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Lucilene Reginaldo

Parte I - Entre minas, congos e angolas: um filho de “pretos legítimos” nas


Minas Gerais do Brasil

“Diz André do Couto Godinho filho de Pedro Álvares, e de Victória do Couto,


pretos legítimos, e ele suplicante nascido e batizado na Freguesia de N. S. do
Rosário do Sumidouro, termo da cidade de Mariana, Bispado da mesma, que
para melhor servir a Deus, pretende ordenar-se de sacerdote (...)”.

Introito
Em março de 1758, André do Couto Godinho, recém-formado na Faculdade de
Cânones da Universidade de Coimbra, estava ocupado com as diligências necessárias
para habilitar-se ao sacerdócio. A formação em Direito Canônico abria portas para um
número considerável de ocupações e carreiras prestigiadas, quer na magistratura secular,
quer na administração eclesiástica. 1 Considerando a última alternativa, a ordenação
sacerdotal seria o primeiro passo nessa direção. Ainda não é a hora de entrar em
detalhes sobre os estudos de André em Coimbra, seus os percalços, as possíveis razões e
os caminhos – e descaminhos - que o levaram ao sacerdócio. Adianto que o tema é
apresentado em pormenores na segunda parte deste livro. O que interessa agora são seus
primeiros anos de vida. E, para tanto, uma petição apresentada pelo canonista recém-
formado à Câmara Eclesiástica do Bispado de Coimbra em 1758, cujas palavras iniciais
servem de epígrafe a este capítulo, foi minha principal porta de acesso a uma história
que começara há mais de três décadas e milhares de quilômetros de distância da cidade
de ruas estreitas e arcos medievais, atravessada pelo Rio Mondego.

A descrição na capa do documento sob a guarda do Arquivo da Universidade de


Coimbra sugere que estava ali guardado o processo de habilitação sacerdotal – ou pelo
menos partes dele - de André do Couto Godinho. 2 A candidatura ao sacerdócio exigia
que o pretendente abrisse um processo na Câmara Eclesiástica do Bispado. Como
enuncia o próprio título, o processo de investigação de genere, vita et moribus era

1
Fernando Taveira da Fonseca, A Universidade de Coimbra (1700-1771) Estudo Social e Econômico.
Coimbra: Universidade de Coimbra, 1995p. 129.
2
André do Couto Godinho. Processos de Justificação “De Genere”, para ordenação sacerdotal, 1758.
Arquivo da Universidade de Coimbra (AUC), caixa 32.
1
composto de três peças, ou melhor dizendo, três objetos de investigação principais: as
3
origens familiares, os costumes e o patrimônio do candidato. Em linhas gerais,
tratava-se de um procedimento obrigatório para o acesso a qualquer cargo ou honraria,
fosse civil ou eclesiástico, tais como as habilitações para as ordens militares, ao Santo
Ofício, aos cargos públicos mais elevados e também ao sacerdócio. 4 No caso da
ordenação sacerdotal, o processo tinha particularidades e era regido e detalhadamente
orientado pelo Concílio de Trento e as constituições que o tiveram por referência. 5
Entretanto, e confesso minha decepção, no interior do surrado classificador constavam
apenas dois registros sintéticos: um pedido de justificação de compatriatura do
canonista e a resposta/parecer da Câmara Eclesiástica do Bispado de Coimbra à
solicitação.

Em termos objetivos, pode-se dizer que era um pedido de André para ser
ordenado sacerdote naquele Bispado sem a obrigatória licença do prelado de Mariana,
autoridade religiosa primeira da sua diocese de origem.6 Naquele bispado, a dispensa de
compatriatura poderia ser automaticamente concedida se o candidato ao sacerdócio
estivesse afastado dez anos ou mais da paróquia onde havia sido batizado, o que não era
o caso, pois André vivia em Coimbra desde 1752, quando iniciou seus estudos na
universidade. Na solicitação, o candidato alegava dificuldades para obter as Reverendas

3
Anderson José Machado de Oliveira, As habilitações sacerdotais e os padres de cor na América
Portuguesa. Potencialidades de um corpus documental. Acervo, vol. 31, no. 1, p. 4.
4
A partir do Concílio de Trento, a Igreja Católica passou a exigir limpeza de sangue dos candidatos ao
sacramento da Ordem. Isso se dava “através dos processos de genere, vita et moribus, para conhecer os
progenitores, a vida e os costumes dos habilitandos (...). João Figueroa-Rego, “A honra alheia por um
fio”. Os estatutos de pureza de sangue nos espaços de expressão ibérica (sécs. XVI-XVIII). Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian/Fundação para a Ciência e Tecnologia, 2008, p. 49. João de Figueroa-
Rego; Fernanda Olival, Cor da pele, distinções e cargos: Portugal espaços atlânticos portugueses (séculos
XVI a XVIII). Tempo. Rio de Janeiro, nº 30, pp. 115-145, janeiro/junho de 2011; Aldair Carlos
Rodrigues, Limpos de sangue. Familiares do Santo Ofício, Inquisição e Sociedade em Minas Colonial.
São Paulo: Alameda, 2011; Rodrigues, Aldair Carlos. Os processos de habilitação: fontes para a história
social do século XVIII luso-brasileiro. Revista de fontes 1.1 (2014): 28-40.
5
No momento em que André do Couto Godinho tratava de sua ordenação, a constituição vigente no
Bispado de Coimbra era a de 1598, reimpressa com um novo índex em 1731. As ordenações sacerdotais
são regulamentadas no Título VIII. Do sacramento da ordem. Constituições synodaes do Bispado de
Coimbra, e ordenadas pelo Synodo do Illustrissimo, e Reverendissimo Senhor D. Afonso de Castel
Branco...& por seu mandado impressas em Coimbra, anno de 1598. E novamente impressas no ano de
1730 cum hum novo índex. Coimbra: no Real Collegio das Artes da companhia de Jesus, 1731, 440 p.
http://hdl.handle.net/10316.2/9587. Acessado em 20.02.22.
6
Constituições synodaes do Bispado de Coimbra, e ordenadas pelo Synodo do Illustrissimo, e
Reverendissimo Senhor D. Afonso de Castel Branco...& por seu mandado impressas em Coimbra, anno
de 159. E novamente impressas no ano de 1730. Título VIII, Constituição VII.5
2
7
“por se achar ausente há anos e o seu Excelentíssimo e Reverendíssimo Ordinário não
ter dele conhecimento”.8 Sem alternativa, como alegou o próprio, só restava apelar para
a concessão da justificativa de compatriatura.

É possível que o invólucro, além das quatro folhas manuscritas “sobreviventes”,


em algum tempo, tenha de fato contido outros fólios do processo de habilitação
sacerdotal. Admito que cultivo a esperança de que o processo – ou outras partes dele –
ainda esteja “perdido” em maços desconhecidos... Mas deixando de lado as grandes
expectativas - que por vezes ofuscam a visão do que está mais próximo - o que ali se
dispunha, por si só, foi de grande valia para esta investigação. Voltarei aos mesmos
documentos, mais adiante, quando for tratar mais detalhadamente da ordenação. Por
ora, vou me deter em outros detalhes que a mesma petição informa. E que me levaram a
um pequeno arraial encravado nas Minas Gerais do Brasil e a um casal de “pretos
legítimos”.

No pedido de justificativa de compatriatura, André declarou sua filiação logo de


início, como era de praxe. O nome do seu pai, Pedro Álvares, já tinha sido informado
nos registros anuais de matrícula entre os anos de 1752 e 1758.9 O que também era um
procedimento padrão e obrigatório. Mas o documento de 1758 reservava uma grata
surpresa para esta historiadora: o nome de sua mãe, Victória do Couto,10 ausente dos
registros acadêmicos e de outros documentos conhecidos até então. Na solicitação em
questão, o casal de progenitores, Victória e Pedro, são apresentados como “pretos
legítimos”. O que me pareceu um enigma a ser desvendado.

Até onde pude saber, esse adjetivo composto não foi uma fórmula usual no
Setecentos, talvez nem antes, nem depois. (NOTA) Então vamos por partes. O primeiro
termo da adjetivação não levanta dúvidas. No século XVIII, tanto no reino como na
colônia, “preto” era associado à condição escrava. O prestigiado dicionarista nos diz que

7
Reverendas são “as letras dimissorias nas quais o bispo dá faculdade ao súdito para receber as ordens de
outro”. Rafael Bluteau, Vocabulario Portuguez e latino. (1713). https://www.bbm.usp.br/pt-
br/dicionarios/vocabulario-portuguez-latino-aulico-anatomico-architectonico/?q=reverendas

8
André do Couto Godinho. Processos de Justificação “De Genere”, para ordenação sacerdotal, fl.3.
9
André do Couto Godinho. Fundo Universidade de Coimbra. Série Livros de Matrículas, Vol. 70 (1752-
1753), fl. 291v; Vol. 71 (1753-1754), fl. 34; Vol. 72 (1754-1755), fl. 35; Vol. 73 (1755-1756), fl. 33;
Vol. 74 (1756-1757), fl. 49; Vol. 75 (1757-1758), fl. 44v; Vol. 76 (1758-1759), fl. 37v.
10
Esse é o único registro no qual o nome da mãe de André é grafado como Victória. Decidi adotar a
grafia mais recorrente: Vitória.
3
“preto se chama o escravo” e pretinho é o “mesmo que pequeno escravo”. 11 No mesmo
vocabulário setecentista, a primeira acepção escolhida para ilustrar o termo “legítimo” -
o que é “conforme a lei” – é a condição de filho “nascido de legítimo matrimônio”.12
Assim, minha hipótese é que o termo composto (pretos legítimos) – talvez evocado ou
formulado para as necessidades do momento - sugere a condição de legitimidade do
casal de progenitores, permitindo interpretar que a união teria sido sacramentada pela
Igreja Católica. Considerando que a ordenação sacerdotal era a “necessidade do
momento”, a condição de filho legítimo seria um obstáculo a menos no meio do
caminho. Deixarei essa hipótese de lado, por enquanto, mas voltarei a ela no momento
apropriado.

Além do nome dos pais, o pedido de dispensa de compatriatura menciona a


localidade do batismo de Andre, que ao que tudo indica, é também o de nascença: a
“freguesia de N. S. do Rosário do Sumidouro, termo da cidade de Mariana, bispado da
mesma”.13 Curiosamente, a provável data do seu nascimento, eu descobri no “primeiro
encontro” com o personagem. Em 1779, o padre missionário André do Couto Godinho
desembarcou no bispado de Angola. Em sua apresentação ao prelado local, entre outras
informações biográficas, constava que ele tinha sido batizado no ano de 1720. 14
Suponho que a data não seja precisa, mas outros indícios confirmam que de fato André
nasceu nos primeiros anos da década de 1720. Esse assunto merece ser melhor
detalhado, e farei isso logo mais.

Enfim, os nomes e a condição dos pais, juntamente com indicação da freguesia e


data do batismo, me levaram ao ponto de partida de uma história pessoal que, como
pretendo demonstrar, se entrelaça e ganha sentido em meio a outras histórias de homens
e mulheres escravizados, libertos e livres, que viveram nas Minas Gerais do Brasil na
primeira metade do século XVIII. Neste contingente de imigrantes, a maioria inconteste

11
Bluteau, Rafael. Vocabulario Portuguez e latino. (1713). https://www.bbm.usp.br/pt-
br/dicionarios/vocabulario-portuguez-latino-aulico-anatomico-architectonico/?q=preto
12
Rafael Bluteau, Vocabulario Portuguez e latino. (1713). https://www.bbm.usp.br/pt-
br/dicionarios/vocabulario-portuguez-latino-aulico-anatomico-architectonico/?q=leg%C3%ADtimo
13
Nos livros de matrículas, os mesmos onde constava o nome de Pedro Álvares, era igualmente de praxe
a identificação do local de origem do estudante. A matrícula de 1752, ano do ingresso de André em
Coimbra, informava que ele era natural das Minas Gerais do Brasil. Em 1753, consta apenas que era
natural do Brasil. E, a partir e 1754 até sua formatura em 1758, as matrículas registram que era natural da
Cidade de Mariana. André do Couto Godinho. Fundo Universidade de Coimbra. Série Livros de
Matrículas.
14
Relação dos missionários que chegaram ao Reino de Angola por missionários no ano de 1779. Arquivo
Histórico Ultramarino, Angola, Caixa 62/63, doc. 97.
4
de africanos escravizados é retumbante e, quero crer, determinante nos rumos da
trajetória pessoal e da história coletiva que aqui pretendo contar.

Por ora, deixemos Coimbra – para onde mais adiante retornaremos – para
concentrar a atenção no distante Sumidouro, um modesto povoado encravado nas
montanhas das Minas Gerais do Brasil.

5
1. Nascido e batizado no Arraial do Sumidouro

Quando André veio ao mundo, no início da década de 1720, o Sumidouro era


um pequeno arraial pertencente ao termo da Vila do Ribeirão do Carmo.15 Instituída em
1711, esta vila consta entre as primeiras criadas nas Minas Gerais e seu surgimento
remete às descobertas de ouro na região, no final do século XVII.16

Entre os anos de 1693 e 1695 ocorreu a descoberta de ouro de aluvião nos vales
do rio das Mortes e do rio Doce. Isso se deu quase simultaneamente em várias regiões,
tendo como pioneiros e prospectores os chamados “paulistas”, brancos e mestiços,
“habilitados nas artes dos sertões e dos matagais”, que se deslocavam pelo interior, em
ajuntamentos “paramilitares” conhecidos como bandeiras. Estes bandos, que podiam
variar de duas dezenas a centenas homens - o que incluía guias, batedores e
carregadores indígenas, livres e cativos, – além da escravização dos nativos, tiveram
especial empenho na busca do “Eldorado” em domínios portugueses. 17 E lograram
sucesso no final do século XVII.

Em 1696, bandeiras paulistas “descobriram o rio, riquíssimo em ouro, que


batizaram de Ribeiro de Nossa Senhora do Carmo”. 18 As primeiras moradias foram
erguidas ao longo da praia, acompanhando a disposição das lavras recém descobertas e
repartidas entre os exploradores. Entre 1701 e 1703, foi instituída a freguesia de Nossa
Senhora da Conceição do Ribeirão do Carmo, sede da vila. E, por volta de 1711, em
decorrência da expansão da mineração, a nova vila já contava com uma população
numerosa.19

O fenômeno impulsionado pela “sede insaciável do ouro” se estendeu por toda a


região mineradora, sendo praticamente impossível precisar o número de pessoas que
15
O Sumidouro passou à condição de freguesia, sob a invocação de Nossa Senhora do Rosário, em 1748.
A Vila do Carmo, por sua vez, foi elevada à Leal Cidade de Mariana em 1745, mesmo ano da criação do
bispado. Essas informações constam na solicitação de justificativa compatriatura, na qual André do Couto
Godinho informa ter nascido na freguesia do Sumidouro, Bispado de Mariana.
16
Em 1711, foram criadas as primeiras vilas das Minas Gerais: Vila de Nossa Senhora do Carmo, Vila
Rica e Vila de Nossa Senhora da Conceição de Sabará. Iris Kantor, A Leal Vila de Nossa Senhora do
Ribeirão do Carmo. In: Termo de Mariana. História e Documentação. Ouro Preto: Editora da UFOP,
1998, p. 147.
17
Charles Boxer, A Idade de ouro do Brasil. Dores de crescimento de uma sociedade colonial. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 57-58; 61- 62.
18
Claudia Damasceno Fonseca, Espaço urbano em Mariana: sua formação e suas representações. In:
Termo de Mariana. História e Documentação, p. 28
19
Maria do Carmo Pires, O Termo da vila de Nossa Senhora do Carmo/Mariana e suas Freguesias no
século XVIII. in: Chaves, Claudia Maria das Graças, ett. Ali. (orgs). Casa de Vereança de Mariana. 300
anos de história da Câmara Municipal. Ouro Preto: EUFOP, 2012, pp. 26-28.
6
acorreram às Gerais naqueles primeiros tempos das descobertas. O célebre jesuíta
Antonil declarava que, no início do século XVIII, “mais de trinta mil almas se ocupam,
umas em catar, e outras em mandar catar nos ribeiros do ouro, e outras em negociar
(...)”.20 No intuito de estabelecer algum controle sobre “o enorme afluxo de gente (...)
bastante heterogênea” que afluía às minas do ouro 21 e, principalmente, com vistas à
fiscalização da exploração do precioso mineral, a coroa estabeleceu as primeiras bases
administrativas na região mineradora, com foco privilegiado nas localidades “melhores
e de maior rendimento” como a do ribeiro de Ouro Preto e a do ribeirão de Nossa
Senhora do Carmo.22

Em 1714, a região mineradora foi desmembrada em três comarcas: Vila Rica,


Vila de Sabará e Rio das Mortes. Embora fosse menos extensa, a comarca de Vila Rica
foi o principal foco de atenção da coroa na primeira metade do século XVIII, o que
elucida sua escolha para sede da capitania de Minas Gerais, desassociada da do Rio de
Janeiro em 1720. A mesma comarca, por sua vez, foi dividida em dois termos: Vila
Rica e Vila de Ribeirão do Carmo.23

O território do termo de Ribeirão do Carmo guardava uma diversidade


geográfica maior do que o da Vila Rica de Ouro Preto, “enclausurada entre as serras da
Moeda e os contrafortes ocidentais do Espinhaço”. 24 Coberta por diferentes formas
vegetais, incluindo, terrenos carrasquenhos, vales naturais úmidos e áreas cobertas por
mata atlântica, Ribeirão do Carmo foi palco de atividades econômicas diversas,
notadamente mineradoras e agropecuárias. Apesar das imensas - e horrendas - cicatrizes
deixadas no meio natural pela exploração do ouro, nos séculos passados e, em tempos
mais recentes, do ferro, nos pequenos distritos - alguns renomeados, outros com seus
nomes antigos – ainda é possível ver um pouco dessa paisagem diversa.25 O pequeno
povoado de Bento Rodrigues, pertencente ao distrito de Santa Rita Durão, era mais ou
menos assim até 5 de novembro de 2015, quando foi soterrado com o rompimento de

20
André João Antonil. Cultura e opulência do Brasil. [1711]. Belo Horizonte/São Paulo: Ed. Itatiaia/Ed.
da Universidade de São Paulo, 1982, p. 67.
21
Laura de Mello e Souza, Os desclassificados do ouro, p. 66.
22
André João Antonil. Cultura e opulência do Brasil. [1711], p. 166.
23
Maria do Carmo Pires, O Termo da vila de Nossa Senhora do Carmo/Mariana e suas Freguesias no
século XVIII, pp. 29-30.
24
Angelo Carrara, Paisagens rurais do Termo de Mariana. In: Andréa Lisly Gonçalves; Ronaldo Polito de
Oiliveira. Termo de Mariana. História & Documentação (Volume II), 2014, p. 31.
25
Mariana integra o Quadrilátero Ferrífero, região com cerca de 7.000 Km², localizada no centro-sul de
Minas Gerais, responsável por 60% de toda produção nacional de ferro. https://qfe2050.ufop.br/ Acessado
em 25/0222.
7
uma barragem da empresa mineradora Samarco.26 A história da exploração mineral, que
deixou marcas indeléveis na paisagem das Minas Gerais, soterrando muito gente nestes
quatro séculos, ainda está para ser contada.

