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Museu Nacional
Rio de Janeiro
2011
ii
2010
iii
Aprovada em:
____________________________________________________
Prof. Dra. Giralda Seyferth – PPGAS-MN- UFRJ (Orientadora)
_____________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte – PPGAS-MN- UFRJ
_____________________________________________________
Prof. Dra. Olívia Maria Gomes da Cunha - PPGAS-MN-UFRJ
______________________________________________________
Profa. Dra. Simone Pereira da Costa Dourado – PPC-UEM
______________________________________________________
Profa. Dr. Luiz Fernando Rojo Mattos – PPGA - UFF
___________________________________________________________
Prof. Dra. Adriana de Resende Barreto Vianna – PPGAS-MN-UFRJ (Suplente)
_________________________________________________________________
Prof. Dr. Bernardo Borges Buarque de Hollanda (Suplente) – Escola Superior de
Ciências Sociais - FGV
iv
Resumo
Esta tese se baseia em uma pesquisa realizada com nadadores paraolímpicos que
fizeram parte da delegação brasileira em Pequim. O propósito principal deste trabalho é
entender de que forma podem ser relidas ou reelaboradas dentro do esporte as categorias
de corpo e deficiência. Partindo da compreensão das formas de classificação dos corpos
no contexto da natação paraolímpica, procurei colocar em contato as concepções de
ordem institucional com aquelas ligadas à experiência concreta dos atletas. O trabalho
de observação dos nadadores no cotidiano das entidades esportivas, assim como o
resgate das suas trajetórias de vida por meio de entrevistas, fizeram parte da
metodologia adotada para entender a dinâmica entre essas duas esferas. Essa
abordagem, por sua vez, abriu espaço para que pudessem ser discutidas questões
relacionadas à emoção e sociabilidade dos atletas pesquisados.
Abstract
This thesis is based on a research with swimmers from the Brazilian delegation at the
Beijing Paralympic Games. The main purpose of this work is to understand in which
way the categories of body and handicap can be revised or reengineered in sport.
Starting with the understanding of the classification forms of bodies in the context of
Paralympic swimming, I put the institutional concepts in contact with the concrete
experience of the athletes. Part of the methodology was the observation of the
swimmers in their daily routine in the sport institutions and the resuscitation of the
trajectories of their lives through interviews to understand the dynamics between these
two spheres. This approach opened space to discuss questions tied to emotion and
sociability of the researched athletes.
Agradecimentos
Agradeço a todos que colaboraram de alguma forma para a construção desta tese.
Em primeiro lugar, agradeço à Giralda Seyferth por toda a atenção, apoio e orientação
criteriosa.
Aos professores Luiz Rojo, Simone Pereira, Adriana Vianna e Bernardo Buarque que
gentilmente aceitaram participar da minha banca de defesa.
A Marcelo Badaró Mattos, amigo querido e importante referência intelectual. Fico grata
pela revisão, mas também por tudo o que compartilhamos.
Aos queridos amigos do NEPESS com os quais compartilhei muitas questões dessa tese.
Todo o companheirismo e os momentos de descontração na nossa “sede social” foram
fundamentais para a renovação das energias.
A todas as pessoas com as quais pude dialogar nos congressos da RAM e da ABA,
especialmente os colegas do GT de Antropologia do Esporte.
Sinto-me infinitamente grata a todos que aceitaram colaborar com essa pesquisa, por
meio de entrevistas ou conversas informais. Sem a ajuda de vocês esse trabalho não
seria possível.
À Soraia Vidal, que me recebeu na sua casa e me abrigou até que eu conseguisse
organizar a minha vida na cidade de Natal. O mesmo agradecimento faço à Joana e ao
Goyo, por terem me acolhido no período da pesquisa de campo na cidade de Natal.
viii
A todos os alunos das turmas de mestrado e doutorado do PPGAS com os quais convivi,
especialmente Nina Paiva, Indira Caballero, Bruno Marques, Nicolas Viotti, Martinho
Braga, Maria José Alfaro Freire, Rogério Azize, Elizabete Albernaz e Peter Fremlin.
Lembro com um carinho especial dos amigos que sempre deixam a minha vida mais
alegre e interessante e que, mesmo às vezes um pouco distantes, eu nunca esqueço:
Kelly, Allinie, Janis, Vivi, Marcio, Carmen e Trog, este último meu irmão que escolhi
para a vida toda.
À minha mãe, por todo o amor e dedicação dispensados. A sua luta foi fundamental
para mim.
ix
Sumário
Introdução....................................................................................................................... 1
Lista de Siglas
Introdução
interessar pelo esporte paraolímpico. Por ironia fiquei naquele período quase um mês
sem conseguir andar por causa de uma crise aguda no nervo ciático. Por conta de um
repouso forçado, pude assistir a absolutamente tudo o que passava na televisão sobre os
Jogos Olímpicos. Até então não sabia da existência dos Jogos Paraolímpicos. Parecia
que pela primeira vez o evento era transmitido ao vivo em alguns canais de TV aberta e
emocionei. Todos aqueles exemplos de técnica, força e entusiasmo que surgiam na tela
pareciam um novo hobbie, sem nenhum interesse acadêmico relacionado. Havia sido
tocada por aquelas imagens e isso me impulsionava a buscar mais sobre o assunto. Eu
inserida nesse universo há algum tempo e passei a enxergar nele uma frente de trabalho
bastante frutífera na área da antropologia. Por outro lado, e nessa mesma época, eu
deficiência. De alguma forma, todos também dançavam com as cadeiras de rodas. Elas
faziam parte de todo o fluxo e variedade de gestos e movimentos dos dançarinos que se
Pude ver, então, que outros grupos no Brasil e no exterior desenvolviam propostas
similares àquela. No que dizia respeito à companhia Pulsar, fiquei sabendo que a sua
origem tinha relação com a experiência que a bailarina fundadora do grupo havia tido
com uma turma no curso de reabilitação motora pela dança desenvolvido pela Escola
prática e do universo da dança afro, eu percebi que já não me sentia tão estimulada a
desenvolver um projeto de pesquisa nessa área. Naquele momento eu me via muito mais
deficiência na dança. O tema da reabilitação, por sua vez, também não estava distante
desse cenário. Inicialmente, eu o vislumbrava em sua relação mais direta com a dança,
mas depois, também imaginei que ele pudesse se constituir no principal vetor dentro de
tarefa de reabilitação. Todas essas ideias aqui colocadas e que, em algum nível, tinham
qualquer forma, parecia ficar cada vez mais claro que o meu interesse acadêmico maior
da reabilitação física.
Rio de Janeiro. Infelizmente, dada a distância dos locais de competição, não pude
de ver de perto algumas estrelas do esporte paraolímpico que haviam sido reveladas nas
público se deslocasse posteriormente para ver a natação. Depois de ter sido uma
telespectadora dos Jogos de Atenas, eu tinha naquele momento uma oportunidade de ter
esse universo. Alguns dias antes, dentro da programação dos Jogos Panamericanos, eu
brasileira estava na disputa e precisava ganhar a partida para passar para a outra fase.
Tanto nas partes externas do complexo esportivo, como nos corredores internos que
movimentação, me dei conta de que era a primeira vez que via tantas pessoas em
cadeira de rodas à limitação e dependência, eu agora estava inserida num espaço onde
eu podia ver outras formas de ação, interação e posicionamento de uma pessoa com
deficiência. Para mim não havia dúvida de que os Jogos Paraolímpicos de Atenas, assim
gratuidade em todos os jogos parecia ter surtido efeito no sentido de atrair um público
grande diversidade. Naquele espaço havia pessoas com diversos tipos e graus de
pareciam representar algumas associações voltadas para a pessoa com deficiência. Mas
5
delegações. Havia, ainda, muitas crianças e jovens com uniformes escolares e que,
minha mãe eu representava mais um tipo de público, o de pessoas sem deficiência que
Com a entrada dos atletas na quadra a agitação tomou conta do ginásio. Foi
esporte muito dinâmico e com alto nível de contato. As cadeiras de rodas usadas pelos
jogadores possuem um desenho especial que as tornam mais leves e velozes. Dessa
forma, os choques entre elas eram constantes e a força do impacto muitas vezes
arremessava o jogador para o chão. Tanto a queda como a recuperação do atleta eram
marcados por uma forte vibração da torcida que, através de muitos gritos de “Levanta!
Levanta!”, incitava os jogadores a voltar para o jogo. Nesse sentido, ficava claro que
não eram apenas os arremessos para a cesta que importavam, mas a habilidade do
competidor para lidar com a violência das colisões e se recolocar na cadeira para
prosseguir na disputa.
todos que estavam naquele espaço. Ao mesmo tempo, nas ocasiões em que tentava
tomar uma certa distância para pensar de uma maneira um pouco analítica aquele
6
tinha a ver com uma determinada esfera de sociabilidade das pessoas com deficiência.
apresentavam de uma maneira muito vaga, seriam reforçadas quando fui assistir no
presente no ginásio. De qualquer forma, era possível perceber algumas diferenças entre
os dois contextos. Em primeiro lugar, a procura pela modalidade da natação parecia ser
bem maior. A enorme fila que havia se formado contrastava com a facilidade de
eram suficientes para abrigar todo o público que desejava ver a natação. Mas como o
programa da modalidade era muito extenso, aqueles que esperavam do lado de fora -
como era o meu caso - contavam com a rotatividade interna para terem a sua chance de
dos atletas de maior destaque em cada bateria, principalmente quando eles faziam parte
da delegação brasileira.
que eu pudesse repensar as relações que as pessoas com deficiência estabeleciam com
seus corpos, a natação surgia para aprofundar ainda mais esse questionamento. Tendo
suas próteses, muletas e cadeiras de rodas para entrar na piscina, os nadadores deixavam
corpo com deficiência na sua relação com um treinamento técnico. Além disso, até onde
paraolímpico como exemplo não apenas de vigor físico, mas também de vitalidade
bastante rico para uma investigação antropológica. O evento que havia me fascinado e
mobilizado as minhas emoções, abria caminho agora para que eu fizesse algumas
separadas. Ao longo da minha trajetória acadêmica nunca tive dúvidas de que os nossos
afetos sempre estão envolvidos nas nossas escolhas. Olhamos para os novos e velhos
objetos, assim como para os novos e velhos debates, tentamos planejar o nosso futuro
como profissionais, mas sempre queremos ter prazer com o tema que escolhemos.
Dessa maneira, resolvi apostar num novo projeto, depois de passados dois anos do curso
de doutorado e prestes a passar pela primeira qualificação. Com o meu primeiro exame
de qualificação realizado no início de 2008, levou poucos meses para que a viagem de
recorri a diversos sítios na internet, procurando encontrar nas páginas das entidades e
sistema que tem por objetivo posicionar o atleta em classes dentro do esporte
paraolímpico com base nas especificidades físicas relacionadas a cada deficiência. Nele,
presenciado nos Jogos Parapanamericanos do Rio. Dessa forma, tomei como desafio
e potente no esporte paraolímpico. Para atingir esse fim a minha estratégia passava pelo
pelos atletas, numa tentativa de entender como eles mesmos percebiam esta
ressignificação nos termos de uma educação do corpo e dos sentidos (Wacquant, 2002).
minha pesquisa no âmbito da natação paraolímpica, com foco no alto rendimento, por
rico, ao mesmo tempo em que não era tão extenso como no caso do atletismo. Ao tentar
desvendar a sua complexidade, eu poderia abrir espaço para uma compreensão mais
investigar uma modalidade com grande visibilidade. Adentrando numa rede mais
ampla, eu esperava ter acesso a um maior número de dados, produzidos tanto pelas
entidades e atletas ligados diretamente ao esporte, como por outros setores, conectados
deficiência. Em terceiro lugar, alguns clubes no Brasil concentravam a maior parte dos
atletas da natação paraolímpica que faziam parte da seleção brasileira, o que facilitava
sobremaneira o trabalho de campo. Mas, uma vez tendo delimitado alguns caminhos da
do objeto.
desenvolvimento da disciplina (Cf. Csordas, 1999), é possível ver que a questão mais
específica da deficiência parece não ter recebido ainda a devida atenção. Se, dentro de
uma concepção ocidental moderna sobre o corpo é possível reconhecê-lo como um fator
refletir sobre essa temática. Mas, se por um lado a escassez de trabalhos antropológicos
focados na conjunção entre corpo e deficiência trouxe limites para um diálogo mais
direto e aprofundado sobre esses assuntos, por outro lado, essa lacuna figurava como
uma oportunidade para pensar de uma forma mais autônoma e criativa as questões
específicas da tese.
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sobre classificação, demonstrava não ser muito compatível com os discursos nativos
voltados para as questões dessa ordem. Sendo assim, o tema da corporalidade foi sendo
era o núcleo da análise se desenvolveu e trouxe à baila novos assuntos. Nesse processo,
do corpo. Dessa forma, o objetivo central desta tese é discutir as concepções de corpo e
um recorte mais específico, pretendo mostrar como esses temas são elaborados por um
profissionais.
Ao optar por não montar um capítulo teórico, encarei o desafio de fazer com
que a pesquisa do campo dialogasse com a teoria ao longo desta tese. De qualquer
forma, penso que se faz necessário mencionar algumas referências que exerceram uma
importante suporte para a discussão sobre deficiência física. No entanto, procurei não
Veremos como no contexto desta etnografia nem sempre a pessoa com deficiência se
encontra numa situação de desvantagem social. Dessa forma, o que Goffman aponta
como o caráter relacional do estigma aparece de uma forma bem mais radical no
tipo de imersão onde era possível vislumbrar aspectos do cotidiano vivo da principal
entidade esportiva com a qual trabalhei. Dessa forma, algumas das reflexões teóricas e
entendimento de situações que envolviam o desempenho de papéis sociais por parte dos
vida como um caminho para a elaboração de algumas sínteses sobre o mundo social.
contexto, se comunicou, em algum nível, com a categoria de “projeto” com a qual esse
utilizados por eles em algumas situações de convívio. Afora isso, procuro incorporar
12
nesse trabalho outra contribuição desse autor, que diz respeito ao peso dos sentidos para
Procurando ver essa categoria como algo além de uma construção interna do indivíduo,
como concebida por Berger e Luckman (1973) serviu como apoio para analisar algumas
comuns” elaboram na sua relação com o cotidiano, pôde ser apropriada para discutir os
modos de aprendizado dos atletas e da sua família com relação ao corpo e a deficiência,
notadamente para pensar os casos em que esse aprendizado ocorreu desde as primeiras
que produz o mundo acaba por produzir a si mesmo, se encerra uma concepção de
identidade focada num ambiente mais geral e não apenas em uma pessoa ou algum
grupo mais restrito com o qual ela convive. Nesse sentido, ela não pode ser considerada
indivíduo que são apontados pelos autores dão conta das mudanças de dinâmica e de
mas também identificar quais são os mecanismos utilizados para a elaboração dessas
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Bourdieu, entendo que essas categorias não são independentes das relações que as
conceberam. Elas são frutos de algumas práticas sociais e só fazem sentido dentro de
nomeação e as “lutas por classificações” (Bourdieu, 1998) ilumina, ainda, parte dos
condições que podem levar alguns atletas a tomar posições de prestígio dentro do
papéis da instituição é conferir rótulos que servem como ponto de apoio para a
hierarquia. Busquei, também, conhecer o seu histórico, suas funções mais gerais, além
desempenho de uma prática esportiva a projetos mais amplos que pudessem, inclusive,
Dessa forma, penso que embora os indivíduos tenham certa autonomia para
realizar escolhas frente à construção de uma identidade, o fato é que parte dos
conteúdos que sustentam essas mesmas escolhas é emitida pelas instituições às quais
enriquecer os dados deste tipo com aqueles coletados na observação do cotidiano dos
atletas.
mais gerais eram: acompanhar os treinamentos dos atletas voltados para a preparação
para as competições, além de outros momentos em que existissem atividades com foco
treinamento, assim como as interações que se estabeleciam dentro desse mesmo espaço,
tanto entre os próprios atletas, como entre eles e outros agentes ligados à entidade;
tanto pelo seu registro teórico, como pelo seu registro prático, através do
acompanhamento dos exames e avaliações realizadas nos corpos dos nadadores; realizar
organização das entidades, o cotidiano dos atletas, a relação com os agentes externos
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que uma das entidades sediadas nesta cidade ocupava no esporte paraolímpico
SADEF-RN (Sociedade Amigos do Deficiente Físico do Rio Grande do Norte) era uma
Além disso, ela contava com um importante associado, um nadador com grande
mundo.
Norte), que possuía uma atuação também significativa. Juntas, estas entidades
Paraolímpíadas de Pequim.
período de 20 dias com o objetivo central de entrar em contato com dois atletas que
tinham sido os grandes medalhistas dos Jogos de Pequim. Nesta etapa tive a
em alguns eventos. Além disso, pude realizar entrevistas não só com eles, mas também
com outros atletas e técnicos. Retornei à São Paulo em maio de 2009 para acompanhar
daquele ano. Por fim, entre os anos de 2008 e 2009, estive presente em três competições
16
paraolímpicos.
trajetórias pessoais dos atletas e as suas próprias concepções sobre corporalidade, optei
funcionais. O uso de cada uma dessas fontes na tese foi ditado pela dinâmica de
com atletas que faziam parte da equipe brasileira de natação paraolímpica, 4 com
treinando atletas do CIEDEF, sendo que um era o técnico oficial da equipe de natação
técnico ligado a SADEF, fazia parte da equipe brasileira de natação. Uma das
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menos duas edições dessa competição. Entre esses atletas mais experientes havia 4 na
faixa dos 40 anos, 4 na faixa dos 30 anos e 2 na faixa dos 20 anos. Nessa última também
1 do CIEDEF.
sido desenvolvido para os atletas acabou trazendo questões que se tornaram o núcleo
dos demais. Mas o roteiro de entrevista dos atletas foi sofrendo reelaborações ao longo
corporalidade, como já foi apontado no início dessa introdução. Creio que seja possível
acumulam novos dados que transitam ao redor das categorias nativas. No caso dos
depoimentos orais, a realização de uma entrevista pode apontar para certos limites e
Para que isso ocorra é importante não esquecer que a entrevista é um tipo de
escuta ativa e metódica, tão afastada da pura não-intervenção da entrevista não dirigida,
que o pesquisador tenha uma disponibilidade total para a pessoa entrevistada com uma
submissão à singularidade de sua história, de maneira que a entrevista possa ser tomada
verdadeira conversão do olhar que lançamos sobre os outros nas circunstâncias comuns
objetivo mais geral dessa parte é situar o leitor dentro da trajetória e do vocabulário do
esporte paraolímpico. Por meio dessa mesma narrativa procuro destacar algumas
mudanças que ocorreram no seu vínculo com o conceito de reabilitação física. O item
que trata das relações entre o esporte paraolímpico no Brasil e os estudos realizados na
área da Educação Física Adaptada se constitui num esforço para visualizar com mais
entidades que estiveram envolvidas no meu trabalho de campo. Neste ponto, explicito
modalidade da natação. Para cumprir com a descrição mais formal desse código me
como profissionais dessa área do esporte. Estes mesmos profissionais também deram
depoimentos orais que serão utilizados. Nesse mesmo capítulo apresento um item com
polêmicas mais gerais em torno do sistema a partir da percepção de agentes que ocupam
Com foco nas trajetórias de vida, inicio o capítulo 3 tentando resgatar alguns
aspectos da relação mais subjetiva dos atletas com a sua deficiência em variados
momentos de sua história pessoal. Nessa parte, procuro entender o peso da família nas
elaborações iniciais da pessoa com deficiência acerca do seu próprio corpo, além de
captar o lugar que ocupa na relação profissional entre o atleta e a sua entidade. Analiso,
no tocante ao grau de visibilidade da diferença corporal. Como item final desse capítulo,
jocosidade pode ter nos ambientes de sociabilidade e a relação que estabelece com uma
“terminologia adequada”.
partir das diferenciações referentes aos “classes baixas” e “classes altas” da natação,
paraolímpico.
feitos por estas mesmas instituições e em entrevistas realizadas com pessoas ligadas ao
movimento paraolímpico andam juntos e, cada uma destas terminologias não pode ser
entendida sem o exame das outras. Analisando a produção nesta área, vemos que outros
Educação Física Adaptada também podem ser encontradas nesses trabalhos possuindo o
ele:
E depois segue:
22
Dentro ainda do que nos sugere este autor o Desporto Adaptado possui,
então, suas codificações próprias, assim como sistemas de classificação funcionais que
cada uma das modalidades em que ele se apresente. Em suma, ele “visa, de acordo com
No entanto, escolho o termo esporte adaptado por achar que ele representa
de forma mais satisfatória sua relação com o esporte paraolímpico, voltado para o alto
pouco mais amplo e, por vezes, definem atividades voltadas para grupos que podem ou
não englobar pessoas com deficiência (como seria o caso dos idosos, crianças e
intrínseca relação com deficiência e esporte paraolímpico, ele acabará perdendo força ao
paraolímpico, que abrangem os atletas com deficiência com alto nível de rendimento e
correlacionados, a distinção é útil para delimitar o grupo que é objeto desta pesquisa:
misturam nos usos cotidianos. O termo esporte adaptado é que deveria ser o englobante,
atualmente no rol dos esportes paraolímpicos. Todavia, o que ocorre muitas vezes é que
natação paraolímpica, acabam por englobar nas falas dos informantes tudo aquilo que se
fisicamente educado parece ter uma longa estrada percorrida no Ocidente. Nos trabalhos
citados aqui e que têm relação mais direta com a área de estudos do esporte,
corporeidade de pessoas com algum tipo de deficiência. Algumas dessas indicações, por
sinal, nos trazem informações de tempos bem remotos, como Antiguidade, Idade Média
e Idade Moderna. Não é a pretensão desta tese aprofundar-se a tal ponto em termos
documental. Por outro lado, acredito que seja enriquecedor registrar com mais clareza a
história mais recente do esporte para deficientes e que mais se aproxima da maneira
2
Refiro-me aqui à educação física no sentido de uma aposta na manutenção de uma fisicalidade saudável
através de exercícios regulares e não de uma disciplina escolar e acadêmica tal qual a concebemos hoje.
24
para este grupo, denominada Jogos do Silêncio. É desta época a criação do Comité
1907, também nos Estados Unidos. Analisando a produção de autores que se preocupam
inúmeras datas e eventos que são considerados como pequenos marcos deste processo.
Nem todos eles aparecem com o mesmo grau de relevância e, por vezes, chegam a
haver discrepâncias sobre datas, locais e nomes a eles relacionados. O primeiro ponto
consensual mais abrangente fica claro quando os autores citam a Primeira Guerra
3
Esta entidade realiza seus jogos de forma independente do movimento paraolímpico, embora tenha
havido a participação de surdos nestas competições entre 1986 e 1995.
25
esporte paraolímpico. O trabalho deste médico, que era alemão de origem judaica e
marca da reabilitação que, segundo Guttman, deveria ser não apenas física, mas também
social.
que, ao final da Segunda Guerra Mundial, os governos dos principais países envolvidos
no conflito já não podiam fechar os olhos para o grande problema dos mutilados de
guerra que retornavam às suas pátrias e que, ao menos aparentemente, passariam a ser
quando afirma que nesse período “deficiências eram déficits a serem compensados
alguns autores, esta resposta não deixava de ser uma medida econômica, pois boa parte
da mão-de-obra produtiva dos países beligerantes estava nos campos de batalha4. Por
outro lado, podemos afirmar que a preocupação com a reabilitação destas pessoas tinha
a ver também com uma resposta política a um dos resultados visivelmente nefastos da
guerra.
No que diz respeito à reabilitação em si, Araújo (1996) destaca que havia um
interesse científico neste momento por esta área, com o desenvolvimento de várias
4
Interessante trazer aqui sucintamente o quadro que Rosadas (2000) descreve sobre as especializações
que surgiram no pós-guerra e que têm a ver com o desenvolvimento de pesquisas e tecnologia na área da
reabilitação para deficientes. Países como Rússia, Itália, Espanha, França e Portugal concentraram seus
esforços em psicomotricidade e lesões que afetavam o lado neuro-comportamental. Na Alemanha,
Inglaterra e Estados Unidos o enfoque se deu em pesquisas na área de deficiência mental, assim como em
lesões como amputações e traumatismos ráquimedulares. Já no Japão, vemos o desenvolvimento da área
de órteses, próteses e cadeiras de rodas voltadas para o esporte competitivo.
5
Debilidade neurológica causada por uma lesão na medula espinhal que causa paralisia e alteração de
sensibilidade, podendo ser parcial ou total.
