Você está na página 1de 7

Aloisio Arnaldo Nunes de Castro

Graduado em Artes Plásticas – UFJF, Especialista em Tecnologia Educacional – UFJF,


Especialista em Evolução da Linguagem Visual – UFJF, Mestre em História – UFJF.
Conservador-Restaurador de Bens Culturais
Laboratório de Conservação e Restauração de Papel do Museu de Arte Murilo Mendes – UFJF

1
CHARTIER, Roger.
A conservação e restauração de acervos em Por uma sociologia
histórica das práticas
culturais. In: A História
suporte de papel no Brasil: Cultural: entre práticas
e representações.
Lisboa: DIFEL, 1990. p.
uma abordagem à luz da História Cultural 14.

Esta comunicação tem por objetivo apontar investigações acerca da trajetória histó-
rica da conservação e restauração de acervos em papel no Brasil, tendo como recorte
cronológico a primeira década do século XX até os anos de 1990. Utilizando-se da
análise bibliográfica, documental e do exercício da história oral, esta pesquisa exami-
na os marcos teóricos, os paradigmas e as influências internacionais e as políticas que
alicerçaram a inserção e a construção dessa disciplina especializada no âmbito brasi-
leiro.

Palavras-chave:
Papel; Patrimônio Cultural; História da Conservação e Restauração; Práticas e narrati-
vas preservacionistas.

This paper has goal to investigate, based on Cultural History, the historical trajectory
of paper conservation-restoration in Brazil since the first decade of the 20th century
until the years 1990s. This research uses bibliographic, documental and oral history
analysis. It examines theoretical points, paradigmas, international influences and cul-
tural policy that are basic idea to the insertion and construction of this subject in
Brazilian context.

Introdução

A presente comunicação apresenta tópi- ções com as instituições culturais e com a


