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GISELA TASCHNER

é professora de
Sociologia da EAESP-
FGV e da FFLCH-USP e
autora de, entre outros,
Do Jornalismo Político à
Indústria Cultural
(Summus) e Folhas ao
Vento (Paz e Terra).

Luís XIV e sua Família, quadro de Nicolas de Largillière, 1711

Agradeço ao NPP da EAESP-


FGV pelos recursos fornecidos
à pesquisa que serviu de base
à confecção deste artigo.

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G I S E L A T A S C H N E R

Raízes
da cultura do
consumo R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 2 ) : 2 6 - 4 3 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 6 - 9 7 27
iiiiiiiiiiiiiINTRODUÇÃO ção, mas que tem sua própria problemática

O
e seus efeitos sobre a totalidade social,
consumo tem sido objeto de começa a fazer sentido pensar a emergên-
grande atenção do marketing e cia de uma cultura do consumo ou do con-
da psicologia. Na economia e na sumidor.
sociologia o consumo foi me- E quando se pode falar numa cultura do
nos estudado, ou melhor, foi a- consumo? Uma possibilidade é a partir do
bordado predominantemente sob uma óti- momento em que não os bens, mas a ima-
ca que privilegiava a produção (1). gem desses bens se torna acessível a todos
Em Marx, por exemplo, o consumo que na sociedade. Isso obviamente é apenas um
é tratado mais diretamente é o consumo indício para se poder detectar a presença
produtivo, pois o consumo final ocorre já dessa cultura, e de modo algum significa
fora do circuito da reprodução do valor e que ela se reduza a ele. É todo um conjunto
da mais-valia e, desse ponto de vista, é um de imagens e símbolos que vão sendo cri-
processo cujas características peculiares ados e recriados, associados a esses bens,
torna-se menos urgente esclarecer em de- além de novas formas de comportamento
talhe. Marx não nega importância ao con- efetivo e no modo de pensar e sentir de
sumo enquanto ato de aquisição, na medi- segmentos cada vez mais amplos da popu-
da em que ele é parte do momento da re- lação da chamada sociedade ocidental.
alização do valor, e esse momento tende a O crescente domínio do capital sobre o
se tornar um gargalo do processo de acu- trabalho no processo de trabalho, assim
mulação à medida que o capitalismo se como a especialização do trabalhador e dos
desenvolve (2). Mas a ótica novamente é instrumentos de trabalho, a alienação daí
a da produção do valor (e reprodução do decorrente, a revolução industrial, o cres-
capital). cimento das empresas, a burocratização e a
O próprio Marx, no entanto, deixa uma separação entre capital e controle, o desen-
abertura (que ele pessoalmente não explo- volvimento do crédito, da publicidade, do
ra) para se perceber que o consumo, ainda marketing e da indústria cultural são elos
que determinado pela produção, é um mo- importantes para a compreensão do desen-
mento que tem seus desdobramentos e volvimento de uma sociedade de produção
condicionantes: por exemplo, na Contri- e consumo de massas e de uma cultura do
buição à Crítica da Economia Política (3) consumidor.
ele afirma: A análise desses temas, realizada nos
enfoques mais tradicionais, torna a questão
“O objeto [de consumo] não é um objeto do consumo visível. Falta-lhe, no entanto,
geral, mas um objeto determinado, que deve uma problematização específica.
ser consumido de forma determinada, à qual Essa problematização passa a ser fei-
a própria produção deve servir de interme- ta na medida em que emerge um conjunto
diário. A fome é a fome, mas fome que se de estudos que tomam o consumo como
satisfaz com carne cozinhada, comida com foco e se voltam para a recuperação de
faca e garfo, não é a mesma fome que come sua história.
a carne crua, servindo-se das mãos, das Nesses outros enfoques busca-se re-
unhas, dos dentes”. pensar o período de formação da socieda-
1iiiiAqui se incluem o marxismo
em inúmeras variantes e pos- de capitalista contemporânea, a partir de
teriormente os frankfurtianos. É nesses termos que Marx abre as pos- mudanças de padrões de consumo, entre-
2iiiiIsso aparece, por exemplo, na sibilidades de se perceber a dimensão sim- laçados com mudanças culturais e políti-
teorização das crises e na
questão do subconsumo/su-
bólica que os processos de consumo envol- cas. É nessa vertente que se inscreve o
perprodução. vem e, portanto, a sua relação com a di- presente estudo. A hipótese de trabalho
3iiiiContribuição à Crítica da Eco- mensão cultural da sociedade. central é que à revolução industrial pode-
nomia Política, São Paulo, Na medida em que se veja o consumo se contrapor uma revolução no consumo,
Martins Fontes,1977, p. 210
(grifo meu). como momento determinado pela produ- como se vê abaixo, nas palavras de

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McKendrick, que foi, provavelmente, O CONSUMO CONSPÍCUO E A
quem a formulou primeiro: COMPETIÇÃO DE STATUS

“Assim como a revolução industrial do Uma das características da cultura do


século XVIII marca uma das grandes consumo é que ela envolve não só produtos
descontinuidades na história... assim tam- essenciais para a sobrevivência física dos
bém o faz, de meu ponto de vista, a revolu- seres humanos como, e principalmente,
ção correlata no consumo. Porque a revo- produtos que se afastam dessa categoria (6)
lução do consumidor foi o análogo neces- ou, nas palavras de Veblen, o consumo
sário da revolução industrial, a convulsão conspícuo.
necessária, no lado da demanda, da equa- Veblen (7) foi um pioneiro no estudo
ção que tinha, no outro lado, a convulsão do consumo conspícuo. Associou-o à
na oferta” (4). emergência de uma classe ociosa – que
teria chegado ao seu ponto máximo de de-
De fato alguém deve ter comprado os senvolvimento no feudalismo – e ao que
novos produtos que a revolução industrial hoje chamaríamos de estilo de vida dessa
trouxe ao mercado. Sem um aumento da classe.
demanda, o salto na capacidade produtiva
promovido pela revolução industrial ja- “Em tais comunidades se observa com todo
mais poderia ter sido absorvido pelo mer- rigor a distinção entre as classes; e a carac-
cado. terística de significação econômica mais
É preciso, portanto, indagar, para além saliente que há nessas diferenças de classes
do fato de que a revolução industrial bara- é a distinção mantida entre as tarefas pró-
teou produtos, que mudanças ocorreram prias de cada uma das classes. As classes
que viabilizaram essa revolução, transfor- altas estão costumeiramente isentas ou
4iiiCf. Neil McKendrick, John
mando a predisposição das pessoas em excluídas das ocupações industriais e se Brewer e J. H. Plumb, The Birth
relação ao consumo. É disso que se tratará reservam para determinadas tarefas às quais of a Consumer Society: the
Commercialization of
neste texto, que se concentra nas origens se atribui um certo grau de honra. A mais Eighteenth-Century England,
e possíveis raízes extra-econômicas da importante das tarefas honoráveis em uma Bloomington, Indiana
University Press, 1982, p. 9.
cultura do consumo, na Europa ocidental. comunidade feudal é a guerra; o sacerdó- Em alguns casos, chega-se a
aventar a possibilidade de
Dentro do processo de reconstituição cio ocupa, em geral, o segundo lugar. Em essa revolução do consumo
dessa trajetória que desemboca na cultura qualquer caso, com poucas exceções, a re- ter precedido a revolução in-
dustrial. Ver Chandra
do consumidor contemporâneo, alguns ele- gra é que os membros das classes superio- Mukerji, From Graven Images:
Patterns of Modern
mentos se sobressaem. Um deles diz res- res – tanto guerreiros quanto sacerdotes – Materialism, New York,
peito ao tipo de consumo que a caracteriza, estejam isentos de tarefas industriais e que Columbia University Press,
1983.
à forma e periodicidade dele; outro diz res- essa isenção seja expressão econômica de
peito ao segmento social que é visto como sua superioridade hierárquica” (8). 5iiiiR. H. Williams, Dreamworlds.
Mass Consumption in Late
o berço desse padrão de consumo: as cortes Nineteenth Century France,
Berkeley, Los Angeles,
européias, que começam a se formar ainda E o que são essas ocupações não-indus- Oxford, University of
na Idade Média e chegam a seu auge no triais? São ocupações que, via de regra, não California Press, 1991 (first
ed. 1982), p. 57.
período do absolutismo. implicam as tarefas manuais, rotineiras e
6iiiiA discussão sobre a possibi-
Os integrantes desse segmento são vis- quotidianas, associadas à subsistência do lidade de se estabelecer uma
tos por alguns autores como os primeiros, grupo social. Ligam-se à noção de façanha diferença “objetiva” entre o
que é e o que não
na sociedade moderna, “a experimentar o (9). Incluem, em termos gerais, as ocupa-
consumo discricionário” (5). ções ligadas ao “governo, guerra, práticas 7iiiiThornstein Veblen, Teoría de
la Clase Ociosa, Mexico, FCE,
É o padrão de consumo desenvolvido religiosas e esportes” (10). 1966 (1a ed. ingl., 1899).
por esse segmento – que depois se popula- De acordo com Veblen, há uma valori- 8iiiiIdem, ibidem, p. 10. Tradu-
riza através de um processo de mimetismo zação social diferencial dos dois tipos de ção minha nessa e nas cita-
ções que se seguem.
pelas camadas sociais que se situam mais ocupações: “Aquelas ocupações classifi-
abaixo dele – que parece estar na base da cadas como proezas são dignas, honoráveis 9iiiiIdem, ibidem, pp. 21-4.

cultura do consumidor. e nobres; as que não contêm esse elemento 10 Idem, ibidem, p. 11.

