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ANAIS DA V JORNADA

SETECENTISTA
Curitiba, 26 a 28 de novembro de 2003
Casamento e relações de afetividade entre escravos:
Vila Rica: séculos XVIII e XIX

Mirian Moura Lott1

INTRODUÇÃO:

As fontes utilizadas para este trabalho são os assentos de casamentos da Matriz


do Pilar de Ouro Preto, referentes ao período de 1712 a 1732 e de 1804 e 1839. Os
livros originais estão no Arquivo Eclesiástico da Paróquia de Nossa Senhora do Pilar de
Ouro Preto (AEPNSP).
No Brasil, nem sempre as fontes eclesiásticas formam uma série longa e
complexa, portanto, os municípios que a preservaram são privilegiados2. Podemos a
partir desses registros (de batismo, casamentos e óbitos), reconstituir as formações
familiares de um determinado período, principalmente se, além desses documentos,
temos também as chamadas listas nominativas, como para o caso de Vila Rica, o Censo
de 1804. 3
Nesse sentido, o caso de Vila Rica e posterior Cidade Imperial de Ouro Preto
(1823) é singular. O fato de ser capital da capitania e posterior província das Minas
Gerais, fez com que a administração e o controle fiscal colonial estivessem mais
presentes e portanto os registros fossem feitos com maior cuidado, além de terem sido
preservados por párocos ciosos de seu papel como guardiães dos costumes e da moral
cristã.

1
A autora é professora da rede pública de Belo Horizonte e mestranda do Curso de História da
FAFICH/UFMG. Orientanda da professora Adalgisa Arantes Campos, trabalha com o tema Casamento e
relações de afetividade no primeiro quartel do século XIX em Vila Rica.
2
FARIA, Sheila de Castro. A Colônia em Movimento. Fortuna e Família no Cotidiano Colonial. Rio de
Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1998.
3
MATHIAS, Herculano, Gomes. Um recenseamento na Capitania de Minas Gerais – Vila Rica – 1804,
Arquivo Nacional. Rio de Janeiro, 1969.
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As informações disponibilizadas pelas atas de casamento são riquíssimas. No
caso da freguesia do Pilar4, o documento básico consta sempre da data e local da
realização da celebração, o nome do celebrante, das testemunhas, do noivo e da noiva.
De acordo com a hierarquia católica, era função do vigário de vara a realização
dos sacramentos. Este entretanto licenciava os párocos para tal incumbência, que podia
também autorizar os capelães para efetivar tais ritos.
Nestes assentos, as testemunhas (pela doutrina vigente, era obrigatória a
presença de, no mínimo, duas testemunhas)5 ora aparecem com seus nomes no corpo do
documento (às vezes, constam também suas profissões) ora assinam embaixo.
Entretanto, em alguns casos as testemunhas não aparecem. Certamente podemos
concluir que alguns registros de casamentos eram transcritos no momento da realização
da cerimônia, com as testemunhas presentes. Outros, por terem se realizado longe da
sede paroquial, eram transcritos posteriormente e por isso não consta a assinatura delas.
Além das informações contidas acima, poderiam também vir transcritas as
profissões do pai dos noivos ou do próprio noivo, a condição social dos noivos e sua
freguesia de origem.

O BANCO DE DADOS DA MATRIZ DE NOSSA SENHORA DO PILAR DO


OURO PRETO:

Em outubro de 1998, iniciou-se o projeto de criação do Banco de Dados da


Paróquia do Pilar de Ouro Preto, com o objetivo de preservar a documentação original.
Sob a coordenação da professora Dra. Adalgisa Arantes Campos, envolveu o
Departamento de História da FAFICH-UFMG (instituição outorgada), o CECO/Casa
dos Contos (associada), FUNDEP (gestora) e FAPEMIG (outorgante).
O Banco possui duas fases: a primeira, de outubro de l998 a novembro de l999
(ainda instalado na Casa dos Contos em Ouro Preto) foi feita a microfilmagem dos