cos parciais da dissertação de Mestrado sociedade.
intitulada “A trajetória histórica da conser- Desse modo, o diagnóstico do desco-
vação-restauração de acervos em papel no nhecimento em relação ao processo de
Brasil” defendida pelo autor, em fevereiro construção histórica, bem como as inqui-
de 2008, no Programa de Pós-Graduação em etações concernentes à gênese das práti-
História do Instituto de Ciências Humanas cas e representações da preservação, con-
da Universidade Federal de Juiz de Fora. servação e restauração de acervos em pa-
Os recentes trabalhos acadêmicos dedi- pel desenvolvidas no âmbito nacional, ori-
cados à reflexão da história da conserva- entaram este estudo para uma investiga-
ção e restauração de bens culturais no Bra- ção mais detalhada, capaz de suscitar re-
sil enveredam-se, notadamente, para a flexões, análises e questionamentos perti-
análise do patrimônio edificado, bem nentes à construção cultural
como para as categorias de pintura de ca- preservacionista. Em consonância, portan-
valete, escultura policromada e têxteis. to, com as proposições da História Cultu-
Verifica-se, portanto, uma lacuna ral que destacam a emergência dos “no-
historiográfica – ou porque não dizer um vos objetos” e dos “novos territórios” no
grande abismo historiográfico – no que diz seio das questões históricas1, este estudo
respeito à trajetória histórica da conserva- pretende ser uma contribuição à
ção e restauração de papel no cenário historiografia que já se ressentia de discus-
preservacionista brasileiro. Trata-se, pois, sões e interpretações mais aprofundadas
de um tema ainda pouco explorado em na ação preservacionista relativa à memó-
sua dimensão histórica, em suas ria cultural expressa em papel. Assim sen-
temporalidades e em suas múltiplas rela- do, acreditamos que a definição da temática
159
Anais | Congresso Abracor 2009
2
A posição de Peter
Burke é que “a base
dos acervos em papel enquanto objeto de questionamentos de ordem tecnicista e
filosófica da nova história estudo ainda pouco investigado, e a locali- cientificista também são abordados na obra
é a ideia de que a
realidade é social zação de um novo corpus documental im- do teórico belga Paul Philippot, na qual
culturalmente
construída”. Cf. BURKE, plicam em vislumbrar à presente pesquisa ele sustenta que, após a Segunda Guerra
Peter (org.). A Escrita da
história: novas
novas abordagens, ou seja, analisar e bus- Mundial, a restauração se tornou uma dis-
perspectivas. São Paulo: car compreender as diferentes e múltiplas ciplina cada vez mais científica com o
Editora da Universidade
Estadual Paulista, 1992, práticas, narrativas, discursos, contextos, abandono dos métodos artesanais.
p. 11.
3
CHARTIER, Roger. redes de significados e representações Philippot reconhecia a importância dessa
op. cit., p.16. construídas em torno da conservação e res- evolução, entretanto, intuía o perigo da
4
MARTÍNEZ JUSTICIA,
Maria José. Historia y tauração de papel no Brasil. Outrossim, o crença de que a utilização de novas técni-
teoría de la conservación
y restauración artística. exercício reflexivo desta pesquisa pretende cas de pesquisa por si só pudessem garan-
Madri: Tecnos, 2000. pp.
18-42. contribuir para que os conservadores-restau- tir o êxito da intervenção, uma vez que -
5
PHILIPPOT, Paul. “La radores especialistas em papel - ou demais antes de tudo - a restauração apresenta um
conservation de oeuvres
d’ art. Problème de profissionais engajados na tarefa caráter cultural5. Nesse sentido, Philippot
politique culturelle”.
Annales d´Histoire de preservacionista - ampliem o conhecimen- também salienta o caráter dialogal da con-
l´Art et d´Archéologie de
l´ Université Libre de
to sobre o seu próprio campo de trabalho. servação ao entendê-la como “um fenô-
Bruxelles, VII(1980), p. Dessa forma, esta pesquisa dialoga com meno moderno de manter contato vigoro-
7-14. apud MARTÍNEZ
JUSTICIA, Maria José, as perspectivas apontadas pela História so com trabalhos culturais do passado”6.
op. cit., p. 344.
6
MATERO, Frank. Cultural, ou seja, pretende discutir o pen- Frank Matero, em seus estudos sobre a Éti-
Ethics and Policy in
Conservation. In: The
samento preservacionista como uma ca e Política na Conservação, afirma que
GCI Newsletter, Volume “construção cultural”2, por meio do exa- “toda conservação é um ato crítico, de in-
15, Number 1, Spring
2000,p.4. Disponível em me das práticas, narrativas e representa- terpretação. Nós preservamos com um
<http://www.getty.edu/
conservation/ ções, notadamente aquelas relacionadas objetivo – e é esse objetivo que deve ser
publications/newsletters/
15_1/features1_2.html>.