26
era justamente o foco do Hospital de Stoke Mandeville, que tratava os soldados que
possuíam este tipo de lesão e que até então, tinham uma expectativa de vida curta depois
que se encontravam nesta nova condição. Segundo Araujo “isso ocorria devido às
Op.cit.:8). Por outro lado, convém destacar que os traumatismos graves trazem
conseqüências não apenas físicas, mas emocionais e sociais. Neste sentido, quando se
fala em reabilitação dificilmente ela estará sendo pensada somente em termos físicos,
pessoas com deficiência teve grande aceitação e quatro anos depois já eram realizados
os primeiros jogos de Stoke Mandeville. No ano de 1950, tem início o intercâmbio entre
rodas. Este último país também já tinha percorrido seu próprio caminho nesta área,
era praticado por veteranos de guerra, mas que depois despertou o interesse de civis que
que havia obtido os Stoke Mandeville Games, como ficaram conhecidos os jogos de
no ano de 1956, passam a participar dos jogos algumas pessoas com sequelas de
6
Depois ela passou a ser denominada International Stoke Mandeville Wheelchair Sports Federation
(ISMWSF).
27
reabilitação para pessoas com deficiências ou debilidades físicas para o início de sua
prática, realizada por estas mesmas pessoas, mas agora com uma intenção competitiva.
Ainda assim, acredito que estas fronteiras entre reabilitação e esporte competitivo não
podem ser colocadas de forma tão categórica, pois ainda que a proposta naquele
momento fosse a de pensar na formação de atletas, ela não deixava de estar na interface
Dr. Guttman é convidado para organizá-los em Roma, após o término das XVI
Olimpíadas. Essa edição dos Jogos passou a ser considerada posteriormente como a
primeira Paraolimpíada, embora ainda não tenha recebido essa denominação naquele
deles competidores. A partir daí, com raras exceções, estes jogos passaram a ser
na competição realizada quatro anos depois, na cidade de Tóquio, é que surge o termo
Jogos Paraolímpicos que, por sinal, nunca foi adotado pela associação que cuida dos
Jogos de Stoke Mandeville. É também nesse ano de 1964 que surge a segunda
Organization for the Disabled (ISOD), que tinha a intenção de representar todos os
que eram praticadas por pessoas que possuíam outras deficiências. Assim, nos Jogos
Em 1980, nos Jogos Paraolímpicos de Arnhem8 na Alemanha, foi a vez dos atletas
participação de pessoas com diferentes tipos de deficiência, por outro lado acabou
diversificação aqui citado. Mas o fato é que o crescimento do movimento trazia consigo
uma maior especialização dos atletas por tipo de deficiência, de forma que outras
entidades foram sendo criadas com o intuito de organizar o esporte a partir destas
mesmas especializações. Em 1978 foi criada a Cerebral Palsy - International Sports and
que se tornou responsável pela organização dos deficientes visuais no movimento, foi
fundada em 1981. Com relação a esta tendência de crescimento que se afirma neste
7
Neste mesmo ano começam a ser realizados os Jogos Paraolímpicos de Inverno, cuja sede foi a Suécia.
Depois este ciclo foi ajustado para que ocorresse sempre paralelamente aos Jogos Olímpicos de Inverno.
Os últimos foram na cidade de Turim, na Itália. Ver CONDE, Op.cit., p.11.
8
Guttman chegou a participar desse evento, mas morreu neste mesmo ano.
29
ISMWSF e ISOD, além da International Federation for Sport for Athletes with an
Existe ainda uma sexta entidade internacional que representa os atletas com deficiência
de atletas deficientes mentais como convidados. Mas, nos jogos seguintes realizados em
passar por uma pessoa com deficiência. Utilizando esse recurso ele também mostrou
que outros membros da equipe simulavam a mesma condição. Esses atletas foram
eleição dos deficientes mentais. Até hoje o IPC estuda novos critérios para incluí-los
ocorre paralelamente aos Jogos Olímpicos, na mesma cidade-sede. Araújo aponta que
com relação ao termo Paraolímpico não parece haver um consenso quanto à sua origem.
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Ele afirma que, inicialmente, ele teria sido cunhado em referência à palavra paraplegia,
significando, então, “jogos para paraplégicos”. Mas outros afirmam que o termo
Paraolímpico está relacionado ao fato deste evento ser paralelo aos Jogos Olímpicos, o
Estas significações não parecem ser excludentes, mas apontam para uma
mudança no sentido do termo que tem a ver mesmo com a trajetória do esporte
paraolímpico. Quando em seu início ele era voltado apenas para pessoas com
paraplegia, seu valor semântico tinha a ver com a junção dos termos paraplégico e
olímpico. À medida que pessoas com outros tipos de deficiência começaram a participar
e que os jogos passaram a ocorrer de forma paralela aos Jogos Olímpicos, a conjunção
de palavras que dava sentido ao termo paraolímpico era “para” (advindo do grego e que
colhi ao longo da pesquisa existe uma recusa quanto ao uso da palavra paratleta no
movimento paraolímpico, ainda que esta possa ser encontrada de forma recorrente na
A discordância é justificada pelo fato de que seriam atletas realmente e não seriam
também no Brasil a conexão entre as duas áreas sempre existiu de alguma forma. A
31
lesionados de guerra.
esporte adaptado no Brasil, cita um interessante depoimento de uma das pessoas que
Del Grande. Segundo seu relato, ele ficou paraplégico no ano de 1951, mas por não
haver na época um centro de reabilitação no Brasil para o tipo de lesão que ele possuía,
resolveu realizar o seu tratamento nos Estados Unidos, no Instituto Kesller em New
Jersey. Ao chegar lá, ficou sabendo que era obrigatória no sistema de reabilitação a
de reabilitação daquele país. Ele optou pelo basquete em cadeira de rodas e em pouco
tempo já estava participando dos torneios que eram feitos com os outros centros de
reabilitação. Del Grande voltou para a cidade de São Paulo em 1955 e tornou-se uma
parte física da pessoa com deficiência, mas busca o bem estar desta em todos os níveis
de sua vida. Cito aqui, uma parte do depoimento de Del Grande que encontramos no
trabalho de Araújo. Ela é sem dúvida especial, pois ainda que ele esteja falando de
cuidados aparentemente físicos, vemos que uma das metas do trabalho de reabilitação é
ela possa ser encarada não como uma doença que apenas restringe, mas como uma
32
limitação que pode e deve ser conhecida e administrada, através de uma intervenção
São Paulo (CPSP) no ano de 1958. Em outra parte do seu depoimento, também citado
por Araújo, fica claro que um evento no ano de 1957 teria sido decisivo no
de Assistência à Criança Deficiente (AACD) trouxe os “Pan Jets” para fazer uma
em São Paulo e depois no Maracanãzinho no Rio de Janeiro. Eles eram um time da Pan
American World Air Ways formado por pessoas que tinham ficado deficientes, mas
Um dos atletas dessa equipe conheceu na época Del Grande e tentou convencê-lo de que
era possível formar um time de basquete em cadeiras de rodas no Brasil e depois acabou
enviando uma cadeira para ele dos Estados Unidos. Depois, através de uma campanha
Federação Paulista de Futebol, a doação de mais 10 cadeiras de rodas, que foram feitas
a partir do modelo daquela despachada dos Estados Unidos. Del Grande relata que a
primeira equipe foi montada em sua maioria a partir de contatos feitos com entidades
1959 o CPSP participa de uma competição em Buenos Aires e, no ano seguinte, vai para
um Mundial em Roma.
teria de fato dado oficialmente o seu passo inicial. Isso ocorre porque alguns autores e
tendo em vista a fundação do Clube do Otimismo que teria ocorrido meses antes
implantação do esporte adaptado no país. De qualquer forma não é tarefa deste trabalho
resolver esta controvérsia, mas trazer dados que nos ajudem a entender como se deu o
possibilitou um conhecimento maior sobre o que mais estava sendo praticado em outros
países. À medida que outras modalidades foram sendo incorporadas e que o esporte
adaptado foi crescendo, ficou mais evidente a necessidade de criar uma entidade que
uma série de entidades que surgem a partir da década de 80. Aliás, acredito que esse
9
Algumas fontes dão conta de que o Clube do Otimismo teria sido criado em abril de 1958, enquanto que
o Clube dos Paraplégicos de São Paulo teria sido fundado alguns meses depois, em agosto do mesmo ano.
10
Depois, com o surgimento de outras entidades criadas por tipo de deficiência, a ANDE ficou
responsável pelos atletas com paralisia cerebral e os chamados “Les Autres”, categoria do esporte
paraolímpico que junta pessoas com deficiências que não se enquadram naquelas já claramente
especificadas, como paraplegias, amputações, cegueira e deficiência mental. No grupo dos “Les Autres”
temos, por exemplo, pessoas com má-formação congênita e aquelas que possuem doenças degenerativas.
34
mas também de outras questões que passam a ser explicitadas neste período e que tem a
Organização das Nações Unidas em 1981, surge um momento propício para a discussão
sobre o corpo com deficiência, menos focado nas limitações e mais voltado para a
Voltando ao nosso histórico, vemos que a expansão que se inicia nos anos 80
continua até meados dos anos 90 como mostro abaixo em uma breve cronologia que dá
podemos esquecer o fato de que estas novas entidades passam a fazer parte de um
11
Com exceção do Clube do Otimismo e do CPSP, que foram precursoras do movimento num momento
em que ainda não havia entidades nacionais, não apresentarei aqui a fundação de entidades estaduais ou
municipais dentro desta história de formação do movimento, a não ser quando no curso do trabalho, elas
estejam diretamente ligadas ao trabalho de campo e às questões em debate.
35
Brasileira de Desporto para Surdos (CBDS), na cidade do Rio de Janeiro. Embora esta
modalidades desportivas não fazem parte do quadro dos Jogos Paraolímpicos. Em 1990
Desporto para Deficientes Mentais (ABDEM), que já existia desde o ano de 1989. O
órgão responsável pela organização de eventos nacionais que envolvam mais de uma
deficiência, bem como a entidade que, por dever, envia os atletas brasileiros aos
O quadro até aqui descrito pode trazer consigo a impressão de que todo esse
processo teria se desenvolvido numa simples escala ascendente, que aparece de forma
mais acelerada na década de 80, de onde prosseguiria com seu curso evolutivo até os
dias atuais. Mas o fato é que as fontes disponíveis sobre o assunto têm condições de
período. Levanto esta questão na intenção de esclarecer que não suponho a existência de
uma trajetória onde não existam constantes reformulações, que pode se desdobrar tanto
Da mesma forma que muitas entidades e clubes foram sendo criados, outros
portas. O próprio Clube dos Paraplégicos aqui citado pode servir como exemplo de uma
instituição que perdeu a projeção anterior que tinha no esporte paraolímpico, sem contar
12
Tendo inicialmente sua sede na cidade de Niterói, o CPB transfere-se para Brasília no ano de 2002.
36
atentos para o fato de que a maioria dos dados possibilita o relato daquilo que se
presume como uma realidade nacional (como vemos na maioria dos textos
encontramos trabalhos acadêmicos que tratem de histórias que extrapolem esse recorte.
Isso não tira a validade dessa produção, mas serve a esta tese como um alerta no sentido
paraolímpico
Considero importante situar alguns dados sobre o momento atual dos estudos
sobre esportes para deficientes no Brasil e que servem concretamente de suporte para
rendimento. Nas entrevistas que realizei e em conversas que tive com pessoas formadas
curriculares com poucas ou nenhuma disciplina voltada para a discussão sobre o corpo
deficiente, o que se desdobra num baixo incentivo para pesquisas em torno deste tema.
trabalho que realizam hoje junto às pessoas com deficiência, a maioria dos profissionais
dentro da universidade para aprofundar seu conhecimento nessa área. Alguns técnicos
asseguram que muito do que aprendem sobre o corpo deficiente se constrói no cotidiano
37
e de forma contínua, por meio da experiência prática que vão adquirindo no contato
com os atletas e nas adaptações que aprendem a fazer pela observação dos corpos de do
seu desempenho.
corpo deficiente e o esporte adaptado passa por uma via acadêmica. Alguns relatos dão
conta da existência de redes que extrapolam esse âmbito, como aquelas mais ligadas a
associações que apóiam o deficiente físico, aos clubes de treinamento propriamente dito
e aos circuitos de amizade, ocasião em que a pessoa pode ser levada por alguém a
profissionais iniciam sua carreira no esporte dito convencional - podendo ser professor,
técnico e eventualmente até um competidor - quando são convidados para treinar algum
década de 80 por alguns professores, entre eles Paulo Ferreira de Araújo, citado nesta
tese. Como foi dito anteriormente, embora essa área de estudos seja pouco
e o ensino nesse setor13, ainda que não seja dentro deste modelo acadêmico que
(2001:64):
Atividade Física Adaptada (DEAFA) que proclama a defesa de estudos que sejam
grupos dentro de uma realidade social. Importa salientar que a sua produção científica
não está voltada somente para pessoas com deficiência, mas outros grupos tais como:
Laboratório de Atividade Motora Adaptada (LAMA), por sua vez, tem um intuito
semelhante, mas contribui mais diretamente com estudos que têm servido de base para o
parâmetros classificatórios dos atletas, rendimento físico, entre outras ações. Esse
laboratório parece ser a principal via de apoio ao CPB pelo seu destaque em projetos
avaliar atletas deficientes de alto rendimento. Dessa forma, para além do fato de que a
13
Rosadas destaca o trabalho desenvolvido nos departamentos de Educação Física da Universidade
Federal de Uberlândia e nas Faculdades Integradas Castelo Branco no Rio de Janeiro, instituições que
foram criadas também na década de 80 e que, junto com a FEF podem ser consideradas pioneiras na área
de Educação Física Adaptada.
39
acadêmico sobre o esporte adaptado, ela surge como referência nesta tese pela sua
ligação - ainda que indireta - com o meu trabalho de campo, na medida em que alguns
dos seus professores, alunos e ex-alunos fazem parte atualmente de equipes técnicas do
sua importância na conjuntura dos anos 80, ao colaborar para uma discussão mais ampla
paraolímpico no Brasil. Tal crescimento relaciona-se, por sua vez, com aquele que
brasileiras a expansão de cursos nas faculdades de Educação Física voltados para essa
que levam também para o âmbito acadêmico aquilo que aprendem em sua experiência
prática. É preciso deixar claro que a criação desse novo campo de estudos dentro das
deficiência. Por outro lado, podemos dizer que essas ações também respondiam às
do corpo deficiente tanto no ensino de Educação Física nas escolas, como em propostas
para a prática mais ampla de esportes. Dessa forma, vemos que não é possível entender
dinamismo pode ser exemplificado por outra passagem da obra de Araújo quando ele
afirma que
40
pelo poder público e privado. Dessa forma, podemos ver que o campo de ação do CPB é
bastante amplo. Atualmente isso pode ser exemplificado por uma série de parcerias que
materiais, assim como o apoio político para a concretização dos seus projetos. Por meio
de medalhas ganhas.
estratégicos que costumam obedecer aos ciclos paraolímpicos de quatro anos que, por
sua vez, abrigam os projetos específicos que visam responder aos propósitos de
avaliação do desempenho dos atletas. Ele ainda tem o papel de estabelecer os critérios de
privado para o desenvolvimento dos seus projetos. Dentro deste mesmo capítulo e ao
longo de toda a tese será possível visualizar como alguns aspectos dessa lógica
entidades.
de Natal, mas não obtive um retorno imediato. No mesmo período fiquei sabendo
através da imprensa que o seu atleta de maior destaque estava, na verdade, treinando no
cidade e aos seus patrocinadores. Por essa razão, passei a me comunicar também com a
entidade já tinha suposto, ele me disse que não havia nenhum entrave para a realização
da minha pesquisa e que bastava eu levar uma carta que comprovasse o meu vínculo
comunicar com a própria assessora do nadador que confirmava para mim o regresso do
para me aproximar dos atletas. Como o meu contato com um deles havia sido mediado,
momento em que provavelmente eles começavam a ser mais requisitados pela mídia.
Também imaginei que essa proteção pudesse ser feita pela própria entidade e que,
idealização que eu havia feito. No primeiro dia em que estive na associação procurei
me certificar antes se as pessoas com quem eu havia falado estariam por lá. Mesmo pelo
telefone pude sentir a surpresa da secretária ao saber que eu já estava na cidade e que
desejava conhecer o espaço da entidade. Mesmo tendo confirmado a minha viagem, eles
diretor que era o meu contato inicial, vi que ele apresentou o mesmo tipo de reação, mas
ficou ainda mais admirado quando eu falei que a pesquisa duraria quatro meses. Aliás,
outras pessoas fora do círculo chamando a atenção para essa particularidade. Eles
faziam questão de ressaltar que eu era uma pessoa que vinha de longe para me dedicar
mas alguns já tinham sido objeto de pesquisas de caráter acadêmico, geralmente feitas
explicações, das formas mais variadas, mas ao fim acho que esse entendimento não era
uma questão muito importante para eles. Até os últimos dias do trabalho de campo
encontrava pessoas que me perguntavam quando sairia a matéria que eu estava fazendo.
Acredito que eu era considerada por eles como uma espécie de divulgadora do esporte
paraolímpico, ainda que não soubessem exatamente a forma como isso se daria.
faziam questão de me deixar à vontade e depois que souberam que eu estava sozinha na
cidade para realizar a pesquisa, pude sentir uma acolhida ainda maior que vinha muitas
Pela página da SADEF não dava para ter uma idéia de como era a sua sede.
Não havia nenhuma foto ou qualquer tipo de registro para que eu pudesse ter uma noção
do espaço que era utilizado por eles. Confesso que fiquei surpresa quando conheci o
lugar onde eles trabalhavam. Com duas salas situadas no espaço de um antigo Centro de
dividido em duas partes, com uma sala menor para reuniões e outra onde ficava a mesa
da secretária, alguns arquivos e outros materiais. Até então, eu tinha como parâmetro a
Niteroiense dos Deficientes Físicos) e que possuía uma estrutura física e material bem
distinta.
44
que era realizada uma reunião de diretoria na pequena sala, entravam e saíam pessoas da
outra onde eu esperava para falar com o presidente da associação. A maioria daqueles
visitantes parecia ser de associados da própria entidade que, à medida que não
conseguiam resolver os seus problemas com a secretária e com o outro diretor que me
acompanhava, esperavam para falar com os outros que ainda permaneciam na reunião.
Como a sede também ficava próxima de alguns locais de treino, ela também figurava
modalidades, mas também pelos técnicos, amigos e parentes. Não demorei em perceber
que aquele ambiente, à primeira vista considerado caótico por mim, poderia oferecer um
clima perfeito para uma aproximação dos atletas. De fato, desde o início tive a liberdade
Fundada em 1995, essa associação sem fins lucrativos está filiada ao Comitê
Paraolímpico Brasileiro (CPB) e pode ser considerada uma das principais referências no
região nordeste, mas, menos de uma década depois de sua criação, seus atletas traziam
26 medalhas. O foco da entidade é a natação paraolímpica, mas ela conta ainda com
outras modalidades esportivas: halterofilismo, atletismo, ciclismo, tiro com arco e tênis
46
RN), outra entidade da cidade de Natal ligada ao esporte paraolímpico, também tinha
rompimento com a SADEF no ano de 2003. Essa ruptura teve relações com
divergências políticas e disputas internas. Hoje ela funciona no espaço que antigamente
aumento da rede dos atletas da natação. Eu não encontrei abertura para fazer um
CADEF fica sediada numa academia que, além de oferecer atividades físicas, também
possui serviços na área de reabilitação e estética. Por essa razão, as pessoas que
transitavam no local, em sua maioria, não tinham nenhuma ligação com a associação.
sociabilidade dos atletas. Nas vezes em que estive no local, pude perceber que eles
chegavam, treinavam e logo depois iam embora. Dessa forma, as minhas visitas a essa
alguns nadadores treinavam neste local. Desde que um dos técnicos de natação do SESI
passou a responder oficialmente pela equipe da SADEF, a maioria dos atletas começou
outros clubes.
não eram realizadas em um único espaço, o meu trabalho de campo se dispersou por
vários locais da cidade. Ainda assim, tentei concentrar os meus esforços na sede da
destaque da entidade. Visitei apenas uma vez a piscina da UFRN, tendo em vista que o
algum tratamento, a maior parte dos espaços estava visivelmente abandonada. O capim
academia de musculação da SADEF, por sua vez, estava localizada num bairro mais
distante das principais piscinas de treino. Tive a oportunidade de conhecer esse espaço
quando fui convidada para ver um treino da equipe de halterofilismo. O local era
pelo técnico que a academia não possuía todos os equipamentos necessários para um
treinamento mais completo, contando com o que era mais básico para o halterofilismo.
48
Por essas razões, a maioria dos atletas da natação não realizava um trabalho de
fazer Pilates gratuitamente em uma academia particular. Além disso, nenhum dos atletas
51
da entidade com os quais eu tive contato recebia com regularidade apoio nutricional ou
psicológico. Mas acho importante ressaltar que a carência destes dois suportes não
parecia ser tão preocupante para os atletas. Eles declaravam que pela própria
lugar de uma dieta prescrita se colocava o bem senso. No lugar da consulta com o
psicólogo, surgia o apoio da família14. Dessa forma, todo um aparato que, ao menos em
tese, seria necessário dentro de um quadro ideal de profissionalização, não era utilizado
por esses atletas, seja pela falta de recursos materiais e humanos, seja pela própria
alguns anos para ter o seu próprio espaço, com um centro de treinamento que possa
sido doado pela prefeitura da cidade. Aliás, o primeiro evento que participei longe das
piscinas foi o plebiscito realizado no bairro de Cidade Satélite que tinha o objetivo de
consultar a população local sobre a construção da nova sede. O projeto foi aceito e
investimento na obra.
14
O seu papel na trajetória do atleta paraolímpico será visto no capítulo 3.
52
principal tarefa que realizava era levar para os locais de treino os atletas que possuíam
um maior comprometimento físico e que não possuíam o seu próprio carro. Como não
havia condições de atender a todos que estavam nesta situação, eram priorizados
aqueles que moravam nos bairros mais distantes e que não conseguiam pegar carona
Mesmo nos locais onde havia uma maior oferta de transporte público,
cidade de Natal - com uma rotina de trabalho que, por vezes, me obrigava a pegar várias
conduções por dia para chegar aos meus destinos – vi apenas dois ônibus adaptados
quadro sobre os limites para o deslocamento na cidade. Nos dias em que o carro era
requisitado pela diretoria para resolver algo urgente, os atletas que dependiam desse
deficiência, na medida em que ele muitas vezes não consegue alcançar uma frequencia e
profissionalizar. Isso afeta justamente aqueles que estão iniciando no esporte e que
projeção que o seu nome alcançou na cidade depois que um dos seus atletas se tornou o
grande medalhista de Atenas fez com que a entidade crescesse bastante. Esta expansão,
por sua vez, trouxe novos desafios para a SADEF e impôs uma pauta de discussões
onde estava presente uma maior preocupação com a resolução de problemas financeiros,
alguns atletas - proporcionada tanto pela movimentação da mídia em torno deles como
pela ação direta da própria entidade – era usada para chamar a atenção do poder público
54
chefes do executivo. Além disso, eram convidados os representantes das empresas que
patrocinavam a entidade ou que estabeleciam algum tipo de parceria. Aquele parecia ser
realizadas em 2004 - onde ganhou seis medalhas de ouro, uma de prata e quebrou cinco
recordes mundiais - ele se tornou uma referência para o esporte paraolímpico tanto no
Brasil como no exterior. Junto com isso veio o assédio da imprensa e de empresas que
se interessaram em patrociná-lo. Desde então, ele passou a contar com uma assessora de
comunicação que depois veio a se tornar sua empresária, além de prestar atendimento na
mais clara para mim na medida em que ela também dava suporte e atuava no processo
de reorganização da associação. Mas essa realidade era uma exceção entre os atletas do
15
O Bolsa-Atleta é um programa do Governo Federal, criado pela Lei 10.891, de 9 de julho de 2004.
