compreendendooseumododesecomunicarem
cada ocasião. Vale lembrar, no entanto, que as brincadeiras não são neutras em seus
significadosepodemserboasoportunidadesparadesconstruirestereótiposepropornovos
pontos de vista por meio da ludicidade.
Alémdisso,érecomendadoassistiramuitosespetáculosparacrianças,tendocomo
focoareaçãodaplateia.Ascriançassãomuitoespontâneas,eépossívelperceberquando
um trabalhoasenvolveemocionalmenteeinstigasuaspercepções.Certamente,épreciso
atentaraocontextocomoumtodo,poisfatorescomoruídosexternos,faltadeestruturaou
mesmo despreparo dos acompanhantes podem influenciar na fruição artística infantil.
Nesse sentido, tanto a repressão imposta por responsáveis no início da peça quanto o
excesso de excitação podem interferir na qualidadedaexperiênciateatralvivenciadapela
criança.Afinal,apreciarumaobradearteéumaprendizadoestéticocomplexoerepletode
possibilidades. Uma plateia de criançasemsilêncioeextremamenteconcentradasnoque
ocorrenacenapodesignificarumenormeengajamentoemocional.Emomentosdereação,
com risos, sugestões e aqueles olhosbrilhantesgrudadosnopalcotambémsãosinaisde
um diálogo efetivo com a plateia.
Cabe refletir, no entanto, que não basta falar o mesmo idioma que as crianças; é
preciso ter responsabilidade nos valores e nos modelos promovidos pela peça, pois o
engajamento emocional faz com queelasassimilemasmensagenssubliminaresdemodo
bastante efetivo. Ter curiosidade para constantemente aprender sobre o universo infantil,
pormeiodeestudosepráticasenraizadosnoamorpelascrianças,mantendoodiálogocom
elas como foco principal, é um caminho efetivo e afetivo na criação de teatros para as
infâncias.
Naperspectivaaquiapresentadaedefendida,acriaçãodeteatrosparaasinfâncias
eve possibilitar que a criança tenha um papel ativo na construção dos sentidos e das
d
sensações propostos a partir dos elementos em cena. Isso não significa que ela precisa
intervir ou interagir explicitamente, mas que precisa sentir-se apta a dialogar, de alguma
forma, com a obra – ainda que no silêncio contemplativodafruiçãoestética.Oobjetivoé
que haja uma ação dialógica.
AÇÃO DIALÓGICA
ideia de ação dialógica está presente em uma das obras mais conhecidas de
A
aulo Freire, Pedagogia do oprimido. Nela, o educador pernambucano defende a
P
ialogicidadecomopartedaeducaçãolibertadoraeodiálogocomoumaferramentacentral
d
na conscientização das pessoas e na transformaçãosocial.Elesugerequeapessoaque
propõe o diálogo educativo procure “pensar no modo de pensar” para estabelecer um
posicionamento ativo tanto de quem educa quanto de quem aprende – no contexto aqui
apresentado, respectivamente, artistas e crianças.
Para estabelecer uma ação ativamente dialógica, é necessário que as diferentes
pessoas envolvidas no diálogo utilizem a mesma lógica operacional, como quando se
conversa em um mesmo idioma. No caso da arte para crianças, a composição
pluriperceptiva da cena precisa estar embasada nos modos infantis de perceber e se
comunicar com o mundo, o que se conceituou lógica lúdica infantil (JUGUERO, 2019a,
2022b).
ALógicalúdicainfantilseconstituinacomposiçãodequadrossintéticoslúdicosque
apresentam situações e emoções por meio da teatralidade. Nessa construção,elementos
pluri perceptivos e afetivo-racionais interconectam-se a partir de diferentes associações,
que,porsuavez,oportunizamelaboraçõesracionais,culturais,emocionaisepsíquicaspor
meio da criatividade.