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de façanha e, especialmente, aquelas que instituição) – como uma competição pelo
implicam servidão ou submissão são in- aumento das comodidades da vida, desti-
dignas, degradantes e ignóbeis” (11). Se- nadas a satisfazer necessidades físicas ou
gundo ele, a divisão entre classes que apa- espirituais através do consumo, fim último
rece plenamente configurada no feudalis- da aquisição.
mo foi precedida, no passado, por uma di- Para Veblen, essa postura é ingênua e
visão análoga das tarefas entre sexos. E a “o móvel que há na raiz da propriedade é a
divisão entre uma classe trabalhadora e uma EMULAÇÃO.[...] A posse da riqueza con-
classe ociosa ocorreu gradualmente (12). E fere honra; é uma distinção valorativa. Não
Veblen conclui: é possível dizer nada parecido do consumo
de bens nem de qualquer outro incentivo
“A instituição de uma classe ociosa é a que se possa conceber como móvel da acu-
excrescência de uma discriminação entre mulação e em especial de nenhum incenti-
tarefas, com relação à qual algumas delas vo que impulsione a acumulação de rique-
são dignas e outras indignas. [...] Sob essa za” (16).
antiga distinção são tarefas dignas aquelas Embora não ignore a importância da
que podem ser classificadas como façanhas; “necessidade de ganhar a vida” ou a busca
indignas, as ocupações de vida quotidiana de maior nível de conforto físico como
em que não entra nenhum elemento apreci- móvel da aquisição – especialmente para a
11 Idem, ibidem, p. 24. ável de proeza” (13). população mais pobre – nas comunidades
em que a propriedade privada atinge a maior
12 Idem, ibidem, pp. 16 e segs.
O autor afirma também que o apareci- parte dos bens, Veblen sustenta que nem
13 Idem, ibidem, pp. 16-7.
mento de uma classe ociosa coincide com sempre esse móvel é tão claro; diz ainda
14 Idem, ibidem, pp. 30 e segs. o começo da propriedade (14). Inicialmen- que com relação às classes mais preocupa-
15 Idem, ibidem, p. 32. te não é qualquer propriedade: é a proprie- das em acumular riqueza esses incentivos
dade das mulheres pelos homens; são as (ganhar a vida, comodidade física) nunca
16iiIdem, ibidem, p. 33. (A dis-
cussão com os teóricos clás- mulheres capturadas nas lutas como tro- foram muito importantes; e é taxativo ao
sicos começa na página ante-
rior.) féus. Depois o conceito de propriedade se afirmar: “A propriedade nasceu e chegou a
estende às coisas. ser uma instituição humana por motivos
17 Idem, ibidem, p. 34.
que não têm relação com o mínimo de sub-
18 Idem, ibidem.“A propriedade
começou por ser o butim
“Desse modo se estabelece gradualmente sistência. O incentivo dominante foi, des-
conservado como troféu de um sistema bem travado de propriedade de de o início, a distinção valorativa unida à
uma expedição afortunada.
Enquanto o grupo se separou bens. E ainda que nos últimos estágios de riqueza...” (17).
pouco da primitiva organiza- desenvolvimento a utilidade das coisas para Em um primeiro momento, tratava-se
ção comunal e enquanto es-
teve em contato íntimo com o consumo se tenha convertido no elemen- de adquirir, através das façanhas, os tro-
outros grupos hostis, a utili-
dade das pessoas ou coisas, to predominante de seu valor, a riqueza não féus, derivados dos butins. Os interesses
objeto de propriedade des- perdeu, de modo algum, sua utilidade como do indivíduo ainda pouco se distinguiam
cansava principalmente em
uma comparação valorativa demonstração honorífica da prepotência do dos do grupo, e nesse sentido a compara-
entre o possuidor e o inimigo
do qual eles tinham sido tira-
proprietário” (15). ção era entre o grupo que adquirira os tro-
dos. O hábito de distinguir féus e o outro que os perdera (18). Quando
entre os interesses do indiví-
duo e os do grupo a que per- Como se vê, aqui Veblen mostra um o costume da propriedade individual co-
tence corresponde, aparen- elemento inovador em seu estudo, contes- meça a se tornar consistente, ocorre uma
temente, a uma etapa poste-
rior. [...] A proeza do homem tando a teoria econômica que vê na neces- mudança: “[...] a comparação valorativa
era ainda a proeza do grupo
e o possuidor do butim se sidade de subsistência o móvel da luta en- passa a ser primordialmente uma compara-
sentia primordialmente como tre os homens pela posse de bens. Segundo ção entre o proprietário e os outros mem-
guardião da honra de seu gru-
po. Encontramos também Veblen, mesmo nas sociedades que produ- bros do grupo”. Nesse meio tempo Veblen
essa apreciação da façanha do
ponto de vista da comunida-
zem razoável excedente econômico, a teo- vê a passagem para um nível novo de orga-
de sobretudo no que se refe- ria vê essa competição – que, para ele, é nização, no qual a antiga horda se converte
re aos lauréis bélicos em es-
tágios posteriores de desen- característica das economias nas quais exis- em uma comunidade industrial mais ou
volvimento social” (pp. 34-5). te a instituição da propriedade privada menos auto-suficiente (19).
19 Idem, ibidem, p. 35. (mesmo que seja pouco desenvolvida essa À medida que a atividade industrial vai

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aumentando, em detrimento da antiga ati-
vidade predadora da comunidade, a propri-
edade e a posse de riqueza também ganham
peso em relação aos troféus antigos, en-
quanto “expressão de prepotência e êxito”
e enquanto “base costumeira de reputação
e estima”.

“[...] Torna-se indispensável acumular,


adquirir propriedade, com o objetivo de
conservar o bom nome pessoal [...]. A pos-
se de riqueza, que em um princípio era
valorizada simplesmente como prova de
eficiência, se converte, no sentimento po-
pular, em coisa meritória em si mesma. A
riqueza é agora intrinsecamente honorável
e honra seu possuidor. A riqueza adquirida
de modo passivo, por transmissão dos an-
tepassados ou de outras pessoas, converte-
se, por um refinamento ulterior, em mais
honorífica que a adquirida pelo próprio
esforço do possuidor [...] esta distinção
corresponde a um estágio posterior da evo-
lução da cultura pecuniária [...]” (20).