Gerido pelo Ministério do Esporte, seu objetivo é garantir a manutenção pessoal de atletas de alto
rendimento que não possuem patrocínio e que, por essa razão, necessitam de auxílio para o treinamento
55
paraolímpico eram oriundas de classes populares. Aliás, essa também era a origem da
maioria dos atletas da associação que hoje se encontram na seleção brasileira. Nesse
sentido, manter em treinamento as novas pessoas que entravam era outro desafio da
básicas para os atletas mais carentes que, para recebê-las, deveriam mostrar
também mantinha parceria com uma universidade privada que oferecia bolsas de
estudos para os associados. Essas eram algumas formas encontradas pela entidade para
tentar evitar a evasão de atletas que porventura tivessem que trabalhar para custear a sua
possuir um emprego que desse mais garantias financeiras para eles e sua família,
profissionalização dos seus atletas, não eram raras as vezes em que a entidade era
criticada por esses mesmos associados. Embora em sua maioria eles reconhecessem a
esportivo e para a participação em competições. O programa beneficia atletas que são praticantes de
modalidades vinculadas ao Comitê Olímpico Internacional (COI) e ao Comitê Paraolímpico Internacional
(CPI). Os critérios para o recebimento da bolsa são definidos pelo Ministério dos Esportes. A bolsa é
paga mensalmente e possui a seguinte escala de remuneração:
- Atleta Estudantil - Valor da Bolsa: R$ 300,00/mês;
- Atleta Nacional - Valor da Bolsa: R$ 750,00/mês;
- Atleta Internacional - Valor da Bolsa: R$ 1.500,00/mês;
- Atleta Olímpico e Paraolímpico - Valor da Bolsa: R$ 2.500,00/mês
56
pude perceber que essa crítica era muito menos recorrente entre aqueles que ocupavam
Quando o trabalho de campo ainda estava no seu início, optei por não fazer
registros com câmera fotográfica, caderno ou gravador nas visitas que fazia à sede da
impressões de caráter mais sutil, tentando situar a maneira como iam se desenvolvendo
as relações com os informantes, assim como a forma como eu achava que era percebida
por eles.
mas o máximo de proximidade que havia não era diferente daquela de uma torcedora e
ideia de inacessibilidade que eu havia construído ao tomar alguns os atletas como ídolos
do esporte. Por essa razão, não posso negar que, ao menos inicialmente, a proximidade
57
que eu tinha com alguns atletas era desconcertante. O exercício para me desapegar desse
período que antecede as grandes competições demanda muita disciplina por parte de
toda a equipe. Durante os quatro meses em que estive em Natal, os atletas saíram para
Paraolímpicos exigia dos atletas uma grande concentração na piscina, ao mesmo tempo
convivência com eles. Mas melhor do que ser uma mera observadora desses eventos
era estar envolvida como ajudante e colaboradora em algum sentido; momento em que
Como não considero possível ou conveniente para os fins dessa tese montar um
bem compreendida ao longo da tese, onde alguns deles serão descritos na sua relação
nova geração de atletas que nunca tinha participado deste evento. Na verdade, dois
na piscina. Os dois treinavam em São Paulo. Resolvi, então, viajar para essa cidade com
o objetivo de entrevistar não apenas eles, mas também outro nadador que havia
participado dos Jogos de Pequim, além de conhecer as entidades às quais eles estavam
vinculados.
Deficiente Físico (CIEDEF), uma ONG fundada em 1991 e que possui como lema
central “a integração social do deficiente através do esporte”. Embora o seu foco seja o
treinamento para o alto rendimento, ela também atua na área de reabilitação física. A
natação é a principal força da entidade. No entanto, ela ainda trabalha com atletismo e
treinamento).
Ginásio Ibirapuera. Todas as atividades esportivas são desenvolvidas nesse espaço, com
exceção daquelas voltadas para a reabilitação. Como o Ginásio Ibirapuera abriga outras
pista de atletismo com atletas “convencionais”. Ainda que as instalações não sejam
59
muito modernas e que pareçam necessitar de uma maior manutenção, até onde pude
viajado com recursos próprios e não tive condições de me manter por muito tempo na
cidade. Além disso, durante os vinte dias de estadia, a minha rede de contatos se
expandiu bastante, de maneira que eu acabei me deslocando para diversos locais, tanto
para participar de eventos ligados ao esporte paraolímpico, como para entrevistar outros
como eu havia observado na SADEF. Nos dias em que estive na sala da entidade, não
observei nenhum tipo de trânsito de atletas ou de outras pessoas que não estivessem
também técnicos. Como eu não acompanhei o trabalho com os atletas de base, não
possuo dados suficientes para descrever a relação dos mesmos com o espaço e o
cotidiano da associação.
contato, dois deles estavam ligados ao CIEDEF. No período em que estive em São
continuar apenas com o seu trabalho como profissional liberal e como voluntário na
diretoria do CIEDEF. O outro nadador dessa mesma entidade não ficava em São Paulo
e treinava em um clube de uma cidade próxima à capital, onde também morava. Esse
era justamente um dos atletas “novatos” da seleção. O outro, também “novato”, treinava
Brasileiro dos Direitos da Pessoa com Deficiência (IBDD). Por possuir uma deficiência
quando ele estava passando férias na cidade do Rio de Janeiro. Naquela ocasião, a
conversa que seria curta devido a outros compromissos que ele tinha, acabou se
Depois, quando viajei para realizar a pesquisa, pude ver de perto que o seu
ritmo de trabalho era bastante intenso. Além de treinar quase diariamente, ele
participava constantemente de vários tipos de eventos. Assim que entrei em contato com
agenda. Dessa forma, acompanhei o atleta em alguns dos seus compromissos que quase
ampliar a minha rede de contatos inicial. Alguns dos resultados desse segundo momento
corpos no esporte.
percorrido pela natação paraolímpica no Brasil na sua relação com a história mais geral
competições internacionais.
Mandeville no ano de 1984 com a conquista de sete medalhas. Nos Jogos Paraolímpicos
de Seul, em 1988, o país ganhou nove medalhas. O Brasil seguiu participando das outras
Sidney, com 22 medalhas. Mas foi em Atenas, no ano de 2004, que a natação ganhou
sete de bronze.
desde o ano de 2005, quando foi criado pelo CPB o Circuito Loterias Caixa de
necessários. Além disso, o Circuito abre espaço para a descoberta de novos talentos.
congrega pessoas com diferentes tipos de deficiência, ele também coordena as entidades
absoluta dos movimentos na piscina. Essa adequação pode ocorrer, por exemplo, na
própria largada. Nos casos onde o atleta apresenta problemas de equilíbrio ele recebe o
auxílio de outra pessoa na plataforma de largada, podendo ser segurado pelos quadris,
mãos, ou outra parte do corpo. Esse tipo de necessidade deve ser explicitado no
grande comprometimento físico podem, por sua vez, fazer a largada dentro da piscina,
relacionadas aos nados. Nessa modalidade, como em outras pertencentes ao rol dos
Esta premissa, por sua vez, funda a necessidade de equalização dos atletas para que
que arquiteta e rege a igualdade competitiva, uma vez que, através do acionamento da
posterior equivalência. Na natação paraolímpica existe, então, uma distinção feita por
grau de deficiência e gênero, mas não existe a separação etária como acontece na
“natação convencional”.
condições de igualdade para competir, tendo por base os diferentes tipos e graus de
deficiência. Antes de tudo é importante esclarecer que nem sempre esse sistema se
chamou “classificação funcional”, pelo menos no que diz respeito à sua história dentro
Guttman acreditava que qualquer pessoa que utilizasse uma cadeira de rodas se
pudesse andar com ajuda de muletas, por ex.). No ano de 1956 passam a fazer parte dos
“classificação médica”, cujo objetivo era agrupar atletas com a mesma patologia dentro
num olhar médico que se centrava em características da patologia parecia não dar
maneira que uma série de discrepâncias entre os atletas foram sendo percebidas. Na
prática, havia capacidades motoras distintas que a classificação médica por patologias
mascarava. Sendo assim, esta classificação foi se mostrando incapaz de dar conta das
16
Alguns desses dados relacionados à história da classificação no esporte paraolímpico e, especialmente
na natação, foram obtidos na aula sobre Esporte Adaptado ministrada pela professora de Educação Física
Jacqueline Penafort para uma turma de Educação Física da Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(UERJ) no dia 21.01.2009.
64
médica” que separava os atletas por tipo de patologia, onde havia grupos de
que tinham o papel de nivelar os aspectos ligados à capacidade física. Tendo esses
criando, tendo em vista que as especificidades corporais que surgiam a partir desse
quadro mais geral eram inúmeras, o que fazia com que várias provas acabassem sendo
a ver em grande parte com o próprio crescimento do movimento, que ao longo do tempo
passava a contar com novas associações que surgiam para representar cada tipo de
experimentar uma classificação modulada pela capacidade motora de cada atleta. Essas
ano de 1990 foi a vez do atletismo adotar a “classificação funcional” que passou a ser o
sistema oficial para as três associações anteriormente citadas apenas dois anos depois. É
presente, andam juntas com as mudanças no esporte paraolímpico como um todo. Além
disso, essas mudanças não são demarcadas apenas por aspectos técnicos, mas também
65
por questões organizacionais e políticas. Não é por um mero acaso que no ano de 1989
foi criado o IPC, entidade congregadora que se alinhava com uma proposta de
aproximação das deficiências, da mesma forma como era assinalada uma nova
base de sustentação do novo método de avaliação dos atletas, incluindo um olhar mais
estava mais focado nas limitações motoras, mas no chamado “potencial residual” do
fragmento acima nos insere num campo semântico que informa sobre as possibilidades
dentro de seu horizonte, tenta isolá-la por uma série de medições, a fim de aferir o que,
fora dela e para além dela, faz com que cada atleta seja capaz de realizar movimentos. É
17
Esse dado foi obtido na aula sobre Esporte Adaptado ministrada pela professora de Educação Física
Jacqueline Penafort ministrada para o curso de Educação Física da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (UERJ) no dia 21.01.2009.
18
Como mencionado anteriormente na Introdução, esse texto se intitula “Classificação funcional” e foi
extraído do sítio da ABRADECAR na internet.
66
Para cada teste relacionado à coordenação motora, locomoção, propulsão, bem como
para a medição de cada membro, é realizada uma codificação matemática, que posiciona
cada atleta em classes específicas, tendo por finalidade estabelecer uma medida comum
que faça com que todos possam competir nas mesmas condições de igualdade.
atletas com deficiência visual20. A letra “S” refere-se à palavra swimming e quanto
deficiência. O meu trabalho de campo abarcou somente os atletas com deficiência física
baixas” (de S1 a S5) e “classes altas” (de S6 a S10). A letra “S” engloba os nados livre,
costas e borboleta. Existem, ainda, as classificações feitas para o nado peito, que utiliza
a sigla SB (de breaststroke) e para o nado medley, que utiliza a sigla SM. Essa
musculares distintos. Como exemplo, um nadador poder ser classificado como S7, ao
mesmo tempo em que é um SB6 para o nado peito e SM6 para o medley. As variações
são possíveis entre estes três grupos, assim como o número da classe também pode
19
Para um maior entendimento sobre a diferença entre as classes consultar o Anexo 1.
20
Desde os Jogos de Sidney não existe mais a classe S14 para os deficientes mentais, tendo em vista os
problemas relacionados com esse grupo de atletas e que já foram citados no capítulo 1.
67
regionais ou nacionais atribui ao nadador uma classe que ainda é provisória. Somente
sempre um ou dois dias antes das disputas e acaba sendo uma etapa dentro do evento
aos quais chega um maior número de atletas iniciantes que nunca estiveram em uma
reservado para os atletas do próprio estado e o segundo para as equipes que vieram de
Havia entrado em contato por telefone e por correio eletrônico com as pessoas do CPB
que eram as responsáveis diretas pela classificação. Mesmo enviando mais detalhes da
pesquisa e a justificativa do trabalho que queria realizar, não obtive uma resposta oficial
achavam que não haveria nenhum empecilho para a minha participação. Resolvi
movimento onde em muitos momentos do trabalho de campo via que a burocracia mais
formal era menos importante do que os contatos conseguidos de uma maneira mais
pessoal. Ainda assim, pairava a dúvida sobre uma real dificuldade para realizar essa
68
nova investigação, tanto pelas polêmicas que suscita como pelo fato dos atletas se
encontrar imediatamente uma das pessoas responsáveis pela classificação com a qual já
tinha travado contato. Fiquei sabendo que ela estava no hotel que sediava os
forma, encontrei as classificadoras que já conhecia e não houve da parte delas e dos
outros profissionais nenhuma objeção com relação à minha presença. A única exigência
estudava e que continha uma explicação vaga sobre os fins da minha pesquisa. Os
processo, mas fotografias poderiam ser tiradas com a concordância do atleta. Disseram
que eu estaria livre para fazer as perguntas que fossem necessárias na medida em que as
seus atletas fossem analisados. A classificação só pode ser feita se a pessoa estiver
Entrei na sala onde havia cinco profissionais trabalhando e vi que a estrutura montada
primeira etapa os atletas passam por um tipo de exame clínico onde o classificador
21
O goniômetro é uma régua que mede o ângulo do movimento das articulações. Às vezes são feitos
testes de ângulo, outras vezes teste de força, ou os dois juntos, dependendo do caso.
69
observará os aspectos dos vários tipos de comprometimento físico, apoiado por uma
ficha onde são colocados vários dados que tem a ver com o histórico da deficiência e
com a maneira como ela se apresenta naquele momento. Com o intuito de realizar esse
mapeamento é feita uma breve entrevista com cada atleta. Dentre as perguntas iniciais
rodas e etc. O atleta assina um termo onde mostra concordância em ser submetido à
classificação. Posteriormente, ainda dentro da primeira etapa, são feitos testes que
buscam medir a força dos membros, extensão dos músculos, dentre outras coisas
relacionadas a uma visão clínica. Para cada item dos testes existe uma correspondência
clínica e outro na desportiva. Nas classificações feitas no Brasil não existe a exigência
da presença de um médico. A pessoa que analisa a parte clínica pode vir da área de
formação em Educação Física, mas deve, ao menos, ter conhecimento reconhecido pelo
22
Swimming Classification Manual, IPC Swimming, 2005.
70
IPC e pelo CPB na área de treinamento em natação. Na prática, a fronteira entre esses
saberes não está delimitada de forma tão categórica, logo, todos os classificadores
acabam discutindo juntos as etapas. Além disso, alguns casos eram resolvidos com
comprometimento motor está definido de forma mais direta dentro dos moldes do
Manual. Neste grupo está a maioria dos atletas com amputações e que passam somente
por uma avaliação clínica, onde os dois lados do corpo são medidos, assim como o
estipular a classe23 (fotos 11, 12 e 13). Os atletas que fazem parte do “perfil de classe”
não se submetem ao teste de água. Isso não ocorre com pessoas com paralisia cerebral e
23
Pode haver mais de uma amputação e, neste caso, todas as lesões são marcadas no formulário. Atletas
com má formação e até com outros tipos de deficiência podem fazer parte do “perfil de classe”, embora
não seja muito comum. Nos casos de nanismo também pode haver pessoas com um perfil bem definido.
O teste consiste basicamente na medição da altura, mas sendo detectado algum tipo de restrição muscular
ou articular é feito um teste mais completo, inclusive com avaliação na água.
71
Foto 11 Fotos 12 e 13
para que os dados clínicos que foram apontados inicialmente possam se confirmar ou
não. Cada atleta deve realizar todos os estilos que conhece e, ao menos, ser capaz de
realizar as provas que se propôs a competir no evento para que a sua classificação seja
corroborada. Para cada estilo os classificadores discutem o que a pessoa pode fazer –
de “inclassificável” para quem não sabe nadar o estilo que foi pedido e “inelegível” para
quem não perdeu a pontuação necessária no exame. Esse sistema se apoia em um estudo
clássico da natação que estabelece uma relação entre as partes do corpo e a capacidade
de propulsão ideal dentro d’água. Para cada uma dessas partes, existe uma pontuação
correspondente cuja soma total deve ser de 300 pontos. A partir deste número, os
em que está sendo avaliado. Um nadador da classe S10, por exemplo, deve perder no
para a prova de SB. Assim como pode ser inclassificável num estilo e classificável em
outro. Além de nadar os estilos, os atletas precisam flutuar de costas e de barriga para
que o corpo fica e também tomam nota sobre o tipo de saída que a pessoa realiza para
cada estilo.
algum tempo fica mais fácil estipular a sua classe. Às vezes, a pessoa pode nadar um
estilo, mas ainda sem técnica. Nesse caso, o nadador ainda não teria um conhecimento
mais profundo do seu corpo e do que pode fazer com ele. Existem também os casos em
que a pessoa nadava antes de se tornar deficiente, mas ainda não sabe praticar o esporte
de forma adaptada, o que torna a classificação igualmente difícil. Na opinião de uma das
classificadoras com quem converso esse tipo de nadador que ainda não está “adaptado”
nem deveria ser classificado. Mas o fato é que eles acabam classificando pelo menos
para o nado livre, por pressões vindas dos atletas, dos clubes e até do comitê.
Caso haja dúvidas, eles costumam “jogar” o atleta para uma classe acima da
qual eles imaginam que o mesmo faça parte. Os classificadores declaram que fazem isso
porque acabam forçando um treinamento mais pesado e também porque depois ficaria
mais cômodo para o atleta descer do que subir de classe. Ainda assim, existe a
possibilidade dos classificadores não conseguirem dirimir suas dúvidas, situação que os
uma classe, mas só terá o veredito final sobre a mesma ao término do evento. Por essa
pois mesmo que o nadador já tenha a sua classe estipulada oficialmente, ele é
analisando durante a competição com o intuito de corrigir possíveis erros que podem se
dar pela ausência de um olhar mais meticuloso nas primeiras etapas ou pela tentativa do
atleta em simular uma condição física que não condiz com aquilo que em tese ele teria
potencial para desenvolver. Essa etapa pode ser considerada um verdadeiro laboratório
de observação, sendo útil para discutir uma possível reclassificação, assim como para
funcionamento do sistema.
juntas para que exista a modalidade no esporte paraolímpico. Para que um atleta faça
parte dele deve estar dentro desse sistema e por ele ser regido. Nesse caso, de nada
adianta uma pessoa se considerar deficiente se, de acordo com a classificação funcional,
ela não perdeu pontos suficientes para que afetem o seu rendimento no desempenho da
chamou outros colegas para que pudessem fazer uma análise junto com ele. Pude ver
apontando para outras possíveis direções do exame. No final, o nadador ainda foi
considerado inelegível para todos os estilos. Tanto o atleta como o técnico não
angústia dos classificadores com esse tipo de situação. No caso desse rapaz, ele pode
74
oficial do comitê paraolímpico, pois estas competições não costumam seguir o modelo
padrão do IPC.
vão sendo decodificadas no sentido da construção de uma equivalência que conta com
atlético.
Em outro ponto desta tese discuto como os atletas trabalham com estas
distinções em seu cotidiano. Assim, ainda que o sistema pareça, à primeira vista, estar
bem fechado, parece existir sempre certo grau de instabilidade. Uma primeira razão para
isso tem a ver com a própria dinâmica de reelaboração dessa classificação, que está
passagem do modelo médico para o funcional, mas que nem por isso impedem que
no meu trabalho de campo, onde pude perceber que ela é um dos principais assuntos
discutidos. De qualquer forma, no meu convívio com os atletas ficava claro que, ainda
que eles dependam de sua adequação no sistema para competir, poucos pareciam
compreender o código. Mas, embora a “classificação funcional” não seja dominada pela
maioria dos atletas, ela é constantemente avaliada por eles mesmos por meio de uma
são evocadas questões do cotidiano e registros que possuem a marca das experiências
sondar as proposições de outros agentes como técnicos de natação, além dos próprios
classificadores. Optando por colocar em relação vários discursos acredito ter construído
como um instrumento de grande poder neste meio. Em uma das entrevistas ela é
considerada “obscura” por um dos nadadores da seleção, embora hoje pareça ser algo
muito mais aberto do que foi no passado. Apesar de concordar que houve mudanças, ele
afirma categórico que os classificadores “mandam no esporte”. Ele explica que além das
classificação e que nenhuma competição pode ocorrer sem que haja um representante da
mesma. Considero importante deixar claro que em nenhum momento da nossa conversa
o atleta atribuiu o mesmo poder para os juízes que na competição também são presenças
mesmo atleta sugere, ainda, que a classificação serve para refletirmos sobre a relação de
poder entre os países tendo em vista que até hoje houve poucos classificadores
parece que as grandes potências do esporte detêm em suas mãos a decisão sobre quem é
habilitado a classificar. Então, na opinião desse atleta, seria imperativo haver mais
classificadores internacionais para que o poder fosse melhor dividido. Além disso, ele
ressalta a necessidade de haver um maior peso para exames clínicos que sejam
exame, vista pela maioria com a única forma correta de realizar uma classificação justa.
Comentei com um dos atletas que a classificação parece ser um assunto polêmico e ele a
definiu “como a marcação de um pênalti”, onde uns dizem que foi e outros dizem que
não. Ela seria, então, algo duvidoso, pois ao mesmo tempo em que parece se basear em
Pergunto se na sua concepção seria possível um exame puramente objetivo e ele afirma
Ainda que não haja necessidade de se mudar tudo, alguns atletas acreditam
que os critérios precisam ficar mais claros e objetivos para todos, do que dependeria a
24
Exames como esses também seriam capazes de mostrar o alcance da lesão, como na
eletroneuromiografia.
77
disse que “o atleta não pode ficar todo a mercê do profissional que tá avaliando” e
complementou afirmando que outros testes não seriam aplicados por ser mais fácil
avaliar a pessoa em trinta minutos do que perder mais tempo para entender o seu real
comprometimento. Ele julga que os nadadores querem apenas ter a certeza de que
“competem com seus iguais”. Porém, acho significativo comentar que ao tratarmos da
modelo como sendo uma oportunidade para os atletas que não têm conseguido
participar das competições de alto nível por falta de provas. Esse tipo de declaração
classificação como portadora da efetiva equalização. Mas aqui está colocado apenas um
divisão por classes replicam na própria forma como os atletas reconhecem “seus iguais”
o atual sistema um atleta diz que o considera claro, “mas só que os atletas hoje estão
forma direta se seria possível simular nos testes e ele respondeu: “Dá. É possível sim.
Por isso que justamente existe não só uma classificação. Você compete uma vez, fica
em observação, até você realmente conseguir uma resposta do que você realmente é”.25
25
Ele parece estar se referindo à classificação provisória e à classificação permanente. A primeira o
nadador recebe em competições regionais ou nacionais. A classificação permanente só é obtida depois
que ele é avaliado em alguma competição internacional.
78
Outro atleta é mais categórico ao afirmar que muitas pessoas tentam simular
ele, tal atitude pode ser uma das causas das discrepâncias existentes entre a classificação
mais experientes e preparados. Para evitar esse tipo de problema uma nadadora sustenta
que todo atleta deveria passar por uma reclassificação, porque quando ele vai para uma
competição é uma coisa e depois que passa a ser bem treinado pode virar outra. Ela
afirma que muitos atletas que melhoram, inclusive a sua condição física, tentam
esconder isso, muitas vezes com a conivência dos técnicos como disse já ter visto em
burlar o sistema, mas todos falam que, no mínimo, existem as tentativas. Mas a
fragilidade das simulações parece ficar mais visível nos momentos de observação na
competição, onde o atleta provavelmente deverá mostrar todo o seu potencial físico para
como afirma um dos nadadores, “na prova a pessoa mostra quem ela é”. Dessa forma,
segundo outro atleta, “ninguém é tão bom para poder ludibriar o sistema”, pelo menos
razão de muitos desses desentendimentos tem a ver com as tentativas de simulação nos
testes, “porque tem o atleta que esconde o jogo na hora de classificar”, mas os
classificadores podem colocá-lo numa classe acima como uma forma de punição. Aqui
parece haver uma tentativa de agenciamento da deficiência por parte dos atletas como
um meio para conseguir estar na classe que considera mais satisfatória. Mas, da mesma
79
Podemos encontrar discursos daqueles que se acham injustiçados dentro das disputas,
apesar dos testes e suas subsequentes codificações não trazerem, a princípio, dúvidas a
respeito da classe na qual se insere o atleta. A maioria dos atletas informantes declara
compreendê-lo um pouco mais quando estão envolvidos com polêmicas em torno de sua
ter mais conhecimento sobre o assunto eram justamente aqueles que estavam envolvidos
em algum tipo de contenda com relação à sua própria classe. Um interesse similar
também era demonstrado por aqueles que diziam ter uma suposta questão a ser
resolvida sobre isso, mesmo que o caso estivesse no plano da suposição, não figurando
diversas nuances. Esse tema que parece ser importante para todos – o que não se
considerado dessa forma por razões que podem ser diferenciadas e que dizem respeito
vários recordes na sua classe e de alguns patrocínios – sobre o nível de interesse dos
26
Apoiando-me em Bourdieu (1998: 91), penso que mesmo que a “classificação funcional” não seja
dominada por muitos atletas nos seus termos formais, isso não anula a sua força, como se depreende da
seguinte passagem: “A especificidade do discurso de autoridade (curso, sermão, etc.) reside no fato de
que não basta que ele seja compreendido (em alguns casos, ele pode inclusive não ser compreendido sem
perder seu poder), é preciso que ele seja reconhecido enquanto tal para que possa exercer seu efeito
próprio.
80
momento em que dói o bolso”. Peço para que explique melhor e ele complementa:
interesse deles ele me diz que eles procuram saber “o suficiente pra querer baixar a
classe dos atletas”. Depois segue afirmando que as pessoas só querem saber dos seus
próprios atletas e se aparece alguém novo que começa a disputar com ele, o técnico
monitorar o outro atleta pra ver se ele não está classificado incorretamente. Isso parece
ser corroborado pela opinião de uma classificadora funcional sobre o mesmo tema:
Já num encontro que tive com um dos técnicos da seleção ele apresentou um
tom mais formal para o assunto e disse que eles precisariam entender como são os
81
procedimentos, como é o processo e que tipo de avaliação o atleta sofre, além de já ter o
reclassificação”. Com relação aos atletas, ele acredita que a maioria não tem
conhecimento sobre o assunto e fica apenas com aquilo que o técnico fala.