Até o ano de 1831, a vila de Ribeirão do Carmo, então cidade de Mariana,


abarcava uma área de cerca de 50.000 km², abrangendo os sertões do Rio da Pomba,
Muriaé e Doce, e se estendendo até as fronteiras com o Rio de Janeiro. 27 Além de mais
extensa, era também mais populosa que a vizinha Vila Rica, abrigando um grande
número de localidades entre freguesias e arraiais subordinados.28 Em 1718, a população
de Ribeirão do Carmo foi estimada em 15.336 pessoas, sendo 5.498 livres e 9.838
escravizados.29 Cinco anos mais tarde, em 1723, a população escravizada havia crescido
exponencialmente, chegando a 15.828 indivíduos. Este padrão se estendia a vizinhança.
Entre os anos de 1713 e 1756, os escravizados representaram 65% da população da
Comarca de Vila Rica. Segundo Kelmer, esse foi “um dos maiores percentuais jamais
vistos na história da escravidão”.30 A explicação para esse fenômeno está na própria
estruturação do sistema de exploração aurífero.

A exploração do ouro descoberto no final do século XVII nos vales formados


nos flancos da Serra do Espinhaço era absolutamente dependente do trabalho dos
escravizados. O primeiro passo firme da política de controle da exploração aurífera foi o
Regimento das Minas, promulgado pelo governador do Rio de Janeiro em 1700. 31 O
regulamento estabelecia que após a escolha das primeiras duas datas pelo descobridor, a
terceira e a quarta eram consignadas pela Coroa e pelo seu representante. As demais
tinham “a extensão proporcionada ao número de escravos que trazem para catar, (...)

26
Cristina Serra escreveu uma bela e emocionante narrativa sobre o evento e o contexto no qual se
inscreve. Tragédia em Mariana. Rio de Janeiro: Record, 2018.
27
Washington Peluso Albino de Souza, As lições das vilas e cidades das Minas Gerais. In: Ensaios sobre
o ciclo do ouro. Belo Horizonte: UFMG, 1978, p. ?
28
Em 1723, eram 19, além da sede da Vila: Passagem, Catas Altas, Inficionado, Furquim, Sede da Vila,
São Sebastião, Antônio Pereira, Guarapiranga, Sumidouro, Bacalhao, Brumado, Camargos, São Caetano
Rio Abaixo, São Caetano, Itacolomy, Pinheiro Rocha, Monsus, Bento Rodrigues, Gualaxos do Sul e
Gama. Reais quintos e lista de escravos do Termo na Vila do Carmo de 1723, cód. 166, fl.57. Arquivo
Histórico da Câmara de Mariana (AHCMM).
29
Carlos Leonardo Kelmer Mathias, As múltiplas faces da escravidão. RJ: Mauad Editora Ltda, 2012, p.
237.
30
Carlos Leonardo Kelmer Mathias, As múltiplas faces da escravidão, p. 24; Tarcísio Rodrigues Botelho,
População e escravidão nas Minas Gerais, c. 1720, p. 15.
http://www.abep.org.br/~abeporgb/publicacoes/index.php/anais/article/viewFile/1049/1014
31
Charles Boxer, A idade de ouro do Brasil. Dores de crescimento de uma sociedade colônia. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2002, p. 74.
8
assim quem tem quinze escravos se dá uma data inteira de trinta braças de quadra”. 32 A
região, que era praticamente despovoada nos tempos da descoberta, em 1710 já tinha 40
mil habitantes, sendo a metade composta de escravizados. Na década de 1720, os
cativos passavam de 50 mil, ultrapassando o número de livres.33

Antes de nos determos sobre estes dados com foco e interesses locais, julgo
importante inseri-los num contexto mais amplo, a fim de chamar a atenção para o peso
demográfico da população escrava na região mineradora nas primeiras décadas do
século XVIII. Tendo em vista a ausência de levantamentos populacionais típicos, fontes
que tradicionalmente deram suporte mais seguro aos estudos demográficos, os
pesquisadores dedicados à investigação dos primeiros anos de ocupação da região
mineradora têm produzido estimativas utilizando de séries documentais alternativas,
com destaque, nas primeiras iniciativas, para os registros fiscais. Com base nas listas de
escravos declarados para cobrança dos quintos reais, Botelho fez estimativas
demográficas sobre o total de escravizados e livres nas seis localidades mineradoras
mais antigas no inicio da década de 1720.

O historiador reuniu registros de cobrança de quintos da Vila do Carmo, Vila


Rica, Sabará, São João Del Rey e Pitangui para os anos de 1721 e 1722, e mesmo
considerando a natureza fluída e imprecisa dos dados em vários aspectos, elaborou três
hipóteses que vale aqui reproduzir. A primeira, adjetivada pelo autor de “a mais
conservadora”, sugere que a população livre na região mineradora foi algo em torno de
46 mil pessoas, num total de mais ou menos 92 mil habitantes. A segunda hipótese
admite que os livres seriam cerca de 40% da população total, algo em torno de 30 mil
habitantes num computo geral de 69 mil pessoas. A terceira, hipótese, mais
“escravagista” calcula 23 mil livres numa população de 69 mil pessoas. Após uma série
de exercícios, o historiador considera que a segunda hipótese é a mais plausível.

Embora as estimativas de Kelmer acima reproduzidas tenham como lastro uma


base empírica circunscrita – o termo da Vila do Carmo – bem como outras séries
documentais (a totalidade das escrituras cartoriais, 10.087 no total, e os 360 inventários
32
Antonil, Cultura e opulência do Brasil, p.169. As datas tinham 900 braças quadradas, ou seja, 4.356
metros quadrados cada uma. Distribuídas as datas do descobridor e da Coroa, as demais eram repartidas
entre os mineiros que tivessem mais de 12 escravos. Os que tivessem uma quantidade de escravos menor
do que essa recebiam 25 braças em quadra por escravo. Havendo terras a distribuir, os que tinham acima
desta quantidade poderiam receber um suplemento na mesma base. Idem, p. 212.
33
Herbert Klein, A escravidão africana na América Latina e no Caribe. São Paulo: Brasiliense, 1987,
p.83.
9
preservados), uma comparação rápida entre as estimativas desse autor e as de Botelho
confirma a plausibilidade da impressionante concentração de escravizados na região
mineradora, em geral, e na Vila do Carmo, em particular: algo entre 60% e 65% dos
habitantes.

Em 1723, o nome de Vitória, a mãe de André, constava na lista de escravos


declarados por Antonio do Couto Godinho no registro de pagamento do quinto real.34
Aí não consta que Vitória teria filhos, nem tampouco o nome de André estava na
referida listagem. O que me faz supor que seu nascimento é posterior a essa data. No
total, foram contabilizados 658 escravos no arraial do Sumidouro. Os companheiros de
cativeiro de Vitória, assim como a própria, receberão atenção especial mais adiante,
ainda neste capítulo. 35 Por enquanto, vamos tratar do seu primeiro senhor e proprietário,
de quem ela e o filho André herdaram o sobrenome, como era o costume.

Antonio do Couto Godinho nasceu na freguesia de Santiago de Riba-Ul, no


bispado do Porto.36 Filho legítimo de André Luís e de sua esposa Catarina Fernandes,
ambos naturais da mesma freguesia, antes de emigrar para o Brasil, viveu um bom
tempo, mais precisamente entre 1695 e 1709, na casa de parentes em Lisboa.37 Um dos
familiares que o acolheu era Bento do Couto, morador na Freguesia de São Paulo, local
onde também residiam muitos comerciantes estrangeiros sediados na corte. (NOTA) É
provável que as notícias das descobertas de ouro, que chegavam pelas frotas desde o
final do século XVII, e que, com certeza, era o principal assunto nas rodas de conversas
dos comerciantes da cidade, tenham despertado em Antonio o desejo de emigrar para o
Brasil. Mas também é certo que as notícias se espalharam rapidamente por todo reino.
Assim, a decisão pode ter sido tomada ainda em sua pequena aldeia.38 No Sumidouro,

34
O pagamento do quinto real era a tributação básica sobre a atividade mineradora. Segundo Botelho “A
cobrança era realizada diretamente pelas Câmaras ou através de procuradores nomeados por ela. Tinha
como base a quantidade de escravos de cada minerador, devendo ser fixado a cada ano o valor a ser pago
sobre cada cativo. Em função disto, ao longo das décadas de 1710 e 1720, a organização da cobrança
deste tributo deu origem a uma série de listas de proprietários de escravos”. Tarcísio Rodrigues Botelho,
População e escravidão nas Minas Gerais, c. 1720, p. 3
35
Reais quintos e lista de escravos do Termo na Vila do Carmo de 1723, Códice 166, AHCMM. Eram
eles: Antonio Moçambique, Francisco Mina, Miguel Mina, Juana Mina, Manoel Mina, Baltazar Cabo
Verde, Felipe Cabo Verde e Domingas Mina.
36
A freguesia, que data dos tempos medievais, junta o nome do seu orago e com a zona topográfica, que é
a margem ou riba do rio Ul. https://www.cm-
oaz.pt/oliveira_de_azemeis.1/freguesias.42/santiago_de_riba_ul.60.html
37
Processo Matrimonial, nº 0399, aberto em 28 de junho de 1728. Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese
de Mariana (AEAM).
38
A tradição de imigração para o Brasil atravessa a história do atual município de Oliveira de Azeméis,
que nos dias atuais abarca a antiquíssima freguesia de Santiago de Ul. Edifícios construídos por
10
como veremos mais adiante, Antonio conviveu e se reencontrou compatriotas de várias
partes de Portugal, alguns oriundos do Porto, seu bispado de origem.

O grande contingente de exploradores que corria às minas de ouro era bem


diverso: gente do outro lado do Atlântico, do sertão do São Francisco ou da escalada da
Mantiqueira. 39 Neste contingente, foram pioneiros os “paulistas”, como já destaquei.
Mas os “aventureiros” vindos do sertão da Bahia, que assim como os bandeirantes de
São Paulo, foram desbravadores antigos dos caminhos para as minas, engrossaram
rapidamente as fileiras dos mineradores. 40 Além destes, também eram numerosos os
reinóis que chegavam em pequenos grupos ou em empreitadas mais ou menos
individuais. Desde os primeiros quinze anos da mineração, até por volta de 1715, algo
em torno de 15 a 20 mil portugueses “tentaram a sorte nas minas”.41 Antonio do Couto
Godinho foi um deles.42

Em 1714, Antonio já estava estabelecido no Sumidouro, sendo um dos primeiros


moradores do arraial recém-criado.43 Ao que tudo indica, não parece ter tentado a sorte
diretamente na mineração, pois logo nos primeiros anos de residência na região decidiu
investir seus modestos recursos em terras cultiváveis, comprando um sítio na vizinha
freguesia de São Sebastião.44 O mesmo fez seu compatriota João Gonçalves da Costa,
pai do famoso poeta Claudio Manoel da Costa – outro famoso egresso da Universidade
de Coimbra -, que desde 1712 era proprietário de um sítio num arraial da Vila do Carmo
onde “criava aves, plantava milho, cana-de-açúcar e contava com cinquenta pés de
banana”. 45 Assim como Antonio e a maioria dos imigrantes do Reino, João Gonçalves
era natural do norte de Portugal, de São Mamede das Doninhas, onde vivia da lavoura.
É bem possível que o cultivo da terra fosse a principal lida de Antonio na pequena

emigrantes regressados do Brasil constam como patrimônio arquitetônico e atração turística da cidade. O
tema também é registrado na obra de Ferreira de Castro. Filho da terra, autor dos romances Emigrantes e
Criminoso por Ambição, entre outros, nos quais aborda a experiência de imigrantes portugueses no Brasil
no início do século XX.
39
Laura de Mello e Souza, Claudio Manoel da Costa. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 19.
40
Charles Boxer, A idade de ouro do Brasil, p. 62.
41
Laura de Mello e Souza, Claudio Manoel da Costa, p. 19.
42
A imigração portuguesa para a região aurífera foi composta majoritariamente por homens, o que causou
um grande impacto demográfico em Portugal como um todo, mas especialmente nas províncias do norte e
do centro-norte. Ramos, Donald. From Minho to Minas: the Portuguese roots of the mineiro family.
Hispanic American Historical Review 73.4 (1993), p. 641.
43
Processo Matrimonial, nº 0399, AEAM.
44
Escritura de dívida, obrigação e hipoteca que fazem Tomás da Silva Preto e Antonio do Couto Godinho
ao capitão Manoel Rodrigues Covilham de um sítio de terras. AHCSM, Livros de Notas, Liv. 6, fl.72v,
1717.
45
Laura de Mello e Souza, Claudio Manoel da Costa, pp. 19; 27.
11
aldeia de Santiago de Riba-Ul, mas também não se deve descartar que, durante os nove
anos residindo em Lisboa, tenha adquirido certo traquejo no comércio. As alternativas,
entretanto, não são excludentes, podendo ainda ser complementares.

No Sumidouro, Antonio parece ter se dedicado principalmente à produção


agrícola de alimentos para comercialização, gênero que nas minas, literalmente, valia
ouro, pois “o menos que se pedia e dava por qualquer cousa eram oitavas”. 46 A
produção de alimentos e a criação de animais domésticos, bem como sua
comercialização próxima às áreas mineradoras, foram estimuladas pelos altos preços
alcançados por estes gêneros.47 Passados os primeiros anos da corrida pelo ouro, foi
ficando cada vez mais evidente para gente como Godinho de que era possível acumular
“quantidade razoável de ouro” vendendo “cousas comestíveis, água ardente e
garapas”.48

Não só da mineração se sustentaram as Minas, também o comércio e a


agricultura “ditaram o ritmo da economia e as bases da organização social da
capitania”. 49 Na primeira metade do século XVIII, a vizinha freguesia de Camargos
tinha cerca de 1.000 moradores, destes, total, quase um terço envolvido com atividades
mercantis em algum momento de suas vidas. Eram homens de grosso trato, outros
menos abastados e pequenos comerciantes fixos e ambulantes nos mercados locais;
dedicados ao comércio de importados da colônia ou de gêneros produzidos
internamente.50

Os sítios dispostos pelos arraiais da Vila do Carmo ficavam nas áreas de


mineração ou à margem das estradas e caminhos que davam acesso às jazidas. As
propriedades eram compostas basicamente de casas, algumas benfeitorias e terras onde

46
André João Antonil. Cultura e opulência do Brasil. [1711], p. 170.
47
Francisco Vidal Luna, Minas Gerais: escravos e senhores: análise da estrutura populacional e
econômica de alguns centros mineratórios (1718-1804). (Tese de Doutorado) São Paulo: Faculdade de
Economia e Administração USP, 1980, p. 14.
48
André João Antonil. Cultura e opulência do Brasil. [1711], p. 173. Sobre o comércio de secos e
molhados e seus agentes na Vila do Carmo, na primeira metade do século XVIII, ver: Moacir Rodrigo de
Castro Maia, As vendas e secos e molhados: o abastecimento dos moradores da Leal vila do Carmo na
primeira metade do século XVIII. In: Cláudia Maria Graças Chaves; Maria do Carmo Pires; Sônia Maria
de Magalhães (Orgs.). Casa de Vereança de Mariana, pp. 106 – 12; Flávio Puff, O pequeno comércio e o
perfil de seus agentes em Minas Gerais: Camargo (1718-1755). Revista Eletrônica de História do Brasil,
vol.6, nº 2 (2004), pp. 169-185.
49
Flávio Puff, O pequeno comércio e o perfil de seus agentes em Minas Gerais: Camargo (1718-1755),
pp168, 169.
50
Flávio Puff, O pequeno comércio e o perfil de seus agentes em Minas Gerais: Camargo (1718-1755), p.
169.
12
estavam as roças de mantimentos (especialmente, milho, feijão, amendoim e arroz) e
engenhos de moer cana para produção de melaço e água ardente. A maior presença de
escravizados no trabalho da lavoura marcava a distinção entre as unidades de produção
familiar e aquelas destinadas ao comércio local e regional. Em 1737, o sítio de Manoel
Coelho, localizado em Camargos, tinha 53 escravos. A propriedade de João Camargo
Lopes, partilhada em 1743, tinha 65 alqueires de milho. Como se verá adiante, o sítio
comprado por Godinho tinha características de uma propriedade cuja a produção era
voltada para o mercado.51

Ao que parece, a aquisição da propriedade em 1717 foi possível graças à


sociedade estabelecida com o “compadre” Thomas da Silva Preto, um jovem reinol,
natural de Setúbal. 52 O sítio, localizado na vizinha freguesia de São Sebastião, tinha
lavouras de milho, mandioca, cana, e um bananal. O trabalho da lavoura era tocado por
seis escravos, quatro deles tiveram seus nomes declarados na escritura de compra e
venda, o que nos permite saber suas origens: Pedro Benguela, Matheus Benguela,
Antonio Congo e Rafael Angola. Vamos voltar a este grupo mais adiante!