4
A Jurisdição Eclesiástica de Vila Rica dividia-se em duas freguesias ou paróquias. A de Nossa Senhora
da Conceição de Antônio Dias e a de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto.
5
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1707.
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documentos, e a leitura paleográfica dos assentos de batismos, casamentos e óbitos,
perfazendo um total de 16.472 batismos, 237 casamentos e 3.500 óbitos6.
A partir do início do ano de 2000 foi transferido para Belo Horizonte, na
FAFICH/UFMG, onde se acelerou o processo de digitação, normatização e elaboração
de dados que já têm servido para a preparação de textos e base de dados para
dissertações de mestrado.
Para sistematização das informações, foram criadas planilhas que foram sendo
modificadas durante o progressivo conhecimento daquelas fontes. Para cada tipo de
assento foi criada uma planilha específica.
Dois aspectos não podem ser deixados de lado: Os batismos, casamentos e
óbitos nos séculos XVIII e XIX não eram só importantes ritos de passagem com um
significado religioso, mas formavam importante registro acerca das populações das
Minas. O vigário colado, ou seja, o sacerdote fixo (no Pilar, a partir de l724), era um
funcionário nomeado pela Coroa (de acordo com o Regime do Padroado) e exercia
numerosas funções que, somente no século XIX, passaram a ser de alçada civil. “Das
paróquias, curatos, capelas filiais e aplicações, assim como dos distritos de ordenança,
policiais e administrativos, surgiram os distritos de paz, hoje distritos judiciários”. A lei
do Império de 15-X-1827 determinou em seu art. 1o que: “Em cada uma das freguesias
e capelas curadas haverá um Juiz de Paz e um Suplente, para servir no seu
impedimento, enquanto não se estabelecem os distritos conforme a nova divisão
estatística do Império”. A organização administrativa do novo país independente
aproveita, portanto, os organismos já instituídos. Entretanto, de acordo com o Código
do Processo Criminal, estatuído pela lei imperial de 29-XII-1832, a existência de distrito
de paz independia da existência de paróquia, bastando que o lugar contivesse 75 fogos,
de acordo com a decisão no. 128 de 11-III-1833.
“As paróquias tinham, não obstante, a sua importância na organização
administrativa e judiciária. Os eleitores eram inscritos por paróquias; e os párocos,
na falta do juiz de paz, tinham funções a desempenhar por ocasião de eleições (Lei
do Império de 15-X-1827)” 7

6
Atualmente o Banco de Dados já conta com .....planilhas de batismos, ----- planilhas de casamentos e --
----- planilhas de óbitos.
7
COSTA, Joaquim Ribeiro da. Toponímia de Minas Gerais. 2ª Edição. 1997. BDMG p. 27 e 28
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Somente em 1891 (lei estadual no. 2), declara-se o distrito como base da
organização administrativa do Estado, pois até então este papel era desempenhado pelas
freguesias. (Costa, 1997 – p. 26)
O outro aspecto a insistir é sobre a importância da Paróquia do Pilar de Vila
Rica, que além de ter sido, no século XVIII rica e populosa, congregava o maior número
de confrarias (irmandades) e seu destaque como oficial, pois lá eram celebradas as
cerimônias alusivas às comemorações da realeza, como os nascimentos, as bodas e as
exéquias da família real.8
O número mais expressivo de registros matrimoniais concentra-se no século
XIX. Somente de 1804 a 1839 são 861, permitindo que se debruce sobre um
inexplorado período da história de Vila Rica. As possibilidades de cruzamentos entre
dados da mesma planilha ou entre as demais (batismos e óbitos) são oportunidades
inéditas para se conhecer mais sobre nossa história, pois a partir da análise dos
lançamentos, da leitura da bibliografia referente à época e das discussões da equipe de
pesquisa, já têm surgido surpresas, como no caso do número significativo de
casamentos entre escravos e o registro de escravos como testemunhas (padrinhos),
desobedecendo orientação da própria metrópole que desaconselhava tal prática para que
se evitasse formar laços de compadrio e afeto entre eles.
À primeira vista, os registros de casamentos podem nos parecer uma fonte
“seca”, de onde não conseguiríamos extrair dados acerca da vida dos ali representados.
Basta, porém, uma análise mais detalhada sobre as informações contidas nestes
documentos, para que os nomes transformem-se em pessoas com identidades, anseios e
angústias.
O casamento não foi, nem de longe tão abrangente para a população de Vila
Rica como o batismo. Este último, considerado como momento de inserção do
indivíduo no mundo social e a porta de entrada para o mundo da cristandade, passou a
representar a certidão de nascimento daquela pessoa, tanto aos olhos de Deus, como aos
olhos dos homens. Os casamentos, porém, não só nas Minas, mas principalmente ali, era
realizado por uma minoria. A explicação para esse baixo índice de nupcialidade é

8
CAMPOS, Adalgisa Arantes . Roteiro Sagrado. Belo Horizonte: Tratos Culturais/Editora Francisco
Inácio Peixoto, 2000. p. 11
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explicada para o século XVIII, como decorrência da sociedade mineradora, com sua
mobilidade geográfica e social e o pequeno número de mulheres brancas, ou seja,
mulheres em condição social equivalente ao homem, pois o casamento entre diferentes
não era aceito pela sociedade da época. De 1712 a 1728, que é o período no qual
possuímos registros, temos um montante de 118 casamentos. De 1804 a 1820,
considerando o mesmo espaço de tempo para traçarmos um paralelo, possuímos 410
celebrações registradas na Freguesia do Pilar.