Em outras palavras, se o reconhecimento


por parte dos outros membros de uma co-
munidade antes estava ligado à habilidade
de realizar proezas, cujos resultados visí-
veis por vezes eram troféus, torna-se pos- porque impossível de se saciar, uma vez Francisco I,
teriormente associado à posse de bens. O que o resultado depende sempre de uma retrato de Jean
indivíduo tem que atingir agora um “certo comparação entre quem tem mais e quem
Clouet, 1525
nível convencional e pouco definido de ri- tem menos bens.
queza” (21) para se sentir reconhecido pe- Embora refinada posteriormente, e apa-
los outros e, em decorrência, por si mesmo. recendo sobretudo na formulação do
Segundo Veblen, isso dá lugar a uma cor- trickle down effect (cujas origens são tam-
rida incessante para as pessoas atingirem bém atribuídas a Spencer, Gabriel Tarde,
um determinado nível, que não é mais que Simmel e Sombart), essa visão enforma
o ponto de partida para atingir o nível do inúmeros trabalhos sobre a cultura do con-
grupo que se situa imediatamente acima sumo e do consumidor contemporâneo, es-
delas, num processo sem fim, uma vez que pecialmente nas sociedades do chamado
a base dele está no “desejo individual de Primeiro Mundo.
exceder a todo mundo na acumulação de O peso desse processo de competição
bens”. E essa corrida permanece com pri- entre os indivíduos, através da aquisição
mazia na sociedade industrial moderna (22). de bens, para manutenção do status que eles
Está aí uma formulação inicial que possuem ou obtenção de um mais elevado,
permeia boa parte das teorias contemporâ- na conformação de uma cultura do consu-
neas que tentam explicar o consumo supér- mo, não deve ser subestimado. Veblen teve
20 Idem, ibidem, pp. 36-7.
fluo em nossa sociedade. o grande mérito de ser um dos primeiros a
Sua base está, antes de tudo, em uma 21 Idem, ibidem, p. 39.
formular essa relação – mérito esse maior
corrida pelo prestígio, que seria infinita ainda se se levar em conta que o objetivo de 22 Idem, ibidem, pp. 39-40.

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seu livro era entender o consumo conspícuo uma cultura do consumo.
de um ponto de vista estritamente econômi- Examinando o caso francês, mas esten-
co – e a abrir caminho para análises posteri- dendo freqüentemente a análise para o con-
ores. Mas a compreensão dessa cultura exi- junto da Europa Ocidental, Elias (23) não
ge que se vá além, não a reduzindo a um está preocupado com o consumo; ele ana-
processo de competição social tout court. lisa a sociedade de corte como uma forma-
ção social. Mas seu trabalho é de grande
O DESENVOLVIMENTO DO valia para nosso objetivo.
ESTADO, A CENTRALIZAÇÃO A evolução da corte, a transformação
DO PODER REAL E O CONSUMO de comportamentos, atitudes e sentimen-
DAS CORTES tos que nela se dá e que se expressa em seu
estilo de vida – transformação essa que é
A submissão da aristocracia analisada em conjunto sob a rubrica de um
ao poder real processo civilizador – e a própria competi-
23 Norbert Elias, La Societé de ção entre seus integrantes, Elias relaciona
Cour (trad. francesa do ale-
mão), Paris, Flammarion, 1985
Nos estudos sobre o que alguns con- à alteração no equilíbrio de poder entre a
(1a ed. alemã, 1969). sideram como o primeiro grupo a consu- nobreza e o rei, e à centralização que leva
mir ostensivamente na era moderna – a ao absolutismo.
corte – essa questão reaparece, redefinida De fato, a corte sofreu um processo de
A corte de Luís
em função de outros elementos que tive- transformação desde a Idade Média até o
XIV retratada ram menos realce na análise de Veblen. século XVII, na medida em que as relações
por Louis A dimensão política começa a ganhar des- entre o rei e os nobres se alteraram e o poder
Silvestre, 1695 taque para a compreensão da gênese de foi se centralizando nas mãos do primeiro.

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Se antes do século XVI a relação do rei “O rei foi o único elemento da nobreza que,
com os nobres era a de um primus inter em virtude de sua função, não teve sua base
pares (24), sendo todos interdependentes, econômica diminuída e cujo prestígio so-
ela mudou. Os nobres passaram a depender cial e força, ao contrário, aumentaram.
mais do rei e o rei passou a ter mais poder. Originalmente o rei tirava seus recursos do
E com isso a distância social entre o rei e a produto de suas terras, como todos os no-
nobreza cresceu, mudando a natureza do bres. Mas com o tempo uma parte crescen-
relacionamento entre eles, que ficou cada te de seus recursos passara a ser formada
vez mais assimétrica. por impostos e rendas de todos os tipos que
ele cobrava de seus súditos (sujets). Assim,
“Pouco a pouco os suseranos se elevaram de possuidor e distribuidor de terras o rei se
acima da nobreza. Puderam aumentar seu tornara cada vez mais um possuidor e dis- 24 “O ethos do sistema feudal
próprio poder em detrimento dos aristocra- tribuidor de dinheiro” (27). fundava-se originalmente na
dependência recíproca [...].
tas, confiando a homens de uma outra or- Os vassalos precisavam do
príncipe suserano, que fazia a
dem, a burguesia, cuja capacidade não pa- De outro lado, houve mudanças nas figura de chefe e coordena-
rava de crescer, cargos algum tempo antes práticas de guerra (cavalaria mais leve, dor supremo, de proprietá-
rio ou distribuidor das terras
reservados à nobreza e ao alto clero. Na uso de armas de fogo, entrada em cena de conquistadas; o suserano, por
França os reis conseguiram afastar quase sua vez, recorria a seus
mercenários), que tornaram os nobres vassalos e homens que tinham
todos os nobres desses postos e substituí- menos imprescindíveis ao rei para guerre- obrigações com ele (hommes
liges) quando tinha necessi-
los por plebeus. Era a plebe que detinha, ar. A relação de dependência começou a dade de guerreiros ou de
em fim do século XV, quase todos os car- se inverter (28). subchefes para defender ou
aumentar seus domínios, para
gos na magistratura, na administração e Além disso, mostra Elias, a relação en- bem conduzir suas guerras e
querelas. E quanto ao resto
mesmo nos ministérios” (25). tre o rei e a nobreza é diferente em uma da nobreza, o rei recrutava
economia de subsistência ou trocas diretas ali – independentemente do
fato de que ela lhe fornecia
Como se sabe, houve vários eventos e em uma economia monetarizada. No pri- seus companheiros de caça e
de torneio, seus companhei-
importantes para o processo de centraliza- meiro caso, o rei dá terras ao vassalo, que ros na vida social e seus com-
ção. Os nobres se enfraqueceram economi- nelas se instala e de onde depois é difícil batentes – seus conselheiros,
que eram freqüentemente
camente com a inflação decorrente do removê-lo. Ali, em seu feudo, ele se torna homens da Igreja [...]. Do gru-
afluxo de metais do século XVI. um pequeno rei. No segundo, ele dá a renda po de guerreiros provinham
também as pessoas que, com
Analisando as conseqüências desse fato em dinheiro, que pode ser pensão, ou pre- maior ou menor autonomia,
administravam em seu nome
para a nobreza, Elias afirma que para sentes que saem diretamente do caixa real. o país, recolhiam impostos,
É muito mais fácil cortar uma pensão ou exerciam (disaient) o direito”
(N. Elias, op. cit., p. 169).
“[...] a maioria da nobreza francesa, a de- parar de dar presentes do que tirar a terra ou
25 Idem, ibidem.
preciação monetária subverteu quando produtos in natura dessa terra (29). Esse
não destruiu totalmente suas bases eco- foi mais um elemento da submissão da 26 Idem, ibidem, p. 162.
nômicas. A nobreza francesa tirava ren- nobreza ao poder real. 27 Idem, ibidem, p. 163.
das fixas de suas terras. Como os preços O que sobrara então à nobreza para ser
28 Elias não se esquece aqui de
subiam sem parar, o produto das rendas indispensável ao rei? – pergunta Elias. Isso sublinhar que os fenômenos
são todos interligados. Por
contratuais não lhes permitia mais fazer o leva a tentar entender o processo de exemplo, sem um exército, o
face a suas obrigações. Ao fim das guer- produção e de reprodução social da cor- rei não teria como elevar im-
postos, sem receitas não po-
ras de religião, a maior parte dos nobres te, através de uma análise do campo so- deria financiar os exércitos,
estava afundada em dívidas, os credores cial no qual ela se desenvolveu. Nessa sem um Estado que prote-
gesse as rotas comerciais e
apoderaram-se de suas terras. Assim, um análise, tenta encontrar a fórmula das ne- uma legislação que ofereces-
se garantias aos comercian-
número importante de propriedades de cessidades. No caso da corte, trata-se de tes, não haveria expansão co-
terra mudou de mãos nessa época. A saber “o tipo e o grau das interdepen- mercial (pp. 163-7). Quanto
a detalhes das mudanças das
maior parte dos nobres assim despos- dências que reuniram na corte diferentes práticas de guerra, ver tam-
bém William Manchester, A
suídos foram à corte procurar novos meios indivíduos e grupos de indivíduos” (30). World Lit Only by Fire, Boston
de existência” (26). É um estilo de análise do qual Bourdieu e New York, Back Bay Books,
1993.
se nutriu bastante.
Já o rei sofreu menos com a deprecia- Elias começa então a examinar a evolu- 29 N. Elias, op. cit., pp. 167-8.

