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que une o sentir, o pensar e o agir à consciência, o que é transformador. É uma mudança que se
abre na vida do espectador e que vem a partir do contato e do vínculo com a obra. Estas
experiências chegam e trazem outros olhares sobre as atitudes cotidianas, como esclarece um
aluno87, durante o espetáculo Cuida Bem de Mim:

O interessante dessa peça é a responsabilidade que cada aluno tem com o seu
material [...] foi bem abrangida a parte do que “é nosso” e nós devemos cuidar,
nós devemos ter o interesse de estar com o intuito de aprendermos o máximo, o
tanto de coisas que nós consigamos aprender porque eu costumo dizer ao meu
irmão que o que nós aprendemos hoje, amanhã nós vamos precisar.

O que está por detrás destas aberturas para o viver teatral é a vontade de ver realidades
sociais tão duras e destrutivas serem transformadas pela sensibilidade e o afeto que a arte traz. É
confirmar assim o que um aluno, depois de ver o Cuida Bem de Mim, disse ao responder o que é
teatro: “uma forma de expressão que pode mudar o rumo da violência”.88

5.2 A MEDIAÇÃO TEATRAL NA TRANSFORMAÇÃO DA ESCOLA

5.2.1 A necessidade do teatro na escola

A arte pode consistir num precioso instrumento para educação do sensível.

Duarte Jr.

O teatro é visto nesta abordagem da mediação teatral nas escolas como uma das
linguagens das artes junto com a dança, a música e as artes visuais. Este enfoque segue o que o

87
PROJETO CUIDA BEM DE MIM. Transcrição dos debates do ano de 2007. Salvador: Liceu de Artes e
Ofícios da Bahia, 2007. p. 6.
88
Id., 2007, p. 4.
154

Ministério da Educação do Brasil, através dos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN-Arte,


define para a composição das artes no ensino escolar, ao explicar que:

No transcorrer do ensino fundamental, o aluno poderá desenvolver sua


competência estética e artística nas diversas modalidades da área de arte
(Artes Visuais, Dança, Música e Teatro), tanto para produzir trabalhos
pessoais e grupais quanto que a pessoa possa, progressivamente, apreciar,
desfrutar e julgar os bens artísticos de distintos povos e culturas
produzidos ao longo da história e na contemporaneidade.(MEC, 2000, p.
53)

Observa-se que a escola, como uma rede que se preenche de relações humanas e marcada
por diferenças sociais, culturais e econômicas é um campo capaz de agregar valores fundamentais
a uma profunda transformação da sociedade. Considerando-a, assim, como um ambiente
educacional que precisa ser revisto, a cada momento, a cada nova geração e novas mudanças no
mundo. É preciso seguir um ritmo natural de modificações, em seus currículos, metodologias,
arquiteturas, administração etc., que possibilitem uma renovação mais coerente com as pessoas
que formam a comunidade escolar. Para o professor Freinet esta renovação passa por um ponto
central, em que os professores “terão de organizar um ambiente de atividade, de trabalho, de vida,
no qual a criança se verá como que automaticamente envolvida, atraída, estimulada e
entusiasmada” (1998, p. 162).

A escola deve ser um ambiente de desenvolvimento saudável para a pessoa, coerente com
seu contexto cultural e aprofundando a integração socioeducacional. No âmbito desta proposição
inclui-se aqui o fazer teatral como parte fundamental desta escola, integrando-se à prática da
educação artística. Para Porcher, a educação artística possibilita “um desenvolvimento global da
personalidade, através de formas as mais diversificadas e complementares possíveis de atividades
expressivas, criativas e sensibilizadoras” (1982, p. 25).

É preponderante a importância do teatro no desenvolvimento dos alunos no ambiente


escolar, por suas características metodológicas lúdicas, dinamizadoras do espaço de
aprendizagem, socializantes e mantenedoras do exercício da afetividade, no contato e no
movimento corporal etc. O fazer teatral possibilita diversos impactos na educação, por interligar
criativamente o pensar, o sentir e o fazer, em suas possibilidades, jogos e outros exercícios de
155

interpretação, improvisação e encenação. Quando se percebe o teatro como um lugar de prática


para o aluno, percebe-se que “a arte é um fazer [...] a arte é um conjunto de atos pelos quais se
muda a forma, se transforma a cultura” (BOSI, 2004, p. 13). Por isso, possui força mobilizadora,
ao possibilitar que o aluno trabalhe suas competências e habilidades através das expressões
corporais e vocais.