O PAPEL NORMATIZADOR DO CASAMENTO:

É consensual na bibliografia referente ao matrimônio o papel normatizador


desempenhado por este sacramento sobre as populações coloniais. Esse aspecto fica
evidente na região das minas (ocupada inicialmente por forasteiros e aventureiros,
ávidos de enriquecimento), onde houve rapidamente a formação de uma sociedade
urbana complexa, exigindo a montagem de aparelho organizador e repressor das
desordens: “Na luta para extirpar o concubinato, Igreja e Estado apresentavam-se
como parceiros em uma batalha essencial na guerra pela disseminação e preservação
da família legítima”.9 Para se ter idéia da importância dada ao casamento como forma
de controle das populações, observa-se a reincidência de denúncias e punições
determinadas pelas visitações diocesanas acerca das uniões consensuais10. Entretanto,
essa preocupação não foi suficiente para transformar o casamento na forma recorrente
de união conjugal. No período de 1712 a 1739, temos a realização de 980 batismos
enquanto o registro de apenas 117 casamentos. O número de batismos de escravos é de
829, enquanto o de casamentos entre cativos é tão somente 25. Há um forte
descompasso entre o primeiro sacramento e aquele do matrimônio.

9
FIGUEIREDO, Barrocas Famílias: vida familiar em Minas Gerais no século XVIII, 1997.
10
SOUZA, Desclassificados do Ouro- a pobreza mineira no século XVIII, 1982. pp. 141- 214.
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BATISMOS E CASAMENTOS: ENTRE 1712 E 1732

Batismos de
escravos 829
Outros: 151

Casamentos de
escravos: 25
Outros: 92

É evidente que o casamento entre brancos era incentivado para formar uma elite
fiel ao governo português e à cultura católica. Toda a mobilização para se trazer
mulheres da Europa e mantê-las nas minas nos permite tal conclusão. Com relação aos
mestiços o sacramento também serviu como fator de acomodação: “Para a ideologia
colonialista, os mestiços, em geral libertos, representavam uma população
indisciplinada e inquieta”.11 Mas, o que dizer do casamento entre escravos? Qual era a
instrução específica à união legítima dos negros?
As autoridades diocesanas defendiam o matrimônio de escravos e libertos, (pois
entendiam que era melhor do que viverem com tratos ilícitos). As Constituições

11
FIGUEIREDO, Op cit, p. 28
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Primeiras do Arcebispado da Bahia deixam claro que o casamento em nada mudaria a
condição social dos cativos.
Os 25 casamentos entre escravos encontrados no período estudado do século
XVIII, para um total de 117 atas, representam pouco mais de 20 por cento, o que não é
um número desprezível.
De 1804 a 1839 percebe-se uma diminuição muito grande na proporção de
casamentos entre escravos. Estes passam a totalizar 8% das celebrações. O número de
casamentos entre livres aumenta de 52% para 83%. Esta mudança nos permite inferir
que no alvorecer do século XIX, a mineração já entrara em declínio e a emigração de
parte da população à procura de novas lavras e terras agrárias já acontecera com maior
intensidade. Portanto, a população livre, mais estável e disciplinada, busca no
matrimônio a legitimação social para suas uniões de uma maneira mais contundente. .

Casamentos por Condição Social (1712-1732)

1º terço sec XVIII


N/C
8% Forro(a) com Forra(o) Escravo com livre
5% 2%
Livre com forro(a)
5%

Livre com livre


52%
Escravo(a) com forra(o)
7%

Escravo(a) com
escrava(o)
21%
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Casamentos por Condição Social (1804-1839)

2
Livre ~ Livre
4 1
Livre ~ Forro
6 19 Forro ~ Forro
28 68 Escravo ~ Escravo
18 Escravo ~ Forro
Escravo ~ Livre
Coartado ~ Forro
Coartado ~ Escravo
Não Consta Condição
715

CASAMENTOS DE ESCRAVOS:

A turbulência escrava não foi pequena nas Minas da primeira metade do século
XVIII12 .Embora não desafiassem o domínio português, mas a escravidão em si. Ao
recusarem-se a comer, resistindo ao trabalho ou ao fugirem e formarem quilombos,
negavam a escravidão e, nestes casos, foram duramente reprimidos13.
Foi, entretanto, na vida cotidiana, que os escravos buscaram formas de suavizar
o cativeiro, como no caso das negras através de “favores sexuais”, ou mesmo quando
compravam sua alforria. Muitos tentaram tornar a vida suportável e souberam
encontrar espaços na vida cotidiana para uma sobrevivência minimamente digna.
A sociedade mais urbana das Minas, por ser mais complexa que a rural
nordestina por exemplo, possibilitava atividades que davam aos cativos alguma
autonomia. Havia os negros de ganho, as negras de tabuleiro, os artesãos, artistas, donos
de vendas, grande número de escravos domésticos.