ção da moeda. ção da corte: 30 Idem, ibidem, pp. 169-70.

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“Uma evolução ininterrupta conduz da guerreiros: é por isso sobretudo que o rei
corte dos Capetos e mais especialmente a precisava dela; mas levando-se em conta o
de S. Luís (1226-1270) até a corte de Fran- aumento de oportunidades que se oferece-
cisco I (31) e à de Luís XIV e de seus ram a ele (ao rei), ele procedeu ao que se
sucessores. Ora, essa evolução conheceu poderia chamar de – utilizando um termo
uma inflexão decisiva nos séculos XV e de uma época ulterior – ‘racionalização’, a
XVI. Enquanto que nos séculos preceden- uma ‘reforma esclarecida’: ele provocou
tes um número cada vez menor de gran- uma ruptura com a tradição e reestruturou
des vassalos tinham tido, ao lado da cor- toda a sua nobreza a fim de melhor sujeitá-
te do rei, suas próprias cortes, algumas la a sua dominação” (34).
das quais tinham sido mais ricas, mais
brilhantes, mais influentes que a do rei, Com isso, a corte real não parou de cres-
a corte real tornou-se no curso desses cer e foi se tornando o principal centro de
dois séculos, graças ao aumento contí- integração da sociedade francesa. Antes
nuo do poder real, o verdadeiro centro itinerante, passou a ter um lugar determi-
do país... Se se tenta determinar o mo- nado, primeiro em Paris e depois em
mento no qual essa virada se esboçou Versailles, quando esse processo chegou
mais claramente, cai-se no reinado de ao auge, com Luís XIV.
Francisco I” (32).

Na evolução dos reis-cavaleiros à rea- O processo civilizador


leza da corte, Elias vê Francisco I como um
tipo intermediário, mais próximo do pri- Foi na vida da corte que se desenvolveu
meiro tipo. Sua corte é de transição: aquilo que Elias chama de um “processo
civilizador”. Todo um conjunto de regras
“[...] ele começou a distribuir títulos de de etiqueta e por meio delas, de contenção
nobreza – mais precisamente, uma nova de impulsos, de agressividade e de emo-
titulatura nobiliária que ia desde o simples ções, de funções, ruídos e odores do corpo,
gentilhomme até o príncipe e par de França desenvolveu-se nesse período. A essa rela-
– que eram ligados à terra e à renda da terra; ção entre a centralização do poder do estado
mas, diferentemente do que ocorria antes, e o processo civilizador Elias dedicou um
em que a hierarquia dos senhores de terra livro que se tornou clássico nas ciências
correspondia à de suas terras – a partir de humanas (35).
agora a importância de cada senhor na hi- O desenvolvimento da nova etiqueta
erarquia social começa a se descolar da im- envolveu a ritualização de uma série de atos,
portância da terra e passa a ser cada vez que expressam o crescimento da distância
mais uma distinção real (do rei), depen- social entre a realeza e os nobres – bem
dente da vontade do rei (a seu bel-prazer) e como a submissão desses àquela –, de um
com cada vez menos funções políticas. lado, e entre a corte e o resto da população,
Começa, assim, a formar-se uma nova hi- de outro.
erarquia de ‘homens novos’, em parte den- No período de Francisco I já começa-
tro e em parte ao lado da hierarquia tradi- vam a aparecer manifestações dessa nova
31 Francisco I reinou entre 1515
e 1547. cional, na qual o rang depende mais da etiqueta. Ele e os príncipes de sangue pas-
32iiN. Elias, op. cit., pp 170-1 (grifo vontade do rei e o benefício recebido é em saram a
meu). dinheiro. De outro lado, a maior parte des-
33 Idem, ibidem, pp. 172-3. ses novos beneficiários era ainda de guerrei- “se deixar servir por nobres mesmo em
ros, cujos serviços o rei recompensava” (33). funções subalternas tais como a de valet de
34 Idem, ibidem, p. 172.
chambre [...] nessa época todas as relações
35 Idem, The Civilizing Process,
Oxford UK and Cambridge Então se esclarece a mudança: são ainda flutuantes, a hierarquia dos cor-
USA, Blackwell, 1994 (1a ed. tesãos menos rígida, a transmissão heredi-
alemã, em 2 volumes distin-
tos, 1939). “[...] a nobreza permanecia uma ordem de tária de cargos mais rara. A mobilidade da

34 R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 2 ) : 2 6 - 4 3 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 6 - 9 7
corte e as campanhas incessantes de guerra ele pudesse oferecer jantares e festas dan-
impediam, nesse estágio, a formação de çantes para a corte; e dúzias de valets e
uma etiqueta rígida. [...] Mas observa-se, empregados para tornar todo o resto possí-
já sob Francisco I, uma tendência cujas vel. Com raras exceções, os cortesãos con-
conseqüências se farão sentir em seguida: traíam dívidas imensas...[ e então] dirigi-
a distância entre os membros da corte e as am-se ao monarca para obter ajuda finan-
pessoas que não fazem parte dela cresce, ceira” (38).
ela toma já um valor social no campo soci-
al. À medida que se perdem as funções tra- Mas é no interior desse contexto mais
dicionais do suserano, do vassalo, do cava- amplo que se torna necessário entender
leiro, funções sobre as quais se fundara até tanto a nova etiqueta quanto o estilo de vida
então a distância separando a nobreza das desenvolvido pela corte do Ancién Regi-
outras camadas da sociedade, se precisa a me. E dessa perspectiva o consumo osten-
vantagem de pertencer à corte, que traz para sivo que caracterizou a evolução da vida na
seus membros um aumento de prestígio e corte ganha um novo significado, distinto
de valor social. A linha demarcadora que do que Veblen atribuíra à classe ociosa.
se estabelece divide também a própria no- Nesse sentido, na análise que Elias (39)
breza. Uma parte da antiga nobreza se inte- faz da corte do Ancién Regime, a relação
gra na nova aristocracia, cujo critério é a entre riqueza, consumo conspícuo e pres-
pertinência à corte; uma outra parte não tígio aparece redefinida: não era a rique-
consegue se juntar a esse novo grupo que za, mas sim o fato de pertencer à corte que
se fecha sobre si mesmo. Simultaneamente conferia prestígio ao nobre cortesão. Só
um certo número de burgueses acedem à que para manter o seu prestígio, ele preci-
nova elite e fazem carreira dentro dela. sava ter um padrão de consumo muito ele-
Assim, opera-se a reestruturação da nobre- vado, o que exigia riqueza ou tornava cres-
za sobre a base de um novo princípio de cente a sua dependência em relação ao rei.
distanciamento e de constituição” (36). Elias mostra que a estrutura de despe-
sas dos nobres da corte seguia uma lógica
A nova etiqueta, assim como o estilo de cujo eixo era a representação social, o
vida desenvolvido pela corte, de um modo parecer. Gastava-se em função de sua po-
geral, alterou muito os hábitos de consu- sição social. Tratava-se de um “consumo
mo. Passou-se a comer sentado à mesa, com de prestígio” (40). Desde as características
talheres e louças individuais – o garfo de de suas casas, até as recepções, e o vestu-
servir aparece em fins da Idade Média, o de ário, o cortesão passara a ter gastos enor-
comer no século XVI, mas no século XVII mes. Faziam parte de sua posição social e
garfo ainda é artigo de luxo (37) –, a arqui- do papel que lhe cabia nessa posição. E, 36iiIdem, Societé de Cour, pp.
tetura e a forma de decoração dos interiores por isso, não havia possibilidade para o 175-6.

das residências se alteraram, dando lugar a cortesão de ser de outro modo. Não havia 37iiIdem, The Civilizing Process,
pp. 54-5.
uma série de novos itens de consumo. espaço para se promover um equilíbrio entre
Rosalind Williams observa que receita e despesa, nem para poupar parte da 38iiR. H. Williams, op.cit., p. 28.

renda, nem para economizar no consumo. 39 Elias afirma que Veblen nun-
“uma vez admitido no círculo encantado Se os gastos fossem maiores do que a recei- ca entendeu a lógica do con-
sumo conspícuo da nobreza,
da corte, um nobre teria de gastar ruinosa- ta, fazia-se necessário achar novos recur- pois ele raciocinava em ter-
mos da lógica do consumo
mente para permanecer lá. Ele precisava de sos ou contrair dívidas, jamais diminuir os da burguesia, que é outra. E
roupas bordadas com fios de ouro e prata e gastos. Trabalhar não era possível, ou me- por não a ter entendido,
continua Elias, Veblen não
de jóias brilhantes para usar nos bailes; um lhor, o nobre não podia ganhar dinheiro conseguiu fazer uma análise
sociológica dos gastos de
estábulo para cavalos e uma matilha de cães através do trabalho. Isso seria profunda- prestígio na Teoria da Classe
de caça; carruagens com interior de veludo mente desabonador, tanto quanto refrear Ociosa. N. Elias, Societé de
Cour, pp. 48-9.
e painéis pintados para que pudesse acom- os gastos de prestígio (41). Havia uma proi-
panhar o rei em migrações para outros pa- bição legal tanto à nobreza de espada como 40 Idem, ibidem, p. 48.

lácios; casas e mobília adequadas para que à togada de se dedicar ao comércio, cuja 41 Idem, ibidem, p. 56.