O teatro fomenta um trabalho mais dinâmico na sala de aula, com o aluno sendo
estimulado a movimentar seu corpo no espaço, mudando, muitas vezes, o sentido fixo das
carteiras enfileiradas e redimensionando-as em círculo. Durante as atividades de teatro um aluno
estimula o outro a ter mais desenvoltura, extroversão e descontração, nos exercícios. É o sentido
do fazer coletivo que se instala, devido ao encontro que uma rápida construção de cenas ou
personagens já possibilita. Nesta dinâmica, o aprender é acessado por outras vias, incluindo o
corpo e as emoções, junto a especulações mentais, tornando a aula mais prazerosa.

O programa de educação dramática do governo do Québec, apresenta o teatro como uma


arte que atinge diversas dimensões. Para ele:

As artes estimulam a consciência corporal, alimentando o imaginário e


contribuindo para desenvolver a autoestima. Quando pratica uma arte, o
aluno convida todas as dimensões de seu ser – seu corpo, sua voz, sua
imaginação, sua cultura – para traduzir sua percepção do real e sua visão
de mundo.89 (MINISTÉRE DE L'ÉDUCATION, 2008, p. 371)

Pode se trabalhar com duas variáveis de manifestação (figura 50), que os exercícios de
teatro aprofundam, durante as atividades de mediação teatral nas escolas. Há uma primeira que é
a manifestação corporal do aluno.

89
Les arts stimulent la conscience corporelle, nourrissent l’imaginaire et contribuent à développer l’estime
de soi. Lorsqu’il pratique un art, l’élève fait appel à toutes les dimensions de son être – son corps, sa voix,
son imagination, sa culture – pour traduire sa perception du réel et sa vision du monde. (MINISTÉRE DE
L'ÉDUCATION, 2008, p. 371, tradução nossa)
156

Figura 50 – Diagrama das manifestações da pratica teatral

É fundamental que ele se movimente e desenvolva sua consciência corporal, seus diversos
cuidados com o corpo, sua condição motora e do funcionamento completo do seu corpo. Que ele
junte o prazer de criar à própria ludicidade de exercitar o corpo. Estas criações que mobilizam o
corpo podem estar vinculadas aos diversos temas que os jogos teatrais e o espetáculo abordam, e
também aos conteúdos das disciplinas nas escolas. Quando esta mistura de atividades e temas é
gerada pela mediação teatral, se efetiva, então, uma ação também interdisciplinar. O corpo tem
um lugar primordial, quando se discute o fazer teatral, como aponta o programa escolar
(MINISTÉRE DE L’ÉDUCACTION, 2008, p. 379) do Québec, ao afirmar que:

A formação em arte dramática solicita o envolvimento do aluno sobre


diversos planos: psicomotor, emocional, social, cognitivo e cultural. Sobre
o plano psicomotor, ele é o lugar dentro das situações, que lhe permite
experimentar a inter-relação do corpo, das emoções e dos pensamentos.90

90
La formation en art dramatique sollicite l’engagement de l’élève sur plusieurs plans : psychomoteur,
affectif, social,cognitif et culturel. Sur le plan psychomoteur, il est placé dans des situations qui lui
permettent d’expérimenter l’interrelation du corps, des émotions et de la pensée. (MINISTÉRE DE
L'ÉDUCATION, 2008, p. 379, tradução nossa)
157

Numa segunda variável, encontra-se a manifestação psicológica dos alunos. O teatro abre
um espaço à expressividade emocional do aluno, para si mesmo e para o grupo. Ao praticar os
exercícios teatrais o aluno conecta-se consigo mesmo, num processo de autoconhecimento e
maior valorização do sentir, como campo a ser incluído no processo de aprendizagem. Esta
consciência da sensibilidade é confirmada por Duarte Jr. ao dizer que “através da arte temos
como que uma visão dos nossos sentimentos, temos formas que nos permitem ver de fora a
inefável dimensão do nosso sentir” (2003, p. 47).

Este autoconhecimento refere-se ao contato com os sentimentos singulares de cada


indivíduo, como rir, chorar e brincar. É uma perspectiva de completo envolvimento da pessoa, no
fazer teatral, e de sua valorização enquanto ser integral, no ambiente escolar.

Com esta perspectiva de investimento nos valores humanos de cada um, destacamos o que
o professor Freinet nos explica, quando propõe que a escola deve proporcionar aos alunos um
método de formação eficiente, mas devendo salvaguardar os direitos da vida e da humanidade,
pois a pessoa precisa “harmonizar seus atos com seus sentimentos, com seu coração e com sua
concepção de solidariedade” (1998, p. 121).