No ato da compra, os compadres adquiriram as terras, os escravos e a produção


armazenada no sítio, provavelmente pronta para a comercialização: sessenta cargas de
milho, cinquenta cachos de bananas e um barril de melaço. 53 O pagamento, um total de
30 libras de ouro, foi dividido em três parcelas a serem quitadas num prazo de três
anos.54 Thomas Preto era dotado de mais cabedais do que seu compadre e compatriota
Antonio Godinho.55 Como caução da compra, Preto empenhou oito escravizados (Pedro
Benguela, Manuíno Benguela, João Monjolo, Estevão Mina, Francisco Mina, José Mina
e Bastião Angola), além de um sítio de terras. Godinho ofereceu em penhora dois
escravos: Francisco Mina e Domingas Mina.56

51
Angelo Carrara, Paisagens rurais do Termo de Mariana, p. 32.
52
"Brasil Batismos, 1688-1935", database, FamilySearch (https://familysearch.org/ark:/61903/1:1:HK93-
WX6Z : 14 February 2020), Thomas Da Silva in entry for Joze Almeida, 1730
53
Escritura de dívida, obrigação e hipoteca que fazem Tomás da Silva Preto e Antonio do Couto Godinho
ao capitão Manoel Rodrigues Covilham de um sítio de terras, fl. 75v.
54
Escritura de dívida, obrigação e hipoteca que fazem Tomás da Silva Preto e Antonio do Couto Godinho
ao capitão Manoel Rodrigues Covilham de um sítio de terras, fl.74.
55
E assim foi até o final de sua vida. O monte-mor declarado no inventário de Tomás da Silva Preto era
de 3.017$962, o que fazia dele um dos homens mais ricos da Freguesia do Sumidouro. Inventário de
Tomás da Silva Preto, caixa 122, Auto 2440. Arquivo da Casa Setecentista de Mariana (ACSM).
56
Escritura de dívida, obrigação e hipoteca que fazem Tomás da Silva Preto e Antonio do Couto Godinho
ao capitão Manoel Rodrigues Covilham de um sítio de terras, fl.74v -75.
13
A produção de gêneros alimentícios para comercialização foi a principal
atividade econômica de Godinho até os últimos dias de sua vida. No testamento feito
em 1757, declarou que possuía uma roça no Ribeirão do Bacalhau com seis escravos
“dois cavalos aparelhados com várias ferramentas e trastes pertencentes a mesma”.57
Além de Thomas Preto, ele teve outros sócios ao longo a vida, o principal foi o sogro,
Francisco Rodrigues Feliciano, português natural da freguesia de São Cristovão da Vila
de Ovar, no bispado do Porto, o mesmo de Antonio.

Em 1728, Antonio entrou com processo matrimonial no bispado do Rio de


Janeiro para se casar com Natália Rodrigues, filha natural do alferes Francisco Feliciano
e da liberta Cristina Rodrigues, natural de Angola. 58 Em 1740, Feliciano vendeu ao
genro “uma fazenda de Engenho e suas pertenças com vários escravos”. Na transação, o
sogro considerou quitado um terço do valor da propriedade em consideração ao fato de
que o comprador era casado com “uma filha dele (vendedor) (...) reconhecida por sua
herdeira legítima”. 59 Mas Antonio ainda ficou devendo 2/3 do valor da propriedade.
Considerando os bens que deixou registrado em testamento, parece que o negócio de
sogro para genro malogrou. Talvez porque o segundo não fosse lá um negociante muito
hábil, ao contrário do sogro.

Da união de Antonio e Natália, nasceu Francisco, batizado no Sumidouro em


1733. Do lado materno, Francisco herdou o nome do avô e, da avó, o “defeito da
mulatisse”. 60 Ele ingressou no curso de Medicina da Universidade de Coimbra, em
1752, mesmo ano de ingresso de André. E suponho que isso não tenha sido mera
coincidência. Por enquanto, guardemos bem o nome de Francisco do Couto Godinho, e
voltemos ao seu avô português, mais precisamente, ao seu considerável patrimônio.

Na fazenda de Engenho que vendeu ao genro em 1740, Feliciano “possuía e era


senhor” de 28 escravizados, o que fazia dele um proprietário de posses superior à média
da localidade na primeira metade do século XVIII. Mas Feliciano já era um homem rico
e senhor de muitos escravos muitos anos antes. Em 1723, declarou que em sua posse
tinha 51 escravizados, sendo 39 de sua propriedade e 12 pertencentes “a uns amigos e

57
Testamento de Antonio do Couto Godinho, 1757., Caixa 8, Auto 33. ACSM.
58
Processo Matrimonial, nº 0399, aberto em 28 de junho de 1728.
59
Escritura de compra e obrigação que fazem as pessoas nela declaradas de um fazenda de Engenho e
suas pertenças. Vendedor: Alferes Francisco Rodrigues Feliciano. Comprador: Antonio do Couto
Godinho. Livros de Notas, escritura de venda, AHCSM, Liv. 53, fl.60v.
60
Processo de dispensa de impedimento. AEAM, nº 2455, aberto em 28 de setembro de 1765.
14
camaradas”.61 Considerando somente os de sua propriedade, Francisco Feliciano era um
dos seis maiores proprietários de escravos do Sumidouro, ocupando nada menos que a
terceira posiçao, atrás apenas do sargento-mor Pedro Cerqueira Teixeira, que tinha 43
escravos e de Bartholomeu Santos, possuidor de 41 cativos.

Tabela 1 - Padrão de concentração da propriedade escrava no Sumidouro, 1723

Escravos Proprietários %

1a5 39 52,0

6 a 10 15 20,0

11 a 20 15 20,0

20 a 50 06 8,0

Total ------------- 75 100,0

Fonte: Reais quintos e lista de escravos do Termo na Vila do Carmo de 1723, Códice 166, AHCMM.

Como é possível depreender da tabela acima, Feliciano integrava um grupo


seleto - se é que assim se pode qualificar - que congregava apenas 8% dos senhores de
escravos do arraial. A maioria dos proprietários do Sumidouro (52%) possuía de um a
cinco escravizados. Ampliando um pouco o espectro para contemplar aqueles que eram
proprietários de até 10 escravizados, abarca-se nada menos do que 72% dos
proprietários. Nesse sentido, a realidade do Sumidouro estava muito próxima do padrão
da Vila como um todo “no qual metade da população detentora de escravos possuía
plantéis com no mínimo onze” sendo que “mais da metade dos senhores concentravam
86,41% dos escravos”.62

Ao contrário do sogro, Antonio fazia parte do grupo mais modesto de


proprietários de escravos. Enquanto proprietário individual, ele nunca teve em sua posse
mais do que oito escravizados.63 É muito provável que Feliciano, assim outros grandes

61
Reais quintos e lista de escravos do Termo na Vila do Carmo de 1723, Códice 166, AHCMM.
62
Carlos Leonardo Kelmer Mathias, As múltiplas faces da escravidão, p. 254.
63
Número de escravos declarados no pagamento dos quintos em 1723. No seu testamento, datado de
1757, como já apresentei aqui, ele também declarou a mesma quantidade de escravizados.
15
proprietários, tenha integrado a posse de escravizados a uma rede mais ampla de
negócios, o que podia incluir empréstimos avalizados por fiança. Isso me parece uma
boa explicação para o fato de, em 1723, ele ter seu poder 12 escravizados “de uns
amigos e camaradas”. Antonio Godinho, que foi testamenteiro do sogro, ao apontar, no
próprio testamento, seus devedores, incluiu os que deviam ao falecido Feliciano. Eram
“várias pessoas”, como faz questão de ressaltar, e ainda declarando nominalmente os
maiores devedores do falecido sogro: “a herança do defunto Antonio Alves”, que ficou
devendo certa quantia de juros; a dívida de “sessenta e tantas oitavos” de ouro do
também falecido Antonio Gonçalves Aguiar”.64 Ao que tudo indica, há uma relação
direta entre o poder econômico de Feliciano e a sua condição de proprietário de
escravos. Até porque ele não seria uma exceção, muito pelo contrário.

Em 1723, a população escrava do Sumidouro somava 658 indivíduos, o que


representava 4,15% da população cativa da Vila de Ribeirão do Carmo. 65 Assim,
descontextualizado, esse dado pode induzir à falsa impressão de um pequeno impacto
da presença de escravizados no arraial. Para não incorrer neste equívoco, é importante
atentar para a tabela a seguir, que evidencia o espraiamento da escravidão nos arraiais e
freguesias da vila. Nestes termos, a concentração de escravizados e escravizadas só
ultrapassava um pouco ou ficava em torno da marca de 10% nas localidades onde se
concentrava a produção aurífera, como foi o caso de Passagem, Catas Altas e
Inficionado, que juntas contabilizavam quase 35% da população escrava da vila.

Tabela 2: População escrava na Vila do Carmo em 1723

Localidade Escravos %

Passagem 2.078 13,12%


Catas Altas 1.936 12,42%
Inficionado 1.471 9,29%
Furquim 1.262 7,97%
Vila 1.193 7,53%
São Sebastião 1.098 6,93%
Antônio Pereira 712 4,49%
Guarapiranga 621 3,92%
Sumidouro 658 4,15%
Bacalhao 562 3,55%
Brumado 558 3,52%
Camargos 542 3,4%

64
Testamento de Antonio do Couto Godinho, 1757, fl.7.
65
Reais quintos e lista de escravos do Termo na Vila do Carmo de 1723, AHCMM.
16
São Caetano Rio Abaixo 539 3,40%
São Caetano 484 3,05
Itacolomy 423 2,6%
Pinheiro Rocha 375 2,36%
Monsus 361 2,28%
Bento Rodrigues 355 2,24%
Gualaxos do Sul 301 1,90%
Gama 299 1,88%
Total 15.828 100,0%

Fonte: Reais quintos e lista dos escravos do Termo da Vila do Carmo de 1723, AHCMM, cód. 166, fl.57

Analisando dados que permitiram esmiuçar a composição do patrimônio dos


moradores da Vila do Carmo, Mathias Kelmer afirmou categoricamente que os escravos
eram “o bem primeiro” daquela sociedade. Entre 1713 e 1756 eles representavam 43,4%
da riqueza inventariada em Ribeirão do Carmo, sendo o principal fator a ter em conta
“no momento de conceder ou contrair crédito”. A posse de escravos era disseminada na
vila e entre a população. No mesmo período, 85% dos inventários listavam escravos
entre os bens. 66 Esse contexto elucida as origens do poder econômico do sogro de
Antonio do Couto Godinho. Mas, além disso, parece corroborar as análises que
reconhecem na escravidão o elemento estruturante da vida econômica e social das
minas, ratificando a conclusão de que o escravo, mais do que o ouro, foi sua maior
riqueza. Afinal, eram eles (e elas) que retiravam o ouro das entranhas da terra e dos
leitos dos rios, que plantavam e comercializavam os alimentos, que, em última
instância, constituíam o lastro mais seguro dos negócios.

Mas esta multidão de gente escravizada tinha nome e uma história que antecedia
a sua chegada aos pequenos arraiais e vilas das Minas Gerais. Eram africanos de
“diversas nações”, muitos oriundos da Costa da Mina, como Vitória, a mãe de André.

66
Carlos Leonardo Kelmer Mathias, As múltiplas faces da escravidão, pp.24; 241.
17
2. Filho de Vitória Mina

Em 1723, Antonio do Couto Godinho era proprietário de nove escravizados:


Vitória Mina, Antonio Moçambique, Francisco Mina, Miguel Mina, Juana Mina,
Manoel Mina, Baltazar Cabo Verde, Felipe Cabo Verde e Domingas Mina. Como se
pode notar, todos africanos. A maioria da costa ocidental c, entre eles, a incontestável
supremacia numérica dos denominados minas. Esta conformação não era uma
particularidade deste pequeno grupo, nem tampouco um capricho pessoal do
proprietário em questão.

Em Ribeirão do Carmo, assim como na vizinha Vila Rica, não há evidência de


iniciativas senhoriais de “misturar as nações africanas para melhor controlar os
escravos”. Em Vila Rica, em 1718, “os plantéis compostos por várias nações era a
exceção e não a regra”. 67 A propósito, uma conhecida sublevação de escravizados
colocou a questão da diversidade étnica e de origem dos escravizados no foco das
atenções do Governador do Rio de Janeiro e do Conselho Ultramarino que, entre 1725-
1728, trocaram várias correspondências sobre o tema. 68 Embora a questão principal do
debate sobre a diversidade africana fosse o estabelecimento de uma política de controle
dos cativos, os diferentes interesses dos traficantes e, especialmente, “a maior
reputação” dos “negros minas” entre os mineiros tomou corpo e ganhou volume no
conjunto das mensagens.69

A “preferência” dos mineiros pelos escravizados da Costa da Mina tem sido


largamente discutida e problematizada pelos historiadores, especialmente à luz dos
interesses e da propaganda dos traficantes sediados em diferentes cidades da colônia,
particularmente Rio de Janeiro e Salvador.70 No debate sobre as “preferências”, destaca-
se o peso das representações e dos estereótipos que atribuíam a alguns, no caso os
minas, características inatas de “rebeldia, beleza e força física”, em contraposição à

67
Rodrigo Castro de Rezende, As “Nossas Áfricas”: população escrava e identidades nas Minas
Setecentistas. (Dissertação de Mestrado). Belo Horizonte, UFMG, 2006, p. 101.
68
“Consulta feita ao governador do Rio de Janeiro sobre a conveniência de irem para as minas só os
negros de Angola”. Lisboa, 18 de setembro de 1728, in: Documentos Históricos – Biblioteca Nacional do
Rio de Janeiro, Vol. XCIV, pp. 28-30. Coleção Carvalho 15,4,16.
69
“Carta do Governador do Rio de Janeiro ao Rei de 5 de julho de 1726”, in: Documentos Interessantes
para a História dos Costumes de São Paulo, 50 (1929), pp. 60-61.
70
Um panorama destes estudos pode ser encontrado em Maria Inês Cortes de Oliveira, “ ’Quem eram os
negros da Guiné’? A origem dos africanos na Bahia. Afro-Ásia, n.19/20, 1997, pp.; Carlos Francisco da
Silva Júnior, Identidade afro-atlânticas: Salvador, século XVIII (1700-1750). (Dissertação de Mestrado).
Universidade Federal da Bahia, 2011. Ver especialmente o capítulo 3.
18
“docilidade, inabilidade”, ou mesma a fragilidade física dos angolas para o trabalho nas
minas. Alguns desses estereótipos, de certo modo, sobreviveram além dos interesses
tráfico e da política de controle senhorial, ganharam novos contornos ao longo do tempo
e “naturalizaram” hierarquias entre os africanos que acabaram também por enredar
gerações de estudiosos.71

De outra parte, os historiadores - recentemente, com um lastro africanista mais


vigoroso - vêm chamando a atenção para o fato de que as “preferências” não foram
unicamente determinadas pela propaganda, podendo também ser sustentadas em bases
objetivas, advindas do contato direto com africanos e africanas de ambos os lados da
costa. Em outras palavras, é necessário também escrutinar as “preferências” sob um
“prisma africano”. 72 Nos anos de 1970, Russel-Wood argumentou que o domínio de
técnicas e extração de minérios por vários povos da Costa da Mina indica que “muitos
escravos ‘minas’ tinham conhecimentos anteriores não só da mineração do ouro como
da metalurgia”. 73 Nesse sentido, a propaganda sobre a habilidade dos minas para o
trabalho na exploração do ouro estaria baseado em conhecimentos objetivos sobre os
povos da África Ocidental. 74 Em trabalho recente, Carlos Silva Jr. advoga que o
reconhecimento de um grupo capaz de se comunicar em uma “língua geral” – no caso,
uma comunidade de gbé- falantes, tema que retomarei mais adiante - foi um elemento
importante no processo de aquisição de escravos nas duas margens do Atlântico. Para
este autor,