Foi a partir dessa entrevista que comecei a pensar e questionar junto aos
classificação funcional para além do manual do IPC que já havia sido mencionado
várias vezes. Todas as pessoas com as quais eu conversava diziam que não havia
nenhum material dessa natureza ou, pelo menos, nunca tinham ouvido falar sobre ele.
que as informações sobre o sistema estão presentes quase que exclusivamente nos
manuais oficiais. Ouvi de uma classificadora que “o sistema de classificação tem que
ser mais aberto para o conhecimento geral”. Mas ela também me informou que existem
palestras que são dadas nos circuitos27, mas que “o público é irrisório, é de meia-dúzia,
quando num circuito tem um monte de gente. E o negócio é aberto para todos que estão
lá. É realmente uma coisa complicada de entender, mas falta interesse também. (...) A
maioria não quer saber mesmo, por ignorância talvez”. Ela também concordou que a
de formação dos profissionais que atuarão na área. Hoje para fazer o curso internacional
a pessoa necessita entrar com uma solicitação junto ao comitê internacional para depois
ser escolhida. Alguns classificadores internacionais decidem sobre quem pode fazer o
curso28. Logo, em sua opinião, essa não seria uma formação aberta a todos, pois não
27
Pelo menos no circuito no qual estive presente não vi nenhum tipo de programação nesse sentido.
28
O curso para formação de classificadores é gerenciado pelo IPC.
82
“descida de classe” de outro atleta considerado forte para a categoria na qual ele se já
encontrava também é vista como um grande problema, na medida em que aquele que é
novato na classe pode se tornar um adversário muito difícil de ser vencido. Esse temor
está presente não apenas entre aqueles que estão iniciando no esporte, mas também entre
costumam chamar.
aos princípios de equalização e justiça que ele evoca. Mas é interessante enfatizar que
tais princípios podem ser relativizados em função do lugar que a pessoa ocupa em
determinado momento. Assim, para um atleta que começou numa classe mais alta e
depois desceu a resposta é de satisfação com a posição que ocupa. Na sua concepção ele
competições, mesmo nos momentos em que as pessoas estão concentradas para nadar,
elas costumam comentar que ele não é da classe, o que o leva a ficar quieto para evitar
que a discussão se desenvolva. Outro atleta, agora da classe S6, mas que já passou por
três classes, fala que quando ficou na S5 “não teve culpa” e achava aquilo tão bom que
não queria mudar. Interessante perceber como, ao recorrer a essa expressão, o atleta
83
parece ter consciência de que poderia haver um erro em sua classificação, mas que nesse
caso e em outros semelhantes, nunca vi ser tomado como uma falha por parte daquele
que estaria numa posição beneficiada em relação aos seus concorrentes. Depois, na
mesma entrevista, ele conta que subiu mais uma classe, mas quando chegou na S7 não
sugere que a equanimidade na competição não estaria dada para o grupo como um todo,
mas apenas para uma pessoa. O desejo por “descer de classe” está presente, inclusive,
entre aqueles que já passaram por reavaliações que os posicionaram em classes abaixo
das quais competiam. Tive contato com dois nadadores com larga experiência na
seleção brasileira que exemplificam bem essa situação. Um deles declara que nunca
esteve satisfeito com a sua classe, mas apenas “conformado”. Ele teria tentado entrar
com recursos para mudar novamente por achar que havia uma concorrência desleal com
mas o fato é que “acabou cansando” de tentar tal mudança. O outro nadador, que
sobre a força física de uma nova geração de atletas que hoje está na classe que ele faz
parte, mas aponta um problema de perda de massa corporal como a causa da queda do
seu rendimento. Ele também não conseguiu uma nova reclassificação para baixo e diz:
“Resolvi ficar quieto. Vai que eles resolvem aumentar a minha classe?”.
84
dos treinadores – é dado pelos resultados das competições e não apenas em função do
que efetivamente estaria correto nas análises sobre o comprometimento físico motor dos
indivíduos. Mesmo que exista uma maneira formal de decidir sobre o posicionamento
do nadador, “estar na classe correta” ou “estar na classe errada” são afirmações que
podem ser construídas de diferentes formas e que dependem do agente que as enuncia e
comunicação, pois quem convoca poderia conversar antes com os classificadores e tirar
as dúvidas sobre algo questionável com relação à classificação, entre outras coisas.
Segundo ela, nem tudo o classificador pode “pegar” até porque não teria conhecimento
da técnica desse atleta que está sendo classificado pela primeira vez, além do fato de
Pesquisadora: O que pensa sobre o nível profissional das pessoas que hoje
trabalham com natação?
Classificadora: Melhorou, mas ainda falta muito conhecimento. Entre os
técnicos isso fica bem claro. Ele chega com um atleta para classificar, mas
não tem nem noção de como aquilo funciona. Os classificadores dizem, por
85
exemplo, que o atleta é S6, mas o técnico diz que o treinou sempre como S5
e isso não está certo. Ele deve ser treinado como um atleta independente da
classe. Existe muito treino errado e que tem a ver também com o
desconhecimento da patologia. (...) Falta juntar os conhecimentos.
Geralmente a pessoa ou sabe muito de natação ou conhece muito de
deficiência. Dificilmente a pessoa se propõe a conhecer os dois.
Pesquisadora: Mas os técnicos também dizem que os classificadores têm um
grau de desconhecimento.
Classificadora: Realmente tem um pouco de desconhecimento mesmo, mas
por outro lado existe uma limitação. Atletas chegam sem base técnica. Mas
aí a pessoa chega para a competição e tem que ser classificada de qualquer
jeito. Então, dificilmente essa pessoa vai ter uma classificação correta. Os
atletas têm que passar por revisões de classificação... Muitos atletas chegam
em competições internacionais dizendo que o classificador não entende do
assunto. Mas como? O atleta é que chega querendo forçar a barra de que
pertence a uma classe sem também ter o conhecimento do assunto. Muitos
técnicos colocam na cabeça do atleta que ele é de determinada classe, antes
mesmo dele ter sido avaliado. Aí depois eles dizem que o classificador
acabou com a vida profissional deles.... Muitas vezes o atleta começa
achando que treina muito, mas ainda não tem noção de que o que faz não é
um trabalho de alto rendimento.
processos de classificação e aos seus resultados. Elas traziam à tona questões que
classificatórias. Mas, ainda que houvesse o registro por parte dos informantes da
mas que obedeça em primeiro lugar ao padrão que constitui e rege o sistema. É dessa
forma que pude constatar que a maioria dos argumentos utilizados para ataque ou defesa
corporais. Seguindo o caminho proposto por Boltanski e Thévenot (1991), podemos nos
interrogar sobre que exigências e condições devem ser preenchidas para que uma
86
compreensão de uma gramática e entender que princípios definem o que será valorado e
“instrumento importante”, mas quando sugeri uma possível relação disso com o poder
então, ao papel que cada um dos agentes pode desempenhar em embates relacionados à
pessoais com o objeto em questão. Para nos aprofundarmos nesse debate é necessário
classificação funcional.
opinião parte também dos nadadores e técnicos. Para termos uma ideia da complexidade
S8. As dúvidas com relação aos sequelados de pólio são bem comuns na classificação
possuem atletas com este tipo de deficiência e, portanto, lidam muito pouco com o
técnica, que tem relação com o nível de produção de conhecimento sobre isso, os outros
88
com atletas que nadam na mesma classe. Sendo assim, não é difícil ouvir de atletas com
sequelas de pólio que eles têm mais dificuldades que os paralisados cerebrais - que
seriam mais fortes em termos físicos – e que se não conseguem chegar a alguns
resultados é porque existe uma discrepância a priori que é difícil de ser resolvida, apesar
de todos os esforços dos classificadores. Por outro lado, tanto “pólios” como “PC´s”29
que embora estes últimos não tenham alguns membros completos, são “beneficiados”
por não terem o mesmo “arrasto”30 e que “tudo o que eles têm trabalha a seu favor”.
pequeno, como acontece com os atletas da classe S10. Nesse caso, trata-se de pessoas
que estão na fronteira entre deficiência e não deficiência. No meu trabalho de campo
levantei dados sobre um caso em que essa situação limítrofe levou a inelegibilidade (ao
menos por um período) de um atleta que depois passou a fazer parte da seleção
ter contato com a classificadora nacional que acompanhou o caso e realizou uma série
de estudos junto ao atleta para que a equipe brasileira conseguisse realizar a sua defesa
junto ao IPC. Em seu depoimento essa profissional foi enfática ao falar da importância
da presença do classificador nesse processo, tendo em vista que a defesa do atleta para
que ele continuasse como S10 (e como nadador paraolímpico!) teria que seguir uma
linguagem específica. Aqui, mais uma vez, voltamos à questão do tipo de qualificação
29
Maneira usual no meio de tratar pessoas com sequelas de poliomielite e paralisados cerebrais,
respectivamente.
30
Sobrepeso que o atleta carrega durante o nado e que dificulta sua flutuabilidade e deslocamento na
água.
89
apareceu expresso numa das falas da mesma classificadora responsável pela defesa
citada anteriormente:
complicada tendo em vista que se ele não fosse classificado como S10 estaria fora do
esporte. Ele acrescentou ainda, que treinou muito tempo com os olímpicos, mas nunca
conseguiria ir para uma grande competição porque possui uma deficiência física que o
desfavorece frente aos outros. Assim como ele viu nas Paraolimpíadas de Atenas atletas
com pouca deficiência nadando e foi inspirado por isso, acreditou que a sua batalha para
que os agentes saibam carregá-las de um conteúdo generalizante que não diga respeito
somente a casos particulares, mas a direitos mais gerais que devem ser respeitados (Cf.
Boltanski e Thévenot, op.cit.). Para uma melhor compreensão dessa questão relato um
movimento paraolímpico.
“borderline”, o atleta da seleção brasileira foi deslocado para uma classe superior àquela
em que competia nos Jogos de Pequim, passando de S4 para S5. Tal mudança foi
questionada pelo nadador que, juntamente com seus advogados e sua assessoria de
reclassificação não haviam sido respeitadas e que se algo não fosse feito, outros atletas
poderiam passar pelo mesmo problema. O questionamento, então, não era só de mérito,
É possível dizer que essa história possui diversos capítulos que - para não
citar toda a carreira do atleta - remontam pelo menos há quatro anos e às competições
que ocorreram neste mesmo período. Penso ter acompanhado no meu trabalho de campo
foram precedidos por diversos questionamentos que explicitavam outro aspecto que até
então não tinha aparecido para mim de forma tão incisiva: o caráter político da
classificação.
Na entrevista realizada com o atleta em questão ele conta que desde o ano de
1998, quando começou sua carreira, foi classificado como S4, posição que teria sido
classificadores começando a ter dúvidas sobre sua alocação a partir de 2000, ele
91
continuou na mesma classe depois de passar por mais testes e análises. Em sua opinião,
foi a partir das Paraolimpíadas de Atenas que ele começou a “incomodar”31 os outros
Espanha e subiu de classe. Essa situação foi revertida a tempo dele participar no ano
seguinte do Parapanamericano do Rio de Janeiro como S4. Mas no ano de 2008, antes
dos Jogos de Pequim, “foi protestado” novamente. Segundo ele, o erro de procedimento
estava no fato dele não poder “ser mexido” tendo em vista que já tinha conseguido
cima do rendimento e não pela deficiência que eles apresentam. Essa preocupação em
seleção que obteve grande êxito nos Jogos de Pequim. Isso fica claro em certo ponto da
entrevista:
31
É interessante como essa mesma expressão surgiu na fala de outros informantes que opinavam sobre
esse caso.
32
“Receber protesto” significa ter a classificação sob questionamento. O protesto só pode ser feito por um
país e a resolução do caso ocorre sempre durante uma competição internacional.
92
similares em sua entrevista. Ele defende uma mudança na avaliação, mas que não
poderia ser feita de uma hora para outra e nem apenas em cima de uma pessoa apenas.
técnicos e científicos. Mas, pelo menos no que diz respeito às polêmicas em torno desse
dentro do comitê e com a corrida dos países por medalhas. No depoimento de outro
muitas questões políticas envolvidas”. Segundo ele, um desafio para o Brasil seria
muito com o país sendo mais respeitado pelo resultado que mostra e pelo seu grau de
profissionalismo.
Considero tanto esse caso etnográfico quanto o do atleta S10 como exemplos
interessantes no sentido de olharmos para as diferentes versões dos atores que entram
valor nesta análise, na medida em que ressaltam a importância de uma metodologia que
nos faça olhar para todos os eventos e protagonistas que estão em jogo num processo,
tentado evitar a eleição de uma vítima a priori, que ficaria sozinha no foco da
interpretação. Cada caso possui seus próprios protagonistas, onde estão em jogo não
apenas ações racionais, mas também os sentimentos dos atores envolvidos nos eventos.
relações de equivalência. Mas os acordos que se constroem a partir daí não são
crise, desequilíbrio e disputa. Assumindo essa perspectiva podemos ver acordo e crítica
como momentos ligados num mesmo curso da ação. De qualquer forma, aquele que
denuncia tem o papel de mobilizar pessoas em torno de sua causa e convencê-las de sua
legitimidade e de que o que diz é verdade, como foi possível perceber nos casos
etnográficos que foram destacados. Tudo isso inclui investigar o gênero de argumentos
que são acionados e as provas que são utilizadas no sentido de valorar tudo aquilo que
pode ser considerado aceitável, normal e lícito. Esse suporte teórico-metodológico nos
matemático – pode ser apropriada e lida de diferentes formas, inclusive como arma que
natação paraolímpica. Tento alcançar aqui alguns dados de caráter mais subjetivo
discursos dos atletas e de outros agentes ligados à natação paraolímpica. Além disso,
deficiência congênita ou adquirida nos primeiros meses ou anos de vida. Poucos são
sequelas de poliomielite sejam mais recorrentes. Essa última se concentra naqueles que
estão na faixa etária que vai dos 30 aos 40 anos de idade. Isso parece estar em
consonância com vários relatos por parte de informantes sobre a existência de surtos de
que tipo de deficiência física a pessoa teria, mas como o próprio histórico desta mesma
que foi abarcado em larga medida por várias questões presentes no meu roteiro de
deixa de ser também o histórico da pessoa – ouvia com recorrência a idéia de que os
a sua condição.
Goffman afirma, ainda, que a primeira fase deste processo estaria marcada
mais ampla, para posteriormente o indivíduo entender por sua própria experiência o que
ampla e se depararam com os padrões que ela impõe. No segundo modelo encontram-se
De qualquer forma, mais cedo ou mais tarde, esse indivíduo estigmatizado passará por
que pode ser exemplificado com o início da vida escolar. No terceiro modelo temos
aqueles que se tornam estigmatizados depois de passarem por uma longa experiência
como “normais”. Com esta exposição não pretendo promover um ajustamento dessa
teoria com os dados do campo. Como veremos, os modelos de “carreira moral” não dão
alguns casos eles servem como um mapeamento inicial, mas que se desdobram em
deficiência muito cedo ou que nasceram com ela, como aparece em algumas histórias
que seguem. Uma delas é de uma atleta que possui uma deficiência hereditária e
degenerativa que começou a se manifestar aos três anos de idade. Ela andou até mais ou
menos os doze anos, momento em que acabou precisando fazer uso da cadeira de rodas.
Ela conta que “tudo foi muito natural” e que não teria havido o momento “eu sou
deficiente”. Juntamente com a sua família ela foi tendo um conhecimento prévio das
33
Só explicito os 3 primeiros modelos por terem uma relação mais direta com o meu trabalho.
98
acha que teve uma oportunidade de se adaptar sem que se sentisse limitada.
congênita, que mesmo não tendo desenvolvido completamente os braços e uma das
pernas, sempre foi deixado livre por sua família para experimentar as possibilidades do
seu corpo. Segundo ele, o fato de nunca ter ouvido dos seus pais a frase “você não
pode”, teria sido crucial para que ele lidasse de uma forma mais natural com suas
limitações físicas. Outro atleta que teve os membros inferiores afetados por uma seqüela
de meningite por volta de um ano de idade conta que não sabe o que é correr ou andar
normal porque não tem um registro corporal do que seria a dita “normalidade”.
Fica claro que no caso das pessoas com deficiência física está em jogo
necessariamente uma discussão sobre padrões corporais. Para aqueles que nunca
andaram, por exemplo, não haveria uma consciência motora, sensitiva e emocional de
como é se movimentar no espaço com duas pernas. Não existiriam duas referências a
de um dos atletas que se tornou deficiente físico aos 31 anos de idade é emblemático.
Em sua entrevista ele conta que tinha uma vida bastante ativa e que era praticante de
vários esportes. Depois do acidente de carro que o deixou com tetraparesia 34, diz que
“começou tudo novamente”, tendo em vista a mudança radical que ocorreu em sua vida.
Ele relata que seu processo de aceitação e adaptação foi muito difícil, situação que o
teria levado a sofrer de uma grande depressão durante mais ou menos um ano, período
esse em que ficou sem ter contato com a maioria das pessoas e sem querer sair da cama.
34
Neste caso, a paralisia afeta nervos ou músculos dos membros inferiores e superiores, mas é
incompleta, ou seja, não compromete totalmente a sensibilidade e o movimento. É justamente essa
funcionalidade residual que será trabalhada para a aprendizagem dos estilos adaptados da natação.
99
Por outro lado, ele conta também que o apoio da família e de amigos foi crucial para
que ele “saísse do buraco”. Ao discorrer sobre suas dificuldades com a deficiência
física, ressalta sobre o quanto era ativo anteriormente, tanto em termos sociais como
profissionais, o que parecia incompatível com a imagem que possuía sobre uma pessoa
com deficiência.
Através do relato de outro atleta, que sofreu uma lesão na coluna aos 17 anos
época dão conta de um momento onde diz ter se sentido bastante perdido e confuso,
principalmente por ter sido levado para um hospital onde não havia tratamento
especializado para lesão medular e onde ficou chocado quando ouviu dos próprios
médicos e enfermeiros que “nunca mais seria homem e nunca mais andaria”.
Posteriormente, pôde ser transferido para um hospital especializado e fazer uma cirurgia
que, segundo os novos médicos, poderia garantir que ele voltasse a andar futuramente
com a ajuda de muletas. Ele também conta que teve uma grande dificuldade de se
aceitar enquanto deficiente físico, andando de calça comprida para que ninguém olhasse
a sua perna, pois sentia vergonha do próprio corpo. Neste caso, aproprio-me das
nestes casos, ela também está presente nas trajetórias de pessoas que nasceram com
a poliomielite aos três meses de idade e que fala de suas dificuldades, principalmente no
100
período da adolescência, em aceitar o seu corpo e sua limitação motora ainda que ela
fosse branda. Parece que nesses casos podemos falar de uma característica em comum
nas trajetórias de vida desses atletas que pode ter contribuído para a forma como
comprometimento físico.
Essa temática que trata do peso que o tipo de trauma físico e o momento em
que ele ocorre teriam na construção da pessoa com deficiência também foi colocada nas
Mas logo depois pondera dizendo que esta questão depende mesmo é da
entrevistadas acredita que tudo aquilo com o qual uma pessoa lida desde cedo, torna-se
mais fácil porque elas não se conheceram de outra forma. No caso de uma deficiência
física, a pessoa teria uma potência física específica e aos poucos iria ampliando o seu
repertório dentro dos próprios limites de sua corporalidade. Quando uma pessoa “se
torna” deficiente ela necessariamente irá comparar sua atual condição com aquilo que
“corpo diferente” por parte daqueles que “se tornaram” deficientes, ela ressalta que isso
101
não delimita tudo, ao contrário, se junta a outras questões como o conceito que a pessoa
tem sobre deficiência e o meio em que ela vive. Dessa forma, percebi que o diálogo
era atravessado por uma série de variáveis onde a frase “depende de cada pessoa” surgia
muitas vezes para dar a tônica dessa complexidade, colocando em xeque qualquer tipo
Ao falar sobre esse mesmo assunto com outra classificadora, vejo novamente
pontos de relativização em relação ao debate. Ela acredita que ainda que uma pessoa
com deficiência congênita conheça a deficiência desde cedo, ela pode assim mesmo ter
grandes dificuldades de lidar com a sua condição se o seu comprometimento físico for
muito grande. Segundo ela, uma pessoa nessa situação sempre foi considerada como
“diferente” e não deixaria de se questionar sobre as coisas que poderia fazer, desejando,
inclusive, de forma áspera e revoltada, estar na condição de uma pessoa sem deficiência.
Mas ela alerta que a revolta também pode partir de uma pessoa com uma deficiência
adquirida. Ela pode ou não querer mudar de atitude num momento posterior,
da pessoa”, sua vontade e sua personalidade. Aqui aparece claro o peso das
subjetividades na maneira como a pessoa irá lidar com a sua deficiência corporal. Mas
uma vez destacado o fato de que estamos tratando de seres humanos únicos, não deve
estar no mundo” ser sempre original para cada indivíduo, devemos lembrar que certo
partilhados com outros indivíduos. Parte desses dados remete à esfera do cotidiano e da
vida prática e material, onde a família e as relações que se constituem sob o seu domínio
Não é necessário discorrer aqui sobre o peso que o tema da família possui no
campo da Antropologia. Nesta tese ela não se apresenta como um grande tópico
sociabilidade. Para os objetivos deste trabalho interessa olhar a família como uma
o adquirem muito cedo tendem a lidar melhor com a deficiência, este dado sempre
pessoas que conheceram a deficiência muito cedo, nos primeiros meses ou anos de vida.
dos mais leves aos mais severos, onde a utilização da cadeira de rodas passa a ser uma
depoimento de um atleta que foi diagnosticado com poliomielite aos nove meses de
idade. No seu relato ele relembrou todas as dificuldades pelas quais a sua família passou
para que ele pudesse receber tratamento, pintando um quadro que me possibilitou ter
uma visão mais ampla dos processos de adaptação, que inclui aqueles que orbitam ao
recursos financeiros e pouca instrução escolar, o que parece ser mais verdadeiro,
qualidade de vida, de forma que as mudanças – ainda que possam ser feitas por etapas –
sobre a deficiência passa a ser uma tarefa não só de uma pessoa, mas de todo um grupo
familiar. Aqui, estou falando de um aprendizado que é adquirido a partir do contato com
círculos mais amplos. De qualquer forma, é a própria família que fornece os dados
um membro da sociedade. Neste período, existiria uma forte assimilação por parte da
criança das perspectivas daqueles com quem ela convive e do mundo ao redor destas
pessoas. Esse seria um processo cognoscitivo, mas também emotivo, e é nesse duplo
mundo que os acompanha. Neste mesmo período são disponibilizadas para o indivíduo
104
as primeiras informações sobre o desempenho de alguns papéis que, por sua vez,
deficiência seja a tônica dos depoimentos, ela pode ser amenizada e até positivada pelo
assentimento por parte dos atletas de que os pais ou familiares mais próximos teriam
tido a iniciativa de procurar apoio e informações sobre o assunto. Para um atleta que
passou a ser deficiente ainda na adolescência, seu testemunho é bastante revelador dessa
intercessão familiar. Ele conta que não foi nada fácil enfrentar a nova situação, pois não
teve o apoio de amigos que teriam se afastado e se aproximavam dele com o “olhar de
piedade”35. Ele resolveu, então, que não aceitaria mais aquelas visitas e destaca que, por
outro lado, teve o amplo apoio de sua mãe, irmãos e esposa. Ele afirma que muitas
pessoas que conhecem uma pessoa sem deficiência e depois a vêem em outra situação
têm muita dificuldade de lidar com a nova imagem do outro. Segundo ele, “elas querem
ver uma pessoa sã”, mas agora precisam se confrontar com aquele que já não possui as
surge outro fator interessante que tem a ver com dados de uma sociabilidade mais ampla
e coletiva. No seu relato são ressaltados os benefícios de ter vivido sua infância e
adolescência numa cidade pequena, onde teve a oportunidade de conviver com o mesmo
grupo de pessoas durante muito tempo de sua vida. Ainda que tenha sido objeto de
grande curiosidade por parte da vizinhança nos primeiros meses de vida - tendo em
vista a sua especificidade corporal – ele afirma não ter tido nenhum problema em
termos de socialização. Ele acredita que há muitos casos nos centros urbanos onde a
pessoa fica trancada dentro de casa. No caso dele, “ia sozinho para os lugares. Não se
sentia preso, nem incapaz. Sempre brincou junto com todos, nadava com eles...”. Ele
35
Esse tema específico da piedade será melhor abordado no capítulo 4.