Este é um dos aspectos pouco valorizados em alguns encaminhamentos educativos atuais,


pois a exigência tecnicista de aprendizado obrigatório de conteúdos seriados, lineares e distantes
da realidade pessoal e social do aluno é um fato. As aulas, muitas vezes, são direcionadas para
uma aprendizagem memorizante, com as devidas pressões para o aspecto do decorar textos,
fórmulas e uma diversidade de conteúdos impregnados de teorias que excluem a presença da
pessoa, em seu sentir ou em seu viver humanamente, na sala de aula.

É também através do teatro e de suas potencialidades como experiência estética, que se


abre a possibilidade deste sentir compartilhado com o coletivo da turma, trazendo à tona as
próprias histórias de vida dos alunos, transformando-as em aprendizados. É uma perspectiva de
educação para a vida que a arte estimula, pois os conteúdos pessoais são valorizados, assim como
os outros conteúdos formais das disciplinas. Duarte Jr. explicita este valor da arte para o aluno ao
158

afirmar que:

a educação estética refere-se primordialmente ao desenvolvimento dos


sentidos de maneira mais fecunda e refinada, de forma que nos tornemos
mais atentos e sensíveis ao acontecmentos em volta, tomando melhor
consciência deles e, em decorrência, dotando-nos de maior oportunidade e
capacidade para sobre eles refletirmos. (2004, p. 185)

Junta-se a isto, também, a abertura que o teatro promove, para se incluir na sala de aula as
diversas dificuldades psicológicas que o aluno possua, tornando o ambiente educativo um
momento de valorização da pessoa, em sua intimidade viva e latente. Muitas vezes estes
sentimentos explodem na escola como atos violentos ou depressões profundas, pois não há
espaço de expressividade para os indivíduos, que estão ali para viver, conviver, exercitar o
carinho e aprofundar sua formação enquanto seres humanos integrais.

No exercício mais intenso e dinâmico da convivência com o outro, o teatro movimenta o


aluno por novos caminhos. É a abertura para uma convivência mais integrada e socializante, em
que as diferenças são tornadas visíveis e conscientes para cada um e, simultaneamente, o aluno
aprende o respeito, a ética e o cuidado, consigo e com outro, valorizando cada pessoa, em sua
vida, história e contexto social. É um percurso para fazer emergir as potencialidades de cada
aluno, destacando-se que

todo homem e, sobretudo toda criança traz em si incríveis virtualidades de


vida, de adaptação e ação [...]. Cabe-nos redescobri-las, deixá-las
germinar para basear nessas virtualidades dinâmicas todas as nossas
intervenções educacionais (FREINET, 1998, p. 141).

5.2.2 O valor da obra teatral na escola

O espetáculo é uma obra artística que tem suas peculiaridades ligadas ao evento ao vivo, à
interação entre público e produto artístico, aos elementos específicos da cena e ao jogo
imaginário da representação. Ele se constitui de um rico arsenal de saberes, sensações, imagens
etc., que chega ao público e toca-o de diversas formas, e nas dimensões corporais, emocionais,
159

sociais, mentais e espirituais. Cada elemento da obra tem sua característica a ser explorada dentro
de um leque de conhecimentos ligados ao viver da pessoa na relação consigo e com seu contexto.
Há, por tudo isso, um potencial didático na obra artística que permite diversas aprendizagens.

A possibilidade de ser público, de ser um vivenciador da obra teatral, é experienciar a


possibilidade de sentí-la e dissecá-la ao máximo. Para isto, sabe-se “que a apreensão da obra de
arte depende em sua intensidade, modalidade e própria existência do controle que o espectador
detém do código genérico e específico da obra” (BOURDIEU; DARBEL, 2005, p. 110), que,
aqui neste caso, a mediação teatral proporciona. Este percurso de decupagem estética e didática
passa pelas diversas percepções do ser humano, transformando o ato de recepção da obra num
processo singular de construção de saberes.

Cada espetáculo tem sua minúcia, como produto didático. Este termo didático é aqui
compreendido como “um conjunto de métodos próprio para o ensino de uma disciplina” e
também “é uma reflexão sobre os métodos de ensino para aqueles que os utilizam” (DANVERS,
2003, p. 160), sendo, no caso específico, relacionado à obra teatral como conteúdo.

Esta didática dá-se, também, ao se entender o produto final, que é o espetáculo, como um
conteúdo disparador de várias aprendizagens. O processo didático com o espetáculo desenrola-se
pela própria metodologia da mediação teatral.