“(...) não existe evidência de plantadores adquirindo escravos de


origens diferentes por razões de segurança: pelo contrário, a
possibilidade de maximizar os lucros da produção açucareira,

71
Refiro-me especialmente à visão hierárquica e purista cultivada – por adeptos e estudiosos - das
religiões afro-brasileiros, na qual se exaltou acriticamente durante muito tempo uma suposta
superioridade cultural e ritual de algumas práticas e comunidades que remetiam sua origem à antiga Costa
da Mina em detrimento dos cultos e organizações religiosas “congo-angola” ou marcadamente crioulas.
Ver, entre outros: Beatriz Goés Dantas, Vovó nagô e papai branco. Usos e abusos da África no Brasil.
Rio de Janeiro: Graal, 1988; Stefania Capone. A busca da África no candomblé. Tradição e poder no
Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2004; Luis Nicolau Parés, O processo de “nagoização” no Candomblé
baiano. In: Ligia Bellini. Evrgton Sales souza; Gabriela Reis Sampaio (orgs.), Formas de Crer. Ensaios
de história religiosa no mundo luso-afro-brasileiro, séculos XVI-XIX. Salvador: EDUFBa, 2006, p. 299-
329.
72
Tomei o título do artigo de Anthony John R Russel-Wood, "Através de um prisma africano: uma nova
abordagem ao estudo da diáspora africana no Brasil colonial." Tempo, nº 12, (2001), pp. 11-50.
73
Anthony J.R. Russell-Wood, "Technology and society: The impact of gold mining on the institution of
slavery in Portuguese America." The Journal of Economic History 37.1 (1977), p. 78.
74
Em trabalho posterior, Eduardo França Paiva concorda com o argumento central de Russel-Wood.
“Bateias, carumbés, tabuleiros: mineração africana e mestiçagem no Novo Mundo”, In: Eduardo França
Paiva e Carla Maria Junho Anastácia (orgs.), O trabalho mestiço: maneiras de pensar e formas de viver –
séculos XVI a XIX, São Paulo/Belo Horizonte, Annablume/PPGH-UFMG, 2002, pp. 187-207.
19
colocando pessoas de backgrounds similares para trabalhar juntas,
superava o temor das rebeliões”.75

O ambiente africano na casa de Antonio do Couto Godinho, e de outros


proprietários do Sumidouro, sugere que o mesmo argumento tem lastro nas zonas
mineradoras.

Na primeira metade do século XVIII, a população escrava do Sumidouro, como


de várias localidades da região mineradora, em linhas gerais, reproduzia um padrão
semelhante a da posse senhorial de Godinho: majoritariamente africana com a
predominância de homens e mulheres – principalmente homens – deportados da Costa
da Mina para as minas do Brasil. A comunidade africana cativa na “casa” de Antonio do
Couto Godinho e, igualmente, a do arraial do Sumidouro, parece ter lugar importante na
trajetória do nosso personagem. Pelo menos é essa a hipótese que pretendo sustentar.
André nasceu em uma localidade onde a população era majoritariamente africana,
notadamente mina, mas também bastante diversa. Antes de inserir esta problemática no
centro da narrativa, me permitam fazer um parêntesis historiográfico. Sem nenhuma
intenção de desviar o foco, faço isso tão somente para limpar e ajustar as lentes.
A presença massiva, nos primeiros tempos de ocupação das zonas mineradores,
de escravizados africanos - notadamente aqueles oriundos da costa ocidental - não
passou despercebida dos pesquisadores. Mesmo antes da década de 1980, reconhecido
marco da renovação da historiografia das minas setecentistas, estudiosos destacaram o
peso demográfico e a composição étnica diversificada da população escrava das Minas.
Nesse sentido, pesquisadores da historia econômica colonial e da demografia histórica,
ainda nos anos de 1970, deram mais ou menos destaque ao tema nos diversos
levantamentos e análises populacionais de localidades centrais da zona mineradora. 76 A
atenção às dinâmicas locais da economia escravista, de um lado; o interesse pelo
comportamento populacional - por meio da análise de dados estatísticos coletados em
fontes diversas como registros fiscais, listas nominativas e registros paroquiais -, por
outro, trouxeram à tona informações detalhadas sobre o imenso contingente de pessoas

75
Carlos Silva Jr. Rotas, direções e etnicidade no tráfico de escravos entre o Brasil e a Costa da Minano
longo século XVIII. In: Lucilene Reginaldo; Roquinaldo Ferreira, África, margens e oceanos.
Perspectivas de história social. Campinas: Editora da Unicamp, 2021, p. 234.
76
Para uma visão geral da crítica dos economistas da história colonial que em meados dos anos de 1970,
questionavam as interpretações fundadas nas teorias do pacto colonial em favor de abordagens mais
atentas às dinâmicas internas das economias escravistas, ver, entre outros: Antônio Barros Castro; Arno J.
Mayer; Maria Sylvia Carvalho Franco, Rudolf Bell, Trabalho escravo, economia e sociedade. Rio de
Janeiro: Paz o Terra, 1984, Especialmente páginas 41 a 87.
20
escravizadas e libertas nas localidades mineradoras.77 Mas embora reconhecidos na sua
diversidade, nestes estudos, de modo geral, o reconhecimento das origens africanas não
ia muito além de classificações genéricas (bantos e sudaneses), o que remetia aos
conhecimentos produzidos pelas ciências sociais e pela linguística no final do século
XIX. Abordagem, aliás, curiosamente na contramão de alguns dos mais prestigiados
cronistas coloniais, que recomendava incisivamente aos escravistas o “o reparo” às
qualidades e habilidades das “diversas nações”, que “são ardas, minas, congos, de São
Tomé, de Angola, de Cabo Verde e alguns de Moçambique”. 78 Mas isso não era um
problema da historiografia das minas, que acompanhava o distanciamento dos
historiadores e historiadoras da escravidão no Brasil em relação à África.

Como já dito, a historiografia colonial das Minas Gerais recebeu um grande


impulso renovador a partir do início dos anos de 1980.79 No lugar dos estudos históricos
marcadamente políticos e econômicos, centrados em uma visão da opulência do ciclo do
ouro, abordagens pautadas na história social e cultural promoveram significativas
mudanças na historiografia das minas. Acrescenta-se e fortalece esse movimento o
esforço de catalogação e organização de acervos documentais e a produção e expansão
dos programas de pós-graduação nos anos de 1990, 80 bem como a consolidação da
história demográfica acima destacada. Na esteira dos “desclassificados” outros
personagens entraram no foco de interesse dos historiadores: mulheres, famílias,

77
Entre os pioneiros, destacam-se os trabalhos de Iraci Del Nero Costa e, igualmente, a obra de Francisco
Vidal Luna, seu parceiro e colaborar ao longo de várias décadas; além das pesquisas precursoras de
Donald Ramos, especialista em história social e demográfica de Minas colonial. Iraci del Nero da
Costa. Vila Rica, população (1719-1826). Vol. 1. São Paulo: Instituto de Pesquisas Econômicas da
Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo, 1979; Iraci del Nero da Costa, A
estrutura familial e domiciliária em Vila Rica no alvorecer do século XIX. Revista do Instituto de Estudos
Brasileiros 19 (1977): 17-34; Francisco Vidal Luna; Iraci del Nero da Costa. "Contribuição ao estudo de
um núcleo urbano colonial (Vila Rica: 1804)." Estudos Econômicos (São Paulo) 8.3 (1978): 41-68;
Francisco Vidal Luna, Minas Gerais: escravos e senhores. São Paulo: IPE/USP, 1983; RAMOS, Donald.
A social history of Ouro Preto: 1695/1726. 2 vol. Miami: The University of Florida, 1972. (Tese,
Doutorado em Filosofia). Idem. Marriage and family in colonial Vila Rica. Hispanic American
Review,North Carolina, v. 55, p.200-225, 1975. Idem. “City and country: the family in Minas Gerais,
1804-1838”. Journal of Family History, v.3, n.4, 1978, p.361-375.
78
Antonil, Cultural e opulência do Brasil (1711), p. 89.
79
Segundo Júnia Furtado, o livro de Laura de Mello e Souza, publicado em 1982, redireciona os rumos da
historiografia sobre as minas, antes centrada na opulência do ciclo dos ouro, para “o universo da pobreza
e dos marginais”, descortinando uma “sociedade mineira multifacetada e plural”. Júnia Ferreira Furtado,
"Novas tendências da historiografia sobre Minas Gerais no período colonial." História da Historiografia:
International Journal of Theory and History of Historiography 2.2 (2009), p. 118.
80
Júnia Ferreira Furtado, "Novas tendências da historiografia sobre Minas Gerais no período colonial,
pp. 117-120.
21
crianças, escravos, libertos e uma gama variada de “pessoas de cor e mestiças”. 81 Nestes
trabalhos, as heranças africanas, assim como as “diversas nações” dos escravizados das
minas foram identificadas de forma mais cuidadosa do que o foi pelos historiadores
demógrafos. Não eram mais – e apenas – bantos e sudaneses. Nesse sentido, abordagens
atentas às trajetórias pessoais ou expressões culturais africanas exploravam com mais ou
menos detalhes as origens dos diferentes grupos.82 Mas de modo geral, o enfoque da
pesquisa ficava restrito aos territórios das minas e das capitanias limítrofes; quando
atravessavam o Atlântico, não se aventuravam além das terras do Reino.83 Olhares mais
atentos em direção ao continente africano só se tornaram possíveis décadas mais tarde,
acompanhando o movimento geral da historiografia da escravidão no Brasil.84

Assim como se deu em outras regiões brasileiras, o reconhecimento das muitas


Áfricas nas Gerais foi um ponto de partida fundamental para conectar este cenário
diverso e complexo aos movimentos e dinâmicas do tráfico atlântico de escravizados.85
Primeiro passo em direção à África! Esse movimento se deu no bojo de um debate
historiográfico vigoroso – no Brasil e nas Américas - que produziu instrumentos
analíticos que permitiram abordar de forma cada vez mais sofisticada as identidades

81
Sobre a importância do livro Desclassificados do Ouro para a Historiografia do Brasil Colonial e de
Minas ver, também: Andréa Lisly Gonçalves. Algumas perspectivas da historiografia sobre as Minas
Gerais dos séculos XVIII e XIX. In: Termo de Mariana. História e documentação, p. 15.
82
A origem coura de Rosa Egipcíaca, destacada por Luiz Mott, assim como as heranças culturais
angolanas de Luiza Pinta são exemplares nesse sentido. Laura de Mello e Souza, O diabo e a terra de
Santa Cruz: Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1987;
Idem. “Revisitando o calundu”. In: Lina Gorenstein; Maria L. Tucci Carneiro, (Orgs.). Ensaios sobre a
intolerância: Inquisição, Marranismo e Anti-Semitismo. São Paulo: Humanitas, 2002, p. 293-317; e Luiz
Mott. “O calundu-Angola de Luzia Pinta: Sabará, 1739”. Revista do IAC, n. 1, p. 73-82, dez 1994.
83
O interesse e as abordagens sobre os calundus apenas mais recentemente avançaram com mais vigor as
fronteiras das Minas e do Reino – além de um enquadramento notadamente sincrético do fenômeno –
enriquecendo as análises com referências bibliográficas e fontes centro-africanas, no caso, angolanas.
Ver, entre outros: Laura de Mello Souza, O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade
popular no Brasil colonial; Luiz Mott, O calundu-angola de Luzia Pinta: Sabará, 1739; Alexandre
Almeida Marcussi, Cativeiro e Cura: experiências religiosas da escravidão atlântica nos calundus de
Luzia Pinta, séculos XVII-XVIII. (Tese de Doutorado). São Paulo: Universidade de São Paulo, 2015.
84
Beatriz Gallotti Mamigonian, "África no Brasil: mapa de uma área em expansão." Topoi (Rio de
Janeiro) 5.9 (2004): 35-53; Lucilene Reginaldo, “Diversas nações de que se compõem a escravatura
vinda da costa da África”. In: Henrique Antonio Ré; Laurent A. M. de Saes; Gustavo Velloso. Históri e
Historiografia do Trabalho Escravo no Brasil: Novas perspectivas. São Paulo: Publicações BBM, 2020,
pp. 157-211.
85
Silvia Hunold Lara, Os minas em Minas: linguagem, domínio senhorial e etnicidade. In: Anais do XX
Simpósio da Associação Nacional de História. São Paulo: Humanitas/FFLC/USP: ANPUH, 1999. p.681-
688. v.2; Idem, Linguagem, domínio senhorial e identidade étnica nas Minas Gerais de meados do século
XVIII. In: Cristiana Bastos et al (Coords.). Trânsitos coloniais: diálogos críticos luso-brasileiros. Lisboa:
Imprensa de Ciências Sociais, 2002, pp. 205-225; Marcos Magalhães de Aguiar. Negras Minas Gerais:
uma história da diáspora africana no Brasil colonial. Tese (Doutorado em História Social) - Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 1999; Rodrigo Castro Rezende, As
“nossas áfricas”: população escrava e identidades africanas nas Minas setecentistas. Dissertação
(Mestrado em História) - Universidade Federal de Minas Gerais, 2006.
22
africanas na diáspora como construtos históricos, não como dados genéricos de
origem.86 O interesse pelas identidades específicas, as que serviam como “guarda-chuva
étnico”, como os minas, e, posteriomente, a aquelas atribuídas e/ou assumidas por
grupos mais circunscritos em termos espaciais e cronológicos, a exemplo dos coura e
dos savalu, tiveram sua gênese nesse movimento. 87 A partir daí, foram mais além.

Dedicados ao estudo das origens africanas dos escravizados e à constituição de


suas comunidades nas Minas setecentistas, esses trabalhos têm promovido um
alargamento espacial e historiográfico do foco de análise no qual comodamente eu
gostaria de integrar esta investigação. Esse engajamento é o que permite inserir a
história aqui contada – a de André do Couto Godinho - num “circuito mais amplo do
mundo afro-atlântico”, tomando de empréstimo a assertiva de Aldair Rodrigues.88 Para
o meu interesse específico, essa abordagem permite reconhecer que o Sumidouro – e
outros pequenos arraiais encerrados entre montanhas e a léguas de distância do litoral e
das grandes cidades portuárias – era mais próximo do que pode parecer à primeira vista
das dinâmicas sociais, políticas e econômicas que se desenrolavam em diferentes
regiões da África Atlântica, notadamente na Costa da Mina e, também, como pretendo
mostrar mais adiante, na região Congo-Angola. Na esteira da história de Vitória
“Mina” do Couto, é possível reconhecer as estreitas ligações entre o Sumidouro e a
Costa da Mina.

Ajustadas as lentes, voltamos aos meandros da história.

Quando Vitória foi identificada pela primeira vez entre os escravizados de


Antonio do Couto Godinho, os africanos somavam 570 indivíduos, numa população de
658 pessoas, o que representava 86,63% dos cativos do arraial do Sumidouro. Entre os
86
A título de panorama geral do debate nos anos de 1990 sobre as identidades africanas no Brasil
recomendo, entre outros: Robert Slenes, “ ‘Malungu, ngoma vem!’ África coberta e descoberta do
Brasil". Revista USP, nº 12, 1991-92, pp. 48-67; João J. Reis, “Identidade e diversidade nas irmandades
no tempo da escravidão”, Tempo, vol.2, nº 3, 1997, pp. 7-33; Maria Inês Cortes de Oliveira, “Viver e
morrer no meio dos seus. Nações e comunidades africanas na Bahia do século XIX. Revista USP, nº 28
1995/96, pp.174-93; Marisa de Carvalho Soares, Devotos da Cor. Identidade étnica, religiosidade e
escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000; Mary C.
Karasch., A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo, Companhia das Letras, 2000. A
publicação da tese de Karasch no Brasil, defendida na Universidade de Wisconsin em 1972, é expressiva
do vigor do debate em curso n país .
87
Moacir Rodrigo de Castro Maia, De reino traficante a povo traficado: A diáspora dos courás do Golfo
do Benim para as minas de ouro da América Portuguesa (1715-1760). Rio de Janeiro: UFRJ, 2013; Aldair
Rodrigues, “Com duas gejas em cada uma das fontes”: escarificações e o processo de tradução visual da
diáspora jeje em Minas Gerais durante o século XVIII. Afro-Ásia 63 (2021), pp. 128-180.
88
Aldair Rodrigues, “Com duas gejas em cada uma das fontes”: escarificações e o processo de tradução
visual da diáspora jeje em Minas Gerais durante o século XVIII, p. 129.
23
nascidos na África, predominavam os da costa ocidental. Este contingente somava 360
pessoas, sendo 309 homens e 51 mulheres, constituindo 54,71% dos escravizados do
arraial.

Tabela 3 – Origem dos escravos da Freguesia do Sumidouro

Origem Homens Mulheres Total Percentagem

África Ocidental 309 51 360 54,71

África Centro-Ocidental 156 37 193 29,33

África Oriental 17 0 17 2,58

Brasil 13 13 26 3,95

Indígenas 2 0 2 0,30

Origem não identificada 28 17 45 6,84

Origem e gênero não 15 2,29


identificados

TOTAL 525 118 658 100

Fonte: Reais quintos e lista dos escravos do Termo da Vila do Carmo de 1723, Códice 166,
AHCMM.