105
conta que entrou com certo atraso na escola, não porque a família quisesse escondê-lo,
mas porque tinham cuidados para apresentá-lo a esse novo mundo. A sua própria tia foi
diferente”. Ele relata que a princípio a sua entrada na escola causou grande impacto nas
crianças. Mas a liberdade para experimentar esteve presente também nesse ambiente.
Ele desenvolveu uma habilidade própria para segurar o lápis e escrever, sem que
houvesse a interferência de outra pessoa. Ele considera que os seus pais foram muito
felizes em não tentar impor nenhum método para ele. Diferentemente da maioria dos
atletas esse nadador pertence à classe média. É ele mesmo que aponta esse dado como
um dos fatores que o teria beneficiado no seu desenvolvimento. Foi com o uso da
prótese que começou a andar aos três anos de idade. Em razão do seu crescimento ela
precisava ser trocada ao menos uma vez por ano. Pertencer a uma família de classe
média permitiu que ele pudesse ter acesso a esse recurso sem necessitar esperar para ter
uma de graça.
maior com os meus informantes, pude observar que outros pontos para além da questão
uma marca constante nos relatos, situação que também engloba aquelas pessoas com
que declaram ter se arrastado em algum momento de suas vidas, usando geralmente o
apoio das mãos e dos joelhos, na posição que eles costumam denominar de
“cachorrinho”36, onde a pessoa constrói um tipo de mobilidade que não deixa de ter uma
36
Esta posição está geralmente associada ao fato das pessoas terem as suas pernas dobradas e cruzadas.
106
estiramento dos membros inferiores que consistia na introdução de uma espécie de ferro
nas pernas (realizado cirurgicamente) que depois passavam a sustentar sacos de areia
para que todos os tendões comprometidos pudessem ficar esticados. Depois dessa
intervenção não demorou muito para que as pernas voltassem a encolher e tudo voltasse
à estaca zero. Só posteriormente pôde fazer outra cirurgia num hospital especializado e
hospitais e centros de reabilitação, revelando mais uma situação onde a família costuma
ser mobilizada. Outro ponto interessante a ser destacado dessas histórias é que no
são supervalorizadas, e por vezes estão associadas nas falas de médicos a outros tipos de
deficiência que não foram comprovadas. Sendo assim, não é raro encontrar casos em
caráter intelectual. Aliás, muitos informantes revelam que nos seus contatos sociais
cotidianos se deparam com pessoas que olham para a deficiência física e fazem uma
associação com uma deficiência mental, chegando ao ponto de serem ignorados por
maioria dos atletas que eu estava conhecendo e que faziam parte da seleção brasileira
37
Andar com o auxilio de bengalas. Encontramos o termo “muletar” no caso do uso de muletas.
107
havia começado a nadar visando à reabilitação motora. Nas histórias que eu ia ouvindo
parecia haver um roteiro que se repetia, onde quase invariavelmente estava presente a
figura do médico, profissional que teria levado em primeiro lugar o conhecimento sobre
a deficiência para o paciente em questão e para sua família. Tanto nos casos de
minha pesquisa ouvia os atletas e o pessoal da área técnica falarem da maneira como o
meio líquido permitia uma mobilidade e eficiência motora para o corpo da pessoa com
deficiência física que não seria possível na interação com outro meio38.
sociabilidade. Isso não constitui uma regra para a entrada no mundo do esporte, mas
como ferramenta para esse fim. Nesse momento surge uma oportunidade para que a
deficiência possa ser interpretada por outros ângulos. Esse processo comporta mudanças
seio familiar, embora esse ambiente seja geralmente o ponto de partida para a mutação
que está em jogo. Este momento da vida do atleta pode, então, ser comparado ao que
setores do mundo objetivo de sua sociedade” (1973:175). Nesse sentido, não podemos
desprezar o peso de outras instituições como a escola e igreja, embora nesse trabalho o
inclusão social) não se restringe ao universo das entidades voltadas para a pessoa com
podem ser consideradas exemplos de projetos com um duplo sentido: ao mesmo tempo
em que estão voltadas para a descoberta de novos talentos, também se colocam como
no contexto das metrópoles urbanas como aponta Gärtner (2008) ao analisar o esporte
Brasil, Sudão e Estados Unidos. Um ponto similar a esse pode ser encontrado na
social da área onde se encontra o salão onde treina, deparando-se com uma realidade
urbana marcada pela degradação do ambiente, pela segregação e pela violência. Sua
descrição do clube como uma “ilha de estabilidade e de ordem” e como o lugar de uma
possibilidade que advém dessa esfera é repleto de variáveis, que atuam de forma
decisiva na construção das subjetividades dos atletas. O contato com entidades que
109
congregam pessoas com deficiência – muitas vezes feito com a ajuda da família do
limitado. Ainda assim, essa “abertura”, que tem a ver com a construção de um novo
olhar sobre a deficiência, não está previamente dada. Elementos de vários contextos
familiar. Um exemplo para essa questão pode ser dado pela prática da superproteção dos
pais e demais familiares em relação à pessoa com deficiência. Sobre esse ponto
Atleta: Quando existe um caso desses na família eles sempre tratam... Você
se torna uma pessoa especial porque qualquer olhar, qualquer coisa é virado
pra você. Você sempre se torna o centro das atenções. E pela minha família,
pelo que a minha família é, uma família batalhadora, na verdade uma família
humilde e honesta também, eu nunca quis me aproveitar da minha
deficiência só pra poder estar ali o tempo todo querendo ser protegido, mas
sempre na família existe isso. Se tem um deficiente ele passa a ser o centro
das atenções. E aí de acordo com o seu desenvolvimento se você se deixar
muito apegar, você mesmo vai criar um problema futuro pra você. (...)Você
vai sempre ter aquela redoma com você mesmo e vai ser difícil você
conseguir...
Pesquisadora: E para você quem quebra essa redoma?
Atleta: É a própria pessoa porque aí vai depender de você porque o mundo, a
vida, tá aí pra ensinar e você tá aí pra aprender.
Outra imagem paradigmática desse tema veio até mim através da fala de uma
classificadora funcional que por muito tempo também trabalhou como treinadora. Ela
deficiência em relação aos outros indivíduos e conta que não são raros os casos aonde a
pessoa chega à entidade para aprender o esporte com alto grau de dependência em
em que o olhar sobre a ação dos “outros iguais” permite a reelaboração da própria auto-
imagem. Ela conta que teve em suas mãos um atleta com grande potencial para a
110
natação competitiva, mas que teria abandonado o esporte por ter sucumbido às pressões
que partiam de sua mulher. Essa informante descreve para mim o momento em que o
atleta chega à entidade todo cercado de cuidados e com alto grau de dependência da sua
companheira, condição que vai se modificando na medida em que ele percebe nos
outros colegas habilidades corporais que nunca tinha imaginado possuir. Na visão da
algum tempo de boa parte dos cuidados que eram dispensados a ele, ocasionando
insatisfação por parte da sua esposa. Esse seria só um exemplo de como a prática da
superproteção apresenta a dependência como uma via de mão dupla, aonde vem à tona
com deficiência.
competições tanto nacionais quanto internacionais. Este parece ser um importante fator
forma, pois o convívio acaba ficando restrito às equipes credenciadas para o evento40.
existir uma espécie de excitação no ar nos dias que antecediam a viagem e que era capaz
de contagiar, inclusive, aqueles que não participariam da competição, como era o meu
caso. De qualquer forma, não deixava de ter acesso posteriormente a várias conversas
40
No caso de pessoas com um comprometimento físico maior existe a possibilidade de que ela tenha um
acompanhante para levar para as competições, que pode ser alguém da própria família.
111
respeito, obviamente, aos resultados concretos da competição, mas também ao que cada
Rio de Janeiro – assim como alguns eventos paralelos que contavam com a participação
dos atletas que eu já conhecia e de outros que eram novos para mim. Foi dessa forma
que pude perceber de uma forma um pouco mais sensível o clima presente dentro das
Observando de perto esses eventos pude ver com mais clareza como, uma
interação. Ainda que estes não sejam a marca do seu cotidiano quando ele retorna, os
registros dessas novas experiências não se perdem e passam a fazer parte da sua
trajetória de vida. Nesse contexto, as novas redes de sociabilidade que se articulam são
consideradas pelos atletas como um dos grandes benefícios que o esporte pode
existentes entre o atleta e sua família, também fala sobre os conflitos que têm a ver com
certo grau de renúncia dos indivíduos em relação aos comandos familiares, em prol da
questionamentos feitos por esse mesmo autor para pensar o papel da família em
onde o desfecho tenha sido um rompimento do atleta com o seu círculo familiar. Ao
contrário, parecia haver uma saída “negociada”. Mesmo considerando que o clube e a
família marquem diferentes domínios da vida do atleta, e que possa haver entre eles
interrelação entre os dois campos. Não tive muito acesso à dinâmica de interferência do
esporte na vida doméstica e íntima do atleta. A maior parte das minhas informações
até a mesmo a formação em uma área profissional alternativa; funções muitas vezes
familiares no espaço da associação esportiva. Não são raros os casos em que um parente
acompanha de perto a carreira do atleta, podendo prestar uma assistência cotidiana mais
simples, como levá-lo de carro ao local de treino, como também desempenhar o papel
de assessor ou até mesmo de empresário. Era por meio desse trânsito que ocorria nas
entidades, mas também em competições e demais eventos, que pude perceber mais
113
claramente a influência da família nos assuntos profissionais do atleta. Penso que esse
alto grau de envolvimento tenha relação também com o nível de solidez da carreira dos
atletas alvos da minha pesquisa. A conquista de uma autonomia financeira por meio do
esporte possibilita, muitas vezes, o sustento não somente do nadador, mas do grupo de
parentes mais próximos. Nesse momento, o que antes era uma simples aposta num
talento, começa a trazer benefícios mais concretos que permitem, inclusive, que alguns
membros da família abandonem antigas funções para se dedicar a alguma atividade que
funcionamento das mesmas. Muitas vezes os clubes não possuem todos os recursos
numa fase inicial, onde ainda não existe um retorno econômico, os nadadores precisam
contar com algum tipo de ajuda financeira por parte dos familiares, ainda que ela seja
também se nutrem da carga emocional proveniente das relações entre os atletas e seus
familiares. A esse respeito, lembro de uma coletiva de imprensa realizada com alguns
atletas que haviam sido convocados para as Paraolimpíadas de Pequim. Neste dia, não
convidados, tinha como finalidade divulgar a lista dos atletas daquela entidade que
platéia era composta basicamente por familiares. Fiquei sentada ao lado da mãe de um
imagens de vários momentos da carreira desse atleta. Numa delas ele aparecia chorando
depois da conquista de mais uma medalha nos Jogos de Atenas. Ao meu lado, chorava
também a sua mãe ao rever a trajetória do filho. Fico sabendo depois que aquele vídeo
tinha alguns anos e que não era a primeira vez que ela o assistia e que tinha aquele tipo
imprensa local estava presente para cobrir o evento. Não me lembro de ter sido feita
nenhuma foto dos atletas juntos enquanto delegação. Por outro lado, havia um grande
estreitamento daqueles laços antes dos atletas ficarem quase um mês afastados da
família.
movimento paraolímpico. Acredito que haja por parte das entidades e da mídia um
reconhecimento da força das relações familiares na construção do atleta. Não é a toa que
ouvia tantas vezes em reuniões – e principalmente por parte daqueles que estavam numa
como uma família. Não é também por acaso que uma das imagens mais veiculadas da
vestidas de verde e amarelo e tendo em mãos uma bandeira do Brasil, elas não
apareciam somente nas provas em que ele participava, mas passaram a ser, pelo menos
3.3 “O corpo é o de menos. Eu ganhei muito mais que isso. O esporte me deu
paraolímpico.
termos em que discute a prática do sparring como uma forma de reeducação do corpo,
das emoções e dos sentidos41. Mas o fato é que fui surpreendida pelos meus informantes
alguma medida o poder da transformação física que, até então, eu imaginava ser o
questões que se alinhavam a essa concepção era prontamente levada por eles a pensar
em outros aspectos que envolviam a prática esportiva. Mas o fato é que o que chamo
41
“Em primeiro lugar o sparring é uma educação dos sentidos e, sobretudo, das faculdades visuais; o
estado de urgência permanente que o define suscita uma reorganização progressiva dos hábitos e das
capacidades perceptivas. (Wacquant, 2002: 107).
116
aqui de “outros aspectos” era considerado por eles como justamente a parte mais
valores, de relações, de reabilitação social, física e mental. (...) O bom do esporte são as
relações”. Em sua opinião, os ganhos principais se dão nesse sentido, porque o ganho
físico a pessoa poderia conseguir com outra atividade, como por exemplo, praticando
é apontado por muitos como o mais significativo. De acordo com a opinião de outro
atleta,
A auto-estima melhora muito porque ele vê que por mais que ele
tenha a deficiência ele pode sorrir porque a gente sabe que muitos são
revoltados. Mas aí quando você olha para a sua deficiência perto de muitas
não é nada (....). Você pára de reclamar da vida e vai em busca dos seus
sonhos. Com a auto-estima em alta o resto vem depois com mais facilidade.
Um depoimento dado por outro atleta aponta para uma perspectiva similar a
Outro nadador recoloca questões similares e elenca três pontos que seriam
em sua opinião os principais ganhos que uma pessoa com deficiência pode ter com o
esporte paraolímpico:
117
mesmo. Mas da mesma forma que temos a marca da igualdade entre eles, também é em
limitações relacionadas a certa condição física podem ser relativizadas através do olhar
lançado para uma pessoa que possua uma deficiência física considerada mais grave ou
seriam as mesmas. Esse seria apenas um dado dentre outros que desafia uma construção
Outros tipos de ganhos são citados nos depoimentos acerca dos benefícios do
uma vez que podem representar as pessoas com deficiência como sendo
seleção brasileira para entrevistá-lo ele me mostrou com orgulho todos os cômodos
distribuídos por dois andares. Depois de contar pelo menos uns quatro quartos, fiquei
42
Essa questão será aprofundada no quarto capítulo através da discussão da constituição de grupos e de
identidades internas.
118
curiosa sobre o real número de moradores da casa. Ele me contou que nem todos os
quartos estavam ocupados e que o objetivo não era exatamente este, mas simplesmente
o de reproduzir concretamente a casa com a qual ele havia sonhado um dia. Essa casa se
situava num bairro pobre da cidade de Natal, do qual ele nunca tinha saído mesmo
tendo uma carreira bem sucedida no esporte paraolímpico. Ela foi construída a partir da
perto da cozinha é preservado até hoje e serve como um registro do passado e de tudo o
que ele conquistou. É este mesmo atleta que fala o seguinte sobre os ganhos que teve no
esporte, quando solicito que ele diga algo sobre a sua corporalidade: “Eu tive aumento
de massa muscular. Fisicamente foi só isso. Mas se eu for aqui citar o que me trouxe
estáveis, falava muito da sua casa e do investimento que tinha feito nela, principalmente
com reformas voltadas para a acessibilidade. Apesar de alguns convites feitos por ele,
não cheguei a conhecer a sua casa, por uma série de desencontros que ocorreram. A
Em uma das reuniões em que estive presente – que tinha como objetivo dar
felicidade que sente em ver o pátio cheio de carros, dizendo que aquela imagem era um
demonstrativo de uma melhor condição de vida que muitas atletas gozavam. Outro
principalmente dando carona para os treinos. Ele também convoca todos para se
inspirarem no sucesso dos seus companheiros. Esse tom marcou o início dos debates
naquele dia, mas também esteve presente em outros momentos do campo. Esse discurso
se mostrava como uma tentativa de unir o grupo depois que alguns atletas haviam
recebido propostas de patrocínio por parte de um empresário que não era ligado à
associação à qual eles pertenciam. Sem dúvida, o carro aparecia como uma marca
importante da ascensão social, como pude ver em outros momentos. Ter um carro
adaptado para o próprio atleta dirigir era uma das formas de demonstrar poder
aquisitivo, assim como uma maneira de mostrar mais uma habilidade física e um poder
dos benefícios de caráter corporal do esporte. Nas palavras de um atleta “uma pessoa
que pratica esportes depende menos da outra pessoa”, fala que confirma determinados
pontos levantados no item anterior. Principalmente para aqueles que não possuem
higiene até aquelas relacionadas à sexualidade. Nesse sentido, a autonomia está também
corporalidade dificilmente se apresenta de uma forma destacada. Ela liga-se muito mais
porém, apenas um dos meus informantes cita a palavra “saúde” como um ganho do
120
esporte, ainda assim ele toca depois nesse assunto de uma maneira bastante crítica,
mostrando os limites dos benefícios corporais proporcionado pelo esporte. Ele diz:
é alguém que sente dores vinte e quatro horas por dia. É dessa forma que ele tentaria se
superar em cima da sua própria limitação física e da sua dor, uma vez que aquela que
específica da lesão. Ele conta que convive diariamente com isso e que faz uso de
se esquecem que vão envelhecer e de que esse esforço de hoje vai ser cobrado pelo
corpo mais a frente. Em suas palavras: “É um grande desgaste no corpo e não se sabe
até que ponto isso trará prejuízos. Talvez eu já tenha um desgaste celular de alguém de
quarenta anos”.
da seleção brasileira de natação, onde mais de dois terços dos atletas já haviam
do fato desses atletas possuírem um grande vigor físico que tem a ver com a sua própria
forma, se nos primórdios das competições esportivas realizadas para pessoas com
esporte e dor. Nesse nível, é possível falar de uma aproximação entre esporte
paraolímpico e olímpico uma vez que a idéia de “No pain, no gain” parece ser comum
ao esporte de alto rendimento como um todo. Por outro lado, o uso máximo do corpo
pode trazer ganhos econômicos e sociais, de forma que o corpo se torna um capital a ser
negociado em troca de outros capitais, novamente uma marca de todo esporte de alto
rendimento.
excesso e uma falta que opera sobre o corpo, podem comprometer de forma
de alto rendimento o excesso parece ser sempre solicitado pela própria dinâmica da
natural da carga de trabalho.” (Op.cit.:165). Por outro lado, não podemos esquecer que
por mais que haja um cuidado e uma atenção para dosar esse esforço cotidiano e limitar
médio e longo prazo, que comportam os interesses de outros agentes como os técnicos,
que tive com os atletas mais antigos da seleção e que atualmente se encontram
122
principalmente na faixa de idade que vai dos 35 aos 42 anos de idade. Dentre estes,
muitos mostravam um saudosismo em relação ao tempo em que “se nadava por amor” e
não simplesmente para se chegar a resultados que, uma vez sendo técnicos, se
Nem todos são partidários dessa opinião, pois alguns estão inseridos nas redes de
patrocínio que sustentam essa mesma concepção. Ainda assim, a maior parte da “antiga
geração” faz críticas severas ao CPB, pois ainda que todos possuam a Bolsa-Atleta, eles
afirmação “o corpo é o de menos” parece encontrar seu limite na própria maneira como
potencialidade física parece ser o grande fiel da balança para as novas gerações que
surgem. Nesse contexto, parece existir cada vez mais um investimento numa
jovens, mas também por atletas de classes mais altas, que ao apresentarem um
assemelha à natação olímpica. Nesse sentido, não parece ser à toa que hoje o
movimento enfrenta uma espécie de “crise dos classes baixas”, cuja renovação enfrenta
Com a noção de deficiência ocupando um lugar central nesta tese, não pude
pode ser considerado o seu inverso. O que destaco em relação a esses dois conceitos é a
significados que podem estar associados a cada uma dessas noções possuem uma
característica dinâmica que tem a ver com a pessoa que fala e de onde ela fala.
especificar algumas diferenças. O termo deficiência nem sempre é aceito tendo em vista
a sua proximidade com a idéia de incapacidade. Entre a maioria dos informantes existe
amplo, podendo ser imputada para todas as pessoas sem exceção. Isso fica bem claro na
fala de uma nadadora. Segundo ela “o normal não existe. Cada um tem uma deficiência,
uma coisa que não é normal. Cada ser humano é diferente”. Nesse sentido, parece ser o
conceito de normalidade aquele que seria restrito para dar conta da diversidade presente
124
confiança em si mesmo são apenas alguns dos exemplos de outros tipos de deficiência
citadas pelos informantes. Além disso, uma pessoa que é deficiente num contexto pode
ser considerada normal em outro, situação que foi exemplificada por um atleta com
Mas essas generalizações possuem desdobramentos nos ambientes sociais que, por sua
vez, criam formas próprias de identificar as pessoas que serão aceitas como tal
peso na construção da idéia que é feita da pessoa que possui algum comprometimento
físico. Seguindo este raciocínio, a deficiência que é vista a “olho nu” acaba
mental. A esse respeito destaco o trecho de uma entrevista feita com um atleta
cadeirante:
Pesquisadora: Você acha que o fato de uma deficiência ser visível afeta o
julgamento das outras pessoas sobre a deficiência?
Atleta: Afeta sim. O pessoal quer aparência, né. O pessoal vê muita
aparência. Julga mais pela aparência.(...) acontece muitas vezes que eu estou
do lado da minha esposa e eu vou pegar algumas informações em algum
125
outro canto e a pessoa não quer dar a informação pra mim. Acha que eu não
tenho capacidade psicológica de entender. Fala pra outra pessoa ou às vezes
chega pra outra pessoa e diz: “Como é o nome dele?” Pensa que porque eu
sou deficiente eu não sei falar.
sobre a diferença corporal é realizado por Courtine (2009) numa coletânea sobre a
história do corpo. Seu objetivo é tratar das mutações do olhar sobre o que chama de
XX. O autor aponta o século XIX como o auge da exposição das “deformidades
ocidente, no decurso dos séculos XIX e XX. A tolerância para com esse tipo de
cristaliza essa transmutação do olhar. A exposição dos corpos passa do trivial para o
Courtine (Op.cit.:291):
“racionalização dos olhares voltados para as curiosidades humanas” não há nada bizarro
nas diferenças entre os corpos, visto que todos os seres são passíveis de classificação.
quanto as ações.
informações sobre o real potencial que ele teria. Através da análise de Courtine
percepção e experiência do mundo é construída através dos sentidos. Com foco nas
interações entre as pessoas, o autor argumenta que os sentidos podem ser entendidos
interações sociais. Para a concretização da percepção do outro, Simmel (Idem: 111) fala
nesse sentido que existe uma contribuição sociológica dos sentidos, na medida em que
hegemonia da visão opera nas interações onde estejam presentes indivíduos com
43
Alguns trabalhos como os de Constance Classen (1993, 1996) mostram como nem sempre o sentido da
visão foi hegemônico na cultura ocidental.
