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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Museu Nacional

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

O corpo atlético da pessoa com deficiência:


uma etnografia sobre corporalidade, emoção e sociabilidade entre
nadadores paraolímpicos.

Mônica da Silva Araujo

Rio de Janeiro
2011
ii

O corpo atlético da pessoa com deficiência:


uma etnografia sobre corporalidade, emoção e sociabilidade entre
nadadores paraolímpicos.

Mônica da Silva Araujo

Tese de Doutorado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social, Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários
para a obtenção do título de Doutor em
Antropologia Social.

Orientadora: Prof. Dra. Giralda Seyferth

2010
iii

O corpo atlético da pessoa com deficiência:


uma etnografia sobre corporalidade, emoção e sociabilidade entre
nadadores paraolímpicos.

Mônica da Silva Araujo

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu


Nacional / UFRJ como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em
Antropologia Social.

Aprovada em:

____________________________________________________
Prof. Dra. Giralda Seyferth – PPGAS-MN- UFRJ (Orientadora)

_____________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte – PPGAS-MN- UFRJ

_____________________________________________________
Prof. Dra. Olívia Maria Gomes da Cunha - PPGAS-MN-UFRJ

______________________________________________________
Profa. Dra. Simone Pereira da Costa Dourado – PPC-UEM

______________________________________________________
Profa. Dr. Luiz Fernando Rojo Mattos – PPGA - UFF

___________________________________________________________
Prof. Dra. Adriana de Resende Barreto Vianna – PPGAS-MN-UFRJ (Suplente)

_________________________________________________________________
Prof. Dr. Bernardo Borges Buarque de Hollanda (Suplente) – Escola Superior de
Ciências Sociais - FGV
iv

Araujo, Mônica da Silva.

O corpo atlético da pessoa com


deficiência: um etnografia sobre
corporalidade, emoção e sociabilidade entre
nadadores paraolímpicos. / Mônica da Silva
Araújo - Rio de Janeiro: UFRJ/Museu
Nacional, 2011.
212 f., 1v.
Orientadora: Giralda Seyferth.
Tese (doutorado) – UFRJ/Museu
Nacional/ Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social.
Referências bibliográficas: f. 206-212.
1. Antropologia Social. 2. Corpo. 3.
Deficiência. 4. Esporte paraolímpico 5.
Emoção 6. Sociabilidade. 7. Identidade. I.
Araujo, Mônica da Silva. II. UFRJ/Museu
Nacional/Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social. III. Título.
v

Resumo

Esta tese se baseia em uma pesquisa realizada com nadadores paraolímpicos que
fizeram parte da delegação brasileira em Pequim. O propósito principal deste trabalho é
entender de que forma podem ser relidas ou reelaboradas dentro do esporte as categorias
de corpo e deficiência. Partindo da compreensão das formas de classificação dos corpos
no contexto da natação paraolímpica, procurei colocar em contato as concepções de
ordem institucional com aquelas ligadas à experiência concreta dos atletas. O trabalho
de observação dos nadadores no cotidiano das entidades esportivas, assim como o
resgate das suas trajetórias de vida por meio de entrevistas, fizeram parte da
metodologia adotada para entender a dinâmica entre essas duas esferas. Essa
abordagem, por sua vez, abriu espaço para que pudessem ser discutidas questões
relacionadas à emoção e sociabilidade dos atletas pesquisados.

Palavras-chave: corpo; deficiência física; esporte paraolímpico; emoção, sociabilidade.


vi

Abstract

This thesis is based on a research with swimmers from the Brazilian delegation at the
Beijing Paralympic Games. The main purpose of this work is to understand in which
way the categories of body and handicap can be revised or reengineered in sport.
Starting with the understanding of the classification forms of bodies in the context of
Paralympic swimming, I put the institutional concepts in contact with the concrete
experience of the athletes. Part of the methodology was the observation of the
swimmers in their daily routine in the sport institutions and the resuscitation of the
trajectories of their lives through interviews to understand the dynamics between these
two spheres. This approach opened space to discuss questions tied to emotion and
sociability of the researched athletes.

Key-words: body; physical handicap; paralympic sport; emotion; sociability


vii

Agradecimentos

Agradeço a todos que colaboraram de alguma forma para a construção desta tese.

Em primeiro lugar, agradeço à Giralda Seyferth por toda a atenção, apoio e orientação
criteriosa.

À CAPES, que concedeu os recursos necessários para a conclusão do doutorado.

A todo o corpo discente do PPGAS, especialmente os professores Gilberto Velho,


Márcio Goldman, Eduardo Viveiros de Castro, Federico Neiburg e Lygia Sigaud, pelos
excelentes cursos ministrados. Nessa lista também se encontra o professor Luiz
Fernando Dias Duarte, a quem também agradeço pelas preciosas sugestões dadas nas
duas qualificações. Essa gratidão também se estende a professora Olívia Cunha.

Aos professores Luiz Rojo, Simone Pereira, Adriana Vianna e Bernardo Buarque que
gentilmente aceitaram participar da minha banca de defesa.

Agradeço ao professor Antonio Carlos de Souza Lima que, através de um curso de


Antropologia Política ministrado durante o meu mestrado em História Social no IFCS,
despertou a minha atenção para essa área de conhecimento.

À Adriana Facina e a Luciana Lombardo agradeço por todo o apoio e incentivo na


época da preparação para a seleção do doutorado. A competência e o entusiasmo de
vocês serviram de grande fonte de inspiração para que eu pudesse encarar com mais
força os novos desafios da minha trajetória acadêmica.

A Marcelo Badaró Mattos, amigo querido e importante referência intelectual. Fico grata
pela revisão, mas também por tudo o que compartilhamos.

Aos queridos amigos do NEPESS com os quais compartilhei muitas questões dessa tese.
Todo o companheirismo e os momentos de descontração na nossa “sede social” foram
fundamentais para a renovação das energias.

A todas as pessoas com as quais pude dialogar nos congressos da RAM e da ABA,
especialmente os colegas do GT de Antropologia do Esporte.

Sinto-me infinitamente grata a todos que aceitaram colaborar com essa pesquisa, por
meio de entrevistas ou conversas informais. Sem a ajuda de vocês esse trabalho não
seria possível.

Ao professor Carlos Guilherme Valle pela acolhida no PPGAS da UFRN, durante o


meu trabalho de campo em Natal.

À Soraia Vidal, que me recebeu na sua casa e me abrigou até que eu conseguisse
organizar a minha vida na cidade de Natal. O mesmo agradecimento faço à Joana e ao
Goyo, por terem me acolhido no período da pesquisa de campo na cidade de Natal.
viii

Não poderia esquecer os funcionários do Museu Nacional que dão um suporte


fundamental para que a nossa vida acadêmica siga em ordem. Lembro especialmente de
Carla e Alessandra da Biblioteca, da Tânia da Secretaria do PPGAS e do Fabiano da
fotocopiadora.

A todos os alunos das turmas de mestrado e doutorado do PPGAS com os quais convivi,
especialmente Nina Paiva, Indira Caballero, Bruno Marques, Nicolas Viotti, Martinho
Braga, Maria José Alfaro Freire, Rogério Azize, Elizabete Albernaz e Peter Fremlin.

Ao Sebastião por sua generosidade, carinho e paciência.

Lembro com um carinho especial dos amigos que sempre deixam a minha vida mais
alegre e interessante e que, mesmo às vezes um pouco distantes, eu nunca esqueço:
Kelly, Allinie, Janis, Vivi, Marcio, Carmen e Trog, este último meu irmão que escolhi
para a vida toda.

À minha mãe, por todo o amor e dedicação dispensados. A sua luta foi fundamental
para mim.
ix

Dedico esta tese a todos os atletas com deficiência

que conheci ao longo da minha jornada.


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Sumário

Introdução....................................................................................................................... 1

Capítulo 1 - Considerações gerais sobre esporte adaptado e movimento


paraolímpico.................................................................................................................. 21
1.1- Sobre a trajetória do movimento paraolímpico...................................................... 23
1.1.1- Esporte e reabilitação física: os primeiros jogos para deficientes físicos ............23
1.1.2- A construção do movimento no Brasil e as primeiras instituições................ 30
1.2- A educação física adaptada no Brasil hoje: a relação com o movimento
paraolímpico................................................................................................................... 36
1.3- O campo de pesquisa: observando o nadador paraolímpico no cotidiano das
entidades.......................................................................................................................... 41
1.3.1- A entrada no campo .........................................................................................41
1.3.2 - Sobre a SADEF.............................................................................................. 45
1.3.3- O aparato institucional ................................................................................... 53
1.3.4- A interação no campo ..................................................................................... 56
1.3.5- O segundo momento do campo ...................................................................... 58

Capítulo 2 - A natação paraolímpica no Brasil ......................................................... 61


2.1- Nos bastidores da classificação funcional .............................................................. 67
2.2 - A “classificação funcional” como uma arena de disputas .....................................75
2.3- Falando de técnica e de política ............................................................................. 82

Capítulo 3 – Sobre as trajetórias de nadadores paraolímpicos: investigando os


modos de viver a deficiência física ............................................................................. 95
3.1 - Tipos e históricos de trauma como fatores de construção da subjetividade da
pessoa com deficiência .................................................................................................. 95
3.2 - Desvendando o papel da família na trajetória do atleta ...................................... 102
3.3 - “O corpo é o de menos. Eu ganhei muito mais que isso. O esporte me deu tudo”:
Analisando os discursos sobre os benefícios da prática do esporte
paraolímpico................................................................................................................. 115
3.4 - Pensando nos significados sobre “deficiência” e “normalidade” ....................... 123
3.5 - Aleijados, chumbados, cotocos e pernetas: depende de quem fala e de como
se fala? Sobre a “terminologia adequada” e as piadas a respeito de
deficientes.................................................................................................................... 136

Capítulo 4 - Entre identidades, fronteiras, imagens e discursos: uma análise sobre


as formas de representação do nadador paraolímpico ...........................................149
4.1- As fronteiras entre as classes na natação paraolímpica e os possíveis jogos de
identidade...................................................................................................................... 149
4.2 - Superando o “coitadinho”: o atleta e a elaboração de imagens de si................... 166
4.2.1-Investigando os discursos sobre “superação” entre nadadores
paraolímpicos............................................................................................................... 169
4.2.2- A construção do “herói” nos discursos sobre superação ...............................180

Considerações finais .................................................................................................. 196


Referências bibliográficas ......................................................................................... 206
Anexo .......................................................................................................................... 213
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Lista de Siglas

AACD – Associação de Assistência à Criança Deficiente


ABDA - Associação Brasileira de Desporto para Amputados
ABDEM - Associação Brasileira de Desporto para Deficientes Mentais
ANDEF - Associação Niteroiense dos Deficientes Físicos
ABDC - Associação Brasileira de Desporto para Cegos
ABRADECAR - Associação Brasileira de Desporto em Cadeira de Rodas
ANDE - Associação Nacional de Desporto para Deficientes
CADEF-RN - Centro de Apoio do Deficiente Físico do Rio Grande do Norte
CAIC – Centro de Aprendizagem e Integração de Cursos
CBDS - Confederação Brasileira de Desporto para Surdos
CIEDEF - Integração Esportiva do Deficiente Físico
CISS - Comitê Internacional des Sports Silencieux
COB – Comitê Olímpico Brasileiro
CPB - Comitê Paraolímpico Brasileiro
CP-ISRA - Cerebral Palsy - International Sports and Recreation Association
CPSP - Clube dos Paraplégicos de São Paulo
DEAFA - Departamento de Estudos da Atividade Física Adaptada
FEF - Faculdade de Educação Física da Unicamp
IBDD - Instituto Brasileiro dos Direitos da Pessoa com Deficiência
IBSA - International Blind Sports Association
ICC - Comitê Coordenador Internacional de Organizações Esportivas para Deficientes
INAS-FID - International Federation for Sport for Athletes with an Intellectual
Disability
IPC – International Paralympic Commitee
ISMGF - International Stoke Mandeville Games Federation
ISOD - International Sports Organization for the Disabled
IWAS - International Wheelchair & Amputee Sports Federation
ISMWSF – International Stoke Mandeville Wheelchair Sports Federation.
LAMA - Laboratório de Atividade Motora Adaptada
SADEF-RN - Sociedade Amigos do Deficiente Físico do Rio Grande do Norte
SESI – Serviço Social da Indústria
UFRN - Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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Introdução

Foi no ano de 2004, ao assistir os Jogos de Atenas, que comecei a me

interessar pelo esporte paraolímpico. Por ironia fiquei naquele período quase um mês

sem conseguir andar por causa de uma crise aguda no nervo ciático. Por conta de um

repouso forçado, pude assistir a absolutamente tudo o que passava na televisão sobre os

Jogos Olímpicos. Até então não sabia da existência dos Jogos Paraolímpicos. Parecia

que pela primeira vez o evento era transmitido ao vivo em alguns canais de TV aberta e

a cabo. Acompanhei todas as competições que iam sendo mostradas, torci, me

emocionei. Todos aqueles exemplos de técnica, força e entusiasmo que surgiam na tela

tinham mobilizado a minha atenção para algumas possibilidades do corpo com

deficiência que eu nunca tinha imaginado. Terminados os jogos, comecei a procurar

coisas sobre o movimento paraolímpico no Brasil. Ia juntando informações que mais

pareciam um novo hobbie, sem nenhum interesse acadêmico relacionado. Havia sido

tocada por aquelas imagens e isso me impulsionava a buscar mais sobre o assunto. Eu

também já me considerava fã de alguns atletas que tinham representado o Brasil.

Ingressei no doutorado no ano de 2006 com a intenção de investigar os

discursos sobre corporalidade e etnicidade produzido por dançarinos de grupos de dança

afro no Rio de Janeiro. Como praticante amadora dessa modalidade, eu já estava

inserida nesse universo há algum tempo e passei a enxergar nele uma frente de trabalho

bastante frutífera na área da antropologia. Por outro lado, e nessa mesma época, eu

também havia começado a me interessar pela dança contemporânea e passei a praticá-la

esporadicamente, ao mesmo tempo em que procurava entender um pouco mais as suas

várias vertentes e concepções. Numa dessas incursões eu tive a oportunidade de

conhecer a dança em cadeiras de rodas, ao assistir no Teatro Cacilda Becker um

espetáculo da companhia de dança Pulsar.


2

No palco, os bailarinos cadeirantes dividiam o espaço com bailarinos sem

deficiência. De alguma forma, todos também dançavam com as cadeiras de rodas. Elas

faziam parte de todo o fluxo e variedade de gestos e movimentos dos dançarinos que se

encontravam em cena. Toda a riqueza artística e técnica que eu havia presenciado

naquele espetáculo me impulsionou a pesquisar um pouco mais sobre aquela linguagem.

Pude ver, então, que outros grupos no Brasil e no exterior desenvolviam propostas

similares àquela. No que dizia respeito à companhia Pulsar, fiquei sabendo que a sua

origem tinha relação com a experiência que a bailarina fundadora do grupo havia tido

com uma turma no curso de reabilitação motora pela dança desenvolvido pela Escola

Angel Viana no Rio de Janeiro.

No final do ano de 2006, quando passei a me distanciar cada vez mais da

prática e do universo da dança afro, eu percebi que já não me sentia tão estimulada a

desenvolver um projeto de pesquisa nessa área. Naquele momento eu me via muito mais

inclinada a investigar as possibilidades de pesquisa relacionadas ao corpo com

deficiência na dança. O tema da reabilitação, por sua vez, também não estava distante

desse cenário. Inicialmente, eu o vislumbrava em sua relação mais direta com a dança,

mas depois, também imaginei que ele pudesse se constituir no principal vetor dentro de

uma pesquisa sobre corpo e deficiência havendo, inclusive, a possibilidade da realização

de um trabalho de campo em hospitais e instituições voltadas especificamente para a

tarefa de reabilitação. Todas essas ideias aqui colocadas e que, em algum nível, tinham

relação com pontos da minha trajetória individual, se transformaram em algumas notas

avulsas e não chegaram a ir para o papel enquanto um projeto mais sistemático. De

qualquer forma, parecia ficar cada vez mais claro que o meu interesse acadêmico maior

se referia ao entendimento dos usos e tratamentos do corpo a partir da especificidade da


3

deficiência, independentemente dessa temática ser desenvolvida no campo da dança ou

da reabilitação física.

No ano de 2007, fui aos Jogos Parapanamericanos realizados na cidade do

Rio de Janeiro. Infelizmente, dada a distância dos locais de competição, não pude

conhecer muitas modalidades. Priorizei assistir as provas de natação porque além de

possuir um vasto programa com grande participação brasileira, me dava a oportunidade

de ver de perto algumas estrelas do esporte paraolímpico que haviam sido reveladas nas

Paraolimpíadas de Atenas e que tinham sido as principais responsáveis pela projeção do

Brasil no cenário mundial.

Nas proximidades do parque aquático e dentro do mesmo complexo

esportivo, ficava o ginásio onde ocorriam as competições do basquete em cadeira de

rodas. Nele as provas aconteciam geralmente na parte da manhã, permitindo que o

público se deslocasse posteriormente para ver a natação. Depois de ter sido uma

telespectadora dos Jogos de Atenas, eu tinha naquele momento uma oportunidade de ter

um contato menos distanciado com o esporte paraolímpico e conhecer um pouco mais

esse universo. Alguns dias antes, dentro da programação dos Jogos Panamericanos, eu

tinha assistido ao último dia das competições de atletismo e estava bastante

entusiasmada para essa nova experiência.

No primeiro dia em que estive no Parapan cheguei na parte da manhã para

acompanhar um jogo das semifinais do basquete em cadeira de rodas. A equipe

brasileira estava na disputa e precisava ganhar a partida para passar para a outra fase.

Tanto nas partes externas do complexo esportivo, como nos corredores internos que

davam acesso às arquibancadas, o fluxo de pessoas era intenso. Ao observar aquela

movimentação, me dei conta de que era a primeira vez que via tantas pessoas em

cadeira de rodas circulando ao mesmo tempo. O sistema de rampas e os outros aspectos


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de acessibilidade que marcavam a arquitetura do local de competição, ao mesmo tempo

em que cumpriam o seu papel mais óbvio de facilitar o deslocamento, também me

davam a oportunidade de repensar as minhas próprias convicções sobre corpo e a

deficiência. Se até aquele momento eu associava com frequência o uso de muletas ou

cadeira de rodas à limitação e dependência, eu agora estava inserida num espaço onde

eu podia ver outras formas de ação, interação e posicionamento de uma pessoa com

deficiência. Para mim não havia dúvida de que os Jogos Paraolímpicos de Atenas, assim

como a dança em cadeira de rodas, haviam desempenhado um importante papel no

sentido de questionar algumas das minhas pré-concepções sobre a deficiência. No

entanto, a partir do meu envolvimento concreto naquele cenário, eu observava outras

dimensões referentes às diferentes formas de lidar com o corpo, assim como às

possibilidades de autonomia que podem derivar da relação que as pessoas com

deficiência estabelecem com um determinado ambiente. Posteriormente, quando eu já

me encontrava no local onde as disputas aconteciam de fato, essas reflexões ganharam

uma maior intensidade.

Ao entrar no ginásio, senti a vibração que vinha do público que se

encontrava nas arquibancadas e que aguardava o início da partida. O local estava

praticamente lotado. A estratégia dos organizadores do Parapan de estabelecer a

gratuidade em todos os jogos parecia ter surtido efeito no sentido de atrair um público

para participar de um evento no meio da semana e que tratava de um tipo de esporte

ainda pouco divulgado no Brasil.

Olhando para a torcida ali presente eu pude perceber a existência de uma

grande diversidade. Naquele espaço havia pessoas com diversos tipos e graus de

deficiência. Por vezes eu conseguia identificá-las dentro de grupos maiores que

pareciam representar algumas associações voltadas para a pessoa com deficiência. Mas
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elas também apareciam sozinhas ou acompanhadas de poucas pessoas. Algumas,

inclusive, pareciam ser atletas de outras modalidades esportivas e de diferentes

delegações. Havia, ainda, muitas crianças e jovens com uniformes escolares e que,

provavelmente, tinham chegado ao local por meio de caravanas. Na companhia da

minha mãe eu representava mais um tipo de público, o de pessoas sem deficiência que

compareciam ao local juntamente com parentes e amigos. De qualquer forma, em

nenhum momento observei essa variedade se desdobrando em qualquer tipo de

separação ou tratamento diferenciado. Todos torciam lado a lado.

Com a entrada dos atletas na quadra a agitação tomou conta do ginásio. Foi

interessante ver como as próprias características do basquete em cadeira de rodas

sustentavam a euforia do público. Em primeiro lugar, a modalidade não exigia silêncio

do público. Ao contrário, os jogadores pareciam se nutrir da excitação constante da

torcida. Em segundo lugar, o basquete em cadeira de rodas se apresentava como um

esporte muito dinâmico e com alto nível de contato. As cadeiras de rodas usadas pelos

jogadores possuem um desenho especial que as tornam mais leves e velozes. Dessa

forma, os choques entre elas eram constantes e a força do impacto muitas vezes

arremessava o jogador para o chão. Tanto a queda como a recuperação do atleta eram

marcados por uma forte vibração da torcida que, através de muitos gritos de “Levanta!

Levanta!”, incitava os jogadores a voltar para o jogo. Nesse sentido, ficava claro que

não eram apenas os arremessos para a cesta que importavam, mas a habilidade do

competidor para lidar com a violência das colisões e se recolocar na cadeira para

prosseguir na disputa.

Vivenciando as emoções de uma torcedora, eu me sentia muito próxima de

todos que estavam naquele espaço. Ao mesmo tempo, nas ocasiões em que tentava

tomar uma certa distância para pensar de uma maneira um pouco analítica aquele
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momento, eu tinha a impressão de estar observando um universo bastante peculiar e que

tinha a ver com uma determinada esfera de sociabilidade das pessoas com deficiência.

Ao adentrar naquela realidade eu conhecia um pouco mais o esporte paraolímpico, mas,

fundamentalmente, eu olhava para um campo que apresentava uma grande riqueza de

significados sobre o corpo e a deficiência. Todas essas ideias, que ainda se

apresentavam de uma maneira muito vaga, seriam reforçadas quando fui assistir no

mesmo dia as competições de natação.

No geral, o clima de agitação no parque aquático era bem similar àquele

presente no ginásio. De qualquer forma, era possível perceber algumas diferenças entre

os dois contextos. Em primeiro lugar, a procura pela modalidade da natação parecia ser

bem maior. A enorme fila que havia se formado contrastava com a facilidade de

ingresso no local de disputa do basquete em cadeira de rodas. As arquibancadas não

eram suficientes para abrigar todo o público que desejava ver a natação. Mas como o

programa da modalidade era muito extenso, aqueles que esperavam do lado de fora -

como era o meu caso - contavam com a rotatividade interna para terem a sua chance de

participar do espetáculo. Quando já me encontrava dentro do parque aquático pude

identificar outra diferença em relação ao momento anterior: o grande assédio da mídia

em torno dos nadadores. Repórteres de diversos canais de TV se aglomeravam ao redor

dos atletas de maior destaque em cada bateria, principalmente quando eles faziam parte

da delegação brasileira.

Se o basquete em cadeira de rodas já havia trazido alguns elementos para

que eu pudesse repensar as relações que as pessoas com deficiência estabeleciam com

seus corpos, a natação surgia para aprofundar ainda mais esse questionamento. Tendo

visualizado algumas possibilidades de experimentação corporal de uma pessoa

cadeirante no campo do esporte, agora eu podia observar de perto a potencialidade de


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atletas com graus e tipos variados de deficiência física e visual. Ao desfazerem-se de

suas próteses, muletas e cadeiras de rodas para entrar na piscina, os nadadores deixavam

um registro ainda mais radical acerca dos processos de adaptação e reelaboração do

corpo com deficiência na sua relação com um treinamento técnico. Além disso, até onde

eu podia perceber naquele momento, a pessoa com deficiência aparecia no esporte

paraolímpico como exemplo não apenas de vigor físico, mas também de vitalidade

social. Após aquele primeiro dia de participação no Parapan eu entrevia um campo

bastante rico para uma investigação antropológica. O evento que havia me fascinado e

mobilizado as minhas emoções, abria caminho agora para que eu fizesse algumas

interrogações de natureza intelectual que me levavam a pensar na hipótese de conceber

o esporte paraolímpico como objeto de pesquisa.

De qualquer forma, acredito que essas esferas nunca estão completamente

separadas. Ao longo da minha trajetória acadêmica nunca tive dúvidas de que os nossos

afetos sempre estão envolvidos nas nossas escolhas. Olhamos para os novos e velhos

objetos, assim como para os novos e velhos debates, tentamos planejar o nosso futuro

como profissionais, mas sempre queremos ter prazer com o tema que escolhemos.

Dessa maneira, resolvi apostar num novo projeto, depois de passados dois anos do curso

de doutorado e prestes a passar pela primeira qualificação. Com o meu primeiro exame

de qualificação realizado no início de 2008, levou poucos meses para que a viagem de

campo fosse acertada e organizada.

Para construir o meu projeto de pesquisa e formular minhas questões iniciais

recorri a diversos sítios na internet, procurando encontrar nas páginas das entidades e

dos atletas algumas referências sobre a temática da corporalidade no universo do esporte

paraolímpico. A minha busca também se estendeu a textos de jornais e revistas, assim

como a materiais de divulgação do próprio movimento. Ao visitar na internet a página


8

da Associação Brasileira de Desportos em Cadeira de Rodas (ABRADECAR) 1, um

documento específico me chamou a atenção. Tratava-se de um texto intitulado

“Classificação funcional”, escrito por Ivaldo Brandão Vieira, professor de Educação

Física e diretor da Associação Nacional de Desportos para Deficientes (ANDE).

Apresentando o formato de um manual, o documento tratava da classificação funcional,

sistema que tem por objetivo posicionar o atleta em classes dentro do esporte

paraolímpico com base nas especificidades físicas relacionadas a cada deficiência. Nele,

eu pude observar a confluência dos conceitos de potência e deficiência que, ao menos

em tese, fariam parte de campos semânticos distintos.

Ao me deparar com essa referência comecei a colocar em relação essa

concepção de natureza mais teórica do esporte com as imagens que eu havia

presenciado nos Jogos Parapanamericanos do Rio. Dessa forma, tomei como desafio

principal investigar o processo de ressignificação do corpo deficiente em corpo atlético

e potente no esporte paraolímpico. Para atingir esse fim a minha estratégia passava pelo

cruzamento dos dados relacionados à classificação dos corpos e das deficiências –

proporcionados pela classificação funcional - com os processos subjetivos vivenciados

pelos atletas, numa tentativa de entender como eles mesmos percebiam esta

ressignificação nos termos de uma educação do corpo e dos sentidos (Wacquant, 2002).

Tendo a questão mais geral de investigação demarcada, optei por realizar a

minha pesquisa no âmbito da natação paraolímpica, com foco no alto rendimento, por

algumas razões. Em primeiro lugar, o repertório de classificação da modalidade era bem

rico, ao mesmo tempo em que não era tão extenso como no caso do atletismo. Ao tentar

desvendar a sua complexidade, eu poderia abrir espaço para uma compreensão mais

sofisticada acerca do contexto de produção interna de significados sobre corpo e

deficiência. Em segundo lugar, entendendo que essa mesma produção se referia a um


1
O endereço do sítio é http://www.abradecar.org.br.
9

determinado campo institucional onde o próprio atleta estava inserido, busquei

investigar uma modalidade com grande visibilidade. Adentrando numa rede mais

ampla, eu esperava ter acesso a um maior número de dados, produzidos tanto pelas

entidades e atletas ligados diretamente ao esporte, como por outros setores, conectados

de uma maneira mais indireta ao movimento, na expectativa de compreender a

contribuição dessa mesma relação na construção de discursos sobre o atleta com

deficiência. Em terceiro lugar, alguns clubes no Brasil concentravam a maior parte dos

atletas da natação paraolímpica que faziam parte da seleção brasileira, o que facilitava

sobremaneira o trabalho de campo. Mas, uma vez tendo delimitado alguns caminhos da

pesquisa, ainda foi preciso enfrentar um desafio específico em relação à consolidação

do objeto.

Procurando olhar para o caminho que o tema do corpo percorreu na

Antropologia, assim como para as mudanças de status que sofreu ao longo do

desenvolvimento da disciplina (Cf. Csordas, 1999), é possível ver que a questão mais

específica da deficiência parece não ter recebido ainda a devida atenção. Se, dentro de

uma concepção ocidental moderna sobre o corpo é possível reconhecê-lo como um fator

de individuação (Le Breton, 2008), depreende-se que ainda se encontra em aberto um

vasto campo de investigação voltado para o entendimento do universo da pessoa com

deficiência na nossa sociedade. Saindo do campo da Antropologia, o trabalho

sociológico de Goffman (1988) continua servindo como a principal referência para

refletir sobre essa temática. Mas, se por um lado a escassez de trabalhos antropológicos

focados na conjunção entre corpo e deficiência trouxe limites para um diálogo mais

direto e aprofundado sobre esses assuntos, por outro lado, essa lacuna figurava como

uma oportunidade para pensar de uma forma mais autônoma e criativa as questões

específicas da tese.
10

É provável que essa maior abertura no campo teórico tenha facilitado a

reconstrução de algumas questões do trabalho num momento em que a hipótese inicial

de pesquisa se mostrou insuficiente para pensar a realidade do campo. O ponto de

partida utilizado para a compreensão do corpo no esporte paraolímpico focado no

amálgama potência-deficiência, e cuja referência eu havia encontrado nos documentos

sobre classificação, demonstrava não ser muito compatível com os discursos nativos

voltados para as questões dessa ordem. Sendo assim, o tema da corporalidade foi sendo

reelaborado ao longo do desenvolvimento da pesquisa. Se antes ele parecia estar mais

centrado naquilo que podemos conceber como a fisicalidade dos sujeitos,

posteriormente foi se deslocando para a esfera das relações sociais e intragrupais.

Esse rearranjo, que teve como ponto de partida a própria dinâmica do

campo, – como demonstro com mais clareza no capítulo 3 – se intensificou no processo

de transcrição das entrevistas e na sistematização dos outros dados. O que anteriormente

era o núcleo da análise se desenvolveu e trouxe à baila novos assuntos. Nesse processo,

as categorias de emoção e de sociabilidade passaram a dialogar mais diretamente com a

do corpo. Dessa forma, o objetivo central desta tese é discutir as concepções de corpo e

deficiência que se constroem no contexto da natação paraolímpica brasileira. Dentro de

um recorte mais específico, pretendo mostrar como esses temas são elaborados por um

determinado grupo de atletas e de que maneira eles dialogam com as proposições

realizadas pelo campo institucional no qual eles se encontram inseridos enquanto

profissionais.

Ao optar por não montar um capítulo teórico, encarei o desafio de fazer com

que a pesquisa do campo dialogasse com a teoria ao longo desta tese. De qualquer

forma, penso que se faz necessário mencionar algumas referências que exerceram uma

maior influência sobre o trabalho.


11

O já mencionado trabalho de Goffman sobre estigma (1988) ofereceu um

importante suporte para a discussão sobre deficiência física. No entanto, procurei não

subordinar ou reduzir as especificidades do campo às proposições conceituais do autor.

Veremos como no contexto desta etnografia nem sempre a pessoa com deficiência se

encontra numa situação de desvantagem social. Dessa forma, o que Goffman aponta

como o caráter relacional do estigma aparece de uma forma bem mais radical no

universo do esporte paraolímpico.

A relação de proximidade que se estabeleceu no campo proporcionou um

tipo de imersão onde era possível vislumbrar aspectos do cotidiano vivo da principal

entidade esportiva com a qual trabalhei. Dessa forma, algumas das reflexões teóricas e

metodológicas desse mesmo autor sobre a ordem da interação – presente tanto em

Estigma como em outros trabalhos - deram uma contribuição decisiva para o

entendimento de situações que envolviam o desempenho de papéis sociais por parte dos

atletas e de outros agentes diretamente ligados ao esporte paraolímpico.

Inspirei-me em Velho (1999) para pensar a reconstituição de trajetórias de

vida como um caminho para a elaboração de algumas sínteses sobre o mundo social.

Além disso, a possibilidade de construção de uma autonomia pela via da prática

esportiva e as tensões relacionadas a alguns rearranjos familiares que decorrem desse

contexto, se comunicou, em algum nível, com a categoria de “projeto” com a qual esse

mesmo autor trabalha.

A noção de sociabilidade de Simmel concebida como “forma lúdica de

sociação” (2006:65) e caracterizada como um tipo de interação “entre iguais”

enriqueceu as descrições sobre as relações estabelecidas entre os atletas em alguns

espaços, assim como a natureza de certos padrões de comunicação e linguagem

utilizados por eles em algumas situações de convívio. Afora isso, procuro incorporar
12

nesse trabalho outra contribuição desse autor, que diz respeito ao peso dos sentidos para

a compreensão de interações sociais, perspectiva que permite acolher de forma concreta

a experiência da emoção como parte constituinte da vida em sociedade (Simmel, 1997).

Procurando ver essa categoria como algo além de uma construção interna do indivíduo,

entendo a emoção como uma manifestação que possui variáveis relacionadas a

determinados contextos sociais e culturais e que ganham significado no “reino público

do discurso” (Lutz e Abu-Lughod, 2008: 7).

A construção do conhecimento como uma espécie de apreensão do mundo

como concebida por Berger e Luckman (1973) serviu como apoio para analisar algumas

questões da tese. A concepção do conhecimento como fruto daquilo que os “indivíduos

comuns” elaboram na sua relação com o cotidiano, pôde ser apropriada para discutir os

modos de aprendizado dos atletas e da sua família com relação ao corpo e a deficiência,

notadamente para pensar os casos em que esse aprendizado ocorreu desde as primeiras

etapas da vida do indivíduo.

Nesses autores encontrei, ainda, sustentação para falar sobre a construção de

identidades no universo pesquisado. Na apresentação de uma dialética onde o homem

que produz o mundo acaba por produzir a si mesmo, se encerra uma concepção de

identidade focada num ambiente mais geral e não apenas em uma pessoa ou algum

grupo mais restrito com o qual ela convive. Nesse sentido, ela não pode ser considerada

nem estática, nem totalmente estável. Os dois tipos e momentos de socialização do

indivíduo que são apontados pelos autores dão conta das mudanças de dinâmica e de

conteúdo que informam a construção dessas mesmas identidades.

Como um dos desafios centrais dessa tese é entender não somente o

conteúdo das concepções de corpo e deficiência no interior da natação paraolímpica,

mas também identificar quais são os mecanismos utilizados para a elaboração dessas
13

mesmas concepções, busquei compreender a classificação funcional no esporte também

como um produtor de categorias sobre o corpo e a deficiência. Apoiando-me em

Bourdieu, entendo que essas categorias não são independentes das relações que as

conceberam. Elas são frutos de algumas práticas sociais e só fazem sentido dentro de

um determinado universo simbólico, da mesma forma que o seu poder e eficácia

dependem da agência dos homens de carne e osso.

A discussão que esse mesmo autor empreende sobre os processos de

nomeação e as “lutas por classificações” (Bourdieu, 1998) ilumina, ainda, parte dos

conflitos relacionados à ação dos códigos internos ao esporte. O conceito de capital

simbólico, por sua vez, enriqueceu alguns pontos da etnografia relacionados às

condições que podem levar alguns atletas a tomar posições de prestígio dentro do

campo do esporte paraolímpico.

Dentre as referências utilizadas para refletir sobre alguns aspectos

metodológicos da tese, encontrei em Douglas (2007:105) a sugestão de que um dos

papéis da instituição é conferir rótulos que servem como ponto de apoio para a

classificação e entendimento do mundo. Seguindo essa proposição, procurei situar a

instituição em que o atleta treinava dentro do contexto nacional e até internacional do

esporte paraolímpico, na tentativa de entender o lugar que ela ocupava em determinada

hierarquia. Busquei, também, conhecer o seu histórico, suas funções mais gerais, além

de atividades extra-esportivas que desenvolvia.

Acredito que a montagem desse quadro tenha sido fundamental para um

entendimento mais amplo do contexto onde se inseria o nadador paraolímpico. A partir

dele, procurei compreender de que forma essas entidades poderiam associar o

desempenho de uma prática esportiva a projetos mais amplos que pudessem, inclusive,

ter por finalidade a afirmação de um determinado tipo de identidade da pessoa com


14

deficiência. Em alguns momentos isso podia ser visualizado no cotidiano da entidade,

mas, em outros momentos, foi necessário situar a influência de outras instâncias do

movimento paraolímpico, assim como a relação com outros setores da sociedade.

Dessa forma, penso que embora os indivíduos tenham certa autonomia para

realizar escolhas frente à construção de uma identidade, o fato é que parte dos

conteúdos que sustentam essas mesmas escolhas é emitida pelas instituições às quais

eles estão ligados. Ao invés de ignorar ou evitar “o exotismo pré-fabricado da vertente

pública e publicada da instituição” (Wacquant, 2002: 22) intentei confrontar e

enriquecer os dados deste tipo com aqueles coletados na observação do cotidiano dos

atletas.

Com relação a esta segunda faceta do trabalho de campo, os meus objetivos

mais gerais eram: acompanhar os treinamentos dos atletas voltados para a preparação

para as competições, além de outros momentos em que existissem atividades com foco

no condicionamento físico; observar o espaço físico da associação e dos seus locais de

treinamento, assim como as interações que se estabeleciam dentro desse mesmo espaço,

tanto entre os próprios atletas, como entre eles e outros agentes ligados à entidade;

buscar compreender os processos de classificação funcional no esporte paraolímpico

tanto pelo seu registro teórico, como pelo seu registro prático, através do

acompanhamento dos exames e avaliações realizadas nos corpos dos nadadores; realizar

entrevistas com os atletas.

A minha entrada no campo precedeu em quatro meses o início dos Jogos

Paraolímpicos de Pequim em 2008. Essa conjuntura possibilitou uma intensa e

diversificada observação etnográfica que ia se desdobrando diariamente em diversas

anotações. Essa massa descritiva recobriu a minha percepção sobre a estrutura e

organização das entidades, o cotidiano dos atletas, a relação com os agentes externos
15

(mídia, governo, empresários), a mecânica da classificação no esporte e os padrões de

interação que marcavam cada um desses momentos.

A maior parte do trabalho de campo foi realizada em Natal, no estado do Rio

Grande do Norte, entre os meses de maio a setembro de 2008. A posição de destaque

que uma das entidades sediadas nesta cidade ocupava no esporte paraolímpico

brasileiro, motivou a escolha do local da pesquisa. Dentro da modalidade da natação, a

SADEF-RN (Sociedade Amigos do Deficiente Físico do Rio Grande do Norte) era uma

das instituições com maior participação em competições nacionais e internacionais.

Além disso, ela contava com um importante associado, um nadador com grande

projeção nacional e que já havia recebido o prêmio de melhor atleta paraolímpico do

mundo.

Quando já me encontrava no campo tive conhecimento da existência de

outra entidade, a CADEF-RN (Centro de Apoio do Deficiente Físico do Rio Grande do

Norte), que possuía uma atuação também significativa. Juntas, estas entidades

atestavam o peso da cidade de Natal na natação paraolímpica, que contava com a

participação de oito atletas entre os vinte e quatro da lista de convocados para as

Paraolímpíadas de Pequim.

No mês de novembro do mesmo ano estive na cidade de São Paulo por um

período de 20 dias com o objetivo central de entrar em contato com dois atletas que

tinham sido os grandes medalhistas dos Jogos de Pequim. Nesta etapa tive a

oportunidade de conhecer as entidades às quais eles estavam filiados e acompanhá-los

em alguns eventos. Além disso, pude realizar entrevistas não só com eles, mas também

com outros atletas e técnicos. Retornei à São Paulo em maio de 2009 para acompanhar

o processo de classificação funcional que ocorreu dentro de um dos torneios regionais

daquele ano. Por fim, entre os anos de 2008 e 2009, estive presente em três competições
16

internacionais organizadas pelo Comitê Paraolímpico Brasileiro (CPB), todas realizadas

no Complexo Aquático do Maracanã, na cidade do Rio de Janeiro. Além disso, assisti a

uma premiação do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) para os melhores atletas

olímpicos de 2008, ocasião em que também foram homenageados e premiados os atletas

paraolímpicos.

Na tentativa de acessar algumas informações que se relacionavam com as

trajetórias pessoais dos atletas e as suas próprias concepções sobre corporalidade, optei

pela realização de entrevistas. No próprio período do campo considerei importante

realizar entrevistas com outras pessoas, como técnicos de natação e classificadores

funcionais. O uso de cada uma dessas fontes na tese foi ditado pela dinâmica de

produção do textual com a consequente distribuição das temáticas da pesquisa. Mas, na

medida do possível, procurei não apenas equilibrar, mas colocar em contato os

depoimentos orais com as minhas descrições de campo, não perdendo de vista as

especificidades inerentes a esses materiais.

Foram realizadas no total 18 entrevistas, distribuídas da seguinte forma: 11

com atletas que faziam parte da equipe brasileira de natação paraolímpica, 4 com

técnicos da modalidade, 2 com classificadoras funcionais e 1 com uma empresária e

assessora de comunicação. Dentre os atletas entrevistados, 8 faziam parte de

associações da cidade de Natal (4 da SADEF, 3 da CADEF e 1 da COP) e 3 de

associações sediadas na cidade de São Paulo (2 do CIEDEF e 1 ECP).

Com relação aos técnicos, 2 deles estavam vinculados a associações de

Natal (1 da SADEF e outro da CADEF) e os restantes estavam na cidade de São Paulo

treinando atletas do CIEDEF, sendo que um era o técnico oficial da equipe de natação

desta associação, e o outro, técnico particular de um dos atletas. Apenas um deles, o

técnico ligado a SADEF, fazia parte da equipe brasileira de natação. Uma das
17

classificadoras entrevistadas morava na cidade de São Paulo e desenvolvia atividades

relacionadas à natação no CIEDEF. A outra morava no Rio de Janeiro e não estava

ligada a nenhum clube.

Entre os atletas havia 9 homens e 2 mulheres. O grupo como um todo era

composto de veteranos da natação paraolímpica. Apenas 2 deles haviam participado

pela primeira vez de uma Paraolimpíada. O restante já havia comparecido em pelo

menos duas edições dessa competição. Entre esses atletas mais experientes havia 4 na

faixa dos 40 anos, 4 na faixa dos 30 anos e 2 na faixa dos 20 anos. Nessa última também

se localizavam os dois menos experientes da seleção. Além disso, 6 nadadores faziam

parte da diretoria das entidades às quais estavam filiados: 3 da SADEF, 2 da CADEF e

1 do CIEDEF.

As entrevistas obedeceram a um roteiro semi-estruturado. Aquele que havia

sido desenvolvido para os atletas acabou trazendo questões que se tornaram o núcleo

dos demais. Mas o roteiro de entrevista dos atletas foi sofrendo reelaborações ao longo

do percurso, principalmente com o objetivo de atender ao deslocamento da temática da

corporalidade, como já foi apontado no início dessa introdução. Creio que seja possível

tratar essas mudanças de abordagem ou perspectiva como resultado de um tipo

particular de conhecimento que se constrói no próprio campo. Ao arcabouço anterior se

acumulam novos dados que transitam ao redor das categorias nativas. No caso dos

depoimentos orais, a realização de uma entrevista pode apontar para certos limites e

excessos do roteiro, podendo se constituir como um dos parâmetros para novas

formulações. Como lembra Bourdieu (1997:700):

É esta informação prévia que permite improvisar continuamente as


perguntas pertinentes, verdadeiras hipóteses que se apóiam numa
representação intuitiva e provisória da fórmula geradora própria ao
pesquisado para provocá-lo a se revelar mais completamente.
18

Para que isso ocorra é importante não esquecer que a entrevista é um tipo de

comunicação excepcional que carrega algumas marcas da dissimetria entre pesquisador

e pesquisado. Em alguns casos, essa relação de pesquisa pode provocar certos

constrangimentos e mal-estares. A proposta, então, é tentar “instaurar uma relação de

escuta ativa e metódica, tão afastada da pura não-intervenção da entrevista não dirigida,

quanto do dirigismo do questionário” (Bourdieu, 1997: 605). Nesse sentido, é preciso

que o pesquisador tenha uma disponibilidade total para a pessoa entrevistada com uma

submissão à singularidade de sua história, de maneira que a entrevista possa ser tomada

como um “exercício espiritual, visando a obter, pelo esquecimento de si, uma

verdadeira conversão do olhar que lançamos sobre os outros nas circunstâncias comuns

da vida.” (Idem: 704).

A tese se encontra estruturada da seguinte maneira. Apresento nos primeiros

itens do capítulo 1 uma reconstituição histórica do processo de formação e organização

do movimento paraolímpico, primeiro internacionalmente e depois nacionalmente. O

objetivo mais geral dessa parte é situar o leitor dentro da trajetória e do vocabulário do

esporte paraolímpico. Por meio dessa mesma narrativa procuro destacar algumas

inflexões que ajudam a entender o desenvolvimento do esporte adaptado, assim como as

mudanças que ocorreram no seu vínculo com o conceito de reabilitação física. O item

que trata das relações entre o esporte paraolímpico no Brasil e os estudos realizados na

área da Educação Física Adaptada se constitui num esforço para visualizar com mais

clareza o alcance institucional do movimento no país. Fecho o capítulo tratando das

entidades que estiveram envolvidas no meu trabalho de campo. Neste ponto, explicito

as motivações para a escolha das associações, ao mesmo tempo em que as posiciono no

cenário paraolímpico brasileiro. O item comporta, ainda, uma descrição sobre as


19

interações estabelecidas no campo, assim como a exposição de alguns dados que

permitem um maior entendimento sobre temas como: a estrutura das entidades, a

formação dos atletas e o aparato institucional.

No capítulo 2, as categorias de corpo e deficiência aparecem mediadas por um

dos dispositivos internos de regulação da natação paraolímpica: a classificação

funcional. A partir de um pequeno histórico sobre a passagem da “classificação médica”

para a “classificação funcional”, explico como o sistema opera atualmente na

modalidade da natação. Para cumprir com a descrição mais formal desse código me

apóio em documentos doados principalmente pelos informantes que atuam diretamente

como profissionais dessa área do esporte. Estes mesmos profissionais também deram

depoimentos orais que serão utilizados. Nesse mesmo capítulo apresento um item com

uma descrição da observação feita in loco do processo de classificação funcional. Para

finalizar, discuto as relações entre classificação e política na natação paraolímpica. Ao

colocar em contato as falas de atletas, técnicos e classificadores procuro situar as

polêmicas mais gerais em torno do sistema a partir da percepção de agentes que ocupam

posições diferenciadas no universo da natação paraolímpica.

Com foco nas trajetórias de vida, inicio o capítulo 3 tentando resgatar alguns

aspectos da relação mais subjetiva dos atletas com a sua deficiência em variados

momentos de sua história pessoal. Nessa parte, procuro entender o peso da família nas

elaborações iniciais da pessoa com deficiência acerca do seu próprio corpo, além de

captar o lugar que ocupa na relação profissional entre o atleta e a sua entidade. Analiso,

em seguida, as concepções nativas sobre “normalidade” e “deficiência”, principalmente

no tocante ao grau de visibilidade da diferença corporal. Como item final desse capítulo,

descrevo o uso de piadas sobre a deficiência, procurando entender o papel que a


20

jocosidade pode ter nos ambientes de sociabilidade e a relação que estabelece com uma

“terminologia adequada”.

O sistema de classificação funcional é retomado no capítulo 4. Dessa vez,

ele aparece dando um contorno inicial à discussão de identidade entre os nadadores. A

partir das diferenciações referentes aos “classes baixas” e “classes altas” da natação,

procuro descrever algumas possibilidades de arranjo identitário em torno dessas

diversidades corporais. Esse quadro se expande com a inclusão de experiências que

extrapolam a marca da classificação e que encontram referência no próprio cotidiano.