Como já chamei a atenção, o Sumidouro não destoava do padrão africano que


marcou a demografia da região mineradora na primeira metade do século XVIII. Neste
período, os africanos constituíam a maior parcela da população escrava das minas,
variando entre 82,2% e 94,9%, dependendo do período e do local. 89 Considerando a
população escravizada de todas as localidades pertencentes à Vila do Carmo (ver tabela
2), os africanos representavam 81% do total de escravizados, sendo os afro-ocidentais
50,9% no computo geral. 90 Na vizinha Vila Rica, os africanos eram 86,47% da
população escravizada e os afro-ocidentais, que também alí eram um pouco mais da

89
Francisco Vidal Luna; Iraci del Nero da Costa. Minas colonial: economia & sociedade. São Paulo:
Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas/Pioneira, 1982, p. 50
90
Moacir Rodrigo de Castro Maia, Do reino traficante a povo traficado: a diáspora dos couras do Golfo
do Benim para as minas de ouro da América Portuguesa (1715-1760). (Tese de Doutorado). RJ: UFRJ,
2013, p. 104
24
metade, somavam 1125 indivíduos, numa população de 1820 escravizados.91 As duas
vilas são exemplares, tanto pela relação – de pertencimento e vizinhança - com a
localidade que nos interessa mais de perto, o Sumidouro, quanto pela sua importância
no conjunto da zona mineradora. Entre os anos 1716 e 1728, Vila Rica e Vila do Carmo
concentraram entre 47% e 55,7% dos escravizados das Gerais.92 Não bastasse isso, na
primeira metade do século XVIII, as duas vilas “tiveram as maiores concentrações de
africanos da África Ocidental dentre todas as comarcas mineiras”.93

Mas há um complicador neste cenário. Ainda que não haja dúvidas a respeito da
maioria africana oriunda da Costa da Mina e sobre a considerável frequência de
comunidades de cativos da mesma origem, é preciso considerar também o peso da
minoria. Nesse sentido, chamo a atenção para uma significativa diferença na proporção
de nascidos na África Ocidental na população escrava do Sumidouro quando comparada
aos companheiros de cativeiro de Vitória. No arraial, a maioria afro-ocidental era
bastante matizada pela presença de africanos de outras origens, principalmente os
centro-ocidentais, que chegavam a quase 30%, e os da costa oriental, que ficavam por
volta de modestos 2,6%.

No Sumidouro, Antonio era um dos 17 moçambiques – todos homens - cujos


nomes foram lançados no livro do quintos em 1723. Nesse particular, sua presença
“solitária” entre os companheiros de Vitória é, de certo modo, ilustrativa do peso dos
africanos oriundos da costa oriental na população escravizada das minas. Mas será
preciso voltar aos “outros” africanos das minas – especialmente aos centro-ocidentais -
mais adiante, uma vez que o computo geral deste grupo na população escravizada
impõe-se ao lado da majoritária presença dos africanos ocidentais. E, quero crer, na
história pessoal do pequeno André.

No que toca ao predomínio dos minas no conjunto dos africanos ocidentais, a


posse senhorial de Antonio do Couto Godinho estava em consonância com o quadro
geral apresentado no arraial. Do total de nove escravizados, seis eram minas, um
moçambique e dois cabo-verde. No Sumidouro, eram minas 290 pessoas (244 homens e
46 mulheres), sendo 80,55% dos africanos ocidentais. Mas a observação da tabela

91
Moacir Maia, Do reino traficante a povo traficado, pp. 109, 110.
92
Rodrigo Castro Rezende, As “Nossas Áfricas”. População escrava e identidades nas Minas
Setecentistas, p. 78.
93
Moacir Maia, Do reino traficante a povo traficado, p. 25.
25
abaixo, à luz do acúmulo de informações oferecidas pelas pesquisas sobre as dinâmicas
do tráfico na costa ocidental, conduz a outras dimensões do fenômeno e um olhar mais
apurado sobre este grupo.

Tabela 4 – Africanos Ocidentais na Freguesia do Sumidouro

Identidades Homens Mulheres Total Percentagem

Mina 244 46 290 80,55

Cabo Verde 14 14 3,89

Cobu 13 1 14 3,89

Carabari 10 10 2,77

São Tomé 7 2 9 2,50

Coura 3 1 4 1,11

Nagô 4 4 1,11

Xamba 3 3 0,83

Xará 3 3 0,83

Fon 1 1 2 0,56

Tibu 2 2 0,56

Arda 1 1 0,28

Basu Mina 1 1 0,28

Chamba 1 1 0,28

Chara Mina 1 1 0,28

Sabaru 1 1 0,28

TOTAL 309 51 360 100

Fonte: Reais quintos e lista de escravos do Termo na Vila do Carmo de 1723, Códice 166, AHCMM.

Embora pouco representativas em termos demográficos, chama atenção o


significativo número de denominações específicas de origem entre os africanos
ocidentais. São quinze, além dos minas. Cabem, inicialmente, duas ponderações.
Quando comparado a outros documentos, é modesto o número de ocorrências de
identidades específicas no registro dos quintos. O que indica que essa não é uma boa
26
fonte para explorar o tema a fundo. Além disso, as afirmações categóricas sobre o peso
demográfico destes grupos minoritários são temerosas, uma vez que o termo mina,
como bem formulou João José Reis, poderia cumprir a função de “guarda-chuva
étnico”, sendo os arranjos dependentes de circunstâncias locais e interesses imediatos de
senhores e escravizados.94 Em razão deste fenômeno, por exemplo, muitos indivíduos
identificados como minas em algum momento da vida - ou registro específico -
poderiam, em outra ocasião, terem sido identificados – ou se autoidentificarem - como
coura, fon, xambá, etc.

Outras fontes, notadamente aquelas onde há possibilidade de manifestação do


africano - tais como registros eclesiásticos, processos-crime, livros de assentos de
irmandades, e, na condição de libertos, nos inventários e testamentos -, a incidência de
identidades específicas costuma ser bem maior. Fernanda Pinheiro, por exemplo,
recolheu nos livros de assentos da Irmandade do Rosário de Mariana, entre os anos de
1750 e 1819, o nome de 23 “nações e terras declaradas pelos confrades”.95 Vitória,
talvez, em algum momento de sua vida, tenha declarado uma identidade específica,
intercambiando, ou substituindo a macro-identidade mina. Mas com os registros que
tive em mãos, não foi possível saber. Uma lástima!

De todo modo, mesmo eventualmente abrigados sob o “guarda-chuva” mina, a


maioria das identificações apresentadas na tabela acima remete uma região específica,
cuja extensão geográfica e a delimitação política e cultural tinham contornos bem
definidos no início do século XVIII.
[MAPA]
Nos séculos XV e XVI, o termo mina identificava os escravizados embarcados
no Castelo de São Jorge da Mina (São Jorge de Elmina), um forte construído pela coroa
portuguesa na Costa do Ouro (atual Gana), entre 1482 e 1484. O Castelo da Mina “foi o
enclave português mais importante para o comercio de ouro e o tráfico de escravos” até
as tomada pelos holandeses em 1637.96 Nos primeiros tempos da presença portuguesa e
também sob o domínio holandês, no forte da Mina eram embarcados escravos de

94
João José Reis, "Identidade e diversidade étnicas nas irmandades negras no tempo da
escravidão." Tempo 2.3 (1996), p. 9.
95
Fernanda Ap. Domingos Pinheiro, Confrades do Rosário: sociabilidade e identidade étnica em mariana
– Minas Gerais (1745- 1820). (Dissertação de Mestrado). RJ: Universidade Federal Fluminense, 2006,
p.70.
96
Luiz Nicolau Parés, A formação do candomblé. História e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas:
Editora da Unicamp, 2006, p. 27.
27
procedências diversas: do distante reino do Benin, na atual Nigéria, escravos do Congo
que passavam pelo forte antes de serem deportados para as Américas, escravos de
Aladá, na Costa do Ouro.97
Desde o século XVII, a Costa da Mina (num primeiro momento, incluindo a
Costa do Ouro) era um espaço globalizado e bastante disputado pelas potências
europeias, como constata Roquinaldo Ferreira.98 Não era por menos, a região teve um
papel destacado nas exportações africanas de ouro: na década de 1530, 10% da
produção mundial vinha da Costa do Ouro, no século XVII. Calcula-se que daí saiu
nada menos do que um quarto do metal precioso que entrou em circulação mundial.99

Segundo Pierre Verger, após a ocupação do forte de São Jorge da Mina, há um


deslocamento geográfico dos comerciantes portugueses, autorizados pelos holandeses
“a traficar escravos, sob certas condições, em quatro portos: Grande Popó, Jaquim, Uidá
e Apá, situados a leste, ao longo da Costa do Daomé”, na costa a sotavento do Castelo
da Mina.100 Ao longo do século XVIII, novos portos a leste de Uidá entraram na rota
dos comerciantes portugueses, e depois brasileiros, passando a Costa da Mina a incluir
também os portos de Badagri, Porto Novo, Onin e Lagos.101 Os últimos - juntamente
com Uidá - localizados no Golfo do Benin, foram os principais portos escravistas da
África Ocidental no Setecentos. Nesse sentido, os termos Golfo do Benin e Costa da
Mina, no contexto do tráfico luso-brasileiro na região, podem muito bem ser tomados
como sinônimos.102

Embora vivendo em uma região marcada por sucessivas migrações e com uma
grande variedade étnica e cultural, os povos do Golfo do Benin compartilhavam de
elementos comuns, notadamente em termos linguísticos e religiosos. Isso permite

97
Idem.
98
Roquinaldo Ferreira, “A primeira partilha da África: decadência e ressurgência do comércio português
na Costa do Ouro (ca. 1637-ca. 1700)”. Varia história, nº 26, 2010, p. 486.
99
Roquinaldo Ferreira, “A primeira partilha da África: decadência e ressurgência do comércio português
na Costa do Ouro (ca. 1637- ca. 1700)”, p. 483; Leonardo Marques, O ouro brasileiro e o comércio anglo-
português de escravos. In: Henrique Antonio Ré; Laurent A. M. de Saes; Gustavo Velloso. História e
Historiografia do Trabalho Escravo no Brasil: Novas perspectivas. São Paulo: Publicações BBM, 2020,
p. 99.
100
Pierre Verger, Fluxo e refluxo: Do tráfico de escravos entre o golfo do Benim e a Bahia de Todos-os-
Santos, do século XVII ao XIX. São Paulo: Corrupio, 1987, p. 12.
101
Daniele Santos Souza, Tráfico, escravidão e liberdade na Bahia nos “Anos de Ouro” do Comércio
Negreiro (c. 1680-1790). (Tese de Doutorado em História). Salvador: Universidade Federal da Bahia,
2018, p. 27.
102
Carlos Silva Júnior, Diáspora gbe no Mundo Atlântico. In: Aldair Rodrigues; Ivana Stolze Lima;
Juliana Barreto de Faria, Diáspora Mina. Africanos entre o Golfo do Benin e o Brasil. RJ: Nau Editorial,
p. 21.
28
“adotar a expressão “área dos gbé falantes” para identificar os povos entre os rios Volta
e Níger”.103 Numa perspectiva religiosa, Parés advoga que também é possível usar a
delimitação “área vodum”, que é o termo “usado para designar as divindades ou forças
invisíveis do mundo espiritual” entre os gbé-falantes. (Parés, 2007, p. 14)

A atenção aos eventos políticos no interior do Golfo do Benin e, no sentido


inverso, a presença de diversas identidades e “nações” daí oriundas nas Minas
setecentistas, nos direciona para a tabela apresentada acima permitindo lançar algumas
luzes sobre as origens dos escravizados do Sumidouro.

Começando pelo grupo hegemônico, a denominação mina tinha uma referência


direta ao tráfico, uma vez que identificava a região onde os europeus trafegavam,
instalavam feitorias e faziam os negócios; ali estava localizada a maioria dos portos de
embarque dos escravizados deportados para as Minas no século XVIII.104 Entretanto,
como vimos, tanto para os africanos, quanto para os senhores, a identidade mina podia
se sustentar em outros suportes, notadamente políticos e culturais. O que tornava
possível que grupos relativamente distintos pudessem, com o tempo, internalizar
identidades impostas. Esse movimento, não impedia que a identidade anterior pudesse
se manter e ser manifestada e operativa em ocasião apropriada. (Parés,?)

Antonio da Costa Peixoto, imigrante do norte de Portugal arrebatado pela “febre


do ouro” - como outros aqui lembrados – nasceu em 1703, entre o Douro e o Minho, em
São Pedro de Torrados, no concelho de Filgueiras, comarca de Guimarães, arcebispado
de Braga.105 Emigrou para o Brasil em 1715, falecendo em Vila Rica, em 1763, sem
jamais ter retornado à terra natal. Sem recursos materiais ou prestígio, mas certamente
com um bom domínio das letras, ocupou cargos inferiores na administração colonial,
sendo durante 20 anos escrivão e juiz de vintena em freguesias afastadas do centro de

103
Moacir Rodrigues de Castro Maia, De reino traficante a povo traficado, p, 42.
104
Maria Inês Cortes de Oliveira argumenta que são duas as matrizes responsáveis pela construção dos
etnônimos africanos ou nomes de nação: a rede do tráfico e alguns estudos sobre a escravidão. Maria Inês
Cortes de Oliveira. “Quem eram os “Negros da Guiné””? As origens dos africanos na Bahia. Afro-Ásia, nº
19/20, 1997, pp. 37-73. Sobre o surgimento e significado do etnônimo mina, suas imprecisões geográficas
e correções, ver, especialmente as páginas 56-63.
105
Fernando Araújo, Fome do ouro e fama da obra: Antonio da Costa Peixoto e a “Obra Nova de Lingoa
Geral de Mina” – alianças, proximidades e distâncias de um escritor português no Brasil colonial do
século XVIII, p. 4. Disponível em: https://silo.tips/download/fome-do-ouro-e-fama-da-obra. Acessado em
11/02.22.
29
poder. 106 É possível que seu interesse pela escrita e a convivência próxima com a
população escravizada, além, é claro, de um possível desejo de reconhecimento, esteja
na base da elaboração de sua obra.107

Peixoto elaborou uma compilação única e original do idioma compartilhado


pelos gbé-falantes nas minas setecentistas.108 O vocabulário é bem mais um instrumento
de aprendizagem da língua; composto de frases e pequenos diálogos úteis a aqueles que
necessitavam conhecer para controlar a imensa população de escravizados. 109 São
conhecidos dois exemplares manuscritos da obra: uma versão menor, com 14 páginas,
intitulada Alguns apontamentos da língua mina com as palavras em português
correspondentes, de 1731, e uma mais estendida, com 46 páginas, nomeada Obra Nova
da Língua Geral da Mina Traduzida ao Nosso Idioma, datada de 1741.110

Apesar das diferentes abordagens linguísticas da obra, mais recentemente


enriquecidas e sofisticadas com os estudos pesquisadores de falantes nativos de línguas
do grupo gbé, não se questiona o fato de que a Obra Nova da Língua Geral da Mina
corrobora a existência de um suporte linguístico compartilhado pelos minas nas Minas,
e que era plenamente reconhecido por proprietários de escravos e autoridades como o
escrivão e juiz de vintena Antonio Peixoto. (NOTA) Em outras palavras, no interior da
diversidade mina era possível reconhecer a diáspora dos “gbé-falantes” que, além da
capacidade de intercomunicação compartilhava outros elementos culturais e históricos
comuns. Isso, certamente, permitia que um africano ou africana pudesse “aceitar” - ou
mesmo se apropriar - da identidade macro atribuída.

106
Fernando Araújo, Fome do ouro e fama da obra: Antonio da Costa Peixoto e a “Obra Nova de Lingoa
Geral de Mina”, p. 12-13. Eram atribuições dos oficiais vintenários, entre outras: fazer citações e
penhoras, redigir testamentos, atuar em devassas, processos-crime, cíveis e querelas.
107
Na sua interessante biografia de Antonio Peixoto, Fernando Araújo argumenta que o autor teve um
convívio muito próximo com os escravizados, sendo inclusive acusado por moradores da Freguesia de
São Bartolomeu de andar metido nas vendas com negros e negras, onde vivia se embebedando de
cachaça. Fernando Araújo, Fome do ouro e fama da obra: Antonio da Costa Peixoto e a “Obra Nova de
Lingoa Geral de Mina”, p. 3.
108
Ivana Stolze Lima, Tradução mina para a terra do branco. In: Aldair Rodrigues; Ivana Stolze Lima;
Juliana Barreto de Farias. Diáspora mina. Africanos entre o Golfo do Benin e o Brasil. Rio de Janeiro:
Editora Nau, 2020, p. 392.
109
Silvia Hunold Lara, Linguagem, domínio senhorial e identidade étnica nas Minas Gerais em meados
do século XVIII, p. 236
110
O primeiro manuscrito está guardado na Biblioteca Nacional de Portugal e o segundo na Biblioteca
Pública de Évora. Há duas edições impressas em Lisboa, pela Agência Geral das Colônias, em 1944 e
1945.
30
Várias identidades específicas têm sido iluminadas pela dinâmica histórica da
Costa da Mina.111 Essa abordagem considera que “as categorias identitárias dever ser
analisadas temporal e espacialmente, pois tiveram significado e abrangência distinta”
em diferentes contextos históricos. (Maia, p. 92).112

Mas além da língua, há outros elementos que conformam as identidades no


Golfo do Benin. O termo fon, por exemplo, atribuído apenas a um escravizado no
Sumidouro, parece remeter a indivíduos falantes de fon, um dos principais grupos do
complexo linguístico gbé. Mas termo também abarca uma identidade política. Em Uidá,
no final do século XVII e no início do XVIII, os escravos oriundos do Daomé eram
chamados fon. (NOTA) Mas nem todos eram assim definidos, dependendo do
interlocutor ou do observador. Por alguma razão, este indivíduo fon foi assim
reconhecido no Sumidouro. Talvez Antonio Peixoto tivesse desenvolvido essa
habilidade.