12
ANASTASIA, Carla Maria Junho. Vassalos Rebeldes. Belo Horizonte: C/Arte, 1998. p. 126
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Havia o aspecto pessoal, onde alguns proprietários tratavam seus cativos com
mais humanidade que outros. Além disso, o objetivo econômico do escravo determinava
uma diferença de tratamento e de relacionamento por parte do proprietário. Com
escravos empregados na lavoura ou na mineração a relação deveria ser de maior
controle e dominação, principalmente por ser um trabalho tão penoso e desgastante.
Uma relação, portanto, mais hierarquizada e distante. Com os escravos de ganho, de
aluguel e mesmo detentores de algum ofício ou saber técnico como sapateiros, artesãos,
etc, a relação era mais igualitária, principalmente pelo grau de autonomia e liberdade de
ir e vir desses indivíduos. Viajantes estrangeiros citam o fato das mulheres brancas
permanecerem todo o tempo dentro de casa, enquanto cabia a seus escravos saírem para
buscar água, fazer compras, dar recados, etc.
Aos escravos domésticos estava reservada também uma relação mais próxima
com seus donos. Estes participavam da rotina diária das famílias e eram os grandes
responsáveis pelos boatos e “fofocas” tão presentes na sociedade daquela época.
Esta estreiteza nas relações passou a ser duramente criticada pelos higienistas do
século XIX, ao considerarem-na como promíscua. Hábitos arraigados como comer com
as mãos e sentados no chão e o costume de entregar o bebê a uma ama de leite passaram
a ser, a partir da segunda metade dos oitocentos, extremamente condenados.
Portanto, podemos concluir: quando há a quebra da acomodação, ocorrem as
revoltas. Estas são detectáveis, e sobre elas há uma ação incisiva por parte do poder
instituído. Mas o contrário não é verdadeiro. Não podemos considerar que, se não há
revolta, há acomodação. É nesse sentido que as formas de resistência vão “corroendo”
as relações entre coroa e seus vassalos e principalmente entre escravos versus senhores.
Em determinados aspectos o papel da Igreja Católica é bastante contraditório.
Seus rituais tanto se prestavam à acomodação da população colonial, e nesse sentido
esta se tornava parceira da Coroa, como à sua resistência. Os casamentos, as missas, as
confissões, as visitações pastorais com objetivo de admoestar os devotos, tinham o
objetivo de “domesticar” a população. Entretanto, estes mesmos ritos abriam
possibilidades de inserção social para os escravos. A eles era garantido o acesso aos
sacramentos e a guardar os domingos (dominus dai) por ser considerado o Dia do

13
GUIMARÃES, A negação da ordem escravista, 1988.
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Senhor. Cabia ao proprietário garantir o batismo de seus cativos, bem como lhes
possibilitar a sobrevivência, dando-lhes um dia semanal para plantarem para si. Antonil
já em 1703 orientava para o procedimento cristão que os senhores deveriam ter com
seus escravos, pois “se não lhes dar farinha nem dia para plantarem, e querer que
sirvam de sol a sol no partido, de dia e de noite com pouco descanso no engenho, como
se admitirá no tribunal de Deus sem castigo?”14 Nesse aspecto podemos considerar que
a prática da religião católica pelos escravos criava para eles um espaço próprio de
convivência e afetividade.
Além disso, não podemos deixar de citar aqui a participação dos escravos nas
irmandades. Ali eles gozavam da confraternização e solidariedade dos irmãos,
principalmente nos momentos de dificuldade ou na hora da morte. Suas contribuições
foram suficientes para se construir capelas belas e ricas, que não ficavam a dever a
nenhuma outra irmandade. A Capela do Rosário dos Pretos em Ouro Preto é um
exemplo.
Conforme Marcos Aguiar, apesar das diferenças étnicas, ao se
associarem, os negros buscavam o apoio mútuo, a proteção, práticas e
respeito sociais e, principalmente, a construção e afirmação de uma
identidade cultural. Esta identidade era fundamental em termos de
sobrevivência psíquica, pois embora fossem a maioria demográfica,
culturalmente eram uma minoria muito pressionada, pois a cultura que se
postou como a mais plena de direitos foi a católica, de matriz européia.15

A historiografia tradicional negava a possibilidade dos escravos formarem


vínculos familiares. A visão, principalmente dos viajantes, era de uma total
promiscuidade nas senzalas. O olhar “de fora” não foi capaz de perceber uma realidade
diferente da sua. Para estes europeus, não havia amor entre as mães e seus filhos, pois a
qualquer momento estes poderiam ser tirados delas, e a maioria das crianças
desconheceria seus pais biológicos, transferindo para o senhor o papel de provedor e
protetor, ou seja, o papel de pai.