Encerro o capítulo debatendo as funções das categorias de “herói” e “coitadinho” na

construção de discursos sobre “superação”, analisando as possibilidades e limites desse

mesmo discurso em prol de uma coesão ou representação identitária do grupo.


21

Capítulo 1: Considerações gerais sobre esporte adaptado e movimento

paraolímpico.

A escrita deste capítulo encontrou suporte em uma revisão bibliográfica de

algumas produções acadêmicas na área de Educação Física, em pesquisas realizadas em

sites de instituições do esporte paraolímpico, em materiais de divulgação geralmente

feitos por estas mesmas instituições e em entrevistas realizadas com pessoas ligadas ao

movimento paraolímpico e ao desenvolvimento do esporte adaptado.

Antes de tudo, é importante deixar claro que deficiência, esporte adaptado e

movimento paraolímpico andam juntos e, cada uma destas terminologias não pode ser

entendida sem o exame das outras. Analisando a produção nesta área, vemos que outros

termos como Desporto Adaptado, Atividade Adaptada, Atividade Física Adaptada,

Desporto para Deficiente, Desporto para Pessoas Portadoras de Deficiências e, ainda,

Educação Física Adaptada também podem ser encontradas nesses trabalhos possuindo o

mesmo sentido do Esporte Adaptado, aqui utilizado. A tese de Araújo nos dá um

exemplo da enunciação destes vários termos e de como eles se interpenetram. Segundo

ele:

Entendemos atividade adaptada como a busca de adequação de meios


para se efetivar um resultado desejado, diante da ausência ou da
impossibilidade de se usar os meios convencionais que foram estabelecidos
como sendo a maneira correta de se executar ou praticar uma tarefa ou
atividade. (Araújo, 1996:5)

E depois segue:
22

Desporto Adaptado, para nós, significa a adaptação de um esporte já


de conhecimento da população. Este reconhecimento está relacionado às
regras estabelecidas e sua prática. (...) A modalidade permanece em sua
essência, mas é adaptado ao praticante. (...) Podemos entender por Desporto
para Deficiente aquele que é elaborado para entender exclusivamente esta
população. (Araújo, Op.cit.:5)

Dentro ainda do que nos sugere este autor o Desporto Adaptado possui,

então, suas codificações próprias, assim como sistemas de classificação funcionais que

são estabelecidos pelas instituições nacionais e internacionais ligadas ao esporte em

cada uma das modalidades em que ele se apresente. Em suma, ele “visa, de acordo com

as potencialidades remanescentes de cada indivíduo, possibilitar o rendimento seguro e

desejado dentro de reais condições” (Araújo, Idem) .

No entanto, escolho o termo esporte adaptado por achar que ele representa

de forma mais satisfatória sua relação com o esporte paraolímpico, voltado para o alto

rendimento de pessoas com deficiência. Os outros termos carregam um sentido um

pouco mais amplo e, por vezes, definem atividades voltadas para grupos que podem ou

não englobar pessoas com deficiência (como seria o caso dos idosos, crianças e

gestantes) ou servem, ainda, às sistematizações que tentam pensar a Educação Física

Inclusiva no sistema educacional.

Embora seja importante entender o significado de esporte adaptado e a sua

intrínseca relação com deficiência e esporte paraolímpico, ele acabará perdendo força ao

longo deste trabalho em prol dos termos esporte paraolímpico ou movimento

paraolímpico, que abrangem os atletas com deficiência com alto nível de rendimento e

que já participaram de uma Paraolimpíada. Ainda que esses termos estejam

correlacionados, a distinção é útil para delimitar o grupo que é objeto desta pesquisa:

atletas paraolímpicos de natação. Mesmo operando com essas diferenciações em prol de

uma clareza acadêmica, é importante salientar que muitas dessas denominações se


23

misturam nos usos cotidianos. O termo esporte adaptado é que deveria ser o englobante,

tendo em vista que nem todas as modalidades de esporte adaptado se encontram

atualmente no rol dos esportes paraolímpicos. Todavia, o que ocorre muitas vezes é que

termos como esporte paraolímpico, movimento paraolímpico e, mais especificamente, a

natação paraolímpica, acabam por englobar nas falas dos informantes tudo aquilo que se

entende por esporte adaptado.

1.1- Sobre a trajetória do movimento paraolímpico.

1.1.1- Esporte e reabilitação física: os primeiros jogos para deficientes físicos.

A utilização de programas terapêuticos que têm como base fundamental para

a cura e reabilitação a prática de atividades físicas e uma preocupação com um sujeito

fisicamente educado parece ter uma longa estrada percorrida no Ocidente. Nos trabalhos

citados aqui e que têm relação mais direta com a área de estudos do esporte,

encontramos algumas indicações sobre o papel de uma educação física2 no trato da

corporeidade de pessoas com algum tipo de deficiência. Algumas dessas indicações, por

sinal, nos trazem informações de tempos bem remotos, como Antiguidade, Idade Média

e Idade Moderna. Não é a pretensão desta tese aprofundar-se a tal ponto em termos

históricos, o que demandaria um outro tipo de investimento em pesquisa bibliográfica e

documental. Por outro lado, acredito que seja enriquecedor registrar com mais clareza a

história mais recente do esporte para deficientes e que mais se aproxima da maneira

como nos dias atuais ele é praticado.

2
Refiro-me aqui à educação física no sentido de uma aposta na manutenção de uma fisicalidade saudável
através de exercícios regulares e não de uma disciplina escolar e acadêmica tal qual a concebemos hoje.
24

Em diversos trabalhos encontramos dados sobre a história mais recente do

que posteriormente ficou conhecido como esporte paraolímpico. Existem referências de

que pessoas com deficiências auditivas teriam sido as pioneiras na organização de

competições esportivas, desde o final do século XIX, através do beisebol e do futebol

nos Estados Unidos. No início do século seguinte eles já participavam de outras

modalidades e, no ano de 1924, em Paris, ocorreu a primeira competição internacional

para este grupo, denominada Jogos do Silêncio. É desta época a criação do Comité

Internacionale des Sports Silencieux (CISS)3.

Com relação aos deficientes visuais a primeira competição teria ocorrido em

1907, também nos Estados Unidos. Analisando a produção de autores que se preocupam

em realizar essa historicização do esporte para deficientes, vemos como surgem

inúmeras datas e eventos que são considerados como pequenos marcos deste processo.

Nem todos eles aparecem com o mesmo grau de relevância e, por vezes, chegam a

haver discrepâncias sobre datas, locais e nomes a eles relacionados. O primeiro ponto

consensual mais abrangente fica claro quando os autores citam a Primeira Guerra

Mundial como um importante momento de inflexão, onde trabalhos de reabilitação

através do esporte puderam ser desenvolvidos com lesionados do conflito,

principalmente na Alemanha. Esse também seria o momento em que toma impulso o

desenvolvimento da fisioterapia e da medicina esportiva (Conde, 2006:10). No entanto,

os esforços que conjugavam esporte e reabilitação não tiveram continuidade nesse

período e nem uma projeção maior capaz de construir canais de comunicação e

divulgação sobre a realização deste tipo de trabalho, ao menos na esfera internacional.

De qualquer forma, existe uma unanimidade em considerar a experiência do médico

Ludwig Guttman como decisiva para o desenvolvimento do que hoje chamamos de

3
Esta entidade realiza seus jogos de forma independente do movimento paraolímpico, embora tenha
havido a participação de surdos nestas competições entre 1986 e 1995.
25

esporte paraolímpico. O trabalho deste médico, que era alemão de origem judaica e

estava exilado na Inglaterra, começa a ser realizado a partir de 1944, no Centro

Nacional de Lesionados Medulares de Stoke Mandeville, onde a prática esportiva era a

marca da reabilitação que, segundo Guttman, deveria ser não apenas física, mas também

social.

Antes de prosseguir com o relato dessa experiência, é importante destacar o

contexto histórico em que ela surge e se desenvolve. As fontes bibliográficas apontam

que, ao final da Segunda Guerra Mundial, os governos dos principais países envolvidos

no conflito já não podiam fechar os olhos para o grande problema dos mutilados de

guerra que retornavam às suas pátrias e que, ao menos aparentemente, passariam a ser

um estorvo em termos sociais. Essa idéia é corroborada por Rabinow (1999:146)

quando afirma que nesse período “deficiências eram déficits a serem compensados

socialmente, psicologicamente e espacialmente, e não doenças a serem tratadas”. Para

alguns autores, esta resposta não deixava de ser uma medida econômica, pois boa parte

da mão-de-obra produtiva dos países beligerantes estava nos campos de batalha4. Por

outro lado, podemos afirmar que a preocupação com a reabilitação destas pessoas tinha

a ver também com uma resposta política a um dos resultados visivelmente nefastos da

guerra.

No que diz respeito à reabilitação em si, Araújo (1996) destaca que havia um

interesse científico neste momento por esta área, com o desenvolvimento de várias

pesquisas voltadas principalmente para pessoas com traumatismo raquimedular5. Esse

4
Interessante trazer aqui sucintamente o quadro que Rosadas (2000) descreve sobre as especializações
que surgiram no pós-guerra e que têm a ver com o desenvolvimento de pesquisas e tecnologia na área da
reabilitação para deficientes. Países como Rússia, Itália, Espanha, França e Portugal concentraram seus
esforços em psicomotricidade e lesões que afetavam o lado neuro-comportamental. Na Alemanha,
Inglaterra e Estados Unidos o enfoque se deu em pesquisas na área de deficiência mental, assim como em
lesões como amputações e traumatismos ráquimedulares. Já no Japão, vemos o desenvolvimento da área
de órteses, próteses e cadeiras de rodas voltadas para o esporte competitivo.
5
Debilidade neurológica causada por uma lesão na medula espinhal que causa paralisia e alteração de
sensibilidade, podendo ser parcial ou total.
26

era justamente o foco do Hospital de Stoke Mandeville, que tratava os soldados que

possuíam este tipo de lesão e que até então, tinham uma expectativa de vida curta depois

que se encontravam nesta nova condição. Segundo Araujo “isso ocorria devido às

complicações ligadas às infecções urinárias, escaras de decúbito, infecções respiratórias

e generalizadas, sendo a medicina da época ineficaz neste restabelecimento” (Araújo,

Op.cit.:8). Por outro lado, convém destacar que os traumatismos graves trazem

conseqüências não apenas físicas, mas emocionais e sociais. Neste sentido, quando se

fala em reabilitação dificilmente ela estará sendo pensada somente em termos físicos,

até porque grandes lesões permitem muitas vezes um restabelecimento mínimo. No

conceito de reabilitação estão inseridas idéias como: motivação, equilíbrio emocional,

inserção social, autonomia e recuperação da auto-estima do paciente.

O uso do esporte como ferramenta alternativa de trabalho de reabilitação de

pessoas com deficiência teve grande aceitação e quatro anos depois já eram realizados

os primeiros jogos de Stoke Mandeville. No ano de 1950, tem início o intercâmbio entre

Inglaterra e Estados Unidos com relação ao desenvolvimento do desporto em cadeira de

rodas. Este último país também já tinha percorrido seu próprio caminho nesta área,

promovendo desde a década de 40 o basquete em cadeiras de rodas, que inicialmente

era praticado por veteranos de guerra, mas que depois despertou o interesse de civis que

estavam em cadeira de rodas em razão de vários tipos de deficiência. Com o sucesso

que havia obtido os Stoke Mandeville Games, como ficaram conhecidos os jogos de

1948, foi formada no ano de 1952 a Organização Internacional de Esporte para

Deficientes – International Stoke Mandeville Games Federation (ISMGF)6, quando

também são realizados os primeiro Jogos Internacionais de Stoke Mandeville. Porém,

no ano de 1956, passam a participar dos jogos algumas pessoas com sequelas de

6
Depois ela passou a ser denominada International Stoke Mandeville Wheelchair Sports Federation
(ISMWSF).
27

poliomielite e amputados de membros inferiores que eram usuários de cadeiras de rodas

e possuíam lesões parecidas com as medulares.

Desde o início do trabalho do Dr. Guttman até aqui é possível localizar o

momento em que se dá a passagem da utilização do esporte como ferramenta de

reabilitação para pessoas com deficiências ou debilidades físicas para o início de sua

prática, realizada por estas mesmas pessoas, mas agora com uma intenção competitiva.

Ainda assim, acredito que estas fronteiras entre reabilitação e esporte competitivo não

podem ser colocadas de forma tão categórica, pois ainda que a proposta naquele

momento fosse a de pensar na formação de atletas, ela não deixava de estar na interface

de questões ligadas à reabilitação.

Em 1960, quando os Jogos de Stoke Mandeville chegam à nona edição, o

Dr. Guttman é convidado para organizá-los em Roma, após o término das XVI

Olimpíadas. Essa edição dos Jogos passou a ser considerada posteriormente como a

primeira Paraolimpíada, embora ainda não tenha recebido essa denominação naquele

momento. O nome oficial do evento era Paralympics, ou seja, Olimpíadas para

Paraplégicos, e contou com a participação de 23 países e 400 participantes, sendo 230

deles competidores. A partir daí, com raras exceções, estes jogos passaram a ser

realizados algumas semanas após os Jogos Olímpicos, na mesma cidade-sede. Apenas

na competição realizada quatro anos depois, na cidade de Tóquio, é que surge o termo

Jogos Paraolímpicos que, por sinal, nunca foi adotado pela associação que cuida dos

Jogos de Stoke Mandeville. É também nesse ano de 1964 que surge a segunda

organização internacional de desporto para deficientes, a International Sports

Organization for the Disabled (ISOD), que tinha a intenção de representar todos os

deficientes que não eram contemplados pela ISMWSF.


28

Até o ano de 1972, quando os jogos ocorreram em Heildelberg, na

Alemanha, as competições estavam limitadas para deficientes que fossem cadeirantes,

mas a criação da ISOD possibilitou a incorporação de outras modalidades esportivas

que eram praticadas por pessoas que possuíam outras deficiências. Assim, nos Jogos

Paraolímpicos de 19767, em Toronto, já temos provas para os atletas cegos e amputados.

Em 1980, nos Jogos Paraolímpicos de Arnhem8 na Alemanha, foi a vez dos atletas

paralisados cerebrais se juntarem à competição.

É importante esclarecer que, se por um lado a ISOD proporcionava a

participação de pessoas com diferentes tipos de deficiência, por outro lado acabou

concentrando todas as modalidades do esporte paraolímpico que surgiam do processo de

diversificação aqui citado. Mas o fato é que o crescimento do movimento trazia consigo

uma maior especialização dos atletas por tipo de deficiência, de forma que outras

entidades foram sendo criadas com o intuito de organizar o esporte a partir destas

mesmas especializações. Em 1978 foi criada a Cerebral Palsy - International Sports and

Recreation Association (CP-ISRA), responsável por representar os Paralisados

Cerebrais no esporte paraolímpico. Já a International Blind Sports Association (IBSA),

que se tornou responsável pela organização dos deficientes visuais no movimento, foi

fundada em 1981. Com relação a esta tendência de crescimento que se afirma neste

período, Araujo salienta que, a partir dos anos 80

este movimento entra em processo de cientificidade, surge a


necessidade de implementar medidas que assegurassem a individualidade e a
igualdade nas competições esportivas. Houve o desmembramento em
organizações diferentes para cada deficiência. Estes desmembramentos
foram feitos diante da necessidade de se estabelecer regras coerentes para
cada grau de deficiência”. (Araújo, Op.cit.:12)

7
Neste mesmo ano começam a ser realizados os Jogos Paraolímpicos de Inverno, cuja sede foi a Suécia.
Depois este ciclo foi ajustado para que ocorresse sempre paralelamente aos Jogos Olímpicos de Inverno.
Os últimos foram na cidade de Turim, na Itália. Ver CONDE, Op.cit., p.11.
8
Guttman chegou a participar desse evento, mas morreu neste mesmo ano.
29

No período posterior ao boom dos desmembramentos é criado no ano de

1989, depois das Paraolimpíadas de Barcelona, o International Paralympic Committee

(IPC). Hoje esta entidade congrega as quatro federações originais do Comitê

Coordenador Internacional de Organizações Esportivas para Deficientes (ICC), antigo

representante do esporte paraolímpico. As federações são: CP-ISRA, IBSA, ISMGH ou

ISMWSF e ISOD, além da International Federation for Sport for Athletes with an

Intellectual Disability (INAS-FID), que representa os atletas com deficiência mental.

Existe ainda uma sexta entidade internacional que representa os atletas com deficiência

auditiva, mas que não está ligada ao movimento paraolímpico e ao IPC.

No ano de 1996, as Paraolimpíadas de Atlanta contaram com a participação

de atletas deficientes mentais como convidados. Mas, nos jogos seguintes realizados em

Sydney, quando estavam oficialmente incluídos em quatro modalidades esportivas,

foram encontradas irregularidades e fraudes com relação à elegibilidade de alguns

atletas. Nessa competição o time de basquete de deficientes mentais da Espanha ganhou

a medalha de ouro, mas meses depois um jornalista se infiltrou no time e conseguiu se

passar por uma pessoa com deficiência. Utilizando esse recurso ele também mostrou

que outros membros da equipe simulavam a mesma condição. Esses atletas foram

suspensos, mas permaneciam as dúvidas com relação à confiabilidade do sistema de

eleição dos deficientes mentais. Até hoje o IPC estuda novos critérios para incluí-los

novamente nas competições oficiais da entidade. Enquanto isso, eles só participam

como convidados para apresentações.

Desde Seul, os Jogos Paraolímpicos se tornaram efetivamente um evento que

ocorre paralelamente aos Jogos Olímpicos, na mesma cidade-sede. Araújo aponta que

com relação ao termo Paraolímpico não parece haver um consenso quanto à sua origem.
30

Ele afirma que, inicialmente, ele teria sido cunhado em referência à palavra paraplegia,

significando, então, “jogos para paraplégicos”. Mas outros afirmam que o termo

Paraolímpico está relacionado ao fato deste evento ser paralelo aos Jogos Olímpicos, o

que parece ser o entendimento mais corrente dentro do movimento.

Estas significações não parecem ser excludentes, mas apontam para uma

mudança no sentido do termo que tem a ver mesmo com a trajetória do esporte

paraolímpico. Quando em seu início ele era voltado apenas para pessoas com

paraplegia, seu valor semântico tinha a ver com a junção dos termos paraplégico e

olímpico. À medida que pessoas com outros tipos de deficiência começaram a participar

e que os jogos passaram a ocorrer de forma paralela aos Jogos Olímpicos, a conjunção

de palavras que dava sentido ao termo paraolímpico era “para” (advindo do grego e que

significa paralelo) e olímpico. De qualquer forma, na maioria dos depoimentos que

colhi ao longo da pesquisa existe uma recusa quanto ao uso da palavra paratleta no

movimento paraolímpico, ainda que esta possa ser encontrada de forma recorrente na

mídia, em materiais de divulgação e na fala mesmo de pessoas que pertencem ao meio.

A discordância é justificada pelo fato de que seriam atletas realmente e não seriam

“paralelos” aos atletas olímpicos, assim como as Paraolimpíadas são um evento

concebido de forma paralela aos Jogos Olímpicos.

1.1.2- A construção do movimento no Brasil e as primeiras instituições.

Assim como em outros países a história do esporte paraolímpico esteve

associada aos serviços de reabilitação disponíveis para pessoas com deficiência,

também no Brasil a conexão entre as duas áreas sempre existiu de alguma forma. A
31

diferença aqui é que não necessariamente os pioneiros no esporte adaptado eram

lesionados de guerra.

No exame bibliográfico feito, a década de 50 aparece como o marco no

desenvolvimento do esporte paraolímpico nacional, com o surgimento das primeiras

entidades reguladoras. Araújo, no item em que trata propriamente da introdução do

esporte adaptado no Brasil, cita um interessante depoimento de uma das pessoas que

considera precursora da implementação do esporte adaptado no país, Sérgio Serafim

Del Grande. Segundo seu relato, ele ficou paraplégico no ano de 1951, mas por não

haver na época um centro de reabilitação no Brasil para o tipo de lesão que ele possuía,

resolveu realizar o seu tratamento nos Estados Unidos, no Instituto Kesller em New

Jersey. Ao chegar lá, ficou sabendo que era obrigatória no sistema de reabilitação a

participação em alguma atividade esportiva adaptada. E isto ocorria em todos os centros

de reabilitação daquele país. Ele optou pelo basquete em cadeira de rodas e em pouco

tempo já estava participando dos torneios que eram feitos com os outros centros de

reabilitação. Del Grande voltou para a cidade de São Paulo em 1955 e tornou-se uma

das primeiras pessoas a praticar o basquete em cadeira de rodas, modalidade que

inaugurou no Brasil o esporte para pessoas com deficiência.

Em momento anterior comentei que a reabilitação não visualiza apenas a

parte física da pessoa com deficiência, mas busca o bem estar desta em todos os níveis

de sua vida. Cito aqui, uma parte do depoimento de Del Grande que encontramos no

trabalho de Araújo. Ela é sem dúvida especial, pois ainda que ele esteja falando de

cuidados aparentemente físicos, vemos que uma das metas do trabalho de reabilitação é

alcançar outro nível de percepção corporal e entendimento da deficiência, de modo que

ela possa ser encarada não como uma doença que apenas restringe, mas como uma
32

limitação que pode e deve ser conhecida e administrada, através de uma intervenção

menos passiva e mais ativa, advinda do próprio deficiente. Eis a passagem:

Quando eu cheguei lá eu só andava de cadeira de rodas. Com as


orientações e terapias eu consegui me locomover com os aparelhos e me
tornar completamente independente.
Eles ensinaram-me a subir e descer escada de muleta, ensinaram-me
como tinha que sentar no banheiro, levantar da cama, como tinha que
arrumar a minha cama, a dirigir carro, os cuidados que eu deveria ter em
relação às partes lesadas. Tudo foi feito no instituto de reabilitação. (Araújo,
Op.cit.:17)

Del Grande acabou sendo um dos fundadores do Clube dos Paraplégicos de

São Paulo (CPSP) no ano de 1958. Em outra parte do seu depoimento, também citado

por Araújo, fica claro que um evento no ano de 1957 teria sido decisivo no

desenvolvimento do esporte adaptado no Brasil. Em novembro deste ano a Associação

de Assistência à Criança Deficiente (AACD) trouxe os “Pan Jets” para fazer uma

demonstração do basquetebol em cadeira de rodas, primeiro no Ginásio do Ibirapuera

em São Paulo e depois no Maracanãzinho no Rio de Janeiro. Eles eram um time da Pan

American World Air Ways formado por pessoas que tinham ficado deficientes, mas

continuavam com suas atividades produtivas na empresa, além de praticarem esporte.

Um dos atletas dessa equipe conheceu na época Del Grande e tentou convencê-lo de que

era possível formar um time de basquete em cadeiras de rodas no Brasil e depois acabou

enviando uma cadeira para ele dos Estados Unidos. Depois, através de uma campanha

ele conseguiu com a ajuda de Paulo Machado de Carvalho, vice-presidente na época da

Federação Paulista de Futebol, a doação de mais 10 cadeiras de rodas, que foram feitas

a partir do modelo daquela despachada dos Estados Unidos. Del Grande relata que a

primeira equipe foi montada em sua maioria a partir de contatos feitos com entidades

que trabalhavam com deficientes, como a AACD, e em clínicas de reabilitação. Já em


33

1959 o CPSP participa de uma competição em Buenos Aires e, no ano seguinte, vai para

um Mundial em Roma.

Existem controvérsias no sentido de se estabelecer onde o esporte adaptado

teria de fato dado oficialmente o seu passo inicial. Isso ocorre porque alguns autores e

pessoas ligadas ao movimento apontam o Rio de Janeiro como pioneiro do processo,

tendo em vista a fundação do Clube do Otimismo que teria ocorrido meses antes

daquela do CPSP9. O nome de destaque aqui é o de Robson Sampaio de Almeida,

idealizador da entidade e também considerado como protagonista do processo de

implantação do esporte adaptado no país. De qualquer forma não é tarefa deste trabalho

resolver esta controvérsia, mas trazer dados que nos ajudem a entender como se deu o

desenvolvimento do esporte adaptado no Brasil em seus primórdios.

A partir da década de 60 o esporte para deficientes no Brasil começa a se

expandir, muito em função de participações do Brasil em eventos internacionais, o que

possibilitou um conhecimento maior sobre o que mais estava sendo praticado em outros

países. À medida que outras modalidades foram sendo incorporadas e que o esporte

adaptado foi crescendo, ficou mais evidente a necessidade de criar uma entidade que

representasse e organizasse o esporte paraolímpico em nível nacional. A Associação

Nacional de Desporto para Deficientes (ANDE) é fundada no ano de 1975 congregando

inicialmente todas as áreas de deficiência10. Porém, com o aumento expressivo do

número de atletas e modalidades praticadas, cresce também a exigência de uma

reestruturação do movimento paraolímpico no Brasil, que pode ser exemplificada por

uma série de entidades que surgem a partir da década de 80. Aliás, acredito que esse

9
Algumas fontes dão conta de que o Clube do Otimismo teria sido criado em abril de 1958, enquanto que
o Clube dos Paraplégicos de São Paulo teria sido fundado alguns meses depois, em agosto do mesmo ano.
10
Depois, com o surgimento de outras entidades criadas por tipo de deficiência, a ANDE ficou
responsável pelos atletas com paralisia cerebral e os chamados “Les Autres”, categoria do esporte
paraolímpico que junta pessoas com deficiências que não se enquadram naquelas já claramente
especificadas, como paraplegias, amputações, cegueira e deficiência mental. No grupo dos “Les Autres”
temos, por exemplo, pessoas com má-formação congênita e aquelas que possuem doenças degenerativas.
34

quadro dá conta não apenas de uma necessidade organizacional interna ao movimento,

mas também de outras questões que passam a ser explicitadas neste período e que tem a

ver com um cenário político e social mais amplo.

Com o advento do Ano Internacional do Deficiente, decretado pela

Organização das Nações Unidas em 1981, surge um momento propício para a discussão

na sociedade das problemáticas referentes às pessoas com deficiência dentro do

contexto brasileiro. Entidades da sociedade civil e algumas agências governamentais se

empenham na promoção de um debate sobre direitos, envolvendo temas como

acessibilidade, educação, saúde e promoção do lazer para esse segmento da população,

de forma que temos aqui uma oportunidade de construção de um olhar diferenciado

sobre o corpo com deficiência, menos focado nas limitações e mais voltado para a

compreensão de suas possibilidades. Esse é o momento de culminância de

reivindicações advindas de entidades nacionais e internacionais, iniciadas na década de

70 em prol das pessoas com deficiência.

Voltando ao nosso histórico, vemos que a expansão que se inicia nos anos 80

continua até meados dos anos 90 como mostro abaixo em uma breve cronologia que dá

conta criação de algumas instituições que expressam, ao menos em termos

institucionais, o desenvolvimento do movimento paraolímpico no Brasil11. Contudo, não

podemos esquecer o fato de que estas novas entidades passam a fazer parte de um

cenário que ainda é muito frágil em termos profissionais e organizacionais.

No ano de 1984 foram fundadas, no Rio de Janeiro, a Associação Brasileira

de Desporto para Cegos (ABDC) e a Associação Brasileira de Desporto em Cadeira de

Rodas (ABRADECAR). No ano de 1987 é criada, por sua vez, a Confederação

11
Com exceção do Clube do Otimismo e do CPSP, que foram precursoras do movimento num momento
em que ainda não havia entidades nacionais, não apresentarei aqui a fundação de entidades estaduais ou
municipais dentro desta história de formação do movimento, a não ser quando no curso do trabalho, elas
estejam diretamente ligadas ao trabalho de campo e às questões em debate.
35

Brasileira de Desporto para Surdos (CBDS), na cidade do Rio de Janeiro. Embora esta

entidade represente o Brasil no Comitê Internacional de Esportes de Surdos, suas

modalidades desportivas não fazem parte do quadro dos Jogos Paraolímpicos. Em 1990

surge a Associação Brasileira de Desporto para Amputados (ABDA), na cidade de

Niterói. E em 1995, temos o reconhecimento oficial da Associação Brasileira de

Desporto para Deficientes Mentais (ABDEM), que já existia desde o ano de 1989. O

Comitê Paraolímpico Brasileiro (CPB)12 é criado no ano de 1995 e, a partir de então, é o

órgão responsável pela organização de eventos nacionais que envolvam mais de uma

deficiência, bem como a entidade que, por dever, envia os atletas brasileiros aos

campeonatos sancionados pelo IPC. Em sua estrutura hierárquica as associações e

confederações nacionais de cada modalidade surgem logo abaixo da diretoria do comitê

e de sua assembléia geral, com os clubes formando a base da pirâmide.

O quadro até aqui descrito pode trazer consigo a impressão de que todo esse

processo teria se desenvolvido numa simples escala ascendente, que aparece de forma

mais acelerada na década de 80, de onde prosseguiria com seu curso evolutivo até os

dias atuais. Mas o fato é que as fontes disponíveis sobre o assunto têm condições de

sustentar uma descrição mais genérica da constituição do movimento paraolímpico,

apresentando certos limites para cobrir os possíveis percalços existentes ao longo do

período. Levanto esta questão na intenção de esclarecer que não suponho a existência de

uma trajetória onde não existam constantes reformulações, que pode se desdobrar tanto

em sucessos como em retrocessos.

Da mesma forma que muitas entidades e clubes foram sendo criados, outros

amargaram problemas estruturais, políticos e financeiros e tiveram que fechar as suas

portas. O próprio Clube dos Paraplégicos aqui citado pode servir como exemplo de uma

instituição que perdeu a projeção anterior que tinha no esporte paraolímpico, sem contar
12
Tendo inicialmente sua sede na cidade de Niterói, o CPB transfere-se para Brasília no ano de 2002.
36

as federações e confederações que não existem mais. É necessário também estarmos

atentos para o fato de que a maioria dos dados possibilita o relato daquilo que se

presume como uma realidade nacional (como vemos na maioria dos textos

pesquisados), quando me parece que na prática podemos falar de um desenvolvimento

que é muito regionalizado, concentrado em estados do sudeste do Brasil. Dificilmente

encontramos trabalhos acadêmicos que tratem de histórias que extrapolem esse recorte.

Isso não tira a validade dessa produção, mas serve a esta tese como um alerta no sentido

de se evitar generalizações a partir de alguma realidade específica.

1.2- A educação física adaptada no Brasil hoje: a relação com o movimento

paraolímpico

Considero importante situar alguns dados sobre o momento atual dos estudos

sobre esportes para deficientes no Brasil e que servem concretamente de suporte para

uma qualificação dos profissionais e atletas ligados diretamente ao esporte de alto

rendimento. Nas entrevistas que realizei e em conversas que tive com pessoas formadas

em Educação Física e que posteriormente se tornaram técnicos de natação ou

classificadores funcionais, existem relatos de uma formação baseada em grades

curriculares com poucas ou nenhuma disciplina voltada para a discussão sobre o corpo

deficiente, o que se desdobra num baixo incentivo para pesquisas em torno deste tema.

Quando perguntados sobre o peso de sua formação acadêmica sobre o

trabalho que realizam hoje junto às pessoas com deficiência, a maioria dos profissionais

afirma que foram poucas as oportunidades que encontraram em termos de formação

dentro da universidade para aprofundar seu conhecimento nessa área. Alguns técnicos

asseguram que muito do que aprendem sobre o corpo deficiente se constrói no cotidiano
37

e de forma contínua, por meio da experiência prática que vão adquirindo no contato

com os atletas e nas adaptações que aprendem a fazer pela observação dos corpos de do

seu desempenho.

Sem pretender esgotar a questão, é possível afirmar que nas universidades

brasileiras ainda é tímido o desenvolvimento de teorias e metodologias que pensem

primordialmente o corpo deficiente. Dessa forma, no decorrer do curso ou depois de

graduados, é necessário que os profissionais interessados nessa área busquem uma

formação complementar em alguns poucos centros de ensino ou pós-graduações

especializados neste tipo de formação. Mas nem sempre o interesse em se estudar o

corpo deficiente e o esporte adaptado passa por uma via acadêmica. Alguns relatos dão

conta da existência de redes que extrapolam esse âmbito, como aquelas mais ligadas a

associações que apóiam o deficiente físico, aos clubes de treinamento propriamente dito

e aos circuitos de amizade, ocasião em que a pessoa pode ser levada por alguém a

conhecer um trabalho de treinamento muitas vezes voltado para um círculo muito

pequeno de pessoas ou até mesmo para um indivíduo. Em outras trajetórias, esses

profissionais iniciam sua carreira no esporte dito convencional - podendo ser professor,

técnico e eventualmente até um competidor - quando são convidados para treinar algum

atleta paraolímpico que naquele momento se encontra sem orientação técnica.

Voltando para a questão do ensino de educação física, destaco o trabalho

realizado pela Faculdade de Educação Física da Unicamp (FEF), única instituição no

Brasil que possui um departamento específico de Educação Física Adaptada, criado na

década de 80 por alguns professores, entre eles Paulo Ferreira de Araújo, citado nesta

tese. Como foi dito anteriormente, embora essa área de estudos seja pouco

desenvolvida, existem outras universidades no país preocupadas em fomentar a pesquisa


38

e o ensino nesse setor13, ainda que não seja dentro deste modelo acadêmico que

oportuniza uma formação que começa na graduação e se desdobra em programas de

pós-graduação e em projetos desenvolvidos nos laboratórios. Como aponta Penafort

(2001:64):

“ainda não temos a formalização do trabalho adaptado nas diversas


disciplinas oferecidas por essas universidades como parte da grade
curricular regular de formação do futuro profissional e sim, na maior parte
das vezes, como disciplina única com caráter informativo geral”.

Ainda com relação à FEF encontramos o Departamento de Estudos da

Atividade Física Adaptada (DEAFA) que proclama a defesa de estudos que sejam

capazes de conjugar teses do campo da biologia e da antropologia, no sentido de

procurar entender com um maior alcance as especificidades motoras de determinados

grupos dentro de uma realidade social. Importa salientar que a sua produção científica

não está voltada somente para pessoas com deficiência, mas outros grupos tais como:

pessoas da terceira idade, gestantes, sedentários, populações indígenas, dentre outros. O

Laboratório de Atividade Motora Adaptada (LAMA), por sua vez, tem um intuito

semelhante, mas contribui mais diretamente com estudos que têm servido de base para o

desenvolvimento do esporte adaptado, auxiliando cientificamente a construção de

parâmetros classificatórios dos atletas, rendimento físico, entre outras ações. Esse

laboratório parece ser a principal via de apoio ao CPB pelo seu destaque em projetos

que visam à criação de instrumentos teóricos e metodológicos para classificar, treinar e

avaliar atletas deficientes de alto rendimento. Dessa forma, para além do fato de que a

FEF pode ser considerada um importante centro de produção de conhecimento

13
Rosadas destaca o trabalho desenvolvido nos departamentos de Educação Física da Universidade
Federal de Uberlândia e nas Faculdades Integradas Castelo Branco no Rio de Janeiro, instituições que
foram criadas também na década de 80 e que, junto com a FEF podem ser consideradas pioneiras na área
de Educação Física Adaptada.
39

acadêmico sobre o esporte adaptado, ela surge como referência nesta tese pela sua

ligação - ainda que indireta - com o meu trabalho de campo, na medida em que alguns

dos seus professores, alunos e ex-alunos fazem parte atualmente de equipes técnicas do

CPB, como ocorre com a natação.

No item anterior fiz referência ao Ano Internacional do Deficiente sugerindo

sua importância na conjuntura dos anos 80, ao colaborar para uma discussão mais ampla

sobre o tema da deficiência, abrindo caminho para o crescimento do movimento

paraolímpico no Brasil. Tal crescimento relaciona-se, por sua vez, com aquele que

também ocorre no campo da Educação Física Adaptada. Portanto, não é mera

coincidência o fato de que a partir desta década também se dá nas universidades

brasileiras a expansão de cursos nas faculdades de Educação Física voltados para essa

especialidade, formando profissionais que passam a alimentar o esporte paraolímpico e

que levam também para o âmbito acadêmico aquilo que aprendem em sua experiência

prática. É preciso deixar claro que a criação desse novo campo de estudos dentro das

universidades brasileiras tinha relação com ações estatais voltadas para um

direcionamento político na área da educação de questões relacionadas às pessoas com

deficiência. Por outro lado, podemos dizer que essas ações também respondiam às

demandas de movimentos organizados que estavam preocupados em discutir a inclusão

do corpo deficiente tanto no ensino de Educação Física nas escolas, como em propostas

para a prática mais ampla de esportes. Dessa forma, vemos que não é possível entender

o desenvolvimento do movimento paraolímpico sem relacioná-lo com debates e ações

vindas de diversas áreas, dentro de uma determinada conjuntura política. Esse

dinamismo pode ser exemplificado por outra passagem da obra de Araújo quando ele

afirma que
40

os acontecimentos que permitiram a discussão no campo da Educação


Especial e especificamente na área da Educação Física e do desporto para as
pessoas portadoras de deficiência no período estudado, e que veio a
contribuir para que os órgãos de governo estabelecessem o atendimento neste
campo, chamamos em nosso trabalho de processo de institucionalização do
desporto adaptado. (Araújo, Op.cit.: 20)

Por meio desse quadro pode-se dizer que na trajetória de desenvolvimento do

movimento paraolímpico existe uma relação estreita entre o conhecimento acadêmico, a

experiência de associações e clubes e ações de caráter político e social desempenhadas

pelo poder público e privado. Dessa forma, podemos ver que o campo de ação do CPB é

bastante amplo. Atualmente isso pode ser exemplificado por uma série de parcerias que

essa entidade e as associações a ela filiadas mantêm com universidades, empresas,

governos e diversas entidades, visando à captação de recursos humanos, técnicos e

materiais, assim como o apoio político para a concretização dos seus projetos. Por meio

dessas parcerias e convênios a participação do Brasil em eventos competitivos

internacionais é crescente não apenas em números de atletas como também em número

de medalhas ganhas.

Toda essa amplitude de atuação está subordinada a planejamentos

estratégicos que costumam obedecer aos ciclos paraolímpicos de quatro anos que, por

sua vez, abrigam os projetos específicos que visam responder aos propósitos de

crescimento da entidade no período. Partindo do princípio mais geral de desenvolver e

consolidar o esporte paraolímpico no país, o CPB atua em duas frentes de trabalho,

voltados para a consecução de objetivos técnicos e promocionais.

Com relação aos objetivos técnicos, o comitê busca fundamentalmente

qualificar e capacitar os atletas e os outros profissionais que atuam no esporte

paraolímpico. Nessa seara, ele também se responsabiliza pela montagem do calendário e

estrutura das competições nacionais, procurando estabelecer e padronizar os métodos de


41

avaliação do desempenho dos atletas. Ele ainda tem o papel de estabelecer os critérios de

qualidade e funcionamento para as associações e clubes a ele filiados.

Naquilo que diz respeito aos objetivos promocionais, a função do comitê é

aumentar a visibilidade do movimento paraolímpico por meio de estratégias de

marketing e comunicação. Além disso, estabelece parcerias com o setor público e

privado para o desenvolvimento dos seus projetos. Dentro deste mesmo capítulo e ao

longo de toda a tese será possível visualizar como alguns aspectos dessa lógica

institucional e organizacional se desdobram no dia-a-dia das entidades.

1.3- O campo de pesquisa: observando o nadador paraolímpico no cotidiano das

entidades.

1.3.1 - A entrada no campo.

Antes de iniciar o trabalho de campo abri duas frentes de comunicação a fim

de ter clareza sobre as possibilidades concretas da pesquisa. Em primeiro lugar entrei

em contato por meio de correio eletrônico com a SADEF-RN (Sociedade Amigos do

Deficiente Físico do Rio Grande do Norte), principal associação paraolímpica da cidade

de Natal, mas não obtive um retorno imediato. No mesmo período fiquei sabendo

através da imprensa que o seu atleta de maior destaque estava, na verdade, treinando no

Rio de Janeiro, em função de ser “padrinho” de um projeto social ligado à prefeitura da

cidade e aos seus patrocinadores. Por essa razão, passei a me comunicar também com a

empresa que prestava assessoria ao nadador.

Passados alguns dias e depois de alguns telefonemas, consegui finalmente

falar com um dos diretores da SADEF. Corroborando aquilo que a secretária da


42

entidade já tinha suposto, ele me disse que não havia nenhum entrave para a realização

da minha pesquisa e que bastava eu levar uma carta que comprovasse o meu vínculo

com uma instituição de ensino. Àquela altura, já tinha conseguido também me

comunicar com a própria assessora do nadador que confirmava para mim o regresso do

mesmo para a cidade de Natal.

Dada a proximidade das Paraolimpíadas de Pequim, que seriam realizadas

no segundo semestre de 2008, imaginei que eu pudesse enfrentar alguma dificuldade

para me aproximar dos atletas. Como o meu contato com um deles havia sido mediado,

supus a existência de uma proteção em torno dos mesmos, principalmente num

momento em que provavelmente eles começavam a ser mais requisitados pela mídia.

Também imaginei que essa proteção pudesse ser feita pela própria entidade e que,

talvez, eu não tivesse um acesso tão direto aos atletas.

Felizmente, a realidade do campo se mostrou totalmente diferente da

idealização que eu havia feito. No primeiro dia em que estive na associação procurei

me certificar antes se as pessoas com quem eu havia falado estariam por lá. Mesmo pelo

telefone pude sentir a surpresa da secretária ao saber que eu já estava na cidade e que

desejava conhecer o espaço da entidade. Mesmo tendo confirmado a minha viagem, eles

pareciam descrentes em relação à proposta. Ao chegar ao local e encontrar com o

diretor que era o meu contato inicial, vi que ele apresentou o mesmo tipo de reação, mas

ficou ainda mais admirado quando eu falei que a pesquisa duraria quatro meses. Aliás,

posteriormente, tanto os dirigentes da entidade como os atletas me apresentavam para as

outras pessoas fora do círculo chamando a atenção para essa particularidade. Eles

faziam questão de ressaltar que eu era uma pessoa que vinha de longe para me dedicar

exclusivamente ao estudo do esporte paraolímpico.


43

Os atletas estão acostumados a lidar com entrevistas com fins jornalísticos,

mas alguns já tinham sido objeto de pesquisas de caráter acadêmico, geralmente feitas

por estudantes de educação física, fisioterapia e jornalismo. A maioria deles tinha

grande dificuldade de entender o que a Antropologia abarcava. Dei inúmeras

explicações, das formas mais variadas, mas ao fim acho que esse entendimento não era

uma questão muito importante para eles. Até os últimos dias do trabalho de campo

encontrava pessoas que me perguntavam quando sairia a matéria que eu estava fazendo.

Acredito que eu era considerada por eles como uma espécie de divulgadora do esporte

paraolímpico, ainda que não soubessem exatamente a forma como isso se daria.

De qualquer forma, na sua maioria, eles mostraram bastante disponibilidade

para me dar informações e responder às questões que eu colocava. Todos também

faziam questão de me deixar à vontade e depois que souberam que eu estava sozinha na

cidade para realizar a pesquisa, pude sentir uma acolhida ainda maior que vinha muitas

vezes sob a forma de convites para conhecer as suas casas e famílias.

Pela página da SADEF não dava para ter uma idéia de como era a sua sede.

Não havia nenhuma foto ou qualquer tipo de registro para que eu pudesse ter uma noção

do espaço que era utilizado por eles. Confesso que fiquei surpresa quando conheci o

lugar onde eles trabalhavam. Com duas salas situadas no espaço de um antigo Centro de

Aprendizagem e Integração de Cursos (CAIC) no bairro de Lagoa Nova, a SADEF

parecia o retrato da desorganização e da falta de estrutura. O pequeno espaço era

dividido em duas partes, com uma sala menor para reuniões e outra onde ficava a mesa

da secretária, alguns arquivos e outros materiais. Até então, eu tinha como parâmetro a

sede de outra entidade que eu havia visitado em Niterói, a ANDEF (Associação

Niteroiense dos Deficientes Físicos) e que possuía uma estrutura física e material bem

distinta.
44

Foto 1 - Vista mais geral da entrada da sede da SADEF.

Foto 2 - Sede vista por outro ângulo.


45

Havia um grande fluxo de gente no local. Naquele dia, ao mesmo tempo em

que era realizada uma reunião de diretoria na pequena sala, entravam e saíam pessoas da

outra onde eu esperava para falar com o presidente da associação. A maioria daqueles

visitantes parecia ser de associados da própria entidade que, à medida que não

conseguiam resolver os seus problemas com a secretária e com o outro diretor que me

acompanhava, esperavam para falar com os outros que ainda permaneciam na reunião.

Como a sede também ficava próxima de alguns locais de treino, ela também figurava

como um espaço de sociabilidade, freqüentado pelos nadadores e atletas de outras

modalidades, mas também pelos técnicos, amigos e parentes. Não demorei em perceber

que aquele ambiente, à primeira vista considerado caótico por mim, poderia oferecer um

clima perfeito para uma aproximação dos atletas. De fato, desde o início tive a liberdade

de transitar nos espaços da entidade. A credencial solicitada inicialmente, nunca chegou

a sair da minha agenda durante todo o período em que estive no campo.

1.3.2- Sobre a SADEF.

Fundada em 1995, essa associação sem fins lucrativos está filiada ao Comitê

Paraolímpico Brasileiro (CPB) e pode ser considerada uma das principais referências no

país em termos de esporte paraolímpico. Ela começou se destacando nos circuitos da

região nordeste, mas, menos de uma década depois de sua criação, seus atletas traziam

10 medalhas das Paraolimpíadas de Atenas, realizadas no ano de 2004. O prestígio que

a entidade havia obtido com este desempenho se confirmou nos Jogos

Parapanamericanos do Rio de Janeiro, em 2007, quando seus associados conquistaram

26 medalhas. O foco da entidade é a natação paraolímpica, mas ela conta ainda com

outras modalidades esportivas: halterofilismo, atletismo, ciclismo, tiro com arco e tênis
46

de mesa. No período da minha pesquisa a associação estava tentando reestruturar o time

de basquete em cadeiras de rodas.

O Centro de Apoio do Deficiente Físico do Rio Grande do Norte (CADEF-

RN), outra entidade da cidade de Natal ligada ao esporte paraolímpico, também tinha

como principal força a natação paraolímpica. Ela foi formada a partir de um

rompimento com a SADEF no ano de 2003. Essa ruptura teve relações com

divergências políticas e disputas internas. Hoje ela funciona no espaço que antigamente

abrigava a SADEF, no bairro de Dix-Sept-Rosado. Esta entidade não atua somente no

esporte paraolímpico, mas também é uma importante referência na cidade no trabalho

com reabilitação para pessoas com deficiência.

Contudo, a ampliação da pesquisa de campo se deu apenas em relação ao

aumento da rede dos atletas da natação. Eu não encontrei abertura para fazer um

trabalho de observação do cotidiano dos atletas dessa associação. Em primeiro lugar, a

CADEF fica sediada numa academia que, além de oferecer atividades físicas, também

possui serviços na área de reabilitação e estética. Por essa razão, as pessoas que

transitavam no local, em sua maioria, não tinham nenhuma ligação com a associação.

Diferentemente da SADEF, a CADEF não se apresentava como um espaço de

sociabilidade dos atletas. Nas vezes em que estive no local, pude perceber que eles

chegavam, treinavam e logo depois iam embora. Dessa forma, as minhas visitas a essa

associação praticamente se limitaram aos dias em que eu realizei as entrevistas.

Voltando para o contexto da SADEF, o complexo esportivo do CAIC, onde

ficava localizada a sede, abrigava também o atletismo e a natação. Todavia, apenas

alguns nadadores treinavam neste local. Desde que um dos técnicos de natação do SESI

passou a responder oficialmente pela equipe da SADEF, a maioria dos atletas começou

a treinar na piscina daquela instituição. No CAIC ficavam alguns nadadores que


47

pagavam técnicos particulares. Havia, também, aqueles que treinavam em piscinas de

outros clubes.