Na segunda metade do século XVII, o Golfo do Benin foi impactado por vários
conflitos envolvendo as companhias europeias que atuavam na região e, na mesma
tônica de controle territorial e comercial, eclodiram várias disputas entre reinos
africanos do litoral e da costa. De modo especial, a deterioração do poder político de
Allada – que desde o século XVI fazia negócios com portugueses e outros europeus - e
a ascensão de Uidá foram dois acontecimentos que reverberam, e ao mesmo tempo,
impactam as dinâmicas de escravização e do tráfico. (Maia, p. 41,42). Alladá era
também chamado de Ardra pelos portugueses. Assim, os ardra das minas – apenas um
escravizado foi assim identificado no Sumidouro -, tinha por origem ou região de
embarque o reino de Allada. Este reino foi conquistado por Agbomé em 1724. O que
indica que o solitário ardra no Sumidouro tinha sido capturado nos tempos do poderio

111
Não vou me deter aqui a todas as identificações mencionadas na tabela. Remeto os interessados à tese
de Moacir Maia.
112
Não vou me deter no interessante debate que envolve o reconhecimento das identidades africanas na
diáspora. Fico apenas no âmbito do Brasil, chamando a atenção para os trabalhos pioneiros e ainda
centrais no debate. Oliveira partiu da necessária consideração da agência do tráfico na constituição dos
“nomes de nação”, marginalizando, de certa forma, os elementos culturais e políticos africanos que
informaram as mesmas identidades. Soares, por sua vez, que criou o termo “grupos de procedência”,
atenta aos locais de origem das identidades africanas. Parés propõe uma abordagem dos processos de
formação das identidades africanas na diáspora atento à complexidade temporal e espacial que envolve as
origens e as condições dadas e estabelecidas na chegada.
31
de Alladá. 113 Em outro contexto, depois de 1724, poderia ser um habitante do reino
submetido que caíra nas malhas do tráfico.

Grupos hulas e huedas formavam a maioria dos habitantes de Uidá que, como já
vimos, foi alçada a um dos principais portos do Golfo do Benin no final do século XVII.
A expansão do Daomé nas primeiras décadas do século XVIII provocou a fuga e levou
muito de seus habitantes à condição de escravos. Moacir Maia reconhece neste
movimento a origem dos coura ou couranos das Minas Gerais. Especificamente,
coura/kura/hula seria “gente de hula, reino litorâneo. Para o autor, em Minas – e em
outras regiões do Brasil – coura não conformava um grupo específico, mas sim uma
identidade metaétnica que englobava vários grupos étnicos que habitavam o reino.

O primeiro intento português de reconhecimento da nova geopolítica do tráfico


ocorreu no início dos anos de 1680, com o estabelecimento de uma feitoria que teve
curta duração (Law, 2004, p. 32). Foi também nas últimas décadas do século XVII que
os traficantes sediados na Bahia passaram a frequentar os portos do Golfo do Benin,
especialmente Uidá. Ainda que em menor número, e com uma atuação mais
descontinuada e menos impactante em termos dos números do tráfico, nos primeiros
anos do século XVIII, os traficantes do Rio de Janeiro também foram atraídos para os
mesmos portos.

Vitória foi uma das cerca de 500.000 de pessoas deportadas do Golfo do Benin
com destino às Américas entre os anos de 1700 e 1730.114 Este número assombroso,
como vimos, esteve diretamente relacionado, por um lado, com “eventos políticos no
interior e no litoral do Golfo do Benin”, e por outro, com o interesse dos escravistas nas
Américas. 115 Neste aspecto, a demanda das minas descobertas na capitania do Rio de
Janeiro ocupou lugar de destaque. Desse modo, a busca renhida por braços escravos
logo se refletiu na dinâmica do tráfico, nos dois lados do Atlântico. Do lado de cá do
Atlântico, duas cidades concentraram os negócios do tráfico e foram centrais nas rotas e
caminhos que ligavam a Costa da Mina às Minas Gerais: Rio de Janeiro e Salvador.

113
Maria Inês Cortes de Oliveira. “Quem eram os Negros da Guiné”?, p. 69
114
Analisando os registros disponíveis no Data Base Slave Trade, Carlos Silva Jr. calculou que cerca de
480.826 de pessoas foram deportadas dos portos localizados no Golfo do Benin entre os anos de 1700 e
1730. Carlos da Silva Jr, “Ardras, minas e jejes, ou escravos de “primeira reputação”: políticas africanas,
tráfico negreiro e identidade étnica na Bahia do século XVIII.", p. 21, 24 e 25.
115
Carlos da Silva Jr, “Ardras, minas e jejes, ou escravos de “primeira reputação”: políticas africanas,
tráfico negreiro e identidade étnica na Bahia do século XVIII." Almanack, n º12, (2016) p. 7.
32
O tráfico da Capitania do Rio de Janeiro com a Costa da Mina tinha sido
autorizado pela Coroa no limiar do século XVII. Mas é certo que as novas demandas
pesaram para a intensificação do comércio regular nos primeiros anos do século
XVIII. 116 As principais e costumeiras moedas utilizadas pelos traficantes do Rio de
Janeiro na Costa da Mina eram o rum, o fumo e, principalmente ouro em pó e em
barras. Percebendo o florescimento de um contrabando, que poderia se tornar
incontrolável, a Coroa buscou restringir a navegação entre o porto do Rio de Janeiro e a
África Ocidental. O que de modo algum impediu que o ouro das Minas do Brasil
entrasse definitivamente no “espaço globalizado” da Costa Mina também por essa rota.

Após resistir aos tormentos da travessia, Vitória talvez tenha sido desembarcada
na cidade do Rio de Janeiro. Considerando a posição do seu nome na lista do
pagamento dos quintos referentes aos escravos de Antonio Godinho em 1723, suponho
que ela havia sido recentemente integrada ao grupo.117 Entre 1722 e 1726 a Alfândega
do Rio registrou a entrada de 12.546 cativos.118 Deste total, anualmente, cerca de 2700
foram enviados para as Minas. Embora minoria no computo dos escravizados, mulheres
(ou meninas) como Vitória foram vítimas desse monumental e terrível negócio.
Algumas delas deixaram testemunhos direitos ou indiretos da sua chegada.

A história de Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz é absolutamente fenomenal e


rendeu uma volumosa e instigante biografia, na qual tem destaque os seus escritos e
relatos aos inquisidores.119 Rosa foi presa e processada pela Inquisição de Lisboa em
1762, sob a acusação de heresia e falso misticismo. Em meio à inegável singularidade,
sua história também ilumina a de outras mulheres da mesma origem e condição. Diante
dos seus algozes, Rosa afirmou ter chegado ao Rio de Janeiro em 1725, com cerca de
seis anos de idade. Perguntada sobre o nome dos seus pais, disse que não se recordava.
Em 1733, Rosa, de nação courana, foi vendida para as minas, mas precisamente para a
Vila de Ribeirão do Carmo, onde, tempos depois, começou sua trajetória de mística.120
Mas havia escravizados que não passavam tanto tempo na cidade do Rio, seguindo logo

116
Mariza Soares de Carvalho, Devotos da Cor, pp. 73-74.
117
Domingas Mina, que suponho ser a mesma escrava que estava na posse de Godinho em 1717 é o
último nome da lista na qual o de Vitória é o primeiro.
118
Carta do provedor da capitania do Rio de Janeiro, 10 de maio de 1726. Arquivo Histórico Ultramarino,
caixa 16, doc. 1759, fl.2.
119
Luiz Mott. Rosa Egipcíaca. Uma santa africana no Brasil.
120
Idem, pp. 16; 20.
33
após sua chegada para as Minas. Estou supondo que esta pode ter sido a sorte de
Vitória.

No início do século XVIII, duas principais rotas terrestres ligavam a cidade do


Rio de Janeiro às minas recém-descobertas. O Caminho Velho dificilmente poderia ser
percorrido em menos de 40 dias.121 O trajeto era longo e penoso. Partindo da cidade do
Rio de Janeiro, “por terra e por mar se chegava a Parati; e deste se entrava no mato”. A
partir daí, era preciso subir a serra do mar, atravessar o vale do Paraíba - onde esta rota
se encontrava com o caminho velho dos “paulistas” - passar além da longa extensão de
montanhas da Mantiqueira até chegar “as primeiras minas chamadas do Ribeiro das
mortes”.122 Mas para dar conta da crescente demanda das minas, por escravizados, mas
também por gêneros variados, um novo caminho foi traçado.

O Caminho Novo começou a ser aberto em 1701, embora só tenha sido


concluído em 1725, passou a ser muito frequentado já nos primeiros anos, uma vez que
reduziu significativamente o percurso para as minas.123 “Partindo da cidade do Rio de
Janeiro por terra, com gente carregada e marchando a paulista”, isto é, andando de
madrugada até às três da tarde, o deslocamento durava em média dez a doze dias.124
Isso era possível porque seguia em direitura às minas, embora fosse mais escabroso com
alguns trechos muito desertos nos primeiros tempos.125 Saindo da cidade do Rio, era
preciso chegar ao fundo da Baía de Guanabara e atravessar a Baixada Fluminense;
cruzar rios, regatos, e brejos; escalar trechos muito íngremes das serras do Mar e da
Mantiqueira, se internando pelo interior de minas até chegar à serra de Itatiaia de onde
partiam dois caminhos: um para as minas do Rio das Mortes e outro para as vilas de
Nossa Senhora do Ribeirão do Carmo e Vila Rica.126

A aspereza, de um ou de outro trajeto, com certeza, era infinitamente mais


dilacerante para aqueles, como Vitória, que o percorriam acorrentados e sem ideia do
destino que os esperava na chegada.

121
Raphael Freitas dos Santos. Minas com Bahia: mercados e negócios em um circuito mercantil
setecentista. (Tese de Doutorado) RJ: Universidade Federal Fluminense, 2013, p. 105. Ver, também:
Renato Pinto Venâncio, “Caminho novo: a longa duração”. Vária História. Vol.15, nº 21, pp. 181-189.
122
“Informações sobre as minas do Brasil”. In: Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vol. 57,
1935, p. 173.
123
Raphael Freitas dos Santos. Minas com Bahia: mercados e negócios em um circuito mercantil
setecentista, p. 105.
124
Antonil, Cultura e opulência do Brasil, pp. 184,186.
125
“Informações sobre as minas do Brasil”, p. 177.
126
Antonil, Cultura e opulência do Brasil, p. 184-186.
34
Mas também é possível que Vitória tenha chegado às minas por meio de outra
rota, pelos Caminhos dos Sertões e dos Currais da Bahia, “um emaranhado de estradas,
atalhos e picadas, que convergiam em direção ao Rio São Francisco, tanto na parte
baiana, quanto na parte mineira”. 127 Condições geográficas favoráveis configuraram
condições mais aprazíveis a este itinerário – tão antigo quanto os caminhos de São
Paulo e Rio de Janeiro - mas reconhecido como “mais abundante para o sustento e mais
acomodado para as cavalgaduras e as cargas” do que estes últimos.128 Foram diversos os
sortimentos transportados por este caminho: gêneros alimentícios, ferramentas, armas,
utensílios importados e, milhares de africanos escravizados. Embora o Rio de Janeiro
tenha se tornado, ainda nas primeiras décadas do século XXVIII, o maior fornecedor de
gêneros alimentícios e utensílios diversos para as minas, apesar de todas as restrições
impostas pela Coroa, o transito de negociantes pelos Caminhos do Sertão não arrefeceu.
O fornecimento constante e seguro de mão de obra para as minas foi um fator essencial
para a manutenção do fluxo intenso nestes caminhos. Segundo Carrara, entre 1716 e
1717, foram transportados 92 escravizados pelo Caminho Novo e 177 pelo Caminho
Velho, pelo Caminho da Bahia, mais de 772 cativos. 129

A demanda insaciável da zona mineradora por trabalhadores escravizados era tal


que provocou a carência de braços nos engenhos e nas demais atividades agrícolas, além
de um aumento sem precedente do valor dos escravizados. Antes do boom aurífero, era
possível adquirir um escravizado por 40 mil réis; na década de 1730, não se pagava
menos do que 200 mil réis. 130 Esse cenário já se anunciava nos primeiro tempos da
exploração. Por isso, em 1703, a Coroa definiu uma cota de importação anual de 1.200
escravos da Costa da Mina para o Rio de Janeiro e, deste montante, apenas 200
poderiam ser reexportado para as Minas. Pouco depois, um decreto de 1711 proibia a
venda de escravizados empregados em trabalhos agrícolas para as zonas mineradoras.131

O que garantiu o atendimento da demanda da zona aurífera, através dos


Caminhos do Sertão, foi possível a posição privilegiada dos traficantes sediados na

127
Raphael Freitas dos Santos. Minas com Bahia: mercados e negócios em um circuito mercantil
setecentista, p. 64.
128
Antonil, Cultura e opulência do Brasil, p. 187.
129
Angelo Carrara, As minas e os currais: produção rural e mercado interno de Minas Gerais 1674-
1807. Juiz de Fora: UFJF, 2007, p.117.
130
Manolo Florentino; Alexandre Vieira Ribeiro; Daniel Domingues da Silva. "Aspectos comparativos do
tráfico de africanos para o Brasil (séculos XVIII e XIX)”, p. 83.
131
Charles Boxer, A idade do Ouro do Brasil, p. 69.
35
Bahia no comércio com a Costa da Mina. Até onde se sabe, é no último quartel do
século XVIII que as primeiras embarcações de traficantes da Bahia começam a se
dirigir à Costa da Mina para comprar escravizados. Até então, prevalecia em maior
volume o trato com os portos de Angola. Uma das justificativas dos traficantes para o
desvio da rota foi uma epidemia de bexiga que assolou Angola em (?). Mas é possível
que a desculpa tenha também servido para desviar a atenção de fortes interesses em
gestação. Nesse sentido, a boa aceitação de uma moeda exclusivamente baiana entre os
comerciantes africanos – o tabaco – contribuiu decisivamente para a sedimentação da
nova rota. O comércio direto entre a Bahia e a Costa da Mina incomodou os negociantes
do reino e, por conseguinte, a coroa, mas apesar de vários enfrentamentos, os
comerciantes da Bahia fizeram valer seus interesses.

Os números demonstram que os constrangimentos aos negócios foram


infrutíferos, não impedindo que a cidade da Bahia se tornasse, na primeira metade do
século XVIII, a principal fonte de abastecimento de escravizados para região
mineradora. 132 E como escravos e ouro percorrem os mesmos caminhos, igualmente
infrutífero foram os intentos da coroa de impedir que a riqueza das minas escoasse pelos
Caminhos do Sertão até a Cidade da Bahia e, daí, para as mãos de estrangeiros do outro
lado do Atlântico.