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transgressão implicaria a perda do título e de maior poder nas sociedades industriais.
de posição (42). Elas não se integram no mecanismo de
A riqueza mais valorizada nas socie- poder e poucas vezes servem de instrumen-
dades pré-industriais, e especialmente na tos de dominação. Em conseqüência, a pres-
nobreza, era aquela decorrente de heran- são social para as despesas de prestígio e
ças ou rendas de terras herdadas. Para representação é relativamente menos for-
manter seus gastos, muitas famílias ven- te. Ela não tem um caráter inelutável como
diam propriedades, viviam mais algum na sociedade de corte” (46).
tempo com aqueles recursos, mas depois,
muitas vezes, se arruinavam. Ou arruma-
vam casamentos vantajosos. Ou se endi- A ostentação como meio de
vidavam. Ou então recorriam ao rei. Ele expressão de poder
poderia perdoar a dívida ou mandar pagá-
la, ou arrumar um cargo no governo ou Um aspecto que já foi mencionado mas
fazer doações à família, ou dar-lhe uma é preciso realçar na análise para se enten-
pensão, se quisesse. A dependência em der o consumo da nobreza cortesã é que, ao
relação ao rei, portanto, era muito grande, par de centralização do poder real, o luxo
pois ele podia permitir ou impedir que uma foi se impondo como forma de governar e
família se arruinasse (43). de expressar poder (47).
Em suma, esses gastos não derivavam Braudel nota esse fato, embora não
de uma escolha pessoal dos nobres. Eram aprofunde sua análise nessa direção. O luxo
parte de um esquema de competição pelo e a sofisticação nos hábitos alimentares,
favor real em que os nobres tinham sido como também nos de moradia, vão apare-
lançados, para manter ou melhorar seu rang, cer na Europa a partir dos séculos XV e
42 Idem, ibidem, p. 50. para manter ou aumentar seu poder, pois o XVI, inicialmente entre nobres italianos da
43 Idem, ibidem, pp. 56-7.
rei se tornara ator fundamental não só para Renascença (48). Comparando a moradia
viabilizar esses gastos (sem a ruína da fa- das cortes principescas com as do período
44 Idem, ibidem.
mília) como para assegurar ou não o status anterior, Braudel mostra que ela “era mais
45 E essa lógica é diferente tam- de cada família (44). solene e mais formal; sua arquitetura e mo-
bém da lógica do consumi-
dor contemporâneo. Se ain- O nobre, portanto, não trabalhava, ou biliário visavam a algum tipo de
da está presente a competi-
ção por status, ou a posse de melhor, não ganhava dinheiro com o traba- magnificência social, à grandiosidade. Os
bens como expressão de po- lho, não poupava nem investia parte de sua interiores italianos do século XV, com suas
sição social, há no consumo
contemporâneo um aspecto renda, e gastava (sem economias) tudo o colunatas, camas imensas esculpidas e es-
lúdico, de expressão individu-
al, de prazer no ato do consu-
que tinha (e, se necessário, também o que cadarias monumentais, já prenunciavam o
mo, de satisfação real ou ilu- não tinha) em despesas de representação. grand siècle de Luís XIV e daquela vida de
sória de desejos e fantasias
que não era característica Era levado a esses gastos pela competição corte que seria uma espécie de desfile, um
(embora eventualmente até pelo favor real, do qual dependia cada vez espetáculo teatral. O luxo, inquestio-
pudesse estar presente) do
consumo na corte. mais para manter sua posição social. É uma navelmente, estava se tornando um meio de
46 N. Elias, Societé de Cour, op. lógica bastante distinta da burguesa (45). É governar” (49). É dali que o luxo, a sofisti-
cit., p. 55 (grifo meu). claro que Elias não nega a existência de cação e a etiqueta se espraiaram pelas cortes
47iiLuxo não significava confor- competição por prestígio, inclusive sob a da Europa e, depois, entre a burguesia.
to. Essa é uma preocupação forma de consumo ostensivo, na burguesia Na França, à medida que o estado nacio-
que vai aparecer muito de-
pois. das sociedades industriais. Mas ele diz que nal se consolidava, os castelos, construídos
48iiFernand Braudel, Civilization a lógica desses gastos é outra: tendo em vista a segurança, passaram a ter
and Capitalism 15th-18th uma preocupação maior com a elegância,
Century. Vol. 1, The Structures
of Everyday Life, Berkeley, Los “[...] as despesas de prestígio e a obrigação cedendo lugar depois aos palácios e hôtels.
Angeles, University of
California Press, 1992, caps.
de representação nas camadas superiores Essa preocupação estética já aparece nos
3 e 4. das sociedades industriais têm um caráter castelos do vale do Loire, construídos no
49 Idem, ibidem, p. 307. nitidamente mais privado que nas socieda- século XVI, no reinado de Francisco I (50),
des aristocráticas de corte. Elas não estão que, como foi mencionado, marca o mo-
50 Rosalind H. Williams, op. cit.,
pp. 19-20. diretamente ligadas à luta pelas posições mento de transição da vida da corte. Assim

36 R E V I S T A U S P, S Ã O P A U L O ( 3 2 ) : 2 6 - 4 3 , D E Z E M B R O / F E V E R E I R O 1 9 9 6 - 9 7
como esses castelos se inspiram na arquite- perda de rendas (e terras) da nobreza tor-
tura italiana, também a etiqueta que come- nou esse estamento progressivamente de-
ça a se desenvolver na corte de Francisco I pendente do rei. Acolhendo parte de seus
se inspira em refinamentos vindos da Itália membros na corte, e desenvolvendo ali um
(51); e é com Luís XIV que esse processo estilo de vida luxuoso e ritualizado, o rei
chega a seu auge, no suntuosíssimo palácio tornava-os mais dependentes dele. Assim,
de Versalhes: o auge do luxo e da se a corte foi o primeiro grupo da mo-
ritualização de comportamentos (através da dernidade a ter um estilo de vida marcado
etiqueta) como expressão do poder real e pelo consumo ostensivo, esse consumo
como forma de submeter os nobres a seus pouco tinha de discricionário, uma vez que,
desígnios. embora abrangesse itens distantes das ne-
cessidades de sobrevivência física no sen-
“Se Luís XIV era um grande consumidor, tido estrito, eram necessários para a sobre-
ele era absolutamente metódico e sujeitou vivência dos cortesãos dentro da corte. É 51 Idem, ibidem, p. 24.

a corte inteira à mesma disciplina [...]. O impossível compreender esse estilo de vida, 52 Idem, ibidem, pp. 27-8.
estilo de vida suntuoso em Versalhes trazia que se irradiou para outras cortes européias
53 Idem, ibidem, pp. 28-9.
pouco prazer pessoal para o rei e para os e permaneceu como referência última para
cortesãos. Não era esse o objetivo. As ce- o consumo posterior, primeiro imitado pela
rimônias de consumo, as festas, os bailes burguesia ascendente e depois populariza- Rainha Elisabeth I
eram todos parte de um sistema calculado,
cujo alvo não era a gratificação individual,
mas sim o aumento da autoridade política.
Luís XIV transformou o consumo em um
método de governo. A teoria de que a no-
breza se juntava ao redor do rei com suas
espadas e conselhos pode ter tido alguma
validade no tempo de Francisco I, mas no
final do século XVII a razão pela qual os
nobres acorriam a Versalhes era porque
apenas lá eles poderiam obter favores reais
imensamente lucrativos, pensões, benefí-
cios e posições na igreja, no exército e na
burocracia [...]. Poucos podiam resistir à
tentação: eles sabiam que a exclusão da
corte significava exclusão de grande rique-
za e prestígio” (52).