14
ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil. P. 128
15
CAMPOS, Adalgisa Arantes Campos. Roteiro Sagrado. Belo Horizonte: Tratos Culturais/Editora
Francisco Inácio Peixoto, 2000. p. 36, citando AGUIAR, Marcos Magalhães. Negras Minas Gerais: uma
história da Diáspora no Brasil Colonial – tese de Doutorado. São Paulo: USP-Depto. De História, 1999.
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Hoje o estudo de novas fontes nos proporciona uma visão totalmente diferente
acerca da composição social da família escrava e de seus laços afetivos. Robert Slenes
em Na senzala uma flor16, estudando as grandes propriedades agrárias da região de
Campinas, na província de São Paulo no século XIX, percebe a possibilidade de
famílias escravas, extensas ou não, viverem de forma estável e duradoura. Mesmo o
costume da poliginia (ligação de um homem com várias mulheres) não seria um sintoma
de devassidão moral, mas uma transferência da cultura africana para as terras
americanas. (Slenes, p. 34). Além disso, eles tinham normas familiares próprias, não
herdadas somente da cultura portuguesa, como a proibição do casamento entre primos-
irmãos.
Slenes considera também a importância da família para os escravos. De acordo
com o autor, para os cativos, “casar-se significava ganhar maior controle sobre o espaço
da “moradia”. (Slenes, 1999 p. 150) Os viajantes europeus, em seus relatos descreveram
as senzalas: estas podiam ser pavilhões com vários pequenos cômodos ou choupanas
separadas. Os escravos solteiros dividiam com dois ou três companheiros de cativeiro o
limitado espaço do recinto. Ao se casar, ou seja, constituir família (dentro dos preceitos
da Igreja Católica ou não) estes passavam a ter o direito a um espaço para si, o que
determinaria um acréscimo em sua qualidade de vida. Ao descrever a roça, Slenes
também diferencia as famílias escravas dos solteiros, identificando para aqueles a
possibilidade de produzir sua própria alimentação e de seus filhos, tendo assim mais
privacidade e momentos de união familiar. Os produtos cultivados nos domingos e dias
santos podiam também ser vendidos, para o proprietário ou não, para formar um pecúlio
com o qual o escravo poderia comprar a alforria para si ou para um de seus familiares.
Apesar do autor de Na senzala, uma flor referir-se a grandes propriedades rurais,
onde o número de escravos era bem maior do que na região de Vila Rica, muitos
aspectos são coincidentes.
Embora minoritário na sociedade mineira dos séculos XVIII e XIX, o número de
casamentos entre escravos não é insignificante, se considerarmos as dificuldades e
requisitos para se realizar tal sacramento. Do total de registros de casamentos

16
SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família
escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
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analisados no período de 1712 a 1728, temos 25 casamentos entre escravos. De 1804 a
1839, são 68 celebrações matrimoniais entre cativos. Estes não tinham nenhum
privilégio no que se refere aos trâmites necessários para a realização deste. Deveriam
apresentar a certidão de batismo, pagar as taxas necessárias se submeter aos banhos, e
aguardar as proclamas, assim como qualquer outro casal livre.
Observamos no período estudado a realização de vinte e dois casamentos em que
tanto a noiva como o noivo eram crioulos, ou seja, nascidos no Brasil. Em outros vinte
casos, apesar de já se referir ao século XIX, ou seja, um período em que a mineração já
não era a atividade econômica básica, o casamento acontecia entre africanos, denotando
assim, a chegada de escravos no local, caracterizando para a região certa dinâmica
econômica.
A escolha do cônjuge pautava-se preferencialmente nos da mesma etnia. Em sete
celebrações, tanto a noiva como o noivo eram angolas. Em dois casos, os noivos eram
congos. Há também um casamento entre benguelas, e um entre munjolos. Os demais são
entre africanos de etnias diferentes. Os dados confirmam para a região das minas a
observação de Slenes, onde os escravos vindos para a região centro-sul do Brasil eram
procedentes de uma vasta área na África Central. Entre estes “predominavam
largamente pessoas da região Congo/Angola”, mas um número expressivo era originário
das regiões de Benguela, Luanda e do antigo Reino do Kongo.17
Através dos assentos de casamentos da freguesia do Pilar do Ouro Preto não
podemos saber se estes casais eram recém-chegados ou se há tempos lá viviam. Ou seja,
os documentos não esclarecem se estes eram comprados como casais e então sua união
sacramentada pela Igreja ou se, somente após terem sido comprados pelo mesmo
proprietário, passaram a se conhecer. . Fato é que o casamento de escravos tinha um

17
No final do século XVII e primeiro quartel do século XVIII, eram os Minas, isto é, escravos
provenientes da Costa da Mina, os preferidos em Minas, por causa de sua experiência em mineração.
...Acontece que os holandeses, atraídos justamente pelo ouro da região, tomaram o Castelo de S. Jorge,
construído pelos portugueses e passaram a hostilizar as embarcações lusas. O Conselho Ultramarino
sugeriu se mandassem para lá fragatas de guerra, para que os holandeses sentissem que S. Majestade se
achava na resolução de manter ali a liberdade de comércio (Documentos Históricos, v. XL, p. 159). Ainda
em 1716, o governador de Pernambuco reclamava das hostilidades dos holandeses na Costa da Mina. ...
Acabaram os portugueses sujeitando-se ao pagamento de tributo aos holandeses. As dificuldades do
comércio com a Costa da Mina e outros motivos fizeram passar a primazia, nas Minas, para os Angolas,
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significado importante tanto para os donos, como para os próprios cativos. Exemplar é a
celebração das núpcias de Libana (rebollo) com Francisco (costa mina) ocorrido em
12/11/1820 na casa do padre Manoel Joaquim Ribeiro, dono dos cativos. O casamento
tendo se realizado na residência do clérigo já demonstra uma atitude de deferência para
com este casal.
Além dos matrimônios analisados acima, treze são entre noivo africano e noiva
brasileira, e somente cinco onde a noiva africana casa-se com crioulo.