O teatro concretiza-se como caminho educativo, como experiência estética que educa o
ser em diversos campos do conhecimento. É desta riqueza de poder visualizar e viver a obra, na
sua pluralidade de signos, sentimentos, ideias e temas, que a faz uma experiência dinâmica e
diferente, em relação aos outros procedimentos didáticos nas escolas.

Havia uma visão sobre o teatro na escola, dentro do projeto Cuida Bem de Mim, que pode
ser aplicada ao que se explicou até agora sobre a mediação teatral e o seu valor na escola. O
diretor teatral Luiz Marfuz (2000, p. 37-39), ao sistematizar a Tecnologia Educacional com
Teatro –TET, trouxe oito definições que afirmam o teatro como experiência artística e
pedagógica. Nos quatro primeiros pontos, ele fala do teatro no desenvolvimento da pessoa e da
cidadania, como se lê a seguir:
160

O teatro é ponto de partida e um dos condutores do processo de


investigação de problemas sócio-educacionais e envolve outros campos do
conhecimento como a pedagogia e psicologia social. Isto quer dizer que
ele será deflagrador de movimentos e crises e a chave para soluções de
problemas e abordagem de assuntos pesquisados. Por meio da técnica
teatral, pode-se ver sob outra perspectiva a análise e a solução de
problemas;
O teatro está voltado para o desenvolvimento integral da pessoa
humana, respeitando-se as diferenças e estimulando a convivência de
opiniões divergentes e sentimentos opostos entre grupo e dentro de um
mesmo grupo social;
O teatro é um espaço de construção da cidadania, onde se pode discutir
direitos e deveres, estimulando a formação de valores comprometidos com
a solidariedade, a visão crítica do mundo, o respeito à vida e à dignidade
humana;
Todos os assuntos podem ser tratados pelo teatro, seja através de um
texto clássico, um texto dramático adaptado, um texto criado por um
profissional da área ou feito por alunos e professores da escola onde se
desenvolve a experiência. (MARFUZ, 2000, p.37)

Estas definições assinalam o valor da prática teatral para a construção da cidadania, em


que o aluno é mobilizado no exercício cênico e acaba levando as aprendizagens para o seu
cotidiano. Tanto os professores quanto os alunos ganham a chance de viver experiências
diferentes na sala de aula e que trazem o valor educativo e artístico conectados. O complemento
destas elucidações sobre o teatro na escola refere-se aos outros quatro pontos que tratam da
experiência da técnica teatral que pode influir nas metodologias das disciplinas, na escola, e na
sua coerência com o contexto dos alunos e professores.

O teatro não está identificado com nenhum gênero específico


(comédia, tragédia, etc.) ou estilo (expressionista, realista, etc.); Todos
eles podem ser acionados se a experiência o exigir; o que importa é que
sejam respeitados os limites e potenciais dos alunos de acordo com sua
faixa etária, realidade escolar, familiar e socioeconômica específicas;
As técnicas teatrais utilizadas devem oportunizar a participação de
professores e alunos de todas as disciplinas; Se não todas, pelo menos a
sua maioria; isto quer dizer que os conteúdos e as técnicas desenvolvidas
podem ser aplicadas a outros assuntos específicos em sala de aula. Isto
estimula o exercício da transversalidade na escola;
É essencial que a experiência teatral estimule a capacidade criativa de
alunos e professores, permitindo-lhes auto-expressao, a reflexão crítica e a
expressão pelas emoções, garantindo-lhes um espaço de troca e escuta em
todas as suas atividades;
A metodologia utilizada deve permitir que se conheça primeiro a
realidade estudada para depois se introduzir o texto ou a peça; os
produtos resultantes de uma experiência teatral desvinculada do cotidiano
161

da escola correm rico de não representarem, os interesses da comunidade


escolar, que não se vê projetada ou reconhecida no palco. (MARFUZ,
2000, p.38-39)

É importante para esta pesquisa trazer estes pontos, pois foram eles que geraram as
principais diretrizes de sucesso dos doze anos do projeto Cuida Bem de Mim. Com estas oito
definições, o projeto manteve a consistência pedagógica e artística que envolveu as escolas e
convenceu seus patrocinadores sobre a importância das ações de mediação teatral nas escolas. O
Cuida Bem de Mim foi um exemplo de uma obra utilizada como produto didático dentro das
escolas.91 Estas explicações sobre o que é teatro, enquanto metodologia artístico-pedagógica na
escola, afirmaram a mediação teatral como um processo de transformação da pessoa e da
comunidade.