127
deficiência física, a diferença corporal acaba sendo um dos itens cruciais na definição
sobre o outro. Como fala um dos atletas: “Muita gente se esquece que o deficiente não é
só aquele deficiente físico, o que tem a perna fina e anda com bengala”.
lembrando que é por meio da visão que os estigmas se tornam evidentes. Mas ele faz
também algumas ponderações ao lembrar que ainda que a visibilidade seja um fator
crucial, há que ser visto o quanto ela interfere de fato no “fluxo de uma interação”, ou
visibilidade relacionada com “foco de percepção”. Dessa forma, podemos afirmar que
com relação à audiência não existe um público passivo, mas que analisa aquilo que vê e
vidro”, que surge na entrevista do nadador com má-formação, exemplifica com bastante
precisão esse tipo de concepção. É esse mesmo atleta que tece um comentário acerca
da sua corporalidade: “Muitos vão me cumprimentar e não sabem como agir. Poxa,
estende a mão! Às vezes eu chego pra cumprimentar e vou cumprimentar com o que eu
tenho mesmo. Não tenho como ter uma mão para cumprimentar, mas é o que eu tenho”.
com esse mesmo atleta a minha própria experiência de infância com relação a esse tipo
de contato. Lembro de ouvir algum tipo de advertência do tipo “Cuidado que ele tem
128
deficiência física. O meu informante também se recorda de ter ouvido algumas frases
desse tipo, mas contemporiza afirmando que essa é uma realidade que tem se
modificado bastante. Ele aponta o papel que as escolas têm desempenhado para a
construção de uma nova visão sobre a deficiência. Ele conta que nas palestras que
realiza nesses locais ainda existe muito estranhamento em relação à sua deficiência e ao
uso de próteses, mas, por outro lado, existe também uma proximidade que abre um
informantes como um ponto crucial no combate aos mitos sobre a deficiência. Isso não
é apenas um exercício retórico. Pode-se dizer que existe uma espécie de militância em
posicionamento pró-ativo em uma das entrevistas que realizei com um nadador. Abro
possibilidades do corpo deficiente a partir daquilo que era ofertado pela prática da
129
natação que, por sua vez, delimitava a hipótese sobre a transformação do corpo
tinham o objetivo de abarcar essa temática não eram raras as vezes em que a conexão
potência-deficiência era mal compreendida. A pergunta que servia de base para tratar
desse assunto era: “Você acha que os conceitos de deficiência e potência podem
conviver juntos?”
dado o seu caráter semi-estrutural - de maneira que tanto essa pergunta como as outras
poderiam sofrer variações desde que alguns temas fundamentais da pesquisa pudessem
ser acessados. Mas o principal limite dessa pergunta era o seu alto nível de abstração,
uma vez que se baseava apenas em textos mais teóricos sobre a classificação funcional,
sem que eu ainda tivesse estabelecido elos mais evidentes com a realidade concreta do
corpo deficiente no esporte. Na maioria das ocasiões em que essa questão era colocada
para o entrevistado, ele externava uma dúvida com uma fórmula similar a esta: “mas de
que potência você está falando?”. Nas primeiras entrevistas realizadas – e enquanto eu
surpreendida com um questionamento feito por ele e reproduzo aqui essa parte do
diálogo:
entrevista, ela prosseguiu num tom quase didático, com meu interlocutor explicando de
forma bastante clara as formas pelas quais poderia se dar o ato sexual, principalmente
entre duas pessoas com deficiência física. Mesmo não sendo cadeirante, foi com relação
à condição física dos lesados medulares que ele mais se ateve. Nesse sentido, ao mesmo
homens, também relatava algumas experiências que ele mesmo havia tido com mulheres
cadeirantes.
explicou, então, que os níveis de lesão são diversos, o que concorreria para diferentes
impotência seria relativo, na medida em que mesmo uma ereção conseguida por meio de
remédios ou uso de próteses, embora sendo artificial, continua sendo uma ereção.
se concentrou numa descrição da reorganização das zonas erógenas. Ele falou das
experiências que teve com mulheres com esse tipo de deficiência. Sobre a primeira
131
delas, ressaltou o aprendizado sobre sexualidade que teve a partir dessa relação. Esse
processo não deixava de ser também de redescoberta para os dois. Ela havia se tornado
deficiente na fase adulta depois de já ter tido vida sexual, inclusive dentro de um
casamento. Ele, por sua vez, aprendia como lidar com uma pessoa que demandava
para ele teria sido a de se desvencilhar de um padrão mais mecânico do sexo, centrado
principalmente na busca do orgasmo por penetração. Dessa forma, o foco do ato sexual
sai da expectativa por um ápice de prazer e vai para um campo voltado para a
Segundo ele, uma relação deste tipo requer necessariamente mais sensibilidade e
puramente física. Usando as suas palavras: “Essa questão do ato sexual, não é porque
você pula, corre. Às vezes não é isso não. Essa questão depende da química mesmo, do
contato, né?”
simplesmente eu queria falar sobre o corpo dos atletas, mas ignorando completamente a
sua sexualidade. Mas por que essa questão teria sido ignorada? Dizendo para mim
mesma “isso não é o meu foco”, entre outras frases com retórica acadêmica, eu
explicava muito pouco essa falta. O fato é que o mesmo princípio de corpo “deficiente-
potente” que tinha usado para definir minhas questões no campo da prática desportiva,
não havia sido acionado (pelo menos com a mesma intensidade) para pensar os outros
planos de experiência corporal dos atletas. Por sorte o meu interlocutor insistiu em saber
o porquê daquela lacuna e, sem mais respostas a dar, tive a sensibilidade de deixar que
ele falasse livremente sobre o que quisesse. A riqueza do seu depoimento se justifica
não apenas por ter servido como um registro das possibilidades de vivência sexual de
132
uma pessoa com deficiência - principalmente em suas experiências com outras pessoas
com deficiência – mas também como um instrumento que serviu para questionar o meu
sexualidade. Quando me sentia à vontade tocava nesse assunto com meus informantes
não apenas nas outras entrevistas que realizei, mas em uma série de conversas
informais. Mas o que está em jogo aqui não é simplesmente o fato de que mais um tema
que tem a ver com o corpo foi incluído no rol de questões a serem debatidas, mas como
a qual cheguei no campo e de como, por outro lado, isso permitiu a construção de um
novo olhar.
“realidade” do campo. Como nos lembra Becker (2007), vemos o mundo através de
imagens que fazemos dele, imagens estas que interferem nas nossas formulações, assim
como na coleta e análise dos dados. Acredito que o exercício do “estranhamento”, tão
necessário ao ofício do antropólogo não anula essas imagens iniciais que construímos.
elaborações científicas.
respeito não somente à sua posição num mundo acadêmico, mas a todo o seu acervo de
uma importante forma de conhecimento – poderia ser utilizada para entender o meu
da família na formação de uma nova geração mais esclarecida sobre o universo das
pessoas com deficiência física. Essa opinião também é compartilhada por técnicos e
deficiência no próprio lar, como ocorre com os atletas que possuem filhos, sobrinhos e
etc. Um dos atletas cadeirantes que conheci me contou orgulhoso sobre as maneiras que
encontrava para ajudar a sua esposa com os seus filhos principalmente na época em que
eles eram bebês. Não tendo espaço para se deslocar com a sua cadeira de rodas dentro
de casa e tendo poucos recursos para fazer adaptações mais complexas na sua casa,
organizava um espaço no chão onde trocava fraldas e dava comida para as crianças.
Nestes casos, há uma suposição por parte dos atletas de que os seus filhos verão a
deficiência como normal ou natural. Esse mesmo tipo de aprendizado pode acontecer de
forma mais indireta, como no caso das famílias dos profissionais que lidam
na casa de um dos técnicos da seleção alguns dias antes da equipe partir para Pequim.
Entre os membros da família desse técnico não existe ninguém com deficiência física;
134
aquele tipo de evento tinha para a sociabilidade daquele técnico e de sua família. Na
ocasião, conversando com ele e com alguns atletas pude compreender o valor da
Em outras ocasiões esse mesmo técnico me contou ainda o quanto o convívio com os
atletas havia sido importante para que alguns pontos de vista sobre a deficiência
pudessem ser desmistificados entre os seus familiares. Essas ações particulares são
encaradas como a expressão viva da dinâmica de toda uma rede que inclui o movimento
paraolímpico e todo segmento mais amplo das organizações civis que lutam pelos
direitos da pessoa com deficiência. Uma ação em cadeia que parta dessa rede, associada
atletas como um dos pontos que interfere na busca por patrocínios. Muitos empresários
ainda acreditam ser prejudicial para os negócios associar o nome da sua marca a uma
pessoa com deficiência. Ele conta que mesmo nos casos em que uma empresa se torna
relação a esse apoio. Partindo desse relato, acredito ser possível pensar a visibilidade da
deficiência como algo que é constantemente pesado e gerido tanto por atletas e as suas
associações como pelos empresários que associam o nome de suas marcas ao esporte
paraolímpico.
casos como uma espécie de capital simbólico para um atleta, na medida em que ele pode
se tornar por essa mesma razão um ícone do segmento. Apresento uma discussão mais
135
detalhada sobre essa questão no quarto capítulo. Por outro lado, existem momentos em
dos atletas reclamações sobre esse procedimento. Para eles o motivo era claro: a
ocultação do corpo com deficiência, no sentido de evitar que qualquer diferença física
mais evidente pudesse incomodar o espectador. Até aquele momento eu tinha assistido
lembrava dessa prática. Cheguei a questionar algumas pessoas que afirmavam com
muita clareza de que isso realmente acontecia. De fato, tal fato se repetiu nos Jogos de
intensificados pelo uso de uma super câmera lenta. Confirmando a aposta dos meus
informantes, todo esse equipamento viria a ser retirado durante as provas paraolímpicas.
Não pretendo afirmar com isso que haja uma evitação definitiva da imagem da
deficiência física. De qualquer maneira, parece existir por parte dos organizadores e
forma equilibrada aos interesses dos atletas e outros profissionais ligados ao esporte
colocados em destaque seguidos pelas formas corretas de falar e de escrever. Pelo seu
tom didático e por alguns esclarecimentos iniciais, o texto apostava no papel educativo
de uma terminologia adequada, voltada para todo tipo de público, mas, principalmente,
de caráter político. Com relação aos primeiros era retomada em poucas linhas uma série
mesma deveria ser tratada, dando o aval sobre os melhores termos para designar os
terminologia adequada aparecia como um fator crucial na luta por inclusão social,
construídos em relação à pessoa com deficiência. Dessa forma, ela teria o poder de
44
O endereço do sítio é www.cpb.org.br.
45
Intitulado “Terminologia Adequada”, o documento apontava como principal referência SASSAKI,
Romeu Zakumi. Terminologia sobre Deficiência na Era da Inclusão. Rio de Janeiro: WVA, 2002.
137
podem mudar ao longo do tempo, submetidos que estão à lógica dos valores vigentes
nem sempre seriam compartilhadas com a mesma velocidade pela sociedade como um
todo, o que daria margem para a perpetuação de idéias que seriam equivocadas. Dessa
movimento da ciência na sua busca pelo conhecimento sobre o corpo (e aqui, sobre o
setores da sociedade. Nesse texto era apontado o motivo para a utilização dos termos
tais como, “pessoa presa (confinada, condenada) a uma cadeira de rodas” e “ela sofre de
paraplegia”. Aliado a isso é destacada a necessidade de haver uma clara distinção entre
doença e deficiência, de maneira que esta última seja considerada apenas uma condição
terminologia incorreta. Segundo o texto, todos são datados, caindo em desuso na década
Interessante pensar aqui nos novos significados que são dados para termos
banho de mar com um papel ativo na escuta de si em prol do bom funcionamento do seu
referido texto sobre terminologia adequada, a acepção parece ser mais negativa, mais
havia feito sobre terminologia antes de iniciar o meu trabalho de campo, a minha mente
já estava povoada por idéias sobre a maneira mais “correta” de me aproximar dos meus
informantes e falar sobre as suas deficiências. Mas foi justamente a interação com eles
pelos atletas para falar da deficiência, tanto da sua como a do outro. Nas inúmeras
brincadeiras jocosas que pude presenciar, a palavra aleijado era frequentemente usada.
Essa prática, por si só, trazia dados iniciais que já eram suficientes para que eu
entidades. Para citar um exemplo dessa jocosidade, lembro o dia em que conheci
de alguns e-mails que ele teria me enviado, para a “Mônica do Rio de Janeiro”. Notando
a confusão, esclareço quem eu sou e o tipo de trabalho que estava fazendo ali. Até
139
então, não havia trocado nenhuma mensagem eletrônica com ele, pois todos os contatos
haviam sido mediados por sua assessoria de imprensa. Ele se dá conta do equívoco,
sorri e pede desculpas, mas logo ironiza dizendo que aquela sua atitude seria típica de
um PC, deixando a entender que as pessoas com aquela deficiência teriam problemas de
ordem intelectual. Na sala estão alguns dos seus colegas da associação que riem e
parecem concordar com a brincadeira. Posteriormente, ele usaria a mesma piada para
piada, pois a partir dela ele abordava de maneira irônica uma crença bastante
deficiência mental.
metros. Ela responde em tom de ironia: “Tá me achando com cara de aleijada?”. Todos
riram e depois outros comentários deste tipo foram repetidos ao longo do treino.
É importante assinalar que o uso de piadas não se restringe aos atletas que
possuem uma deficiência. Pude ver essa prática também entre técnicos, classificadores e
Nesse local havia uma rampa muito inclinada que dava acesso ao palco onde ficava a
mesa que acomodava os convidados. Um dos dirigentes, atleta cadeirante, faz sinais
para um dos técnicos pedindo ajuda para subir. Este último, que estava sentado ao meu
lado e de outros atletas, comenta em tom de brincadeira conosco: “Por quê? Até parece
140
que é aleijado!” e depois vai sorrindo atender ao pedido do atleta. Em outra ocasião,
esse mesmo técnico ironiza os atletas que tinham feito uma viagem de ônibus com toda
a equipe para uma competição num estado vizinho. Ele conta que ao ouvir dos atletas a
permitido, disse para eles que aquele seria o menor dos problemas por que pelo menos
Eu pude ter acesso a essas brincadeiras logo nos primeiros dias do trabalho
de campo. De qualquer forma, eu presenciava cada vez mais cenas desse tipo na medida
em que a interação com o grupo ia aumentando. Se no início do contato com elas, ouvia
piadas feitas apenas por algumas pessoas; depois tive a chance de presenciar várias
situações onde o grupo como um todo participava das brincadeiras. Nesses momentos,
para cada piada, outra podia ser feita para servir de réplica.
que ela desempenhava naquele meio e nas formas de sociabilidade que ali se
no campo, pois embora a terminologia adequada seja criticada muitas vezes por
dificultar uma abordagem mais “simples” e “natural” da deficiência, não existe uma
premiações e etc. Nos casos onde há uma grande “platéia” (Goffman, 1985) um
46
Esta expressão é utilizada para os casos em que o atleta é deslocado da sua classe para competir em
outra onde os adversários possuem um comprometimento físico maior. A importância dessa mudança está
associada à suposição de que a prova ficaria mais fácil para o nadador em questão. As questões de ordem
prática que envolvem essa realocação serão melhor analisadas no capítulo 4.
141
desempenho mais contido parece ser o recomendado. Isso me fez perceber que o
acionamento de cada uma dessas linguagens tem a ver com a situação em jogo, o tipo de
existentes na terminologia adequada, ela continua sendo considerada por eles uma
meio. Ela não deixa de ser uma forma de atualização sobre as formas de concepção da
deficiência. A jocosidade, por sua vez, embora seja evitada nos momentos de maior
formalidade, ainda pode ser encontrada em diversas situações e parece servir a objetivos
associação direta entre deficiência e tristeza, também foi levantada por outros
informantes. A ironia também acaba servindo para que os atletas saiam de situações que
É possível afirmar que existe um protocolo que diz como o indivíduo com
deficiência deve ser chamado. Tal protocolo é conhecido por aqueles que atuam no
meio paraolímpico, mas é pouco utilizado no convívio diário com as pessoas mais
conversas. Nesse sentido, certo grau de intimidade parece ser desejável para que os
acima mencionado, “quando eles vêem que você faz parte do grupo não tem nenhum
problema porque sendo chamado de aleijado ou deficiente, o que importa é ele saber
como está sendo tratado e visto de fato”. Nesse sentido, não faria diferença se a outra
pessoa tem uma deficiência ou não. O requisito da proximidade, que pode se desdobrar
nas condições de intimidade, amizade e afinidade, serve tanto para aquele que não
Para uma classificadora o uso das piadas como forma de combater a imagem
passagem.
Classificadora: A galera do esporte eu acho até que eles são mais bem
resolvidos em relação a isso e por conta disso as brincadeiras são mais
pesadas, entendeu? Mas, assim, eu acho que eles fazem isso pra chocar
muitas vezes.
Pesquisadora: Mas chocar quem?
Classificadora: Quem está chegando e ainda não está preparado. Não
importa se é profissional, se é atleta, não importa.
Pesquisadora: Eles querem chocar o outro.
Classificadora: Eles querem criar logo a casca, entendeu? E assim, tiram
onda mesmo: “Ah, tadinho do aleijadinho”. (...) Tem essa coisa de sacudir,
143
sabe? Eu acho que não e só agredir por agredir, tem a coisa do sacudir
mesmo, tipo: “Passa logo pro lado de cá, sai fora dessa de se sentir tadinho”
(...). Porque você não sabe determinar porque a pessoa é melindrosa, de onde
vem, mas muitas vezes é porque ela ainda não se aceita. Então é uma
maneira de você dar já uma catucada na ferida (...).
A situação que essa informante relata parece ser bem similar àquela que
passou um dos nadadores. Ele conta que antes de competir ficava triste com qualquer
coisa que dissessem sobre o seu corpo, mas “depois você vai nessas competições e os
caras zoam pra caramba”. Nesse caso, as brincadeiras parecem corroborar a tese da
iniciação. Uma vez que o atleta entenda as regras do jogo e passe por essa etapa, logo
terá a liberdade de repetir o mesmo com os seus colegas. Voltando aos termos da
classificadora, as brincadeiras são como um “comitê de boas vindas”. Para ela: “Você
tem um ganho porque você entrou num grupo de atletas que é visto de uma maneira
diferente, você passa a ter uma maior autonomia, você passa a ter um respeito diferente,
você se olha diferente e você impõe isso pra fora”. Dessa forma, as brincadeiras servem
parecia bem congruente com a percepção que eu tive com relação a um dos usos da
jocosidade. Embora o conteúdo das piadas não fosse a respeito do meu corpo, sentia que
aferida a minha capacidade de interação com o grupo. Nessa avaliação parecia estar
incluída também a minha habilidade para reagir com “naturalidade” àquele tipo de ação.
Coloco a palavra “naturalidade” entre aspas porque uma vez que eu sentia que havia
uma expectativa da parte deles com relação a uma espontaneidade, não deixava de ser
despertado em mim um estado de vigília para que a interação pudesse ocorrer dentro de
144
certo padrão. Percebia que a “naturalidade” era um item que fazia parte do meu
Não quero dizer com isso que eu tenha passado por situações de grande
“terminologia adequada” ter sido uma referência inicial para mim, não havia nenhuma
ideia pré-concebida de como deveria se dar a minha interação com eles. De qualquer
forma, eu nunca havia convivido de forma tão intensa com pessoas com deficiência
física, o que significava que eu não tinha acesso a muitas informações sobre a vida
cotidiana delas. Para suprir essa carência não tive nenhum melindre para pedir
esclarecimentos sobre os tipos de deficiências dos atletas. Nesses casos, também parecia
palavras de uma classificadora: “A pior coisa pra eles é você ficar cheia de ‘não me
toques’, entendeu? Porque aí pra eles mostra uma rejeição que você não assume”. Eu
também não tive pudores em oferecer ajuda nos momentos em que considerava
verdadeiramente importante, fato que era bem recebido na medida em que eles
consideram que essa oferta nunca deve desqualificar o poder de autonomia deles.
como um dos fatores que estavam envolvidos no sucesso da minha interação com os
atletas parece também ter importância no convívio entre eles, funcionando como uma
das marcas distintivas de adesão ao grupo. Nesse sentido, a aceitação das piadas pode
servir como uma forma de averiguar até que ponto a pessoa aceita a sua própria
deficiência. O uso isolado de alguns termos que para muitos pode parecer depreciativo é
bastante utilizado pelo menos no meio paraolímpico e serve para se referir a qualquer
145
pessoa com deficiência física. Assim como outros termos, ele se configura como uma
espécie de gíria que serve para assinalar aqueles que fazem parte do grupo,
acreditava que esse termo dizia respeito somente aos cadeirantes, servindo como
ilustração para uma condição onde a pessoa depende de uma cadeira para se deslocar e,
por essa mesma razão, parece estar “chumbada” a este objeto. Uma classificadora me
explica que há um tempo atrás esse termo servia realmente para designar um
determinado grupo, mas que não existe um consenso sobre a sua origem. Ainda de
acordo com ela, dentro do esporte o termo acabou virando sinônimo de “cara esperto” e
de “pessoa independente”.
É o cara que tá dentro do meio, que tá cool. Ele já foi adotado pelo
esporte, porque o cara que não se sente como um chumbado e se agride, ele
ainda não é do meio. É uma rejeição de ambos os lados. E o chumbado não é
uma coisa pejorativa. Tem gente que trabalha com deficiente que não gosta
do termo chumbado. Acha pejorativo. Mas aí se você for falar com um atleta
é chumbado.
principal das piadas sobre as pessoas com deficiência física. Essas características eram
associadas muitas vezes associadas à feiúra, como ocorria nos casos em que eram
embora os atletas com deficiência mental não façam parte do escopo deste trabalho e eu
não tenha lidado com eles durante a pesquisa, algumas de suas características também
apareceram como tópico de algumas piadas. As ocasiões onde uma pessoa mostrava
ou ainda se mostrava lenta para responder questões, eram propícias para o uso da sátira
146
envolvendo a deficiência mental. Assim, não era raro ouvir nesses momentos
associação direta entre deficiência física e mental, principalmente nos casos onde foram
vítimas ou testemunhas oculares dos efeitos concretos deste tipo de junção. Mesmo
naquele caso da piada feita pelo atleta com paralisia cerebral – relatada no início deste
item - a proximidade com a deficiência física era utilizada como um recurso para
Para aprofundar essa questão, cito o dia em que acompanhei alguns atletas
que haviam sido convocados para Pequim numa sessão de fotos para a realização de
reunidos na parte externa da associação e tinham a piscina como fundo. Esta área que
faz parte de um complexo esportivo maior é bem ampla e não tem acesso restrito,
servindo, inclusive, como passagem para quem deseja cortar caminho para chegar a uma
passava. Ele aparentava ter Síndrome de Down e se mostrava bastante curioso com
relação ao trabalho que eu tinha feito. Ensaio um gesto para mostrar para ele as fotos
que eu havia tirado, mas sou logo interrompida por uma das nadadoras que me avisa
que a equipe irá embora, indicando para mim uma pessoa com quem eu poderia pegar
perder a minha companhia que me levaria para acompanhar o seu próprio treino em
47
DM é a sigla utilizada para designar “deficiência mental”, mas neste caso - dentro de uma apropriação
mais vulgar – serve para denominar “deficiente mental”. As siglas DA e DF, por sua vez, também
designam as deficiências (auditiva e física) assim como as pessoas que as possuem.
147
ela parecia satisfeita por ter sido eficaz ao me afastar do que ela parecia considerar um
pequeno problema de percurso. Isso ficou mais claro para mim quando percebi que não
havia de fato uma pressa tão grande da equipe em sair do local. A crença da atleta num
padrão de interação limitado entre eu e o rapaz ficou evidenciada quando notei a sua
com deficiência física - não teria condições de aprofundar aqui essa discussão sobre
uma distinção entre deficientes físicos e deficientes mentais. Mas é interessante pensar
que embora as pessoas com deficiência mental não estivessem presentes fisicamente no
meu campo elas não se ausentavam dos discursos que tinham como objetivo marcar
uma diferenciação entre os dois grupos. Esse dado seria ilustrativo de um dos truques de
constituição dos grupos também em função daqueles que não fazem parte dele.
Como já foi visto em outros momentos essa distinção aparece na fala dos
senso comum costuma unir a deficiência física à deficiência mental, o objetivo seria
justamente o de esclarecer que elas não são a mesma coisa. Mas essa afirmação não diz
tudo sobre a preocupação com essa distinção. Acredito que a motivação principal para
que eles façam essa separação reside numa tentativa de depurar a deficiência física de
incapacidade. Nesse sentido, o mesmo movimento realizado pelos atletas para livrar a
deficiência não está livre de uma carga preconceituosa. Esse é um dado que nos permite
148
deficiências. Se em algum nível ela aparece entre os próprios atletas com deficiência
tipos de deficiência que ela pode apresentar a sua faceta mais estigmatizante. Por fim,
da jocosidade.
149
que dizem respeito à maneira como os atletas são representados dentro da natação
campo de possibilidades informado pela questão das identidades que são forjadas, em
parte, pelo sistema classificatório do esporte, mas também pelas experiências cotidianas
dos atletas com o seu corpo. A análise das interações que se estabelecem entre os
próprios atletas, marcadas tanto pela amizade como pela competitividade, se coloca
procuro situar e entender o papel que a categoria de “superação” possui nesse contexto.
Ainda que ela figure como o conteúdo principal de discursos e imagens sobre a pessoa
identidade.
bastante comum. Os atletas costumam se referir uns aos outros como os “classes
à “classificação funcional”, embora não apareçam nos documentos oficiais que tratam
do assunto. Tal distinção está relacionada aos graus de deficiência dentro do esporte,
onde num sentido geral teríamos duas grandes classes de atletas: aqueles com um alto
grau de deficiência e aqueles com um baixo grau de deficiência física, como explicitado
no segundo capítulo. Assim, foi possível perceber como a identidade de “pessoa com
possível visualizar os atletas como um conjunto mais ou menos coeso pela ideia de que
todos possuem uma deficiência e buscam algo em comum. Mas a própria observação de
desempenha papel importante. É possível afirmar que esse código exemplifica muito
bem o dinamismo existente no jogo entre diferença e igualdade, não apenas pelo seu
aspecto formal, mas fundamentalmente pela maneira como os próprios atletas percebem
Antes de tudo importa assinalar que o conceito de identidade não deve ser
(1973: 228),
Esse caráter dinâmico da identidade, assim como o seu pluralismo, seria uma
que não é meramente um somatório de unidades, mas que coloca em contato ao mesmo
específica e aquela que corresponde aos diferentes tipos e graus de deficiência física.