aos documentos gráficos. Assim, rompen- de forma contínua questionado, avaliado
Acesso em: 24/03/ do-se com os paradigmas que classificam, e modificado se necessário”7. É também
2005.(tradução nossa).
7
Id., p.4. aprioristicamente, a conservação e restau- nesse contexto dialogal por excelência, no
8
MUÑOZ VIÑAS,
Salvador. Teoría ração como atividade tecnicista, este estu- qual se funda a construção cultural, que
Contemporánea de la do se propõe a investigar os “modos”3 podemos situar o pensamento do restau-
Restauración. Madri:
Editorial Síntesis, S.A. como a preservação do patrimônio cultu- rador John McLean no qual verificamos a
2003. p. 17. (tradução
nossa). ral, no seio da sociedade, é: pensada, in- interpenetração das diversas áreas do co-
9
Jornal da Tarde
(São Paulo). 21/09/95. terpretada, assimilada, praticada e legiti- nhecimento na construção da disciplina
mada. Nesse contexto, cabe situar as pro- em estudo: “Tanto a conservação como a
posições defendidas pelos pesquisadores restauração são um estado mental: uma
da conservação e restauração que, ao se matriz pessoal de eleições formativas, téc-
preocuparem com as implicações históri- nicas, estéticas, culturais, políticas e
cas e teóricas da preservação cultural, cri- metafísicas” 8.
ticaram e problematizaram os paradigmas De outra parte, há que se considerar,
tecnicistas inerentes ao campo da conser- ainda, na investigação historiográfica pro-
vação e restauração dos bens culturais. posta, a relação dialógica que se estabele-
Maria José Martinez Justicia reitera, ao lon- ce entre a preservação de papel com o
go das páginas de sua publicação Historia campo das ciências humanas, evidencian-
y teoría de la conservacion y restauración do-se o contato subjacente com as obras e
artística, que a restauração não é só e ex- textos históricos. O resgate dos arquivos
clusivamente uma questão técnica, mas ganhou alento também com a
sobretudo (e num grau muito importante) revalorização da busca do documento de-
uma ação crítica. Conforme a autora, mui- fendida pelos historiadores franceses vin-
ta confiança foi depositada na tecnologia culados à Escola dos Annales, criada por
e nas significativas contribuições que ci- Lucien Fevbre e Marc Bloch, em 1929.
ências experimentais propiciaram à restau- Conforme ressaltou o restaurador espanhol
ração, a ponto das questões estéticas serem Pedro Barbáchano San Millan, “O histori-
frequentemente esquecidas. Ao defender que ador Fernand Braudel, discípulo de Bloch
restaurar significa “dialogar” com as obras e Fevbre, buscou resgatar os arquivos na
do passado e que, portanto, o restaurador França. Como a Escola dos Annales pro-
deve se converter num intérprete, Justicia cura auxílio de outras disciplinas para a
propõe uma revisão historiográfica nesse pesquisa, a restauração cumpre um impor-
campo de estudo visto que “a reconstrução tante papel” 9.
da História da Restauração daria, sem dúvi- No que concerne ao referencial teórico
da, resposta a múltiplas interrogações, pro- metodológico, elegeram-se os aportes en-
porcionaria novos dados e, sem dúvida, nos contrados nas obras do historiador francês
livraria de muitos equívocos” 4 . Os Roger Chartier e do sociólogo Pierre
160
Anais | Congresso Abracor 2009
10
poder) e “habitus” (capital simbólico, ca- CHARTIER, Roger.
Bourdieu. Na esteira do pensamento de op. cit., p.16.
11
Chartier, a Cultura (ou as diversas forma- pital intelectual dos atores sociais) foram Cf. BOURDIEU,
Pierre. A economia das
ções culturais) poderia ser examinada no utilizados como ferramentas, como funda- trocas simbólicas. São
Paulo: Perspectiva,
âmbito da ação interativa entre duas no- mentos metodológicos na investigação e no 2005.
ções: de um lado as “práticas” e, de outra deciframento do espaço social demarcado
parte, “as representações”. Dessa forma, a pela preservação do patrimônio cultural.
análise das “práticas” e “representações” É, portanto, nessa perspectiva que
enfocadas neste estudo objetivaram, tal contemporaneamente se inscrevem a ne-
como propõe Chartier, “identificar os mo- cessidade de estudos e a reflexão acerca
dos como em diferentes lugares e momen- da trajetória da conservação e restauração
tos uma realidade cultural é construída, da memória grafada sobre o suporte de
pensada e dada ler”10. Outro viés de inter- papel no Brasil e que tenha em mira a
pretação foi encontrado nas categorias melhor compreensão da construção cul-
analíticas com as quais Bourdieu pensa a tural preservacionista, considerando-se,
sociedade 11 . Assim, os conceitos de ainda, as mudanças de paradigmas cientí-
“campus” (arena social, jogo de tensão e ficos ocorridas nas últimas décadas.