5.2.3 Escolha da obra teatral

A escolha de um espetáculo para ser apresentado aos alunos é uma tarefa que precisa
passar por questões estéticas, pedagógicas e técnicas. Estas argumentações confirmam uma
relação educacional e uma qualidade para que a experiência artística seja transformadora para os
alunos e a comunidade escolar.

Quando se define uma obra teatral, a ser trabalhada nas ações educativas, é importante
pensar que

o teatro precisa, sem dúvida, ter a dignidade de jamais se acreditar simples


jogo de cena, adulação do olhar; ele precisa ter a dignidade de nunca
esquecer que só se apresenta ali porque foi convidado por uma
comunidade reunida; ele precisa ter a dignidade de nunca obscurecê-la,
nunca relegá-la à sombra, admirando apenas a si próprio. (GUÉNOUN,
2003, p. 71)

91
É importante esclarecer que o espetáculo Cuida Bem de Mim se transformou em um filme profissional,
lançado pela Secretaria de Educação da Bahia –SEC e que até hoje é utilizado pelas escolas, em diversos
Estados brasileiros.
162

A obra, dentro de um processo democrático de escolha, deve passar por um levantamento


de determinadas questões, tais como: avaliação colaborativa, a partir da junção de um coletivo de
professores; assistência do espetáculo, em mais de uma vez, para confirmar os olhares e a
construção de uma metodologia de mediação mais qualificada; compreender que é o aluno,
enquanto sujeito autônomo, que vai ser o público-eixo do processo educativo com o espetáculo;
ampliar as questões, numa relação múltipla com as identidades da comunidade, da escola e de
seus conjuntos de sujeitos; observar que a escolha pressupõe a construção de um itinerário
educativo e se define devido à necessidade de ter uma obra que seja transformadora em vários
aspectos culturais, sociais e educacionais dos alunos.

Pode se dividir esta análise em três campos de questionamento: o primeiro refere-se a


questões estéticas, que se direcionam ao objeto artístico, em si, e a suas características, que
demonstram um investimento no acabamento da produção estética da obra e na sua organização,
no uso dos elementos da cena, como luz, cenário, figurino etc;

O segundo são as questões pedagógicas, que se dirigem à temática abordada no


espetáculo e à forma em que é apresentada na encenação, efetivando-se uma relação com o perfil
de estudantes que irão assistir. É fundamental saber que, na contemporaneidade, uma obra é
ampla, diversa e multicultural, por natureza, necessitando-se de um foco, a ser escolhido no
momento da análise. Os temas definidos serão os guias das escolhas metodológicas e darão a
base para a construção dos conteúdos pedagógicos, nas diversas disciplinas da escola a se
apropriarem da obra. Com isso, a obra poderá ser estudada, de forma interdisciplinar, em suas
camadas de abordagens temáticas;

No terceiro campo estão as questões técnicas, que envolvem a avaliação das


possibilidades de acesso dos alunos ao espetáculo, tais como horários, transporte, custos de
ingressos, locais de apresentação e as quantidades possíveis de público. Avaliar bem estes
aspectos qualifica, e muito, a experiência estética, pois se organiza a atividade de forma a
eliminar insucessos com a logística em si, transformando o momento de assistir a obra numa aula
163

de campo92, confirmando que se vivenciará uma experiência educativa, única e efêmera.

5.2.4 A obra e suas conexões com as atividades escolares

É importante salientar que, na maior partea sistematização de ideias aqui apresentadas,


parti de uma análise mais autoral93 daquilo que foi feito no projeto Cuida Bem de Mim, que
mostrou que a obra teatral tem seu impacto no ambiente escolar. Este impacto ocorre de acordo
com o interesse dos gestores da escola e também da força estética e da organização de atividades
que potencializam a obra. É uma escolha que parte da vontade de criar uma ação cultural com a
finalidade de gerar processos educativos e transformadores para o ambiente escolar, mas que,
antes, é necessário compreender que o elemento-eixo é a obra e todo o conjunto de temas, teorias
e estéticas que a envolve.

Há um imenso poder em uma obra teatral dentro da escola, ao se pensar na sua capacidade
de interferência nas disciplinas e as suas metodologias, na convivência entre alunos e professores
e na mudança estética da arquitetura escolar. Este poder educativo, que opera resultados
transformadores, perpassa um caminho coerente quando se trabalha de forma organizada e
direcionada, pedagogicamente.

Pode-se facilitar a entrada da obra teatral no projeto pedagógico(figura 51), ao trazer a


arte para ser um eixo da estrutura educativa da escola, num período específico. Ao se internalizar
como eixo, a obra teatral passa a fazer parte das diversas propostas e projetos do planejamento
anual da escola, facilitando, assim, a inserção do espetáculo como um dos elementos didáticos
das disciplinas.

