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que une o sentir, o pensar e o agir à consciência, o que é transformador. É uma mudança que se
abre na vida do espectador e que vem a partir do contato e do vínculo com a obra. Estas
experiências chegam e trazem outros olhares sobre as atitudes cotidianas, como esclarece um
aluno87, durante o espetáculo Cuida Bem de Mim:
O interessante dessa peça é a responsabilidade que cada aluno tem com o seu
material [...] foi bem abrangida a parte do que “é nosso” e nós devemos cuidar,
nós devemos ter o interesse de estar com o intuito de aprendermos o máximo, o
tanto de coisas que nós consigamos aprender porque eu costumo dizer ao meu
irmão que o que nós aprendemos hoje, amanhã nós vamos precisar.
O que está por detrás destas aberturas para o viver teatral é a vontade de ver realidades
sociais tão duras e destrutivas serem transformadas pela sensibilidade e o afeto que a arte traz. É
confirmar assim o que um aluno, depois de ver o Cuida Bem de Mim, disse ao responder o que é
teatro: “uma forma de expressão que pode mudar o rumo da violência”.88
Duarte Jr.
O teatro é visto nesta abordagem da mediação teatral nas escolas como uma das
linguagens das artes junto com a dança, a música e as artes visuais. Este enfoque segue o que o
87
PROJETO CUIDA BEM DE MIM. Transcrição dos debates do ano de 2007. Salvador: Liceu de Artes e
Ofícios da Bahia, 2007. p. 6.
88
Id., 2007, p. 4.
154
Observa-se que a escola, como uma rede que se preenche de relações humanas e marcada
por diferenças sociais, culturais e econômicas é um campo capaz de agregar valores fundamentais
a uma profunda transformação da sociedade. Considerando-a, assim, como um ambiente
educacional que precisa ser revisto, a cada momento, a cada nova geração e novas mudanças no
mundo. É preciso seguir um ritmo natural de modificações, em seus currículos, metodologias,
arquiteturas, administração etc., que possibilitem uma renovação mais coerente com as pessoas
que formam a comunidade escolar. Para o professor Freinet esta renovação passa por um ponto
central, em que os professores “terão de organizar um ambiente de atividade, de trabalho, de vida,
no qual a criança se verá como que automaticamente envolvida, atraída, estimulada e
entusiasmada” (1998, p. 162).
A escola deve ser um ambiente de desenvolvimento saudável para a pessoa, coerente com
seu contexto cultural e aprofundando a integração socioeducacional. No âmbito desta proposição
inclui-se aqui o fazer teatral como parte fundamental desta escola, integrando-se à prática da
educação artística. Para Porcher, a educação artística possibilita “um desenvolvimento global da
personalidade, através de formas as mais diversificadas e complementares possíveis de atividades
expressivas, criativas e sensibilizadoras” (1982, p. 25).
O teatro fomenta um trabalho mais dinâmico na sala de aula, com o aluno sendo
estimulado a movimentar seu corpo no espaço, mudando, muitas vezes, o sentido fixo das
carteiras enfileiradas e redimensionando-as em círculo. Durante as atividades de teatro um aluno
estimula o outro a ter mais desenvoltura, extroversão e descontração, nos exercícios. É o sentido
do fazer coletivo que se instala, devido ao encontro que uma rápida construção de cenas ou
personagens já possibilita. Nesta dinâmica, o aprender é acessado por outras vias, incluindo o
corpo e as emoções, junto a especulações mentais, tornando a aula mais prazerosa.
Pode se trabalhar com duas variáveis de manifestação (figura 50), que os exercícios de
teatro aprofundam, durante as atividades de mediação teatral nas escolas. Há uma primeira que é
a manifestação corporal do aluno.