A SADEF desenvolvia, ainda, um trabalho com atletas de base, que

funcionava na piscina da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Nele

estavam incluídos aqueles que já participavam de algumas competições em nível

estudantil, assim como aqueles que ainda estavam aprendendo os primeiros

fundamentos da natação e que podiam ser considerados como elementos posicionados

na fronteira entre reabilitação e esporte paraolímpico. Como as atividades da associação

não eram realizadas em um único espaço, o meu trabalho de campo se dispersou por

vários locais da cidade. Ainda assim, tentei concentrar os meus esforços na sede da

entidade e na piscina do SESI, onde treinava a maioria, inclusive o nadador de maior

destaque da entidade. Visitei apenas uma vez a piscina da UFRN, tendo em vista que o

foco da pesquisa eram os atletas de alto rendimento.

No geral, a situação do CAIC era precária. Embora a piscina recebesse

algum tratamento, a maior parte dos espaços estava visivelmente abandonada. O capim

crescido em vários pontos, banheiros depredados e pistas de atletismo deterioradas era o

retrato do abandono e da falta de investimento. Já no SESI, as instalações estavam em

bom estado, inclusive com acessibilidade em todos os pontos da construção. A

academia de musculação da SADEF, por sua vez, estava localizada num bairro mais

distante das principais piscinas de treino. Tive a oportunidade de conhecer esse espaço

quando fui convidada para ver um treino da equipe de halterofilismo. O local era

pequeno e pouco ventilado e também apresentava carência de material. Fiquei sabendo

pelo técnico que a academia não possuía todos os equipamentos necessários para um

treinamento mais completo, contando com o que era mais básico para o halterofilismo.
48

Por essas razões, a maioria dos atletas da natação não realizava um trabalho de

condicionamento físico que extrapolasse aquele proporcionado pela piscina.

Foto 3 - Vista geral do CAIC.


49

Foto 4 - Piscina do CAIC.

Foto 5 - Pista de atletismo do CAIC.


50

Foto 6 - Visão da piscina do SESI.

Foto 7 - Vista da piscina no horário de treinamento da tarde.

Apenas os atletas convocados para Pequim haviam sido convidados para

fazer Pilates gratuitamente em uma academia particular. Além disso, nenhum dos atletas
51

da entidade com os quais eu tive contato recebia com regularidade apoio nutricional ou

psicológico. Mas acho importante ressaltar que a carência destes dois suportes não

parecia ser tão preocupante para os atletas. Eles declaravam que pela própria

experiência e sensibilidade era possível construir um conhecimento sobre essas

matérias, tornando possível, inclusive, dispensar um saber profissional a esse respeito.

Alguns chegavam a abrir mão dos serviços de nutricionistas e psicólogos mesmo

durante as competições, quando eles se encontram disponíveis para toda a equipe. No

lugar de uma dieta prescrita se colocava o bem senso. No lugar da consulta com o

psicólogo, surgia o apoio da família14. Dessa forma, todo um aparato que, ao menos em

tese, seria necessário dentro de um quadro ideal de profissionalização, não era utilizado

por esses atletas, seja pela falta de recursos materiais e humanos, seja pela própria

recusa dos mesmos em se submeterem a um determinado grau ou tipo de interferência

sobre os seus corpos e emoções.

Voltando aos problemas de ordem mais estrutural da SADEF, ela luta há

alguns anos para ter o seu próprio espaço, com um centro de treinamento que possa

congregar todas as modalidades esportivas com as quais trabalha. O terreno já havia

sido doado pela prefeitura da cidade. Aliás, o primeiro evento que participei longe das

piscinas foi o plebiscito realizado no bairro de Cidade Satélite que tinha o objetivo de

consultar a população local sobre a construção da nova sede. O projeto foi aceito e

quando eu estava de saída do campo, a SADEF negociava com algumas empresas o

investimento na obra.

14
O seu papel na trajetória do atleta paraolímpico será visto no capítulo 3.
52

Foto 8 - Faixa de divulgação do plebiscito sobre a nova sede da SADEF.

Existia, ainda, outro desafio que os atletas enfrentavam diariamente: a falta

de acessibilidade na cidade. A SADEF possuía um único carro que adquiriu após

participar de um programa de arrecadação de notas fiscais realizado pelo Governo do

Estado. O motorista da associação rodava praticamente o dia inteiro com o veículo e a

principal tarefa que realizava era levar para os locais de treino os atletas que possuíam

um maior comprometimento físico e que não possuíam o seu próprio carro. Como não

havia condições de atender a todos que estavam nesta situação, eram priorizados

aqueles que moravam nos bairros mais distantes e que não conseguiam pegar carona

com outros atletas.

Mesmo nos locais onde havia uma maior oferta de transporte público,

permanecia o problema da acessibilidade nos ônibus. Em todo o tempo em que estive na

cidade de Natal - com uma rotina de trabalho que, por vezes, me obrigava a pegar várias

conduções por dia para chegar aos meus destinos – vi apenas dois ônibus adaptados

para pessoas em cadeira de rodas. As barreiras arquitetônicas nas ruas completavam o


53

quadro sobre os limites para o deslocamento na cidade. Nos dias em que o carro era

requisitado pela diretoria para resolver algo urgente, os atletas que dependiam desse

transporte geralmente ficavam em casa.

Toda essa problemática da acessibilidade aparecia em muitas conversas com

os informantes como um dos principais entraves para o desenvolvimento do atleta com

deficiência, na medida em que ele muitas vezes não consegue alcançar uma frequencia e

um volume de treino ideais para chegar a determinados resultados e conseguir se

profissionalizar. Isso afeta justamente aqueles que estão iniciando no esporte e que

ainda não possuem renda suficiente para comprar o próprio carro.

1.3.3 - O aparato institucional

Diariamente a diretoria de uma associação como a SADEF resolve uma série

de questões que podem estar ligadas a financiamentos, patrocínios, marketing,

parcerias, projetos, competições, treinamento e profissionalização dos atletas. A

projeção que o seu nome alcançou na cidade depois que um dos seus atletas se tornou o

grande medalhista de Atenas fez com que a entidade crescesse bastante. Esta expansão,

por sua vez, trouxe novos desafios para a SADEF e impôs uma pauta de discussões

onde estava presente uma maior preocupação com a resolução de problemas financeiros,

políticos e organizacionais. No período em que estive no campo, a associação passava

por um processo de reestruturação e captação de recursos com o objetivo de manter um

equilíbrio entre as contas e o crescimento institucional.

A iminência das Paraolimpíadas de Pequim, que encerrava a visibilidade de

alguns atletas - proporcionada tanto pela movimentação da mídia em torno deles como

pela ação direta da própria entidade – era usada para chamar a atenção do poder público
54

e de empresas para os problemas mais graves que a associação enfrentava. Em alguns

eventos organizados pela entidade pude ver a presença de autoridades ligadas à

prefeitura da cidade e ao governo do estado, quando não compareciam os próprios

chefes do executivo. Além disso, eram convidados os representantes das empresas que

patrocinavam a entidade ou que estabeleciam algum tipo de parceria. Aquele parecia ser

um momento propício para negociações ou reajustes em torno de projetos e

investimentos. Algumas bandeiras levantadas, como a acessibilidade e o ingresso no

mercado de trabalho, extrapolavam a esfera do esporte paraolímpico e aproximava a

associação do movimento organizado de pessoas com deficiência, dando um caráter

mais político às reivindicações.

Em todo este processo, tive a oportunidade de ver a estrutura montada por

trás do atleta de maior destaque da entidade. Desde as Paraolimpíadas de Atenas

realizadas em 2004 - onde ganhou seis medalhas de ouro, uma de prata e quebrou cinco

recordes mundiais - ele se tornou uma referência para o esporte paraolímpico tanto no

Brasil como no exterior. Junto com isso veio o assédio da imprensa e de empresas que

se interessaram em patrociná-lo. Desde então, ele passou a contar com uma assessora de

comunicação que depois veio a se tornar sua empresária, além de prestar atendimento na

parte jurídica e de marketing. Além de desempenhar as suas funções como atleta

profissional, o nadador realizava palestras em empresas, era padrinho de alguns projetos

sociais (principalmente no Rio de Janeiro) e diretor da entidade. Essa estrutura ficou

mais clara para mim na medida em que ela também dava suporte e atuava no processo

de reorganização da associação. Mas essa realidade era uma exceção entre os atletas do

movimento paraolímpico com os quais trabalhei na pesquisa. Muitos não tinham

patrocínio e procuravam se manter apenas com a Bolsa-Atleta15 que recebiam. Outros,

15
O Bolsa-Atleta é um programa do Governo Federal, criado pela Lei 10.891, de 9 de julho de 2004.
Gerido pelo Ministério do Esporte, seu objetivo é garantir a manutenção pessoal de atletas de alto
rendimento que não possuem patrocínio e que, por essa razão, necessitam de auxílio para o treinamento
55

principalmente os nadadores mais antigos que já trabalhavam antes de contarem com

esse recurso, mantinham seus empregos fora da área esportiva.

Muitas pessoas que procuravam a SADEF para se iniciar no esporte

paraolímpico eram oriundas de classes populares. Aliás, essa também era a origem da

maioria dos atletas da associação que hoje se encontram na seleção brasileira. Nesse

sentido, manter em treinamento as novas pessoas que entravam era outro desafio da

entidade. Através de parcerias e doações a SADEF distribuía mensalmente cestas

básicas para os atletas mais carentes que, para recebê-las, deveriam mostrar

comprometimento com os treinos e alguns resultados em competições. A associação

também mantinha parceria com uma universidade privada que oferecia bolsas de

estudos para os associados. Essas eram algumas formas encontradas pela entidade para

tentar evitar a evasão de atletas que porventura tivessem que trabalhar para custear a sua

alimentação e educação. Ainda assim, muitos informantes destacavam a importância de

possuir um emprego que desse mais garantias financeiras para eles e sua família,

principalmente em relação ao futuro.

Apesar desses esforços institucionais em prol da qualificação e

profissionalização dos seus atletas, não eram raras as vezes em que a entidade era

criticada por esses mesmos associados. Embora em sua maioria eles reconhecessem a

importância da associação em suas trajetórias, alguns faziam questão de explicitar os

vários problemas estruturais, políticos e organizacionais que ela enfrentava. Todavia,

esportivo e para a participação em competições. O programa beneficia atletas que são praticantes de
modalidades vinculadas ao Comitê Olímpico Internacional (COI) e ao Comitê Paraolímpico Internacional
(CPI). Os critérios para o recebimento da bolsa são definidos pelo Ministério dos Esportes. A bolsa é
paga mensalmente e possui a seguinte escala de remuneração:
- Atleta Estudantil - Valor da Bolsa: R$ 300,00/mês;
- Atleta Nacional - Valor da Bolsa: R$ 750,00/mês;
- Atleta Internacional - Valor da Bolsa: R$ 1.500,00/mês;
- Atleta Olímpico e Paraolímpico - Valor da Bolsa: R$ 2.500,00/mês
56

pude perceber que essa crítica era muito menos recorrente entre aqueles que ocupavam

alguma posição na diretoria da entidade.

1.3.4- A interação no campo

Quando o trabalho de campo ainda estava no seu início, optei por não fazer

registros com câmera fotográfica, caderno ou gravador nas visitas que fazia à sede da

SADEF e aos locais de treinamento. Em primeiro lugar fui conhecendo os atletas,

conversando bastante com eles e explicando o objetivo do meu trabalho. O que eu

observava era registrado posteriormente no meu caderno de campo, no qual constam

anotações sobre o trabalho de pesquisa propriamente dito, mas também da minha

imersão na cidade. Na medida do possível, também procurava registrar outras

impressões de caráter mais sutil, tentando situar a maneira como iam se desenvolvendo

as relações com os informantes, assim como a forma como eu achava que era percebida

por eles.

Até começar efetivamente o meu trabalho de campo a minha relação com o

movimento paraolímpico era bastante distanciada. Eu havia visto algumas competições,

mas o máximo de proximidade que havia não era diferente daquela de uma torcedora e

fã do esporte. As imagens dos Jogos de Atenas e a experiência de ter assistido ao

Parapanamericano trabalhavam no sentido de intensificar o sentimento de

distanciamento. Na verdade, as dificuldades institucionais que eu imaginei encontrar no

contato com os atletas – já explicitadas na Introdução – guardavam relação direta com a

ideia de inacessibilidade que eu havia construído ao tomar alguns os atletas como ídolos

do esporte. Por essa razão, não posso negar que, ao menos inicialmente, a proximidade
57

que eu tinha com alguns atletas era desconcertante. O exercício para me desapegar desse

posicionamento foi uma tarefa importante no campo.

Embora tenha visitado várias vezes as piscinas onde os atletas treinavam,

não eram nesses espaços que surgiam as melhores oportunidades de socialização. O

período que antecede as grandes competições demanda muita disciplina por parte de

toda a equipe. Durante os quatro meses em que estive em Natal, os atletas saíram para

participar de três competições: uma etapa do Circuito Nacional em Brasília, um mundial

na Alemanha e as Paraolimpíadas em Pequim.

Os momentos em que pude interagir melhor com meus informantes foram

aqueles longe do seu “ambiente de trabalho” propriamente dito. Nesse período do

campo acompanhei os atletas em uma série de eventos como: reportagens, coletivas de

imprensa, sessões de fotos, campanhas, reuniões de diretoria, assembléias gerais,

almoços, jantares, confraternizações. Se, por um lado, a proximidade dos Jogos

Paraolímpicos exigia dos atletas uma grande concentração na piscina, ao mesmo tempo

estabelecia um ritmo de exposição dos mesmos que acabou intensificando a minha

convivência com eles. Mas melhor do que ser uma mera observadora desses eventos

era estar envolvida como ajudante e colaboradora em algum sentido; momento em que

os vínculos se estreitavam ainda mais e eu ganhava a confiança dos meus interlocutores.

Como não considero possível ou conveniente para os fins dessa tese montar um

inventário de todos esses acontecimentos, a dinâmica da interação no campo será mais

bem compreendida ao longo da tese, onde alguns deles serão descritos na sua relação

com as temáticas centrais.


58

1.3.5- O segundo momento do campo.

As Paraolimpíadas de Pequim, que ocorreram no mês de setembro de 2008,

haviam revelado novas estrelas na natação paraolímpica brasileira pertencentes a uma

nova geração de atletas que nunca tinha participado deste evento. Na verdade, dois

nadadores que já vinham apresentando resultados bastante expressivos em competições

nacionais e internacionais no último ciclo paraolímpico, confirmaram o seu favoritismo

na piscina. Os dois treinavam em São Paulo. Resolvi, então, viajar para essa cidade com

o objetivo de entrevistar não apenas eles, mas também outro nadador que havia

participado dos Jogos de Pequim, além de conhecer as entidades às quais eles estavam

vinculados.

Uma dessas entidades era a Associação para Integração Esportiva do

Deficiente Físico (CIEDEF), uma ONG fundada em 1991 e que possui como lema

central “a integração social do deficiente através do esporte”. Embora o seu foco seja o

treinamento para o alto rendimento, ela também atua na área de reabilitação física. A

natação é a principal força da entidade. No entanto, ela ainda trabalha com atletismo e

tiro esportivo. Todas as modalidades são realizadas desde a iniciação (“turmas de

adaptação”), até a formação de equipes para participar de competições (turmas de

treinamento).

O CIEDEF está sediado em uma sala dentro do complexo esportivo do

Ginásio Ibirapuera. Todas as atividades esportivas são desenvolvidas nesse espaço, com

exceção daquelas voltadas para a reabilitação. Como o Ginásio Ibirapuera abriga outras

atividades e associações desportivas, os paraolímpicos dividem o espaço da piscina e da

pista de atletismo com atletas “convencionais”. Ainda que as instalações não sejam
59

muito modernas e que pareçam necessitar de uma maior manutenção, até onde pude

perceber o espaço não apresenta grandes problemas estruturais.

Não foi possível conhecer o CIEDEF com mais profundidade. Eu havia

viajado com recursos próprios e não tive condições de me manter por muito tempo na

cidade. Além disso, durante os vinte dias de estadia, a minha rede de contatos se

expandiu bastante, de maneira que eu acabei me deslocando para diversos locais, tanto

para participar de eventos ligados ao esporte paraolímpico, como para entrevistar outros

informantes, como técnicos e uma classificadora funcional. Além disso, outras

observações se fazem necessárias.

A sede do CIEDEF não parecia ser um espaço de sociabilidade da maneira

como eu havia observado na SADEF. Nos dias em que estive na sala da entidade, não

observei nenhum tipo de trânsito de atletas ou de outras pessoas que não estivessem

diretamente ligadas à parte administrativa da associação. Geralmente estava presente a

secretária, que também coordenava um setor da entidade, outros coordenadores e

também técnicos. Como eu não acompanhei o trabalho com os atletas de base, não

possuo dados suficientes para descrever a relação dos mesmos com o espaço e o

cotidiano da associação.

No que diz respeito aos nadadores paraolímpicos com os quais eu estabeleci

contato, dois deles estavam ligados ao CIEDEF. No período em que estive em São

Paulo, um deles estudava a hipótese de abandonar a natação de alto rendimento e

continuar apenas com o seu trabalho como profissional liberal e como voluntário na

diretoria do CIEDEF. O outro nadador dessa mesma entidade não ficava em São Paulo

e treinava em um clube de uma cidade próxima à capital, onde também morava. Esse

era justamente um dos atletas “novatos” da seleção. O outro, também “novato”, treinava

no Clube Pinheiros, além de estar associado a uma entidade carioca, o Instituto


60

Brasileiro dos Direitos da Pessoa com Deficiência (IBDD). Por possuir uma deficiência

branda, ele representava o primeiro clube como nadador “convencional” e o segundo

como nadador paraolímpico.

Esse último atleta acabou se tornando meu principal informante no segundo

momento do campo. Eu já tinha encontrado com ele pessoalmente no final de 2007,

quando ele estava passando férias na cidade do Rio de Janeiro. Naquela ocasião, a

conversa que seria curta devido a outros compromissos que ele tinha, acabou se

estendendo. Ele ficou interessado na proposta de pesquisa e me deu o contato de sua

assessora, caso eu necessitasse de alguma informação ou fosse realizar alguma etapa da

investigação na cidade de São Paulo.

Depois, quando viajei para realizar a pesquisa, pude ver de perto que o seu

ritmo de trabalho era bastante intenso. Além de treinar quase diariamente, ele

participava constantemente de vários tipos de eventos. Assim que entrei em contato com

a sua assessora ela se prontificou em me passar as informações relacionadas a essa

agenda. Dessa forma, acompanhei o atleta em alguns dos seus compromissos que quase

sempre proporcionavam um contato com outros atletas (nadadores ou não), além de

ampliar a minha rede de contatos inicial. Alguns dos resultados desse segundo momento

do campo se encontram descritos ao longo da tese.


61

Capítulo 2: A natação paraolímpica no Brasil e a classificação de

corpos no esporte.

São bastante escassos os dados relacionados especificamente ao caminho

percorrido pela natação paraolímpica no Brasil na sua relação com a história mais geral

do movimento. Os documentos que tratam da modalidade concentram-se, geralmente,

nas informações que expressam os resultados que o país alcançou em grandes

competições internacionais.

A primeira participação do Brasil no quadro de medalhas ocorreu em Stoke

Mandeville no ano de 1984 com a conquista de sete medalhas. Nos Jogos Paraolímpicos

de Seul, em 1988, o país ganhou nove medalhas. O Brasil seguiu participando das outras

edições do evento e teve um desempenho bastante significativo nas Paraolimpíadas de

Sidney, com 22 medalhas. Mas foi em Atenas, no ano de 2004, que a natação ganhou

grande projeção internacional pela conquista de 33 medalhas – 14 de ouro, 12 de prata e

sete de bronze.

A consolidação da modalidade no Brasil ganhou um importante reforço

desde o ano de 2005, quando foi criado pelo CPB o Circuito Loterias Caixa de

Atletismo e Natação. Com essa medida foi estabelecido um calendário anual de

competições no Brasil, que acabou por nortear o planejamento individual do

treinamento dos atletas de ponta. Nessas competições, as equipes têm a oportunidade de

avaliar o desempenho dos seus nadadores para posteriormente promover os ajustes

necessários. Além disso, o Circuito abre espaço para a descoberta de novos talentos.

A natação paraolímpica é controlada pelo IPC e como essa modalidade

congrega pessoas com diferentes tipos de deficiência, ele também coordena as entidades

esportivas internacionais que estabelecem as adaptações específicas para seus atletas.


62

São elas: CP-ISRA (paralisados cerebrais), IBSA (deficientes visuais), INAS-FID

(deficientes mentais), IWAS (cadeirantes e amputados).

As adaptações na modalidade são necessárias devido às diferenças corporais

e sensitivas relacionadas a cada tipo de deficiência, e que impedem uma padronização

absoluta dos movimentos na piscina. Essa adequação pode ocorrer, por exemplo, na

própria largada. Nos casos onde o atleta apresenta problemas de equilíbrio ele recebe o

auxílio de outra pessoa na plataforma de largada, podendo ser segurado pelos quadris,

mãos, ou outra parte do corpo. Esse tipo de necessidade deve ser explicitado no

momento da classificação e depende da aprovação da parte técnica. Os atletas com

grande comprometimento físico podem, por sua vez, fazer a largada dentro da piscina,

podendo encostar os pés na parece sem dar impulso.

Mas as peculiaridades da natação paraolímpica vão além das adaptações

relacionadas aos nados. Nessa modalidade, como em outras pertencentes ao rol dos

esportes paraolímpicos, existe um consenso sobre a existência de diferenças entre os

atletas relacionadas às especificidades motoras e sensitivas de cada tipo de deficiência.

Esta premissa, por sua vez, funda a necessidade de equalização dos atletas para que

possa existir a fase da competição. A “classificação funcional” é justamente o sistema

que arquiteta e rege a igualdade competitiva, uma vez que, através do acionamento da

diferença no nível corporal fornece o dado necessário para a construção de uma

posterior equivalência. Na natação paraolímpica existe, então, uma distinção feita por

grau de deficiência e gênero, mas não existe a separação etária como acontece na

“natação convencional”.

Quando entramos em contato com textos e documentos que tratam da

classificação no esporte paraolímpico vemos que ela é apresentada como um “princípio

de justiça” que permite um nivelamento dos participantes ao tentar colocá-los em


63

condições de igualdade para competir, tendo por base os diferentes tipos e graus de

deficiência. Antes de tudo é importante esclarecer que nem sempre esse sistema se

chamou “classificação funcional”, pelo menos no que diz respeito à sua história dentro

da natação paraolímpica. As primeiras classificações foram desenvolvidas por médicos

e especialistas na área de reabilitação ligados ao Dr. Guttman no Hospital de Stoke

Mandeville, no período em que começava a se desenvolver o esporte para pessoas com

deficiência16. A lesão medular era a referência na classificação médica. Além disso,

Guttman acreditava que qualquer pessoa que utilizasse uma cadeira de rodas se

assemelhava a um lesionado medular (ainda que a pessoa fosse apenas amputada e

pudesse andar com ajuda de muletas, por ex.). No ano de 1956 passam a fazer parte dos

jogos os amputados de membros inferiores e pessoas com poliomielite que

apresentassem condições físico-motoras semelhantes aos lesionados medulares.

Ao longo do tempo cada associação que agrupava pessoas com determinado

tipo de deficiência passou a desenvolver seus próprios campeonatos, onde vigorava a

“classificação médica”, cujo objetivo era agrupar atletas com a mesma patologia dentro

de certos padrões pré-estabelecidos. No entanto, esse sistema de equivalência baseado

num olhar médico que se centrava em características da patologia parecia não dar

espaço para o entendimento de especificidades técnicas da própria área desportiva, de

maneira que uma série de discrepâncias entre os atletas foram sendo percebidas. Na

prática, havia capacidades motoras distintas que a classificação médica por patologias

mascarava. Sendo assim, esta classificação foi se mostrando incapaz de dar conta das

diferenças e das múltiplas potencialidades. Começava a se estabelecer um conflito entre

16
Alguns desses dados relacionados à história da classificação no esporte paraolímpico e, especialmente
na natação, foram obtidos na aula sobre Esporte Adaptado ministrada pela professora de Educação Física
Jacqueline Penafort para uma turma de Educação Física da Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(UERJ) no dia 21.01.2009.
64

um parâmetro médico focado na condição de anormalidade e a técnica desportiva que

preza um desempenho técnico ainda que adaptado.

Até as Paraolimpíadas de Seul, em 1988, a natação utilizou a “classificação

médica” que separava os atletas por tipo de patologia, onde havia grupos de

paraplégicos, tetraplégicos, poliomielíticos, amputados e cegos, seguidos por subgrupos

que tinham o papel de nivelar os aspectos ligados à capacidade física. Tendo esses

grupos como ponto de partida, um número excessivo de subgrupos e classes acabou se

criando, tendo em vista que as especificidades corporais que surgiam a partir desse

quadro mais geral eram inúmeras, o que fazia com que várias provas acabassem sendo

canceladas por insuficiência de pessoas para competir. Até a década de 80 havia 31

classes no quadro na natação paraolímpica. A tarefa de administrar as provas de natação

era cada vez mais difícil.

A natação paraolímpica havia chegado a um momento de impasse, que tinha

a ver em grande parte com o próprio crescimento do movimento, que ao longo do tempo

passava a contar com novas associações que surgiam para representar cada tipo de

deficiência dentro do esporte. Na tentativa de enfrentar essa “crise”, vários estudos

foram sendo realizados, tendo os profissionais ligados ao basquete em cadeira de rodas

como os pioneiros nesse processo, pois já no ano de 1984 eles começavam a

experimentar uma classificação modulada pela capacidade motora de cada atleta. Essas

pesquisas foram influenciando o processo de reformulação em outras modalidades. No

ano de 1990 foi a vez do atletismo adotar a “classificação funcional” que passou a ser o

sistema oficial para as três associações anteriormente citadas apenas dois anos depois. É

importante ressaltar que as mudanças na classificação, tanto nesse momento como no

presente, andam juntas com as mudanças no esporte paraolímpico como um todo. Além

disso, essas mudanças não são demarcadas apenas por aspectos técnicos, mas também
65

por questões organizacionais e políticas. Não é por um mero acaso que no ano de 1989

foi criado o IPC, entidade congregadora que se alinhava com uma proposta de

aproximação das deficiências, da mesma forma como era assinalada uma nova

concepção de classificação que se desenhava17.

O novo sistema de classificação adotado se afastou, então, de uma

categorização centrada na patologia. O conhecimento médico ainda estava presente, mas

passou a dialogar com saberes vindos de outras áreas e especialidades. Pesquisas

baseadas em educação física adaptada e treinamento desportivo passaram a formar a

base de sustentação do novo método de avaliação dos atletas, incluindo um olhar mais

elaborado sobre o rendimento técnico. O foco da “classificação funcional” agora não

estava mais focado nas limitações motoras, mas no chamado “potencial residual” do

atleta com deficiência, como vemos no trecho a seguir:

O método consiste em uma categorização, em que o atleta recebe em


função de seu volume de ação, ou seja, de sua capacidade de realizar
movimentos, colocando em evidência a potencialidade motora dos resíduos
musculares da sequela de algum tipo de deficiência, bem como, os músculos
que não foram lesados. 18

Termos como “ação”, “movimentos” e “potencialidade”, presentes no

fragmento acima nos insere num campo semântico que informa sobre as possibilidades

do corpo, dentro da realidade da deficiência física. Nesse sistema classificatório é

realizado todo um esquadrinhamento do corpo que, ainda que mantenha a deficiência

dentro de seu horizonte, tenta isolá-la por uma série de medições, a fim de aferir o que,

fora dela e para além dela, faz com que cada atleta seja capaz de realizar movimentos. É
17
Esse dado foi obtido na aula sobre Esporte Adaptado ministrada pela professora de Educação Física
Jacqueline Penafort ministrada para o curso de Educação Física da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (UERJ) no dia 21.01.2009.
18
Como mencionado anteriormente na Introdução, esse texto se intitula “Classificação funcional” e foi
extraído do sítio da ABRADECAR na internet.
66

no conjunto dessas considerações que podemos entender a ideia de “potencial residual”.

Para cada teste relacionado à coordenação motora, locomoção, propulsão, bem como

para a medição de cada membro, é realizada uma codificação matemática, que posiciona

cada atleta em classes específicas, tendo por finalidade estabelecer uma medida comum

que faça com que todos possam competir nas mesmas condições de igualdade.

Atualmente a natação paraolímpica, seguindo os pressupostos da

“classificação funcional”, conta com treze classes organizadas da seguinte forma: de S1

a S1019, encontram-se os atletas com deficiência física e de S11 a S13, encontram-se os

atletas com deficiência visual20. A letra “S” refere-se à palavra swimming e quanto

menor o número da classe, maior é o nível de comprometimento físico e grau de

deficiência. O meu trabalho de campo abarcou somente os atletas com deficiência física

e neste grupo podemos falar da existência de duas subdivisões denominadas “classes

baixas” (de S1 a S5) e “classes altas” (de S6 a S10). A letra “S” engloba os nados livre,

costas e borboleta. Existem, ainda, as classificações feitas para o nado peito, que utiliza

a sigla SB (de breaststroke) e para o nado medley, que utiliza a sigla SM. Essa

diferenciação é necessária na medida em que os estilos exigem a atuação de grupos

musculares distintos. Como exemplo, um nadador poder ser classificado como S7, ao

mesmo tempo em que é um SB6 para o nado peito e SM6 para o medley. As variações

são possíveis entre estes três grupos, assim como o número da classe também pode

coincidir. De qualquer maneira, os atletas costumam se identificar pela sigla S, que

reúne o maior número de estilos (costas, livre e borboleta).

19
Para um maior entendimento sobre a diferença entre as classes consultar o Anexo 1.
20
Desde os Jogos de Sidney não existe mais a classe S14 para os deficientes mentais, tendo em vista os
problemas relacionados com esse grupo de atletas e que já foram citados no capítulo 1.
67

2.1- Nos bastidores da classificação funcional

Tive a oportunidade de acompanhar o processo de “classificação funcional”

com nadadores que participaram do Circuito Loterias Caixa (regional centro-sul) na

cidade de São Paulo no mês de maio de 2009. A classificação feita em torneios

regionais ou nacionais atribui ao nadador uma classe que ainda é provisória. Somente

quando participam de competições internacionais é que os atletas têm a chance de

obterem um status permanente dentro do esporte. O processo de classificação ocorre

sempre um ou dois dias antes das disputas e acaba sendo uma etapa dentro do evento

como um todo. A maioria das classificações no país se dá nos campeonatos regionais,

aos quais chega um maior número de atletas iniciantes que nunca estiveram em uma

disputa oficial e precisam ser alocados em alguma classe.

Na etapa centro-sul houve dois dias de classificação, onde o primeiro foi

reservado para os atletas do próprio estado e o segundo para as equipes que vieram de

fora. Acompanhei somente os trabalhos de classificação realizados no segundo dia.

Havia entrado em contato por telefone e por correio eletrônico com as pessoas do CPB

que eram as responsáveis diretas pela classificação. Mesmo enviando mais detalhes da

pesquisa e a justificativa do trabalho que queria realizar, não obtive uma resposta oficial

sobre a possibilidade de observação do processo de classificação. Liguei para alguns

atletas que participariam do evento e consegui o contato de alguns técnicos que

achavam que não haveria nenhum empecilho para a minha participação. Resolvi

apostar na viagem baseada na minha experiência anterior com a organização do

movimento onde em muitos momentos do trabalho de campo via que a burocracia mais

formal era menos importante do que os contatos conseguidos de uma maneira mais

pessoal. Ainda assim, pairava a dúvida sobre uma real dificuldade para realizar essa
68

nova investigação, tanto pelas polêmicas que suscita como pelo fato dos atletas se

encontrarem numa situação de maior exposição corporal.

Cheguei por volta das nove da manhã no estádio do Ibirapuera tratando de

encontrar imediatamente uma das pessoas responsáveis pela classificação com a qual já

tinha travado contato. Fiquei sabendo que ela estava no hotel que sediava os

competidores a fim de realizar a classificação com o grupo do atletismo. De qualquer

forma, encontrei as classificadoras que já conhecia e não houve da parte delas e dos

outros profissionais nenhuma objeção com relação à minha presença. A única exigência

burocrática era que eu entregasse a declaração com a rubrica da instituição onde

estudava e que continha uma explicação vaga sobre os fins da minha pesquisa. Os

classificadores me explicaram, ainda, que havia uma proibição referente à filmagem do

processo, mas fotografias poderiam ser tiradas com a concordância do atleta. Disseram

que eu estaria livre para fazer as perguntas que fossem necessárias na medida em que as

dúvidas fossem surgindo.

Quando cheguei ao local já havia algumas delegações aguardando para que

seus atletas fossem analisados. A classificação só pode ser feita se a pessoa estiver

acompanhada do seu técnico ou de algum representante da entidade da qual faz parte.

Entrei na sala onde havia cinco profissionais trabalhando e vi que a estrutura montada

era relativamente simples, contando basicamente com um computador portátil, três

macas, manuais de classificação, formulários e réguas para medição corporal

(goniômetros21) (Fotos 9 e 10).

O método de “classificação funcional” se divide em dois momentos: o

primeiro é o teste na maca ou “teste de banco” e o segundo é o “teste de água”. Na

primeira etapa os atletas passam por um tipo de exame clínico onde o classificador

21
O goniômetro é uma régua que mede o ângulo do movimento das articulações. Às vezes são feitos
testes de ângulo, outras vezes teste de força, ou os dois juntos, dependendo do caso.
69

observará os aspectos dos vários tipos de comprometimento físico, apoiado por uma

ficha onde são colocados vários dados que tem a ver com o histórico da deficiência e

com a maneira como ela se apresenta naquele momento. Com o intuito de realizar esse

mapeamento é feita uma breve entrevista com cada atleta. Dentre as perguntas iniciais

temos questões como idade, tipo de deficiência, tempo de participação no esporte,

volume e periodicidade do treino, uso de medicamentos, uso de próteses e cadeira de

rodas e etc. O atleta assina um termo onde mostra concordância em ser submetido à

classificação. Posteriormente, ainda dentro da primeira etapa, são feitos testes que

buscam medir a força dos membros, extensão dos músculos, dentre outras coisas

relacionadas a uma visão clínica. Para cada item dos testes existe uma correspondência

numérica especificada pelo manual internacional de classificação funcional22 que é

constantemente consultado pelos profissionais que comandam o processo.

Foto 9 - Macas da sala de exames. Foto 10: Material de apoio.

Os classificadores trabalham em duplas, com um deles se fixando na parte

clínica e outro na desportiva. Nas classificações feitas no Brasil não existe a exigência

da presença de um médico. A pessoa que analisa a parte clínica pode vir da área de

fisioterapia. Com relação ao avaliador desportivo, não há exigência de que tenha

formação em Educação Física, mas deve, ao menos, ter conhecimento reconhecido pelo
22
Swimming Classification Manual, IPC Swimming, 2005.
70

IPC e pelo CPB na área de treinamento em natação. Na prática, a fronteira entre esses

saberes não está delimitada de forma tão categórica, logo, todos os classificadores

acabam discutindo juntos as etapas. Além disso, alguns casos eram resolvidos com

apenas um profissional. Isto ocorria quando havia alguém que, ao menos

aparentemente, se encontrava dentro do chamado “perfil de classe”, onde o

comprometimento motor está definido de forma mais direta dentro dos moldes do

Manual. Neste grupo está a maioria dos atletas com amputações e que passam somente

por uma avaliação clínica, onde os dois lados do corpo são medidos, assim como o

tronco. A parte amputada depois é colorida em um desenho presente no formulário, que

encontra um correspondente no Manual de classificação que é consultado para se

estipular a classe23 (fotos 11, 12 e 13). Os atletas que fazem parte do “perfil de classe”

não se submetem ao teste de água. Isso não ocorre com pessoas com paralisia cerebral e

sequelados de pólio por necessitarem de um exame corporal mais complexo.

23
Pode haver mais de uma amputação e, neste caso, todas as lesões são marcadas no formulário. Atletas
com má formação e até com outros tipos de deficiência podem fazer parte do “perfil de classe”, embora
não seja muito comum. Nos casos de nanismo também pode haver pessoas com um perfil bem definido.
O teste consiste basicamente na medição da altura, mas sendo detectado algum tipo de restrição muscular
ou articular é feito um teste mais completo, inclusive com avaliação na água.
71

Foto 11 Fotos 12 e 13

Na segunda etapa da classificação o nadador executa vários movimentos

para que os dados clínicos que foram apontados inicialmente possam se confirmar ou

não. Cada atleta deve realizar todos os estilos que conhece e, ao menos, ser capaz de

realizar as provas que se propôs a competir no evento para que a sua classificação seja

corroborada. Para cada estilo os classificadores discutem o que a pessoa pode fazer –

“de uma forma adaptada” – sem desconfigurar o nado, principalmente se eles

observarem que o nadador possui dificuldades técnicas na execução do que é solicitado.

A partir daí os classificadores podem trabalhar, ainda, com duas categorias: a

de “inclassificável” para quem não sabe nadar o estilo que foi pedido e “inelegível” para

quem não perdeu a pontuação necessária no exame. Esse sistema se apoia em um estudo

clássico da natação que estabelece uma relação entre as partes do corpo e a capacidade

de propulsão ideal dentro d’água. Para cada uma dessas partes, existe uma pontuação

correspondente cuja soma total deve ser de 300 pontos. A partir deste número, os

classificadores vão contabilizando a quantidade de pontos que um atleta perde na hora


72

em que está sendo avaliado. Um nadador da classe S10, por exemplo, deve perder no

mínimo 15 pontos do total de 300.

De qualquer forma uma pessoa pode ser inelegível para S ou SM e elegível

para a prova de SB. Assim como pode ser inclassificável num estilo e classificável em

outro. Além de nadar os estilos, os atletas precisam flutuar de costas e de barriga para

baixo enquanto um dos classificadores desenha no formulário a forma e os ângulos em

que o corpo fica e também tomam nota sobre o tipo de saída que a pessoa realiza para

cada estilo.

Os classificadores comentaram comigo que quando a pessoa já treina há

algum tempo fica mais fácil estipular a sua classe. Às vezes, a pessoa pode nadar um

estilo, mas ainda sem técnica. Nesse caso, o nadador ainda não teria um conhecimento

mais profundo do seu corpo e do que pode fazer com ele. Existem também os casos em

que a pessoa nadava antes de se tornar deficiente, mas ainda não sabe praticar o esporte

de forma adaptada, o que torna a classificação igualmente difícil. Na opinião de uma das

classificadoras com quem converso esse tipo de nadador que ainda não está “adaptado”

nem deveria ser classificado. Mas o fato é que eles acabam classificando pelo menos

para o nado livre, por pressões vindas dos atletas, dos clubes e até do comitê.

Caso haja dúvidas, eles costumam “jogar” o atleta para uma classe acima da

qual eles imaginam que o mesmo faça parte. Os classificadores declaram que fazem isso

porque acabam forçando um treinamento mais pesado e também porque depois ficaria

mais cômodo para o atleta descer do que subir de classe. Ainda assim, existe a

possibilidade dos classificadores não conseguirem dirimir suas dúvidas, situação que os

obriga a colocar o atleta em observação durante a competição, onde ele é alocado em

uma classe, mas só terá o veredito final sobre a mesma ao término do evento. Por essa

razão, arrisco falar na existência de um terceiro momento do processo de classificação,


73

pois mesmo que o nadador já tenha a sua classe estipulada oficialmente, ele é

analisando durante a competição com o intuito de corrigir possíveis erros que podem se

dar pela ausência de um olhar mais meticuloso nas primeiras etapas ou pela tentativa do

atleta em simular uma condição física que não condiz com aquilo que em tese ele teria

potencial para desenvolver. Essa etapa pode ser considerada um verdadeiro laboratório

de observação, sendo útil para discutir uma possível reclassificação, assim como para

trazer novos dados que auxiliarão no desenvolvimento do conhecimento sobre a

deficiência física na sua relação com o esporte e também na verificação do

funcionamento do sistema.

É importante ressaltar que as regras do esporte e a classificação operam

juntas para que exista a modalidade no esporte paraolímpico. Para que um atleta faça

parte dele deve estar dentro desse sistema e por ele ser regido. Nesse caso, de nada

adianta uma pessoa se considerar deficiente se, de acordo com a classificação funcional,

ela não perdeu pontos suficientes para que afetem o seu rendimento no desempenho da

modalidade. No dia em que observei os trabalhos no Ibirapuera houve um caso

interessante e que serve como exemplo para esse ponto.

Um rapaz tinha amputação de dedos e algumas sequelas na mão e não havia

perdido os pontos necessários para ser considerado um nadador paraolímpico. Tendo

dificuldades em estabelecer a perda mínima, o classificador responsável pelo caso

chamou outros colegas para que pudessem fazer uma análise junto com ele. Pude ver

que eles refizeram diversas vezes as medições do membro afetado e os cálculos,

apontando para outras possíveis direções do exame. No final, o nadador ainda foi

considerado inelegível para todos os estilos. Tanto o atleta como o técnico não

conseguiam disfarçar a frustração frente ao resultado. Da mesma forma, pude perceber a

angústia dos classificadores com esse tipo de situação. No caso desse rapaz, ele pode
74

continuar competindo em jogos abertos onde não há a necessidade da classificação

oficial do comitê paraolímpico, pois estas competições não costumam seguir o modelo

padrão do IPC.

Foi possível ver até aqui como no processo de classificação o mapeamento

do corpo deve levar à montagem de um tipo de registro matemático que, ao acionar a

diferença no nível corporal, fornece o dado necessário para a construção de uma

posterior igualdade. As várias deficiências que a princípio podem gerar discrepâncias

vão sendo decodificadas no sentido da construção de uma equivalência que conta com

saberes vindos da área da medicina, biomecânica e técnica desportiva. Dessa forma, o

corpo que é constantemente observado, medido e calculado se encontra no interior de

um processo de ressignificação de corpo deficiente em corpo potente, eficiente e

atlético.

Em outro ponto desta tese discuto como os atletas trabalham com estas

distinções em seu cotidiano. Assim, ainda que o sistema pareça, à primeira vista, estar

bem fechado, parece existir sempre certo grau de instabilidade. Uma primeira razão para

isso tem a ver com a própria dinâmica de reelaboração dessa classificação, que está

constantemente passando por ajustes os quais foram mais intensos no momento da

passagem do modelo médico para o funcional, mas que nem por isso impedem que

novos questionamentos sejam sempre levantados. A segunda razão diz respeito à

variedade de entendimentos e de leituras da classificação que podem ser feitas pelos

vários agentes envolvidos na natação paraolímpica.


75

2.2 - A “classificação funcional” como uma arena de disputas

Uma aposta inicial na importância da “classificação funcional” se confirmou

no meu trabalho de campo, onde pude perceber que ela é um dos principais assuntos

discutidos. De qualquer forma, no meu convívio com os atletas ficava claro que, ainda

que eles dependam de sua adequação no sistema para competir, poucos pareciam

compreender o código. Mas, embora a “classificação funcional” não seja dominada pela

maioria dos atletas, ela é constantemente avaliada por eles mesmos por meio de uma

discursividade que extrapola a sua configuração formal. Nesse processo de apreensão

são evocadas questões do cotidiano e registros que possuem a marca das experiências

pessoais sobre o assunto. Todavia, ampliando o conjunto de informantes procurei

sondar as proposições de outros agentes como técnicos de natação, além dos próprios

classificadores. Optando por colocar em relação vários discursos acredito ter construído

de uma maneira mais rica o entendimento sobre essa matéria.

Por ser a porta de entrada do atleta no movimento paraolímpico e por

determinar o seu posicionamento ao longo da carreira, a classificação é vista geralmente

como um instrumento de grande poder neste meio. Em uma das entrevistas ela é

considerada “obscura” por um dos nadadores da seleção, embora hoje pareça ser algo

muito mais aberto do que foi no passado. Apesar de concordar que houve mudanças, ele

afirma categórico que os classificadores “mandam no esporte”. Ele explica que além das

regras da modalidade, o esporte paraolímpico possui as regras específicas da

classificação e que nenhuma competição pode ocorrer sem que haja um representante da

mesma. Considero importante deixar claro que em nenhum momento da nossa conversa

o atleta atribuiu o mesmo poder para os juízes que na competição também são presenças

obrigatórias, assim como se responsabilizam por resguardar determinadas regras. Esse


76

mesmo atleta sugere, ainda, que a classificação serve para refletirmos sobre a relação de

poder entre os países tendo em vista que até hoje houve poucos classificadores

aprovados no Brasil para realizar cursos de classificação internacional. Nesse sentido,

parece que as grandes potências do esporte detêm em suas mãos a decisão sobre quem é

habilitado a classificar. Então, na opinião desse atleta, seria imperativo haver mais

classificadores internacionais para que o poder fosse melhor dividido. Além disso, ele

ressalta a necessidade de haver um maior peso para exames clínicos que sejam

produzidos tanto internamente como externamente, por médicos qualificados.

A acusação feita aqui, e que encontro na fala de outros nadadores é a da

existência de uma subjetividade que se coloca como uma ameaça à objetividade do

exame, vista pela maioria com a única forma correta de realizar uma classificação justa.

Comentei com um dos atletas que a classificação parece ser um assunto polêmico e ele a

definiu “como a marcação de um pênalti”, onde uns dizem que foi e outros dizem que

não. Ela seria, então, algo duvidoso, pois ao mesmo tempo em que parece se basear em

uma visão mecânica, os classificadores também “levam” para um lado subjetivo.

Pergunto se na sua concepção seria possível um exame puramente objetivo e ele afirma

que sim e segue:

Era pra ter equipamentos que pudessem avaliar de uma maneira


menos subjetiva. Teria uma tecnologia para medir certas coisas, mas não é
utilizada. (...) Eles pedem para o atleta fazer força, mas como eles vão avaliar
que força é essa? O classificador dá um número para cada coisa que avalia,
mas quem garante que aquilo vale aqueles pontos? Era para serem usadas
máquinas computadorizadas de medir força. Seria o equipamento
isocinético24.

Ainda que não haja necessidade de se mudar tudo, alguns atletas acreditam

que os critérios precisam ficar mais claros e objetivos para todos, do que dependeria a
24
Exames como esses também seriam capazes de mostrar o alcance da lesão, como na
eletroneuromiografia.
77

justiça em todo o processo. Aprofundando esse assunto numa entrevista um nadador

disse que “o atleta não pode ficar todo a mercê do profissional que tá avaliando” e

complementou afirmando que outros testes não seriam aplicados por ser mais fácil

avaliar a pessoa em trinta minutos do que perder mais tempo para entender o seu real

comprometimento. Ele julga que os nadadores querem apenas ter a certeza de que

“competem com seus iguais”. Porém, acho significativo comentar que ao tratarmos da

proposta de junção das classes S1 e S2 para as próximas paraolimpíadas, ele – que é um

nadador S10 – reconhece a existência da desigualdade, mas ainda assim defende o

modelo como sendo uma oportunidade para os atletas que não têm conseguido

participar das competições de alto nível por falta de provas. Esse tipo de declaração

parece ser incongruente com uma crença na construção totalmente objetiva da

classificação como portadora da efetiva equalização. Mas aqui está colocado apenas um

pequeno exemplo de como a idéia de igualdade oscila. As variações suscitadas pela

divisão por classes replicam na própria forma como os atletas reconhecem “seus iguais”

e os “seus desiguais” em cada nível ou em cada momento.

O tema da objetividade e subjetividade é recortado, ainda, por outro assunto:

a questão da simulação no teste de “classificação funcional”. Ao dar a sua opinião sobre

o atual sistema um atleta diz que o considera claro, “mas só que os atletas hoje estão

mais experientes em relação à classificação. E, consequentemente, se você tem

experiência em relação à classificação, dá pra você fingir uma deficiência”. Perguntei de

forma direta se seria possível simular nos testes e ele respondeu: “Dá. É possível sim.