92
Termo muitas vezes utilizado para designar as aulas extraclasse, tendo a característica de manter a
organização e a aprendizagem iguais às existentes nas escolas, mas acontecendo em um espaço externo à
sala.
93
O autor sistematizou alguns campos de análise sobre a metodologia de mediação teatral, os quais
poderão ser utilizados com diferentes espetáculos e escolas.
164

Figura 51 – Diagrama da obra teatral na escola.

Há também nisso um pensar criativo e sensível para o projeto pedagógico da escola,


tornando o fazer metodológico dinâmico, atrativo e estimulante para os alunos, através das artes.

É um olhar que pensa na criança e no jovem de forma integral, abrindo as oportunidades


educativas para o seu amplo desenvolvimento, como explica Luck e Carneiro,ao dizerem que

[...] portanto, a fim de que cumpra seu papel na promoção do


desenvolvimento integral do aluno, a escola deve ajudá-lo a aprender em
todos os sentidos, isto é, não somente quanto a conhecimentos e
habilidades intelectuais e ao mundo exterior, mas também quanto a
habilidades sociais, pessoais, atitudes, valores, ideais e seu mundo
interior. (1983, p. 12)

Esta inserção da arte complementa-se quando se insere a obra teatral nas disciplinas,
facilitando aos professores introduzirem atividades artísticas em suas aulas e provocando uma
renovação metodológica no currículo. É algo que alimenta a interdisciplinaridade, ao gerar o
exercício da combinação e da aglutinação de conteúdos, da integração de métodos e uma
criatividade que torne a aula um momento dinâmico e envolvente para o aluno. Ao propor uma
atividade que traga a obra artística como metodologia ou até mesmo como conteúdo em si, o
165

professor se disponibiliza para uma inovação.

Há a possibilidade de o processo de mediação teatral facilitar a interdisciplinaridade, pela


via estética, em que os conteúdos e métodos se misturam a uma dinâmica didática que
potencializa o aprender a ser, a fazer, a conhecer e a conviver (DELORS, 2001). Com a abertura
para o fazer artístico o professor dá voz, corpo e espaço para o aluno criar, desenvolver sua busca
autônoma pelo conhecimento e estimula sua vontade de pesquisar, pois o estudar, viver e recriar
uma obra artística se torna um desafio único e saboroso.

Outro caminho para a mediação teatral na escola é possibilitar um percurso da obra


teatral nos projetos especiais da escola. São atividades extraclasse que a direção e a coordenação
promovem, como festivais, desenvolvimento de grupos artísticos, mutirões, torneios esportivos,
feiras, encontros, palestras, seminários. Muitas ações da mediação teatral que serão promovidas
junto ao espetáculo podem fazer parte destes projetos, ampliando-os para a temática da obra.

Com a escolha do fazer artístico como parte integrante e contínua destes projetos especiais
da escola, efetiva-se uma produção cultural que vai se direcionar para a comunidade escolar e
também para o seu entorno, integrando e formando culturalmente a população local. A escola
passa a potencializar seu lugar de usina cultural, em que os alunos ganham espaços abertos e
frequentes para mostrar seus talentos artísticos.

5.2.5 As ações de mediação teatral e o ambiente escolar

Quando a escola define como se dará a mediação teatral inicia-se um processo de


múltiplas possibilidades para acompanhar os resultados destas atividades. Existem correlações
que são desenvolvidas ao longo da aplicação de cada etapa, e isto segue as conexões entre as
ações e seus impactos no aluno, no professor, na direção escolar e na comunidade (figura 52).

Na relação entre as ações e o aluno um dos pontos mais influentes é a valorização do


estudante, enquanto voz, corpo, expressão, capaz de mobilizar a escola a partir da sua
criatividade e de sua força de comunicação. O fazer artístico, que é a base das ações, leva os
166

alunos à mobilização de sua autonomia, em que sua opinião e sua manifestação artística têm
espaço para acontecer.

Figura 52 – Diagrama dos impactos da mediação teatral.