Os antecedentes: dos insetos bibliófagos ao despertar da conservação


Difícil demarcar o momento no qual há agentes patológicos de deterioração sob o
o surgimento da conservação e restauração ponto de vista científico, o estudo do ciclo
de papel no Brasil. Todavia, as primeiras biológico, o conhecimento das condições
referências sobre a problemática de preser- climáticas de procriação e das preferências
vação mostram-se vinculadas à ação destrui- alimentares, para, em seguida, indicar as
dora dos insetos bibliófagos. Ao longo da medidas de combate e prevenção contra tais
primeira década do século XX, os médicos espécimes biológicos. Pode-se constatar, em
Pedro Severiano de Magalhães (1850-1909), tais estudos, a prevalência de autores médi-
Diogo Teixeira de Faria (1867-1927) e Jai- cos ligados às instituições dedicadas aos es-
me Silvado realizam estudos sistemáticos tudos de parasitologia, verminoses, higiene
sobre os insetos destruidores de livros e social e desinfecção de doenças. Partindo deste
documentos pautados numa metodologia de ponto de vista, vemos o desenvolvimento do
trabalho científica. Conforme observamos, conhecimento científico a partir do diálogo
os referidos estudos técnicos de interdisciplinar da biologia, da química e da
entomologia, publicados nas primeiras dé- medicina. Nesta literatura técnica, dedicada
cadas do século XX, exemplificam que a aos estudos dos insetos bibliófagos, observa-
preocupação preservacionista estava, a se a construção de um enunciado
priori, relacionada à necessidade de conhe- preservacionista que se quer dizer
cimento dos males biológicos que então metodológico e cientificista em contraposição,
degradavam os acervos em papel. Assim, portanto, às técnicas empíricas de conserva-
tornava-se premente a identificação destes ção e restauração de bens culturais móveis.

A criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN/IPHAN


e as ações de conservação e restauração de papel

O Serviço do Patrimônio Histórico e Ar- atividades de conservação e restauração de


tístico Nacional – SPHAN é criado em 1936, papel na Biblioteca Nacional. Recém-che-
na Era Vargas. Em 1937, por meio do De- gado dos Estados Unidos podemos verificar
creto-Lei nº. 25, organiza-se a proteção do no relatório dirigido ao então Diretor da
patrimônio histórico e artístico nacional Biblioteca Nacional, Josué Montello, a pre-
com a oficialização do SPHAN. Em 1944, ocupação do restaurador em implementar
Edson Motta é convidado por Rodrigo Melo no Brasil o que, provavelmente, foi o pri-
Franco de Andrade para ocupar o cargo de meiro laboratório de conservação e restau-
Conservador do SPHAN. Em 1945, Edson ração especializado somente em papel nos
Motta obtém uma bolsa de estudos pela moldes ditos científicos, em contraposição,
Fundação Rockfeller a fim de realizar está- portanto, aos métodos empíricos anterior-
gio no Fogg Art Museum da Universidade mente empregados. No que concerne à ne-
de Harvard. Em 1947, Edson Motta retorna cessidade de aparato tecnicista, observamos
ao Brasil e inicia a organização do Setor de que Edson Motta emprega a terminologia
Recuperação da Diretoria do Patrimônio His- “laboratório” para o recinto onde desenvol-
tórico e Artístico Nacional – DPHAN. A verá os trabalhos de conservação e restaura-
partir de 1948, Edson Motta sistematiza as ção, bem como ressalta a aquisição de equi-
161
Anais | Congresso Abracor 2009
12
Arquivo Noronha Santos
– IPHAN. Série: Centro de
pamentos, de mobiliários específicos e a nominar-se “Setor de Conservação e Restau-
Restauração de Bens realização de instalações pertinentes - ração de Pinturas, Esculturas, Manuscritos
Culturais.
13
Arquivo Noronha Santos conditio sine qua non - na adoção de uma e Impressos do IPHAN”, momento no qual
– IPHAN, Série Centro de
Restauração de Bens metodologia de trabalho científica12. Des- se verifica estudos de melhoria para a “Se-
Culturais.
14
Arquivo Noronha Santos
se modo, podemos constatar um marco ção de Restauração de Papel”. A partir de
– IPHAN, Série Centro de referencial na inserção da restauração de 1978, observa-se a mudança de nomencla-
Restauração de Bens
Culturais. papel no Brasil voltado, notadamente, para tura dessa repartição pública – até então
15
VELOSO, Bethânia
Reis. A formação do a restauração de obras de arte em suporte denominada “Setor de Conservação e Res-
conservador-restaurador de papel. Nessa época, Edson Motta utili- tauração de Pintura, Talha, Manuscritos e
na Universidade Federal
de Minas Gerais. Belo za como literatura de referência a publi- Códices” – para “Centro de Conservação e
Horizonte: UFMG/Escola
de Belas Artes, 1998 cação norte-americana “The treatment of Restauração de Bens Culturais”13. Tal mu-
(Dissertação de
Mestrado). pictures”, escrita por Morton Bradley dança coaduna as influências do ideário de
16
Cf. SOARES, Maria Júnior, apropriando-se de uma Aloisio Magalhães – a “fase moderna” do
Luisa Ramos de Oliveira.
Critérios de intervenção. metodologia de trabalho então vigente nos órgão oficial de preservação do patrimônio
Quando a tradição
encontra a modernidade. p. Estados Unidos. A atuação pioneira do brasileiro – ocasião em que Magalhães subs-
54. In: Curso de
Preservação de Acervos
Prof. Edson Motta vem, de fato, colaborar titui a noção de valor de “patrimônio histó-
Bibliográficos e com a interpretação da inserção da disci- rico e artístico” por “bem cultural”. Por
Documentais. Fundação
Biblioteca Nacional. Rio de plina nos moldes ditos científicos no con- conseguinte, depreende-se que a política de
Janeiro. 16 a 25 de outubro
de 2006. Coordenadoria de texto pós-Segunda Guerra. Desse modo, a preservação não estaria voltada apenas para
Preservação.
despeito da preservação do patrimônio os objetos de relevância histórica e artísti-
edificado surgir a partir de uma matriz fran- ca, ao contrário, deveria abranger a extensa
cesa, verificamos, na década de 1940, com variedade tipológica de bens culturais, dentre
o trabalho do Prof. Edson Motta, a apro- as quais incluiriam os acervos documentais
priação de uma linha conceitual tipicamen- e bibliográficos. A restauradora Maria Luiza
te americana no que concerne às ações Guimarães Salgado atuou como diretora do
de conservação e restauração de papel. Centro de Conservação e Restauração de
Em 1962, a então Diretoria do Bens Culturais e, ao longo de sua gestão,
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional desenvolveu projetos voltados para a preser-
- DPHAN estabeleceu a sistematização do vação de papel tais como: elaboração do es-
“Setor de Recuperação de Pintura, Escul- tudo “Laboratório-Escola para restauração de
tura e Manuscritos”, subordinada à Divi- papéis”; “Formação de pessoal técnico em con-
são de Conservação e Restauração – DCR. servação e restauração”; estudo sobre a defi-
Observa-se a prevalência de serviços de nição de “Técnico de Assunto Cultural – Área
restauração de pinturas e esculturas, en- Restauração”14. Como representante do
tretanto, há também registros que eviden- IPHAN, Maria Luiza Guimarães Salgado tem
ciam a atuação de Edson Motta na restau- atuação pioneira como docente em curso de
ração de acervos em papel oriundos de pós-graduação ao ministrar, em 1978, no 1º.
repartições do próprio governo federal, Curso de Especialização em Conservação e
bem como de instituições de regiões dis- Restauração de Bens Culturais Móveis – lato
tintas do país. Em 1973, na gestão de Re- sensu, na UFMG, a disciplina “Conservação
nato Soeiro, a referida unidade passa a de- e Restauração de Papel”15.