Numa das primeiras entrevistas, realizada com uma nadadora, obtive indícios sobre o
Essa fala pode ser considerada como um ponto de partida possível para
sociedade. Esse fator de coesão interna é corroborado por outra fala de um nadador da
seleção quando pergunto o que os identifica enquanto grupo: “O que tem em comum
realmente é aquela coisa de não querer mais serem conhecidos como coitadinhos e sim
“coitadinhos” são colocados como exemplo do que deve ser negado por qualquer pessoa
termos de representação como de ação. A figura do atleta paraolímpico, por sua vez,
alimentar o próprio processo de exclusão deles enquanto grupo social. De acordo com o
deficiência. Muitos preferem se acomodar como no exemplo de não toparem fazer nada
porque estão em cadeira de rodas”. Outro nadador corrobora essa perspectiva a partir do
seguinte comentário:
Esse papel quase “redentor” dos atletas e o peso que isto teria na construção
de uma imagem positivada da pessoa com deficiência será mais bem avaliada no
próximo item deste capítulo. De qualquer forma, percebia no meu trabalho de campo
que qualquer tipo de representação mais uniforme do grupo não daria conta de uma
entrando em choque com uma realidade que se mostrava bem mais complexa. Por outro
paraolímpicos, mas que os fragmenta a partir da conformação das classes - também não
O fato é que o trabalho de campo mostrou que os chamados “iguais” não são
os mesmos o tempo todo, visto que estão na dependência dos desdobramentos das
interações sociais cotidianas. Não é inútil ressaltar que o que está em jogo aqui também
reforçam as fronteiras marcadas pelas classes; em outros momentos essas fronteiras são
153
rompidas por questões de vivência e sociabilidade que escapam a esse formato. Isso
Quando questionada se haveria alguma formação de grupos que teria a ver com as
classes ela diz que sim e que talvez isso seja mais evidente na natação do que em outros
esportes como basquete. Ainda assim existiriam outros fatores que influenciariam como
atletas enquanto deficientes fora do universo esportivo são evocadas para os momentos
em que ele se coloca como membro de uma classe no esporte. Nesse sentido, as
experiências podem servir como reforço para a identidade que lhe foi atribuída através
“classe baixa” ele completa: “Tudo bem, mas você vê que eu me viro”, mostrando que
ele não se restringiria à imagem muitas vezes associada àqueles indivíduos com maior
Eu não sou mais deficiente porque eu superei essa barreira. Eu estudei. Eu vou para
onde eu quero. Eu me virei. Eu me adaptei”. Esse atleta faz questão de ressaltar em seu
depoimento que a pessoa tem que ser vista para além do ambiente esportivo. Afirma que
ao olhar para pessoas com uma deficiência maior que a dele pensa que ainda que elas
154
possam ir para vários lugares, existem necessidades humanas básicas que elas não
conseguem fazer sozinhas. Segundo ele as deficiências são várias, mas acredita que os
atletas de “classes baixas” tenham mais sensibilidade para tentar entender como é o
cotidiano dessas pessoas e chega a afirmar que tem muitos casos em que fica claro que
os “classes altas” teriam uma atitude de desprezo em relação aos “classes baixas” e diz:
“Eu acho ridículo o cara que é classe alta, porque qual é a dificuldade dele no dia-a-dia
de pegar um ônibus, de pegar o metrô? E o cara quer ser deficiente. (...) Tem muito
Peço, então, para que ele articule esse argumento com os critérios internos
classificação funcional. Ele responde que, no caso, estaríamos falando de duas esferas
baixas” ao assumirem “aquela postura do ‘eu sou melhor’. Eu sou deficiente, mas sou
melhor que você. Que contra-senso é esse? Isso é nojento porque é agir de acordo com a
conveniência. Quando convém é deficiente, quando não convém não é deficiente”. Uma
“classes altas” em relação aos “classes baixas” e até ironiza um pouco utilizando a
Classificadora: Tem isso também, mas ela [a deficiência] não deixa de ser
pouca em relação aos outros. Aí você pensa: ele é um deficiente, mas qual a
dificuldade real que tem no cotidiano?
Pesquisadora: Talvez essas identidades dos classes altas e baixas tenha a ver
com esses dados do cotidiano.
Classificadora: Está ligado também.
outros depoimentos, principalmente de atletas de “classes baixas”, como neste caso: “Os
classes altas muitas vezes não ajudam os classes baixas que precisam mais de ajuda, e
os classes baixas ficam revoltados muitas vezes porque os classes altas só querem
pensar neles e são mais independentes”. Opinião semelhante expressa outro atleta, agora
estigmatizados não se dá de uma forma sempre coerente e numa escala ascendente. Uma
“iguais”; por outro lado, um indivíduo pode se imaginar diferente dos estigmatizados ao
autor chama essa adesão tensa e, por vezes provisória, de “oscilações de apoio”, noção
que parece ser útil para refletirmos sobre a construção de identidades no seio da natação
paraolímpica. Essa dinâmica torna-se ainda mais complexa se atentarmos para o fato de
internas sobre o que é ser deficiente, o caminho inverso não é menos importante.
grupos relacionadas às distinções impostas pelas classes, mas alerta que deveria ser
visto com mais cuidado porque isso acontece. “É porque são parecidos fisicamente?
Sofreram mais?”. Ela acha que pelo fato dos “classes altas” terem uma independência
maior, talvez fiquem mais juntos e evitem andar com aqueles de “classes baixas”. Mas
mais leves têm a oportunidade de aprender a lidar com os “mais deficientes”, como os
cadeirantes. Ela aponta que, muito embora uma pessoa não possa “sentir na pele” de
outra pessoa, ela tem a oportunidade de conviver e tentar se aproximar para conhecer “o
outro” para além da questão de mera afinidade. Então, “eles tentam se ajudar quando
estão juntos em competições. Mas sempre tem aqueles que não querem ‘carregar’
Não existe um consenso por parte dos nativos sobre a questão de formação
de grupos e de identidades através das classes. Também ouvi relatos daqueles que
discordam dessa proposição afirmando de forma mais categórica que apesar deles terem
identificação que tenha isto como base. Como diz um dos nadadores “existem grupinhos
sim, mas que não tem a ver com tipo de deficiência, mas com afinidade de pensamento
e de idéias. Em todo lugar existem os grupos que se formam a partir disso mesmo.” As
chega a reconhecer certos graus de diferenciações que podem ocorrer, inclusive, pela
via do preconceito, como aparece neste momento da entrevista feita com uma nadadora
como em outros já citados, a amizade é evocada para matizar ou até mesmo para negar a
diferenciações internas48. Dessa forma, na entrevista realizada com um nadador S10, ele
começa afirmando que não existe uma identidade e construção de subgrupos por meio
da divisão por classes. Em sua opinião haveria sempre outras coisas envolvidas como a
mera afinidade pessoal. Porém, num momento posterior da nossa conversa, outras
quadro de nadadores “classes baixas”. Naquele momento, ao acionar um tema que não
parecia ter ligação direta com o debate sobre a diferença entre as classes, acabei
internas. O mesmo nadador conta que houve uma época em que os “classes baixas”
diziam que o dinheiro dos circuitos não era distribuído de forma correta. No entanto, ele
classe, mas, no Brasil, os “classes baixas” não seriam tão fortes. Sendo assim, “se os
classes baixas querem estar em pé de igualdade precisam treinar mais”. Ele relata,
afirmar que muitas pessoas estariam questionando o fato dele ser deficiente realmente.
Ele teria respondido que treinou a vida inteira com atletas sem deficiência e que luta
muito para conseguir o que quer, dedicando-se muito a questão técnica e que
se as pessoas têm inveja ou não, mas queriam estar no meu lugar, só teria
uma coisa a dizer, que elas treinem. (...) Tem classificadores internacionais
que disseram na época que eu não era deficiente e que hoje chegam a dar
dicas para que eu melhore o desempenho. (...) Se a minha deficiência não
fosse legítima no esporte simplesmente eu seria soberano em todas as provas
e não é isso o que acontece. Existem várias deficiências. Não acha que treino
mais que os outros, mas tenho uma formação e um treino que se assemelha
muito daqueles nadadores sem deficiência. Enquanto isso, outros
começavam no esporte como reabilitação. Eu sempre me vi como atleta.
Trato a competição e o adversário paraolímpico da mesma forma que trato o
convencional.
Por meio desta fala, o atleta recoloca algumas questões além de trazer novos
profissional para o meio paraolímpico, fica a sugestão de que esta seja a chave para que
movimento, legitimidade essa que nasce de uma auto-identificação, mas que seria
ponto da discussão sobre identidade desenvolvida por Berger e Luckman (Op.cit.: 200),
vemos que:
próprio movimento incumbidos de decidir sobre a elegibilidade do atleta e que, por sua
outros fatores como esses tocam transversalmente uma primeira separação caracterizada
provas para atletas das “classes baixas”, o viés do investimento distinto nas classes toma
contornos ainda mais claros. Ela conta que a presença de um atleta “classe baixa” numa
necessidade pode ser suprida e o comitê acaba escalonando dois atletas para cada
acompanhante. Essa decisão, que tem a ver com a falta de verbas para a execução do
quadro ideal da delegação, faz com que todos os atletas sejam envolvidos no trabalho de
apoio àqueles com um maior comprometimento físico, o que demandaria, por sua vez,
parte técnica. Isso acabou gerando muito conflito. (...) Levar um classe baixa
é mais custoso. E às vezes você não tem limite de vagas, mas tem limite de
verbas. (...) Acho que esse tipo de raciocínio não era só no Brasil.
Mundialmente se passou a ter uma menor participação dos classes baixas. O
quadro de hoje é uma consequência disso.
Digo para a classificadora que essa problemática não poderia, então, ser
resumida apenas com a noção de que não existem atletas “classes baixas”. Ela concorda
e comenta que tal afirmação pode ser verdadeira apenas numa parte de toda a cadeia de
formação dos atletas. Para se fazer um bom trabalho com os “classes baixas” haveria a
necessidade de uma formação mais completa por parte dos técnicos, que incluiria um
existe pouca exigência para uma adaptação no nível técnico, o que tornaria o trabalho
São muitos fatores que fazem com que os classes baixas participem
menos. (...) Isso pode ser revertido, mas aí os baixas têm que ter prioridade
em termos de foco de trabalho e depende também de um posicionamento do
IPC. Ele tem que descobrir uma forma pra isso acontecer. Por isso que a
bocha tem um apelo muito grande porque ela é só para os mais
comprometidos, além do rugby.
Tudo indica que de uns anos para cá, mais especificamente no último ciclo
paraolímpico, foi detectada uma espécie de crise na renovação dos “classes baixas” na
natação, com uma diminuição drástica do número de atletas. Tal situação não
um comprometimento físico menor. De qualquer forma, nos vários contatos que travei
com nadadores “classes baixas”, era notório o orgulho que demonstravam por trazerem
questão pode ser tratada, sem dúvida, como mais um dado para a análise das complexas
funcional”, percebo que ela também não pode ser entendida somente como algo que
depende da auto-percepção dos atletas, mas também se relaciona com a própria forma
os membros de cada classe estarão sempre em contato dentro desse arranjo estrutural e,
por mais que alguns optem pelo máximo de isolamento possível e concentração, sempre
existe a troca de ideias que pode ter relação com a técnica, com competitividade e,
possibilitada, antes de tudo, pela própria organização dos eventos, é relatada por alguns
o grupo dos classes altas ou baixas. Por quê? Porque nas competições, na
hora da briga, nós estamos sempre mais juntos.
afirma que existiria atualmente uma divisão bem drástica entre os deficientes físicos e
encontrada entre deficientes visuais e físicos e ele diz acreditar que não, tendo em vista
que estes grupos estariam constantemente em contato por causa dos circuitos.
deficiência física marcarem a sua diferença com relação às pessoas com deficiência
mental. Isso ficava mais evidente nos casos em que o prejuízo físico possuía alguma
relação com um dano cerebral sofrido. O principal receio dos atletas é de ter a sua
a deficiência mental.
É provável que a conservação por parte dos atletas com deficiência física de
algumas noções estereotipadas sobre a deficiência mental tenha relação com um duplo
165
afastamento entre esses dois grupos. Em primeiro lugar, os atletas com deficiência
mental estão afastados das competições oficiais organizadas pelo CPB e pelo IPC. Em
para o tipo de deficiência que possuem, como ocorre com entidades que desenvolvem o
seu trabalho basicamente com pessoas com Síndrome de Down. Não possuo dados de
envolvem a formação de atletas com deficiência mental e a sua relação com atletas com
outro tipo de deficiência. Tal tarefa escaparia às dimensões desta tese. Mas ao falar em
deficiência, os atletas com deficiências visuais e mentais não poderiam deixar de ser
citados.
paraolímpico não resiste às intervenções que se dão em outros níveis. Foi possível ver o
que dizem respeito aos diferentes níveis de deficiência dão uma conformação inicial a
esses mesmos grupos. Por outro lado, as identidades dessa natureza não se restringem à
dados que atualizam uma referência mais geral sobre a deficiência. É dessa maneira que
podemos afirmar que a identidade existente entre os grupos não é imutável, da mesma
166
forma que as fronteiras entre eles podem ser redesenhadas. Se por um lado esta análise
requer uma visão mais totalizante sobre a realidade social dos indivíduos, ao mesmo
tempo não podemos esquecer que o foco na situação também é fundamental para o
entendimento da formação dos grupos. Como vimos, são múltiplas as questões que
fronteiras. É necessário olharmos para uma realidade onde os grupos estão em contexto
interface mais construtivista, onde a ação desempenha papel fundamental, com os atores
assim como na negociação e manipulação das fronteiras que os separa dos “outros”. De
movimentação e transformação dos atores sociais que tem o vigor para operar as
constantes reconfigurações entre os grupos e os conteúdos que lhe são próprios num
não somente nos materiais que faziam parte do meu levantamento de dados inicial, mas
primeira vista não parece haver nada de especial na recorrência desta noção em
esporte olímpico, é provável que também nos defrontemos com a ideia de “superar”,
uma vez que semanticamente ela evoca noções como vencer, resistir, se mostrar
superior, ir além e ultrapassar, que têm o poder de transmitir valores que são caros ao
parecia ser óbvio, procurei avançar nessa discussão. Dessa maneira, os dados iniciais de
de campo, assim como aos depoimentos recolhidos dos atletas ao longo deste período.
publicização dos atletas paraolímpicos e gostaria de sustentar que ela é uma importante
que seria capaz de vencer todas as barreiras e obstáculos. A ideia aqui é colocar em
institucionais – e que pode ser captada através dos canais próprios de divulgação do
uma operação de exclusão entre essas proposições, prefiro encará-las como discursos
contraditórios em outras.
coitadinho”. Insisto nessas expressões e as coloco entre aspas por entender que elas
fazem parte de uma discursividade nativa. Pude observar durante o meu trabalho de
repetidamente nas falas dos atletas, seja no cotidiano ou nos depoimentos colhidos
formalmente. Ela é uma marca registrada de muitas entrevistas, sendo evocada como
168
exemplo daquilo que deve ser combatido, ou até mesmo como exemplo daquilo que um
O tema da “superação” era algo que aparecia com grande força e sua
“superação” se colocava como um conceito que estava presente na fala dos atletas, mas
também nos discursos dos dirigentes, nos materiais institucionais ligados ao movimento
Mas da mesma forma que ela era tão presente e tão mencionada na demarcação dos
mais variados assuntos, por essa mesma razão também parecia ser uma categoria
esvaziada de sentido. Sendo assim, resolvi encará-la como uma importante ferramenta
discursiva que pode ganhar sentidos diversos que provém de diferentes agentes no
pesquisa realizada. Muitas vezes aquelas expressões surgem em fórmulas mais simples
como “coitadinho” e “herói”. A meu ver essas construções são intercambiáveis e não
denominação que estão presentes neste campo, mas fiz esta escolha por uma questão
resultado final, ao mesmo tempo em que não deixava de ser também o princípio de
quando os informantes falavam dos elementos que diziam respeito à construção de uma
alguma mudança na visão das pessoas sobre ela depois que se tornou atleta. Ela
responde: “Para as pessoas que já me conheciam e que me conhecem agora mudou. Não
me vêem mais como uma pessoa ‘coitadinha deficiente’, hoje em dia me vêem como
atleta. Mas existe sim. Já passei por isso muito”. E depois completa: “Porque você
querendo ou não a imagem que todo mundo tem do deficiente físico é o coitadinho que
tá dentro de casa, não tem força nem pra respirar. Mas pelo contrário, eu tenho força
para lutar, pra ir pra guerra”. Ao perguntar sobre o papel que as pessoas com deficiência
teriam na construção dessa imagem ela teceu alguns comentários que em vários
170
Acredito não ser necessário citar outros tantos trechos de entrevistas onde
surgem falas similares a essas que foram mencionadas. De qualquer formam, a questão
depoimentos fica claro o quanto uma construção desses sujeitos como pessoas com
deficiência se cruza com outras percepções consideradas como sendo externas ao grupo,
em muitos testemunhos que colhi ao longo da minha pesquisa. É dessa forma que aquilo
que os informantes apontam como a construção de uma auto-estima por parte das
pessoas com deficiência aparece também aliada às visões que estão presentes na
sociedade como um todo e que não se restringem àqueles que estão incluídos no
mostrar a riqueza de percepções sobre o atleta com deficiência e, por extensão, sobre a
pessoa com deficiência. Conversei com um dos nadadores da seleção depois das
pude perceber que o assédio em torno dele havia aumentado desde a época em que nos
vimos pela primeira vez. Toda essa mudança me fez pensar sobre como aquelas pessoas
estariam olhando para o atleta e mais especificamente para a sua deficiência e perguntei
se ele achava que nos seus contatos com o público mais geral haveria uma idéia de
penalização em torno de sua condição física. Ele me respondeu que isso ocorria algumas
vezes, ainda que o objetivo deles fosse justamente o de combater a figura do “coitado” e
me descreveu uma interessante experiência para que eu pudesse entender com mais
Ele contou que tinha ido dar uma palestra em Joinville para um público de
comerciantes com o perfil de classe média alta. Disse que falou sobre a sua história de
vida e da sua entrada no esporte que, segundo ele, possuiria percalços e dificuldades
como qualquer outra trajetória. Mas, ao final da palestra, uma senhora teria se
aproximado dele chorando e lhe oferecendo uma quantia em dinheiro. Ele conta que
explicou para a senhora que se sentiria mal se aceitasse e tentando manter a polidez
disse com firmeza que não estava ali para pedir esmolas e que, inclusive, tinha sido
contratado e pago para fazer aquele trabalho. Depois, num tom enfático, ele afirma o
seguinte para mim: “A gente não quer pena. A gente não quer, por exemplo, que uma
pessoa patrocine a gente pra mostrar esse lado de coitado, sabe? História triste todo
mundo tem. Todo mundo tem uma história triste. A vida é feita de altos e baixos”.
Não era a primeira vez que ouvia histórias como essas de pessoas que se
aproximavam dos atletas para oferecer dinheiro sem que eles tivessem pedido. Vários
172
casos eram relatados e aconteciam principalmente com aqueles que possuíam uma
deficiência física mais visível. Num desses episódios um atleta estava numa cadeira de
rodas num ponto de ônibus quando foi abordado por alguém que lhe ofereceu uma
pequena quantia em dinheiro. Sua resposta foi a de que não queria esmolas e que apenas
Outro assunto que surgiu durante a mesma entrevista foi sobre o trabalho
com palestras motivacionais que alguns atletas têm realizado principalmente junto a
empresas. Esse nadador está entre os profissionais que participam desse tipo de evento.
Ele faz parte da classe S10 e possui uma deficiência pouco visível. Por essa mesma
razão ele conta que teria sido questionado se a sua atitude de ir com bermuda para a
palestra e tirar o tênis para que as pessoas visualizassem a sua deficiência não seria uma
opção apelativa. Ele se defende e afirma que ao fazer isso estaria tentando chamar a
atenção do público para um traço do seu corpo que de outra forma não seria
visualizável. Ele também argumenta que o seu objetivo é expor a deficiência para que
ela possa ser encarada como natural no sentido mesmo de impedir que as pessoas
venham a sentir pena da sua condição física. O “apelo”, nesse caso específico,
costuma estar escondido, e não um convite para uma “história triste”. Contudo, surgem
mais à frente outros dados relacionados ao tema da piedade e da maneira como ela pode
que possui certo peso na projeção profissional do atleta. Ele afirma: “O nosso mundo
gosta de desgraça. (...) Mas aí que tá. Talvez ele não seja tão diferente. Talvez a minha
história seja até pior do que a dele, ou não. Enfim...”. É dessa forma que uma
deficiência física mais explícita enquadra-se mais no imaginário que associa uma
173
determinada condição física a uma vida ruim, difícil ou triste, quando pode não ter
Pesquisadora: Que ideias você acha que devem estar associadas à imagem
pública de um atleta paraolímpico?
Atleta: Eu vou ser muito cruel naquilo que eu vou falar, mas hoje eu ainda
vejo... Muita gente pensa diferente, mas eu ainda vejo muito - e nós enquanto
atletas - essa questão da deficiência, da inclusão, do coitado.
Pesquisadora: Então, por enquanto, esse ainda é o foco de uma exposição
pública?
Atleta: Sim. Pra você ter um espaço às vezes na tevê o cara vai contar uma
história triste e no final ele vai falar dos seus resultados. (...) Teoricamente é
justamente isso que a gente não quer. A gente quer ser reconhecido como um
atleta.
desejo de ser reconhecido apenas pelo lado profissional. Ao acompanhar este mesmo
atleta em um evento, pude perceber como o seu depoimento era condizente em muitos
aspectos com o formato e o conteúdo daquela iniciativa. Ele iria participar com outros
pela TV Tribuna, afiliada local da Rede Globo - estava na sua quinta edição e tinha
cidade, uma das organizadoras recebeu o atleta que se juntou aos outros colegas numa
área na plateia que já estava reservada para eles. As atividades daquele dia já haviam
começado. Foi possível ainda ver um painel intitulado “A superação de limites através
174
do esporte” que contava com a participação de alguns atletas com deficiência, não
críticos – com destaque para a ocorrência do trauma responsável pela deficiência – eram
o ponto de partida de uma trajetória de triunfo sobre a tristeza, triunfo este que teria sido
proporcionado pela prática de um esporte. Tanto no caso da remadora que tinha sofrido
a amputação de uma das pernas, como no caso do surfista que tinha ficado cego –
Neles estavam presentes imagens da infância, da família, assim como depoimentos dos
pais e dos amigos íntimos. Aquele tipo de material visual não era novidade para mim.
Embora estivessem tratando de diferentes histórias, aquele formato era bastante comum
nos vídeos e documentários que eu já tinha visto, como no episódio que descrevi no
capítulo 3.
atletas paraolímpicos” foi passado pela organização do evento um vídeo que misturava
imagens do Parapan no Rio com imagens dos Jogos de Atenas. Lembro que quando
chegamos ao evento a organizadora que recebeu o atleta perguntou se ele havia levado
algum tipo de material para ser mostrado. Ele respondeu que não tinha nada com ele
porque a sua assessora não o tinha alertado para aquela necessidade. O fato é que
nenhum deles havia levado vídeos pessoais, embora todos sejam possuidores de alguma
produção desta natureza. Este tipo de material é o principal suporte das palestras
empresários ou os próprios atletas selecionem as ocasiões em que esse material deve ser
divulgado, evitando que a sua vulgarização venha a destituí-lo de valor. Ainda assim, a
175
ausência desse material não impediu que eles também rememorassem as dificuldades na
considero enriquecedores para a presente discussão. O que ele trata como “política da
esfera pública. Nesse novo contexto, caracterizado por uma complexa malha social, a
ambiente que propicia uma maior troca de informações é o mesmo que possibilita a
encontra num terreno também marcado pelo distanciamento e pelo anonimato urbano.
Como resultado, se constrói um novo tipo de espectador. Na relação que estabelece com
aquilo que vê está contida uma tensão entre a reserva e a participação, entre a
engajamento não é dado por raciocínios meramente pessoais e apriorísticos, mas pelo
movimento das opiniões e dos debates que perpassam a realidade social mais ampla.
Nesse sentido, o olhar do espectador – que está em contato permanente com outros
espectadores - é totalizante, assim como o sentido da piedade. Dessa forma, penso que
essas proposições servem como uma importante referência para a compreensão da força
brasileira e com uma deficiência física mais visível, também foi possível tratar de várias
questões que envolvem o debate sobre a construção dos olhares acerca da deficiência.
Ele me conta que um dos momentos mais marcantes e emocionantes da sua vida foi
quando teve contato com crianças com deficiência e sem deficiência, mas que se
176
expressavam basicamente da mesma forma: “Poxa, quando eu crescer eu quero ser igual
a você”. Seguimos falando o quanto soava interessante o fato de crianças que não
possuíam deficiência afirmarem o seu desejo de serem como ele: um atleta com um
comprometimento físico bem visível. Parece que naqueles contatos eles não estariam
identificando uma pessoa com deficiência, mas apenas um nadador medalhista que
separação sugerida por mim seja possível. Ele pensa que no seu caso, depois do longo
caminho que percorreu no esporte, em primeiro lugar as pessoas se interessariam por ele
enquanto atleta, depois como pessoa, e, só por último, viria a preocupação com a
deficiência.