Por isso que justamente existe não só uma classificação. Você compete uma vez, fica

em observação, até você realmente conseguir uma resposta do que você realmente é”.25

25
Ele parece estar se referindo à classificação provisória e à classificação permanente. A primeira o
nadador recebe em competições regionais ou nacionais. A classificação permanente só é obtida depois
que ele é avaliado em alguma competição internacional.
78

Outro atleta é mais categórico ao afirmar que muitas pessoas tentam simular

determinada condição físico motora na tentativa de “descer de classe” para conseguir

mais medalhas e, consequentemente, mais dinheiro na forma de patrocínios. Segundo

ele, tal atitude pode ser uma das causas das discrepâncias existentes entre a classificação

feita nacionalmente e a classificação internacional, feita com profissionais supostamente

mais experientes e preparados. Para evitar esse tipo de problema uma nadadora sustenta

que todo atleta deveria passar por uma reclassificação, porque quando ele vai para uma

competição é uma coisa e depois que passa a ser bem treinado pode virar outra. Ela

afirma que muitos atletas que melhoram, inclusive a sua condição física, tentam

esconder isso, muitas vezes com a conivência dos técnicos como disse já ter visto em

muitos casos no passado.

Encontrei entre os informantes muitos que não acreditavam ser possível

burlar o sistema, mas todos falam que, no mínimo, existem as tentativas. Mas a

fragilidade das simulações parece ficar mais visível nos momentos de observação na

competição, onde o atleta provavelmente deverá mostrar todo o seu potencial físico para

ganhar a prova. Daí a importância desse momento no processo de classificação, pois,

como afirma um dos nadadores, “na prova a pessoa mostra quem ela é”. Dessa forma,

segundo outro atleta, “ninguém é tão bom para poder ludibriar o sistema”, pelo menos

por muito tempo.

Ao falar dos conflitos entre nadadores e classificadores, um atleta diz que a

razão de muitos desses desentendimentos tem a ver com as tentativas de simulação nos

testes, “porque tem o atleta que esconde o jogo na hora de classificar”, mas os

classificadores podem colocá-lo numa classe acima como uma forma de punição. Aqui

parece haver uma tentativa de agenciamento da deficiência por parte dos atletas como

um meio para conseguir estar na classe que considera mais satisfatória. Mas, da mesma
79

forma que pode existir uma reivindicação pelo reconhecimento de um maior

comprometimento físico na esfera desportiva, isto pode ser rechaçado em outros

contextos, como o cotidiano. Logo, a construção de si como uma “pessoa com

deficiência” pode apresentar repertórios variados.

A questão das discrepâncias entre os atletas no interior das classes aparece

com recorrência no conjunto de polêmicas em torno da “classificação funcional”.

Podemos encontrar discursos daqueles que se acham injustiçados dentro das disputas,

apesar dos testes e suas subsequentes codificações não trazerem, a princípio, dúvidas a

respeito da classe na qual se insere o atleta. A maioria dos atletas informantes declara

que a classificação é um registro difícil de ser entendido e que geralmente só procuram

compreendê-lo um pouco mais quando estão envolvidos com polêmicas em torno de sua

própria classificação. De fato, é possível afirmar que os nadadores que demonstravam

ter mais conhecimento sobre o assunto eram justamente aqueles que estavam envolvidos

em algum tipo de contenda com relação à sua própria classe. Um interesse similar

também era demonstrado por aqueles que diziam ter uma suposta questão a ser

resolvida sobre isso, mesmo que o caso estivesse no plano da suposição, não figurando

ainda como algo concreto.

O debate a respeito de possíveis erros de alocação foi aparecendo com

diversas nuances. Esse tema que parece ser importante para todos – o que não se

confunde de nenhuma forma com nível de conhecimento sobre classificação 26 - é

considerado dessa forma por razões que podem ser diferenciadas e que dizem respeito

às trajetórias individuais. Ao questionar um nadador - que, por sinal, é detentor de

vários recordes na sua classe e de alguns patrocínios – sobre o nível de interesse dos
26
Apoiando-me em Bourdieu (1998: 91), penso que mesmo que a “classificação funcional” não seja
dominada por muitos atletas nos seus termos formais, isso não anula a sua força, como se depreende da
seguinte passagem: “A especificidade do discurso de autoridade (curso, sermão, etc.) reside no fato de
que não basta que ele seja compreendido (em alguns casos, ele pode inclusive não ser compreendido sem
perder seu poder), é preciso que ele seja reconhecido enquanto tal para que possa exercer seu efeito
próprio.
80

atletas sobre a classificação, obtenho a seguinte resposta: “eles se interessam no

momento em que dói o bolso”. Peço para que explique melhor e ele complementa:

O esporte vem mudando a vida de várias pessoas e tem a questão


da inclusão e etc, mas pra mim e pra outros atletas é profissão, é grana, a
gente recebe pra isso. Então, por exemplo, se hoje eu sair fora do esporte
paraolímpico é eu deixar de ganhar, é eu perder minha profissão, é como se
eu fosse demitido de alguma coisa. Então eu sou extremamente interessado,
por que? (...). Então a classificação interessa muito àqueles que tiveram uma
mudança brusca em sua vida, de uma grande melhora, do que para a maioria
que só vê o lado de saúde, socialização.

Ao dirigir a mesma questão para um técnico, mas pensando agora no grau de

interesse deles ele me diz que eles procuram saber “o suficiente pra querer baixar a

classe dos atletas”. Depois segue afirmando que as pessoas só querem saber dos seus

próprios atletas e se aparece alguém novo que começa a disputar com ele, o técnico

começa a questionar a classe. Geralmente a partir dessa situação é que começam a

monitorar o outro atleta pra ver se ele não está classificado incorretamente. Isso parece

ser corroborado pela opinião de uma classificadora funcional sobre o mesmo tema:

O interesse é muito em função da comparação que o atleta faz de


si mesmo com o outro. Para questionamento da classe simplesmente. Olha-se
muito para o próprio umbigo. Olha-se muito para aquele que o atleta acha
que está numa situação vantajosa em relação a ele. Pode-se ter um intuito
tanto de querer baixar de classe quanto o de querer que seu adversário suba.
As pessoas não devem se comparar nestes termos. Existem patologias
diferentes e raciocínios diferentes que acompanham essas diferenças. Ainda
que o atleta conheça um pouco mais por já ter passado por uma situação que
tinha que resolver em relação à classificação, ainda assim o olhar é muito
para si mesmo ou só para aquilo que ele quer ver. É muito diferente de você
querer entender todo o processo de todas as classes. Geralmente eles olham a
própria classe, a de cima e a de baixo.

Já num encontro que tive com um dos técnicos da seleção ele apresentou um

tom mais formal para o assunto e disse que eles precisariam entender como são os
81

procedimentos, como é o processo e que tipo de avaliação o atleta sofre, além de já ter o

conhecimento do seu tipo de deficiência; e afirmou: “o grau de conhecimento e de

interesse é para você estar acompanhando principalmente uma avaliação de um atleta

novo que vai entrar no movimento e sobre também um pedido de reavaliação, de

reclassificação”. Com relação aos atletas, ele acredita que a maioria não tem

conhecimento sobre o assunto e fica apenas com aquilo que o técnico fala.

Foi a partir dessa entrevista que comecei a pensar e questionar junto aos

informantes se existia alguma forma de divulgação interna sobre o processo de

classificação funcional para além do manual do IPC que já havia sido mencionado

várias vezes. Todas as pessoas com as quais eu conversava diziam que não havia

nenhum material dessa natureza ou, pelo menos, nunca tinham ouvido falar sobre ele.

Posteriormente, quando estive em contato com as classificadoras pude ter a certeza de

que as informações sobre o sistema estão presentes quase que exclusivamente nos

manuais oficiais. Ouvi de uma classificadora que “o sistema de classificação tem que

ser mais aberto para o conhecimento geral”. Mas ela também me informou que existem

palestras que são dadas nos circuitos27, mas que “o público é irrisório, é de meia-dúzia,

quando num circuito tem um monte de gente. E o negócio é aberto para todos que estão

lá. É realmente uma coisa complicada de entender, mas falta interesse também. (...) A

maioria não quer saber mesmo, por ignorância talvez”. Ela também concordou que a

classificação deve ser mais clara internacionalmente, principalmente quanto ao processo

de formação dos profissionais que atuarão na área. Hoje para fazer o curso internacional

a pessoa necessita entrar com uma solicitação junto ao comitê internacional para depois

ser escolhida. Alguns classificadores internacionais decidem sobre quem pode fazer o

curso28. Logo, em sua opinião, essa não seria uma formação aberta a todos, pois não

27
Pelo menos no circuito no qual estive presente não vi nenhum tipo de programação nesse sentido.
28
O curso para formação de classificadores é gerenciado pelo IPC.
82

bastariam as qualificações intelectuais ou técnicas do indivíduo, mas, acima de tudo, o

fato dele fazer parte de uma determinada rede de relações.

2.3- Falando de técnica e de política.

Ficou claro na minha pesquisa que o temor relacionado à classificação diz

respeito primordialmente a uma “subida de classe” do próprio atleta. Além disso, a

“descida de classe” de outro atleta considerado forte para a categoria na qual ele se já

encontrava também é vista como um grande problema, na medida em que aquele que é

novato na classe pode se tornar um adversário muito difícil de ser vencido. Esse temor

está presente não apenas entre aqueles que estão iniciando no esporte, mas também entre

aqueles que já obtiveram a sua classificação internacional e passaram por muitas

competições. Trata-se aqui do “fantasma da reclassificação”, como as pessoas no meio

costumam chamar.

Esse assunto sempre está ligado ao tópico da “competitividade no esporte” e

aos princípios de equalização e justiça que ele evoca. Mas é interessante enfatizar que

tais princípios podem ser relativizados em função do lugar que a pessoa ocupa em

determinado momento. Assim, para um atleta que começou numa classe mais alta e

depois desceu a resposta é de satisfação com a posição que ocupa. Na sua concepção ele

nunca teria passado por um “problema de classificação” e confessa que nas

competições, mesmo nos momentos em que as pessoas estão concentradas para nadar,

elas costumam comentar que ele não é da classe, o que o leva a ficar quieto para evitar

que a discussão se desenvolva. Outro atleta, agora da classe S6, mas que já passou por

três classes, fala que quando ficou na S5 “não teve culpa” e achava aquilo tão bom que

não queria mudar. Interessante perceber como, ao recorrer a essa expressão, o atleta
83

parece ter consciência de que poderia haver um erro em sua classificação, mas que nesse

caso e em outros semelhantes, nunca vi ser tomado como uma falha por parte daquele

que estaria numa posição beneficiada em relação aos seus concorrentes. Depois, na

mesma entrevista, ele conta que subiu mais uma classe, mas quando chegou na S7 não

queria aceitar e comenta:

Hoje o atleta já chega na competição com o intuito de ficar


numa classe que seja competitiva pra ele. Se ele fica numa categoria acima
daquele acha que é, isso abala e acaba tirando dele as chances de
futuramente ter uma vaga na seleção. Se ele fica numa categoria
competitiva e vai melhorando gradativamente para o atleta é o melhor.

Se olharmos para este comentário na sua relação com as afirmações feitas

mais acima a noção de competitividade surge com um caráter autorreferente, pois

sugere que a equanimidade na competição não estaria dada para o grupo como um todo,

mas apenas para uma pessoa. O desejo por “descer de classe” está presente, inclusive,

entre aqueles que já passaram por reavaliações que os posicionaram em classes abaixo

das quais competiam. Tive contato com dois nadadores com larga experiência na

seleção brasileira que exemplificam bem essa situação. Um deles declara que nunca

esteve satisfeito com a sua classe, mas apenas “conformado”. Ele teria tentado entrar

com recursos para mudar novamente por achar que havia uma concorrência desleal com

aqueles atletas que hoje chegam com características de condicionamento diferenciadas,

mas o fato é que “acabou cansando” de tentar tal mudança. O outro nadador, que

também passou por pequenos problemas de desempenho, fez diversos comentários

sobre a força física de uma nova geração de atletas que hoje está na classe que ele faz

parte, mas aponta um problema de perda de massa corporal como a causa da queda do

seu rendimento. Ele também não conseguiu uma nova reclassificação para baixo e diz:

“Resolvi ficar quieto. Vai que eles resolvem aumentar a minha classe?”.
84

Acredito que o termômetro da satisfação dos atletas – e também da maioria

dos treinadores – é dado pelos resultados das competições e não apenas em função do

que efetivamente estaria correto nas análises sobre o comprometimento físico motor dos

indivíduos. Mesmo que exista uma maneira formal de decidir sobre o posicionamento

do nadador, “estar na classe correta” ou “estar na classe errada” são afirmações que

podem ser construídas de diferentes formas e que dependem do agente que as enuncia e

da posição que ele ocupa no interior do movimento como um todo.

Para uma classificadora funcional, “mal classificado” diz respeito à falta de

comunicação, pois quem convoca poderia conversar antes com os classificadores e tirar

as dúvidas sobre algo questionável com relação à classificação, entre outras coisas.

Segundo ela, nem tudo o classificador pode “pegar” até porque não teria conhecimento

da técnica desse atleta que está sendo classificado pela primeira vez, além do fato de

que uma simulação por parte do nadador “é sempre possível”, e explica:

A pessoa acha que está levando vantagem por estar numa


classificação mais baixa. Mas a melhor vantagem é ela estar na sua classe
correta. O técnico seria muito responsável pela construção dessas
simulações. Por exemplo, ele [o técnico] tem um atleta desequilibrado
emocionalmente e que tem tendências a querer fazer uma simulação. O
técnico é quem tem que alertar o atleta e não estimular essa prática. Ele tem
que conscientizar o atleta de que o fato de hoje ele não estar no topo não
significa que não possa estar mais à frente. Mas a questão é que todos já
querem começar numa classe maior para tentar já começar por cima.

Outra classificadora mostra uma linha de raciocínio similar na entrevista que

desenvolvo com ela:

Pesquisadora: O que pensa sobre o nível profissional das pessoas que hoje
trabalham com natação?
Classificadora: Melhorou, mas ainda falta muito conhecimento. Entre os
técnicos isso fica bem claro. Ele chega com um atleta para classificar, mas
não tem nem noção de como aquilo funciona. Os classificadores dizem, por
85

exemplo, que o atleta é S6, mas o técnico diz que o treinou sempre como S5
e isso não está certo. Ele deve ser treinado como um atleta independente da
classe. Existe muito treino errado e que tem a ver também com o
desconhecimento da patologia. (...) Falta juntar os conhecimentos.
Geralmente a pessoa ou sabe muito de natação ou conhece muito de
deficiência. Dificilmente a pessoa se propõe a conhecer os dois.
Pesquisadora: Mas os técnicos também dizem que os classificadores têm um
grau de desconhecimento.
Classificadora: Realmente tem um pouco de desconhecimento mesmo, mas
por outro lado existe uma limitação. Atletas chegam sem base técnica. Mas
aí a pessoa chega para a competição e tem que ser classificada de qualquer
jeito. Então, dificilmente essa pessoa vai ter uma classificação correta. Os
atletas têm que passar por revisões de classificação... Muitos atletas chegam
em competições internacionais dizendo que o classificador não entende do
assunto. Mas como? O atleta é que chega querendo forçar a barra de que
pertence a uma classe sem também ter o conhecimento do assunto. Muitos
técnicos colocam na cabeça do atleta que ele é de determinada classe, antes
mesmo dele ter sido avaliado. Aí depois eles dizem que o classificador
acabou com a vida profissional deles.... Muitas vezes o atleta começa
achando que treina muito, mas ainda não tem noção de que o que faz não é
um trabalho de alto rendimento.

No trabalho de campo estive a par de diversas polêmicas relacionadas aos

processos de classificação e aos seus resultados. Elas traziam à tona questões que

escapavam à ordem da técnica e da cientificidade que sustentam as normas

classificatórias. Mas, ainda que houvesse o registro por parte dos informantes da

existência de questões organizacionais e políticas envolvidas no processo de

classificação, dificilmente elas se transformaram em dado concreto ou serviram de

argumento para questionamentos sobre o sistema.

Para além de todas as questões burocráticas envolvidas nesses processos, o

que está em jogo também é um modelo de argumentação não só aceitável e coerente,

mas que obedeça em primeiro lugar ao padrão que constitui e rege o sistema. É dessa

forma que pude constatar que a maioria dos argumentos utilizados para ataque ou defesa

dos atletas acerca da classificação se baseia na funcionalidade e potencialidade

corporais. Seguindo o caminho proposto por Boltanski e Thévenot (1991), podemos nos

interrogar sobre que exigências e condições devem ser preenchidas para que uma
86

denúncia pública de injustiça possa ser considerada aceitável. É necessário se ter a

compreensão de uma gramática e entender que princípios definem o que será valorado e

aceitável em termos de argumentação e provas.

Uma das classificadoras entrevistadas descreveu a classificação como um

“instrumento importante”, mas quando sugeri uma possível relação disso com o poder

no interior do movimento paraolímpico ela recusou a afirmação e explicou o que

entendia por “instrumento” neste caso:

Eu acho que todo classificador tem condição de auxiliar o


trabalho técnico que esteja acontecendo. Não que ele se sobreponha, mas ele
tem mais experiência ou deveria ter mais experiência tanto na modalidade
como na classificação também. Então, teoricamente, ele tem muitos padrões
na cabeça. A gente tem muito padrão visualmente guardado e aí eu vejo uma
pessoa que tem um potencial, mas ainda não sabe aproveitar, e é um trabalho
técnico que vai desenvolver isso. Então o que o técnico souber aproveitar do
classificador, trocar com esse classificador, ou enfim, procurar elementos,
dicas, ele pode ajudar.

E depois seguimos com um diálogo que, a meu ver, exemplifica bem a

questão do padrão de argumentação mencionada anteriormente:

Classificadora: Um bom classificador sempre tem uma boa argumentação.


Às vezes as pessoas questionam a classificação e estão certíssimas, mas se
elas não trazem argumentos condizentes, o pedido vai ser negado de
qualquer forma.
Pesquisadora: Então a pessoa deve saber argumentar dentro de certos
parâmetros?
Classificadora: É assim para qualquer coisa, pois tem a ver com regras,
regulamentos.

Ao se aprofundar um pouco mais sobre a importância e papel dos

classificadores no movimento ela afirma que


87

quando uma equipe leva os seus classificadores ela tem uma


chance de ter uma defesa, um ataque e uma estrutura. Com relação à defesa,
tem a chance de defender o atleta da equipe. Com relação ao ataque, tem a
chance de protestar se eles virem que o atleta não faz parte daquela classe. E
em termos estruturais se conta com mais um componente humano para o
trabalho. A função dessa pessoa é de classificação, mas ela está observando
tudo, até porque caracteristicamente o classificador traz consigo a questão da
observação. Ele é uma munição, mas nunca se vê o classificador dessa
forma.

A questão do padrão de argumentação e do seu conteúdo aparece associada,

então, ao papel que cada um dos agentes pode desempenhar em embates relacionados à

classificação. Cada um desses agentes carrega consigo a marca de suas experiências

pessoais com o objeto em questão. Para nos aprofundarmos nesse debate é necessário

incluir um item mais específico da “classificação funcional”: o dos “borderlines” da

natação, ou seja, atletas que se encontram dentro de uma situação limítrofe na

classificação funcional.

Em outro momento deste texto já havíamos nos deparado com as declarações

dos classificadores sobre as dificuldades de analisar os indivíduos com paralisia cerebral

e com sequela de poliomielite e, consequentemente, obterem uma opinião conclusiva

sobre o enquadramento do atleta. O trabalho de campo mostrou que essa mesma

opinião parte também dos nadadores e técnicos. Para termos uma ideia da complexidade

dessas deficiências, atualmente existem no Brasil paralisados cerebrais nas classes S3 a

S8. As dúvidas com relação aos sequelados de pólio são bem comuns na classificação

internacional, tendo em vista que muitos países desenvolvidos praticamente não

possuem atletas com este tipo de deficiência e, portanto, lidam muito pouco com o

conhecimento sobre o assunto. É interessante perceber como essa dificuldade é lida de

forma diferenciada se compararmos os discursos dos classificadores e dos atletas que

possuem esses tipos de deficiência. Enquanto os primeiros se focam numa dificuldade

técnica, que tem relação com o nível de produção de conhecimento sobre isso, os outros
88

colocam o debate no plano de um rendimento atlético individual em sua comparação

com atletas que nadam na mesma classe. Sendo assim, não é difícil ouvir de atletas com

sequelas de pólio que eles têm mais dificuldades que os paralisados cerebrais - que

seriam mais fortes em termos físicos – e que se não conseguem chegar a alguns

resultados é porque existe uma discrepância a priori que é difícil de ser resolvida, apesar

de todos os esforços dos classificadores. Por outro lado, tanto “pólios” como “PC´s”29

costumam se comparar aos amputados que pertencem à mesma classe, argumentando

que embora estes últimos não tenham alguns membros completos, são “beneficiados”

por não terem o mesmo “arrasto”30 e que “tudo o que eles têm trabalha a seu favor”.

Outro tipo de “borderline” é o nadador cujo comprometimento físico é muito

pequeno, como acontece com os atletas da classe S10. Nesse caso, trata-se de pessoas

que estão na fronteira entre deficiência e não deficiência. No meu trabalho de campo

levantei dados sobre um caso em que essa situação limítrofe levou a inelegibilidade (ao

menos por um período) de um atleta que depois passou a fazer parte da seleção

paraolímpica. Além de entrevistar o protagonista desse episódio, tive a oportunidade de

ter contato com a classificadora nacional que acompanhou o caso e realizou uma série

de estudos junto ao atleta para que a equipe brasileira conseguisse realizar a sua defesa

junto ao IPC. Em seu depoimento essa profissional foi enfática ao falar da importância

da presença do classificador nesse processo, tendo em vista que a defesa do atleta para

que ele continuasse como S10 (e como nadador paraolímpico!) teria que seguir uma

linguagem específica. Aqui, mais uma vez, voltamos à questão do tipo de qualificação

do argumento, mas também nos reportamos à importância da presença de uma

“linguagem autorizada” (Bourdieu, 1998) no decorrer de determinados processos. Isso

29
Maneira usual no meio de tratar pessoas com sequelas de poliomielite e paralisados cerebrais,
respectivamente.
30
Sobrepeso que o atleta carrega durante o nado e que dificulta sua flutuabilidade e deslocamento na
água.
89

apareceu expresso numa das falas da mesma classificadora responsável pela defesa

citada anteriormente:

Nas competições internacionais o atleta tem que estar com o seu


classificador e não com o técnico ou dirigente. O classificador é a pessoa que
melhor pode orientar o atleta. Ela tem o conhecimento daquilo, sabe o que
está acontecendo, tem a informação. (...) Ela tem o conhecimento daquela
técnica que é empregada. Não quer dizer que a pessoa não possa ir com o
técnico, mas em casos mais complicados é melhor haver a presença do
classificador (...).

Através deste depoimento fica claro que a eficácia do discurso depende de

um porta-voz autorizado. Como afirma Bourdieu (1998: 89):

O porta-voz autorizado consegue agir com palavras em relação a


outros agentes e, por meio de seu trabalho, agir sobre as próprias coisas, na
medida em que sua fala concentra o capital simbólico acumulado pelo grupo
que lhe conferiu o mandato e do qual ele é, por assim dizer, o procurador.
(...) Um enunciado performativo está condenado ao fracasso quando
pronunciado por alguém que não disponha do “poder” de pronunciá-lo ou, de
maneira mais geral, todas as vezes que “pessoas ou circunstâncias
particulares” não sejam “as mais indicadas para que se possa invocar o
procedimento em questão”, em suma, sempre que o locutor não tem
autoridade para emitir as palavras que enuncia.

O atleta do caso em questão afirmou que a sua situação era bastante

complicada tendo em vista que se ele não fosse classificado como S10 estaria fora do

esporte. Ele acrescentou ainda, que treinou muito tempo com os olímpicos, mas nunca

conseguiria ir para uma grande competição porque possui uma deficiência física que o

desfavorece frente aos outros. Assim como ele viu nas Paraolimpíadas de Atenas atletas

com pouca deficiência nadando e foi inspirado por isso, acreditou que a sua batalha para

continuar no movimento paraolímpico podia servir de referência para outras pessoas

que teriam dificuldade de aceitar a sua condição física.


90

Vemos, então, como nas situações de denúncia e justificação é necessário

que os agentes saibam carregá-las de um conteúdo generalizante que não diga respeito

somente a casos particulares, mas a direitos mais gerais que devem ser respeitados (Cf.

Boltanski e Thévenot, op.cit.). Para uma melhor compreensão dessa questão relato um

caso de reclassificação de um nadador que teve uma das maiores repercussões no

movimento paraolímpico.

Considerado por muitas pessoas ligadas à natação paraolímpica como um

“borderline”, o atleta da seleção brasileira foi deslocado para uma classe superior àquela

em que competia nos Jogos de Pequim, passando de S4 para S5. Tal mudança foi

questionada pelo nadador que, juntamente com seus advogados e sua assessoria de

imprensa, argumentava que algumas regras que dizem respeito ao pedido de

reclassificação não haviam sido respeitadas e que se algo não fosse feito, outros atletas

poderiam passar pelo mesmo problema. O questionamento, então, não era só de mérito,

mas também de procedimento.

É possível dizer que essa história possui diversos capítulos que - para não

citar toda a carreira do atleta - remontam pelo menos há quatro anos e às competições

que ocorreram neste mesmo período. Penso ter acompanhado no meu trabalho de campo

um capítulo dessa história ou parte dele. Os desdobramentos que ocorreram em Pequim

foram precedidos por diversos questionamentos que explicitavam outro aspecto que até

então não tinha aparecido para mim de forma tão incisiva: o caráter político da

classificação.

Na entrevista realizada com o atleta em questão ele conta que desde o ano de

1998, quando começou sua carreira, foi classificado como S4, posição que teria sido

corroborada em dois campeonatos mundiais no ano seguinte. Mesmo com os

classificadores começando a ter dúvidas sobre sua alocação a partir de 2000, ele
91

continuou na mesma classe depois de passar por mais testes e análises. Em sua opinião,

foi a partir das Paraolimpíadas de Atenas que ele começou a “incomodar”31 os outros

países por ter se tornado o grande medalhista da natação. Posteriormente, no mundial de

natação da África do Sul em 2006, “recebeu protesto”32 por parte da delegação da

Espanha e subiu de classe. Essa situação foi revertida a tempo dele participar no ano

seguinte do Parapanamericano do Rio de Janeiro como S4. Mas no ano de 2008, antes

dos Jogos de Pequim, “foi protestado” novamente. Segundo ele, o erro de procedimento

estava no fato dele não poder “ser mexido” tendo em vista que já tinha conseguido

alcançar o status permanente depois de ter passado por quatro classificações

internacionais. É assim que considera o regulamento do IPC muito falho e exemplifica:

Pode haver aquele atleta que tem 10 ou 15 anos de natação e


nunca se destacou, mas aí começa a se destacar e ganhar medalhas de ouro
por sua própria dedicação. Aí vamos ter o atleta que antes ganhava dele na
classe e agora está perdendo. Só para prejudicá-lo ele entra com protesto. (...)
Depois de 2004 começou a ser questionado porque ganhava medalhas de
ouro. Por que não questionaram antes?

Em sua opinião os atletas estariam sendo classificados ou reclassificados em

cima do rendimento e não pela deficiência que eles apresentam. Essa preocupação em

torno da deturpação dos princípios classificatórios é compartilhada por outro nadador da

seleção que obteve grande êxito nos Jogos de Pequim. Isso fica claro em certo ponto da

entrevista:

Pesquisadora: Você está satisfeito com sua classe?


Atleta: Demais.
Pesquisadora: Como os atletas ficam nestes momentos de classificação e
reclassificação?

31
É interessante como essa mesma expressão surgiu na fala de outros informantes que opinavam sobre
esse caso.
32
“Receber protesto” significa ter a classificação sob questionamento. O protesto só pode ser feito por um
país e a resolução do caso ocorre sempre durante uma competição internacional.
92

Atleta: É um baque muito grande, principalmente se ele subir de classe. A


classificação em si já é complicada porque é incerta para a pessoa. Você não
sabe se eu vou ganhar medalhas, se eu bater recorde mundial vão querer me
reclassificar? Vão entrar com protesto? Então a gente fica com isso na
cabeça.
Pesquisadora: Então por mais que digam que não se pode reclassificar por
desempenho técnico é o que as pessoas mais temem.
Atleta: Normalmente quem está aparecendo muito é que chama a atenção. É
quem está em evidência.

O técnico do atleta reclassificado em Pequim coloca questões bastante

similares em sua entrevista. Ele defende uma mudança na avaliação, mas que não

poderia ser feita de uma hora para outra e nem apenas em cima de uma pessoa apenas.

Ele reconhece a necessidade de haver estudos que acompanhassem o ciclo paraolímpico

e com todos os atletas e explica o porquê:

Você pode tirar um pouco a credibilidade do sistema porque você


durante 16 anos foi uma categoria, passou por três reavaliações, e de uma
hora pra outra não é mais essa categoria? Que dados científicos você tem pra
fazer isso? Que base de estudos você tem pra fazer isso? Que base teórica
você tem pra fazer isso?” (...) Se eu quero melhorar o meu atleta vou
procurar conhecer sua deficiência para ver como posso trabalhar para que ele
tenha bom rendimento (...). Então eu não vou treiná-lo para ele não mudar de
classe?

Temos nessa fala a reivindicação por uma avaliação baseada em preceitos

técnicos e científicos. Mas, pelo menos no que diz respeito às polêmicas em torno desse

caso, as questões de ordem política estiveram sempre presentes. Para o atleta

reclassificado elas estavam relacionadas diretamente com disputas internas de poder

dentro do comitê e com a corrida dos países por medalhas. No depoimento de outro

atleta da seleção, também medalhista em Pequim, existe o reconhecimento de que “há

muitas questões políticas envolvidas”. Segundo ele, um desafio para o Brasil seria

“construir uma tradição de protestar”. De qualquer forma, as coisas já teriam mudado


93

muito com o país sendo mais respeitado pelo resultado que mostra e pelo seu grau de

profissionalismo.

Considero tanto esse caso etnográfico quanto o do atleta S10 como exemplos

interessantes no sentido de olharmos para as diferentes versões dos atores que entram

em divergência. Em depoimentos de outros atletas e profissionais ligados ao meio,

existem discordâncias sobre a forma como esses atletas se colocaram no processo e de

suas linhas de argumentação. Novamente as formulações de Boltanski (1990) ganham

valor nesta análise, na medida em que ressaltam a importância de uma metodologia que

nos faça olhar para todos os eventos e protagonistas que estão em jogo num processo,

tentado evitar a eleição de uma vítima a priori, que ficaria sozinha no foco da

interpretação. Cada caso possui seus próprios protagonistas, onde estão em jogo não

apenas ações racionais, mas também os sentimentos dos atores envolvidos nos eventos.

Para que as aproximações surjam é necessário dispor de um princípio que determine as

relações de equivalência. Mas os acordos que se constroem a partir daí não são

expressões imutáveis da ordem e do equilíbrio.

Devemos olhar para os momentos de ruptura, expressos por situações de

crise, desequilíbrio e disputa. Assumindo essa perspectiva podemos ver acordo e crítica

como momentos ligados num mesmo curso da ação. De qualquer forma, aquele que

denuncia tem o papel de mobilizar pessoas em torno de sua causa e convencê-las de sua

legitimidade e de que o que diz é verdade, como foi possível perceber nos casos

etnográficos que foram destacados. Tudo isso inclui investigar o gênero de argumentos

que são acionados e as provas que são utilizadas no sentido de valorar tudo aquilo que

pode ser considerado aceitável, normal e lícito. Esse suporte teórico-metodológico nos

permite ver como a “classificação funcional”, que agrega um esforço de racionalização

e equalização dentro da modalidade da natação - inclusive utilizando um código quase


94

matemático – pode ser apropriada e lida de diferentes formas, inclusive como arma que

os atletas, equipes e países utilizam para tentar conseguir um melhor posicionamento no

quadro de medalhas das competições.


95

Capítulo 3 - Sobre as trajetórias de nadadores paraolímpicos:

investigando os modos de viver a deficiência física.

Por meio da reconstituição de alguns pontos da trajetória de vida dos

nadadores, principalmente naquilo que se refere ao histórico da sua deficiência, busco

compreender neste capítulo as formas de engajamento dos mesmos no universo da

natação paraolímpica. Tento alcançar aqui alguns dados de caráter mais subjetivo

relacionados às variadas formas de vivenciar a deficiência física, procurando identificar

possíveis mutações de sensibilidade e identidade que podem decorrer do processo de

adesão do indivíduo a um grupo de atletas. A reconstrução desse quadro traz, também,

elementos que permitem a realização de um mapeamento sobre os benefícios materiais e

imateriais relacionados à prática da natação paraolímpica.

As variadas formas de vivenciar a deficiência física comportam, ainda, o

entendimento das diferentes concepções sobre normalidade e deficiência presentes nos

discursos dos atletas e de outros agentes ligados à natação paraolímpica. Além disso,

encontra-se recoberta neste capítulo uma interpretação relacionada ao uso da linguagem

jocosa como forma de vivenciar a deficiência em termos grupais.

3.1. Tipos e históricos de trauma como fatores de construção da subjetividade da

pessoa com deficiência.

A maioria dos atletas envolvidos no meu trabalho de campo possui uma

deficiência congênita ou adquirida nos primeiros meses ou anos de vida. Poucos são

aqueles que se tornaram deficientes físicos na adolescência ou na fase adulta. Pude

conhecer atletas com diferentes tipos de deficiência, embora as lesões medulares e


96

sequelas de poliomielite sejam mais recorrentes. Essa última se concentra naqueles que

estão na faixa etária que vai dos 30 aos 40 anos de idade. Isso parece estar em

consonância com vários relatos por parte de informantes sobre a existência de surtos de

poliomielite na década de 70 e na provável dificuldade de erradicação do vírus nos

estados do nordeste, sobretudo em áreas mais afastadas da capital.

Para os objetivos deste trabalho eu não estava interessada apenas em saber

que tipo de deficiência física a pessoa teria, mas como o próprio histórico desta mesma

deficiência poderia influenciar na construção de uma determinada visão de corpo; tema

que foi abarcado em larga medida por várias questões presentes no meu roteiro de

entrevistas. Em conversas sobre o que chamo de “histórico da deficiência” - e que não

deixa de ser também o histórico da pessoa – ouvia com recorrência a idéia de que os

possuidores de deficiência congênita ou adquirida em tenra idade lidariam melhor com

a sua condição.

O que eu chamo de “histórico da deficiência” dialoga com a categoria de

“carreira moral” apresentada por Goffman, especialmente interessante no sentido de

permitir um acesso à parte mais subjetiva da socialização. Para esse autor

As pessoas que têm um estigma em particular tendem a ter


experiências semelhantes de aprendizagem relativa à sua condição e a sofrer
mudanças semelhantes na concepção do eu – uma “carreira moral”
semelhante, que não é só causa como efeito de compromisso com uma
sequência de ajustamentos pessoais. (Goffman, 1988: 41)

Goffman afirma, ainda, que a primeira fase deste processo estaria marcada

por uma apreensão do ponto de vista daqueles considerados “normais” e da sociedade

mais ampla, para posteriormente o indivíduo entender por sua própria experiência o que

é possuir um estigma. Da dinâmica e interação entre esses momentos, surgem os


97

modelos de “carreira moral”33. No primeiro deles estariam representados os indivíduos

com um estigma congênito e que possuem um conhecimento desde cedo da sua

“situação de desvantagem”, na medida em que participaram de uma socialização mais

ampla e se depararam com os padrões que ela impõe. No segundo modelo encontram-se

os indivíduos estigmatizados que vivem protegidos dentro de um círculo familiar onde

existe um controle de quaisquer informações que porventura possam desqualificá-los.

De qualquer forma, mais cedo ou mais tarde, esse indivíduo estigmatizado passará por

um “momento crítico” em que a capacidade de proteção do grupo já não é tão eficaz. A

partir de sua “aparição” surge, então, a “ocasião para a aprendizagem do estigma”, o

que pode ser exemplificado com o início da vida escolar. No terceiro modelo temos

aqueles que se tornam estigmatizados depois de passarem por uma longa experiência

como “normais”. Com esta exposição não pretendo promover um ajustamento dessa

teoria com os dados do campo. Como veremos, os modelos de “carreira moral” não dão

conta da complexidade dos “históricos de deficiência” contidos neste trabalho. Para

alguns casos eles servem como um mapeamento inicial, mas que se desdobram em

outros desenhos de trajetórias.

Partindo de dados do campo é possível afirmar a existência de certa

homogeneidade no sentido de uma aceitação de si entre aqueles que conheceram a

deficiência muito cedo ou que nasceram com ela, como aparece em algumas histórias

que seguem. Uma delas é de uma atleta que possui uma deficiência hereditária e

degenerativa que começou a se manifestar aos três anos de idade. Ela andou até mais ou

menos os doze anos, momento em que acabou precisando fazer uso da cadeira de rodas.

Ela conta que “tudo foi muito natural” e que não teria havido o momento “eu sou

deficiente”. Juntamente com a sua família ela foi tendo um conhecimento prévio das

33
Só explicito os 3 primeiros modelos por terem uma relação mais direta com o meu trabalho.
98

prováveis mudanças motoras e dos ajustamentos corporais necessários. Dessa forma,

acha que teve uma oportunidade de se adaptar sem que se sentisse limitada.

Outro caso que coloco em destaque é o de um atleta com má formação

congênita, que mesmo não tendo desenvolvido completamente os braços e uma das

pernas, sempre foi deixado livre por sua família para experimentar as possibilidades do

seu corpo. Segundo ele, o fato de nunca ter ouvido dos seus pais a frase “você não

pode”, teria sido crucial para que ele lidasse de uma forma mais natural com suas

limitações físicas. Outro atleta que teve os membros inferiores afetados por uma seqüela

de meningite por volta de um ano de idade conta que não sabe o que é correr ou andar

dentro de um padrão diferente daquele que desenvolveu. Dessa forma o considera

normal porque não tem um registro corporal do que seria a dita “normalidade”.

Fica claro que no caso das pessoas com deficiência física está em jogo

necessariamente uma discussão sobre padrões corporais. Para aqueles que nunca

andaram, por exemplo, não haveria uma consciência motora, sensitiva e emocional de

como é se movimentar no espaço com duas pernas. Não existiriam duas referências a

serem comparadas, o que já acontece no caso daqueles que vivenciam uma

corporalidade considerada dentro de certo padrão de normalidade. Nesse sentido, o caso

de um dos atletas que se tornou deficiente físico aos 31 anos de idade é emblemático.

Em sua entrevista ele conta que tinha uma vida bastante ativa e que era praticante de

vários esportes. Depois do acidente de carro que o deixou com tetraparesia 34, diz que

“começou tudo novamente”, tendo em vista a mudança radical que ocorreu em sua vida.

Ele relata que seu processo de aceitação e adaptação foi muito difícil, situação que o

teria levado a sofrer de uma grande depressão durante mais ou menos um ano, período

esse em que ficou sem ter contato com a maioria das pessoas e sem querer sair da cama.

34
Neste caso, a paralisia afeta nervos ou músculos dos membros inferiores e superiores, mas é
incompleta, ou seja, não compromete totalmente a sensibilidade e o movimento. É justamente essa
funcionalidade residual que será trabalhada para a aprendizagem dos estilos adaptados da natação.
99

Por outro lado, ele conta também que o apoio da família e de amigos foi crucial para

que ele “saísse do buraco”. Ao discorrer sobre suas dificuldades com a deficiência

física, ressalta sobre o quanto era ativo anteriormente, tanto em termos sociais como

profissionais, o que parecia incompatível com a imagem que possuía sobre uma pessoa

com deficiência.

Através do relato de outro atleta, que sofreu uma lesão na coluna aos 17 anos

de idade quando trabalhava em uma firma de construção civil, as lembranças dessa

época dão conta de um momento onde diz ter se sentido bastante perdido e confuso,

principalmente por ter sido levado para um hospital onde não havia tratamento

especializado para lesão medular e onde ficou chocado quando ouviu dos próprios

médicos e enfermeiros que “nunca mais seria homem e nunca mais andaria”.

Posteriormente, pôde ser transferido para um hospital especializado e fazer uma cirurgia

que, segundo os novos médicos, poderia garantir que ele voltasse a andar futuramente

com a ajuda de muletas. Ele também conta que teve uma grande dificuldade de se

aceitar enquanto deficiente físico, andando de calça comprida para que ninguém olhasse

a sua perna, pois sentia vergonha do próprio corpo. Neste caso, aproprio-me das

palavras de Goffman (1998:43-44) acerca do seu terceiro modelo,

Tais indivíduos ouviram tudo sobre normais e estigmatizados muito antes de


serem obrigados a considerar a si próprios como deficientes. É provável que
tenham um problema todo especial em identificar-se e uma grande facilidade
para se autocensurarem.

Mas da mesma forma que a questão da não aceitação da deficiência surge

nestes casos, ela também está presente nas trajetórias de pessoas que nasceram com

deficiência ou a adquiriram desde cedo, como no exemplo de um atleta que manifestou

a poliomielite aos três meses de idade e que fala de suas dificuldades, principalmente no
100

período da adolescência, em aceitar o seu corpo e sua limitação motora ainda que ela

fosse branda. Parece que nesses casos podemos falar de uma característica em comum

nas trajetórias de vida desses atletas que pode ter contribuído para a forma como

elaboraram – pelo menos inicialmente - a sua condição de pessoa com deficiência: a

experiência sensível com um determinado parâmetro de “normalidade”, seja no sentido

de uma experiência anterior como não-deficiente, seja no sentido de uma proximidade

das fronteiras entre deficiência e não-deficiência proporcionada por um pequeno grau de

comprometimento físico.

Essa temática que trata do peso que o tipo de trauma físico e o momento em

que ele ocorre teriam na construção da pessoa com deficiência também foi colocada nas

entrevistas realizadas com outros informantes, como técnicos e classificadores

funcionais. Um dos técnicos entrevistados comenta o seguinte a esse respeito:

Você nascer com a deficiência, ter a deficiência mais novo e crescer


com aquela deficiência, você sabe o que vai estar acontecendo a cada ano, a
cada dia, como você vai passar. Você não ser um deficiente e ter uma
deficiência depois gera todo um conflito interno que pode acarretar numa
mudança de personalidade também.

Mas logo depois pondera dizendo que esta questão depende mesmo é da

personalidade, do conhecimento e aceitação de cada um. Uma das classificadoras

entrevistadas acredita que tudo aquilo com o qual uma pessoa lida desde cedo, torna-se

mais fácil porque elas não se conheceram de outra forma. No caso de uma deficiência

física, a pessoa teria uma potência física específica e aos poucos iria ampliando o seu

repertório dentro dos próprios limites de sua corporalidade. Quando uma pessoa “se

torna” deficiente ela necessariamente irá comparar sua atual condição com aquilo que

vivenciou anteriormente. Mas apesar de reconhecer as dificuldades de aceitação do

“corpo diferente” por parte daqueles que “se tornaram” deficientes, ela ressalta que isso
101

não delimita tudo, ao contrário, se junta a outras questões como o conceito que a pessoa

tem sobre deficiência e o meio em que ela vive. Dessa forma, percebi que o diálogo

sobre deficiências congênitas e adquiridas estava longe de ser homogêneo; ao contrário,

era atravessado por uma série de variáveis onde a frase “depende de cada pessoa” surgia

muitas vezes para dar a tônica dessa complexidade, colocando em xeque qualquer tipo

de modelo mais fechado sobre a questão.

Ao falar sobre esse mesmo assunto com outra classificadora, vejo novamente

pontos de relativização em relação ao debate. Ela acredita que ainda que uma pessoa

com deficiência congênita conheça a deficiência desde cedo, ela pode assim mesmo ter

grandes dificuldades de lidar com a sua condição se o seu comprometimento físico for

muito grande. Segundo ela, uma pessoa nessa situação sempre foi considerada como

“diferente” e não deixaria de se questionar sobre as coisas que poderia fazer, desejando,

inclusive, de forma áspera e revoltada, estar na condição de uma pessoa sem deficiência.

Mas ela alerta que a revolta também pode partir de uma pessoa com uma deficiência

adquirida. Ela pode ou não querer mudar de atitude num momento posterior,

procurando conviver bem com a sua nova condição.

Nesse último depoimento como em outros são colocadas em relevo algumas

questões da ordem da individualidade, onde importam sobremaneira o “posicionamento

da pessoa”, sua vontade e sua personalidade. Aqui aparece claro o peso das

subjetividades na maneira como a pessoa irá lidar com a sua deficiência corporal. Mas

uma vez destacado o fato de que estamos tratando de seres humanos únicos, não deve

ficar obscurecido o processo de construção das subjetividades, que nunca ocorre de

maneira isolada. Como afirmam Berger e Luckman (1973), apesar da “experiência de

estar no mundo” ser sempre original para cada indivíduo, devemos lembrar que certo

número de dados sobre este mesmo mundo já se encontram disponíveis e são


102

partilhados com outros indivíduos. Parte desses dados remete à esfera do cotidiano e da

vida prática e material, onde a família e as relações que se constituem sob o seu domínio

costumam exercer um importante papel mediador.

3.2 - Desvendando o papel da família na trajetória do atleta.

Não é necessário discorrer aqui sobre o peso que o tema da família possui no

campo da Antropologia. Nesta tese ela não se apresenta como um grande tópico

articulador, mas tangencia as questões mais centrais da corporalidade, emoção e

sociabilidade. Para os objetivos deste trabalho interessa olhar a família como uma

mediadora no processo de socialização do indivíduo, fornecendo elementos para a

construção de uma determinada visão de mundo.

Adicionando dados do campo, pude ver que independentemente do tipo e

grau de deficiência que o atleta possua, muitos foram categóricos em afirmar a

importância da família ao longo de suas trajetórias. Ainda que a maioria dos

entrevistados considere que aqueles que já nascem com um comprometimento físico ou

o adquirem muito cedo tendem a lidar melhor com a deficiência, este dado sempre

dialoga com as diferentes formas de intervenção familiar na vida dessas pessoas.

Como foi mencionado anteriormente, existem diversos casos de pessoas com

sequelas de poliomielite na natação paraolímpica e tive a oportunidade de entrevistar

alguns componentes da seleção brasileira nesta condição. Estes seriam exemplos de

pessoas que conheceram a deficiência muito cedo, nos primeiros meses ou anos de vida.

Nesse conjunto, podem ser encontrados diferentes níveis de comprometimento físico,

dos mais leves aos mais severos, onde a utilização da cadeira de rodas passa a ser uma

necessidade na maior parte do tempo.


103

Numa das primeiras entrevistas que realizei na cidade de Natal ouvi o

depoimento de um atleta que foi diagnosticado com poliomielite aos nove meses de

idade. No seu relato ele relembrou todas as dificuldades pelas quais a sua família passou

para que ele pudesse receber tratamento, pintando um quadro que me possibilitou ter

uma visão mais ampla dos processos de adaptação, que inclui aqueles que orbitam ao

redor da pessoa com deficiência.

Os atletas pesquisados são em sua maioria oriundos de famílias com poucos

recursos financeiros e pouca instrução escolar, o que parece ser mais verdadeiro,

inclusive, para aqueles que treinam em Natal, como já mencionado no primeiro

capítulo. Alguns saíram de cidades do interior do estado para procurar tratamento na

capital, necessidade que se junta à busca por melhores oportunidades de trabalho e

qualidade de vida, de forma que as mudanças – ainda que possam ser feitas por etapas –

geralmente se colocam para todos os membros da família. Dessa forma, o aprendizado

sobre a deficiência passa a ser uma tarefa não só de uma pessoa, mas de todo um grupo

familiar. Aqui, estou falando de um aprendizado que é adquirido a partir do contato com

círculos mais amplos. De qualquer forma, é a própria família que fornece os dados

iniciais para que o indivíduo elabore um entendimento sobre a deficiência. Essa

realidade se aproxima daquilo que Berger e Luckman (1973) entendem como

“socialização primária” que ocorre na infância e marca a transformação do indivíduo em

um membro da sociedade. Neste período, existiria uma forte assimilação por parte da

criança das perspectivas daqueles com quem ela convive e do mundo ao redor destas

pessoas. Esse seria um processo cognoscitivo, mas também emotivo, e é nesse duplo

registro que o indivíduo passa a identificar os “outros significativos” e as definições de

mundo que os acompanha. Neste mesmo período são disponibilizadas para o indivíduo
104

as primeiras informações sobre o desempenho de alguns papéis que, por sua vez,

fornecem elementos para a construção de identidades.