Isto é possível devido à definição de que o aluno é o foco principal das ações e o sujeito
central de transformação. Ele é o ponto-chave para que os temas, as idéias estéticas e outros
diversos conteúdos que a obra traz possam efetivar-se enquanto ação que está mudando a escola.
É com ele, e a partir dele, que as ações saem do espaço reflexivo e entram na ação
transformadora. É conhecer, por vias mais sensíveis.Nestas atividades,

é preciso despertar e treinar a sensibilidade, a atuação dos sentidos, na


vida que se vive. Obras de artes consagradas ou não, apenas ganham
significação na medida em que podem ser vinculadas à vida e às
experiências efetivamente vividas pelas pessoas. (DUARTE JR, 2004, p.
186)
167

A escola é movida pela força coletiva dos alunos. A comunicação entre eles é ágil e
contagiante, tornando-se o foco da mobilização das atividades de mediação teatral. Quando se
interessam pela obra teatral e pelas atividades, viram parceiros presentes e atuantes na sequência
das ações.

É nessa dinâmica prazerosa que o percurso estético torna-se o diferencial mobilizador,


num caminho em que o potencial criativo autônomo transforma cada aluno singular em
protagonista das mudanças que a escola tanto anseia. É uma participação ativa do aluno, seguindo
um sentido de que

a educação permanente é uma concepção dialética da educação, como um


duplo processo de aprofundamento, tanto da experiência pessoal quanto
da vida social global, que se traduz pela participação efetiva, ativa e
responsável de cada sujeito envolvido, qualquer que seja a etapa da
existência que esteja vivendo. (FURTER, 1970, p. 173)

O aluno é o sujeito ativo que tem imenso potencial para mudar e gerar um ambiente
saudável, junto com seus professores. As atividades de mediação teatral chegam para auxiliar
neste processo.

Já no item da relação entre as ações e o professor, o principal olhar fixa-se no


desenvolvimento de competências criativas, pois o ver e o fazer artísticos influenciam sua
metodologia em sala de aula. O professor é sensibilizado pelas técnicas teatrais que são utilizadas
nas atividades, principalmente nas ações pré-peça e pós-peça. Além disso, a própria obra teatral
acaba influenciando-o a se abrir para a prática cultural e outras atividades de apreciação artística
com seus alunos.

Este contato com as ações desenvolve-se com agilidade, quando o professor decide
envolver a sua turma e integrar os temas da obra teatral em sua disciplina. É uma disposição para
se trabalhar com a interdisciplinaridade, através das conexões que a mediação teatral facilita.

Quando o educador se torna parceiro das ações e ajuda no seu desenvolvimento ele acaba
vivendo uma experiência formativa intensa, na prática teatral. Durante as ações do projeto Cuida
Bem de Mim os professores começaram a utilizar alguns dos exercícios feitos nas oficinas em
suas aulas. Pode-se dizer com isso que a experiência do professor, vivendo com seu corpo e
168

emoções os exercícios da mediação teatral, acaba influenciando-o para que, em suas aulas, ele
inclua práticas introdutórias de teatro em sua metodologia.

Quem mais ganha com isso são os alunos. Eles acabam se envolvendo de forma mais
sistemática, nas atividades, pois seus professores consideram a prática teatral como algo positivo
e saudável para a escola.

É fundamental que este aluno seja mobilizado e sensibilizado pelo professor que está
engajado no projeto. O aluno é visto como o espectador que vai viver uma experiência de
aprendizagem estética, mediado pelo professor, que pode seguir a compreensão de que

a experiência teatral desafia o espectador a, deparando-se com a


linguagem própria a esta arte, decodificar e interpretar os diversos
signos presentes em uma encenação. Cada um destes elementos
de linguagem colabora para a apresentação da história, e cabe ao
espectador articular e interpretar este conjunto complexo de
94
signos, que se renova a cada instante .

No caso do item da relação das ações e a direção,a abertura para o desenvolvimento das
atividades se faz na gestão escolar. Esta gestão pode repensar a escola em sua estrutura cultural,
seja na organização de corredores, salas e muros, mas, principalmente na elaboração de espaços
que tragam criações artísticas dos próprios alunos. A sensibilização para as artes que a mediação
teatral proporciona pode propiciar a existência de ambientes com pinturas, espaços para
apresentações, rádios estudantis, festivais etc. Gera-se assim um ambiente educativo mais
estetizado, em que a escola provoca um novo vínculo criativo com seus alunos. Esta
movimentação cultural muda o ambiente físico da escola, seguindo o que Paulo Freire esclarece
ao afirmar que “o ensinar e aprender não pode dar-se fora da procura, fora da boniteza e da
alegria”. (FREIRE, 1998, p. 160).