A relação entre a descoberta do ouro nas capitanias do sudeste do Brasil e o


aumento da demanda de mão de obra escravizada que, por sua vez, intensificou os
negócios dos traficantes luso-brasileiros na Costa da Mina, tem sido objeto de atenção
dos historiadores há várias décadas. Apesar disso, a importância do ouro como moeda
no trato baiano com a Costa da Mina, até bem pouco, tinha pouco destaque nas
pesquisas. Embora o próprio Pierre Verger, autor do estudo seminal sobre as
peculiaridades da relação entre a Bahia e o Golfo do Benin, tenha chamado a atenção
para a circulação do metal amarelo na rota e sua imersão nos negócios, ao concentrar
sua atenção sobre o fumo como moeda peculiar do tráfico baiano, ele estabeleceu um
paradigma que viria a orientar várias gerações de estudiosos.133

132
Para Raphael Freitas Santos, até a década de 1720, era esta a principal fonte de suprimento de
escravizados das regiões mineradoras. Minas com Bahia: mercados e negócios em um circuito mercantil
setecentista, p. 107. Florentino, Ribeiro e Silva também estão de acordo com esse dado. Manolo
Florentino; Alexandre Vieira Ribeiro; Daniel Domingues da Silva. "Aspectos comparativos do tráfico de
africanos para o Brasil (séculos XVIII e XIX)." Afro-Ásia 31, 2004, p. 83.
133
Nardi e Daniele Souza
36
Perspectivas de investigação que inserem o continente africano num circuito
global de trocas, contatos e conexões têm permitido aprofundar o papel do ouro do
Brasil nos negócios da Costa da Mina, captando ainda os vários negócios e interesses
nacionais que envolveram essa preciosa commodity. Roquinaldo Ferreira considera que
não foi apenas o tabaco de terceira qualidade que sedimentou o comércio entre o Golfo
do Benin e a Bahia de todos os Santos. O autor argumenta que grande parte dos
negócios se baseava no contrabando do ouro das minas do Brasil para a África o que
permitiu “aos portugueses construir relações comerciais com os mercadores europeus
(particularmente os holandeses) e forneceu a base para o intercâmbio cultural com os
governantes africanos de Uidá e do Daomé”. 134 Na mesma linha de argumentação,
Carlos Silva Jr. alega que “durante a primeira metade do século XVIII, o ouro, e não o
tabaco, era o diferencial nas relações entre os reinos europeus e mesmo entre os reinos
africanos”. Para o autor, a compra de cativos “maior estimação” ou de “primeira linha”
tinha o precioso metal como moeda principal. 135 Gustavo Acioli Lopes e Leonardo
Marques estimaram em 47.000 kg o montante de ouro levado do Brasil para a Costa da
Mina, o que equivaleria a 10% de todo ouro extraído da América Portuguesa na
primeira metade do Setecentos. Para Lopes e Marques, “foi esse ouro que permitiu a
compra de parte significativa dos escravos que extraíam mais ouro, uma mercadoria
chave que permitiu que luso-brasileiros consolidassem efetivamente sua presença na
Costa da Mina (...)”.136

Infelizmente, ainda não tenho evidências que me permitam afirmar que Vitória
percorreu os caminhos do sertão do São Francisco até o Sumidouro, mas certamente
muitos dos seus companheiros de cativeiro o fizeram. A maioria era da Costa da Mina,
mas nem todos.

134
Roquinaldo Amaral Ferreira, From Brazil to West Africa: Dutch-Portuguese Rivalry, Gold-
Smuggling, and African Politics in the Bight of Benin (ca. 1700-1730). In: Michiel Van Groesen (ed.),
The Legacy of Dutch Brazil (2014): 59-77. New York: Cambridge University Press, p. 78.
135
Carlos Silva Jr. Rotas, direções e etnicidade no trânsito de escravos entre o Brasil e a Costa da Mina no
longo século XVIII, p. 219.
136
Gustavo Acioli Lopes; Leonardo Marques, O outro lado da moeda: estimativas e impactos do ouro do
Brasil no tráfico transatlântico de escravos (Costa da Mina, c. 1700-1750). Clio: Revista de Pesquisa
Histórica, vol. 37, 2019, p. 23.
37
3. Maria Conga de nação angola

Não pude saber exatamente por quanto tempo Vitória permaneceu sob o
domínio de Antonio do Couto Godinho, mas sei quando a relação senhorial chegou ao
fim. Em dezembro de 1724, “Vitória de nação mina com duas crias, um macho por
nome André e outra fêmea por nome Luiza” foram formalmente reconhecidos como
escravos de Domingas Pereira, uma africana da Costa da Mina. 137 O vínculo de
servidão entre Vitória e Domingas era anterior à alforria da última. O que significa dizer
que Domingas foi uma escrava que tinha escravos e, por essas e outras, ela merecerá
uma atenção especial mais adiante. Mas além de Vitória e seus dois filhos pequenos,
Domingas Mina comprou “pelo seu ouro” outra africana: Maria Conga, “de nação
Angola”. E é possível que Vitória, André, Luzia, Maria e Domingas tenham convivido
(também não sei por quanto tempo) “sob o mesmo teto”.

Embora o “palheiro-arraial” do Sumidouro fosse razoavelmente pequeno, não


consegui encontrar pistas que me permitissem confirmar a identidade precisa da Maria
Conga “de nação Angola” que em dezembro de 1724, por instrumento público, passou a
condição de escrava de Domingas Pereira. Na lista de pagamentos dos quintos reais de
1723 havia duas mulheres de nome Maria Conga. A primeira foi declarada pelo casal
Agnes Monteiro e Salvador Pires, senhores de uma posse considerável de
escravizados. 138 Eram dezesseis no total, sendo treze homens e três mulheres. Maria
tinha dois companheiros de cativeiro da mesma origem, João Congo e Miguel Congo,
além de outros três benguelas, quatro massanganos e oito minas. As outras mulheres do
grupo eram Luiza e Antonia, a primeira benguela e a segunda massangano. Em suma:
metade dos escravizados era de gente embarcada em algum porto da costa de Angola. A
segunda Maria era cativa de Manoel de Souza Lobo, proprietário de 12 escravizados.139
Neste grupo, ela tinha apenas um patrício, Manoel Congo. Além de Maria e Manoel,
estavam sob o jugo de Souza Lobo dois homens benguelas e dois identificados como
monjolos; além de três coubu, um nagô e um cabo verde. Em meio aos dez homens,
Antonia Mina se somava a Maria Conga para compor a recorrente minoria feminina
entre os africanos escravizados. No grupo de cativos de Souza Lobo os centro-africanos
também somavam cinquenta por cento.

137
Carta de liberdade de Domingas Pereira
138
Reais quintos e lista de escravos do Termo da Vila do Carmo, fl. 108.
139
Reais quintos e lista de escravos do Termo da Vila do Carmo, fl. 109.
38
Além da significativa presença de centro-africanos na população escravizada da
Vila do Carmo – nos casos mencionados, consideravelmente acima da média
demográfica local, que ficava em torno de 30% - as duas posses destacadas também
chamam a atenção para o registro da diversidade africana no Sumidouro, indicando que
o interesse no detalhamento da origem não era direcionado a um grupo especial. Para
ser mais precisa, parece que a atenção se voltava, de modo semelhante, aos dois maiores
contingentes de nativos da África, que juntos constituíam a esmagadora maioria da
população escravizada. Rodrigo Resende identificou que em Vila Rica, no ano de 1718,
foram identificadas e registradas 14 “nações” da África Ocidental, e o mesmo número
de nações da África Centro-Ocidental.140.

Entretanto, o mesmo tratamento não foi dispensado aos africanos oriundos da


costa oriental. No Sumidouro, todos os 17 escravizados dessa origem foram tão somente
registrados como moçambique. Resende constata o mesmo procedimento nos registros
de Vila Rica. 141 É possível que a desatenção à diversidade entre os denominados
moçambiques se justifique pela condição marginal (em termos demográficos e
econômicos) destes indivíduos na economia escravista das minas naquele contexto. O
que não justifica a pouca atenção dos historiadores a estas minorias e às redes (ou
trânsitos e demandas específicas) que permitiram que chegassem à região
mineradora. 142 Além dos moçambiques – mas, evidentemente, em proporção ainda
menor - escravizados vindos do Índico e do oriente mais distante também contaram
entre os cativos das Minas Gerais.

Em 1723, na Vila do Carmo, dois chinas foram lançados como escravizados no


livro de pagamento de quintos.143 Dois anos depois, Antonio, um “china da índia” vivia
na condição de cativo no arraial de Bento Rodrigues, localidade da mesma vila. Embora
estes indivíduos pudessem ter sido “cativos do reino”, ou seja, escravos de imigrantes
ou autoridades portuguesas estabelecidas em Ribeirão do Carmo, não deve se descartar

140
África Ocidental: arda, cabo verde, Calabar, coba, cobu, courano, fula, ladar, mandinga, mina, nagô,
são tomé, togo, xará. África Centro-Ocidental: ambaça (sic), angola, benguela, cassange, congo,
ganguela, loango, massangano, mochiga, monjolo, Monique, mutemo, quibama, quissama. Ainda que
haja alguma imprecisão na definição dos termos como “nações”, o exercício comparativo tem validade
ilustrativa. Rodrigo Castro Resende, As nossas Áfricas, p. 184.
141
Rodrigo Castro Resende, As nossas Áfricas, p. 180.
142
Sobre a circulação de escravos entre diferentes domínios de Portugal, em particular entre o Reino e
América Portuguesa ver o trabalho pioneiro de Renato Pinto Venâncio. Cativos do Reino. A circulação de
escravos entre Portugal e Brasil, séculos 18 e 19. São Paulo: Alameda, 2012.
143
Moacir Rodrigo de Castro Maia, De reino traficante a povo traficado, p. 110.
39
a importação direta de escravizados da Índia para o Brasil.144 Em meados do século
XVIII, Goa era o principal local do tráfico português na Ásia e “aí também chegavam
numerosos chineses, vendidos em várias partes do Império, como foi o caso de
Antonio”.145 É possível que semelhante destino tenha se abatido sobre Maria Cambaya,
que se destaca na listagem dos quintos do Sumidouro de 1723 pela identificação pessoal
singular. 146 Cambaya foi a principal cidade e porto da província do Guzarate, muito
frequentada pelos negociantes portugueses desde seu estabelecimento no Índico. 147 O
dicionarista também registra uma segunda acepção para o termo, neste caso, apenas no
masculino. Era chamado cambayo “aquele que mete um joelho pela parte de dentro, e
assenta o pé de largada no chão, ou que tem uma perna torta, por isso mais aberta do
que convém”.148 Apesar da reduzida ocorrência, há evidências de que nos lançamentos
para o pagamento do tributo real uma característica física ou uma especialização
profissional poderiam se sobrepor às origens e à cor, ou mesmo, associadas a estas
marcas, compor a descrição e/ou nomeação do escravizado. 149 Então, também sobre
essa Maria, fica a incerteza no ar.

Não foi sem propósito que destaquei a inusitada identificação de origem “dupla”
de Maria Conga. Diante do registro “Maria Conga de nação Angola”, meu primeiro
ímpeto foi menosprezar o estranhamento e optar pela primeira alcunha. Passado algum
tempo, reconsidero, e tomo a surpresa inicial como um problema. De início, a
identificação “conga de nação Angola” me parecia fruto de um lapso ou da ignorância
do escrivão Luiz Pinto de Mendonça e das demais testemunhas que firmaram a carta de
liberdade de Domingas Pereira. Embora a ignorância e a imperícia sejam inerentes à
condição humana, talvez não tenha sido esse o caso. Afinal, havia estreitos vínculos

144
Philomena Antony elenca uma série de desembarques de escravos de navios da rota da Índia na Bahia,
desde o final do século XVII até o final da centúria seguinte. Philomena Sequeira Antony, Relações
intracoloniais Goa-Bahia, 1675-1825. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2013, pp. 218-219; Sobre
a população escravizada transportada de Goa para Portugal, ver: Patrícia Souza de Faria, “De Goa a
Lisboa: Memórias de populações escravizadas do Império Asiático (séculos XVI e XVII)”, Revista
Ultramares, vol. 5, nº 9 (2016), pp. 91-119.
145
Renato Pinto Venâncio. Cativos do Reino, p.25.
146
Reais quintos e lista de escravos do Termo da Vila do Carmo, 1723, cód. 166, fl. 109.
147
Rafael Bluteau, Vocabulario Portuguez e latino. (1713). https://www.bbm.usp.br/pt-
br/dicionarios/vocabulario-portuguez-latino-aulico-anatomico-architectonico/?q=cambaia.
148
Rafael Bluteau, Vocabulario Portuguez e latino. (1713). https://www.bbm.usp.br/pt-
br/dicionarios/vocabulario-portuguez-latino-aulico-anatomico-architectonico/?q=cambaio
149
Isso se passou com Afonso Aleijado, João Barbeiro e Caetano Cabo Verde Pagão, escravos de do
Sargento Mor Pedro Teixeira Serqueira, assim como Maria Cambaya. Dono de 44 escravizados, esse
sujeito ainda se destaca por possuir uma quantidade incomum de pardos e crioulos entre seus
escravizados. Eram oito no total, três pardos e cinco crioulos.
40
políticos, culturais e geográficos entre os termos, o que possivelmente era do
conhecimento do escrivão e dos senhores de escravos no Sumidouro. Em última
instância, a costa de Angola poderia ser entendida como a referência geográfica (quiçá
política e cultural) maior. Mas há outra possibilidade de interpretação, na verdade, uma
leitura mais circunstanciada da primeira.

O registro das duas referências de procedência pode simplesmente ter sido


informada pela prática comum nas minas setecentistas de anotar, sempre que possível,
com precisão de detalhes, informações que permitissem a identificação pessoal de cada
cativo. Aldair Rodrigues argumenta que, nas primeiras décadas do século XVIII, foi
desenvolvido um sistema rigoroso de anotações, que atentava para informações pessoais
sobre as origens, características físicas e marcas distintivas colhidas em diferentes
registros escritos, na fala e no corpo dos escravizados.150 O fim último era prevenir a
sonegação fiscal e garantir o pagamento correto do tributo real, calculado segundo o
número de escravizados de cada proprietário. Rezende contabilizou aproximadamente
160 nações nomeadas em registros diversos entre os anos de 1700 e 1850.151 É possível
que a exigência dos primeiros tempos tenha se tornado um hábito ao longo dos anos,
inscrevendo uma particularidade muito notada na documentação mineira.

Dito isto, a marcação “nação Angola” junto ao nome de Maria Conga poderia
ser o registro de uma distinção que fazia sentido no pequeno arraial, permitindo que
essa Maria Conga não fosse confundida com sua homônima. Se essa hipótese estiver
correta, “a nação angola” não seria um termo geográfico generalizante, como sugeri
acima, mas um marcador para o reconhecimento de alguns indivíduos. Talvez Maria, a
escrava de Domingas Pereira, fosse capaz de dominar alguns sinais distintivos da
“nação angola” nas Minas. Quem sabe não falava ou entendia bem algumas variantes de
quimbundo? O que era bem possível, dado o contingente de falantes destas línguas no
Sumidouro e sua concentração em algumas escravarias em particular.

Como se vê na tabela abaixo, cinco identificações ou origens centro-africanas se


destacavam no Sumidouro nas duas primeiras décadas do século XVIII. Os angolas e
benguelas formavam a maioria, somando quase 60% dos africanos deportados dos
portos da costa de Angola.

150
Aldair Rodrigues, “ “Com duas gejas em cada uma das fontes”: escarificações e o processo de
tradução visual da diáspora Jeje em Minas Gerais durante o século XVIII”, p, 139.
151
Rodrigo Castro Rezende, Nossas Áfricas, p.78.
41
Tabela 3 – Africanos Centro-Ocidentais da Freguesia do Sumidouro

Identidades Homens Mulheres Total Percentagem

Angola 38 21 59 30,57

Benguela 48 8 56 29,01

Congo 29 4 33 17,09

Massangano 15 1 16 8,29

Monjolo 16 0 16 8,29

Loango 3 1 4 2,07

Quissama 2 0 2 1,04

Bamba 1 0 1 0,52

Camgumbe 1 0 1 0,52

Cassange 1 0 1 0,52

Ganguela 0 1 1 0,52

Luanda 0 1 1 0,52

Marimba 1 0 1 0,52

Rebolo 1 0 1 0,52

TOTAL 156 37 193 100

Fonte: Reais quintos e lista de escravos do Termo da Vila do Carmo, 1723, cód. 166, fls. 106-
110.

Após o desembarque na América, as rotas terrestres percorridas por estes


escravizados até às minas foram as mesmas penosamente trilhadas pelos africanos
ocidentais: os caminhos do Sertão do São Francisco e o Caminho Velho do Rio de
Janeiro. Na primeira metade do século XVIII, embora os negócios dos traficantes
sediados na Bahia com a Costa da Mina tenham alcançado um volume superior a
qualquer outra região de abastecimento, o tráfico com a costa de Angola, ainda que
inferior, nunca cessou. (NOTA) Considerando a importância do trajeto que tinha início
na cidade da Bahia, passava pela cidade de N. S. do Rosário do Porto de Cachoeira e,
seguia os Caminhos do Sertão para atender à insaciável demanda das minas, é possível
que muitos embarcados nos portos de Angola tenham feito esse trajeto.