Embora a imagem do despreparo e da falta de conhecimento a respeito da

deficiência seja a tônica dos depoimentos, ela pode ser amenizada e até positivada pelo

assentimento por parte dos atletas de que os pais ou familiares mais próximos teriam

tido a iniciativa de procurar apoio e informações sobre o assunto. Para um atleta que

passou a ser deficiente ainda na adolescência, seu testemunho é bastante revelador dessa

intercessão familiar. Ele conta que não foi nada fácil enfrentar a nova situação, pois não

teve o apoio de amigos que teriam se afastado e se aproximavam dele com o “olhar de

piedade”35. Ele resolveu, então, que não aceitaria mais aquelas visitas e destaca que, por

outro lado, teve o amplo apoio de sua mãe, irmãos e esposa. Ele afirma que muitas

pessoas que conhecem uma pessoa sem deficiência e depois a vêem em outra situação

têm muita dificuldade de lidar com a nova imagem do outro. Segundo ele, “elas querem

ver uma pessoa sã”, mas agora precisam se confrontar com aquele que já não possui as

mesmas habilidades de antes.

Na já citada entrevista realizada com o nadador com má-formação congênita

surge outro fator interessante que tem a ver com dados de uma sociabilidade mais ampla

e coletiva. No seu relato são ressaltados os benefícios de ter vivido sua infância e

adolescência numa cidade pequena, onde teve a oportunidade de conviver com o mesmo

grupo de pessoas durante muito tempo de sua vida. Ainda que tenha sido objeto de

grande curiosidade por parte da vizinhança nos primeiros meses de vida - tendo em

vista a sua especificidade corporal – ele afirma não ter tido nenhum problema em

termos de socialização. Ele acredita que há muitos casos nos centros urbanos onde a

pessoa fica trancada dentro de casa. No caso dele, “ia sozinho para os lugares. Não se

sentia preso, nem incapaz. Sempre brincou junto com todos, nadava com eles...”. Ele
35
Esse tema específico da piedade será melhor abordado no capítulo 4.
105

conta que entrou com certo atraso na escola, não porque a família quisesse escondê-lo,

mas porque tinham cuidados para apresentá-lo a esse novo mundo. A sua própria tia foi

a primeira professora dele no colégio, preparando a turma para receber o “coleguinha

diferente”. Ele relata que a princípio a sua entrada na escola causou grande impacto nas

crianças. Mas a liberdade para experimentar esteve presente também nesse ambiente.

Ele desenvolveu uma habilidade própria para segurar o lápis e escrever, sem que

houvesse a interferência de outra pessoa. Ele considera que os seus pais foram muito

felizes em não tentar impor nenhum método para ele. Diferentemente da maioria dos

atletas esse nadador pertence à classe média. É ele mesmo que aponta esse dado como

um dos fatores que o teria beneficiado no seu desenvolvimento. Foi com o uso da

prótese que começou a andar aos três anos de idade. Em razão do seu crescimento ela

precisava ser trocada ao menos uma vez por ano. Pertencer a uma família de classe

média permitiu que ele pudesse ter acesso a esse recurso sem necessitar esperar para ter

uma de graça.

Na medida em que ia realizando as entrevistas e estabelecendo um contato

maior com os meus informantes, pude observar que outros pontos para além da questão

da adaptação e da carência financeira e estrutural estavam em jogo. Eram eles: a

realização de cirurgias experimentais com tratamentos dolorosos e a falta de informação

sobre a deficiência. A memória de dores atrozes ligadas aos procedimentos médicos é

uma marca constante nos relatos, situação que também engloba aquelas pessoas com

pouco comprometimento físico-motor.

Nas ocorrências mais graves da deficiência não é raro encontramos aqueles

que declaram ter se arrastado em algum momento de suas vidas, usando geralmente o

apoio das mãos e dos joelhos, na posição que eles costumam denominar de

“cachorrinho”36, onde a pessoa constrói um tipo de mobilidade que não deixa de ter uma
36
Esta posição está geralmente associada ao fato das pessoas terem as suas pernas dobradas e cruzadas.
106

eficácia motora dentro de um determinado parâmetro corporal. De qualquer forma,

existe sempre uma expectativa relacionada à possibilidade de andar, ou mesmo de

“ambular”37. Um dos atletas falou da realização de cirurgias em locais não

especializados onde eram utilizados procedimentos arcaicos como a técnica de

estiramento dos membros inferiores que consistia na introdução de uma espécie de ferro

nas pernas (realizado cirurgicamente) que depois passavam a sustentar sacos de areia

para que todos os tendões comprometidos pudessem ficar esticados. Depois dessa

intervenção não demorou muito para que as pernas voltassem a encolher e tudo voltasse

à estaca zero. Só posteriormente pôde fazer outra cirurgia num hospital especializado e

com outra técnica, o que possibilitou uma melhora expressiva na mobilidade.

Para além da questão do caráter experimental das cirurgias, muitos atletas

relembram a angústia de ter que passar boa parte da infância e adolescência em

hospitais e centros de reabilitação, revelando mais uma situação onde a família costuma

ser mobilizada. Outro ponto interessante a ser destacado dessas histórias é que no

momento em que se chega a um diagnóstico, muitas vezes as implicações da deficiência

são supervalorizadas, e por vezes estão associadas nas falas de médicos a outros tipos de

deficiência que não foram comprovadas. Sendo assim, não é raro encontrar casos em

que a comprovação da deficiência física levou a suposições em torno de deficiência

mental, como no caso de um atleta que teve a poliomielite associada a disfunções de

caráter intelectual. Aliás, muitos informantes revelam que nos seus contatos sociais

cotidianos se deparam com pessoas que olham para a deficiência física e fazem uma

associação com uma deficiência mental, chegando ao ponto de serem ignorados por

aqueles que imaginam não ser possível conversar com eles.

Logo no início da minha pesquisa de campo tive conhecimento de que a

maioria dos atletas que eu estava conhecendo e que faziam parte da seleção brasileira
37
Andar com o auxilio de bengalas. Encontramos o termo “muletar” no caso do uso de muletas.
107

havia começado a nadar visando à reabilitação motora. Nas histórias que eu ia ouvindo

parecia haver um roteiro que se repetia, onde quase invariavelmente estava presente a

figura do médico, profissional que teria levado em primeiro lugar o conhecimento sobre

a deficiência para o paciente em questão e para sua família. Tanto nos casos de

deficiência congênita, como nos casos em que a pessoa se tornou deficiente

posteriormente - independentemente do período da vida em que isso acontecia – estava

presente a prescrição da natação como um tipo de terapia para a reabilitação. Durante a

minha pesquisa ouvia os atletas e o pessoal da área técnica falarem da maneira como o

meio líquido permitia uma mobilidade e eficiência motora para o corpo da pessoa com

deficiência física que não seria possível na interação com outro meio38.

Nesse sentido, a entrada no “universo” das pessoas com deficiência se deu

para muitos de uma maneira circunscrita à concepção médica ou terapêutica da

deficiência, muito menos voltada para questões mais específicas da ordem da

sociabilidade. Isso não constitui uma regra para a entrada no mundo do esporte, mas

sem dúvida é um dado comum em muitas trajetórias investigadas39. De qualquer forma,

essa realidade é ampliada quando a pessoa passa a participar de entidades que

congregam o enfoque da terapia com a idéia de inclusão social, utilizando o esporte

como ferramenta para esse fim. Nesse momento surge uma oportunidade para que a

deficiência possa ser interpretada por outros ângulos. Esse processo comporta mudanças

sobre a visão de mundo desses indivíduos que extrapolam as definições concebidas no

seio familiar, embora esse ambiente seja geralmente o ponto de partida para a mutação

que está em jogo. Este momento da vida do atleta pode, então, ser comparado ao que

Berger e Luckman concebem como “socialização secundária” que diz respeito a


38
É sabido que a natação não é o único esporte considerado como reabilitador. A equinoterapia, por
exemplo, tem desempenhado importante papel no trabalho de reeducação e reabilitação motora e mental,
mas ainda não se encontra tão acessível como a natação.
39
Discuto mais à frente a possibilidade de uma clivagem entre os atletas da “era dos reabilitados” pela
natação e aqueles que começaram a praticar o esporte por meio de uma entidade cujo objetivo central é
formar atletas de alto rendimento.
108

“qualquer processo subseqüente que introduz um indivíduo já socializado em novos

setores do mundo objetivo de sua sociedade” (1973:175). Nesse sentido, não podemos

desprezar o peso de outras instituições como a escola e igreja, embora nesse trabalho o

eixo da questão esteja no cruzamento da família com as associações esportivas.

A concepção do esporte como ferramenta de reabilitação social (ou de

inclusão social) não se restringe ao universo das entidades voltadas para a pessoa com

deficiência. Ainda que haja diferenças no conteúdo da proposta de “reabilitação social”,

é possível aproximar num exercício comparativo a realidade do esporte para pessoas

com deficiência com aquela do esporte “convencional”. As “escolinhas de futebol”

podem ser consideradas exemplos de projetos com um duplo sentido: ao mesmo tempo

em que estão voltadas para a descoberta de novos talentos, também se colocam como

uma alternativa de sociabilidade em regiões com altas taxa de criminalidade, sobretudo

no contexto das metrópoles urbanas como aponta Gärtner (2008) ao analisar o esporte

como prescrição para a questão da violência juvenil em intervenções realizadas no

Brasil, Sudão e Estados Unidos. Um ponto similar a esse pode ser encontrado na

etnografia de Wacquant (2002) sobre o boxe. Ele realiza um mapeamento da situação

social da área onde se encontra o salão onde treina, deparando-se com uma realidade

urbana marcada pela degradação do ambiente, pela segregação e pela violência. Sua

descrição do clube como uma “ilha de estabilidade e de ordem” e como o lugar de uma

“sociabilidade protegida” e que tem o poder de afastar os boxeadores dos “males da

rua” é bastante significativa para esta discussão.

Como vimos, as intervenções familiares na vida dos atletas são descritas

geralmente de uma maneira positiva, mas é importante ressaltar que o campo de

possibilidade que advém dessa esfera é repleto de variáveis, que atuam de forma

decisiva na construção das subjetividades dos atletas. O contato com entidades que
109

congregam pessoas com deficiência – muitas vezes feito com a ajuda da família do

atleta - amplia o universo de intervenção do indivíduo, antes considerado muito

limitado. Ainda assim, essa “abertura”, que tem a ver com a construção de um novo

olhar sobre a deficiência, não está previamente dada. Elementos de vários contextos

onde o indivíduo se insere entram em “negociação”, de maneira que o contato com o

novo círculo social pode trazer desdobramentos tensos e conflituosos na relação

familiar. Um exemplo para essa questão pode ser dado pela prática da superproteção dos

pais e demais familiares em relação à pessoa com deficiência. Sobre esse ponto

reproduzo o trecho de uma entrevista realizada com um atleta:

Atleta: Quando existe um caso desses na família eles sempre tratam... Você
se torna uma pessoa especial porque qualquer olhar, qualquer coisa é virado
pra você. Você sempre se torna o centro das atenções. E pela minha família,
pelo que a minha família é, uma família batalhadora, na verdade uma família
humilde e honesta também, eu nunca quis me aproveitar da minha
deficiência só pra poder estar ali o tempo todo querendo ser protegido, mas
sempre na família existe isso. Se tem um deficiente ele passa a ser o centro
das atenções. E aí de acordo com o seu desenvolvimento se você se deixar
muito apegar, você mesmo vai criar um problema futuro pra você. (...)Você
vai sempre ter aquela redoma com você mesmo e vai ser difícil você
conseguir...
Pesquisadora: E para você quem quebra essa redoma?
Atleta: É a própria pessoa porque aí vai depender de você porque o mundo, a
vida, tá aí pra ensinar e você tá aí pra aprender.

Outra imagem paradigmática desse tema veio até mim através da fala de uma

classificadora funcional que por muito tempo também trabalhou como treinadora. Ela

explicita o quanto a prática da natação propicia um ganho de autonomia da pessoa com

deficiência em relação aos outros indivíduos e conta que não são raros os casos aonde a

pessoa chega à entidade para aprender o esporte com alto grau de dependência em

relação às tarefas do cotidiano, situação que se modifica ao longo do tempo, na medida

em que o olhar sobre a ação dos “outros iguais” permite a reelaboração da própria auto-

imagem. Ela conta que teve em suas mãos um atleta com grande potencial para a
110

natação competitiva, mas que teria abandonado o esporte por ter sucumbido às pressões

que partiam de sua mulher. Essa informante descreve para mim o momento em que o

atleta chega à entidade todo cercado de cuidados e com alto grau de dependência da sua

companheira, condição que vai se modificando na medida em que ele percebe nos

outros colegas habilidades corporais que nunca tinha imaginado possuir. Na visão da

classificadora, tal percepção teria impulsionado o atleta a se desvencilhar ao longo de

algum tempo de boa parte dos cuidados que eram dispensados a ele, ocasionando

insatisfação por parte da sua esposa. Esse seria só um exemplo de como a prática da

superproteção apresenta a dependência como uma via de mão dupla, aonde vem à tona

as necessidades de cunho afetivo de pais e familiares, que muitas vezes se sentem

perdidos ao serem “dispensados” de antigas funções de auxílio voltadas para a pessoa

com deficiência.

Ao adentrarmos o universo da natação competitiva de alto rendimento,

vemos que os atletas se deslocam constantemente ao longo do ano para participar de

competições tanto nacionais quanto internacionais. Este parece ser um importante fator

para o enfraquecimento ou até mesmo o rompimento com as relações de dependência,

tendo em vista que os membros da família dificilmente possuem recursos financeiros

para acompanhar os atletas, e, mesmo que os tenham, o acesso a eles se dá de outra

forma, pois o convívio acaba ficando restrito às equipes credenciadas para o evento40.

No período em que estava efetivamente imersa no trabalho de campo não

tive a chance de me deslocar para acompanhar as competições. Recordo-me que parecia

existir uma espécie de excitação no ar nos dias que antecediam a viagem e que era capaz

de contagiar, inclusive, aqueles que não participariam da competição, como era o meu

caso. De qualquer forma, não deixava de ter acesso posteriormente a várias conversas

40
No caso de pessoas com um comprometimento físico maior existe a possibilidade de que ela tenha um
acompanhante para levar para as competições, que pode ser alguém da própria família.
111

nas quais os atletas falavam de suas experiências no evento. Os comentários diziam

respeito, obviamente, aos resultados concretos da competição, mas também ao que cada

um havia provado em termos de uma ampliação da visão de mundo, da expansão do

círculo social, da observação de outras possibilidades de vivência corporal, do aumento

da autonomia no cotidiano e da experimentação afetiva e sexual.

Com o término do meu campo na cidade de Natal tive a oportunidade de

acompanhar algumas competições, – principalmente quando aconteciam na cidade do

Rio de Janeiro – assim como alguns eventos paralelos que contavam com a participação

dos atletas que eu já conhecia e de outros que eram novos para mim. Foi dessa forma

que pude perceber de uma forma um pouco mais sensível o clima presente dentro das

competições, reelaborando de uma forma muito mais intensa as sensações e emoções

que antes se limitavam à simples vontade de acompanhar o evento de perto.

Observando de perto esses eventos pude ver com mais clareza como, uma

vez longe da família, os atletas têm a oportunidade de sair de um determinado formato

já conhecido de relação social, se defrontando com novos modelos e padrões de

interação. Ainda que estes não sejam a marca do seu cotidiano quando ele retorna, os

registros dessas novas experiências não se perdem e passam a fazer parte da sua

trajetória de vida. Nesse contexto, as novas redes de sociabilidade que se articulam são

consideradas pelos atletas como um dos grandes benefícios que o esporte pode

proporcionar, como veremos mais detidamente no item a seguir.

Acredito que a superproteção, como marca mais evidente das tensões

existentes entre o atleta e sua família, também fala sobre os conflitos que têm a ver com

certo grau de renúncia dos indivíduos em relação aos comandos familiares, em prol da

construção de um projeto individual (Velho, 1999a). Dessa forma, me aproprio de três


112

questionamentos feitos por esse mesmo autor para pensar o papel da família em

camadas médias altas:

(...) qual a maior ou menor viabilidade de um projeto individual efetivar-se


em função das relações sociais que o contêm? Como resolver a permanente
tensão entre aspirações individuais e o caráter englobador, incorporador da
família? Por outro lado, como realizar um projeto sem o apoio e legitimação
dos parentes e familiares? (Velho, 1999a:118).

Embora eu tenha captado no campo a existência de algumas tensões

relacionadas a diferentes expectativas de vida, não tive conhecimento de nenhum caso

onde o desfecho tenha sido um rompimento do atleta com o seu círculo familiar. Ao

contrário, parecia haver uma saída “negociada”. Mesmo considerando que o clube e a

família marquem diferentes domínios da vida do atleta, e que possa haver entre eles

conflitos relacionados ao atendimento de diferentes demandas, era perceptível a

interrelação entre os dois campos. Não tive muito acesso à dinâmica de interferência do

esporte na vida doméstica e íntima do atleta. A maior parte das minhas informações

dizia respeito ao tema da superproteção familiar, como assinalado anteriormente. Além

disso, em várias histórias havia a expectativa de como poderia ser resolvido o

adiamento de outros projetos pessoais como a maternidade, a conclusão dos estudos ou

até a mesmo a formação em uma área profissional alternativa; funções muitas vezes

incompatíveis com o nível de dedicação exigido pelo esporte de alto rendimento.

Na posição na qual eu me encontrava, tinha um maior acesso à circulação de

familiares no espaço da associação esportiva. Não são raros os casos em que um parente

acompanha de perto a carreira do atleta, podendo prestar uma assistência cotidiana mais

simples, como levá-lo de carro ao local de treino, como também desempenhar o papel

de assessor ou até mesmo de empresário. Era por meio desse trânsito que ocorria nas

entidades, mas também em competições e demais eventos, que pude perceber mais
113

claramente a influência da família nos assuntos profissionais do atleta. Penso que esse

alto grau de envolvimento tenha relação também com o nível de solidez da carreira dos

atletas alvos da minha pesquisa. A conquista de uma autonomia financeira por meio do

esporte possibilita, muitas vezes, o sustento não somente do nadador, mas do grupo de

parentes mais próximos. Nesse momento, o que antes era uma simples aposta num

talento, começa a trazer benefícios mais concretos que permitem, inclusive, que alguns

membros da família abandonem antigas funções para se dedicar a alguma atividade que

ajude a sustentar o ciclo de produtividade do atleta.

É importante ressaltar que esse tipo de presença e investimento familiar não

anula o raio de ação das entidades, ao contrário, é um combustível essencial para o

funcionamento das mesmas. Muitas vezes os clubes não possuem todos os recursos

necessários para sustentar o processo de profissionalização do atleta. Assim, pelo menos

numa fase inicial, onde ainda não existe um retorno econômico, os nadadores precisam

contar com algum tipo de ajuda financeira por parte dos familiares, ainda que ela seja

mínima. O termo “paitrocínio”, também usado no contexto do esporte olímpico, é usado

pelos atletas para fazer alusão a esse tipo de investimento.

Todavia, esse não é o único combustível importante para as entidades. Elas

também se nutrem da carga emocional proveniente das relações entre os atletas e seus

familiares. A esse respeito, lembro de uma coletiva de imprensa realizada com alguns

atletas que haviam sido convocados para as Paraolimpíadas de Pequim. Neste dia, não

havia somente a presença de nadadores, mas também de dois halterofilistas e de um

corredor. O evento, realizado no salão de um hotel da cidade e reservado apenas para

convidados, tinha como finalidade divulgar a lista dos atletas daquela entidade que

participaria dos Jogos e fazer um pequeno balanço do desenvolvimento do esporte

paraolímpico no estado do Rio Grande do Norte. Para além de alguns jornalistas, a


114

platéia era composta basicamente por familiares. Fiquei sentada ao lado da mãe de um

nadador e dirigente da entidade. Um dos vídeos apresentados naquele dia mostrava

imagens de vários momentos da carreira desse atleta. Numa delas ele aparecia chorando

depois da conquista de mais uma medalha nos Jogos de Atenas. Ao meu lado, chorava

também a sua mãe ao rever a trajetória do filho. Fico sabendo depois que aquele vídeo

tinha alguns anos e que não era a primeira vez que ela o assistia e que tinha aquele tipo

de reação. Ao mostrar as dificuldades iniciais do percurso do atleta por meio dos

depoimentos de amigos e familiares, assim como suas posteriores conquistas, as

emoções que envolviam aquela história pareciam ser sempre atualizadas.

A manifestação do afeto familiar também esteve presente em outros

momentos. Tive a oportunidade de acompanhar os nadadores no dia em que

embarcaram no aeroporto de Natal para participar dos Jogos de Pequim. Novamente a

imprensa local estava presente para cobrir o evento. Não me lembro de ter sido feita

nenhuma foto dos atletas juntos enquanto delegação. Por outro lado, havia um grande

interesse de todos, principalmente da mídia, em registrar o atleta com os seus familiares.

Parecia haver um acordo tácito sobre a necessidade de reservar um tempo para o

estreitamento daqueles laços antes dos atletas ficarem quase um mês afastados da

família.

É interessante ver como essa carga afetiva é canalizada para dentro do

movimento paraolímpico. Acredito que haja por parte das entidades e da mídia um

reconhecimento da força das relações familiares na construção do atleta. Não é a toa que

ouvia tantas vezes em reuniões – e principalmente por parte daqueles que estavam numa

situação de comando – a ideia de que a associação poderia e deveria ser considerada

como uma família. Não é também por acaso que uma das imagens mais veiculadas da

torcida da natação brasileira em Pequim era a da mãe e a da tia de um atleta. Sempre


115

vestidas de verde e amarelo e tendo em mãos uma bandeira do Brasil, elas não

apareciam somente nas provas em que ele participava, mas passaram a ser, pelo menos

midiaticamente, símbolos do apoio familiar.

3.3 “O corpo é o de menos. Eu ganhei muito mais que isso. O esporte me deu

tudo”: Analisando os discursos sobre os benefícios da prática do esporte

paraolímpico.

Na ocasião em que montei o meu roteiro de entrevistas já estava fazendo o

trabalho de campo havia quase um mês. Ao elaborar as questões relacionadas mais

diretamente à corporalidade do atleta fui influenciada pela temática de uma

potencialidade física específica presente em documentos voltados para a classificação

no esporte paraolímpico, mas também pela temática da reabilitação. Ao mesmo tempo,

me inspirava na noção de “educação dos sentidos” desenvolvida por Wacquant, nos

termos em que discute a prática do sparring como uma forma de reeducação do corpo,

das emoções e dos sentidos41. Mas o fato é que fui surpreendida pelos meus informantes

ao perceber que em suas declarações a questão da corporalidade era muito pouco

tematizada. Eu tinha a expectativa de receber depoimentos que pudessem confirmar em

alguma medida o poder da transformação física que, até então, eu imaginava ser o

principal benefício da prática do esporte. Na verdade, um tratamento da temática do

corpo que se baseava em considerações mais estritas sobre a fisicalidade não se

sustentou no contexto da minha pesquisa. Quando apresentava aos meus informantes

questões que se alinhavam a essa concepção era prontamente levada por eles a pensar

em outros aspectos que envolviam a prática esportiva. Mas o fato é que o que chamo

41
“Em primeiro lugar o sparring é uma educação dos sentidos e, sobretudo, das faculdades visuais; o
estado de urgência permanente que o define suscita uma reorganização progressiva dos hábitos e das
capacidades perceptivas. (Wacquant, 2002: 107).
116

aqui de “outros aspectos” era considerado por eles como justamente a parte mais

importante dos ganhos relacionados ao esporte.

Na fala de um atleta “o esporte tem uma função muito agregadora de

valores, de relações, de reabilitação social, física e mental. (...) O bom do esporte são as

relações”. Em sua opinião, os ganhos principais se dão nesse sentido, porque o ganho

físico a pessoa poderia conseguir com outra atividade, como por exemplo, praticando

musculação numa academia de ginástica. Antes dos benefícios de ordem física e

corporal, o incremento das relações interpessoais surge em destaque e parece ser o

grande promotor de um ganho mais emblemático: o aumento da auto-estima. Esse fator

é apontado por muitos como o mais significativo. De acordo com a opinião de outro

atleta,

A auto-estima melhora muito porque ele vê que por mais que ele
tenha a deficiência ele pode sorrir porque a gente sabe que muitos são
revoltados. Mas aí quando você olha para a sua deficiência perto de muitas
não é nada (....). Você pára de reclamar da vida e vai em busca dos seus
sonhos. Com a auto-estima em alta o resto vem depois com mais facilidade.

Um depoimento dado por outro atleta aponta para uma perspectiva similar a

essa, onde a identidade de atleta paraolímpico é positivada.

A natação paradesportiva é um mundo maravilhoso, porque é um


mundo de desafios, descobertas, possibilidades. Você tem a oportunidade de
conviver com outras pessoas, outros deficientes. (...) Você chega num lugar
desses e a primeira coisa que é posta em xeque é a questão da auto-piedade.
Ver os outros com limitações diferentes te faz aprender muito.

Outro nadador recoloca questões similares e elenca três pontos que seriam

em sua opinião os principais ganhos que uma pessoa com deficiência pode ter com o

esporte paraolímpico:
117

O primeiro deles é a inclusão, sem sombra de dúvida. O segundo


é que a pessoa vai sair de casa e ela vai entrar em um mundo onde vai ver
nas outras pessoas exatamente aquilo que ela tem. Vai estar num meio onde
a maioria das pessoas tem deficiência. Ela vai perder o medo de mostrar a
própria deficiência. Depois acha que vem saúde, vontade de fazer algo
diferente, em se tornar atleta. O esporte é muito transformador das coisas, da
vida das pessoas. Para quem não tem muitas ambições no esporte vai trazer o
coleguismo, amizade e outros benefícios.

Essas falas são representativas do quanto a questão da convivência com

quem eles chamam de “iguais” pode favorecer a construção de outra percepção de si

mesmo. Mas da mesma forma que temos a marca da igualdade entre eles, também é em

relação à percepção da diferença que essa construção pode se dar. As dificuldades e

limitações relacionadas a certa condição física podem ser relativizadas através do olhar

lançado para uma pessoa que possua uma deficiência física considerada mais grave ou

comprometedora. Essas distinções podem ir além da questão corporal, como aparece no

momento em que o informante afirma que as perspectivas em relação ao esporte não

seriam as mesmas. Esse seria apenas um dado dentre outros que desafia uma construção

da natação paraolímpica como uma comunidade de iguais42.

Outros tipos de ganhos são citados nos depoimentos acerca dos benefícios do

esporte. Um deles é a ascensão econômica. A compra da casa própria, do carro e de

outros bens materiais são também considerados aspectos de um reconhecimento social,

uma vez que podem representar as pessoas com deficiência como sendo

economicamente ativas. Os ganhos dessa ordem são ressaltados principalmente – mas

não exclusivamente - pelos atletas detentores de patrocínio.

Na primeira vez em que visitei a casa de um dos atletas de renome da

seleção brasileira para entrevistá-lo ele me mostrou com orgulho todos os cômodos

distribuídos por dois andares. Depois de contar pelo menos uns quatro quartos, fiquei

42
Essa questão será aprofundada no quarto capítulo através da discussão da constituição de grupos e de
identidades internas.
118

curiosa sobre o real número de moradores da casa. Ele me contou que nem todos os

quartos estavam ocupados e que o objetivo não era exatamente este, mas simplesmente

o de reproduzir concretamente a casa com a qual ele havia sonhado um dia. Essa casa se

situava num bairro pobre da cidade de Natal, do qual ele nunca tinha saído mesmo

tendo uma carreira bem sucedida no esporte paraolímpico. Ela foi construída a partir da

casa de poucos metros quadrados onde morava anteriormente. Um pequeno banheiro

perto da cozinha é preservado até hoje e serve como um registro do passado e de tudo o

que ele conquistou. É este mesmo atleta que fala o seguinte sobre os ganhos que teve no

esporte, quando solicito que ele diga algo sobre a sua corporalidade: “Eu tive aumento

de massa muscular. Fisicamente foi só isso. Mas se eu for aqui citar o que me trouxe

intelectualmente, de auto-estima, foram muitas coisas”.

Outro nadador, também experiente e com uma carreira e situação financeira

estáveis, falava muito da sua casa e do investimento que tinha feito nela, principalmente

com reformas voltadas para a acessibilidade. Apesar de alguns convites feitos por ele,

não cheguei a conhecer a sua casa, por uma série de desencontros que ocorreram. A

compra de um imóvel, que demonstra a capacidade de lidar positivamente com o

dinheiro era bastante valorada pelos atletas. Aqueles considerados perdulários

costumavam ser bastante criticados pelos colegas.

Em uma das reuniões em que estive presente – que tinha como objetivo dar

informações aos atletas sobre as novas diretrizes da entidade e organizar os últimos

detalhes para a participação em uma competição – o presidente da associação declara a

felicidade que sente em ver o pátio cheio de carros, dizendo que aquela imagem era um

demonstrativo de uma melhor condição de vida que muitas atletas gozavam. Outro

atleta e associado ressalta em seguida a importância daqueles com uma situação

financeira mais estável no sentido de ajudar os que ainda permanecem carentes,


119

principalmente dando carona para os treinos. Ele também convoca todos para se

inspirarem no sucesso dos seus companheiros. Esse tom marcou o início dos debates

naquele dia, mas também esteve presente em outros momentos do campo. Esse discurso

se mostrava como uma tentativa de unir o grupo depois que alguns atletas haviam

recebido propostas de patrocínio por parte de um empresário que não era ligado à

associação à qual eles pertenciam. Sem dúvida, o carro aparecia como uma marca

importante da ascensão social, como pude ver em outros momentos. Ter um carro

adaptado para o próprio atleta dirigir era uma das formas de demonstrar poder

aquisitivo, assim como uma maneira de mostrar mais uma habilidade física e um poder

sobre o próprio corpo.

As questões mais estritas de fisicalidade não deixavam de se apresentar,

ainda que fossem sempre tematizadas em segundo plano. O conhecimento do próprio

corpo e o aumento da autonomia eram os elementos mais importantes de uma descrição

dos benefícios de caráter corporal do esporte. Nas palavras de um atleta “uma pessoa

que pratica esportes depende menos da outra pessoa”, fala que confirma determinados

pontos levantados no item anterior. Principalmente para aqueles que não possuem

deficiência congênita, o esporte propiciaria uma espécie de redescoberta do próprio

corpo. O contato com outras pessoas com deficiência e profissionais especializados,

auxiliaria o indivíduo na construção de um conhecimento que vai desde questões de

higiene até aquelas relacionadas à sexualidade. Nesse sentido, a autonomia está também

relacionada à posse e manuseio desses tipos de dados. De qualquer forma, a temática da

corporalidade dificilmente se apresenta de uma forma destacada. Ela liga-se muito mais

a noções de caráter mais amplo como “qualidade de vida” e “bem-estar”. Ressalto,

porém, apenas um dos meus informantes cita a palavra “saúde” como um ganho do
120

esporte, ainda assim ele toca depois nesse assunto de uma maneira bastante crítica,

mostrando os limites dos benefícios corporais proporcionado pelo esporte. Ele diz:

É. A saúde vai até certo ponto. Até onde a pessoa se dedica,


treina, mas com propósitos mais limitados. Para os atletas que hoje vão para
as Paraolimpíadas existe uma cobrança de rendimento muito grande, de
vencer, de superar. Pra mim são duas frentes: o esporte enquanto saúde e o
esporte enquanto profissionalismo. E aí a gente define em dois pontos:
realmente esporte-saúde e esporte-dor.

Meu informante explica, ainda, que o atleta de alto rendimento ou profissional

é alguém que sente dores vinte e quatro horas por dia. É dessa forma que ele tentaria se

superar em cima da sua própria limitação física e da sua dor, uma vez que aquela que

está associada ao esforço físico é sobreposta, no caso do esporte paraolímpico, àquela

específica da lesão. Ele conta que convive diariamente com isso e que faz uso de

analgésicos diariamente. Em sua opinião, os atletas só pensam no momento presente e

se esquecem que vão envelhecer e de que esse esforço de hoje vai ser cobrado pelo

corpo mais a frente. Em suas palavras: “É um grande desgaste no corpo e não se sabe

até que ponto isso trará prejuízos. Talvez eu já tenha um desgaste celular de alguém de

quarenta anos”.

Esse atleta, que entrou no movimento paraolímpico a partir do ciclo que se

iniciou nos Jogos de Atenas de 2004, é relativamente jovem se comparado ao restante

da seleção brasileira de natação, onde mais de dois terços dos atletas já haviam

participado ao menos de duas paraolimpíadas. A sua geração ainda não é a maioria na

equipe, mas começa a se destacar em competições nacionais e internacionais. Para além

do fato desses atletas possuírem um grande vigor físico que tem a ver com a sua própria

faixa etária, o que parece estar em jogo fundamentalmente é a aplicação de um novo

conceito de treinamento, onde o nível de exigência corporal é muito maior. Dessa


121

forma, se nos primórdios das competições esportivas realizadas para pessoas com

deficiência o objetivo central era a reabilitação (como vimos no primeiro capítulo),

agora o que parece ocorrer é justamente o contrário, principalmente na relação entre

esporte e dor. Nesse nível, é possível falar de uma aproximação entre esporte

paraolímpico e olímpico uma vez que a idéia de “No pain, no gain” parece ser comum

ao esporte de alto rendimento como um todo. Por outro lado, o uso máximo do corpo

pode trazer ganhos econômicos e sociais, de forma que o corpo se torna um capital a ser

negociado em troca de outros capitais, novamente uma marca de todo esporte de alto

rendimento.

Temos nesse contexto o gerenciamento daquilo que Wacquant concebe como

“capital-corpo”, que precisa ser administrado no sentido manter um equilíbrio entre a

rigidez do treinamento e a falta de disciplina. Esses dois extremos, definidos como um

excesso e uma falta que opera sobre o corpo, podem comprometer de forma

irremediável o campo de possibilidades profissionais do atleta. Com relação ao esporte

de alto rendimento o excesso parece ser sempre solicitado pela própria dinâmica da

competitividade. Nesse sentido, o desgaste do “instrumento de trabalho” deve ser

pesado diariamente. Utilizando as palavras de Wacquant, “mais do que contusões sérias,

é o acúmulo de pequenas mazelas e de perturbações físicas que serve como regulador

natural da carga de trabalho.” (Op.cit.:165). Por outro lado, não podemos esquecer que

por mais que haja um cuidado e uma atenção para dosar esse esforço cotidiano e limitar

as dores que decorrem disso, a gestão do corpo se inscreve em projeções de carreira de

médio e longo prazo, que comportam os interesses de outros agentes como os técnicos,

dirigentes, patrocinadores e, por que não, familiares.

O assunto “nova geração” apareceu diversas vezes em conversas informais

que tive com os atletas mais antigos da seleção e que atualmente se encontram
122

principalmente na faixa de idade que vai dos 35 aos 42 anos de idade. Dentre estes,

muitos mostravam um saudosismo em relação ao tempo em que “se nadava por amor” e

não simplesmente para se chegar a resultados que, uma vez sendo técnicos, se

desdobram posteriormente em resultado financeiro e prestígio no meio paraolímpico.

Nem todos são partidários dessa opinião, pois alguns estão inseridos nas redes de

patrocínio que sustentam essa mesma concepção. Ainda assim, a maior parte da “antiga

geração” faz críticas severas ao CPB, pois ainda que todos possuam a Bolsa-Atleta, eles

se consideram excluídos dos patrocínios agenciados pela entidade, que efetivamente

trariam os recursos necessários para a profissionalização definitiva do atleta.

Para os atletas que conseguem patrocínio, a questão financeira se sobressai,

na medida em que permite um maior grau de profissionalização, ascensão e distinção no

meio esportivo. Aqui é possível fazer a conexão corpo-rendimento-patrocínio. A

afirmação “o corpo é o de menos” parece encontrar seu limite na própria maneira como

hoje se estrutura o movimento paraolímpico no Brasil. O uso máximo de uma

potencialidade física parece ser o grande fiel da balança para as novas gerações que

surgem. Nesse contexto, parece existir cada vez mais um investimento numa

competitividade que é mais palpável e mais facilmente visualizável pelo público. O

espetáculo competitivo acaba sendo proporcionado principalmente pelos atletas mais

jovens, mas também por atletas de classes mais altas, que ao apresentarem um

comprometimento físico menor, desempenham na piscina uma performance que se

assemelha à natação olímpica. Nesse sentido, não parece ser à toa que hoje o

movimento enfrenta uma espécie de “crise dos classes baixas”, cuja renovação enfrenta

os desafios mais severos, como será visto no quarto capítulo.


123

3.4 - Pensando nos significados sobre “deficiência” e “normalidade”.

Com a noção de deficiência ocupando um lugar central nesta tese, não pude

deixar de me confrontar com a idéia de normalidade que, ao menos no sentido literal,

pode ser considerado o seu inverso. O que destaco em relação a esses dois conceitos é a

posição relativa que ocupam nos discursos proferidos pelos informantes. Os

significados que podem estar associados a cada uma dessas noções possuem uma

característica dinâmica que tem a ver com a pessoa que fala e de onde ela fala.

Pude perceber no campo que existe um entendimento bastante generalizado

de que o conceito de deficiência é algo construído socialmente com o objetivo de

especificar algumas diferenças. O termo deficiência nem sempre é aceito tendo em vista

a sua proximidade com a idéia de incapacidade. Entre a maioria dos informantes existe

um plano mais ou menos consensual no sentido de entender a deficiência física mais

como uma limitação específica, circunscrita à ordem do funcionamento motor e

fisiológico do corpo, não se estendendo necessariamente aos aspectos de ordem

intelectual, psicológica ou afetiva. Nas palavras de um atleta:

A deficiência para mim estabelece limites porque não tem como...


Você tem que ser muito irracional para dizer: ‘Não! Eu sou igual a você!’.
Não. Eu tenho uma deficiência. Em algumas coisas você vai conseguir fazer
melhor do que eu. E eu, em algumas coisas, vou poder fazer melhor do que
você. Então a deficiência estabelece limites, mas não a incapacidade.

A deficiência concebida no sentido de uma limitação tem um alcance mais

amplo, podendo ser imputada para todas as pessoas sem exceção. Isso fica bem claro na

fala de uma nadadora. Segundo ela “o normal não existe. Cada um tem uma deficiência,

uma coisa que não é normal. Cada ser humano é diferente”. Nesse sentido, parece ser o

conceito de normalidade aquele que seria restrito para dar conta da diversidade presente
124

na realidade. Para os informantes, os tipos e os níveis de limitação é que seriam

diferenciados. Indivíduos com problemas de caráter, que vivem isolados sem

conseguirem se relacionar ou que não realizam coisas por comodismo ou falta de

confiança em si mesmo são apenas alguns dos exemplos de outros tipos de deficiência

citadas pelos informantes. Além disso, uma pessoa que é deficiente num contexto pode

ser considerada normal em outro, situação que foi exemplificada por um atleta com

relação à própria prática da natação:

Por exemplo, você se julga normal e eu me julgo deficiente aqui fora.


Aí vamos na piscina, com certeza eu vou te ganhar. Então quem é a
deficiente? Então depende muito das circunstâncias, depende muito do lugar
onde você esteja pra realmente saber quem é o normal e quem é o deficiente.
Então, aqui eu sou deficiente, mas lá na frente, você estando no meu habitat,
você vai passar a ser deficiente.

Assim, a sociedade estabelece as categorias que vão reger o que é natural.

Mas essas generalizações possuem desdobramentos nos ambientes sociais que, por sua

vez, criam formas próprias de identificar as pessoas que serão aceitas como tal

(Goffman, 1988: 11-12).

A visibilidade da deficiência teria, segundo os informantes, um importante

peso na construção da idéia que é feita da pessoa que possui algum comprometimento

físico. Seguindo este raciocínio, a deficiência que é vista a “olho nu” acaba

“autorizando” uma associação apriorística com outros tipos de deficiências, como a

mental. A esse respeito destaco o trecho de uma entrevista feita com um atleta

cadeirante:

Pesquisadora: Você acha que o fato de uma deficiência ser visível afeta o
julgamento das outras pessoas sobre a deficiência?
Atleta: Afeta sim. O pessoal quer aparência, né. O pessoal vê muita
aparência. Julga mais pela aparência.(...) acontece muitas vezes que eu estou
do lado da minha esposa e eu vou pegar algumas informações em algum
125

outro canto e a pessoa não quer dar a informação pra mim. Acha que eu não
tenho capacidade psicológica de entender. Fala pra outra pessoa ou às vezes
chega pra outra pessoa e diz: “Como é o nome dele?” Pensa que porque eu
sou deficiente eu não sei falar.

Uma interessante reflexão sobre a relação entre o olhar e as concepções

sobre a diferença corporal é realizado por Courtine (2009) numa coletânea sobre a

história do corpo. Seu objetivo é tratar das mutações do olhar sobre o que chama de

deformidade na confluência com as mudanças de sensibilidade no decorrer do século

XX. O autor aponta o século XIX como o auge da exposição das “deformidades

humanas”, atendendo a um “voyeurismo de massa” que acompanha o desenvolvimento

urbano do período. A apresentação de pessoas com deficiência física em casa de

diversões e em circos fazia parte de um tipo de “curiosidade despreocupada” que só

passou a ser condenada a partir do processo de transformações de sensibilidades no

ocidente, no decurso dos séculos XIX e XX. A tolerância para com esse tipo de

espetáculo diminui na medida em que a “educação da massa” e a organização dos seus

prazeres no tempo livre passam a ser uma preocupação no processo evolutivo da

sociedade. A entrada em cena da ciência marcada pela ação da medicina no século XX

cristaliza essa transmutação do olhar. A exposição dos corpos passa do trivial para o

chocante, se ultrapassado o limite imposto pela da observação científica. Como afirma

Courtine (Op.cit.:291):

A perturbação perceptiva que se acha no fundo da fascinação pelas


deformidades humanas é precisamente aquilo que o naturalista procura
reduzir na classificação ordenada de espécies teratológicas: todas as formas
inquietantes do espanto são por ele substituídas pelo distanciamento racional
da observação. O cientista moderno. (...) A emergência de um olhar racional
segue pari passu com a recusa do discurso que ‘explica’ os fenômenos vivos
na esfera da diversão comercial.
126

De acordo com o discurso científico que direciona o processo de

“racionalização dos olhares voltados para as curiosidades humanas” não há nada bizarro

nas diferenças entre os corpos, visto que todos os seres são passíveis de classificação.

Esse discurso possuiria relação direta com o domínio do “jurídico-biológico” (Foucault,

2002), de maneira que um campo retroalimenta o outro, autorizando tanto as falas

quanto as ações.

Retomando a fala dos informantes, o julgamento baseado nos aspectos

aparentes pode levar a suposições sobre a vida de um indivíduo, inibindo o acesso às

informações sobre o real potencial que ele teria. Através da análise de Courtine

podemos perceber como o peso do olhar na construção da alteridade não é um dado

exclusivo dessas relações, pois dialoga com a história da construção da hegemonia do

sentido da visão na cultura do ocidente43.

Em Simmel (1997) encontramos referências sobre a questão de como a

percepção e experiência do mundo é construída através dos sentidos. Com foco nas

interações entre as pessoas, o autor argumenta que os sentidos podem ser entendidos

como mediadores entre cognição e experiência, contribuindo para a compreensão das

interações sociais. Para a concretização da percepção do outro, Simmel (Idem: 111) fala

da necessária passagem da impressão subjetiva para o conhecimento objetivo. Assim

experiência sensorial e racionalização trabalham juntas na construção da alteridade. É

nesse sentido que existe uma contribuição sociológica dos sentidos, na medida em que

produzem diferentes tipos de interação. O “milagre do olhar”, que implica num

reconhecimento recíproco marca a primazia da visão dentro de uma sociabilidade

moderna. De qualquer forma, pensando na especificidade dessa pesquisa, quando essa

hegemonia da visão opera nas interações onde estejam presentes indivíduos com

43
Alguns trabalhos como os de Constance Classen (1993, 1996) mostram como nem sempre o sentido da
visão foi hegemônico na cultura ocidental.
127

deficiência física, a diferença corporal acaba sendo um dos itens cruciais na definição

sobre o outro. Como fala um dos atletas: “Muita gente se esquece que o deficiente não é

só aquele deficiente físico, o que tem a perna fina e anda com bengala”.

Goffman (1988) também se debruça sobre a problemática da visibilidade,

lembrando que é por meio da visão que os estigmas se tornam evidentes. Mas ele faz

também algumas ponderações ao lembrar que ainda que a visibilidade seja um fator

crucial, há que ser visto o quanto ela interfere de fato no “fluxo de uma interação”, ou

qual seria o seu nível de “intrusibilidade” (Idem:59). Existe um dinamismo na

visibilidade relacionada com “foco de percepção”. Dessa forma, podemos afirmar que

com relação à audiência não existe um público passivo, mas que analisa aquilo que vê e

interfere nos graus de visibilidade através de uma maior ou menor capacidade

decodificadora (Idem: 60-61).

Outras associações relacionadas à deficiência surgem nos relatos dos atletas.

Uma delas é a suposição de que um indivíduo com deficiência é necessariamente

alguém frágil tanto no sentido físico quanto no emocional. A expressão “pessoa de

vidro”, que surge na entrevista do nadador com má-formação, exemplifica com bastante

precisão esse tipo de concepção. É esse mesmo atleta que tece um comentário acerca

das dificuldades de aproximação e interação no cotidiano relacionado às especificidades

da sua corporalidade: “Muitos vão me cumprimentar e não sabem como agir. Poxa,

estende a mão! Às vezes eu chego pra cumprimentar e vou cumprimentar com o que eu

tenho mesmo. Não tenho como ter uma mão para cumprimentar, mas é o que eu tenho”.

A hipótese da fragilidade, por sua vez, cumpre importante papel nas

aproximações consolidadas pelo senso comum entre doença e deficiência. Comento

com esse mesmo atleta a minha própria experiência de infância com relação a esse tipo

de contato. Lembro de ouvir algum tipo de advertência do tipo “Cuidado que ele tem
128

um dodói” todas as vezes em que me aproximava de alguém com qualquer tipo de

deficiência física. O meu informante também se recorda de ter ouvido algumas frases

desse tipo, mas contemporiza afirmando que essa é uma realidade que tem se

modificado bastante. Ele aponta o papel que as escolas têm desempenhado para a

construção de uma nova visão sobre a deficiência. Ele conta que nas palestras que

realiza nesses locais ainda existe muito estranhamento em relação à sua deficiência e ao

uso de próteses, mas, por outro lado, existe também uma proximidade que abre um

canal para a desconstrução de algumas noções preconceituosas.

Às vezes eu vou em algumas escolas e a molecada fica feliz em


me ver e quer tocar pra ver. Mas é legal porque é criança. Criança é
verdadeira, né? (...) Já tem umas que tem medo, fica chorando. (...) Teve
uma criança que uma vez achou que me achou um boneco, me chamou de
boneco. Então, eu acho que depende dos pais também. Os pais têm que falar:
“Não, ele não é. Ele nasceu assim”. Mas tem várias maneiras de falar do que
falar que “Ele tá dodói”.