A mudança inventiva dos espaços da escola envolve a comunidade de estudantes,

94
DESGRANGES, Flávio. Quando teatro e educação ocupam o mesmo lugar no espaço. Disponível em:
<http://culturaecurriculo.fde.sp.gov.br/administracao/Anexos/Documentos/420091014164649Quando%20
teatro%20e%20educacao%20ocupam%20o%20mesmo%20lugar%20no%20espaco.pdf>. (p. 5). Acesso
em: 8 set. 2011.
169

professores e funcionários, numa relação criativa com o processo educativo, em que as atividades
com a obra teatral podem tornar o ambiente mais afetivo. A parte lúdica e criativa da escola é sua
identidade sendo manifestada. É uma proposta que gera um sentido maior de pertencimento, para
todos que ali vivem partes importantes de sua vida.

O fazer artístico, difundido pela escola, mobiliza um sentimento mais integrador, em que a
cultura de paz, os valores humanos e o ambiente saudável acontecem pelo grafitar, dançar,
interpretar, cantar etc. (Anexo G). É importante saber, como nos esclarece Duarte Jr., que,

antes de se discutirem obra de artes consagradas e se aprenderem técnicas


artísticas, um treino da sensibilidade parece ser fundamental, o qual
precisa acontecer em relação a realidade mais palpável desses alunos, ou
seja, aquela que eles têm ao seu redor. (2004, p. 187)

Por último, tem-se o item da relação entre as ações e a comunidade, que ganha um olhar
mais voltado para o aumento da integração entre a escola e seu entorno. As ações de mediação
teatral acabam envolvendo o entorno da escola, mobilizando familiares e outros moradores para
se integrarem às vivências estéticas e temáticas trazidas pela obra que está sendo trabalhada.

A comunidade observa a escola como um epicentro cultural, como o espaço do saber


criativo, a partir do momento em que as metodologias teatrais passam a ser ações cotidianas e que
movimentam, numa prática inovadora e dinamizadora, os itinerários de aprendizagem. Os alunos
levam para suas ruas e casas o que aprendem do teatro na sala, os temas que são desenvolvidos a
partir do espetáculo, alimentando uma reverberação que inclui afetivamente o entorno da escola.
170

Figura 53 – Alunos comemorando depois das atividades do pós-peça no Cuida Bem de Mim.

Um exemplo desse envolvimento foi registrado na Escola Padre Palmeira, localizada num
bairro periférico de Salvador. Atendida pelo projeto Cuida Bem de Mim, em 1998, conseguiu, a
partir dos estímulos das ações realizadas, criar outra ação, independente, que envolveu os pais de
alunos da comunidade. Ao criar o projeto Menino Maluquinho, trabalhou com a temática da
preservação da escola, a mesma do espetáculo, durante dois anos envolveu os pais de alunos,
como seus principais parceiros para transformar a escola e mantê-la organizada (figura 53).

Um segundo exemplo aconteceu no Québec, com o projeto social da Maison Théâtre,


chamado Découverts Théâtrales95, que atende anualmente a 2.400 crianças de bairros populares.
As crianças e seus pais participam do programa de mediação teatral da instituição, que acontece
no próprio teatro e nas escolas. Com esta proposta os pais começam a frequentar o teatro nos fins
de semana, junto com seus filhos, gerando um hábito cultural e um maior acesso aos espetáculos

95
MAISON THÉÂTRE. Les programmes d’accessibilité de la Maison Théâtre. Montréal: Maison
Théâtre, 2011
171

teatrais (figura 54).

Figura 54 – Os alunos e os pais indo assistir a um espetáculo juntos na Maison Théâtre.

A comunidade é o espaço de reverberação e diálogo com a escola. É dela que advém o


interesse e o esforço para que as mudanças educacionais se efetivem com maior agilidade. É por
isso que a cultura deve ser algo contínuo e presente nas disciplinas, nos espaços físicos, nas
atividades eventuais, na existência dos grupos artísticos. A mediação teatral é a certeza de que
ação cultural está se desenvolvendo na escola e colocando os alunos e professores diante de um
cotidiano criativo.

É com estas múltiplas vivências de contatos artísticos que a mediação teatral se confirma
como uma iniciação criativa ao teatro na escola. Para o autor Mafra Gagliardi,

O papel iniciático da escola cara-a-cara com o teatro é fundamental desde


a primeira fase, porque somente a escola pode fornecer os primeiros
elementos desta arte e pode ofertar para todas as crianças, sem distinção, a
oportunidade de uma aproximação da experiência teatral, abstraindo suas
diferenças socioculturais e econômicas.96 (1998, p. 66)
96
Le rôle initiatique de l’école vis-à-vis du théâtre est fondamental lors de la première phase, car seule
l’école peut fournir les premiers rudiments de cet art et peut offrir, à tous les enfants sans distinction,

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