A busca de formação profissional no estrangeiro na década de 1970 e a


implantação dos laboratórios pioneiros em conservação e restauração de papel
nas instituições públicas
A partir dos anos de 1970 as linhas de exemplo: Lindaura Alban Corujeira reali-
trabalho direcionam-se para o conceito eu- za cursos e estágios na Biblioteca Nacio-
ropeu, seja pelo despertar advindo das nal de Madri e no Istituto de Patologia
ações desenvolvidas pós-enchente de Flo- del Libro Alfonso Gallo, em Roma; Ma-
rença16, seja pela formação dos conserva- ria Luiza Ramos de Oliveira Soares faz
dores-restauradores em cursos e estágios estágio técnico no Museu Calouste
de média ou curta formação - Gulbenkian, especializando-se em con-
subsequentes ao Prof. Edson Motta - em servação e restauração de documentos grá-
centros europeus que inspiraram, de cer- ficos (obras raras, gravuras, desenhos e pin-
to modo, o surgimento dos núcleos inici- turas sobre papel); Gilda Lefevbre obtém
ais de conservação-restauração. Assim, bolsa de estudos da UNESCO e realiza trei-
verificamos um grupo de profissionais que namento no Istituto de Patologia del Libro
buscam, de modo pioneiro, a especiali- Alfonso Gallo e Ingrid Beck faz curso de
zação em conservação e restauração de especialização em conservação e restau-
162
papel em instituições européias como por ração de documentos na Biblioteca da Uni-
Anais | Congresso Abracor 2009
versidade de Göttingen e State Graphic institucional com o Centro de Conserva-
Collection of the State of Bavaria, em ção e Restauração de Bens Culturais do
Munique, como bolsista do Carl Duisberg IPHAN e com o LACRE da Fundação Casa
Gesellshaft, CDG, Alemanha. Outrossim, de Rui Barbosa com vistas a obter infor-
podemos correlacionar reflexos produtivos mações de natureza técnica e administra-
por meio da ação dos profissionais que, tiva, além de solicitar treinamento profis-
após receberem formação pautada em sional por meio da realização de estágios
metodologia científica em centros estran- de curta duração.
geiros especializados, indicam a necessi- Diante das dificuldades de ordem fi-
dade premente da implantação de labora- nanceira, técnica e administrativa encon-
tórios de conservação e restauração devi- tradas no campo da preservação dos do-
damente instalados e equipados. Nesse cumentos gráficos podemos verificar, a
contexto, destaca-se o pioneirismo da im- partir do final da década de 1970, estra-
plantação, nos anos de 1978 e 1979, do tégias de aglutinação de núcleos cientí-
“Laboratório de Conservação e Restaura- ficos e de instituições detentoras de bens
ção de Documentos Gráficos – LACRE” culturais com vistas a somar esforços e
do Centro de Documentação da Funda- viabilizar ações efetivas de preservação,
ção Casa de Rui Barbosa, por meio da apro- conservação e restauração de acervos bi-
vação de projeto da Financiadora de Estu- bliográficos e documentais. Nesse senti-
dos e Projetos – FINEP. do, podemos situar a criação, em 1979,
Ao final da década de 1970 e início da da Coordenadoria de Conservação e Res-
década de 1980, mapeamos iniciativas de tauração de Livros e Documentos do Es-
implantação de laboratórios de conserva- tado de São Paulo – CORLIDOSP com o
ção e restauração no âmbito dos governos objetivo de elaborar e implantar uma sis-
estaduais. Tais iniciativas são, de fato, temática de restauração e conservação de
reveladoras na medida em que demonstram livros e documentos históricos, abrir no-
a preocupação regional com a preservação vos campos de pesquisas historiográficas
dos acervos em suporte de papel, bem e aperfeiçoar as técnicas de restauração.
como ilustram a ramificação das ativida- Dentre as primeiras ações da
des de conservação e restauração de papel CORLIDOSP, destaca-se a realização do
pelo território brasileiro a partir dos nú- “Primeiro Encontro Brasileiro de Conser-
cleos pioneiros situados na cidade do Rio vação e Restauração de Livros e Docu-
de Janeiro. Observa-se que os governos mentos”, na cidade de São Paulo, em 30
estaduais buscam manter intercâmbio de julho de 1979.

A implantação de laboratórios de conservação e restauração de papel nas


instituições de ensino universitário na década de 1980, a atuação da sociedade
civil e o despertar da conservação preventiva na década de 1990.