O tesouro real bancou não apenas os


gastos pródigos do rei mas, indiretamente,
através dos empréstimos e pensões, os de
toda a corte. O gasto estatal aumentou
astronomicamente. Em troca, “a monarquia
ganhava uma nobreza dependente que se
reunia na corte porque o poder real estava
concentrado ali, apenas para se descobrir
constrangida a um nível de consumo que
tornava maior aquele poder” (53).
Assim, fecha-se o círculo. No caso da
França, que se tornou paradigmático do
estilo de vida da corte européia, o processo
de centralização do poder real articulado à

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do com adaptações entre as demais cama- McCracken, no entanto, ao comentar o
das sociais, sem considerar a sua dimensão impacto desse fato sobre a família eli-
política. É o desenvolvimento do estado zabethana, introduz um elemento novo na
moderno que está na base da chamada so- análise: não se trata apenas de consumo
ciedade de consumo, se tomarmos o caso ostensivo ou conspícuo, ele chama a aten-
francês como paradigma. ção para uma mudança de padrão de con-
sumo na nobreza britânica. É a mudança
do padrão baseado na “pátina” para um
A mudança do padrão de consumo padrão baseado na “fashion” (57).
De fato, o consumo conspícuo aparece
Focalizando o caso britânico, embora em várias épocas e lugares. Mas foi na so-
não cite Elias a não ser en passant, ciedade ocidental e em um momento mais
McCracken (54) analisa o consumer boom ou menos determinado – algo entre o fim
que a Inglaterra teve no século XVI e a da Idade Média e o início da modernidade
situação da nobreza britânica nesse perío- – que a moda nasceu. O princípio da moda
do e chega a resultados muito semelhantes é o culto da novidade, da mudança e da
aos constatados para o caso francês, no renovação e não necessariamente o luxo
sentido da relação entre consumo e políti- (58). McCracken fornece subsídios para se
ca, mostrando a competição entre os no- entender, ao menos em parte, o que teria
bres como conseqüência do enfraquecimen- levado um princípio a desembocar no ou-
to de seu poder e de sua dependência pro- tro. Vejamos mais de perto essa transfor-
gressiva do favor real. mação.
Em primeiro lugar, diz ele, Elizabeth I O padrão de consumo entre os nobres
usou o gasto como instrumento de poder, ingleses era o da pátina: era um consumo
certamente inspirada nas cortes italianas voltado para a família, não só para os mem-
do Renascimento, e conseguiu fazer a no- bros presentes, mas tendo em vista também
breza pagar grande parte desse custo, gas- as gerações passadas e futuras. Desde o
tando quantias imensas. Centralizando os período medieval, preocupada com seu
impostos e fazendo, dessa forma, com que status (59) e sua honra, a família em cada
54 G. McCracken, Culture and os nobres dependessem dela pessoalmente geração se sentia guardiã do que herdara
Consumption, Bloomington
and Indianapolis, Indiana para ter uma participação nessa receita, dos antepassados e procurava acrescentar
University Press, 1990. forçou-os a “abandonar seus lugares no alguma coisa para a geração que a sucedes-
55 Idem, ibidem, pp. 11-2. campo e a vir para a corte para obter sua se. Isso se traduzia em um padrão de con-
atenção [...] Elizabeth sorria apenas para sumo muito específico:
56 Idem, ibidem, p. 12.
aqueles que mostravam sua lealdade e de-
57iiPara uma descrição detalha-
da desses padrões ver o cap. ferência através de uma participação ativa “[...] a família Tudor procurava bens que
2 de: G. McCracken, “Ever no cerimonial de sua corte. O custo dessa pudessem carregar e aumentar suas deman-
Dearer in Our Thoughts”, in
op. cit. participação era ruinoso. Aumentou a ne- das de status através de diversas gerações
58iiGilles Lipovetsky, O Império do
cessidade de recursos dos nobres e tornou- [para isso] os bens adquiridos precisavam
Efêmero: a Moda e seu Desti- os mais dependentes da rainha” (55). ter qualidades especiais. Era necessário que
no nas Sociedades Modernas,
São Paulo, Companhia das A segunda causa do consumer boom na eles possuíssem a habilidade peculiar e, de
Letras, 1989, (1a ed. francesa, Inglaterra do século XVI, ainda conforme um ponto de vista moderno, misteriosa, de
1987, Gallimard).
esse autor, foi a competição social em que se tornar mais valiosos à medida que enve-
59 McCracken usa a expressão
status, mas aqui refere-se à os nobres foram lançados, na corte, com lhecessem e ficassem decrépitos [...] o ca-
honra associada ao fato de vistas a obter a atenção e o favor da rainha. ráter de novo era a marca da vulgaridade,
pertencer a um estamento
determinado, a nobreza. Sendo alguém no topo da hierarquia social enquanto a pátina decorrente do uso era um
Status e estamento são duas
das traduções que foram fei-
em seu local de origem, o nobre ia à corte sinal e a garantia de posição” (60).
tas da palavra Stand usada por e ali era apenas um entre muitos outros
Weber. São conceitos distin-
tos, que freqüentemente apa- buscando proeminência. Nesses termos, Dessa forma, apenas os bens que fos-
recem confundidos. “era quase inevitável que ele fosse lançado sem capazes de assumir uma pátina – aque-
60 G. McCracken, op. cit., p. 13. em uma guerra de consumo” (56). le brilho acetinado que o longo tempo de

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manuseio traz a alguns objetos – e de so- mento da moda nos marcos de mudanças
breviver por várias gerações é que poderi- políticas. Isso não significa que a moda não
am ser adequados a esse culto do status tenha tido outros determinantes.
familiar. Esses objetos, principalmente
móveis e retratos de família, eram todos
representações de riqueza antiga e de an- O DESENVOLVIMENTO
cestrais diferenciados. DA MODA
Ora, os nobres, orientados agora pela
dura competição, mudaram o padrão de seu Assim como não há consenso entre os
consumo. Começaram a gastar mais com autores quanto ao momento em que ocor-
eles e menos com a família. Refizeram suas reu a suposta revolução do consumidor, não
casas no campo em um padrão mais suntu- o há tampouco quanto ao momento a partir
oso e passaram a ter a despesa adicional de do qual se pode falar em moda. No que se
uma residência em Londres (61). Muda- refere ao vestuário, Braudel menciona a
ram seus padrões de hospitalidade, tornan- primeira grande mudança de trajes na Eu-
do-a mais cara e cerimoniosa. Eles passa- ropa por volta de 1350. Lipovetsky a con-
ram a receber outros nobres, seus subordi- firma. Mas a moda, tal como a conhece-
nados, e, ocasionalmente, o monarca, a mos, vai ter suas características mais visí-
custos altíssimos. Passaram a gastar muito veis apenas nos séculos XVIII e XIX (63).
com banquetes, com roupas. Apenas a ra- Lipovetsky busca contrapor-se às abor-
inha, com mais recursos à sua disposição, dagens correntes nos anos 80 sobre a moda,
gastava mais em consumo conspícuo de calcadas na visão de que “a versatilidade
decoração, hospitalidade e vestuário. da moda encontra seu lugar e sua verdade
Além de outros efeitos, diz McCracken, última na existência de rivalidades de clas-
ses, nas lutas de concorrência por prestí-
“[...] bens que eram adquiridos para suprir gio que opõem as diferentes camadas e
as necessidades imediatas de uma guerra parcelas do corpo social [...] a partir dos
social assumiam qualidades muito distintas fenômenos de estratificação social e das
[das que caracterizavam os bens comprados estratégias mundanas de distinção
anteriormente]. Eles não precisavam mais honorífica” (64). Tal esquema interpre-
ser feitos com a mesma preocupação de tativo, a seu ver, é “fundamentalmente in-
longevidade. Nem precisavam ter valor ape- capaz de explicar o mais significativo: a
nas quando envelhecessem. Alguns bens lógica da inconstância, as grandes muta-
tornaram-se valiosos não por sua pátina, mas ções organizacionais e estéticas da moda”,
por seu caráter de novidade” (62). pois tal abordagem “permaneceu prisionei-
ra do sentido vivido dos agentes sociais” e
Criava-se um solo fértil, ainda que res- “colocou como origem o que não é senão
trito a uma pequena parcela da população, uma das funções sociais da moda” (65).
para o padrão da moda começar a se desen- Lipovetsky, ao contrário, tenta mostrar
volver. Era a novidade, o culto do diferente a moda como fruto de um processo em que
e não apenas do luxuoso que passava a ter a tradição perde peso; com isso passa-se a
peso no consumo da nobreza cortesã britâ- legitimar o presente como referência, ou
nica do final do século XVI em diante. seja, esse autor insere o nascimento da moda
Esse fato é chave, pois a moda é, talvez, no processo mais amplo de mudança que
o traço mais característico da cultura do caracteriza a própria passagem para a 61 Idem, ibidem, p. 11.