Durante o período em que estive em campo pude perceber como a ideia do

convívio entre pessoas com deficiência e os “normais” era considerada pelos

informantes como um ponto crucial no combate aos mitos sobre a deficiência. Isso não

é apenas um exercício retórico. Pode-se dizer que existe uma espécie de militância em

prol da desmistificação de alguns pré-conceitos que relacionam a limitação física à

incapacidade ou anormalidade. Tive a oportunidade de entender um pouco melhor esse

posicionamento pró-ativo em uma das entrevistas que realizei com um nadador. Abro

um parêntese para descrever a situação.

Como já foi dito em outros momentos desta tese, as minhas primeiras

formulações sobre a corporalidade estavam circunscritas a uma leitura das

possibilidades do corpo deficiente a partir daquilo que era ofertado pela prática da
129

natação que, por sua vez, delimitava a hipótese sobre a transformação do corpo

deficiente em potente. Depois que incluí no roteiro de entrevistas as questões que

tinham o objetivo de abarcar essa temática não eram raras as vezes em que a conexão

potência-deficiência era mal compreendida. A pergunta que servia de base para tratar

desse assunto era: “Você acha que os conceitos de deficiência e potência podem

conviver juntos?”

Eu não tinha a preocupação de seguir com rigor o roteiro de entrevistas –

dado o seu caráter semi-estrutural - de maneira que tanto essa pergunta como as outras

poderiam sofrer variações desde que alguns temas fundamentais da pesquisa pudessem

ser acessados. Mas o principal limite dessa pergunta era o seu alto nível de abstração,

uma vez que se baseava apenas em textos mais teóricos sobre a classificação funcional,

sem que eu ainda tivesse estabelecido elos mais evidentes com a realidade concreta do

corpo deficiente no esporte. Na maioria das ocasiões em que essa questão era colocada

para o entrevistado, ele externava uma dúvida com uma fórmula similar a esta: “mas de

que potência você está falando?”. Nas primeiras entrevistas realizadas – e enquanto eu

insisti em continuar aplicando essa questão – a orientação se manteve no sentido de

entender a relação entre potência e deficiência dentro do universo do treinamento

desportivo. Encarava as dúvidas que surgiam como um pequeno problema de precisão

com relação à terminologia que eu estava utilizando. Posteriormente, pude entender a

real amplitude desses questionamentos.

Numa entrevista realizada com um atleta não foi diferente a reação à

pergunta que relacionava potência e deficiência. Ao esclarecer que me referia à potência

ligada às transformações físicas proporcionadas pelo esporte ele responde de forma

vaga afirmando ser possível essa aproximação. Já no final da entrevista sou


130

surpreendida com um questionamento feito por ele e reproduzo aqui essa parte do

diálogo:

Atleta: Você não aborda nada sobre sexualidade, né?


Pesquisadora: É, realmente, eu não abordo.
Atleta: Por que?
Pesquisadora: Porque é uma questão bem delicada né, e às vezes eu fico...
Atleta: Constrangida, não?
Pesquisadora: É, um pouco.
Atleta: Mas é interessante isso.
Pesquisadora: Por que? Já que você tocou no assunto de sexualidade, como é
que é?

Quando a temática da sexualidade passou a ser o tema principal da

entrevista, ela prosseguiu num tom quase didático, com meu interlocutor explicando de

forma bastante clara as formas pelas quais poderia se dar o ato sexual, principalmente

entre duas pessoas com deficiência física. Mesmo não sendo cadeirante, foi com relação

à condição física dos lesados medulares que ele mais se ateve. Nesse sentido, ao mesmo

tempo em que prestava esclarecimentos sobre as possibilidades de vida sexual entre os

homens, também relatava algumas experiências que ele mesmo havia tido com mulheres

cadeirantes.

No que diz respeito à realidade masculina, estava claramente presente a

preocupação em romper com o mito da impotência entre lesados medulares. Ele

explicou, então, que os níveis de lesão são diversos, o que concorreria para diferentes

graus de comprometimento das funções fisiológicas. Nesse contexto, o conceito de

impotência seria relativo, na medida em que mesmo uma ereção conseguida por meio de

remédios ou uso de próteses, embora sendo artificial, continua sendo uma ereção.

Com relação ao universo feminino e também no caso de lesão medular, ele

se concentrou numa descrição da reorganização das zonas erógenas. Ele falou das

experiências que teve com mulheres com esse tipo de deficiência. Sobre a primeira
131

delas, ressaltou o aprendizado sobre sexualidade que teve a partir dessa relação. Esse

processo não deixava de ser também de redescoberta para os dois. Ela havia se tornado

deficiente na fase adulta depois de já ter tido vida sexual, inclusive dentro de um

casamento. Ele, por sua vez, aprendia como lidar com uma pessoa que demandava

outras formas de estimulação erótica. Nesse processo de descoberta a principal lição

para ele teria sido a de se desvencilhar de um padrão mais mecânico do sexo, centrado

principalmente na busca do orgasmo por penetração. Dessa forma, o foco do ato sexual

sai da expectativa por um ápice de prazer e vai para um campo voltado para a

multiplicidade de momentos de satisfação e que podem ser igualmente intensos.

Segundo ele, uma relação deste tipo requer necessariamente mais sensibilidade e

diálogo, obrigando o casal a rever suas expectativas em torno de uma performance

puramente física. Usando as suas palavras: “Essa questão do ato sexual, não é porque

você pula, corre. Às vezes não é isso não. Essa questão depende da química mesmo, do

contato, né?”

A partir dessa entrevista passei a me confrontar com o fato de que

simplesmente eu queria falar sobre o corpo dos atletas, mas ignorando completamente a

sua sexualidade. Mas por que essa questão teria sido ignorada? Dizendo para mim

mesma “isso não é o meu foco”, entre outras frases com retórica acadêmica, eu

explicava muito pouco essa falta. O fato é que o mesmo princípio de corpo “deficiente-

potente” que tinha usado para definir minhas questões no campo da prática desportiva,

não havia sido acionado (pelo menos com a mesma intensidade) para pensar os outros

planos de experiência corporal dos atletas. Por sorte o meu interlocutor insistiu em saber

o porquê daquela lacuna e, sem mais respostas a dar, tive a sensibilidade de deixar que

ele falasse livremente sobre o que quisesse. A riqueza do seu depoimento se justifica

não apenas por ter servido como um registro das possibilidades de vivência sexual de
132

uma pessoa com deficiência - principalmente em suas experiências com outras pessoas

com deficiência – mas também como um instrumento que serviu para questionar o meu

próprio olhar sobre a corporalidade dos atletas.

Voltando a falar novamente em “foco de pesquisa” não quero dizer que

depois dessa entrevista eu tenha colocado no roteiro um conjunto de questões só sobre

sexualidade. Quando me sentia à vontade tocava nesse assunto com meus informantes

não apenas nas outras entrevistas que realizei, mas em uma série de conversas

informais. Mas o que está em jogo aqui não é simplesmente o fato de que mais um tema

que tem a ver com o corpo foi incluído no rol de questões a serem debatidas, mas como

a partir de um evento eu pude me confrontar com a concepção de corpo deficiente com

a qual cheguei no campo e de como, por outro lado, isso permitiu a construção de um

novo olhar.

Ao destacar esse fato não tenho a pretensão de afirmar qualquer tipo de

ineditismo em relação a esse enfrentamento entre as concepções do cientista social e a

“realidade” do campo. Como nos lembra Becker (2007), vemos o mundo através de

imagens que fazemos dele, imagens estas que interferem nas nossas formulações, assim

como na coleta e análise dos dados. Acredito que o exercício do “estranhamento”, tão

necessário ao ofício do antropólogo não anula essas imagens iniciais que construímos.

Também temos o nosso estoque de concepções estereotipadas que é acionado nos

momentos em que precisamos entender ou explicar aquilo que não conhecemos, de

maneira que as nossas “representações leigas” interferem frequentemente nas nossas

elaborações científicas.

Todos os esforços de objetivação representados pela aplicação de uma

metodologia de pesquisa, e que cumprem o papel de complexificar e refinar aquilo que

vemos, dialogam com o nosso conhecimento do mundo relacionado à nossa própria


133

trajetória de vida. A importância de destacar o lugar de onde fala o pesquisador diz

respeito não somente à sua posição num mundo acadêmico, mas a todo o seu acervo de

experiências no mundo. Nesse sentido, a relevância da convivência entre pessoas com

deficiência e pessoas consideradas “normais” – apontada pelos próprios nativos como

uma importante forma de conhecimento – poderia ser utilizada para entender o meu

próprio percurso e o processo de elaboração da pesquisa.

Além da questão do convívio e proximidade, muitos atletas destacam o papel

da família na formação de uma nova geração mais esclarecida sobre o universo das

pessoas com deficiência física. Essa opinião também é compartilhada por técnicos e

classificadores. Esse tipo de educação pode se dar através da convivência com a

deficiência no próprio lar, como ocorre com os atletas que possuem filhos, sobrinhos e

etc. Um dos atletas cadeirantes que conheci me contou orgulhoso sobre as maneiras que

encontrava para ajudar a sua esposa com os seus filhos principalmente na época em que

eles eram bebês. Não tendo espaço para se deslocar com a sua cadeira de rodas dentro

de casa e tendo poucos recursos para fazer adaptações mais complexas na sua casa,

organizava um espaço no chão onde trocava fraldas e dava comida para as crianças.

Nestes casos, há uma suposição por parte dos atletas de que os seus filhos verão a

deficiência como normal ou natural. Esse mesmo tipo de aprendizado pode acontecer de

forma mais indireta, como no caso das famílias dos profissionais que lidam

cotidianamente com a deficiência. Nesse contexto as possibilidades de troca de

experiências de vida dependem de uma ação efetiva desses profissionais no sentido de

aproximar o seu círculo familiar e de amizade do universo de trabalho.

No período do meu campo tive a oportunidade de participar de um churrasco

na casa de um dos técnicos da seleção alguns dias antes da equipe partir para Pequim.

Entre os membros da família desse técnico não existe ninguém com deficiência física;
134

ainda assim, nas sucessivas reformas de expansão da casa estava agregada a

preocupação com a acessibilidade. Pude perceber naquele momento a importância que

aquele tipo de evento tinha para a sociabilidade daquele técnico e de sua família. Na

ocasião, conversando com ele e com alguns atletas pude compreender o valor da

acessibilidade e da autonomia para a formação e intensificação daqueles laços sociais.

Em outras ocasiões esse mesmo técnico me contou ainda o quanto o convívio com os

atletas havia sido importante para que alguns pontos de vista sobre a deficiência

pudessem ser desmistificados entre os seus familiares. Essas ações particulares são

encaradas como a expressão viva da dinâmica de toda uma rede que inclui o movimento

paraolímpico e todo segmento mais amplo das organizações civis que lutam pelos

direitos da pessoa com deficiência. Uma ação em cadeia que parta dessa rede, associada

à ações governamentais, institucionais e midiáticas pode ser encarada como um modelo

bastante eficaz na construção de novas concepções sobre a deficiência.

Voltando à questão da visibilidade da deficiência, ela é relatada por um dos

atletas como um dos pontos que interfere na busca por patrocínios. Muitos empresários

ainda acreditam ser prejudicial para os negócios associar o nome da sua marca a uma

pessoa com deficiência. Ele conta que mesmo nos casos em que uma empresa se torna

patrocinadora de atletas paraolímpicos, ainda existem muitas discordâncias internas com

relação a esse apoio. Partindo desse relato, acredito ser possível pensar a visibilidade da

deficiência como algo que é constantemente pesado e gerido tanto por atletas e as suas

associações como pelos empresários que associam o nome de suas marcas ao esporte

paraolímpico.

Mas, por outro lado, a visibilidade da deficiência pode servir em alguns

casos como uma espécie de capital simbólico para um atleta, na medida em que ele pode

se tornar por essa mesma razão um ícone do segmento. Apresento uma discussão mais
135

detalhada sobre essa questão no quarto capítulo. Por outro lado, existem momentos em

que a visibilidade é amenizada ou controlada para atender a outros tipos de demandas.

Esse é o exemplo da transmissão dos Jogos Paraolímpicos e dos Jogos

Parapanamericanos, onde as câmeras do fundo da piscina foram retiradas quando se

encerraram as provas com os atletas olímpicos. Em vários momentos no campo, ouvi

dos atletas reclamações sobre esse procedimento. Para eles o motivo era claro: a

ocultação do corpo com deficiência, no sentido de evitar que qualquer diferença física

mais evidente pudesse incomodar o espectador. Até aquele momento eu tinha assistido

às Paraolimpíadas de Atenas e aos Jogos Parapanamericanos do Rio, mas não me

lembrava dessa prática. Cheguei a questionar algumas pessoas que afirmavam com

muita clareza de que isso realmente acontecia. De fato, tal fato se repetiu nos Jogos de

Pequim. As imagens captadas por câmeras colocadas em pontos estratégicos da piscina

mostravam novos ângulos do movimento dos corpos dos nadadores olímpicos,

intensificados pelo uso de uma super câmera lenta. Confirmando a aposta dos meus

informantes, todo esse equipamento viria a ser retirado durante as provas paraolímpicas.

Não pretendo afirmar com isso que haja uma evitação definitiva da imagem da

deficiência física. De qualquer maneira, parece existir por parte dos organizadores e

patrocinadores desses eventos um agenciamento dessa exposição, visando atender de

forma equilibrada aos interesses dos atletas e outros profissionais ligados ao esporte

paraolímpico, assim como o gosto do público que é tanto consumidor do espetáculo,

como das marcas a ele associadas.

3.5 - Aleijados, chumbados, cotocos e pernetas: depende de quem fala e de como

se fala? Sobre a “terminologia adequada” e as piadas a respeito de deficientes.


136

Como já foi dito na introdução, o mapeamento inicial da pesquisa foi feito

por meio de visitas a alguns sítios na internet de entidades ligadas ao movimento

paraolímpico. Para além do material já mencionado sobre “classificação funcional”,

encontrei na página oficial do CPB44 um texto que tratava da importância da utilização

de uma linguagem adequada para se falar da deficiência. Este documento possuía as

características de um glossário45. Alguns termos e frases considerados incorretos eram

colocados em destaque seguidos pelas formas corretas de falar e de escrever. Pelo seu

tom didático e por alguns esclarecimentos iniciais, o texto apostava no papel educativo

de uma terminologia adequada, voltada para todo tipo de público, mas, principalmente,

para familiares e profissionais da área da saúde e da educação que estariam lidando em

seu cotidiano com pessoas com deficiência.

No texto estavam imbricados argumentos de caráter científico com aqueles

de caráter político. Com relação aos primeiros era retomada em poucas linhas uma série

de descobertas e experiências feitas ao longo dos anos por especialistas no assunto -

dentre eles médicos, psicólogos e fisioterapeutas – que apresentavam as últimas

formulações sobre o que seria a deficiência em suas várias manifestações e como a

mesma deveria ser tratada, dando o aval sobre os melhores termos para designar os

vários tipos de deficiência. Sobre aqueles argumentos propriamente políticos, a

terminologia adequada aparecia como um fator crucial na luta por inclusão social,

caracterizada, dentre outras coisas, pelo combate aos preconceitos e estigmas

construídos em relação à pessoa com deficiência. Dessa forma, ela teria o poder de

explicitar a carga discriminatória e excludente presente em determinados termos,

grassando como uma importante conquista de um segmento social na luta por

reconhecimento e participação em condições de igualdade com outros grupos.

44
O endereço do sítio é www.cpb.org.br.
45
Intitulado “Terminologia Adequada”, o documento apontava como principal referência SASSAKI,
Romeu Zakumi. Terminologia sobre Deficiência na Era da Inclusão. Rio de Janeiro: WVA, 2002.
137

Numa pequena introdução, o autor faz referência ao caráter relativamente

transitório de uma terminologia, ressaltando que os diferentes termos e seus significados

podem mudar ao longo do tempo, submetidos que estão à lógica dos valores vigentes

em diferentes sociedades e em diferentes épocas. Todavia, as mudanças que surgem

nem sempre seriam compartilhadas com a mesma velocidade pela sociedade como um

todo, o que daria margem para a perpetuação de idéias que seriam equivocadas. Dessa

forma, o que parece estar em jogo aqui, é a existência de um descompasso entre o

movimento da ciência na sua busca pelo conhecimento sobre o corpo (e aqui, sobre o

“corpo deficiente”) e o conjunto de formulações sobre o tema construído por outros

setores da sociedade. Nesse texto era apontado o motivo para a utilização dos termos

considerados incorretos: uma associação entre crença, preconceito e falta de

informação. O combate a essa tríade se daria pela difusão do conhecimento com

fundamentação científica, sobretudo daquele vinculando à medicina.

Em termos gerais, a defesa de uma terminologia adequada aparece conectada

à necessidade da construção de uma visão positivada sobre a deficiência, com a

linguagem sendo o suporte principal desse investimento. Nesse sentido, a vitimização

do deficiente é combatida, assim como expressões que supostamente a caracterizam,

tais como, “pessoa presa (confinada, condenada) a uma cadeira de rodas” e “ela sofre de

paraplegia”. Aliado a isso é destacada a necessidade de haver uma clara distinção entre

doença e deficiência, de maneira que esta última seja considerada apenas uma condição

sem que haja necessariamente alguma implicação patológica.

Num pequeno histórico sobre o assunto alguns termos como “aleijado”,

“defeituoso”, “incapacitado”, “inválido” são destacados como exemplos de uma

terminologia incorreta. Segundo o texto, todos são datados, caindo em desuso na década

de 80, onde se passa a utilizar a expressão “pessoa deficiente”. Posteriormente, é


138

adotada a expressão “pessoa portadora de deficiência” para, em meados da década de

90, entrar em uso “pessoa com deficiência”.

Interessante pensar aqui nos novos significados que são dados para termos

como esses ao longo do tempo. No trabalho de Corbin (1989), por exemplo,

encontramos o “invalid” como um personagem social que atuará como protagonista do

banho de mar com um papel ativo na escuta de si em prol do bom funcionamento do seu

corpo. Este seria um exemplo do homem da experiência terapêutica cenestésica. Já no

referido texto sobre terminologia adequada, a acepção parece ser mais negativa, mais

próxima de idéias ligadas à incapacidade, passividade e impossibilidade.

É importante dizer que, muito em função dessa pequena pesquisa que eu

havia feito sobre terminologia antes de iniciar o meu trabalho de campo, a minha mente

já estava povoada por idéias sobre a maneira mais “correta” de me aproximar dos meus

informantes e falar sobre as suas deficiências. Mas foi justamente a interação com eles

que me pôs em contato com um conjunto de práticas que a princípio pareciam

contradizer justamente toda essa discussão sobre a necessidade de uma linguagem ou

terminologia adequada. Pude observar a existência de um rol de piadas empregadas

pelos atletas para falar da deficiência, tanto da sua como a do outro. Nas inúmeras

brincadeiras jocosas que pude presenciar, a palavra aleijado era frequentemente usada.

Essa prática, por si só, trazia dados iniciais que já eram suficientes para que eu

começasse a desconstruir os modelos de linguagem que eram divulgados pelas

entidades. Para citar um exemplo dessa jocosidade, lembro o dia em que conheci

pessoalmente um atleta com paralisia cerebral.

Apresento-me dizendo o meu nome e ele logo começa a me cobrar a resposta

de alguns e-mails que ele teria me enviado, para a “Mônica do Rio de Janeiro”. Notando

a confusão, esclareço quem eu sou e o tipo de trabalho que estava fazendo ali. Até
139

então, não havia trocado nenhuma mensagem eletrônica com ele, pois todos os contatos

haviam sido mediados por sua assessoria de imprensa. Ele se dá conta do equívoco,

sorri e pede desculpas, mas logo ironiza dizendo que aquela sua atitude seria típica de

um PC, deixando a entender que as pessoas com aquela deficiência teriam problemas de

ordem intelectual. Na sala estão alguns dos seus colegas da associação que riem e

parecem concordar com a brincadeira. Posteriormente, ele usaria a mesma piada para

justificar outros pequenos enganos que cometia, como o esquecimento de datas e

horários. Ao menos nesse contexto, a necessidade de separação entre uma deficiência de

natureza físico-motora de outra com características intelectuais, não parecia ter

nenhuma importância. De qualquer forma, essa mesma junção cumpria um papel na

piada, pois a partir dela ele abordava de maneira irônica uma crença bastante

disseminada, a de que a paralisia cerebral é acompanhada necessariamente de uma

deficiência mental.

Numa das tardes em que observava um grupo de atletas nadando, um deles

sugeriu para a colega que estava na piscina a realização de um pequeno desafio de 50

metros. Ela responde em tom de ironia: “Tá me achando com cara de aleijada?”. Todos

riram e depois outros comentários deste tipo foram repetidos ao longo do treino.

É importante assinalar que o uso de piadas não se restringe aos atletas que

possuem uma deficiência. Pude ver essa prática também entre técnicos, classificadores e

outros profissionais que atuam na área do esporte paraolímpico. Um desses exemplos

observei numa coletiva de imprensa realizada numa sala de convenções de um hotel.

Nesse local havia uma rampa muito inclinada que dava acesso ao palco onde ficava a

mesa que acomodava os convidados. Um dos dirigentes, atleta cadeirante, faz sinais

para um dos técnicos pedindo ajuda para subir. Este último, que estava sentado ao meu

lado e de outros atletas, comenta em tom de brincadeira conosco: “Por quê? Até parece
140

que é aleijado!” e depois vai sorrindo atender ao pedido do atleta. Em outra ocasião,

esse mesmo técnico ironiza os atletas que tinham feito uma viagem de ônibus com toda

a equipe para uma competição num estado vizinho. Ele conta que ao ouvir dos atletas a

reclamação de que o motorista estava dirigindo acima do limite de velocidade

permitido, disse para eles que aquele seria o menor dos problemas por que pelo menos

eles iriam poder “descer de classe”46.

Eu pude ter acesso a essas brincadeiras logo nos primeiros dias do trabalho

de campo. De qualquer forma, eu presenciava cada vez mais cenas desse tipo na medida

em que a interação com o grupo ia aumentando. Se no início do contato com elas, ouvia

piadas feitas apenas por algumas pessoas; depois tive a chance de presenciar várias

situações onde o grupo como um todo participava das brincadeiras. Nesses momentos,

para cada piada, outra podia ser feita para servir de réplica.

A intensidade com a qual a jocosidade era utilizada, me fez pensar no papel

que ela desempenhava naquele meio e nas formas de sociabilidade que ali se

constituíam. A princípio – e de uma maneira bastante transitória – supus que pudesse

haver uma relação de exclusão entre ela e a terminologia adequada (reconhecida

também como a linguagem do “politicamente correto”). Tal conjectura não se sustentou

no campo, pois embora a terminologia adequada seja criticada muitas vezes por

dificultar uma abordagem mais “simples” e “natural” da deficiência, não existe uma

oposição categórica ao seu uso. Ao contrário, ela é utilizada em diversos momentos,

principalmente quando os atletas se encontram em situações de grande exposição

pública. Dessa forma, dificilmente as piadas são feitas em entrevistas, palestras,

premiações e etc. Nos casos onde há uma grande “platéia” (Goffman, 1985) um

46
Esta expressão é utilizada para os casos em que o atleta é deslocado da sua classe para competir em
outra onde os adversários possuem um comprometimento físico maior. A importância dessa mudança está
associada à suposição de que a prova ficaria mais fácil para o nadador em questão. As questões de ordem
prática que envolvem essa realocação serão melhor analisadas no capítulo 4.
141

desempenho mais contido parece ser o recomendado. Isso me fez perceber que o

acionamento de cada uma dessas linguagens tem a ver com a situação em jogo, o tipo de

interação e as pessoas que estão envolvidas na mesma.

O fato da terminologia adequada não ser utilizada pelos atletas em seu

cotidiano não desqualifica a sua importância no sentido de uma divulgação institucional

do movimento paraolímpico, como fica claro na fala de um nadador:

Pesquisadora: E sobre a linguagem do politicamente correto?


Atleta: Depende aonde você tá falando. Se você tá, por exemplo, num
congresso, enfim, onde as pessoas estão divulgando e tal, você vai mostrar o
politicamente correto. Só que no meio você não vê isso, sabe? É difícil (...).
pra gente aleijado, chumbado, sem perna, sem braço, enfim, pessoa com
deficiência, portador de deficiência, é tudo a mesma coisa. No fundo, no
fundo, é tudo a mesma coisa.

A despeito dos informantes indicarem pontos de exagero e preciosismo

existentes na terminologia adequada, ela continua sendo considerada por eles uma

ferramenta útil no processo educativo do público que se encontra mais afastado do

meio. Ela não deixa de ser uma forma de atualização sobre as formas de concepção da

deficiência. A jocosidade, por sua vez, embora seja evitada nos momentos de maior

formalidade, ainda pode ser encontrada em diversas situações e parece servir a objetivos

distintos. Um desses objetivos seria o de “quebrar a coisa do coitado”, para usar as

palavras de um técnico. A utilização de piadas como uma forma de romper com a

associação direta entre deficiência e tristeza, também foi levantada por outros

informantes. A ironia também acaba servindo para que os atletas saiam de situações que

consideram constrangedoras e que geralmente expressam o preconceito do interlocutor.

Lembrando Goffman (1988: 28):


142

É provável que, em situações sociais onde há um indivíduo cujo


estigma conhecemos ou percebemos, empreguemos categorizações
inadequadas e que tanto nós como ele nos sintamos pouco à vontade. Há, é
claro, frequentemente, mudanças significativas a partir dessa situação inicial.
E, como a pessoa estigmatizada tem mais probabilidades do que nós de se
defrontar com tais situações é provável que ela tenha mais habilidades para
lidar com elas.

É possível afirmar que existe um protocolo que diz como o indivíduo com

deficiência deve ser chamado. Tal protocolo é conhecido por aqueles que atuam no

meio paraolímpico, mas é pouco utilizado no convívio diário com as pessoas mais

próximas. Nos ambientes familiares as brincadeiras seriam a tônica de muitas

conversas. Nesse sentido, certo grau de intimidade parece ser desejável para que os

atletas se sintam à vontade para se utilizarem do escárnio. De acordo com o técnico

acima mencionado, “quando eles vêem que você faz parte do grupo não tem nenhum

problema porque sendo chamado de aleijado ou deficiente, o que importa é ele saber

como está sendo tratado e visto de fato”. Nesse sentido, não faria diferença se a outra

pessoa tem uma deficiência ou não. O requisito da proximidade, que pode se desdobrar

nas condições de intimidade, amizade e afinidade, serve tanto para aquele que não

possui deficiência como para aquele que a possui.

Para uma classificadora o uso das piadas como forma de combater a imagem

do “deficiente coitado” aparece ligado a outro papel, ao de uma espécie de rito de

passagem.

Classificadora: A galera do esporte eu acho até que eles são mais bem
resolvidos em relação a isso e por conta disso as brincadeiras são mais
pesadas, entendeu? Mas, assim, eu acho que eles fazem isso pra chocar
muitas vezes.
Pesquisadora: Mas chocar quem?
Classificadora: Quem está chegando e ainda não está preparado. Não
importa se é profissional, se é atleta, não importa.
Pesquisadora: Eles querem chocar o outro.
Classificadora: Eles querem criar logo a casca, entendeu? E assim, tiram
onda mesmo: “Ah, tadinho do aleijadinho”. (...) Tem essa coisa de sacudir,
143

sabe? Eu acho que não e só agredir por agredir, tem a coisa do sacudir
mesmo, tipo: “Passa logo pro lado de cá, sai fora dessa de se sentir tadinho”
(...). Porque você não sabe determinar porque a pessoa é melindrosa, de onde
vem, mas muitas vezes é porque ela ainda não se aceita. Então é uma
maneira de você dar já uma catucada na ferida (...).

A situação que essa informante relata parece ser bem similar àquela que

passou um dos nadadores. Ele conta que antes de competir ficava triste com qualquer

coisa que dissessem sobre o seu corpo, mas “depois você vai nessas competições e os

caras zoam pra caramba”. Nesse caso, as brincadeiras parecem corroborar a tese da

iniciação. Uma vez que o atleta entenda as regras do jogo e passe por essa etapa, logo

terá a liberdade de repetir o mesmo com os seus colegas. Voltando aos termos da

classificadora, as brincadeiras são como um “comitê de boas vindas”. Para ela: “Você

tem um ganho porque você entrou num grupo de atletas que é visto de uma maneira

diferente, você passa a ter uma maior autonomia, você passa a ter um respeito diferente,

você se olha diferente e você impõe isso pra fora”. Dessa forma, as brincadeiras servem

como um elemento de integração a um determinado grupo e servem como representação

desse novo momento.

A idéia de um “comitê de boas vindas” levantada por essa informante

parecia bem congruente com a percepção que eu tive com relação a um dos usos da

jocosidade. Embora o conteúdo das piadas não fosse a respeito do meu corpo, sentia que

algumas delas eram direcionadas para mim. Se apresentando como um misto de

provocação e acolhimento, elas pareciam cumprir a função de um teste, onde seria

aferida a minha capacidade de interação com o grupo. Nessa avaliação parecia estar

incluída também a minha habilidade para reagir com “naturalidade” àquele tipo de ação.

Coloco a palavra “naturalidade” entre aspas porque uma vez que eu sentia que havia

uma expectativa da parte deles com relação a uma espontaneidade, não deixava de ser

despertado em mim um estado de vigília para que a interação pudesse ocorrer dentro de
144

certo padrão. Percebia que a “naturalidade” era um item que fazia parte do meu

processo de aceitação pelo grupo.

Não quero dizer com isso que eu tenha passado por situações de grande

embaraço ou constrangimento na relação com eles. Apesar do caminho proposto pela

“terminologia adequada” ter sido uma referência inicial para mim, não havia nenhuma

ideia pré-concebida de como deveria se dar a minha interação com eles. De qualquer

forma, eu nunca havia convivido de forma tão intensa com pessoas com deficiência

física, o que significava que eu não tinha acesso a muitas informações sobre a vida

cotidiana delas. Para suprir essa carência não tive nenhum melindre para pedir

esclarecimentos sobre os tipos de deficiências dos atletas. Nesses casos, também parecia

ser valorado o fato de eu expor com “naturalidade” as minhas dúvidas. Lembrando as

palavras de uma classificadora: “A pior coisa pra eles é você ficar cheia de ‘não me

toques’, entendeu? Porque aí pra eles mostra uma rejeição que você não assume”. Eu

também não tive pudores em oferecer ajuda nos momentos em que considerava

verdadeiramente importante, fato que era bem recebido na medida em que eles

consideram que essa oferta nunca deve desqualificar o poder de autonomia deles.

A ideia de uma reação natural com relação à deficiência que eu descrevi

como um dos fatores que estavam envolvidos no sucesso da minha interação com os

atletas parece também ter importância no convívio entre eles, funcionando como uma

das marcas distintivas de adesão ao grupo. Nesse sentido, a aceitação das piadas pode

servir como uma forma de averiguar até que ponto a pessoa aceita a sua própria

deficiência. O uso isolado de alguns termos que para muitos pode parecer depreciativo é

igualmente uma forma de reelaborar a questão da linguagem no sentido de construir

marcas de pertencimento. Nesse sentido, o termo “chumbado” é paradigmático. Ele é

bastante utilizado pelo menos no meio paraolímpico e serve para se referir a qualquer
145

pessoa com deficiência física. Assim como outros termos, ele se configura como uma

espécie de gíria que serve para assinalar aqueles que fazem parte do grupo,

independentemente de serem ou não deficientes. Antes de realizar o trabalho de campo

acreditava que esse termo dizia respeito somente aos cadeirantes, servindo como

ilustração para uma condição onde a pessoa depende de uma cadeira para se deslocar e,

por essa mesma razão, parece estar “chumbada” a este objeto. Uma classificadora me

explica que há um tempo atrás esse termo servia realmente para designar um

determinado grupo, mas que não existe um consenso sobre a sua origem. Ainda de

acordo com ela, dentro do esporte o termo acabou virando sinônimo de “cara esperto” e

de “pessoa independente”.

É o cara que tá dentro do meio, que tá cool. Ele já foi adotado pelo
esporte, porque o cara que não se sente como um chumbado e se agride, ele
ainda não é do meio. É uma rejeição de ambos os lados. E o chumbado não é
uma coisa pejorativa. Tem gente que trabalha com deficiente que não gosta
do termo chumbado. Acha pejorativo. Mas aí se você for falar com um atleta
é chumbado.

Por razões um pouco óbvias os aspectos corporais constituem o conteúdo

principal das piadas sobre as pessoas com deficiência física. Essas características eram

associadas muitas vezes associadas à feiúra, como ocorria nos casos em que eram

mencionadas as pernas finas características dos cadeirantes e sequelados de pólio. Mas

embora os atletas com deficiência mental não façam parte do escopo deste trabalho e eu

não tenha lidado com eles durante a pesquisa, algumas de suas características também

apareceram como tópico de algumas piadas. As ocasiões onde uma pessoa mostrava

dificuldade de compreensão de um determinado assunto, tinha algum lapso de memória

ou ainda se mostrava lenta para responder questões, eram propícias para o uso da sátira
146

envolvendo a deficiência mental. Assim, não era raro ouvir nesses momentos

questionamento irônicos do tipo: “Por acaso você é DM47?”

Já foi mencionado anteriormente o incômodo dos atletas ao verem uma

associação direta entre deficiência física e mental, principalmente nos casos onde foram

vítimas ou testemunhas oculares dos efeitos concretos deste tipo de junção. Mesmo

naquele caso da piada feita pelo atleta com paralisia cerebral – relatada no início deste

item - a proximidade com a deficiência física era utilizada como um recurso para

questionar esta mesma concepção.

Para aprofundar essa questão, cito o dia em que acompanhei alguns atletas

que haviam sido convocados para Pequim numa sessão de fotos para a realização de

uma campanha de divulgação do esporte paraolímpico na cidade de Natal. Eles estavam

reunidos na parte externa da associação e tinham a piscina como fundo. Esta área que

faz parte de um complexo esportivo maior é bem ampla e não tem acesso restrito,

servindo, inclusive, como passagem para quem deseja cortar caminho para chegar a uma

das regiões do bairro.

Aproveitava aquele evento para tirar as minhas próprias fotos. Já no final da

sessão um rapaz se aproximou de mim fazendo algumas perguntas sobre o que se

passava. Ele aparentava ter Síndrome de Down e se mostrava bastante curioso com

relação ao trabalho que eu tinha feito. Ensaio um gesto para mostrar para ele as fotos

que eu havia tirado, mas sou logo interrompida por uma das nadadoras que me avisa

que a equipe irá embora, indicando para mim uma pessoa com quem eu poderia pegar

carona. Despeço-me com rapidez do rapaz e acompanho a atleta preocupada em não

perder a minha companhia que me levaria para acompanhar o seu próprio treino em

outro clube. Enquanto eu e a atleta caminhávamos em direção aos carros estacionados

47
DM é a sigla utilizada para designar “deficiência mental”, mas neste caso - dentro de uma apropriação
mais vulgar – serve para denominar “deficiente mental”. As siglas DA e DF, por sua vez, também
designam as deficiências (auditiva e física) assim como as pessoas que as possuem.
147

ela parecia satisfeita por ter sido eficaz ao me afastar do que ela parecia considerar um

pequeno problema de percurso. Isso ficou mais claro para mim quando percebi que não

havia de fato uma pressa tão grande da equipe em sair do local. A crença da atleta num

padrão de interação limitado entre eu e o rapaz ficou evidenciada quando notei a sua

preocupação em me assegurar que eu estava conversando com um “doidinho”.

Em função do próprio recorte da minha pesquisa – realizada com nadadores

com deficiência física - não teria condições de aprofundar aqui essa discussão sobre

uma distinção entre deficientes físicos e deficientes mentais. Mas é interessante pensar

que embora as pessoas com deficiência mental não estivessem presentes fisicamente no

meu campo elas não se ausentavam dos discursos que tinham como objetivo marcar

uma diferenciação entre os dois grupos. Esse dado seria ilustrativo de um dos truques de

pesquisa ensinado por Becker (2007:18), que fala da importância de entendermos a

constituição dos grupos também em função daqueles que não fazem parte dele.

Como já foi visto em outros momentos essa distinção aparece na fala dos

informantes geralmente como uma necessidade para o combate a determinados

equívocos sobre a deficiência que se encontram arraigados na sociedade. Ou seja, se o

senso comum costuma unir a deficiência física à deficiência mental, o objetivo seria

justamente o de esclarecer que elas não são a mesma coisa. Mas essa afirmação não diz

tudo sobre a preocupação com essa distinção. Acredito que a motivação principal para

que eles façam essa separação reside numa tentativa de depurar a deficiência física de

algumas noções negativas geralmente associadas à deficiência mental, como a ideia de

incapacidade. Nesse sentido, o mesmo movimento realizado pelos atletas para livrar a

deficiência física de alguns pré-julgamentos, pode aprisionar a deficiência mental a um

determinado conjunto de estereótipos. Nesse contexto, o uso de piadas para falar da

deficiência não está livre de uma carga preconceituosa. Esse é um dado que nos permite
148

pensar na possibilidade de existência de certa hierarquização pautada nos tipos de

deficiências. Se em algum nível ela aparece entre os próprios atletas com deficiência

física, como veremos no capítulo 4, é no processo de diferenciação em relação a outros

tipos de deficiência que ela pode apresentar a sua faceta mais estigmatizante. Por fim,

acompanhando Seyferth (2005), aqui também fica patente a impossibilidade de

tratarmos como elementos neutros as categorizações feitas dentro do modelo discursivo

da jocosidade.
149

Capítulo 4 - Entre identidades, fronteiras, imagens e discursos: uma

análise sobre as formas de representação do nadador paraolímpico.

Apresento neste capítulo um painel onde estão contidas algumas descrições

que dizem respeito à maneira como os atletas são representados dentro da natação

paraolímpica brasileira. Em primeiro lugar, procuro situar esse tema dentro de um

campo de possibilidades informado pela questão das identidades que são forjadas, em

parte, pelo sistema classificatório do esporte, mas também pelas experiências cotidianas

dos atletas com o seu corpo. A análise das interações que se estabelecem entre os

próprios atletas, marcadas tanto pela amizade como pela competitividade, se coloca

como uma estratégia fundamental para a compreensão desse processo.

Seguindo essa mesma pista sobre as formas de representação dos atletas,

procuro situar e entender o papel que a categoria de “superação” possui nesse contexto.

Ainda que ela figure como o conteúdo principal de discursos e imagens sobre a pessoa

com deficiência no esporte, procuro não concebê-la apenas como um dispositivo

estático de divulgação institucional, mas como um elemento dinâmico pertencente a um

campo de disputas onde se inserem os atletas, as entidades, as mídias, patrocinadores e

demais parceiros do esporte paraolímpico.

4.1- As fronteiras entre as classes na natação paraolímpica e os possíveis jogos de

identidade.

Logo no início do meu trabalho de campo tive contato com um jargão

bastante comum. Os atletas costumam se referir uns aos outros como os “classes

baixas” e os “classes altas”. Essas denominações expressam diferenciações relacionadas


150

à “classificação funcional”, embora não apareçam nos documentos oficiais que tratam

do assunto. Tal distinção está relacionada aos graus de deficiência dentro do esporte,

onde num sentido geral teríamos duas grandes classes de atletas: aqueles com um alto

grau de deficiência e aqueles com um baixo grau de deficiência física, como explicitado

no segundo capítulo. Assim, foi possível perceber como a identidade de “pessoa com

deficiência” ou de “atleta paraolímpico” ganha contornos distintos dependendo da

posição que os atletas ocupam em determinado contexto. Em alguns momentos é

possível visualizar os atletas como um conjunto mais ou menos coeso pela ideia de que

todos possuem uma deficiência e buscam algo em comum. Mas a própria observação de

campo mostrou uma série de diferenciações internas, onde a classificação funcional

desempenha papel importante. É possível afirmar que esse código exemplifica muito

bem o dinamismo existente no jogo entre diferença e igualdade, não apenas pelo seu

aspecto formal, mas fundamentalmente pela maneira como os próprios atletas percebem

e vivenciam essa classificação.

Antes de tudo importa assinalar que o conceito de identidade não deve ser

tratado como um construto plenamente determinado pronto a explicar de forma taxativa

comportamentos e ações de indivíduos ou grupos. Como apontam Berger e Luckman

(1973: 228),

A identidade é evidentemente um elemento-chave da realidade


subjetiva, e tal como toda realidade subjetiva, acha-se em relação dialética
com a sociedade. A identidade é formada por processos sociais. Uma vez
cristalizada, é mantida, modificada ou mesmo remodelada pelas relações
sociais. Os processos sociais implicados na formação e conservação da
identidade são determinados pela estrutura social. Inversamente, as
identidades produzidas pela interação do organismo, da consciência
individual e da estrutura social reagem sobre a estrutura social dada,
mantendo-a, modificando-a ou mesmo remodelando-a.
151

Esse caráter dinâmico da identidade, assim como o seu pluralismo, seria uma

marca das sociedades complexas capazes de promover e comportar “particulares

constelações da realidade”. A partir disso, acredito que falar em identidade na natação

paraolímpica, implica falar na existência de camadas de distinções que se atravessam e

que não é meramente um somatório de unidades, mas que coloca em contato ao mesmo

tempo a identidade de pessoa com deficiência, a de atleta paraolímpico, a de cada classe

específica e aquela que corresponde aos diferentes tipos e graus de deficiência física.

Numa das primeiras entrevistas, realizada com uma nadadora, obtive indícios sobre o

conteúdo que poderia fazer parte da construção de uma dessas identidades:

O atleta paraolímpico é alguém com muita garra e força interior,


que quer mostrar à sociedade que todos são iguais, que quer mostrar que
podemos crescer e fazer mudar a cabeça das pessoas em relação à
deficiência. (...) Mas também tem os grupinhos daqueles que se acham
incapazes e vão para o sinal pedir dinheiro.

Essa fala pode ser considerada como um ponto de partida possível para

caracterizar o grupo em sua contraposição a outros “tipos de deficientes” presentes na

sociedade. Esse fator de coesão interna é corroborado por outra fala de um nadador da

seleção quando pergunto o que os identifica enquanto grupo: “O que tem em comum

realmente é aquela coisa de não querer mais serem conhecidos como coitadinhos e sim

como atletas de verdade”. Aqueles a quem os nativos costumam chamar de

“coitadinhos” são colocados como exemplo do que deve ser negado por qualquer pessoa

no processo de reconhecimento e construção de si mesmo como deficiente, seja em

termos de representação como de ação. A figura do atleta paraolímpico, por sua vez,

concentraria as qualidades de um sujeito ativo, servindo como um símbolo que atuaria

no combate à imagem da autocomiseração e da dependência. Tal imagem, que nasceria

de noções preconceituosas sobre a pessoa com deficiência, teria também o poder de


152

alimentar o próprio processo de exclusão deles enquanto grupo social. De acordo com o

comentário de um nadador “tem os deficientes que são preconceituosos com a própria

deficiência. Muitos preferem se acomodar como no exemplo de não toparem fazer nada

porque estão em cadeira de rodas”. Outro nadador corrobora essa perspectiva a partir do

seguinte comentário:

Geralmente as pessoas têm a imagem do deficiente como pedinte. Eu


abomino esse tipo de deficiente. Não dou dinheiro em nenhuma hipótese.
Falo das associações que ela pode conhecer para fazer esporte. Quando
pedem dinheiro eu respondo: “Eu sou aleijado também. Me dá uma graninha
também”. Se as pessoas acharem fácil ganhar dinheiro pedindo não vão
procurar trabalhar ou fazer outra coisa.

Esse papel quase “redentor” dos atletas e o peso que isto teria na construção

de uma imagem positivada da pessoa com deficiência será mais bem avaliada no

próximo item deste capítulo. De qualquer forma, percebia no meu trabalho de campo

que qualquer tipo de representação mais uniforme do grupo não daria conta de uma

discussão acerca das identidades entre os nadadores paraolímpicos pesquisados.

Qualquer tipo de proposição nesse sentido absolutizaria o conceito de identidade

entrando em choque com uma realidade que se mostrava bem mais complexa. Por outro

lado, a “classificação funcional” - que une os atletas ao reconhecê-los como

paraolímpicos, mas que os fragmenta a partir da conformação das classes - também não

sustentava isoladamente uma análise sobre identidade.

O fato é que o trabalho de campo mostrou que os chamados “iguais” não são

os mesmos o tempo todo, visto que estão na dependência dos desdobramentos das

interações sociais cotidianas. Não é inútil ressaltar que o que está em jogo aqui também

é uma discussão sobre as fronteiras entre os grupos. Em alguns momentos as interações

reforçam as fronteiras marcadas pelas classes; em outros momentos essas fronteiras são
153

rompidas por questões de vivência e sociabilidade que escapam a esse formato. Isso

aparece bem exemplificado na fala de uma das classificadoras funcionais entrevistadas.

Quando questionada se haveria alguma formação de grupos que teria a ver com as

classes ela diz que sim e que talvez isso seja mais evidente na natação do que em outros

esportes como basquete. Ainda assim existiriam outros fatores que influenciariam como

idade, perspectiva de vida e afinidade. Além disso,

Se a pessoa tem uma leve limitação e entrou agora no esporte,


provavelmente não conviveu com deficientes antes e o deficiente para eles é
o cadeirante. No limite existe inclusive a possibilidade de não se achar
deficiente mesmo estando no esporte paraolímpico. A pessoa que tem
deficiência leve está no limbo. Ela vive entre dois mundos e para ela é
complicado mesmo que não perceba.

É interessante adicionar nesse ponto como as experiências vividas pelos

atletas enquanto deficientes fora do universo esportivo são evocadas para os momentos

em que ele se coloca como membro de uma classe no esporte. Nesse sentido, as

experiências podem servir como reforço para a identidade que lhe foi atribuída através

da classificação, como argumento para combatê-la e associá-lo a outra classe, e, ainda,

como munição para o questionamento da identidade de outros atletas.

Quando em outra entrevista afirmo que um atleta da categoria S4 seria um

“classe baixa” ele completa: “Tudo bem, mas você vê que eu me viro”, mostrando que

ele não se restringiria à imagem muitas vezes associada àqueles indivíduos com maior

comprometimento físico. E reafirma em outro momento: “Deficiência é um conceito.

Eu não sou mais deficiente porque eu superei essa barreira. Eu estudei. Eu vou para

onde eu quero. Eu me virei. Eu me adaptei”. Esse atleta faz questão de ressaltar em seu

depoimento que a pessoa tem que ser vista para além do ambiente esportivo. Afirma que

ao olhar para pessoas com uma deficiência maior que a dele pensa que ainda que elas
154

possam ir para vários lugares, existem necessidades humanas básicas que elas não

conseguem fazer sozinhas. Segundo ele as deficiências são várias, mas acredita que os

atletas de “classes baixas” tenham mais sensibilidade para tentar entender como é o

cotidiano dessas pessoas e chega a afirmar que tem muitos casos em que fica claro que

os “classes altas” teriam uma atitude de desprezo em relação aos “classes baixas” e diz:

“Eu acho ridículo o cara que é classe alta, porque qual é a dificuldade dele no dia-a-dia

de pegar um ônibus, de pegar o metrô? E o cara quer ser deficiente. (...) Tem muito

classe alta que precisa ainda tomar noção do que é deficiência”.