42
A história de José dos Santos Torres, um bem-sucedido traficante sediado na
Bahia, demonstra que, dado a natureza do tráfico, sempre dependente das dinâmicas
africanas que dificultavam ou estabeleciam novos regramentos para os negócios, além
das disputas entre mercadores de diferentes nacionalidades, as preferências não eram
um princípio inabalável. Torres era atuante nos negócios com a Costa da Mina desde
pelo menos 1717. 152 Sua importância e prestígio foram fundamentais para que, em
1720, lograsse uma autorização do vice-rei do Brasil, Vasco César de Menezes, para
construir uma fortaleza em Ajudá. 153 Talvez, buscando distanciar-se dos imbróglios
“legais” nos quais estava metido e das dificuldades que se apresentavam no comércio da
Costa da Mina, mas também para ampliar sua área de negócios e possibilidades de
lucros, Torres decidiu investir na rota de Benguela. Entre 1726 e 1728, ele enviou
quatro navios carregados com escravos de Benguela para o Brasil, sem passar por
Luanda, evitando pagar os impostos devidos. 154 Segundo Ferreira, a trajetória de Torres
chama a atenção para a “justaposição das redes do tráfico em Angola e na Costa da
Mina” ilustrando ainda “a abertura do comércio direto de escravos entre Benguela e
Brasil”. 155

Ao direcionar seus interesses para Benguela, José Torres sabia bem o que estava
fazendo. Era o início da “transformação de Benguela de uma pequena vila para um
importante local de embarque de escravos no tráfico transatlântico”.156 Esse processo, à
semelhança da consolidação do tráfico entre a Bahia e a Costa da Mina, esteve
estreitamente ligado à demanda por mão de obra africana nas Minas Gerais do Brasil.
Mariana Candido, aliás, sugere que Torres “abriu as portas do porto de Benguela para
os comerciantes baianos”.157

No mesmo período, o Rio de Janeiro se tornou o principal porto de desembarque


dos escravizados deportados da África Centro-Ocidental. Os vínculos privilegiados
entre as duas regiões datam do contexto da restauração de Angola, financiada e
executada pelos homens de negócio do Rio de Janeiro.158 O estabelecimento deste grupo

152
Daniele Souza, Tráfico, escravidão e liberdade na Bahia, p. 59
153
Roquinaldo Ferreira, From Brazil to West Africa, pp. 78-79.
154
Roquinaldo Ferreira, Biografia, mobilidade e cultura atlântica, p. 38.
155
Idem. Ibidem.
156
Maria Candido, An African Slaving Port and the Atlantic World, p. 141.
157
Mariana Candido, Negociantes baianos no porto de Benguela: redes comerciais unindo o Atlântico
setecentista. In: Roberto Guedes, África. Brasileiros e portugueses. Rio de Janeiro: Mauad X, 2013, p. 75.
158
Ver, entre outros, o livro clássico de Charles Boxer, Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola
(1602-1686). São Paulo: Editora Nacional/Editora da Universidade de São Paulo, 1973.
43
ao sul de Luanda, mais precisamente na cidade e porto de Benguela, explica o grande
contingente de africanos dessa região nas minas, desde o início do Setecentos e no
decorrer da centúria.159 Mas eles podem ter sido ainda mais numerosos do que as fontes
permitem vislumbrar. 160 Nas primeiras décadas do século XVIII, a maioria dos
benguelas que chegavam às minas era composta de gente capturada e escravizada no
bojo das campanhas militares enviadas ao sertão da conquista para reprimir sobas
rebeldes, ou ainda, vítimas da adesão de governantes locais vassalos que se integraram
aos negócios atlânticos. Esperança Guanguela, a única de sua terra escravizada no
Sumidouro, era provavelmente originária de Nganguela, uma região fora do controle
das autoridades portuguesas. 161 Outro indivíduo solitário na sua identificação, e que
talvez, assim como Esperança, tenha sido apresado nos “campos de caça” dos
negociantes que abasteciam o porto de Benguela, é João Cangumby. Segundo os
dicionaristas, ngumbe, em kimbumdu, é uma espécie de perdiz, uma ave galinácia de
arribação.162 Mas há registro da mesma palavra, com o mesmo significado, em quioco,
idioma falado por povos também alcançados pelas redes internas no tráfico que escoava
para Benguela. (NOTA) Aliás, Cangumbe, na atualidade, é uma vila e comuna angolana
localizada na província do Moxico, antigo território dos lundas, quiocos e
guanguelas.163

159
Até bem pouco tempo, os estudos que atentaram para os escravos de origem centro-africana na região
mineradora enfatizavam sua presença na segunda metade do século XVIII. É evidente que o crescimento
demográfico deste contingente, que ultrapassou os oriundos da Costa da Mina em razão da intensificação
do tráfico entre o Rio de Janeiro e a costa de Angola naquele momento, ajuda a entender essa tendência.
Ver, por exemplo: Higgins, Kathleen J. Licentious Liberty in a Brazilian Gold-Mining Region: Slavery,
Gender, and Social Control in Eighteenth-Century Sabará, Minas Gerais. Penn State Press, 2010, p. 73.
Mas quero crer que isso acabou por menosprezar a presença dos centro-africanos desde o início da
ocupação da região. Entre os trabalhos mais recentes vem explorando esta seara, destaco: Kalle
Kananoja, Central African identities and religiosity in colonial Minas Gerais. Abo Akademi University,
2012 (Tese de doutorado); Alexandre Almeida Marcussi, Cativeiro e Cura: experiências religiosas da
escravidão atlântica nos calundus de Luzia Pinta, séculos XVII-XVIII. São Paulo: Universidade de São
Paulo, 2015. (Tese de doutorado)
160
Roquinaldo Ferreira estimou que de 1680 até a primeira década do século XVIII, comerciantes de
Benguela enviaram aproximadamente 2.000 escravos por ano para Luanda. Transforming Atlantic
Slaving, p. 85; Mariana Candido sugere que não é possível saber se, quando embarcados em Luanda para
as Américas, eles eram identificados pelos traficantes como Angolas ou como Benguelas. An African
Slaving Port and the Atlantic World, p.158.
161
Reais quintos e lista dos escravos do Termo da Vila do Carmo, fl. 110. Mariana Candido, Na African
Slave Port and the Atlantic World, pp.157-58.
162
António de Assis Júnior, Dicionário kimbundu-português, linguístico, botânico, histórico e
corográfico. Seguido de um índice alfabético dos nomes próprios. Luanda: Argente Santos, 1947/
camgumbe; Matta, Joaquim Dias Cordeiro Matta, Ensaio de Diccionario Kimbúndu-Portuguez.
Lisboa : Typographia e Stereotypia Moderna da Casa Editora Maria Pereira, 1893/ngûmbe
163
https://pt.wikipedia.org/wiki/Cangumbe
44
Os angolas que chegaram às minas no início do século XVIII, seja pelos
caminhos do Sertão ou do Rio de Janeiro, eram pessoas embarcadas no porto de
Luanda, capital do mais importante enclave português na costa africana. Os deportados,
a depender do contexto, poderiam ser das imediações da costa, ou ainda, populações
escravizadas em regiões distantes do domínio e controle administrativo português, mas
integradas ao circuito do tráfico interno e atlântico. Assim como outras identidades
africanas forjadas no tráfico e na diáspora, angola é bastante genérico em termos de
procedência geográfica e identidade política ou cultural.

Angola, na sua origem, não identificava necessariamente uma região ou


território. Deriva do termo Ngola que, em kimbundo, era um título que designava o
chefe político e militar do Ndongo. Este reino tinha como centro a área de Pungo
Andongo e a bacia do Lucala. 164 Estendia-se, “grosso modo, entre os rios Dande e
Cuanza, o litoral oceânico e as terras de Matamba, a que os portugueses atribuíram a
designação de “reino de Angola” e que durante largo tempo foi dado como dependente
do reino do Congo (...). Desde o início, esse reino interessou a coroa portuguesa pelos
escravos e minerais ricos, como a prata, o ferro e o cobre”.165 A identificação entre o
título e o território ocorreu logo nos primeiros contatos entre europeus e africanos. Nos
século XVI e XVII, os portugueses denominavam o Ndongo de reino dos Ngola, ou dos
Angola. Desse modo, Angola passou a denominar não apenas a área controlada pelos
portugueses na costa, mas, também, uma grande parte do território dos falantes do
kimbundu, língua franca no antigo Ndongo.

Mas além dos angolas, que somavam 30,57% dos centro-africanos escravizados
no Sumidouro, alguns homens e mulheres oriundos da mesma região tiveram sua
origem melhor especificada. A maioria, 15 homens e uma mulher, eram de Massangano,
o mais antigo presídio instalado às margens do Cuanza.166 Os presídios eram instalações
da administração colonial instaladas em territórios limites entre os governantes
avassalados e as autoridades autônomas e tinham caráter militar, prisional e

164
Sobre a história do Reino do Ndongo, ver Joseph Miller, Poder político e parentesco. Os antigos
estados mbundu em Angola. Luanda, Arquivo Histórico Nacional de Angola, 1995; Virgílio Coelho, “A
data de fundação do ‘Reino Ndongo’”, In: Actas do II Seminário Internacional sobre a história de
Angola. Construindo o passado angolano: as fontes e a sua interpretação. Lisboa, Comissão Nacional para
as comemorações dos descobrimentos portugueses, 2000, pp. 477-544.
165
Ilídio do Amaral, O Reino do Congo, os Mbundu (ou Ambundos), o Reino Ngola (ou de Angola) e a
presença portuguesa de finais do século XV a meados do século XVI. Lisboa, Ministério da Ciência e
Tecnologia/ Instituto de Investigação Científica Tropical, p. 14.
166
Elias Alexandre da Silva Correa, Hstória de Angola [1800]. Lisboa, 1937, p. 25.
45
comercial.167 A vila de Massangano ficava nas proximidades da feira do Dondo, um
importante centro de comércio de escravos. 168 A feira de Cassange, controlada pelo
soberano do estado de mesmo nome, criado no século XVII, após a derrocada do
Ndongo e o avanço da política de vassalagem nos sertões de Angola, foi um dos
maiores mercados de escravos da África central. (NOTA) No Sumidouro, apenas um
homem, João Cassange, carregava no seu nome a lembrança da famigerada feira. Da
“indomável” Quissama saíram Francisco e Manoel e, da mesma região, Antonio
Rebolo, possivelmente natural do Lubolo (Libolo, no plural), potentado que combateu
os quissamas em diferentes ocasiões.169 O controle da produção e do comércio do sal-
gema era a base do poder e da “longa autonomia da região da Kissama em relação aos
poderes coloniais”. 170 Aurora Ferreira sugere que se dê atenção aos quissamas que
atravessaram o Atlântico, notadamente aos seus conhecimentos sobre a produção,
comércio e poderes mágicos e curativos do sal gema. Jessica Krug, também olhando
para os Quissama no Brasil e em outras partes das Américas, defende uma suposta
herança rebelde.171

Somente uma mulher, Maria, é identificada como (de) Luanda. O que, entre
outras questões, chama a atenção para a incidência de mulheres entre os escravizados
centro-africanos no Sumidouro, notadamente entre os identificados como angolas. Entre
os africanos ocidentais, a proporção era de cerca de cinco homens para cada mulher.
Entre os angolas, elas eram mais da metade: 21 de um total de 35 homens. Pergunto se
este fenômeno não teria alguma relação com os mecanismos de escravização
impulsionados pela intensificação da demanda atlântica a partir do final do século
XVII.172 Neste contexto, mulheres (livres e escravizadas) que viviam em Luanda e em
localidades sob a administração colonial ficaram mais vulneráveis às garras do tráfico
atlântico. Foi o que aconteceu com Luiza Pinta, escrava de Manuel Lopes de Barros,

167
Ana Paula Tavares; Catarina Madeira Santos, Fontes escritas africanas para a História de Angola.
Fontes e Estudos, 4-5 (1999), p. 98.
168
Carlos Couto, Os capitães-mores em Angola no século XVIII. Luanda: Instituto de Investigação
Científica e Tropical, 1972, p. 215.
169
Reais quintos e lista dos escravos do Termo da Vila do Carmo, fls. 108-110.
170
Aurora da Fonseca Ferreira, Histórias a cruzar de um e de outro lado do Atlântico: Kimasa e Kisaman.
In: Selma Pantoja; Estevam Thompson, Em torno de Angola. Narrativas, identidades e conexões
atlânticas. São Paulo: Intermeios, p. 143.
171
Jessica A. Krug, Fugitive Modernities. Duke University Press, 2018.
172
Sobre o impacto da demanda por braços na zona mineradora nos preços dos escravos e na escravização
ilegal de africanos livres ver: Roquinaldo Amaral Ferreira, Cross-cultural exchange in the Atlantic world:
Angola and Brazil during the era of the slave trade. New York: Cambridge University Press, 2012, pp.
96-97.
46
morador na cidade de Luanda. Luiza viveu na capital de Angola até os 13 anos, quando
foi vendida por seus senhores para traficantes que a levaram para Sabará.173 O número
de mulheres escravizadas entre os benguelas e outros cativos aprisionados no interior,
algo em torno de seis homens para uma mulher, parece corroborar esse argumento.

A presença de gente dos sertões de Angola no Sumidouro pode ter promovido a


incorporação de um vocabulário de quimbundo, e algumas de suas variantes, no
cotidiano do arraial. Francisco Cambuta foi escravo de Bartholomeu dos Santos, o
terceiro maior proprietário do arraial. 174 Em 1723, ele declarou a posse de 41
escravizados. Entre minas, congos, moçambiques, gente de São Tomé e Cabo Verde, e
dois escravizados índios (Policarpo e Luciano), além de outros, Francisco era
distinguido por uma característica física. Kambuta em quimbundo é o adjetivo dado a
uma pessoa de “pequena altura ou de menor estatura regular”. Indivíduo curto, segundo
Chatelain, podendo o adjetivo ser atribuído a um anão.175

Antonio Cabumbi era um dos escravos de Manoel da Silva Salgado. 176 Eram
nove pessoas, a exceção de Mariana Mina e José Crioulo, todos eram centro-africanos,
três benguelas, uma guanguela, um congo e um monjolo. Segundo Virgílio Coelho, é
possível que haja um erro de grafia na escrita, na verdade, uma ocultação, muito
corrente em português, da letra “m” posicionada no início da palavra em quimbundo,
que seria “mbumbi”. Nestes termos, Antonio era portador de uma espécie de hérnia,
mais precisamente, uma “acumulação de serosidade no escroto”, chamada hidrócele, em
termos médicos modernos. Ainda segundo Coelho, “o nome Cabumbi é dado por
afeição à pessoa portadora desse mal, dessa inconformidade. Uma forma de aligeirar a
dor de quem sofre”, pois o prefixo ka indica diminutivo e, em algumas situações e
variantes, um tratamento carinhoso. 177 Um bom exemplo nesse sentido é kasule
(caçula), o filho mais novo. Mas o prefixo, segundo Óscar Ribas, também pode imputar

173
Ver, entre outros: Mott. “O calundu-Angola de Luzia Pinta: Sabará, 1739” Alexandre Almeida
Marcussi, Cativeiro e Cura: experiências religiosas da escravidão atlântica nos calundus de Luzia Pinta,
séculos XVII-XVIII.
174
Reais quintos e lista de escravos do Termo da Vila do Carmo, fl. 110.
175
António de Assis Júnior, Dicionário kimbundu-português, linguístico, botânico, histórico e
corográfico. Seguido de um índice alfabético dos nomes próprios/Kambuta; Héli Chatelain, Gramátia
Elementar do Kimbundo ou Língua de Angola, Geveva 1888-89. Nwe Jersey: The Gregg Press
Incorporated, 1964, p. 127.
176
Reais quintos e lista de escravos do Termo da Vila do Carmo, fl. 110.
177
Virgílio Coelho, a quem agradeço sinceramente, tem me auxiliado respondendo perguntas específicas
e, ao mesmo tempo, indicando bibliografia e ofertando conhecimentos gerais sobre o quimbundo. Todas
as informações aqui transcritas estão registradas em nossas trocas de mensagens.
47
depreciação, a exemplo de kasanda (mulher branca de baixa condição) e kamundongo,
“termo depreciativo usado no sul para fazer referência aos naturais da região que
abrangia o reino do Ndongo”.178 Assis Jr. remete o uso do termo à região da Quissama.
Coelho sugere uma proximidade com variantes do quimbundo faladas ao sul do Cuanza.
O entorno de Antonio parece confirmar esta sugestão.

Paula, Sebastião, João e Manuel, identificados como Luango, foram deportados da costa
africana a norte do rio Congo. Entre os séculos XVI e XIX a região era dominada por
três estados: Loango, Ngoyo e Kakonda. Embora as identidades políticas e os interesses
econômicos foram sendo bem demarcados nesse período, as populações destes três
estados compartilhavam tradições culturais comuns, entre elas, a língua kikongo. A
expansão do tráfico transatlântico a partir d segunda metade do século XVII alcançou a
região, sobreponto o comércio de pessoas às mercadorias que sedimentavam um
comércio regional de longa distância. 179 Segundo Phyllis Martin, dois temas principais
marcam a história do tráfico de escravos na Costa do Loango. De um lado, os conflitos
entre os vários traficantes europeus tentando impor sua hegemonia na região, de outro,
as ações políticas (diplomáticas e militares) dos três estados resistindo às imposições
europeias de interessantes monopolistas. 180 Entre o final do século XVII e início do
XVIII, a Companhia das Índias Ocidentais atuou concomitantemente no tráfico de
escravos no Loango e na Costa da Mina.181 Nesse caso, talvez alguns luangos podem ter
chegado às minas pela mesma via dos africanos ocidentais.

Entre os oriundos da África centro-ocidental, os congos formavam o terceiro grupo em


número de pessoas. Eram 29 homens e quatro mulheres.

(Congos, continua...)

4. Domingas Pereira: escrava e senhora

Epílogo: Filho de Pedro Alvarez

178
Mário Rui Silva, Ensaio para uma Gramática comparativa Português-Kimbundu para falantes de
português. Luanda: Edição do autor, 2015, pp. 97-98.
179
Jill Dias, Novas identidades africanas em Angola no contexto do comércio atlântico. In: Cristina
Bastos; Miguel Vale de Almeida; Bela Feldman-Bianco, Trânsitos coloniais. Diálogos críticos luso-
brasileiros. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, pp. 319-320.
180
Phyllis Martin, O comércio externo da Costa do Loango (1576-1870). O impacto das mudanças
comerciais no Reino Vili de Loango. Luanda: Arquivo Nacional de Angola/Ministério da Cultura, 2010,
p. 103.
181
Idem, p. 105.
48

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