Se, inicialmente, a criação dos laborató- tauração de Bens Culturais – CECOR da


rios pioneiros em conservação e restaura- UFMG (1980); o Laboratório de Conserva-
ção de papel no Brasil vincula-se à proble- ção e Restauração de Obras de Arte sobre
mática de preservação dos acervos alocados Papel do Museu de Arte Contemporânea da
nas instituições públicas é, então, a partir USP (1985); o Laboratório de Preservação de
da metade da década de 1980 que Acervos – LPA da Escola de Biblioteconomia
mapeamos iniciativas de implantação de da UFMG (1986); o Núcleo de Preservação
vários laboratórios e de núcleos de preser- e Conservação de Bens Culturais –
vação no âmbito das universidades. Tal NUPRECON da Escola de Museologia de
constatação evidencia a preocupação com UNIRIO (1987) e o Laboratório de Conser-
a inserção da preservação de acervos em vação e Restauração de Documentos –
papel no campus científico e acadêmico. LACORD na UFF (1988).
Nota-se que alguns dos laboratórios foram A partir dos anos de 1980, com o pro-
criados com fins precipuamente técnico- cesso de redemocratização do País, ocor-
pedagógicos, tendo em vista o atendimen- rem reformulações teóricas na concepção
to das disciplinas de introdução à conser- de patrimônio cultural. Desse modo, a dis-
vação-restauração na área de livros, docu- seminação do conceito antropológico e
mentos e obras em papel notadamente nos pluralista de cultura, o direcionamento da
cursos de Belas Artes, Museologia, pesquisa historiográfica em fontes documen-
Arquivologia e Biblioteconomia. Dentre as tais alocadas em arquivos e bibliotecas, a
iniciativas pioneiras temos: o Laboratório abertura da História a novos atores sociais
de Papéis do Centro de Conservação e Res- e o aflorar de memórias outrora silenciadas 163
Anais | Congresso Abracor 2009
17
Cf. ZÜÑIGA, são elementos que contribuíram para a re-
Solange Sette Garcia
artesanal e artística.
de. Documentos como significação social dos acervos em suporte Na década de 1990, ocorrem significati-
objeto de políticas
públicas em de papel como bens identitários da memó- vas mudanças de paradigmas conceituais
preservação e o
acesso à informação: o
ria cultural. Diante da lacuna e das motivadas pelo despertar da conservação
caso das bibliotecas e indefinições por parte do Estado,
arquivos. Rio de
preventiva. É nessa perspectiva que as
Janeiro: UFRJ/Escola mapeamos, a partir dos anos de 1980, es- ações de conservação e restauração de pa-
de Comunicação, 2005
(Tese de doutorado em tratégias de aglutinação de profissionais em pel pautam-se, notadamente, em referênci-
Ciência da
Informação).
torno de associações de conservação-restau- as bibliográficas de autores norte-america-
ração, de cooperativas de prestação de ser- nos, conforme evidenciado no Projeto “Con-
viços e de ONGS que acabam por se carac- servação Preventiva em Bibliotecas e Arqui-
terizar em espaços de sociabilidades, de vos” - CPBA17. Com a apropriação dos con-
comunicação e de formação de valores. Em ceitos estabelecidos pela conservação pre-
1980, é criada a Associação Brasileira de ventiva, nota-se o paulatino desligamento
Conservadores e Restauradores de Bens da aplicação de técnicas curativas do bem
Culturais - ABRACOR, reunindo profissio- cultural e, por conseguinte, verificamos as
nais em torno da preservação do patrimônio iniciativas com tônica no desenvolvimento
cultural. Em 1988, foi criada a Associação de programas de preservação dos estoques
Brasileira de Encadernação e Restauro – informacionais, planejados sob a ótica
ABER, sediada em São Paulo. A ABER esta- interdisciplinar, os quais compreendem
beleceu como objetivo central congregar os aspectos políticos, culturais, técnicos e
profissionais e entidades especialmente na administrativos. Verificamos, ainda, ao
conservação-restauração de livros, documen- longo da última década, o desenvolvimen-
tos impressos e manuscritos. Em 1990, a to de vários projetos de preservação de
ABER, em convênio com a Escola SENAI acervos em papel caracterizados por prá-
Theobaldo de Nigris, criou o curso de Con- ticas sociais inclusivas. Desse modo, cabe
servação e Restauração de Documentação analisar a ampliação do perfil dos agentes
Gráfica, formando, ao longo de 18 anos, sociais que se integram à tarefa
cerca de 300 técnicos auxiliares. A criação preservacionista. Temos aqui a possibili-
da ABER mostra-se vinculada ao ideário de dade de considerar a preservação do
Guita Mindlin e Thereza Nickelsburg patrimônio cultural como instância
Brandão Teixeira, as quais já desenvolvi- socializadora, ou seja, como espaço plural
am atividades no campo da encadernação de múltiplas relações sociais.