89
Les arts stimulent la conscience corporelle, nourrissent l’imaginaire et contribuent à développer l’estime
de soi. Lorsqu’il pratique un art, l’élève fait appel à toutes les dimensions de son être – son corps, sa voix,
son imagination, sa culture – pour traduire sa perception du réel et sa vision du monde. (MINISTÉRE DE
L'ÉDUCATION, 2008, p. 371, tradução nossa)
156
É fundamental que ele se movimente e desenvolva sua consciência corporal, seus diversos
cuidados com o corpo, sua condição motora e do funcionamento completo do seu corpo. Que ele
junte o prazer de criar à própria ludicidade de exercitar o corpo. Estas criações que mobilizam o
corpo podem estar vinculadas aos diversos temas que os jogos teatrais e o espetáculo abordam, e
também aos conteúdos das disciplinas nas escolas. Quando esta mistura de atividades e temas é
gerada pela mediação teatral, se efetiva, então, uma ação também interdisciplinar. O corpo tem
um lugar primordial, quando se discute o fazer teatral, como aponta o programa escolar
(MINISTÉRE DE L’ÉDUCACTION, 2008, p. 379) do Québec, ao afirmar que:
90
La formation en art dramatique sollicite l’engagement de l’élève sur plusieurs plans : psychomoteur,
affectif, social,cognitif et culturel. Sur le plan psychomoteur, il est placé dans des situations qui lui
permettent d’expérimenter l’interrelation du corps, des émotions et de la pensée. (MINISTÉRE DE
L'ÉDUCATION, 2008, p. 379, tradução nossa)
157
Numa segunda variável, encontra-se a manifestação psicológica dos alunos. O teatro abre
um espaço à expressividade emocional do aluno, para si mesmo e para o grupo. Ao praticar os
exercícios teatrais o aluno conecta-se consigo mesmo, num processo de autoconhecimento e
maior valorização do sentir, como campo a ser incluído no processo de aprendizagem. Esta
consciência da sensibilidade é confirmada por Duarte Jr. ao dizer que “através da arte temos
como que uma visão dos nossos sentimentos, temos formas que nos permitem ver de fora a
inefável dimensão do nosso sentir” (2003, p. 47).
Com esta perspectiva de investimento nos valores humanos de cada um, destacamos o que
o professor Freinet nos explica, quando propõe que a escola deve proporcionar aos alunos um
método de formação eficiente, mas devendo salvaguardar os direitos da vida e da humanidade,
pois a pessoa precisa “harmonizar seus atos com seus sentimentos, com seu coração e com sua
concepção de solidariedade” (1998, p. 121).
afirmar que:
Junta-se a isto, também, a abertura que o teatro promove, para se incluir na sala de aula as
diversas dificuldades psicológicas que o aluno possua, tornando o ambiente educativo um
momento de valorização da pessoa, em sua intimidade viva e latente. Muitas vezes estes
sentimentos explodem na escola como atos violentos ou depressões profundas, pois não há
espaço de expressividade para os indivíduos, que estão ali para viver, conviver, exercitar o
carinho e aprofundar sua formação enquanto seres humanos integrais.
O espetáculo é uma obra artística que tem suas peculiaridades ligadas ao evento ao vivo, à
interação entre público e produto artístico, aos elementos específicos da cena e ao jogo
imaginário da representação. Ele se constitui de um rico arsenal de saberes, sensações, imagens
etc., que chega ao público e toca-o de diversas formas, e nas dimensões corporais, emocionais,
159
sociais, mentais e espirituais. Cada elemento da obra tem sua característica a ser explorada dentro
de um leque de conhecimentos ligados ao viver da pessoa na relação consigo e com seu contexto.
Há, por tudo isso, um potencial didático na obra artística que permite diversas aprendizagens.
Cada espetáculo tem sua minúcia, como produto didático. Este termo didático é aqui
compreendido como “um conjunto de métodos próprio para o ensino de uma disciplina” e
também “é uma reflexão sobre os métodos de ensino para aqueles que os utilizam” (DANVERS,
2003, p. 160), sendo, no caso específico, relacionado à obra teatral como conteúdo.
Esta didática dá-se, também, ao se entender o produto final, que é o espetáculo, como um
conteúdo disparador de várias aprendizagens. O processo didático com o espetáculo desenrola-se
pela própria metodologia da mediação teatral.
O teatro concretiza-se como caminho educativo, como experiência estética que educa o
ser em diversos campos do conhecimento. É desta riqueza de poder visualizar e viver a obra, na
sua pluralidade de signos, sentimentos, ideias e temas, que a faz uma experiência dinâmica e
diferente, em relação aos outros procedimentos didáticos nas escolas.