Peço, então, para que ele articule esse argumento com os critérios internos

do esporte sobre a definição de deficiência e que são especificados formalmente pela

classificação funcional. Ele responde que, no caso, estaríamos falando de duas esferas

diferentes: uma técnica e outra do cotidiano. Na sua concepção, apenas quando

olharmos para o dia-a-dia da pessoa poderíamos ver quem “realmente é deficiente” e

qual seria a diferença de oportunidades que ela vive socialmente. Ao confrontar

novamente os dois grupos, afirma que os “classes altas” discriminariam os “classes

baixas” ao assumirem “aquela postura do ‘eu sou melhor’. Eu sou deficiente, mas sou

melhor que você. Que contra-senso é esse? Isso é nojento porque é agir de acordo com a

conveniência. Quando convém é deficiente, quando não convém não é deficiente”. Uma

classificadora e técnica de natação também fala da existência de preconceitos dos

“classes altas” em relação aos “classes baixas” e até ironiza um pouco utilizando a

linguagem dos próprios atletas:

Classificadora: Como diriam os classes baixas: “Eles nem são deficientes”. E


não deixa de ser verdade que eles não sofrem na pele o que os outros sofrem
se a gente pensar no dia-a-dia dessa pessoa.
Pesquisadora: Mas os classes altas também vão reivindicar a sua deficiência
e dificuldades em certos casos.
155

Classificadora: Tem isso também, mas ela [a deficiência] não deixa de ser
pouca em relação aos outros. Aí você pensa: ele é um deficiente, mas qual a
dificuldade real que tem no cotidiano?
Pesquisadora: Talvez essas identidades dos classes altas e baixas tenha a ver
com esses dados do cotidiano.
Classificadora: Está ligado também.

Esse tema do preconceito entre os próprios atletas paraolímpicos aparece em

outros depoimentos, principalmente de atletas de “classes baixas”, como neste caso: “Os

classes altas muitas vezes não ajudam os classes baixas que precisam mais de ajuda, e

os classes baixas ficam revoltados muitas vezes porque os classes altas só querem

pensar neles e são mais independentes”. Opinião semelhante expressa outro atleta, agora

da classe S5, em um momento da nossa entrevista:

Pesquisadora: Você acha que tem algum tipo de formação de grupo ou de


identificação entre os classes baixas e os classes altas? Você acha que isso
existe?
Atleta: É, às vezes sim. Às vezes, deixa eu pensar... O classe alta vai andar
com classe alta só. Às vezes acontece isso porque ele pode pensar: “A minha
deficiência é pouquinha, então eu não preciso fazer muitas coisa. Mas se eu
for andar com essa pessoa eu vou ter que ajudar”. E principalmente o
cadeirante, né? Então, acontece isso às vezes sim.
Pesquisadora: Acontece de ter a formação de grupos.
Atleta: Acontece às vezes sim, mas aí é como eu falei. É um trabalho do
psicólogo também chegar e falar que é como um grupo e foi o que aconteceu
lá em Pequim. Nós éramos um grupo e não existia mais isso.
Pesquisadora: Você já chegou a ver situações de discriminação interna? Por
exemplo, entre o grupo da natação paraolímpica?
Atleta: A gente vê sim. A gente vê. Infelizmente...
Pesquisadora: Mas de que tipo?
Atleta: Ah! Acontece fatos assim que às vezes a pessoa tá vendo... Que nem
eu. Eu sou amigo de um cadeirante. A gente anda sempre junto e às vezes eu
preciso ajudá-lo. Então, a pessoa ali, a deficiência dela é mínima e ela tá
vendo que ele tá precisando de ajuda, mas não vai ajudar. Entendeu? Finge
que não vê, vai pra outro lado. Então, acontece isso, a gente sabe que depois
que acaba a competição digamos que é cada um por si.
Pesquisadora: Para alguns momentos você precisa dessa identidade pra estar
e para outros momentos você se afasta dessa identidade.
Atleta: Sim. É verdade. Acaba sendo até engraçado. Por que ele fez isso?
156

Esse assunto remete a um dos pontos da discussão de Goffman (1988) sobre

estigma quando ele afirma que a vinculação de um indivíduo a um grupo de

estigmatizados não se dá de uma forma sempre coerente e numa escala ascendente. Uma

situação de ambivalência pode ser experimentada, pois se por um lado se coloca um

apelo – no sentido mesmo de se evitar o isolamento – de reconhecimento dos seus

“iguais”; por outro lado, um indivíduo pode se imaginar diferente dos estigmatizados ao

ver neles características ou atributos depreciativos que não enxerga em si mesmo. O

autor chama essa adesão tensa e, por vezes provisória, de “oscilações de apoio”, noção

que parece ser útil para refletirmos sobre a construção de identidades no seio da natação

paraolímpica. Essa dinâmica torna-se ainda mais complexa se atentarmos para o fato de

que se as experiências externas ao esporte paraolímpico dialogam com construções

internas sobre o que é ser deficiente, o caminho inverso não é menos importante.

Uma das classificadoras funcionais concorda que existem formações de

grupos relacionadas às distinções impostas pelas classes, mas alerta que deveria ser

visto com mais cuidado porque isso acontece. “É porque são parecidos fisicamente?

Sofreram mais?”. Ela acha que pelo fato dos “classes altas” terem uma independência

maior, talvez fiquem mais juntos e evitem andar com aqueles de “classes baixas”. Mas

para outra classificadora as competições seriam momentos cruciais onde essas

diferenças parecem se dissolver um pouco. Nesses eventos aqueles com deficiências

mais leves têm a oportunidade de aprender a lidar com os “mais deficientes”, como os

cadeirantes. Ela aponta que, muito embora uma pessoa não possa “sentir na pele” de

outra pessoa, ela tem a oportunidade de conviver e tentar se aproximar para conhecer “o

outro” para além da questão de mera afinidade. Então, “eles tentam se ajudar quando

estão juntos em competições. Mas sempre tem aqueles que não querem ‘carregar’

alguém. Tem gente que pensa assim”.


157

Não existe um consenso por parte dos nativos sobre a questão de formação

de grupos e de identidades através das classes. Também ouvi relatos daqueles que

discordam dessa proposição afirmando de forma mais categórica que apesar deles terem

clareza de que diferem em grau de deficiência, não existiria a construção de uma

identificação que tenha isto como base. Como diz um dos nadadores “existem grupinhos

sim, mas que não tem a ver com tipo de deficiência, mas com afinidade de pensamento

e de idéias. Em todo lugar existem os grupos que se formam a partir disso mesmo.” As

competições surgem novamente – agora na fala de um atleta da classe S4 – como

ocasiões onde a coesão do grupo aparece de forma explícita:

Na Paraolimpíada acontece que todas as modalidades se unem. (...) Fica


aquela união nós brasileiros, nós e outros países. Mas fora de Paraolimpíada,
só campeonatos mundiais daquela modalidade. Então, a gente espera quatro
anos pra tentar ficar junto de outras modalidades, conhecer outras pessoas.
(...) Infelizmente, não o esporte paraolímpico, mas eu acredito que os
deficientes ainda vivem naquele mundinho só vou me relacionar com
pessoas da minha deficiência, com pessoas... Fora do contexto existe isso.
Acho que os deficientes são o segmento mais desunido do mundo. Não
deveria ser assim.

Em muitas falas podem ser encontrados certos deslizamentos do ponto onde

o informante começa afirmando a unicidade de todo o conjunto até o momento em que

chega a reconhecer certos graus de diferenciações que podem ocorrer, inclusive, pela

via do preconceito, como aparece neste momento da entrevista feita com uma nadadora

pertencente aos “classes baixas”:

Pesquisadora: Qual seria o fator de identidade entre os atletas paraolímpicos?


Atleta: É mera questão de afinidade. Tem deficientes que eu não suporto ver
a cara porque não tem nenhuma afinidade. Eu não me identifico com uma
pessoa porque está numa cadeira de rodas ou porque usa muletas.
Pesquisadora: Mas existiriam estes tipos de identificações? [por deficiência,
no caso]
158

Atleta: Teriam os grupos de provas, mas da mesma forma se eles têm


afinidade vai haver conversa, senão não tem jeito mesmo.
Pesquisadora: Já viu atitudes preconceituosas internamente?
Atleta: Sim, principalmente entre os classes altas. O pessoal classe alta S10,
que só tem manco... Com certeza existe. Não tenha dúvidas disso. É um
grupo normal. Existe preconceito também.
Pesquisadora: Então as classes poderiam ser fator de constituição de grupos?
Atleta: Pode ser que sim. Pode ser que exista uma panelinha sobre isso.

Numa entrevista realizada com um técnico de atletas paraolímpicos, mas que

não faz parte da seleção, também conversamos sobre o mesmo assunto.

Pesquisadora: Pelo que você observa, existiria algum tipo de formação


de grupos que passa pelas classes?
Técnico: Tem. Infelizmente. Você tem a divisão por clubes. Mas como
as pessoas não vão falar só com as pessoas do seu clube elas irão ter
muito contato com aquelas da sua classe porque sempre vão se
encontrar no balizamento. Apesar de alguns egos, a maioria dos atletas
consegue ter uma boa convivência. A laranja podre tem em todo lugar.
Pesquisadora: Mas essa formação de grupos ocorre por causa da
convivência ou ela tem a ver com o tipo de deficiência mesmo?
Técnico: Acho que tem a ver apenas com convivência, com criação de
laços, com afinidades, principalmente que são criados dentro dos
clubes. (...) A divisão é mais em cima do convívio. Os classes altas,
por sua mobilidade, vão também ter um convívio maior. Aí eu vou ser
cruel: leva o cadeirante pra cima e pra baixo dentro de uma cidade!
(...) É cruel, mas as pessoas pensam nisso tb.
Pesquisadora: Então parece que as clivagens vão para além do clube?
Técnico: Mas isso não acontece somente no paradesporto. Sempre
haverá grupos. (...) As amizades se baseiam em você conhecer a
pessoa e ter afinidades e para isso você precisa de convivência. Está
tudo interligado.

É importante chamar a atenção para o fato de que tanto neste depoimento

como em outros já citados, a amizade é evocada para matizar ou até mesmo para negar a

existência de cisões ou formação de grupos internamente. Como afirma Rezende:

Essa naturalização da amizade enquanto sentimento ou preferência


individual, dando origem a uma relação baseada também em escolhas
159

singulares tornou-se corrente no pensamento ocidental moderno. Por isso a


amizade passou a ser vista como coisa estritamente pessoal, de cunho
afetivo e pouco sujeita a princípios sociais. (Rezende, 2002:18-19).

No caso da natação paraolímpica não podemos perder de vista que essas

relações se inserem num ambiente de competitividade que pode fortalecer essas

diferenciações internas48. Dessa forma, na entrevista realizada com um nadador S10, ele

começa afirmando que não existe uma identidade e construção de subgrupos por meio

da divisão por classes. Em sua opinião haveria sempre outras coisas envolvidas como a

mera afinidade pessoal. Porém, num momento posterior da nossa conversa, outras

questões surgem e complexificam a sua declaração inicial.

Pesquisadora: Já viu atitudes de preconceito entre as pessoas do próprio


movimento?
Atleta: Já vi. Acontece, porém existe uma tentativa para reverter isso.
Pesquisadora: E qual seria o vetor desse preconceito? Seriam das pessoas
com menos deficiência em relação às outras com mais?
Atleta: Eu acho que não. Eu acho que é o contrário, porque o esporte
paraolímpico foi criado para aquelas pessoas com limitações maiores. E
talvez hoje muitos atletas de classe baixa, mas nem tanto no Brasil, dizem
que os de classe alta estão tomando o espaço deles.

Aproveito a oportunidade para comentar com ele sobre as dificuldades

enfrentadas pelo movimento paraolímpico no sentido de aumentar e renovar o seu

quadro de nadadores “classes baixas”. Naquele momento, ao acionar um tema que não

parecia ter ligação direta com o debate sobre a diferença entre as classes, acabei

trazendo à tona outros aspectos que reforçavam a hipótese da existência de separações

internas. O mesmo nadador conta que houve uma época em que os “classes baixas”

diziam que o dinheiro dos circuitos não era distribuído de forma correta. No entanto, ele

afirma que apenas os dez melhores da competição recebem. A distribuição seria

estabelecida pelo percentual de aproximação de cada atleta do recorde mundial de sua


48
Sobre a relação entre amizade e competitividade consultar ROJO, 2001.
160

classe, mas, no Brasil, os “classes baixas” não seriam tão fortes. Sendo assim, “se os

classes baixas querem estar em pé de igualdade precisam treinar mais”. Ele relata,

ainda, que na Paraolimpíada de Pequim um repórter canadense o teria confrontado ao

afirmar que muitas pessoas estariam questionando o fato dele ser deficiente realmente.

Ele teria respondido que treinou a vida inteira com atletas sem deficiência e que luta

muito para conseguir o que quer, dedicando-se muito a questão técnica e que

se as pessoas têm inveja ou não, mas queriam estar no meu lugar, só teria
uma coisa a dizer, que elas treinem. (...) Tem classificadores internacionais
que disseram na época que eu não era deficiente e que hoje chegam a dar
dicas para que eu melhore o desempenho. (...) Se a minha deficiência não
fosse legítima no esporte simplesmente eu seria soberano em todas as provas
e não é isso o que acontece. Existem várias deficiências. Não acha que treino
mais que os outros, mas tenho uma formação e um treino que se assemelha
muito daqueles nadadores sem deficiência. Enquanto isso, outros
começavam no esporte como reabilitação. Eu sempre me vi como atleta.
Trato a competição e o adversário paraolímpico da mesma forma que trato o
convencional.

Por meio desta fala, o atleta recoloca algumas questões além de trazer novos

elementos para a discussão. Ao reafirmar a importância de uma perspectiva mais

profissional para o meio paraolímpico, fica a sugestão de que esta seja a chave para que

se possa compreender as diferenças entre os “classes altas” e os “classes baixas”. Além

disso, procura resgatar a legitimidade da sua deficiência e da sua participação no

movimento, legitimidade essa que nasce de uma auto-identificação, mas que seria

confirmada por agentes especializados nessa matéria. Remetendo novamente a outro

ponto da discussão sobre identidade desenvolvida por Berger e Luckman (Op.cit.: 200),

vemos que:

Para conservar a confiança de que é na verdade a pessoa que pensa


que é, o individuo necessita não somente a confirmação implícita desta
identidade, que mesmo os contactos diários casuais poderiam fornecer, mas
161

a confirmação explícita e carregada de emoção que lhe é outorgada pelos


outros significantes para ele.

Nesse caso específico os “outros significantes” seriam os profissionais do

próprio movimento incumbidos de decidir sobre a elegibilidade do atleta e que, por sua

vez, atuam em contextos e ambientes onde se desenrolam as interações que confirmam

essa mesma realidade.

Na entrevista também aparece o tópico sobre a distribuição de recursos

financeiros na natação paraolímpica e que envolve necessariamente o debate sobre

patrocínios. À primeira vista, esta questão pode parecer um grande parêntese na

temática da formação de grupos e diferenciação entre os mesmos, mas acredito que

outros fatores como esses tocam transversalmente uma primeira separação caracterizada

por níveis de deficiência.

Conversando com uma classificadora sobre o número cada vez menor de

provas para atletas das “classes baixas”, o viés do investimento distinto nas classes toma

contornos ainda mais claros. Ela conta que a presença de um atleta “classe baixa” numa

competição demanda a presença de um acompanhante. Mas nem sempre essa

necessidade pode ser suprida e o comitê acaba escalonando dois atletas para cada

acompanhante. Essa decisão, que tem a ver com a falta de verbas para a execução do

quadro ideal da delegação, faz com que todos os atletas sejam envolvidos no trabalho de

apoio àqueles com um maior comprometimento físico, o que demandaria, por sua vez,

mais disciplina e colaboração entre eles. Ela prossegue:

Num período anterior ao que estamos vivendo houve problemas


porque vários classes altas não queriam cooperar com os baixas. Era uma
galera que olhava muito para o próprio umbigo. Então, por exemplo, se você
tem verba pra levar sessenta pessoas e precisa de dez acompanhantes, você
diminui a verba, de repente, dos acompanhantes para levar mais atletas e
162

parte técnica. Isso acabou gerando muito conflito. (...) Levar um classe baixa
é mais custoso. E às vezes você não tem limite de vagas, mas tem limite de
verbas. (...) Acho que esse tipo de raciocínio não era só no Brasil.
Mundialmente se passou a ter uma menor participação dos classes baixas. O
quadro de hoje é uma consequência disso.

Digo para a classificadora que essa problemática não poderia, então, ser

resumida apenas com a noção de que não existem atletas “classes baixas”. Ela concorda

e comenta que tal afirmação pode ser verdadeira apenas numa parte de toda a cadeia de

formação dos atletas. Para se fazer um bom trabalho com os “classes baixas” haveria a

necessidade de uma formação mais completa por parte dos técnicos, que incluiria um

maior nível de conhecimento sobre as deficiências. Já na preparação dos “classes altas”

existe pouca exigência para uma adaptação no nível técnico, o que tornaria o trabalho

mais fácil e exigiria menos esforços dos treinadores. Dessa forma,

São muitos fatores que fazem com que os classes baixas participem
menos. (...) Isso pode ser revertido, mas aí os baixas têm que ter prioridade
em termos de foco de trabalho e depende também de um posicionamento do
IPC. Ele tem que descobrir uma forma pra isso acontecer. Por isso que a
bocha tem um apelo muito grande porque ela é só para os mais
comprometidos, além do rugby.

Tudo indica que de uns anos para cá, mais especificamente no último ciclo

paraolímpico, foi detectada uma espécie de crise na renovação dos “classes baixas” na

natação, com uma diminuição drástica do número de atletas. Tal situação não

compromete apenas a realização de várias provas, mas provavelmente assinala outro

momento histórico na natação paraolímpica, agora protagonizada por medalhistas com

um comprometimento físico menor. De qualquer forma, nos vários contatos que travei

com nadadores “classes baixas”, era notório o orgulho que demonstravam por trazerem

o maior número de medalhas para o país ao longo da história do movimento. Essa


163

questão pode ser tratada, sem dúvida, como mais um dado para a análise das complexas

relações existentes entre as classes.

Voltando o foco novamente para uma diferenciação entre os grupos que se

centraria nos níveis de deficiência, tendo como vetor principal a “classificação

funcional”, percebo que ela também não pode ser entendida somente como algo que

depende da auto-percepção dos atletas, mas também se relaciona com a própria forma

de organização da natação. Sendo um esporte essencialmente individual, uma

importante ocasião de interação com os outros atletas na competição é o momento do

balizamento, quando eles se preparam e aguardam a realização da prova. Dessa forma,

os membros de cada classe estarão sempre em contato dentro desse arranjo estrutural e,

por mais que alguns optem pelo máximo de isolamento possível e concentração, sempre

existe a troca de ideias que pode ter relação com a técnica, com competitividade e,

também, com as identidades corporais. Essa proximidade das classes que é

possibilitada, antes de tudo, pela própria organização dos eventos, é relatada por alguns

informantes. No trecho de uma das entrevistas essa questão surge claramente.

Pesquisadora: O que faz com que vocês se identifiquem dentro da natação?


Um fator de identificação dos nadadores paraolímpicos?
Atleta: Você fala, assim, dentro das categorias?
Pesquisadora: Numa equipe de natação paraolímpica. Qual é o fator que faz
com que vocês se identifiquem enquanto um grupo?
Atleta: Relacionado à deficiência?
Pesquisadora: Pode ser.
Atleta: É. Porque assim, na natação são 25 atletas. 19 masculino e 6
feminino. Então, o que acontece? Tem os classes altas e os classes baixas.
Então na própria organização e divisão dos atletas já acontece de se formar
os classes altas e os classes baixas. Por que? A questão da mobilidade.
Pesquisadora: Mas você acha que isso acaba sendo um fator de identificação
entre cada um desses grupos?
Atleta: Não, mas ajuda.
Pesquisadora: Ajuda. Não é definidor, mas tem certo peso.
Atleta: Tem. O meu parceiro de quarto é um classe baixa. Isso não quer dizer
muito, mas acaba que você... Ah, tem um grupo formado, aí geralmente tem
164

o grupo dos classes altas ou baixas. Por quê? Porque nas competições, na
hora da briga, nós estamos sempre mais juntos.

Essa é a opinião emitida por um nadador “classe alta”, mas que se

assemelha muito ao que é dito por um técnico da seleção:

Pesquisadora: Existiria uma identidade por classes ou comprometimento


físico?
Técnico: Não vejo isso desde que estou no movimento. Claro que os classes
baixas ou altas acabam tendo maior ou menor contato pela competição
mesmo, mas vejo que existe uma convivência com todos. Claro que tem
coisas que um classe alta faz que um baixa não faz e aí acabam tendo os
grupinhos, mas todos convivem bem. Acho que a identificação é mais do
atleta enquanto pessoa do que como classe por tipo de deficiência.

Poderíamos inserir ainda outro dado no que se refere às construções de

diferentes identidades no movimento paraolímpico. Conversando com outro técnico ele

afirma que existiria atualmente uma divisão bem drástica entre os deficientes físicos e

os deficientes mentais. Pergunto se uma cisão semelhante também poderia ser

encontrada entre deficientes visuais e físicos e ele diz acreditar que não, tendo em vista

que estes grupos estariam constantemente em contato por causa dos circuitos.

Em outros momentos desta tese expus a necessidade dos atletas com

deficiência física marcarem a sua diferença com relação às pessoas com deficiência

mental. Isso ficava mais evidente nos casos em que o prejuízo físico possuía alguma

relação com um dano cerebral sofrido. O principal receio dos atletas é de ter a sua

deficiência associada à incapacidade intelectual. Já foi visto, inclusive, como a busca

por essa distinção pode se desdobrar na construção de concepções estigmatizantes sobre

a deficiência mental.

É provável que a conservação por parte dos atletas com deficiência física de

algumas noções estereotipadas sobre a deficiência mental tenha relação com um duplo
165

afastamento entre esses dois grupos. Em primeiro lugar, os atletas com deficiência

mental estão afastados das competições oficiais organizadas pelo CPB e pelo IPC. Em

segundo lugar, eles costumam treinar em associações voltadas mais especificamente

para o tipo de deficiência que possuem, como ocorre com entidades que desenvolvem o

seu trabalho basicamente com pessoas com Síndrome de Down. Não possuo dados de

campo para me aprofundar nas especificidades organizacionais, técnicas ou pessoais que

envolvem a formação de atletas com deficiência mental e a sua relação com atletas com

outro tipo de deficiência. Tal tarefa escaparia às dimensões desta tese. Mas ao falar em

agenciamentos de identidades que também tomam por base os diferentes tipos de

deficiência, os atletas com deficiências visuais e mentais não poderiam deixar de ser

citados.

Este debate sobre a construção de identidades possui relação estreita com a

questão das fronteiras existentes entre as classes na natação paraolímpica. Uma

afirmação inicial sobre a existência de uma identidade de nadador ou atleta

paraolímpico não resiste às intervenções que se dão em outros níveis. Foi possível ver o

peso que o sistema de “classificação funcional” exerce na demarcação de limites entre

os diferentes grupos que se formam internamente. Dessa forma, questões identitárias

que dizem respeito aos diferentes níveis de deficiência dão uma conformação inicial a

esses mesmos grupos. Por outro lado, as identidades dessa natureza não se restringem à

concepção científica do esporte sobre o que é deficiência. Ou melhor, a maneira como

os próprios nadadores concebem “pessoa com deficiência” e “atleta paraolímpico”

desafiam em muitos momentos o registro formalizado pela “classificação funcional”.

As interações do âmbito do cotidiano profissional e pessoal fornecem os

dados que atualizam uma referência mais geral sobre a deficiência. É dessa maneira que

podemos afirmar que a identidade existente entre os grupos não é imutável, da mesma
166

forma que as fronteiras entre eles podem ser redesenhadas. Se por um lado esta análise

requer uma visão mais totalizante sobre a realidade social dos indivíduos, ao mesmo

tempo não podemos esquecer que o foco na situação também é fundamental para o

entendimento da formação dos grupos. Como vimos, são múltiplas as questões que

estão em jogo nos processos de constituição dos mesmos e na redefinição de suas

fronteiras. É necessário olharmos para uma realidade onde os grupos estão em contexto

e não como aspectos fixos de um mundo social.

Creio que a abordagem sobre a construção de identidades deve possuir essa

interface mais construtivista, onde a ação desempenha papel fundamental, com os atores

sociais assumindo um papel ativo na seleção dos conteúdos de coesão de um grupo,

assim como na negociação e manipulação das fronteiras que os separa dos “outros”. De

qualquer forma, existe sempre um nível de comunicação entre eles, baseado no

compartilhamento de determinados códigos que possibilitam o diálogo. Contudo, a

existência dos impasses nunca está descartada, mas é justamente a capacidade de

movimentação e transformação dos atores sociais que tem o vigor para operar as

constantes reconfigurações entre os grupos e os conteúdos que lhe são próprios num

determinado conjunto de relações sociais.

4.2 - Investigando os discursos sobre “superação” entre nadadores paraolímpicos.

Um tema se mostrou especialmente instigante ao aparecer com veemência

não somente nos materiais que faziam parte do meu levantamento de dados inicial, mas

também por estar sempre presente no discurso nativo: o tema da “superação”. À

primeira vista não parece haver nada de especial na recorrência desta noção em

materiais de divulgação do movimento paraolímpico. Se nos voltarmos para a esfera do


167

esporte olímpico, é provável que também nos defrontemos com a ideia de “superar”,

uma vez que semanticamente ela evoca noções como vencer, resistir, se mostrar

superior, ir além e ultrapassar, que têm o poder de transmitir valores que são caros ao

universo do esporte competitivo e amador. Ainda assim, buscando ir além do que

parecia ser óbvio, procurei avançar nessa discussão. Dessa maneira, os dados iniciais de

pesquisa foram se complexificando ao serem relacionados às observações do trabalho

de campo, assim como aos depoimentos recolhidos dos atletas ao longo deste período.

A categoria de “superação” está presente em diferentes formas de

publicização dos atletas paraolímpicos e gostaria de sustentar que ela é uma importante

ferramenta utilizada para se contrapor à imagem do “deficiente coitadinho”, ao mesmo

tempo em que constrói a imagem de uma espécie de “herói”, ou seja, de um indivíduo

que seria capaz de vencer todas as barreiras e obstáculos. A ideia aqui é colocar em

diálogo a categoria de “superação” que se encontra desenhada em termos mais

institucionais – e que pode ser captada através dos canais próprios de divulgação do

movimento – com aquela articulada pelos atletas. Ao contrário de supor a existência de

uma operação de exclusão entre essas proposições, prefiro encará-las como discursos

que se interpenetram, podendo ser complementares em determinadas circunstâncias e

contraditórios em outras.

Como já afirmei acima, acredito que uma das potencialidades da noção de

“superação” é justamente servir como arma de combate à ideia do “deficiente

coitadinho”. Insisto nessas expressões e as coloco entre aspas por entender que elas

fazem parte de uma discursividade nativa. Pude observar durante o meu trabalho de

campo que a fórmula “deficiente coitadinho”, ou simplesmente “coitadinho” aparece

repetidamente nas falas dos atletas, seja no cotidiano ou nos depoimentos colhidos

formalmente. Ela é uma marca registrada de muitas entrevistas, sendo evocada como
168

exemplo daquilo que deve ser combatido, ou até mesmo como exemplo daquilo que um

dia o atleta representou antes de entrar para o esporte.

O tema da “superação” era algo que aparecia com grande força e sua

legitimidade crescia à medida que transcorriam os dias de trabalho de campo. A

“superação” se colocava como um conceito que estava presente na fala dos atletas, mas

também nos discursos dos dirigentes, nos materiais institucionais ligados ao movimento

paraolímpico, nas campanhas publicitárias, nas resenhas dos assessores de

comunicação, nas mídias, no depoimento de familiares, na mobilização dos torcedores.

Mas da mesma forma que ela era tão presente e tão mencionada na demarcação dos

mais variados assuntos, por essa mesma razão também parecia ser uma categoria

esvaziada de sentido. Sendo assim, resolvi encará-la como uma importante ferramenta

discursiva que pode ganhar sentidos diversos que provém de diferentes agentes no

interior do movimento paraolímpico.

Não ambiciono discorrer aqui sobre todas as variáveis de repertório que

podem advir da temática principal da “superação”. Por essa razão selecionei as

expressões “deficiente coitadinho” e de “herói guerreiro” por perceber a sua recorrência

no campo e por avaliar que possuem bastante eficácia no sentido de articular os

elementos que estão em jogo numa discussão sobre “superação” no contexto da

pesquisa realizada. Muitas vezes aquelas expressões surgem em fórmulas mais simples

como “coitadinho” e “herói”. A meu ver essas construções são intercambiáveis e não

possuem diferenças semânticas de grande relevância, de forma que neste texto

aparecerão as diferentes versões sem que haja a necessidade de um tratamento analítico

diferenciado. É importante deixar claro que existem outras expressões ou formas de

denominação que estão presentes neste campo, mas fiz esta escolha por uma questão

metodológica, acreditando que elas são paradigmáticas pelas razões já expostas.


169

4.2.1 - Superando o “coitadinho”: o atleta e a elaboração de imagens de si.

Nas entrevistas realizadas com os atletas a categoria de “superação” aparecia

em diversos momentos, mas se concentrava decisivamente quando eles respondiam

perguntas relacionadas à sua vida antes e depois da entrada no esporte. No interior de

uma concepção mais ampla de ganhos proporcionados pelo esporte – e que

extrapolavam a esfera da fisicalidade – a “superação” aparecia como uma espécie de

resultado final, ao mesmo tempo em que não deixava de ser também o princípio de

motivação do atleta. Mas o tema da “superação” também era o conteúdo primordial

quando os informantes falavam dos elementos que diziam respeito à construção de uma

imagem de si como deficiente e como atleta. Na opinião da maioria o sucesso de uma

elaboração positiva de si mesmo – e que necessariamente concorreria para uma

construção positiva sobre a deficiência - dependia do empenho delas próprias, ou seja,

da maneira como elas se mostram para o restante da sociedade e que comporta a

maneira como elas se representam nas interações face-a-face (Goffman, 1985).

Na entrevista realizada com uma nadadora pergunto se ela teria percebido

alguma mudança na visão das pessoas sobre ela depois que se tornou atleta. Ela

responde: “Para as pessoas que já me conheciam e que me conhecem agora mudou. Não

me vêem mais como uma pessoa ‘coitadinha deficiente’, hoje em dia me vêem como

atleta. Mas existe sim. Já passei por isso muito”. E depois completa: “Porque você

querendo ou não a imagem que todo mundo tem do deficiente físico é o coitadinho que

tá dentro de casa, não tem força nem pra respirar. Mas pelo contrário, eu tenho força

para lutar, pra ir pra guerra”. Ao perguntar sobre o papel que as pessoas com deficiência

teriam na construção dessa imagem ela teceu alguns comentários que em vários
170

momentos do meu trabalho de campo se assemelharam às falas de muitos outros

informantes. Ela declara:

Depende do deficiente. Tem deficiente que se acomoda, atleta que


às vezes se acomoda, que não enfrenta algumas coisas. (...) Então existe isso
sim. Depende de você, da imagem que você cria. Se você quiser ter uma
imagem de coitado, de uma pessoa depressiva, mal e tal, todo mundo vai ver
isso, o que você quer que vejam. A partir do momento que você cria uma
imagem que você é forte, que você tem coragem, que é uma pessoa viva, é
isso que todo mundo vai ver. Depende de você. Você que faz sua imagem.

Seguindo um raciocínio semelhante um dos nadadores afirma que

se a pessoa com deficiência não recua, ela está abrindo um espaço


positivo e aí as pessoas podem vir a se relacionar com você sem ver o lado
deficiente. (...) A pessoa deve se colocar de igual pra igual. Se você se coloca
dessa forma a pessoa normal vai te ver com mais naturalidade.

Acredito não ser necessário citar outros tantos trechos de entrevistas onde

surgem falas similares a essas que foram mencionadas. De qualquer formam, a questão

da construção positivada de si mesmo e da deficiência física possui diversas nuances e

se ligam a outras questões que ultrapassam os limites da auto-percepção. Nos

depoimentos fica claro o quanto uma construção desses sujeitos como pessoas com

deficiência se cruza com outras percepções consideradas como sendo externas ao grupo,

bem no sentido do que poderíamos chamar de “contatos mistos” (Goffman, 1988).

O jogo entre os diferentes olhares e subjetividades encontra-se em destaque

em muitos testemunhos que colhi ao longo da minha pesquisa. É dessa forma que aquilo

que os informantes apontam como a construção de uma auto-estima por parte das

pessoas com deficiência aparece também aliada às visões que estão presentes na

sociedade como um todo e que não se restringem àqueles que estão incluídos no

universo do movimento paraolímpico.


171

Uma das entrevistas realizadas foi especialmente frutífera no sentido de

mostrar a riqueza de percepções sobre o atleta com deficiência e, por extensão, sobre a

pessoa com deficiência. Conversei com um dos nadadores da seleção depois das

Paraolimpíadas de Pequim. Ele tinha sido um importante medalhista nesses jogos e eu

pude perceber que o assédio em torno dele havia aumentado desde a época em que nos

vimos pela primeira vez. Toda essa mudança me fez pensar sobre como aquelas pessoas

estariam olhando para o atleta e mais especificamente para a sua deficiência e perguntei

se ele achava que nos seus contatos com o público mais geral haveria uma idéia de

penalização em torno de sua condição física. Ele me respondeu que isso ocorria algumas

vezes, ainda que o objetivo deles fosse justamente o de combater a figura do “coitado” e

me descreveu uma interessante experiência para que eu pudesse entender com mais

clareza aquela afirmação.

Ele contou que tinha ido dar uma palestra em Joinville para um público de

comerciantes com o perfil de classe média alta. Disse que falou sobre a sua história de

vida e da sua entrada no esporte que, segundo ele, possuiria percalços e dificuldades

como qualquer outra trajetória. Mas, ao final da palestra, uma senhora teria se

aproximado dele chorando e lhe oferecendo uma quantia em dinheiro. Ele conta que

explicou para a senhora que se sentiria mal se aceitasse e tentando manter a polidez

disse com firmeza que não estava ali para pedir esmolas e que, inclusive, tinha sido

contratado e pago para fazer aquele trabalho. Depois, num tom enfático, ele afirma o

seguinte para mim: “A gente não quer pena. A gente não quer, por exemplo, que uma

pessoa patrocine a gente pra mostrar esse lado de coitado, sabe? História triste todo

mundo tem. Todo mundo tem uma história triste. A vida é feita de altos e baixos”.

Não era a primeira vez que ouvia histórias como essas de pessoas que se

aproximavam dos atletas para oferecer dinheiro sem que eles tivessem pedido. Vários
172

casos eram relatados e aconteciam principalmente com aqueles que possuíam uma

deficiência física mais visível. Num desses episódios um atleta estava numa cadeira de

rodas num ponto de ônibus quando foi abordado por alguém que lhe ofereceu uma

pequena quantia em dinheiro. Sua resposta foi a de que não queria esmolas e que apenas

esperava a condução para treinar.

Outro assunto que surgiu durante a mesma entrevista foi sobre o trabalho

com palestras motivacionais que alguns atletas têm realizado principalmente junto a

empresas. Esse nadador está entre os profissionais que participam desse tipo de evento.

Ele faz parte da classe S10 e possui uma deficiência pouco visível. Por essa mesma

razão ele conta que teria sido questionado se a sua atitude de ir com bermuda para a

palestra e tirar o tênis para que as pessoas visualizassem a sua deficiência não seria uma

opção apelativa. Ele se defende e afirma que ao fazer isso estaria tentando chamar a

atenção do público para um traço do seu corpo que de outra forma não seria

visualizável. Ele também argumenta que o seu objetivo é expor a deficiência para que

ela possa ser encarada como natural no sentido mesmo de impedir que as pessoas

venham a sentir pena da sua condição física. O “apelo”, nesse caso específico,

representaria um esforço para naturalizar através da educação do olhar aquilo que

costuma estar escondido, e não um convite para uma “história triste”. Contudo, surgem

mais à frente outros dados relacionados ao tema da piedade e da maneira como ela pode

se inscrever como uma espécie de demanda no movimento paraolímpico, na medida em

que possui certo peso na projeção profissional do atleta. Ele afirma: “O nosso mundo

gosta de desgraça. (...) Mas aí que tá. Talvez ele não seja tão diferente. Talvez a minha

história seja até pior do que a dele, ou não. Enfim...”. É dessa forma que uma

deficiência física mais explícita enquadra-se mais no imaginário que associa uma
173

determinada condição física a uma vida ruim, difícil ou triste, quando pode não ter

havido nada disso.

Na sequência, aproveito para questioná-lo acerca de um tema que me parecia

muito próximo a esse:

Pesquisadora: Que ideias você acha que devem estar associadas à imagem
pública de um atleta paraolímpico?
Atleta: Eu vou ser muito cruel naquilo que eu vou falar, mas hoje eu ainda
vejo... Muita gente pensa diferente, mas eu ainda vejo muito - e nós enquanto
atletas - essa questão da deficiência, da inclusão, do coitado.
Pesquisadora: Então, por enquanto, esse ainda é o foco de uma exposição
pública?
Atleta: Sim. Pra você ter um espaço às vezes na tevê o cara vai contar uma
história triste e no final ele vai falar dos seus resultados. (...) Teoricamente é
justamente isso que a gente não quer. A gente quer ser reconhecido como um
atleta.

O uso do “teoricamente” vem explicitar justamente o limite imposto ao

desejo de ser reconhecido apenas pelo lado profissional. Ao acompanhar este mesmo

atleta em um evento, pude perceber como o seu depoimento era condizente em muitos

aspectos com o formato e o conteúdo daquela iniciativa. Ele iria participar com outros

atletas paraolímpicos da natação e do atletismo de um painel cujo tema era a

participação do Brasil nos Jogos Paraolímpicos de Pequim. Aquele evento – organizado

pela TV Tribuna, afiliada local da Rede Globo - estava na sua quinta edição e tinha

como finalidade discutir durante alguns dias a questão da acessibilidade na cidade de

Santos. Os outros debates eram articulados a partir desse tema central.

Assim que chegamos ao local, um grande auditório de um dos hotéis da

cidade, uma das organizadoras recebeu o atleta que se juntou aos outros colegas numa

área na plateia que já estava reservada para eles. As atividades daquele dia já haviam

começado. Foi possível ainda ver um painel intitulado “A superação de limites através
174

do esporte” que contava com a participação de alguns atletas com deficiência, não

necessariamente ligados ao esporte paraolímpico ou de alto rendimento.

As duas histórias que tive a chance de acompanhar tinham como

característica principal a reconstituição de um drama pessoal. Os momentos mais

críticos – com destaque para a ocorrência do trauma responsável pela deficiência – eram

o ponto de partida de uma trajetória de triunfo sobre a tristeza, triunfo este que teria sido

proporcionado pela prática de um esporte. Tanto no caso da remadora que tinha sofrido

a amputação de uma das pernas, como no caso do surfista que tinha ficado cego –

ambos vítimas de acidentes automobilísticos – as palavras eram sustentados por vídeos.

Neles estavam presentes imagens da infância, da família, assim como depoimentos dos

pais e dos amigos íntimos. Aquele tipo de material visual não era novidade para mim.

Embora estivessem tratando de diferentes histórias, aquele formato era bastante comum

nos vídeos e documentários que eu já tinha visto, como no episódio que descrevi no

capítulo 3.

No painel realizado com os atletas paraolímpicos intitulado “O sucesso dos

atletas paraolímpicos” foi passado pela organização do evento um vídeo que misturava

imagens do Parapan no Rio com imagens dos Jogos de Atenas. Lembro que quando

chegamos ao evento a organizadora que recebeu o atleta perguntou se ele havia levado

algum tipo de material para ser mostrado. Ele respondeu que não tinha nada com ele

porque a sua assessora não o tinha alertado para aquela necessidade. O fato é que

nenhum deles havia levado vídeos pessoais, embora todos sejam possuidores de alguma

produção desta natureza. Este tipo de material é o principal suporte das palestras

motivacionais que costumam ser feitas em empresas. É provável que os assessores,

empresários ou os próprios atletas selecionem as ocasiões em que esse material deve ser

divulgado, evitando que a sua vulgarização venha a destituí-lo de valor. Ainda assim, a
175

ausência desse material não impediu que eles também rememorassem as dificuldades na

trajetória de vida que estavam ligadas à deficiência.

Ao tratar o tema do sofrimento, Boltanski (1993) traz alguns elementos que

considero enriquecedores para a presente discussão. O que ele trata como “política da

piedade” guarda conexões históricas com o advento da modernidade e a expansão da

esfera pública. Nesse novo contexto, caracterizado por uma complexa malha social, a

precedência do universal sobre o particular passa a marcar as relações sociais. O

ambiente que propicia uma maior troca de informações é o mesmo que possibilita a

distribuição e compartilhamento de paixões e emoções. Mas todo esse intercâmbio se

encontra num terreno também marcado pelo distanciamento e pelo anonimato urbano.

Como resultado, se constrói um novo tipo de espectador. Na relação que estabelece com

aquilo que vê está contida uma tensão entre a reserva e a participação, entre a

observação e a ação. A saída é um tipo de contemplação ou olhar engajado. Esse

engajamento não é dado por raciocínios meramente pessoais e apriorísticos, mas pelo

movimento das opiniões e dos debates que perpassam a realidade social mais ampla.

Nesse sentido, o olhar do espectador – que está em contato permanente com outros

espectadores - é totalizante, assim como o sentido da piedade. Dessa forma, penso que

essas proposições servem como uma importante referência para a compreensão da força

contida nas imagens e histórias de sofrimento que geralmente aparecem veiculadas à

divulgação dos atletas paraolímpicos.

Em outra entrevista, realizada com um nadador mais experiente da seleção

brasileira e com uma deficiência física mais visível, também foi possível tratar de várias

questões que envolvem o debate sobre a construção dos olhares acerca da deficiência.

Ele me conta que um dos momentos mais marcantes e emocionantes da sua vida foi

quando teve contato com crianças com deficiência e sem deficiência, mas que se
176

expressavam basicamente da mesma forma: “Poxa, quando eu crescer eu quero ser igual

a você”. Seguimos falando o quanto soava interessante o fato de crianças que não

possuíam deficiência afirmarem o seu desejo de serem como ele: um atleta com um

comprometimento físico bem visível. Parece que naqueles contatos eles não estariam

identificando uma pessoa com deficiência, mas apenas um nadador medalhista que

servia de inspiração para eles.

A partir daí seria, então, razoável pensar que existam momentos ou

determinados tipos de interações onde o “atleta” possa ser separado do “deficiente”? Ou

isso estaria inextricavelmente ligado? Este informante, especificamente, acredita que a

separação sugerida por mim seja possível. Ele pensa que no seu caso, depois do longo

caminho que percorreu no esporte, em primeiro lugar as pessoas se interessariam por ele

enquanto atleta, depois como pessoa, e, só por último, viria a preocupação com a

deficiência.

O contexto em que ocorreu essa entrevista acabou sendo muito proveitoso.

No momento em que conversávamos sobre essa questão pude ter acesso à opinião de

outra pessoa, a assessora de comunicação e empresária do atleta, que se encontrava no

mesmo ambiente que a gente. Ela interrompe a entrevista e diz não concordar com o que

o seu cliente estava falando. Para ela, qualquer olhar para a pessoa com deficiência, seja

ela campeã ou não, incorpora em algum nível a visão do “coitado” e confessa que esse

ainda é um dos elementos que interferem na hora do atleta conseguir um patrocinador.

Depois o meu entrevistado interrompe a fala da sua assessora para novamente expor

aquilo que lhe parecia correto.

Decido-me “ausentar” por um momento daquele debate, preferindo observá-

los naquilo que tinha se tornado um pequeno fragmento de disputa pela caracterização

de como seria esse olhar do “outro” – que, no caso, é principalmente aquele considerado
177

socialmente como “normal” e que pode ser um admirador da natação paraolímpica – em

relação ao atleta com deficiência. Meu entrevistado, então, reafirma o poder que teria a

construção de uma imagem que traga decididamente à tona as potencialidades da

pessoa, que não estaria restrita àquilo que ela pode fazer na piscina, mas no quanto de

independência ela pode alcançar no seu cotidiano e na vida pessoal. Ele acredita que

uma das funções do esporte tem sido a de reverter a visão negativa da sociedade sobre a

pessoa com deficiência.

Novamente sua assessora entra no debate e diz que tem uma opinião

diferenciada e que talvez isso aconteça porque pode ver as coisas de uma forma mais

distanciada. Ela afirma que aquilo que o atleta com algum renome mais vivencia é o

“burburinho” ou, o “momento em que a pessoa chega e está animada pedindo

autógrafo”. Mas existiria a “outra parte da história”, onde seria possível perceber alguns

detalhes que a euforia dos contatos com o ídolo muitas vezes mascara. Essa assessora,

que também já representou atletas sem deficiência, diz que nas vezes em que falou com

os seus amigos sobre o trabalho que desenvolvia com os paraolímpicos a reação era

quase sempre a mesma: “Poxa! Que legal!”, sem que fosse colocada nenhuma outra

questão, como ocorria quando falava dos atletas convencionais. Para ela esse “legal”

demonstrava um “tom de pena”, onde a forma lacônica poderia indicar que seus colegas

decididamente não acreditavam que aquele tipo de trabalho pudesse de fato ser

relevante profissionalmente e economicamente para ela ou para o atleta em questão. Ela

completa essa linha de pensamento afirmando que até o reconhecimento do valor de um

atleta paraolímpico é meio grotesco, porque ele precisa ter um grande destaque e ganhar

uma grande quantidade de medalhas para ser reconhecido. Entro finalmente no debate, e

digo que, talvez, existam nuances nessas visões que ela descreve. E aí ela afirma que “as

coisas variam dependendo do nível social e da faixa etária. Entre os mais velhos tem
178

muito a coisa do coitado”. Depois volto à entrevista com o atleta sobre o mesmo

assunto.

Atleta: Eu já ouvi cada comentário, assim “Poxa, coitadinho, você consegue


nadar?” Então isso mata!
Pesquisadora: Como é que você sai dessa?
Atleta: Eu sempre tratei e trato as pessoas com a maior educação, mesmo não
gostando da pergunta. (...) A minha forma de sempre sair das perguntas mais
esdrúxulas, mais embaraçosas, foi sempre esse meu alto-astral e essa coisa
minha assim de não ter tanta vergonha, e dar uma piadinha, alguma coisa.
Então quando as senhoras e senhores “Pôxa, mas você nada?” e aí eu falava:
“Pôxa, eu com um corpão desses, bonitão, bração, então eu não vou nadar
bem?” (...) A sociedade vê o deficiente coitadinho, tá triste, tem depressão. E
eu não quero que as pessoas me olhem e “pôxa, coitadinho, tá lá no canto”,
então eu sempre cheguei nos lugares com sorriso aberto e alto-astral.

Em outro momento da entrevista, quando trata da relação dos atletas

olímpicos com os paraolímpicos, ele faz outras ponderações sobre a questão da piedade

e da construção de uma imagem. Diz que conhece muitas pessoas dentro e fora do

esporte e acha que poderia falar com certa tranquilidade que hoje eles não são mais

vistos pelos atletas convencionais como “coitados”. Ele acredita que os paraolímpicos

podem estar no mesmo patamar de profissionalismo dos olímpicos, mesmo que tenham

as suas dificuldades específicas. Mas para ele o entrave maior para uma maior

aproximação entre eles é que

infelizmente as pessoas com deficiência ainda têm aquele pensamento


de se relacionar só com deficientes ou talvez não tenham a mesma
oportunidade e fiquem com aquele preconceito. (...) Mas se você mostrar
uma imagem de pessoa vencedora, pensar positivo, uma pessoa extrovertida
que não tem preconceito com a sua deficiência as pessoas vão passar a ver da
forma que você se vê. Então, tudo isso depende muito da forma que você faz
a sua imagem.

Ao realizar a entrevista com uma nadadora que é cadeirante o assunto da

construção e da percepção dos vários olhares surgiu e a questionei se ela já teria sentido
179

“nesse olhar” que ela descrevia uma atitude preconceituosa. Ela ri e não responde

diretamente à questão, mas diz que adora chegar a um lugar e se “sentir por cima”,

tentando romper dessa forma com o que seria a imagem da “deficiente aleijada” e

apresentando como alternativa uma maneira própria de “impor respeito”. Aqui surge a

temática da representação de si com destaque para a própria crença do indivíduo na

impressão de realidade eu tentar dar àqueles entre os quais se encontra” (Goffman,

1985:25).