Considerações finais
O exame das narrativas, práticas e repre- de muitas décadas, um lugar de primazia
sentações – demarcadas no campo da con- e hegemonia na arena preservacionista. No
servação e restauração de papel - encami- julgamento e na escolha dos bens dignos
nhou-se no sentido de compreender a gêne- de preservação, poder-se-ia dizer que, la-
se da construção cultural preservacionista, mentavelmente, o patrimônio sobre papel
forjada em meio à rede de trocas simbólicas ficou preterido por não apresentar os con-
dos múltiplos atores e instituições sociais. siderados apelos históricos, artísticos, es-
No que diz respeito aos critérios de téticos e econômicos capazes de atrair a
valoração do bem cultural e, atenção preservacionista. Onde fundou-se
consequentemente, das escolhas do essa valoração desigual? Seriam as obras
patrimônio a ser preservado por parte do de arte em suporte de papel categorizadas
Estado, os dados analisados nesta pesqui- como “artes menores”? Seriam os acervos
sa nos permitiram entrever que os acervos em papel desprovidos de representação sim-
bibliográficos, documentais e as obras de bólica no processo de construção das iden-
arte em suporte de papel - enquanto cate- tidades históricas e culturais da nação?
goria tipológica de bens culturais - não ocu- Desse modo, podemos concluir que, mui-
param, desde a criação do Decreto-Lei nº. to embora a preservação de algumas cate-
25 de 1937, posição relevante e merece- gorias de acervos em papel - como acervos
dora de preservação. Ao contrário, verifi- os bibliográficos de valor excepcional e os
camos - na noção de “excepcionalidade” manuscritos raros - tenha sido juridicamen-
que norteou historicamente a prática de te instaurada a partir do Decreto-Lei nº. 25
preservação do Estado brasileiro - que o de 1937, é somente a partir da década de
patrimônio edificado, os monumentos 1980 que a conservação-restauração de pa-
emblemáticos, as pinturas de cavalete, as pel alcança visibilidade no cenário
esculturas policromadas e demais objetos preservacionista brasileiro.
museológicos sempre detiveram, ao longo Com relação ao modelo educacional, cabe
164
Anais | Congresso Abracor 2009
ressaltar que a inexistência de uma forma- portanto, nos conceitos estabelecidos pela
ção sistemática por meio da graduação aca- conservação preventiva. Tal constatação é
dêmica, na área de preservação de papel, evidenciada nas ementas das disciplinas de
constituiu-se num grave fator que compro- preservação de papel ministradas dos cur-
meteu, sobremaneira, o desenvolvimento da sos universitários e nas grades curriculares
disciplina no âmbito brasileiro. Conforme dos cursos de graduação e pós-graduação.
se pode analisar, foram as instituições de- Nesse sentido, observa-se a ampliação das
tentoras de acervos e outras iniciativas iso- atividades e da atuação do conservador-res-
ladas que, ao longo das últimas décadas, taurador de papel no Brasil, ou seja, muda-
por meio de um ensino informal, acabaram se o perfil do profissional outrora centrado
por oferecer treinamentos práticos, estágios numa ação de caráter micro, para o emergir
supervisionados e cursos de curta duração de um novo profissional pautado numa vi-
com vistas a suplantar a evidente lacuna são ampla, interdisciplinar, comprometida,
educacional. portanto, com aspectos culturais, científi-
Não obstante o discurso e metodologia cos, políticos, gerenciais e administrativos.
científica que se pretendeu implementar no Ao nos debruçarmos sobre a trajetória
Brasil, a conservação-restauração de acervos histórica da conservação e restauração de
em papel no Brasil foi interpretada, ao lon- papel no Brasil, por meio de diferentes fios
go das cinco últimas décadas do século narrativos, concluímos, à luz do pensamen-
passado, como uma prática curativa, pon- to bourdieusiano, os esforços empreendi-
tual e intervencionista, voltada para o bem dos pelos agentes sociais no sentido da
cultural deteriorado. O conservador-restau- “criação de campo simbólico”, da “inven-
rador de papel era concebido como um in- ção de uma categoria social” e “às lutas
divíduo paciente, meticuloso e dotado de por formas de classificação social”, forja-
habilidades manuais e artísticas – da em meio: à apropriação do conhecimen-
notadamente oriundo da formação acadê- to científico como base normativa da dis-
mica em Artes Plásticas - e sua atuação es- ciplina, à implantação de laboratórios e
tava caracterizada por um fazer operacional, de núcleos de conservação e restauração, à
bem como por um labor silencioso e isola- criação de associações de representação da
do em laboratórios de conservação e restau- classe, à elaboração de código de ética, à
ração. Esta prática reducionista deve ser ex- implantação da graduação universitária em
tinguida e atualmente pode-se constatar o conservação e restauração de bens cultu-
direcionamento para uma linha de menor rais e à luta pela regulamentação da pro-
intervenção, além do chamamento ao diá- fissão do conservador-restaurador de bens
logo no planejamento de trabalho norteado, culturais no País.

165
Anais | Congresso Abracor 2009

Você também pode gostar