No momento em que conversávamos sobre essa questão pude ter acesso à opinião de
mesmo ambiente que a gente. Ela interrompe a entrevista e diz não concordar com o que
o seu cliente estava falando. Para ela, qualquer olhar para a pessoa com deficiência, seja
ela campeã ou não, incorpora em algum nível a visão do “coitado” e confessa que esse
Depois o meu entrevistado interrompe a fala da sua assessora para novamente expor
los naquilo que tinha se tornado um pequeno fragmento de disputa pela caracterização
de como seria esse olhar do “outro” – que, no caso, é principalmente aquele considerado
177
relação ao atleta com deficiência. Meu entrevistado, então, reafirma o poder que teria a
pessoa, que não estaria restrita àquilo que ela pode fazer na piscina, mas no quanto de
independência ela pode alcançar no seu cotidiano e na vida pessoal. Ele acredita que
uma das funções do esporte tem sido a de reverter a visão negativa da sociedade sobre a
Novamente sua assessora entra no debate e diz que tem uma opinião
diferenciada e que talvez isso aconteça porque pode ver as coisas de uma forma mais
distanciada. Ela afirma que aquilo que o atleta com algum renome mais vivencia é o
autógrafo”. Mas existiria a “outra parte da história”, onde seria possível perceber alguns
detalhes que a euforia dos contatos com o ídolo muitas vezes mascara. Essa assessora,
que também já representou atletas sem deficiência, diz que nas vezes em que falou com
os seus amigos sobre o trabalho que desenvolvia com os paraolímpicos a reação era
quase sempre a mesma: “Poxa! Que legal!”, sem que fosse colocada nenhuma outra
questão, como ocorria quando falava dos atletas convencionais. Para ela esse “legal”
demonstrava um “tom de pena”, onde a forma lacônica poderia indicar que seus colegas
decididamente não acreditavam que aquele tipo de trabalho pudesse de fato ser
atleta paraolímpico é meio grotesco, porque ele precisa ter um grande destaque e ganhar
uma grande quantidade de medalhas para ser reconhecido. Entro finalmente no debate, e
digo que, talvez, existam nuances nessas visões que ela descreve. E aí ela afirma que “as
coisas variam dependendo do nível social e da faixa etária. Entre os mais velhos tem
178
muito a coisa do coitado”. Depois volto à entrevista com o atleta sobre o mesmo
assunto.
olímpicos com os paraolímpicos, ele faz outras ponderações sobre a questão da piedade
e da construção de uma imagem. Diz que conhece muitas pessoas dentro e fora do
esporte e acha que poderia falar com certa tranquilidade que hoje eles não são mais
vistos pelos atletas convencionais como “coitados”. Ele acredita que os paraolímpicos
podem estar no mesmo patamar de profissionalismo dos olímpicos, mesmo que tenham
as suas dificuldades específicas. Mas para ele o entrave maior para uma maior
construção e da percepção dos vários olhares surgiu e a questionei se ela já teria sentido
179
“nesse olhar” que ela descrevia uma atitude preconceituosa. Ela ri e não responde
diretamente à questão, mas diz que adora chegar a um lugar e se “sentir por cima”,
tentando romper dessa forma com o que seria a imagem da “deficiente aleijada” e
apresentando como alternativa uma maneira própria de “impor respeito”. Aqui surge a
1985:25).
final de tarde estava de saída da associação justamente no momento em que ela estava
chegando para treinar. Um dos dirigentes da entidade que estava conversando comigo
vai ao encontro dela para pegar a sua cadeira de rodas na parte de trás do carro. Eu
também me aproximo e ele aproveita para apresentá-la para mim. Ao perguntar quem eu
era e o que eu fazia o seu tom era retórico, pois pelo menos naquele momento não
parecia realmente interessada na resposta. Esse encontro aconteceu logo nos primeiros
disso, penso que ela percebeu quase de imediato que eu era estranha não só para ela,
mas para todo aquele grupo. Eu também não tinha conhecimento na época de que a
maneira mais indicada de se falar com uma pessoa cadeirante é se colocando no nível
ao cumprimentá-la senti a direção do seu olhar de cima para baixo. Lembro de ter me
sentido um pouco intimidada, embora o momento tenha sido breve. Pela maneira como
outras vezes em que nos encontramos. Ao contrário, ela se mostrou depois uma pessoa
bastante acessível. Tivemos uma ótima convivência que estabeleceu laços de amizade
daquele primeiro contato tinha poder suficiente para ilustrar na minha cabeça aquilo que
ela relatava no momento da entrevista. Na minha memória, o seu olhar remetia a uma
figura de autoridade que parecia querer pautar as minhas primeiras impressões sobre
ela. Frente à sua postura de força, segurança e altivez deveria, definitivamente, ser
impositiva nos ambientes onde estavam também me fez pensar em todo um conjunto de
sentimentos que poderiam estar sendo reprimidos tais como tristeza, angústia, medo e
Com diversas falas e imagens em mente, não pude deixar de pensar no quanto
a sustentação disso poderia ser desgastante se nos focamos nas interações do cotidiano,
onde os indivíduos – uma vez incluídos no mesmo tempo e espaço - ensaiam e atuam
figuram como novidade se nos reportarmos às discussões sobre o esporte num sentido
mais amplo. Mas percebo que uma espécie de obrigação de felicidade e de saúde já
discutida em alguns trabalhos (Bruckner, 2002; Herzlich, 1986 e Steinmetz, 1998) surge
meio em que atuavam era uma um clima de “energia positiva” que tinha o poder de
deles estaria nas próprias imagens de “superação” com as quais eles conviveriam
trabalhar com o esporte paraolímpico: “Olha eu fico muito grato em trabalhar com essas
pessoas, viu? Não são nada diferentes, né? São super alegres, te dão assim um valor
muito grande na sua vida e no dia-a-dia”. Sabendo do fato de que ele também treina
perna, não tem braço e tá alegre o dia inteiro, te passa uma energia positiva.
Não tem porque eu ficar desse jeito reclamando da vida”, entendeu? Mas
acho que é a superação aí, né?
significado mais exato sobre ela. O meu interlocutor confessa ser muito complicado se
expressar sobre esse tema. Mesmo que as pessoas usem muito a palavra “superação”
considera a pergunta difícil de ser respondida, mas ele pensa um pouco e correlaciona
esta noção a uma limitação em algum sentido que alguém sofre e à sua luta para
ultrapassar os obstáculos. Para ele, o sentido disso ficaria muito claro nas demandas
colocadas pelas empresas na hora de patrocinar os atletas e naquilo que a mídia buscaria
para expor e afirma: “Eles querem mostrar que o cara mesmo sem perna e sem braço
vem à tona quando fala do atleta que treina: “Ele é alegre daquele jeito mesmo com
deficiência”.
atletas para palestras motivacionais. Como explica meu interlocutor: “(...) a mídia e
essas empresas que contratam as palestras querem mostrar pros funcionários que eles
não têm que ter deficiência, que eles têm que ser alegres, tem que a todo o momento não
Nessa entrevista uma função mais empresarial das palestras foi citada
inicialmente sem nenhum tom crítico. A exposição do atleta como um fator para a
produtividade da empresa apareceu bastante naturalizada nessa fala, mas nem sempre
183
esta era a opinião das outras pessoas com quem pude conversar sobre este assunto.
Muitos falavam que essas apresentações se colocavam como uma oportunidade para
momento, surgiu posteriormente algo que parecia destoar de uma fórmula que poderia
ser favorável para todos os envolvidos. Ele diz: “Então as empresas gostam de ver as
da piedade pela pessoa com deficiência ainda seria a tônica desses eventos, tendo em
vista o poder que ela teria de mobilizar e despertar alguns tipos de emoções. Ao
entrevistar outro técnico ele fala do impacto maior que a visibilidade da deficiência pode
ter, pois, “quando, por exemplo, uma pessoa com muletas ou cadeira de rodas é
pessoas com maior deficiência física podem utilizar essa condição a favor delas dentro
mais visível e “adequada” o que seria a deficiência, podendo capitalizar mais recursos
elemento que coloca a pessoa numa situação de prejuízo. Assim, segundo um técnico
que treina um nadador com uma má-formação congênita aparente, seu atleta seria aquele
que melhor representaria uma pessoa com deficiência física no esporte, pois é possível
184
olhar para ele e imaginar as suas dificuldades. Nesse sentido, além dos resultados
expressivos que um atleta precisa ter, um dos requisitos fundamentais para que ele se
torne um ícone paraolímpico seria a visibilidade da sua deficiência, o que não ocorreria
com muitos atletas que pertencem às classes mais altas do esporte. Ele se expressa em
tom enfático sobre o seu atleta: “Hoje ele é o cara pra fazer qualquer tipo de
que pude me certificar que embora uma ideia de “superação” associada e demarcada
pela ultrapassagem das dificuldades físicas predomine nos relatos que obtive dos meus
informantes, ela não pode ser considerada como uma visão unânime. A esse respeito
forma, exteriores ao próprio movimento, como aquelas advindas, por exemplo, das
tendo em vista que essas instituições estão em constante relação com o movimento
185
paraolímpico no sentido de negociar aquilo que deve ser propagado como a imagem
mais adequada para definir o esporte e os seus atletas. A forma como estes devem ser
Para ilustrar essa questão, destaco outro evento que acompanhei na cidade de
São Paulo no ano de 2008: a Virada Esportiva. Esse projeto, que estava na sua segunda
edição tinha como objetivo promover na cidade de São Paulo uma série de atividades
esportivas durante 24 horas. Por meio da assessora de um atleta que havia sido
voltadas exclusivamente para divulgar o esporte para a pessoa com deficiência. Elas
foram realizadas na parte de trás do Estádio do Pacaembu, onde havia uma piscina
externa e um ginásio. Com a ajuda da assessora, consegui ter acesso a área onde ficava
estava gravando uma matéria. Aliás, o repórter que fazia a entrevista com o nadador
repórter, que demonstrava algumas dificuldades, era auxiliado pelo atleta pertencente à
classe S10. Depois, o atleta fez sozinho uma demonstração do seu nado. A inabilidade
operação não era excludente. Havia espaço na reportagem para a sobreposição de duas
decorrer desse tempo, havia chegado uma nadadora cega da seleção paraolímpica
brasileira. Ela também demonstrou o seu nado, sendo acompanhada posteriormente pelo
atleta S10. Cada participação dos nadadores era narrada para o público por um mestre
de cerimônia. Nesses momentos, ele aproveitava para falar da carreira dos atletas,
Depois também era anunciado o início de um “revezamento gigante”, que contava com
pareciam destoar desse perfil. Ao longo do dia, enquanto esse mesmo público ia
modalidades que haviam participado dos Jogos de Pequim. Eles seriam os grandes
homenageados da noite.
exemplo vivo da distribuição dos grupos que atualmente possuem algum tipo de ligação
Nossa Caixa, a secretária municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência, uma
estavam sentados nas cadeiras que estavam dispostas de um dos lados dos painéis,
em sua maioria, esses participantes não se dirigiam para os atletas ou para a plateia.
Geralmente pegavam o microfone e olhavam para a direção dos outros convidados que,
impressão que eu tinha com a assessora do atleta. Ela decidiu pedir esclarecimentos ao
seu lugar para receberem as premiações. Os fotógrafos registravam com frenesi toda
relação distanciada entre esses grupos. Mas se isso ocorria no plano de uma interação
mais direta, no plano institucional havia uma aproximação pautada basicamente por
mobilizar aquilo que pode ser assimilado da melhor maneira possível por um público
mais geral que deseja atingir. No caso específico desse evento, o público alvo parecia
raramente se fica falando sobre a história de vida deles. Chega a passar, mas
para os paraolímpicos seria uma coisa de “pieguice”.
Mas essa demanda mais geral não é única e pode se articular, se sobrepor ou
disputar conceitos com as instituições que estão no topo da estrutura que rege o
Nesse sentido, é importante destacar que no ano de 2006 foi produzido pelo CPB um
vídeo cujo nome era “Herói Guerreiro”, com o intuito de divulgar os atletas brasileiros
tanto para os Jogos Parapanamericanos de 2007 na cidade do Rio de Janeiro como para
os Jogos de Pequim no ano seguinte. Considero esse material exemplar no que diz
organizados tanto pelo CPB, quanto pelas associações e clubes a ele ligados.
umas cinco exibições desse vídeo, nos mais variados tipos de eventos. Assim como
ainda está claro na minha memória um coro de vozes que sempre acabava
acompanhando a música que faz parte do vídeo. A propósito, tanto o material visual
como o musical possuem o mesmo título e nas vezes em que o observei, não poderia
imaginar como funcionaria uma coisa sem a outra, pois é justamente esta simbiose que
parece ser tão eficaz no sentido de despertar emoções na plateia. Esse material marcou
quase todo um ciclo paraolímpico no Brasil e, justamente por isso, resolvi tomá-lo como
Herói Guerreiro49
E ao fogo retornarão!!!
49
A letra, a música e os arranjos são de Sérgio Carrer, um produtor musical também conhecido como
Feio. No vídeo, ele também interpreta a música juntamente com a ex-cantora mirim de músicas sertanejas
Yasmim Lucas.
191
E pode acreditar,
Um futuro campeão.
Na primeira estrofe da música a letra não é cantada, mas narrada por uma
voz masculina em off. A primeira imagem que surge na tela mostra as águas de um mar
compõe com outros instrumentos o fundo musical dessa parte inicial do vídeo. Na
olímpica. Aliás, essa última cena se conjuga com a parte da letra onde o fogo aparece
queda onde a pessoa se ergue novamente, ou quando não é mais possível controlar o
choro proveniente de uma derrota. Nesse momento, duas vozes, uma masculina e outra
Já no refrão, que se repete três vezes no final desse vídeo de cerca de cinco
minutos, as vozes se misturam e são associadas imagens que expõem, entre outras
medalha. O filme se encerra com a mesma imagem do mar e com o barulho de ondas
que haviam aparecido no seu início. Quando os créditos começam a ser mostrados, toda
O tema desse vídeo nos remete para algumas questões que foram tratadas no
item anterior. Através dele podemos ver como alguns elementos, já citados na fala dos
atletas e de outros informantes, são reforçados por meio de outra linguagem. Nesse
material de divulgação, música e imagem imprimem uma forte carga emocional à ideia
(1994) sobre a visão e a percepção através do cinema, arrisco afirmar que a “realidade”
apresentada no vídeo do CPB mostra algo para além dela mesma. Ela ultrapassa a marca
da pura cognição e dialoga com a experiência sensorial do espectador. Por outro lado,
essa experiência é mediada por uma tela que atualiza de forma simulada a realidade e a
desse trabalho – dá um exemplo de toda a sua capacidade. Mas, no caso deste vídeo,
acredito que a ausência do atleta não seja necessária para que o seu corpo seja
heróis. Esse tipo de investimento coloca a ideia de superação numa escala muito maior,
parece servir de forma mais eficaz para expressar ideais sobre o esporte que são
concebidos dentro da estrutura mais formal do movimento e que, por sua vez, se
encontram mais distanciados do grande público. Nesse sentido, cabe recolocar o alerta
feito por Douglas (2007) quando afirma que uma importante tarefa para os cientistas
sociais e a investigação sobre o papel das instituições. Para a autora, elas desempenham
uma importante função na seleção de categorias básicas que terão um papel ativo no
É por essa razão que muitos dos meus atletas informantes eram críticos a
público. Para eles, essa operação de afastamento, realizada através da figura do “herói”,
acabaria requisitando, por sua vez, a exposição de trajetórias de vida tristes e sofridas,
“herói”. Essas noções geralmente convivem juntas, mas também disputam por uma
194
hegemonia que tem a ver com as demandas de construção de imagem que partem não
somente dos atletas individualmente, mas também de grupos e setores que fazem parte
“herói” estão inseridos no mesmo contexto, mas não possuem o mesmo peso. A eficácia
ordem da interação face-a-face, como dentro de uma ordem mais geral e grupal.
Vimos como uma maior visibilidade da deficiência física pode trazer mais
que tenha um impacto mais visual e que, num certo sentido, se assemelhe àquilo que é
apresentado pela natação olímpica. Tal perspectiva tem colaborado decisivamente para
Mais uma vez fica claro como a disputa entre atletas com graus
mas o celebra e rememora como uma marca de pertencimento ao grupo. E nesse registro
195
grupal não anula os embates em torno da produção do seu conteúdo e da sua forma,
“herói”. Dessa forma, as lutas internas por hegemonia possuem relação direta com o
sucesso ou fracasso na elaboração dessa categoria, que passa a ser cara não somente
para os atletas, mas para todas as entidades que dão suporte institucional ao movimento,
assim como para as agências que atuam mais diretamente na divulgação e publicidade
do esporte paraolímpico.
196
Considerações finais
centro da análise as leituras realizadas pelos próprios atletas, subsidiadas por histórias
dele que se realiza um mapeamento inicial do corpo do atleta. Além disso, nas
para o nadador – é exigida a presença do médico. Nesse sentido, é possível ver como
50
Apropriando-me da análise de Foucault, acredito que também seja possível pensar nesse corpo
deficiente no esporte como uma conjunção específica de “corpo como máquina” e “corpo-espécie”; o
primeiro tipo visto como expressão da ampliação de capacidades corporais e o segundo como “corpo
transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte de processos biológicos” (Foucault, 1988: 152).
197
deficiência marcadas por identidades políticas ou sociais. Mas essa primeira delimitação
é mais “bruta”. Como foi apresentado, o sistema também lida com fronteiras sutis que
código se impõe enquanto discurso hegemônico, mas precisa lidar com outras
cruzam com outros dados relacionados às subjetividades dos atletas. Sendo assim, creio
que seja possível pensar em dois campos nativos de produção de categorias sobre corpo
realidade que deve replicar na construção do texto antropológico. Por meio desses
mesmos discursos, foi possível ver neste trabalho como o jogo entre a diferença e a
igualdade entre nadadores paraolímpicos toma várias dimensões num campo que não é
mais amplo, de maneira que nesta tese não me detive apenas na descrição de um corpo
momentos em que se fixavam na história da sua deficiência, foi possível visualizar que
o que está em jogo não é apenas uma retrospectiva de caráter corporal, mas também os
tipos de relações sociais e afetivas que se estabelecem entre eles, as outras pessoas e o
para que cada sujeito construa a sua percepção e entendimento sobre o que é ser
processo. Nos depoimentos fornecidos pelos atletas, ela aparece como o repositório das
congênitos. Ela não se coloca apenas como um canal, mas também como uma agência
mediadora das construções sobre corpo e deficiência física presentes nos círculos
sociais mais amplos. Contudo, é necessário ressaltar que esse aprendizado não se
que as relações sociais não podem estar destacadas dos sistemas individuais de
percepção (Ingold, 1991). Aliás, é justamente porque existem essas variadas formas de
engajamento que não é possível falar de uma única forma de lidar com a deficiência,
199
mesmo dentro de um quadro mais geral onde ela aparece dividida em casos congênitos
e não-congênitos.
foi mostrar como o aprendizado sobre a deficiência ganha novos contornos e inclui
outros planos no momento em que o indivíduo começa a praticar o esporte. Penso que
tanto no seio familiar como no contexto das associações é possível falar da existência de
da deficiência e que perpassam esses espaços, e as percepções que surgem nos modos
diferenciado.
entre uma lógica subjetiva dos atletas, relacionada à constituição de universos interiores,
perspectiva lançou luz sobre alguns conflitos vinculados ao embate entre projeções
familiares e projetos individuais do atleta. Mas como foi visto, essas tensões não se
desdobram necessariamente num afastamento entre essas duas esferas da vida social. Ao
canalizar a energia das suas ações e as temáticas das suas emoções para um terreno
institucional.
esporte. Em sua maioria, eles apontam o incremento das relações sociais como um dos
sociabilidade, marcada pelo contato com os “iguais”, eles têm a oportunidade de refletir
sobre a sua própria condição física. De qualquer forma, essa identificação do indivíduo
200
com um grupo pode se dar de uma maneira oscilante, tendo em vista que o “igual” não
O mesmo movimento que permite que uma pessoa com deficiência passe
também a insere num ambiente povoado pela diversidade física que torna complexa a
delimitar o peso que o sistema de classificação funcional tem nesse processo. Aliando a
entre os atletas, procurei mostrar de que forma podem ser constituídas e reelaboradas as
linguagem jocosa para falar da deficiência. Para entendê-la tentei não buscar
pudesse servir como crítica velada a uma “terminologia adequada”, não foi possível
agindo como uma espécie de marca de pertencimento grupal; pertencimento este que
201
abarcava não apenas os atletas com deficiência, mas também todo um círculo social
composto não apenas pelos chamados “iguais”, mas também pelos “informados”.
Por outro lado, o uso da jocosidade se inseria num campo discursivo mais
principalmente nos casos em que ela aparecia associada de uma forma rígida a algumas
sentido, a jocosidade também servia como um dos instrumentos possíveis para ser
combate ao “deficiente coitadinho” servia como resposta a um problema que não era
longo da pesquisa foi ficando claro para mim que a tarefa de elaborar e divulgar uma
imagem positivada não somente para os atletas, mas para qualquer pessoa com
com o movimento.
A relevância dessa tarefa ficou ainda mais clara a partir da sua exposição
atleta incansável que tenta ultrapassar todas as barreiras. Dentro desse contexto, e a
partir da relação dialética que se estabelece entre esses dois personagens, é forjada a
202
categoria de “superação” no esporte paraolímpico. Longe de ser uma noção estática ela
paraolímpico.
que, ao menos em termos institucionais, parece ser o hegemônico - opera com um alto
marketing e patrocínio.
atleta vencedor. Mesmo tendo encontrado no campo muitas críticas a esse modelo, pude
essa mesma concepção. Um exemplo disso pode ser encontrado no tipo de material que
dificuldades passadas pelo atleta nas esferas pessoal e profissional, assim como a sua
Essas imagens, por sua vez, cumprem o papel de mobilizar emoções que também
203
projetada na tela.
de comunicação do movimento com outros setores da sociedade. Por outro lado, como
procurei mostrar em outro ponto desta tese, o discurso da "superação" também funciona
às cisões internas do movimento e figurando como uma espécie de traço identitário mais
dessa categoria tão cara ao movimento paraolímpico brasileiro se encontra num terreno
de disputas. Uma delas, aliás, diz respeito à própria definição sobre qual o corpo que
desempenho efetivo do nadador na piscina, mas que pode ter o seu resultado
um campo social e econômico mais amplo. Por outro lado, não podemos esquecer que
corpo a uma grande massa de treino onde, muitas vezes, precisam ultrapassar os limites
movimento paraolímpico, parece ser uma imagem cada vez mais distante. Ao contrário,
acredito que as novas exigências com relação a uma performance atlética podem
51
Haraway entende o “corpo ciborgue” como um símbolo do entrelaçamento cada vez mais intenso entre
biologia e tecnologia. A constituição daquilo que pode ser considerado como pós-humano é fruto de
novos questionamentos sobre a relação entre natureza e cultura que se inserem num conjunto de
205
desenvolvimento desse campo de estudos, da mesma forma que esta tese se apresenta
como mais uma contribuição para que a temática da deficiência conquiste um maior
transformações tecnológicas, políticas e sociais presentes na virada do século XX para o XXI. Tais
transformações se desdobram em novas formas de diálogo entre as ciências. Segundo ela: “As ciências da
comunicação e a biologia caracterizam-se como construções de objetos tecno-naturais de conhecimento
nas quais a diferença entre máquina e organismo torna-se totalmente borrada; a mente, o corpo e o
i instrumento mantêm, entre si, uma relação de grande intimidade”. Ao tratar dessa nova relação entre o
técnico e o orgânico a autora destaca o tema da deficiência como uma fonte de observação desse
processo, e afirma: “Talvez os paraplégicos e outras pessoas seriamente afetadas possam ter (e algumas
vezes têm) as experiências mais intensas de uma complexa hibridização com outros dispositivos de
comunicação”. Ver Haraway, 2000:73 e 100.
206
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ANEXO I
S1 – Lesão medular completa [1] abaixo de C4/5, ou pólio comparado [2], ou paralisia
S3 – Lesão medular completa abaixo de C7, ou lesão medular incompleta [3] abaixo de
S4 – Lesão medular completa abaixo de C8, ou lesão medular incompleta abaixo de C7,
opostos.
dos joelhos, ou amputação dupla das mãos, ou paralisia cerebral de diplegia mínima.
S9 – Lesão medular na altura de S1-2, ou pólio com uma perna não funcional, ou
S10 – Pólio com prejuízo mínimo de membros inferiores, ou amputação dos dois pés,
coxofemural.
[1] Quando não existe movimento voluntário ou sensação abaixo do nível da lesão.
[2] Situação onde a lesão provocada por poliomielite se compara a determinado quadro
de lesão medular.
[5] Tipo de paralisia relacionada a lesões no encéfalo e que atinge apenas um dos lados