CASAMENTOS DE ESCRAVOS COM TESTEMUNHAS ESCRAVAS:

Quando estudamos os matrimônios de cativos em que as testemunhas também


são escravas, a reflexão torna-se mais intrigante, por ser uma exceção à regra geral
exigida pela legislação em curso, isto é, as Constituições Primeiras do Arcebispado da
Bahia, 1707.
Além disso, deparamos com um dado interessante. No século XVIII, dos 25
casamentos entre escravos, somente quatro tinham como testemunha um ou dois
companheiros de cativeiro, sendo que os quatro casos ocorreram bem no início da
atividade mineradora, entre 1713 e 1715. No século XIX (de 1804 a 1839) esta
característica só volta a ocorrer em dois outros momentos, em 1829. Entretanto, estes
dados não podem ser considerados absolutos, pois nem todos os registros constam a
condição social das testemunhas.

CASAMENTOS DE ESCRAVOS COM TESTEMUNHAS ESCRAVAS: (1712-1732)

Nome Origem Cond. Social Dono 1713

os Moçambiques, os Congos etc. Isto é, negros bantos. BARBOSA, Waldemar de Almeida.Dicionário da Igreja
Terra e da Gente de Minas. Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1985. Verbete Costa da Mina.
Matriz do
Pilar
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Noiva Josepha África escrava Manoel Gonsalves Pereira
Noivo Domingos África escravo Manoel Gonsalves Pereira
Testemunha Mateus escravo João Gomes
Testemunha Joseph escravo João Gomes

Nome Origem Cond. Social Dono 1715


Noiva Gracia Guiné escrava Antônio Penedo
Noivo André Guiné escravo Antônio de Andrada Goes Igreja
Testemunha Christovão escravo Antônio de Andrada Goes Matriz do
Testemunha Francisco escravo Antônio de Andrada Goes Pilar

Nome Origem Cond Social Dono 1715


Noiva Maria Costa Mina escrava Joseph Rodrigues
Noivo João Costa Mina escravo Joseph Rodrigues Igreja
Matriz do
Testemunha Pedro Soares escravo Paschoal da Sylva Guimarães18
Pilar
Testemunha Pedro escravo Paschoal da Sylva
Rodrigues
Guimarães

Nome Origem Cond. Social Dono


Noiva Maria Guiné escrava Antônio da Costa Gouveia 1715

Noivo Antônio Guiné escravo Antônio da Costa Gouveia

Testemunha Salvador Forro


Figueiredo
Testemunha Ventura da Sylva escravo Paschoal da Sylva
Guimarães

18
Trata-se do mestre de campo atuante na revolta de 1720.
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Luciano Figueiredo caracteriza bem o início do povoamento de Vila Rica e a
necessidade da instalação da ordem pública:: “o grande despertar das autoridades para
uma política sistemática de estabilização e disciplina da população mineira se situa nos
anos 20, quando as revoltas de Vila Rica e Pitangui ameaçam a continuidade da
dominação colonial.”19 Donald Ramos também considera o ano de 1720 para o
estabelecimento da autoridade real nas minas20. Já Laura de Melo e Souza21 considera
que somente após 1736 com o final dos motins do Sertão de São Francisco, há a
“substituição do enfrentamento explícito dos poderosos como arma contra a Coroa pela
resistência cotidiana da sociedade mineira colonial que, de forma quase invisível, foi
corroendo a autoridade metropolitana”.22 Como nosso objeto de estudo não são os
potentados, mas os escravos, a data de 1720 nos satisfaz plenamente, pois nessa data a
administração política e a Igreja já estão presentes para regular a sociedade.
É possível que exista relação entre o maior controle metropolitano e a ausência
de testemunhas escravas para os casamentos, pois certamente os laços de compadrio
fortaleciam relações de sociabilidade, o que não era do agrado da administração
colonial. Quanto à autonomia para que escravos se casassem, só foi possível numa
sociedade flexível, diferente da estrutura social agrária formada no litoral nordestino.
As Constituições Primeiras prescreviam que escravos casados não fossem
vendidos separadamente:

(...) conforme o direito divino e humano os escravos e escravas podem casar com
outras pessoas cativas, ou livres, e seus senhores lhe não podem impedir o
matrimônio, nem o uso dele no tempo e lugar conveniente, nem por esse respeito os
pode tratar pior, nem vender para outros lugares remotos, para onde o outro, por ser
cativo ou por ter outro justo impedimento, o não possa seguir (...).

entretanto, Antonil considera que alguns senhores se opunham ao casamento de


seus escravos e escravas, consentindo que eles se amancebassem. Sua justificativa era

19
FIGUEIREDO, Luciano. Op. Cit. P. 25.
20
RAMOS, Donald. A Estrutura Demográfica de Vila Rica às Vésperas da Inconfidência. In: V Anuário
do Museu da Inconfidência. 1978.
21
SOUZA, Laura de Melo. Desclassificados do Ouro. Rio de Janeiro: Graal, 1982.
22
ANASTASIA, Carla. Op. Cit. P. 12 nota de rodapé 8
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baseada na premissa que “enfadando-se do casamento se matem logo com peçonha ou
com feitiços” ou ainda para terem liberdade de venderem ou separarem o casal, coisa
que, sendo casados, não podiam “fazer em consciência”. (Antonil, p. 124)
Entretanto, parafraseando Beatriz Nizza: “Isto seria verdade se os senhores
obedecessem às normas ditadas pela Igreja, o que não acontecia neste caso específico.
Como a norma era constantemente violada, não se pode cogitar nela como obstáculo às
uniões matrimoniais entre escravos”23.
Em se tratando do início do século XIX, os dados já são outros. A sociedade já
não tem o mesmo dinamismo da época da descoberta do ouro e os escravos já não
ameaçam a ordem estabelecida como então.
Em Chica da Silva, Júnia Furtado nos esclarece que “cabia aos proprietários
facilitar o acesso dos negros aos sacramentos católicos”. (Furtado, 2003, p 138),
concluindo que
na sociedade escravista da América portuguesa, entre as obrigações
de um bom senhor cristão estava garantir o acesso dos cativos aos
sacramentos religiosos, e a Igreja procurava punir aqueles que
deixassem de batizá-los, que os impedissem de ir à missa, ou lhes
negassem a extrema-unção, e, em conseqüência, a salvação de suas
almas. (Furtado, 2003, p. 145).

Robert Slenes considera o apoio dos proprietários ao casamento de seus cativos


fundamental, pois como a grande maioria acontecia nas igrejas matrizes do município,

a viagem até o centro urbano com o casal escravo e as testemunhas ao


evento, na sua maioria também cativos, certamente implicava um
esforço considerável por parte do senhor e talvez sua perda (no caso
dos matrimônios não realizados no tempo de “folga” dos escravos) de
algumas horas do trabalho cativo. (Slenes, p. 93)

23
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de casamento no Brasil Colonial. SP: T.A. Queiroz; Ed. Da
Universidade de São Paulo, 1984.
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Em se tratando do meio rural, era comum que os casamentos fossem coletivos,
tanto para “tornar o uso do tempo mais eficiente, mas também (se suspeita) de
impressionar a escravatura com o clima de festa que a resultante “romaria” à Igreja
implicava.” (Slenes, p. 93)
É importante fazer algumas referências ao texto citado acima. Ao considerarmos
Vila Rica, podemos perceber algumas coincidências, como a matriz sediando a maioria
dos casamentos, tanto de escravos como outros. Ao considerarmos os registros onde
constam o dia da semana das núpcias, não percebemos uma preferência pelo domingo,
que seria o dia de folga dos escravos. As celebrações portanto, ocorrendo nos dias de
semana, determinaria certamente uma perda de trabalho dos noivos e talvez, dos
convidados (dos 68 casamentos de escravos, 23 foram realizados no domingo).
Entretanto, em dois aspectos a experiência campineira é diferente. Primeiramente os
casamentos coletivos são raros em Vila Rica. Além disso, em raríssimas ocasiões as
testemunhas foram companheiras de cativeiro, como veremos abaixo.
Em 1829 temos dois casos bem originais:

Nome Origem Cond. Social Dono 02/05/1829


Noiva Florencia Monjolo Escrava Anacleto Antônio do Carmo
Tenente-Coronel Igreja
Noivo Domingos Monjolo Escravo O mesmo Matriz do
Testemunhas Domingos Congo Escravo O mesmo Pilar
Maria Conga Escrava O mesmo