Havia uma visão sobre o teatro na escola, dentro do projeto Cuida Bem de Mim, que pode
ser aplicada ao que se explicou até agora sobre a mediação teatral e o seu valor na escola. O
diretor teatral Luiz Marfuz (2000, p. 37-39), ao sistematizar a Tecnologia Educacional com
Teatro –TET, trouxe oito definições que afirmam o teatro como experiência artística e
pedagógica. Nos quatro primeiros pontos, ele fala do teatro no desenvolvimento da pessoa e da
cidadania, como se lê a seguir:
160
É importante para esta pesquisa trazer estes pontos, pois foram eles que geraram as
principais diretrizes de sucesso dos doze anos do projeto Cuida Bem de Mim. Com estas oito
definições, o projeto manteve a consistência pedagógica e artística que envolveu as escolas e
convenceu seus patrocinadores sobre a importância das ações de mediação teatral nas escolas. O
Cuida Bem de Mim foi um exemplo de uma obra utilizada como produto didático dentro das
escolas.91 Estas explicações sobre o que é teatro, enquanto metodologia artístico-pedagógica na
escola, afirmaram a mediação teatral como um processo de transformação da pessoa e da
comunidade.
A escolha de um espetáculo para ser apresentado aos alunos é uma tarefa que precisa
passar por questões estéticas, pedagógicas e técnicas. Estas argumentações confirmam uma
relação educacional e uma qualidade para que a experiência artística seja transformadora para os
alunos e a comunidade escolar.
Quando se define uma obra teatral, a ser trabalhada nas ações educativas, é importante
pensar que
91
É importante esclarecer que o espetáculo Cuida Bem de Mim se transformou em um filme profissional,
lançado pela Secretaria de Educação da Bahia –SEC e que até hoje é utilizado pelas escolas, em diversos
Estados brasileiros.
162
Há um imenso poder em uma obra teatral dentro da escola, ao se pensar na sua capacidade
de interferência nas disciplinas e as suas metodologias, na convivência entre alunos e professores
e na mudança estética da arquitetura escolar. Este poder educativo, que opera resultados
transformadores, perpassa um caminho coerente quando se trabalha de forma organizada e
direcionada, pedagogicamente.
92
Termo muitas vezes utilizado para designar as aulas extraclasse, tendo a característica de manter a
organização e a aprendizagem iguais às existentes nas escolas, mas acontecendo em um espaço externo à
sala.
93
O autor sistematizou alguns campos de análise sobre a metodologia de mediação teatral, os quais
poderão ser utilizados com diferentes espetáculos e escolas.
164
Esta inserção da arte complementa-se quando se insere a obra teatral nas disciplinas,
facilitando aos professores introduzirem atividades artísticas em suas aulas e provocando uma
renovação metodológica no currículo. É algo que alimenta a interdisciplinaridade, ao gerar o
exercício da combinação e da aglutinação de conteúdos, da integração de métodos e uma
criatividade que torne a aula um momento dinâmico e envolvente para o aluno. Ao propor uma
atividade que traga a obra artística como metodologia ou até mesmo como conteúdo em si, o
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Com a escolha do fazer artístico como parte integrante e contínua destes projetos especiais
da escola, efetiva-se uma produção cultural que vai se direcionar para a comunidade escolar e
também para o seu entorno, integrando e formando culturalmente a população local. A escola
passa a potencializar seu lugar de usina cultural, em que os alunos ganham espaços abertos e
frequentes para mostrar seus talentos artísticos.
alunos à mobilização de sua autonomia, em que sua opinião e sua manifestação artística têm
espaço para acontecer.
Isto é possível devido à definição de que o aluno é o foco principal das ações e o sujeito
central de transformação. Ele é o ponto-chave para que os temas, as idéias estéticas e outros
diversos conteúdos que a obra traz possam efetivar-se enquanto ação que está mudando a escola.
É com ele, e a partir dele, que as ações saem do espaço reflexivo e entram na ação
transformadora. É conhecer, por vias mais sensíveis.Nestas atividades,
A escola é movida pela força coletiva dos alunos. A comunicação entre eles é ágil e
contagiante, tornando-se o foco da mobilização das atividades de mediação teatral. Quando se
interessam pela obra teatral e pelas atividades, viram parceiros presentes e atuantes na sequência
das ações.
O aluno é o sujeito ativo que tem imenso potencial para mudar e gerar um ambiente
saudável, junto com seus professores. As atividades de mediação teatral chegam para auxiliar
neste processo.
Este contato com as ações desenvolve-se com agilidade, quando o professor decide
envolver a sua turma e integrar os temas da obra teatral em sua disciplina. É uma disposição para
se trabalhar com a interdisciplinaridade, através das conexões que a mediação teatral facilita.