Nesse momento da entrevista me lembrei de quando nos conhecemos. Num

final de tarde estava de saída da associação justamente no momento em que ela estava

chegando para treinar. Um dos dirigentes da entidade que estava conversando comigo

vai ao encontro dela para pegar a sua cadeira de rodas na parte de trás do carro. Eu

também me aproximo e ele aproveita para apresentá-la para mim. Ao perguntar quem eu

era e o que eu fazia o seu tom era retórico, pois pelo menos naquele momento não

parecia realmente interessada na resposta. Esse encontro aconteceu logo nos primeiros

dias do trabalho de campo quando eu ainda estava conhecendo as pessoas e me sentia

um pouco perdida no novo ambiente. É provável que a minha própria expressão

corporal estivesse denunciando os meus sentimentos naquele momento. Em função

disso, penso que ela percebeu quase de imediato que eu era estranha não só para ela,

mas para todo aquele grupo. Eu também não tinha conhecimento na época de que a

maneira mais indicada de se falar com uma pessoa cadeirante é se colocando no nível

dela, ou seja, sentada, ou inclinando o tronco para se aproximar. Mesmo estando de pé

ao cumprimentá-la senti a direção do seu olhar de cima para baixo. Lembro de ter me

sentido um pouco intimidada, embora o momento tenha sido breve. Pela maneira como

ela me fitava eu tinha a sensação de estar passando por um processo de avaliação.


180

A inquietação que eu experimentei nesse contato inicial não se repetiu nas

outras vezes em que nos encontramos. Ao contrário, ela se mostrou depois uma pessoa

bastante acessível. Tivemos uma ótima convivência que estabeleceu laços de amizade

que resistiram, inclusive, ao término da pesquisa. De qualquer maneira, a imagem

daquele primeiro contato tinha poder suficiente para ilustrar na minha cabeça aquilo que

ela relatava no momento da entrevista. Na minha memória, o seu olhar remetia a uma

figura de autoridade que parecia querer pautar as minhas primeiras impressões sobre

ela. Frente à sua postura de força, segurança e altivez deveria, definitivamente, ser

desfeita qualquer construção relacionada à figura do coitado.

4.2.2 - A construção do “herói” nos discursos sobre superação.

Os relatos que destaquei são pequenos exemplos de como a temática da

construção de uma imagem de si possuía destaque nos contatos travados no campo. A

necessidade descrita pelos atletas de se colocarem muitas vezes de uma maneira

impositiva nos ambientes onde estavam também me fez pensar em todo um conjunto de

sentimentos que poderiam estar sendo reprimidos tais como tristeza, angústia, medo e

ansiedade. Tais sentimentos não corresponderiam à figura de um atleta que enfrenta

todos os seus desafios sem desanimar.

A coerência expressiva exigida nas representações põe em destaque


uma decisiva discrepância entre nosso eu demasiadamente humano e nosso
eu socializado. Como seres humanos somos, presumivelmente, criaturas
com impulsos variáveis, com estados de espírito e energias que mudam de
um momento para outro. Quando porém nos revestimos de caráter de
personagens em face de um público, não devemos estar sujeitos a altos e
baixos. (Goffman, 1985: 58)
181

Com diversas falas e imagens em mente, não pude deixar de pensar no quanto

a sustentação disso poderia ser desgastante se nos focamos nas interações do cotidiano,

onde os indivíduos – uma vez incluídos no mesmo tempo e espaço - ensaiam e atuam

constantemente aspectos de ordem corporal e cognitiva (Goffman, 1983).

Tenho clareza de que construções que envolvem noções de “heroísmo” não

figuram como novidade se nos reportarmos às discussões sobre o esporte num sentido

mais amplo. Mas percebo que uma espécie de obrigação de felicidade e de saúde já

discutida em alguns trabalhos (Bruckner, 2002; Herzlich, 1986 e Steinmetz, 1998) surge

de forma marcante no universo pesquisado. A descrição de um ambiente de trabalho e

de convivência mais pessoal onde as pessoas emanariam alegria e satisfação partia de

muitos informantes, principalmente daqueles que eram profissionais da parte técnica e

administrativa. Muitas vezes em que conversei com treinadores, dirigentes, secretários

ou assessores de imprensa, ficava evidente a opinião de que uma das especificidades do

meio em que atuavam era uma um clima de “energia positiva” que tinha o poder de

contagiar todas as pessoas que se inseriam no movimento. A motivação para o trabalho

deles estaria nas próprias imagens de “superação” com as quais eles conviveriam

diariamente. Na entrevista com um dos técnicos ele fala do lado gratificante de se

trabalhar com o esporte paraolímpico: “Olha eu fico muito grato em trabalhar com essas

pessoas, viu? Não são nada diferentes, né? São super alegres, te dão assim um valor

muito grande na sua vida e no dia-a-dia”. Sabendo do fato de que ele também treina

atletas sem deficiência, aproveito para explorar um pouco mais o assunto:

Pesquisadora: Você se sente mais valorizado por eles [paraolímpicos] do que


pelos atletas convencionais?
Técnico: Não é assim porque eles são deficientes, eu sou um cara que
trabalha com deficientes e isso aí me deixa pra cima. Mas em vários
momentos (...) quando você vai tomar uma atitude pra resolver um problema
aí você: “Pô, pra que eu vou ficar desse jeito? Olha aquele rapaz lá não tem
182

perna, não tem braço e tá alegre o dia inteiro, te passa uma energia positiva.
Não tem porque eu ficar desse jeito reclamando da vida”, entendeu? Mas
acho que é a superação aí, né?

Comento que eu tinha me dado conta ao longo da minha pesquisa sobre o

quanto a palavra “superação” era recorrente e pergunto se ele poderia me dar um

significado mais exato sobre ela. O meu interlocutor confessa ser muito complicado se

expressar sobre esse tema. Mesmo que as pessoas usem muito a palavra “superação”

considera a pergunta difícil de ser respondida, mas ele pensa um pouco e correlaciona

esta noção a uma limitação em algum sentido que alguém sofre e à sua luta para

ultrapassar os obstáculos. Para ele, o sentido disso ficaria muito claro nas demandas

colocadas pelas empresas na hora de patrocinar os atletas e naquilo que a mídia buscaria

para expor e afirma: “Eles querem mostrar que o cara mesmo sem perna e sem braço

conseguiu chegar no lugar mais alto do pódio”. E novamente a questão da felicidade

vem à tona quando fala do atleta que treina: “Ele é alegre daquele jeito mesmo com

deficiência”.

A imagem de superação aliada ao contentamento e ao regozijo com a vida

seria um elemento fundamental para despertar o interesse de empresas que contratam os

atletas para palestras motivacionais. Como explica meu interlocutor: “(...) a mídia e

essas empresas que contratam as palestras querem mostrar pros funcionários que eles

não têm que ter deficiência, que eles têm que ser alegres, tem que a todo o momento não

se preocupar com limites”. Através do exemplo de motivação dos atletas as empresas

buscariam não somente demonstrar a importância da existência de objetivos claros, mas

também o valor da determinação na execução das tarefas propostas.

Nessa entrevista uma função mais empresarial das palestras foi citada

inicialmente sem nenhum tom crítico. A exposição do atleta como um fator para a

produtividade da empresa apareceu bastante naturalizada nessa fala, mas nem sempre
183

esta era a opinião das outras pessoas com quem pude conversar sobre este assunto.

Muitos falavam que essas apresentações se colocavam como uma oportunidade para

mencionar os problemas de investimento no esporte paraolímpico, mas também para

expor as demandas sociais e políticas específicas das pessoas com deficiência.

Mas mesmo dentro do modelo apresentado por meu interlocutor naquele

momento, surgiu posteriormente algo que parecia destoar de uma fórmula que poderia

ser favorável para todos os envolvidos. Ele diz: “Então as empresas gostam de ver as

pessoas chorando porque um coitadinho lá ganhou medalhas, entendeu? (...)”. A questão

da piedade pela pessoa com deficiência ainda seria a tônica desses eventos, tendo em

vista o poder que ela teria de mobilizar e despertar alguns tipos de emoções. Ao

entrevistar outro técnico ele fala do impacto maior que a visibilidade da deficiência pode

ter, pois, “quando, por exemplo, uma pessoa com muletas ou cadeira de rodas é

entrevistada aquilo tem mais repercussão, do que se você entrevista alguém

uniformizado sem deficiência aparente”.

Através desses depoimentos é interessante pensar como nesse contexto as

pessoas com maior deficiência física podem utilizar essa condição a favor delas dentro

do movimento paraolímpico. Ao contrário de serem estigmatizadas, podem se

transformar nos verdadeiros ícones da “superação” por expressarem de uma maneira

mais visível e “adequada” o que seria a deficiência, podendo capitalizar mais recursos

que tem a ver com patrocínios e oportunidades de exposição na mídia e em outros

setores. Dessa forma, um grande comprometimento físico pode servir de capital

simbólico num contexto específico de idealização da deficiência e não como um

elemento que coloca a pessoa numa situação de prejuízo. Assim, segundo um técnico

que treina um nadador com uma má-formação congênita aparente, seu atleta seria aquele

que melhor representaria uma pessoa com deficiência física no esporte, pois é possível
184

olhar para ele e imaginar as suas dificuldades. Nesse sentido, além dos resultados

expressivos que um atleta precisa ter, um dos requisitos fundamentais para que ele se

torne um ícone paraolímpico seria a visibilidade da sua deficiência, o que não ocorreria

com muitos atletas que pertencem às classes mais altas do esporte. Ele se expressa em

tom enfático sobre o seu atleta: “Hoje ele é o cara pra fazer qualquer tipo de

propaganda, de divulgação, de demonstração”.

O referido nadador também me concedeu uma entrevista e foi a partir dela

que pude me certificar que embora uma ideia de “superação” associada e demarcada

pela ultrapassagem das dificuldades físicas predomine nos relatos que obtive dos meus

informantes, ela não pode ser considerada como uma visão unânime. A esse respeito

considero o seguinte trecho bastante significativo:

Pesquisadora: Quando se está falando de superação é superação de que?


Atleta: Eu vejo que as pessoas quando falam é a superação da dificuldade
que ele tem, da deficiência dele, que ele está superando isso e tal. Eu vejo
superação assim: eu estou superando as dificuldades que eu tenho como o
que? Falta de patrocínio. Aí é uma superação.
Pesquisadora: Você acha que quando se fala em superação geralmente é
superação da limitação da deficiência?
Atleta: É, muitos vêem isso. Já eu não. Eu vejo que eu sou uma superação
quando falam. Tudo bem. Eu sou uma superação de que? Quando eu
comecei eu tive que viajar todo dia de ônibus pra poder treinar, eu tinha o
“paitrocínio”. Aí é uma superação, mas não porque ele não tem os braços...
“Nossa! Que superação! Você viu? Como que ele faz pra nadar?” Pô, como
que eu faço pra nadar? Eu caio na água lá e nado!

Estas últimas falas dizem respeito a uma ordem de discurso sobre a

superação que extrapola as concepções particulares dos atletas e de outros indivíduos

envolvidos no esporte paraolímpico. Elas remetem às demandas mais amplas e, de certa

forma, exteriores ao próprio movimento, como aquelas advindas, por exemplo, das

empresas, das mídias e do governo. Contudo, esse sentido de exterioridade é limitado

tendo em vista que essas instituições estão em constante relação com o movimento
185

paraolímpico no sentido de negociar aquilo que deve ser propagado como a imagem

mais adequada para definir o esporte e os seus atletas. A forma como estes devem ser

expostos, transcende neste nível, decisões ou concepções de ordem pessoal.

Para ilustrar essa questão, destaco outro evento que acompanhei na cidade de

São Paulo no ano de 2008: a Virada Esportiva. Esse projeto, que estava na sua segunda

edição tinha como objetivo promover na cidade de São Paulo uma série de atividades

esportivas durante 24 horas. Por meio da assessora de um atleta que havia sido

convidado para o evento, fiquei sabendo que haveria na programação atividades

voltadas exclusivamente para divulgar o esporte para a pessoa com deficiência. Elas

foram realizadas na parte de trás do Estádio do Pacaembu, onde havia uma piscina

externa e um ginásio. Com a ajuda da assessora, consegui ter acesso a área onde ficava

o pessoal da organização, imprensa e convidados.

No momento em que cheguei, uma equipe do canal de televisão ESPN Brasil

estava gravando uma matéria. Aliás, o repórter que fazia a entrevista com o nadador

paraolímpico era um paralisado cerebral com um forte comprometimento motor e

também da fala. Depois da gravação de uma breve entrevista, os dois entraram na

piscina para cumprir um desafio de 50 metros. Tudo continuava sendo filmado. O

repórter, que demonstrava algumas dificuldades, era auxiliado pelo atleta pertencente à

classe S10. Depois, o atleta fez sozinho uma demonstração do seu nado. A inabilidade

do repórter na água reforçava visualmente a habilidade do atleta. De qualquer forma, a

operação não era excludente. Havia espaço na reportagem para a sobreposição de duas

imagens de superação: a do repórter que, apesar das limitações na fala e na coordenação

motora, mostrava a sua capacidade profissional; e a do atleta, que mostrava na piscina

toda a potencialidade de um corpo com deficiência.


186

Esse evento começou pela manhã e só terminou no final da tarde. No

decorrer desse tempo, havia chegado uma nadadora cega da seleção paraolímpica

brasileira. Ela também demonstrou o seu nado, sendo acompanhada posteriormente pelo

atleta S10. Cada participação dos nadadores era narrada para o público por um mestre

de cerimônia. Nesses momentos, ele aproveitava para falar da carreira dos atletas,

destacando a participação e o resultado obtido por eles nas Paraolimpíadas de Pequim.

Depois também era anunciado o início de um “revezamento gigante”, que contava com

a participação de pessoas ligadas a vários tipos de associações de apoio à pessoa com

deficiência, com um grande destaque para os portadores de Síndrome de Down.

Apesar de todo esse aparato de divulgação havia poucas pessoas nas

arquibancadas. Nelas, o público era composto basicamente pelos próprios participantes

do revezamento, familiares e amigos, e uns pequenos grupos isolados de pessoas que

pareciam destoar desse perfil. Ao longo do dia, enquanto esse mesmo público ia

diminuindo, aumentava o burburinho na tenda destinada para os nadadores e

convidados. As pessoas continuavam chegando e se aglomerando nesse espaço. Nesse

fluxo chegavam dirigentes de entidades, técnicos esportivos, assessores de

comunicação, pessoas ligadas à imprensa, convidados e atletas paraolímpicos de várias

modalidades que haviam participado dos Jogos de Pequim. Eles seriam os grandes

homenageados da noite.

Depois de uma longa espera pelo prefeito da cidade – que acabou se

ausentado – todos entraram para participar da cerimônia de encerramento que ocorreu

dentro de um ginásio batizado para aquele evento como “Arena da Superação”. Os

grupos que fizeram parte do revezamento gigante receberam medalhas e depois

formaram a plateia da cerimônia. Na sequencia, houve uma apresentação de capoeira e,

finalmente, a homenagem aos atletas paraolímpicos. No entanto, acredito que alguns


187

aspectos da organização foram bastante reveladores dos outros objetivos do evento

sobre os quais não havia divulgação.

Foto 14 - Realização de roda de capoeira na Arena de Superação da Virada


Esportiva, momentos antes da homenagem aos atletas paraolímpicos.

As pessoas convidadas para a entrega das placas comemorativas eram um

exemplo vivo da distribuição dos grupos que atualmente possuem algum tipo de ligação

política ou institucional com o movimento. Entre elas estavam: o presidente do banco

Nossa Caixa, a secretária municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência, uma

vereadora cadeirante, o vice-presidente do CPB, Amaury (técnico de vôlei sentado), o

tenista Fernando Meligeni e o Secretário de Esportes que representava o prefeito. Eles

estavam sentados nas cadeiras que estavam dispostas de um dos lados dos painéis,

enquanto os atletas estavam nas cadeiras do outro lado.

Antes dos prêmios serem entregues alguns dos convidados discursaram

sobre parcerias e investimentos no esporte paraolímpico, principalmente o secretário de


188

esportes. As palavras “superação” e “heroísmo” marcavam as falas daquela noite, mas,

em sua maioria, esses participantes não se dirigiam para os atletas ou para a plateia.

Geralmente pegavam o microfone e olhavam para a direção dos outros convidados que,

naquele momento, pareciam representar as figuras de “autoridade”. Resolvi comentar a

impressão que eu tinha com a assessora do atleta. Ela decidiu pedir esclarecimentos ao

assessor de comunicação do evento, mas, àquela altura, os homenageados já saíam do

seu lugar para receberem as premiações. Os fotógrafos registravam com frenesi toda

essa movimentação final.

A maneira como havia sido organizado o evento e a forma como os

convidados se comunicavam com os atletas e o público mais geral evidenciava uma

relação distanciada entre esses grupos. Mas se isso ocorria no plano de uma interação

mais direta, no plano institucional havia uma aproximação pautada basicamente por

uma determinada linguagem de divulgação do movimento, que se interessa em

mobilizar aquilo que pode ser assimilado da melhor maneira possível por um público

mais geral que deseja atingir. No caso específico desse evento, o público alvo parecia

ser o telespectador em sua casa. Na conjunção entre as demandas do esporte, fins

empresariais, interesses políticos, projeções midiáticas e gosto popular é que se

articulam algumas categorias fundamentais, como “heroísmo” e “superação”, questão

que será desenvolvida um pouco mais à frente.

Tratando da associação mais específica entre o círculo empresarial e a mídia

que transita em torno do movimento, uma nadadora recoloca a discussão sobre a

demanda do “coitado”. Segunda ela:

Vai passar um atleta paraolímpico. Aí bota aquela música de piedade, não


é? Aí começa: “Mas ele mora não sei aonde, ele mora na lama, mas ele
conseguiu.(...) Isso dá Ibope, então eles fazem”. (...) Para os olímpicos
189

raramente se fica falando sobre a história de vida deles. Chega a passar, mas
para os paraolímpicos seria uma coisa de “pieguice”.

Mas essa demanda mais geral não é única e pode se articular, se sobrepor ou

disputar conceitos com as instituições que estão no topo da estrutura que rege o

movimento paraolímpico, como o comitê nacional e as outras entidades a ele ligadas.

Nesse sentido, é importante destacar que no ano de 2006 foi produzido pelo CPB um

vídeo cujo nome era “Herói Guerreiro”, com o intuito de divulgar os atletas brasileiros

tanto para os Jogos Parapanamericanos de 2007 na cidade do Rio de Janeiro como para

os Jogos de Pequim no ano seguinte. Considero esse material exemplar no que diz

respeito a uma construção mais institucionalizada do significado de “superação”. Esse

vídeo se tornou bastante popular, ao menos entre as pessoas ligadas ao movimento

paraolímpico, figurando como um “clássico” em vários tipos de eventos que eram

organizados tanto pelo CPB, quanto pelas associações e clubes a ele ligados.

Durante o meu trabalho de campo, lembro-me de ter assistido pelo menos a

umas cinco exibições desse vídeo, nos mais variados tipos de eventos. Assim como

ainda está claro na minha memória um coro de vozes que sempre acabava

acompanhando a música que faz parte do vídeo. A propósito, tanto o material visual

como o musical possuem o mesmo título e nas vezes em que o observei, não poderia

imaginar como funcionaria uma coisa sem a outra, pois é justamente esta simbiose que

parece ser tão eficaz no sentido de despertar emoções na plateia. Esse material marcou

quase todo um ciclo paraolímpico no Brasil e, justamente por isso, resolvi tomá-lo como

um dos exemplos de um produto elaborado no seio da organização do CPB com o

sentido de comunicar a sua concepção sobre esporte e “superação, e que se voltou

principalmente para a imprensa e o grande público. Eis a letra da música:


190

Herói Guerreiro49

Em algum lugar distante,

Do fogo irão surgir DEUSES.

E esses DEUSES se transformarão em homens.

E entre os homens irão se confundir.

Eles estão aqui pra nos desafiar.

E só quem tem coragem poderá enfrentá-los.

E aqueles que vencerem se transformarão em DEUSES...

DEUSES de ouro, prata e bronze.

E ao fogo retornarão!!!

Cada homem tem um sonho,

um caminho pra seguir.

Mas se não lutar até sangrar,

jamais vai conseguir continuar.

Sem ter paixão vai fraquejar.

Quem quer vencer, não é assim.

Quem quer vencer, não sabe desistir.

Você tem seu destino,

49
A letra, a música e os arranjos são de Sérgio Carrer, um produtor musical também conhecido como
Feio. No vídeo, ele também interpreta a música juntamente com a ex-cantora mirim de músicas sertanejas
Yasmim Lucas.
191

e não pode se esconder.

Vai ter que enfrentar, mostrar a força dentro de você, se superar.

E qualquer barreira que encontrar

Você irá transpor

E vai provar o seu valor

(refrão) Você é um herói e todo herói é um guerreiro

E cada medalha vem manchada de suor

E todo sacrifício seu irá valer a pena

E pode acreditar,

DEUS vai te recompensar

Vai deixar pra sempre o seu nome na História

Vai mostrar pro mundo a sua vitória

E um exemplo vai ser

Pra um dia nascer

Um futuro campeão.

Na primeira estrofe da música a letra não é cantada, mas narrada por uma

voz masculina em off. A primeira imagem que surge na tela mostra as águas de um mar

revolto batendo em algumas pedras no litoral. É justamente o barulho de ondas que

compõe com outros instrumentos o fundo musical dessa parte inicial do vídeo. Na

sequencia, a música assume um tom mais retumbante e surgem em tom de sépia

algumas imagens em câmera lenta de atletas paraolímpicos atuando em diversas

modalidades, assim como de solenidades esportivas, como o acendimento da pira


192

olímpica. Aliás, essa última cena se conjuga com a parte da letra onde o fogo aparece

como a fonte de vida dos Deuses.

A segunda e terceira estrofes da música, que remetem mais diretamente ao

esforço do atleta e à sua tentativa de superação, são acompanhadas de imagens – agora

coloridas - que representam os momentos mais difíceis da competição, como numa

queda onde a pessoa se ergue novamente, ou quando não é mais possível controlar o

choro proveniente de uma derrota. Nesse momento, duas vozes, uma masculina e outra

feminina, se revezam no canto que se assemelha bastante ao estilo gospel.

Já no refrão, que se repete três vezes no final desse vídeo de cerca de cinco

minutos, as vozes se misturam e são associadas imagens que expõem, entre outras

coisas, a vibração da vitória, a comemoração com a equipe ou o recebimento da

medalha. O filme se encerra com a mesma imagem do mar e com o barulho de ondas

que haviam aparecido no seu início. Quando os créditos começam a ser mostrados, toda

a música se repete, alternando agora algumas imagens anteriormente mostradas com

outras inéditas, que exibem os bastidores da produção.

O tema desse vídeo nos remete para algumas questões que foram tratadas no

item anterior. Através dele podemos ver como alguns elementos, já citados na fala dos

atletas e de outros informantes, são reforçados por meio de outra linguagem. Nesse

material de divulgação, música e imagem imprimem uma forte carga emocional à ideia

de “superação”. Trazendo para este trabalho algumas formulações de Buck-Morss

(1994) sobre a visão e a percepção através do cinema, arrisco afirmar que a “realidade”

apresentada no vídeo do CPB mostra algo para além dela mesma. Ela ultrapassa a marca

da pura cognição e dialoga com a experiência sensorial do espectador. Por outro lado,

essa experiência é mediada por uma tela que atualiza de forma simulada a realidade e a

presença de corpos. Aqui, a primazia da visão - já mencionada em outros momentos


193

desse trabalho – dá um exemplo de toda a sua capacidade. Mas, no caso deste vídeo,

acredito que a ausência do atleta não seja necessária para que o seu corpo seja

considerado um simulacro. Mesmo que ele esteja presente na plateia, o distanciamento

continua sendo operado pelo intercâmbio entre as categorias de homens, deuses e

heróis. Esse tipo de investimento coloca a ideia de superação numa escala muito maior,

difícil de ser operacionalizada nas interações cotidianas e nos contatos face-a-face.

O tom metafórico que costuma caracterizar os materiais dessa natureza,

parece servir de forma mais eficaz para expressar ideais sobre o esporte que são

concebidos dentro da estrutura mais formal do movimento e que, por sua vez, se

encontram mais distanciados do grande público. Nesse sentido, cabe recolocar o alerta

feito por Douglas (2007) quando afirma que uma importante tarefa para os cientistas

sociais e a investigação sobre o papel das instituições. Para a autora, elas desempenham

uma importante função na seleção de categorias básicas que terão um papel ativo no

sentido de conferir certa uniformidade ao pensamento do grupo. Todavia, acredito que

devido às dimensões que o movimento paraolímpico possui hoje, comportando uma

série de divisões internas, essa homogeneidade não ocorre de maneira absoluta.

É por essa razão que muitos dos meus atletas informantes eram críticos a

algumas formas de divulgação que reforçassem a distância deles em relação ao grande

público. Para eles, essa operação de afastamento, realizada através da figura do “herói”,

acabaria requisitando, por sua vez, a exposição de trajetórias de vida tristes e sofridas,

alimentando a imagem do “coitado”, personagem explicitamente condenado.

Através dos relatos apresentados vemos como os discursos sobre superação

dentro do esporte paraolímpico – e mais especificamente na natação – apresentam uma

constante tensão entre os usos da imagem do “coitadinho” e os usos da imagem do

“herói”. Essas noções geralmente convivem juntas, mas também disputam por uma
194

hegemonia que tem a ver com as demandas de construção de imagem que partem não

somente dos atletas individualmente, mas também de grupos e setores que fazem parte

ou se comunicam com o movimento paraolímpico. Tanto o “coitadinho” como o

“herói” estão inseridos no mesmo contexto, mas não possuem o mesmo peso. A eficácia

imagética de cada um obedece às dinâmicas das relações que se desenvolvem tanto na

ordem da interação face-a-face, como dentro de uma ordem mais geral e grupal.

Vimos como uma maior visibilidade da deficiência física pode trazer mais

legitimidade no processo de construção de imagens sobre superação que pode se

desdobrar na aquisição de status em algum nível, como acontece no caso de ganho de

patrocínios e maiores oportunidades de propaganda. No entanto, ao menos no contexto

da natação paraolímpica, não podemos afirmar categoricamente que os atletas com

maior grau de deficiência sejam detentores de uma hegemonia absoluta. Atualmente,

tanto as entidades reguladoras do esporte como a própria mídia buscam um espetáculo

que tenha um impacto mais visual e que, num certo sentido, se assemelhe àquilo que é

apresentado pela natação olímpica. Tal perspectiva tem colaborado decisivamente para

uma falta de investimento nas classes mais baixas do esporte.

Mais uma vez fica claro como a disputa entre atletas com graus

diferenciados de deficiência ocorre em vários níveis da estrutura e organização do

movimento paraolímpico. Dessa forma, a chave de leitura da corporalidade nos oferece

uma identidade mais fragmentada, que começa na “classificação funcional”, mas

também encontra referencia nas vivências corporais no esporte e no cotidiano. A noção

de “superação”, por seu turno, ainda que se nutra da ultrapassagem de obstáculos

relacionados a deficiência, aparece como uma formula com maior capacidade de

abrangência. Para se constituir e sobreviver ela não se detém em evocar o sentimento,

mas o celebra e rememora como uma marca de pertencimento ao grupo. E nesse registro
195

que se encontram os elementos que trabalham no sentido de desfazer algumas fissuras

internas e articular um posicionamento identitário com um contorno mais amplo.

Mas o seu relativo poder de coesão e de afirmação de uma identidade

grupal não anula os embates em torno da produção do seu conteúdo e da sua forma,

como vimos na tensa convivência entre a imagem do “coitadinho” e a imagem do

“herói”. Dessa forma, as lutas internas por hegemonia possuem relação direta com o

sucesso ou fracasso na elaboração dessa categoria, que passa a ser cara não somente

para os atletas, mas para todas as entidades que dão suporte institucional ao movimento,

assim como para as agências que atuam mais diretamente na divulgação e publicidade

do esporte paraolímpico.
196

Considerações finais

Dentro de um recorte mais geral procurei compreender nesta tese as

representações e práticas implicadas na reelaboração dos conceitos de corpo e

deficiência no universo da natação paraolímpica. Ainda que as concepções

institucionais sempre estivessem presentes no horizonte pesquisado, busquei colocar no

centro da análise as leituras realizadas pelos próprios atletas, subsidiadas por histórias

de vida e experiências corporais concretas.

Foi possível ver como a ideia de uniformidade do grupo se fragiliza frente à

complexidade de registros sobre o corpo e a deficiência. Em primeiro lugar, a diferença

corporal é a principal matéria da classificação funcional. O ponto de partida para a

equalização é justamente a codificação dessa diversidade, por meio da construção de um

entendimento sobre as possibilidades do corpo com deficiência50. Mas, como vimos, a

classificação funcional também lida com fronteiras. O trabalho de avaliação e

mensuração que os classificadores realizam atua no sentido de conferir a essas mesmas

fronteiras a marca da cientificidade.

É importante também mencionar que, embora esse sistema atualmente se

baseie na funcionalidade do corpo e não na deficiência em si, o conhecimento médico

continua sendo fundamental. O exame clínico continua sendo indispensável e é através

dele que se realiza um mapeamento inicial do corpo do atleta. Além disso, nas

classificações que são feitas internacionalmente - e que conferem um status permanente

para o nadador – é exigida a presença do médico. Nesse sentido, é possível ver como

50
Apropriando-me da análise de Foucault, acredito que também seja possível pensar nesse corpo
deficiente no esporte como uma conjunção específica de “corpo como máquina” e “corpo-espécie”; o
primeiro tipo visto como expressão da ampliação de capacidades corporais e o segundo como “corpo
transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte de processos biológicos” (Foucault, 1988: 152).
197

reverbera no campo do esporte o poder do discurso e da prática médica como critério de

construção de medidas comuns em relação ao corpo (Vargas, 1998).

Ao comandar o julgamento sobre quem pode ou não fazer parte do esporte

paraolímpico, os profissionais que operam a classificação funcional procuram conferir o

máximo de objetividade ao processo, se sobrepondo às concepções de corpo e

deficiência marcadas por identidades políticas ou sociais. Mas essa primeira delimitação

é mais “bruta”. Como foi apresentado, o sistema também lida com fronteiras sutis que

dizem respeito às diferenças internas das classes. Nesse contexto, a cientificidade do

código se impõe enquanto discurso hegemônico, mas precisa lidar com outras

interpretações sobre a classificação ancoradas em vivências pessoais e na dinâmica de

disputas intergrupais. Os dados produzidos por meio da autoridade do código formal se

cruzam com outros dados relacionados às subjetividades dos atletas. Sendo assim, creio

que seja possível pensar em dois campos nativos de produção de categorias sobre corpo

e deficiência que em alguns momentos se sobrepõem e em outros se contradizem.

Expondo depoimentos de atletas, mas também de técnicos e classificadores

funcionais, procurei mostrar as várias facetas desse tema a partir da percepção de

agentes que ocupam posições diferenciadas no movimento paraolímpico, assumindo

nesta tese a concepção de que o papel do antropólogo é interpretar várias interpretações

(Geertz,1989). Nos discursos que proferem, os nativos produzem uma noção de

realidade que deve replicar na construção do texto antropológico. Por meio desses

mesmos discursos, foi possível ver neste trabalho como o jogo entre a diferença e a

igualdade entre nadadores paraolímpicos toma várias dimensões num campo que não é

estático, mas repleto de tensões, inclusive de natureza política.

Dessa forma, é possível afirmar que não é apenas pelas convenções

estabelecidas pela classificação funcional que a natação paraolímpica comporta uma


198

miríade de corpos. Em primeiro lugar, a fisicalidade é apenas um dos registros dessas

diferenças. Em segundo lugar, o nadador paraolímpico se insere num contexto social

mais amplo, de maneira que nesta tese não me detive apenas na descrição de um corpo

em si, mas na maneira como ele se manifestava em relação a determinado meio.

Por meio da exploração da trajetória pessoal dos atletas, mesmo nos

momentos em que se fixavam na história da sua deficiência, foi possível visualizar que

o que está em jogo não é apenas uma retrospectiva de caráter corporal, mas também os

tipos de relações sociais e afetivas que se estabelecem entre eles, as outras pessoas e o

mundo que os cerca. Naquilo que eu denominei como “históricos de deficiência” se

encontram descritos os recursos e suportes materiais e imateriais que servem de alicerce

para que cada sujeito construa a sua percepção e entendimento sobre o que é ser

deficiente, tanto em termos físicos como morais. Aqui, a referência principal se

encontra na lógica de construção de sensibilidades que desliza entre uma apreensão

física e emocional do mundo (Cf. Duarte, 1999).

Nesse sentido, se fez necessário compreender o papel da família nesse

processo. Nos depoimentos fornecidos pelos atletas, ela aparece como o repositório das

primeiras informações sobre a deficiência, principalmente quando se trata de casos

congênitos. Ela não se coloca apenas como um canal, mas também como uma agência

mediadora das construções sobre corpo e deficiência física presentes nos círculos

sociais mais amplos. Contudo, é necessário ressaltar que esse aprendizado não se

encontra separado do próprio engajamento carnal da pessoa no mundo, no sentido de

que as relações sociais não podem estar destacadas dos sistemas individuais de

percepção (Ingold, 1991). Aliás, é justamente porque existem essas variadas formas de

engajamento que não é possível falar de uma única forma de lidar com a deficiência,
199

mesmo dentro de um quadro mais geral onde ela aparece dividida em casos congênitos

e não-congênitos.

De qualquer forma, uma questão particularmente desafiadora nesse trabalho

foi mostrar como o aprendizado sobre a deficiência ganha novos contornos e inclui

outros planos no momento em que o indivíduo começa a praticar o esporte. Penso que

tanto no seio familiar como no contexto das associações é possível falar da existência de

um diálogo entre as construções históricas presentes na sociedade a respeito do corpo e

da deficiência e que perpassam esses espaços, e as percepções que surgem nos modos

de produção de autoconsciência dos sujeitos que se percebem portadores de um corpo

diferenciado.

Durante toda a tese, procurei entender as variadas formas de articulação

entre uma lógica subjetiva dos atletas, relacionada à constituição de universos interiores,

e uma lógica objetiva, voltada para a racionalidade de um mundo exterior. Essa

perspectiva lançou luz sobre alguns conflitos vinculados ao embate entre projeções

familiares e projetos individuais do atleta. Mas como foi visto, essas tensões não se

desdobram necessariamente num afastamento entre essas duas esferas da vida social. Ao

contrário, a intervenção familiar é redimensionada pelas entidades que passam a

canalizar a energia das suas ações e as temáticas das suas emoções para um terreno

institucional.

Essa questão da ampliação de uma visão de mundo aparece em destaque

quando os nadadores se voltam para a reconstituição da sua entrada no universo do

esporte. Em sua maioria, eles apontam o incremento das relações sociais como um dos

principais benefícios desse momento. No processo de expansão das redes de

sociabilidade, marcada pelo contato com os “iguais”, eles têm a oportunidade de refletir

sobre a sua própria condição física. De qualquer forma, essa identificação do indivíduo
200

com um grupo pode se dar de uma maneira oscilante, tendo em vista que o “igual” não

ocupa uma posição estática e permanente.

O mesmo movimento que permite que uma pessoa com deficiência passe

efetivamente a se reconhecer no outro ao travar contato com o esporte paraolímpico,

também a insere num ambiente povoado pela diversidade física que torna complexa a

referência inicial da igualdade, produzindo aproximações e afastamentos. Ao descrever

essa mesma diversidade no contexto da natação paraolímpica brasileira, procurei

delimitar o peso que o sistema de classificação funcional tem nesse processo. Aliando a

lógica desse código às especificidades das trajetórias de vida e às relações interpessoais

entre os atletas, procurei mostrar de que forma podem ser constituídas e reelaboradas as

diversas posições identitárias no interior de um mesmo grupo.

Para além do entendimento de questões mais sutis ligadas à construção de

identidades, o foco nas relações e interações sociais cotidianas permitiu que eu

acessasse algumas práticas pertencentes à esfera da sociabilidade do grupo de nadadores

paraolímpicos pesquisado. Uma delas se destacou nesse processo: a utilização da

linguagem jocosa para falar da deficiência. Para entendê-la tentei não buscar

significados intrínsecos ou prévios nas expressões usadas; ao contrário, procurei

entender o contexto de ação da palavra. Mesmo que em alguns momentos a jocosidade

pudesse servir como crítica velada a uma “terminologia adequada”, não foi possível

identificar um movimento de exclusão entre as duas, de maneira que os diferentes tipos

de linguagem pareciam sempre associados a determinados contextos.

Dentro dessa perspectiva, pude perceber que as piadas e brincadeiras sobre a

deficiência se circunscreviam quase sempre aos momentos de intimidade e relaxação

dos nadadores, se apresentado como um dos conteúdos da sociabilidade dos mesmos e

agindo como uma espécie de marca de pertencimento grupal; pertencimento este que
201

abarcava não apenas os atletas com deficiência, mas também todo um círculo social

mais próximo, onde transitavam principalmente outros profissionais ligados diretamente

ao meio paraolímpico. Ou, utilizando a categorização de Goffman (1998), um grupo

composto não apenas pelos chamados “iguais”, mas também pelos “informados”.

Por outro lado, o uso da jocosidade se inseria num campo discursivo mais

amplo marcado pela relativização de determinados julgamentos sobre a deficiência,

principalmente nos casos em que ela aparecia associada de uma forma rígida a algumas

noções como incapacidade, fragilidade e dependência. Nos relatos colhidos e nos

contatos estabelecidos em campo ficou evidente a preocupação dos informantes em

“naturalizar” a deficiência física, depurando-a de uma conotação estigmatizante. Nesse

sentido, a jocosidade também servia como um dos instrumentos possíveis para ser

utilizado na desconstrução da imagem do deficiente como um “coitadinho”.

De qualquer forma, durante o trabalho de campo, fui percebendo que esse

combate ao “deficiente coitadinho” servia como resposta a um problema que não era

apenas pontual, mas que perpassava diversos debates relacionados ao esporte

paraolímpico: o olhar e sentimento de piedade em relação ao atleta com deficiência. Ao

longo da pesquisa foi ficando claro para mim que a tarefa de elaborar e divulgar uma

imagem positivada não somente para os atletas, mas para qualquer pessoa com

deficiência, era um ponto de honra para os nadadores e demais profissionais envolvidos

com o movimento.

A relevância dessa tarefa ficou ainda mais clara a partir da sua exposição

dentro dos canais institucionais do esporte paraolímpico. Em contraposição ao

“deficiente coitadinho” estava colocado o personagem do “herói guerreiro”, símbolo do

atleta incansável que tenta ultrapassar todas as barreiras. Dentro desse contexto, e a

partir da relação dialética que se estabelece entre esses dois personagens, é forjada a
202

categoria de “superação” no esporte paraolímpico. Longe de ser uma noção estática ela

retroalimenta novos significados presentes em discursos e imagens sobre o atleta

paraolímpico.

A partir da análise de um vídeo de divulgação do CPB, procurei mostrar

como a relação de intercâmbio entre as categorias de atletas, heróis e deuses atuam no

sentido de aproximar atletas e público dentro de um formato idealizado. Tal formato –

que, ao menos em termos institucionais, parece ser o hegemônico - opera com um alto

grau de generalidade e abstração, tendo em vista a necessidade de atender tanto as

demandas do próprio movimento paraolímpico como aquelas dos seus parceiros de

marketing e patrocínio.

Mas, ao contrário do que se poderia supor, os processos de elaboração da

categoria de “herói” no esporte paraolímpico não abandonam a figura do “deficiente

coitadinho”; ao contrário, se apropriam do conteúdo da sua história com o objetivo de

repassar didaticamente para um grande público todas as etapas de superação de um

atleta vencedor. Mesmo tendo encontrado no campo muitas críticas a esse modelo, pude

perceber que diversos atletas – principalmente os que estão inseridos na massa de

patrocínio gerenciada pelo CPB – acabam reproduzindo no seu cotidiano profissional

essa mesma concepção. Um exemplo disso pode ser encontrado no tipo de material que

eles produzem para apresentar em palestras motivacionais.

Os discursos sobre “superação” que se enquadram nesse modelo encontram

suporte na divulgação de imagens que possam testemunhar de alguma forma as

dificuldades passadas pelo atleta nas esferas pessoal e profissional, assim como a sua

perseverança no sentido de ultrapassar os obstáculos relacionados à sua deficiência.

Essas imagens, por sua vez, cumprem o papel de mobilizar emoções que também
203

sirvam como vias de afirmação das especificidades dessa mesma corporalidade

projetada na tela.

Nesse sentido, penso que o caráter de alguns dos discursos sobre

“superação” que encontrei no campo, se coadunam com aquilo que Rojo

(2005/2006:18) identificou como “homogeneização das expectativas em relação à

expressividade emocional”, ao expor suas impressões sobre a transmissão dos Jogos

Paraolímpicos de Atenas em 2004. Acredito que a razão para essa homogeneização

tenha relação com a construção da categoria de "superação" como o principal produto

de comunicação do movimento com outros setores da sociedade. Por outro lado, como

procurei mostrar em outro ponto desta tese, o discurso da "superação" também funciona

como um dos elementos de coesão do grupo, podendo em alguns momentos se sobrepor

às cisões internas do movimento e figurando como uma espécie de traço identitário mais

amplo. De qualquer maneira, é possível afirmar que as próprias formas de elaboração

dessa categoria tão cara ao movimento paraolímpico brasileiro se encontra num terreno

de disputas. Uma delas, aliás, diz respeito à própria definição sobre qual o corpo que

melhor representa os discursos sobre "superação".

Pensando no contexto da natação paraolímpica a partir do recorte mais

específico da deficiência física, a pesquisa mostrou que os atletas possuidores de um

comprometimento físico maior podem alcançar posições de maior prestígio no interior

do movimento paraolímpico. Parece claro que esse posicionamento depende do

desempenho efetivo do nadador na piscina, mas que pode ter o seu resultado

potencializado a partir da maior visibilidade que porventura possua frente a outros

atletas com graus de deficiência mais brandos.

Nesse sentido, penso que a própria categoria de "superação" pode atuar

como o principal elemento de ressignificação do corpo deficiente em corpo potente no


204

contexto do esporte paraolímpico. Esse processo não opera somente no nível da

fisicalidade do atleta, mas, também expõe as suas possibilidades de conquistas dentro de

um campo social e econômico mais amplo. Por outro lado, não podemos esquecer que

dentro da dinâmica do esporte de alto rendimento, essas mesmas conquistas figuram

como o resultado de uma exploração máxima do corpo.

Dentro da realidade etnográfica aqui apresentada, pudemos ver como a

natação paraolímpica agencia os corpos com deficiência numa busca pela

perfectibilidade, explorando nesse contexto esportivo a capacidade humana de se

“aperfeiçoar indefinidamente” (Duarte, 1999). A projeção que essa modalidade

alcançou no Brasil, principalmente a partir do último ciclo paraolímpico, trouxe consigo

novos padrões de exigência profissional. Para se manterem num determinado nível de

competitividade e com chances de ganhar medalhas, os nadadores submetem o seu

corpo a uma grande massa de treino onde, muitas vezes, precisam ultrapassar os limites

diários impostos pela dor para prosseguirem dentro de um quadro de disputas.

A ideia do esporte como reabilitação que marcou os primórdios do

movimento paraolímpico, parece ser uma imagem cada vez mais distante. Ao contrário,

acredito que as novas exigências com relação a uma performance atlética podem

trabalhar no sentido de proporcionar uma releitura do corpo com deficiência não

somente no sentido da exposição de sua potencialidade, mas também como um tipo

particular de “corpo-máquina”. Nesse sentido, penso que novas frentes de investigação

sobre o esporte paraolímpico podem ser abertas, principalmente se considerarmos como

objeto de análise as modalidades onde o uso de próteses e cadeiras de rodas também

cumpre um papel no desempenho do atleta. A possibilidade de reconhecimento e análise

de um “corpo ciborgue”51 no esporte é apenas um dos caminhos possíveis para o

51
Haraway entende o “corpo ciborgue” como um símbolo do entrelaçamento cada vez mais intenso entre
biologia e tecnologia. A constituição daquilo que pode ser considerado como pós-humano é fruto de
novos questionamentos sobre a relação entre natureza e cultura que se inserem num conjunto de
205

desenvolvimento desse campo de estudos, da mesma forma que esta tese se apresenta

como mais uma contribuição para que a temática da deficiência conquiste um maior

espaço no campo da pesquisa antropológica.

transformações tecnológicas, políticas e sociais presentes na virada do século XX para o XXI. Tais
transformações se desdobram em novas formas de diálogo entre as ciências. Segundo ela: “As ciências da
comunicação e a biologia caracterizam-se como construções de objetos tecno-naturais de conhecimento
nas quais a diferença entre máquina e organismo torna-se totalmente borrada; a mente, o corpo e o
i instrumento mantêm, entre si, uma relação de grande intimidade”. Ao tratar dessa nova relação entre o
técnico e o orgânico a autora destaca o tema da deficiência como uma fonte de observação desse
processo, e afirma: “Talvez os paraplégicos e outras pessoas seriamente afetadas possam ter (e algumas
vezes têm) as experiências mais intensas de uma complexa hibridização com outros dispositivos de
comunicação”. Ver Haraway, 2000:73 e 100.
206

Referências Bibliográficas

ARAÚJO, Paulo Ferreira de. Desporto adaptado no Brasil: origem, institucionalização


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213

ANEXO I

Exemplos de padrões motores da classificação funcional da natação:

S1 – Lesão medular completa [1] abaixo de C4/5, ou pólio comparado [2], ou paralisia

cerebral quadriplégico severo e muito complicado.

S2 - Lesão medular completa abaixo de C7, ou pólio comparado, ou PC quadriplégico

grave com grande limitação dos membros superiores.

S3 – Lesão medular completa abaixo de C7, ou lesão medular incompleta [3] abaixo de

C6, ou pólio comparado, ou amputação dos quatro membros.

S4 – Lesão medular completa abaixo de C8, ou lesão medular incompleta abaixo de C7,

ou pólio comparado, ou amputação de três membros.

S5 – Lesão medular completa abaixo de T1-8, ou lesão medular incompleta abaixo de

C8, ou pólio comparado, ou acondroplasia [4] de até 130 cm com problemas de

propulsão, ou paralisia cerebral de hemiplegia [5] severa.

S6 – Lesão medular completa abaixo de T9-L1, ou pólio comparado, ou acondroplasia

de até 130 cm, ou paralisia cerebral de hemiplegia moderada.

S7 – Lesão medular abaixo de L2-3, ou pólio comparado, ou amputação dupla abaixo

dos cotovelos, ou amputação dupla acima do joelho e acima do cotovelo em lados

opostos.

S8 – Lesão medular abaixo de L4-5, ou pólio comparado, ou amputação dupla acima

dos joelhos, ou amputação dupla das mãos, ou paralisia cerebral de diplegia mínima.

S9 – Lesão medular na altura de S1-2, ou pólio com uma perna não funcional, ou

amputação simples acima do joelho, ou amputação abaixo do cotovelo.


214

S10 – Pólio com prejuízo mínimo de membros inferiores, ou amputação dos dois pés,

ou amputação simples de uma mão, ou restrição severa de uma das articulações

coxofemural.

[1] Quando não existe movimento voluntário ou sensação abaixo do nível da lesão.

[2] Situação onde a lesão provocada por poliomielite se compara a determinado quadro

de lesão medular.

[3] Quando existe movimento voluntário ou sensação abaixo do nível da lesão.

[4] Uma das formas mais comuns de nanismo.

[5] Tipo de paralisia relacionada a lesões no encéfalo e que atinge apenas um dos lados

do corpo, podendo ocorrer em graus variados.

Fonte: ABRANTES, Gustavo Maciel. Natação paraolímpica: manual de orientação para


professores de educação física. Brasília: Comitê Paraolímpico Brasileiro, 2006.

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