consumo. E o que define a moda, como já modernidade. 62 Idem, ibidem, p. 14.


foi dito, é o culto da novidade e da mudan- Isso fica ainda mais claro quando se leva 63iiRespectivamente, cf. Braudel,
ça; é o constante processo de variações e em conta que a afirmação do novo e a perda op. cit, e Lipovetsky, op. cit.

renovação. O trabalho de McCracken é de peso da tradição são relacionadas ao 64 G. Lipovetsky, op. cit., p. 10.
importante, na medida em que fornece sub- desenvolvimento do indivíduo, a partir de
65iiIdem, ibidem, p. 11. Grifos
sídios para a compreensão do desenvolvi- fins da Idade Média. do original.

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Verão em Paris, Em suas próprias palavras, “na história grupos muito restritos que monopolizam o
ilustração de da moda foram os valores e significações poder de iniciativa e de criação” (67).
culturais modernas, dignificando em par- É claro que são os primórdios da moda
E. L. Lami, 1843
ticular o novo e a expressão da individua- que o autor localiza nesse período na Euro-
lidade humana, que tornaram possíveis o pa. As características desse sistema (a
nascimento e o estabelecimento do sistema moda) vão se tornar mais nítidas e acentu-
de moda na Idade Média tardia [e] que adas mais tarde.
contribuíram para desenhar, de maneira Apoiando-se em Gabriel Tarde,
insuspeitada, as grandes etapas de seu ca- Lipovetsky mostra os dois princípios que
minho histórico” (66). vê como organizadores da moda:
Remetendo a moda à questão do pare-
cer social, o autor tenta periodizar a sua “Amor pela mudança, influência determi-
história, estabelecendo um estágio inicial nante dos contemporâneos: esses dois gran-
que vai da metade do século XIV à metade des princípios que regem os tempos da moda
do XIX, o qual ele denomina estágio arte- têm em comum o fato de que implicam a
sanal e aristocrático da moda. É a fase inau- mesma depreciação da herança ancestral e,
gural da moda, na qual “o ritmo precipita- correlativamente, a mesma dignificação das
do das frivolidades e o reino das fantasias normas do presente social. A radicalidade
66 Idem, ibidem. Grifos do origi- instalaram-se de maneira sistemática e du- histórica da moda sustenta-se no fato de
nal. rável. A moda já revela seus traços sociais que ela institui um sistema social de essên-
67 Idem, ibidem, p. 25. e estéticos mais característicos, mas para cia moderna, emancipado do domínio do

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passado; o antigo já não é considerado ve- suas marcas de distinção social (e havia as
nerável e ‘só o presente parece dever inspi- leis suntuárias para tentar garantir, entre
rar respeito’” (68). outras coisas, essa distinção), que a moda
abriu espaço para que o vestuário, para além
Assim, conforme o autor: da distinção de classe, tornasse possível a
manifestação do indivíduo (72).
“a alta sociedade foi tomada pela febre das Contestando a visão da moda como uma
novidades [...]. Com a moda aparece uma nova dominação tirânica do coletivo,
primeira manifestação de uma relação so- Lipovetsky afirma que:
cial que encarna um novo tempo legítimo e
uma nova paixão própria do Ocidente, a do “[ela] traduz a emergência da autonomia
‘moderno’. A novidade tornou-se fonte de dos homens no mundo das aparências; é
valor mundano, marca de excelência soci- um signo inaugural da emancipação da in-
al; é preciso seguir ‘o que se faz’ de novo dividualidade estética, a abertura do direi-
e adotar as últimas mudanças do momento: to à personalização, ainda que ele esteja
o presente se impôs como o eixo temporal submetido aos decretos cambiantes do con-
que rege uma face superficial, mas presti- junto coletivo. Paralelamente ao adestra-
giosa da vida das elites” (69). mento disciplinar (73) e à penetração au-
mentada da instância política na sociedade
Segundo o autor, no passado, houve civil, a esfera privada desprendeu-se, pou-
épocas em que algumas sociedades se de- co a pouco, das prescrições coletivas [...].
dicaram a certos refinamentos frívolos – A moda começou a exprimir, no luxo e na
por exemplo, os romanos frisavam e tingi- ambigüidade, essa invenção própria ao
am cabelo – e nas quais surgiram algumas Ocidente: o indivíduo livre, solto, criador,
manifestações de estetismo (70). Mas o que e seu correlato, o êxtase frívolo do eu” (74).
diferencia tais fenômenos e a moda é que,
no primeiro caso, os adornos e os refina- Em seu belo trabalho, Lipovetsky tem o
68 Idem, ibidem, p. 33, citando
mentos estéticos entram como algo secun- mérito de relacionar a moda ao desenvolvi- Gabriel Tarde, Les Lois de
dário e complementar a um traje cuja estru- mento do indivíduo. Mas ele oscila na re- l’Immitation [1890], Genebra,
Slatkine, 1979, p. 268.
tura é dada pelo costume. Na moda, ao lação que estabelece entre esses dois ele-
69 Gilles Lipovetsky, op. cit., p.
contrário, a artificialidade, a fantasia, a mentos. Ora mostra a moda como um dos 33.
estética tornam-se elementos estruturais de primeiros loci de expressão individual, ain-
70iiiIdem, ibidem, p. 34.
composição do traje (71). da que restrito à corte, e nisso ele é muito
71 “Com o sistema de moda um
Para Lipovetsky, a moda é uma das pri- feliz, ora vê a moda como resultado de um
dispositivo inédito se instala:
meiras dimensões em que o individualis- processo de desenvolvimento do indivíduo. o artificial não se sobrepõe
de fora a um todo pré-cons-
mo se manifesta na sociedade ocidental na Mas nesse aspecto, a demonstração não é tituído, mas é ele que,
modernidade – o do gosto – em paralelo ao feita. Fica-se, pois, sem saber por que ocor- doravante, redefine de pon-
ta a ponta as formas do ves-
individualismo econômico e religioso, pre- re essa mudança no interior da aristocracia. tuário, tanto os detalhes
como as linhas essenciais”
cedendo o seu desenvolvimento em outras (idem, ibidem, p. 35).
esferas (como, por exemplo, a ideológica).
72iiIdem, ibidem, pp. 47-8.
Ele reconhece que não se trata de quais- ESTILOS DE VIDA
quer indivíduos, pelo menos nesse período E VALORES DE CONSUMO 73 O autor refere-se aqui certa-
mente a Elias.
inicial, e sim de alguns, no restrito univer-
74 G. Lipovetsky, op. cit., pp 48-9.
so aristocrático. Afirma que os reis e al- O processo de desenvolvimento do in-
guns elementos da corte que se destacaram divíduo, conforme mostra Ariès, liga-se à 75 Philippe Ariès, “Por uma His-
tória da Vida Privada”, in P.
como líderes do gosto passaram a ter a separação das esferas pública e privada (75) Ariès e Georges Duby, His-
tória da Vida Privada, São
possibilidade de inovar e criar; e que as da vida social, que ocorre na modernidade. Paulo, Companhia. das Le-
pessoas mais modestas passaram a ter a Está fora do âmbito deste trabalho a análise tras, 1995 (1a ed. bras. em
1991), vol. 3, pp. 7-19. Ver
liberdade de adaptar nos detalhes essas desse processo, mas pode-se chamar a aten- também os demais artigos do
inovações quando as adotaram. Foi, pois, ção para alguns pontos que ajudam a enten- vol. 3 dessa coletânea e os
do vol. 4, organizado por
no interior desse pequeno círculo, cioso de der a relação entre o desenvolvimento do Michele Perrot.