Quando o educador se torna parceiro das ações e ajuda no seu desenvolvimento ele acaba
vivendo uma experiência formativa intensa, na prática teatral. Durante as ações do projeto Cuida
Bem de Mim os professores começaram a utilizar alguns dos exercícios feitos nas oficinas em
suas aulas. Pode-se dizer com isso que a experiência do professor, vivendo com seu corpo e
168
emoções os exercícios da mediação teatral, acaba influenciando-o para que, em suas aulas, ele
inclua práticas introdutórias de teatro em sua metodologia.
Quem mais ganha com isso são os alunos. Eles acabam se envolvendo de forma mais
sistemática, nas atividades, pois seus professores consideram a prática teatral como algo positivo
e saudável para a escola.
É fundamental que este aluno seja mobilizado e sensibilizado pelo professor que está
engajado no projeto. O aluno é visto como o espectador que vai viver uma experiência de
aprendizagem estética, mediado pelo professor, que pode seguir a compreensão de que
No caso do item da relação das ações e a direção,a abertura para o desenvolvimento das
atividades se faz na gestão escolar. Esta gestão pode repensar a escola em sua estrutura cultural,
seja na organização de corredores, salas e muros, mas, principalmente na elaboração de espaços
que tragam criações artísticas dos próprios alunos. A sensibilização para as artes que a mediação
teatral proporciona pode propiciar a existência de ambientes com pinturas, espaços para
apresentações, rádios estudantis, festivais etc. Gera-se assim um ambiente educativo mais
estetizado, em que a escola provoca um novo vínculo criativo com seus alunos. Esta
movimentação cultural muda o ambiente físico da escola, seguindo o que Paulo Freire esclarece
ao afirmar que “o ensinar e aprender não pode dar-se fora da procura, fora da boniteza e da
alegria”. (FREIRE, 1998, p. 160).
94
DESGRANGES, Flávio. Quando teatro e educação ocupam o mesmo lugar no espaço. Disponível em:
<http://culturaecurriculo.fde.sp.gov.br/administracao/Anexos/Documentos/420091014164649Quando%20
teatro%20e%20educacao%20ocupam%20o%20mesmo%20lugar%20no%20espaco.pdf>. (p. 5). Acesso
em: 8 set. 2011.
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professores e funcionários, numa relação criativa com o processo educativo, em que as atividades
com a obra teatral podem tornar o ambiente mais afetivo. A parte lúdica e criativa da escola é sua
identidade sendo manifestada. É uma proposta que gera um sentido maior de pertencimento, para
todos que ali vivem partes importantes de sua vida.
O fazer artístico, difundido pela escola, mobiliza um sentimento mais integrador, em que a
cultura de paz, os valores humanos e o ambiente saudável acontecem pelo grafitar, dançar,
interpretar, cantar etc. (Anexo G). É importante saber, como nos esclarece Duarte Jr., que,
Por último, tem-se o item da relação entre as ações e a comunidade, que ganha um olhar
mais voltado para o aumento da integração entre a escola e seu entorno. As ações de mediação
teatral acabam envolvendo o entorno da escola, mobilizando familiares e outros moradores para
se integrarem às vivências estéticas e temáticas trazidas pela obra que está sendo trabalhada.
Figura 53 – Alunos comemorando depois das atividades do pós-peça no Cuida Bem de Mim.
Um exemplo desse envolvimento foi registrado na Escola Padre Palmeira, localizada num
bairro periférico de Salvador. Atendida pelo projeto Cuida Bem de Mim, em 1998, conseguiu, a
partir dos estímulos das ações realizadas, criar outra ação, independente, que envolveu os pais de
alunos da comunidade. Ao criar o projeto Menino Maluquinho, trabalhou com a temática da
preservação da escola, a mesma do espetáculo, durante dois anos envolveu os pais de alunos,
como seus principais parceiros para transformar a escola e mantê-la organizada (figura 53).
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MAISON THÉÂTRE. Les programmes d’accessibilité de la Maison Théâtre. Montréal: Maison
Théâtre, 2011
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É com estas múltiplas vivências de contatos artísticos que a mediação teatral se confirma
como uma iniciação criativa ao teatro na escola. Para o autor Mafra Gagliardi,