PLURI PERCEPÇÃO
termofoicriadoporVivianeJugueroparaidentificarmanifestaçõesdateatralidade
O
em que variados tipos de percepção são estimulados simultaneamente, como quando
vemosumacenaepercebemosapalavra,otomdafala,atrilhasonora,cenários,figurinos,
movimentações e signos, criando sentidos que seconstituemnoencontrodetodosesses
elementos, em uma composição plural interconectada.
Na prática, o que acontece é que a criança “brinca” com ideias, sentimentos e
situações, assumindo um papel ativo no manejo de suas experiências e encontrando
elaborações quepermanecemsubjetivasatéqueelaatinjamaturidadeparalidarcomelas
por meio de abstrações e reflexões mais objetivas. É por isso que abordar questões e
situações partindo da lógica realista e abstrata própria das pessoas adultas acaba por
intimidarascrianças,semestabelecerumdiálogorealcomelas.Pessoasadultasprecisam
buscar conhecimentos fundamentados e se abrir paraconseguirdialogarcomascrianças
com base em sua lógica lúdica infantil. Nesse processo de comunicação inter etária, é
essencialqueosadultosnão“atiremopau”nabrincadeiraepossamdistinguirossentidos
construídosporelaboraçõessimbólicasemotivo-pluri-perceptivasdaquelesqueresultamde
discursos realistas redutores.
Aoanalisarabrincadeiraderoda“Atireiopaunogato”,épossívelperceberquea
letranarraumahistórialúdicaqueestáprofundamenterelacionadatantoàdocemelodia
dacançãoquantoaoscúmplicesmovimentosdaciranda.Nessejogo,acriançavivencia,
subjetivamente, distintos papeis vinculados a situações de agressão, elaborando
emoções e sensações com as quais precisa lidar durante a vida.
A ciranda abarca as figuras da pessoa agressora ("Atirei o pau no gato"), da
observadora ("Dona Chica admirou-se") e do ser agredido (o gato). Nesse contexto,
interpretar o gato é a parte mais divertida da brincadeira,emrazãodapossibilidadede
gritar “miau” e do desafio corporal de se agachar rapidamente,semperderoequilíbrio,
endo esse movimento um sinal da agilidade do gato ao fugir da paulada. Em
s
comparação comaspessoasdahistória,ogatoépequenoefrágil,oquecausagrande
empatia nas crianças, que também são pequenas e frágeis em relação às pessoas
adultas e,muitasvezes,sesentemagredidaspeloambienteemquevivem,dediversas
formas.
Apesar de ser agredido, o gato não morre, ele consegue se salvar e
possivelmente seguir vivendo novas aventuras. O fato de esse frágil e indefeso animal
conseguir sobreviver a uma agressão, subjetivamente, traz esperança e coragem para
queascriançasenfrentemseusprópriosdesafios.Ouseja,aobrincarcomessacantiga,
é mais provável que as crianças criem vínculos afetivos com os animais do quesejam
incitadas a cometer qualquer ato violento contra eles.
Sem compreender essa lógica, pessoas adultas modificaram a letra da cantiga
com base em seu pensamento realista. Na versão “Não atire opaunogato”,ahistória
lúdica desaparece e a narrativa se transforma em uma ordem categórica. A proibição
realista revela a possibilidade concreta de agressão e resulta em sensação de
insegurançadevidaàsugestãodeviolênciaiminente.Essaalteraçãoreduzabrincadeira
a uma visão simplista e isolada da letra, o que distorce sua operação comunicativa,
destrói a ludicidade e cria um discurso que, em vez de empoderar as crianças, as
intimida.
sse exemplo auxilia no entendimento da lógica lúdica infantil, mas não deve ser
E
empregado para prejulgar contextos específicos, pois, apesar da perda da ludicidade
original, ascriançasaindapodemsesentiracolhidas,adependerdaatmosferaafetivaem
que estiverem inseridas. Ao mesmo tempo, é importante lembrar que as brincadeiras
folclóricas não são intocáveis: oriundas da sabedoria popular, elas estão abertas a
transformações,muitasvezesassumindoversõesdiferentes,desdequenãopercamasua
essência lúdica