Nome Origem Cond. Social Dono 02/05/1829


Noiva Luiza Congo Escrava Anacleto Antônio do Carmo
Tenente-Coronel Igreja
Noivo João Congo Escravo O mesmo Matriz do
Testemunhas Domingos Congo Escravo O mesmo Pilar
Maria Conga Escravo O mesmo
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Nos casamentos acima, quatro aspectos chamam a atenção. O primeiro refere-se
ao fato de uma das testemunhas ser mulher. Somente a partir de 1828 estas aparecem
com uma freqüência maior nos registros paroquiais. Até então, a grande maioria de
casamentos tem como testemunhas, homens.
O segundo aspecto é o fato das testemunhas serem escravas. Durante os 35 anos
pesquisados, somente nesta oportunidade registrou-se a presença de testemunhas
escravas. Era uma rara exceção.
O terceiro aspecto é o fato de ambas as cerimônias terem ocorrido no mesmo dia e local.
No meio rural, era mais plausível que os casamentos fossem coletivos, para
aproveitar a presença do pároco em regiões às vezes isoladas dos núcleos urbanos, ou
como no texto do Slenes citado acima. Em Vila Rica, na jurisdição da Matriz do Pilar,
quase todos os casamentos, mesmo em se tratando de noivos escravos, a cerimônia era
exclusiva, demonstrando uma atenção que não se diferenciava pela condição social.
Não há também uma restrição aos templos escolhidos por eles ou seus
proprietários., Esta preferência, entretanto, não é exclusiva dos cativos. Com relação ao
horário, podíamos considerar as primeiras horas da manhã como horários menos
“nobres”, e portanto mais próprios para casamentos entre escravos ou forros, enquanto
os horários ao entardecer e à noite, mais propícios para os noivos de condição sócio-
econômica privilegiada. Apesar da maioria dos assentos estudados não registrar a hora
da cerimônia, esta tendência também não se concretizou.
Por último, tanto os noivos como as testemunhas pertenciam ao mesmo
proprietário. Tanto no caso de Campinas: “Os senhores de escravos em Campinas
praticamente proibiam o casamento formal entre escravos de donos diferentes ou entre
cativos e pessoas livres”, (Slenes, p. 75) como nos registros estudados aqui,
observamos que a grande maioria das cerimônias refere-se a escravos de um mesmo
proprietário. Neste caso, o Sr. Anacleto Antônio do Carmo, tendo comprado escravos
africanos, tratou de sacramentar a união. As testemunhas também lhe pertenciam.
Cumprir os rituais sagrados da Igreja certamente tinha significado religioso para ele
tanto ou mais do que para os seus próprios cativos. O proprietário Anacleto se enquadra
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dentro daquele perfil de homem misericordioso e devoto, tão ao gosto do Barroco do
século XVIII e que ultrapassa a barreira do novo século.24
Pesquisando no Banco de dados, encontramos o Sr. Anacleto como dono de 44
escravos que foram batizados naquela freguesia ouropretana. Quinze batismos
ocorreram em 17/04/1828, onde em 14 casos, os padrinhos eram os mesmos: José
Gomes Ferreira, livre e Maria, escrava. Todos os batismos são de escravos adultos,
certamente recém-chegados da África, isto é, boçais25. Entre eles, há uma Luiza. Seria a
mesma noiva do registro acima, que no espaço de 15 dias recebeu os dois sacramentos
da Igreja?
Esse aspecto vem fortalecer a idéia de que tal proprietário, e como ele, muitos
incentivavam e possibilitavam a seus escravos cumprirem os ritos sagrados da Igreja.

Em Vila Rica, os 25 casamentos entre escravos ocorridos entre 1712 e 1732,


foram celebrados na Igreja Matriz do Pilar. Entre 1804 e 1839, dos 68 casamentos entre
escravos, 35 casais escolheram a Matriz para celebrarem suas núpcias. A Igreja
Paroquial é aberta a todos os seus fregueses, pois não é uma capela erigida por
determinada irmandade,26 apesar de nela estarem acondicionados nas capelas laterais,
devoções específicas. As capelas preferidas para a realização da celebração matrimonial
entre escravos foram: a capela de Santa Quitéria do Arraial da Boa Vista (10) e a Capela
de Nossa Senhora da Conceição do Rodeio (8). É interessante notar que, nestes 35 anos,
somente um casamento realizou-se na capela do Rosário dos Pretos.
Acreditamos que após a cerimônia religiosa, em alguns casos os noivos
comemorassem com danças e farta comida, pois a festa faz parte da identidade cultural
dos africanos e negros e não poderia ficar de fora num momento tão importante. Apesar
de não conhecer qualquer produção iconográfica ou descrição sobre ela. Fernando
Ortiz, citado por Luiz Delgado Aparício explica que: “la danza es originariamente um

24
Cf. piedade barroca in:CAMPOS, O homem comum e o santo: A morte, a mortificação e o heroísmo
In: Revista do IFAC, nº 4, 1995, pp. 10-22.
25
Boçal ou bugre = aquele que não fala e nem tem os costumes da terra.
26
CAMPOS, Adalgisa Arantes. Roteiro Sagrado. Belo Horizonte: Editora Francisco Inácio Peixoto 2000.
p. 9 a 17.
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fenómeno dialogal de magia y religión, por los efectos psíquicos e ella y por la relación
de su dinámica con los conceptos de la acción sacromágica”.27

27
APARÍCIO, Luis Delgado. Lo Africano em la cultura criolla. P. 90.

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