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indivíduo e o de novos hábitos de consu- também na organização do espaço domés-
mo. Essa relação, no entanto, precisa ser tico. Ao analisar os palácios, palacetes e
vista com certo cuidado. Na separação en- hôtels, por dentro, por fora, na planta e na
tre as esferas pública e privada, o indivíduo disposição dos espaços, Elias mostrou-os
passou a ter um novo espaço, no âmbito como expressão da vida do cortesão. Tudo
privado. Mas ao que tudo indica, não é o se estruturava em função do parecer. Os
indivíduo pertencente à corte, e sim o da casais tinham quartos separados, bem dis-
burguesia e, em grau menor, o das classes tantes um do outro, e podiam levar uma
mais populares. vida relativamente independente, desde que
A corte tem a vida estruturada pelo pa- cumprissem as obrigações sociais que lhes
recer; o mesmo não se pode dizer das ou- cabiam em conjunto. Os nobres casavam-
tras classes. Mesmo que a burguesia imite se para constituir uma Maison. Os burgue-
a nobreza, a lógica de seu consumo é ou- ses tinham outro estilo de vida. Menos vin-
tra, conforme vimos ao abordar a obra de culados ao parecer, casavam-se para cons-
Elias, e isso porque a lógica de sua vida é tituir uma família. As plantas de suas casas
outra. Não tendo pensões reais nem restri- refletem isso.
ções a certas formas de ganhar dinheiro É sobretudo após a Revolução France-
que caracterizam a nobreza, o burguês tra- sa, no século XIX, que se vê crescer real-
balha para sobreviver e tenta acumular mente o individualismo. E é aí que o luxo
patrimônio para si próprio e para deixar às começa a conviver e a ceder lugar, em par-
gerações futuras. Se um lado de sua vida te, ao valor emergente do conforto e da
está ligado ao parecer, o outro se volta privacidade (78). Esse fato tampouco pas-
para a esfera do privado que, ao separar- sou despercebido de Elias, que afirma, no
se da esfera pública, vai ter na família o seu Societé de Cour: “O relaxamento da
seu grande reduto. obrigação social de representar, mesmo
Essa diferença vai aparecer na manei- para as elites mais poderosas e mais ricas
ra pela qual a burguesia imita a nobreza no das sociedades industriais evoluídas, teve
vestuário. Como mostra Lipovetsky (76), uma influência decisiva sobre a organiza-
e outros autores também, alguns de seus ção das residências, o vestuário e, de modo
membros chegam a tentar rivalizar com mais geral, sobre a evolução do gosto em
ela (a nobreza). Mas detecta-se também matéria artística”(79).
um sistema de adaptação da moda aristo- A aristocracia permaneceu como sím-
crática. O processo de difusão da moda bolo de prestígio, mas a noção de confor-
não se fez de modo mecânico; a imitação to talvez tenha passado a ter mais espaço
fez-se de modo seletivo, adaptando-se na justamente porque a obrigação social de
burguesia tendências da moda da corte, representação foi perdendo força. Essa
rejeitando-se outras (vistas como exage- mudança é coerente com as mudanças de
radas), a ponto de se formar, no começo poder e do peso político da nobreza e da
do século XVII, uma moda paralela à da burguesia.
corte, mais moderada, correspondendo ao A evolução dos padrões de moradia,
“‘homem correto’, livre dos excessos aris- com espaços mais especializados – a bus-
tocráticos e conforme os valores burgue- ca de privacidade, separada do parecer –
76 Op. cit., pp. 40 e segs. ses de prudência, de medida, de utilidade, e, às vezes, organizados segundo critérios
77 Idem, ibidem, p. 42. de limpeza, de conforto”. Segundo o au- até opostos, por exemplo, economizando-
tor, “essa moda ‘ponderada’, recusando se de um lado e gastando-se de outro; a
78 Sobre isso, ver: Witold
Rybczynski, Casa, Pequena as extravagâncias dos cortesãos, é o efeito emergência de uma moda mais casual
História de uma Idéia, Rio de
Janeiro, Record, 1996 (1a ed.
do filtro dos critérios burgueses: da corte mostram que vai se conformando um pa-
ingl., 1986), sem falar dos tex- só se retém aquilo que não fere as suas drão que tem referência no dos nobres,
tos da coleção sobre a Histó-
ria da Vida Privada, já menci- normas de bom senso, de moderação, de mas não se reduz a ele.
onados. razão” (77). É esse padrão – com novas distinções à
79 Op. cit., p. 55. A diferença acima mencionada aparece medida que se “desce” para classes mais

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populares – que vai se consolidar depois, ensejo ao desenvolvimento da moda. Viu-
no consumo de massas. se também que a moda tem outras matri-
Por aqui já se podem entrever matrizes zes, como o desenvolvimento do indiví-
de estilos de vida em formação, que se duo – que se dá no processo de separação
traduzirão posteriormente em estilos de entre as esferas pública e privada – e o
consumo. gosto pela novidade (em detrimento da
Nesse percurso há um outro elemento tradição). E viu-se, finalmente, que após a
importante, que não vou analisar nesse revolução burguesa e a revolução indus-
momento, mas que quero ao menos mencio- trial o novo padrão de consumo, gestado
nar: é a “educação” para o consumo, que nas cortes européias, se difundiria por
será realizada em grande parte pelas lojas outras camadas sociais, auxiliado por no-
de departamentos, surgidas na sociedade vos acontecimentos.
burguesa do século XIX, após a revolução Salientou-se, no entanto, que essa di-
industrial e que se tornaram as grandes res- fusão não parece ter sido linear. A aristo-
ponsáveis pela associação do consumo ao cracia manteve-se como referência má-
lazer, ao prazer, ao lúdico, e pelo desenvol- xima de luxo e sofisticação mas a “imita-
vimento de técnicas cada vez mais eficazes ção” de seu padrão de consumo por ou-
de sedução do consumidor. Isso nos enca- tras classes fez-se de modo seletivo. E
minha para as considerações finais. isso se deu não simplesmente porque eram
pouco refinadas ou porque o processo
civilizador não as atingiu inteiramente,
CONSIDERAÇÕES FINAIS mas provavelmente porque tinham vidas
regidas por uma lógica diferente do gru-
Ao longo desse exame das origens e po que imitavam, que implicava uma re-
possíveis raízes da cultura do consumidor lação distinta com os objetos e uma valo-
contemporâneo, buscou-se detectar, para rização diferencial deles. Daí o fato de
além do barateamento de preços decorren- em parte assimilarem, em parte critica-
te da revolução industrial, elementos que rem ou rejeitarem, em parte adaptarem
mudaram a predisposição das pessoas em costumes nobres. Com isso, pode-se en-
relação ao consumo. trever a formação de estilos de vida dis-
Iniciou-se pelo conceito de consumo tintos numa sociedade cujo consumo co-
conspícuo de Veblen e por sua teorização meçava a tornar-se de massa.
do consumo como elemento de uma com- Em suma, a formação de uma cultura
petição social por status. Constatado o voltada para o consumo é mais complexa
mérito desse autor e de outros, que levaram do que pode parecer à primeira vista. Não
posteriormente às teorizações sobre o trickle se teve aqui a pretensão de esgotar a aná-
down effect, chamou-se a atenção para a lise desse processo; procurou-se apenas
insuficiência das explicações sobre o con- apresentar algumas raízes dessa cultura,
sumo baseadas apenas na competição soci- através do exame de sua gênese – de um
al. Mostrou-se que essa competição adqui- ponto de vista que não considerasse o
re novo significado quando considerada à consumo como simples momento ou des-
luz de outras dimensões, nas quais a políti- dobramento da produção –, que ficam
ca tem grande peso. obscurecidas em muitas análises preocu-
Concentrando a análise nas cortes euro- padas mais diretamente com aspectos con-
péias no período de desenvolvimento do temporâneos; e mostrar que elas têm em
absolutismo, mostrou-se que elas pratica- comum o fato de terem ajudado a transfor-
ram um consumo ostensivo – que nada ti- mar completamente a relação da socieda-
nha de discricionário – e, mais do que isso, de com o consumo, gerando novos signi-
mudaram seu padrão de consumo. É o pro- ficados a esses atos de adquirir e apropri-
cesso que McCracken denominou de pas- ar-se das mercadorias, os quais persistem
sagem da pátina para a fashion, o qual deu até nossos dias.

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